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UM SULTÃO EM PALERMO / Tariq Ali
UM SULTÃO EM PALERMO / Tariq Ali

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

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Esta narrativa se passa na Sicília medieval, em Palermo, uma cidade muçulmana que rivaliza com Bagdá e Córdoba em tamanho e esplendor. O ano é 1153 e a ilha foi ocupada pelos normandos. Mas na "Sigilliya", a cultura e a língua árabes dominam a terra e a corte. A aliança entre o papa Urbano II e o imperador bizantino havia motivado os governantes cristãos europeus a erradicar enclaves muçulmanos. Contudo, Rogério I da Sicflia e seu filho Rogério II recusam a perseguição aos muçulmanos, concedendo liberdade religiosa e proteção contra a Igreja e os cristãos. Inspirado nesse ambiente conflagrado, o autor aborda os últimos anos de Rogério II, conhecido por seus súditos muçulmanos como sultão Rujari. Ele se cerca de intelectuais muçulmanos, várias concubinas e promove uma administração presidida por talentosos eunucos.
Tariq Ali mapeia a vida e os amores do geógrafo e médico medieval Muhammad alIdrisi. Dividido entre seus vínculos com o sultão e os amigos, que estão deixando a ilha ou arquitetando uma resistência contra o domínio normando, Idrisi encontra alívio temporário no harém; mas, confrontado com as pessoas comuns de Noto e da Catânia, entra em crise de consciência. Um sultão em Palermo é uma narrativa mítica em que orgulho, cobiça e luxúria entremeiam-se com resistência e grandeza.

 

 

 


 

 

 


1

Reflexões de Idrisi sobre inícios e encontros casuais.
Seu primeiro encontro com Rujari.

A primeira frase é crucial. Ele sabia disso por instinto e por seu estudo de velhos manuscritos. Como os antigos entendiam bem disso, com que cuidado escolhiam seus inícios, com que facilidade seu trabalho devia ter progredido uma vez tomada aquela decisão. Por onde começar? Como começar? Invejava neles as escolhas que seu mundo lhes tornara possíveis, sua capacidade de buscar o conhecimento onde quer que pudesse ser encontrado.

Sua mãe lhe ensinara que as pessoas do Livro, que insistem que todo conhecimento anterior ao tempo de seus próprios Profetas nada vale, traíam sua própria ignorância.

Ela lhe contara como, quando a cidade fora tomada por uma casta especial dos guerreiros do Profeta — homens que temiam o conhecimento mais do que a morte -, o avô dela, um venerado matemático de Qurtuba, fora publicamente despido de sua dignidade e passado a fio de espada com outros oito eruditos. Os fanáticos que matavam em nome da religião referiam-se ao mundo dos antigos como "o tempo da ignorância", um mundo em que as pessoas não eram sobrecarregadas pela necessidade de adorar um único deus. Como deviam ter blasfemado à vontade. Um mundo sem apóstatas. Um sorriso iluminou seu rosto por um momento antes que a nuvem voltasse.

Ao contrário de nós, pensou. Somos condenados a soçobrar na voragem da eterna repetição. Em nome de Alá o Misericordioso e de Maomé o seu Profeta, seu mais fiel Mensageiro. O único consolo era que os blasfemos nazarenos eram muito piores. Como podia Alá ser o pai apenas de Isa? Como podia o Todo-Poderoso produzir apenas um filho? E por que tinham os nazarenos inventado esta inverdade? Só podia ser porque estavam mais próximos no tempo ao mundo romano e seus deuses. Para fazer convertidos eles precisavam injetar alguma mágica no seu credo. Como desejava que tivessem conservado os velhos deuses ou, pelo menos, os melhores deles. Zeus podia ter sido o pai de Isa, ou Apolo, Ares ou Poseidon... não, não Poseidon. Era muito estúpido. Mariam vivia longe do mar e Yusuf não era um pescador. Talvez o manco e lascivo Hefaístos tivesse entrado... Subiu ao convés do navio imperial e respirou fundo várias vezes. Lavar seus pulmões com o ar marinho havia se tornado um ritual. Sorriu. O sol estava para se pôr. O mar ainda estava calmo. Poseidon ajudando, chegariam a Palermo sem outra tempestade.

Esta era a sua última viagem antes da conclusão do seu livro. O navio tinha circundado a ilha duas vezes e ele havia verificado cada detalhe no seu mapa da Siqilliya em confronto com a linha costeira à sua frente. De vez em quando desembarcavam para recolher água fresca, comida e as ervas frescas de que precisava para testar suas fórmulas médicas. Idrisi era geógrafo e médico. Embora a viagem tivesse durado menos de um mês, estava cansado. Dormia mais do que o comum e na maioria dos seus sonhos voltava à sua infância — sua mãe olhando para as estrelas, as ruas de Noto calçadas com pedras, os troncos das árvores com cicatrizes de raios, as mulheres ordenhando vacas e cabras, o rosto bexiguento do seu pai — mas quando ele repousava à tarde invariavelmente sonhava com Mayya, geralmente o mesmo sonho quase sem nenhuma variação. Estavam deitados nus nos braços um do outro depois de fazer amor. Era sempre no quarto de dormir dela no harém do palácio, com os eunucos vigiando do lado de fora. Nada mais acontecia. A repetição o incomodava tanto que chegou a pensar até em procurar o intérprete de sonhos, mas algo sempre o detinha.

Na noite passada, pela primeira vez, sonhou algo diferente. Era um guerreiro envolvido numa luta, mas quando acordou não tinha lembrança alguma do inimigo. Pensava naquilo agora no convés, observando o mar mudar de cor, e imaginava se poderia ter sido de alguma utilidade como soldado. Tinha altura mediana com feições delicadas e uma pele macia e clara, como se o seu gênero tivesse sido decidido somente no último minuto. O sol havia escurecido seu rosto, exagerando a brancura da sua barba.

Era bem aparada, imitando o estilo de um erudito qurtubês. Tinha 58 anos de idade, uma época da vida que compele a maioria dos homens a pensar no passado, não no futuro. E assim teria sido com ele não fosse pelo fato de que estava possuído por uma tremenda raiva, da qual somente dois de seus amigos mais próximos tinham noção, embora não pudessem entender suas causas. Para o sultão e os cortesãos no palácio em Palermo, era um erudito de uma certa importância e um homem de temperamento calmo. Não tinham nenhuma idéia do que se escondia sob a máscara ou de que se zangasse por dentro pelas coisas mais estranhas. Certa vez seu amigo mais chegado, Ibn Hamid, cujo coração estava oprimido, olhara para o céu e murmurara "Oh, a poesia das estrelas" e Idrisi reagira num tom irritado, submetendo-o a uma aula de astronomia e sobre o movimento da Terra. Não tinha notado como cada noite um movimento se repetia? Os antigos haviam tentado penetrar nos segredos dos céus, mas tinham fracassado. Se o que ele pensava fosse verdade, então o Corão estava errado e, se o Corão estivesse errado, quem havia cometido o erro? Má ou o seu Mensageiro? Ibn Hamid ficou temeroso de que o seu amigo fosse acusado de blasfêmia e aconselhou-o a deixar tais questões para o futuro.

A resposta de Idrisi fora um olhar fulminante e ficaram sem se falar nos dias que se seguiram. Agora Ibn Hamid também havia abandonado a ilha, deixando seu amigo mais isolado do que nunca. Palavras duras foram trocadas e Idrisi fora acusado de oferecer ajuda aos estrangeiros que ocuparam a ilha. Talvez, pensou Idrisi, ele também devesse ter ido embora e se estabelecido em Ifriqiya ou talvez Bagdá, onde o Califa era protetor de pensadores e poetas. Mas sua vida foi mudada por um encontro casual que lhe ofereceu mais liberdade do que imaginara possível.

Seus pensamentos voaram de volta a um fim de tarde em que trabalhava na biblioteca do palácio do sultão Rujari em Palermo. Tinha obtido permissão para freqüentá-la e se deleitava como uma criança a cada nova descoberta. Lembrou a excitação que se apossara dele há quase 27 anos quando vira pela primeira vez o velho manuscrito grego al-Homa. Poderia ser esta a obra de que falara seu bisavô paterno todos aqueles anos atrás em Malaka? Seu avô passara a memória ao seu pai e ele podia ainda ouvir a voz alta, ligeiramente agitada do seu velho pai pontuando a história arrancando os pêlos brancos da sua barba ainda castanho-escura. Contou como os qadis, receosos do poder da poesia e da sua capacidade de desencaminhar os Crentes, haviam decretado que apenas três cópias da tradução árabe fossem permitidas a fim de que os teólogos pudessem estudar as religiões pagãs que levaram ao período de Ignorância na Arábia na época em que o nosso Profeta nasceu.

A tarefa foi confiada a 12 homens. Conhecedores mais capacitados do grego antigo, eles tinham traduzido todas as obras de Galeno e Pitágoras, Hipócrates e Aristóteles, Sócrates e Platão, e até mesmo as peças de Aristófanes. Todas estas obras estavam na biblioteca de Bagdá. Mas tradutores, embora fossem empregados do palácio cuidadosamente escolhidos e de confiança, não tinham permissão de ler a obra inteira. Os calígrafos que faziam a transcrição faziam o juramento do silêncio. Se divulgassem a natureza do seu trabalho a qualquer pessoa — e isso incluía suas esposas e amantes — a penalidade seria rápida e a cimitarra do carrasco, como um relâmpago, separaria a cabeça do corpo.

Seu pai sorrira. "Ameaças nunca funcionam em nosso mundo. É possível que, se nada tivesse sido dito, os calígrafos tivessem copiado a obra e partido para a tarefa seguinte. O perigo aguçava a sua curiosidade mas, enquanto 11 deles aceitaram a inviolabilidade da injunção de um qadi, um décimo segundo conseguira copiar a metade do primeiro poema e quase a maioria da segunda parte e enviar para sua família em Damasco. Seu filho, também tradutor, veio trabalhar na escola em Toledo.

Casou-se com uma mulher de Qurtuba. Seu neto descobriu o manuscrito incompleto escondido debaixo do Corão numa velha arca e permitiu que o meu bisavô o lesse em sua casa. Foi assim que nosso ancestral descobriu que o livro grego fora guardado em compartimentos secretos na biblioteca de Palermo. Era preciso obter permissão especial do Califa antes que qualquer erudito tivesse acesso à seção oculta da biblioteca."

Foi durante seu primeiro ano na biblioteca do velho palácio em Palermo, a mais longa viagem que sua mente havia empreendido, que tropeçou na seção secreta e informou ao camareiro do palácio, que informou ao seu mestre. O sultão Rujari interrompera sua refeição e correra para a biblioteca. Idrisi, encontrando-se com o soberano nazareno pela primeira vez, explicou a sua excitação. O sultão não ouvira falar de al-Homa, mas declarou sua intenção imediata de estudar ele mesmo o manuscrito.

O árabe que falava não era perfeito, mas lia bem o idioma. O camareiro apanhou o manuscrito e ia deixar a biblioteca mas foi detido pelo sultão que, notando o desapontamento no rosto do jovem erudito, instruiu o camareiro a encontrar os melhores calígrafos em Palermo e os pôr a trabalhar. Queria uma nova cópia à sua espera quando voltasse de Noto. Virou-se então para o jovem de turbante que havia assumido uma postura modesta.

— Seu nome?

— Muhammad ibn Abdallah ibn Muhammad alIdrisi, Sua Majestade.

— Mestre Idrisi, depois de lermos ambos esta obra cuidadosamente, nós a discutiremos juntos. Vamos comparar o conhecimento que obtemos dela. Se o árabe usado na tradução for complexo demais, vou convocar Ahmed de Djirdjent.

Seis semanas depois, convocado à presença de Rujari, o jovem erudito havia memorizado alguns versos da obra de al-Homa.

— Não posso entender por que esta obra perturbou tanto os seus teólogos.

— Acho que eles não podiam tolerar a mistura de deuses e humanos, Comandante dos Sábios. E deuses criados à imagem de homens e mulheres eram inaceitáveis para eles. Não podia haver outra razão.

— Mas esta é a parte mais deleitável da obra. Seus deuses eram parte de tudo o que acontecia: guerras, inundações, desgraças, aventuras no céu e no mar, brigas familiares, nascimentos, casamentos, mortes, renascimentos. Acha que a esposa do navegante Odisseu, que resistiu aos cortejadores terrestres, poderia ter sucumbido ao encanto de um deus? Surpreende-me que nenhum deles tenha tentado. Devo dar instruções para que seja traduzido imediatamente para o latim, a não ser que um manuscrito já exista. Pode verificar para mim? Se só existir no Vaticano, então vamos precisar da nossa própria tradução. Os monges não vão gostar, assim como o qadi. Que aspecto da obra mais o atraiu? Foi a astúcia das mulheres? Ou o medo do desconhecido? Ou a vida como uma jornada sem fim, interrompida por provas de resistência?

— Tudo me atraiu, Sua Majestade, mas fui tocado por algo mais: a noção de geografia de al-Homa me surpreendeu. Na segunda parte da obra ele descreve nosso mar e as ilhas, os países, as árvores. Nos tempos antigos as pessoas não viajavam tanto quanto nós o fazemos. A maioria das pessoas era enterrada na aldeia onde nascia.

Al-Homa contou-lhes que havia um outro mundo do lado de fora de sua aldeia e ilha. Na boca de Menelau ele coloca estas palavras:

"Aventurei-me até Chipre e Fenícias, até os Egípcios, Alcancei os Etíopes, Eremboi, Sidônios e a Líbia."

— E gigantes de um só olho e as mulheres tentadoras que afundavam navios não longe destas costas?

— Vicissitudes transitórias, nobre sultão, nada mais. Revelam o poder da imaginação do poeta, mas nada mais. Para mim, o realmente notável no seu trabalho é que as descrições das coisas reais são quase exatas. Ele visitou nossa ilha e a chamou de Scylla. Estou convencido de que al-Homa deve ter sido um homem do mar. E combateu numa guerra, mas foi o mapa de suas viagens que distinguiu a sua memória.

— O camareiro me informou que você, também, é um cartógrafo.

Idrisi fez uma mesura.

— Quando tiver terminado o seu trabalho nesta biblioteca, gostaria de ser informado de todas as suas descobertas.

Nos 13 meses seguintes Idrisi abandonou tudo — amantes, amigos, pupilos — em busca da verdade. O sultão lhe havia concedido a liberdade de sua biblioteca e, além de comer e das funções do corpo que isso necessariamente acarretava, passava cada dia enterrado num manuscrito. Os eunucos do palácio geralmente se referiam a ele como Abu Kitab, o pai do livro. Depois, como um confidente de confiança do sultão, sua posição realçada exigiu um título superior: agora se referiam a ele como Amir al-kitab.

Aqueles meses na biblioteca tinham sido de pura felicidade. Al-Homa foi apenas o começo. Ele visitaria Ítaca e as outras ilhas em busca de traços. Muitas vezes se perguntava se al-Homa teria escrito aquelas obras tão bonitas sozinho ou se teria herdado as histórias e as coberto com o seu próprio manto divino. E como era espantoso descobrir que apenas poucas gerações depois da morte de al-Homa, Xenófanes o denunciara numa linguagem que ecoava os teólogos de hoje: "Homero atribuiu aos deuses tudo o que é desonroso e culpável entre os homens — roubo, adultério e trapaça." E os contadores de histórias em Bagdá que compilavam os relatos das mil noites teriam Odisseu em mente quando criaram seus próprios contos de Simbá, o Marujo? Estas questões e até mesmo al-Homa foram logo esquecidos à medida que outros tesouros, mais próximos de suas preocupações, começaram a emergir.

Ler as traduções árabes de Heródoto, Aristóteles, Galeno, Estrabão e Ptolomeu era como descobrir terras distantes conhecidas por histórias de viajantes. Seus tutores o haviam apresentado aos veneráveis gregos, mas ele era então jovem demais para apreciá-los realmente. Seu conhecimento permaneceu incompleto até que ele começou a estudar os textos sozinho. As idéias de Ptolomeu ainda ecoavam na sua mente como música de uma flauta distante.

Um dia ele topou com um manuscrito anônimo que o deliciou. Quem era o autor de "A biblioteca"? Ainda podia se lembrar da primeira frase: O céu foi o primeiro a dominar o mundo inteiro. Aqui estava a história dos deuses e de como haviam povoado o mundo e, embora não tão estimulante quanto Ptolomeu ou até Estrabão, muito mais excitante. Foi aqui que ele leu sobre a curta visita de Hércules à Sigilliya. O céu foi o primeiro a dominar sobre todo o mundo. A frase reverberava. Por que deveria começar Em nome de Alá, o Benfeitor... como todo erudito no seu mundo. Por quê?

Durante seu primeiro ano na biblioteca, o sultão freqüentemente o chamava aos seus aposentos e o interrogava cerradamente sobre as suas leituras. Rujari não era um homem grande, mas tinha gestos estranhos e amplos e quando ficava excitado seus braços se agitavam como velas numa tempestade. Sua acolhida de coração aberto comoveu Idrisi.

— O que fará com toda esta informação, mestre Idrisi? Pode ensinar aos seus filhos e aos meus, mas isto será suficiente para satisfazê-lo?

Idrisi lembrou seu sorriso preocupado e autodepreciativo ao confessar sua ambição:

— Se o sultão permite eu gostaria de escrever uma geografia universal. Mapearei o mundo que conhecemos e buscarei as terras ainda desconhecidas de nós. Isto será útil para nossos mercadores e os comandantes de nossos navios. Esta grande cidade é o centro do mundo. Mercadores e viajantes param aqui antes de seguirem para o Ocidente ou Oriente. Podem nos fornecer muita informação.

O prazer do sultão era visível. Mandou chamar o camareiro e o instruiu para garantir que a partir de agora ao erudito e mestre Muhammad alIdrisi fosse paga a soma de dez tacis cada mês pelo Diwan e lhe dessem alojamentos próximos ao palácio. Quando o camareiro fez uma mesura e se preparou para partir, Rujari teve um pensamento tardio.

— E ele vai precisar de um navio, pronto para velejar a qualquer lugar sob suas ordens. Encontre para ele um comandante confiável.

Idrisi caiu de joelhos e beijou as mãos do seu benfeitor. Ficou encantado com a generosidade de Rujari, mas mais do que um pouco apreensivo sobre como aquilo seria visto fora do palácio. Seu trabalho prosseguiria sem obstáculos, mas a maioria dos seus amigos poderia começar a encará-lo com desconfiança. Toda sexta-feira à noite, depois que a cidade fora dormir, um pequeno grupo de poetas, filósofos e teólogos — trinta homens ao todo — se reunia numa saleta localizada no coração da mesquita Ayn al-Shifa. Até ser perturbado pela chamada do muezim à prece, o mehfil discutia questões pertinentes às necessidades da comunidade dos Crentes na ilha.

Até agora, tinham aceitado a sua presença como um deles, mas por quanto tempo?

As simpatias de Rujari não eram escondidas. Como seu pai, ele preferia ignorar o papa e depender da lealdade dos seus súditos muçulmanos. Sabiam que, deixado a sós, o sultão Rujari não lhes causaria danos. Eram os seus barões e bispos que lhe enchiam os ouvidos de veneno. Estavam decididos a converter todos os crentes ou a expulsá-los da ilha. As conversas nos bazares de Palermo, Siracusa e Catânia sugeriam que os monges ingleses, por insistência papal, aconselhavam Rujari a limpar os bosques e vales dos Crentes e a engajar-se na santa cruzada contra os seguidores do falso Profeta. Segundo alguns, planos muito detalhados haviam sido feitos para queimar e arrasar Noto e enterrar vivos os sobreviventes. Os rumores geralmente emanavam de dentro do próprio palácio. Qualquer criança em Palermo sabia que não havia segredos no palácio que não fossem penetrados pelos eunucos.

Mas havia outras vozes, também, pois não existia uma facção única dominando a corte. Na verdade, Rujari se inclinava a favorecer seus conselheiros muçulmanos. Younis al-Shami, seu velho tutor de Noto, o erudito e sábio que lhe ensinara árabe, astronomia e álgebra, era tratado com reverência. Ainda estava no palácio, supervisionando os tutores responsáveis pela educação dos jovens príncipes. Os três tutores eram jovens que ele havia selecionado cuidadosamente, mas nunca ficava satisfeito com eles e freqüentemente os dispensava com uma imprecação favorita e assumia ele mesmo. Aquilo fazia os meninos darem risadinhas e eles relatavam tudo ao pai, sabendo bem que isso o agradaria. Segundo rumores palacianos, Rujari não tomava nenhuma decisão importante sem consultar Younis, mas um rumor, como qualquer eunuco pode confirmar, só é confiável se a fonte for pura.

O sol se tornou forte demais para Idrisi. Ele desceu a escada e voltou à sua cabine. Suspirou ao sentar-se nas almofadas macias que haviam sido especialmente colocadas para poupar o seu traseiro do desconforto do tosco banco de madeira pregado ao assoalho. Uma vez mais olhou para o manuscrito volumoso sobre a mesa à sua frente. Sim, o livro estava completo, exceto pela primeira frase. Durante várias semanas nesta viagem — sentia instintivamente que seria a sua última — havia sofrido em busca das primeiras palavras. A indecisão tinha amortecido o seu cérebro.

Estava tão convencido de que era o início que o perturbava que não levou em conta a possibilidade de que poderia ser o final. Vinha, afinal, trabalhando neste manuscrito há quase 11 anos. Tornara-se um substituto para tudo mais. Para o seu amigo Ibn Hamid cujos reproches ainda ecoavam na sua cabeça; para sua esposa Zaynab, que o deixara sozinho em Palermo e voltara para a casa da família em Noto com suas duas filhas e, acima de tudo, para o seu filho caçula e favorito, Walid, que havia embarcado num navio mercante destinado à China e, sem uma palavra de despedida, desaparecera do seu mundo. Se um guarda aduaneiro não o houvesse visto a bordo do navio, não saberiam sequer aonde tinha ido. Isso foi 15 anos atrás. Nada se soubera de Walid desde aquele dia. Zaynab culpava o marido por ter abandonado o rapaz. Idrisi a mandou para a sua propriedade no campo.

— Você passa mais tempo com o sultão no seu palácio do que com sua própria família. Talvez ele pudesse encontrar alguns aposentos para você no harém.

Em conseqüência, o livro se tornara um repositório de todas as suas emoções. Mas ia também deixálo e, embora ele não o soubesse, esta era a verdadeira razão da sua melancolia. Não as linhas de abertura. Elas eram simplesmente um pretexto para prolongar a separação. O som da água gentilmente lambendo o casco do navio era calmante, mas ele sabia que não podia retardar mais. Breve avistariam os minaretes. Pegou sua pena finamente apontada e a mergulhou no tinteiro.

Se permanecesse leal ao seu intelecto, ele romperia com o velho estilo e sofreria em silêncio as agressões inevitáveis que se seguiriam. Muitos dos seus conhecidos, alguns dos quais ele gostava, encarariam tal escolha como uma confirmação da sua suspeita de que ele era realmente um traidor, um apóstata que havia secretamente abandonado a fé e se vendido ao sultão cristão. Ele podia replicar informando-lhes que seu pai alegava descendência direta da família do profeta. Mas o mesmo faziam milhares de outros, eles responderiam. Todo mundo sabia que a família do Profeta não tinha sido tão grande assim.

Talvez devesse ser fiel à velha tradição e começar da maneira consagrada pelo tempo de elogiar a generosidade de Alá, a devoção sincera do seu Profeta, a imparcialidade e equidade do sultão e assim por diante. Aquilo satisfaria a todos e o liberaria para começar a trabalhar em outro livro. Mas por que deveriam ele e outros como ele serem condenados à repetição eterna? A resposta continuava a escapar-lhe e ele começou a caminhar pela cabine, concentrando-se no seu tumulto interno. Talvez, desta vez pelo menos, ele surpreendesse a todos eles. Começaria em nome de Satã, que contestou, desafiou e foi punido. O pensamento o fez sorrir. As ondas abaixo pareciam encorajar a heresia. Sussurravam "Faça isso. Faça isso. Faça isso", mas quando colocava o ouvido no tabique para ouvi-las melhor elas caíam no silêncio e ele revertia ao seu estado de indecisão. Estava com raiva do seu mundo e de si mesmo.

No passado, o simples ato de observar as linhas da costa, reproduzindo-as em seu caderno de anotações e assegurando-se de que o mapa alfinetado na mesa era exato, bastava para alegrálo. Esta era a sua terceira jornada completa ao redor da ilha. Se apenas pudesse ter mapeado o mundo inteiro assim, em vez de depender de histórias de mercadores e navegantes, que geralmente contradiziam uns aos outros ao descrever o formato da China ou a metade inferior da Índia. Estranho como eles escolhiam geralmente diferentes tipos de frutas para descrever a mesma região. Uma ilha minúscula na costa da China se tornava um lichi ou uma maçã, a metade inferior da Índia uma manga ou uma pêra.

Havia ocasiões em que, mais do que qualquer outra coisa, ele queria voar, pairar sobre o mar como um gavião. Por que Alá não tinha criado pássaros gigantes capazes de puxar uma carruagem através do céu? Então ele teria observado as terras e os mares abaixo e refinado seus mapas. Teria sido tão simples. Ou cavalgar um gavião gigante enquanto ele sobrevoava os continentes. Só então poderia ter a segurança de que seu mapa era uma representação verdadeira do mundo. Conhecia os contornos desta ilha tão bem quanto o seu próprio corpo. Às vezes sua imaginação conferia formas humanas à paisagem vista do mar: de vez em quando um antigo deus zangado, mas geralmente uma mulher. Às vezes ela o observava, apoiada nos cotovelos, e ele sorria para seus olhos gregos, maravilhava-se com seus cabelos damascenos claros cintilando com estrelas e mudando de cor ao serem banhados pelo sol. Com o movimento do navio vinha a percepção de que ela não olhava realmente para ele. Seu olhar se fixava na direção da Ifriqiya.

Ele, também, desviou o olhar e se perguntou quanto tempo levaria para encontrar outra favorita. Se suas estimativas estivessem corretas, atingiriam a ponta norte da ilha em um dia e meio. Da última vez o mar ficara agitado, atrasando a viagem. Três dias depois ele a viu, uma bela mulher-guerreira, ereta, irada e ameaçadora, aos contrário das famosas sereias do poema de al-Homa. "Não sou um inimigo", ele sussurrava enquanto o navio passava. "Sou um desenhista de mapas. Quero preservar, não destruir." Ela, também, o desdenhava e, desapontado, ele se virava para as ondas e se queixava. Mas na sua última jornada não demonstrara nenhum interesse nestas velhas amigas. Sequer se dera ao trabalho de olhar para as mulheres à medida que os ventos empurravam o navio para longe delas. Estava perturbado.

Os membros mais velhos da tripulação, entre os quais o cozinheiro de cabelos grisalhos, tinham viajado com ele muitas vezes. Conheciam seus humores, entendiam suas paixões e respeitavam sua obsessão de desenhar um mapa do mundo. Tinham notado seus olhos tristes e o ar distante, como se o tempo tivesse perdido todo sentido.

Conversaram entre si sobre ele. O que o poderia estar atormentando? Poderia ser um caso sentimental? O jovem de olhos escuros de Noto? Certamente ele não podia estar ansiando ainda pela houri em Palermo? Não seria Mayya? Tinham se convencido de que apenas Mayya, a filha do mercador, podia explicar o desespero nos olhos do seu mestre. Mayya, a quem o cartógrafo amara mais do que qualquer criatura viva neste mundo e quisera tomar por esposa; Mayya que o havia traído com luxúria enquanto ele viajava. O sultão acenara e ela o seguira de bom grado primeiro ao quarto de dormir real e a seguir para sua própria série de aposentos no harém do palácio. Como o cartógrafo controlara e escondera o seu sofrimento dos olhos curiosos de Palermo se tornara o assunto nos cafés e bazares, mas não por muito tempo. O bazar tinha suas próprias prioridades e o coração partido de um jovem cartógrafo não deteve sua atenção por mais do que algumas horas.

Era o mesmo sultão Rujari para o qual Muhammad alIdrisi escrevera este livro. Seu próprio título fora simples: "Nuz'hat al-mushtaq" ou "A Geografia Universal", mas o velho tutor de Rujari, Younis, o advertira que, como o livro jamais seria concluído sem a assistência material de Rujari, um título mais apropriado seria "al-kitab al-Rujari" ou "O Livro de Roger". Diante de tal sugestão do coração do palácio, o que podia ele fazer senão se curvar e aceitar. Idrisi reprimiu sua raiva, mas os eunucos da Corte garantiram que cada lojista no bazar de Palermo tivesse notícia da alteração do título. O bazar acreditava, erroneamente, que Idrisi havia oferecido as delícias do seu corpo ao sultão. O novo título parecia confirmar a calúnia.

E cada um apimentava a história antes de passá-la para o seguinte e assim a vaidade de um dominador se tornava um épico com muitas camadas em que um seguidor do Profeta fora profundamente humilhado e não pela primeira vez.

O alvo de toda a atenção começou a se perguntar se o problema que estava tendo com uma frase de abertura fora agora transcendido pelo novo título. Um sonho recorrente havia perturbado o seu sono por mais de um ano. Era o sultão Rujari, sempre no mesmo roupão de cetim multicolorido, deitado seminu debaixo de um limoeiro com os galhos dobrados de frutos maduros. Rujari se levantava, tirava o roupão e tentava seduzir uma corça amarrada mas, justamente no momento em que a união entre os mundos animal e humano ia ser consumada, Muhammad acordava num estado de completa inquietação. Saía da cama, caminhava para cima e para baixo no chão frio de mármore murmurando "Você não devia aparecer nos meus sonhos tanto assim" e ia beber um pouco d'água para acalmar os seus nervos em frangalhos. Era sempre difícil voltar a dormir. Por que o sonho só vinha quando ele estava em Palermo? Nunca quando estava no mar ou quando ia visitar sua família em Noto ou na casa de seu amigo íntimo, o médico Ibrahim bin Hiyya de Djirdjent. Certa vez tentara discutir a questão, mas Ibrahim rira, negando qualquer interesse nos fenômenos dos sonhos.

Mais de uma vez, pensara em fazer uma visita a Ibn Hammud, o mercador de sedas mais rico do qasr, que, no seu tempo vago, interpretava sonhos e acalmava os medos de homens preocupados. Era muito procurado e um dia Muhammad se aventurou até a frente da sua loja, mas não entrou. Sua cautela tinha se tornado uma barreira intransponível.

Era perigoso demais. Ibn Hammud não conseguiria manter o sonho em segredo. Na verdade, uma versão exagerada acabaria chegando ao palácio. Os eunucos ririam baixinho enquanto se regalavam com a história e cada nova versão seria mais ultrajante. Então estes guardiães do harém contariam às concubinas e uma delas convenceria um eunuco a sussurrá-la no ouvido do sultão. O sultão ficaria enfurecido e aquilo poderia ser o fim de tudo. Tudo. Não apenas do livro, mas do seu autor. E se Rujari ficasse realmente zangado ele se asseguraria, também, que os eunucos fossem punidos. O risco não valia o sofrimento.

Os últimos dez anos da vida de Idrisi tinham sido consumidos pelo livro mas, à medida que o navio se aproximava de Palermo, ele sabia que não poderia retardar muito mais o final do trabalho. O sultão ficaria zangado. Queria ler o livro antes de morrer e sua doença o deixava ansioso. E somente Alá sabia o que poderia acontecer com um pobre cartógrafo depois da morte do seu patrono. Uma vez mais ouviu o adeus zombeteiro do seu melhor amigo no dia em que Ibn Hamid deixou a ilha para sempre, embarcando num navio com destino a Malaka em alAndalus.

— Venha comigo, Muhammad — dissera o poeta.

— Aqui você nunca vai passar de um mendigo melancólico numa capital estrangeira.

Por que deveria fingir mais? Por que não deveria escrever o que queria? Com um sentido de determinação, Muhammad alIdrisi recolheu-se à sua cabine, sentou-se à mesa e escreveu uma única sentença na primeira página da sua geografia universal:

A Terra é redonda como uma esfera e as águas aderem a ela e são mantidas sobre ela por meio do equilíbrio natural que não sofre nenhuma variação.

Pronto. Esta seria a abertura da sua edição pessoal da obra. Quanto ao resto, ele louvaria Alá, o Profeta, o sultão e quem quer mais que precisasse ser lisonjeado.

Uma concessão, mas ela o satisfazia.

Subiu ao convés de novo e respirou fundo o ar marinho. Palermo devia estar muito perto. Podia sentir isso pela brisa carregada, levando os ricos perfumes de ervas, flores e limões. Estes ele conhecia bem e havia cuidadosamente catalogado as plantas e árvores que os produziam. Nenhum dos seus amigos aceitava que fossem diferentes daqueles de outras ilhas e a maneira arrogante com que estes homens ostentavam a sua ignorância o enraivecia grandemente. Havia feito extensas anotações sobre ervas e flores das ilhas do Mediterrâneo e depois de seus anos de trabalho e viagem era capaz de identificar uma ilha no escuro apenas por seus cheiros. Sorriu ao evocar a noite de verão em que estava deitado no convés — os únicos sons as ternas lambidas do mar contra a dura madeira marrom do navio — olhando para as estrelas. Subitamente, uma brisa se elevou e um aroma suave tomou os seus sentidos. Era uma variedade especial de tomilho e soube imediatamente que se aproximavam da Sardenha.

A fragrância de Palermo foi como uma chicotada. Memórias agridoces de sua infância e juventude ainda podiam dominá-lo. Seus pensamentos foram interrompidos por um rapaz — não podia ter mais de 17 ou 18 anos, cor de bronze, com longos cabelos dourados — que lhe trouxe uma taça com sherbet de limão e sorriu, revelando dentes brancos como a neve. Como os mantinha tão limpos? Alegrou-se que Simeon estivesse feliz de novo, mas aquilo não era o bastante para mitigar a sua culpa. Ouvindo seus gritos uma noite, permanecera em silêncio, deixando de intervir, embora soubesse muito bem que a sua presença teria terminado com a tortura do rapaz. O comandante do navio estava empenhado num rito tradicional. Indiferente à dor e à fragilidade de Simeon, ele o havia violentado impiedosamente. Droit ancien de marinier. E então, sem advertência, lágrimas lhe escorreram pelo rosto ao se dar conta de que estava pensando em Walid. E se algum capitão bruto tivesse abusado dele como fizeram com este garoto? A ausência de seu filho o fazia preocupar-se com a agonia do jovem flautista.

Uma semana depois do ataque, o rapaz não comera nem tocara a flauta, nem ousara encarar qualquer marujo de frente, embora alguns tivessem suportado a mesma tortura violenta, experimentado a mesma magoa intolerável e pudessem ser solidários à sua dor. Outros tinham rido e o provocado e, com o tempo, o rapaz se recuperou. O primeiro sinal do seu retorno aos ritmos da vida cotidiana surgiu quando os sons angustiados de uma flauta foram ouvidos ao pôr-do-sol, despedindo-se do dia que morria. Poucos olhos ficaram secos. O homem que fazia mapas, consumido pela culpa, prometeu a si mesmo que iria encontrar um lugar melhor para este rapaz. Muhammad bebeu o sherbet, devolveu a taça e acariciou a jovem cabeça.

— Já viajou a Bagdá, mestre? Viu a Casa do Saber que tem amplas salas para observar o céu e muito mais livros do que a biblioteca do nosso sultão? — o rapaz perguntou.

— Como é a cidade? É verdade o que dizem, que nossa cidade é maior do que Bagdá? Poderia ser assim? E Qurtuba? Conhece a cidade bem, não é, mestre? Vai voltar para lá um dia?

O cartógrafo acenou com a cabeça, mas antes que pudesse elaborar, os minaretes de Palermo foram avistados. Subitamente o convés ficou cheio de homens gritando "Allahu Akbar" e "Siqilliya sana-hallahu" [Sicília, que Alá a preserve!] e preparando-se para a chegada. Um grupo de jovens cansados, seus corpos queimados do sol e rostos desgastados refletindo a exaustão de um dia de trabalho, baixavam as velas cor de ferrugem e as dobravam no convés. Ao crepúsculo a tripulação começou a entoar um canto suave e melancólico enquanto remava o navio porto adentro. O capitão, em busca de elogio para a disciplina dos seus homens, veio até o erudito e curvou-se diante dele, mas Idrisi o ignorou, ainda querendo puni-lo por ter abusado do rapaz. Mas principalmente o autor da geografia universal se preocupava com o céu, ainda azul claro, e com a lua, já a postos e competindo em atenção com o sol que se punha. Devia ser o sétimo mês do ano, pensou. Estivera fora quase quatro meses. Tempo demais. E então a cidade apareceu à sua frente.

Enquanto os marinheiros se aproximavam dos minaretes, cantavam "al-madina hama-hallahu" [Má proteja esta Cidade]. Sorriu quando o navio entrava no porto, um sorriso sem expressão, um leve abrandamento dos olhos, nada mais. Sentia-se contente por estar de volta. A brisa suave acariciava seu rosto como o toque macio de Mayya e inadvertidamente sua mão buscou o rosto para saborear a lembrança. Um bote o aguardava para transportá-lo à terra firme. Passando pelos homens, agradeceu a cada um individualmente. Reprimiu um suspiro ao ser gentilmente atado com cordas de seda a uma cadeira, que foi baixada até o bote. Teria descido a escada de corda alegremente,

mas o capitão o proibiu. Quando a cadeira alcançou o destino, os barqueiros o acolheram com "Wa Salaam..."

Aproximando-se da orla, podia ver os rostos familiares dos cortesãos enviados para recebêlo. Sabia que sob os seus sorrisos e os alaridos exagerados de boas-vindas eles o odiavam por causa do fácil acesso ao palácio de que gozava. E lá estava a barba branca de um dos camareiros palacianos, Abd al-Karim, gritando tão alto quanto seus anos permitiam.

— Preparem-se para receber o Mestre Ibn Muhammad ibn Sharif alIdrisi de volta ao lar depois de uma longa jornada em busca das raízes do conhecimento.

Como era costume, os outros se regozijaram com a volta segura do navio e de seu passageiro.

— Só existe um Alá e ele é Alá e Maomé é o seu Profeta. Bem-vindo ao lar.

A irritação que sentia nestas ocasiões tinha, no passado, sido arrefecida pela presença do seu amigo Marwan, cujo rosto sorridente era a acolhida que mais o agradava.

Mas Marwan havia deixado a ilha. Tinha abandonado suas propriedades e seus camponeses em Catânia e fugido para alAndalus, para a cidade de Ishbilia. Lá o sultão al-Mutammid lhe proporcionara proteção e emprego. Cartas chegavam irregularmente, sempre com a mesma mensagem. Muhammad, também, devia deixar Palermo e voltar à Casa do Islã. Ele nunca respondeu e Marwan parou de escrever. Agora estava sozinho.

— O mestre vai de carruagem ou vai cavalgar?

— Abd al-Karim perguntou.

— Meu cavalo está aqui?

— Está.

— Então vou a cavalo.

— O sultão o espera esta noite. Um banquete foi preparado em homenagem ao seu retorno.

— E se uma tempestade nos houvesse retardado? Outra voz replicou.

— Nunca aconteceu. O senhor sempre volta no dia designado, Ibn Muhammad.

O erudito sorriu. A voz e o rosto o agradaram. Era o berbere, Jauhar, que tinha casado com a irmã de Marwan.

— Alguma notícia de Marwan? O homem sacudiu a cabeça.

— E você? Sua família está bem? Precisa de alguma coisa? Trouxe algumas sedas para a irmã de Marwan. Nós as trocamos por um pouco de comida. Um navio mercante de Gênova estava em dificuldades.

O homem sorriu.

— E agora tenho um favor a lhe pedir. Vá ao palácio e desculpe-se ao sultão em meu nome. Diga-lhe que a viagem me exauriu e eu só adormeceria no banquete. Amanhã vou procurálo e participar-lhe as novas descobertas que ele solicitou. Gostaria de ficar sozinho esta noite. Tenho algo para contar às estrelas.

Jauhar pareceu preocupado e sussurrou:

— Não é uma decisão sábia. O sultão está doente. Isso o tornou irracional. Poderia interpretar mal sua recusa de ir ao palácio esta noite. Está cercado de monges. Francos e gregos. Abutres. Sussurram mentiras no ouvido do sultão. Estamos sendo acusados de fomentar rebelião.

Idrisi sacudiu a cabeça. Não mudaria de idéia.

— Sua Augusta Majestade sabe que sou o mais leal dos seus servidores, mas viajei muitos dias sem um banho e não me apresentarei em tal estado de desleixo. Procurarei o sultão depois das preces matutinas. Deixe isso claro para o Camareiro.

Os cortesãos tinham escutado a maioria deste diálogo e sorriram. Ele fora longe demais desta vez. Seria punido. Estavam decididos a chegar ao sultão antes que Jauhar desse a Rujari sua versão da história.

Idrisi, acompanhado por um único cavalariço, voltou à sua casa, que ficava fora do qasr, perto do mar. Podia ter morado nos aposentos do palácio. O sultão lhe fizera essa oferta em muitas ocasiões, mas Idrisi insistira em que precisava de solidão a fim de pensar. Trabalhava em seu manuscrito em salas contíguas à biblioteca do palácio e freqüentemente fazia as refeições com o sultão, mas escolhera viver numa casa modesta no Kalisa, com vista para o mar.

Foi uma escolha que nunca lamentou. Achava reconfortante a visão permanente do mar. Calmo ou encrespado e agitado, nunca lhe cansava, apesar das longas viagens em que havia embarcado ou das tempestades que quase lhe haviam roubado a vida. Foi uma cavalgada curta, mas lhe fez bem. Lufadas daquele mesmo vento que trouxera o navio à baía agora transportavam aromas de ervas, flores silvestres e limões. Os odores traziam consigo algumas memórias dolorosas, mas ele as reprimiu.

Ao se aproximar da trilha ao pé da colina teve a primeira visão da casa. A luz suave de velas e lâmpadas a óleo enchia cada janela. Olhou então mais atentamente.

Havia luzes até nas janelas dos quartos acima do pátio, quartos que tinham ficado no escuro desde o dia da partida de Walid. Seu coração começou a bater mais forte e, quase involuntariamente, fincou as esporas para o cavalo seguir mais rápido.


2

Vida familiar e idiotices domésticas.
idrisi frustra um plano de suas filhas
para preparar uma armadilha e trair seus maridos,
mas está decidido a educar os seus netos.

Os criados, como de costume, o esperavam do lado de fora da casa, erguendo tochas para iluminar o seu caminho. Desmontou e apertou a mão de cada um, mas antes que pudesse interrogar qualquer um deles foi distraído pelo cheiro de cordeiro grelhado e ervas frescas, um aroma de significado especial. Partiu depressa para a casa a fim de ver se Walid teria voltado. Mas foram suas filhas que o receberam, tomando suas mãos e beijando-as. Idrisi abraçou cada uma e beijou-as gentilmente na cabeça.

— Bem-vindo ao lar, Abu Walid — disse Samar, a mais jovem das duas, seus cabelos ruivos brilhando sob as lamparinas de óleo.

— O que a traz aqui, Samar? E você, Sakina? Pensei que sua mãe tivesse proibido...

— Não vê seus netos há três anos, Abu Walid. Nossa mãe concordou em que fizéssemos esta viagem.

Ele abafou um riso.

— A velhice deve tê-la amaciado. As crianças estão dormindo?

Suas filhas assentiram com a cabeça.

— Estou correto em presumir que prepararam o cordeiro segundo as instruções de sua mãe?

Samar riu.

— Não tínhamos certeza de que voltaria hoje, mas um mensageiro do palácio chegou algumas horas atrás para nos informar de que seu navio fora avistado e que estaria em casa esta noite. O alho e as ervas vieram conosco de Noto.

Ele sorriu com apreciação.

— Espero que, como vocês, tenham conservado seu frescor. Antes que qualquer das duas pudesse responder, ele bateu palmas, levantou a voz levemente e chamou o camareiro da casa.

— Meu banho está pronto, Ibn Fityan? O eunuco fez uma mesura.

— Thawdor está à espera para esfregar óleo em Sua Excelência e os encarregados do banho têm as suas instruções. Sua Excelência vai comer dentro de casa ou na varanda?

— Deixe minhas filhas decidirem. Geralmente, quando se deitava na lousa de mármore, deixava que o grego fizesse o seu trabalho em silêncio. Não hoje.

— Tem filhos, Thawdor? O massagista ficou chocado. Nos seis anos em que havia servido na casa, o mestre mal lhe havia dirigido a palavra.

— Sim, meu senhor. Tenho três meninos e uma menina.

— Suponho que dois meninos tenham sido dedicados à igreja?

— Acredito em Alá e no seu Profeta, mas minha mulher é nazarena e insistiu em que um deles fosse batizado.

Agora foi a vez de Idrisi ficar surpreso.

— Mas o seu nome é grego e pensei...

— Meu nome é Thawdor ibn Ghafur, Oh Comandante da Pena. Minha mãe era grega e, embora se convertesse à nossa fé, insistiu no nome do seu avô Thawdorus para mim.

Meu pobre pai, que nada podia lhe negar, concordou.

A curiosidade de Idrisi foi despertada. Pediria a Rujari que organizasse um registro de todos os casamentos mistos na ilha.

— E quanto aos seus filhos?

— São rapazes agora. O mais moço estava no seu navio nesta última viagem. Sua mãe vai ficar feliz em revê-lo.

Ao ouvir isso, o dono da casa se agitou. Levantou-se, enrolou uma toalha em seu corpo nu e bateu palmas para os criados do banho. Dois jovens entraram no quarto e fizeram uma mesura.

— Thawdor, descreva o seu filho. Idrisi agora tinha certeza.

— Simeon? Falei com ele no navio. Por que ele não me disse que você era o pai dele?

— Provavelmente não lhe ocorreu. Fico espantado que tivesse a ousadia de se dirigir ao senhor, mestre.

— Falei com ele primeiro. O rapaz é sensível'e inteligente. O que não pode falar, expressa através da flauta. É um jovem talentoso e deve ser educado. Vou falar com o velho Younis no palácio e ver se conseguimos encontrar um tutor para ele.

Lágrimas encheram os olhos de Thawdor.

— Sua bondade é bem conhecida, senhor. A mãe do rapaz poderia até rezar para que Alá recompense a sua generosidade.

Idrisi acenou com a cabeça e os criados o escoltaram até o banho na sala ao lado. Ensaboaram-no e o esfregaram com as esponjas mais delicadamente macias. Ficou então pronto para ser secado e vestido. Quando chegou à varanda, o cansaço fora removido do seu corpo. E o cordeiro estava pronto para ser consumido. Que coisa estranha, comer com suas filhas. Por que em nome de Má estavam aqui? Não acreditava que tivessem percorrido aquele caminho todo só para que ele visse seus netos. Não era do seu feitio. Nem, agora que pensava a respeito, o trabalho todo a que se deram para preparar o cordeiro. Sua mãe Zaynab devia ter-lhes sussurrado bobagens nos ouvidos: "Adulem o velho, façam-no sentir que vocês o amam, garantam que o cordeiro seja cozinhado da maneira especial que ele gosta, esperem até que o tenha provado e então peçam o que têm a pedir."

A lembrança da sua voz insinuante e da falsa lisonja não era agradável e ficou irritado consigo mesmo por ter pensado naquilo. Devia lhe dar uma indigestão.

E onde estavam os maridos das suas filhas? Subitamente percebeu que elas tinham vindo pedir em nome de seus homens. Algo devia ter acontecido. Havia sempre inquietação em Noto e no campo nos arredores de Siracusa. No palácio se referiam àquilo como banditismo, mas ele sabia que era muito mais. Pois bem, ouviria quando a ocasião chegasse.

Desfrutou a comida. O cordeiro estava suculento e gostoso, os legumes frescos e o frasco de vinho enviado pelo palácio, provado por Ibn Fityan e pronunciado livre de veneno, havia reavivado o seu ânimo. Notando isto, Samar e Sakino trocaram. um olhar cúmplice, enquanto Idrisi pensava consigo mesmo como as duas se pareciam com a mãe.

A natureza não as havia dotado da sua própria beleza ou do seu físico. Ao lembrar-se de Zaynab, com quem seu pai o obrigara a se casar e que havia visto de relance pela primeira vez no dia do casamento, tremeu à memória daquela noite. Não houvera nenhum prazer despreocupado para os dois e até agora era um mistério para ele como tinham produzido quatro filhos. Sua mãe reivindicava o crédito para si. Contou à família inteira como, consciente do problema, insistira para que Muhammad bebesse uma desagradável infusão de folhas de café adoçada com suco de tâmara, cujos efeitos afrodisíacos foram primeiro notados pelos curandeiros de Ifriqiya. E, naqueles primeiros anos, a cada ocasião — não que fossem muitas — em que montava na sua esposa, podia sentir o gosto amargo das folhas. Sua mãe ficou convencida de que sem elas ele não teria conseguido produzir quatro filhos.

Se o caráter de Zaynab fosse diferente, não teria encorajado a sua partida de Palermo. Mas ela não possuía qualidades redentoras, nenhuma. Sua voz alta gritando impropérios contra a criadagem o irritava grandemente. E era ainda pior quando ela o elogiava. Ele nunca pensou como devia ser para ela crescer numa casa de nobres, desdenhada por todos por causa da sua aparência, o resultado de endogamia excessiva. Ele sabia disso e às vezes comentava com Marwan ou Ibn Hamid como os árabes se preocupavam mais com a criação de cavalos puro-sangues do que com a de seus próprios filhos. Não era culpa de Zaynab, mas por que Má não lhe dera um pouco de cérebro para compensar?

Que as feições de Zaynab fossem reproduzidas em ambas as filhas poderia ter sido uma desgraça não fosse a posição que Idrisi ocupava na Corte. Haviam se casado com homens da nobreza árabe de Siracusa, cujos ancestrais tinham chegado de Ifriqiya e feito o cerco à cidade poucas centenas de anos depois da morte do Profeta.

Os dotes das moças foram generosos, seus maridos eram gentis e, mais importante, tinham conseguido desempenhar seus deveres sem a ajuda de folhas de café. Filhos foram produzidos, um para Samar e gêmeos — um filho e uma filha — para Sakina. O futuro estava assegurado. A terra agora estava garantida, uma considerável porção já registrada no nome dos dois meninos para evitar disputas de propriedade e, ao mesmo tempo, tranqüilizar as mulheres e o seu pai de que, o que quer que acontecesse, a herança não poderia ser contestada. Seus filhos eram os herdeiros oficiais.

Tendo se dado a um grande esforço para cumprir isto, os dois maridos haviam seguido em frente e, compatíveis com suas crenças religiosas, começaram a semear em outras pastagens. Não demorou muito para Samar e Sakina perceberem que não haveria mais filhos. Quanto aos prazeres da cama, uma luxúria perdida. Foi quando bebiam chá de menta depois da refeição que o seu pai decidiu atacar primeiro.

— Minhas filhas, vocês me conhecem o suficiente para saber que detesto aqueles que ocultam seus verdadeiros pensamentos no fundo de seus corações e falam de outra coisa. Sei muito bem que não vieram aqui impelidas pela bondade dos seus corações, mas porque precisam de algo de mim. Não tenho idéia do que seja, mas sou seu pai e vou ajudá-las. Mas, em nome de Alá, peço que falem agora e falem a verdade.

As mulheres entraram em pânico, inseguras se este era ou não o momento certo para discutirem seus problemas. Tinham achado melhor esperar até a manhã seguinte, quando a presença das crianças poderia deixar seu pai mais receptivo às suas necessidades. Sakina fez uma brava, ainda que fraca, tentativa de criar uma digressão.

— Mas, Abi, não nos disse se gostou realmente do cordeiro. Nós o preparamos especialmente para o senhor e...

A visão do rosto do pai tomado de raiva a fez calar-se imediatamente. Samar viu que era inútil ocultar mais o propósito de sua visita. — Abi, nunca lhe pedimos nada importante até hoje, mas estamos muito infelizes. Nossos maridos nos abandonaram e precisam ser punidos e pensamos que você...

Ele ergueu a mão para interrompê-la.

— Antes que prossigam, quero que sejam claras numa questão. Seus maridos saíram de casa ou lhes pediram que saíssem e encontrassem abrigo em outro lugar?

— Não — as mulheres responderam em uníssono.

— Mas — Samar fez menção de continuar, quando ele a interrompeu de novo.

— Ouçam-me com atenção. Vocês começaram com uma inverdade. Seus maridos não as abandonaram no sentido rigoroso da palavra. Podem não mais dividir a cama com vocês, mas isso é uma questão diferente. Quero que me digam tão francamente quanto puderem por que estão aqui, o que querem realmente e como acham que posso ajudá-las. Comecem a partir disso e então podemos ver como foi que chegaram aqui. Estou sendo claro?

Samar e Sakina se entreolharam em desespero e caíram num silêncio nada característico. Ele gostou do silêncio. Podia ouvir o mar de novo e a brisa suave que fazia as palmeiras balançarem gentilmente. Por um momento esqueceu a presença das filhas, mas a voz fria e agora resignada de Samar interrompeu de novo.

— Muito bem, Abi. Vou fazer o que deseja. Viemos implorar-lhe para persuadir o sultão a deserdar nossos maridos, remover seus nomes do registro de terras e colocar tudo em nome dos seus netos. É tudo. Se isso ajuda, podemos oferecer testemunhas que jurarão sobre o Corão que tanto Samir ibn Ali como Umar ibn Muhammad se envolveram em conspirações com o Amir contra o sultão. Estão preparando-se para a guerra.

— Isto é verdade? — perguntou numa voz severa olhando fixamente para elas. Seria surpreendente se o Amir de Siracusa estivesse preparando uma rebelião. Elas desviaram o olhar e ele soube então que estavam mentindo. Por que estavam tão empenhadas em destruir os homens que haviam casado com elas? Ele conhecia a resposta. Ambas eram estúpidas. Não percebiam que quando as terras são tomadas de uma família desleal, a lei não discrimina entre pai e filho. Tudo é confiscado.

— E estão preparadas para confirmar o que me disseram sob juramento na presença do sultão?

Assentiram com a cabeça.

— Vão dormir agora. Vou refletir sobre o seu pedido e tomar uma decisão amanhã.

Pela primeira vez naquela noite acharam que seu plano teria sucesso. A tolice não tem limites. Sua esposa tinha tomado uma aversão violenta aos genros e estava decidida a se desfazer deles. Convencera as moças disso e as enviara a Palermo, carregadas de falsas acusações.

Imerso em pensamentos, seu pai saboreava o silêncio que se seguira à sua partida. Os pássaros, também, haviam se recolhido para a noite. Só o mar estava acordado e as ondas começavam a ficar ruidosas. Olhou para o céu. Era uma noite clara, estrelada. Quando se levantou e caminhou até a beira do terraço, viu os vaga-lumes dançando no espaço. Isto sempre o deixava melancólico. Lembravam-no da primeira noite, uma noite escura de inverno, que havia passado com Mayya depois de terem declarado seu amor um pelo outro, quando ele tinha vinte e ela era cinco anos mais moça. A meia-lua já havia desaparecido. Quando viram os vaga-lumes, ela riu e começou a dançar.

— Olhe, Muhammad — ela gritou -, olhe para mim. Eu sou um vaga-lume.

Ficou sentado olhando para ela até que uma tempestade súbita irrompera com trovão e uma chuva gelada. Pegou na mão dela e correram todo o caminho de volta à aldeia.

Antes de se separarem, ele a apertou junto a si e beijou seus lábios.

Ouviu Ibn Fityan tossir discretamente.

— Hora de ir para a cama, mestre?

— Sim, venha comigo e faça uma massagem nos meus pés. O eunuco seguiu Idrisi até o quarto de dormir onde um criado o despiu e deu-lhe um roupão para a cama.

— Sabia que o filho mais novo de Thawdor viajou no meu navio?

O eunuco não respondeu.

— Você sabia. Por que não fui informado?

— Thawdor achou que era melhor assim. Não queria incomodá-lo.

— É a sua função contar-me tudo. Entende isso? O que andam dizendo no qasr?

— Dizem que o sultão está doente e pode não sobreviver este ano. Dizem que seu filho mais moço é um Fiel em segredo e restaurará nosso povo à posição que merecemos.

Dizem que o senhor, mestre, tem um papel importante a desempenhar. Os nazarenos estão pressionando o sultão a nos dar uma lição. Falam de conspirações e o aconselham a destruir todas as mesquitas em Palermo porque são os viveiros da rebelião. É o que estão dizendo.

Não esperou uma resposta porque viu que Idrisi havia pegado no sono. Cobriu a forma adormecida do seu amo com um lençol e saiu do quarto na ponta dos pés. Mas Idrisi não dormia. Pensava no futuro. Conhecia as facções palacianas e seus líderes, mas sempre se mantivera distante delas. Agora que seu livro estava terminado iria às preces das sextas-feiras e ouviria o khutba. Talvez devesse ter ido ao palácio, afinal.

Quando acordou à primeira luz da manhã, olhou para fora da janela para ver se os vaga-lumes tinham trazido uma tempestade, mas não havia nenhum sinal de terra molhada e o mar parecia calmo. Mandou chamar os netos e ficou surpreso ao verificar que só os meninos tinham sido trazidos para vê-lo. O filho de Samar, Khalid, tinha 14 anos e seu primo, Ali, era dois anos mais velho.

— Wa Salaam, Jiddu. Abraçou cada um deles e pediu-lhes que sentassem na sua cama.

— Vamos tomar o café da manhã aqui e enquanto vocês comem vou lhes fazer perguntas sobre sua equitação e seus tutores.

Mas o que realmente queria saber era sobre os meninos e seus pais. E o que ouviu lhe agradou. Em cada caso o pai dedicava grande interesse e passava várias horas por semana com o filho. Ali falou de como o pai de Khalid os havia ensinado a atirar uma flecha num alvo e a caçar. Khalid contou como haviam aprendido a poesia de Ibn Hamdis, que o pai de Ali podia recitar de cor.

— Gosta de sua poesia? Ali acenou vigorosamente com a cabeça, Khalid fez uma careta. Seu avô explodiu numa risada.

— Vejo que Ali é um homem sentimental, muito dado ao romance, enquanto Khalid se interessa mais por armas.

— Jiddu — respondeu Khalid -, Ali acha que seremos forçados a deixar a Siqilliya um dia, assim como Ibn Hamdis. Se é assim, que uso tem a poesia? Acho que precisamos aprender a lutar para podermos nos defender. Não quero ver minha família assassinada como cabras em época de festival.

Idrisi olhou atentamente para eles. Viu comerem cuidadosamente o iogurte de leite de cabra e o pão colocados à sua frente. Alá fora generoso. Os meninos eram altos e se pareciam com os pais. Os lóbulos das orelhas de Ali lembravam a Idrisi seu próprio pai. Gostava de seus netos e os aprovava.

— Jiddu — perguntou Ali numa voz suave -, em seu livro o senhor explica por que a montanha em Catânia respira fogo? No mês passado, os aldeães que moram abaixo dela empacotaram seus pertences e fugiram. Mas, depois de algumas bolas de fogo, a montanha voltou a dormir e os aldeães voltaram com cara de idiotas. Por que acontece isso?

Meu pai diz que é porque Alá está zangado com os pecados cometidos pelos nazarenos contra os fiéis.

— Se este fosse o caso, meus filhos, por que ele estaria nos punindo? É o nosso povo que mora naquela região. Não cheguei a investigar a fundo esta questão, mas estou seguro de que tem algo a ver com o nascimento desta nossa Terra.

— Mas foi Alá quem ordenou que a Terra nascesse — disse Khalid com uma voz trêmula, que subitamente lembrou a Idrisi de Walid naquela idade, intenso e inquiridor.

— Quando seu tio Walid, que, espero, volte um dia para conhecer vocês dois... quando ele tinha dez ou 11 anos de idade nós estávamos numa grande embarcação não longe de Catânia. E a montanha-de-fogo tornou-se muito ativa e o mar muito agitado e achei que talvez não sobrevivêssemos. Mas não demorou muito e chegamos à orla em segurança. Walid fez a mesma pergunta e eu lhe dei a mesma resposta. E então ele me disse isso que você acabou de dizer, Khalid. Conteilhe então uma história que os gregos costumavam contar nos velhos tempos sobre a montanha-de-fogo. Estão interessados?

Os olhos cintilantes dos netos o encorajaram a prosseguir.

— Faz muito, muito tempo, os gregos não acreditavam que existisse apenas um Má. Acreditavam em muitos deuses diferentes. O sultão dos seus deuses era Zeus, que vivia no Monte Olimpo com seus companheiros deuses e deusas. O povo da Terra se ressentia do poder dos deuses. Por que só eles deveriam ser imortais? Por que deveriam pegar as melhores coisas da terra e transportá-las para o Monte Olimpo? Aconteceu então que a Mãe Terra decidiu que dois gêmeos gigantes, os Moídas, que cresciam dois metros a cada ano, deveriam roubar a comida que tornava os deuses imortais, bani-los do Olimpo e governar o mundo eles mesmos. Não era uma má idéia, concordam? Eles capturaram Ares, o deus da guerra, na Trácia e o trancaram numa arca de ferro.

— Mas não tiveram êxito. Os estratagemas de Ártemis os derrotaram e eles mataram um ao outro por engano. A Mãe Terra ficou realmente perturbada, mas se recusou a desistir. Decidiu criar um novo e imenso monstro chamado Tifão. Este monstro tinha a cabeça de um asno, com orelhas que alcançavam as estrelas e asas gigantescas que podiam bloquear o sol e centenas de cobras em vez de pernas. Soprava fogo e quando chegou ao Olimpo os deuses ficaram aterrorizados e fugiram. Sim, fugiram para o Egito. Zeus foi disfarçado como um carneiro, sua mulher Hera como uma vaca, Apoio tornou-se um corvo e Ares um javali. Mas a mais inteligente e sábia foi a deusa Atena. Recusou-se a partir e chamou seu pai Zeus de covarde. Isto o enfureceu. Ele voltou e lançou um de seus famosos raios sobre Tifão, que teve o ombro queimado e gritou por socorro. Então Tifão, num acesso de raiva, agarrou Zeus, o desarmou e entregou a um monstro feminino chamado Delfina. Os outros deuses decidiram socorrer Zeus. Com a ajuda das Parcas, envenenaram Tifão. Então Apoio matou Delfina e resgatou Zeus. Mas Tifão não estava morto. Estava em Catânia, vivo mas debilitado.

Zeus pegou uma pedra gigantesca e a arremessou sobre a cabeça de Tifão e assim nasceu a sua montanha-de-fogo. Tifão ainda está lá e seu sopro flamejante às vezes se eleva aos ares e assusta todo mundo. Isto não é melhor do que dizer que é a vontade de Alá?

Os meninos bateram palmas excitados.

— Jiddu, os gregos realmente acreditavam que podiam derrubar os seus deuses?

— Sim. E então vieram os romanos e assumiram os deuses, mas os romanos foram um passo adiante e seus sultãos decidiram que eles próprios podiam se tornar deuses.

E o fizeram.

— Como?

— Informando ao seu povo que eram deuses e mandando construir grandes estátuas em sua honra.

— Mas nós só temos Alá — disse Khalid -, e isso é muito melhor porque ele é todo-poderoso. Ninguém pode derrubá-lo.

— É verdade, meu filho — replicou o avô -, mas acho que os gregos se divertiam mais com os seus deuses.

— Mas eles realmente existiram? — perguntou Khalid.

— Se as pessoas acreditam neles, eles existem.

— Mas, Jiddu...

— Agora me ouçam. Vão tomar seu banho e se vestir adequadamente. Vou leválos ao palácio hoje. Vocês vão conhecer o sultão.

Quando ele desceu as escadas um criado sussurrou que suas filhas desejavam falar com ele antes de sair de casa. Samar e Sakina tinham ouvido a notícia da visita ao palácio por meio de seus filhos e presumiram que seu pai pretendia facilitar a transferência das terras para os rapazes. Assim, as descaradas mulheres saudaram o pai jovialmente, cumulando-o de palavras melosas e pedindo sua permissão para voltarem a suas casas em Siracusa. Uma raiva fria tomou conta dele e o impediu de responder. Samar expressou preocupação.

— Sente-se bem, Abi? Podemos falar depois que o senhor voltar.

— Sentem-se. Fizeram o que ele mandava.

— Acabei de partilhar o pão com Khalid e Ali. São meninos inteligentes e sérios e gostaria que ficassem um pouco mais para que possa conhecê-los melhor. Quero ensinar-lhes algo importante. Nesta casa honramos a verdade. É o que desejaria lhes ensinar.

As mulheres sorriram em apreciação e concordaram com a cabeça.

— Por esta razão — continuou — decidi ignorar as mentiras que vocês me contaram sobre os seus maridos. Cada palavra que falaram foi uma inverdade e estavam preparadas para testemunhar falsamente com as mãos sobre o Corão. Sei bem que Alá não as abençoou com muita inteligência, mas sua estupidez é verdadeiramente monumental.

E por trás desta tentativa desonrosa um nível ainda mais elevado de estupidez parece estar em ação. Esta bobagem toda foi idéia de sua mãe? Respondam-me.

Sakina começou a derramar lágrimas tão falsas quanto seus sorrisos iniciais.

O pai levantou-se para dispensá-las.

— Quero que voltem a suas casas e se esqueçam de toda essa história. Não se dão conta de que os meninos amam os homens que vocês querem difamar? Se ouvir outra palavra de vocês vou providenciar para que sejam severamente punidas.

Abaladas por esta demonstração de raiva, Samar e Sakina caíram de joelhos diante dele e beijaram seus pés. Samar falou numa voz entrecortada.

— Perdoe-nos, Abi. Está correto. Foi idéia de nossa mãe. Não mencionaremos isso para outra pessoa enquanto vivermos.

Então Sakina, desesperada para recuperar as graças do pai, declarou:

— Nunca mais falaremos inverdades.

Idrisi foi inflexível.

— Poderiam muito bem dizer que nunca mais iriam comer.

— Abi, chegou uma carta de Walid.

O choque quase o derrubou. Sentou-se de novo.

— Se isto é outra falsidade...

— Não é, Abi — Samar falou para apoiar a irmã.

— Nós vimos a carta.

— Quando foi que chegou?

— Um ano atrás — respondeu Sakina.

— Foi-nos entregue por um mercador que havia se encontrado com Walid.

— Por que não fui informado? As mulheres abaixaram a cabeça e não responderam.

— A quem era a carta endereçada? Não receiem. Contem-me a verdade.

— A nós — respondeu Samar — mas nela havia um pergaminho selado para o senhor. Nossa mãe disse-nos que devíamos escondê-lo até o senhor concordar com o nosso plano.

— Presumo que o tenham trazido com vocês? Ela acenou com a cabeça e correu até o seu quarto, voltando com um rolo de papel selado. Tomando-o das mãos dela, Idrisi pediu que o deixassem a sós. Inspecionou o documento atentamente para verificar se fora aberto e selado de novo mas, para sua surpresa, não tinha sido violado.

Ao pisar no lacre e vê-lo esfarelar-se, seus olhos ficaram úmidos. Walid estava vivo. A caligrafia desajeitada era tranqüilizadora. Não podia haver dúvida de que Walid fosse o autor daquilo que estava na mesa à sua frente. Em outro pedaço de papiro com a carta Idrisi viu os contornos de um mapa, mas que costa podia ser esta? Por um momento o cartógrafo tomou precedência sobre o pai. Bateu palmas. Era a costa sul da Índia, mas desenhada com muito mais habilidade do que a sua própria versão.

— Alá seja louvado — disse para si mesmo.

— O rapaz é mais talentoso do que o seu pai.

E então devorou a carta.

 

"Muito respeitável pai, espero que esta o encontre com saúde. Eu honro o senhor e o amo. Esta é a terceira carta que lhe estou enviando. As duas primeiras foram despachadas por meio de mercadores que estavam a caminho de Palermo. Pedilhes que entregassem as cartas no palácio, presumindo que elas o encontrassem lá. Tenho a sensação de que jamais o alcançaram porque se o tivessem o senhor teria encontrado um jeito de responder e eu costumava sonhar que o seu navio entraria nesta cidade de água e me encontraria.

Esta carta estou mandando por um homem do mar que se tornou um caro amigo meu na primeira viagem e agora é capitão do seu próprio navio. Ele está a caminho de Siracusa. Em minhas cartas anteriores eu lhe pedia que me perdoasse por partir sem me despedir. Não queria que ficasse preocupado ou temeroso por minha causa.

Sei quanto me amava e não queria deixar que minha ausência se tornasse uma preocupação permanente em seu pensamento como a sua o é no meu.

Parei de viajar alguns anos atrás depois de ter passado por algumas atribulações e amarguras em minha vida. Agora estou feliz a serviço de um ótimo mercador, Mestre Soliman, que conhece bem Palermo pelas histórias do seu avô que negociava com sedas e trazia muitas belas peças de tecido de nossa cidade. Mestre Soliman não viaja mais. Trabalha principalmente com fivelas curvas e colares de prata para as senhoras e, às vezes, taças de ouro para o palácio. É um artífice muito talentoso e poderia fazer um planário de prata para os seus mapas.

Pai, gostaria de vê-lo, mas não desejo voltar a Palermo. Vai terminar mal para o nosso povo e não tenho vontade de testemunhar novas matanças. Como sabe, foi a morte do irmão de minha mãe a causa da minha partida. Tenho consciência de que o senhor nada sentia por ele a não ser desprezo, mas era um homem afetuoso, sempre muito bondoso para comigo e não houve um motivo real para a sua morte, exceto roubo. Os nobres que o mataram sabiam que não tinha filhos e que a terra reverteria para o sultão, o que aconteceu, e foi entregue aos assassinos. Aqui na cidade de água não existem muitos fiéis. Mestre Soliman, que é judeu, acha que eu talvez seja o único seguidor do nosso Profeta a viver de fato nesta cidade. Por esta razão minha presença não é ameaçadora para ninguém. Não posso lembrar se o senhor chegou a visitar Veneza em suas viagens, mas se um dia decidir vir até aqui pode me encontrar na casa do artífice em prata Soliman que é conhecido de todos. O pequeno mapa que mando com esta carta foi feito por mim quando era marinheiro e viajei muito pelas costas oriental e ocidental da Índia.

A paz esteja convosco, Pai.

Do seu filho obediente, Walid ibn Muhammad"

Uma cascata de emoções desceu sobre ele — alívio, alegria, amor, raiva, tristeza, tudo fluindo junto enquanto ele enxugava as lágrimas dos seus olhos. Perguntas não feitas e amarguras não faladas continuariam a pesar sobre o seu coração, a não ser que... Pediria ao sultão permissão para visitar Veneza.


3

Rumores sigilliyanos.
O sultão no palácio informa a Ydrisi o destino que aguarda Felipe al Makdia.
O encontro de Jdrisi com Mayya e EI more o faz esquecer de tudo mais.

Depois que as formalidades foram concluídas e os dois netos apresentados ao sultão Rujari, que deu a cada um deles um saquinho de seda contendo moedas recém-cunhadas, a audiência terminou. Os meninos fizeram uma mesura e foram escoltados para casa por Ibn Fityan. O resto dos presentes foi convidado a deixar os dois homens a sós.

Idrisi ficou chocado ao ver quanto peso o sultão tinha perdido nos últimos três meses. Seu amigo robusto, vigoroso e bonito havia envelhecido. Os cabelos ruivos escuros de que tanto se orgulhava e que havia herdado da mãe, Adelaide de Savona, tinham ficado totalmente grisalhos. O mesmo destino devia ter acontecido à sua barba e provavelmente por isso ele a mandara remover. As aparências eram importantes para este sultão. Idrisi fitou Rujari, que evitou os seus olhos. Os dois homens sabiam que a morte não estava muito distante.

Justamente quando Idrisi ia falar, uma jovem, com não mais de 16 ou 17 anos de idade, entrou correndo na sala e abraçou o sultão, repousando a cabeça no seu colo. Ao se dar conta de que não estavam a sós, seu rosto se coloriu e ela murmurou um pedido de desculpas. No momento em que Idrisi a viu, soube quem era e as batidas do seu coração se aceleraram. Os olhos e os lábios dela eram uma réplica exata dos de sua mãe naquela idade.

Rujari sorriu.

— Minha filha, Elinore, mas você a reconheceu, não? É igual à mãe, excetuando os cabelos negros e espessos. Esta foi a minha contribuição. Eu acho.

Ela olhou cuidadosamente para ele e sussurrou no ouvido do pai.

— Como é que ele conheceria minha mãe?

— Mestre Idrisi, ela quer saber como é que conheceria sua mãe. Vocês cresceram na mesma aldeia, não foi? Acho que a vi pela primeira vez na casa do seu tio em Palermo. Você estava lá?

Idrisi assentiu com a cabeça.

— Preciso falar com o amigo da sua mãe, filha. É o maior erudito em nosso reino mas raramente está em Palermo. Diga a sua mãe que ele está aqui. Se ela desejar, pode compartilhar do nosso almoço.

Como uma gazela, Elinore partiu do quarto e, virando-se uma vez, olhou para trás e sorriu.

— Soube que teve notícias do seu filho.

— Seus espiões são rápidos, Excelso Senhor. E, nesta ocasião, dizem a verdade. E sua saúde?

— Veja por si mesmo. Aqui estou no palácio dos seus sultãos, alquebrado pela velhice cruel e pela perda dos meus filhos. Conhece esta sensação. Seu menino desapareceu num navio e lembro que você não conseguiu comer durante vários dias. Três dos meus filhos foram tirados de mim. Eu amava Rujari mais do que qualquer outra pessoa. Estava aprendendo rápido. Você o ensinou. Não se lembra? Era um broto saudável e de repente cresceu como uma árvore jovem. Eu o amava, Idrisi. Cuidava dele com todo o carinho. Era o orgulho do meu pomar. Deus é cruel. Então foi a vez de Tancredi, seguido por Alfonso. Agora tem Guillaume ou "Guilherme, o Conquistador", como seus irmãos costumavam provocá-lo. É um doce rapaz, de temperamento tranqüilo, mas pouco dotado e sem sabedoria nem virtude. A coroa pesará muito na sua cabeça e receio que irá depender muito da espada. A espada, como sabe melhor do que a maioria, é uma defesa essencial contra inimigos em casa e no estrangeiro, mas deve ser usada com cuidado. Se houvesse imaginado que todos os seus irmãos morreriam antes dele, eu teria providenciado para que tivesse a oportunidade de governar ou trabalhar para o Diwan. Seus interesses são limitados à poesia árabe, a discussões sobre o amor, a consumir vinho e a fornicar. Embebeu-se tanto da sua cultura que acho que sente e pensa como um árabe. Isto é perigoso, Idrisi, e vai enfurecer os nobres. Quero que você fale com ele, o ensine e ajude. Ele poderia perder até seu reino tão facilmente como meu pai o conquistou. Se ele o fizer, espero que o seu povo o recupere, mas duvido da sua capacidade de fazê-lo.

Existe uma fraqueza arraigada na sua política. Vocês superestimam o poder da palavra e da espada, mas subestimam a necessidade da lei, especialmente em relação à propriedade. Não me interprete mal: a lei é somente um instrumento para ser usado pelo governante ao seu critério, mas cria a base para a estabilidade. Detestaria que os papas tomassem a Sicília, ou os ingleses ou os cruzados. Se o fizerem, tudo o que criamos será destruído. Será o fim. Eu esperava que minha jovem e bela esposa pudesse me dar um novo filho, mas ela produziu uma menina e isso não ajuda.

Havia ocasiões em que Idrisi tinha dúvidas em relação a si mesmo e à sua posição na corte. Freqüentemente imaginava como, com o seu conhecimento da Siqilliya e do mundo, podia guiar seu povo à vitória. Mas uma conversação mais demorada com Rujari geralmente dissipava suas dúvidas. Não havia outro sultão como ele, na Ifriqiya ou em alAndalus, os dois mundos que ele entendia tão bem. Mas o sultão era duro demais em seus julgamentos.

— Acho que faz uma injustiça a Guilherme. É porque jamais gostou dele que se refugiou em seu próprio mundo, mas é um rapaz inteligente. Seu conhecimento de literatura e filosofia é notável. É verdade que é muito chegado aos prazeres do salão e do copo, mas vou fazer o que pede e dar-lhe algumas lições de política. Vamos esperar que Sua Alteza viva por muito tempo. Os médicos diagnosticaram a sua doença?

— Os sábios de Salerno — e todos eles estiveram aqui — dizem que não há cura para a minha doença. Sabem que estou morrendo. Recomendam ervas, frutas e outras coisas mais, mas quando pergunto quanto tempo de vida me resta não têm resposta. Não sabem. Por isso vamos falar longamente hoje, meu amigo. Há muito a discutir. Estou contente porque teve notícias do seu filho e estou ainda mais feliz porque seu livro foi terminado. Seu livro não deixará felizes meus primos ingleses. Você descreve a Inglaterra como um país de inverno perpétuo no Oceano das Trevas. É verdade. É verdade. Até os padres que os ingleses me mandam para intrigar contra o seu povo e os gregos sabem disso muito bem. Por que outro motivo viriam muitos deles para buscar calor nos braços de rapazes locais? Não é culpa deles, mas de vocês. Por que um exército árabe não chegou e construiu sobre o que os romanos haviam deixado para trás? Assim que atingiram a costa atlântica, vocês podiam facilmente ter tomado a Inglaterra e a ilha ao norte. Aquelas pequenas igrejas saxônicas de que ouvimos falar tanto podiam ter sido reconstruídas como belas mesquitas e depois o Banu Hauteville as teria consagrado como catedrais. Meus primos queixaram-se amargamente de terem de construir tudo sozinhos. Castelos, palácios e igrejas. Disseram-me que todas as suas estruturas são inverno perpétuo.

Sorriu e olhou para o amigo. Era assim que suas conversas tinham ocorrido quando ambos eram jovens e se tornaram amigos chegados. Sua intimidade provocara uma quantidade de rumores nas ruas, encorajados pelos eunucos do palácio. O sultão esperou a sua resposta. Idrisi o atendeu.

— Era fria demais para ser conquistada por nós e até Alá teria problemas para mudar o clima de um país. Em alAndalus e na Siqilliya ainda podíamos cheirar o deserto e cultivar nossastâmaras, limões e romãs. Mas na Inglaterra o frio teria matado as palmeiras e aqueles que levavam as sementes. Aquela ilha era feita para o seu povo, não para o meu. Embora o que diga seja verdade. Nós teríamos lançado a luz do conhecimento sobre eles. Teria poupado a Abelardo de uma longa jornada até aqui simplesmente para aprender árabe. E nós lhes teríamos ensinados os prazeres da comida. Eles pensam e comem como bárbaros. Mas acho que os seus arquitetos, também, gostam de trabalhar segundo os seus planos, não os nossos. A igreja que vocês construíram em Cefalu nunca poderia ter sido construída sobre as fundações de uma mesquita.

Riram. Muito para a irritação dos padres ingleses na corte de Rujari, o azar dos primos que haviam conquistado a Inglaterra era o alvo de muito humor e irreverência entre estes dois velhos amigos. Até mesmo aquela conquista havia exigido a presença de cavaleiros siqilliyanos. E alegava-se até que uma flecha siqilliyana havia derrubado o rei inglês.

— Ah, Cefalu. É lá que você deve providenciar para que este corpo cansado repouse depois que eu partir. Os bispos vão querer enterrar meus ossos aqui em Palermo.

Não deixe que façam isso. Alguns dos meus momentos mais felizes foram passados em Cefalu, onde morei e providenciei para que os arquitetos fizessem exatamente o que eu queria. Por que sorri? Ah, eu lhe contei sobre a mulher de Temim. Ajudou-me muito, certamente, mas foi a igreja que me preocupou muito mais do que ela.

Quanto ao projeto, sei que você está fazendo uma maldade. A influência dos seus arquitetos está onipresente naquela igreja. Como poderia ser diferente quando foram eles que a construíram e da maneira que eu queria que fosse? Foi por isso que me mudei para lá a fim de evitar que os bispos interferissem. Vamos, mestre Idrisi, como pode ter se esquecido daqueles deliciosos arcos, delgados como as curvas de uma bela mulher?

— Uma bela mulher de Temim... Rujari ignorou a observação.

— O que são aqueles arcos senão um tributo às mesquitas de Palermo, que ainda estão lá como estavam na época do meu pai? Você estava convicto de que eu não conseguiria protegêlas. Claro que a igreja que o seu povo tomou e transformou numa mesquita teria de ser consagrada de novo. Nós somos cristãos, afinal. Mas você deve admitir que tudo mais está lá. Esta ainda é a cidade das 299 mesquitas e ainda sou o sultão Rujari da Siqilliya.

— O senhor é certamente o sultão Rujari de Palermo. E os Fiéis o respeitam por isso, mas de que outro modo poderia governar uma cidade em que o grosso da população pertence à minha fé? Poderia matá-los, mas quem administraria o Diwan, combateria as suas guerras, transportaria suas mercadorias e pagaria seus impostos? Os lombardos que seu pai encorajou a virem para cá são bárbaros. Nada sabem a não ser estuprar e roubar. E quando o senhor viaja para Messina ou Apúlia e deixa estes belos mantos longos e se veste na armadura dos seus ancestrais e seu escudo é pintado com uma cruz o senhor se torna rei Roger ou conde Ruggiero dependendo de onde estiver e dos papas litigantes que venham implorar pelo seu apoio.

Rujari sorriu.

— Você sabe muito bem que meu pai se recusou a mandar nossos soldados combaterem na Primeira Cruzada. Eu lhe contei que, quando uma comitiva do papa Urbano continuou a insistir para que enviássemos soldados, meu pai peidou bem alto e deixou a sala? Mesmo depois que tomaram Jerusalém, ele estava convicto de que tinha tomado a decisão certa. Urbano nunca perdoou meu pai e até o ameaçou de excomunhão. Agora ouvi dizer que as coisas não estão muito boas para os cruzados e eles temem perder tudo. Ainda na semana passada recebi uma mensagem de Inocêncio, cujo ódio por mim só é superado por aquele que lhe devoto. Escreve que existe uma pressão dos ingleses e do Sacro Imperador para uma nova cruzada com o fim de aliviar a pressão sobre os estados cruzados e pergunta se a Siqilliya vai participar.

Não mandarei nossos soldados para Jerusalém ou Acre para salvar os castelos de meus primos na Síria. Mas seria tolo de minha parte revelar isto cedo demais. Por isso eu escuto e jogo com o papa e nossos primos ingleses. São deveres cansativos, mas sagrados.

— Alguns poderiam dizer — respondeu Idrisi — que não foi só preocupação por meu povo ou nossos soldados no seu exército que o levou a não ajudar o Papa, mas seus temores e aqueles do seu pai de que o comércio do trigo pudesse sofrer e esvaziar o tesouro. Não é por nada que um de seus nomes é Abu Tilis, pai do saco de trigo.

Idrisi ia continuar quando notou que Rujari tinha dificuldades para respirar. Correu até a porta e pediu ao camareiro do palácio, que estava bisbilhotando, que trouxesse os médicos até o rei.

Rujari se restabeleceu, mas o esforço para recuperar o fôlego o exauriu.

— Vou descansar um pouco — sussurrou fracamente.

— Você precisa comer alguma coisa. Fale com Mayya e depois volte ao meu quarto. Tem um assunto importante que precisamos discutir.

Os médicos tinham chegado e começaram a sentir o pulso e a cabeça reais. Rujari bebeu a água que lhe foi oferecida e depois, pousando os braços nos ombros dos dois criados, caminhou lentamente até o seu quarto. Entristeceu Idrisi vê-lo naquele estado. Este sultão jamais deixaria Palermo vivo. Disso ele tinha certeza.

Um serviçal do palácio entrou na sala e o repreendeu num dialeto árabe falado em Noto.

— Esqueceu-se de mim, mestre. Idrisi examinou-o atentamente e sorriu. Era Abd al-Rahman, o camareiro responsável pela preparação e pela prova da comida nas cozinhas do palácio.

— Você envelheceu, assim como o sultão que serve. Fico feliz que ainda seja o Comandante dos Cozinheiros. Que iguarias foram preparadas hoje?

— Acho que ficará tão contente em rever uma velha amiga que seu pensamento não se fixará por muito tempo nas codornas ou no ninho de pasta de berinjela e alho em que repousam. E isto é apenas para abrir o seu apetite. O simples aroma da comida o guiaria até o refeitório, mas se quiser me acompanhar, Comandante dos Mapas, chegará ao seu destino muito mais cedo.

Idrisi estava tão acostumado ao fato de que poucos segredos sobrevivem em Palermo que a referência casual a Mayya não o havia surpreendido nem um pouco. Conhecia bem demais o local. Era o aposento de encontros particulares de Rujari, onde se servia comida às vezes e onde apenas membros da família, amantes ou amigos privilegiados eram recebidos. Idrisi comera ali em várias ocasiões e, na verdade, não precisava dos serviços de seu guia. A sala estava bem distante do grande salão de banquetes do palácio. As janelas davam para o mar, um cenário perfeito. E o destino quisera que ele se encontrasse com Mayya sem a presença do sultão. Sabia que o ouvido de um eunuco estaria colado à porta e toda a conversa seria relatada ao camareiro que então decidiria quanto deveria ser contado ao sultão e quanto reservado para fins de chantagem. Sempre fora assim, mas ele estava bem preparado.

Mayya entrou na sala deslizando como a princesa que não era e cumprimentou-o sem olhar na sua direção. Ela, também, sabia que cada parede do palácio tinha ouvidos.

— Wa Salaam, Abu Walid. Soube que voltou em segurança e seu grande trabalho foi completado, graças à bondade de Alá. Minha filha me informou que o viu com o sultão.

— Wa Salaam, mãe de Elinore. Fico triste que o sultão não possa comer conosco. Espero que a sua saúde melhore.

Sua única resposta foi mostrar a língua para ele e reprimir a risada que sentia saindo de si. Idrisi não a via há quase 15 anos. Agradou-o que não fizesse nenhuma tentativa de esconder sua idade tingindo os cabelos com hena. Podia facilmente tê-lo feito. Seus cabelos eram de um ruivo dourado escuro, exatamente como uma pintura desbotada da deusa grega Deméter que ele lembrava do templo em Djirdjent. Seu rosto, também, havia mudado, com rugas no pescoço e sob os olhos e nos cantos da boca. Olhou atentamente para ela e estava para beijar suas mãos quando a porta se abriu e Abd al-Rahman entrou na sala seguido por três criados que cuidadosamente dispuseram a comida sobre a mesa.

— Voltaremos quando chamar, mestre Idrisi. Espero que tudo esteja ao seu contento.

— Obrigado, Abd al-Rahman, se não estiver prepare-se para sentir a cimitarra no seu pescoço duro.

Mayya tentou, mas não conseguiu controlar um sorriso. O camareiro fez uma mesura e deixou a sala, tomando o cuidado de fechar as portas com exagerada cortesia.

Idrisi ficou de joelhos, abraçou-a e beijou suas mãos. Então sussurrou no seu ouvido.

— Ela é uma moça bonita. De passos leves e segura de si. Você tem certeza?

Mayya acenou com a cabeça e sussurrou a resposta.

— Graças a Alá, seus cabelos, também, são escuros. Um dia contarei tudo a ela.

Acariciou os cabelos dele e fez sinal para que se sentassem à mesa. Ele a seguiu, mas não pôde se impedir de tocar no pescoço dela. Ela tremeu ligeiramente enquanto se sentavam diante das tentadoras codornas, servindo ele e então se servindo. Fez sinal para que ele comesse e disse em voz alta:

— Quando Abd al-Rahman for para o paraíso, estou segura de que o anjo Jibril vai indicá-lo para se encarregar das cozinhas celestiais. Como estava a comida no seu navio? Como sempre?

— Horrorosa. Pior do que o de costume. Não vamos perder tempo com isso. Estas codornas estão maravilhosas.

E conseguiram falar sobre o cuidado que devia ter cercado cada prato e o frescor dos legumes durante outra meia hora.

Então Idrisi começou a falar de suas viagens. E esse tempo todo em que falavam de comida, mapas e do mar, mantinham-se ocupados explorando o território um do outro.

A incongruência entre as palavras e as ações era tão pronunciada que mais de uma vez ele teve de colocar a mão sobre a boca de Mayya para impedir que ela risse.

Sentindo seus seios debaixo de três camadas de roupas, comentou sobre a delicadeza dos melões, diante do que ela riu alto. O ruído os assustou e correram de volta à mesa para sentar-se em lados opostos. Então, de uma distância segura, seus olhos continuaram a se banquetear um no outro. O risco de fazerem contato físico tornou-se claro quando, sem nenhum aviso, as portas se escancararam e o sultão entrou com Elinore segurando o seu braço. Idrisi se pôs de pé em genuína surpresa.

Mayya sorriu calmamente, mas debaixo de seu vestido de múltiplas camadas podia ouvir seu coração barulhento que, diante do dilema entre o prazer e a culpa, sempre escolhia o primeiro. Idrisi, também, manteve a sua compostura.

— Alá seja louvado. Está recuperado, Sua Excelência. Rujari não perdeu tempo com formalidades.

— Sua risada podia ser ouvida em cada canto do palácio, Mayya. Não quer compartilhar o gracejo conosco?

Ela não hesitou.

— Foi a maneira como mestre Idrisi se referiu aos melões, meu senhor. Ele os segurou em cada mão e falou em voz alta, sabendo muito bem que alguém do lado de fora estava ouvindo e relataria seus comentários à cozinha. Foi o olhar no seu rosto, mais do que as palavras.

Para apoiá-la, Idrisi pegou os melões e assumiu a pose de um deus grego.

Rujari sorriu, enquanto Elinore começou a rir, como a mãe. Estranho, o pai pensou, como as duas têm esta risada brilhante e colorida. Primitiva, mas pura. Uma verdadeira alegria aos ouvidos.

Idrisi começou a estudar as feições da filha mais de perto. Suas sobrancelhas o lembravam da mãe. Como ela teria amado esta criança. O sultão o observava atentamente.

— Ela é bonita, não é, mestre Idrisi? O rosto de Elinore corou e ela foi sentar-se ao lado da mãe.

— Ela tem uma certa semelhança com a sua mãe, ou estou enganado?

— Não está enganado. Mas às vezes eu me pergunto se a semelhança está nas feições ou no caráter. Não posso me decidir. Qualquer das duas respostas me faria feliz.

Pode ir, filha.

Quando ela se levantou para sair, Idrisi falou-lhe diretamente.

— Está satisfeita com o seu tutor?

— Sim, estou, mestre — ela respondeu com uma segurança que o agradou enormemente.

— Ele diz que meu árabe e latim estão agora perfeitos e quer me ensinar grego.

Idrisi se surpreendeu.

— Se o seu pai concordar, eu gostaria de lhe dar algumas aulas de geografia. Achamos que Palermo é o centro do mundo e de certo modo é, mas não é o centro real.

Para surpresa da garota e dos seus pais, o sultão não estava inclinado a concordar.

— Existem muitas outras coisas que uma jovem precisa aprender antes de a sobrecarregarmos com geografia.

Elinore se desagradou.

— Mencione outra coisa, pai. A força da inocência era notável e os dois homens sorriram com admiração.

— Continuaremos esta discussão em outra oportunidade, minha filha, e eu talvez ceda nesta questão. Afinal, eu ajudei mestre Idrisi a preparar a pesquisa para este livro. É por isso que foi intitulado "al-kitab al-Rujari". Mas agora devo tomá-lo de vocês. Preciso consultá-lo num assunto de grande importância para o reino que pode envolver sua futura geografia.

Idrisi curvou-se para Mayya e sorriu para Elinore. Enquanto os dois caminhavam lentamente para a câmara de audiência privada, Idrisi comentou sobre a rápida recuperação do sultão e perguntou se estes ataques eram freqüentes. O sultão acenou com a cabeça, mas deixou claro que sabia que o seu tempo nesta terra era limitado e era em outra questão preparatória para o futuro que precisava de aconselhamento. Foi a terceira vez naquele dia em que Rujari havia indicado que algo o preocupava.

Idrisi ficou pensando por que ele não conseguia falar a respeito. Estavam sentados há algum tempo e o sultão ainda permanecia em silêncio, seus olhos recusando-se a fazer contato com aqueles do amigo.

— Comandante dos Poderosos, há mais de vinte anos que o conheço bem. Esta é a primeira ocasião de que me lembre em que teve alguma dificuldade em me confiar alguma coisa que o está claramente preocupando.

O sultão olhou para ele. — Algo que disse antes continua a ecoar em minha mente. Disse que eu era sultão Rujari em Palermo mas rei Roger no continente. Pois bem, meu amigo, eu preciso me tornar rei Roger em Palermo também. Os bispos me advertiram de que os barões de Apúlia e Messina e outros que não foram nomeados decidiram agir depois da minha morte. Pretendem matar o pobre Guilherme e colocar um deles no trono. Os bispos recomendam que para deter o controle do futuro eu preciso fazer a minha lealdade à Igreja visível a todos.

Idrisi percebeu a gravidade da situação.

— Um sacrifício de sangue?

— Receio que sim.

— Se sou eu que querem, preferiria a cimitarra ao fogo.

— Não é uma questão de frivolidade. Eles querem a cabeça de Felipe al-Mahdia.

Abalado pela notícia, Idrisi se levantou, o rosto carregado de raiva. Felipe era o mais respeitado dos conselheiros do sultão na Siqilliya. Era um eunuco que havia fugido da escravidão em Ifriqiya na juventude e encontrara santuário em Palermo. Nascido muçulmano, depois da morte do pai fora vendido como escravo a um mercador grego. Foi batizado e destinado à Igreja em Constantinopla. Mas o navio mercante que o levava foi atacado por piratas e ele acabou vendido à casa de um mercador em al-Mahdia. Converteu-se voluntariamente ao Islã e logo escapou da servidão como clandestino a bordo de um navio com destino a Palermo. Igualmente fluente em árabe, grego e latim, sua facilidade para as línguas o recomendava para o Diwan real. Seus dons não se confinavam à tradução. Tais eram suas capacidades de administrador que se tornou o mestre da casa e, mais tarde, um eficiente Amir al-bahr, um comandante marítimo temido pelos inimigos da Siqilliya. Estava freqüentemente ao lado de Jorge de Antioquia, o comandante marítimo que conquistou as cidades-estados da costa ifriqiyana para o rei siqilliyano. Depois da morte de Jorge, Felipe foi nomeado seu sucessor. Dentro do palácio, veio a ocupar uma posição de segundo, superado apenas pelo sultão. Um grão-vizir, mas sem um título grandioso. E, na ausência de Rujari, a autoridade de Felipe era inquestionável. Na cidade era visto como um generoso protetor de judeus e Fiéis.

Apenas poucas semanas antes de sua volta a Palermo, quando o navio de Idrisi ancorara num pequeno porto da Calábria para se reabastecer de água potável, ouviram em termos brilhantes sobre o triunfo de Felipe em Bone, na costa ifriqiyana.

Os bispos sem dúvida o consideravam um sério obstáculo aos seus planos, mais notavelmente à conversão lenta e forçada de todos os infiéis. Só podia ser este o motivo para pedirem a sua remoção. Felipe também possuía uma língua afiada e fazia pouco esforço para disfarçar sua aversão a alguns dos padres, enquanto mantinha uma amizade forte com outros. Idrisi podia entender por que os clérigos queriam sangue. Mas o que havia acontecido a Rujari?

— Qual é a acusação contra Felipe?

— De que foí muito indulgente com os prisioneiros feitos em Bone.

— Sultão, tanto o senhor como seu pai na sua época mostraram indulgência ao lidar com os povos derrotados. Em si, o que Felipe fez não constitui um crime. Seus bispos e sem dúvida os barões que os alimentam e protegem os estados da Igreja temem o poder de Felipe e a sua proximidade e lealdade para com o senhor. Mande-o embora, se for preciso, mas não o queime. Isto não aplacará a fome deles. O senhor está doente e debilitado, eu sei, mas sua força política persiste. Queime Felipe e aqueles que o senhor apazigua destruirão seus herdeiros amanhã. Meu conselho de amigo é que resista à pressão. Devolva suas exigências para eles mesmos. O senhor sabe melhor do que eu que os barões roubaram terras e raptaram crianças para propósitos escusos. Peça aos bispos para que julguem estes homens por seus crimes antes de tocar em Felipe. Consiga algo em troca pelo crime que está para sancionar. Se recusarem, então pode voltar à sua velha alma compassiva.

Rujari não respondeu.

— Com sua permissão, vou me retirar agora. Um leve aceno de cabeça foi a única resposta de Rujari.

O cartógrafo tremia de raiva ao curvar-se e deixar a sala. Do lado de fora foi escoltado por um dos camareiros menores e dois escravos. Ao atravessar o pátio externo viu uma figura voando em sua direção. Parou até que a aparição quase correu sobre ele.

— Elinore, minha filha — disse, porque ela olhou para ele com um só olho bem aberto que o fez lembrar de Walid. Mordeu o lábio, mas ela não pareceu de modo algum desconcertada.

— Mestre Idrisi, minha mãe e eu vamos passar o dia com a família dela na semana que vem. Como sua irmã também vai estar lá, seria um prazer se pudéssemos compartilhar o pão. Não precisa de permissão do sultão para visitar sua irmã, precisa?

— Pensarei sobre sua sugestão, princesa.

— Se receia perder o caminho, posso desenhar um mapa com a maior satisfação.

Ele deu uma risada. — Estarei lá, contanto que me deixe saber o dia.

— Muito bem. Discutiremos Pitágoras de Samos e suas idéias. Acredito na importância dos números, mas não definitivamente na do sete.

Ao ver a surpresa no seu rosto, ela riu e desapareceu. Graças a Alá que todos os dias não eram como este. Saber qual das duas emoções encontradas no palácio o afetaram mais era muito difícil. Que ainda amasse Mayya não chegou a ser uma surpresa. Ela estava sempre trancada dentro dele. Em suas longas viagens ela sempre o acompanhava, uma participante gentil de dúzias de conversações imaginárias que haviam se tornado um bálsamo para mitigar a sua exaustão mental.

No passado, quando ela sussurrou em seus ouvidos que Elinore era sua filha, ele não acreditara completamente nela. Achava que era a sua maneira de abrandar a sua culpa. Não sabia que ela não sentia culpa alguma; a culpa não desempenhava

nenhum papel nos seus sentimentos. Para ela, a oferta de um lugar no harém do sultão não fora uma escolha. Fora uma ordem. Não precisara que lhe dissessem que, caso desobedecesse, toda a sua família sofreria. Neste respeito todos os sultãos eram os mesmos: uma crença na profecia de Maomé ou nos milagres de Jesus não fazia diferença. A satisfação de suas necessidades carnais transcendia todas as crenças espirituais.

Idrisi viu agora que ela não tinha meios para transmitir isso a ele, mas com o seu conhecimento do mundo ele deveria ter sabido. Como tinham conseguido encontrar-se em segredo e fazer amor era algo que ainda o assustava e surpreendia. Ela tinha certeza de que não haviam sido vistos, que nem o mais detestável eunuco do harém sabia o que havia acontecido, mas como se podia ter certeza de qualquer coisa naquele palácio amaldiçoado? Assim como ele deveria ter sabido que para ela, ele, Muhammad alIdrisi, seria o único homem na vida. Incomodava-a que a febre do amor não deixara nenhuma marca nele, mas nisso ela se enganava. Ela procurava sinais físicos e se perguntava por que ele não estava magro ou infeliz. Era assim que os poetas descreviam os amantes privados de suas amadas. Se Qays pôde passar fome por sua Laila, por que não Muhammad por sua Mayya? Ela não sabia que estava sempre presente no seu pensamento, que o livro que ele terminara fora escrito para ela, não para o sultão, que a principal razão por que ficara próximo a Rujari e, em conseqüência, incorrera na ira de muitos de seus amigos, era ficar perto dela.

Nunca lhe contara isso porque achava que não acreditaria nele.

De uma coisa Idrisi tinha certeza. Elinore era sua filha. Todas as dúvidas haviam se desfeito. E receava que o sultão também desconfiasse. A alegria de segurar Mayya em seus braços e de ver sua filha havia animado o seu coração. Mas agora, ao caminhar de volta para casa, respondendo aos cumprimentos dos passantes como se num sonho, não podia tirar Felipe do seu pensamento. Conhecia-o bem, o que não tornava mais fácil aceitar a decisão de Rujari. Felipe fora de grande ajuda em relação ao livro, chegando em certa ocasião a capturar um mercador chinês e trazê-lo a Palermo para ser interrogado sobre as linhas costeiras do seu país.

Mas era de um encontro ocorrido muito tempo atrás que Idrisi se lembrava agora. Naquele dia, depois de ouvi-lo expandir suas idéias sobre o mundo por mais de uma hora, Felipe dera um sorriso triste e falara palavras das quais Idrisi nunca se esqueceria:

— Nunca duvidei que o seu trabalho fosse de grande importância para o senhor, Mestre Idrisi. E para o sultão, que aguarda impaciente o término do seu livro. Tenho também a consciência do quanto ele lhe custa em termos pessoais. Conheço homens na mesquita, homens de bem em sua maioria, que estão zangados com o senhor por não fazer mais para ajudar a sua causa. Para mim — e vai me perdoar por falar com franqueza — a geografia nunca foi decisiva para o conhecimento. Ocorre que o verdadeiro conhecimento afoga todos os mapas que o senhor faz. Pois esse conhecimento vem daquelas tempestades permanentes que torturam nossas mentes, como a chicotada no corpo nu de um marinheiro ou prisioneiro. Em ambos os casos, as cicatrizes ficam e nunca saram. É esta experiência de vida que nos educa, Mestre Idrisi. Não os seus mapas. Não me interprete mal. Precisamos saber o tamanho e a extensão do mundo, mas em si o conhecimento é inútil. É o que fazemos com ele que conta. Às vezes os seguidores do Profeta ficam tão distraídos por novas paisagens que se esquecem das suas origens. E um dia, sem aviso, os cavaleiros chegam. A cruz que marca seus escudos é da cor do sangue.

Seus gritos ferozes parecem aqueles de um leão faminto. É esta intrusão que lembra aos Fiéis o que certa vez foram e o que se tornaram. Mas agora é tarde demais.

O dano já foi feito. Não vão se recuperar mais. Rujari é um governante sábio e prudente, mas vai morrer. Então os cavaleiros virão sobre nós como um lagarto escalando uma rocha. Decidirão que a fim de preservar seu próprio poder precisam depurar a corte de pessoas como você e eu. Depois lavarão Palermo com o sangue do seu povo.

Receio que perdemos a guerra.

Estas palavras reverberavam na sua mente enquanto pensava nas conseqüências da decisão de Rujari de sacrificar o conselheiro mais inteligente do seu reino. Algo podia ser feito para ajudar Felipe? Por que não deveria ele escapar para a Ifriqiya? Não seria difícil organizar uma embarcação que o transportasse através das águas. Felipe, que sabia de tudo, deveria estar a par do que estava sendo planejado.

Uma inesperada brisa marinha pegou Idrisi de surpresa. Instintivamente, ele agarrou a barba para impedi-la de balançar, uma sensação que o incomodava intensamente, mas havia se esquecido de que a barba fora severamente aparada apenas alguns dias atrás. Parado, olhando para o mar, ele sabia que a eterna guerra entre a terra e a água não havia terminado. Havia muitas batalhas à frente e talvez até Alá não tivesse certeza de quem venceria. Esta ilha ainda estaria neste mesmo lugar daqui a mil anos?


4

O 'mehfil' na mesquita Ayn al-Shi fa em Palermo.
Felipe é convencido de que os barões e bispos estão planejando
um massacre ou possivelmente dois.

Idrisi tomou o café da manhã sozinho no dia seguinte. Estava ávido pela presença de Khalid e Ali, mas isso não foi possível. Suas filhas tinham partido, ignorando o seu pedido de que os netos fossem deixados consigo. Ibn Fityan transmitiu a mensagem de que os meninos estavam desesperados para voltar aos pais. Até o criado sorriu ao dar o recado. Mas Idrisi ficou zangado com a desobediência das filhas. Como aquelas mulheres terríveis deviam temer a sua influência, receando que pudesse transferir seu amor pelos livros a Khalid e Ali. Enquanto comia os figos recém-colhidos olhou para o mar. Nenhuma brisa agitava as ondas. Houve época em que esta ilha estivera submersa, disto Idrisi estava convencido: as conchas congeladas que descobrira no cume de montanhas e os formatos de esqueletos de peixes gigantes eram prova suficiente do que certa vez fora e poderia voltar a ser. Seria uma punição adequada para os bispos e barões.

A lembrança incômoda de suas filhas voltou a ele. Por que Alá o punira com elas? Como a idiotice podia imperar sobre tudo mais? Depois de hoje, ele não ligava mais. Iria tentar e conseguir ver seus netos regularmente. Quanto aos frutos de seu sêmen, deveriam estar podres já desde o nascimento. Mas a descoberta de Elinore mudou tudo, como se avistasse uma costa rica e fértil, com praias de areia puras e douradas e uma névoa verde elevando-se da rica floresta de palmeiras ao fundo.

As rochas áridas e os arbustos cobertos de poeira murchando sob o calor do verão foram logo esquecidos.

Ibn Fityan, voltando com o seu café-da-manhã, sussurrou perto do seu ouvido:

— As notícias do palácio não são boas. Dizem que Felipe caiu em desgraça e que os bispos estão pedindo sua cabeça. Poderia isto ser verdade, mestre? Se Felipe cair, quem nos protegerá?

Idrisi não ficou nada surpreso de que os preocupados eunucos palacianos estivessem espalhando a notícia. Sacudiu a cabeça em desespero.

— O sultão não está bem. Ele acha que oferecendo a cabeça de Felipe aos nazarenos numa bandeja garantirá uma sucessão segura. Acha que Guilherme é um rapaz fraco e precisará de muita ajuda dos bispos e dos barões. É por isso que está preparado para sacrificar Felipe, uma pessoa cuja lealdade para com ele não pode ser contestada.

O camareiro olhou para ele com olhos magoados.

— Traição. E o senhor a aceitou? Idrisi não respondeu até que terminasse de comer a coalhada de leite de cabra adoçada com mel.

— Vou à mesquita hoje ouvir ao sermão, mas depois que as orações da sexta-feira tiverem terminado. Pode acompanhar-me contanto que mantenha sua adaga escondida. Não quero que digam que Idrisi está com medo do povo.

Ibn Fityan sorriu. Era o que queria ouvir.

— Não o povo, Comandante do Livro, mas um nazareno incitado à fúria pelos monges que se ressentem da sua proximidade com o sultão. Os rumores vis que espalham a seu respeito são verdadeiramente insuportáveis e...

Idrisi o interrompeu.

— Se eu os posso suportar, você deve tentar fazer o mesmo. Ele entendia o medo que a notícia havia desencadeado. Conhecera fome, sede, cansaço físico e angústia emocional; às vezes o pensamento de Mayya aprisionada no harém o levava a uma terrível infelicidade. Tudo isso, mas nunca medo. Agora, tinha de admitir que a notícia da queda em desgraça de Felipe havia abalado até a sua própria confiança.

Enquanto caminhavam através das ruas cheias de gente até a mesquita, Idrisi notou o silêncio da multidão, esforçando-se para ouvir as palavras do sermão, trechos mutilados do Corão. Ao entrar na mesquita, os Fiéis abriram-lhe passagem para que pudesse sentar-se na frente, mas ele declinou com um gesto agradecido e sentou-se no pátio aberto sob o brilho do sol. Olhou ao seu redor para calcular o tamanho da assembléia. Havia pelo menos três mil pessoas reunidas, provavelmente mais.

O qadi falaria por muito tempo hoje, assombrando os fiéis com uma confusa mistura de conselhos dogmáticos e retórica interminável, que fluíam como uma torrente.

Quando a turba expressava apreciação por uma frase particular com gritos de wa-allah, ele a repetia, enunciando cada palavra cuidadosamente, seu olhar dirigido para o céu.

Idrisi parou de ouvir e relembrou um de seus primeiros encontros com Felipe no palácio. O sultão interrogava seu vitorioso Amir al-bahr sobre a planta baixa de uma cidade construída por Fiéis. Por que a água? Por que os jardins? Por que a fileira de árvores em linha reta?

— Generoso sultão — replicou Felipe — o jardim é o céu na terra, a água deve ser mantida pura e clara nos canais, as árvores devem ser plantadas em fileiras. A razão é simples. Ajuda-nos a desenvolver concepções puras e claras e nos guarda de falsas ilusões. Os construtores criam cidades assim por toda parte para enfatizar a universalidade da fé do Profeta. E é isto que impele os soldados do Profeta para a expansão e os inimigos desta fé para a rendição.

O sultão sorriu e acenou com a cabeça.

— Quando fala assim eu sinto uma coisa. No fundo do coração persiste sendo um Crente no seu Profeta. A conversão à minha fé foi um fingimento. Não o culpo, mas ficaria mais feliz se admitisse isto e então você e mestre Idrisi poderiam rezar juntos.

Felipe empalidecera mas, além daquela expressão, não traíra nada.

— Sou grato ao sultão. Rezo na grande igreja construída por seu pai.

Subitamente Idrisi se deu conta de que o nome de Felipe fora mencionado pelo qadi. Os outros ouvintes já haviam sucumbido ao pregador. Agora Idrisi, também, apurava o ouvido para escutar cada palavra.

— Foi-nos relatado que Felipe al-Mahdia, o grande Amir al-bahr e um digno sucessor do saudoso Jorge, que Alá abençoe sua memória, é vítima de falsidades. Os monges nazarenos acusam Felipe de traição porque dizem que quando conquistou Mahdia se recusou a torturar e matar Fiéis ou estuprar as mulheres. Será isto um crime? Que estrelas chovam sobre a cabeça dos nazarenos e que sejam forçados a beber seu próprio sangue por fazer esta acusação. O sultão Rujari é nosso protetor e nada devemos fazer para abalar o seu trono. Ouçam-me, Fiéis. Este sultão nos defendeu contra a loucura dos seus monges. O sultão e sua família nos guardarão contra todas as catástrofes e por este motivo vamos rezar a Má para guiar o sultão e insistir com ele para que poupe a vida de Felipe.

Idrisi juntou-se às orações, fechou as mãos em concha e olhou para o alto. Um "Amém" coletivo cortou o ar e o sermão terminou. Enquanto o cercavam, os Fiéis gritavam perguntas de todas as direções: O que o qadi disse é verdade? Acha que Filib vai morrer? Nosso mundo vai acabar? Não deveríamos resistir agora antes de esperar pelo machado do carrasco?

Sorriu para eles com olhos tristes e deixou-se levar até o coração da mesquita, numa sala estreita onde os outros se haviam reunido. À medida que seus olhos se acostumaram à semi-obscuridade, sentiu o choque de um relâmpago. Felipe, vestido em longos mantos brancos, estava sentado no chão com os demais. Levantou-se e abraçou Idrisi, beijando-o três vezes. Os outros fizeram o mesmo. Além do qadi, de Felipe e dele mesmo, havia o eunuco chefe do palácio e dois jovens que se apresentaram como capitães de Felipe encarregados de suas próprias belonaves. Felipe lhes havia ensinado tudo o que sabiam e morreriam por ele. Terminadas as apresentações, o silêncio caiu sobre a sala.

Foi Felipe quem falou primeiro.

— O que o qadi disse hoje aqui é verdade. Uma conspiração está sendo preparada contra nós. Isso é uma certeza. Ainda se encontra nos estágios iniciais, mas nossas escolhas são limitadas. Qualquer resistência nesse momento seria facilmente esmagada. Os barões e monges esperam que quando eu for queimado na fogueira haja um levante.

Os dois jovens capitães marinhos tremeram de horror e o mais velho deles falou:

— Amir Felipe, se o queimarem, nós queimaremos esta cidade. A lealdade dos homens nos navios é para com o senhor e ninguém mais...

Felipe ergueu a mão para interrompê-lo.

— Seria uma tragédia se isto acontecesse. O sultão está docente. Vai morrer em breve. Ele sabe disso. O menino que o sucede simpatiza ainda mais conosco do que o pai. Dominou a nossa língua e o Corão. Admitiu ao seu tutor que gostaria de se converter à nossa fé. Não é verdade, mestre Idrisi?

— É verdade — sussurrou Idrisi — mas tenham cuidado. São os desejos de um jovem impressionável que está apaixonado por nossas mulheres e não deveríamos presumir que se converteria...

Felipe sorriu.

— Alguns homens ficam impressionáveis até o dia em que morrem. Sei muito bem disso. Se a maré mudar, Guilherme poderá afastar-se de nós. Numa guerra longa, nada pode ser tomado como certo. Sei disso melhor do que todos vocês. O destino de uma batalha é geralmente decidido no momento da vitória ou da derrota.

Quem acreditaria que um punhado de normandos poderia ter derrotado nossos exércitos nesta ilha? Tínhamos superioridade numérica sobre eles, tínhamos mais armas, mais comida e controlávamos as cidades e o mar. Mas eles venceram. Até o último momento tudo é possível. É a qualidade dos homens que lutam, sua capacidade mental, que determina muita coisa. É o mesmo na situação que nos confronta neste momento. Mas devemos nos preparar cuidadosamente e dar força a Rujari declarando nossa lealdade à sua família. Para nós, as melhores condições no combate que temos à frente seriam se os barões se recusassem a aceitar Guilherme como seu rei. Se isto acontecer, vocês devem resistir a eles e defendê-lo. Quem sabe, a Siqilliya, com ou sem os francos, vai retornar à nossa fé.

Então Idrisi falou.

— Existe um problema que você não levou em conta. Se eles o queimarem, o encanto será quebrado e a bela ilusão ou esperança — chamem-na como quiserem — desaparecerá para sempre. Quando nosso povo vir que o Amir Felipe, o homem mais poderoso no reino depois do sultão, pode ser queimado como um pedaço de madeira e ter suas cinzas espalhadas no mar, entrará em desespero. Pensarão que Alá os abandonou. Ficarão amargos e desesperados e naquele estado os homens não pensam mais de uma maneira calma e racional como você. Por favor, não subestime os efeitos de sua própria morte.

Felipe sorriu.

— Tortura e morte pelo fogo é uma abominação, mas acho que vou sentir mais do que vocês. Fui vendido como escravo e naquela condição sempre se está preparado para a morte. Aumentaria a minha infelicidade se soubesse que vocês estavam empenhados em planejar uma ação destinada a fracassar.

Então o qadi falou. Aos 76 anos de idade, os cabelos em sua cabeça haviam desaparecido algum tempo atrás, mas suas longas barbas brancas, cofiadas com força durante momentos-chave dos seus sermões, tinham um toque de grandiosidade selvagem. Idrisi o tinha ouvido nesta mesma mesquita durante muitos anos e conhecia todas as suas manobras retóricas. Lembravam-no do tempo. Quando começava a falar era como se um pé-de-vento quente e úmido subitamente fosse soprado para longe e o ar se tornasse estagnado e imóvel. Então, de repente, sem aviso, uma nuvem escura surge, seguida por um trovão, exortando os crentes à ação. Às vezes havia variações, mas nada significativo. E os Fiéis, para o seu crédito, aprendiam a demonstrar um estoicismo digno dos seus primeiros ancestrais, aplaudindo as mesmas palavras, semana após semana, como se as tivessem ouvido pela primeira vez.

— Amir Felipe — disse ele -, o senhor é tido como o homem mais sábio nesta ilha, mais sábio mesmo do que mestre Idrisi. Em nome de Alá eu insisto para que pense de novo. Nosso Profeta, que repouse em paz, ensinou-nos a submissão, mas só diante de Má. Nenhum governante terreno pode tomar seu lugar. Que o senhor se submeta ao crime que está sendo preparado pelo palácio é inaceitável e prejudicará a nossa comunidade. Eu o instaria a pegar um navio e desaparecer. Como foi que o nosso Profeta venceu aquelas primeiras batalhas? Foi porque naqueles primeiros embates com os Ignorantes, os soldados do Profeta eram os únicos homens disciplinados da sua época. Não era fácil elevar o estado mental dos Ignorantes para acreditar num só Má, mas finalmente nós conseguimos e eles entraram no curso da História.

Por isso, Amir Felipe, imploro ao senhor para que siga este exemplo. Existem muitos lugares onde encontrará refúgio. Nossos Amires em alAndalus, ameaçados permanentemente pelos nazarenos, recompensarão as suas habilidades. E quando histórias das batalhas que o senhor ganhar, com a ajuda de Má, chegarem à Siqilliya, nos regozijaremos e, quem sabe, isso poderia até encorajar nossos poetas a falarem menos de vinho e mais em nossas vitórias.

Nesta veia a discussão continuou por muitas horas, os jovens capitães apoiando vigorosamente a sugestão do qadi de que Felipe reunisse vários navios e se refugiasse numa cidade amiga. Descreveram como, no passado, haviam encontrado um número de abrigos seguros e os marcaram em seus mapas, sem revelar as localizações, sequer para mestre Idrisi.

Mas todos conheciam a vontade e determinação de Felipe al-Mahdia. Quando tomava uma decisão, era difícil demovê-lo. Com um simples gesto, ele pediu e obteve silêncio.

Então conduziu o mehfil ao encerramento.

— Não me interpretem mal, amigos, mas meditei cuidadosamente sobre a questão. Não tenho nenhum desejo de morrer, mas nenhum de vossos argumentos me convenceu. Como pode minha morte ter o efeito que descrevem se tão poucos sabem que sou um Fiel? A maioria das pessoas acha que sou um nazareno. Não serão afetadas por minha partida. O qadi fala dos soldados disciplinados do Profeta. É disto que precisamos, mas foram os francos que exibiram esta qualidade quando tomaram esta ilha.

Nós estávamos, como de costume, brigando entre nós. Se um de nossos Amires não tivesse convidado os francos para ajudá-lo contra nossos Fiéis, teriam eles vindo até aqui? Só Alá sabe. É porque precisamos de disciplina que estou preparado para morrer, a fim de que vocês tenham o tempo de se organizar para as batalhas que têm pela frente. Os nazarenos não ficarão satisfeitos enquanto não tiverem matado todos nós. É a única linguagem que entendem. E, fiquem seguros, não me submeterei facilmente ao julgamento deles. Vou me defender de todas as suas falsidades. E espero que mestre Idrisi insista em estar presente para que possa transmitir o que aconteceu a todos vocês. Fugir e se esconder é um sinal de culpa e não darei a eles esta satisfação. Se eu fosse embora, eles se vingariam em vocês. Os monges têm dificuldade em ocultar seu ódio a Palermo. Existem Fiéis e Judeus demais aqui para o seu gosto.

— Por isso eu me despeço de vocês, meus amigos. Sempre pensem cuidadosamente antes de agir. Levem tudo em consideração. E uma última coisa para o senhor, mestre Idrisi. Seus genros de cabeça quente preparam-se para pegar em armas contra o sultão. É o que meus homens relatam de Siracusa e Noto. Naturalmente, impedi que a informação fosse circulada, mas diga-lhes que sejam cautelosos. Este é o momento errado. E uma última palavra de advertência. O homem mais perigoso no palácio, porque o mais esperto, é Antônio, o monge de Cantuária, que aprendeu o ofício de homens ainda mais espertos do que ele. Não se interessa por vinho, mulheres ou bens materiais. Sua única causa é assegurar o triunfo nazareno contra os Fiéis. Sempre que falei com ele, senti que estava sendo interrogado por meu carrasco. É um fanático gentil, mas não se deixem enganar. Nunca relaxa com a sua fé, nunca duvida do seu Deus e se sacrificará alegremente para a vitória de sua causa. É o que o faz diferente dos monges corruptos e indolentes nativos desta ilha.

Mestre Idrisi sorri. Sim, meu amigo, ele não é diferente de mim, com a diferença de que minha preocupação é salvaguardar nosso povo da melhor maneira que eu possa.

Antônio é atormentado por uma paixão religiosa e isso, eu receio, sempre beira a insanidade, não importa qual seja a religião. É por isso que o receio mais do que a todos e vocês também deveriam. Acho que ele estará presente ao meu julgamento. Pergunto-me se esta ilha que vocês descrevem como mergulhada em total escuridão ainda assim produz homens cuja luz interior faz suas almas brilharem.

E com estas palavras Felipe e o eunuco-chefe partiram, deixando o resto da companhia num estado de mutismo e choque. Idrisi sentiu a mão do qadi em seu ombro.

— Não poderia interceder junto ao sultão em favor dele? Acenou silenciosamente com a cabeça. Ao deixar a sala Ibn Fityan juntou-se a ele e os dois homens caminharam em silêncio através do pátio interno e saíram às ruas. Quando chegou finalmente à sua casa, foi recebido pelo som suave da flauta.

Parou diante da porta enquanto Ibn Fityan fez a sua pergunta preocupada:

— Amir Felipe recusou-se a deixar a ilha? Os olhos tristes de Idrisi voltaram-se para o seu criado e o eunuco soube que era tarde demais para salvar Felipe. A porta se abriu. Thawdor os havia visto e a música tinha cessado.

— Traga seu filho até mim, Thawdor — instruiu Idrisi. O homem fez o que lhe foi pedido. O rapaz caiu de joelhos e tentou beijar os pés de Idrisi, mas ele se afastou, pegou o rapaz pelo braço e o fez ficar de pé.

— Nunca mais faça isso, Simeon ibn Thawdor. Você não é um escravo. Recuperou-se da viagem?

— Sim, mestre — respondeu o rapaz com os olhos baixos.

— Falei com o seu pai. Você virá comigo ao palácio, onde providenciei para que lhe ensinem a ler e a escrever.

O rapaz ergueu o olhar e sorriu. — Sou agradecido, senhor, mas igualmente feliz de ir ao madresseh. Não quero lhe causar mais incômodos.

— Por que deveria me incomodar?

— O palácio é para os filhos do sultão e eu não estou apto a aprender com eles.

Os homens caíram na risada, antes que Ibn Fityan o tranqüilizasse.

— Não se preocupe com isso, meu jovem. Vai aprender com crianças que não são muito diferentes de você. O palácio abriga os filhos daqueles que trabalham para o sultão. Foi onde me ensinaram gramática árabe e grego. O que gostaria de aprender?

— Música — respondeu o rapaz sem hesitação. Seu pai ficou incrédulo.

— Música?

— Sim, pai. Música — o menino respondeu.

Idrisi interveio. — Escute-me, rapaz. Eu o ouvi tocar a flauta e não tenho dúvida de que Alá o abençoou com o dom. Toca bem e também deveria aprender a tocar o alaúde, que colocará em teste as suas habilidades. Existe um grande mestre em Palermo, cujo pai, também um grande músico, era conhecido de minha família. Falarei com ele e lhe ensinará a arte, mas o fará duas vezes por semana. Nos dias restantes deve aprender gramática e lógica. Creia-me, poderia até ajudá-lo na sua música.

O rapaz ficou exultante.

— O nome do mestre é Abu Salim? Idrisi se surpreendeu. O rapaz sabia mais do que imaginara.

— Ele mesmo. Já o ouviu tocar o alaúde?

O rapaz acenou com a cabeça.

— Uma vez eu caminhava pela taverna, aquela perto da qual os botes são amarrados, e ouvi música que soava como se viesse do céu.

Fiquei sentado do lado de fora e ouvi durante quase duas horas. Perguntei a um homem que saiu cambaleando de um lado para o outro quem era o músico. Bateu-me na cabeça e disse que só existia um homem capaz de dar vida ao alaúde daquela maneira e era Abu Salim. Nunca esqueça esse nome, disse o homem, porque poderia nunca mais ouvi-lo. Nunca mais o ouvi, embora passasse com freqüência por aquele lugar, esperando que estivesse lá.

Thawdor e seu filho foram dispensados com um toque afetuoso na cabeça do rapaz.

— Ficarei de olho em você à distância. Ibn Fityan me manterá a par dos seus progressos.

Depois que saíram, Idrisi fez sinal a Ibn Fityan para que se sentasse.

— Diga-me, quem no palácio, entre os nazarenos, é mais chegado ao sultão?

— Ninguém é chegado da maneira como Felipe era ou o senhor, mestre. Mas é o monge pálido, Antônio de Cantuária, quem se faz ouvir pelo sultão. Como não é daqui, o sultão acredita que o seu conselho seja livre de interesses. Ele não pede terras ou dinheiro. Vive com simplicidade. Dizem-me que foi ele quem aconselhou o sultão a mandar Amir Felipe para a fogueira.

Idrisi tinha visto Antônio circulando pelo palácio, mas não chegara a registrar adequadamente a sua presença. Nem o sultão o havia mencionado uma vez sequer. O sultão estava receoso. Só podia ser essa a única explicação.

Ibn Fityan tossiu discretamente.

— Correm rumores no palácio, mestre, dos quais deveria ser informado.

— Fale, homem. Fale.

— Existe um plano para matar Antônio.

— De quem é esta idéia tola? Felipe vai ficar enraivecido. Isso não o ajudará. O eunuco-chefe está a par?

— Está, mas não conseguiu convencer os outros. Tencionam matá-lo esta noite ou amanhã e...

— E?

— O plano é colocar a culpa do assassinato de Antônio nos monges gregos que o desprezam ainda mais do que nós. A história que os eunucos vão circular é de que Antônio foi apanhado numa situação delicada com um jovem monge e, quando seu verdadeiro amante percebeu, matou os dois.

— Existe alguma verdade na história?

— Nenhuma, Amir al-kitab.

— Então haverá dois assassinatos.

— Se Alá quiser.

— Alá não quer isso mais do que quer a morte de Felipe.

Estas são decisões tomadas por homens nesta terra e em Palermo. E ambas estão erradas.

— É tarde demais, mestre. Não há nada que possamos fazer. Se o senhor advertisse o sultão, trairia minha confiança e aquela do eunuco-chefe. Morreríamos todos juntos.

Idrisi podia enxergar muito bem a lógica em tudo isso. Tomaria um banho e refletiria sobre a crise que estava para tomar conta da ilha.

Foi quando estava coberto de água no hammam que percebeu a importância do que Felipe dissera pouco antes naquela tarde. A melhor maneira de manter a presença dos Fiéis na Siqilliya era apoiar a família Hauteville que havia conquistado a ilha por meio de uma combinação de habilidades marciais e sorte — e do fato eterno: os seguidores do Profeta estavam divididos. Esta última fora a causa da derrota real em Palermo e Jerusalém. Que cidade cairia a seguir? Ishbilia ou Gharnata? O sol escureceria e os oceanos ferveriam antes que os Fiéis chegassem a se unir contra um inimigo da fé e então seria tarde demais.

Os criados haviam começado a enxugá-lo quando Ibn Fityan entrou no vestíbulo da sala de banhos.

— Uma mensagem do palácio acabou de chegar.

— Do sultão?

— Não. É da jovem princesa Elinore. Ela é de fato a favorita do sultão e, se ele tivesse se casado com a senhora Mayya, teria se tornado uma Sultana. É a vontade de Alá. É a vontade de Alá. Ela e sua mãe visitarão parentes no sabá e desejam que o senhor se junte a elas em Siracusa. O mensageiro também sussurrou outra coisa em meu ouvido, mestre.

Idrisi dispensou os criados.

— Antônio partiu subitamente hoje. Embarcou num navio para Marselha. Ninguém sabe por quê. O Diabo deve tê-lo avisado.

— Ou o seu Deus. Fico aliviado com a notícia. E o assassinato do monge grego foi suspenso?

— Claro, mestre. Os assassinos não são tolos. De que adiantaria quebrar um galho se a árvore sobrevive?

A notícia melhorou o seu ânimo. Idrisi sorriu por dentro. Talvez com a partida de Antônio, a decisão sobre Felipe pudesse pelo menos ser adiada. Ele podia escrever uma carta ao sultão pedindo que reconsiderasse. Poderia ser mais eficaz do que um encontro.

— Prepare minhas roupas. Vou partir para Siracusa amanhã cedo. Tenho trabalho a fazer.

— Vai viajar de barco, a cavalo ou em carruagem?

— Barco. Se eu partir cedo pela manhã com a maré, estaríamos lá no início da noite. É quase lua cheia. Será uma viagem agradável.

— Deseja que o acompanhe?

— Preciso que fique aqui para acompanhar os acontecimentos no palácio. Quando for marcada a data para o julgamento de Felipe, me informe imediatamente. Um só criado será suficiente para esta jornada.

— Deveríamos informar o Amir de Siracusa? Vai ficar no seu palácio?

— Prefiro não ficar com ele. Se decidirmos não o informar, ele descobrirá a minha presença?

— Acho que sim e, levando em conta o seu temperamento, vai considerar um gesto inamistoso. Poderia até pensar que o sultão o despachou para procurar um novo Amir.

A fragilidade da situação não deveria ser subestimada.

Idrisi olhou com apreciação para o seu camareiro. Ibn Fityan estava a seu serviço há quase vinte anos, um presente do sultão. Era difícil adivinhar a sua idade, mas tinha provavelmente entre cinqüenta e sessenta anos de idade. Seus cabelos só agora começavam a ficar grisalhos e sua pele de compleição escura era macia como cetim. No início, Idrisi supôs que ele tivesse sido colocado em sua casa para manter o sultão informado sobre as atividades do seu erudito preferido. Mas estava enganado. O homem era parte da rede do eunuco-chefe e este era um grupo que devotava lealdade à fé em que havia sido convertido.

O Profeta proibira a castração dos Fiéis, não importa as circunstâncias. Foi o Tribunal Bizantino em Constantinopla que havia autorizado um comércio frouxamente regulado de meninos castrados, fornecidos ao papa e à sua Igreja para uma variedade de propósitos, mas principalmente para servir ao coral. No resto, eram vendidos no mercado livre em Palermo, o maior centro de comércio entre o Oriente e o Ocidente, assim como Bagdá e Qurtuba. O sultão e os Amires tinham necessidade especial deles. Eram os guardas de confiança do harém e, como tal, adquiriam posições-chave nos palácios por causa de seu acesso ilimitado aos governantes. Freqüentemente trabalhavam de perto com aqueles que, como eles, haviam sido comprados ainda com pouca idade mas, ao contrário deles, não tinham sido emasculados. Felipe al-Mahdia era uma destas pessoas. E logo se desenvolveu entre ele e o círculo dos eunucos uma afinidade natural, o que significava que ele sempre dispunha de um meio alternativo de conhecimento. Ele não dependia exclusivamente da informação disponível ao Diwan. Tão próximo estava dos eunucos que seus inimigos na Corte espalharam o rumor de que ele mesmo era um deles.

Ao contrário de outros que haviam começado a vida como jovens escravos no palácio, Ibn Fityan não tinha a pele clara. Vendido em Palermo aos dois anos de idade, suas origens eram um mistério até para si mesmo. Apesar do fato de que não era castrado, os eunucos o haviam adotado. Fora circuncidado e criado como um Fiel. Nunca falava de sua mulher ou de seus filhos. Todas as tentativas de extrair informação sobre este assunto eram polidas, mas firmemente repelidas e não fosse a indiscrição do eunuco-chefe, Idrisi jamais teria sabido que o filho de Ibn Fityan morrera na recente guerra para a retomada de Mahdia.

Idrisi não se surpreendia mais com as habilidades políticas intuitivas do seu empregado. Sua inteligência natural parecia ilimitada e sua experiência e conhecimento do Diwan e do palácio permitiam-lhe ficar um passo adiante da maioria dos cortesãos.

— Diga-me — Idrisi perguntou-lhe — como vai informar ao Amir que estou a caminho. Apanhá-lo de surpresa é certamente inadequado. Isto também poderia ser mal interpretado.

— Não é um problema, mestre. Esta noite vou instruir ao Guardião da Torre de Vigia em Palermo que mande uma mensagem ao longo da costa até Siracusa. O senhor sabe, naturalmente, que para mensagens secretas nós usamos um código que é conhecido apenas pelas pessoas de nossa maior confiança. O Amir será informado da sua chegada ao tomar o café da manhã amanhã cedo. Isso lhe dará tempo suficiente para preparar a sua recepção.

— Dispõe de um amigo naquele palácio também?

— Mais de um.

— Existe algo que eu precise saber? Ibn Fityan suspirou.

— O Amir é um governante dedicado, mas muitos na cidade o vêem como alguém que se vendeu aos francos a fim de se manter no poder. Ele sabe que é visto assim e isso o enraivece e perturba.

— Neste caso — murmurou Idrisi — temos muita coisa em comum.

— Com todo o respeito, mestre, não é o caso. O senhor é um erudito. Ele é um governante.

— É verdade, mas ambos servimos a Rujari. Ele com a sua espada, eu com a minha pena.

— Os homens que contam sabem muito bem que o seu coração está conosco e quando a ocasião chegar, a multidão também o saberá. Não temos certeza quanto ao Amir.

Ele não fala muito. Só tem uma esposa e nenhuma concubina, restringindo assim nossa capacidade de descobrir o que está realmente pensando. Sua visita oferecerá a primeira oportunidade real. A questão que precisamos ter respondida é esta: depois da morte de Rujari, se tivermos que empreender uma guerra contra os nazarenos, o Amir de Siracusa lutará conosco ou contra nós?

Idrisi irrompeu numa risada para esconder sua ansiedade.

— Por que ele deveria confiar em mim?

— É um risco que o senhor deverá assumir. O mestre tem noção de que a única esposa do Amir é a irmã mais moça da senhora Mayya?

Enquanto Idrisi abria a boca em surpresa, notou um levíssimo traço de sorriso aparecer no rosto de Ibn Fityan enquanto o homem fazia uma mesura e deixava a sala.


5

O Amir de Siracusa organiza um jantar
em que se fala abertamente de rebelião.

Quando o navio, tirando vantagem de uma brisa inesperada, se aproximava da baía de Siracusa, a luz da lua cheia caía na escuridão do mar e na forma de um vale dourado. Por mais vezes que tivesse visto isso e em quantas águas diferentes, era sempre arrebatador. Enquanto observava, viu os barcos dos pescadores iluminados por velas saindo ao mar para uma noite de trabalho.

Na infância adorava ser acordado ao alvorecer para acompanhar a criadagem até a aldeia pesqueira mais próxima de sua casa. A jornada a cavalo o deixava bem esperto; meio excitado, meio assustado pelo pensamento de ver um jaguar atravessar o caminho, mas isso nunca aconteceu. O verdadeiro deleite era observar os peixes ao serem trazidos dos barcos pelos pescadores. Então o cozinheiro lhe perguntava "Qual deles devemos comprar?" e ele apontava para o maior, o que fazia o cozinheiro rir.

"Os grandes têm muitas espinhas. Vamos levar quatro destes..."

Desde que haviam deixado Palermo, a pessoa mais importante a bordo havia ignorado todas as tentativas para o bajular e agradar. Seu criado pessoal cuidava de suas necessidades e mantinha os outros viajantes, principalmente negociantes, à distância. Esta era a desvantagem de ser conhecido como íntimo do sultão. Através de toda a jornada ele evitara olhar para a costa familiar que mapeara mais de uma vez. Em vez disso, seu olhar ficava direcionado para o mar, que tinha, graças a Má, permanecido calmo enquanto ele refletia sobre o passado e o futuro.

Depois de terem vivido anos incontáveis nas vastidões desérticas da Arábia, pensou, meus ancestrais ficaram impressionados com as inesperadas perspectivas que os acolheram nas civilizações urbanas. Não podiam ficar parados e absorveram alegremente o melhor que as novas civilizações tinham a lhes oferecer. A escuridão do deserto não era mais visível, mas surpreenderam o mundo com a sua sabedoria e a opulência de suas cortes e de seus bazares. Mas o contraste entre o que tinham sido um dia e o que haviam se tornado significava que não podiam construir uma estrutura duradoura sobre estas novas fundações. Assim as ondas de rebelião que se levantavam dos desertos e das cadeias de montanhas do mahgreb, rebeldes de barbas compridas pertencentes a seitas que pregavam as virtudes da pureza e abstinência, homens que chegavam no dorso de cavalos com espadas levantadas, gritando Alá Akbar e destruíam as cidades que haviam sido tão cuidadosamente construídas pela primeira onda dos Fiéis. Os puritanos queimavam livros cheios de sabedoria, proibiam o discurso filosófico, puniam eruditos e poetas, começando assim o processo que permitiria ao inimigo penetrar pelos poros de nossas fraquezas e destruir tudo. Faziam tudo isso por motivos nobres. Acreditavam genuinamente que agiam em nome de Alá e do seu Profeta. Naturalmente, não se viam como uma aberração monstruosa: era assim que encaravam os hereges e os sultãos complacentes que eles chacinavam com os soldados que os defendiam.

Idrisi pensava em alAndalus, fragmentada, sob sítio permanente e possivelmente à beira da extinção. Siqilliya era diferente. Aqui a coisa ainda não havia acabado e como muitos dos seus correligionários ele acreditava que o clã Hauteville, por motivos de autopreservação, poderia ajudar na restauração da velha ordem. A primeira dúvida séria fora levantada pela decisão do sultão de sacrificar Felipe.

— Respeitado senhor, chegamos a Siracusa. O comandante do navio estava pronto para conduzi-lo ao bote que o aguardava enviado pelo Amir de Siracusa e que remadores levariam até a praia. Idrisi virou-se e viu a fileira de tochas acesas na orla. Do navio pareciam carregadores de féretro, mas sabia que sua presença significava que uma pessoa de importância fora mandada para recebêlo.

Ao desembarcar, ficou atônito quando viu o Amir à sua espera. Os dois homens se abraçaram. O Amir vestia uma túnica amarela de seda bordada com fios de ouro, seus cabelos aparados e a barba curta tingidos com hena ruivo-escura combinando com a túnica. Seu ar era austero. Os olhos escuros, encravados no rosto, enfatizavam a palidez cadavérica do seu semblante. O esplendor de suas roupas não conseguia ocultar feições longe de perfeitas e, embora fosse alguns anos mais jovem do que Idrisi, era encurvado e mancava ligeiramente. Ainda assim, o Amir tinha o ar de um homem religioso, sério e penitente.

— Má seja louvado por trazê-lo até aqui em segurança, Ibn Muhammad. Bem-vindo a Siracusa. Acredito que a última vez que nos visitou foi a caminho de Noto, mas eu estava em Palermo na ocasião. Nossas famílias são, naturalmente, conhecidas. É uma honra conhecê-lo pessoalmente.

Notícias da sua chegada haviam se espalhado pela cidade. Enquanto os dois homens a cavalo seguiam a rua sinuosa até a grande praça, uma multidão de espectadores abria caminho para eles. Os passantes os acompanharam com passos rápidos até o portão do palácio e começaram a cantar "Wa Salaam, Ibn Muhammad alIdrisi, Wa Salaam Amir al Siracusa" "Alá Akbar". Poucos homens jovens bravamente gritaram "Morte aos Infiéis" antes de serem silenciados pelos mais velhos e retirados às pressas da praça.

Um banquete suntuoso fora preparado em sua honra ao qual todos os notáveis haviam sido convidados. O Amir deixara Idrisi para se recuperar da viagem no hammam.

Depois de um banho quente e de outro frio, seguidos por uma massagem revigorante feita por dois gigantes do palácio, Idris sentiu-se refrescado, mas ainda não gostava da idéia de um banquete formal. Havia, naturalmente, a novidade. Não conhecia a cidade e lembrou-se da recomendação de Ibn Fityan. Ouviria atentamente o que fosse dito, mas por que algo deveria ser dito numa refeição pública? Quando Mayya e Elinore chegariam? Viriam primeiro para cá ou para a aldeia familiar, a uma hora de distância e sem acesso fácil? Uma batida na porta anunciou o camareiro do palácio que viera para escoltá-lo até o pátio onde os convivas estavam reunidos.

O Amir havia descartado a sua apatia e até o encurvado do corpo parecia ter desaparecido. Com um olhar resoluto apresentou Idrisi à cinqüentena de homens que, como árvores cuidadosamente plantadas, formava uma linha reta. A maioria deles eram velhos carvalhos, mas no final da fileira notou dois jovens de aparência cavalheiresca e atraente que, desafiando a convenção, estavam mergulhados em animada conversação, mas ficaram em silêncio quando ele se aproximou. Cada um colocou a mão no coração, curvou-se ligeiramente e se apresentou.

— Abu Khalid.

— Abu Ali. Idrisi ficou atônito. Eram seus genros e deveriam ter sido convidados por cortesia do Amir. Abraçou-os calorosamente e sussurrou:

— Fico feliz em vê-los. Falaremos a sós amanhã. Enquanto se sentavam, Idrisi notou algo estranho: nem bispos nem barões estavam presentes. Pelo que podia ver, não havia um único nazareno à mesa. Não podia lembrar-se de jamais ter comparecido a um banquete oficial sem a presença de um príncipe da Igreja ou de um monge. É verdade, o Amir era um Fiel e o palácio não possuía uma capela, mas não havia escassez de bispos ou barões na região. Idrisi se perguntou se teria sido uma decisão sábia. A resposta veio rapidamente.

— Notei seus olhares inquisitivos, Ibn Muhammad — começou o Amir numa voz quase inaudível.

— Esta é uma reunião fora do comum e não destinada a muitos que normalmente são convidados ao palácio. Pensei em aproveitarmos a sua presença para convidar poucos homens escolhidos a dedo que estão cheio de pressentimentos com as notícias que nos chegam de Palermo. Parece surpreso? Deixe-me assegurar-lhe que este é o primeiro mehfil reunido no palácio. Geralmente alguns de nós nos encontramos na mesquita depois das preces de sexta-feira para discutir questões de interesse comum. Mas, como sabe, alguns de nossos convivas viajaram uma longa distância para estarem conosco. Está entre amigos de confiança. O que disser não será repetido.

Idrisi sentiu-se preso numa armadilha. Sabia perfeitamente bem que tudo o que dissesse seria repetido nas menores aldeias da região e quando suas palavras chegassem a Noto seu sentido seria distorcido além da razão. Sabia que devia tomar muito cuidado.

— Amigos, sinto-me comovido por sua confiança e honrado por sua presença, mas o que vou dizer não difere daquilo que disse em muitas ocasiões ao próprio sultão.

E ficarei feliz em responder às suas perguntas, contanto que possua as respostas. Presumo que ouviram as notícias em relação a Felipe.

Todos acenaram tristemente com as cabeças. Idrisi não revelou a discussão com Felipe na sala escura da mesquita Ayn al-Shifa em Palermo, mas lhes contou tanto quanto podia sem implicar alguém além de si mesmo. Falou da lealdade que Felipe sempre demonstrou para com o sultão, das suas habilidades de administrador e de como fizera o máximo para impedir injustiças na ilha. Embora nem sempre tivesse sucesso, os barões e outros ladrões de terras o encaravam como um inimigo, um obstáculo a ser removido para que sua causa triunfasse nos Dois Reinos.

Ouviram-no em silêncio. Foi o Amir quem fez a primeira pergunta.

— Vão levá-lo a julgamento, o acharão culpado e o queimarão. E nós devemos assistir a tudo isso impotentes sem fazer qualquer tentativa para salvá-lo?

Idrisi respondeu:

— É o que ele deseja. Acha que qualquer outra coisa seria encarada como provocação e poderia desencadear um banho de sangue através da ilha, especialmente onde ainda somos fortes, como em Siracusa e Noto.

A seguir Abu Khalid falou.

— Respeitável Abu Walid, não passa um único dia sem que nossa terra seja transferida para sua Igreja ou para os barões. Mesmo aqui, onde diz que somos fortes, nosso povo se tornou escravo. Somos forçados a trabalhar para eles na terra e matar e morrer para eles nos exércitos do sultão. Não confiam de modo algum em nós. É por isso que trazem os bárbaros do Norte para nos oprimirem. Lombardos, assim os chamam. Estes rudes animais ajudaram a destruir o grande império dos romanos. Agora se adornam com cruzes de madeira ao redor de seus pescoços, mas suas cabeças continuam vazias. Matam tudo que os monges lhes disserem que é impuro. Desonram nossas mulheres e submetem nossos homens a torturas insuportáveis, deixando-os morrer lentamente ao sol depois de os terem estripado. E tudo isso para nos expulsarem das terras que cobiçam. Se esperarmos demais, não restará ninguém para resistir a eles. Quanto tempo podemos esperar? Deveríamos lutar ou partir enquanto ainda estamos vivos? Talvez Ibn Hamdis tivesse feito a escolha certa 75 anos atrás, quando deixou esta cidade e procurou refúgio com o Amir de Majorca.

Idrisi comoveu-se com a paixão do seu genro, mas Felipe o havia convencido de que a oportunidade era crucial. Quantos amires haviam escolhido o momento errado para confrontar o inimigo ou para se confrontar entre si? Explicou tudo isso numa voz suave, enquanto enfatizava que tinha plena noção das crueldades que eram infligidas ao povo.

— Nunca se esqueçam de que é às vezes possível destruir o inimigo, não pela força das armas, de que carecemos, mas pela força do conhecimento que acumulamos durante os últimos quinhentos anos. É por isso que o meu amigo ainda é Amir de Siracusa e Rujari conversa comigo em árabe. No momento nossa força reside nisto: os francos não têm nenhuma outra maneira de governar esta ilha. Não devemos fugir do que está à frente. Mencionou Ibn Hamdis, mas não é um bom exemplo. O poeta de Siracusa nunca foi feliz em nenhum outro lugar. Siqilliya foi a mão que o alimentou, Majorca a tia cujos seios careciam de leite. Aonde quer que fosse escrevia sobre Siqilliya.

Lembram-se?

Este é o país de Alá/ Abandonem os seus espaços e/ suas aspirações à terra serão esmagadas. E, mais adiante, no mesmo poema, ele escreve: Acorrentem-se à querida terra natal! Morram sob o seu próprio teto! E como a mente se recusa a tentar o veneno! Rejeitem o pensamento de exílio. Ele não é um bom exemplo. Nunca foi feliz em qualquer outro lugar.

Mas o pai de Khalid não estava preparado para se entregar tão facilmente.

— Respeitável pai, como responderia às palavras de Abd al-Halim? Amei Siqilliya/ Na minha primeira juventude um jardim de eterna felicidade! Mal alcancei a maturidade!

Eis que a terra se tornou um inferno em chamas.

Idrisi sorriu.

— Bons sentimentos nem sempre fazem boa poesia, meu filho. Concordo com o seu poeta, mas afirmar o óbvio não é uma solução.

Aqueles deste pequeno círculo que falaram depois meramente repetiram em palavras diferentes o que Idrisi já havia declarado. Nenhuma decisão foi tomada e nada irrevogável foi dito. Se um nazareno estivesse presente, pouco poderia relatar que já não houvesse sido dito antes em muitas ocasiões. E, no entanto, sublinhando tudo, havia um embate silencioso e formidável entre aqueles que queriam desencadear uma resistência armada já e aqueles que, como o cartógrafo de Palermo, defendiam que nada deveria ser tentado enquanto Rujari ainda respirasse. O Amir levantou-se e despediu-se de seus convidados.

Idrisi abraçou os dois jovens e convidou-os para o café-damanhã no dia seguinte. Informaram-no de que tinham trazido os filhos, o que o agradou imensamente.

— Tragam-nos com vocês amanhã. Seus filhos são uma prova viva de um velho ditado: são o produto de uma combinação em que o elemento mais forte, agradeçamos a Alá, subordinou o elemento mais fraco com que se viu forçado a entrar em contato.

Uma explosão de risada espontânea dos genros agradou a Idrisi. Vinha pensando em compor um tratado sobre a risada. O papel que ela desempenhava na vida cotidiana.

A risada como um disfarce, como um refúgio, como um escape. Risada polida para agradar ao sultão, ao Amir ou ao Barão ou ao qadi ou a nosso próprio pai/avô/tio-avô.

Risada maliciosa para derrubar um inimigo.

A risada das mulheres, em particular, era severamente cerceada. Não era permitida quando estranhos ou anciãos da família estivessem presentes. As mulheres podiam cobrir os rostos com uma mão e sorrir, mas não rir. Idrisi lembrou a sua infância. As mulheres da casa constantemente se regalavam umas as outras com as piadas mais indecentes, mas caíam em silêncio quando seu pai ou tio entravam no seu espaço.

Preparando-se para a cama pensou como soubera que Mayya lhe pertencia quando ela rira da maneira mais descontraída durante os meses de seu namoro secreto, quando ela tinha 16 anos e ele acabara de completar seu vigésimo segundo ano. Ela nunca fora formal com ele, então ou agora. Mas por que a risada fora tão decisiva? Claro, as mulheres no harém ignoravam todas as convenções, geralmente punindo os eunucos que não as conseguiam fazer rir, e insistiam em que tudo fosse posto às claras.

Mas eram um caso especial. Idrisi estava decidido a descobrir se a restrição à risada era algo confinado às cidades ou se as mesmas regras se aplicavam às aldeias.

Os poetas do passado não tinham feito nenhum segredo do fato de que nos acampamentos no deserto das velhas tribos as mulheres riam, cantavam, lutavam, fornicavam e negociavam, exatamente como os homens.

A conquista das cidades mudara tudo aquilo. Tudo era cuidadosamente controlado. Inclusive a risada? Possivelmente. O desejo de controlar as mulheres obviamente incluía controlar sua risada também. Nem apenas aquela das mulheres. Escravos, criados, camponeses, soldados, nenhum deles ria abertamente na frente de seus donos.

A risada era também uma indicação de igualdade e intimidade. Só iguais podiam rir juntos.

E, no entanto, uma voz interior lhe dizia que ainda era diferente no deserto ou nas aldeias das montanhas da Siqilliya. Se tivesse tempo, poderia explorar o interior da ilha tão detalhadamente como havia estudado a sua costa. Estava cansado de plantas, árvores, das estruturas de formações rochosas e, sim, até mesmo de mapas.

Mais do que tudo, queria falar com o seu povo. Ouvir de seus próprios lábios como suas vidas tinham sido mudadas desde que os francos haviam conquistado a ilha.

Ibn Hamdis era duro demais em relação à tribo Hauteville que os dominara. Podia ter sido muito, muito pior e o seria se eles fossem substituídos. Disto ele tinha certeza. Felipe entendia isso melhor do que ninguém. O pensamento que o perturbava enquanto, deitado na cama, tentava dormir era quanto tempo os papas e imperadores do Sagrado Império Romano permitiriam a existência deste estranho híbrido. A irresistível expansão da Igreja fora retardada, não extinta, pelos exércitos do Profeta.

O muezim o acordou ao amanhecer e, por mais que tentasse, não conseguiu voltar a dormir. Em vez disso, tomou banho, vestiu-se e caminhou no jardim dentro dos muros do palácio. O Amir, tendo completado a prece matutina, o avistou da sacada do seu quarto de dormir e desceu para juntarse a ele. Idrisi sentira uma simpatia instintiva para com o homem e não podia entender por que Ibn Fityan tivesse quaisquer dúvidas sobre ele. É verdade, uma escolha confrontava aqueles cuja liderança era respeitada pelos Fiéis. A conquista os pusera fora de prumo, mas foi o qadi de Palermo quem decidiu entregar a cidade ao pai de Rujari sob termos que não eram tão desfavoráveis quanto aqueles impostos sobre Salerno. Se os Fiéis não tivessem se rendido, os francos teriam queimado a cidade e matado todo mundo. Teria sido melhor?

— Por que perdemos a Siqilliya? O Amir não perturbara seus pensamentos, mas entrara neles.

— Porque não pudemos tomar Roma. Nossos navios estavam ancorados no Tibre, mas éramos moralmente fracos demais para aproveitar a vantagem. Compraram-nos com sacos de ouro. Se tivéssemos tomado Roma, nossos exércitos teriam marchado para o Sul e impedido a intrusão dos francos.

— E o papa?

— Teria trabalhado conosco até que uma força mais poderosa emergisse.

Os dois homens riram da idéia.

— Nossa fé — Idrisi observou — inspirou devoção e conquistas, mas é como um furacão. Transitória.

— Deixe-me perguntar-lhe algo, Ibn Muhammad. Apreciei sua discrição na noite passada. Todo mundo presente era leal, mas é melhor não correr riscos. Se queimarem Felipe, vai ser difícil conter a raiva do nosso povo.

— Mas por quê? No que toca a eles, Felipe é um nazareno assim como o sultão. Alguns não pensariam que é bom que estejam se matando entre si?

— Você subestima a inteligência do nosso povo. Poucos acreditam na conversão de Felipe. Notei que aqueles que o fazem são convertidos de nossa fé. O que importa é o que dizem entre si em casa ou no bazar. E aqui, assim como em Palermo e nas cidades menores, sussurram entre si que Felipe continua sendo um Fiel. Sua punição só confirmará esta crença.

— Está certo, meu amigo. Na verdade, a acusação contra ele será esta.

— Haverá uma reação.

— Em Siracusa?

— Manterei a cidade sob controle porque tudo o que acontece aqui tem implicações mais graves. Mas seus dois genros poderão lhe dar melhores informações. E mais tarde, hoje, minha cunhada chega com nossa sobrinha Elinore. Seria uma grande honra se o senhor jantasse com minha família esta noite.

— O prazer será meu.

Enquanto o Amir se afastava, Idrisi se perguntava o quanto ele sabia. Sua esposa devia ter-lhe contado sobre Mayya, mas ele ou a mulher suspeitavam que Elinore não era filha do sultão? Antes que pudesse pensar mais sobre isso, seu criado veio informar-lhe que seus netos e os pais o esperavam para o café-da-manhã.

Os meninos correram a abraçá-lo e ele beijou cada um deles ternamente.

— Seus diabinhos, por que fugiram de mim em Palermo? Ia mostrar-lhes tantas coisas na cidade e comprar-lhes presentes, mas...

— Não fomos nós, Jiddu — disse Khalid.

— Nossas mães disseram que o senhor estava zangado com elas e se não voltássemos correndo para casa as mandaria para a prisão — interveio Ali.

Idrisi jogou a cabeça para trás e riu.

— Acreditaram nelas? Os meninos sacudiram a cabeça negativamente.

— Bom. Vejam este café-da-manhã que o Amir preparou para vocês. Comam tudo o que quiserem, mas devem começar pelas frutas. Que figos e tâmaras deliciosos temos aqui. Depois disso, podem comer o que quiserem. Preciso discutir algo urgente com seus pais. Quando terminarem, podem sair e juntarse a nós. Tem uma bela fonte e se esquentar podem tirar os sapatos e mergulhar os pés na água.

Idrisi colocou os braços em volta dos ombros dos genros e os guiou para fora da sala. Queria que os meninos vissem que apreciava seus pais.

— Sabemos por que suas filhas foram até Palermo e somos agradecidos por seu apoio — disse Abu Khalid. Dos dois, era o que falava mais abertamente. — Não sabemos como lidar com a situação. Se elas falassem assim com um inimigo pode imaginar o destino que nos caberia.

O rosto de Idrisi tornou-se uma rocha e ele falou com uma voz severa.

— Advirtam as duas. Digam a elas que conversamos. Caso se comportem assim de novo devem divorciar-se delas imediatamente e devolvê-las à mãe. Se acharem que devem fazer isso, terão o meu apoio. Não vou encontrar-me com elas enquanto estiver aqui, mas já mandei uma mensagem à mãe delas advertindo-a quanto a qualquer repetição.

— Que tenha longa vida, Jiddu — disse Abu Ali.

— Libertou-nos de uma tarefa muito dolorosa. Da minha parte, não vou me divorciar da mãe de Ali, mas vou tomar uma nova esposa. Desejo que Ali tenha irmãos e irmãs e isso não é mais possível com a sua mãe.

Com uma sacudida desesperada da cabeça, Idrisi indicou que estava de acordo e então fitou direto nos olhos do pai de Khalid. Seu olhar não vacilou.

— Não vou usar uma máscara, Abu Walid. Não posso mais viver com Sakina. Nosso casamento não foi feliz e casei obrigado por meus pais. A união apressada que produziu Khalid nunca foi repetida. Respeitarei todos os termos do casamento e Sakina nunca precisará depender de ninguém enquanto eu estiver vivo, mas não posso mais viver com ela.

— Eu o entendo perfeitamente, Abu Khalid. Deve fazer como deseja. Garantirei que a mãe dela entenda isso também. Não precisamos mais de discórdia. E Khalid? É chegado à mãe?

Houve um momento de hesitação.

— Achei que poderia nos receber polida, mas friamente. Seu calor tocou nossos corações. De que adianta esconder qualquer coisa do senhor? A resposta à sua pergunta é não. Khalid é mais chegado à minha mãe do que à sua própria mãe. As crianças têm uma capacidade de perceber quem gosta delas genuinamente. Podem às vezes enxergar através de fingimentos e falsidades melhor do que homens adultos.

Idrisi sentiu-se aliviado. Se ele, como pai, sentia pouca ou nenhuma afeição por suas filhas, por que deveriam os filhos delas sentirem de modo diferente? Quando Samar e Sakina eram jovens ele notara a fraqueza de seus cérebros, mas achara que com o tempo elas chegariam a um pleno desenvolvimento. Alá desejara o contrário.

— Não me surpreende o que diz e fico feliz de que tenha falado de uma maneira direta. Possa Alá guiar a ambos e proteger seus filhos. Mas existe uma questão mais importante que precisamos discutir.

Os dois homens se entreolharam. Quanto ele sabia?

— Nossa fé — Idrisi continuou calmamente — produziu bravos guerreiros e mentes brilhantes, mas também possuímos um lado inquieto, impaciente e instável que pode irromper num momento e desaparecer no seguinte. Isso produz uma falta de disciplina. Não tenho desejo algum de conhecer seus planos exatos. Quanto menos souber, melhor, mas eu insistiria em cautela quanto à ocasião oportuna. Nada, nada — repito — deve acontecer enquanto Rujari estiver vivo.

— Nada mesmo? — perguntou Abu Ali.

— O que tem em mente? — perguntou o sogro. — Não estamos preparando uma rebelião em larga escala no momento, mas estamos em contato com nosso povo em toda essa região. Em cada bairro de cada cidade e até na menor aldeia existe um mehfil que se reúne toda sexta-feira para discutir a situação na ilha. Tentaremos controlar a raiva da multidão depois do martírio de Felipe, mas não se engane. Quando o momento chegar, Noto e Siracusa e as aldeias entre elas erguerão a bandeira da nossa fé e desafiarão os bispos.

— Enquanto isso, teremos de manter o espírito do nosso povo e defendê-lo dos seus atormentadores. Por esta razão, decidimos infligir uma severa punição aos monges e lombardos que os guardam numa aldeia próxima de Noto. As atrocidades que eles cometeram criaram uma sensação de medo. Precisamos dar uma lição a estas pessoas.

Um lombardo será deixado vivo para espalhar a notícia.

Idrisi não respondeu, mas por seus olhos podiam sentir que se orgulhava deles e isso aumentou sua confiança.

— Quem é o pregador na sua aldeia, Abu Ali? Já ouvi falar nele. Dizem-me que tem visões de nossos exércitos combatendo os infiéis no céu e recita poesia que ele mesmo compõe.

— Estou realmente espantado de que tenha ouvido falar dele, Jiddu — disse Abu Ali com uma voz tão baixa que Idrisi colocou a mão em concha sobre o ouvido.

— É o filho do nosso cozinheiro e era dado a visões desde menino. Nasceu cego e isso pode ter encorajado as visões. Tem vinte anos, mas muitas pessoas das aldeias vizinhas vêm vê-lo e ouvi-lo. Seus versos ardem de paixão religiosa e ele os canta com uma bela voz. Se tiver tempo, venha e fique conosco alguns dias. Ali ficará encantado e você poderá conhecer o filho do cozinheiro. Não quero exagerar, mas existe algo notável nele. Como pode imaginar, canta muito sobre batalhas futuras, vitórias, o dia em que ocuparemos os palácios e a vingança de Alá contra todos que colaboraram com o inimigo.

O som das risadas das crianças interrompeu sua conversa. Ali e Khalid, perseguidos por criados, corriam até a fonte.

Lentamente, os três homens começaram a caminhar na mesma direção.

— Tentarei encontrar tempo para visitar sua aldeia, Abu Ali.

— É mais importante que visite as propriedades de Abu Khalid — replicou seu genro.

— Lá encontrará o Confiável.

Idrisi ficou intrigado.

— Nunca ouvi falar dele antes.


6

Amor e um casamento secreto em Siracuisa.
A poesia de Ibn Quzman.
Elinore faz muitas perguntas, enquanto Balkiss escuta.

Embora as tivesse visto há apenas alguns dias, Idrisi não pôde esconder o seu deleite ao ver Elinore e sua mãe. E vê-las agora com Balkis, a única esposa do Amir e irmã mais moça de Mayya que ele vira pela última vez quando tinha ainda três anos, era especialmente prazeroso. Balkis tinha longos cabelos castanhos e uma pele tão clara que Mayya parecia morena em comparação. Seus olhos e nariz pareciam a estátua de uma deusa grega que ele vira em Djirdjent. Ou seria outra pessoa?

Um pensamento entrou-lhe na cabeça e o surpreendeu. Talvez sangue grego corresse nesta família. Precisava perguntar a Mayya.

No palácio em Palermo ele e Mayya haviam ficado nervosos. Aqui estavam relaxados e o Amir, cônscio de que seus criados tudo enxergavam, os despachou para fora da sala de refeições com um gesto imperioso. A comida fora servida. Grandes jarras de cerâmica contendo suco de laranja fresco, limonada e vinho de tâmara não fermentado foram colocadas sobre a mesa. O Amir não permitia que álcool fosse servido no seu palácio a não ser quando recebia a visita do próprio sultão.

Agora que estavam a sós, Mayya perdeu toda inibição.

— Elinore, que acha do seu pai?

Elinore, que conhecia sua mãe melhor do que ninguém, não se deu o trabalho de responder.

— Mayya, por favor... — sua irmã tentou refreá-la e o Amir, alegando afazeres de Estado, pediu para se ausentar. Estava, na verdade, um pouco assustado. E se notícias deste encontro chegassem ao sultão? Não seria ele chamado à responsabilidade?

Idrisi irrompeu numa risada.

— Mayya — disse ele, fitando-a com firmeza e depois deixando seus olhos viajarem por todo o corpo dela.

— Você nunca vai mudar e eu a amarei sempre.

— O resto de nós deveria sair? — perguntou Elinore, as pupilas negras de seus olhos profundos cintilando maliciosamente.

— Não — respondeu sua mãe.

— Vou passar a noite com o seu pai. Até lá, pode ficar conosco.

— Mayya — sua irmã implorou -, nada pode ser mantido em segredo aqui. Se Rujari tiver notícias de que você e Ibn Muhammad ficaram juntos aqui ele poderia...

— Não poderia nada. Ele simplesmente não liga tanto assim para as mulheres — Mayya interrompeu.

— Estamos lá para produzir filhos. Nada mais. Os íntimos de Rujari são todos homens, incluindo o grande geógrafo que nos honra com a sua presença esta noite. Houve ocasiões em que achei que Rujari queria elevar o nível da sua amizade pelo grande mestre Idrisi, de uma união espiritual para uma união física. Afinal, passam muito tempo juntos e seria uma coisa natural, mas a idéia me enraiveceu. Teria odiado saber que haviam passado uma noite juntos, mas antes que pudesse...

Idrisi fez um esforço para controlar a sua irritação, mas a insinuação de que ele e Rujari eram amantes não se confinava a Mayya. Durante os primeiros anos de sua amizade com Rujari, inimigos na corte adoravam circular a calúnia. Aquilo o deixava furioso, mas sempre mantinha um admirável autocontrole. Agora a raiva reprimida e acumulada irrompeu fazendo-o quase se levantar da cadeira.

— Nunca foi verdade, Mayya. Sabe disso perfeitamente bem. Foi a sua imaginação inflamada. Apenas isso.

Ela ficou deliciada ao ver que conseguira provocá-lo.

— Melhor minha imaginação inflamada do que o seu rabo inflamado.

Balkis cobriu a boca para esconder um sorriso, mas Idrisi se levantou enraivecido.

— Mayya, isto é inaceitável, minha tolerância tem seus limites.

— Fico feliz que seja meu pai — disse Elinore, adiantando-se rapidamente para consertar a situação.

— Não que eu desgoste do sultão. Mas acho que, no fundo, ele sabe perfeitamente bem que não sou sua filha. Falou do senhor e do trabalho que fizeram juntos no livro com tanta intensidade...

— Como ele poderia saber isso, filha? Escolheu seu nome, insistiu para que fosse batizada, supervisionou sua educação — interrompeu a mãe.

— Posso dizer pela maneira como me olha às vezes que não está de todo seguro de que eu seja sua filha. E embora eu nunca lhe tivesse contado, mãe, o número de vezes que mencionou seu amigo, o grande erudito Ibn Muhammad alIdrisi, foi de certo modo estranho. Era como se estivesse tentando me interessar por meu verdadeiro pai. Desde que me contou quem é meu pai de verdade, venho pensando em muitas coisas que o sultão me disse. Agora está claro.

— Não era estranho de modo algum — replicou a mãe.

— O sultão e seu pai passavam grande parte do tempo juntos olhando para as estrelas e interrogando marinheiros de partes estranhas do mundo. Por isso ele sempre o mencionou muito. Sua imaginação é forte demais, minha filha. Tente refreá-la.

— Acho que Elinore tem razão — disse Idrisi.

— O sultão me interrogou sobre você, Mayya. Sabia que éramos de aldeias vizinhas, que nossas famílias se conheciam bem e às vezes fiquei com a sensação de que sabia a respeito de nós e queria que eu confessasse para que pudesse me perdoar e talvez até me entregar você como um presente.

— Então por que não confessou? — foi a resposta da sua amante.

Antes que ele pudesse replicar, sua filha interrompeu novamente.

— Como vai ter meu pai todo para a senhora pelo resto da noite, mãe, talvez eu pudesse fazer-lhe três perguntas antes que vocês se recolham.

— Pergunte — disse o pai.

— Quando percebeu que eu era sua filha?

— Poucos dias atrás no palácio em Palermo. Sua mãe me contara muito tempo atrás — na verdade, antes mesmo de você nascer — mas eu não estava seguro se devia acreditar nela.

Mayya gritou.

— Muhammad, seu traidor! Como ousa admitir isso? Idrisi ignorou a explosão.

— E está contente com o que vê, pai? Sei que tem outros quatro filhos.

— Mais do que pode imaginar, filha. De meus outros filhos, Walid é o mais chegado. O resto? Não há nada a dizer.

— Devíamos nos recolher — Balkis murmurou suavemente.

— Uma pergunta mais. Prefere Estrabão ou Ptolomeu? A surpresa de Idrisi foi visível.

— Quem lhe contou sobre eles?

— O sultão. Disse que preferia Ptolomeu, mas que o senhor modelava o seu trabalho em Estrabão.

— Não é a verdade completa — replicou o pai.

— Estrabão era completamente apegado a locais geográficos, seus costumes, colheitas, animais e coisas do gênero. Queria compilar o mapa mais detalhado do mundo que se conhecia. Ptolomeu era mais interessado nas estrelas e no céu, na forma da Terra e da Lua e como tudo isso afetava a mudança das estações. Ambos eram grandes mestres e aprendi muito deles. No meu coração desejava prosseguir e desenvolver os argumentos enunciados por Ptolomeu, mas percebi os perigos. Era um caminho difícil e havia problemas naquela direção. Enquanto outros olhavam para o céu e falavam da poesia das estrelas, eu notava em grande detalhe como os antigos tinham chegado perto de solucionar os mistérios do universo. Perto, mas não podiam seguir adiante. Notei que tudo se movia, como cada noite o movimento era repetido e, no entanto, nunca da mesma maneira até que 12 meses tivessem se passado. Sim, minha filha. Tudo se movia. Se o que eu pensava fosse verdade, o Livro estava errado e, se o Livro estava errado, de quem seria o erro, de Alá ou do seu Mensageiro? Não deixava estes pensamentos descansarem na minha cabeça. Eram relâmpagos que iluminavam o futuro. Estou certo de que um dia descobertas serão feitas que desafiarão os ensinamentos de todos os Profetas, incluindo o nosso. Será um homem corajoso aquele que publicar tais descobertas. Podem custar-lhe a vida.

— Não é a busca do conhecimento sempre perigosa?

— Talvez, Elinore, eu volte ao assunto antes de morrer. Está interessada nas estrelas?

— Sim, mas não em sua poesia.

— Estou cansada — disse Balkis, bocejando demonstrativamente e olhando nervosa na direção da irmã mais velha.

— E talvez, Mayya, devêssemos nos recolher a nossos quartos. Assim que os criados saírem, Ibn Muhammad poderá explicar o movimento das estrelas ou as manchas na Lua a você. Eu sugeriria que ele o fizesse da sua sacada. A vista é mais clara.

Era uma noite quente. Mayya havia tirado seu manto de dormir e aberto as portas que davam para a sacada. A lua cheia começara a declinar enquanto se embriagavam um com o outro. Depois, deitados silenciosamente na cama dela, cada um mergulhado em lembranças, uma suave brisa marinha se levantou e acariciou seus corpos nus.

— Existem manchas na lua? — ela perguntou.

— Nenhuma — ele respondeu enquanto afagava suas costas suavemente, pousando a mão na maciez do seu corpo.

— Estas suas duas meias-luas permanecem inalteradas. São exatamente como eram dez anos atrás. Imagino que as banhe em leite de cabra.

— São mais macias banhadas no seu suor. E não fico satisfeita com apenas uma vez. O jovem galo não vai cantar uma vez mais e acolher-se no meu ninho de novo?

— Não é tão jovem quanto já o foi, mas por que não pergunta a ele?

Ela o fez e a reação agradou a ambos. Atravessaram a noite falando e não só do passado que não tinham podido compartilhar. Haviam discutido aquilo muitas vezes como a recusa dela em deixar o palácio. Ele conhecia bem as razões e, depois de alguns anos, deixara de vê-la. Trocavam mensagens, nada mais. Suas viagens o mantinham afastado, mas era mais do que isso: ele não queria vê-la enquanto fosse uma criatura do harém.

Ela sabia dos detalhes mais íntimos da vida dele e lhe indagara como conseguira fazer quatro filhos com sua mulher. Aquilo a deixara zangada:

— Não há diferença entre você e um asno. Você monta, ejacula e planta o seu sêmen. Nada mais.

Concordara com ela, mas preferiria que tomasse outra esposa, alguém que contasse com a sua aprovação? Aquele era geralmente o fim da conversa.

Anotara as datas em que Rujari a havia visitado no quarto de dormir no harém. Não houve muitas, mas era um tormento que não podia suportar e, depois de cada visita real, ele não fazia contato com ela durante meses. Ela ficou espantada quando lhe contou isso. Não havia percebido a eficiência com que a informação vazava do palácio. Contou a ela que aquilo lhe causara grande dor, mas ela dava de ombros e recusava-se a discutir a questão. Não era culpa sua que ele tivesse se casado com outra. Por que não havia resistido? Seria a junção de duas propriedades mais importante do que o seu amor? E, é claro, ele não tinha resposta. Fora deferência aos desejos do pai agonizante mais do que covardia o que decidira a questão, mas ele sofrera o bastante. Não era aquilo castigo suficiente?

Estranho como estas lembranças não mais doíam neles. A ausência de dez anos fora punição suficiente e nenhum dos dois desejava prolongar a agonia. Nada os machucava mais. Elinore era o bálsamo. Elinore, que pouco se assemelhava a ele nas feições, mas cujas expressões e movimentos de mão eram extraordinariamente semelhantes.

Era um fruto deles. Se apenas...

— Muhammad?

— Sim.

— Eu estava pensando. Se pudéssemos ter outro filho, um irmão para Elinore...

Ele sentou-se na cama, espantado pela simetria do pensamento de ambos.

— Que estranho, eu pensava na mesma coisa. Pensava que, depois que o sultão morrer, eu deveria tomá-la por minha esposa. Poderíamos viver juntos.

A sugestão irritou-a.

— Tudo deve esperar até que ele morra. A resistência do nosso povo, assim como nosso casamento. Foi essa uma recomendação de Felipe também?

Ele a abraçou forte, beijou seus lábios e os olhos.

— Por que ficou zangada?

— Porque odeio seus planos. Por que não podemos fazer exatamente o que queremos?

Por que tudo tem de estar vinculado à morte?

— Você me conhece melhor do que mais ninguém. Sabe por que eu me controlo.

Ela acalmou-se e começou a acariciar a sua cabeça.

— Sei que você sente raiva por dentro, tentando duramente reprimir sua ira. Preocupa-se que isso faça mal àqueles próximos a você. Sei disso, mas não quero esperar que ninguém morra. Nosso amor não depende disso, não é verdade? Talvez eu carregue uma criança no ventre depois desta noite. E então? Desta vez Rujari saberá definitivamente que não é sua. Este pensamento o assusta?

Enterrou a cabeça entre as pernas dela e murmurou:

— "Que tipo de almíscar é este? Que aroma?

Desta magia outras são criadas."

Depois, ela o abraçou e sussurrou:

— Quem escreveu o zajal? Não foi você. Não foi Rujari. Foi Ibn Quzman? Diga-me.

— São seus versos. Pobre Ibn Quzman. Soube que tem problemas com o novo sultão em Qurtuba.

— Por que não pode vir para cá? Eu deveria pedir a Rujari?

— Não. Ibn Quzman viaja para onde deseja. Tem admiradores em cada cidade de alAndalus. Quando tem problemas em Qurtuba, corre para Gharnata. Se o seu verso ofende o sultão naquela cidade ele escapa para Ishbiliya ou al-Marriya. Certa vez passou seis meses em Balansiya.

Foi onde o conheci.

— Você o conheceu?

— Sim.

— Por que não me contou na época?

— Fiquei fora de Palermo durante dois anos. Quando voltei, a sua visão me fez esquecer tudo mais.

— Ibn Quzman recitou um zajal para você?

— Fez isso também, mas havia consumido muito vinho naquele dia e não estava seguro se devia ser colocado no papel ou sequer repetido.

Mayya segurou o rosto dele em suas mãos.

— Recite-o para mim agora. Agora! Ele fez o que ela pediu.

— Meus fracassos na vida até aqui você conhece, Como passarei o resto de meus anos? Só entre pessoas que apreciam sodomia ou adultério; Disto eu tenho certeza: gosto de ambos.

Mayya bateu palmas deliciada.

— E guardou isso de mim todos estes anos? Por quê? Seria porque você, também, prefere a companhia de sodomitas e...

Sua mão cobriu a boca de Mayya. Ela dormiu quando as estrelas começavam a declinar. Admirando sua forma adormecida à luz da manhã, cobriu-a com um lençol. Colocou então sua túnica e foi até a sacada, o único local do palácio que não era vigiado. Atenciosa Balkis. Por que as coisas não podem ser sempre assim? O muezim abafou tudo mais. Idrisi deixou o quarto de dormir de Mayya e seguiu apressadamente para o seu, mas praguejou ao ver o seu criado no corredor do lado de fora, a cabeça tocando o chão enquanto fazia as orações matinais. Idrisi entrou furtivamente no seu quarto e, logo depois, bateu palmas para chamar o homem do lado de fora.

— O banho está preparado, senhor. Poucas horas depois uma mensagem de Elinore o convocava para um jogo de xadrez. Raramente se entregava a diversões e não conseguia lembrar a última ocasião em que havia jogado. Seu pai lhe havia ensinado pacientemente as regras e, embora se tornasse um jogador competente, nunca apreciara a disputa. Talvez a avalanche de risada dos parentes que testemunharam sua derrota quando tinha dez ou 11 anos o tivesse desencorajado. Rujari era um exímio jogador, mas o erudito declinara de participar dos torneios palacianos. Ao seguir o criado até a biblioteca onde Elinore o aguardava, perguntou-se se ela já havia jogado com o sultão. Quem mais poderia têla ensinado?

Ela o recebeu ruidosamente, abandonando a pose de uma senhorita.

— Wa Salaam, Abu.

— Wa Salaam, filha.

— Disse a minha mãe que queria ficar a sós com o senhor. Foi ela quem sugeriu uma partida de xadrez.

— Ela não joga, também — replicou o pai, e começaram a rir. Elinore crivou-o de perguntas. Nada podia interromper a sua carga impetuosa. Não esperava que ele respondesse: era sua maneira de fazer com que a ouvisse e entendesse suas preocupações. Não havia nada falso nela e ele se encheu de orgulho.

O modo de falar dela, o jeito de enfatizar algumas palavras e não outras, seus olhos sempre alertas, o uso das mãos e a maneira de tocar nos cabelos o lembravam de Mayya. Subitamente ela parou.

— E então, o que acha? Não me ouviu?

— Ao contrário, ouvi cuidadosa e atentamente. Que parte das suas interrogações exige uma resposta?

— A família Hauteville. Ela foi tão heróica como o sultão nos contou cada ano?

— As histórias mudavam ao longo dos anos? Você notou um aumento de heroísmo à medida que crescia?

— Não, eram sempre as mesmas. Quando tinha dez anos eu mesma podia recitá-las.

— Neste caso eram provavelmente verdadeiras. Os homens que deixaram a parte norte das terras geladas em seus navios a vela e vieram incendiar e roubar dos francos eram sem dúvida bravos. Eram senhores da guerra e adestrados em combate cruel. Finalmente, o rei dos francos lhes deu uma porção da terra e esperava que convivessem em paz com ele. Fizeram isso, mas, à medida que suas colônias cresciam e suas famílias aumentavam, não havia comida suficiente para alimentar a todos, nem terra suficiente para compartilhar. Então começaram a viajar de novo. Um de seus barões, Guilherme, conquistou uma ilha vizinha e, Alá os ajude, Elinore, é uma terra fria e miserável onde o sol nunca brilha no inverno. Fria e escura, e chove sem parar. Durante meses é impossível ver o céu ou as estrelas.

— Isto é verdade?

— Eu inventaria tal lugar?

— E por que o clã Hauteville e seus criados vieram para cá?

— Eram guerreiros que lutavam por quem lhes pagasse e, como outros em sua posição, perceberam que os aniires que precisavam deles deviam ser fracos. Então pensaram: por que lutar por este homem quando somos mais fortes do que ele? Poderíamos governar em seu lugar. Deviam ter sido abençoados por Alá. Veja o que encontraram nesta ilha. Muita riqueza e terra cultivada em abastança. Ricas colheitas de trigo e frutas frescas de todo tipo.

Os papiros com que fazemos o papel que nunca tinham visto antes. Nem haviam imaginado uma cidade tão rica e grande como Palermo. Duzentas mil pessoas viviam aqui quando os francos chegaram. Vieram como conquistadores e, no início, foram cruéis. Mas, assim que decidimos que era impossível resistir a eles, conviveram conosco em paz e perceberam que precisavam de nós para lhes ensinar tudo o que sabíamos. E gostavam de nossas mulheres.

Elinore sorriu.

— Sabe de uma coisa, Abu? A história que o sultão nos contava cada ano não era tão diferente. Falava do seu pai e do seu tio e dos feitos de sua família também mas, excetuando isso, era a mesma história. Não é estranho?

— É raro que conquistador e conquistados compartilhem a mesma história. A razão é óbvia. A maioria daqueles que vivem aqui seguem o nosso Profeta e removê-los sem ter alguém para substituí-los tornaria essa ilha pobre e infeliz. Roger e seu pai entenderam isso bem. Será que seus netos e bisnetos entenderão?

Falaram algum tempo sobre estrelas e navios e ela quis saber o que ele sabia de Cartago e dos fenícios que a haviam construído. E era verdade que haviam navegado pela Ifriqiya simplesmente confiando nas estrelas? Ele contou-lhe tudo o que sabia e do modo como seus olhos o acompanhavam podia ver que estava absorvendo o conhecimento. Cada um sabia que não era o bastante. Voltariam a estas questões e à proximidade que sentiam agora um do outro.

Depois de um silêncio ela lhe perguntou sobre Walid. No início ele não respondeu. Ela o pressionou de novo.

— Sei que o ama muito. Minha mãe me contou isso, mas nunca pôde explicar por que ele fugiu ou o que lhe aconteceu.

— Está vivo e bem. Trabalha para um artesão judeu de prata em Veneza. Irei visitálo em breve e o trarei de volta, se puder. Às vezes os filhos se tornam sombrios e indolentes se ficarem permanentemente à sombra dos pais. Um período de separação pode ajudar. Não fui diferente quando tinha a idade dele.

— Acha que estes anos todos à sombra de minha mãe me tornaram preguiçosa e infeliz?

Pegou a mão dela e a beijou.

— Não, minha filha. As estrelas sorriram sobre você e sua mãe. E você é uma mulher. Os homens têm necessidades diferentes.

Antes que Elinore pudesse contestar isso, sua mãe entrou na biblioteca.

— Quem ganhou no xadrez?

— Nós dois — respondeu a filha.

— Como pode ver, nenhum de nós fez um lance ainda. O tabuleiro ainda não foi tocado.

Então Mayya se virou para ele.

— Muhammad, na noite passada discutimos algo e sua resposta me deixou zangada.

Ele franziu a testa, indicando que a conversa que ela propunha seria mais oportuna em particular.

— Elinore e eu não temos segredos. É melhor assim. Impede que bisbilhotemos as conversas uma da outra.

— Muito bem — disse ele, numa voz resignada.

— Falei com Ballcis e Aziz há poucos minutos. Ele nos casará hoje, se você concordar.

— Mas o sultão...

— Idrisi viu a expressão dela e congelou.

— Não sou casada com Rujari. Fui sua concubina, como você me lembrou em muitas ocasiões. Esta é sua filha, não dele, mas, se esperar até a sua morte, não me casarei com você. Casou-se com sua esposa porque foi covarde e não vai se casar comigo hoje pela mesma razão.

Idrisi levantou-se e aproximou-se dela, mas Mayya estendeu os braços para mantê-lo afastado.

— Escute o que digo, Mayya, e escute atentamente. Este reino está à beira de uma explosão. Felipe vai ser julgado por traição e queimado na fogueira. Os bispos encarariam nosso casamento como uma provocação aberta. Já esqueceu a sua conversão para a fé deles? Sei que nada significou para você e estava simplesmente agradando a Rujari, mas os monges não encaram estas questões levianamente.

Mayya não estava com ânimo para escutar nada.

— A situação que você descreve só vai piorar depois da morte de Rujari. Muhammad, nós teríamos sido esmagados pela tristeza não tivéssemos nos apegado um ao outro durante todos estes anos. Não estou sugerindo que coloquemos Elinore ou nós mesmos em perigo. Teremos de esperar até podermos viver juntos, mas o casamento poderia ser hoje. Pode permanecer em segredo o tempo que você quiser, mas tem de acontecer. Se recusar, nunca mais o verei. Vou pegar Elinore e desaparecer.

Elinore ficou em silêncio, esperando que ele falasse.

— Sei que não faria isso, porque a crueldade é ausente em você, mas se o casamento deve ficar em segredo não vejo problema. Marcou uma hora com o Amir?

— Depois das preces vespertinas.

— Percebe que antes que possa me casar com você insistirei para que se converta de novo à nossa fé?

— Isso já foi feito e na presença de minha irmã e de seu marido. Mais alguma exigência, marido?

— Sim. Obediência total. Lembre-se da sura no Corão, que...

— Silêncio, Ibn Muhammad alIdrisi. O que não posso suportar é a idéia da separação de novo.

— Existe alguma razão para você retornar a Palermo?

— Nenhuma, mas para onde eu deveria ir?

— Poderia ficar aqui enquanto decidimos onde quer morar. Sua irmã oferece uma desculpa perfeita. E Rujari está preocupado demais para notar a sua ausência.

— Mas nossas roupas e tudo mais estão em Palermo — disse Elinore.

— As roupas podem ser mandadas para cá, mas o que é o "tudo mais" a que se refere? — perguntou o pai.

— Abu, é de Palermo que vou sentir falta. Não podemos morar em Siracusa. Esta é uma cidade para se visitar.

— Filha, é melhor ficar aqui nos próximos meses. Os ânimos em Palermo vão estar exaltados depois que Felipe for queimado. Talvez não possamos controlar a multidão e ela pode atacar o palácio. Mande pedir tudo do que precisa. Quando as coisas se acalmarem, você pode voltar.

Mais adiante naquela tarde, o Amir os convocou à sua câmara privada, dispensou os criados e realizou uma cerimônia de casamento simples.

Uma modesta refeição fora preparada e por isso não houve nenhuma atmosfera de comemoração. Mayya e Balkis trocaram reminiscências sobre seus pais e seis irmãos que haviam deixado a família em casa e se mudado da ilha para alAndalus. Elinore e o pai ficaram felizes de ouvir as irmãs se divertindo, mas o Amir retirou-se cedo alegando uma longa viagem no dia seguinte. Depois que a mesa foi limpa, foram até a sacada enluarada para um chá de menta, com uma doce mistura de tâmaras e leite endurecido pelo qual Siracusa era renomada. Podiam ouvir o som das ondas quebrando suavemente contra as rochas lá embaixo.

— Elinore — disse sua tia -, não é uma vista maravilhosa? Vou mostrar-lhe uma outra vista ainda mais bonita do mar do meu quarto e convencê-la a ficar aqui por alguns meses. Venha comigo, criança.

Elinore tomou a mão da tia e as duas mulheres foram embora.

— Por que sua irmã não tem filhos? É o...

— É o Amir — suspirou Mayya.

— Seu pássaro recusa-se a cantar.

Balkis é sua segunda mulher. Deixou que a primeira partisse quando não teve filhos. É claro que o problema é dele e ele não finge que seja diferente. É um homem muito generoso.

— Ibn Quzman não reconheceria que existe um problema. Mayya riu bem alto.

— Balkis não é infeliz. Ele é um homem bondoso e sensível e geralmente, diz ela, ao vê-la sem roupa, seu membro forma uma tenda debaixo da sua túnica. Tudo o que falta é a semente.

— Ela ainda é jovem, portanto ainda tem tempo, mas deveria pensar numa caminhada numa tempestade quando os anjos estão voando da terra para o céu. Estou certo de que o Amir acolheria isso como uma dádiva de Alá e Balkis ficaria feliz. Ela não o estaria traindo da maneira comum.

— Realmente? Seu conhecimento nunca deixa de me surpreender. Então ela deveria abordar um estranho e extrair o seu sêmen. Interessante. Vou passar adiante o seu conselho. Embora sempre tenha achado que traição conjugal deixa um gosto amargo.

Idrisi sorriu.

— Só em casos em que o casal é jovem e a paixão ainda é forte. Para homens mais velhos e mais maduros é diferente.

— Toda esta conversa está elevando a minha temperatura. Talvez seja a hora de armar sua própria tenda de novo e me seguir. Vou testar a sua maturidade com grande prazer. Ou será a hora das orações.

— Saber e dormir é melhor do que orar e ser ignorante.


7

Idrisi é tomado por lembranças de uma ilha encantada.
Um primeiro encontro com o Confiável,
que prega rebelião aberta contra Palermo.

Não havia chegado o meio do verão, ainda era cedo, mas ele sabia que o dia seria abrasador e desagradável. Suspirou alto, desejando que não tivesse concordado em cavalgar com seu genro pela sua propriedade. Não era uma jornada curta e não haveria sombra. A terra que, apenas alguns meses atrás, estava verdejante e atapetada de flores silvestres, estaria ressecada e árida, intensificando os raios do sol. A idéia do que tinha pela frente o deixava exausto. Talvez não fosse tarde demais para mudar de idéia. Mas quando, minutos depois, a presença de Abu Khalid foi anunciada e o jovem entrou no quarto, as incertezas de Idrisi se desvaneceram. O prazer no rosto do jovem era visível. Não podia controlar sua excitação.

Abu Khalid tinha providenciado uma carroça coberta para o homem mais velho, mas Idrisi sabia que isso dobraria a duração da jornada e insistiu em ir a cavalo.

— Minha saúde não é delicada. Sinto-me forte como um boi.

Abu Khalid e Idrisi cavalgaram lado a lado para fora da cidade, cada um carregando frascos de couro cheios de água e seguidos por três criados armados. Foi como ele imaginara, o ar seco, quieto e sem vida. Os galhos seminus das árvores atrofiadas com suas folhas secas e murchas eram tudo o que restava da primavera. O sol reluzia nas pedras.

Depois de uma hora cavalgando era difícil dizer quem suava mais, o cavalo ou o cavaleiro. Pararam para beber um pouco d'água e molhar os panos que lhes cobriam a cabeça. Quando a jornada continuou, Idrisi não podia se concentrar na trilha ou em suas elevações abruptas. A certa altura achou ter visto um lago à distância e estava para sugerir que parassem e se banhassem quando percebeu que seus olhos o estavam enganando, como freqüentemente faziam no mar. O brilho projetado pelas pequenas colinas era enganoso e foi naquele momento que uma lembrança que mantinha firmemente trancada no porão, mas fora reavivada pela visão de Balkis, tomou conta dele. Uma imagem de um antigo templo grego que vira certa vez numa ilha misteriosa apareceu.

Tinha começado a trabalhar no seu livro e, com a ansiedade de um novato, instruía os marinheiros a pararem em cada ilha. Sua curiosidade era ilimitada. Tomava notas detalhadas sobre as plantas e as pedras e o formato da costa. Estavam no mar há algumas semanas quando a ilha foi avistada. No início acharam que era desabitada e a excitação da descoberta elevou o seu ânimo. Foi quando os marinheiros saíram em busca de água fresca que descobriram o pequeno lago e então viram o antigo templo grego que decorava a praia. Um marinheiro foi despachado pára informar ao erudito.

A primeira coisa que Idrisi notou foi que o templo não era uma ruína. Queria estudar a construção a sós sem ser interrompido

Os homens foram mandados para reabastecer seus suprimentos d'água e procurar cabras, geralmente em suprimento abundante em ilhas desabitadas. Pegou as penas, a tinta e o papel do seu criado e o mandou voltar ao navio e encontrar o velho mapa da região no baú que ficava debaixo da cama na cabina.

Tinha visto muitos templos em ruína em djent e Siracusa e havia imaginado como seriam quando cheios de Fiéis, mas este era diferente. Em escala não era tão grande quanto a maioria dos templos arruinados que tinha vista na Siqilliya e nas cidades costeiras do grande mar, mas sua estrutura era exatamente a mesma. As pilastras da entrada conduziam a uma câmara e ali ele viu pela primeira vez uma estátua gigante de Afrodite. Para seu espanto não era feita de mármore branco.

Uma pedra marrom clara fora usada. O escultor deixara pouco para a imaginação. Esta Afrodite tinha grandes mamilos vermelhos e a mesma cor da pedra fora usada para delinear o seu sexo. Podiam estas ser pedras preciosas? Se fossem, os homens insistiriam em roubálas. Não permitiria isso, mas era melhor evitar conflito. Tentaria mantê-los distraídos. E então notou que cercando a deusa do amor de cada lado havia três graças. Pouco abaixo do pé da estátua o escultor colocara uma suma sacerdotisa.

Todas vestiam túnicas e suas gargantas, como jóias brancas, brilhavam na escuridão. Pareciam pequenas em comparação com Afrodite, mas eram na verdade de tamanho natural. Tremeu, como se uma corrente impetuosa tivesse subitamente passado através dele.

Tudo parecia como lavado regularmente, mas ainda não havia traço de ninguém. Talvez fosse um templo secreto onde os descendentes daqueles que haviam adorado os velhos deuses se reunissem em ocasiões especiais do ano para preservar suas tradições. O pensamento excitou o erudito. Se este fosse o caso, por que teriam escolhido Afrodite? Podia ser esta a ilha onde Homero encontrara a encantadora Circe? E poderia ser esta a razão deste templo?

Quando se virou para deixar o templo, ouviu o que lhe pareceu um suave clarear de garganta atrás de si. Congelou. Devia ser sua imaginação. Virou-se e caminhou de volta em direção da estátua. Desta vez olhou mais atentamente para as estátuas menores. Não podia haver engano. Era capaz de ouvir a suma sacerdotisa respirando.

Aproximou-se e tocou no seu rosto. Lágrimas lhe escorriam pelas faces. Ele ficou atônito e em êxtase. Suas mãos sentiram o resto do seu corpo. Ela era humana.

— Quem é você? — sussurrou em grego siqilliyano que havia aprendido na corte.

— Sou Eleni, a suma sacerdotisa deste templo, e estas são minhas sacerdotisas.

Estava cercado por sete mulheres.

— Moram aqui? Esta ilha é habitada?

— Sim — respondeu Eleni.

— Nossas famílias moram atrás dos rochedos onde não são visíveis do mar. É o primeiro visitante em dois anos. Os navegantes que vieram antes de você não estavam interessados na ilha. Só queriam um pouco de água que, como vê, é abundante. Depois partiram. Irá embora logo?

Ele acenou com a cabeça.

— Mas quem são vocês?

— Pertencemos a famílias que começaram a adorar nossos velhos deuses na época do Grande Imperador. Depois que ele morreu, os nazarenos começaram a nos capturar e matar, por isso algumas famílias embarcaram num navio e fugiram de Bizâncio, que os nazarenos chamam de Constantinopla.

Idrisi estava fascinado.

— Que Grande Imperador?

— Juliano. Batizamos a ilha em homenagem a ele. Esta é a ilha de Juliano e Afrodite é nossa deusa.

Contou-lhes quem era e de onde vinha. Tinham ouvido falar de Palermo e sabiam que os árabes dominavam lá. No que lhes dizia respeito, os nazarenos eram os piores, mas os seguidores de Moisés e Maomé não eram melhores. Ele não estava com ânimo para um debate filosófico sobre as virtudes de um Alá contra os deuses de pedra dos antigos.

Contaram-lhe sobre os ritos que encenavam toda primavera, a comida que cultivavam na ilha, como seus números continuavam a declinar. Os homens tinham a tendência de ir embora e era por isso que desejavam recepcioná-los, a ele e aos seus homens, numa festa esta noite. Não fizeram nenhum segredo de seus desejos ou intenções.

Quando os homens voltaram, contou-lhes tudo exceto as pedras preciosas montadas nos seios de Afrodite. Mas eles ficaram ansiosos para participar de uma festa e nenhum demonstrou interesse em sequer entrar no templo. Isto o surpreendeu e em outras circunstâncias os teria questionado e repreendido por sua falta de curiosidade.

Depois que se banharam no lago de águas frescas e se secaram ao sol e estavam deitados sem roupas gozando a brisa do mar, foram interrompidos. A sacerdotisa, que os observava do templo, emergiu à luz do sol. Os homens ficaram estupefatos, assim como ele ficara. Viram as mulheres como um animal acuado vê um caçador. Sentiam a presença de um destino que eram incapazes de evitar e cobriram sua nudez com suas camisas e apressadamente colocaram suas roupas. Uma vez vestidos, as mulheres fizeram sinais para eles e, como homens em transe, as seguiram. Achavam-se em tal estado, e isso incluía Idrisi, que não notaram o labirinto de caminhos através dos quais foram conduzidos à aldeia. Aqui foram saudados por outras mulheres e de todas as idades. Depois, não tinham certeza se algum homem da aldeia estivera presente. Primeiro, deram-lhes cachimbos-do-amor para fumar e então jarras de vinho tinto foram colocadas na mesa debaixo da árvore. Quando foi servida a carne recém-assada do cabrito, marinada em suco de limão e coberta com tomilho, comeram como homens que vinham passando fome há meses. Sua fome não era de comida, mas o que queriam eram as mulheres que os serviam. A comida era apenas um pretexto. Não foi o vinho, mas as folhas secas dos cachimbos-do-amor que os intoxicou. Estavam prontos para serem levados a qualquer lugar. E foram. Idrisi lembrou-se de ter sido levado pela suma sacerdotisa. Mais tarde se gabariam de que fora uma noite de paixão incontrolável, mas quando acordaram na manhã seguinte estavam todos deitados na praia. Sua única lembrança da ocasião era o cachimbo-de-amor de barro. Nenhum dos homens estava preparado para voltar e buscar a aldeia onde haviam sido tão bem tratados. Idrisi os mandou de volta ao navio e pediu que esperassem algumas horas. Estavam assustados e acreditavam que tinham sido possuídos por demónios. Havia sido uma prova à sua fé e tinham falhado. Alá e Deus os puniriam. Imploraram a ele que não fosse sozinho, mas ninguém se ofereceu para acompanhá-lo.

Idrisi achou que havia encontrado a trilha que levava ao lago e ao templo, mas era como se tivessem sido conduzidos desde o princípio. Não havia nenhum traço do caminho. Depois de várias tentativas ele desistiu, mas o tempo todo em que esteve ali sentiu que o estavam vigiando. Era um desafio. Teria gostado de ficar e registrar os acontecimentos, mas os homens estavam ansiosos para seguir em frente e, relutantemente, concordou.

A memória da suma sacerdotisa jamais o deixou. Balkis, a mulher do Amir, o lembrava dela. Tinha feito anotações detalhadas sobre a localização da ilha de Juliano. Era uma jornada de 24 horas de... Mapeou-a de todas as direções, mas nunca pôde redescobrir a ilha. Quando descreveu o incidente ao sultão achou Rujari bastante cético. Quem poderia culpá-lo? E, à medida que os anos passavam, o próprio Idrisi se perguntava se algo daquilo teria realmente acontecido.

— Meu senhor, vamos parar para descansar e comer. Ergueu os olhos e viu que estavam diante de uma grande casa. Dois cães latiram furiosamente até que um homem emergiu e caminhou na sua direção. Era magro com o corpo esbelto, cabelos castanhos e uma pele fresca, apesar de pálida. O que o marcava era a firme determinação do seu rosto enquanto saudava calorosamente Abu Khalid e curvava-se polidamente para Idrisi.

— Bem-vindo a esta humilde casa e sinta-se nela como se fosse sua, Abu Walid ibn Muhammad alIdrisi. Quem não ouviu falar do seu renome?

— Muitas pessoas, eu receio — murmurou o erudito enquanto eram conduzidos ao frescor de uma sala escurecida.

— Banhos foram preparados para o senhor, mas espero que me perdoará. Aqui não é Siracusa e não temos espaço para um hammam. Mas água fresca foi trazida do poço e se acompanhar estes homens até o pátio eles providenciarão para que o senhor se refresque.

— Quem é o seu amigo?

— Idrisi perguntou a Abu Khalid enquanto acompanhavam os criados até o pátio.

— É Tarik, meu irmão mais velho. Creio que deve tê-lo visto rapidamente no meu casamento. Não lembra? Tem uma vida interessante. Agora tudo o que o interessa são frutas e legumes. Não come carne, nem mesmo no inverno.

— Tem família?

— Não aqui. Ela mora em Salerno. Pelo tom de Abu Khalid estava claro que este não era um assunto feliz, mas provocou a curiosidade de Idrisi.

— Por quê?

— Abu Walid, o que posso dizer? Aos 18 anos meu irmão queria ser um médico, alguém que curasse as pessoas. Lia o Aqrabadhin de al-Kindi e o Kanun de Ibn Sina da manhã até a noite. Meu pai, como bem sabe, só estava interessado em suas propriedades e no seu bem-estar. Não se sentia inclinado a satisfazer meu irmão. Queria que seu filho mais velho ficasse em casa e o ajudasse a dirigir o patrimônio, concentrando sua mente em criar novos métodos para gerar ainda mais terra. Meu irmão se recusou. Correu para o maristan em Salerno, onde se encontram os melhores médicos. É uma longa história, Abu Walid.

Jogaram água sobre suas cabeças e os dois homens tremeram deliciados.

— Onde foi que ele encontrou o livro de al-Kindi? Eu não sabia que havia uma cópia em qualquer biblioteca por aqui.

— Deve perguntar a ele. O almoço foi servido em outra sala escurecida. Tubérculos de diferentes tipos cozidos com as mais deliciosas ervas e temperos foram servidos com pão recém-assado de trigo umedecido com azeite de oliva. Para beber havia leitelho fresco aromatizado com folhas de menta. E para adoçar suas bocas fatias de melão e tâmaras foram servidas numa grande bandeja.

Depois Tarik perguntou numa voz gentil:

— Talvez gostassem de descansar? — Se descansarmos, não chegaremos à casa do seu irmão hoje.

— Eu insisto — disse Tarik.

— Fizeram uma longa jornada a cavalo. Acho que um descanso lhes faria bem. Pouco mais de três quilômetros daqui e estarão na sua propriedade.

Esta casa era parte dela, mas ele gentilmente me cedeu como presente. A casa da família está a menos de uma hora. Bem-vindo, Ibn Muhammad.

Idrisi estava exausto. O banho havia ajudado, mas o almoço o deixara sonolento. Um quarto fora preparado para ele e adormeceu imediatamente. Uma hora depois foi acordado por um sonho vívido. Sentou-se na cama e bebeu um pouco d'água. Por que a ilha de Juliano ocupava tanto seus pensamentos hoje? Aquilo havia acontecido 25 anos atrás e ele mal se lembrava daqueles dias. Por que agora? Balkis. Ela se parecia com a suma sacerdotisa. Seria realmente irmã de Mayya ou fora adotada ainda criança? E por que se casara com um homem estéril? Uma suave batida na porta o interrompeu. Era Abu Khalid.

— Estamos prontos para partir, quando estiver.

— Queria falar com seu irmão.

— Ele nos acompanhará à visita a velha casa, mas sua presença foi benéfica.

Estou muito feliz. Nunca quis herdar as propriedades. Pensava em viajar e estabelecer-me em Palermo. Mas quando Umar desapareceu meu pai não me permitiu que partisse.

— Então sua casa se tornou uma prisão. E minha filha, receio, não oferecia companhia estimulante.

Seu genro não respondeu. Chegaram à casa de Umar antes do pôr-do-sol. Os membros da casa estavam reunidos para recebêlos. À sua frente estava o jovem Khalid.

— Bem-vindo à nossa casa, avô. Idrisi abraçou o neto e beijou-lhe as faces com emoção genuína.

— Meu filho. Você já cresceu e só se passaram algumas semanas desde que o vi. Venha mostrar-me sua casa. Estive aqui pela última vez quando seu pai tinha dez anos de idade. Mudou muito?

— Não. Foi Umar quem respondeu.

— Nada muda aqui. Mas vai mudar logo. Estamos vivendo no tempo de outros.

E então um homem de aparência estranha que Idrisi mal havia notado adiantou-se e inspecionou os recém-chegados. Tinha cabelos cinzentos compridos que quase lhe chegavam aos ombros, uma barba manchada, que cobria a maior parte do seu rosto emaciado, e um par de olhos ardentes e aguçados que dominavam suas feições. Vestia uma túnica branca limpa, que contrastava com sua aparência. Na mão direita tinha um bastão velho e surrado e o bateu no chão agora ao falar.

— Não! — gritou o homem.

— Umar Ibn Ali fala sem pensar. São os infiéis que vivem no nosso tempo e nós os deixamos.

Tendo feito este pronunciamento afastou-se sem cumprimentar ninguém. Idrisi sorriu. Não se impressionou. Conversa desse tipo não era incomum em Palermo. Percebeu que este era o homem de quem Abu Khalid lhe falara em Siracusa.

Quando entraram na casa, sua filha, Samar, o saudou em termos exagerados. Não mais capaz de fingimentos, tocou sua cabeça de uma maneira mecânica. Uma série de quartos havia sido preparada para ele e seu neto o conduziu até lá.

— Jiddu — perguntou Khalid -, o senhor gosta do meu pai? A pergunta o pegou de surpresa.

— Por que faz uma pergunta destas, minha criança? Se não gostasse do seu pai teria passado um dia incrivelmente quente viajando com ele até sua casa?

Khalid começou a rir.

— Só perguntei. Estou feliz.

— Quantos quartos existem neste palácio?

— Trinta e quatro — respondeu Khalid.

— Eu os contei muitas vezes.

— Agora me diga outra coisa. O que acha daquele homem estranho de cabelos compridos que falou tão rudemente com seu tio?

O rosto do menino ficou sério.

— Ele me assusta às vezes, mas quando vê que estou com medo sorri e tenta me fazer rir. Seu nome é al-Farid, mas todo mundo o chama O Confiável. É muito pobre e viaja de aldeia em aldeia, onde se revezam alimentando-o. Mas ele não deve comer muito. É muito magro. Acho que prefere leite de cabra com um pedaço de pão. Abu diz que ele é um grande contador de histórias.

Um criado entrou com uma bacia e uma grande jarra d'água. Idrisi sorriu e beijou a cabeça do menino.

Khalid saiu graciosamente.

— Eu o vejo depois, Jiddu. Muita carne foi preparada para nossa festa esta noite.

Idrisi lavou as mãos e o rosto e deixou o criado lavar a poeira dos seus pés. O sol havia quase desaparecido e o muezim na mesquita da aldeia convocava os Crentes para a prece do anoitecer. Idrisi cobriu a cabeça e começou a rezar. Em tempos de incerteza, pensou, existe um consolo íntimo derivado da prece. Lembrou que seu pai descrevia como, depois que Palermo foi ocupada pelos francos, muitos que não rezavam regularmente começaram a comparecer às preces da sexta-feira na Grande Mesquita. Por muito tempo, segundo seu pai, as cadências melancólicas do chamado à prece tinham afetado cada Crente na cidade.

O tamanho mesmo da reunião no meio do dia cada sexta-feira permite aos Crentes encontrar força um no outro. Ele sempre entendera isso, mas só recentemente havia experimentado a sensação pessoalmente. De fato, só duas semanas atrás, quando soube do destino que aguardava Felipe.

A refeição do anoitecer, como Khalid avisara, consistia de uma grande variedade de carnes cozidas em honra do visitante. Não fosse a presença de Umar é duvidoso se algum tipo de legumes teria sido preparado. Idrisi provou um bocado de cada uma das carnes grelhadas e cozidas e exclamou em voz alta e com apreciação como estavam saborosas, mas concentrou-se em comer os legumes, crus e cozidos, que haviam sido colocados diante de Umar.

— Uma palavra de conselho para todos vocês — Idrisi dirigiu-se à mesa enquanto esperavam pelos pratos doces.

— Viajei por muitos países quentes e nos meses de verão se come pouca carne. Qualquer médico vai lhes dizer que a carne no verão produz um peso para o coração e reduz o fluxo de sangue para as partes vitais do corpo.

Umar sorriu.

— E já que Ibn Muhammad está dizendo isso, deviam leválo a sério.

Enquanto bandejas de frutas frescas eram servidas houve um grande ruído à distância. Os homens trocaram olhares inquietos enquanto um criado veio sussurrar no ouvido de Abu Khalid. Seu rosto relaxou.

— Acho que o Confiável está tentando atrair nossa atenção. Detonou um pequeno explosivo para mostrar aos seus seguidores como os francos podem ser derrotados. Se Ibn Muhammad não estiver muito cansado, poderíamos caminhar até a cidade e ouvir sua mensagem.

Idrisi levantou-se da mesa.

— Uma pequena caminhada depois da refeição ajuda a digestão. Será tarde demais para Khalid nos acompanhar?

Pai e mãe concordaram que o melhor lugar para Khalid era a cama, uma decisão que ele aceitou com extrema relutância.

A noite estava quente e calma. Enquanto os homens saíam da casa, Idrisi olhou para o céu e se tranqüilizou. À frente deles, os criados levando lampiões de azeite iluminavam o caminho até a cidade. Ao se aproximarem, podiam ouvir os cânticos do Corão, mas o ritmo e estilo eram diferentes de tudo o que ouvira nas mesquitas de Palermo e Siracusa e, também, de qualquer outro lugar. O Confiável lia os versículos em curtos estouros staccato e seus ouvintes reagiam às explosões.

Quando chegaram à praça da aldeia, Idrisi observou a mesquita improvisada com seu minarete solitário. Havia pelo menos duzentos homens presentes e cada um deles tinha o rosto coberto. O Confiável dissera-lhes para serem cautelosos e não confiarem em ninguém nos meses que vinham pela frente. Seus olhos caíram sobre Idrisi quando saltou sobre a pequena plataforma no topo da praça e começou a pregar.

— Olhem em torno de vocês, Crentes, e vejam quem veio se juntar a nós esta noite. Abu Khalid e Umar ibn Ali nós conhecemos e respeitamos. Deram-me esmolas e me proporcionaram abrigo e garantem que vocês todos e suas famílias sejam alimentados quando os tempos estão difíceis. Mas trouxeram um visitante especial. Um grande erudito de Palermo, conselheiro de confiança do sultão Rujari. Muhammad ibn Muhammad alIdrisi. Já ouviram falar nele? Sacudiram a cabeça para expressar sua ignorância.

Idrisi reprimiu uma risada. Sabia a influência que homens como este pregador podiam ter sobre os pobres e entendia por quê. Abu Khalid lhe fizera um relato do homem e de como vivia.

O estilo de vida de al-Farid suscitava admiração. Vivia de esmolas mas nunca aceitava mais do que o necessário para suas necessidades diárias, que eram, no fundo, modestas. Recusava todos os presentes oferecidos pelos ricos proprietários de Catânia, que começavam a se preocupar. Não dormia num único lugar por muito tempo e, quando precisava de uma cama, insistia numa tábua ou num pano colocado sobre o chão. Passava a maior parte do seu tempo com as pessoas mais pobres da aldeia e eram elas que o procuravam e lhe contavam seus problemas. Uns poucos o seguiam de aldeia em aldeia e absorviam sua mensagem tão completamente que ele às vezes mandava um deles a regiões distantes para pregar em seu lugar. Apesar do apoio crescente que recebia, continuava notavelmente distanciado e, ao contrário de pregadores semelhantes do passado, não mostrava sinais de delírio ou alucinações. Submetia seu corpo a privações terríveis, geralmente fazendo jejuns prolongados para testar sua força. Esta autodisciplina rude quase lhe custara a vida. Se um passante não o tivesse forçado a beber água e comer pão ele teria morrido. Umar havia preparado misturas especiais de ervas e uma dieta cuidadosa de amoras silvestres e sopas de legumes para ajudar na sua recuperação.

Depois de cada vitória que seu corpo havia alcançado, ele se levantava, o rosto rígido como uma máscara, e começava a dançar, um estranho ritual que ninguém na região vira antes, enquanto entoava canções que tinha feito em honra de Má. Lendas brotaram a seu respeito e logo era chamado para resolver disputas entre os camponeses nas várias aldeias. Durante dez anos ou mais, sua palavra era aceita como o julgamento final e ele tinha uma quantidade imensa de seguidores em cada aldeia. Notícias de chegada do Confiável se espalhavam pelos campos e naquela noite teria lugar um mehfil com os camponeses para que falassem abertamente sobre suas amarguras.

Contava-se que muitos anos atrás um proprietário de terras estuprara uma camponesa e ela ficara grávida. O marido queria matá-la. O Confiável interviera e salvara sua vida. Organizou então os camponeses para matarem o ofensor, mas de maneira que parecesse um acidente. Os camponeses fizeram uma emboscada contra o proprietário e o jogaram, com o seu cavalo, de uma montanha. E agora ele pregava a rebelião.

— As notícias de al-medina são de que o sultão está doente e morrerá em breve.

Que Alá o mande para o céu porque ele não foi cruel para os Crentes, mas não podemos depender dos francos para continuarmos aqui após a morte de Rujari. Querem nossas terras e as tomarão a não ser que resistamos. Digo isto: depois da morte de Rujari cercaremos Palermo do lado de fora. O efeito será aquele de uma pedra jogada numa colméia. Nosso povo vai se levantar e derrubar os infiéis. Onde estará quando chegarmos, grande mestre Idrisi? Escondido na biblioteca com seus livros?

Abu Khalid ficou zangado, mas Idrisi segurou seu braço e sussurrou:

— Este homem não é nada estúpido. Os insultos não me afetam.

O pregador falou por outras duas horas e os camponeses o ouviram extasiados. Falou do começo de vida do profeta Maomé, contou-lhes histórias de como os exércitos e seguidores do Profeta haviam chegado às praias de três oceanos dentro de cem anos, os fez rir e os fez chorar quando descreveu como fora injustamente detido e sujeito às piores torturas. E então mudava

o tom e explicava como os Crentes ainda eram numericamente superiores ao francos na Siqilliya e como conquistariam uma vitória para a sua fé se pusessem de lado rivalidades mesquinhas e servissem num exército unido.

— Mas existe um problema, meus irmãos. Quem nos liderará na batalha? Que bandeira vocês seguirão?

— Você nos liderará, Confiável. É a sua bandeira que vamos seguir — a multidão respondeu.

Mas ele sacudiu a cabeça vigorosamente e ergueu a mão direita para exigir silêncio.

— Não sou um Amir da terra ou do mar. Só podemos vencer se nossos amires que estão hoje combatendo por Rujari decidirem lutar por si mesmos e pela causa dos Crentes por toda parte. É a eles que devemos convencer e, se conseguirmos, teremos um exército e navios ao mar. Sou um homem simples, mas sei como batalhas são ganhas e perdidas. Vamos fazer com que nossa fé nos dê tamanha força que perderemos o medo da morte. Isso dará a nossos amires um grupo de homens que se rivalizará com os francos e seus barões. Nós os expulsaremos até um mar que eles nunca deveriam ter atravessado. E eu cuspo na memória de Ibn Thumna que convidou os infiéis a atravessarem as águas para ajudá-lo a lutar contra nossos Crentes. Vamos cuspir juntos nele. Alá seja louvado.

A multidão cuspiu no chão em uníssono.

— O homem conhece a nossa história — Idrisi murmurou enquanto caminhavam de volta para casa.

— Acha que existe a menor possibilidade de sucesso?

— Abu Khalid perguntou-lhe.

— Existe uma boa possibilidade se o que al-Farid pediu puder ser conseguido. Ele estabeleceu três condições prévias para o sucesso. A unidade dos Crentes, a disposição de morrer

como parte de um novo exército e o abandono do clã Hauteville por nossos principais nobres e comandantes militares. Se conseguíssemos alcançar todas estas coisas, poderíamos vencer. O pregador é modesto demais. Poderia elevar a sua estatura. Homens como ele podem ser impelidos a fazer História.

— Concordo — disse Umar — mas se formos realistas nada disso irá acontecer. Nossos amires são egoístas demais para sequer pensarem nas necessidades dos outros.

Estão interessados na sua sobrevivência e na de suas famílias e, para manter suas terras, se converterão à fé dos nazarenos. Meu irmão aqui morrerá pela causa, como pode ver, e eu provavelmente morrerei com ele. Em Catânia formaremos um grande exército, mas aqueles fodedoresde-cabras em Qurlun e Lanbadusha jamais deixarão suas terras. Anote minhas palavras, Ibn Muhammad. Eles se converterão.

E um estranho eco reverberou na escuridão.

— Anote minhas palavras, Ibn Muhammad. Eles se converterão. Eles se converterão.

O Confiável os havia seguido e entreouviu a conversação.

— Confiável — Abu Khalid gritou -, junte-se a nós. Saiu da escuridão e caminhou com eles até que chegaram à frente da casa. Declinou o convite de partilhar chá de menta com eles dentro de casa, mas fixou Idrisi com um olhar severo.

— Quero que saiba que, ainda que o resto da ilha se omita, Catânia vai lutar. O Amir de Siracusa me deu sua palavra de que seus homens ficariam conosco. O Amir de Catânia prometeu seu apoio. Levantaremos vinte mil homens armados e eles lutarão até a vitória ou a morte. Acha isso suficiente?

Idrisi foi intensamente afetado pela simplicidade e determinação do pregador. O Confiável, no entanto, ainda tinha de se decidir em relação a Idrisi. Estava inclinado a confiar nele, mas esperava para ouvir sua resposta.

— Confiável, vou ser honesto com o senhor. Não estou seguro de quantos homens armados serão necessários para recuperar esta ilha. Foi tomada de nós por menos de um quarto do número que propõe. Não são os números, mas a força da crença em sua própria causa que determinará o resultado. Mas a questão principal foi a que colocou: será que os Crentes nas cem maiores cidades desta ilha se juntarão a esta rebelião? Se o fizerem, nós venceremos. Os barões tornaram-se preguiçosos e cobiçosos.

Estão desacostumados com a guerra. Podíamos pegá-los de surpresa, mas ainda que tomássemos a ilha teríamos de atravessar as águas e ocupar as fortalezas em Salerno e nos outros locais. Sem elas ficaremos vulneráveis a outra invasão. Quanto a nosso povo em Qurlun e Lanbadusha, talvez o que diz seja correto, mas ser apegado à terra e convertido à fé do conquistador não é nenhuma garantia de que será poupado se houver um terremoto. E são aquelas pessoas piores do que as comunidades em Marsa Ali e Shakka? Vão ser levadas pelo vento. Se a tempestade que o senhor prepara em Catânia for poderosa o suficiente, unirá muitos não-crentes também contra os barões. E, antes que eu esqueça, houve uma pergunta que fez diretamente a mim. Minha resposta é esta: se houver uma rebelião, não vou agir como um indivíduo.

Se precisar de mim estarei na Grande Mesquita com os outros, não me escondendo na biblioteca do palácio. Isso o satisfaz?

O pregador estendeu a mão e tocou na cabeça de Idrisi.

— Estou satisfeito, mas somente Alá o recompensará, Ibn Muhammad.

— Então estou preparado para esperar — replicou Idrisi com um meio-sorriso.

Entraram na casa com o ruído de mulheres chorando e Khalid sentado no saguão, lágrimas escorrendo pelo rosto. Idrisi abraçou o neto e perguntou o que havia acontecido.

— Umi morreu.

Idrisi beijou o menino e o apertou contra si. E foi em seus braços que a criança adormeceu. Uma única lágrima molhou a face de Idrisi. Ficou sentado com um olhar vago até que Tarik apareceu.

— O que foi que aconteceu, Tarik? Ela não parecia doente. Onde está Abu Khalid?

— Umar está em seu quarto. Ela tomou veneno, Ibn Muhammad. Uma grande dose e deve ter sido uma morte dolorosa. Tomou imediatamente depois da refeição. Ainda que estivesse aqui, eu não teria antídoto para este veneno.

— Mas por quê?

— Meu irmão não estava contente com ela e a repreendeu pela traição que ela e Sakina haviam planejado. Não se divorciou nem a ameaçou. Mas tinha dificuldade em falar com ela. Acho que ela achou o silêncio insuportável.

Idrisi começou a chorar.

— Pobre garota. Foi culpa da sua mãe, de sua estupidez e cobiça... Diga ao seu irmão para não se culpar. A mãe de Samar é que devia ter tomado o veneno. Mandaram um mensageiro avisá-la e a Sakina?

Tarik acenou com a cabeça.

— Ele partiu para Noto antes de voltarmos.


8

Irmãs sigilliyanas.
Mayya e Balkis discutem os méritos da vida com e sem homens.
Segredos são revelados.
Combina-se um plano para extrair a semente de Idrisi.

As três mulheres estavam sozinhas. Elinore se ocupava em fazer as malas, com suas roupas e jóias, preparando para a partida bem cedo na manhã seguinte. Embora nunca tivesse se encontrado com Samar, a notícia do suicídio de sua meiairmã a havia perturbado mais do que achava possível. O incidente continuava a reverberar na sua mente e ela mal ouvia sua mãe e sua tia, que estavam num ânimo estranho desde ontem.

— Se minha vida começasse de novo, eu acho que a repetiria. Mayya estava com uma índole filosófica e embora Balkis estivesse acostumada com o hábito de sua irmã de refletir em voz alta, ficou surpresa com a observação.

— Achei que detestava o palácio-prisão. Sua descrição.

— O que eu quis dizer foi que se meu Amir al-kitab, o grande mestre Idrisi, levasse a mesma vida se eu fosse casada com ele quando nunca estava em casa, o palácio-prisão era melhor. Tinha amigos e nunca fiquei solitária. É muito melhor do que ser casada com um marido exigente mas ausente que

insistia em ser o centro da minha vida. É diferente agora que suas viagens terminaram.

— Meu Amir me deixa sozinha. Nunca força sua presença sobre mim.

— Mas quando o faz, é agradável?

— Não, mas não é desagradável. As duas caíram na gargalhada.

— Sei como você anda feliz estes dias, Mayya. E, vendo você assim, me faz ao mesmo tempo feliz e triste.

— Quando você disse que eu pensei ter ouvido nossa mãe. Ficaram ambas em silêncio. Sua mãe morreu quando ambas eram jovens. Balkis só tinha dois anos e mal podia se lembrar dela. Mayya, dez anos mais velha, havia guardado algumas memórias vívidas. Suas tias e sua avó materna as haviam criado, as tias em função do dever e a avó porque as amava quase tanto quanto havia amado a própria filha.

— É verdade o que dizem?

— Quem?

— Eles?

— O que dizem?

— Que nossa mãe não teve uma morte natural. Mayya abraçou a irmã.

— Perguntei à vovó e ela disse que não era verdade.

— Ela diria isso. Se tivesse dito a verdade papai a teria botado fora de casa. Não tinha para onde ir.

— Teria voltado para Shakka onde seus filhos viviam.

— Mayya, sempre sei quando está tentando esconder coisas de mim. O que há de errado com você?

— Acho que estou grávida.

— Alá nos proteja!

— Protegerá. Ele o fez da última vez.

— Tem certeza?

— Acho que sim. O sêmen do erudito é tão fértil como esta ilha.

— Não só desta vez, se a história que você me contou anos atrás era verdadeira.

Mayya deu uma risada suave, silenciosa.

— Não estou segura que ele saiba se realmente aconteceu ou se foi um sonho depois de terem fumado um haxixe muito forte.

Mas como podiam todos os homens terem o mesmo sonho? Curioso que tenha lembrado.

Balkis levantou-se e caminhou para trás da cadeira da irmã. Começou a trançar os cabelos de Mayya.

— Ainda não respondeu minha pergunta sobre nossa mãe. Mayya suspirou.

— Ouvi as mesmas histórias que você e provavelmente da mesma fonte. Como posso saber se são verdade?

— Mas, Mayya — apelou a irmã -, se nossa mãe foi morta pelo marido devia haver uma razão. Nosso pai mal podia dirigir um olhar para mim. Não consigo lembrar de nenhum gesto afetuoso de sua parte.

— Ele queria um filho.

— Por que está escondendo a verdade? Por quê? Nunca vai me contar? Mayya?

Mayya sempre soubera a verdade, mas queria proteger Balkis. Estavam todos mortos agora. Mas algo bloqueava Mayya. Uma intuição, talvez, de que nada de bom sairia desta história. Já havia custado a vida de sua mãe. A visão de Balkis sentada no chão com as mãos apoiando o rosto e esperando ansiosamente decidiu Mayya. Não havia nenhuma razão real para ocultar a verdade dela.

