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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


UM SONHO / Ivan Turgueniev
UM SONHO / Ivan Turgueniev

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

Biblio VT

 

 

 

 

Naquela época, eu morava com minha mãe numa pequena cidade à beira-mar. Completara dezessete anos e minha mãe ainda não tinha trinta e cinco; ela se casara muito jovem. Meu pai faleceu quando eu tinha apenas seis anos, mas lembro-me bem dele. Minha mãe era de pequena estatura, loura, com um rosto encantador, porém eternamente triste, com uma voz mansa e cansada, e de gestos tímidos. Na mocidade, era famosa pela beleza e até o fim permaneceu atraente e gentil. Não vi olhos mais profundos, mais ternos e melancólicos, cabelos mais finos e macios, não vi mãos mais graciosas. Eu a adorava e ela me amava. Mas nossa vida não era alegre, parecia que um desgosto secreto, incurável e imerecido corroía, sem cessar, a própria raiz da sua existência. Esse desgosto não se podia explicar apenas com a tristeza pelo meu pai, por maior que ela fosse, por mais que minha mãe o amasse com paixão, por mais que a memória do meu pai fosse sagrada para ela... Não! Ali se ocultava alguma outra coisa, que eu não compreendia, mas que sentia, e sentia de forma vaga e intensa, assim que mirava aqueles olhos mansos e imóveis, aqueles lábios lindos, também imóveis, cerrados sem amargura, mas como que congelados para sempre.
Eu disse que minha mãe me amava; mas havia momentos em que ela me rechaçava, em que minha presença lhe era penosa, insuportável. Ela sentia, então, como que uma repugnância involuntária em relação a mim — e depois se horrorizava, recriminava-se até as lágrimas, apertava-me contra seu coração. Eu atribuía esses acessos momentâneos de animosidade à perturbação da sua saúde, à sua infelicidade... Sem dúvida, tais acessos de animosidade podiam, em certa medida, ser provocados por certos arroubos estranhos, e para mim mesmo incompreensíveis, de sentimentos cruéis e criminosos, que me acometiam de tempos em tempos... Mas esses ímpetos não coincidiam com aqueles momentos de repugnância.
Minha mãe andava sempre de preto, como se estivesse de luto. Vivíamos com fartura e, no entanto, não tínhamos relações com quase ninguém.

 

 

II

Minha mãe concentrou em mim todos os pensamentos e as atenções. Sua vida fundira-se à minha. Esse tipo de relação entre pais e filhos nem sempre é benéfico para os filhos... ao contrário, tende a ser nocivo. Além do mais, eu era filho único... e filhos únicos, na maior parte das vezes, crescem de forma anômala. Ao criá-los, os pais preocupam-se tanto consigo quanto com eles. Isso não é o correto. Não fiquei mimado nem insensível (as duas coisas acontecem com os filhos únicos), mas meus nervos perturbaram-se, desde então, e ademais eu tinha a saúde bastante frágil — puxei à minha mãe, assemelhava-me muito a ela também no rosto. Eu evitava a companhia das pessoas da minha idade; em geral, esquivava-me das pessoas, até com a minha mãe eu conversava pouco. Acima de tudo, gostava de ler, de passear sozinho — e de sonhar, sonhar! Sobre o que eram os meus sonhos, é difícil dizer: na verdade, às vezes parecia-me que estava diante de uma porta entreaberta atrás da qual se escondiam mistérios ignorados, e eu ali ficava, esperava, deixava-me fascinar — não atravessava o limiar — e refletia o tempo todo a respeito do que se achava logo adiante — e esperava sempre, e desfalecia... ou adormecia. Se a veia poética pulsasse em mim, eu teria, sem dúvida, começado a escrever versos; se sentisse uma inclinação para a piedade religiosa, talvez houvesse entrado para um mosteiro; mas, em mim, nada disso existia — e eu continuava a sonhar — e a esperar.

III

Há pouco, mencionei como às vezes adormecia sob a inspiração de sonhos e pensamentos obscuros. No geral, dormia muito — e os sonhos desempenhavam um papel significativo na minha vida; eu tinha sonhos quase todas as noites Não os esquecia, atribuía-lhes uma significação, considerava-os profecias, esforçava-me para adivinhar o seu significado secreto; alguns deles repetiam-se de tempos em tempos, o que sempre me parecia surpreendente e estranho. Um sonho, em especial, me transtornava. Eu tinha a impressão de caminhar por uma rua estreita, mal pavimentada, de uma cidade velha, entre casas de pedra de muitos andares, com telhados pontiagudos. Estou à procura do meu pai, que não morreu, mas por algum motivo se esconde de nós e mora justamente numa dessas casas. De súbito, entro por um portão baixo e sombrio, atravesso um pátio comprido, atulhado de traves e tábuas, e por fim penetro num quarto pequeno, com duas janelas redondas. No centro do quarto está o meu pai, de roupão e fumando cachimbo. Não se parece em nada com meu pai verdadeiro: é alto, magro, de cabelo preto, tem o nariz em forma de gancho, olhos lúgubres e penetrantes; pelo aspecto, tem uns quarenta anos. Não está contente de eu o ter encontrado, eu também não me alegro em nada com o nosso encontro — e fico ali de pé, num estado de perplexidade. Ele se vira ligeiramente, começa a resmungar algo e se põe a vagar, para a frente e para trás, a passos curtos... Em seguida, afasta-se um pouco, sem parar de resmungar, e volta e meia olha para trás, sobre o ombro; o quarto se alarga e se perde na escuridão... De súbito, me acode um pavor ante a idéia de que mais uma vez vou perder o meu pai e atiro-me no seu encalço — mas já não o vejo — e apenas ouço o seu resmungo zangado, como o de um urso... Meu coração pára de bater — eu acordo e, durante muito tempo, não consigo adormecer de novo. Penso no sonho durante o dia seguinte inteiro e, é claro, não consigo chegar a nenhuma conclusão.

IV

Começara o mês de junho. Nessa época, a cidade onde eu morava com minha mãe adquiria uma vivacidade extraordinária. Muitos navios chegavam ao porto, muitos rostos novos surgiam nas ruas. Eu gostava de caminhar, então, pela beira do cais, diante dos cafés e das hospedarias, observar as variadas figuras dos marinheiros e de outras pessoas sentadas sob toldos de pano, diante de mesinhas brancas, atrás de canecas de estanho cheias de cerveja.

Pois um dia, ao passar na frente de um café, avistei um homem que, de imediato, atraiu minha atenção. Vestido num casacão preto e comprido, com um chapéu de palha enterrado até os olhos, ele estava sentado imóvel, de braços cruzados sobre o peito. Ralos cachos de cabelo preto escorriam-lhe quase até o nariz, os lábios finos comprimiam a boquilha de um cachimbo curto. O homem pareceu-me a tal ponto conhecido, todos os traços do seu rosto bronzeado e bilioso, toda a sua figura estava gravada de forma tão indubitável na minha memória que eu não pude deixar de me deter diante dele, não pude deixar de me fazer a pergunta: quem é esse homem? Onde eu o vi? Ao sentir provavelmente o meu olhar fixo, voltou para mim seus olhos negros e ferinos. Sem querer, soltei uma exclamação de surpresa...

O homem era aquele pai que eu encontrava, que eu via no meu sonho!

Não havia possibilidade de engano — a semelhança era assombrosa demais. Até o casacão de abas longas que envolvia seus membros compridos fazia-me lembrar, pela cor e pelo corte, o roupão em que meu pai surgia diante de mim.

“Será que não estou dormindo?”, ponderei... Não... Agora é dia, a multidão se agita à minha volta, o sol brilha com força no céu azul e à minha frente não está um espectro, mas uma pessoa viva.

Aproximei-me de uma mesinha vazia, pedi uma caneca de cerveja para mim — e fiquei sentado a pouca distância daquele ser enigmático.

V

Com uma folha de jornal erguida à altura do rosto, continuei a devorar com os olhos aquele desconhecido. Ele quase não se mexia e só de quando em quando levantava ligeiramente a cabeça abatida. Era óbvio que esperava alguma coisa. Eu olhava, olhava... Às vezes, parecia-me que imaginava tudo aquilo, que a semelhança propriamente dita não existia, que eu havia sucumbido, de forma semi-involuntária, a um ardil da imaginação... mas de repente “aquele” virava-se um pouco na sua cadeira, ou suas mãos levantavam-se ligeiramente — e eu, de novo, por pouco não deixava escapar uma exclamação de surpresa, via mais uma vez diante de mim o meu pai “noturno”! Por fim, ele se deu conta da minha atenção obsessiva, olhou na minha direção, primeiro com perplexidade e depois com raiva, fez menção de levantar-se — e deixou cair uma pequena bengala que havia encostado na mesa. Pulei no mesmo instante, apanhei a bengala e entreguei a ele. Meu coração batia com força.

O homem deu um sorriso crispado, agradeceu-me e, depois de aproximar o rosto do meu, ergueu as sobrancelhas e abriu um pouco os lábios, como se algo o tivesse surpreendido.

“O senhor é muito cortês, meu jovem”, disse, de súbito, com voz cortante, seca, anasalada. “Nos tempos atuais, é uma raridade. Permita que eu parabenize o senhor: recebeu uma boa educação.”

Não lembro o que respondi exatamente, mas logo entabulamos conversa. Vim a saber que ele era meu compatriota, que voltara pouco antes da América, onde vivera muitos anos e para onde em breve partiria. Chamava-se barão... não consegui ouvir bem o nome. Assim como o meu pai “noturno”, concluía todas as falas com um resmungo obscuro, voltado para dentro. Quis saber o meu nome de família... Depois de ouvi-lo, pareceu espantar-se de novo; em seguida, perguntou-me se havia muito que eu morava nessa cidade, e com quem. Respondi que morava com minha mãe.

“E o pai do senhor?”

“Meu pai morreu faz muito tempo.”

Inteirou-se do prenome de minha mãe e, no mesmo instante, desatou uma risada inconveniente — depois pediu desculpas, dizendo que tinha aquele costume americano e que era, em geral, um grande excêntrico. Em seguida, mostrou-se curioso por saber onde ficava nossa residência. Eu lhe disse.

VI

A comoção que tomara conta de mim no início de nossa conversa amainou aos poucos, achei nossa aproximação um pouco estranha — e mais nada. Não gostei do sorrisinho com que o senhor barão me interrogava, tampouco gostei da expressão dos seus olhos quando ele parecia cravá-los em mim... Havia naqueles olhos algo de rapinante e também de protetor... algo horrendo. Aqueles olhos, eu não os via no sonho. Como era estranho o rosto do barão! Murcho, cansado e ao mesmo tempo de aspecto jovem, desagradavelmente jovem! O meu pai “noturno” não tinha tampouco a cicatriz profunda que cruzava, na diagonal, a testa inteira do meu novo conhecido, e que eu mesmo não havia notado, antes de me aproximar dele mais um pouco.

Eu mal havia informado ao barão o nome da rua e o número da casa onde morávamos, quando um negro de elevada estatura, envolto numa capa até as sobrancelhas, aproximou-se dele por trás e bateu de leve no seu ombro. O barão virou-se, exclamou: “Arrá! Afinal!”, e, depois de fazer uma ligeira mesura para mim com a cabeça, foi com o negro para dentro do café. Permaneci sob o toldo, quis aguardar que o barão saísse, não tanto para conversar de novo com ele (eu não sabia propriamente que rumo dar a nossas palavras), mas antes para conferir mais uma vez a minha primeira impressão. Porém passou-se meia hora, uma hora. O barão não apareceu. Entrei no café, percorri todas as dependências — mas em parte alguma vi o barão ou o negro. Na certa, ambos haviam se retirado pela porta dos fundos.

Minha cabeça doía um pouco — e eu, a fim de recuperar-me com o ar fresco, dirigi-me para a beira-mar, para um amplo parque do subúrbio, criado cerca de duzentos anos antes. Depois de passear durante mais ou menos duas horas à sombra dos imensos carvalhos e plátanos, voltei para casa.

VII

Nossa criada precipitou-se ao meu encontro, muito alarmada, assim que apareci na entrada. Pela expressão do seu rosto, logo adivinhei que durante a minha ausência algo ruim acontecera em nossa casa. E, de fato, fui informado de que, uma hora antes, no quarto de minha mãe, irrompera de súbito um grito aterrador; a criada que acudira às pressas encontrara-a no chão, desacordada, e assim permaneceu durante vários minutos. Minha mãe, por fim, voltou a si — mas foi obrigada a deitar-se na cama e estava com um aspecto assustado e estranho, não dizia nenhuma palavra, não respondia às indagações — limitava-se a olhar em volta e tremer. A criada mandou o jardineiro trazer o médico. Ele veio e receitou um tranqüilizante, mas nem ao médico minha mãe quis dizer alguma coisa. O jardineiro assegurou que, alguns instantes depois de ressoar o grito no quarto de minha mãe, vira um homem desconhecido passar correndo entre os canteiros de flores do jardim rumo ao portão da rua. (Morávamos numa casa térrea, com janelas que davam para um jardim bem grande.) O jardineiro não havia tido tempo de observar o rosto do homem, mas era um tanto magro, usava um chapéu de palha baixo e um casacão de abas compridas... “A roupa do barão!” — acudiu-me logo à cabeça. O jardineiro não conseguiu alcançá-lo; além disso, chamaram-no às pressas em casa e mandaram-no ir em busca do médico. Entrei no quarto de minha mãe, estava deitada na cama, mais branca do que o travesseiro em que repousava a cabeça. Ao reconhecer-me, sorriu debilmente e estendeu-me a mão. Sentei-me a seu lado, comecei a fazer-lhe perguntas; de início negou, no entanto admitiu, por fim, ter visto alguma coisa que a assustara muito. “Alguém entrou aqui?”, perguntei. “Não”, respondeu, afobada. “Não veio ninguém, mas me pareceu, tive a impressão de ver...” Calou-se e cobriu os olhos com a mão. Eu queria informar-lhe o que o jardineiro me dissera — e aproveitar para contar o meu encontro com o barão... mas, por algum motivo, as palavras morreram nos meus lábios. Resolvi, no entanto, fazer ver à minha mãe que aparições, em geral, não ocorrem durante o dia. “Deixe”, sussurrou, “por favor, não me atormente agora. Um dia, você vai saber...” Calou-se de novo. Suas mãos estavam frias e o pulso batia rápido e descompassado. Fiz com que tomasse o remédio e afastei-me um pouco para o lado para não perturbá-la. Durante todo o dia, não se levantou. Permaneceu deitada, imóvel e quieta, apenas de quando em quando suspirava profundamente e abria os olhos com espanto. Todos, em casa, estavam perplexos.

VIII

À noite, minha mãe teve uma pequena febre — e mandou que eu saísse. No entanto, não fui para o meu quarto — deitei-me num sofá, no cômodo vizinho. De quinze em quinze minutos me levantava, aproximava-me da porta na ponta dos pé, escutava... Tudo continuava silencioso — mas é pouco provável que minha mãe tivesse dormido naquela noite. Quando entrei em seu quarto de manhã cedo, seu rosto parecia afogueado, os olhos reluziam com um brilho que não era natural. No decorrer do dia ela melhorou um pouco, mas à noite a febre subiu outra vez. Até aí, ela se mantivera obstinadamente calada, mas então, de repente, desatou a falar com voz ansiosa e entrecortada. Não delirava, em suas palavras havia sentido — mas não existia nenhum nexo. Pouco antes de meia-noite, com um movimento brusco, espasmódico, levantou-se da cama (eu estava sentado a seu lado) e, com a mesma voz apressada, bebendo água a todo instante num copo, aos goles, abanando as mãos e sem olhar para mim nenhuma vez, pôs-se a contar... Deteve-se, fez um esforço sobre si mesma e de novo prosseguiu... Tudo era tão estranho que ela parecia estar adormecida, ter se ausentado, e parecia que alguma outra pessoa falava por seus lábios, ou a obrigava a falar.