— Nós tivemos pais diferentes.

A expressão no rosto de Balkis não mudou.

— Isto era óbvio até para mim. Quando eu tinha cinco anos, nosso pai mandou raspar minha cabeça porque não podia agüentar a cor dos meus cabelos. Fingiram que eu tivera febre e vovó disse que os cabelos cresceriam ainda mais fortes. Mas eu chorava toda noite e você me consolava até que eu adormecesse. Lembra-se? Quando cresci, percebi que ele odiava a simples visão de mim. Às vezes deixava a sala quando eu entrava. E então percebi por que me odiava, mas não havia ninguém para perguntar e você sempre negava. Quem era meu pai?

— Um mercador grego que comprava azeite de oliva do meu pai. Lembro-me bem dele. Não só era muito mais bonito do que meu pai, mas também mais inteligente.

Nossa mãe deve ter pensado o mesmo. Visitava nossa casa regularmente. Suponho que um dia ele a encontrou sozinha e a suave brisa de atração mútua se transformou numa tempestade. Você foi o resultado. A surpresa foi que levaram dois anos para que nosso pai se desse conta de que esta criatura com cabelos louros e olhos azuis não podia ser sua filha. Puxei a minha mãe. Você era a imagem do seu pai.

— O que aconteceu com ele?

— Quando me tornei uma das concubinas de Rujari mandei chamá-lo. Isto foi há vários anos. Veio ao palácio e conteilhe que nossa mãe tinha sido envenenada. Não tinha a menor idéia de que estava grávida até você nascer e ela mandou-lhe uma mensagem dizendo para nunca mais voltar a Noto. Ele chorou muito. Ficou desesperado para ver você, mas nossa avó ainda estava viva e achei que não seria prudente.

— Você estava errada.

— Você pode estar certa. Ele ainda era jovem e achei que podia vê-la em outra ocasião.

— Ele já morreu?

— Sim.

— Como?

— Uma espécie de infecção. Um dos eunucos do palácio mantinha-se informado sobre ele. Mandamos um médico para tentar curá-lo, mas era tarde demais. A doença havia se espalhado.

— Não tinha família?

— Não. Balkis começou a chorar. Mayya aninhou sua cabeça nos braços e a acariciou gentilmente até que ela se recuperou.

— Mayya. Cheguei a uma decisão. Eu quero um filho.

— Muito bem. O único problema é encontrar um pai.

— Você ocultou meu verdadeiro pai de mim. Jure por tudo que é sagrado que vai me deixar decidir quem vai ser o pai de meu filho.

— Claro que vou. Juro pela cabeça de Elinore que apoiarei sua escolha e farei tudo em meu poder para ajudá-la a caçar a besta e extrair o seu sêmen. Eu juro. Eu juro. Eu juro.

— Lembra quando éramos crianças e bastava eu mencionar que adorava um determinado prato para ele reaparecer no dia seguinte?

— Não, mas e daí?

— Quem decidia?

— Não tenho a menor idéia. Talvez vovó. Sempre se queixava de que não apreciávamos sua comida e quando você dizia que gostava de algo ela fazia aquilo três vezes por semana. Você é uma criatura engraçada, Balkis. Estávamos discutindo o pai do seu filho e vem falar de comida. Tem um homem em vista?

— Acho que devíamos manter a coisa em família.

— A saber?

— Ibn Muhammad alIdrisi.

A idéia a colocou em pânico. Primeiro pensou que Balkis a estava provocando, mas o olhar no rosto da irmã sugeriu que falava sério.

— Não! Não! Por que ele? Existem homens suficientes em Siracusa que adorariam a oportunidade. Ele tem 58 anos, você sabe. Sabia disso? Cinqüenta e oito! Velho demais para você. Seu sêmen não é vigoroso e...

— Mayya, você não deve ser egoísta. Fez um juramento. O tom severo da irmã aumentava seu constrangimento.

— Juramentos podem ser quebrados. Está me atormentando?

É uma punição porque não deixei seu pai ver você?

— Não. Apenas acho que seria uma boa união e não haveria risco. Ele não iria me chantagear, não acha?

— Mas por que ele?

— A razão real?

— Sim!

— Existe algo muito infantil e atraente em sua risada.

— Ora, ele não vai rir quando a enxergar nua. Era um comentário tão ridículo que as duas começaram a rir. Foi uma risada espontânea e contagiante e clareou a atmosfera. A tensão insuportável que tomara conta delas subitamente desapareceu. Assim que Mayya percebeu que sua irmã falava sério ela também começou a pensar seriamente. Balkis observou-a em silêncio por vários minutos e então ergueu uma sobrancelha, só para ter como resposta um gesto de um dedo sobre os lábios. Finalmente, não pôde se conter mais.

— E então? Mayya se sentia com o coração leve de novo. Contanto que organizasse e controlasse toda a história, poderia ser algo muito divertido. Se possível, encontraria um esconderijo de onde poderia observar toda a cena, sem o conhecimento dos dois atores principais. Ainda não achava uma boa idéia, mas se tinha de ser feito, deveria ser feito adequadamente. Deixada para agir sozinha, Balkis poderia arruinar tudo.

Olharia então para Mayya com seu ar inclemente e a culparia do desastre. E por que não deveria Muhammad alIdrisi ajudar Balkis na sua hora de crise?

Ela sabia que as pessoas geralmente preservam uma lembrança de algo, meio imaginado, meio real que lhes aconteceu na juventude. Mais tarde na vida relembram isso como algo excepcional ou mágico, fora da ordem comum das coisas.

— Pensei num plano, mas para que tenha sucesso um número de condições precisam ser preenchidas. Primeiro, ele nunca deve saber que eu sei. Segundo, não deve acreditar que a mulher entrando no seu quarto seja você...

— Mas — interrompeu Balkis.

— Por favor, deixe-me acabar. E, por fim, quando você o encontrar na manhã seguinte, deve fingir que nada aconteceu.

— E se nada acontecer? Quero dizer, se não tivermos sucesso da primeira vez?

— Podem tentar de novo, mas exatamente da mesma maneira.

— Aceito as condições. Agora revele cada detalhe do seu plano.

Ela o fez mas, antes que as arestas pudessem ser aparadas, Elinore entrou no quarto.

— Estamos realmente partindo para Palermo amanhã? Sua mãe assentiu com a cabeça.

— Por que quer voltar tão cedo, Elinore? Por que não esperar por seu pai? Vai voltar em poucos dias e então nós duas poderemos regressar no seu navio. Muito melhor do que viajar de carroça.

— Acho Siracusa tão tediosa, minha tia. Todos os meus amigos estão em Palermo. Tudo acontece lá. Soube de coisas interessantes que estão acontecendo em Noto. Dizem que existe um pregador de cabelos compridos com a alma exaltada que está espalhando a rebeldia através de Catânia. É verdade? Ouviram falar dele?

Balkis acenou com a mão num gesto depreciativo.

— Meu marido o conhece e diz que o homem é meio louco. Elinore não aceitou.

— Isto significa que ele é meio lúcido.

Sua mãe a fuzilou com o olhar.

— Bem — respondeu a tia -, se está interessada no Confiável — é assim que o chamam — é melhor esperar por seu pai. Deve tê-lo conhecido na propriedade do seu genro.

Elinore estava dividida. Estava desesperada para voltar à casa para ver se algum dos eunucos tinha conseguido encontrar o flautista que a deixara em transe com a sua música. Mas o pensamento de esperar por seu pai também era atraente. Debateu os méritos de cada caso na sua cabeça e decidiu em favor do rapaz que tocava flauta. Regressariam cedo na manhã seguinte.

Sua mãe aceitou a decisão por suas próprias razões. Não queria realmente estar em Siracusa quando Idrisi voltasse. Balkis jogando olhares para ele seria intolerável.

Apesar da sua mostra de apoio à irmã, Mayya estava nervosa em relação ao pacto cruel e monstruoso que haviam selado. Seu cérebro estava em torvelinho. Seria melhor que não estivesse presente quando Idrisi voltasse ao palácio. Se ele sequer suspeitasse do seu envolvimento ela seria coberta de desgraça. A maneira relaxada de Elinore parecera ter convencido sua tia de que tinham de partir e involuntariamente proporcionara uma solução simples para o dilema de sua mãe.

— Balkis, não quero que acorde cedo por nossa causa. Partiremos antes do sol nascer, enquanto os Crentes são acordados para as preces matutinas. Não a perturbaremos.

Vamos nos despedir agora.

Elinore beijou a tia calorosamente e saiu da sala. Balkis segurou as mãos da irmã e as apertou com força.

— Tem medo da minha impetuosidade. Começa a se arrepender do nosso acordo. Eu amo você, Mayya. É uma mãe e um pai para mim. Se a magoei estou preparada para retirar minha sugestão e declarar nosso acordo acabado. Não quero que nada fique entre nós. Nada.

Mayya, tocada pela oferta, não falou imediatamente, mas abraçou Balkis e a beijou.

— Fizemos um acordo. Vamos ficar fiéis a ele. Não afetará nada entre nós. Isso eu posso prometer-lhe. Só espero que dê certo da primeira vez. Não quero que faça disso um hábito.

E com essa nota de advertência as irmãs se despediram.


9

Idrisi reflete sobre a rebelião e é surpreendido no seu sono.
Sua semente é extraída mais de uma vez.

A manhã resplandecente alegrou Idrisi. Tomou café-da-manhã cedo e partiu para Siracusa acompanhado apenas de criados armados. Não permitiu que Abu Khalid nem seu irmão

Umar o acompanhassem. Tinham tarefas mais importantes em casa.

A morte de sua filha levara a muita reflexão interior da sua parte e Idrisi se perguntou se as coisas teriam sido diferentes se tivesse passado mais tempo com as filhas e as educado. Mas acabava voltando, uma vez mais, à raiz do problema: o seu casamento. Embora só tivesse 18 anos na época, deveria ter resistido ao seu pai. Na noite passada havia escrito uma carta breve para Walid.

"Meu Caríssimo Filho:

Escrevo para trazer tristes notícias. Sua irmã, Samar, morreu há dez dias. Eu estava presente na casa no dia em que ela decidiu atentar contra a própria vida.

Pegou-nos todos de surpresa porque não havia indicação de que estivesse à beira do desespero. O jovem Khalid vagueia aturdido e é difícil consolá-lo. Seu pai o culpa, mas injustamente. É um homem generoso e ponderado e não deve ser culpado pelo que aconteceu. Se há algum culpado, sou eu. Deveria ter sido menos duro com ela depois de descobrir e expor um plano tolo e traiçoeiro para prestar falso testemunho contra o marido. Foi idéia da sua mãe. Ela e Sakina se tornaram instrumentos voluntários por causa de estupidez mais do que de maldade. Seria ocioso oferecer mais detalhes numa carta que pode nem mesmo chegar até você.

Sua mãe e Sakina vieram para o enterro, mas só ficaram poucos dias. Falei com elas brevemente, passando mais tempo com meus netos, cuja inteligência você apreciaria mais do que a maioria.

Tenho pensado muito no passado e irei a Veneza sem muita demora para que possamos nos encontrar e conversar. Não pode imaginar como sinto falta da sua presença.

As ondas de risadas e o ruído das vozes quando seus amigos vinham vê-lo na nossa casa permanecem uma lembrança muito cara.

Eu o abraço,

Abu."

Cavalgou num ritmo furioso, ansioso para alcançar Siracusa antes do crepúsculo e içar velas para Palermo na manhã seguinte. Tinha deixado a cidade em desespero, buscando possíveis rotas de escape para o desastre que vinha à frente. Rujari não havia respondido à sua carta pedindo misericórdia. Talvez devesse ter ficado e implorado ao sultão todo dia. Agora queria fazer um último esforço para persuadir o sultão a poupar a vida de Felipe. Rujari havia tratado Felipe como seu próprio filho. Sabia que o sacrifício humano exigido pela Igreja e pelos barões — um sacrifício com o qual Rujari havia concordado — devia estar, mesmo assim, atormentando o sultão.

Quando Idrisi discutira a prisão de Felipe com o Confiável, o pregador fizera troça da comunidade de Crentes de Palermo. Se deixassem Felipe morrer sem resistência, eles próprios também pereceriam. A contragosto, Idrisi começara a cair sob o fascínio do pregador. Às vezes suas crenças supersticiosas o irritavam, mas a ferocidade e o fervor com que falava contra a Igreja faminta de terras e os mercenários que ela empregava como carrascos eram admiráveis. E as multidões que ele empolgava estavam longe de ser crédulas. Sabiam que ele falava a verdade e o comparavam a seus amires e proprietários de terras que competiam entre si para apaziguar e agradar a seus inimigos, especialmente os monges, que constantemente faziam sermões advogando o terror e a violência para livrar a ilha de Crentes e judeus.

De onde vinha esta paixão religiosa? Era uma resposta às fogueiras que haviam sido acesas para destruir o que ele por muito tempo considerara indestrutível. As primeiras vitórias do Profeta e os triunfos resultantes haviam criado uma civilização tão orgulhosa e consciente de sua superioridade que, como os antigos da Grécia e de Roma, infectou-se com a idéia de que sua superioridade a tornava invulnerável. Um erro fatal.

Mas o Confiável estava certo ao chamar a atenção sobre a traição que levara ao convite despachado por Ibn Thumna, o Amir de Siracusa, aos francos. Acontecimentos que tinham ocorrido há cem anos ainda estavam frescos na imaginação da maioria dos Crentes. Quantas vezes Idrisi ouvira a história do Amir maligno e promíscuo, Ibn Thumna, que havia assassinado o piedoso e nobre Ibn Maklati, o Amir de Catânia, por motivos de mera cobiça. Queria mais terra. O assassinato foi vingado por Ibn al-Hawwas, que infligiu uma tremenda derrota sobre o Amir de Siracusa. Foi então, e simplesmente para salvar sua própria pele, que Ibn Thumna convidou os infiéis a atravessarem as águas. Foi morto na batalha com eles, por isso não ganhou nada, afinal. Estava provavelmente assando nas fogueiras do inferno a esta altura. Era bom para Idrisi pensar em algum lugar mais quente do que Siquilliya.

Olhou para o céu. Nem uma só nuvem à vista, embora os pastores tivessem previsto chuva na noite passada. Suor escorria por seu rosto e pescoço e ansiava por uma brisa marinha úmida enquanto galopavam em frente. Não descansaria até que os homens implorassem pelos cavalos. Chegando a um arvoredo, os troncos e galhos retorcidos pelo vento e feridos pelo raio e as folhas secas e murchas, ele afrouxou o passo. Ao caminhar por entre as árvores podia ouvir os homens falando do Confiável.

Quando se juntou a eles, calaram-se, mas perguntou se tinham comparecido ao mehfil na aldeia. Acenaram com a cabeça sem darem nenhuma informação.

— Todos vocês entrariam para o exército de que falou o Confiável?

Novamente concordaram com a cabeça.

— Estão preparados para morrer, mas em nome do quê?

— Para que as preces possam ser ditas de novo no nome do Califa.

— É tudo? Outra voz replicou.

— Muitos dos nossos homens trabalham como escravos para a Igreja. Quando derrotarmos os infiéis poderemos libertar todo o nosso povo.

Então o mais jovem deles, que não havia falado, disse:

— Somos pessoas pobres e o senhor é um grande erudito. Como poderemos lhe dizer algo que já não saiba? Mas pode nos ensinar muito. Acha que podemos vencer?

Idrisi pensou antes de responder. — Não sei. Existe uma tendência entre nosso povo para se gabar de nossa capacidade. Nos tornamos muito egoístas e vaidosos. Se linguagem extravagante pudesse derrotar o inimigo, jamais teríamos perdido uma única batalha. E depois tem esta ilha, que exerce um efeito mágico sobre todos que vêm para cá, independentemente da sua fé. A geografia e as condições locais nos isolam de outras terras e, sejamos nazarenos ou crentes, começamos a nos ajustar às condições aqui. A geografia desta ilha modela nosso caráter e dentro de cinqüenta anos ou mais — crente, judeu ou nazareno — não se poderá mais dizer a diferença entre nós. Nos tornamos siqilliyanos enfrentando os mesmos problemas.

Os homens não sabiam como entender isto e sorriram mas ficaram em silêncio. Prontos para seguir viagem de novo, cobriram as cabeças e montaram nos seus cavalos.

Um vento suave soprava e as nuvens já haviam escurecido o céu ao chegarem a Siracusa.

Idrisi foi saudado pelo camareiro do palácio, que lhe informou que o Amir era esperado mais tarde naquela noite. Um banho fora preparado para ele e a senhora Balkis se juntaria a ele para a refeição da noite.

— Estão a senhora Mayya e Elinore aqui?

— Voltaram para Palermo poucos dias atrás. Esperava encontrar a filha sozinha e levá-la de volta consigo. Por que Mayya voltara tão cedo? Balkis teria as respostas.

Seguiu até o hammam onde um banho quente aromático fora preparado para ele. Camomila, tomilho silvestre, manjerona e, sim, menta-de-montanha. Seria aquilo um feixe de erva-moura que via boiando na água? Era. Tirou-a do banho e entregou-a ao atendente.

— Quem escolheu as ervas?

— A Senhora Baikis. Lembrou-se de dizer a sua cunhada que a erva-moura só deveria ser usada para curar a insônia. Ao entrar no banho sentiu os poderes calmantes que as ervas extraíam do seu cansaço. Recostou-se e desfrutou de uma infusão que foi derramada sobre sua cabeça, depois do que o atendente o massageou pelo que pareceu um tempo muito longo. Insistiu num banho frio para se livrar da leve sonolência e logo emergiu completamente refrescado.

Um quarto diferente fora preparado para ele mas, como a vista do mar era ainda melhor, não se queixou. Chovia e o mar estava agitado. Podia ver os barcos ao longo do cais balançando para cima e para baixo como uma fileira de cavalos antes de uma corrida. Uma atendente bateu na porta para avisá-lo de que a refeição ia ser servida. Seguiu-a até uma série de aposentos onde encontrou Baikis à sua espera, vestida numa túnica vermelha viva, seus cachos dourados amarrados num nó. A cor não combinava com ela.

— Bem-vindo de volta, Muhammad ibn Muhammad. Só lamento que meu marido não esteja aqui para cumprimentá-lo. Como pode ver, o tempo está realmente mau e acho que ele não chegará até amanhã. O mensageiro que trouxe a notícia disse que o Amir insistia em que não partisse para Palermo sem antes encontrar-se com ele.

Idrisi curvou-se polidamente.

— Fico tocado com a sua hospitalidade. Se a tempestade prosseguir, duvido que eu possa partir pela manhã. Vou esperar pela volta do Amir. Eu, também, tenho coisas que gostaria de discutir com ele.

— Lamento saber da morte de sua filha. Era chegado a ela?

— Não, e isso me faz sentir culpado. Mas não vamos falar de coisas tristes esta noite. Eu esperava encontrar Mayya e Elinore. Por que as deixou partir?

— Foi Elinore quem insistiu. Por um tempo comeram em silêncio.

— Balkis, eu venho pensando nisso. Você e Mayya não parecem irmãs. Tiveram diferentes mães?

Balkis sorriu e disse como se fosse a coisa mais normal no mundo:

— Não. Pais diferentes.

— Desculpe. Não queria bisbilhotar.

— Deveria contar-lhe a história toda?

— Por favor.

Enquanto ele ouvia, uma servente limpou a mesa e outra colocou pequenas tigelas de infusões herbais diante deles. Tão fascinado por Balkis estava Idrisi que bebericou sem notar o shahdanaj al-barr (cânhamo selvagem) com mel. Seus efeitos não foram imediatos mas, mesmo enquanto a ouvia, sentiu uma tontura que o deixou ousado na maneira de encará-la.

Abruptamente perguntou:

— Por que decidiu usar este vestido vermelho insuportável? A cor não combina com a sua pele. Foi deliberado?

— O que gostaria que eu fizesse?

— Que o tirasse e...

A risada dela o interrompeu. Sentiu-se aliviado de que não era uma risada estúpida ou maliciosa, mas delicada e cuidadosa, sem ser preciosa. Não houve nenhum movimento da mão para esconder seus lábios, um gesto que ele não gostava nas mulheres.

Voltou à história dela.

— E Mayya sabia?

— Sabia há muito tempo, mas só me contou a verdade toda há poucas semanas. Ibn Muhammad, seria capaz de matar uma mulher que o traísse?

A resposta foi instantânea.

— Não.

— E agora é sua vez de contar uma história. Mayya contoume sobre a estranha ilha de Juliano, mas não tinha certeza se fora real ou imaginária.

Outra tigela da mistura potente foi colocada à sua frente. Aceitou-a avidamente. Depois fechou os olhos em apreciação silenciosa. Contou-lhe a história da ilha de Juliano, não poupando um único detalhe. Relatou de novo a noite de paixão e as diferentes artimanhas que a suma sacerdotisa usara para excitá-lo e reavivá-lo depois que tinham feito amor pela primeira vez. Idrisi ficou tão animado na sua história que não notou os rubores dela. Conseguira excitá-la fisicamente sem um único toque. Ela levantou-se da mesa e sugeriu que se recolhessem para a noite.

Quando voltou ao seu quarto, Idrisi abriu as venezianas para observar a tempestade. Não havia estrelas visíveis no céu escuro como breu, só o brilho dos relâmpagos e a chuva forte. Despiu-se e caiu na cama. Pouco depois uma aparição — ou pelo menos ele assim achou — pairou no quarto, vestida de branco. Não era... não poderia ser... sim, era... ele tinha certeza... devia ser a suma sacerdotisa da ilha de Juliano.

— É você? — ele sussurrou em grego.

— Sim.

Idrisi caiu de joelhos diante da guardadora da chama de Afrodite e lentamente se aproximou até que ela, como ele, estava nua.

— A tempestade lá fora me assusta. Ela foi até a janela e fechou as venezianas. Pegou-a pela mão e conduziu-a à sua cama.

— É a tempestade aqui dentro que me assusta. O que se seguiu foi uma noite de pura paixão. Balkis ouvira bem a história e imitou cada incidente que ele descrevera. Idrisi mal abriu os olhos. Sentiu-se lavado por ondas de felicidade enquanto explorava os montículos e frestas do corpo dela.

Ela queria sussurrar no seu ouvido:

— Sou Balkis, não sou a sua estúpida suma sacerdotisa. É o meu corpo que você está desfrutando. Meu. E eu quero o seu filho.

Mas a parte dela no acordo não podia ser rompida. Prometera à irmã que não revelaria sua identidade. Se Idrisi a reconhecesse, tinha outra história cuidadosamente preparada. Depois de fazerem amor pela terceira vez seu amante exausto caiu num sono profundo. Ao se virar para ficar mais confortável, roncou ruidosamente, como uma trovoada. Foi a única vez naquela noite que ela se lembrou do marido.

Deixou o quarto. Segura nos seus aposentos, Balkis podia sentir o cheiro dele no seu corpo e isso a fazia arder de prazer. Espero que não tenha funcionado esta noite, pensou. Enfim, quem poderia saber? Precisaremos fazer de novo para ter certeza. Graças a Alá que ela não se recusara a aprender grego quando criança. E se ele decidir partir antes do cair da noite? Vou impedi-lo. Vou mandar uma mensagem secreta da sacerdotisa. Farei qualquer coisa a fim de mantê-lo aqui por mais uma noite. Só mais uma noite. E se necessário o acompanharei a Palermo para ver Mayya. Ela vai me matar, eu sei, mas me recuso a deixálo partir. Ela compartilhou Rujari com sabe Alá quantas mulheres. Por que não compartilharia Muhammad apenas comigo, uma irmã que a ama? E se Mayya e eu estivermos ambas grávidas? Pensando nisso finalmente adormeceu.

E Idrisi? Talvez fossem as ervas. Talvez a paixão. Talvez ambas. Não dormia confortavelmente assim há muito tempo. Só acordou quando ouviu o muezim bem cedo na manhã seguinte.

Tremeu ligeiramente ao lembrar o sonho erótico da noite passada. Ishq khumari. Amor de Baco. Então sentiu o perfume dela e o seu corpo sobre o seu. Fora real, afinal? Farejou os braços como um cão. Então ficou de quatro e farejou os lençóis. Odores deliciosos invadiram suas narinas. Ficou deitado perplexo, mas feliz.

Não havia erro. Uma mulher estivera aqui na noite passada. Tinham feito amor. Não era nenhum sonho, mas como podia ser a suma sacerdotisa exatamente como fora estes anos todos? Seria isso possível? E então se lembrou da infusão herbal que bebera. Não era diferente daquela que ele e seus homens haviam bebido na ilha de Juliano aqueles anos todos atrás.

Quanto mais pensava, mais agitado ficava. Só uma pessoa poderia ter querido testá-lo. Mayya. Mas quem desempenhou o papel da suma sacerdotisa? No momento em que fez a pergunta soube a resposta. Balkis. O vestido vermelho vulgar fora destinado a distraí-lo do que ela usaria mais tarde naquela noite. Ibn Hazm afirmara que era permitido olhar uma vez para uma mulher, mas não a segunda vez. Ele tinha olhado para Balkis a noite inteira e ela o havia drogado também. E a razão agora se tornava óbvia. Fora ele que sugerira a Mayya que numa tempestade muitas sementes começavam a voar.

Três cursos de ação estavam abertos para ele. A tempestade havia passado e o mar parecia calmo de novo: podia partir para Palermo sem dizer uma palavra. Podia confrontá-la, exigir uma explicação, e depois partir. Ou podia passar outra noite aqui. O pensamento de vê-la de novo — mas desta vez como a si mesma — começou a excitá-lo. Seu café-da-manhã fora servido no terraço e ao sentar-se ele a viu na varanda ao lado, olhando na direção do mar.

— Alá seja louvado, o mar está calmo esta manhã, irmã Balkis. Ela ficou aturdida, mas só por um momento. Esperava há mais de uma hora que ele saísse.

— Dormiu bem, Ibn Muhammad?

— Melhor do que em muitos anos, não posso imaginar por quê.

Com a tranqüilidade abalada, afastou-se dele. Ele atravessou a mureta que os separava.

— Este é o terraço do Amir — disse, nervosa.

— Atrasou-se em Palermo e lhe pede que vá ao seu encontro o mais rápido possível.

— Neste caso eu deveria partir imediatamente.

— Não — ela respondeu, sua voz sufocada de paixão. Ele a pegou pelo braço e gentilmente a conduziu até o quarto.

Estendeu os braços e apalpou ambos os seios. Ela tremeu.

— Estranho, estes amigos parecem familiares.

— Você sabia?

— Não à noite passada, mas esta manhã, quando minha cabeça clareou.

Ela caiu nos seus braços enquanto uma paixão devoradora tomava conta dos dois. Cegos a tudo mais, fizeram amor na grande cama do Amir debaixo de um dossel bordado com fios de ouro. Depois que a tempestade passou, ele olhou atentamente para ela.

— Baileis, minha querida. Acho que as sementes florescerão agora. E por este motivo foi apropriado que tenha escolhido a cama do seu marido. Tenho sua permissão para voltar a Palermo?

— Não! — ela gritou e estapeou o seu rosto.

— Não! Não! Não! Não!

— Mas eu preciso ir. Seu marido e minha mulher me aguardam.

— Não é só o seu sêmen, é você que eu quero.

— Mas mal me conhece.

— Conheço agora.

— Primeiro, deve responder-me com sinceridade e evitar outras trapaças. E olhe firme nos meus olhos. Se o seu olhar vacilar, saberei que está tentando evitar a verdade.

— Não vou enganá-lo. Faça a sua pergunta.

— Pensei ter detectado a mão de Mayya por trás deste delicioso enredo, especialmente a cena de abertura na noite passada.

Ela sabe de tudo?

— Foi idéia minha extrair o seu sêmen. Ela não gostou, mas depois, quando insisti que era isso o que eu queria, estabeleceu uma condição. Se tinha de acontecer, ela prepararia tudo. Ela o fez, Muhammad.

— Incluindo o shahdanaj al-barr?

— Especialmente isso... o resto eu soube por você mesmo quando descreveu com detalhes tão maravilhosos os ritos da suma sacerdotisa de Afrodite. Foi como se descrevesse uma paisagem, ou as flores, ervas e árvores que crescem aqui. Agora entendo por que dizem que é um erudito de muitas facetas e se me permitir eu gostaria...

Idrisi a interrompeu:

— Não vou negar que meus olhos se encontraram observando-a mais do que é permitido. E confesso que imagens suas penetraram na minha cabeça durante a longa cavalgada até a aldeia de Abu Khalid. E, se não fosse casada com uma alma tão honrada e decente, não teria importância, mas você é e, só por esse motivo, não devemos repetir o que fizemos. Nunca mais.

— É uma alma tão decente e honrada que você me arrastou para a sua cama e me manteve ali até que a sua paixão se esgotou. Agora fala como se nada tivesse acontecido.

Se quer realmente que isso não se repita mais entre nós dois, então não se repetirá, mas não acredito em você. Já o tive em meus braços e sei que sentiu exatamente o mesmo que eu. A situação é difícil, mas soluções sempre podem ser encontradas.

— E quanto à sua irmã?

— Concordaremos em compartilhar você. Ela pode tê-lo nos dois primeiros dias e eu nos três seguintes.

— Pensei que houvesse sete dias na semana.

— Depois que eu tiver me saciado, você terá merecido dois dias de descanso.

Ele começou a rir.

— Você é impossível. Os olhos dela se encheram de desejo.

— Ora, é bastante normal, exceto que Mayya e eu somos meias-irmãs.

— Balkis, você é casada com outro homem.

— Ele se divorciará de mim se eu pedir. Podemos discutir isso na viagem para Palermo.

— Está vindo comigo? Isso é tolo.

— Por quê? Minha irmã e seu marido já estão lá. Ficarei no palácio, não com você. Não existem filhos para me prender aqui.

— Balkis, ouça cuidadosamente. Pode viajar comigo, se insiste, mas o navio é um lugar público e o decoro deve ser preservado. Se nossa fraqueza triunfar, toda Palermo saberá que o Amir é um marido traído antes que você chegue ao palácio.

— Muhammad ibn Muhammad alIdrisi, meu sultão do amor, farei o que manda. Balkis será a passageira mais modesta e recatada que sua embarcação já transportou.

— Tive um pressentimento de que terminaria assim.

— Certamente quer dizer começaria assim. Poucas horas depois estavam no mar a caminho de Palermo. A dama de véu estava sentada numa cabina tomando chá enquanto o erudito fingia fazer anotações.

— Sei que podem nos ver, mas certamente podemos conversar.

— Claro que podemos conversar.

— Então me conte sobre Abu Nuwas.

— Balkis!

— O quê? Simplesmente conte sobre ele. Se não o fizer caminharei sobre você à vista de todos os homens e beijarei seus lábios.

— Você prometeu...

— Sim, mas só se você se comportar normalmente também, concordar em falar comigo e responder a minhas perguntas. Seguramente não vamos fazer esta jornada em total silêncio. Não é freqüentemente que uma mulher humilde como eu tem a oportunidade de viajar com um grande erudito. Então talvez pudéssemos começar com a poesia de Abu Nuwas.

Involuntariamente, Idrisi sentia-se divertido e impressionado com ela.

— Abu Nuwas nasceu em Basra, uns cem anos depois da morte do nosso Profeta. Mudou-se para Kufa a fim de estudar, Basra e Kufa sendo as cidades onde os eruditos de sólida educação enriquecem o seu conhecimento. Kufa era famosa na época por seus gramáticos e Abu Nuwas chegou para aperfeiçoar o seu conhecimento da nossa língua. Depois ele se mudou para Bagdá, mas isto principalmente atrás de emprego e prazer.

— Era um poeta muito favorecido pelo Califa e tornou-se assunto dos contadores de histórias no bazar. Segundo uma história, Shahrazad se atrasa uma noite e entra no quarto de dormir do Califa e o encontra de quatro com Abud Nuwas cavalgando-o como se fosse um cavalo. Shahrazad finge horror. Abu Nuwas levanta-se e fica de pé, nu. Ela dá-lhe um tapa no rosto. Ele replica: "Somos apenas homens orgulhosos e penetrantes, princesa." Ela ameaça informar o qadi a não ser que o Califa a libere do acordo que selaram. Ele concorda, mas implora que ela não pare de contar suas histórias. A partir daquele dia ele lhe paga dez dirhams de ouro por história e as histórias ficam ainda melhores.

Um risinho abafado interrompeu o seu discurso.

— Muhammad, isso é verdade?

— É uma história que contam no bazar de Bagdá. Preenche duas funções. Informa-nos que Abu Nuwas e o Califa gostavam de homens, embora o Corão proíba tais atos sob pena de morte. Segundo, a história se destina a atrair uma parcela importante da audiência, os mercadores de rua. O fato de Shahrazad ser paga por seu trabalho diário lhes parecia natural. E o fato de que as histórias melhoram é uma sugestão de que o trabalho voluntário é melhor do que a escravidão. O Zanj teria gostado disso.

— Estou mais interessada na sua poesia.

— Eu a li, naturalmente, mas não consigo lembrar. Sou mais familiarizado com a obra de Ibn Quzman, meu amigo em alAndalus.

É um discípulo de Abu Nuwas e seus versos são cantados em muitas cidades, especialmente depois de alguns frascos de vinho.

— É verdade que Abu Nuwas escreveu sobre uma religião perfeita em que é obrigatório fazer amor cinco vezes por dia em vez de rezar?

— É verdade, mas não é prático.

— Não para você.

— Balkis!

— Desculpe.

— O que eu quis dizer foi que se torna difícil à medida que os homens ficam mais velhos.

Abu Nuwas não tinha noção deste problema, mas os idosos teriam de ser perdoados por sua incapacidade de fazer amor cinco vezes ao dia. O que eles fariam em vez disso?

— Dissimular, como muitos fazem hoje quando rezam.

— Deixe-me terminar a história de Abu Nuwas. O verdadeiro tema da sua poesia eram as alegrias do vinho. Ele era o elo entre o mundo que existia antes que nosso Profeta recebesse a mensagem e o que foi criado depois. O vinho era a substância que ligava todos os mundos. Era intemporal e universal. E muitas vezes Abu Nuwas perguntou polidamente por que, se o vinho e os garotos eram permitidos num paraíso conforme estava escrito no al-Quran, por que estes prazeres seriam proibidos na terra. Então ele divertia os outros e se divertia.

— Em outra ocasião desenvolveu uma interpretação incomum da jihad. Escreveu que a principal obrigação da jihad deveria ser permitir a ingestão de um vinho cor de âmbar que faz jorrar fogo quando incendiado e, mais importante, fazer sexo com rapazes ainda imberbes, bem como com velhos. Só havia uma recompensa para a vitória nesta jihad. O paraíso.

Balkis bateu palmas deliciada.

— Isso também explica por que as cinco fornicações obrigatórias poderiam funcionar com os velhos. Assim que os jovens forem hilal, os velhos teriam poucos problemas em cumprir suas obrigações. Podiam fazê-lo de uma maneira passiva. Eu o estou perturbando?

Antes que ele pudesse responder, o agitado comandante do barco entrou na cabina e curvou-se.

— Perdoe a intrusão, Amir al-kitab, mas uma embarcação armada nos fez sinal para parar. Seu comandante deseja falar com o senhor.

— Quem são eles?

— É um dos navios do sultão. Costumava ser o barco favorito do Amir Felipe.

Idrisi olhou para Balkis, que não conseguiu esconder sua preocupação.

— Não há necessidade de se preocupar, senhora Balkis. Conheço bem os homens naquele navio. São completamente dignos de confiança. Enquanto eu estiver afastado, pense cuidadosamente nas suas cinco obrigações e em como as preencherá em Palermo.

Idrisi seguiu o comandante até o convés. No momento em que os homens do navio armado o viram, detonaram um tiro de canhão em sua honra. Muitos anos atrás ele tinha viajado com eles até Ifriqiya. Agora esperava enquanto se realizava o elaborado ritual de transferir um personagem de distinção de um navio para outro. Um bote foi abaixado com Idrisi e dois marujos armados, que o remaram até a embarcação próxima. Uma catapulta gigante foi então abaixada com um homem casualmente agarrado a ela. Ele apanhou o erudito e então ambos foram rapidamente içados até o convés em grande velocidade.

Ahmad Ibn Rumi, o Amir al-bahr, havia substituído Felipe como comandante da frota. Era um homem altivo com um ar independente. Geralmente transmitia a impressão de ser impenetrável, de afastar bajuladores e oportunistas, mas Idrisi, que o conhecia razoavelmente bem, sabia que era uma máscara geralmente usada por amires dotados de real poder. Felipe havia sido igual. Os dois homens se abraçaram e Ahmad conduziu seu hóspede à sua cabina. A primeira coisa que Idrisi notou sobre a mesa foi um dos seus mapas. Depois de admirar o seu trabalho, virou-se para encarar Ahmad. O homem estava sentado chorando em silêncio. Num mundo onde muitos teriam visto a remoção de um Amir com olhos ávidos e cobiçosos, Ahmad Ibn Rumi estava profundamente magoado com a desgraça de Felipe. Idrisi falou suavemente:

— Ahmad, caro amigo, estou muito perturbado, mas não há nada que possamos fazer. Felipe insiste em que o deixemos morrer. Diz que não estamos prontos ainda para vencer e que deveríamos esperar pela morte do sultão Rujari.

— Que Alá queime aquela serpente Rujari no inferno por este crime.

— Os monges rezam para que Deus o eleve aos céus por defender sua fé.

— Não tem nada a ver com a fé. É um sacrifício de sangue para salvar o trono para a sua família. Toda a Siqilliya tem noção deste fato. Ibn Muhammad, eu o convidei aqui para discutir um plano.

Idrisi sabia o que esperar.

— Com quatro grandes navios já no porto de Palermo temos a capacidade de pegá-los de surpresa e resgatar o Amir Felipe.

— Discutimos todas estas possibilidades com ele na Grande Mesquita. Você o conhece melhor do que eu. Não mudará de idéia.

— Ele está errado.

— Concordo.

— É o único líder que temos capaz de unir os Crentes depois da morte de Rujari e nos levar à vitória. Concorda?

Idrisi ficou em silêncio. Sabia onde terminaria esse tipo de argumento. Também sabia que Ahmad falava a verdade. Sem Felipe, a comunidade de Crentes ficaria órfã.

Foram as habilidades militares e políticas de Felipe que haviam impedido um banho de sangue na ilha. Ele achava que, sacrificando-se, proporcionaria tempo e espaço para que o seu povo se organizasse, mas não perguntava quem os lideraria. Rebeliões sem um plano eram comuns na ilha. Todas sem exceção tinham sido derrotadas.

— Por que não responde?

— Porque, gentil amigo Ibn Rumi, responder na afirmativa seria encorajar a aventura e responder na negativa seria uma inverdade. É melhor ficar em silêncio.

— Ibn Muhammad, estive em Catânia, também. Eu também conheci o Confiável.

O coração de Idrisi afundou. O pregador teria incitado a rebelião.

— Prometeu-nos que um exército de dez mil homens armados poderia chegar a Palermo mais rapidamente se eu os transportasse em meus navios.

— Espero que não tenha concordado.

— Não. Eu disse que pensaria antes de tomar quaisquer medidas.

— Alá seja louvado, Ahmad. Alá seja louvado. Se tivesse concordado e o decepcionasse, a notícia teria se espalhado longa e amplamente. Os barões e monges teriam exigido que você fosse queimado com Felipe.

— Só pedi seu conselho. Vou decidir sozinho.

— Claro. Mas quando tomar a decisão pergunte a si mesmo sobre a decisão de resgatar Felipe e escondê-lo em Ifriqiya.

Este é o seu plano, não é? Foi o que pensei. Mas enquanto seu navio viaja para longe, quem defenderá os Crentes em Palermo?

Será difícil segurar os barões. Vão querer sangue nos rios de cada lado do qsar. Nosso sangue.

— A alternativa é deixar Felipe ser queimado? Muita da sua gente não nos amaldiçoará por não termos feito sequer uma tentativa?

— Mas se você fizer uma tentativa que fracasse morrerá também. A quem ajudará isso? Se tiver sucesso, todos nós em Palermo, incluindo sua mulher e seus filhos, podíamos ser mortos. Rujari não tem mais força para impedir um massacre. Tenho um plano melhor.

— Fale.

— No dia seguinte à queima de Felipe, o Confiável organizaria ataques contra Catânia e Noto para punir os bispos e os monges e os lombardos que os contrataram para protegê-los. Roubaram nossas terras e tratam os camponeses que antigamente trabalhavam nestas terras como escravos. Os bispos são odiados e por boa razão.

Exigem o direito de deflorar nossas mulheres em sua noite de casamento. Os lombardos açoitam os homens ao menor pretexto. Uma rebelião cuidadosamente planejada nesta região onde ainda somos fortes teria um impacto em cada canto da ilha. O Confiável poderia deixar claro que esta é a nossa resposta ao crime cometido contra Felipe al-Mahdia. O que acha?

Ibn Rumi refletiu antes de falar de novo.

— Está decidido a sacrificar a vida do único homem capaz de nos liderar até a vitória.

— É ele quem está decidido, não eu.

— O caminho que recomenda não deixa de ter mérito. Vou pensar nisto cuidadosamente. Se observar que meu navio está voltando para Siracusa, saberá que aceitei o seu plano. Caso contrário, nos encontramos em Palermo.

Os dois homens se abraçaram, mas quando Idrisi ia saindo Ahmad pegou no seu braço e murmurou ferozmente em seu ouvido:

— Felipe representa mais para mim do que meu próprio pai. Idrisi agarrou a mão de Ahmad.

— Sei como se sente e como vai ser difícil esta decisão para você. O que quer que decida, lembre-se de que estou sempre aqui como amigo e ajudarei de toda maneira que puder.

Uma hora depois os dois navios ainda não haviam levantado âncora. Idrisi caminhava ansiosamente pelo convés, esperando para ver a direção em que o Amir da frota do sultão navegaria. Balkis caminhava com ele. Ao saber o que acontecera, sua primeira reação foi perguntar onde nasceria seu filho. Ele ficou zangado com ela, depois se controlou e explicou pacientemente por que havia algumas coisas neste mundo que transcendiam o amor, a paixão e a produção de crianças. Num momento em que o destino de toda a comunidade dos Crentes dependia da decisão do Amir Ahmad, era egoísta e insensato pensar em seu próprio futuro. Ela nunca o ouvira falar tão duramente e lágrimas raivosas encheram seus olhos.

Voltou à cabina e esperou. Como ousava ele pressupor que ela não ligava para mais nada exceto sua própria vida e aquela do filho ainda não nascido? Estava decidida a puni-lo. Em princípio, não falaria com ele pelo resto da jornada. Antes que pudesse pensar em punições mais severas, os homens no convés começaram a dar vivas e, com sua dignidade evaporando, ela correu para juntarse a eles. Idrisi ria e acenava como os outros. Ahmad havia tomado a rota de Siracusa. Quando os dois navios passaram um pelo outro, altos gritos de Alá Akbar subiram aos céus. Ahmad, de pé no convés, levantou uma mão em sinal de despedida. Idrisi respondeu com o mesmo gesto. Os dois homens ficaram pensando se voltariam a se ver.

— Icem as velas — gritou o comandante.

— Com esta brisa poderemos chegar a Palermo muito em breve.

Balkis voltou à cabina tão distanciada quanto podia aparentar. Seu amante a seguiu, mas cada tentativa que fazia para falar com ela era rechaçada. Ela desviou o olhar dele. Ele sentou-se à mesa com um manuscrito que havia removido da biblioteca do palácio em Siracusa e fingiu estar profundamente interessado. Depois de um quarto de hora, decidiu romper o silêncio.

— É hora da prece da tarde, mas não estou com ânimo para ela. Se não tiver objeção, vou recitar um verso para você.

Ela não respondeu. Idrisi levantou-se da cadeira, subiu no topo da tosca mesa de madeira que os separava e sentou-se de pernas cruzadas sobre a mesa diante dela.

Ela conseguiu — com dificuldade — manter um rosto sereno. Ele adotou então uma postura típica de uma pessoa que se prepara para ler o Corão.

Dizei Ó descrentes, não adoro aquilo que Adorais e não adorais o que eu adoro; Meus modos não são aqueles modos, Aquela não é minha escola ou estilo Amor báquico, surgi e levantai-vos!

Ela não pôde mais reprimir sua risada e nesse momento ele deslizou suavemente para fora da mesa e colocou-se no banco ao lado dela. Beijou suas mãos e então se refreou.

— Onde foi que o grande erudito encontrou estes versos? Foi em Abu Nuwas?

— Não. Ibn Quzman.

— Pensei que tivesse dito que precisávamos tomar cuidado nesta viagem.

— Os homens estão todos ocupados preparando o navio para a chegada e você dispensou sua cautela quando caminhou comigo no convés e depois brigou comigo e afastou-se de mim. Tudo isso implica familiaridade.

— Sou sua cunhada.

— Ninguém sabe disso além de nós.

— Não tinha pensado nisso, devo confessar. Apertou-a contra seu corpo e beijou sua boca. A mão dela moveu-se por baixo da sua túnica.

— Levantou a sua barraca cedo hoje, mestre Idrisi. Acho que o pau precisa ser desmontado.

— Chega, chega, Balkis. Suas mãos estão pegando fogo. Quando chegarmos será levada para o palácio, onde seu marido está alojado. Irei para minha casa, tomarei banho, me vestirei e visitarei todos vocês depois. Talvez possamos todos comer juntos.

— Com Rujari.

— Se necessário.

— Existem ocasiões em que não consigo entendê-lo. Este homem está para despachar o Amir Felipe, queimá-lo vivo em praça pública.

Amir Felipe, em sua opinião o líder político mais inteligente e capacitado da ilha. Talvez não possa salvá-lo, mas sentar à mesa com o seu assassino? Isso não é levar sua noção do dever longe demais?

— Ouça-me, minha cara Balkis. Uma coisa que muitos de nós tivemos de aprender, inclusive Felipe, foi como dissimular com extrema eficácia. Se me recusar a comer com o sultão ele saberá que estou zangado e, dado o seu estado demente, poderia punir todo mundo associado comigo. Devemos nos comportar tão normalmente quanto possível nestes tempos difíceis. Espero que Rujari não me convide ao palácio. Neste caso, sugiro que façamos a refeição em minha casa.

— Seria maravilhoso.

— E Balkis, lembre o que discutimos anteriormente. Nem mesmo uma sugestão do que transpirou entre nós deve chegar ao seu marido.

— E Mayya?

— Deixe-a comigo. Então o marinheiro de atalaia acenou com excitação e o grito familiar se fez ouvir: "Al-madina hama-hallahu."

Balkis recobrou a compostura, ajeitou o lenço que lhe cobria a cabeça, colocou um véu sobre o rosto e os dois seguiram para o convés. Quando eram remados até a margem ele podia ver a figura imponente e inconfundível do Amir de Siracusa à distância. Gentilmente cutucou a esposa do Amir.

Quando chegaram ao cais, os dois homens se abraçaram.

— Alá seja louvado, vocês dois chegaram sãos e salvos, Ibn Muhammad — disse o Amir.

— A situação aqui está mais tensa do que poderia imaginar. Precisamos falar urgentemente sobre muitas coisas. A saúde do sultão continua a deteriorar e a atmosfera no palácio reflete aquela da cidade. Só os barões e os monges parecem felizes nestes tempos. Dizem que o sultão pergunta todo dia quando você vai voltar.

— Vou vê-lo hoje.

— Não há muito tempo, Ibn Muhammad. O julgamento de Felipe deve começar amanhã à tarde.

— Mais cedo do que eu pensava.

— Querem estar seguros de que Rujari ainda esteja vivo quando Felipe for queimado. Um barão do continente que está aqui como juiz confiou-me que se Rujari morrer eles temem uma rebelião.

Idrisi deixou-os e juntou-se a Ibn Fityan, que estava à sua espera. Os dois homens cavalgaram juntos para casa.

— Em resposta à pergunta que me fez antes da minha partida, posso dizer-lhe com segurança que os amires de Siracusa e Catânia estão do nosso lado.

— Amigos do palácio já me deram as boas novas. O sultão o espera para a refeição da noite.

— Eu já receava isso. Ibn Fityan contou-lhe que a cidade era como uma montanha em fogo. Podia explodir a qualquer momento e os barões tinham colocado seus próprios homens em pontos-chave da cidade enquanto durasse o julgamento.

— Lembre o que Felipe disse no nosso mehfil na mesquita antes da minha partida: qualquer levante prematuro será derrotado. Por isso, todo bairro da cidade deve ser avisado de que o julgamento de Felipe foi encenado como uma provocação para nos obrigar a sair antes de estarmos prontos e nos matarem.

— O qadi já enviou esta mensagem, mas as pessoas estão com raiva. Poderia haver confusão apesar dos melhores esforços do qadi.

— Espalhe a notícia de que o Confiável organizou um exército em Catânia que irá recuperar um número de mosteiros e infligir castigos públicos aos bispos. Diga às pessoas que devemos esperar as notícias de Catânia antes que algo precipitado seja feito aqui. Por que o Amir de Siracusa prolongou sua estada na cidade?

— O sultão pediu-lhe para assistir ao julgamento. Vai lhe pedir isso também.

— Vai receber uma resposta rude.

— Mestre, existe uma questão mais delicada.

— Fale o que pensa.

— Uma notícia chegou aos amigos no palácio sobre o senhor e a senhora Mayya.

— O que as mentes ociosas dizem nesta ocasião?

— Dizem que Elinore é sua filha e que o senhor e sua mãe se casaram em Siracusa.

— Como as notícias chegaram até aqui?

— O palácio em Siracusa está cheio de nossos amigos. Eles ouvem tudo.

— E se o que disseram for verdade?

— Se a notícia chegar ao sultão ele vai reagir mal. Vai comparar sua generosidade para com o senhor com esta traição.

— Silêncio, homem. O julgamento de Felipe começa amanhã e não tenho o tempo nem o desejo de discutir se eu consegui ou não conquistar os favores desta ou daquela senhora.

Três criados armados o acompanharam quando ele se aproximou do palácio. Não podia lembrar quantas vezes fizera esta jornada a todas as horas do dia e da noite.

Mas esta fase da sua vida estava chegando a um fim. O camareiro que o recebeu era um rosto antigo e familiar. Falou numa voz enfraquecida pela idade.

— Seja bem-vindo uma vez mais, Ibn Muhammad alIdrisi. Chega numa ocasião triste.

— A paz esteja com você, amigo — Idrisi respondeu ao seguir o velho através da costumeira série de aposentos com arquitraves de madeira e mosaicos que lembravam um passado mais remoto.

O sultão estava em sua câmara de audiência privada, um aposento que Idrisi conhecia bem. Mas teve de esperar na antecâmara até que os visitantes do sultão saíssem.

Ficou imaginando quem seriam e por que tinham sido convocados a esta hora. Rujari geralmente tocava os seus negócios na primeira metade do dia. O velho camareiro sentou-se ao seu lado e, olhando na direção da câmara do sultão, sussurrou numa voz alquebrada:

— Um mehfil de assassinos está acontecendo. Preparações de último minuto para o julgamento de amanhã. Tudo já está decidido. Ele foi considerado culpado. Amanhã eles o queimarão.

Antes que Idrisi pudesse responder, vários barões e três bispos atravessaram a porta parecendo satisfeitos consigo mesmos. O camareiro curvou-se e os escoltou para fora da antecâmara. Em contraste com ocasiões anteriores, nenhum deles se deu ao trabalho de demonstrar ter percebido a presença de Idrisi. Ele entrou a passos largos na câmara de Rujari sem esperar que o camareiro voltasse. O sultão pareceu genuinamente contente em vê-lo. Como poderia estar tão distante da realidade?

— Fico feliz em tê-lo de volta. Preciso de você ao meu lado.

— Acabei de ver os homens que estão do seu lado. Barões inchados com excesso de comida e bispos vivendo da riqueza das terras que roubaram. — Pelo seu tom, Idrisi, detecto que não estará presente ao julgamento amanhã.

— O sultão me perdoará, espero. A visão do seu filho adotivo sendo falsamente acusado, considerado culpado e levado à fogueira é algo que não desejo testemunhar.

Já é suficientemente mau conviver com minha consciência, impotente para impedir a morte de Felipe e fraca e covarde demais para fazer qualquer coisa. Parece que voltamos a um estado primitivo de conflito entre nossas duas comunidades.

— Não é fácil para mim, Muhammad. Sabe muito bem que não tenho muito tempo de vida.

— Felipe al-Mahdia era a sua melhor oportunidade de manter sua família no trono. Os barões não deixarão o clã dos Hauteville em paz por muito tempo. Quem os defenderá quando o senhor tiver partido?

— Eu fiz minha escolha, mestre Idrisi. E entendo plenamente sua repugnância diante do que fiz. É melhor ficar afastado do palácio por algumas semanas até que esta tempestade se extinga. E tem a minha permissão para levar Mayya e Elinore consigo. Ela herdou sua inteligência. Deveria orgulharse dela.

Idrisi, apanhado de surpresa, perguntou em voz baixa:

— Sabia?

— Desde o início.

— Então por quê...

— Porque ter admitido que eu sabia o que havia acontecido poderia estabelecer um precedente perigoso. Foi Felipe quem aconselhou sigilo total. Seus próprios sultãos teriam convocado o carrasco e feito o seu pescoço experimentar a cimitarra. Por essa razão Felipe não queria que você soubesse. Mas em meu coração fiquei feliz por você.

— Como sempre, Felipe ofereceu-lhe conselhos sábios. Agradeço ao senhor por sua amizade e generosidade. Sempre significou muito para mim.

— Gostaria de não ter de fazer o que vou fazer agora. Espero que acredite em mim.

Idrisi não respondeu, mas curvou-se e deixou o aposento. O camareiro estava à sua espera.

— O sultão sugeriu que eu levasse a senhora Mayya e Elinore para casa comigo.

— Já era tempo — disse o camareiro numa voz suave.

— Siga-me, mestre Idrisi.

Caminharam até o harém, guardado por dois eunucos que se levantaram ao verem os homens se aproximar.

— Este é o harém do sultão Rujari — disse o mais baixo dos dois.

— O que vêm fazer aqui?

O camareiro cochichou qualquer coisa no ouvido do homem. A porta foi aberta e o eunuco-chefe alertou as mulheres.

— Sob as ordens de nosso exaltado sultão Rujari, um convidado masculino está entrando para visitar a senhora Mayya.

Uma seqüência de portas foi fechada e de janelas com delicadas treliças olhos curiosos observaram a sua entrada. Idrisi seguiu os dois eunucos até o alojamento das mulheres e até os quartos de Mayya. Respondendo à batida na sua porta, ela ficou chocada ao vê-lo.

— Por que está aqui? Isso não foi combinado.

— Tenho a permissão do sultão para levar você e Elinore para casa agora.

Mayya ficou atônita. Afastando-se para o lado, convidou-o a entrar em seu quarto. Ele viera aqui pela última vez há 18 anos e o resultado fora Elinore. Como fora diferente naquela ocasião! Entrara disfarçado como mulher e uma pequena bolsa de moedas de prata foi o preço pedido pelo eunuco de guarda, que depois desapareceu.

Teria Felipe ordenado a sua execução?

Abraçaram-se enquanto ela chorava.

— Nunca pensei que aconteceria tão cedo. Precisamos partir agora?

— Foram as instruções do sultão. — Mas minhas... nossas roupas... nossas... Elinore.

— Tudo isso pode ser mandado para minha casa amanhã. O sultão me pediu para ficar afastado do palácio por algum tempo.

— Não posso acreditar que estou livre, Muhammad.

— Não vamos perder mais tempo. Onde está Elinore?

— Está com Balkis e o Amir nos aposentos dos convidados. Acho que eu deveria dar a notícia para ela a sós. Deixe-me ir buscá-la. Deveríamos encontrá-lo nos portões do palácio ou gostaria de algum tempo para explorar o harém? E teremos de separar algumas roupas para amanhã.

— Esperarei por vocês nos aposentos do camareiro perto dos portões. Tente evitar muita excitação e convide sua irmã e seu marido para almoçarem conosco amanhã.

— Muhammad, amanhã é o julgamento de Felipe. O Amir de Siracusa foi convidado para assistir e existem notáveis de Qurlun e de outras cidades aqui também. E você?

— Eu disse ao sultão que não estarei presente. Neste caso, Balkis poderia vir com você agora. Por que ela estaria presente aqui amanhã? E peça ao Amir para juntarse a nós depois do julgamento. Duvido que demore muito.

— Pedirei a Balkis que venha conosco. O palácio inteiro está em tumulto. Não tinha idéia de que Felipe contava com tantos seguidores. Os eunucos mal podem falar.

A maioria dos velhos empregados caminha pelos cantos com olhos tristes. Quanto àqueles que trabalham no Diwan, acham que isto é o fim.

Ela deu uma olhada em seus aposentos pela última vez, achando difícil acreditar que nunca mais iria morar ali.


10

Uma conversa de 26 anos sobre teologia em que Rujari
e Idrisi comparam os méritos e deméritos de suas respectivas religiões.

O encontro com Rujari irritou Idrisi. O sultão parecia distante e despreocupado. Idrisi queria que ele estivesse morto. Como podia Rujari ter esquecido o passado tão cedo e aceitado as exigências de barões corruptos, bispos hipócritas e servis, cortesãos levianos? Mas controlou seus pensamentos. Não queria sentir apenas ódio e ressentimento por seu velho amigo. Lembrou uma de suas muitas conversações.

Aconteceu quando ainda eram jovens. Era um dia sufocante do meio do verão. Não havia brisas na terra nem ondas no mar, cuja superfície lisa brilhava como vidro.

Rujari mandou uma mensagem ao seu amigo na biblioteca sugerindo que embarcassem no seu navio e fossem se refrescar no mar. Idrisi lembrou como ficaram chocados os marinheiros gregos quando, em sua primeira viagem, ele confessou que não sabia nadar. Um ilhéu que não sabia nadar! Com grande paciência ensinaram-no a usar as mãos e as pernas e respirar na água, como flutuar, e gradualmente ele adquiriu as habilidades.

Encontraram uma bela enseada não longe de Palermo. Depois de nadarem, tinham falado principalmente de geografia e astronomia e Idrisi havia elogiado a exatidão dos mapas de Ptolomeu, comentando que o alexandrino devia ter um olho privilegiado e talentos que até agora lhe escapavam. O tempo passou rapidamente. A caminho de casa, sentaram-se no convés e saborearam o que restava do dia, apreciando a brisa do mar que aumentava à medida que o sol começava a desaparecer. Cada um deles venceu uma partida de xadrez antes que Rujari pedisse a um atendente para levar as peças e trazer um frasco de vinho. Virando-se para Idrisi, ele perguntou se as diferenças entre seus dois povos eram pedras que não podiam ser removidas ou se suas fés não se tornariam entrelaçadas nos anos por vir. Idrisi hesitou antes de responder.

— Não existe pedra que não possa ser removida. Quando os deuses ficam zangados, como os antigos costumavam dizer, eles sacodem a terra e cidades inteiras são destruídas.

Seria preciso algo nesta escala para unir os exércitos do Profeta e do papa.

Rujari riu.

— Eu não pensava no mundo. Pensava na Siqilliya. Queria dizer que meu povo aprendeu tanto com o seu que me parece natural para nós trabalharmos juntos e compartilharmos a mesma fé.

De novo Idrisi hesitou.

— Sultão, esta ilha mudou muito desde que os soldados do Profeta colocaram o pé aqui. Meu povo tem uma tendência natural para exagerar e se gabar, mesmo quando somos derrotados. Quando vencemos, nosso orgulho sobe aos céus. Os gregos chegaram aqui primeiro, depois os romanos. Os gregos construíram seus templos, cuidaram das vinhas e das oliveiras e filósofos de diferentes escolas debateram em público no Fórum de Siracusa. Os romanos cultivaram a terra com o trigo, necessário para alimentar as legiões imperiais.

Meu povo trouxe frutas de todo tipo, algodão e seda, e os papiros, e fez de Palermo uma cidade insuperável. Vocês herdaram tudo isso, mas também contribuíram para a riqueza da ilha. Sua presença é prova de que é possível comprar gladiadores e usá-los contra o inimigo. Seu povo é de guerreiros e marinheiros.

— Fale de hoje, Idrisi, hoje.

— Mas, honrado sultão, com sua permissão eu gostaria de terminar. Temos muito em comum. Sua gente dominou o mar, minha gente o deserto.

Vocês tornaram-se grandes construtores de barcos, nós aprendemos a cavalgar o camelo e o cavalo. Vocês abriram caminho a fogo nas terras dos francos e eles os compraram com terra e seu próprio espaço. Derrotamos dois impérios e criamos nosso próprio. Nosso navio era o camelo, mas muito mais confiável do que o de vocês.

Era capaz de viajar sessenta milhas romanas por dia e passar vinte dias sem água. Algumas tâmaras e leite de camelo eram uma dieta nutritiva. O povo em Makkah ainda gosta de cozinhar na gordura tirada da corcova do camelo. Que navio poderia render tanto quanto este? Em ambos os casos foi a natureza que determinou o que fazíamos e como nos locomovíamos. No fim nossas necessidades eram maiores e fomos mais bem-sucedidos.

Rujari ficou levemente irritado.

— Nossas mulheres eram mais dóceis, aceitando seu lugar em nossas vidas com dignidade e calma. As suas eram bárbaras. Suas mulheres sarracenas — e muitos romanos cujos textos estão na biblioteca do palácio testemunham isto — eram muito atiradas, muito apaixonadas, muito exigentes. Freqüentemente descartavam os maridos.

— Sultão, fala do povo do deserto durante a época da Ignorância, antes que nosso Profeta ouvisse a voz de Alá. As mulheres foram colocadas sob controle por nossa fé.

— Talvez em público, mestre Idrisi, mas nos limites do palácio ou de casa nada mudou muito. Ora, seu próprio Profeta precisou de uma Revelação para silenciar os mercadores de escândalos que alegavam que sua jovem esposa, Aisha, havia cometido adultério.

Ambos ficaram em silêncio. Foi Idrisi quem falou primeiro.

— Perguntou se nesta ilha poderíamos um dia partilhar de uma fé comum. Como podemos jamais acreditar que Mariam foi engravidada por Alá para produzir Isa? Sua fé era muito apegada aos tempos pagãos e vocês tinham de fazer concessões. Precisavam de uma deusa virgem que dormisse com o seu Deus. Não era ele Zeus sob outra forma? E achamos difícil acreditar que Isa ressuscitou.

— Por quê? Seu livro fala do Dia do Juízo Final em que cada homem ficará diante do seu criador. Alguns irão para o céu e outros irão para o inferno. Se podem ser ressuscitados segundo a vontade de Alá, por que não poderia Deus chamar Jesus de volta? Como sabe, Idrisi, estas são questões não resolvidas em nossa igreja. Existem muitos cristãos que não aceitam a divindade de Jesus. Existe algum em sua fé que questione a Revelação?

— Muitos, com certeza, e desde os primeiros tempos. A própria mulher do Profeta, Aisha, segundo as tradições, comentou muitas vezes sobre a facilidade com que seu marido obtinha sanção de Alá para satisfazer seus desejos pessoais. E o sucessor do Profeta, o Califa Omar, teria dito que muitas vezes se surpreendia quando o conselho que dera ao Profeta em particular acabava se tornando uma Revelação posterior. E todo um grupo de teólogos de Bagdá argumentou que o Corão era um documento feito pelo homem, questionando assim a sua divindade...

— É o suficiente para um começo de noite, mestre Idrisi. Realmente admito que sua religião permite muito mais prazeres neste mundo e no próximo do que a minha.

Somente por este motivo, deixando de lado o conhecimento propagado por seus sábios eruditos, se dependesse só de mim e se não houvesse nada mais envolvido, eu me converteria à sua fé agora mesmo.

— Talvez, se os navios que levaram os ancestrais de Sua Majestade à terra dos gauleses e dos francos tivessem sido desviados por súbitas borrascas e tivessem chegado aos portos de alAndalus, tudo poderia ser diferente.

— Por que isso não me ocorreu?

— Porque a geografia e a história estão sempre presentes em meus pensamentos.

— Uma coisa eu lhe prometo, mestre Idrisi. Enquanto eu viver a Igreja não terá permissão de matar ou queimar uma única pessoa simplesmente porque ela acredita no seu Profeta e não no meu.

E foi assim que a conversa terminou, ou pelo menos assim Idrisi lembrava. Mas depois, naquela noite, Felipe al-Mahdia o visitou em seus aposentos.

— Soube a respeito da conversa que teve com o sultão hoje. Idrisi ficou espantado. Como ele sabia?

— É legítimo que questione, mas não seria oportuno eu responder.

Tudo o que vou dizer é que cometeu um grande erro.

— Em nome de Má, que erro? Por que fala assim? Havia um toque de raiva na voz de Felipe.

— Quando o sultão declarou que se dependesse dele se converteria à nossa fé, por que não sugeriu que o fizesse, mas não o tornasse público? Para a Igreja e os barões ele seria um

cristão, mas em particular entoaria as cinco preces obrigatórias. Por que não sugeriu isso, mestre Idrisi? Percebe que uma oportunidade foi perdida por causa da sua distração? Está tão preocupado com seu próprio trabalho que perdeu a noção do mundo que o cerca.

Idrisi ficou tão atônito com esta explosão que por alguns momentos olhou para Felipe em silêncio.

— Não pedi o que sugere pela simples razão de que o pensamento não passou por minha cabeça. Rujari é um amigo, mas é também o sultão. Não cabia a mim sugerir nada a ele.

— Um dia — disse Felipe calmamente -, nosso povo poderia sofrer por causa do seu erro.

— Por que está tão preocupado? Não chega sequer a ser um Crente.

Felipe sorriu e deixou a sala.


11

O julgamento de Felipe.
O Amir de Catânia peida alto durante o discurso do promotor.

A grande sala onde o sultão recebia seus súditos uma vez por mês fora transformada.

O trono permanecia sobre a plataforma de madeira elevada, mas o espaço vazio à frente estava tomado por cadeiras e bancos dispostos em semicírculo.

No centro uma plataforma fora preparada para os prisioneiros: além de Felipe, alguns daqueles que haviam trabalhado com ele também foram presos e acusados para criar a impressão de uma conspiração.

Os barões entraram primeiro, vestidos em seus paramentos, as espadas pendendo da cintura, e tomaram os assentos em ambos os lados do trono. Foram seguidos por outras seções da nobreza e então os juízes entraram, flanqueados pelos bispos com vários monges acompanhando. O juiz de acusação estava sentado pouco abaixo do trono do sultão. Depois que todos se sentaram, os amires de Catânia e Siracusa, com um punhado de notáveis de Qurlun, Djirdjent, Shakka e Marsa Ali, bem como o qadi de Palermo, tiveram permissão de entrar e sentaram-se nos bancos dos fundos onde não seria fácil para o sultão vê-los.

A sala ficou em silêncio quando o camareiro entrou e anunciou o sultão. Para a ocasião Rujari havia descartado seus mantos árabes e, como os barões, se vestia como um cavaleiro cristão, a coroa firmemente pousada na sua cabeça. Todos os presentes se levantaram para saudar o rei em três línguas diferentes. Rujari acenou com a cabeça e o julgamento começou. Os prisioneiros, acorrentados uns aos outros com Felipe à frente, foram trazidos à sala.

Ele caminhava com a cabeça bem erguida, preparado para enfrentar os olhos do sultão ou de seus barões. Foram eles que evitaram o seu olhar. Dez eunucos tidos como associados a ele foram acusados exatamente dos mesmos crimes. Eles também se comportavam com dignidade.

O juiz da promotoria, que já havia trabalhado para Felipe, levantou-se e enumerou as acusações.

— Felipe al-Mahdia, você e aquelas criaturas ao seu lado são acusados de terem traído a confiança que depositou em vocês o Rei Rogério. São acusados de terem ajudado nossos inimigos em Mahdia, Bone e Ifriqiya. São acusados de ter ocultado sua verdadeira fé do rei e de sua corte. Sob a capa de um cristão, comportaram-se como filhos de Satã. Em pensamento e ação seguiu as doutrinas de Maomé e instruiu o tesouro do Estado a doar quantidades ilimitadas de dinheiro para manter as mesquitas em boa condição. Enviou emissários especiais com oferendas à tumba de Maomé. Quando se sugeriu que este dinheiro fosse anotado nos registros, você descartou a sugestão com um aceno arrogante da sua mão.

— Freqüentemente compareceu às sinagogas dos Malignos e proporcionou-lhes óleo para alimentar seus lampiões. Ofereceu-lhes toda a assistência de que necessitavam para praticar sua fé abominável. Ao mesmo tempo raramente pisou sequer por acaso nas igrejas de Deus. Ostensivamente comeu carne nas sextas-feiras e durante a Quaresma.

— O rei foi alertado para a sua infidelidade quando lhe relataram como permitiu a eruditos e religiosos muçulmanos fugirem das suas aldeias depois que conquistou Mahdia e Bone. Informaram que você puniu alguns de seus próprios soldados quando os viu agarrando algumas de suas prisioneiras para seu prazer pessoal.

— E, por último, Felipe al-Mahdia, apresentaremos testemunhas que jurarão sobre o Corão que você foi secretamente um muçulmano a vida inteira. Sua conversão foi falsa. Que confiança pode o rei depositar em você depois de todos estes acontecimentos? Você foi criado neste palácio e o rei o amava como a um filho. Elevou-se ao mais alto posto na terra depois do rei. E trouxe desgraça sobre ele. O que tem a dizer sobre tudo isto?

Enquanto a acusação era lida, os Amires e outros Crentes se mostravam inquietos. Seu descontentamento se refletia num excessivo arrastar de pés, em pigarros regulares, suspiros ocasionais e dois peidos altos, tudo isso combinando para produzir uma atmosfera distintamente desagradável. Quando Felipe se preparou para dirigir-se ao tribunal houve silêncio total. Enquanto o promotor falara à corte em latim bombástico, Felipe falou em árabe fluente.

— Não traí a confiança do sultão. Este sultão tem sido, até agora, bondoso para mim e, independentemente do que aconteça hoje, desejo declarar que o sultão Rujari Ibn Rujari tem sido um governante justo. Tratou bem todo o povo desta ilha, não importa qual fosse a sua fé. Nunca insistiu, até agora, para que os prisioneiros fossem brutalizados e suas mulheres violentadas. Por isso eu rejeito a acusação principal que fizeram contra mim, no sentido de que traí a confiança de nosso governante.

— Nada que fiz foi em segredo. Sim, forneci óleo para as sinagogas. O sultão sabia disso e aprovou. Sim, não permiti o declínio das oitenta mesquitas remanescentes em Palermo. O sultão acompanhou-me uma vez para ver por si mesmo as melhorias na mesquita Ayn al-Shifa desta cidade.

Quando dizem que eu mal ia à igreja falam uma inverdade deliberada e que Deus os perdoe. O sultão sabe quantas vezes eu compareci à sua própria capela. Sabe quantas vezes fui à igreja que construiu em Cefalu a cada estágio de sua construção.

— Vamos examinar a acusação seguinte. Fui brando demais para com os prisioneiros em Ifriqiya. Confesso-me culpado. Tratei-os como trataria qualquer ser humano.

A luta estava encerrada. Tínhamos conquistado uma importante vitória. A dinastia Zirid se desfez como pó diante de meus olhos. Tivesse sido clemente no curso da batalha vocês teriam razão para me trazer a julgamento. Mas, em nome do sultão, conquistei Mahdia, a cidade da minha juventude. Não escondo de vocês o meu sofrimento interior. Que eu fosse o instrumento para a tomada desta cidade não me dava nenhum prazer, mas minha lealdade a Siqilliya nunca esteve em dúvida. Os beduínos aos quais paguei para combaterem do nosso lado queriam saquear a cidade indiscriminadamente e tirar proveito de qualquer mulher, jovem ou velha, que não estivesse já escondida. A guerra desperta a cobiça do saque e da carne humana. Dei firmes instruções para que isto não acontecesse. Quando as ordens foram desobedecidas, mandei açoitar em público três beduínos e seis dos nossos soldados acusados de estupro. Sim, eu os vi sangrarem. Arrependo-me disso? Não. E o faria de novo. Acho que em tempos melhores o sultão teria defendido todas estas ações.

— Nada mais tenho a dizer. Sei que as chamas que me consumirão já foram acesas e estou preparado para me encontrar com o meu Criador. Nada fiz de que me envergonhasse.

Meu único arrependimento é que não tive a oportunidade de viver entre nosso povo porque sempre que me perguntava como a terra proporcionava o alimento que comemos a fim de sobreviver a resposta nunca estava em dúvida. Eram os lavradores comuns da terra que produziam o alimento e, do conforto deste palácio, eu às vezes lhes invejava a proximidade com a terra. Lembro-me de ter mencionado isso a muitas pessoas.

— Ao sultão direi isto: se o ofendi de alguma maneira imploro sua misericórdia e peço desculpas. Sempre fui leal ao senhor e à sua família. Aqueles que envenenaram seus ouvidos em relação a mim são as mesmas pessoas que tentarão e se livrarão dos seus filhos e do sistema de administração que seu pai e o senhor ajudaram a criar. Pense nisso quando estiver me vendo ser consumido pelas chamas.

Os barões levantaram-se para protestar e gritos de "Cortem a sua língua" foram ouvidos da boca de mais de um monge. O promotor ficou num estado de raiva incontido.

— Temos uma testemunha que afirmará que este homem ocultou sua verdadeira fé debaixo de uma máscara cristã. Tragam-no.

Os guardas fizeram entrar um venerável mercador, Ali ibn Uthman al-Tamimi. Era um dos mais respeitados negociantes da cidade e havia comparecido ao mehfil na mesquita Ayn al-Shifa em que Felipe estivera pouco antes de ser preso. As marcas no seu rosto sugeriam que lhe fora infligida violência.

Pediram ao mercador que jurasse sobre o Corão que falaria a verdade. Falou numa voz muito baixa, alquebrada, não ousando encarar Felipe. Mas não mencionou o encontro.

Testemunhou que numa única vez tinha orado com Felipe na mesquita. A prova era suficiente para condená-lo. Ao sair, ergueu o rosto para Felipe com olhos lacrimosos e, numa voz que foi ouvida em toda a sala, disse:

— Perdoe-me. Ameaçaram estuprar minha filha de dez anos. Nesta altura Felipe, enfurecido pela visão de um velho amigo que fora humilhado e torturado, pediu para falar. O sultão acenou com a cabeça.

— Queimem-me, se quiserem, mas não inflijam sofrimento em pessoas inocentes. Sim, é verdade que fui um Crente oculto, mas meu pecado não estava na minha crença e sim na minha covardia. Eu deveria ter contado ao sultão e, por isto, peço o seu perdão e imploro sua misericórdia. Eu era muito jovem quando entrei para a corte e vocês foram tão bondosos comigo que eu queria agradá-los de toda maneira. Mas quando acompanhei o Amir Jorge a Mahdia, memórias da minha infância se apossaram de mim e foi nessa ocasião que, em meu coração, me tornei um muçulmano de novo. Não lamento minha escolha. Sei que vão me queimar hoje porque este é um costume da sua fé. Mas, antes de ser sentenciado, gostaria de dirigir-me pessoalmente ao sultão.

Rujari fitou-o e pela primeira vez seus olhos se encontraram. Rujari acenou com a cabeça e desviou o olhar rapidamente.

— Agradeço ao senhor, gracioso sultão. O senhor, mais do que qualquer outro presente aqui — e não vejo nosso amigo mestre Idrisi nesta reunião, pelo que agradeço a ele -, entenderá plenamente que a razão por que o senhor e seu nobre pai foram capazes de resistir aos comandos dos papas em Roma foi porque, mesmo depois da conquista da Siqilliya e da entrega das terras mais férteis aos barões e aos bárbaros lombardos do Norte, mesmo depois de tudo isso, meu povo ainda é maioria nesta ilha. É por isso que seus barões falam e entendem minha língua. E é por isso que o senhor e seu pai puderam resistir às exigências papais de mandar soldados para lutar nas Cruzadas. Fomos sua força, demos-lhe a coragem de ser independente, nosso conhecimento, nossa língua, nossa cultura lhe permitiram gabar-se de ser superior de todos os modos em relação aos seus pobres primos na Inglaterra, o que era a verdade pura.

— Viver debaixo de ocupação nunca é fácil, mas sua família tornou isso menos doloroso porque precisava de nós por suas próprias razões. E nós precisávamos de vocês para sobreviver. Se nos destruírem — e perdoe-me a ousadia... mas todos sabemos que a decisão de me queimar é uma vitória para aqueles que gostariam de queimar todo Crente nesta ilha, se nos destruírem, destruirão a si mesmos. Um, talvez dois Hautevilles poderiam governar como reis. E então seus correligionários vão atacar ao sul e arrebatar aquilo que acreditam lhes pertença por direito papal. E a essa altura não haverá mais força alguma para defender a sua família. Quanto a estes infelizes eunucos que aprisionaram comigo, são completamente inocentes. Seu único crime foi trabalharem comigo, mas o sultão fez o mesmo por muitos anos.

Puni-los é vil e indigno e eu imploraria misericórdia para eles. Poupem suas vidas. Têm a minha. Seus monges e Bispos me consignarão ao Inferno. Mas só Alá decidirá.

Ao dar uns passos para trás e curvar-se meio ironicamente para o sultão, o Amir de Catânia não pôde se conter. Levantou-se do seu banco.

— Alá o mandará para o céu, Felipe al-Mahdia. Alá akbar. Irritado por esse gesto de insubordinação, Rujari levantou-se do trono e, ainda se recusando a olhar para o velho amigo nos olhos, dirigiu-se ao tribunal.

— Aos mais distintos senhores que participam hoje deste julgamento, minhas palavras são para vocês. Minha alma é ferida pela maior dor, e inflamada de paixão por severos tormentos, pois este meu ministro, que criei desde menino para que, tendo sido purgado de seus pecados, o sarraceno pudesse se tornar cristão, ainda é um sarraceno e, sob o nome da sua fé, perpetrou atos de infidelidade. Tivesse ofendido sua majestade sob outras formas, tivesse levado grande parte do nosso tesouro, nós o teríamos perdoado porque prestou grandes serviços para nós. Mas ele ofendeu a Deus e forneceu a outros a oportunidade e o precedente do pecado, e eu não deveria perdoar uma injúria à nossa fé e um crime contra a religião cristã por meu próprio filho, nem perdoar ninguém mais. Neste ato, deixem que o mundo inteiro saiba que eu amo a fé cristã com absoluta constância e não me refreio de vingar uma ofensa contra ela, mesmo por um de meus próprios ministros.

Por esta razão as leis são estabelecidas e por esta razão nossas leis são armadas com a espada da reciprocidade; elas ferem o inimigo da fé com a espada da justiça e assim colocam um terrível castigo para os infiéis. Mais distintos senhores, que estão aqui para julgar este crime, exerçam o seu dever.

Os barões bateram com as espadas no chão para demonstrar aprovação ao seu rei. Rujari, exausto, desabou sobre o trono. Os barões, magistrados e juízes não demoraram a tomar suas deliberações.

— Decretamos que Felipe, traidor da cristandade e um agente das maquinações de infidelidade sob o disfarce da fé, será consumido pelas chamas vingadoras a fim de que aquele que não quis sentir o calor do amor sinta o fogo que queima e para que nenhum traço reste deste pior dos homens mas, tendo sido transformado em cinzas pelo fogo terreno, possa seguir para o tormento perpétuo nas chamas eternas. Seus companheiros de conspiração na maldade são sentenciados também à morte, mas por métodos normais.

Os Amires e os notáveis muçulmanos não ficaram para ver os cristãos saborearem o seu triunfo. Assim que o sultão se arrastou para fora da sala, deixaram a corte e o palácio. Um forte uivo de lamento pôde ser ouvido numa seção do palácio enquanto se dirigiam para as ruas. Para seu espanto, as ruas estavam vazias. O povo de Palermo, até mesmo os nazarenos, não tinham nenhum desejo de testemunhar o desgraçado Felipe arrastado através das ruas em ignomínia. Antes de partirem, o Amir de Catânia os chamou de lado e disse:

— Eles declararam guerra a nós. Eu, de minha parte, não me tornarei passivamente uma galinha de cabeça cortada. Lutaremos em Catânia. Não nos entregaremos nem nos tornaremos seus escravos ou seremos mortos sem resistência. Todos vocês farão suas próprias escolhas, mas espero que tenham ouvido cuidadosamente as palavras de Rujari. É o fim da Siqilliya como a conhecíamos. Meus amigos de Qurlun, sua escolha é muito clara. Ou combatem conosco ou se convertem agora à fé deles e transformam suas mesquitas em igrejas. Não esperem até que eles o façam. Desse modo, poderiam salvar suas vidas, quando não sua propriedade. Não sei se voltaremos a nos encontrar.

A paz esteja com todos e que Alá os proteja.

Um nobre de Qurlun retardou sua saída.

— Antes de partir, dê-me o seu conselho. Existe alguma maneira de salvarmos nossas propriedades assim como nossas vidas?

— Talvez oferecendo aos barões metade do que possuem amanhã e suas filhas no dia seguinte. Mas não demorem muito. E mais uma palavra de conselho a vocês. Vocês qurlunis são tão fechados que se acham mais espertos do que todo mundo e julgam que seus segredos permanecem seguros dentro de sua comunidade. Viram o que aconteceu com Felipe. Se decidirem converter-se, façam-no adequadamente e não se encontrem em segredo para jejuar ou circuncidar seus filhos. Aprendam a adorar o homem que sangra na cruz de madeira e a mãe que permaneceu virgem após o seu nascimento.

Os Amires de Catânia e Siracusa saíram juntos, ambos ultrajados com o discurso de Rujari e o veredicto.

— Espero que Rujari morra logo, livrando-nos de nossos votos de lealdade. Nossa presença aqui está agora sob séria ameaça. Nossa cultura vacila e se não agirmos ela vai desaparecer.

Era a primeira vez que o siracusano falava naquele dia.

— Acho que o discurso dele já nos liberou. O mensageiro de Idrisi contoume que o Confiável instruirá seus seguidores para capturarem três mosteiros no minuto em que souberem do veredicto sobre Felipe. Acho que os faróis estarão ocupados hoje. Meu navio já está pronto para zarpar. Vai me acompanhar ou trouxe seu próprio navio?

— Trouxe e vou zarpar mais tarde ainda hoje. Os dois homens abraçaram-se e seguiram seus diferentes caminhos.

Dentro dos muros do palácio, Felipe foi entregue aos magistrados, que removeram suas correntes e o amarraram aos cascos de cavalos selvagens. Os cavalos tiveram de ser contidos quando chegaram aos portões. Cada janela do palácio estava cheia de gente. Todos observavam horrorizados e contou-se depois que o jovem Guilherme, o único filho legítimo remanescente de Rujari, tinha lágrimas nos olhos. Ele fora excepcionalmente ligado ao condenado. Felipe lhe havia ensinado astronomia. Os barões, monges e sua criadagem iam atrás dos cavalos para acompanhar a vítima até a sua morte. Do lado de fora apenas alguns monges e nazarenos observavam, mas menos de uma centena ao todo, e isto numa cidade de trezentas mil pessoas. Houve notícias de que as mesquitas e sinagogas estavam lotadas naquele dia enquanto preces especiais eram feitas em honra de Felipe. O qadi foi visto apressando-se na direção da mesquita Ayn al-Shifa para tentar conter as cabeças mais quentes.

Os portões do palácio se abriram. A grotesca procissão seguiu em frente. Os membros de Felipe sangravam, mas ele mantinha o rosto erguido mesmo ao ser violentamente arrastado e alguns daqueles que tinham vindo ver o espetáculo se afastaram. Um forno de cal perto do palácio fora preparado e uma fogueira jorrava suas chamas antes mesmo que o julgamento tivesse começado. Os magistrados desataram o homem que estava coberto de sangue. Ergueram-no sobre seus ombros e o jogaram nas chamas.

Então todos voltaram ao palácio onde um grande banquete fora preparado em honra daqueles que haviam passado um julgamento sobre um inimigo de sua fé. Rujari alegou estar doente e não esteve presente às comemorações. Nem seu filho Guilherme.

Depois de uma conferência privada com seu amigo de Catânia, o Amir de Siracusa instruiu seus homens para aprontarem o navio para zarpar a qualquer momento. Caminhando lentamente em direção à casa onde sua mulher estava hospedada, sentiu uma mão sobre seu ombro. Um tremor de medo percorreu seu corpo, mas era apenas um Idrisi de rosto sombrio com seus criados.

— Ibn Muhammad, que alívio que é você — disse, enxugando o suor do seu rosto.

— Foi uma catástrofe. O julgamento foi como você descreveu, ainda pior.

— Acabei de voltar da mesquita. Foi uma despedida dignificada, mas nossos jovens estão zangados e receio que haverá alguma violência na cidade esta noite. Caminhava para minha casa? Muito bem. Chegaremos juntos.

— Ibn Muhammad, poderia pedir aos seus homens que nos deixassem conversar a sós? Idrisi fez um sinal a Ibn Fityan que disse a seus homens para ficarem para trás.

O Amir confiou-lhe que agora planejariam uma rebelião em larga escala em suas regiões e expulsariam os francos.

— Ainda precisaremos de alguns anos, mas as preparações devem começar agora. Sei que às vezes dou às pessoas a impressão de não ser tão firme como o Confiável.

Mas quaisquer dúvidas que eu tivesse, elas desapareceram hoje. Eles declararam guerra contra nós. É por isso que tenho um favor a lhe pedir...


12

O amor de Idrisi por Balkis e suas conseqüências.

Idrisi não precisou esperar muito pelas três mulheres do lado de fora do quarto do camareiro na frente do palácio. Foram aliviadas de suas roupas apressadamente emaladas pelos criados de Idrisi e ele caminhou de volta para casa com elas. O céu estava tão estrelado e ativo e Idrisi tão exultante que ele quase se esqueceu do peso dos acontecimentos que estavam por vir.

— Pensei que noites como esta só acontecessem quando se é jovem — disse.

— Sou jovem — replicou Elinore.

— E nunca me esquecerei desta noite.

— Não tenho a sua idade, mas eu também me lembrarei desta noite — disse Balkis.

— Sou mais velho do que ambas, mas por que o prazer deveria ser exclusivo dos jovens?

— A que distância fica sua casa, Abi? Idrisi sorriu antes de responder.

— Nenhuma de vocês conhece a solidão que me afligiu durante tantos anos. Quando Walid saiu de casa sem nos contar pensei que todo mundo estava me abandonando e fiquei desesperançado. Esta noite sinto que isso passou. E estamos quase em casa. Vê aquelas janelas iluminadas na colina? Mais alguns minutos e estaremos lá.

Um mensageiro do palácio já havia trazido a Ibn Fityan notícias da decisão do sultão de liberar Mayya e por isso ele esperava com o resto da casa para dar as boas-vindas à nova senhora e à filha do senhor. Balkis também foi recebida calorosamente. As tochas erguidas bem alto encantaram as mulheres enquanto subiam os degraus.

— Os quartos foram preparados?

— Sim, Ibn Muhammad — respondeu o camareiro -, mas não esperávamos uma terceira hóspede. Não vai demorar muito para preparar um quarto de hóspede.

— Esta é a senhora Balkis, irmã da minha mulher, cujo marido, o Amir de Siracusa, provavelmente se juntará a nós aqui amanhã.

Ibn Fityan ficou impressionado com a notícia. Respondia a todas as suas perguntas.

— O hammam também foi preparado. As mulheres já haviam se banhado naquele dia e declinaram da oferta. Pediram uma infusão de folhas de menta frescas e foram escoltadas até o terraço. Mayya ficou pensando se deveria acompanhar Muhammad e conversar com ele enquanto se banhava, mas achou que seria cedo demais.

A intenção de Idrisi era tomar um banho sem ser perturbado e meditar no problema espinhoso que o preocupava desde que haviam deixado o palácio: Balkis ou Mayya?

Poderia ser a sua única oportunidade de ficar nos braços de Balkis antes que seu marido chegasse e partissem para Siracusa. E se Mayya insistisse, como era muito natural, que passassem a primeira noite aqui juntos e recuperassem o tempo perdido? Seria desumano

resistir a tal pedido. Balkis, que amava sua irmã, entenderia. Havia tomado sua decisão, mas dúvidas persistiam simplesmente porque seu coração o puxava na direção errada. Deixado consigo mesmo, sem outras considerações, teria corrido para Balkis. Sabia que podia se arrepender disso para toda a vida e, no entanto, se Alá fosse generosa e lhe desse mais dez anos, seria fútil vivê-los num mar de infelicidade.

Ao deixar o hammam, refrescado e pronto para encarar sua nova vida, havia decidido em favor de Mayya. Não deixaria que nada o desviasse deste caminho. Ibn Fityan havia colocado a mesa na sala de jantar que era raramente usada. A mesa retangular podia acomodar facilmente 25 pessoas, mas ele havia preparado apenas uma extremidade dela para Idrisi e as mulheres. Quando entraram ele observou com admiração as diferentes cores usadas por Mayya e Elinore, mas foi Balkis quem fez parar a sua respiração.

Vestia um manto branco de suma sacerdotisa e havia levantado os cabelos para trás com um broche de prata.

O banquete de boas-vindas foi considerado um sucesso e o doce licor doméstico de limão que, Idrisi insistia, era um digestivo muito mais eficiente do que o preparado semelhante feito de semente de anis, foi altamente elogiado.

— Mayya me disse que você é também um mestre da medicina — Balkis disse num tom levemente indiferente -, mas eu não tinha idéia de que preparava misturas medicinais.

— Preparo e tenho até uma que ajuda a eliminar gravidez indesejada, muito procurada nos estados lombardos. Eles estupram nossas mulheres, que têm vergonha de contar aos irmãos, pais ou maridos. Vão ao bruxo local e imploram pela erva que vai purgar o seu sistema. Funciona. Você encontrará a receita no Aqrabadhin de al-Kindi.

Quando estive no Cairo eu a apresentei aos médicos no maristan de al-Nasiri. Pressionavam-me a escrever um livro sobre drogas e ervas compostas que podiam curar doenças comuns. Se tiver tempo ainda vou escrever este trabalho.

Balkis fuzilou-o com o olhar e Elinore, achando seu pai insensível ao fato de sua tia não ter filhos, decidiu mudar de assunto.

— Essa bebida de limão que todas adoramos esta noite. O senhor mesmo a destilou?

— Eu o fazia, mas o sultão gostou tanto dela que tive de revelar a fórmula e do palácio ela se espalhou para os mosteiros e as propriedades. Meus próprios suprimentos vêm do palácio agora. Fico realmente surpreso de que nunca a tenham provado antes. Achei que os eunucos garantiriam suprimento regular no harém.

Por algum motivo isso fez Balkis rir.

— Fala como se fosse a única bebida disponível no palácio. E se os eunucos a detestassem?

Mayya, notando a ligeira tensão entre Balkis e Idrisi, ficou a pensar se algo diferente teria acontecido em Siracusa. Seguiu a sensibilidade da filha para que ele ficasse confinado a um assunto seguro.

— Muhammad, eu estava tentando me lembrar daquele seu amigo de quem você falava sem parar alguns anos atrás. O homem que destilou o que você considerava o mais delicioso elixir que jamais provara. Não consegui lembrar seu nome, onde morava ou sequer o nome da sua bebida.

Idrisi riu.

— Muammar ibn Zafar! Morreu há dois anos e o idiota do seu filho vendeu os pomares a um mercador de Shakka. Vocês todas teriam gostado dele. Foi um dos mais talentosos cozinheiros cuja comida já tive o prazer de provar. Mas o elixir era algo muito especial. Ele o chamava de Néctar Celestial. Certa vez, hospedado em sua casa para pedir-lhe conselhos sobre curas para prisão de ventre, que era comum entre marinheiros, ele criou um supositório com a mistura mais eficaz. Era outubro e havia muita fruta caída pelo chão. Laranjas, limões, pêssegos, abricós, tangerinas e outras que não lembro. Mandou seus homens recolherem estas frutas do chão. As que não estavam machucadas foram lavadas e colocadas numa grande panela perpendicular de barro, quase tão alta como Balkis. Não, um pouco mais alta. A estas frutas acrescentou açafrão, pimenta-do-reino, gengibre macerado e molhos de alho descascado. Então o panelão foi selado com pasta de farinha e deixado ao ar livre até abril seguinte.

Estive presente quando o lacre foi rompido. O mais delicioso aroma nos saudou. Muammar subiu numa escada e agitou a panela até ficar tudo adequadamente misturado.

Eu provei a mistura antes e depois que foi destilada. Completamente diferente cada vez, mas igualmente inesquecível. Al-kohl. Puro. Celestial. Eu me consideraria afortunado se provasse uma bebida destas de novo antes de morrer.

Elinore bateu palmas.

— Mas seguramente podemos tentar fazê-la nós mesmos. Não podemos tentar? Só uma pequena quantidade?

— Certamente, filha. Pode tentar, mas não fique desapontada se falhar. Existem algumas coisas neste mundo que são melhores quando provadas uma só vez.

— Mas eu não a provei, Abu.

Depois que a mesa foi tirada, os criados foram dispensados para a noite. Os quatro se entreolharam à luz das velas. Elinore e sua mãe trocaram olhares antes que a jovem se dirigisse ao pai.

— Abu?

— Elinore bint Muhammad?

— Sei que é um pedido difícil mas, como sabe, a mudança do palácio para sua casa foi tão súbita, talvez súbita demais e estávamos emocionalmente despreparadas...

— Não posso imaginar sua mãe emocionalmente despreparada para nada.

— Falo mais por mim do que por ela. Sinto-me realmente feliz por estar aqui, mas deve entender que levará algum tempo para que eu me ajuste à mudança.

— Entendo isso, filha, e farei o que puder para facilitar-lhe as coisas. Má seja louvado, terminei meu livro. O sultão me doou um pequeno navio e, a não ser que revogue a ordem, o que é pouco provável porque ele não é um governante mesquinho, então poderemos viajar juntos.

A alegria no rosto de Elinore foi visível. Mas ela abordou outra questão.

— Gostaria de viajar. Nunca botei o pé fora de Palermo até visitarmos Siracusa poucos meses atrás. Mas, Abi, quero lhe pedir... se eu posso dormir com Ummi esta noite? Só esta noite, porque estou me sentindo deslocada.

Que Idrisi conseguisse franzir a testa diante deste pedido foi um tributo ao seu engenho — pelo menos foi o que disse a si mesmo.

— Elinore, concedo-lhe o pedido, mas não o repita com muita freqüência. E agora desejo falar com sua mãe a sós um pouco, se posso contar com a sua aprovação para isso.

Ela abraçou o pai antes de deixar a sala, acompanhada por Balkis, que quase não havia falado a noite toda e parecia absorta em seus próprios pensamentos. Tinha evitado o olhar dele e restringira sua conversa a perguntas triviais sobre Palermo. Fazia aquilo simplesmente para aborrecê-lo? Não lhe ocorreu que, ao contrário da irmã, ela podia não estar se sentindo muito feliz.

Sozinho com Mayya no seu quarto, abraçaram-se calorosamente. Então ela olhou cuidadosamente ao redor do quarto e para a cama dele.

— Foi generoso da sua parte deixar Elinore dormir na minha cama esta noite. Está inquieta, o que não é surpreendente. Tudo aconteceu rapidamente demais para ela.

Acho que está dividida em relação à mudança. Uma parte dela queria ficar no palácio até a morte de Rujari. É muito apegada a ele, você sabe.

— E ele é apegado a ela, mas este sultão já morreu no que me concerne.

— Com Felipe em desgraça e Rujari morto, o tesouro continuará pagando a você?

— A mãe dos meus filhos vive na propriedade em Noto, mas eu tenho outra que não visito há anos. Ganhei-a depois que meu irmão morreu sem deixar herdeiros. Podíamos vendêla à Igreja ou a um Barão. É uma propriedade vasta. Ou eu podia deixá-la para você e Elinore. Quase não gastei nenhum dinheiro nos últimos dez anos. A casa e os empregados são pagos pelo tesouro e poucos anos atrás a casa foi legalmente registrada em meu nome por serviços prestados ao estado. A vida não será tão luxuosa como vocês estão acostumadas, mas não passaremos fome.

Dito isso, ele mudou de assunto.

— Tive o sonho mais estranho em Siracusa. Ela fingiu ignorar enquanto ele lhe contava a história da suma sacerdotisa imortal que havia deixado odores inconfundíveis.

— Certamente você se enganou. Seu próprio corpo, como sabemos, deixa muitos traços sem a presença de mais ninguém.

— Mayya, mulher enganadora, por quanto tempo vai sustentar a sua história?

Ela o olhou com surpresa.

— Descobriu?

— Como poderia não descobrir? A droga foi eficaz, mas não apagou minha memória.

— E o que aconteceu depois?

— Balkis não lhe contou?

— Elinore não nos deixou um momento a sós, embora eu notasse um estranho sorriso no rosto de minha irmã.

Ele contou-lhe o resto. Com uma expressão resignada no rosto, Mayya perguntou:

— Ela realmente quer viver aqui, conosco?

— Não tinha nenhuma idéia, como você ou eu, de que isso aconteceria tão cedo. Estávamos discutindo a situação depois da morte de Rujari e as mudanças inevitáveis no palácio.

— Mas ela ficaria feliz em deixar o Amir e viver como sua segunda esposa?

— Terceira. Mayya começou a rir.

— Você viveu sozinho durante vinte anos. Agora quer nós duas?

— Quero.

— Que seja escolha dela, não sua. Seu marido é um homem bondoso e ponderado e ela é mais apegada a ele do que você se dá conta. Se conseguiu engravidá-la, não creio que o Amir fará quaisquer perguntas. Ficará feliz, agradecerá a Alá e haverá comemorações em Siracusa. Por que lhe negar esse pequeno prazer?

— Concordo, deve ser escolha dela. E ela deve pensar cuidadosamente.

— Pode discutir com ela esta noite depois de acabarem as trocas de prazeres.

— Mayya, eu queria passar esta noite com você.

— Sim, sim, eu sei, mas, já que não pode, por que ficar sozinho quando a suma sacerdotisa o espera? Vou deixálo agora. Elinore deve estar ansiosa.

— E eu deveria dizer a Balkis que contei tudo a você ou deseja informála você mesma?

— De tudo o que discutimos hoje, é o que tem menos importância. É uma questão sem significado para mim. Decida você mesmo.

— Está zangada, meu rouxinol, mas por que ajudou Balkis a lançar sua armadilha, em primeiro lugar? Sei que ela insistiu que só o meu sêmen era suficientemente bom para ela, mas você podia ter recusado.

— Cumplicidade é melhor do que traição. Ela era bem capaz de fazer tudo isso sem a minha ajuda. E, se conseguisse, teria algum de vocês dois me contado?

— Estimo que eu teria contado.

— Aproveite a sua noite e durma bem. Com estas palavras Mayya deixou o quarto de Idrisi e voltou para a filha no aposento contíguo.

Ele ficou sentado, pensando na virada ocorrida em sua vida, como esta última fase começara e como poderia terminar. Mas não ficou sozinho por muito tempo. Deixando o quarto nas pontas dos pés, dirigiu-se ao quarto de hóspedes.

Encontraram-se logo ao entrar pela porta de Balkis, cada um tão sufocado de paixão que as palavras lhes escapavam. Ele a levantou do chão e colocou-a gentilmente sobre a grande cama de dossel onde se despiram. Então sussurrou:

Ishgan khumari, qum, atla. Esta noite, todas as cinco obrigações em uma. Está pronta?

Ela respondeu colocando suas pernas ao redor do pescoço dele de modo que sua barba cobria o montículo depilado e aromático dela. Sempre que um deles queria falar, o outro tomava uma ação preventiva. Horas depois, ele notou o céu e percebeu que a aurora não estava muito distante.

Balkis, também acordada, confessou sua ansiedade.

— Achei que seria difícil para você hoje, mesmo depois que Elinore reivindicou a mãe para esta noite.

— Estava indeciso. Queria estar com você porque o Amir a levará embora muito em breve. Mas eu não queria magoar Mayya também. O pedido de Elinore, pensei, foi muito útil.

Ela riu. — Para quem? Toda vez que estou com você não consigo suportar a idéia de voltar para Siracusa. Sei que meu marido é bondoso e ponderado e todas as outras palavras que Mayya usa para descrevê-lo. É verdade que não estou infeliz, mas nem estou satisfeita.

— Eu havia notado. Ela deu um tapa na sua bunda.

— Mayya me disse esta noite que se você ficar grávida isso deixaria o seu marido tão feliz que ele não faria perguntas.

— Ela acrescentou que, se fosse um menino, ele herdaria grandes propriedades em Siracusa? É o que Aziz quer. O que você quer, Muhammad?

— Habibi, eu quero você. Fizeram amor pela quarta vez naquela noite. Então ela repetiu a sua pergunta.

— Não quero solidão na minha vida. Mayya e Elinore vindo morar aqui comigo resolveu isso. Mas não serei feliz sem você. Acha que poderia ser feliz aqui?

— Muhammad, já pensou como se sentiria se eu lhe pedisse para viver com você e com outro homem ao mesmo tempo?

— Inimaginável. Por que eu deveria pensar nisso? É haram, não permitido pelo Corão.

— Nem é adultério aquilo que cometeu já quatro vezes esta noite e cometerá de novo se conseguir levantar pela quinta vez antes do sol nascer. E o Corão afirma que os homens que fornicam entre si deveriam ser imediatamente mortos. Isso impediu alguém? E aqueles que se mascaram por trás da piedade são geralmente os piores ofensores. Por isso responda a minha pergunta.

— Balkis, Balkis. Como pode perguntar isso? A resposta é não. Eu não toleraria você vivendo com dois homens na mesma casa.

— Mas tolera meu marido.

— Ele só é meio-homem.

— Isto é indigno de você.

— Peço desculpas. Escondeu o rosto entre as pernas dela. O gosto dos seus sumos o reavivou e ele conseguiu levantar pouco antes do sol, completando assim as cinco fornicações obrigatórias do jihad sugerido por Abu Nuwas. Ela o abraçou com força, o sol nasceu e eles adormeceram nos braços um do outro até que uma batida discreta na porta assustou a ambos. Uma criada anunciou:

— O café-da-manhã está à sua espera no terraço, senhora Balkis.

Nenhum deles deixou a casa naquela manhã. Idrisi lamentou parcialmente não ter comparecido ao julgamento. Pelo menos poderia se despedir em público do seu amigo.

Caminhou para cima e para baixo no terraço e nos quartos, observando as ruas para ver se havia algum ajuntamento. Ibn Fityan saiu por poucas horas e voltou para lhe informar que os magistrados haviam mandado acender a fogueira antes mesmo do julgamento começar.

Idrisi não podia mais ficar em casa. Anunciou que ia até a mesquita fazer preces para Felipe. Ibn Fityan e quatro criados pediram para ir com ele. Dois deles estavam armados.

As mulheres olharam da sacada em silêncio enquanto os homens desciam o caminho sinuoso até a rua principal. Elinore, sentindo que sua mãe e sua tia desejavam ficar a sós, foi desfazer as suas malas que tinham acabado de ser entregues por homens pertencentes à administração do palácio. Mayya insistiu que ficassem para uma refeição, mas eles declinaram. O mais velho, um homem emaciado de sessenta anos, com lágrimas nos olhos, respondeu:

— Agradeço a sua oferta, senhora Mayya, mas nossos corações estão pesados hoje e não sentimos vontade de comer. O Amir Felipe cuidava de nós e protegia nossos interesses.

Se puderam queimá-lo agora, quanto tempo acha que vamos sobreviver?

Mayya nada mais pôde fazer além de agradecer-lhes com genuíno calor. Saudaram-na e partiram.

— É uma época estranha — disse ela a Balkis.

— Jamais vi coisa assim em todo meu tempo no palácio. Durante dias os eunucos sussurraram entre si, chorando lágrimas copiosas e ignorando nossos chamados. Felipe inspirava uma lealdade impressionante.

Balkis acenou com a cabeça mas não falou.

— O Amir de Siracusa nos dará um relato do que aconteceu. Quando vocês partem?

— Meu marido desejará voltar o mais cedo possível. Ibn Muhammad e eu tivemos sorte. Os ventos nos favoreceram. Mas podemos levar dois dias para voltar e já estão queimando mosteiros em Noto.

— Balkis, minha caríssima amiga e irmã, você parece agitada.

Diga-me o que a perturba e fale a verdade. Foi a tragédia de Felipe que mexeu tanto com você?

— Por favor, pare, Mayya. Não posso suportar. Sabe perfeitamente o que me aflige. Estou segura de ter o filho dele dentro de mim.

— Isso deveria fazê-la feliz.

Era o que queria.

— Sei, mas não sei. Nunca pensei que isso pudesse me perturbar tanto.

— Ah, entendo, durante a noite, a mão do amor vestiu-a com um manto de carícias, mas a aurora cruel o rasgou todo. Acontece com todos nós. Ouça-me agora, Balkis.

Deve parar de comportar-se como uma rapariga enamorada de 16 anos. É uma mulher casada. Dentro de poucas horas seu marido vai voltar e ordenará que volte com ele. Que vai fazer? Pense, criança.

— Irei com ele — disse Balkis resignada -, mas meu coração ficará aqui.

— Cuidarei bem dele, eu lhe prometo. Seria uma humilhação terrível para seu marido se você não voltasse. Se estiver grávida, o que aconteceria se ele ficasse zangado e a acusasse de adultério? Você precisa pensar em tudo nos dias de hoje.

— Mayya, irei com ele, não se preocupe. O que não entendo é como você, que pôde compartilhar os favores do sultão com cinqüenta outras, sem contar a sua esposa, está relutante em partilhar Idrisi comigo.

— Creio que em todo meu tempo no palácio Rujari veio à minha cama duas vezes. Ouviu? Duas vezes! Sabia que eu amava seu amigo, evitava seu olhar e deixava os eunucos trazerem Muhammad para me ver sempre que estava em Palermo. Se eu tivesse de compartilhar Muhammad gostaria que fosse você em vez de qualquer outra. Mas prefiro guardá-lo para mim mesma.

Você mal o conhece. Como pode amá-lo sem o entender plenamente ou o que ele escreve?

— Você sabia tudo isso quando caiu em seus braços pela primeira vez?

— Você tem um marido, que é bondoso para você e...

— Se gosta tanto dele, por que não trocamos de maridos? Você vai para Siracusa e eu fico aqui.

— Você é uma mulher tola.

Fizeram silêncio assim que Elinore entrou no quarto.

— O que vocês duas estavam discutindo?

Silêncio.

— Deixem-me adivinhar. Meu pai.

As irmãs ergueram os olhos espantadas.

— Não foi tão difícil perceber. Minha tia estava num ânimo estranho na noite passada e você também, Ummi. E as criadas estavam cochichando e dando risinhos abafados sobre quantas vezes teriam de lavar os lençóis no quarto de hóspedes. Está sangrando, tia?

Balkis reprimiu um sorriso e sacudiu a cabeça.

— Pensei que não. Então percebi que algo de que eu não me dera conta estava acontecendo entre vocês duas e ele.

Foi tudo resolvido? Claramente que não. Estão ambas grávidas?

— Elinore, isto é inaceitável.

— Ouvi as duas rindo e conspirando quando estávamos em Siracusa. Não ouvi tudo, mas o bastante para entender o que ocorria. Esperava que minha tia tivesse sucesso e assim eu teria um priminho ou uma priminha. Poderia uma de vocês me explicar o que saiu errado no seu plano?

— Ela se apaixonou por seu pai e preferiria ficar aqui conosco.

— É uma idéia interessante mas, querida tia, e quanto ao meu bondoso tio? Ficaria terrivelmente magoado. É um homem tão bom!

Balkis deixou o quarto em lágrimas.

— Elinore — disse sua mãe na voz mais severa que pôde articular -, não cabe a você dizer a sua tia o que ela pode ou não pode fazer. A escolha será dela.

— Não quer compartilhar Abi com ela, ou quer? Nada do que vocês irmãs façam poderia me surpreender. Está grávida, Ummi?

— Acho que sim, mas ainda não tenho certeza.

— Gostaria de saber qual das duas será a primeira. Sua conversa foi interrompida pela volta dos homens. Idrisi entrou na sala com o Amir, a quem ofereceram banho e refrescos, mas declinou.

Queria falar com sua mulher. Ibn Fityan escoltou-o ao quarto de hóspedes.

— O que está acontecendo, Muhammad? — perguntou Mayya.

— E deve saber que nossa filha sabe de tudo. Ela bisbilhotou minha conversa com Balkis em Siracusa...

— Entreouvi Ummi e tia Balkis em Siracusa — Elinore interrompeu.

Momentos depois, o Amir e uma estranhamente exultante Balkis juntaram-se a eles. O Amir abraçou a sobrinha e perguntou sobre a vida fora do palácio. Ela respondeu que ainda era cedo para julgar.

Então ele se virou para Mayya.

— Sou tão agradecido ao meu caro amigo Ibn Muhammad por concordar em que Balkis deva ficar aqui por alguns meses. Viajarei por várias aldeias e cidades da nossa região e ela ficaria solitária sem ninguém no palácio. Disse que me acompanharia em minhas jornadas, mas a situação é perigosa.

Alguns mosteiros já foram incendiados. Com sua permissão, vou me retirar agora. Se Ibn Fityan me acompanhasse, eu chegaria mais cedo ao meu navio. Que Alá proteja a todos.

As três mulheres não se entreolharam. Elinore, achando difícil conter sua alegria, pediu desculpas e deixou a sala. Mayya e Balkis sorriram com um ar vago.

Idrisi saiu com o Amir e deu-lhe as despedidas.

— Não se preocupe com Balkis. Ela será bem cuidada.

— Nestes tempos incertos — replicou o marido — é a única coisa de que tenho certeza.


13

O Confiável liberta uma aldeia e dá combate aos bárbros lombardos.
O doce sabor da vitória. Vida e destino.

As cinco da manhã o mensageiro enviado pelo Confiável voltou ao tosco acampamento. O outono chegava ao fim e as chuvas recentes tinham coberto a paisagem ao redor de Noto de verde. Os riachos que desciam sinuosos das pequenas colinas até a planície onde as aldeias foram construídas estavam inchados de novo. Uma ligeira friagem no ar e as mulas indóceis eram uma indicação de que trovão e mais chuva estavam a caminho.

O mensageiro entrou debaixo do rude abrigo onde o Confiável repousava.

— Mestre, levei sua mensagem ao nosso povo. Os homens ficaram assustados, mas ajudarão como o senhor pediu. Dizem que existem quase trezentos bárbaros lombardos muito bem armados. A maioria deles vive no castelo da propriedade do Bispo João. Dizem que estes homens roubam nossas colheitas e assediam nossas mulheres todo dia porque não têm nada mais a fazer.

— Avisou a eles que as crianças e mulheres deviam deixar a aldeia antes de o sol nascer e encontrar abrigo em outro lugar hoje?

O mensageiro acenou com a cabeça.

— Vão fazer isso. Tinham medo de serem feitos reféns e falaram de uma aldeia a um dia de cavalo dali onde alguns anos atrás as crianças foram seqüestradas e mortas e tiveram suas cabeças empaladas para apodrecer. Foi uma história horrível.

— Você agiu bem. Vá comer alguma coisa. Dentro de poucas horas vamos surpreender os bárbaros.

A notícia da morte de Felipe tinha chegado ao Confiável mais de duas semanas atrás. Decidiu-se contra retaliações imediatas pela simples razão de ter presumido que o inimigo estaria preparado. Foi o que ocorreu. Quando o bispo voltou do julgamento e da fogueira alertou seus mercenários e eles estavam preparados, mas quando viram que não houve reação, nem mesmo depois que o bispo anunciou a morte de Felipe como uma advertência para todos aqueles que tentassem enganar a Igreja e Deus, eles haviam abaixado a guarda de novo.

O Confiável levantou-se e cobriu seus ombros com um cobertor. Os homens comiam pão dormido, mergulhando-o em azeite de oliva aquecido com tomilho silvestre e alho.

Saiu para uma curta caminhada sozinho até que encontrou um lugar, perto de um regato. Ergueu a túnica e agachou-se no chão. Alá seja agradecido, podia permitir que seus intestinos funcionassem sem medo de ser perturbado. Depois que se lavou no riacho, subiu o pequeno morro e viu a aldeia que estavam para atacar. Aos seus homens parecia falar com grande autoridade, mas esta era a primeira vez que lideraria pessoas num combate e sabia que algumas delas morreriam. Ontem, antes da prece do anoitecer, falara com eles durante quase três horas para explicar por que tinham de fazer o que iam fazer.

Suas próprias crenças religiosas eram não-dogmáticas e contraditórias, resultado das numerosas discussões teológicas e dos ferozes debates de seus anos no seminário no Cairo. Excitado pelos textos que emanavam do alAndalus, ele abandonara a família e partira para Qurtuba e depois para Siqilliya.

Isso fora vinte anos atrás. Logo depois da sua chegada conhecera uma jovem de Noto, filha de um rico mercador, e eles se amaram, mas como ele não tinha bens o mercador proibira o casamento. Por isso, ela se matara. Ele se tornara um místico, errando de aldeia em aldeia. O mercador, mortificado pelo que havia feito, morreu pouco depois com o coração partido e, como a jovem morta era sua única filha, deixou sua propriedade para o Confiável, se é que o podiam encontrar. Quando a notícia chegou a ele, voltou a Noto, vendeu a casa e as mercadorias, e distribuiu seu dinheiro aos pobres. Voltou então às suas andanças.

Agora ele — sem nenhuma experiência de embates militares — estava à véspera de uma batalha. Havia instruído seus seguidores para esconder as armas debaixo das roupas e adotarem o comportamento de camponeses pobres e alquebrados. O plano fora cuidadosamente elaborado. Deixaram o acampamento enquanto ainda não era totalmente noite, em número de cento e cinqüenta, a maioria montando mulas, com apenas uma dúzia a cavalo. Estes tinham instruções especiais. O Confiável ia no dorso de uma mula liderando a procissão. Nada poderia parecer menos ameaçador. Quando chegaram aos portões do castelo perguntaram-lhes a que vinham.

— Somos peregrinos pobres — respondeu o Confiável.

— Acreditávamos no falso Profeta Maomé, mas vimos o erro de nossa escolha e desejamos nos converter para a verdadeira fé a fim de poder cultuar na igreja. Não havia nenhuma em nossa aldeia, por isso viemos ao bispo para ver se ele podia nos batizar. Trouxemos oferendas para o bispo.

Embora ainda fosse cedo e a maioria dos guardas ainda dormisse, tiveram permissão para entrar. O bispo, ao saber que seu tesouro ia ser enriquecido e almas seriam salvas, colocou apressadamente a batina, empurrou de lado o jovem deitado em sua cama e correu para receber os peregrinos.

— Qual de vocês fala em nome destes homens? — perguntou.

— Cada um fala por si — replicou o Confiável. Quando o bispo se aproximou, três homens o agarraram, cobriram sua boca e o arrastaram para longe. Vendo isto, os camponeses locais que estavam escondidos emergiram de todos os lados com pilhas de lenha e cercaram com elas o castelo. Jogaram óleo sobre a madeira e logo recuaram. O castelo estava em chamas. Ao sentir o calor, os mercenários lombardos saíram correndo, muitos deles nus, mas com espadas na mão. Era tarde demais. O Confiável liderou a carga e seus homens o seguiram. Foi uma batalha desigual e bastante desagradável. Nenhum lombardo sobreviveu. Quando o castelo estava todo tomado pelas chamas, o bispo foi arrastado para dentro e os aldeãos lembrariam depois que o Confiável subiu numa plataforma de madeira, ergueu a voz para que todos pudessem ouvir e disse:

— Isto é por Felipe al-Mahdia. Estas foram as lamentáveis conseqüências de uma guerra civil não-declarada inaugurada pelo julgamento e morte de Felipe e que, nos anos seguintes, levaria a revoltas em cada canto da ilha.

A meio-dia o castelo estava em ruínas. Toda a aldeia havia se reunido para ver o grande incêndio. Algumas das mulheres caminharam até os lombardos mortos e cuspiram neles. O Confiável entendia sua raiva, mas desencorajou tais atos e ordenou que todos os mortos tivessem um enterro digno. Tinha perdido apenas seis homens, que foram carinhosamente banhados, amortalhados e enterrados perto do local da velha mesquita. A aldeia ofereceu preces no enterro dos mártires.

A meia dúzia de nazarenos cujas famílias tinham vivido em harmonia com os muçulmanos há duzentos anos foi convocada para enterrar seus mortos. No início se recusaram:

— Somos siqilliyanos e eles são lombardos. Não nos forcem a enterrar estes monstros.

Mas o Confiável disse que eles deveriam ser enterrados em terreno consagrado e, relutantemente, suas instruções foram obedecidas.

Atrás das colinas no horizonte baixo o sol começava a se pôr. Os aldeãos e os soldados do Confiável estavam banhados no seu brilho. Escureceu e as estrelas começaram a aparecer. Os aldeãos acenderam fogueiras na praça e as comemorações começaram com cantos e danças. Quando o Confiável chegou um súbito silêncio se fez enquanto todos olhavam para ele com admiração. Fez sinal para que continuassem com as festividades, mas uma timidez coletiva baixou sobre eles. Os aldeãos preferiram se juntar ao redor do fogo que morria. Eles, que até o início daquela manhã eram os conquistados, agora se tornavam os vencedores. O que aconteceria agora? Uma sensação de expectativa iluminava seus rostos e esperavam que ele falasse. Quando ia se levantar, os homens que deixara de guarda chegaram, arrastando um monge. Ele vira o castelo queimado e presenciara a rebelião que acontecera, mas não tinha visto os guardas. Os aldeãos o reconheceram e disseram que não era um estranho, mas fora monge antes que a Igreja roubasse a terra e trouxesse os lombardos para agir como guardas. Ele fora passar um tempo com sua família em Noto um mês antes.

— Qual é o seu nome, padre?

— Yuhanna ibn Yusef.

— Pode ver o que aconteceu. Se estiver preparado para cuidar do seu rebanho deveria ficar, mas se tiver pensamentos de vingança então só pode haver uma solução.

— Jamais gostei dos lombardos, mas lamento que tivessem de queimar o bispo.

O monge sentou-se entre os aldeãos, que lhe deram comida e vinho.

O Confiável levantou-se para falar a eles. Falou com simplicidade, explicando a história da sua fé, suas vitórias e suas derrotas e como tão freqüentemente tinham perdido por lutarem entre si. Foi assim que perdemos Siqilliya e era assim que poderíamos perder alAndalus. Então alguma coisa nele decidiu que era tempo de ir além do que já era conhecido de muitos deles.

— O que nunca é discutido abertamente é a cobiça de nossos emires e sultãos, que chegam, pegam a terra e gozam dos seus frutos sem erguer um dedo. Por que deveríamos trabalhar e eles só comerem? Apenas cem anos depois da morte do nosso Profeta os camponeses da Pérsia se rebelaram contra os proprietários de terras. Houve semelhantes levantes em Khorasan e no Azerbaijão. Eram todos Crentes. Os pobres lutavam contra os ricos porque argumentavam que eram iguais diante de Alá. Os ricos replicavam que no Dia do Juízo diante de Alá podemos todos ser iguais, mas na terra o Corão nos ensina que os ricos têm seus direitos enquanto pagarem os impostos. Alá quis assim. Como poderia ser de outro modo? E eles tiveram uma resposta rude de Ali ibn Muhammad no ano de 169 do nosso próprio calendário. Os Zanj ergueram-se em armas contra o califa em Bagdá. Vejo por seus rostos que estão chocados. Sabem do que estou falando. Os Zanj eram escravos de Ifriqiya que se tornaram Crentes em Alá e seu Profeta. Eram os mais pobres dentre os pobres. Comparados a eles todos vocês são ricos. Trabalhavam para os senhores das terras nos pantanais aquosos entre Bagdá e Basra. Três vezes os califas mandaram exércitos para derrotá-los e três vezes os Zanj derrotaram aqueles exércitos. Por quê? Porque nada podia dividi-los e nada tinham a perder. Durante dez anos governaram a si mesmos da medina al-Mukhtara. Basra tornou-se sua cidade também. Estavam preparados a fazer paz a qualquer momento, contanto que o novo sistema que haviam estabelecido não fosse tocado. E os ricos tremeram e os mercadores foram obrigados a doar mais e mais para formar um exército que pudesse destruí-los. Depois de um longo cerco, foram derrotados, mas também o foi a escravidão naquela forma.

— Por que lhes conto isso? Porque como irão decidir viver depois da sua vitória irá determinar quanto tempo sobreviverão. Se um de vocês decidir tornar-se o senhor da terra e o resto aceitar, então não vão durar muito. Se trabalharem juntos, compartilharem a comida, cuidarem uns dos outros, como muito da nossa gente fazia nos dias mais antigos, então nossa comunidade poderá sobreviver. Um modo de vida que proteja os interesses de todos é um modo de vida pelo qual as pessoas morrerão.

O que é ensinado pelos lábios daqueles que usam as leis e os costumes para defender a propriedade que eles roubaram em primeiro lugar, ou herdaram daqueles que a roubaram, não vale nada. Sejam ousados. Esqueçam-nos. O que conseguiram hoje vale mais do que todos os nossos costumes. Não sou daqueles que acreditam que Alá decide todas as nossas ações na terra. Se assim fosse, ele seria um monstro. Qual seria então o sentido de um Dia do Juízo Final? Vejo que as crianças já estão dormindo. Foi um longo dia. Todos nós precisamos de algum descanso. Podemos falar mais amanhã. Vou passar algumas semanas com vocês.

Naquela noite, enrolado em seu cobertor, o Confiável fez sua cama no chão da igreja recém-construída que, apesar da sua proximidade com o edifício incendiado, não tinha sofrido nenhum dano. Ficou acordado meditando sobre os acontecimentos do dia. Foi seu primeiro triunfo real desde que deixara o Cairo. No passado sonhara em escrever um tratado filosófico que demolisse as fundações do sistema de pensamento alGhazali e defendesse a obra de Ibn Rushd. Provocaria um terremoto teológico e ele seria a sua causa. Suas anotações estavam quase prontas quando sua amante se suicidou. Abandonara tudo e tornara-se um asceta, mas o que acontecera hoje fora mais importante do que sua filosofia. Claro, sem o ceticismo que ele havia absorvido não teria tido a coragem para fazer o que era preciso.

O que o abalara esta noite fora ver uma jovem, ouvindo-o falar, que era uma réplica da sua Bulbula, morta há tanto tempo. Teria uma irmã? Levara muitos anos para recuperar-se da sua perda, e agora a coincidência era perturbadora. Precisava saber se era parente. Perguntaria quando o dia nascesse.

Mas quando a aurora rompeu, o pensamento se perdeu quando foi ver seus homens. Ficou sentado com eles compartilhando o pão enquanto lembravam seus amigos caídos.

Então perguntou se algum deles se instalaria nesta aldeia para dar aos aldeãos uma sensação de segurança. Se 12 deles pudessem ficar, ele poderia seguir em frente com os demais na esperança de repetir sua vitória nas proximidades de Siracusa. Depois de uma breve discussão, 12 voluntários deram um passo à frente, mas todos insistiram na mesma condição: o Confiável os convocaria se precisasse de mais homens. Concordou e abraçou um por um. Erguendo suas vozes, eles gritaram em uníssono: "Longa vida para o Amir al-Jihad!" Informou-lhes numa voz baixa que preferia ser o Confiável a ser um Amir de qualquer tipo. Seus homens nunca usaram o título de novo.

No resto do dia os camponeses mostraram-lhe a extensão da propriedade ligada ao castelo. Milhares de acres espraiavamse de cada lado da aldeia, há muito tempo desabitados e incultos. A família de Ibn Hamza se instalara aqui há duzentos anos e os camponeses lhe disseram que suas famílias também estavam aqui quase por tanto tempo.

Cinco gerações tinham vivido em paz até que os nazarenos chegaram há vinte anos.

— Quantos deles vieram? Por que não resistiram? Os homens mais velhos começaram a agitar-se inquietamente, fingindo que não haviam entendido a pergunta. Foi um dos camponeses mais jovens que respondeu.

— Hamza Ibn Omar, o dono da terra, estava indeciso quanto a se converter ou não. Demorou-se um pouco demais e só se converteu uma semana antes que os lombardos chegassem. Rolaram de rir quando souberam do fato. O bispo ofereceu-se para deixálo livre se dissesse onde estava escondido o ouro. Ele chorou e caiu de joelhos e jurou repetidamente que não havia ouro. Eles o mataram e a sua família diante dos nossos olhos. Eu tinha dez anos e a lembrança ainda me tortura. Várias criancinhas foram decapitadas. Depois disso poucos podiam pensar em outra coisa a não ser como sobreviver. Cada um por si e por sua família.

O Confiável colocou seu braço ao redor do ombro do camponês.

— Sabe ler e escrever? Ele acenou com a cabeça.

— Minha mãe era cozinheira e trabalhava para a família de Ibn Omar. Eu brincava com seus filhos e aprendi a ler e escrever com eles.

— E depois?

— Nada. Os lombardos, a maioria deles não sabia ler, tiraram todos os livros da biblioteca e os queimaram, mas Alá decidiu que iria chover naquele dia.

As crianças salvaram os livros e eles estão escondidos em diferentes casas. Nunca parei de ler mesmo quando não conseguia entender mais do que três frases numa página. Minha mulher me chamou de Ibn al-Kitab.

Os outros riram, mas o Confiável escondeu o seu contentamento ao descobrir camponês tão erudito. Elogio aberto teria provocado a inveja dos outros.

— Ibn al-Kitab é um bom nome. Preciso que você ouça todo mundo e compile um registro. Quero saber em que campo cada camponês trabalhava, quantas horas de trabalho eram prestadas antes e depois que os nazarenos vieram. Então quero que compile outro registro dividindo a terra igualmente entre todas as famílias camponesas.

Este registro deve ser retrodatado de trinta anos. Assinarei as escrituras em nome de Hamza ibn Ornar. Isto é para salvaguardar todos vocês contra qualquer autoridade.

Vocês nada tiveram a ver com a queima do Bispo ou a matança dos lombardos. Culpem os homens que vieram de fora. De qualquer modo, por que desejariam matar alguém quando seu senhor lhes doou a terra há trinta anos? Mais um pedido a vocês. Devem consultar todo mundo antes de chegar à sua decisão. Doze de meus homens querem se instalar aqui. Trabalharão com vocês e, caso se torne necessário, defenderão vocês. Mas devem ter uma parcela igual de terra.

Os vinte e poucos camponeses que o acompanhavam acenaram com a cabeça agradecidos, assegurando-lhe que não haveria problemas quanto a seus homens. Mas ele insistiu que a aldeia devia decidir isso coletivamente. Ibn al-Kitab perguntou:

— Quando diz que a terra deveria ser dividida igualmente, isso inclui Yuhanna, o monge?

— A família dele mora aqui?

— Sim.

— Então deve ser incluído. Podemos nos dar ao luxo de ser generosos. Existe muita terra, como acabamos de ver, e é melhor repartir com todo mundo.

Quando voltavam, Ibn al-Kitab sussurrou:

— Ficaria honrado se pudesse juntarse a nós para o jantar.

— Gostaria de participar e então poderão me mostrar alguns dos livros que salvaram da fogueira.

Mais para o fim da tarde, quando os camponeses tinham voltado da lavoura, um grande mehfil congregou-se na praça. Ibn al-Kitab falou do plano sugerido pelo Confiável.

Foi saudado com gritos de alegria. Então um canto semi-espontâneo irrompeu, durante o qual os homens do Confiável permaneceram em silêncio:

— Vida longa para Amir al-Jihad. O Confiável levantou-se. Disselhes que era sua própria força que os levaria para a frente a partir de agora. Nada mais podia fazer por eles. Dentro de uma semana teriam as escrituras de suas terras e o registro deveria ser guardado escondido num lugar seguro do conhecimento apenas de dez famílias. Só deveria ser mostrado ao emir de Siracusa ou a seus agentes, nunca ao lombardo, que imediatamente o destruiria. Que estavam envolvidos numa fraude era inegável, mas ele tinha certeza de que Alá e Deus e os Profetas Maomé e Isa os perdoariam porque estavam corrigindo uma grave injustiça. Só era necessário que contassem a mesma história a qualquer forasteiro que fizesse perguntas sobre a terra. E fez um último apelo. A terra agora lhes pertencia, mas deviam garantir que cada família fosse alimentada, tivesse leite, água e frutas antes de venderem o produto no mercado. E deveriam prometer reconstruir a sua mesquita. Ao afastar-se da multidão, pessoas de todas as idades tocaram nele em silenciosa apreciação. Ibn al-Kitab pegou no seu braço.

— Confiável, se conseguisse o mesmo em outros lugares desta ilha nós poderíamos montar um exército que tomaria Palermo.

— Não será tão fácil em outros lugares. Começou a chover e os dois homens estavam encharcados quando chegaram à casa de al-Kitab. O Confiável tremia e seu novo amigo insistiu para que trocasse a túnica. Uma camisa limpa e calças largas foram colocadas sobre a cama num quarto ao lado onde ele pudesse despir-se e enxugar-se.

O Confiável começou a chorar de um poço de lágrimas bem no fundo do seu ser. Quando se recuperou vestiu as roupas secas. Elas pendiam soltas sobre o seu corpo.

Não conseguia lembrar a última vez que vestira camisa e calça limpas. Sob a figura barbada e áspera numa túnica que nunca fora lavada revelava-se o nobre perfil de um Amir.

Na sala da frente, ela sorria com dois meninos e um marido orgulhoso do seu lado. Beijou cada menino na cabeça. Até sua voz o fazia lembrar de Bulbula.

— Estamos honrados com a sua presença, Confiável. Notícias a seu respeito chegaram até nós muitos meses atrás, mas nos perguntávamos se o senhor era real ou uma aparição. Fico feliz que seja real. Por favor, sente-se. As crianças vão para a cama e nossa refeição está quase pronta.

Os dois homens ficaram sentados até que Ibn al-Kitab mostrou-lhe um livro cuja visão o fez ficar de pé de excitação. Era A incoerência dos incoerentes, de Ibn Rushd, uma defesa vigorosa da Razão como algo separado da Verdade Divina.

— Isso estava na biblioteca?

— Sim. É um livro que não consigo entender, por mais que tente.

— É difícil, mas é o texto mais corajoso produzido por nossos filósofos. Eu mesmo só li trechos.

Posso tomá-lo emprestado para ler enquanto estiver aqui?

— Ia dá-lo para o senhor. Lágrimas assomaram aos olhos do Confiável.

— Deveria pertencer a todos. Quando a mesquita for reconstruída ela conterá uma pequena biblioteca para livros além do Corão que, como Alá sabe, lemos tão freqüentemente que podemos lembrar cada verso.

Então ela voltou a entrar na sala e ele não pôde mais se conter.

— Posso perguntar seu nome?

— Zainab.

— Desculpe minha rudeza. Lembra-me alguém que conheci há muito tempo em outra vida. Parece-se tanto com ela que, com sua permissão, gostaria de lhe fazer outra pergunta.

O rosto de Zainab empalideceu.

— Pode me perguntar o que quiser.

— Nasceu aqui?

— Sim.

— Seus pais sempre moraram aqui?

— Sim, exceto em tempos difíceis, quando minha mãe conseguiu emprego em Noto. Como minha sogra, ela é uma excelente cozinheira.

— Sabe onde ela trabalhou?

— Sim. E só por poucos anos e antes de eu nascer, mas falava freqüentemente sobre isso. Trabalhou para um mercador, um viúvo que tinha uma filha muito bonita. Ela morreu em tristes circunstâncias.

— Podia incomodá-la e pedir uma tigela d'água, por favor?

Ele tremia e, pensando que sentisse frio, lhe deram um cobertor.

— Sua mãe ainda está viva, Zainab?

— Alá seja louvado, ela estará aqui muito em breve com a nossa refeição. Quando lhe dissemos que o senhor vinha, fez questão de cozinhar. Meu pai morreu alguns anos atrás.

— Ela se chama Halima? Agora foi a vez de Zainab ficar surpresa. Antes que pudesse interrogá-lo, a porta se abriu e correram para ajudar a velha senhora a trazer a comida para dentro de casa. Ela viu o Confiável, aproximou-se, tocou na sua cabeça e o abençoou. Então ele falou numa voz que ela conhecia.

— Halima, não me reconheceu? Ela quase derrubou uma panela e virou-se. Ele escondeu a sua barba. A voz dela enfraqueceu:

— Ibn Zubair, é realmente você? Era a única pessoa ainda neste mundo que conhecia seu nome verdadeiro. Abraçou-a e ambos começaram a chorar. Quando recobraram a calma, ele pediu a todos que jurassem manter segredo.

— A semelhança com Bulbula me alarmou, mas já estava escuro quando vi Zainab pela primeira vez. Achei que podia estar enganado. Não consegui dormir bem na noite passada. As mais loucas conjeturas me passaram pela cabeça. Hoje, quando a vi com sua família, não fiquei mais confuso. Não havia mais nenhuma sombra de dúvida.

Ela se parece exatamente com a irmã, exceto pela cor dos cabelos. A mãe de Bulbula era grega e ela herdou seus cabelos, da cor de ouro... está lembrada?

Halima acenou com a cabeça e beijou suas mãos.

— Seu pai, que Alá o perdoe, nunca se recuperou da sua morte. Foi a culpa que criou os maus fluidos dentro dele.

Foi isso que o matou. Deixou-me todo o seu dinheiro. Eu o distribuí para os pobres. Ele sabia a respeito de Zainab?

— Não. Ninguém sabia até agora. — Devia ter-lhe. contado. Ficaria tão feliz ao vê-la como fiquei. Isso poderia tê-lo mantido vivo. Você e Zainab teriam herdado uma bela casa em Noto e uma pequena fortuna.

— Meu marido teria me matado. Zainab era nossa única filha — ou assim pensava ele — e ficou tão feliz quando ela nasceu, embora tivesse rezado por um filho. Se apenas o mercador, que não era um homem ruim, tivesse deixado Bulbula casar-se com o senhor, quem sabe o que teria acontecido?

— Se ela tivesse vivido, eu não seria o homem que está vendo agora. Ela me teria guardado junto a si. Eu ficaria sentado numa biblioteca a maior parte do dia, lendo, pensando, escrevendo, mas nada mais. Na vida que escolhi sinto que conquistei alguma coisa. Nesta aldeia nós criamos um exemplo que poderia se espalhar. Para que um povo prospere, ele precisa tomar seu destino em suas próprias mãos.

Zainab esperou pacientemente até que o Confiável acabasse de falar.

— Umma, o que foi que aconteceu? Sua mãe lhe contou.


14

Uma gravidez dupla e Idrisi descobre
uma cura fora do comum para tosses e resfriados.

Várias semanas depois, notícias dos acontecimentos que tinham ocorrido numa aldeia tão pequena que ainda não tinha nome chegaram a Palermo. Os mercadores que levavam a informação descreviam o que havia ocorrido em grande detalhe, como se seus próprios olhos tivessem testemunhado o bispo sendo jogado às chamas e o Confiável se levantando para declarar aquilo como uma vingança por Felipe. Então contavam como os lombardos tinham sido pendurados nus nas árvores, suas pernas e suas colunas não-circuncidadas balançando ao vento e como, quando a pele fora comida por grandes pássaros, seu esqueleto fora branqueado pelo sol e polido pela chuva. Mas foram deixados no lugar como uma advertência muda para todos os infiéis.

Quando Idrisi perguntava se tinha visto com seus próprios olhos os esqueletos pendurados, o mercador admitia que a história lhe fora contada por um amigo que a tinha ouvido de outro e antes de muito tempo a genealogia dos contadores de histórias estava tão firmemente estabelecida a ponto de sobrepujar os fatos.

Sempre fora assim em nosso mundo, pensou Idrisi, perguntando-se se algo havia chegado a acontecer. A maioria das lendas possui um cerne de verdade, portanto estava claro que algo devia ter acontecido. O problema era que as notícias dos feitos do Confiável alimentavam o delírio que havia tomado conta da cidade desde a queima pública de Felipe. Um dos magistrados que haviam jogado o corpo de Felipe na fogueira havia desaparecido sem deixar traço. Quinze dias atrás, um juiz que sentenciara Felipe tinha morrido de morte natural, mas comentava-se no qasr que fora envenenado. A verdade inegável é que, quando seu caixão era carregado para o cemitério, foi atacado por um enxame de abelhas que surgiram do nada. Quando os que carregavam o féretro foram ferroados, largaram o caixão na rua e saíram correndo gritando em busca de água.

Mesmo depois que as abelhas — que Alá as abençoe — desapareceram, o caixão ficou abandonado por algum tempo e alguns garotos apostaram para ver quem ia mijar nele.

Revezaram-se na guarda, com o resultado de que mais de uma centena de meninos com menos de dez anos de idade tinham encharcado a madeira com sua chuva. Quando a procissão fúnebre reiniciou, o desconforto dos carregadores do féretro era evidente. Seus narizes franzidos fizeram os garotos, que observavam dos seus esconderijos, gargalharem de alegria. Nesta atmosfera febril, o Confiável e suas campanhas militares eram discutidos interminavelmente na cidade velha, cada lojista tentando superar seus competidores com as histórias mais horripilantes.

Idrisi estava preocupado com problemas mais íntimos — o que não surpreende, já que os vivia todo dia. Mayya e Balkis estavam com sete e seis meses de gravidez, seus ventres distendidos disputando a sua atenção. Passava mais tempo com Balkis do que com Mayya e por uma simples razão: Balkis estava encravada no seu âmago. Quando Elinore o questionava sobre a aparente discrepância de seus afetos, ele assumia o ar de um médico.

— Sua mãe teve você e sabe o que está em jogo. Para Balkis é seu primeiro filho e as circunstâncias são difíceis. Ela requer mais cuidados.

Elinore erguia os olhos e o fitava com fúria, mas nenhuma palavra era trocada.

Balkis havia escrito ao marido Aziz e o informara do seu estado. Um mensageiro especial chegou em três dias para entregar uma carta em resposta. Estava muito feliz e deixaria Siracusa em poucas semanas para vir buscá-la. Implorou-lhe que não fizesse esforços ou nada que pudesse comprometer a criança. A notícia veio como um alívio para Mayya, mas lançou uma espessa nuvem de tristeza em torno do quarto de hóspede ocupado por sua irmã. A maior parte do tempo as irmãs demonstraram um estoicismo que impressionou grandemente Idrisi. O que ele não percebeu foi que aquilo que geralmente as aproximava mais uma à outra eram suas ausências da casa.

Caso se decidisse por uma longa viagem marítima, as irmãs ficariam inseparáveis. Nestes dias ele não deixaria a ilha.

Uma semana ou duas em Shakka ou Djirdjent era o mais longe que viajava a fim de se encontrar com velhos amigos e também continuar na sua pesquisa sobre curas herbais para o formulário médico que compunha. Nem estavam as duas mulheres livres das suas experiências. Ele as inspecionava cuidadosamente e notava como seus corpos reagiam à presença da criança ainda não nascida. Mayya não conseguia mais comer carne e seu corpo rejeitava todas as delícias doces, com exceção de confeitos que continham apenas mel. Balkis ficou alérgica a alho e cebola, mas desenvolveu um imenso apetite por um folhado comprido e fino cheio de pasta de amêndoa. Nenhuma delas conseguia suportar o gosto do café árabe que era um favorito da casa.

Certa vez, quando Idrisi apareceu com uma tosse persistente, tentou sua própria cura de mel, gengibre e tomilho silvestre fervidos na água e, apesar do gosto desagradável, ele a tomava três vezes por dia. Tinha sempre funcionado antes, mas desta vez a tosse se recusava a ir embora. A fim de evitar passar a infecção para as duas mulheres, afastara-se delas, concentrando-se em escrever e jogar xadrez com Elinore.

Uma tarde, Balkis, que sentia sua falta mais do que a irmã, entrou no seu quarto e aninhou sua cabeça nos seus seios. O tecido que a cobria estava molhado do seu leite. Ele lambeu e gostou do sabor, então ergueu o vestido dela, ansioso por mais. Na mesma noite a sua tosse desapareceu. Podia ter sido pura coincidência, mas Idrisi associou aquilo ao leite. Isto seria real ou uma alucinação? Ele decidiu que era real. Seria a combinação de mel, ervas e leite humano que levara à cura ou somente o leite? E, se fosse apenas o leite, poderia ele incluir uma prescrição no seu formulário? Desgostava-o a idéia de sultãos, emires e barões acometidos de tosse esquadrinhando seus palácios e propriedades em busca de mulheres no final da gravidez. Acrescentaria outro fardo para os pobres. Por outro lado, se não registrasse a cura, estaria quebrando um antigo juramento. Chegou a um meio-termo consigo mesmo. As duas mulheres provavelmente amamentariam os bebês durante um ano ou possivelmente dois. Era bastante provável que tivesse uma crise de tosse durante esse período. Quando houvesse uma conjunção entre os dois acontecimentos, ele beberia o leite. Se a tosse desaparecesse, teria de mencionar o fato no formulário, independentemente das conseqüências. Se não funcionasse, então podia considerar o que aconteceu com o leite de Balkis como uma ocorrência casual. Mas claramente Balkis tinha outras preocupações na sua mente. Pelo ar do seu rosto ele sabia que tinha a ver com o marido. Ela se postou, as mãos nos quadris, e lhe deu um daqueles olhares ferozes.

— Balkis, você tem de ir com ele, pelo menos até que a criança nasça. Depois, ele não fará objeções para que volte.

— Não liga para mim agora que estou gorda e feia — ela gritou, jogando-se contra o seu corpo e chorando.

— Concordo que seu corpo não está numa de suas melhores fases, mas sugerir que o amor que sinto por você depende de tais coisas é um insulto à nossa paixão. Se o que diz fosse verdade, como explicar que fazemos amor quase todo dia, ignorando o seu ventre que procura nos obstruir? Acha que estou fingindo quando nos encontramos no auge da nossa união?

— Então por que diz que preciso ir?

— Porque você é casada com ele, Balkis. Quantas vezes discutimos essa possibilidade? Acredite em mim, tudo o que ele quer é mostrar seu filho para a sua gente e sua família. Espero, por ele, que seja um menino. Isso o deixará muito feliz. Não vai se importar com a sua volta para cá a fim de criar outra criança.

Ela riu.

— Neste caso deveria rezar para que seja uma menina. Assim serei definitivamente devolvida ao grande médico. Mas você fala a verdade. Sei disso e farei como pede. A única coisa que não posso suportar é a idéia de ser tocada por ele e se ele o fizer...

— A maioria dos homens fica afastado das mulheres quando estão amamentando um bebê. A razão por que eu não o faria é que, como médico, é meu dever observar e registrar as funções...

Ela o beijou nos lábios e teria ido mais além não houvesse Ibn Fityan batido na porta para informar que o Amir de Siracusa tinha deixado o palácio e estava cavalgando em direção da casa.

Refrescos, incluindo o delicioso elixir de limão, foram servidos no terraço onde podiam desfrutar o calor do sol de inverno. Aziz descreveu sua visita ao sultão.

Fora questionado em detalhe sobre o Confiável, mas negara que um bispo fora queimado ou os lombardos oferecidos como carne para os animais.

— Mas posso contar-lhes, caros amigos e fiel esposa, o que realmente aconteceu. É bastante notável, mas perturbador. Queimaram o bispo e o Confiável gritou que era por Felipe, mas o prelado e o monge locais juram pela Bíblia que ele morreu de morte natural. Depois de sua morte, os lombardos lutaram pelo ouro do bispo e provavelmente seu estoque de mancebos e, para espanto de todos, destruíram primeiro o castelo em busca de ouro e depois a si mesmos. O único sobrevivente morreu dos ferimentos. Foram todos enterrados em terreno consagrado. Isto é, por acaso, verdade.

— Mas como a batalha começou? Aziz contou-lhes toda a história, exceto o que não sabia, ou seja, o encontro entre o Confiável e Halima e a descoberta de sua verdadeira identidade.

— Tínhamos a tendência de acreditar que o Confiável era um pregador ligeiramente desequilibrado errando através das aldeias e infectando os camponeses crédulos com sonhos religiosos, encorajando o martírio e revelando os estigmas que marcavam sua própria mente inculta. Esta era certamente a impressão que ele queria transmitir.

Mas o que ele fez ameaça a todos nós.

— Como? — perguntou Mayya, sua curiosidade excitada.

— A vergonha desapareceu naquela aldeia. As pessoas o encaram nos olhos quando falam. Orgulho e insolência substituíram o respeito por seus superiores. Um camponês teve a afronta de perguntar se eu havia lido Aristóteles. A única maneira de fazê-los nos respeitar é esmagá-los impiedosamente e ter certeza de que o jugo é pesado. Se o que fizeram se espalhar, estamos todos acabados. Foi o Confiável quem lhes ensinou a garantir que nunca mais percam a terra.

— O que vou lhes dizer se baseia em minhas próprias suposições. Não tenho prova alguma e a legalidade está do outro lado. Não tinha visitado a propriedade antes, mas tinha noção do que havia acontecido depois que os nazarenos varreram a família Ibn Hamza. Quando visitei os camponeses algumas semanas atrás, o Confiável tinha partido há muito, mas havia deixado atrás de si a aldeia comunitária mais feliz que já conheci.

— Como isso o ameaça? — Balkis perguntou.

— Quando perguntei quem era o dono da terra, agora que o bispo estava morto, responderam alegremente que a terra lhes fora doada por Hamza ibn Muhammad muitos anos antes da chegada dos nazarenos. Vi o registro com meus próprios olhos. Era impecável. Acho incrível que Hamza, que freqüentemente vinha ao meu palácio, pudesse ter doado suas terras hereditárias. Na verdade, não acredito numa palavra daquilo. Foi idéia do Confiável e ele os convenceu a todos e forneceu-lhes uma narrativa única.

— Interrogou o monge em particular? — perguntou Idrisi.

— Claro que o fiz. Ele repetiu a mesma bobagem. Sua família beneficiou-se da distribuição de terra do Confiável.

Confessou-me que nunca encontrara um homem como o Confiável e queria converter-se à nossa fé, mas o Confiável lhe dissera que seria mais valioso para a aldeia como monge. Se quisesse poderia rezar na mesquita, mas quando surgissem estranhos tinha de ser um monge.

Idrisi não podia esconder sua admiração.

— Ele é inspirado por Alá e pelo Grande Satã ao mesmo tempo. Onde está?

— Longe de minhas propriedades, espero. Aqui em Palermo você não pode imaginar o efeito que está tendo nos camponeses. Muitos deles visitam as aldeias e voltam cheios de idéias.

— O Confiável deixou um plano para o caso de sermos todos derrotados?

— Estranho que pergunte isso, Ibn Muhammad. Não me ocorreu, mas um dos camponeses, um rapaz muito letrado, me deu informações. Se nosso povo for derrotado, vão todos jurar que o bispo havia convertido toda a aldeia cinco anos antes de morrer. Têm um registro da igreja para provar isso e o monge e um punhado de famílias nazarenas atestarão a verdade dessa afirmação.

— Isto é incrível — disse Elinore.

— Fico com vontade de visitar este lugar.

— Sempre que quiser — respondeu seu tio.

— Talvez depois que a criança nasça vocês todos venham passar uns tempos em Siracusa. Elinore poderia vir conosco esta noite?

Ninguém respondeu ao convite e o pobre Aziz, ligeiramente embaraçado, virou-se para a mulher.

— Minha irmã, de quem você não gosta nem um pouco, está rezando para que você tenha uma menina. Assim, o filho dela herdará minhas propriedades.

— Neste caso — respondeu Balkis — será um prazer desapontá-la. E se vamos partir esta noite eu deveria ir cuidar das malas. — Nós ajudaremos — disse Mayya, e todas as três mulheres se dirigiram para o quarto de hóspedes.

— O sultão pode morrer a qualquer dia, Ibn Muhammad. Perguntou por você hoje.

— Quanto mais cedo se for, melhor. Haverá um acerto de contas. Eu tinha muitas lembranças afetuosas dele, mas o tratamento de Felipe mudou tudo. Deixou-me zangado comigo mesmo por ser um tão pobre juiz das pessoas. Vamos falar de assuntos mais prazerosos.

— Deixe-me levantar um assunto indelicado. Idrisi sorriu por antecipação.

— Eu lhe agradeço por deixar Balkis voltar. Era importante para mim, mas você já sabe disso.

— Sei e se o embaraçar não precisamos discutir mais o assunto. Espero que seja um menino por sua causa. Já pensou em escolher outra esposa?

— Não há razão alguma para fazer isso. Tenho uma serviçal no palácio que satisfaz todas as minhas necessidades. Com ela não há nenhum fingimento. Se Balkis me der um menino estou contente. E você?

— Ficarei contente mesmo que Balkis lhe dê uma menina.


15

A morte de de Rujari.
Idrisi é pai de novo e duas vezes.
Sonhando com Siracusa.

Num dia frio de fevereiro do ano de 1154 do calendário cristão, o sultão morreu no seu palácio em Palermo e Balkis deu à luz um filho em Siracusa, embora Idrisi e Mayya só recebessem a notícia quando o Amir de Siracusa chegou para comparecer aos funerais do sultão, pois os faróis andavam ocupados demais transmitindo as notícias da morte do sultão e da data fixada para o enterro para se darem ao trabalho de passar outras notícias. Recebendo a informação, notáveis de todas as partes da ilha iniciaram a jornada para Palermo.

Idrisi caminhou até o palácio e foi recebido por Guilherme, paramentado nas vestes de sultão com o manto real envolvendo-lhe os ombros. Era um homem grande de barbas negras e aparência assustadora. Tendo abraçado Idrisi, implorou-lhe que se tornasse o Amir dos Amires e voltasse ao palácio. Idrisi agradeceu calorosamente ao herdeiro, mas declinou da oferta para substituir Felipe. Alegou deveres de erudito, explicando a necessidade de completar o Formulário este ano para ajudar os médicos a salvarem mais vidas. O novo sultão pareceu aceitar a desculpa e procedeu a informar-lhe que os barões estavam decididos a não levar em conta o testamento de Rujari.

— Querem enterrar meu pai na Catedral de Palermo.

— Ele construiu uma igreja especialmente em Cefalu para ser o local do seu enterro. Amava a cidade e a igreja.

— E alguém mais também, mestre Idrisi, como ambos sabemos.

— Seja como for, foi seu último pedido para mim. — E para mim. E para minha mãe. Mas a Igreja e os barões insistem em Palermo. Felipe era a única pessoa na ilha que poderia tê-lo enterrado em Cefalu. Então deixem-nos enterraremno em Palermo. Existe outra razão por que não pode ser enterrado em Cefalu: o bispo Boso apoiou o Papa errado e Roma não quer consagrar sua igreja. Como pode um rei ser enterrado numa igreja não consagrada? Prometi a Boso que, assim que se reconciliar com Roma, poderá ter o corpo do meu pai e podemos ter dois funerais para o seu amigo. Chegou a conhecer a sua concubina em Cefalu? Vamos, me conte. Como era ela? É verdade que estava grávida e...

Guilherme, balançando o corpo levemente, começou a rir. Era uma risada desagradável e Idrisi, que certa vez tentara ensinar a este menino geografia, astronomia e medicina, lançou a seu ex-pupilo um olhar severo. Era óbvio que andara fumando muitos cachimbos de shahdanj al-barr.

— Sultão Guilherme — Idrisi começou, mas não pôde continuar. Guilherme havia caído da cadeira e estava aparentemente adormecido no chão. Seus atendentes o ergueram.

Recuperou-se e dispensou os atendentes, embora Idrisi soubesse muito bem que estavam sendo observados através de buracos de espia nas paredes. — Mestre Idrisi, nos veremos no enterro de meu pai.

— Tenho a permissão do sultão para usar a biblioteca? Existem manuais de medicina que não estão disponíveis em nenhum outro lugar nesta ilha.

— Claro, e não precisa da minha permissão. Organizou esta biblioteca antes mesmo que eu nascesse. Use-a tanto quanto quiser. Uma pergunta para o senhor, mestre Idrisi, e gostaria que fosse completamente sincero como era com meu pai.

— Vou tentar.

— Como julgaria meu falecido pai como governante? Só em poucas palavras, quero dizer.

— Eu diria que o sultão Rujari de Siqilliya foi durante a maior parte do seu reinado um governante sábio e sensato, que protegia todos os seus súditos independentemente do credo. Governou seu povo com equidade e imparcialidade, impressionando a todos pela beleza de suas ações, pela profundeza de sua visão e pela doçura do seu caráter. Escrevi um pouco disso na dedicatória do meu livro. Podíamos acrescentar que ele matou menos gente do que seu pai e seu tio. Quando era governante e as pessoas lembraram-lhe o massacre dos Crentes nesta cidade, pouco antes da sua rendição para os francos, ele expressou remorso e arrependimento. Foi um habilidoso administrador e um homem de estado que podia levar a melhor sobre o papa e o imperador. Defendeu o interesse do seu reino acima de tudo e não permitiu que fosse debilitado por aventuras na Terra Santa. Foi sempre amistoso para com eruditos e ajudou-me consideravelmente a aperfeiçoar a qualidade do meu próprio trabalho.

Foi nos seus últimos dias, atormentado por uma doença que dificultava a sua respiração e afetava seu coração, que ele enfraqueceu em mente, corpo e espírito. Permitiu que os barões e os bispos o convencessem de que um sacrifício de sangue era necessário para fortalecer o domínio de sua família sobre esta ilha.

E em seus últimos meses cometeu um crime ao queimar um dos mais talentosos líderes deste reino, Felipe al-Mahdia. Assim começou o declínio.

— Não posso repetir tudo isso, mas lhe agradeço. Homens como o senhor são raros neste reino. Gostaria que ficasse do meu lado.

— Existem outros mais habilidosos na arte da administração do que eu e lhe servirão melhor. Meu conselho é simples: tenha cuidado com os barões. Sua avó teve de fugir do continente para Palermo quando seu pai era muito jovem. Ela se sentia mais segura aqui por causa do meu povo. Eram um contrapeso para os barões. Portanto tenha cuidado com eles. Tendem a atacar quando um rei é jovem. E nunca os encontre em particular sem uma mão na sua espada e empregados armados do seu lado. Que Alá o proteja, Ibn Rujari.

— Só uma outra questão. Não é de grande significado, na verdade é apenas uma curiosidade. Durante o julgamento de Felipe, quando um monte de mentiras era dito, ouviram-se dois peidos altos dos bancos ocupados pela sua gente. Tentei juntarme ao coro, mas falhei. Foi obra do Amir de Catânia ou do Amir de Siracusa?

— Não tenho idéia.

— Foi um esforço muito bom. Se descobrir, faça a gentileza de congratular o Amir em meu nome. Decidi construir um palácio no estilo dos seus sultãos e com o maior harém do mundo. Maior do que Bagdá e Qurtuba e vou equipá-lo à altura. Se um dia precisar de uma mulher... Começou a rir de novo. Idrisi achava esse tipo de conversa cansativo. Sem responder, curvou-se e deixou a sala de audiência. Ao caminhar lentamente através do palácio, sabia que não desejava voltar mais ali.

Os eunucos davam-lhe risos nervosos de reconhecimento. Nenhum deles parecia grandemente afetado pela morte de Rujari. Felipe pertencera a eles e, neste mesmo palácio, eunucos mais velhos o haviam visto crescer e prosperar.

Idrisi entrou na biblioteca. Talvez Guilherme provasse que seus detratores estavam errados e superasse o pai, mas mesmo quando o pensamento lhe passava pela cabeça viu que não tinha substância. Guilherme podia ser mais forte do que acreditavam, mas não era administrador ou estadista. Era muito fortemente apegado ao prazer.

Iria tornar-se dependente demais de conselheiros que matariam uns aos outros para ficar perto dele.

Idrisi não ficou muito tempo na biblioteca. Apanhou dois livros que precisava consultar e decidiu leválos para casa, ansioso por voltar para seu novo filho, já com seis semanas e com a voz e o apetite robustos.

Ao subir o caminho para a casa ouviu os sons da flauta de Ibn Thawdor e viu sua filha sentada num muro perto do rapaz observando-o com os olhos em transe. Sorriu interiormente e não os perturbou. Estava feliz que ela encontrara um amigo no músico. Elinore fora mais afetada pela morte de Rujari do que ele imaginara e pedira para acompanhar Idrisi no enterro. Nem sabia ele ao certo o que ela sentia pelo seu novo irmão. Devia lembrar-se de perguntar a Mayya. A chegada do pequeno Afdal havia removido os últimos traços de tensão entre eles e muitas vezes a ouvia cantando ninares que nunca escutara antes. Ela chegou a rir uma manhã ao pensar se Balkis teria um menino e se seria idêntico ao seu filho.

O Amir de Siracusa chegou um dia antes dos funerais. Viera sozinho e se hospedara no palácio. Levando em conta as condições de instabilidade na ilha, era útil saberem que ele era hóspede do sultão. O ar jovial de seu rosto era suficiente para transmitir as boas notícias: Balkis, também, dera à luz um filho e ambos estavam bem. Entregou a Idrisi um pequeno embrulho, que foi passado para um criado e despachado para o seu quarto.

— Alguma notícia do Confiável?

— Foi visto em inúmeras aldeias. Está muito perto de sua família e dizem que se encontra nas propriedades do seu genro no momento.

Nossa gente está pronta para lutar. Catânia, Noto e Siracusa não serão tomadas sem combate.

— Não creio que Guilherme tenha qualquer intenção de fazer guerra contra nós.

— Um ano atrás tinha seu pai qualquer intenção de queimar Felipe do lado de fora do seu próprio palácio?

— O que estou dizendo é que uma rebelião prematura poderia levar à derrota. O senso de oportunidade é sempre crucial.

— Então estamos de acordo. Quando Elinore entrou na sala para cumprimentar o tio, Idrisi notou suas faces coradas e seus olhos brilhantes. O tocador de flauta está afetando esta criança, pensou, e isso o agradava. Mayya chegou com Afdal nos braços e o Amir fez os ruídos certos, mas será que no olho mental comparava os dois bebês? No final da sua visita, o orgulhoso possuidor de um novo filho convidou a todos para visitálo em Siracusa.

— Será primavera logo e é a melhor época para nos visitar. Balkis está desesperada para vê-los.

— Tentaremos — disse Mayya — mas é uma viagem tão longa que só de pensar me cansa.

Idrisi recolheu-se à biblioteca para encontrar o embrulho de Balkis. Desfez o nó do barbante e abriu o papel. Dentro havia uma túnica cuidadosamente dobrada feita de seda pura na cor de leite queimado. Em cima havia uma carta. Elinore bateu na porta e entrou sem esperar sua resposta.

— Preciso pedir-lhe uma coisa, Abi.

— Deixe-me adivinhar. Quer aprender a flauta? Ela corou levemente.

— Gostaria de me casar com ele.

— Ele manifestou interesse?

— Não, porque o respeita muito e acha que vem de uma classe muito baixa para que o senhor sequer pense em tal casamento.

— Falou com sua mãe?

— Sim, e ela não gostou muito.

— Por quê? — Acha que ele é de classe baixa.

— Tem certeza de que o conhece o bastante para querer casar-se com ele?

— Sim. O senhor me disse certa vez que as questões do coração eram determinadas pelo instinto, não pela razão. Meu instinto me diz que serei feliz com ele.

— É tudo o que conta para mim, filha. Não tenho objeção. Gosto do rapaz eu mesmo, mas como vai ganhar a vida? Músicos não são pagos regularmente.

— Ele não toca apenas a flauta. Ele as fabrica e pode ensinar crianças a tocar. Quer que nos mudemos para Djirdjent onde a família de sua mãe o ajudará.

— Eu o ajudarei se quiser ficar aqui e seu tio em Siracusa é uma alma generosa se ele quiser mudar-se para lá. E você? Onde gostaria de morar?

— Não tenho certeza. Tem uma parte de mim que gostaria de deixar esta ilha para sempre e mudar para Salerno.

— Por quê?

— Instinto. Algo ruim vai acontecer aqui. Não pode sentir no ar?

— Elinore, você é batizada e Simeon ibn Thawdor também o é. Não precisam temer os barões. Nenhum mal cairá sobre vocês. Mas estou preocupado com seus dois irmãos.

Eles sobreviverão? Por quanto tempo? Quando alguns de meus amigos deixaram Palermo e foram se instalar em alAndalus eu zombei deles por sua tolice. Estava seguro de que tinha tomado a decisão certa.

Encolheu os ombros em desespero. Elinore beijou-o na cabeça.

— Embora ainda não tenhamos discutido Pitágoras e seus números conforme me prometeu, eu o amo.

— Os números eram importantes para os mercadores e marinheiros. Mas muito mais interessante era o estilo de vida que ele advogava. Talvez vocês devessem ir morar em Cariati, muito mais perto de nós do que Salerno. Os pitagóricos fugiram daqui para Kroton, como a chamavam então, e sua irmandade floresceu. Alguns deles vieram para Siracusa também. O símbolo da sua irmandade era o boi na língua. Cada novo recruta jurava segredo e silêncio. A fim de atingir seus objetivos e criar uma sociedade em que cada e toda pessoa tivesse uma responsabilidade moral, precisavam ser cautelosos. E sabia que eles também acreditavam que a única maneira de purificar a alma das infecções do corpo era por meio da música? Foi por isso que Pitágoras e seus seguidores se tornaram os primeiros a explorar as ligações entre música e matemática. E você encontrará livros que podem ensinar-lhe ainda mais do que sei. Não é um filósofo que eu tenha estudado a fundo. É sua mãe que ouço chamando por você? Diga-lhe que eu aprovo Ibn Thawdor e ela não deveria se preocupar com o seu dote.

Quando ela correu para fora do quarto, Idrisi começou a caminhar para cima e para baixo, parando para olhar o mapa sobre a grande mesa. Era o seu próprio mapa e ele pensava que era tempo de emigrar, mas com que destino? Então viu seu manuscrito inacabado e sabia que tinha de ser completado antes que ele fosse para qualquer lugar. A filosofia da medicina que elaborava baseava-se em oferecer curas simples e facilmente acessíveis para doenças que afligiam ricos e pobres. Lera algo num livro de Aflatun*1 que o desagradara e tivera a intenção de contar a Elinore. Encontrou o livro onde tinha assinalado a seguinte passagem:

*1. Platão. (N. do T.)

"Quando um carpinteiro está doente", disse Sócrates, "ele pede ao médico um remédio rápido — um emético, purgativo, uma cauterização ou o bisturi — é tudo. Se lhe mandarem fazer dieta e envolver a cabeça e ficar aquecido ele responde que. não tem tempo para ficar doente, que não tem sentido continuar vivendo só para cuidar da sua doença se não tiver tempo para levar adiante o seu trabalho. Então ele dá adeus ao médico e volta ao trabalho e ou melhora e vive para continuar ganhando o seu sustento, ou então morre e é liberado da sua desgraça."

 

"Entendo", disse Glauco, "e claro que este é o uso adequado da medicina para um homem na sua camada da vida."

Sorriu ao lembrar-se de como isso o enraivecera. O "uso adequado da medicina" significava a propagação de doenças infecciosas que não distinguiam entre carpinteiros e proprietários de grandes propriedades e centenas de escravos.

No livro que preparava, Idrisi escrevera que uma dieta saudável era a melhor medicina preventiva, mas também que não deveria haver tratamentos aos quais os pobres não tivessem acesso. Estes tratamentos deveriam estar disponíveis a todos em hospitais especiais. Outras considerações ele pusera de lado pelo momento, embora, em particular, concordasse com a injunção de Hipócrates: para curar um homem era necessário entender as origens e a causa da sua evolução. Esta era uma convicção proibida ao Povo do Livro que devia acreditar que Jeová, Deus, Alá haviam criado o homem — possivelmente uma simplificação do conhecimento que não ajudara o estudo da medicina. Os Antigos também tinham os seus mitos, mas estes continham o cerne de uma verdade. Prometeu, que dera ao homem o primeiro fogo para salvá-lo da extinção, estava claramente cônscio de que o homem possuía o cérebro para fazer uso do fogo e os próprios fabricantes dos mitos interpretavam Prometeu como o símbolo da inteligência humana.

Seus pensamentos foram interrompidos por Mayya, ansiosa para inspecionar o presente que Balkis lhe mandara. Ela colocou a túnica contra seu próprio corpo, mas era grande demais.

— Ela sempre foi boa na confecção de roupas, mas vamos ver como cai em você.

Levantou-se e trocou de túnicas. A seda agarrou-se ao seu corpo.

— Cabe perfeitamente em você. Balkis não se esqueceu do seu corpo.

Ele nada falou, mas não recolocou as roupas que usava. Sorriu vagamente para a mulher.

— Quando vai visitar Walid em Veneza?

— Depois de terminar meu Formulário.

— E quando vai ser isso? Quando Afdal tiver cinco ou dez anos?

— Poderia ser antes, se não fosse interrompido com tanta freqüência.

— Vim discutir sobre nossa filha. Não posso acreditar que tenha concordado em que ela se case com o filho de Thawdor.

— Porque ele é pobre?

— Bem, não exatamente isso, mas...

— Que outra razão poderia existir? Criação, naturalmente. Deixe-me contar-lhe que os ancestrais de Thawdor incluíam homens que governaram esta ilha centenas de anos atrás. Eu não compararia a linhagem dele com a sua ou a minha, menos ainda com aquela do seu cunhado.

— Se esta é a sua opinião, não farei mais objeções.

— Mayya, quero que nossa filha seja feliz. Eu lhes darei dinheiro para construírem uma casa onde quiserem.

— Não desejo que ela deixe Palermo.

— Isto, também, será escolha dela e não nossa. Quando ela saiu do quarto, ele olhou para as estantes e suspirou. Se deixasse Palermo ou Siqilliya, estes livros teriam de viajar com ele. Nunca os deixaria para trás. Percebendo como seria difícil levar todos, começou a fazer listas em sua cabeça dos livros de que não sentiria falta. Talvez não conseguisse convencer Mayya ou Balkis a partirem consigo, mas os livros não tinham escolha.

A túnica de seda acariciando seu corpo o fez pensar em Balkis, mãe pela primeira vez. Seu filho se tornaria o centro de sua existência e ela se instalaria no palácio até sentir que era a hora de procriar de novo. Pegou a sua carta.

Muhammad:

Pensei em tantos nomes diferentes para você, mas soavam tolos quando escritos e gastei uma porção de papiros. Só podem ser falados, portanto terá de esperar. Nunca pensei que a dor da separação podia machucar tanto até que o deixei há três meses. Não doeu só por dentro, mas no caminho de volta tive uma dor de cabeça, uma dor realmente forte que nunca sentira antes. O que o doutor recomenda? Não sugira uma infusão fria de amêndoas, leite e mel. Não funciona.

Sento-me e escrevo umas poucas linhas para você todo dia para que, quando o tempo chegar, eu possa acrescentar uma linha sobre nosso filho. Às vezes fico lacrimosa ao pensamento de que ele não saiba que você é o seu verdadeiro pai. Chegaremos um dia a contar para ele? Posso ouvir sua voz: como seu marido foi tão generoso e cordato, por que lhe negar o prazer de fingir que é seu filho? É claro que eu concordo, mas... E Mayya? Como está e como estão vocês dois? O bebê já nasceu? Menino ou menina?

Foi uma viagem terrível para Siracusa com uma tempestade perto de Messina, onde fomos forçados a passar a noite depois de deixar Palermo. Lembrei a viagem que fizemos juntos. Deve ter levado o mesmo tempo, mas pareceu tão rápida! Acho que estar grávida com seu filho não melhorou meu humor. Em Siracusa pensei muito em você e durante alguns dias não pude comer nada. Meu bondoso e ponderado marido quase chegou a mandar-lhe uma mensagem pedindo que viesse juntarse a nós, mas por mais que tivesse adorado isso pensei em Mayya e no seu estado e sabia que era errado. Então o impedi. Ele não faz exigências de mim e sei que tem uma mulher no palácio que serve as suas necessidades. Acho que ele lhe contou sobre ela. Estou contente porque não era nada agradável quando ele vinha à minha cama. É tão gordo e, além do desconforto físico, eu também sofria um desgaste mental. A túnica de seda ficou bem em você?

Existem tantas coisas que queria discutir com você em Palermo, mas nos absorvemos tanto um no outro que não houve tempo para discussões elevadas. Queria perguntar-lhe o que achava da poesia de Ibn Hamdis. Estou realmente com raiva de mim mesma por nunca lhe ter perguntado. Meu marido — mas você provavelmente sabe disso — pertence à mesma família e temos todos os seus poemas na biblioteca e alguns deles em edições muito finas. Está vendo, comecei até a usar a sua linguagem! Alguns deles eu acho sentimentais em demasia. Ele não foi "banido do paraíso". Ele saiu. Quero dizer, se ia sentir tanta falta de Siqilliya, por que foi embora, em primeiro lugar, e não voltou então depois para reviver os prazeres da sua juventude? Seus irmãos ficaram. A propriedade da família está intacta. Por isso suas lembranças de Siqilliya não me empolgam, embora tente dizer isso para um siracusano. Pode imaginar meu marido, que calmamente aceitou o fato de que somos amantes e que você era o pai do filho que herdará suas propriedades, que nunca falou uma palavra dura comigo, ficar vermelho de raiva quando eu lhe disse que Ibn Hamdis não era um poeta tão bom comparado com Ibn Quzman, Ibn Hazm e Abu Nuwas. Gritou, me chamou de ignorante e deixou o quarto como uma montanha em fogo. Depois voltou e pediu desculpas. Poucos dias depois do ocorrido, encontrei um poema de Ibn Hamdis que realmente me fez rir. Queria que risse comigo, mas você não estava aqui. Leia as palavras em voz alta e imagine nós dois dentro da sua túnica de seda:

Uma freira de claustro abriu o seu convento, e fomos seus visitantes noturnos.

A fragrância de um licor nos trouxe até ela, que revelava ao nosso nariz os seus segredos...

Coloquei minha prata na sua balança, e de sua jarra ela derramou seu ouro.

Oferecemos casamento a quatro de suas filhas, para que o prazer deflorasse sua inocência.

Quero saber o que pensa sobre isso e seus poemas siqilliyanos.

Muhammad, na noite passada contaram-me uma história terrível e não consegui dormir. Meu marido veio ver se eu precisava de alguma coisa e com ele veio sua horrível irmã de quem já lhe falei. É muito alta com um nariz igual a um grande pepino, seios do tamanho de melancias e uma voz alta e áspera e sempre quis sugerir-lhe que se juntasse a um bando de hermafroditas errantes e gozasse a vida. Ela entrou, olhou para meu filho sobre meu seio e disse: "Louvado seja Alá por este milagre."

Estava na ponta da minha língua dizer "Louvado seja Maomé,"*2 mas me contive. Então comecei a sentir uma dor nas entranhas e gritei para que ela deixasse meu quarto.

*2. Muhammad", em árabe, nome de Idrisi. (N. do T.)

A empregada veio do quarto vizinho, mas não era nada. Meu marido voltou depois para se desculpar por sua irmã. Eu disse que ela era uma serpente alimentada por Satã. E então ele sentou-se e contou sua história, que me horrorizou:

Ela é minha meiairmã, Balkis, e por favor entenda que teve uma vida dura. Meus pais não se davam bem e minha mãe devia se encontrar num estado de permanente tristeza. Quando eu tinha oito anos, meu pai deixou Siracusa e foi viver em Noto por seis meses. Minha mãe ficou tudo menos de coração partido, como pode imaginar. Cometeu uma indiscrição com um primo e engravidou. Quando meu pai voltou perguntou de quem era a criança, mas ela não falou.

Ele nunca mais falou com ela. A criança era minha irmã que você detesta tanto. Não foi bem tratada pelo pessoal da casa. Não creio que meu pai sequer pronunciasse o seu nome. Nem uma só vez. Em conseqüência, ela se tornou a favorita de minha mãe. Isso nos incomodou muito e fomos todos desagradáveis para com as duas. Quando muitos anos depois meu pai viajou para Palermo a negócios, o primo de minha mãe, que era o pai de minha meiairmã, voltou à casa. Minha meiairmã tinha 17 anos.

Uma noite, numa fúria embriagada, o primo violentou a própria filha. Ela engravidou. Minha mãe jogou o amante para fora de casa. Pelo que lembro, ele foi na verdade apedrejado. Meus irmãos e eu morávamos naquela casa grande mas só tivemos idéia do que havia acontecido muito tempo depois. Dizem que se valeram de misturas herbais para se livrar da criança e conseguiram, mas ela nunca se recuperou. Quando um primo me contou a história, confrontei minha mãe. Ela chorou e admitiu que era verdade.

Culpou a frieza e crueldade do meu pai e estou seguro de que há alguma verdade nisso, mas sempre me lembro do meu pai como de rosto moreno, alto, dignificado e simples em seus gostos. De qualquer modo, depois de saber desta tragédia, fiz de tudo para agradar minha meiairmã. Como você, meus irmãos não podem nem olhar para ela, o que é injusto. É nossa única irmã. Não espero que goste dela, mas tente entender. Ela é perfeitamente inofensiva."

Muhammad, meu querido muito amado, isso não é perturbador? O problema é que a mulher é maligna e venenosa e ainda a odeio. Tento imaginar o que diria nesta situação.

 

Começaria provavelmente com meu bondoso e ponderado marido...

Muhammad,

seu filho nasceu no dia em que o sultão morreu. Nós o chamamos de Hamdis ibn Aziz. Isso garantiria que ele jamais escreverá poesia. Meus seios estão transbordantes de leite. Se sua garganta doer, venha a mim.

Balkis

A leitura da sua carta o agitou e ele começou a esfregar as duas mãos na túnica de seda. Naquela noite ele declinou tanto a comida como o hammam, mas Mayya supôs que estivesse absorto no seu trabalho e não quisesse ser perturbado. Ele se retirou cedo para seu quarto e começou a andar furiosamente. Até então achara que sua paixão por ela desvaneceria gradualmente e se veriam uma, talvez duas vezes ao ano. Agora, subitamente, se deu conta de que era seu coração que não toleraria ausências tão longas.

Talvez devesse voltar a Siracusa com o Amir depois dos funerais do sultão. Quanto mais pensava nisso, melhor parecia a idéia. Elinore, Mayya e Afdal poderiam vir também. Iria visitar seus netos perto de Noto, talvez visitar a aldeia onde o Confiável realizara milagres e, acima de tudo, Balkis não estaria longe. A idéia melhorou o seu ânimo, mas ainda assim não tirou a túnica e quando, tarde naquela noite, houve uma batida na porta, ainda estava vestido. Ibn Fityan desculpou-se por acordá-lo, mas queria que soubesse que um incidente ocorrera nos jardins naquela noite. O jovem filho de um barão de Messina, que não chegava a ter vinte anos, acompanhado por dois ou três soldados mais velhos, saíra em busca de meninos nos jardins. Estavam para desonrar um menino quando se viram cercados por cinqüenta homens carregando adagas curtas e machadinhas. Os francos lutaram ferozmente e decapitaram um oponente, mas estavam em grande inferioridade numérica e foram subjugados. Foram executados no local e os corpos levados e jogados ao mar.

— Por que isso é considerado sério o bastante para me acordar no meio da madrugada?

— Quando o filho não voltou, o barão partiu à sua procura. Naturalmente não o encontrou e exigiu que, a não ser que o qadi apareça com o seu filho, ele tomará reféns e os levará para Messina.

— Intolerável e inaceitável.

— Querem que o senhor diga a Guilherme que se isso acontecer a cidade vai explodir e adiará sua coroação indefinidamente.

— Vou falar com ele depois do enterro. Ibn Fityan, esta emboscada foi cuidadosamente preparada?

— Parece que sim.

— Existe alguma possibilidade de que alguém pudesse revelar a verdade?

— Ninguém sabe quem organizou e executou esse ataque. É uma organização secreta e todos fizeram votos de sigilo.

— Notável.

— Gostaria que o ajudasse a se despir?

Idrisi olhou para si mesmo e riu.

— Acho que posso resolver isso sozinho. Siga em paz. Bem desperto e alerta, Idrisi despiu-se e fez suas abluções. Começou a compor uma resposta para Balkis em sua cabeça, mas só estava pela metade quando adormeceu profundamente. Foi acordado por Ibn Fityan a fim de se preparar para o enterro.

A catedral estava cheia e poucas pessoas haviam se reunido nas ruas, mas o espectro do martirizado Felipe pairava sobre as cerimônias. O arcebispo de Palermo, que conduzia as exéquias, parecia tão jubiloso com seu papel que quase esqueceu que era para ser uma ocasião triste. Guilherme rendeu ao pai um flamejante tributo, com algumas das frases que ouvira no dia anterior de Idrisi. Mais tarde, o novo governante convocou seu antigo tutor ao palácio. Um velório fora organizado e a grande sala que testemunhara a humilhação de Felipe estava agora pródiga de comida e vinho.

Idrisi compareceu por uma razão apenas: afastando Guilherme dos bandos de cortesãos bajuladores, informou-lhe da situação na cidade velha. O jovem ficou muito zangado diante da idéia de que sua coroação fosse subvertida por excessos de barões e convocou o arcebispo. O prelado, deliciado por ter sido escolhido em tão distinta platéia, acenou com a cabeça obedientemente e desapareceu para executar a vontade do seu governante.

— Diga ao qadi que ele não precisa mais se preocupar. E, mestre Idrisi, descobri que foi o Amir de Catânia quem peidou nas duas ocasiões. Um homem notável.


16

Primavera em Siracusa.
Boa e má poesia.
Pais e filhos existem poucos deleites no mundo
tão agradáveis como uma primavera siracusana.

A fragrância das flores de limões, laranjas, abricós, amêndoas e pêssegos toma conta da cidade, enriquecida pelas brisas úmidas e salgadas do mar. Nas colinas nos arredores da cidade as plantações seculares, laboriosamente cultivadas, das oliveiras estão sendo cuidadosamente inspecionadas para se verificar os danos causados pelas tempestades de inverno e pelos relâmpagos. O sol irradia um calor de boas vindas e o ar está fresco, não tristonho e pesado como no verão.

E tudo isso é grandemente realçado quando uma pessoa está apaixonada. Desde sua chegada de Palermo um mês atrás, Idrisi e Balkis deleitaram-se na companhia um do outro. Não havia nada furtivo no seu comportamento, mas não fosse o fato de que saíam para cavalgar abertamente e às vezes eram acompanhados pelo próprio Amir, haveria uma incessante onda de mexericos. Os eunucos do palácio e algumas poucas serviçais leais sabiam que Balkis freqüentemente passava a noite no quarto de Idrisi e, embora comentassem entre si, garantiam que o segredo ficasse confinado ao palácio.

Uma manhã gloriosa e fresca, antes que o sol secasse a terra, ela insistiu que tirassem suas sandálias e banhassem seus pés no orvalho, nas folhas e na grama.

Era uma de suas curas para dores de cabeça persistentes e ele perguntou se ela estava se sentindo bem.

— Li um poema ruim de Ibn Hamdis esta manhã enquanto você ainda dormia e isso me deu uma dor de cabeça.

Ele sorriu:

— Balkis, você é injusta com o poeta. Existem alguns poemas insuportáveis, mas ele também escreveu versos muito belos. Não o deve punir porque Aziz pertence à mesma família.

— Não pode imaginar os elogios que reservam para ele. É como se nenhum outro poeta tivesse existido. Aziz é mais contido, mas mesmo ele insistiu em chamar nosso filho de Hamdis. Por que está rindo?

— Eu não a encorajaria, mas subitamente lembrei-me de uma quadra escrita por Ibn Hamid, um de meus amigos de infância em Noto.

— Nunca o mencionou antes.

— São muitas lembranças dolorosas. Brigamos antes que ele partisse. Acusou-me de ser uma criatura do sultão. Sinto muita falta dele agora e...

— A quadra?

— Deixe-me tentar lembrar. Um poeta menor de Noto, um freqüentador de bares e bordéis, está visitando Siracusa para escolher seu prostituto favorito.

Depara-se com Ibn Hamdis. O grande poeta está agitado e suas roupas amarrotadas. O visitante de Noto pergunta polidamente qual é a causa e um breve diálogo entre os dois chega abruptamente a um fim:

"Fui roubado! Os ladrões me arruinaram!" "Eu me solidarizo, compartilho sua desolação." "Roubaram um maço de páginas da minha poesia!" "Eu me solidarizo — com o pobre ladrão."

Ela riu desenfreadamente.

— Minha dor de cabeça passou. Sua cura funcionou.

Idrisi viera preparado para uma longa estada, acompanhado por Elinore, Ibn Thawdor e trezentos livros considerados necessários para o trabalho ainda incompleto.

Mayya prometera vir depois quando Afdal estivesse um pouco mais crescido. O dia de Idrisi era cuidadosamente organizado. Passava cinco horas na biblioteca do palácio, onde se surpreendeu ao encontrar alguns manuscritos de autores que lhe eram desconhecidos. Ficava impaciente com todo livro que contivesse superstições e as apresentasse como conhecimento científico. E houve muitos destes que descartou raivosamente no curso de seu trabalho.

O resto do dia era passado na companhia de Balkis. Eram capazes de conversar e rir durante horas. Ela aceitava sua ponderada crítica de Ibn Hamdis e fazia suas próprias observações mais cautelosamente, mas sua visão básica do poeta permanecia inalterada, embora concordassem em nunca discutir a questão com os descendentes do poeta.

Elinore implorara a ele que a deixasse casar o mais cedo possível. Observara o jovem casal na viagem de barco e estava convencido de que se destinavam um ao outro.

Perguntou-lhes se seriam felizes em se casar na ausência da mãe dela e dos pais dele e lhe disseram que ambas as partes haviam recomendado este curso de ação.

O Amir tomou conta da questão e numa bela manhã de domingo Elinore bint Muhammad e Ibn Thawdor foram casados pelo bispo numa cerimônia quieta na velha igreja bizantina. Reservaram-lhes uma série de aposentos no palácio e na festa daquela noite Ibn Thawdor tocou flauta para marcar seu próprio casamento.

Várias semanas depois um mensageiro chegou de Noto com uma carta de Sakina, sua filha mais velha, informando a Idrisi que a mãe dela morrera tranqüilamente poucos dias antes. O resto da família havia se reunido, com a exceção de Walid, e ela implorou a Idrisi que voltasse à propriedade para decidir o que deveria ser feito.

Não era uma decisão para ela ou qualquer outra pessoa.

— Tenho de ir — falou a Balkis.

— Estava contente de morrer sem ver minha casa de novo, mas Alá quis que fosse diferente. É estranho, mas nada sinto para com a mulher que partiu. Nada.

— Leve Elinore e Ibn Thawdor com você. Gosta da companhia deles e ela deveria ver a casa onde seu pai nasceu. Se eu não tivesse de executar as cinco amamentações obrigatórias para Hamdis, eu o acompanharia também, quando não para a eventualidade da poeira na jornada causar-lhe uma dor de garganta.

Partiram cedo uma manhã numa grande carroça coberta puxada por dois cavalos e com um séquito de quatro criados armados. Um novo caminho fora aberto para reduzir o tempo necessário para chegar a Noto. As razões disso eram militares, mas todo mundo se beneficiava e os mercadores ficaram especialmente contentes. Ao passarem por um antigo aqueduto insistiu para que interrompessem a jornada. Ele o tinha visto de longe em viagens anteriores e agora tinha uma oportunidade de observar sua estrutura mais de perto.

— Concordo em parar — disse Elinore — contanto que sejamos poupados de uma palestra sobre a Roma antiga.

Idrisi sorriu e ignorou o comentário, mas para puni-la levou Ibn Thawdor consigo e enriqueceu a compreensão do rapaz sobre o mundo antigo. Ao reiniciarem a jornada, caíram em silêncio. Pensavam todos no que vinha à frente.

Idrisi não via seu filho mais velho, Uthman, há quase vinte anos e sofria só de pensar no rapaz. Como médico, podia tentar a cura de dores e desordens estomacais, febres e picadas de cobras, mas não tinha idéia do que causava o sofrimento mental ou por que seu filho mais velho nascera com uma mente desordenada. Não havia problema com seu corpo. Fora normal como qualquer outra criança, com a exceção de que demorou a falar. Isto não o preocupara indevidamente até que o menino completou cinco anos e mal chegava a falar. Acabou aprendendo, mas via-se obviamente que era diferente dos demais. Preferia ficar sozinho. Falava longamente com animais da fazenda e podia ser visto rindo com eles, mas quando um humano se aproximava ele corria e se escondia num celeiro ou atrás de uma árvore ou se agachava no campo aberto e imaginava que ninguém podia vê-lo.

Não desejando que Elinore fosse apanhada de surpresa, Idrisi contou-lhe toda a história. Sua única reação foi segurar com força sua mão. Ela vinha pensando como a família receberia a ela e a Ibn Thawdor. Talvez fosse um erro ter vindo com seu pai.

O sol ainda estava alto quando entraram na propriedade nos arredores de Noto. A grande casa ficava no alto do morro aberto. Era construída em dois níveis ao redor de um pátio margeado por uma fileira de laranjeiras. Atrás da residência havia casas de camponeses construídas na encosta e perto delas uma pequenina mesquita com uma cúpula.

Abaixo da casa, de cada lado do caminho, havia terraços cultivados que desciam suavemente a encosta, construídos por seu avô. Frutas de toda variedade eram flanqueadas por amoreiras para os bichos-da-seda. Legumes e trigo cresciam nos campos planos das proximidades. A paisagem o agradou. A mãe de Sakina devia ser uma boa administradora — algo em que não podia inteiramente acreditar — mas não havia mais ninguém que pudesse ter supervisionado tudo, desde que ele partira e deixara claro que não tinha nenhuma intenção de voltar.

Viu Khalid cavalgando em sua direção, acenando, e Idrisi respondeu ao aceno. O menino tinha perdido a mãe e a avó no espaço de um ano. Um menino em crescimento precisa de uma mulher na casa. Umar deveria casar-se de novo.

— Jiddu, Jiddu — o menino gritava, ao se aproximar. Abandonou o cavalo que montava em pêlo e saltou para a carroça, abraçando o avô e dando um sorriso amplo ao ser apresentado à sua nova tia e a Ibn Thawdor. Havia crescido muito nos últimos seis meses. Barba e bigode começavam a brotar no seu rosto. Elinore esperava que seu pai não se referisse a isso e embaraçasse Khalid, mas ficou desapontada.

— Fico feliz em ver uma barba a caminho. Já decidiu se vai usá-la comprida ou curta?

— Não vou deixar crescer, Jiddu. Nem barba, nem bigode.

— Impensável, meu jovem. Impensável. Todo mundo em nossa família usa uma ou outra. Vou falar com seu pai.

Vamos ver o que ele tem a dizer sobre o assunto.

— O Confiável diz que estas coisas não têm nenhuma importância.

— Então por que ele usa barba?

— Porque é preguiçoso demais para se barbear. Está ansioso para vê-lo de novo.

— Ele está aqui?

— Sim, naturalmente. Veio conosco. Ele e Abu ficaram muito amigos.

Lá se vai minha propriedade, pensou Idrisi. O resto deles, também, o havia visto e esperava para recebêlo. Sakina beijou suas mãos e ele abraçou-a e beijou-a na cabeça. Seu marido estava presente, bem como os gêmeos. Abraçou Abu Khalid com calor especial. Foram todos apresentados aos recém-casados. Sakina, tendo perdido uma irmã, estava ansiosa para agradar à nova. Levou Elinore e Ibn Thawdor aos seus quartos. Idrisi olhou ao seu redor.

— Onde está Uthman?

— Vou levá-lo a ele — disse Khalid. A visão do seu primogênito sempre tinha um efeito perturbador sobre ele. Devia completar 35 anos este ano. A mulher que cuidava de Uthman viu quando se aproximavam. Pelo menos ainda está viva, Idrisi pensou consigo mesmo. Seu corpo forte e ossudo deve tê-la ajudado a sobreviver ao pior de uma dura vida. Então viu Uthman escondido atrás de uma árvore observando-o.

— A paz esteja com você, filho. Não vai se aproximar e cumprimentar seu velho pai?

Idrisi ficou chocado ao ver Uthman emergir do esconderijo. Tinha envelhecido muito além dos seus anos. Seus cabelos estavam brancos e caminhava com o ar de um frágil ancião. No entanto, falou com uma voz forte e segura.

— A paz esteja com o senhor, Abu. É bom vê-lo depois de tantos anos. Sabe, naturalmente, que minha mãe e minha irmã foram mortas por soldados romanos.

— Uthman, é bom vê-lo depois de todos estes anos. Precisa de alguma coisa? Qualquer coisa?

— Preciso de uma esposa, Abu. Uma esposa.

— Tem alguém em mente? Uthman levou o pai pelo braço até o cercado das ovelhas. Apontou para uma delas.

— Estou vendo, Uthman. Ovelhas.

— Aquela ali — disse ele, apontando de novo.

— Quero casar-me com ela. Não me diga que não é permitido, Abu. Quem não permite?

Quem?

Idrisi se deu conta de que uma referência ao Corão não surtiria muito efeito com seu filho. Decidiu tentar outra coisa.

— O imperador Romano proibiu o casamento entre humanos e animais.

Uthman gritou.

— Eu sei disso, naturalmente. É para desafiá-lo que vou levar adiante este casamento. Deixe que seus soldados venham. Nós os emboscaremos e mataremos.

Está com seu escudo e espada prontos, jovem Khalid?

— Sim, tio.

— Vá buscá-los. Quando Khalid desapareceu Uthman sentou-se na cadeira debaixo da árvore e falou de novo.

— Foi o grande pensador grego Pitágoras quem nos ensinou que os humanos foram reencarnados como animais, pai. Sabia disso? Por favor, prepare o meu casamento.

— Eu sabia disso, filho, mas onde ouviu falar a respeito?

— Na sua biblioteca. Vou lá muitas vezes para ler. Existem muitos livros de interesse. Gosto muito deles.

Lágrimas encheram os olhos do pai. O que saíra errado nesta criança? Os antigos escreviam sobre pessoas perdendo a cabeça, mas não tinham cura. Devia haver uma cura.

Por que deveria uma doença mental ser ignorada ou depender de remédios baseados em pura superstição?

— Não quer entrar em casa e dividir a comida conosco?

— Não posso, Abu, porque vocês vão sentar-se e comer minha madrasta. Eu a vi ser morta, despida, marinada, depois do que pequenas lanças de alho perfuraram seu corpo e então a cobriram com tomilho silvestre porque até eles estavam envergonhados da sua nudez. Pode vê-la agora sendo assada suavemente no fogo.

— Amanhã prometo que não consumiremos nenhuma carne. Comerá conosco então?

— Com grande prazer, Abu. Fico feliz em vê-lo de novo. E fiquei feliz em saber por meu sobrinho que seu livro foi completado. Obrigado por ter vindo me ver.

Ao caminhar de volta para casa, Idrisi refletiu sobre o fato de que o único membro da família que mostrara qualquer interesse pelo livro fora seu filho mentalmente perturbado. Depois, Sakina contou-lhe que na maioria dos dias, à parte suas conversas com os animais, Uthman era completamente normal. Apenas quando imaginava que os soldados o iam encontrar e matar é que deixava a casa e escondia-se fora dela durante dias. E tinha medo de visitantes — achava que eram espiões que voltariam e o delatariam ao comandante da Legião Romana em Siracusa.

— Por que envelheceu tanto?

— Aconteceu lentamente, mas não sabemos por quê. Ummi achava que devia ter alguma relação com a doença.

— Não estou nada seguro de que seja isso. Khalid, que os escutava, tinha outra teoria. — Acho que foi a tristeza que deixou seus cabelos brancos. Dia após dia, fica sentado na cadeira e observa os animais serem mortos. Isso realmente o perturba. Sabe de uma coisa, Jiddu, fico sentado com ele enquanto fala com os animais.

Tenta ensinar-lhes nossa história e sobre o nosso Profeta e as batalhas, mas geralmente fala com eles sobre a Grécia antiga e seus grandes filósofos. Aprendi muito com ele. Por que não o deixa casar com quem quiser?

— Khalid! — advertiu sua tia.

— O menino pode estar certo sobre a causa do seu envelhecimento prematuro. Não existe modo algum de afastá-lo dos animais? E se tirássemos todos os animais da propriedade?

A sugestão deixou Khalid em pânico.

— Nunca faça isso, Jiddu. Ele só acharia que foram todos mortos e se mataria também.

— Parece conhecê-lo melhor do que qualquer pessoa, meu filho. Claro que algo poderia se organizar para fazer com que os animais sejam abatidos à noite enquanto ele dorme. Se isso lhe causa tanta aflição, por que fazem à sua frente? O que acham?

Khalid pensou por um tempo.

— É uma boa idéia, mas ele conhece todos eles e sentiria sua falta. Ainda assim, seria a melhor solução.

Naquela mesma noite Sakina instruiu o açougueiro e as ovelhas e cabras foram removidas à noite. Na semana seguinte, Uthman parecia muito mais feliz e certa tarde sussurrou para Khalid.

— Meus amigos estão aprendendo a escapar. Sabem que vão ser abatidos e fogem toda noite. Eu lhes disse para fugir e se esconder nas cavernas perto do mar. Espero que minha noiva não fuja.

— Mas, querido tio. Não preferia que ela fugisse? E se eles a matassem?

— É um menino esperto. Sinto orgulho de você. Acho que vou ter de casar com outra pessoa.

Naquela noite a ovelha que havia chamado a atenção de Uthman foi tirada do cercado e preparada para a cozinha na manhã seguinte. Eles a comeram ao almoço e Idrisi notou Khalid remexendo nervosamente na carne sem comer quase nada.

Talvez não haja remédio para sua doença, pensou Idrisi, mas se existe uma cura deve ter a ver com entrarmos dentro de sua cabeça e Khalid fez mais do que qualquer adulto na casa.

O Confiável era da mesma opinião. Empenhara-se em um número de conversas com Uthman na biblioteca e ficou espantado ao ver que ele sabia onde se achava cada livro e, dos livros que havia lido, era capaz de citar números de páginas e referências sem qualquer problema.

— Talvez só uma parte da sua mente tenha deixado de funcionar. O resto é normal. Esta é a parte do corpo humano que os médicos menos conhecem.

Uma noite, depois do jantar, reuniram-se em torno de uma fogueira que fora acesa do lado de fora, comeram frutas secas e beberam chá de menta debaixo das estrelas.

Aquilo lembrou a Idrisi sua juventude. Chamou Elinore de lado e apontou para as luzes de uma aldeia distante.

— Eu cavalgava até lá uma vez por dia só para ver de relance sua mãe.

— E minha tia? — Não, sua danada. Ela era pequena demais para ser levada a sério.

Abu Khalid sugestivamente clareou a garganta e Idrisi e Elinore voltaram ao círculo familiar. Idrisi falou das mortes na família e elogiou sua falecida esposa pela maneira eficiente como havia administrado a propriedade. Uma reflexão inesperada o interrompeu.

— Gostaria que Walid estivesse presente para ouvi-lo dizer isso, Abu. Teria ficado feliz.

Idrisi sorriu.

— Eu também gostaria que ele estivesse aqui, Uthman. Que Alá proteja todos os meus filhos.

Descreveu como era uma terra inculta cheia de morros quando seu avô ali chegara num verão. Precisaram de seis meses só para arrancar as pedras do chão para construir os primeiros poucos terraços. Muitas das pedras foram usadas para construir a casa. Quando as chuvas de inverno chegaram, a terra se transformou, os morros ficaram verdejantes e os riachos transbordaram. Só então ficaram seguros de que tinham feito uma boa escolha.

— E agora temos decisões a tomar. Ainda que eu permaneça nesta ilha, nunca mais viverei aqui de novo. Sakina mora com a sua família. Abu Khalid e Khalid são felizes na sua propriedade. Uthman, naturalmente, viverá aqui com seus amigos, mas não pode dirigir a propriedade. Os camponeses que trabalham nestas terras, como seus ancestrais antes deles, sofrerão muito se vendermos a propriedade. Eu me perguntava como deveríamos resolver esse problema quando Khalid me contou que ele e o pai haviam convidado o Confiável para juntarse a nós. Então eu me volto para ele. Homem santo, se é isto o que realmente é, explique-nos como vamos ensinar os camponeses a prestar falso testemunho descaradamente a fim de se defender contra o futuro. Soubemos todos da aldeia onde milagres aconteceram depois da sua visita.

O porte do Confiável havia se alterado desde que se encontrara com a irmã de Bulbula. Cortara o cabelo e aparara a barba. Banhava-se com mais freqüência e vestia roupas limpas, tudo em parte por causa de um pedido feito pela irmã de Bulbula. Mas também estava ciente de que descrições suas circulavam em toda a ilha e que os lombardos velhacos logo estariam em busca de sua vingança.

O erudito havia feito perguntas que requeriam uma resposta.

— Douto mestre Idrisi, eu lhe agradeço e à sua família pela hospitalidade que me deram. A meu ver, existem poucos problemas em relação a esta propriedade. Os camponeses não foram maltratados e são todos Crentes. O tamanho da propriedade não é excessivo. Andei fazendo alguns cálculos.

Existem cem famílias camponesas, além de seis empregados na casa.

— Na verdade, Confiável — disse Uthman — existem 103 famílias e oito empregados. Esqueceu de contar o açougueiro e o lenhador que comem diariamente em nossa cozinha.

— Obrigado por me corrigir, Uthman ibn Muhammad. Há terra suficiente para ser dividida entre estas famílias. Isso deixará terra bastante para manter a propriedade, não como antes, mas certamente sem criar um problema. Existe ainda a questão de prestar falso testemunho. Isso é desnecessário pois o próprio Ibn Muhammad assinará os documentos de transferência, que podem ser registrados em Noto. O problema é o futuro. Se formos derrotados, a única maneira que os camponeses têm de conservar as terras é fingir que são nazarenos. Vocês têm uma pequena mesquita aqui, mas nenhuma igreja. Acho que precisamos de uma. Grega, não latina. É mais simples. Se os camponeses concordarem, vi um local onde poderia ser construída facilmente. Uma vez feito isso, precisamos de um monge e de um registro em que ele testemunhará que converteu a aldeia no dia em que Rujari morreu para honrar sua memória.

— Confiável — Uthman perguntou numa voz nervosa -, meus amigos serão forçados a se tornar nazarenos?

— O que são eles no momento?

— Não são nem Crentes nem nazarenos. Ainda adoram o antigo deus grego, Posêidon.

— Não será necessário que se convertam.

— Nem eu, então. — Isso não será um problema.

— Talvez tudo isso possa ser feito — disse Idrisi — mas nossos camponeses são muito religiosos e duvido que concordarão em mudar de religião para conservar sua terra.

— Esta é uma ilha estranha — disse o Confiável.

— Seu clima e seu modo de vida têm uma maneira de afetar todo mundo. A escolha é ou deixar que o tirano colha os frutos que semearam e serem expulsos da terra ou fingir que foram batizados. Podem rezar para Alá cinco vezes por dia nos campos ou em casa. Mas a escolha é deles, não sua ou minha. Isso eu aprendi na outra aldeia. Havíamos vencido, mas os camponeses tinham medo de represálias. E prometer-lhes que não haveria matanças de vingança porque íamos ser vitoriosos e retomar a ilha não era convincente. Não estou seguro de que isso seja possível, dado nosso atual estado, por isso como poderia convencer outra pessoa? Foi então que pensei nas conversões planejadas por nós como uma defesa para aquelas forçadas ao nosso povo pela força da espada. O que há de mau nisso? Alá seja louvado, se vencermos. Se perdermos, vamos garantir que os camponeses e suas famílias fiquem seguros, embora nós possamos não ficar. É o mínimo que pode ser feito por eles.

— É conselho sensato, devo concordar — disse Idrisi.

— Mas nesta propriedade eles não tiveram de lutar contra a adversidade e isso lhes deu uma extraordinária autoconfiança.

Vou apoiar o seu conselho.

Elinore e seu marido discutiram seu futuro através da noite. Ela queria deixar Siqilliya, mas ele queria ficar para que seus filhos nascessem ali. Lembrou a ela que sua família havia vivido em Siracusa desde que a cidade fora construída. Ela argumentou que não podia suportar a idéia de ver seus filhos nascerem em meio a carnificinas e à incerteza. Se Rujari, que ela amava, pôde matar Felipe, a quem ela admirava, o derramamento de sangue nesta ilha jamais iria parar. Ele debruçou-se e sussurrou algo no ouvido dela que a fez rir. Foi uma risada profunda, sonora, espontânea, saída direto do coração.

— Isto quer dizer que chegamos a um acordo, minha senhora?

— Apague a vela, Simeão, e deixe-me dormir. Você saberá pela manhã.

Na manhã seguinte o som de sua flauta a acordou. À primeira luz matinal na janela ela o viu, seu rosto inclinado para um lado, os olhos fitando tristemente o mar distante. Nunca percebera que a música poderia tal um efeito em si. Agora desejava ter cedido à pressão da mãe e ter aprendido a tocar o alaúde quando ainda moravam no palácio. Havia tomado sua decisão, mas comunicaria a Simeão depois.

O Confiável acordou cedo para que pudesse falar com as famílias camponesas. Tinha organizado um mehfil no final da tarde, uma hora antes do tempo em que normalmente acabavam de lavrar os campos. Tudo o que lhes disseram foi que Ibn Muhammad alIdrisi havia voltado à propriedade e desejava conversar com eles. Sakina já estava na cozinha supervisionando a comida que tinha de ser preparada para alimentar a assembléia.

Idrisi havia levado Uthman numa caminhada para respirar e inspecionar os pomares. Uthman também se mostrou competente aqui, olhando atentamente para cada árvore e calculando as frutas que daria mais para o fim do ano. Sua constante ânsia de se afirmar alegrou o pai, que ficou a pensar se não o teriam abandonado por muito tempo e falar com ele todo dia e tratá-lo como uma pessoa normal não poderia tê-lo curado parcialmente.

Subitamente, à distância, ouviram o som de pessoas correndo em sua direção e acenando para eles. Uthman congelou, o rosto tomado pelo medo. Idrisi colocou os braços em volta dos ombros do filho e disselhe para não se preocupar, eram amigos, não soldados romanos.

— Tem certeza, Abu? Nenhum de nós está usando espadas. Uma Elinore de olhos brilhantes e Simeão, seus cachos dourados agitados pela brisa, ambos ligeiramente ofegantes, pararam de correr quando viram o pai. Uthman sorriu e relaxou de novo. Gostava de Elinore e adorava ouvir Simeão tocar a flauta. Idrisi olhou para ela e soube no instante que tinha algo a lhe dizer mas não esperava encontrar Uthman com ele.

— O que se passa em sua cabeça, filha? Não há segredos para o seu irmão.

— Vou sentar-me debaixo da árvore, se quiserem — disse Uthman.

— Não!

— Então fale.

— Simeão ibn Thawdor e eu temos pensado muito. Chegamos a uma decisão, mas só se ela tiver a sua aprovação, Abi. Gostaríamos de vir morar aqui com Uthman e... se o Confiável está certo quanto à necessidade de construir uma igreja, então Simeão poderia, quando fosse necessário, vestir uma batina de monge e esconder sua flauta.

Uthman bateu palmas de entusiasmo e Idrisi riu. Estava surpreso e contente. O que o preocupava era a idéia de Uthman, abandonado por sua família e dependendo apenas dos criados. Sentia-se culpado de ter abandonado o rapaz quando ainda era jovem. Agora sua filha decidira fazer o que ele deveria ter feito anos atrás.

— Uma decisão maravilhosa! Contanto que se sintam felizes aqui, todo mundo será feliz. Mas até que precise se tornar um monge, Simeão, você deveria escolher um pedaço de terra e cuidar dele.

— Vou fazer isso — respondeu -, mas antes precisamos construir uma pequena igreja. Um cúpula, uma cruz e bancos toscos de madeira, sem adornos, dentro dela. O mapa está na minha cabeça. Podia ser usada como escola. Elinore está decidida a ensinar as crianças a ler e escrever em árabe e grego.

— Quando vão ter as crianças?

— Uthman! — ela gritou ao vê-lo de pé, as pernas afastadas, as mãos nos quadris.

— Acabamos de casar. Nos dê um tempo. Simeão estava falando das crianças da aldeia.

— Fico muito feliz que você e Simeão vão morar aqui comigo. Muito feliz. Temos muito a discutir, mas agora, se me derem licença, preciso ir para informar meus amigos.

Quando os aldeãos chegaram para o mehfil, vestiam suas melhores roupas. Idrisi, que conhecia a maioria das famílias, sentou-se com eles um pouco enquanto comiam e falavam de como a ilha era antes de chegarem. Tudo o que se cultivava era trigo. Agora tinham algodão e bichos-da-seda e a árvore de sumagre para curtir e tingir e nossas tecelãs — e falavam só de Noto — eram as melhores da ilha, se não no mundo inteiro. Uma voz acrescentou:

— Noto foi a última a se entregar e será a primeira a se levantar contra eles.

Depois que comeram, Idrisi e o Confiável falaram cada um por sua vez e explicaram como viam o futuro da propriedade. Os aldeãos ficaram exultantes quando Idrisi lhes disse que a terra pertenceria a eles, mas menos felizes quando o Confiável gentilmente explicou que o caminho da sobrevivência a longo prazo poderia necessitar um desvio pela igreja.

— Confiável — um jovem camponês perguntou -, é normal sonhar com vitórias e triunfos, mas o senhor só fala de derrota. Tem certeza de que seremos derrotados? Nossa aldeia ofereceu cinqüenta jovens para lutar na jihad.

— Meu amigo — respondeu o Confiável -, é melhor estar preparado para tudo. Não sei se vamos vencer ou perder. O que fizerem deve ser da sua própria escolha. Se formos derrotados estou lhes dizendo que, assim como a noite sucede ao dia, os lombardos virão para matar todos vocês e roubar sua terra. Mataram gregos também, de modo que a igreja poderia não ser proteção suficiente, mas pelo menos lhes oferece uma oportunidade.

Idrisi apresentou-lhes Elinore e Simeão. Explicou sem embaraço como ambos haviam sido batizados e viveriam na casa com seu filho Uthman. Falou do desejo de Elinore de ensinar seus filhos a ler e escrever. Aconselhou-os a seguirem os conselhos do Confiável e então, talvez porque pensasse em Balkis, citou uma parelha de versos de Ibn Hamdis.

— Nosso poeta escreveu: "Exauri as energias da guerra! Carreguei em meus ombros os fardos da paz." Estes fardos permanecem e é para aliviar a carga que o Confiável sugere que, caso se torne necessário, escondam sua verdadeira religião. Tais períodos não são desconhecidos na história do nosso povo.

Depois de novas discussões, chegou-se a um entendimento e na sua presença Idrisi pediu ao Confiável que preparasse uma série de registros, um para a terra, outro para a igreja. E então, como se para confirmar seus novos sonhos, Simeão tocou uma melodia jubilosa na flauta e todo mundo começou a bater palmas em ritmo, até que alguns jovens se levantaram e começaram a dançar. Era, como Idrisi contou depois a Simeão, uma dança tradicional berbere que ele não via há muitos anos, memórias da vida no passado distante.

Naquela noite Idrisi chamou o pai de Khalid de lado.

— Umar, você é como um filho para mim. Posso falar francamente com você?

— Claro, Abu Uthman. Por favor.

— Khalid está crescendo rapidamente. Daqui a pouco vai estar discutindo e implorando com você para deixar esta terra e fincar seus pés e sua fortuna em outro lugar.

Mas sinto que falta ao menino o afeto de uma mulher. Já pensou em se casar de novo?

— Já, mas ainda não encontrei uma mulher que me atraia.

— Noto e Siracusa estão cheias delas, suas peles da cor de abricó e sua risada como as ondas de um regato.

Não encontrará ninguém na sua propriedade. Saia por uns tempos. Dê a si mesmo uma oportunidade.

— É um bom conselho e vou ver se posso satisfazer tanto ao senhor como a mim mesmo.

Na manhã seguinte, Khalid e seu pai, acompanhados pelo Confiável, deixaram a propriedade e Sakina os seguiu poucas semanas depois. Seu marido e filhos tinham voltado no dia seguinte aos funerais e ela achava que era hora de voltar e cuidar de suas necessidades. A casa estava virtualmente vazia e Uthman sentia falta do sobrinho, por isso Simeão e Elinore decidiram não voltar com Idrisi no dia seguinte para buscar suas coisas.

— Todas as nossas roupas já estão em Siracusa e minha tia Balkis pode empacotá-las e mandá-las para cá. Não quero deixar Uthman. Se todos nós fôssemos embora o choque poderia ser demais para ele.

— Por favor, transmita meus respeitos e amor ao meu pai quando voltar a Palermo. E diga a ele que estou construindo uma pequena igreja. Isso agradará a minha mãe.

Idrisi abraçou e beijou cada um deles e ficou profundamente afetado ao ver lágrimas nos olhos de Uthman.

— Abu, foi um prazer verdadeiro ver o senhor depois de tanto tempo. Por favor, volte e antes de vinte anos, oito meses e quatro dias.

Os olhos de Idrisi estavam úmidos ao embarcar na carroça e era Uthman quem ocupava mais seus pensamentos na jornada de volta a Siracusa. Lembrou como todo o seu amor e suas esperanças tinham se concentrado em Walid, como era Walid quem ele levava por toda parte consigo. Foi Walid quem se encontrou com o sultão e viajou para conhecer velhos amigos da família em Shakka e Marsa Ali. Foi a Walid que ele fez confidências. Não se arrependia disso, mas ficou furioso agora por seu fracasso em entender que Uthman precisava muito mais dele.

Observar a mudança em Uthman fora uma revelação. Talvez escrevesse sobre isso no seu livro para ajudar outros que tinham de lidar com crianças anormais. Em muitas aldeias, crianças como Uthman eram deixadas na rua para morrer. Não tinham feito isso, mas os cuidados que lhe dispensaram foram muito melhores? O menino fora largado nas mãos de uma surda que cuidara de alimentá-lo e vesti-lo. Quem podia culpá-lo por buscar consolo no reino animal? Idrisi ficou até pensando se não deveria voltar à propriedade por um tempo. Poderia completar o Formulário em sua própria biblioteca. Mayya e Afdal viriam também. Era a vez da casa de Palermo ficar vazia por algum tempo. E Balkis poderia vir aqui sempre que o desejasse. Quanto mais pensava nisso, mais a idéia o atraía. Seu navio estava ancorado em Siracusa; voltaria a Palermo e traria todos a Noto. A enseada não era tão grande como a de Siracusa, mas ótima para o seu barco. E talvez levasse Uthman consigo para Veneza e surpreendesse Walid. Estava longe de Palermo há quase três meses — surpreendente como não sentia falta da cidade.

Mesmo um ano atrás a idéia de morar em qualquer outro lugar teria sido risível. A História havia mudado tudo. Felipe e Rujari. Os dois homens mais próximos de si no palácio. Não apenas História. Mayya e Elinore e Balkis.

Quem poderia ter previsto o que acontecera? Não Alá. Então pensou: se Felipe estivesse vivo e Rujari morto teria sentido o mesmo em relação a Palermo? Tinha dito não a Guilherme, mas se Felipe houvesse insistido que ele pudesse ser de serviço vital para o estado, teria sido capaz de declinar tão rapidamente, ou chegaria sequer a declinar? Quem teria vencido o cabo-de-guerra por seus serviços? Felipe ou Balkis? A História só poderia ser o resultado de uma imaginação desordenada.


17

Massacre em Palermo.
Ydrisi decide nunca mais visitar a cidade.
Parte para Bagdá.

Sabia que algo estava errado no minuto em que entrou no palácio em Siracusa. Quando o guarda o viu no portão, assinalou para o porteiro e rostos tristes se desviavam dele enquanto um tristonho camareiro o conduzia à câmara privada do Amir.

Espero que nada tenha acontecido com Balkis, pensava consigo mesmo o tempo todo. Foi a visão de Abu Fityan que o espantou. O homem caiu de joelhos e recostou a cabeça nos pés de Idrisi.

— Perdoe-me, Ibn Muhammad. Perdoe-me.

— Alguém pode me contar o que aconteceu? Mayya?

Balkis acenou com a cabeça.

— Morta? Por quê? — ele chorou convulsivamente.

— Afdal?

— Está seguro aqui conosco e dorme profundamente.

— Alá seja louvado. Ibn Fityan, pare de chorar e me conte o que aconteceu.

Mas as lágrimas continuavam a rolar. Depois de algum tempo, a história começou a desdobrar-se, interrompida pelo choro e pelas perguntas dos presentes. Concluiu-se que o que aconteceu foi uma chacina de vingança.

O barão de Messina queria saber por que o jovem sultão lhe ordenara que não fizesse reféns em Palermo. O sultão explicou que era um comportamento inaceitável e que mestre Idrisi o aconselhara de que poderia provocar uma reação explosiva. O barão fizera uma mesura e se retirara. Foi o que relataram a Ibn Fityan os eunucos do palácio que entreouviram a conversa. A atmosfera na cidade estava tensa. Houvera outra refrega e os dois lados injuriavam um ao outro. Dois dias depois, Mayya achou que Afdal, que se recuperava de uma febre, poderia se beneficiar do ar marinho. Pediu a Thawdor e a Ibn Fityan que acompanhassem a criança e a aia até a beira-mar.

Quando voltei, mestre, havia sangue nas escadas e meu coração começou a martelar. Corri e vi os corpos dos empregados caídos no chão. Tinham sido destripados e suas gargantas foram cortadas. Só havia um sobrevivente. Estava no seu quarto e escondeu-se debaixo da cama. A senhora Mayya fora desonrada e morta.

Idrisi e Baileis, ignorando a presença de Ibn Fityan, consolaram-se, enxugando as lágrimas das faces um do outro.

— O que aconteceu, Baileis? Por quê? Eu devia ter insistido para que ela viesse para cá. Devia tê-la obrigado a vir. Minha pobre Mayya. Por que ela? Por que não eu? Era atrás de mim que estavam. Como vou encarar Elinore? Deve ir e contar a ela, Baileis. Sim, sim, Ibn Fityan, termine a sua história. Não chore, homem. Fico feliz que esteja vivo. Se não fosse assim, teriam matado Afdal, Thawdor e você. Como poderia tê-los salvo? Teria sido morto com o resto. Não foi sua falha. Não há razão para sentir-se culpado.

Ibn Fityan enxugou as lágrimas e continuou.

— O menino que sobreviveu contoume que os homens estavam bêbados, gritando obscenidades e destruindo tudo. Alguns de seus livros foram jogados pelas janelas. Os restantes estavam no chão onde aqueles animais defecaram e urinaram neles.

A tristeza de Idrisi misturou-se com raiva.

— Não há limite para estes bárbaros?

— Toda a cidade está chocada com o crime, Ibn Muhammad. O sultão ordenou a prisão do barão de Messina. Quer que o barão e seus asseclas sejam executados publicamente. O bispo inglês recomenda cautela.

Idrisi lembrou-se do inglês, de meia-idade, com olhos castanhos claros e cabelos ralos, inteligente, impiedoso com uma voz rouca irônica e desagradável, mas também com uma capacidade ilimitada de bajular aqueles no poder ou próximos a ele. A maioria das cortes os possuem, mas esse bispo era único. Rujari jamais gostara dele ou confiara nele, freqüentemente observando que o homem era pago pelo Vaticano.

— É uma figura do mal. Monges nunca recomendam cautela quando se trata de matar o nosso povo.

Ibn Fityan sacudiu a cabeça tristemente.

— O sultão envia suas condolências e deseja que o senhor retorne a Palermo.

— Não retornarei. Não desejo ver aquela casa de novo.

— Uma decisão sábia.

— Onde está Thawdor?

— Está aqui. Queria ver seu filho e, como eu, não suporta mais ver Palermo ou a casa. Trouxe a aia também, já que Afdal ibn Muhammad está acostumado com sua presença.

— Agiu bem em trazê-lo para cá. Vocês dois podem me acompanhar de volta à propriedade. Talvez Afdal...

— Deixe-o aqui — disse Balkis.

— Haverá tempo depois. Elinore precisa de você e não deve haver distrações.

— Ibn Fityan, seria oportuno se você e Thawdor permanecessem na propriedade. Ele pode trazer sua esposa também.

— Farei como sugere, mestre. Depois que Ibn Fityan deixou a sala, Balkis puxou Idrisi junto a si, repousando sua cabeça no seu colo, e acariciou seus cabelos com os dedos.

— É insuportável, Balkis, que ela fosse punida em meu lugar. É insuportável. E aqueles animais a violentaram e humilharam. Meu filho Uthman me reprovaria por referir-me a eles como animais. Ele acha que os humanos são muito piores.

— Uthman? Seu filho? Nunca falou dele antes.

— Os humanos têm esta capacidade de se escudar das verdades desagradáveis. Envergonho-me de nunca ter falado de Uthman.

Ficou tão feliz de conhecer Elinore que pediu que lhe contasse a respeito de Mayya.

— Quero saber tudo sobre Uthman. Para distrair a ambos da sua dor, descreveu-lhe a história de Uthman em detalhes, como achava mais fácil relacionar-se com animais ou jovens humanos como Khalid do que com a raça humana. Balkis decidiu-se a levar seus novos irmãos para conhecê-lo. Mas agora Idrisi devia partir de novo para sua propriedade a fim de dar a Elinore as notícias terríveis da morte de sua mãe. Antes de sua partida ele quis ver Afdal. Balkis levou-o pelo braço até o quarto onde o menino dormia.

Chorou de novo ao ver seu filho adormecido, com menos de seis meses de idade. Quem podia amá-lo como sua mãe o amara? Ela quase leu seus pensamentos.

— Tenho leite suficiente para os dois — disse.

— Vou criá-lo como se fosse meu próprio filho.

— Talvez dentro de poucos meses eu devesse levá-lo para nossas terras. Deixe-me falar com Elinore.

Ao deixarem o quarto, viram o Amir que cumprimentou Idrisi com um abraço caloroso.

— Alá tenha piedade de nós, Ibn Muhammad.

— Ninguém mais tem — disse o erudito.

Algumas horas depois que ele partiu, Balkis amamentava as duas crianças e notou que Afdal empurrava seu mamilo para o lado antes de agarrá-lo de novo, enquanto Hamdis agarrava-se ao mamilo como um inseto. Talvez meu leite tenha um gosto diferente e ele tenha notado. Mas Eudóxia, a criada que sobreviveu ao massacre, tranqüilizou Balkis.

— Ele é assim com cada teta, minha senhora, se perdoa meu jeito de falar. Sua irmã — que Deus a abençoe — lutava sempre para amamentá-lo. É um garoto forte e vai dar muito trabalho às mulheres, Deus o abençoe.

— Vai à igreja todo domingo?

— Sim, minha senhora.

— Acha que aqueles bárbaros que mataram minha irmã e os empregados a teriam poupado se vissem o crucifixo pendurado no seu pescoço?

— Não, minha senhora. Duas das garotas que foram mortas tinham a mesma cruz ao redor de seus pescoços. Eram animais, minha senhora, piores ainda. Lombardos! Não eram desta ilha. Nossa gente...

— Existe uma velha igreja grega em Siracusa. Dizem que existem dois ícones que reluzem e sorriem no escuro. Nunca estive dentro dela. Conte-me como é.

— Vou contar, minha senhora, e obrigada pela bondade. Quando Idrisi estava afastado por mais de quatro semanas, Balkis começou a entrar em pânico. Sentia-se negligenciada e lembrou algo que Mayya lhe dissera quando estavam ambas grávidas.

— Amor e ciúme são irmãs, Balkis. Eu sou o amor e você é o ciúme.

Na ocasião ela rira e saudara a observação com sonoros protestos, mas sabia que continha mais do que um único grão de verdade.

Enquanto Mayya vivia, Balkis se reconciliara com a idéia de ficar com Aziz e compartilhar Idrisi com a irmã. Agora ela o queria o tempo todo. Se ele decidisse morar na propriedade, poderia visitálo três ou quatro vezes por semana. Eram três horas a pé até Noto. Podia ir a cavalo em menos de uma hora. Começou a planejar.

O que ela queria agora era outro filho. Então poderia deixar Hamdis com seu pai e poderia morar com o seu Muhammad.

Idrisi voltou na semana seguinte e foi primeiro até o seu filho, que estava com Eudóxia nos jardins. Segurou o menino e o beijou muitas vezes antes de ir à procura de Balkis. Ela o abraçou firme enquanto ele lhe contava tudo o que acontecera.

— Nada que você não pudesse imaginar, minha amada. Elinore estava inconsolável. Não havia nada que eu pudesse dizer ou fazer para a consolar. Ficou no seu quarto e recusou-se a comer. Acho que foi a flauta de Simeão que a atraiu para fora de novo. Conversou interminavelmente com Ibn Fityan e Thawdor, mas eles lhe pouparam os piores detalhes. Então ela, também, disse que nunca mais queria voltar a Palermo. Uthman levou-a em longas caminhadas e ela voltou com alguma cor nas faces.

Quer muito que você vá com os meninos. Simeão ficou abalado pelas notícias, também. Foi por puro acaso que seu pai sobreviveu e implorou ao velho para que mandasse chamar sua mãe. Ibn Fityan vai ficar na propriedade. Portanto, a morte da minha pobre Mayya nos trouxe todos de volta ao Val di Noto.

— E você, habibi? Onde vai ficar?

— Quero ver as crianças crescerem e Elinore reencontrar a felicidade. Vou terminar meu livro aqui na fazenda. E antes que pergunte quanto tempo o livro vai demorar, deixe-me informála, senhora Balkis, mais três meses e estará terminado. Volto amanhã. Quando virá?

— Com você, amanhã.

— E com as crianças?

— Sim. Como sabe, Ibn Muhammad, meu marido é bondoso e...

Colocou a mão sobre a boca de Balkis.

— A morte de Mayya piorou as coisas para nós. Não vê-lo todo dia é agora muito mais difícil.