IX

“Escute o que vou lhe contar”, começou. “Você já não é nenhum menino; precisa saber de tudo. Eu tive uma boa amiga... Ela se casou com um homem a quem amava de todo coração, e foi muito feliz com o marido. Logo no primeiro ano de casamento, partiram ambos com o objetivo de passar algumas semanas na capital e divertir-se. Hospedaram-se num bom hotel e iam muito ao teatro e a reuniões sociais. Minha amiga era muito bem-apessoada, todos a observavam, os jovens faziam-lhe a corte, mas entre eles havia um... oficial. Ele a seguia com insistência e, aonde quer que ela fosse, topava sempre com os seus olhos negros e ferozes. Não se apresentou e nem uma vez lhe dirigiu a palavra, apenas a olhava o tempo todo, de um modo bastante estranho e insolente. Todos os prazeres da capital eram envenenados pela sua presença, ela começou a persuadir o marido a irem embora quanto antes e logo já faziam os preparativos para a viagem. Um dia, o marido dirigiu-se ao clube: fora convidado a jogar cartas por oficiais do mesmo regimento daquele oficial... Pela primeira vez, ela ficou só. O marido demorou muito, ela dispensou a criada, foi deitar-se... E de repente sentiu-se apavorada a ponto de gelar e estremecer, dos pés à cabeça. Pareceu ouvir uma leve batida do outro lado da parede, como se um cão a arranhasse, e pôs-se a olhar para aquela parede. Num canto, ardia uma lamparina; o quarto era todo forrado com tapetes. De repente, algo se mexeu ali, ergueu-se, descobriu-se... E, direto da parede, todo negro, comprido, saiu aquele homem terrível, dos olhos ferozes! Ela quis gritar e não pôde. Ficou totalmente paralisada de pavor. O homem se aproximou rapidamente, como um animal de rapina, atirou algo sobre a sua cabeça, algo sufocante, pesado, branco... O que se passou depois, não lembro... não lembro! Parecia a morte, um assassinato... Quando, enfim, dissipou-se aquela nuvem terrível, quando eu... quando minha amiga voltou a si, não havia ninguém no quarto. Mais uma vez, e por longo tempo, ela não teve forças para gritar, por fim começou a gritar... depois tudo se embaralhou.

“Mais tarde, viu a seu lado o marido, que havia ficado retido no clube até as duas a manhã... Estava lívido. Fazia-lhe perguntas, mas ela nada lhe disse... Depois, ela sentiu-se mal... No entanto, lembra-se de que, ao ficar sozinha no quarto, foi examinar aquele lugar na parede... Debaixo da forração de tapetes, descobriu uma porta secreta. E o anel de casamento desaparecera de sua mão. O anel tinha uma forma incomum: nele alternavam-se sete estrelinhas de ouro e sete de prata; era uma antiga jóia da família. O marido lhe perguntou o que havia acontecido com o anel: ela não soube o que responder. O marido pensou que ela deixara o anel escorregar, de algum modo, e procurou-o por toda parte, sem encontrar. Ele caiu num estado de melancolia, resolveu partir para casa o quanto antes e, assim que o médico autorizou, os dois deixaram a capital... Mas, imagine, no dia mesmo da partida, toparam na rua com uma padiola... Na padiola estava um homem que acabara de ser morto, com a cabeça partida... e, imagine! Era o mesmo homem terrível, de olhos ferozes, daquela noite... Haviam-no matado num jogo de baralho!

“Depois, minha amiga partiu para o campo... tornou-se mãe pela primeira vez... e viveu com o marido durante vários anos. Ele nunca soube de nada, e o que ela poderia contar? Ela mesma nada sabia.

“Mas a antiga felicidade desaparecera. Uma sombra caiu na vida de ambos e a sombra nunca se desfez... Não tiveram outros filhos, nem antes, nem depois... e esse filho...”

Minha mãe estremeceu inteira e cobriu o rosto com as mãos...

“Mas diga-me agora”, prosseguiu, com uma força redobrada, “será que essa minha amiga tem alguma culpa? De que poderia recriminar-se? Foi castigada, mas acaso não tem o direito de declarar, até diante de Deus, que o castigo que lhe coube foi injusto? Então, por que ela, à semelhança de uma criminosa dilacerada por remorsos de consciência, pode representar o seu passado com um aspecto tão horrível, mesmo depois de tantos anos? Macbeth assassinou Banquo, por isso não é de admirar que possa ver espectros... mas eu...”

Nesse ponto, as palavras de minha mãe se embaralharam e se confundiram de tal modo que parei de compreender... Eu não tinha mais dúvidas de que ela delirava.

X

A impressão perturbadora que o relato de minha mãe produziu em mim — qualquer pessoa facilmente compreende! Desde as suas primeiras palavras, eu adivinhara que estava falando de si mesma e não de alguma conhecida; seu lapso apenas confirmou minha conjetura. Portanto era exatamente o meu pai, que eu procurava no sonho, aquele homem que vi na vigília! Ele não havia sido morto, como minha mãe acreditava, apenas ferido... Veio ao seu encontro e correu, amedrontado com o susto que nela provocou. De repente, compreendi tudo: o sentimento de involuntária repulsa por mim, que às vezes surgia em minha mãe, a sua tristeza constante, a nossa vida isolada... Lembro-me de que minha cabeça pôs-se a rodar — e de que a segurei com as duas mãos, como se quisesse retê-la no lugar. Mas uma única idéia cravou-se em mim como um prego: resolvi encontrar de novo aquele homem, a todo custo! Para quê? Com que fim? Eu não me dava uma resposta, mas encontrar... encontrá-lo — isso tornou-se para mim uma questão de vida ou morte! Na manhã seguinte, minha mãe por fim se acalmou... a febre sumiu... ela adormeceu. Após confiá-la aos cuidados de nossos senhorios e de nossos criados, lancei-me à busca.

XI

Antes de mais nada, é claro, fui ao café onde encontrara o barão, mas lá ninguém o conhecia, nem o haviam notado; era um visitante fortuito. Os proprietários repararam no negro — sua figura chamava demais a atenção; mas quem era, onde morava, isso ninguém sabia. Depois de, por via das dúvidas, deixar meu endereço no café, pus-me a caminhar pelas ruas e na beira-mar da cidade, perto do cais, pelos bulevares, observando todos os estabelecimentos públicos, e não encontrei em parte alguma ninguém parecido com o barão nem com o seu camarada!... Como não ouvira o sobrenome de família do barão, estava privado da possibilidade de me dirigir à polícia; no entanto, discretamente, fiz saber a dois guardiões da ordem pública (na verdade, eles me olharam com surpresa e não confiaram de todo em mim) que eu recompensaria generosamente o seu empenho caso conseguissem encontrar o rastro daqueles dois indivíduos, cuja aparência tentei descrever da maneira mais exata possível. Após vagar assim até a hora do jantar, voltei para casa extenuado. Minha mãe levantara-se da cama; mas à sua tristeza habitual viera somar-se algo novo, certa perplexidade pensativa que me cortava o coração como uma faca. À noite, fiquei com ela até tarde. Quase não falávamos: ela jogava paciência, eu observava suas cartas sem nada dizer. Não fez nenhuma menção à sua história, nem ao que ocorrera na véspera. Era como se tivéssemos combinado em segredo não falar de nenhum daqueles acontecimentos estranhos e horrorosos... Ela parecia irritada consigo mesma e envergonhada do que, sem querer, deixara escapar; mas talvez não se lembrasse muito bem do que havia contado, no delírio semifebril — e tivesse a esperança de que eu a poupasse... De fato, eu a poupava e ela o sentia; como no dia anterior, evitava o meu olhar. Passei a noite inteira sem conseguir dormir. De repente, lá fora, ergueu-se uma tempestade terrível. O vento uivava e irrompia com furor, os vidros das janelas tilintavam e retiniam, no ar corriam lamentos e ganidos desesperados, como se algo lá no alto se rasgasse e passasse voando, como um pranto enlouquecido, por cima das casas transtornadas. Antes da aurora, tombei numa sonolência... de súbito, tive a impressão de que alguém entrara no meu quarto e me chamava, pronunciava o meu nome — em voz baixa, mas resoluta. Levantei a cabeça e não vi ninguém, mas, coisa estranha! Não só não fiquei assustado, como alegrei-me; acudiu-me repentinamente a certeza de que agora, sem dúvida, iria alcançar meu objetivo. Vesti-me depressa e saí de casa.

XII

A tempestade amainara... mas ainda se faziam sentir seus últimos tremores. Ainda era bem cedo — nas ruas, as pessoas ainda não haviam surgido, em muitos lugares estavam jogados detritos de chaminés, telhas, tábuas soltas das cercas, galhos de árvores partidos... “Imagine o que se passou no mar esta noite!”, pensei involuntariamente, ante a visão dos vestígios deixados pela tempestade. Queria ir para o cais, mas minhas pernas, como se obedecessem a uma propensão irresistível, levaram-me em outro rumo. Mal se haviam passado dez minutos e eu já me via numa parte da cidade que nunca visitara até então. Caminhava devagar, mas sem me deter, um passo após o outro, e com estranhas sensações no coração; esperava algo extraordinário, impossível, mas ao mesmo tempo estava convencido de que aquilo havia de se cumprir.

XIII

E aconteceu o extraordinário, o impossível! De súbito, uns vinte passos à frente, vi aquele mesmo negro que, no café, diante de mim, falara com o barão! Agasalhado na mesma capa que eu já notara antes, ele como que emergiu da terra e, depois de voltar as costas para mim, caminhou a passos ligeiros pela calçada estreita de uma travessa tortuosa! De pronto, lancei-me no seu encalço, mas ele acelerou os passos, embora não tivesse olhado para trás, e de súbito evadiu-se bruscamente atrás de uma esquina formada por uma casa que avançava sobre a rua. Corri até essa esquina, dobrei-a tão depressa quanto o negro... Que milagre! Na minha frente estava uma rua comprida, estreita e totalmente deserta; a neblina da manhã se derramava sobre ela com todo o seu chumbo opaco — mas minha visão alcançava até o fim da rua, eu podia contar todos os seus prédios... e em parte alguma se movia uma criatura viva! O negro alto de capa desaparecera tão repentinamente quanto como surgira! Fiquei pasmo... porém só por um instante. Um outro sentimento logo se apoderou de mim. Aquela rua, que se estendia à frente dos meus olhos, toda muda e como que morta — eu a conhecia! Era a rua do meu sonho. Estremeci, tive um calafrio — a manhã estava tão fresca — e logo em seguida, sem a menor hesitação, com um certo susto causado pela certeza, segui adiante!

Comecei a procurar com os olhos... E ali estava ela: logo ali à direita, com o canto que avançava sobre a calçada, ali estava a casa do meu sonho, ali estava o velho portão, com volutas de pedra de ambos os lados... A bem da verdade, as janelas da casa não eram redondas e sim quadradas... mas não importava... bati no portão, bati de novo, uma terceira vez, e cada vez mais alto... O portão se abriu lentamente, com um rangido pesado, como um bocejo. À minha frente estava uma jovem criada de cabelo despenteado, de olhos sonolentos. Pelo visto, acabara de acordar.

“Aqui mora o barão?”, perguntei, e, com o olhar ligeiro, devassei o pátio profundo e estreito... Era igual, tudo igual... lá estavam as tábuas e as traves que eu via no sonho.

“Não” respondeu a criada. “O barão não mora aqui.”

“Como não! É impossível!”

“Agora, não mora mais... Ele partiu ontem.”

“Para onde?”

“Para a América.”

“América!”, repeti, involuntariamente. “Mas vai voltar?”

Ela me observou desconfiada.

“Isso, não sabemos. Pode ser que não volte mais.”

“Ele morou aqui muito tempo?”

“Não, só uma semana. Agora, não mora mais.”

“E qual o nome de família desse barão?”

A criada cravou os olhos em mim.

“O senhor não sabe o nome de família dele? Nós o chamávamos só de barão. Ei! Piotr!”, gritou, ao ver que eu queria forçar a entrada. “Venha cá; tem um estranho aqui e ele não pára de fazer perguntas.”

De dentro da casa surgiu a figura desajeitada de um forte trabalhador.

“O que foi? O que quer?”, perguntou com voz rouca e, depois de me escutar com ar lúgubre, repetiu o que a criada dissera.

“Então quem mora aqui?”, indaguei.

“O nosso patrão.”

“E quem é?”

“O marceneiro. Nesta rua, são todos marceneiros.”

“Posso falar com ele?”

“Agora não pode, está dormindo.”

“E não posso entrar na casa?”

“Não pode. Vá embora.”

“Está bem, mas depois eu poderei falar com o seu patrão?”

“Por que não? Pode. Pode falar com ele quando quiser... É um comerciante, afinal. Só que agora é melhor o senhor ir embora. Olhe só como é cedo.”

“E aquele negro?”, perguntei, de repente.”

O trabalhador, atônito, fitou-me primeiro e depois a criada.

“Que negro?”, proferiu, afinal. “Vá embora, meu senhor. Mais tarde, pode vir aqui. E então o senhor vai conversar com o patrão.”

Saí para a rua. No mesmo instante, o portão se fechou com estrondo às minhas costas, pesado e brusco, sem ranger, dessa vez.

Observei bem a rua, a casa, e segui adiante, mas não fui para a minha casa. Experimentava uma espécie de decepção. Tudo o que acontecera comigo era tão estranho, tão extraordinário — como poderia terminar de modo tão tolo? Estava persuadido, estava convicto de que veria, dentro daquela casa, o quarto que já conhecia — e que no centro dele estaria o meu pai, o barão, de roupão e cachimbo... Em vez disso, o dono da casa era um marceneiro e eu podia visitá-lo quando quisesse — e talvez até encomendar a ele uns móveis...

E o meu pai partira para a América! O que me restava fazer?... Contar tudo para a minha mãe — ou sepultar para sempre a própria memória daquele encontro?... Positivamente, eu não estava em condições de reconciliar-me com a idéia de que um início tão sobrenatural, tão misterioso, pudesse aliar-se a um fim tão absurdo, tão banal!

Não queria voltar para casa — e saí a caminhar sem rumo, para fora da cidade.

XIV

Andava de cabeça baixa, sem pensamentos, quase sem sensações, mas todo imerso em mim mesmo. Um ruído surdo, constante e irritado retirou-me do meu torpor. Levantei a cabeça: o mar rugia e rumorejava a uns cinqüenta passos de mim. Vi que caminhava sobre a areia de uma duna. Agitado pela tempestade noturna, o mar, desde o horizonte, branquejava encarneirado e as cristas abruptas das vagas compridas rolavam e estouravam uma depois da outra na margem plana. Aproximei-me delas — e caminhei rente às marcas deixadas pelo afluxo e refluxo das ondas, na areia amarela e estriada, semeada com fragmentos de viscosas plantas marinhas, cacos de conchas, sinuosas tiras de espargânio. Com gritos de lamento, gaivotas de asas pontudas voavam contra o vento que vinha de um distante abismo de ar, alçavam-se brancas como a neve contra o céu cinzento e nublado, descaíam abruptamente — e, como se saltassem de uma onda para outra, escapavam de novo e desapareciam como faíscas prateadas nas faixas de espuma em turbilhão. Algumas delas, notei, batiam as asas tenazmente acima de uma pedra grande que sobressaía solitária no meio daquelas margens arenosas, lisas como uma toalha de mesa. O áspero espargânio marinho crescera em tufos desiguais numa das faces da pedra; mas ali onde suas hastes emaranhadas saíam do solo salgado e amarelo, algo negrejava, algo comprido, arredondado, não muito grande... Observei com atenção... Um objeto ali jazia, imóvel junto à pedra... O objeto tornou-se cada vez mais nítido, mais definido, à medida que eu me aproximava...

Faltavam apenas uns trinta passos para eu chegar à pedra...

Mas era o contorno de um corpo humano! Era um cadáver; um afogado, que o mar jogara ali! Aproximei-me da pedra.

Era o cadáver do barão, o meu pai! Parei, como que pregado ao solo. Só então compreendi que, desde o amanhecer, forças desconhecidas haviam-me conduzido — que eu estava sob o seu poder — e, durante alguns minutos, nada existiu em minha alma, exceto o barulho do mar, que não se calava — e um medo mudo, ante o destino que de mim se apoderara...

XV

Ele jazia de costas, um pouco inclinado para o lado, o braço esquerdo erguido por trás da cabeça... o direito dobrado embaixo do corpo torcido. Um lodo pegajoso sugava a extremidade das pernas, calçadas com altas botas de marinheiro; a japona curta e azul, toda impregnada de sal marinho, não se havia desabotoado; o cachecol vermelho enlaçava seu pescoço com um nó apertado. O rosto bronzeado, voltado para o céu, parecia rir; embaixo do lábio superior repuxado para cima, viam-se os dentes cerrados e pequenos; as pupilas turvas dos olhos entrefechados mal se distinguiam do escurecido branco da esclera; cobertos por bolhazinhas de espuma, os cabelos sujos esparramavam-se pela areia e punham a nu a testa lisa, com a arroxeada linha da cicatriz; o nariz estreito erguia-se como um traço brusco, esbranquiçado, no meio das faces encovadas. A tempestade da noite anterior cumprira a sua missão... Ele não vira a América! O homem que ofendera minha mãe, que desfigurara a vida dela — o meu pai — sim! o meu pai — disso eu não tinha dúvida —, jazia sem forças, inerte, no lodo, aos meus pés. Experimentei um sentimento de vingança satisfeita, e de pena, e de repugnância, e de horror, acima de tudo... um duplo horror: daquilo que eu via e também daquilo que havia ocorrido. Aquele sentimento cruel, criminoso — de que já falei —, aqueles arroubos incompreensíveis levantaram-se dentro de mim... sufocaram-me. Arrá! Pensei: aí está por que sou assim... aí está a voz do sangue! Fiquei parado junto ao cadáver, olhava e esperava: não iriam mover-se aquelas pupilas mortas, não iriam tremer aqueles lábios congelados? — Não! Tudo estava imóvel; até o espargânio, onde a ressaca o arremessara, parecia morto; até as gaivotas haviam desaparecido no ar — não havia nenhum destroço em parte alguma, nem tábuas, nem cordames rompidos. Estava deserto, em toda parte... só ele — e eu — e o mar, que rugia ao longe. Olhei para trás: lá estava igualmente deserto: uma cadeia de colinas sem vida, no horizonte... e mais nada! Era horrível para mim abandonar aquele infeliz em tal solidão, no lodo da praia, à mercê dos peixes e dos pássaros; uma voz interior me dizia que eu devia encontrar alguém, chamar, se não para ajudar — nada mais havia a fazer! —, pelo menos para guardá-lo, colocá-lo sob um abrigo... mas de repente um pavor indescritível apoderou-se de mim. Pareceu-me que aquele morto sabia que eu tinha vindo até ali, que ele mesmo planejara esse último encontro — cheguei a ter a impressão de ouvir aquele resmungo surdo, que conhecia tão bem... Afastei-me depressa para o lado... olhei mais uma vez... Algo brilhante feriu-me os olhos: o fato me deteve. Era um aro de ouro na mão inerte do cadáver... Reconheci o anel de casamento de minha mãe. Lembro-me de como me obriguei a voltar, aproximei-me, inclinei-me... lembro-me do contato pegajoso dos dedos frios, lembro de como comecei a ofegar, estreitei os olhos, rangi os dentes, enquanto arrancava o anel obstinado...

Por fim, foi arrancado — e eu corri, corri para longe, em desabalada carreira — e algo se atirou atrás de mim, alcançou-me e agarrou-me.

XVI

Tudo o que experimentei e sofri estava, sem dúvida, inscrito em meu rosto quando voltei para casa. Mamãe, assim que entrei em seu quarto, aprumou-se num gesto repentino e fitou-me de modo tão insistente e interrogativo que eu, após ter tentado em vão explicar-me, terminei por dar-lhe o anel em silêncio. Ela empalideceu de maneira terrível, os olhos se abriram de forma singular e ficaram mortos, como os daquele homem — soltou um débil grito, agarrou o anel, cambaleou, tombou ao encontro do meu peito e deixou-se ficar imóvel, com a cabeça reclinada para trás, devorando-me com os olhos largos, enlouquecidos. Abracei o seu torso com os meus braços, parado onde estava, sem me mexer, sem me afobar, e em voz baixa contei-lhe tudo, sem o menor disfarce: o meu sonho, o encontro e tudo, tudo... Ouviu-me até o fim, sem emitir uma só palavra, apenas o peito respirava cada vez mais forte — e os olhos, repentinamente, ganharam vida e se voltaram para baixo. Em seguida, pôs o anel no dedo anular e, afastando-se um pouco, começou a vestir a mantilha e o chapéu. Perguntei-lhe aonde pretendia ir. Ergueu para mim um olhar surpreso e fez menção de responder, mas a voz traiu-a. Estremeceu por várias vezes, esfregou o corpo com as mãos, como se tentasse aquecer-se e, por fim, falou:

“Vamos agora até lá.”

“Aonde, mamãe?”

“Aonde ele está... quero ver... Quero reconhecer... vou reconhecer...”

Ainda tentei convencê-la a não ir; mas por pouco não teve um ataque de nervos. Compreendi ser impossível contrariar seu desejo — e nos encaminhamos naquela direção.

XVII

E lá fui eu de novo a caminhar sobre a areia da duna — mas já não estava só. Conduzia minha mãe pelo braço. O mar recuara, fora para mais longe ainda; estava calmo — porém, mesmo enfraquecido, seu rumor continuava hostil e sinistro. Por fim, à frente, apareceu a pedra solitária — e lá estava também o espargânio. Olhei com atenção, tentei distinguir aquele objeto arredondado que jazia no solo — mas não vi nada. Chegamos mais perto; involuntariamente, caminhei mais devagar. Mas onde estava aquele objeto negro, imóvel? Só as hastes dos espargânios sombreavam a areia já seca. Aproximamo-nos da pedra... O cadáver não estava em parte alguma — no lugar onde ele antes jazia, restava apenas uma depressão, e podia-se compreender onde haviam ficado os braços, as pernas... Os espargânios ao redor pareciam pisados e percebiam-se as marcas da sola dos pés de um homem; as pegadas atravessavam a duna — depois desapareciam, ao chegar às colinas pedregosas.

Eu e minha mãe olhamos um para o outro e assustamo-nos com o que lemos em nossos rostos... Não teria ele se levantado e se afastado sozinho?

“Afinal, você não o viu morto?”, perguntou, num sussurro.

Pude apenas fazer que sim com a cabeça. Não se haviam passado três horas, desde que eu topara com o cadáver do barão... Alguém o descobrira e o levara dali. Era preciso encontrar quem fizera aquilo e o que acontecera com ele.

Mas, antes, era preciso cuidar de minha mãe.

XVIII

Enquanto ela caminhava rumo ao local fatídico, ficara febril, mas havia se controlado. O desaparecimento do cadáver foi um duro golpe para ela, como uma infelicidade definitiva. Ficou petrificada. Temi por sua razão. Com grande dificuldade, levei-a para casa. Acomodei-a de novo na cama, de novo chamei o médico para vê-la; mas, tão logo minha mãe recuperou um pouco as forças, de pronto exigiu que eu saísse em busca “daquele homem”. Obedeci. No entanto, apesar de recorrer a todos os meios possíveis, nada descobri. Fui várias vezes à polícia, visitei todos os povoados próximos, fiz publicar vários anúncios nos jornais, pedi informações em toda parte — em vão! Na verdade, veio-me a notícia de que, numa aldeia à beira-mar, fora encontrado um afogado... Abalei-me até lá sem demora, mas já o haviam sepultado e, pelos sinais particulares, não se parecia com o barão. Descobri em que navio ele partira para a América: a princípio, todos estavam convencidos de que o navio fora a pique durante a tempestade; porém, alguns meses depois, começaram a correr boatos de que ele fora visto ancorado no porto de Nova York. Sem saber mais o que fazer, passei a procurar o negro que eu tinha visto, ofereci a ele, por meio dos jornais, uma soma de dinheiro bastante significativa, se viesse à nossa casa. Um negro alto, de capa, apresentou-se de fato em nossa casa, em minha ausência... Porém, após fazer perguntas à criada, foi embora de repente e não mais voltou.

Assim desapareceu, sem deixar traços, o meu... o meu pai; assim ele se extinguiu repentinamente, e de forma irreversível, nas trevas mudas. Jamais converso com minha mãe a seu respeito; só uma vez, lembro, ela se admirou de eu nunca antes ter lhe contado sobre o meu sonho estranho; e acrescentou: “quer dizer que ele como que...”, e não concluiu o pensamento. Minha mãe ficou doente por longo tempo e, mesmo depois de se restabelecer, nossas relações anteriores não foram retomadas. Ela sentia-se incomodada comigo — e assim foi até a morte... Incomodada, de fato. E era impossível atenuar esse desgosto. Tudo se apaga, as recordações dos acontecimentos familiares mais trágicos perdem, pouco a pouco, sua força e pungência; mas se uma sensação de incômodo se instala entre duas pessoas próximas — destruí-la é impossível! Nunca mais tive aquele sonho que, no passado, tanto me inquietava; já não “saio em busca” do meu pai; porém às vezes tinha a sensação — e tenho ainda agora — de ouvir, em sonho, uns clamores remotos, uns lamentos incessantes, tristonhos; ressoam em algum lugar por trás de um muro alto, que é impossível escalar, e rasgam meu coração — e eu também choro, de olhos fechados — e não tenho como compreender o que é: será um homem vivo que geme, ou por acaso ouço o bramido prolongado e bravio do mar agitado? E de novo ele muda para aquele resmungo animalesco — e eu acordo com melancolia e com horror na alma.

Naquela época, eu morava com minha mãe numa pequena cidade à beira-mar. Completara dezessete anos e minha mãe ainda não tinha trinta e cinco; ela se casara muito jovem. Meu pai faleceu quando eu tinha apenas seis anos, mas lembro-me bem dele. Minha mãe era de pequena estatura, loura, com um rosto encantador, porém eternamente triste, com uma voz mansa e cansada, e de gestos tímidos. Na mocidade, era famosa pela beleza e até o fim permaneceu atraente e gentil. Não vi olhos mais profundos, mais ternos e melancólicos, cabelos mais finos e macios, não vi mãos mais graciosas. Eu a adorava e ela me amava. Mas nossa vida não era alegre, parecia que um desgosto secreto, incurável e imerecido corroía, sem cessar, a própria raiz da sua existência. Esse desgosto não se podia explicar apenas com a tristeza pelo meu pai, por maior que ela fosse, por mais que minha mãe o amasse com paixão, por mais que a memória do meu pai fosse sagrada para ela... Não! Ali se ocultava alguma outra coisa, que eu não compreendia, mas que sentia, e sentia de forma vaga e intensa, assim que mirava aqueles olhos mansos e imóveis, aqueles lábios lindos, também imóveis, cerrados sem amargura, mas como que congelados para sempre.
Eu disse que minha mãe me amava; mas havia momentos em que ela me rechaçava, em que minha presença lhe era penosa, insuportável. Ela sentia, então, como que uma repugnância involuntária em relação a mim — e depois se horrorizava, recriminava-se até as lágrimas, apertava-me contra seu coração. Eu atribuía esses acessos momentâneos de animosidade à perturbação da sua saúde, à sua infelicidade... Sem dúvida, tais acessos de animosidade podiam, em certa medida, ser provocados por certos arroubos estranhos, e para mim mesmo incompreensíveis, de sentimentos cruéis e criminosos, que me acometiam de tempos em tempos... Mas esses ímpetos não coincidiam com aqueles momentos de repugnância.
Minha mãe andava sempre de preto, como se estivesse de luto. Vivíamos com fartura e, no entanto, não tínhamos relações com quase ninguém.

 

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II

Minha mãe concentrou em mim todos os pensamentos e as atenções. Sua vida fundira-se à minha. Esse tipo de relação entre pais e filhos nem sempre é benéfico para os filhos... ao contrário, tende a ser nocivo. Além do mais, eu era filho único... e filhos únicos, na maior parte das vezes, crescem de forma anômala. Ao criá-los, os pais preocupam-se tanto consigo quanto com eles. Isso não é o correto. Não fiquei mimado nem insensível (as duas coisas acontecem com os filhos únicos), mas meus nervos perturbaram-se, desde então, e ademais eu tinha a saúde bastante frágil — puxei à minha mãe, assemelhava-me muito a ela também no rosto. Eu evitava a companhia das pessoas da minha idade; em geral, esquivava-me das pessoas, até com a minha mãe eu conversava pouco. Acima de tudo, gostava de ler, de passear sozinho — e de sonhar, sonhar! Sobre o que eram os meus sonhos, é difícil dizer: na verdade, às vezes parecia-me que estava diante de uma porta entreaberta atrás da qual se escondiam mistérios ignorados, e eu ali ficava, esperava, deixava-me fascinar — não atravessava o limiar — e refletia o tempo todo a respeito do que se achava logo adiante — e esperava sempre, e desfalecia... ou adormecia. Se a veia poética pulsasse em mim, eu teria, sem dúvida, começado a escrever versos; se sentisse uma inclinação para a piedade religiosa, talvez houvesse entrado para um mosteiro; mas, em mim, nada disso existia — e eu continuava a sonhar — e a esperar.

III

Há pouco, mencionei como às vezes adormecia sob a inspiração de sonhos e pensamentos obscuros. No geral, dormia muito — e os sonhos desempenhavam um papel significativo na minha vida; eu tinha sonhos quase todas as noites Não os esquecia, atribuía-lhes uma significação, considerava-os profecias, esforçava-me para adivinhar o seu significado secreto; alguns deles repetiam-se de tempos em tempos, o que sempre me parecia surpreendente e estranho. Um sonho, em especial, me transtornava. Eu tinha a impressão de caminhar por uma rua estreita, mal pavimentada, de uma cidade velha, entre casas de pedra de muitos andares, com telhados pontiagudos. Estou à procura do meu pai, que não morreu, mas por algum motivo se esconde de nós e mora justamente numa dessas casas. De súbito, entro por um portão baixo e sombrio, atravesso um pátio comprido, atulhado de traves e tábuas, e por fim penetro num quarto pequeno, com duas janelas redondas. No centro do quarto está o meu pai, de roupão e fumando cachimbo. Não se parece em nada com meu pai verdadeiro: é alto, magro, de cabelo preto, tem o nariz em forma de gancho, olhos lúgubres e penetrantes; pelo aspecto, tem uns quarenta anos. Não está contente de eu o ter encontrado, eu também não me alegro em nada com o nosso encontro — e fico ali de pé, num estado de perplexidade. Ele se vira ligeiramente, começa a resmungar algo e se põe a vagar, para a frente e para trás, a passos curtos... Em seguida, afasta-se um pouco, sem parar de resmungar, e volta e meia olha para trás, sobre o ombro; o quarto se alarga e se perde na escuridão... De súbito, me acode um pavor ante a idéia de que mais uma vez vou perder o meu pai e atiro-me no seu encalço — mas já não o vejo — e apenas ouço o seu resmungo zangado, como o de um urso... Meu coração pára de bater — eu acordo e, durante muito tempo, não consigo adormecer de novo. Penso no sonho durante o dia seguinte inteiro e, é claro, não consigo chegar a nenhuma conclusão.