Ele acariciou a sua mão. Partiram cedo para evitar que os meninos fossem submetidos ao sol do meio-dia. Balkis e Idrisi cavalgaram, enquanto Eudóxia e outra empregada eram transportadas de carroça. O grupo de Siracusa foi recebido com genuíno calor. Elinore agarrou-se à tia enquanto as duas mulheres choravam. Simeão mostrou a igreja já pronta orgulhosamente para eles, Eudóxia caindo de joelhos no minuto em que entrou para fazer uma prece. Simeão observou-a calmamente.

— Se os acontecimentos previstos pelo Confiável vierem a ocorrer, esta pequena edificação poderá ser a salvação desta propriedade.

Elinore era agora aceita como a senhora da casa e da fazenda. Havia reservado quartos para eles e Balkis ficou preocupada ao descobrir que iria compartilhar o quarto de Idrisi.

— Será prudente? — sussurrou para a sobrinha.

— Uthman não acharia isso de mau gosto?

— Ele é um verdadeiro pagão, tia. Acharia estranho se vocês tivessem quartos separados, pois sabe que Hamdis é nosso irmão.

— Você criou um mundo sem segredo de espécie alguma?

— Ninguém sabe que estou grávida. Balkis abraçou e beijou a sobrinha.

— Fico tão feliz por você.

— Espero que seja uma menina, tia. Quero chamá-la de Mayya.

— Às vezes o que a gente quer, a gente consegue.

— Não segundo Abi. Seu conhecimento médico ensinou-lhe diferentemente.

— Como vai seu livro?

— Está quase terminado, diz ele, mas Uthman, que usa a biblioteca mais do que o resto de nós, não está tão convencido assim. Diz que faltam ainda mais uns seis meses de trabalho. E isso é outro segredo. Seria repreendido se descobrissem que está lendo o manuscrito toda vez que Abi sai para uma caminhada.

Balkis expressou surpresa diante das capacidades de Uthman.

— Ele é normal a maior parte do tempo. Gosta de viver num mundo fechado. Certa vez perguntei se visitaria Siracusa e ele saiu correndo da sala e foi para a sua árvore. Descobri as coisas que o perturbam e se evitamos mencioná-las ele se comporta como qualquer outra pessoa. Fala coisas estranhas às vezes. Certa vez me disse que se não houvesse uma biblioteca na casa ele teria morrido. E fala sério, cada palavra que diz.

— Parece que ele se conhece melhor do que a maioria de vocês o conhece?

— É muito simples, tia, mas não posso explicar por quê. Balkis já se sentia à vontade. Não tinha responsabilidades domésticas, além de amamentar as crianças e, quando Idrisi trabalhava, persuadia Uthman a mostrar-lhe a fazenda, ouvindo atentamente enquanto ele descrevia cada árvore e planta. Então ela conheceu os animais.

Mais tarde naquela noite, depois de amamentar os bebês, voltou ao seu quarto e encontrou Idrisi com um terrível acesso de tosse. Ao se aproximar, ele ergueu os olhos com um ar de súplica.

— Em nome de Alá, mulher, não vê que preciso de leite? Então ela se deu conta.

— Meus seios estão vazios. Seus filhos são tão gulosos quanto o pai.

— Quando vão ficar cheios de novo?

— Dentro de poucas horas. Ela o aninhou.

— Não quero deixá-lo, Muhammad, mas preciso voltar amanhã. Vai ter uma festa em homenagem a Aziz.

— Por que nunca há uma festa em minha homenagem?

— Porque ele é o Amir de Siracusa e você, meu querido, é apenas o Amir do Livro. Os homens ricos da cidade adoram homenagear uns aos outros. O anfitrião de amanhã é um mercador judeu, o que significa que poucos nazarenos comparecerão. Aziz convidou todos os nossos notáveis e, o que é fora do comum, suas esposas deverão estar presentes também. A maioria delas são criaturas plácidas, caprichosas e mimadas e se queixarão amargamente de que foram forçadas a ir.

— Estranho como nos últimos quinhentos anos o destino dos judeus esteve muitas vezes ligado ao nosso próprio futuro. Quando nós sofremos, eles sofrem. Quando prosperamos, eles prosperam. Quando estão presentes e nós não estamos, não conseguem se defender e são chacinados como carneiros. É a mesma história aqui, em alAndalus e em al-Quds, Bagdá, Cairo e Damasco.

— Vou repetir estas palavras sábias para o meu marido. Talvez ele encontre um uso para elas na festa.

— E, se me permite, gostaria de encontrar um uso para você esta noite.

E Balkis ficou grávida pela segunda vez. Idrisi recordaria estes oito meses na fazenda como os mais felizes de sua vida. Uthman o surpreendia a cada dia. Seus momentos ruins tornaram-se cada vez mais raros e sua saúde melhorou consideravelmente. Sua manqueira desapareceu totalmente e as manchas na pele desapareceram.

Elinore confiou ao pai que, embora ele ainda amasse ovelhas, sentia que estava pronto para o casamento com uma mulher e talvez sua tia pudesse ajudar.

É possível, respondeu seu pai, que Balkis encontre alguém inteligente que se pareça também com uma ovelha.

Idrisi percebeu que Uthman estava lendo em segredo o seu livro, mas, longe de se zangar, ficou empolgado. Assim que o fato veio à tona, os dois discutiram vários trechos e ele pedia a Uthman para comparar al-Kindi com Hipócrates em relação a uma cura específica. Uthman conhecia cada livro da biblioteca. Sem os trezentos novos acréscimos, ele havia contado 3.421 volumes.

E havia Balkis, cujas visitas à fazenda se tornaram mais freqüentes à medida que sua barriga aumentava. Nunca amara uma mulher assim antes, nem mesmo Mayya. Via Balkis e Elinore, ambas na gravidez adiantada, caminhando juntas e comparando seus ventres. Agradava-lhe vê-las assim e certa vez Uthman se perguntara em voz alta quem nasceria antes, o sobrinho ou o irmão. E se fossem uma sobrinha e uma irmã, o pai lhe perguntou. Encolhera os ombros. Não tinha a menor importância para ele.

Enquanto Hamdis ficara no palácio sob os cuidados de uma ama-de-leite, Afdal crescia na fazenda. Mesmo quando Balkis tinha de voltar para Siracusa, ela o deixava nas mãos seguras de Eudóxia. Mas quem Afdal, já crescidinho, adorava era o seu tio Uthman, que passava grande parte do tempo com ele e lhe falava como se estivesse falando com um par. O resultado foi que as primeiras palavras que Afdal falou foram belamente expressas: amigo, ovelha, livro, manteiga, cabra, flauta e Simeão.

O livro foi terminado dois meses antes que as novas crianças nascessem e Idrisi ficou irritadiço. Foi Balkis quem sugeriu que ele e Uthman fossem visitar Walid em Veneza. A mera sugestão fez Uthman correr para a sua árvore e ele ficou lá até que Balkis e Elinore chegassem para consolá-lo e pedir desculpas pela sugestão.

— Por favor, não se livrem de mim — foi tudo o que disse para elas.

Balkis ficou mortificada. Ao contrário do seu filho, Idrisi estava pronto para viajar de novo. Sentia falta do mar, mas também sabia que se não fosse ver Walid agora logo poderia ser tarde demais. De lá iria para Alexandria e para o Cairo renovar velhas amizades quase esquecidas. Ele, que se perdera no seu trabalho por tanto tempo, agora sentia a necessidade de estar numa cidade em que os Crentes dominassem, mas não qualquer cidade. Os bárbaros já são ruins o bastante, pensou, mas temos nossos próprios bárbaros, que queimam livros dos nossos maiores filósofos e castigam os poetas. Se os verdadeiros bárbaros e nossos bárbaros chegarem um dia a se aliar, Alá sozinho não será ajuda suficiente para nós.

Sua decisão estava tomada. Pediu a Uthman para ler todo o manuscrito cuidadosamente e aparar as inconsistências. Quando voltasse prepararia a versão final.

— E quando será isso, Abu?

— Poucos meses, no máximo. Cuide de Afdal por mim. Foi a mais dolorosa despedida, pois tinham se tornado fortemente apegados um ao outro.

Depois de abraçar o pai, Uthman retirou-se de novo para a árvore. Não gostava que as pessoas deixassem a fazenda.

Idrisi desejou o melhor para Elinore e Simeão e perguntou se tinham pensado num nome, caso fosse um menino.

— Thawdor — respondeu Elinore.

— Original — respondeu o pai. Balkis havia jurado a si mesma que não iria chorar e seus olhos ficaram secos.

— Se nosso filho for uma menina e Elinore tiver um menino, vamos chamar nossa filha de Mayya. Concorda?

— Concordo. E se for um menino?

— Nuwas! Concorda?

— Concordo. E se as duas tiverem meninas?

— Não havia pensado nessa possibilidade.

— Que sejam duas Mayyas.

— Sim. Muhammad, preciso saber a verdade. Seria capaz de calcular um preço para o nosso amor?

— Como poderia? É inestimável.

— Então garanta que vai voltar para mim. Não quero pensar em você como um mendigo numa terra estranha. Esta ilha é o seu lar apesar de tudo. E o elixir que cura sua tosse não é da mesma qualidade em outras partes.

Ele beijou seus olhos e então seus lábios. Dois dias velejando e Siracusa já parecia muito distante. Idrisi não sabia, mas havia passado por um navio mercante que levava Walid para Siqilliya. Ele imaginava se conseguiriam um dia retomar a ilha dos francos e se livrar dos lombardos. Mas se o conseguíssemos, o que faríamos desta vez diferente da anterior? Conseguiríamos trabalhar juntos? Dar ao povo algo por que pudesse morrer, sem fazer muita pressão sobre ele? O Confiável tinha idéias úteis, mas o grande problema era romper com os modos tribais de pensamento e elevar-se ao nível de cultura que criamos. Mas tudo isso são sonhos dourados.

Como podemos lidar com centenas de milhares de pessoas que ignoram seus próprios interesses e mergulham orgulhosamente num desastre e depois em outro?

Talvez não devesse visitar Alexandria desta vez. Iria até a cidade dos califas e se misturaria com os poetas e com os filósofos e buscaria novos livros na Casa da Sabedoria. Iria até Bagdá, a cidade que sempre será nossa. A cidade que jamais cairá. A cidade que jamais cairá.

LUCERA 1250-1300


Epílogo

Idrisi encontrou Walid ao voltar a Siqilliya e viveu na sua propriedade até sua morte, 11 anos depois daquela de Rujari. Seu Formulário Médico foi publicado em Bagdá, mas não continha o remédio para tosses. Uthman e Walid nunca se casaram. O filho de Balkis, Nuwas, tornou-se um poeta errante, deixando Siracusa aos 18 anos e mudando de cidade em cidade em alAndalus. Nenhum de seus poemas sobreviveu. A filha de Elinore, Mayya, e seus três irmãos e seus filhos continuaram a viver na propriedade onde uma igreja maior foi construída para acomodar o novo rebanho. O Confiável, depois de ensinar filosofia e história para Khalid e seus filhos, morreu tranqüilamente aos 84 anos. A aldeia que ajudara a recriar ainda existe e venera sua memória — embora seja considerado hoje um santo cristão.

Nos cem anos que se passaram desde a morte de Idrisi, membros de sua família combateram em cada rebelião. Enquanto os francos lutavam entre si pelo trono de Palermo, bandos armados sob o comando de Khalid ibn Umar e Afdal ibn Muhammad haviam libertado grandes partes de Siqilliya ocidental. Os francos mandaram expedições para esmagá-los, mas se contentaram em mantê-los confinados em seus bastiões. Um levante em Palermo abalara a autoconfiança dos francos e severas restrições foram impostas. A khutba das sextas-feiras foi proibida e o comparecimento a qualquer mehfil era punido com a morte.

Khalid morreu aos sessenta anos enquanto os sinos das igrejas repicavam para marcar 12 séculos da religião nazarena. Seu filho Muhammad juntou-se a Afdal e por muitos anos eles infernizaram e destruíram muitas legiões despachadas por Palermo a fim de esmagá-los.

Foi o neto de Rujari, Frederico, quem finalmente destruiu os últimos bolsões de rebelião remanescentes em Siqilliya. Seu amor pela cultura árabe e seus próprios palácios e haréns haviam levado os Crentes a esperar que a Era de Ouro pudesse voltar. Mas haviam esquecido que o jovem Frederico era também o neto de Barba Ruiva.

As duas tendências nele geralmente levavam a conciliações. Não queria massacrar os muçulmanos, mas simplesmente removê-los e assim purificar a ilha. No ano de 1224 da Era Cristã, aqueles que se recusavam a se converter eram instados a empacotar suas posses e levados aos principais portos da ilha. Por doze meses, mais de cinqüenta mil siqillianos que se recusaram a render-se espiritualmente foram transportados em navios para o continente. Entre eles estavam os netos de Idrisi, Muhammad ibn Afdal, Muhammad ibn Khalid e suas famílias.

Na região de Apúlia, perto da antiga cidade romana onde César havia combatido Pompeu, havia uma minúscula aldeia, Lucera, virtualmente desabitada. Foi para ali que os transportaram. Dentro de dois anos, Lucera havia se tornado uma das cidades mais prósperas do sul. A terra que cercava o povoado fora cultivada depois de anos sem uso, lojas e oficinas brotaram e artesãos habilidosos produziam entalhes de madeira e cerâmicas que não eram mais feitas em Noto e Siracusa. Frederico construiu um castelo para si com seu próprio harém. Os colonizadores construíram uma bela mesquita com uma grande biblioteca, não longe do castelo. O papa excomungou Frederico por permitir a construção de edifícios onde o "amaldiçoado Maomé é adorado". Dizem que quando a excomunhão foi lida para ele no seu palácio em Lucera ele estava embriagado, cercado por concubinas, e reagiu com a tradicional saudação do lado siqilliyano da sua família. Ele peidou.

Dentro da colônia, três jovens começaram a organizar meh fils secretos. Encontravam-se toda sexta-feira à noite e discutiam o futuro do seu povo. Aos poucos, mais e mais pessoas, jovens, velhos e mulheres, começaram a escutar. Ibn Afdal lhes contava que Lucera parecia pacífica e que não eram perseguidos, embora muitos jovens tivessem sido mortos combatendo a guerra de Frederico contra outros nazarenos.

— Tendo nos forçado a deixar Siqilliya, ele pode ser generoso, mas esse mesmo rei que permitiu que construíssemos a Grande Mesquita aqui está destruindo todas as nossas mesquitas em Palermo e no resto da ilha. Vimos discutindo nosso futuro há muitos meses. Eu sugeriria que nos preparássemos para deixar este lugar. Não será seguro depois que Frederico morrer. Não estou sugerindo uma partida imediata. Eles nos matariam antes que tivéssemos ido muito longe. Mas cada mês uma família deveria sair.

— E para onde iríamos, Ibn Afdal? Existe ainda algum lugar para nós?

Quinze homens levantaram-se e ficaram de pé em diferentes partes do mehfil.

— Sim. Se desejarem partir, falem com um destes homens. Olhem para eles cuidadosamente. Se os conhecem, tentem esquecer seus nomes. Vão e falem com eles.

Poucos queriam partir e destes a maioria desejava ficar o mais próxima possível de Siqilliya. Um dia, pensaram, voltaremos. Nascemos aqui. Construímos estas cidades.

Por que não deveríamos voltar? Eles escolheram ir para Ifriqiya, para as cidades de Mahdia e Bone que, Alá seja louvado, haviam sido retomadas pela nossa gente. Se estas cidades podiam ser recuperadas, por que não Palermo e Atrabanishi?

Quando Frederico morreu em 1250, o pânico espalhou-se pela cidade, mas já era tarde. O primeiro massacre aconteceu alguns meses depois. Àquela altura Ibn Afdal estava morto. E Lucera, também, estava para perecer. Não muito tempo depois da morte de Frederico, a maioria de sua população foi massacrada. Poucos milhares, principalmente mulheres, foram convertidos à força. A mesquita foi queimada. Como a estrela brilhante que atravessa o céu e é vista por todos, mas rapidamente desaparece, a cidade florescente desapareceu, seus poucos traços enterrados sob o solo. O castelo de Fredrico foi deixado intocado.

No dia em que Frederico morreu, o filho de Ibn Afdal, Uthman, e seus primos Umar e Muhammad, decidiram que era tolice esperar mais. Haviam se preparado longamente para este dia e tiraram proveito da confusão. Seus cavalos estavam prontos para a jornada. Umar e Muhammad deixaram Lucera à tarde. Dirigiam-se para a costa, onde embarcaram num navio mercante para Ifriqiya.

Uthman não foi com eles. Quando criança, sua imaginação fora inflamada pelas histórias que seu pai lhe contava sobre o Confiável e como haviam organizado diferentes formas de resistência na ilha, mas a história que mais gostava era distante deste mundo. Adorava ouvir como os francos foram derrotados por Salah al-din e expulsos de al-Quds e como a Grande Mesquita fora limpa e preparada para o agradecimento a Alá pela vitória que tinham alcançado. Durante muitos meses Uthman vacilara quanto ao seu destino. Quanto mais pensava, mais se dava conta de que não queria morrer antes que seus olhos vissem a mesquita de al-Aqsa e de beijar a terra onde sua gente havia triunfado sobre os bárbaros. Levou sua família para a Palestina.

Esta narrativa se passa na Sicília medieval, em Palermo, uma cidade muçulmana que rivaliza com Bagdá e Córdoba em tamanho e esplendor. O ano é 1153 e a ilha foi ocupada pelos normandos. Mas na "Sigilliya", a cultura e a língua árabes dominam a terra e a corte. A aliança entre o papa Urbano II e o imperador bizantino havia motivado os governantes cristãos europeus a erradicar enclaves muçulmanos. Contudo, Rogério I da Sicflia e seu filho Rogério II recusam a perseguição aos muçulmanos, concedendo liberdade religiosa e proteção contra a Igreja e os cristãos. Inspirado nesse ambiente conflagrado, o autor aborda os últimos anos de Rogério II, conhecido por seus súditos muçulmanos como sultão Rujari. Ele se cerca de intelectuais muçulmanos, várias concubinas e promove uma administração presidida por talentosos eunucos.
Tariq Ali mapeia a vida e os amores do geógrafo e médico medieval Muhammad alIdrisi. Dividido entre seus vínculos com o sultão e os amigos, que estão deixando a ilha ou arquitetando uma resistência contra o domínio normando, Idrisi encontra alívio temporário no harém; mas, confrontado com as pessoas comuns de Noto e da Catânia, entra em crise de consciência. Um sultão em Palermo é uma narrativa mítica em que orgulho, cobiça e luxúria entremeiam-se com resistência e grandeza.

 


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1

Reflexões de Idrisi sobre inícios e encontros casuais.
Seu primeiro encontro com Rujari.

A primeira frase é crucial. Ele sabia disso por instinto e por seu estudo de velhos manuscritos. Como os antigos entendiam bem disso, com que cuidado escolhiam seus inícios, com que facilidade seu trabalho devia ter progredido uma vez tomada aquela decisão. Por onde começar? Como começar? Invejava neles as escolhas que seu mundo lhes tornara possíveis, sua capacidade de buscar o conhecimento onde quer que pudesse ser encontrado.

Sua mãe lhe ensinara que as pessoas do Livro, que insistem que todo conhecimento anterior ao tempo de seus próprios Profetas nada vale, traíam sua própria ignorância.

Ela lhe contara como, quando a cidade fora tomada por uma casta especial dos guerreiros do Profeta — homens que temiam o conhecimento mais do que a morte -, o avô dela, um venerado matemático de Qurtuba, fora publicamente despido de sua dignidade e passado a fio de espada com outros oito eruditos. Os fanáticos que matavam em nome da religião referiam-se ao mundo dos antigos como "o tempo da ignorância", um mundo em que as pessoas não eram sobrecarregadas pela necessidade de adorar um único deus. Como deviam ter blasfemado à vontade. Um mundo sem apóstatas. Um sorriso iluminou seu rosto por um momento antes que a nuvem voltasse.

Ao contrário de nós, pensou. Somos condenados a soçobrar na voragem da eterna repetição. Em nome de Alá o Misericordioso e de Maomé o seu Profeta, seu mais fiel Mensageiro. O único consolo era que os blasfemos nazarenos eram muito piores. Como podia Alá ser o pai apenas de Isa? Como podia o Todo-Poderoso produzir apenas um filho? E por que tinham os nazarenos inventado esta inverdade? Só podia ser porque estavam mais próximos no tempo ao mundo romano e seus deuses. Para fazer convertidos eles precisavam injetar alguma mágica no seu credo. Como desejava que tivessem conservado os velhos deuses ou, pelo menos, os melhores deles. Zeus podia ter sido o pai de Isa, ou Apolo, Ares ou Poseidon... não, não Poseidon. Era muito estúpido. Mariam vivia longe do mar e Yusuf não era um pescador. Talvez o manco e lascivo Hefaístos tivesse entrado... Subiu ao convés do navio imperial e respirou fundo várias vezes. Lavar seus pulmões com o ar marinho havia se tornado um ritual. Sorriu. O sol estava para se pôr. O mar ainda estava calmo. Poseidon ajudando, chegariam a Palermo sem outra tempestade.

Esta era a sua última viagem antes da conclusão do seu livro. O navio tinha circundado a ilha duas vezes e ele havia verificado cada detalhe no seu mapa da Siqilliya em confronto com a linha costeira à sua frente. De vez em quando desembarcavam para recolher água fresca, comida e as ervas frescas de que precisava para testar suas fórmulas médicas. Idrisi era geógrafo e médico. Embora a viagem tivesse durado menos de um mês, estava cansado. Dormia mais do que o comum e na maioria dos seus sonhos voltava à sua infância — sua mãe olhando para as estrelas, as ruas de Noto calçadas com pedras, os troncos das árvores com cicatrizes de raios, as mulheres ordenhando vacas e cabras, o rosto bexiguento do seu pai — mas quando ele repousava à tarde invariavelmente sonhava com Mayya, geralmente o mesmo sonho quase sem nenhuma variação. Estavam deitados nus nos braços um do outro depois de fazer amor. Era sempre no quarto de dormir dela no harém do palácio, com os eunucos vigiando do lado de fora. Nada mais acontecia. A repetição o incomodava tanto que chegou a pensar até em procurar o intérprete de sonhos, mas algo sempre o detinha.

Na noite passada, pela primeira vez, sonhou algo diferente. Era um guerreiro envolvido numa luta, mas quando acordou não tinha lembrança alguma do inimigo. Pensava naquilo agora no convés, observando o mar mudar de cor, e imaginava se poderia ter sido de alguma utilidade como soldado. Tinha altura mediana com feições delicadas e uma pele macia e clara, como se o seu gênero tivesse sido decidido somente no último minuto. O sol havia escurecido seu rosto, exagerando a brancura da sua barba.

Era bem aparada, imitando o estilo de um erudito qurtubês. Tinha 58 anos de idade, uma época da vida que compele a maioria dos homens a pensar no passado, não no futuro. E assim teria sido com ele não fosse pelo fato de que estava possuído por uma tremenda raiva, da qual somente dois de seus amigos mais próximos tinham noção, embora não pudessem entender suas causas. Para o sultão e os cortesãos no palácio em Palermo, era um erudito de uma certa importância e um homem de temperamento calmo. Não tinham nenhuma idéia do que se escondia sob a máscara ou de que se zangasse por dentro pelas coisas mais estranhas. Certa vez seu amigo mais chegado, Ibn Hamid, cujo coração estava oprimido, olhara para o céu e murmurara "Oh, a poesia das estrelas" e Idrisi reagira num tom irritado, submetendo-o a uma aula de astronomia e sobre o movimento da Terra. Não tinha notado como cada noite um movimento se repetia? Os antigos haviam tentado penetrar nos segredos dos céus, mas tinham fracassado. Se o que ele pensava fosse verdade, então o Corão estava errado e, se o Corão estivesse errado, quem havia cometido o erro? Má ou o seu Mensageiro? Ibn Hamid ficou temeroso de que o seu amigo fosse acusado de blasfêmia e aconselhou-o a deixar tais questões para o futuro.

A resposta de Idrisi fora um olhar fulminante e ficaram sem se falar nos dias que se seguiram. Agora Ibn Hamid também havia abandonado a ilha, deixando seu amigo mais isolado do que nunca. Palavras duras foram trocadas e Idrisi fora acusado de oferecer ajuda aos estrangeiros que ocuparam a ilha. Talvez, pensou Idrisi, ele também devesse ter ido embora e se estabelecido em Ifriqiya ou talvez Bagdá, onde o Califa era protetor de pensadores e poetas. Mas sua vida foi mudada por um encontro casual que lhe ofereceu mais liberdade do que imaginara possível.

Seus pensamentos voaram de volta a um fim de tarde em que trabalhava na biblioteca do palácio do sultão Rujari em Palermo. Tinha obtido permissão para freqüentá-la e se deleitava como uma criança a cada nova descoberta. Lembrou a excitação que se apossara dele há quase 27 anos quando vira pela primeira vez o velho manuscrito grego al-Homa. Poderia ser esta a obra de que falara seu bisavô paterno todos aqueles anos atrás em Malaka? Seu avô passara a memória ao seu pai e ele podia ainda ouvir a voz alta, ligeiramente agitada do seu velho pai pontuando a história arrancando os pêlos brancos da sua barba ainda castanho-escura. Contou como os qadis, receosos do poder da poesia e da sua capacidade de desencaminhar os Crentes, haviam decretado que apenas três cópias da tradução árabe fossem permitidas a fim de que os teólogos pudessem estudar as religiões pagãs que levaram ao período de Ignorância na Arábia na época em que o nosso Profeta nasceu.

A tarefa foi confiada a 12 homens. Conhecedores mais capacitados do grego antigo, eles tinham traduzido todas as obras de Galeno e Pitágoras, Hipócrates e Aristóteles, Sócrates e Platão, e até mesmo as peças de Aristófanes. Todas estas obras estavam na biblioteca de Bagdá. Mas tradutores, embora fossem empregados do palácio cuidadosamente escolhidos e de confiança, não tinham permissão de ler a obra inteira. Os calígrafos que faziam a transcrição faziam o juramento do silêncio. Se divulgassem a natureza do seu trabalho a qualquer pessoa — e isso incluía suas esposas e amantes — a penalidade seria rápida e a cimitarra do carrasco, como um relâmpago, separaria a cabeça do corpo.

Seu pai sorrira. "Ameaças nunca funcionam em nosso mundo. É possível que, se nada tivesse sido dito, os calígrafos tivessem copiado a obra e partido para a tarefa seguinte. O perigo aguçava a sua curiosidade mas, enquanto 11 deles aceitaram a inviolabilidade da injunção de um qadi, um décimo segundo conseguira copiar a metade do primeiro poema e quase a maioria da segunda parte e enviar para sua família em Damasco. Seu filho, também tradutor, veio trabalhar na escola em Toledo.

Casou-se com uma mulher de Qurtuba. Seu neto descobriu o manuscrito incompleto escondido debaixo do Corão numa velha arca e permitiu que o meu bisavô o lesse em sua casa. Foi assim que nosso ancestral descobriu que o livro grego fora guardado em compartimentos secretos na biblioteca de Palermo. Era preciso obter permissão especial do Califa antes que qualquer erudito tivesse acesso à seção oculta da biblioteca."

Foi durante seu primeiro ano na biblioteca do velho palácio em Palermo, a mais longa viagem que sua mente havia empreendido, que tropeçou na seção secreta e informou ao camareiro do palácio, que informou ao seu mestre. O sultão Rujari interrompera sua refeição e correra para a biblioteca. Idrisi, encontrando-se com o soberano nazareno pela primeira vez, explicou a sua excitação. O sultão não ouvira falar de al-Homa, mas declarou sua intenção imediata de estudar ele mesmo o manuscrito.

O árabe que falava não era perfeito, mas lia bem o idioma. O camareiro apanhou o manuscrito e ia deixar a biblioteca mas foi detido pelo sultão que, notando o desapontamento no rosto do jovem erudito, instruiu o camareiro a encontrar os melhores calígrafos em Palermo e os pôr a trabalhar. Queria uma nova cópia à sua espera quando voltasse de Noto. Virou-se então para o jovem de turbante que havia assumido uma postura modesta.

— Seu nome?

— Muhammad ibn Abdallah ibn Muhammad alIdrisi, Sua Majestade.

— Mestre Idrisi, depois de lermos ambos esta obra cuidadosamente, nós a discutiremos juntos. Vamos comparar o conhecimento que obtemos dela. Se o árabe usado na tradução for complexo demais, vou convocar Ahmed de Djirdjent.

Seis semanas depois, convocado à presença de Rujari, o jovem erudito havia memorizado alguns versos da obra de al-Homa.

— Não posso entender por que esta obra perturbou tanto os seus teólogos.

— Acho que eles não podiam tolerar a mistura de deuses e humanos, Comandante dos Sábios. E deuses criados à imagem de homens e mulheres eram inaceitáveis para eles. Não podia haver outra razão.

— Mas esta é a parte mais deleitável da obra. Seus deuses eram parte de tudo o que acontecia: guerras, inundações, desgraças, aventuras no céu e no mar, brigas familiares, nascimentos, casamentos, mortes, renascimentos. Acha que a esposa do navegante Odisseu, que resistiu aos cortejadores terrestres, poderia ter sucumbido ao encanto de um deus? Surpreende-me que nenhum deles tenha tentado. Devo dar instruções para que seja traduzido imediatamente para o latim, a não ser que um manuscrito já exista. Pode verificar para mim? Se só existir no Vaticano, então vamos precisar da nossa própria tradução. Os monges não vão gostar, assim como o qadi. Que aspecto da obra mais o atraiu? Foi a astúcia das mulheres? Ou o medo do desconhecido? Ou a vida como uma jornada sem fim, interrompida por provas de resistência?

— Tudo me atraiu, Sua Majestade, mas fui tocado por algo mais: a noção de geografia de al-Homa me surpreendeu. Na segunda parte da obra ele descreve nosso mar e as ilhas, os países, as árvores. Nos tempos antigos as pessoas não viajavam tanto quanto nós o fazemos. A maioria das pessoas era enterrada na aldeia onde nascia.

Al-Homa contou-lhes que havia um outro mundo do lado de fora de sua aldeia e ilha. Na boca de Menelau ele coloca estas palavras:

"Aventurei-me até Chipre e Fenícias, até os Egípcios, Alcancei os Etíopes, Eremboi, Sidônios e a Líbia."

— E gigantes de um só olho e as mulheres tentadoras que afundavam navios não longe destas costas?

— Vicissitudes transitórias, nobre sultão, nada mais. Revelam o poder da imaginação do poeta, mas nada mais. Para mim, o realmente notável no seu trabalho é que as descrições das coisas reais são quase exatas. Ele visitou nossa ilha e a chamou de Scylla. Estou convencido de que al-Homa deve ter sido um homem do mar. E combateu numa guerra, mas foi o mapa de suas viagens que distinguiu a sua memória.

— O camareiro me informou que você, também, é um cartógrafo.

Idrisi fez uma mesura.

— Quando tiver terminado o seu trabalho nesta biblioteca, gostaria de ser informado de todas as suas descobertas.

Nos 13 meses seguintes Idrisi abandonou tudo — amantes, amigos, pupilos — em busca da verdade. O sultão lhe havia concedido a liberdade de sua biblioteca e, além de comer e das funções do corpo que isso necessariamente acarretava, passava cada dia enterrado num manuscrito. Os eunucos do palácio geralmente se referiam a ele como Abu Kitab, o pai do livro. Depois, como um confidente de confiança do sultão, sua posição realçada exigiu um título superior: agora se referiam a ele como Amir al-kitab.

Aqueles meses na biblioteca tinham sido de pura felicidade. Al-Homa foi apenas o começo. Ele visitaria Ítaca e as outras ilhas em busca de traços. Muitas vezes se perguntava se al-Homa teria escrito aquelas obras tão bonitas sozinho ou se teria herdado as histórias e as coberto com o seu próprio manto divino. E como era espantoso descobrir que apenas poucas gerações depois da morte de al-Homa, Xenófanes o denunciara numa linguagem que ecoava os teólogos de hoje: "Homero atribuiu aos deuses tudo o que é desonroso e culpável entre os homens — roubo, adultério e trapaça." E os contadores de histórias em Bagdá que compilavam os relatos das mil noites teriam Odisseu em mente quando criaram seus próprios contos de Simbá, o Marujo? Estas questões e até mesmo al-Homa foram logo esquecidos à medida que outros tesouros, mais próximos de suas preocupações, começaram a emergir.

Ler as traduções árabes de Heródoto, Aristóteles, Galeno, Estrabão e Ptolomeu era como descobrir terras distantes conhecidas por histórias de viajantes. Seus tutores o haviam apresentado aos veneráveis gregos, mas ele era então jovem demais para apreciá-los realmente. Seu conhecimento permaneceu incompleto até que ele começou a estudar os textos sozinho. As idéias de Ptolomeu ainda ecoavam na sua mente como música de uma flauta distante.

Um dia ele topou com um manuscrito anônimo que o deliciou. Quem era o autor de "A biblioteca"? Ainda podia se lembrar da primeira frase: O céu foi o primeiro a dominar o mundo inteiro. Aqui estava a história dos deuses e de como haviam povoado o mundo e, embora não tão estimulante quanto Ptolomeu ou até Estrabão, muito mais excitante. Foi aqui que ele leu sobre a curta visita de Hércules à Sigilliya. O céu foi o primeiro a dominar sobre todo o mundo. A frase reverberava. Por que deveria começar Em nome de Alá, o Benfeitor... como todo erudito no seu mundo. Por quê?

Durante seu primeiro ano na biblioteca, o sultão freqüentemente o chamava aos seus aposentos e o interrogava cerradamente sobre as suas leituras. Rujari não era um homem grande, mas tinha gestos estranhos e amplos e quando ficava excitado seus braços se agitavam como velas numa tempestade. Sua acolhida de coração aberto comoveu Idrisi.

— O que fará com toda esta informação, mestre Idrisi? Pode ensinar aos seus filhos e aos meus, mas isto será suficiente para satisfazê-lo?

Idrisi lembrou seu sorriso preocupado e autodepreciativo ao confessar sua ambição:

— Se o sultão permite eu gostaria de escrever uma geografia universal. Mapearei o mundo que conhecemos e buscarei as terras ainda desconhecidas de nós. Isto será útil para nossos mercadores e os comandantes de nossos navios. Esta grande cidade é o centro do mundo. Mercadores e viajantes param aqui antes de seguirem para o Ocidente ou Oriente. Podem nos fornecer muita informação.

O prazer do sultão era visível. Mandou chamar o camareiro e o instruiu para garantir que a partir de agora ao erudito e mestre Muhammad alIdrisi fosse paga a soma de dez tacis cada mês pelo Diwan e lhe dessem alojamentos próximos ao palácio. Quando o camareiro fez uma mesura e se preparou para partir, Rujari teve um pensamento tardio.

— E ele vai precisar de um navio, pronto para velejar a qualquer lugar sob suas ordens. Encontre para ele um comandante confiável.

Idrisi caiu de joelhos e beijou as mãos do seu benfeitor. Ficou encantado com a generosidade de Rujari, mas mais do que um pouco apreensivo sobre como aquilo seria visto fora do palácio. Seu trabalho prosseguiria sem obstáculos, mas a maioria dos seus amigos poderia começar a encará-lo com desconfiança. Toda sexta-feira à noite, depois que a cidade fora dormir, um pequeno grupo de poetas, filósofos e teólogos — trinta homens ao todo — se reunia numa saleta localizada no coração da mesquita Ayn al-Shifa. Até ser perturbado pela chamada do muezim à prece, o mehfil discutia questões pertinentes às necessidades da comunidade dos Crentes na ilha.

Até agora, tinham aceitado a sua presença como um deles, mas por quanto tempo?

As simpatias de Rujari não eram escondidas. Como seu pai, ele preferia ignorar o papa e depender da lealdade dos seus súditos muçulmanos. Sabiam que, deixado a sós, o sultão Rujari não lhes causaria danos. Eram os seus barões e bispos que lhe enchiam os ouvidos de veneno. Estavam decididos a converter todos os crentes ou a expulsá-los da ilha. As conversas nos bazares de Palermo, Siracusa e Catânia sugeriam que os monges ingleses, por insistência papal, aconselhavam Rujari a limpar os bosques e vales dos Crentes e a engajar-se na santa cruzada contra os seguidores do falso Profeta. Segundo alguns, planos muito detalhados haviam sido feitos para queimar e arrasar Noto e enterrar vivos os sobreviventes. Os rumores geralmente emanavam de dentro do próprio palácio. Qualquer criança em Palermo sabia que não havia segredos no palácio que não fossem penetrados pelos eunucos.

Mas havia outras vozes, também, pois não existia uma facção única dominando a corte. Na verdade, Rujari se inclinava a favorecer seus conselheiros muçulmanos. Younis al-Shami, seu velho tutor de Noto, o erudito e sábio que lhe ensinara árabe, astronomia e álgebra, era tratado com reverência. Ainda estava no palácio, supervisionando os tutores responsáveis pela educação dos jovens príncipes. Os três tutores eram jovens que ele havia selecionado cuidadosamente, mas nunca ficava satisfeito com eles e freqüentemente os dispensava com uma imprecação favorita e assumia ele mesmo. Aquilo fazia os meninos darem risadinhas e eles relatavam tudo ao pai, sabendo bem que isso o agradaria. Segundo rumores palacianos, Rujari não tomava nenhuma decisão importante sem consultar Younis, mas um rumor, como qualquer eunuco pode confirmar, só é confiável se a fonte for pura.

O sol se tornou forte demais para Idrisi. Ele desceu a escada e voltou à sua cabine. Suspirou ao sentar-se nas almofadas macias que haviam sido especialmente colocadas para poupar o seu traseiro do desconforto do tosco banco de madeira pregado ao assoalho. Uma vez mais olhou para o manuscrito volumoso sobre a mesa à sua frente. Sim, o livro estava completo, exceto pela primeira frase. Durante várias semanas nesta viagem — sentia instintivamente que seria a sua última — havia sofrido em busca das primeiras palavras. A indecisão tinha amortecido o seu cérebro.

Estava tão convencido de que era o início que o perturbava que não levou em conta a possibilidade de que poderia ser o final. Vinha, afinal, trabalhando neste manuscrito há quase 11 anos. Tornara-se um substituto para tudo mais. Para o seu amigo Ibn Hamid cujos reproches ainda ecoavam na sua cabeça; para sua esposa Zaynab, que o deixara sozinho em Palermo e voltara para a casa da família em Noto com suas duas filhas e, acima de tudo, para o seu filho caçula e favorito, Walid, que havia embarcado num navio mercante destinado à China e, sem uma palavra de despedida, desaparecera do seu mundo. Se um guarda aduaneiro não o houvesse visto a bordo do navio, não saberiam sequer aonde tinha ido. Isso foi 15 anos atrás. Nada se soubera de Walid desde aquele dia. Zaynab culpava o marido por ter abandonado o rapaz. Idrisi a mandou para a sua propriedade no campo.

— Você passa mais tempo com o sultão no seu palácio do que com sua própria família. Talvez ele pudesse encontrar alguns aposentos para você no harém.

Em conseqüência, o livro se tornara um repositório de todas as suas emoções. Mas ia também deixálo e, embora ele não o soubesse, esta era a verdadeira razão da sua melancolia. Não as linhas de abertura. Elas eram simplesmente um pretexto para prolongar a separação. O som da água gentilmente lambendo o casco do navio era calmante, mas ele sabia que não podia retardar mais. Breve avistariam os minaretes. Pegou sua pena finamente apontada e a mergulhou no tinteiro.

Se permanecesse leal ao seu intelecto, ele romperia com o velho estilo e sofreria em silêncio as agressões inevitáveis que se seguiriam. Muitos dos seus conhecidos, alguns dos quais ele gostava, encarariam tal escolha como uma confirmação da sua suspeita de que ele era realmente um traidor, um apóstata que havia secretamente abandonado a fé e se vendido ao sultão cristão. Ele podia replicar informando-lhes que seu pai alegava descendência direta da família do profeta. Mas o mesmo faziam milhares de outros, eles responderiam. Todo mundo sabia que a família do Profeta não tinha sido tão grande assim.

Talvez devesse ser fiel à velha tradição e começar da maneira consagrada pelo tempo de elogiar a generosidade de Alá, a devoção sincera do seu Profeta, a imparcialidade e equidade do sultão e assim por diante. Aquilo satisfaria a todos e o liberaria para começar a trabalhar em outro livro. Mas por que deveriam ele e outros como ele serem condenados à repetição eterna? A resposta continuava a escapar-lhe e ele começou a caminhar pela cabine, concentrando-se no seu tumulto interno. Talvez, desta vez pelo menos, ele surpreendesse a todos eles. Começaria em nome de Satã, que contestou, desafiou e foi punido. O pensamento o fez sorrir. As ondas abaixo pareciam encorajar a heresia. Sussurravam "Faça isso. Faça isso. Faça isso", mas quando colocava o ouvido no tabique para ouvi-las melhor elas caíam no silêncio e ele revertia ao seu estado de indecisão. Estava com raiva do seu mundo e de si mesmo.

No passado, o simples ato de observar as linhas da costa, reproduzindo-as em seu caderno de anotações e assegurando-se de que o mapa alfinetado na mesa era exato, bastava para alegrálo. Esta era a sua terceira jornada completa ao redor da ilha. Se apenas pudesse ter mapeado o mundo inteiro assim, em vez de depender de histórias de mercadores e navegantes, que geralmente contradiziam uns aos outros ao descrever o formato da China ou a metade inferior da Índia. Estranho como eles escolhiam geralmente diferentes tipos de frutas para descrever a mesma região. Uma ilha minúscula na costa da China se tornava um lichi ou uma maçã, a metade inferior da Índia uma manga ou uma pêra.

Havia ocasiões em que, mais do que qualquer outra coisa, ele queria voar, pairar sobre o mar como um gavião. Por que Alá não tinha criado pássaros gigantes capazes de puxar uma carruagem através do céu? Então ele teria observado as terras e os mares abaixo e refinado seus mapas. Teria sido tão simples. Ou cavalgar um gavião gigante enquanto ele sobrevoava os continentes. Só então poderia ter a segurança de que seu mapa era uma representação verdadeira do mundo. Conhecia os contornos desta ilha tão bem quanto o seu próprio corpo. Às vezes sua imaginação conferia formas humanas à paisagem vista do mar: de vez em quando um antigo deus zangado, mas geralmente uma mulher. Às vezes ela o observava, apoiada nos cotovelos, e ele sorria para seus olhos gregos, maravilhava-se com seus cabelos damascenos claros cintilando com estrelas e mudando de cor ao serem banhados pelo sol. Com o movimento do navio vinha a percepção de que ela não olhava realmente para ele. Seu olhar se fixava na direção da Ifriqiya.

Ele, também, desviou o olhar e se perguntou quanto tempo levaria para encontrar outra favorita. Se suas estimativas estivessem corretas, atingiriam a ponta norte da ilha em um dia e meio. Da última vez o mar ficara agitado, atrasando a viagem. Três dias depois ele a viu, uma bela mulher-guerreira, ereta, irada e ameaçadora, aos contrário das famosas sereias do poema de al-Homa. "Não sou um inimigo", ele sussurrava enquanto o navio passava. "Sou um desenhista de mapas. Quero preservar, não destruir." Ela, também, o desdenhava e, desapontado, ele se virava para as ondas e se queixava. Mas na sua última jornada não demonstrara nenhum interesse nestas velhas amigas. Sequer se dera ao trabalho de olhar para as mulheres à medida que os ventos empurravam o navio para longe delas. Estava perturbado.

Os membros mais velhos da tripulação, entre os quais o cozinheiro de cabelos grisalhos, tinham viajado com ele muitas vezes. Conheciam seus humores, entendiam suas paixões e respeitavam sua obsessão de desenhar um mapa do mundo. Tinham notado seus olhos tristes e o ar distante, como se o tempo tivesse perdido todo sentido.

Conversaram entre si sobre ele. O que o poderia estar atormentando? Poderia ser um caso sentimental? O jovem de olhos escuros de Noto? Certamente ele não podia estar ansiando ainda pela houri em Palermo? Não seria Mayya? Tinham se convencido de que apenas Mayya, a filha do mercador, podia explicar o desespero nos olhos do seu mestre. Mayya, a quem o cartógrafo amara mais do que qualquer criatura viva neste mundo e quisera tomar por esposa; Mayya que o havia traído com luxúria enquanto ele viajava. O sultão acenara e ela o seguira de bom grado primeiro ao quarto de dormir real e a seguir para sua própria série de aposentos no harém do palácio. Como o cartógrafo controlara e escondera o seu sofrimento dos olhos curiosos de Palermo se tornara o assunto nos cafés e bazares, mas não por muito tempo. O bazar tinha suas próprias prioridades e o coração partido de um jovem cartógrafo não deteve sua atenção por mais do que algumas horas.

Era o mesmo sultão Rujari para o qual Muhammad alIdrisi escrevera este livro. Seu próprio título fora simples: "Nuz'hat al-mushtaq" ou "A Geografia Universal", mas o velho tutor de Rujari, Younis, o advertira que, como o livro jamais seria concluído sem a assistência material de Rujari, um título mais apropriado seria "al-kitab al-Rujari" ou "O Livro de Roger". Diante de tal sugestão do coração do palácio, o que podia ele fazer senão se curvar e aceitar. Idrisi reprimiu sua raiva, mas os eunucos da Corte garantiram que cada lojista no bazar de Palermo tivesse notícia da alteração do título. O bazar acreditava, erroneamente, que Idrisi havia oferecido as delícias do seu corpo ao sultão. O novo título parecia confirmar a calúnia.

E cada um apimentava a história antes de passá-la para o seguinte e assim a vaidade de um dominador se tornava um épico com muitas camadas em que um seguidor do Profeta fora profundamente humilhado e não pela primeira vez.

O alvo de toda a atenção começou a se perguntar se o problema que estava tendo com uma frase de abertura fora agora transcendido pelo novo título. Um sonho recorrente havia perturbado o seu sono por mais de um ano. Era o sultão Rujari, sempre no mesmo roupão de cetim multicolorido, deitado seminu debaixo de um limoeiro com os galhos dobrados de frutos maduros. Rujari se levantava, tirava o roupão e tentava seduzir uma corça amarrada mas, justamente no momento em que a união entre os mundos animal e humano ia ser consumada, Muhammad acordava num estado de completa inquietação. Saía da cama, caminhava para cima e para baixo no chão frio de mármore murmurando "Você não devia aparecer nos meus sonhos tanto assim" e ia beber um pouco d'água para acalmar os seus nervos em frangalhos. Era sempre difícil voltar a dormir. Por que o sonho só vinha quando ele estava em Palermo? Nunca quando estava no mar ou quando ia visitar sua família em Noto ou na casa de seu amigo íntimo, o médico Ibrahim bin Hiyya de Djirdjent. Certa vez tentara discutir a questão, mas Ibrahim rira, negando qualquer interesse nos fenômenos dos sonhos.

Mais de uma vez, pensara em fazer uma visita a Ibn Hammud, o mercador de sedas mais rico do qasr, que, no seu tempo vago, interpretava sonhos e acalmava os medos de homens preocupados. Era muito procurado e um dia Muhammad se aventurou até a frente da sua loja, mas não entrou. Sua cautela tinha se tornado uma barreira intransponível.

Era perigoso demais. Ibn Hammud não conseguiria manter o sonho em segredo. Na verdade, uma versão exagerada acabaria chegando ao palácio. Os eunucos ririam baixinho enquanto se regalavam com a história e cada nova versão seria mais ultrajante. Então estes guardiães do harém contariam às concubinas e uma delas convenceria um eunuco a sussurrá-la no ouvido do sultão. O sultão ficaria enfurecido e aquilo poderia ser o fim de tudo. Tudo. Não apenas do livro, mas do seu autor. E se Rujari ficasse realmente zangado ele se asseguraria, também, que os eunucos fossem punidos. O risco não valia o sofrimento.

Os últimos dez anos da vida de Idrisi tinham sido consumidos pelo livro mas, à medida que o navio se aproximava de Palermo, ele sabia que não poderia retardar muito mais o final do trabalho. O sultão ficaria zangado. Queria ler o livro antes de morrer e sua doença o deixava ansioso. E somente Alá sabia o que poderia acontecer com um pobre cartógrafo depois da morte do seu patrono. Uma vez mais ouviu o adeus zombeteiro do seu melhor amigo no dia em que Ibn Hamid deixou a ilha para sempre, embarcando num navio com destino a Malaka em alAndalus.

— Venha comigo, Muhammad — dissera o poeta.

— Aqui você nunca vai passar de um mendigo melancólico numa capital estrangeira.

Por que deveria fingir mais? Por que não deveria escrever o que queria? Com um sentido de determinação, Muhammad alIdrisi recolheu-se à sua cabine, sentou-se à mesa e escreveu uma única sentença na primeira página da sua geografia universal:

A Terra é redonda como uma esfera e as águas aderem a ela e são mantidas sobre ela por meio do equilíbrio natural que não sofre nenhuma variação.

Pronto. Esta seria a abertura da sua edição pessoal da obra. Quanto ao resto, ele louvaria Alá, o Profeta, o sultão e quem quer mais que precisasse ser lisonjeado.

Uma concessão, mas ela o satisfazia.

Subiu ao convés de novo e respirou fundo o ar marinho. Palermo devia estar muito perto. Podia sentir isso pela brisa carregada, levando os ricos perfumes de ervas, flores e limões. Estes ele conhecia bem e havia cuidadosamente catalogado as plantas e árvores que os produziam. Nenhum dos seus amigos aceitava que fossem diferentes daqueles de outras ilhas e a maneira arrogante com que estes homens ostentavam a sua ignorância o enraivecia grandemente. Havia feito extensas anotações sobre ervas e flores das ilhas do Mediterrâneo e depois de seus anos de trabalho e viagem era capaz de identificar uma ilha no escuro apenas por seus cheiros. Sorriu ao evocar a noite de verão em que estava deitado no convés — os únicos sons as ternas lambidas do mar contra a dura madeira marrom do navio — olhando para as estrelas. Subitamente, uma brisa se elevou e um aroma suave tomou os seus sentidos. Era uma variedade especial de tomilho e soube imediatamente que se aproximavam da Sardenha.

A fragrância de Palermo foi como uma chicotada. Memórias agridoces de sua infância e juventude ainda podiam dominá-lo. Seus pensamentos foram interrompidos por um rapaz — não podia ter mais de 17 ou 18 anos, cor de bronze, com longos cabelos dourados — que lhe trouxe uma taça com sherbet de limão e sorriu, revelando dentes brancos como a neve. Como os mantinha tão limpos? Alegrou-se que Simeon estivesse feliz de novo, mas aquilo não era o bastante para mitigar a sua culpa. Ouvindo seus gritos uma noite, permanecera em silêncio, deixando de intervir, embora soubesse muito bem que a sua presença teria terminado com a tortura do rapaz. O comandante do navio estava empenhado num rito tradicional. Indiferente à dor e à fragilidade de Simeon, ele o havia violentado impiedosamente. Droit ancien de marinier. E então, sem advertência, lágrimas lhe escorreram pelo rosto ao se dar conta de que estava pensando em Walid. E se algum capitão bruto tivesse abusado dele como fizeram com este garoto? A ausência de seu filho o fazia preocupar-se com a agonia do jovem flautista.

Uma semana depois do ataque, o rapaz não comera nem tocara a flauta, nem ousara encarar qualquer marujo de frente, embora alguns tivessem suportado a mesma tortura violenta, experimentado a mesma magoa intolerável e pudessem ser solidários à sua dor. Outros tinham rido e o provocado e, com o tempo, o rapaz se recuperou. O primeiro sinal do seu retorno aos ritmos da vida cotidiana surgiu quando os sons angustiados de uma flauta foram ouvidos ao pôr-do-sol, despedindo-se do dia que morria. Poucos olhos ficaram secos. O homem que fazia mapas, consumido pela culpa, prometeu a si mesmo que iria encontrar um lugar melhor para este rapaz. Muhammad bebeu o sherbet, devolveu a taça e acariciou a jovem cabeça.

— Já viajou a Bagdá, mestre? Viu a Casa do Saber que tem amplas salas para observar o céu e muito mais livros do que a biblioteca do nosso sultão? — o rapaz perguntou.

— Como é a cidade? É verdade o que dizem, que nossa cidade é maior do que Bagdá? Poderia ser assim? E Qurtuba? Conhece a cidade bem, não é, mestre? Vai voltar para lá um dia?

O cartógrafo acenou com a cabeça, mas antes que pudesse elaborar, os minaretes de Palermo foram avistados. Subitamente o convés ficou cheio de homens gritando "Allahu Akbar" e "Siqilliya sana-hallahu" [Sicília, que Alá a preserve!] e preparando-se para a chegada. Um grupo de jovens cansados, seus corpos queimados do sol e rostos desgastados refletindo a exaustão de um dia de trabalho, baixavam as velas cor de ferrugem e as dobravam no convés. Ao crepúsculo a tripulação começou a entoar um canto suave e melancólico enquanto remava o navio porto adentro. O capitão, em busca de elogio para a disciplina dos seus homens, veio até o erudito e curvou-se diante dele, mas Idrisi o ignorou, ainda querendo puni-lo por ter abusado do rapaz. Mas principalmente o autor da geografia universal se preocupava com o céu, ainda azul claro, e com a lua, já a postos e competindo em atenção com o sol que se punha. Devia ser o sétimo mês do ano, pensou. Estivera fora quase quatro meses. Tempo demais. E então a cidade apareceu à sua frente.

Enquanto os marinheiros se aproximavam dos minaretes, cantavam "al-madina hama-hallahu" [Má proteja esta Cidade]. Sorriu quando o navio entrava no porto, um sorriso sem expressão, um leve abrandamento dos olhos, nada mais. Sentia-se contente por estar de volta. A brisa suave acariciava seu rosto como o toque macio de Mayya e inadvertidamente sua mão buscou o rosto para saborear a lembrança. Um bote o aguardava para transportá-lo à terra firme. Passando pelos homens, agradeceu a cada um individualmente. Reprimiu um suspiro ao ser gentilmente atado com cordas de seda a uma cadeira, que foi baixada até o bote. Teria descido a escada de corda alegremente,

mas o capitão o proibiu. Quando a cadeira alcançou o destino, os barqueiros o acolheram com "Wa Salaam..."

Aproximando-se da orla, podia ver os rostos familiares dos cortesãos enviados para recebêlo. Sabia que sob os seus sorrisos e os alaridos exagerados de boas-vindas eles o odiavam por causa do fácil acesso ao palácio de que gozava. E lá estava a barba branca de um dos camareiros palacianos, Abd al-Karim, gritando tão alto quanto seus anos permitiam.

— Preparem-se para receber o Mestre Ibn Muhammad ibn Sharif alIdrisi de volta ao lar depois de uma longa jornada em busca das raízes do conhecimento.

Como era costume, os outros se regozijaram com a volta segura do navio e de seu passageiro.

— Só existe um Alá e ele é Alá e Maomé é o seu Profeta. Bem-vindo ao lar.

A irritação que sentia nestas ocasiões tinha, no passado, sido arrefecida pela presença do seu amigo Marwan, cujo rosto sorridente era a acolhida que mais o agradava.

Mas Marwan havia deixado a ilha. Tinha abandonado suas propriedades e seus camponeses em Catânia e fugido para alAndalus, para a cidade de Ishbilia. Lá o sultão al-Mutammid lhe proporcionara proteção e emprego. Cartas chegavam irregularmente, sempre com a mesma mensagem. Muhammad, também, devia deixar Palermo e voltar à Casa do Islã. Ele nunca respondeu e Marwan parou de escrever. Agora estava sozinho.

— O mestre vai de carruagem ou vai cavalgar?

— Abd al-Karim perguntou.

— Meu cavalo está aqui?

— Está.

— Então vou a cavalo.

— O sultão o espera esta noite. Um banquete foi preparado em homenagem ao seu retorno.

— E se uma tempestade nos houvesse retardado? Outra voz replicou.

— Nunca aconteceu. O senhor sempre volta no dia designado, Ibn Muhammad.

O erudito sorriu. A voz e o rosto o agradaram. Era o berbere, Jauhar, que tinha casado com a irmã de Marwan.

— Alguma notícia de Marwan? O homem sacudiu a cabeça.

— E você? Sua família está bem? Precisa de alguma coisa? Trouxe algumas sedas para a irmã de Marwan. Nós as trocamos por um pouco de comida. Um navio mercante de Gênova estava em dificuldades.

O homem sorriu.

— E agora tenho um favor a lhe pedir. Vá ao palácio e desculpe-se ao sultão em meu nome. Diga-lhe que a viagem me exauriu e eu só adormeceria no banquete. Amanhã vou procurálo e participar-lhe as novas descobertas que ele solicitou. Gostaria de ficar sozinho esta noite. Tenho algo para contar às estrelas.

Jauhar pareceu preocupado e sussurrou:

— Não é uma decisão sábia. O sultão está doente. Isso o tornou irracional. Poderia interpretar mal sua recusa de ir ao palácio esta noite. Está cercado de monges. Francos e gregos. Abutres. Sussurram mentiras no ouvido do sultão. Estamos sendo acusados de fomentar rebelião.

Idrisi sacudiu a cabeça. Não mudaria de idéia.

— Sua Augusta Majestade sabe que sou o mais leal dos seus servidores, mas viajei muitos dias sem um banho e não me apresentarei em tal estado de desleixo. Procurarei o sultão depois das preces matutinas. Deixe isso claro para o Camareiro.

Os cortesãos tinham escutado a maioria deste diálogo e sorriram. Ele fora longe demais desta vez. Seria punido. Estavam decididos a chegar ao sultão antes que Jauhar desse a Rujari sua versão da história.

Idrisi, acompanhado por um único cavalariço, voltou à sua casa, que ficava fora do qasr, perto do mar. Podia ter morado nos aposentos do palácio. O sultão lhe fizera essa oferta em muitas ocasiões, mas Idrisi insistira em que precisava de solidão a fim de pensar. Trabalhava em seu manuscrito em salas contíguas à biblioteca do palácio e freqüentemente fazia as refeições com o sultão, mas escolhera viver numa casa modesta no Kalisa, com vista para o mar.

Foi uma escolha que nunca lamentou. Achava reconfortante a visão permanente do mar. Calmo ou encrespado e agitado, nunca lhe cansava, apesar das longas viagens em que havia embarcado ou das tempestades que quase lhe haviam roubado a vida. Foi uma cavalgada curta, mas lhe fez bem. Lufadas daquele mesmo vento que trouxera o navio à baía agora transportavam aromas de ervas, flores silvestres e limões. Os odores traziam consigo algumas memórias dolorosas, mas ele as reprimiu.

Ao se aproximar da trilha ao pé da colina teve a primeira visão da casa. A luz suave de velas e lâmpadas a óleo enchia cada janela. Olhou então mais atentamente.

Havia luzes até nas janelas dos quartos acima do pátio, quartos que tinham ficado no escuro desde o dia da partida de Walid. Seu coração começou a bater mais forte e, quase involuntariamente, fincou as esporas para o cavalo seguir mais rápido.


2

Vida familiar e idiotices domésticas.
idrisi frustra um plano de suas filhas
para preparar uma armadilha e trair seus maridos,
mas está decidido a educar os seus netos.

Os criados, como de costume, o esperavam do lado de fora da casa, erguendo tochas para iluminar o seu caminho. Desmontou e apertou a mão de cada um, mas antes que pudesse interrogar qualquer um deles foi distraído pelo cheiro de cordeiro grelhado e ervas frescas, um aroma de significado especial. Partiu depressa para a casa a fim de ver se Walid teria voltado. Mas foram suas filhas que o receberam, tomando suas mãos e beijando-as. Idrisi abraçou cada uma e beijou-as gentilmente na cabeça.

— Bem-vindo ao lar, Abu Walid — disse Samar, a mais jovem das duas, seus cabelos ruivos brilhando sob as lamparinas de óleo.

— O que a traz aqui, Samar? E você, Sakina? Pensei que sua mãe tivesse proibido...

— Não vê seus netos há três anos, Abu Walid. Nossa mãe concordou em que fizéssemos esta viagem.

Ele abafou um riso.

— A velhice deve tê-la amaciado. As crianças estão dormindo?

Suas filhas assentiram com a cabeça.

— Estou correto em presumir que prepararam o cordeiro segundo as instruções de sua mãe?

Samar riu.

— Não tínhamos certeza de que voltaria hoje, mas um mensageiro do palácio chegou algumas horas atrás para nos informar de que seu navio fora avistado e que estaria em casa esta noite. O alho e as ervas vieram conosco de Noto.

Ele sorriu com apreciação.

— Espero que, como vocês, tenham conservado seu frescor. Antes que qualquer das duas pudesse responder, ele bateu palmas, levantou a voz levemente e chamou o camareiro da casa.

— Meu banho está pronto, Ibn Fityan? O eunuco fez uma mesura.

— Thawdor está à espera para esfregar óleo em Sua Excelência e os encarregados do banho têm as suas instruções. Sua Excelência vai comer dentro de casa ou na varanda?

— Deixe minhas filhas decidirem. Geralmente, quando se deitava na lousa de mármore, deixava que o grego fizesse o seu trabalho em silêncio. Não hoje.

— Tem filhos, Thawdor? O massagista ficou chocado. Nos seis anos em que havia servido na casa, o mestre mal lhe havia dirigido a palavra.

— Sim, meu senhor. Tenho três meninos e uma menina.

— Suponho que dois meninos tenham sido dedicados à igreja?

— Acredito em Alá e no seu Profeta, mas minha mulher é nazarena e insistiu em que um deles fosse batizado.

Agora foi a vez de Idrisi ficar surpreso.

— Mas o seu nome é grego e pensei...

— Meu nome é Thawdor ibn Ghafur, Oh Comandante da Pena. Minha mãe era grega e, embora se convertesse à nossa fé, insistiu no nome do seu avô Thawdorus para mim.

Meu pobre pai, que nada podia lhe negar, concordou.

A curiosidade de Idrisi foi despertada. Pediria a Rujari que organizasse um registro de todos os casamentos mistos na ilha.

— E quanto aos seus filhos?

— São rapazes agora. O mais moço estava no seu navio nesta última viagem. Sua mãe vai ficar feliz em revê-lo.

Ao ouvir isso, o dono da casa se agitou. Levantou-se, enrolou uma toalha em seu corpo nu e bateu palmas para os criados do banho. Dois jovens entraram no quarto e fizeram uma mesura.

— Thawdor, descreva o seu filho. Idrisi agora tinha certeza.

— Simeon? Falei com ele no navio. Por que ele não me disse que você era o pai dele?

— Provavelmente não lhe ocorreu. Fico espantado que tivesse a ousadia de se dirigir ao senhor, mestre.

— Falei com ele primeiro. O rapaz é sensível'e inteligente. O que não pode falar, expressa através da flauta. É um jovem talentoso e deve ser educado. Vou falar com o velho Younis no palácio e ver se conseguimos encontrar um tutor para ele.

Lágrimas encheram os olhos de Thawdor.

— Sua bondade é bem conhecida, senhor. A mãe do rapaz poderia até rezar para que Alá recompense a sua generosidade.

Idrisi acenou com a cabeça e os criados o escoltaram até o banho na sala ao lado. Ensaboaram-no e o esfregaram com as esponjas mais delicadamente macias. Ficou então pronto para ser secado e vestido. Quando chegou à varanda, o cansaço fora removido do seu corpo. E o cordeiro estava pronto para ser consumido. Que coisa estranha, comer com suas filhas. Por que em nome de Má estavam aqui? Não acreditava que tivessem percorrido aquele caminho todo só para que ele visse seus netos. Não era do seu feitio. Nem, agora que pensava a respeito, o trabalho todo a que se deram para preparar o cordeiro. Sua mãe Zaynab devia ter-lhes sussurrado bobagens nos ouvidos: "Adulem o velho, façam-no sentir que vocês o amam, garantam que o cordeiro seja cozinhado da maneira especial que ele gosta, esperem até que o tenha provado e então peçam o que têm a pedir."

A lembrança da sua voz insinuante e da falsa lisonja não era agradável e ficou irritado consigo mesmo por ter pensado naquilo. Devia lhe dar uma indigestão.

E onde estavam os maridos das suas filhas? Subitamente percebeu que elas tinham vindo pedir em nome de seus homens. Algo devia ter acontecido. Havia sempre inquietação em Noto e no campo nos arredores de Siracusa. No palácio se referiam àquilo como banditismo, mas ele sabia que era muito mais. Pois bem, ouviria quando a ocasião chegasse.

Desfrutou a comida. O cordeiro estava suculento e gostoso, os legumes frescos e o frasco de vinho enviado pelo palácio, provado por Ibn Fityan e pronunciado livre de veneno, havia reavivado o seu ânimo. Notando isto, Samar e Sakino trocaram. um olhar cúmplice, enquanto Idrisi pensava consigo mesmo como as duas se pareciam com a mãe.

A natureza não as havia dotado da sua própria beleza ou do seu físico. Ao lembrar-se de Zaynab, com quem seu pai o obrigara a se casar e que havia visto de relance pela primeira vez no dia do casamento, tremeu à memória daquela noite. Não houvera nenhum prazer despreocupado para os dois e até agora era um mistério para ele como tinham produzido quatro filhos. Sua mãe reivindicava o crédito para si. Contou à família inteira como, consciente do problema, insistira para que Muhammad bebesse uma desagradável infusão de folhas de café adoçada com suco de tâmara, cujos efeitos afrodisíacos foram primeiro notados pelos curandeiros de Ifriqiya. E, naqueles primeiros anos, a cada ocasião — não que fossem muitas — em que montava na sua esposa, podia sentir o gosto amargo das folhas. Sua mãe ficou convencida de que sem elas ele não teria conseguido produzir quatro filhos.

Se o caráter de Zaynab fosse diferente, não teria encorajado a sua partida de Palermo. Mas ela não possuía qualidades redentoras, nenhuma. Sua voz alta gritando impropérios contra a criadagem o irritava grandemente. E era ainda pior quando ela o elogiava. Ele nunca pensou como devia ser para ela crescer numa casa de nobres, desdenhada por todos por causa da sua aparência, o resultado de endogamia excessiva. Ele sabia disso e às vezes comentava com Marwan ou Ibn Hamid como os árabes se preocupavam mais com a criação de cavalos puro-sangues do que com a de seus próprios filhos. Não era culpa de Zaynab, mas por que Má não lhe dera um pouco de cérebro para compensar?

Que as feições de Zaynab fossem reproduzidas em ambas as filhas poderia ter sido uma desgraça não fosse a posição que Idrisi ocupava na Corte. Haviam se casado com homens da nobreza árabe de Siracusa, cujos ancestrais tinham chegado de Ifriqiya e feito o cerco à cidade poucas centenas de anos depois da morte do Profeta.

Os dotes das moças foram generosos, seus maridos eram gentis e, mais importante, tinham conseguido desempenhar seus deveres sem a ajuda de folhas de café. Filhos foram produzidos, um para Samar e gêmeos — um filho e uma filha — para Sakina. O futuro estava assegurado. A terra agora estava garantida, uma considerável porção já registrada no nome dos dois meninos para evitar disputas de propriedade e, ao mesmo tempo, tranqüilizar as mulheres e o seu pai de que, o que quer que acontecesse, a herança não poderia ser contestada. Seus filhos eram os herdeiros oficiais.

Tendo se dado a um grande esforço para cumprir isto, os dois maridos haviam seguido em frente e, compatíveis com suas crenças religiosas, começaram a semear em outras pastagens. Não demorou muito para Samar e Sakina perceberem que não haveria mais filhos. Quanto aos prazeres da cama, uma luxúria perdida. Foi quando bebiam chá de menta depois da refeição que o seu pai decidiu atacar primeiro.

— Minhas filhas, vocês me conhecem o suficiente para saber que detesto aqueles que ocultam seus verdadeiros pensamentos no fundo de seus corações e falam de outra coisa. Sei muito bem que não vieram aqui impelidas pela bondade dos seus corações, mas porque precisam de algo de mim. Não tenho idéia do que seja, mas sou seu pai e vou ajudá-las. Mas, em nome de Alá, peço que falem agora e falem a verdade.

As mulheres entraram em pânico, inseguras se este era ou não o momento certo para discutirem seus problemas. Tinham achado melhor esperar até a manhã seguinte, quando a presença das crianças poderia deixar seu pai mais receptivo às suas necessidades. Sakina fez uma brava, ainda que fraca, tentativa de criar uma digressão.

— Mas, Abi, não nos disse se gostou realmente do cordeiro. Nós o preparamos especialmente para o senhor e...

A visão do rosto do pai tomado de raiva a fez calar-se imediatamente. Samar viu que era inútil ocultar mais o propósito de sua visita. — Abi, nunca lhe pedimos nada importante até hoje, mas estamos muito infelizes. Nossos maridos nos abandonaram e precisam ser punidos e pensamos que você...

Ele ergueu a mão para interrompê-la.

— Antes que prossigam, quero que sejam claras numa questão. Seus maridos saíram de casa ou lhes pediram que saíssem e encontrassem abrigo em outro lugar?

— Não — as mulheres responderam em uníssono.

— Mas — Samar fez menção de continuar, quando ele a interrompeu de novo.

— Ouçam-me com atenção. Vocês começaram com uma inverdade. Seus maridos não as abandonaram no sentido rigoroso da palavra. Podem não mais dividir a cama com vocês, mas isso é uma questão diferente. Quero que me digam tão francamente quanto puderem por que estão aqui, o que querem realmente e como acham que posso ajudá-las. Comecem a partir disso e então podemos ver como foi que chegaram aqui. Estou sendo claro?

Samar e Sakina se entreolharam em desespero e caíram num silêncio nada característico. Ele gostou do silêncio. Podia ouvir o mar de novo e a brisa suave que fazia as palmeiras balançarem gentilmente. Por um momento esqueceu a presença das filhas, mas a voz fria e agora resignada de Samar interrompeu de novo.

— Muito bem, Abi. Vou fazer o que deseja. Viemos implorar-lhe para persuadir o sultão a deserdar nossos maridos, remover seus nomes do registro de terras e colocar tudo em nome dos seus netos. É tudo. Se isso ajuda, podemos oferecer testemunhas que jurarão sobre o Corão que tanto Samir ibn Ali como Umar ibn Muhammad se envolveram em conspirações com o Amir contra o sultão. Estão preparando-se para a guerra.

— Isto é verdade? — perguntou numa voz severa olhando fixamente para elas. Seria surpreendente se o Amir de Siracusa estivesse preparando uma rebelião. Elas desviaram o olhar e ele soube então que estavam mentindo. Por que estavam tão empenhadas em destruir os homens que haviam casado com elas? Ele conhecia a resposta. Ambas eram estúpidas. Não percebiam que quando as terras são tomadas de uma família desleal, a lei não discrimina entre pai e filho. Tudo é confiscado.

— E estão preparadas para confirmar o que me disseram sob juramento na presença do sultão?

Assentiram com a cabeça.

— Vão dormir agora. Vou refletir sobre o seu pedido e tomar uma decisão amanhã.

Pela primeira vez naquela noite acharam que seu plano teria sucesso. A tolice não tem limites. Sua esposa tinha tomado uma aversão violenta aos genros e estava decidida a se desfazer deles. Convencera as moças disso e as enviara a Palermo, carregadas de falsas acusações.

Imerso em pensamentos, seu pai saboreava o silêncio que se seguira à sua partida. Os pássaros, também, haviam se recolhido para a noite. Só o mar estava acordado e as ondas começavam a ficar ruidosas. Olhou para o céu. Era uma noite clara, estrelada. Quando se levantou e caminhou até a beira do terraço, viu os vaga-lumes dançando no espaço. Isto sempre o deixava melancólico. Lembravam-no da primeira noite, uma noite escura de inverno, que havia passado com Mayya depois de terem declarado seu amor um pelo outro, quando ele tinha vinte e ela era cinco anos mais moça. A meia-lua já havia desaparecido. Quando viram os vaga-lumes, ela riu e começou a dançar.

— Olhe, Muhammad — ela gritou -, olhe para mim. Eu sou um vaga-lume.

Ficou sentado olhando para ela até que uma tempestade súbita irrompera com trovão e uma chuva gelada. Pegou na mão dela e correram todo o caminho de volta à aldeia.

Antes de se separarem, ele a apertou junto a si e beijou seus lábios.

Ouviu Ibn Fityan tossir discretamente.

— Hora de ir para a cama, mestre?

— Sim, venha comigo e faça uma massagem nos meus pés. O eunuco seguiu Idrisi até o quarto de dormir onde um criado o despiu e deu-lhe um roupão para a cama.

— Sabia que o filho mais novo de Thawdor viajou no meu navio?

O eunuco não respondeu.

— Você sabia. Por que não fui informado?

— Thawdor achou que era melhor assim. Não queria incomodá-lo.

— É a sua função contar-me tudo. Entende isso? O que andam dizendo no qasr?

— Dizem que o sultão está doente e pode não sobreviver este ano. Dizem que seu filho mais moço é um Fiel em segredo e restaurará nosso povo à posição que merecemos.

Dizem que o senhor, mestre, tem um papel importante a desempenhar. Os nazarenos estão pressionando o sultão a nos dar uma lição. Falam de conspirações e o aconselham a destruir todas as mesquitas em Palermo porque são os viveiros da rebelião. É o que estão dizendo.

Não esperou uma resposta porque viu que Idrisi havia pegado no sono. Cobriu a forma adormecida do seu amo com um lençol e saiu do quarto na ponta dos pés. Mas Idrisi não dormia. Pensava no futuro. Conhecia as facções palacianas e seus líderes, mas sempre se mantivera distante delas. Agora que seu livro estava terminado iria às preces das sextas-feiras e ouviria o khutba. Talvez devesse ter ido ao palácio, afinal.

Quando acordou à primeira luz da manhã, olhou para fora da janela para ver se os vaga-lumes tinham trazido uma tempestade, mas não havia nenhum sinal de terra molhada e o mar parecia calmo. Mandou chamar os netos e ficou surpreso ao verificar que só os meninos tinham sido trazidos para vê-lo. O filho de Samar, Khalid, tinha 14 anos e seu primo, Ali, era dois anos mais velho.

— Wa Salaam, Jiddu. Abraçou cada um deles e pediu-lhes que sentassem na sua cama.

— Vamos tomar o café da manhã aqui e enquanto vocês comem vou lhes fazer perguntas sobre sua equitação e seus tutores.

Mas o que realmente queria saber era sobre os meninos e seus pais. E o que ouviu lhe agradou. Em cada caso o pai dedicava grande interesse e passava várias horas por semana com o filho. Ali falou de como o pai de Khalid os havia ensinado a atirar uma flecha num alvo e a caçar. Khalid contou como haviam aprendido a poesia de Ibn Hamdis, que o pai de Ali podia recitar de cor.

— Gosta de sua poesia? Ali acenou vigorosamente com a cabeça, Khalid fez uma careta. Seu avô explodiu numa risada.

— Vejo que Ali é um homem sentimental, muito dado ao romance, enquanto Khalid se interessa mais por armas.

— Jiddu — respondeu Khalid -, Ali acha que seremos forçados a deixar a Siqilliya um dia, assim como Ibn Hamdis. Se é assim, que uso tem a poesia? Acho que precisamos aprender a lutar para podermos nos defender. Não quero ver minha família assassinada como cabras em época de festival.

Idrisi olhou atentamente para eles. Viu comerem cuidadosamente o iogurte de leite de cabra e o pão colocados à sua frente. Alá fora generoso. Os meninos eram altos e se pareciam com os pais. Os lóbulos das orelhas de Ali lembravam a Idrisi seu próprio pai. Gostava de seus netos e os aprovava.

— Jiddu — perguntou Ali numa voz suave -, em seu livro o senhor explica por que a montanha em Catânia respira fogo? No mês passado, os aldeães que moram abaixo dela empacotaram seus pertences e fugiram. Mas, depois de algumas bolas de fogo, a montanha voltou a dormir e os aldeães voltaram com cara de idiotas. Por que acontece isso?

Meu pai diz que é porque Alá está zangado com os pecados cometidos pelos nazarenos contra os fiéis.

— Se este fosse o caso, meus filhos, por que ele estaria nos punindo? É o nosso povo que mora naquela região. Não cheguei a investigar a fundo esta questão, mas estou seguro de que tem algo a ver com o nascimento desta nossa Terra.

— Mas foi Alá quem ordenou que a Terra nascesse — disse Khalid com uma voz trêmula, que subitamente lembrou a Idrisi de Walid naquela idade, intenso e inquiridor.

— Quando seu tio Walid, que, espero, volte um dia para conhecer vocês dois... quando ele tinha dez ou 11 anos de idade nós estávamos numa grande embarcação não longe de Catânia. E a montanha-de-fogo tornou-se muito ativa e o mar muito agitado e achei que talvez não sobrevivêssemos. Mas não demorou muito e chegamos à orla em segurança. Walid fez a mesma pergunta e eu lhe dei a mesma resposta. E então ele me disse isso que você acabou de dizer, Khalid. Conteilhe então uma história que os gregos costumavam contar nos velhos tempos sobre a montanha-de-fogo. Estão interessados?

Os olhos cintilantes dos netos o encorajaram a prosseguir.

— Faz muito, muito tempo, os gregos não acreditavam que existisse apenas um Má. Acreditavam em muitos deuses diferentes. O sultão dos seus deuses era Zeus, que vivia no Monte Olimpo com seus companheiros deuses e deusas. O povo da Terra se ressentia do poder dos deuses. Por que só eles deveriam ser imortais? Por que deveriam pegar as melhores coisas da terra e transportá-las para o Monte Olimpo? Aconteceu então que a Mãe Terra decidiu que dois gêmeos gigantes, os Moídas, que cresciam dois metros a cada ano, deveriam roubar a comida que tornava os deuses imortais, bani-los do Olimpo e governar o mundo eles mesmos. Não era uma má idéia, concordam? Eles capturaram Ares, o deus da guerra, na Trácia e o trancaram numa arca de ferro.

— Mas não tiveram êxito. Os estratagemas de Ártemis os derrotaram e eles mataram um ao outro por engano. A Mãe Terra ficou realmente perturbada, mas se recusou a desistir. Decidiu criar um novo e imenso monstro chamado Tifão. Este monstro tinha a cabeça de um asno, com orelhas que alcançavam as estrelas e asas gigantescas que podiam bloquear o sol e centenas de cobras em vez de pernas. Soprava fogo e quando chegou ao Olimpo os deuses ficaram aterrorizados e fugiram. Sim, fugiram para o Egito. Zeus foi disfarçado como um carneiro, sua mulher Hera como uma vaca, Apoio tornou-se um corvo e Ares um javali. Mas a mais inteligente e sábia foi a deusa Atena. Recusou-se a partir e chamou seu pai Zeus de covarde. Isto o enfureceu. Ele voltou e lançou um de seus famosos raios sobre Tifão, que teve o ombro queimado e gritou por socorro. Então Tifão, num acesso de raiva, agarrou Zeus, o desarmou e entregou a um monstro feminino chamado Delfina. Os outros deuses decidiram socorrer Zeus. Com a ajuda das Parcas, envenenaram Tifão. Então Apoio matou Delfina e resgatou Zeus. Mas Tifão não estava morto. Estava em Catânia, vivo mas debilitado.

Zeus pegou uma pedra gigantesca e a arremessou sobre a cabeça de Tifão e assim nasceu a sua montanha-de-fogo. Tifão ainda está lá e seu sopro flamejante às vezes se eleva aos ares e assusta todo mundo. Isto não é melhor do que dizer que é a vontade de Alá?

Os meninos bateram palmas excitados.

— Jiddu, os gregos realmente acreditavam que podiam derrubar os seus deuses?

— Sim. E então vieram os romanos e assumiram os deuses, mas os romanos foram um passo adiante e seus sultãos decidiram que eles próprios podiam se tornar deuses.

E o fizeram.

— Como?

— Informando ao seu povo que eram deuses e mandando construir grandes estátuas em sua honra.

— Mas nós só temos Alá — disse Khalid -, e isso é muito melhor porque ele é todo-poderoso. Ninguém pode derrubá-lo.

— É verdade, meu filho — replicou o avô -, mas acho que os gregos se divertiam mais com os seus deuses.

— Mas eles realmente existiram? — perguntou Khalid.

— Se as pessoas acreditam neles, eles existem.

— Mas, Jiddu...

— Agora me ouçam. Vão tomar seu banho e se vestir adequadamente. Vou leválos ao palácio hoje. Vocês vão conhecer o sultão.

Quando ele desceu as escadas um criado sussurrou que suas filhas desejavam falar com ele antes de sair de casa. Samar e Sakina tinham ouvido a notícia da visita ao palácio por meio de seus filhos e presumiram que seu pai pretendia facilitar a transferência das terras para os rapazes. Assim, as descaradas mulheres saudaram o pai jovialmente, cumulando-o de palavras melosas e pedindo sua permissão para voltarem a suas casas em Siracusa. Uma raiva fria tomou conta dele e o impediu de responder. Samar expressou preocupação.

— Sente-se bem, Abi? Podemos falar depois que o senhor voltar.

— Sentem-se. Fizeram o que ele mandava.

— Acabei de partilhar o pão com Khalid e Ali. São meninos inteligentes e sérios e gostaria que ficassem um pouco mais para que possa conhecê-los melhor. Quero ensinar-lhes algo importante. Nesta casa honramos a verdade. É o que desejaria lhes ensinar.

As mulheres sorriram em apreciação e concordaram com a cabeça.

— Por esta razão — continuou — decidi ignorar as mentiras que vocês me contaram sobre os seus maridos. Cada palavra que falaram foi uma inverdade e estavam preparadas para testemunhar falsamente com as mãos sobre o Corão. Sei bem que Alá não as abençoou com muita inteligência, mas sua estupidez é verdadeiramente monumental.

E por trás desta tentativa desonrosa um nível ainda mais elevado de estupidez parece estar em ação. Esta bobagem toda foi idéia de sua mãe? Respondam-me.

Sakina começou a derramar lágrimas tão falsas quanto seus sorrisos iniciais.

O pai levantou-se para dispensá-las.

— Quero que voltem a suas casas e se esqueçam de toda essa história. Não se dão conta de que os meninos amam os homens que vocês querem difamar? Se ouvir outra palavra de vocês vou providenciar para que sejam severamente punidas.

Abaladas por esta demonstração de raiva, Samar e Sakina caíram de joelhos diante dele e beijaram seus pés. Samar falou numa voz entrecortada.

— Perdoe-nos, Abi. Está correto. Foi idéia de nossa mãe. Não mencionaremos isso para outra pessoa enquanto vivermos.

Então Sakina, desesperada para recuperar as graças do pai, declarou:

— Nunca mais falaremos inverdades.

Idrisi foi inflexível.

— Poderiam muito bem dizer que nunca mais iriam comer.

— Abi, chegou uma carta de Walid.

O choque quase o derrubou. Sentou-se de novo.

— Se isto é outra falsidade...

— Não é, Abi — Samar falou para apoiar a irmã.

— Nós vimos a carta.

— Quando foi que chegou?

— Um ano atrás — respondeu Sakina.

— Foi-nos entregue por um mercador que havia se encontrado com Walid.

— Por que não fui informado? As mulheres abaixaram a cabeça e não responderam.

— A quem era a carta endereçada? Não receiem. Contem-me a verdade.

— A nós — respondeu Samar — mas nela havia um pergaminho selado para o senhor. Nossa mãe disse-nos que devíamos escondê-lo até o senhor concordar com o nosso plano.

— Presumo que o tenham trazido com vocês? Ela acenou com a cabeça e correu até o seu quarto, voltando com um rolo de papel selado. Tomando-o das mãos dela, Idrisi pediu que o deixassem a sós. Inspecionou o documento atentamente para verificar se fora aberto e selado de novo mas, para sua surpresa, não tinha sido violado.

Ao pisar no lacre e vê-lo esfarelar-se, seus olhos ficaram úmidos. Walid estava vivo. A caligrafia desajeitada era tranqüilizadora. Não podia haver dúvida de que Walid fosse o autor daquilo que estava na mesa à sua frente. Em outro pedaço de papiro com a carta Idrisi viu os contornos de um mapa, mas que costa podia ser esta? Por um momento o cartógrafo tomou precedência sobre o pai. Bateu palmas. Era a costa sul da Índia, mas desenhada com muito mais habilidade do que a sua própria versão.

— Alá seja louvado — disse para si mesmo.

— O rapaz é mais talentoso do que o seu pai.

E então devorou a carta.

 

"Muito respeitável pai, espero que esta o encontre com saúde. Eu honro o senhor e o amo. Esta é a terceira carta que lhe estou enviando. As duas primeiras foram despachadas por meio de mercadores que estavam a caminho de Palermo. Pedilhes que entregassem as cartas no palácio, presumindo que elas o encontrassem lá. Tenho a sensação de que jamais o alcançaram porque se o tivessem o senhor teria encontrado um jeito de responder e eu costumava sonhar que o seu navio entraria nesta cidade de água e me encontraria.

Esta carta estou mandando por um homem do mar que se tornou um caro amigo meu na primeira viagem e agora é capitão do seu próprio navio. Ele está a caminho de Siracusa. Em minhas cartas anteriores eu lhe pedia que me perdoasse por partir sem me despedir. Não queria que ficasse preocupado ou temeroso por minha causa.

Sei quanto me amava e não queria deixar que minha ausência se tornasse uma preocupação permanente em seu pensamento como a sua o é no meu.

Parei de viajar alguns anos atrás depois de ter passado por algumas atribulações e amarguras em minha vida. Agora estou feliz a serviço de um ótimo mercador, Mestre Soliman, que conhece bem Palermo pelas histórias do seu avô que negociava com sedas e trazia muitas belas peças de tecido de nossa cidade. Mestre Soliman não viaja mais. Trabalha principalmente com fivelas curvas e colares de prata para as senhoras e, às vezes, taças de ouro para o palácio. É um artífice muito talentoso e poderia fazer um planário de prata para os seus mapas.

Pai, gostaria de vê-lo, mas não desejo voltar a Palermo. Vai terminar mal para o nosso povo e não tenho vontade de testemunhar novas matanças. Como sabe, foi a morte do irmão de minha mãe a causa da minha partida. Tenho consciência de que o senhor nada sentia por ele a não ser desprezo, mas era um homem afetuoso, sempre muito bondoso para comigo e não houve um motivo real para a sua morte, exceto roubo. Os nobres que o mataram sabiam que não tinha filhos e que a terra reverteria para o sultão, o que aconteceu, e foi entregue aos assassinos. Aqui na cidade de água não existem muitos fiéis. Mestre Soliman, que é judeu, acha que eu talvez seja o único seguidor do nosso Profeta a viver de fato nesta cidade. Por esta razão minha presença não é ameaçadora para ninguém. Não posso lembrar se o senhor chegou a visitar Veneza em suas viagens, mas se um dia decidir vir até aqui pode me encontrar na casa do artífice em prata Soliman que é conhecido de todos. O pequeno mapa que mando com esta carta foi feito por mim quando era marinheiro e viajei muito pelas costas oriental e ocidental da Índia.

A paz esteja convosco, Pai.

Do seu filho obediente, Walid ibn Muhammad"

Uma cascata de emoções desceu sobre ele — alívio, alegria, amor, raiva, tristeza, tudo fluindo junto enquanto ele enxugava as lágrimas dos seus olhos. Perguntas não feitas e amarguras não faladas continuariam a pesar sobre o seu coração, a não ser que... Pediria ao sultão permissão para visitar Veneza.


3

Rumores sigilliyanos.
O sultão no palácio informa a Ydrisi o destino que aguarda Felipe al Makdia.
O encontro de Jdrisi com Mayya e EI more o faz esquecer de tudo mais.

Depois que as formalidades foram concluídas e os dois netos apresentados ao sultão Rujari, que deu a cada um deles um saquinho de seda contendo moedas recém-cunhadas, a audiência terminou. Os meninos fizeram uma mesura e foram escoltados para casa por Ibn Fityan. O resto dos presentes foi convidado a deixar os dois homens a sós.

Idrisi ficou chocado ao ver quanto peso o sultão tinha perdido nos últimos três meses. Seu amigo robusto, vigoroso e bonito havia envelhecido. Os cabelos ruivos escuros de que tanto se orgulhava e que havia herdado da mãe, Adelaide de Savona, tinham ficado totalmente grisalhos. O mesmo destino devia ter acontecido à sua barba e provavelmente por isso ele a mandara remover. As aparências eram importantes para este sultão. Idrisi fitou Rujari, que evitou os seus olhos. Os dois homens sabiam que a morte não estava muito distante.

Justamente quando Idrisi ia falar, uma jovem, com não mais de 16 ou 17 anos de idade, entrou correndo na sala e abraçou o sultão, repousando a cabeça no seu colo. Ao se dar conta de que não estavam a sós, seu rosto se coloriu e ela murmurou um pedido de desculpas. No momento em que Idrisi a viu, soube quem era e as batidas do seu coração se aceleraram. Os olhos e os lábios dela eram uma réplica exata dos de sua mãe naquela idade.

Rujari sorriu.

— Minha filha, Elinore, mas você a reconheceu, não? É igual à mãe, excetuando os cabelos negros e espessos. Esta foi a minha contribuição. Eu acho.

Ela olhou cuidadosamente para ele e sussurrou no ouvido do pai.

— Como é que ele conheceria minha mãe?

— Mestre Idrisi, ela quer saber como é que conheceria sua mãe. Vocês cresceram na mesma aldeia, não foi? Acho que a vi pela primeira vez na casa do seu tio em Palermo. Você estava lá?

Idrisi assentiu com a cabeça.

— Preciso falar com o amigo da sua mãe, filha. É o maior erudito em nosso reino mas raramente está em Palermo. Diga a sua mãe que ele está aqui. Se ela desejar, pode compartilhar do nosso almoço.

Como uma gazela, Elinore partiu do quarto e, virando-se uma vez, olhou para trás e sorriu.

— Soube que teve notícias do seu filho.

— Seus espiões são rápidos, Excelso Senhor. E, nesta ocasião, dizem a verdade. E sua saúde?

— Veja por si mesmo. Aqui estou no palácio dos seus sultãos, alquebrado pela velhice cruel e pela perda dos meus filhos. Conhece esta sensação. Seu menino desapareceu num navio e lembro que você não conseguiu comer durante vários dias. Três dos meus filhos foram tirados de mim. Eu amava Rujari mais do que qualquer outra pessoa. Estava aprendendo rápido. Você o ensinou. Não se lembra? Era um broto saudável e de repente cresceu como uma árvore jovem. Eu o amava, Idrisi. Cuidava dele com todo o carinho. Era o orgulho do meu pomar. Deus é cruel. Então foi a vez de Tancredi, seguido por Alfonso. Agora tem Guillaume ou "Guilherme, o Conquistador", como seus irmãos costumavam provocá-lo. É um doce rapaz, de temperamento tranqüilo, mas pouco dotado e sem sabedoria nem virtude. A coroa pesará muito na sua cabeça e receio que irá depender muito da espada. A espada, como sabe melhor do que a maioria, é uma defesa essencial contra inimigos em casa e no estrangeiro, mas deve ser usada com cuidado. Se houvesse imaginado que todos os seus irmãos morreriam antes dele, eu teria providenciado para que tivesse a oportunidade de governar ou trabalhar para o Diwan. Seus interesses são limitados à poesia árabe, a discussões sobre o amor, a consumir vinho e a fornicar. Embebeu-se tanto da sua cultura que acho que sente e pensa como um árabe. Isto é perigoso, Idrisi, e vai enfurecer os nobres. Quero que você fale com ele, o ensine e ajude. Ele poderia perder até seu reino tão facilmente como meu pai o conquistou. Se ele o fizer, espero que o seu povo o recupere, mas duvido da sua capacidade de fazê-lo.

Existe uma fraqueza arraigada na sua política. Vocês superestimam o poder da palavra e da espada, mas subestimam a necessidade da lei, especialmente em relação à propriedade. Não me interprete mal: a lei é somente um instrumento para ser usado pelo governante ao seu critério, mas cria a base para a estabilidade. Detestaria que os papas tomassem a Sicília, ou os ingleses ou os cruzados. Se o fizerem, tudo o que criamos será destruído. Será o fim. Eu esperava que minha jovem e bela esposa pudesse me dar um novo filho, mas ela produziu uma menina e isso não ajuda.

Havia ocasiões em que Idrisi tinha dúvidas em relação a si mesmo e à sua posição na corte. Freqüentemente imaginava como, com o seu conhecimento da Siqilliya e do mundo, podia guiar seu povo à vitória. Mas uma conversação mais demorada com Rujari geralmente dissipava suas dúvidas. Não havia outro sultão como ele, na Ifriqiya ou em alAndalus, os dois mundos que ele entendia tão bem. Mas o sultão era duro demais em seus julgamentos.

— Acho que faz uma injustiça a Guilherme. É porque jamais gostou dele que se refugiou em seu próprio mundo, mas é um rapaz inteligente. Seu conhecimento de literatura e filosofia é notável. É verdade que é muito chegado aos prazeres do salão e do copo, mas vou fazer o que pede e dar-lhe algumas lições de política. Vamos esperar que Sua Alteza viva por muito tempo. Os médicos diagnosticaram a sua doença?

— Os sábios de Salerno — e todos eles estiveram aqui — dizem que não há cura para a minha doença. Sabem que estou morrendo. Recomendam ervas, frutas e outras coisas mais, mas quando pergunto quanto tempo de vida me resta não têm resposta. Não sabem. Por isso vamos falar longamente hoje, meu amigo. Há muito a discutir. Estou contente porque teve notícias do seu filho e estou ainda mais feliz porque seu livro foi terminado. Seu livro não deixará felizes meus primos ingleses. Você descreve a Inglaterra como um país de inverno perpétuo no Oceano das Trevas. É verdade. É verdade. Até os padres que os ingleses me mandam para intrigar contra o seu povo e os gregos sabem disso muito bem. Por que outro motivo viriam muitos deles para buscar calor nos braços de rapazes locais? Não é culpa deles, mas de vocês. Por que um exército árabe não chegou e construiu sobre o que os romanos haviam deixado para trás? Assim que atingiram a costa atlântica, vocês podiam facilmente ter tomado a Inglaterra e a ilha ao norte. Aquelas pequenas igrejas saxônicas de que ouvimos falar tanto podiam ter sido reconstruídas como belas mesquitas e depois o Banu Hauteville as teria consagrado como catedrais. Meus primos queixaram-se amargamente de terem de construir tudo sozinhos. Castelos, palácios e igrejas. Disseram-me que todas as suas estruturas são inverno perpétuo.

Sorriu e olhou para o amigo. Era assim que suas conversas tinham ocorrido quando ambos eram jovens e se tornaram amigos chegados. Sua intimidade provocara uma quantidade de rumores nas ruas, encorajados pelos eunucos do palácio. O sultão esperou a sua resposta. Idrisi o atendeu.

— Era fria demais para ser conquistada por nós e até Alá teria problemas para mudar o clima de um país. Em alAndalus e na Siqilliya ainda podíamos cheirar o deserto e cultivar nossastâmaras, limões e romãs. Mas na Inglaterra o frio teria matado as palmeiras e aqueles que levavam as sementes. Aquela ilha era feita para o seu povo, não para o meu. Embora o que diga seja verdade. Nós teríamos lançado a luz do conhecimento sobre eles. Teria poupado a Abelardo de uma longa jornada até aqui simplesmente para aprender árabe. E nós lhes teríamos ensinados os prazeres da comida. Eles pensam e comem como bárbaros. Mas acho que os seus arquitetos, também, gostam de trabalhar segundo os seus planos, não os nossos. A igreja que vocês construíram em Cefalu nunca poderia ter sido construída sobre as fundações de uma mesquita.

Riram. Muito para a irritação dos padres ingleses na corte de Rujari, o azar dos primos que haviam conquistado a Inglaterra era o alvo de muito humor e irreverência entre estes dois velhos amigos. Até mesmo aquela conquista havia exigido a presença de cavaleiros siqilliyanos. E alegava-se até que uma flecha siqilliyana havia derrubado o rei inglês.

— Ah, Cefalu. É lá que você deve providenciar para que este corpo cansado repouse depois que eu partir. Os bispos vão querer enterrar meus ossos aqui em Palermo.

Não deixe que façam isso. Alguns dos meus momentos mais felizes foram passados em Cefalu, onde morei e providenciei para que os arquitetos fizessem exatamente o que eu queria. Por que sorri? Ah, eu lhe contei sobre a mulher de Temim. Ajudou-me muito, certamente, mas foi a igreja que me preocupou muito mais do que ela.

Quanto ao projeto, sei que você está fazendo uma maldade. A influência dos seus arquitetos está onipresente naquela igreja. Como poderia ser diferente quando foram eles que a construíram e da maneira que eu queria que fosse? Foi por isso que me mudei para lá a fim de evitar que os bispos interferissem. Vamos, mestre Idrisi, como pode ter se esquecido daqueles deliciosos arcos, delgados como as curvas de uma bela mulher?

— Uma bela mulher de Temim... Rujari ignorou a observação.

— O que são aqueles arcos senão um tributo às mesquitas de Palermo, que ainda estão lá como estavam na época do meu pai? Você estava convicto de que eu não conseguiria protegêlas. Claro que a igreja que o seu povo tomou e transformou numa mesquita teria de ser consagrada de novo. Nós somos cristãos, afinal. Mas você deve admitir que tudo mais está lá. Esta ainda é a cidade das 299 mesquitas e ainda sou o sultão Rujari da Siqilliya.

— O senhor é certamente o sultão Rujari de Palermo. E os Fiéis o respeitam por isso, mas de que outro modo poderia governar uma cidade em que o grosso da população pertence à minha fé? Poderia matá-los, mas quem administraria o Diwan, combateria as suas guerras, transportaria suas mercadorias e pagaria seus impostos? Os lombardos que seu pai encorajou a virem para cá são bárbaros. Nada sabem a não ser estuprar e roubar. E quando o senhor viaja para Messina ou Apúlia e deixa estes belos mantos longos e se veste na armadura dos seus ancestrais e seu escudo é pintado com uma cruz o senhor se torna rei Roger ou conde Ruggiero dependendo de onde estiver e dos papas litigantes que venham implorar pelo seu apoio.

Rujari sorriu.

— Você sabe muito bem que meu pai se recusou a mandar nossos soldados combaterem na Primeira Cruzada. Eu lhe contei que, quando uma comitiva do papa Urbano continuou a insistir para que enviássemos soldados, meu pai peidou bem alto e deixou a sala? Mesmo depois que tomaram Jerusalém, ele estava convicto de que tinha tomado a decisão certa. Urbano nunca perdoou meu pai e até o ameaçou de excomunhão. Agora ouvi dizer que as coisas não estão muito boas para os cruzados e eles temem perder tudo. Ainda na semana passada recebi uma mensagem de Inocêncio, cujo ódio por mim só é superado por aquele que lhe devoto. Escreve que existe uma pressão dos ingleses e do Sacro Imperador para uma nova cruzada com o fim de aliviar a pressão sobre os estados cruzados e pergunta se a Siqilliya vai participar.

Não mandarei nossos soldados para Jerusalém ou Acre para salvar os castelos de meus primos na Síria. Mas seria tolo de minha parte revelar isto cedo demais. Por isso eu escuto e jogo com o papa e nossos primos ingleses. São deveres cansativos, mas sagrados.

— Alguns poderiam dizer — respondeu Idrisi — que não foi só preocupação por meu povo ou nossos soldados no seu exército que o levou a não ajudar o Papa, mas seus temores e aqueles do seu pai de que o comércio do trigo pudesse sofrer e esvaziar o tesouro. Não é por nada que um de seus nomes é Abu Tilis, pai do saco de trigo.

Idrisi ia continuar quando notou que Rujari tinha dificuldades para respirar. Correu até a porta e pediu ao camareiro do palácio, que estava bisbilhotando, que trouxesse os médicos até o rei.

Rujari se restabeleceu, mas o esforço para recuperar o fôlego o exauriu.

— Vou descansar um pouco — sussurrou fracamente.

— Você precisa comer alguma coisa. Fale com Mayya e depois volte ao meu quarto. Tem um assunto importante que precisamos discutir.

Os médicos tinham chegado e começaram a sentir o pulso e a cabeça reais. Rujari bebeu a água que lhe foi oferecida e depois, pousando os braços nos ombros dos dois criados, caminhou lentamente até o seu quarto. Entristeceu Idrisi vê-lo naquele estado. Este sultão jamais deixaria Palermo vivo. Disso ele tinha certeza.

Um serviçal do palácio entrou na sala e o repreendeu num dialeto árabe falado em Noto.

— Esqueceu-se de mim, mestre. Idrisi examinou-o atentamente e sorriu. Era Abd al-Rahman, o camareiro responsável pela preparação e pela prova da comida nas cozinhas do palácio.

— Você envelheceu, assim como o sultão que serve. Fico feliz que ainda seja o Comandante dos Cozinheiros. Que iguarias foram preparadas hoje?

— Acho que ficará tão contente em rever uma velha amiga que seu pensamento não se fixará por muito tempo nas codornas ou no ninho de pasta de berinjela e alho em que repousam. E isto é apenas para abrir o seu apetite. O simples aroma da comida o guiaria até o refeitório, mas se quiser me acompanhar, Comandante dos Mapas, chegará ao seu destino muito mais cedo.

Idrisi estava tão acostumado ao fato de que poucos segredos sobrevivem em Palermo que a referência casual a Mayya não o havia surpreendido nem um pouco. Conhecia bem demais o local. Era o aposento de encontros particulares de Rujari, onde se servia comida às vezes e onde apenas membros da família, amantes ou amigos privilegiados eram recebidos. Idrisi comera ali em várias ocasiões e, na verdade, não precisava dos serviços de seu guia. A sala estava bem distante do grande salão de banquetes do palácio. As janelas davam para o mar, um cenário perfeito. E o destino quisera que ele se encontrasse com Mayya sem a presença do sultão. Sabia que o ouvido de um eunuco estaria colado à porta e toda a conversa seria relatada ao camareiro que então decidiria quanto deveria ser contado ao sultão e quanto reservado para fins de chantagem. Sempre fora assim, mas ele estava bem preparado.

Mayya entrou na sala deslizando como a princesa que não era e cumprimentou-o sem olhar na sua direção. Ela, também, sabia que cada parede do palácio tinha ouvidos.

— Wa Salaam, Abu Walid. Soube que voltou em segurança e seu grande trabalho foi completado, graças à bondade de Alá. Minha filha me informou que o viu com o sultão.

— Wa Salaam, mãe de Elinore. Fico triste que o sultão não possa comer conosco. Espero que a sua saúde melhore.

Sua única resposta foi mostrar a língua para ele e reprimir a risada que sentia saindo de si. Idrisi não a via há quase 15 anos. Agradou-o que não fizesse nenhuma tentativa de esconder sua idade tingindo os cabelos com hena. Podia facilmente tê-lo feito. Seus cabelos eram de um ruivo dourado escuro, exatamente como uma pintura desbotada da deusa grega Deméter que ele lembrava do templo em Djirdjent. Seu rosto, também, havia mudado, com rugas no pescoço e sob os olhos e nos cantos da boca. Olhou atentamente para ela e estava para beijar suas mãos quando a porta se abriu e Abd al-Rahman entrou na sala seguido por três criados que cuidadosamente dispuseram a comida sobre a mesa.

— Voltaremos quando chamar, mestre Idrisi. Espero que tudo esteja ao seu contento.

— Obrigado, Abd al-Rahman, se não estiver prepare-se para sentir a cimitarra no seu pescoço duro.

Mayya tentou, mas não conseguiu controlar um sorriso. O camareiro fez uma mesura e deixou a sala, tomando o cuidado de fechar as portas com exagerada cortesia.

Idrisi ficou de joelhos, abraçou-a e beijou suas mãos. Então sussurrou no seu ouvido.

— Ela é uma moça bonita. De passos leves e segura de si. Você tem certeza?

Mayya acenou com a cabeça e sussurrou a resposta.

— Graças a Alá, seus cabelos, também, são escuros. Um dia contarei tudo a ela.

Acariciou os cabelos dele e fez sinal para que se sentassem à mesa. Ele a seguiu, mas não pôde se impedir de tocar no pescoço dela. Ela tremeu ligeiramente enquanto se sentavam diante das tentadoras codornas, servindo ele e então se servindo. Fez sinal para que ele comesse e disse em voz alta:

— Quando Abd al-Rahman for para o paraíso, estou segura de que o anjo Jibril vai indicá-lo para se encarregar das cozinhas celestiais. Como estava a comida no seu navio? Como sempre?

— Horrorosa. Pior do que o de costume. Não vamos perder tempo com isso. Estas codornas estão maravilhosas.

E conseguiram falar sobre o cuidado que devia ter cercado cada prato e o frescor dos legumes durante outra meia hora.

Então Idrisi começou a falar de suas viagens. E esse tempo todo em que falavam de comida, mapas e do mar, mantinham-se ocupados explorando o território um do outro.

A incongruência entre as palavras e as ações era tão pronunciada que mais de uma vez ele teve de colocar a mão sobre a boca de Mayya para impedir que ela risse.

Sentindo seus seios debaixo de três camadas de roupas, comentou sobre a delicadeza dos melões, diante do que ela riu alto. O ruído os assustou e correram de volta à mesa para sentar-se em lados opostos. Então, de uma distância segura, seus olhos continuaram a se banquetear um no outro. O risco de fazerem contato físico tornou-se claro quando, sem nenhum aviso, as portas se escancararam e o sultão entrou com Elinore segurando o seu braço. Idrisi se pôs de pé em genuína surpresa.

Mayya sorriu calmamente, mas debaixo de seu vestido de múltiplas camadas podia ouvir seu coração barulhento que, diante do dilema entre o prazer e a culpa, sempre escolhia o primeiro. Idrisi, também, manteve a sua compostura.

— Alá seja louvado. Está recuperado, Sua Excelência. Rujari não perdeu tempo com formalidades.

— Sua risada podia ser ouvida em cada canto do palácio, Mayya. Não quer compartilhar o gracejo conosco?

Ela não hesitou.

— Foi a maneira como mestre Idrisi se referiu aos melões, meu senhor. Ele os segurou em cada mão e falou em voz alta, sabendo muito bem que alguém do lado de fora estava ouvindo e relataria seus comentários à cozinha. Foi o olhar no seu rosto, mais do que as palavras.

Para apoiá-la, Idrisi pegou os melões e assumiu a pose de um deus grego.

Rujari sorriu, enquanto Elinore começou a rir, como a mãe. Estranho, o pai pensou, como as duas têm esta risada brilhante e colorida. Primitiva, mas pura. Uma verdadeira alegria aos ouvidos.

Idrisi começou a estudar as feições da filha mais de perto. Suas sobrancelhas o lembravam da mãe. Como ela teria amado esta criança. O sultão o observava atentamente.

— Ela é bonita, não é, mestre Idrisi? O rosto de Elinore corou e ela foi sentar-se ao lado da mãe.

— Ela tem uma certa semelhança com a sua mãe, ou estou enganado?

— Não está enganado. Mas às vezes eu me pergunto se a semelhança está nas feições ou no caráter. Não posso me decidir. Qualquer das duas respostas me faria feliz.

Pode ir, filha.

Quando ela se levantou para sair, Idrisi falou-lhe diretamente.

— Está satisfeita com o seu tutor?

— Sim, estou, mestre — ela respondeu com uma segurança que o agradou enormemente.

— Ele diz que meu árabe e latim estão agora perfeitos e quer me ensinar grego.

Idrisi se surpreendeu.

— Se o seu pai concordar, eu gostaria de lhe dar algumas aulas de geografia. Achamos que Palermo é o centro do mundo e de certo modo é, mas não é o centro real.

Para surpresa da garota e dos seus pais, o sultão não estava inclinado a concordar.

— Existem muitas outras coisas que uma jovem precisa aprender antes de a sobrecarregarmos com geografia.

Elinore se desagradou.

— Mencione outra coisa, pai. A força da inocência era notável e os dois homens sorriram com admiração.

— Continuaremos esta discussão em outra oportunidade, minha filha, e eu talvez ceda nesta questão. Afinal, eu ajudei mestre Idrisi a preparar a pesquisa para este livro. É por isso que foi intitulado "al-kitab al-Rujari". Mas agora devo tomá-lo de vocês. Preciso consultá-lo num assunto de grande importância para o reino que pode envolver sua futura geografia.

Idrisi curvou-se para Mayya e sorriu para Elinore. Enquanto os dois caminhavam lentamente para a câmara de audiência privada, Idrisi comentou sobre a rápida recuperação do sultão e perguntou se estes ataques eram freqüentes. O sultão acenou com a cabeça, mas deixou claro que sabia que o seu tempo nesta terra era limitado e era em outra questão preparatória para o futuro que precisava de aconselhamento. Foi a terceira vez naquele dia em que Rujari havia indicado que algo o preocupava.

Idrisi ficou pensando por que ele não conseguia falar a respeito. Estavam sentados há algum tempo e o sultão ainda permanecia em silêncio, seus olhos recusando-se a fazer contato com aqueles do amigo.

— Comandante dos Poderosos, há mais de vinte anos que o conheço bem. Esta é a primeira ocasião de que me lembre em que teve alguma dificuldade em me confiar alguma coisa que o está claramente preocupando.

O sultão olhou para ele. — Algo que disse antes continua a ecoar em minha mente. Disse que eu era sultão Rujari em Palermo mas rei Roger no continente. Pois bem, meu amigo, eu preciso me tornar rei Roger em Palermo também. Os bispos me advertiram de que os barões de Apúlia e Messina e outros que não foram nomeados decidiram agir depois da minha morte. Pretendem matar o pobre Guilherme e colocar um deles no trono. Os bispos recomendam que para deter o controle do futuro eu preciso fazer a minha lealdade à Igreja visível a todos.

Idrisi percebeu a gravidade da situação.

— Um sacrifício de sangue?

— Receio que sim.

— Se sou eu que querem, preferiria a cimitarra ao fogo.

— Não é uma questão de frivolidade. Eles querem a cabeça de Felipe al-Mahdia.

Abalado pela notícia, Idrisi se levantou, o rosto carregado de raiva. Felipe era o mais respeitado dos conselheiros do sultão na Siqilliya. Era um eunuco que havia fugido da escravidão em Ifriqiya na juventude e encontrara santuário em Palermo. Nascido muçulmano, depois da morte do pai fora vendido como escravo a um mercador grego. Foi batizado e destinado à Igreja em Constantinopla. Mas o navio mercante que o levava foi atacado por piratas e ele acabou vendido à casa de um mercador em al-Mahdia. Converteu-se voluntariamente ao Islã e logo escapou da servidão como clandestino a bordo de um navio com destino a Palermo. Igualmente fluente em árabe, grego e latim, sua facilidade para as línguas o recomendava para o Diwan real. Seus dons não se confinavam à tradução. Tais eram suas capacidades de administrador que se tornou o mestre da casa e, mais tarde, um eficiente Amir al-bahr, um comandante marítimo temido pelos inimigos da Siqilliya. Estava freqüentemente ao lado de Jorge de Antioquia, o comandante marítimo que conquistou as cidades-estados da costa ifriqiyana para o rei siqilliyano. Depois da morte de Jorge, Felipe foi nomeado seu sucessor. Dentro do palácio, veio a ocupar uma posição de segundo, superado apenas pelo sultão. Um grão-vizir, mas sem um título grandioso. E, na ausência de Rujari, a autoridade de Felipe era inquestionável. Na cidade era visto como um generoso protetor de judeus e Fiéis.

Apenas poucas semanas antes de sua volta a Palermo, quando o navio de Idrisi ancorara num pequeno porto da Calábria para se reabastecer de água potável, ouviram em termos brilhantes sobre o triunfo de Felipe em Bone, na costa ifriqiyana.

Os bispos sem dúvida o consideravam um sério obstáculo aos seus planos, mais notavelmente à conversão lenta e forçada de todos os infiéis. Só podia ser este o motivo para pedirem a sua remoção. Felipe também possuía uma língua afiada e fazia pouco esforço para disfarçar sua aversão a alguns dos padres, enquanto mantinha uma amizade forte com outros. Idrisi podia entender por que os clérigos queriam sangue. Mas o que havia acontecido a Rujari?

— Qual é a acusação contra Felipe?

— De que foí muito indulgente com os prisioneiros feitos em Bone.

— Sultão, tanto o senhor como seu pai na sua época mostraram indulgência ao lidar com os povos derrotados. Em si, o que Felipe fez não constitui um crime. Seus bispos e sem dúvida os barões que os alimentam e protegem os estados da Igreja temem o poder de Felipe e a sua proximidade e lealdade para com o senhor. Mande-o embora, se for preciso, mas não o queime. Isto não aplacará a fome deles. O senhor está doente e debilitado, eu sei, mas sua força política persiste. Queime Felipe e aqueles que o senhor apazigua destruirão seus herdeiros amanhã. Meu conselho de amigo é que resista à pressão. Devolva suas exigências para eles mesmos. O senhor sabe melhor do que eu que os barões roubaram terras e raptaram crianças para propósitos escusos. Peça aos bispos para que julguem estes homens por seus crimes antes de tocar em Felipe. Consiga algo em troca pelo crime que está para sancionar. Se recusarem, então pode voltar à sua velha alma compassiva.

Rujari não respondeu.

— Com sua permissão, vou me retirar agora. Um leve aceno de cabeça foi a única resposta de Rujari.

O cartógrafo tremia de raiva ao curvar-se e deixar a sala. Do lado de fora foi escoltado por um dos camareiros menores e dois escravos. Ao atravessar o pátio externo viu uma figura voando em sua direção. Parou até que a aparição quase correu sobre ele.

— Elinore, minha filha — disse, porque ela olhou para ele com um só olho bem aberto que o fez lembrar de Walid. Mordeu o lábio, mas ela não pareceu de modo algum desconcertada.

— Mestre Idrisi, minha mãe e eu vamos passar o dia com a família dela na semana que vem. Como sua irmã também vai estar lá, seria um prazer se pudéssemos compartilhar o pão. Não precisa de permissão do sultão para visitar sua irmã, precisa?

— Pensarei sobre sua sugestão, princesa.

— Se receia perder o caminho, posso desenhar um mapa com a maior satisfação.

Ele deu uma risada. — Estarei lá, contanto que me deixe saber o dia.

— Muito bem. Discutiremos Pitágoras de Samos e suas idéias. Acredito na importância dos números, mas não definitivamente na do sete.

Ao ver a surpresa no seu rosto, ela riu e desapareceu. Graças a Alá que todos os dias não eram como este. Saber qual das duas emoções encontradas no palácio o afetaram mais era muito difícil. Que ainda amasse Mayya não chegou a ser uma surpresa. Ela estava sempre trancada dentro dele. Em suas longas viagens ela sempre o acompanhava, uma participante gentil de dúzias de conversações imaginárias que haviam se tornado um bálsamo para mitigar a sua exaustão mental.

No passado, quando ela sussurrou em seus ouvidos que Elinore era sua filha, ele não acreditara completamente nela. Achava que era a sua maneira de abrandar a sua culpa. Não sabia que ela não sentia culpa alguma; a culpa não desempenhava

nenhum papel nos seus sentimentos. Para ela, a oferta de um lugar no harém do sultão não fora uma escolha. Fora uma ordem. Não precisara que lhe dissessem que, caso desobedecesse, toda a sua família sofreria. Neste respeito todos os sultãos eram os mesmos: uma crença na profecia de Maomé ou nos milagres de Jesus não fazia diferença. A satisfação de suas necessidades carnais transcendia todas as crenças espirituais.

Idrisi viu agora que ela não tinha meios para transmitir isso a ele, mas com o seu conhecimento do mundo ele deveria ter sabido. Como tinham conseguido encontrar-se em segredo e fazer amor era algo que ainda o assustava e surpreendia. Ela tinha certeza de que não haviam sido vistos, que nem o mais detestável eunuco do harém sabia o que havia acontecido, mas como se podia ter certeza de qualquer coisa naquele palácio amaldiçoado? Assim como ele deveria ter sabido que para ela, ele, Muhammad alIdrisi, seria o único homem na vida. Incomodava-a que a febre do amor não deixara nenhuma marca nele, mas nisso ela se enganava. Ela procurava sinais físicos e se perguntava por que ele não estava magro ou infeliz. Era assim que os poetas descreviam os amantes privados de suas amadas. Se Qays pôde passar fome por sua Laila, por que não Muhammad por sua Mayya? Ela não sabia que estava sempre presente no seu pensamento, que o livro que ele terminara fora escrito para ela, não para o sultão, que a principal razão por que ficara próximo a Rujari e, em conseqüência, incorrera na ira de muitos de seus amigos, era ficar perto dela.

Nunca lhe contara isso porque achava que não acreditaria nele.

De uma coisa Idrisi tinha certeza. Elinore era sua filha. Todas as dúvidas haviam se desfeito. E receava que o sultão também desconfiasse. A alegria de segurar Mayya em seus braços e de ver sua filha havia animado o seu coração. Mas agora, ao caminhar de volta para casa, respondendo aos cumprimentos dos passantes como se num sonho, não podia tirar Felipe do seu pensamento. Conhecia-o bem, o que não tornava mais fácil aceitar a decisão de Rujari. Felipe fora de grande ajuda em relação ao livro, chegando em certa ocasião a capturar um mercador chinês e trazê-lo a Palermo para ser interrogado sobre as linhas costeiras do seu país.

Mas era de um encontro ocorrido muito tempo atrás que Idrisi se lembrava agora. Naquele dia, depois de ouvi-lo expandir suas idéias sobre o mundo por mais de uma hora, Felipe dera um sorriso triste e falara palavras das quais Idrisi nunca se esqueceria:

— Nunca duvidei que o seu trabalho fosse de grande importância para o senhor, Mestre Idrisi. E para o sultão, que aguarda impaciente o término do seu livro. Tenho também a consciência do quanto ele lhe custa em termos pessoais. Conheço homens na mesquita, homens de bem em sua maioria, que estão zangados com o senhor por não fazer mais para ajudar a sua causa. Para mim — e vai me perdoar por falar com franqueza — a geografia nunca foi decisiva para o conhecimento. Ocorre que o verdadeiro conhecimento afoga todos os mapas que o senhor faz. Pois esse conhecimento vem daquelas tempestades permanentes que torturam nossas mentes, como a chicotada no corpo nu de um marinheiro ou prisioneiro. Em ambos os casos, as cicatrizes ficam e nunca saram. É esta experiência de vida que nos educa, Mestre Idrisi. Não os seus mapas. Não me interprete mal. Precisamos saber o tamanho e a extensão do mundo, mas em si o conhecimento é inútil. É o que fazemos com ele que conta. Às vezes os seguidores do Profeta ficam tão distraídos por novas paisagens que se esquecem das suas origens. E um dia, sem aviso, os cavaleiros chegam. A cruz que marca seus escudos é da cor do sangue.

Seus gritos ferozes parecem aqueles de um leão faminto. É esta intrusão que lembra aos Fiéis o que certa vez foram e o que se tornaram. Mas agora é tarde demais.

O dano já foi feito. Não vão se recuperar mais. Rujari é um governante sábio e prudente, mas vai morrer. Então os cavaleiros virão sobre nós como um lagarto escalando uma rocha. Decidirão que a fim de preservar seu próprio poder precisam depurar a corte de pessoas como você e eu. Depois lavarão Palermo com o sangue do seu povo.

Receio que perdemos a guerra.

Estas palavras reverberavam na sua mente enquanto pensava nas conseqüências da decisão de Rujari de sacrificar o conselheiro mais inteligente do seu reino. Algo podia ser feito para ajudar Felipe? Por que não deveria ele escapar para a Ifriqiya? Não seria difícil organizar uma embarcação que o transportasse através das águas. Felipe, que sabia de tudo, deveria estar a par do que estava sendo planejado.

Uma inesperada brisa marinha pegou Idrisi de surpresa. Instintivamente, ele agarrou a barba para impedi-la de balançar, uma sensação que o incomodava intensamente, mas havia se esquecido de que a barba fora severamente aparada apenas alguns dias atrás. Parado, olhando para o mar, ele sabia que a eterna guerra entre a terra e a água não havia terminado. Havia muitas batalhas à frente e talvez até Alá não tivesse certeza de quem venceria. Esta ilha ainda estaria neste mesmo lugar daqui a mil anos?


4

O 'mehfil' na mesquita Ayn al-Shi fa em Palermo.
Felipe é convencido de que os barões e bispos estão planejando
um massacre ou possivelmente dois.

Idrisi tomou o café da manhã sozinho no dia seguinte. Estava ávido pela presença de Khalid e Ali, mas isso não foi possível. Suas filhas tinham partido, ignorando o seu pedido de que os netos fossem deixados consigo. Ibn Fityan transmitiu a mensagem de que os meninos estavam desesperados para voltar aos pais. Até o criado sorriu ao dar o recado. Mas Idrisi ficou zangado com a desobediência das filhas. Como aquelas mulheres terríveis deviam temer a sua influência, receando que pudesse transferir seu amor pelos livros a Khalid e Ali. Enquanto comia os figos recém-colhidos olhou para o mar. Nenhuma brisa agitava as ondas. Houve época em que esta ilha estivera submersa, disto Idrisi estava convencido: as conchas congeladas que descobrira no cume de montanhas e os formatos de esqueletos de peixes gigantes eram prova suficiente do que certa vez fora e poderia voltar a ser. Seria uma punição adequada para os bispos e barões.

A lembrança incômoda de suas filhas voltou a ele. Por que Alá o punira com elas? Como a idiotice podia imperar sobre tudo mais? Depois de hoje, ele não ligava mais. Iria tentar e conseguir ver seus netos regularmente. Quanto aos frutos de seu sêmen, deveriam estar podres já desde o nascimento. Mas a descoberta de Elinore mudou tudo, como se avistasse uma costa rica e fértil, com praias de areia puras e douradas e uma névoa verde elevando-se da rica floresta de palmeiras ao fundo.

As rochas áridas e os arbustos cobertos de poeira murchando sob o calor do verão foram logo esquecidos.

Ibn Fityan, voltando com o seu café-da-manhã, sussurrou perto do seu ouvido:

— As notícias do palácio não são boas. Dizem que Felipe caiu em desgraça e que os bispos estão pedindo sua cabeça. Poderia isto ser verdade, mestre? Se Felipe cair, quem nos protegerá?

Idrisi não ficou nada surpreso de que os preocupados eunucos palacianos estivessem espalhando a notícia. Sacudiu a cabeça em desespero.

— O sultão não está bem. Ele acha que oferecendo a cabeça de Felipe aos nazarenos numa bandeja garantirá uma sucessão segura. Acha que Guilherme é um rapaz fraco e precisará de muita ajuda dos bispos e dos barões. É por isso que está preparado para sacrificar Felipe, uma pessoa cuja lealdade para com ele não pode ser contestada.

O camareiro olhou para ele com olhos magoados.

— Traição. E o senhor a aceitou? Idrisi não respondeu até que terminasse de comer a coalhada de leite de cabra adoçada com mel.

— Vou à mesquita hoje ouvir ao sermão, mas depois que as orações da sexta-feira tiverem terminado. Pode acompanhar-me contanto que mantenha sua adaga escondida. Não quero que digam que Idrisi está com medo do povo.

Ibn Fityan sorriu. Era o que queria ouvir.

— Não o povo, Comandante do Livro, mas um nazareno incitado à fúria pelos monges que se ressentem da sua proximidade com o sultão. Os rumores vis que espalham a seu respeito são verdadeiramente insuportáveis e...

Idrisi o interrompeu.

— Se eu os posso suportar, você deve tentar fazer o mesmo. Ele entendia o medo que a notícia havia desencadeado. Conhecera fome, sede, cansaço físico e angústia emocional; às vezes o pensamento de Mayya aprisionada no harém o levava a uma terrível infelicidade. Tudo isso, mas nunca medo. Agora, tinha de admitir que a notícia da queda em desgraça de Felipe havia abalado até a sua própria confiança.

Enquanto caminhavam através das ruas cheias de gente até a mesquita, Idrisi notou o silêncio da multidão, esforçando-se para ouvir as palavras do sermão, trechos mutilados do Corão. Ao entrar na mesquita, os Fiéis abriram-lhe passagem para que pudesse sentar-se na frente, mas ele declinou com um gesto agradecido e sentou-se no pátio aberto sob o brilho do sol. Olhou ao seu redor para calcular o tamanho da assembléia. Havia pelo menos três mil pessoas reunidas, provavelmente mais.

O qadi falaria por muito tempo hoje, assombrando os fiéis com uma confusa mistura de conselhos dogmáticos e retórica interminável, que fluíam como uma torrente.

Quando a turba expressava apreciação por uma frase particular com gritos de wa-allah, ele a repetia, enunciando cada palavra cuidadosamente, seu olhar dirigido para o céu.

Idrisi parou de ouvir e relembrou um de seus primeiros encontros com Felipe no palácio. O sultão interrogava seu vitorioso Amir al-bahr sobre a planta baixa de uma cidade construída por Fiéis. Por que a água? Por que os jardins? Por que a fileira de árvores em linha reta?

— Generoso sultão — replicou Felipe — o jardim é o céu na terra, a água deve ser mantida pura e clara nos canais, as árvores devem ser plantadas em fileiras. A razão é simples. Ajuda-nos a desenvolver concepções puras e claras e nos guarda de falsas ilusões. Os construtores criam cidades assim por toda parte para enfatizar a universalidade da fé do Profeta. E é isto que impele os soldados do Profeta para a expansão e os inimigos desta fé para a rendição.

O sultão sorriu e acenou com a cabeça.

— Quando fala assim eu sinto uma coisa. No fundo do coração persiste sendo um Crente no seu Profeta. A conversão à minha fé foi um fingimento. Não o culpo, mas ficaria mais feliz se admitisse isto e então você e mestre Idrisi poderiam rezar juntos.

Felipe empalidecera mas, além daquela expressão, não traíra nada.

— Sou grato ao sultão. Rezo na grande igreja construída por seu pai.

Subitamente Idrisi se deu conta de que o nome de Felipe fora mencionado pelo qadi. Os outros ouvintes já haviam sucumbido ao pregador. Agora Idrisi, também, apurava o ouvido para escutar cada palavra.

— Foi-nos relatado que Felipe al-Mahdia, o grande Amir al-bahr e um digno sucessor do saudoso Jorge, que Alá abençoe sua memória, é vítima de falsidades. Os monges nazarenos acusam Felipe de traição porque dizem que quando conquistou Mahdia se recusou a torturar e matar Fiéis ou estuprar as mulheres. Será isto um crime? Que estrelas chovam sobre a cabeça dos nazarenos e que sejam forçados a beber seu próprio sangue por fazer esta acusação. O sultão Rujari é nosso protetor e nada devemos fazer para abalar o seu trono. Ouçam-me, Fiéis. Este sultão nos defendeu contra a loucura dos seus monges. O sultão e sua família nos guardarão contra todas as catástrofes e por este motivo vamos rezar a Má para guiar o sultão e insistir com ele para que poupe a vida de Felipe.

Idrisi juntou-se às orações, fechou as mãos em concha e olhou para o alto. Um "Amém" coletivo cortou o ar e o sermão terminou. Enquanto o cercavam, os Fiéis gritavam perguntas de todas as direções: O que o qadi disse é verdade? Acha que Filib vai morrer? Nosso mundo vai acabar? Não deveríamos resistir agora antes de esperar pelo machado do carrasco?

Sorriu para eles com olhos tristes e deixou-se levar até o coração da mesquita, numa sala estreita onde os outros se haviam reunido. À medida que seus olhos se acostumaram à semi-obscuridade, sentiu o choque de um relâmpago. Felipe, vestido em longos mantos brancos, estava sentado no chão com os demais. Levantou-se e abraçou Idrisi, beijando-o três vezes. Os outros fizeram o mesmo. Além do qadi, de Felipe e dele mesmo, havia o eunuco chefe do palácio e dois jovens que se apresentaram como capitães de Felipe encarregados de suas próprias belonaves. Felipe lhes havia ensinado tudo o que sabiam e morreriam por ele. Terminadas as apresentações, o silêncio caiu sobre a sala.

Foi Felipe quem falou primeiro.

— O que o qadi disse hoje aqui é verdade. Uma conspiração está sendo preparada contra nós. Isso é uma certeza. Ainda se encontra nos estágios iniciais, mas nossas escolhas são limitadas. Qualquer resistência nesse momento seria facilmente esmagada. Os barões e monges esperam que quando eu for queimado na fogueira haja um levante.

Os dois jovens capitães marinhos tremeram de horror e o mais velho deles falou:

— Amir Felipe, se o queimarem, nós queimaremos esta cidade. A lealdade dos homens nos navios é para com o senhor e ninguém mais...

Felipe ergueu a mão para interrompê-lo.

— Seria uma tragédia se isto acontecesse. O sultão está docente. Vai morrer em breve. Ele sabe disso. O menino que o sucede simpatiza ainda mais conosco do que o pai. Dominou a nossa língua e o Corão. Admitiu ao seu tutor que gostaria de se converter à nossa fé. Não é verdade, mestre Idrisi?

— É verdade — sussurrou Idrisi — mas tenham cuidado. São os desejos de um jovem impressionável que está apaixonado por nossas mulheres e não deveríamos presumir que se converteria...

Felipe sorriu.

— Alguns homens ficam impressionáveis até o dia em que morrem. Sei muito bem disso. Se a maré mudar, Guilherme poderá afastar-se de nós. Numa guerra longa, nada pode ser tomado como certo. Sei disso melhor do que todos vocês. O destino de uma batalha é geralmente decidido no momento da vitória ou da derrota.

Quem acreditaria que um punhado de normandos poderia ter derrotado nossos exércitos nesta ilha? Tínhamos superioridade numérica sobre eles, tínhamos mais armas, mais comida e controlávamos as cidades e o mar. Mas eles venceram. Até o último momento tudo é possível. É a qualidade dos homens que lutam, sua capacidade mental, que determina muita coisa. É o mesmo na situação que nos confronta neste momento. Mas devemos nos preparar cuidadosamente e dar força a Rujari declarando nossa lealdade à sua família. Para nós, as melhores condições no combate que temos à frente seriam se os barões se recusassem a aceitar Guilherme como seu rei. Se isto acontecer, vocês devem resistir a eles e defendê-lo. Quem sabe, a Siqilliya, com ou sem os francos, vai retornar à nossa fé.

Então Idrisi falou.

— Existe um problema que você não levou em conta. Se eles o queimarem, o encanto será quebrado e a bela ilusão ou esperança — chamem-na como quiserem — desaparecerá para sempre. Quando nosso povo vir que o Amir Felipe, o homem mais poderoso no reino depois do sultão, pode ser queimado como um pedaço de madeira e ter suas cinzas espalhadas no mar, entrará em desespero. Pensarão que Alá os abandonou. Ficarão amargos e desesperados e naquele estado os homens não pensam mais de uma maneira calma e racional como você. Por favor, não subestime os efeitos de sua própria morte.

Felipe sorriu.

— Tortura e morte pelo fogo é uma abominação, mas acho que vou sentir mais do que vocês. Fui vendido como escravo e naquela condição sempre se está preparado para a morte. Aumentaria a minha infelicidade se soubesse que vocês estavam empenhados em planejar uma ação destinada a fracassar.

Então o qadi falou. Aos 76 anos de idade, os cabelos em sua cabeça haviam desaparecido algum tempo atrás, mas suas longas barbas brancas, cofiadas com força durante momentos-chave dos seus sermões, tinham um toque de grandiosidade selvagem. Idrisi o tinha ouvido nesta mesma mesquita durante muitos anos e conhecia todas as suas manobras retóricas. Lembravam-no do tempo. Quando começava a falar era como se um pé-de-vento quente e úmido subitamente fosse soprado para longe e o ar se tornasse estagnado e imóvel. Então, de repente, sem aviso, uma nuvem escura surge, seguida por um trovão, exortando os crentes à ação. Às vezes havia variações, mas nada significativo. E os Fiéis, para o seu crédito, aprendiam a demonstrar um estoicismo digno dos seus primeiros ancestrais, aplaudindo as mesmas palavras, semana após semana, como se as tivessem ouvido pela primeira vez.

— Amir Felipe — disse ele -, o senhor é tido como o homem mais sábio nesta ilha, mais sábio mesmo do que mestre Idrisi. Em nome de Alá eu insisto para que pense de novo. Nosso Profeta, que repouse em paz, ensinou-nos a submissão, mas só diante de Má. Nenhum governante terreno pode tomar seu lugar. Que o senhor se submeta ao crime que está sendo preparado pelo palácio é inaceitável e prejudicará a nossa comunidade. Eu o instaria a pegar um navio e desaparecer. Como foi que o nosso Profeta venceu aquelas primeiras batalhas? Foi porque naqueles primeiros embates com os Ignorantes, os soldados do Profeta eram os únicos homens disciplinados da sua época. Não era fácil elevar o estado mental dos Ignorantes para acreditar num só Má, mas finalmente nós conseguimos e eles entraram no curso da História.

Por isso, Amir Felipe, imploro ao senhor para que siga este exemplo. Existem muitos lugares onde encontrará refúgio. Nossos Amires em alAndalus, ameaçados permanentemente pelos nazarenos, recompensarão as suas habilidades. E quando histórias das batalhas que o senhor ganhar, com a ajuda de Má, chegarem à Siqilliya, nos regozijaremos e, quem sabe, isso poderia até encorajar nossos poetas a falarem menos de vinho e mais em nossas vitórias.

Nesta veia a discussão continuou por muitas horas, os jovens capitães apoiando vigorosamente a sugestão do qadi de que Felipe reunisse vários navios e se refugiasse numa cidade amiga. Descreveram como, no passado, haviam encontrado um número de abrigos seguros e os marcaram em seus mapas, sem revelar as localizações, sequer para mestre Idrisi.

Mas todos conheciam a vontade e determinação de Felipe al-Mahdia. Quando tomava uma decisão, era difícil demovê-lo. Com um simples gesto, ele pediu e obteve silêncio.

Então conduziu o mehfil ao encerramento.

— Não me interpretem mal, amigos, mas meditei cuidadosamente sobre a questão. Não tenho nenhum desejo de morrer, mas nenhum de vossos argumentos me convenceu. Como pode minha morte ter o efeito que descrevem se tão poucos sabem que sou um Fiel? A maioria das pessoas acha que sou um nazareno. Não serão afetadas por minha partida. O qadi fala dos soldados disciplinados do Profeta. É disto que precisamos, mas foram os francos que exibiram esta qualidade quando tomaram esta ilha.

Nós estávamos, como de costume, brigando entre nós. Se um de nossos Amires não tivesse convidado os francos para ajudá-lo contra nossos Fiéis, teriam eles vindo até aqui? Só Alá sabe. É porque precisamos de disciplina que estou preparado para morrer, a fim de que vocês tenham o tempo de se organizar para as batalhas que têm pela frente. Os nazarenos não ficarão satisfeitos enquanto não tiverem matado todos nós. É a única linguagem que entendem. E, fiquem seguros, não me submeterei facilmente ao julgamento deles. Vou me defender de todas as suas falsidades. E espero que mestre Idrisi insista em estar presente para que possa transmitir o que aconteceu a todos vocês. Fugir e se esconder é um sinal de culpa e não darei a eles esta satisfação. Se eu fosse embora, eles se vingariam em vocês. Os monges têm dificuldade em ocultar seu ódio a Palermo. Existem Fiéis e Judeus demais aqui para o seu gosto.

— Por isso eu me despeço de vocês, meus amigos. Sempre pensem cuidadosamente antes de agir. Levem tudo em consideração. E uma última coisa para o senhor, mestre Idrisi. Seus genros de cabeça quente preparam-se para pegar em armas contra o sultão. É o que meus homens relatam de Siracusa e Noto. Naturalmente, impedi que a informação fosse circulada, mas diga-lhes que sejam cautelosos. Este é o momento errado. E uma última palavra de advertência. O homem mais perigoso no palácio, porque o mais esperto, é Antônio, o monge de Cantuária, que aprendeu o ofício de homens ainda mais espertos do que ele. Não se interessa por vinho, mulheres ou bens materiais. Sua única causa é assegurar o triunfo nazareno contra os Fiéis. Sempre que falei com ele, senti que estava sendo interrogado por meu carrasco. É um fanático gentil, mas não se deixem enganar. Nunca relaxa com a sua fé, nunca duvida do seu Deus e se sacrificará alegremente para a vitória de sua causa. É o que o faz diferente dos monges corruptos e indolentes nativos desta ilha.

Mestre Idrisi sorri. Sim, meu amigo, ele não é diferente de mim, com a diferença de que minha preocupação é salvaguardar nosso povo da melhor maneira que eu possa.

Antônio é atormentado por uma paixão religiosa e isso, eu receio, sempre beira a insanidade, não importa qual seja a religião. É por isso que o receio mais do que a todos e vocês também deveriam. Acho que ele estará presente ao meu julgamento. Pergunto-me se esta ilha que vocês descrevem como mergulhada em total escuridão ainda assim produz homens cuja luz interior faz suas almas brilharem.

E com estas palavras Felipe e o eunuco-chefe partiram, deixando o resto da companhia num estado de mutismo e choque. Idrisi sentiu a mão do qadi em seu ombro.

— Não poderia interceder junto ao sultão em favor dele? Acenou silenciosamente com a cabeça. Ao deixar a sala Ibn Fityan juntou-se a ele e os dois homens caminharam em silêncio através do pátio interno e saíram às ruas. Quando chegou finalmente à sua casa, foi recebido pelo som suave da flauta.

Parou diante da porta enquanto Ibn Fityan fez a sua pergunta preocupada:

— Amir Felipe recusou-se a deixar a ilha? Os olhos tristes de Idrisi voltaram-se para o seu criado e o eunuco soube que era tarde demais para salvar Felipe. A porta se abriu. Thawdor os havia visto e a música tinha cessado.

— Traga seu filho até mim, Thawdor — instruiu Idrisi. O homem fez o que lhe foi pedido. O rapaz caiu de joelhos e tentou beijar os pés de Idrisi, mas ele se afastou, pegou o rapaz pelo braço e o fez ficar de pé.

— Nunca mais faça isso, Simeon ibn Thawdor. Você não é um escravo. Recuperou-se da viagem?

— Sim, mestre — respondeu o rapaz com os olhos baixos.

— Falei com o seu pai. Você virá comigo ao palácio, onde providenciei para que lhe ensinem a ler e a escrever.

O rapaz ergueu o olhar e sorriu. — Sou agradecido, senhor, mas igualmente feliz de ir ao madresseh. Não quero lhe causar mais incômodos.

— Por que deveria me incomodar?

— O palácio é para os filhos do sultão e eu não estou apto a aprender com eles.

Os homens caíram na risada, antes que Ibn Fityan o tranqüilizasse.

— Não se preocupe com isso, meu jovem. Vai aprender com crianças que não são muito diferentes de você. O palácio abriga os filhos daqueles que trabalham para o sultão. Foi onde me ensinaram gramática árabe e grego. O que gostaria de aprender?

— Música — respondeu o rapaz sem hesitação. Seu pai ficou incrédulo.

— Música?

— Sim, pai. Música — o menino respondeu.

Idrisi interveio. — Escute-me, rapaz. Eu o ouvi tocar a flauta e não tenho dúvida de que Alá o abençoou com o dom. Toca bem e também deveria aprender a tocar o alaúde, que colocará em teste as suas habilidades. Existe um grande mestre em Palermo, cujo pai, também um grande músico, era conhecido de minha família. Falarei com ele e lhe ensinará a arte, mas o fará duas vezes por semana. Nos dias restantes deve aprender gramática e lógica. Creia-me, poderia até ajudá-lo na sua música.

O rapaz ficou exultante.

— O nome do mestre é Abu Salim? Idrisi se surpreendeu. O rapaz sabia mais do que imaginara.

— Ele mesmo. Já o ouviu tocar o alaúde?

O rapaz acenou com a cabeça.

— Uma vez eu caminhava pela taverna, aquela perto da qual os botes são amarrados, e ouvi música que soava como se viesse do céu.

Fiquei sentado do lado de fora e ouvi durante quase duas horas. Perguntei a um homem que saiu cambaleando de um lado para o outro quem era o músico. Bateu-me na cabeça e disse que só existia um homem capaz de dar vida ao alaúde daquela maneira e era Abu Salim. Nunca esqueça esse nome, disse o homem, porque poderia nunca mais ouvi-lo. Nunca mais o ouvi, embora passasse com freqüência por aquele lugar, esperando que estivesse lá.

Thawdor e seu filho foram dispensados com um toque afetuoso na cabeça do rapaz.

— Ficarei de olho em você à distância. Ibn Fityan me manterá a par dos seus progressos.

Depois que saíram, Idrisi fez sinal a Ibn Fityan para que se sentasse.

— Diga-me, quem no palácio, entre os nazarenos, é mais chegado ao sultão?

— Ninguém é chegado da maneira como Felipe era ou o senhor, mestre. Mas é o monge pálido, Antônio de Cantuária, quem se faz ouvir pelo sultão. Como não é daqui, o sultão acredita que o seu conselho seja livre de interesses. Ele não pede terras ou dinheiro. Vive com simplicidade. Dizem-me que foi ele quem aconselhou o sultão a mandar Amir Felipe para a fogueira.

Idrisi tinha visto Antônio circulando pelo palácio, mas não chegara a registrar adequadamente a sua presença. Nem o sultão o havia mencionado uma vez sequer. O sultão estava receoso. Só podia ser essa a única explicação.

Ibn Fityan tossiu discretamente.

— Correm rumores no palácio, mestre, dos quais deveria ser informado.

— Fale, homem. Fale.

— Existe um plano para matar Antônio.

— De quem é esta idéia tola? Felipe vai ficar enraivecido. Isso não o ajudará. O eunuco-chefe está a par?

— Está, mas não conseguiu convencer os outros. Tencionam matá-lo esta noite ou amanhã e...

— E?

— O plano é colocar a culpa do assassinato de Antônio nos monges gregos que o desprezam ainda mais do que nós. A história que os eunucos vão circular é de que Antônio foi apanhado numa situação delicada com um jovem monge e, quando seu verdadeiro amante percebeu, matou os dois.

— Existe alguma verdade na história?

— Nenhuma, Amir al-kitab.

— Então haverá dois assassinatos.

— Se Alá quiser.

— Alá não quer isso mais do que quer a morte de Felipe.

Estas são decisões tomadas por homens nesta terra e em Palermo. E ambas estão erradas.

— É tarde demais, mestre. Não há nada que possamos fazer. Se o senhor advertisse o sultão, trairia minha confiança e aquela do eunuco-chefe. Morreríamos todos juntos.

Idrisi podia enxergar muito bem a lógica em tudo isso. Tomaria um banho e refletiria sobre a crise que estava para tomar conta da ilha.

Foi quando estava coberto de água no hammam que percebeu a importância do que Felipe dissera pouco antes naquela tarde. A melhor maneira de manter a presença dos Fiéis na Siqilliya era apoiar a família Hauteville que havia conquistado a ilha por meio de uma combinação de habilidades marciais e sorte — e do fato eterno: os seguidores do Profeta estavam divididos. Esta última fora a causa da derrota real em Palermo e Jerusalém. Que cidade cairia a seguir? Ishbilia ou Gharnata? O sol escureceria e os oceanos ferveriam antes que os Fiéis chegassem a se unir contra um inimigo da fé e então seria tarde demais.

Os criados haviam começado a enxugá-lo quando Ibn Fityan entrou no vestíbulo da sala de banhos.

— Uma mensagem do palácio acabou de chegar.

— Do sultão?

— Não. É da jovem princesa Elinore. Ela é de fato a favorita do sultão e, se ele tivesse se casado com a senhora Mayya, teria se tornado uma Sultana. É a vontade de Alá. É a vontade de Alá. Ela e sua mãe visitarão parentes no sabá e desejam que o senhor se junte a elas em Siracusa. O mensageiro também sussurrou outra coisa em meu ouvido, mestre.

Idrisi dispensou os criados.

— Antônio partiu subitamente hoje. Embarcou num navio para Marselha. Ninguém sabe por quê. O Diabo deve tê-lo avisado.

— Ou o seu Deus. Fico aliviado com a notícia. E o assassinato do monge grego foi suspenso?

— Claro, mestre. Os assassinos não são tolos. De que adiantaria quebrar um galho se a árvore sobrevive?

A notícia melhorou o seu ânimo. Idrisi sorriu por dentro. Talvez com a partida de Antônio, a decisão sobre Felipe pudesse pelo menos ser adiada. Ele podia escrever uma carta ao sultão pedindo que reconsiderasse. Poderia ser mais eficaz do que um encontro.

— Prepare minhas roupas. Vou partir para Siracusa amanhã cedo. Tenho trabalho a fazer.

— Vai viajar de barco, a cavalo ou em carruagem?

— Barco. Se eu partir cedo pela manhã com a maré, estaríamos lá no início da noite. É quase lua cheia. Será uma viagem agradável.

— Deseja que o acompanhe?

— Preciso que fique aqui para acompanhar os acontecimentos no palácio. Quando for marcada a data para o julgamento de Felipe, me informe imediatamente. Um só criado será suficiente para esta jornada.

— Deveríamos informar o Amir de Siracusa? Vai ficar no seu palácio?

— Prefiro não ficar com ele. Se decidirmos não o informar, ele descobrirá a minha presença?

— Acho que sim e, levando em conta o seu temperamento, vai considerar um gesto inamistoso. Poderia até pensar que o sultão o despachou para procurar um novo Amir.

A fragilidade da situação não deveria ser subestimada.

Idrisi olhou com apreciação para o seu camareiro. Ibn Fityan estava a seu serviço há quase vinte anos, um presente do sultão. Era difícil adivinhar a sua idade, mas tinha provavelmente entre cinqüenta e sessenta anos de idade. Seus cabelos só agora começavam a ficar grisalhos e sua pele de compleição escura era macia como cetim. No início, Idrisi supôs que ele tivesse sido colocado em sua casa para manter o sultão informado sobre as atividades do seu erudito preferido. Mas estava enganado. O homem era parte da rede do eunuco-chefe e este era um grupo que devotava lealdade à fé em que havia sido convertido.

O Profeta proibira a castração dos Fiéis, não importa as circunstâncias. Foi o Tribunal Bizantino em Constantinopla que havia autorizado um comércio frouxamente regulado de meninos castrados, fornecidos ao papa e à sua Igreja para uma variedade de propósitos, mas principalmente para servir ao coral. No resto, eram vendidos no mercado livre em Palermo, o maior centro de comércio entre o Oriente e o Ocidente, assim como Bagdá e Qurtuba. O sultão e os Amires tinham necessidade especial deles. Eram os guardas de confiança do harém e, como tal, adquiriam posições-chave nos palácios por causa de seu acesso ilimitado aos governantes. Freqüentemente trabalhavam de perto com aqueles que, como eles, haviam sido comprados ainda com pouca idade mas, ao contrário deles, não tinham sido emasculados. Felipe al-Mahdia era uma destas pessoas. E logo se desenvolveu entre ele e o círculo dos eunucos uma afinidade natural, o que significava que ele sempre dispunha de um meio alternativo de conhecimento. Ele não dependia exclusivamente da informação disponível ao Diwan. Tão próximo estava dos eunucos que seus inimigos na Corte espalharam o rumor de que ele mesmo era um deles.

Ao contrário de outros que haviam começado a vida como jovens escravos no palácio, Ibn Fityan não tinha a pele clara. Vendido em Palermo aos dois anos de idade, suas origens eram um mistério até para si mesmo. Apesar do fato de que não era castrado, os eunucos o haviam adotado. Fora circuncidado e criado como um Fiel. Nunca falava de sua mulher ou de seus filhos. Todas as tentativas de extrair informação sobre este assunto eram polidas, mas firmemente repelidas e não fosse a indiscrição do eunuco-chefe, Idrisi jamais teria sabido que o filho de Ibn Fityan morrera na recente guerra para a retomada de Mahdia.

Idrisi não se surpreendia mais com as habilidades políticas intuitivas do seu empregado. Sua inteligência natural parecia ilimitada e sua experiência e conhecimento do Diwan e do palácio permitiam-lhe ficar um passo adiante da maioria dos cortesãos.

— Diga-me — Idrisi perguntou-lhe — como vai informar ao Amir que estou a caminho. Apanhá-lo de surpresa é certamente inadequado. Isto também poderia ser mal interpretado.

— Não é um problema, mestre. Esta noite vou instruir ao Guardião da Torre de Vigia em Palermo que mande uma mensagem ao longo da costa até Siracusa. O senhor sabe, naturalmente, que para mensagens secretas nós usamos um código que é conhecido apenas pelas pessoas de nossa maior confiança. O Amir será informado da sua chegada ao tomar o café da manhã amanhã cedo. Isso lhe dará tempo suficiente para preparar a sua recepção.

— Dispõe de um amigo naquele palácio também?

— Mais de um.

— Existe algo que eu precise saber? Ibn Fityan suspirou.

— O Amir é um governante dedicado, mas muitos na cidade o vêem como alguém que se vendeu aos francos a fim de se manter no poder. Ele sabe que é visto assim e isso o enraivece e perturba.

— Neste caso — murmurou Idrisi — temos muita coisa em comum.

— Com todo o respeito, mestre, não é o caso. O senhor é um erudito. Ele é um governante.

— É verdade, mas ambos servimos a Rujari. Ele com a sua espada, eu com a minha pena.

— Os homens que contam sabem muito bem que o seu coração está conosco e quando a ocasião chegar, a multidão também o saberá. Não temos certeza quanto ao Amir.

Ele não fala muito. Só tem uma esposa e nenhuma concubina, restringindo assim nossa capacidade de descobrir o que está realmente pensando. Sua visita oferecerá a primeira oportunidade real. A questão que precisamos ter respondida é esta: depois da morte de Rujari, se tivermos que empreender uma guerra contra os nazarenos, o Amir de Siracusa lutará conosco ou contra nós?

Idrisi irrompeu numa risada para esconder sua ansiedade.

— Por que ele deveria confiar em mim?

— É um risco que o senhor deverá assumir. O mestre tem noção de que a única esposa do Amir é a irmã mais moça da senhora Mayya?

Enquanto Idrisi abria a boca em surpresa, notou um levíssimo traço de sorriso aparecer no rosto de Ibn Fityan enquanto o homem fazia uma mesura e deixava a sala.


5

O Amir de Siracusa organiza um jantar
em que se fala abertamente de rebelião.

Quando o navio, tirando vantagem de uma brisa inesperada, se aproximava da baía de Siracusa, a luz da lua cheia caía na escuridão do mar e na forma de um vale dourado. Por mais vezes que tivesse visto isso e em quantas águas diferentes, era sempre arrebatador. Enquanto observava, viu os barcos dos pescadores iluminados por velas saindo ao mar para uma noite de trabalho.

Na infância adorava ser acordado ao alvorecer para acompanhar a criadagem até a aldeia pesqueira mais próxima de sua casa. A jornada a cavalo o deixava bem esperto; meio excitado, meio assustado pelo pensamento de ver um jaguar atravessar o caminho, mas isso nunca aconteceu. O verdadeiro deleite era observar os peixes ao serem trazidos dos barcos pelos pescadores. Então o cozinheiro lhe perguntava "Qual deles devemos comprar?" e ele apontava para o maior, o que fazia o cozinheiro rir.

"Os grandes têm muitas espinhas. Vamos levar quatro destes..."

Desde que haviam deixado Palermo, a pessoa mais importante a bordo havia ignorado todas as tentativas para o bajular e agradar. Seu criado pessoal cuidava de suas necessidades e mantinha os outros viajantes, principalmente negociantes, à distância. Esta era a desvantagem de ser conhecido como íntimo do sultão. Através de toda a jornada ele evitara olhar para a costa familiar que mapeara mais de uma vez. Em vez disso, seu olhar ficava direcionado para o mar, que tinha, graças a Má, permanecido calmo enquanto ele refletia sobre o passado e o futuro.

Depois de terem vivido anos incontáveis nas vastidões desérticas da Arábia, pensou, meus ancestrais ficaram impressionados com as inesperadas perspectivas que os acolheram nas civilizações urbanas. Não podiam ficar parados e absorveram alegremente o melhor que as novas civilizações tinham a lhes oferecer. A escuridão do deserto não era mais visível, mas surpreenderam o mundo com a sua sabedoria e a opulência de suas cortes e de seus bazares. Mas o contraste entre o que tinham sido um dia e o que haviam se tornado significava que não podiam construir uma estrutura duradoura sobre estas novas fundações. Assim as ondas de rebelião que se levantavam dos desertos e das cadeias de montanhas do mahgreb, rebeldes de barbas compridas pertencentes a seitas que pregavam as virtudes da pureza e abstinência, homens que chegavam no dorso de cavalos com espadas levantadas, gritando Alá Akbar e destruíam as cidades que haviam sido tão cuidadosamente construídas pela primeira onda dos Fiéis. Os puritanos queimavam livros cheios de sabedoria, proibiam o discurso filosófico, puniam eruditos e poetas, começando assim o processo que permitiria ao inimigo penetrar pelos poros de nossas fraquezas e destruir tudo. Faziam tudo isso por motivos nobres. Acreditavam genuinamente que agiam em nome de Alá e do seu Profeta. Naturalmente, não se viam como uma aberração monstruosa: era assim que encaravam os hereges e os sultãos complacentes que eles chacinavam com os soldados que os defendiam.

Idrisi pensava em alAndalus, fragmentada, sob sítio permanente e possivelmente à beira da extinção. Siqilliya era diferente. Aqui a coisa ainda não havia acabado e como muitos dos seus correligionários ele acreditava que o clã Hauteville, por motivos de autopreservação, poderia ajudar na restauração da velha ordem. A primeira dúvida séria fora levantada pela decisão do sultão de sacrificar Felipe.

— Respeitado senhor, chegamos a Siracusa. O comandante do navio estava pronto para conduzi-lo ao bote que o aguardava enviado pelo Amir de Siracusa e que remadores levariam até a praia. Idrisi virou-se e viu a fileira de tochas acesas na orla. Do navio pareciam carregadores de féretro, mas sabia que sua presença significava que uma pessoa de importância fora mandada para recebêlo.

Ao desembarcar, ficou atônito quando viu o Amir à sua espera. Os dois homens se abraçaram. O Amir vestia uma túnica amarela de seda bordada com fios de ouro, seus cabelos aparados e a barba curta tingidos com hena ruivo-escura combinando com a túnica. Seu ar era austero. Os olhos escuros, encravados no rosto, enfatizavam a palidez cadavérica do seu semblante. O esplendor de suas roupas não conseguia ocultar feições longe de perfeitas e, embora fosse alguns anos mais jovem do que Idrisi, era encurvado e mancava ligeiramente. Ainda assim, o Amir tinha o ar de um homem religioso, sério e penitente.

— Má seja louvado por trazê-lo até aqui em segurança, Ibn Muhammad. Bem-vindo a Siracusa. Acredito que a última vez que nos visitou foi a caminho de Noto, mas eu estava em Palermo na ocasião. Nossas famílias são, naturalmente, conhecidas. É uma honra conhecê-lo pessoalmente.

Notícias da sua chegada haviam se espalhado pela cidade. Enquanto os dois homens a cavalo seguiam a rua sinuosa até a grande praça, uma multidão de espectadores abria caminho para eles. Os passantes os acompanharam com passos rápidos até o portão do palácio e começaram a cantar "Wa Salaam, Ibn Muhammad alIdrisi, Wa Salaam Amir al Siracusa" "Alá Akbar". Poucos homens jovens bravamente gritaram "Morte aos Infiéis" antes de serem silenciados pelos mais velhos e retirados às pressas da praça.

Um banquete suntuoso fora preparado em sua honra ao qual todos os notáveis haviam sido convidados. O Amir deixara Idrisi para se recuperar da viagem no hammam.

Depois de um banho quente e de outro frio, seguidos por uma massagem revigorante feita por dois gigantes do palácio, Idris sentiu-se refrescado, mas ainda não gostava da idéia de um banquete formal. Havia, naturalmente, a novidade. Não conhecia a cidade e lembrou-se da recomendação de Ibn Fityan. Ouviria atentamente o que fosse dito, mas por que algo deveria ser dito numa refeição pública? Quando Mayya e Elinore chegariam? Viriam primeiro para cá ou para a aldeia familiar, a uma hora de distância e sem acesso fácil? Uma batida na porta anunciou o camareiro do palácio que viera para escoltá-lo até o pátio onde os convivas estavam reunidos.

O Amir havia descartado a sua apatia e até o encurvado do corpo parecia ter desaparecido. Com um olhar resoluto apresentou Idrisi à cinqüentena de homens que, como árvores cuidadosamente plantadas, formava uma linha reta. A maioria deles eram velhos carvalhos, mas no final da fileira notou dois jovens de aparência cavalheiresca e atraente que, desafiando a convenção, estavam mergulhados em animada conversação, mas ficaram em silêncio quando ele se aproximou. Cada um colocou a mão no coração, curvou-se ligeiramente e se apresentou.

— Abu Khalid.

— Abu Ali. Idrisi ficou atônito. Eram seus genros e deveriam ter sido convidados por cortesia do Amir. Abraçou-os calorosamente e sussurrou:

— Fico feliz em vê-los. Falaremos a sós amanhã. Enquanto se sentavam, Idrisi notou algo estranho: nem bispos nem barões estavam presentes. Pelo que podia ver, não havia um único nazareno à mesa. Não podia lembrar-se de jamais ter comparecido a um banquete oficial sem a presença de um príncipe da Igreja ou de um monge. É verdade, o Amir era um Fiel e o palácio não possuía uma capela, mas não havia escassez de bispos ou barões na região. Idrisi se perguntou se teria sido uma decisão sábia. A resposta veio rapidamente.

— Notei seus olhares inquisitivos, Ibn Muhammad — começou o Amir numa voz quase inaudível.

— Esta é uma reunião fora do comum e não destinada a muitos que normalmente são convidados ao palácio. Pensei em aproveitarmos a sua presença para convidar poucos homens escolhidos a dedo que estão cheio de pressentimentos com as notícias que nos chegam de Palermo. Parece surpreso? Deixe-me assegurar-lhe que este é o primeiro mehfil reunido no palácio. Geralmente alguns de nós nos encontramos na mesquita depois das preces de sexta-feira para discutir questões de interesse comum. Mas, como sabe, alguns de nossos convivas viajaram uma longa distância para estarem conosco. Está entre amigos de confiança. O que disser não será repetido.

Idrisi sentiu-se preso numa armadilha. Sabia perfeitamente bem que tudo o que dissesse seria repetido nas menores aldeias da região e quando suas palavras chegassem a Noto seu sentido seria distorcido além da razão. Sabia que devia tomar muito cuidado.

— Amigos, sinto-me comovido por sua confiança e honrado por sua presença, mas o que vou dizer não difere daquilo que disse em muitas ocasiões ao próprio sultão.

E ficarei feliz em responder às suas perguntas, contanto que possua as respostas. Presumo que ouviram as notícias em relação a Felipe.

Todos acenaram tristemente com as cabeças. Idrisi não revelou a discussão com Felipe na sala escura da mesquita Ayn al-Shifa em Palermo, mas lhes contou tanto quanto podia sem implicar alguém além de si mesmo. Falou da lealdade que Felipe sempre demonstrou para com o sultão, das suas habilidades de administrador e de como fizera o máximo para impedir injustiças na ilha. Embora nem sempre tivesse sucesso, os barões e outros ladrões de terras o encaravam como um inimigo, um obstáculo a ser removido para que sua causa triunfasse nos Dois Reinos.

Ouviram-no em silêncio. Foi o Amir quem fez a primeira pergunta.

— Vão levá-lo a julgamento, o acharão culpado e o queimarão. E nós devemos assistir a tudo isso impotentes sem fazer qualquer tentativa para salvá-lo?

Idrisi respondeu:

— É o que ele deseja. Acha que qualquer outra coisa seria encarada como provocação e poderia desencadear um banho de sangue através da ilha, especialmente onde ainda somos fortes, como em Siracusa e Noto.

A seguir Abu Khalid falou.

— Respeitável Abu Walid, não passa um único dia sem que nossa terra seja transferida para sua Igreja ou para os barões. Mesmo aqui, onde diz que somos fortes, nosso povo se tornou escravo. Somos forçados a trabalhar para eles na terra e matar e morrer para eles nos exércitos do sultão. Não confiam de modo algum em nós. É por isso que trazem os bárbaros do Norte para nos oprimirem. Lombardos, assim os chamam. Estes rudes animais ajudaram a destruir o grande império dos romanos. Agora se adornam com cruzes de madeira ao redor de seus pescoços, mas suas cabeças continuam vazias. Matam tudo que os monges lhes disserem que é impuro. Desonram nossas mulheres e submetem nossos homens a torturas insuportáveis, deixando-os morrer lentamente ao sol depois de os terem estripado. E tudo isso para nos expulsarem das terras que cobiçam. Se esperarmos demais, não restará ninguém para resistir a eles. Quanto tempo podemos esperar? Deveríamos lutar ou partir enquanto ainda estamos vivos? Talvez Ibn Hamdis tivesse feito a escolha certa 75 anos atrás, quando deixou esta cidade e procurou refúgio com o Amir de Majorca.

Idrisi comoveu-se com a paixão do seu genro, mas Felipe o havia convencido de que a oportunidade era crucial. Quantos amires haviam escolhido o momento errado para confrontar o inimigo ou para se confrontar entre si? Explicou tudo isso numa voz suave, enquanto enfatizava que tinha plena noção das crueldades que eram infligidas ao povo.

— Nunca se esqueçam de que é às vezes possível destruir o inimigo, não pela força das armas, de que carecemos, mas pela força do conhecimento que acumulamos durante os últimos quinhentos anos. É por isso que o meu amigo ainda é Amir de Siracusa e Rujari conversa comigo em árabe. No momento nossa força reside nisto: os francos não têm nenhuma outra maneira de governar esta ilha. Não devemos fugir do que está à frente. Mencionou Ibn Hamdis, mas não é um bom exemplo. O poeta de Siracusa nunca foi feliz em nenhum outro lugar. Siqilliya foi a mão que o alimentou, Majorca a tia cujos seios careciam de leite. Aonde quer que fosse escrevia sobre Siqilliya.

Lembram-se?

Este é o país de Alá/ Abandonem os seus espaços e/ suas aspirações à terra serão esmagadas. E, mais adiante, no mesmo poema, ele escreve: Acorrentem-se à querida terra natal! Morram sob o seu próprio teto! E como a mente se recusa a tentar o veneno! Rejeitem o pensamento de exílio. Ele não é um bom exemplo. Nunca foi feliz em qualquer outro lugar.

Mas o pai de Khalid não estava preparado para se entregar tão facilmente.

— Respeitável pai, como responderia às palavras de Abd al-Halim? Amei Siqilliya/ Na minha primeira juventude um jardim de eterna felicidade! Mal alcancei a maturidade!

Eis que a terra se tornou um inferno em chamas.

Idrisi sorriu.

— Bons sentimentos nem sempre fazem boa poesia, meu filho. Concordo com o seu poeta, mas afirmar o óbvio não é uma solução.

Aqueles deste pequeno círculo que falaram depois meramente repetiram em palavras diferentes o que Idrisi já havia declarado. Nenhuma decisão foi tomada e nada irrevogável foi dito. Se um nazareno estivesse presente, pouco poderia relatar que já não houvesse sido dito antes em muitas ocasiões. E, no entanto, sublinhando tudo, havia um embate silencioso e formidável entre aqueles que queriam desencadear uma resistência armada já e aqueles que, como o cartógrafo de Palermo, defendiam que nada deveria ser tentado enquanto Rujari ainda respirasse. O Amir levantou-se e despediu-se de seus convidados.

Idrisi abraçou os dois jovens e convidou-os para o café-damanhã no dia seguinte. Informaram-no de que tinham trazido os filhos, o que o agradou imensamente.

— Tragam-nos com vocês amanhã. Seus filhos são uma prova viva de um velho ditado: são o produto de uma combinação em que o elemento mais forte, agradeçamos a Alá, subordinou o elemento mais fraco com que se viu forçado a entrar em contato.

Uma explosão de risada espontânea dos genros agradou a Idrisi. Vinha pensando em compor um tratado sobre a risada. O papel que ela desempenhava na vida cotidiana.

A risada como um disfarce, como um refúgio, como um escape. Risada polida para agradar ao sultão, ao Amir ou ao Barão ou ao qadi ou a nosso próprio pai/avô/tio-avô.

Risada maliciosa para derrubar um inimigo.

A risada das mulheres, em particular, era severamente cerceada. Não era permitida quando estranhos ou anciãos da família estivessem presentes. As mulheres podiam cobrir os rostos com uma mão e sorrir, mas não rir. Idrisi lembrou a sua infância. As mulheres da casa constantemente se regalavam umas as outras com as piadas mais indecentes, mas caíam em silêncio quando seu pai ou tio entravam no seu espaço.

Preparando-se para a cama pensou como soubera que Mayya lhe pertencia quando ela rira da maneira mais descontraída durante os meses de seu namoro secreto, quando ela tinha 16 anos e ele acabara de completar seu vigésimo segundo ano. Ela nunca fora formal com ele, então ou agora. Mas por que a risada fora tão decisiva? Claro, as mulheres no harém ignoravam todas as convenções, geralmente punindo os eunucos que não as conseguiam fazer rir, e insistiam em que tudo fosse posto às claras.

Mas eram um caso especial. Idrisi estava decidido a descobrir se a restrição à risada era algo confinado às cidades ou se as mesmas regras se aplicavam às aldeias.

Os poetas do passado não tinham feito nenhum segredo do fato de que nos acampamentos no deserto das velhas tribos as mulheres riam, cantavam, lutavam, fornicavam e negociavam, exatamente como os homens.

A conquista das cidades mudara tudo aquilo. Tudo era cuidadosamente controlado. Inclusive a risada? Possivelmente. O desejo de controlar as mulheres obviamente incluía controlar sua risada também. Nem apenas aquela das mulheres. Escravos, criados, camponeses, soldados, nenhum deles ria abertamente na frente de seus donos.

A risada era também uma indicação de igualdade e intimidade. Só iguais podiam rir juntos.

E, no entanto, uma voz interior lhe dizia que ainda era diferente no deserto ou nas aldeias das montanhas da Siqilliya. Se tivesse tempo, poderia explorar o interior da ilha tão detalhadamente como havia estudado a sua costa. Estava cansado de plantas, árvores, das estruturas de formações rochosas e, sim, até mesmo de mapas.

Mais do que tudo, queria falar com o seu povo. Ouvir de seus próprios lábios como suas vidas tinham sido mudadas desde que os francos haviam conquistado a ilha.

Ibn Hamdis era duro demais em relação à tribo Hauteville que os dominara. Podia ter sido muito, muito pior e o seria se eles fossem substituídos. Disto ele tinha certeza. Felipe entendia isso melhor do que ninguém. O pensamento que o perturbava enquanto, deitado na cama, tentava dormir era quanto tempo os papas e imperadores do Sagrado Império Romano permitiriam a existência deste estranho híbrido. A irresistível expansão da Igreja fora retardada, não extinta, pelos exércitos do Profeta.

O muezim o acordou ao amanhecer e, por mais que tentasse, não conseguiu voltar a dormir. Em vez disso, tomou banho, vestiu-se e caminhou no jardim dentro dos muros do palácio. O Amir, tendo completado a prece matutina, o avistou da sacada do seu quarto de dormir e desceu para juntarse a ele. Idrisi sentira uma simpatia instintiva para com o homem e não podia entender por que Ibn Fityan tivesse quaisquer dúvidas sobre ele. É verdade, uma escolha confrontava aqueles cuja liderança era respeitada pelos Fiéis. A conquista os pusera fora de prumo, mas foi o qadi de Palermo quem decidiu entregar a cidade ao pai de Rujari sob termos que não eram tão desfavoráveis quanto aqueles impostos sobre Salerno. Se os Fiéis não tivessem se rendido, os francos teriam queimado a cidade e matado todo mundo. Teria sido melhor?

— Por que perdemos a Siqilliya? O Amir não perturbara seus pensamentos, mas entrara neles.

— Porque não pudemos tomar Roma. Nossos navios estavam ancorados no Tibre, mas éramos moralmente fracos demais para aproveitar a vantagem. Compraram-nos com sacos de ouro. Se tivéssemos tomado Roma, nossos exércitos teriam marchado para o Sul e impedido a intrusão dos francos.

— E o papa?

— Teria trabalhado conosco até que uma força mais poderosa emergisse.

Os dois homens riram da idéia.

— Nossa fé — Idrisi observou — inspirou devoção e conquistas, mas é como um furacão. Transitória.

— Deixe-me perguntar-lhe algo, Ibn Muhammad. Apreciei sua discrição na noite passada. Todo mundo presente era leal, mas é melhor não correr riscos. Se queimarem Felipe, vai ser difícil conter a raiva do nosso povo.

— Mas por quê? No que toca a eles, Felipe é um nazareno assim como o sultão. Alguns não pensariam que é bom que estejam se matando entre si?

— Você subestima a inteligência do nosso povo. Poucos acreditam na conversão de Felipe. Notei que aqueles que o fazem são convertidos de nossa fé. O que importa é o que dizem entre si em casa ou no bazar. E aqui, assim como em Palermo e nas cidades menores, sussurram entre si que Felipe continua sendo um Fiel. Sua punição só confirmará esta crença.

— Está certo, meu amigo. Na verdade, a acusação contra ele será esta.

— Haverá uma reação.

— Em Siracusa?

— Manterei a cidade sob controle porque tudo o que acontece aqui tem implicações mais graves. Mas seus dois genros poderão lhe dar melhores informações. E mais tarde, hoje, minha cunhada chega com nossa sobrinha Elinore. Seria uma grande honra se o senhor jantasse com minha família esta noite.

— O prazer será meu.

Enquanto o Amir se afastava, Idrisi se perguntava o quanto ele sabia. Sua esposa devia ter-lhe contado sobre Mayya, mas ele ou a mulher suspeitavam que Elinore não era filha do sultão? Antes que pudesse pensar mais sobre isso, seu criado veio informar-lhe que seus netos e os pais o esperavam para o café-da-manhã.

Os meninos correram a abraçá-lo e ele beijou cada um deles ternamente.

— Seus diabinhos, por que fugiram de mim em Palermo? Ia mostrar-lhes tantas coisas na cidade e comprar-lhes presentes, mas...

— Não fomos nós, Jiddu — disse Khalid.

— Nossas mães disseram que o senhor estava zangado com elas e se não voltássemos correndo para casa as mandaria para a prisão — interveio Ali.

Idrisi jogou a cabeça para trás e riu.

— Acreditaram nelas? Os meninos sacudiram a cabeça negativamente.

— Bom. Vejam este café-da-manhã que o Amir preparou para vocês. Comam tudo o que quiserem, mas devem começar pelas frutas. Que figos e tâmaras deliciosos temos aqui. Depois disso, podem comer o que quiserem. Preciso discutir algo urgente com seus pais. Quando terminarem, podem sair e juntarse a nós. Tem uma bela fonte e se esquentar podem tirar os sapatos e mergulhar os pés na água.

Idrisi colocou os braços em volta dos ombros dos genros e os guiou para fora da sala. Queria que os meninos vissem que apreciava seus pais.

— Sabemos por que suas filhas foram até Palermo e somos agradecidos por seu apoio — disse Abu Khalid. Dos dois, era o que falava mais abertamente. — Não sabemos como lidar com a situação. Se elas falassem assim com um inimigo pode imaginar o destino que nos caberia.

O rosto de Idrisi tornou-se uma rocha e ele falou com uma voz severa.

— Advirtam as duas. Digam a elas que conversamos. Caso se comportem assim de novo devem divorciar-se delas imediatamente e devolvê-las à mãe. Se acharem que devem fazer isso, terão o meu apoio. Não vou encontrar-me com elas enquanto estiver aqui, mas já mandei uma mensagem à mãe delas advertindo-a quanto a qualquer repetição.

— Que tenha longa vida, Jiddu — disse Abu Ali.

— Libertou-nos de uma tarefa muito dolorosa. Da minha parte, não vou me divorciar da mãe de Ali, mas vou tomar uma nova esposa. Desejo que Ali tenha irmãos e irmãs e isso não é mais possível com a sua mãe.

Com uma sacudida desesperada da cabeça, Idrisi indicou que estava de acordo e então fitou direto nos olhos do pai de Khalid. Seu olhar não vacilou.

— Não vou usar uma máscara, Abu Walid. Não posso mais viver com Sakina. Nosso casamento não foi feliz e casei obrigado por meus pais. A união apressada que produziu Khalid nunca foi repetida. Respeitarei todos os termos do casamento e Sakina nunca precisará depender de ninguém enquanto eu estiver vivo, mas não posso mais viver com ela.

— Eu o entendo perfeitamente, Abu Khalid. Deve fazer como deseja. Garantirei que a mãe dela entenda isso também. Não precisamos mais de discórdia. E Khalid? É chegado à mãe?

Houve um momento de hesitação.

— Achei que poderia nos receber polida, mas friamente. Seu calor tocou nossos corações. De que adianta esconder qualquer coisa do senhor? A resposta à sua pergunta é não. Khalid é mais chegado à minha mãe do que à sua própria mãe. As crianças têm uma capacidade de perceber quem gosta delas genuinamente. Podem às vezes enxergar através de fingimentos e falsidades melhor do que homens adultos.

Idrisi sentiu-se aliviado. Se ele, como pai, sentia pouca ou nenhuma afeição por suas filhas, por que deveriam os filhos delas sentirem de modo diferente? Quando Samar e Sakina eram jovens ele notara a fraqueza de seus cérebros, mas achara que com o tempo elas chegariam a um pleno desenvolvimento. Alá desejara o contrário.

— Não me surpreende o que diz e fico feliz de que tenha falado de uma maneira direta. Possa Alá guiar a ambos e proteger seus filhos. Mas existe uma questão mais importante que precisamos discutir.

Os dois homens se entreolharam. Quanto ele sabia?

— Nossa fé — Idrisi continuou calmamente — produziu bravos guerreiros e mentes brilhantes, mas também possuímos um lado inquieto, impaciente e instável que pode irromper num momento e desaparecer no seguinte. Isso produz uma falta de disciplina. Não tenho desejo algum de conhecer seus planos exatos. Quanto menos souber, melhor, mas eu insistiria em cautela quanto à ocasião oportuna. Nada, nada — repito — deve acontecer enquanto Rujari estiver vivo.

— Nada mesmo? — perguntou Abu Ali.

— O que tem em mente? — perguntou o sogro. — Não estamos preparando uma rebelião em larga escala no momento, mas estamos em contato com nosso povo em toda essa região. Em cada bairro de cada cidade e até na menor aldeia existe um mehfil que se reúne toda sexta-feira para discutir a situação na ilha. Tentaremos controlar a raiva da multidão depois do martírio de Felipe, mas não se engane. Quando o momento chegar, Noto e Siracusa e as aldeias entre elas erguerão a bandeira da nossa fé e desafiarão os bispos.

— Enquanto isso, teremos de manter o espírito do nosso povo e defendê-lo dos seus atormentadores. Por esta razão, decidimos infligir uma severa punição aos monges e lombardos que os guardam numa aldeia próxima de Noto. As atrocidades que eles cometeram criaram uma sensação de medo. Precisamos dar uma lição a estas pessoas.

Um lombardo será deixado vivo para espalhar a notícia.

Idrisi não respondeu, mas por seus olhos podiam sentir que se orgulhava deles e isso aumentou sua confiança.

— Quem é o pregador na sua aldeia, Abu Ali? Já ouvi falar nele. Dizem-me que tem visões de nossos exércitos combatendo os infiéis no céu e recita poesia que ele mesmo compõe.

— Estou realmente espantado de que tenha ouvido falar dele, Jiddu — disse Abu Ali com uma voz tão baixa que Idrisi colocou a mão em concha sobre o ouvido.

— É o filho do nosso cozinheiro e era dado a visões desde menino. Nasceu cego e isso pode ter encorajado as visões. Tem vinte anos, mas muitas pessoas das aldeias vizinhas vêm vê-lo e ouvi-lo. Seus versos ardem de paixão religiosa e ele os canta com uma bela voz. Se tiver tempo, venha e fique conosco alguns dias. Ali ficará encantado e você poderá conhecer o filho do cozinheiro. Não quero exagerar, mas existe algo notável nele. Como pode imaginar, canta muito sobre batalhas futuras, vitórias, o dia em que ocuparemos os palácios e a vingança de Alá contra todos que colaboraram com o inimigo.

O som das risadas das crianças interrompeu sua conversa. Ali e Khalid, perseguidos por criados, corriam até a fonte.

Lentamente, os três homens começaram a caminhar na mesma direção.

— Tentarei encontrar tempo para visitar sua aldeia, Abu Ali.

— É mais importante que visite as propriedades de Abu Khalid — replicou seu genro.

— Lá encontrará o Confiável.

Idrisi ficou intrigado.

— Nunca ouvi falar dele antes.


6

Amor e um casamento secreto em Siracuisa.
A poesia de Ibn Quzman.
Elinore faz muitas perguntas, enquanto Balkiss escuta.

Embora as tivesse visto há apenas alguns dias, Idrisi não pôde esconder o seu deleite ao ver Elinore e sua mãe. E vê-las agora com Balkis, a única esposa do Amir e irmã mais moça de Mayya que ele vira pela última vez quando tinha ainda três anos, era especialmente prazeroso. Balkis tinha longos cabelos castanhos e uma pele tão clara que Mayya parecia morena em comparação. Seus olhos e nariz pareciam a estátua de uma deusa grega que ele vira em Djirdjent. Ou seria outra pessoa?

Um pensamento entrou-lhe na cabeça e o surpreendeu. Talvez sangue grego corresse nesta família. Precisava perguntar a Mayya.

No palácio em Palermo ele e Mayya haviam ficado nervosos. Aqui estavam relaxados e o Amir, cônscio de que seus criados tudo enxergavam, os despachou para fora da sala de refeições com um gesto imperioso. A comida fora servida. Grandes jarras de cerâmica contendo suco de laranja fresco, limonada e vinho de tâmara não fermentado foram colocadas sobre a mesa. O Amir não permitia que álcool fosse servido no seu palácio a não ser quando recebia a visita do próprio sultão.

Agora que estavam a sós, Mayya perdeu toda inibição.

— Elinore, que acha do seu pai?

Elinore, que conhecia sua mãe melhor do que ninguém, não se deu o trabalho de responder.

— Mayya, por favor... — sua irmã tentou refreá-la e o Amir, alegando afazeres de Estado, pediu para se ausentar. Estava, na verdade, um pouco assustado. E se notícias deste encontro chegassem ao sultão? Não seria ele chamado à responsabilidade?

Idrisi irrompeu numa risada.

— Mayya — disse ele, fitando-a com firmeza e depois deixando seus olhos viajarem por todo o corpo dela.

— Você nunca vai mudar e eu a amarei sempre.

— O resto de nós deveria sair? — perguntou Elinore, as pupilas negras de seus olhos profundos cintilando maliciosamente.

— Não — respondeu sua mãe.

— Vou passar a noite com o seu pai. Até lá, pode ficar conosco.

— Mayya — sua irmã implorou -, nada pode ser mantido em segredo aqui. Se Rujari tiver notícias de que você e Ibn Muhammad ficaram juntos aqui ele poderia...

— Não poderia nada. Ele simplesmente não liga tanto assim para as mulheres — Mayya interrompeu.

— Estamos lá para produzir filhos. Nada mais. Os íntimos de Rujari são todos homens, incluindo o grande geógrafo que nos honra com a sua presença esta noite. Houve ocasiões em que achei que Rujari queria elevar o nível da sua amizade pelo grande mestre Idrisi, de uma união espiritual para uma união física. Afinal, passam muito tempo juntos e seria uma coisa natural, mas a idéia me enraiveceu. Teria odiado saber que haviam passado uma noite juntos, mas antes que pudesse...

Idrisi fez um esforço para controlar a sua irritação, mas a insinuação de que ele e Rujari eram amantes não se confinava a Mayya. Durante os primeiros anos de sua amizade com Rujari, inimigos na corte adoravam circular a calúnia. Aquilo o deixava furioso, mas sempre mantinha um admirável autocontrole. Agora a raiva reprimida e acumulada irrompeu fazendo-o quase se levantar da cadeira.

— Nunca foi verdade, Mayya. Sabe disso perfeitamente bem. Foi a sua imaginação inflamada. Apenas isso.

Ela ficou deliciada ao ver que conseguira provocá-lo.

— Melhor minha imaginação inflamada do que o seu rabo inflamado.

Balkis cobriu a boca para esconder um sorriso, mas Idrisi se levantou enraivecido.

— Mayya, isto é inaceitável, minha tolerância tem seus limites.

— Fico feliz que seja meu pai — disse Elinore, adiantando-se rapidamente para consertar a situação.

— Não que eu desgoste do sultão. Mas acho que, no fundo, ele sabe perfeitamente bem que não sou sua filha. Falou do senhor e do trabalho que fizeram juntos no livro com tanta intensidade...

— Como ele poderia saber isso, filha? Escolheu seu nome, insistiu para que fosse batizada, supervisionou sua educação — interrompeu a mãe.

— Posso dizer pela maneira como me olha às vezes que não está de todo seguro de que eu seja sua filha. E embora eu nunca lhe tivesse contado, mãe, o número de vezes que mencionou seu amigo, o grande erudito Ibn Muhammad alIdrisi, foi de certo modo estranho. Era como se estivesse tentando me interessar por meu verdadeiro pai. Desde que me contou quem é meu pai de verdade, venho pensando em muitas coisas que o sultão me disse. Agora está claro.

— Não era estranho de modo algum — replicou a mãe.

— O sultão e seu pai passavam grande parte do tempo juntos olhando para as estrelas e interrogando marinheiros de partes estranhas do mundo. Por isso ele sempre o mencionou muito. Sua imaginação é forte demais, minha filha. Tente refreá-la.

— Acho que Elinore tem razão — disse Idrisi.

— O sultão me interrogou sobre você, Mayya. Sabia que éramos de aldeias vizinhas, que nossas famílias se conheciam bem e às vezes fiquei com a sensação de que sabia a respeito de nós e queria que eu confessasse para que pudesse me perdoar e talvez até me entregar você como um presente.

— Então por que não confessou? — foi a resposta da sua amante.

Antes que ele pudesse replicar, sua filha interrompeu novamente.

— Como vai ter meu pai todo para a senhora pelo resto da noite, mãe, talvez eu pudesse fazer-lhe três perguntas antes que vocês se recolham.

— Pergunte — disse o pai.

— Quando percebeu que eu era sua filha?

— Poucos dias atrás no palácio em Palermo. Sua mãe me contara muito tempo atrás — na verdade, antes mesmo de você nascer — mas eu não estava seguro se devia acreditar nela.

Mayya gritou.

— Muhammad, seu traidor! Como ousa admitir isso? Idrisi ignorou a explosão.

— E está contente com o que vê, pai? Sei que tem outros quatro filhos.

— Mais do que pode imaginar, filha. De meus outros filhos, Walid é o mais chegado. O resto? Não há nada a dizer.

— Devíamos nos recolher — Balkis murmurou suavemente.

— Uma pergunta mais. Prefere Estrabão ou Ptolomeu? A surpresa de Idrisi foi visível.

— Quem lhe contou sobre eles?

— O sultão. Disse que preferia Ptolomeu, mas que o senhor modelava o seu trabalho em Estrabão.

— Não é a verdade completa — replicou o pai.

— Estrabão era completamente apegado a locais geográficos, seus costumes, colheitas, animais e coisas do gênero. Queria compilar o mapa mais detalhado do mundo que se conhecia. Ptolomeu era mais interessado nas estrelas e no céu, na forma da Terra e da Lua e como tudo isso afetava a mudança das estações. Ambos eram grandes mestres e aprendi muito deles. No meu coração desejava prosseguir e desenvolver os argumentos enunciados por Ptolomeu, mas percebi os perigos. Era um caminho difícil e havia problemas naquela direção. Enquanto outros olhavam para o céu e falavam da poesia das estrelas, eu notava em grande detalhe como os antigos tinham chegado perto de solucionar os mistérios do universo. Perto, mas não podiam seguir adiante. Notei que tudo se movia, como cada noite o movimento era repetido e, no entanto, nunca da mesma maneira até que 12 meses tivessem se passado. Sim, minha filha. Tudo se movia. Se o que eu pensava fosse verdade, o Livro estava errado e, se o Livro estava errado, de quem seria o erro, de Alá ou do seu Mensageiro? Não deixava estes pensamentos descansarem na minha cabeça. Eram relâmpagos que iluminavam o futuro. Estou certo de que um dia descobertas serão feitas que desafiarão os ensinamentos de todos os Profetas, incluindo o nosso. Será um homem corajoso aquele que publicar tais descobertas. Podem custar-lhe a vida.

— Não é a busca do conhecimento sempre perigosa?

— Talvez, Elinore, eu volte ao assunto antes de morrer. Está interessada nas estrelas?

— Sim, mas não em sua poesia.

— Estou cansada — disse Balkis, bocejando demonstrativamente e olhando nervosa na direção da irmã mais velha.

— E talvez, Mayya, devêssemos nos recolher a nossos quartos. Assim que os criados saírem, Ibn Muhammad poderá explicar o movimento das estrelas ou as manchas na Lua a você. Eu sugeriria que ele o fizesse da sua sacada. A vista é mais clara.

Era uma noite quente. Mayya havia tirado seu manto de dormir e aberto as portas que davam para a sacada. A lua cheia começara a declinar enquanto se embriagavam um com o outro. Depois, deitados silenciosamente na cama dela, cada um mergulhado em lembranças, uma suave brisa marinha se levantou e acariciou seus corpos nus.

— Existem manchas na lua? — ela perguntou.

— Nenhuma — ele respondeu enquanto afagava suas costas suavemente, pousando a mão na maciez do seu corpo.

— Estas suas duas meias-luas permanecem inalteradas. São exatamente como eram dez anos atrás. Imagino que as banhe em leite de cabra.

— São mais macias banhadas no seu suor. E não fico satisfeita com apenas uma vez. O jovem galo não vai cantar uma vez mais e acolher-se no meu ninho de novo?

— Não é tão jovem quanto já o foi, mas por que não pergunta a ele?

Ela o fez e a reação agradou a ambos. Atravessaram a noite falando e não só do passado que não tinham podido compartilhar. Haviam discutido aquilo muitas vezes como a recusa dela em deixar o palácio. Ele conhecia bem as razões e, depois de alguns anos, deixara de vê-la. Trocavam mensagens, nada mais. Suas viagens o mantinham afastado, mas era mais do que isso: ele não queria vê-la enquanto fosse uma criatura do harém.

Ela sabia dos detalhes mais íntimos da vida dele e lhe indagara como conseguira fazer quatro filhos com sua mulher. Aquilo a deixara zangada:

— Não há diferença entre você e um asno. Você monta, ejacula e planta o seu sêmen. Nada mais.

Concordara com ela, mas preferiria que tomasse outra esposa, alguém que contasse com a sua aprovação? Aquele era geralmente o fim da conversa.

Anotara as datas em que Rujari a havia visitado no quarto de dormir no harém. Não houve muitas, mas era um tormento que não podia suportar e, depois de cada visita real, ele não fazia contato com ela durante meses. Ela ficou espantada quando lhe contou isso. Não havia percebido a eficiência com que a informação vazava do palácio. Contou a ela que aquilo lhe causara grande dor, mas ela dava de ombros e recusava-se a discutir a questão. Não era culpa sua que ele tivesse se casado com outra. Por que não havia resistido? Seria a junção de duas propriedades mais importante do que o seu amor? E, é claro, ele não tinha resposta. Fora deferência aos desejos do pai agonizante mais do que covardia o que decidira a questão, mas ele sofrera o bastante. Não era aquilo castigo suficiente?

Estranho como estas lembranças não mais doíam neles. A ausência de dez anos fora punição suficiente e nenhum dos dois desejava prolongar a agonia. Nada os machucava mais. Elinore era o bálsamo. Elinore, que pouco se assemelhava a ele nas feições, mas cujas expressões e movimentos de mão eram extraordinariamente semelhantes.

Era um fruto deles. Se apenas...

— Muhammad?

— Sim.

— Eu estava pensando. Se pudéssemos ter outro filho, um irmão para Elinore...

Ele sentou-se na cama, espantado pela simetria do pensamento de ambos.

— Que estranho, eu pensava na mesma coisa. Pensava que, depois que o sultão morrer, eu deveria tomá-la por minha esposa. Poderíamos viver juntos.

A sugestão irritou-a.

— Tudo deve esperar até que ele morra. A resistência do nosso povo, assim como nosso casamento. Foi essa uma recomendação de Felipe também?

Ele a abraçou forte, beijou seus lábios e os olhos.

— Por que ficou zangada?

— Porque odeio seus planos. Por que não podemos fazer exatamente o que queremos?

Por que tudo tem de estar vinculado à morte?

— Você me conhece melhor do que mais ninguém. Sabe por que eu me controlo.

Ela acalmou-se e começou a acariciar a sua cabeça.

— Sei que você sente raiva por dentro, tentando duramente reprimir sua ira. Preocupa-se que isso faça mal àqueles próximos a você. Sei disso, mas não quero esperar que ninguém morra. Nosso amor não depende disso, não é verdade? Talvez eu carregue uma criança no ventre depois desta noite. E então? Desta vez Rujari saberá definitivamente que não é sua. Este pensamento o assusta?

Enterrou a cabeça entre as pernas dela e murmurou:

— "Que tipo de almíscar é este? Que aroma?

Desta magia outras são criadas."

Depois, ela o abraçou e sussurrou:

— Quem escreveu o zajal? Não foi você. Não foi Rujari. Foi Ibn Quzman? Diga-me.

— São seus versos. Pobre Ibn Quzman. Soube que tem problemas com o novo sultão em Qurtuba.

— Por que não pode vir para cá? Eu deveria pedir a Rujari?

— Não. Ibn Quzman viaja para onde deseja. Tem admiradores em cada cidade de alAndalus. Quando tem problemas em Qurtuba, corre para Gharnata. Se o seu verso ofende o sultão naquela cidade ele escapa para Ishbiliya ou al-Marriya. Certa vez passou seis meses em Balansiya.

Foi onde o conheci.

— Você o conheceu?

— Sim.

— Por que não me contou na época?

— Fiquei fora de Palermo durante dois anos. Quando voltei, a sua visão me fez esquecer tudo mais.

— Ibn Quzman recitou um zajal para você?

— Fez isso também, mas havia consumido muito vinho naquele dia e não estava seguro se devia ser colocado no papel ou sequer repetido.

Mayya segurou o rosto dele em suas mãos.

— Recite-o para mim agora. Agora! Ele fez o que ela pediu.

— Meus fracassos na vida até aqui você conhece, Como passarei o resto de meus anos? Só entre pessoas que apreciam sodomia ou adultério; Disto eu tenho certeza: gosto de ambos.

Mayya bateu palmas deliciada.

— E guardou isso de mim todos estes anos? Por quê? Seria porque você, também, prefere a companhia de sodomitas e...

Sua mão cobriu a boca de Mayya. Ela dormiu quando as estrelas começavam a declinar. Admirando sua forma adormecida à luz da manhã, cobriu-a com um lençol. Colocou então sua túnica e foi até a sacada, o único local do palácio que não era vigiado. Atenciosa Balkis. Por que as coisas não podem ser sempre assim? O muezim abafou tudo mais. Idrisi deixou o quarto de dormir de Mayya e seguiu apressadamente para o seu, mas praguejou ao ver o seu criado no corredor do lado de fora, a cabeça tocando o chão enquanto fazia as orações matinais. Idrisi entrou furtivamente no seu quarto e, logo depois, bateu palmas para chamar o homem do lado de fora.

— O banho está preparado, senhor. Poucas horas depois uma mensagem de Elinore o convocava para um jogo de xadrez. Raramente se entregava a diversões e não conseguia lembrar a última ocasião em que havia jogado. Seu pai lhe havia ensinado pacientemente as regras e, embora se tornasse um jogador competente, nunca apreciara a disputa. Talvez a avalanche de risada dos parentes que testemunharam sua derrota quando tinha dez ou 11 anos o tivesse desencorajado. Rujari era um exímio jogador, mas o erudito declinara de participar dos torneios palacianos. Ao seguir o criado até a biblioteca onde Elinore o aguardava, perguntou-se se ela já havia jogado com o sultão. Quem mais poderia têla ensinado?

Ela o recebeu ruidosamente, abandonando a pose de uma senhorita.

— Wa Salaam, Abu.

— Wa Salaam, filha.

— Disse a minha mãe que queria ficar a sós com o senhor. Foi ela quem sugeriu uma partida de xadrez.

— Ela não joga, também — replicou o pai, e começaram a rir. Elinore crivou-o de perguntas. Nada podia interromper a sua carga impetuosa. Não esperava que ele respondesse: era sua maneira de fazer com que a ouvisse e entendesse suas preocupações. Não havia nada falso nela e ele se encheu de orgulho.

O modo de falar dela, o jeito de enfatizar algumas palavras e não outras, seus olhos sempre alertas, o uso das mãos e a maneira de tocar nos cabelos o lembravam de Mayya. Subitamente ela parou.

— E então, o que acha? Não me ouviu?

— Ao contrário, ouvi cuidadosa e atentamente. Que parte das suas interrogações exige uma resposta?

— A família Hauteville. Ela foi tão heróica como o sultão nos contou cada ano?

— As histórias mudavam ao longo dos anos? Você notou um aumento de heroísmo à medida que crescia?

— Não, eram sempre as mesmas. Quando tinha dez anos eu mesma podia recitá-las.

— Neste caso eram provavelmente verdadeiras. Os homens que deixaram a parte norte das terras geladas em seus navios a vela e vieram incendiar e roubar dos francos eram sem dúvida bravos. Eram senhores da guerra e adestrados em combate cruel. Finalmente, o rei dos francos lhes deu uma porção da terra e esperava que convivessem em paz com ele. Fizeram isso, mas, à medida que suas colônias cresciam e suas famílias aumentavam, não havia comida suficiente para alimentar a todos, nem terra suficiente para compartilhar. Então começaram a viajar de novo. Um de seus barões, Guilherme, conquistou uma ilha vizinha e, Alá os ajude, Elinore, é uma terra fria e miserável onde o sol nunca brilha no inverno. Fria e escura, e chove sem parar. Durante meses é impossível ver o céu ou as estrelas.

— Isto é verdade?

— Eu inventaria tal lugar?

— E por que o clã Hauteville e seus criados vieram para cá?

— Eram guerreiros que lutavam por quem lhes pagasse e, como outros em sua posição, perceberam que os aniires que precisavam deles deviam ser fracos. Então pensaram: por que lutar por este homem quando somos mais fortes do que ele? Poderíamos governar em seu lugar. Deviam ter sido abençoados por Alá. Veja o que encontraram nesta ilha. Muita riqueza e terra cultivada em abastança. Ricas colheitas de trigo e frutas frescas de todo tipo.

Os papiros com que fazemos o papel que nunca tinham visto antes. Nem haviam imaginado uma cidade tão rica e grande como Palermo. Duzentas mil pessoas viviam aqui quando os francos chegaram. Vieram como conquistadores e, no início, foram cruéis. Mas, assim que decidimos que era impossível resistir a eles, conviveram conosco em paz e perceberam que precisavam de nós para lhes ensinar tudo o que sabíamos. E gostavam de nossas mulheres.

Elinore sorriu.

— Sabe de uma coisa, Abu? A história que o sultão nos contava cada ano não era tão diferente. Falava do seu pai e do seu tio e dos feitos de sua família também mas, excetuando isso, era a mesma história. Não é estranho?

— É raro que conquistador e conquistados compartilhem a mesma história. A razão é óbvia. A maioria daqueles que vivem aqui seguem o nosso Profeta e removê-los sem ter alguém para substituí-los tornaria essa ilha pobre e infeliz. Roger e seu pai entenderam isso bem. Será que seus netos e bisnetos entenderão?

Falaram algum tempo sobre estrelas e navios e ela quis saber o que ele sabia de Cartago e dos fenícios que a haviam construído. E era verdade que haviam navegado pela Ifriqiya simplesmente confiando nas estrelas? Ele contou-lhe tudo o que sabia e do modo como seus olhos o acompanhavam podia ver que estava absorvendo o conhecimento. Cada um sabia que não era o bastante. Voltariam a estas questões e à proximidade que sentiam agora um do outro.

Depois de um silêncio ela lhe perguntou sobre Walid. No início ele não respondeu. Ela o pressionou de novo.

— Sei que o ama muito. Minha mãe me contou isso, mas nunca pôde explicar por que ele fugiu ou o que lhe aconteceu.

— Está vivo e bem. Trabalha para um artesão judeu de prata em Veneza. Irei visitálo em breve e o trarei de volta, se puder. Às vezes os filhos se tornam sombrios e indolentes se ficarem permanentemente à sombra dos pais. Um período de separação pode ajudar. Não fui diferente quando tinha a idade dele.

— Acha que estes anos todos à sombra de minha mãe me tornaram preguiçosa e infeliz?

Pegou a mão dela e a beijou.

— Não, minha filha. As estrelas sorriram sobre você e sua mãe. E você é uma mulher. Os homens têm necessidades diferentes.

Antes que Elinore pudesse contestar isso, sua mãe entrou na biblioteca.

— Quem ganhou no xadrez?

— Nós dois — respondeu a filha.

— Como pode ver, nenhum de nós fez um lance ainda. O tabuleiro ainda não foi tocado.

Então Mayya se virou para ele.

— Muhammad, na noite passada discutimos algo e sua resposta me deixou zangada.

Ele franziu a testa, indicando que a conversa que ela propunha seria mais oportuna em particular.

— Elinore e eu não temos segredos. É melhor assim. Impede que bisbilhotemos as conversas uma da outra.

— Muito bem — disse ele, numa voz resignada.

— Falei com Ballcis e Aziz há poucos minutos. Ele nos casará hoje, se você concordar.

— Mas o sultão...

— Idrisi viu a expressão dela e congelou.

— Não sou casada com Rujari. Fui sua concubina, como você me lembrou em muitas ocasiões. Esta é sua filha, não dele, mas, se esperar até a sua morte, não me casarei com você. Casou-se com sua esposa porque foi covarde e não vai se casar comigo hoje pela mesma razão.

Idrisi levantou-se e aproximou-se dela, mas Mayya estendeu os braços para mantê-lo afastado.

— Escute o que digo, Mayya, e escute atentamente. Este reino está à beira de uma explosão. Felipe vai ser julgado por traição e queimado na fogueira. Os bispos encarariam nosso casamento como uma provocação aberta. Já esqueceu a sua conversão para a fé deles? Sei que nada significou para você e estava simplesmente agradando a Rujari, mas os monges não encaram estas questões levianamente.

Mayya não estava com ânimo para escutar nada.

— A situação que você descreve só vai piorar depois da morte de Rujari. Muhammad, nós teríamos sido esmagados pela tristeza não tivéssemos nos apegado um ao outro durante todos estes anos. Não estou sugerindo que coloquemos Elinore ou nós mesmos em perigo. Teremos de esperar até podermos viver juntos, mas o casamento poderia ser hoje. Pode permanecer em segredo o tempo que você quiser, mas tem de acontecer. Se recusar, nunca mais o verei. Vou pegar Elinore e desaparecer.

Elinore ficou em silêncio, esperando que ele falasse.

— Sei que não faria isso, porque a crueldade é ausente em você, mas se o casamento deve ficar em segredo não vejo problema. Marcou uma hora com o Amir?

— Depois das preces vespertinas.

— Percebe que antes que possa me casar com você insistirei para que se converta de novo à nossa fé?

— Isso já foi feito e na presença de minha irmã e de seu marido. Mais alguma exigência, marido?

— Sim. Obediência total. Lembre-se da sura no Corão, que...

— Silêncio, Ibn Muhammad alIdrisi. O que não posso suportar é a idéia da separação de novo.

— Existe alguma razão para você retornar a Palermo?

— Nenhuma, mas para onde eu deveria ir?

— Poderia ficar aqui enquanto decidimos onde quer morar. Sua irmã oferece uma desculpa perfeita. E Rujari está preocupado demais para notar a sua ausência.

— Mas nossas roupas e tudo mais estão em Palermo — disse Elinore.

— As roupas podem ser mandadas para cá, mas o que é o "tudo mais" a que se refere? — perguntou o pai.

— Abu, é de Palermo que vou sentir falta. Não podemos morar em Siracusa. Esta é uma cidade para se visitar.

— Filha, é melhor ficar aqui nos próximos meses. Os ânimos em Palermo vão estar exaltados depois que Felipe for queimado. Talvez não possamos controlar a multidão e ela pode atacar o palácio. Mande pedir tudo do que precisa. Quando as coisas se acalmarem, você pode voltar.

Mais adiante naquela tarde, o Amir os convocou à sua câmara privada, dispensou os criados e realizou uma cerimônia de casamento simples.

Uma modesta refeição fora preparada e por isso não houve nenhuma atmosfera de comemoração. Mayya e Balkis trocaram reminiscências sobre seus pais e seis irmãos que haviam deixado a família em casa e se mudado da ilha para alAndalus. Elinore e o pai ficaram felizes de ouvir as irmãs se divertindo, mas o Amir retirou-se cedo alegando uma longa viagem no dia seguinte. Depois que a mesa foi limpa, foram até a sacada enluarada para um chá de menta, com uma doce mistura de tâmaras e leite endurecido pelo qual Siracusa era renomada. Podiam ouvir o som das ondas quebrando suavemente contra as rochas lá embaixo.

— Elinore — disse sua tia -, não é uma vista maravilhosa? Vou mostrar-lhe uma outra vista ainda mais bonita do mar do meu quarto e convencê-la a ficar aqui por alguns meses. Venha comigo, criança.

Elinore tomou a mão da tia e as duas mulheres foram embora.

— Por que sua irmã não tem filhos? É o...

— É o Amir — suspirou Mayya.

— Seu pássaro recusa-se a cantar.

Balkis é sua segunda mulher. Deixou que a primeira partisse quando não teve filhos. É claro que o problema é dele e ele não finge que seja diferente. É um homem muito generoso.

— Ibn Quzman não reconheceria que existe um problema. Mayya riu bem alto.

— Balkis não é infeliz. Ele é um homem bondoso e sensível e geralmente, diz ela, ao vê-la sem roupa, seu membro forma uma tenda debaixo da sua túnica. Tudo o que falta é a semente.

— Ela ainda é jovem, portanto ainda tem tempo, mas deveria pensar numa caminhada numa tempestade quando os anjos estão voando da terra para o céu. Estou certo de que o Amir acolheria isso como uma dádiva de Alá e Balkis ficaria feliz. Ela não o estaria traindo da maneira comum.

— Realmente? Seu conhecimento nunca deixa de me surpreender. Então ela deveria abordar um estranho e extrair o seu sêmen. Interessante. Vou passar adiante o seu conselho. Embora sempre tenha achado que traição conjugal deixa um gosto amargo.

Idrisi sorriu.

— Só em casos em que o casal é jovem e a paixão ainda é forte. Para homens mais velhos e mais maduros é diferente.

— Toda esta conversa está elevando a minha temperatura. Talvez seja a hora de armar sua própria tenda de novo e me seguir. Vou testar a sua maturidade com grande prazer. Ou será a hora das orações.

— Saber e dormir é melhor do que orar e ser ignorante.


7

Idrisi é tomado por lembranças de uma ilha encantada.
Um primeiro encontro com o Confiável,
que prega rebelião aberta contra Palermo.

Não havia chegado o meio do verão, ainda era cedo, mas ele sabia que o dia seria abrasador e desagradável. Suspirou alto, desejando que não tivesse concordado em cavalgar com seu genro pela sua propriedade. Não era uma jornada curta e não haveria sombra. A terra que, apenas alguns meses atrás, estava verdejante e atapetada de flores silvestres, estaria ressecada e árida, intensificando os raios do sol. A idéia do que tinha pela frente o deixava exausto. Talvez não fosse tarde demais para mudar de idéia. Mas quando, minutos depois, a presença de Abu Khalid foi anunciada e o jovem entrou no quarto, as incertezas de Idrisi se desvaneceram. O prazer no rosto do jovem era visível. Não podia controlar sua excitação.

Abu Khalid tinha providenciado uma carroça coberta para o homem mais velho, mas Idrisi sabia que isso dobraria a duração da jornada e insistiu em ir a cavalo.

— Minha saúde não é delicada. Sinto-me forte como um boi.

Abu Khalid e Idrisi cavalgaram lado a lado para fora da cidade, cada um carregando frascos de couro cheios de água e seguidos por três criados armados. Foi como ele imaginara, o ar seco, quieto e sem vida. Os galhos seminus das árvores atrofiadas com suas folhas secas e murchas eram tudo o que restava da primavera. O sol reluzia nas pedras.

Depois de uma hora cavalgando era difícil dizer quem suava mais, o cavalo ou o cavaleiro. Pararam para beber um pouco d'água e molhar os panos que lhes cobriam a cabeça. Quando a jornada continuou, Idrisi não podia se concentrar na trilha ou em suas elevações abruptas. A certa altura achou ter visto um lago à distância e estava para sugerir que parassem e se banhassem quando percebeu que seus olhos o estavam enganando, como freqüentemente faziam no mar. O brilho projetado pelas pequenas colinas era enganoso e foi naquele momento que uma lembrança que mantinha firmemente trancada no porão, mas fora reavivada pela visão de Balkis, tomou conta dele. Uma imagem de um antigo templo grego que vira certa vez numa ilha misteriosa apareceu.

Tinha começado a trabalhar no seu livro e, com a ansiedade de um novato, instruía os marinheiros a pararem em cada ilha. Sua curiosidade era ilimitada. Tomava notas detalhadas sobre as plantas e as pedras e o formato da costa. Estavam no mar há algumas semanas quando a ilha foi avistada. No início acharam que era desabitada e a excitação da descoberta elevou o seu ânimo. Foi quando os marinheiros saíram em busca de água fresca que descobriram o pequeno lago e então viram o antigo templo grego que decorava a praia. Um marinheiro foi despachado pára informar ao erudito.

A primeira coisa que Idrisi notou foi que o templo não era uma ruína. Queria estudar a construção a sós sem ser interrompido

Os homens foram mandados para reabastecer seus suprimentos d'água e procurar cabras, geralmente em suprimento abundante em ilhas desabitadas. Pegou as penas, a tinta e o papel do seu criado e o mandou voltar ao navio e encontrar o velho mapa da região no baú que ficava debaixo da cama na cabina.

Tinha visto muitos templos em ruína em djent e Siracusa e havia imaginado como seriam quando cheios de Fiéis, mas este era diferente. Em escala não era tão grande quanto a maioria dos templos arruinados que tinha vista na Siqilliya e nas cidades costeiras do grande mar, mas sua estrutura era exatamente a mesma. As pilastras da entrada conduziam a uma câmara e ali ele viu pela primeira vez uma estátua gigante de Afrodite. Para seu espanto não era feita de mármore branco.

Uma pedra marrom clara fora usada. O escultor deixara pouco para a imaginação. Esta Afrodite tinha grandes mamilos vermelhos e a mesma cor da pedra fora usada para delinear o seu sexo. Podiam estas ser pedras preciosas? Se fossem, os homens insistiriam em roubálas. Não permitiria isso, mas era melhor evitar conflito. Tentaria mantê-los distraídos. E então notou que cercando a deusa do amor de cada lado havia três graças. Pouco abaixo do pé da estátua o escultor colocara uma suma sacerdotisa.

Todas vestiam túnicas e suas gargantas, como jóias brancas, brilhavam na escuridão. Pareciam pequenas em comparação com Afrodite, mas eram na verdade de tamanho natural. Tremeu, como se uma corrente impetuosa tivesse subitamente passado através dele.

Tudo parecia como lavado regularmente, mas ainda não havia traço de ninguém. Talvez fosse um templo secreto onde os descendentes daqueles que haviam adorado os velhos deuses se reunissem em ocasiões especiais do ano para preservar suas tradições. O pensamento excitou o erudito. Se este fosse o caso, por que teriam escolhido Afrodite? Podia ser esta a ilha onde Homero encontrara a encantadora Circe? E poderia ser esta a razão deste templo?

Quando se virou para deixar o templo, ouviu o que lhe pareceu um suave clarear de garganta atrás de si. Congelou. Devia ser sua imaginação. Virou-se e caminhou de volta em direção da estátua. Desta vez olhou mais atentamente para as estátuas menores. Não podia haver engano. Era capaz de ouvir a suma sacerdotisa respirando.

Aproximou-se e tocou no seu rosto. Lágrimas lhe escorriam pelas faces. Ele ficou atônito e em êxtase. Suas mãos sentiram o resto do seu corpo. Ela era humana.

— Quem é você? — sussurrou em grego siqilliyano que havia aprendido na corte.

— Sou Eleni, a suma sacerdotisa deste templo, e estas são minhas sacerdotisas.

Estava cercado por sete mulheres.

— Moram aqui? Esta ilha é habitada?

— Sim — respondeu Eleni.

— Nossas famílias moram atrás dos rochedos onde não são visíveis do mar. É o primeiro visitante em dois anos. Os navegantes que vieram antes de você não estavam interessados na ilha. Só queriam um pouco de água que, como vê, é abundante. Depois partiram. Irá embora logo?

Ele acenou com a cabeça.

— Mas quem são vocês?

— Pertencemos a famílias que começaram a adorar nossos velhos deuses na época do Grande Imperador. Depois que ele morreu, os nazarenos começaram a nos capturar e matar, por isso algumas famílias embarcaram num navio e fugiram de Bizâncio, que os nazarenos chamam de Constantinopla.

Idrisi estava fascinado.

— Que Grande Imperador?

— Juliano. Batizamos a ilha em homenagem a ele. Esta é a ilha de Juliano e Afrodite é nossa deusa.

Contou-lhes quem era e de onde vinha. Tinham ouvido falar de Palermo e sabiam que os árabes dominavam lá. No que lhes dizia respeito, os nazarenos eram os piores, mas os seguidores de Moisés e Maomé não eram melhores. Ele não estava com ânimo para um debate filosófico sobre as virtudes de um Alá contra os deuses de pedra dos antigos.

Contaram-lhe sobre os ritos que encenavam toda primavera, a comida que cultivavam na ilha, como seus números continuavam a declinar. Os homens tinham a tendência de ir embora e era por isso que desejavam recepcioná-los, a ele e aos seus homens, numa festa esta noite. Não fizeram nenhum segredo de seus desejos ou intenções.

Quando os homens voltaram, contou-lhes tudo exceto as pedras preciosas montadas nos seios de Afrodite. Mas eles ficaram ansiosos para participar de uma festa e nenhum demonstrou interesse em sequer entrar no templo. Isto o surpreendeu e em outras circunstâncias os teria questionado e repreendido por sua falta de curiosidade.

Depois que se banharam no lago de águas frescas e se secaram ao sol e estavam deitados sem roupas gozando a brisa do mar, foram interrompidos. A sacerdotisa, que os observava do templo, emergiu à luz do sol. Os homens ficaram estupefatos, assim como ele ficara. Viram as mulheres como um animal acuado vê um caçador. Sentiam a presença de um destino que eram incapazes de evitar e cobriram sua nudez com suas camisas e apressadamente colocaram suas roupas. Uma vez vestidos, as mulheres fizeram sinais para eles e, como homens em transe, as seguiram. Achavam-se em tal estado, e isso incluía Idrisi, que não notaram o labirinto de caminhos através dos quais foram conduzidos à aldeia. Aqui foram saudados por outras mulheres e de todas as idades. Depois, não tinham certeza se algum homem da aldeia estivera presente. Primeiro, deram-lhes cachimbos-do-amor para fumar e então jarras de vinho tinto foram colocadas na mesa debaixo da árvore. Quando foi servida a carne recém-assada do cabrito, marinada em suco de limão e coberta com tomilho, comeram como homens que vinham passando fome há meses. Sua fome não era de comida, mas o que queriam eram as mulheres que os serviam. A comida era apenas um pretexto. Não foi o vinho, mas as folhas secas dos cachimbos-do-amor que os intoxicou. Estavam prontos para serem levados a qualquer lugar. E foram. Idrisi lembrou-se de ter sido levado pela suma sacerdotisa. Mais tarde se gabariam de que fora uma noite de paixão incontrolável, mas quando acordaram na manhã seguinte estavam todos deitados na praia. Sua única lembrança da ocasião era o cachimbo-de-amor de barro. Nenhum dos homens estava preparado para voltar e buscar a aldeia onde haviam sido tão bem tratados. Idrisi os mandou de volta ao navio e pediu que esperassem algumas horas. Estavam assustados e acreditavam que tinham sido possuídos por demónios. Havia sido uma prova à sua fé e tinham falhado. Alá e Deus os puniriam. Imploraram a ele que não fosse sozinho, mas ninguém se ofereceu para acompanhá-lo.

Idrisi achou que havia encontrado a trilha que levava ao lago e ao templo, mas era como se tivessem sido conduzidos desde o princípio. Não havia nenhum traço do caminho. Depois de várias tentativas ele desistiu, mas o tempo todo em que esteve ali sentiu que o estavam vigiando. Era um desafio. Teria gostado de ficar e registrar os acontecimentos, mas os homens estavam ansiosos para seguir em frente e, relutantemente, concordou.

A memória da suma sacerdotisa jamais o deixou. Balkis, a mulher do Amir, o lembrava dela. Tinha feito anotações detalhadas sobre a localização da ilha de Juliano. Era uma jornada de 24 horas de... Mapeou-a de todas as direções, mas nunca pôde redescobrir a ilha. Quando descreveu o incidente ao sultão achou Rujari bastante cético. Quem poderia culpá-lo? E, à medida que os anos passavam, o próprio Idrisi se perguntava se algo daquilo teria realmente acontecido.

— Meu senhor, vamos parar para descansar e comer. Ergueu os olhos e viu que estavam diante de uma grande casa. Dois cães latiram furiosamente até que um homem emergiu e caminhou na sua direção. Era magro com o corpo esbelto, cabelos castanhos e uma pele fresca, apesar de pálida. O que o marcava era a firme determinação do seu rosto enquanto saudava calorosamente Abu Khalid e curvava-se polidamente para Idrisi.

— Bem-vindo a esta humilde casa e sinta-se nela como se fosse sua, Abu Walid ibn Muhammad alIdrisi. Quem não ouviu falar do seu renome?

— Muitas pessoas, eu receio — murmurou o erudito enquanto eram conduzidos ao frescor de uma sala escurecida.

— Banhos foram preparados para o senhor, mas espero que me perdoará. Aqui não é Siracusa e não temos espaço para um hammam. Mas água fresca foi trazida do poço e se acompanhar estes homens até o pátio eles providenciarão para que o senhor se refresque.

— Quem é o seu amigo?

— Idrisi perguntou a Abu Khalid enquanto acompanhavam os criados até o pátio.

— É Tarik, meu irmão mais velho. Creio que deve tê-lo visto rapidamente no meu casamento. Não lembra? Tem uma vida interessante. Agora tudo o que o interessa são frutas e legumes. Não come carne, nem mesmo no inverno.

— Tem família?

— Não aqui. Ela mora em Salerno. Pelo tom de Abu Khalid estava claro que este não era um assunto feliz, mas provocou a curiosidade de Idrisi.

— Por quê?

— Abu Walid, o que posso dizer? Aos 18 anos meu irmão queria ser um médico, alguém que curasse as pessoas. Lia o Aqrabadhin de al-Kindi e o Kanun de Ibn Sina da manhã até a noite. Meu pai, como bem sabe, só estava interessado em suas propriedades e no seu bem-estar. Não se sentia inclinado a satisfazer meu irmão. Queria que seu filho mais velho ficasse em casa e o ajudasse a dirigir o patrimônio, concentrando sua mente em criar novos métodos para gerar ainda mais terra. Meu irmão se recusou. Correu para o maristan em Salerno, onde se encontram os melhores médicos. É uma longa história, Abu Walid.

Jogaram água sobre suas cabeças e os dois homens tremeram deliciados.

— Onde foi que ele encontrou o livro de al-Kindi? Eu não sabia que havia uma cópia em qualquer biblioteca por aqui.

— Deve perguntar a ele. O almoço foi servido em outra sala escurecida. Tubérculos de diferentes tipos cozidos com as mais deliciosas ervas e temperos foram servidos com pão recém-assado de trigo umedecido com azeite de oliva. Para beber havia leitelho fresco aromatizado com folhas de menta. E para adoçar suas bocas fatias de melão e tâmaras foram servidas numa grande bandeja.

Depois Tarik perguntou numa voz gentil:

— Talvez gostassem de descansar? — Se descansarmos, não chegaremos à casa do seu irmão hoje.

— Eu insisto — disse Tarik.

— Fizeram uma longa jornada a cavalo. Acho que um descanso lhes faria bem. Pouco mais de três quilômetros daqui e estarão na sua propriedade.

Esta casa era parte dela, mas ele gentilmente me cedeu como presente. A casa da família está a menos de uma hora. Bem-vindo, Ibn Muhammad.

Idrisi estava exausto. O banho havia ajudado, mas o almoço o deixara sonolento. Um quarto fora preparado para ele e adormeceu imediatamente. Uma hora depois foi acordado por um sonho vívido. Sentou-se na cama e bebeu um pouco d'água. Por que a ilha de Juliano ocupava tanto seus pensamentos hoje? Aquilo havia acontecido 25 anos atrás e ele mal se lembrava daqueles dias. Por que agora? Balkis. Ela se parecia com a suma sacerdotisa. Seria realmente irmã de Mayya ou fora adotada ainda criança? E por que se casara com um homem estéril? Uma suave batida na porta o interrompeu. Era Abu Khalid.

— Estamos prontos para partir, quando estiver.

— Queria falar com seu irmão.

— Ele nos acompanhará à visita a velha casa, mas sua presença foi benéfica.

Estou muito feliz. Nunca quis herdar as propriedades. Pensava em viajar e estabelecer-me em Palermo. Mas quando Umar desapareceu meu pai não me permitiu que partisse.

— Então sua casa se tornou uma prisão. E minha filha, receio, não oferecia companhia estimulante.

Seu genro não respondeu. Chegaram à casa de Umar antes do pôr-do-sol. Os membros da casa estavam reunidos para recebêlos. À sua frente estava o jovem Khalid.

— Bem-vindo à nossa casa, avô. Idrisi abraçou o neto e beijou-lhe as faces com emoção genuína.

— Meu filho. Você já cresceu e só se passaram algumas semanas desde que o vi. Venha mostrar-me sua casa. Estive aqui pela última vez quando seu pai tinha dez anos de idade. Mudou muito?

— Não. Foi Umar quem respondeu.

— Nada muda aqui. Mas vai mudar logo. Estamos vivendo no tempo de outros.

E então um homem de aparência estranha que Idrisi mal havia notado adiantou-se e inspecionou os recém-chegados. Tinha cabelos cinzentos compridos que quase lhe chegavam aos ombros, uma barba manchada, que cobria a maior parte do seu rosto emaciado, e um par de olhos ardentes e aguçados que dominavam suas feições. Vestia uma túnica branca limpa, que contrastava com sua aparência. Na mão direita tinha um bastão velho e surrado e o bateu no chão agora ao falar.

— Não! — gritou o homem.

— Umar Ibn Ali fala sem pensar. São os infiéis que vivem no nosso tempo e nós os deixamos.

Tendo feito este pronunciamento afastou-se sem cumprimentar ninguém. Idrisi sorriu. Não se impressionou. Conversa desse tipo não era incomum em Palermo. Percebeu que este era o homem de quem Abu Khalid lhe falara em Siracusa.

Quando entraram na casa, sua filha, Samar, o saudou em termos exagerados. Não mais capaz de fingimentos, tocou sua cabeça de uma maneira mecânica. Uma série de quartos havia sido preparada para ele e seu neto o conduziu até lá.

— Jiddu — perguntou Khalid -, o senhor gosta do meu pai? A pergunta o pegou de surpresa.

— Por que faz uma pergunta destas, minha criança? Se não gostasse do seu pai teria passado um dia incrivelmente quente viajando com ele até sua casa?

Khalid começou a rir.

— Só perguntei. Estou feliz.

— Quantos quartos existem neste palácio?

— Trinta e quatro — respondeu Khalid.

— Eu os contei muitas vezes.

— Agora me diga outra coisa. O que acha daquele homem estranho de cabelos compridos que falou tão rudemente com seu tio?

O rosto do menino ficou sério.

— Ele me assusta às vezes, mas quando vê que estou com medo sorri e tenta me fazer rir. Seu nome é al-Farid, mas todo mundo o chama O Confiável. É muito pobre e viaja de aldeia em aldeia, onde se revezam alimentando-o. Mas ele não deve comer muito. É muito magro. Acho que prefere leite de cabra com um pedaço de pão. Abu diz que ele é um grande contador de histórias.

Um criado entrou com uma bacia e uma grande jarra d'água. Idrisi sorriu e beijou a cabeça do menino.

Khalid saiu graciosamente.

— Eu o vejo depois, Jiddu. Muita carne foi preparada para nossa festa esta noite.

Idrisi lavou as mãos e o rosto e deixou o criado lavar a poeira dos seus pés. O sol havia quase desaparecido e o muezim na mesquita da aldeia convocava os Crentes para a prece do anoitecer. Idrisi cobriu a cabeça e começou a rezar. Em tempos de incerteza, pensou, existe um consolo íntimo derivado da prece. Lembrou que seu pai descrevia como, depois que Palermo foi ocupada pelos francos, muitos que não rezavam regularmente começaram a comparecer às preces da sexta-feira na Grande Mesquita. Por muito tempo, segundo seu pai, as cadências melancólicas do chamado à prece tinham afetado cada Crente na cidade.

O tamanho mesmo da reunião no meio do dia cada sexta-feira permite aos Crentes encontrar força um no outro. Ele sempre entendera isso, mas só recentemente havia experimentado a sensação pessoalmente. De fato, só duas semanas atrás, quando soube do destino que aguardava Felipe.