IV

Começara o mês de junho. Nessa época, a cidade onde eu morava com minha mãe adquiria uma vivacidade extraordinária. Muitos navios chegavam ao porto, muitos rostos novos surgiam nas ruas. Eu gostava de caminhar, então, pela beira do cais, diante dos cafés e das hospedarias, observar as variadas figuras dos marinheiros e de outras pessoas sentadas sob toldos de pano, diante de mesinhas brancas, atrás de canecas de estanho cheias de cerveja.

Pois um dia, ao passar na frente de um café, avistei um homem que, de imediato, atraiu minha atenção. Vestido num casacão preto e comprido, com um chapéu de palha enterrado até os olhos, ele estava sentado imóvel, de braços cruzados sobre o peito. Ralos cachos de cabelo preto escorriam-lhe quase até o nariz, os lábios finos comprimiam a boquilha de um cachimbo curto. O homem pareceu-me a tal ponto conhecido, todos os traços do seu rosto bronzeado e bilioso, toda a sua figura estava gravada de forma tão indubitável na minha memória que eu não pude deixar de me deter diante dele, não pude deixar de me fazer a pergunta: quem é esse homem? Onde eu o vi? Ao sentir provavelmente o meu olhar fixo, voltou para mim seus olhos negros e ferinos. Sem querer, soltei uma exclamação de surpresa...

O homem era aquele pai que eu encontrava, que eu via no meu sonho!

Não havia possibilidade de engano — a semelhança era assombrosa demais. Até o casacão de abas longas que envolvia seus membros compridos fazia-me lembrar, pela cor e pelo corte, o roupão em que meu pai surgia diante de mim.

“Será que não estou dormindo?”, ponderei... Não... Agora é dia, a multidão se agita à minha volta, o sol brilha com força no céu azul e à minha frente não está um espectro, mas uma pessoa viva.

Aproximei-me de uma mesinha vazia, pedi uma caneca de cerveja para mim — e fiquei sentado a pouca distância daquele ser enigmático.

V

Com uma folha de jornal erguida à altura do rosto, continuei a devorar com os olhos aquele desconhecido. Ele quase não se mexia e só de quando em quando levantava ligeiramente a cabeça abatida. Era óbvio que esperava alguma coisa. Eu olhava, olhava... Às vezes, parecia-me que imaginava tudo aquilo, que a semelhança propriamente dita não existia, que eu havia sucumbido, de forma semi-involuntária, a um ardil da imaginação... mas de repente “aquele” virava-se um pouco na sua cadeira, ou suas mãos levantavam-se ligeiramente — e eu, de novo, por pouco não deixava escapar uma exclamação de surpresa, via mais uma vez diante de mim o meu pai “noturno”! Por fim, ele se deu conta da minha atenção obsessiva, olhou na minha direção, primeiro com perplexidade e depois com raiva, fez menção de levantar-se — e deixou cair uma pequena bengala que havia encostado na mesa. Pulei no mesmo instante, apanhei a bengala e entreguei a ele. Meu coração batia com força.

O homem deu um sorriso crispado, agradeceu-me e, depois de aproximar o rosto do meu, ergueu as sobrancelhas e abriu um pouco os lábios, como se algo o tivesse surpreendido.

“O senhor é muito cortês, meu jovem”, disse, de súbito, com voz cortante, seca, anasalada. “Nos tempos atuais, é uma raridade. Permita que eu parabenize o senhor: recebeu uma boa educação.”

Não lembro o que respondi exatamente, mas logo entabulamos conversa. Vim a saber que ele era meu compatriota, que voltara pouco antes da América, onde vivera muitos anos e para onde em breve partiria. Chamava-se barão... não consegui ouvir bem o nome. Assim como o meu pai “noturno”, concluía todas as falas com um resmungo obscuro, voltado para dentro. Quis saber o meu nome de família... Depois de ouvi-lo, pareceu espantar-se de novo; em seguida, perguntou-me se havia muito que eu morava nessa cidade, e com quem. Respondi que morava com minha mãe.

“E o pai do senhor?”

“Meu pai morreu faz muito tempo.”

Inteirou-se do prenome de minha mãe e, no mesmo instante, desatou uma risada inconveniente — depois pediu desculpas, dizendo que tinha aquele costume americano e que era, em geral, um grande excêntrico. Em seguida, mostrou-se curioso por saber onde ficava nossa residência. Eu lhe disse.

VI

A comoção que tomara conta de mim no início de nossa conversa amainou aos poucos, achei nossa aproximação um pouco estranha — e mais nada. Não gostei do sorrisinho com que o senhor barão me interrogava, tampouco gostei da expressão dos seus olhos quando ele parecia cravá-los em mim... Havia naqueles olhos algo de rapinante e também de protetor... algo horrendo. Aqueles olhos, eu não os via no sonho. Como era estranho o rosto do barão! Murcho, cansado e ao mesmo tempo de aspecto jovem, desagradavelmente jovem! O meu pai “noturno” não tinha tampouco a cicatriz profunda que cruzava, na diagonal, a testa inteira do meu novo conhecido, e que eu mesmo não havia notado, antes de me aproximar dele mais um pouco.

Eu mal havia informado ao barão o nome da rua e o número da casa onde morávamos, quando um negro de elevada estatura, envolto numa capa até as sobrancelhas, aproximou-se dele por trás e bateu de leve no seu ombro. O barão virou-se, exclamou: “Arrá! Afinal!”, e, depois de fazer uma ligeira mesura para mim com a cabeça, foi com o negro para dentro do café. Permaneci sob o toldo, quis aguardar que o barão saísse, não tanto para conversar de novo com ele (eu não sabia propriamente que rumo dar a nossas palavras), mas antes para conferir mais uma vez a minha primeira impressão. Porém passou-se meia hora, uma hora. O barão não apareceu. Entrei no café, percorri todas as dependências — mas em parte alguma vi o barão ou o negro. Na certa, ambos haviam se retirado pela porta dos fundos.

Minha cabeça doía um pouco — e eu, a fim de recuperar-me com o ar fresco, dirigi-me para a beira-mar, para um amplo parque do subúrbio, criado cerca de duzentos anos antes. Depois de passear durante mais ou menos duas horas à sombra dos imensos carvalhos e plátanos, voltei para casa.

VII

Nossa criada precipitou-se ao meu encontro, muito alarmada, assim que apareci na entrada. Pela expressão do seu rosto, logo adivinhei que durante a minha ausência algo ruim acontecera em nossa casa. E, de fato, fui informado de que, uma hora antes, no quarto de minha mãe, irrompera de súbito um grito aterrador; a criada que acudira às pressas encontrara-a no chão, desacordada, e assim permaneceu durante vários minutos. Minha mãe, por fim, voltou a si — mas foi obrigada a deitar-se na cama e estava com um aspecto assustado e estranho, não dizia nenhuma palavra, não respondia às indagações — limitava-se a olhar em volta e tremer. A criada mandou o jardineiro trazer o médico. Ele veio e receitou um tranqüilizante, mas nem ao médico minha mãe quis dizer alguma coisa. O jardineiro assegurou que, alguns instantes depois de ressoar o grito no quarto de minha mãe, vira um homem desconhecido passar correndo entre os canteiros de flores do jardim rumo ao portão da rua. (Morávamos numa casa térrea, com janelas que davam para um jardim bem grande.) O jardineiro não havia tido tempo de observar o rosto do homem, mas era um tanto magro, usava um chapéu de palha baixo e um casacão de abas compridas... “A roupa do barão!” — acudiu-me logo à cabeça. O jardineiro não conseguiu alcançá-lo; além disso, chamaram-no às pressas em casa e mandaram-no ir em busca do médico. Entrei no quarto de minha mãe, estava deitada na cama, mais branca do que o travesseiro em que repousava a cabeça. Ao reconhecer-me, sorriu debilmente e estendeu-me a mão. Sentei-me a seu lado, comecei a fazer-lhe perguntas; de início negou, no entanto admitiu, por fim, ter visto alguma coisa que a assustara muito. “Alguém entrou aqui?”, perguntei. “Não”, respondeu, afobada. “Não veio ninguém, mas me pareceu, tive a impressão de ver...” Calou-se e cobriu os olhos com a mão. Eu queria informar-lhe o que o jardineiro me dissera — e aproveitar para contar o meu encontro com o barão... mas, por algum motivo, as palavras morreram nos meus lábios. Resolvi, no entanto, fazer ver à minha mãe que aparições, em geral, não ocorrem durante o dia. “Deixe”, sussurrou, “por favor, não me atormente agora. Um dia, você vai saber...” Calou-se de novo. Suas mãos estavam frias e o pulso batia rápido e descompassado. Fiz com que tomasse o remédio e afastei-me um pouco para o lado para não perturbá-la. Durante todo o dia, não se levantou. Permaneceu deitada, imóvel e quieta, apenas de quando em quando suspirava profundamente e abria os olhos com espanto. Todos, em casa, estavam perplexos.

VIII

À noite, minha mãe teve uma pequena febre — e mandou que eu saísse. No entanto, não fui para o meu quarto — deitei-me num sofá, no cômodo vizinho. De quinze em quinze minutos me levantava, aproximava-me da porta na ponta dos pé, escutava... Tudo continuava silencioso — mas é pouco provável que minha mãe tivesse dormido naquela noite. Quando entrei em seu quarto de manhã cedo, seu rosto parecia afogueado, os olhos reluziam com um brilho que não era natural. No decorrer do dia ela melhorou um pouco, mas à noite a febre subiu outra vez. Até aí, ela se mantivera obstinadamente calada, mas então, de repente, desatou a falar com voz ansiosa e entrecortada. Não delirava, em suas palavras havia sentido — mas não existia nenhum nexo. Pouco antes de meia-noite, com um movimento brusco, espasmódico, levantou-se da cama (eu estava sentado a seu lado) e, com a mesma voz apressada, bebendo água a todo instante num copo, aos goles, abanando as mãos e sem olhar para mim nenhuma vez, pôs-se a contar... Deteve-se, fez um esforço sobre si mesma e de novo prosseguiu... Tudo era tão estranho que ela parecia estar adormecida, ter se ausentado, e parecia que alguma outra pessoa falava por seus lábios, ou a obrigava a falar.

IX

“Escute o que vou lhe contar”, começou. “Você já não é nenhum menino; precisa saber de tudo. Eu tive uma boa amiga... Ela se casou com um homem a quem amava de todo coração, e foi muito feliz com o marido. Logo no primeiro ano de casamento, partiram ambos com o objetivo de passar algumas semanas na capital e divertir-se. Hospedaram-se num bom hotel e iam muito ao teatro e a reuniões sociais. Minha amiga era muito bem-apessoada, todos a observavam, os jovens faziam-lhe a corte, mas entre eles havia um... oficial. Ele a seguia com insistência e, aonde quer que ela fosse, topava sempre com os seus olhos negros e ferozes. Não se apresentou e nem uma vez lhe dirigiu a palavra, apenas a olhava o tempo todo, de um modo bastante estranho e insolente. Todos os prazeres da capital eram envenenados pela sua presença, ela começou a persuadir o marido a irem embora quanto antes e logo já faziam os preparativos para a viagem. Um dia, o marido dirigiu-se ao clube: fora convidado a jogar cartas por oficiais do mesmo regimento daquele oficial... Pela primeira vez, ela ficou só. O marido demorou muito, ela dispensou a criada, foi deitar-se... E de repente sentiu-se apavorada a ponto de gelar e estremecer, dos pés à cabeça. Pareceu ouvir uma leve batida do outro lado da parede, como se um cão a arranhasse, e pôs-se a olhar para aquela parede. Num canto, ardia uma lamparina; o quarto era todo forrado com tapetes. De repente, algo se mexeu ali, ergueu-se, descobriu-se... E, direto da parede, todo negro, comprido, saiu aquele homem terrível, dos olhos ferozes! Ela quis gritar e não pôde. Ficou totalmente paralisada de pavor. O homem se aproximou rapidamente, como um animal de rapina, atirou algo sobre a sua cabeça, algo sufocante, pesado, branco... O que se passou depois, não lembro... não lembro! Parecia a morte, um assassinato... Quando, enfim, dissipou-se aquela nuvem terrível, quando eu... quando minha amiga voltou a si, não havia ninguém no quarto. Mais uma vez, e por longo tempo, ela não teve forças para gritar, por fim começou a gritar... depois tudo se embaralhou.

“Mais tarde, viu a seu lado o marido, que havia ficado retido no clube até as duas a manhã... Estava lívido. Fazia-lhe perguntas, mas ela nada lhe disse... Depois, ela sentiu-se mal... No entanto, lembra-se de que, ao ficar sozinha no quarto, foi examinar aquele lugar na parede... Debaixo da forração de tapetes, descobriu uma porta secreta. E o anel de casamento desaparecera de sua mão. O anel tinha uma forma incomum: nele alternavam-se sete estrelinhas de ouro e sete de prata; era uma antiga jóia da família. O marido lhe perguntou o que havia acontecido com o anel: ela não soube o que responder. O marido pensou que ela deixara o anel escorregar, de algum modo, e procurou-o por toda parte, sem encontrar. Ele caiu num estado de melancolia, resolveu partir para casa o quanto antes e, assim que o médico autorizou, os dois deixaram a capital... Mas, imagine, no dia mesmo da partida, toparam na rua com uma padiola... Na padiola estava um homem que acabara de ser morto, com a cabeça partida... e, imagine! Era o mesmo homem terrível, de olhos ferozes, daquela noite... Haviam-no matado num jogo de baralho!

“Depois, minha amiga partiu para o campo... tornou-se mãe pela primeira vez... e viveu com o marido durante vários anos. Ele nunca soube de nada, e o que ela poderia contar? Ela mesma nada sabia.

“Mas a antiga felicidade desaparecera. Uma sombra caiu na vida de ambos e a sombra nunca se desfez... Não tiveram outros filhos, nem antes, nem depois... e esse filho...”

Minha mãe estremeceu inteira e cobriu o rosto com as mãos...

“Mas diga-me agora”, prosseguiu, com uma força redobrada, “será que essa minha amiga tem alguma culpa? De que poderia recriminar-se? Foi castigada, mas acaso não tem o direito de declarar, até diante de Deus, que o castigo que lhe coube foi injusto? Então, por que ela, à semelhança de uma criminosa dilacerada por remorsos de consciência, pode representar o seu passado com um aspecto tão horrível, mesmo depois de tantos anos? Macbeth assassinou Banquo, por isso não é de admirar que possa ver espectros... mas eu...”

Nesse ponto, as palavras de minha mãe se embaralharam e se confundiram de tal modo que parei de compreender... Eu não tinha mais dúvidas de que ela delirava.