A refeição do anoitecer, como Khalid avisara, consistia de uma grande variedade de carnes cozidas em honra do visitante. Não fosse a presença de Umar é duvidoso se algum tipo de legumes teria sido preparado. Idrisi provou um bocado de cada uma das carnes grelhadas e cozidas e exclamou em voz alta e com apreciação como estavam saborosas, mas concentrou-se em comer os legumes, crus e cozidos, que haviam sido colocados diante de Umar.

— Uma palavra de conselho para todos vocês — Idrisi dirigiu-se à mesa enquanto esperavam pelos pratos doces.

— Viajei por muitos países quentes e nos meses de verão se come pouca carne. Qualquer médico vai lhes dizer que a carne no verão produz um peso para o coração e reduz o fluxo de sangue para as partes vitais do corpo.

Umar sorriu.

— E já que Ibn Muhammad está dizendo isso, deviam leválo a sério.

Enquanto bandejas de frutas frescas eram servidas houve um grande ruído à distância. Os homens trocaram olhares inquietos enquanto um criado veio sussurrar no ouvido de Abu Khalid. Seu rosto relaxou.

— Acho que o Confiável está tentando atrair nossa atenção. Detonou um pequeno explosivo para mostrar aos seus seguidores como os francos podem ser derrotados. Se Ibn Muhammad não estiver muito cansado, poderíamos caminhar até a cidade e ouvir sua mensagem.

Idrisi levantou-se da mesa.

— Uma pequena caminhada depois da refeição ajuda a digestão. Será tarde demais para Khalid nos acompanhar?

Pai e mãe concordaram que o melhor lugar para Khalid era a cama, uma decisão que ele aceitou com extrema relutância.

A noite estava quente e calma. Enquanto os homens saíam da casa, Idrisi olhou para o céu e se tranqüilizou. À frente deles, os criados levando lampiões de azeite iluminavam o caminho até a cidade. Ao se aproximarem, podiam ouvir os cânticos do Corão, mas o ritmo e estilo eram diferentes de tudo o que ouvira nas mesquitas de Palermo e Siracusa e, também, de qualquer outro lugar. O Confiável lia os versículos em curtos estouros staccato e seus ouvintes reagiam às explosões.

Quando chegaram à praça da aldeia, Idrisi observou a mesquita improvisada com seu minarete solitário. Havia pelo menos duzentos homens presentes e cada um deles tinha o rosto coberto. O Confiável dissera-lhes para serem cautelosos e não confiarem em ninguém nos meses que vinham pela frente. Seus olhos caíram sobre Idrisi quando saltou sobre a pequena plataforma no topo da praça e começou a pregar.

— Olhem em torno de vocês, Crentes, e vejam quem veio se juntar a nós esta noite. Abu Khalid e Umar ibn Ali nós conhecemos e respeitamos. Deram-me esmolas e me proporcionaram abrigo e garantem que vocês todos e suas famílias sejam alimentados quando os tempos estão difíceis. Mas trouxeram um visitante especial. Um grande erudito de Palermo, conselheiro de confiança do sultão Rujari. Muhammad ibn Muhammad alIdrisi. Já ouviram falar nele? Sacudiram a cabeça para expressar sua ignorância.

Idrisi reprimiu uma risada. Sabia a influência que homens como este pregador podiam ter sobre os pobres e entendia por quê. Abu Khalid lhe fizera um relato do homem e de como vivia.

O estilo de vida de al-Farid suscitava admiração. Vivia de esmolas mas nunca aceitava mais do que o necessário para suas necessidades diárias, que eram, no fundo, modestas. Recusava todos os presentes oferecidos pelos ricos proprietários de Catânia, que começavam a se preocupar. Não dormia num único lugar por muito tempo e, quando precisava de uma cama, insistia numa tábua ou num pano colocado sobre o chão. Passava a maior parte do seu tempo com as pessoas mais pobres da aldeia e eram elas que o procuravam e lhe contavam seus problemas. Uns poucos o seguiam de aldeia em aldeia e absorviam sua mensagem tão completamente que ele às vezes mandava um deles a regiões distantes para pregar em seu lugar. Apesar do apoio crescente que recebia, continuava notavelmente distanciado e, ao contrário de pregadores semelhantes do passado, não mostrava sinais de delírio ou alucinações. Submetia seu corpo a privações terríveis, geralmente fazendo jejuns prolongados para testar sua força. Esta autodisciplina rude quase lhe custara a vida. Se um passante não o tivesse forçado a beber água e comer pão ele teria morrido. Umar havia preparado misturas especiais de ervas e uma dieta cuidadosa de amoras silvestres e sopas de legumes para ajudar na sua recuperação.

Depois de cada vitória que seu corpo havia alcançado, ele se levantava, o rosto rígido como uma máscara, e começava a dançar, um estranho ritual que ninguém na região vira antes, enquanto entoava canções que tinha feito em honra de Má. Lendas brotaram a seu respeito e logo era chamado para resolver disputas entre os camponeses nas várias aldeias. Durante dez anos ou mais, sua palavra era aceita como o julgamento final e ele tinha uma quantidade imensa de seguidores em cada aldeia. Notícias de chegada do Confiável se espalhavam pelos campos e naquela noite teria lugar um mehfil com os camponeses para que falassem abertamente sobre suas amarguras.

Contava-se que muitos anos atrás um proprietário de terras estuprara uma camponesa e ela ficara grávida. O marido queria matá-la. O Confiável interviera e salvara sua vida. Organizou então os camponeses para matarem o ofensor, mas de maneira que parecesse um acidente. Os camponeses fizeram uma emboscada contra o proprietário e o jogaram, com o seu cavalo, de uma montanha. E agora ele pregava a rebelião.

— As notícias de al-medina são de que o sultão está doente e morrerá em breve.

Que Alá o mande para o céu porque ele não foi cruel para os Crentes, mas não podemos depender dos francos para continuarmos aqui após a morte de Rujari. Querem nossas terras e as tomarão a não ser que resistamos. Digo isto: depois da morte de Rujari cercaremos Palermo do lado de fora. O efeito será aquele de uma pedra jogada numa colméia. Nosso povo vai se levantar e derrubar os infiéis. Onde estará quando chegarmos, grande mestre Idrisi? Escondido na biblioteca com seus livros?

Abu Khalid ficou zangado, mas Idrisi segurou seu braço e sussurrou:

— Este homem não é nada estúpido. Os insultos não me afetam.

O pregador falou por outras duas horas e os camponeses o ouviram extasiados. Falou do começo de vida do profeta Maomé, contou-lhes histórias de como os exércitos e seguidores do Profeta haviam chegado às praias de três oceanos dentro de cem anos, os fez rir e os fez chorar quando descreveu como fora injustamente detido e sujeito às piores torturas. E então mudava

o tom e explicava como os Crentes ainda eram numericamente superiores ao francos na Siqilliya e como conquistariam uma vitória para a sua fé se pusessem de lado rivalidades mesquinhas e servissem num exército unido.

— Mas existe um problema, meus irmãos. Quem nos liderará na batalha? Que bandeira vocês seguirão?

— Você nos liderará, Confiável. É a sua bandeira que vamos seguir — a multidão respondeu.

Mas ele sacudiu a cabeça vigorosamente e ergueu a mão direita para exigir silêncio.

— Não sou um Amir da terra ou do mar. Só podemos vencer se nossos amires que estão hoje combatendo por Rujari decidirem lutar por si mesmos e pela causa dos Crentes por toda parte. É a eles que devemos convencer e, se conseguirmos, teremos um exército e navios ao mar. Sou um homem simples, mas sei como batalhas são ganhas e perdidas. Vamos fazer com que nossa fé nos dê tamanha força que perderemos o medo da morte. Isso dará a nossos amires um grupo de homens que se rivalizará com os francos e seus barões. Nós os expulsaremos até um mar que eles nunca deveriam ter atravessado. E eu cuspo na memória de Ibn Thumna que convidou os infiéis a atravessarem as águas para ajudá-lo a lutar contra nossos Crentes. Vamos cuspir juntos nele. Alá seja louvado.

A multidão cuspiu no chão em uníssono.

— O homem conhece a nossa história — Idrisi murmurou enquanto caminhavam de volta para casa.

— Acha que existe a menor possibilidade de sucesso?

— Abu Khalid perguntou-lhe.

— Existe uma boa possibilidade se o que al-Farid pediu puder ser conseguido. Ele estabeleceu três condições prévias para o sucesso. A unidade dos Crentes, a disposição de morrer

como parte de um novo exército e o abandono do clã Hauteville por nossos principais nobres e comandantes militares. Se conseguíssemos alcançar todas estas coisas, poderíamos vencer. O pregador é modesto demais. Poderia elevar a sua estatura. Homens como ele podem ser impelidos a fazer História.

— Concordo — disse Umar — mas se formos realistas nada disso irá acontecer. Nossos amires são egoístas demais para sequer pensarem nas necessidades dos outros.

Estão interessados na sua sobrevivência e na de suas famílias e, para manter suas terras, se converterão à fé dos nazarenos. Meu irmão aqui morrerá pela causa, como pode ver, e eu provavelmente morrerei com ele. Em Catânia formaremos um grande exército, mas aqueles fodedoresde-cabras em Qurlun e Lanbadusha jamais deixarão suas terras. Anote minhas palavras, Ibn Muhammad. Eles se converterão.

E um estranho eco reverberou na escuridão.

— Anote minhas palavras, Ibn Muhammad. Eles se converterão. Eles se converterão.

O Confiável os havia seguido e entreouviu a conversação.

— Confiável — Abu Khalid gritou -, junte-se a nós. Saiu da escuridão e caminhou com eles até que chegaram à frente da casa. Declinou o convite de partilhar chá de menta com eles dentro de casa, mas fixou Idrisi com um olhar severo.

— Quero que saiba que, ainda que o resto da ilha se omita, Catânia vai lutar. O Amir de Siracusa me deu sua palavra de que seus homens ficariam conosco. O Amir de Catânia prometeu seu apoio. Levantaremos vinte mil homens armados e eles lutarão até a vitória ou a morte. Acha isso suficiente?

Idrisi foi intensamente afetado pela simplicidade e determinação do pregador. O Confiável, no entanto, ainda tinha de se decidir em relação a Idrisi. Estava inclinado a confiar nele, mas esperava para ouvir sua resposta.

— Confiável, vou ser honesto com o senhor. Não estou seguro de quantos homens armados serão necessários para recuperar esta ilha. Foi tomada de nós por menos de um quarto do número que propõe. Não são os números, mas a força da crença em sua própria causa que determinará o resultado. Mas a questão principal foi a que colocou: será que os Crentes nas cem maiores cidades desta ilha se juntarão a esta rebelião? Se o fizerem, nós venceremos. Os barões tornaram-se preguiçosos e cobiçosos.

Estão desacostumados com a guerra. Podíamos pegá-los de surpresa, mas ainda que tomássemos a ilha teríamos de atravessar as águas e ocupar as fortalezas em Salerno e nos outros locais. Sem elas ficaremos vulneráveis a outra invasão. Quanto a nosso povo em Qurlun e Lanbadusha, talvez o que diz seja correto, mas ser apegado à terra e convertido à fé do conquistador não é nenhuma garantia de que será poupado se houver um terremoto. E são aquelas pessoas piores do que as comunidades em Marsa Ali e Shakka? Vão ser levadas pelo vento. Se a tempestade que o senhor prepara em Catânia for poderosa o suficiente, unirá muitos não-crentes também contra os barões. E, antes que eu esqueça, houve uma pergunta que fez diretamente a mim. Minha resposta é esta: se houver uma rebelião, não vou agir como um indivíduo.

Se precisar de mim estarei na Grande Mesquita com os outros, não me escondendo na biblioteca do palácio. Isso o satisfaz?

O pregador estendeu a mão e tocou na cabeça de Idrisi.

— Estou satisfeito, mas somente Alá o recompensará, Ibn Muhammad.

— Então estou preparado para esperar — replicou Idrisi com um meio-sorriso.

Entraram na casa com o ruído de mulheres chorando e Khalid sentado no saguão, lágrimas escorrendo pelo rosto. Idrisi abraçou o neto e perguntou o que havia acontecido.

— Umi morreu.

Idrisi beijou o menino e o apertou contra si. E foi em seus braços que a criança adormeceu. Uma única lágrima molhou a face de Idrisi. Ficou sentado com um olhar vago até que Tarik apareceu.

— O que foi que aconteceu, Tarik? Ela não parecia doente. Onde está Abu Khalid?

— Umar está em seu quarto. Ela tomou veneno, Ibn Muhammad. Uma grande dose e deve ter sido uma morte dolorosa. Tomou imediatamente depois da refeição. Ainda que estivesse aqui, eu não teria antídoto para este veneno.

— Mas por quê?

— Meu irmão não estava contente com ela e a repreendeu pela traição que ela e Sakina haviam planejado. Não se divorciou nem a ameaçou. Mas tinha dificuldade em falar com ela. Acho que ela achou o silêncio insuportável.

Idrisi começou a chorar.

— Pobre garota. Foi culpa da sua mãe, de sua estupidez e cobiça... Diga ao seu irmão para não se culpar. A mãe de Samar é que devia ter tomado o veneno. Mandaram um mensageiro avisá-la e a Sakina?

Tarik acenou com a cabeça.

— Ele partiu para Noto antes de voltarmos.


8

Irmãs sigilliyanas.
Mayya e Balkis discutem os méritos da vida com e sem homens.
Segredos são revelados.
Combina-se um plano para extrair a semente de Idrisi.

As três mulheres estavam sozinhas. Elinore se ocupava em fazer as malas, com suas roupas e jóias, preparando para a partida bem cedo na manhã seguinte. Embora nunca tivesse se encontrado com Samar, a notícia do suicídio de sua meiairmã a havia perturbado mais do que achava possível. O incidente continuava a reverberar na sua mente e ela mal ouvia sua mãe e sua tia, que estavam num ânimo estranho desde ontem.

— Se minha vida começasse de novo, eu acho que a repetiria. Mayya estava com uma índole filosófica e embora Balkis estivesse acostumada com o hábito de sua irmã de refletir em voz alta, ficou surpresa com a observação.

— Achei que detestava o palácio-prisão. Sua descrição.

— O que eu quis dizer foi que se meu Amir al-kitab, o grande mestre Idrisi, levasse a mesma vida se eu fosse casada com ele quando nunca estava em casa, o palácio-prisão era melhor. Tinha amigos e nunca fiquei solitária. É muito melhor do que ser casada com um marido exigente mas ausente que

insistia em ser o centro da minha vida. É diferente agora que suas viagens terminaram.

— Meu Amir me deixa sozinha. Nunca força sua presença sobre mim.

— Mas quando o faz, é agradável?

— Não, mas não é desagradável. As duas caíram na gargalhada.

— Sei como você anda feliz estes dias, Mayya. E, vendo você assim, me faz ao mesmo tempo feliz e triste.

— Quando você disse que eu pensei ter ouvido nossa mãe. Ficaram ambas em silêncio. Sua mãe morreu quando ambas eram jovens. Balkis só tinha dois anos e mal podia se lembrar dela. Mayya, dez anos mais velha, havia guardado algumas memórias vívidas. Suas tias e sua avó materna as haviam criado, as tias em função do dever e a avó porque as amava quase tanto quanto havia amado a própria filha.

— É verdade o que dizem?

— Quem?

— Eles?

— O que dizem?

— Que nossa mãe não teve uma morte natural. Mayya abraçou a irmã.

— Perguntei à vovó e ela disse que não era verdade.

— Ela diria isso. Se tivesse dito a verdade papai a teria botado fora de casa. Não tinha para onde ir.

— Teria voltado para Shakka onde seus filhos viviam.

— Mayya, sempre sei quando está tentando esconder coisas de mim. O que há de errado com você?

— Acho que estou grávida.

— Alá nos proteja!

— Protegerá. Ele o fez da última vez.

— Tem certeza?

— Acho que sim. O sêmen do erudito é tão fértil como esta ilha.

— Não só desta vez, se a história que você me contou anos atrás era verdadeira.

Mayya deu uma risada suave, silenciosa.

— Não estou segura que ele saiba se realmente aconteceu ou se foi um sonho depois de terem fumado um haxixe muito forte.

Mas como podiam todos os homens terem o mesmo sonho? Curioso que tenha lembrado.

Balkis levantou-se e caminhou para trás da cadeira da irmã. Começou a trançar os cabelos de Mayya.

— Ainda não respondeu minha pergunta sobre nossa mãe. Mayya suspirou.

— Ouvi as mesmas histórias que você e provavelmente da mesma fonte. Como posso saber se são verdade?

— Mas, Mayya — apelou a irmã -, se nossa mãe foi morta pelo marido devia haver uma razão. Nosso pai mal podia dirigir um olhar para mim. Não consigo lembrar de nenhum gesto afetuoso de sua parte.

— Ele queria um filho.

— Por que está escondendo a verdade? Por quê? Nunca vai me contar? Mayya?

Mayya sempre soubera a verdade, mas queria proteger Balkis. Estavam todos mortos agora. Mas algo bloqueava Mayya. Uma intuição, talvez, de que nada de bom sairia desta história. Já havia custado a vida de sua mãe. A visão de Balkis sentada no chão com as mãos apoiando o rosto e esperando ansiosamente decidiu Mayya. Não havia nenhuma razão real para ocultar a verdade dela.

— Nós tivemos pais diferentes.

A expressão no rosto de Balkis não mudou.

— Isto era óbvio até para mim. Quando eu tinha cinco anos, nosso pai mandou raspar minha cabeça porque não podia agüentar a cor dos meus cabelos. Fingiram que eu tivera febre e vovó disse que os cabelos cresceriam ainda mais fortes. Mas eu chorava toda noite e você me consolava até que eu adormecesse. Lembra-se? Quando cresci, percebi que ele odiava a simples visão de mim. Às vezes deixava a sala quando eu entrava. E então percebi por que me odiava, mas não havia ninguém para perguntar e você sempre negava. Quem era meu pai?

— Um mercador grego que comprava azeite de oliva do meu pai. Lembro-me bem dele. Não só era muito mais bonito do que meu pai, mas também mais inteligente.

Nossa mãe deve ter pensado o mesmo. Visitava nossa casa regularmente. Suponho que um dia ele a encontrou sozinha e a suave brisa de atração mútua se transformou numa tempestade. Você foi o resultado. A surpresa foi que levaram dois anos para que nosso pai se desse conta de que esta criatura com cabelos louros e olhos azuis não podia ser sua filha. Puxei a minha mãe. Você era a imagem do seu pai.

— O que aconteceu com ele?

— Quando me tornei uma das concubinas de Rujari mandei chamá-lo. Isto foi há vários anos. Veio ao palácio e conteilhe que nossa mãe tinha sido envenenada. Não tinha a menor idéia de que estava grávida até você nascer e ela mandou-lhe uma mensagem dizendo para nunca mais voltar a Noto. Ele chorou muito. Ficou desesperado para ver você, mas nossa avó ainda estava viva e achei que não seria prudente.

— Você estava errada.

— Você pode estar certa. Ele ainda era jovem e achei que podia vê-la em outra ocasião.

— Ele já morreu?

— Sim.

— Como?

— Uma espécie de infecção. Um dos eunucos do palácio mantinha-se informado sobre ele. Mandamos um médico para tentar curá-lo, mas era tarde demais. A doença havia se espalhado.

— Não tinha família?

— Não. Balkis começou a chorar. Mayya aninhou sua cabeça nos braços e a acariciou gentilmente até que ela se recuperou.

— Mayya. Cheguei a uma decisão. Eu quero um filho.

— Muito bem. O único problema é encontrar um pai.

— Você ocultou meu verdadeiro pai de mim. Jure por tudo que é sagrado que vai me deixar decidir quem vai ser o pai de meu filho.

— Claro que vou. Juro pela cabeça de Elinore que apoiarei sua escolha e farei tudo em meu poder para ajudá-la a caçar a besta e extrair o seu sêmen. Eu juro. Eu juro. Eu juro.

— Lembra quando éramos crianças e bastava eu mencionar que adorava um determinado prato para ele reaparecer no dia seguinte?

— Não, mas e daí?

— Quem decidia?

— Não tenho a menor idéia. Talvez vovó. Sempre se queixava de que não apreciávamos sua comida e quando você dizia que gostava de algo ela fazia aquilo três vezes por semana. Você é uma criatura engraçada, Balkis. Estávamos discutindo o pai do seu filho e vem falar de comida. Tem um homem em vista?

— Acho que devíamos manter a coisa em família.

— A saber?

— Ibn Muhammad alIdrisi.

A idéia a colocou em pânico. Primeiro pensou que Balkis a estava provocando, mas o olhar no rosto da irmã sugeriu que falava sério.

— Não! Não! Por que ele? Existem homens suficientes em Siracusa que adorariam a oportunidade. Ele tem 58 anos, você sabe. Sabia disso? Cinqüenta e oito! Velho demais para você. Seu sêmen não é vigoroso e...

— Mayya, você não deve ser egoísta. Fez um juramento. O tom severo da irmã aumentava seu constrangimento.

— Juramentos podem ser quebrados. Está me atormentando?

É uma punição porque não deixei seu pai ver você?

— Não. Apenas acho que seria uma boa união e não haveria risco. Ele não iria me chantagear, não acha?

— Mas por que ele?

— A razão real?

— Sim!

— Existe algo muito infantil e atraente em sua risada.

— Ora, ele não vai rir quando a enxergar nua. Era um comentário tão ridículo que as duas começaram a rir. Foi uma risada espontânea e contagiante e clareou a atmosfera. A tensão insuportável que tomara conta delas subitamente desapareceu. Assim que Mayya percebeu que sua irmã falava sério ela também começou a pensar seriamente. Balkis observou-a em silêncio por vários minutos e então ergueu uma sobrancelha, só para ter como resposta um gesto de um dedo sobre os lábios. Finalmente, não pôde se conter mais.

— E então? Mayya se sentia com o coração leve de novo. Contanto que organizasse e controlasse toda a história, poderia ser algo muito divertido. Se possível, encontraria um esconderijo de onde poderia observar toda a cena, sem o conhecimento dos dois atores principais. Ainda não achava uma boa idéia, mas se tinha de ser feito, deveria ser feito adequadamente. Deixada para agir sozinha, Balkis poderia arruinar tudo.

Olharia então para Mayya com seu ar inclemente e a culparia do desastre. E por que não deveria Muhammad alIdrisi ajudar Balkis na sua hora de crise?

Ela sabia que as pessoas geralmente preservam uma lembrança de algo, meio imaginado, meio real que lhes aconteceu na juventude. Mais tarde na vida relembram isso como algo excepcional ou mágico, fora da ordem comum das coisas.

— Pensei num plano, mas para que tenha sucesso um número de condições precisam ser preenchidas. Primeiro, ele nunca deve saber que eu sei. Segundo, não deve acreditar que a mulher entrando no seu quarto seja você...

— Mas — interrompeu Balkis.

— Por favor, deixe-me acabar. E, por fim, quando você o encontrar na manhã seguinte, deve fingir que nada aconteceu.

— E se nada acontecer? Quero dizer, se não tivermos sucesso da primeira vez?

— Podem tentar de novo, mas exatamente da mesma maneira.

— Aceito as condições. Agora revele cada detalhe do seu plano.

Ela o fez mas, antes que as arestas pudessem ser aparadas, Elinore entrou no quarto.

— Estamos realmente partindo para Palermo amanhã? Sua mãe assentiu com a cabeça.

— Por que quer voltar tão cedo, Elinore? Por que não esperar por seu pai? Vai voltar em poucos dias e então nós duas poderemos regressar no seu navio. Muito melhor do que viajar de carroça.

— Acho Siracusa tão tediosa, minha tia. Todos os meus amigos estão em Palermo. Tudo acontece lá. Soube de coisas interessantes que estão acontecendo em Noto. Dizem que existe um pregador de cabelos compridos com a alma exaltada que está espalhando a rebeldia através de Catânia. É verdade? Ouviram falar dele?

Balkis acenou com a mão num gesto depreciativo.

— Meu marido o conhece e diz que o homem é meio louco. Elinore não aceitou.

— Isto significa que ele é meio lúcido.

Sua mãe a fuzilou com o olhar.

— Bem — respondeu a tia -, se está interessada no Confiável — é assim que o chamam — é melhor esperar por seu pai. Deve tê-lo conhecido na propriedade do seu genro.

Elinore estava dividida. Estava desesperada para voltar à casa para ver se algum dos eunucos tinha conseguido encontrar o flautista que a deixara em transe com a sua música. Mas o pensamento de esperar por seu pai também era atraente. Debateu os méritos de cada caso na sua cabeça e decidiu em favor do rapaz que tocava flauta. Regressariam cedo na manhã seguinte.

Sua mãe aceitou a decisão por suas próprias razões. Não queria realmente estar em Siracusa quando Idrisi voltasse. Balkis jogando olhares para ele seria intolerável.

Apesar da sua mostra de apoio à irmã, Mayya estava nervosa em relação ao pacto cruel e monstruoso que haviam selado. Seu cérebro estava em torvelinho. Seria melhor que não estivesse presente quando Idrisi voltasse ao palácio. Se ele sequer suspeitasse do seu envolvimento ela seria coberta de desgraça. A maneira relaxada de Elinore parecera ter convencido sua tia de que tinham de partir e involuntariamente proporcionara uma solução simples para o dilema de sua mãe.

— Balkis, não quero que acorde cedo por nossa causa. Partiremos antes do sol nascer, enquanto os Crentes são acordados para as preces matutinas. Não a perturbaremos.

Vamos nos despedir agora.

Elinore beijou a tia calorosamente e saiu da sala. Balkis segurou as mãos da irmã e as apertou com força.

— Tem medo da minha impetuosidade. Começa a se arrepender do nosso acordo. Eu amo você, Mayya. É uma mãe e um pai para mim. Se a magoei estou preparada para retirar minha sugestão e declarar nosso acordo acabado. Não quero que nada fique entre nós. Nada.

Mayya, tocada pela oferta, não falou imediatamente, mas abraçou Balkis e a beijou.

— Fizemos um acordo. Vamos ficar fiéis a ele. Não afetará nada entre nós. Isso eu posso prometer-lhe. Só espero que dê certo da primeira vez. Não quero que faça disso um hábito.

E com essa nota de advertência as irmãs se despediram.


9

Idrisi reflete sobre a rebelião e é surpreendido no seu sono.
Sua semente é extraída mais de uma vez.

A manhã resplandecente alegrou Idrisi. Tomou café-da-manhã cedo e partiu para Siracusa acompanhado apenas de criados armados. Não permitiu que Abu Khalid nem seu irmão

Umar o acompanhassem. Tinham tarefas mais importantes em casa.

A morte de sua filha levara a muita reflexão interior da sua parte e Idrisi se perguntou se as coisas teriam sido diferentes se tivesse passado mais tempo com as filhas e as educado. Mas acabava voltando, uma vez mais, à raiz do problema: o seu casamento. Embora só tivesse 18 anos na época, deveria ter resistido ao seu pai. Na noite passada havia escrito uma carta breve para Walid.

"Meu Caríssimo Filho:

Escrevo para trazer tristes notícias. Sua irmã, Samar, morreu há dez dias. Eu estava presente na casa no dia em que ela decidiu atentar contra a própria vida.

Pegou-nos todos de surpresa porque não havia indicação de que estivesse à beira do desespero. O jovem Khalid vagueia aturdido e é difícil consolá-lo. Seu pai o culpa, mas injustamente. É um homem generoso e ponderado e não deve ser culpado pelo que aconteceu. Se há algum culpado, sou eu. Deveria ter sido menos duro com ela depois de descobrir e expor um plano tolo e traiçoeiro para prestar falso testemunho contra o marido. Foi idéia da sua mãe. Ela e Sakina se tornaram instrumentos voluntários por causa de estupidez mais do que de maldade. Seria ocioso oferecer mais detalhes numa carta que pode nem mesmo chegar até você.

Sua mãe e Sakina vieram para o enterro, mas só ficaram poucos dias. Falei com elas brevemente, passando mais tempo com meus netos, cuja inteligência você apreciaria mais do que a maioria.

Tenho pensado muito no passado e irei a Veneza sem muita demora para que possamos nos encontrar e conversar. Não pode imaginar como sinto falta da sua presença.

As ondas de risadas e o ruído das vozes quando seus amigos vinham vê-lo na nossa casa permanecem uma lembrança muito cara.

Eu o abraço,

Abu."

Cavalgou num ritmo furioso, ansioso para alcançar Siracusa antes do crepúsculo e içar velas para Palermo na manhã seguinte. Tinha deixado a cidade em desespero, buscando possíveis rotas de escape para o desastre que vinha à frente. Rujari não havia respondido à sua carta pedindo misericórdia. Talvez devesse ter ficado e implorado ao sultão todo dia. Agora queria fazer um último esforço para persuadir o sultão a poupar a vida de Felipe. Rujari havia tratado Felipe como seu próprio filho. Sabia que o sacrifício humano exigido pela Igreja e pelos barões — um sacrifício com o qual Rujari havia concordado — devia estar, mesmo assim, atormentando o sultão.

Quando Idrisi discutira a prisão de Felipe com o Confiável, o pregador fizera troça da comunidade de Crentes de Palermo. Se deixassem Felipe morrer sem resistência, eles próprios também pereceriam. A contragosto, Idrisi começara a cair sob o fascínio do pregador. Às vezes suas crenças supersticiosas o irritavam, mas a ferocidade e o fervor com que falava contra a Igreja faminta de terras e os mercenários que ela empregava como carrascos eram admiráveis. E as multidões que ele empolgava estavam longe de ser crédulas. Sabiam que ele falava a verdade e o comparavam a seus amires e proprietários de terras que competiam entre si para apaziguar e agradar a seus inimigos, especialmente os monges, que constantemente faziam sermões advogando o terror e a violência para livrar a ilha de Crentes e judeus.

De onde vinha esta paixão religiosa? Era uma resposta às fogueiras que haviam sido acesas para destruir o que ele por muito tempo considerara indestrutível. As primeiras vitórias do Profeta e os triunfos resultantes haviam criado uma civilização tão orgulhosa e consciente de sua superioridade que, como os antigos da Grécia e de Roma, infectou-se com a idéia de que sua superioridade a tornava invulnerável. Um erro fatal.

Mas o Confiável estava certo ao chamar a atenção sobre a traição que levara ao convite despachado por Ibn Thumna, o Amir de Siracusa, aos francos. Acontecimentos que tinham ocorrido há cem anos ainda estavam frescos na imaginação da maioria dos Crentes. Quantas vezes Idrisi ouvira a história do Amir maligno e promíscuo, Ibn Thumna, que havia assassinado o piedoso e nobre Ibn Maklati, o Amir de Catânia, por motivos de mera cobiça. Queria mais terra. O assassinato foi vingado por Ibn al-Hawwas, que infligiu uma tremenda derrota sobre o Amir de Siracusa. Foi então, e simplesmente para salvar sua própria pele, que Ibn Thumna convidou os infiéis a atravessarem as águas. Foi morto na batalha com eles, por isso não ganhou nada, afinal. Estava provavelmente assando nas fogueiras do inferno a esta altura. Era bom para Idrisi pensar em algum lugar mais quente do que Siquilliya.

Olhou para o céu. Nem uma só nuvem à vista, embora os pastores tivessem previsto chuva na noite passada. Suor escorria por seu rosto e pescoço e ansiava por uma brisa marinha úmida enquanto galopavam em frente. Não descansaria até que os homens implorassem pelos cavalos. Chegando a um arvoredo, os troncos e galhos retorcidos pelo vento e feridos pelo raio e as folhas secas e murchas, ele afrouxou o passo. Ao caminhar por entre as árvores podia ouvir os homens falando do Confiável.

Quando se juntou a eles, calaram-se, mas perguntou se tinham comparecido ao mehfil na aldeia. Acenaram com a cabeça sem darem nenhuma informação.

— Todos vocês entrariam para o exército de que falou o Confiável?

Novamente concordaram com a cabeça.

— Estão preparados para morrer, mas em nome do quê?

— Para que as preces possam ser ditas de novo no nome do Califa.

— É tudo? Outra voz replicou.

— Muitos dos nossos homens trabalham como escravos para a Igreja. Quando derrotarmos os infiéis poderemos libertar todo o nosso povo.

Então o mais jovem deles, que não havia falado, disse:

— Somos pessoas pobres e o senhor é um grande erudito. Como poderemos lhe dizer algo que já não saiba? Mas pode nos ensinar muito. Acha que podemos vencer?

Idrisi pensou antes de responder. — Não sei. Existe uma tendência entre nosso povo para se gabar de nossa capacidade. Nos tornamos muito egoístas e vaidosos. Se linguagem extravagante pudesse derrotar o inimigo, jamais teríamos perdido uma única batalha. E depois tem esta ilha, que exerce um efeito mágico sobre todos que vêm para cá, independentemente da sua fé. A geografia e as condições locais nos isolam de outras terras e, sejamos nazarenos ou crentes, começamos a nos ajustar às condições aqui. A geografia desta ilha modela nosso caráter e dentro de cinqüenta anos ou mais — crente, judeu ou nazareno — não se poderá mais dizer a diferença entre nós. Nos tornamos siqilliyanos enfrentando os mesmos problemas.

Os homens não sabiam como entender isto e sorriram mas ficaram em silêncio. Prontos para seguir viagem de novo, cobriram as cabeças e montaram nos seus cavalos.

Um vento suave soprava e as nuvens já haviam escurecido o céu ao chegarem a Siracusa.

Idrisi foi saudado pelo camareiro do palácio, que lhe informou que o Amir era esperado mais tarde naquela noite. Um banho fora preparado para ele e a senhora Balkis se juntaria a ele para a refeição da noite.

— Estão a senhora Mayya e Elinore aqui?

— Voltaram para Palermo poucos dias atrás. Esperava encontrar a filha sozinha e levá-la de volta consigo. Por que Mayya voltara tão cedo? Balkis teria as respostas.

Seguiu até o hammam onde um banho quente aromático fora preparado para ele. Camomila, tomilho silvestre, manjerona e, sim, menta-de-montanha. Seria aquilo um feixe de erva-moura que via boiando na água? Era. Tirou-a do banho e entregou-a ao atendente.

— Quem escolheu as ervas?

— A Senhora Baikis. Lembrou-se de dizer a sua cunhada que a erva-moura só deveria ser usada para curar a insônia. Ao entrar no banho sentiu os poderes calmantes que as ervas extraíam do seu cansaço. Recostou-se e desfrutou de uma infusão que foi derramada sobre sua cabeça, depois do que o atendente o massageou pelo que pareceu um tempo muito longo. Insistiu num banho frio para se livrar da leve sonolência e logo emergiu completamente refrescado.

Um quarto diferente fora preparado para ele mas, como a vista do mar era ainda melhor, não se queixou. Chovia e o mar estava agitado. Podia ver os barcos ao longo do cais balançando para cima e para baixo como uma fileira de cavalos antes de uma corrida. Uma atendente bateu na porta para avisá-lo de que a refeição ia ser servida. Seguiu-a até uma série de aposentos onde encontrou Baikis à sua espera, vestida numa túnica vermelha viva, seus cachos dourados amarrados num nó. A cor não combinava com ela.

— Bem-vindo de volta, Muhammad ibn Muhammad. Só lamento que meu marido não esteja aqui para cumprimentá-lo. Como pode ver, o tempo está realmente mau e acho que ele não chegará até amanhã. O mensageiro que trouxe a notícia disse que o Amir insistia em que não partisse para Palermo sem antes encontrar-se com ele.

Idrisi curvou-se polidamente.

— Fico tocado com a sua hospitalidade. Se a tempestade prosseguir, duvido que eu possa partir pela manhã. Vou esperar pela volta do Amir. Eu, também, tenho coisas que gostaria de discutir com ele.

— Lamento saber da morte de sua filha. Era chegado a ela?

— Não, e isso me faz sentir culpado. Mas não vamos falar de coisas tristes esta noite. Eu esperava encontrar Mayya e Elinore. Por que as deixou partir?

— Foi Elinore quem insistiu. Por um tempo comeram em silêncio.

— Balkis, eu venho pensando nisso. Você e Mayya não parecem irmãs. Tiveram diferentes mães?

Balkis sorriu e disse como se fosse a coisa mais normal no mundo:

— Não. Pais diferentes.

— Desculpe. Não queria bisbilhotar.

— Deveria contar-lhe a história toda?

— Por favor.

Enquanto ele ouvia, uma servente limpou a mesa e outra colocou pequenas tigelas de infusões herbais diante deles. Tão fascinado por Balkis estava Idrisi que bebericou sem notar o shahdanaj al-barr (cânhamo selvagem) com mel. Seus efeitos não foram imediatos mas, mesmo enquanto a ouvia, sentiu uma tontura que o deixou ousado na maneira de encará-la.

Abruptamente perguntou:

— Por que decidiu usar este vestido vermelho insuportável? A cor não combina com a sua pele. Foi deliberado?

— O que gostaria que eu fizesse?

— Que o tirasse e...

A risada dela o interrompeu. Sentiu-se aliviado de que não era uma risada estúpida ou maliciosa, mas delicada e cuidadosa, sem ser preciosa. Não houve nenhum movimento da mão para esconder seus lábios, um gesto que ele não gostava nas mulheres.

Voltou à história dela.

— E Mayya sabia?

— Sabia há muito tempo, mas só me contou a verdade toda há poucas semanas. Ibn Muhammad, seria capaz de matar uma mulher que o traísse?

A resposta foi instantânea.

— Não.

— E agora é sua vez de contar uma história. Mayya contoume sobre a estranha ilha de Juliano, mas não tinha certeza se fora real ou imaginária.

Outra tigela da mistura potente foi colocada à sua frente. Aceitou-a avidamente. Depois fechou os olhos em apreciação silenciosa. Contou-lhe a história da ilha de Juliano, não poupando um único detalhe. Relatou de novo a noite de paixão e as diferentes artimanhas que a suma sacerdotisa usara para excitá-lo e reavivá-lo depois que tinham feito amor pela primeira vez. Idrisi ficou tão animado na sua história que não notou os rubores dela. Conseguira excitá-la fisicamente sem um único toque. Ela levantou-se da mesa e sugeriu que se recolhessem para a noite.

Quando voltou ao seu quarto, Idrisi abriu as venezianas para observar a tempestade. Não havia estrelas visíveis no céu escuro como breu, só o brilho dos relâmpagos e a chuva forte. Despiu-se e caiu na cama. Pouco depois uma aparição — ou pelo menos ele assim achou — pairou no quarto, vestida de branco. Não era... não poderia ser... sim, era... ele tinha certeza... devia ser a suma sacerdotisa da ilha de Juliano.

— É você? — ele sussurrou em grego.

— Sim.

Idrisi caiu de joelhos diante da guardadora da chama de Afrodite e lentamente se aproximou até que ela, como ele, estava nua.

— A tempestade lá fora me assusta. Ela foi até a janela e fechou as venezianas. Pegou-a pela mão e conduziu-a à sua cama.

— É a tempestade aqui dentro que me assusta. O que se seguiu foi uma noite de pura paixão. Balkis ouvira bem a história e imitou cada incidente que ele descrevera. Idrisi mal abriu os olhos. Sentiu-se lavado por ondas de felicidade enquanto explorava os montículos e frestas do corpo dela.

Ela queria sussurrar no seu ouvido:

— Sou Balkis, não sou a sua estúpida suma sacerdotisa. É o meu corpo que você está desfrutando. Meu. E eu quero o seu filho.

Mas a parte dela no acordo não podia ser rompida. Prometera à irmã que não revelaria sua identidade. Se Idrisi a reconhecesse, tinha outra história cuidadosamente preparada. Depois de fazerem amor pela terceira vez seu amante exausto caiu num sono profundo. Ao se virar para ficar mais confortável, roncou ruidosamente, como uma trovoada. Foi a única vez naquela noite que ela se lembrou do marido.

Deixou o quarto. Segura nos seus aposentos, Balkis podia sentir o cheiro dele no seu corpo e isso a fazia arder de prazer. Espero que não tenha funcionado esta noite, pensou. Enfim, quem poderia saber? Precisaremos fazer de novo para ter certeza. Graças a Alá que ela não se recusara a aprender grego quando criança. E se ele decidir partir antes do cair da noite? Vou impedi-lo. Vou mandar uma mensagem secreta da sacerdotisa. Farei qualquer coisa a fim de mantê-lo aqui por mais uma noite. Só mais uma noite. E se necessário o acompanharei a Palermo para ver Mayya. Ela vai me matar, eu sei, mas me recuso a deixálo partir. Ela compartilhou Rujari com sabe Alá quantas mulheres. Por que não compartilharia Muhammad apenas comigo, uma irmã que a ama? E se Mayya e eu estivermos ambas grávidas? Pensando nisso finalmente adormeceu.

E Idrisi? Talvez fossem as ervas. Talvez a paixão. Talvez ambas. Não dormia confortavelmente assim há muito tempo. Só acordou quando ouviu o muezim bem cedo na manhã seguinte.

Tremeu ligeiramente ao lembrar o sonho erótico da noite passada. Ishq khumari. Amor de Baco. Então sentiu o perfume dela e o seu corpo sobre o seu. Fora real, afinal? Farejou os braços como um cão. Então ficou de quatro e farejou os lençóis. Odores deliciosos invadiram suas narinas. Ficou deitado perplexo, mas feliz.

Não havia erro. Uma mulher estivera aqui na noite passada. Tinham feito amor. Não era nenhum sonho, mas como podia ser a suma sacerdotisa exatamente como fora estes anos todos? Seria isso possível? E então se lembrou da infusão herbal que bebera. Não era diferente daquela que ele e seus homens haviam bebido na ilha de Juliano aqueles anos todos atrás.

Quanto mais pensava, mais agitado ficava. Só uma pessoa poderia ter querido testá-lo. Mayya. Mas quem desempenhou o papel da suma sacerdotisa? No momento em que fez a pergunta soube a resposta. Balkis. O vestido vermelho vulgar fora destinado a distraí-lo do que ela usaria mais tarde naquela noite. Ibn Hazm afirmara que era permitido olhar uma vez para uma mulher, mas não a segunda vez. Ele tinha olhado para Balkis a noite inteira e ela o havia drogado também. E a razão agora se tornava óbvia. Fora ele que sugerira a Mayya que numa tempestade muitas sementes começavam a voar.

Três cursos de ação estavam abertos para ele. A tempestade havia passado e o mar parecia calmo de novo: podia partir para Palermo sem dizer uma palavra. Podia confrontá-la, exigir uma explicação, e depois partir. Ou podia passar outra noite aqui. O pensamento de vê-la de novo — mas desta vez como a si mesma — começou a excitá-lo. Seu café-da-manhã fora servido no terraço e ao sentar-se ele a viu na varanda ao lado, olhando na direção do mar.

— Alá seja louvado, o mar está calmo esta manhã, irmã Balkis. Ela ficou aturdida, mas só por um momento. Esperava há mais de uma hora que ele saísse.

— Dormiu bem, Ibn Muhammad?

— Melhor do que em muitos anos, não posso imaginar por quê.

Com a tranqüilidade abalada, afastou-se dele. Ele atravessou a mureta que os separava.

— Este é o terraço do Amir — disse, nervosa.

— Atrasou-se em Palermo e lhe pede que vá ao seu encontro o mais rápido possível.

— Neste caso eu deveria partir imediatamente.

— Não — ela respondeu, sua voz sufocada de paixão. Ele a pegou pelo braço e gentilmente a conduziu até o quarto.

Estendeu os braços e apalpou ambos os seios. Ela tremeu.

— Estranho, estes amigos parecem familiares.

— Você sabia?

— Não à noite passada, mas esta manhã, quando minha cabeça clareou.

Ela caiu nos seus braços enquanto uma paixão devoradora tomava conta dos dois. Cegos a tudo mais, fizeram amor na grande cama do Amir debaixo de um dossel bordado com fios de ouro. Depois que a tempestade passou, ele olhou atentamente para ela.

— Baileis, minha querida. Acho que as sementes florescerão agora. E por este motivo foi apropriado que tenha escolhido a cama do seu marido. Tenho sua permissão para voltar a Palermo?

— Não! — ela gritou e estapeou o seu rosto.

— Não! Não! Não! Não!

— Mas eu preciso ir. Seu marido e minha mulher me aguardam.

— Não é só o seu sêmen, é você que eu quero.

— Mas mal me conhece.

— Conheço agora.

— Primeiro, deve responder-me com sinceridade e evitar outras trapaças. E olhe firme nos meus olhos. Se o seu olhar vacilar, saberei que está tentando evitar a verdade.

— Não vou enganá-lo. Faça a sua pergunta.

— Pensei ter detectado a mão de Mayya por trás deste delicioso enredo, especialmente a cena de abertura na noite passada.

Ela sabe de tudo?

— Foi idéia minha extrair o seu sêmen. Ela não gostou, mas depois, quando insisti que era isso o que eu queria, estabeleceu uma condição. Se tinha de acontecer, ela prepararia tudo. Ela o fez, Muhammad.

— Incluindo o shahdanaj al-barr?

— Especialmente isso... o resto eu soube por você mesmo quando descreveu com detalhes tão maravilhosos os ritos da suma sacerdotisa de Afrodite. Foi como se descrevesse uma paisagem, ou as flores, ervas e árvores que crescem aqui. Agora entendo por que dizem que é um erudito de muitas facetas e se me permitir eu gostaria...

Idrisi a interrompeu:

— Não vou negar que meus olhos se encontraram observando-a mais do que é permitido. E confesso que imagens suas penetraram na minha cabeça durante a longa cavalgada até a aldeia de Abu Khalid. E, se não fosse casada com uma alma tão honrada e decente, não teria importância, mas você é e, só por esse motivo, não devemos repetir o que fizemos. Nunca mais.

— É uma alma tão decente e honrada que você me arrastou para a sua cama e me manteve ali até que a sua paixão se esgotou. Agora fala como se nada tivesse acontecido.

Se quer realmente que isso não se repita mais entre nós dois, então não se repetirá, mas não acredito em você. Já o tive em meus braços e sei que sentiu exatamente o mesmo que eu. A situação é difícil, mas soluções sempre podem ser encontradas.

— E quanto à sua irmã?

— Concordaremos em compartilhar você. Ela pode tê-lo nos dois primeiros dias e eu nos três seguintes.

— Pensei que houvesse sete dias na semana.

— Depois que eu tiver me saciado, você terá merecido dois dias de descanso.

Ele começou a rir.

— Você é impossível. Os olhos dela se encheram de desejo.

— Ora, é bastante normal, exceto que Mayya e eu somos meias-irmãs.

— Balkis, você é casada com outro homem.

— Ele se divorciará de mim se eu pedir. Podemos discutir isso na viagem para Palermo.

— Está vindo comigo? Isso é tolo.

— Por quê? Minha irmã e seu marido já estão lá. Ficarei no palácio, não com você. Não existem filhos para me prender aqui.

— Balkis, ouça cuidadosamente. Pode viajar comigo, se insiste, mas o navio é um lugar público e o decoro deve ser preservado. Se nossa fraqueza triunfar, toda Palermo saberá que o Amir é um marido traído antes que você chegue ao palácio.

— Muhammad ibn Muhammad alIdrisi, meu sultão do amor, farei o que manda. Balkis será a passageira mais modesta e recatada que sua embarcação já transportou.

— Tive um pressentimento de que terminaria assim.

— Certamente quer dizer começaria assim. Poucas horas depois estavam no mar a caminho de Palermo. A dama de véu estava sentada numa cabina tomando chá enquanto o erudito fingia fazer anotações.

— Sei que podem nos ver, mas certamente podemos conversar.

— Claro que podemos conversar.

— Então me conte sobre Abu Nuwas.

— Balkis!

— O quê? Simplesmente conte sobre ele. Se não o fizer caminharei sobre você à vista de todos os homens e beijarei seus lábios.

— Você prometeu...

— Sim, mas só se você se comportar normalmente também, concordar em falar comigo e responder a minhas perguntas. Seguramente não vamos fazer esta jornada em total silêncio. Não é freqüentemente que uma mulher humilde como eu tem a oportunidade de viajar com um grande erudito. Então talvez pudéssemos começar com a poesia de Abu Nuwas.

Involuntariamente, Idrisi sentia-se divertido e impressionado com ela.

— Abu Nuwas nasceu em Basra, uns cem anos depois da morte do nosso Profeta. Mudou-se para Kufa a fim de estudar, Basra e Kufa sendo as cidades onde os eruditos de sólida educação enriquecem o seu conhecimento. Kufa era famosa na época por seus gramáticos e Abu Nuwas chegou para aperfeiçoar o seu conhecimento da nossa língua. Depois ele se mudou para Bagdá, mas isto principalmente atrás de emprego e prazer.

— Era um poeta muito favorecido pelo Califa e tornou-se assunto dos contadores de histórias no bazar. Segundo uma história, Shahrazad se atrasa uma noite e entra no quarto de dormir do Califa e o encontra de quatro com Abud Nuwas cavalgando-o como se fosse um cavalo. Shahrazad finge horror. Abu Nuwas levanta-se e fica de pé, nu. Ela dá-lhe um tapa no rosto. Ele replica: "Somos apenas homens orgulhosos e penetrantes, princesa." Ela ameaça informar o qadi a não ser que o Califa a libere do acordo que selaram. Ele concorda, mas implora que ela não pare de contar suas histórias. A partir daquele dia ele lhe paga dez dirhams de ouro por história e as histórias ficam ainda melhores.

Um risinho abafado interrompeu o seu discurso.

— Muhammad, isso é verdade?

— É uma história que contam no bazar de Bagdá. Preenche duas funções. Informa-nos que Abu Nuwas e o Califa gostavam de homens, embora o Corão proíba tais atos sob pena de morte. Segundo, a história se destina a atrair uma parcela importante da audiência, os mercadores de rua. O fato de Shahrazad ser paga por seu trabalho diário lhes parecia natural. E o fato de que as histórias melhoram é uma sugestão de que o trabalho voluntário é melhor do que a escravidão. O Zanj teria gostado disso.

— Estou mais interessada na sua poesia.

— Eu a li, naturalmente, mas não consigo lembrar. Sou mais familiarizado com a obra de Ibn Quzman, meu amigo em alAndalus.

É um discípulo de Abu Nuwas e seus versos são cantados em muitas cidades, especialmente depois de alguns frascos de vinho.

— É verdade que Abu Nuwas escreveu sobre uma religião perfeita em que é obrigatório fazer amor cinco vezes por dia em vez de rezar?

— É verdade, mas não é prático.

— Não para você.

— Balkis!

— Desculpe.

— O que eu quis dizer foi que se torna difícil à medida que os homens ficam mais velhos.

Abu Nuwas não tinha noção deste problema, mas os idosos teriam de ser perdoados por sua incapacidade de fazer amor cinco vezes ao dia. O que eles fariam em vez disso?

— Dissimular, como muitos fazem hoje quando rezam.

— Deixe-me terminar a história de Abu Nuwas. O verdadeiro tema da sua poesia eram as alegrias do vinho. Ele era o elo entre o mundo que existia antes que nosso Profeta recebesse a mensagem e o que foi criado depois. O vinho era a substância que ligava todos os mundos. Era intemporal e universal. E muitas vezes Abu Nuwas perguntou polidamente por que, se o vinho e os garotos eram permitidos num paraíso conforme estava escrito no al-Quran, por que estes prazeres seriam proibidos na terra. Então ele divertia os outros e se divertia.

— Em outra ocasião desenvolveu uma interpretação incomum da jihad. Escreveu que a principal obrigação da jihad deveria ser permitir a ingestão de um vinho cor de âmbar que faz jorrar fogo quando incendiado e, mais importante, fazer sexo com rapazes ainda imberbes, bem como com velhos. Só havia uma recompensa para a vitória nesta jihad. O paraíso.

Balkis bateu palmas deliciada.

— Isso também explica por que as cinco fornicações obrigatórias poderiam funcionar com os velhos. Assim que os jovens forem hilal, os velhos teriam poucos problemas em cumprir suas obrigações. Podiam fazê-lo de uma maneira passiva. Eu o estou perturbando?

Antes que ele pudesse responder, o agitado comandante do barco entrou na cabina e curvou-se.

— Perdoe a intrusão, Amir al-kitab, mas uma embarcação armada nos fez sinal para parar. Seu comandante deseja falar com o senhor.

— Quem são eles?

— É um dos navios do sultão. Costumava ser o barco favorito do Amir Felipe.

Idrisi olhou para Balkis, que não conseguiu esconder sua preocupação.

— Não há necessidade de se preocupar, senhora Balkis. Conheço bem os homens naquele navio. São completamente dignos de confiança. Enquanto eu estiver afastado, pense cuidadosamente nas suas cinco obrigações e em como as preencherá em Palermo.

Idrisi seguiu o comandante até o convés. No momento em que os homens do navio armado o viram, detonaram um tiro de canhão em sua honra. Muitos anos atrás ele tinha viajado com eles até Ifriqiya. Agora esperava enquanto se realizava o elaborado ritual de transferir um personagem de distinção de um navio para outro. Um bote foi abaixado com Idrisi e dois marujos armados, que o remaram até a embarcação próxima. Uma catapulta gigante foi então abaixada com um homem casualmente agarrado a ela. Ele apanhou o erudito e então ambos foram rapidamente içados até o convés em grande velocidade.

Ahmad Ibn Rumi, o Amir al-bahr, havia substituído Felipe como comandante da frota. Era um homem altivo com um ar independente. Geralmente transmitia a impressão de ser impenetrável, de afastar bajuladores e oportunistas, mas Idrisi, que o conhecia razoavelmente bem, sabia que era uma máscara geralmente usada por amires dotados de real poder. Felipe havia sido igual. Os dois homens se abraçaram e Ahmad conduziu seu hóspede à sua cabina. A primeira coisa que Idrisi notou sobre a mesa foi um dos seus mapas. Depois de admirar o seu trabalho, virou-se para encarar Ahmad. O homem estava sentado chorando em silêncio. Num mundo onde muitos teriam visto a remoção de um Amir com olhos ávidos e cobiçosos, Ahmad Ibn Rumi estava profundamente magoado com a desgraça de Felipe. Idrisi falou suavemente:

— Ahmad, caro amigo, estou muito perturbado, mas não há nada que possamos fazer. Felipe insiste em que o deixemos morrer. Diz que não estamos prontos ainda para vencer e que deveríamos esperar pela morte do sultão Rujari.

— Que Alá queime aquela serpente Rujari no inferno por este crime.

— Os monges rezam para que Deus o eleve aos céus por defender sua fé.

— Não tem nada a ver com a fé. É um sacrifício de sangue para salvar o trono para a sua família. Toda a Siqilliya tem noção deste fato. Ibn Muhammad, eu o convidei aqui para discutir um plano.

Idrisi sabia o que esperar.

— Com quatro grandes navios já no porto de Palermo temos a capacidade de pegá-los de surpresa e resgatar o Amir Felipe.

— Discutimos todas estas possibilidades com ele na Grande Mesquita. Você o conhece melhor do que eu. Não mudará de idéia.

— Ele está errado.

— Concordo.

— É o único líder que temos capaz de unir os Crentes depois da morte de Rujari e nos levar à vitória. Concorda?

Idrisi ficou em silêncio. Sabia onde terminaria esse tipo de argumento. Também sabia que Ahmad falava a verdade. Sem Felipe, a comunidade de Crentes ficaria órfã.

Foram as habilidades militares e políticas de Felipe que haviam impedido um banho de sangue na ilha. Ele achava que, sacrificando-se, proporcionaria tempo e espaço para que o seu povo se organizasse, mas não perguntava quem os lideraria. Rebeliões sem um plano eram comuns na ilha. Todas sem exceção tinham sido derrotadas.

— Por que não responde?

— Porque, gentil amigo Ibn Rumi, responder na afirmativa seria encorajar a aventura e responder na negativa seria uma inverdade. É melhor ficar em silêncio.

— Ibn Muhammad, estive em Catânia, também. Eu também conheci o Confiável.

O coração de Idrisi afundou. O pregador teria incitado a rebelião.

— Prometeu-nos que um exército de dez mil homens armados poderia chegar a Palermo mais rapidamente se eu os transportasse em meus navios.

— Espero que não tenha concordado.

— Não. Eu disse que pensaria antes de tomar quaisquer medidas.

— Alá seja louvado, Ahmad. Alá seja louvado. Se tivesse concordado e o decepcionasse, a notícia teria se espalhado longa e amplamente. Os barões e monges teriam exigido que você fosse queimado com Felipe.

— Só pedi seu conselho. Vou decidir sozinho.

— Claro. Mas quando tomar a decisão pergunte a si mesmo sobre a decisão de resgatar Felipe e escondê-lo em Ifriqiya.

Este é o seu plano, não é? Foi o que pensei. Mas enquanto seu navio viaja para longe, quem defenderá os Crentes em Palermo?

Será difícil segurar os barões. Vão querer sangue nos rios de cada lado do qsar. Nosso sangue.

— A alternativa é deixar Felipe ser queimado? Muita da sua gente não nos amaldiçoará por não termos feito sequer uma tentativa?

— Mas se você fizer uma tentativa que fracasse morrerá também. A quem ajudará isso? Se tiver sucesso, todos nós em Palermo, incluindo sua mulher e seus filhos, podíamos ser mortos. Rujari não tem mais força para impedir um massacre. Tenho um plano melhor.

— Fale.

— No dia seguinte à queima de Felipe, o Confiável organizaria ataques contra Catânia e Noto para punir os bispos e os monges e os lombardos que os contrataram para protegê-los. Roubaram nossas terras e tratam os camponeses que antigamente trabalhavam nestas terras como escravos. Os bispos são odiados e por boa razão.

Exigem o direito de deflorar nossas mulheres em sua noite de casamento. Os lombardos açoitam os homens ao menor pretexto. Uma rebelião cuidadosamente planejada nesta região onde ainda somos fortes teria um impacto em cada canto da ilha. O Confiável poderia deixar claro que esta é a nossa resposta ao crime cometido contra Felipe al-Mahdia. O que acha?

Ibn Rumi refletiu antes de falar de novo.

— Está decidido a sacrificar a vida do único homem capaz de nos liderar até a vitória.

— É ele quem está decidido, não eu.

— O caminho que recomenda não deixa de ter mérito. Vou pensar nisto cuidadosamente. Se observar que meu navio está voltando para Siracusa, saberá que aceitei o seu plano. Caso contrário, nos encontramos em Palermo.

Os dois homens se abraçaram, mas quando Idrisi ia saindo Ahmad pegou no seu braço e murmurou ferozmente em seu ouvido:

— Felipe representa mais para mim do que meu próprio pai. Idrisi agarrou a mão de Ahmad.

— Sei como se sente e como vai ser difícil esta decisão para você. O que quer que decida, lembre-se de que estou sempre aqui como amigo e ajudarei de toda maneira que puder.

Uma hora depois os dois navios ainda não haviam levantado âncora. Idrisi caminhava ansiosamente pelo convés, esperando para ver a direção em que o Amir da frota do sultão navegaria. Balkis caminhava com ele. Ao saber o que acontecera, sua primeira reação foi perguntar onde nasceria seu filho. Ele ficou zangado com ela, depois se controlou e explicou pacientemente por que havia algumas coisas neste mundo que transcendiam o amor, a paixão e a produção de crianças. Num momento em que o destino de toda a comunidade dos Crentes dependia da decisão do Amir Ahmad, era egoísta e insensato pensar em seu próprio futuro. Ela nunca o ouvira falar tão duramente e lágrimas raivosas encheram seus olhos.

Voltou à cabina e esperou. Como ousava ele pressupor que ela não ligava para mais nada exceto sua própria vida e aquela do filho ainda não nascido? Estava decidida a puni-lo. Em princípio, não falaria com ele pelo resto da jornada. Antes que pudesse pensar em punições mais severas, os homens no convés começaram a dar vivas e, com sua dignidade evaporando, ela correu para juntarse a eles. Idrisi ria e acenava como os outros. Ahmad havia tomado a rota de Siracusa. Quando os dois navios passaram um pelo outro, altos gritos de Alá Akbar subiram aos céus. Ahmad, de pé no convés, levantou uma mão em sinal de despedida. Idrisi respondeu com o mesmo gesto. Os dois homens ficaram pensando se voltariam a se ver.

— Icem as velas — gritou o comandante.

— Com esta brisa poderemos chegar a Palermo muito em breve.

Balkis voltou à cabina tão distanciada quanto podia aparentar. Seu amante a seguiu, mas cada tentativa que fazia para falar com ela era rechaçada. Ela desviou o olhar dele. Ele sentou-se à mesa com um manuscrito que havia removido da biblioteca do palácio em Siracusa e fingiu estar profundamente interessado. Depois de um quarto de hora, decidiu romper o silêncio.

— É hora da prece da tarde, mas não estou com ânimo para ela. Se não tiver objeção, vou recitar um verso para você.

Ela não respondeu. Idrisi levantou-se da cadeira, subiu no topo da tosca mesa de madeira que os separava e sentou-se de pernas cruzadas sobre a mesa diante dela.

Ela conseguiu — com dificuldade — manter um rosto sereno. Ele adotou então uma postura típica de uma pessoa que se prepara para ler o Corão.

Dizei Ó descrentes, não adoro aquilo que Adorais e não adorais o que eu adoro; Meus modos não são aqueles modos, Aquela não é minha escola ou estilo Amor báquico, surgi e levantai-vos!

Ela não pôde mais reprimir sua risada e nesse momento ele deslizou suavemente para fora da mesa e colocou-se no banco ao lado dela. Beijou suas mãos e então se refreou.

— Onde foi que o grande erudito encontrou estes versos? Foi em Abu Nuwas?

— Não. Ibn Quzman.

— Pensei que tivesse dito que precisávamos tomar cuidado nesta viagem.

— Os homens estão todos ocupados preparando o navio para a chegada e você dispensou sua cautela quando caminhou comigo no convés e depois brigou comigo e afastou-se de mim. Tudo isso implica familiaridade.

— Sou sua cunhada.

— Ninguém sabe disso além de nós.

— Não tinha pensado nisso, devo confessar. Apertou-a contra seu corpo e beijou sua boca. A mão dela moveu-se por baixo da sua túnica.

— Levantou a sua barraca cedo hoje, mestre Idrisi. Acho que o pau precisa ser desmontado.

— Chega, chega, Balkis. Suas mãos estão pegando fogo. Quando chegarmos será levada para o palácio, onde seu marido está alojado. Irei para minha casa, tomarei banho, me vestirei e visitarei todos vocês depois. Talvez possamos todos comer juntos.

— Com Rujari.

— Se necessário.

— Existem ocasiões em que não consigo entendê-lo. Este homem está para despachar o Amir Felipe, queimá-lo vivo em praça pública.

Amir Felipe, em sua opinião o líder político mais inteligente e capacitado da ilha. Talvez não possa salvá-lo, mas sentar à mesa com o seu assassino? Isso não é levar sua noção do dever longe demais?

— Ouça-me, minha cara Balkis. Uma coisa que muitos de nós tivemos de aprender, inclusive Felipe, foi como dissimular com extrema eficácia. Se me recusar a comer com o sultão ele saberá que estou zangado e, dado o seu estado demente, poderia punir todo mundo associado comigo. Devemos nos comportar tão normalmente quanto possível nestes tempos difíceis. Espero que Rujari não me convide ao palácio. Neste caso, sugiro que façamos a refeição em minha casa.

— Seria maravilhoso.

— E Balkis, lembre o que discutimos anteriormente. Nem mesmo uma sugestão do que transpirou entre nós deve chegar ao seu marido.

— E Mayya?

— Deixe-a comigo. Então o marinheiro de atalaia acenou com excitação e o grito familiar se fez ouvir: "Al-madina hama-hallahu."

Balkis recobrou a compostura, ajeitou o lenço que lhe cobria a cabeça, colocou um véu sobre o rosto e os dois seguiram para o convés. Quando eram remados até a margem ele podia ver a figura imponente e inconfundível do Amir de Siracusa à distância. Gentilmente cutucou a esposa do Amir.

Quando chegaram ao cais, os dois homens se abraçaram.

— Alá seja louvado, vocês dois chegaram sãos e salvos, Ibn Muhammad — disse o Amir.

— A situação aqui está mais tensa do que poderia imaginar. Precisamos falar urgentemente sobre muitas coisas. A saúde do sultão continua a deteriorar e a atmosfera no palácio reflete aquela da cidade. Só os barões e os monges parecem felizes nestes tempos. Dizem que o sultão pergunta todo dia quando você vai voltar.

— Vou vê-lo hoje.

— Não há muito tempo, Ibn Muhammad. O julgamento de Felipe deve começar amanhã à tarde.

— Mais cedo do que eu pensava.

— Querem estar seguros de que Rujari ainda esteja vivo quando Felipe for queimado. Um barão do continente que está aqui como juiz confiou-me que se Rujari morrer eles temem uma rebelião.

Idrisi deixou-os e juntou-se a Ibn Fityan, que estava à sua espera. Os dois homens cavalgaram juntos para casa.

— Em resposta à pergunta que me fez antes da minha partida, posso dizer-lhe com segurança que os amires de Siracusa e Catânia estão do nosso lado.

— Amigos do palácio já me deram as boas novas. O sultão o espera para a refeição da noite.

— Eu já receava isso. Ibn Fityan contou-lhe que a cidade era como uma montanha em fogo. Podia explodir a qualquer momento e os barões tinham colocado seus próprios homens em pontos-chave da cidade enquanto durasse o julgamento.

— Lembre o que Felipe disse no nosso mehfil na mesquita antes da minha partida: qualquer levante prematuro será derrotado. Por isso, todo bairro da cidade deve ser avisado de que o julgamento de Felipe foi encenado como uma provocação para nos obrigar a sair antes de estarmos prontos e nos matarem.

— O qadi já enviou esta mensagem, mas as pessoas estão com raiva. Poderia haver confusão apesar dos melhores esforços do qadi.

— Espalhe a notícia de que o Confiável organizou um exército em Catânia que irá recuperar um número de mosteiros e infligir castigos públicos aos bispos. Diga às pessoas que devemos esperar as notícias de Catânia antes que algo precipitado seja feito aqui. Por que o Amir de Siracusa prolongou sua estada na cidade?

— O sultão pediu-lhe para assistir ao julgamento. Vai lhe pedir isso também.

— Vai receber uma resposta rude.

— Mestre, existe uma questão mais delicada.

— Fale o que pensa.

— Uma notícia chegou aos amigos no palácio sobre o senhor e a senhora Mayya.

— O que as mentes ociosas dizem nesta ocasião?

— Dizem que Elinore é sua filha e que o senhor e sua mãe se casaram em Siracusa.

— Como as notícias chegaram até aqui?

— O palácio em Siracusa está cheio de nossos amigos. Eles ouvem tudo.

— E se o que disseram for verdade?

— Se a notícia chegar ao sultão ele vai reagir mal. Vai comparar sua generosidade para com o senhor com esta traição.

— Silêncio, homem. O julgamento de Felipe começa amanhã e não tenho o tempo nem o desejo de discutir se eu consegui ou não conquistar os favores desta ou daquela senhora.

Três criados armados o acompanharam quando ele se aproximou do palácio. Não podia lembrar quantas vezes fizera esta jornada a todas as horas do dia e da noite.

Mas esta fase da sua vida estava chegando a um fim. O camareiro que o recebeu era um rosto antigo e familiar. Falou numa voz enfraquecida pela idade.

— Seja bem-vindo uma vez mais, Ibn Muhammad alIdrisi. Chega numa ocasião triste.

— A paz esteja com você, amigo — Idrisi respondeu ao seguir o velho através da costumeira série de aposentos com arquitraves de madeira e mosaicos que lembravam um passado mais remoto.

O sultão estava em sua câmara de audiência privada, um aposento que Idrisi conhecia bem. Mas teve de esperar na antecâmara até que os visitantes do sultão saíssem.

Ficou imaginando quem seriam e por que tinham sido convocados a esta hora. Rujari geralmente tocava os seus negócios na primeira metade do dia. O velho camareiro sentou-se ao seu lado e, olhando na direção da câmara do sultão, sussurrou numa voz alquebrada:

— Um mehfil de assassinos está acontecendo. Preparações de último minuto para o julgamento de amanhã. Tudo já está decidido. Ele foi considerado culpado. Amanhã eles o queimarão.

Antes que Idrisi pudesse responder, vários barões e três bispos atravessaram a porta parecendo satisfeitos consigo mesmos. O camareiro curvou-se e os escoltou para fora da antecâmara. Em contraste com ocasiões anteriores, nenhum deles se deu ao trabalho de demonstrar ter percebido a presença de Idrisi. Ele entrou a passos largos na câmara de Rujari sem esperar que o camareiro voltasse. O sultão pareceu genuinamente contente em vê-lo. Como poderia estar tão distante da realidade?

— Fico feliz em tê-lo de volta. Preciso de você ao meu lado.

— Acabei de ver os homens que estão do seu lado. Barões inchados com excesso de comida e bispos vivendo da riqueza das terras que roubaram. — Pelo seu tom, Idrisi, detecto que não estará presente ao julgamento amanhã.

— O sultão me perdoará, espero. A visão do seu filho adotivo sendo falsamente acusado, considerado culpado e levado à fogueira é algo que não desejo testemunhar.

Já é suficientemente mau conviver com minha consciência, impotente para impedir a morte de Felipe e fraca e covarde demais para fazer qualquer coisa. Parece que voltamos a um estado primitivo de conflito entre nossas duas comunidades.

— Não é fácil para mim, Muhammad. Sabe muito bem que não tenho muito tempo de vida.

— Felipe al-Mahdia era a sua melhor oportunidade de manter sua família no trono. Os barões não deixarão o clã dos Hauteville em paz por muito tempo. Quem os defenderá quando o senhor tiver partido?

— Eu fiz minha escolha, mestre Idrisi. E entendo plenamente sua repugnância diante do que fiz. É melhor ficar afastado do palácio por algumas semanas até que esta tempestade se extinga. E tem a minha permissão para levar Mayya e Elinore consigo. Ela herdou sua inteligência. Deveria orgulharse dela.

Idrisi, apanhado de surpresa, perguntou em voz baixa:

— Sabia?

— Desde o início.

— Então por quê...

— Porque ter admitido que eu sabia o que havia acontecido poderia estabelecer um precedente perigoso. Foi Felipe quem aconselhou sigilo total. Seus próprios sultãos teriam convocado o carrasco e feito o seu pescoço experimentar a cimitarra. Por essa razão Felipe não queria que você soubesse. Mas em meu coração fiquei feliz por você.

— Como sempre, Felipe ofereceu-lhe conselhos sábios. Agradeço ao senhor por sua amizade e generosidade. Sempre significou muito para mim.

— Gostaria de não ter de fazer o que vou fazer agora. Espero que acredite em mim.

Idrisi não respondeu, mas curvou-se e deixou o aposento. O camareiro estava à sua espera.

— O sultão sugeriu que eu levasse a senhora Mayya e Elinore para casa comigo.

— Já era tempo — disse o camareiro numa voz suave.

— Siga-me, mestre Idrisi.

Caminharam até o harém, guardado por dois eunucos que se levantaram ao verem os homens se aproximar.

— Este é o harém do sultão Rujari — disse o mais baixo dos dois.

— O que vêm fazer aqui?

O camareiro cochichou qualquer coisa no ouvido do homem. A porta foi aberta e o eunuco-chefe alertou as mulheres.

— Sob as ordens de nosso exaltado sultão Rujari, um convidado masculino está entrando para visitar a senhora Mayya.

Uma seqüência de portas foi fechada e de janelas com delicadas treliças olhos curiosos observaram a sua entrada. Idrisi seguiu os dois eunucos até o alojamento das mulheres e até os quartos de Mayya. Respondendo à batida na sua porta, ela ficou chocada ao vê-lo.

— Por que está aqui? Isso não foi combinado.

— Tenho a permissão do sultão para levar você e Elinore para casa agora.

Mayya ficou atônita. Afastando-se para o lado, convidou-o a entrar em seu quarto. Ele viera aqui pela última vez há 18 anos e o resultado fora Elinore. Como fora diferente naquela ocasião! Entrara disfarçado como mulher e uma pequena bolsa de moedas de prata foi o preço pedido pelo eunuco de guarda, que depois desapareceu.

Teria Felipe ordenado a sua execução?

Abraçaram-se enquanto ela chorava.

— Nunca pensei que aconteceria tão cedo. Precisamos partir agora?

— Foram as instruções do sultão. — Mas minhas... nossas roupas... nossas... Elinore.

— Tudo isso pode ser mandado para minha casa amanhã. O sultão me pediu para ficar afastado do palácio por algum tempo.

— Não posso acreditar que estou livre, Muhammad.

— Não vamos perder mais tempo. Onde está Elinore?

— Está com Balkis e o Amir nos aposentos dos convidados. Acho que eu deveria dar a notícia para ela a sós. Deixe-me ir buscá-la. Deveríamos encontrá-lo nos portões do palácio ou gostaria de algum tempo para explorar o harém? E teremos de separar algumas roupas para amanhã.

— Esperarei por vocês nos aposentos do camareiro perto dos portões. Tente evitar muita excitação e convide sua irmã e seu marido para almoçarem conosco amanhã.

— Muhammad, amanhã é o julgamento de Felipe. O Amir de Siracusa foi convidado para assistir e existem notáveis de Qurlun e de outras cidades aqui também. E você?

— Eu disse ao sultão que não estarei presente. Neste caso, Balkis poderia vir com você agora. Por que ela estaria presente aqui amanhã? E peça ao Amir para juntarse a nós depois do julgamento. Duvido que demore muito.

— Pedirei a Balkis que venha conosco. O palácio inteiro está em tumulto. Não tinha idéia de que Felipe contava com tantos seguidores. Os eunucos mal podem falar.

A maioria dos velhos empregados caminha pelos cantos com olhos tristes. Quanto àqueles que trabalham no Diwan, acham que isto é o fim.

Ela deu uma olhada em seus aposentos pela última vez, achando difícil acreditar que nunca mais iria morar ali.


10

Uma conversa de 26 anos sobre teologia em que Rujari
e Idrisi comparam os méritos e deméritos de suas respectivas religiões.

O encontro com Rujari irritou Idrisi. O sultão parecia distante e despreocupado. Idrisi queria que ele estivesse morto. Como podia Rujari ter esquecido o passado tão cedo e aceitado as exigências de barões corruptos, bispos hipócritas e servis, cortesãos levianos? Mas controlou seus pensamentos. Não queria sentir apenas ódio e ressentimento por seu velho amigo. Lembrou uma de suas muitas conversações.

Aconteceu quando ainda eram jovens. Era um dia sufocante do meio do verão. Não havia brisas na terra nem ondas no mar, cuja superfície lisa brilhava como vidro.

Rujari mandou uma mensagem ao seu amigo na biblioteca sugerindo que embarcassem no seu navio e fossem se refrescar no mar. Idrisi lembrou como ficaram chocados os marinheiros gregos quando, em sua primeira viagem, ele confessou que não sabia nadar. Um ilhéu que não sabia nadar! Com grande paciência ensinaram-no a usar as mãos e as pernas e respirar na água, como flutuar, e gradualmente ele adquiriu as habilidades.

Encontraram uma bela enseada não longe de Palermo. Depois de nadarem, tinham falado principalmente de geografia e astronomia e Idrisi havia elogiado a exatidão dos mapas de Ptolomeu, comentando que o alexandrino devia ter um olho privilegiado e talentos que até agora lhe escapavam. O tempo passou rapidamente. A caminho de casa, sentaram-se no convés e saborearam o que restava do dia, apreciando a brisa do mar que aumentava à medida que o sol começava a desaparecer. Cada um deles venceu uma partida de xadrez antes que Rujari pedisse a um atendente para levar as peças e trazer um frasco de vinho. Virando-se para Idrisi, ele perguntou se as diferenças entre seus dois povos eram pedras que não podiam ser removidas ou se suas fés não se tornariam entrelaçadas nos anos por vir. Idrisi hesitou antes de responder.

— Não existe pedra que não possa ser removida. Quando os deuses ficam zangados, como os antigos costumavam dizer, eles sacodem a terra e cidades inteiras são destruídas.

Seria preciso algo nesta escala para unir os exércitos do Profeta e do papa.

Rujari riu.

— Eu não pensava no mundo. Pensava na Siqilliya. Queria dizer que meu povo aprendeu tanto com o seu que me parece natural para nós trabalharmos juntos e compartilharmos a mesma fé.

De novo Idrisi hesitou.

— Sultão, esta ilha mudou muito desde que os soldados do Profeta colocaram o pé aqui. Meu povo tem uma tendência natural para exagerar e se gabar, mesmo quando somos derrotados. Quando vencemos, nosso orgulho sobe aos céus. Os gregos chegaram aqui primeiro, depois os romanos. Os gregos construíram seus templos, cuidaram das vinhas e das oliveiras e filósofos de diferentes escolas debateram em público no Fórum de Siracusa. Os romanos cultivaram a terra com o trigo, necessário para alimentar as legiões imperiais.

Meu povo trouxe frutas de todo tipo, algodão e seda, e os papiros, e fez de Palermo uma cidade insuperável. Vocês herdaram tudo isso, mas também contribuíram para a riqueza da ilha. Sua presença é prova de que é possível comprar gladiadores e usá-los contra o inimigo. Seu povo é de guerreiros e marinheiros.

— Fale de hoje, Idrisi, hoje.

— Mas, honrado sultão, com sua permissão eu gostaria de terminar. Temos muito em comum. Sua gente dominou o mar, minha gente o deserto.

Vocês tornaram-se grandes construtores de barcos, nós aprendemos a cavalgar o camelo e o cavalo. Vocês abriram caminho a fogo nas terras dos francos e eles os compraram com terra e seu próprio espaço. Derrotamos dois impérios e criamos nosso próprio. Nosso navio era o camelo, mas muito mais confiável do que o de vocês.

Era capaz de viajar sessenta milhas romanas por dia e passar vinte dias sem água. Algumas tâmaras e leite de camelo eram uma dieta nutritiva. O povo em Makkah ainda gosta de cozinhar na gordura tirada da corcova do camelo. Que navio poderia render tanto quanto este? Em ambos os casos foi a natureza que determinou o que fazíamos e como nos locomovíamos. No fim nossas necessidades eram maiores e fomos mais bem-sucedidos.

Rujari ficou levemente irritado.

— Nossas mulheres eram mais dóceis, aceitando seu lugar em nossas vidas com dignidade e calma. As suas eram bárbaras. Suas mulheres sarracenas — e muitos romanos cujos textos estão na biblioteca do palácio testemunham isto — eram muito atiradas, muito apaixonadas, muito exigentes. Freqüentemente descartavam os maridos.

— Sultão, fala do povo do deserto durante a época da Ignorância, antes que nosso Profeta ouvisse a voz de Alá. As mulheres foram colocadas sob controle por nossa fé.

— Talvez em público, mestre Idrisi, mas nos limites do palácio ou de casa nada mudou muito. Ora, seu próprio Profeta precisou de uma Revelação para silenciar os mercadores de escândalos que alegavam que sua jovem esposa, Aisha, havia cometido adultério.

Ambos ficaram em silêncio. Foi Idrisi quem falou primeiro.

— Perguntou se nesta ilha poderíamos um dia partilhar de uma fé comum. Como podemos jamais acreditar que Mariam foi engravidada por Alá para produzir Isa? Sua fé era muito apegada aos tempos pagãos e vocês tinham de fazer concessões. Precisavam de uma deusa virgem que dormisse com o seu Deus. Não era ele Zeus sob outra forma? E achamos difícil acreditar que Isa ressuscitou.

— Por quê? Seu livro fala do Dia do Juízo Final em que cada homem ficará diante do seu criador. Alguns irão para o céu e outros irão para o inferno. Se podem ser ressuscitados segundo a vontade de Alá, por que não poderia Deus chamar Jesus de volta? Como sabe, Idrisi, estas são questões não resolvidas em nossa igreja. Existem muitos cristãos que não aceitam a divindade de Jesus. Existe algum em sua fé que questione a Revelação?

— Muitos, com certeza, e desde os primeiros tempos. A própria mulher do Profeta, Aisha, segundo as tradições, comentou muitas vezes sobre a facilidade com que seu marido obtinha sanção de Alá para satisfazer seus desejos pessoais. E o sucessor do Profeta, o Califa Omar, teria dito que muitas vezes se surpreendia quando o conselho que dera ao Profeta em particular acabava se tornando uma Revelação posterior. E todo um grupo de teólogos de Bagdá argumentou que o Corão era um documento feito pelo homem, questionando assim a sua divindade...

— É o suficiente para um começo de noite, mestre Idrisi. Realmente admito que sua religião permite muito mais prazeres neste mundo e no próximo do que a minha.

Somente por este motivo, deixando de lado o conhecimento propagado por seus sábios eruditos, se dependesse só de mim e se não houvesse nada mais envolvido, eu me converteria à sua fé agora mesmo.

— Talvez, se os navios que levaram os ancestrais de Sua Majestade à terra dos gauleses e dos francos tivessem sido desviados por súbitas borrascas e tivessem chegado aos portos de alAndalus, tudo poderia ser diferente.

— Por que isso não me ocorreu?

— Porque a geografia e a história estão sempre presentes em meus pensamentos.

— Uma coisa eu lhe prometo, mestre Idrisi. Enquanto eu viver a Igreja não terá permissão de matar ou queimar uma única pessoa simplesmente porque ela acredita no seu Profeta e não no meu.

E foi assim que a conversa terminou, ou pelo menos assim Idrisi lembrava. Mas depois, naquela noite, Felipe al-Mahdia o visitou em seus aposentos.

— Soube a respeito da conversa que teve com o sultão hoje. Idrisi ficou espantado. Como ele sabia?

— É legítimo que questione, mas não seria oportuno eu responder.

Tudo o que vou dizer é que cometeu um grande erro.

— Em nome de Má, que erro? Por que fala assim? Havia um toque de raiva na voz de Felipe.

— Quando o sultão declarou que se dependesse dele se converteria à nossa fé, por que não sugeriu que o fizesse, mas não o tornasse público? Para a Igreja e os barões ele seria um

cristão, mas em particular entoaria as cinco preces obrigatórias. Por que não sugeriu isso, mestre Idrisi? Percebe que uma oportunidade foi perdida por causa da sua distração? Está tão preocupado com seu próprio trabalho que perdeu a noção do mundo que o cerca.

Idrisi ficou tão atônito com esta explosão que por alguns momentos olhou para Felipe em silêncio.

— Não pedi o que sugere pela simples razão de que o pensamento não passou por minha cabeça. Rujari é um amigo, mas é também o sultão. Não cabia a mim sugerir nada a ele.

— Um dia — disse Felipe calmamente -, nosso povo poderia sofrer por causa do seu erro.

— Por que está tão preocupado? Não chega sequer a ser um Crente.

Felipe sorriu e deixou a sala.


11

O julgamento de Felipe.
O Amir de Catânia peida alto durante o discurso do promotor.

A grande sala onde o sultão recebia seus súditos uma vez por mês fora transformada.

O trono permanecia sobre a plataforma de madeira elevada, mas o espaço vazio à frente estava tomado por cadeiras e bancos dispostos em semicírculo.

No centro uma plataforma fora preparada para os prisioneiros: além de Felipe, alguns daqueles que haviam trabalhado com ele também foram presos e acusados para criar a impressão de uma conspiração.

Os barões entraram primeiro, vestidos em seus paramentos, as espadas pendendo da cintura, e tomaram os assentos em ambos os lados do trono. Foram seguidos por outras seções da nobreza e então os juízes entraram, flanqueados pelos bispos com vários monges acompanhando. O juiz de acusação estava sentado pouco abaixo do trono do sultão. Depois que todos se sentaram, os amires de Catânia e Siracusa, com um punhado de notáveis de Qurlun, Djirdjent, Shakka e Marsa Ali, bem como o qadi de Palermo, tiveram permissão de entrar e sentaram-se nos bancos dos fundos onde não seria fácil para o sultão vê-los.

A sala ficou em silêncio quando o camareiro entrou e anunciou o sultão. Para a ocasião Rujari havia descartado seus mantos árabes e, como os barões, se vestia como um cavaleiro cristão, a coroa firmemente pousada na sua cabeça. Todos os presentes se levantaram para saudar o rei em três línguas diferentes. Rujari acenou com a cabeça e o julgamento começou. Os prisioneiros, acorrentados uns aos outros com Felipe à frente, foram trazidos à sala.

Ele caminhava com a cabeça bem erguida, preparado para enfrentar os olhos do sultão ou de seus barões. Foram eles que evitaram o seu olhar. Dez eunucos tidos como associados a ele foram acusados exatamente dos mesmos crimes. Eles também se comportavam com dignidade.

O juiz da promotoria, que já havia trabalhado para Felipe, levantou-se e enumerou as acusações.

— Felipe al-Mahdia, você e aquelas criaturas ao seu lado são acusados de terem traído a confiança que depositou em vocês o Rei Rogério. São acusados de terem ajudado nossos inimigos em Mahdia, Bone e Ifriqiya. São acusados de ter ocultado sua verdadeira fé do rei e de sua corte. Sob a capa de um cristão, comportaram-se como filhos de Satã. Em pensamento e ação seguiu as doutrinas de Maomé e instruiu o tesouro do Estado a doar quantidades ilimitadas de dinheiro para manter as mesquitas em boa condição. Enviou emissários especiais com oferendas à tumba de Maomé. Quando se sugeriu que este dinheiro fosse anotado nos registros, você descartou a sugestão com um aceno arrogante da sua mão.

— Freqüentemente compareceu às sinagogas dos Malignos e proporcionou-lhes óleo para alimentar seus lampiões. Ofereceu-lhes toda a assistência de que necessitavam para praticar sua fé abominável. Ao mesmo tempo raramente pisou sequer por acaso nas igrejas de Deus. Ostensivamente comeu carne nas sextas-feiras e durante a Quaresma.

— O rei foi alertado para a sua infidelidade quando lhe relataram como permitiu a eruditos e religiosos muçulmanos fugirem das suas aldeias depois que conquistou Mahdia e Bone. Informaram que você puniu alguns de seus próprios soldados quando os viu agarrando algumas de suas prisioneiras para seu prazer pessoal.

— E, por último, Felipe al-Mahdia, apresentaremos testemunhas que jurarão sobre o Corão que você foi secretamente um muçulmano a vida inteira. Sua conversão foi falsa. Que confiança pode o rei depositar em você depois de todos estes acontecimentos? Você foi criado neste palácio e o rei o amava como a um filho. Elevou-se ao mais alto posto na terra depois do rei. E trouxe desgraça sobre ele. O que tem a dizer sobre tudo isto?

Enquanto a acusação era lida, os Amires e outros Crentes se mostravam inquietos. Seu descontentamento se refletia num excessivo arrastar de pés, em pigarros regulares, suspiros ocasionais e dois peidos altos, tudo isso combinando para produzir uma atmosfera distintamente desagradável. Quando Felipe se preparou para dirigir-se ao tribunal houve silêncio total. Enquanto o promotor falara à corte em latim bombástico, Felipe falou em árabe fluente.

— Não traí a confiança do sultão. Este sultão tem sido, até agora, bondoso para mim e, independentemente do que aconteça hoje, desejo declarar que o sultão Rujari Ibn Rujari tem sido um governante justo. Tratou bem todo o povo desta ilha, não importa qual fosse a sua fé. Nunca insistiu, até agora, para que os prisioneiros fossem brutalizados e suas mulheres violentadas. Por isso eu rejeito a acusação principal que fizeram contra mim, no sentido de que traí a confiança de nosso governante.

— Nada que fiz foi em segredo. Sim, forneci óleo para as sinagogas. O sultão sabia disso e aprovou. Sim, não permiti o declínio das oitenta mesquitas remanescentes em Palermo. O sultão acompanhou-me uma vez para ver por si mesmo as melhorias na mesquita Ayn al-Shifa desta cidade.

Quando dizem que eu mal ia à igreja falam uma inverdade deliberada e que Deus os perdoe. O sultão sabe quantas vezes eu compareci à sua própria capela. Sabe quantas vezes fui à igreja que construiu em Cefalu a cada estágio de sua construção.

— Vamos examinar a acusação seguinte. Fui brando demais para com os prisioneiros em Ifriqiya. Confesso-me culpado. Tratei-os como trataria qualquer ser humano.

A luta estava encerrada. Tínhamos conquistado uma importante vitória. A dinastia Zirid se desfez como pó diante de meus olhos. Tivesse sido clemente no curso da batalha vocês teriam razão para me trazer a julgamento. Mas, em nome do sultão, conquistei Mahdia, a cidade da minha juventude. Não escondo de vocês o meu sofrimento interior. Que eu fosse o instrumento para a tomada desta cidade não me dava nenhum prazer, mas minha lealdade a Siqilliya nunca esteve em dúvida. Os beduínos aos quais paguei para combaterem do nosso lado queriam saquear a cidade indiscriminadamente e tirar proveito de qualquer mulher, jovem ou velha, que não estivesse já escondida. A guerra desperta a cobiça do saque e da carne humana. Dei firmes instruções para que isto não acontecesse. Quando as ordens foram desobedecidas, mandei açoitar em público três beduínos e seis dos nossos soldados acusados de estupro. Sim, eu os vi sangrarem. Arrependo-me disso? Não. E o faria de novo. Acho que em tempos melhores o sultão teria defendido todas estas ações.

— Nada mais tenho a dizer. Sei que as chamas que me consumirão já foram acesas e estou preparado para me encontrar com o meu Criador. Nada fiz de que me envergonhasse.

Meu único arrependimento é que não tive a oportunidade de viver entre nosso povo porque sempre que me perguntava como a terra proporcionava o alimento que comemos a fim de sobreviver a resposta nunca estava em dúvida. Eram os lavradores comuns da terra que produziam o alimento e, do conforto deste palácio, eu às vezes lhes invejava a proximidade com a terra. Lembro-me de ter mencionado isso a muitas pessoas.

— Ao sultão direi isto: se o ofendi de alguma maneira imploro sua misericórdia e peço desculpas. Sempre fui leal ao senhor e à sua família. Aqueles que envenenaram seus ouvidos em relação a mim são as mesmas pessoas que tentarão e se livrarão dos seus filhos e do sistema de administração que seu pai e o senhor ajudaram a criar. Pense nisso quando estiver me vendo ser consumido pelas chamas.

Os barões levantaram-se para protestar e gritos de "Cortem a sua língua" foram ouvidos da boca de mais de um monge. O promotor ficou num estado de raiva incontido.

— Temos uma testemunha que afirmará que este homem ocultou sua verdadeira fé debaixo de uma máscara cristã. Tragam-no.

Os guardas fizeram entrar um venerável mercador, Ali ibn Uthman al-Tamimi. Era um dos mais respeitados negociantes da cidade e havia comparecido ao mehfil na mesquita Ayn al-Shifa em que Felipe estivera pouco antes de ser preso. As marcas no seu rosto sugeriam que lhe fora infligida violência.

Pediram ao mercador que jurasse sobre o Corão que falaria a verdade. Falou numa voz muito baixa, alquebrada, não ousando encarar Felipe. Mas não mencionou o encontro.

Testemunhou que numa única vez tinha orado com Felipe na mesquita. A prova era suficiente para condená-lo. Ao sair, ergueu o rosto para Felipe com olhos lacrimosos e, numa voz que foi ouvida em toda a sala, disse:

— Perdoe-me. Ameaçaram estuprar minha filha de dez anos. Nesta altura Felipe, enfurecido pela visão de um velho amigo que fora humilhado e torturado, pediu para falar. O sultão acenou com a cabeça.

— Queimem-me, se quiserem, mas não inflijam sofrimento em pessoas inocentes. Sim, é verdade que fui um Crente oculto, mas meu pecado não estava na minha crença e sim na minha covardia. Eu deveria ter contado ao sultão e, por isto, peço o seu perdão e imploro sua misericórdia. Eu era muito jovem quando entrei para a corte e vocês foram tão bondosos comigo que eu queria agradá-los de toda maneira. Mas quando acompanhei o Amir Jorge a Mahdia, memórias da minha infância se apossaram de mim e foi nessa ocasião que, em meu coração, me tornei um muçulmano de novo. Não lamento minha escolha. Sei que vão me queimar hoje porque este é um costume da sua fé. Mas, antes de ser sentenciado, gostaria de dirigir-me pessoalmente ao sultão.

Rujari fitou-o e pela primeira vez seus olhos se encontraram. Rujari acenou com a cabeça e desviou o olhar rapidamente.

— Agradeço ao senhor, gracioso sultão. O senhor, mais do que qualquer outro presente aqui — e não vejo nosso amigo mestre Idrisi nesta reunião, pelo que agradeço a ele -, entenderá plenamente que a razão por que o senhor e seu nobre pai foram capazes de resistir aos comandos dos papas em Roma foi porque, mesmo depois da conquista da Siqilliya e da entrega das terras mais férteis aos barões e aos bárbaros lombardos do Norte, mesmo depois de tudo isso, meu povo ainda é maioria nesta ilha. É por isso que seus barões falam e entendem minha língua. E é por isso que o senhor e seu pai puderam resistir às exigências papais de mandar soldados para lutar nas Cruzadas. Fomos sua força, demos-lhe a coragem de ser independente, nosso conhecimento, nossa língua, nossa cultura lhe permitiram gabar-se de ser superior de todos os modos em relação aos seus pobres primos na Inglaterra, o que era a verdade pura.

— Viver debaixo de ocupação nunca é fácil, mas sua família tornou isso menos doloroso porque precisava de nós por suas próprias razões. E nós precisávamos de vocês para sobreviver. Se nos destruírem — e perdoe-me a ousadia... mas todos sabemos que a decisão de me queimar é uma vitória para aqueles que gostariam de queimar todo Crente nesta ilha, se nos destruírem, destruirão a si mesmos. Um, talvez dois Hautevilles poderiam governar como reis. E então seus correligionários vão atacar ao sul e arrebatar aquilo que acreditam lhes pertença por direito papal. E a essa altura não haverá mais força alguma para defender a sua família. Quanto a estes infelizes eunucos que aprisionaram comigo, são completamente inocentes. Seu único crime foi trabalharem comigo, mas o sultão fez o mesmo por muitos anos.

Puni-los é vil e indigno e eu imploraria misericórdia para eles. Poupem suas vidas. Têm a minha. Seus monges e Bispos me consignarão ao Inferno. Mas só Alá decidirá.

Ao dar uns passos para trás e curvar-se meio ironicamente para o sultão, o Amir de Catânia não pôde se conter. Levantou-se do seu banco.

— Alá o mandará para o céu, Felipe al-Mahdia. Alá akbar. Irritado por esse gesto de insubordinação, Rujari levantou-se do trono e, ainda se recusando a olhar para o velho amigo nos olhos, dirigiu-se ao tribunal.

— Aos mais distintos senhores que participam hoje deste julgamento, minhas palavras são para vocês. Minha alma é ferida pela maior dor, e inflamada de paixão por severos tormentos, pois este meu ministro, que criei desde menino para que, tendo sido purgado de seus pecados, o sarraceno pudesse se tornar cristão, ainda é um sarraceno e, sob o nome da sua fé, perpetrou atos de infidelidade. Tivesse ofendido sua majestade sob outras formas, tivesse levado grande parte do nosso tesouro, nós o teríamos perdoado porque prestou grandes serviços para nós. Mas ele ofendeu a Deus e forneceu a outros a oportunidade e o precedente do pecado, e eu não deveria perdoar uma injúria à nossa fé e um crime contra a religião cristã por meu próprio filho, nem perdoar ninguém mais. Neste ato, deixem que o mundo inteiro saiba que eu amo a fé cristã com absoluta constância e não me refreio de vingar uma ofensa contra ela, mesmo por um de meus próprios ministros.

Por esta razão as leis são estabelecidas e por esta razão nossas leis são armadas com a espada da reciprocidade; elas ferem o inimigo da fé com a espada da justiça e assim colocam um terrível castigo para os infiéis. Mais distintos senhores, que estão aqui para julgar este crime, exerçam o seu dever.

Os barões bateram com as espadas no chão para demonstrar aprovação ao seu rei. Rujari, exausto, desabou sobre o trono. Os barões, magistrados e juízes não demoraram a tomar suas deliberações.

— Decretamos que Felipe, traidor da cristandade e um agente das maquinações de infidelidade sob o disfarce da fé, será consumido pelas chamas vingadoras a fim de que aquele que não quis sentir o calor do amor sinta o fogo que queima e para que nenhum traço reste deste pior dos homens mas, tendo sido transformado em cinzas pelo fogo terreno, possa seguir para o tormento perpétuo nas chamas eternas. Seus companheiros de conspiração na maldade são sentenciados também à morte, mas por métodos normais.

Os Amires e os notáveis muçulmanos não ficaram para ver os cristãos saborearem o seu triunfo. Assim que o sultão se arrastou para fora da sala, deixaram a corte e o palácio. Um forte uivo de lamento pôde ser ouvido numa seção do palácio enquanto se dirigiam para as ruas. Para seu espanto, as ruas estavam vazias. O povo de Palermo, até mesmo os nazarenos, não tinham nenhum desejo de testemunhar o desgraçado Felipe arrastado através das ruas em ignomínia. Antes de partirem, o Amir de Catânia os chamou de lado e disse:

— Eles declararam guerra a nós. Eu, de minha parte, não me tornarei passivamente uma galinha de cabeça cortada. Lutaremos em Catânia. Não nos entregaremos nem nos tornaremos seus escravos ou seremos mortos sem resistência. Todos vocês farão suas próprias escolhas, mas espero que tenham ouvido cuidadosamente as palavras de Rujari. É o fim da Siqilliya como a conhecíamos. Meus amigos de Qurlun, sua escolha é muito clara. Ou combatem conosco ou se convertem agora à fé deles e transformam suas mesquitas em igrejas. Não esperem até que eles o façam. Desse modo, poderiam salvar suas vidas, quando não sua propriedade. Não sei se voltaremos a nos encontrar.

A paz esteja com todos e que Alá os proteja.

Um nobre de Qurlun retardou sua saída.

— Antes de partir, dê-me o seu conselho. Existe alguma maneira de salvarmos nossas propriedades assim como nossas vidas?

— Talvez oferecendo aos barões metade do que possuem amanhã e suas filhas no dia seguinte. Mas não demorem muito. E mais uma palavra de conselho a vocês. Vocês qurlunis são tão fechados que se acham mais espertos do que todo mundo e julgam que seus segredos permanecem seguros dentro de sua comunidade. Viram o que aconteceu com Felipe. Se decidirem converter-se, façam-no adequadamente e não se encontrem em segredo para jejuar ou circuncidar seus filhos. Aprendam a adorar o homem que sangra na cruz de madeira e a mãe que permaneceu virgem após o seu nascimento.

Os Amires de Catânia e Siracusa saíram juntos, ambos ultrajados com o discurso de Rujari e o veredicto.

— Espero que Rujari morra logo, livrando-nos de nossos votos de lealdade. Nossa presença aqui está agora sob séria ameaça. Nossa cultura vacila e se não agirmos ela vai desaparecer.

Era a primeira vez que o siracusano falava naquele dia.

— Acho que o discurso dele já nos liberou. O mensageiro de Idrisi contoume que o Confiável instruirá seus seguidores para capturarem três mosteiros no minuto em que souberem do veredicto sobre Felipe. Acho que os faróis estarão ocupados hoje. Meu navio já está pronto para zarpar. Vai me acompanhar ou trouxe seu próprio navio?

— Trouxe e vou zarpar mais tarde ainda hoje. Os dois homens abraçaram-se e seguiram seus diferentes caminhos.

Dentro dos muros do palácio, Felipe foi entregue aos magistrados, que removeram suas correntes e o amarraram aos cascos de cavalos selvagens. Os cavalos tiveram de ser contidos quando chegaram aos portões. Cada janela do palácio estava cheia de gente. Todos observavam horrorizados e contou-se depois que o jovem Guilherme, o único filho legítimo remanescente de Rujari, tinha lágrimas nos olhos. Ele fora excepcionalmente ligado ao condenado. Felipe lhe havia ensinado astronomia. Os barões, monges e sua criadagem iam atrás dos cavalos para acompanhar a vítima até a sua morte. Do lado de fora apenas alguns monges e nazarenos observavam, mas menos de uma centena ao todo, e isto numa cidade de trezentas mil pessoas. Houve notícias de que as mesquitas e sinagogas estavam lotadas naquele dia enquanto preces especiais eram feitas em honra de Felipe. O qadi foi visto apressando-se na direção da mesquita Ayn al-Shifa para tentar conter as cabeças mais quentes.

Os portões do palácio se abriram. A grotesca procissão seguiu em frente. Os membros de Felipe sangravam, mas ele mantinha o rosto erguido mesmo ao ser violentamente arrastado e alguns daqueles que tinham vindo ver o espetáculo se afastaram. Um forno de cal perto do palácio fora preparado e uma fogueira jorrava suas chamas antes mesmo que o julgamento tivesse começado. Os magistrados desataram o homem que estava coberto de sangue. Ergueram-no sobre seus ombros e o jogaram nas chamas.

Então todos voltaram ao palácio onde um grande banquete fora preparado em honra daqueles que haviam passado um julgamento sobre um inimigo de sua fé. Rujari alegou estar doente e não esteve presente às comemorações. Nem seu filho Guilherme.

Depois de uma conferência privada com seu amigo de Catânia, o Amir de Siracusa instruiu seus homens para aprontarem o navio para zarpar a qualquer momento. Caminhando lentamente em direção à casa onde sua mulher estava hospedada, sentiu uma mão sobre seu ombro. Um tremor de medo percorreu seu corpo, mas era apenas um Idrisi de rosto sombrio com seus criados.

— Ibn Muhammad, que alívio que é você — disse, enxugando o suor do seu rosto.

— Foi uma catástrofe. O julgamento foi como você descreveu, ainda pior.

— Acabei de voltar da mesquita. Foi uma despedida dignificada, mas nossos jovens estão zangados e receio que haverá alguma violência na cidade esta noite. Caminhava para minha casa? Muito bem. Chegaremos juntos.

— Ibn Muhammad, poderia pedir aos seus homens que nos deixassem conversar a sós? Idrisi fez um sinal a Ibn Fityan que disse a seus homens para ficarem para trás.

O Amir confiou-lhe que agora planejariam uma rebelião em larga escala em suas regiões e expulsariam os francos.

— Ainda precisaremos de alguns anos, mas as preparações devem começar agora. Sei que às vezes dou às pessoas a impressão de não ser tão firme como o Confiável.

Mas quaisquer dúvidas que eu tivesse, elas desapareceram hoje. Eles declararam guerra contra nós. É por isso que tenho um favor a lhe pedir...


12

O amor de Idrisi por Balkis e suas conseqüências.

Idrisi não precisou esperar muito pelas três mulheres do lado de fora do quarto do camareiro na frente do palácio. Foram aliviadas de suas roupas apressadamente emaladas pelos criados de Idrisi e ele caminhou de volta para casa com elas. O céu estava tão estrelado e ativo e Idrisi tão exultante que ele quase se esqueceu do peso dos acontecimentos que estavam por vir.

— Pensei que noites como esta só acontecessem quando se é jovem — disse.

— Sou jovem — replicou Elinore.

— E nunca me esquecerei desta noite.

— Não tenho a sua idade, mas eu também me lembrarei desta noite — disse Balkis.

— Sou mais velho do que ambas, mas por que o prazer deveria ser exclusivo dos jovens?

— A que distância fica sua casa, Abi? Idrisi sorriu antes de responder.

— Nenhuma de vocês conhece a solidão que me afligiu durante tantos anos. Quando Walid saiu de casa sem nos contar pensei que todo mundo estava me abandonando e fiquei desesperançado. Esta noite sinto que isso passou. E estamos quase em casa. Vê aquelas janelas iluminadas na colina? Mais alguns minutos e estaremos lá.

Um mensageiro do palácio já havia trazido a Ibn Fityan notícias da decisão do sultão de liberar Mayya e por isso ele esperava com o resto da casa para dar as boas-vindas à nova senhora e à filha do senhor. Balkis também foi recebida calorosamente. As tochas erguidas bem alto encantaram as mulheres enquanto subiam os degraus.

— Os quartos foram preparados?

— Sim, Ibn Muhammad — respondeu o camareiro -, mas não esperávamos uma terceira hóspede. Não vai demorar muito para preparar um quarto de hóspede.

— Esta é a senhora Balkis, irmã da minha mulher, cujo marido, o Amir de Siracusa, provavelmente se juntará a nós aqui amanhã.

Ibn Fityan ficou impressionado com a notícia. Respondia a todas as suas perguntas.

— O hammam também foi preparado. As mulheres já haviam se banhado naquele dia e declinaram da oferta. Pediram uma infusão de folhas de menta frescas e foram escoltadas até o terraço. Mayya ficou pensando se deveria acompanhar Muhammad e conversar com ele enquanto se banhava, mas achou que seria cedo demais.

A intenção de Idrisi era tomar um banho sem ser perturbado e meditar no problema espinhoso que o preocupava desde que haviam deixado o palácio: Balkis ou Mayya?

Poderia ser a sua única oportunidade de ficar nos braços de Balkis antes que seu marido chegasse e partissem para Siracusa. E se Mayya insistisse, como era muito natural, que passassem a primeira noite aqui juntos e recuperassem o tempo perdido? Seria desumano

resistir a tal pedido. Balkis, que amava sua irmã, entenderia. Havia tomado sua decisão, mas dúvidas persistiam simplesmente porque seu coração o puxava na direção errada. Deixado consigo mesmo, sem outras considerações, teria corrido para Balkis. Sabia que podia se arrepender disso para toda a vida e, no entanto, se Alá fosse generosa e lhe desse mais dez anos, seria fútil vivê-los num mar de infelicidade.

Ao deixar o hammam, refrescado e pronto para encarar sua nova vida, havia decidido em favor de Mayya. Não deixaria que nada o desviasse deste caminho. Ibn Fityan havia colocado a mesa na sala de jantar que era raramente usada. A mesa retangular podia acomodar facilmente 25 pessoas, mas ele havia preparado apenas uma extremidade dela para Idrisi e as mulheres. Quando entraram ele observou com admiração as diferentes cores usadas por Mayya e Elinore, mas foi Balkis quem fez parar a sua respiração.

Vestia um manto branco de suma sacerdotisa e havia levantado os cabelos para trás com um broche de prata.

O banquete de boas-vindas foi considerado um sucesso e o doce licor doméstico de limão que, Idrisi insistia, era um digestivo muito mais eficiente do que o preparado semelhante feito de semente de anis, foi altamente elogiado.

— Mayya me disse que você é também um mestre da medicina — Balkis disse num tom levemente indiferente -, mas eu não tinha idéia de que preparava misturas medicinais.

— Preparo e tenho até uma que ajuda a eliminar gravidez indesejada, muito procurada nos estados lombardos. Eles estupram nossas mulheres, que têm vergonha de contar aos irmãos, pais ou maridos. Vão ao bruxo local e imploram pela erva que vai purgar o seu sistema. Funciona. Você encontrará a receita no Aqrabadhin de al-Kindi.

Quando estive no Cairo eu a apresentei aos médicos no maristan de al-Nasiri. Pressionavam-me a escrever um livro sobre drogas e ervas compostas que podiam curar doenças comuns. Se tiver tempo ainda vou escrever este trabalho.

Balkis fuzilou-o com o olhar e Elinore, achando seu pai insensível ao fato de sua tia não ter filhos, decidiu mudar de assunto.

— Essa bebida de limão que todas adoramos esta noite. O senhor mesmo a destilou?

— Eu o fazia, mas o sultão gostou tanto dela que tive de revelar a fórmula e do palácio ela se espalhou para os mosteiros e as propriedades. Meus próprios suprimentos vêm do palácio agora. Fico realmente surpreso de que nunca a tenham provado antes. Achei que os eunucos garantiriam suprimento regular no harém.

Por algum motivo isso fez Balkis rir.

— Fala como se fosse a única bebida disponível no palácio. E se os eunucos a detestassem?

Mayya, notando a ligeira tensão entre Balkis e Idrisi, ficou a pensar se algo diferente teria acontecido em Siracusa. Seguiu a sensibilidade da filha para que ele ficasse confinado a um assunto seguro.

— Muhammad, eu estava tentando me lembrar daquele seu amigo de quem você falava sem parar alguns anos atrás. O homem que destilou o que você considerava o mais delicioso elixir que jamais provara. Não consegui lembrar seu nome, onde morava ou sequer o nome da sua bebida.

Idrisi riu.

— Muammar ibn Zafar! Morreu há dois anos e o idiota do seu filho vendeu os pomares a um mercador de Shakka. Vocês todas teriam gostado dele. Foi um dos mais talentosos cozinheiros cuja comida já tive o prazer de provar. Mas o elixir era algo muito especial. Ele o chamava de Néctar Celestial. Certa vez, hospedado em sua casa para pedir-lhe conselhos sobre curas para prisão de ventre, que era comum entre marinheiros, ele criou um supositório com a mistura mais eficaz. Era outubro e havia muita fruta caída pelo chão. Laranjas, limões, pêssegos, abricós, tangerinas e outras que não lembro. Mandou seus homens recolherem estas frutas do chão. As que não estavam machucadas foram lavadas e colocadas numa grande panela perpendicular de barro, quase tão alta como Balkis. Não, um pouco mais alta. A estas frutas acrescentou açafrão, pimenta-do-reino, gengibre macerado e molhos de alho descascado. Então o panelão foi selado com pasta de farinha e deixado ao ar livre até abril seguinte.

Estive presente quando o lacre foi rompido. O mais delicioso aroma nos saudou. Muammar subiu numa escada e agitou a panela até ficar tudo adequadamente misturado.

Eu provei a mistura antes e depois que foi destilada. Completamente diferente cada vez, mas igualmente inesquecível. Al-kohl. Puro. Celestial. Eu me consideraria afortunado se provasse uma bebida destas de novo antes de morrer.

Elinore bateu palmas.

— Mas seguramente podemos tentar fazê-la nós mesmos. Não podemos tentar? Só uma pequena quantidade?

— Certamente, filha. Pode tentar, mas não fique desapontada se falhar. Existem algumas coisas neste mundo que são melhores quando provadas uma só vez.

— Mas eu não a provei, Abu.

Depois que a mesa foi tirada, os criados foram dispensados para a noite. Os quatro se entreolharam à luz das velas. Elinore e sua mãe trocaram olhares antes que a jovem se dirigisse ao pai.

— Abu?

— Elinore bint Muhammad?

— Sei que é um pedido difícil mas, como sabe, a mudança do palácio para sua casa foi tão súbita, talvez súbita demais e estávamos emocionalmente despreparadas...

— Não posso imaginar sua mãe emocionalmente despreparada para nada.

— Falo mais por mim do que por ela. Sinto-me realmente feliz por estar aqui, mas deve entender que levará algum tempo para que eu me ajuste à mudança.

— Entendo isso, filha, e farei o que puder para facilitar-lhe as coisas. Má seja louvado, terminei meu livro. O sultão me doou um pequeno navio e, a não ser que revogue a ordem, o que é pouco provável porque ele não é um governante mesquinho, então poderemos viajar juntos.

A alegria no rosto de Elinore foi visível. Mas ela abordou outra questão.

— Gostaria de viajar. Nunca botei o pé fora de Palermo até visitarmos Siracusa poucos meses atrás. Mas, Abi, quero lhe pedir... se eu posso dormir com Ummi esta noite? Só esta noite, porque estou me sentindo deslocada.

Que Idrisi conseguisse franzir a testa diante deste pedido foi um tributo ao seu engenho — pelo menos foi o que disse a si mesmo.

— Elinore, concedo-lhe o pedido, mas não o repita com muita freqüência. E agora desejo falar com sua mãe a sós um pouco, se posso contar com a sua aprovação para isso.

Ela abraçou o pai antes de deixar a sala, acompanhada por Balkis, que quase não havia falado a noite toda e parecia absorta em seus próprios pensamentos. Tinha evitado o olhar dele e restringira sua conversa a perguntas triviais sobre Palermo. Fazia aquilo simplesmente para aborrecê-lo? Não lhe ocorreu que, ao contrário da irmã, ela podia não estar se sentindo muito feliz.

Sozinho com Mayya no seu quarto, abraçaram-se calorosamente. Então ela olhou cuidadosamente ao redor do quarto e para a cama dele.

— Foi generoso da sua parte deixar Elinore dormir na minha cama esta noite. Está inquieta, o que não é surpreendente. Tudo aconteceu rapidamente demais para ela.

Acho que está dividida em relação à mudança. Uma parte dela queria ficar no palácio até a morte de Rujari. É muito apegada a ele, você sabe.

— E ele é apegado a ela, mas este sultão já morreu no que me concerne.

— Com Felipe em desgraça e Rujari morto, o tesouro continuará pagando a você?

— A mãe dos meus filhos vive na propriedade em Noto, mas eu tenho outra que não visito há anos. Ganhei-a depois que meu irmão morreu sem deixar herdeiros. Podíamos vendêla à Igreja ou a um Barão. É uma propriedade vasta. Ou eu podia deixá-la para você e Elinore. Quase não gastei nenhum dinheiro nos últimos dez anos. A casa e os empregados são pagos pelo tesouro e poucos anos atrás a casa foi legalmente registrada em meu nome por serviços prestados ao estado. A vida não será tão luxuosa como vocês estão acostumadas, mas não passaremos fome.

Dito isso, ele mudou de assunto.

— Tive o sonho mais estranho em Siracusa. Ela fingiu ignorar enquanto ele lhe contava a história da suma sacerdotisa imortal que havia deixado odores inconfundíveis.

— Certamente você se enganou. Seu próprio corpo, como sabemos, deixa muitos traços sem a presença de mais ninguém.

— Mayya, mulher enganadora, por quanto tempo vai sustentar a sua história?

Ela o olhou com surpresa.

— Descobriu?

— Como poderia não descobrir? A droga foi eficaz, mas não apagou minha memória.

— E o que aconteceu depois?

— Balkis não lhe contou?

— Elinore não nos deixou um momento a sós, embora eu notasse um estranho sorriso no rosto de minha irmã.

Ele contou-lhe o resto. Com uma expressão resignada no rosto, Mayya perguntou:

— Ela realmente quer viver aqui, conosco?

— Não tinha nenhuma idéia, como você ou eu, de que isso aconteceria tão cedo. Estávamos discutindo a situação depois da morte de Rujari e as mudanças inevitáveis no palácio.

— Mas ela ficaria feliz em deixar o Amir e viver como sua segunda esposa?

— Terceira. Mayya começou a rir.

— Você viveu sozinho durante vinte anos. Agora quer nós duas?

— Quero.

— Que seja escolha dela, não sua. Seu marido é um homem bondoso e ponderado e ela é mais apegada a ele do que você se dá conta. Se conseguiu engravidá-la, não creio que o Amir fará quaisquer perguntas. Ficará feliz, agradecerá a Alá e haverá comemorações em Siracusa. Por que lhe negar esse pequeno prazer?

— Concordo, deve ser escolha dela. E ela deve pensar cuidadosamente.

— Pode discutir com ela esta noite depois de acabarem as trocas de prazeres.

— Mayya, eu queria passar esta noite com você.

— Sim, sim, eu sei, mas, já que não pode, por que ficar sozinho quando a suma sacerdotisa o espera? Vou deixálo agora. Elinore deve estar ansiosa.

— E eu deveria dizer a Balkis que contei tudo a você ou deseja informála você mesma?

— De tudo o que discutimos hoje, é o que tem menos importância. É uma questão sem significado para mim. Decida você mesmo.

— Está zangada, meu rouxinol, mas por que ajudou Balkis a lançar sua armadilha, em primeiro lugar? Sei que ela insistiu que só o meu sêmen era suficientemente bom para ela, mas você podia ter recusado.

— Cumplicidade é melhor do que traição. Ela era bem capaz de fazer tudo isso sem a minha ajuda. E, se conseguisse, teria algum de vocês dois me contado?

— Estimo que eu teria contado.

— Aproveite a sua noite e durma bem. Com estas palavras Mayya deixou o quarto de Idrisi e voltou para a filha no aposento contíguo.

Ele ficou sentado, pensando na virada ocorrida em sua vida, como esta última fase começara e como poderia terminar. Mas não ficou sozinho por muito tempo. Deixando o quarto nas pontas dos pés, dirigiu-se ao quarto de hóspedes.

Encontraram-se logo ao entrar pela porta de Balkis, cada um tão sufocado de paixão que as palavras lhes escapavam. Ele a levantou do chão e colocou-a gentilmente sobre a grande cama de dossel onde se despiram. Então sussurrou:

Ishgan khumari, qum, atla. Esta noite, todas as cinco obrigações em uma. Está pronta?

Ela respondeu colocando suas pernas ao redor do pescoço dele de modo que sua barba cobria o montículo depilado e aromático dela. Sempre que um deles queria falar, o outro tomava uma ação preventiva. Horas depois, ele notou o céu e percebeu que a aurora não estava muito distante.

Balkis, também acordada, confessou sua ansiedade.

— Achei que seria difícil para você hoje, mesmo depois que Elinore reivindicou a mãe para esta noite.

— Estava indeciso. Queria estar com você porque o Amir a levará embora muito em breve. Mas eu não queria magoar Mayya também. O pedido de Elinore, pensei, foi muito útil.

Ela riu. — Para quem? Toda vez que estou com você não consigo suportar a idéia de voltar para Siracusa. Sei que meu marido é bondoso e ponderado e todas as outras palavras que Mayya usa para descrevê-lo. É verdade que não estou infeliz, mas nem estou satisfeita.

— Eu havia notado. Ela deu um tapa na sua bunda.

— Mayya me disse esta noite que se você ficar grávida isso deixaria o seu marido tão feliz que ele não faria perguntas.

— Ela acrescentou que, se fosse um menino, ele herdaria grandes propriedades em Siracusa? É o que Aziz quer. O que você quer, Muhammad?

— Habibi, eu quero você. Fizeram amor pela quarta vez naquela noite. Então ela repetiu a sua pergunta.

— Não quero solidão na minha vida. Mayya e Elinore vindo morar aqui comigo resolveu isso. Mas não serei feliz sem você. Acha que poderia ser feliz aqui?

— Muhammad, já pensou como se sentiria se eu lhe pedisse para viver com você e com outro homem ao mesmo tempo?

— Inimaginável. Por que eu deveria pensar nisso? É haram, não permitido pelo Corão.

— Nem é adultério aquilo que cometeu já quatro vezes esta noite e cometerá de novo se conseguir levantar pela quinta vez antes do sol nascer. E o Corão afirma que os homens que fornicam entre si deveriam ser imediatamente mortos. Isso impediu alguém? E aqueles que se mascaram por trás da piedade são geralmente os piores ofensores. Por isso responda a minha pergunta.

— Balkis, Balkis. Como pode perguntar isso? A resposta é não. Eu não toleraria você vivendo com dois homens na mesma casa.

— Mas tolera meu marido.

— Ele só é meio-homem.

— Isto é indigno de você.

— Peço desculpas. Escondeu o rosto entre as pernas dela. O gosto dos seus sumos o reavivou e ele conseguiu levantar pouco antes do sol, completando assim as cinco fornicações obrigatórias do jihad sugerido por Abu Nuwas. Ela o abraçou com força, o sol nasceu e eles adormeceram nos braços um do outro até que uma batida discreta na porta assustou a ambos. Uma criada anunciou:

— O café-da-manhã está à sua espera no terraço, senhora Balkis.

Nenhum deles deixou a casa naquela manhã. Idrisi lamentou parcialmente não ter comparecido ao julgamento. Pelo menos poderia se despedir em público do seu amigo.

Caminhou para cima e para baixo no terraço e nos quartos, observando as ruas para ver se havia algum ajuntamento. Ibn Fityan saiu por poucas horas e voltou para lhe informar que os magistrados haviam mandado acender a fogueira antes mesmo do julgamento começar.

Idrisi não podia mais ficar em casa. Anunciou que ia até a mesquita fazer preces para Felipe. Ibn Fityan e quatro criados pediram para ir com ele. Dois deles estavam armados.

As mulheres olharam da sacada em silêncio enquanto os homens desciam o caminho sinuoso até a rua principal. Elinore, sentindo que sua mãe e sua tia desejavam ficar a sós, foi desfazer as suas malas que tinham acabado de ser entregues por homens pertencentes à administração do palácio. Mayya insistiu que ficassem para uma refeição, mas eles declinaram. O mais velho, um homem emaciado de sessenta anos, com lágrimas nos olhos, respondeu:

— Agradeço a sua oferta, senhora Mayya, mas nossos corações estão pesados hoje e não sentimos vontade de comer. O Amir Felipe cuidava de nós e protegia nossos interesses.

Se puderam queimá-lo agora, quanto tempo acha que vamos sobreviver?

Mayya nada mais pôde fazer além de agradecer-lhes com genuíno calor. Saudaram-na e partiram.

— É uma época estranha — disse ela a Balkis.

— Jamais vi coisa assim em todo meu tempo no palácio. Durante dias os eunucos sussurraram entre si, chorando lágrimas copiosas e ignorando nossos chamados. Felipe inspirava uma lealdade impressionante.

Balkis acenou com a cabeça mas não falou.

— O Amir de Siracusa nos dará um relato do que aconteceu. Quando vocês partem?

— Meu marido desejará voltar o mais cedo possível. Ibn Muhammad e eu tivemos sorte. Os ventos nos favoreceram. Mas podemos levar dois dias para voltar e já estão queimando mosteiros em Noto.

— Balkis, minha caríssima amiga e irmã, você parece agitada.

Diga-me o que a perturba e fale a verdade. Foi a tragédia de Felipe que mexeu tanto com você?

— Por favor, pare, Mayya. Não posso suportar. Sabe perfeitamente o que me aflige. Estou segura de ter o filho dele dentro de mim.

— Isso deveria fazê-la feliz.

Era o que queria.

— Sei, mas não sei. Nunca pensei que isso pudesse me perturbar tanto.

— Ah, entendo, durante a noite, a mão do amor vestiu-a com um manto de carícias, mas a aurora cruel o rasgou todo. Acontece com todos nós. Ouça-me agora, Balkis.

Deve parar de comportar-se como uma rapariga enamorada de 16 anos. É uma mulher casada. Dentro de poucas horas seu marido vai voltar e ordenará que volte com ele. Que vai fazer? Pense, criança.

— Irei com ele — disse Balkis resignada -, mas meu coração ficará aqui.

— Cuidarei bem dele, eu lhe prometo. Seria uma humilhação terrível para seu marido se você não voltasse. Se estiver grávida, o que aconteceria se ele ficasse zangado e a acusasse de adultério? Você precisa pensar em tudo nos dias de hoje.

— Mayya, irei com ele, não se preocupe. O que não entendo é como você, que pôde compartilhar os favores do sultão com cinqüenta outras, sem contar a sua esposa, está relutante em partilhar Idrisi comigo.

— Creio que em todo meu tempo no palácio Rujari veio à minha cama duas vezes. Ouviu? Duas vezes! Sabia que eu amava seu amigo, evitava seu olhar e deixava os eunucos trazerem Muhammad para me ver sempre que estava em Palermo. Se eu tivesse de compartilhar Muhammad gostaria que fosse você em vez de qualquer outra. Mas prefiro guardá-lo para mim mesma.

Você mal o conhece. Como pode amá-lo sem o entender plenamente ou o que ele escreve?

— Você sabia tudo isso quando caiu em seus braços pela primeira vez?

— Você tem um marido, que é bondoso para você e...

— Se gosta tanto dele, por que não trocamos de maridos? Você vai para Siracusa e eu fico aqui.

— Você é uma mulher tola.

Fizeram silêncio assim que Elinore entrou no quarto.

— O que vocês duas estavam discutindo?

Silêncio.

— Deixem-me adivinhar. Meu pai.

As irmãs ergueram os olhos espantadas.

— Não foi tão difícil perceber. Minha tia estava num ânimo estranho na noite passada e você também, Ummi. E as criadas estavam cochichando e dando risinhos abafados sobre quantas vezes teriam de lavar os lençóis no quarto de hóspedes. Está sangrando, tia?

Balkis reprimiu um sorriso e sacudiu a cabeça.

— Pensei que não. Então percebi que algo de que eu não me dera conta estava acontecendo entre vocês duas e ele.

Foi tudo resolvido? Claramente que não. Estão ambas grávidas?

— Elinore, isto é inaceitável.

— Ouvi as duas rindo e conspirando quando estávamos em Siracusa. Não ouvi tudo, mas o bastante para entender o que ocorria. Esperava que minha tia tivesse sucesso e assim eu teria um priminho ou uma priminha. Poderia uma de vocês me explicar o que saiu errado no seu plano?

— Ela se apaixonou por seu pai e preferiria ficar aqui conosco.

— É uma idéia interessante mas, querida tia, e quanto ao meu bondoso tio? Ficaria terrivelmente magoado. É um homem tão bom!

Balkis deixou o quarto em lágrimas.

— Elinore — disse sua mãe na voz mais severa que pôde articular -, não cabe a você dizer a sua tia o que ela pode ou não pode fazer. A escolha será dela.

— Não quer compartilhar Abi com ela, ou quer? Nada do que vocês irmãs façam poderia me surpreender. Está grávida, Ummi?

— Acho que sim, mas ainda não tenho certeza.

— Gostaria de saber qual das duas será a primeira. Sua conversa foi interrompida pela volta dos homens. Idrisi entrou na sala com o Amir, a quem ofereceram banho e refrescos, mas declinou.

Queria falar com sua mulher. Ibn Fityan escoltou-o ao quarto de hóspedes.

— O que está acontecendo, Muhammad? — perguntou Mayya.

— E deve saber que nossa filha sabe de tudo. Ela bisbilhotou minha conversa com Balkis em Siracusa...

— Entreouvi Ummi e tia Balkis em Siracusa — Elinore interrompeu.

Momentos depois, o Amir e uma estranhamente exultante Balkis juntaram-se a eles. O Amir abraçou a sobrinha e perguntou sobre a vida fora do palácio. Ela respondeu que ainda era cedo para julgar.

Então ele se virou para Mayya.

— Sou tão agradecido ao meu caro amigo Ibn Muhammad por concordar em que Balkis deva ficar aqui por alguns meses. Viajarei por várias aldeias e cidades da nossa região e ela ficaria solitária sem ninguém no palácio. Disse que me acompanharia em minhas jornadas, mas a situação é perigosa.

Alguns mosteiros já foram incendiados. Com sua permissão, vou me retirar agora. Se Ibn Fityan me acompanhasse, eu chegaria mais cedo ao meu navio. Que Alá proteja a todos.

As três mulheres não se entreolharam. Elinore, achando difícil conter sua alegria, pediu desculpas e deixou a sala. Mayya e Balkis sorriram com um ar vago.

Idrisi saiu com o Amir e deu-lhe as despedidas.

— Não se preocupe com Balkis. Ela será bem cuidada.

— Nestes tempos incertos — replicou o marido — é a única coisa de que tenho certeza.


13

O Confiável liberta uma aldeia e dá combate aos bárbros lombardos.
O doce sabor da vitória. Vida e destino.

As cinco da manhã o mensageiro enviado pelo Confiável voltou ao tosco acampamento. O outono chegava ao fim e as chuvas recentes tinham coberto a paisagem ao redor de Noto de verde. Os riachos que desciam sinuosos das pequenas colinas até a planície onde as aldeias foram construídas estavam inchados de novo. Uma ligeira friagem no ar e as mulas indóceis eram uma indicação de que trovão e mais chuva estavam a caminho.

O mensageiro entrou debaixo do rude abrigo onde o Confiável repousava.

— Mestre, levei sua mensagem ao nosso povo. Os homens ficaram assustados, mas ajudarão como o senhor pediu. Dizem que existem quase trezentos bárbaros lombardos muito bem armados. A maioria deles vive no castelo da propriedade do Bispo João. Dizem que estes homens roubam nossas colheitas e assediam nossas mulheres todo dia porque não têm nada mais a fazer.

— Avisou a eles que as crianças e mulheres deviam deixar a aldeia antes de o sol nascer e encontrar abrigo em outro lugar hoje?

O mensageiro acenou com a cabeça.

— Vão fazer isso. Tinham medo de serem feitos reféns e falaram de uma aldeia a um dia de cavalo dali onde alguns anos atrás as crianças foram seqüestradas e mortas e tiveram suas cabeças empaladas para apodrecer. Foi uma história horrível.

— Você agiu bem. Vá comer alguma coisa. Dentro de poucas horas vamos surpreender os bárbaros.

A notícia da morte de Felipe tinha chegado ao Confiável mais de duas semanas atrás. Decidiu-se contra retaliações imediatas pela simples razão de ter presumido que o inimigo estaria preparado. Foi o que ocorreu. Quando o bispo voltou do julgamento e da fogueira alertou seus mercenários e eles estavam preparados, mas quando viram que não houve reação, nem mesmo depois que o bispo anunciou a morte de Felipe como uma advertência para todos aqueles que tentassem enganar a Igreja e Deus, eles haviam abaixado a guarda de novo.

O Confiável levantou-se e cobriu seus ombros com um cobertor. Os homens comiam pão dormido, mergulhando-o em azeite de oliva aquecido com tomilho silvestre e alho.

Saiu para uma curta caminhada sozinho até que encontrou um lugar, perto de um regato. Ergueu a túnica e agachou-se no chão. Alá seja agradecido, podia permitir que seus intestinos funcionassem sem medo de ser perturbado. Depois que se lavou no riacho, subiu o pequeno morro e viu a aldeia que estavam para atacar. Aos seus homens parecia falar com grande autoridade, mas esta era a primeira vez que lideraria pessoas num combate e sabia que algumas delas morreriam. Ontem, antes da prece do anoitecer, falara com eles durante quase três horas para explicar por que tinham de fazer o que iam fazer.

Suas próprias crenças religiosas eram não-dogmáticas e contraditórias, resultado das numerosas discussões teológicas e dos ferozes debates de seus anos no seminário no Cairo. Excitado pelos textos que emanavam do alAndalus, ele abandonara a família e partira para Qurtuba e depois para Siqilliya.

Isso fora vinte anos atrás. Logo depois da sua chegada conhecera uma jovem de Noto, filha de um rico mercador, e eles se amaram, mas como ele não tinha bens o mercador proibira o casamento. Por isso, ela se matara. Ele se tornara um místico, errando de aldeia em aldeia. O mercador, mortificado pelo que havia feito, morreu pouco depois com o coração partido e, como a jovem morta era sua única filha, deixou sua propriedade para o Confiável, se é que o podiam encontrar. Quando a notícia chegou a ele, voltou a Noto, vendeu a casa e as mercadorias, e distribuiu seu dinheiro aos pobres. Voltou então às suas andanças.

Agora ele — sem nenhuma experiência de embates militares — estava à véspera de uma batalha. Havia instruído seus seguidores para esconder as armas debaixo das roupas e adotarem o comportamento de camponeses pobres e alquebrados. O plano fora cuidadosamente elaborado. Deixaram o acampamento enquanto ainda não era totalmente noite, em número de cento e cinqüenta, a maioria montando mulas, com apenas uma dúzia a cavalo. Estes tinham instruções especiais. O Confiável ia no dorso de uma mula liderando a procissão. Nada poderia parecer menos ameaçador. Quando chegaram aos portões do castelo perguntaram-lhes a que vinham.

— Somos peregrinos pobres — respondeu o Confiável.

— Acreditávamos no falso Profeta Maomé, mas vimos o erro de nossa escolha e desejamos nos converter para a verdadeira fé a fim de poder cultuar na igreja. Não havia nenhuma em nossa aldeia, por isso viemos ao bispo para ver se ele podia nos batizar. Trouxemos oferendas para o bispo.

Embora ainda fosse cedo e a maioria dos guardas ainda dormisse, tiveram permissão para entrar. O bispo, ao saber que seu tesouro ia ser enriquecido e almas seriam salvas, colocou apressadamente a batina, empurrou de lado o jovem deitado em sua cama e correu para receber os peregrinos.

— Qual de vocês fala em nome destes homens? — perguntou.

— Cada um fala por si — replicou o Confiável. Quando o bispo se aproximou, três homens o agarraram, cobriram sua boca e o arrastaram para longe. Vendo isto, os camponeses locais que estavam escondidos emergiram de todos os lados com pilhas de lenha e cercaram com elas o castelo. Jogaram óleo sobre a madeira e logo recuaram. O castelo estava em chamas. Ao sentir o calor, os mercenários lombardos saíram correndo, muitos deles nus, mas com espadas na mão. Era tarde demais. O Confiável liderou a carga e seus homens o seguiram. Foi uma batalha desigual e bastante desagradável. Nenhum lombardo sobreviveu. Quando o castelo estava todo tomado pelas chamas, o bispo foi arrastado para dentro e os aldeãos lembrariam depois que o Confiável subiu numa plataforma de madeira, ergueu a voz para que todos pudessem ouvir e disse:

— Isto é por Felipe al-Mahdia. Estas foram as lamentáveis conseqüências de uma guerra civil não-declarada inaugurada pelo julgamento e morte de Felipe e que, nos anos seguintes, levaria a revoltas em cada canto da ilha.

A meio-dia o castelo estava em ruínas. Toda a aldeia havia se reunido para ver o grande incêndio. Algumas das mulheres caminharam até os lombardos mortos e cuspiram neles. O Confiável entendia sua raiva, mas desencorajou tais atos e ordenou que todos os mortos tivessem um enterro digno. Tinha perdido apenas seis homens, que foram carinhosamente banhados, amortalhados e enterrados perto do local da velha mesquita. A aldeia ofereceu preces no enterro dos mártires.

A meia dúzia de nazarenos cujas famílias tinham vivido em harmonia com os muçulmanos há duzentos anos foi convocada para enterrar seus mortos. No início se recusaram:

— Somos siqilliyanos e eles são lombardos. Não nos forcem a enterrar estes monstros.

Mas o Confiável disse que eles deveriam ser enterrados em terreno consagrado e, relutantemente, suas instruções foram obedecidas.

Atrás das colinas no horizonte baixo o sol começava a se pôr. Os aldeãos e os soldados do Confiável estavam banhados no seu brilho. Escureceu e as estrelas começaram a aparecer. Os aldeãos acenderam fogueiras na praça e as comemorações começaram com cantos e danças. Quando o Confiável chegou um súbito silêncio se fez enquanto todos olhavam para ele com admiração. Fez sinal para que continuassem com as festividades, mas uma timidez coletiva baixou sobre eles. Os aldeãos preferiram se juntar ao redor do fogo que morria. Eles, que até o início daquela manhã eram os conquistados, agora se tornavam os vencedores. O que aconteceria agora? Uma sensação de expectativa iluminava seus rostos e esperavam que ele falasse. Quando ia se levantar, os homens que deixara de guarda chegaram, arrastando um monge. Ele vira o castelo queimado e presenciara a rebelião que acontecera, mas não tinha visto os guardas. Os aldeãos o reconheceram e disseram que não era um estranho, mas fora monge antes que a Igreja roubasse a terra e trouxesse os lombardos para agir como guardas. Ele fora passar um tempo com sua família em Noto um mês antes.

— Qual é o seu nome, padre?

— Yuhanna ibn Yusef.

— Pode ver o que aconteceu. Se estiver preparado para cuidar do seu rebanho deveria ficar, mas se tiver pensamentos de vingança então só pode haver uma solução.

— Jamais gostei dos lombardos, mas lamento que tivessem de queimar o bispo.

O monge sentou-se entre os aldeãos, que lhe deram comida e vinho.

O Confiável levantou-se para falar a eles. Falou com simplicidade, explicando a história da sua fé, suas vitórias e suas derrotas e como tão freqüentemente tinham perdido por lutarem entre si. Foi assim que perdemos Siqilliya e era assim que poderíamos perder alAndalus. Então alguma coisa nele decidiu que era tempo de ir além do que já era conhecido de muitos deles.

— O que nunca é discutido abertamente é a cobiça de nossos emires e sultãos, que chegam, pegam a terra e gozam dos seus frutos sem erguer um dedo. Por que deveríamos trabalhar e eles só comerem? Apenas cem anos depois da morte do nosso Profeta os camponeses da Pérsia se rebelaram contra os proprietários de terras. Houve semelhantes levantes em Khorasan e no Azerbaijão. Eram todos Crentes. Os pobres lutavam contra os ricos porque argumentavam que eram iguais diante de Alá. Os ricos replicavam que no Dia do Juízo diante de Alá podemos todos ser iguais, mas na terra o Corão nos ensina que os ricos têm seus direitos enquanto pagarem os impostos. Alá quis assim. Como poderia ser de outro modo? E eles tiveram uma resposta rude de Ali ibn Muhammad no ano de 169 do nosso próprio calendário. Os Zanj ergueram-se em armas contra o califa em Bagdá. Vejo por seus rostos que estão chocados. Sabem do que estou falando. Os Zanj eram escravos de Ifriqiya que se tornaram Crentes em Alá e seu Profeta. Eram os mais pobres dentre os pobres. Comparados a eles todos vocês são ricos. Trabalhavam para os senhores das terras nos pantanais aquosos entre Bagdá e Basra. Três vezes os califas mandaram exércitos para derrotá-los e três vezes os Zanj derrotaram aqueles exércitos. Por quê? Porque nada podia dividi-los e nada tinham a perder. Durante dez anos governaram a si mesmos da medina al-Mukhtara. Basra tornou-se sua cidade também. Estavam preparados a fazer paz a qualquer momento, contanto que o novo sistema que haviam estabelecido não fosse tocado. E os ricos tremeram e os mercadores foram obrigados a doar mais e mais para formar um exército que pudesse destruí-los. Depois de um longo cerco, foram derrotados, mas também o foi a escravidão naquela forma.

— Por que lhes conto isso? Porque como irão decidir viver depois da sua vitória irá determinar quanto tempo sobreviverão. Se um de vocês decidir tornar-se o senhor da terra e o resto aceitar, então não vão durar muito. Se trabalharem juntos, compartilharem a comida, cuidarem uns dos outros, como muito da nossa gente fazia nos dias mais antigos, então nossa comunidade poderá sobreviver. Um modo de vida que proteja os interesses de todos é um modo de vida pelo qual as pessoas morrerão.

O que é ensinado pelos lábios daqueles que usam as leis e os costumes para defender a propriedade que eles roubaram em primeiro lugar, ou herdaram daqueles que a roubaram, não vale nada. Sejam ousados. Esqueçam-nos. O que conseguiram hoje vale mais do que todos os nossos costumes. Não sou daqueles que acreditam que Alá decide todas as nossas ações na terra. Se assim fosse, ele seria um monstro. Qual seria então o sentido de um Dia do Juízo Final? Vejo que as crianças já estão dormindo. Foi um longo dia. Todos nós precisamos de algum descanso. Podemos falar mais amanhã. Vou passar algumas semanas com vocês.

Naquela noite, enrolado em seu cobertor, o Confiável fez sua cama no chão da igreja recém-construída que, apesar da sua proximidade com o edifício incendiado, não tinha sofrido nenhum dano. Ficou acordado meditando sobre os acontecimentos do dia. Foi seu primeiro triunfo real desde que deixara o Cairo. No passado sonhara em escrever um tratado filosófico que demolisse as fundações do sistema de pensamento alGhazali e defendesse a obra de Ibn Rushd. Provocaria um terremoto teológico e ele seria a sua causa. Suas anotações estavam quase prontas quando sua amante se suicidou. Abandonara tudo e tornara-se um asceta, mas o que acontecera hoje fora mais importante do que sua filosofia. Claro, sem o ceticismo que ele havia absorvido não teria tido a coragem para fazer o que era preciso.

O que o abalara esta noite fora ver uma jovem, ouvindo-o falar, que era uma réplica da sua Bulbula, morta há tanto tempo. Teria uma irmã? Levara muitos anos para recuperar-se da sua perda, e agora a coincidência era perturbadora. Precisava saber se era parente. Perguntaria quando o dia nascesse.

Mas quando a aurora rompeu, o pensamento se perdeu quando foi ver seus homens. Ficou sentado com eles compartilhando o pão enquanto lembravam seus amigos caídos.

Então perguntou se algum deles se instalaria nesta aldeia para dar aos aldeãos uma sensação de segurança. Se 12 deles pudessem ficar, ele poderia seguir em frente com os demais na esperança de repetir sua vitória nas proximidades de Siracusa. Depois de uma breve discussão, 12 voluntários deram um passo à frente, mas todos insistiram na mesma condição: o Confiável os convocaria se precisasse de mais homens. Concordou e abraçou um por um. Erguendo suas vozes, eles gritaram em uníssono: "Longa vida para o Amir al-Jihad!" Informou-lhes numa voz baixa que preferia ser o Confiável a ser um Amir de qualquer tipo. Seus homens nunca usaram o título de novo.

No resto do dia os camponeses mostraram-lhe a extensão da propriedade ligada ao castelo. Milhares de acres espraiavamse de cada lado da aldeia, há muito tempo desabitados e incultos. A família de Ibn Hamza se instalara aqui há duzentos anos e os camponeses lhe disseram que suas famílias também estavam aqui quase por tanto tempo.

Cinco gerações tinham vivido em paz até que os nazarenos chegaram há vinte anos.

— Quantos deles vieram? Por que não resistiram? Os homens mais velhos começaram a agitar-se inquietamente, fingindo que não haviam entendido a pergunta. Foi um dos camponeses mais jovens que respondeu.

— Hamza Ibn Omar, o dono da terra, estava indeciso quanto a se converter ou não. Demorou-se um pouco demais e só se converteu uma semana antes que os lombardos chegassem. Rolaram de rir quando souberam do fato. O bispo ofereceu-se para deixálo livre se dissesse onde estava escondido o ouro. Ele chorou e caiu de joelhos e jurou repetidamente que não havia ouro. Eles o mataram e a sua família diante dos nossos olhos. Eu tinha dez anos e a lembrança ainda me tortura. Várias criancinhas foram decapitadas. Depois disso poucos podiam pensar em outra coisa a não ser como sobreviver. Cada um por si e por sua família.

O Confiável colocou seu braço ao redor do ombro do camponês.

— Sabe ler e escrever? Ele acenou com a cabeça.

— Minha mãe era cozinheira e trabalhava para a família de Ibn Omar. Eu brincava com seus filhos e aprendi a ler e escrever com eles.

— E depois?

— Nada. Os lombardos, a maioria deles não sabia ler, tiraram todos os livros da biblioteca e os queimaram, mas Alá decidiu que iria chover naquele dia.

As crianças salvaram os livros e eles estão escondidos em diferentes casas. Nunca parei de ler mesmo quando não conseguia entender mais do que três frases numa página. Minha mulher me chamou de Ibn al-Kitab.

Os outros riram, mas o Confiável escondeu o seu contentamento ao descobrir camponês tão erudito. Elogio aberto teria provocado a inveja dos outros.

— Ibn al-Kitab é um bom nome. Preciso que você ouça todo mundo e compile um registro. Quero saber em que campo cada camponês trabalhava, quantas horas de trabalho eram prestadas antes e depois que os nazarenos vieram. Então quero que compile outro registro dividindo a terra igualmente entre todas as famílias camponesas.

Este registro deve ser retrodatado de trinta anos. Assinarei as escrituras em nome de Hamza ibn Ornar. Isto é para salvaguardar todos vocês contra qualquer autoridade.

Vocês nada tiveram a ver com a queima do Bispo ou a matança dos lombardos. Culpem os homens que vieram de fora. De qualquer modo, por que desejariam matar alguém quando seu senhor lhes doou a terra há trinta anos? Mais um pedido a vocês. Devem consultar todo mundo antes de chegar à sua decisão. Doze de meus homens querem se instalar aqui. Trabalharão com vocês e, caso se torne necessário, defenderão vocês. Mas devem ter uma parcela igual de terra.

Os vinte e poucos camponeses que o acompanhavam acenaram com a cabeça agradecidos, assegurando-lhe que não haveria problemas quanto a seus homens. Mas ele insistiu que a aldeia devia decidir isso coletivamente. Ibn al-Kitab perguntou:

— Quando diz que a terra deveria ser dividida igualmente, isso inclui Yuhanna, o monge?

— A família dele mora aqui?

— Sim.

— Então deve ser incluído. Podemos nos dar ao luxo de ser generosos. Existe muita terra, como acabamos de ver, e é melhor repartir com todo mundo.

Quando voltavam, Ibn al-Kitab sussurrou:

— Ficaria honrado se pudesse juntarse a nós para o jantar.

— Gostaria de participar e então poderão me mostrar alguns dos livros que salvaram da fogueira.

Mais para o fim da tarde, quando os camponeses tinham voltado da lavoura, um grande mehfil congregou-se na praça. Ibn al-Kitab falou do plano sugerido pelo Confiável.

Foi saudado com gritos de alegria. Então um canto semi-espontâneo irrompeu, durante o qual os homens do Confiável permaneceram em silêncio:

— Vida longa para Amir al-Jihad. O Confiável levantou-se. Disselhes que era sua própria força que os levaria para a frente a partir de agora. Nada mais podia fazer por eles. Dentro de uma semana teriam as escrituras de suas terras e o registro deveria ser guardado escondido num lugar seguro do conhecimento apenas de dez famílias. Só deveria ser mostrado ao emir de Siracusa ou a seus agentes, nunca ao lombardo, que imediatamente o destruiria. Que estavam envolvidos numa fraude era inegável, mas ele tinha certeza de que Alá e Deus e os Profetas Maomé e Isa os perdoariam porque estavam corrigindo uma grave injustiça. Só era necessário que contassem a mesma história a qualquer forasteiro que fizesse perguntas sobre a terra. E fez um último apelo. A terra agora lhes pertencia, mas deviam garantir que cada família fosse alimentada, tivesse leite, água e frutas antes de venderem o produto no mercado. E deveriam prometer reconstruir a sua mesquita. Ao afastar-se da multidão, pessoas de todas as idades tocaram nele em silenciosa apreciação. Ibn al-Kitab pegou no seu braço.

— Confiável, se conseguisse o mesmo em outros lugares desta ilha nós poderíamos montar um exército que tomaria Palermo.

— Não será tão fácil em outros lugares. Começou a chover e os dois homens estavam encharcados quando chegaram à casa de al-Kitab. O Confiável tremia e seu novo amigo insistiu para que trocasse a túnica. Uma camisa limpa e calças largas foram colocadas sobre a cama num quarto ao lado onde ele pudesse despir-se e enxugar-se.

O Confiável começou a chorar de um poço de lágrimas bem no fundo do seu ser. Quando se recuperou vestiu as roupas secas. Elas pendiam soltas sobre o seu corpo.

Não conseguia lembrar a última vez que vestira camisa e calça limpas. Sob a figura barbada e áspera numa túnica que nunca fora lavada revelava-se o nobre perfil de um Amir.

Na sala da frente, ela sorria com dois meninos e um marido orgulhoso do seu lado. Beijou cada menino na cabeça. Até sua voz o fazia lembrar de Bulbula.

— Estamos honrados com a sua presença, Confiável. Notícias a seu respeito chegaram até nós muitos meses atrás, mas nos perguntávamos se o senhor era real ou uma aparição. Fico feliz que seja real. Por favor, sente-se. As crianças vão para a cama e nossa refeição está quase pronta.

Os dois homens ficaram sentados até que Ibn al-Kitab mostrou-lhe um livro cuja visão o fez ficar de pé de excitação. Era A incoerência dos incoerentes, de Ibn Rushd, uma defesa vigorosa da Razão como algo separado da Verdade Divina.

— Isso estava na biblioteca?

— Sim. É um livro que não consigo entender, por mais que tente.

— É difícil, mas é o texto mais corajoso produzido por nossos filósofos. Eu mesmo só li trechos.

Posso tomá-lo emprestado para ler enquanto estiver aqui?

— Ia dá-lo para o senhor. Lágrimas assomaram aos olhos do Confiável.

— Deveria pertencer a todos. Quando a mesquita for reconstruída ela conterá uma pequena biblioteca para livros além do Corão que, como Alá sabe, lemos tão freqüentemente que podemos lembrar cada verso.

Então ela voltou a entrar na sala e ele não pôde mais se conter.

— Posso perguntar seu nome?

— Zainab.

— Desculpe minha rudeza. Lembra-me alguém que conheci há muito tempo em outra vida. Parece-se tanto com ela que, com sua permissão, gostaria de lhe fazer outra pergunta.

O rosto de Zainab empalideceu.

— Pode me perguntar o que quiser.

— Nasceu aqui?

— Sim.

— Seus pais sempre moraram aqui?

— Sim, exceto em tempos difíceis, quando minha mãe conseguiu emprego em Noto. Como minha sogra, ela é uma excelente cozinheira.

— Sabe onde ela trabalhou?

— Sim. E só por poucos anos e antes de eu nascer, mas falava freqüentemente sobre isso. Trabalhou para um mercador, um viúvo que tinha uma filha muito bonita. Ela morreu em tristes circunstâncias.

— Podia incomodá-la e pedir uma tigela d'água, por favor?

Ele tremia e, pensando que sentisse frio, lhe deram um cobertor.

— Sua mãe ainda está viva, Zainab?

— Alá seja louvado, ela estará aqui muito em breve com a nossa refeição. Quando lhe dissemos que o senhor vinha, fez questão de cozinhar. Meu pai morreu alguns anos atrás.

— Ela se chama Halima? Agora foi a vez de Zainab ficar surpresa. Antes que pudesse interrogá-lo, a porta se abriu e correram para ajudar a velha senhora a trazer a comida para dentro de casa. Ela viu o Confiável, aproximou-se, tocou na sua cabeça e o abençoou. Então ele falou numa voz que ela conhecia.

— Halima, não me reconheceu? Ela quase derrubou uma panela e virou-se. Ele escondeu a sua barba. A voz dela enfraqueceu:

— Ibn Zubair, é realmente você? Era a única pessoa ainda neste mundo que conhecia seu nome verdadeiro. Abraçou-a e ambos começaram a chorar. Quando recobraram a calma, ele pediu a todos que jurassem manter segredo.

— A semelhança com Bulbula me alarmou, mas já estava escuro quando vi Zainab pela primeira vez. Achei que podia estar enganado. Não consegui dormir bem na noite passada. As mais loucas conjeturas me passaram pela cabeça. Hoje, quando a vi com sua família, não fiquei mais confuso. Não havia mais nenhuma sombra de dúvida.

Ela se parece exatamente com a irmã, exceto pela cor dos cabelos. A mãe de Bulbula era grega e ela herdou seus cabelos, da cor de ouro... está lembrada?

Halima acenou com a cabeça e beijou suas mãos.

— Seu pai, que Alá o perdoe, nunca se recuperou da sua morte. Foi a culpa que criou os maus fluidos dentro dele.

Foi isso que o matou. Deixou-me todo o seu dinheiro. Eu o distribuí para os pobres. Ele sabia a respeito de Zainab?

— Não. Ninguém sabia até agora. — Devia ter-lhe. contado. Ficaria tão feliz ao vê-la como fiquei. Isso poderia tê-lo mantido vivo. Você e Zainab teriam herdado uma bela casa em Noto e uma pequena fortuna.

— Meu marido teria me matado. Zainab era nossa única filha — ou assim pensava ele — e ficou tão feliz quando ela nasceu, embora tivesse rezado por um filho. Se apenas o mercador, que não era um homem ruim, tivesse deixado Bulbula casar-se com o senhor, quem sabe o que teria acontecido?

— Se ela tivesse vivido, eu não seria o homem que está vendo agora. Ela me teria guardado junto a si. Eu ficaria sentado numa biblioteca a maior parte do dia, lendo, pensando, escrevendo, mas nada mais. Na vida que escolhi sinto que conquistei alguma coisa. Nesta aldeia nós criamos um exemplo que poderia se espalhar. Para que um povo prospere, ele precisa tomar seu destino em suas próprias mãos.

Zainab esperou pacientemente até que o Confiável acabasse de falar.

— Umma, o que foi que aconteceu? Sua mãe lhe contou.


14

Uma gravidez dupla e Idrisi descobre
uma cura fora do comum para tosses e resfriados.

Várias semanas depois, notícias dos acontecimentos que tinham ocorrido numa aldeia tão pequena que ainda não tinha nome chegaram a Palermo. Os mercadores que levavam a informação descreviam o que havia ocorrido em grande detalhe, como se seus próprios olhos tivessem testemunhado o bispo sendo jogado às chamas e o Confiável se levantando para declarar aquilo como uma vingança por Felipe. Então contavam como os lombardos tinham sido pendurados nus nas árvores, suas pernas e suas colunas não-circuncidadas balançando ao vento e como, quando a pele fora comida por grandes pássaros, seu esqueleto fora branqueado pelo sol e polido pela chuva. Mas foram deixados no lugar como uma advertência muda para todos os infiéis.

Quando Idrisi perguntava se tinha visto com seus próprios olhos os esqueletos pendurados, o mercador admitia que a história lhe fora contada por um amigo que a tinha ouvido de outro e antes de muito tempo a genealogia dos contadores de histórias estava tão firmemente estabelecida a ponto de sobrepujar os fatos.

Sempre fora assim em nosso mundo, pensou Idrisi, perguntando-se se algo havia chegado a acontecer. A maioria das lendas possui um cerne de verdade, portanto estava claro que algo devia ter acontecido. O problema era que as notícias dos feitos do Confiável alimentavam o delírio que havia tomado conta da cidade desde a queima pública de Felipe. Um dos magistrados que haviam jogado o corpo de Felipe na fogueira havia desaparecido sem deixar traço. Quinze dias atrás, um juiz que sentenciara Felipe tinha morrido de morte natural, mas comentava-se no qasr que fora envenenado. A verdade inegável é que, quando seu caixão era carregado para o cemitério, foi atacado por um enxame de abelhas que surgiram do nada. Quando os que carregavam o féretro foram ferroados, largaram o caixão na rua e saíram correndo gritando em busca de água.

Mesmo depois que as abelhas — que Alá as abençoe — desapareceram, o caixão ficou abandonado por algum tempo e alguns garotos apostaram para ver quem ia mijar nele.

Revezaram-se na guarda, com o resultado de que mais de uma centena de meninos com menos de dez anos de idade tinham encharcado a madeira com sua chuva. Quando a procissão fúnebre reiniciou, o desconforto dos carregadores do féretro era evidente. Seus narizes franzidos fizeram os garotos, que observavam dos seus esconderijos, gargalharem de alegria. Nesta atmosfera febril, o Confiável e suas campanhas militares eram discutidos interminavelmente na cidade velha, cada lojista tentando superar seus competidores com as histórias mais horripilantes.

Idrisi estava preocupado com problemas mais íntimos — o que não surpreende, já que os vivia todo dia. Mayya e Balkis estavam com sete e seis meses de gravidez, seus ventres distendidos disputando a sua atenção. Passava mais tempo com Balkis do que com Mayya e por uma simples razão: Balkis estava encravada no seu âmago. Quando Elinore o questionava sobre a aparente discrepância de seus afetos, ele assumia o ar de um médico.

— Sua mãe teve você e sabe o que está em jogo. Para Balkis é seu primeiro filho e as circunstâncias são difíceis. Ela requer mais cuidados.

Elinore erguia os olhos e o fitava com fúria, mas nenhuma palavra era trocada.

Balkis havia escrito ao marido Aziz e o informara do seu estado. Um mensageiro especial chegou em três dias para entregar uma carta em resposta. Estava muito feliz e deixaria Siracusa em poucas semanas para vir buscá-la. Implorou-lhe que não fizesse esforços ou nada que pudesse comprometer a criança. A notícia veio como um alívio para Mayya, mas lançou uma espessa nuvem de tristeza em torno do quarto de hóspede ocupado por sua irmã. A maior parte do tempo as irmãs demonstraram um estoicismo que impressionou grandemente Idrisi. O que ele não percebeu foi que aquilo que geralmente as aproximava mais uma à outra eram suas ausências da casa.

Caso se decidisse por uma longa viagem marítima, as irmãs ficariam inseparáveis. Nestes dias ele não deixaria a ilha.

Uma semana ou duas em Shakka ou Djirdjent era o mais longe que viajava a fim de se encontrar com velhos amigos e também continuar na sua pesquisa sobre curas herbais para o formulário médico que compunha. Nem estavam as duas mulheres livres das suas experiências. Ele as inspecionava cuidadosamente e notava como seus corpos reagiam à presença da criança ainda não nascida. Mayya não conseguia mais comer carne e seu corpo rejeitava todas as delícias doces, com exceção de confeitos que continham apenas mel. Balkis ficou alérgica a alho e cebola, mas desenvolveu um imenso apetite por um folhado comprido e fino cheio de pasta de amêndoa. Nenhuma delas conseguia suportar o gosto do café árabe que era um favorito da casa.

Certa vez, quando Idrisi apareceu com uma tosse persistente, tentou sua própria cura de mel, gengibre e tomilho silvestre fervidos na água e, apesar do gosto desagradável, ele a tomava três vezes por dia. Tinha sempre funcionado antes, mas desta vez a tosse se recusava a ir embora. A fim de evitar passar a infecção para as duas mulheres, afastara-se delas, concentrando-se em escrever e jogar xadrez com Elinore.

Uma tarde, Balkis, que sentia sua falta mais do que a irmã, entrou no seu quarto e aninhou sua cabeça nos seus seios. O tecido que a cobria estava molhado do seu leite. Ele lambeu e gostou do sabor, então ergueu o vestido dela, ansioso por mais. Na mesma noite a sua tosse desapareceu. Podia ter sido pura coincidência, mas Idrisi associou aquilo ao leite. Isto seria real ou uma alucinação? Ele decidiu que era real. Seria a combinação de mel, ervas e leite humano que levara à cura ou somente o leite? E, se fosse apenas o leite, poderia ele incluir uma prescrição no seu formulário? Desgostava-o a idéia de sultãos, emires e barões acometidos de tosse esquadrinhando seus palácios e propriedades em busca de mulheres no final da gravidez. Acrescentaria outro fardo para os pobres. Por outro lado, se não registrasse a cura, estaria quebrando um antigo juramento. Chegou a um meio-termo consigo mesmo. As duas mulheres provavelmente amamentariam os bebês durante um ano ou possivelmente dois. Era bastante provável que tivesse uma crise de tosse durante esse período. Quando houvesse uma conjunção entre os dois acontecimentos, ele beberia o leite. Se a tosse desaparecesse, teria de mencionar o fato no formulário, independentemente das conseqüências. Se não funcionasse, então podia considerar o que aconteceu com o leite de Balkis como uma ocorrência casual. Mas claramente Balkis tinha outras preocupações na sua mente. Pelo ar do seu rosto ele sabia que tinha a ver com o marido. Ela se postou, as mãos nos quadris, e lhe deu um daqueles olhares ferozes.

— Balkis, você tem de ir com ele, pelo menos até que a criança nasça. Depois, ele não fará objeções para que volte.

— Não liga para mim agora que estou gorda e feia — ela gritou, jogando-se contra o seu corpo e chorando.

— Concordo que seu corpo não está numa de suas melhores fases, mas sugerir que o amor que sinto por você depende de tais coisas é um insulto à nossa paixão. Se o que diz fosse verdade, como explicar que fazemos amor quase todo dia, ignorando o seu ventre que procura nos obstruir? Acha que estou fingindo quando nos encontramos no auge da nossa união?

— Então por que diz que preciso ir?

— Porque você é casada com ele, Balkis. Quantas vezes discutimos essa possibilidade? Acredite em mim, tudo o que ele quer é mostrar seu filho para a sua gente e sua família. Espero, por ele, que seja um menino. Isso o deixará muito feliz. Não vai se importar com a sua volta para cá a fim de criar outra criança.

Ela riu.

— Neste caso deveria rezar para que seja uma menina. Assim serei definitivamente devolvida ao grande médico. Mas você fala a verdade. Sei disso e farei como pede. A única coisa que não posso suportar é a idéia de ser tocada por ele e se ele o fizer...

— A maioria dos homens fica afastado das mulheres quando estão amamentando um bebê. A razão por que eu não o faria é que, como médico, é meu dever observar e registrar as funções...

Ela o beijou nos lábios e teria ido mais além não houvesse Ibn Fityan batido na porta para informar que o Amir de Siracusa tinha deixado o palácio e estava cavalgando em direção da casa.

Refrescos, incluindo o delicioso elixir de limão, foram servidos no terraço onde podiam desfrutar o calor do sol de inverno. Aziz descreveu sua visita ao sultão.

Fora questionado em detalhe sobre o Confiável, mas negara que um bispo fora queimado ou os lombardos oferecidos como carne para os animais.

— Mas posso contar-lhes, caros amigos e fiel esposa, o que realmente aconteceu. É bastante notável, mas perturbador. Queimaram o bispo e o Confiável gritou que era por Felipe, mas o prelado e o monge locais juram pela Bíblia que ele morreu de morte natural. Depois de sua morte, os lombardos lutaram pelo ouro do bispo e provavelmente seu estoque de mancebos e, para espanto de todos, destruíram primeiro o castelo em busca de ouro e depois a si mesmos. O único sobrevivente morreu dos ferimentos. Foram todos enterrados em terreno consagrado. Isto é, por acaso, verdade.

— Mas como a batalha começou? Aziz contou-lhes toda a história, exceto o que não sabia, ou seja, o encontro entre o Confiável e Halima e a descoberta de sua verdadeira identidade.

— Tínhamos a tendência de acreditar que o Confiável era um pregador ligeiramente desequilibrado errando através das aldeias e infectando os camponeses crédulos com sonhos religiosos, encorajando o martírio e revelando os estigmas que marcavam sua própria mente inculta. Esta era certamente a impressão que ele queria transmitir.

Mas o que ele fez ameaça a todos nós.

— Como? — perguntou Mayya, sua curiosidade excitada.

— A vergonha desapareceu naquela aldeia. As pessoas o encaram nos olhos quando falam. Orgulho e insolência substituíram o respeito por seus superiores. Um camponês teve a afronta de perguntar se eu havia lido Aristóteles. A única maneira de fazê-los nos respeitar é esmagá-los impiedosamente e ter certeza de que o jugo é pesado. Se o que fizeram se espalhar, estamos todos acabados. Foi o Confiável quem lhes ensinou a garantir que nunca mais percam a terra.

— O que vou lhes dizer se baseia em minhas próprias suposições. Não tenho prova alguma e a legalidade está do outro lado. Não tinha visitado a propriedade antes, mas tinha noção do que havia acontecido depois que os nazarenos varreram a família Ibn Hamza. Quando visitei os camponeses algumas semanas atrás, o Confiável tinha partido há muito, mas havia deixado atrás de si a aldeia comunitária mais feliz que já conheci.

— Como isso o ameaça? — Balkis perguntou.

— Quando perguntei quem era o dono da terra, agora que o bispo estava morto, responderam alegremente que a terra lhes fora doada por Hamza ibn Muhammad muitos anos antes da chegada dos nazarenos. Vi o registro com meus próprios olhos. Era impecável. Acho incrível que Hamza, que freqüentemente vinha ao meu palácio, pudesse ter doado suas terras hereditárias. Na verdade, não acredito numa palavra daquilo. Foi idéia do Confiável e ele os convenceu a todos e forneceu-lhes uma narrativa única.

— Interrogou o monge em particular? — perguntou Idrisi.

— Claro que o fiz. Ele repetiu a mesma bobagem. Sua família beneficiou-se da distribuição de terra do Confiável.

Confessou-me que nunca encontrara um homem como o Confiável e queria converter-se à nossa fé, mas o Confiável lhe dissera que seria mais valioso para a aldeia como monge. Se quisesse poderia rezar na mesquita, mas quando surgissem estranhos tinha de ser um monge.

Idrisi não podia esconder sua admiração.

— Ele é inspirado por Alá e pelo Grande Satã ao mesmo tempo. Onde está?

— Longe de minhas propriedades, espero. Aqui em Palermo você não pode imaginar o efeito que está tendo nos camponeses. Muitos deles visitam as aldeias e voltam cheios de idéias.

— O Confiável deixou um plano para o caso de sermos todos derrotados?

— Estranho que pergunte isso, Ibn Muhammad. Não me ocorreu, mas um dos camponeses, um rapaz muito letrado, me deu informações. Se nosso povo for derrotado, vão todos jurar que o bispo havia convertido toda a aldeia cinco anos antes de morrer. Têm um registro da igreja para provar isso e o monge e um punhado de famílias nazarenas atestarão a verdade dessa afirmação.

— Isto é incrível — disse Elinore.

— Fico com vontade de visitar este lugar.

— Sempre que quiser — respondeu seu tio.

— Talvez depois que a criança nasça vocês todos venham passar uns tempos em Siracusa. Elinore poderia vir conosco esta noite?

Ninguém respondeu ao convite e o pobre Aziz, ligeiramente embaraçado, virou-se para a mulher.

— Minha irmã, de quem você não gosta nem um pouco, está rezando para que você tenha uma menina. Assim, o filho dela herdará minhas propriedades.

— Neste caso — respondeu Balkis — será um prazer desapontá-la. E se vamos partir esta noite eu deveria ir cuidar das malas. — Nós ajudaremos — disse Mayya, e todas as três mulheres se dirigiram para o quarto de hóspedes.

— O sultão pode morrer a qualquer dia, Ibn Muhammad. Perguntou por você hoje.

— Quanto mais cedo se for, melhor. Haverá um acerto de contas. Eu tinha muitas lembranças afetuosas dele, mas o tratamento de Felipe mudou tudo. Deixou-me zangado comigo mesmo por ser um tão pobre juiz das pessoas. Vamos falar de assuntos mais prazerosos.

— Deixe-me levantar um assunto indelicado. Idrisi sorriu por antecipação.

— Eu lhe agradeço por deixar Balkis voltar. Era importante para mim, mas você já sabe disso.

— Sei e se o embaraçar não precisamos discutir mais o assunto. Espero que seja um menino por sua causa. Já pensou em escolher outra esposa?

— Não há razão alguma para fazer isso. Tenho uma serviçal no palácio que satisfaz todas as minhas necessidades. Com ela não há nenhum fingimento. Se Balkis me der um menino estou contente. E você?

— Ficarei contente mesmo que Balkis lhe dê uma menina.


15

A morte de de Rujari.
Idrisi é pai de novo e duas vezes.
Sonhando com Siracusa.

Num dia frio de fevereiro do ano de 1154 do calendário cristão, o sultão morreu no seu palácio em Palermo e Balkis deu à luz um filho em Siracusa, embora Idrisi e Mayya só recebessem a notícia quando o Amir de Siracusa chegou para comparecer aos funerais do sultão, pois os faróis andavam ocupados demais transmitindo as notícias da morte do sultão e da data fixada para o enterro para se darem ao trabalho de passar outras notícias. Recebendo a informação, notáveis de todas as partes da ilha iniciaram a jornada para Palermo.

Idrisi caminhou até o palácio e foi recebido por Guilherme, paramentado nas vestes de sultão com o manto real envolvendo-lhe os ombros. Era um homem grande de barbas negras e aparência assustadora. Tendo abraçado Idrisi, implorou-lhe que se tornasse o Amir dos Amires e voltasse ao palácio. Idrisi agradeceu calorosamente ao herdeiro, mas declinou da oferta para substituir Felipe. Alegou deveres de erudito, explicando a necessidade de completar o Formulário este ano para ajudar os médicos a salvarem mais vidas. O novo sultão pareceu aceitar a desculpa e procedeu a informar-lhe que os barões estavam decididos a não levar em conta o testamento de Rujari.

— Querem enterrar meu pai na Catedral de Palermo.

— Ele construiu uma igreja especialmente em Cefalu para ser o local do seu enterro. Amava a cidade e a igreja.

— E alguém mais também, mestre Idrisi, como ambos sabemos.

— Seja como for, foi seu último pedido para mim. — E para mim. E para minha mãe. Mas a Igreja e os barões insistem em Palermo. Felipe era a única pessoa na ilha que poderia tê-lo enterrado em Cefalu. Então deixem-nos enterraremno em Palermo. Existe outra razão por que não pode ser enterrado em Cefalu: o bispo Boso apoiou o Papa errado e Roma não quer consagrar sua igreja. Como pode um rei ser enterrado numa igreja não consagrada? Prometi a Boso que, assim que se reconciliar com Roma, poderá ter o corpo do meu pai e podemos ter dois funerais para o seu amigo. Chegou a conhecer a sua concubina em Cefalu? Vamos, me conte. Como era ela? É verdade que estava grávida e...

Guilherme, balançando o corpo levemente, começou a rir. Era uma risada desagradável e Idrisi, que certa vez tentara ensinar a este menino geografia, astronomia e medicina, lançou a seu ex-pupilo um olhar severo. Era óbvio que andara fumando muitos cachimbos de shahdanj al-barr.

— Sultão Guilherme — Idrisi começou, mas não pôde continuar. Guilherme havia caído da cadeira e estava aparentemente adormecido no chão. Seus atendentes o ergueram.

Recuperou-se e dispensou os atendentes, embora Idrisi soubesse muito bem que estavam sendo observados através de buracos de espia nas paredes. — Mestre Idrisi, nos veremos no enterro de meu pai.

— Tenho a permissão do sultão para usar a biblioteca? Existem manuais de medicina que não estão disponíveis em nenhum outro lugar nesta ilha.

— Claro, e não precisa da minha permissão. Organizou esta biblioteca antes mesmo que eu nascesse. Use-a tanto quanto quiser. Uma pergunta para o senhor, mestre Idrisi, e gostaria que fosse completamente sincero como era com meu pai.

— Vou tentar.

— Como julgaria meu falecido pai como governante? Só em poucas palavras, quero dizer.

— Eu diria que o sultão Rujari de Siqilliya foi durante a maior parte do seu reinado um governante sábio e sensato, que protegia todos os seus súditos independentemente do credo. Governou seu povo com equidade e imparcialidade, impressionando a todos pela beleza de suas ações, pela profundeza de sua visão e pela doçura do seu caráter. Escrevi um pouco disso na dedicatória do meu livro. Podíamos acrescentar que ele matou menos gente do que seu pai e seu tio. Quando era governante e as pessoas lembraram-lhe o massacre dos Crentes nesta cidade, pouco antes da sua rendição para os francos, ele expressou remorso e arrependimento. Foi um habilidoso administrador e um homem de estado que podia levar a melhor sobre o papa e o imperador. Defendeu o interesse do seu reino acima de tudo e não permitiu que fosse debilitado por aventuras na Terra Santa. Foi sempre amistoso para com eruditos e ajudou-me consideravelmente a aperfeiçoar a qualidade do meu próprio trabalho.

Foi nos seus últimos dias, atormentado por uma doença que dificultava a sua respiração e afetava seu coração, que ele enfraqueceu em mente, corpo e espírito. Permitiu que os barões e os bispos o convencessem de que um sacrifício de sangue era necessário para fortalecer o domínio de sua família sobre esta ilha.

E em seus últimos meses cometeu um crime ao queimar um dos mais talentosos líderes deste reino, Felipe al-Mahdia. Assim começou o declínio.

— Não posso repetir tudo isso, mas lhe agradeço. Homens como o senhor são raros neste reino. Gostaria que ficasse do meu lado.

— Existem outros mais habilidosos na arte da administração do que eu e lhe servirão melhor. Meu conselho é simples: tenha cuidado com os barões. Sua avó teve de fugir do continente para Palermo quando seu pai era muito jovem. Ela se sentia mais segura aqui por causa do meu povo. Eram um contrapeso para os barões. Portanto tenha cuidado com eles. Tendem a atacar quando um rei é jovem. E nunca os encontre em particular sem uma mão na sua espada e empregados armados do seu lado. Que Alá o proteja, Ibn Rujari.

— Só uma outra questão. Não é de grande significado, na verdade é apenas uma curiosidade. Durante o julgamento de Felipe, quando um monte de mentiras era dito, ouviram-se dois peidos altos dos bancos ocupados pela sua gente. Tentei juntarme ao coro, mas falhei. Foi obra do Amir de Catânia ou do Amir de Siracusa?

— Não tenho idéia.

— Foi um esforço muito bom. Se descobrir, faça a gentileza de congratular o Amir em meu nome. Decidi construir um palácio no estilo dos seus sultãos e com o maior harém do mundo. Maior do que Bagdá e Qurtuba e vou equipá-lo à altura. Se um dia precisar de uma mulher... Começou a rir de novo. Idrisi achava esse tipo de conversa cansativo. Sem responder, curvou-se e deixou a sala de audiência. Ao caminhar lentamente através do palácio, sabia que não desejava voltar mais ali.

Os eunucos davam-lhe risos nervosos de reconhecimento. Nenhum deles parecia grandemente afetado pela morte de Rujari. Felipe pertencera a eles e, neste mesmo palácio, eunucos mais velhos o haviam visto crescer e prosperar.

Idrisi entrou na biblioteca. Talvez Guilherme provasse que seus detratores estavam errados e superasse o pai, mas mesmo quando o pensamento lhe passava pela cabeça viu que não tinha substância. Guilherme podia ser mais forte do que acreditavam, mas não era administrador ou estadista. Era muito fortemente apegado ao prazer.

Iria tornar-se dependente demais de conselheiros que matariam uns aos outros para ficar perto dele.

Idrisi não ficou muito tempo na biblioteca. Apanhou dois livros que precisava consultar e decidiu leválos para casa, ansioso por voltar para seu novo filho, já com seis semanas e com a voz e o apetite robustos.

Ao subir o caminho para a casa ouviu os sons da flauta de Ibn Thawdor e viu sua filha sentada num muro perto do rapaz observando-o com os olhos em transe. Sorriu interiormente e não os perturbou. Estava feliz que ela encontrara um amigo no músico. Elinore fora mais afetada pela morte de Rujari do que ele imaginara e pedira para acompanhar Idrisi no enterro. Nem sabia ele ao certo o que ela sentia pelo seu novo irmão. Devia lembrar-se de perguntar a Mayya. A chegada do pequeno Afdal havia removido os últimos traços de tensão entre eles e muitas vezes a ouvia cantando ninares que nunca escutara antes. Ela chegou a rir uma manhã ao pensar se Balkis teria um menino e se seria idêntico ao seu filho.

O Amir de Siracusa chegou um dia antes dos funerais. Viera sozinho e se hospedara no palácio. Levando em conta as condições de instabilidade na ilha, era útil saberem que ele era hóspede do sultão. O ar jovial de seu rosto era suficiente para transmitir as boas notícias: Balkis, também, dera à luz um filho e ambos estavam bem. Entregou a Idrisi um pequeno embrulho, que foi passado para um criado e despachado para o seu quarto.

— Alguma notícia do Confiável?

— Foi visto em inúmeras aldeias. Está muito perto de sua família e dizem que se encontra nas propriedades do seu genro no momento.

Nossa gente está pronta para lutar. Catânia, Noto e Siracusa não serão tomadas sem combate.

— Não creio que Guilherme tenha qualquer intenção de fazer guerra contra nós.

— Um ano atrás tinha seu pai qualquer intenção de queimar Felipe do lado de fora do seu próprio palácio?

— O que estou dizendo é que uma rebelião prematura poderia levar à derrota. O senso de oportunidade é sempre crucial.

— Então estamos de acordo. Quando Elinore entrou na sala para cumprimentar o tio, Idrisi notou suas faces coradas e seus olhos brilhantes. O tocador de flauta está afetando esta criança, pensou, e isso o agradava. Mayya chegou com Afdal nos braços e o Amir fez os ruídos certos, mas será que no olho mental comparava os dois bebês? No final da sua visita, o orgulhoso possuidor de um novo filho convidou a todos para visitálo em Siracusa.

— Será primavera logo e é a melhor época para nos visitar. Balkis está desesperada para vê-los.

— Tentaremos — disse Mayya — mas é uma viagem tão longa que só de pensar me cansa.

Idrisi recolheu-se à biblioteca para encontrar o embrulho de Balkis. Desfez o nó do barbante e abriu o papel. Dentro havia uma túnica cuidadosamente dobrada feita de seda pura na cor de leite queimado. Em cima havia uma carta. Elinore bateu na porta e entrou sem esperar sua resposta.

— Preciso pedir-lhe uma coisa, Abi.

— Deixe-me adivinhar. Quer aprender a flauta? Ela corou levemente.

— Gostaria de me casar com ele.

— Ele manifestou interesse?

— Não, porque o respeita muito e acha que vem de uma classe muito baixa para que o senhor sequer pense em tal casamento.

— Falou com sua mãe?

— Sim, e ela não gostou muito.

— Por quê? — Acha que ele é de classe baixa.

— Tem certeza de que o conhece o bastante para querer casar-se com ele?

— Sim. O senhor me disse certa vez que as questões do coração eram determinadas pelo instinto, não pela razão. Meu instinto me diz que serei feliz com ele.

— É tudo o que conta para mim, filha. Não tenho objeção. Gosto do rapaz eu mesmo, mas como vai ganhar a vida? Músicos não são pagos regularmente.

— Ele não toca apenas a flauta. Ele as fabrica e pode ensinar crianças a tocar. Quer que nos mudemos para Djirdjent onde a família de sua mãe o ajudará.

— Eu o ajudarei se quiser ficar aqui e seu tio em Siracusa é uma alma generosa se ele quiser mudar-se para lá. E você? Onde gostaria de morar?

— Não tenho certeza. Tem uma parte de mim que gostaria de deixar esta ilha para sempre e mudar para Salerno.

— Por quê?

— Instinto. Algo ruim vai acontecer aqui. Não pode sentir no ar?

— Elinore, você é batizada e Simeon ibn Thawdor também o é. Não precisam temer os barões. Nenhum mal cairá sobre vocês. Mas estou preocupado com seus dois irmãos.

Eles sobreviverão? Por quanto tempo? Quando alguns de meus amigos deixaram Palermo e foram se instalar em alAndalus eu zombei deles por sua tolice. Estava seguro de que tinha tomado a decisão certa.

Encolheu os ombros em desespero. Elinore beijou-o na cabeça.

— Embora ainda não tenhamos discutido Pitágoras e seus números conforme me prometeu, eu o amo.

— Os números eram importantes para os mercadores e marinheiros. Mas muito mais interessante era o estilo de vida que ele advogava. Talvez vocês devessem ir morar em Cariati, muito mais perto de nós do que Salerno. Os pitagóricos fugiram daqui para Kroton, como a chamavam então, e sua irmandade floresceu. Alguns deles vieram para Siracusa também. O símbolo da sua irmandade era o boi na língua. Cada novo recruta jurava segredo e silêncio. A fim de atingir seus objetivos e criar uma sociedade em que cada e toda pessoa tivesse uma responsabilidade moral, precisavam ser cautelosos. E sabia que eles também acreditavam que a única maneira de purificar a alma das infecções do corpo era por meio da música? Foi por isso que Pitágoras e seus seguidores se tornaram os primeiros a explorar as ligações entre música e matemática. E você encontrará livros que podem ensinar-lhe ainda mais do que sei. Não é um filósofo que eu tenha estudado a fundo. É sua mãe que ouço chamando por você? Diga-lhe que eu aprovo Ibn Thawdor e ela não deveria se preocupar com o seu dote.

Quando ela correu para fora do quarto, Idrisi começou a caminhar para cima e para baixo, parando para olhar o mapa sobre a grande mesa. Era o seu próprio mapa e ele pensava que era tempo de emigrar, mas com que destino? Então viu seu manuscrito inacabado e sabia que tinha de ser completado antes que ele fosse para qualquer lugar. A filosofia da medicina que elaborava baseava-se em oferecer curas simples e facilmente acessíveis para doenças que afligiam ricos e pobres. Lera algo num livro de Aflatun*1 que o desagradara e tivera a intenção de contar a Elinore. Encontrou o livro onde tinha assinalado a seguinte passagem:

*1. Platão. (N. do T.)

"Quando um carpinteiro está doente", disse Sócrates, "ele pede ao médico um remédio rápido — um emético, purgativo, uma cauterização ou o bisturi — é tudo. Se lhe mandarem fazer dieta e envolver a cabeça e ficar aquecido ele responde que. não tem tempo para ficar doente, que não tem sentido continuar vivendo só para cuidar da sua doença se não tiver tempo para levar adiante o seu trabalho. Então ele dá adeus ao médico e volta ao trabalho e ou melhora e vive para continuar ganhando o seu sustento, ou então morre e é liberado da sua desgraça."

 

"Entendo", disse Glauco, "e claro que este é o uso adequado da medicina para um homem na sua camada da vida."

Sorriu ao lembrar-se de como isso o enraivecera. O "uso adequado da medicina" significava a propagação de doenças infecciosas que não distinguiam entre carpinteiros e proprietários de grandes propriedades e centenas de escravos.

No livro que preparava, Idrisi escrevera que uma dieta saudável era a melhor medicina preventiva, mas também que não deveria haver tratamentos aos quais os pobres não tivessem acesso. Estes tratamentos deveriam estar disponíveis a todos em hospitais especiais. Outras considerações ele pusera de lado pelo momento, embora, em particular, concordasse com a injunção de Hipócrates: para curar um homem era necessário entender as origens e a causa da sua evolução. Esta era uma convicção proibida ao Povo do Livro que devia acreditar que Jeová, Deus, Alá haviam criado o homem — possivelmente uma simplificação do conhecimento que não ajudara o estudo da medicina. Os Antigos também tinham os seus mitos, mas estes continham o cerne de uma verdade. Prometeu, que dera ao homem o primeiro fogo para salvá-lo da extinção, estava claramente cônscio de que o homem possuía o cérebro para fazer uso do fogo e os próprios fabricantes dos mitos interpretavam Prometeu como o símbolo da inteligência humana.

Seus pensamentos foram interrompidos por Mayya, ansiosa para inspecionar o presente que Balkis lhe mandara. Ela colocou a túnica contra seu próprio corpo, mas era grande demais.

— Ela sempre foi boa na confecção de roupas, mas vamos ver como cai em você.

Levantou-se e trocou de túnicas. A seda agarrou-se ao seu corpo.

— Cabe perfeitamente em você. Balkis não se esqueceu do seu corpo.

Ele nada falou, mas não recolocou as roupas que usava. Sorriu vagamente para a mulher.

— Quando vai visitar Walid em Veneza?

— Depois de terminar meu Formulário.

— E quando vai ser isso? Quando Afdal tiver cinco ou dez anos?

— Poderia ser antes, se não fosse interrompido com tanta freqüência.

— Vim discutir sobre nossa filha. Não posso acreditar que tenha concordado em que ela se case com o filho de Thawdor.

— Porque ele é pobre?

— Bem, não exatamente isso, mas...

— Que outra razão poderia existir? Criação, naturalmente. Deixe-me contar-lhe que os ancestrais de Thawdor incluíam homens que governaram esta ilha centenas de anos atrás. Eu não compararia a linhagem dele com a sua ou a minha, menos ainda com aquela do seu cunhado.

— Se esta é a sua opinião, não farei mais objeções.

— Mayya, quero que nossa filha seja feliz. Eu lhes darei dinheiro para construírem uma casa onde quiserem.

— Não desejo que ela deixe Palermo.

— Isto, também, será escolha dela e não nossa. Quando ela saiu do quarto, ele olhou para as estantes e suspirou. Se deixasse Palermo ou Siqilliya, estes livros teriam de viajar com ele. Nunca os deixaria para trás. Percebendo como seria difícil levar todos, começou a fazer listas em sua cabeça dos livros de que não sentiria falta. Talvez não conseguisse convencer Mayya ou Balkis a partirem consigo, mas os livros não tinham escolha.

A túnica de seda acariciando seu corpo o fez pensar em Balkis, mãe pela primeira vez. Seu filho se tornaria o centro de sua existência e ela se instalaria no palácio até sentir que era a hora de procriar de novo. Pegou a sua carta.

Muhammad:

Pensei em tantos nomes diferentes para você, mas soavam tolos quando escritos e gastei uma porção de papiros. Só podem ser falados, portanto terá de esperar. Nunca pensei que a dor da separação podia machucar tanto até que o deixei há três meses. Não doeu só por dentro, mas no caminho de volta tive uma dor de cabeça, uma dor realmente forte que nunca sentira antes. O que o doutor recomenda? Não sugira uma infusão fria de amêndoas, leite e mel. Não funciona.

Sento-me e escrevo umas poucas linhas para você todo dia para que, quando o tempo chegar, eu possa acrescentar uma linha sobre nosso filho. Às vezes fico lacrimosa ao pensamento de que ele não saiba que você é o seu verdadeiro pai. Chegaremos um dia a contar para ele? Posso ouvir sua voz: como seu marido foi tão generoso e cordato, por que lhe negar o prazer de fingir que é seu filho? É claro que eu concordo, mas... E Mayya? Como está e como estão vocês dois? O bebê já nasceu? Menino ou menina?

Foi uma viagem terrível para Siracusa com uma tempestade perto de Messina, onde fomos forçados a passar a noite depois de deixar Palermo. Lembrei a viagem que fizemos juntos. Deve ter levado o mesmo tempo, mas pareceu tão rápida! Acho que estar grávida com seu filho não melhorou meu humor. Em Siracusa pensei muito em você e durante alguns dias não pude comer nada. Meu bondoso e ponderado marido quase chegou a mandar-lhe uma mensagem pedindo que viesse juntarse a nós, mas por mais que tivesse adorado isso pensei em Mayya e no seu estado e sabia que era errado. Então o impedi. Ele não faz exigências de mim e sei que tem uma mulher no palácio que serve as suas necessidades. Acho que ele lhe contou sobre ela. Estou contente porque não era nada agradável quando ele vinha à minha cama. É tão gordo e, além do desconforto físico, eu também sofria um desgaste mental. A túnica de seda ficou bem em você?

Existem tantas coisas que queria discutir com você em Palermo, mas nos absorvemos tanto um no outro que não houve tempo para discussões elevadas. Queria perguntar-lhe o que achava da poesia de Ibn Hamdis. Estou realmente com raiva de mim mesma por nunca lhe ter perguntado. Meu marido — mas você provavelmente sabe disso — pertence à mesma família e temos todos os seus poemas na biblioteca e alguns deles em edições muito finas. Está vendo, comecei até a usar a sua linguagem! Alguns deles eu acho sentimentais em demasia. Ele não foi "banido do paraíso". Ele saiu. Quero dizer, se ia sentir tanta falta de Siqilliya, por que foi embora, em primeiro lugar, e não voltou então depois para reviver os prazeres da sua juventude? Seus irmãos ficaram. A propriedade da família está intacta. Por isso suas lembranças de Siqilliya não me empolgam, embora tente dizer isso para um siracusano. Pode imaginar meu marido, que calmamente aceitou o fato de que somos amantes e que você era o pai do filho que herdará suas propriedades, que nunca falou uma palavra dura comigo, ficar vermelho de raiva quando eu lhe disse que Ibn Hamdis não era um poeta tão bom comparado com Ibn Quzman, Ibn Hazm e Abu Nuwas. Gritou, me chamou de ignorante e deixou o quarto como uma montanha em fogo. Depois voltou e pediu desculpas. Poucos dias depois do ocorrido, encontrei um poema de Ibn Hamdis que realmente me fez rir. Queria que risse comigo, mas você não estava aqui. Leia as palavras em voz alta e imagine nós dois dentro da sua túnica de seda:

Uma freira de claustro abriu o seu convento, e fomos seus visitantes noturnos.

A fragrância de um licor nos trouxe até ela, que revelava ao nosso nariz os seus segredos...

Coloquei minha prata na sua balança, e de sua jarra ela derramou seu ouro.

Oferecemos casamento a quatro de suas filhas, para que o prazer deflorasse sua inocência.

Quero saber o que pensa sobre isso e seus poemas siqilliyanos.

Muhammad, na noite passada contaram-me uma história terrível e não consegui dormir. Meu marido veio ver se eu precisava de alguma coisa e com ele veio sua horrível irmã de quem já lhe falei. É muito alta com um nariz igual a um grande pepino, seios do tamanho de melancias e uma voz alta e áspera e sempre quis sugerir-lhe que se juntasse a um bando de hermafroditas errantes e gozasse a vida. Ela entrou, olhou para meu filho sobre meu seio e disse: "Louvado seja Alá por este milagre."

Estava na ponta da minha língua dizer "Louvado seja Maomé,"*2 mas me contive. Então comecei a sentir uma dor nas entranhas e gritei para que ela deixasse meu quarto.

*2. Muhammad", em árabe, nome de Idrisi. (N. do T.)

A empregada veio do quarto vizinho, mas não era nada. Meu marido voltou depois para se desculpar por sua irmã. Eu disse que ela era uma serpente alimentada por Satã. E então ele sentou-se e contou sua história, que me horrorizou:

Ela é minha meiairmã, Balkis, e por favor entenda que teve uma vida dura. Meus pais não se davam bem e minha mãe devia se encontrar num estado de permanente tristeza. Quando eu tinha oito anos, meu pai deixou Siracusa e foi viver em Noto por seis meses. Minha mãe ficou tudo menos de coração partido, como pode imaginar. Cometeu uma indiscrição com um primo e engravidou. Quando meu pai voltou perguntou de quem era a criança, mas ela não falou.

Ele nunca mais falou com ela. A criança era minha irmã que você detesta tanto. Não foi bem tratada pelo pessoal da casa. Não creio que meu pai sequer pronunciasse o seu nome. Nem uma só vez. Em conseqüência, ela se tornou a favorita de minha mãe. Isso nos incomodou muito e fomos todos desagradáveis para com as duas. Quando muitos anos depois meu pai viajou para Palermo a negócios, o primo de minha mãe, que era o pai de minha meiairmã, voltou à casa. Minha meiairmã tinha 17 anos.

Uma noite, numa fúria embriagada, o primo violentou a própria filha. Ela engravidou. Minha mãe jogou o amante para fora de casa. Pelo que lembro, ele foi na verdade apedrejado. Meus irmãos e eu morávamos naquela casa grande mas só tivemos idéia do que havia acontecido muito tempo depois. Dizem que se valeram de misturas herbais para se livrar da criança e conseguiram, mas ela nunca se recuperou. Quando um primo me contou a história, confrontei minha mãe. Ela chorou e admitiu que era verdade.

Culpou a frieza e crueldade do meu pai e estou seguro de que há alguma verdade nisso, mas sempre me lembro do meu pai como de rosto moreno, alto, dignificado e simples em seus gostos. De qualquer modo, depois de saber desta tragédia, fiz de tudo para agradar minha meiairmã. Como você, meus irmãos não podem nem olhar para ela, o que é injusto. É nossa única irmã. Não espero que goste dela, mas tente entender. Ela é perfeitamente inofensiva."

Muhammad, meu querido muito amado, isso não é perturbador? O problema é que a mulher é maligna e venenosa e ainda a odeio. Tento imaginar o que diria nesta situação.

 

Começaria provavelmente com meu bondoso e ponderado marido...

Muhammad,

seu filho nasceu no dia em que o sultão morreu. Nós o chamamos de Hamdis ibn Aziz. Isso garantiria que ele jamais escreverá poesia. Meus seios estão transbordantes de leite. Se sua garganta doer, venha a mim.

Balkis

A leitura da sua carta o agitou e ele começou a esfregar as duas mãos na túnica de seda. Naquela noite ele declinou tanto a comida como o hammam, mas Mayya supôs que estivesse absorto no seu trabalho e não quisesse ser perturbado. Ele se retirou cedo para seu quarto e começou a andar furiosamente. Até então achara que sua paixão por ela desvaneceria gradualmente e se veriam uma, talvez duas vezes ao ano. Agora, subitamente, se deu conta de que era seu coração que não toleraria ausências tão longas.

Talvez devesse voltar a Siracusa com o Amir depois dos funerais do sultão. Quanto mais pensava nisso, melhor parecia a idéia. Elinore, Mayya e Afdal poderiam vir também. Iria visitar seus netos perto de Noto, talvez visitar a aldeia onde o Confiável realizara milagres e, acima de tudo, Balkis não estaria longe. A idéia melhorou o seu ânimo, mas ainda assim não tirou a túnica e quando, tarde naquela noite, houve uma batida na porta, ainda estava vestido. Ibn Fityan desculpou-se por acordá-lo, mas queria que soubesse que um incidente ocorrera nos jardins naquela noite. O jovem filho de um barão de Messina, que não chegava a ter vinte anos, acompanhado por dois ou três soldados mais velhos, saíra em busca de meninos nos jardins. Estavam para desonrar um menino quando se viram cercados por cinqüenta homens carregando adagas curtas e machadinhas. Os francos lutaram ferozmente e decapitaram um oponente, mas estavam em grande inferioridade numérica e foram subjugados. Foram executados no local e os corpos levados e jogados ao mar.

— Por que isso é considerado sério o bastante para me acordar no meio da madrugada?

— Quando o filho não voltou, o barão partiu à sua procura. Naturalmente não o encontrou e exigiu que, a não ser que o qadi apareça com o seu filho, ele tomará reféns e os levará para Messina.

— Intolerável e inaceitável.

— Querem que o senhor diga a Guilherme que se isso acontecer a cidade vai explodir e adiará sua coroação indefinidamente.

— Vou falar com ele depois do enterro. Ibn Fityan, esta emboscada foi cuidadosamente preparada?

— Parece que sim.

— Existe alguma possibilidade de que alguém pudesse revelar a verdade?

— Ninguém sabe quem organizou e executou esse ataque. É uma organização secreta e todos fizeram votos de sigilo.

— Notável.

— Gostaria que o ajudasse a se despir?

Idrisi olhou para si mesmo e riu.

— Acho que posso resolver isso sozinho. Siga em paz. Bem desperto e alerta, Idrisi despiu-se e fez suas abluções. Começou a compor uma resposta para Balkis em sua cabeça, mas só estava pela metade quando adormeceu profundamente. Foi acordado por Ibn Fityan a fim de se preparar para o enterro.

A catedral estava cheia e poucas pessoas haviam se reunido nas ruas, mas o espectro do martirizado Felipe pairava sobre as cerimônias. O arcebispo de Palermo, que conduzia as exéquias, parecia tão jubiloso com seu papel que quase esqueceu que era para ser uma ocasião triste. Guilherme rendeu ao pai um flamejante tributo, com algumas das frases que ouvira no dia anterior de Idrisi. Mais tarde, o novo governante convocou seu antigo tutor ao palácio. Um velório fora organizado e a grande sala que testemunhara a humilhação de Felipe estava agora pródiga de comida e vinho.

Idrisi compareceu por uma razão apenas: afastando Guilherme dos bandos de cortesãos bajuladores, informou-lhe da situação na cidade velha. O jovem ficou muito zangado diante da idéia de que sua coroação fosse subvertida por excessos de barões e convocou o arcebispo. O prelado, deliciado por ter sido escolhido em tão distinta platéia, acenou com a cabeça obedientemente e desapareceu para executar a vontade do seu governante.

— Diga ao qadi que ele não precisa mais se preocupar. E, mestre Idrisi, descobri que foi o Amir de Catânia quem peidou nas duas ocasiões. Um homem notável.


16

Primavera em Siracusa.
Boa e má poesia.
Pais e filhos existem poucos deleites no mundo
tão agradáveis como uma primavera siracusana.

A fragrância das flores de limões, laranjas, abricós, amêndoas e pêssegos toma conta da cidade, enriquecida pelas brisas úmidas e salgadas do mar. Nas colinas nos arredores da cidade as plantações seculares, laboriosamente cultivadas, das oliveiras estão sendo cuidadosamente inspecionadas para se verificar os danos causados pelas tempestades de inverno e pelos relâmpagos. O sol irradia um calor de boas vindas e o ar está fresco, não tristonho e pesado como no verão.

E tudo isso é grandemente realçado quando uma pessoa está apaixonada. Desde sua chegada de Palermo um mês atrás, Idrisi e Balkis deleitaram-se na companhia um do outro. Não havia nada furtivo no seu comportamento, mas não fosse o fato de que saíam para cavalgar abertamente e às vezes eram acompanhados pelo próprio Amir, haveria uma incessante onda de mexericos. Os eunucos do palácio e algumas poucas serviçais leais sabiam que Balkis freqüentemente passava a noite no quarto de Idrisi e, embora comentassem entre si, garantiam que o segredo ficasse confinado ao palácio.

Uma manhã gloriosa e fresca, antes que o sol secasse a terra, ela insistiu que tirassem suas sandálias e banhassem seus pés no orvalho, nas folhas e na grama.

Era uma de suas curas para dores de cabeça persistentes e ele perguntou se ela estava se sentindo bem.

— Li um poema ruim de Ibn Hamdis esta manhã enquanto você ainda dormia e isso me deu uma dor de cabeça.

Ele sorriu:

— Balkis, você é injusta com o poeta. Existem alguns poemas insuportáveis, mas ele também escreveu versos muito belos. Não o deve punir porque Aziz pertence à mesma família.

— Não pode imaginar os elogios que reservam para ele. É como se nenhum outro poeta tivesse existido. Aziz é mais contido, mas mesmo ele insistiu em chamar nosso filho de Hamdis. Por que está rindo?

— Eu não a encorajaria, mas subitamente lembrei-me de uma quadra escrita por Ibn Hamid, um de meus amigos de infância em Noto.

— Nunca o mencionou antes.

— São muitas lembranças dolorosas. Brigamos antes que ele partisse. Acusou-me de ser uma criatura do sultão. Sinto muita falta dele agora e...

— A quadra?

— Deixe-me tentar lembrar. Um poeta menor de Noto, um freqüentador de bares e bordéis, está visitando Siracusa para escolher seu prostituto favorito.

Depara-se com Ibn Hamdis. O grande poeta está agitado e suas roupas amarrotadas. O visitante de Noto pergunta polidamente qual é a causa e um breve diálogo entre os dois chega abruptamente a um fim:

"Fui roubado! Os ladrões me arruinaram!" "Eu me solidarizo, compartilho sua desolação." "Roubaram um maço de páginas da minha poesia!" "Eu me solidarizo — com o pobre ladrão."

Ela riu desenfreadamente.

— Minha dor de cabeça passou. Sua cura funcionou.

Idrisi viera preparado para uma longa estada, acompanhado por Elinore, Ibn Thawdor e trezentos livros considerados necessários para o trabalho ainda incompleto.

Mayya prometera vir depois quando Afdal estivesse um pouco mais crescido. O dia de Idrisi era cuidadosamente organizado. Passava cinco horas na biblioteca do palácio, onde se surpreendeu ao encontrar alguns manuscritos de autores que lhe eram desconhecidos. Ficava impaciente com todo livro que contivesse superstições e as apresentasse como conhecimento científico. E houve muitos destes que descartou raivosamente no curso de seu trabalho.

O resto do dia era passado na companhia de Balkis. Eram capazes de conversar e rir durante horas. Ela aceitava sua ponderada crítica de Ibn Hamdis e fazia suas próprias observações mais cautelosamente, mas sua visão básica do poeta permanecia inalterada, embora concordassem em nunca discutir a questão com os descendentes do poeta.

Elinore implorara a ele que a deixasse casar o mais cedo possível. Observara o jovem casal na viagem de barco e estava convencido de que se destinavam um ao outro.

Perguntou-lhes se seriam felizes em se casar na ausência da mãe dela e dos pais dele e lhe disseram que ambas as partes haviam recomendado este curso de ação.

O Amir tomou conta da questão e numa bela manhã de domingo Elinore bint Muhammad e Ibn Thawdor foram casados pelo bispo numa cerimônia quieta na velha igreja bizantina. Reservaram-lhes uma série de aposentos no palácio e na festa daquela noite Ibn Thawdor tocou flauta para marcar seu próprio casamento.

Várias semanas depois um mensageiro chegou de Noto com uma carta de Sakina, sua filha mais velha, informando a Idrisi que a mãe dela morrera tranqüilamente poucos dias antes. O resto da família havia se reunido, com a exceção de Walid, e ela implorou a Idrisi que voltasse à propriedade para decidir o que deveria ser feito.

Não era uma decisão para ela ou qualquer outra pessoa.

— Tenho de ir — falou a Balkis.

— Estava contente de morrer sem ver minha casa de novo, mas Alá quis que fosse diferente. É estranho, mas nada sinto para com a mulher que partiu. Nada.

— Leve Elinore e Ibn Thawdor com você. Gosta da companhia deles e ela deveria ver a casa onde seu pai nasceu. Se eu não tivesse de executar as cinco amamentações obrigatórias para Hamdis, eu o acompanharia também, quando não para a eventualidade da poeira na jornada causar-lhe uma dor de garganta.

Partiram cedo uma manhã numa grande carroça coberta puxada por dois cavalos e com um séquito de quatro criados armados. Um novo caminho fora aberto para reduzir o tempo necessário para chegar a Noto. As razões disso eram militares, mas todo mundo se beneficiava e os mercadores ficaram especialmente contentes. Ao passarem por um antigo aqueduto insistiu para que interrompessem a jornada. Ele o tinha visto de longe em viagens anteriores e agora tinha uma oportunidade de observar sua estrutura mais de perto.

— Concordo em parar — disse Elinore — contanto que sejamos poupados de uma palestra sobre a Roma antiga.

Idrisi sorriu e ignorou o comentário, mas para puni-la levou Ibn Thawdor consigo e enriqueceu a compreensão do rapaz sobre o mundo antigo. Ao reiniciarem a jornada, caíram em silêncio. Pensavam todos no que vinha à frente.

Idrisi não via seu filho mais velho, Uthman, há quase vinte anos e sofria só de pensar no rapaz. Como médico, podia tentar a cura de dores e desordens estomacais, febres e picadas de cobras, mas não tinha idéia do que causava o sofrimento mental ou por que seu filho mais velho nascera com uma mente desordenada. Não havia problema com seu corpo. Fora normal como qualquer outra criança, com a exceção de que demorou a falar. Isto não o preocupara indevidamente até que o menino completou cinco anos e mal chegava a falar. Acabou aprendendo, mas via-se obviamente que era diferente dos demais. Preferia ficar sozinho. Falava longamente com animais da fazenda e podia ser visto rindo com eles, mas quando um humano se aproximava ele corria e se escondia num celeiro ou atrás de uma árvore ou se agachava no campo aberto e imaginava que ninguém podia vê-lo.

Não desejando que Elinore fosse apanhada de surpresa, Idrisi contou-lhe toda a história. Sua única reação foi segurar com força sua mão. Ela vinha pensando como a família receberia a ela e a Ibn Thawdor. Talvez fosse um erro ter vindo com seu pai.

O sol ainda estava alto quando entraram na propriedade nos arredores de Noto. A grande casa ficava no alto do morro aberto. Era construída em dois níveis ao redor de um pátio margeado por uma fileira de laranjeiras. Atrás da residência havia casas de camponeses construídas na encosta e perto delas uma pequenina mesquita com uma cúpula.

Abaixo da casa, de cada lado do caminho, havia terraços cultivados que desciam suavemente a encosta, construídos por seu avô. Frutas de toda variedade eram flanqueadas por amoreiras para os bichos-da-seda. Legumes e trigo cresciam nos campos planos das proximidades. A paisagem o agradou. A mãe de Sakina devia ser uma boa administradora — algo em que não podia inteiramente acreditar — mas não havia mais ninguém que pudesse ter supervisionado tudo, desde que ele partira e deixara claro que não tinha nenhuma intenção de voltar.

Viu Khalid cavalgando em sua direção, acenando, e Idrisi respondeu ao aceno. O menino tinha perdido a mãe e a avó no espaço de um ano. Um menino em crescimento precisa de uma mulher na casa. Umar deveria casar-se de novo.

— Jiddu, Jiddu — o menino gritava, ao se aproximar. Abandonou o cavalo que montava em pêlo e saltou para a carroça, abraçando o avô e dando um sorriso amplo ao ser apresentado à sua nova tia e a Ibn Thawdor. Havia crescido muito nos últimos seis meses. Barba e bigode começavam a brotar no seu rosto. Elinore esperava que seu pai não se referisse a isso e embaraçasse Khalid, mas ficou desapontada.

— Fico feliz em ver uma barba a caminho. Já decidiu se vai usá-la comprida ou curta?

— Não vou deixar crescer, Jiddu. Nem barba, nem bigode.

— Impensável, meu jovem. Impensável. Todo mundo em nossa família usa uma ou outra. Vou falar com seu pai.

Vamos ver o que ele tem a dizer sobre o assunto.

— O Confiável diz que estas coisas não têm nenhuma importância.

— Então por que ele usa barba?

— Porque é preguiçoso demais para se barbear. Está ansioso para vê-lo de novo.

— Ele está aqui?

— Sim, naturalmente. Veio conosco. Ele e Abu ficaram muito amigos.

Lá se vai minha propriedade, pensou Idrisi. O resto deles, também, o havia visto e esperava para recebêlo. Sakina beijou suas mãos e ele abraçou-a e beijou-a na cabeça. Seu marido estava presente, bem como os gêmeos. Abraçou Abu Khalid com calor especial. Foram todos apresentados aos recém-casados. Sakina, tendo perdido uma irmã, estava ansiosa para agradar à nova. Levou Elinore e Ibn Thawdor aos seus quartos. Idrisi olhou ao seu redor.

— Onde está Uthman?

— Vou levá-lo a ele — disse Khalid. A visão do seu primogênito sempre tinha um efeito perturbador sobre ele. Devia completar 35 anos este ano. A mulher que cuidava de Uthman viu quando se aproximavam. Pelo menos ainda está viva, Idrisi pensou consigo mesmo. Seu corpo forte e ossudo deve tê-la ajudado a sobreviver ao pior de uma dura vida. Então viu Uthman escondido atrás de uma árvore observando-o.

— A paz esteja com você, filho. Não vai se aproximar e cumprimentar seu velho pai?

Idrisi ficou chocado ao ver Uthman emergir do esconderijo. Tinha envelhecido muito além dos seus anos. Seus cabelos estavam brancos e caminhava com o ar de um frágil ancião. No entanto, falou com uma voz forte e segura.

— A paz esteja com o senhor, Abu. É bom vê-lo depois de tantos anos. Sabe, naturalmente, que minha mãe e minha irmã foram mortas por soldados romanos.

— Uthman, é bom vê-lo depois de todos estes anos. Precisa de alguma coisa? Qualquer coisa?

— Preciso de uma esposa, Abu. Uma esposa.

— Tem alguém em mente? Uthman levou o pai pelo braço até o cercado das ovelhas. Apontou para uma delas.

— Estou vendo, Uthman. Ovelhas.

— Aquela ali — disse ele, apontando de novo.

— Quero casar-me com ela. Não me diga que não é permitido, Abu. Quem não permite?

Quem?

Idrisi se deu conta de que uma referência ao Corão não surtiria muito efeito com seu filho. Decidiu tentar outra coisa.

— O imperador Romano proibiu o casamento entre humanos e animais.

Uthman gritou.

— Eu sei disso, naturalmente. É para desafiá-lo que vou levar adiante este casamento. Deixe que seus soldados venham. Nós os emboscaremos e mataremos.

Está com seu escudo e espada prontos, jovem Khalid?

— Sim, tio.

— Vá buscá-los. Quando Khalid desapareceu Uthman sentou-se na cadeira debaixo da árvore e falou de novo.

— Foi o grande pensador grego Pitágoras quem nos ensinou que os humanos foram reencarnados como animais, pai. Sabia disso? Por favor, prepare o meu casamento.

— Eu sabia disso, filho, mas onde ouviu falar a respeito?

— Na sua biblioteca. Vou lá muitas vezes para ler. Existem muitos livros de interesse. Gosto muito deles.

Lágrimas encheram os olhos do pai. O que saíra errado nesta criança? Os antigos escreviam sobre pessoas perdendo a cabeça, mas não tinham cura. Devia haver uma cura.

Por que deveria uma doença mental ser ignorada ou depender de remédios baseados em pura superstição?

— Não quer entrar em casa e dividir a comida conosco?

— Não posso, Abu, porque vocês vão sentar-se e comer minha madrasta. Eu a vi ser morta, despida, marinada, depois do que pequenas lanças de alho perfuraram seu corpo e então a cobriram com tomilho silvestre porque até eles estavam envergonhados da sua nudez. Pode vê-la agora sendo assada suavemente no fogo.

— Amanhã prometo que não consumiremos nenhuma carne. Comerá conosco então?

— Com grande prazer, Abu. Fico feliz em vê-lo de novo. E fiquei feliz em saber por meu sobrinho que seu livro foi completado. Obrigado por ter vindo me ver.

Ao caminhar de volta para casa, Idrisi refletiu sobre o fato de que o único membro da família que mostrara qualquer interesse pelo livro fora seu filho mentalmente perturbado. Depois, Sakina contou-lhe que na maioria dos dias, à parte suas conversas com os animais, Uthman era completamente normal. Apenas quando imaginava que os soldados o iam encontrar e matar é que deixava a casa e escondia-se fora dela durante dias. E tinha medo de visitantes — achava que eram espiões que voltariam e o delatariam ao comandante da Legião Romana em Siracusa.

— Por que envelheceu tanto?

— Aconteceu lentamente, mas não sabemos por quê. Ummi achava que devia ter alguma relação com a doença.

— Não estou nada seguro de que seja isso. Khalid, que os escutava, tinha outra teoria. — Acho que foi a tristeza que deixou seus cabelos brancos. Dia após dia, fica sentado na cadeira e observa os animais serem mortos. Isso realmente o perturba. Sabe de uma coisa, Jiddu, fico sentado com ele enquanto fala com os animais.

Tenta ensinar-lhes nossa história e sobre o nosso Profeta e as batalhas, mas geralmente fala com eles sobre a Grécia antiga e seus grandes filósofos. Aprendi muito com ele. Por que não o deixa casar com quem quiser?

— Khalid! — advertiu sua tia.

— O menino pode estar certo sobre a causa do seu envelhecimento prematuro. Não existe modo algum de afastá-lo dos animais? E se tirássemos todos os animais da propriedade?

A sugestão deixou Khalid em pânico.

— Nunca faça isso, Jiddu. Ele só acharia que foram todos mortos e se mataria também.

— Parece conhecê-lo melhor do que qualquer pessoa, meu filho. Claro que algo poderia se organizar para fazer com que os animais sejam abatidos à noite enquanto ele dorme. Se isso lhe causa tanta aflição, por que fazem à sua frente? O que acham?

Khalid pensou por um tempo.

— É uma boa idéia, mas ele conhece todos eles e sentiria sua falta. Ainda assim, seria a melhor solução.

Naquela mesma noite Sakina instruiu o açougueiro e as ovelhas e cabras foram removidas à noite. Na semana seguinte, Uthman parecia muito mais feliz e certa tarde sussurrou para Khalid.

— Meus amigos estão aprendendo a escapar. Sabem que vão ser abatidos e fogem toda noite. Eu lhes disse para fugir e se esconder nas cavernas perto do mar. Espero que minha noiva não fuja.

— Mas, querido tio. Não preferia que ela fugisse? E se eles a matassem?

— É um menino esperto. Sinto orgulho de você. Acho que vou ter de casar com outra pessoa.

Naquela noite a ovelha que havia chamado a atenção de Uthman foi tirada do cercado e preparada para a cozinha na manhã seguinte. Eles a comeram ao almoço e Idrisi notou Khalid remexendo nervosamente na carne sem comer quase nada.

Talvez não haja remédio para sua doença, pensou Idrisi, mas se existe uma cura deve ter a ver com entrarmos dentro de sua cabeça e Khalid fez mais do que qualquer adulto na casa.

O Confiável era da mesma opinião. Empenhara-se em um número de conversas com Uthman na biblioteca e ficou espantado ao ver que ele sabia onde se achava cada livro e, dos livros que havia lido, era capaz de citar números de páginas e referências sem qualquer problema.

— Talvez só uma parte da sua mente tenha deixado de funcionar. O resto é normal. Esta é a parte do corpo humano que os médicos menos conhecem.

Uma noite, depois do jantar, reuniram-se em torno de uma fogueira que fora acesa do lado de fora, comeram frutas secas e beberam chá de menta debaixo das estrelas.

Aquilo lembrou a Idrisi sua juventude. Chamou Elinore de lado e apontou para as luzes de uma aldeia distante.

— Eu cavalgava até lá uma vez por dia só para ver de relance sua mãe.

— E minha tia? — Não, sua danada. Ela era pequena demais para ser levada a sério.

Abu Khalid sugestivamente clareou a garganta e Idrisi e Elinore voltaram ao círculo familiar. Idrisi falou das mortes na família e elogiou sua falecida esposa pela maneira eficiente como havia administrado a propriedade. Uma reflexão inesperada o interrompeu.

— Gostaria que Walid estivesse presente para ouvi-lo dizer isso, Abu. Teria ficado feliz.

Idrisi sorriu.

— Eu também gostaria que ele estivesse aqui, Uthman. Que Alá proteja todos os meus filhos.

Descreveu como era uma terra inculta cheia de morros quando seu avô ali chegara num verão. Precisaram de seis meses só para arrancar as pedras do chão para construir os primeiros poucos terraços. Muitas das pedras foram usadas para construir a casa. Quando as chuvas de inverno chegaram, a terra se transformou, os morros ficaram verdejantes e os riachos transbordaram. Só então ficaram seguros de que tinham feito uma boa escolha.

— E agora temos decisões a tomar. Ainda que eu permaneça nesta ilha, nunca mais viverei aqui de novo. Sakina mora com a sua família. Abu Khalid e Khalid são felizes na sua propriedade. Uthman, naturalmente, viverá aqui com seus amigos, mas não pode dirigir a propriedade. Os camponeses que trabalham nestas terras, como seus ancestrais antes deles, sofrerão muito se vendermos a propriedade. Eu me perguntava como deveríamos resolver esse problema quando Khalid me contou que ele e o pai haviam convidado o Confiável para juntarse a nós. Então eu me volto para ele. Homem santo, se é isto o que realmente é, explique-nos como vamos ensinar os camponeses a prestar falso testemunho descaradamente a fim de se defender contra o futuro. Soubemos todos da aldeia onde milagres aconteceram depois da sua visita.

O porte do Confiável havia se alterado desde que se encontrara com a irmã de Bulbula. Cortara o cabelo e aparara a barba. Banhava-se com mais freqüência e vestia roupas limpas, tudo em parte por causa de um pedido feito pela irmã de Bulbula. Mas também estava ciente de que descrições suas circulavam em toda a ilha e que os lombardos velhacos logo estariam em busca de sua vingança.

O erudito havia feito perguntas que requeriam uma resposta.

— Douto mestre Idrisi, eu lhe agradeço e à sua família pela hospitalidade que me deram. A meu ver, existem poucos problemas em relação a esta propriedade. Os camponeses não foram maltratados e são todos Crentes. O tamanho da propriedade não é excessivo. Andei fazendo alguns cálculos.

Existem cem famílias camponesas, além de seis empregados na casa.

— Na verdade, Confiável — disse Uthman — existem 103 famílias e oito empregados. Esqueceu de contar o açougueiro e o lenhador que comem diariamente em nossa cozinha.

— Obrigado por me corrigir, Uthman ibn Muhammad. Há terra suficiente para ser dividida entre estas famílias. Isso deixará terra bastante para manter a propriedade, não como antes, mas certamente sem criar um problema. Existe ainda a questão de prestar falso testemunho. Isso é desnecessário pois o próprio Ibn Muhammad assinará os documentos de transferência, que podem ser registrados em Noto. O problema é o futuro. Se formos derrotados, a única maneira que os camponeses têm de conservar as terras é fingir que são nazarenos. Vocês têm uma pequena mesquita aqui, mas nenhuma igreja. Acho que precisamos de uma. Grega, não latina. É mais simples. Se os camponeses concordarem, vi um local onde poderia ser construída facilmente. Uma vez feito isso, precisamos de um monge e de um registro em que ele testemunhará que converteu a aldeia no dia em que Rujari morreu para honrar sua memória.

— Confiável — Uthman perguntou numa voz nervosa -, meus amigos serão forçados a se tornar nazarenos?

— O que são eles no momento?

— Não são nem Crentes nem nazarenos. Ainda adoram o antigo deus grego, Posêidon.

— Não será necessário que se convertam.

— Nem eu, então. — Isso não será um problema.

— Talvez tudo isso possa ser feito — disse Idrisi — mas nossos camponeses são muito religiosos e duvido que concordarão em mudar de religião para conservar sua terra.

— Esta é uma ilha estranha — disse o Confiável.

— Seu clima e seu modo de vida têm uma maneira de afetar todo mundo. A escolha é ou deixar que o tirano colha os frutos que semearam e serem expulsos da terra ou fingir que foram batizados. Podem rezar para Alá cinco vezes por dia nos campos ou em casa. Mas a escolha é deles, não sua ou minha. Isso eu aprendi na outra aldeia. Havíamos vencido, mas os camponeses tinham medo de represálias. E prometer-lhes que não haveria matanças de vingança porque íamos ser vitoriosos e retomar a ilha não era convincente. Não estou seguro de que isso seja possível, dado nosso atual estado, por isso como poderia convencer outra pessoa? Foi então que pensei nas conversões planejadas por nós como uma defesa para aquelas forçadas ao nosso povo pela força da espada. O que há de mau nisso? Alá seja louvado, se vencermos. Se perdermos, vamos garantir que os camponeses e suas famílias fiquem seguros, embora nós possamos não ficar. É o mínimo que pode ser feito por eles.

— É conselho sensato, devo concordar — disse Idrisi.

— Mas nesta propriedade eles não tiveram de lutar contra a adversidade e isso lhes deu uma extraordinária autoconfiança.

Vou apoiar o seu conselho.

Elinore e seu marido discutiram seu futuro através da noite. Ela queria deixar Siqilliya, mas ele queria ficar para que seus filhos nascessem ali. Lembrou a ela que sua família havia vivido em Siracusa desde que a cidade fora construída. Ela argumentou que não podia suportar a idéia de ver seus filhos nascerem em meio a carnificinas e à incerteza. Se Rujari, que ela amava, pôde matar Felipe, a quem ela admirava, o derramamento de sangue nesta ilha jamais iria parar. Ele debruçou-se e sussurrou algo no ouvido dela que a fez rir. Foi uma risada profunda, sonora, espontânea, saída direto do coração.

— Isto quer dizer que chegamos a um acordo, minha senhora?

— Apague a vela, Simeão, e deixe-me dormir. Você saberá pela manhã.

Na manhã seguinte o som de sua flauta a acordou. À primeira luz matinal na janela ela o viu, seu rosto inclinado para um lado, os olhos fitando tristemente o mar distante. Nunca percebera que a música poderia tal um efeito em si. Agora desejava ter cedido à pressão da mãe e ter aprendido a tocar o alaúde quando ainda moravam no palácio. Havia tomado sua decisão, mas comunicaria a Simeão depois.

O Confiável acordou cedo para que pudesse falar com as famílias camponesas. Tinha organizado um mehfil no final da tarde, uma hora antes do tempo em que normalmente acabavam de lavrar os campos. Tudo o que lhes disseram foi que Ibn Muhammad alIdrisi havia voltado à propriedade e desejava conversar com eles. Sakina já estava na cozinha supervisionando a comida que tinha de ser preparada para alimentar a assembléia.

Idrisi havia levado Uthman numa caminhada para respirar e inspecionar os pomares. Uthman também se mostrou competente aqui, olhando atentamente para cada árvore e calculando as frutas que daria mais para o fim do ano. Sua constante ânsia de se afirmar alegrou o pai, que ficou a pensar se não o teriam abandonado por muito tempo e falar com ele todo dia e tratá-lo como uma pessoa normal não poderia tê-lo curado parcialmente.

Subitamente, à distância, ouviram o som de pessoas correndo em sua direção e acenando para eles. Uthman congelou, o rosto tomado pelo medo. Idrisi colocou os braços em volta dos ombros do filho e disselhe para não se preocupar, eram amigos, não soldados romanos.

— Tem certeza, Abu? Nenhum de nós está usando espadas. Uma Elinore de olhos brilhantes e Simeão, seus cachos dourados agitados pela brisa, ambos ligeiramente ofegantes, pararam de correr quando viram o pai. Uthman sorriu e relaxou de novo. Gostava de Elinore e adorava ouvir Simeão tocar a flauta. Idrisi olhou para ela e soube no instante que tinha algo a lhe dizer mas não esperava encontrar Uthman com ele.

— O que se passa em sua cabeça, filha? Não há segredos para o seu irmão.

— Vou sentar-me debaixo da árvore, se quiserem — disse Uthman.

— Não!

— Então fale.

— Simeão ibn Thawdor e eu temos pensado muito. Chegamos a uma decisão, mas só se ela tiver a sua aprovação, Abi. Gostaríamos de vir morar aqui com Uthman e... se o Confiável está certo quanto à necessidade de construir uma igreja, então Simeão poderia, quando fosse necessário, vestir uma batina de monge e esconder sua flauta.

Uthman bateu palmas de entusiasmo e Idrisi riu. Estava surpreso e contente. O que o preocupava era a idéia de Uthman, abandonado por sua família e dependendo apenas dos criados. Sentia-se culpado de ter abandonado o rapaz quando ainda era jovem. Agora sua filha decidira fazer o que ele deveria ter feito anos atrás.

— Uma decisão maravilhosa! Contanto que se sintam felizes aqui, todo mundo será feliz. Mas até que precise se tornar um monge, Simeão, você deveria escolher um pedaço de terra e cuidar dele.

— Vou fazer isso — respondeu -, mas antes precisamos construir uma pequena igreja. Um cúpula, uma cruz e bancos toscos de madeira, sem adornos, dentro dela. O mapa está na minha cabeça. Podia ser usada como escola. Elinore está decidida a ensinar as crianças a ler e escrever em árabe e grego.

— Quando vão ter as crianças?

— Uthman! — ela gritou ao vê-lo de pé, as pernas afastadas, as mãos nos quadris.

— Acabamos de casar. Nos dê um tempo. Simeão estava falando das crianças da aldeia.

— Fico muito feliz que você e Simeão vão morar aqui comigo. Muito feliz. Temos muito a discutir, mas agora, se me derem licença, preciso ir para informar meus amigos.

Quando os aldeãos chegaram para o mehfil, vestiam suas melhores roupas. Idrisi, que conhecia a maioria das famílias, sentou-se com eles um pouco enquanto comiam e falavam de como a ilha era antes de chegarem. Tudo o que se cultivava era trigo. Agora tinham algodão e bichos-da-seda e a árvore de sumagre para curtir e tingir e nossas tecelãs — e falavam só de Noto — eram as melhores da ilha, se não no mundo inteiro. Uma voz acrescentou:

— Noto foi a última a se entregar e será a primeira a se levantar contra eles.

Depois que comeram, Idrisi e o Confiável falaram cada um por sua vez e explicaram como viam o futuro da propriedade. Os aldeãos ficaram exultantes quando Idrisi lhes disse que a terra pertenceria a eles, mas menos felizes quando o Confiável gentilmente explicou que o caminho da sobrevivência a longo prazo poderia necessitar um desvio pela igreja.

— Confiável — um jovem camponês perguntou -, é normal sonhar com vitórias e triunfos, mas o senhor só fala de derrota. Tem certeza de que seremos derrotados? Nossa aldeia ofereceu cinqüenta jovens para lutar na jihad.

— Meu amigo — respondeu o Confiável -, é melhor estar preparado para tudo. Não sei se vamos vencer ou perder. O que fizerem deve ser da sua própria escolha. Se formos derrotados estou lhes dizendo que, assim como a noite sucede ao dia, os lombardos virão para matar todos vocês e roubar sua terra. Mataram gregos também, de modo que a igreja poderia não ser proteção suficiente, mas pelo menos lhes oferece uma oportunidade.

Idrisi apresentou-lhes Elinore e Simeão. Explicou sem embaraço como ambos haviam sido batizados e viveriam na casa com seu filho Uthman. Falou do desejo de Elinore de ensinar seus filhos a ler e escrever. Aconselhou-os a seguirem os conselhos do Confiável e então, talvez porque pensasse em Balkis, citou uma parelha de versos de Ibn Hamdis.

— Nosso poeta escreveu: "Exauri as energias da guerra! Carreguei em meus ombros os fardos da paz." Estes fardos permanecem e é para aliviar a carga que o Confiável sugere que, caso se torne necessário, escondam sua verdadeira religião. Tais períodos não são desconhecidos na história do nosso povo.

Depois de novas discussões, chegou-se a um entendimento e na sua presença Idrisi pediu ao Confiável que preparasse uma série de registros, um para a terra, outro para a igreja. E então, como se para confirmar seus novos sonhos, Simeão tocou uma melodia jubilosa na flauta e todo mundo começou a bater palmas em ritmo, até que alguns jovens se levantaram e começaram a dançar. Era, como Idrisi contou depois a Simeão, uma dança tradicional berbere que ele não via há muitos anos, memórias da vida no passado distante.

Naquela noite Idrisi chamou o pai de Khalid de lado.

— Umar, você é como um filho para mim. Posso falar francamente com você?

— Claro, Abu Uthman. Por favor.

— Khalid está crescendo rapidamente. Daqui a pouco vai estar discutindo e implorando com você para deixar esta terra e fincar seus pés e sua fortuna em outro lugar.

Mas sinto que falta ao menino o afeto de uma mulher. Já pensou em se casar de novo?

— Já, mas ainda não encontrei uma mulher que me atraia.

— Noto e Siracusa estão cheias delas, suas peles da cor de abricó e sua risada como as ondas de um regato.

Não encontrará ninguém na sua propriedade. Saia por uns tempos. Dê a si mesmo uma oportunidade.

— É um bom conselho e vou ver se posso satisfazer tanto ao senhor como a mim mesmo.

Na manhã seguinte, Khalid e seu pai, acompanhados pelo Confiável, deixaram a propriedade e Sakina os seguiu poucas semanas depois. Seu marido e filhos tinham voltado no dia seguinte aos funerais e ela achava que era hora de voltar e cuidar de suas necessidades. A casa estava virtualmente vazia e Uthman sentia falta do sobrinho, por isso Simeão e Elinore decidiram não voltar com Idrisi no dia seguinte para buscar suas coisas.

— Todas as nossas roupas já estão em Siracusa e minha tia Balkis pode empacotá-las e mandá-las para cá. Não quero deixar Uthman. Se todos nós fôssemos embora o choque poderia ser demais para ele.

— Por favor, transmita meus respeitos e amor ao meu pai quando voltar a Palermo. E diga a ele que estou construindo uma pequena igreja. Isso agradará a minha mãe.

Idrisi abraçou e beijou cada um deles e ficou profundamente afetado ao ver lágrimas nos olhos de Uthman.

— Abu, foi um prazer verdadeiro ver o senhor depois de tanto tempo. Por favor, volte e antes de vinte anos, oito meses e quatro dias.

Os olhos de Idrisi estavam úmidos ao embarcar na carroça e era Uthman quem ocupava mais seus pensamentos na jornada de volta a Siracusa. Lembrou como todo o seu amor e suas esperanças tinham se concentrado em Walid, como era Walid quem ele levava por toda parte consigo. Foi Walid quem se encontrou com o sultão e viajou para conhecer velhos amigos da família em Shakka e Marsa Ali. Foi a Walid que ele fez confidências. Não se arrependia disso, mas ficou furioso agora por seu fracasso em entender que Uthman precisava muito mais dele.

Observar a mudança em Uthman fora uma revelação. Talvez escrevesse sobre isso no seu livro para ajudar outros que tinham de lidar com crianças anormais. Em muitas aldeias, crianças como Uthman eram deixadas na rua para morrer. Não tinham feito isso, mas os cuidados que lhe dispensaram foram muito melhores? O menino fora largado nas mãos de uma surda que cuidara de alimentá-lo e vesti-lo. Quem podia culpá-lo por buscar consolo no reino animal? Idrisi ficou até pensando se não deveria voltar à propriedade por um tempo. Poderia completar o Formulário em sua própria biblioteca. Mayya e Afdal viriam também. Era a vez da casa de Palermo ficar vazia por algum tempo. E Balkis poderia vir aqui sempre que o desejasse. Quanto mais pensava nisso, mais a idéia o atraía. Seu navio estava ancorado em Siracusa; voltaria a Palermo e traria todos a Noto. A enseada não era tão grande como a de Siracusa, mas ótima para o seu barco. E talvez levasse Uthman consigo para Veneza e surpreendesse Walid. Estava longe de Palermo há quase três meses — surpreendente como não sentia falta da cidade.

Mesmo um ano atrás a idéia de morar em qualquer outro lugar teria sido risível. A História havia mudado tudo. Felipe e Rujari. Os dois homens mais próximos de si no palácio. Não apenas História. Mayya e Elinore e Balkis.

Quem poderia ter previsto o que acontecera? Não Alá. Então pensou: se Felipe estivesse vivo e Rujari morto teria sentido o mesmo em relação a Palermo? Tinha dito não a Guilherme, mas se Felipe houvesse insistido que ele pudesse ser de serviço vital para o estado, teria sido capaz de declinar tão rapidamente, ou chegaria sequer a declinar? Quem teria vencido o cabo-de-guerra por seus serviços? Felipe ou Balkis? A História só poderia ser o resultado de uma imaginação desordenada.


17

Massacre em Palermo.
Ydrisi decide nunca mais visitar a cidade.
Parte para Bagdá.

Sabia que algo estava errado no minuto em que entrou no palácio em Siracusa. Quando o guarda o viu no portão, assinalou para o porteiro e rostos tristes se desviavam dele enquanto um tristonho camareiro o conduzia à câmara privada do Amir.

Espero que nada tenha acontecido com Balkis, pensava consigo mesmo o tempo todo. Foi a visão de Abu Fityan que o espantou. O homem caiu de joelhos e recostou a cabeça nos pés de Idrisi.

— Perdoe-me, Ibn Muhammad. Perdoe-me.

— Alguém pode me contar o que aconteceu? Mayya?

Balkis acenou com a cabeça.

— Morta? Por quê? — ele chorou convulsivamente.

— Afdal?

— Está seguro aqui conosco e dorme profundamente.

— Alá seja louvado. Ibn Fityan, pare de chorar e me conte o que aconteceu.

Mas as lágrimas continuavam a rolar. Depois de algum tempo, a história começou a desdobrar-se, interrompida pelo choro e pelas perguntas dos presentes. Concluiu-se que o que aconteceu foi uma chacina de vingança.

O barão de Messina queria saber por que o jovem sultão lhe ordenara que não fizesse reféns em Palermo. O sultão explicou que era um comportamento inaceitável e que mestre Idrisi o aconselhara de que poderia provocar uma reação explosiva. O barão fizera uma mesura e se retirara. Foi o que relataram a Ibn Fityan os eunucos do palácio que entreouviram a conversa. A atmosfera na cidade estava tensa. Houvera outra refrega e os dois lados injuriavam um ao outro. Dois dias depois, Mayya achou que Afdal, que se recuperava de uma febre, poderia se beneficiar do ar marinho. Pediu a Thawdor e a Ibn Fityan que acompanhassem a criança e a aia até a beira-mar.

Quando voltei, mestre, havia sangue nas escadas e meu coração começou a martelar. Corri e vi os corpos dos empregados caídos no chão. Tinham sido destripados e suas gargantas foram cortadas. Só havia um sobrevivente. Estava no seu quarto e escondeu-se debaixo da cama. A senhora Mayya fora desonrada e morta.

Idrisi e Baileis, ignorando a presença de Ibn Fityan, consolaram-se, enxugando as lágrimas das faces um do outro.

— O que aconteceu, Baileis? Por quê? Eu devia ter insistido para que ela viesse para cá. Devia tê-la obrigado a vir. Minha pobre Mayya. Por que ela? Por que não eu? Era atrás de mim que estavam. Como vou encarar Elinore? Deve ir e contar a ela, Baileis. Sim, sim, Ibn Fityan, termine a sua história. Não chore, homem. Fico feliz que esteja vivo. Se não fosse assim, teriam matado Afdal, Thawdor e você. Como poderia tê-los salvo? Teria sido morto com o resto. Não foi sua falha. Não há razão para sentir-se culpado.

Ibn Fityan enxugou as lágrimas e continuou.

— O menino que sobreviveu contoume que os homens estavam bêbados, gritando obscenidades e destruindo tudo. Alguns de seus livros foram jogados pelas janelas. Os restantes estavam no chão onde aqueles animais defecaram e urinaram neles.

A tristeza de Idrisi misturou-se com raiva.

— Não há limite para estes bárbaros?

— Toda a cidade está chocada com o crime, Ibn Muhammad. O sultão ordenou a prisão do barão de Messina. Quer que o barão e seus asseclas sejam executados publicamente. O bispo inglês recomenda cautela.

Idrisi lembrou-se do inglês, de meia-idade, com olhos castanhos claros e cabelos ralos, inteligente, impiedoso com uma voz rouca irônica e desagradável, mas também com uma capacidade ilimitada de bajular aqueles no poder ou próximos a ele. A maioria das cortes os possuem, mas esse bispo era único. Rujari jamais gostara dele ou confiara nele, freqüentemente observando que o homem era pago pelo Vaticano.

— É uma figura do mal. Monges nunca recomendam cautela quando se trata de matar o nosso povo.

Ibn Fityan sacudiu a cabeça tristemente.

— O sultão envia suas condolências e deseja que o senhor retorne a Palermo.

— Não retornarei. Não desejo ver aquela casa de novo.

— Uma decisão sábia.

— Onde está Thawdor?

— Está aqui. Queria ver seu filho e, como eu, não suporta mais ver Palermo ou a casa. Trouxe a aia também, já que Afdal ibn Muhammad está acostumado com sua presença.

— Agiu bem em trazê-lo para cá. Vocês dois podem me acompanhar de volta à propriedade. Talvez Afdal...

— Deixe-o aqui — disse Balkis.

— Haverá tempo depois. Elinore precisa de você e não deve haver distrações.

— Ibn Fityan, seria oportuno se você e Thawdor permanecessem na propriedade. Ele pode trazer sua esposa também.

— Farei como sugere, mestre. Depois que Ibn Fityan deixou a sala, Balkis puxou Idrisi junto a si, repousando sua cabeça no seu colo, e acariciou seus cabelos com os dedos.

— É insuportável, Balkis, que ela fosse punida em meu lugar. É insuportável. E aqueles animais a violentaram e humilharam. Meu filho Uthman me reprovaria por referir-me a eles como animais. Ele acha que os humanos são muito piores.

— Uthman? Seu filho? Nunca falou dele antes.

— Os humanos têm esta capacidade de se escudar das verdades desagradáveis. Envergonho-me de nunca ter falado de Uthman.

Ficou tão feliz de conhecer Elinore que pediu que lhe contasse a respeito de Mayya.

— Quero saber tudo sobre Uthman. Para distrair a ambos da sua dor, descreveu-lhe a história de Uthman em detalhes, como achava mais fácil relacionar-se com animais ou jovens humanos como Khalid do que com a raça humana. Balkis decidiu-se a levar seus novos irmãos para conhecê-lo. Mas agora Idrisi devia partir de novo para sua propriedade a fim de dar a Elinore as notícias terríveis da morte de sua mãe. Antes de sua partida ele quis ver Afdal. Balkis levou-o pelo braço até o quarto onde o menino dormia.

Chorou de novo ao ver seu filho adormecido, com menos de seis meses de idade. Quem podia amá-lo como sua mãe o amara? Ela quase leu seus pensamentos.

— Tenho leite suficiente para os dois — disse.

— Vou criá-lo como se fosse meu próprio filho.

— Talvez dentro de poucos meses eu devesse levá-lo para nossas terras. Deixe-me falar com Elinore.

Ao deixarem o quarto, viram o Amir que cumprimentou Idrisi com um abraço caloroso.

— Alá tenha piedade de nós, Ibn Muhammad.

— Ninguém mais tem — disse o erudito.

Algumas horas depois que ele partiu, Balkis amamentava as duas crianças e notou que Afdal empurrava seu mamilo para o lado antes de agarrá-lo de novo, enquanto Hamdis agarrava-se ao mamilo como um inseto. Talvez meu leite tenha um gosto diferente e ele tenha notado. Mas Eudóxia, a criada que sobreviveu ao massacre, tranqüilizou Balkis.

— Ele é assim com cada teta, minha senhora, se perdoa meu jeito de falar. Sua irmã — que Deus a abençoe — lutava sempre para amamentá-lo. É um garoto forte e vai dar muito trabalho às mulheres, Deus o abençoe.

— Vai à igreja todo domingo?

— Sim, minha senhora.

— Acha que aqueles bárbaros que mataram minha irmã e os empregados a teriam poupado se vissem o crucifixo pendurado no seu pescoço?

— Não, minha senhora. Duas das garotas que foram mortas tinham a mesma cruz ao redor de seus pescoços. Eram animais, minha senhora, piores ainda. Lombardos! Não eram desta ilha. Nossa gente...

— Existe uma velha igreja grega em Siracusa. Dizem que existem dois ícones que reluzem e sorriem no escuro. Nunca estive dentro dela. Conte-me como é.

— Vou contar, minha senhora, e obrigada pela bondade. Quando Idrisi estava afastado por mais de quatro semanas, Balkis começou a entrar em pânico. Sentia-se negligenciada e lembrou algo que Mayya lhe dissera quando estavam ambas grávidas.

— Amor e ciúme são irmãs, Balkis. Eu sou o amor e você é o ciúme.

Na ocasião ela rira e saudara a observação com sonoros protestos, mas sabia que continha mais do que um único grão de verdade.

Enquanto Mayya vivia, Balkis se reconciliara com a idéia de ficar com Aziz e compartilhar Idrisi com a irmã. Agora ela o queria o tempo todo. Se ele decidisse morar na propriedade, poderia visitálo três ou quatro vezes por semana. Eram três horas a pé até Noto. Podia ir a cavalo em menos de uma hora. Começou a planejar.

O que ela queria agora era outro filho. Então poderia deixar Hamdis com seu pai e poderia morar com o seu Muhammad.

Idrisi voltou na semana seguinte e foi primeiro até o seu filho, que estava com Eudóxia nos jardins. Segurou o menino e o beijou muitas vezes antes de ir à procura de Balkis. Ela o abraçou firme enquanto ele lhe contava tudo o que acontecera.

— Nada que você não pudesse imaginar, minha amada. Elinore estava inconsolável. Não havia nada que eu pudesse dizer ou fazer para a consolar. Ficou no seu quarto e recusou-se a comer. Acho que foi a flauta de Simeão que a atraiu para fora de novo. Conversou interminavelmente com Ibn Fityan e Thawdor, mas eles lhe pouparam os piores detalhes. Então ela, também, disse que nunca mais queria voltar a Palermo. Uthman levou-a em longas caminhadas e ela voltou com alguma cor nas faces.

Quer muito que você vá com os meninos. Simeão ficou abalado pelas notícias, também. Foi por puro acaso que seu pai sobreviveu e implorou ao velho para que mandasse chamar sua mãe. Ibn Fityan vai ficar na propriedade. Portanto, a morte da minha pobre Mayya nos trouxe todos de volta ao Val di Noto.

— E você, habibi? Onde vai ficar?

— Quero ver as crianças crescerem e Elinore reencontrar a felicidade. Vou terminar meu livro aqui na fazenda. E antes que pergunte quanto tempo o livro vai demorar, deixe-me informála, senhora Balkis, mais três meses e estará terminado. Volto amanhã. Quando virá?

— Com você, amanhã.

— E com as crianças?

— Sim. Como sabe, Ibn Muhammad, meu marido é bondoso e...

Colocou a mão sobre a boca de Balkis.

— A morte de Mayya piorou as coisas para nós. Não vê-lo todo dia é agora muito mais difícil.

Ele acariciou a sua mão. Partiram cedo para evitar que os meninos fossem submetidos ao sol do meio-dia. Balkis e Idrisi cavalgaram, enquanto Eudóxia e outra empregada eram transportadas de carroça. O grupo de Siracusa foi recebido com genuíno calor. Elinore agarrou-se à tia enquanto as duas mulheres choravam. Simeão mostrou a igreja já pronta orgulhosamente para eles, Eudóxia caindo de joelhos no minuto em que entrou para fazer uma prece. Simeão observou-a calmamente.

— Se os acontecimentos previstos pelo Confiável vierem a ocorrer, esta pequena edificação poderá ser a salvação desta propriedade.

Elinore era agora aceita como a senhora da casa e da fazenda. Havia reservado quartos para eles e Balkis ficou preocupada ao descobrir que iria compartilhar o quarto de Idrisi.

— Será prudente? — sussurrou para a sobrinha.

— Uthman não acharia isso de mau gosto?

— Ele é um verdadeiro pagão, tia. Acharia estranho se vocês tivessem quartos separados, pois sabe que Hamdis é nosso irmão.

— Você criou um mundo sem segredo de espécie alguma?

— Ninguém sabe que estou grávida. Balkis abraçou e beijou a sobrinha.

— Fico tão feliz por você.

— Espero que seja uma menina, tia. Quero chamá-la de Mayya.

— Às vezes o que a gente quer, a gente consegue.

— Não segundo Abi. Seu conhecimento médico ensinou-lhe diferentemente.

— Como vai seu livro?

— Está quase terminado, diz ele, mas Uthman, que usa a biblioteca mais do que o resto de nós, não está tão convencido assim. Diz que faltam ainda mais uns seis meses de trabalho. E isso é outro segredo. Seria repreendido se descobrissem que está lendo o manuscrito toda vez que Abi sai para uma caminhada.

Balkis expressou surpresa diante das capacidades de Uthman.

— Ele é normal a maior parte do tempo. Gosta de viver num mundo fechado. Certa vez perguntei se visitaria Siracusa e ele saiu correndo da sala e foi para a sua árvore. Descobri as coisas que o perturbam e se evitamos mencioná-las ele se comporta como qualquer outra pessoa. Fala coisas estranhas às vezes. Certa vez me disse que se não houvesse uma biblioteca na casa ele teria morrido. E fala sério, cada palavra que diz.

— Parece que ele se conhece melhor do que a maioria de vocês o conhece?

— É muito simples, tia, mas não posso explicar por quê. Balkis já se sentia à vontade. Não tinha responsabilidades domésticas, além de amamentar as crianças e, quando Idrisi trabalhava, persuadia Uthman a mostrar-lhe a fazenda, ouvindo atentamente enquanto ele descrevia cada árvore e planta. Então ela conheceu os animais.

Mais tarde naquela noite, depois de amamentar os bebês, voltou ao seu quarto e encontrou Idrisi com um terrível acesso de tosse. Ao se aproximar, ele ergueu os olhos com um ar de súplica.

— Em nome de Alá, mulher, não vê que preciso de leite? Então ela se deu conta.

— Meus seios estão vazios. Seus filhos são tão gulosos quanto o pai.

— Quando vão ficar cheios de novo?

— Dentro de poucas horas. Ela o aninhou.

— Não quero deixá-lo, Muhammad, mas preciso voltar amanhã. Vai ter uma festa em homenagem a Aziz.

— Por que nunca há uma festa em minha homenagem?

— Porque ele é o Amir de Siracusa e você, meu querido, é apenas o Amir do Livro. Os homens ricos da cidade adoram homenagear uns aos outros. O anfitrião de amanhã é um mercador judeu, o que significa que poucos nazarenos comparecerão. Aziz convidou todos os nossos notáveis e, o que é fora do comum, suas esposas deverão estar presentes também. A maioria delas são criaturas plácidas, caprichosas e mimadas e se queixarão amargamente de que foram forçadas a ir.

— Estranho como nos últimos quinhentos anos o destino dos judeus esteve muitas vezes ligado ao nosso próprio futuro. Quando nós sofremos, eles sofrem. Quando prosperamos, eles prosperam. Quando estão presentes e nós não estamos, não conseguem se defender e são chacinados como carneiros. É a mesma história aqui, em alAndalus e em al-Quds, Bagdá, Cairo e Damasco.

— Vou repetir estas palavras sábias para o meu marido. Talvez ele encontre um uso para elas na festa.

— E, se me permite, gostaria de encontrar um uso para você esta noite.

E Balkis ficou grávida pela segunda vez. Idrisi recordaria estes oito meses na fazenda como os mais felizes de sua vida. Uthman o surpreendia a cada dia. Seus momentos ruins tornaram-se cada vez mais raros e sua saúde melhorou consideravelmente. Sua manqueira desapareceu totalmente e as manchas na pele desapareceram.

Elinore confiou ao pai que, embora ele ainda amasse ovelhas, sentia que estava pronto para o casamento com uma mulher e talvez sua tia pudesse ajudar.

É possível, respondeu seu pai, que Balkis encontre alguém inteligente que se pareça também com uma ovelha.

Idrisi percebeu que Uthman estava lendo em segredo o seu livro, mas, longe de se zangar, ficou empolgado. Assim que o fato veio à tona, os dois discutiram vários trechos e ele pedia a Uthman para comparar al-Kindi com Hipócrates em relação a uma cura específica. Uthman conhecia cada livro da biblioteca. Sem os trezentos novos acréscimos, ele havia contado 3.421 volumes.

E havia Balkis, cujas visitas à fazenda se tornaram mais freqüentes à medida que sua barriga aumentava. Nunca amara uma mulher assim antes, nem mesmo Mayya. Via Balkis e Elinore, ambas na gravidez adiantada, caminhando juntas e comparando seus ventres. Agradava-lhe vê-las assim e certa vez Uthman se perguntara em voz alta quem nasceria antes, o sobrinho ou o irmão. E se fossem uma sobrinha e uma irmã, o pai lhe perguntou. Encolhera os ombros. Não tinha a menor importância para ele.

Enquanto Hamdis ficara no palácio sob os cuidados de uma ama-de-leite, Afdal crescia na fazenda. Mesmo quando Balkis tinha de voltar para Siracusa, ela o deixava nas mãos seguras de Eudóxia. Mas quem Afdal, já crescidinho, adorava era o seu tio Uthman, que passava grande parte do tempo com ele e lhe falava como se estivesse falando com um par. O resultado foi que as primeiras palavras que Afdal falou foram belamente expressas: amigo, ovelha, livro, manteiga, cabra, flauta e Simeão.

O livro foi terminado dois meses antes que as novas crianças nascessem e Idrisi ficou irritadiço. Foi Balkis quem sugeriu que ele e Uthman fossem visitar Walid em Veneza. A mera sugestão fez Uthman correr para a sua árvore e ele ficou lá até que Balkis e Elinore chegassem para consolá-lo e pedir desculpas pela sugestão.

— Por favor, não se livrem de mim — foi tudo o que disse para elas.

Balkis ficou mortificada. Ao contrário do seu filho, Idrisi estava pronto para viajar de novo. Sentia falta do mar, mas também sabia que se não fosse ver Walid agora logo poderia ser tarde demais. De lá iria para Alexandria e para o Cairo renovar velhas amizades quase esquecidas. Ele, que se perdera no seu trabalho por tanto tempo, agora sentia a necessidade de estar numa cidade em que os Crentes dominassem, mas não qualquer cidade. Os bárbaros já são ruins o bastante, pensou, mas temos nossos próprios bárbaros, que queimam livros dos nossos maiores filósofos e castigam os poetas. Se os verdadeiros bárbaros e nossos bárbaros chegarem um dia a se aliar, Alá sozinho não será ajuda suficiente para nós.

Sua decisão estava tomada. Pediu a Uthman para ler todo o manuscrito cuidadosamente e aparar as inconsistências. Quando voltasse prepararia a versão final.

— E quando será isso, Abu?

— Poucos meses, no máximo. Cuide de Afdal por mim. Foi a mais dolorosa despedida, pois tinham se tornado fortemente apegados um ao outro.

Depois de abraçar o pai, Uthman retirou-se de novo para a árvore. Não gostava que as pessoas deixassem a fazenda.

Idrisi desejou o melhor para Elinore e Simeão e perguntou se tinham pensado num nome, caso fosse um menino.

— Thawdor — respondeu Elinore.

— Original — respondeu o pai. Balkis havia jurado a si mesma que não iria chorar e seus olhos ficaram secos.

— Se nosso filho for uma menina e Elinore tiver um menino, vamos chamar nossa filha de Mayya. Concorda?

— Concordo. E se for um menino?

— Nuwas! Concorda?

— Concordo. E se as duas tiverem meninas?

— Não havia pensado nessa possibilidade.

— Que sejam duas Mayyas.

— Sim. Muhammad, preciso saber a verdade. Seria capaz de calcular um preço para o nosso amor?

— Como poderia? É inestimável.

— Então garanta que vai voltar para mim. Não quero pensar em você como um mendigo numa terra estranha. Esta ilha é o seu lar apesar de tudo. E o elixir que cura sua tosse não é da mesma qualidade em outras partes.

Ele beijou seus olhos e então seus lábios. Dois dias velejando e Siracusa já parecia muito distante. Idrisi não sabia, mas havia passado por um navio mercante que levava Walid para Siqilliya. Ele imaginava se conseguiriam um dia retomar a ilha dos francos e se livrar dos lombardos. Mas se o conseguíssemos, o que faríamos desta vez diferente da anterior? Conseguiríamos trabalhar juntos? Dar ao povo algo por que pudesse morrer, sem fazer muita pressão sobre ele? O Confiável tinha idéias úteis, mas o grande problema era romper com os modos tribais de pensamento e elevar-se ao nível de cultura que criamos. Mas tudo isso são sonhos dourados.

Como podemos lidar com centenas de milhares de pessoas que ignoram seus próprios interesses e mergulham orgulhosamente num desastre e depois em outro?

Talvez não devesse visitar Alexandria desta vez. Iria até a cidade dos califas e se misturaria com os poetas e com os filósofos e buscaria novos livros na Casa da Sabedoria. Iria até Bagdá, a cidade que sempre será nossa. A cidade que jamais cairá. A cidade que jamais cairá.

LUCERA 1250-1300


Epílogo

Idrisi encontrou Walid ao voltar a Siqilliya e viveu na sua propriedade até sua morte, 11 anos depois daquela de Rujari. Seu Formulário Médico foi publicado em Bagdá, mas não continha o remédio para tosses. Uthman e Walid nunca se casaram. O filho de Balkis, Nuwas, tornou-se um poeta errante, deixando Siracusa aos 18 anos e mudando de cidade em cidade em alAndalus. Nenhum de seus poemas sobreviveu. A filha de Elinore, Mayya, e seus três irmãos e seus filhos continuaram a viver na propriedade onde uma igreja maior foi construída para acomodar o novo rebanho. O Confiável, depois de ensinar filosofia e história para Khalid e seus filhos, morreu tranqüilamente aos 84 anos. A aldeia que ajudara a recriar ainda existe e venera sua memória — embora seja considerado hoje um santo cristão.

Nos cem anos que se passaram desde a morte de Idrisi, membros de sua família combateram em cada rebelião. Enquanto os francos lutavam entre si pelo trono de Palermo, bandos armados sob o comando de Khalid ibn Umar e Afdal ibn Muhammad haviam libertado grandes partes de Siqilliya ocidental. Os francos mandaram expedições para esmagá-los, mas se contentaram em mantê-los confinados em seus bastiões. Um levante em Palermo abalara a autoconfiança dos francos e severas restrições foram impostas. A khutba das sextas-feiras foi proibida e o comparecimento a qualquer mehfil era punido com a morte.

Khalid morreu aos sessenta anos enquanto os sinos das igrejas repicavam para marcar 12 séculos da religião nazarena. Seu filho Muhammad juntou-se a Afdal e por muitos anos eles infernizaram e destruíram muitas legiões despachadas por Palermo a fim de esmagá-los.

Foi o neto de Rujari, Frederico, quem finalmente destruiu os últimos bolsões de rebelião remanescentes em Siqilliya. Seu amor pela cultura árabe e seus próprios palácios e haréns haviam levado os Crentes a esperar que a Era de Ouro pudesse voltar. Mas haviam esquecido que o jovem Frederico era também o neto de Barba Ruiva.

As duas tendências nele geralmente levavam a conciliações. Não queria massacrar os muçulmanos, mas simplesmente removê-los e assim purificar a ilha. No ano de 1224 da Era Cristã, aqueles que se recusavam a se converter eram instados a empacotar suas posses e levados aos principais portos da ilha. Por doze meses, mais de cinqüenta mil siqillianos que se recusaram a render-se espiritualmente foram transportados em navios para o continente. Entre eles estavam os netos de Idrisi, Muhammad ibn Afdal, Muhammad ibn Khalid e suas famílias.

Na região de Apúlia, perto da antiga cidade romana onde César havia combatido Pompeu, havia uma minúscula aldeia, Lucera, virtualmente desabitada. Foi para ali que os transportaram. Dentro de dois anos, Lucera havia se tornado uma das cidades mais prósperas do sul. A terra que cercava o povoado fora cultivada depois de anos sem uso, lojas e oficinas brotaram e artesãos habilidosos produziam entalhes de madeira e cerâmicas que não eram mais feitas em Noto e Siracusa. Frederico construiu um castelo para si com seu próprio harém. Os colonizadores construíram uma bela mesquita com uma grande biblioteca, não longe do castelo. O papa excomungou Frederico por permitir a construção de edifícios onde o "amaldiçoado Maomé é adorado". Dizem que quando a excomunhão foi lida para ele no seu palácio em Lucera ele estava embriagado, cercado por concubinas, e reagiu com a tradicional saudação do lado siqilliyano da sua família. Ele peidou.

Dentro da colônia, três jovens começaram a organizar meh fils secretos. Encontravam-se toda sexta-feira à noite e discutiam o futuro do seu povo. Aos poucos, mais e mais pessoas, jovens, velhos e mulheres, começaram a escutar. Ibn Afdal lhes contava que Lucera parecia pacífica e que não eram perseguidos, embora muitos jovens tivessem sido mortos combatendo a guerra de Frederico contra outros nazarenos.

— Tendo nos forçado a deixar Siqilliya, ele pode ser generoso, mas esse mesmo rei que permitiu que construíssemos a Grande Mesquita aqui está destruindo todas as nossas mesquitas em Palermo e no resto da ilha. Vimos discutindo nosso futuro há muitos meses. Eu sugeriria que nos preparássemos para deixar este lugar. Não será seguro depois que Frederico morrer. Não estou sugerindo uma partida imediata. Eles nos matariam antes que tivéssemos ido muito longe. Mas cada mês uma família deveria sair.

— E para onde iríamos, Ibn Afdal? Existe ainda algum lugar para nós?

Quinze homens levantaram-se e ficaram de pé em diferentes partes do mehfil.

— Sim. Se desejarem partir, falem com um destes homens. Olhem para eles cuidadosamente. Se os conhecem, tentem esquecer seus nomes. Vão e falem com eles.

Poucos queriam partir e destes a maioria desejava ficar o mais próxima possível de Siqilliya. Um dia, pensaram, voltaremos. Nascemos aqui. Construímos estas cidades.

Por que não deveríamos voltar? Eles escolheram ir para Ifriqiya, para as cidades de Mahdia e Bone que, Alá seja louvado, haviam sido retomadas pela nossa gente. Se estas cidades podiam ser recuperadas, por que não Palermo e Atrabanishi?

Quando Frederico morreu em 1250, o pânico espalhou-se pela cidade, mas já era tarde. O primeiro massacre aconteceu alguns meses depois. Àquela altura Ibn Afdal estava morto. E Lucera, também, estava para perecer. Não muito tempo depois da morte de Frederico, a maioria de sua população foi massacrada. Poucos milhares, principalmente mulheres, foram convertidos à força. A mesquita foi queimada. Como a estrela brilhante que atravessa o céu e é vista por todos, mas rapidamente desaparece, a cidade florescente desapareceu, seus poucos traços enterrados sob o solo. O castelo de Fredrico foi deixado intocado.

No dia em que Frederico morreu, o filho de Ibn Afdal, Uthman, e seus primos Umar e Muhammad, decidiram que era tolice esperar mais. Haviam se preparado longamente para este dia e tiraram proveito da confusão. Seus cavalos estavam prontos para a jornada. Umar e Muhammad deixaram Lucera à tarde. Dirigiam-se para a costa, onde embarcaram num navio mercante para Ifriqiya.

Uthman não foi com eles. Quando criança, sua imaginação fora inflamada pelas histórias que seu pai lhe contava sobre o Confiável e como haviam organizado diferentes formas de resistência na ilha, mas a história que mais gostava era distante deste mundo. Adorava ouvir como os francos foram derrotados por Salah al-din e expulsos de al-Quds e como a Grande Mesquita fora limpa e preparada para o agradecimento a Alá pela vitória que tinham alcançado. Durante muitos meses Uthman vacilara quanto ao seu destino. Quanto mais pensava, mais se dava conta de que não queria morrer antes que seus olhos vissem a mesquita de al-Aqsa e de beijar a terra onde sua gente havia triunfado sobre os bárbaros. Levou sua família para a Palestina.

Esta narrativa se passa na Sicília medieval, em Palermo, uma cidade muçulmana que rivaliza com Bagdá e Córdoba em tamanho e esplendor. O ano é 1153 e a ilha foi ocupada pelos normandos. Mas na "Sigilliya", a cultura e a língua árabes dominam a terra e a corte. A aliança entre o papa Urbano II e o imperador bizantino havia motivado os governantes cristãos europeus a erradicar enclaves muçulmanos. Contudo, Rogério I da Sicflia e seu filho Rogério II recusam a perseguição aos muçulmanos, concedendo liberdade religiosa e proteção contra a Igreja e os cristãos. Inspirado nesse ambiente conflagrado, o autor aborda os últimos anos de Rogério II, conhecido por seus súditos muçulmanos como sultão Rujari. Ele se cerca de intelectuais muçulmanos, várias concubinas e promove uma administração presidida por talentosos eunucos.
Tariq Ali mapeia a vida e os amores do geógrafo e médico medieval Muhammad alIdrisi. Dividido entre seus vínculos com o sultão e os amigos, que estão deixando a ilha ou arquitetando uma resistência contra o domínio normando, Idrisi encontra alívio temporário no harém; mas, confrontado com as pessoas comuns de Noto e da Catânia, entra em crise de consciência. Um sultão em Palermo é uma narrativa mítica em que orgulho, cobiça e luxúria entremeiam-se com resistência e grandeza.

 


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1

Reflexões de Idrisi sobre inícios e encontros casuais.
Seu primeiro encontro com Rujari.

A primeira frase é crucial. Ele sabia disso por instinto e por seu estudo de velhos manuscritos. Como os antigos entendiam bem disso, com que cuidado escolhiam seus inícios, com que facilidade seu trabalho devia ter progredido uma vez tomada aquela decisão. Por onde começar? Como começar? Invejava neles as escolhas que seu mundo lhes tornara possíveis, sua capacidade de buscar o conhecimento onde quer que pudesse ser encontrado.

Sua mãe lhe ensinara que as pessoas do Livro, que insistem que todo conhecimento anterior ao tempo de seus próprios Profetas nada vale, traíam sua própria ignorância.

Ela lhe contara como, quando a cidade fora tomada por uma casta especial dos guerreiros do Profeta — homens que temiam o conhecimento mais do que a morte -, o avô dela, um venerado matemático de Qurtuba, fora publicamente despido de sua dignidade e passado a fio de espada com outros oito eruditos. Os fanáticos que matavam em nome da religião referiam-se ao mundo dos antigos como "o tempo da ignorância", um mundo em que as pessoas não eram sobrecarregadas pela necessidade de adorar um único deus. Como deviam ter blasfemado à vontade. Um mundo sem apóstatas. Um sorriso iluminou seu rosto por um momento antes que a nuvem voltasse.

Ao contrário de nós, pensou. Somos condenados a soçobrar na voragem da eterna repetição. Em nome de Alá o Misericordioso e de Maomé o seu Profeta, seu mais fiel Mensageiro. O único consolo era que os blasfemos nazarenos eram muito piores. Como podia Alá ser o pai apenas de Isa? Como podia o Todo-Poderoso produzir apenas um filho? E por que tinham os nazarenos inventado esta inverdade? Só podia ser porque estavam mais próximos no tempo ao mundo romano e seus deuses. Para fazer convertidos eles precisavam injetar alguma mágica no seu credo. Como desejava que tivessem conservado os velhos deuses ou, pelo menos, os melhores deles. Zeus podia ter sido o pai de Isa, ou Apolo, Ares ou Poseidon... não, não Poseidon. Era muito estúpido. Mariam vivia longe do mar e Yusuf não era um pescador. Talvez o manco e lascivo Hefaístos tivesse entrado... Subiu ao convés do navio imperial e respirou fundo várias vezes. Lavar seus pulmões com o ar marinho havia se tornado um ritual. Sorriu. O sol estava para se pôr. O mar ainda estava calmo. Poseidon ajudando, chegariam a Palermo sem outra tempestade.

Esta era a sua última viagem antes da conclusão do seu livro. O navio tinha circundado a ilha duas vezes e ele havia verificado cada detalhe no seu mapa da Siqilliya em confronto com a linha costeira à sua frente. De vez em quando desembarcavam para recolher água fresca, comida e as ervas frescas de que precisava para testar suas fórmulas médicas. Idrisi era geógrafo e médico. Embora a viagem tivesse durado menos de um mês, estava cansado. Dormia mais do que o comum e na maioria dos seus sonhos voltava à sua infância — sua mãe olhando para as estrelas, as ruas de Noto calçadas com pedras, os troncos das árvores com cicatrizes de raios, as mulheres ordenhando vacas e cabras, o rosto bexiguento do seu pai — mas quando ele repousava à tarde invariavelmente sonhava com Mayya, geralmente o mesmo sonho quase sem nenhuma variação. Estavam deitados nus nos braços um do outro depois de fazer amor. Era sempre no quarto de dormir dela no harém do palácio, com os eunucos vigiando do lado de fora. Nada mais acontecia. A repetição o incomodava tanto que chegou a pensar até em procurar o intérprete de sonhos, mas algo sempre o detinha.

Na noite passada, pela primeira vez, sonhou algo diferente. Era um guerreiro envolvido numa luta, mas quando acordou não tinha lembrança alguma do inimigo. Pensava naquilo agora no convés, observando o mar mudar de cor, e imaginava se poderia ter sido de alguma utilidade como soldado. Tinha altura mediana com feições delicadas e uma pele macia e clara, como se o seu gênero tivesse sido decidido somente no último minuto. O sol havia escurecido seu rosto, exagerando a brancura da sua barba.

Era bem aparada, imitando o estilo de um erudito qurtubês. Tinha 58 anos de idade, uma época da vida que compele a maioria dos homens a pensar no passado, não no futuro. E assim teria sido com ele não fosse pelo fato de que estava possuído por uma tremenda raiva, da qual somente dois de seus amigos mais próximos tinham noção, embora não pudessem entender suas causas. Para o sultão e os cortesãos no palácio em Palermo, era um erudito de uma certa importância e um homem de temperamento calmo. Não tinham nenhuma idéia do que se escondia sob a máscara ou de que se zangasse por dentro pelas coisas mais estranhas. Certa vez seu amigo mais chegado, Ibn Hamid, cujo coração estava oprimido, olhara para o céu e murmurara "Oh, a poesia das estrelas" e Idrisi reagira num tom irritado, submetendo-o a uma aula de astronomia e sobre o movimento da Terra. Não tinha notado como cada noite um movimento se repetia? Os antigos haviam tentado penetrar nos segredos dos céus, mas tinham fracassado. Se o que ele pensava fosse verdade, então o Corão estava errado e, se o Corão estivesse errado, quem havia cometido o erro? Má ou o seu Mensageiro? Ibn Hamid ficou temeroso de que o seu amigo fosse acusado de blasfêmia e aconselhou-o a deixar tais questões para o futuro.

A resposta de Idrisi fora um olhar fulminante e ficaram sem se falar nos dias que se seguiram. Agora Ibn Hamid também havia abandonado a ilha, deixando seu amigo mais isolado do que nunca. Palavras duras foram trocadas e Idrisi fora acusado de oferecer ajuda aos estrangeiros que ocuparam a ilha. Talvez, pensou Idrisi, ele também devesse ter ido embora e se estabelecido em Ifriqiya ou talvez Bagdá, onde o Califa era protetor de pensadores e poetas. Mas sua vida foi mudada por um encontro casual que lhe ofereceu mais liberdade do que imaginara possível.

Seus pensamentos voaram de volta a um fim de tarde em que trabalhava na biblioteca do palácio do sultão Rujari em Palermo. Tinha obtido permissão para freqüentá-la e se deleitava como uma criança a cada nova descoberta. Lembrou a excitação que se apossara dele há quase 27 anos quando vira pela primeira vez o velho manuscrito grego al-Homa. Poderia ser esta a obra de que falara seu bisavô paterno todos aqueles anos atrás em Malaka? Seu avô passara a memória ao seu pai e ele podia ainda ouvir a voz alta, ligeiramente agitada do seu velho pai pontuando a história arrancando os pêlos brancos da sua barba ainda castanho-escura. Contou como os qadis, receosos do poder da poesia e da sua capacidade de desencaminhar os Crentes, haviam decretado que apenas três cópias da tradução árabe fossem permitidas a fim de que os teólogos pudessem estudar as religiões pagãs que levaram ao período de Ignorância na Arábia na época em que o nosso Profeta nasceu.

A tarefa foi confiada a 12 homens. Conhecedores mais capacitados do grego antigo, eles tinham traduzido todas as obras de Galeno e Pitágoras, Hipócrates e Aristóteles, Sócrates e Platão, e até mesmo as peças de Aristófanes. Todas estas obras estavam na biblioteca de Bagdá. Mas tradutores, embora fossem empregados do palácio cuidadosamente escolhidos e de confiança, não tinham permissão de ler a obra inteira. Os calígrafos que faziam a transcrição faziam o juramento do silêncio. Se divulgassem a natureza do seu trabalho a qualquer pessoa — e isso incluía suas esposas e amantes — a penalidade seria rápida e a cimitarra do carrasco, como um relâmpago, separaria a cabeça do corpo.

Seu pai sorrira. "Ameaças nunca funcionam em nosso mundo. É possível que, se nada tivesse sido dito, os calígrafos tivessem copiado a obra e partido para a tarefa seguinte. O perigo aguçava a sua curiosidade mas, enquanto 11 deles aceitaram a inviolabilidade da injunção de um qadi, um décimo segundo conseguira copiar a metade do primeiro poema e quase a maioria da segunda parte e enviar para sua família em Damasco. Seu filho, também tradutor, veio trabalhar na escola em Toledo.

Casou-se com uma mulher de Qurtuba. Seu neto descobriu o manuscrito incompleto escondido debaixo do Corão numa velha arca e permitiu que o meu bisavô o lesse em sua casa. Foi assim que nosso ancestral descobriu que o livro grego fora guardado em compartimentos secretos na biblioteca de Palermo. Era preciso obter permissão especial do Califa antes que qualquer erudito tivesse acesso à seção oculta da biblioteca."

Foi durante seu primeiro ano na biblioteca do velho palácio em Palermo, a mais longa viagem que sua mente havia empreendido, que tropeçou na seção secreta e informou ao camareiro do palácio, que informou ao seu mestre. O sultão Rujari interrompera sua refeição e correra para a biblioteca. Idrisi, encontrando-se com o soberano nazareno pela primeira vez, explicou a sua excitação. O sultão não ouvira falar de al-Homa, mas declarou sua intenção imediata de estudar ele mesmo o manuscrito.

O árabe que falava não era perfeito, mas lia bem o idioma. O camareiro apanhou o manuscrito e ia deixar a biblioteca mas foi detido pelo sultão que, notando o desapontamento no rosto do jovem erudito, instruiu o camareiro a encontrar os melhores calígrafos em Palermo e os pôr a trabalhar. Queria uma nova cópia à sua espera quando voltasse de Noto. Virou-se então para o jovem de turbante que havia assumido uma postura modesta.

— Seu nome?

— Muhammad ibn Abdallah ibn Muhammad alIdrisi, Sua Majestade.

— Mestre Idrisi, depois de lermos ambos esta obra cuidadosamente, nós a discutiremos juntos. Vamos comparar o conhecimento que obtemos dela. Se o árabe usado na tradução for complexo demais, vou convocar Ahmed de Djirdjent.

Seis semanas depois, convocado à presença de Rujari, o jovem erudito havia memorizado alguns versos da obra de al-Homa.

— Não posso entender por que esta obra perturbou tanto os seus teólogos.

— Acho que eles não podiam tolerar a mistura de deuses e humanos, Comandante dos Sábios. E deuses criados à imagem de homens e mulheres eram inaceitáveis para eles. Não podia haver outra razão.

— Mas esta é a parte mais deleitável da obra. Seus deuses eram parte de tudo o que acontecia: guerras, inundações, desgraças, aventuras no céu e no mar, brigas familiares, nascimentos, casamentos, mortes, renascimentos. Acha que a esposa do navegante Odisseu, que resistiu aos cortejadores terrestres, poderia ter sucumbido ao encanto de um deus? Surpreende-me que nenhum deles tenha tentado. Devo dar instruções para que seja traduzido imediatamente para o latim, a não ser que um manuscrito já exista. Pode verificar para mim? Se só existir no Vaticano, então vamos precisar da nossa própria tradução. Os monges não vão gostar, assim como o qadi. Que aspecto da obra mais o atraiu? Foi a astúcia das mulheres? Ou o medo do desconhecido? Ou a vida como uma jornada sem fim, interrompida por provas de resistência?

— Tudo me atraiu, Sua Majestade, mas fui tocado por algo mais: a noção de geografia de al-Homa me surpreendeu. Na segunda parte da obra ele descreve nosso mar e as ilhas, os países, as árvores. Nos tempos antigos as pessoas não viajavam tanto quanto nós o fazemos. A maioria das pessoas era enterrada na aldeia onde nascia.

Al-Homa contou-lhes que havia um outro mundo do lado de fora de sua aldeia e ilha. Na boca de Menelau ele coloca estas palavras:

"Aventurei-me até Chipre e Fenícias, até os Egípcios, Alcancei os Etíopes, Eremboi, Sidônios e a Líbia."

— E gigantes de um só olho e as mulheres tentadoras que afundavam navios não longe destas costas?

— Vicissitudes transitórias, nobre sultão, nada mais. Revelam o poder da imaginação do poeta, mas nada mais. Para mim, o realmente notável no seu trabalho é que as descrições das coisas reais são quase exatas. Ele visitou nossa ilha e a chamou de Scylla. Estou convencido de que al-Homa deve ter sido um homem do mar. E combateu numa guerra, mas foi o mapa de suas viagens que distinguiu a sua memória.

— O camareiro me informou que você, também, é um cartógrafo.

Idrisi fez uma mesura.

— Quando tiver terminado o seu trabalho nesta biblioteca, gostaria de ser informado de todas as suas descobertas.

Nos 13 meses seguintes Idrisi abandonou tudo — amantes, amigos, pupilos — em busca da verdade. O sultão lhe havia concedido a liberdade de sua biblioteca e, além de comer e das funções do corpo que isso necessariamente acarretava, passava cada dia enterrado num manuscrito. Os eunucos do palácio geralmente se referiam a ele como Abu Kitab, o pai do livro. Depois, como um confidente de confiança do sultão, sua posição realçada exigiu um título superior: agora se referiam a ele como Amir al-kitab.

Aqueles meses na biblioteca tinham sido de pura felicidade. Al-Homa foi apenas o começo. Ele visitaria Ítaca e as outras ilhas em busca de traços. Muitas vezes se perguntava se al-Homa teria escrito aquelas obras tão bonitas sozinho ou se teria herdado as histórias e as coberto com o seu próprio manto divino. E como era espantoso descobrir que apenas poucas gerações depois da morte de al-Homa, Xenófanes o denunciara numa linguagem que ecoava os teólogos de hoje: "Homero atribuiu aos deuses tudo o que é desonroso e culpável entre os homens — roubo, adultério e trapaça." E os contadores de histórias em Bagdá que compilavam os relatos das mil noites teriam Odisseu em mente quando criaram seus próprios contos de Simbá, o Marujo? Estas questões e até mesmo al-Homa foram logo esquecidos à medida que outros tesouros, mais próximos de suas preocupações, começaram a emergir.

Ler as traduções árabes de Heródoto, Aristóteles, Galeno, Estrabão e Ptolomeu era como descobrir terras distantes conhecidas por histórias de viajantes. Seus tutores o haviam apresentado aos veneráveis gregos, mas ele era então jovem demais para apreciá-los realmente. Seu conhecimento permaneceu incompleto até que ele começou a estudar os textos sozinho. As idéias de Ptolomeu ainda ecoavam na sua mente como música de uma flauta distante.

Um dia ele topou com um manuscrito anônimo que o deliciou. Quem era o autor de "A biblioteca"? Ainda podia se lembrar da primeira frase: O céu foi o primeiro a dominar o mundo inteiro. Aqui estava a história dos deuses e de como haviam povoado o mundo e, embora não tão estimulante quanto Ptolomeu ou até Estrabão, muito mais excitante. Foi aqui que ele leu sobre a curta visita de Hércules à Sigilliya. O céu foi o primeiro a dominar sobre todo o mundo. A frase reverberava. Por que deveria começar Em nome de Alá, o Benfeitor... como todo erudito no seu mundo. Por quê?

Durante seu primeiro ano na biblioteca, o sultão freqüentemente o chamava aos seus aposentos e o interrogava cerradamente sobre as suas leituras. Rujari não era um homem grande, mas tinha gestos estranhos e amplos e quando ficava excitado seus braços se agitavam como velas numa tempestade. Sua acolhida de coração aberto comoveu Idrisi.

— O que fará com toda esta informação, mestre Idrisi? Pode ensinar aos seus filhos e aos meus, mas isto será suficiente para satisfazê-lo?

Idrisi lembrou seu sorriso preocupado e autodepreciativo ao confessar sua ambição:

— Se o sultão permite eu gostaria de escrever uma geografia universal. Mapearei o mundo que conhecemos e buscarei as terras ainda desconhecidas de nós. Isto será útil para nossos mercadores e os comandantes de nossos navios. Esta grande cidade é o centro do mundo. Mercadores e viajantes param aqui antes de seguirem para o Ocidente ou Oriente. Podem nos fornecer muita informação.

O prazer do sultão era visível. Mandou chamar o camareiro e o instruiu para garantir que a partir de agora ao erudito e mestre Muhammad alIdrisi fosse paga a soma de dez tacis cada mês pelo Diwan e lhe dessem alojamentos próximos ao palácio. Quando o camareiro fez uma mesura e se preparou para partir, Rujari teve um pensamento tardio.

— E ele vai precisar de um navio, pronto para velejar a qualquer lugar sob suas ordens. Encontre para ele um comandante confiável.

Idrisi caiu de joelhos e beijou as mãos do seu benfeitor. Ficou encantado com a generosidade de Rujari, mas mais do que um pouco apreensivo sobre como aquilo seria visto fora do palácio. Seu trabalho prosseguiria sem obstáculos, mas a maioria dos seus amigos poderia começar a encará-lo com desconfiança. Toda sexta-feira à noite, depois que a cidade fora dormir, um pequeno grupo de poetas, filósofos e teólogos — trinta homens ao todo — se reunia numa saleta localizada no coração da mesquita Ayn al-Shifa. Até ser perturbado pela chamada do muezim à prece, o mehfil discutia questões pertinentes às necessidades da comunidade dos Crentes na ilha.

Até agora, tinham aceitado a sua presença como um deles, mas por quanto tempo?

As simpatias de Rujari não eram escondidas. Como seu pai, ele preferia ignorar o papa e depender da lealdade dos seus súditos muçulmanos. Sabiam que, deixado a sós, o sultão Rujari não lhes causaria danos. Eram os seus barões e bispos que lhe enchiam os ouvidos de veneno. Estavam decididos a converter todos os crentes ou a expulsá-los da ilha. As conversas nos bazares de Palermo, Siracusa e Catânia sugeriam que os monges ingleses, por insistência papal, aconselhavam Rujari a limpar os bosques e vales dos Crentes e a engajar-se na santa cruzada contra os seguidores do falso Profeta. Segundo alguns, planos muito detalhados haviam sido feitos para queimar e arrasar Noto e enterrar vivos os sobreviventes. Os rumores geralmente emanavam de dentro do próprio palácio. Qualquer criança em Palermo sabia que não havia segredos no palácio que não fossem penetrados pelos eunucos.

Mas havia outras vozes, também, pois não existia uma facção única dominando a corte. Na verdade, Rujari se inclinava a favorecer seus conselheiros muçulmanos. Younis al-Shami, seu velho tutor de Noto, o erudito e sábio que lhe ensinara árabe, astronomia e álgebra, era tratado com reverência. Ainda estava no palácio, supervisionando os tutores responsáveis pela educação dos jovens príncipes. Os três tutores eram jovens que ele havia selecionado cuidadosamente, mas nunca ficava satisfeito com eles e freqüentemente os dispensava com uma imprecação favorita e assumia ele mesmo. Aquilo fazia os meninos darem risadinhas e eles relatavam tudo ao pai, sabendo bem que isso o agradaria. Segundo rumores palacianos, Rujari não tomava nenhuma decisão importante sem consultar Younis, mas um rumor, como qualquer eunuco pode confirmar, só é confiável se a fonte for pura.

O sol se tornou forte demais para Idrisi. Ele desceu a escada e voltou à sua cabine. Suspirou ao sentar-se nas almofadas macias que haviam sido especialmente colocadas para poupar o seu traseiro do desconforto do tosco banco de madeira pregado ao assoalho. Uma vez mais olhou para o manuscrito volumoso sobre a mesa à sua frente. Sim, o livro estava completo, exceto pela primeira frase. Durante várias semanas nesta viagem — sentia instintivamente que seria a sua última — havia sofrido em busca das primeiras palavras. A indecisão tinha amortecido o seu cérebro.

Estava tão convencido de que era o início que o perturbava que não levou em conta a possibilidade de que poderia ser o final. Vinha, afinal, trabalhando neste manuscrito há quase 11 anos. Tornara-se um substituto para tudo mais. Para o seu amigo Ibn Hamid cujos reproches ainda ecoavam na sua cabeça; para sua esposa Zaynab, que o deixara sozinho em Palermo e voltara para a casa da família em Noto com suas duas filhas e, acima de tudo, para o seu filho caçula e favorito, Walid, que havia embarcado num navio mercante destinado à China e, sem uma palavra de despedida, desaparecera do seu mundo. Se um guarda aduaneiro não o houvesse visto a bordo do navio, não saberiam sequer aonde tinha ido. Isso foi 15 anos atrás. Nada se soubera de Walid desde aquele dia. Zaynab culpava o marido por ter abandonado o rapaz. Idrisi a mandou para a sua propriedade no campo.

— Você passa mais tempo com o sultão no seu palácio do que com sua própria família. Talvez ele pudesse encontrar alguns aposentos para você no harém.

Em conseqüência, o livro se tornara um repositório de todas as suas emoções. Mas ia também deixálo e, embora ele não o soubesse, esta era a verdadeira razão da sua melancolia. Não as linhas de abertura. Elas eram simplesmente um pretexto para prolongar a separação. O som da água gentilmente lambendo o casco do navio era calmante, mas ele sabia que não podia retardar mais. Breve avistariam os minaretes. Pegou sua pena finamente apontada e a mergulhou no tinteiro.

Se permanecesse leal ao seu intelecto, ele romperia com o velho estilo e sofreria em silêncio as agressões inevitáveis que se seguiriam. Muitos dos seus conhecidos, alguns dos quais ele gostava, encarariam tal escolha como uma confirmação da sua suspeita de que ele era realmente um traidor, um apóstata que havia secretamente abandonado a fé e se vendido ao sultão cristão. Ele podia replicar informando-lhes que seu pai alegava descendência direta da família do profeta. Mas o mesmo faziam milhares de outros, eles responderiam. Todo mundo sabia que a família do Profeta não tinha sido tão grande assim.

Talvez devesse ser fiel à velha tradição e começar da maneira consagrada pelo tempo de elogiar a generosidade de Alá, a devoção sincera do seu Profeta, a imparcialidade e equidade do sultão e assim por diante. Aquilo satisfaria a todos e o liberaria para começar a trabalhar em outro livro. Mas por que deveriam ele e outros como ele serem condenados à repetição eterna? A resposta continuava a escapar-lhe e ele começou a caminhar pela cabine, concentrando-se no seu tumulto interno. Talvez, desta vez pelo menos, ele surpreendesse a todos eles. Começaria em nome de Satã, que contestou, desafiou e foi punido. O pensamento o fez sorrir. As ondas abaixo pareciam encorajar a heresia. Sussurravam "Faça isso. Faça isso. Faça isso", mas quando colocava o ouvido no tabique para ouvi-las melhor elas caíam no silêncio e ele revertia ao seu estado de indecisão. Estava com raiva do seu mundo e de si mesmo.

No passado, o simples ato de observar as linhas da costa, reproduzindo-as em seu caderno de anotações e assegurando-se de que o mapa alfinetado na mesa era exato, bastava para alegrálo. Esta era a sua terceira jornada completa ao redor da ilha. Se apenas pudesse ter mapeado o mundo inteiro assim, em vez de depender de histórias de mercadores e navegantes, que geralmente contradiziam uns aos outros ao descrever o formato da China ou a metade inferior da Índia. Estranho como eles escolhiam geralmente diferentes tipos de frutas para descrever a mesma região. Uma ilha minúscula na costa da China se tornava um lichi ou uma maçã, a metade inferior da Índia uma manga ou uma pêra.

Havia ocasiões em que, mais do que qualquer outra coisa, ele queria voar, pairar sobre o mar como um gavião. Por que Alá não tinha criado pássaros gigantes capazes de puxar uma carruagem através do céu? Então ele teria observado as terras e os mares abaixo e refinado seus mapas. Teria sido tão simples. Ou cavalgar um gavião gigante enquanto ele sobrevoava os continentes. Só então poderia ter a segurança de que seu mapa era uma representação verdadeira do mundo. Conhecia os contornos desta ilha tão bem quanto o seu próprio corpo. Às vezes sua imaginação conferia formas humanas à paisagem vista do mar: de vez em quando um antigo deus zangado, mas geralmente uma mulher. Às vezes ela o observava, apoiada nos cotovelos, e ele sorria para seus olhos gregos, maravilhava-se com seus cabelos damascenos claros cintilando com estrelas e mudando de cor ao serem banhados pelo sol. Com o movimento do navio vinha a percepção de que ela não olhava realmente para ele. Seu olhar se fixava na direção da Ifriqiya.

Ele, também, desviou o olhar e se perguntou quanto tempo levaria para encontrar outra favorita. Se suas estimativas estivessem corretas, atingiriam a ponta norte da ilha em um dia e meio. Da última vez o mar ficara agitado, atrasando a viagem. Três dias depois ele a viu, uma bela mulher-guerreira, ereta, irada e ameaçadora, aos contrário das famosas sereias do poema de al-Homa. "Não sou um inimigo", ele sussurrava enquanto o navio passava. "Sou um desenhista de mapas. Quero preservar, não destruir." Ela, também, o desdenhava e, desapontado, ele se virava para as ondas e se queixava. Mas na sua última jornada não demonstrara nenhum interesse nestas velhas amigas. Sequer se dera ao trabalho de olhar para as mulheres à medida que os ventos empurravam o navio para longe delas. Estava perturbado.

Os membros mais velhos da tripulação, entre os quais o cozinheiro de cabelos grisalhos, tinham viajado com ele muitas vezes. Conheciam seus humores, entendiam suas paixões e respeitavam sua obsessão de desenhar um mapa do mundo. Tinham notado seus olhos tristes e o ar distante, como se o tempo tivesse perdido todo sentido.

Conversaram entre si sobre ele. O que o poderia estar atormentando? Poderia ser um caso sentimental? O jovem de olhos escuros de Noto? Certamente ele não podia estar ansiando ainda pela houri em Palermo? Não seria Mayya? Tinham se convencido de que apenas Mayya, a filha do mercador, podia explicar o desespero nos olhos do seu mestre. Mayya, a quem o cartógrafo amara mais do que qualquer criatura viva neste mundo e quisera tomar por esposa; Mayya que o havia traído com luxúria enquanto ele viajava. O sultão acenara e ela o seguira de bom grado primeiro ao quarto de dormir real e a seguir para sua própria série de aposentos no harém do palácio. Como o cartógrafo controlara e escondera o seu sofrimento dos olhos curiosos de Palermo se tornara o assunto nos cafés e bazares, mas não por muito tempo. O bazar tinha suas próprias prioridades e o coração partido de um jovem cartógrafo não deteve sua atenção por mais do que algumas horas.

Era o mesmo sultão Rujari para o qual Muhammad alIdrisi escrevera este livro. Seu próprio título fora simples: "Nuz'hat al-mushtaq" ou "A Geografia Universal", mas o velho tutor de Rujari, Younis, o advertira que, como o livro jamais seria concluído sem a assistência material de Rujari, um título mais apropriado seria "al-kitab al-Rujari" ou "O Livro de Roger". Diante de tal sugestão do coração do palácio, o que podia ele fazer senão se curvar e aceitar. Idrisi reprimiu sua raiva, mas os eunucos da Corte garantiram que cada lojista no bazar de Palermo tivesse notícia da alteração do título. O bazar acreditava, erroneamente, que Idrisi havia oferecido as delícias do seu corpo ao sultão. O novo título parecia confirmar a calúnia.

E cada um apimentava a história antes de passá-la para o seguinte e assim a vaidade de um dominador se tornava um épico com muitas camadas em que um seguidor do Profeta fora profundamente humilhado e não pela primeira vez.

O alvo de toda a atenção começou a se perguntar se o problema que estava tendo com uma frase de abertura fora agora transcendido pelo novo título. Um sonho recorrente havia perturbado o seu sono por mais de um ano. Era o sultão Rujari, sempre no mesmo roupão de cetim multicolorido, deitado seminu debaixo de um limoeiro com os galhos dobrados de frutos maduros. Rujari se levantava, tirava o roupão e tentava seduzir uma corça amarrada mas, justamente no momento em que a união entre os mundos animal e humano ia ser consumada, Muhammad acordava num estado de completa inquietação. Saía da cama, caminhava para cima e para baixo no chão frio de mármore murmurando "Você não devia aparecer nos meus sonhos tanto assim" e ia beber um pouco d'água para acalmar os seus nervos em frangalhos. Era sempre difícil voltar a dormir. Por que o sonho só vinha quando ele estava em Palermo? Nunca quando estava no mar ou quando ia visitar sua família em Noto ou na casa de seu amigo íntimo, o médico Ibrahim bin Hiyya de Djirdjent. Certa vez tentara discutir a questão, mas Ibrahim rira, negando qualquer interesse nos fenômenos dos sonhos.

Mais de uma vez, pensara em fazer uma visita a Ibn Hammud, o mercador de sedas mais rico do qasr, que, no seu tempo vago, interpretava sonhos e acalmava os medos de homens preocupados. Era muito procurado e um dia Muhammad se aventurou até a frente da sua loja, mas não entrou. Sua cautela tinha se tornado uma barreira intransponível.

Era perigoso demais. Ibn Hammud não conseguiria manter o sonho em segredo. Na verdade, uma versão exagerada acabaria chegando ao palácio. Os eunucos ririam baixinho enquanto se regalavam com a história e cada nova versão seria mais ultrajante. Então estes guardiães do harém contariam às concubinas e uma delas convenceria um eunuco a sussurrá-la no ouvido do sultão. O sultão ficaria enfurecido e aquilo poderia ser o fim de tudo. Tudo. Não apenas do livro, mas do seu autor. E se Rujari ficasse realmente zangado ele se asseguraria, também, que os eunucos fossem punidos. O risco não valia o sofrimento.

Os últimos dez anos da vida de Idrisi tinham sido consumidos pelo livro mas, à medida que o navio se aproximava de Palermo, ele sabia que não poderia retardar muito mais o final do trabalho. O sultão ficaria zangado. Queria ler o livro antes de morrer e sua doença o deixava ansioso. E somente Alá sabia o que poderia acontecer com um pobre cartógrafo depois da morte do seu patrono. Uma vez mais ouviu o adeus zombeteiro do seu melhor amigo no dia em que Ibn Hamid deixou a ilha para sempre, embarcando num navio com destino a Malaka em alAndalus.

— Venha comigo, Muhammad — dissera o poeta.

— Aqui você nunca vai passar de um mendigo melancólico numa capital estrangeira.

Por que deveria fingir mais? Por que não deveria escrever o que queria? Com um sentido de determinação, Muhammad alIdrisi recolheu-se à sua cabine, sentou-se à mesa e escreveu uma única sentença na primeira página da sua geografia universal:

A Terra é redonda como uma esfera e as águas aderem a ela e são mantidas sobre ela por meio do equilíbrio natural que não sofre nenhuma variação.

Pronto. Esta seria a abertura da sua edição pessoal da obra. Quanto ao resto, ele louvaria Alá, o Profeta, o sultão e quem quer mais que precisasse ser lisonjeado.

Uma concessão, mas ela o satisfazia.

Subiu ao convés de novo e respirou fundo o ar marinho. Palermo devia estar muito perto. Podia sentir isso pela brisa carregada, levando os ricos perfumes de ervas, flores e limões. Estes ele conhecia bem e havia cuidadosamente catalogado as plantas e árvores que os produziam. Nenhum dos seus amigos aceitava que fossem diferentes daqueles de outras ilhas e a maneira arrogante com que estes homens ostentavam a sua ignorância o enraivecia grandemente. Havia feito extensas anotações sobre ervas e flores das ilhas do Mediterrâneo e depois de seus anos de trabalho e viagem era capaz de identificar uma ilha no escuro apenas por seus cheiros. Sorriu ao evocar a noite de verão em que estava deitado no convés — os únicos sons as ternas lambidas do mar contra a dura madeira marrom do navio — olhando para as estrelas. Subitamente, uma brisa se elevou e um aroma suave tomou os seus sentidos. Era uma variedade especial de tomilho e soube imediatamente que se aproximavam da Sardenha.

A fragrância de Palermo foi como uma chicotada. Memórias agridoces de sua infância e juventude ainda podiam dominá-lo. Seus pensamentos foram interrompidos por um rapaz — não podia ter mais de 17 ou 18 anos, cor de bronze, com longos cabelos dourados — que lhe trouxe uma taça com sherbet de limão e sorriu, revelando dentes brancos como a neve. Como os mantinha tão limpos? Alegrou-se que Simeon estivesse feliz de novo, mas aquilo não era o bastante para mitigar a sua culpa. Ouvindo seus gritos uma noite, permanecera em silêncio, deixando de intervir, embora soubesse muito bem que a sua presença teria terminado com a tortura do rapaz. O comandante do navio estava empenhado num rito tradicional. Indiferente à dor e à fragilidade de Simeon, ele o havia violentado impiedosamente. Droit ancien de marinier. E então, sem advertência, lágrimas lhe escorreram pelo rosto ao se dar conta de que estava pensando em Walid. E se algum capitão bruto tivesse abusado dele como fizeram com este garoto? A ausência de seu filho o fazia preocupar-se com a agonia do jovem flautista.

Uma semana depois do ataque, o rapaz não comera nem tocara a flauta, nem ousara encarar qualquer marujo de frente, embora alguns tivessem suportado a mesma tortura violenta, experimentado a mesma magoa intolerável e pudessem ser solidários à sua dor. Outros tinham rido e o provocado e, com o tempo, o rapaz se recuperou. O primeiro sinal do seu retorno aos ritmos da vida cotidiana surgiu quando os sons angustiados de uma flauta foram ouvidos ao pôr-do-sol, despedindo-se do dia que morria. Poucos olhos ficaram secos. O homem que fazia mapas, consumido pela culpa, prometeu a si mesmo que iria encontrar um lugar melhor para este rapaz. Muhammad bebeu o sherbet, devolveu a taça e acariciou a jovem cabeça.

— Já viajou a Bagdá, mestre? Viu a Casa do Saber que tem amplas salas para observar o céu e muito mais livros do que a biblioteca do nosso sultão? — o rapaz perguntou.

— Como é a cidade? É verdade o que dizem, que nossa cidade é maior do que Bagdá? Poderia ser assim? E Qurtuba? Conhece a cidade bem, não é, mestre? Vai voltar para lá um dia?

O cartógrafo acenou com a cabeça, mas antes que pudesse elaborar, os minaretes de Palermo foram avistados. Subitamente o convés ficou cheio de homens gritando "Allahu Akbar" e "Siqilliya sana-hallahu" [Sicília, que Alá a preserve!] e preparando-se para a chegada. Um grupo de jovens cansados, seus corpos queimados do sol e rostos desgastados refletindo a exaustão de um dia de trabalho, baixavam as velas cor de ferrugem e as dobravam no convés. Ao crepúsculo a tripulação começou a entoar um canto suave e melancólico enquanto remava o navio porto adentro. O capitão, em busca de elogio para a disciplina dos seus homens, veio até o erudito e curvou-se diante dele, mas Idrisi o ignorou, ainda querendo puni-lo por ter abusado do rapaz. Mas principalmente o autor da geografia universal se preocupava com o céu, ainda azul claro, e com a lua, já a postos e competindo em atenção com o sol que se punha. Devia ser o sétimo mês do ano, pensou. Estivera fora quase quatro meses. Tempo demais. E então a cidade apareceu à sua frente.

Enquanto os marinheiros se aproximavam dos minaretes, cantavam "al-madina hama-hallahu" [Má proteja esta Cidade]. Sorriu quando o navio entrava no porto, um sorriso sem expressão, um leve abrandamento dos olhos, nada mais. Sentia-se contente por estar de volta. A brisa suave acariciava seu rosto como o toque macio de Mayya e inadvertidamente sua mão buscou o rosto para saborear a lembrança. Um bote o aguardava para transportá-lo à terra firme. Passando pelos homens, agradeceu a cada um individualmente. Reprimiu um suspiro ao ser gentilmente atado com cordas de seda a uma cadeira, que foi baixada até o bote. Teria descido a escada de corda alegremente,

mas o capitão o proibiu. Quando a cadeira alcançou o destino, os barqueiros o acolheram com "Wa Salaam..."

Aproximando-se da orla, podia ver os rostos familiares dos cortesãos enviados para recebêlo. Sabia que sob os seus sorrisos e os alaridos exagerados de boas-vindas eles o odiavam por causa do fácil acesso ao palácio de que gozava. E lá estava a barba branca de um dos camareiros palacianos, Abd al-Karim, gritando tão alto quanto seus anos permitiam.

— Preparem-se para receber o Mestre Ibn Muhammad ibn Sharif alIdrisi de volta ao lar depois de uma longa jornada em busca das raízes do conhecimento.

Como era costume, os outros se regozijaram com a volta segura do navio e de seu passageiro.

— Só existe um Alá e ele é Alá e Maomé é o seu Profeta. Bem-vindo ao lar.

A irritação que sentia nestas ocasiões tinha, no passado, sido arrefecida pela presença do seu amigo Marwan, cujo rosto sorridente era a acolhida que mais o agradava.

Mas Marwan havia deixado a ilha. Tinha abandonado suas propriedades e seus camponeses em Catânia e fugido para alAndalus, para a cidade de Ishbilia. Lá o sultão al-Mutammid lhe proporcionara proteção e emprego. Cartas chegavam irregularmente, sempre com a mesma mensagem. Muhammad, também, devia deixar Palermo e voltar à Casa do Islã. Ele nunca respondeu e Marwan parou de escrever. Agora estava sozinho.

— O mestre vai de carruagem ou vai cavalgar?

— Abd al-Karim perguntou.

— Meu cavalo está aqui?

— Está.

— Então vou a cavalo.

— O sultão o espera esta noite. Um banquete foi preparado em homenagem ao seu retorno.

— E se uma tempestade nos houvesse retardado? Outra voz replicou.

— Nunca aconteceu. O senhor sempre volta no dia designado, Ibn Muhammad.

O erudito sorriu. A voz e o rosto o agradaram. Era o berbere, Jauhar, que tinha casado com a irmã de Marwan.

— Alguma notícia de Marwan? O homem sacudiu a cabeça.

— E você? Sua família está bem? Precisa de alguma coisa? Trouxe algumas sedas para a irmã de Marwan. Nós as trocamos por um pouco de comida. Um navio mercante de Gênova estava em dificuldades.

O homem sorriu.

— E agora tenho um favor a lhe pedir. Vá ao palácio e desculpe-se ao sultão em meu nome. Diga-lhe que a viagem me exauriu e eu só adormeceria no banquete. Amanhã vou procurálo e participar-lhe as novas descobertas que ele solicitou. Gostaria de ficar sozinho esta noite. Tenho algo para contar às estrelas.

Jauhar pareceu preocupado e sussurrou:

— Não é uma decisão sábia. O sultão está doente. Isso o tornou irracional. Poderia interpretar mal sua recusa de ir ao palácio esta noite. Está cercado de monges. Francos e gregos. Abutres. Sussurram mentiras no ouvido do sultão. Estamos sendo acusados de fomentar rebelião.

Idrisi sacudiu a cabeça. Não mudaria de idéia.

— Sua Augusta Majestade sabe que sou o mais leal dos seus servidores, mas viajei muitos dias sem um banho e não me apresentarei em tal estado de desleixo. Procurarei o sultão depois das preces matutinas. Deixe isso claro para o Camareiro.

Os cortesãos tinham escutado a maioria deste diálogo e sorriram. Ele fora longe demais desta vez. Seria punido. Estavam decididos a chegar ao sultão antes que Jauhar desse a Rujari sua versão da história.

Idrisi, acompanhado por um único cavalariço, voltou à sua casa, que ficava fora do qasr, perto do mar. Podia ter morado nos aposentos do palácio. O sultão lhe fizera essa oferta em muitas ocasiões, mas Idrisi insistira em que precisava de solidão a fim de pensar. Trabalhava em seu manuscrito em salas contíguas à biblioteca do palácio e freqüentemente fazia as refeições com o sultão, mas escolhera viver numa casa modesta no Kalisa, com vista para o mar.

Foi uma escolha que nunca lamentou. Achava reconfortante a visão permanente do mar. Calmo ou encrespado e agitado, nunca lhe cansava, apesar das longas viagens em que havia embarcado ou das tempestades que quase lhe haviam roubado a vida. Foi uma cavalgada curta, mas lhe fez bem. Lufadas daquele mesmo vento que trouxera o navio à baía agora transportavam aromas de ervas, flores silvestres e limões. Os odores traziam consigo algumas memórias dolorosas, mas ele as reprimiu.

Ao se aproximar da trilha ao pé da colina teve a primeira visão da casa. A luz suave de velas e lâmpadas a óleo enchia cada janela. Olhou então mais atentamente.

Havia luzes até nas janelas dos quartos acima do pátio, quartos que tinham ficado no escuro desde o dia da partida de Walid. Seu coração começou a bater mais forte e, quase involuntariamente, fincou as esporas para o cavalo seguir mais rápido.


2

Vida familiar e idiotices domésticas.
idrisi frustra um plano de suas filhas
para preparar uma armadilha e trair seus maridos,
mas está decidido a educar os seus netos.

Os criados, como de costume, o esperavam do lado de fora da casa, erguendo tochas para iluminar o seu caminho. Desmontou e apertou a mão de cada um, mas antes que pudesse interrogar qualquer um deles foi distraído pelo cheiro de cordeiro grelhado e ervas frescas, um aroma de significado especial. Partiu depressa para a casa a fim de ver se Walid teria voltado. Mas foram suas filhas que o receberam, tomando suas mãos e beijando-as. Idrisi abraçou cada uma e beijou-as gentilmente na cabeça.

— Bem-vindo ao lar, Abu Walid — disse Samar, a mais jovem das duas, seus cabelos ruivos brilhando sob as lamparinas de óleo.

— O que a traz aqui, Samar? E você, Sakina? Pensei que sua mãe tivesse proibido...

— Não vê seus netos há três anos, Abu Walid. Nossa mãe concordou em que fizéssemos esta viagem.

Ele abafou um riso.

— A velhice deve tê-la amaciado. As crianças estão dormindo?

Suas filhas assentiram com a cabeça.

— Estou correto em presumir que prepararam o cordeiro segundo as instruções de sua mãe?

Samar riu.

— Não tínhamos certeza de que voltaria hoje, mas um mensageiro do palácio chegou algumas horas atrás para nos informar de que seu navio fora avistado e que estaria em casa esta noite. O alho e as ervas vieram conosco de Noto.

Ele sorriu com apreciação.

— Espero que, como vocês, tenham conservado seu frescor. Antes que qualquer das duas pudesse responder, ele bateu palmas, levantou a voz levemente e chamou o camareiro da casa.

— Meu banho está pronto, Ibn Fityan? O eunuco fez uma mesura.

— Thawdor está à espera para esfregar óleo em Sua Excelência e os encarregados do banho têm as suas instruções. Sua Excelência vai comer dentro de casa ou na varanda?

— Deixe minhas filhas decidirem. Geralmente, quando se deitava na lousa de mármore, deixava que o grego fizesse o seu trabalho em silêncio. Não hoje.

— Tem filhos, Thawdor? O massagista ficou chocado. Nos seis anos em que havia servido na casa, o mestre mal lhe havia dirigido a palavra.

— Sim, meu senhor. Tenho três meninos e uma menina.

— Suponho que dois meninos tenham sido dedicados à igreja?

— Acredito em Alá e no seu Profeta, mas minha mulher é nazarena e insistiu em que um deles fosse batizado.

Agora foi a vez de Idrisi ficar surpreso.

— Mas o seu nome é grego e pensei...

— Meu nome é Thawdor ibn Ghafur, Oh Comandante da Pena. Minha mãe era grega e, embora se convertesse à nossa fé, insistiu no nome do seu avô Thawdorus para mim.

Meu pobre pai, que nada podia lhe negar, concordou.

A curiosidade de Idrisi foi despertada. Pediria a Rujari que organizasse um registro de todos os casamentos mistos na ilha.

— E quanto aos seus filhos?

— São rapazes agora. O mais moço estava no seu navio nesta última viagem. Sua mãe vai ficar feliz em revê-lo.

Ao ouvir isso, o dono da casa se agitou. Levantou-se, enrolou uma toalha em seu corpo nu e bateu palmas para os criados do banho. Dois jovens entraram no quarto e fizeram uma mesura.

— Thawdor, descreva o seu filho. Idrisi agora tinha certeza.

— Simeon? Falei com ele no navio. Por que ele não me disse que você era o pai dele?

— Provavelmente não lhe ocorreu. Fico espantado que tivesse a ousadia de se dirigir ao senhor, mestre.

— Falei com ele primeiro. O rapaz é sensível'e inteligente. O que não pode falar, expressa através da flauta. É um jovem talentoso e deve ser educado. Vou falar com o velho Younis no palácio e ver se conseguimos encontrar um tutor para ele.

Lágrimas encheram os olhos de Thawdor.

— Sua bondade é bem conhecida, senhor. A mãe do rapaz poderia até rezar para que Alá recompense a sua generosidade.

Idrisi acenou com a cabeça e os criados o escoltaram até o banho na sala ao lado. Ensaboaram-no e o esfregaram com as esponjas mais delicadamente macias. Ficou então pronto para ser secado e vestido. Quando chegou à varanda, o cansaço fora removido do seu corpo. E o cordeiro estava pronto para ser consumido. Que coisa estranha, comer com suas filhas. Por que em nome de Má estavam aqui? Não acreditava que tivessem percorrido aquele caminho todo só para que ele visse seus netos. Não era do seu feitio. Nem, agora que pensava a respeito, o trabalho todo a que se deram para preparar o cordeiro. Sua mãe Zaynab devia ter-lhes sussurrado bobagens nos ouvidos: "Adulem o velho, façam-no sentir que vocês o amam, garantam que o cordeiro seja cozinhado da maneira especial que ele gosta, esperem até que o tenha provado e então peçam o que têm a pedir."

A lembrança da sua voz insinuante e da falsa lisonja não era agradável e ficou irritado consigo mesmo por ter pensado naquilo. Devia lhe dar uma indigestão.

E onde estavam os maridos das suas filhas? Subitamente percebeu que elas tinham vindo pedir em nome de seus homens. Algo devia ter acontecido. Havia sempre inquietação em Noto e no campo nos arredores de Siracusa. No palácio se referiam àquilo como banditismo, mas ele sabia que era muito mais. Pois bem, ouviria quando a ocasião chegasse.

Desfrutou a comida. O cordeiro estava suculento e gostoso, os legumes frescos e o frasco de vinho enviado pelo palácio, provado por Ibn Fityan e pronunciado livre de veneno, havia reavivado o seu ânimo. Notando isto, Samar e Sakino trocaram. um olhar cúmplice, enquanto Idrisi pensava consigo mesmo como as duas se pareciam com a mãe.

A natureza não as havia dotado da sua própria beleza ou do seu físico. Ao lembrar-se de Zaynab, com quem seu pai o obrigara a se casar e que havia visto de relance pela primeira vez no dia do casamento, tremeu à memória daquela noite. Não houvera nenhum prazer despreocupado para os dois e até agora era um mistério para ele como tinham produzido quatro filhos. Sua mãe reivindicava o crédito para si. Contou à família inteira como, consciente do problema, insistira para que Muhammad bebesse uma desagradável infusão de folhas de café adoçada com suco de tâmara, cujos efeitos afrodisíacos foram primeiro notados pelos curandeiros de Ifriqiya. E, naqueles primeiros anos, a cada ocasião — não que fossem muitas — em que montava na sua esposa, podia sentir o gosto amargo das folhas. Sua mãe ficou convencida de que sem elas ele não teria conseguido produzir quatro filhos.

Se o caráter de Zaynab fosse diferente, não teria encorajado a sua partida de Palermo. Mas ela não possuía qualidades redentoras, nenhuma. Sua voz alta gritando impropérios contra a criadagem o irritava grandemente. E era ainda pior quando ela o elogiava. Ele nunca pensou como devia ser para ela crescer numa casa de nobres, desdenhada por todos por causa da sua aparência, o resultado de endogamia excessiva. Ele sabia disso e às vezes comentava com Marwan ou Ibn Hamid como os árabes se preocupavam mais com a criação de cavalos puro-sangues do que com a de seus próprios filhos. Não era culpa de Zaynab, mas por que Má não lhe dera um pouco de cérebro para compensar?

Que as feições de Zaynab fossem reproduzidas em ambas as filhas poderia ter sido uma desgraça não fosse a posição que Idrisi ocupava na Corte. Haviam se casado com homens da nobreza árabe de Siracusa, cujos ancestrais tinham chegado de Ifriqiya e feito o cerco à cidade poucas centenas de anos depois da morte do Profeta.

Os dotes das moças foram generosos, seus maridos eram gentis e, mais importante, tinham conseguido desempenhar seus deveres sem a ajuda de folhas de café. Filhos foram produzidos, um para Samar e gêmeos — um filho e uma filha — para Sakina. O futuro estava assegurado. A terra agora estava garantida, uma considerável porção já registrada no nome dos dois meninos para evitar disputas de propriedade e, ao mesmo tempo, tranqüilizar as mulheres e o seu pai de que, o que quer que acontecesse, a herança não poderia ser contestada. Seus filhos eram os herdeiros oficiais.

Tendo se dado a um grande esforço para cumprir isto, os dois maridos haviam seguido em frente e, compatíveis com suas crenças religiosas, começaram a semear em outras pastagens. Não demorou muito para Samar e Sakina perceberem que não haveria mais filhos. Quanto aos prazeres da cama, uma luxúria perdida. Foi quando bebiam chá de menta depois da refeição que o seu pai decidiu atacar primeiro.

— Minhas filhas, vocês me conhecem o suficiente para saber que detesto aqueles que ocultam seus verdadeiros pensamentos no fundo de seus corações e falam de outra coisa. Sei muito bem que não vieram aqui impelidas pela bondade dos seus corações, mas porque precisam de algo de mim. Não tenho idéia do que seja, mas sou seu pai e vou ajudá-las. Mas, em nome de Alá, peço que falem agora e falem a verdade.

As mulheres entraram em pânico, inseguras se este era ou não o momento certo para discutirem seus problemas. Tinham achado melhor esperar até a manhã seguinte, quando a presença das crianças poderia deixar seu pai mais receptivo às suas necessidades. Sakina fez uma brava, ainda que fraca, tentativa de criar uma digressão.

— Mas, Abi, não nos disse se gostou realmente do cordeiro. Nós o preparamos especialmente para o senhor e...

A visão do rosto do pai tomado de raiva a fez calar-se imediatamente. Samar viu que era inútil ocultar mais o propósito de sua visita. — Abi, nunca lhe pedimos nada importante até hoje, mas estamos muito infelizes. Nossos maridos nos abandonaram e precisam ser punidos e pensamos que você...

Ele ergueu a mão para interrompê-la.

— Antes que prossigam, quero que sejam claras numa questão. Seus maridos saíram de casa ou lhes pediram que saíssem e encontrassem abrigo em outro lugar?

— Não — as mulheres responderam em uníssono.

— Mas — Samar fez menção de continuar, quando ele a interrompeu de novo.

— Ouçam-me com atenção. Vocês começaram com uma inverdade. Seus maridos não as abandonaram no sentido rigoroso da palavra. Podem não mais dividir a cama com vocês, mas isso é uma questão diferente. Quero que me digam tão francamente quanto puderem por que estão aqui, o que querem realmente e como acham que posso ajudá-las. Comecem a partir disso e então podemos ver como foi que chegaram aqui. Estou sendo claro?

Samar e Sakina se entreolharam em desespero e caíram num silêncio nada característico. Ele gostou do silêncio. Podia ouvir o mar de novo e a brisa suave que fazia as palmeiras balançarem gentilmente. Por um momento esqueceu a presença das filhas, mas a voz fria e agora resignada de Samar interrompeu de novo.

— Muito bem, Abi. Vou fazer o que deseja. Viemos implorar-lhe para persuadir o sultão a deserdar nossos maridos, remover seus nomes do registro de terras e colocar tudo em nome dos seus netos. É tudo. Se isso ajuda, podemos oferecer testemunhas que jurarão sobre o Corão que tanto Samir ibn Ali como Umar ibn Muhammad se envolveram em conspirações com o Amir contra o sultão. Estão preparando-se para a guerra.

— Isto é verdade? — perguntou numa voz severa olhando fixamente para elas. Seria surpreendente se o Amir de Siracusa estivesse preparando uma rebelião. Elas desviaram o olhar e ele soube então que estavam mentindo. Por que estavam tão empenhadas em destruir os homens que haviam casado com elas? Ele conhecia a resposta. Ambas eram estúpidas. Não percebiam que quando as terras são tomadas de uma família desleal, a lei não discrimina entre pai e filho. Tudo é confiscado.

— E estão preparadas para confirmar o que me disseram sob juramento na presença do sultão?

Assentiram com a cabeça.

— Vão dormir agora. Vou refletir sobre o seu pedido e tomar uma decisão amanhã.

Pela primeira vez naquela noite acharam que seu plano teria sucesso. A tolice não tem limites. Sua esposa tinha tomado uma aversão violenta aos genros e estava decidida a se desfazer deles. Convencera as moças disso e as enviara a Palermo, carregadas de falsas acusações.

Imerso em pensamentos, seu pai saboreava o silêncio que se seguira à sua partida. Os pássaros, também, haviam se recolhido para a noite. Só o mar estava acordado e as ondas começavam a ficar ruidosas. Olhou para o céu. Era uma noite clara, estrelada. Quando se levantou e caminhou até a beira do terraço, viu os vaga-lumes dançando no espaço. Isto sempre o deixava melancólico. Lembravam-no da primeira noite, uma noite escura de inverno, que havia passado com Mayya depois de terem declarado seu amor um pelo outro, quando ele tinha vinte e ela era cinco anos mais moça. A meia-lua já havia desaparecido. Quando viram os vaga-lumes, ela riu e começou a dançar.

— Olhe, Muhammad — ela gritou -, olhe para mim. Eu sou um vaga-lume.

Ficou sentado olhando para ela até que uma tempestade súbita irrompera com trovão e uma chuva gelada. Pegou na mão dela e correram todo o caminho de volta à aldeia.

Antes de se separarem, ele a apertou junto a si e beijou seus lábios.

Ouviu Ibn Fityan tossir discretamente.

— Hora de ir para a cama, mestre?

— Sim, venha comigo e faça uma massagem nos meus pés. O eunuco seguiu Idrisi até o quarto de dormir onde um criado o despiu e deu-lhe um roupão para a cama.

— Sabia que o filho mais novo de Thawdor viajou no meu navio?

O eunuco não respondeu.

— Você sabia. Por que não fui informado?

— Thawdor achou que era melhor assim. Não queria incomodá-lo.

— É a sua função contar-me tudo. Entende isso? O que andam dizendo no qasr?

— Dizem que o sultão está doente e pode não sobreviver este ano. Dizem que seu filho mais moço é um Fiel em segredo e restaurará nosso povo à posição que merecemos.

Dizem que o senhor, mestre, tem um papel importante a desempenhar. Os nazarenos estão pressionando o sultão a nos dar uma lição. Falam de conspirações e o aconselham a destruir todas as mesquitas em Palermo porque são os viveiros da rebelião. É o que estão dizendo.

Não esperou uma resposta porque viu que Idrisi havia pegado no sono. Cobriu a forma adormecida do seu amo com um lençol e saiu do quarto na ponta dos pés. Mas Idrisi não dormia. Pensava no futuro. Conhecia as facções palacianas e seus líderes, mas sempre se mantivera distante delas. Agora que seu livro estava terminado iria às preces das sextas-feiras e ouviria o khutba. Talvez devesse ter ido ao palácio, afinal.

Quando acordou à primeira luz da manhã, olhou para fora da janela para ver se os vaga-lumes tinham trazido uma tempestade, mas não havia nenhum sinal de terra molhada e o mar parecia calmo. Mandou chamar os netos e ficou surpreso ao verificar que só os meninos tinham sido trazidos para vê-lo. O filho de Samar, Khalid, tinha 14 anos e seu primo, Ali, era dois anos mais velho.

— Wa Salaam, Jiddu. Abraçou cada um deles e pediu-lhes que sentassem na sua cama.

— Vamos tomar o café da manhã aqui e enquanto vocês comem vou lhes fazer perguntas sobre sua equitação e seus tutores.

Mas o que realmente queria saber era sobre os meninos e seus pais. E o que ouviu lhe agradou. Em cada caso o pai dedicava grande interesse e passava várias horas por semana com o filho. Ali falou de como o pai de Khalid os havia ensinado a atirar uma flecha num alvo e a caçar. Khalid contou como haviam aprendido a poesia de Ibn Hamdis, que o pai de Ali podia recitar de cor.

— Gosta de sua poesia? Ali acenou vigorosamente com a cabeça, Khalid fez uma careta. Seu avô explodiu numa risada.

— Vejo que Ali é um homem sentimental, muito dado ao romance, enquanto Khalid se interessa mais por armas.

— Jiddu — respondeu Khalid -, Ali acha que seremos forçados a deixar a Siqilliya um dia, assim como Ibn Hamdis. Se é assim, que uso tem a poesia? Acho que precisamos aprender a lutar para podermos nos defender. Não quero ver minha família assassinada como cabras em época de festival.

Idrisi olhou atentamente para eles. Viu comerem cuidadosamente o iogurte de leite de cabra e o pão colocados à sua frente. Alá fora generoso. Os meninos eram altos e se pareciam com os pais. Os lóbulos das orelhas de Ali lembravam a Idrisi seu próprio pai. Gostava de seus netos e os aprovava.

— Jiddu — perguntou Ali numa voz suave -, em seu livro o senhor explica por que a montanha em Catânia respira fogo? No mês passado, os aldeães que moram abaixo dela empacotaram seus pertences e fugiram. Mas, depois de algumas bolas de fogo, a montanha voltou a dormir e os aldeães voltaram com cara de idiotas. Por que acontece isso?

Meu pai diz que é porque Alá está zangado com os pecados cometidos pelos nazarenos contra os fiéis.

— Se este fosse o caso, meus filhos, por que ele estaria nos punindo? É o nosso povo que mora naquela região. Não cheguei a investigar a fundo esta questão, mas estou seguro de que tem algo a ver com o nascimento desta nossa Terra.

— Mas foi Alá quem ordenou que a Terra nascesse — disse Khalid com uma voz trêmula, que subitamente lembrou a Idrisi de Walid naquela idade, intenso e inquiridor.

— Quando seu tio Walid, que, espero, volte um dia para conhecer vocês dois... quando ele tinha dez ou 11 anos de idade nós estávamos numa grande embarcação não longe de Catânia. E a montanha-de-fogo tornou-se muito ativa e o mar muito agitado e achei que talvez não sobrevivêssemos. Mas não demorou muito e chegamos à orla em segurança. Walid fez a mesma pergunta e eu lhe dei a mesma resposta. E então ele me disse isso que você acabou de dizer, Khalid. Conteilhe então uma história que os gregos costumavam contar nos velhos tempos sobre a montanha-de-fogo. Estão interessados?

Os olhos cintilantes dos netos o encorajaram a prosseguir.

— Faz muito, muito tempo, os gregos não acreditavam que existisse apenas um Má. Acreditavam em muitos deuses diferentes. O sultão dos seus deuses era Zeus, que vivia no Monte Olimpo com seus companheiros deuses e deusas. O povo da Terra se ressentia do poder dos deuses. Por que só eles deveriam ser imortais? Por que deveriam pegar as melhores coisas da terra e transportá-las para o Monte Olimpo? Aconteceu então que a Mãe Terra decidiu que dois gêmeos gigantes, os Moídas, que cresciam dois metros a cada ano, deveriam roubar a comida que tornava os deuses imortais, bani-los do Olimpo e governar o mundo eles mesmos. Não era uma má idéia, concordam? Eles capturaram Ares, o deus da guerra, na Trácia e o trancaram numa arca de ferro.

— Mas não tiveram êxito. Os estratagemas de Ártemis os derrotaram e eles mataram um ao outro por engano. A Mãe Terra ficou realmente perturbada, mas se recusou a desistir. Decidiu criar um novo e imenso monstro chamado Tifão. Este monstro tinha a cabeça de um asno, com orelhas que alcançavam as estrelas e asas gigantescas que podiam bloquear o sol e centenas de cobras em vez de pernas. Soprava fogo e quando chegou ao Olimpo os deuses ficaram aterrorizados e fugiram. Sim, fugiram para o Egito. Zeus foi disfarçado como um carneiro, sua mulher Hera como uma vaca, Apoio tornou-se um corvo e Ares um javali. Mas a mais inteligente e sábia foi a deusa Atena. Recusou-se a partir e chamou seu pai Zeus de covarde. Isto o enfureceu. Ele voltou e lançou um de seus famosos raios sobre Tifão, que teve o ombro queimado e gritou por socorro. Então Tifão, num acesso de raiva, agarrou Zeus, o desarmou e entregou a um monstro feminino chamado Delfina. Os outros deuses decidiram socorrer Zeus. Com a ajuda das Parcas, envenenaram Tifão. Então Apoio matou Delfina e resgatou Zeus. Mas Tifão não estava morto. Estava em Catânia, vivo mas debilitado.

Zeus pegou uma pedra gigantesca e a arremessou sobre a cabeça de Tifão e assim nasceu a sua montanha-de-fogo. Tifão ainda está lá e seu sopro flamejante às vezes se eleva aos ares e assusta todo mundo. Isto não é melhor do que dizer que é a vontade de Alá?

Os meninos bateram palmas excitados.

— Jiddu, os gregos realmente acreditavam que podiam derrubar os seus deuses?

— Sim. E então vieram os romanos e assumiram os deuses, mas os romanos foram um passo adiante e seus sultãos decidiram que eles próprios podiam se tornar deuses.

E o fizeram.

— Como?

— Informando ao seu povo que eram deuses e mandando construir grandes estátuas em sua honra.

— Mas nós só temos Alá — disse Khalid -, e isso é muito melhor porque ele é todo-poderoso. Ninguém pode derrubá-lo.

— É verdade, meu filho — replicou o avô -, mas acho que os gregos se divertiam mais com os seus deuses.

— Mas eles realmente existiram? — perguntou Khalid.

— Se as pessoas acreditam neles, eles existem.

— Mas, Jiddu...

— Agora me ouçam. Vão tomar seu banho e se vestir adequadamente. Vou leválos ao palácio hoje. Vocês vão conhecer o sultão.

Quando ele desceu as escadas um criado sussurrou que suas filhas desejavam falar com ele antes de sair de casa. Samar e Sakina tinham ouvido a notícia da visita ao palácio por meio de seus filhos e presumiram que seu pai pretendia facilitar a transferência das terras para os rapazes. Assim, as descaradas mulheres saudaram o pai jovialmente, cumulando-o de palavras melosas e pedindo sua permissão para voltarem a suas casas em Siracusa. Uma raiva fria tomou conta dele e o impediu de responder. Samar expressou preocupação.

— Sente-se bem, Abi? Podemos falar depois que o senhor voltar.

— Sentem-se. Fizeram o que ele mandava.

— Acabei de partilhar o pão com Khalid e Ali. São meninos inteligentes e sérios e gostaria que ficassem um pouco mais para que possa conhecê-los melhor. Quero ensinar-lhes algo importante. Nesta casa honramos a verdade. É o que desejaria lhes ensinar.

As mulheres sorriram em apreciação e concordaram com a cabeça.

— Por esta razão — continuou — decidi ignorar as mentiras que vocês me contaram sobre os seus maridos. Cada palavra que falaram foi uma inverdade e estavam preparadas para testemunhar falsamente com as mãos sobre o Corão. Sei bem que Alá não as abençoou com muita inteligência, mas sua estupidez é verdadeiramente monumental.

E por trás desta tentativa desonrosa um nível ainda mais elevado de estupidez parece estar em ação. Esta bobagem toda foi idéia de sua mãe? Respondam-me.

Sakina começou a derramar lágrimas tão falsas quanto seus sorrisos iniciais.

O pai levantou-se para dispensá-las.

— Quero que voltem a suas casas e se esqueçam de toda essa história. Não se dão conta de que os meninos amam os homens que vocês querem difamar? Se ouvir outra palavra de vocês vou providenciar para que sejam severamente punidas.

Abaladas por esta demonstração de raiva, Samar e Sakina caíram de joelhos diante dele e beijaram seus pés. Samar falou numa voz entrecortada.

— Perdoe-nos, Abi. Está correto. Foi idéia de nossa mãe. Não mencionaremos isso para outra pessoa enquanto vivermos.

Então Sakina, desesperada para recuperar as graças do pai, declarou:

— Nunca mais falaremos inverdades.

Idrisi foi inflexível.

— Poderiam muito bem dizer que nunca mais iriam comer.

— Abi, chegou uma carta de Walid.

O choque quase o derrubou. Sentou-se de novo.

— Se isto é outra falsidade...

— Não é, Abi — Samar falou para apoiar a irmã.

— Nós vimos a carta.

— Quando foi que chegou?

— Um ano atrás — respondeu Sakina.

— Foi-nos entregue por um mercador que havia se encontrado com Walid.

— Por que não fui informado? As mulheres abaixaram a cabeça e não responderam.

— A quem era a carta endereçada? Não receiem. Contem-me a verdade.

— A nós — respondeu Samar — mas nela havia um pergaminho selado para o senhor. Nossa mãe disse-nos que devíamos escondê-lo até o senhor concordar com o nosso plano.

— Presumo que o tenham trazido com vocês? Ela acenou com a cabeça e correu até o seu quarto, voltando com um rolo de papel selado. Tomando-o das mãos dela, Idrisi pediu que o deixassem a sós. Inspecionou o documento atentamente para verificar se fora aberto e selado de novo mas, para sua surpresa, não tinha sido violado.

Ao pisar no lacre e vê-lo esfarelar-se, seus olhos ficaram úmidos. Walid estava vivo. A caligrafia desajeitada era tranqüilizadora. Não podia haver dúvida de que Walid fosse o autor daquilo que estava na mesa à sua frente. Em outro pedaço de papiro com a carta Idrisi viu os contornos de um mapa, mas que costa podia ser esta? Por um momento o cartógrafo tomou precedência sobre o pai. Bateu palmas. Era a costa sul da Índia, mas desenhada com muito mais habilidade do que a sua própria versão.

— Alá seja louvado — disse para si mesmo.

— O rapaz é mais talentoso do que o seu pai.

E então devorou a carta.

 

"Muito respeitável pai, espero que esta o encontre com saúde. Eu honro o senhor e o amo. Esta é a terceira carta que lhe estou enviando. As duas primeiras foram despachadas por meio de mercadores que estavam a caminho de Palermo. Pedilhes que entregassem as cartas no palácio, presumindo que elas o encontrassem lá. Tenho a sensação de que jamais o alcançaram porque se o tivessem o senhor teria encontrado um jeito de responder e eu costumava sonhar que o seu navio entraria nesta cidade de água e me encontraria.

Esta carta estou mandando por um homem do mar que se tornou um caro amigo meu na primeira viagem e agora é capitão do seu próprio navio. Ele está a caminho de Siracusa. Em minhas cartas anteriores eu lhe pedia que me perdoasse por partir sem me despedir. Não queria que ficasse preocupado ou temeroso por minha causa.

Sei quanto me amava e não queria deixar que minha ausência se tornasse uma preocupação permanente em seu pensamento como a sua o é no meu.

Parei de viajar alguns anos atrás depois de ter passado por algumas atribulações e amarguras em minha vida. Agora estou feliz a serviço de um ótimo mercador, Mestre Soliman, que conhece bem Palermo pelas histórias do seu avô que negociava com sedas e trazia muitas belas peças de tecido de nossa cidade. Mestre Soliman não viaja mais. Trabalha principalmente com fivelas curvas e colares de prata para as senhoras e, às vezes, taças de ouro para o palácio. É um artífice muito talentoso e poderia fazer um planário de prata para os seus mapas.

Pai, gostaria de vê-lo, mas não desejo voltar a Palermo. Vai terminar mal para o nosso povo e não tenho vontade de testemunhar novas matanças. Como sabe, foi a morte do irmão de minha mãe a causa da minha partida. Tenho consciência de que o senhor nada sentia por ele a não ser desprezo, mas era um homem afetuoso, sempre muito bondoso para comigo e não houve um motivo real para a sua morte, exceto roubo. Os nobres que o mataram sabiam que não tinha filhos e que a terra reverteria para o sultão, o que aconteceu, e foi entregue aos assassinos. Aqui na cidade de água não existem muitos fiéis. Mestre Soliman, que é judeu, acha que eu talvez seja o único seguidor do nosso Profeta a viver de fato nesta cidade. Por esta razão minha presença não é ameaçadora para ninguém. Não posso lembrar se o senhor chegou a visitar Veneza em suas viagens, mas se um dia decidir vir até aqui pode me encontrar na casa do artífice em prata Soliman que é conhecido de todos. O pequeno mapa que mando com esta carta foi feito por mim quando era marinheiro e viajei muito pelas costas oriental e ocidental da Índia.

A paz esteja convosco, Pai.

Do seu filho obediente, Walid ibn Muhammad"

Uma cascata de emoções desceu sobre ele — alívio, alegria, amor, raiva, tristeza, tudo fluindo junto enquanto ele enxugava as lágrimas dos seus olhos. Perguntas não feitas e amarguras não faladas continuariam a pesar sobre o seu coração, a não ser que... Pediria ao sultão permissão para visitar Veneza.


3

Rumores sigilliyanos.
O sultão no palácio informa a Ydrisi o destino que aguarda Felipe al Makdia.
O encontro de Jdrisi com Mayya e EI more o faz esquecer de tudo mais.

Depois que as formalidades foram concluídas e os dois netos apresentados ao sultão Rujari, que deu a cada um deles um saquinho de seda contendo moedas recém-cunhadas, a audiência terminou. Os meninos fizeram uma mesura e foram escoltados para casa por Ibn Fityan. O resto dos presentes foi convidado a deixar os dois homens a sós.

Idrisi ficou chocado ao ver quanto peso o sultão tinha perdido nos últimos três meses. Seu amigo robusto, vigoroso e bonito havia envelhecido. Os cabelos ruivos escuros de que tanto se orgulhava e que havia herdado da mãe, Adelaide de Savona, tinham ficado totalmente grisalhos. O mesmo destino devia ter acontecido à sua barba e provavelmente por isso ele a mandara remover. As aparências eram importantes para este sultão. Idrisi fitou Rujari, que evitou os seus olhos. Os dois homens sabiam que a morte não estava muito distante.

Justamente quando Idrisi ia falar, uma jovem, com não mais de 16 ou 17 anos de idade, entrou correndo na sala e abraçou o sultão, repousando a cabeça no seu colo. Ao se dar conta de que não estavam a sós, seu rosto se coloriu e ela murmurou um pedido de desculpas. No momento em que Idrisi a viu, soube quem era e as batidas do seu coração se aceleraram. Os olhos e os lábios dela eram uma réplica exata dos de sua mãe naquela idade.

Rujari sorriu.

— Minha filha, Elinore, mas você a reconheceu, não? É igual à mãe, excetuando os cabelos negros e espessos. Esta foi a minha contribuição. Eu acho.

Ela olhou cuidadosamente para ele e sussurrou no ouvido do pai.

— Como é que ele conheceria minha mãe?

— Mestre Idrisi, ela quer saber como é que conheceria sua mãe. Vocês cresceram na mesma aldeia, não foi? Acho que a vi pela primeira vez na casa do seu tio em Palermo. Você estava lá?

Idrisi assentiu com a cabeça.

— Preciso falar com o amigo da sua mãe, filha. É o maior erudito em nosso reino mas raramente está em Palermo. Diga a sua mãe que ele está aqui. Se ela desejar, pode compartilhar do nosso almoço.

Como uma gazela, Elinore partiu do quarto e, virando-se uma vez, olhou para trás e sorriu.

— Soube que teve notícias do seu filho.

— Seus espiões são rápidos, Excelso Senhor. E, nesta ocasião, dizem a verdade. E sua saúde?

— Veja por si mesmo. Aqui estou no palácio dos seus sultãos, alquebrado pela velhice cruel e pela perda dos meus filhos. Conhece esta sensação. Seu menino desapareceu num navio e lembro que você não conseguiu comer durante vários dias. Três dos meus filhos foram tirados de mim. Eu amava Rujari mais do que qualquer outra pessoa. Estava aprendendo rápido. Você o ensinou. Não se lembra? Era um broto saudável e de repente cresceu como uma árvore jovem. Eu o amava, Idrisi. Cuidava dele com todo o carinho. Era o orgulho do meu pomar. Deus é cruel. Então foi a vez de Tancredi, seguido por Alfonso. Agora tem Guillaume ou "Guilherme, o Conquistador", como seus irmãos costumavam provocá-lo. É um doce rapaz, de temperamento tranqüilo, mas pouco dotado e sem sabedoria nem virtude. A coroa pesará muito na sua cabeça e receio que irá depender muito da espada. A espada, como sabe melhor do que a maioria, é uma defesa essencial contra inimigos em casa e no estrangeiro, mas deve ser usada com cuidado. Se houvesse imaginado que todos os seus irmãos morreriam antes dele, eu teria providenciado para que tivesse a oportunidade de governar ou trabalhar para o Diwan. Seus interesses são limitados à poesia árabe, a discussões sobre o amor, a consumir vinho e a fornicar. Embebeu-se tanto da sua cultura que acho que sente e pensa como um árabe. Isto é perigoso, Idrisi, e vai enfurecer os nobres. Quero que você fale com ele, o ensine e ajude. Ele poderia perder até seu reino tão facilmente como meu pai o conquistou. Se ele o fizer, espero que o seu povo o recupere, mas duvido da sua capacidade de fazê-lo.

Existe uma fraqueza arraigada na sua política. Vocês superestimam o poder da palavra e da espada, mas subestimam a necessidade da lei, especialmente em relação à propriedade. Não me interprete mal: a lei é somente um instrumento para ser usado pelo governante ao seu critério, mas cria a base para a estabilidade. Detestaria que os papas tomassem a Sicília, ou os ingleses ou os cruzados. Se o fizerem, tudo o que criamos será destruído. Será o fim. Eu esperava que minha jovem e bela esposa pudesse me dar um novo filho, mas ela produziu uma menina e isso não ajuda.

Havia ocasiões em que Idrisi tinha dúvidas em relação a si mesmo e à sua posição na corte. Freqüentemente imaginava como, com o seu conhecimento da Siqilliya e do mundo, podia guiar seu povo à vitória. Mas uma conversação mais demorada com Rujari geralmente dissipava suas dúvidas. Não havia outro sultão como ele, na Ifriqiya ou em alAndalus, os dois mundos que ele entendia tão bem. Mas o sultão era duro demais em seus julgamentos.

— Acho que faz uma injustiça a Guilherme. É porque jamais gostou dele que se refugiou em seu próprio mundo, mas é um rapaz inteligente. Seu conhecimento de literatura e filosofia é notável. É verdade que é muito chegado aos prazeres do salão e do copo, mas vou fazer o que pede e dar-lhe algumas lições de política. Vamos esperar que Sua Alteza viva por muito tempo. Os médicos diagnosticaram a sua doença?

— Os sábios de Salerno — e todos eles estiveram aqui — dizem que não há cura para a minha doença. Sabem que estou morrendo. Recomendam ervas, frutas e outras coisas mais, mas quando pergunto quanto tempo de vida me resta não têm resposta. Não sabem. Por isso vamos falar longamente hoje, meu amigo. Há muito a discutir. Estou contente porque teve notícias do seu filho e estou ainda mais feliz porque seu livro foi terminado. Seu livro não deixará felizes meus primos ingleses. Você descreve a Inglaterra como um país de inverno perpétuo no Oceano das Trevas. É verdade. É verdade. Até os padres que os ingleses me mandam para intrigar contra o seu povo e os gregos sabem disso muito bem. Por que outro motivo viriam muitos deles para buscar calor nos braços de rapazes locais? Não é culpa deles, mas de vocês. Por que um exército árabe não chegou e construiu sobre o que os romanos haviam deixado para trás? Assim que atingiram a costa atlântica, vocês podiam facilmente ter tomado a Inglaterra e a ilha ao norte. Aquelas pequenas igrejas saxônicas de que ouvimos falar tanto podiam ter sido reconstruídas como belas mesquitas e depois o Banu Hauteville as teria consagrado como catedrais. Meus primos queixaram-se amargamente de terem de construir tudo sozinhos. Castelos, palácios e igrejas. Disseram-me que todas as suas estruturas são inverno perpétuo.

Sorriu e olhou para o amigo. Era assim que suas conversas tinham ocorrido quando ambos eram jovens e se tornaram amigos chegados. Sua intimidade provocara uma quantidade de rumores nas ruas, encorajados pelos eunucos do palácio. O sultão esperou a sua resposta. Idrisi o atendeu.

— Era fria demais para ser conquistada por nós e até Alá teria problemas para mudar o clima de um país. Em alAndalus e na Siqilliya ainda podíamos cheirar o deserto e cultivar nossastâmaras, limões e romãs. Mas na Inglaterra o frio teria matado as palmeiras e aqueles que levavam as sementes. Aquela ilha era feita para o seu povo, não para o meu. Embora o que diga seja verdade. Nós teríamos lançado a luz do conhecimento sobre eles. Teria poupado a Abelardo de uma longa jornada até aqui simplesmente para aprender árabe. E nós lhes teríamos ensinados os prazeres da comida. Eles pensam e comem como bárbaros. Mas acho que os seus arquitetos, também, gostam de trabalhar segundo os seus planos, não os nossos. A igreja que vocês construíram em Cefalu nunca poderia ter sido construída sobre as fundações de uma mesquita.

Riram. Muito para a irritação dos padres ingleses na corte de Rujari, o azar dos primos que haviam conquistado a Inglaterra era o alvo de muito humor e irreverência entre estes dois velhos amigos. Até mesmo aquela conquista havia exigido a presença de cavaleiros siqilliyanos. E alegava-se até que uma flecha siqilliyana havia derrubado o rei inglês.

— Ah, Cefalu. É lá que você deve providenciar para que este corpo cansado repouse depois que eu partir. Os bispos vão querer enterrar meus ossos aqui em Palermo.

Não deixe que façam isso. Alguns dos meus momentos mais felizes foram passados em Cefalu, onde morei e providenciei para que os arquitetos fizessem exatamente o que eu queria. Por que sorri? Ah, eu lhe contei sobre a mulher de Temim. Ajudou-me muito, certamente, mas foi a igreja que me preocupou muito mais do que ela.

Quanto ao projeto, sei que você está fazendo uma maldade. A influência dos seus arquitetos está onipresente naquela igreja. Como poderia ser diferente quando foram eles que a construíram e da maneira que eu queria que fosse? Foi por isso que me mudei para lá a fim de evitar que os bispos interferissem. Vamos, mestre Idrisi, como pode ter se esquecido daqueles deliciosos arcos, delgados como as curvas de uma bela mulher?

— Uma bela mulher de Temim... Rujari ignorou a observação.

— O que são aqueles arcos senão um tributo às mesquitas de Palermo, que ainda estão lá como estavam na época do meu pai? Você estava convicto de que eu não conseguiria protegêlas. Claro que a igreja que o seu povo tomou e transformou numa mesquita teria de ser consagrada de novo. Nós somos cristãos, afinal. Mas você deve admitir que tudo mais está lá. Esta ainda é a cidade das 299 mesquitas e ainda sou o sultão Rujari da Siqilliya.

— O senhor é certamente o sultão Rujari de Palermo. E os Fiéis o respeitam por isso, mas de que outro modo poderia governar uma cidade em que o grosso da população pertence à minha fé? Poderia matá-los, mas quem administraria o Diwan, combateria as suas guerras, transportaria suas mercadorias e pagaria seus impostos? Os lombardos que seu pai encorajou a virem para cá são bárbaros. Nada sabem a não ser estuprar e roubar. E quando o senhor viaja para Messina ou Apúlia e deixa estes belos mantos longos e se veste na armadura dos seus ancestrais e seu escudo é pintado com uma cruz o senhor se torna rei Roger ou conde Ruggiero dependendo de onde estiver e dos papas litigantes que venham implorar pelo seu apoio.

Rujari sorriu.

— Você sabe muito bem que meu pai se recusou a mandar nossos soldados combaterem na Primeira Cruzada. Eu lhe contei que, quando uma comitiva do papa Urbano continuou a insistir para que enviássemos soldados, meu pai peidou bem alto e deixou a sala? Mesmo depois que tomaram Jerusalém, ele estava convicto de que tinha tomado a decisão certa. Urbano nunca perdoou meu pai e até o ameaçou de excomunhão. Agora ouvi dizer que as coisas não estão muito boas para os cruzados e eles temem perder tudo. Ainda na semana passada recebi uma mensagem de Inocêncio, cujo ódio por mim só é superado por aquele que lhe devoto. Escreve que existe uma pressão dos ingleses e do Sacro Imperador para uma nova cruzada com o fim de aliviar a pressão sobre os estados cruzados e pergunta se a Siqilliya vai participar.

Não mandarei nossos soldados para Jerusalém ou Acre para salvar os castelos de meus primos na Síria. Mas seria tolo de minha parte revelar isto cedo demais. Por isso eu escuto e jogo com o papa e nossos primos ingleses. São deveres cansativos, mas sagrados.

— Alguns poderiam dizer — respondeu Idrisi — que não foi só preocupação por meu povo ou nossos soldados no seu exército que o levou a não ajudar o Papa, mas seus temores e aqueles do seu pai de que o comércio do trigo pudesse sofrer e esvaziar o tesouro. Não é por nada que um de seus nomes é Abu Tilis, pai do saco de trigo.

Idrisi ia continuar quando notou que Rujari tinha dificuldades para respirar. Correu até a porta e pediu ao camareiro do palácio, que estava bisbilhotando, que trouxesse os médicos até o rei.

Rujari se restabeleceu, mas o esforço para recuperar o fôlego o exauriu.

— Vou descansar um pouco — sussurrou fracamente.

— Você precisa comer alguma coisa. Fale com Mayya e depois volte ao meu quarto. Tem um assunto importante que precisamos discutir.

Os médicos tinham chegado e começaram a sentir o pulso e a cabeça reais. Rujari bebeu a água que lhe foi oferecida e depois, pousando os braços nos ombros dos dois criados, caminhou lentamente até o seu quarto. Entristeceu Idrisi vê-lo naquele estado. Este sultão jamais deixaria Palermo vivo. Disso ele tinha certeza.

Um serviçal do palácio entrou na sala e o repreendeu num dialeto árabe falado em Noto.

— Esqueceu-se de mim, mestre. Idrisi examinou-o atentamente e sorriu. Era Abd al-Rahman, o camareiro responsável pela preparação e pela prova da comida nas cozinhas do palácio.

— Você envelheceu, assim como o sultão que serve. Fico feliz que ainda seja o Comandante dos Cozinheiros. Que iguarias foram preparadas hoje?

— Acho que ficará tão contente em rever uma velha amiga que seu pensamento não se fixará por muito tempo nas codornas ou no ninho de pasta de berinjela e alho em que repousam. E isto é apenas para abrir o seu apetite. O simples aroma da comida o guiaria até o refeitório, mas se quiser me acompanhar, Comandante dos Mapas, chegará ao seu destino muito mais cedo.

Idrisi estava tão acostumado ao fato de que poucos segredos sobrevivem em Palermo que a referência casual a Mayya não o havia surpreendido nem um pouco. Conhecia bem demais o local. Era o aposento de encontros particulares de Rujari, onde se servia comida às vezes e onde apenas membros da família, amantes ou amigos privilegiados eram recebidos. Idrisi comera ali em várias ocasiões e, na verdade, não precisava dos serviços de seu guia. A sala estava bem distante do grande salão de banquetes do palácio. As janelas davam para o mar, um cenário perfeito. E o destino quisera que ele se encontrasse com Mayya sem a presença do sultão. Sabia que o ouvido de um eunuco estaria colado à porta e toda a conversa seria relatada ao camareiro que então decidiria quanto deveria ser contado ao sultão e quanto reservado para fins de chantagem. Sempre fora assim, mas ele estava bem preparado.

Mayya entrou na sala deslizando como a princesa que não era e cumprimentou-o sem olhar na sua direção. Ela, também, sabia que cada parede do palácio tinha ouvidos.

— Wa Salaam, Abu Walid. Soube que voltou em segurança e seu grande trabalho foi completado, graças à bondade de Alá. Minha filha me informou que o viu com o sultão.

— Wa Salaam, mãe de Elinore. Fico triste que o sultão não possa comer conosco. Espero que a sua saúde melhore.

Sua única resposta foi mostrar a língua para ele e reprimir a risada que sentia saindo de si. Idrisi não a via há quase 15 anos. Agradou-o que não fizesse nenhuma tentativa de esconder sua idade tingindo os cabelos com hena. Podia facilmente tê-lo feito. Seus cabelos eram de um ruivo dourado escuro, exatamente como uma pintura desbotada da deusa grega Deméter que ele lembrava do templo em Djirdjent. Seu rosto, também, havia mudado, com rugas no pescoço e sob os olhos e nos cantos da boca. Olhou atentamente para ela e estava para beijar suas mãos quando a porta se abriu e Abd al-Rahman entrou na sala seguido por três criados que cuidadosamente dispuseram a comida sobre a mesa.

— Voltaremos quando chamar, mestre Idrisi. Espero que tudo esteja ao seu contento.

— Obrigado, Abd al-Rahman, se não estiver prepare-se para sentir a cimitarra no seu pescoço duro.

Mayya tentou, mas não conseguiu controlar um sorriso. O camareiro fez uma mesura e deixou a sala, tomando o cuidado de fechar as portas com exagerada cortesia.

Idrisi ficou de joelhos, abraçou-a e beijou suas mãos. Então sussurrou no seu ouvido.

— Ela é uma moça bonita. De passos leves e segura de si. Você tem certeza?

Mayya acenou com a cabeça e sussurrou a resposta.

— Graças a Alá, seus cabelos, também, são escuros. Um dia contarei tudo a ela.

Acariciou os cabelos dele e fez sinal para que se sentassem à mesa. Ele a seguiu, mas não pôde se impedir de tocar no pescoço dela. Ela tremeu ligeiramente enquanto se sentavam diante das tentadoras codornas, servindo ele e então se servindo. Fez sinal para que ele comesse e disse em voz alta:

— Quando Abd al-Rahman for para o paraíso, estou segura de que o anjo Jibril vai indicá-lo para se encarregar das cozinhas celestiais. Como estava a comida no seu navio? Como sempre?

— Horrorosa. Pior do que o de costume. Não vamos perder tempo com isso. Estas codornas estão maravilhosas.

E conseguiram falar sobre o cuidado que devia ter cercado cada prato e o frescor dos legumes durante outra meia hora.

Então Idrisi começou a falar de suas viagens. E esse tempo todo em que falavam de comida, mapas e do mar, mantinham-se ocupados explorando o território um do outro.

A incongruência entre as palavras e as ações era tão pronunciada que mais de uma vez ele teve de colocar a mão sobre a boca de Mayya para impedir que ela risse.

Sentindo seus seios debaixo de três camadas de roupas, comentou sobre a delicadeza dos melões, diante do que ela riu alto. O ruído os assustou e correram de volta à mesa para sentar-se em lados opostos. Então, de uma distância segura, seus olhos continuaram a se banquetear um no outro. O risco de fazerem contato físico tornou-se claro quando, sem nenhum aviso, as portas se escancararam e o sultão entrou com Elinore segurando o seu braço. Idrisi se pôs de pé em genuína surpresa.

Mayya sorriu calmamente, mas debaixo de seu vestido de múltiplas camadas podia ouvir seu coração barulhento que, diante do dilema entre o prazer e a culpa, sempre escolhia o primeiro. Idrisi, também, manteve a sua compostura.

— Alá seja louvado. Está recuperado, Sua Excelência. Rujari não perdeu tempo com formalidades.

— Sua risada podia ser ouvida em cada canto do palácio, Mayya. Não quer compartilhar o gracejo conosco?

Ela não hesitou.

— Foi a maneira como mestre Idrisi se referiu aos melões, meu senhor. Ele os segurou em cada mão e falou em voz alta, sabendo muito bem que alguém do lado de fora estava ouvindo e relataria seus comentários à cozinha. Foi o olhar no seu rosto, mais do que as palavras.

Para apoiá-la, Idrisi pegou os melões e assumiu a pose de um deus grego.

Rujari sorriu, enquanto Elinore começou a rir, como a mãe. Estranho, o pai pensou, como as duas têm esta risada brilhante e colorida. Primitiva, mas pura. Uma verdadeira alegria aos ouvidos.

Idrisi começou a estudar as feições da filha mais de perto. Suas sobrancelhas o lembravam da mãe. Como ela teria amado esta criança. O sultão o observava atentamente.

— Ela é bonita, não é, mestre Idrisi? O rosto de Elinore corou e ela foi sentar-se ao lado da mãe.

— Ela tem uma certa semelhança com a sua mãe, ou estou enganado?

— Não está enganado. Mas às vezes eu me pergunto se a semelhança está nas feições ou no caráter. Não posso me decidir. Qualquer das duas respostas me faria feliz.

Pode ir, filha.

Quando ela se levantou para sair, Idrisi falou-lhe diretamente.

— Está satisfeita com o seu tutor?

— Sim, estou, mestre — ela respondeu com uma segurança que o agradou enormemente.

— Ele diz que meu árabe e latim estão agora perfeitos e quer me ensinar grego.

Idrisi se surpreendeu.

— Se o seu pai concordar, eu gostaria de lhe dar algumas aulas de geografia. Achamos que Palermo é o centro do mundo e de certo modo é, mas não é o centro real.

Para surpresa da garota e dos seus pais, o sultão não estava inclinado a concordar.

— Existem muitas outras coisas que uma jovem precisa aprender antes de a sobrecarregarmos com geografia.

Elinore se desagradou.

— Mencione outra coisa, pai. A força da inocência era notável e os dois homens sorriram com admiração.

— Continuaremos esta discussão em outra oportunidade, minha filha, e eu talvez ceda nesta questão. Afinal, eu ajudei mestre Idrisi a preparar a pesquisa para este livro. É por isso que foi intitulado "al-kitab al-Rujari". Mas agora devo tomá-lo de vocês. Preciso consultá-lo num assunto de grande importância para o reino que pode envolver sua futura geografia.

Idrisi curvou-se para Mayya e sorriu para Elinore. Enquanto os dois caminhavam lentamente para a câmara de audiência privada, Idrisi comentou sobre a rápida recuperação do sultão e perguntou se estes ataques eram freqüentes. O sultão acenou com a cabeça, mas deixou claro que sabia que o seu tempo nesta terra era limitado e era em outra questão preparatória para o futuro que precisava de aconselhamento. Foi a terceira vez naquele dia em que Rujari havia indicado que algo o preocupava.

Idrisi ficou pensando por que ele não conseguia falar a respeito. Estavam sentados há algum tempo e o sultão ainda permanecia em silêncio, seus olhos recusando-se a fazer contato com aqueles do amigo.

— Comandante dos Poderosos, há mais de vinte anos que o conheço bem. Esta é a primeira ocasião de que me lembre em que teve alguma dificuldade em me confiar alguma coisa que o está claramente preocupando.

O sultão olhou para ele. — Algo que disse antes continua a ecoar em minha mente. Disse que eu era sultão Rujari em Palermo mas rei Roger no continente. Pois bem, meu amigo, eu preciso me tornar rei Roger em Palermo também. Os bispos me advertiram de que os barões de Apúlia e Messina e outros que não foram nomeados decidiram agir depois da minha morte. Pretendem matar o pobre Guilherme e colocar um deles no trono. Os bispos recomendam que para deter o controle do futuro eu preciso fazer a minha lealdade à Igreja visível a todos.

Idrisi percebeu a gravidade da situação.

— Um sacrifício de sangue?

— Receio que sim.

— Se sou eu que querem, preferiria a cimitarra ao fogo.

— Não é uma questão de frivolidade. Eles querem a cabeça de Felipe al-Mahdia.

Abalado pela notícia, Idrisi se levantou, o rosto carregado de raiva. Felipe era o mais respeitado dos conselheiros do sultão na Siqilliya. Era um eunuco que havia fugido da escravidão em Ifriqiya na juventude e encontrara santuário em Palermo. Nascido muçulmano, depois da morte do pai fora vendido como escravo a um mercador grego. Foi batizado e destinado à Igreja em Constantinopla. Mas o navio mercante que o levava foi atacado por piratas e ele acabou vendido à casa de um mercador em al-Mahdia. Converteu-se voluntariamente ao Islã e logo escapou da servidão como clandestino a bordo de um navio com destino a Palermo. Igualmente fluente em árabe, grego e latim, sua facilidade para as línguas o recomendava para o Diwan real. Seus dons não se confinavam à tradução. Tais eram suas capacidades de administrador que se tornou o mestre da casa e, mais tarde, um eficiente Amir al-bahr, um comandante marítimo temido pelos inimigos da Siqilliya. Estava freqüentemente ao lado de Jorge de Antioquia, o comandante marítimo que conquistou as cidades-estados da costa ifriqiyana para o rei siqilliyano. Depois da morte de Jorge, Felipe foi nomeado seu sucessor. Dentro do palácio, veio a ocupar uma posição de segundo, superado apenas pelo sultão. Um grão-vizir, mas sem um título grandioso. E, na ausência de Rujari, a autoridade de Felipe era inquestionável. Na cidade era visto como um generoso protetor de judeus e Fiéis.

Apenas poucas semanas antes de sua volta a Palermo, quando o navio de Idrisi ancorara num pequeno porto da Calábria para se reabastecer de água potável, ouviram em termos brilhantes sobre o triunfo de Felipe em Bone, na costa ifriqiyana.

Os bispos sem dúvida o consideravam um sério obstáculo aos seus planos, mais notavelmente à conversão lenta e forçada de todos os infiéis. Só podia ser este o motivo para pedirem a sua remoção. Felipe também possuía uma língua afiada e fazia pouco esforço para disfarçar sua aversão a alguns dos padres, enquanto mantinha uma amizade forte com outros. Idrisi podia entender por que os clérigos queriam sangue. Mas o que havia acontecido a Rujari?

— Qual é a acusação contra Felipe?

— De que foí muito indulgente com os prisioneiros feitos em Bone.

— Sultão, tanto o senhor como seu pai na sua época mostraram indulgência ao lidar com os povos derrotados. Em si, o que Felipe fez não constitui um crime. Seus bispos e sem dúvida os barões que os alimentam e protegem os estados da Igreja temem o poder de Felipe e a sua proximidade e lealdade para com o senhor. Mande-o embora, se for preciso, mas não o queime. Isto não aplacará a fome deles. O senhor está doente e debilitado, eu sei, mas sua força política persiste. Queime Felipe e aqueles que o senhor apazigua destruirão seus herdeiros amanhã. Meu conselho de amigo é que resista à pressão. Devolva suas exigências para eles mesmos. O senhor sabe melhor do que eu que os barões roubaram terras e raptaram crianças para propósitos escusos. Peça aos bispos para que julguem estes homens por seus crimes antes de tocar em Felipe. Consiga algo em troca pelo crime que está para sancionar. Se recusarem, então pode voltar à sua velha alma compassiva.

Rujari não respondeu.

— Com sua permissão, vou me retirar agora. Um leve aceno de cabeça foi a única resposta de Rujari.

O cartógrafo tremia de raiva ao curvar-se e deixar a sala. Do lado de fora foi escoltado por um dos camareiros menores e dois escravos. Ao atravessar o pátio externo viu uma figura voando em sua direção. Parou até que a aparição quase correu sobre ele.

— Elinore, minha filha — disse, porque ela olhou para ele com um só olho bem aberto que o fez lembrar de Walid. Mordeu o lábio, mas ela não pareceu de modo algum desconcertada.

— Mestre Idrisi, minha mãe e eu vamos passar o dia com a família dela na semana que vem. Como sua irmã também vai estar lá, seria um prazer se pudéssemos compartilhar o pão. Não precisa de permissão do sultão para visitar sua irmã, precisa?

— Pensarei sobre sua sugestão, princesa.

— Se receia perder o caminho, posso desenhar um mapa com a maior satisfação.

Ele deu uma risada. — Estarei lá, contanto que me deixe saber o dia.

— Muito bem. Discutiremos Pitágoras de Samos e suas idéias. Acredito na importância dos números, mas não definitivamente na do sete.

Ao ver a surpresa no seu rosto, ela riu e desapareceu. Graças a Alá que todos os dias não eram como este. Saber qual das duas emoções encontradas no palácio o afetaram mais era muito difícil. Que ainda amasse Mayya não chegou a ser uma surpresa. Ela estava sempre trancada dentro dele. Em suas longas viagens ela sempre o acompanhava, uma participante gentil de dúzias de conversações imaginárias que haviam se tornado um bálsamo para mitigar a sua exaustão mental.

No passado, quando ela sussurrou em seus ouvidos que Elinore era sua filha, ele não acreditara completamente nela. Achava que era a sua maneira de abrandar a sua culpa. Não sabia que ela não sentia culpa alguma; a culpa não desempenhava

nenhum papel nos seus sentimentos. Para ela, a oferta de um lugar no harém do sultão não fora uma escolha. Fora uma ordem. Não precisara que lhe dissessem que, caso desobedecesse, toda a sua família sofreria. Neste respeito todos os sultãos eram os mesmos: uma crença na profecia de Maomé ou nos milagres de Jesus não fazia diferença. A satisfação de suas necessidades carnais transcendia todas as crenças espirituais.

Idrisi viu agora que ela não tinha meios para transmitir isso a ele, mas com o seu conhecimento do mundo ele deveria ter sabido. Como tinham conseguido encontrar-se em segredo e fazer amor era algo que ainda o assustava e surpreendia. Ela tinha certeza de que não haviam sido vistos, que nem o mais detestável eunuco do harém sabia o que havia acontecido, mas como se podia ter certeza de qualquer coisa naquele palácio amaldiçoado? Assim como ele deveria ter sabido que para ela, ele, Muhammad alIdrisi, seria o único homem na vida. Incomodava-a que a febre do amor não deixara nenhuma marca nele, mas nisso ela se enganava. Ela procurava sinais físicos e se perguntava por que ele não estava magro ou infeliz. Era assim que os poetas descreviam os amantes privados de suas amadas. Se Qays pôde passar fome por sua Laila, por que não Muhammad por sua Mayya? Ela não sabia que estava sempre presente no seu pensamento, que o livro que ele terminara fora escrito para ela, não para o sultão, que a principal razão por que ficara próximo a Rujari e, em conseqüência, incorrera na ira de muitos de seus amigos, era ficar perto dela.

Nunca lhe contara isso porque achava que não acreditaria nele.

De uma coisa Idrisi tinha certeza. Elinore era sua filha. Todas as dúvidas haviam se desfeito. E receava que o sultão também desconfiasse. A alegria de segurar Mayya em seus braços e de ver sua filha havia animado o seu coração. Mas agora, ao caminhar de volta para casa, respondendo aos cumprimentos dos passantes como se num sonho, não podia tirar Felipe do seu pensamento. Conhecia-o bem, o que não tornava mais fácil aceitar a decisão de Rujari. Felipe fora de grande ajuda em relação ao livro, chegando em certa ocasião a capturar um mercador chinês e trazê-lo a Palermo para ser interrogado sobre as linhas costeiras do seu país.

Mas era de um encontro ocorrido muito tempo atrás que Idrisi se lembrava agora. Naquele dia, depois de ouvi-lo expandir suas idéias sobre o mundo por mais de uma hora, Felipe dera um sorriso triste e falara palavras das quais Idrisi nunca se esqueceria:

— Nunca duvidei que o seu trabalho fosse de grande importância para o senhor, Mestre Idrisi. E para o sultão, que aguarda impaciente o término do seu livro. Tenho também a consciência do quanto ele lhe custa em termos pessoais. Conheço homens na mesquita, homens de bem em sua maioria, que estão zangados com o senhor por não fazer mais para ajudar a sua causa. Para mim — e vai me perdoar por falar com franqueza — a geografia nunca foi decisiva para o conhecimento. Ocorre que o verdadeiro conhecimento afoga todos os mapas que o senhor faz. Pois esse conhecimento vem daquelas tempestades permanentes que torturam nossas mentes, como a chicotada no corpo nu de um marinheiro ou prisioneiro. Em ambos os casos, as cicatrizes ficam e nunca saram. É esta experiência de vida que nos educa, Mestre Idrisi. Não os seus mapas. Não me interprete mal. Precisamos saber o tamanho e a extensão do mundo, mas em si o conhecimento é inútil. É o que fazemos com ele que conta. Às vezes os seguidores do Profeta ficam tão distraídos por novas paisagens que se esquecem das suas origens. E um dia, sem aviso, os cavaleiros chegam. A cruz que marca seus escudos é da cor do sangue.

Seus gritos ferozes parecem aqueles de um leão faminto. É esta intrusão que lembra aos Fiéis o que certa vez foram e o que se tornaram. Mas agora é tarde demais.

O dano já foi feito. Não vão se recuperar mais. Rujari é um governante sábio e prudente, mas vai morrer. Então os cavaleiros virão sobre nós como um lagarto escalando uma rocha. Decidirão que a fim de preservar seu próprio poder precisam depurar a corte de pessoas como você e eu. Depois lavarão Palermo com o sangue do seu povo.

Receio que perdemos a guerra.

Estas palavras reverberavam na sua mente enquanto pensava nas conseqüências da decisão de Rujari de sacrificar o conselheiro mais inteligente do seu reino. Algo podia ser feito para ajudar Felipe? Por que não deveria ele escapar para a Ifriqiya? Não seria difícil organizar uma embarcação que o transportasse através das águas. Felipe, que sabia de tudo, deveria estar a par do que estava sendo planejado.

Uma inesperada brisa marinha pegou Idrisi de surpresa. Instintivamente, ele agarrou a barba para impedi-la de balançar, uma sensação que o incomodava intensamente, mas havia se esquecido de que a barba fora severamente aparada apenas alguns dias atrás. Parado, olhando para o mar, ele sabia que a eterna guerra entre a terra e a água não havia terminado. Havia muitas batalhas à frente e talvez até Alá não tivesse certeza de quem venceria. Esta ilha ainda estaria neste mesmo lugar daqui a mil anos?


4

O 'mehfil' na mesquita Ayn al-Shi fa em Palermo.
Felipe é convencido de que os barões e bispos estão planejando
um massacre ou possivelmente dois.

Idrisi tomou o café da manhã sozinho no dia seguinte. Estava ávido pela presença de Khalid e Ali, mas isso não foi possível. Suas filhas tinham partido, ignorando o seu pedido de que os netos fossem deixados consigo. Ibn Fityan transmitiu a mensagem de que os meninos estavam desesperados para voltar aos pais. Até o criado sorriu ao dar o recado. Mas Idrisi ficou zangado com a desobediência das filhas. Como aquelas mulheres terríveis deviam temer a sua influência, receando que pudesse transferir seu amor pelos livros a Khalid e Ali. Enquanto comia os figos recém-colhidos olhou para o mar. Nenhuma brisa agitava as ondas. Houve época em que esta ilha estivera submersa, disto Idrisi estava convencido: as conchas congeladas que descobrira no cume de montanhas e os formatos de esqueletos de peixes gigantes eram prova suficiente do que certa vez fora e poderia voltar a ser. Seria uma punição adequada para os bispos e barões.

A lembrança incômoda de suas filhas voltou a ele. Por que Alá o punira com elas? Como a idiotice podia imperar sobre tudo mais? Depois de hoje, ele não ligava mais. Iria tentar e conseguir ver seus netos regularmente. Quanto aos frutos de seu sêmen, deveriam estar podres já desde o nascimento. Mas a descoberta de Elinore mudou tudo, como se avistasse uma costa rica e fértil, com praias de areia puras e douradas e uma névoa verde elevando-se da rica floresta de palmeiras ao fundo.

As rochas áridas e os arbustos cobertos de poeira murchando sob o calor do verão foram logo esquecidos.

Ibn Fityan, voltando com o seu café-da-manhã, sussurrou perto do seu ouvido:

— As notícias do palácio não são boas. Dizem que Felipe caiu em desgraça e que os bispos estão pedindo sua cabeça. Poderia isto ser verdade, mestre? Se Felipe cair, quem nos protegerá?

Idrisi não ficou nada surpreso de que os preocupados eunucos palacianos estivessem espalhando a notícia. Sacudiu a cabeça em desespero.

— O sultão não está bem. Ele acha que oferecendo a cabeça de Felipe aos nazarenos numa bandeja garantirá uma sucessão segura. Acha que Guilherme é um rapaz fraco e precisará de muita ajuda dos bispos e dos barões. É por isso que está preparado para sacrificar Felipe, uma pessoa cuja lealdade para com ele não pode ser contestada.

O camareiro olhou para ele com olhos magoados.

— Traição. E o senhor a aceitou? Idrisi não respondeu até que terminasse de comer a coalhada de leite de cabra adoçada com mel.

— Vou à mesquita hoje ouvir ao sermão, mas depois que as orações da sexta-feira tiverem terminado. Pode acompanhar-me contanto que mantenha sua adaga escondida. Não quero que digam que Idrisi está com medo do povo.

Ibn Fityan sorriu. Era o que queria ouvir.

— Não o povo, Comandante do Livro, mas um nazareno incitado à fúria pelos monges que se ressentem da sua proximidade com o sultão. Os rumores vis que espalham a seu respeito são verdadeiramente insuportáveis e...

Idrisi o interrompeu.

— Se eu os posso suportar, você deve tentar fazer o mesmo. Ele entendia o medo que a notícia havia desencadeado. Conhecera fome, sede, cansaço físico e angústia emocional; às vezes o pensamento de Mayya aprisionada no harém o levava a uma terrível infelicidade. Tudo isso, mas nunca medo. Agora, tinha de admitir que a notícia da queda em desgraça de Felipe havia abalado até a sua própria confiança.

Enquanto caminhavam através das ruas cheias de gente até a mesquita, Idrisi notou o silêncio da multidão, esforçando-se para ouvir as palavras do sermão, trechos mutilados do Corão. Ao entrar na mesquita, os Fiéis abriram-lhe passagem para que pudesse sentar-se na frente, mas ele declinou com um gesto agradecido e sentou-se no pátio aberto sob o brilho do sol. Olhou ao seu redor para calcular o tamanho da assembléia. Havia pelo menos três mil pessoas reunidas, provavelmente mais.

O qadi falaria por muito tempo hoje, assombrando os fiéis com uma confusa mistura de conselhos dogmáticos e retórica interminável, que fluíam como uma torrente.

Quando a turba expressava apreciação por uma frase particular com gritos de wa-allah, ele a repetia, enunciando cada palavra cuidadosamente, seu olhar dirigido para o céu.

Idrisi parou de ouvir e relembrou um de seus primeiros encontros com Felipe no palácio. O sultão interrogava seu vitorioso Amir al-bahr sobre a planta baixa de uma cidade construída por Fiéis. Por que a água? Por que os jardins? Por que a fileira de árvores em linha reta?

— Generoso sultão — replicou Felipe — o jardim é o céu na terra, a água deve ser mantida pura e clara nos canais, as árvores devem ser plantadas em fileiras. A razão é simples. Ajuda-nos a desenvolver concepções puras e claras e nos guarda de falsas ilusões. Os construtores criam cidades assim por toda parte para enfatizar a universalidade da fé do Profeta. E é isto que impele os soldados do Profeta para a expansão e os inimigos desta fé para a rendição.

O sultão sorriu e acenou com a cabeça.

— Quando fala assim eu sinto uma coisa. No fundo do coração persiste sendo um Crente no seu Profeta. A conversão à minha fé foi um fingimento. Não o culpo, mas ficaria mais feliz se admitisse isto e então você e mestre Idrisi poderiam rezar juntos.

Felipe empalidecera mas, além daquela expressão, não traíra nada.

— Sou grato ao sultão. Rezo na grande igreja construída por seu pai.

Subitamente Idrisi se deu conta de que o nome de Felipe fora mencionado pelo qadi. Os outros ouvintes já haviam sucumbido ao pregador. Agora Idrisi, também, apurava o ouvido para escutar cada palavra.

— Foi-nos relatado que Felipe al-Mahdia, o grande Amir al-bahr e um digno sucessor do saudoso Jorge, que Alá abençoe sua memória, é vítima de falsidades. Os monges nazarenos acusam Felipe de traição porque dizem que quando conquistou Mahdia se recusou a torturar e matar Fiéis ou estuprar as mulheres. Será isto um crime? Que estrelas chovam sobre a cabeça dos nazarenos e que sejam forçados a beber seu próprio sangue por fazer esta acusação. O sultão Rujari é nosso protetor e nada devemos fazer para abalar o seu trono. Ouçam-me, Fiéis. Este sultão nos defendeu contra a loucura dos seus monges. O sultão e sua família nos guardarão contra todas as catástrofes e por este motivo vamos rezar a Má para guiar o sultão e insistir com ele para que poupe a vida de Felipe.

Idrisi juntou-se às orações, fechou as mãos em concha e olhou para o alto. Um "Amém" coletivo cortou o ar e o sermão terminou. Enquanto o cercavam, os Fiéis gritavam perguntas de todas as direções: O que o qadi disse é verdade? Acha que Filib vai morrer? Nosso mundo vai acabar? Não deveríamos resistir agora antes de esperar pelo machado do carrasco?

Sorriu para eles com olhos tristes e deixou-se levar até o coração da mesquita, numa sala estreita onde os outros se haviam reunido. À medida que seus olhos se acostumaram à semi-obscuridade, sentiu o choque de um relâmpago. Felipe, vestido em longos mantos brancos, estava sentado no chão com os demais. Levantou-se e abraçou Idrisi, beijando-o três vezes. Os outros fizeram o mesmo. Além do qadi, de Felipe e dele mesmo, havia o eunuco chefe do palácio e dois jovens que se apresentaram como capitães de Felipe encarregados de suas próprias belonaves. Felipe lhes havia ensinado tudo o que sabiam e morreriam por ele. Terminadas as apresentações, o silêncio caiu sobre a sala.

Foi Felipe quem falou primeiro.

— O que o qadi disse hoje aqui é verdade. Uma conspiração está sendo preparada contra nós. Isso é uma certeza. Ainda se encontra nos estágios iniciais, mas nossas escolhas são limitadas. Qualquer resistência nesse momento seria facilmente esmagada. Os barões e monges esperam que quando eu for queimado na fogueira haja um levante.

Os dois jovens capitães marinhos tremeram de horror e o mais velho deles falou:

— Amir Felipe, se o queimarem, nós queimaremos esta cidade. A lealdade dos homens nos navios é para com o senhor e ninguém mais...

Felipe ergueu a mão para interrompê-lo.

— Seria uma tragédia se isto acontecesse. O sultão está docente. Vai morrer em breve. Ele sabe disso. O menino que o sucede simpatiza ainda mais conosco do que o pai. Dominou a nossa língua e o Corão. Admitiu ao seu tutor que gostaria de se converter à nossa fé. Não é verdade, mestre Idrisi?

— É verdade — sussurrou Idrisi — mas tenham cuidado. São os desejos de um jovem impressionável que está apaixonado por nossas mulheres e não deveríamos presumir que se converteria...

Felipe sorriu.

— Alguns homens ficam impressionáveis até o dia em que morrem. Sei muito bem disso. Se a maré mudar, Guilherme poderá afastar-se de nós. Numa guerra longa, nada pode ser tomado como certo. Sei disso melhor do que todos vocês. O destino de uma batalha é geralmente decidido no momento da vitória ou da derrota.

Quem acreditaria que um punhado de normandos poderia ter derrotado nossos exércitos nesta ilha? Tínhamos superioridade numérica sobre eles, tínhamos mais armas, mais comida e controlávamos as cidades e o mar. Mas eles venceram. Até o último momento tudo é possível. É a qualidade dos homens que lutam, sua capacidade mental, que determina muita coisa. É o mesmo na situação que nos confronta neste momento. Mas devemos nos preparar cuidadosamente e dar força a Rujari declarando nossa lealdade à sua família. Para nós, as melhores condições no combate que temos à frente seriam se os barões se recusassem a aceitar Guilherme como seu rei. Se isto acontecer, vocês devem resistir a eles e defendê-lo. Quem sabe, a Siqilliya, com ou sem os francos, vai retornar à nossa fé.

Então Idrisi falou.

— Existe um problema que você não levou em conta. Se eles o queimarem, o encanto será quebrado e a bela ilusão ou esperança — chamem-na como quiserem — desaparecerá para sempre. Quando nosso povo vir que o Amir Felipe, o homem mais poderoso no reino depois do sultão, pode ser queimado como um pedaço de madeira e ter suas cinzas espalhadas no mar, entrará em desespero. Pensarão que Alá os abandonou. Ficarão amargos e desesperados e naquele estado os homens não pensam mais de uma maneira calma e racional como você. Por favor, não subestime os efeitos de sua própria morte.

Felipe sorriu.

— Tortura e morte pelo fogo é uma abominação, mas acho que vou sentir mais do que vocês. Fui vendido como escravo e naquela condição sempre se está preparado para a morte. Aumentaria a minha infelicidade se soubesse que vocês estavam empenhados em planejar uma ação destinada a fracassar.

Então o qadi falou. Aos 76 anos de idade, os cabelos em sua cabeça haviam desaparecido algum tempo atrás, mas suas longas barbas brancas, cofiadas com força durante momentos-chave dos seus sermões, tinham um toque de grandiosidade selvagem. Idrisi o tinha ouvido nesta mesma mesquita durante muitos anos e conhecia todas as suas manobras retóricas. Lembravam-no do tempo. Quando começava a falar era como se um pé-de-vento quente e úmido subitamente fosse soprado para longe e o ar se tornasse estagnado e imóvel. Então, de repente, sem aviso, uma nuvem escura surge, seguida por um trovão, exortando os crentes à ação. Às vezes havia variações, mas nada significativo. E os Fiéis, para o seu crédito, aprendiam a demonstrar um estoicismo digno dos seus primeiros ancestrais, aplaudindo as mesmas palavras, semana após semana, como se as tivessem ouvido pela primeira vez.

— Amir Felipe — disse ele -, o senhor é tido como o homem mais sábio nesta ilha, mais sábio mesmo do que mestre Idrisi. Em nome de Alá eu insisto para que pense de novo. Nosso Profeta, que repouse em paz, ensinou-nos a submissão, mas só diante de Má. Nenhum governante terreno pode tomar seu lugar. Que o senhor se submeta ao crime que está sendo preparado pelo palácio é inaceitável e prejudicará a nossa comunidade. Eu o instaria a pegar um navio e desaparecer. Como foi que o nosso Profeta venceu aquelas primeiras batalhas? Foi porque naqueles primeiros embates com os Ignorantes, os soldados do Profeta eram os únicos homens disciplinados da sua época. Não era fácil elevar o estado mental dos Ignorantes para acreditar num só Má, mas finalmente nós conseguimos e eles entraram no curso da História.

Por isso, Amir Felipe, imploro ao senhor para que siga este exemplo. Existem muitos lugares onde encontrará refúgio. Nossos Amires em alAndalus, ameaçados permanentemente pelos nazarenos, recompensarão as suas habilidades. E quando histórias das batalhas que o senhor ganhar, com a ajuda de Má, chegarem à Siqilliya, nos regozijaremos e, quem sabe, isso poderia até encorajar nossos poetas a falarem menos de vinho e mais em nossas vitórias.

Nesta veia a discussão continuou por muitas horas, os jovens capitães apoiando vigorosamente a sugestão do qadi de que Felipe reunisse vários navios e se refugiasse numa cidade amiga. Descreveram como, no passado, haviam encontrado um número de abrigos seguros e os marcaram em seus mapas, sem revelar as localizações, sequer para mestre Idrisi.

Mas todos conheciam a vontade e determinação de Felipe al-Mahdia. Quando tomava uma decisão, era difícil demovê-lo. Com um simples gesto, ele pediu e obteve silêncio.

Então conduziu o mehfil ao encerramento.

— Não me interpretem mal, amigos, mas meditei cuidadosamente sobre a questão. Não tenho nenhum desejo de morrer, mas nenhum de vossos argumentos me convenceu. Como pode minha morte ter o efeito que descrevem se tão poucos sabem que sou um Fiel? A maioria das pessoas acha que sou um nazareno. Não serão afetadas por minha partida. O qadi fala dos soldados disciplinados do Profeta. É disto que precisamos, mas foram os francos que exibiram esta qualidade quando tomaram esta ilha.

Nós estávamos, como de costume, brigando entre nós. Se um de nossos Amires não tivesse convidado os francos para ajudá-lo contra nossos Fiéis, teriam eles vindo até aqui? Só Alá sabe. É porque precisamos de disciplina que estou preparado para morrer, a fim de que vocês tenham o tempo de se organizar para as batalhas que têm pela frente. Os nazarenos não ficarão satisfeitos enquanto não tiverem matado todos nós. É a única linguagem que entendem. E, fiquem seguros, não me submeterei facilmente ao julgamento deles. Vou me defender de todas as suas falsidades. E espero que mestre Idrisi insista em estar presente para que possa transmitir o que aconteceu a todos vocês. Fugir e se esconder é um sinal de culpa e não darei a eles esta satisfação. Se eu fosse embora, eles se vingariam em vocês. Os monges têm dificuldade em ocultar seu ódio a Palermo. Existem Fiéis e Judeus demais aqui para o seu gosto.

— Por isso eu me despeço de vocês, meus amigos. Sempre pensem cuidadosamente antes de agir. Levem tudo em consideração. E uma última coisa para o senhor, mestre Idrisi. Seus genros de cabeça quente preparam-se para pegar em armas contra o sultão. É o que meus homens relatam de Siracusa e Noto. Naturalmente, impedi que a informação fosse circulada, mas diga-lhes que sejam cautelosos. Este é o momento errado. E uma última palavra de advertência. O homem mais perigoso no palácio, porque o mais esperto, é Antônio, o monge de Cantuária, que aprendeu o ofício de homens ainda mais espertos do que ele. Não se interessa por vinho, mulheres ou bens materiais. Sua única causa é assegurar o triunfo nazareno contra os Fiéis. Sempre que falei com ele, senti que estava sendo interrogado por meu carrasco. É um fanático gentil, mas não se deixem enganar. Nunca relaxa com a sua fé, nunca duvida do seu Deus e se sacrificará alegremente para a vitória de sua causa. É o que o faz diferente dos monges corruptos e indolentes nativos desta ilha.

Mestre Idrisi sorri. Sim, meu amigo, ele não é diferente de mim, com a diferença de que minha preocupação é salvaguardar nosso povo da melhor maneira que eu possa.

Antônio é atormentado por uma paixão religiosa e isso, eu receio, sempre beira a insanidade, não importa qual seja a religião. É por isso que o receio mais do que a todos e vocês também deveriam. Acho que ele estará presente ao meu julgamento. Pergunto-me se esta ilha que vocês descrevem como mergulhada em total escuridão ainda assim produz homens cuja luz interior faz suas almas brilharem.

E com estas palavras Felipe e o eunuco-chefe partiram, deixando o resto da companhia num estado de mutismo e choque. Idrisi sentiu a mão do qadi em seu ombro.

— Não poderia interceder junto ao sultão em favor dele? Acenou silenciosamente com a cabeça. Ao deixar a sala Ibn Fityan juntou-se a ele e os dois homens caminharam em silêncio através do pátio interno e saíram às ruas. Quando chegou finalmente à sua casa, foi recebido pelo som suave da flauta.

Parou diante da porta enquanto Ibn Fityan fez a sua pergunta preocupada:

— Amir Felipe recusou-se a deixar a ilha? Os olhos tristes de Idrisi voltaram-se para o seu criado e o eunuco soube que era tarde demais para salvar Felipe. A porta se abriu. Thawdor os havia visto e a música tinha cessado.

— Traga seu filho até mim, Thawdor — instruiu Idrisi. O homem fez o que lhe foi pedido. O rapaz caiu de joelhos e tentou beijar os pés de Idrisi, mas ele se afastou, pegou o rapaz pelo braço e o fez ficar de pé.

— Nunca mais faça isso, Simeon ibn Thawdor. Você não é um escravo. Recuperou-se da viagem?

— Sim, mestre — respondeu o rapaz com os olhos baixos.

— Falei com o seu pai. Você virá comigo ao palácio, onde providenciei para que lhe ensinem a ler e a escrever.

O rapaz ergueu o olhar e sorriu. — Sou agradecido, senhor, mas igualmente feliz de ir ao madresseh. Não quero lhe causar mais incômodos.

— Por que deveria me incomodar?

— O palácio é para os filhos do sultão e eu não estou apto a aprender com eles.

Os homens caíram na risada, antes que Ibn Fityan o tranqüilizasse.

— Não se preocupe com isso, meu jovem. Vai aprender com crianças que não são muito diferentes de você. O palácio abriga os filhos daqueles que trabalham para o sultão. Foi onde me ensinaram gramática árabe e grego. O que gostaria de aprender?

— Música — respondeu o rapaz sem hesitação. Seu pai ficou incrédulo.

— Música?

— Sim, pai. Música — o menino respondeu.

Idrisi interveio. — Escute-me, rapaz. Eu o ouvi tocar a flauta e não tenho dúvida de que Alá o abençoou com o dom. Toca bem e também deveria aprender a tocar o alaúde, que colocará em teste as suas habilidades. Existe um grande mestre em Palermo, cujo pai, também um grande músico, era conhecido de minha família. Falarei com ele e lhe ensinará a arte, mas o fará duas vezes por semana. Nos dias restantes deve aprender gramática e lógica. Creia-me, poderia até ajudá-lo na sua música.

O rapaz ficou exultante.

— O nome do mestre é Abu Salim? Idrisi se surpreendeu. O rapaz sabia mais do que imaginara.

— Ele mesmo. Já o ouviu tocar o alaúde?

O rapaz acenou com a cabeça.

— Uma vez eu caminhava pela taverna, aquela perto da qual os botes são amarrados, e ouvi música que soava como se viesse do céu.

Fiquei sentado do lado de fora e ouvi durante quase duas horas. Perguntei a um homem que saiu cambaleando de um lado para o outro quem era o músico. Bateu-me na cabeça e disse que só existia um homem capaz de dar vida ao alaúde daquela maneira e era Abu Salim. Nunca esqueça esse nome, disse o homem, porque poderia nunca mais ouvi-lo. Nunca mais o ouvi, embora passasse com freqüência por aquele lugar, esperando que estivesse lá.

Thawdor e seu filho foram dispensados com um toque afetuoso na cabeça do rapaz.

— Ficarei de olho em você à distância. Ibn Fityan me manterá a par dos seus progressos.

Depois que saíram, Idrisi fez sinal a Ibn Fityan para que se sentasse.

— Diga-me, quem no palácio, entre os nazarenos, é mais chegado ao sultão?

— Ninguém é chegado da maneira como Felipe era ou o senhor, mestre. Mas é o monge pálido, Antônio de Cantuária, quem se faz ouvir pelo sultão. Como não é daqui, o sultão acredita que o seu conselho seja livre de interesses. Ele não pede terras ou dinheiro. Vive com simplicidade. Dizem-me que foi ele quem aconselhou o sultão a mandar Amir Felipe para a fogueira.

Idrisi tinha visto Antônio circulando pelo palácio, mas não chegara a registrar adequadamente a sua presença. Nem o sultão o havia mencionado uma vez sequer. O sultão estava receoso. Só podia ser essa a única explicação.

Ibn Fityan tossiu discretamente.

— Correm rumores no palácio, mestre, dos quais deveria ser informado.

— Fale, homem. Fale.

— Existe um plano para matar Antônio.

— De quem é esta idéia tola? Felipe vai ficar enraivecido. Isso não o ajudará. O eunuco-chefe está a par?

— Está, mas não conseguiu convencer os outros. Tencionam matá-lo esta noite ou amanhã e...

— E?

— O plano é colocar a culpa do assassinato de Antônio nos monges gregos que o desprezam ainda mais do que nós. A história que os eunucos vão circular é de que Antônio foi apanhado numa situação delicada com um jovem monge e, quando seu verdadeiro amante percebeu, matou os dois.

— Existe alguma verdade na história?

— Nenhuma, Amir al-kitab.

— Então haverá dois assassinatos.

— Se Alá quiser.

— Alá não quer isso mais do que quer a morte de Felipe.

Estas são decisões tomadas por homens nesta terra e em Palermo. E ambas estão erradas.

— É tarde demais, mestre. Não há nada que possamos fazer. Se o senhor advertisse o sultão, trairia minha confiança e aquela do eunuco-chefe. Morreríamos todos juntos.

Idrisi podia enxergar muito bem a lógica em tudo isso. Tomaria um banho e refletiria sobre a crise que estava para tomar conta da ilha.

Foi quando estava coberto de água no hammam que percebeu a importância do que Felipe dissera pouco antes naquela tarde. A melhor maneira de manter a presença dos Fiéis na Siqilliya era apoiar a família Hauteville que havia conquistado a ilha por meio de uma combinação de habilidades marciais e sorte — e do fato eterno: os seguidores do Profeta estavam divididos. Esta última fora a causa da derrota real em Palermo e Jerusalém. Que cidade cairia a seguir? Ishbilia ou Gharnata? O sol escureceria e os oceanos ferveriam antes que os Fiéis chegassem a se unir contra um inimigo da fé e então seria tarde demais.

Os criados haviam começado a enxugá-lo quando Ibn Fityan entrou no vestíbulo da sala de banhos.

— Uma mensagem do palácio acabou de chegar.

— Do sultão?

— Não. É da jovem princesa Elinore. Ela é de fato a favorita do sultão e, se ele tivesse se casado com a senhora Mayya, teria se tornado uma Sultana. É a vontade de Alá. É a vontade de Alá. Ela e sua mãe visitarão parentes no sabá e desejam que o senhor se junte a elas em Siracusa. O mensageiro também sussurrou outra coisa em meu ouvido, mestre.

Idrisi dispensou os criados.

— Antônio partiu subitamente hoje. Embarcou num navio para Marselha. Ninguém sabe por quê. O Diabo deve tê-lo avisado.

— Ou o seu Deus. Fico aliviado com a notícia. E o assassinato do monge grego foi suspenso?

— Claro, mestre. Os assassinos não são tolos. De que adiantaria quebrar um galho se a árvore sobrevive?

A notícia melhorou o seu ânimo. Idrisi sorriu por dentro. Talvez com a partida de Antônio, a decisão sobre Felipe pudesse pelo menos ser adiada. Ele podia escrever uma carta ao sultão pedindo que reconsiderasse. Poderia ser mais eficaz do que um encontro.

— Prepare minhas roupas. Vou partir para Siracusa amanhã cedo. Tenho trabalho a fazer.

— Vai viajar de barco, a cavalo ou em carruagem?

— Barco. Se eu partir cedo pela manhã com a maré, estaríamos lá no início da noite. É quase lua cheia. Será uma viagem agradável.

— Deseja que o acompanhe?

— Preciso que fique aqui para acompanhar os acontecimentos no palácio. Quando for marcada a data para o julgamento de Felipe, me informe imediatamente. Um só criado será suficiente para esta jornada.

— Deveríamos informar o Amir de Siracusa? Vai ficar no seu palácio?

— Prefiro não ficar com ele. Se decidirmos não o informar, ele descobrirá a minha presença?

— Acho que sim e, levando em conta o seu temperamento, vai considerar um gesto inamistoso. Poderia até pensar que o sultão o despachou para procurar um novo Amir.

A fragilidade da situação não deveria ser subestimada.

Idrisi olhou com apreciação para o seu camareiro. Ibn Fityan estava a seu serviço há quase vinte anos, um presente do sultão. Era difícil adivinhar a sua idade, mas tinha provavelmente entre cinqüenta e sessenta anos de idade. Seus cabelos só agora começavam a ficar grisalhos e sua pele de compleição escura era macia como cetim. No início, Idrisi supôs que ele tivesse sido colocado em sua casa para manter o sultão informado sobre as atividades do seu erudito preferido. Mas estava enganado. O homem era parte da rede do eunuco-chefe e este era um grupo que devotava lealdade à fé em que havia sido convertido.

O Profeta proibira a castração dos Fiéis, não importa as circunstâncias. Foi o Tribunal Bizantino em Constantinopla que havia autorizado um comércio frouxamente regulado de meninos castrados, fornecidos ao papa e à sua Igreja para uma variedade de propósitos, mas principalmente para servir ao coral. No resto, eram vendidos no mercado livre em Palermo, o maior centro de comércio entre o Oriente e o Ocidente, assim como Bagdá e Qurtuba. O sultão e os Amires tinham necessidade especial deles. Eram os guardas de confiança do harém e, como tal, adquiriam posições-chave nos palácios por causa de seu acesso ilimitado aos governantes. Freqüentemente trabalhavam de perto com aqueles que, como eles, haviam sido comprados ainda com pouca idade mas, ao contrário deles, não tinham sido emasculados. Felipe al-Mahdia era uma destas pessoas. E logo se desenvolveu entre ele e o círculo dos eunucos uma afinidade natural, o que significava que ele sempre dispunha de um meio alternativo de conhecimento. Ele não dependia exclusivamente da informação disponível ao Diwan. Tão próximo estava dos eunucos que seus inimigos na Corte espalharam o rumor de que ele mesmo era um deles.

Ao contrário de outros que haviam começado a vida como jovens escravos no palácio, Ibn Fityan não tinha a pele clara. Vendido em Palermo aos dois anos de idade, suas origens eram um mistério até para si mesmo. Apesar do fato de que não era castrado, os eunucos o haviam adotado. Fora circuncidado e criado como um Fiel. Nunca falava de sua mulher ou de seus filhos. Todas as tentativas de extrair informação sobre este assunto eram polidas, mas firmemente repelidas e não fosse a indiscrição do eunuco-chefe, Idrisi jamais teria sabido que o filho de Ibn Fityan morrera na recente guerra para a retomada de Mahdia.

Idrisi não se surpreendia mais com as habilidades políticas intuitivas do seu empregado. Sua inteligência natural parecia ilimitada e sua experiência e conhecimento do Diwan e do palácio permitiam-lhe ficar um passo adiante da maioria dos cortesãos.

— Diga-me — Idrisi perguntou-lhe — como vai informar ao Amir que estou a caminho. Apanhá-lo de surpresa é certamente inadequado. Isto também poderia ser mal interpretado.

— Não é um problema, mestre. Esta noite vou instruir ao Guardião da Torre de Vigia em Palermo que mande uma mensagem ao longo da costa até Siracusa. O senhor sabe, naturalmente, que para mensagens secretas nós usamos um código que é conhecido apenas pelas pessoas de nossa maior confiança. O Amir será informado da sua chegada ao tomar o café da manhã amanhã cedo. Isso lhe dará tempo suficiente para preparar a sua recepção.

— Dispõe de um amigo naquele palácio também?

— Mais de um.

— Existe algo que eu precise saber? Ibn Fityan suspirou.

— O Amir é um governante dedicado, mas muitos na cidade o vêem como alguém que se vendeu aos francos a fim de se manter no poder. Ele sabe que é visto assim e isso o enraivece e perturba.

— Neste caso — murmurou Idrisi — temos muita coisa em comum.

— Com todo o respeito, mestre, não é o caso. O senhor é um erudito. Ele é um governante.

— É verdade, mas ambos servimos a Rujari. Ele com a sua espada, eu com a minha pena.

— Os homens que contam sabem muito bem que o seu coração está conosco e quando a ocasião chegar, a multidão também o saberá. Não temos certeza quanto ao Amir.

Ele não fala muito. Só tem uma esposa e nenhuma concubina, restringindo assim nossa capacidade de descobrir o que está realmente pensando. Sua visita oferecerá a primeira oportunidade real. A questão que precisamos ter respondida é esta: depois da morte de Rujari, se tivermos que empreender uma guerra contra os nazarenos, o Amir de Siracusa lutará conosco ou contra nós?

Idrisi irrompeu numa risada para esconder sua ansiedade.

— Por que ele deveria confiar em mim?

— É um risco que o senhor deverá assumir. O mestre tem noção de que a única esposa do Amir é a irmã mais moça da senhora Mayya?

Enquanto Idrisi abria a boca em surpresa, notou um levíssimo traço de sorriso aparecer no rosto de Ibn Fityan enquanto o homem fazia uma mesura e deixava a sala.


5

O Amir de Siracusa organiza um jantar
em que se fala abertamente de rebelião.

Quando o navio, tirando vantagem de uma brisa inesperada, se aproximava da baía de Siracusa, a luz da lua cheia caía na escuridão do mar e na forma de um vale dourado. Por mais vezes que tivesse visto isso e em quantas águas diferentes, era sempre arrebatador. Enquanto observava, viu os barcos dos pescadores iluminados por velas saindo ao mar para uma noite de trabalho.

Na infância adorava ser acordado ao alvorecer para acompanhar a criadagem até a aldeia pesqueira mais próxima de sua casa. A jornada a cavalo o deixava bem esperto; meio excitado, meio assustado pelo pensamento de ver um jaguar atravessar o caminho, mas isso nunca aconteceu. O verdadeiro deleite era observar os peixes ao serem trazidos dos barcos pelos pescadores. Então o cozinheiro lhe perguntava "Qual deles devemos comprar?" e ele apontava para o maior, o que fazia o cozinheiro rir.

"Os grandes têm muitas espinhas. Vamos levar quatro destes..."

Desde que haviam deixado Palermo, a pessoa mais importante a bordo havia ignorado todas as tentativas para o bajular e agradar. Seu criado pessoal cuidava de suas necessidades e mantinha os outros viajantes, principalmente negociantes, à distância. Esta era a desvantagem de ser conhecido como íntimo do sultão. Através de toda a jornada ele evitara olhar para a costa familiar que mapeara mais de uma vez. Em vez disso, seu olhar ficava direcionado para o mar, que tinha, graças a Má, permanecido calmo enquanto ele refletia sobre o passado e o futuro.

Depois de terem vivido anos incontáveis nas vastidões desérticas da Arábia, pensou, meus ancestrais ficaram impressionados com as inesperadas perspectivas que os acolheram nas civilizações urbanas. Não podiam ficar parados e absorveram alegremente o melhor que as novas civilizações tinham a lhes oferecer. A escuridão do deserto não era mais visível, mas surpreenderam o mundo com a sua sabedoria e a opulência de suas cortes e de seus bazares. Mas o contraste entre o que tinham sido um dia e o que haviam se tornado significava que não podiam construir uma estrutura duradoura sobre estas novas fundações. Assim as ondas de rebelião que se levantavam dos desertos e das cadeias de montanhas do mahgreb, rebeldes de barbas compridas pertencentes a seitas que pregavam as virtudes da pureza e abstinência, homens que chegavam no dorso de cavalos com espadas levantadas, gritando Alá Akbar e destruíam as cidades que haviam sido tão cuidadosamente construídas pela primeira onda dos Fiéis. Os puritanos queimavam livros cheios de sabedoria, proibiam o discurso filosófico, puniam eruditos e poetas, começando assim o processo que permitiria ao inimigo penetrar pelos poros de nossas fraquezas e destruir tudo. Faziam tudo isso por motivos nobres. Acreditavam genuinamente que agiam em nome de Alá e do seu Profeta. Naturalmente, não se viam como uma aberração monstruosa: era assim que encaravam os hereges e os sultãos complacentes que eles chacinavam com os soldados que os defendiam.

Idrisi pensava em alAndalus, fragmentada, sob sítio permanente e possivelmente à beira da extinção. Siqilliya era diferente. Aqui a coisa ainda não havia acabado e como muitos dos seus correligionários ele acreditava que o clã Hauteville, por motivos de autopreservação, poderia ajudar na restauração da velha ordem. A primeira dúvida séria fora levantada pela decisão do sultão de sacrificar Felipe.

— Respeitado senhor, chegamos a Siracusa. O comandante do navio estava pronto para conduzi-lo ao bote que o aguardava enviado pelo Amir de Siracusa e que remadores levariam até a praia. Idrisi virou-se e viu a fileira de tochas acesas na orla. Do navio pareciam carregadores de féretro, mas sabia que sua presença significava que uma pessoa de importância fora mandada para recebêlo.

Ao desembarcar, ficou atônito quando viu o Amir à sua espera. Os dois homens se abraçaram. O Amir vestia uma túnica amarela de seda bordada com fios de ouro, seus cabelos aparados e a barba curta tingidos com hena ruivo-escura combinando com a túnica. Seu ar era austero. Os olhos escuros, encravados no rosto, enfatizavam a palidez cadavérica do seu semblante. O esplendor de suas roupas não conseguia ocultar feições longe de perfeitas e, embora fosse alguns anos mais jovem do que Idrisi, era encurvado e mancava ligeiramente. Ainda assim, o Amir tinha o ar de um homem religioso, sério e penitente.

— Má seja louvado por trazê-lo até aqui em segurança, Ibn Muhammad. Bem-vindo a Siracusa. Acredito que a última vez que nos visitou foi a caminho de Noto, mas eu estava em Palermo na ocasião. Nossas famílias são, naturalmente, conhecidas. É uma honra conhecê-lo pessoalmente.

Notícias da sua chegada haviam se espalhado pela cidade. Enquanto os dois homens a cavalo seguiam a rua sinuosa até a grande praça, uma multidão de espectadores abria caminho para eles. Os passantes os acompanharam com passos rápidos até o portão do palácio e começaram a cantar "Wa Salaam, Ibn Muhammad alIdrisi, Wa Salaam Amir al Siracusa" "Alá Akbar". Poucos homens jovens bravamente gritaram "Morte aos Infiéis" antes de serem silenciados pelos mais velhos e retirados às pressas da praça.

Um banquete suntuoso fora preparado em sua honra ao qual todos os notáveis haviam sido convidados. O Amir deixara Idrisi para se recuperar da viagem no hammam.

Depois de um banho quente e de outro frio, seguidos por uma massagem revigorante feita por dois gigantes do palácio, Idris sentiu-se refrescado, mas ainda não gostava da idéia de um banquete formal. Havia, naturalmente, a novidade. Não conhecia a cidade e lembrou-se da recomendação de Ibn Fityan. Ouviria atentamente o que fosse dito, mas por que algo deveria ser dito numa refeição pública? Quando Mayya e Elinore chegariam? Viriam primeiro para cá ou para a aldeia familiar, a uma hora de distância e sem acesso fácil? Uma batida na porta anunciou o camareiro do palácio que viera para escoltá-lo até o pátio onde os convivas estavam reunidos.

O Amir havia descartado a sua apatia e até o encurvado do corpo parecia ter desaparecido. Com um olhar resoluto apresentou Idrisi à cinqüentena de homens que, como árvores cuidadosamente plantadas, formava uma linha reta. A maioria deles eram velhos carvalhos, mas no final da fileira notou dois jovens de aparência cavalheiresca e atraente que, desafiando a convenção, estavam mergulhados em animada conversação, mas ficaram em silêncio quando ele se aproximou. Cada um colocou a mão no coração, curvou-se ligeiramente e se apresentou.

— Abu Khalid.

— Abu Ali. Idrisi ficou atônito. Eram seus genros e deveriam ter sido convidados por cortesia do Amir. Abraçou-os calorosamente e sussurrou:

— Fico feliz em vê-los. Falaremos a sós amanhã. Enquanto se sentavam, Idrisi notou algo estranho: nem bispos nem barões estavam presentes. Pelo que podia ver, não havia um único nazareno à mesa. Não podia lembrar-se de jamais ter comparecido a um banquete oficial sem a presença de um príncipe da Igreja ou de um monge. É verdade, o Amir era um Fiel e o palácio não possuía uma capela, mas não havia escassez de bispos ou barões na região. Idrisi se perguntou se teria sido uma decisão sábia. A resposta veio rapidamente.

— Notei seus olhares inquisitivos, Ibn Muhammad — começou o Amir numa voz quase inaudível.

— Esta é uma reunião fora do comum e não destinada a muitos que normalmente são convidados ao palácio. Pensei em aproveitarmos a sua presença para convidar poucos homens escolhidos a dedo que estão cheio de pressentimentos com as notícias que nos chegam de Palermo. Parece surpreso? Deixe-me assegurar-lhe que este é o primeiro mehfil reunido no palácio. Geralmente alguns de nós nos encontramos na mesquita depois das preces de sexta-feira para discutir questões de interesse comum. Mas, como sabe, alguns de nossos convivas viajaram uma longa distância para estarem conosco. Está entre amigos de confiança. O que disser não será repetido.

Idrisi sentiu-se preso numa armadilha. Sabia perfeitamente bem que tudo o que dissesse seria repetido nas menores aldeias da região e quando suas palavras chegassem a Noto seu sentido seria distorcido além da razão. Sabia que devia tomar muito cuidado.

— Amigos, sinto-me comovido por sua confiança e honrado por sua presença, mas o que vou dizer não difere daquilo que disse em muitas ocasiões ao próprio sultão.

E ficarei feliz em responder às suas perguntas, contanto que possua as respostas. Presumo que ouviram as notícias em relação a Felipe.

Todos acenaram tristemente com as cabeças. Idrisi não revelou a discussão com Felipe na sala escura da mesquita Ayn al-Shifa em Palermo, mas lhes contou tanto quanto podia sem implicar alguém além de si mesmo. Falou da lealdade que Felipe sempre demonstrou para com o sultão, das suas habilidades de administrador e de como fizera o máximo para impedir injustiças na ilha. Embora nem sempre tivesse sucesso, os barões e outros ladrões de terras o encaravam como um inimigo, um obstáculo a ser removido para que sua causa triunfasse nos Dois Reinos.

Ouviram-no em silêncio. Foi o Amir quem fez a primeira pergunta.

— Vão levá-lo a julgamento, o acharão culpado e o queimarão. E nós devemos assistir a tudo isso impotentes sem fazer qualquer tentativa para salvá-lo?

Idrisi respondeu:

— É o que ele deseja. Acha que qualquer outra coisa seria encarada como provocação e poderia desencadear um banho de sangue através da ilha, especialmente onde ainda somos fortes, como em Siracusa e Noto.

A seguir Abu Khalid falou.

— Respeitável Abu Walid, não passa um único dia sem que nossa terra seja transferida para sua Igreja ou para os barões. Mesmo aqui, onde diz que somos fortes, nosso povo se tornou escravo. Somos forçados a trabalhar para eles na terra e matar e morrer para eles nos exércitos do sultão. Não confiam de modo algum em nós. É por isso que trazem os bárbaros do Norte para nos oprimirem. Lombardos, assim os chamam. Estes rudes animais ajudaram a destruir o grande império dos romanos. Agora se adornam com cruzes de madeira ao redor de seus pescoços, mas suas cabeças continuam vazias. Matam tudo que os monges lhes disserem que é impuro. Desonram nossas mulheres e submetem nossos homens a torturas insuportáveis, deixando-os morrer lentamente ao sol depois de os terem estripado. E tudo isso para nos expulsarem das terras que cobiçam. Se esperarmos demais, não restará ninguém para resistir a eles. Quanto tempo podemos esperar? Deveríamos lutar ou partir enquanto ainda estamos vivos? Talvez Ibn Hamdis tivesse feito a escolha certa 75 anos atrás, quando deixou esta cidade e procurou refúgio com o Amir de Majorca.

Idrisi comoveu-se com a paixão do seu genro, mas Felipe o havia convencido de que a oportunidade era crucial. Quantos amires haviam escolhido o momento errado para confrontar o inimigo ou para se confrontar entre si? Explicou tudo isso numa voz suave, enquanto enfatizava que tinha plena noção das crueldades que eram infligidas ao povo.

— Nunca se esqueçam de que é às vezes possível destruir o inimigo, não pela força das armas, de que carecemos, mas pela força do conhecimento que acumulamos durante os últimos quinhentos anos. É por isso que o meu amigo ainda é Amir de Siracusa e Rujari conversa comigo em árabe. No momento nossa força reside nisto: os francos não têm nenhuma outra maneira de governar esta ilha. Não devemos fugir do que está à frente. Mencionou Ibn Hamdis, mas não é um bom exemplo. O poeta de Siracusa nunca foi feliz em nenhum outro lugar. Siqilliya foi a mão que o alimentou, Majorca a tia cujos seios careciam de leite. Aonde quer que fosse escrevia sobre Siqilliya.

Lembram-se?

Este é o país de Alá/ Abandonem os seus espaços e/ suas aspirações à terra serão esmagadas. E, mais adiante, no mesmo poema, ele escreve: Acorrentem-se à querida terra natal! Morram sob o seu próprio teto! E como a mente se recusa a tentar o veneno! Rejeitem o pensamento de exílio. Ele não é um bom exemplo. Nunca foi feliz em qualquer outro lugar.

Mas o pai de Khalid não estava preparado para se entregar tão facilmente.

— Respeitável pai, como responderia às palavras de Abd al-Halim? Amei Siqilliya/ Na minha primeira juventude um jardim de eterna felicidade! Mal alcancei a maturidade!

Eis que a terra se tornou um inferno em chamas.

Idrisi sorriu.

— Bons sentimentos nem sempre fazem boa poesia, meu filho. Concordo com o seu poeta, mas afirmar o óbvio não é uma solução.

Aqueles deste pequeno círculo que falaram depois meramente repetiram em palavras diferentes o que Idrisi já havia declarado. Nenhuma decisão foi tomada e nada irrevogável foi dito. Se um nazareno estivesse presente, pouco poderia relatar que já não houvesse sido dito antes em muitas ocasiões. E, no entanto, sublinhando tudo, havia um embate silencioso e formidável entre aqueles que queriam desencadear uma resistência armada já e aqueles que, como o cartógrafo de Palermo, defendiam que nada deveria ser tentado enquanto Rujari ainda respirasse. O Amir levantou-se e despediu-se de seus convidados.

Idrisi abraçou os dois jovens e convidou-os para o café-damanhã no dia seguinte. Informaram-no de que tinham trazido os filhos, o que o agradou imensamente.

— Tragam-nos com vocês amanhã. Seus filhos são uma prova viva de um velho ditado: são o produto de uma combinação em que o elemento mais forte, agradeçamos a Alá, subordinou o elemento mais fraco com que se viu forçado a entrar em contato.

Uma explosão de risada espontânea dos genros agradou a Idrisi. Vinha pensando em compor um tratado sobre a risada. O papel que ela desempenhava na vida cotidiana.

A risada como um disfarce, como um refúgio, como um escape. Risada polida para agradar ao sultão, ao Amir ou ao Barão ou ao qadi ou a nosso próprio pai/avô/tio-avô.

Risada maliciosa para derrubar um inimigo.

A risada das mulheres, em particular, era severamente cerceada. Não era permitida quando estranhos ou anciãos da família estivessem presentes. As mulheres podiam cobrir os rostos com uma mão e sorrir, mas não rir. Idrisi lembrou a sua infância. As mulheres da casa constantemente se regalavam umas as outras com as piadas mais indecentes, mas caíam em silêncio quando seu pai ou tio entravam no seu espaço.

Preparando-se para a cama pensou como soubera que Mayya lhe pertencia quando ela rira da maneira mais descontraída durante os meses de seu namoro secreto, quando ela tinha 16 anos e ele acabara de completar seu vigésimo segundo ano. Ela nunca fora formal com ele, então ou agora. Mas por que a risada fora tão decisiva? Claro, as mulheres no harém ignoravam todas as convenções, geralmente punindo os eunucos que não as conseguiam fazer rir, e insistiam em que tudo fosse posto às claras.

Mas eram um caso especial. Idrisi estava decidido a descobrir se a restrição à risada era algo confinado às cidades ou se as mesmas regras se aplicavam às aldeias.

Os poetas do passado não tinham feito nenhum segredo do fato de que nos acampamentos no deserto das velhas tribos as mulheres riam, cantavam, lutavam, fornicavam e negociavam, exatamente como os homens.

A conquista das cidades mudara tudo aquilo. Tudo era cuidadosamente controlado. Inclusive a risada? Possivelmente. O desejo de controlar as mulheres obviamente incluía controlar sua risada também. Nem apenas aquela das mulheres. Escravos, criados, camponeses, soldados, nenhum deles ria abertamente na frente de seus donos.

A risada era também uma indicação de igualdade e intimidade. Só iguais podiam rir juntos.

E, no entanto, uma voz interior lhe dizia que ainda era diferente no deserto ou nas aldeias das montanhas da Siqilliya. Se tivesse tempo, poderia explorar o interior da ilha tão detalhadamente como havia estudado a sua costa. Estava cansado de plantas, árvores, das estruturas de formações rochosas e, sim, até mesmo de mapas.

Mais do que tudo, queria falar com o seu povo. Ouvir de seus próprios lábios como suas vidas tinham sido mudadas desde que os francos haviam conquistado a ilha.

Ibn Hamdis era duro demais em relação à tribo Hauteville que os dominara. Podia ter sido muito, muito pior e o seria se eles fossem substituídos. Disto ele tinha certeza. Felipe entendia isso melhor do que ninguém. O pensamento que o perturbava enquanto, deitado na cama, tentava dormir era quanto tempo os papas e imperadores do Sagrado Império Romano permitiriam a existência deste estranho híbrido. A irresistível expansão da Igreja fora retardada, não extinta, pelos exércitos do Profeta.

O muezim o acordou ao amanhecer e, por mais que tentasse, não conseguiu voltar a dormir. Em vez disso, tomou banho, vestiu-se e caminhou no jardim dentro dos muros do palácio. O Amir, tendo completado a prece matutina, o avistou da sacada do seu quarto de dormir e desceu para juntarse a ele. Idrisi sentira uma simpatia instintiva para com o homem e não podia entender por que Ibn Fityan tivesse quaisquer dúvidas sobre ele. É verdade, uma escolha confrontava aqueles cuja liderança era respeitada pelos Fiéis. A conquista os pusera fora de prumo, mas foi o qadi de Palermo quem decidiu entregar a cidade ao pai de Rujari sob termos que não eram tão desfavoráveis quanto aqueles impostos sobre Salerno. Se os Fiéis não tivessem se rendido, os francos teriam queimado a cidade e matado todo mundo. Teria sido melhor?

— Por que perdemos a Siqilliya? O Amir não perturbara seus pensamentos, mas entrara neles.

— Porque não pudemos tomar Roma. Nossos navios estavam ancorados no Tibre, mas éramos moralmente fracos demais para aproveitar a vantagem. Compraram-nos com sacos de ouro. Se tivéssemos tomado Roma, nossos exércitos teriam marchado para o Sul e impedido a intrusão dos francos.

— E o papa?

— Teria trabalhado conosco até que uma força mais poderosa emergisse.

Os dois homens riram da idéia.

— Nossa fé — Idrisi observou — inspirou devoção e conquistas, mas é como um furacão. Transitória.

— Deixe-me perguntar-lhe algo, Ibn Muhammad. Apreciei sua discrição na noite passada. Todo mundo presente era leal, mas é melhor não correr riscos. Se queimarem Felipe, vai ser difícil conter a raiva do nosso povo.

— Mas por quê? No que toca a eles, Felipe é um nazareno assim como o sultão. Alguns não pensariam que é bom que estejam se matando entre si?

— Você subestima a inteligência do nosso povo. Poucos acreditam na conversão de Felipe. Notei que aqueles que o fazem são convertidos de nossa fé. O que importa é o que dizem entre si em casa ou no bazar. E aqui, assim como em Palermo e nas cidades menores, sussurram entre si que Felipe continua sendo um Fiel. Sua punição só confirmará esta crença.

— Está certo, meu amigo. Na verdade, a acusação contra ele será esta.

— Haverá uma reação.

— Em Siracusa?

— Manterei a cidade sob controle porque tudo o que acontece aqui tem implicações mais graves. Mas seus dois genros poderão lhe dar melhores informações. E mais tarde, hoje, minha cunhada chega com nossa sobrinha Elinore. Seria uma grande honra se o senhor jantasse com minha família esta noite.

— O prazer será meu.

Enquanto o Amir se afastava, Idrisi se perguntava o quanto ele sabia. Sua esposa devia ter-lhe contado sobre Mayya, mas ele ou a mulher suspeitavam que Elinore não era filha do sultão? Antes que pudesse pensar mais sobre isso, seu criado veio informar-lhe que seus netos e os pais o esperavam para o café-da-manhã.

Os meninos correram a abraçá-lo e ele beijou cada um deles ternamente.

— Seus diabinhos, por que fugiram de mim em Palermo? Ia mostrar-lhes tantas coisas na cidade e comprar-lhes presentes, mas...

— Não fomos nós, Jiddu — disse Khalid.

— Nossas mães disseram que o senhor estava zangado com elas e se não voltássemos correndo para casa as mandaria para a prisão — interveio Ali.

Idrisi jogou a cabeça para trás e riu.

— Acreditaram nelas? Os meninos sacudiram a cabeça negativamente.

— Bom. Vejam este café-da-manhã que o Amir preparou para vocês. Comam tudo o que quiserem, mas devem começar pelas frutas. Que figos e tâmaras deliciosos temos aqui. Depois disso, podem comer o que quiserem. Preciso discutir algo urgente com seus pais. Quando terminarem, podem sair e juntarse a nós. Tem uma bela fonte e se esquentar podem tirar os sapatos e mergulhar os pés na água.

Idrisi colocou os braços em volta dos ombros dos genros e os guiou para fora da sala. Queria que os meninos vissem que apreciava seus pais.

— Sabemos por que suas filhas foram até Palermo e somos agradecidos por seu apoio — disse Abu Khalid. Dos dois, era o que falava mais abertamente. — Não sabemos como lidar com a situação. Se elas falassem assim com um inimigo pode imaginar o destino que nos caberia.

O rosto de Idrisi tornou-se uma rocha e ele falou com uma voz severa.

— Advirtam as duas. Digam a elas que conversamos. Caso se comportem assim de novo devem divorciar-se delas imediatamente e devolvê-las à mãe. Se acharem que devem fazer isso, terão o meu apoio. Não vou encontrar-me com elas enquanto estiver aqui, mas já mandei uma mensagem à mãe delas advertindo-a quanto a qualquer repetição.

— Que tenha longa vida, Jiddu — disse Abu Ali.

— Libertou-nos de uma tarefa muito dolorosa. Da minha parte, não vou me divorciar da mãe de Ali, mas vou tomar uma nova esposa. Desejo que Ali tenha irmãos e irmãs e isso não é mais possível com a sua mãe.

Com uma sacudida desesperada da cabeça, Idrisi indicou que estava de acordo e então fitou direto nos olhos do pai de Khalid. Seu olhar não vacilou.

— Não vou usar uma máscara, Abu Walid. Não posso mais viver com Sakina. Nosso casamento não foi feliz e casei obrigado por meus pais. A união apressada que produziu Khalid nunca foi repetida. Respeitarei todos os termos do casamento e Sakina nunca precisará depender de ninguém enquanto eu estiver vivo, mas não posso mais viver com ela.

— Eu o entendo perfeitamente, Abu Khalid. Deve fazer como deseja. Garantirei que a mãe dela entenda isso também. Não precisamos mais de discórdia. E Khalid? É chegado à mãe?

Houve um momento de hesitação.

— Achei que poderia nos receber polida, mas friamente. Seu calor tocou nossos corações. De que adianta esconder qualquer coisa do senhor? A resposta à sua pergunta é não. Khalid é mais chegado à minha mãe do que à sua própria mãe. As crianças têm uma capacidade de perceber quem gosta delas genuinamente. Podem às vezes enxergar através de fingimentos e falsidades melhor do que homens adultos.

Idrisi sentiu-se aliviado. Se ele, como pai, sentia pouca ou nenhuma afeição por suas filhas, por que deveriam os filhos delas sentirem de modo diferente? Quando Samar e Sakina eram jovens ele notara a fraqueza de seus cérebros, mas achara que com o tempo elas chegariam a um pleno desenvolvimento. Alá desejara o contrário.

— Não me surpreende o que diz e fico feliz de que tenha falado de uma maneira direta. Possa Alá guiar a ambos e proteger seus filhos. Mas existe uma questão mais importante que precisamos discutir.

Os dois homens se entreolharam. Quanto ele sabia?

— Nossa fé — Idrisi continuou calmamente — produziu bravos guerreiros e mentes brilhantes, mas também possuímos um lado inquieto, impaciente e instável que pode irromper num momento e desaparecer no seguinte. Isso produz uma falta de disciplina. Não tenho desejo algum de conhecer seus planos exatos. Quanto menos souber, melhor, mas eu insistiria em cautela quanto à ocasião oportuna. Nada, nada — repito — deve acontecer enquanto Rujari estiver vivo.

— Nada mesmo? — perguntou Abu Ali.

— O que tem em mente? — perguntou o sogro. — Não estamos preparando uma rebelião em larga escala no momento, mas estamos em contato com nosso povo em toda essa região. Em cada bairro de cada cidade e até na menor aldeia existe um mehfil que se reúne toda sexta-feira para discutir a situação na ilha. Tentaremos controlar a raiva da multidão depois do martírio de Felipe, mas não se engane. Quando o momento chegar, Noto e Siracusa e as aldeias entre elas erguerão a bandeira da nossa fé e desafiarão os bispos.

— Enquanto isso, teremos de manter o espírito do nosso povo e defendê-lo dos seus atormentadores. Por esta razão, decidimos infligir uma severa punição aos monges e lombardos que os guardam numa aldeia próxima de Noto. As atrocidades que eles cometeram criaram uma sensação de medo. Precisamos dar uma lição a estas pessoas.

Um lombardo será deixado vivo para espalhar a notícia.

Idrisi não respondeu, mas por seus olhos podiam sentir que se orgulhava deles e isso aumentou sua confiança.

— Quem é o pregador na sua aldeia, Abu Ali? Já ouvi falar nele. Dizem-me que tem visões de nossos exércitos combatendo os infiéis no céu e recita poesia que ele mesmo compõe.

— Estou realmente espantado de que tenha ouvido falar dele, Jiddu — disse Abu Ali com uma voz tão baixa que Idrisi colocou a mão em concha sobre o ouvido.

— É o filho do nosso cozinheiro e era dado a visões desde menino. Nasceu cego e isso pode ter encorajado as visões. Tem vinte anos, mas muitas pessoas das aldeias vizinhas vêm vê-lo e ouvi-lo. Seus versos ardem de paixão religiosa e ele os canta com uma bela voz. Se tiver tempo, venha e fique conosco alguns dias. Ali ficará encantado e você poderá conhecer o filho do cozinheiro. Não quero exagerar, mas existe algo notável nele. Como pode imaginar, canta muito sobre batalhas futuras, vitórias, o dia em que ocuparemos os palácios e a vingança de Alá contra todos que colaboraram com o inimigo.

O som das risadas das crianças interrompeu sua conversa. Ali e Khalid, perseguidos por criados, corriam até a fonte.

Lentamente, os três homens começaram a caminhar na mesma direção.

— Tentarei encontrar tempo para visitar sua aldeia, Abu Ali.

— É mais importante que visite as propriedades de Abu Khalid — replicou seu genro.

— Lá encontrará o Confiável.

Idrisi ficou intrigado.

— Nunca ouvi falar dele antes.


6

Amor e um casamento secreto em Siracuisa.
A poesia de Ibn Quzman.
Elinore faz muitas perguntas, enquanto Balkiss escuta.

Embora as tivesse visto há apenas alguns dias, Idrisi não pôde esconder o seu deleite ao ver Elinore e sua mãe. E vê-las agora com Balkis, a única esposa do Amir e irmã mais moça de Mayya que ele vira pela última vez quando tinha ainda três anos, era especialmente prazeroso. Balkis tinha longos cabelos castanhos e uma pele tão clara que Mayya parecia morena em comparação. Seus olhos e nariz pareciam a estátua de uma deusa grega que ele vira em Djirdjent. Ou seria outra pessoa?

Um pensamento entrou-lhe na cabeça e o surpreendeu. Talvez sangue grego corresse nesta família. Precisava perguntar a Mayya.

No palácio em Palermo ele e Mayya haviam ficado nervosos. Aqui estavam relaxados e o Amir, cônscio de que seus criados tudo enxergavam, os despachou para fora da sala de refeições com um gesto imperioso. A comida fora servida. Grandes jarras de cerâmica contendo suco de laranja fresco, limonada e vinho de tâmara não fermentado foram colocadas sobre a mesa. O Amir não permitia que álcool fosse servido no seu palácio a não ser quando recebia a visita do próprio sultão.

Agora que estavam a sós, Mayya perdeu toda inibição.

— Elinore, que acha do seu pai?

Elinore, que conhecia sua mãe melhor do que ninguém, não se deu o trabalho de responder.

— Mayya, por favor... — sua irmã tentou refreá-la e o Amir, alegando afazeres de Estado, pediu para se ausentar. Estava, na verdade, um pouco assustado. E se notícias deste encontro chegassem ao sultão? Não seria ele chamado à responsabilidade?

Idrisi irrompeu numa risada.

— Mayya — disse ele, fitando-a com firmeza e depois deixando seus olhos viajarem por todo o corpo dela.

— Você nunca vai mudar e eu a amarei sempre.

— O resto de nós deveria sair? — perguntou Elinore, as pupilas negras de seus olhos profundos cintilando maliciosamente.

— Não — respondeu sua mãe.

— Vou passar a noite com o seu pai. Até lá, pode ficar conosco.

— Mayya — sua irmã implorou -, nada pode ser mantido em segredo aqui. Se Rujari tiver notícias de que você e Ibn Muhammad ficaram juntos aqui ele poderia...

— Não poderia nada. Ele simplesmente não liga tanto assim para as mulheres — Mayya interrompeu.

— Estamos lá para produzir filhos. Nada mais. Os íntimos de Rujari são todos homens, incluindo o grande geógrafo que nos honra com a sua presença esta noite. Houve ocasiões em que achei que Rujari queria elevar o nível da sua amizade pelo grande mestre Idrisi, de uma união espiritual para uma união física. Afinal, passam muito tempo juntos e seria uma coisa natural, mas a idéia me enraiveceu. Teria odiado saber que haviam passado uma noite juntos, mas antes que pudesse...

Idrisi fez um esforço para controlar a sua irritação, mas a insinuação de que ele e Rujari eram amantes não se confinava a Mayya. Durante os primeiros anos de sua amizade com Rujari, inimigos na corte adoravam circular a calúnia. Aquilo o deixava furioso, mas sempre mantinha um admirável autocontrole. Agora a raiva reprimida e acumulada irrompeu fazendo-o quase se levantar da cadeira.

— Nunca foi verdade, Mayya. Sabe disso perfeitamente bem. Foi a sua imaginação inflamada. Apenas isso.

Ela ficou deliciada ao ver que conseguira provocá-lo.

— Melhor minha imaginação inflamada do que o seu rabo inflamado.

Balkis cobriu a boca para esconder um sorriso, mas Idrisi se levantou enraivecido.

— Mayya, isto é inaceitável, minha tolerância tem seus limites.

— Fico feliz que seja meu pai — disse Elinore, adiantando-se rapidamente para consertar a situação.

— Não que eu desgoste do sultão. Mas acho que, no fundo, ele sabe perfeitamente bem que não sou sua filha. Falou do senhor e do trabalho que fizeram juntos no livro com tanta intensidade...

— Como ele poderia saber isso, filha? Escolheu seu nome, insistiu para que fosse batizada, supervisionou sua educação — interrompeu a mãe.

— Posso dizer pela maneira como me olha às vezes que não está de todo seguro de que eu seja sua filha. E embora eu nunca lhe tivesse contado, mãe, o número de vezes que mencionou seu amigo, o grande erudito Ibn Muhammad alIdrisi, foi de certo modo estranho. Era como se estivesse tentando me interessar por meu verdadeiro pai. Desde que me contou quem é meu pai de verdade, venho pensando em muitas coisas que o sultão me disse. Agora está claro.

— Não era estranho de modo algum — replicou a mãe.

— O sultão e seu pai passavam grande parte do tempo juntos olhando para as estrelas e interrogando marinheiros de partes estranhas do mundo. Por isso ele sempre o mencionou muito. Sua imaginação é forte demais, minha filha. Tente refreá-la.

— Acho que Elinore tem razão — disse Idrisi.

— O sultão me interrogou sobre você, Mayya. Sabia que éramos de aldeias vizinhas, que nossas famílias se conheciam bem e às vezes fiquei com a sensação de que sabia a respeito de nós e queria que eu confessasse para que pudesse me perdoar e talvez até me entregar você como um presente.

— Então por que não confessou? — foi a resposta da sua amante.

Antes que ele pudesse replicar, sua filha interrompeu novamente.

— Como vai ter meu pai todo para a senhora pelo resto da noite, mãe, talvez eu pudesse fazer-lhe três perguntas antes que vocês se recolham.

— Pergunte — disse o pai.

— Quando percebeu que eu era sua filha?

— Poucos dias atrás no palácio em Palermo. Sua mãe me contara muito tempo atrás — na verdade, antes mesmo de você nascer — mas eu não estava seguro se devia acreditar nela.

Mayya gritou.

— Muhammad, seu traidor! Como ousa admitir isso? Idrisi ignorou a explosão.

— E está contente com o que vê, pai? Sei que tem outros quatro filhos.

— Mais do que pode imaginar, filha. De meus outros filhos, Walid é o mais chegado. O resto? Não há nada a dizer.

— Devíamos nos recolher — Balkis murmurou suavemente.

— Uma pergunta mais. Prefere Estrabão ou Ptolomeu? A surpresa de Idrisi foi visível.

— Quem lhe contou sobre eles?

— O sultão. Disse que preferia Ptolomeu, mas que o senhor modelava o seu trabalho em Estrabão.

— Não é a verdade completa — replicou o pai.

— Estrabão era completamente apegado a locais geográficos, seus costumes, colheitas, animais e coisas do gênero. Queria compilar o mapa mais detalhado do mundo que se conhecia. Ptolomeu era mais interessado nas estrelas e no céu, na forma da Terra e da Lua e como tudo isso afetava a mudança das estações. Ambos eram grandes mestres e aprendi muito deles. No meu coração desejava prosseguir e desenvolver os argumentos enunciados por Ptolomeu, mas percebi os perigos. Era um caminho difícil e havia problemas naquela direção. Enquanto outros olhavam para o céu e falavam da poesia das estrelas, eu notava em grande detalhe como os antigos tinham chegado perto de solucionar os mistérios do universo. Perto, mas não podiam seguir adiante. Notei que tudo se movia, como cada noite o movimento era repetido e, no entanto, nunca da mesma maneira até que 12 meses tivessem se passado. Sim, minha filha. Tudo se movia. Se o que eu pensava fosse verdade, o Livro estava errado e, se o Livro estava errado, de quem seria o erro, de Alá ou do seu Mensageiro? Não deixava estes pensamentos descansarem na minha cabeça. Eram relâmpagos que iluminavam o futuro. Estou certo de que um dia descobertas serão feitas que desafiarão os ensinamentos de todos os Profetas, incluindo o nosso. Será um homem corajoso aquele que publicar tais descobertas. Podem custar-lhe a vida.

— Não é a busca do conhecimento sempre perigosa?

— Talvez, Elinore, eu volte ao assunto antes de morrer. Está interessada nas estrelas?

— Sim, mas não em sua poesia.

— Estou cansada — disse Balkis, bocejando demonstrativamente e olhando nervosa na direção da irmã mais velha.

— E talvez, Mayya, devêssemos nos recolher a nossos quartos. Assim que os criados saírem, Ibn Muhammad poderá explicar o movimento das estrelas ou as manchas na Lua a você. Eu sugeriria que ele o fizesse da sua sacada. A vista é mais clara.

Era uma noite quente. Mayya havia tirado seu manto de dormir e aberto as portas que davam para a sacada. A lua cheia começara a declinar enquanto se embriagavam um com o outro. Depois, deitados silenciosamente na cama dela, cada um mergulhado em lembranças, uma suave brisa marinha se levantou e acariciou seus corpos nus.

— Existem manchas na lua? — ela perguntou.

— Nenhuma — ele respondeu enquanto afagava suas costas suavemente, pousando a mão na maciez do seu corpo.

— Estas suas duas meias-luas permanecem inalteradas. São exatamente como eram dez anos atrás. Imagino que as banhe em leite de cabra.

— São mais macias banhadas no seu suor. E não fico satisfeita com apenas uma vez. O jovem galo não vai cantar uma vez mais e acolher-se no meu ninho de novo?

— Não é tão jovem quanto já o foi, mas por que não pergunta a ele?

Ela o fez e a reação agradou a ambos. Atravessaram a noite falando e não só do passado que não tinham podido compartilhar. Haviam discutido aquilo muitas vezes como a recusa dela em deixar o palácio. Ele conhecia bem as razões e, depois de alguns anos, deixara de vê-la. Trocavam mensagens, nada mais. Suas viagens o mantinham afastado, mas era mais do que isso: ele não queria vê-la enquanto fosse uma criatura do harém.

Ela sabia dos detalhes mais íntimos da vida dele e lhe indagara como conseguira fazer quatro filhos com sua mulher. Aquilo a deixara zangada:

— Não há diferença entre você e um asno. Você monta, ejacula e planta o seu sêmen. Nada mais.

Concordara com ela, mas preferiria que tomasse outra esposa, alguém que contasse com a sua aprovação? Aquele era geralmente o fim da conversa.

Anotara as datas em que Rujari a havia visitado no quarto de dormir no harém. Não houve muitas, mas era um tormento que não podia suportar e, depois de cada visita real, ele não fazia contato com ela durante meses. Ela ficou espantada quando lhe contou isso. Não havia percebido a eficiência com que a informação vazava do palácio. Contou a ela que aquilo lhe causara grande dor, mas ela dava de ombros e recusava-se a discutir a questão. Não era culpa sua que ele tivesse se casado com outra. Por que não havia resistido? Seria a junção de duas propriedades mais importante do que o seu amor? E, é claro, ele não tinha resposta. Fora deferência aos desejos do pai agonizante mais do que covardia o que decidira a questão, mas ele sofrera o bastante. Não era aquilo castigo suficiente?

Estranho como estas lembranças não mais doíam neles. A ausência de dez anos fora punição suficiente e nenhum dos dois desejava prolongar a agonia. Nada os machucava mais. Elinore era o bálsamo. Elinore, que pouco se assemelhava a ele nas feições, mas cujas expressões e movimentos de mão eram extraordinariamente semelhantes.

Era um fruto deles. Se apenas...

— Muhammad?

— Sim.

— Eu estava pensando. Se pudéssemos ter outro filho, um irmão para Elinore...

Ele sentou-se na cama, espantado pela simetria do pensamento de ambos.

— Que estranho, eu pensava na mesma coisa. Pensava que, depois que o sultão morrer, eu deveria tomá-la por minha esposa. Poderíamos viver juntos.

A sugestão irritou-a.

— Tudo deve esperar até que ele morra. A resistência do nosso povo, assim como nosso casamento. Foi essa uma recomendação de Felipe também?

Ele a abraçou forte, beijou seus lábios e os olhos.

— Por que ficou zangada?

— Porque odeio seus planos. Por que não podemos fazer exatamente o que queremos?

Por que tudo tem de estar vinculado à morte?

— Você me conhece melhor do que mais ninguém. Sabe por que eu me controlo.

Ela acalmou-se e começou a acariciar a sua cabeça.

— Sei que você sente raiva por dentro, tentando duramente reprimir sua ira. Preocupa-se que isso faça mal àqueles próximos a você. Sei disso, mas não quero esperar que ninguém morra. Nosso amor não depende disso, não é verdade? Talvez eu carregue uma criança no ventre depois desta noite. E então? Desta vez Rujari saberá definitivamente que não é sua. Este pensamento o assusta?

Enterrou a cabeça entre as pernas dela e murmurou:

— "Que tipo de almíscar é este? Que aroma?

Desta magia outras são criadas."

Depois, ela o abraçou e sussurrou:

— Quem escreveu o zajal? Não foi você. Não foi Rujari. Foi Ibn Quzman? Diga-me.

— São seus versos. Pobre Ibn Quzman. Soube que tem problemas com o novo sultão em Qurtuba.

— Por que não pode vir para cá? Eu deveria pedir a Rujari?

— Não. Ibn Quzman viaja para onde deseja. Tem admiradores em cada cidade de alAndalus. Quando tem problemas em Qurtuba, corre para Gharnata. Se o seu verso ofende o sultão naquela cidade ele escapa para Ishbiliya ou al-Marriya. Certa vez passou seis meses em Balansiya.

Foi onde o conheci.

— Você o conheceu?

— Sim.

— Por que não me contou na época?

— Fiquei fora de Palermo durante dois anos. Quando voltei, a sua visão me fez esquecer tudo mais.

— Ibn Quzman recitou um zajal para você?

— Fez isso também, mas havia consumido muito vinho naquele dia e não estava seguro se devia ser colocado no papel ou sequer repetido.

Mayya segurou o rosto dele em suas mãos.

— Recite-o para mim agora. Agora! Ele fez o que ela pediu.

— Meus fracassos na vida até aqui você conhece, Como passarei o resto de meus anos? Só entre pessoas que apreciam sodomia ou adultério; Disto eu tenho certeza: gosto de ambos.

Mayya bateu palmas deliciada.

— E guardou isso de mim todos estes anos? Por quê? Seria porque você, também, prefere a companhia de sodomitas e...

Sua mão cobriu a boca de Mayya. Ela dormiu quando as estrelas começavam a declinar. Admirando sua forma adormecida à luz da manhã, cobriu-a com um lençol. Colocou então sua túnica e foi até a sacada, o único local do palácio que não era vigiado. Atenciosa Balkis. Por que as coisas não podem ser sempre assim? O muezim abafou tudo mais. Idrisi deixou o quarto de dormir de Mayya e seguiu apressadamente para o seu, mas praguejou ao ver o seu criado no corredor do lado de fora, a cabeça tocando o chão enquanto fazia as orações matinais. Idrisi entrou furtivamente no seu quarto e, logo depois, bateu palmas para chamar o homem do lado de fora.

— O banho está preparado, senhor. Poucas horas depois uma mensagem de Elinore o convocava para um jogo de xadrez. Raramente se entregava a diversões e não conseguia lembrar a última ocasião em que havia jogado. Seu pai lhe havia ensinado pacientemente as regras e, embora se tornasse um jogador competente, nunca apreciara a disputa. Talvez a avalanche de risada dos parentes que testemunharam sua derrota quando tinha dez ou 11 anos o tivesse desencorajado. Rujari era um exímio jogador, mas o erudito declinara de participar dos torneios palacianos. Ao seguir o criado até a biblioteca onde Elinore o aguardava, perguntou-se se ela já havia jogado com o sultão. Quem mais poderia têla ensinado?

Ela o recebeu ruidosamente, abandonando a pose de uma senhorita.

— Wa Salaam, Abu.

— Wa Salaam, filha.

— Disse a minha mãe que queria ficar a sós com o senhor. Foi ela quem sugeriu uma partida de xadrez.

— Ela não joga, também — replicou o pai, e começaram a rir. Elinore crivou-o de perguntas. Nada podia interromper a sua carga impetuosa. Não esperava que ele respondesse: era sua maneira de fazer com que a ouvisse e entendesse suas preocupações. Não havia nada falso nela e ele se encheu de orgulho.

O modo de falar dela, o jeito de enfatizar algumas palavras e não outras, seus olhos sempre alertas, o uso das mãos e a maneira de tocar nos cabelos o lembravam de Mayya. Subitamente ela parou.

— E então, o que acha? Não me ouviu?

— Ao contrário, ouvi cuidadosa e atentamente. Que parte das suas interrogações exige uma resposta?

— A família Hauteville. Ela foi tão heróica como o sultão nos contou cada ano?

— As histórias mudavam ao longo dos anos? Você notou um aumento de heroísmo à medida que crescia?

— Não, eram sempre as mesmas. Quando tinha dez anos eu mesma podia recitá-las.

— Neste caso eram provavelmente verdadeiras. Os homens que deixaram a parte norte das terras geladas em seus navios a vela e vieram incendiar e roubar dos francos eram sem dúvida bravos. Eram senhores da guerra e adestrados em combate cruel. Finalmente, o rei dos francos lhes deu uma porção da terra e esperava que convivessem em paz com ele. Fizeram isso, mas, à medida que suas colônias cresciam e suas famílias aumentavam, não havia comida suficiente para alimentar a todos, nem terra suficiente para compartilhar. Então começaram a viajar de novo. Um de seus barões, Guilherme, conquistou uma ilha vizinha e, Alá os ajude, Elinore, é uma terra fria e miserável onde o sol nunca brilha no inverno. Fria e escura, e chove sem parar. Durante meses é impossível ver o céu ou as estrelas.

— Isto é verdade?

— Eu inventaria tal lugar?

— E por que o clã Hauteville e seus criados vieram para cá?

— Eram guerreiros que lutavam por quem lhes pagasse e, como outros em sua posição, perceberam que os aniires que precisavam deles deviam ser fracos. Então pensaram: por que lutar por este homem quando somos mais fortes do que ele? Poderíamos governar em seu lugar. Deviam ter sido abençoados por Alá. Veja o que encontraram nesta ilha. Muita riqueza e terra cultivada em abastança. Ricas colheitas de trigo e frutas frescas de todo tipo.

Os papiros com que fazemos o papel que nunca tinham visto antes. Nem haviam imaginado uma cidade tão rica e grande como Palermo. Duzentas mil pessoas viviam aqui quando os francos chegaram. Vieram como conquistadores e, no início, foram cruéis. Mas, assim que decidimos que era impossível resistir a eles, conviveram conosco em paz e perceberam que precisavam de nós para lhes ensinar tudo o que sabíamos. E gostavam de nossas mulheres.

Elinore sorriu.

— Sabe de uma coisa, Abu? A história que o sultão nos contava cada ano não era tão diferente. Falava do seu pai e do seu tio e dos feitos de sua família também mas, excetuando isso, era a mesma história. Não é estranho?

— É raro que conquistador e conquistados compartilhem a mesma história. A razão é óbvia. A maioria daqueles que vivem aqui seguem o nosso Profeta e removê-los sem ter alguém para substituí-los tornaria essa ilha pobre e infeliz. Roger e seu pai entenderam isso bem. Será que seus netos e bisnetos entenderão?

Falaram algum tempo sobre estrelas e navios e ela quis saber o que ele sabia de Cartago e dos fenícios que a haviam construído. E era verdade que haviam navegado pela Ifriqiya simplesmente confiando nas estrelas? Ele contou-lhe tudo o que sabia e do modo como seus olhos o acompanhavam podia ver que estava absorvendo o conhecimento. Cada um sabia que não era o bastante. Voltariam a estas questões e à proximidade que sentiam agora um do outro.

Depois de um silêncio ela lhe perguntou sobre Walid. No início ele não respondeu. Ela o pressionou de novo.

— Sei que o ama muito. Minha mãe me contou isso, mas nunca pôde explicar por que ele fugiu ou o que lhe aconteceu.

— Está vivo e bem. Trabalha para um artesão judeu de prata em Veneza. Irei visitálo em breve e o trarei de volta, se puder. Às vezes os filhos se tornam sombrios e indolentes se ficarem permanentemente à sombra dos pais. Um período de separação pode ajudar. Não fui diferente quando tinha a idade dele.

— Acha que estes anos todos à sombra de minha mãe me tornaram preguiçosa e infeliz?

Pegou a mão dela e a beijou.

— Não, minha filha. As estrelas sorriram sobre você e sua mãe. E você é uma mulher. Os homens têm necessidades diferentes.

Antes que Elinore pudesse contestar isso, sua mãe entrou na biblioteca.

— Quem ganhou no xadrez?

— Nós dois — respondeu a filha.

— Como pode ver, nenhum de nós fez um lance ainda. O tabuleiro ainda não foi tocado.

Então Mayya se virou para ele.

— Muhammad, na noite passada discutimos algo e sua resposta me deixou zangada.

Ele franziu a testa, indicando que a conversa que ela propunha seria mais oportuna em particular.

— Elinore e eu não temos segredos. É melhor assim. Impede que bisbilhotemos as conversas uma da outra.

— Muito bem — disse ele, numa voz resignada.

— Falei com Ballcis e Aziz há poucos minutos. Ele nos casará hoje, se você concordar.

— Mas o sultão...

— Idrisi viu a expressão dela e congelou.

— Não sou casada com Rujari. Fui sua concubina, como você me lembrou em muitas ocasiões. Esta é sua filha, não dele, mas, se esperar até a sua morte, não me casarei com você. Casou-se com sua esposa porque foi covarde e não vai se casar comigo hoje pela mesma razão.

Idrisi levantou-se e aproximou-se dela, mas Mayya estendeu os braços para mantê-lo afastado.

— Escute o que digo, Mayya, e escute atentamente. Este reino está à beira de uma explosão. Felipe vai ser julgado por traição e queimado na fogueira. Os bispos encarariam nosso casamento como uma provocação aberta. Já esqueceu a sua conversão para a fé deles? Sei que nada significou para você e estava simplesmente agradando a Rujari, mas os monges não encaram estas questões levianamente.

Mayya não estava com ânimo para escutar nada.

— A situação que você descreve só vai piorar depois da morte de Rujari. Muhammad, nós teríamos sido esmagados pela tristeza não tivéssemos nos apegado um ao outro durante todos estes anos. Não estou sugerindo que coloquemos Elinore ou nós mesmos em perigo. Teremos de esperar até podermos viver juntos, mas o casamento poderia ser hoje. Pode permanecer em segredo o tempo que você quiser, mas tem de acontecer. Se recusar, nunca mais o verei. Vou pegar Elinore e desaparecer.

Elinore ficou em silêncio, esperando que ele falasse.

— Sei que não faria isso, porque a crueldade é ausente em você, mas se o casamento deve ficar em segredo não vejo problema. Marcou uma hora com o Amir?

— Depois das preces vespertinas.

— Percebe que antes que possa me casar com você insistirei para que se converta de novo à nossa fé?

— Isso já foi feito e na presença de minha irmã e de seu marido. Mais alguma exigência, marido?

— Sim. Obediência total. Lembre-se da sura no Corão, que...

— Silêncio, Ibn Muhammad alIdrisi. O que não posso suportar é a idéia da separação de novo.

— Existe alguma razão para você retornar a Palermo?

— Nenhuma, mas para onde eu deveria ir?

— Poderia ficar aqui enquanto decidimos onde quer morar. Sua irmã oferece uma desculpa perfeita. E Rujari está preocupado demais para notar a sua ausência.

— Mas nossas roupas e tudo mais estão em Palermo — disse Elinore.

— As roupas podem ser mandadas para cá, mas o que é o "tudo mais" a que se refere? — perguntou o pai.

— Abu, é de Palermo que vou sentir falta. Não podemos morar em Siracusa. Esta é uma cidade para se visitar.

— Filha, é melhor ficar aqui nos próximos meses. Os ânimos em Palermo vão estar exaltados depois que Felipe for queimado. Talvez não possamos controlar a multidão e ela pode atacar o palácio. Mande pedir tudo do que precisa. Quando as coisas se acalmarem, você pode voltar.

Mais adiante naquela tarde, o Amir os convocou à sua câmara privada, dispensou os criados e realizou uma cerimônia de casamento simples.

Uma modesta refeição fora preparada e por isso não houve nenhuma atmosfera de comemoração. Mayya e Balkis trocaram reminiscências sobre seus pais e seis irmãos que haviam deixado a família em casa e se mudado da ilha para alAndalus. Elinore e o pai ficaram felizes de ouvir as irmãs se divertindo, mas o Amir retirou-se cedo alegando uma longa viagem no dia seguinte. Depois que a mesa foi limpa, foram até a sacada enluarada para um chá de menta, com uma doce mistura de tâmaras e leite endurecido pelo qual Siracusa era renomada. Podiam ouvir o som das ondas quebrando suavemente contra as rochas lá embaixo.

— Elinore — disse sua tia -, não é uma vista maravilhosa? Vou mostrar-lhe uma outra vista ainda mais bonita do mar do meu quarto e convencê-la a ficar aqui por alguns meses. Venha comigo, criança.

Elinore tomou a mão da tia e as duas mulheres foram embora.

— Por que sua irmã não tem filhos? É o...

— É o Amir — suspirou Mayya.

— Seu pássaro recusa-se a cantar.

Balkis é sua segunda mulher. Deixou que a primeira partisse quando não teve filhos. É claro que o problema é dele e ele não finge que seja diferente. É um homem muito generoso.

— Ibn Quzman não reconheceria que existe um problema. Mayya riu bem alto.

— Balkis não é infeliz. Ele é um homem bondoso e sensível e geralmente, diz ela, ao vê-la sem roupa, seu membro forma uma tenda debaixo da sua túnica. Tudo o que falta é a semente.

— Ela ainda é jovem, portanto ainda tem tempo, mas deveria pensar numa caminhada numa tempestade quando os anjos estão voando da terra para o céu. Estou certo de que o Amir acolheria isso como uma dádiva de Alá e Balkis ficaria feliz. Ela não o estaria traindo da maneira comum.

— Realmente? Seu conhecimento nunca deixa de me surpreender. Então ela deveria abordar um estranho e extrair o seu sêmen. Interessante. Vou passar adiante o seu conselho. Embora sempre tenha achado que traição conjugal deixa um gosto amargo.

Idrisi sorriu.

— Só em casos em que o casal é jovem e a paixão ainda é forte. Para homens mais velhos e mais maduros é diferente.

— Toda esta conversa está elevando a minha temperatura. Talvez seja a hora de armar sua própria tenda de novo e me seguir. Vou testar a sua maturidade com grande prazer. Ou será a hora das orações.

— Saber e dormir é melhor do que orar e ser ignorante.


7

Idrisi é tomado por lembranças de uma ilha encantada.
Um primeiro encontro com o Confiável,
que prega rebelião aberta contra Palermo.

Não havia chegado o meio do verão, ainda era cedo, mas ele sabia que o dia seria abrasador e desagradável. Suspirou alto, desejando que não tivesse concordado em cavalgar com seu genro pela sua propriedade. Não era uma jornada curta e não haveria sombra. A terra que, apenas alguns meses atrás, estava verdejante e atapetada de flores silvestres, estaria ressecada e árida, intensificando os raios do sol. A idéia do que tinha pela frente o deixava exausto. Talvez não fosse tarde demais para mudar de idéia. Mas quando, minutos depois, a presença de Abu Khalid foi anunciada e o jovem entrou no quarto, as incertezas de Idrisi se desvaneceram. O prazer no rosto do jovem era visível. Não podia controlar sua excitação.

Abu Khalid tinha providenciado uma carroça coberta para o homem mais velho, mas Idrisi sabia que isso dobraria a duração da jornada e insistiu em ir a cavalo.

— Minha saúde não é delicada. Sinto-me forte como um boi.

Abu Khalid e Idrisi cavalgaram lado a lado para fora da cidade, cada um carregando frascos de couro cheios de água e seguidos por três criados armados. Foi como ele imaginara, o ar seco, quieto e sem vida. Os galhos seminus das árvores atrofiadas com suas folhas secas e murchas eram tudo o que restava da primavera. O sol reluzia nas pedras.

Depois de uma hora cavalgando era difícil dizer quem suava mais, o cavalo ou o cavaleiro. Pararam para beber um pouco d'água e molhar os panos que lhes cobriam a cabeça. Quando a jornada continuou, Idrisi não podia se concentrar na trilha ou em suas elevações abruptas. A certa altura achou ter visto um lago à distância e estava para sugerir que parassem e se banhassem quando percebeu que seus olhos o estavam enganando, como freqüentemente faziam no mar. O brilho projetado pelas pequenas colinas era enganoso e foi naquele momento que uma lembrança que mantinha firmemente trancada no porão, mas fora reavivada pela visão de Balkis, tomou conta dele. Uma imagem de um antigo templo grego que vira certa vez numa ilha misteriosa apareceu.