X

A impressão perturbadora que o relato de minha mãe produziu em mim — qualquer pessoa facilmente compreende! Desde as suas primeiras palavras, eu adivinhara que estava falando de si mesma e não de alguma conhecida; seu lapso apenas confirmou minha conjetura. Portanto era exatamente o meu pai, que eu procurava no sonho, aquele homem que vi na vigília! Ele não havia sido morto, como minha mãe acreditava, apenas ferido... Veio ao seu encontro e correu, amedrontado com o susto que nela provocou. De repente, compreendi tudo: o sentimento de involuntária repulsa por mim, que às vezes surgia em minha mãe, a sua tristeza constante, a nossa vida isolada... Lembro-me de que minha cabeça pôs-se a rodar — e de que a segurei com as duas mãos, como se quisesse retê-la no lugar. Mas uma única idéia cravou-se em mim como um prego: resolvi encontrar de novo aquele homem, a todo custo! Para quê? Com que fim? Eu não me dava uma resposta, mas encontrar... encontrá-lo — isso tornou-se para mim uma questão de vida ou morte! Na manhã seguinte, minha mãe por fim se acalmou... a febre sumiu... ela adormeceu. Após confiá-la aos cuidados de nossos senhorios e de nossos criados, lancei-me à busca.

XI

Antes de mais nada, é claro, fui ao café onde encontrara o barão, mas lá ninguém o conhecia, nem o haviam notado; era um visitante fortuito. Os proprietários repararam no negro — sua figura chamava demais a atenção; mas quem era, onde morava, isso ninguém sabia. Depois de, por via das dúvidas, deixar meu endereço no café, pus-me a caminhar pelas ruas e na beira-mar da cidade, perto do cais, pelos bulevares, observando todos os estabelecimentos públicos, e não encontrei em parte alguma ninguém parecido com o barão nem com o seu camarada!... Como não ouvira o sobrenome de família do barão, estava privado da possibilidade de me dirigir à polícia; no entanto, discretamente, fiz saber a dois guardiões da ordem pública (na verdade, eles me olharam com surpresa e não confiaram de todo em mim) que eu recompensaria generosamente o seu empenho caso conseguissem encontrar o rastro daqueles dois indivíduos, cuja aparência tentei descrever da maneira mais exata possível. Após vagar assim até a hora do jantar, voltei para casa extenuado. Minha mãe levantara-se da cama; mas à sua tristeza habitual viera somar-se algo novo, certa perplexidade pensativa que me cortava o coração como uma faca. À noite, fiquei com ela até tarde. Quase não falávamos: ela jogava paciência, eu observava suas cartas sem nada dizer. Não fez nenhuma menção à sua história, nem ao que ocorrera na véspera. Era como se tivéssemos combinado em segredo não falar de nenhum daqueles acontecimentos estranhos e horrorosos... Ela parecia irritada consigo mesma e envergonhada do que, sem querer, deixara escapar; mas talvez não se lembrasse muito bem do que havia contado, no delírio semifebril — e tivesse a esperança de que eu a poupasse... De fato, eu a poupava e ela o sentia; como no dia anterior, evitava o meu olhar. Passei a noite inteira sem conseguir dormir. De repente, lá fora, ergueu-se uma tempestade terrível. O vento uivava e irrompia com furor, os vidros das janelas tilintavam e retiniam, no ar corriam lamentos e ganidos desesperados, como se algo lá no alto se rasgasse e passasse voando, como um pranto enlouquecido, por cima das casas transtornadas. Antes da aurora, tombei numa sonolência... de súbito, tive a impressão de que alguém entrara no meu quarto e me chamava, pronunciava o meu nome — em voz baixa, mas resoluta. Levantei a cabeça e não vi ninguém, mas, coisa estranha! Não só não fiquei assustado, como alegrei-me; acudiu-me repentinamente a certeza de que agora, sem dúvida, iria alcançar meu objetivo. Vesti-me depressa e saí de casa.

XII

A tempestade amainara... mas ainda se faziam sentir seus últimos tremores. Ainda era bem cedo — nas ruas, as pessoas ainda não haviam surgido, em muitos lugares estavam jogados detritos de chaminés, telhas, tábuas soltas das cercas, galhos de árvores partidos... “Imagine o que se passou no mar esta noite!”, pensei involuntariamente, ante a visão dos vestígios deixados pela tempestade. Queria ir para o cais, mas minhas pernas, como se obedecessem a uma propensão irresistível, levaram-me em outro rumo. Mal se haviam passado dez minutos e eu já me via numa parte da cidade que nunca visitara até então. Caminhava devagar, mas sem me deter, um passo após o outro, e com estranhas sensações no coração; esperava algo extraordinário, impossível, mas ao mesmo tempo estava convencido de que aquilo havia de se cumprir.

XIII

E aconteceu o extraordinário, o impossível! De súbito, uns vinte passos à frente, vi aquele mesmo negro que, no café, diante de mim, falara com o barão! Agasalhado na mesma capa que eu já notara antes, ele como que emergiu da terra e, depois de voltar as costas para mim, caminhou a passos ligeiros pela calçada estreita de uma travessa tortuosa! De pronto, lancei-me no seu encalço, mas ele acelerou os passos, embora não tivesse olhado para trás, e de súbito evadiu-se bruscamente atrás de uma esquina formada por uma casa que avançava sobre a rua. Corri até essa esquina, dobrei-a tão depressa quanto o negro... Que milagre! Na minha frente estava uma rua comprida, estreita e totalmente deserta; a neblina da manhã se derramava sobre ela com todo o seu chumbo opaco — mas minha visão alcançava até o fim da rua, eu podia contar todos os seus prédios... e em parte alguma se movia uma criatura viva! O negro alto de capa desaparecera tão repentinamente quanto como surgira! Fiquei pasmo... porém só por um instante. Um outro sentimento logo se apoderou de mim. Aquela rua, que se estendia à frente dos meus olhos, toda muda e como que morta — eu a conhecia! Era a rua do meu sonho. Estremeci, tive um calafrio — a manhã estava tão fresca — e logo em seguida, sem a menor hesitação, com um certo susto causado pela certeza, segui adiante!

Comecei a procurar com os olhos... E ali estava ela: logo ali à direita, com o canto que avançava sobre a calçada, ali estava a casa do meu sonho, ali estava o velho portão, com volutas de pedra de ambos os lados... A bem da verdade, as janelas da casa não eram redondas e sim quadradas... mas não importava... bati no portão, bati de novo, uma terceira vez, e cada vez mais alto... O portão se abriu lentamente, com um rangido pesado, como um bocejo. À minha frente estava uma jovem criada de cabelo despenteado, de olhos sonolentos. Pelo visto, acabara de acordar.

“Aqui mora o barão?”, perguntei, e, com o olhar ligeiro, devassei o pátio profundo e estreito... Era igual, tudo igual... lá estavam as tábuas e as traves que eu via no sonho.

“Não” respondeu a criada. “O barão não mora aqui.”

“Como não! É impossível!”

“Agora, não mora mais... Ele partiu ontem.”

“Para onde?”

“Para a América.”

“América!”, repeti, involuntariamente. “Mas vai voltar?”

Ela me observou desconfiada.

“Isso, não sabemos. Pode ser que não volte mais.”

“Ele morou aqui muito tempo?”

“Não, só uma semana. Agora, não mora mais.”

“E qual o nome de família desse barão?”

A criada cravou os olhos em mim.

“O senhor não sabe o nome de família dele? Nós o chamávamos só de barão. Ei! Piotr!”, gritou, ao ver que eu queria forçar a entrada. “Venha cá; tem um estranho aqui e ele não pára de fazer perguntas.”

De dentro da casa surgiu a figura desajeitada de um forte trabalhador.

“O que foi? O que quer?”, perguntou com voz rouca e, depois de me escutar com ar lúgubre, repetiu o que a criada dissera.

“Então quem mora aqui?”, indaguei.

“O nosso patrão.”

“E quem é?”

“O marceneiro. Nesta rua, são todos marceneiros.”

“Posso falar com ele?”

“Agora não pode, está dormindo.”

“E não posso entrar na casa?”

“Não pode. Vá embora.”

“Está bem, mas depois eu poderei falar com o seu patrão?”

“Por que não? Pode. Pode falar com ele quando quiser... É um comerciante, afinal. Só que agora é melhor o senhor ir embora. Olhe só como é cedo.”

“E aquele negro?”, perguntei, de repente.”

O trabalhador, atônito, fitou-me primeiro e depois a criada.

“Que negro?”, proferiu, afinal. “Vá embora, meu senhor. Mais tarde, pode vir aqui. E então o senhor vai conversar com o patrão.”

Saí para a rua. No mesmo instante, o portão se fechou com estrondo às minhas costas, pesado e brusco, sem ranger, dessa vez.

Observei bem a rua, a casa, e segui adiante, mas não fui para a minha casa. Experimentava uma espécie de decepção. Tudo o que acontecera comigo era tão estranho, tão extraordinário — como poderia terminar de modo tão tolo? Estava persuadido, estava convicto de que veria, dentro daquela casa, o quarto que já conhecia — e que no centro dele estaria o meu pai, o barão, de roupão e cachimbo... Em vez disso, o dono da casa era um marceneiro e eu podia visitá-lo quando quisesse — e talvez até encomendar a ele uns móveis...

E o meu pai partira para a América! O que me restava fazer?... Contar tudo para a minha mãe — ou sepultar para sempre a própria memória daquele encontro?... Positivamente, eu não estava em condições de reconciliar-me com a idéia de que um início tão sobrenatural, tão misterioso, pudesse aliar-se a um fim tão absurdo, tão banal!

Não queria voltar para casa — e saí a caminhar sem rumo, para fora da cidade.

XIV

Andava de cabeça baixa, sem pensamentos, quase sem sensações, mas todo imerso em mim mesmo. Um ruído surdo, constante e irritado retirou-me do meu torpor. Levantei a cabeça: o mar rugia e rumorejava a uns cinqüenta passos de mim. Vi que caminhava sobre a areia de uma duna. Agitado pela tempestade noturna, o mar, desde o horizonte, branquejava encarneirado e as cristas abruptas das vagas compridas rolavam e estouravam uma depois da outra na margem plana. Aproximei-me delas — e caminhei rente às marcas deixadas pelo afluxo e refluxo das ondas, na areia amarela e estriada, semeada com fragmentos de viscosas plantas marinhas, cacos de conchas, sinuosas tiras de espargânio. Com gritos de lamento, gaivotas de asas pontudas voavam contra o vento que vinha de um distante abismo de ar, alçavam-se brancas como a neve contra o céu cinzento e nublado, descaíam abruptamente — e, como se saltassem de uma onda para outra, escapavam de novo e desapareciam como faíscas prateadas nas faixas de espuma em turbilhão. Algumas delas, notei, batiam as asas tenazmente acima de uma pedra grande que sobressaía solitária no meio daquelas margens arenosas, lisas como uma toalha de mesa. O áspero espargânio marinho crescera em tufos desiguais numa das faces da pedra; mas ali onde suas hastes emaranhadas saíam do solo salgado e amarelo, algo negrejava, algo comprido, arredondado, não muito grande... Observei com atenção... Um objeto ali jazia, imóvel junto à pedra... O objeto tornou-se cada vez mais nítido, mais definido, à medida que eu me aproximava...

Faltavam apenas uns trinta passos para eu chegar à pedra...

Mas era o contorno de um corpo humano! Era um cadáver; um afogado, que o mar jogara ali! Aproximei-me da pedra.

Era o cadáver do barão, o meu pai! Parei, como que pregado ao solo. Só então compreendi que, desde o amanhecer, forças desconhecidas haviam-me conduzido — que eu estava sob o seu poder — e, durante alguns minutos, nada existiu em minha alma, exceto o barulho do mar, que não se calava — e um medo mudo, ante o destino que de mim se apoderara...

XV

Ele jazia de costas, um pouco inclinado para o lado, o braço esquerdo erguido por trás da cabeça... o direito dobrado embaixo do corpo torcido. Um lodo pegajoso sugava a extremidade das pernas, calçadas com altas botas de marinheiro; a japona curta e azul, toda impregnada de sal marinho, não se havia desabotoado; o cachecol vermelho enlaçava seu pescoço com um nó apertado. O rosto bronzeado, voltado para o céu, parecia rir; embaixo do lábio superior repuxado para cima, viam-se os dentes cerrados e pequenos; as pupilas turvas dos olhos entrefechados mal se distinguiam do escurecido branco da esclera; cobertos por bolhazinhas de espuma, os cabelos sujos esparramavam-se pela areia e punham a nu a testa lisa, com a arroxeada linha da cicatriz; o nariz estreito erguia-se como um traço brusco, esbranquiçado, no meio das faces encovadas. A tempestade da noite anterior cumprira a sua missão... Ele não vira a América! O homem que ofendera minha mãe, que desfigurara a vida dela — o meu pai — sim! o meu pai — disso eu não tinha dúvida —, jazia sem forças, inerte, no lodo, aos meus pés. Experimentei um sentimento de vingança satisfeita, e de pena, e de repugnância, e de horror, acima de tudo... um duplo horror: daquilo que eu via e também daquilo que havia ocorrido. Aquele sentimento cruel, criminoso — de que já falei —, aqueles arroubos incompreensíveis levantaram-se dentro de mim... sufocaram-me. Arrá! Pensei: aí está por que sou assim... aí está a voz do sangue! Fiquei parado junto ao cadáver, olhava e esperava: não iriam mover-se aquelas pupilas mortas, não iriam tremer aqueles lábios congelados? — Não! Tudo estava imóvel; até o espargânio, onde a ressaca o arremessara, parecia morto; até as gaivotas haviam desaparecido no ar — não havia nenhum destroço em parte alguma, nem tábuas, nem cordames rompidos. Estava deserto, em toda parte... só ele — e eu — e o mar, que rugia ao longe. Olhei para trás: lá estava igualmente deserto: uma cadeia de colinas sem vida, no horizonte... e mais nada! Era horrível para mim abandonar aquele infeliz em tal solidão, no lodo da praia, à mercê dos peixes e dos pássaros; uma voz interior me dizia que eu devia encontrar alguém, chamar, se não para ajudar — nada mais havia a fazer! —, pelo menos para guardá-lo, colocá-lo sob um abrigo... mas de repente um pavor indescritível apoderou-se de mim. Pareceu-me que aquele morto sabia que eu tinha vindo até ali, que ele mesmo planejara esse último encontro — cheguei a ter a impressão de ouvir aquele resmungo surdo, que conhecia tão bem... Afastei-me depressa para o lado... olhei mais uma vez... Algo brilhante feriu-me os olhos: o fato me deteve. Era um aro de ouro na mão inerte do cadáver... Reconheci o anel de casamento de minha mãe. Lembro-me de como me obriguei a voltar, aproximei-me, inclinei-me... lembro-me do contato pegajoso dos dedos frios, lembro de como comecei a ofegar, estreitei os olhos, rangi os dentes, enquanto arrancava o anel obstinado...

Por fim, foi arrancado — e eu corri, corri para longe, em desabalada carreira — e algo se atirou atrás de mim, alcançou-me e agarrou-me.

XVI

Tudo o que experimentei e sofri estava, sem dúvida, inscrito em meu rosto quando voltei para casa. Mamãe, assim que entrei em seu quarto, aprumou-se num gesto repentino e fitou-me de modo tão insistente e interrogativo que eu, após ter tentado em vão explicar-me, terminei por dar-lhe o anel em silêncio. Ela empalideceu de maneira terrível, os olhos se abriram de forma singular e ficaram mortos, como os daquele homem — soltou um débil grito, agarrou o anel, cambaleou, tombou ao encontro do meu peito e deixou-se ficar imóvel, com a cabeça reclinada para trás, devorando-me com os olhos largos, enlouquecidos. Abracei o seu torso com os meus braços, parado onde estava, sem me mexer, sem me afobar, e em voz baixa contei-lhe tudo, sem o menor disfarce: o meu sonho, o encontro e tudo, tudo... Ouviu-me até o fim, sem emitir uma só palavra, apenas o peito respirava cada vez mais forte — e os olhos, repentinamente, ganharam vida e se voltaram para baixo. Em seguida, pôs o anel no dedo anular e, afastando-se um pouco, começou a vestir a mantilha e o chapéu. Perguntei-lhe aonde pretendia ir. Ergueu para mim um olhar surpreso e fez menção de responder, mas a voz traiu-a. Estremeceu por várias vezes, esfregou o corpo com as mãos, como se tentasse aquecer-se e, por fim, falou:

“Vamos agora até lá.”