Tinha começado a trabalhar no seu livro e, com a ansiedade de um novato, instruía os marinheiros a pararem em cada ilha. Sua curiosidade era ilimitada. Tomava notas detalhadas sobre as plantas e as pedras e o formato da costa. Estavam no mar há algumas semanas quando a ilha foi avistada. No início acharam que era desabitada e a excitação da descoberta elevou o seu ânimo. Foi quando os marinheiros saíram em busca de água fresca que descobriram o pequeno lago e então viram o antigo templo grego que decorava a praia. Um marinheiro foi despachado pára informar ao erudito.

A primeira coisa que Idrisi notou foi que o templo não era uma ruína. Queria estudar a construção a sós sem ser interrompido

Os homens foram mandados para reabastecer seus suprimentos d'água e procurar cabras, geralmente em suprimento abundante em ilhas desabitadas. Pegou as penas, a tinta e o papel do seu criado e o mandou voltar ao navio e encontrar o velho mapa da região no baú que ficava debaixo da cama na cabina.

Tinha visto muitos templos em ruína em djent e Siracusa e havia imaginado como seriam quando cheios de Fiéis, mas este era diferente. Em escala não era tão grande quanto a maioria dos templos arruinados que tinha vista na Siqilliya e nas cidades costeiras do grande mar, mas sua estrutura era exatamente a mesma. As pilastras da entrada conduziam a uma câmara e ali ele viu pela primeira vez uma estátua gigante de Afrodite. Para seu espanto não era feita de mármore branco.

Uma pedra marrom clara fora usada. O escultor deixara pouco para a imaginação. Esta Afrodite tinha grandes mamilos vermelhos e a mesma cor da pedra fora usada para delinear o seu sexo. Podiam estas ser pedras preciosas? Se fossem, os homens insistiriam em roubálas. Não permitiria isso, mas era melhor evitar conflito. Tentaria mantê-los distraídos. E então notou que cercando a deusa do amor de cada lado havia três graças. Pouco abaixo do pé da estátua o escultor colocara uma suma sacerdotisa.

Todas vestiam túnicas e suas gargantas, como jóias brancas, brilhavam na escuridão. Pareciam pequenas em comparação com Afrodite, mas eram na verdade de tamanho natural. Tremeu, como se uma corrente impetuosa tivesse subitamente passado através dele.

Tudo parecia como lavado regularmente, mas ainda não havia traço de ninguém. Talvez fosse um templo secreto onde os descendentes daqueles que haviam adorado os velhos deuses se reunissem em ocasiões especiais do ano para preservar suas tradições. O pensamento excitou o erudito. Se este fosse o caso, por que teriam escolhido Afrodite? Podia ser esta a ilha onde Homero encontrara a encantadora Circe? E poderia ser esta a razão deste templo?

Quando se virou para deixar o templo, ouviu o que lhe pareceu um suave clarear de garganta atrás de si. Congelou. Devia ser sua imaginação. Virou-se e caminhou de volta em direção da estátua. Desta vez olhou mais atentamente para as estátuas menores. Não podia haver engano. Era capaz de ouvir a suma sacerdotisa respirando.

Aproximou-se e tocou no seu rosto. Lágrimas lhe escorriam pelas faces. Ele ficou atônito e em êxtase. Suas mãos sentiram o resto do seu corpo. Ela era humana.

— Quem é você? — sussurrou em grego siqilliyano que havia aprendido na corte.

— Sou Eleni, a suma sacerdotisa deste templo, e estas são minhas sacerdotisas.

Estava cercado por sete mulheres.

— Moram aqui? Esta ilha é habitada?

— Sim — respondeu Eleni.

— Nossas famílias moram atrás dos rochedos onde não são visíveis do mar. É o primeiro visitante em dois anos. Os navegantes que vieram antes de você não estavam interessados na ilha. Só queriam um pouco de água que, como vê, é abundante. Depois partiram. Irá embora logo?

Ele acenou com a cabeça.

— Mas quem são vocês?

— Pertencemos a famílias que começaram a adorar nossos velhos deuses na época do Grande Imperador. Depois que ele morreu, os nazarenos começaram a nos capturar e matar, por isso algumas famílias embarcaram num navio e fugiram de Bizâncio, que os nazarenos chamam de Constantinopla.

Idrisi estava fascinado.

— Que Grande Imperador?

— Juliano. Batizamos a ilha em homenagem a ele. Esta é a ilha de Juliano e Afrodite é nossa deusa.

Contou-lhes quem era e de onde vinha. Tinham ouvido falar de Palermo e sabiam que os árabes dominavam lá. No que lhes dizia respeito, os nazarenos eram os piores, mas os seguidores de Moisés e Maomé não eram melhores. Ele não estava com ânimo para um debate filosófico sobre as virtudes de um Alá contra os deuses de pedra dos antigos.

Contaram-lhe sobre os ritos que encenavam toda primavera, a comida que cultivavam na ilha, como seus números continuavam a declinar. Os homens tinham a tendência de ir embora e era por isso que desejavam recepcioná-los, a ele e aos seus homens, numa festa esta noite. Não fizeram nenhum segredo de seus desejos ou intenções.

Quando os homens voltaram, contou-lhes tudo exceto as pedras preciosas montadas nos seios de Afrodite. Mas eles ficaram ansiosos para participar de uma festa e nenhum demonstrou interesse em sequer entrar no templo. Isto o surpreendeu e em outras circunstâncias os teria questionado e repreendido por sua falta de curiosidade.

Depois que se banharam no lago de águas frescas e se secaram ao sol e estavam deitados sem roupas gozando a brisa do mar, foram interrompidos. A sacerdotisa, que os observava do templo, emergiu à luz do sol. Os homens ficaram estupefatos, assim como ele ficara. Viram as mulheres como um animal acuado vê um caçador. Sentiam a presença de um destino que eram incapazes de evitar e cobriram sua nudez com suas camisas e apressadamente colocaram suas roupas. Uma vez vestidos, as mulheres fizeram sinais para eles e, como homens em transe, as seguiram. Achavam-se em tal estado, e isso incluía Idrisi, que não notaram o labirinto de caminhos através dos quais foram conduzidos à aldeia. Aqui foram saudados por outras mulheres e de todas as idades. Depois, não tinham certeza se algum homem da aldeia estivera presente. Primeiro, deram-lhes cachimbos-do-amor para fumar e então jarras de vinho tinto foram colocadas na mesa debaixo da árvore. Quando foi servida a carne recém-assada do cabrito, marinada em suco de limão e coberta com tomilho, comeram como homens que vinham passando fome há meses. Sua fome não era de comida, mas o que queriam eram as mulheres que os serviam. A comida era apenas um pretexto. Não foi o vinho, mas as folhas secas dos cachimbos-do-amor que os intoxicou. Estavam prontos para serem levados a qualquer lugar. E foram. Idrisi lembrou-se de ter sido levado pela suma sacerdotisa. Mais tarde se gabariam de que fora uma noite de paixão incontrolável, mas quando acordaram na manhã seguinte estavam todos deitados na praia. Sua única lembrança da ocasião era o cachimbo-de-amor de barro. Nenhum dos homens estava preparado para voltar e buscar a aldeia onde haviam sido tão bem tratados. Idrisi os mandou de volta ao navio e pediu que esperassem algumas horas. Estavam assustados e acreditavam que tinham sido possuídos por demónios. Havia sido uma prova à sua fé e tinham falhado. Alá e Deus os puniriam. Imploraram a ele que não fosse sozinho, mas ninguém se ofereceu para acompanhá-lo.

Idrisi achou que havia encontrado a trilha que levava ao lago e ao templo, mas era como se tivessem sido conduzidos desde o princípio. Não havia nenhum traço do caminho. Depois de várias tentativas ele desistiu, mas o tempo todo em que esteve ali sentiu que o estavam vigiando. Era um desafio. Teria gostado de ficar e registrar os acontecimentos, mas os homens estavam ansiosos para seguir em frente e, relutantemente, concordou.

A memória da suma sacerdotisa jamais o deixou. Balkis, a mulher do Amir, o lembrava dela. Tinha feito anotações detalhadas sobre a localização da ilha de Juliano. Era uma jornada de 24 horas de... Mapeou-a de todas as direções, mas nunca pôde redescobrir a ilha. Quando descreveu o incidente ao sultão achou Rujari bastante cético. Quem poderia culpá-lo? E, à medida que os anos passavam, o próprio Idrisi se perguntava se algo daquilo teria realmente acontecido.

— Meu senhor, vamos parar para descansar e comer. Ergueu os olhos e viu que estavam diante de uma grande casa. Dois cães latiram furiosamente até que um homem emergiu e caminhou na sua direção. Era magro com o corpo esbelto, cabelos castanhos e uma pele fresca, apesar de pálida. O que o marcava era a firme determinação do seu rosto enquanto saudava calorosamente Abu Khalid e curvava-se polidamente para Idrisi.

— Bem-vindo a esta humilde casa e sinta-se nela como se fosse sua, Abu Walid ibn Muhammad alIdrisi. Quem não ouviu falar do seu renome?

— Muitas pessoas, eu receio — murmurou o erudito enquanto eram conduzidos ao frescor de uma sala escurecida.

— Banhos foram preparados para o senhor, mas espero que me perdoará. Aqui não é Siracusa e não temos espaço para um hammam. Mas água fresca foi trazida do poço e se acompanhar estes homens até o pátio eles providenciarão para que o senhor se refresque.

— Quem é o seu amigo?

— Idrisi perguntou a Abu Khalid enquanto acompanhavam os criados até o pátio.

— É Tarik, meu irmão mais velho. Creio que deve tê-lo visto rapidamente no meu casamento. Não lembra? Tem uma vida interessante. Agora tudo o que o interessa são frutas e legumes. Não come carne, nem mesmo no inverno.

— Tem família?

— Não aqui. Ela mora em Salerno. Pelo tom de Abu Khalid estava claro que este não era um assunto feliz, mas provocou a curiosidade de Idrisi.

— Por quê?

— Abu Walid, o que posso dizer? Aos 18 anos meu irmão queria ser um médico, alguém que curasse as pessoas. Lia o Aqrabadhin de al-Kindi e o Kanun de Ibn Sina da manhã até a noite. Meu pai, como bem sabe, só estava interessado em suas propriedades e no seu bem-estar. Não se sentia inclinado a satisfazer meu irmão. Queria que seu filho mais velho ficasse em casa e o ajudasse a dirigir o patrimônio, concentrando sua mente em criar novos métodos para gerar ainda mais terra. Meu irmão se recusou. Correu para o maristan em Salerno, onde se encontram os melhores médicos. É uma longa história, Abu Walid.

Jogaram água sobre suas cabeças e os dois homens tremeram deliciados.

— Onde foi que ele encontrou o livro de al-Kindi? Eu não sabia que havia uma cópia em qualquer biblioteca por aqui.

— Deve perguntar a ele. O almoço foi servido em outra sala escurecida. Tubérculos de diferentes tipos cozidos com as mais deliciosas ervas e temperos foram servidos com pão recém-assado de trigo umedecido com azeite de oliva. Para beber havia leitelho fresco aromatizado com folhas de menta. E para adoçar suas bocas fatias de melão e tâmaras foram servidas numa grande bandeja.

Depois Tarik perguntou numa voz gentil:

— Talvez gostassem de descansar? — Se descansarmos, não chegaremos à casa do seu irmão hoje.

— Eu insisto — disse Tarik.

— Fizeram uma longa jornada a cavalo. Acho que um descanso lhes faria bem. Pouco mais de três quilômetros daqui e estarão na sua propriedade.

Esta casa era parte dela, mas ele gentilmente me cedeu como presente. A casa da família está a menos de uma hora. Bem-vindo, Ibn Muhammad.

Idrisi estava exausto. O banho havia ajudado, mas o almoço o deixara sonolento. Um quarto fora preparado para ele e adormeceu imediatamente. Uma hora depois foi acordado por um sonho vívido. Sentou-se na cama e bebeu um pouco d'água. Por que a ilha de Juliano ocupava tanto seus pensamentos hoje? Aquilo havia acontecido 25 anos atrás e ele mal se lembrava daqueles dias. Por que agora? Balkis. Ela se parecia com a suma sacerdotisa. Seria realmente irmã de Mayya ou fora adotada ainda criança? E por que se casara com um homem estéril? Uma suave batida na porta o interrompeu. Era Abu Khalid.

— Estamos prontos para partir, quando estiver.

— Queria falar com seu irmão.

— Ele nos acompanhará à visita a velha casa, mas sua presença foi benéfica.

Estou muito feliz. Nunca quis herdar as propriedades. Pensava em viajar e estabelecer-me em Palermo. Mas quando Umar desapareceu meu pai não me permitiu que partisse.

— Então sua casa se tornou uma prisão. E minha filha, receio, não oferecia companhia estimulante.

Seu genro não respondeu. Chegaram à casa de Umar antes do pôr-do-sol. Os membros da casa estavam reunidos para recebêlos. À sua frente estava o jovem Khalid.

— Bem-vindo à nossa casa, avô. Idrisi abraçou o neto e beijou-lhe as faces com emoção genuína.

— Meu filho. Você já cresceu e só se passaram algumas semanas desde que o vi. Venha mostrar-me sua casa. Estive aqui pela última vez quando seu pai tinha dez anos de idade. Mudou muito?

— Não. Foi Umar quem respondeu.

— Nada muda aqui. Mas vai mudar logo. Estamos vivendo no tempo de outros.

E então um homem de aparência estranha que Idrisi mal havia notado adiantou-se e inspecionou os recém-chegados. Tinha cabelos cinzentos compridos que quase lhe chegavam aos ombros, uma barba manchada, que cobria a maior parte do seu rosto emaciado, e um par de olhos ardentes e aguçados que dominavam suas feições. Vestia uma túnica branca limpa, que contrastava com sua aparência. Na mão direita tinha um bastão velho e surrado e o bateu no chão agora ao falar.

— Não! — gritou o homem.

— Umar Ibn Ali fala sem pensar. São os infiéis que vivem no nosso tempo e nós os deixamos.

Tendo feito este pronunciamento afastou-se sem cumprimentar ninguém. Idrisi sorriu. Não se impressionou. Conversa desse tipo não era incomum em Palermo. Percebeu que este era o homem de quem Abu Khalid lhe falara em Siracusa.

Quando entraram na casa, sua filha, Samar, o saudou em termos exagerados. Não mais capaz de fingimentos, tocou sua cabeça de uma maneira mecânica. Uma série de quartos havia sido preparada para ele e seu neto o conduziu até lá.

— Jiddu — perguntou Khalid -, o senhor gosta do meu pai? A pergunta o pegou de surpresa.

— Por que faz uma pergunta destas, minha criança? Se não gostasse do seu pai teria passado um dia incrivelmente quente viajando com ele até sua casa?

Khalid começou a rir.

— Só perguntei. Estou feliz.

— Quantos quartos existem neste palácio?

— Trinta e quatro — respondeu Khalid.

— Eu os contei muitas vezes.

— Agora me diga outra coisa. O que acha daquele homem estranho de cabelos compridos que falou tão rudemente com seu tio?

O rosto do menino ficou sério.

— Ele me assusta às vezes, mas quando vê que estou com medo sorri e tenta me fazer rir. Seu nome é al-Farid, mas todo mundo o chama O Confiável. É muito pobre e viaja de aldeia em aldeia, onde se revezam alimentando-o. Mas ele não deve comer muito. É muito magro. Acho que prefere leite de cabra com um pedaço de pão. Abu diz que ele é um grande contador de histórias.

Um criado entrou com uma bacia e uma grande jarra d'água. Idrisi sorriu e beijou a cabeça do menino.

Khalid saiu graciosamente.

— Eu o vejo depois, Jiddu. Muita carne foi preparada para nossa festa esta noite.

Idrisi lavou as mãos e o rosto e deixou o criado lavar a poeira dos seus pés. O sol havia quase desaparecido e o muezim na mesquita da aldeia convocava os Crentes para a prece do anoitecer. Idrisi cobriu a cabeça e começou a rezar. Em tempos de incerteza, pensou, existe um consolo íntimo derivado da prece. Lembrou que seu pai descrevia como, depois que Palermo foi ocupada pelos francos, muitos que não rezavam regularmente começaram a comparecer às preces da sexta-feira na Grande Mesquita. Por muito tempo, segundo seu pai, as cadências melancólicas do chamado à prece tinham afetado cada Crente na cidade.

O tamanho mesmo da reunião no meio do dia cada sexta-feira permite aos Crentes encontrar força um no outro. Ele sempre entendera isso, mas só recentemente havia experimentado a sensação pessoalmente. De fato, só duas semanas atrás, quando soube do destino que aguardava Felipe.

A refeição do anoitecer, como Khalid avisara, consistia de uma grande variedade de carnes cozidas em honra do visitante. Não fosse a presença de Umar é duvidoso se algum tipo de legumes teria sido preparado. Idrisi provou um bocado de cada uma das carnes grelhadas e cozidas e exclamou em voz alta e com apreciação como estavam saborosas, mas concentrou-se em comer os legumes, crus e cozidos, que haviam sido colocados diante de Umar.

— Uma palavra de conselho para todos vocês — Idrisi dirigiu-se à mesa enquanto esperavam pelos pratos doces.

— Viajei por muitos países quentes e nos meses de verão se come pouca carne. Qualquer médico vai lhes dizer que a carne no verão produz um peso para o coração e reduz o fluxo de sangue para as partes vitais do corpo.

Umar sorriu.

— E já que Ibn Muhammad está dizendo isso, deviam leválo a sério.

Enquanto bandejas de frutas frescas eram servidas houve um grande ruído à distância. Os homens trocaram olhares inquietos enquanto um criado veio sussurrar no ouvido de Abu Khalid. Seu rosto relaxou.

— Acho que o Confiável está tentando atrair nossa atenção. Detonou um pequeno explosivo para mostrar aos seus seguidores como os francos podem ser derrotados. Se Ibn Muhammad não estiver muito cansado, poderíamos caminhar até a cidade e ouvir sua mensagem.

Idrisi levantou-se da mesa.

— Uma pequena caminhada depois da refeição ajuda a digestão. Será tarde demais para Khalid nos acompanhar?

Pai e mãe concordaram que o melhor lugar para Khalid era a cama, uma decisão que ele aceitou com extrema relutância.

A noite estava quente e calma. Enquanto os homens saíam da casa, Idrisi olhou para o céu e se tranqüilizou. À frente deles, os criados levando lampiões de azeite iluminavam o caminho até a cidade. Ao se aproximarem, podiam ouvir os cânticos do Corão, mas o ritmo e estilo eram diferentes de tudo o que ouvira nas mesquitas de Palermo e Siracusa e, também, de qualquer outro lugar. O Confiável lia os versículos em curtos estouros staccato e seus ouvintes reagiam às explosões.

Quando chegaram à praça da aldeia, Idrisi observou a mesquita improvisada com seu minarete solitário. Havia pelo menos duzentos homens presentes e cada um deles tinha o rosto coberto. O Confiável dissera-lhes para serem cautelosos e não confiarem em ninguém nos meses que vinham pela frente. Seus olhos caíram sobre Idrisi quando saltou sobre a pequena plataforma no topo da praça e começou a pregar.

— Olhem em torno de vocês, Crentes, e vejam quem veio se juntar a nós esta noite. Abu Khalid e Umar ibn Ali nós conhecemos e respeitamos. Deram-me esmolas e me proporcionaram abrigo e garantem que vocês todos e suas famílias sejam alimentados quando os tempos estão difíceis. Mas trouxeram um visitante especial. Um grande erudito de Palermo, conselheiro de confiança do sultão Rujari. Muhammad ibn Muhammad alIdrisi. Já ouviram falar nele? Sacudiram a cabeça para expressar sua ignorância.

Idrisi reprimiu uma risada. Sabia a influência que homens como este pregador podiam ter sobre os pobres e entendia por quê. Abu Khalid lhe fizera um relato do homem e de como vivia.

O estilo de vida de al-Farid suscitava admiração. Vivia de esmolas mas nunca aceitava mais do que o necessário para suas necessidades diárias, que eram, no fundo, modestas. Recusava todos os presentes oferecidos pelos ricos proprietários de Catânia, que começavam a se preocupar. Não dormia num único lugar por muito tempo e, quando precisava de uma cama, insistia numa tábua ou num pano colocado sobre o chão. Passava a maior parte do seu tempo com as pessoas mais pobres da aldeia e eram elas que o procuravam e lhe contavam seus problemas. Uns poucos o seguiam de aldeia em aldeia e absorviam sua mensagem tão completamente que ele às vezes mandava um deles a regiões distantes para pregar em seu lugar. Apesar do apoio crescente que recebia, continuava notavelmente distanciado e, ao contrário de pregadores semelhantes do passado, não mostrava sinais de delírio ou alucinações. Submetia seu corpo a privações terríveis, geralmente fazendo jejuns prolongados para testar sua força. Esta autodisciplina rude quase lhe custara a vida. Se um passante não o tivesse forçado a beber água e comer pão ele teria morrido. Umar havia preparado misturas especiais de ervas e uma dieta cuidadosa de amoras silvestres e sopas de legumes para ajudar na sua recuperação.

Depois de cada vitória que seu corpo havia alcançado, ele se levantava, o rosto rígido como uma máscara, e começava a dançar, um estranho ritual que ninguém na região vira antes, enquanto entoava canções que tinha feito em honra de Má. Lendas brotaram a seu respeito e logo era chamado para resolver disputas entre os camponeses nas várias aldeias. Durante dez anos ou mais, sua palavra era aceita como o julgamento final e ele tinha uma quantidade imensa de seguidores em cada aldeia. Notícias de chegada do Confiável se espalhavam pelos campos e naquela noite teria lugar um mehfil com os camponeses para que falassem abertamente sobre suas amarguras.

Contava-se que muitos anos atrás um proprietário de terras estuprara uma camponesa e ela ficara grávida. O marido queria matá-la. O Confiável interviera e salvara sua vida. Organizou então os camponeses para matarem o ofensor, mas de maneira que parecesse um acidente. Os camponeses fizeram uma emboscada contra o proprietário e o jogaram, com o seu cavalo, de uma montanha. E agora ele pregava a rebelião.

— As notícias de al-medina são de que o sultão está doente e morrerá em breve.

Que Alá o mande para o céu porque ele não foi cruel para os Crentes, mas não podemos depender dos francos para continuarmos aqui após a morte de Rujari. Querem nossas terras e as tomarão a não ser que resistamos. Digo isto: depois da morte de Rujari cercaremos Palermo do lado de fora. O efeito será aquele de uma pedra jogada numa colméia. Nosso povo vai se levantar e derrubar os infiéis. Onde estará quando chegarmos, grande mestre Idrisi? Escondido na biblioteca com seus livros?

Abu Khalid ficou zangado, mas Idrisi segurou seu braço e sussurrou:

— Este homem não é nada estúpido. Os insultos não me afetam.

O pregador falou por outras duas horas e os camponeses o ouviram extasiados. Falou do começo de vida do profeta Maomé, contou-lhes histórias de como os exércitos e seguidores do Profeta haviam chegado às praias de três oceanos dentro de cem anos, os fez rir e os fez chorar quando descreveu como fora injustamente detido e sujeito às piores torturas. E então mudava

o tom e explicava como os Crentes ainda eram numericamente superiores ao francos na Siqilliya e como conquistariam uma vitória para a sua fé se pusessem de lado rivalidades mesquinhas e servissem num exército unido.

— Mas existe um problema, meus irmãos. Quem nos liderará na batalha? Que bandeira vocês seguirão?

— Você nos liderará, Confiável. É a sua bandeira que vamos seguir — a multidão respondeu.

Mas ele sacudiu a cabeça vigorosamente e ergueu a mão direita para exigir silêncio.

— Não sou um Amir da terra ou do mar. Só podemos vencer se nossos amires que estão hoje combatendo por Rujari decidirem lutar por si mesmos e pela causa dos Crentes por toda parte. É a eles que devemos convencer e, se conseguirmos, teremos um exército e navios ao mar. Sou um homem simples, mas sei como batalhas são ganhas e perdidas. Vamos fazer com que nossa fé nos dê tamanha força que perderemos o medo da morte. Isso dará a nossos amires um grupo de homens que se rivalizará com os francos e seus barões. Nós os expulsaremos até um mar que eles nunca deveriam ter atravessado. E eu cuspo na memória de Ibn Thumna que convidou os infiéis a atravessarem as águas para ajudá-lo a lutar contra nossos Crentes. Vamos cuspir juntos nele. Alá seja louvado.

A multidão cuspiu no chão em uníssono.

— O homem conhece a nossa história — Idrisi murmurou enquanto caminhavam de volta para casa.

— Acha que existe a menor possibilidade de sucesso?

— Abu Khalid perguntou-lhe.

— Existe uma boa possibilidade se o que al-Farid pediu puder ser conseguido. Ele estabeleceu três condições prévias para o sucesso. A unidade dos Crentes, a disposição de morrer

como parte de um novo exército e o abandono do clã Hauteville por nossos principais nobres e comandantes militares. Se conseguíssemos alcançar todas estas coisas, poderíamos vencer. O pregador é modesto demais. Poderia elevar a sua estatura. Homens como ele podem ser impelidos a fazer História.

— Concordo — disse Umar — mas se formos realistas nada disso irá acontecer. Nossos amires são egoístas demais para sequer pensarem nas necessidades dos outros.

Estão interessados na sua sobrevivência e na de suas famílias e, para manter suas terras, se converterão à fé dos nazarenos. Meu irmão aqui morrerá pela causa, como pode ver, e eu provavelmente morrerei com ele. Em Catânia formaremos um grande exército, mas aqueles fodedoresde-cabras em Qurlun e Lanbadusha jamais deixarão suas terras. Anote minhas palavras, Ibn Muhammad. Eles se converterão.

E um estranho eco reverberou na escuridão.

— Anote minhas palavras, Ibn Muhammad. Eles se converterão. Eles se converterão.

O Confiável os havia seguido e entreouviu a conversação.

— Confiável — Abu Khalid gritou -, junte-se a nós. Saiu da escuridão e caminhou com eles até que chegaram à frente da casa. Declinou o convite de partilhar chá de menta com eles dentro de casa, mas fixou Idrisi com um olhar severo.

— Quero que saiba que, ainda que o resto da ilha se omita, Catânia vai lutar. O Amir de Siracusa me deu sua palavra de que seus homens ficariam conosco. O Amir de Catânia prometeu seu apoio. Levantaremos vinte mil homens armados e eles lutarão até a vitória ou a morte. Acha isso suficiente?

Idrisi foi intensamente afetado pela simplicidade e determinação do pregador. O Confiável, no entanto, ainda tinha de se decidir em relação a Idrisi. Estava inclinado a confiar nele, mas esperava para ouvir sua resposta.

— Confiável, vou ser honesto com o senhor. Não estou seguro de quantos homens armados serão necessários para recuperar esta ilha. Foi tomada de nós por menos de um quarto do número que propõe. Não são os números, mas a força da crença em sua própria causa que determinará o resultado. Mas a questão principal foi a que colocou: será que os Crentes nas cem maiores cidades desta ilha se juntarão a esta rebelião? Se o fizerem, nós venceremos. Os barões tornaram-se preguiçosos e cobiçosos.

Estão desacostumados com a guerra. Podíamos pegá-los de surpresa, mas ainda que tomássemos a ilha teríamos de atravessar as águas e ocupar as fortalezas em Salerno e nos outros locais. Sem elas ficaremos vulneráveis a outra invasão. Quanto a nosso povo em Qurlun e Lanbadusha, talvez o que diz seja correto, mas ser apegado à terra e convertido à fé do conquistador não é nenhuma garantia de que será poupado se houver um terremoto. E são aquelas pessoas piores do que as comunidades em Marsa Ali e Shakka? Vão ser levadas pelo vento. Se a tempestade que o senhor prepara em Catânia for poderosa o suficiente, unirá muitos não-crentes também contra os barões. E, antes que eu esqueça, houve uma pergunta que fez diretamente a mim. Minha resposta é esta: se houver uma rebelião, não vou agir como um indivíduo.

Se precisar de mim estarei na Grande Mesquita com os outros, não me escondendo na biblioteca do palácio. Isso o satisfaz?

O pregador estendeu a mão e tocou na cabeça de Idrisi.

— Estou satisfeito, mas somente Alá o recompensará, Ibn Muhammad.

— Então estou preparado para esperar — replicou Idrisi com um meio-sorriso.

Entraram na casa com o ruído de mulheres chorando e Khalid sentado no saguão, lágrimas escorrendo pelo rosto. Idrisi abraçou o neto e perguntou o que havia acontecido.

— Umi morreu.

Idrisi beijou o menino e o apertou contra si. E foi em seus braços que a criança adormeceu. Uma única lágrima molhou a face de Idrisi. Ficou sentado com um olhar vago até que Tarik apareceu.

— O que foi que aconteceu, Tarik? Ela não parecia doente. Onde está Abu Khalid?

— Umar está em seu quarto. Ela tomou veneno, Ibn Muhammad. Uma grande dose e deve ter sido uma morte dolorosa. Tomou imediatamente depois da refeição. Ainda que estivesse aqui, eu não teria antídoto para este veneno.

— Mas por quê?

— Meu irmão não estava contente com ela e a repreendeu pela traição que ela e Sakina haviam planejado. Não se divorciou nem a ameaçou. Mas tinha dificuldade em falar com ela. Acho que ela achou o silêncio insuportável.

Idrisi começou a chorar.

— Pobre garota. Foi culpa da sua mãe, de sua estupidez e cobiça... Diga ao seu irmão para não se culpar. A mãe de Samar é que devia ter tomado o veneno. Mandaram um mensageiro avisá-la e a Sakina?

Tarik acenou com a cabeça.

— Ele partiu para Noto antes de voltarmos.


8

Irmãs sigilliyanas.
Mayya e Balkis discutem os méritos da vida com e sem homens.
Segredos são revelados.
Combina-se um plano para extrair a semente de Idrisi.

As três mulheres estavam sozinhas. Elinore se ocupava em fazer as malas, com suas roupas e jóias, preparando para a partida bem cedo na manhã seguinte. Embora nunca tivesse se encontrado com Samar, a notícia do suicídio de sua meiairmã a havia perturbado mais do que achava possível. O incidente continuava a reverberar na sua mente e ela mal ouvia sua mãe e sua tia, que estavam num ânimo estranho desde ontem.

— Se minha vida começasse de novo, eu acho que a repetiria. Mayya estava com uma índole filosófica e embora Balkis estivesse acostumada com o hábito de sua irmã de refletir em voz alta, ficou surpresa com a observação.

— Achei que detestava o palácio-prisão. Sua descrição.

— O que eu quis dizer foi que se meu Amir al-kitab, o grande mestre Idrisi, levasse a mesma vida se eu fosse casada com ele quando nunca estava em casa, o palácio-prisão era melhor. Tinha amigos e nunca fiquei solitária. É muito melhor do que ser casada com um marido exigente mas ausente que

insistia em ser o centro da minha vida. É diferente agora que suas viagens terminaram.

— Meu Amir me deixa sozinha. Nunca força sua presença sobre mim.

— Mas quando o faz, é agradável?

— Não, mas não é desagradável. As duas caíram na gargalhada.

— Sei como você anda feliz estes dias, Mayya. E, vendo você assim, me faz ao mesmo tempo feliz e triste.

— Quando você disse que eu pensei ter ouvido nossa mãe. Ficaram ambas em silêncio. Sua mãe morreu quando ambas eram jovens. Balkis só tinha dois anos e mal podia se lembrar dela. Mayya, dez anos mais velha, havia guardado algumas memórias vívidas. Suas tias e sua avó materna as haviam criado, as tias em função do dever e a avó porque as amava quase tanto quanto havia amado a própria filha.

— É verdade o que dizem?

— Quem?

— Eles?

— O que dizem?

— Que nossa mãe não teve uma morte natural. Mayya abraçou a irmã.

— Perguntei à vovó e ela disse que não era verdade.

— Ela diria isso. Se tivesse dito a verdade papai a teria botado fora de casa. Não tinha para onde ir.

— Teria voltado para Shakka onde seus filhos viviam.

— Mayya, sempre sei quando está tentando esconder coisas de mim. O que há de errado com você?

— Acho que estou grávida.

— Alá nos proteja!

— Protegerá. Ele o fez da última vez.

— Tem certeza?

— Acho que sim. O sêmen do erudito é tão fértil como esta ilha.

— Não só desta vez, se a história que você me contou anos atrás era verdadeira.

Mayya deu uma risada suave, silenciosa.

— Não estou segura que ele saiba se realmente aconteceu ou se foi um sonho depois de terem fumado um haxixe muito forte.

Mas como podiam todos os homens terem o mesmo sonho? Curioso que tenha lembrado.

Balkis levantou-se e caminhou para trás da cadeira da irmã. Começou a trançar os cabelos de Mayya.

— Ainda não respondeu minha pergunta sobre nossa mãe. Mayya suspirou.

— Ouvi as mesmas histórias que você e provavelmente da mesma fonte. Como posso saber se são verdade?

— Mas, Mayya — apelou a irmã -, se nossa mãe foi morta pelo marido devia haver uma razão. Nosso pai mal podia dirigir um olhar para mim. Não consigo lembrar de nenhum gesto afetuoso de sua parte.

— Ele queria um filho.

— Por que está escondendo a verdade? Por quê? Nunca vai me contar? Mayya?

Mayya sempre soubera a verdade, mas queria proteger Balkis. Estavam todos mortos agora. Mas algo bloqueava Mayya. Uma intuição, talvez, de que nada de bom sairia desta história. Já havia custado a vida de sua mãe. A visão de Balkis sentada no chão com as mãos apoiando o rosto e esperando ansiosamente decidiu Mayya. Não havia nenhuma razão real para ocultar a verdade dela.

— Nós tivemos pais diferentes.

A expressão no rosto de Balkis não mudou.

— Isto era óbvio até para mim. Quando eu tinha cinco anos, nosso pai mandou raspar minha cabeça porque não podia agüentar a cor dos meus cabelos. Fingiram que eu tivera febre e vovó disse que os cabelos cresceriam ainda mais fortes. Mas eu chorava toda noite e você me consolava até que eu adormecesse. Lembra-se? Quando cresci, percebi que ele odiava a simples visão de mim. Às vezes deixava a sala quando eu entrava. E então percebi por que me odiava, mas não havia ninguém para perguntar e você sempre negava. Quem era meu pai?

— Um mercador grego que comprava azeite de oliva do meu pai. Lembro-me bem dele. Não só era muito mais bonito do que meu pai, mas também mais inteligente.

Nossa mãe deve ter pensado o mesmo. Visitava nossa casa regularmente. Suponho que um dia ele a encontrou sozinha e a suave brisa de atração mútua se transformou numa tempestade. Você foi o resultado. A surpresa foi que levaram dois anos para que nosso pai se desse conta de que esta criatura com cabelos louros e olhos azuis não podia ser sua filha. Puxei a minha mãe. Você era a imagem do seu pai.

— O que aconteceu com ele?

— Quando me tornei uma das concubinas de Rujari mandei chamá-lo. Isto foi há vários anos. Veio ao palácio e conteilhe que nossa mãe tinha sido envenenada. Não tinha a menor idéia de que estava grávida até você nascer e ela mandou-lhe uma mensagem dizendo para nunca mais voltar a Noto. Ele chorou muito. Ficou desesperado para ver você, mas nossa avó ainda estava viva e achei que não seria prudente.

— Você estava errada.

— Você pode estar certa. Ele ainda era jovem e achei que podia vê-la em outra ocasião.

— Ele já morreu?

— Sim.

— Como?

— Uma espécie de infecção. Um dos eunucos do palácio mantinha-se informado sobre ele. Mandamos um médico para tentar curá-lo, mas era tarde demais. A doença havia se espalhado.

— Não tinha família?

— Não. Balkis começou a chorar. Mayya aninhou sua cabeça nos braços e a acariciou gentilmente até que ela se recuperou.

— Mayya. Cheguei a uma decisão. Eu quero um filho.

— Muito bem. O único problema é encontrar um pai.

— Você ocultou meu verdadeiro pai de mim. Jure por tudo que é sagrado que vai me deixar decidir quem vai ser o pai de meu filho.

— Claro que vou. Juro pela cabeça de Elinore que apoiarei sua escolha e farei tudo em meu poder para ajudá-la a caçar a besta e extrair o seu sêmen. Eu juro. Eu juro. Eu juro.

— Lembra quando éramos crianças e bastava eu mencionar que adorava um determinado prato para ele reaparecer no dia seguinte?

— Não, mas e daí?

— Quem decidia?

— Não tenho a menor idéia. Talvez vovó. Sempre se queixava de que não apreciávamos sua comida e quando você dizia que gostava de algo ela fazia aquilo três vezes por semana. Você é uma criatura engraçada, Balkis. Estávamos discutindo o pai do seu filho e vem falar de comida. Tem um homem em vista?

— Acho que devíamos manter a coisa em família.

— A saber?

— Ibn Muhammad alIdrisi.

A idéia a colocou em pânico. Primeiro pensou que Balkis a estava provocando, mas o olhar no rosto da irmã sugeriu que falava sério.

— Não! Não! Por que ele? Existem homens suficientes em Siracusa que adorariam a oportunidade. Ele tem 58 anos, você sabe. Sabia disso? Cinqüenta e oito! Velho demais para você. Seu sêmen não é vigoroso e...

— Mayya, você não deve ser egoísta. Fez um juramento. O tom severo da irmã aumentava seu constrangimento.

— Juramentos podem ser quebrados. Está me atormentando?

É uma punição porque não deixei seu pai ver você?

— Não. Apenas acho que seria uma boa união e não haveria risco. Ele não iria me chantagear, não acha?

— Mas por que ele?

— A razão real?

— Sim!

— Existe algo muito infantil e atraente em sua risada.

— Ora, ele não vai rir quando a enxergar nua. Era um comentário tão ridículo que as duas começaram a rir. Foi uma risada espontânea e contagiante e clareou a atmosfera. A tensão insuportável que tomara conta delas subitamente desapareceu. Assim que Mayya percebeu que sua irmã falava sério ela também começou a pensar seriamente. Balkis observou-a em silêncio por vários minutos e então ergueu uma sobrancelha, só para ter como resposta um gesto de um dedo sobre os lábios. Finalmente, não pôde se conter mais.

— E então? Mayya se sentia com o coração leve de novo. Contanto que organizasse e controlasse toda a história, poderia ser algo muito divertido. Se possível, encontraria um esconderijo de onde poderia observar toda a cena, sem o conhecimento dos dois atores principais. Ainda não achava uma boa idéia, mas se tinha de ser feito, deveria ser feito adequadamente. Deixada para agir sozinha, Balkis poderia arruinar tudo.

Olharia então para Mayya com seu ar inclemente e a culparia do desastre. E por que não deveria Muhammad alIdrisi ajudar Balkis na sua hora de crise?

Ela sabia que as pessoas geralmente preservam uma lembrança de algo, meio imaginado, meio real que lhes aconteceu na juventude. Mais tarde na vida relembram isso como algo excepcional ou mágico, fora da ordem comum das coisas.

— Pensei num plano, mas para que tenha sucesso um número de condições precisam ser preenchidas. Primeiro, ele nunca deve saber que eu sei. Segundo, não deve acreditar que a mulher entrando no seu quarto seja você...

— Mas — interrompeu Balkis.

— Por favor, deixe-me acabar. E, por fim, quando você o encontrar na manhã seguinte, deve fingir que nada aconteceu.

— E se nada acontecer? Quero dizer, se não tivermos sucesso da primeira vez?

— Podem tentar de novo, mas exatamente da mesma maneira.

— Aceito as condições. Agora revele cada detalhe do seu plano.

Ela o fez mas, antes que as arestas pudessem ser aparadas, Elinore entrou no quarto.

— Estamos realmente partindo para Palermo amanhã? Sua mãe assentiu com a cabeça.

— Por que quer voltar tão cedo, Elinore? Por que não esperar por seu pai? Vai voltar em poucos dias e então nós duas poderemos regressar no seu navio. Muito melhor do que viajar de carroça.

— Acho Siracusa tão tediosa, minha tia. Todos os meus amigos estão em Palermo. Tudo acontece lá. Soube de coisas interessantes que estão acontecendo em Noto. Dizem que existe um pregador de cabelos compridos com a alma exaltada que está espalhando a rebeldia através de Catânia. É verdade? Ouviram falar dele?

Balkis acenou com a mão num gesto depreciativo.

— Meu marido o conhece e diz que o homem é meio louco. Elinore não aceitou.

— Isto significa que ele é meio lúcido.

Sua mãe a fuzilou com o olhar.

— Bem — respondeu a tia -, se está interessada no Confiável — é assim que o chamam — é melhor esperar por seu pai. Deve tê-lo conhecido na propriedade do seu genro.

Elinore estava dividida. Estava desesperada para voltar à casa para ver se algum dos eunucos tinha conseguido encontrar o flautista que a deixara em transe com a sua música. Mas o pensamento de esperar por seu pai também era atraente. Debateu os méritos de cada caso na sua cabeça e decidiu em favor do rapaz que tocava flauta. Regressariam cedo na manhã seguinte.

Sua mãe aceitou a decisão por suas próprias razões. Não queria realmente estar em Siracusa quando Idrisi voltasse. Balkis jogando olhares para ele seria intolerável.

Apesar da sua mostra de apoio à irmã, Mayya estava nervosa em relação ao pacto cruel e monstruoso que haviam selado. Seu cérebro estava em torvelinho. Seria melhor que não estivesse presente quando Idrisi voltasse ao palácio. Se ele sequer suspeitasse do seu envolvimento ela seria coberta de desgraça. A maneira relaxada de Elinore parecera ter convencido sua tia de que tinham de partir e involuntariamente proporcionara uma solução simples para o dilema de sua mãe.

— Balkis, não quero que acorde cedo por nossa causa. Partiremos antes do sol nascer, enquanto os Crentes são acordados para as preces matutinas. Não a perturbaremos.

Vamos nos despedir agora.

Elinore beijou a tia calorosamente e saiu da sala. Balkis segurou as mãos da irmã e as apertou com força.

— Tem medo da minha impetuosidade. Começa a se arrepender do nosso acordo. Eu amo você, Mayya. É uma mãe e um pai para mim. Se a magoei estou preparada para retirar minha sugestão e declarar nosso acordo acabado. Não quero que nada fique entre nós. Nada.

Mayya, tocada pela oferta, não falou imediatamente, mas abraçou Balkis e a beijou.

— Fizemos um acordo. Vamos ficar fiéis a ele. Não afetará nada entre nós. Isso eu posso prometer-lhe. Só espero que dê certo da primeira vez. Não quero que faça disso um hábito.

E com essa nota de advertência as irmãs se despediram.


9

Idrisi reflete sobre a rebelião e é surpreendido no seu sono.
Sua semente é extraída mais de uma vez.

A manhã resplandecente alegrou Idrisi. Tomou café-da-manhã cedo e partiu para Siracusa acompanhado apenas de criados armados. Não permitiu que Abu Khalid nem seu irmão

Umar o acompanhassem. Tinham tarefas mais importantes em casa.

A morte de sua filha levara a muita reflexão interior da sua parte e Idrisi se perguntou se as coisas teriam sido diferentes se tivesse passado mais tempo com as filhas e as educado. Mas acabava voltando, uma vez mais, à raiz do problema: o seu casamento. Embora só tivesse 18 anos na época, deveria ter resistido ao seu pai. Na noite passada havia escrito uma carta breve para Walid.

"Meu Caríssimo Filho:

Escrevo para trazer tristes notícias. Sua irmã, Samar, morreu há dez dias. Eu estava presente na casa no dia em que ela decidiu atentar contra a própria vida.

Pegou-nos todos de surpresa porque não havia indicação de que estivesse à beira do desespero. O jovem Khalid vagueia aturdido e é difícil consolá-lo. Seu pai o culpa, mas injustamente. É um homem generoso e ponderado e não deve ser culpado pelo que aconteceu. Se há algum culpado, sou eu. Deveria ter sido menos duro com ela depois de descobrir e expor um plano tolo e traiçoeiro para prestar falso testemunho contra o marido. Foi idéia da sua mãe. Ela e Sakina se tornaram instrumentos voluntários por causa de estupidez mais do que de maldade. Seria ocioso oferecer mais detalhes numa carta que pode nem mesmo chegar até você.

Sua mãe e Sakina vieram para o enterro, mas só ficaram poucos dias. Falei com elas brevemente, passando mais tempo com meus netos, cuja inteligência você apreciaria mais do que a maioria.

Tenho pensado muito no passado e irei a Veneza sem muita demora para que possamos nos encontrar e conversar. Não pode imaginar como sinto falta da sua presença.

As ondas de risadas e o ruído das vozes quando seus amigos vinham vê-lo na nossa casa permanecem uma lembrança muito cara.

Eu o abraço,

Abu."

Cavalgou num ritmo furioso, ansioso para alcançar Siracusa antes do crepúsculo e içar velas para Palermo na manhã seguinte. Tinha deixado a cidade em desespero, buscando possíveis rotas de escape para o desastre que vinha à frente. Rujari não havia respondido à sua carta pedindo misericórdia. Talvez devesse ter ficado e implorado ao sultão todo dia. Agora queria fazer um último esforço para persuadir o sultão a poupar a vida de Felipe. Rujari havia tratado Felipe como seu próprio filho. Sabia que o sacrifício humano exigido pela Igreja e pelos barões — um sacrifício com o qual Rujari havia concordado — devia estar, mesmo assim, atormentando o sultão.

Quando Idrisi discutira a prisão de Felipe com o Confiável, o pregador fizera troça da comunidade de Crentes de Palermo. Se deixassem Felipe morrer sem resistência, eles próprios também pereceriam. A contragosto, Idrisi começara a cair sob o fascínio do pregador. Às vezes suas crenças supersticiosas o irritavam, mas a ferocidade e o fervor com que falava contra a Igreja faminta de terras e os mercenários que ela empregava como carrascos eram admiráveis. E as multidões que ele empolgava estavam longe de ser crédulas. Sabiam que ele falava a verdade e o comparavam a seus amires e proprietários de terras que competiam entre si para apaziguar e agradar a seus inimigos, especialmente os monges, que constantemente faziam sermões advogando o terror e a violência para livrar a ilha de Crentes e judeus.

De onde vinha esta paixão religiosa? Era uma resposta às fogueiras que haviam sido acesas para destruir o que ele por muito tempo considerara indestrutível. As primeiras vitórias do Profeta e os triunfos resultantes haviam criado uma civilização tão orgulhosa e consciente de sua superioridade que, como os antigos da Grécia e de Roma, infectou-se com a idéia de que sua superioridade a tornava invulnerável. Um erro fatal.

Mas o Confiável estava certo ao chamar a atenção sobre a traição que levara ao convite despachado por Ibn Thumna, o Amir de Siracusa, aos francos. Acontecimentos que tinham ocorrido há cem anos ainda estavam frescos na imaginação da maioria dos Crentes. Quantas vezes Idrisi ouvira a história do Amir maligno e promíscuo, Ibn Thumna, que havia assassinado o piedoso e nobre Ibn Maklati, o Amir de Catânia, por motivos de mera cobiça. Queria mais terra. O assassinato foi vingado por Ibn al-Hawwas, que infligiu uma tremenda derrota sobre o Amir de Siracusa. Foi então, e simplesmente para salvar sua própria pele, que Ibn Thumna convidou os infiéis a atravessarem as águas. Foi morto na batalha com eles, por isso não ganhou nada, afinal. Estava provavelmente assando nas fogueiras do inferno a esta altura. Era bom para Idrisi pensar em algum lugar mais quente do que Siquilliya.

Olhou para o céu. Nem uma só nuvem à vista, embora os pastores tivessem previsto chuva na noite passada. Suor escorria por seu rosto e pescoço e ansiava por uma brisa marinha úmida enquanto galopavam em frente. Não descansaria até que os homens implorassem pelos cavalos. Chegando a um arvoredo, os troncos e galhos retorcidos pelo vento e feridos pelo raio e as folhas secas e murchas, ele afrouxou o passo. Ao caminhar por entre as árvores podia ouvir os homens falando do Confiável.

Quando se juntou a eles, calaram-se, mas perguntou se tinham comparecido ao mehfil na aldeia. Acenaram com a cabeça sem darem nenhuma informação.

— Todos vocês entrariam para o exército de que falou o Confiável?

Novamente concordaram com a cabeça.

— Estão preparados para morrer, mas em nome do quê?

— Para que as preces possam ser ditas de novo no nome do Califa.

— É tudo? Outra voz replicou.

— Muitos dos nossos homens trabalham como escravos para a Igreja. Quando derrotarmos os infiéis poderemos libertar todo o nosso povo.

Então o mais jovem deles, que não havia falado, disse:

— Somos pessoas pobres e o senhor é um grande erudito. Como poderemos lhe dizer algo que já não saiba? Mas pode nos ensinar muito. Acha que podemos vencer?

Idrisi pensou antes de responder. — Não sei. Existe uma tendência entre nosso povo para se gabar de nossa capacidade. Nos tornamos muito egoístas e vaidosos. Se linguagem extravagante pudesse derrotar o inimigo, jamais teríamos perdido uma única batalha. E depois tem esta ilha, que exerce um efeito mágico sobre todos que vêm para cá, independentemente da sua fé. A geografia e as condições locais nos isolam de outras terras e, sejamos nazarenos ou crentes, começamos a nos ajustar às condições aqui. A geografia desta ilha modela nosso caráter e dentro de cinqüenta anos ou mais — crente, judeu ou nazareno — não se poderá mais dizer a diferença entre nós. Nos tornamos siqilliyanos enfrentando os mesmos problemas.

Os homens não sabiam como entender isto e sorriram mas ficaram em silêncio. Prontos para seguir viagem de novo, cobriram as cabeças e montaram nos seus cavalos.

Um vento suave soprava e as nuvens já haviam escurecido o céu ao chegarem a Siracusa.

Idrisi foi saudado pelo camareiro do palácio, que lhe informou que o Amir era esperado mais tarde naquela noite. Um banho fora preparado para ele e a senhora Balkis se juntaria a ele para a refeição da noite.

— Estão a senhora Mayya e Elinore aqui?

— Voltaram para Palermo poucos dias atrás. Esperava encontrar a filha sozinha e levá-la de volta consigo. Por que Mayya voltara tão cedo? Balkis teria as respostas.

Seguiu até o hammam onde um banho quente aromático fora preparado para ele. Camomila, tomilho silvestre, manjerona e, sim, menta-de-montanha. Seria aquilo um feixe de erva-moura que via boiando na água? Era. Tirou-a do banho e entregou-a ao atendente.

— Quem escolheu as ervas?

— A Senhora Baikis. Lembrou-se de dizer a sua cunhada que a erva-moura só deveria ser usada para curar a insônia. Ao entrar no banho sentiu os poderes calmantes que as ervas extraíam do seu cansaço. Recostou-se e desfrutou de uma infusão que foi derramada sobre sua cabeça, depois do que o atendente o massageou pelo que pareceu um tempo muito longo. Insistiu num banho frio para se livrar da leve sonolência e logo emergiu completamente refrescado.

Um quarto diferente fora preparado para ele mas, como a vista do mar era ainda melhor, não se queixou. Chovia e o mar estava agitado. Podia ver os barcos ao longo do cais balançando para cima e para baixo como uma fileira de cavalos antes de uma corrida. Uma atendente bateu na porta para avisá-lo de que a refeição ia ser servida. Seguiu-a até uma série de aposentos onde encontrou Baikis à sua espera, vestida numa túnica vermelha viva, seus cachos dourados amarrados num nó. A cor não combinava com ela.

— Bem-vindo de volta, Muhammad ibn Muhammad. Só lamento que meu marido não esteja aqui para cumprimentá-lo. Como pode ver, o tempo está realmente mau e acho que ele não chegará até amanhã. O mensageiro que trouxe a notícia disse que o Amir insistia em que não partisse para Palermo sem antes encontrar-se com ele.

Idrisi curvou-se polidamente.

— Fico tocado com a sua hospitalidade. Se a tempestade prosseguir, duvido que eu possa partir pela manhã. Vou esperar pela volta do Amir. Eu, também, tenho coisas que gostaria de discutir com ele.

— Lamento saber da morte de sua filha. Era chegado a ela?

— Não, e isso me faz sentir culpado. Mas não vamos falar de coisas tristes esta noite. Eu esperava encontrar Mayya e Elinore. Por que as deixou partir?

— Foi Elinore quem insistiu. Por um tempo comeram em silêncio.

— Balkis, eu venho pensando nisso. Você e Mayya não parecem irmãs. Tiveram diferentes mães?

Balkis sorriu e disse como se fosse a coisa mais normal no mundo:

— Não. Pais diferentes.

— Desculpe. Não queria bisbilhotar.

— Deveria contar-lhe a história toda?

— Por favor.

Enquanto ele ouvia, uma servente limpou a mesa e outra colocou pequenas tigelas de infusões herbais diante deles. Tão fascinado por Balkis estava Idrisi que bebericou sem notar o shahdanaj al-barr (cânhamo selvagem) com mel. Seus efeitos não foram imediatos mas, mesmo enquanto a ouvia, sentiu uma tontura que o deixou ousado na maneira de encará-la.

Abruptamente perguntou:

— Por que decidiu usar este vestido vermelho insuportável? A cor não combina com a sua pele. Foi deliberado?

— O que gostaria que eu fizesse?

— Que o tirasse e...

A risada dela o interrompeu. Sentiu-se aliviado de que não era uma risada estúpida ou maliciosa, mas delicada e cuidadosa, sem ser preciosa. Não houve nenhum movimento da mão para esconder seus lábios, um gesto que ele não gostava nas mulheres.

Voltou à história dela.

— E Mayya sabia?

— Sabia há muito tempo, mas só me contou a verdade toda há poucas semanas. Ibn Muhammad, seria capaz de matar uma mulher que o traísse?

A resposta foi instantânea.

— Não.

— E agora é sua vez de contar uma história. Mayya contoume sobre a estranha ilha de Juliano, mas não tinha certeza se fora real ou imaginária.

Outra tigela da mistura potente foi colocada à sua frente. Aceitou-a avidamente. Depois fechou os olhos em apreciação silenciosa. Contou-lhe a história da ilha de Juliano, não poupando um único detalhe. Relatou de novo a noite de paixão e as diferentes artimanhas que a suma sacerdotisa usara para excitá-lo e reavivá-lo depois que tinham feito amor pela primeira vez. Idrisi ficou tão animado na sua história que não notou os rubores dela. Conseguira excitá-la fisicamente sem um único toque. Ela levantou-se da mesa e sugeriu que se recolhessem para a noite.

Quando voltou ao seu quarto, Idrisi abriu as venezianas para observar a tempestade. Não havia estrelas visíveis no céu escuro como breu, só o brilho dos relâmpagos e a chuva forte. Despiu-se e caiu na cama. Pouco depois uma aparição — ou pelo menos ele assim achou — pairou no quarto, vestida de branco. Não era... não poderia ser... sim, era... ele tinha certeza... devia ser a suma sacerdotisa da ilha de Juliano.

— É você? — ele sussurrou em grego.

— Sim.

Idrisi caiu de joelhos diante da guardadora da chama de Afrodite e lentamente se aproximou até que ela, como ele, estava nua.

— A tempestade lá fora me assusta. Ela foi até a janela e fechou as venezianas. Pegou-a pela mão e conduziu-a à sua cama.

— É a tempestade aqui dentro que me assusta. O que se seguiu foi uma noite de pura paixão. Balkis ouvira bem a história e imitou cada incidente que ele descrevera. Idrisi mal abriu os olhos. Sentiu-se lavado por ondas de felicidade enquanto explorava os montículos e frestas do corpo dela.

Ela queria sussurrar no seu ouvido:

— Sou Balkis, não sou a sua estúpida suma sacerdotisa. É o meu corpo que você está desfrutando. Meu. E eu quero o seu filho.

Mas a parte dela no acordo não podia ser rompida. Prometera à irmã que não revelaria sua identidade. Se Idrisi a reconhecesse, tinha outra história cuidadosamente preparada. Depois de fazerem amor pela terceira vez seu amante exausto caiu num sono profundo. Ao se virar para ficar mais confortável, roncou ruidosamente, como uma trovoada. Foi a única vez naquela noite que ela se lembrou do marido.

Deixou o quarto. Segura nos seus aposentos, Balkis podia sentir o cheiro dele no seu corpo e isso a fazia arder de prazer. Espero que não tenha funcionado esta noite, pensou. Enfim, quem poderia saber? Precisaremos fazer de novo para ter certeza. Graças a Alá que ela não se recusara a aprender grego quando criança. E se ele decidir partir antes do cair da noite? Vou impedi-lo. Vou mandar uma mensagem secreta da sacerdotisa. Farei qualquer coisa a fim de mantê-lo aqui por mais uma noite. Só mais uma noite. E se necessário o acompanharei a Palermo para ver Mayya. Ela vai me matar, eu sei, mas me recuso a deixálo partir. Ela compartilhou Rujari com sabe Alá quantas mulheres. Por que não compartilharia Muhammad apenas comigo, uma irmã que a ama? E se Mayya e eu estivermos ambas grávidas? Pensando nisso finalmente adormeceu.

E Idrisi? Talvez fossem as ervas. Talvez a paixão. Talvez ambas. Não dormia confortavelmente assim há muito tempo. Só acordou quando ouviu o muezim bem cedo na manhã seguinte.

Tremeu ligeiramente ao lembrar o sonho erótico da noite passada. Ishq khumari. Amor de Baco. Então sentiu o perfume dela e o seu corpo sobre o seu. Fora real, afinal? Farejou os braços como um cão. Então ficou de quatro e farejou os lençóis. Odores deliciosos invadiram suas narinas. Ficou deitado perplexo, mas feliz.

Não havia erro. Uma mulher estivera aqui na noite passada. Tinham feito amor. Não era nenhum sonho, mas como podia ser a suma sacerdotisa exatamente como fora estes anos todos? Seria isso possível? E então se lembrou da infusão herbal que bebera. Não era diferente daquela que ele e seus homens haviam bebido na ilha de Juliano aqueles anos todos atrás.

Quanto mais pensava, mais agitado ficava. Só uma pessoa poderia ter querido testá-lo. Mayya. Mas quem desempenhou o papel da suma sacerdotisa? No momento em que fez a pergunta soube a resposta. Balkis. O vestido vermelho vulgar fora destinado a distraí-lo do que ela usaria mais tarde naquela noite. Ibn Hazm afirmara que era permitido olhar uma vez para uma mulher, mas não a segunda vez. Ele tinha olhado para Balkis a noite inteira e ela o havia drogado também. E a razão agora se tornava óbvia. Fora ele que sugerira a Mayya que numa tempestade muitas sementes começavam a voar.

Três cursos de ação estavam abertos para ele. A tempestade havia passado e o mar parecia calmo de novo: podia partir para Palermo sem dizer uma palavra. Podia confrontá-la, exigir uma explicação, e depois partir. Ou podia passar outra noite aqui. O pensamento de vê-la de novo — mas desta vez como a si mesma — começou a excitá-lo. Seu café-da-manhã fora servido no terraço e ao sentar-se ele a viu na varanda ao lado, olhando na direção do mar.

— Alá seja louvado, o mar está calmo esta manhã, irmã Balkis. Ela ficou aturdida, mas só por um momento. Esperava há mais de uma hora que ele saísse.

— Dormiu bem, Ibn Muhammad?

— Melhor do que em muitos anos, não posso imaginar por quê.

Com a tranqüilidade abalada, afastou-se dele. Ele atravessou a mureta que os separava.

— Este é o terraço do Amir — disse, nervosa.

— Atrasou-se em Palermo e lhe pede que vá ao seu encontro o mais rápido possível.

— Neste caso eu deveria partir imediatamente.

— Não — ela respondeu, sua voz sufocada de paixão. Ele a pegou pelo braço e gentilmente a conduziu até o quarto.

Estendeu os braços e apalpou ambos os seios. Ela tremeu.

— Estranho, estes amigos parecem familiares.

— Você sabia?

— Não à noite passada, mas esta manhã, quando minha cabeça clareou.

Ela caiu nos seus braços enquanto uma paixão devoradora tomava conta dos dois. Cegos a tudo mais, fizeram amor na grande cama do Amir debaixo de um dossel bordado com fios de ouro. Depois que a tempestade passou, ele olhou atentamente para ela.

— Baileis, minha querida. Acho que as sementes florescerão agora. E por este motivo foi apropriado que tenha escolhido a cama do seu marido. Tenho sua permissão para voltar a Palermo?

— Não! — ela gritou e estapeou o seu rosto.

— Não! Não! Não! Não!

— Mas eu preciso ir. Seu marido e minha mulher me aguardam.

— Não é só o seu sêmen, é você que eu quero.

— Mas mal me conhece.

— Conheço agora.

— Primeiro, deve responder-me com sinceridade e evitar outras trapaças. E olhe firme nos meus olhos. Se o seu olhar vacilar, saberei que está tentando evitar a verdade.

— Não vou enganá-lo. Faça a sua pergunta.

— Pensei ter detectado a mão de Mayya por trás deste delicioso enredo, especialmente a cena de abertura na noite passada.

Ela sabe de tudo?

— Foi idéia minha extrair o seu sêmen. Ela não gostou, mas depois, quando insisti que era isso o que eu queria, estabeleceu uma condição. Se tinha de acontecer, ela prepararia tudo. Ela o fez, Muhammad.

— Incluindo o shahdanaj al-barr?

— Especialmente isso... o resto eu soube por você mesmo quando descreveu com detalhes tão maravilhosos os ritos da suma sacerdotisa de Afrodite. Foi como se descrevesse uma paisagem, ou as flores, ervas e árvores que crescem aqui. Agora entendo por que dizem que é um erudito de muitas facetas e se me permitir eu gostaria...

Idrisi a interrompeu:

— Não vou negar que meus olhos se encontraram observando-a mais do que é permitido. E confesso que imagens suas penetraram na minha cabeça durante a longa cavalgada até a aldeia de Abu Khalid. E, se não fosse casada com uma alma tão honrada e decente, não teria importância, mas você é e, só por esse motivo, não devemos repetir o que fizemos. Nunca mais.

— É uma alma tão decente e honrada que você me arrastou para a sua cama e me manteve ali até que a sua paixão se esgotou. Agora fala como se nada tivesse acontecido.

Se quer realmente que isso não se repita mais entre nós dois, então não se repetirá, mas não acredito em você. Já o tive em meus braços e sei que sentiu exatamente o mesmo que eu. A situação é difícil, mas soluções sempre podem ser encontradas.

— E quanto à sua irmã?

— Concordaremos em compartilhar você. Ela pode tê-lo nos dois primeiros dias e eu nos três seguintes.

— Pensei que houvesse sete dias na semana.

— Depois que eu tiver me saciado, você terá merecido dois dias de descanso.

Ele começou a rir.

— Você é impossível. Os olhos dela se encheram de desejo.

— Ora, é bastante normal, exceto que Mayya e eu somos meias-irmãs.

— Balkis, você é casada com outro homem.

— Ele se divorciará de mim se eu pedir. Podemos discutir isso na viagem para Palermo.

— Está vindo comigo? Isso é tolo.

— Por quê? Minha irmã e seu marido já estão lá. Ficarei no palácio, não com você. Não existem filhos para me prender aqui.

— Balkis, ouça cuidadosamente. Pode viajar comigo, se insiste, mas o navio é um lugar público e o decoro deve ser preservado. Se nossa fraqueza triunfar, toda Palermo saberá que o Amir é um marido traído antes que você chegue ao palácio.

— Muhammad ibn Muhammad alIdrisi, meu sultão do amor, farei o que manda. Balkis será a passageira mais modesta e recatada que sua embarcação já transportou.

— Tive um pressentimento de que terminaria assim.

— Certamente quer dizer começaria assim. Poucas horas depois estavam no mar a caminho de Palermo. A dama de véu estava sentada numa cabina tomando chá enquanto o erudito fingia fazer anotações.

— Sei que podem nos ver, mas certamente podemos conversar.

— Claro que podemos conversar.

— Então me conte sobre Abu Nuwas.

— Balkis!

— O quê? Simplesmente conte sobre ele. Se não o fizer caminharei sobre você à vista de todos os homens e beijarei seus lábios.

— Você prometeu...

— Sim, mas só se você se comportar normalmente também, concordar em falar comigo e responder a minhas perguntas. Seguramente não vamos fazer esta jornada em total silêncio. Não é freqüentemente que uma mulher humilde como eu tem a oportunidade de viajar com um grande erudito. Então talvez pudéssemos começar com a poesia de Abu Nuwas.

Involuntariamente, Idrisi sentia-se divertido e impressionado com ela.

— Abu Nuwas nasceu em Basra, uns cem anos depois da morte do nosso Profeta. Mudou-se para Kufa a fim de estudar, Basra e Kufa sendo as cidades onde os eruditos de sólida educação enriquecem o seu conhecimento. Kufa era famosa na época por seus gramáticos e Abu Nuwas chegou para aperfeiçoar o seu conhecimento da nossa língua. Depois ele se mudou para Bagdá, mas isto principalmente atrás de emprego e prazer.

— Era um poeta muito favorecido pelo Califa e tornou-se assunto dos contadores de histórias no bazar. Segundo uma história, Shahrazad se atrasa uma noite e entra no quarto de dormir do Califa e o encontra de quatro com Abud Nuwas cavalgando-o como se fosse um cavalo. Shahrazad finge horror. Abu Nuwas levanta-se e fica de pé, nu. Ela dá-lhe um tapa no rosto. Ele replica: "Somos apenas homens orgulhosos e penetrantes, princesa." Ela ameaça informar o qadi a não ser que o Califa a libere do acordo que selaram. Ele concorda, mas implora que ela não pare de contar suas histórias. A partir daquele dia ele lhe paga dez dirhams de ouro por história e as histórias ficam ainda melhores.

Um risinho abafado interrompeu o seu discurso.

— Muhammad, isso é verdade?

— É uma história que contam no bazar de Bagdá. Preenche duas funções. Informa-nos que Abu Nuwas e o Califa gostavam de homens, embora o Corão proíba tais atos sob pena de morte. Segundo, a história se destina a atrair uma parcela importante da audiência, os mercadores de rua. O fato de Shahrazad ser paga por seu trabalho diário lhes parecia natural. E o fato de que as histórias melhoram é uma sugestão de que o trabalho voluntário é melhor do que a escravidão. O Zanj teria gostado disso.

— Estou mais interessada na sua poesia.

— Eu a li, naturalmente, mas não consigo lembrar. Sou mais familiarizado com a obra de Ibn Quzman, meu amigo em alAndalus.

É um discípulo de Abu Nuwas e seus versos são cantados em muitas cidades, especialmente depois de alguns frascos de vinho.

— É verdade que Abu Nuwas escreveu sobre uma religião perfeita em que é obrigatório fazer amor cinco vezes por dia em vez de rezar?

— É verdade, mas não é prático.

— Não para você.

— Balkis!

— Desculpe.

— O que eu quis dizer foi que se torna difícil à medida que os homens ficam mais velhos.

Abu Nuwas não tinha noção deste problema, mas os idosos teriam de ser perdoados por sua incapacidade de fazer amor cinco vezes ao dia. O que eles fariam em vez disso?

— Dissimular, como muitos fazem hoje quando rezam.

— Deixe-me terminar a história de Abu Nuwas. O verdadeiro tema da sua poesia eram as alegrias do vinho. Ele era o elo entre o mundo que existia antes que nosso Profeta recebesse a mensagem e o que foi criado depois. O vinho era a substância que ligava todos os mundos. Era intemporal e universal. E muitas vezes Abu Nuwas perguntou polidamente por que, se o vinho e os garotos eram permitidos num paraíso conforme estava escrito no al-Quran, por que estes prazeres seriam proibidos na terra. Então ele divertia os outros e se divertia.

— Em outra ocasião desenvolveu uma interpretação incomum da jihad. Escreveu que a principal obrigação da jihad deveria ser permitir a ingestão de um vinho cor de âmbar que faz jorrar fogo quando incendiado e, mais importante, fazer sexo com rapazes ainda imberbes, bem como com velhos. Só havia uma recompensa para a vitória nesta jihad. O paraíso.

Balkis bateu palmas deliciada.

— Isso também explica por que as cinco fornicações obrigatórias poderiam funcionar com os velhos. Assim que os jovens forem hilal, os velhos teriam poucos problemas em cumprir suas obrigações. Podiam fazê-lo de uma maneira passiva. Eu o estou perturbando?

Antes que ele pudesse responder, o agitado comandante do barco entrou na cabina e curvou-se.

— Perdoe a intrusão, Amir al-kitab, mas uma embarcação armada nos fez sinal para parar. Seu comandante deseja falar com o senhor.

— Quem são eles?

— É um dos navios do sultão. Costumava ser o barco favorito do Amir Felipe.

Idrisi olhou para Balkis, que não conseguiu esconder sua preocupação.

— Não há necessidade de se preocupar, senhora Balkis. Conheço bem os homens naquele navio. São completamente dignos de confiança. Enquanto eu estiver afastado, pense cuidadosamente nas suas cinco obrigações e em como as preencherá em Palermo.

Idrisi seguiu o comandante até o convés. No momento em que os homens do navio armado o viram, detonaram um tiro de canhão em sua honra. Muitos anos atrás ele tinha viajado com eles até Ifriqiya. Agora esperava enquanto se realizava o elaborado ritual de transferir um personagem de distinção de um navio para outro. Um bote foi abaixado com Idrisi e dois marujos armados, que o remaram até a embarcação próxima. Uma catapulta gigante foi então abaixada com um homem casualmente agarrado a ela. Ele apanhou o erudito e então ambos foram rapidamente içados até o convés em grande velocidade.

Ahmad Ibn Rumi, o Amir al-bahr, havia substituído Felipe como comandante da frota. Era um homem altivo com um ar independente. Geralmente transmitia a impressão de ser impenetrável, de afastar bajuladores e oportunistas, mas Idrisi, que o conhecia razoavelmente bem, sabia que era uma máscara geralmente usada por amires dotados de real poder. Felipe havia sido igual. Os dois homens se abraçaram e Ahmad conduziu seu hóspede à sua cabina. A primeira coisa que Idrisi notou sobre a mesa foi um dos seus mapas. Depois de admirar o seu trabalho, virou-se para encarar Ahmad. O homem estava sentado chorando em silêncio. Num mundo onde muitos teriam visto a remoção de um Amir com olhos ávidos e cobiçosos, Ahmad Ibn Rumi estava profundamente magoado com a desgraça de Felipe. Idrisi falou suavemente:

— Ahmad, caro amigo, estou muito perturbado, mas não há nada que possamos fazer. Felipe insiste em que o deixemos morrer. Diz que não estamos prontos ainda para vencer e que deveríamos esperar pela morte do sultão Rujari.

— Que Alá queime aquela serpente Rujari no inferno por este crime.

— Os monges rezam para que Deus o eleve aos céus por defender sua fé.

— Não tem nada a ver com a fé. É um sacrifício de sangue para salvar o trono para a sua família. Toda a Siqilliya tem noção deste fato. Ibn Muhammad, eu o convidei aqui para discutir um plano.

Idrisi sabia o que esperar.

— Com quatro grandes navios já no porto de Palermo temos a capacidade de pegá-los de surpresa e resgatar o Amir Felipe.

— Discutimos todas estas possibilidades com ele na Grande Mesquita. Você o conhece melhor do que eu. Não mudará de idéia.

— Ele está errado.

— Concordo.

— É o único líder que temos capaz de unir os Crentes depois da morte de Rujari e nos levar à vitória. Concorda?

Idrisi ficou em silêncio. Sabia onde terminaria esse tipo de argumento. Também sabia que Ahmad falava a verdade. Sem Felipe, a comunidade de Crentes ficaria órfã.

Foram as habilidades militares e políticas de Felipe que haviam impedido um banho de sangue na ilha. Ele achava que, sacrificando-se, proporcionaria tempo e espaço para que o seu povo se organizasse, mas não perguntava quem os lideraria. Rebeliões sem um plano eram comuns na ilha. Todas sem exceção tinham sido derrotadas.

— Por que não responde?

— Porque, gentil amigo Ibn Rumi, responder na afirmativa seria encorajar a aventura e responder na negativa seria uma inverdade. É melhor ficar em silêncio.

— Ibn Muhammad, estive em Catânia, também. Eu também conheci o Confiável.

O coração de Idrisi afundou. O pregador teria incitado a rebelião.

— Prometeu-nos que um exército de dez mil homens armados poderia chegar a Palermo mais rapidamente se eu os transportasse em meus navios.

— Espero que não tenha concordado.

— Não. Eu disse que pensaria antes de tomar quaisquer medidas.

— Alá seja louvado, Ahmad. Alá seja louvado. Se tivesse concordado e o decepcionasse, a notícia teria se espalhado longa e amplamente. Os barões e monges teriam exigido que você fosse queimado com Felipe.

— Só pedi seu conselho. Vou decidir sozinho.

— Claro. Mas quando tomar a decisão pergunte a si mesmo sobre a decisão de resgatar Felipe e escondê-lo em Ifriqiya.

Este é o seu plano, não é? Foi o que pensei. Mas enquanto seu navio viaja para longe, quem defenderá os Crentes em Palermo?

Será difícil segurar os barões. Vão querer sangue nos rios de cada lado do qsar. Nosso sangue.

— A alternativa é deixar Felipe ser queimado? Muita da sua gente não nos amaldiçoará por não termos feito sequer uma tentativa?

— Mas se você fizer uma tentativa que fracasse morrerá também. A quem ajudará isso? Se tiver sucesso, todos nós em Palermo, incluindo sua mulher e seus filhos, podíamos ser mortos. Rujari não tem mais força para impedir um massacre. Tenho um plano melhor.

— Fale.

— No dia seguinte à queima de Felipe, o Confiável organizaria ataques contra Catânia e Noto para punir os bispos e os monges e os lombardos que os contrataram para protegê-los. Roubaram nossas terras e tratam os camponeses que antigamente trabalhavam nestas terras como escravos. Os bispos são odiados e por boa razão.

Exigem o direito de deflorar nossas mulheres em sua noite de casamento. Os lombardos açoitam os homens ao menor pretexto. Uma rebelião cuidadosamente planejada nesta região onde ainda somos fortes teria um impacto em cada canto da ilha. O Confiável poderia deixar claro que esta é a nossa resposta ao crime cometido contra Felipe al-Mahdia. O que acha?

Ibn Rumi refletiu antes de falar de novo.

— Está decidido a sacrificar a vida do único homem capaz de nos liderar até a vitória.

— É ele quem está decidido, não eu.

— O caminho que recomenda não deixa de ter mérito. Vou pensar nisto cuidadosamente. Se observar que meu navio está voltando para Siracusa, saberá que aceitei o seu plano. Caso contrário, nos encontramos em Palermo.

Os dois homens se abraçaram, mas quando Idrisi ia saindo Ahmad pegou no seu braço e murmurou ferozmente em seu ouvido:

— Felipe representa mais para mim do que meu próprio pai. Idrisi agarrou a mão de Ahmad.

— Sei como se sente e como vai ser difícil esta decisão para você. O que quer que decida, lembre-se de que estou sempre aqui como amigo e ajudarei de toda maneira que puder.

Uma hora depois os dois navios ainda não haviam levantado âncora. Idrisi caminhava ansiosamente pelo convés, esperando para ver a direção em que o Amir da frota do sultão navegaria. Balkis caminhava com ele. Ao saber o que acontecera, sua primeira reação foi perguntar onde nasceria seu filho. Ele ficou zangado com ela, depois se controlou e explicou pacientemente por que havia algumas coisas neste mundo que transcendiam o amor, a paixão e a produção de crianças. Num momento em que o destino de toda a comunidade dos Crentes dependia da decisão do Amir Ahmad, era egoísta e insensato pensar em seu próprio futuro. Ela nunca o ouvira falar tão duramente e lágrimas raivosas encheram seus olhos.

Voltou à cabina e esperou. Como ousava ele pressupor que ela não ligava para mais nada exceto sua própria vida e aquela do filho ainda não nascido? Estava decidida a puni-lo. Em princípio, não falaria com ele pelo resto da jornada. Antes que pudesse pensar em punições mais severas, os homens no convés começaram a dar vivas e, com sua dignidade evaporando, ela correu para juntarse a eles. Idrisi ria e acenava como os outros. Ahmad havia tomado a rota de Siracusa. Quando os dois navios passaram um pelo outro, altos gritos de Alá Akbar subiram aos céus. Ahmad, de pé no convés, levantou uma mão em sinal de despedida. Idrisi respondeu com o mesmo gesto. Os dois homens ficaram pensando se voltariam a se ver.

— Icem as velas — gritou o comandante.

— Com esta brisa poderemos chegar a Palermo muito em breve.

Balkis voltou à cabina tão distanciada quanto podia aparentar. Seu amante a seguiu, mas cada tentativa que fazia para falar com ela era rechaçada. Ela desviou o olhar dele. Ele sentou-se à mesa com um manuscrito que havia removido da biblioteca do palácio em Siracusa e fingiu estar profundamente interessado. Depois de um quarto de hora, decidiu romper o silêncio.

— É hora da prece da tarde, mas não estou com ânimo para ela. Se não tiver objeção, vou recitar um verso para você.

Ela não respondeu. Idrisi levantou-se da cadeira, subiu no topo da tosca mesa de madeira que os separava e sentou-se de pernas cruzadas sobre a mesa diante dela.

Ela conseguiu — com dificuldade — manter um rosto sereno. Ele adotou então uma postura típica de uma pessoa que se prepara para ler o Corão.

Dizei Ó descrentes, não adoro aquilo que Adorais e não adorais o que eu adoro; Meus modos não são aqueles modos, Aquela não é minha escola ou estilo Amor báquico, surgi e levantai-vos!

Ela não pôde mais reprimir sua risada e nesse momento ele deslizou suavemente para fora da mesa e colocou-se no banco ao lado dela. Beijou suas mãos e então se refreou.

— Onde foi que o grande erudito encontrou estes versos? Foi em Abu Nuwas?

— Não. Ibn Quzman.

— Pensei que tivesse dito que precisávamos tomar cuidado nesta viagem.

— Os homens estão todos ocupados preparando o navio para a chegada e você dispensou sua cautela quando caminhou comigo no convés e depois brigou comigo e afastou-se de mim. Tudo isso implica familiaridade.

— Sou sua cunhada.

— Ninguém sabe disso além de nós.

— Não tinha pensado nisso, devo confessar. Apertou-a contra seu corpo e beijou sua boca. A mão dela moveu-se por baixo da sua túnica.

— Levantou a sua barraca cedo hoje, mestre Idrisi. Acho que o pau precisa ser desmontado.

— Chega, chega, Balkis. Suas mãos estão pegando fogo. Quando chegarmos será levada para o palácio, onde seu marido está alojado. Irei para minha casa, tomarei banho, me vestirei e visitarei todos vocês depois. Talvez possamos todos comer juntos.

— Com Rujari.

— Se necessário.

— Existem ocasiões em que não consigo entendê-lo. Este homem está para despachar o Amir Felipe, queimá-lo vivo em praça pública.

Amir Felipe, em sua opinião o líder político mais inteligente e capacitado da ilha. Talvez não possa salvá-lo, mas sentar à mesa com o seu assassino? Isso não é levar sua noção do dever longe demais?

— Ouça-me, minha cara Balkis. Uma coisa que muitos de nós tivemos de aprender, inclusive Felipe, foi como dissimular com extrema eficácia. Se me recusar a comer com o sultão ele saberá que estou zangado e, dado o seu estado demente, poderia punir todo mundo associado comigo. Devemos nos comportar tão normalmente quanto possível nestes tempos difíceis. Espero que Rujari não me convide ao palácio. Neste caso, sugiro que façamos a refeição em minha casa.

— Seria maravilhoso.

— E Balkis, lembre o que discutimos anteriormente. Nem mesmo uma sugestão do que transpirou entre nós deve chegar ao seu marido.

— E Mayya?

— Deixe-a comigo. Então o marinheiro de atalaia acenou com excitação e o grito familiar se fez ouvir: "Al-madina hama-hallahu."

Balkis recobrou a compostura, ajeitou o lenço que lhe cobria a cabeça, colocou um véu sobre o rosto e os dois seguiram para o convés. Quando eram remados até a margem ele podia ver a figura imponente e inconfundível do Amir de Siracusa à distância. Gentilmente cutucou a esposa do Amir.

Quando chegaram ao cais, os dois homens se abraçaram.

— Alá seja louvado, vocês dois chegaram sãos e salvos, Ibn Muhammad — disse o Amir.

— A situação aqui está mais tensa do que poderia imaginar. Precisamos falar urgentemente sobre muitas coisas. A saúde do sultão continua a deteriorar e a atmosfera no palácio reflete aquela da cidade. Só os barões e os monges parecem felizes nestes tempos. Dizem que o sultão pergunta todo dia quando você vai voltar.

— Vou vê-lo hoje.

— Não há muito tempo, Ibn Muhammad. O julgamento de Felipe deve começar amanhã à tarde.

— Mais cedo do que eu pensava.

— Querem estar seguros de que Rujari ainda esteja vivo quando Felipe for queimado. Um barão do continente que está aqui como juiz confiou-me que se Rujari morrer eles temem uma rebelião.

Idrisi deixou-os e juntou-se a Ibn Fityan, que estava à sua espera. Os dois homens cavalgaram juntos para casa.

— Em resposta à pergunta que me fez antes da minha partida, posso dizer-lhe com segurança que os amires de Siracusa e Catânia estão do nosso lado.

— Amigos do palácio já me deram as boas novas. O sultão o espera para a refeição da noite.

— Eu já receava isso. Ibn Fityan contou-lhe que a cidade era como uma montanha em fogo. Podia explodir a qualquer momento e os barões tinham colocado seus próprios homens em pontos-chave da cidade enquanto durasse o julgamento.

— Lembre o que Felipe disse no nosso mehfil na mesquita antes da minha partida: qualquer levante prematuro será derrotado. Por isso, todo bairro da cidade deve ser avisado de que o julgamento de Felipe foi encenado como uma provocação para nos obrigar a sair antes de estarmos prontos e nos matarem.

— O qadi já enviou esta mensagem, mas as pessoas estão com raiva. Poderia haver confusão apesar dos melhores esforços do qadi.

— Espalhe a notícia de que o Confiável organizou um exército em Catânia que irá recuperar um número de mosteiros e infligir castigos públicos aos bispos. Diga às pessoas que devemos esperar as notícias de Catânia antes que algo precipitado seja feito aqui. Por que o Amir de Siracusa prolongou sua estada na cidade?

— O sultão pediu-lhe para assistir ao julgamento. Vai lhe pedir isso também.

— Vai receber uma resposta rude.

— Mestre, existe uma questão mais delicada.

— Fale o que pensa.

— Uma notícia chegou aos amigos no palácio sobre o senhor e a senhora Mayya.

— O que as mentes ociosas dizem nesta ocasião?

— Dizem que Elinore é sua filha e que o senhor e sua mãe se casaram em Siracusa.

— Como as notícias chegaram até aqui?

— O palácio em Siracusa está cheio de nossos amigos. Eles ouvem tudo.

— E se o que disseram for verdade?

— Se a notícia chegar ao sultão ele vai reagir mal. Vai comparar sua generosidade para com o senhor com esta traição.

— Silêncio, homem. O julgamento de Felipe começa amanhã e não tenho o tempo nem o desejo de discutir se eu consegui ou não conquistar os favores desta ou daquela senhora.

Três criados armados o acompanharam quando ele se aproximou do palácio. Não podia lembrar quantas vezes fizera esta jornada a todas as horas do dia e da noite.

Mas esta fase da sua vida estava chegando a um fim. O camareiro que o recebeu era um rosto antigo e familiar. Falou numa voz enfraquecida pela idade.

— Seja bem-vindo uma vez mais, Ibn Muhammad alIdrisi. Chega numa ocasião triste.

— A paz esteja com você, amigo — Idrisi respondeu ao seguir o velho através da costumeira série de aposentos com arquitraves de madeira e mosaicos que lembravam um passado mais remoto.

O sultão estava em sua câmara de audiência privada, um aposento que Idrisi conhecia bem. Mas teve de esperar na antecâmara até que os visitantes do sultão saíssem.

Ficou imaginando quem seriam e por que tinham sido convocados a esta hora. Rujari geralmente tocava os seus negócios na primeira metade do dia. O velho camareiro sentou-se ao seu lado e, olhando na direção da câmara do sultão, sussurrou numa voz alquebrada:

— Um mehfil de assassinos está acontecendo. Preparações de último minuto para o julgamento de amanhã. Tudo já está decidido. Ele foi considerado culpado. Amanhã eles o queimarão.

Antes que Idrisi pudesse responder, vários barões e três bispos atravessaram a porta parecendo satisfeitos consigo mesmos. O camareiro curvou-se e os escoltou para fora da antecâmara. Em contraste com ocasiões anteriores, nenhum deles se deu ao trabalho de demonstrar ter percebido a presença de Idrisi. Ele entrou a passos largos na câmara de Rujari sem esperar que o camareiro voltasse. O sultão pareceu genuinamente contente em vê-lo. Como poderia estar tão distante da realidade?

— Fico feliz em tê-lo de volta. Preciso de você ao meu lado.

— Acabei de ver os homens que estão do seu lado. Barões inchados com excesso de comida e bispos vivendo da riqueza das terras que roubaram. — Pelo seu tom, Idrisi, detecto que não estará presente ao julgamento amanhã.

— O sultão me perdoará, espero. A visão do seu filho adotivo sendo falsamente acusado, considerado culpado e levado à fogueira é algo que não desejo testemunhar.

Já é suficientemente mau conviver com minha consciência, impotente para impedir a morte de Felipe e fraca e covarde demais para fazer qualquer coisa. Parece que voltamos a um estado primitivo de conflito entre nossas duas comunidades.

— Não é fácil para mim, Muhammad. Sabe muito bem que não tenho muito tempo de vida.

— Felipe al-Mahdia era a sua melhor oportunidade de manter sua família no trono. Os barões não deixarão o clã dos Hauteville em paz por muito tempo. Quem os defenderá quando o senhor tiver partido?

— Eu fiz minha escolha, mestre Idrisi. E entendo plenamente sua repugnância diante do que fiz. É melhor ficar afastado do palácio por algumas semanas até que esta tempestade se extinga. E tem a minha permissão para levar Mayya e Elinore consigo. Ela herdou sua inteligência. Deveria orgulharse dela.

Idrisi, apanhado de surpresa, perguntou em voz baixa:

— Sabia?

— Desde o início.

— Então por quê...

— Porque ter admitido que eu sabia o que havia acontecido poderia estabelecer um precedente perigoso. Foi Felipe quem aconselhou sigilo total. Seus próprios sultãos teriam convocado o carrasco e feito o seu pescoço experimentar a cimitarra. Por essa razão Felipe não queria que você soubesse. Mas em meu coração fiquei feliz por você.

— Como sempre, Felipe ofereceu-lhe conselhos sábios. Agradeço ao senhor por sua amizade e generosidade. Sempre significou muito para mim.

— Gostaria de não ter de fazer o que vou fazer agora. Espero que acredite em mim.

Idrisi não respondeu, mas curvou-se e deixou o aposento. O camareiro estava à sua espera.

— O sultão sugeriu que eu levasse a senhora Mayya e Elinore para casa comigo.

— Já era tempo — disse o camareiro numa voz suave.

— Siga-me, mestre Idrisi.

Caminharam até o harém, guardado por dois eunucos que se levantaram ao verem os homens se aproximar.

— Este é o harém do sultão Rujari — disse o mais baixo dos dois.

— O que vêm fazer aqui?

O camareiro cochichou qualquer coisa no ouvido do homem. A porta foi aberta e o eunuco-chefe alertou as mulheres.

— Sob as ordens de nosso exaltado sultão Rujari, um convidado masculino está entrando para visitar a senhora Mayya.

Uma seqüência de portas foi fechada e de janelas com delicadas treliças olhos curiosos observaram a sua entrada. Idrisi seguiu os dois eunucos até o alojamento das mulheres e até os quartos de Mayya. Respondendo à batida na sua porta, ela ficou chocada ao vê-lo.

— Por que está aqui? Isso não foi combinado.

— Tenho a permissão do sultão para levar você e Elinore para casa agora.

Mayya ficou atônita. Afastando-se para o lado, convidou-o a entrar em seu quarto. Ele viera aqui pela última vez há 18 anos e o resultado fora Elinore. Como fora diferente naquela ocasião! Entrara disfarçado como mulher e uma pequena bolsa de moedas de prata foi o preço pedido pelo eunuco de guarda, que depois desapareceu.

Teria Felipe ordenado a sua execução?

Abraçaram-se enquanto ela chorava.

— Nunca pensei que aconteceria tão cedo. Precisamos partir agora?

— Foram as instruções do sultão. — Mas minhas... nossas roupas... nossas... Elinore.

— Tudo isso pode ser mandado para minha casa amanhã. O sultão me pediu para ficar afastado do palácio por algum tempo.

— Não posso acreditar que estou livre, Muhammad.

— Não vamos perder mais tempo. Onde está Elinore?

— Está com Balkis e o Amir nos aposentos dos convidados. Acho que eu deveria dar a notícia para ela a sós. Deixe-me ir buscá-la. Deveríamos encontrá-lo nos portões do palácio ou gostaria de algum tempo para explorar o harém? E teremos de separar algumas roupas para amanhã.

— Esperarei por vocês nos aposentos do camareiro perto dos portões. Tente evitar muita excitação e convide sua irmã e seu marido para almoçarem conosco amanhã.

— Muhammad, amanhã é o julgamento de Felipe. O Amir de Siracusa foi convidado para assistir e existem notáveis de Qurlun e de outras cidades aqui também. E você?

— Eu disse ao sultão que não estarei presente. Neste caso, Balkis poderia vir com você agora. Por que ela estaria presente aqui amanhã? E peça ao Amir para juntarse a nós depois do julgamento. Duvido que demore muito.

— Pedirei a Balkis que venha conosco. O palácio inteiro está em tumulto. Não tinha idéia de que Felipe contava com tantos seguidores. Os eunucos mal podem falar.

A maioria dos velhos empregados caminha pelos cantos com olhos tristes. Quanto àqueles que trabalham no Diwan, acham que isto é o fim.

Ela deu uma olhada em seus aposentos pela última vez, achando difícil acreditar que nunca mais iria morar ali.


10

Uma conversa de 26 anos sobre teologia em que Rujari
e Idrisi comparam os méritos e deméritos de suas respectivas religiões.

O encontro com Rujari irritou Idrisi. O sultão parecia distante e despreocupado. Idrisi queria que ele estivesse morto. Como podia Rujari ter esquecido o passado tão cedo e aceitado as exigências de barões corruptos, bispos hipócritas e servis, cortesãos levianos? Mas controlou seus pensamentos. Não queria sentir apenas ódio e ressentimento por seu velho amigo. Lembrou uma de suas muitas conversações.

Aconteceu quando ainda eram jovens. Era um dia sufocante do meio do verão. Não havia brisas na terra nem ondas no mar, cuja superfície lisa brilhava como vidro.

Rujari mandou uma mensagem ao seu amigo na biblioteca sugerindo que embarcassem no seu navio e fossem se refrescar no mar. Idrisi lembrou como ficaram chocados os marinheiros gregos quando, em sua primeira viagem, ele confessou que não sabia nadar. Um ilhéu que não sabia nadar! Com grande paciência ensinaram-no a usar as mãos e as pernas e respirar na água, como flutuar, e gradualmente ele adquiriu as habilidades.

Encontraram uma bela enseada não longe de Palermo. Depois de nadarem, tinham falado principalmente de geografia e astronomia e Idrisi havia elogiado a exatidão dos mapas de Ptolomeu, comentando que o alexandrino devia ter um olho privilegiado e talentos que até agora lhe escapavam. O tempo passou rapidamente. A caminho de casa, sentaram-se no convés e saborearam o que restava do dia, apreciando a brisa do mar que aumentava à medida que o sol começava a desaparecer. Cada um deles venceu uma partida de xadrez antes que Rujari pedisse a um atendente para levar as peças e trazer um frasco de vinho. Virando-se para Idrisi, ele perguntou se as diferenças entre seus dois povos eram pedras que não podiam ser removidas ou se suas fés não se tornariam entrelaçadas nos anos por vir. Idrisi hesitou antes de responder.

— Não existe pedra que não possa ser removida. Quando os deuses ficam zangados, como os antigos costumavam dizer, eles sacodem a terra e cidades inteiras são destruídas.

Seria preciso algo nesta escala para unir os exércitos do Profeta e do papa.

Rujari riu.

— Eu não pensava no mundo. Pensava na Siqilliya. Queria dizer que meu povo aprendeu tanto com o seu que me parece natural para nós trabalharmos juntos e compartilharmos a mesma fé.

De novo Idrisi hesitou.

— Sultão, esta ilha mudou muito desde que os soldados do Profeta colocaram o pé aqui. Meu povo tem uma tendência natural para exagerar e se gabar, mesmo quando somos derrotados. Quando vencemos, nosso orgulho sobe aos céus. Os gregos chegaram aqui primeiro, depois os romanos. Os gregos construíram seus templos, cuidaram das vinhas e das oliveiras e filósofos de diferentes escolas debateram em público no Fórum de Siracusa. Os romanos cultivaram a terra com o trigo, necessário para alimentar as legiões imperiais.

Meu povo trouxe frutas de todo tipo, algodão e seda, e os papiros, e fez de Palermo uma cidade insuperável. Vocês herdaram tudo isso, mas também contribuíram para a riqueza da ilha. Sua presença é prova de que é possível comprar gladiadores e usá-los contra o inimigo. Seu povo é de guerreiros e marinheiros.

— Fale de hoje, Idrisi, hoje.

— Mas, honrado sultão, com sua permissão eu gostaria de terminar. Temos muito em comum. Sua gente dominou o mar, minha gente o deserto.

Vocês tornaram-se grandes construtores de barcos, nós aprendemos a cavalgar o camelo e o cavalo. Vocês abriram caminho a fogo nas terras dos francos e eles os compraram com terra e seu próprio espaço. Derrotamos dois impérios e criamos nosso próprio. Nosso navio era o camelo, mas muito mais confiável do que o de vocês.

Era capaz de viajar sessenta milhas romanas por dia e passar vinte dias sem água. Algumas tâmaras e leite de camelo eram uma dieta nutritiva. O povo em Makkah ainda gosta de cozinhar na gordura tirada da corcova do camelo. Que navio poderia render tanto quanto este? Em ambos os casos foi a natureza que determinou o que fazíamos e como nos locomovíamos. No fim nossas necessidades eram maiores e fomos mais bem-sucedidos.

Rujari ficou levemente irritado.

— Nossas mulheres eram mais dóceis, aceitando seu lugar em nossas vidas com dignidade e calma. As suas eram bárbaras. Suas mulheres sarracenas — e muitos romanos cujos textos estão na biblioteca do palácio testemunham isto — eram muito atiradas, muito apaixonadas, muito exigentes. Freqüentemente descartavam os maridos.

— Sultão, fala do povo do deserto durante a época da Ignorância, antes que nosso Profeta ouvisse a voz de Alá. As mulheres foram colocadas sob controle por nossa fé.

— Talvez em público, mestre Idrisi, mas nos limites do palácio ou de casa nada mudou muito. Ora, seu próprio Profeta precisou de uma Revelação para silenciar os mercadores de escândalos que alegavam que sua jovem esposa, Aisha, havia cometido adultério.

Ambos ficaram em silêncio. Foi Idrisi quem falou primeiro.

— Perguntou se nesta ilha poderíamos um dia partilhar de uma fé comum. Como podemos jamais acreditar que Mariam foi engravidada por Alá para produzir Isa? Sua fé era muito apegada aos tempos pagãos e vocês tinham de fazer concessões. Precisavam de uma deusa virgem que dormisse com o seu Deus. Não era ele Zeus sob outra forma? E achamos difícil acreditar que Isa ressuscitou.

— Por quê? Seu livro fala do Dia do Juízo Final em que cada homem ficará diante do seu criador. Alguns irão para o céu e outros irão para o inferno. Se podem ser ressuscitados segundo a vontade de Alá, por que não poderia Deus chamar Jesus de volta? Como sabe, Idrisi, estas são questões não resolvidas em nossa igreja. Existem muitos cristãos que não aceitam a divindade de Jesus. Existe algum em sua fé que questione a Revelação?

— Muitos, com certeza, e desde os primeiros tempos. A própria mulher do Profeta, Aisha, segundo as tradições, comentou muitas vezes sobre a facilidade com que seu marido obtinha sanção de Alá para satisfazer seus desejos pessoais. E o sucessor do Profeta, o Califa Omar, teria dito que muitas vezes se surpreendia quando o conselho que dera ao Profeta em particular acabava se tornando uma Revelação posterior. E todo um grupo de teólogos de Bagdá argumentou que o Corão era um documento feito pelo homem, questionando assim a sua divindade...

— É o suficiente para um começo de noite, mestre Idrisi. Realmente admito que sua religião permite muito mais prazeres neste mundo e no próximo do que a minha.

Somente por este motivo, deixando de lado o conhecimento propagado por seus sábios eruditos, se dependesse só de mim e se não houvesse nada mais envolvido, eu me converteria à sua fé agora mesmo.

— Talvez, se os navios que levaram os ancestrais de Sua Majestade à terra dos gauleses e dos francos tivessem sido desviados por súbitas borrascas e tivessem chegado aos portos de alAndalus, tudo poderia ser diferente.

— Por que isso não me ocorreu?

— Porque a geografia e a história estão sempre presentes em meus pensamentos.

— Uma coisa eu lhe prometo, mestre Idrisi. Enquanto eu viver a Igreja não terá permissão de matar ou queimar uma única pessoa simplesmente porque ela acredita no seu Profeta e não no meu.

E foi assim que a conversa terminou, ou pelo menos assim Idrisi lembrava. Mas depois, naquela noite, Felipe al-Mahdia o visitou em seus aposentos.

— Soube a respeito da conversa que teve com o sultão hoje. Idrisi ficou espantado. Como ele sabia?

— É legítimo que questione, mas não seria oportuno eu responder.

Tudo o que vou dizer é que cometeu um grande erro.

— Em nome de Má, que erro? Por que fala assim? Havia um toque de raiva na voz de Felipe.

— Quando o sultão declarou que se dependesse dele se converteria à nossa fé, por que não sugeriu que o fizesse, mas não o tornasse público? Para a Igreja e os barões ele seria um

cristão, mas em particular entoaria as cinco preces obrigatórias. Por que não sugeriu isso, mestre Idrisi? Percebe que uma oportunidade foi perdida por causa da sua distração? Está tão preocupado com seu próprio trabalho que perdeu a noção do mundo que o cerca.

Idrisi ficou tão atônito com esta explosão que por alguns momentos olhou para Felipe em silêncio.

— Não pedi o que sugere pela simples razão de que o pensamento não passou por minha cabeça. Rujari é um amigo, mas é também o sultão. Não cabia a mim sugerir nada a ele.

— Um dia — disse Felipe calmamente -, nosso povo poderia sofrer por causa do seu erro.

— Por que está tão preocupado? Não chega sequer a ser um Crente.

Felipe sorriu e deixou a sala.


11

O julgamento de Felipe.
O Amir de Catânia peida alto durante o discurso do promotor.

A grande sala onde o sultão recebia seus súditos uma vez por mês fora transformada.

O trono permanecia sobre a plataforma de madeira elevada, mas o espaço vazio à frente estava tomado por cadeiras e bancos dispostos em semicírculo.

No centro uma plataforma fora preparada para os prisioneiros: além de Felipe, alguns daqueles que haviam trabalhado com ele também foram presos e acusados para criar a impressão de uma conspiração.

Os barões entraram primeiro, vestidos em seus paramentos, as espadas pendendo da cintura, e tomaram os assentos em ambos os lados do trono. Foram seguidos por outras seções da nobreza e então os juízes entraram, flanqueados pelos bispos com vários monges acompanhando. O juiz de acusação estava sentado pouco abaixo do trono do sultão. Depois que todos se sentaram, os amires de Catânia e Siracusa, com um punhado de notáveis de Qurlun, Djirdjent, Shakka e Marsa Ali, bem como o qadi de Palermo, tiveram permissão de entrar e sentaram-se nos bancos dos fundos onde não seria fácil para o sultão vê-los.

A sala ficou em silêncio quando o camareiro entrou e anunciou o sultão. Para a ocasião Rujari havia descartado seus mantos árabes e, como os barões, se vestia como um cavaleiro cristão, a coroa firmemente pousada na sua cabeça. Todos os presentes se levantaram para saudar o rei em três línguas diferentes. Rujari acenou com a cabeça e o julgamento começou. Os prisioneiros, acorrentados uns aos outros com Felipe à frente, foram trazidos à sala.

Ele caminhava com a cabeça bem erguida, preparado para enfrentar os olhos do sultão ou de seus barões. Foram eles que evitaram o seu olhar. Dez eunucos tidos como associados a ele foram acusados exatamente dos mesmos crimes. Eles também se comportavam com dignidade.

O juiz da promotoria, que já havia trabalhado para Felipe, levantou-se e enumerou as acusações.

— Felipe al-Mahdia, você e aquelas criaturas ao seu lado são acusados de terem traído a confiança que depositou em vocês o Rei Rogério. São acusados de terem ajudado nossos inimigos em Mahdia, Bone e Ifriqiya. São acusados de ter ocultado sua verdadeira fé do rei e de sua corte. Sob a capa de um cristão, comportaram-se como filhos de Satã. Em pensamento e ação seguiu as doutrinas de Maomé e instruiu o tesouro do Estado a doar quantidades ilimitadas de dinheiro para manter as mesquitas em boa condição. Enviou emissários especiais com oferendas à tumba de Maomé. Quando se sugeriu que este dinheiro fosse anotado nos registros, você descartou a sugestão com um aceno arrogante da sua mão.

— Freqüentemente compareceu às sinagogas dos Malignos e proporcionou-lhes óleo para alimentar seus lampiões. Ofereceu-lhes toda a assistência de que necessitavam para praticar sua fé abominável. Ao mesmo tempo raramente pisou sequer por acaso nas igrejas de Deus. Ostensivamente comeu carne nas sextas-feiras e durante a Quaresma.

— O rei foi alertado para a sua infidelidade quando lhe relataram como permitiu a eruditos e religiosos muçulmanos fugirem das suas aldeias depois que conquistou Mahdia e Bone. Informaram que você puniu alguns de seus próprios soldados quando os viu agarrando algumas de suas prisioneiras para seu prazer pessoal.

— E, por último, Felipe al-Mahdia, apresentaremos testemunhas que jurarão sobre o Corão que você foi secretamente um muçulmano a vida inteira. Sua conversão foi falsa. Que confiança pode o rei depositar em você depois de todos estes acontecimentos? Você foi criado neste palácio e o rei o amava como a um filho. Elevou-se ao mais alto posto na terra depois do rei. E trouxe desgraça sobre ele. O que tem a dizer sobre tudo isto?

Enquanto a acusação era lida, os Amires e outros Crentes se mostravam inquietos. Seu descontentamento se refletia num excessivo arrastar de pés, em pigarros regulares, suspiros ocasionais e dois peidos altos, tudo isso combinando para produzir uma atmosfera distintamente desagradável. Quando Felipe se preparou para dirigir-se ao tribunal houve silêncio total. Enquanto o promotor falara à corte em latim bombástico, Felipe falou em árabe fluente.

— Não traí a confiança do sultão. Este sultão tem sido, até agora, bondoso para mim e, independentemente do que aconteça hoje, desejo declarar que o sultão Rujari Ibn Rujari tem sido um governante justo. Tratou bem todo o povo desta ilha, não importa qual fosse a sua fé. Nunca insistiu, até agora, para que os prisioneiros fossem brutalizados e suas mulheres violentadas. Por isso eu rejeito a acusação principal que fizeram contra mim, no sentido de que traí a confiança de nosso governante.

— Nada que fiz foi em segredo. Sim, forneci óleo para as sinagogas. O sultão sabia disso e aprovou. Sim, não permiti o declínio das oitenta mesquitas remanescentes em Palermo. O sultão acompanhou-me uma vez para ver por si mesmo as melhorias na mesquita Ayn al-Shifa desta cidade.

Quando dizem que eu mal ia à igreja falam uma inverdade deliberada e que Deus os perdoe. O sultão sabe quantas vezes eu compareci à sua própria capela. Sabe quantas vezes fui à igreja que construiu em Cefalu a cada estágio de sua construção.

— Vamos examinar a acusação seguinte. Fui brando demais para com os prisioneiros em Ifriqiya. Confesso-me culpado. Tratei-os como trataria qualquer ser humano.

A luta estava encerrada. Tínhamos conquistado uma importante vitória. A dinastia Zirid se desfez como pó diante de meus olhos. Tivesse sido clemente no curso da batalha vocês teriam razão para me trazer a julgamento. Mas, em nome do sultão, conquistei Mahdia, a cidade da minha juventude. Não escondo de vocês o meu sofrimento interior. Que eu fosse o instrumento para a tomada desta cidade não me dava nenhum prazer, mas minha lealdade a Siqilliya nunca esteve em dúvida. Os beduínos aos quais paguei para combaterem do nosso lado queriam saquear a cidade indiscriminadamente e tirar proveito de qualquer mulher, jovem ou velha, que não estivesse já escondida. A guerra desperta a cobiça do saque e da carne humana. Dei firmes instruções para que isto não acontecesse. Quando as ordens foram desobedecidas, mandei açoitar em público três beduínos e seis dos nossos soldados acusados de estupro. Sim, eu os vi sangrarem. Arrependo-me disso? Não. E o faria de novo. Acho que em tempos melhores o sultão teria defendido todas estas ações.

— Nada mais tenho a dizer. Sei que as chamas que me consumirão já foram acesas e estou preparado para me encontrar com o meu Criador. Nada fiz de que me envergonhasse.

Meu único arrependimento é que não tive a oportunidade de viver entre nosso povo porque sempre que me perguntava como a terra proporcionava o alimento que comemos a fim de sobreviver a resposta nunca estava em dúvida. Eram os lavradores comuns da terra que produziam o alimento e, do conforto deste palácio, eu às vezes lhes invejava a proximidade com a terra. Lembro-me de ter mencionado isso a muitas pessoas.

— Ao sultão direi isto: se o ofendi de alguma maneira imploro sua misericórdia e peço desculpas. Sempre fui leal ao senhor e à sua família. Aqueles que envenenaram seus ouvidos em relação a mim são as mesmas pessoas que tentarão e se livrarão dos seus filhos e do sistema de administração que seu pai e o senhor ajudaram a criar. Pense nisso quando estiver me vendo ser consumido pelas chamas.

Os barões levantaram-se para protestar e gritos de "Cortem a sua língua" foram ouvidos da boca de mais de um monge. O promotor ficou num estado de raiva incontido.

— Temos uma testemunha que afirmará que este homem ocultou sua verdadeira fé debaixo de uma máscara cristã. Tragam-no.

Os guardas fizeram entrar um venerável mercador, Ali ibn Uthman al-Tamimi. Era um dos mais respeitados negociantes da cidade e havia comparecido ao mehfil na mesquita Ayn al-Shifa em que Felipe estivera pouco antes de ser preso. As marcas no seu rosto sugeriam que lhe fora infligida violência.

Pediram ao mercador que jurasse sobre o Corão que falaria a verdade. Falou numa voz muito baixa, alquebrada, não ousando encarar Felipe. Mas não mencionou o encontro.

Testemunhou que numa única vez tinha orado com Felipe na mesquita. A prova era suficiente para condená-lo. Ao sair, ergueu o rosto para Felipe com olhos lacrimosos e, numa voz que foi ouvida em toda a sala, disse:

— Perdoe-me. Ameaçaram estuprar minha filha de dez anos. Nesta altura Felipe, enfurecido pela visão de um velho amigo que fora humilhado e torturado, pediu para falar. O sultão acenou com a cabeça.

— Queimem-me, se quiserem, mas não inflijam sofrimento em pessoas inocentes. Sim, é verdade que fui um Crente oculto, mas meu pecado não estava na minha crença e sim na minha covardia. Eu deveria ter contado ao sultão e, por isto, peço o seu perdão e imploro sua misericórdia. Eu era muito jovem quando entrei para a corte e vocês foram tão bondosos comigo que eu queria agradá-los de toda maneira. Mas quando acompanhei o Amir Jorge a Mahdia, memórias da minha infância se apossaram de mim e foi nessa ocasião que, em meu coração, me tornei um muçulmano de novo. Não lamento minha escolha. Sei que vão me queimar hoje porque este é um costume da sua fé. Mas, antes de ser sentenciado, gostaria de dirigir-me pessoalmente ao sultão.

Rujari fitou-o e pela primeira vez seus olhos se encontraram. Rujari acenou com a cabeça e desviou o olhar rapidamente.

— Agradeço ao senhor, gracioso sultão. O senhor, mais do que qualquer outro presente aqui — e não vejo nosso amigo mestre Idrisi nesta reunião, pelo que agradeço a ele -, entenderá plenamente que a razão por que o senhor e seu nobre pai foram capazes de resistir aos comandos dos papas em Roma foi porque, mesmo depois da conquista da Siqilliya e da entrega das terras mais férteis aos barões e aos bárbaros lombardos do Norte, mesmo depois de tudo isso, meu povo ainda é maioria nesta ilha. É por isso que seus barões falam e entendem minha língua. E é por isso que o senhor e seu pai puderam resistir às exigências papais de mandar soldados para lutar nas Cruzadas. Fomos sua força, demos-lhe a coragem de ser independente, nosso conhecimento, nossa língua, nossa cultura lhe permitiram gabar-se de ser superior de todos os modos em relação aos seus pobres primos na Inglaterra, o que era a verdade pura.

— Viver debaixo de ocupação nunca é fácil, mas sua família tornou isso menos doloroso porque precisava de nós por suas próprias razões. E nós precisávamos de vocês para sobreviver. Se nos destruírem — e perdoe-me a ousadia... mas todos sabemos que a decisão de me queimar é uma vitória para aqueles que gostariam de queimar todo Crente nesta ilha, se nos destruírem, destruirão a si mesmos. Um, talvez dois Hautevilles poderiam governar como reis. E então seus correligionários vão atacar ao sul e arrebatar aquilo que acreditam lhes pertença por direito papal. E a essa altura não haverá mais força alguma para defender a sua família. Quanto a estes infelizes eunucos que aprisionaram comigo, são completamente inocentes. Seu único crime foi trabalharem comigo, mas o sultão fez o mesmo por muitos anos.

Puni-los é vil e indigno e eu imploraria misericórdia para eles. Poupem suas vidas. Têm a minha. Seus monges e Bispos me consignarão ao Inferno. Mas só Alá decidirá.

Ao dar uns passos para trás e curvar-se meio ironicamente para o sultão, o Amir de Catânia não pôde se conter. Levantou-se do seu banco.

— Alá o mandará para o céu, Felipe al-Mahdia. Alá akbar. Irritado por esse gesto de insubordinação, Rujari levantou-se do trono e, ainda se recusando a olhar para o velho amigo nos olhos, dirigiu-se ao tribunal.

— Aos mais distintos senhores que participam hoje deste julgamento, minhas palavras são para vocês. Minha alma é ferida pela maior dor, e inflamada de paixão por severos tormentos, pois este meu ministro, que criei desde menino para que, tendo sido purgado de seus pecados, o sarraceno pudesse se tornar cristão, ainda é um sarraceno e, sob o nome da sua fé, perpetrou atos de infidelidade. Tivesse ofendido sua majestade sob outras formas, tivesse levado grande parte do nosso tesouro, nós o teríamos perdoado porque prestou grandes serviços para nós. Mas ele ofendeu a Deus e forneceu a outros a oportunidade e o precedente do pecado, e eu não deveria perdoar uma injúria à nossa fé e um crime contra a religião cristã por meu próprio filho, nem perdoar ninguém mais. Neste ato, deixem que o mundo inteiro saiba que eu amo a fé cristã com absoluta constância e não me refreio de vingar uma ofensa contra ela, mesmo por um de meus próprios ministros.

Por esta razão as leis são estabelecidas e por esta razão nossas leis são armadas com a espada da reciprocidade; elas ferem o inimigo da fé com a espada da justiça e assim colocam um terrível castigo para os infiéis. Mais distintos senhores, que estão aqui para julgar este crime, exerçam o seu dever.

Os barões bateram com as espadas no chão para demonstrar aprovação ao seu rei. Rujari, exausto, desabou sobre o trono. Os barões, magistrados e juízes não demoraram a tomar suas deliberações.

— Decretamos que Felipe, traidor da cristandade e um agente das maquinações de infidelidade sob o disfarce da fé, será consumido pelas chamas vingadoras a fim de que aquele que não quis sentir o calor do amor sinta o fogo que queima e para que nenhum traço reste deste pior dos homens mas, tendo sido transformado em cinzas pelo fogo terreno, possa seguir para o tormento perpétuo nas chamas eternas. Seus companheiros de conspiração na maldade são sentenciados também à morte, mas por métodos normais.

Os Amires e os notáveis muçulmanos não ficaram para ver os cristãos saborearem o seu triunfo. Assim que o sultão se arrastou para fora da sala, deixaram a corte e o palácio. Um forte uivo de lamento pôde ser ouvido numa seção do palácio enquanto se dirigiam para as ruas. Para seu espanto, as ruas estavam vazias. O povo de Palermo, até mesmo os nazarenos, não tinham nenhum desejo de testemunhar o desgraçado Felipe arrastado através das ruas em ignomínia. Antes de partirem, o Amir de Catânia os chamou de lado e disse:

— Eles declararam guerra a nós. Eu, de minha parte, não me tornarei passivamente uma galinha de cabeça cortada. Lutaremos em Catânia. Não nos entregaremos nem nos tornaremos seus escravos ou seremos mortos sem resistência. Todos vocês farão suas próprias escolhas, mas espero que tenham ouvido cuidadosamente as palavras de Rujari. É o fim da Siqilliya como a conhecíamos. Meus amigos de Qurlun, sua escolha é muito clara. Ou combatem conosco ou se convertem agora à fé deles e transformam suas mesquitas em igrejas. Não esperem até que eles o façam. Desse modo, poderiam salvar suas vidas, quando não sua propriedade. Não sei se voltaremos a nos encontrar.

A paz esteja com todos e que Alá os proteja.

Um nobre de Qurlun retardou sua saída.

— Antes de partir, dê-me o seu conselho. Existe alguma maneira de salvarmos nossas propriedades assim como nossas vidas?

— Talvez oferecendo aos barões metade do que possuem amanhã e suas filhas no dia seguinte. Mas não demorem muito. E mais uma palavra de conselho a vocês. Vocês qurlunis são tão fechados que se acham mais espertos do que todo mundo e julgam que seus segredos permanecem seguros dentro de sua comunidade. Viram o que aconteceu com Felipe. Se decidirem converter-se, façam-no adequadamente e não se encontrem em segredo para jejuar ou circuncidar seus filhos. Aprendam a adorar o homem que sangra na cruz de madeira e a mãe que permaneceu virgem após o seu nascimento.

Os Amires de Catânia e Siracusa saíram juntos, ambos ultrajados com o discurso de Rujari e o veredicto.

— Espero que Rujari morra logo, livrando-nos de nossos votos de lealdade. Nossa presença aqui está agora sob séria ameaça. Nossa cultura vacila e se não agirmos ela vai desaparecer.

Era a primeira vez que o siracusano falava naquele dia.

— Acho que o discurso dele já nos liberou. O mensageiro de Idrisi contoume que o Confiável instruirá seus seguidores para capturarem três mosteiros no minuto em que souberem do veredicto sobre Felipe. Acho que os faróis estarão ocupados hoje. Meu navio já está pronto para zarpar. Vai me acompanhar ou trouxe seu próprio navio?

— Trouxe e vou zarpar mais tarde ainda hoje. Os dois homens abraçaram-se e seguiram seus diferentes caminhos.

Dentro dos muros do palácio, Felipe foi entregue aos magistrados, que removeram suas correntes e o amarraram aos cascos de cavalos selvagens. Os cavalos tiveram de ser contidos quando chegaram aos portões. Cada janela do palácio estava cheia de gente. Todos observavam horrorizados e contou-se depois que o jovem Guilherme, o único filho legítimo remanescente de Rujari, tinha lágrimas nos olhos. Ele fora excepcionalmente ligado ao condenado. Felipe lhe havia ensinado astronomia. Os barões, monges e sua criadagem iam atrás dos cavalos para acompanhar a vítima até a sua morte. Do lado de fora apenas alguns monges e nazarenos observavam, mas menos de uma centena ao todo, e isto numa cidade de trezentas mil pessoas. Houve notícias de que as mesquitas e sinagogas estavam lotadas naquele dia enquanto preces especiais eram feitas em honra de Felipe. O qadi foi visto apressando-se na direção da mesquita Ayn al-Shifa para tentar conter as cabeças mais quentes.

Os portões do palácio se abriram. A grotesca procissão seguiu em frente. Os membros de Felipe sangravam, mas ele mantinha o rosto erguido mesmo ao ser violentamente arrastado e alguns daqueles que tinham vindo ver o espetáculo se afastaram. Um forno de cal perto do palácio fora preparado e uma fogueira jorrava suas chamas antes mesmo que o julgamento tivesse começado. Os magistrados desataram o homem que estava coberto de sangue. Ergueram-no sobre seus ombros e o jogaram nas chamas.

Então todos voltaram ao palácio onde um grande banquete fora preparado em honra daqueles que haviam passado um julgamento sobre um inimigo de sua fé. Rujari alegou estar doente e não esteve presente às comemorações. Nem seu filho Guilherme.

Depois de uma conferência privada com seu amigo de Catânia, o Amir de Siracusa instruiu seus homens para aprontarem o navio para zarpar a qualquer momento. Caminhando lentamente em direção à casa onde sua mulher estava hospedada, sentiu uma mão sobre seu ombro. Um tremor de medo percorreu seu corpo, mas era apenas um Idrisi de rosto sombrio com seus criados.

— Ibn Muhammad, que alívio que é você — disse, enxugando o suor do seu rosto.

— Foi uma catástrofe. O julgamento foi como você descreveu, ainda pior.

— Acabei de voltar da mesquita. Foi uma despedida dignificada, mas nossos jovens estão zangados e receio que haverá alguma violência na cidade esta noite. Caminhava para minha casa? Muito bem. Chegaremos juntos.

— Ibn Muhammad, poderia pedir aos seus homens que nos deixassem conversar a sós? Idrisi fez um sinal a Ibn Fityan que disse a seus homens para ficarem para trás.

O Amir confiou-lhe que agora planejariam uma rebelião em larga escala em suas regiões e expulsariam os francos.

— Ainda precisaremos de alguns anos, mas as preparações devem começar agora. Sei que às vezes dou às pessoas a impressão de não ser tão firme como o Confiável.

Mas quaisquer dúvidas que eu tivesse, elas desapareceram hoje. Eles declararam guerra contra nós. É por isso que tenho um favor a lhe pedir...


12

O amor de Idrisi por Balkis e suas conseqüências.

Idrisi não precisou esperar muito pelas três mulheres do lado de fora do quarto do camareiro na frente do palácio. Foram aliviadas de suas roupas apressadamente emaladas pelos criados de Idrisi e ele caminhou de volta para casa com elas. O céu estava tão estrelado e ativo e Idrisi tão exultante que ele quase se esqueceu do peso dos acontecimentos que estavam por vir.

— Pensei que noites como esta só acontecessem quando se é jovem — disse.

— Sou jovem — replicou Elinore.

— E nunca me esquecerei desta noite.

— Não tenho a sua idade, mas eu também me lembrarei desta noite — disse Balkis.

— Sou mais velho do que ambas, mas por que o prazer deveria ser exclusivo dos jovens?

— A que distância fica sua casa, Abi? Idrisi sorriu antes de responder.

— Nenhuma de vocês conhece a solidão que me afligiu durante tantos anos. Quando Walid saiu de casa sem nos contar pensei que todo mundo estava me abandonando e fiquei desesperançado. Esta noite sinto que isso passou. E estamos quase em casa. Vê aquelas janelas iluminadas na colina? Mais alguns minutos e estaremos lá.

Um mensageiro do palácio já havia trazido a Ibn Fityan notícias da decisão do sultão de liberar Mayya e por isso ele esperava com o resto da casa para dar as boas-vindas à nova senhora e à filha do senhor. Balkis também foi recebida calorosamente. As tochas erguidas bem alto encantaram as mulheres enquanto subiam os degraus.

— Os quartos foram preparados?

— Sim, Ibn Muhammad — respondeu o camareiro -, mas não esperávamos uma terceira hóspede. Não vai demorar muito para preparar um quarto de hóspede.

— Esta é a senhora Balkis, irmã da minha mulher, cujo marido, o Amir de Siracusa, provavelmente se juntará a nós aqui amanhã.

Ibn Fityan ficou impressionado com a notícia. Respondia a todas as suas perguntas.

— O hammam também foi preparado. As mulheres já haviam se banhado naquele dia e declinaram da oferta. Pediram uma infusão de folhas de menta frescas e foram escoltadas até o terraço. Mayya ficou pensando se deveria acompanhar Muhammad e conversar com ele enquanto se banhava, mas achou que seria cedo demais.

A intenção de Idrisi era tomar um banho sem ser perturbado e meditar no problema espinhoso que o preocupava desde que haviam deixado o palácio: Balkis ou Mayya?

Poderia ser a sua única oportunidade de ficar nos braços de Balkis antes que seu marido chegasse e partissem para Siracusa. E se Mayya insistisse, como era muito natural, que passassem a primeira noite aqui juntos e recuperassem o tempo perdido? Seria desumano

resistir a tal pedido. Balkis, que amava sua irmã, entenderia. Havia tomado sua decisão, mas dúvidas persistiam simplesmente porque seu coração o puxava na direção errada. Deixado consigo mesmo, sem outras considerações, teria corrido para Balkis. Sabia que podia se arrepender disso para toda a vida e, no entanto, se Alá fosse generosa e lhe desse mais dez anos, seria fútil vivê-los num mar de infelicidade.

Ao deixar o hammam, refrescado e pronto para encarar sua nova vida, havia decidido em favor de Mayya. Não deixaria que nada o desviasse deste caminho. Ibn Fityan havia colocado a mesa na sala de jantar que era raramente usada. A mesa retangular podia acomodar facilmente 25 pessoas, mas ele havia preparado apenas uma extremidade dela para Idrisi e as mulheres. Quando entraram ele observou com admiração as diferentes cores usadas por Mayya e Elinore, mas foi Balkis quem fez parar a sua respiração.

Vestia um manto branco de suma sacerdotisa e havia levantado os cabelos para trás com um broche de prata.

O banquete de boas-vindas foi considerado um sucesso e o doce licor doméstico de limão que, Idrisi insistia, era um digestivo muito mais eficiente do que o preparado semelhante feito de semente de anis, foi altamente elogiado.

— Mayya me disse que você é também um mestre da medicina — Balkis disse num tom levemente indiferente -, mas eu não tinha idéia de que preparava misturas medicinais.

— Preparo e tenho até uma que ajuda a eliminar gravidez indesejada, muito procurada nos estados lombardos. Eles estupram nossas mulheres, que têm vergonha de contar aos irmãos, pais ou maridos. Vão ao bruxo local e imploram pela erva que vai purgar o seu sistema. Funciona. Você encontrará a receita no Aqrabadhin de al-Kindi.

Quando estive no Cairo eu a apresentei aos médicos no maristan de al-Nasiri. Pressionavam-me a escrever um livro sobre drogas e ervas compostas que podiam curar doenças comuns. Se tiver tempo ainda vou escrever este trabalho.

Balkis fuzilou-o com o olhar e Elinore, achando seu pai insensível ao fato de sua tia não ter filhos, decidiu mudar de assunto.

— Essa bebida de limão que todas adoramos esta noite. O senhor mesmo a destilou?

— Eu o fazia, mas o sultão gostou tanto dela que tive de revelar a fórmula e do palácio ela se espalhou para os mosteiros e as propriedades. Meus próprios suprimentos vêm do palácio agora. Fico realmente surpreso de que nunca a tenham provado antes. Achei que os eunucos garantiriam suprimento regular no harém.

Por algum motivo isso fez Balkis rir.

— Fala como se fosse a única bebida disponível no palácio. E se os eunucos a detestassem?

Mayya, notando a ligeira tensão entre Balkis e Idrisi, ficou a pensar se algo diferente teria acontecido em Siracusa. Seguiu a sensibilidade da filha para que ele ficasse confinado a um assunto seguro.

— Muhammad, eu estava tentando me lembrar daquele seu amigo de quem você falava sem parar alguns anos atrás. O homem que destilou o que você considerava o mais delicioso elixir que jamais provara. Não consegui lembrar seu nome, onde morava ou sequer o nome da sua bebida.

Idrisi riu.

— Muammar ibn Zafar! Morreu há dois anos e o idiota do seu filho vendeu os pomares a um mercador de Shakka. Vocês todas teriam gostado dele. Foi um dos mais talentosos cozinheiros cuja comida já tive o prazer de provar. Mas o elixir era algo muito especial. Ele o chamava de Néctar Celestial. Certa vez, hospedado em sua casa para pedir-lhe conselhos sobre curas para prisão de ventre, que era comum entre marinheiros, ele criou um supositório com a mistura mais eficaz. Era outubro e havia muita fruta caída pelo chão. Laranjas, limões, pêssegos, abricós, tangerinas e outras que não lembro. Mandou seus homens recolherem estas frutas do chão. As que não estavam machucadas foram lavadas e colocadas numa grande panela perpendicular de barro, quase tão alta como Balkis. Não, um pouco mais alta. A estas frutas acrescentou açafrão, pimenta-do-reino, gengibre macerado e molhos de alho descascado. Então o panelão foi selado com pasta de farinha e deixado ao ar livre até abril seguinte.

Estive presente quando o lacre foi rompido. O mais delicioso aroma nos saudou. Muammar subiu numa escada e agitou a panela até ficar tudo adequadamente misturado.

Eu provei a mistura antes e depois que foi destilada. Completamente diferente cada vez, mas igualmente inesquecível. Al-kohl. Puro. Celestial. Eu me consideraria afortunado se provasse uma bebida destas de novo antes de morrer.

Elinore bateu palmas.

— Mas seguramente podemos tentar fazê-la nós mesmos. Não podemos tentar? Só uma pequena quantidade?

— Certamente, filha. Pode tentar, mas não fique desapontada se falhar. Existem algumas coisas neste mundo que são melhores quando provadas uma só vez.

— Mas eu não a provei, Abu.

Depois que a mesa foi tirada, os criados foram dispensados para a noite. Os quatro se entreolharam à luz das velas. Elinore e sua mãe trocaram olhares antes que a jovem se dirigisse ao pai.

— Abu?

— Elinore bint Muhammad?

— Sei que é um pedido difícil mas, como sabe, a mudança do palácio para sua casa foi tão súbita, talvez súbita demais e estávamos emocionalmente despreparadas...

— Não posso imaginar sua mãe emocionalmente despreparada para nada.

— Falo mais por mim do que por ela. Sinto-me realmente feliz por estar aqui, mas deve entender que levará algum tempo para que eu me ajuste à mudança.

— Entendo isso, filha, e farei o que puder para facilitar-lhe as coisas. Má seja louvado, terminei meu livro. O sultão me doou um pequeno navio e, a não ser que revogue a ordem, o que é pouco provável porque ele não é um governante mesquinho, então poderemos viajar juntos.

A alegria no rosto de Elinore foi visível. Mas ela abordou outra questão.

— Gostaria de viajar. Nunca botei o pé fora de Palermo até visitarmos Siracusa poucos meses atrás. Mas, Abi, quero lhe pedir... se eu posso dormir com Ummi esta noite? Só esta noite, porque estou me sentindo deslocada.

Que Idrisi conseguisse franzir a testa diante deste pedido foi um tributo ao seu engenho — pelo menos foi o que disse a si mesmo.

— Elinore, concedo-lhe o pedido, mas não o repita com muita freqüência. E agora desejo falar com sua mãe a sós um pouco, se posso contar com a sua aprovação para isso.

Ela abraçou o pai antes de deixar a sala, acompanhada por Balkis, que quase não havia falado a noite toda e parecia absorta em seus próprios pensamentos. Tinha evitado o olhar dele e restringira sua conversa a perguntas triviais sobre Palermo. Fazia aquilo simplesmente para aborrecê-lo? Não lhe ocorreu que, ao contrário da irmã, ela podia não estar se sentindo muito feliz.

Sozinho com Mayya no seu quarto, abraçaram-se calorosamente. Então ela olhou cuidadosamente ao redor do quarto e para a cama dele.

— Foi generoso da sua parte deixar Elinore dormir na minha cama esta noite. Está inquieta, o que não é surpreendente. Tudo aconteceu rapidamente demais para ela.

Acho que está dividida em relação à mudança. Uma parte dela queria ficar no palácio até a morte de Rujari. É muito apegada a ele, você sabe.

— E ele é apegado a ela, mas este sultão já morreu no que me concerne.

— Com Felipe em desgraça e Rujari morto, o tesouro continuará pagando a você?

— A mãe dos meus filhos vive na propriedade em Noto, mas eu tenho outra que não visito há anos. Ganhei-a depois que meu irmão morreu sem deixar herdeiros. Podíamos vendêla à Igreja ou a um Barão. É uma propriedade vasta. Ou eu podia deixá-la para você e Elinore. Quase não gastei nenhum dinheiro nos últimos dez anos. A casa e os empregados são pagos pelo tesouro e poucos anos atrás a casa foi legalmente registrada em meu nome por serviços prestados ao estado. A vida não será tão luxuosa como vocês estão acostumadas, mas não passaremos fome.

Dito isso, ele mudou de assunto.

— Tive o sonho mais estranho em Siracusa. Ela fingiu ignorar enquanto ele lhe contava a história da suma sacerdotisa imortal que havia deixado odores inconfundíveis.

— Certamente você se enganou. Seu próprio corpo, como sabemos, deixa muitos traços sem a presença de mais ninguém.

— Mayya, mulher enganadora, por quanto tempo vai sustentar a sua história?

Ela o olhou com surpresa.

— Descobriu?

— Como poderia não descobrir? A droga foi eficaz, mas não apagou minha memória.

— E o que aconteceu depois?

— Balkis não lhe contou?

— Elinore não nos deixou um momento a sós, embora eu notasse um estranho sorriso no rosto de minha irmã.

Ele contou-lhe o resto. Com uma expressão resignada no rosto, Mayya perguntou:

— Ela realmente quer viver aqui, conosco?

— Não tinha nenhuma idéia, como você ou eu, de que isso aconteceria tão cedo. Estávamos discutindo a situação depois da morte de Rujari e as mudanças inevitáveis no palácio.

— Mas ela ficaria feliz em deixar o Amir e viver como sua segunda esposa?

— Terceira. Mayya começou a rir.

— Você viveu sozinho durante vinte anos. Agora quer nós duas?

— Quero.

— Que seja escolha dela, não sua. Seu marido é um homem bondoso e ponderado e ela é mais apegada a ele do que você se dá conta. Se conseguiu engravidá-la, não creio que o Amir fará quaisquer perguntas. Ficará feliz, agradecerá a Alá e haverá comemorações em Siracusa. Por que lhe negar esse pequeno prazer?

— Concordo, deve ser escolha dela. E ela deve pensar cuidadosamente.

— Pode discutir com ela esta noite depois de acabarem as trocas de prazeres.

— Mayya, eu queria passar esta noite com você.

— Sim, sim, eu sei, mas, já que não pode, por que ficar sozinho quando a suma sacerdotisa o espera? Vou deixálo agora. Elinore deve estar ansiosa.

— E eu deveria dizer a Balkis que contei tudo a você ou deseja informála você mesma?

— De tudo o que discutimos hoje, é o que tem menos importância. É uma questão sem significado para mim. Decida você mesmo.

— Está zangada, meu rouxinol, mas por que ajudou Balkis a lançar sua armadilha, em primeiro lugar? Sei que ela insistiu que só o meu sêmen era suficientemente bom para ela, mas você podia ter recusado.

— Cumplicidade é melhor do que traição. Ela era bem capaz de fazer tudo isso sem a minha ajuda. E, se conseguisse, teria algum de vocês dois me contado?

— Estimo que eu teria contado.

— Aproveite a sua noite e durma bem. Com estas palavras Mayya deixou o quarto de Idrisi e voltou para a filha no aposento contíguo.

Ele ficou sentado, pensando na virada ocorrida em sua vida, como esta última fase começara e como poderia terminar. Mas não ficou sozinho por muito tempo. Deixando o quarto nas pontas dos pés, dirigiu-se ao quarto de hóspedes.

Encontraram-se logo ao entrar pela porta de Balkis, cada um tão sufocado de paixão que as palavras lhes escapavam. Ele a levantou do chão e colocou-a gentilmente sobre a grande cama de dossel onde se despiram. Então sussurrou:

Ishgan khumari, qum, atla. Esta noite, todas as cinco obrigações em uma. Está pronta?

Ela respondeu colocando suas pernas ao redor do pescoço dele de modo que sua barba cobria o montículo depilado e aromático dela. Sempre que um deles queria falar, o outro tomava uma ação preventiva. Horas depois, ele notou o céu e percebeu que a aurora não estava muito distante.

Balkis, também acordada, confessou sua ansiedade.

— Achei que seria difícil para você hoje, mesmo depois que Elinore reivindicou a mãe para esta noite.

— Estava indeciso. Queria estar com você porque o Amir a levará embora muito em breve. Mas eu não queria magoar Mayya também. O pedido de Elinore, pensei, foi muito útil.

Ela riu. — Para quem? Toda vez que estou com você não consigo suportar a idéia de voltar para Siracusa. Sei que meu marido é bondoso e ponderado e todas as outras palavras que Mayya usa para descrevê-lo. É verdade que não estou infeliz, mas nem estou satisfeita.

— Eu havia notado. Ela deu um tapa na sua bunda.

— Mayya me disse esta noite que se você ficar grávida isso deixaria o seu marido tão feliz que ele não faria perguntas.

— Ela acrescentou que, se fosse um menino, ele herdaria grandes propriedades em Siracusa? É o que Aziz quer. O que você quer, Muhammad?

— Habibi, eu quero você. Fizeram amor pela quarta vez naquela noite. Então ela repetiu a sua pergunta.

— Não quero solidão na minha vida. Mayya e Elinore vindo morar aqui comigo resolveu isso. Mas não serei feliz sem você. Acha que poderia ser feliz aqui?

— Muhammad, já pensou como se sentiria se eu lhe pedisse para viver com você e com outro homem ao mesmo tempo?

— Inimaginável. Por que eu deveria pensar nisso? É haram, não permitido pelo Corão.

— Nem é adultério aquilo que cometeu já quatro vezes esta noite e cometerá de novo se conseguir levantar pela quinta vez antes do sol nascer. E o Corão afirma que os homens que fornicam entre si deveriam ser imediatamente mortos. Isso impediu alguém? E aqueles que se mascaram por trás da piedade são geralmente os piores ofensores. Por isso responda a minha pergunta.

— Balkis, Balkis. Como pode perguntar isso? A resposta é não. Eu não toleraria você vivendo com dois homens na mesma casa.

— Mas tolera meu marido.

— Ele só é meio-homem.

— Isto é indigno de você.

— Peço desculpas. Escondeu o rosto entre as pernas dela. O gosto dos seus sumos o reavivou e ele conseguiu levantar pouco antes do sol, completando assim as cinco fornicações obrigatórias do jihad sugerido por Abu Nuwas. Ela o abraçou com força, o sol nasceu e eles adormeceram nos braços um do outro até que uma batida discreta na porta assustou a ambos. Uma criada anunciou:

— O café-da-manhã está à sua espera no terraço, senhora Balkis.

Nenhum deles deixou a casa naquela manhã. Idrisi lamentou parcialmente não ter comparecido ao julgamento. Pelo menos poderia se despedir em público do seu amigo.

Caminhou para cima e para baixo no terraço e nos quartos, observando as ruas para ver se havia algum ajuntamento. Ibn Fityan saiu por poucas horas e voltou para lhe informar que os magistrados haviam mandado acender a fogueira antes mesmo do julgamento começar.

Idrisi não podia mais ficar em casa. Anunciou que ia até a mesquita fazer preces para Felipe. Ibn Fityan e quatro criados pediram para ir com ele. Dois deles estavam armados.

As mulheres olharam da sacada em silêncio enquanto os homens desciam o caminho sinuoso até a rua principal. Elinore, sentindo que sua mãe e sua tia desejavam ficar a sós, foi desfazer as suas malas que tinham acabado de ser entregues por homens pertencentes à administração do palácio. Mayya insistiu que ficassem para uma refeição, mas eles declinaram. O mais velho, um homem emaciado de sessenta anos, com lágrimas nos olhos, respondeu:

— Agradeço a sua oferta, senhora Mayya, mas nossos corações estão pesados hoje e não sentimos vontade de comer. O Amir Felipe cuidava de nós e protegia nossos interesses.

Se puderam queimá-lo agora, quanto tempo acha que vamos sobreviver?

Mayya nada mais pôde fazer além de agradecer-lhes com genuíno calor. Saudaram-na e partiram.

— É uma época estranha — disse ela a Balkis.

— Jamais vi coisa assim em todo meu tempo no palácio. Durante dias os eunucos sussurraram entre si, chorando lágrimas copiosas e ignorando nossos chamados. Felipe inspirava uma lealdade impressionante.

Balkis acenou com a cabeça mas não falou.

— O Amir de Siracusa nos dará um relato do que aconteceu. Quando vocês partem?

— Meu marido desejará voltar o mais cedo possível. Ibn Muhammad e eu tivemos sorte. Os ventos nos favoreceram. Mas podemos levar dois dias para voltar e já estão queimando mosteiros em Noto.

— Balkis, minha caríssima amiga e irmã, você parece agitada.

Diga-me o que a perturba e fale a verdade. Foi a tragédia de Felipe que mexeu tanto com você?

— Por favor, pare, Mayya. Não posso suportar. Sabe perfeitamente o que me aflige. Estou segura de ter o filho dele dentro de mim.

— Isso deveria fazê-la feliz.

Era o que queria.

— Sei, mas não sei. Nunca pensei que isso pudesse me perturbar tanto.

— Ah, entendo, durante a noite, a mão do amor vestiu-a com um manto de carícias, mas a aurora cruel o rasgou todo. Acontece com todos nós. Ouça-me agora, Balkis.

Deve parar de comportar-se como uma rapariga enamorada de 16 anos. É uma mulher casada. Dentro de poucas horas seu marido vai voltar e ordenará que volte com ele. Que vai fazer? Pense, criança.

— Irei com ele — disse Balkis resignada -, mas meu coração ficará aqui.

— Cuidarei bem dele, eu lhe prometo. Seria uma humilhação terrível para seu marido se você não voltasse. Se estiver grávida, o que aconteceria se ele ficasse zangado e a acusasse de adultério? Você precisa pensar em tudo nos dias de hoje.

— Mayya, irei com ele, não se preocupe. O que não entendo é como você, que pôde compartilhar os favores do sultão com cinqüenta outras, sem contar a sua esposa, está relutante em partilhar Idrisi comigo.

— Creio que em todo meu tempo no palácio Rujari veio à minha cama duas vezes. Ouviu? Duas vezes! Sabia que eu amava seu amigo, evitava seu olhar e deixava os eunucos trazerem Muhammad para me ver sempre que estava em Palermo. Se eu tivesse de compartilhar Muhammad gostaria que fosse você em vez de qualquer outra. Mas prefiro guardá-lo para mim mesma.

Você mal o conhece. Como pode amá-lo sem o entender plenamente ou o que ele escreve?

— Você sabia tudo isso quando caiu em seus braços pela primeira vez?

— Você tem um marido, que é bondoso para você e...

— Se gosta tanto dele, por que não trocamos de maridos? Você vai para Siracusa e eu fico aqui.

— Você é uma mulher tola.

Fizeram silêncio assim que Elinore entrou no quarto.

— O que vocês duas estavam discutindo?

Silêncio.

— Deixem-me adivinhar. Meu pai.

As irmãs ergueram os olhos espantadas.

— Não foi tão difícil perceber. Minha tia estava num ânimo estranho na noite passada e você também, Ummi. E as criadas estavam cochichando e dando risinhos abafados sobre quantas vezes teriam de lavar os lençóis no quarto de hóspedes. Está sangrando, tia?

Balkis reprimiu um sorriso e sacudiu a cabeça.

— Pensei que não. Então percebi que algo de que eu não me dera conta estava acontecendo entre vocês duas e ele.

Foi tudo resolvido? Claramente que não. Estão ambas grávidas?

— Elinore, isto é inaceitável.

— Ouvi as duas rindo e conspirando quando estávamos em Siracusa. Não ouvi tudo, mas o bastante para entender o que ocorria. Esperava que minha tia tivesse sucesso e assim eu teria um priminho ou uma priminha. Poderia uma de vocês me explicar o que saiu errado no seu plano?

— Ela se apaixonou por seu pai e preferiria ficar aqui conosco.

— É uma idéia interessante mas, querida tia, e quanto ao meu bondoso tio? Ficaria terrivelmente magoado. É um homem tão bom!

Balkis deixou o quarto em lágrimas.

— Elinore — disse sua mãe na voz mais severa que pôde articular -, não cabe a você dizer a sua tia o que ela pode ou não pode fazer. A escolha será dela.

— Não quer compartilhar Abi com ela, ou quer? Nada do que vocês irmãs façam poderia me surpreender. Está grávida, Ummi?

— Acho que sim, mas ainda não tenho certeza.

— Gostaria de saber qual das duas será a primeira. Sua conversa foi interrompida pela volta dos homens. Idrisi entrou na sala com o Amir, a quem ofereceram banho e refrescos, mas declinou.

Queria falar com sua mulher. Ibn Fityan escoltou-o ao quarto de hóspedes.

— O que está acontecendo, Muhammad? — perguntou Mayya.

— E deve saber que nossa filha sabe de tudo. Ela bisbilhotou minha conversa com Balkis em Siracusa...

— Entreouvi Ummi e tia Balkis em Siracusa — Elinore interrompeu.

Momentos depois, o Amir e uma estranhamente exultante Balkis juntaram-se a eles. O Amir abraçou a sobrinha e perguntou sobre a vida fora do palácio. Ela respondeu que ainda era cedo para julgar.

Então ele se virou para Mayya.

— Sou tão agradecido ao meu caro amigo Ibn Muhammad por concordar em que Balkis deva ficar aqui por alguns meses. Viajarei por várias aldeias e cidades da nossa região e ela ficaria solitária sem ninguém no palácio. Disse que me acompanharia em minhas jornadas, mas a situação é perigosa.

Alguns mosteiros já foram incendiados. Com sua permissão, vou me retirar agora. Se Ibn Fityan me acompanhasse, eu chegaria mais cedo ao meu navio. Que Alá proteja a todos.

As três mulheres não se entreolharam. Elinore, achando difícil conter sua alegria, pediu desculpas e deixou a sala. Mayya e Balkis sorriram com um ar vago.

Idrisi saiu com o Amir e deu-lhe as despedidas.

— Não se preocupe com Balkis. Ela será bem cuidada.

— Nestes tempos incertos — replicou o marido — é a única coisa de que tenho certeza.


13

O Confiável liberta uma aldeia e dá combate aos bárbros lombardos.
O doce sabor da vitória. Vida e destino.

As cinco da manhã o mensageiro enviado pelo Confiável voltou ao tosco acampamento. O outono chegava ao fim e as chuvas recentes tinham coberto a paisagem ao redor de Noto de verde. Os riachos que desciam sinuosos das pequenas colinas até a planície onde as aldeias foram construídas estavam inchados de novo. Uma ligeira friagem no ar e as mulas indóceis eram uma indicação de que trovão e mais chuva estavam a caminho.

O mensageiro entrou debaixo do rude abrigo onde o Confiável repousava.

— Mestre, levei sua mensagem ao nosso povo. Os homens ficaram assustados, mas ajudarão como o senhor pediu. Dizem que existem quase trezentos bárbaros lombardos muito bem armados. A maioria deles vive no castelo da propriedade do Bispo João. Dizem que estes homens roubam nossas colheitas e assediam nossas mulheres todo dia porque não têm nada mais a fazer.

— Avisou a eles que as crianças e mulheres deviam deixar a aldeia antes de o sol nascer e encontrar abrigo em outro lugar hoje?

O mensageiro acenou com a cabeça.

— Vão fazer isso. Tinham medo de serem feitos reféns e falaram de uma aldeia a um dia de cavalo dali onde alguns anos atrás as crianças foram seqüestradas e mortas e tiveram suas cabeças empaladas para apodrecer. Foi uma história horrível.

— Você agiu bem. Vá comer alguma coisa. Dentro de poucas horas vamos surpreender os bárbaros.

A notícia da morte de Felipe tinha chegado ao Confiável mais de duas semanas atrás. Decidiu-se contra retaliações imediatas pela simples razão de ter presumido que o inimigo estaria preparado. Foi o que ocorreu. Quando o bispo voltou do julgamento e da fogueira alertou seus mercenários e eles estavam preparados, mas quando viram que não houve reação, nem mesmo depois que o bispo anunciou a morte de Felipe como uma advertência para todos aqueles que tentassem enganar a Igreja e Deus, eles haviam abaixado a guarda de novo.

O Confiável levantou-se e cobriu seus ombros com um cobertor. Os homens comiam pão dormido, mergulhando-o em azeite de oliva aquecido com tomilho silvestre e alho.

Saiu para uma curta caminhada sozinho até que encontrou um lugar, perto de um regato. Ergueu a túnica e agachou-se no chão. Alá seja agradecido, podia permitir que seus intestinos funcionassem sem medo de ser perturbado. Depois que se lavou no riacho, subiu o pequeno morro e viu a aldeia que estavam para atacar. Aos seus homens parecia falar com grande autoridade, mas esta era a primeira vez que lideraria pessoas num combate e sabia que algumas delas morreriam. Ontem, antes da prece do anoitecer, falara com eles durante quase três horas para explicar por que tinham de fazer o que iam fazer.

Suas próprias crenças religiosas eram não-dogmáticas e contraditórias, resultado das numerosas discussões teológicas e dos ferozes debates de seus anos no seminário no Cairo. Excitado pelos textos que emanavam do alAndalus, ele abandonara a família e partira para Qurtuba e depois para Siqilliya.

Isso fora vinte anos atrás. Logo depois da sua chegada conhecera uma jovem de Noto, filha de um rico mercador, e eles se amaram, mas como ele não tinha bens o mercador proibira o casamento. Por isso, ela se matara. Ele se tornara um místico, errando de aldeia em aldeia. O mercador, mortificado pelo que havia feito, morreu pouco depois com o coração partido e, como a jovem morta era sua única filha, deixou sua propriedade para o Confiável, se é que o podiam encontrar. Quando a notícia chegou a ele, voltou a Noto, vendeu a casa e as mercadorias, e distribuiu seu dinheiro aos pobres. Voltou então às suas andanças.

Agora ele — sem nenhuma experiência de embates militares — estava à véspera de uma batalha. Havia instruído seus seguidores para esconder as armas debaixo das roupas e adotarem o comportamento de camponeses pobres e alquebrados. O plano fora cuidadosamente elaborado. Deixaram o acampamento enquanto ainda não era totalmente noite, em número de cento e cinqüenta, a maioria montando mulas, com apenas uma dúzia a cavalo. Estes tinham instruções especiais. O Confiável ia no dorso de uma mula liderando a procissão. Nada poderia parecer menos ameaçador. Quando chegaram aos portões do castelo perguntaram-lhes a que vinham.

— Somos peregrinos pobres — respondeu o Confiável.

— Acreditávamos no falso Profeta Maomé, mas vimos o erro de nossa escolha e desejamos nos converter para a verdadeira fé a fim de poder cultuar na igreja. Não havia nenhuma em nossa aldeia, por isso viemos ao bispo para ver se ele podia nos batizar. Trouxemos oferendas para o bispo.

Embora ainda fosse cedo e a maioria dos guardas ainda dormisse, tiveram permissão para entrar. O bispo, ao saber que seu tesouro ia ser enriquecido e almas seriam salvas, colocou apressadamente a batina, empurrou de lado o jovem deitado em sua cama e correu para receber os peregrinos.

— Qual de vocês fala em nome destes homens? — perguntou.

— Cada um fala por si — replicou o Confiável. Quando o bispo se aproximou, três homens o agarraram, cobriram sua boca e o arrastaram para longe. Vendo isto, os camponeses locais que estavam escondidos emergiram de todos os lados com pilhas de lenha e cercaram com elas o castelo. Jogaram óleo sobre a madeira e logo recuaram. O castelo estava em chamas. Ao sentir o calor, os mercenários lombardos saíram correndo, muitos deles nus, mas com espadas na mão. Era tarde demais. O Confiável liderou a carga e seus homens o seguiram. Foi uma batalha desigual e bastante desagradável. Nenhum lombardo sobreviveu. Quando o castelo estava todo tomado pelas chamas, o bispo foi arrastado para dentro e os aldeãos lembrariam depois que o Confiável subiu numa plataforma de madeira, ergueu a voz para que todos pudessem ouvir e disse:

— Isto é por Felipe al-Mahdia. Estas foram as lamentáveis conseqüências de uma guerra civil não-declarada inaugurada pelo julgamento e morte de Felipe e que, nos anos seguintes, levaria a revoltas em cada canto da ilha.

A meio-dia o castelo estava em ruínas. Toda a aldeia havia se reunido para ver o grande incêndio. Algumas das mulheres caminharam até os lombardos mortos e cuspiram neles. O Confiável entendia sua raiva, mas desencorajou tais atos e ordenou que todos os mortos tivessem um enterro digno. Tinha perdido apenas seis homens, que foram carinhosamente banhados, amortalhados e enterrados perto do local da velha mesquita. A aldeia ofereceu preces no enterro dos mártires.

A meia dúzia de nazarenos cujas famílias tinham vivido em harmonia com os muçulmanos há duzentos anos foi convocada para enterrar seus mortos. No início se recusaram:

— Somos siqilliyanos e eles são lombardos. Não nos forcem a enterrar estes monstros.

Mas o Confiável disse que eles deveriam ser enterrados em terreno consagrado e, relutantemente, suas instruções foram obedecidas.

Atrás das colinas no horizonte baixo o sol começava a se pôr. Os aldeãos e os soldados do Confiável estavam banhados no seu brilho. Escureceu e as estrelas começaram a aparecer. Os aldeãos acenderam fogueiras na praça e as comemorações começaram com cantos e danças. Quando o Confiável chegou um súbito silêncio se fez enquanto todos olhavam para ele com admiração. Fez sinal para que continuassem com as festividades, mas uma timidez coletiva baixou sobre eles. Os aldeãos preferiram se juntar ao redor do fogo que morria. Eles, que até o início daquela manhã eram os conquistados, agora se tornavam os vencedores. O que aconteceria agora? Uma sensação de expectativa iluminava seus rostos e esperavam que ele falasse. Quando ia se levantar, os homens que deixara de guarda chegaram, arrastando um monge. Ele vira o castelo queimado e presenciara a rebelião que acontecera, mas não tinha visto os guardas. Os aldeãos o reconheceram e disseram que não era um estranho, mas fora monge antes que a Igreja roubasse a terra e trouxesse os lombardos para agir como guardas. Ele fora passar um tempo com sua família em Noto um mês antes.

— Qual é o seu nome, padre?

— Yuhanna ibn Yusef.

— Pode ver o que aconteceu. Se estiver preparado para cuidar do seu rebanho deveria ficar, mas se tiver pensamentos de vingança então só pode haver uma solução.

— Jamais gostei dos lombardos, mas lamento que tivessem de queimar o bispo.

O monge sentou-se entre os aldeãos, que lhe deram comida e vinho.

O Confiável levantou-se para falar a eles. Falou com simplicidade, explicando a história da sua fé, suas vitórias e suas derrotas e como tão freqüentemente tinham perdido por lutarem entre si. Foi assim que perdemos Siqilliya e era assim que poderíamos perder alAndalus. Então alguma coisa nele decidiu que era tempo de ir além do que já era conhecido de muitos deles.

— O que nunca é discutido abertamente é a cobiça de nossos emires e sultãos, que chegam, pegam a terra e gozam dos seus frutos sem erguer um dedo. Por que deveríamos trabalhar e eles só comerem? Apenas cem anos depois da morte do nosso Profeta os camponeses da Pérsia se rebelaram contra os proprietários de terras. Houve semelhantes levantes em Khorasan e no Azerbaijão. Eram todos Crentes. Os pobres lutavam contra os ricos porque argumentavam que eram iguais diante de Alá. Os ricos replicavam que no Dia do Juízo diante de Alá podemos todos ser iguais, mas na terra o Corão nos ensina que os ricos têm seus direitos enquanto pagarem os impostos. Alá quis assim. Como poderia ser de outro modo? E eles tiveram uma resposta rude de Ali ibn Muhammad no ano de 169 do nosso próprio calendário. Os Zanj ergueram-se em armas contra o califa em Bagdá. Vejo por seus rostos que estão chocados. Sabem do que estou falando. Os Zanj eram escravos de Ifriqiya que se tornaram Crentes em Alá e seu Profeta. Eram os mais pobres dentre os pobres. Comparados a eles todos vocês são ricos. Trabalhavam para os senhores das terras nos pantanais aquosos entre Bagdá e Basra. Três vezes os califas mandaram exércitos para derrotá-los e três vezes os Zanj derrotaram aqueles exércitos. Por quê? Porque nada podia dividi-los e nada tinham a perder. Durante dez anos governaram a si mesmos da medina al-Mukhtara. Basra tornou-se sua cidade também. Estavam preparados a fazer paz a qualquer momento, contanto que o novo sistema que haviam estabelecido não fosse tocado. E os ricos tremeram e os mercadores foram obrigados a doar mais e mais para formar um exército que pudesse destruí-los. Depois de um longo cerco, foram derrotados, mas também o foi a escravidão naquela forma.

— Por que lhes conto isso? Porque como irão decidir viver depois da sua vitória irá determinar quanto tempo sobreviverão. Se um de vocês decidir tornar-se o senhor da terra e o resto aceitar, então não vão durar muito. Se trabalharem juntos, compartilharem a comida, cuidarem uns dos outros, como muito da nossa gente fazia nos dias mais antigos, então nossa comunidade poderá sobreviver. Um modo de vida que proteja os interesses de todos é um modo de vida pelo qual as pessoas morrerão.

O que é ensinado pelos lábios daqueles que usam as leis e os costumes para defender a propriedade que eles roubaram em primeiro lugar, ou herdaram daqueles que a roubaram, não vale nada. Sejam ousados. Esqueçam-nos. O que conseguiram hoje vale mais do que todos os nossos costumes. Não sou daqueles que acreditam que Alá decide todas as nossas ações na terra. Se assim fosse, ele seria um monstro. Qual seria então o sentido de um Dia do Juízo Final? Vejo que as crianças já estão dormindo. Foi um longo dia. Todos nós precisamos de algum descanso. Podemos falar mais amanhã. Vou passar algumas semanas com vocês.

Naquela noite, enrolado em seu cobertor, o Confiável fez sua cama no chão da igreja recém-construída que, apesar da sua proximidade com o edifício incendiado, não tinha sofrido nenhum dano. Ficou acordado meditando sobre os acontecimentos do dia. Foi seu primeiro triunfo real desde que deixara o Cairo. No passado sonhara em escrever um tratado filosófico que demolisse as fundações do sistema de pensamento alGhazali e defendesse a obra de Ibn Rushd. Provocaria um terremoto teológico e ele seria a sua causa. Suas anotações estavam quase prontas quando sua amante se suicidou. Abandonara tudo e tornara-se um asceta, mas o que acontecera hoje fora mais importante do que sua filosofia. Claro, sem o ceticismo que ele havia absorvido não teria tido a coragem para fazer o que era preciso.

O que o abalara esta noite fora ver uma jovem, ouvindo-o falar, que era uma réplica da sua Bulbula, morta há tanto tempo. Teria uma irmã? Levara muitos anos para recuperar-se da sua perda, e agora a coincidência era perturbadora. Precisava saber se era parente. Perguntaria quando o dia nascesse.

Mas quando a aurora rompeu, o pensamento se perdeu quando foi ver seus homens. Ficou sentado com eles compartilhando o pão enquanto lembravam seus amigos caídos.

Então perguntou se algum deles se instalaria nesta aldeia para dar aos aldeãos uma sensação de segurança. Se 12 deles pudessem ficar, ele poderia seguir em frente com os demais na esperança de repetir sua vitória nas proximidades de Siracusa. Depois de uma breve discussão, 12 voluntários deram um passo à frente, mas todos insistiram na mesma condição: o Confiável os convocaria se precisasse de mais homens. Concordou e abraçou um por um. Erguendo suas vozes, eles gritaram em uníssono: "Longa vida para o Amir al-Jihad!" Informou-lhes numa voz baixa que preferia ser o Confiável a ser um Amir de qualquer tipo. Seus homens nunca usaram o título de novo.

No resto do dia os camponeses mostraram-lhe a extensão da propriedade ligada ao castelo. Milhares de acres espraiavamse de cada lado da aldeia, há muito tempo desabitados e incultos. A família de Ibn Hamza se instalara aqui há duzentos anos e os camponeses lhe disseram que suas famílias também estavam aqui quase por tanto tempo.

Cinco gerações tinham vivido em paz até que os nazarenos chegaram há vinte anos.

— Quantos deles vieram? Por que não resistiram? Os homens mais velhos começaram a agitar-se inquietamente, fingindo que não haviam entendido a pergunta. Foi um dos camponeses mais jovens que respondeu.

— Hamza Ibn Omar, o dono da terra, estava indeciso quanto a se converter ou não. Demorou-se um pouco demais e só se converteu uma semana antes que os lombardos chegassem. Rolaram de rir quando souberam do fato. O bispo ofereceu-se para deixálo livre se dissesse onde estava escondido o ouro. Ele chorou e caiu de joelhos e jurou repetidamente que não havia ouro. Eles o mataram e a sua família diante dos nossos olhos. Eu tinha dez anos e a lembrança ainda me tortura. Várias criancinhas foram decapitadas. Depois disso poucos podiam pensar em outra coisa a não ser como sobreviver. Cada um por si e por sua família.

O Confiável colocou seu braço ao redor do ombro do camponês.

— Sabe ler e escrever? Ele acenou com a cabeça.

— Minha mãe era cozinheira e trabalhava para a família de Ibn Omar. Eu brincava com seus filhos e aprendi a ler e escrever com eles.

— E depois?

— Nada. Os lombardos, a maioria deles não sabia ler, tiraram todos os livros da biblioteca e os queimaram, mas Alá decidiu que iria chover naquele dia.

As crianças salvaram os livros e eles estão escondidos em diferentes casas. Nunca parei de ler mesmo quando não conseguia entender mais do que três frases numa página. Minha mulher me chamou de Ibn al-Kitab.

Os outros riram, mas o Confiável escondeu o seu contentamento ao descobrir camponês tão erudito. Elogio aberto teria provocado a inveja dos outros.

— Ibn al-Kitab é um bom nome. Preciso que você ouça todo mundo e compile um registro. Quero saber em que campo cada camponês trabalhava, quantas horas de trabalho eram prestadas antes e depois que os nazarenos vieram. Então quero que compile outro registro dividindo a terra igualmente entre todas as famílias camponesas.

Este registro deve ser retrodatado de trinta anos. Assinarei as escrituras em nome de Hamza ibn Ornar. Isto é para salvaguardar todos vocês contra qualquer autoridade.

Vocês nada tiveram a ver com a queima do Bispo ou a matança dos lombardos. Culpem os homens que vieram de fora. De qualquer modo, por que desejariam matar alguém quando seu senhor lhes doou a terra há trinta anos? Mais um pedido a vocês. Devem consultar todo mundo antes de chegar à sua decisão. Doze de meus homens querem se instalar aqui. Trabalharão com vocês e, caso se torne necessário, defenderão vocês. Mas devem ter uma parcela igual de terra.

Os vinte e poucos camponeses que o acompanhavam acenaram com a cabeça agradecidos, assegurando-lhe que não haveria problemas quanto a seus homens. Mas ele insistiu que a aldeia devia decidir isso coletivamente. Ibn al-Kitab perguntou:

— Quando diz que a terra deveria ser dividida igualmente, isso inclui Yuhanna, o monge?

— A família dele mora aqui?

— Sim.

— Então deve ser incluído. Podemos nos dar ao luxo de ser generosos. Existe muita terra, como acabamos de ver, e é melhor repartir com todo mundo.

Quando voltavam, Ibn al-Kitab sussurrou:

— Ficaria honrado se pudesse juntarse a nós para o jantar.

— Gostaria de participar e então poderão me mostrar alguns dos livros que salvaram da fogueira.

Mais para o fim da tarde, quando os camponeses tinham voltado da lavoura, um grande mehfil congregou-se na praça. Ibn al-Kitab falou do plano sugerido pelo Confiável.

Foi saudado com gritos de alegria. Então um canto semi-espontâneo irrompeu, durante o qual os homens do Confiável permaneceram em silêncio:

— Vida longa para Amir al-Jihad. O Confiável levantou-se. Disselhes que era sua própria força que os levaria para a frente a partir de agora. Nada mais podia fazer por eles. Dentro de uma semana teriam as escrituras de suas terras e o registro deveria ser guardado escondido num lugar seguro do conhecimento apenas de dez famílias. Só deveria ser mostrado ao emir de Siracusa ou a seus agentes, nunca ao lombardo, que imediatamente o destruiria. Que estavam envolvidos numa fraude era inegável, mas ele tinha certeza de que Alá e Deus e os Profetas Maomé e Isa os perdoariam porque estavam corrigindo uma grave injustiça. Só era necessário que contassem a mesma história a qualquer forasteiro que fizesse perguntas sobre a terra. E fez um último apelo. A terra agora lhes pertencia, mas deviam garantir que cada família fosse alimentada, tivesse leite, água e frutas antes de venderem o produto no mercado. E deveriam prometer reconstruir a sua mesquita. Ao afastar-se da multidão, pessoas de todas as idades tocaram nele em silenciosa apreciação. Ibn al-Kitab pegou no seu braço.

— Confiável, se conseguisse o mesmo em outros lugares desta ilha nós poderíamos montar um exército que tomaria Palermo.

— Não será tão fácil em outros lugares. Começou a chover e os dois homens estavam encharcados quando chegaram à casa de al-Kitab. O Confiável tremia e seu novo amigo insistiu para que trocasse a túnica. Uma camisa limpa e calças largas foram colocadas sobre a cama num quarto ao lado onde ele pudesse despir-se e enxugar-se.

O Confiável começou a chorar de um poço de lágrimas bem no fundo do seu ser. Quando se recuperou vestiu as roupas secas. Elas pendiam soltas sobre o seu corpo.

Não conseguia lembrar a última vez que vestira camisa e calça limpas. Sob a figura barbada e áspera numa túnica que nunca fora lavada revelava-se o nobre perfil de um Amir.

Na sala da frente, ela sorria com dois meninos e um marido orgulhoso do seu lado. Beijou cada menino na cabeça. Até sua voz o fazia lembrar de Bulbula.

— Estamos honrados com a sua presença, Confiável. Notícias a seu respeito chegaram até nós muitos meses atrás, mas nos perguntávamos se o senhor era real ou uma aparição. Fico feliz que seja real. Por favor, sente-se. As crianças vão para a cama e nossa refeição está quase pronta.

Os dois homens ficaram sentados até que Ibn al-Kitab mostrou-lhe um livro cuja visão o fez ficar de pé de excitação. Era A incoerência dos incoerentes, de Ibn Rushd, uma defesa vigorosa da Razão como algo separado da Verdade Divina.

— Isso estava na biblioteca?

— Sim. É um livro que não consigo entender, por mais que tente.

— É difícil, mas é o texto mais corajoso produzido por nossos filósofos. Eu mesmo só li trechos.

Posso tomá-lo emprestado para ler enquanto estiver aqui?

— Ia dá-lo para o senhor. Lágrimas assomaram aos olhos do Confiável.

— Deveria pertencer a todos. Quando a mesquita for reconstruída ela conterá uma pequena biblioteca para livros além do Corão que, como Alá sabe, lemos tão freqüentemente que podemos lembrar cada verso.

Então ela voltou a entrar na sala e ele não pôde mais se conter.

— Posso perguntar seu nome?

— Zainab.

— Desculpe minha rudeza. Lembra-me alguém que conheci há muito tempo em outra vida. Parece-se tanto com ela que, com sua permissão, gostaria de lhe fazer outra pergunta.

O rosto de Zainab empalideceu.

— Pode me perguntar o que quiser.

— Nasceu aqui?

— Sim.

— Seus pais sempre moraram aqui?

— Sim, exceto em tempos difíceis, quando minha mãe conseguiu emprego em Noto. Como minha sogra, ela é uma excelente cozinheira.

— Sabe onde ela trabalhou?

— Sim. E só por poucos anos e antes de eu nascer, mas falava freqüentemente sobre isso. Trabalhou para um mercador, um viúvo que tinha uma filha muito bonita. Ela morreu em tristes circunstâncias.

— Podia incomodá-la e pedir uma tigela d'água, por favor?

Ele tremia e, pensando que sentisse frio, lhe deram um cobertor.

— Sua mãe ainda está viva, Zainab?

— Alá seja louvado, ela estará aqui muito em breve com a nossa refeição. Quando lhe dissemos que o senhor vinha, fez questão de cozinhar. Meu pai morreu alguns anos atrás.

— Ela se chama Halima? Agora foi a vez de Zainab ficar surpresa. Antes que pudesse interrogá-lo, a porta se abriu e correram para ajudar a velha senhora a trazer a comida para dentro de casa. Ela viu o Confiável, aproximou-se, tocou na sua cabeça e o abençoou. Então ele falou numa voz que ela conhecia.

— Halima, não me reconheceu? Ela quase derrubou uma panela e virou-se. Ele escondeu a sua barba. A voz dela enfraqueceu:

— Ibn Zubair, é realmente você? Era a única pessoa ainda neste mundo que conhecia seu nome verdadeiro. Abraçou-a e ambos começaram a chorar. Quando recobraram a calma, ele pediu a todos que jurassem manter segredo.

— A semelhança com Bulbula me alarmou, mas já estava escuro quando vi Zainab pela primeira vez. Achei que podia estar enganado. Não consegui dormir bem na noite passada. As mais loucas conjeturas me passaram pela cabeça. Hoje, quando a vi com sua família, não fiquei mais confuso. Não havia mais nenhuma sombra de dúvida.

Ela se parece exatamente com a irmã, exceto pela cor dos cabelos. A mãe de Bulbula era grega e ela herdou seus cabelos, da cor de ouro... está lembrada?

Halima acenou com a cabeça e beijou suas mãos.

— Seu pai, que Alá o perdoe, nunca se recuperou da sua morte. Foi a culpa que criou os maus fluidos dentro dele.

Foi isso que o matou. Deixou-me todo o seu dinheiro. Eu o distribuí para os pobres. Ele sabia a respeito de Zainab?

— Não. Ninguém sabia até agora. — Devia ter-lhe. contado. Ficaria tão feliz ao vê-la como fiquei. Isso poderia tê-lo mantido vivo. Você e Zainab teriam herdado uma bela casa em Noto e uma pequena fortuna.

— Meu marido teria me matado. Zainab era nossa única filha — ou assim pensava ele — e ficou tão feliz quando ela nasceu, embora tivesse rezado por um filho. Se apenas o mercador, que não era um homem ruim, tivesse deixado Bulbula casar-se com o senhor, quem sabe o que teria acontecido?

— Se ela tivesse vivido, eu não seria o homem que está vendo agora. Ela me teria guardado junto a si. Eu ficaria sentado numa biblioteca a maior parte do dia, lendo, pensando, escrevendo, mas nada mais. Na vida que escolhi sinto que conquistei alguma coisa. Nesta aldeia nós criamos um exemplo que poderia se espalhar. Para que um povo prospere, ele precisa tomar seu destino em suas próprias mãos.

Zainab esperou pacientemente até que o Confiável acabasse de falar.

— Umma, o que foi que aconteceu? Sua mãe lhe contou.


14

Uma gravidez dupla e Idrisi descobre
uma cura fora do comum para tosses e resfriados.

Várias semanas depois, notícias dos acontecimentos que tinham ocorrido numa aldeia tão pequena que ainda não tinha nome chegaram a Palermo. Os mercadores que levavam a informação descreviam o que havia ocorrido em grande detalhe, como se seus próprios olhos tivessem testemunhado o bispo sendo jogado às chamas e o Confiável se levantando para declarar aquilo como uma vingança por Felipe. Então contavam como os lombardos tinham sido pendurados nus nas árvores, suas pernas e suas colunas não-circuncidadas balançando ao vento e como, quando a pele fora comida por grandes pássaros, seu esqueleto fora branqueado pelo sol e polido pela chuva. Mas foram deixados no lugar como uma advertência muda para todos os infiéis.

Quando Idrisi perguntava se tinha visto com seus próprios olhos os esqueletos pendurados, o mercador admitia que a história lhe fora contada por um amigo que a tinha ouvido de outro e antes de muito tempo a genealogia dos contadores de histórias estava tão firmemente estabelecida a ponto de sobrepujar os fatos.

Sempre fora assim em nosso mundo, pensou Idrisi, perguntando-se se algo havia chegado a acontecer. A maioria das lendas possui um cerne de verdade, portanto estava claro que algo devia ter acontecido. O problema era que as notícias dos feitos do Confiável alimentavam o delírio que havia tomado conta da cidade desde a queima pública de Felipe. Um dos magistrados que haviam jogado o corpo de Felipe na fogueira havia desaparecido sem deixar traço. Quinze dias atrás, um juiz que sentenciara Felipe tinha morrido de morte natural, mas comentava-se no qasr que fora envenenado. A verdade inegável é que, quando seu caixão era carregado para o cemitério, foi atacado por um enxame de abelhas que surgiram do nada. Quando os que carregavam o féretro foram ferroados, largaram o caixão na rua e saíram correndo gritando em busca de água.

Mesmo depois que as abelhas — que Alá as abençoe — desapareceram, o caixão ficou abandonado por algum tempo e alguns garotos apostaram para ver quem ia mijar nele.

Revezaram-se na guarda, com o resultado de que mais de uma centena de meninos com menos de dez anos de idade tinham encharcado a madeira com sua chuva. Quando a procissão fúnebre reiniciou, o desconforto dos carregadores do féretro era evidente. Seus narizes franzidos fizeram os garotos, que observavam dos seus esconderijos, gargalharem de alegria. Nesta atmosfera febril, o Confiável e suas campanhas militares eram discutidos interminavelmente na cidade velha, cada lojista tentando superar seus competidores com as histórias mais horripilantes.

Idrisi estava preocupado com problemas mais íntimos — o que não surpreende, já que os vivia todo dia. Mayya e Balkis estavam com sete e seis meses de gravidez, seus ventres distendidos disputando a sua atenção. Passava mais tempo com Balkis do que com Mayya e por uma simples razão: Balkis estava encravada no seu âmago. Quando Elinore o questionava sobre a aparente discrepância de seus afetos, ele assumia o ar de um médico.

— Sua mãe teve você e sabe o que está em jogo. Para Balkis é seu primeiro filho e as circunstâncias são difíceis. Ela requer mais cuidados.

Elinore erguia os olhos e o fitava com fúria, mas nenhuma palavra era trocada.

Balkis havia escrito ao marido Aziz e o informara do seu estado. Um mensageiro especial chegou em três dias para entregar uma carta em resposta. Estava muito feliz e deixaria Siracusa em poucas semanas para vir buscá-la. Implorou-lhe que não fizesse esforços ou nada que pudesse comprometer a criança. A notícia veio como um alívio para Mayya, mas lançou uma espessa nuvem de tristeza em torno do quarto de hóspede ocupado por sua irmã. A maior parte do tempo as irmãs demonstraram um estoicismo que impressionou grandemente Idrisi. O que ele não percebeu foi que aquilo que geralmente as aproximava mais uma à outra eram suas ausências da casa.

Caso se decidisse por uma longa viagem marítima, as irmãs ficariam inseparáveis. Nestes dias ele não deixaria a ilha.

Uma semana ou duas em Shakka ou Djirdjent era o mais longe que viajava a fim de se encontrar com velhos amigos e também continuar na sua pesquisa sobre curas herbais para o formulário médico que compunha. Nem estavam as duas mulheres livres das suas experiências. Ele as inspecionava cuidadosamente e notava como seus corpos reagiam à presença da criança ainda não nascida. Mayya não conseguia mais comer carne e seu corpo rejeitava todas as delícias doces, com exceção de confeitos que continham apenas mel. Balkis ficou alérgica a alho e cebola, mas desenvolveu um imenso apetite por um folhado comprido e fino cheio de pasta de amêndoa. Nenhuma delas conseguia suportar o gosto do café árabe que era um favorito da casa.

Certa vez, quando Idrisi apareceu com uma tosse persistente, tentou sua própria cura de mel, gengibre e tomilho silvestre fervidos na água e, apesar do gosto desagradável, ele a tomava três vezes por dia. Tinha sempre funcionado antes, mas desta vez a tosse se recusava a ir embora. A fim de evitar passar a infecção para as duas mulheres, afastara-se delas, concentrando-se em escrever e jogar xadrez com Elinore.

Uma tarde, Balkis, que sentia sua falta mais do que a irmã, entrou no seu quarto e aninhou sua cabeça nos seus seios. O tecido que a cobria estava molhado do seu leite. Ele lambeu e gostou do sabor, então ergueu o vestido dela, ansioso por mais. Na mesma noite a sua tosse desapareceu. Podia ter sido pura coincidência, mas Idrisi associou aquilo ao leite. Isto seria real ou uma alucinação? Ele decidiu que era real. Seria a combinação de mel, ervas e leite humano que levara à cura ou somente o leite? E, se fosse apenas o leite, poderia ele incluir uma prescrição no seu formulário? Desgostava-o a idéia de sultãos, emires e barões acometidos de tosse esquadrinhando seus palácios e propriedades em busca de mulheres no final da gravidez. Acrescentaria outro fardo para os pobres. Por outro lado, se não registrasse a cura, estaria quebrando um antigo juramento. Chegou a um meio-termo consigo mesmo. As duas mulheres provavelmente amamentariam os bebês durante um ano ou possivelmente dois. Era bastante provável que tivesse uma crise de tosse durante esse período. Quando houvesse uma conjunção entre os dois acontecimentos, ele beberia o leite. Se a tosse desaparecesse, teria de mencionar o fato no formulário, independentemente das conseqüências. Se não funcionasse, então podia considerar o que aconteceu com o leite de Balkis como uma ocorrência casual. Mas claramente Balkis tinha outras preocupações na sua mente. Pelo ar do seu rosto ele sabia que tinha a ver com o marido. Ela se postou, as mãos nos quadris, e lhe deu um daqueles olhares ferozes.

— Balkis, você tem de ir com ele, pelo menos até que a criança nasça. Depois, ele não fará objeções para que volte.

— Não liga para mim agora que estou gorda e feia — ela gritou, jogando-se contra o seu corpo e chorando.

— Concordo que seu corpo não está numa de suas melhores fases, mas sugerir que o amor que sinto por você depende de tais coisas é um insulto à nossa paixão. Se o que diz fosse verdade, como explicar que fazemos amor quase todo dia, ignorando o seu ventre que procura nos obstruir? Acha que estou fingindo quando nos encontramos no auge da nossa união?

— Então por que diz que preciso ir?

— Porque você é casada com ele, Balkis. Quantas vezes discutimos essa possibilidade? Acredite em mim, tudo o que ele quer é mostrar seu filho para a sua gente e sua família. Espero, por ele, que seja um menino. Isso o deixará muito feliz. Não vai se importar com a sua volta para cá a fim de criar outra criança.

Ela riu.

— Neste caso deveria rezar para que seja uma menina. Assim serei definitivamente devolvida ao grande médico. Mas você fala a verdade. Sei disso e farei como pede. A única coisa que não posso suportar é a idéia de ser tocada por ele e se ele o fizer...

— A maioria dos homens fica afastado das mulheres quando estão amamentando um bebê. A razão por que eu não o faria é que, como médico, é meu dever observar e registrar as funções...

Ela o beijou nos lábios e teria ido mais além não houvesse Ibn Fityan batido na porta para informar que o Amir de Siracusa tinha deixado o palácio e estava cavalgando em direção da casa.

Refrescos, incluindo o delicioso elixir de limão, foram servidos no terraço onde podiam desfrutar o calor do sol de inverno. Aziz descreveu sua visita ao sultão.

Fora questionado em detalhe sobre o Confiável, mas negara que um bispo fora queimado ou os lombardos oferecidos como carne para os animais.

— Mas posso contar-lhes, caros amigos e fiel esposa, o que realmente aconteceu. É bastante notável, mas perturbador. Queimaram o bispo e o Confiável gritou que era por Felipe, mas o prelado e o monge locais juram pela Bíblia que ele morreu de morte natural. Depois de sua morte, os lombardos lutaram pelo ouro do bispo e provavelmente seu estoque de mancebos e, para espanto de todos, destruíram primeiro o castelo em busca de ouro e depois a si mesmos. O único sobrevivente morreu dos ferimentos. Foram todos enterrados em terreno consagrado. Isto é, por acaso, verdade.

— Mas como a batalha começou? Aziz contou-lhes toda a história, exceto o que não sabia, ou seja, o encontro entre o Confiável e Halima e a descoberta de sua verdadeira identidade.

— Tínhamos a tendência de acreditar que o Confiável era um pregador ligeiramente desequilibrado errando através das aldeias e infectando os camponeses crédulos com sonhos religiosos, encorajando o martírio e revelando os estigmas que marcavam sua própria mente inculta. Esta era certamente a impressão que ele queria transmitir.

Mas o que ele fez ameaça a todos nós.

— Como? — perguntou Mayya, sua curiosidade excitada.

— A vergonha desapareceu naquela aldeia. As pessoas o encaram nos olhos quando falam. Orgulho e insolência substituíram o respeito por seus superiores. Um camponês teve a afronta de perguntar se eu havia lido Aristóteles. A única maneira de fazê-los nos respeitar é esmagá-los impiedosamente e ter certeza de que o jugo é pesado. Se o que fizeram se espalhar, estamos todos acabados. Foi o Confiável quem lhes ensinou a garantir que nunca mais percam a terra.

— O que vou lhes dizer se baseia em minhas próprias suposições. Não tenho prova alguma e a legalidade está do outro lado. Não tinha visitado a propriedade antes, mas tinha noção do que havia acontecido depois que os nazarenos varreram a família Ibn Hamza. Quando visitei os camponeses algumas semanas atrás, o Confiável tinha partido há muito, mas havia deixado atrás de si a aldeia comunitária mais feliz que já conheci.

— Como isso o ameaça? — Balkis perguntou.

— Quando perguntei quem era o dono da terra, agora que o bispo estava morto, responderam alegremente que a terra lhes fora doada por Hamza ibn Muhammad muitos anos antes da chegada dos nazarenos. Vi o registro com meus próprios olhos. Era impecável. Acho incrível que Hamza, que freqüentemente vinha ao meu palácio, pudesse ter doado suas terras hereditárias. Na verdade, não acredito numa palavra daquilo. Foi idéia do Confiável e ele os convenceu a todos e forneceu-lhes uma narrativa única.

— Interrogou o monge em particular? — perguntou Idrisi.

— Claro que o fiz. Ele repetiu a mesma bobagem. Sua família beneficiou-se da distribuição de terra do Confiável.

Confessou-me que nunca encontrara um homem como o Confiável e queria converter-se à nossa fé, mas o Confiável lhe dissera que seria mais valioso para a aldeia como monge. Se quisesse poderia rezar na mesquita, mas quando surgissem estranhos tinha de ser um monge.

Idrisi não podia esconder sua admiração.

— Ele é inspirado por Alá e pelo Grande Satã ao mesmo tempo. Onde está?

— Longe de minhas propriedades, espero. Aqui em Palermo você não pode imaginar o efeito que está tendo nos camponeses. Muitos deles visitam as aldeias e voltam cheios de idéias.

— O Confiável deixou um plano para o caso de sermos todos derrotados?

— Estranho que pergunte isso, Ibn Muhammad. Não me ocorreu, mas um dos camponeses, um rapaz muito letrado, me deu informações. Se nosso povo for derrotado, vão todos jurar que o bispo havia convertido toda a aldeia cinco anos antes de morrer. Têm um registro da igreja para provar isso e o monge e um punhado de famílias nazarenas atestarão a verdade dessa afirmação.

— Isto é incrível — disse Elinore.

— Fico com vontade de visitar este lugar.

— Sempre que quiser — respondeu seu tio.

— Talvez depois que a criança nasça vocês todos venham passar uns tempos em Siracusa. Elinore poderia vir conosco esta noite?

Ninguém respondeu ao convite e o pobre Aziz, ligeiramente embaraçado, virou-se para a mulher.

— Minha irmã, de quem você não gosta nem um pouco, está rezando para que você tenha uma menina. Assim, o filho dela herdará minhas propriedades.

— Neste caso — respondeu Balkis — será um prazer desapontá-la. E se vamos partir esta noite eu deveria ir cuidar das malas. — Nós ajudaremos — disse Mayya, e todas as três mulheres se dirigiram para o quarto de hóspedes.

— O sultão pode morrer a qualquer dia, Ibn Muhammad. Perguntou por você hoje.

— Quanto mais cedo se for, melhor. Haverá um acerto de contas. Eu tinha muitas lembranças afetuosas dele, mas o tratamento de Felipe mudou tudo. Deixou-me zangado comigo mesmo por ser um tão pobre juiz das pessoas. Vamos falar de assuntos mais prazerosos.

— Deixe-me levantar um assunto indelicado. Idrisi sorriu por antecipação.

— Eu lhe agradeço por deixar Balkis voltar. Era importante para mim, mas você já sabe disso.

— Sei e se o embaraçar não precisamos discutir mais o assunto. Espero que seja um menino por sua causa. Já pensou em escolher outra esposa?

— Não há razão alguma para fazer isso. Tenho uma serviçal no palácio que satisfaz todas as minhas necessidades. Com ela não há nenhum fingimento. Se Balkis me der um menino estou contente. E você?

— Ficarei contente mesmo que Balkis lhe dê uma menina.


15

A morte de de Rujari.
Idrisi é pai de novo e duas vezes.
Sonhando com Siracusa.

Num dia frio de fevereiro do ano de 1154 do calendário cristão, o sultão morreu no seu palácio em Palermo e Balkis deu à luz um filho em Siracusa, embora Idrisi e Mayya só recebessem a notícia quando o Amir de Siracusa chegou para comparecer aos funerais do sultão, pois os faróis andavam ocupados demais transmitindo as notícias da morte do sultão e da data fixada para o enterro para se darem ao trabalho de passar outras notícias. Recebendo a informação, notáveis de todas as partes da ilha iniciaram a jornada para Palermo.

Idrisi caminhou até o palácio e foi recebido por Guilherme, paramentado nas vestes de sultão com o manto real envolvendo-lhe os ombros. Era um homem grande de barbas negras e aparência assustadora. Tendo abraçado Idrisi, implorou-lhe que se tornasse o Amir dos Amires e voltasse ao palácio. Idrisi agradeceu calorosamente ao herdeiro, mas declinou da oferta para substituir Felipe. Alegou deveres de erudito, explicando a necessidade de completar o Formulário este ano para ajudar os médicos a salvarem mais vidas. O novo sultão pareceu aceitar a desculpa e procedeu a informar-lhe que os barões estavam decididos a não levar em conta o testamento de Rujari.

— Querem enterrar meu pai na Catedral de Palermo.

— Ele construiu uma igreja especialmente em Cefalu para ser o local do seu enterro. Amava a cidade e a igreja.

— E alguém mais também, mestre Idrisi, como ambos sabemos.

— Seja como for, foi seu último pedido para mim. — E para mim. E para minha mãe. Mas a Igreja e os barões insistem em Palermo. Felipe era a única pessoa na ilha que poderia tê-lo enterrado em Cefalu. Então deixem-nos enterraremno em Palermo. Existe outra razão por que não pode ser enterrado em Cefalu: o bispo Boso apoiou o Papa errado e Roma não quer consagrar sua igreja. Como pode um rei ser enterrado numa igreja não consagrada? Prometi a Boso que, assim que se reconciliar com Roma, poderá ter o corpo do meu pai e podemos ter dois funerais para o seu amigo. Chegou a conhecer a sua concubina em Cefalu? Vamos, me conte. Como era ela? É verdade que estava grávida e...

Guilherme, balançando o corpo levemente, começou a rir. Era uma risada desagradável e Idrisi, que certa vez tentara ensinar a este menino geografia, astronomia e medicina, lançou a seu ex-pupilo um olhar severo. Era óbvio que andara fumando muitos cachimbos de shahdanj al-barr.

— Sultão Guilherme — Idrisi começou, mas não pôde continuar. Guilherme havia caído da cadeira e estava aparentemente adormecido no chão. Seus atendentes o ergueram.

Recuperou-se e dispensou os atendentes, embora Idrisi soubesse muito bem que estavam sendo observados através de buracos de espia nas paredes. — Mestre Idrisi, nos veremos no enterro de meu pai.

— Tenho a permissão do sultão para usar a biblioteca? Existem manuais de medicina que não estão disponíveis em nenhum outro lugar nesta ilha.

— Claro, e não precisa da minha permissão. Organizou esta biblioteca antes mesmo que eu nascesse. Use-a tanto quanto quiser. Uma pergunta para o senhor, mestre Idrisi, e gostaria que fosse completamente sincero como era com meu pai.

— Vou tentar.

— Como julgaria meu falecido pai como governante? Só em poucas palavras, quero dizer.

— Eu diria que o sultão Rujari de Siqilliya foi durante a maior parte do seu reinado um governante sábio e sensato, que protegia todos os seus súditos independentemente do credo. Governou seu povo com equidade e imparcialidade, impressionando a todos pela beleza de suas ações, pela profundeza de sua visão e pela doçura do seu caráter. Escrevi um pouco disso na dedicatória do meu livro. Podíamos acrescentar que ele matou menos gente do que seu pai e seu tio. Quando era governante e as pessoas lembraram-lhe o massacre dos Crentes nesta cidade, pouco antes da sua rendição para os francos, ele expressou remorso e arrependimento. Foi um habilidoso administrador e um homem de estado que podia levar a melhor sobre o papa e o imperador. Defendeu o interesse do seu reino acima de tudo e não permitiu que fosse debilitado por aventuras na Terra Santa. Foi sempre amistoso para com eruditos e ajudou-me consideravelmente a aperfeiçoar a qualidade do meu próprio trabalho.

Foi nos seus últimos dias, atormentado por uma doença que dificultava a sua respiração e afetava seu coração, que ele enfraqueceu em mente, corpo e espírito. Permitiu que os barões e os bispos o convencessem de que um sacrifício de sangue era necessário para fortalecer o domínio de sua família sobre esta ilha.

E em seus últimos meses cometeu um crime ao queimar um dos mais talentosos líderes deste reino, Felipe al-Mahdia. Assim começou o declínio.

— Não posso repetir tudo isso, mas lhe agradeço. Homens como o senhor são raros neste reino. Gostaria que ficasse do meu lado.

— Existem outros mais habilidosos na arte da administração do que eu e lhe servirão melhor. Meu conselho é simples: tenha cuidado com os barões. Sua avó teve de fugir do continente para Palermo quando seu pai era muito jovem. Ela se sentia mais segura aqui por causa do meu povo. Eram um contrapeso para os barões. Portanto tenha cuidado com eles. Tendem a atacar quando um rei é jovem. E nunca os encontre em particular sem uma mão na sua espada e empregados armados do seu lado. Que Alá o proteja, Ibn Rujari.

— Só uma outra questão. Não é de grande significado, na verdade é apenas uma curiosidade. Durante o julgamento de Felipe, quando um monte de mentiras era dito, ouviram-se dois peidos altos dos bancos ocupados pela sua gente. Tentei juntarme ao coro, mas falhei. Foi obra do Amir de Catânia ou do Amir de Siracusa?

— Não tenho idéia.

— Foi um esforço muito bom. Se descobrir, faça a gentileza de congratular o Amir em meu nome. Decidi construir um palácio no estilo dos seus sultãos e com o maior harém do mundo. Maior do que Bagdá e Qurtuba e vou equipá-lo à altura. Se um dia precisar de uma mulher... Começou a rir de novo. Idrisi achava esse tipo de conversa cansativo. Sem responder, curvou-se e deixou a sala de audiência. Ao caminhar lentamente através do palácio, sabia que não desejava voltar mais ali.

Os eunucos davam-lhe risos nervosos de reconhecimento. Nenhum deles parecia grandemente afetado pela morte de Rujari. Felipe pertencera a eles e, neste mesmo palácio, eunucos mais velhos o haviam visto crescer e prosperar.

Idrisi entrou na biblioteca. Talvez Guilherme provasse que seus detratores estavam errados e superasse o pai, mas mesmo quando o pensamento lhe passava pela cabeça viu que não tinha substância. Guilherme podia ser mais forte do que acreditavam, mas não era administrador ou estadista. Era muito fortemente apegado ao prazer.

Iria tornar-se dependente demais de conselheiros que matariam uns aos outros para ficar perto dele.

Idrisi não ficou muito tempo na biblioteca. Apanhou dois livros que precisava consultar e decidiu leválos para casa, ansioso por voltar para seu novo filho, já com seis semanas e com a voz e o apetite robustos.

Ao subir o caminho para a casa ouviu os sons da flauta de Ibn Thawdor e viu sua filha sentada num muro perto do rapaz observando-o com os olhos em transe. Sorriu interiormente e não os perturbou. Estava feliz que ela encontrara um amigo no músico. Elinore fora mais afetada pela morte de Rujari do que ele imaginara e pedira para acompanhar Idrisi no enterro. Nem sabia ele ao certo o que ela sentia pelo seu novo irmão. Devia lembrar-se de perguntar a Mayya. A chegada do pequeno Afdal havia removido os últimos traços de tensão entre eles e muitas vezes a ouvia cantando ninares que nunca escutara antes. Ela chegou a rir uma manhã ao pensar se Balkis teria um menino e se seria idêntico ao seu filho.

O Amir de Siracusa chegou um dia antes dos funerais. Viera sozinho e se hospedara no palácio. Levando em conta as condições de instabilidade na ilha, era útil saberem que ele era hóspede do sultão. O ar jovial de seu rosto era suficiente para transmitir as boas notícias: Balkis, também, dera à luz um filho e ambos estavam bem. Entregou a Idrisi um pequeno embrulho, que foi passado para um criado e despachado para o seu quarto.

— Alguma notícia do Confiável?

— Foi visto em inúmeras aldeias. Está muito perto de sua família e dizem que se encontra nas propriedades do seu genro no momento.

Nossa gente está pronta para lutar. Catânia, Noto e Siracusa não serão tomadas sem combate.

— Não creio que Guilherme tenha qualquer intenção de fazer guerra contra nós.

— Um ano atrás tinha seu pai qualquer intenção de queimar Felipe do lado de fora do seu próprio palácio?

— O que estou dizendo é que uma rebelião prematura poderia levar à derrota. O senso de oportunidade é sempre crucial.

— Então estamos de acordo. Quando Elinore entrou na sala para cumprimentar o tio, Idrisi notou suas faces coradas e seus olhos brilhantes. O tocador de flauta está afetando esta criança, pensou, e isso o agradava. Mayya chegou com Afdal nos braços e o Amir fez os ruídos certos, mas será que no olho mental comparava os dois bebês? No final da sua visita, o orgulhoso possuidor de um novo filho convidou a todos para visitálo em Siracusa.

— Será primavera logo e é a melhor época para nos visitar. Balkis está desesperada para vê-los.

— Tentaremos — disse Mayya — mas é uma viagem tão longa que só de pensar me cansa.

Idrisi recolheu-se à biblioteca para encontrar o embrulho de Balkis. Desfez o nó do barbante e abriu o papel. Dentro havia uma túnica cuidadosamente dobrada feita de seda pura na cor de leite queimado. Em cima havia uma carta. Elinore bateu na porta e entrou sem esperar sua resposta.

— Preciso pedir-lhe uma coisa, Abi.

— Deixe-me adivinhar. Quer aprender a flauta? Ela corou levemente.

— Gostaria de me casar com ele.

— Ele manifestou interesse?

— Não, porque o respeita muito e acha que vem de uma classe muito baixa para que o senhor sequer pense em tal casamento.

— Falou com sua mãe?

— Sim, e ela não gostou muito.

— Por quê? — Acha que ele é de classe baixa.

— Tem certeza de que o conhece o bastante para querer casar-se com ele?

— Sim. O senhor me disse certa vez que as questões do coração eram determinadas pelo instinto, não pela razão. Meu instinto me diz que serei feliz com ele.

— É tudo o que conta para mim, filha. Não tenho objeção. Gosto do rapaz eu mesmo, mas como vai ganhar a vida? Músicos não são pagos regularmente.

— Ele não toca apenas a flauta. Ele as fabrica e pode ensinar crianças a tocar. Quer que nos mudemos para Djirdjent onde a família de sua mãe o ajudará.

— Eu o ajudarei se quiser ficar aqui e seu tio em Siracusa é uma alma generosa se ele quiser mudar-se para lá. E você? Onde gostaria de morar?

— Não tenho certeza. Tem uma parte de mim que gostaria de deixar esta ilha para sempre e mudar para Salerno.

— Por quê?

— Instinto. Algo ruim vai acontecer aqui. Não pode sentir no ar?

— Elinore, você é batizada e Simeon ibn Thawdor também o é. Não precisam temer os barões. Nenhum mal cairá sobre vocês. Mas estou preocupado com seus dois irmãos.

Eles sobreviverão? Por quanto tempo? Quando alguns de meus amigos deixaram Palermo e foram se instalar em alAndalus eu zombei deles por sua tolice. Estava seguro de que tinha tomado a decisão certa.

Encolheu os ombros em desespero. Elinore beijou-o na cabeça.

— Embora ainda não tenhamos discutido Pitágoras e seus números conforme me prometeu, eu o amo.

— Os números eram importantes para os mercadores e marinheiros. Mas muito mais interessante era o estilo de vida que ele advogava. Talvez vocês devessem ir morar em Cariati, muito mais perto de nós do que Salerno. Os pitagóricos fugiram daqui para Kroton, como a chamavam então, e sua irmandade floresceu. Alguns deles vieram para Siracusa também. O símbolo da sua irmandade era o boi na língua. Cada novo recruta jurava segredo e silêncio. A fim de atingir seus objetivos e criar uma sociedade em que cada e toda pessoa tivesse uma responsabilidade moral, precisavam ser cautelosos. E sabia que eles também acreditavam que a única maneira de purificar a alma das infecções do corpo era por meio da música? Foi por isso que Pitágoras e seus seguidores se tornaram os primeiros a explorar as ligações entre música e matemática. E você encontrará livros que podem ensinar-lhe ainda mais do que sei. Não é um filósofo que eu tenha estudado a fundo. É sua mãe que ouço chamando por você? Diga-lhe que eu aprovo Ibn Thawdor e ela não deveria se preocupar com o seu dote.

Quando ela correu para fora do quarto, Idrisi começou a caminhar para cima e para baixo, parando para olhar o mapa sobre a grande mesa. Era o seu próprio mapa e ele pensava que era tempo de emigrar, mas com que destino? Então viu seu manuscrito inacabado e sabia que tinha de ser completado antes que ele fosse para qualquer lugar. A filosofia da medicina que elaborava baseava-se em oferecer curas simples e facilmente acessíveis para doenças que afligiam ricos e pobres. Lera algo num livro de Aflatun*1 que o desagradara e tivera a intenção de contar a Elinore. Encontrou o livro onde tinha assinalado a seguinte passagem:

*1. Platão. (N. do T.)

"Quando um carpinteiro está doente", disse Sócrates, "ele pede ao médico um remédio rápido — um emético, purgativo, uma cauterização ou o bisturi — é tudo. Se lhe mandarem fazer dieta e envolver a cabeça e ficar aquecido ele responde que. não tem tempo para ficar doente, que não tem sentido continuar vivendo só para cuidar da sua doença se não tiver tempo para levar adiante o seu trabalho. Então ele dá adeus ao médico e volta ao trabalho e ou melhora e vive para continuar ganhando o seu sustento, ou então morre e é liberado da sua desgraça."

 

"Entendo", disse Glauco, "e claro que este é o uso adequado da medicina para um homem na sua camada da vida."

Sorriu ao lembrar-se de como isso o enraivecera. O "uso adequado da medicina" significava a propagação de doenças infecciosas que não distinguiam entre carpinteiros e proprietários de grandes propriedades e centenas de escravos.

No livro que preparava, Idrisi escrevera que uma dieta saudável era a melhor medicina preventiva, mas também que não deveria haver tratamentos aos quais os pobres não tivessem acesso. Estes tratamentos deveriam estar disponíveis a todos em hospitais especiais. Outras considerações ele pusera de lado pelo momento, embora, em particular, concordasse com a injunção de Hipócrates: para curar um homem era necessário entender as origens e a causa da sua evolução. Esta era uma convicção proibida ao Povo do Livro que devia acreditar que Jeová, Deus, Alá haviam criado o homem — possivelmente uma simplificação do conhecimento que não ajudara o estudo da medicina. Os Antigos também tinham os seus mitos, mas estes continham o cerne de uma verdade. Prometeu, que dera ao homem o primeiro fogo para salvá-lo da extinção, estava claramente cônscio de que o homem possuía o cérebro para fazer uso do fogo e os próprios fabricantes dos mitos interpretavam Prometeu como o símbolo da inteligência humana.

Seus pensamentos foram interrompidos por Mayya, ansiosa para inspecionar o presente que Balkis lhe mandara. Ela colocou a túnica contra seu próprio corpo, mas era grande demais.

— Ela sempre foi boa na confecção de roupas, mas vamos ver como cai em você.

Levantou-se e trocou de túnicas. A seda agarrou-se ao seu corpo.

— Cabe perfeitamente em você. Balkis não se esqueceu do seu corpo.

Ele nada falou, mas não recolocou as roupas que usava. Sorriu vagamente para a mulher.

— Quando vai visitar Walid em Veneza?

— Depois de terminar meu Formulário.

— E quando vai ser isso? Quando Afdal tiver cinco ou dez anos?

— Poderia ser antes, se não fosse interrompido com tanta freqüência.

— Vim discutir sobre nossa filha. Não posso acreditar que tenha concordado em que ela se case com o filho de Thawdor.

— Porque ele é pobre?

— Bem, não exatamente isso, mas...

— Que outra razão poderia existir? Criação, naturalmente. Deixe-me contar-lhe que os ancestrais de Thawdor incluíam homens que governaram esta ilha centenas de anos atrás. Eu não compararia a linhagem dele com a sua ou a minha, menos ainda com aquela do seu cunhado.

— Se esta é a sua opinião, não farei mais objeções.

— Mayya, quero que nossa filha seja feliz. Eu lhes darei dinheiro para construírem uma casa onde quiserem.

— Não desejo que ela deixe Palermo.

— Isto, também, será escolha dela e não nossa. Quando ela saiu do quarto, ele olhou para as estantes e suspirou. Se deixasse Palermo ou Siqilliya, estes livros teriam de viajar com ele. Nunca os deixaria para trás. Percebendo como seria difícil levar todos, começou a fazer listas em sua cabeça dos livros de que não sentiria falta. Talvez não conseguisse convencer Mayya ou Balkis a partirem consigo, mas os livros não tinham escolha.

A túnica de seda acariciando seu corpo o fez pensar em Balkis, mãe pela primeira vez. Seu filho se tornaria o centro de sua existência e ela se instalaria no palácio até sentir que era a hora de procriar de novo. Pegou a sua carta.

Muhammad:

Pensei em tantos nomes diferentes para você, mas soavam tolos quando escritos e gastei uma porção de papiros. Só podem ser falados, portanto terá de esperar. Nunca pensei que a dor da separação podia machucar tanto até que o deixei há três meses. Não doeu só por dentro, mas no caminho de volta tive uma dor de cabeça, uma dor realmente forte que nunca sentira antes. O que o doutor recomenda? Não sugira uma infusão fria de amêndoas, leite e mel. Não funciona.

Sento-me e escrevo umas poucas linhas para você todo dia para que, quando o tempo chegar, eu possa acrescentar uma linha sobre nosso filho. Às vezes fico lacrimosa ao pensamento de que ele não saiba que você é o seu verdadeiro pai. Chegaremos um dia a contar para ele? Posso ouvir sua voz: como seu marido foi tão generoso e cordato, por que lhe negar o prazer de fingir que é seu filho? É claro que eu concordo, mas... E Mayya? Como está e como estão vocês dois? O bebê já nasceu? Menino ou menina?

Foi uma viagem terrível para Siracusa com uma tempestade perto de Messina, onde fomos forçados a passar a noite depois de deixar Palermo. Lembrei a viagem que fizemos juntos. Deve ter levado o mesmo tempo, mas pareceu tão rápida! Acho que estar grávida com seu filho não melhorou meu humor. Em Siracusa pensei muito em você e durante alguns dias não pude comer nada. Meu bondoso e ponderado marido quase chegou a mandar-lhe uma mensagem pedindo que viesse juntarse a nós, mas por mais que tivesse adorado isso pensei em Mayya e no seu estado e sabia que era errado. Então o impedi. Ele não faz exigências de mim e sei que tem uma mulher no palácio que serve as suas necessidades. Acho que ele lhe contou sobre ela. Estou contente porque não era nada agradável quando ele vinha à minha cama. É tão gordo e, além do desconforto físico, eu também sofria um desgaste mental. A túnica de seda ficou bem em você?

Existem tantas coisas que queria discutir com você em Palermo, mas nos absorvemos tanto um no outro que não houve tempo para discussões elevadas. Queria perguntar-lhe o que achava da poesia de Ibn Hamdis. Estou realmente com raiva de mim mesma por nunca lhe ter perguntado. Meu marido — mas você provavelmente sabe disso — pertence à mesma família e temos todos os seus poemas na biblioteca e alguns deles em edições muito finas. Está vendo, comecei até a usar a sua linguagem! Alguns deles eu acho sentimentais em demasia. Ele não foi "banido do paraíso". Ele saiu. Quero dizer, se ia sentir tanta falta de Siqilliya, por que foi embora, em primeiro lugar, e não voltou então depois para reviver os prazeres da sua juventude? Seus irmãos ficaram. A propriedade da família está intacta. Por isso suas lembranças de Siqilliya não me empolgam, embora tente dizer isso para um siracusano. Pode imaginar meu marido, que calmamente aceitou o fato de que somos amantes e que você era o pai do filho que herdará suas propriedades, que nunca falou uma palavra dura comigo, ficar vermelho de raiva quando eu lhe disse que Ibn Hamdis não era um poeta tão bom comparado com Ibn Quzman, Ibn Hazm e Abu Nuwas. Gritou, me chamou de ignorante e deixou o quarto como uma montanha em fogo. Depois voltou e pediu desculpas. Poucos dias depois do ocorrido, encontrei um poema de Ibn Hamdis que realmente me fez rir. Queria que risse comigo, mas você não estava aqui. Leia as palavras em voz alta e imagine nós dois dentro da sua túnica de seda:

Uma freira de claustro abriu o seu convento, e fomos seus visitantes noturnos.

A fragrância de um licor nos trouxe até ela, que revelava ao nosso nariz os seus segredos...

Coloquei minha prata na sua balança, e de sua jarra ela derramou seu ouro.

Oferecemos casamento a quatro de suas filhas, para que o prazer deflorasse sua inocência.

Quero saber o que pensa sobre isso e seus poemas siqilliyanos.

Muhammad, na noite passada contaram-me uma história terrível e não consegui dormir. Meu marido veio ver se eu precisava de alguma coisa e com ele veio sua horrível irmã de quem já lhe falei. É muito alta com um nariz igual a um grande pepino, seios do tamanho de melancias e uma voz alta e áspera e sempre quis sugerir-lhe que se juntasse a um bando de hermafroditas errantes e gozasse a vida. Ela entrou, olhou para meu filho sobre meu seio e disse: "Louvado seja Alá por este milagre."

Estava na ponta da minha língua dizer "Louvado seja Maomé,"*2 mas me contive. Então comecei a sentir uma dor nas entranhas e gritei para que ela deixasse meu quarto.

*2. Muhammad", em árabe, nome de Idrisi. (N. do T.)

A empregada veio do quarto vizinho, mas não era nada. Meu marido voltou depois para se desculpar por sua irmã. Eu disse que ela era uma serpente alimentada por Satã. E então ele sentou-se e contou sua história, que me horrorizou:

Ela é minha meiairmã, Balkis, e por favor entenda que teve uma vida dura. Meus pais não se davam bem e minha mãe devia se encontrar num estado de permanente tristeza. Quando eu tinha oito anos, meu pai deixou Siracusa e foi viver em Noto por seis meses. Minha mãe ficou tudo menos de coração partido, como pode imaginar. Cometeu uma indiscrição com um primo e engravidou. Quando meu pai voltou perguntou de quem era a criança, mas ela não falou.

Ele nunca mais falou com ela. A criança era minha irmã que você detesta tanto. Não foi bem tratada pelo pessoal da casa. Não creio que meu pai sequer pronunciasse o seu nome. Nem uma só vez. Em conseqüência, ela se tornou a favorita de minha mãe. Isso nos incomodou muito e fomos todos desagradáveis para com as duas. Quando muitos anos depois meu pai viajou para Palermo a negócios, o primo de minha mãe, que era o pai de minha meiairmã, voltou à casa. Minha meiairmã tinha 17 anos.

Uma noite, numa fúria embriagada, o primo violentou a própria filha. Ela engravidou. Minha mãe jogou o amante para fora de casa. Pelo que lembro, ele foi na verdade apedrejado. Meus irmãos e eu morávamos naquela casa grande mas só tivemos idéia do que havia acontecido muito tempo depois. Dizem que se valeram de misturas herbais para se livrar da criança e conseguiram, mas ela nunca se recuperou. Quando um primo me contou a história, confrontei minha mãe. Ela chorou e admitiu que era verdade.

Culpou a frieza e crueldade do meu pai e estou seguro de que há alguma verdade nisso, mas sempre me lembro do meu pai como de rosto moreno, alto, dignificado e simples em seus gostos. De qualquer modo, depois de saber desta tragédia, fiz de tudo para agradar minha meiairmã. Como você, meus irmãos não podem nem olhar para ela, o que é injusto. É nossa única irmã. Não espero que goste dela, mas tente entender. Ela é perfeitamente inofensiva."

Muhammad, meu querido muito amado, isso não é perturbador? O problema é que a mulher é maligna e venenosa e ainda a odeio. Tento imaginar o que diria nesta situação.

 

Começaria provavelmente com meu bondoso e ponderado marido...

Muhammad,

seu filho nasceu no dia em que o sultão morreu. Nós o chamamos de Hamdis ibn Aziz. Isso garantiria que ele jamais escreverá poesia. Meus seios estão transbordantes de leite. Se sua garganta doer, venha a mim.

Balkis

A leitura da sua carta o agitou e ele começou a esfregar as duas mãos na túnica de seda. Naquela noite ele declinou tanto a comida como o hammam, mas Mayya supôs que estivesse absorto no seu trabalho e não quisesse ser perturbado. Ele se retirou cedo para seu quarto e começou a andar furiosamente. Até então achara que sua paixão por ela desvaneceria gradualmente e se veriam uma, talvez duas vezes ao ano. Agora, subitamente, se deu conta de que era seu coração que não toleraria ausências tão longas.

Talvez devesse voltar a Siracusa com o Amir depois dos funerais do sultão. Quanto mais pensava nisso, melhor parecia a idéia. Elinore, Mayya e Afdal poderiam vir também. Iria visitar seus netos perto de Noto, talvez visitar a aldeia onde o Confiável realizara milagres e, acima de tudo, Balkis não estaria longe. A idéia melhorou o seu ânimo, mas ainda assim não tirou a túnica e quando, tarde naquela noite, houve uma batida na porta, ainda estava vestido. Ibn Fityan desculpou-se por acordá-lo, mas queria que soubesse que um incidente ocorrera nos jardins naquela noite. O jovem filho de um barão de Messina, que não chegava a ter vinte anos, acompanhado por dois ou três soldados mais velhos, saíra em busca de meninos nos jardins. Estavam para desonrar um menino quando se viram cercados por cinqüenta homens carregando adagas curtas e machadinhas. Os francos lutaram ferozmente e decapitaram um oponente, mas estavam em grande inferioridade numérica e foram subjugados. Foram executados no local e os corpos levados e jogados ao mar.

— Por que isso é considerado sério o bastante para me acordar no meio da madrugada?

— Quando o filho não voltou, o barão partiu à sua procura. Naturalmente não o encontrou e exigiu que, a não ser que o qadi apareça com o seu filho, ele tomará reféns e os levará para Messina.

— Intolerável e inaceitável.

— Querem que o senhor diga a Guilherme que se isso acontecer a cidade vai explodir e adiará sua coroação indefinidamente.

— Vou falar com ele depois do enterro. Ibn Fityan, esta emboscada foi cuidadosamente preparada?

— Parece que sim.

— Existe alguma possibilidade de que alguém pudesse revelar a verdade?

— Ninguém sabe quem organizou e executou esse ataque. É uma organização secreta e todos fizeram votos de sigilo.

— Notável.

— Gostaria que o ajudasse a se despir?

Idrisi olhou para si mesmo e riu.

— Acho que posso resolver isso sozinho. Siga em paz. Bem desperto e alerta, Idrisi despiu-se e fez suas abluções. Começou a compor uma resposta para Balkis em sua cabeça, mas só estava pela metade quando adormeceu profundamente. Foi acordado por Ibn Fityan a fim de se preparar para o enterro.

A catedral estava cheia e poucas pessoas haviam se reunido nas ruas, mas o espectro do martirizado Felipe pairava sobre as cerimônias. O arcebispo de Palermo, que conduzia as exéquias, parecia tão jubiloso com seu papel que quase esqueceu que era para ser uma ocasião triste. Guilherme rendeu ao pai um flamejante tributo, com algumas das frases que ouvira no dia anterior de Idrisi. Mais tarde, o novo governante convocou seu antigo tutor ao palácio. Um velório fora organizado e a grande sala que testemunhara a humilhação de Felipe estava agora pródiga de comida e vinho.

Idrisi compareceu por uma razão apenas: afastando Guilherme dos bandos de cortesãos bajuladores, informou-lhe da situação na cidade velha. O jovem ficou muito zangado diante da idéia de que sua coroação fosse subvertida por excessos de barões e convocou o arcebispo. O prelado, deliciado por ter sido escolhido em tão distinta platéia, acenou com a cabeça obedientemente e desapareceu para executar a vontade do seu governante.

— Diga ao qadi que ele não precisa mais se preocupar. E, mestre Idrisi, descobri que foi o Amir de Catânia quem peidou nas duas ocasiões. Um homem notável.


16

Primavera em Siracusa.
Boa e má poesia.
Pais e filhos existem poucos deleites no mundo
tão agradáveis como uma primavera siracusana.

A fragrância das flores de limões, laranjas, abricós, amêndoas e pêssegos toma conta da cidade, enriquecida pelas brisas úmidas e salgadas do mar. Nas colinas nos arredores da cidade as plantações seculares, laboriosamente cultivadas, das oliveiras estão sendo cuidadosamente inspecionadas para se verificar os danos causados pelas tempestades de inverno e pelos relâmpagos. O sol irradia um calor de boas vindas e o ar está fresco, não tristonho e pesado como no verão.

E tudo isso é grandemente realçado quando uma pessoa está apaixonada. Desde sua chegada de Palermo um mês atrás, Idrisi e Balkis deleitaram-se na companhia um do outro. Não havia nada furtivo no seu comportamento, mas não fosse o fato de que saíam para cavalgar abertamente e às vezes eram acompanhados pelo próprio Amir, haveria uma incessante onda de mexericos. Os eunucos do palácio e algumas poucas serviçais leais sabiam que Balkis freqüentemente passava a noite no quarto de Idrisi e, embora comentassem entre si, garantiam que o segredo ficasse confinado ao palácio.

Uma manhã gloriosa e fresca, antes que o sol secasse a terra, ela insistiu que tirassem suas sandálias e banhassem seus pés no orvalho, nas folhas e na grama.

Era uma de suas curas para dores de cabeça persistentes e ele perguntou se ela estava se sentindo bem.

— Li um poema ruim de Ibn Hamdis esta manhã enquanto você ainda dormia e isso me deu uma dor de cabeça.

Ele sorriu:

— Balkis, você é injusta com o poeta. Existem alguns poemas insuportáveis, mas ele também escreveu versos muito belos. Não o deve punir porque Aziz pertence à mesma família.

— Não pode imaginar os elogios que reservam para ele. É como se nenhum outro poeta tivesse existido. Aziz é mais contido, mas mesmo ele insistiu em chamar nosso filho de Hamdis. Por que está rindo?

— Eu não a encorajaria, mas subitamente lembrei-me de uma quadra escrita por Ibn Hamid, um de meus amigos de infância em Noto.

— Nunca o mencionou antes.

— São muitas lembranças dolorosas. Brigamos antes que ele partisse. Acusou-me de ser uma criatura do sultão. Sinto muita falta dele agora e...

— A quadra?

— Deixe-me tentar lembrar. Um poeta menor de Noto, um freqüentador de bares e bordéis, está visitando Siracusa para escolher seu prostituto favorito.

Depara-se com Ibn Hamdis. O grande poeta está agitado e suas roupas amarrotadas. O visitante de Noto pergunta polidamente qual é a causa e um breve diálogo entre os dois chega abruptamente a um fim:

"Fui roubado! Os ladrões me arruinaram!" "Eu me solidarizo, compartilho sua desolação." "Roubaram um maço de páginas da minha poesia!" "Eu me solidarizo — com o pobre ladrão."

Ela riu desenfreadamente.

— Minha dor de cabeça passou. Sua cura funcionou.

Idrisi viera preparado para uma longa estada, acompanhado por Elinore, Ibn Thawdor e trezentos livros considerados necessários para o trabalho ainda incompleto.

Mayya prometera vir depois quando Afdal estivesse um pouco mais crescido. O dia de Idrisi era cuidadosamente organizado. Passava cinco horas na biblioteca do palácio, onde se surpreendeu ao encontrar alguns manuscritos de autores que lhe eram desconhecidos. Ficava impaciente com todo livro que contivesse superstições e as apresentasse como conhecimento científico. E houve muitos destes que descartou raivosamente no curso de seu trabalho.

O resto do dia era passado na companhia de Balkis. Eram capazes de conversar e rir durante horas. Ela aceitava sua ponderada crítica de Ibn Hamdis e fazia suas próprias observações mais cautelosamente, mas sua visão básica do poeta permanecia inalterada, embora concordassem em nunca discutir a questão com os descendentes do poeta.

Elinore implorara a ele que a deixasse casar o mais cedo possível. Observara o jovem casal na viagem de barco e estava convencido de que se destinavam um ao outro.

Perguntou-lhes se seriam felizes em se casar na ausência da mãe dela e dos pais dele e lhe disseram que ambas as partes haviam recomendado este curso de ação.

O Amir tomou conta da questão e numa bela manhã de domingo Elinore bint Muhammad e Ibn Thawdor foram casados pelo bispo numa cerimônia quieta na velha igreja bizantina. Reservaram-lhes uma série de aposentos no palácio e na festa daquela noite Ibn Thawdor tocou flauta para marcar seu próprio casamento.

Várias semanas depois um mensageiro chegou de Noto com uma carta de Sakina, sua filha mais velha, informando a Idrisi que a mãe dela morrera tranqüilamente poucos dias antes. O resto da família havia se reunido, com a exceção de Walid, e ela implorou a Idrisi que voltasse à propriedade para decidir o que deveria ser feito.

Não era uma decisão para ela ou qualquer outra pessoa.

— Tenho de ir — falou a Balkis.

— Estava contente de morrer sem ver minha casa de novo, mas Alá quis que fosse diferente. É estranho, mas nada sinto para com a mulher que partiu. Nada.

— Leve Elinore e Ibn Thawdor com você. Gosta da companhia deles e ela deveria ver a casa onde seu pai nasceu. Se eu não tivesse de executar as cinco amamentações obrigatórias para Hamdis, eu o acompanharia também, quando não para a eventualidade da poeira na jornada causar-lhe uma dor de garganta.

Partiram cedo uma manhã numa grande carroça coberta puxada por dois cavalos e com um séquito de quatro criados armados. Um novo caminho fora aberto para reduzir o tempo necessário para chegar a Noto. As razões disso eram militares, mas todo mundo se beneficiava e os mercadores ficaram especialmente contentes. Ao passarem por um antigo aqueduto insistiu para que interrompessem a jornada. Ele o tinha visto de longe em viagens anteriores e agora tinha uma oportunidade de observar sua estrutura mais de perto.

— Concordo em parar — disse Elinore — contanto que sejamos poupados de uma palestra sobre a Roma antiga.

Idrisi sorriu e ignorou o comentário, mas para puni-la levou Ibn Thawdor consigo e enriqueceu a compreensão do rapaz sobre o mundo antigo. Ao reiniciarem a jornada, caíram em silêncio. Pensavam todos no que vinha à frente.

Idrisi não via seu filho mais velho, Uthman, há quase vinte anos e sofria só de pensar no rapaz. Como médico, podia tentar a cura de dores e desordens estomacais, febres e picadas de cobras, mas não tinha idéia do que causava o sofrimento mental ou por que seu filho mais velho nascera com uma mente desordenada. Não havia problema com seu corpo. Fora normal como qualquer outra criança, com a exceção de que demorou a falar. Isto não o preocupara indevidamente até que o menino completou cinco anos e mal chegava a falar. Acabou aprendendo, mas via-se obviamente que era diferente dos demais. Preferia ficar sozinho. Falava longamente com animais da fazenda e podia ser visto rindo com eles, mas quando um humano se aproximava ele corria e se escondia num celeiro ou atrás de uma árvore ou se agachava no campo aberto e imaginava que ninguém podia vê-lo.

Não desejando que Elinore fosse apanhada de surpresa, Idrisi contou-lhe toda a história. Sua única reação foi segurar com força sua mão. Ela vinha pensando como a família receberia a ela e a Ibn Thawdor. Talvez fosse um erro ter vindo com seu pai.

O sol ainda estava alto quando entraram na propriedade nos arredores de Noto. A grande casa ficava no alto do morro aberto. Era construída em dois níveis ao redor de um pátio margeado por uma fileira de laranjeiras. Atrás da residência havia casas de camponeses construídas na encosta e perto delas uma pequenina mesquita com uma cúpula.

Abaixo da casa, de cada lado do caminho, havia terraços cultivados que desciam suavemente a encosta, construídos por seu avô. Frutas de toda variedade eram flanqueadas por amoreiras para os bichos-da-seda. Legumes e trigo cresciam nos campos planos das proximidades. A paisagem o agradou. A mãe de Sakina devia ser uma boa administradora — algo em que não podia inteiramente acreditar — mas não havia mais ninguém que pudesse ter supervisionado tudo, desde que ele partira e deixara claro que não tinha nenhuma intenção de voltar.

Viu Khalid cavalgando em sua direção, acenando, e Idrisi respondeu ao aceno. O menino tinha perdido a mãe e a avó no espaço de um ano. Um menino em crescimento precisa de uma mulher na casa. Umar deveria casar-se de novo.

— Jiddu, Jiddu — o menino gritava, ao se aproximar. Abandonou o cavalo que montava em pêlo e saltou para a carroça, abraçando o avô e dando um sorriso amplo ao ser apresentado à sua nova tia e a Ibn Thawdor. Havia crescido muito nos últimos seis meses. Barba e bigode começavam a brotar no seu rosto. Elinore esperava que seu pai não se referisse a isso e embaraçasse Khalid, mas ficou desapontada.

— Fico feliz em ver uma barba a caminho. Já decidiu se vai usá-la comprida ou curta?

— Não vou deixar crescer, Jiddu. Nem barba, nem bigode.

— Impensável, meu jovem. Impensável. Todo mundo em nossa família usa uma ou outra. Vou falar com seu pai.

Vamos ver o que ele tem a dizer sobre o assunto.

— O Confiável diz que estas coisas não têm nenhuma importância.

— Então por que ele usa barba?

— Porque é preguiçoso demais para se barbear. Está ansioso para vê-lo de novo.

— Ele está aqui?

— Sim, naturalmente. Veio conosco. Ele e Abu ficaram muito amigos.

Lá se vai minha propriedade, pensou Idrisi. O resto deles, também, o havia visto e esperava para recebêlo. Sakina beijou suas mãos e ele abraçou-a e beijou-a na cabeça. Seu marido estava presente, bem como os gêmeos. Abraçou Abu Khalid com calor especial. Foram todos apresentados aos recém-casados. Sakina, tendo perdido uma irmã, estava ansiosa para agradar à nova. Levou Elinore e Ibn Thawdor aos seus quartos. Idrisi olhou ao seu redor.

— Onde está Uthman?

— Vou levá-lo a ele — disse Khalid. A visão do seu primogênito sempre tinha um efeito perturbador sobre ele. Devia completar 35 anos este ano. A mulher que cuidava de Uthman viu quando se aproximavam. Pelo menos ainda está viva, Idrisi pensou consigo mesmo. Seu corpo forte e ossudo deve tê-la ajudado a sobreviver ao pior de uma dura vida. Então viu Uthman escondido atrás de uma árvore observando-o.

— A paz esteja com você, filho. Não vai se aproximar e cumprimentar seu velho pai?

Idrisi ficou chocado ao ver Uthman emergir do esconderijo. Tinha envelhecido muito além dos seus anos. Seus cabelos estavam brancos e caminhava com o ar de um frágil ancião. No entanto, falou com uma voz forte e segura.