“Aonde, mamãe?”

“Aonde ele está... quero ver... Quero reconhecer... vou reconhecer...”

Ainda tentei convencê-la a não ir; mas por pouco não teve um ataque de nervos. Compreendi ser impossível contrariar seu desejo — e nos encaminhamos naquela direção.

XVII

E lá fui eu de novo a caminhar sobre a areia da duna — mas já não estava só. Conduzia minha mãe pelo braço. O mar recuara, fora para mais longe ainda; estava calmo — porém, mesmo enfraquecido, seu rumor continuava hostil e sinistro. Por fim, à frente, apareceu a pedra solitária — e lá estava também o espargânio. Olhei com atenção, tentei distinguir aquele objeto arredondado que jazia no solo — mas não vi nada. Chegamos mais perto; involuntariamente, caminhei mais devagar. Mas onde estava aquele objeto negro, imóvel? Só as hastes dos espargânios sombreavam a areia já seca. Aproximamo-nos da pedra... O cadáver não estava em parte alguma — no lugar onde ele antes jazia, restava apenas uma depressão, e podia-se compreender onde haviam ficado os braços, as pernas... Os espargânios ao redor pareciam pisados e percebiam-se as marcas da sola dos pés de um homem; as pegadas atravessavam a duna — depois desapareciam, ao chegar às colinas pedregosas.

Eu e minha mãe olhamos um para o outro e assustamo-nos com o que lemos em nossos rostos... Não teria ele se levantado e se afastado sozinho?

“Afinal, você não o viu morto?”, perguntou, num sussurro.

Pude apenas fazer que sim com a cabeça. Não se haviam passado três horas, desde que eu topara com o cadáver do barão... Alguém o descobrira e o levara dali. Era preciso encontrar quem fizera aquilo e o que acontecera com ele.

Mas, antes, era preciso cuidar de minha mãe.

XVIII

Enquanto ela caminhava rumo ao local fatídico, ficara febril, mas havia se controlado. O desaparecimento do cadáver foi um duro golpe para ela, como uma infelicidade definitiva. Ficou petrificada. Temi por sua razão. Com grande dificuldade, levei-a para casa. Acomodei-a de novo na cama, de novo chamei o médico para vê-la; mas, tão logo minha mãe recuperou um pouco as forças, de pronto exigiu que eu saísse em busca “daquele homem”. Obedeci. No entanto, apesar de recorrer a todos os meios possíveis, nada descobri. Fui várias vezes à polícia, visitei todos os povoados próximos, fiz publicar vários anúncios nos jornais, pedi informações em toda parte — em vão! Na verdade, veio-me a notícia de que, numa aldeia à beira-mar, fora encontrado um afogado... Abalei-me até lá sem demora, mas já o haviam sepultado e, pelos sinais particulares, não se parecia com o barão. Descobri em que navio ele partira para a América: a princípio, todos estavam convencidos de que o navio fora a pique durante a tempestade; porém, alguns meses depois, começaram a correr boatos de que ele fora visto ancorado no porto de Nova York. Sem saber mais o que fazer, passei a procurar o negro que eu tinha visto, ofereci a ele, por meio dos jornais, uma soma de dinheiro bastante significativa, se viesse à nossa casa. Um negro alto, de capa, apresentou-se de fato em nossa casa, em minha ausência... Porém, após fazer perguntas à criada, foi embora de repente e não mais voltou.

Assim desapareceu, sem deixar traços, o meu... o meu pai; assim ele se extinguiu repentinamente, e de forma irreversível, nas trevas mudas. Jamais converso com minha mãe a seu respeito; só uma vez, lembro, ela se admirou de eu nunca antes ter lhe contado sobre o meu sonho estranho; e acrescentou: “quer dizer que ele como que...”, e não concluiu o pensamento. Minha mãe ficou doente por longo tempo e, mesmo depois de se restabelecer, nossas relações anteriores não foram retomadas. Ela sentia-se incomodada comigo — e assim foi até a morte... Incomodada, de fato. E era impossível atenuar esse desgosto. Tudo se apaga, as recordações dos acontecimentos familiares mais trágicos perdem, pouco a pouco, sua força e pungência; mas se uma sensação de incômodo se instala entre duas pessoas próximas — destruí-la é impossível! Nunca mais tive aquele sonho que, no passado, tanto me inquietava; já não “saio em busca” do meu pai; porém às vezes tinha a sensação — e tenho ainda agora — de ouvir, em sonho, uns clamores remotos, uns lamentos incessantes, tristonhos; ressoam em algum lugar por trás de um muro alto, que é impossível escalar, e rasgam meu coração — e eu também choro, de olhos fechados — e não tenho como compreender o que é: será um homem vivo que geme, ou por acaso ouço o bramido prolongado e bravio do mar agitado? E de novo ele muda para aquele resmungo animalesco — e eu acordo com melancolia e com horror na alma.

Naquela época, eu morava com minha mãe numa pequena cidade à beira-mar. Completara dezessete anos e minha mãe ainda não tinha trinta e cinco; ela se casara muito jovem. Meu pai faleceu quando eu tinha apenas seis anos, mas lembro-me bem dele. Minha mãe era de pequena estatura, loura, com um rosto encantador, porém eternamente triste, com uma voz mansa e cansada, e de gestos tímidos. Na mocidade, era famosa pela beleza e até o fim permaneceu atraente e gentil. Não vi olhos mais profundos, mais ternos e melancólicos, cabelos mais finos e macios, não vi mãos mais graciosas. Eu a adorava e ela me amava. Mas nossa vida não era alegre, parecia que um desgosto secreto, incurável e imerecido corroía, sem cessar, a própria raiz da sua existência. Esse desgosto não se podia explicar apenas com a tristeza pelo meu pai, por maior que ela fosse, por mais que minha mãe o amasse com paixão, por mais que a memória do meu pai fosse sagrada para ela... Não! Ali se ocultava alguma outra coisa, que eu não compreendia, mas que sentia, e sentia de forma vaga e intensa, assim que mirava aqueles olhos mansos e imóveis, aqueles lábios lindos, também imóveis, cerrados sem amargura, mas como que congelados para sempre.
Eu disse que minha mãe me amava; mas havia momentos em que ela me rechaçava, em que minha presença lhe era penosa, insuportável. Ela sentia, então, como que uma repugnância involuntária em relação a mim — e depois se horrorizava, recriminava-se até as lágrimas, apertava-me contra seu coração. Eu atribuía esses acessos momentâneos de animosidade à perturbação da sua saúde, à sua infelicidade... Sem dúvida, tais acessos de animosidade podiam, em certa medida, ser provocados por certos arroubos estranhos, e para mim mesmo incompreensíveis, de sentimentos cruéis e criminosos, que me acometiam de tempos em tempos... Mas esses ímpetos não coincidiam com aqueles momentos de repugnância.
Minha mãe andava sempre de preto, como se estivesse de luto. Vivíamos com fartura e, no entanto, não tínhamos relações com quase ninguém.

 

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II

Minha mãe concentrou em mim todos os pensamentos e as atenções. Sua vida fundira-se à minha. Esse tipo de relação entre pais e filhos nem sempre é benéfico para os filhos... ao contrário, tende a ser nocivo. Além do mais, eu era filho único... e filhos únicos, na maior parte das vezes, crescem de forma anômala. Ao criá-los, os pais preocupam-se tanto consigo quanto com eles. Isso não é o correto. Não fiquei mimado nem insensível (as duas coisas acontecem com os filhos únicos), mas meus nervos perturbaram-se, desde então, e ademais eu tinha a saúde bastante frágil — puxei à minha mãe, assemelhava-me muito a ela também no rosto. Eu evitava a companhia das pessoas da minha idade; em geral, esquivava-me das pessoas, até com a minha mãe eu conversava pouco. Acima de tudo, gostava de ler, de passear sozinho — e de sonhar, sonhar! Sobre o que eram os meus sonhos, é difícil dizer: na verdade, às vezes parecia-me que estava diante de uma porta entreaberta atrás da qual se escondiam mistérios ignorados, e eu ali ficava, esperava, deixava-me fascinar — não atravessava o limiar — e refletia o tempo todo a respeito do que se achava logo adiante — e esperava sempre, e desfalecia... ou adormecia. Se a veia poética pulsasse em mim, eu teria, sem dúvida, começado a escrever versos; se sentisse uma inclinação para a piedade religiosa, talvez houvesse entrado para um mosteiro; mas, em mim, nada disso existia — e eu continuava a sonhar — e a esperar.

III

Há pouco, mencionei como às vezes adormecia sob a inspiração de sonhos e pensamentos obscuros. No geral, dormia muito — e os sonhos desempenhavam um papel significativo na minha vida; eu tinha sonhos quase todas as noites Não os esquecia, atribuía-lhes uma significação, considerava-os profecias, esforçava-me para adivinhar o seu significado secreto; alguns deles repetiam-se de tempos em tempos, o que sempre me parecia surpreendente e estranho. Um sonho, em especial, me transtornava. Eu tinha a impressão de caminhar por uma rua estreita, mal pavimentada, de uma cidade velha, entre casas de pedra de muitos andares, com telhados pontiagudos. Estou à procura do meu pai, que não morreu, mas por algum motivo se esconde de nós e mora justamente numa dessas casas. De súbito, entro por um portão baixo e sombrio, atravesso um pátio comprido, atulhado de traves e tábuas, e por fim penetro num quarto pequeno, com duas janelas redondas. No centro do quarto está o meu pai, de roupão e fumando cachimbo. Não se parece em nada com meu pai verdadeiro: é alto, magro, de cabelo preto, tem o nariz em forma de gancho, olhos lúgubres e penetrantes; pelo aspecto, tem uns quarenta anos. Não está contente de eu o ter encontrado, eu também não me alegro em nada com o nosso encontro — e fico ali de pé, num estado de perplexidade. Ele se vira ligeiramente, começa a resmungar algo e se põe a vagar, para a frente e para trás, a passos curtos... Em seguida, afasta-se um pouco, sem parar de resmungar, e volta e meia olha para trás, sobre o ombro; o quarto se alarga e se perde na escuridão... De súbito, me acode um pavor ante a idéia de que mais uma vez vou perder o meu pai e atiro-me no seu encalço — mas já não o vejo — e apenas ouço o seu resmungo zangado, como o de um urso... Meu coração pára de bater — eu acordo e, durante muito tempo, não consigo adormecer de novo. Penso no sonho durante o dia seguinte inteiro e, é claro, não consigo chegar a nenhuma conclusão.

IV

Começara o mês de junho. Nessa época, a cidade onde eu morava com minha mãe adquiria uma vivacidade extraordinária. Muitos navios chegavam ao porto, muitos rostos novos surgiam nas ruas. Eu gostava de caminhar, então, pela beira do cais, diante dos cafés e das hospedarias, observar as variadas figuras dos marinheiros e de outras pessoas sentadas sob toldos de pano, diante de mesinhas brancas, atrás de canecas de estanho cheias de cerveja.

Pois um dia, ao passar na frente de um café, avistei um homem que, de imediato, atraiu minha atenção. Vestido num casacão preto e comprido, com um chapéu de palha enterrado até os olhos, ele estava sentado imóvel, de braços cruzados sobre o peito. Ralos cachos de cabelo preto escorriam-lhe quase até o nariz, os lábios finos comprimiam a boquilha de um cachimbo curto. O homem pareceu-me a tal ponto conhecido, todos os traços do seu rosto bronzeado e bilioso, toda a sua figura estava gravada de forma tão indubitável na minha memória que eu não pude deixar de me deter diante dele, não pude deixar de me fazer a pergunta: quem é esse homem? Onde eu o vi? Ao sentir provavelmente o meu olhar fixo, voltou para mim seus olhos negros e ferinos. Sem querer, soltei uma exclamação de surpresa...

O homem era aquele pai que eu encontrava, que eu via no meu sonho!

Não havia possibilidade de engano — a semelhança era assombrosa demais. Até o casacão de abas longas que envolvia seus membros compridos fazia-me lembrar, pela cor e pelo corte, o roupão em que meu pai surgia diante de mim.

“Será que não estou dormindo?”, ponderei... Não... Agora é dia, a multidão se agita à minha volta, o sol brilha com força no céu azul e à minha frente não está um espectro, mas uma pessoa viva.

Aproximei-me de uma mesinha vazia, pedi uma caneca de cerveja para mim — e fiquei sentado a pouca distância daquele ser enigmático.

V

Com uma folha de jornal erguida à altura do rosto, continuei a devorar com os olhos aquele desconhecido. Ele quase não se mexia e só de quando em quando levantava ligeiramente a cabeça abatida. Era óbvio que esperava alguma coisa. Eu olhava, olhava... Às vezes, parecia-me que imaginava tudo aquilo, que a semelhança propriamente dita não existia, que eu havia sucumbido, de forma semi-involuntária, a um ardil da imaginação... mas de repente “aquele” virava-se um pouco na sua cadeira, ou suas mãos levantavam-se ligeiramente — e eu, de novo, por pouco não deixava escapar uma exclamação de surpresa, via mais uma vez diante de mim o meu pai “noturno”! Por fim, ele se deu conta da minha atenção obsessiva, olhou na minha direção, primeiro com perplexidade e depois com raiva, fez menção de levantar-se — e deixou cair uma pequena bengala que havia encostado na mesa. Pulei no mesmo instante, apanhei a bengala e entreguei a ele. Meu coração batia com força.

O homem deu um sorriso crispado, agradeceu-me e, depois de aproximar o rosto do meu, ergueu as sobrancelhas e abriu um pouco os lábios, como se algo o tivesse surpreendido.

“O senhor é muito cortês, meu jovem”, disse, de súbito, com voz cortante, seca, anasalada. “Nos tempos atuais, é uma raridade. Permita que eu parabenize o senhor: recebeu uma boa educação.”

Não lembro o que respondi exatamente, mas logo entabulamos conversa. Vim a saber que ele era meu compatriota, que voltara pouco antes da América, onde vivera muitos anos e para onde em breve partiria. Chamava-se barão... não consegui ouvir bem o nome. Assim como o meu pai “noturno”, concluía todas as falas com um resmungo obscuro, voltado para dentro. Quis saber o meu nome de família... Depois de ouvi-lo, pareceu espantar-se de novo; em seguida, perguntou-me se havia muito que eu morava nessa cidade, e com quem. Respondi que morava com minha mãe.

“E o pai do senhor?”

“Meu pai morreu faz muito tempo.”

Inteirou-se do prenome de minha mãe e, no mesmo instante, desatou uma risada inconveniente — depois pediu desculpas, dizendo que tinha aquele costume americano e que era, em geral, um grande excêntrico. Em seguida, mostrou-se curioso por saber onde ficava nossa residência. Eu lhe disse.

VI

A comoção que tomara conta de mim no início de nossa conversa amainou aos poucos, achei nossa aproximação um pouco estranha — e mais nada. Não gostei do sorrisinho com que o senhor barão me interrogava, tampouco gostei da expressão dos seus olhos quando ele parecia cravá-los em mim... Havia naqueles olhos algo de rapinante e também de protetor... algo horrendo. Aqueles olhos, eu não os via no sonho. Como era estranho o rosto do barão! Murcho, cansado e ao mesmo tempo de aspecto jovem, desagradavelmente jovem! O meu pai “noturno” não tinha tampouco a cicatriz profunda que cruzava, na diagonal, a testa inteira do meu novo conhecido, e que eu mesmo não havia notado, antes de me aproximar dele mais um pouco.

Eu mal havia informado ao barão o nome da rua e o número da casa onde morávamos, quando um negro de elevada estatura, envolto numa capa até as sobrancelhas, aproximou-se dele por trás e bateu de leve no seu ombro. O barão virou-se, exclamou: “Arrá! Afinal!”, e, depois de fazer uma ligeira mesura para mim com a cabeça, foi com o negro para dentro do café. Permaneci sob o toldo, quis aguardar que o barão saísse, não tanto para conversar de novo com ele (eu não sabia propriamente que rumo dar a nossas palavras), mas antes para conferir mais uma vez a minha primeira impressão. Porém passou-se meia hora, uma hora. O barão não apareceu. Entrei no café, percorri todas as dependências — mas em parte alguma vi o barão ou o negro. Na certa, ambos haviam se retirado pela porta dos fundos.

Minha cabeça doía um pouco — e eu, a fim de recuperar-me com o ar fresco, dirigi-me para a beira-mar, para um amplo parque do subúrbio, criado cerca de duzentos anos antes. Depois de passear durante mais ou menos duas horas à sombra dos imensos carvalhos e plátanos, voltei para casa.

VII

Nossa criada precipitou-se ao meu encontro, muito alarmada, assim que apareci na entrada. Pela expressão do seu rosto, logo adivinhei que durante a minha ausência algo ruim acontecera em nossa casa. E, de fato, fui informado de que, uma hora antes, no quarto de minha mãe, irrompera de súbito um grito aterrador; a criada que acudira às pressas encontrara-a no chão, desacordada, e assim permaneceu durante vários minutos. Minha mãe, por fim, voltou a si — mas foi obrigada a deitar-se na cama e estava com um aspecto assustado e estranho, não dizia nenhuma palavra, não respondia às indagações — limitava-se a olhar em volta e tremer. A criada mandou o jardineiro trazer o médico. Ele veio e receitou um tranqüilizante, mas nem ao médico minha mãe quis dizer alguma coisa. O jardineiro assegurou que, alguns instantes depois de ressoar o grito no quarto de minha mãe, vira um homem desconhecido passar correndo entre os canteiros de flores do jardim rumo ao portão da rua. (Morávamos numa casa térrea, com janelas que davam para um jardim bem grande.) O jardineiro não havia tido tempo de observar o rosto do homem, mas era um tanto magro, usava um chapéu de palha baixo e um casacão de abas compridas... “A roupa do barão!” — acudiu-me logo à cabeça. O jardineiro não conseguiu alcançá-lo; além disso, chamaram-no às pressas em casa e mandaram-no ir em busca do médico. Entrei no quarto de minha mãe, estava deitada na cama, mais branca do que o travesseiro em que repousava a cabeça. Ao reconhecer-me, sorriu debilmente e estendeu-me a mão. Sentei-me a seu lado, comecei a fazer-lhe perguntas; de início negou, no entanto admitiu, por fim, ter visto alguma coisa que a assustara muito. “Alguém entrou aqui?”, perguntei. “Não”, respondeu, afobada. “Não veio ninguém, mas me pareceu, tive a impressão de ver...” Calou-se e cobriu os olhos com a mão. Eu queria informar-lhe o que o jardineiro me dissera — e aproveitar para contar o meu encontro com o barão... mas, por algum motivo, as palavras morreram nos meus lábios. Resolvi, no entanto, fazer ver à minha mãe que aparições, em geral, não ocorrem durante o dia. “Deixe”, sussurrou, “por favor, não me atormente agora. Um dia, você vai saber...” Calou-se de novo. Suas mãos estavam frias e o pulso batia rápido e descompassado. Fiz com que tomasse o remédio e afastei-me um pouco para o lado para não perturbá-la. Durante todo o dia, não se levantou. Permaneceu deitada, imóvel e quieta, apenas de quando em quando suspirava profundamente e abria os olhos com espanto. Todos, em casa, estavam perplexos.

VIII

À noite, minha mãe teve uma pequena febre — e mandou que eu saísse. No entanto, não fui para o meu quarto — deitei-me num sofá, no cômodo vizinho. De quinze em quinze minutos me levantava, aproximava-me da porta na ponta dos pé, escutava... Tudo continuava silencioso — mas é pouco provável que minha mãe tivesse dormido naquela noite. Quando entrei em seu quarto de manhã cedo, seu rosto parecia afogueado, os olhos reluziam com um brilho que não era natural. No decorrer do dia ela melhorou um pouco, mas à noite a febre subiu outra vez. Até aí, ela se mantivera obstinadamente calada, mas então, de repente, desatou a falar com voz ansiosa e entrecortada. Não delirava, em suas palavras havia sentido — mas não existia nenhum nexo. Pouco antes de meia-noite, com um movimento brusco, espasmódico, levantou-se da cama (eu estava sentado a seu lado) e, com a mesma voz apressada, bebendo água a todo instante num copo, aos goles, abanando as mãos e sem olhar para mim nenhuma vez, pôs-se a contar... Deteve-se, fez um esforço sobre si mesma e de novo prosseguiu... Tudo era tão estranho que ela parecia estar adormecida, ter se ausentado, e parecia que alguma outra pessoa falava por seus lábios, ou a obrigava a falar.

IX

“Escute o que vou lhe contar”, começou. “Você já não é nenhum menino; precisa saber de tudo. Eu tive uma boa amiga... Ela se casou com um homem a quem amava de todo coração, e foi muito feliz com o marido. Logo no primeiro ano de casamento, partiram ambos com o objetivo de passar algumas semanas na capital e divertir-se. Hospedaram-se num bom hotel e iam muito ao teatro e a reuniões sociais. Minha amiga era muito bem-apessoada, todos a observavam, os jovens faziam-lhe a corte, mas entre eles havia um... oficial. Ele a seguia com insistência e, aonde quer que ela fosse, topava sempre com os seus olhos negros e ferozes. Não se apresentou e nem uma vez lhe dirigiu a palavra, apenas a olhava o tempo todo, de um modo bastante estranho e insolente. Todos os prazeres da capital eram envenenados pela sua presença, ela começou a persuadir o marido a irem embora quanto antes e logo já faziam os preparativos para a viagem. Um dia, o marido dirigiu-se ao clube: fora convidado a jogar cartas por oficiais do mesmo regimento daquele oficial... Pela primeira vez, ela ficou só. O marido demorou muito, ela dispensou a criada, foi deitar-se... E de repente sentiu-se apavorada a ponto de gelar e estremecer, dos pés à cabeça. Pareceu ouvir uma leve batida do outro lado da parede, como se um cão a arranhasse, e pôs-se a olhar para aquela parede. Num canto, ardia uma lamparina; o quarto era todo forrado com tapetes. De repente, algo se mexeu ali, ergueu-se, descobriu-se... E, direto da parede, todo negro, comprido, saiu aquele homem terrível, dos olhos ferozes! Ela quis gritar e não pôde. Ficou totalmente paralisada de pavor. O homem se aproximou rapidamente, como um animal de rapina, atirou algo sobre a sua cabeça, algo sufocante, pesado, branco... O que se passou depois, não lembro... não lembro! Parecia a morte, um assassinato... Quando, enfim, dissipou-se aquela nuvem terrível, quando eu... quando minha amiga voltou a si, não havia ninguém no quarto. Mais uma vez, e por longo tempo, ela não teve forças para gritar, por fim começou a gritar... depois tudo se embaralhou.

“Mais tarde, viu a seu lado o marido, que havia ficado retido no clube até as duas a manhã... Estava lívido. Fazia-lhe perguntas, mas ela nada lhe disse... Depois, ela sentiu-se mal... No entanto, lembra-se de que, ao ficar sozinha no quarto, foi examinar aquele lugar na parede... Debaixo da forração de tapetes, descobriu uma porta secreta. E o anel de casamento desaparecera de sua mão. O anel tinha uma forma incomum: nele alternavam-se sete estrelinhas de ouro e sete de prata; era uma antiga jóia da família. O marido lhe perguntou o que havia acontecido com o anel: ela não soube o que responder. O marido pensou que ela deixara o anel escorregar, de algum modo, e procurou-o por toda parte, sem encontrar. Ele caiu num estado de melancolia, resolveu partir para casa o quanto antes e, assim que o médico autorizou, os dois deixaram a capital... Mas, imagine, no dia mesmo da partida, toparam na rua com uma padiola... Na padiola estava um homem que acabara de ser morto, com a cabeça partida... e, imagine! Era o mesmo homem terrível, de olhos ferozes, daquela noite... Haviam-no matado num jogo de baralho!

“Depois, minha amiga partiu para o campo... tornou-se mãe pela primeira vez... e viveu com o marido durante vários anos. Ele nunca soube de nada, e o que ela poderia contar? Ela mesma nada sabia.

“Mas a antiga felicidade desaparecera. Uma sombra caiu na vida de ambos e a sombra nunca se desfez... Não tiveram outros filhos, nem antes, nem depois... e esse filho...”

Minha mãe estremeceu inteira e cobriu o rosto com as mãos...

“Mas diga-me agora”, prosseguiu, com uma força redobrada, “será que essa minha amiga tem alguma culpa? De que poderia recriminar-se? Foi castigada, mas acaso não tem o direito de declarar, até diante de Deus, que o castigo que lhe coube foi injusto? Então, por que ela, à semelhança de uma criminosa dilacerada por remorsos de consciência, pode representar o seu passado com um aspecto tão horrível, mesmo depois de tantos anos? Macbeth assassinou Banquo, por isso não é de admirar que possa ver espectros... mas eu...”

Nesse ponto, as palavras de minha mãe se embaralharam e se confundiram de tal modo que parei de compreender... Eu não tinha mais dúvidas de que ela delirava.

X

A impressão perturbadora que o relato de minha mãe produziu em mim — qualquer pessoa facilmente compreende! Desde as suas primeiras palavras, eu adivinhara que estava falando de si mesma e não de alguma conhecida; seu lapso apenas confirmou minha conjetura. Portanto era exatamente o meu pai, que eu procurava no sonho, aquele homem que vi na vigília! Ele não havia sido morto, como minha mãe acreditava, apenas ferido... Veio ao seu encontro e correu, amedrontado com o susto que nela provocou. De repente, compreendi tudo: o sentimento de involuntária repulsa por mim, que às vezes surgia em minha mãe, a sua tristeza constante, a nossa vida isolada... Lembro-me de que minha cabeça pôs-se a rodar — e de que a segurei com as duas mãos, como se quisesse retê-la no lugar. Mas uma única idéia cravou-se em mim como um prego: resolvi encontrar de novo aquele homem, a todo custo! Para quê? Com que fim? Eu não me dava uma resposta, mas encontrar... encontrá-lo — isso tornou-se para mim uma questão de vida ou morte! Na manhã seguinte, minha mãe por fim se acalmou... a febre sumiu... ela adormeceu. Após confiá-la aos cuidados de nossos senhorios e de nossos criados, lancei-me à busca.

XI

Antes de mais nada, é claro, fui ao café onde encontrara o barão, mas lá ninguém o conhecia, nem o haviam notado; era um visitante fortuito. Os proprietários repararam no negro — sua figura chamava demais a atenção; mas quem era, onde morava, isso ninguém sabia. Depois de, por via das dúvidas, deixar meu endereço no café, pus-me a caminhar pelas ruas e na beira-mar da cidade, perto do cais, pelos bulevares, observando todos os estabelecimentos públicos, e não encontrei em parte alguma ninguém parecido com o barão nem com o seu camarada!... Como não ouvira o sobrenome de família do barão, estava privado da possibilidade de me dirigir à polícia; no entanto, discretamente, fiz saber a dois guardiões da ordem pública (na verdade, eles me olharam com surpresa e não confiaram de todo em mim) que eu recompensaria generosamente o seu empenho caso conseguissem encontrar o rastro daqueles dois indivíduos, cuja aparência tentei descrever da maneira mais exata possível. Após vagar assim até a hora do jantar, voltei para casa extenuado. Minha mãe levantara-se da cama; mas à sua tristeza habitual viera somar-se algo novo, certa perplexidade pensativa que me cortava o coração como uma faca. À noite, fiquei com ela até tarde. Quase não falávamos: ela jogava paciência, eu observava suas cartas sem nada dizer. Não fez nenhuma menção à sua história, nem ao que ocorrera na véspera. Era como se tivéssemos combinado em segredo não falar de nenhum daqueles acontecimentos estranhos e horrorosos... Ela parecia irritada consigo mesma e envergonhada do que, sem querer, deixara escapar; mas talvez não se lembrasse muito bem do que havia contado, no delírio semifebril — e tivesse a esperança de que eu a poupasse... De fato, eu a poupava e ela o sentia; como no dia anterior, evitava o meu olhar. Passei a noite inteira sem conseguir dormir. De repente, lá fora, ergueu-se uma tempestade terrível. O vento uivava e irrompia com furor, os vidros das janelas tilintavam e retiniam, no ar corriam lamentos e ganidos desesperados, como se algo lá no alto se rasgasse e passasse voando, como um pranto enlouquecido, por cima das casas transtornadas. Antes da aurora, tombei numa sonolência... de súbito, tive a impressão de que alguém entrara no meu quarto e me chamava, pronunciava o meu nome — em voz baixa, mas resoluta. Levantei a cabeça e não vi ninguém, mas, coisa estranha! Não só não fiquei assustado, como alegrei-me; acudiu-me repentinamente a certeza de que agora, sem dúvida, iria alcançar meu objetivo. Vesti-me depressa e saí de casa.

XII

A tempestade amainara... mas ainda se faziam sentir seus últimos tremores. Ainda era bem cedo — nas ruas, as pessoas ainda não haviam surgido, em muitos lugares estavam jogados detritos de chaminés, telhas, tábuas soltas das cercas, galhos de árvores partidos... “Imagine o que se passou no mar esta noite!”, pensei involuntariamente, ante a visão dos vestígios deixados pela tempestade. Queria ir para o cais, mas minhas pernas, como se obedecessem a uma propensão irresistível, levaram-me em outro rumo. Mal se haviam passado dez minutos e eu já me via numa parte da cidade que nunca visitara até então. Caminhava devagar, mas sem me deter, um passo após o outro, e com estranhas sensações no coração; esperava algo extraordinário, impossível, mas ao mesmo tempo estava convencido de que aquilo havia de se cumprir.

XIII

E aconteceu o extraordinário, o impossível! De súbito, uns vinte passos à frente, vi aquele mesmo negro que, no café, diante de mim, falara com o barão! Agasalhado na mesma capa que eu já notara antes, ele como que emergiu da terra e, depois de voltar as costas para mim, caminhou a passos ligeiros pela calçada estreita de uma travessa tortuosa! De pronto, lancei-me no seu encalço, mas ele acelerou os passos, embora não tivesse olhado para trás, e de súbito evadiu-se bruscamente atrás de uma esquina formada por uma casa que avançava sobre a rua. Corri até essa esquina, dobrei-a tão depressa quanto o negro... Que milagre! Na minha frente estava uma rua comprida, estreita e totalmente deserta; a neblina da manhã se derramava sobre ela com todo o seu chumbo opaco — mas minha visão alcançava até o fim da rua, eu podia contar todos os seus prédios... e em parte alguma se movia uma criatura viva! O negro alto de capa desaparecera tão repentinamente quanto como surgira! Fiquei pasmo... porém só por um instante. Um outro sentimento logo se apoderou de mim. Aquela rua, que se estendia à frente dos meus olhos, toda muda e como que morta — eu a conhecia! Era a rua do meu sonho. Estremeci, tive um calafrio — a manhã estava tão fresca — e logo em seguida, sem a menor hesitação, com um certo susto causado pela certeza, segui adiante!