— A paz esteja com o senhor, Abu. É bom vê-lo depois de tantos anos. Sabe, naturalmente, que minha mãe e minha irmã foram mortas por soldados romanos.

— Uthman, é bom vê-lo depois de todos estes anos. Precisa de alguma coisa? Qualquer coisa?

— Preciso de uma esposa, Abu. Uma esposa.

— Tem alguém em mente? Uthman levou o pai pelo braço até o cercado das ovelhas. Apontou para uma delas.

— Estou vendo, Uthman. Ovelhas.

— Aquela ali — disse ele, apontando de novo.

— Quero casar-me com ela. Não me diga que não é permitido, Abu. Quem não permite?

Quem?

Idrisi se deu conta de que uma referência ao Corão não surtiria muito efeito com seu filho. Decidiu tentar outra coisa.

— O imperador Romano proibiu o casamento entre humanos e animais.

Uthman gritou.

— Eu sei disso, naturalmente. É para desafiá-lo que vou levar adiante este casamento. Deixe que seus soldados venham. Nós os emboscaremos e mataremos.

Está com seu escudo e espada prontos, jovem Khalid?

— Sim, tio.

— Vá buscá-los. Quando Khalid desapareceu Uthman sentou-se na cadeira debaixo da árvore e falou de novo.

— Foi o grande pensador grego Pitágoras quem nos ensinou que os humanos foram reencarnados como animais, pai. Sabia disso? Por favor, prepare o meu casamento.

— Eu sabia disso, filho, mas onde ouviu falar a respeito?

— Na sua biblioteca. Vou lá muitas vezes para ler. Existem muitos livros de interesse. Gosto muito deles.

Lágrimas encheram os olhos do pai. O que saíra errado nesta criança? Os antigos escreviam sobre pessoas perdendo a cabeça, mas não tinham cura. Devia haver uma cura.

Por que deveria uma doença mental ser ignorada ou depender de remédios baseados em pura superstição?

— Não quer entrar em casa e dividir a comida conosco?

— Não posso, Abu, porque vocês vão sentar-se e comer minha madrasta. Eu a vi ser morta, despida, marinada, depois do que pequenas lanças de alho perfuraram seu corpo e então a cobriram com tomilho silvestre porque até eles estavam envergonhados da sua nudez. Pode vê-la agora sendo assada suavemente no fogo.

— Amanhã prometo que não consumiremos nenhuma carne. Comerá conosco então?

— Com grande prazer, Abu. Fico feliz em vê-lo de novo. E fiquei feliz em saber por meu sobrinho que seu livro foi completado. Obrigado por ter vindo me ver.

Ao caminhar de volta para casa, Idrisi refletiu sobre o fato de que o único membro da família que mostrara qualquer interesse pelo livro fora seu filho mentalmente perturbado. Depois, Sakina contou-lhe que na maioria dos dias, à parte suas conversas com os animais, Uthman era completamente normal. Apenas quando imaginava que os soldados o iam encontrar e matar é que deixava a casa e escondia-se fora dela durante dias. E tinha medo de visitantes — achava que eram espiões que voltariam e o delatariam ao comandante da Legião Romana em Siracusa.

— Por que envelheceu tanto?

— Aconteceu lentamente, mas não sabemos por quê. Ummi achava que devia ter alguma relação com a doença.

— Não estou nada seguro de que seja isso. Khalid, que os escutava, tinha outra teoria. — Acho que foi a tristeza que deixou seus cabelos brancos. Dia após dia, fica sentado na cadeira e observa os animais serem mortos. Isso realmente o perturba. Sabe de uma coisa, Jiddu, fico sentado com ele enquanto fala com os animais.

Tenta ensinar-lhes nossa história e sobre o nosso Profeta e as batalhas, mas geralmente fala com eles sobre a Grécia antiga e seus grandes filósofos. Aprendi muito com ele. Por que não o deixa casar com quem quiser?

— Khalid! — advertiu sua tia.

— O menino pode estar certo sobre a causa do seu envelhecimento prematuro. Não existe modo algum de afastá-lo dos animais? E se tirássemos todos os animais da propriedade?

A sugestão deixou Khalid em pânico.

— Nunca faça isso, Jiddu. Ele só acharia que foram todos mortos e se mataria também.

— Parece conhecê-lo melhor do que qualquer pessoa, meu filho. Claro que algo poderia se organizar para fazer com que os animais sejam abatidos à noite enquanto ele dorme. Se isso lhe causa tanta aflição, por que fazem à sua frente? O que acham?

Khalid pensou por um tempo.

— É uma boa idéia, mas ele conhece todos eles e sentiria sua falta. Ainda assim, seria a melhor solução.

Naquela mesma noite Sakina instruiu o açougueiro e as ovelhas e cabras foram removidas à noite. Na semana seguinte, Uthman parecia muito mais feliz e certa tarde sussurrou para Khalid.

— Meus amigos estão aprendendo a escapar. Sabem que vão ser abatidos e fogem toda noite. Eu lhes disse para fugir e se esconder nas cavernas perto do mar. Espero que minha noiva não fuja.

— Mas, querido tio. Não preferia que ela fugisse? E se eles a matassem?

— É um menino esperto. Sinto orgulho de você. Acho que vou ter de casar com outra pessoa.

Naquela noite a ovelha que havia chamado a atenção de Uthman foi tirada do cercado e preparada para a cozinha na manhã seguinte. Eles a comeram ao almoço e Idrisi notou Khalid remexendo nervosamente na carne sem comer quase nada.

Talvez não haja remédio para sua doença, pensou Idrisi, mas se existe uma cura deve ter a ver com entrarmos dentro de sua cabeça e Khalid fez mais do que qualquer adulto na casa.

O Confiável era da mesma opinião. Empenhara-se em um número de conversas com Uthman na biblioteca e ficou espantado ao ver que ele sabia onde se achava cada livro e, dos livros que havia lido, era capaz de citar números de páginas e referências sem qualquer problema.

— Talvez só uma parte da sua mente tenha deixado de funcionar. O resto é normal. Esta é a parte do corpo humano que os médicos menos conhecem.

Uma noite, depois do jantar, reuniram-se em torno de uma fogueira que fora acesa do lado de fora, comeram frutas secas e beberam chá de menta debaixo das estrelas.

Aquilo lembrou a Idrisi sua juventude. Chamou Elinore de lado e apontou para as luzes de uma aldeia distante.

— Eu cavalgava até lá uma vez por dia só para ver de relance sua mãe.

— E minha tia? — Não, sua danada. Ela era pequena demais para ser levada a sério.

Abu Khalid sugestivamente clareou a garganta e Idrisi e Elinore voltaram ao círculo familiar. Idrisi falou das mortes na família e elogiou sua falecida esposa pela maneira eficiente como havia administrado a propriedade. Uma reflexão inesperada o interrompeu.

— Gostaria que Walid estivesse presente para ouvi-lo dizer isso, Abu. Teria ficado feliz.

Idrisi sorriu.

— Eu também gostaria que ele estivesse aqui, Uthman. Que Alá proteja todos os meus filhos.

Descreveu como era uma terra inculta cheia de morros quando seu avô ali chegara num verão. Precisaram de seis meses só para arrancar as pedras do chão para construir os primeiros poucos terraços. Muitas das pedras foram usadas para construir a casa. Quando as chuvas de inverno chegaram, a terra se transformou, os morros ficaram verdejantes e os riachos transbordaram. Só então ficaram seguros de que tinham feito uma boa escolha.

— E agora temos decisões a tomar. Ainda que eu permaneça nesta ilha, nunca mais viverei aqui de novo. Sakina mora com a sua família. Abu Khalid e Khalid são felizes na sua propriedade. Uthman, naturalmente, viverá aqui com seus amigos, mas não pode dirigir a propriedade. Os camponeses que trabalham nestas terras, como seus ancestrais antes deles, sofrerão muito se vendermos a propriedade. Eu me perguntava como deveríamos resolver esse problema quando Khalid me contou que ele e o pai haviam convidado o Confiável para juntarse a nós. Então eu me volto para ele. Homem santo, se é isto o que realmente é, explique-nos como vamos ensinar os camponeses a prestar falso testemunho descaradamente a fim de se defender contra o futuro. Soubemos todos da aldeia onde milagres aconteceram depois da sua visita.

O porte do Confiável havia se alterado desde que se encontrara com a irmã de Bulbula. Cortara o cabelo e aparara a barba. Banhava-se com mais freqüência e vestia roupas limpas, tudo em parte por causa de um pedido feito pela irmã de Bulbula. Mas também estava ciente de que descrições suas circulavam em toda a ilha e que os lombardos velhacos logo estariam em busca de sua vingança.

O erudito havia feito perguntas que requeriam uma resposta.

— Douto mestre Idrisi, eu lhe agradeço e à sua família pela hospitalidade que me deram. A meu ver, existem poucos problemas em relação a esta propriedade. Os camponeses não foram maltratados e são todos Crentes. O tamanho da propriedade não é excessivo. Andei fazendo alguns cálculos.

Existem cem famílias camponesas, além de seis empregados na casa.

— Na verdade, Confiável — disse Uthman — existem 103 famílias e oito empregados. Esqueceu de contar o açougueiro e o lenhador que comem diariamente em nossa cozinha.

— Obrigado por me corrigir, Uthman ibn Muhammad. Há terra suficiente para ser dividida entre estas famílias. Isso deixará terra bastante para manter a propriedade, não como antes, mas certamente sem criar um problema. Existe ainda a questão de prestar falso testemunho. Isso é desnecessário pois o próprio Ibn Muhammad assinará os documentos de transferência, que podem ser registrados em Noto. O problema é o futuro. Se formos derrotados, a única maneira que os camponeses têm de conservar as terras é fingir que são nazarenos. Vocês têm uma pequena mesquita aqui, mas nenhuma igreja. Acho que precisamos de uma. Grega, não latina. É mais simples. Se os camponeses concordarem, vi um local onde poderia ser construída facilmente. Uma vez feito isso, precisamos de um monge e de um registro em que ele testemunhará que converteu a aldeia no dia em que Rujari morreu para honrar sua memória.

— Confiável — Uthman perguntou numa voz nervosa -, meus amigos serão forçados a se tornar nazarenos?

— O que são eles no momento?

— Não são nem Crentes nem nazarenos. Ainda adoram o antigo deus grego, Posêidon.

— Não será necessário que se convertam.

— Nem eu, então. — Isso não será um problema.

— Talvez tudo isso possa ser feito — disse Idrisi — mas nossos camponeses são muito religiosos e duvido que concordarão em mudar de religião para conservar sua terra.

— Esta é uma ilha estranha — disse o Confiável.

— Seu clima e seu modo de vida têm uma maneira de afetar todo mundo. A escolha é ou deixar que o tirano colha os frutos que semearam e serem expulsos da terra ou fingir que foram batizados. Podem rezar para Alá cinco vezes por dia nos campos ou em casa. Mas a escolha é deles, não sua ou minha. Isso eu aprendi na outra aldeia. Havíamos vencido, mas os camponeses tinham medo de represálias. E prometer-lhes que não haveria matanças de vingança porque íamos ser vitoriosos e retomar a ilha não era convincente. Não estou seguro de que isso seja possível, dado nosso atual estado, por isso como poderia convencer outra pessoa? Foi então que pensei nas conversões planejadas por nós como uma defesa para aquelas forçadas ao nosso povo pela força da espada. O que há de mau nisso? Alá seja louvado, se vencermos. Se perdermos, vamos garantir que os camponeses e suas famílias fiquem seguros, embora nós possamos não ficar. É o mínimo que pode ser feito por eles.

— É conselho sensato, devo concordar — disse Idrisi.

— Mas nesta propriedade eles não tiveram de lutar contra a adversidade e isso lhes deu uma extraordinária autoconfiança.

Vou apoiar o seu conselho.

Elinore e seu marido discutiram seu futuro através da noite. Ela queria deixar Siqilliya, mas ele queria ficar para que seus filhos nascessem ali. Lembrou a ela que sua família havia vivido em Siracusa desde que a cidade fora construída. Ela argumentou que não podia suportar a idéia de ver seus filhos nascerem em meio a carnificinas e à incerteza. Se Rujari, que ela amava, pôde matar Felipe, a quem ela admirava, o derramamento de sangue nesta ilha jamais iria parar. Ele debruçou-se e sussurrou algo no ouvido dela que a fez rir. Foi uma risada profunda, sonora, espontânea, saída direto do coração.

— Isto quer dizer que chegamos a um acordo, minha senhora?

— Apague a vela, Simeão, e deixe-me dormir. Você saberá pela manhã.

Na manhã seguinte o som de sua flauta a acordou. À primeira luz matinal na janela ela o viu, seu rosto inclinado para um lado, os olhos fitando tristemente o mar distante. Nunca percebera que a música poderia tal um efeito em si. Agora desejava ter cedido à pressão da mãe e ter aprendido a tocar o alaúde quando ainda moravam no palácio. Havia tomado sua decisão, mas comunicaria a Simeão depois.

O Confiável acordou cedo para que pudesse falar com as famílias camponesas. Tinha organizado um mehfil no final da tarde, uma hora antes do tempo em que normalmente acabavam de lavrar os campos. Tudo o que lhes disseram foi que Ibn Muhammad alIdrisi havia voltado à propriedade e desejava conversar com eles. Sakina já estava na cozinha supervisionando a comida que tinha de ser preparada para alimentar a assembléia.

Idrisi havia levado Uthman numa caminhada para respirar e inspecionar os pomares. Uthman também se mostrou competente aqui, olhando atentamente para cada árvore e calculando as frutas que daria mais para o fim do ano. Sua constante ânsia de se afirmar alegrou o pai, que ficou a pensar se não o teriam abandonado por muito tempo e falar com ele todo dia e tratá-lo como uma pessoa normal não poderia tê-lo curado parcialmente.

Subitamente, à distância, ouviram o som de pessoas correndo em sua direção e acenando para eles. Uthman congelou, o rosto tomado pelo medo. Idrisi colocou os braços em volta dos ombros do filho e disselhe para não se preocupar, eram amigos, não soldados romanos.

— Tem certeza, Abu? Nenhum de nós está usando espadas. Uma Elinore de olhos brilhantes e Simeão, seus cachos dourados agitados pela brisa, ambos ligeiramente ofegantes, pararam de correr quando viram o pai. Uthman sorriu e relaxou de novo. Gostava de Elinore e adorava ouvir Simeão tocar a flauta. Idrisi olhou para ela e soube no instante que tinha algo a lhe dizer mas não esperava encontrar Uthman com ele.

— O que se passa em sua cabeça, filha? Não há segredos para o seu irmão.

— Vou sentar-me debaixo da árvore, se quiserem — disse Uthman.

— Não!

— Então fale.

— Simeão ibn Thawdor e eu temos pensado muito. Chegamos a uma decisão, mas só se ela tiver a sua aprovação, Abi. Gostaríamos de vir morar aqui com Uthman e... se o Confiável está certo quanto à necessidade de construir uma igreja, então Simeão poderia, quando fosse necessário, vestir uma batina de monge e esconder sua flauta.

Uthman bateu palmas de entusiasmo e Idrisi riu. Estava surpreso e contente. O que o preocupava era a idéia de Uthman, abandonado por sua família e dependendo apenas dos criados. Sentia-se culpado de ter abandonado o rapaz quando ainda era jovem. Agora sua filha decidira fazer o que ele deveria ter feito anos atrás.

— Uma decisão maravilhosa! Contanto que se sintam felizes aqui, todo mundo será feliz. Mas até que precise se tornar um monge, Simeão, você deveria escolher um pedaço de terra e cuidar dele.

— Vou fazer isso — respondeu -, mas antes precisamos construir uma pequena igreja. Um cúpula, uma cruz e bancos toscos de madeira, sem adornos, dentro dela. O mapa está na minha cabeça. Podia ser usada como escola. Elinore está decidida a ensinar as crianças a ler e escrever em árabe e grego.

— Quando vão ter as crianças?

— Uthman! — ela gritou ao vê-lo de pé, as pernas afastadas, as mãos nos quadris.

— Acabamos de casar. Nos dê um tempo. Simeão estava falando das crianças da aldeia.

— Fico muito feliz que você e Simeão vão morar aqui comigo. Muito feliz. Temos muito a discutir, mas agora, se me derem licença, preciso ir para informar meus amigos.

Quando os aldeãos chegaram para o mehfil, vestiam suas melhores roupas. Idrisi, que conhecia a maioria das famílias, sentou-se com eles um pouco enquanto comiam e falavam de como a ilha era antes de chegarem. Tudo o que se cultivava era trigo. Agora tinham algodão e bichos-da-seda e a árvore de sumagre para curtir e tingir e nossas tecelãs — e falavam só de Noto — eram as melhores da ilha, se não no mundo inteiro. Uma voz acrescentou:

— Noto foi a última a se entregar e será a primeira a se levantar contra eles.

Depois que comeram, Idrisi e o Confiável falaram cada um por sua vez e explicaram como viam o futuro da propriedade. Os aldeãos ficaram exultantes quando Idrisi lhes disse que a terra pertenceria a eles, mas menos felizes quando o Confiável gentilmente explicou que o caminho da sobrevivência a longo prazo poderia necessitar um desvio pela igreja.

— Confiável — um jovem camponês perguntou -, é normal sonhar com vitórias e triunfos, mas o senhor só fala de derrota. Tem certeza de que seremos derrotados? Nossa aldeia ofereceu cinqüenta jovens para lutar na jihad.

— Meu amigo — respondeu o Confiável -, é melhor estar preparado para tudo. Não sei se vamos vencer ou perder. O que fizerem deve ser da sua própria escolha. Se formos derrotados estou lhes dizendo que, assim como a noite sucede ao dia, os lombardos virão para matar todos vocês e roubar sua terra. Mataram gregos também, de modo que a igreja poderia não ser proteção suficiente, mas pelo menos lhes oferece uma oportunidade.

Idrisi apresentou-lhes Elinore e Simeão. Explicou sem embaraço como ambos haviam sido batizados e viveriam na casa com seu filho Uthman. Falou do desejo de Elinore de ensinar seus filhos a ler e escrever. Aconselhou-os a seguirem os conselhos do Confiável e então, talvez porque pensasse em Balkis, citou uma parelha de versos de Ibn Hamdis.

— Nosso poeta escreveu: "Exauri as energias da guerra! Carreguei em meus ombros os fardos da paz." Estes fardos permanecem e é para aliviar a carga que o Confiável sugere que, caso se torne necessário, escondam sua verdadeira religião. Tais períodos não são desconhecidos na história do nosso povo.

Depois de novas discussões, chegou-se a um entendimento e na sua presença Idrisi pediu ao Confiável que preparasse uma série de registros, um para a terra, outro para a igreja. E então, como se para confirmar seus novos sonhos, Simeão tocou uma melodia jubilosa na flauta e todo mundo começou a bater palmas em ritmo, até que alguns jovens se levantaram e começaram a dançar. Era, como Idrisi contou depois a Simeão, uma dança tradicional berbere que ele não via há muitos anos, memórias da vida no passado distante.

Naquela noite Idrisi chamou o pai de Khalid de lado.

— Umar, você é como um filho para mim. Posso falar francamente com você?

— Claro, Abu Uthman. Por favor.

— Khalid está crescendo rapidamente. Daqui a pouco vai estar discutindo e implorando com você para deixar esta terra e fincar seus pés e sua fortuna em outro lugar.

Mas sinto que falta ao menino o afeto de uma mulher. Já pensou em se casar de novo?

— Já, mas ainda não encontrei uma mulher que me atraia.

— Noto e Siracusa estão cheias delas, suas peles da cor de abricó e sua risada como as ondas de um regato.

Não encontrará ninguém na sua propriedade. Saia por uns tempos. Dê a si mesmo uma oportunidade.

— É um bom conselho e vou ver se posso satisfazer tanto ao senhor como a mim mesmo.

Na manhã seguinte, Khalid e seu pai, acompanhados pelo Confiável, deixaram a propriedade e Sakina os seguiu poucas semanas depois. Seu marido e filhos tinham voltado no dia seguinte aos funerais e ela achava que era hora de voltar e cuidar de suas necessidades. A casa estava virtualmente vazia e Uthman sentia falta do sobrinho, por isso Simeão e Elinore decidiram não voltar com Idrisi no dia seguinte para buscar suas coisas.

— Todas as nossas roupas já estão em Siracusa e minha tia Balkis pode empacotá-las e mandá-las para cá. Não quero deixar Uthman. Se todos nós fôssemos embora o choque poderia ser demais para ele.

— Por favor, transmita meus respeitos e amor ao meu pai quando voltar a Palermo. E diga a ele que estou construindo uma pequena igreja. Isso agradará a minha mãe.

Idrisi abraçou e beijou cada um deles e ficou profundamente afetado ao ver lágrimas nos olhos de Uthman.

— Abu, foi um prazer verdadeiro ver o senhor depois de tanto tempo. Por favor, volte e antes de vinte anos, oito meses e quatro dias.

Os olhos de Idrisi estavam úmidos ao embarcar na carroça e era Uthman quem ocupava mais seus pensamentos na jornada de volta a Siracusa. Lembrou como todo o seu amor e suas esperanças tinham se concentrado em Walid, como era Walid quem ele levava por toda parte consigo. Foi Walid quem se encontrou com o sultão e viajou para conhecer velhos amigos da família em Shakka e Marsa Ali. Foi a Walid que ele fez confidências. Não se arrependia disso, mas ficou furioso agora por seu fracasso em entender que Uthman precisava muito mais dele.

Observar a mudança em Uthman fora uma revelação. Talvez escrevesse sobre isso no seu livro para ajudar outros que tinham de lidar com crianças anormais. Em muitas aldeias, crianças como Uthman eram deixadas na rua para morrer. Não tinham feito isso, mas os cuidados que lhe dispensaram foram muito melhores? O menino fora largado nas mãos de uma surda que cuidara de alimentá-lo e vesti-lo. Quem podia culpá-lo por buscar consolo no reino animal? Idrisi ficou até pensando se não deveria voltar à propriedade por um tempo. Poderia completar o Formulário em sua própria biblioteca. Mayya e Afdal viriam também. Era a vez da casa de Palermo ficar vazia por algum tempo. E Balkis poderia vir aqui sempre que o desejasse. Quanto mais pensava nisso, mais a idéia o atraía. Seu navio estava ancorado em Siracusa; voltaria a Palermo e traria todos a Noto. A enseada não era tão grande como a de Siracusa, mas ótima para o seu barco. E talvez levasse Uthman consigo para Veneza e surpreendesse Walid. Estava longe de Palermo há quase três meses — surpreendente como não sentia falta da cidade.

Mesmo um ano atrás a idéia de morar em qualquer outro lugar teria sido risível. A História havia mudado tudo. Felipe e Rujari. Os dois homens mais próximos de si no palácio. Não apenas História. Mayya e Elinore e Balkis.

Quem poderia ter previsto o que acontecera? Não Alá. Então pensou: se Felipe estivesse vivo e Rujari morto teria sentido o mesmo em relação a Palermo? Tinha dito não a Guilherme, mas se Felipe houvesse insistido que ele pudesse ser de serviço vital para o estado, teria sido capaz de declinar tão rapidamente, ou chegaria sequer a declinar? Quem teria vencido o cabo-de-guerra por seus serviços? Felipe ou Balkis? A História só poderia ser o resultado de uma imaginação desordenada.


17

Massacre em Palermo.
Ydrisi decide nunca mais visitar a cidade.
Parte para Bagdá.

Sabia que algo estava errado no minuto em que entrou no palácio em Siracusa. Quando o guarda o viu no portão, assinalou para o porteiro e rostos tristes se desviavam dele enquanto um tristonho camareiro o conduzia à câmara privada do Amir.

Espero que nada tenha acontecido com Balkis, pensava consigo mesmo o tempo todo. Foi a visão de Abu Fityan que o espantou. O homem caiu de joelhos e recostou a cabeça nos pés de Idrisi.

— Perdoe-me, Ibn Muhammad. Perdoe-me.

— Alguém pode me contar o que aconteceu? Mayya?

Balkis acenou com a cabeça.

— Morta? Por quê? — ele chorou convulsivamente.

— Afdal?

— Está seguro aqui conosco e dorme profundamente.

— Alá seja louvado. Ibn Fityan, pare de chorar e me conte o que aconteceu.

Mas as lágrimas continuavam a rolar. Depois de algum tempo, a história começou a desdobrar-se, interrompida pelo choro e pelas perguntas dos presentes. Concluiu-se que o que aconteceu foi uma chacina de vingança.

O barão de Messina queria saber por que o jovem sultão lhe ordenara que não fizesse reféns em Palermo. O sultão explicou que era um comportamento inaceitável e que mestre Idrisi o aconselhara de que poderia provocar uma reação explosiva. O barão fizera uma mesura e se retirara. Foi o que relataram a Ibn Fityan os eunucos do palácio que entreouviram a conversa. A atmosfera na cidade estava tensa. Houvera outra refrega e os dois lados injuriavam um ao outro. Dois dias depois, Mayya achou que Afdal, que se recuperava de uma febre, poderia se beneficiar do ar marinho. Pediu a Thawdor e a Ibn Fityan que acompanhassem a criança e a aia até a beira-mar.

Quando voltei, mestre, havia sangue nas escadas e meu coração começou a martelar. Corri e vi os corpos dos empregados caídos no chão. Tinham sido destripados e suas gargantas foram cortadas. Só havia um sobrevivente. Estava no seu quarto e escondeu-se debaixo da cama. A senhora Mayya fora desonrada e morta.

Idrisi e Baileis, ignorando a presença de Ibn Fityan, consolaram-se, enxugando as lágrimas das faces um do outro.

— O que aconteceu, Baileis? Por quê? Eu devia ter insistido para que ela viesse para cá. Devia tê-la obrigado a vir. Minha pobre Mayya. Por que ela? Por que não eu? Era atrás de mim que estavam. Como vou encarar Elinore? Deve ir e contar a ela, Baileis. Sim, sim, Ibn Fityan, termine a sua história. Não chore, homem. Fico feliz que esteja vivo. Se não fosse assim, teriam matado Afdal, Thawdor e você. Como poderia tê-los salvo? Teria sido morto com o resto. Não foi sua falha. Não há razão para sentir-se culpado.

Ibn Fityan enxugou as lágrimas e continuou.

— O menino que sobreviveu contoume que os homens estavam bêbados, gritando obscenidades e destruindo tudo. Alguns de seus livros foram jogados pelas janelas. Os restantes estavam no chão onde aqueles animais defecaram e urinaram neles.

A tristeza de Idrisi misturou-se com raiva.

— Não há limite para estes bárbaros?

— Toda a cidade está chocada com o crime, Ibn Muhammad. O sultão ordenou a prisão do barão de Messina. Quer que o barão e seus asseclas sejam executados publicamente. O bispo inglês recomenda cautela.

Idrisi lembrou-se do inglês, de meia-idade, com olhos castanhos claros e cabelos ralos, inteligente, impiedoso com uma voz rouca irônica e desagradável, mas também com uma capacidade ilimitada de bajular aqueles no poder ou próximos a ele. A maioria das cortes os possuem, mas esse bispo era único. Rujari jamais gostara dele ou confiara nele, freqüentemente observando que o homem era pago pelo Vaticano.

— É uma figura do mal. Monges nunca recomendam cautela quando se trata de matar o nosso povo.

Ibn Fityan sacudiu a cabeça tristemente.

— O sultão envia suas condolências e deseja que o senhor retorne a Palermo.

— Não retornarei. Não desejo ver aquela casa de novo.

— Uma decisão sábia.

— Onde está Thawdor?

— Está aqui. Queria ver seu filho e, como eu, não suporta mais ver Palermo ou a casa. Trouxe a aia também, já que Afdal ibn Muhammad está acostumado com sua presença.

— Agiu bem em trazê-lo para cá. Vocês dois podem me acompanhar de volta à propriedade. Talvez Afdal...

— Deixe-o aqui — disse Balkis.

— Haverá tempo depois. Elinore precisa de você e não deve haver distrações.

— Ibn Fityan, seria oportuno se você e Thawdor permanecessem na propriedade. Ele pode trazer sua esposa também.

— Farei como sugere, mestre. Depois que Ibn Fityan deixou a sala, Balkis puxou Idrisi junto a si, repousando sua cabeça no seu colo, e acariciou seus cabelos com os dedos.

— É insuportável, Balkis, que ela fosse punida em meu lugar. É insuportável. E aqueles animais a violentaram e humilharam. Meu filho Uthman me reprovaria por referir-me a eles como animais. Ele acha que os humanos são muito piores.

— Uthman? Seu filho? Nunca falou dele antes.

— Os humanos têm esta capacidade de se escudar das verdades desagradáveis. Envergonho-me de nunca ter falado de Uthman.

Ficou tão feliz de conhecer Elinore que pediu que lhe contasse a respeito de Mayya.

— Quero saber tudo sobre Uthman. Para distrair a ambos da sua dor, descreveu-lhe a história de Uthman em detalhes, como achava mais fácil relacionar-se com animais ou jovens humanos como Khalid do que com a raça humana. Balkis decidiu-se a levar seus novos irmãos para conhecê-lo. Mas agora Idrisi devia partir de novo para sua propriedade a fim de dar a Elinore as notícias terríveis da morte de sua mãe. Antes de sua partida ele quis ver Afdal. Balkis levou-o pelo braço até o quarto onde o menino dormia.

Chorou de novo ao ver seu filho adormecido, com menos de seis meses de idade. Quem podia amá-lo como sua mãe o amara? Ela quase leu seus pensamentos.

— Tenho leite suficiente para os dois — disse.

— Vou criá-lo como se fosse meu próprio filho.

— Talvez dentro de poucos meses eu devesse levá-lo para nossas terras. Deixe-me falar com Elinore.

Ao deixarem o quarto, viram o Amir que cumprimentou Idrisi com um abraço caloroso.

— Alá tenha piedade de nós, Ibn Muhammad.

— Ninguém mais tem — disse o erudito.

Algumas horas depois que ele partiu, Balkis amamentava as duas crianças e notou que Afdal empurrava seu mamilo para o lado antes de agarrá-lo de novo, enquanto Hamdis agarrava-se ao mamilo como um inseto. Talvez meu leite tenha um gosto diferente e ele tenha notado. Mas Eudóxia, a criada que sobreviveu ao massacre, tranqüilizou Balkis.

— Ele é assim com cada teta, minha senhora, se perdoa meu jeito de falar. Sua irmã — que Deus a abençoe — lutava sempre para amamentá-lo. É um garoto forte e vai dar muito trabalho às mulheres, Deus o abençoe.

— Vai à igreja todo domingo?

— Sim, minha senhora.

— Acha que aqueles bárbaros que mataram minha irmã e os empregados a teriam poupado se vissem o crucifixo pendurado no seu pescoço?

— Não, minha senhora. Duas das garotas que foram mortas tinham a mesma cruz ao redor de seus pescoços. Eram animais, minha senhora, piores ainda. Lombardos! Não eram desta ilha. Nossa gente...

— Existe uma velha igreja grega em Siracusa. Dizem que existem dois ícones que reluzem e sorriem no escuro. Nunca estive dentro dela. Conte-me como é.

— Vou contar, minha senhora, e obrigada pela bondade. Quando Idrisi estava afastado por mais de quatro semanas, Balkis começou a entrar em pânico. Sentia-se negligenciada e lembrou algo que Mayya lhe dissera quando estavam ambas grávidas.

— Amor e ciúme são irmãs, Balkis. Eu sou o amor e você é o ciúme.

Na ocasião ela rira e saudara a observação com sonoros protestos, mas sabia que continha mais do que um único grão de verdade.

Enquanto Mayya vivia, Balkis se reconciliara com a idéia de ficar com Aziz e compartilhar Idrisi com a irmã. Agora ela o queria o tempo todo. Se ele decidisse morar na propriedade, poderia visitálo três ou quatro vezes por semana. Eram três horas a pé até Noto. Podia ir a cavalo em menos de uma hora. Começou a planejar.

O que ela queria agora era outro filho. Então poderia deixar Hamdis com seu pai e poderia morar com o seu Muhammad.

Idrisi voltou na semana seguinte e foi primeiro até o seu filho, que estava com Eudóxia nos jardins. Segurou o menino e o beijou muitas vezes antes de ir à procura de Balkis. Ela o abraçou firme enquanto ele lhe contava tudo o que acontecera.

— Nada que você não pudesse imaginar, minha amada. Elinore estava inconsolável. Não havia nada que eu pudesse dizer ou fazer para a consolar. Ficou no seu quarto e recusou-se a comer. Acho que foi a flauta de Simeão que a atraiu para fora de novo. Conversou interminavelmente com Ibn Fityan e Thawdor, mas eles lhe pouparam os piores detalhes. Então ela, também, disse que nunca mais queria voltar a Palermo. Uthman levou-a em longas caminhadas e ela voltou com alguma cor nas faces.

Quer muito que você vá com os meninos. Simeão ficou abalado pelas notícias, também. Foi por puro acaso que seu pai sobreviveu e implorou ao velho para que mandasse chamar sua mãe. Ibn Fityan vai ficar na propriedade. Portanto, a morte da minha pobre Mayya nos trouxe todos de volta ao Val di Noto.

— E você, habibi? Onde vai ficar?

— Quero ver as crianças crescerem e Elinore reencontrar a felicidade. Vou terminar meu livro aqui na fazenda. E antes que pergunte quanto tempo o livro vai demorar, deixe-me informála, senhora Balkis, mais três meses e estará terminado. Volto amanhã. Quando virá?

— Com você, amanhã.

— E com as crianças?

— Sim. Como sabe, Ibn Muhammad, meu marido é bondoso e...

Colocou a mão sobre a boca de Balkis.

— A morte de Mayya piorou as coisas para nós. Não vê-lo todo dia é agora muito mais difícil.

Ele acariciou a sua mão. Partiram cedo para evitar que os meninos fossem submetidos ao sol do meio-dia. Balkis e Idrisi cavalgaram, enquanto Eudóxia e outra empregada eram transportadas de carroça. O grupo de Siracusa foi recebido com genuíno calor. Elinore agarrou-se à tia enquanto as duas mulheres choravam. Simeão mostrou a igreja já pronta orgulhosamente para eles, Eudóxia caindo de joelhos no minuto em que entrou para fazer uma prece. Simeão observou-a calmamente.

— Se os acontecimentos previstos pelo Confiável vierem a ocorrer, esta pequena edificação poderá ser a salvação desta propriedade.

Elinore era agora aceita como a senhora da casa e da fazenda. Havia reservado quartos para eles e Balkis ficou preocupada ao descobrir que iria compartilhar o quarto de Idrisi.

— Será prudente? — sussurrou para a sobrinha.

— Uthman não acharia isso de mau gosto?

— Ele é um verdadeiro pagão, tia. Acharia estranho se vocês tivessem quartos separados, pois sabe que Hamdis é nosso irmão.

— Você criou um mundo sem segredo de espécie alguma?

— Ninguém sabe que estou grávida. Balkis abraçou e beijou a sobrinha.

— Fico tão feliz por você.

— Espero que seja uma menina, tia. Quero chamá-la de Mayya.

— Às vezes o que a gente quer, a gente consegue.

— Não segundo Abi. Seu conhecimento médico ensinou-lhe diferentemente.

— Como vai seu livro?

— Está quase terminado, diz ele, mas Uthman, que usa a biblioteca mais do que o resto de nós, não está tão convencido assim. Diz que faltam ainda mais uns seis meses de trabalho. E isso é outro segredo. Seria repreendido se descobrissem que está lendo o manuscrito toda vez que Abi sai para uma caminhada.

Balkis expressou surpresa diante das capacidades de Uthman.

— Ele é normal a maior parte do tempo. Gosta de viver num mundo fechado. Certa vez perguntei se visitaria Siracusa e ele saiu correndo da sala e foi para a sua árvore. Descobri as coisas que o perturbam e se evitamos mencioná-las ele se comporta como qualquer outra pessoa. Fala coisas estranhas às vezes. Certa vez me disse que se não houvesse uma biblioteca na casa ele teria morrido. E fala sério, cada palavra que diz.

— Parece que ele se conhece melhor do que a maioria de vocês o conhece?

— É muito simples, tia, mas não posso explicar por quê. Balkis já se sentia à vontade. Não tinha responsabilidades domésticas, além de amamentar as crianças e, quando Idrisi trabalhava, persuadia Uthman a mostrar-lhe a fazenda, ouvindo atentamente enquanto ele descrevia cada árvore e planta. Então ela conheceu os animais.

Mais tarde naquela noite, depois de amamentar os bebês, voltou ao seu quarto e encontrou Idrisi com um terrível acesso de tosse. Ao se aproximar, ele ergueu os olhos com um ar de súplica.

— Em nome de Alá, mulher, não vê que preciso de leite? Então ela se deu conta.

— Meus seios estão vazios. Seus filhos são tão gulosos quanto o pai.

— Quando vão ficar cheios de novo?

— Dentro de poucas horas. Ela o aninhou.

— Não quero deixá-lo, Muhammad, mas preciso voltar amanhã. Vai ter uma festa em homenagem a Aziz.

— Por que nunca há uma festa em minha homenagem?

— Porque ele é o Amir de Siracusa e você, meu querido, é apenas o Amir do Livro. Os homens ricos da cidade adoram homenagear uns aos outros. O anfitrião de amanhã é um mercador judeu, o que significa que poucos nazarenos comparecerão. Aziz convidou todos os nossos notáveis e, o que é fora do comum, suas esposas deverão estar presentes também. A maioria delas são criaturas plácidas, caprichosas e mimadas e se queixarão amargamente de que foram forçadas a ir.

— Estranho como nos últimos quinhentos anos o destino dos judeus esteve muitas vezes ligado ao nosso próprio futuro. Quando nós sofremos, eles sofrem. Quando prosperamos, eles prosperam. Quando estão presentes e nós não estamos, não conseguem se defender e são chacinados como carneiros. É a mesma história aqui, em alAndalus e em al-Quds, Bagdá, Cairo e Damasco.

— Vou repetir estas palavras sábias para o meu marido. Talvez ele encontre um uso para elas na festa.

— E, se me permite, gostaria de encontrar um uso para você esta noite.

E Balkis ficou grávida pela segunda vez. Idrisi recordaria estes oito meses na fazenda como os mais felizes de sua vida. Uthman o surpreendia a cada dia. Seus momentos ruins tornaram-se cada vez mais raros e sua saúde melhorou consideravelmente. Sua manqueira desapareceu totalmente e as manchas na pele desapareceram.

Elinore confiou ao pai que, embora ele ainda amasse ovelhas, sentia que estava pronto para o casamento com uma mulher e talvez sua tia pudesse ajudar.

É possível, respondeu seu pai, que Balkis encontre alguém inteligente que se pareça também com uma ovelha.

Idrisi percebeu que Uthman estava lendo em segredo o seu livro, mas, longe de se zangar, ficou empolgado. Assim que o fato veio à tona, os dois discutiram vários trechos e ele pedia a Uthman para comparar al-Kindi com Hipócrates em relação a uma cura específica. Uthman conhecia cada livro da biblioteca. Sem os trezentos novos acréscimos, ele havia contado 3.421 volumes.

E havia Balkis, cujas visitas à fazenda se tornaram mais freqüentes à medida que sua barriga aumentava. Nunca amara uma mulher assim antes, nem mesmo Mayya. Via Balkis e Elinore, ambas na gravidez adiantada, caminhando juntas e comparando seus ventres. Agradava-lhe vê-las assim e certa vez Uthman se perguntara em voz alta quem nasceria antes, o sobrinho ou o irmão. E se fossem uma sobrinha e uma irmã, o pai lhe perguntou. Encolhera os ombros. Não tinha a menor importância para ele.

Enquanto Hamdis ficara no palácio sob os cuidados de uma ama-de-leite, Afdal crescia na fazenda. Mesmo quando Balkis tinha de voltar para Siracusa, ela o deixava nas mãos seguras de Eudóxia. Mas quem Afdal, já crescidinho, adorava era o seu tio Uthman, que passava grande parte do tempo com ele e lhe falava como se estivesse falando com um par. O resultado foi que as primeiras palavras que Afdal falou foram belamente expressas: amigo, ovelha, livro, manteiga, cabra, flauta e Simeão.

O livro foi terminado dois meses antes que as novas crianças nascessem e Idrisi ficou irritadiço. Foi Balkis quem sugeriu que ele e Uthman fossem visitar Walid em Veneza. A mera sugestão fez Uthman correr para a sua árvore e ele ficou lá até que Balkis e Elinore chegassem para consolá-lo e pedir desculpas pela sugestão.

— Por favor, não se livrem de mim — foi tudo o que disse para elas.

Balkis ficou mortificada. Ao contrário do seu filho, Idrisi estava pronto para viajar de novo. Sentia falta do mar, mas também sabia que se não fosse ver Walid agora logo poderia ser tarde demais. De lá iria para Alexandria e para o Cairo renovar velhas amizades quase esquecidas. Ele, que se perdera no seu trabalho por tanto tempo, agora sentia a necessidade de estar numa cidade em que os Crentes dominassem, mas não qualquer cidade. Os bárbaros já são ruins o bastante, pensou, mas temos nossos próprios bárbaros, que queimam livros dos nossos maiores filósofos e castigam os poetas. Se os verdadeiros bárbaros e nossos bárbaros chegarem um dia a se aliar, Alá sozinho não será ajuda suficiente para nós.

Sua decisão estava tomada. Pediu a Uthman para ler todo o manuscrito cuidadosamente e aparar as inconsistências. Quando voltasse prepararia a versão final.

— E quando será isso, Abu?

— Poucos meses, no máximo. Cuide de Afdal por mim. Foi a mais dolorosa despedida, pois tinham se tornado fortemente apegados um ao outro.

Depois de abraçar o pai, Uthman retirou-se de novo para a árvore. Não gostava que as pessoas deixassem a fazenda.

Idrisi desejou o melhor para Elinore e Simeão e perguntou se tinham pensado num nome, caso fosse um menino.

— Thawdor — respondeu Elinore.

— Original — respondeu o pai. Balkis havia jurado a si mesma que não iria chorar e seus olhos ficaram secos.

— Se nosso filho for uma menina e Elinore tiver um menino, vamos chamar nossa filha de Mayya. Concorda?

— Concordo. E se for um menino?

— Nuwas! Concorda?

— Concordo. E se as duas tiverem meninas?

— Não havia pensado nessa possibilidade.

— Que sejam duas Mayyas.

— Sim. Muhammad, preciso saber a verdade. Seria capaz de calcular um preço para o nosso amor?

— Como poderia? É inestimável.

— Então garanta que vai voltar para mim. Não quero pensar em você como um mendigo numa terra estranha. Esta ilha é o seu lar apesar de tudo. E o elixir que cura sua tosse não é da mesma qualidade em outras partes.

Ele beijou seus olhos e então seus lábios. Dois dias velejando e Siracusa já parecia muito distante. Idrisi não sabia, mas havia passado por um navio mercante que levava Walid para Siqilliya. Ele imaginava se conseguiriam um dia retomar a ilha dos francos e se livrar dos lombardos. Mas se o conseguíssemos, o que faríamos desta vez diferente da anterior? Conseguiríamos trabalhar juntos? Dar ao povo algo por que pudesse morrer, sem fazer muita pressão sobre ele? O Confiável tinha idéias úteis, mas o grande problema era romper com os modos tribais de pensamento e elevar-se ao nível de cultura que criamos. Mas tudo isso são sonhos dourados.

Como podemos lidar com centenas de milhares de pessoas que ignoram seus próprios interesses e mergulham orgulhosamente num desastre e depois em outro?

Talvez não devesse visitar Alexandria desta vez. Iria até a cidade dos califas e se misturaria com os poetas e com os filósofos e buscaria novos livros na Casa da Sabedoria. Iria até Bagdá, a cidade que sempre será nossa. A cidade que jamais cairá. A cidade que jamais cairá.

LUCERA 1250-1300


Epílogo

Idrisi encontrou Walid ao voltar a Siqilliya e viveu na sua propriedade até sua morte, 11 anos depois daquela de Rujari. Seu Formulário Médico foi publicado em Bagdá, mas não continha o remédio para tosses. Uthman e Walid nunca se casaram. O filho de Balkis, Nuwas, tornou-se um poeta errante, deixando Siracusa aos 18 anos e mudando de cidade em cidade em alAndalus. Nenhum de seus poemas sobreviveu. A filha de Elinore, Mayya, e seus três irmãos e seus filhos continuaram a viver na propriedade onde uma igreja maior foi construída para acomodar o novo rebanho. O Confiável, depois de ensinar filosofia e história para Khalid e seus filhos, morreu tranqüilamente aos 84 anos. A aldeia que ajudara a recriar ainda existe e venera sua memória — embora seja considerado hoje um santo cristão.

Nos cem anos que se passaram desde a morte de Idrisi, membros de sua família combateram em cada rebelião. Enquanto os francos lutavam entre si pelo trono de Palermo, bandos armados sob o comando de Khalid ibn Umar e Afdal ibn Muhammad haviam libertado grandes partes de Siqilliya ocidental. Os francos mandaram expedições para esmagá-los, mas se contentaram em mantê-los confinados em seus bastiões. Um levante em Palermo abalara a autoconfiança dos francos e severas restrições foram impostas. A khutba das sextas-feiras foi proibida e o comparecimento a qualquer mehfil era punido com a morte.

Khalid morreu aos sessenta anos enquanto os sinos das igrejas repicavam para marcar 12 séculos da religião nazarena. Seu filho Muhammad juntou-se a Afdal e por muitos anos eles infernizaram e destruíram muitas legiões despachadas por Palermo a fim de esmagá-los.

Foi o neto de Rujari, Frederico, quem finalmente destruiu os últimos bolsões de rebelião remanescentes em Siqilliya. Seu amor pela cultura árabe e seus próprios palácios e haréns haviam levado os Crentes a esperar que a Era de Ouro pudesse voltar. Mas haviam esquecido que o jovem Frederico era também o neto de Barba Ruiva.

As duas tendências nele geralmente levavam a conciliações. Não queria massacrar os muçulmanos, mas simplesmente removê-los e assim purificar a ilha. No ano de 1224 da Era Cristã, aqueles que se recusavam a se converter eram instados a empacotar suas posses e levados aos principais portos da ilha. Por doze meses, mais de cinqüenta mil siqillianos que se recusaram a render-se espiritualmente foram transportados em navios para o continente. Entre eles estavam os netos de Idrisi, Muhammad ibn Afdal, Muhammad ibn Khalid e suas famílias.

Na região de Apúlia, perto da antiga cidade romana onde César havia combatido Pompeu, havia uma minúscula aldeia, Lucera, virtualmente desabitada. Foi para ali que os transportaram. Dentro de dois anos, Lucera havia se tornado uma das cidades mais prósperas do sul. A terra que cercava o povoado fora cultivada depois de anos sem uso, lojas e oficinas brotaram e artesãos habilidosos produziam entalhes de madeira e cerâmicas que não eram mais feitas em Noto e Siracusa. Frederico construiu um castelo para si com seu próprio harém. Os colonizadores construíram uma bela mesquita com uma grande biblioteca, não longe do castelo. O papa excomungou Frederico por permitir a construção de edifícios onde o "amaldiçoado Maomé é adorado". Dizem que quando a excomunhão foi lida para ele no seu palácio em Lucera ele estava embriagado, cercado por concubinas, e reagiu com a tradicional saudação do lado siqilliyano da sua família. Ele peidou.

Dentro da colônia, três jovens começaram a organizar meh fils secretos. Encontravam-se toda sexta-feira à noite e discutiam o futuro do seu povo. Aos poucos, mais e mais pessoas, jovens, velhos e mulheres, começaram a escutar. Ibn Afdal lhes contava que Lucera parecia pacífica e que não eram perseguidos, embora muitos jovens tivessem sido mortos combatendo a guerra de Frederico contra outros nazarenos.

— Tendo nos forçado a deixar Siqilliya, ele pode ser generoso, mas esse mesmo rei que permitiu que construíssemos a Grande Mesquita aqui está destruindo todas as nossas mesquitas em Palermo e no resto da ilha. Vimos discutindo nosso futuro há muitos meses. Eu sugeriria que nos preparássemos para deixar este lugar. Não será seguro depois que Frederico morrer. Não estou sugerindo uma partida imediata. Eles nos matariam antes que tivéssemos ido muito longe. Mas cada mês uma família deveria sair.

— E para onde iríamos, Ibn Afdal? Existe ainda algum lugar para nós?

Quinze homens levantaram-se e ficaram de pé em diferentes partes do mehfil.

— Sim. Se desejarem partir, falem com um destes homens. Olhem para eles cuidadosamente. Se os conhecem, tentem esquecer seus nomes. Vão e falem com eles.

Poucos queriam partir e destes a maioria desejava ficar o mais próxima possível de Siqilliya. Um dia, pensaram, voltaremos. Nascemos aqui. Construímos estas cidades.

Por que não deveríamos voltar? Eles escolheram ir para Ifriqiya, para as cidades de Mahdia e Bone que, Alá seja louvado, haviam sido retomadas pela nossa gente. Se estas cidades podiam ser recuperadas, por que não Palermo e Atrabanishi?

Quando Frederico morreu em 1250, o pânico espalhou-se pela cidade, mas já era tarde. O primeiro massacre aconteceu alguns meses depois. Àquela altura Ibn Afdal estava morto. E Lucera, também, estava para perecer. Não muito tempo depois da morte de Frederico, a maioria de sua população foi massacrada. Poucos milhares, principalmente mulheres, foram convertidos à força. A mesquita foi queimada. Como a estrela brilhante que atravessa o céu e é vista por todos, mas rapidamente desaparece, a cidade florescente desapareceu, seus poucos traços enterrados sob o solo. O castelo de Fredrico foi deixado intocado.

No dia em que Frederico morreu, o filho de Ibn Afdal, Uthman, e seus primos Umar e Muhammad, decidiram que era tolice esperar mais. Haviam se preparado longamente para este dia e tiraram proveito da confusão. Seus cavalos estavam prontos para a jornada. Umar e Muhammad deixaram Lucera à tarde. Dirigiam-se para a costa, onde embarcaram num navio mercante para Ifriqiya.

Uthman não foi com eles. Quando criança, sua imaginação fora inflamada pelas histórias que seu pai lhe contava sobre o Confiável e como haviam organizado diferentes formas de resistência na ilha, mas a história que mais gostava era distante deste mundo. Adorava ouvir como os francos foram derrotados por Salah al-din e expulsos de al-Quds e como a Grande Mesquita fora limpa e preparada para o agradecimento a Alá pela vitória que tinham alcançado. Durante muitos meses Uthman vacilara quanto ao seu destino. Quanto mais pensava, mais se dava conta de que não queria morrer antes que seus olhos vissem a mesquita de al-Aqsa e de beijar a terra onde sua gente havia triunfado sobre os bárbaros. Levou sua família para a Palestina.

Esta narrativa se passa na Sicília medieval, em Palermo, uma cidade muçulmana que rivaliza com Bagdá e Córdoba em tamanho e esplendor. O ano é 1153 e a ilha foi ocupada pelos normandos. Mas na "Sigilliya", a cultura e a língua árabes dominam a terra e a corte. A aliança entre o papa Urbano II e o imperador bizantino havia motivado os governantes cristãos europeus a erradicar enclaves muçulmanos. Contudo, Rogério I da Sicflia e seu filho Rogério II recusam a perseguição aos muçulmanos, concedendo liberdade religiosa e proteção contra a Igreja e os cristãos. Inspirado nesse ambiente conflagrado, o autor aborda os últimos anos de Rogério II, conhecido por seus súditos muçulmanos como sultão Rujari. Ele se cerca de intelectuais muçulmanos, várias concubinas e promove uma administração presidida por talentosos eunucos.
Tariq Ali mapeia a vida e os amores do geógrafo e médico medieval Muhammad alIdrisi. Dividido entre seus vínculos com o sultão e os amigos, que estão deixando a ilha ou arquitetando uma resistência contra o domínio normando, Idrisi encontra alívio temporário no harém; mas, confrontado com as pessoas comuns de Noto e da Catânia, entra em crise de consciência. Um sultão em Palermo é uma narrativa mítica em que orgulho, cobiça e luxúria entremeiam-se com resistência e grandeza.

 


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1

Reflexões de Idrisi sobre inícios e encontros casuais.
Seu primeiro encontro com Rujari.

A primeira frase é crucial. Ele sabia disso por instinto e por seu estudo de velhos manuscritos. Como os antigos entendiam bem disso, com que cuidado escolhiam seus inícios, com que facilidade seu trabalho devia ter progredido uma vez tomada aquela decisão. Por onde começar? Como começar? Invejava neles as escolhas que seu mundo lhes tornara possíveis, sua capacidade de buscar o conhecimento onde quer que pudesse ser encontrado.

Sua mãe lhe ensinara que as pessoas do Livro, que insistem que todo conhecimento anterior ao tempo de seus próprios Profetas nada vale, traíam sua própria ignorância.

Ela lhe contara como, quando a cidade fora tomada por uma casta especial dos guerreiros do Profeta — homens que temiam o conhecimento mais do que a morte -, o avô dela, um venerado matemático de Qurtuba, fora publicamente despido de sua dignidade e passado a fio de espada com outros oito eruditos. Os fanáticos que matavam em nome da religião referiam-se ao mundo dos antigos como "o tempo da ignorância", um mundo em que as pessoas não eram sobrecarregadas pela necessidade de adorar um único deus. Como deviam ter blasfemado à vontade. Um mundo sem apóstatas. Um sorriso iluminou seu rosto por um momento antes que a nuvem voltasse.

Ao contrário de nós, pensou. Somos condenados a soçobrar na voragem da eterna repetição. Em nome de Alá o Misericordioso e de Maomé o seu Profeta, seu mais fiel Mensageiro. O único consolo era que os blasfemos nazarenos eram muito piores. Como podia Alá ser o pai apenas de Isa? Como podia o Todo-Poderoso produzir apenas um filho? E por que tinham os nazarenos inventado esta inverdade? Só podia ser porque estavam mais próximos no tempo ao mundo romano e seus deuses. Para fazer convertidos eles precisavam injetar alguma mágica no seu credo. Como desejava que tivessem conservado os velhos deuses ou, pelo menos, os melhores deles. Zeus podia ter sido o pai de Isa, ou Apolo, Ares ou Poseidon... não, não Poseidon. Era muito estúpido. Mariam vivia longe do mar e Yusuf não era um pescador. Talvez o manco e lascivo Hefaístos tivesse entrado... Subiu ao convés do navio imperial e respirou fundo várias vezes. Lavar seus pulmões com o ar marinho havia se tornado um ritual. Sorriu. O sol estava para se pôr. O mar ainda estava calmo. Poseidon ajudando, chegariam a Palermo sem outra tempestade.

Esta era a sua última viagem antes da conclusão do seu livro. O navio tinha circundado a ilha duas vezes e ele havia verificado cada detalhe no seu mapa da Siqilliya em confronto com a linha costeira à sua frente. De vez em quando desembarcavam para recolher água fresca, comida e as ervas frescas de que precisava para testar suas fórmulas médicas. Idrisi era geógrafo e médico. Embora a viagem tivesse durado menos de um mês, estava cansado. Dormia mais do que o comum e na maioria dos seus sonhos voltava à sua infância — sua mãe olhando para as estrelas, as ruas de Noto calçadas com pedras, os troncos das árvores com cicatrizes de raios, as mulheres ordenhando vacas e cabras, o rosto bexiguento do seu pai — mas quando ele repousava à tarde invariavelmente sonhava com Mayya, geralmente o mesmo sonho quase sem nenhuma variação. Estavam deitados nus nos braços um do outro depois de fazer amor. Era sempre no quarto de dormir dela no harém do palácio, com os eunucos vigiando do lado de fora. Nada mais acontecia. A repetição o incomodava tanto que chegou a pensar até em procurar o intérprete de sonhos, mas algo sempre o detinha.

Na noite passada, pela primeira vez, sonhou algo diferente. Era um guerreiro envolvido numa luta, mas quando acordou não tinha lembrança alguma do inimigo. Pensava naquilo agora no convés, observando o mar mudar de cor, e imaginava se poderia ter sido de alguma utilidade como soldado. Tinha altura mediana com feições delicadas e uma pele macia e clara, como se o seu gênero tivesse sido decidido somente no último minuto. O sol havia escurecido seu rosto, exagerando a brancura da sua barba.

Era bem aparada, imitando o estilo de um erudito qurtubês. Tinha 58 anos de idade, uma época da vida que compele a maioria dos homens a pensar no passado, não no futuro. E assim teria sido com ele não fosse pelo fato de que estava possuído por uma tremenda raiva, da qual somente dois de seus amigos mais próximos tinham noção, embora não pudessem entender suas causas. Para o sultão e os cortesãos no palácio em Palermo, era um erudito de uma certa importância e um homem de temperamento calmo. Não tinham nenhuma idéia do que se escondia sob a máscara ou de que se zangasse por dentro pelas coisas mais estranhas. Certa vez seu amigo mais chegado, Ibn Hamid, cujo coração estava oprimido, olhara para o céu e murmurara "Oh, a poesia das estrelas" e Idrisi reagira num tom irritado, submetendo-o a uma aula de astronomia e sobre o movimento da Terra. Não tinha notado como cada noite um movimento se repetia? Os antigos haviam tentado penetrar nos segredos dos céus, mas tinham fracassado. Se o que ele pensava fosse verdade, então o Corão estava errado e, se o Corão estivesse errado, quem havia cometido o erro? Má ou o seu Mensageiro? Ibn Hamid ficou temeroso de que o seu amigo fosse acusado de blasfêmia e aconselhou-o a deixar tais questões para o futuro.

A resposta de Idrisi fora um olhar fulminante e ficaram sem se falar nos dias que se seguiram. Agora Ibn Hamid também havia abandonado a ilha, deixando seu amigo mais isolado do que nunca. Palavras duras foram trocadas e Idrisi fora acusado de oferecer ajuda aos estrangeiros que ocuparam a ilha. Talvez, pensou Idrisi, ele também devesse ter ido embora e se estabelecido em Ifriqiya ou talvez Bagdá, onde o Califa era protetor de pensadores e poetas. Mas sua vida foi mudada por um encontro casual que lhe ofereceu mais liberdade do que imaginara possível.

Seus pensamentos voaram de volta a um fim de tarde em que trabalhava na biblioteca do palácio do sultão Rujari em Palermo. Tinha obtido permissão para freqüentá-la e se deleitava como uma criança a cada nova descoberta. Lembrou a excitação que se apossara dele há quase 27 anos quando vira pela primeira vez o velho manuscrito grego al-Homa. Poderia ser esta a obra de que falara seu bisavô paterno todos aqueles anos atrás em Malaka? Seu avô passara a memória ao seu pai e ele podia ainda ouvir a voz alta, ligeiramente agitada do seu velho pai pontuando a história arrancando os pêlos brancos da sua barba ainda castanho-escura. Contou como os qadis, receosos do poder da poesia e da sua capacidade de desencaminhar os Crentes, haviam decretado que apenas três cópias da tradução árabe fossem permitidas a fim de que os teólogos pudessem estudar as religiões pagãs que levaram ao período de Ignorância na Arábia na época em que o nosso Profeta nasceu.

A tarefa foi confiada a 12 homens. Conhecedores mais capacitados do grego antigo, eles tinham traduzido todas as obras de Galeno e Pitágoras, Hipócrates e Aristóteles, Sócrates e Platão, e até mesmo as peças de Aristófanes. Todas estas obras estavam na biblioteca de Bagdá. Mas tradutores, embora fossem empregados do palácio cuidadosamente escolhidos e de confiança, não tinham permissão de ler a obra inteira. Os calígrafos que faziam a transcrição faziam o juramento do silêncio. Se divulgassem a natureza do seu trabalho a qualquer pessoa — e isso incluía suas esposas e amantes — a penalidade seria rápida e a cimitarra do carrasco, como um relâmpago, separaria a cabeça do corpo.

Seu pai sorrira. "Ameaças nunca funcionam em nosso mundo. É possível que, se nada tivesse sido dito, os calígrafos tivessem copiado a obra e partido para a tarefa seguinte. O perigo aguçava a sua curiosidade mas, enquanto 11 deles aceitaram a inviolabilidade da injunção de um qadi, um décimo segundo conseguira copiar a metade do primeiro poema e quase a maioria da segunda parte e enviar para sua família em Damasco. Seu filho, também tradutor, veio trabalhar na escola em Toledo.

Casou-se com uma mulher de Qurtuba. Seu neto descobriu o manuscrito incompleto escondido debaixo do Corão numa velha arca e permitiu que o meu bisavô o lesse em sua casa. Foi assim que nosso ancestral descobriu que o livro grego fora guardado em compartimentos secretos na biblioteca de Palermo. Era preciso obter permissão especial do Califa antes que qualquer erudito tivesse acesso à seção oculta da biblioteca."

Foi durante seu primeiro ano na biblioteca do velho palácio em Palermo, a mais longa viagem que sua mente havia empreendido, que tropeçou na seção secreta e informou ao camareiro do palácio, que informou ao seu mestre. O sultão Rujari interrompera sua refeição e correra para a biblioteca. Idrisi, encontrando-se com o soberano nazareno pela primeira vez, explicou a sua excitação. O sultão não ouvira falar de al-Homa, mas declarou sua intenção imediata de estudar ele mesmo o manuscrito.

O árabe que falava não era perfeito, mas lia bem o idioma. O camareiro apanhou o manuscrito e ia deixar a biblioteca mas foi detido pelo sultão que, notando o desapontamento no rosto do jovem erudito, instruiu o camareiro a encontrar os melhores calígrafos em Palermo e os pôr a trabalhar. Queria uma nova cópia à sua espera quando voltasse de Noto. Virou-se então para o jovem de turbante que havia assumido uma postura modesta.

— Seu nome?

— Muhammad ibn Abdallah ibn Muhammad alIdrisi, Sua Majestade.

— Mestre Idrisi, depois de lermos ambos esta obra cuidadosamente, nós a discutiremos juntos. Vamos comparar o conhecimento que obtemos dela. Se o árabe usado na tradução for complexo demais, vou convocar Ahmed de Djirdjent.

Seis semanas depois, convocado à presença de Rujari, o jovem erudito havia memorizado alguns versos da obra de al-Homa.

— Não posso entender por que esta obra perturbou tanto os seus teólogos.

— Acho que eles não podiam tolerar a mistura de deuses e humanos, Comandante dos Sábios. E deuses criados à imagem de homens e mulheres eram inaceitáveis para eles. Não podia haver outra razão.

— Mas esta é a parte mais deleitável da obra. Seus deuses eram parte de tudo o que acontecia: guerras, inundações, desgraças, aventuras no céu e no mar, brigas familiares, nascimentos, casamentos, mortes, renascimentos. Acha que a esposa do navegante Odisseu, que resistiu aos cortejadores terrestres, poderia ter sucumbido ao encanto de um deus? Surpreende-me que nenhum deles tenha tentado. Devo dar instruções para que seja traduzido imediatamente para o latim, a não ser que um manuscrito já exista. Pode verificar para mim? Se só existir no Vaticano, então vamos precisar da nossa própria tradução. Os monges não vão gostar, assim como o qadi. Que aspecto da obra mais o atraiu? Foi a astúcia das mulheres? Ou o medo do desconhecido? Ou a vida como uma jornada sem fim, interrompida por provas de resistência?

— Tudo me atraiu, Sua Majestade, mas fui tocado por algo mais: a noção de geografia de al-Homa me surpreendeu. Na segunda parte da obra ele descreve nosso mar e as ilhas, os países, as árvores. Nos tempos antigos as pessoas não viajavam tanto quanto nós o fazemos. A maioria das pessoas era enterrada na aldeia onde nascia.

Al-Homa contou-lhes que havia um outro mundo do lado de fora de sua aldeia e ilha. Na boca de Menelau ele coloca estas palavras:

"Aventurei-me até Chipre e Fenícias, até os Egípcios, Alcancei os Etíopes, Eremboi, Sidônios e a Líbia."

— E gigantes de um só olho e as mulheres tentadoras que afundavam navios não longe destas costas?

— Vicissitudes transitórias, nobre sultão, nada mais. Revelam o poder da imaginação do poeta, mas nada mais. Para mim, o realmente notável no seu trabalho é que as descrições das coisas reais são quase exatas. Ele visitou nossa ilha e a chamou de Scylla. Estou convencido de que al-Homa deve ter sido um homem do mar. E combateu numa guerra, mas foi o mapa de suas viagens que distinguiu a sua memória.

— O camareiro me informou que você, também, é um cartógrafo.

Idrisi fez uma mesura.

— Quando tiver terminado o seu trabalho nesta biblioteca, gostaria de ser informado de todas as suas descobertas.

Nos 13 meses seguintes Idrisi abandonou tudo — amantes, amigos, pupilos — em busca da verdade. O sultão lhe havia concedido a liberdade de sua biblioteca e, além de comer e das funções do corpo que isso necessariamente acarretava, passava cada dia enterrado num manuscrito. Os eunucos do palácio geralmente se referiam a ele como Abu Kitab, o pai do livro. Depois, como um confidente de confiança do sultão, sua posição realçada exigiu um título superior: agora se referiam a ele como Amir al-kitab.

Aqueles meses na biblioteca tinham sido de pura felicidade. Al-Homa foi apenas o começo. Ele visitaria Ítaca e as outras ilhas em busca de traços. Muitas vezes se perguntava se al-Homa teria escrito aquelas obras tão bonitas sozinho ou se teria herdado as histórias e as coberto com o seu próprio manto divino. E como era espantoso descobrir que apenas poucas gerações depois da morte de al-Homa, Xenófanes o denunciara numa linguagem que ecoava os teólogos de hoje: "Homero atribuiu aos deuses tudo o que é desonroso e culpável entre os homens — roubo, adultério e trapaça." E os contadores de histórias em Bagdá que compilavam os relatos das mil noites teriam Odisseu em mente quando criaram seus próprios contos de Simbá, o Marujo? Estas questões e até mesmo al-Homa foram logo esquecidos à medida que outros tesouros, mais próximos de suas preocupações, começaram a emergir.

Ler as traduções árabes de Heródoto, Aristóteles, Galeno, Estrabão e Ptolomeu era como descobrir terras distantes conhecidas por histórias de viajantes. Seus tutores o haviam apresentado aos veneráveis gregos, mas ele era então jovem demais para apreciá-los realmente. Seu conhecimento permaneceu incompleto até que ele começou a estudar os textos sozinho. As idéias de Ptolomeu ainda ecoavam na sua mente como música de uma flauta distante.

Um dia ele topou com um manuscrito anônimo que o deliciou. Quem era o autor de "A biblioteca"? Ainda podia se lembrar da primeira frase: O céu foi o primeiro a dominar o mundo inteiro. Aqui estava a história dos deuses e de como haviam povoado o mundo e, embora não tão estimulante quanto Ptolomeu ou até Estrabão, muito mais excitante. Foi aqui que ele leu sobre a curta visita de Hércules à Sigilliya. O céu foi o primeiro a dominar sobre todo o mundo. A frase reverberava. Por que deveria começar Em nome de Alá, o Benfeitor... como todo erudito no seu mundo. Por quê?

Durante seu primeiro ano na biblioteca, o sultão freqüentemente o chamava aos seus aposentos e o interrogava cerradamente sobre as suas leituras. Rujari não era um homem grande, mas tinha gestos estranhos e amplos e quando ficava excitado seus braços se agitavam como velas numa tempestade. Sua acolhida de coração aberto comoveu Idrisi.

— O que fará com toda esta informação, mestre Idrisi? Pode ensinar aos seus filhos e aos meus, mas isto será suficiente para satisfazê-lo?

Idrisi lembrou seu sorriso preocupado e autodepreciativo ao confessar sua ambição:

— Se o sultão permite eu gostaria de escrever uma geografia universal. Mapearei o mundo que conhecemos e buscarei as terras ainda desconhecidas de nós. Isto será útil para nossos mercadores e os comandantes de nossos navios. Esta grande cidade é o centro do mundo. Mercadores e viajantes param aqui antes de seguirem para o Ocidente ou Oriente. Podem nos fornecer muita informação.

O prazer do sultão era visível. Mandou chamar o camareiro e o instruiu para garantir que a partir de agora ao erudito e mestre Muhammad alIdrisi fosse paga a soma de dez tacis cada mês pelo Diwan e lhe dessem alojamentos próximos ao palácio. Quando o camareiro fez uma mesura e se preparou para partir, Rujari teve um pensamento tardio.

— E ele vai precisar de um navio, pronto para velejar a qualquer lugar sob suas ordens. Encontre para ele um comandante confiável.

Idrisi caiu de joelhos e beijou as mãos do seu benfeitor. Ficou encantado com a generosidade de Rujari, mas mais do que um pouco apreensivo sobre como aquilo seria visto fora do palácio. Seu trabalho prosseguiria sem obstáculos, mas a maioria dos seus amigos poderia começar a encará-lo com desconfiança. Toda sexta-feira à noite, depois que a cidade fora dormir, um pequeno grupo de poetas, filósofos e teólogos — trinta homens ao todo — se reunia numa saleta localizada no coração da mesquita Ayn al-Shifa. Até ser perturbado pela chamada do muezim à prece, o mehfil discutia questões pertinentes às necessidades da comunidade dos Crentes na ilha.

Até agora, tinham aceitado a sua presença como um deles, mas por quanto tempo?

As simpatias de Rujari não eram escondidas. Como seu pai, ele preferia ignorar o papa e depender da lealdade dos seus súditos muçulmanos. Sabiam que, deixado a sós, o sultão Rujari não lhes causaria danos. Eram os seus barões e bispos que lhe enchiam os ouvidos de veneno. Estavam decididos a converter todos os crentes ou a expulsá-los da ilha. As conversas nos bazares de Palermo, Siracusa e Catânia sugeriam que os monges ingleses, por insistência papal, aconselhavam Rujari a limpar os bosques e vales dos Crentes e a engajar-se na santa cruzada contra os seguidores do falso Profeta. Segundo alguns, planos muito detalhados haviam sido feitos para queimar e arrasar Noto e enterrar vivos os sobreviventes. Os rumores geralmente emanavam de dentro do próprio palácio. Qualquer criança em Palermo sabia que não havia segredos no palácio que não fossem penetrados pelos eunucos.

Mas havia outras vozes, também, pois não existia uma facção única dominando a corte. Na verdade, Rujari se inclinava a favorecer seus conselheiros muçulmanos. Younis al-Shami, seu velho tutor de Noto, o erudito e sábio que lhe ensinara árabe, astronomia e álgebra, era tratado com reverência. Ainda estava no palácio, supervisionando os tutores responsáveis pela educação dos jovens príncipes. Os três tutores eram jovens que ele havia selecionado cuidadosamente, mas nunca ficava satisfeito com eles e freqüentemente os dispensava com uma imprecação favorita e assumia ele mesmo. Aquilo fazia os meninos darem risadinhas e eles relatavam tudo ao pai, sabendo bem que isso o agradaria. Segundo rumores palacianos, Rujari não tomava nenhuma decisão importante sem consultar Younis, mas um rumor, como qualquer eunuco pode confirmar, só é confiável se a fonte for pura.

O sol se tornou forte demais para Idrisi. Ele desceu a escada e voltou à sua cabine. Suspirou ao sentar-se nas almofadas macias que haviam sido especialmente colocadas para poupar o seu traseiro do desconforto do tosco banco de madeira pregado ao assoalho. Uma vez mais olhou para o manuscrito volumoso sobre a mesa à sua frente. Sim, o livro estava completo, exceto pela primeira frase. Durante várias semanas nesta viagem — sentia instintivamente que seria a sua última — havia sofrido em busca das primeiras palavras. A indecisão tinha amortecido o seu cérebro.

Estava tão convencido de que era o início que o perturbava que não levou em conta a possibilidade de que poderia ser o final. Vinha, afinal, trabalhando neste manuscrito há quase 11 anos. Tornara-se um substituto para tudo mais. Para o seu amigo Ibn Hamid cujos reproches ainda ecoavam na sua cabeça; para sua esposa Zaynab, que o deixara sozinho em Palermo e voltara para a casa da família em Noto com suas duas filhas e, acima de tudo, para o seu filho caçula e favorito, Walid, que havia embarcado num navio mercante destinado à China e, sem uma palavra de despedida, desaparecera do seu mundo. Se um guarda aduaneiro não o houvesse visto a bordo do navio, não saberiam sequer aonde tinha ido. Isso foi 15 anos atrás. Nada se soubera de Walid desde aquele dia. Zaynab culpava o marido por ter abandonado o rapaz. Idrisi a mandou para a sua propriedade no campo.

— Você passa mais tempo com o sultão no seu palácio do que com sua própria família. Talvez ele pudesse encontrar alguns aposentos para você no harém.

Em conseqüência, o livro se tornara um repositório de todas as suas emoções. Mas ia também deixálo e, embora ele não o soubesse, esta era a verdadeira razão da sua melancolia. Não as linhas de abertura. Elas eram simplesmente um pretexto para prolongar a separação. O som da água gentilmente lambendo o casco do navio era calmante, mas ele sabia que não podia retardar mais. Breve avistariam os minaretes. Pegou sua pena finamente apontada e a mergulhou no tinteiro.

Se permanecesse leal ao seu intelecto, ele romperia com o velho estilo e sofreria em silêncio as agressões inevitáveis que se seguiriam. Muitos dos seus conhecidos, alguns dos quais ele gostava, encarariam tal escolha como uma confirmação da sua suspeita de que ele era realmente um traidor, um apóstata que havia secretamente abandonado a fé e se vendido ao sultão cristão. Ele podia replicar informando-lhes que seu pai alegava descendência direta da família do profeta. Mas o mesmo faziam milhares de outros, eles responderiam. Todo mundo sabia que a família do Profeta não tinha sido tão grande assim.

Talvez devesse ser fiel à velha tradição e começar da maneira consagrada pelo tempo de elogiar a generosidade de Alá, a devoção sincera do seu Profeta, a imparcialidade e equidade do sultão e assim por diante. Aquilo satisfaria a todos e o liberaria para começar a trabalhar em outro livro. Mas por que deveriam ele e outros como ele serem condenados à repetição eterna? A resposta continuava a escapar-lhe e ele começou a caminhar pela cabine, concentrando-se no seu tumulto interno. Talvez, desta vez pelo menos, ele surpreendesse a todos eles. Começaria em nome de Satã, que contestou, desafiou e foi punido. O pensamento o fez sorrir. As ondas abaixo pareciam encorajar a heresia. Sussurravam "Faça isso. Faça isso. Faça isso", mas quando colocava o ouvido no tabique para ouvi-las melhor elas caíam no silêncio e ele revertia ao seu estado de indecisão. Estava com raiva do seu mundo e de si mesmo.

No passado, o simples ato de observar as linhas da costa, reproduzindo-as em seu caderno de anotações e assegurando-se de que o mapa alfinetado na mesa era exato, bastava para alegrálo. Esta era a sua terceira jornada completa ao redor da ilha. Se apenas pudesse ter mapeado o mundo inteiro assim, em vez de depender de histórias de mercadores e navegantes, que geralmente contradiziam uns aos outros ao descrever o formato da China ou a metade inferior da Índia. Estranho como eles escolhiam geralmente diferentes tipos de frutas para descrever a mesma região. Uma ilha minúscula na costa da China se tornava um lichi ou uma maçã, a metade inferior da Índia uma manga ou uma pêra.

Havia ocasiões em que, mais do que qualquer outra coisa, ele queria voar, pairar sobre o mar como um gavião. Por que Alá não tinha criado pássaros gigantes capazes de puxar uma carruagem através do céu? Então ele teria observado as terras e os mares abaixo e refinado seus mapas. Teria sido tão simples. Ou cavalgar um gavião gigante enquanto ele sobrevoava os continentes. Só então poderia ter a segurança de que seu mapa era uma representação verdadeira do mundo. Conhecia os contornos desta ilha tão bem quanto o seu próprio corpo. Às vezes sua imaginação conferia formas humanas à paisagem vista do mar: de vez em quando um antigo deus zangado, mas geralmente uma mulher. Às vezes ela o observava, apoiada nos cotovelos, e ele sorria para seus olhos gregos, maravilhava-se com seus cabelos damascenos claros cintilando com estrelas e mudando de cor ao serem banhados pelo sol. Com o movimento do navio vinha a percepção de que ela não olhava realmente para ele. Seu olhar se fixava na direção da Ifriqiya.

Ele, também, desviou o olhar e se perguntou quanto tempo levaria para encontrar outra favorita. Se suas estimativas estivessem corretas, atingiriam a ponta norte da ilha em um dia e meio. Da última vez o mar ficara agitado, atrasando a viagem. Três dias depois ele a viu, uma bela mulher-guerreira, ereta, irada e ameaçadora, aos contrário das famosas sereias do poema de al-Homa. "Não sou um inimigo", ele sussurrava enquanto o navio passava. "Sou um desenhista de mapas. Quero preservar, não destruir." Ela, também, o desdenhava e, desapontado, ele se virava para as ondas e se queixava. Mas na sua última jornada não demonstrara nenhum interesse nestas velhas amigas. Sequer se dera ao trabalho de olhar para as mulheres à medida que os ventos empurravam o navio para longe delas. Estava perturbado.

Os membros mais velhos da tripulação, entre os quais o cozinheiro de cabelos grisalhos, tinham viajado com ele muitas vezes. Conheciam seus humores, entendiam suas paixões e respeitavam sua obsessão de desenhar um mapa do mundo. Tinham notado seus olhos tristes e o ar distante, como se o tempo tivesse perdido todo sentido.

Conversaram entre si sobre ele. O que o poderia estar atormentando? Poderia ser um caso sentimental? O jovem de olhos escuros de Noto? Certamente ele não podia estar ansiando ainda pela houri em Palermo? Não seria Mayya? Tinham se convencido de que apenas Mayya, a filha do mercador, podia explicar o desespero nos olhos do seu mestre. Mayya, a quem o cartógrafo amara mais do que qualquer criatura viva neste mundo e quisera tomar por esposa; Mayya que o havia traído com luxúria enquanto ele viajava. O sultão acenara e ela o seguira de bom grado primeiro ao quarto de dormir real e a seguir para sua própria série de aposentos no harém do palácio. Como o cartógrafo controlara e escondera o seu sofrimento dos olhos curiosos de Palermo se tornara o assunto nos cafés e bazares, mas não por muito tempo. O bazar tinha suas próprias prioridades e o coração partido de um jovem cartógrafo não deteve sua atenção por mais do que algumas horas.

Era o mesmo sultão Rujari para o qual Muhammad alIdrisi escrevera este livro. Seu próprio título fora simples: "Nuz'hat al-mushtaq" ou "A Geografia Universal", mas o velho tutor de Rujari, Younis, o advertira que, como o livro jamais seria concluído sem a assistência material de Rujari, um título mais apropriado seria "al-kitab al-Rujari" ou "O Livro de Roger". Diante de tal sugestão do coração do palácio, o que podia ele fazer senão se curvar e aceitar. Idrisi reprimiu sua raiva, mas os eunucos da Corte garantiram que cada lojista no bazar de Palermo tivesse notícia da alteração do título. O bazar acreditava, erroneamente, que Idrisi havia oferecido as delícias do seu corpo ao sultão. O novo título parecia confirmar a calúnia.

E cada um apimentava a história antes de passá-la para o seguinte e assim a vaidade de um dominador se tornava um épico com muitas camadas em que um seguidor do Profeta fora profundamente humilhado e não pela primeira vez.

O alvo de toda a atenção começou a se perguntar se o problema que estava tendo com uma frase de abertura fora agora transcendido pelo novo título. Um sonho recorrente havia perturbado o seu sono por mais de um ano. Era o sultão Rujari, sempre no mesmo roupão de cetim multicolorido, deitado seminu debaixo de um limoeiro com os galhos dobrados de frutos maduros. Rujari se levantava, tirava o roupão e tentava seduzir uma corça amarrada mas, justamente no momento em que a união entre os mundos animal e humano ia ser consumada, Muhammad acordava num estado de completa inquietação. Saía da cama, caminhava para cima e para baixo no chão frio de mármore murmurando "Você não devia aparecer nos meus sonhos tanto assim" e ia beber um pouco d'água para acalmar os seus nervos em frangalhos. Era sempre difícil voltar a dormir. Por que o sonho só vinha quando ele estava em Palermo? Nunca quando estava no mar ou quando ia visitar sua família em Noto ou na casa de seu amigo íntimo, o médico Ibrahim bin Hiyya de Djirdjent. Certa vez tentara discutir a questão, mas Ibrahim rira, negando qualquer interesse nos fenômenos dos sonhos.

Mais de uma vez, pensara em fazer uma visita a Ibn Hammud, o mercador de sedas mais rico do qasr, que, no seu tempo vago, interpretava sonhos e acalmava os medos de homens preocupados. Era muito procurado e um dia Muhammad se aventurou até a frente da sua loja, mas não entrou. Sua cautela tinha se tornado uma barreira intransponível.

Era perigoso demais. Ibn Hammud não conseguiria manter o sonho em segredo. Na verdade, uma versão exagerada acabaria chegando ao palácio. Os eunucos ririam baixinho enquanto se regalavam com a história e cada nova versão seria mais ultrajante. Então estes guardiães do harém contariam às concubinas e uma delas convenceria um eunuco a sussurrá-la no ouvido do sultão. O sultão ficaria enfurecido e aquilo poderia ser o fim de tudo. Tudo. Não apenas do livro, mas do seu autor. E se Rujari ficasse realmente zangado ele se asseguraria, também, que os eunucos fossem punidos. O risco não valia o sofrimento.

Os últimos dez anos da vida de Idrisi tinham sido consumidos pelo livro mas, à medida que o navio se aproximava de Palermo, ele sabia que não poderia retardar muito mais o final do trabalho. O sultão ficaria zangado. Queria ler o livro antes de morrer e sua doença o deixava ansioso. E somente Alá sabia o que poderia acontecer com um pobre cartógrafo depois da morte do seu patrono. Uma vez mais ouviu o adeus zombeteiro do seu melhor amigo no dia em que Ibn Hamid deixou a ilha para sempre, embarcando num navio com destino a Malaka em alAndalus.

— Venha comigo, Muhammad — dissera o poeta.

— Aqui você nunca vai passar de um mendigo melancólico numa capital estrangeira.

Por que deveria fingir mais? Por que não deveria escrever o que queria? Com um sentido de determinação, Muhammad alIdrisi recolheu-se à sua cabine, sentou-se à mesa e escreveu uma única sentença na primeira página da sua geografia universal:

A Terra é redonda como uma esfera e as águas aderem a ela e são mantidas sobre ela por meio do equilíbrio natural que não sofre nenhuma variação.

Pronto. Esta seria a abertura da sua edição pessoal da obra. Quanto ao resto, ele louvaria Alá, o Profeta, o sultão e quem quer mais que precisasse ser lisonjeado.

Uma concessão, mas ela o satisfazia.

Subiu ao convés de novo e respirou fundo o ar marinho. Palermo devia estar muito perto. Podia sentir isso pela brisa carregada, levando os ricos perfumes de ervas, flores e limões. Estes ele conhecia bem e havia cuidadosamente catalogado as plantas e árvores que os produziam. Nenhum dos seus amigos aceitava que fossem diferentes daqueles de outras ilhas e a maneira arrogante com que estes homens ostentavam a sua ignorância o enraivecia grandemente. Havia feito extensas anotações sobre ervas e flores das ilhas do Mediterrâneo e depois de seus anos de trabalho e viagem era capaz de identificar uma ilha no escuro apenas por seus cheiros. Sorriu ao evocar a noite de verão em que estava deitado no convés — os únicos sons as ternas lambidas do mar contra a dura madeira marrom do navio — olhando para as estrelas. Subitamente, uma brisa se elevou e um aroma suave tomou os seus sentidos. Era uma variedade especial de tomilho e soube imediatamente que se aproximavam da Sardenha.

A fragrância de Palermo foi como uma chicotada. Memórias agridoces de sua infância e juventude ainda podiam dominá-lo. Seus pensamentos foram interrompidos por um rapaz — não podia ter mais de 17 ou 18 anos, cor de bronze, com longos cabelos dourados — que lhe trouxe uma taça com sherbet de limão e sorriu, revelando dentes brancos como a neve. Como os mantinha tão limpos? Alegrou-se que Simeon estivesse feliz de novo, mas aquilo não era o bastante para mitigar a sua culpa. Ouvindo seus gritos uma noite, permanecera em silêncio, deixando de intervir, embora soubesse muito bem que a sua presença teria terminado com a tortura do rapaz. O comandante do navio estava empenhado num rito tradicional. Indiferente à dor e à fragilidade de Simeon, ele o havia violentado impiedosamente. Droit ancien de marinier. E então, sem advertência, lágrimas lhe escorreram pelo rosto ao se dar conta de que estava pensando em Walid. E se algum capitão bruto tivesse abusado dele como fizeram com este garoto? A ausência de seu filho o fazia preocupar-se com a agonia do jovem flautista.

Uma semana depois do ataque, o rapaz não comera nem tocara a flauta, nem ousara encarar qualquer marujo de frente, embora alguns tivessem suportado a mesma tortura violenta, experimentado a mesma magoa intolerável e pudessem ser solidários à sua dor. Outros tinham rido e o provocado e, com o tempo, o rapaz se recuperou. O primeiro sinal do seu retorno aos ritmos da vida cotidiana surgiu quando os sons angustiados de uma flauta foram ouvidos ao pôr-do-sol, despedindo-se do dia que morria. Poucos olhos ficaram secos. O homem que fazia mapas, consumido pela culpa, prometeu a si mesmo que iria encontrar um lugar melhor para este rapaz. Muhammad bebeu o sherbet, devolveu a taça e acariciou a jovem cabeça.

— Já viajou a Bagdá, mestre? Viu a Casa do Saber que tem amplas salas para observar o céu e muito mais livros do que a biblioteca do nosso sultão? — o rapaz perguntou.

— Como é a cidade? É verdade o que dizem, que nossa cidade é maior do que Bagdá? Poderia ser assim? E Qurtuba? Conhece a cidade bem, não é, mestre? Vai voltar para lá um dia?

O cartógrafo acenou com a cabeça, mas antes que pudesse elaborar, os minaretes de Palermo foram avistados. Subitamente o convés ficou cheio de homens gritando "Allahu Akbar" e "Siqilliya sana-hallahu" [Sicília, que Alá a preserve!] e preparando-se para a chegada. Um grupo de jovens cansados, seus corpos queimados do sol e rostos desgastados refletindo a exaustão de um dia de trabalho, baixavam as velas cor de ferrugem e as dobravam no convés. Ao crepúsculo a tripulação começou a entoar um canto suave e melancólico enquanto remava o navio porto adentro. O capitão, em busca de elogio para a disciplina dos seus homens, veio até o erudito e curvou-se diante dele, mas Idrisi o ignorou, ainda querendo puni-lo por ter abusado do rapaz. Mas principalmente o autor da geografia universal se preocupava com o céu, ainda azul claro, e com a lua, já a postos e competindo em atenção com o sol que se punha. Devia ser o sétimo mês do ano, pensou. Estivera fora quase quatro meses. Tempo demais. E então a cidade apareceu à sua frente.

Enquanto os marinheiros se aproximavam dos minaretes, cantavam "al-madina hama-hallahu" [Má proteja esta Cidade]. Sorriu quando o navio entrava no porto, um sorriso sem expressão, um leve abrandamento dos olhos, nada mais. Sentia-se contente por estar de volta. A brisa suave acariciava seu rosto como o toque macio de Mayya e inadvertidamente sua mão buscou o rosto para saborear a lembrança. Um bote o aguardava para transportá-lo à terra firme. Passando pelos homens, agradeceu a cada um individualmente. Reprimiu um suspiro ao ser gentilmente atado com cordas de seda a uma cadeira, que foi baixada até o bote. Teria descido a escada de corda alegremente,

mas o capitão o proibiu. Quando a cadeira alcançou o destino, os barqueiros o acolheram com "Wa Salaam..."

Aproximando-se da orla, podia ver os rostos familiares dos cortesãos enviados para recebêlo. Sabia que sob os seus sorrisos e os alaridos exagerados de boas-vindas eles o odiavam por causa do fácil acesso ao palácio de que gozava. E lá estava a barba branca de um dos camareiros palacianos, Abd al-Karim, gritando tão alto quanto seus anos permitiam.

— Preparem-se para receber o Mestre Ibn Muhammad ibn Sharif alIdrisi de volta ao lar depois de uma longa jornada em busca das raízes do conhecimento.

Como era costume, os outros se regozijaram com a volta segura do navio e de seu passageiro.

— Só existe um Alá e ele é Alá e Maomé é o seu Profeta. Bem-vindo ao lar.

A irritação que sentia nestas ocasiões tinha, no passado, sido arrefecida pela presença do seu amigo Marwan, cujo rosto sorridente era a acolhida que mais o agradava.

Mas Marwan havia deixado a ilha. Tinha abandonado suas propriedades e seus camponeses em Catânia e fugido para alAndalus, para a cidade de Ishbilia. Lá o sultão al-Mutammid lhe proporcionara proteção e emprego. Cartas chegavam irregularmente, sempre com a mesma mensagem. Muhammad, também, devia deixar Palermo e voltar à Casa do Islã. Ele nunca respondeu e Marwan parou de escrever. Agora estava sozinho.

— O mestre vai de carruagem ou vai cavalgar?

— Abd al-Karim perguntou.

— Meu cavalo está aqui?

— Está.

— Então vou a cavalo.

— O sultão o espera esta noite. Um banquete foi preparado em homenagem ao seu retorno.

— E se uma tempestade nos houvesse retardado? Outra voz replicou.

— Nunca aconteceu. O senhor sempre volta no dia designado, Ibn Muhammad.

O erudito sorriu. A voz e o rosto o agradaram. Era o berbere, Jauhar, que tinha casado com a irmã de Marwan.

— Alguma notícia de Marwan? O homem sacudiu a cabeça.

— E você? Sua família está bem? Precisa de alguma coisa? Trouxe algumas sedas para a irmã de Marwan. Nós as trocamos por um pouco de comida. Um navio mercante de Gênova estava em dificuldades.

O homem sorriu.

— E agora tenho um favor a lhe pedir. Vá ao palácio e desculpe-se ao sultão em meu nome. Diga-lhe que a viagem me exauriu e eu só adormeceria no banquete. Amanhã vou procurálo e participar-lhe as novas descobertas que ele solicitou. Gostaria de ficar sozinho esta noite. Tenho algo para contar às estrelas.

Jauhar pareceu preocupado e sussurrou:

— Não é uma decisão sábia. O sultão está doente. Isso o tornou irracional. Poderia interpretar mal sua recusa de ir ao palácio esta noite. Está cercado de monges. Francos e gregos. Abutres. Sussurram mentiras no ouvido do sultão. Estamos sendo acusados de fomentar rebelião.

Idrisi sacudiu a cabeça. Não mudaria de idéia.

— Sua Augusta Majestade sabe que sou o mais leal dos seus servidores, mas viajei muitos dias sem um banho e não me apresentarei em tal estado de desleixo. Procurarei o sultão depois das preces matutinas. Deixe isso claro para o Camareiro.

Os cortesãos tinham escutado a maioria deste diálogo e sorriram. Ele fora longe demais desta vez. Seria punido. Estavam decididos a chegar ao sultão antes que Jauhar desse a Rujari sua versão da história.

Idrisi, acompanhado por um único cavalariço, voltou à sua casa, que ficava fora do qasr, perto do mar. Podia ter morado nos aposentos do palácio. O sultão lhe fizera essa oferta em muitas ocasiões, mas Idrisi insistira em que precisava de solidão a fim de pensar. Trabalhava em seu manuscrito em salas contíguas à biblioteca do palácio e freqüentemente fazia as refeições com o sultão, mas escolhera viver numa casa modesta no Kalisa, com vista para o mar.

Foi uma escolha que nunca lamentou. Achava reconfortante a visão permanente do mar. Calmo ou encrespado e agitado, nunca lhe cansava, apesar das longas viagens em que havia embarcado ou das tempestades que quase lhe haviam roubado a vida. Foi uma cavalgada curta, mas lhe fez bem. Lufadas daquele mesmo vento que trouxera o navio à baía agora transportavam aromas de ervas, flores silvestres e limões. Os odores traziam consigo algumas memórias dolorosas, mas ele as reprimiu.

Ao se aproximar da trilha ao pé da colina teve a primeira visão da casa. A luz suave de velas e lâmpadas a óleo enchia cada janela. Olhou então mais atentamente.

Havia luzes até nas janelas dos quartos acima do pátio, quartos que tinham ficado no escuro desde o dia da partida de Walid. Seu coração começou a bater mais forte e, quase involuntariamente, fincou as esporas para o cavalo seguir mais rápido.


2

Vida familiar e idiotices domésticas.
idrisi frustra um plano de suas filhas
para preparar uma armadilha e trair seus maridos,
mas está decidido a educar os seus netos.

Os criados, como de costume, o esperavam do lado de fora da casa, erguendo tochas para iluminar o seu caminho. Desmontou e apertou a mão de cada um, mas antes que pudesse interrogar qualquer um deles foi distraído pelo cheiro de cordeiro grelhado e ervas frescas, um aroma de significado especial. Partiu depressa para a casa a fim de ver se Walid teria voltado. Mas foram suas filhas que o receberam, tomando suas mãos e beijando-as. Idrisi abraçou cada uma e beijou-as gentilmente na cabeça.

— Bem-vindo ao lar, Abu Walid — disse Samar, a mais jovem das duas, seus cabelos ruivos brilhando sob as lamparinas de óleo.

— O que a traz aqui, Samar? E você, Sakina? Pensei que sua mãe tivesse proibido...

— Não vê seus netos há três anos, Abu Walid. Nossa mãe concordou em que fizéssemos esta viagem.

Ele abafou um riso.

— A velhice deve tê-la amaciado. As crianças estão dormindo?

Suas filhas assentiram com a cabeça.

— Estou correto em presumir que prepararam o cordeiro segundo as instruções de sua mãe?

Samar riu.

— Não tínhamos certeza de que voltaria hoje, mas um mensageiro do palácio chegou algumas horas atrás para nos informar de que seu navio fora avistado e que estaria em casa esta noite. O alho e as ervas vieram conosco de Noto.

Ele sorriu com apreciação.

— Espero que, como vocês, tenham conservado seu frescor. Antes que qualquer das duas pudesse responder, ele bateu palmas, levantou a voz levemente e chamou o camareiro da casa.

— Meu banho está pronto, Ibn Fityan? O eunuco fez uma mesura.

— Thawdor está à espera para esfregar óleo em Sua Excelência e os encarregados do banho têm as suas instruções. Sua Excelência vai comer dentro de casa ou na varanda?

— Deixe minhas filhas decidirem. Geralmente, quando se deitava na lousa de mármore, deixava que o grego fizesse o seu trabalho em silêncio. Não hoje.

— Tem filhos, Thawdor? O massagista ficou chocado. Nos seis anos em que havia servido na casa, o mestre mal lhe havia dirigido a palavra.

— Sim, meu senhor. Tenho três meninos e uma menina.

— Suponho que dois meninos tenham sido dedicados à igreja?

— Acredito em Alá e no seu Profeta, mas minha mulher é nazarena e insistiu em que um deles fosse batizado.

Agora foi a vez de Idrisi ficar surpreso.

— Mas o seu nome é grego e pensei...

— Meu nome é Thawdor ibn Ghafur, Oh Comandante da Pena. Minha mãe era grega e, embora se convertesse à nossa fé, insistiu no nome do seu avô Thawdorus para mim.

Meu pobre pai, que nada podia lhe negar, concordou.

A curiosidade de Idrisi foi despertada. Pediria a Rujari que organizasse um registro de todos os casamentos mistos na ilha.

— E quanto aos seus filhos?

— São rapazes agora. O mais moço estava no seu navio nesta última viagem. Sua mãe vai ficar feliz em revê-lo.

Ao ouvir isso, o dono da casa se agitou. Levantou-se, enrolou uma toalha em seu corpo nu e bateu palmas para os criados do banho. Dois jovens entraram no quarto e fizeram uma mesura.

— Thawdor, descreva o seu filho. Idrisi agora tinha certeza.

— Simeon? Falei com ele no navio. Por que ele não me disse que você era o pai dele?

— Provavelmente não lhe ocorreu. Fico espantado que tivesse a ousadia de se dirigir ao senhor, mestre.

— Falei com ele primeiro. O rapaz é sensível'e inteligente. O que não pode falar, expressa através da flauta. É um jovem talentoso e deve ser educado. Vou falar com o velho Younis no palácio e ver se conseguimos encontrar um tutor para ele.

Lágrimas encheram os olhos de Thawdor.

— Sua bondade é bem conhecida, senhor. A mãe do rapaz poderia até rezar para que Alá recompense a sua generosidade.

Idrisi acenou com a cabeça e os criados o escoltaram até o banho na sala ao lado. Ensaboaram-no e o esfregaram com as esponjas mais delicadamente macias. Ficou então pronto para ser secado e vestido. Quando chegou à varanda, o cansaço fora removido do seu corpo. E o cordeiro estava pronto para ser consumido. Que coisa estranha, comer com suas filhas. Por que em nome de Má estavam aqui? Não acreditava que tivessem percorrido aquele caminho todo só para que ele visse seus netos. Não era do seu feitio. Nem, agora que pensava a respeito, o trabalho todo a que se deram para preparar o cordeiro. Sua mãe Zaynab devia ter-lhes sussurrado bobagens nos ouvidos: "Adulem o velho, façam-no sentir que vocês o amam, garantam que o cordeiro seja cozinhado da maneira especial que ele gosta, esperem até que o tenha provado e então peçam o que têm a pedir."

A lembrança da sua voz insinuante e da falsa lisonja não era agradável e ficou irritado consigo mesmo por ter pensado naquilo. Devia lhe dar uma indigestão.

E onde estavam os maridos das suas filhas? Subitamente percebeu que elas tinham vindo pedir em nome de seus homens. Algo devia ter acontecido. Havia sempre inquietação em Noto e no campo nos arredores de Siracusa. No palácio se referiam àquilo como banditismo, mas ele sabia que era muito mais. Pois bem, ouviria quando a ocasião chegasse.

Desfrutou a comida. O cordeiro estava suculento e gostoso, os legumes frescos e o frasco de vinho enviado pelo palácio, provado por Ibn Fityan e pronunciado livre de veneno, havia reavivado o seu ânimo. Notando isto, Samar e Sakino trocaram. um olhar cúmplice, enquanto Idrisi pensava consigo mesmo como as duas se pareciam com a mãe.

A natureza não as havia dotado da sua própria beleza ou do seu físico. Ao lembrar-se de Zaynab, com quem seu pai o obrigara a se casar e que havia visto de relance pela primeira vez no dia do casamento, tremeu à memória daquela noite. Não houvera nenhum prazer despreocupado para os dois e até agora era um mistério para ele como tinham produzido quatro filhos. Sua mãe reivindicava o crédito para si. Contou à família inteira como, consciente do problema, insistira para que Muhammad bebesse uma desagradável infusão de folhas de café adoçada com suco de tâmara, cujos efeitos afrodisíacos foram primeiro notados pelos curandeiros de Ifriqiya. E, naqueles primeiros anos, a cada ocasião — não que fossem muitas — em que montava na sua esposa, podia sentir o gosto amargo das folhas. Sua mãe ficou convencida de que sem elas ele não teria conseguido produzir quatro filhos.

Se o caráter de Zaynab fosse diferente, não teria encorajado a sua partida de Palermo. Mas ela não possuía qualidades redentoras, nenhuma. Sua voz alta gritando impropérios contra a criadagem o irritava grandemente. E era ainda pior quando ela o elogiava. Ele nunca pensou como devia ser para ela crescer numa casa de nobres, desdenhada por todos por causa da sua aparência, o resultado de endogamia excessiva. Ele sabia disso e às vezes comentava com Marwan ou Ibn Hamid como os árabes se preocupavam mais com a criação de cavalos puro-sangues do que com a de seus próprios filhos. Não era culpa de Zaynab, mas por que Má não lhe dera um pouco de cérebro para compensar?

Que as feições de Zaynab fossem reproduzidas em ambas as filhas poderia ter sido uma desgraça não fosse a posição que Idrisi ocupava na Corte. Haviam se casado com homens da nobreza árabe de Siracusa, cujos ancestrais tinham chegado de Ifriqiya e feito o cerco à cidade poucas centenas de anos depois da morte do Profeta.

Os dotes das moças foram generosos, seus maridos eram gentis e, mais importante, tinham conseguido desempenhar seus deveres sem a ajuda de folhas de café. Filhos foram produzidos, um para Samar e gêmeos — um filho e uma filha — para Sakina. O futuro estava assegurado. A terra agora estava garantida, uma considerável porção já registrada no nome dos dois meninos para evitar disputas de propriedade e, ao mesmo tempo, tranqüilizar as mulheres e o seu pai de que, o que quer que acontecesse, a herança não poderia ser contestada. Seus filhos eram os herdeiros oficiais.

Tendo se dado a um grande esforço para cumprir isto, os dois maridos haviam seguido em frente e, compatíveis com suas crenças religiosas, começaram a semear em outras pastagens. Não demorou muito para Samar e Sakina perceberem que não haveria mais filhos. Quanto aos prazeres da cama, uma luxúria perdida. Foi quando bebiam chá de menta depois da refeição que o seu pai decidiu atacar primeiro.

— Minhas filhas, vocês me conhecem o suficiente para saber que detesto aqueles que ocultam seus verdadeiros pensamentos no fundo de seus corações e falam de outra coisa. Sei muito bem que não vieram aqui impelidas pela bondade dos seus corações, mas porque precisam de algo de mim. Não tenho idéia do que seja, mas sou seu pai e vou ajudá-las. Mas, em nome de Alá, peço que falem agora e falem a verdade.

As mulheres entraram em pânico, inseguras se este era ou não o momento certo para discutirem seus problemas. Tinham achado melhor esperar até a manhã seguinte, quando a presença das crianças poderia deixar seu pai mais receptivo às suas necessidades. Sakina fez uma brava, ainda que fraca, tentativa de criar uma digressão.

— Mas, Abi, não nos disse se gostou realmente do cordeiro. Nós o preparamos especialmente para o senhor e...

A visão do rosto do pai tomado de raiva a fez calar-se imediatamente. Samar viu que era inútil ocultar mais o propósito de sua visita. — Abi, nunca lhe pedimos nada importante até hoje, mas estamos muito infelizes. Nossos maridos nos abandonaram e precisam ser punidos e pensamos que você...

Ele ergueu a mão para interrompê-la.

— Antes que prossigam, quero que sejam claras numa questão. Seus maridos saíram de casa ou lhes pediram que saíssem e encontrassem abrigo em outro lugar?

— Não — as mulheres responderam em uníssono.

— Mas — Samar fez menção de continuar, quando ele a interrompeu de novo.

— Ouçam-me com atenção. Vocês começaram com uma inverdade. Seus maridos não as abandonaram no sentido rigoroso da palavra. Podem não mais dividir a cama com vocês, mas isso é uma questão diferente. Quero que me digam tão francamente quanto puderem por que estão aqui, o que querem realmente e como acham que posso ajudá-las. Comecem a partir disso e então podemos ver como foi que chegaram aqui. Estou sendo claro?

Samar e Sakina se entreolharam em desespero e caíram num silêncio nada característico. Ele gostou do silêncio. Podia ouvir o mar de novo e a brisa suave que fazia as palmeiras balançarem gentilmente. Por um momento esqueceu a presença das filhas, mas a voz fria e agora resignada de Samar interrompeu de novo.

— Muito bem, Abi. Vou fazer o que deseja. Viemos implorar-lhe para persuadir o sultão a deserdar nossos maridos, remover seus nomes do registro de terras e colocar tudo em nome dos seus netos. É tudo. Se isso ajuda, podemos oferecer testemunhas que jurarão sobre o Corão que tanto Samir ibn Ali como Umar ibn Muhammad se envolveram em conspirações com o Amir contra o sultão. Estão preparando-se para a guerra.

— Isto é verdade? — perguntou numa voz severa olhando fixamente para elas. Seria surpreendente se o Amir de Siracusa estivesse preparando uma rebelião. Elas desviaram o olhar e ele soube então que estavam mentindo. Por que estavam tão empenhadas em destruir os homens que haviam casado com elas? Ele conhecia a resposta. Ambas eram estúpidas. Não percebiam que quando as terras são tomadas de uma família desleal, a lei não discrimina entre pai e filho. Tudo é confiscado.

— E estão preparadas para confirmar o que me disseram sob juramento na presença do sultão?

Assentiram com a cabeça.

— Vão dormir agora. Vou refletir sobre o seu pedido e tomar uma decisão amanhã.

Pela primeira vez naquela noite acharam que seu plano teria sucesso. A tolice não tem limites. Sua esposa tinha tomado uma aversão violenta aos genros e estava decidida a se desfazer deles. Convencera as moças disso e as enviara a Palermo, carregadas de falsas acusações.

Imerso em pensamentos, seu pai saboreava o silêncio que se seguira à sua partida. Os pássaros, também, haviam se recolhido para a noite. Só o mar estava acordado e as ondas começavam a ficar ruidosas. Olhou para o céu. Era uma noite clara, estrelada. Quando se levantou e caminhou até a beira do terraço, viu os vaga-lumes dançando no espaço. Isto sempre o deixava melancólico. Lembravam-no da primeira noite, uma noite escura de inverno, que havia passado com Mayya depois de terem declarado seu amor um pelo outro, quando ele tinha vinte e ela era cinco anos mais moça. A meia-lua já havia desaparecido. Quando viram os vaga-lumes, ela riu e começou a dançar.

— Olhe, Muhammad — ela gritou -, olhe para mim. Eu sou um vaga-lume.

Ficou sentado olhando para ela até que uma tempestade súbita irrompera com trovão e uma chuva gelada. Pegou na mão dela e correram todo o caminho de volta à aldeia.

Antes de se separarem, ele a apertou junto a si e beijou seus lábios.

Ouviu Ibn Fityan tossir discretamente.

— Hora de ir para a cama, mestre?

— Sim, venha comigo e faça uma massagem nos meus pés. O eunuco seguiu Idrisi até o quarto de dormir onde um criado o despiu e deu-lhe um roupão para a cama.

— Sabia que o filho mais novo de Thawdor viajou no meu navio?

O eunuco não respondeu.

— Você sabia. Por que não fui informado?

— Thawdor achou que era melhor assim. Não queria incomodá-lo.

— É a sua função contar-me tudo. Entende isso? O que andam dizendo no qasr?

— Dizem que o sultão está doente e pode não sobreviver este ano. Dizem que seu filho mais moço é um Fiel em segredo e restaurará nosso povo à posição que merecemos.

Dizem que o senhor, mestre, tem um papel importante a desempenhar. Os nazarenos estão pressionando o sultão a nos dar uma lição. Falam de conspirações e o aconselham a destruir todas as mesquitas em Palermo porque são os viveiros da rebelião. É o que estão dizendo.

Não esperou uma resposta porque viu que Idrisi havia pegado no sono. Cobriu a forma adormecida do seu amo com um lençol e saiu do quarto na ponta dos pés. Mas Idrisi não dormia. Pensava no futuro. Conhecia as facções palacianas e seus líderes, mas sempre se mantivera distante delas. Agora que seu livro estava terminado iria às preces das sextas-feiras e ouviria o khutba. Talvez devesse ter ido ao palácio, afinal.

Quando acordou à primeira luz da manhã, olhou para fora da janela para ver se os vaga-lumes tinham trazido uma tempestade, mas não havia nenhum sinal de terra molhada e o mar parecia calmo. Mandou chamar os netos e ficou surpreso ao verificar que só os meninos tinham sido trazidos para vê-lo. O filho de Samar, Khalid, tinha 14 anos e seu primo, Ali, era dois anos mais velho.

— Wa Salaam, Jiddu. Abraçou cada um deles e pediu-lhes que sentassem na sua cama.

— Vamos tomar o café da manhã aqui e enquanto vocês comem vou lhes fazer perguntas sobre sua equitação e seus tutores.

Mas o que realmente queria saber era sobre os meninos e seus pais. E o que ouviu lhe agradou. Em cada caso o pai dedicava grande interesse e passava várias horas por semana com o filho. Ali falou de como o pai de Khalid os havia ensinado a atirar uma flecha num alvo e a caçar. Khalid contou como haviam aprendido a poesia de Ibn Hamdis, que o pai de Ali podia recitar de cor.

— Gosta de sua poesia? Ali acenou vigorosamente com a cabeça, Khalid fez uma careta. Seu avô explodiu numa risada.

— Vejo que Ali é um homem sentimental, muito dado ao romance, enquanto Khalid se interessa mais por armas.

— Jiddu — respondeu Khalid -, Ali acha que seremos forçados a deixar a Siqilliya um dia, assim como Ibn Hamdis. Se é assim, que uso tem a poesia? Acho que precisamos aprender a lutar para podermos nos defender. Não quero ver minha família assassinada como cabras em época de festival.

Idrisi olhou atentamente para eles. Viu comerem cuidadosamente o iogurte de leite de cabra e o pão colocados à sua frente. Alá fora generoso. Os meninos eram altos e se pareciam com os pais. Os lóbulos das orelhas de Ali lembravam a Idrisi seu próprio pai. Gostava de seus netos e os aprovava.

— Jiddu — perguntou Ali numa voz suave -, em seu livro o senhor explica por que a montanha em Catânia respira fogo? No mês passado, os aldeães que moram abaixo dela empacotaram seus pertences e fugiram. Mas, depois de algumas bolas de fogo, a montanha voltou a dormir e os aldeães voltaram com cara de idiotas. Por que acontece isso?

Meu pai diz que é porque Alá está zangado com os pecados cometidos pelos nazarenos contra os fiéis.

— Se este fosse o caso, meus filhos, por que ele estaria nos punindo? É o nosso povo que mora naquela região. Não cheguei a investigar a fundo esta questão, mas estou seguro de que tem algo a ver com o nascimento desta nossa Terra.

— Mas foi Alá quem ordenou que a Terra nascesse — disse Khalid com uma voz trêmula, que subitamente lembrou a Idrisi de Walid naquela idade, intenso e inquiridor.

— Quando seu tio Walid, que, espero, volte um dia para conhecer vocês dois... quando ele tinha dez ou 11 anos de idade nós estávamos numa grande embarcação não longe de Catânia. E a montanha-de-fogo tornou-se muito ativa e o mar muito agitado e achei que talvez não sobrevivêssemos. Mas não demorou muito e chegamos à orla em segurança. Walid fez a mesma pergunta e eu lhe dei a mesma resposta. E então ele me disse isso que você acabou de dizer, Khalid. Conteilhe então uma história que os gregos costumavam contar nos velhos tempos sobre a montanha-de-fogo. Estão interessados?

Os olhos cintilantes dos netos o encorajaram a prosseguir.

— Faz muito, muito tempo, os gregos não acreditavam que existisse apenas um Má. Acreditavam em muitos deuses diferentes. O sultão dos seus deuses era Zeus, que vivia no Monte Olimpo com seus companheiros deuses e deusas. O povo da Terra se ressentia do poder dos deuses. Por que só eles deveriam ser imortais? Por que deveriam pegar as melhores coisas da terra e transportá-las para o Monte Olimpo? Aconteceu então que a Mãe Terra decidiu que dois gêmeos gigantes, os Moídas, que cresciam dois metros a cada ano, deveriam roubar a comida que tornava os deuses imortais, bani-los do Olimpo e governar o mundo eles mesmos. Não era uma má idéia, concordam? Eles capturaram Ares, o deus da guerra, na Trácia e o trancaram numa arca de ferro.

— Mas não tiveram êxito. Os estratagemas de Ártemis os derrotaram e eles mataram um ao outro por engano. A Mãe Terra ficou realmente perturbada, mas se recusou a desistir. Decidiu criar um novo e imenso monstro chamado Tifão. Este monstro tinha a cabeça de um asno, com orelhas que alcançavam as estrelas e asas gigantescas que podiam bloquear o sol e centenas de cobras em vez de pernas. Soprava fogo e quando chegou ao Olimpo os deuses ficaram aterrorizados e fugiram. Sim, fugiram para o Egito. Zeus foi disfarçado como um carneiro, sua mulher Hera como uma vaca, Apoio tornou-se um corvo e Ares um javali. Mas a mais inteligente e sábia foi a deusa Atena. Recusou-se a partir e chamou seu pai Zeus de covarde. Isto o enfureceu. Ele voltou e lançou um de seus famosos raios sobre Tifão, que teve o ombro queimado e gritou por socorro. Então Tifão, num acesso de raiva, agarrou Zeus, o desarmou e entregou a um monstro feminino chamado Delfina. Os outros deuses decidiram socorrer Zeus. Com a ajuda das Parcas, envenenaram Tifão. Então Apoio matou Delfina e resgatou Zeus. Mas Tifão não estava morto. Estava em Catânia, vivo mas debilitado.

Zeus pegou uma pedra gigantesca e a arremessou sobre a cabeça de Tifão e assim nasceu a sua montanha-de-fogo. Tifão ainda está lá e seu sopro flamejante às vezes se eleva aos ares e assusta todo mundo. Isto não é melhor do que dizer que é a vontade de Alá?

Os meninos bateram palmas excitados.

— Jiddu, os gregos realmente acreditavam que podiam derrubar os seus deuses?

— Sim. E então vieram os romanos e assumiram os deuses, mas os romanos foram um passo adiante e seus sultãos decidiram que eles próprios podiam se tornar deuses.

E o fizeram.

— Como?

— Informando ao seu povo que eram deuses e mandando construir grandes estátuas em sua honra.

— Mas nós só temos Alá — disse Khalid -, e isso é muito melhor porque ele é todo-poderoso. Ninguém pode derrubá-lo.

— É verdade, meu filho — replicou o avô -, mas acho que os gregos se divertiam mais com os seus deuses.

— Mas eles realmente existiram? — perguntou Khalid.

— Se as pessoas acreditam neles, eles existem.

— Mas, Jiddu...

— Agora me ouçam. Vão tomar seu banho e se vestir adequadamente. Vou leválos ao palácio hoje. Vocês vão conhecer o sultão.

Quando ele desceu as escadas um criado sussurrou que suas filhas desejavam falar com ele antes de sair de casa. Samar e Sakina tinham ouvido a notícia da visita ao palácio por meio de seus filhos e presumiram que seu pai pretendia facilitar a transferência das terras para os rapazes. Assim, as descaradas mulheres saudaram o pai jovialmente, cumulando-o de palavras melosas e pedindo sua permissão para voltarem a suas casas em Siracusa. Uma raiva fria tomou conta dele e o impediu de responder. Samar expressou preocupação.

— Sente-se bem, Abi? Podemos falar depois que o senhor voltar.

— Sentem-se. Fizeram o que ele mandava.

— Acabei de partilhar o pão com Khalid e Ali. São meninos inteligentes e sérios e gostaria que ficassem um pouco mais para que possa conhecê-los melhor. Quero ensinar-lhes algo importante. Nesta casa honramos a verdade. É o que desejaria lhes ensinar.

As mulheres sorriram em apreciação e concordaram com a cabeça.

— Por esta razão — continuou — decidi ignorar as mentiras que vocês me contaram sobre os seus maridos. Cada palavra que falaram foi uma inverdade e estavam preparadas para testemunhar falsamente com as mãos sobre o Corão. Sei bem que Alá não as abençoou com muita inteligência, mas sua estupidez é verdadeiramente monumental.

E por trás desta tentativa desonrosa um nível ainda mais elevado de estupidez parece estar em ação. Esta bobagem toda foi idéia de sua mãe? Respondam-me.

Sakina começou a derramar lágrimas tão falsas quanto seus sorrisos iniciais.

O pai levantou-se para dispensá-las.

— Quero que voltem a suas casas e se esqueçam de toda essa história. Não se dão conta de que os meninos amam os homens que vocês querem difamar? Se ouvir outra palavra de vocês vou providenciar para que sejam severamente punidas.

Abaladas por esta demonstração de raiva, Samar e Sakina caíram de joelhos diante dele e beijaram seus pés. Samar falou numa voz entrecortada.

— Perdoe-nos, Abi. Está correto. Foi idéia de nossa mãe. Não mencionaremos isso para outra pessoa enquanto vivermos.

Então Sakina, desesperada para recuperar as graças do pai, declarou:

— Nunca mais falaremos inverdades.

Idrisi foi inflexível.

— Poderiam muito bem dizer que nunca mais iriam comer.

— Abi, chegou uma carta de Walid.

O choque quase o derrubou. Sentou-se de novo.

— Se isto é outra falsidade...

— Não é, Abi — Samar falou para apoiar a irmã.

— Nós vimos a carta.

— Quando foi que chegou?

— Um ano atrás — respondeu Sakina.

— Foi-nos entregue por um mercador que havia se encontrado com Walid.

— Por que não fui informado? As mulheres abaixaram a cabeça e não responderam.

— A quem era a carta endereçada? Não receiem. Contem-me a verdade.

— A nós — respondeu Samar — mas nela havia um pergaminho selado para o senhor. Nossa mãe disse-nos que devíamos escondê-lo até o senhor concordar com o nosso plano.

— Presumo que o tenham trazido com vocês? Ela acenou com a cabeça e correu até o seu quarto, voltando com um rolo de papel selado. Tomando-o das mãos dela, Idrisi pediu que o deixassem a sós. Inspecionou o documento atentamente para verificar se fora aberto e selado de novo mas, para sua surpresa, não tinha sido violado.

Ao pisar no lacre e vê-lo esfarelar-se, seus olhos ficaram úmidos. Walid estava vivo. A caligrafia desajeitada era tranqüilizadora. Não podia haver dúvida de que Walid fosse o autor daquilo que estava na mesa à sua frente. Em outro pedaço de papiro com a carta Idrisi viu os contornos de um mapa, mas que costa podia ser esta? Por um momento o cartógrafo tomou precedência sobre o pai. Bateu palmas. Era a costa sul da Índia, mas desenhada com muito mais habilidade do que a sua própria versão.

— Alá seja louvado — disse para si mesmo.

— O rapaz é mais talentoso do que o seu pai.

E então devorou a carta.

 

"Muito respeitável pai, espero que esta o encontre com saúde. Eu honro o senhor e o amo. Esta é a terceira carta que lhe estou enviando. As duas primeiras foram despachadas por meio de mercadores que estavam a caminho de Palermo. Pedilhes que entregassem as cartas no palácio, presumindo que elas o encontrassem lá. Tenho a sensação de que jamais o alcançaram porque se o tivessem o senhor teria encontrado um jeito de responder e eu costumava sonhar que o seu navio entraria nesta cidade de água e me encontraria.

Esta carta estou mandando por um homem do mar que se tornou um caro amigo meu na primeira viagem e agora é capitão do seu próprio navio. Ele está a caminho de Siracusa. Em minhas cartas anteriores eu lhe pedia que me perdoasse por partir sem me despedir. Não queria que ficasse preocupado ou temeroso por minha causa.

Sei quanto me amava e não queria deixar que minha ausência se tornasse uma preocupação permanente em seu pensamento como a sua o é no meu.

Parei de viajar alguns anos atrás depois de ter passado por algumas atribulações e amarguras em minha vida. Agora estou feliz a serviço de um ótimo mercador, Mestre Soliman, que conhece bem Palermo pelas histórias do seu avô que negociava com sedas e trazia muitas belas peças de tecido de nossa cidade. Mestre Soliman não viaja mais. Trabalha principalmente com fivelas curvas e colares de prata para as senhoras e, às vezes, taças de ouro para o palácio. É um artífice muito talentoso e poderia fazer um planário de prata para os seus mapas.

Pai, gostaria de vê-lo, mas não desejo voltar a Palermo. Vai terminar mal para o nosso povo e não tenho vontade de testemunhar novas matanças. Como sabe, foi a morte do irmão de minha mãe a causa da minha partida. Tenho consciência de que o senhor nada sentia por ele a não ser desprezo, mas era um homem afetuoso, sempre muito bondoso para comigo e não houve um motivo real para a sua morte, exceto roubo. Os nobres que o mataram sabiam que não tinha filhos e que a terra reverteria para o sultão, o que aconteceu, e foi entregue aos assassinos. Aqui na cidade de água não existem muitos fiéis. Mestre Soliman, que é judeu, acha que eu talvez seja o único seguidor do nosso Profeta a viver de fato nesta cidade. Por esta razão minha presença não é ameaçadora para ninguém. Não posso lembrar se o senhor chegou a visitar Veneza em suas viagens, mas se um dia decidir vir até aqui pode me encontrar na casa do artífice em prata Soliman que é conhecido de todos. O pequeno mapa que mando com esta carta foi feito por mim quando era marinheiro e viajei muito pelas costas oriental e ocidental da Índia.

A paz esteja convosco, Pai.

Do seu filho obediente, Walid ibn Muhammad"

Uma cascata de emoções desceu sobre ele — alívio, alegria, amor, raiva, tristeza, tudo fluindo junto enquanto ele enxugava as lágrimas dos seus olhos. Perguntas não feitas e amarguras não faladas continuariam a pesar sobre o seu coração, a não ser que... Pediria ao sultão permissão para visitar Veneza.


3

Rumores sigilliyanos.
O sultão no palácio informa a Ydrisi o destino que aguarda Felipe al Makdia.
O encontro de Jdrisi com Mayya e EI more o faz esquecer de tudo mais.

Depois que as formalidades foram concluídas e os dois netos apresentados ao sultão Rujari, que deu a cada um deles um saquinho de seda contendo moedas recém-cunhadas, a audiência terminou. Os meninos fizeram uma mesura e foram escoltados para casa por Ibn Fityan. O resto dos presentes foi convidado a deixar os dois homens a sós.

Idrisi ficou chocado ao ver quanto peso o sultão tinha perdido nos últimos três meses. Seu amigo robusto, vigoroso e bonito havia envelhecido. Os cabelos ruivos escuros de que tanto se orgulhava e que havia herdado da mãe, Adelaide de Savona, tinham ficado totalmente grisalhos. O mesmo destino devia ter acontecido à sua barba e provavelmente por isso ele a mandara remover. As aparências eram importantes para este sultão. Idrisi fitou Rujari, que evitou os seus olhos. Os dois homens sabiam que a morte não estava muito distante.

Justamente quando Idrisi ia falar, uma jovem, com não mais de 16 ou 17 anos de idade, entrou correndo na sala e abraçou o sultão, repousando a cabeça no seu colo. Ao se dar conta de que não estavam a sós, seu rosto se coloriu e ela murmurou um pedido de desculpas. No momento em que Idrisi a viu, soube quem era e as batidas do seu coração se aceleraram. Os olhos e os lábios dela eram uma réplica exata dos de sua mãe naquela idade.

Rujari sorriu.

— Minha filha, Elinore, mas você a reconheceu, não? É igual à mãe, excetuando os cabelos negros e espessos. Esta foi a minha contribuição. Eu acho.

Ela olhou cuidadosamente para ele e sussurrou no ouvido do pai.

— Como é que ele conheceria minha mãe?

— Mestre Idrisi, ela quer saber como é que conheceria sua mãe. Vocês cresceram na mesma aldeia, não foi? Acho que a vi pela primeira vez na casa do seu tio em Palermo. Você estava lá?

Idrisi assentiu com a cabeça.

— Preciso falar com o amigo da sua mãe, filha. É o maior erudito em nosso reino mas raramente está em Palermo. Diga a sua mãe que ele está aqui. Se ela desejar, pode compartilhar do nosso almoço.

Como uma gazela, Elinore partiu do quarto e, virando-se uma vez, olhou para trás e sorriu.

— Soube que teve notícias do seu filho.

— Seus espiões são rápidos, Excelso Senhor. E, nesta ocasião, dizem a verdade. E sua saúde?

— Veja por si mesmo. Aqui estou no palácio dos seus sultãos, alquebrado pela velhice cruel e pela perda dos meus filhos. Conhece esta sensação. Seu menino desapareceu num navio e lembro que você não conseguiu comer durante vários dias. Três dos meus filhos foram tirados de mim. Eu amava Rujari mais do que qualquer outra pessoa. Estava aprendendo rápido. Você o ensinou. Não se lembra? Era um broto saudável e de repente cresceu como uma árvore jovem. Eu o amava, Idrisi. Cuidava dele com todo o carinho. Era o orgulho do meu pomar. Deus é cruel. Então foi a vez de Tancredi, seguido por Alfonso. Agora tem Guillaume ou "Guilherme, o Conquistador", como seus irmãos costumavam provocá-lo. É um doce rapaz, de temperamento tranqüilo, mas pouco dotado e sem sabedoria nem virtude. A coroa pesará muito na sua cabeça e receio que irá depender muito da espada. A espada, como sabe melhor do que a maioria, é uma defesa essencial contra inimigos em casa e no estrangeiro, mas deve ser usada com cuidado. Se houvesse imaginado que todos os seus irmãos morreriam antes dele, eu teria providenciado para que tivesse a oportunidade de governar ou trabalhar para o Diwan. Seus interesses são limitados à poesia árabe, a discussões sobre o amor, a consumir vinho e a fornicar. Embebeu-se tanto da sua cultura que acho que sente e pensa como um árabe. Isto é perigoso, Idrisi, e vai enfurecer os nobres. Quero que você fale com ele, o ensine e ajude. Ele poderia perder até seu reino tão facilmente como meu pai o conquistou. Se ele o fizer, espero que o seu povo o recupere, mas duvido da sua capacidade de fazê-lo.

Existe uma fraqueza arraigada na sua política. Vocês superestimam o poder da palavra e da espada, mas subestimam a necessidade da lei, especialmente em relação à propriedade. Não me interprete mal: a lei é somente um instrumento para ser usado pelo governante ao seu critério, mas cria a base para a estabilidade. Detestaria que os papas tomassem a Sicília, ou os ingleses ou os cruzados. Se o fizerem, tudo o que criamos será destruído. Será o fim. Eu esperava que minha jovem e bela esposa pudesse me dar um novo filho, mas ela produziu uma menina e isso não ajuda.

Havia ocasiões em que Idrisi tinha dúvidas em relação a si mesmo e à sua posição na corte. Freqüentemente imaginava como, com o seu conhecimento da Siqilliya e do mundo, podia guiar seu povo à vitória. Mas uma conversação mais demorada com Rujari geralmente dissipava suas dúvidas. Não havia outro sultão como ele, na Ifriqiya ou em alAndalus, os dois mundos que ele entendia tão bem. Mas o sultão era duro demais em seus julgamentos.

— Acho que faz uma injustiça a Guilherme. É porque jamais gostou dele que se refugiou em seu próprio mundo, mas é um rapaz inteligente. Seu conhecimento de literatura e filosofia é notável. É verdade que é muito chegado aos prazeres do salão e do copo, mas vou fazer o que pede e dar-lhe algumas lições de política. Vamos esperar que Sua Alteza viva por muito tempo. Os médicos diagnosticaram a sua doença?

— Os sábios de Salerno — e todos eles estiveram aqui — dizem que não há cura para a minha doença. Sabem que estou morrendo. Recomendam ervas, frutas e outras coisas mais, mas quando pergunto quanto tempo de vida me resta não têm resposta. Não sabem. Por isso vamos falar longamente hoje, meu amigo. Há muito a discutir. Estou contente porque teve notícias do seu filho e estou ainda mais feliz porque seu livro foi terminado. Seu livro não deixará felizes meus primos ingleses. Você descreve a Inglaterra como um país de inverno perpétuo no Oceano das Trevas. É verdade. É verdade. Até os padres que os ingleses me mandam para intrigar contra o seu povo e os gregos sabem disso muito bem. Por que outro motivo viriam muitos deles para buscar calor nos braços de rapazes locais? Não é culpa deles, mas de vocês. Por que um exército árabe não chegou e construiu sobre o que os romanos haviam deixado para trás? Assim que atingiram a costa atlântica, vocês podiam facilmente ter tomado a Inglaterra e a ilha ao norte. Aquelas pequenas igrejas saxônicas de que ouvimos falar tanto podiam ter sido reconstruídas como belas mesquitas e depois o Banu Hauteville as teria consagrado como catedrais. Meus primos queixaram-se amargamente de terem de construir tudo sozinhos. Castelos, palácios e igrejas. Disseram-me que todas as suas estruturas são inverno perpétuo.

Sorriu e olhou para o amigo. Era assim que suas conversas tinham ocorrido quando ambos eram jovens e se tornaram amigos chegados. Sua intimidade provocara uma quantidade de rumores nas ruas, encorajados pelos eunucos do palácio. O sultão esperou a sua resposta. Idrisi o atendeu.

— Era fria demais para ser conquistada por nós e até Alá teria problemas para mudar o clima de um país. Em alAndalus e na Siqilliya ainda podíamos cheirar o deserto e cultivar nossastâmaras, limões e romãs. Mas na Inglaterra o frio teria matado as palmeiras e aqueles que levavam as sementes. Aquela ilha era feita para o seu povo, não para o meu. Embora o que diga seja verdade. Nós teríamos lançado a luz do conhecimento sobre eles. Teria poupado a Abelardo de uma longa jornada até aqui simplesmente para aprender árabe. E nós lhes teríamos ensinados os prazeres da comida. Eles pensam e comem como bárbaros. Mas acho que os seus arquitetos, também, gostam de trabalhar segundo os seus planos, não os nossos. A igreja que vocês construíram em Cefalu nunca poderia ter sido construída sobre as fundações de uma mesquita.

Riram. Muito para a irritação dos padres ingleses na corte de Rujari, o azar dos primos que haviam conquistado a Inglaterra era o alvo de muito humor e irreverência entre estes dois velhos amigos. Até mesmo aquela conquista havia exigido a presença de cavaleiros siqilliyanos. E alegava-se até que uma flecha siqilliyana havia derrubado o rei inglês.

— Ah, Cefalu. É lá que você deve providenciar para que este corpo cansado repouse depois que eu partir. Os bispos vão querer enterrar meus ossos aqui em Palermo.

Não deixe que façam isso. Alguns dos meus momentos mais felizes foram passados em Cefalu, onde morei e providenciei para que os arquitetos fizessem exatamente o que eu queria. Por que sorri? Ah, eu lhe contei sobre a mulher de Temim. Ajudou-me muito, certamente, mas foi a igreja que me preocupou muito mais do que ela.

Quanto ao projeto, sei que você está fazendo uma maldade. A influência dos seus arquitetos está onipresente naquela igreja. Como poderia ser diferente quando foram eles que a construíram e da maneira que eu queria que fosse? Foi por isso que me mudei para lá a fim de evitar que os bispos interferissem. Vamos, mestre Idrisi, como pode ter se esquecido daqueles deliciosos arcos, delgados como as curvas de uma bela mulher?

— Uma bela mulher de Temim... Rujari ignorou a observação.

— O que são aqueles arcos senão um tributo às mesquitas de Palermo, que ainda estão lá como estavam na época do meu pai? Você estava convicto de que eu não conseguiria protegêlas. Claro que a igreja que o seu povo tomou e transformou numa mesquita teria de ser consagrada de novo. Nós somos cristãos, afinal. Mas você deve admitir que tudo mais está lá. Esta ainda é a cidade das 299 mesquitas e ainda sou o sultão Rujari da Siqilliya.

— O senhor é certamente o sultão Rujari de Palermo. E os Fiéis o respeitam por isso, mas de que outro modo poderia governar uma cidade em que o grosso da população pertence à minha fé? Poderia matá-los, mas quem administraria o Diwan, combateria as suas guerras, transportaria suas mercadorias e pagaria seus impostos? Os lombardos que seu pai encorajou a virem para cá são bárbaros. Nada sabem a não ser estuprar e roubar. E quando o senhor viaja para Messina ou Apúlia e deixa estes belos mantos longos e se veste na armadura dos seus ancestrais e seu escudo é pintado com uma cruz o senhor se torna rei Roger ou conde Ruggiero dependendo de onde estiver e dos papas litigantes que venham implorar pelo seu apoio.

Rujari sorriu.

— Você sabe muito bem que meu pai se recusou a mandar nossos soldados combaterem na Primeira Cruzada. Eu lhe contei que, quando uma comitiva do papa Urbano continuou a insistir para que enviássemos soldados, meu pai peidou bem alto e deixou a sala? Mesmo depois que tomaram Jerusalém, ele estava convicto de que tinha tomado a decisão certa. Urbano nunca perdoou meu pai e até o ameaçou de excomunhão. Agora ouvi dizer que as coisas não estão muito boas para os cruzados e eles temem perder tudo. Ainda na semana passada recebi uma mensagem de Inocêncio, cujo ódio por mim só é superado por aquele que lhe devoto. Escreve que existe uma pressão dos ingleses e do Sacro Imperador para uma nova cruzada com o fim de aliviar a pressão sobre os estados cruzados e pergunta se a Siqilliya vai participar.

Não mandarei nossos soldados para Jerusalém ou Acre para salvar os castelos de meus primos na Síria. Mas seria tolo de minha parte revelar isto cedo demais. Por isso eu escuto e jogo com o papa e nossos primos ingleses. São deveres cansativos, mas sagrados.

— Alguns poderiam dizer — respondeu Idrisi — que não foi só preocupação por meu povo ou nossos soldados no seu exército que o levou a não ajudar o Papa, mas seus temores e aqueles do seu pai de que o comércio do trigo pudesse sofrer e esvaziar o tesouro. Não é por nada que um de seus nomes é Abu Tilis, pai do saco de trigo.

Idrisi ia continuar quando notou que Rujari tinha dificuldades para respirar. Correu até a porta e pediu ao camareiro do palácio, que estava bisbilhotando, que trouxesse os médicos até o rei.

Rujari se restabeleceu, mas o esforço para recuperar o fôlego o exauriu.

— Vou descansar um pouco — sussurrou fracamente.

— Você precisa comer alguma coisa. Fale com Mayya e depois volte ao meu quarto. Tem um assunto importante que precisamos discutir.

Os médicos tinham chegado e começaram a sentir o pulso e a cabeça reais. Rujari bebeu a água que lhe foi oferecida e depois, pousando os braços nos ombros dos dois criados, caminhou lentamente até o seu quarto. Entristeceu Idrisi vê-lo naquele estado. Este sultão jamais deixaria Palermo vivo. Disso ele tinha certeza.

Um serviçal do palácio entrou na sala e o repreendeu num dialeto árabe falado em Noto.

— Esqueceu-se de mim, mestre. Idrisi examinou-o atentamente e sorriu. Era Abd al-Rahman, o camareiro responsável pela preparação e pela prova da comida nas cozinhas do palácio.

— Você envelheceu, assim como o sultão que serve. Fico feliz que ainda seja o Comandante dos Cozinheiros. Que iguarias foram preparadas hoje?

— Acho que ficará tão contente em rever uma velha amiga que seu pensamento não se fixará por muito tempo nas codornas ou no ninho de pasta de berinjela e alho em que repousam. E isto é apenas para abrir o seu apetite. O simples aroma da comida o guiaria até o refeitório, mas se quiser me acompanhar, Comandante dos Mapas, chegará ao seu destino muito mais cedo.

Idrisi estava tão acostumado ao fato de que poucos segredos sobrevivem em Palermo que a referência casual a Mayya não o havia surpreendido nem um pouco. Conhecia bem demais o local. Era o aposento de encontros particulares de Rujari, onde se servia comida às vezes e onde apenas membros da família, amantes ou amigos privilegiados eram recebidos. Idrisi comera ali em várias ocasiões e, na verdade, não precisava dos serviços de seu guia. A sala estava bem distante do grande salão de banquetes do palácio. As janelas davam para o mar, um cenário perfeito. E o destino quisera que ele se encontrasse com Mayya sem a presença do sultão. Sabia que o ouvido de um eunuco estaria colado à porta e toda a conversa seria relatada ao camareiro que então decidiria quanto deveria ser contado ao sultão e quanto reservado para fins de chantagem. Sempre fora assim, mas ele estava bem preparado.

Mayya entrou na sala deslizando como a princesa que não era e cumprimentou-o sem olhar na sua direção. Ela, também, sabia que cada parede do palácio tinha ouvidos.

— Wa Salaam, Abu Walid. Soube que voltou em segurança e seu grande trabalho foi completado, graças à bondade de Alá. Minha filha me informou que o viu com o sultão.

— Wa Salaam, mãe de Elinore. Fico triste que o sultão não possa comer conosco. Espero que a sua saúde melhore.

Sua única resposta foi mostrar a língua para ele e reprimir a risada que sentia saindo de si. Idrisi não a via há quase 15 anos. Agradou-o que não fizesse nenhuma tentativa de esconder sua idade tingindo os cabelos com hena. Podia facilmente tê-lo feito. Seus cabelos eram de um ruivo dourado escuro, exatamente como uma pintura desbotada da deusa grega Deméter que ele lembrava do templo em Djirdjent. Seu rosto, também, havia mudado, com rugas no pescoço e sob os olhos e nos cantos da boca. Olhou atentamente para ela e estava para beijar suas mãos quando a porta se abriu e Abd al-Rahman entrou na sala seguido por três criados que cuidadosamente dispuseram a comida sobre a mesa.

— Voltaremos quando chamar, mestre Idrisi. Espero que tudo esteja ao seu contento.

— Obrigado, Abd al-Rahman, se não estiver prepare-se para sentir a cimitarra no seu pescoço duro.

Mayya tentou, mas não conseguiu controlar um sorriso. O camareiro fez uma mesura e deixou a sala, tomando o cuidado de fechar as portas com exagerada cortesia.

Idrisi ficou de joelhos, abraçou-a e beijou suas mãos. Então sussurrou no seu ouvido.

— Ela é uma moça bonita. De passos leves e segura de si. Você tem certeza?

Mayya acenou com a cabeça e sussurrou a resposta.

— Graças a Alá, seus cabelos, também, são escuros. Um dia contarei tudo a ela.

Acariciou os cabelos dele e fez sinal para que se sentassem à mesa. Ele a seguiu, mas não pôde se impedir de tocar no pescoço dela. Ela tremeu ligeiramente enquanto se sentavam diante das tentadoras codornas, servindo ele e então se servindo. Fez sinal para que ele comesse e disse em voz alta:

— Quando Abd al-Rahman for para o paraíso, estou segura de que o anjo Jibril vai indicá-lo para se encarregar das cozinhas celestiais. Como estava a comida no seu navio? Como sempre?

— Horrorosa. Pior do que o de costume. Não vamos perder tempo com isso. Estas codornas estão maravilhosas.

E conseguiram falar sobre o cuidado que devia ter cercado cada prato e o frescor dos legumes durante outra meia hora.

Então Idrisi começou a falar de suas viagens. E esse tempo todo em que falavam de comida, mapas e do mar, mantinham-se ocupados explorando o território um do outro.

A incongruência entre as palavras e as ações era tão pronunciada que mais de uma vez ele teve de colocar a mão sobre a boca de Mayya para impedir que ela risse.

Sentindo seus seios debaixo de três camadas de roupas, comentou sobre a delicadeza dos melões, diante do que ela riu alto. O ruído os assustou e correram de volta à mesa para sentar-se em lados opostos. Então, de uma distância segura, seus olhos continuaram a se banquetear um no outro. O risco de fazerem contato físico tornou-se claro quando, sem nenhum aviso, as portas se escancararam e o sultão entrou com Elinore segurando o seu braço. Idrisi se pôs de pé em genuína surpresa.

Mayya sorriu calmamente, mas debaixo de seu vestido de múltiplas camadas podia ouvir seu coração barulhento que, diante do dilema entre o prazer e a culpa, sempre escolhia o primeiro. Idrisi, também, manteve a sua compostura.

— Alá seja louvado. Está recuperado, Sua Excelência. Rujari não perdeu tempo com formalidades.

— Sua risada podia ser ouvida em cada canto do palácio, Mayya. Não quer compartilhar o gracejo conosco?

Ela não hesitou.

— Foi a maneira como mestre Idrisi se referiu aos melões, meu senhor. Ele os segurou em cada mão e falou em voz alta, sabendo muito bem que alguém do lado de fora estava ouvindo e relataria seus comentários à cozinha. Foi o olhar no seu rosto, mais do que as palavras.

Para apoiá-la, Idrisi pegou os melões e assumiu a pose de um deus grego.

Rujari sorriu, enquanto Elinore começou a rir, como a mãe. Estranho, o pai pensou, como as duas têm esta risada brilhante e colorida. Primitiva, mas pura. Uma verdadeira alegria aos ouvidos.

Idrisi começou a estudar as feições da filha mais de perto. Suas sobrancelhas o lembravam da mãe. Como ela teria amado esta criança. O sultão o observava atentamente.

— Ela é bonita, não é, mestre Idrisi? O rosto de Elinore corou e ela foi sentar-se ao lado da mãe.

— Ela tem uma certa semelhança com a sua mãe, ou estou enganado?

— Não está enganado. Mas às vezes eu me pergunto se a semelhança está nas feições ou no caráter. Não posso me decidir. Qualquer das duas respostas me faria feliz.

Pode ir, filha.

Quando ela se levantou para sair, Idrisi falou-lhe diretamente.

— Está satisfeita com o seu tutor?

— Sim, estou, mestre — ela respondeu com uma segurança que o agradou enormemente.

— Ele diz que meu árabe e latim estão agora perfeitos e quer me ensinar grego.

Idrisi se surpreendeu.

— Se o seu pai concordar, eu gostaria de lhe dar algumas aulas de geografia. Achamos que Palermo é o centro do mundo e de certo modo é, mas não é o centro real.

Para surpresa da garota e dos seus pais, o sultão não estava inclinado a concordar.

— Existem muitas outras coisas que uma jovem precisa aprender antes de a sobrecarregarmos com geografia.

Elinore se desagradou.

— Mencione outra coisa, pai. A força da inocência era notável e os dois homens sorriram com admiração.

— Continuaremos esta discussão em outra oportunidade, minha filha, e eu talvez ceda nesta questão. Afinal, eu ajudei mestre Idrisi a preparar a pesquisa para este livro. É por isso que foi intitulado "al-kitab al-Rujari". Mas agora devo tomá-lo de vocês. Preciso consultá-lo num assunto de grande importância para o reino que pode envolver sua futura geografia.

Idrisi curvou-se para Mayya e sorriu para Elinore. Enquanto os dois caminhavam lentamente para a câmara de audiência privada, Idrisi comentou sobre a rápida recuperação do sultão e perguntou se estes ataques eram freqüentes. O sultão acenou com a cabeça, mas deixou claro que sabia que o seu tempo nesta terra era limitado e era em outra questão preparatória para o futuro que precisava de aconselhamento. Foi a terceira vez naquele dia em que Rujari havia indicado que algo o preocupava.

Idrisi ficou pensando por que ele não conseguia falar a respeito. Estavam sentados há algum tempo e o sultão ainda permanecia em silêncio, seus olhos recusando-se a fazer contato com aqueles do amigo.

— Comandante dos Poderosos, há mais de vinte anos que o conheço bem. Esta é a primeira ocasião de que me lembre em que teve alguma dificuldade em me confiar alguma coisa que o está claramente preocupando.

O sultão olhou para ele. — Algo que disse antes continua a ecoar em minha mente. Disse que eu era sultão Rujari em Palermo mas rei Roger no continente. Pois bem, meu amigo, eu preciso me tornar rei Roger em Palermo também. Os bispos me advertiram de que os barões de Apúlia e Messina e outros que não foram nomeados decidiram agir depois da minha morte. Pretendem matar o pobre Guilherme e colocar um deles no trono. Os bispos recomendam que para deter o controle do futuro eu preciso fazer a minha lealdade à Igreja visível a todos.

Idrisi percebeu a gravidade da situação.

— Um sacrifício de sangue?

— Receio que sim.

— Se sou eu que querem, preferiria a cimitarra ao fogo.

— Não é uma questão de frivolidade. Eles querem a cabeça de Felipe al-Mahdia.

Abalado pela notícia, Idrisi se levantou, o rosto carregado de raiva. Felipe era o mais respeitado dos conselheiros do sultão na Siqilliya. Era um eunuco que havia fugido da escravidão em Ifriqiya na juventude e encontrara santuário em Palermo. Nascido muçulmano, depois da morte do pai fora vendido como escravo a um mercador grego. Foi batizado e destinado à Igreja em Constantinopla. Mas o navio mercante que o levava foi atacado por piratas e ele acabou vendido à casa de um mercador em al-Mahdia. Converteu-se voluntariamente ao Islã e logo escapou da servidão como clandestino a bordo de um navio com destino a Palermo. Igualmente fluente em árabe, grego e latim, sua facilidade para as línguas o recomendava para o Diwan real. Seus dons não se confinavam à tradução. Tais eram suas capacidades de administrador que se tornou o mestre da casa e, mais tarde, um eficiente Amir al-bahr, um comandante marítimo temido pelos inimigos da Siqilliya. Estava freqüentemente ao lado de Jorge de Antioquia, o comandante marítimo que conquistou as cidades-estados da costa ifriqiyana para o rei siqilliyano. Depois da morte de Jorge, Felipe foi nomeado seu sucessor. Dentro do palácio, veio a ocupar uma posição de segundo, superado apenas pelo sultão. Um grão-vizir, mas sem um título grandioso. E, na ausência de Rujari, a autoridade de Felipe era inquestionável. Na cidade era visto como um generoso protetor de judeus e Fiéis.

Apenas poucas semanas antes de sua volta a Palermo, quando o navio de Idrisi ancorara num pequeno porto da Calábria para se reabastecer de água potável, ouviram em termos brilhantes sobre o triunfo de Felipe em Bone, na costa ifriqiyana.

Os bispos sem dúvida o consideravam um sério obstáculo aos seus planos, mais notavelmente à conversão lenta e forçada de todos os infiéis. Só podia ser este o motivo para pedirem a sua remoção. Felipe também possuía uma língua afiada e fazia pouco esforço para disfarçar sua aversão a alguns dos padres, enquanto mantinha uma amizade forte com outros. Idrisi podia entender por que os clérigos queriam sangue. Mas o que havia acontecido a Rujari?

— Qual é a acusação contra Felipe?

— De que foí muito indulgente com os prisioneiros feitos em Bone.

— Sultão, tanto o senhor como seu pai na sua época mostraram indulgência ao lidar com os povos derrotados. Em si, o que Felipe fez não constitui um crime. Seus bispos e sem dúvida os barões que os alimentam e protegem os estados da Igreja temem o poder de Felipe e a sua proximidade e lealdade para com o senhor. Mande-o embora, se for preciso, mas não o queime. Isto não aplacará a fome deles. O senhor está doente e debilitado, eu sei, mas sua força política persiste. Queime Felipe e aqueles que o senhor apazigua destruirão seus herdeiros amanhã. Meu conselho de amigo é que resista à pressão. Devolva suas exigências para eles mesmos. O senhor sabe melhor do que eu que os barões roubaram terras e raptaram crianças para propósitos escusos. Peça aos bispos para que julguem estes homens por seus crimes antes de tocar em Felipe. Consiga algo em troca pelo crime que está para sancionar. Se recusarem, então pode voltar à sua velha alma compassiva.

Rujari não respondeu.

— Com sua permissão, vou me retirar agora. Um leve aceno de cabeça foi a única resposta de Rujari.

O cartógrafo tremia de raiva ao curvar-se e deixar a sala. Do lado de fora foi escoltado por um dos camareiros menores e dois escravos. Ao atravessar o pátio externo viu uma figura voando em sua direção. Parou até que a aparição quase correu sobre ele.

— Elinore, minha filha — disse, porque ela olhou para ele com um só olho bem aberto que o fez lembrar de Walid. Mordeu o lábio, mas ela não pareceu de modo algum desconcertada.

— Mestre Idrisi, minha mãe e eu vamos passar o dia com a família dela na semana que vem. Como sua irmã também vai estar lá, seria um prazer se pudéssemos compartilhar o pão. Não precisa de permissão do sultão para visitar sua irmã, precisa?

— Pensarei sobre sua sugestão, princesa.

— Se receia perder o caminho, posso desenhar um mapa com a maior satisfação.

Ele deu uma risada. — Estarei lá, contanto que me deixe saber o dia.

— Muito bem. Discutiremos Pitágoras de Samos e suas idéias. Acredito na importância dos números, mas não definitivamente na do sete.

Ao ver a surpresa no seu rosto, ela riu e desapareceu. Graças a Alá que todos os dias não eram como este. Saber qual das duas emoções encontradas no palácio o afetaram mais era muito difícil. Que ainda amasse Mayya não chegou a ser uma surpresa. Ela estava sempre trancada dentro dele. Em suas longas viagens ela sempre o acompanhava, uma participante gentil de dúzias de conversações imaginárias que haviam se tornado um bálsamo para mitigar a sua exaustão mental.

No passado, quando ela sussurrou em seus ouvidos que Elinore era sua filha, ele não acreditara completamente nela. Achava que era a sua maneira de abrandar a sua culpa. Não sabia que ela não sentia culpa alguma; a culpa não desempenhava

nenhum papel nos seus sentimentos. Para ela, a oferta de um lugar no harém do sultão não fora uma escolha. Fora uma ordem. Não precisara que lhe dissessem que, caso desobedecesse, toda a sua família sofreria. Neste respeito todos os sultãos eram os mesmos: uma crença na profecia de Maomé ou nos milagres de Jesus não fazia diferença. A satisfação de suas necessidades carnais transcendia todas as crenças espirituais.

Idrisi viu agora que ela não tinha meios para transmitir isso a ele, mas com o seu conhecimento do mundo ele deveria ter sabido. Como tinham conseguido encontrar-se em segredo e fazer amor era algo que ainda o assustava e surpreendia. Ela tinha certeza de que não haviam sido vistos, que nem o mais detestável eunuco do harém sabia o que havia acontecido, mas como se podia ter certeza de qualquer coisa naquele palácio amaldiçoado? Assim como ele deveria ter sabido que para ela, ele, Muhammad alIdrisi, seria o único homem na vida. Incomodava-a que a febre do amor não deixara nenhuma marca nele, mas nisso ela se enganava. Ela procurava sinais físicos e se perguntava por que ele não estava magro ou infeliz. Era assim que os poetas descreviam os amantes privados de suas amadas. Se Qays pôde passar fome por sua Laila, por que não Muhammad por sua Mayya? Ela não sabia que estava sempre presente no seu pensamento, que o livro que ele terminara fora escrito para ela, não para o sultão, que a principal razão por que ficara próximo a Rujari e, em conseqüência, incorrera na ira de muitos de seus amigos, era ficar perto dela.

Nunca lhe contara isso porque achava que não acreditaria nele.

De uma coisa Idrisi tinha certeza. Elinore era sua filha. Todas as dúvidas haviam se desfeito. E receava que o sultão também desconfiasse. A alegria de segurar Mayya em seus braços e de ver sua filha havia animado o seu coração. Mas agora, ao caminhar de volta para casa, respondendo aos cumprimentos dos passantes como se num sonho, não podia tirar Felipe do seu pensamento. Conhecia-o bem, o que não tornava mais fácil aceitar a decisão de Rujari. Felipe fora de grande ajuda em relação ao livro, chegando em certa ocasião a capturar um mercador chinês e trazê-lo a Palermo para ser interrogado sobre as linhas costeiras do seu país.

Mas era de um encontro ocorrido muito tempo atrás que Idrisi se lembrava agora. Naquele dia, depois de ouvi-lo expandir suas idéias sobre o mundo por mais de uma hora, Felipe dera um sorriso triste e falara palavras das quais Idrisi nunca se esqueceria:

— Nunca duvidei que o seu trabalho fosse de grande importância para o senhor, Mestre Idrisi. E para o sultão, que aguarda impaciente o término do seu livro. Tenho também a consciência do quanto ele lhe custa em termos pessoais. Conheço homens na mesquita, homens de bem em sua maioria, que estão zangados com o senhor por não fazer mais para ajudar a sua causa. Para mim — e vai me perdoar por falar com franqueza — a geografia nunca foi decisiva para o conhecimento. Ocorre que o verdadeiro conhecimento afoga todos os mapas que o senhor faz. Pois esse conhecimento vem daquelas tempestades permanentes que torturam nossas mentes, como a chicotada no corpo nu de um marinheiro ou prisioneiro. Em ambos os casos, as cicatrizes ficam e nunca saram. É esta experiência de vida que nos educa, Mestre Idrisi. Não os seus mapas. Não me interprete mal. Precisamos saber o tamanho e a extensão do mundo, mas em si o conhecimento é inútil. É o que fazemos com ele que conta. Às vezes os seguidores do Profeta ficam tão distraídos por novas paisagens que se esquecem das suas origens. E um dia, sem aviso, os cavaleiros chegam. A cruz que marca seus escudos é da cor do sangue.

Seus gritos ferozes parecem aqueles de um leão faminto. É esta intrusão que lembra aos Fiéis o que certa vez foram e o que se tornaram. Mas agora é tarde demais.

O dano já foi feito. Não vão se recuperar mais. Rujari é um governante sábio e prudente, mas vai morrer. Então os cavaleiros virão sobre nós como um lagarto escalando uma rocha. Decidirão que a fim de preservar seu próprio poder precisam depurar a corte de pessoas como você e eu. Depois lavarão Palermo com o sangue do seu povo.

Receio que perdemos a guerra.

Estas palavras reverberavam na sua mente enquanto pensava nas conseqüências da decisão de Rujari de sacrificar o conselheiro mais inteligente do seu reino. Algo podia ser feito para ajudar Felipe? Por que não deveria ele escapar para a Ifriqiya? Não seria difícil organizar uma embarcação que o transportasse através das águas. Felipe, que sabia de tudo, deveria estar a par do que estava sendo planejado.

Uma inesperada brisa marinha pegou Idrisi de surpresa. Instintivamente, ele agarrou a barba para impedi-la de balançar, uma sensação que o incomodava intensamente, mas havia se esquecido de que a barba fora severamente aparada apenas alguns dias atrás. Parado, olhando para o mar, ele sabia que a eterna guerra entre a terra e a água não havia terminado. Havia muitas batalhas à frente e talvez até Alá não tivesse certeza de quem venceria. Esta ilha ainda estaria neste mesmo lugar daqui a mil anos?


4

O 'mehfil' na mesquita Ayn al-Shi fa em Palermo.
Felipe é convencido de que os barões e bispos estão planejando
um massacre ou possivelmente dois.

Idrisi tomou o café da manhã sozinho no dia seguinte. Estava ávido pela presença de Khalid e Ali, mas isso não foi possível. Suas filhas tinham partido, ignorando o seu pedido de que os netos fossem deixados consigo. Ibn Fityan transmitiu a mensagem de que os meninos estavam desesperados para voltar aos pais. Até o criado sorriu ao dar o recado. Mas Idrisi ficou zangado com a desobediência das filhas. Como aquelas mulheres terríveis deviam temer a sua influência, receando que pudesse transferir seu amor pelos livros a Khalid e Ali. Enquanto comia os figos recém-colhidos olhou para o mar. Nenhuma brisa agitava as ondas. Houve época em que esta ilha estivera submersa, disto Idrisi estava convencido: as conchas congeladas que descobrira no cume de montanhas e os formatos de esqueletos de peixes gigantes eram prova suficiente do que certa vez fora e poderia voltar a ser. Seria uma punição adequada para os bispos e barões.

A lembrança incômoda de suas filhas voltou a ele. Por que Alá o punira com elas? Como a idiotice podia imperar sobre tudo mais? Depois de hoje, ele não ligava mais. Iria tentar e conseguir ver seus netos regularmente. Quanto aos frutos de seu sêmen, deveriam estar podres já desde o nascimento. Mas a descoberta de Elinore mudou tudo, como se avistasse uma costa rica e fértil, com praias de areia puras e douradas e uma névoa verde elevando-se da rica floresta de palmeiras ao fundo.

As rochas áridas e os arbustos cobertos de poeira murchando sob o calor do verão foram logo esquecidos.

Ibn Fityan, voltando com o seu café-da-manhã, sussurrou perto do seu ouvido:

— As notícias do palácio não são boas. Dizem que Felipe caiu em desgraça e que os bispos estão pedindo sua cabeça. Poderia isto ser verdade, mestre? Se Felipe cair, quem nos protegerá?

Idrisi não ficou nada surpreso de que os preocupados eunucos palacianos estivessem espalhando a notícia. Sacudiu a cabeça em desespero.

— O sultão não está bem. Ele acha que oferecendo a cabeça de Felipe aos nazarenos numa bandeja garantirá uma sucessão segura. Acha que Guilherme é um rapaz fraco e precisará de muita ajuda dos bispos e dos barões. É por isso que está preparado para sacrificar Felipe, uma pessoa cuja lealdade para com ele não pode ser contestada.

O camareiro olhou para ele com olhos magoados.

— Traição. E o senhor a aceitou? Idrisi não respondeu até que terminasse de comer a coalhada de leite de cabra adoçada com mel.

— Vou à mesquita hoje ouvir ao sermão, mas depois que as orações da sexta-feira tiverem terminado. Pode acompanhar-me contanto que mantenha sua adaga escondida. Não quero que digam que Idrisi está com medo do povo.

Ibn Fityan sorriu. Era o que queria ouvir.

— Não o povo, Comandante do Livro, mas um nazareno incitado à fúria pelos monges que se ressentem da sua proximidade com o sultão. Os rumores vis que espalham a seu respeito são verdadeiramente insuportáveis e...

Idrisi o interrompeu.

— Se eu os posso suportar, você deve tentar fazer o mesmo. Ele entendia o medo que a notícia havia desencadeado. Conhecera fome, sede, cansaço físico e angústia emocional; às vezes o pensamento de Mayya aprisionada no harém o levava a uma terrível infelicidade. Tudo isso, mas nunca medo. Agora, tinha de admitir que a notícia da queda em desgraça de Felipe havia abalado até a sua própria confiança.

Enquanto caminhavam através das ruas cheias de gente até a mesquita, Idrisi notou o silêncio da multidão, esforçando-se para ouvir as palavras do sermão, trechos mutilados do Corão. Ao entrar na mesquita, os Fiéis abriram-lhe passagem para que pudesse sentar-se na frente, mas ele declinou com um gesto agradecido e sentou-se no pátio aberto sob o brilho do sol. Olhou ao seu redor para calcular o tamanho da assembléia. Havia pelo menos três mil pessoas reunidas, provavelmente mais.

O qadi falaria por muito tempo hoje, assombrando os fiéis com uma confusa mistura de conselhos dogmáticos e retórica interminável, que fluíam como uma torrente.

Quando a turba expressava apreciação por uma frase particular com gritos de wa-allah, ele a repetia, enunciando cada palavra cuidadosamente, seu olhar dirigido para o céu.

Idrisi parou de ouvir e relembrou um de seus primeiros encontros com Felipe no palácio. O sultão interrogava seu vitorioso Amir al-bahr sobre a planta baixa de uma cidade construída por Fiéis. Por que a água? Por que os jardins? Por que a fileira de árvores em linha reta?

— Generoso sultão — replicou Felipe — o jardim é o céu na terra, a água deve ser mantida pura e clara nos canais, as árvores devem ser plantadas em fileiras. A razão é simples. Ajuda-nos a desenvolver concepções puras e claras e nos guarda de falsas ilusões. Os construtores criam cidades assim por toda parte para enfatizar a universalidade da fé do Profeta. E é isto que impele os soldados do Profeta para a expansão e os inimigos desta fé para a rendição.

O sultão sorriu e acenou com a cabeça.

— Quando fala assim eu sinto uma coisa. No fundo do coração persiste sendo um Crente no seu Profeta. A conversão à minha fé foi um fingimento. Não o culpo, mas ficaria mais feliz se admitisse isto e então você e mestre Idrisi poderiam rezar juntos.

Felipe empalidecera mas, além daquela expressão, não traíra nada.

— Sou grato ao sultão. Rezo na grande igreja construída por seu pai.

Subitamente Idrisi se deu conta de que o nome de Felipe fora mencionado pelo qadi. Os outros ouvintes já haviam sucumbido ao pregador. Agora Idrisi, também, apurava o ouvido para escutar cada palavra.

— Foi-nos relatado que Felipe al-Mahdia, o grande Amir al-bahr e um digno sucessor do saudoso Jorge, que Alá abençoe sua memória, é vítima de falsidades. Os monges nazarenos acusam Felipe de traição porque dizem que quando conquistou Mahdia se recusou a torturar e matar Fiéis ou estuprar as mulheres. Será isto um crime? Que estrelas chovam sobre a cabeça dos nazarenos e que sejam forçados a beber seu próprio sangue por fazer esta acusação. O sultão Rujari é nosso protetor e nada devemos fazer para abalar o seu trono. Ouçam-me, Fiéis. Este sultão nos defendeu contra a loucura dos seus monges. O sultão e sua família nos guardarão contra todas as catástrofes e por este motivo vamos rezar a Má para guiar o sultão e insistir com ele para que poupe a vida de Felipe.

Idrisi juntou-se às orações, fechou as mãos em concha e olhou para o alto. Um "Amém" coletivo cortou o ar e o sermão terminou. Enquanto o cercavam, os Fiéis gritavam perguntas de todas as direções: O que o qadi disse é verdade? Acha que Filib vai morrer? Nosso mundo vai acabar? Não deveríamos resistir agora antes de esperar pelo machado do carrasco?

Sorriu para eles com olhos tristes e deixou-se levar até o coração da mesquita, numa sala estreita onde os outros se haviam reunido. À medida que seus olhos se acostumaram à semi-obscuridade, sentiu o choque de um relâmpago. Felipe, vestido em longos mantos brancos, estava sentado no chão com os demais. Levantou-se e abraçou Idrisi, beijando-o três vezes. Os outros fizeram o mesmo. Além do qadi, de Felipe e dele mesmo, havia o eunuco chefe do palácio e dois jovens que se apresentaram como capitães de Felipe encarregados de suas próprias belonaves. Felipe lhes havia ensinado tudo o que sabiam e morreriam por ele. Terminadas as apresentações, o silêncio caiu sobre a sala.

Foi Felipe quem falou primeiro.

— O que o qadi disse hoje aqui é verdade. Uma conspiração está sendo preparada contra nós. Isso é uma certeza. Ainda se encontra nos estágios iniciais, mas nossas escolhas são limitadas. Qualquer resistência nesse momento seria facilmente esmagada. Os barões e monges esperam que quando eu for queimado na fogueira haja um levante.

Os dois jovens capitães marinhos tremeram de horror e o mais velho deles falou:

— Amir Felipe, se o queimarem, nós queimaremos esta cidade. A lealdade dos homens nos navios é para com o senhor e ninguém mais...

Felipe ergueu a mão para interrompê-lo.

— Seria uma tragédia se isto acontecesse. O sultão está docente. Vai morrer em breve. Ele sabe disso. O menino que o sucede simpatiza ainda mais conosco do que o pai. Dominou a nossa língua e o Corão. Admitiu ao seu tutor que gostaria de se converter à nossa fé. Não é verdade, mestre Idrisi?

— É verdade — sussurrou Idrisi — mas tenham cuidado. São os desejos de um jovem impressionável que está apaixonado por nossas mulheres e não deveríamos presumir que se converteria...

Felipe sorriu.

— Alguns homens ficam impressionáveis até o dia em que morrem. Sei muito bem disso. Se a maré mudar, Guilherme poderá afastar-se de nós. Numa guerra longa, nada pode ser tomado como certo. Sei disso melhor do que todos vocês. O destino de uma batalha é geralmente decidido no momento da vitória ou da derrota.

Quem acreditaria que um punhado de normandos poderia ter derrotado nossos exércitos nesta ilha? Tínhamos superioridade numérica sobre eles, tínhamos mais armas, mais comida e controlávamos as cidades e o mar. Mas eles venceram. Até o último momento tudo é possível. É a qualidade dos homens que lutam, sua capacidade mental, que determina muita coisa. É o mesmo na situação que nos confronta neste momento. Mas devemos nos preparar cuidadosamente e dar força a Rujari declarando nossa lealdade à sua família. Para nós, as melhores condições no combate que temos à frente seriam se os barões se recusassem a aceitar Guilherme como seu rei. Se isto acontecer, vocês devem resistir a eles e defendê-lo. Quem sabe, a Siqilliya, com ou sem os francos, vai retornar à nossa fé.

Então Idrisi falou.

— Existe um problema que você não levou em conta. Se eles o queimarem, o encanto será quebrado e a bela ilusão ou esperança — chamem-na como quiserem — desaparecerá para sempre. Quando nosso povo vir que o Amir Felipe, o homem mais poderoso no reino depois do sultão, pode ser queimado como um pedaço de madeira e ter suas cinzas espalhadas no mar, entrará em desespero. Pensarão que Alá os abandonou. Ficarão amargos e desesperados e naquele estado os homens não pensam mais de uma maneira calma e racional como você. Por favor, não subestime os efeitos de sua própria morte.

Felipe sorriu.

— Tortura e morte pelo fogo é uma abominação, mas acho que vou sentir mais do que vocês. Fui vendido como escravo e naquela condição sempre se está preparado para a morte. Aumentaria a minha infelicidade se soubesse que vocês estavam empenhados em planejar uma ação destinada a fracassar.

Então o qadi falou. Aos 76 anos de idade, os cabelos em sua cabeça haviam desaparecido algum tempo atrás, mas suas longas barbas brancas, cofiadas com força durante momentos-chave dos seus sermões, tinham um toque de grandiosidade selvagem. Idrisi o tinha ouvido nesta mesma mesquita durante muitos anos e conhecia todas as suas manobras retóricas. Lembravam-no do tempo. Quando começava a falar era como se um pé-de-vento quente e úmido subitamente fosse soprado para longe e o ar se tornasse estagnado e imóvel. Então, de repente, sem aviso, uma nuvem escura surge, seguida por um trovão, exortando os crentes à ação. Às vezes havia variações, mas nada significativo. E os Fiéis, para o seu crédito, aprendiam a demonstrar um estoicismo digno dos seus primeiros ancestrais, aplaudindo as mesmas palavras, semana após semana, como se as tivessem ouvido pela primeira vez.

— Amir Felipe — disse ele -, o senhor é tido como o homem mais sábio nesta ilha, mais sábio mesmo do que mestre Idrisi. Em nome de Alá eu insisto para que pense de novo. Nosso Profeta, que repouse em paz, ensinou-nos a submissão, mas só diante de Má. Nenhum governante terreno pode tomar seu lugar. Que o senhor se submeta ao crime que está sendo preparado pelo palácio é inaceitável e prejudicará a nossa comunidade. Eu o instaria a pegar um navio e desaparecer. Como foi que o nosso Profeta venceu aquelas primeiras batalhas? Foi porque naqueles primeiros embates com os Ignorantes, os soldados do Profeta eram os únicos homens disciplinados da sua época. Não era fácil elevar o estado mental dos Ignorantes para acreditar num só Má, mas finalmente nós conseguimos e eles entraram no curso da História.

Por isso, Amir Felipe, imploro ao senhor para que siga este exemplo. Existem muitos lugares onde encontrará refúgio. Nossos Amires em alAndalus, ameaçados permanentemente pelos nazarenos, recompensarão as suas habilidades. E quando histórias das batalhas que o senhor ganhar, com a ajuda de Má, chegarem à Siqilliya, nos regozijaremos e, quem sabe, isso poderia até encorajar nossos poetas a falarem menos de vinho e mais em nossas vitórias.

Nesta veia a discussão continuou por muitas horas, os jovens capitães apoiando vigorosamente a sugestão do qadi de que Felipe reunisse vários navios e se refugiasse numa cidade amiga. Descreveram como, no passado, haviam encontrado um número de abrigos seguros e os marcaram em seus mapas, sem revelar as localizações, sequer para mestre Idrisi.

Mas todos conheciam a vontade e determinação de Felipe al-Mahdia. Quando tomava uma decisão, era difícil demovê-lo. Com um simples gesto, ele pediu e obteve silêncio.

Então conduziu o mehfil ao encerramento.

— Não me interpretem mal, amigos, mas meditei cuidadosamente sobre a questão. Não tenho nenhum desejo de morrer, mas nenhum de vossos argumentos me convenceu. Como pode minha morte ter o efeito que descrevem se tão poucos sabem que sou um Fiel? A maioria das pessoas acha que sou um nazareno. Não serão afetadas por minha partida. O qadi fala dos soldados disciplinados do Profeta. É disto que precisamos, mas foram os francos que exibiram esta qualidade quando tomaram esta ilha.

Nós estávamos, como de costume, brigando entre nós. Se um de nossos Amires não tivesse convidado os francos para ajudá-lo contra nossos Fiéis, teriam eles vindo até aqui? Só Alá sabe. É porque precisamos de disciplina que estou preparado para morrer, a fim de que vocês tenham o tempo de se organizar para as batalhas que têm pela frente. Os nazarenos não ficarão satisfeitos enquanto não tiverem matado todos nós. É a única linguagem que entendem. E, fiquem seguros, não me submeterei facilmente ao julgamento deles. Vou me defender de todas as suas falsidades. E espero que mestre Idrisi insista em estar presente para que possa transmitir o que aconteceu a todos vocês. Fugir e se esconder é um sinal de culpa e não darei a eles esta satisfação. Se eu fosse embora, eles se vingariam em vocês. Os monges têm dificuldade em ocultar seu ódio a Palermo. Existem Fiéis e Judeus demais aqui para o seu gosto.

— Por isso eu me despeço de vocês, meus amigos. Sempre pensem cuidadosamente antes de agir. Levem tudo em consideração. E uma última coisa para o senhor, mestre Idrisi. Seus genros de cabeça quente preparam-se para pegar em armas contra o sultão. É o que meus homens relatam de Siracusa e Noto. Naturalmente, impedi que a informação fosse circulada, mas diga-lhes que sejam cautelosos. Este é o momento errado. E uma última palavra de advertência. O homem mais perigoso no palácio, porque o mais esperto, é Antônio, o monge de Cantuária, que aprendeu o ofício de homens ainda mais espertos do que ele. Não se interessa por vinho, mulheres ou bens materiais. Sua única causa é assegurar o triunfo nazareno contra os Fiéis. Sempre que falei com ele, senti que estava sendo interrogado por meu carrasco. É um fanático gentil, mas não se deixem enganar. Nunca relaxa com a sua fé, nunca duvida do seu Deus e se sacrificará alegremente para a vitória de sua causa. É o que o faz diferente dos monges corruptos e indolentes nativos desta ilha.

Mestre Idrisi sorri. Sim, meu amigo, ele não é diferente de mim, com a diferença de que minha preocupação é salvaguardar nosso povo da melhor maneira que eu possa.

Antônio é atormentado por uma paixão religiosa e isso, eu receio, sempre beira a insanidade, não importa qual seja a religião. É por isso que o receio mais do que a todos e vocês também deveriam. Acho que ele estará presente ao meu julgamento. Pergunto-me se esta ilha que vocês descrevem como mergulhada em total escuridão ainda assim produz homens cuja luz interior faz suas almas brilharem.

E com estas palavras Felipe e o eunuco-chefe partiram, deixando o resto da companhia num estado de mutismo e choque. Idrisi sentiu a mão do qadi em seu ombro.

— Não poderia interceder junto ao sultão em favor dele? Acenou silenciosamente com a cabeça. Ao deixar a sala Ibn Fityan juntou-se a ele e os dois homens caminharam em silêncio através do pátio interno e saíram às ruas. Quando chegou finalmente à sua casa, foi recebido pelo som suave da flauta.

Parou diante da porta enquanto Ibn Fityan fez a sua pergunta preocupada:

— Amir Felipe recusou-se a deixar a ilha? Os olhos tristes de Idrisi voltaram-se para o seu criado e o eunuco soube que era tarde demais para salvar Felipe. A porta se abriu. Thawdor os havia visto e a música tinha cessado.

— Traga seu filho até mim, Thawdor — instruiu Idrisi. O homem fez o que lhe foi pedido. O rapaz caiu de joelhos e tentou beijar os pés de Idrisi, mas ele se afastou, pegou o rapaz pelo braço e o fez ficar de pé.

— Nunca mais faça isso, Simeon ibn Thawdor. Você não é um escravo. Recuperou-se da viagem?

— Sim, mestre — respondeu o rapaz com os olhos baixos.

— Falei com o seu pai. Você virá comigo ao palácio, onde providenciei para que lhe ensinem a ler e a escrever.

O rapaz ergueu o olhar e sorriu. — Sou agradecido, senhor, mas igualmente feliz de ir ao madresseh. Não quero lhe causar mais incômodos.

— Por que deveria me incomodar?

— O palácio é para os filhos do sultão e eu não estou apto a aprender com eles.

Os homens caíram na risada, antes que Ibn Fityan o tranqüilizasse.

— Não se preocupe com isso, meu jovem. Vai aprender com crianças que não são muito diferentes de você. O palácio abriga os filhos daqueles que trabalham para o sultão. Foi onde me ensinaram gramática árabe e grego. O que gostaria de aprender?

— Música — respondeu o rapaz sem hesitação. Seu pai ficou incrédulo.

— Música?

— Sim, pai. Música — o menino respondeu.

Idrisi interveio. — Escute-me, rapaz. Eu o ouvi tocar a flauta e não tenho dúvida de que Alá o abençoou com o dom. Toca bem e também deveria aprender a tocar o alaúde, que colocará em teste as suas habilidades. Existe um grande mestre em Palermo, cujo pai, também um grande músico, era conhecido de minha família. Falarei com ele e lhe ensinará a arte, mas o fará duas vezes por semana. Nos dias restantes deve aprender gramática e lógica. Creia-me, poderia até ajudá-lo na sua música.

O rapaz ficou exultante.

— O nome do mestre é Abu Salim? Idrisi se surpreendeu. O rapaz sabia mais do que imaginara.

— Ele mesmo. Já o ouviu tocar o alaúde?

O rapaz acenou com a cabeça.

— Uma vez eu caminhava pela taverna, aquela perto da qual os botes são amarrados, e ouvi música que soava como se viesse do céu.

Fiquei sentado do lado de fora e ouvi durante quase duas horas. Perguntei a um homem que saiu cambaleando de um lado para o outro quem era o músico. Bateu-me na cabeça e disse que só existia um homem capaz de dar vida ao alaúde daquela maneira e era Abu Salim. Nunca esqueça esse nome, disse o homem, porque poderia nunca mais ouvi-lo. Nunca mais o ouvi, embora passasse com freqüência por aquele lugar, esperando que estivesse lá.

Thawdor e seu filho foram dispensados com um toque afetuoso na cabeça do rapaz.

— Ficarei de olho em você à distância. Ibn Fityan me manterá a par dos seus progressos.

Depois que saíram, Idrisi fez sinal a Ibn Fityan para que se sentasse.

— Diga-me, quem no palácio, entre os nazarenos, é mais chegado ao sultão?

— Ninguém é chegado da maneira como Felipe era ou o senhor, mestre. Mas é o monge pálido, Antônio de Cantuária, quem se faz ouvir pelo sultão. Como não é daqui, o sultão acredita que o seu conselho seja livre de interesses. Ele não pede terras ou dinheiro. Vive com simplicidade. Dizem-me que foi ele quem aconselhou o sultão a mandar Amir Felipe para a fogueira.

Idrisi tinha visto Antônio circulando pelo palácio, mas não chegara a registrar adequadamente a sua presença. Nem o sultão o havia mencionado uma vez sequer. O sultão estava receoso. Só podia ser essa a única explicação.

Ibn Fityan tossiu discretamente.

— Correm rumores no palácio, mestre, dos quais deveria ser informado.

— Fale, homem. Fale.

— Existe um plano para matar Antônio.

— De quem é esta idéia tola? Felipe vai ficar enraivecido. Isso não o ajudará. O eunuco-chefe está a par?

— Está, mas não conseguiu convencer os outros. Tencionam matá-lo esta noite ou amanhã e...

— E?

— O plano é colocar a culpa do assassinato de Antônio nos monges gregos que o desprezam ainda mais do que nós. A história que os eunucos vão circular é de que Antônio foi apanhado numa situação delicada com um jovem monge e, quando seu verdadeiro amante percebeu, matou os dois.

— Existe alguma verdade na história?

— Nenhuma, Amir al-kitab.

— Então haverá dois assassinatos.

— Se Alá quiser.

— Alá não quer isso mais do que quer a morte de Felipe.

Estas são decisões tomadas por homens nesta terra e em Palermo. E ambas estão erradas.

— É tarde demais, mestre. Não há nada que possamos fazer. Se o senhor advertisse o sultão, trairia minha confiança e aquela do eunuco-chefe. Morreríamos todos juntos.

Idrisi podia enxergar muito bem a lógica em tudo isso. Tomaria um banho e refletiria sobre a crise que estava para tomar conta da ilha.

Foi quando estava coberto de água no hammam que percebeu a importância do que Felipe dissera pouco antes naquela tarde. A melhor maneira de manter a presença dos Fiéis na Siqilliya era apoiar a família Hauteville que havia conquistado a ilha por meio de uma combinação de habilidades marciais e sorte — e do fato eterno: os seguidores do Profeta estavam divididos. Esta última fora a causa da derrota real em Palermo e Jerusalém. Que cidade cairia a seguir? Ishbilia ou Gharnata? O sol escureceria e os oceanos ferveriam antes que os Fiéis chegassem a se unir contra um inimigo da fé e então seria tarde demais.

Os criados haviam começado a enxugá-lo quando Ibn Fityan entrou no vestíbulo da sala de banhos.

— Uma mensagem do palácio acabou de chegar.

— Do sultão?

— Não. É da jovem princesa Elinore. Ela é de fato a favorita do sultão e, se ele tivesse se casado com a senhora Mayya, teria se tornado uma Sultana. É a vontade de Alá. É a vontade de Alá. Ela e sua mãe visitarão parentes no sabá e desejam que o senhor se junte a elas em Siracusa. O mensageiro também sussurrou outra coisa em meu ouvido, mestre.

Idrisi dispensou os criados.

— Antônio partiu subitamente hoje. Embarcou num navio para Marselha. Ninguém sabe por quê. O Diabo deve tê-lo avisado.

— Ou o seu Deus. Fico aliviado com a notícia. E o assassinato do monge grego foi suspenso?

— Claro, mestre. Os assassinos não são tolos. De que adiantaria quebrar um galho se a árvore sobrevive?

A notícia melhorou o seu ânimo. Idrisi sorriu por dentro. Talvez com a partida de Antônio, a decisão sobre Felipe pudesse pelo menos ser adiada. Ele podia escrever uma carta ao sultão pedindo que reconsiderasse. Poderia ser mais eficaz do que um encontro.

— Prepare minhas roupas. Vou partir para Siracusa amanhã cedo. Tenho trabalho a fazer.

— Vai viajar de barco, a cavalo ou em carruagem?

— Barco. Se eu partir cedo pela manhã com a maré, estaríamos lá no início da noite. É quase lua cheia. Será uma viagem agradável.

— Deseja que o acompanhe?

— Preciso que fique aqui para acompanhar os acontecimentos no palácio. Quando for marcada a data para o julgamento de Felipe, me informe imediatamente. Um só criado será suficiente para esta jornada.

— Deveríamos informar o Amir de Siracusa? Vai ficar no seu palácio?

— Prefiro não ficar com ele. Se decidirmos não o informar, ele descobrirá a minha presença?

— Acho que sim e, levando em conta o seu temperamento, vai considerar um gesto inamistoso. Poderia até pensar que o sultão o despachou para procurar um novo Amir.

A fragilidade da situação não deveria ser subestimada.

Idrisi olhou com apreciação para o seu camareiro. Ibn Fityan estava a seu serviço há quase vinte anos, um presente do sultão. Era difícil adivinhar a sua idade, mas tinha provavelmente entre cinqüenta e sessenta anos de idade. Seus cabelos só agora começavam a ficar grisalhos e sua pele de compleição escura era macia como cetim. No início, Idrisi supôs que ele tivesse sido colocado em sua casa para manter o sultão informado sobre as atividades do seu erudito preferido. Mas estava enganado. O homem era parte da rede do eunuco-chefe e este era um grupo que devotava lealdade à fé em que havia sido convertido.

O Profeta proibira a castração dos Fiéis, não importa as circunstâncias. Foi o Tribunal Bizantino em Constantinopla que havia autorizado um comércio frouxamente regulado de meninos castrados, fornecidos ao papa e à sua Igreja para uma variedade de propósitos, mas principalmente para servir ao coral. No resto, eram vendidos no mercado livre em Palermo, o maior centro de comércio entre o Oriente e o Ocidente, assim como Bagdá e Qurtuba. O sultão e os Amires tinham necessidade especial deles. Eram os guardas de confiança do harém e, como tal, adquiriam posições-chave nos palácios por causa de seu acesso ilimitado aos governantes. Freqüentemente trabalhavam de perto com aqueles que, como eles, haviam sido comprados ainda com pouca idade mas, ao contrário deles, não tinham sido emasculados. Felipe al-Mahdia era uma destas pessoas. E logo se desenvolveu entre ele e o círculo dos eunucos uma afinidade natural, o que significava que ele sempre dispunha de um meio alternativo de conhecimento. Ele não dependia exclusivamente da informação disponível ao Diwan. Tão próximo estava dos eunucos que seus inimigos na Corte espalharam o rumor de que ele mesmo era um deles.

Ao contrário de outros que haviam começado a vida como jovens escravos no palácio, Ibn Fityan não tinha a pele clara. Vendido em Palermo aos dois anos de idade, suas origens eram um mistério até para si mesmo. Apesar do fato de que não era castrado, os eunucos o haviam adotado. Fora circuncidado e criado como um Fiel. Nunca falava de sua mulher ou de seus filhos. Todas as tentativas de extrair informação sobre este assunto eram polidas, mas firmemente repelidas e não fosse a indiscrição do eunuco-chefe, Idrisi jamais teria sabido que o filho de Ibn Fityan morrera na recente guerra para a retomada de Mahdia.

Idrisi não se surpreendia mais com as habilidades políticas intuitivas do seu empregado. Sua inteligência natural parecia ilimitada e sua experiência e conhecimento do Diwan e do palácio permitiam-lhe ficar um passo adiante da maioria dos cortesãos.

— Diga-me — Idrisi perguntou-lhe — como vai informar ao Amir que estou a caminho. Apanhá-lo de surpresa é certamente inadequado. Isto também poderia ser mal interpretado.

— Não é um problema, mestre. Esta noite vou instruir ao Guardião da Torre de Vigia em Palermo que mande uma mensagem ao longo da costa até Siracusa. O senhor sabe, naturalmente, que para mensagens secretas nós usamos um código que é conhecido apenas pelas pessoas de nossa maior confiança. O Amir será informado da sua chegada ao tomar o café da manhã amanhã cedo. Isso lhe dará tempo suficiente para preparar a sua recepção.

— Dispõe de um amigo naquele palácio também?

— Mais de um.

— Existe algo que eu precise saber? Ibn Fityan suspirou.

— O Amir é um governante dedicado, mas muitos na cidade o vêem como alguém que se vendeu aos francos a fim de se manter no poder. Ele sabe que é visto assim e isso o enraivece e perturba.

— Neste caso — murmurou Idrisi — temos muita coisa em comum.

— Com todo o respeito, mestre, não é o caso. O senhor é um erudito. Ele é um governante.

— É verdade, mas ambos servimos a Rujari. Ele com a sua espada, eu com a minha pena.

— Os homens que contam sabem muito bem que o seu coração está conosco e quando a ocasião chegar, a multidão também o saberá. Não temos certeza quanto ao Amir.

Ele não fala muito. Só tem uma esposa e nenhuma concubina, restringindo assim nossa capacidade de descobrir o que está realmente pensando. Sua visita oferecerá a primeira oportunidade real. A questão que precisamos ter respondida é esta: depois da morte de Rujari, se tivermos que empreender uma guerra contra os nazarenos, o Amir de Siracusa lutará conosco ou contra nós?

Idrisi irrompeu numa risada para esconder sua ansiedade.

— Por que ele deveria confiar em mim?

— É um risco que o senhor deverá assumir. O mestre tem noção de que a única esposa do Amir é a irmã mais moça da senhora Mayya?

Enquanto Idrisi abria a boca em surpresa, notou um levíssimo traço de sorriso aparecer no rosto de Ibn Fityan enquanto o homem fazia uma mesura e deixava a sala.


5

O Amir de Siracusa organiza um jantar
em que se fala abertamente de rebelião.

Quando o navio, tirando vantagem de uma brisa inesperada, se aproximava da baía de Siracusa, a luz da lua cheia caía na escuridão do mar e na forma de um vale dourado. Por mais vezes que tivesse visto isso e em quantas águas diferentes, era sempre arrebatador. Enquanto observava, viu os barcos dos pescadores iluminados por velas saindo ao mar para uma noite de trabalho.

Na infância adorava ser acordado ao alvorecer para acompanhar a criadagem até a aldeia pesqueira mais próxima de sua casa. A jornada a cavalo o deixava bem esperto; meio excitado, meio assustado pelo pensamento de ver um jaguar atravessar o caminho, mas isso nunca aconteceu. O verdadeiro deleite era observar os peixes ao serem trazidos dos barcos pelos pescadores. Então o cozinheiro lhe perguntava "Qual deles devemos comprar?" e ele apontava para o maior, o que fazia o cozinheiro rir.

"Os grandes têm muitas espinhas. Vamos levar quatro destes..."

Desde que haviam deixado Palermo, a pessoa mais importante a bordo havia ignorado todas as tentativas para o bajular e agradar. Seu criado pessoal cuidava de suas necessidades e mantinha os outros viajantes, principalmente negociantes, à distância. Esta era a desvantagem de ser conhecido como íntimo do sultão. Através de toda a jornada ele evitara olhar para a costa familiar que mapeara mais de uma vez. Em vez disso, seu olhar ficava direcionado para o mar, que tinha, graças a Má, permanecido calmo enquanto ele refletia sobre o passado e o futuro.

Depois de terem vivido anos incontáveis nas vastidões desérticas da Arábia, pensou, meus ancestrais ficaram impressionados com as inesperadas perspectivas que os acolheram nas civilizações urbanas. Não podiam ficar parados e absorveram alegremente o melhor que as novas civilizações tinham a lhes oferecer. A escuridão do deserto não era mais visível, mas surpreenderam o mundo com a sua sabedoria e a opulência de suas cortes e de seus bazares. Mas o contraste entre o que tinham sido um dia e o que haviam se tornado significava que não podiam construir uma estrutura duradoura sobre estas novas fundações. Assim as ondas de rebelião que se levantavam dos desertos e das cadeias de montanhas do mahgreb, rebeldes de barbas compridas pertencentes a seitas que pregavam as virtudes da pureza e abstinência, homens que chegavam no dorso de cavalos com espadas levantadas, gritando Alá Akbar e destruíam as cidades que haviam sido tão cuidadosamente construídas pela primeira onda dos Fiéis. Os puritanos queimavam livros cheios de sabedoria, proibiam o discurso filosófico, puniam eruditos e poetas, começando assim o processo que permitiria ao inimigo penetrar pelos poros de nossas fraquezas e destruir tudo. Faziam tudo isso por motivos nobres. Acreditavam genuinamente que agiam em nome de Alá e do seu Profeta. Naturalmente, não se viam como uma aberração monstruosa: era assim que encaravam os hereges e os sultãos complacentes que eles chacinavam com os soldados que os defendiam.

Idrisi pensava em alAndalus, fragmentada, sob sítio permanente e possivelmente à beira da extinção. Siqilliya era diferente. Aqui a coisa ainda não havia acabado e como muitos dos seus correligionários ele acreditava que o clã Hauteville, por motivos de autopreservação, poderia ajudar na restauração da velha ordem. A primeira dúvida séria fora levantada pela decisão do sultão de sacrificar Felipe.

— Respeitado senhor, chegamos a Siracusa. O comandante do navio estava pronto para conduzi-lo ao bote que o aguardava enviado pelo Amir de Siracusa e que remadores levariam até a praia. Idrisi virou-se e viu a fileira de tochas acesas na orla. Do navio pareciam carregadores de féretro, mas sabia que sua presença significava que uma pessoa de importância fora mandada para recebêlo.

Ao desembarcar, ficou atônito quando viu o Amir à sua espera. Os dois homens se abraçaram. O Amir vestia uma túnica amarela de seda bordada com fios de ouro, seus cabelos aparados e a barba curta tingidos com hena ruivo-escura combinando com a túnica. Seu ar era austero. Os olhos escuros, encravados no rosto, enfatizavam a palidez cadavérica do seu semblante. O esplendor de suas roupas não conseguia ocultar feições longe de perfeitas e, embora fosse alguns anos mais jovem do que Idrisi, era encurvado e mancava ligeiramente. Ainda assim, o Amir tinha o ar de um homem religioso, sério e penitente.

— Má seja louvado por trazê-lo até aqui em segurança, Ibn Muhammad. Bem-vindo a Siracusa. Acredito que a última vez que nos visitou foi a caminho de Noto, mas eu estava em Palermo na ocasião. Nossas famílias são, naturalmente, conhecidas. É uma honra conhecê-lo pessoalmente.

Notícias da sua chegada haviam se espalhado pela cidade. Enquanto os dois homens a cavalo seguiam a rua sinuosa até a grande praça, uma multidão de espectadores abria caminho para eles. Os passantes os acompanharam com passos rápidos até o portão do palácio e começaram a cantar "Wa Salaam, Ibn Muhammad alIdrisi, Wa Salaam Amir al Siracusa" "Alá Akbar". Poucos homens jovens bravamente gritaram "Morte aos Infiéis" antes de serem silenciados pelos mais velhos e retirados às pressas da praça.

Um banquete suntuoso fora preparado em sua honra ao qual todos os notáveis haviam sido convidados. O Amir deixara Idrisi para se recuperar da viagem no hammam.

Depois de um banho quente e de outro frio, seguidos por uma massagem revigorante feita por dois gigantes do palácio, Idris sentiu-se refrescado, mas ainda não gostava da idéia de um banquete formal. Havia, naturalmente, a novidade. Não conhecia a cidade e lembrou-se da recomendação de Ibn Fityan. Ouviria atentamente o que fosse dito, mas por que algo deveria ser dito numa refeição pública? Quando Mayya e Elinore chegariam? Viriam primeiro para cá ou para a aldeia familiar, a uma hora de distância e sem acesso fácil? Uma batida na porta anunciou o camareiro do palácio que viera para escoltá-lo até o pátio onde os convivas estavam reunidos.

O Amir havia descartado a sua apatia e até o encurvado do corpo parecia ter desaparecido. Com um olhar resoluto apresentou Idrisi à cinqüentena de homens que, como árvores cuidadosamente plantadas, formava uma linha reta. A maioria deles eram velhos carvalhos, mas no final da fileira notou dois jovens de aparência cavalheiresca e atraente que, desafiando a convenção, estavam mergulhados em animada conversação, mas ficaram em silêncio quando ele se aproximou. Cada um colocou a mão no coração, curvou-se ligeiramente e se apresentou.

— Abu Khalid.

— Abu Ali. Idrisi ficou atônito. Eram seus genros e deveriam ter sido convidados por cortesia do Amir. Abraçou-os calorosamente e sussurrou:

— Fico feliz em vê-los. Falaremos a sós amanhã. Enquanto se sentavam, Idrisi notou algo estranho: nem bispos nem barões estavam presentes. Pelo que podia ver, não havia um único nazareno à mesa. Não podia lembrar-se de jamais ter comparecido a um banquete oficial sem a presença de um príncipe da Igreja ou de um monge. É verdade, o Amir era um Fiel e o palácio não possuía uma capela, mas não havia escassez de bispos ou barões na região. Idrisi se perguntou se teria sido uma decisão sábia. A resposta veio rapidamente.

— Notei seus olhares inquisitivos, Ibn Muhammad — começou o Amir numa voz quase inaudível.

— Esta é uma reunião fora do comum e não destinada a muitos que normalmente são convidados ao palácio. Pensei em aproveitarmos a sua presença para convidar poucos homens escolhidos a dedo que estão cheio de pressentimentos com as notícias que nos chegam de Palermo. Parece surpreso? Deixe-me assegurar-lhe que este é o primeiro mehfil reunido no palácio. Geralmente alguns de nós nos encontramos na mesquita depois das preces de sexta-feira para discutir questões de interesse comum. Mas, como sabe, alguns de nossos convivas viajaram uma longa distância para estarem conosco. Está entre amigos de confiança. O que disser não será repetido.

Idrisi sentiu-se preso numa armadilha. Sabia perfeitamente bem que tudo o que dissesse seria repetido nas menores aldeias da região e quando suas palavras chegassem a Noto seu sentido seria distorcido além da razão. Sabia que devia tomar muito cuidado.

— Amigos, sinto-me comovido por sua confiança e honrado por sua presença, mas o que vou dizer não difere daquilo que disse em muitas ocasiões ao próprio sultão.

E ficarei feliz em responder às suas perguntas, contanto que possua as respostas. Presumo que ouviram as notícias em relação a Felipe.

Todos acenaram tristemente com as cabeças. Idrisi não revelou a discussão com Felipe na sala escura da mesquita Ayn al-Shifa em Palermo, mas lhes contou tanto quanto podia sem implicar alguém além de si mesmo. Falou da lealdade que Felipe sempre demonstrou para com o sultão, das suas habilidades de administrador e de como fizera o máximo para impedir injustiças na ilha. Embora nem sempre tivesse sucesso, os barões e outros ladrões de terras o encaravam como um inimigo, um obstáculo a ser removido para que sua causa triunfasse nos Dois Reinos.

Ouviram-no em silêncio. Foi o Amir quem fez a primeira pergunta.

— Vão levá-lo a julgamento, o acharão culpado e o queimarão. E nós devemos assistir a tudo isso impotentes sem fazer qualquer tentativa para salvá-lo?

Idrisi respondeu:

— É o que ele deseja. Acha que qualquer outra coisa seria encarada como provocação e poderia desencadear um banho de sangue através da ilha, especialmente onde ainda somos fortes, como em Siracusa e Noto.

A seguir Abu Khalid falou.

— Respeitável Abu Walid, não passa um único dia sem que nossa terra seja transferida para sua Igreja ou para os barões. Mesmo aqui, onde diz que somos fortes, nosso povo se tornou escravo. Somos forçados a trabalhar para eles na terra e matar e morrer para eles nos exércitos do sultão. Não confiam de modo algum em nós. É por isso que trazem os bárbaros do Norte para nos oprimirem. Lombardos, assim os chamam. Estes rudes animais ajudaram a destruir o grande império dos romanos. Agora se adornam com cruzes de madeira ao redor de seus pescoços, mas suas cabeças continuam vazias. Matam tudo que os monges lhes disserem que é impuro. Desonram nossas mulheres e submetem nossos homens a torturas insuportáveis, deixando-os morrer lentamente ao sol depois de os terem estripado. E tudo isso para nos expulsarem das terras que cobiçam. Se esperarmos demais, não restará ninguém para resistir a eles. Quanto tempo podemos esperar? Deveríamos lutar ou partir enquanto ainda estamos vivos? Talvez Ibn Hamdis tivesse feito a escolha certa 75 anos atrás, quando deixou esta cidade e procurou refúgio com o Amir de Majorca.

Idrisi comoveu-se com a paixão do seu genro, mas Felipe o havia convencido de que a oportunidade era crucial. Quantos amires haviam escolhido o momento errado para confrontar o inimigo ou para se confrontar entre si? Explicou tudo isso numa voz suave, enquanto enfatizava que tinha plena noção das crueldades que eram infligidas ao povo.

— Nunca se esqueçam de que é às vezes possível destruir o inimigo, não pela força das armas, de que carecemos, mas pela força do conhecimento que acumulamos durante os últimos quinhentos anos. É por isso que o meu amigo ainda é Amir de Siracusa e Rujari conversa comigo em árabe. No momento nossa força reside nisto: os francos não têm nenhuma outra maneira de governar esta ilha. Não devemos fugir do que está à frente. Mencionou Ibn Hamdis, mas não é um bom exemplo. O poeta de Siracusa nunca foi feliz em nenhum outro lugar. Siqilliya foi a mão que o alimentou, Majorca a tia cujos seios careciam de leite. Aonde quer que fosse escrevia sobre Siqilliya.

Lembram-se?

Este é o país de Alá/ Abandonem os seus espaços e/ suas aspirações à terra serão esmagadas. E, mais adiante, no mesmo poema, ele escreve: Acorrentem-se à querida terra natal! Morram sob o seu próprio teto! E como a mente se recusa a tentar o veneno! Rejeitem o pensamento de exílio. Ele não é um bom exemplo. Nunca foi feliz em qualquer outro lugar.

Mas o pai de Khalid não estava preparado para se entregar tão facilmente.

— Respeitável pai, como responderia às palavras de Abd al-Halim? Amei Siqilliya/ Na minha primeira juventude um jardim de eterna felicidade! Mal alcancei a maturidade!

Eis que a terra se tornou um inferno em chamas.

Idrisi sorriu.

— Bons sentimentos nem sempre fazem boa poesia, meu filho. Concordo com o seu poeta, mas afirmar o óbvio não é uma solução.

Aqueles deste pequeno círculo que falaram depois meramente repetiram em palavras diferentes o que Idrisi já havia declarado. Nenhuma decisão foi tomada e nada irrevogável foi dito. Se um nazareno estivesse presente, pouco poderia relatar que já não houvesse sido dito antes em muitas ocasiões. E, no entanto, sublinhando tudo, havia um embate silencioso e formidável entre aqueles que queriam desencadear uma resistência armada já e aqueles que, como o cartógrafo de Palermo, defendiam que nada deveria ser tentado enquanto Rujari ainda respirasse. O Amir levantou-se e despediu-se de seus convidados.

Idrisi abraçou os dois jovens e convidou-os para o café-damanhã no dia seguinte. Informaram-no de que tinham trazido os filhos, o que o agradou imensamente.

— Tragam-nos com vocês amanhã. Seus filhos são uma prova viva de um velho ditado: são o produto de uma combinação em que o elemento mais forte, agradeçamos a Alá, subordinou o elemento mais fraco com que se viu forçado a entrar em contato.

Uma explosão de risada espontânea dos genros agradou a Idrisi. Vinha pensando em compor um tratado sobre a risada. O papel que ela desempenhava na vida cotidiana.

A risada como um disfarce, como um refúgio, como um escape. Risada polida para agradar ao sultão, ao Amir ou ao Barão ou ao qadi ou a nosso próprio pai/avô/tio-avô.

Risada maliciosa para derrubar um inimigo.

A risada das mulheres, em particular, era severamente cerceada. Não era permitida quando estranhos ou anciãos da família estivessem presentes. As mulheres podiam cobrir os rostos com uma mão e sorrir, mas não rir. Idrisi lembrou a sua infância. As mulheres da casa constantemente se regalavam umas as outras com as piadas mais indecentes, mas caíam em silêncio quando seu pai ou tio entravam no seu espaço.

Preparando-se para a cama pensou como soubera que Mayya lhe pertencia quando ela rira da maneira mais descontraída durante os meses de seu namoro secreto, quando ela tinha 16 anos e ele acabara de completar seu vigésimo segundo ano. Ela nunca fora formal com ele, então ou agora. Mas por que a risada fora tão decisiva? Claro, as mulheres no harém ignoravam todas as convenções, geralmente punindo os eunucos que não as conseguiam fazer rir, e insistiam em que tudo fosse posto às claras.

Mas eram um caso especial. Idrisi estava decidido a descobrir se a restrição à risada era algo confinado às cidades ou se as mesmas regras se aplicavam às aldeias.

Os poetas do passado não tinham feito nenhum segredo do fato de que nos acampamentos no deserto das velhas tribos as mulheres riam, cantavam, lutavam, fornicavam e negociavam, exatamente como os homens.

A conquista das cidades mudara tudo aquilo. Tudo era cuidadosamente controlado. Inclusive a risada? Possivelmente. O desejo de controlar as mulheres obviamente incluía controlar sua risada também. Nem apenas aquela das mulheres. Escravos, criados, camponeses, soldados, nenhum deles ria abertamente na frente de seus donos.

A risada era também uma indicação de igualdade e intimidade. Só iguais podiam rir juntos.

E, no entanto, uma voz interior lhe dizia que ainda era diferente no deserto ou nas aldeias das montanhas da Siqilliya. Se tivesse tempo, poderia explorar o interior da ilha tão detalhadamente como havia estudado a sua costa. Estava cansado de plantas, árvores, das estruturas de formações rochosas e, sim, até mesmo de mapas.

Mais do que tudo, queria falar com o seu povo. Ouvir de seus próprios lábios como suas vidas tinham sido mudadas desde que os francos haviam conquistado a ilha.

Ibn Hamdis era duro demais em relação à tribo Hauteville que os dominara. Podia ter sido muito, muito pior e o seria se eles fossem substituídos. Disto ele tinha certeza. Felipe entendia isso melhor do que ninguém. O pensamento que o perturbava enquanto, deitado na cama, tentava dormir era quanto tempo os papas e imperadores do Sagrado Império Romano permitiriam a existência deste estranho híbrido. A irresistível expansão da Igreja fora retardada, não extinta, pelos exércitos do Profeta.

O muezim o acordou ao amanhecer e, por mais que tentasse, não conseguiu voltar a dormir. Em vez disso, tomou banho, vestiu-se e caminhou no jardim dentro dos muros do palácio. O Amir, tendo completado a prece matutina, o avistou da sacada do seu quarto de dormir e desceu para juntarse a ele. Idrisi sentira uma simpatia instintiva para com o homem e não podia entender por que Ibn Fityan tivesse quaisquer dúvidas sobre ele. É verdade, uma escolha confrontava aqueles cuja liderança era respeitada pelos Fiéis. A conquista os pusera fora de prumo, mas foi o qadi de Palermo quem decidiu entregar a cidade ao pai de Rujari sob termos que não eram tão desfavoráveis quanto aqueles impostos sobre Salerno. Se os Fiéis não tivessem se rendido, os francos teriam queimado a cidade e matado todo mundo. Teria sido melhor?

— Por que perdemos a Siqilliya? O Amir não perturbara seus pensamentos, mas entrara neles.

— Porque não pudemos tomar Roma. Nossos navios estavam ancorados no Tibre, mas éramos moralmente fracos demais para aproveitar a vantagem. Compraram-nos com sacos de ouro. Se tivéssemos tomado Roma, nossos exércitos teriam marchado para o Sul e impedido a intrusão dos francos.

— E o papa?

— Teria trabalhado conosco até que uma força mais poderosa emergisse.

Os dois homens riram da idéia.

— Nossa fé — Idrisi observou — inspirou devoção e conquistas, mas é como um furacão. Transitória.

— Deixe-me perguntar-lhe algo, Ibn Muhammad. Apreciei sua discrição na noite passada. Todo mundo presente era leal, mas é melhor não correr riscos. Se queimarem Felipe, vai ser difícil conter a raiva do nosso povo.

— Mas por quê? No que toca a eles, Felipe é um nazareno assim como o sultão. Alguns não pensariam que é bom que estejam se matando entre si?

— Você subestima a inteligência do nosso povo. Poucos acreditam na conversão de Felipe. Notei que aqueles que o fazem são convertidos de nossa fé. O que importa é o que dizem entre si em casa ou no bazar. E aqui, assim como em Palermo e nas cidades menores, sussurram entre si que Felipe continua sendo um Fiel. Sua punição só confirmará esta crença.

— Está certo, meu amigo. Na verdade, a acusação contra ele será esta.

— Haverá uma reação.

— Em Siracusa?

— Manterei a cidade sob controle porque tudo o que acontece aqui tem implicações mais graves. Mas seus dois genros poderão lhe dar melhores informações. E mais tarde, hoje, minha cunhada chega com nossa sobrinha Elinore. Seria uma grande honra se o senhor jantasse com minha família esta noite.

— O prazer será meu.

Enquanto o Amir se afastava, Idrisi se perguntava o quanto ele sabia. Sua esposa devia ter-lhe contado sobre Mayya, mas ele ou a mulher suspeitavam que Elinore não era filha do sultão? Antes que pudesse pensar mais sobre isso, seu criado veio informar-lhe que seus netos e os pais o esperavam para o café-da-manhã.

Os meninos correram a abraçá-lo e ele beijou cada um deles ternamente.

— Seus diabinhos, por que fugiram de mim em Palermo? Ia mostrar-lhes tantas coisas na cidade e comprar-lhes presentes, mas...

— Não fomos nós, Jiddu — disse Khalid.

— Nossas mães disseram que o senhor estava zangado com elas e se não voltássemos correndo para casa as mandaria para a prisão — interveio Ali.

Idrisi jogou a cabeça para trás e riu.

— Acreditaram nelas? Os meninos sacudiram a cabeça negativamente.

— Bom. Vejam este café-da-manhã que o Amir preparou para vocês. Comam tudo o que quiserem, mas devem começar pelas frutas. Que figos e tâmaras deliciosos temos aqui. Depois disso, podem comer o que quiserem. Preciso discutir algo urgente com seus pais. Quando terminarem, podem sair e juntarse a nós. Tem uma bela fonte e se esquentar podem tirar os sapatos e mergulhar os pés na água.

Idrisi colocou os braços em volta dos ombros dos genros e os guiou para fora da sala. Queria que os meninos vissem que apreciava seus pais.

— Sabemos por que suas filhas foram até Palermo e somos agradecidos por seu apoio — disse Abu Khalid. Dos dois, era o que falava mais abertamente. — Não sabemos como lidar com a situação. Se elas falassem assim com um inimigo pode imaginar o destino que nos caberia.

O rosto de Idrisi tornou-se uma rocha e ele falou com uma voz severa.

— Advirtam as duas. Digam a elas que conversamos. Caso se comportem assim de novo devem divorciar-se delas imediatamente e devolvê-las à mãe. Se acharem que devem fazer isso, terão o meu apoio. Não vou encontrar-me com elas enquanto estiver aqui, mas já mandei uma mensagem à mãe delas advertindo-a quanto a qualquer repetição.

— Que tenha longa vida, Jiddu — disse Abu Ali.

— Libertou-nos de uma tarefa muito dolorosa. Da minha parte, não vou me divorciar da mãe de Ali, mas vou tomar uma nova esposa. Desejo que Ali tenha irmãos e irmãs e isso não é mais possível com a sua mãe.

Com uma sacudida desesperada da cabeça, Idrisi indicou que estava de acordo e então fitou direto nos olhos do pai de Khalid. Seu olhar não vacilou.

— Não vou usar uma máscara, Abu Walid. Não posso mais viver com Sakina. Nosso casamento não foi feliz e casei obrigado por meus pais. A união apressada que produziu Khalid nunca foi repetida. Respeitarei todos os termos do casamento e Sakina nunca precisará depender de ninguém enquanto eu estiver vivo, mas não posso mais viver com ela.

— Eu o entendo perfeitamente, Abu Khalid. Deve fazer como deseja. Garantirei que a mãe dela entenda isso também. Não precisamos mais de discórdia. E Khalid? É chegado à mãe?

Houve um momento de hesitação.

— Achei que poderia nos receber polida, mas friamente. Seu calor tocou nossos corações. De que adianta esconder qualquer coisa do senhor? A resposta à sua pergunta é não. Khalid é mais chegado à minha mãe do que à sua própria mãe. As crianças têm uma capacidade de perceber quem gosta delas genuinamente. Podem às vezes enxergar através de fingimentos e falsidades melhor do que homens adultos.

Idrisi sentiu-se aliviado. Se ele, como pai, sentia pouca ou nenhuma afeição por suas filhas, por que deveriam os filhos delas sentirem de modo diferente? Quando Samar e Sakina eram jovens ele notara a fraqueza de seus cérebros, mas achara que com o tempo elas chegariam a um pleno desenvolvimento. Alá desejara o contrário.

— Não me surpreende o que diz e fico feliz de que tenha falado de uma maneira direta. Possa Alá guiar a ambos e proteger seus filhos. Mas existe uma questão mais importante que precisamos discutir.

Os dois homens se entreolharam. Quanto ele sabia?

— Nossa fé — Idrisi continuou calmamente — produziu bravos guerreiros e mentes brilhantes, mas também possuímos um lado inquieto, impaciente e instável que pode irromper num momento e desaparecer no seguinte. Isso produz uma falta de disciplina. Não tenho desejo algum de conhecer seus planos exatos. Quanto menos souber, melhor, mas eu insistiria em cautela quanto à ocasião oportuna. Nada, nada — repito — deve acontecer enquanto Rujari estiver vivo.

— Nada mesmo? — perguntou Abu Ali.

— O que tem em mente? — perguntou o sogro. — Não estamos preparando uma rebelião em larga escala no momento, mas estamos em contato com nosso povo em toda essa região. Em cada bairro de cada cidade e até na menor aldeia existe um mehfil que se reúne toda sexta-feira para discutir a situação na ilha. Tentaremos controlar a raiva da multidão depois do martírio de Felipe, mas não se engane. Quando o momento chegar, Noto e Siracusa e as aldeias entre elas erguerão a bandeira da nossa fé e desafiarão os bispos.

— Enquanto isso, teremos de manter o espírito do nosso povo e defendê-lo dos seus atormentadores. Por esta razão, decidimos infligir uma severa punição aos monges e lombardos que os guardam numa aldeia próxima de Noto. As atrocidades que eles cometeram criaram uma sensação de medo. Precisamos dar uma lição a estas pessoas.

Um lombardo será deixado vivo para espalhar a notícia.

Idrisi não respondeu, mas por seus olhos podiam sentir que se orgulhava deles e isso aumentou sua confiança.

— Quem é o pregador na sua aldeia, Abu Ali? Já ouvi falar nele. Dizem-me que tem visões de nossos exércitos combatendo os infiéis no céu e recita poesia que ele mesmo compõe.

— Estou realmente espantado de que tenha ouvido falar dele, Jiddu — disse Abu Ali com uma voz tão baixa que Idrisi colocou a mão em concha sobre o ouvido.

— É o filho do nosso cozinheiro e era dado a visões desde menino. Nasceu cego e isso pode ter encorajado as visões. Tem vinte anos, mas muitas pessoas das aldeias vizinhas vêm vê-lo e ouvi-lo. Seus versos ardem de paixão religiosa e ele os canta com uma bela voz. Se tiver tempo, venha e fique conosco alguns dias. Ali ficará encantado e você poderá conhecer o filho do cozinheiro. Não quero exagerar, mas existe algo notável nele. Como pode imaginar, canta muito sobre batalhas futuras, vitórias, o dia em que ocuparemos os palácios e a vingança de Alá contra todos que colaboraram com o inimigo.

O som das risadas das crianças interrompeu sua conversa. Ali e Khalid, perseguidos por criados, corriam até a fonte.

Lentamente, os três homens começaram a caminhar na mesma direção.

— Tentarei encontrar tempo para visitar sua aldeia, Abu Ali.

— É mais importante que visite as propriedades de Abu Khalid — replicou seu genro.

— Lá encontrará o Confiável.

Idrisi ficou intrigado.

— Nunca ouvi falar dele antes.


6

Amor e um casamento secreto em Siracuisa.
A poesia de Ibn Quzman.
Elinore faz muitas perguntas, enquanto Balkiss escuta.

Embora as tivesse visto há apenas alguns dias, Idrisi não pôde esconder o seu deleite ao ver Elinore e sua mãe. E vê-las agora com Balkis, a única esposa do Amir e irmã mais moça de Mayya que ele vira pela última vez quando tinha ainda três anos, era especialmente prazeroso. Balkis tinha longos cabelos castanhos e uma pele tão clara que Mayya parecia morena em comparação. Seus olhos e nariz pareciam a estátua de uma deusa grega que ele vira em Djirdjent. Ou seria outra pessoa?

Um pensamento entrou-lhe na cabeça e o surpreendeu. Talvez sangue grego corresse nesta família. Precisava perguntar a Mayya.

No palácio em Palermo ele e Mayya haviam ficado nervosos. Aqui estavam relaxados e o Amir, cônscio de que seus criados tudo enxergavam, os despachou para fora da sala de refeições com um gesto imperioso. A comida fora servida. Grandes jarras de cerâmica contendo suco de laranja fresco, limonada e vinho de tâmara não fermentado foram colocadas sobre a mesa. O Amir não permitia que álcool fosse servido no seu palácio a não ser quando recebia a visita do próprio sultão.

Agora que estavam a sós, Mayya perdeu toda inibição.

— Elinore, que acha do seu pai?

Elinore, que conhecia sua mãe melhor do que ninguém, não se deu o trabalho de responder.

— Mayya, por favor... — sua irmã tentou refreá-la e o Amir, alegando afazeres de Estado, pediu para se ausentar. Estava, na verdade, um pouco assustado. E se notícias deste encontro chegassem ao sultão? Não seria ele chamado à responsabilidade?

Idrisi irrompeu numa risada.

— Mayya — disse ele, fitando-a com firmeza e depois deixando seus olhos viajarem por todo o corpo dela.

— Você nunca vai mudar e eu a amarei sempre.

— O resto de nós deveria sair? — perguntou Elinore, as pupilas negras de seus olhos profundos cintilando maliciosamente.

— Não — respondeu sua mãe.

— Vou passar a noite com o seu pai. Até lá, pode ficar conosco.

— Mayya — sua irmã implorou -, nada pode ser mantido em segredo aqui. Se Rujari tiver notícias de que você e Ibn Muhammad ficaram juntos aqui ele poderia...

— Não poderia nada. Ele simplesmente não liga tanto assim para as mulheres — Mayya interrompeu.

— Estamos lá para produzir filhos. Nada mais. Os íntimos de Rujari são todos homens, incluindo o grande geógrafo que nos honra com a sua presença esta noite. Houve ocasiões em que achei que Rujari queria elevar o nível da sua amizade pelo grande mestre Idrisi, de uma união espiritual para uma união física. Afinal, passam muito tempo juntos e seria uma coisa natural, mas a idéia me enraiveceu. Teria odiado saber que haviam passado uma noite juntos, mas antes que pudesse...

Idrisi fez um esforço para controlar a sua irritação, mas a insinuação de que ele e Rujari eram amantes não se confinava a Mayya. Durante os primeiros anos de sua amizade com Rujari, inimigos na corte adoravam circular a calúnia. Aquilo o deixava furioso, mas sempre mantinha um admirável autocontrole. Agora a raiva reprimida e acumulada irrompeu fazendo-o quase se levantar da cadeira.

— Nunca foi verdade, Mayya. Sabe disso perfeitamente bem. Foi a sua imaginação inflamada. Apenas isso.

Ela ficou deliciada ao ver que conseguira provocá-lo.

— Melhor minha imaginação inflamada do que o seu rabo inflamado.

Balkis cobriu a boca para esconder um sorriso, mas Idrisi se levantou enraivecido.

— Mayya, isto é inaceitável, minha tolerância tem seus limites.

— Fico feliz que seja meu pai — disse Elinore, adiantando-se rapidamente para consertar a situação.

— Não que eu desgoste do sultão. Mas acho que, no fundo, ele sabe perfeitamente bem que não sou sua filha. Falou do senhor e do trabalho que fizeram juntos no livro com tanta intensidade...

— Como ele poderia saber isso, filha? Escolheu seu nome, insistiu para que fosse batizada, supervisionou sua educação — interrompeu a mãe.

— Posso dizer pela maneira como me olha às vezes que não está de todo seguro de que eu seja sua filha. E embora eu nunca lhe tivesse contado, mãe, o número de vezes que mencionou seu amigo, o grande erudito Ibn Muhammad alIdrisi, foi de certo modo estranho. Era como se estivesse tentando me interessar por meu verdadeiro pai. Desde que me contou quem é meu pai de verdade, venho pensando em muitas coisas que o sultão me disse. Agora está claro.

— Não era estranho de modo algum — replicou a mãe.

— O sultão e seu pai passavam grande parte do tempo juntos olhando para as estrelas e interrogando marinheiros de partes estranhas do mundo. Por isso ele sempre o mencionou muito. Sua imaginação é forte demais, minha filha. Tente refreá-la.

— Acho que Elinore tem razão — disse Idrisi.

— O sultão me interrogou sobre você, Mayya. Sabia que éramos de aldeias vizinhas, que nossas famílias se conheciam bem e às vezes fiquei com a sensação de que sabia a respeito de nós e queria que eu confessasse para que pudesse me perdoar e talvez até me entregar você como um presente.

— Então por que não confessou? — foi a resposta da sua amante.

Antes que ele pudesse replicar, sua filha interrompeu novamente.

— Como vai ter meu pai todo para a senhora pelo resto da noite, mãe, talvez eu pudesse fazer-lhe três perguntas antes que vocês se recolham.

— Pergunte — disse o pai.

— Quando percebeu que eu era sua filha?

— Poucos dias atrás no palácio em Palermo. Sua mãe me contara muito tempo atrás — na verdade, antes mesmo de você nascer — mas eu não estava seguro se devia acreditar nela.

Mayya gritou.

— Muhammad, seu traidor! Como ousa admitir isso? Idrisi ignorou a explosão.

— E está contente com o que vê, pai? Sei que tem outros quatro filhos.

— Mais do que pode imaginar, filha. De meus outros filhos, Walid é o mais chegado. O resto? Não há nada a dizer.

— Devíamos nos recolher — Balkis murmurou suavemente.

— Uma pergunta mais. Prefere Estrabão ou Ptolomeu? A surpresa de Idrisi foi visível.

— Quem lhe contou sobre eles?

— O sultão. Disse que preferia Ptolomeu, mas que o senhor modelava o seu trabalho em Estrabão.

— Não é a verdade completa — replicou o pai.

— Estrabão era completamente apegado a locais geográficos, seus costumes, colheitas, animais e coisas do gênero. Queria compilar o mapa mais detalhado do mundo que se conhecia. Ptolomeu era mais interessado nas estrelas e no céu, na forma da Terra e da Lua e como tudo isso afetava a mudança das estações. Ambos eram grandes mestres e aprendi muito deles. No meu coração desejava prosseguir e desenvolver os argumentos enunciados por Ptolomeu, mas percebi os perigos. Era um caminho difícil e havia problemas naquela direção. Enquanto outros olhavam para o céu e falavam da poesia das estrelas, eu notava em grande detalhe como os antigos tinham chegado perto de solucionar os mistérios do universo. Perto, mas não podiam seguir adiante. Notei que tudo se movia, como cada noite o movimento era repetido e, no entanto, nunca da mesma maneira até que 12 meses tivessem se passado. Sim, minha filha. Tudo se movia. Se o que eu pensava fosse verdade, o Livro estava errado e, se o Livro estava errado, de quem seria o erro, de Alá ou do seu Mensageiro? Não deixava estes pensamentos descansarem na minha cabeça. Eram relâmpagos que iluminavam o futuro. Estou certo de que um dia descobertas serão feitas que desafiarão os ensinamentos de todos os Profetas, incluindo o nosso. Será um homem corajoso aquele que publicar tais descobertas. Podem custar-lhe a vida.

— Não é a busca do conhecimento sempre perigosa?

— Talvez, Elinore, eu volte ao assunto antes de morrer. Está interessada nas estrelas?

— Sim, mas não em sua poesia.

— Estou cansada — disse Balkis, bocejando demonstrativamente e olhando nervosa na direção da irmã mais velha.

— E talvez, Mayya, devêssemos nos recolher a nossos quartos. Assim que os criados saírem, Ibn Muhammad poderá explicar o movimento das estrelas ou as manchas na Lua a você. Eu sugeriria que ele o fizesse da sua sacada. A vista é mais clara.

Era uma noite quente. Mayya havia tirado seu manto de dormir e aberto as portas que davam para a sacada. A lua cheia começara a declinar enquanto se embriagavam um com o outro. Depois, deitados silenciosamente na cama dela, cada um mergulhado em lembranças, uma suave brisa marinha se levantou e acariciou seus corpos nus.

— Existem manchas na lua? — ela perguntou.

— Nenhuma — ele respondeu enquanto afagava suas costas suavemente, pousando a mão na maciez do seu corpo.

— Estas suas duas meias-luas permanecem inalteradas. São exatamente como eram dez anos atrás. Imagino que as banhe em leite de cabra.

— São mais macias banhadas no seu suor. E não fico satisfeita com apenas uma vez. O jovem galo não vai cantar uma vez mais e acolher-se no meu ninho de novo?

— Não é tão jovem quanto já o foi, mas por que não pergunta a ele?

Ela o fez e a reação agradou a ambos. Atravessaram a noite falando e não só do passado que não tinham podido compartilhar. Haviam discutido aquilo muitas vezes como a recusa dela em deixar o palácio. Ele conhecia bem as razões e, depois de alguns anos, deixara de vê-la. Trocavam mensagens, nada mais. Suas viagens o mantinham afastado, mas era mais do que isso: ele não queria vê-la enquanto fosse uma criatura do harém.

Ela sabia dos detalhes mais íntimos da vida dele e lhe indagara como conseguira fazer quatro filhos com sua mulher. Aquilo a deixara zangada:

— Não há diferença entre você e um asno. Você monta, ejacula e planta o seu sêmen. Nada mais.

Concordara com ela, mas preferiria que tomasse outra esposa, alguém que contasse com a sua aprovação? Aquele era geralmente o fim da conversa.

Anotara as datas em que Rujari a havia visitado no quarto de dormir no harém. Não houve muitas, mas era um tormento que não podia suportar e, depois de cada visita real, ele não fazia contato com ela durante meses. Ela ficou espantada quando lhe contou isso. Não havia percebido a eficiência com que a informação vazava do palácio. Contou a ela que aquilo lhe causara grande dor, mas ela dava de ombros e recusava-se a discutir a questão. Não era culpa sua que ele tivesse se casado com outra. Por que não havia resistido? Seria a junção de duas propriedades mais importante do que o seu amor? E, é claro, ele não tinha resposta. Fora deferência aos desejos do pai agonizante mais do que covardia o que decidira a questão, mas ele sofrera o bastante. Não era aquilo castigo suficiente?

Estranho como estas lembranças não mais doíam neles. A ausência de dez anos fora punição suficiente e nenhum dos dois desejava prolongar a agonia. Nada os machucava mais. Elinore era o bálsamo. Elinore, que pouco se assemelhava a ele nas feições, mas cujas expressões e movimentos de mão eram extraordinariamente semelhantes.

Era um fruto deles. Se apenas...

— Muhammad?

— Sim.

— Eu estava pensando. Se pudéssemos ter outro filho, um irmão para Elinore...

Ele sentou-se na cama, espantado pela simetria do pensamento de ambos.

— Que estranho, eu pensava na mesma coisa. Pensava que, depois que o sultão morrer, eu deveria tomá-la por minha esposa. Poderíamos viver juntos.

A sugestão irritou-a.