Comecei a procurar com os olhos... E ali estava ela: logo ali à direita, com o canto que avançava sobre a calçada, ali estava a casa do meu sonho, ali estava o velho portão, com volutas de pedra de ambos os lados... A bem da verdade, as janelas da casa não eram redondas e sim quadradas... mas não importava... bati no portão, bati de novo, uma terceira vez, e cada vez mais alto... O portão se abriu lentamente, com um rangido pesado, como um bocejo. À minha frente estava uma jovem criada de cabelo despenteado, de olhos sonolentos. Pelo visto, acabara de acordar.

“Aqui mora o barão?”, perguntei, e, com o olhar ligeiro, devassei o pátio profundo e estreito... Era igual, tudo igual... lá estavam as tábuas e as traves que eu via no sonho.

“Não” respondeu a criada. “O barão não mora aqui.”

“Como não! É impossível!”

“Agora, não mora mais... Ele partiu ontem.”

“Para onde?”

“Para a América.”

“América!”, repeti, involuntariamente. “Mas vai voltar?”

Ela me observou desconfiada.

“Isso, não sabemos. Pode ser que não volte mais.”

“Ele morou aqui muito tempo?”

“Não, só uma semana. Agora, não mora mais.”

“E qual o nome de família desse barão?”

A criada cravou os olhos em mim.

“O senhor não sabe o nome de família dele? Nós o chamávamos só de barão. Ei! Piotr!”, gritou, ao ver que eu queria forçar a entrada. “Venha cá; tem um estranho aqui e ele não pára de fazer perguntas.”

De dentro da casa surgiu a figura desajeitada de um forte trabalhador.

“O que foi? O que quer?”, perguntou com voz rouca e, depois de me escutar com ar lúgubre, repetiu o que a criada dissera.

“Então quem mora aqui?”, indaguei.

“O nosso patrão.”

“E quem é?”

“O marceneiro. Nesta rua, são todos marceneiros.”

“Posso falar com ele?”

“Agora não pode, está dormindo.”

“E não posso entrar na casa?”

“Não pode. Vá embora.”

“Está bem, mas depois eu poderei falar com o seu patrão?”

“Por que não? Pode. Pode falar com ele quando quiser... É um comerciante, afinal. Só que agora é melhor o senhor ir embora. Olhe só como é cedo.”

“E aquele negro?”, perguntei, de repente.”

O trabalhador, atônito, fitou-me primeiro e depois a criada.

“Que negro?”, proferiu, afinal. “Vá embora, meu senhor. Mais tarde, pode vir aqui. E então o senhor vai conversar com o patrão.”

Saí para a rua. No mesmo instante, o portão se fechou com estrondo às minhas costas, pesado e brusco, sem ranger, dessa vez.

Observei bem a rua, a casa, e segui adiante, mas não fui para a minha casa. Experimentava uma espécie de decepção. Tudo o que acontecera comigo era tão estranho, tão extraordinário — como poderia terminar de modo tão tolo? Estava persuadido, estava convicto de que veria, dentro daquela casa, o quarto que já conhecia — e que no centro dele estaria o meu pai, o barão, de roupão e cachimbo... Em vez disso, o dono da casa era um marceneiro e eu podia visitá-lo quando quisesse — e talvez até encomendar a ele uns móveis...

E o meu pai partira para a América! O que me restava fazer?... Contar tudo para a minha mãe — ou sepultar para sempre a própria memória daquele encontro?... Positivamente, eu não estava em condições de reconciliar-me com a idéia de que um início tão sobrenatural, tão misterioso, pudesse aliar-se a um fim tão absurdo, tão banal!

Não queria voltar para casa — e saí a caminhar sem rumo, para fora da cidade.

XIV

Andava de cabeça baixa, sem pensamentos, quase sem sensações, mas todo imerso em mim mesmo. Um ruído surdo, constante e irritado retirou-me do meu torpor. Levantei a cabeça: o mar rugia e rumorejava a uns cinqüenta passos de mim. Vi que caminhava sobre a areia de uma duna. Agitado pela tempestade noturna, o mar, desde o horizonte, branquejava encarneirado e as cristas abruptas das vagas compridas rolavam e estouravam uma depois da outra na margem plana. Aproximei-me delas — e caminhei rente às marcas deixadas pelo afluxo e refluxo das ondas, na areia amarela e estriada, semeada com fragmentos de viscosas plantas marinhas, cacos de conchas, sinuosas tiras de espargânio. Com gritos de lamento, gaivotas de asas pontudas voavam contra o vento que vinha de um distante abismo de ar, alçavam-se brancas como a neve contra o céu cinzento e nublado, descaíam abruptamente — e, como se saltassem de uma onda para outra, escapavam de novo e desapareciam como faíscas prateadas nas faixas de espuma em turbilhão. Algumas delas, notei, batiam as asas tenazmente acima de uma pedra grande que sobressaía solitária no meio daquelas margens arenosas, lisas como uma toalha de mesa. O áspero espargânio marinho crescera em tufos desiguais numa das faces da pedra; mas ali onde suas hastes emaranhadas saíam do solo salgado e amarelo, algo negrejava, algo comprido, arredondado, não muito grande... Observei com atenção... Um objeto ali jazia, imóvel junto à pedra... O objeto tornou-se cada vez mais nítido, mais definido, à medida que eu me aproximava...

Faltavam apenas uns trinta passos para eu chegar à pedra...

Mas era o contorno de um corpo humano! Era um cadáver; um afogado, que o mar jogara ali! Aproximei-me da pedra.

Era o cadáver do barão, o meu pai! Parei, como que pregado ao solo. Só então compreendi que, desde o amanhecer, forças desconhecidas haviam-me conduzido — que eu estava sob o seu poder — e, durante alguns minutos, nada existiu em minha alma, exceto o barulho do mar, que não se calava — e um medo mudo, ante o destino que de mim se apoderara...

XV

Ele jazia de costas, um pouco inclinado para o lado, o braço esquerdo erguido por trás da cabeça... o direito dobrado embaixo do corpo torcido. Um lodo pegajoso sugava a extremidade das pernas, calçadas com altas botas de marinheiro; a japona curta e azul, toda impregnada de sal marinho, não se havia desabotoado; o cachecol vermelho enlaçava seu pescoço com um nó apertado. O rosto bronzeado, voltado para o céu, parecia rir; embaixo do lábio superior repuxado para cima, viam-se os dentes cerrados e pequenos; as pupilas turvas dos olhos entrefechados mal se distinguiam do escurecido branco da esclera; cobertos por bolhazinhas de espuma, os cabelos sujos esparramavam-se pela areia e punham a nu a testa lisa, com a arroxeada linha da cicatriz; o nariz estreito erguia-se como um traço brusco, esbranquiçado, no meio das faces encovadas. A tempestade da noite anterior cumprira a sua missão... Ele não vira a América! O homem que ofendera minha mãe, que desfigurara a vida dela — o meu pai — sim! o meu pai — disso eu não tinha dúvida —, jazia sem forças, inerte, no lodo, aos meus pés. Experimentei um sentimento de vingança satisfeita, e de pena, e de repugnância, e de horror, acima de tudo... um duplo horror: daquilo que eu via e também daquilo que havia ocorrido. Aquele sentimento cruel, criminoso — de que já falei —, aqueles arroubos incompreensíveis levantaram-se dentro de mim... sufocaram-me. Arrá! Pensei: aí está por que sou assim... aí está a voz do sangue! Fiquei parado junto ao cadáver, olhava e esperava: não iriam mover-se aquelas pupilas mortas, não iriam tremer aqueles lábios congelados? — Não! Tudo estava imóvel; até o espargânio, onde a ressaca o arremessara, parecia morto; até as gaivotas haviam desaparecido no ar — não havia nenhum destroço em parte alguma, nem tábuas, nem cordames rompidos. Estava deserto, em toda parte... só ele — e eu — e o mar, que rugia ao longe. Olhei para trás: lá estava igualmente deserto: uma cadeia de colinas sem vida, no horizonte... e mais nada! Era horrível para mim abandonar aquele infeliz em tal solidão, no lodo da praia, à mercê dos peixes e dos pássaros; uma voz interior me dizia que eu devia encontrar alguém, chamar, se não para ajudar — nada mais havia a fazer! —, pelo menos para guardá-lo, colocá-lo sob um abrigo... mas de repente um pavor indescritível apoderou-se de mim. Pareceu-me que aquele morto sabia que eu tinha vindo até ali, que ele mesmo planejara esse último encontro — cheguei a ter a impressão de ouvir aquele resmungo surdo, que conhecia tão bem... Afastei-me depressa para o lado... olhei mais uma vez... Algo brilhante feriu-me os olhos: o fato me deteve. Era um aro de ouro na mão inerte do cadáver... Reconheci o anel de casamento de minha mãe. Lembro-me de como me obriguei a voltar, aproximei-me, inclinei-me... lembro-me do contato pegajoso dos dedos frios, lembro de como comecei a ofegar, estreitei os olhos, rangi os dentes, enquanto arrancava o anel obstinado...

Por fim, foi arrancado — e eu corri, corri para longe, em desabalada carreira — e algo se atirou atrás de mim, alcançou-me e agarrou-me.

XVI

Tudo o que experimentei e sofri estava, sem dúvida, inscrito em meu rosto quando voltei para casa. Mamãe, assim que entrei em seu quarto, aprumou-se num gesto repentino e fitou-me de modo tão insistente e interrogativo que eu, após ter tentado em vão explicar-me, terminei por dar-lhe o anel em silêncio. Ela empalideceu de maneira terrível, os olhos se abriram de forma singular e ficaram mortos, como os daquele homem — soltou um débil grito, agarrou o anel, cambaleou, tombou ao encontro do meu peito e deixou-se ficar imóvel, com a cabeça reclinada para trás, devorando-me com os olhos largos, enlouquecidos. Abracei o seu torso com os meus braços, parado onde estava, sem me mexer, sem me afobar, e em voz baixa contei-lhe tudo, sem o menor disfarce: o meu sonho, o encontro e tudo, tudo... Ouviu-me até o fim, sem emitir uma só palavra, apenas o peito respirava cada vez mais forte — e os olhos, repentinamente, ganharam vida e se voltaram para baixo. Em seguida, pôs o anel no dedo anular e, afastando-se um pouco, começou a vestir a mantilha e o chapéu. Perguntei-lhe aonde pretendia ir. Ergueu para mim um olhar surpreso e fez menção de responder, mas a voz traiu-a. Estremeceu por várias vezes, esfregou o corpo com as mãos, como se tentasse aquecer-se e, por fim, falou:

“Vamos agora até lá.”

“Aonde, mamãe?”

“Aonde ele está... quero ver... Quero reconhecer... vou reconhecer...”

Ainda tentei convencê-la a não ir; mas por pouco não teve um ataque de nervos. Compreendi ser impossível contrariar seu desejo — e nos encaminhamos naquela direção.

XVII

E lá fui eu de novo a caminhar sobre a areia da duna — mas já não estava só. Conduzia minha mãe pelo braço. O mar recuara, fora para mais longe ainda; estava calmo — porém, mesmo enfraquecido, seu rumor continuava hostil e sinistro. Por fim, à frente, apareceu a pedra solitária — e lá estava também o espargânio. Olhei com atenção, tentei distinguir aquele objeto arredondado que jazia no solo — mas não vi nada. Chegamos mais perto; involuntariamente, caminhei mais devagar. Mas onde estava aquele objeto negro, imóvel? Só as hastes dos espargânios sombreavam a areia já seca. Aproximamo-nos da pedra... O cadáver não estava em parte alguma — no lugar onde ele antes jazia, restava apenas uma depressão, e podia-se compreender onde haviam ficado os braços, as pernas... Os espargânios ao redor pareciam pisados e percebiam-se as marcas da sola dos pés de um homem; as pegadas atravessavam a duna — depois desapareciam, ao chegar às colinas pedregosas.

Eu e minha mãe olhamos um para o outro e assustamo-nos com o que lemos em nossos rostos... Não teria ele se levantado e se afastado sozinho?

“Afinal, você não o viu morto?”, perguntou, num sussurro.

Pude apenas fazer que sim com a cabeça. Não se haviam passado três horas, desde que eu topara com o cadáver do barão... Alguém o descobrira e o levara dali. Era preciso encontrar quem fizera aquilo e o que acontecera com ele.

Mas, antes, era preciso cuidar de minha mãe.

XVIII

Enquanto ela caminhava rumo ao local fatídico, ficara febril, mas havia se controlado. O desaparecimento do cadáver foi um duro golpe para ela, como uma infelicidade definitiva. Ficou petrificada. Temi por sua razão. Com grande dificuldade, levei-a para casa. Acomodei-a de novo na cama, de novo chamei o médico para vê-la; mas, tão logo minha mãe recuperou um pouco as forças, de pronto exigiu que eu saísse em busca “daquele homem”. Obedeci. No entanto, apesar de recorrer a todos os meios possíveis, nada descobri. Fui várias vezes à polícia, visitei todos os povoados próximos, fiz publicar vários anúncios nos jornais, pedi informações em toda parte — em vão! Na verdade, veio-me a notícia de que, numa aldeia à beira-mar, fora encontrado um afogado... Abalei-me até lá sem demora, mas já o haviam sepultado e, pelos sinais particulares, não se parecia com o barão. Descobri em que navio ele partira para a América: a princípio, todos estavam convencidos de que o navio fora a pique durante a tempestade; porém, alguns meses depois, começaram a correr boatos de que ele fora visto ancorado no porto de Nova York. Sem saber mais o que fazer, passei a procurar o negro que eu tinha visto, ofereci a ele, por meio dos jornais, uma soma de dinheiro bastante significativa, se viesse à nossa casa. Um negro alto, de capa, apresentou-se de fato em nossa casa, em minha ausência... Porém, após fazer perguntas à criada, foi embora de repente e não mais voltou.

Assim desapareceu, sem deixar traços, o meu... o meu pai; assim ele se extinguiu repentinamente, e de forma irreversível, nas trevas mudas. Jamais converso com minha mãe a seu respeito; só uma vez, lembro, ela se admirou de eu nunca antes ter lhe contado sobre o meu sonho estranho; e acrescentou: “quer dizer que ele como que...”, e não concluiu o pensamento. Minha mãe ficou doente por longo tempo e, mesmo depois de se restabelecer, nossas relações anteriores não foram retomadas. Ela sentia-se incomodada comigo — e assim foi até a morte... Incomodada, de fato. E era impossível atenuar esse desgosto. Tudo se apaga, as recordações dos acontecimentos familiares mais trágicos perdem, pouco a pouco, sua força e pungência; mas se uma sensação de incômodo se instala entre duas pessoas próximas — destruí-la é impossível! Nunca mais tive aquele sonho que, no passado, tanto me inquietava; já não “saio em busca” do meu pai; porém às vezes tinha a sensação — e tenho ainda agora — de ouvir, em sonho, uns clamores remotos, uns lamentos incessantes, tristonhos; ressoam em algum lugar por trás de um muro alto, que é impossível escalar, e rasgam meu coração — e eu também choro, de olhos fechados — e não tenho como compreender o que é: será um homem vivo que geme, ou por acaso ouço o bramido prolongado e bravio do mar agitado? E de novo ele muda para aquele resmungo animalesco — e eu acordo com melancolia e com horror na alma.

 

 

                                                                  Ivan Turgueniev

 

 

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