— Tudo deve esperar até que ele morra. A resistência do nosso povo, assim como nosso casamento. Foi essa uma recomendação de Felipe também?

Ele a abraçou forte, beijou seus lábios e os olhos.

— Por que ficou zangada?

— Porque odeio seus planos. Por que não podemos fazer exatamente o que queremos?

Por que tudo tem de estar vinculado à morte?

— Você me conhece melhor do que mais ninguém. Sabe por que eu me controlo.

Ela acalmou-se e começou a acariciar a sua cabeça.

— Sei que você sente raiva por dentro, tentando duramente reprimir sua ira. Preocupa-se que isso faça mal àqueles próximos a você. Sei disso, mas não quero esperar que ninguém morra. Nosso amor não depende disso, não é verdade? Talvez eu carregue uma criança no ventre depois desta noite. E então? Desta vez Rujari saberá definitivamente que não é sua. Este pensamento o assusta?

Enterrou a cabeça entre as pernas dela e murmurou:

— "Que tipo de almíscar é este? Que aroma?

Desta magia outras são criadas."

Depois, ela o abraçou e sussurrou:

— Quem escreveu o zajal? Não foi você. Não foi Rujari. Foi Ibn Quzman? Diga-me.

— São seus versos. Pobre Ibn Quzman. Soube que tem problemas com o novo sultão em Qurtuba.

— Por que não pode vir para cá? Eu deveria pedir a Rujari?

— Não. Ibn Quzman viaja para onde deseja. Tem admiradores em cada cidade de alAndalus. Quando tem problemas em Qurtuba, corre para Gharnata. Se o seu verso ofende o sultão naquela cidade ele escapa para Ishbiliya ou al-Marriya. Certa vez passou seis meses em Balansiya.

Foi onde o conheci.

— Você o conheceu?

— Sim.

— Por que não me contou na época?

— Fiquei fora de Palermo durante dois anos. Quando voltei, a sua visão me fez esquecer tudo mais.

— Ibn Quzman recitou um zajal para você?

— Fez isso também, mas havia consumido muito vinho naquele dia e não estava seguro se devia ser colocado no papel ou sequer repetido.

Mayya segurou o rosto dele em suas mãos.

— Recite-o para mim agora. Agora! Ele fez o que ela pediu.

— Meus fracassos na vida até aqui você conhece, Como passarei o resto de meus anos? Só entre pessoas que apreciam sodomia ou adultério; Disto eu tenho certeza: gosto de ambos.

Mayya bateu palmas deliciada.

— E guardou isso de mim todos estes anos? Por quê? Seria porque você, também, prefere a companhia de sodomitas e...

Sua mão cobriu a boca de Mayya. Ela dormiu quando as estrelas começavam a declinar. Admirando sua forma adormecida à luz da manhã, cobriu-a com um lençol. Colocou então sua túnica e foi até a sacada, o único local do palácio que não era vigiado. Atenciosa Balkis. Por que as coisas não podem ser sempre assim? O muezim abafou tudo mais. Idrisi deixou o quarto de dormir de Mayya e seguiu apressadamente para o seu, mas praguejou ao ver o seu criado no corredor do lado de fora, a cabeça tocando o chão enquanto fazia as orações matinais. Idrisi entrou furtivamente no seu quarto e, logo depois, bateu palmas para chamar o homem do lado de fora.

— O banho está preparado, senhor. Poucas horas depois uma mensagem de Elinore o convocava para um jogo de xadrez. Raramente se entregava a diversões e não conseguia lembrar a última ocasião em que havia jogado. Seu pai lhe havia ensinado pacientemente as regras e, embora se tornasse um jogador competente, nunca apreciara a disputa. Talvez a avalanche de risada dos parentes que testemunharam sua derrota quando tinha dez ou 11 anos o tivesse desencorajado. Rujari era um exímio jogador, mas o erudito declinara de participar dos torneios palacianos. Ao seguir o criado até a biblioteca onde Elinore o aguardava, perguntou-se se ela já havia jogado com o sultão. Quem mais poderia têla ensinado?

Ela o recebeu ruidosamente, abandonando a pose de uma senhorita.

— Wa Salaam, Abu.

— Wa Salaam, filha.

— Disse a minha mãe que queria ficar a sós com o senhor. Foi ela quem sugeriu uma partida de xadrez.

— Ela não joga, também — replicou o pai, e começaram a rir. Elinore crivou-o de perguntas. Nada podia interromper a sua carga impetuosa. Não esperava que ele respondesse: era sua maneira de fazer com que a ouvisse e entendesse suas preocupações. Não havia nada falso nela e ele se encheu de orgulho.

O modo de falar dela, o jeito de enfatizar algumas palavras e não outras, seus olhos sempre alertas, o uso das mãos e a maneira de tocar nos cabelos o lembravam de Mayya. Subitamente ela parou.

— E então, o que acha? Não me ouviu?

— Ao contrário, ouvi cuidadosa e atentamente. Que parte das suas interrogações exige uma resposta?

— A família Hauteville. Ela foi tão heróica como o sultão nos contou cada ano?

— As histórias mudavam ao longo dos anos? Você notou um aumento de heroísmo à medida que crescia?

— Não, eram sempre as mesmas. Quando tinha dez anos eu mesma podia recitá-las.

— Neste caso eram provavelmente verdadeiras. Os homens que deixaram a parte norte das terras geladas em seus navios a vela e vieram incendiar e roubar dos francos eram sem dúvida bravos. Eram senhores da guerra e adestrados em combate cruel. Finalmente, o rei dos francos lhes deu uma porção da terra e esperava que convivessem em paz com ele. Fizeram isso, mas, à medida que suas colônias cresciam e suas famílias aumentavam, não havia comida suficiente para alimentar a todos, nem terra suficiente para compartilhar. Então começaram a viajar de novo. Um de seus barões, Guilherme, conquistou uma ilha vizinha e, Alá os ajude, Elinore, é uma terra fria e miserável onde o sol nunca brilha no inverno. Fria e escura, e chove sem parar. Durante meses é impossível ver o céu ou as estrelas.

— Isto é verdade?

— Eu inventaria tal lugar?

— E por que o clã Hauteville e seus criados vieram para cá?

— Eram guerreiros que lutavam por quem lhes pagasse e, como outros em sua posição, perceberam que os aniires que precisavam deles deviam ser fracos. Então pensaram: por que lutar por este homem quando somos mais fortes do que ele? Poderíamos governar em seu lugar. Deviam ter sido abençoados por Alá. Veja o que encontraram nesta ilha. Muita riqueza e terra cultivada em abastança. Ricas colheitas de trigo e frutas frescas de todo tipo.

Os papiros com que fazemos o papel que nunca tinham visto antes. Nem haviam imaginado uma cidade tão rica e grande como Palermo. Duzentas mil pessoas viviam aqui quando os francos chegaram. Vieram como conquistadores e, no início, foram cruéis. Mas, assim que decidimos que era impossível resistir a eles, conviveram conosco em paz e perceberam que precisavam de nós para lhes ensinar tudo o que sabíamos. E gostavam de nossas mulheres.

Elinore sorriu.

— Sabe de uma coisa, Abu? A história que o sultão nos contava cada ano não era tão diferente. Falava do seu pai e do seu tio e dos feitos de sua família também mas, excetuando isso, era a mesma história. Não é estranho?

— É raro que conquistador e conquistados compartilhem a mesma história. A razão é óbvia. A maioria daqueles que vivem aqui seguem o nosso Profeta e removê-los sem ter alguém para substituí-los tornaria essa ilha pobre e infeliz. Roger e seu pai entenderam isso bem. Será que seus netos e bisnetos entenderão?

Falaram algum tempo sobre estrelas e navios e ela quis saber o que ele sabia de Cartago e dos fenícios que a haviam construído. E era verdade que haviam navegado pela Ifriqiya simplesmente confiando nas estrelas? Ele contou-lhe tudo o que sabia e do modo como seus olhos o acompanhavam podia ver que estava absorvendo o conhecimento. Cada um sabia que não era o bastante. Voltariam a estas questões e à proximidade que sentiam agora um do outro.

Depois de um silêncio ela lhe perguntou sobre Walid. No início ele não respondeu. Ela o pressionou de novo.

— Sei que o ama muito. Minha mãe me contou isso, mas nunca pôde explicar por que ele fugiu ou o que lhe aconteceu.

— Está vivo e bem. Trabalha para um artesão judeu de prata em Veneza. Irei visitálo em breve e o trarei de volta, se puder. Às vezes os filhos se tornam sombrios e indolentes se ficarem permanentemente à sombra dos pais. Um período de separação pode ajudar. Não fui diferente quando tinha a idade dele.

— Acha que estes anos todos à sombra de minha mãe me tornaram preguiçosa e infeliz?

Pegou a mão dela e a beijou.

— Não, minha filha. As estrelas sorriram sobre você e sua mãe. E você é uma mulher. Os homens têm necessidades diferentes.

Antes que Elinore pudesse contestar isso, sua mãe entrou na biblioteca.

— Quem ganhou no xadrez?

— Nós dois — respondeu a filha.

— Como pode ver, nenhum de nós fez um lance ainda. O tabuleiro ainda não foi tocado.

Então Mayya se virou para ele.

— Muhammad, na noite passada discutimos algo e sua resposta me deixou zangada.

Ele franziu a testa, indicando que a conversa que ela propunha seria mais oportuna em particular.

— Elinore e eu não temos segredos. É melhor assim. Impede que bisbilhotemos as conversas uma da outra.

— Muito bem — disse ele, numa voz resignada.

— Falei com Ballcis e Aziz há poucos minutos. Ele nos casará hoje, se você concordar.

— Mas o sultão...

— Idrisi viu a expressão dela e congelou.

— Não sou casada com Rujari. Fui sua concubina, como você me lembrou em muitas ocasiões. Esta é sua filha, não dele, mas, se esperar até a sua morte, não me casarei com você. Casou-se com sua esposa porque foi covarde e não vai se casar comigo hoje pela mesma razão.

Idrisi levantou-se e aproximou-se dela, mas Mayya estendeu os braços para mantê-lo afastado.

— Escute o que digo, Mayya, e escute atentamente. Este reino está à beira de uma explosão. Felipe vai ser julgado por traição e queimado na fogueira. Os bispos encarariam nosso casamento como uma provocação aberta. Já esqueceu a sua conversão para a fé deles? Sei que nada significou para você e estava simplesmente agradando a Rujari, mas os monges não encaram estas questões levianamente.

Mayya não estava com ânimo para escutar nada.

— A situação que você descreve só vai piorar depois da morte de Rujari. Muhammad, nós teríamos sido esmagados pela tristeza não tivéssemos nos apegado um ao outro durante todos estes anos. Não estou sugerindo que coloquemos Elinore ou nós mesmos em perigo. Teremos de esperar até podermos viver juntos, mas o casamento poderia ser hoje. Pode permanecer em segredo o tempo que você quiser, mas tem de acontecer. Se recusar, nunca mais o verei. Vou pegar Elinore e desaparecer.

Elinore ficou em silêncio, esperando que ele falasse.

— Sei que não faria isso, porque a crueldade é ausente em você, mas se o casamento deve ficar em segredo não vejo problema. Marcou uma hora com o Amir?

— Depois das preces vespertinas.

— Percebe que antes que possa me casar com você insistirei para que se converta de novo à nossa fé?

— Isso já foi feito e na presença de minha irmã e de seu marido. Mais alguma exigência, marido?

— Sim. Obediência total. Lembre-se da sura no Corão, que...

— Silêncio, Ibn Muhammad alIdrisi. O que não posso suportar é a idéia da separação de novo.

— Existe alguma razão para você retornar a Palermo?

— Nenhuma, mas para onde eu deveria ir?

— Poderia ficar aqui enquanto decidimos onde quer morar. Sua irmã oferece uma desculpa perfeita. E Rujari está preocupado demais para notar a sua ausência.

— Mas nossas roupas e tudo mais estão em Palermo — disse Elinore.

— As roupas podem ser mandadas para cá, mas o que é o "tudo mais" a que se refere? — perguntou o pai.

— Abu, é de Palermo que vou sentir falta. Não podemos morar em Siracusa. Esta é uma cidade para se visitar.

— Filha, é melhor ficar aqui nos próximos meses. Os ânimos em Palermo vão estar exaltados depois que Felipe for queimado. Talvez não possamos controlar a multidão e ela pode atacar o palácio. Mande pedir tudo do que precisa. Quando as coisas se acalmarem, você pode voltar.

Mais adiante naquela tarde, o Amir os convocou à sua câmara privada, dispensou os criados e realizou uma cerimônia de casamento simples.

Uma modesta refeição fora preparada e por isso não houve nenhuma atmosfera de comemoração. Mayya e Balkis trocaram reminiscências sobre seus pais e seis irmãos que haviam deixado a família em casa e se mudado da ilha para alAndalus. Elinore e o pai ficaram felizes de ouvir as irmãs se divertindo, mas o Amir retirou-se cedo alegando uma longa viagem no dia seguinte. Depois que a mesa foi limpa, foram até a sacada enluarada para um chá de menta, com uma doce mistura de tâmaras e leite endurecido pelo qual Siracusa era renomada. Podiam ouvir o som das ondas quebrando suavemente contra as rochas lá embaixo.

— Elinore — disse sua tia -, não é uma vista maravilhosa? Vou mostrar-lhe uma outra vista ainda mais bonita do mar do meu quarto e convencê-la a ficar aqui por alguns meses. Venha comigo, criança.

Elinore tomou a mão da tia e as duas mulheres foram embora.

— Por que sua irmã não tem filhos? É o...

— É o Amir — suspirou Mayya.

— Seu pássaro recusa-se a cantar.

Balkis é sua segunda mulher. Deixou que a primeira partisse quando não teve filhos. É claro que o problema é dele e ele não finge que seja diferente. É um homem muito generoso.

— Ibn Quzman não reconheceria que existe um problema. Mayya riu bem alto.

— Balkis não é infeliz. Ele é um homem bondoso e sensível e geralmente, diz ela, ao vê-la sem roupa, seu membro forma uma tenda debaixo da sua túnica. Tudo o que falta é a semente.

— Ela ainda é jovem, portanto ainda tem tempo, mas deveria pensar numa caminhada numa tempestade quando os anjos estão voando da terra para o céu. Estou certo de que o Amir acolheria isso como uma dádiva de Alá e Balkis ficaria feliz. Ela não o estaria traindo da maneira comum.

— Realmente? Seu conhecimento nunca deixa de me surpreender. Então ela deveria abordar um estranho e extrair o seu sêmen. Interessante. Vou passar adiante o seu conselho. Embora sempre tenha achado que traição conjugal deixa um gosto amargo.

Idrisi sorriu.

— Só em casos em que o casal é jovem e a paixão ainda é forte. Para homens mais velhos e mais maduros é diferente.

— Toda esta conversa está elevando a minha temperatura. Talvez seja a hora de armar sua própria tenda de novo e me seguir. Vou testar a sua maturidade com grande prazer. Ou será a hora das orações.

— Saber e dormir é melhor do que orar e ser ignorante.


7

Idrisi é tomado por lembranças de uma ilha encantada.
Um primeiro encontro com o Confiável,
que prega rebelião aberta contra Palermo.

Não havia chegado o meio do verão, ainda era cedo, mas ele sabia que o dia seria abrasador e desagradável. Suspirou alto, desejando que não tivesse concordado em cavalgar com seu genro pela sua propriedade. Não era uma jornada curta e não haveria sombra. A terra que, apenas alguns meses atrás, estava verdejante e atapetada de flores silvestres, estaria ressecada e árida, intensificando os raios do sol. A idéia do que tinha pela frente o deixava exausto. Talvez não fosse tarde demais para mudar de idéia. Mas quando, minutos depois, a presença de Abu Khalid foi anunciada e o jovem entrou no quarto, as incertezas de Idrisi se desvaneceram. O prazer no rosto do jovem era visível. Não podia controlar sua excitação.

Abu Khalid tinha providenciado uma carroça coberta para o homem mais velho, mas Idrisi sabia que isso dobraria a duração da jornada e insistiu em ir a cavalo.

— Minha saúde não é delicada. Sinto-me forte como um boi.

Abu Khalid e Idrisi cavalgaram lado a lado para fora da cidade, cada um carregando frascos de couro cheios de água e seguidos por três criados armados. Foi como ele imaginara, o ar seco, quieto e sem vida. Os galhos seminus das árvores atrofiadas com suas folhas secas e murchas eram tudo o que restava da primavera. O sol reluzia nas pedras.

Depois de uma hora cavalgando era difícil dizer quem suava mais, o cavalo ou o cavaleiro. Pararam para beber um pouco d'água e molhar os panos que lhes cobriam a cabeça. Quando a jornada continuou, Idrisi não podia se concentrar na trilha ou em suas elevações abruptas. A certa altura achou ter visto um lago à distância e estava para sugerir que parassem e se banhassem quando percebeu que seus olhos o estavam enganando, como freqüentemente faziam no mar. O brilho projetado pelas pequenas colinas era enganoso e foi naquele momento que uma lembrança que mantinha firmemente trancada no porão, mas fora reavivada pela visão de Balkis, tomou conta dele. Uma imagem de um antigo templo grego que vira certa vez numa ilha misteriosa apareceu.

Tinha começado a trabalhar no seu livro e, com a ansiedade de um novato, instruía os marinheiros a pararem em cada ilha. Sua curiosidade era ilimitada. Tomava notas detalhadas sobre as plantas e as pedras e o formato da costa. Estavam no mar há algumas semanas quando a ilha foi avistada. No início acharam que era desabitada e a excitação da descoberta elevou o seu ânimo. Foi quando os marinheiros saíram em busca de água fresca que descobriram o pequeno lago e então viram o antigo templo grego que decorava a praia. Um marinheiro foi despachado pára informar ao erudito.

A primeira coisa que Idrisi notou foi que o templo não era uma ruína. Queria estudar a construção a sós sem ser interrompido

Os homens foram mandados para reabastecer seus suprimentos d'água e procurar cabras, geralmente em suprimento abundante em ilhas desabitadas. Pegou as penas, a tinta e o papel do seu criado e o mandou voltar ao navio e encontrar o velho mapa da região no baú que ficava debaixo da cama na cabina.

Tinha visto muitos templos em ruína em djent e Siracusa e havia imaginado como seriam quando cheios de Fiéis, mas este era diferente. Em escala não era tão grande quanto a maioria dos templos arruinados que tinha vista na Siqilliya e nas cidades costeiras do grande mar, mas sua estrutura era exatamente a mesma. As pilastras da entrada conduziam a uma câmara e ali ele viu pela primeira vez uma estátua gigante de Afrodite. Para seu espanto não era feita de mármore branco.

Uma pedra marrom clara fora usada. O escultor deixara pouco para a imaginação. Esta Afrodite tinha grandes mamilos vermelhos e a mesma cor da pedra fora usada para delinear o seu sexo. Podiam estas ser pedras preciosas? Se fossem, os homens insistiriam em roubálas. Não permitiria isso, mas era melhor evitar conflito. Tentaria mantê-los distraídos. E então notou que cercando a deusa do amor de cada lado havia três graças. Pouco abaixo do pé da estátua o escultor colocara uma suma sacerdotisa.

Todas vestiam túnicas e suas gargantas, como jóias brancas, brilhavam na escuridão. Pareciam pequenas em comparação com Afrodite, mas eram na verdade de tamanho natural. Tremeu, como se uma corrente impetuosa tivesse subitamente passado através dele.

Tudo parecia como lavado regularmente, mas ainda não havia traço de ninguém. Talvez fosse um templo secreto onde os descendentes daqueles que haviam adorado os velhos deuses se reunissem em ocasiões especiais do ano para preservar suas tradições. O pensamento excitou o erudito. Se este fosse o caso, por que teriam escolhido Afrodite? Podia ser esta a ilha onde Homero encontrara a encantadora Circe? E poderia ser esta a razão deste templo?

Quando se virou para deixar o templo, ouviu o que lhe pareceu um suave clarear de garganta atrás de si. Congelou. Devia ser sua imaginação. Virou-se e caminhou de volta em direção da estátua. Desta vez olhou mais atentamente para as estátuas menores. Não podia haver engano. Era capaz de ouvir a suma sacerdotisa respirando.

Aproximou-se e tocou no seu rosto. Lágrimas lhe escorriam pelas faces. Ele ficou atônito e em êxtase. Suas mãos sentiram o resto do seu corpo. Ela era humana.

— Quem é você? — sussurrou em grego siqilliyano que havia aprendido na corte.

— Sou Eleni, a suma sacerdotisa deste templo, e estas são minhas sacerdotisas.

Estava cercado por sete mulheres.

— Moram aqui? Esta ilha é habitada?

— Sim — respondeu Eleni.

— Nossas famílias moram atrás dos rochedos onde não são visíveis do mar. É o primeiro visitante em dois anos. Os navegantes que vieram antes de você não estavam interessados na ilha. Só queriam um pouco de água que, como vê, é abundante. Depois partiram. Irá embora logo?

Ele acenou com a cabeça.

— Mas quem são vocês?

— Pertencemos a famílias que começaram a adorar nossos velhos deuses na época do Grande Imperador. Depois que ele morreu, os nazarenos começaram a nos capturar e matar, por isso algumas famílias embarcaram num navio e fugiram de Bizâncio, que os nazarenos chamam de Constantinopla.

Idrisi estava fascinado.

— Que Grande Imperador?

— Juliano. Batizamos a ilha em homenagem a ele. Esta é a ilha de Juliano e Afrodite é nossa deusa.

Contou-lhes quem era e de onde vinha. Tinham ouvido falar de Palermo e sabiam que os árabes dominavam lá. No que lhes dizia respeito, os nazarenos eram os piores, mas os seguidores de Moisés e Maomé não eram melhores. Ele não estava com ânimo para um debate filosófico sobre as virtudes de um Alá contra os deuses de pedra dos antigos.

Contaram-lhe sobre os ritos que encenavam toda primavera, a comida que cultivavam na ilha, como seus números continuavam a declinar. Os homens tinham a tendência de ir embora e era por isso que desejavam recepcioná-los, a ele e aos seus homens, numa festa esta noite. Não fizeram nenhum segredo de seus desejos ou intenções.

Quando os homens voltaram, contou-lhes tudo exceto as pedras preciosas montadas nos seios de Afrodite. Mas eles ficaram ansiosos para participar de uma festa e nenhum demonstrou interesse em sequer entrar no templo. Isto o surpreendeu e em outras circunstâncias os teria questionado e repreendido por sua falta de curiosidade.

Depois que se banharam no lago de águas frescas e se secaram ao sol e estavam deitados sem roupas gozando a brisa do mar, foram interrompidos. A sacerdotisa, que os observava do templo, emergiu à luz do sol. Os homens ficaram estupefatos, assim como ele ficara. Viram as mulheres como um animal acuado vê um caçador. Sentiam a presença de um destino que eram incapazes de evitar e cobriram sua nudez com suas camisas e apressadamente colocaram suas roupas. Uma vez vestidos, as mulheres fizeram sinais para eles e, como homens em transe, as seguiram. Achavam-se em tal estado, e isso incluía Idrisi, que não notaram o labirinto de caminhos através dos quais foram conduzidos à aldeia. Aqui foram saudados por outras mulheres e de todas as idades. Depois, não tinham certeza se algum homem da aldeia estivera presente. Primeiro, deram-lhes cachimbos-do-amor para fumar e então jarras de vinho tinto foram colocadas na mesa debaixo da árvore. Quando foi servida a carne recém-assada do cabrito, marinada em suco de limão e coberta com tomilho, comeram como homens que vinham passando fome há meses. Sua fome não era de comida, mas o que queriam eram as mulheres que os serviam. A comida era apenas um pretexto. Não foi o vinho, mas as folhas secas dos cachimbos-do-amor que os intoxicou. Estavam prontos para serem levados a qualquer lugar. E foram. Idrisi lembrou-se de ter sido levado pela suma sacerdotisa. Mais tarde se gabariam de que fora uma noite de paixão incontrolável, mas quando acordaram na manhã seguinte estavam todos deitados na praia. Sua única lembrança da ocasião era o cachimbo-de-amor de barro. Nenhum dos homens estava preparado para voltar e buscar a aldeia onde haviam sido tão bem tratados. Idrisi os mandou de volta ao navio e pediu que esperassem algumas horas. Estavam assustados e acreditavam que tinham sido possuídos por demónios. Havia sido uma prova à sua fé e tinham falhado. Alá e Deus os puniriam. Imploraram a ele que não fosse sozinho, mas ninguém se ofereceu para acompanhá-lo.

Idrisi achou que havia encontrado a trilha que levava ao lago e ao templo, mas era como se tivessem sido conduzidos desde o princípio. Não havia nenhum traço do caminho. Depois de várias tentativas ele desistiu, mas o tempo todo em que esteve ali sentiu que o estavam vigiando. Era um desafio. Teria gostado de ficar e registrar os acontecimentos, mas os homens estavam ansiosos para seguir em frente e, relutantemente, concordou.

A memória da suma sacerdotisa jamais o deixou. Balkis, a mulher do Amir, o lembrava dela. Tinha feito anotações detalhadas sobre a localização da ilha de Juliano. Era uma jornada de 24 horas de... Mapeou-a de todas as direções, mas nunca pôde redescobrir a ilha. Quando descreveu o incidente ao sultão achou Rujari bastante cético. Quem poderia culpá-lo? E, à medida que os anos passavam, o próprio Idrisi se perguntava se algo daquilo teria realmente acontecido.

— Meu senhor, vamos parar para descansar e comer. Ergueu os olhos e viu que estavam diante de uma grande casa. Dois cães latiram furiosamente até que um homem emergiu e caminhou na sua direção. Era magro com o corpo esbelto, cabelos castanhos e uma pele fresca, apesar de pálida. O que o marcava era a firme determinação do seu rosto enquanto saudava calorosamente Abu Khalid e curvava-se polidamente para Idrisi.

— Bem-vindo a esta humilde casa e sinta-se nela como se fosse sua, Abu Walid ibn Muhammad alIdrisi. Quem não ouviu falar do seu renome?

— Muitas pessoas, eu receio — murmurou o erudito enquanto eram conduzidos ao frescor de uma sala escurecida.

— Banhos foram preparados para o senhor, mas espero que me perdoará. Aqui não é Siracusa e não temos espaço para um hammam. Mas água fresca foi trazida do poço e se acompanhar estes homens até o pátio eles providenciarão para que o senhor se refresque.

— Quem é o seu amigo?

— Idrisi perguntou a Abu Khalid enquanto acompanhavam os criados até o pátio.

— É Tarik, meu irmão mais velho. Creio que deve tê-lo visto rapidamente no meu casamento. Não lembra? Tem uma vida interessante. Agora tudo o que o interessa são frutas e legumes. Não come carne, nem mesmo no inverno.

— Tem família?

— Não aqui. Ela mora em Salerno. Pelo tom de Abu Khalid estava claro que este não era um assunto feliz, mas provocou a curiosidade de Idrisi.

— Por quê?

— Abu Walid, o que posso dizer? Aos 18 anos meu irmão queria ser um médico, alguém que curasse as pessoas. Lia o Aqrabadhin de al-Kindi e o Kanun de Ibn Sina da manhã até a noite. Meu pai, como bem sabe, só estava interessado em suas propriedades e no seu bem-estar. Não se sentia inclinado a satisfazer meu irmão. Queria que seu filho mais velho ficasse em casa e o ajudasse a dirigir o patrimônio, concentrando sua mente em criar novos métodos para gerar ainda mais terra. Meu irmão se recusou. Correu para o maristan em Salerno, onde se encontram os melhores médicos. É uma longa história, Abu Walid.

Jogaram água sobre suas cabeças e os dois homens tremeram deliciados.

— Onde foi que ele encontrou o livro de al-Kindi? Eu não sabia que havia uma cópia em qualquer biblioteca por aqui.

— Deve perguntar a ele. O almoço foi servido em outra sala escurecida. Tubérculos de diferentes tipos cozidos com as mais deliciosas ervas e temperos foram servidos com pão recém-assado de trigo umedecido com azeite de oliva. Para beber havia leitelho fresco aromatizado com folhas de menta. E para adoçar suas bocas fatias de melão e tâmaras foram servidas numa grande bandeja.

Depois Tarik perguntou numa voz gentil:

— Talvez gostassem de descansar? — Se descansarmos, não chegaremos à casa do seu irmão hoje.

— Eu insisto — disse Tarik.

— Fizeram uma longa jornada a cavalo. Acho que um descanso lhes faria bem. Pouco mais de três quilômetros daqui e estarão na sua propriedade.

Esta casa era parte dela, mas ele gentilmente me cedeu como presente. A casa da família está a menos de uma hora. Bem-vindo, Ibn Muhammad.

Idrisi estava exausto. O banho havia ajudado, mas o almoço o deixara sonolento. Um quarto fora preparado para ele e adormeceu imediatamente. Uma hora depois foi acordado por um sonho vívido. Sentou-se na cama e bebeu um pouco d'água. Por que a ilha de Juliano ocupava tanto seus pensamentos hoje? Aquilo havia acontecido 25 anos atrás e ele mal se lembrava daqueles dias. Por que agora? Balkis. Ela se parecia com a suma sacerdotisa. Seria realmente irmã de Mayya ou fora adotada ainda criança? E por que se casara com um homem estéril? Uma suave batida na porta o interrompeu. Era Abu Khalid.

— Estamos prontos para partir, quando estiver.

— Queria falar com seu irmão.

— Ele nos acompanhará à visita a velha casa, mas sua presença foi benéfica.

Estou muito feliz. Nunca quis herdar as propriedades. Pensava em viajar e estabelecer-me em Palermo. Mas quando Umar desapareceu meu pai não me permitiu que partisse.

— Então sua casa se tornou uma prisão. E minha filha, receio, não oferecia companhia estimulante.

Seu genro não respondeu. Chegaram à casa de Umar antes do pôr-do-sol. Os membros da casa estavam reunidos para recebêlos. À sua frente estava o jovem Khalid.

— Bem-vindo à nossa casa, avô. Idrisi abraçou o neto e beijou-lhe as faces com emoção genuína.

— Meu filho. Você já cresceu e só se passaram algumas semanas desde que o vi. Venha mostrar-me sua casa. Estive aqui pela última vez quando seu pai tinha dez anos de idade. Mudou muito?

— Não. Foi Umar quem respondeu.

— Nada muda aqui. Mas vai mudar logo. Estamos vivendo no tempo de outros.

E então um homem de aparência estranha que Idrisi mal havia notado adiantou-se e inspecionou os recém-chegados. Tinha cabelos cinzentos compridos que quase lhe chegavam aos ombros, uma barba manchada, que cobria a maior parte do seu rosto emaciado, e um par de olhos ardentes e aguçados que dominavam suas feições. Vestia uma túnica branca limpa, que contrastava com sua aparência. Na mão direita tinha um bastão velho e surrado e o bateu no chão agora ao falar.

— Não! — gritou o homem.

— Umar Ibn Ali fala sem pensar. São os infiéis que vivem no nosso tempo e nós os deixamos.

Tendo feito este pronunciamento afastou-se sem cumprimentar ninguém. Idrisi sorriu. Não se impressionou. Conversa desse tipo não era incomum em Palermo. Percebeu que este era o homem de quem Abu Khalid lhe falara em Siracusa.

Quando entraram na casa, sua filha, Samar, o saudou em termos exagerados. Não mais capaz de fingimentos, tocou sua cabeça de uma maneira mecânica. Uma série de quartos havia sido preparada para ele e seu neto o conduziu até lá.

— Jiddu — perguntou Khalid -, o senhor gosta do meu pai? A pergunta o pegou de surpresa.

— Por que faz uma pergunta destas, minha criança? Se não gostasse do seu pai teria passado um dia incrivelmente quente viajando com ele até sua casa?

Khalid começou a rir.

— Só perguntei. Estou feliz.

— Quantos quartos existem neste palácio?

— Trinta e quatro — respondeu Khalid.

— Eu os contei muitas vezes.

— Agora me diga outra coisa. O que acha daquele homem estranho de cabelos compridos que falou tão rudemente com seu tio?

O rosto do menino ficou sério.

— Ele me assusta às vezes, mas quando vê que estou com medo sorri e tenta me fazer rir. Seu nome é al-Farid, mas todo mundo o chama O Confiável. É muito pobre e viaja de aldeia em aldeia, onde se revezam alimentando-o. Mas ele não deve comer muito. É muito magro. Acho que prefere leite de cabra com um pedaço de pão. Abu diz que ele é um grande contador de histórias.

Um criado entrou com uma bacia e uma grande jarra d'água. Idrisi sorriu e beijou a cabeça do menino.

Khalid saiu graciosamente.

— Eu o vejo depois, Jiddu. Muita carne foi preparada para nossa festa esta noite.

Idrisi lavou as mãos e o rosto e deixou o criado lavar a poeira dos seus pés. O sol havia quase desaparecido e o muezim na mesquita da aldeia convocava os Crentes para a prece do anoitecer. Idrisi cobriu a cabeça e começou a rezar. Em tempos de incerteza, pensou, existe um consolo íntimo derivado da prece. Lembrou que seu pai descrevia como, depois que Palermo foi ocupada pelos francos, muitos que não rezavam regularmente começaram a comparecer às preces da sexta-feira na Grande Mesquita. Por muito tempo, segundo seu pai, as cadências melancólicas do chamado à prece tinham afetado cada Crente na cidade.

O tamanho mesmo da reunião no meio do dia cada sexta-feira permite aos Crentes encontrar força um no outro. Ele sempre entendera isso, mas só recentemente havia experimentado a sensação pessoalmente. De fato, só duas semanas atrás, quando soube do destino que aguardava Felipe.

A refeição do anoitecer, como Khalid avisara, consistia de uma grande variedade de carnes cozidas em honra do visitante. Não fosse a presença de Umar é duvidoso se algum tipo de legumes teria sido preparado. Idrisi provou um bocado de cada uma das carnes grelhadas e cozidas e exclamou em voz alta e com apreciação como estavam saborosas, mas concentrou-se em comer os legumes, crus e cozidos, que haviam sido colocados diante de Umar.

— Uma palavra de conselho para todos vocês — Idrisi dirigiu-se à mesa enquanto esperavam pelos pratos doces.

— Viajei por muitos países quentes e nos meses de verão se come pouca carne. Qualquer médico vai lhes dizer que a carne no verão produz um peso para o coração e reduz o fluxo de sangue para as partes vitais do corpo.

Umar sorriu.

— E já que Ibn Muhammad está dizendo isso, deviam leválo a sério.

Enquanto bandejas de frutas frescas eram servidas houve um grande ruído à distância. Os homens trocaram olhares inquietos enquanto um criado veio sussurrar no ouvido de Abu Khalid. Seu rosto relaxou.

— Acho que o Confiável está tentando atrair nossa atenção. Detonou um pequeno explosivo para mostrar aos seus seguidores como os francos podem ser derrotados. Se Ibn Muhammad não estiver muito cansado, poderíamos caminhar até a cidade e ouvir sua mensagem.

Idrisi levantou-se da mesa.

— Uma pequena caminhada depois da refeição ajuda a digestão. Será tarde demais para Khalid nos acompanhar?

Pai e mãe concordaram que o melhor lugar para Khalid era a cama, uma decisão que ele aceitou com extrema relutância.

A noite estava quente e calma. Enquanto os homens saíam da casa, Idrisi olhou para o céu e se tranqüilizou. À frente deles, os criados levando lampiões de azeite iluminavam o caminho até a cidade. Ao se aproximarem, podiam ouvir os cânticos do Corão, mas o ritmo e estilo eram diferentes de tudo o que ouvira nas mesquitas de Palermo e Siracusa e, também, de qualquer outro lugar. O Confiável lia os versículos em curtos estouros staccato e seus ouvintes reagiam às explosões.

Quando chegaram à praça da aldeia, Idrisi observou a mesquita improvisada com seu minarete solitário. Havia pelo menos duzentos homens presentes e cada um deles tinha o rosto coberto. O Confiável dissera-lhes para serem cautelosos e não confiarem em ninguém nos meses que vinham pela frente. Seus olhos caíram sobre Idrisi quando saltou sobre a pequena plataforma no topo da praça e começou a pregar.

— Olhem em torno de vocês, Crentes, e vejam quem veio se juntar a nós esta noite. Abu Khalid e Umar ibn Ali nós conhecemos e respeitamos. Deram-me esmolas e me proporcionaram abrigo e garantem que vocês todos e suas famílias sejam alimentados quando os tempos estão difíceis. Mas trouxeram um visitante especial. Um grande erudito de Palermo, conselheiro de confiança do sultão Rujari. Muhammad ibn Muhammad alIdrisi. Já ouviram falar nele? Sacudiram a cabeça para expressar sua ignorância.

Idrisi reprimiu uma risada. Sabia a influência que homens como este pregador podiam ter sobre os pobres e entendia por quê. Abu Khalid lhe fizera um relato do homem e de como vivia.

O estilo de vida de al-Farid suscitava admiração. Vivia de esmolas mas nunca aceitava mais do que o necessário para suas necessidades diárias, que eram, no fundo, modestas. Recusava todos os presentes oferecidos pelos ricos proprietários de Catânia, que começavam a se preocupar. Não dormia num único lugar por muito tempo e, quando precisava de uma cama, insistia numa tábua ou num pano colocado sobre o chão. Passava a maior parte do seu tempo com as pessoas mais pobres da aldeia e eram elas que o procuravam e lhe contavam seus problemas. Uns poucos o seguiam de aldeia em aldeia e absorviam sua mensagem tão completamente que ele às vezes mandava um deles a regiões distantes para pregar em seu lugar. Apesar do apoio crescente que recebia, continuava notavelmente distanciado e, ao contrário de pregadores semelhantes do passado, não mostrava sinais de delírio ou alucinações. Submetia seu corpo a privações terríveis, geralmente fazendo jejuns prolongados para testar sua força. Esta autodisciplina rude quase lhe custara a vida. Se um passante não o tivesse forçado a beber água e comer pão ele teria morrido. Umar havia preparado misturas especiais de ervas e uma dieta cuidadosa de amoras silvestres e sopas de legumes para ajudar na sua recuperação.

Depois de cada vitória que seu corpo havia alcançado, ele se levantava, o rosto rígido como uma máscara, e começava a dançar, um estranho ritual que ninguém na região vira antes, enquanto entoava canções que tinha feito em honra de Má. Lendas brotaram a seu respeito e logo era chamado para resolver disputas entre os camponeses nas várias aldeias. Durante dez anos ou mais, sua palavra era aceita como o julgamento final e ele tinha uma quantidade imensa de seguidores em cada aldeia. Notícias de chegada do Confiável se espalhavam pelos campos e naquela noite teria lugar um mehfil com os camponeses para que falassem abertamente sobre suas amarguras.

Contava-se que muitos anos atrás um proprietário de terras estuprara uma camponesa e ela ficara grávida. O marido queria matá-la. O Confiável interviera e salvara sua vida. Organizou então os camponeses para matarem o ofensor, mas de maneira que parecesse um acidente. Os camponeses fizeram uma emboscada contra o proprietário e o jogaram, com o seu cavalo, de uma montanha. E agora ele pregava a rebelião.

— As notícias de al-medina são de que o sultão está doente e morrerá em breve.

Que Alá o mande para o céu porque ele não foi cruel para os Crentes, mas não podemos depender dos francos para continuarmos aqui após a morte de Rujari. Querem nossas terras e as tomarão a não ser que resistamos. Digo isto: depois da morte de Rujari cercaremos Palermo do lado de fora. O efeito será aquele de uma pedra jogada numa colméia. Nosso povo vai se levantar e derrubar os infiéis. Onde estará quando chegarmos, grande mestre Idrisi? Escondido na biblioteca com seus livros?

Abu Khalid ficou zangado, mas Idrisi segurou seu braço e sussurrou:

— Este homem não é nada estúpido. Os insultos não me afetam.

O pregador falou por outras duas horas e os camponeses o ouviram extasiados. Falou do começo de vida do profeta Maomé, contou-lhes histórias de como os exércitos e seguidores do Profeta haviam chegado às praias de três oceanos dentro de cem anos, os fez rir e os fez chorar quando descreveu como fora injustamente detido e sujeito às piores torturas. E então mudava

o tom e explicava como os Crentes ainda eram numericamente superiores ao francos na Siqilliya e como conquistariam uma vitória para a sua fé se pusessem de lado rivalidades mesquinhas e servissem num exército unido.

— Mas existe um problema, meus irmãos. Quem nos liderará na batalha? Que bandeira vocês seguirão?

— Você nos liderará, Confiável. É a sua bandeira que vamos seguir — a multidão respondeu.

Mas ele sacudiu a cabeça vigorosamente e ergueu a mão direita para exigir silêncio.

— Não sou um Amir da terra ou do mar. Só podemos vencer se nossos amires que estão hoje combatendo por Rujari decidirem lutar por si mesmos e pela causa dos Crentes por toda parte. É a eles que devemos convencer e, se conseguirmos, teremos um exército e navios ao mar. Sou um homem simples, mas sei como batalhas são ganhas e perdidas. Vamos fazer com que nossa fé nos dê tamanha força que perderemos o medo da morte. Isso dará a nossos amires um grupo de homens que se rivalizará com os francos e seus barões. Nós os expulsaremos até um mar que eles nunca deveriam ter atravessado. E eu cuspo na memória de Ibn Thumna que convidou os infiéis a atravessarem as águas para ajudá-lo a lutar contra nossos Crentes. Vamos cuspir juntos nele. Alá seja louvado.

A multidão cuspiu no chão em uníssono.

— O homem conhece a nossa história — Idrisi murmurou enquanto caminhavam de volta para casa.

— Acha que existe a menor possibilidade de sucesso?

— Abu Khalid perguntou-lhe.

— Existe uma boa possibilidade se o que al-Farid pediu puder ser conseguido. Ele estabeleceu três condições prévias para o sucesso. A unidade dos Crentes, a disposição de morrer

como parte de um novo exército e o abandono do clã Hauteville por nossos principais nobres e comandantes militares. Se conseguíssemos alcançar todas estas coisas, poderíamos vencer. O pregador é modesto demais. Poderia elevar a sua estatura. Homens como ele podem ser impelidos a fazer História.

— Concordo — disse Umar — mas se formos realistas nada disso irá acontecer. Nossos amires são egoístas demais para sequer pensarem nas necessidades dos outros.

Estão interessados na sua sobrevivência e na de suas famílias e, para manter suas terras, se converterão à fé dos nazarenos. Meu irmão aqui morrerá pela causa, como pode ver, e eu provavelmente morrerei com ele. Em Catânia formaremos um grande exército, mas aqueles fodedoresde-cabras em Qurlun e Lanbadusha jamais deixarão suas terras. Anote minhas palavras, Ibn Muhammad. Eles se converterão.

E um estranho eco reverberou na escuridão.

— Anote minhas palavras, Ibn Muhammad. Eles se converterão. Eles se converterão.

O Confiável os havia seguido e entreouviu a conversação.

— Confiável — Abu Khalid gritou -, junte-se a nós. Saiu da escuridão e caminhou com eles até que chegaram à frente da casa. Declinou o convite de partilhar chá de menta com eles dentro de casa, mas fixou Idrisi com um olhar severo.

— Quero que saiba que, ainda que o resto da ilha se omita, Catânia vai lutar. O Amir de Siracusa me deu sua palavra de que seus homens ficariam conosco. O Amir de Catânia prometeu seu apoio. Levantaremos vinte mil homens armados e eles lutarão até a vitória ou a morte. Acha isso suficiente?

Idrisi foi intensamente afetado pela simplicidade e determinação do pregador. O Confiável, no entanto, ainda tinha de se decidir em relação a Idrisi. Estava inclinado a confiar nele, mas esperava para ouvir sua resposta.

— Confiável, vou ser honesto com o senhor. Não estou seguro de quantos homens armados serão necessários para recuperar esta ilha. Foi tomada de nós por menos de um quarto do número que propõe. Não são os números, mas a força da crença em sua própria causa que determinará o resultado. Mas a questão principal foi a que colocou: será que os Crentes nas cem maiores cidades desta ilha se juntarão a esta rebelião? Se o fizerem, nós venceremos. Os barões tornaram-se preguiçosos e cobiçosos.

Estão desacostumados com a guerra. Podíamos pegá-los de surpresa, mas ainda que tomássemos a ilha teríamos de atravessar as águas e ocupar as fortalezas em Salerno e nos outros locais. Sem elas ficaremos vulneráveis a outra invasão. Quanto a nosso povo em Qurlun e Lanbadusha, talvez o que diz seja correto, mas ser apegado à terra e convertido à fé do conquistador não é nenhuma garantia de que será poupado se houver um terremoto. E são aquelas pessoas piores do que as comunidades em Marsa Ali e Shakka? Vão ser levadas pelo vento. Se a tempestade que o senhor prepara em Catânia for poderosa o suficiente, unirá muitos não-crentes também contra os barões. E, antes que eu esqueça, houve uma pergunta que fez diretamente a mim. Minha resposta é esta: se houver uma rebelião, não vou agir como um indivíduo.

Se precisar de mim estarei na Grande Mesquita com os outros, não me escondendo na biblioteca do palácio. Isso o satisfaz?

O pregador estendeu a mão e tocou na cabeça de Idrisi.

— Estou satisfeito, mas somente Alá o recompensará, Ibn Muhammad.

— Então estou preparado para esperar — replicou Idrisi com um meio-sorriso.

Entraram na casa com o ruído de mulheres chorando e Khalid sentado no saguão, lágrimas escorrendo pelo rosto. Idrisi abraçou o neto e perguntou o que havia acontecido.

— Umi morreu.

Idrisi beijou o menino e o apertou contra si. E foi em seus braços que a criança adormeceu. Uma única lágrima molhou a face de Idrisi. Ficou sentado com um olhar vago até que Tarik apareceu.

— O que foi que aconteceu, Tarik? Ela não parecia doente. Onde está Abu Khalid?

— Umar está em seu quarto. Ela tomou veneno, Ibn Muhammad. Uma grande dose e deve ter sido uma morte dolorosa. Tomou imediatamente depois da refeição. Ainda que estivesse aqui, eu não teria antídoto para este veneno.

— Mas por quê?

— Meu irmão não estava contente com ela e a repreendeu pela traição que ela e Sakina haviam planejado. Não se divorciou nem a ameaçou. Mas tinha dificuldade em falar com ela. Acho que ela achou o silêncio insuportável.

Idrisi começou a chorar.

— Pobre garota. Foi culpa da sua mãe, de sua estupidez e cobiça... Diga ao seu irmão para não se culpar. A mãe de Samar é que devia ter tomado o veneno. Mandaram um mensageiro avisá-la e a Sakina?

Tarik acenou com a cabeça.

— Ele partiu para Noto antes de voltarmos.


8

Irmãs sigilliyanas.
Mayya e Balkis discutem os méritos da vida com e sem homens.
Segredos são revelados.
Combina-se um plano para extrair a semente de Idrisi.

As três mulheres estavam sozinhas. Elinore se ocupava em fazer as malas, com suas roupas e jóias, preparando para a partida bem cedo na manhã seguinte. Embora nunca tivesse se encontrado com Samar, a notícia do suicídio de sua meiairmã a havia perturbado mais do que achava possível. O incidente continuava a reverberar na sua mente e ela mal ouvia sua mãe e sua tia, que estavam num ânimo estranho desde ontem.

— Se minha vida começasse de novo, eu acho que a repetiria. Mayya estava com uma índole filosófica e embora Balkis estivesse acostumada com o hábito de sua irmã de refletir em voz alta, ficou surpresa com a observação.

— Achei que detestava o palácio-prisão. Sua descrição.

— O que eu quis dizer foi que se meu Amir al-kitab, o grande mestre Idrisi, levasse a mesma vida se eu fosse casada com ele quando nunca estava em casa, o palácio-prisão era melhor. Tinha amigos e nunca fiquei solitária. É muito melhor do que ser casada com um marido exigente mas ausente que

insistia em ser o centro da minha vida. É diferente agora que suas viagens terminaram.

— Meu Amir me deixa sozinha. Nunca força sua presença sobre mim.

— Mas quando o faz, é agradável?

— Não, mas não é desagradável. As duas caíram na gargalhada.

— Sei como você anda feliz estes dias, Mayya. E, vendo você assim, me faz ao mesmo tempo feliz e triste.

— Quando você disse que eu pensei ter ouvido nossa mãe. Ficaram ambas em silêncio. Sua mãe morreu quando ambas eram jovens. Balkis só tinha dois anos e mal podia se lembrar dela. Mayya, dez anos mais velha, havia guardado algumas memórias vívidas. Suas tias e sua avó materna as haviam criado, as tias em função do dever e a avó porque as amava quase tanto quanto havia amado a própria filha.

— É verdade o que dizem?

— Quem?

— Eles?

— O que dizem?

— Que nossa mãe não teve uma morte natural. Mayya abraçou a irmã.

— Perguntei à vovó e ela disse que não era verdade.

— Ela diria isso. Se tivesse dito a verdade papai a teria botado fora de casa. Não tinha para onde ir.

— Teria voltado para Shakka onde seus filhos viviam.

— Mayya, sempre sei quando está tentando esconder coisas de mim. O que há de errado com você?

— Acho que estou grávida.

— Alá nos proteja!

— Protegerá. Ele o fez da última vez.

— Tem certeza?

— Acho que sim. O sêmen do erudito é tão fértil como esta ilha.

— Não só desta vez, se a história que você me contou anos atrás era verdadeira.

Mayya deu uma risada suave, silenciosa.

— Não estou segura que ele saiba se realmente aconteceu ou se foi um sonho depois de terem fumado um haxixe muito forte.

Mas como podiam todos os homens terem o mesmo sonho? Curioso que tenha lembrado.

Balkis levantou-se e caminhou para trás da cadeira da irmã. Começou a trançar os cabelos de Mayya.

— Ainda não respondeu minha pergunta sobre nossa mãe. Mayya suspirou.

— Ouvi as mesmas histórias que você e provavelmente da mesma fonte. Como posso saber se são verdade?

— Mas, Mayya — apelou a irmã -, se nossa mãe foi morta pelo marido devia haver uma razão. Nosso pai mal podia dirigir um olhar para mim. Não consigo lembrar de nenhum gesto afetuoso de sua parte.

— Ele queria um filho.

— Por que está escondendo a verdade? Por quê? Nunca vai me contar? Mayya?

Mayya sempre soubera a verdade, mas queria proteger Balkis. Estavam todos mortos agora. Mas algo bloqueava Mayya. Uma intuição, talvez, de que nada de bom sairia desta história. Já havia custado a vida de sua mãe. A visão de Balkis sentada no chão com as mãos apoiando o rosto e esperando ansiosamente decidiu Mayya. Não havia nenhuma razão real para ocultar a verdade dela.

— Nós tivemos pais diferentes.

A expressão no rosto de Balkis não mudou.

— Isto era óbvio até para mim. Quando eu tinha cinco anos, nosso pai mandou raspar minha cabeça porque não podia agüentar a cor dos meus cabelos. Fingiram que eu tivera febre e vovó disse que os cabelos cresceriam ainda mais fortes. Mas eu chorava toda noite e você me consolava até que eu adormecesse. Lembra-se? Quando cresci, percebi que ele odiava a simples visão de mim. Às vezes deixava a sala quando eu entrava. E então percebi por que me odiava, mas não havia ninguém para perguntar e você sempre negava. Quem era meu pai?

— Um mercador grego que comprava azeite de oliva do meu pai. Lembro-me bem dele. Não só era muito mais bonito do que meu pai, mas também mais inteligente.

Nossa mãe deve ter pensado o mesmo. Visitava nossa casa regularmente. Suponho que um dia ele a encontrou sozinha e a suave brisa de atração mútua se transformou numa tempestade. Você foi o resultado. A surpresa foi que levaram dois anos para que nosso pai se desse conta de que esta criatura com cabelos louros e olhos azuis não podia ser sua filha. Puxei a minha mãe. Você era a imagem do seu pai.

— O que aconteceu com ele?

— Quando me tornei uma das concubinas de Rujari mandei chamá-lo. Isto foi há vários anos. Veio ao palácio e conteilhe que nossa mãe tinha sido envenenada. Não tinha a menor idéia de que estava grávida até você nascer e ela mandou-lhe uma mensagem dizendo para nunca mais voltar a Noto. Ele chorou muito. Ficou desesperado para ver você, mas nossa avó ainda estava viva e achei que não seria prudente.

— Você estava errada.

— Você pode estar certa. Ele ainda era jovem e achei que podia vê-la em outra ocasião.

— Ele já morreu?

— Sim.

— Como?

— Uma espécie de infecção. Um dos eunucos do palácio mantinha-se informado sobre ele. Mandamos um médico para tentar curá-lo, mas era tarde demais. A doença havia se espalhado.

— Não tinha família?

— Não. Balkis começou a chorar. Mayya aninhou sua cabeça nos braços e a acariciou gentilmente até que ela se recuperou.

— Mayya. Cheguei a uma decisão. Eu quero um filho.

— Muito bem. O único problema é encontrar um pai.

— Você ocultou meu verdadeiro pai de mim. Jure por tudo que é sagrado que vai me deixar decidir quem vai ser o pai de meu filho.

— Claro que vou. Juro pela cabeça de Elinore que apoiarei sua escolha e farei tudo em meu poder para ajudá-la a caçar a besta e extrair o seu sêmen. Eu juro. Eu juro. Eu juro.

— Lembra quando éramos crianças e bastava eu mencionar que adorava um determinado prato para ele reaparecer no dia seguinte?

— Não, mas e daí?

— Quem decidia?

— Não tenho a menor idéia. Talvez vovó. Sempre se queixava de que não apreciávamos sua comida e quando você dizia que gostava de algo ela fazia aquilo três vezes por semana. Você é uma criatura engraçada, Balkis. Estávamos discutindo o pai do seu filho e vem falar de comida. Tem um homem em vista?

— Acho que devíamos manter a coisa em família.

— A saber?

— Ibn Muhammad alIdrisi.

A idéia a colocou em pânico. Primeiro pensou que Balkis a estava provocando, mas o olhar no rosto da irmã sugeriu que falava sério.

— Não! Não! Por que ele? Existem homens suficientes em Siracusa que adorariam a oportunidade. Ele tem 58 anos, você sabe. Sabia disso? Cinqüenta e oito! Velho demais para você. Seu sêmen não é vigoroso e...

— Mayya, você não deve ser egoísta. Fez um juramento. O tom severo da irmã aumentava seu constrangimento.

— Juramentos podem ser quebrados. Está me atormentando?

É uma punição porque não deixei seu pai ver você?

— Não. Apenas acho que seria uma boa união e não haveria risco. Ele não iria me chantagear, não acha?

— Mas por que ele?

— A razão real?

— Sim!

— Existe algo muito infantil e atraente em sua risada.

— Ora, ele não vai rir quando a enxergar nua. Era um comentário tão ridículo que as duas começaram a rir. Foi uma risada espontânea e contagiante e clareou a atmosfera. A tensão insuportável que tomara conta delas subitamente desapareceu. Assim que Mayya percebeu que sua irmã falava sério ela também começou a pensar seriamente. Balkis observou-a em silêncio por vários minutos e então ergueu uma sobrancelha, só para ter como resposta um gesto de um dedo sobre os lábios. Finalmente, não pôde se conter mais.

— E então? Mayya se sentia com o coração leve de novo. Contanto que organizasse e controlasse toda a história, poderia ser algo muito divertido. Se possível, encontraria um esconderijo de onde poderia observar toda a cena, sem o conhecimento dos dois atores principais. Ainda não achava uma boa idéia, mas se tinha de ser feito, deveria ser feito adequadamente. Deixada para agir sozinha, Balkis poderia arruinar tudo.

Olharia então para Mayya com seu ar inclemente e a culparia do desastre. E por que não deveria Muhammad alIdrisi ajudar Balkis na sua hora de crise?

Ela sabia que as pessoas geralmente preservam uma lembrança de algo, meio imaginado, meio real que lhes aconteceu na juventude. Mais tarde na vida relembram isso como algo excepcional ou mágico, fora da ordem comum das coisas.

— Pensei num plano, mas para que tenha sucesso um número de condições precisam ser preenchidas. Primeiro, ele nunca deve saber que eu sei. Segundo, não deve acreditar que a mulher entrando no seu quarto seja você...

— Mas — interrompeu Balkis.

— Por favor, deixe-me acabar. E, por fim, quando você o encontrar na manhã seguinte, deve fingir que nada aconteceu.

— E se nada acontecer? Quero dizer, se não tivermos sucesso da primeira vez?

— Podem tentar de novo, mas exatamente da mesma maneira.

— Aceito as condições. Agora revele cada detalhe do seu plano.

Ela o fez mas, antes que as arestas pudessem ser aparadas, Elinore entrou no quarto.

— Estamos realmente partindo para Palermo amanhã? Sua mãe assentiu com a cabeça.

— Por que quer voltar tão cedo, Elinore? Por que não esperar por seu pai? Vai voltar em poucos dias e então nós duas poderemos regressar no seu navio. Muito melhor do que viajar de carroça.

— Acho Siracusa tão tediosa, minha tia. Todos os meus amigos estão em Palermo. Tudo acontece lá. Soube de coisas interessantes que estão acontecendo em Noto. Dizem que existe um pregador de cabelos compridos com a alma exaltada que está espalhando a rebeldia através de Catânia. É verdade? Ouviram falar dele?

Balkis acenou com a mão num gesto depreciativo.

— Meu marido o conhece e diz que o homem é meio louco. Elinore não aceitou.

— Isto significa que ele é meio lúcido.

Sua mãe a fuzilou com o olhar.

— Bem — respondeu a tia -, se está interessada no Confiável — é assim que o chamam — é melhor esperar por seu pai. Deve tê-lo conhecido na propriedade do seu genro.

Elinore estava dividida. Estava desesperada para voltar à casa para ver se algum dos eunucos tinha conseguido encontrar o flautista que a deixara em transe com a sua música. Mas o pensamento de esperar por seu pai também era atraente. Debateu os méritos de cada caso na sua cabeça e decidiu em favor do rapaz que tocava flauta. Regressariam cedo na manhã seguinte.

Sua mãe aceitou a decisão por suas próprias razões. Não queria realmente estar em Siracusa quando Idrisi voltasse. Balkis jogando olhares para ele seria intolerável.

Apesar da sua mostra de apoio à irmã, Mayya estava nervosa em relação ao pacto cruel e monstruoso que haviam selado. Seu cérebro estava em torvelinho. Seria melhor que não estivesse presente quando Idrisi voltasse ao palácio. Se ele sequer suspeitasse do seu envolvimento ela seria coberta de desgraça. A maneira relaxada de Elinore parecera ter convencido sua tia de que tinham de partir e involuntariamente proporcionara uma solução simples para o dilema de sua mãe.

— Balkis, não quero que acorde cedo por nossa causa. Partiremos antes do sol nascer, enquanto os Crentes são acordados para as preces matutinas. Não a perturbaremos.

Vamos nos despedir agora.

Elinore beijou a tia calorosamente e saiu da sala. Balkis segurou as mãos da irmã e as apertou com força.

— Tem medo da minha impetuosidade. Começa a se arrepender do nosso acordo. Eu amo você, Mayya. É uma mãe e um pai para mim. Se a magoei estou preparada para retirar minha sugestão e declarar nosso acordo acabado. Não quero que nada fique entre nós. Nada.

Mayya, tocada pela oferta, não falou imediatamente, mas abraçou Balkis e a beijou.

— Fizemos um acordo. Vamos ficar fiéis a ele. Não afetará nada entre nós. Isso eu posso prometer-lhe. Só espero que dê certo da primeira vez. Não quero que faça disso um hábito.

E com essa nota de advertência as irmãs se despediram.


9

Idrisi reflete sobre a rebelião e é surpreendido no seu sono.
Sua semente é extraída mais de uma vez.

A manhã resplandecente alegrou Idrisi. Tomou café-da-manhã cedo e partiu para Siracusa acompanhado apenas de criados armados. Não permitiu que Abu Khalid nem seu irmão

Umar o acompanhassem. Tinham tarefas mais importantes em casa.

A morte de sua filha levara a muita reflexão interior da sua parte e Idrisi se perguntou se as coisas teriam sido diferentes se tivesse passado mais tempo com as filhas e as educado. Mas acabava voltando, uma vez mais, à raiz do problema: o seu casamento. Embora só tivesse 18 anos na época, deveria ter resistido ao seu pai. Na noite passada havia escrito uma carta breve para Walid.

"Meu Caríssimo Filho:

Escrevo para trazer tristes notícias. Sua irmã, Samar, morreu há dez dias. Eu estava presente na casa no dia em que ela decidiu atentar contra a própria vida.

Pegou-nos todos de surpresa porque não havia indicação de que estivesse à beira do desespero. O jovem Khalid vagueia aturdido e é difícil consolá-lo. Seu pai o culpa, mas injustamente. É um homem generoso e ponderado e não deve ser culpado pelo que aconteceu. Se há algum culpado, sou eu. Deveria ter sido menos duro com ela depois de descobrir e expor um plano tolo e traiçoeiro para prestar falso testemunho contra o marido. Foi idéia da sua mãe. Ela e Sakina se tornaram instrumentos voluntários por causa de estupidez mais do que de maldade. Seria ocioso oferecer mais detalhes numa carta que pode nem mesmo chegar até você.

Sua mãe e Sakina vieram para o enterro, mas só ficaram poucos dias. Falei com elas brevemente, passando mais tempo com meus netos, cuja inteligência você apreciaria mais do que a maioria.

Tenho pensado muito no passado e irei a Veneza sem muita demora para que possamos nos encontrar e conversar. Não pode imaginar como sinto falta da sua presença.

As ondas de risadas e o ruído das vozes quando seus amigos vinham vê-lo na nossa casa permanecem uma lembrança muito cara.

Eu o abraço,

Abu."

Cavalgou num ritmo furioso, ansioso para alcançar Siracusa antes do crepúsculo e içar velas para Palermo na manhã seguinte. Tinha deixado a cidade em desespero, buscando possíveis rotas de escape para o desastre que vinha à frente. Rujari não havia respondido à sua carta pedindo misericórdia. Talvez devesse ter ficado e implorado ao sultão todo dia. Agora queria fazer um último esforço para persuadir o sultão a poupar a vida de Felipe. Rujari havia tratado Felipe como seu próprio filho. Sabia que o sacrifício humano exigido pela Igreja e pelos barões — um sacrifício com o qual Rujari havia concordado — devia estar, mesmo assim, atormentando o sultão.

Quando Idrisi discutira a prisão de Felipe com o Confiável, o pregador fizera troça da comunidade de Crentes de Palermo. Se deixassem Felipe morrer sem resistência, eles próprios também pereceriam. A contragosto, Idrisi começara a cair sob o fascínio do pregador. Às vezes suas crenças supersticiosas o irritavam, mas a ferocidade e o fervor com que falava contra a Igreja faminta de terras e os mercenários que ela empregava como carrascos eram admiráveis. E as multidões que ele empolgava estavam longe de ser crédulas. Sabiam que ele falava a verdade e o comparavam a seus amires e proprietários de terras que competiam entre si para apaziguar e agradar a seus inimigos, especialmente os monges, que constantemente faziam sermões advogando o terror e a violência para livrar a ilha de Crentes e judeus.

De onde vinha esta paixão religiosa? Era uma resposta às fogueiras que haviam sido acesas para destruir o que ele por muito tempo considerara indestrutível. As primeiras vitórias do Profeta e os triunfos resultantes haviam criado uma civilização tão orgulhosa e consciente de sua superioridade que, como os antigos da Grécia e de Roma, infectou-se com a idéia de que sua superioridade a tornava invulnerável. Um erro fatal.

Mas o Confiável estava certo ao chamar a atenção sobre a traição que levara ao convite despachado por Ibn Thumna, o Amir de Siracusa, aos francos. Acontecimentos que tinham ocorrido há cem anos ainda estavam frescos na imaginação da maioria dos Crentes. Quantas vezes Idrisi ouvira a história do Amir maligno e promíscuo, Ibn Thumna, que havia assassinado o piedoso e nobre Ibn Maklati, o Amir de Catânia, por motivos de mera cobiça. Queria mais terra. O assassinato foi vingado por Ibn al-Hawwas, que infligiu uma tremenda derrota sobre o Amir de Siracusa. Foi então, e simplesmente para salvar sua própria pele, que Ibn Thumna convidou os infiéis a atravessarem as águas. Foi morto na batalha com eles, por isso não ganhou nada, afinal. Estava provavelmente assando nas fogueiras do inferno a esta altura. Era bom para Idrisi pensar em algum lugar mais quente do que Siquilliya.

Olhou para o céu. Nem uma só nuvem à vista, embora os pastores tivessem previsto chuva na noite passada. Suor escorria por seu rosto e pescoço e ansiava por uma brisa marinha úmida enquanto galopavam em frente. Não descansaria até que os homens implorassem pelos cavalos. Chegando a um arvoredo, os troncos e galhos retorcidos pelo vento e feridos pelo raio e as folhas secas e murchas, ele afrouxou o passo. Ao caminhar por entre as árvores podia ouvir os homens falando do Confiável.

Quando se juntou a eles, calaram-se, mas perguntou se tinham comparecido ao mehfil na aldeia. Acenaram com a cabeça sem darem nenhuma informação.

— Todos vocês entrariam para o exército de que falou o Confiável?

Novamente concordaram com a cabeça.

— Estão preparados para morrer, mas em nome do quê?

— Para que as preces possam ser ditas de novo no nome do Califa.

— É tudo? Outra voz replicou.

— Muitos dos nossos homens trabalham como escravos para a Igreja. Quando derrotarmos os infiéis poderemos libertar todo o nosso povo.

Então o mais jovem deles, que não havia falado, disse:

— Somos pessoas pobres e o senhor é um grande erudito. Como poderemos lhe dizer algo que já não saiba? Mas pode nos ensinar muito. Acha que podemos vencer?

Idrisi pensou antes de responder. — Não sei. Existe uma tendência entre nosso povo para se gabar de nossa capacidade. Nos tornamos muito egoístas e vaidosos. Se linguagem extravagante pudesse derrotar o inimigo, jamais teríamos perdido uma única batalha. E depois tem esta ilha, que exerce um efeito mágico sobre todos que vêm para cá, independentemente da sua fé. A geografia e as condições locais nos isolam de outras terras e, sejamos nazarenos ou crentes, começamos a nos ajustar às condições aqui. A geografia desta ilha modela nosso caráter e dentro de cinqüenta anos ou mais — crente, judeu ou nazareno — não se poderá mais dizer a diferença entre nós. Nos tornamos siqilliyanos enfrentando os mesmos problemas.

Os homens não sabiam como entender isto e sorriram mas ficaram em silêncio. Prontos para seguir viagem de novo, cobriram as cabeças e montaram nos seus cavalos.

Um vento suave soprava e as nuvens já haviam escurecido o céu ao chegarem a Siracusa.

Idrisi foi saudado pelo camareiro do palácio, que lhe informou que o Amir era esperado mais tarde naquela noite. Um banho fora preparado para ele e a senhora Balkis se juntaria a ele para a refeição da noite.

— Estão a senhora Mayya e Elinore aqui?

— Voltaram para Palermo poucos dias atrás. Esperava encontrar a filha sozinha e levá-la de volta consigo. Por que Mayya voltara tão cedo? Balkis teria as respostas.

Seguiu até o hammam onde um banho quente aromático fora preparado para ele. Camomila, tomilho silvestre, manjerona e, sim, menta-de-montanha. Seria aquilo um feixe de erva-moura que via boiando na água? Era. Tirou-a do banho e entregou-a ao atendente.

— Quem escolheu as ervas?

— A Senhora Baikis. Lembrou-se de dizer a sua cunhada que a erva-moura só deveria ser usada para curar a insônia. Ao entrar no banho sentiu os poderes calmantes que as ervas extraíam do seu cansaço. Recostou-se e desfrutou de uma infusão que foi derramada sobre sua cabeça, depois do que o atendente o massageou pelo que pareceu um tempo muito longo. Insistiu num banho frio para se livrar da leve sonolência e logo emergiu completamente refrescado.

Um quarto diferente fora preparado para ele mas, como a vista do mar era ainda melhor, não se queixou. Chovia e o mar estava agitado. Podia ver os barcos ao longo do cais balançando para cima e para baixo como uma fileira de cavalos antes de uma corrida. Uma atendente bateu na porta para avisá-lo de que a refeição ia ser servida. Seguiu-a até uma série de aposentos onde encontrou Baikis à sua espera, vestida numa túnica vermelha viva, seus cachos dourados amarrados num nó. A cor não combinava com ela.

— Bem-vindo de volta, Muhammad ibn Muhammad. Só lamento que meu marido não esteja aqui para cumprimentá-lo. Como pode ver, o tempo está realmente mau e acho que ele não chegará até amanhã. O mensageiro que trouxe a notícia disse que o Amir insistia em que não partisse para Palermo sem antes encontrar-se com ele.

Idrisi curvou-se polidamente.

— Fico tocado com a sua hospitalidade. Se a tempestade prosseguir, duvido que eu possa partir pela manhã. Vou esperar pela volta do Amir. Eu, também, tenho coisas que gostaria de discutir com ele.

— Lamento saber da morte de sua filha. Era chegado a ela?

— Não, e isso me faz sentir culpado. Mas não vamos falar de coisas tristes esta noite. Eu esperava encontrar Mayya e Elinore. Por que as deixou partir?

— Foi Elinore quem insistiu. Por um tempo comeram em silêncio.

— Balkis, eu venho pensando nisso. Você e Mayya não parecem irmãs. Tiveram diferentes mães?

Balkis sorriu e disse como se fosse a coisa mais normal no mundo:

— Não. Pais diferentes.

— Desculpe. Não queria bisbilhotar.

— Deveria contar-lhe a história toda?

— Por favor.

Enquanto ele ouvia, uma servente limpou a mesa e outra colocou pequenas tigelas de infusões herbais diante deles. Tão fascinado por Balkis estava Idrisi que bebericou sem notar o shahdanaj al-barr (cânhamo selvagem) com mel. Seus efeitos não foram imediatos mas, mesmo enquanto a ouvia, sentiu uma tontura que o deixou ousado na maneira de encará-la.

Abruptamente perguntou:

— Por que decidiu usar este vestido vermelho insuportável? A cor não combina com a sua pele. Foi deliberado?

— O que gostaria que eu fizesse?

— Que o tirasse e...

A risada dela o interrompeu. Sentiu-se aliviado de que não era uma risada estúpida ou maliciosa, mas delicada e cuidadosa, sem ser preciosa. Não houve nenhum movimento da mão para esconder seus lábios, um gesto que ele não gostava nas mulheres.

Voltou à história dela.

— E Mayya sabia?

— Sabia há muito tempo, mas só me contou a verdade toda há poucas semanas. Ibn Muhammad, seria capaz de matar uma mulher que o traísse?

A resposta foi instantânea.

— Não.

— E agora é sua vez de contar uma história. Mayya contoume sobre a estranha ilha de Juliano, mas não tinha certeza se fora real ou imaginária.

Outra tigela da mistura potente foi colocada à sua frente. Aceitou-a avidamente. Depois fechou os olhos em apreciação silenciosa. Contou-lhe a história da ilha de Juliano, não poupando um único detalhe. Relatou de novo a noite de paixão e as diferentes artimanhas que a suma sacerdotisa usara para excitá-lo e reavivá-lo depois que tinham feito amor pela primeira vez. Idrisi ficou tão animado na sua história que não notou os rubores dela. Conseguira excitá-la fisicamente sem um único toque. Ela levantou-se da mesa e sugeriu que se recolhessem para a noite.

Quando voltou ao seu quarto, Idrisi abriu as venezianas para observar a tempestade. Não havia estrelas visíveis no céu escuro como breu, só o brilho dos relâmpagos e a chuva forte. Despiu-se e caiu na cama. Pouco depois uma aparição — ou pelo menos ele assim achou — pairou no quarto, vestida de branco. Não era... não poderia ser... sim, era... ele tinha certeza... devia ser a suma sacerdotisa da ilha de Juliano.

— É você? — ele sussurrou em grego.

— Sim.

Idrisi caiu de joelhos diante da guardadora da chama de Afrodite e lentamente se aproximou até que ela, como ele, estava nua.

— A tempestade lá fora me assusta. Ela foi até a janela e fechou as venezianas. Pegou-a pela mão e conduziu-a à sua cama.

— É a tempestade aqui dentro que me assusta. O que se seguiu foi uma noite de pura paixão. Balkis ouvira bem a história e imitou cada incidente que ele descrevera. Idrisi mal abriu os olhos. Sentiu-se lavado por ondas de felicidade enquanto explorava os montículos e frestas do corpo dela.

Ela queria sussurrar no seu ouvido:

— Sou Balkis, não sou a sua estúpida suma sacerdotisa. É o meu corpo que você está desfrutando. Meu. E eu quero o seu filho.

Mas a parte dela no acordo não podia ser rompida. Prometera à irmã que não revelaria sua identidade. Se Idrisi a reconhecesse, tinha outra história cuidadosamente preparada. Depois de fazerem amor pela terceira vez seu amante exausto caiu num sono profundo. Ao se virar para ficar mais confortável, roncou ruidosamente, como uma trovoada. Foi a única vez naquela noite que ela se lembrou do marido.

Deixou o quarto. Segura nos seus aposentos, Balkis podia sentir o cheiro dele no seu corpo e isso a fazia arder de prazer. Espero que não tenha funcionado esta noite, pensou. Enfim, quem poderia saber? Precisaremos fazer de novo para ter certeza. Graças a Alá que ela não se recusara a aprender grego quando criança. E se ele decidir partir antes do cair da noite? Vou impedi-lo. Vou mandar uma mensagem secreta da sacerdotisa. Farei qualquer coisa a fim de mantê-lo aqui por mais uma noite. Só mais uma noite. E se necessário o acompanharei a Palermo para ver Mayya. Ela vai me matar, eu sei, mas me recuso a deixálo partir. Ela compartilhou Rujari com sabe Alá quantas mulheres. Por que não compartilharia Muhammad apenas comigo, uma irmã que a ama? E se Mayya e eu estivermos ambas grávidas? Pensando nisso finalmente adormeceu.

E Idrisi? Talvez fossem as ervas. Talvez a paixão. Talvez ambas. Não dormia confortavelmente assim há muito tempo. Só acordou quando ouviu o muezim bem cedo na manhã seguinte.

Tremeu ligeiramente ao lembrar o sonho erótico da noite passada. Ishq khumari. Amor de Baco. Então sentiu o perfume dela e o seu corpo sobre o seu. Fora real, afinal? Farejou os braços como um cão. Então ficou de quatro e farejou os lençóis. Odores deliciosos invadiram suas narinas. Ficou deitado perplexo, mas feliz.

Não havia erro. Uma mulher estivera aqui na noite passada. Tinham feito amor. Não era nenhum sonho, mas como podia ser a suma sacerdotisa exatamente como fora estes anos todos? Seria isso possível? E então se lembrou da infusão herbal que bebera. Não era diferente daquela que ele e seus homens haviam bebido na ilha de Juliano aqueles anos todos atrás.

Quanto mais pensava, mais agitado ficava. Só uma pessoa poderia ter querido testá-lo. Mayya. Mas quem desempenhou o papel da suma sacerdotisa? No momento em que fez a pergunta soube a resposta. Balkis. O vestido vermelho vulgar fora destinado a distraí-lo do que ela usaria mais tarde naquela noite. Ibn Hazm afirmara que era permitido olhar uma vez para uma mulher, mas não a segunda vez. Ele tinha olhado para Balkis a noite inteira e ela o havia drogado também. E a razão agora se tornava óbvia. Fora ele que sugerira a Mayya que numa tempestade muitas sementes começavam a voar.

Três cursos de ação estavam abertos para ele. A tempestade havia passado e o mar parecia calmo de novo: podia partir para Palermo sem dizer uma palavra. Podia confrontá-la, exigir uma explicação, e depois partir. Ou podia passar outra noite aqui. O pensamento de vê-la de novo — mas desta vez como a si mesma — começou a excitá-lo. Seu café-da-manhã fora servido no terraço e ao sentar-se ele a viu na varanda ao lado, olhando na direção do mar.

— Alá seja louvado, o mar está calmo esta manhã, irmã Balkis. Ela ficou aturdida, mas só por um momento. Esperava há mais de uma hora que ele saísse.

— Dormiu bem, Ibn Muhammad?

— Melhor do que em muitos anos, não posso imaginar por quê.

Com a tranqüilidade abalada, afastou-se dele. Ele atravessou a mureta que os separava.

— Este é o terraço do Amir — disse, nervosa.

— Atrasou-se em Palermo e lhe pede que vá ao seu encontro o mais rápido possível.

— Neste caso eu deveria partir imediatamente.

— Não — ela respondeu, sua voz sufocada de paixão. Ele a pegou pelo braço e gentilmente a conduziu até o quarto.

Estendeu os braços e apalpou ambos os seios. Ela tremeu.

— Estranho, estes amigos parecem familiares.

— Você sabia?

— Não à noite passada, mas esta manhã, quando minha cabeça clareou.

Ela caiu nos seus braços enquanto uma paixão devoradora tomava conta dos dois. Cegos a tudo mais, fizeram amor na grande cama do Amir debaixo de um dossel bordado com fios de ouro. Depois que a tempestade passou, ele olhou atentamente para ela.

— Baileis, minha querida. Acho que as sementes florescerão agora. E por este motivo foi apropriado que tenha escolhido a cama do seu marido. Tenho sua permissão para voltar a Palermo?

— Não! — ela gritou e estapeou o seu rosto.

— Não! Não! Não! Não!

— Mas eu preciso ir. Seu marido e minha mulher me aguardam.

— Não é só o seu sêmen, é você que eu quero.

— Mas mal me conhece.

— Conheço agora.

— Primeiro, deve responder-me com sinceridade e evitar outras trapaças. E olhe firme nos meus olhos. Se o seu olhar vacilar, saberei que está tentando evitar a verdade.

— Não vou enganá-lo. Faça a sua pergunta.

— Pensei ter detectado a mão de Mayya por trás deste delicioso enredo, especialmente a cena de abertura na noite passada.

Ela sabe de tudo?

— Foi idéia minha extrair o seu sêmen. Ela não gostou, mas depois, quando insisti que era isso o que eu queria, estabeleceu uma condição. Se tinha de acontecer, ela prepararia tudo. Ela o fez, Muhammad.

— Incluindo o shahdanaj al-barr?

— Especialmente isso... o resto eu soube por você mesmo quando descreveu com detalhes tão maravilhosos os ritos da suma sacerdotisa de Afrodite. Foi como se descrevesse uma paisagem, ou as flores, ervas e árvores que crescem aqui. Agora entendo por que dizem que é um erudito de muitas facetas e se me permitir eu gostaria...

Idrisi a interrompeu:

— Não vou negar que meus olhos se encontraram observando-a mais do que é permitido. E confesso que imagens suas penetraram na minha cabeça durante a longa cavalgada até a aldeia de Abu Khalid. E, se não fosse casada com uma alma tão honrada e decente, não teria importância, mas você é e, só por esse motivo, não devemos repetir o que fizemos. Nunca mais.

— É uma alma tão decente e honrada que você me arrastou para a sua cama e me manteve ali até que a sua paixão se esgotou. Agora fala como se nada tivesse acontecido.

Se quer realmente que isso não se repita mais entre nós dois, então não se repetirá, mas não acredito em você. Já o tive em meus braços e sei que sentiu exatamente o mesmo que eu. A situação é difícil, mas soluções sempre podem ser encontradas.

— E quanto à sua irmã?

— Concordaremos em compartilhar você. Ela pode tê-lo nos dois primeiros dias e eu nos três seguintes.

— Pensei que houvesse sete dias na semana.

— Depois que eu tiver me saciado, você terá merecido dois dias de descanso.

Ele começou a rir.

— Você é impossível. Os olhos dela se encheram de desejo.

— Ora, é bastante normal, exceto que Mayya e eu somos meias-irmãs.

— Balkis, você é casada com outro homem.

— Ele se divorciará de mim se eu pedir. Podemos discutir isso na viagem para Palermo.

— Está vindo comigo? Isso é tolo.

— Por quê? Minha irmã e seu marido já estão lá. Ficarei no palácio, não com você. Não existem filhos para me prender aqui.

— Balkis, ouça cuidadosamente. Pode viajar comigo, se insiste, mas o navio é um lugar público e o decoro deve ser preservado. Se nossa fraqueza triunfar, toda Palermo saberá que o Amir é um marido traído antes que você chegue ao palácio.

— Muhammad ibn Muhammad alIdrisi, meu sultão do amor, farei o que manda. Balkis será a passageira mais modesta e recatada que sua embarcação já transportou.

— Tive um pressentimento de que terminaria assim.

— Certamente quer dizer começaria assim. Poucas horas depois estavam no mar a caminho de Palermo. A dama de véu estava sentada numa cabina tomando chá enquanto o erudito fingia fazer anotações.

— Sei que podem nos ver, mas certamente podemos conversar.

— Claro que podemos conversar.

— Então me conte sobre Abu Nuwas.

— Balkis!

— O quê? Simplesmente conte sobre ele. Se não o fizer caminharei sobre você à vista de todos os homens e beijarei seus lábios.

— Você prometeu...

— Sim, mas só se você se comportar normalmente também, concordar em falar comigo e responder a minhas perguntas. Seguramente não vamos fazer esta jornada em total silêncio. Não é freqüentemente que uma mulher humilde como eu tem a oportunidade de viajar com um grande erudito. Então talvez pudéssemos começar com a poesia de Abu Nuwas.

Involuntariamente, Idrisi sentia-se divertido e impressionado com ela.

— Abu Nuwas nasceu em Basra, uns cem anos depois da morte do nosso Profeta. Mudou-se para Kufa a fim de estudar, Basra e Kufa sendo as cidades onde os eruditos de sólida educação enriquecem o seu conhecimento. Kufa era famosa na época por seus gramáticos e Abu Nuwas chegou para aperfeiçoar o seu conhecimento da nossa língua. Depois ele se mudou para Bagdá, mas isto principalmente atrás de emprego e prazer.

— Era um poeta muito favorecido pelo Califa e tornou-se assunto dos contadores de histórias no bazar. Segundo uma história, Shahrazad se atrasa uma noite e entra no quarto de dormir do Califa e o encontra de quatro com Abud Nuwas cavalgando-o como se fosse um cavalo. Shahrazad finge horror. Abu Nuwas levanta-se e fica de pé, nu. Ela dá-lhe um tapa no rosto. Ele replica: "Somos apenas homens orgulhosos e penetrantes, princesa." Ela ameaça informar o qadi a não ser que o Califa a libere do acordo que selaram. Ele concorda, mas implora que ela não pare de contar suas histórias. A partir daquele dia ele lhe paga dez dirhams de ouro por história e as histórias ficam ainda melhores.

Um risinho abafado interrompeu o seu discurso.

— Muhammad, isso é verdade?

— É uma história que contam no bazar de Bagdá. Preenche duas funções. Informa-nos que Abu Nuwas e o Califa gostavam de homens, embora o Corão proíba tais atos sob pena de morte. Segundo, a história se destina a atrair uma parcela importante da audiência, os mercadores de rua. O fato de Shahrazad ser paga por seu trabalho diário lhes parecia natural. E o fato de que as histórias melhoram é uma sugestão de que o trabalho voluntário é melhor do que a escravidão. O Zanj teria gostado disso.

— Estou mais interessada na sua poesia.

— Eu a li, naturalmente, mas não consigo lembrar. Sou mais familiarizado com a obra de Ibn Quzman, meu amigo em alAndalus.

É um discípulo de Abu Nuwas e seus versos são cantados em muitas cidades, especialmente depois de alguns frascos de vinho.

— É verdade que Abu Nuwas escreveu sobre uma religião perfeita em que é obrigatório fazer amor cinco vezes por dia em vez de rezar?

— É verdade, mas não é prático.

— Não para você.

— Balkis!

— Desculpe.

— O que eu quis dizer foi que se torna difícil à medida que os homens ficam mais velhos.

Abu Nuwas não tinha noção deste problema, mas os idosos teriam de ser perdoados por sua incapacidade de fazer amor cinco vezes ao dia. O que eles fariam em vez disso?

— Dissimular, como muitos fazem hoje quando rezam.

— Deixe-me terminar a história de Abu Nuwas. O verdadeiro tema da sua poesia eram as alegrias do vinho. Ele era o elo entre o mundo que existia antes que nosso Profeta recebesse a mensagem e o que foi criado depois. O vinho era a substância que ligava todos os mundos. Era intemporal e universal. E muitas vezes Abu Nuwas perguntou polidamente por que, se o vinho e os garotos eram permitidos num paraíso conforme estava escrito no al-Quran, por que estes prazeres seriam proibidos na terra. Então ele divertia os outros e se divertia.

— Em outra ocasião desenvolveu uma interpretação incomum da jihad. Escreveu que a principal obrigação da jihad deveria ser permitir a ingestão de um vinho cor de âmbar que faz jorrar fogo quando incendiado e, mais importante, fazer sexo com rapazes ainda imberbes, bem como com velhos. Só havia uma recompensa para a vitória nesta jihad. O paraíso.

Balkis bateu palmas deliciada.

— Isso também explica por que as cinco fornicações obrigatórias poderiam funcionar com os velhos. Assim que os jovens forem hilal, os velhos teriam poucos problemas em cumprir suas obrigações. Podiam fazê-lo de uma maneira passiva. Eu o estou perturbando?

Antes que ele pudesse responder, o agitado comandante do barco entrou na cabina e curvou-se.

— Perdoe a intrusão, Amir al-kitab, mas uma embarcação armada nos fez sinal para parar. Seu comandante deseja falar com o senhor.

— Quem são eles?

— É um dos navios do sultão. Costumava ser o barco favorito do Amir Felipe.

Idrisi olhou para Balkis, que não conseguiu esconder sua preocupação.

— Não há necessidade de se preocupar, senhora Balkis. Conheço bem os homens naquele navio. São completamente dignos de confiança. Enquanto eu estiver afastado, pense cuidadosamente nas suas cinco obrigações e em como as preencherá em Palermo.

Idrisi seguiu o comandante até o convés. No momento em que os homens do navio armado o viram, detonaram um tiro de canhão em sua honra. Muitos anos atrás ele tinha viajado com eles até Ifriqiya. Agora esperava enquanto se realizava o elaborado ritual de transferir um personagem de distinção de um navio para outro. Um bote foi abaixado com Idrisi e dois marujos armados, que o remaram até a embarcação próxima. Uma catapulta gigante foi então abaixada com um homem casualmente agarrado a ela. Ele apanhou o erudito e então ambos foram rapidamente içados até o convés em grande velocidade.

Ahmad Ibn Rumi, o Amir al-bahr, havia substituído Felipe como comandante da frota. Era um homem altivo com um ar independente. Geralmente transmitia a impressão de ser impenetrável, de afastar bajuladores e oportunistas, mas Idrisi, que o conhecia razoavelmente bem, sabia que era uma máscara geralmente usada por amires dotados de real poder. Felipe havia sido igual. Os dois homens se abraçaram e Ahmad conduziu seu hóspede à sua cabina. A primeira coisa que Idrisi notou sobre a mesa foi um dos seus mapas. Depois de admirar o seu trabalho, virou-se para encarar Ahmad. O homem estava sentado chorando em silêncio. Num mundo onde muitos teriam visto a remoção de um Amir com olhos ávidos e cobiçosos, Ahmad Ibn Rumi estava profundamente magoado com a desgraça de Felipe. Idrisi falou suavemente:

— Ahmad, caro amigo, estou muito perturbado, mas não há nada que possamos fazer. Felipe insiste em que o deixemos morrer. Diz que não estamos prontos ainda para vencer e que deveríamos esperar pela morte do sultão Rujari.

— Que Alá queime aquela serpente Rujari no inferno por este crime.

— Os monges rezam para que Deus o eleve aos céus por defender sua fé.

— Não tem nada a ver com a fé. É um sacrifício de sangue para salvar o trono para a sua família. Toda a Siqilliya tem noção deste fato. Ibn Muhammad, eu o convidei aqui para discutir um plano.

Idrisi sabia o que esperar.

— Com quatro grandes navios já no porto de Palermo temos a capacidade de pegá-los de surpresa e resgatar o Amir Felipe.

— Discutimos todas estas possibilidades com ele na Grande Mesquita. Você o conhece melhor do que eu. Não mudará de idéia.

— Ele está errado.

— Concordo.

— É o único líder que temos capaz de unir os Crentes depois da morte de Rujari e nos levar à vitória. Concorda?

Idrisi ficou em silêncio. Sabia onde terminaria esse tipo de argumento. Também sabia que Ahmad falava a verdade. Sem Felipe, a comunidade de Crentes ficaria órfã.

Foram as habilidades militares e políticas de Felipe que haviam impedido um banho de sangue na ilha. Ele achava que, sacrificando-se, proporcionaria tempo e espaço para que o seu povo se organizasse, mas não perguntava quem os lideraria. Rebeliões sem um plano eram comuns na ilha. Todas sem exceção tinham sido derrotadas.

— Por que não responde?

— Porque, gentil amigo Ibn Rumi, responder na afirmativa seria encorajar a aventura e responder na negativa seria uma inverdade. É melhor ficar em silêncio.

— Ibn Muhammad, estive em Catânia, também. Eu também conheci o Confiável.

O coração de Idrisi afundou. O pregador teria incitado a rebelião.

— Prometeu-nos que um exército de dez mil homens armados poderia chegar a Palermo mais rapidamente se eu os transportasse em meus navios.

— Espero que não tenha concordado.

— Não. Eu disse que pensaria antes de tomar quaisquer medidas.

— Alá seja louvado, Ahmad. Alá seja louvado. Se tivesse concordado e o decepcionasse, a notícia teria se espalhado longa e amplamente. Os barões e monges teriam exigido que você fosse queimado com Felipe.

— Só pedi seu conselho. Vou decidir sozinho.

— Claro. Mas quando tomar a decisão pergunte a si mesmo sobre a decisão de resgatar Felipe e escondê-lo em Ifriqiya.

Este é o seu plano, não é? Foi o que pensei. Mas enquanto seu navio viaja para longe, quem defenderá os Crentes em Palermo?

Será difícil segurar os barões. Vão querer sangue nos rios de cada lado do qsar. Nosso sangue.

— A alternativa é deixar Felipe ser queimado? Muita da sua gente não nos amaldiçoará por não termos feito sequer uma tentativa?

— Mas se você fizer uma tentativa que fracasse morrerá também. A quem ajudará isso? Se tiver sucesso, todos nós em Palermo, incluindo sua mulher e seus filhos, podíamos ser mortos. Rujari não tem mais força para impedir um massacre. Tenho um plano melhor.

— Fale.

— No dia seguinte à queima de Felipe, o Confiável organizaria ataques contra Catânia e Noto para punir os bispos e os monges e os lombardos que os contrataram para protegê-los. Roubaram nossas terras e tratam os camponeses que antigamente trabalhavam nestas terras como escravos. Os bispos são odiados e por boa razão.

Exigem o direito de deflorar nossas mulheres em sua noite de casamento. Os lombardos açoitam os homens ao menor pretexto. Uma rebelião cuidadosamente planejada nesta região onde ainda somos fortes teria um impacto em cada canto da ilha. O Confiável poderia deixar claro que esta é a nossa resposta ao crime cometido contra Felipe al-Mahdia. O que acha?

Ibn Rumi refletiu antes de falar de novo.

— Está decidido a sacrificar a vida do único homem capaz de nos liderar até a vitória.

— É ele quem está decidido, não eu.

— O caminho que recomenda não deixa de ter mérito. Vou pensar nisto cuidadosamente. Se observar que meu navio está voltando para Siracusa, saberá que aceitei o seu plano. Caso contrário, nos encontramos em Palermo.

Os dois homens se abraçaram, mas quando Idrisi ia saindo Ahmad pegou no seu braço e murmurou ferozmente em seu ouvido:

— Felipe representa mais para mim do que meu próprio pai. Idrisi agarrou a mão de Ahmad.

— Sei como se sente e como vai ser difícil esta decisão para você. O que quer que decida, lembre-se de que estou sempre aqui como amigo e ajudarei de toda maneira que puder.

Uma hora depois os dois navios ainda não haviam levantado âncora. Idrisi caminhava ansiosamente pelo convés, esperando para ver a direção em que o Amir da frota do sultão navegaria. Balkis caminhava com ele. Ao saber o que acontecera, sua primeira reação foi perguntar onde nasceria seu filho. Ele ficou zangado com ela, depois se controlou e explicou pacientemente por que havia algumas coisas neste mundo que transcendiam o amor, a paixão e a produção de crianças. Num momento em que o destino de toda a comunidade dos Crentes dependia da decisão do Amir Ahmad, era egoísta e insensato pensar em seu próprio futuro. Ela nunca o ouvira falar tão duramente e lágrimas raivosas encheram seus olhos.

Voltou à cabina e esperou. Como ousava ele pressupor que ela não ligava para mais nada exceto sua própria vida e aquela do filho ainda não nascido? Estava decidida a puni-lo. Em princípio, não falaria com ele pelo resto da jornada. Antes que pudesse pensar em punições mais severas, os homens no convés começaram a dar vivas e, com sua dignidade evaporando, ela correu para juntarse a eles. Idrisi ria e acenava como os outros. Ahmad havia tomado a rota de Siracusa. Quando os dois navios passaram um pelo outro, altos gritos de Alá Akbar subiram aos céus. Ahmad, de pé no convés, levantou uma mão em sinal de despedida. Idrisi respondeu com o mesmo gesto. Os dois homens ficaram pensando se voltariam a se ver.

— Icem as velas — gritou o comandante.

— Com esta brisa poderemos chegar a Palermo muito em breve.

Balkis voltou à cabina tão distanciada quanto podia aparentar. Seu amante a seguiu, mas cada tentativa que fazia para falar com ela era rechaçada. Ela desviou o olhar dele. Ele sentou-se à mesa com um manuscrito que havia removido da biblioteca do palácio em Siracusa e fingiu estar profundamente interessado. Depois de um quarto de hora, decidiu romper o silêncio.

— É hora da prece da tarde, mas não estou com ânimo para ela. Se não tiver objeção, vou recitar um verso para você.

Ela não respondeu. Idrisi levantou-se da cadeira, subiu no topo da tosca mesa de madeira que os separava e sentou-se de pernas cruzadas sobre a mesa diante dela.

Ela conseguiu — com dificuldade — manter um rosto sereno. Ele adotou então uma postura típica de uma pessoa que se prepara para ler o Corão.

Dizei Ó descrentes, não adoro aquilo que Adorais e não adorais o que eu adoro; Meus modos não são aqueles modos, Aquela não é minha escola ou estilo Amor báquico, surgi e levantai-vos!

Ela não pôde mais reprimir sua risada e nesse momento ele deslizou suavemente para fora da mesa e colocou-se no banco ao lado dela. Beijou suas mãos e então se refreou.

— Onde foi que o grande erudito encontrou estes versos? Foi em Abu Nuwas?

— Não. Ibn Quzman.

— Pensei que tivesse dito que precisávamos tomar cuidado nesta viagem.

— Os homens estão todos ocupados preparando o navio para a chegada e você dispensou sua cautela quando caminhou comigo no convés e depois brigou comigo e afastou-se de mim. Tudo isso implica familiaridade.

— Sou sua cunhada.

— Ninguém sabe disso além de nós.

— Não tinha pensado nisso, devo confessar. Apertou-a contra seu corpo e beijou sua boca. A mão dela moveu-se por baixo da sua túnica.

— Levantou a sua barraca cedo hoje, mestre Idrisi. Acho que o pau precisa ser desmontado.

— Chega, chega, Balkis. Suas mãos estão pegando fogo. Quando chegarmos será levada para o palácio, onde seu marido está alojado. Irei para minha casa, tomarei banho, me vestirei e visitarei todos vocês depois. Talvez possamos todos comer juntos.

— Com Rujari.

— Se necessário.

— Existem ocasiões em que não consigo entendê-lo. Este homem está para despachar o Amir Felipe, queimá-lo vivo em praça pública.

Amir Felipe, em sua opinião o líder político mais inteligente e capacitado da ilha. Talvez não possa salvá-lo, mas sentar à mesa com o seu assassino? Isso não é levar sua noção do dever longe demais?

— Ouça-me, minha cara Balkis. Uma coisa que muitos de nós tivemos de aprender, inclusive Felipe, foi como dissimular com extrema eficácia. Se me recusar a comer com o sultão ele saberá que estou zangado e, dado o seu estado demente, poderia punir todo mundo associado comigo. Devemos nos comportar tão normalmente quanto possível nestes tempos difíceis. Espero que Rujari não me convide ao palácio. Neste caso, sugiro que façamos a refeição em minha casa.

— Seria maravilhoso.

— E Balkis, lembre o que discutimos anteriormente. Nem mesmo uma sugestão do que transpirou entre nós deve chegar ao seu marido.

— E Mayya?

— Deixe-a comigo. Então o marinheiro de atalaia acenou com excitação e o grito familiar se fez ouvir: "Al-madina hama-hallahu."

Balkis recobrou a compostura, ajeitou o lenço que lhe cobria a cabeça, colocou um véu sobre o rosto e os dois seguiram para o convés. Quando eram remados até a margem ele podia ver a figura imponente e inconfundível do Amir de Siracusa à distância. Gentilmente cutucou a esposa do Amir.

Quando chegaram ao cais, os dois homens se abraçaram.

— Alá seja louvado, vocês dois chegaram sãos e salvos, Ibn Muhammad — disse o Amir.

— A situação aqui está mais tensa do que poderia imaginar. Precisamos falar urgentemente sobre muitas coisas. A saúde do sultão continua a deteriorar e a atmosfera no palácio reflete aquela da cidade. Só os barões e os monges parecem felizes nestes tempos. Dizem que o sultão pergunta todo dia quando você vai voltar.

— Vou vê-lo hoje.

— Não há muito tempo, Ibn Muhammad. O julgamento de Felipe deve começar amanhã à tarde.

— Mais cedo do que eu pensava.

— Querem estar seguros de que Rujari ainda esteja vivo quando Felipe for queimado. Um barão do continente que está aqui como juiz confiou-me que se Rujari morrer eles temem uma rebelião.

Idrisi deixou-os e juntou-se a Ibn Fityan, que estava à sua espera. Os dois homens cavalgaram juntos para casa.

— Em resposta à pergunta que me fez antes da minha partida, posso dizer-lhe com segurança que os amires de Siracusa e Catânia estão do nosso lado.

— Amigos do palácio já me deram as boas novas. O sultão o espera para a refeição da noite.

— Eu já receava isso. Ibn Fityan contou-lhe que a cidade era como uma montanha em fogo. Podia explodir a qualquer momento e os barões tinham colocado seus próprios homens em pontos-chave da cidade enquanto durasse o julgamento.

— Lembre o que Felipe disse no nosso mehfil na mesquita antes da minha partida: qualquer levante prematuro será derrotado. Por isso, todo bairro da cidade deve ser avisado de que o julgamento de Felipe foi encenado como uma provocação para nos obrigar a sair antes de estarmos prontos e nos matarem.

— O qadi já enviou esta mensagem, mas as pessoas estão com raiva. Poderia haver confusão apesar dos melhores esforços do qadi.

— Espalhe a notícia de que o Confiável organizou um exército em Catânia que irá recuperar um número de mosteiros e infligir castigos públicos aos bispos. Diga às pessoas que devemos esperar as notícias de Catânia antes que algo precipitado seja feito aqui. Por que o Amir de Siracusa prolongou sua estada na cidade?

— O sultão pediu-lhe para assistir ao julgamento. Vai lhe pedir isso também.

— Vai receber uma resposta rude.

— Mestre, existe uma questão mais delicada.

— Fale o que pensa.

— Uma notícia chegou aos amigos no palácio sobre o senhor e a senhora Mayya.

— O que as mentes ociosas dizem nesta ocasião?

— Dizem que Elinore é sua filha e que o senhor e sua mãe se casaram em Siracusa.

— Como as notícias chegaram até aqui?

— O palácio em Siracusa está cheio de nossos amigos. Eles ouvem tudo.

— E se o que disseram for verdade?

— Se a notícia chegar ao sultão ele vai reagir mal. Vai comparar sua generosidade para com o senhor com esta traição.

— Silêncio, homem. O julgamento de Felipe começa amanhã e não tenho o tempo nem o desejo de discutir se eu consegui ou não conquistar os favores desta ou daquela senhora.

Três criados armados o acompanharam quando ele se aproximou do palácio. Não podia lembrar quantas vezes fizera esta jornada a todas as horas do dia e da noite.

Mas esta fase da sua vida estava chegando a um fim. O camareiro que o recebeu era um rosto antigo e familiar. Falou numa voz enfraquecida pela idade.

— Seja bem-vindo uma vez mais, Ibn Muhammad alIdrisi. Chega numa ocasião triste.

— A paz esteja com você, amigo — Idrisi respondeu ao seguir o velho através da costumeira série de aposentos com arquitraves de madeira e mosaicos que lembravam um passado mais remoto.

O sultão estava em sua câmara de audiência privada, um aposento que Idrisi conhecia bem. Mas teve de esperar na antecâmara até que os visitantes do sultão saíssem.

Ficou imaginando quem seriam e por que tinham sido convocados a esta hora. Rujari geralmente tocava os seus negócios na primeira metade do dia. O velho camareiro sentou-se ao seu lado e, olhando na direção da câmara do sultão, sussurrou numa voz alquebrada:

— Um mehfil de assassinos está acontecendo. Preparações de último minuto para o julgamento de amanhã. Tudo já está decidido. Ele foi considerado culpado. Amanhã eles o queimarão.

Antes que Idrisi pudesse responder, vários barões e três bispos atravessaram a porta parecendo satisfeitos consigo mesmos. O camareiro curvou-se e os escoltou para fora da antecâmara. Em contraste com ocasiões anteriores, nenhum deles se deu ao trabalho de demonstrar ter percebido a presença de Idrisi. Ele entrou a passos largos na câmara de Rujari sem esperar que o camareiro voltasse. O sultão pareceu genuinamente contente em vê-lo. Como poderia estar tão distante da realidade?

— Fico feliz em tê-lo de volta. Preciso de você ao meu lado.

— Acabei de ver os homens que estão do seu lado. Barões inchados com excesso de comida e bispos vivendo da riqueza das terras que roubaram. — Pelo seu tom, Idrisi, detecto que não estará presente ao julgamento amanhã.

— O sultão me perdoará, espero. A visão do seu filho adotivo sendo falsamente acusado, considerado culpado e levado à fogueira é algo que não desejo testemunhar.

Já é suficientemente mau conviver com minha consciência, impotente para impedir a morte de Felipe e fraca e covarde demais para fazer qualquer coisa. Parece que voltamos a um estado primitivo de conflito entre nossas duas comunidades.

— Não é fácil para mim, Muhammad. Sabe muito bem que não tenho muito tempo de vida.

— Felipe al-Mahdia era a sua melhor oportunidade de manter sua família no trono. Os barões não deixarão o clã dos Hauteville em paz por muito tempo. Quem os defenderá quando o senhor tiver partido?

— Eu fiz minha escolha, mestre Idrisi. E entendo plenamente sua repugnância diante do que fiz. É melhor ficar afastado do palácio por algumas semanas até que esta tempestade se extinga. E tem a minha permissão para levar Mayya e Elinore consigo. Ela herdou sua inteligência. Deveria orgulharse dela.

Idrisi, apanhado de surpresa, perguntou em voz baixa:

— Sabia?

— Desde o início.

— Então por quê...

— Porque ter admitido que eu sabia o que havia acontecido poderia estabelecer um precedente perigoso. Foi Felipe quem aconselhou sigilo total. Seus próprios sultãos teriam convocado o carrasco e feito o seu pescoço experimentar a cimitarra. Por essa razão Felipe não queria que você soubesse. Mas em meu coração fiquei feliz por você.

— Como sempre, Felipe ofereceu-lhe conselhos sábios. Agradeço ao senhor por sua amizade e generosidade. Sempre significou muito para mim.

— Gostaria de não ter de fazer o que vou fazer agora. Espero que acredite em mim.

Idrisi não respondeu, mas curvou-se e deixou o aposento. O camareiro estava à sua espera.

— O sultão sugeriu que eu levasse a senhora Mayya e Elinore para casa comigo.

— Já era tempo — disse o camareiro numa voz suave.

— Siga-me, mestre Idrisi.

Caminharam até o harém, guardado por dois eunucos que se levantaram ao verem os homens se aproximar.

— Este é o harém do sultão Rujari — disse o mais baixo dos dois.

— O que vêm fazer aqui?

O camareiro cochichou qualquer coisa no ouvido do homem. A porta foi aberta e o eunuco-chefe alertou as mulheres.

— Sob as ordens de nosso exaltado sultão Rujari, um convidado masculino está entrando para visitar a senhora Mayya.

Uma seqüência de portas foi fechada e de janelas com delicadas treliças olhos curiosos observaram a sua entrada. Idrisi seguiu os dois eunucos até o alojamento das mulheres e até os quartos de Mayya. Respondendo à batida na sua porta, ela ficou chocada ao vê-lo.

— Por que está aqui? Isso não foi combinado.

— Tenho a permissão do sultão para levar você e Elinore para casa agora.

Mayya ficou atônita. Afastando-se para o lado, convidou-o a entrar em seu quarto. Ele viera aqui pela última vez há 18 anos e o resultado fora Elinore. Como fora diferente naquela ocasião! Entrara disfarçado como mulher e uma pequena bolsa de moedas de prata foi o preço pedido pelo eunuco de guarda, que depois desapareceu.

Teria Felipe ordenado a sua execução?

Abraçaram-se enquanto ela chorava.

— Nunca pensei que aconteceria tão cedo. Precisamos partir agora?

— Foram as instruções do sultão. — Mas minhas... nossas roupas... nossas... Elinore.

— Tudo isso pode ser mandado para minha casa amanhã. O sultão me pediu para ficar afastado do palácio por algum tempo.

— Não posso acreditar que estou livre, Muhammad.

— Não vamos perder mais tempo. Onde está Elinore?

— Está com Balkis e o Amir nos aposentos dos convidados. Acho que eu deveria dar a notícia para ela a sós. Deixe-me ir buscá-la. Deveríamos encontrá-lo nos portões do palácio ou gostaria de algum tempo para explorar o harém? E teremos de separar algumas roupas para amanhã.

— Esperarei por vocês nos aposentos do camareiro perto dos portões. Tente evitar muita excitação e convide sua irmã e seu marido para almoçarem conosco amanhã.

— Muhammad, amanhã é o julgamento de Felipe. O Amir de Siracusa foi convidado para assistir e existem notáveis de Qurlun e de outras cidades aqui também. E você?

— Eu disse ao sultão que não estarei presente. Neste caso, Balkis poderia vir com você agora. Por que ela estaria presente aqui amanhã? E peça ao Amir para juntarse a nós depois do julgamento. Duvido que demore muito.

— Pedirei a Balkis que venha conosco. O palácio inteiro está em tumulto. Não tinha idéia de que Felipe contava com tantos seguidores. Os eunucos mal podem falar.

A maioria dos velhos empregados caminha pelos cantos com olhos tristes. Quanto àqueles que trabalham no Diwan, acham que isto é o fim.

Ela deu uma olhada em seus aposentos pela última vez, achando difícil acreditar que nunca mais iria morar ali.


10

Uma conversa de 26 anos sobre teologia em que Rujari
e Idrisi comparam os méritos e deméritos de suas respectivas religiões.

O encontro com Rujari irritou Idrisi. O sultão parecia distante e despreocupado. Idrisi queria que ele estivesse morto. Como podia Rujari ter esquecido o passado tão cedo e aceitado as exigências de barões corruptos, bispos hipócritas e servis, cortesãos levianos? Mas controlou seus pensamentos. Não queria sentir apenas ódio e ressentimento por seu velho amigo. Lembrou uma de suas muitas conversações.

Aconteceu quando ainda eram jovens. Era um dia sufocante do meio do verão. Não havia brisas na terra nem ondas no mar, cuja superfície lisa brilhava como vidro.

Rujari mandou uma mensagem ao seu amigo na biblioteca sugerindo que embarcassem no seu navio e fossem se refrescar no mar. Idrisi lembrou como ficaram chocados os marinheiros gregos quando, em sua primeira viagem, ele confessou que não sabia nadar. Um ilhéu que não sabia nadar! Com grande paciência ensinaram-no a usar as mãos e as pernas e respirar na água, como flutuar, e gradualmente ele adquiriu as habilidades.

Encontraram uma bela enseada não longe de Palermo. Depois de nadarem, tinham falado principalmente de geografia e astronomia e Idrisi havia elogiado a exatidão dos mapas de Ptolomeu, comentando que o alexandrino devia ter um olho privilegiado e talentos que até agora lhe escapavam. O tempo passou rapidamente. A caminho de casa, sentaram-se no convés e saborearam o que restava do dia, apreciando a brisa do mar que aumentava à medida que o sol começava a desaparecer. Cada um deles venceu uma partida de xadrez antes que Rujari pedisse a um atendente para levar as peças e trazer um frasco de vinho. Virando-se para Idrisi, ele perguntou se as diferenças entre seus dois povos eram pedras que não podiam ser removidas ou se suas fés não se tornariam entrelaçadas nos anos por vir. Idrisi hesitou antes de responder.

— Não existe pedra que não possa ser removida. Quando os deuses ficam zangados, como os antigos costumavam dizer, eles sacodem a terra e cidades inteiras são destruídas.

Seria preciso algo nesta escala para unir os exércitos do Profeta e do papa.

Rujari riu.

— Eu não pensava no mundo. Pensava na Siqilliya. Queria dizer que meu povo aprendeu tanto com o seu que me parece natural para nós trabalharmos juntos e compartilharmos a mesma fé.

De novo Idrisi hesitou.

— Sultão, esta ilha mudou muito desde que os soldados do Profeta colocaram o pé aqui. Meu povo tem uma tendência natural para exagerar e se gabar, mesmo quando somos derrotados. Quando vencemos, nosso orgulho sobe aos céus. Os gregos chegaram aqui primeiro, depois os romanos. Os gregos construíram seus templos, cuidaram das vinhas e das oliveiras e filósofos de diferentes escolas debateram em público no Fórum de Siracusa. Os romanos cultivaram a terra com o trigo, necessário para alimentar as legiões imperiais.

Meu povo trouxe frutas de todo tipo, algodão e seda, e os papiros, e fez de Palermo uma cidade insuperável. Vocês herdaram tudo isso, mas também contribuíram para a riqueza da ilha. Sua presença é prova de que é possível comprar gladiadores e usá-los contra o inimigo. Seu povo é de guerreiros e marinheiros.

— Fale de hoje, Idrisi, hoje.

— Mas, honrado sultão, com sua permissão eu gostaria de terminar. Temos muito em comum. Sua gente dominou o mar, minha gente o deserto.

Vocês tornaram-se grandes construtores de barcos, nós aprendemos a cavalgar o camelo e o cavalo. Vocês abriram caminho a fogo nas terras dos francos e eles os compraram com terra e seu próprio espaço. Derrotamos dois impérios e criamos nosso próprio. Nosso navio era o camelo, mas muito mais confiável do que o de vocês.

Era capaz de viajar sessenta milhas romanas por dia e passar vinte dias sem água. Algumas tâmaras e leite de camelo eram uma dieta nutritiva. O povo em Makkah ainda gosta de cozinhar na gordura tirada da corcova do camelo. Que navio poderia render tanto quanto este? Em ambos os casos foi a natureza que determinou o que fazíamos e como nos locomovíamos. No fim nossas necessidades eram maiores e fomos mais bem-sucedidos.

Rujari ficou levemente irritado.

— Nossas mulheres eram mais dóceis, aceitando seu lugar em nossas vidas com dignidade e calma. As suas eram bárbaras. Suas mulheres sarracenas — e muitos romanos cujos textos estão na biblioteca do palácio testemunham isto — eram muito atiradas, muito apaixonadas, muito exigentes. Freqüentemente descartavam os maridos.

— Sultão, fala do povo do deserto durante a época da Ignorância, antes que nosso Profeta ouvisse a voz de Alá. As mulheres foram colocadas sob controle por nossa fé.

— Talvez em público, mestre Idrisi, mas nos limites do palácio ou de casa nada mudou muito. Ora, seu próprio Profeta precisou de uma Revelação para silenciar os mercadores de escândalos que alegavam que sua jovem esposa, Aisha, havia cometido adultério.

Ambos ficaram em silêncio. Foi Idrisi quem falou primeiro.

— Perguntou se nesta ilha poderíamos um dia partilhar de uma fé comum. Como podemos jamais acreditar que Mariam foi engravidada por Alá para produzir Isa? Sua fé era muito apegada aos tempos pagãos e vocês tinham de fazer concessões. Precisavam de uma deusa virgem que dormisse com o seu Deus. Não era ele Zeus sob outra forma? E achamos difícil acreditar que Isa ressuscitou.

— Por quê? Seu livro fala do Dia do Juízo Final em que cada homem ficará diante do seu criador. Alguns irão para o céu e outros irão para o inferno. Se podem ser ressuscitados segundo a vontade de Alá, por que não poderia Deus chamar Jesus de volta? Como sabe, Idrisi, estas são questões não resolvidas em nossa igreja. Existem muitos cristãos que não aceitam a divindade de Jesus. Existe algum em sua fé que questione a Revelação?

— Muitos, com certeza, e desde os primeiros tempos. A própria mulher do Profeta, Aisha, segundo as tradições, comentou muitas vezes sobre a facilidade com que seu marido obtinha sanção de Alá para satisfazer seus desejos pessoais. E o sucessor do Profeta, o Califa Omar, teria dito que muitas vezes se surpreendia quando o conselho que dera ao Profeta em particular acabava se tornando uma Revelação posterior. E todo um grupo de teólogos de Bagdá argumentou que o Corão era um documento feito pelo homem, questionando assim a sua divindade...

— É o suficiente para um começo de noite, mestre Idrisi. Realmente admito que sua religião permite muito mais prazeres neste mundo e no próximo do que a minha.

Somente por este motivo, deixando de lado o conhecimento propagado por seus sábios eruditos, se dependesse só de mim e se não houvesse nada mais envolvido, eu me converteria à sua fé agora mesmo.

— Talvez, se os navios que levaram os ancestrais de Sua Majestade à terra dos gauleses e dos francos tivessem sido desviados por súbitas borrascas e tivessem chegado aos portos de alAndalus, tudo poderia ser diferente.

— Por que isso não me ocorreu?

— Porque a geografia e a história estão sempre presentes em meus pensamentos.

— Uma coisa eu lhe prometo, mestre Idrisi. Enquanto eu viver a Igreja não terá permissão de matar ou queimar uma única pessoa simplesmente porque ela acredita no seu Profeta e não no meu.

E foi assim que a conversa terminou, ou pelo menos assim Idrisi lembrava. Mas depois, naquela noite, Felipe al-Mahdia o visitou em seus aposentos.

— Soube a respeito da conversa que teve com o sultão hoje. Idrisi ficou espantado. Como ele sabia?

— É legítimo que questione, mas não seria oportuno eu responder.

Tudo o que vou dizer é que cometeu um grande erro.

— Em nome de Má, que erro? Por que fala assim? Havia um toque de raiva na voz de Felipe.

— Quando o sultão declarou que se dependesse dele se converteria à nossa fé, por que não sugeriu que o fizesse, mas não o tornasse público? Para a Igreja e os barões ele seria um

cristão, mas em particular entoaria as cinco preces obrigatórias. Por que não sugeriu isso, mestre Idrisi? Percebe que uma oportunidade foi perdida por causa da sua distração? Está tão preocupado com seu próprio trabalho que perdeu a noção do mundo que o cerca.

Idrisi ficou tão atônito com esta explosão que por alguns momentos olhou para Felipe em silêncio.

— Não pedi o que sugere pela simples razão de que o pensamento não passou por minha cabeça. Rujari é um amigo, mas é também o sultão. Não cabia a mim sugerir nada a ele.

— Um dia — disse Felipe calmamente -, nosso povo poderia sofrer por causa do seu erro.

— Por que está tão preocupado? Não chega sequer a ser um Crente.

Felipe sorriu e deixou a sala.


11

O julgamento de Felipe.
O Amir de Catânia peida alto durante o discurso do promotor.

A grande sala onde o sultão recebia seus súditos uma vez por mês fora transformada.

O trono permanecia sobre a plataforma de madeira elevada, mas o espaço vazio à frente estava tomado por cadeiras e bancos dispostos em semicírculo.

No centro uma plataforma fora preparada para os prisioneiros: além de Felipe, alguns daqueles que haviam trabalhado com ele também foram presos e acusados para criar a impressão de uma conspiração.

Os barões entraram primeiro, vestidos em seus paramentos, as espadas pendendo da cintura, e tomaram os assentos em ambos os lados do trono. Foram seguidos por outras seções da nobreza e então os juízes entraram, flanqueados pelos bispos com vários monges acompanhando. O juiz de acusação estava sentado pouco abaixo do trono do sultão. Depois que todos se sentaram, os amires de Catânia e Siracusa, com um punhado de notáveis de Qurlun, Djirdjent, Shakka e Marsa Ali, bem como o qadi de Palermo, tiveram permissão de entrar e sentaram-se nos bancos dos fundos onde não seria fácil para o sultão vê-los.

A sala ficou em silêncio quando o camareiro entrou e anunciou o sultão. Para a ocasião Rujari havia descartado seus mantos árabes e, como os barões, se vestia como um cavaleiro cristão, a coroa firmemente pousada na sua cabeça. Todos os presentes se levantaram para saudar o rei em três línguas diferentes. Rujari acenou com a cabeça e o julgamento começou. Os prisioneiros, acorrentados uns aos outros com Felipe à frente, foram trazidos à sala.

Ele caminhava com a cabeça bem erguida, preparado para enfrentar os olhos do sultão ou de seus barões. Foram eles que evitaram o seu olhar. Dez eunucos tidos como associados a ele foram acusados exatamente dos mesmos crimes. Eles também se comportavam com dignidade.

O juiz da promotoria, que já havia trabalhado para Felipe, levantou-se e enumerou as acusações.

— Felipe al-Mahdia, você e aquelas criaturas ao seu lado são acusados de terem traído a confiança que depositou em vocês o Rei Rogério. São acusados de terem ajudado nossos inimigos em Mahdia, Bone e Ifriqiya. São acusados de ter ocultado sua verdadeira fé do rei e de sua corte. Sob a capa de um cristão, comportaram-se como filhos de Satã. Em pensamento e ação seguiu as doutrinas de Maomé e instruiu o tesouro do Estado a doar quantidades ilimitadas de dinheiro para manter as mesquitas em boa condição. Enviou emissários especiais com oferendas à tumba de Maomé. Quando se sugeriu que este dinheiro fosse anotado nos registros, você descartou a sugestão com um aceno arrogante da sua mão.

— Freqüentemente compareceu às sinagogas dos Malignos e proporcionou-lhes óleo para alimentar seus lampiões. Ofereceu-lhes toda a assistência de que necessitavam para praticar sua fé abominável. Ao mesmo tempo raramente pisou sequer por acaso nas igrejas de Deus. Ostensivamente comeu carne nas sextas-feiras e durante a Quaresma.

— O rei foi alertado para a sua infidelidade quando lhe relataram como permitiu a eruditos e religiosos muçulmanos fugirem das suas aldeias depois que conquistou Mahdia e Bone. Informaram que você puniu alguns de seus próprios soldados quando os viu agarrando algumas de suas prisioneiras para seu prazer pessoal.

— E, por último, Felipe al-Mahdia, apresentaremos testemunhas que jurarão sobre o Corão que você foi secretamente um muçulmano a vida inteira. Sua conversão foi falsa. Que confiança pode o rei depositar em você depois de todos estes acontecimentos? Você foi criado neste palácio e o rei o amava como a um filho. Elevou-se ao mais alto posto na terra depois do rei. E trouxe desgraça sobre ele. O que tem a dizer sobre tudo isto?

Enquanto a acusação era lida, os Amires e outros Crentes se mostravam inquietos. Seu descontentamento se refletia num excessivo arrastar de pés, em pigarros regulares, suspiros ocasionais e dois peidos altos, tudo isso combinando para produzir uma atmosfera distintamente desagradável. Quando Felipe se preparou para dirigir-se ao tribunal houve silêncio total. Enquanto o promotor falara à corte em latim bombástico, Felipe falou em árabe fluente.

— Não traí a confiança do sultão. Este sultão tem sido, até agora, bondoso para mim e, independentemente do que aconteça hoje, desejo declarar que o sultão Rujari Ibn Rujari tem sido um governante justo. Tratou bem todo o povo desta ilha, não importa qual fosse a sua fé. Nunca insistiu, até agora, para que os prisioneiros fossem brutalizados e suas mulheres violentadas. Por isso eu rejeito a acusação principal que fizeram contra mim, no sentido de que traí a confiança de nosso governante.

— Nada que fiz foi em segredo. Sim, forneci óleo para as sinagogas. O sultão sabia disso e aprovou. Sim, não permiti o declínio das oitenta mesquitas remanescentes em Palermo. O sultão acompanhou-me uma vez para ver por si mesmo as melhorias na mesquita Ayn al-Shifa desta cidade.

Quando dizem que eu mal ia à igreja falam uma inverdade deliberada e que Deus os perdoe. O sultão sabe quantas vezes eu compareci à sua própria capela. Sabe quantas vezes fui à igreja que construiu em Cefalu a cada estágio de sua construção.

— Vamos examinar a acusação seguinte. Fui brando demais para com os prisioneiros em Ifriqiya. Confesso-me culpado. Tratei-os como trataria qualquer ser humano.

A luta estava encerrada. Tínhamos conquistado uma importante vitória. A dinastia Zirid se desfez como pó diante de meus olhos. Tivesse sido clemente no curso da batalha vocês teriam razão para me trazer a julgamento. Mas, em nome do sultão, conquistei Mahdia, a cidade da minha juventude. Não escondo de vocês o meu sofrimento interior. Que eu fosse o instrumento para a tomada desta cidade não me dava nenhum prazer, mas minha lealdade a Siqilliya nunca esteve em dúvida. Os beduínos aos quais paguei para combaterem do nosso lado queriam saquear a cidade indiscriminadamente e tirar proveito de qualquer mulher, jovem ou velha, que não estivesse já escondida. A guerra desperta a cobiça do saque e da carne humana. Dei firmes instruções para que isto não acontecesse. Quando as ordens foram desobedecidas, mandei açoitar em público três beduínos e seis dos nossos soldados acusados de estupro. Sim, eu os vi sangrarem. Arrependo-me disso? Não. E o faria de novo. Acho que em tempos melhores o sultão teria defendido todas estas ações.

— Nada mais tenho a dizer. Sei que as chamas que me consumirão já foram acesas e estou preparado para me encontrar com o meu Criador. Nada fiz de que me envergonhasse.

Meu único arrependimento é que não tive a oportunidade de viver entre nosso povo porque sempre que me perguntava como a terra proporcionava o alimento que comemos a fim de sobreviver a resposta nunca estava em dúvida. Eram os lavradores comuns da terra que produziam o alimento e, do conforto deste palácio, eu às vezes lhes invejava a proximidade com a terra. Lembro-me de ter mencionado isso a muitas pessoas.

— Ao sultão direi isto: se o ofendi de alguma maneira imploro sua misericórdia e peço desculpas. Sempre fui leal ao senhor e à sua família. Aqueles que envenenaram seus ouvidos em relação a mim são as mesmas pessoas que tentarão e se livrarão dos seus filhos e do sistema de administração que seu pai e o senhor ajudaram a criar. Pense nisso quando estiver me vendo ser consumido pelas chamas.

Os barões levantaram-se para protestar e gritos de "Cortem a sua língua" foram ouvidos da boca de mais de um monge. O promotor ficou num estado de raiva incontido.

— Temos uma testemunha que afirmará que este homem ocultou sua verdadeira fé debaixo de uma máscara cristã. Tragam-no.

Os guardas fizeram entrar um venerável mercador, Ali ibn Uthman al-Tamimi. Era um dos mais respeitados negociantes da cidade e havia comparecido ao mehfil na mesquita Ayn al-Shifa em que Felipe estivera pouco antes de ser preso. As marcas no seu rosto sugeriam que lhe fora infligida violência.

Pediram ao mercador que jurasse sobre o Corão que falaria a verdade. Falou numa voz muito baixa, alquebrada, não ousando encarar Felipe. Mas não mencionou o encontro.

Testemunhou que numa única vez tinha orado com Felipe na mesquita. A prova era suficiente para condená-lo. Ao sair, ergueu o rosto para Felipe com olhos lacrimosos e, numa voz que foi ouvida em toda a sala, disse:

— Perdoe-me. Ameaçaram estuprar minha filha de dez anos. Nesta altura Felipe, enfurecido pela visão de um velho amigo que fora humilhado e torturado, pediu para falar. O sultão acenou com a cabeça.

— Queimem-me, se quiserem, mas não inflijam sofrimento em pessoas inocentes. Sim, é verdade que fui um Crente oculto, mas meu pecado não estava na minha crença e sim na minha covardia. Eu deveria ter contado ao sultão e, por isto, peço o seu perdão e imploro sua misericórdia. Eu era muito jovem quando entrei para a corte e vocês foram tão bondosos comigo que eu queria agradá-los de toda maneira. Mas quando acompanhei o Amir Jorge a Mahdia, memórias da minha infância se apossaram de mim e foi nessa ocasião que, em meu coração, me tornei um muçulmano de novo. Não lamento minha escolha. Sei que vão me queimar hoje porque este é um costume da sua fé. Mas, antes de ser sentenciado, gostaria de dirigir-me pessoalmente ao sultão.

Rujari fitou-o e pela primeira vez seus olhos se encontraram. Rujari acenou com a cabeça e desviou o olhar rapidamente.

— Agradeço ao senhor, gracioso sultão. O senhor, mais do que qualquer outro presente aqui — e não vejo nosso amigo mestre Idrisi nesta reunião, pelo que agradeço a ele -, entenderá plenamente que a razão por que o senhor e seu nobre pai foram capazes de resistir aos comandos dos papas em Roma foi porque, mesmo depois da conquista da Siqilliya e da entrega das terras mais férteis aos barões e aos bárbaros lombardos do Norte, mesmo depois de tudo isso, meu povo ainda é maioria nesta ilha. É por isso que seus barões falam e entendem minha língua. E é por isso que o senhor e seu pai puderam resistir às exigências papais de mandar soldados para lutar nas Cruzadas. Fomos sua força, demos-lhe a coragem de ser independente, nosso conhecimento, nossa língua, nossa cultura lhe permitiram gabar-se de ser superior de todos os modos em relação aos seus pobres primos na Inglaterra, o que era a verdade pura.

— Viver debaixo de ocupação nunca é fácil, mas sua família tornou isso menos doloroso porque precisava de nós por suas próprias razões. E nós precisávamos de vocês para sobreviver. Se nos destruírem — e perdoe-me a ousadia... mas todos sabemos que a decisão de me queimar é uma vitória para aqueles que gostariam de queimar todo Crente nesta ilha, se nos destruírem, destruirão a si mesmos. Um, talvez dois Hautevilles poderiam governar como reis. E então seus correligionários vão atacar ao sul e arrebatar aquilo que acreditam lhes pertença por direito papal. E a essa altura não haverá mais força alguma para defender a sua família. Quanto a estes infelizes eunucos que aprisionaram comigo, são completamente inocentes. Seu único crime foi trabalharem comigo, mas o sultão fez o mesmo por muitos anos.

Puni-los é vil e indigno e eu imploraria misericórdia para eles. Poupem suas vidas. Têm a minha. Seus monges e Bispos me consignarão ao Inferno. Mas só Alá decidirá.

Ao dar uns passos para trás e curvar-se meio ironicamente para o sultão, o Amir de Catânia não pôde se conter. Levantou-se do seu banco.

— Alá o mandará para o céu, Felipe al-Mahdia. Alá akbar. Irritado por esse gesto de insubordinação, Rujari levantou-se do trono e, ainda se recusando a olhar para o velho amigo nos olhos, dirigiu-se ao tribunal.

— Aos mais distintos senhores que participam hoje deste julgamento, minhas palavras são para vocês. Minha alma é ferida pela maior dor, e inflamada de paixão por severos tormentos, pois este meu ministro, que criei desde menino para que, tendo sido purgado de seus pecados, o sarraceno pudesse se tornar cristão, ainda é um sarraceno e, sob o nome da sua fé, perpetrou atos de infidelidade. Tivesse ofendido sua majestade sob outras formas, tivesse levado grande parte do nosso tesouro, nós o teríamos perdoado porque prestou grandes serviços para nós. Mas ele ofendeu a Deus e forneceu a outros a oportunidade e o precedente do pecado, e eu não deveria perdoar uma injúria à nossa fé e um crime contra a religião cristã por meu próprio filho, nem perdoar ninguém mais. Neste ato, deixem que o mundo inteiro saiba que eu amo a fé cristã com absoluta constância e não me refreio de vingar uma ofensa contra ela, mesmo por um de meus próprios ministros.

Por esta razão as leis são estabelecidas e por esta razão nossas leis são armadas com a espada da reciprocidade; elas ferem o inimigo da fé com a espada da justiça e assim colocam um terrível castigo para os infiéis. Mais distintos senhores, que estão aqui para julgar este crime, exerçam o seu dever.

Os barões bateram com as espadas no chão para demonstrar aprovação ao seu rei. Rujari, exausto, desabou sobre o trono. Os barões, magistrados e juízes não demoraram a tomar suas deliberações.

— Decretamos que Felipe, traidor da cristandade e um agente das maquinações de infidelidade sob o disfarce da fé, será consumido pelas chamas vingadoras a fim de que aquele que não quis sentir o calor do amor sinta o fogo que queima e para que nenhum traço reste deste pior dos homens mas, tendo sido transformado em cinzas pelo fogo terreno, possa seguir para o tormento perpétuo nas chamas eternas. Seus companheiros de conspiração na maldade são sentenciados também à morte, mas por métodos normais.

Os Amires e os notáveis muçulmanos não ficaram para ver os cristãos saborearem o seu triunfo. Assim que o sultão se arrastou para fora da sala, deixaram a corte e o palácio. Um forte uivo de lamento pôde ser ouvido numa seção do palácio enquanto se dirigiam para as ruas. Para seu espanto, as ruas estavam vazias. O povo de Palermo, até mesmo os nazarenos, não tinham nenhum desejo de testemunhar o desgraçado Felipe arrastado através das ruas em ignomínia. Antes de partirem, o Amir de Catânia os chamou de lado e disse:

— Eles declararam guerra a nós. Eu, de minha parte, não me tornarei passivamente uma galinha de cabeça cortada. Lutaremos em Catânia. Não nos entregaremos nem nos tornaremos seus escravos ou seremos mortos sem resistência. Todos vocês farão suas próprias escolhas, mas espero que tenham ouvido cuidadosamente as palavras de Rujari. É o fim da Siqilliya como a conhecíamos. Meus amigos de Qurlun, sua escolha é muito clara. Ou combatem conosco ou se convertem agora à fé deles e transformam suas mesquitas em igrejas. Não esperem até que eles o façam. Desse modo, poderiam salvar suas vidas, quando não sua propriedade. Não sei se voltaremos a nos encontrar.

A paz esteja com todos e que Alá os proteja.

Um nobre de Qurlun retardou sua saída.

— Antes de partir, dê-me o seu conselho. Existe alguma maneira de salvarmos nossas propriedades assim como nossas vidas?

— Talvez oferecendo aos barões metade do que possuem amanhã e suas filhas no dia seguinte. Mas não demorem muito. E mais uma palavra de conselho a vocês. Vocês qurlunis são tão fechados que se acham mais espertos do que todo mundo e julgam que seus segredos permanecem seguros dentro de sua comunidade. Viram o que aconteceu com Felipe. Se decidirem converter-se, façam-no adequadamente e não se encontrem em segredo para jejuar ou circuncidar seus filhos. Aprendam a adorar o homem que sangra na cruz de madeira e a mãe que permaneceu virgem após o seu nascimento.

Os Amires de Catânia e Siracusa saíram juntos, ambos ultrajados com o discurso de Rujari e o veredicto.

— Espero que Rujari morra logo, livrando-nos de nossos votos de lealdade. Nossa presença aqui está agora sob séria ameaça. Nossa cultura vacila e se não agirmos ela vai desaparecer.

Era a primeira vez que o siracusano falava naquele dia.

— Acho que o discurso dele já nos liberou. O mensageiro de Idrisi contoume que o Confiável instruirá seus seguidores para capturarem três mosteiros no minuto em que souberem do veredicto sobre Felipe. Acho que os faróis estarão ocupados hoje. Meu navio já está pronto para zarpar. Vai me acompanhar ou trouxe seu próprio navio?

— Trouxe e vou zarpar mais tarde ainda hoje. Os dois homens abraçaram-se e seguiram seus diferentes caminhos.

Dentro dos muros do palácio, Felipe foi entregue aos magistrados, que removeram suas correntes e o amarraram aos cascos de cavalos selvagens. Os cavalos tiveram de ser contidos quando chegaram aos portões. Cada janela do palácio estava cheia de gente. Todos observavam horrorizados e contou-se depois que o jovem Guilherme, o único filho legítimo remanescente de Rujari, tinha lágrimas nos olhos. Ele fora excepcionalmente ligado ao condenado. Felipe lhe havia ensinado astronomia. Os barões, monges e sua criadagem iam atrás dos cavalos para acompanhar a vítima até a sua morte. Do lado de fora apenas alguns monges e nazarenos observavam, mas menos de uma centena ao todo, e isto numa cidade de trezentas mil pessoas. Houve notícias de que as mesquitas e sinagogas estavam lotadas naquele dia enquanto preces especiais eram feitas em honra de Felipe. O qadi foi visto apressando-se na direção da mesquita Ayn al-Shifa para tentar conter as cabeças mais quentes.

Os portões do palácio se abriram. A grotesca procissão seguiu em frente. Os membros de Felipe sangravam, mas ele mantinha o rosto erguido mesmo ao ser violentamente arrastado e alguns daqueles que tinham vindo ver o espetáculo se afastaram. Um forno de cal perto do palácio fora preparado e uma fogueira jorrava suas chamas antes mesmo que o julgamento tivesse começado. Os magistrados desataram o homem que estava coberto de sangue. Ergueram-no sobre seus ombros e o jogaram nas chamas.

Então todos voltaram ao palácio onde um grande banquete fora preparado em honra daqueles que haviam passado um julgamento sobre um inimigo de sua fé. Rujari alegou estar doente e não esteve presente às comemorações. Nem seu filho Guilherme.

Depois de uma conferência privada com seu amigo de Catânia, o Amir de Siracusa instruiu seus homens para aprontarem o navio para zarpar a qualquer momento. Caminhando lentamente em direção à casa onde sua mulher estava hospedada, sentiu uma mão sobre seu ombro. Um tremor de medo percorreu seu corpo, mas era apenas um Idrisi de rosto sombrio com seus criados.

— Ibn Muhammad, que alívio que é você — disse, enxugando o suor do seu rosto.

— Foi uma catástrofe. O julgamento foi como você descreveu, ainda pior.

— Acabei de voltar da mesquita. Foi uma despedida dignificada, mas nossos jovens estão zangados e receio que haverá alguma violência na cidade esta noite. Caminhava para minha casa? Muito bem. Chegaremos juntos.

— Ibn Muhammad, poderia pedir aos seus homens que nos deixassem conversar a sós? Idrisi fez um sinal a Ibn Fityan que disse a seus homens para ficarem para trás.

O Amir confiou-lhe que agora planejariam uma rebelião em larga escala em suas regiões e expulsariam os francos.

— Ainda precisaremos de alguns anos, mas as preparações devem começar agora. Sei que às vezes dou às pessoas a impressão de não ser tão firme como o Confiável.

Mas quaisquer dúvidas que eu tivesse, elas desapareceram hoje. Eles declararam guerra contra nós. É por isso que tenho um favor a lhe pedir...


12

O amor de Idrisi por Balkis e suas conseqüências.

Idrisi não precisou esperar muito pelas três mulheres do lado de fora do quarto do camareiro na frente do palácio. Foram aliviadas de suas roupas apressadamente emaladas pelos criados de Idrisi e ele caminhou de volta para casa com elas. O céu estava tão estrelado e ativo e Idrisi tão exultante que ele quase se esqueceu do peso dos acontecimentos que estavam por vir.

— Pensei que noites como esta só acontecessem quando se é jovem — disse.

— Sou jovem — replicou Elinore.

— E nunca me esquecerei desta noite.

— Não tenho a sua idade, mas eu também me lembrarei desta noite — disse Balkis.

— Sou mais velho do que ambas, mas por que o prazer deveria ser exclusivo dos jovens?

— A que distância fica sua casa, Abi? Idrisi sorriu antes de responder.

— Nenhuma de vocês conhece a solidão que me afligiu durante tantos anos. Quando Walid saiu de casa sem nos contar pensei que todo mundo estava me abandonando e fiquei desesperançado. Esta noite sinto que isso passou. E estamos quase em casa. Vê aquelas janelas iluminadas na colina? Mais alguns minutos e estaremos lá.

Um mensageiro do palácio já havia trazido a Ibn Fityan notícias da decisão do sultão de liberar Mayya e por isso ele esperava com o resto da casa para dar as boas-vindas à nova senhora e à filha do senhor. Balkis também foi recebida calorosamente. As tochas erguidas bem alto encantaram as mulheres enquanto subiam os degraus.

— Os quartos foram preparados?

— Sim, Ibn Muhammad — respondeu o camareiro -, mas não esperávamos uma terceira hóspede. Não vai demorar muito para preparar um quarto de hóspede.

— Esta é a senhora Balkis, irmã da minha mulher, cujo marido, o Amir de Siracusa, provavelmente se juntará a nós aqui amanhã.

Ibn Fityan ficou impressionado com a notícia. Respondia a todas as suas perguntas.

— O hammam também foi preparado. As mulheres já haviam se banhado naquele dia e declinaram da oferta. Pediram uma infusão de folhas de menta frescas e foram escoltadas até o terraço. Mayya ficou pensando se deveria acompanhar Muhammad e conversar com ele enquanto se banhava, mas achou que seria cedo demais.

A intenção de Idrisi era tomar um banho sem ser perturbado e meditar no problema espinhoso que o preocupava desde que haviam deixado o palácio: Balkis ou Mayya?

Poderia ser a sua única oportunidade de ficar nos braços de Balkis antes que seu marido chegasse e partissem para Siracusa. E se Mayya insistisse, como era muito natural, que passassem a primeira noite aqui juntos e recuperassem o tempo perdido? Seria desumano

resistir a tal pedido. Balkis, que amava sua irmã, entenderia. Havia tomado sua decisão, mas dúvidas persistiam simplesmente porque seu coração o puxava na direção errada. Deixado consigo mesmo, sem outras considerações, teria corrido para Balkis. Sabia que podia se arrepender disso para toda a vida e, no entanto, se Alá fosse generosa e lhe desse mais dez anos, seria fútil vivê-los num mar de infelicidade.

Ao deixar o hammam, refrescado e pronto para encarar sua nova vida, havia decidido em favor de Mayya. Não deixaria que nada o desviasse deste caminho. Ibn Fityan havia colocado a mesa na sala de jantar que era raramente usada. A mesa retangular podia acomodar facilmente 25 pessoas, mas ele havia preparado apenas uma extremidade dela para Idrisi e as mulheres. Quando entraram ele observou com admiração as diferentes cores usadas por Mayya e Elinore, mas foi Balkis quem fez parar a sua respiração.

Vestia um manto branco de suma sacerdotisa e havia levantado os cabelos para trás com um broche de prata.

O banquete de boas-vindas foi considerado um sucesso e o doce licor doméstico de limão que, Idrisi insistia, era um digestivo muito mais eficiente do que o preparado semelhante feito de semente de anis, foi altamente elogiado.

— Mayya me disse que você é também um mestre da medicina — Balkis disse num tom levemente indiferente -, mas eu não tinha idéia de que preparava misturas medicinais.

— Preparo e tenho até uma que ajuda a eliminar gravidez indesejada, muito procurada nos estados lombardos. Eles estupram nossas mulheres, que têm vergonha de contar aos irmãos, pais ou maridos. Vão ao bruxo local e imploram pela erva que vai purgar o seu sistema. Funciona. Você encontrará a receita no Aqrabadhin de al-Kindi.

Quando estive no Cairo eu a apresentei aos médicos no maristan de al-Nasiri. Pressionavam-me a escrever um livro sobre drogas e ervas compostas que podiam curar doenças comuns. Se tiver tempo ainda vou escrever este trabalho.

Balkis fuzilou-o com o olhar e Elinore, achando seu pai insensível ao fato de sua tia não ter filhos, decidiu mudar de assunto.

— Essa bebida de limão que todas adoramos esta noite. O senhor mesmo a destilou?

— Eu o fazia, mas o sultão gostou tanto dela que tive de revelar a fórmula e do palácio ela se espalhou para os mosteiros e as propriedades. Meus próprios suprimentos vêm do palácio agora. Fico realmente surpreso de que nunca a tenham provado antes. Achei que os eunucos garantiriam suprimento regular no harém.

Por algum motivo isso fez Balkis rir.

— Fala como se fosse a única bebida disponível no palácio. E se os eunucos a detestassem?

Mayya, notando a ligeira tensão entre Balkis e Idrisi, ficou a pensar se algo diferente teria acontecido em Siracusa. Seguiu a sensibilidade da filha para que ele ficasse confinado a um assunto seguro.

— Muhammad, eu estava tentando me lembrar daquele seu amigo de quem você falava sem parar alguns anos atrás. O homem que destilou o que você considerava o mais delicioso elixir que jamais provara. Não consegui lembrar seu nome, onde morava ou sequer o nome da sua bebida.

Idrisi riu.

— Muammar ibn Zafar! Morreu há dois anos e o idiota do seu filho vendeu os pomares a um mercador de Shakka. Vocês todas teriam gostado dele. Foi um dos mais talentosos cozinheiros cuja comida já tive o prazer de provar. Mas o elixir era algo muito especial. Ele o chamava de Néctar Celestial. Certa vez, hospedado em sua casa para pedir-lhe conselhos sobre curas para prisão de ventre, que era comum entre marinheiros, ele criou um supositório com a mistura mais eficaz. Era outubro e havia muita fruta caída pelo chão. Laranjas, limões, pêssegos, abricós, tangerinas e outras que não lembro. Mandou seus homens recolherem estas frutas do chão. As que não estavam machucadas foram lavadas e colocadas numa grande panela perpendicular de barro, quase tão alta como Balkis. Não, um pouco mais alta. A estas frutas acrescentou açafrão, pimenta-do-reino, gengibre macerado e molhos de alho descascado. Então o panelão foi selado com pasta de farinha e deixado ao ar livre até abril seguinte.

Estive presente quando o lacre foi rompido. O mais delicioso aroma nos saudou. Muammar subiu numa escada e agitou a panela até ficar tudo adequadamente misturado.

Eu provei a mistura antes e depois que foi destilada. Completamente diferente cada vez, mas igualmente inesquecível. Al-kohl. Puro. Celestial. Eu me consideraria afortunado se provasse uma bebida destas de novo antes de morrer.

Elinore bateu palmas.

— Mas seguramente podemos tentar fazê-la nós mesmos. Não podemos tentar? Só uma pequena quantidade?

— Certamente, filha. Pode tentar, mas não fique desapontada se falhar. Existem algumas coisas neste mundo que são melhores quando provadas uma só vez.

— Mas eu não a provei, Abu.

Depois que a mesa foi tirada, os criados foram dispensados para a noite. Os quatro se entreolharam à luz das velas. Elinore e sua mãe trocaram olhares antes que a jovem se dirigisse ao pai.

— Abu?

— Elinore bint Muhammad?

— Sei que é um pedido difícil mas, como sabe, a mudança do palácio para sua casa foi tão súbita, talvez súbita demais e estávamos emocionalmente despreparadas...

— Não posso imaginar sua mãe emocionalmente despreparada para nada.

— Falo mais por mim do que por ela. Sinto-me realmente feliz por estar aqui, mas deve entender que levará algum tempo para que eu me ajuste à mudança.

— Entendo isso, filha, e farei o que puder para facilitar-lhe as coisas. Má seja louvado, terminei meu livro. O sultão me doou um pequeno navio e, a não ser que revogue a ordem, o que é pouco provável porque ele não é um governante mesquinho, então poderemos viajar juntos.

A alegria no rosto de Elinore foi visível. Mas ela abordou outra questão.

— Gostaria de viajar. Nunca botei o pé fora de Palermo até visitarmos Siracusa poucos meses atrás. Mas, Abi, quero lhe pedir... se eu posso dormir com Ummi esta noite? Só esta noite, porque estou me sentindo deslocada.

Que Idrisi conseguisse franzir a testa diante deste pedido foi um tributo ao seu engenho — pelo menos foi o que disse a si mesmo.

— Elinore, concedo-lhe o pedido, mas não o repita com muita freqüência. E agora desejo falar com sua mãe a sós um pouco, se posso contar com a sua aprovação para isso.

Ela abraçou o pai antes de deixar a sala, acompanhada por Balkis, que quase não havia falado a noite toda e parecia absorta em seus próprios pensamentos. Tinha evitado o olhar dele e restringira sua conversa a perguntas triviais sobre Palermo. Fazia aquilo simplesmente para aborrecê-lo? Não lhe ocorreu que, ao contrário da irmã, ela podia não estar se sentindo muito feliz.

Sozinho com Mayya no seu quarto, abraçaram-se calorosamente. Então ela olhou cuidadosamente ao redor do quarto e para a cama dele.

— Foi generoso da sua parte deixar Elinore dormir na minha cama esta noite. Está inquieta, o que não é surpreendente. Tudo aconteceu rapidamente demais para ela.

Acho que está dividida em relação à mudança. Uma parte dela queria ficar no palácio até a morte de Rujari. É muito apegada a ele, você sabe.

— E ele é apegado a ela, mas este sultão já morreu no que me concerne.

— Com Felipe em desgraça e Rujari morto, o tesouro continuará pagando a você?

— A mãe dos meus filhos vive na propriedade em Noto, mas eu tenho outra que não visito há anos. Ganhei-a depois que meu irmão morreu sem deixar herdeiros. Podíamos vendêla à Igreja ou a um Barão. É uma propriedade vasta. Ou eu podia deixá-la para você e Elinore. Quase não gastei nenhum dinheiro nos últimos dez anos. A casa e os empregados são pagos pelo tesouro e poucos anos atrás a casa foi legalmente registrada em meu nome por serviços prestados ao estado. A vida não será tão luxuosa como vocês estão acostumadas, mas não passaremos fome.

Dito isso, ele mudou de assunto.

— Tive o sonho mais estranho em Siracusa. Ela fingiu ignorar enquanto ele lhe contava a história da suma sacerdotisa imortal que havia deixado odores inconfundíveis.

— Certamente você se enganou. Seu próprio corpo, como sabemos, deixa muitos traços sem a presença de mais ninguém.

— Mayya, mulher enganadora, por quanto tempo vai sustentar a sua história?

Ela o olhou com surpresa.

— Descobriu?

— Como poderia não descobrir? A droga foi eficaz, mas não apagou minha memória.

— E o que aconteceu depois?

— Balkis não lhe contou?

— Elinore não nos deixou um momento a sós, embora eu notasse um estranho sorriso no rosto de minha irmã.

Ele contou-lhe o resto. Com uma expressão resignada no rosto, Mayya perguntou:

— Ela realmente quer viver aqui, conosco?

— Não tinha nenhuma idéia, como você ou eu, de que isso aconteceria tão cedo. Estávamos discutindo a situação depois da morte de Rujari e as mudanças inevitáveis no palácio.

— Mas ela ficaria feliz em deixar o Amir e viver como sua segunda esposa?

— Terceira. Mayya começou a rir.

— Você viveu sozinho durante vinte anos. Agora quer nós duas?

— Quero.

— Que seja escolha dela, não sua. Seu marido é um homem bondoso e ponderado e ela é mais apegada a ele do que você se dá conta. Se conseguiu engravidá-la, não creio que o Amir fará quaisquer perguntas. Ficará feliz, agradecerá a Alá e haverá comemorações em Siracusa. Por que lhe negar esse pequeno prazer?

— Concordo, deve ser escolha dela. E ela deve pensar cuidadosamente.

— Pode discutir com ela esta noite depois de acabarem as trocas de prazeres.

— Mayya, eu queria passar esta noite com você.

— Sim, sim, eu sei, mas, já que não pode, por que ficar sozinho quando a suma sacerdotisa o espera? Vou deixálo agora. Elinore deve estar ansiosa.

— E eu deveria dizer a Balkis que contei tudo a você ou deseja informála você mesma?

— De tudo o que discutimos hoje, é o que tem menos importância. É uma questão sem significado para mim. Decida você mesmo.

— Está zangada, meu rouxinol, mas por que ajudou Balkis a lançar sua armadilha, em primeiro lugar? Sei que ela insistiu que só o meu sêmen era suficientemente bom para ela, mas você podia ter recusado.

— Cumplicidade é melhor do que traição. Ela era bem capaz de fazer tudo isso sem a minha ajuda. E, se conseguisse, teria algum de vocês dois me contado?

— Estimo que eu teria contado.

— Aproveite a sua noite e durma bem. Com estas palavras Mayya deixou o quarto de Idrisi e voltou para a filha no aposento contíguo.

Ele ficou sentado, pensando na virada ocorrida em sua vida, como esta última fase começara e como poderia terminar. Mas não ficou sozinho por muito tempo. Deixando o quarto nas pontas dos pés, dirigiu-se ao quarto de hóspedes.

Encontraram-se logo ao entrar pela porta de Balkis, cada um tão sufocado de paixão que as palavras lhes escapavam. Ele a levantou do chão e colocou-a gentilmente sobre a grande cama de dossel onde se despiram. Então sussurrou:

Ishgan khumari, qum, atla. Esta noite, todas as cinco obrigações em uma. Está pronta?

Ela respondeu colocando suas pernas ao redor do pescoço dele de modo que sua barba cobria o montículo depilado e aromático dela. Sempre que um deles queria falar, o outro tomava uma ação preventiva. Horas depois, ele notou o céu e percebeu que a aurora não estava muito distante.

Balkis, também acordada, confessou sua ansiedade.

— Achei que seria difícil para você hoje, mesmo depois que Elinore reivindicou a mãe para esta noite.

— Estava indeciso. Queria estar com você porque o Amir a levará embora muito em breve. Mas eu não queria magoar Mayya também. O pedido de Elinore, pensei, foi muito útil.

Ela riu. — Para quem? Toda vez que estou com você não consigo suportar a idéia de voltar para Siracusa. Sei que meu marido é bondoso e ponderado e todas as outras palavras que Mayya usa para descrevê-lo. É verdade que não estou infeliz, mas nem estou satisfeita.

— Eu havia notado. Ela deu um tapa na sua bunda.

— Mayya me disse esta noite que se você ficar grávida isso deixaria o seu marido tão feliz que ele não faria perguntas.

— Ela acrescentou que, se fosse um menino, ele herdaria grandes propriedades em Siracusa? É o que Aziz quer. O que você quer, Muhammad?

— Habibi, eu quero você. Fizeram amor pela quarta vez naquela noite. Então ela repetiu a sua pergunta.

— Não quero solidão na minha vida. Mayya e Elinore vindo morar aqui comigo resolveu isso. Mas não serei feliz sem você. Acha que poderia ser feliz aqui?

— Muhammad, já pensou como se sentiria se eu lhe pedisse para viver com você e com outro homem ao mesmo tempo?

— Inimaginável. Por que eu deveria pensar nisso? É haram, não permitido pelo Corão.

— Nem é adultério aquilo que cometeu já quatro vezes esta noite e cometerá de novo se conseguir levantar pela quinta vez antes do sol nascer. E o Corão afirma que os homens que fornicam entre si deveriam ser imediatamente mortos. Isso impediu alguém? E aqueles que se mascaram por trás da piedade são geralmente os piores ofensores. Por isso responda a minha pergunta.

— Balkis, Balkis. Como pode perguntar isso? A resposta é não. Eu não toleraria você vivendo com dois homens na mesma casa.

— Mas tolera meu marido.

— Ele só é meio-homem.

— Isto é indigno de você.

— Peço desculpas. Escondeu o rosto entre as pernas dela. O gosto dos seus sumos o reavivou e ele conseguiu levantar pouco antes do sol, completando assim as cinco fornicações obrigatórias do jihad sugerido por Abu Nuwas. Ela o abraçou com força, o sol nasceu e eles adormeceram nos braços um do outro até que uma batida discreta na porta assustou a ambos. Uma criada anunciou:

— O café-da-manhã está à sua espera no terraço, senhora Balkis.

Nenhum deles deixou a casa naquela manhã. Idrisi lamentou parcialmente não ter comparecido ao julgamento. Pelo menos poderia se despedir em público do seu amigo.

Caminhou para cima e para baixo no terraço e nos quartos, observando as ruas para ver se havia algum ajuntamento. Ibn Fityan saiu por poucas horas e voltou para lhe informar que os magistrados haviam mandado acender a fogueira antes mesmo do julgamento começar.

Idrisi não podia mais ficar em casa. Anunciou que ia até a mesquita fazer preces para Felipe. Ibn Fityan e quatro criados pediram para ir com ele. Dois deles estavam armados.

As mulheres olharam da sacada em silêncio enquanto os homens desciam o caminho sinuoso até a rua principal. Elinore, sentindo que sua mãe e sua tia desejavam ficar a sós, foi desfazer as suas malas que tinham acabado de ser entregues por homens pertencentes à administração do palácio. Mayya insistiu que ficassem para uma refeição, mas eles declinaram. O mais velho, um homem emaciado de sessenta anos, com lágrimas nos olhos, respondeu:

— Agradeço a sua oferta, senhora Mayya, mas nossos corações estão pesados hoje e não sentimos vontade de comer. O Amir Felipe cuidava de nós e protegia nossos interesses.

Se puderam queimá-lo agora, quanto tempo acha que vamos sobreviver?

Mayya nada mais pôde fazer além de agradecer-lhes com genuíno calor. Saudaram-na e partiram.

— É uma época estranha — disse ela a Balkis.

— Jamais vi coisa assim em todo meu tempo no palácio. Durante dias os eunucos sussurraram entre si, chorando lágrimas copiosas e ignorando nossos chamados. Felipe inspirava uma lealdade impressionante.

Balkis acenou com a cabeça mas não falou.

— O Amir de Siracusa nos dará um relato do que aconteceu. Quando vocês partem?

— Meu marido desejará voltar o mais cedo possível. Ibn Muhammad e eu tivemos sorte. Os ventos nos favoreceram. Mas podemos levar dois dias para voltar e já estão queimando mosteiros em Noto.

— Balkis, minha caríssima amiga e irmã, você parece agitada.

Diga-me o que a perturba e fale a verdade. Foi a tragédia de Felipe que mexeu tanto com você?

— Por favor, pare, Mayya. Não posso suportar. Sabe perfeitamente o que me aflige. Estou segura de ter o filho dele dentro de mim.

— Isso deveria fazê-la feliz.

Era o que queria.

— Sei, mas não sei. Nunca pensei que isso pudesse me perturbar tanto.

— Ah, entendo, durante a noite, a mão do amor vestiu-a com um manto de carícias, mas a aurora cruel o rasgou todo. Acontece com todos nós. Ouça-me agora, Balkis.

Deve parar de comportar-se como uma rapariga enamorada de 16 anos. É uma mulher casada. Dentro de poucas horas seu marido vai voltar e ordenará que volte com ele. Que vai fazer? Pense, criança.

— Irei com ele — disse Balkis resignada -, mas meu coração ficará aqui.

— Cuidarei bem dele, eu lhe prometo. Seria uma humilhação terrível para seu marido se você não voltasse. Se estiver grávida, o que aconteceria se ele ficasse zangado e a acusasse de adultério? Você precisa pensar em tudo nos dias de hoje.

— Mayya, irei com ele, não se preocupe. O que não entendo é como você, que pôde compartilhar os favores do sultão com cinqüenta outras, sem contar a sua esposa, está relutante em partilhar Idrisi comigo.

— Creio que em todo meu tempo no palácio Rujari veio à minha cama duas vezes. Ouviu? Duas vezes! Sabia que eu amava seu amigo, evitava seu olhar e deixava os eunucos trazerem Muhammad para me ver sempre que estava em Palermo. Se eu tivesse de compartilhar Muhammad gostaria que fosse você em vez de qualquer outra. Mas prefiro guardá-lo para mim mesma.

Você mal o conhece. Como pode amá-lo sem o entender plenamente ou o que ele escreve?

— Você sabia tudo isso quando caiu em seus braços pela primeira vez?

— Você tem um marido, que é bondoso para você e...

— Se gosta tanto dele, por que não trocamos de maridos? Você vai para Siracusa e eu fico aqui.

— Você é uma mulher tola.

Fizeram silêncio assim que Elinore entrou no quarto.

— O que vocês duas estavam discutindo?

Silêncio.

— Deixem-me adivinhar. Meu pai.

As irmãs ergueram os olhos espantadas.

— Não foi tão difícil perceber. Minha tia estava num ânimo estranho na noite passada e você também, Ummi. E as criadas estavam cochichando e dando risinhos abafados sobre quantas vezes teriam de lavar os lençóis no quarto de hóspedes. Está sangrando, tia?

Balkis reprimiu um sorriso e sacudiu a cabeça.

— Pensei que não. Então percebi que algo de que eu não me dera conta estava acontecendo entre vocês duas e ele.

Foi tudo resolvido? Claramente que não. Estão ambas grávidas?

— Elinore, isto é inaceitável.

— Ouvi as duas rindo e conspirando quando estávamos em Siracusa. Não ouvi tudo, mas o bastante para entender o que ocorria. Esperava que minha tia tivesse sucesso e assim eu teria um priminho ou uma priminha. Poderia uma de vocês me explicar o que saiu errado no seu plano?

— Ela se apaixonou por seu pai e preferiria ficar aqui conosco.

— É uma idéia interessante mas, querida tia, e quanto ao meu bondoso tio? Ficaria terrivelmente magoado. É um homem tão bom!

Balkis deixou o quarto em lágrimas.

— Elinore — disse sua mãe na voz mais severa que pôde articular -, não cabe a você dizer a sua tia o que ela pode ou não pode fazer. A escolha será dela.

— Não quer compartilhar Abi com ela, ou quer? Nada do que vocês irmãs façam poderia me surpreender. Está grávida, Ummi?

— Acho que sim, mas ainda não tenho certeza.

— Gostaria de saber qual das duas será a primeira. Sua conversa foi interrompida pela volta dos homens. Idrisi entrou na sala com o Amir, a quem ofereceram banho e refrescos, mas declinou.

Queria falar com sua mulher. Ibn Fityan escoltou-o ao quarto de hóspedes.

— O que está acontecendo, Muhammad? — perguntou Mayya.

— E deve saber que nossa filha sabe de tudo. Ela bisbilhotou minha conversa com Balkis em Siracusa...

— Entreouvi Ummi e tia Balkis em Siracusa — Elinore interrompeu.

Momentos depois, o Amir e uma estranhamente exultante Balkis juntaram-se a eles. O Amir abraçou a sobrinha e perguntou sobre a vida fora do palácio. Ela respondeu que ainda era cedo para julgar.

Então ele se virou para Mayya.

— Sou tão agradecido ao meu caro amigo Ibn Muhammad por concordar em que Balkis deva ficar aqui por alguns meses. Viajarei por várias aldeias e cidades da nossa região e ela ficaria solitária sem ninguém no palácio. Disse que me acompanharia em minhas jornadas, mas a situação é perigosa.

Alguns mosteiros já foram incendiados. Com sua permissão, vou me retirar agora. Se Ibn Fityan me acompanhasse, eu chegaria mais cedo ao meu navio. Que Alá proteja a todos.

As três mulheres não se entreolharam. Elinore, achando difícil conter sua alegria, pediu desculpas e deixou a sala. Mayya e Balkis sorriram com um ar vago.

Idrisi saiu com o Amir e deu-lhe as despedidas.

— Não se preocupe com Balkis. Ela será bem cuidada.

— Nestes tempos incertos — replicou o marido — é a única coisa de que tenho certeza.


13

O Confiável liberta uma aldeia e dá combate aos bárbros lombardos.
O doce sabor da vitória. Vida e destino.

As cinco da manhã o mensageiro enviado pelo Confiável voltou ao tosco acampamento. O outono chegava ao fim e as chuvas recentes tinham coberto a paisagem ao redor de Noto de verde. Os riachos que desciam sinuosos das pequenas colinas até a planície onde as aldeias foram construídas estavam inchados de novo. Uma ligeira friagem no ar e as mulas indóceis eram uma indicação de que trovão e mais chuva estavam a caminho.

O mensageiro entrou debaixo do rude abrigo onde o Confiável repousava.

— Mestre, levei sua mensagem ao nosso povo. Os homens ficaram assustados, mas ajudarão como o senhor pediu. Dizem que existem quase trezentos bárbaros lombardos muito bem armados. A maioria deles vive no castelo da propriedade do Bispo João. Dizem que estes homens roubam nossas colheitas e assediam nossas mulheres todo dia porque não têm nada mais a fazer.

— Avisou a eles que as crianças e mulheres deviam deixar a aldeia antes de o sol nascer e encontrar abrigo em outro lugar hoje?

O mensageiro acenou com a cabeça.

— Vão fazer isso. Tinham medo de serem feitos reféns e falaram de uma aldeia a um dia de cavalo dali onde alguns anos atrás as crianças foram seqüestradas e mortas e tiveram suas cabeças empaladas para apodrecer. Foi uma história horrível.

— Você agiu bem. Vá comer alguma coisa. Dentro de poucas horas vamos surpreender os bárbaros.

A notícia da morte de Felipe tinha chegado ao Confiável mais de duas semanas atrás. Decidiu-se contra retaliações imediatas pela simples razão de ter presumido que o inimigo estaria preparado. Foi o que ocorreu. Quando o bispo voltou do julgamento e da fogueira alertou seus mercenários e eles estavam preparados, mas quando viram que não houve reação, nem mesmo depois que o bispo anunciou a morte de Felipe como uma advertência para todos aqueles que tentassem enganar a Igreja e Deus, eles haviam abaixado a guarda de novo.

O Confiável levantou-se e cobriu seus ombros com um cobertor. Os homens comiam pão dormido, mergulhando-o em azeite de oliva aquecido com tomilho silvestre e alho.

Saiu para uma curta caminhada sozinho até que encontrou um lugar, perto de um regato. Ergueu a túnica e agachou-se no chão. Alá seja agradecido, podia permitir que seus intestinos funcionassem sem medo de ser perturbado. Depois que se lavou no riacho, subiu o pequeno morro e viu a aldeia que estavam para atacar. Aos seus homens parecia falar com grande autoridade, mas esta era a primeira vez que lideraria pessoas num combate e sabia que algumas delas morreriam. Ontem, antes da prece do anoitecer, falara com eles durante quase três horas para explicar por que tinham de fazer o que iam fazer.

Suas próprias crenças religiosas eram não-dogmáticas e contraditórias, resultado das numerosas discussões teológicas e dos ferozes debates de seus anos no seminário no Cairo. Excitado pelos textos que emanavam do alAndalus, ele abandonara a família e partira para Qurtuba e depois para Siqilliya.

Isso fora vinte anos atrás. Logo depois da sua chegada conhecera uma jovem de Noto, filha de um rico mercador, e eles se amaram, mas como ele não tinha bens o mercador proibira o casamento. Por isso, ela se matara. Ele se tornara um místico, errando de aldeia em aldeia. O mercador, mortificado pelo que havia feito, morreu pouco depois com o coração partido e, como a jovem morta era sua única filha, deixou sua propriedade para o Confiável, se é que o podiam encontrar. Quando a notícia chegou a ele, voltou a Noto, vendeu a casa e as mercadorias, e distribuiu seu dinheiro aos pobres. Voltou então às suas andanças.

Agora ele — sem nenhuma experiência de embates militares — estava à véspera de uma batalha. Havia instruído seus seguidores para esconder as armas debaixo das roupas e adotarem o comportamento de camponeses pobres e alquebrados. O plano fora cuidadosamente elaborado. Deixaram o acampamento enquanto ainda não era totalmente noite, em número de cento e cinqüenta, a maioria montando mulas, com apenas uma dúzia a cavalo. Estes tinham instruções especiais. O Confiável ia no dorso de uma mula liderando a procissão. Nada poderia parecer menos ameaçador. Quando chegaram aos portões do castelo perguntaram-lhes a que vinham.

— Somos peregrinos pobres — respondeu o Confiável.

— Acreditávamos no falso Profeta Maomé, mas vimos o erro de nossa escolha e desejamos nos converter para a verdadeira fé a fim de poder cultuar na igreja. Não havia nenhuma em nossa aldeia, por isso viemos ao bispo para ver se ele podia nos batizar. Trouxemos oferendas para o bispo.

Embora ainda fosse cedo e a maioria dos guardas ainda dormisse, tiveram permissão para entrar. O bispo, ao saber que seu tesouro ia ser enriquecido e almas seriam salvas, colocou apressadamente a batina, empurrou de lado o jovem deitado em sua cama e correu para receber os peregrinos.

— Qual de vocês fala em nome destes homens? — perguntou.

— Cada um fala por si — replicou o Confiável. Quando o bispo se aproximou, três homens o agarraram, cobriram sua boca e o arrastaram para longe. Vendo isto, os camponeses locais que estavam escondidos emergiram de todos os lados com pilhas de lenha e cercaram com elas o castelo. Jogaram óleo sobre a madeira e logo recuaram. O castelo estava em chamas. Ao sentir o calor, os mercenários lombardos saíram correndo, muitos deles nus, mas com espadas na mão. Era tarde demais. O Confiável liderou a carga e seus homens o seguiram. Foi uma batalha desigual e bastante desagradável. Nenhum lombardo sobreviveu. Quando o castelo estava todo tomado pelas chamas, o bispo foi arrastado para dentro e os aldeãos lembrariam depois que o Confiável subiu numa plataforma de madeira, ergueu a voz para que todos pudessem ouvir e disse:

— Isto é por Felipe al-Mahdia. Estas foram as lamentáveis conseqüências de uma guerra civil não-declarada inaugurada pelo julgamento e morte de Felipe e que, nos anos seguintes, levaria a revoltas em cada canto da ilha.

A meio-dia o castelo estava em ruínas. Toda a aldeia havia se reunido para ver o grande incêndio. Algumas das mulheres caminharam até os lombardos mortos e cuspiram neles. O Confiável entendia sua raiva, mas desencorajou tais atos e ordenou que todos os mortos tivessem um enterro digno. Tinha perdido apenas seis homens, que foram carinhosamente banhados, amortalhados e enterrados perto do local da velha mesquita. A aldeia ofereceu preces no enterro dos mártires.

A meia dúzia de nazarenos cujas famílias tinham vivido em harmonia com os muçulmanos há duzentos anos foi convocada para enterrar seus mortos. No início se recusaram:

— Somos siqilliyanos e eles são lombardos. Não nos forcem a enterrar estes monstros.

Mas o Confiável disse que eles deveriam ser enterrados em terreno consagrado e, relutantemente, suas instruções foram obedecidas.

Atrás das colinas no horizonte baixo o sol começava a se pôr. Os aldeãos e os soldados do Confiável estavam banhados no seu brilho. Escureceu e as estrelas começaram a aparecer. Os aldeãos acenderam fogueiras na praça e as comemorações começaram com cantos e danças. Quando o Confiável chegou um súbito silêncio se fez enquanto todos olhavam para ele com admiração. Fez sinal para que continuassem com as festividades, mas uma timidez coletiva baixou sobre eles. Os aldeãos preferiram se juntar ao redor do fogo que morria. Eles, que até o início daquela manhã eram os conquistados, agora se tornavam os vencedores. O que aconteceria agora? Uma sensação de expectativa iluminava seus rostos e esperavam que ele falasse. Quando ia se levantar, os homens que deixara de guarda chegaram, arrastando um monge. Ele vira o castelo queimado e presenciara a rebelião que acontecera, mas não tinha visto os guardas. Os aldeãos o reconheceram e disseram que não era um estranho, mas fora monge antes que a Igreja roubasse a terra e trouxesse os lombardos para agir como guardas. Ele fora passar um tempo com sua família em Noto um mês antes.

— Qual é o seu nome, padre?

— Yuhanna ibn Yusef.

— Pode ver o que aconteceu. Se estiver preparado para cuidar do seu rebanho deveria ficar, mas se tiver pensamentos de vingança então só pode haver uma solução.

— Jamais gostei dos lombardos, mas lamento que tivessem de queimar o bispo.

O monge sentou-se entre os aldeãos, que lhe deram comida e vinho.

O Confiável levantou-se para falar a eles. Falou com simplicidade, explicando a história da sua fé, suas vitórias e suas derrotas e como tão freqüentemente tinham perdido por lutarem entre si. Foi assim que perdemos Siqilliya e era assim que poderíamos perder alAndalus. Então alguma coisa nele decidiu que era tempo de ir além do que já era conhecido de muitos deles.

— O que nunca é discutido abertamente é a cobiça de nossos emires e sultãos, que chegam, pegam a terra e gozam dos seus frutos sem erguer um dedo. Por que deveríamos trabalhar e eles só comerem? Apenas cem anos depois da morte do nosso Profeta os camponeses da Pérsia se rebelaram contra os proprietários de terras. Houve semelhantes levantes em Khorasan e no Azerbaijão. Eram todos Crentes. Os pobres lutavam contra os ricos porque argumentavam que eram iguais diante de Alá. Os ricos replicavam que no Dia do Juízo diante de Alá podemos todos ser iguais, mas na terra o Corão nos ensina que os ricos têm seus direitos enquanto pagarem os impostos. Alá quis assim. Como poderia ser de outro modo? E eles tiveram uma resposta rude de Ali ibn Muhammad no ano de 169 do nosso próprio calendário. Os Zanj ergueram-se em armas contra o califa em Bagdá. Vejo por seus rostos que estão chocados. Sabem do que estou falando. Os Zanj eram escravos de Ifriqiya que se tornaram Crentes em Alá e seu Profeta. Eram os mais pobres dentre os pobres. Comparados a eles todos vocês são ricos. Trabalhavam para os senhores das terras nos pantanais aquosos entre Bagdá e Basra. Três vezes os califas mandaram exércitos para derrotá-los e três vezes os Zanj derrotaram aqueles exércitos. Por quê? Porque nada podia dividi-los e nada tinham a perder. Durante dez anos governaram a si mesmos da medina al-Mukhtara. Basra tornou-se sua cidade também. Estavam preparados a fazer paz a qualquer momento, contanto que o novo sistema que haviam estabelecido não fosse tocado. E os ricos tremeram e os mercadores foram obrigados a doar mais e mais para formar um exército que pudesse destruí-los. Depois de um longo cerco, foram derrotados, mas também o foi a escravidão naquela forma.

— Por que lhes conto isso? Porque como irão decidir viver depois da sua vitória irá determinar quanto tempo sobreviverão. Se um de vocês decidir tornar-se o senhor da terra e o resto aceitar, então não vão durar muito. Se trabalharem juntos, compartilharem a comida, cuidarem uns dos outros, como muito da nossa gente fazia nos dias mais antigos, então nossa comunidade poderá sobreviver. Um modo de vida que proteja os interesses de todos é um modo de vida pelo qual as pessoas morrerão.

O que é ensinado pelos lábios daqueles que usam as leis e os costumes para defender a propriedade que eles roubaram em primeiro lugar, ou herdaram daqueles que a roubaram, não vale nada. Sejam ousados. Esqueçam-nos. O que conseguiram hoje vale mais do que todos os nossos costumes. Não sou daqueles que acreditam que Alá decide todas as nossas ações na terra. Se assim fosse, ele seria um monstro. Qual seria então o sentido de um Dia do Juízo Final? Vejo que as crianças já estão dormindo. Foi um longo dia. Todos nós precisamos de algum descanso. Podemos falar mais amanhã. Vou passar algumas semanas com vocês.

Naquela noite, enrolado em seu cobertor, o Confiável fez sua cama no chão da igreja recém-construída que, apesar da sua proximidade com o edifício incendiado, não tinha sofrido nenhum dano. Ficou acordado meditando sobre os acontecimentos do dia. Foi seu primeiro triunfo real desde que deixara o Cairo. No passado sonhara em escrever um tratado filosófico que demolisse as fundações do sistema de pensamento alGhazali e defendesse a obra de Ibn Rushd. Provocaria um terremoto teológico e ele seria a sua causa. Suas anotações estavam quase prontas quando sua amante se suicidou. Abandonara tudo e tornara-se um asceta, mas o que acontecera hoje fora mais importante do que sua filosofia. Claro, sem o ceticismo que ele havia absorvido não teria tido a coragem para fazer o que era preciso.

O que o abalara esta noite fora ver uma jovem, ouvindo-o falar, que era uma réplica da sua Bulbula, morta há tanto tempo. Teria uma irmã? Levara muitos anos para recuperar-se da sua perda, e agora a coincidência era perturbadora. Precisava saber se era parente. Perguntaria quando o dia nascesse.

Mas quando a aurora rompeu, o pensamento se perdeu quando foi ver seus homens. Ficou sentado com eles compartilhando o pão enquanto lembravam seus amigos caídos.

Então perguntou se algum deles se instalaria nesta aldeia para dar aos aldeãos uma sensação de segurança. Se 12 deles pudessem ficar, ele poderia seguir em frente com os demais na esperança de repetir sua vitória nas proximidades de Siracusa. Depois de uma breve discussão, 12 voluntários deram um passo à frente, mas todos insistiram na mesma condição: o Confiável os convocaria se precisasse de mais homens. Concordou e abraçou um por um. Erguendo suas vozes, eles gritaram em uníssono: "Longa vida para o Amir al-Jihad!" Informou-lhes numa voz baixa que preferia ser o Confiável a ser um Amir de qualquer tipo. Seus homens nunca usaram o título de novo.

No resto do dia os camponeses mostraram-lhe a extensão da propriedade ligada ao castelo. Milhares de acres espraiavamse de cada lado da aldeia, há muito tempo desabitados e incultos. A família de Ibn Hamza se instalara aqui há duzentos anos e os camponeses lhe disseram que suas famílias também estavam aqui quase por tanto tempo.

Cinco gerações tinham vivido em paz até que os nazarenos chegaram há vinte anos.

— Quantos deles vieram? Por que não resistiram? Os homens mais velhos começaram a agitar-se inquietamente, fingindo que não haviam entendido a pergunta. Foi um dos camponeses mais jovens que respondeu.

— Hamza Ibn Omar, o dono da terra, estava indeciso quanto a se converter ou não. Demorou-se um pouco demais e só se converteu uma semana antes que os lombardos chegassem. Rolaram de rir quando souberam do fato. O bispo ofereceu-se para deixálo livre se dissesse onde estava escondido o ouro. Ele chorou e caiu de joelhos e jurou repetidamente que não havia ouro. Eles o mataram e a sua família diante dos nossos olhos. Eu tinha dez anos e a lembrança ainda me tortura. Várias criancinhas foram decapitadas. Depois disso poucos podiam pensar em outra coisa a não ser como sobreviver. Cada um por si e por sua família.

O Confiável colocou seu braço ao redor do ombro do camponês.

— Sabe ler e escrever? Ele acenou com a cabeça.

— Minha mãe era cozinheira e trabalhava para a família de Ibn Omar. Eu brincava com seus filhos e aprendi a ler e escrever com eles.

— E depois?

— Nada. Os lombardos, a maioria deles não sabia ler, tiraram todos os livros da biblioteca e os queimaram, mas Alá decidiu que iria chover naquele dia.

As crianças salvaram os livros e eles estão escondidos em diferentes casas. Nunca parei de ler mesmo quando não conseguia entender mais do que três frases numa página. Minha mulher me chamou de Ibn al-Kitab.

Os outros riram, mas o Confiável escondeu o seu contentamento ao descobrir camponês tão erudito. Elogio aberto teria provocado a inveja dos outros.

— Ibn al-Kitab é um bom nome. Preciso que você ouça todo mundo e compile um registro. Quero saber em que campo cada camponês trabalhava, quantas horas de trabalho eram prestadas antes e depois que os nazarenos vieram. Então quero que compile outro registro dividindo a terra igualmente entre todas as famílias camponesas.

Este registro deve ser retrodatado de trinta anos. Assinarei as escrituras em nome de Hamza ibn Ornar. Isto é para salvaguardar todos vocês contra qualquer autoridade.

Vocês nada tiveram a ver com a queima do Bispo ou a matança dos lombardos. Culpem os homens que vieram de fora. De qualquer modo, por que desejariam matar alguém quando seu senhor lhes doou a terra há trinta anos? Mais um pedido a vocês. Devem consultar todo mundo antes de chegar à sua decisão. Doze de meus homens querem se instalar aqui. Trabalharão com vocês e, caso se torne necessário, defenderão vocês. Mas devem ter uma parcela igual de terra.

Os vinte e poucos camponeses que o acompanhavam acenaram com a cabeça agradecidos, assegurando-lhe que não haveria problemas quanto a seus homens. Mas ele insistiu que a aldeia devia decidir isso coletivamente. Ibn al-Kitab perguntou:

— Quando diz que a terra deveria ser dividida igualmente, isso inclui Yuhanna, o monge?

— A família dele mora aqui?

— Sim.

— Então deve ser incluído. Podemos nos dar ao luxo de ser generosos. Existe muita terra, como acabamos de ver, e é melhor repartir com todo mundo.

Quando voltavam, Ibn al-Kitab sussurrou:

— Ficaria honrado se pudesse juntarse a nós para o jantar.

— Gostaria de participar e então poderão me mostrar alguns dos livros que salvaram da fogueira.

Mais para o fim da tarde, quando os camponeses tinham voltado da lavoura, um grande mehfil congregou-se na praça. Ibn al-Kitab falou do plano sugerido pelo Confiável.

Foi saudado com gritos de alegria. Então um canto semi-espontâneo irrompeu, durante o qual os homens do Confiável permaneceram em silêncio:

— Vida longa para Amir al-Jihad. O Confiável levantou-se. Disselhes que era sua própria força que os levaria para a frente a partir de agora. Nada mais podia fazer por eles. Dentro de uma semana teriam as escrituras de suas terras e o registro deveria ser guardado escondido num lugar seguro do conhecimento apenas de dez famílias. Só deveria ser mostrado ao emir de Siracusa ou a seus agentes, nunca ao lombardo, que imediatamente o destruiria. Que estavam envolvidos numa fraude era inegável, mas ele tinha certeza de que Alá e Deus e os Profetas Maomé e Isa os perdoariam porque estavam corrigindo uma grave injustiça. Só era necessário que contassem a mesma história a qualquer forasteiro que fizesse perguntas sobre a terra. E fez um último apelo. A terra agora lhes pertencia, mas deviam garantir que cada família fosse alimentada, tivesse leite, água e frutas antes de venderem o produto no mercado. E deveriam prometer reconstruir a sua mesquita. Ao afastar-se da multidão, pessoas de todas as idades tocaram nele em silenciosa apreciação. Ibn al-Kitab pegou no seu braço.

— Confiável, se conseguisse o mesmo em outros lugares desta ilha nós poderíamos montar um exército que tomaria Palermo.

— Não será tão fácil em outros lugares. Começou a chover e os dois homens estavam encharcados quando chegaram à casa de al-Kitab. O Confiável tremia e seu novo amigo insistiu para que trocasse a túnica. Uma camisa limpa e calças largas foram colocadas sobre a cama num quarto ao lado onde ele pudesse despir-se e enxugar-se.

O Confiável começou a chorar de um poço de lágrimas bem no fundo do seu ser. Quando se recuperou vestiu as roupas secas. Elas pendiam soltas sobre o seu corpo.

Não conseguia lembrar a última vez que vestira camisa e calça limpas. Sob a figura barbada e áspera numa túnica que nunca fora lavada revelava-se o nobre perfil de um Amir.

Na sala da frente, ela sorria com dois meninos e um marido orgulhoso do seu lado. Beijou cada menino na cabeça. Até sua voz o fazia lembrar de Bulbula.

— Estamos honrados com a sua presença, Confiável. Notícias a seu respeito chegaram até nós muitos meses atrás, mas nos perguntávamos se o senhor era real ou uma aparição. Fico feliz que seja real. Por favor, sente-se. As crianças vão para a cama e nossa refeição está quase pronta.

Os dois homens ficaram sentados até que Ibn al-Kitab mostrou-lhe um livro cuja visão o fez ficar de pé de excitação. Era A incoerência dos incoerentes, de Ibn Rushd, uma defesa vigorosa da Razão como algo separado da Verdade Divina.

— Isso estava na biblioteca?

— Sim. É um livro que não consigo entender, por mais que tente.

— É difícil, mas é o texto mais corajoso produzido por nossos filósofos. Eu mesmo só li trechos.

Posso tomá-lo emprestado para ler enquanto estiver aqui?

— Ia dá-lo para o senhor. Lágrimas assomaram aos olhos do Confiável.

— Deveria pertencer a todos. Quando a mesquita for reconstruída ela conterá uma pequena biblioteca para livros além do Corão que, como Alá sabe, lemos tão freqüentemente que podemos lembrar cada verso.

Então ela voltou a entrar na sala e ele não pôde mais se conter.

— Posso perguntar seu nome?

— Zainab.

— Desculpe minha rudeza. Lembra-me alguém que conheci há muito tempo em outra vida. Parece-se tanto com ela que, com sua permissão, gostaria de lhe fazer outra pergunta.

O rosto de Zainab empalideceu.

— Pode me perguntar o que quiser.

— Nasceu aqui?

— Sim.

— Seus pais sempre moraram aqui?

— Sim, exceto em tempos difíceis, quando minha mãe conseguiu emprego em Noto. Como minha sogra, ela é uma excelente cozinheira.

— Sabe onde ela trabalhou?

— Sim. E só por poucos anos e antes de eu nascer, mas falava freqüentemente sobre isso. Trabalhou para um mercador, um viúvo que tinha uma filha muito bonita. Ela morreu em tristes circunstâncias.

— Podia incomodá-la e pedir uma tigela d'água, por favor?

Ele tremia e, pensando que sentisse frio, lhe deram um cobertor.

— Sua mãe ainda está viva, Zainab?

— Alá seja louvado, ela estará aqui muito em breve com a nossa refeição. Quando lhe dissemos que o senhor vinha, fez questão de cozinhar. Meu pai morreu alguns anos atrás.

— Ela se chama Halima? Agora foi a vez de Zainab ficar surpresa. Antes que pudesse interrogá-lo, a porta se abriu e correram para ajudar a velha senhora a trazer a comida para dentro de casa. Ela viu o Confiável, aproximou-se, tocou na sua cabeça e o abençoou. Então ele falou numa voz que ela conhecia.

— Halima, não me reconheceu? Ela quase derrubou uma panela e virou-se. Ele escondeu a sua barba. A voz dela enfraqueceu:

— Ibn Zubair, é realmente você? Era a única pessoa ainda neste mundo que conhecia seu nome verdadeiro. Abraçou-a e ambos começaram a chorar. Quando recobraram a calma, ele pediu a todos que jurassem manter segredo.

— A semelhança com Bulbula me alarmou, mas já estava escuro quando vi Zainab pela primeira vez. Achei que podia estar enganado. Não consegui dormir bem na noite passada. As mais loucas conjeturas me passaram pela cabeça. Hoje, quando a vi com sua família, não fiquei mais confuso. Não havia mais nenhuma sombra de dúvida.

Ela se parece exatamente com a irmã, exceto pela cor dos cabelos. A mãe de Bulbula era grega e ela herdou seus cabelos, da cor de ouro... está lembrada?

Halima acenou com a cabeça e beijou suas mãos.

— Seu pai, que Alá o perdoe, nunca se recuperou da sua morte. Foi a culpa que criou os maus fluidos dentro dele.

Foi isso que o matou. Deixou-me todo o seu dinheiro. Eu o distribuí para os pobres. Ele sabia a respeito de Zainab?

— Não. Ninguém sabia até agora. — Devia ter-lhe. contado. Ficaria tão feliz ao vê-la como fiquei. Isso poderia tê-lo mantido vivo. Você e Zainab teriam herdado uma bela casa em Noto e uma pequena fortuna.

— Meu marido teria me matado. Zainab era nossa única filha — ou assim pensava ele — e ficou tão feliz quando ela nasceu, embora tivesse rezado por um filho. Se apenas o mercador, que não era um homem ruim, tivesse deixado Bulbula casar-se com o senhor, quem sabe o que teria acontecido?

— Se ela tivesse vivido, eu não seria o homem que está vendo agora. Ela me teria guardado junto a si. Eu ficaria sentado numa biblioteca a maior parte do dia, lendo, pensando, escrevendo, mas nada mais. Na vida que escolhi sinto que conquistei alguma coisa. Nesta aldeia nós criamos um exemplo que poderia se espalhar. Para que um povo prospere, ele precisa tomar seu destino em suas próprias mãos.

Zainab esperou pacientemente até que o Confiável acabasse de falar.

— Umma, o que foi que aconteceu? Sua mãe lhe contou.


14

Uma gravidez dupla e Idrisi descobre
uma cura fora do comum para tosses e resfriados.

Várias semanas depois, notícias dos acontecimentos que tinham ocorrido numa aldeia tão pequena que ainda não tinha nome chegaram a Palermo. Os mercadores que levavam a informação descreviam o que havia ocorrido em grande detalhe, como se seus próprios olhos tivessem testemunhado o bispo sendo jogado às chamas e o Confiável se levantando para declarar aquilo como uma vingança por Felipe. Então contavam como os lombardos tinham sido pendurados nus nas árvores, suas pernas e suas colunas não-circuncidadas balançando ao vento e como, quando a pele fora comida por grandes pássaros, seu esqueleto fora branqueado pelo sol e polido pela chuva. Mas foram deixados no lugar como uma advertência muda para todos os infiéis.

Quando Idrisi perguntava se tinha visto com seus próprios olhos os esqueletos pendurados, o mercador admitia que a história lhe fora contada por um amigo que a tinha ouvido de outro e antes de muito tempo a genealogia dos contadores de histórias estava tão firmemente estabelecida a ponto de sobrepujar os fatos.

Sempre fora assim em nosso mundo, pensou Idrisi, perguntando-se se algo havia chegado a acontecer. A maioria das lendas possui um cerne de verdade, portanto estava claro que algo devia ter acontecido. O problema era que as notícias dos feitos do Confiável alimentavam o delírio que havia tomado conta da cidade desde a queima pública de Felipe. Um dos magistrados que haviam jogado o corpo de Felipe na fogueira havia desaparecido sem deixar traço. Quinze dias atrás, um juiz que sentenciara Felipe tinha morrido de morte natural, mas comentava-se no qasr que fora envenenado. A verdade inegável é que, quando seu caixão era carregado para o cemitério, foi atacado por um enxame de abelhas que surgiram do nada. Quando os que carregavam o féretro foram ferroados, largaram o caixão na rua e saíram correndo gritando em busca de água.

Mesmo depois que as abelhas — que Alá as abençoe — desapareceram, o caixão ficou abandonado por algum tempo e alguns garotos apostaram para ver quem ia mijar nele.

Revezaram-se na guarda, com o resultado de que mais de uma centena de meninos com menos de dez anos de idade tinham encharcado a madeira com sua chuva. Quando a procissão fúnebre reiniciou, o desconforto dos carregadores do féretro era evidente. Seus narizes franzidos fizeram os garotos, que observavam dos seus esconderijos, gargalharem de alegria. Nesta atmosfera febril, o Confiável e suas campanhas militares eram discutidos interminavelmente na cidade velha, cada lojista tentando superar seus competidores com as histórias mais horripilantes.

Idrisi estava preocupado com problemas mais íntimos — o que não surpreende, já que os vivia todo dia. Mayya e Balkis estavam com sete e seis meses de gravidez, seus ventres distendidos disputando a sua atenção. Passava mais tempo com Balkis do que com Mayya e por uma simples razão: Balkis estava encravada no seu âmago. Quando Elinore o questionava sobre a aparente discrepância de seus afetos, ele assumia o ar de um médico.

— Sua mãe teve você e sabe o que está em jogo. Para Balkis é seu primeiro filho e as circunstâncias são difíceis. Ela requer mais cuidados.

Elinore erguia os olhos e o fitava com fúria, mas nenhuma palavra era trocada.

Balkis havia escrito ao marido Aziz e o informara do seu estado. Um mensageiro especial chegou em três dias para entregar uma carta em resposta. Estava muito feliz e deixaria Siracusa em poucas semanas para vir buscá-la. Implorou-lhe que não fizesse esforços ou nada que pudesse comprometer a criança. A notícia veio como um alívio para Mayya, mas lançou uma espessa nuvem de tristeza em torno do quarto de hóspede ocupado por sua irmã. A maior parte do tempo as irmãs demonstraram um estoicismo que impressionou grandemente Idrisi. O que ele não percebeu foi que aquilo que geralmente as aproximava mais uma à outra eram suas ausências da casa.

Caso se decidisse por uma longa viagem marítima, as irmãs ficariam inseparáveis. Nestes dias ele não deixaria a ilha.

Uma semana ou duas em Shakka ou Djirdjent era o mais longe que viajava a fim de se encontrar com velhos amigos e também continuar na sua pesquisa sobre curas herbais para o formulário médico que compunha. Nem estavam as duas mulheres livres das suas experiências. Ele as inspecionava cuidadosamente e notava como seus corpos reagiam à presença da criança ainda não nascida. Mayya não conseguia mais comer carne e seu corpo rejeitava todas as delícias doces, com exceção de confeitos que continham apenas mel. Balkis ficou alérgica a alho e cebola, mas desenvolveu um imenso apetite por um folhado comprido e fino cheio de pasta de amêndoa. Nenhuma delas conseguia suportar o gosto do café árabe que era um favorito da casa.

Certa vez, quando Idrisi apareceu com uma tosse persistente, tentou sua própria cura de mel, gengibre e tomilho silvestre fervidos na água e, apesar do gosto desagradável, ele a tomava três vezes por dia. Tinha sempre funcionado antes, mas desta vez a tosse se recusava a ir embora. A fim de evitar passar a infecção para as duas mulheres, afastara-se delas, concentrando-se em escrever e jogar xadrez com Elinore.

Uma tarde, Balkis, que sentia sua falta mais do que a irmã, entrou no seu quarto e aninhou sua cabeça nos seus seios. O tecido que a cobria estava molhado do seu leite. Ele lambeu e gostou do sabor, então ergueu o vestido dela, ansioso por mais. Na mesma noite a sua tosse desapareceu. Podia ter sido pura coincidência, mas Idrisi associou aquilo ao leite. Isto seria real ou uma alucinação? Ele decidiu que era real. Seria a combinação de mel, ervas e leite humano que levara à cura ou somente o leite? E, se fosse apenas o leite, poderia ele incluir uma prescrição no seu formulário? Desgostava-o a idéia de sultãos, emires e barões acometidos de tosse esquadrinhando seus palácios e propriedades em busca de mulheres no final da gravidez. Acrescentaria outro fardo para os pobres. Por outro lado, se não registrasse a cura, estaria quebrando um antigo juramento. Chegou a um meio-termo consigo mesmo. As duas mulheres provavelmente amamentariam os bebês durante um ano ou possivelmente dois. Era bastante provável que tivesse uma crise de tosse durante esse período. Quando houvesse uma conjunção entre os dois acontecimentos, ele beberia o leite. Se a tosse desaparecesse, teria de mencionar o fato no formulário, independentemente das conseqüências. Se não funcionasse, então podia considerar o que aconteceu com o leite de Balkis como uma ocorrência casual. Mas claramente Balkis tinha outras preocupações na sua mente. Pelo ar do seu rosto ele sabia que tinha a ver com o marido. Ela se postou, as mãos nos quadris, e lhe deu um daqueles olhares ferozes.

— Balkis, você tem de ir com ele, pelo menos até que a criança nasça. Depois, ele não fará objeções para que volte.

— Não liga para mim agora que estou gorda e feia — ela gritou, jogando-se contra o seu corpo e chorando.

— Concordo que seu corpo não está numa de suas melhores fases, mas sugerir que o amor que sinto por você depende de tais coisas é um insulto à nossa paixão. Se o que diz fosse verdade, como explicar que fazemos amor quase todo dia, ignorando o seu ventre que procura nos obstruir? Acha que estou fingindo quando nos encontramos no auge da nossa união?

— Então por que diz que preciso ir?

— Porque você é casada com ele, Balkis. Quantas vezes discutimos essa possibilidade? Acredite em mim, tudo o que ele quer é mostrar seu filho para a sua gente e sua família. Espero, por ele, que seja um menino. Isso o deixará muito feliz. Não vai se importar com a sua volta para cá a fim de criar outra criança.

Ela riu.

— Neste caso deveria rezar para que seja uma menina. Assim serei definitivamente devolvida ao grande médico. Mas você fala a verdade. Sei disso e farei como pede. A única coisa que não posso suportar é a idéia de ser tocada por ele e se ele o fizer...

— A maioria dos homens fica afastado das mulheres quando estão amamentando um bebê. A razão por que eu não o faria é que, como médico, é meu dever observar e registrar as funções...

Ela o beijou nos lábios e teria ido mais além não houvesse Ibn Fityan batido na porta para informar que o Amir de Siracusa tinha deixado o palácio e estava cavalgando em direção da casa.

Refrescos, incluindo o delicioso elixir de limão, foram servidos no terraço onde podiam desfrutar o calor do sol de inverno. Aziz descreveu sua visita ao sultão.

Fora questionado em detalhe sobre o Confiável, mas negara que um bispo fora queimado ou os lombardos oferecidos como carne para os animais.

— Mas posso contar-lhes, caros amigos e fiel esposa, o que realmente aconteceu. É bastante notável, mas perturbador. Queimaram o bispo e o Confiável gritou que era por Felipe, mas o prelado e o monge locais juram pela Bíblia que ele morreu de morte natural. Depois de sua morte, os lombardos lutaram pelo ouro do bispo e provavelmente seu estoque de mancebos e, para espanto de todos, destruíram primeiro o castelo em busca de ouro e depois a si mesmos. O único sobrevivente morreu dos ferimentos. Foram todos enterrados em terreno consagrado. Isto é, por acaso, verdade.

— Mas como a batalha começou? Aziz contou-lhes toda a história, exceto o que não sabia, ou seja, o encontro entre o Confiável e Halima e a descoberta de sua verdadeira identidade.

— Tínhamos a tendência de acreditar que o Confiável era um pregador ligeiramente desequilibrado errando através das aldeias e infectando os camponeses crédulos com sonhos religiosos, encorajando o martírio e revelando os estigmas que marcavam sua própria mente inculta. Esta era certamente a impressão que ele queria transmitir.

Mas o que ele fez ameaça a todos nós.

— Como? — perguntou Mayya, sua curiosidade excitada.

— A vergonha desapareceu naquela aldeia. As pessoas o encaram nos olhos quando falam. Orgulho e insolência substituíram o respeito por seus superiores. Um camponês teve a afronta de perguntar se eu havia lido Aristóteles. A única maneira de fazê-los nos respeitar é esmagá-los impiedosamente e ter certeza de que o jugo é pesado. Se o que fizeram se espalhar, estamos todos acabados. Foi o Confiável quem lhes ensinou a garantir que nunca mais percam a terra.

— O que vou lhes dizer se baseia em minhas próprias suposições. Não tenho prova alguma e a legalidade está do outro lado. Não tinha visitado a propriedade antes, mas tinha noção do que havia acontecido depois que os nazarenos varreram a família Ibn Hamza. Quando visitei os camponeses algumas semanas atrás, o Confiável tinha partido há muito, mas havia deixado atrás de si a aldeia comunitária mais feliz que já conheci.

— Como isso o ameaça? — Balkis perguntou.

— Quando perguntei quem era o dono da terra, agora que o bispo estava morto, responderam alegremente que a terra lhes fora doada por Hamza ibn Muhammad muitos anos antes da chegada dos nazarenos. Vi o registro com meus próprios olhos. Era impecável. Acho incrível que Hamza, que freqüentemente vinha ao meu palácio, pudesse ter doado suas terras hereditárias. Na verdade, não acredito numa palavra daquilo. Foi idéia do Confiável e ele os convenceu a todos e forneceu-lhes uma narrativa única.

— Interrogou o monge em particular? — perguntou Idrisi.

— Claro que o fiz. Ele repetiu a mesma bobagem. Sua família beneficiou-se da distribuição de terra do Confiável.

Confessou-me que nunca encontrara um homem como o Confiável e queria converter-se à nossa fé, mas o Confiável lhe dissera que seria mais valioso para a aldeia como monge. Se quisesse poderia rezar na mesquita, mas quando surgissem estranhos tinha de ser um monge.

Idrisi não podia esconder sua admiração.

— Ele é inspirado por Alá e pelo Grande Satã ao mesmo tempo. Onde está?

— Longe de minhas propriedades, espero. Aqui em Palermo você não pode imaginar o efeito que está tendo nos camponeses. Muitos deles visitam as aldeias e voltam cheios de idéias.

— O Confiável deixou um plano para o caso de sermos todos derrotados?

— Estranho que pergunte isso, Ibn Muhammad. Não me ocorreu, mas um dos camponeses, um rapaz muito letrado, me deu informações. Se nosso povo for derrotado, vão todos jurar que o bispo havia convertido toda a aldeia cinco anos antes de morrer. Têm um registro da igreja para provar isso e o monge e um punhado de famílias nazarenas atestarão a verdade dessa afirmação.

— Isto é incrível — disse Elinore.

— Fico com vontade de visitar este lugar.

— Sempre que quiser — respondeu seu tio.

— Talvez depois que a criança nasça vocês todos venham passar uns tempos em Siracusa. Elinore poderia vir conosco esta noite?

Ninguém respondeu ao convite e o pobre Aziz, ligeiramente embaraçado, virou-se para a mulher.

— Minha irmã, de quem você não gosta nem um pouco, está rezando para que você tenha uma menina. Assim, o filho dela herdará minhas propriedades.

— Neste caso — respondeu Balkis — será um prazer desapontá-la. E se vamos partir esta noite eu deveria ir cuidar das malas. — Nós ajudaremos — disse Mayya, e todas as três mulheres se dirigiram para o quarto de hóspedes.

— O sultão pode morrer a qualquer dia, Ibn Muhammad. Perguntou por você hoje.

— Quanto mais cedo se for, melhor. Haverá um acerto de contas. Eu tinha muitas lembranças afetuosas dele, mas o tratamento de Felipe mudou tudo. Deixou-me zangado comigo mesmo por ser um tão pobre juiz das pessoas. Vamos falar de assuntos mais prazerosos.

— Deixe-me levantar um assunto indelicado. Idrisi sorriu por antecipação.

— Eu lhe agradeço por deixar Balkis voltar. Era importante para mim, mas você já sabe disso.

— Sei e se o embaraçar não precisamos discutir mais o assunto. Espero que seja um menino por sua causa. Já pensou em escolher outra esposa?

— Não há razão alguma para fazer isso. Tenho uma serviçal no palácio que satisfaz todas as minhas necessidades. Com ela não há nenhum fingimento. Se Balkis me der um menino estou contente. E você?

— Ficarei contente mesmo que Balkis lhe dê uma menina.


15

A morte de de Rujari.
Idrisi é pai de novo e duas vezes.
Sonhando com Siracusa.

Num dia frio de fevereiro do ano de 1154 do calendário cristão, o sultão morreu no seu palácio em Palermo e Balkis deu à luz um filho em Siracusa, embora Idrisi e Mayya só recebessem a notícia quando o Amir de Siracusa chegou para comparecer aos funerais do sultão, pois os faróis andavam ocupados demais transmitindo as notícias da morte do sultão e da data fixada para o enterro para se darem ao trabalho de passar outras notícias. Recebendo a informação, notáveis de todas as partes da ilha iniciaram a jornada para Palermo.

Idrisi caminhou até o palácio e foi recebido por Guilherme, paramentado nas vestes de sultão com o manto real envolvendo-lhe os ombros. Era um homem grande de barbas negras e aparência assustadora. Tendo abraçado Idrisi, implorou-lhe que se tornasse o Amir dos Amires e voltasse ao palácio. Idrisi agradeceu calorosamente ao herdeiro, mas declinou da oferta para substituir Felipe. Alegou deveres de erudito, explicando a necessidade de completar o Formulário este ano para ajudar os médicos a salvarem mais vidas. O novo sultão pareceu aceitar a desculpa e procedeu a informar-lhe que os barões estavam decididos a não levar em conta o testamento de Rujari.

— Querem enterrar meu pai na Catedral de Palermo.

— Ele construiu uma igreja especialmente em Cefalu para ser o local do seu enterro. Amava a cidade e a igreja.

— E alguém mais também, mestre Idrisi, como ambos sabemos.

— Seja como for, foi seu último pedido para mim. — E para mim. E para minha mãe. Mas a Igreja e os barões insistem em Palermo. Felipe era a única pessoa na ilha que poderia tê-lo enterrado em Cefalu. Então deixem-nos enterraremno em Palermo. Existe outra razão por que não pode ser enterrado em Cefalu: o bispo Boso apoiou o Papa errado e Roma não quer consagrar sua igreja. Como pode um rei ser enterrado numa igreja não consagrada? Prometi a Boso que, assim que se reconciliar com Roma, poderá ter o corpo do meu pai e podemos ter dois funerais para o seu amigo. Chegou a conhecer a sua concubina em Cefalu? Vamos, me conte. Como era ela? É verdade que estava grávida e...

Guilherme, balançando o corpo levemente, começou a rir. Era uma risada desagradável e Idrisi, que certa vez tentara ensinar a este menino geografia, astronomia e medicina, lançou a seu ex-pupilo um olhar severo. Era óbvio que andara fumando muitos cachimbos de shahdanj al-barr.

— Sultão Guilherme — Idrisi começou, mas não pôde continuar. Guilherme havia caído da cadeira e estava aparentemente adormecido no chão. Seus atendentes o ergueram.

Recuperou-se e dispensou os atendentes, embora Idrisi soubesse muito bem que estavam sendo observados através de buracos de espia nas paredes. — Mestre Idrisi, nos veremos no enterro de meu pai.

— Tenho a permissão do sultão para usar a biblioteca? Existem manuais de medicina que não estão disponíveis em nenhum outro lugar nesta ilha.

— Claro, e não precisa da minha permissão. Organizou esta biblioteca antes mesmo que eu nascesse. Use-a tanto quanto quiser. Uma pergunta para o senhor, mestre Idrisi, e gostaria que fosse completamente sincero como era com meu pai.

— Vou tentar.

— Como julgaria meu falecido pai como governante? Só em poucas palavras, quero dizer.

— Eu diria que o sultão Rujari de Siqilliya foi durante a maior parte do seu reinado um governante sábio e sensato, que protegia todos os seus súditos independentemente do credo. Governou seu povo com equidade e imparcialidade, impressionando a todos pela beleza de suas ações, pela profundeza de sua visão e pela doçura do seu caráter. Escrevi um pouco disso na dedicatória do meu livro. Podíamos acrescentar que ele matou menos gente do que seu pai e seu tio. Quando era governante e as pessoas lembraram-lhe o massacre dos Crentes nesta cidade, pouco antes da sua rendição para os francos, ele expressou remorso e arrependimento. Foi um habilidoso administrador e um homem de estado que podia levar a melhor sobre o papa e o imperador. Defendeu o interesse do seu reino acima de tudo e não permitiu que fosse debilitado por aventuras na Terra Santa. Foi sempre amistoso para com eruditos e ajudou-me consideravelmente a aperfeiçoar a qualidade do meu próprio trabalho.

Foi nos seus últimos dias, atormentado por uma doença que dificultava a sua respiração e afetava seu coração, que ele enfraqueceu em mente, corpo e espírito. Permitiu que os barões e os bispos o convencessem de que um sacrifício de sangue era necessário para fortalecer o domínio de sua família sobre esta ilha.

E em seus últimos meses cometeu um crime ao queimar um dos mais talentosos líderes deste reino, Felipe al-Mahdia. Assim começou o declínio.

— Não posso repetir tudo isso, mas lhe agradeço. Homens como o senhor são raros neste reino. Gostaria que ficasse do meu lado.

— Existem outros mais habilidosos na arte da administração do que eu e lhe servirão melhor. Meu conselho é simples: tenha cuidado com os barões. Sua avó teve de fugir do continente para Palermo quando seu pai era muito jovem. Ela se sentia mais segura aqui por causa do meu povo. Eram um contrapeso para os barões. Portanto tenha cuidado com eles. Tendem a atacar quando um rei é jovem. E nunca os encontre em particular sem uma mão na sua espada e empregados armados do seu lado. Que Alá o proteja, Ibn Rujari.

— Só uma outra questão. Não é de grande significado, na verdade é apenas uma curiosidade. Durante o julgamento de Felipe, quando um monte de mentiras era dito, ouviram-se dois peidos altos dos bancos ocupados pela sua gente. Tentei juntarme ao coro, mas falhei. Foi obra do Amir de Catânia ou do Amir de Siracusa?

— Não tenho idéia.

— Foi um esforço muito bom. Se descobrir, faça a gentileza de congratular o Amir em meu nome. Decidi construir um palácio no estilo dos seus sultãos e com o maior harém do mundo. Maior do que Bagdá e Qurtuba e vou equipá-lo à altura. Se um dia precisar de uma mulher... Começou a rir de novo. Idrisi achava esse tipo de conversa cansativo. Sem responder, curvou-se e deixou a sala de audiência. Ao caminhar lentamente através do palácio, sabia que não desejava voltar mais ali.

Os eunucos davam-lhe risos nervosos de reconhecimento. Nenhum deles parecia grandemente afetado pela morte de Rujari. Felipe pertencera a eles e, neste mesmo palácio, eunucos mais velhos o haviam visto crescer e prosperar.

Idrisi entrou na biblioteca. Talvez Guilherme provasse que seus detratores estavam errados e superasse o pai, mas mesmo quando o pensamento lhe passava pela cabeça viu que não tinha substância. Guilherme podia ser mais forte do que acreditavam, mas não era administrador ou estadista. Era muito fortemente apegado ao prazer.

Iria tornar-se dependente demais de conselheiros que matariam uns aos outros para ficar perto dele.

Idrisi não ficou muito tempo na biblioteca. Apanhou dois livros que precisava consultar e decidiu leválos para casa, ansioso por voltar para seu novo filho, já com seis semanas e com a voz e o apetite robustos.

Ao subir o caminho para a casa ouviu os sons da flauta de Ibn Thawdor e viu sua filha sentada num muro perto do rapaz observando-o com os olhos em transe. Sorriu interiormente e não os perturbou. Estava feliz que ela encontrara um amigo no músico. Elinore fora mais afetada pela morte de Rujari do que ele imaginara e pedira para acompanhar Idrisi no enterro. Nem sabia ele ao certo o que ela sentia pelo seu novo irmão. Devia lembrar-se de perguntar a Mayya. A chegada do pequeno Afdal havia removido os últimos traços de tensão entre eles e muitas vezes a ouvia cantando ninares que nunca escutara antes. Ela chegou a rir uma manhã ao pensar se Balkis teria um menino e se seria idêntico ao seu filho.

O Amir de Siracusa chegou um dia antes dos funerais. Viera sozinho e se hospedara no palácio. Levando em conta as condições de instabilidade na ilha, era útil saberem que ele era hóspede do sultão. O ar jovial de seu rosto era suficiente para transmitir as boas notícias: Balkis, também, dera à luz um filho e ambos estavam bem. Entregou a Idrisi um pequeno embrulho, que foi passado para um criado e despachado para o seu quarto.

— Alguma notícia do Confiável?

— Foi visto em inúmeras aldeias. Está muito perto de sua família e dizem que se encontra nas propriedades do seu genro no momento.

Nossa gente está pronta para lutar. Catânia, Noto e Siracusa não serão tomadas sem combate.

— Não creio que Guilherme tenha qualquer intenção de fazer guerra contra nós.

— Um ano atrás tinha seu pai qualquer intenção de queimar Felipe do lado de fora do seu próprio palácio?

— O que estou dizendo é que uma rebelião prematura poderia levar à derrota. O senso de oportunidade é sempre crucial.

— Então estamos de acordo. Quando Elinore entrou na sala para cumprimentar o tio, Idrisi notou suas faces coradas e seus olhos brilhantes. O tocador de flauta está afetando esta criança, pensou, e isso o agradava. Mayya chegou com Afdal nos braços e o Amir fez os ruídos certos, mas será que no olho mental comparava os dois bebês? No final da sua visita, o orgulhoso possuidor de um novo filho convidou a todos para visitálo em Siracusa.

— Será primavera logo e é a melhor época para nos visitar. Balkis está desesperada para vê-los.

— Tentaremos — disse Mayya — mas é uma viagem tão longa que só de pensar me cansa.

Idrisi recolheu-se à biblioteca para encontrar o embrulho de Balkis. Desfez o nó do barbante e abriu o papel. Dentro havia uma túnica cuidadosamente dobrada feita de seda pura na cor de leite queimado. Em cima havia uma carta. Elinore bateu na porta e entrou sem esperar sua resposta.

— Preciso pedir-lhe uma coisa, Abi.

— Deixe-me adivinhar. Quer aprender a flauta? Ela corou levemente.

— Gostaria de me casar com ele.

— Ele manifestou interesse?

— Não, porque o respeita muito e acha que vem de uma classe muito baixa para que o senhor sequer pense em tal casamento.

— Falou com sua mãe?

— Sim, e ela não gostou muito.

— Por quê? — Acha que ele é de classe baixa.

— Tem certeza de que o conhece o bastante para querer casar-se com ele?

— Sim. O senhor me disse certa vez que as questões do coração eram determinadas pelo instinto, não pela razão. Meu instinto me diz que serei feliz com ele.

— É tudo o que conta para mim, filha. Não tenho objeção. Gosto do rapaz eu mesmo, mas como vai ganhar a vida? Músicos não são pagos regularmente.

— Ele não toca apenas a flauta. Ele as fabrica e pode ensinar crianças a tocar. Quer que nos mudemos para Djirdjent onde a família de sua mãe o ajudará.

— Eu o ajudarei se quiser ficar aqui e seu tio em Siracusa é uma alma generosa se ele quiser mudar-se para lá. E você? Onde gostaria de morar?

— Não tenho certeza. Tem uma parte de mim que gostaria de deixar esta ilha para sempre e mudar para Salerno.

— Por quê?

— Instinto. Algo ruim vai acontecer aqui. Não pode sentir no ar?

— Elinore, você é batizada e Simeon ibn Thawdor também o é. Não precisam temer os barões. Nenhum mal cairá sobre vocês. Mas estou preocupado com seus dois irmãos.

Eles sobreviverão? Por quanto tempo? Quando alguns de meus amigos deixaram Palermo e foram se instalar em alAndalus eu zombei deles por sua tolice. Estava seguro de que tinha tomado a decisão certa.

Encolheu os ombros em desespero. Elinore beijou-o na cabeça.

— Embora ainda não tenhamos discutido Pitágoras e seus números conforme me prometeu, eu o amo.

— Os números eram importantes para os mercadores e marinheiros. Mas muito mais interessante era o estilo de vida que ele advogava. Talvez vocês devessem ir morar em Cariati, muito mais perto de nós do que Salerno. Os pitagóricos fugiram daqui para Kroton, como a chamavam então, e sua irmandade floresceu. Alguns deles vieram para Siracusa também. O símbolo da sua irmandade era o boi na língua. Cada novo recruta jurava segredo e silêncio. A fim de atingir seus objetivos e criar uma sociedade em que cada e toda pessoa tivesse uma responsabilidade moral, precisavam ser cautelosos. E sabia que eles também acreditavam que a única maneira de purificar a alma das infecções do corpo era por meio da música? Foi por isso que Pitágoras e seus seguidores se tornaram os primeiros a explorar as ligações entre música e matemática. E você encontrará livros que podem ensinar-lhe ainda mais do que sei. Não é um filósofo que eu tenha estudado a fundo. É sua mãe que ouço chamando por você? Diga-lhe que eu aprovo Ibn Thawdor e ela não deveria se preocupar com o seu dote.

Quando ela correu para fora do quarto, Idrisi começou a caminhar para cima e para baixo, parando para olhar o mapa sobre a grande mesa. Era o seu próprio mapa e ele pensava que era tempo de emigrar, mas com que destino? Então viu seu manuscrito inacabado e sabia que tinha de ser completado antes que ele fosse para qualquer lugar. A filosofia da medicina que elaborava baseava-se em oferecer curas simples e facilmente acessíveis para doenças que afligiam ricos e pobres. Lera algo num livro de Aflatun*1 que o desagradara e tivera a intenção de contar a Elinore. Encontrou o livro onde tinha assinalado a seguinte passagem:

*1. Platão. (N. do T.)

"Quando um carpinteiro está doente", disse Sócrates, "ele pede ao médico um remédio rápido — um emético, purgativo, uma cauterização ou o bisturi — é tudo. Se lhe mandarem fazer dieta e envolver a cabeça e ficar aquecido ele responde que. não tem tempo para ficar doente, que não tem sentido continuar vivendo só para cuidar da sua doença se não tiver tempo para levar adiante o seu trabalho. Então ele dá adeus ao médico e volta ao trabalho e ou melhora e vive para continuar ganhando o seu sustento, ou então morre e é liberado da sua desgraça."

 

"Entendo", disse Glauco, "e claro que este é o uso adequado da medicina para um homem na sua camada da vida."

Sorriu ao lembrar-se de como isso o enraivecera. O "uso adequado da medicina" significava a propagação de doenças infecciosas que não distinguiam entre carpinteiros e proprietários de grandes propriedades e centenas de escravos.

No livro que preparava, Idrisi escrevera que uma dieta saudável era a melhor medicina preventiva, mas também que não deveria haver tratamentos aos quais os pobres não tivessem acesso. Estes tratamentos deveriam estar disponíveis a todos em hospitais especiais. Outras considerações ele pusera de lado pelo momento, embora, em particular, concordasse com a injunção de Hipócrates: para curar um homem era necessário entender as origens e a causa da sua evolução. Esta era uma convicção proibida ao Povo do Livro que devia acreditar que Jeová, Deus, Alá haviam criado o homem — possivelmente uma simplificação do conhecimento que não ajudara o estudo da medicina. Os Antigos também tinham os seus mitos, mas estes continham o cerne de uma verdade. Prometeu, que dera ao homem o primeiro fogo para salvá-lo da extinção, estava claramente cônscio de que o homem possuía o cérebro para fazer uso do fogo e os próprios fabricantes dos mitos interpretavam Prometeu como o símbolo da inteligência humana.

Seus pensamentos foram interrompidos por Mayya, ansiosa para inspecionar o presente que Balkis lhe mandara. Ela colocou a túnica contra seu próprio corpo, mas era grande demais.

— Ela sempre foi boa na confecção de roupas, mas vamos ver como cai em você.

Levantou-se e trocou de túnicas. A seda agarrou-se ao seu corpo.

— Cabe perfeitamente em você. Balkis não se esqueceu do seu corpo.

Ele nada falou, mas não recolocou as roupas que usava. Sorriu vagamente para a mulher.

— Quando vai visitar Walid em Veneza?

— Depois de terminar meu Formulário.

— E quando vai ser isso? Quando Afdal tiver cinco ou dez anos?

— Poderia ser antes, se não fosse interrompido com tanta freqüência.

— Vim discutir sobre nossa filha. Não posso acreditar que tenha concordado em que ela se case com o filho de Thawdor.

— Porque ele é pobre?

— Bem, não exatamente isso, mas...

— Que outra razão poderia existir? Criação, naturalmente. Deixe-me contar-lhe que os ancestrais de Thawdor incluíam homens que governaram esta ilha centenas de anos atrás. Eu não compararia a linhagem dele com a sua ou a minha, menos ainda com aquela do seu cunhado.

— Se esta é a sua opinião, não farei mais objeções.

— Mayya, quero que nossa filha seja feliz. Eu lhes darei dinheiro para construírem uma casa onde quiserem.

— Não desejo que ela deixe Palermo.

— Isto, também, será escolha dela e não nossa. Quando ela saiu do quarto, ele olhou para as estantes e suspirou. Se deixasse Palermo ou Siqilliya, estes livros teriam de viajar com ele. Nunca os deixaria para trás. Percebendo como seria difícil levar todos, começou a fazer listas em sua cabeça dos livros de que não sentiria falta. Talvez não conseguisse convencer Mayya ou Balkis a partirem consigo, mas os livros não tinham escolha.

A túnica de seda acariciando seu corpo o fez pensar em Balkis, mãe pela primeira vez. Seu filho se tornaria o centro de sua existência e ela se instalaria no palácio até sentir que era a hora de procriar de novo. Pegou a sua carta.

Muhammad:

Pensei em tantos nomes diferentes para você, mas soavam tolos quando escritos e gastei uma porção de papiros. Só podem ser falados, portanto terá de esperar. Nunca pensei que a dor da separação podia machucar tanto até que o deixei há três meses. Não doeu só por dentro, mas no caminho de volta tive uma dor de cabeça, uma dor realmente forte que nunca sentira antes. O que o doutor recomenda? Não sugira uma infusão fria de amêndoas, leite e mel. Não funciona.

Sento-me e escrevo umas poucas linhas para você todo dia para que, quando o tempo chegar, eu possa acrescentar uma linha sobre nosso filho. Às vezes fico lacrimosa ao pensamento de que ele não saiba que você é o seu verdadeiro pai. Chegaremos um dia a contar para ele? Posso ouvir sua voz: como seu marido foi tão generoso e cordato, por que lhe negar o prazer de fingir que é seu filho? É claro que eu concordo, mas... E Mayya? Como está e como estão vocês dois? O bebê já nasceu? Menino ou menina?

Foi uma viagem terrível para Siracusa com uma tempestade perto de Messina, onde fomos forçados a passar a noite depois de deixar Palermo. Lembrei a viagem que fizemos juntos. Deve ter levado o mesmo tempo, mas pareceu tão rápida! Acho que estar grávida com seu filho não melhorou meu humor. Em Siracusa pensei muito em você e durante alguns dias não pude comer nada. Meu bondoso e ponderado marido quase chegou a mandar-lhe uma mensagem pedindo que viesse juntarse a nós, mas por mais que tivesse adorado isso pensei em Mayya e no seu estado e sabia que era errado. Então o impedi. Ele não faz exigências de mim e sei que tem uma mulher no palácio que serve as suas necessidades. Acho que ele lhe contou sobre ela. Estou contente porque não era nada agradável quando ele vinha à minha cama. É tão gordo e, além do desconforto físico, eu também sofria um desgaste mental. A túnica de seda ficou bem em você?

Existem tantas coisas que queria discutir com você em Palermo, mas nos absorvemos tanto um no outro que não houve tempo para discussões elevadas. Queria perguntar-lhe o que achava da poesia de Ibn Hamdis. Estou realmente com raiva de mim mesma por nunca lhe ter perguntado. Meu marido — mas você provavelmente sabe disso — pertence à mesma família e temos todos os seus poemas na biblioteca e alguns deles em edições muito finas. Está vendo, comecei até a usar a sua linguagem! Alguns deles eu acho sentimentais em demasia. Ele não foi "banido do paraíso". Ele saiu. Quero dizer, se ia sentir tanta falta de Siqilliya, por que foi embora, em primeiro lugar, e não voltou então depois para reviver os prazeres da sua juventude? Seus irmãos ficaram. A propriedade da família está intacta. Por isso suas lembranças de Siqilliya não me empolgam, embora tente dizer isso para um siracusano. Pode imaginar meu marido, que calmamente aceitou o fato de que somos amantes e que você era o pai do filho que herdará suas propriedades, que nunca falou uma palavra dura comigo, ficar vermelho de raiva quando eu lhe disse que Ibn Hamdis não era um poeta tão bom comparado com Ibn Quzman, Ibn Hazm e Abu Nuwas. Gritou, me chamou de ignorante e deixou o quarto como uma montanha em fogo. Depois voltou e pediu desculpas. Poucos dias depois do ocorrido, encontrei um poema de Ibn Hamdis que realmente me fez rir. Queria que risse comigo, mas você não estava aqui. Leia as palavras em voz alta e imagine nós dois dentro da sua túnica de seda:

Uma freira de claustro abriu o seu convento, e fomos seus visitantes noturnos.

A fragrância de um licor nos trouxe até ela, que revelava ao nosso nariz os seus segredos...

Coloquei minha prata na sua balança, e de sua jarra ela derramou seu ouro.

Oferecemos casamento a quatro de suas filhas, para que o prazer deflorasse sua inocência.

Quero saber o que pensa sobre isso e seus poemas siqilliyanos.

Muhammad, na noite passada contaram-me uma história terrível e não consegui dormir. Meu marido veio ver se eu precisava de alguma coisa e com ele veio sua horrível irmã de quem já lhe falei. É muito alta com um nariz igual a um grande pepino, seios do tamanho de melancias e uma voz alta e áspera e sempre quis sugerir-lhe que se juntasse a um bando de hermafroditas errantes e gozasse a vida. Ela entrou, olhou para meu filho sobre meu seio e disse: "Louvado seja Alá por este milagre."

Estava na ponta da minha língua dizer "Louvado seja Maomé,"*2 mas me contive. Então comecei a sentir uma dor nas entranhas e gritei para que ela deixasse meu quarto.

*2. Muhammad", em árabe, nome de Idrisi. (N. do T.)

A empregada veio do quarto vizinho, mas não era nada. Meu marido voltou depois para se desculpar por sua irmã. Eu disse que ela era uma serpente alimentada por Satã. E então ele sentou-se e contou sua história, que me horrorizou:

Ela é minha meiairmã, Balkis, e por favor entenda que teve uma vida dura. Meus pais não se davam bem e minha mãe devia se encontrar num estado de permanente tristeza. Quando eu tinha oito anos, meu pai deixou Siracusa e foi viver em Noto por seis meses. Minha mãe ficou tudo menos de coração partido, como pode imaginar. Cometeu uma indiscrição com um primo e engravidou. Quando meu pai voltou perguntou de quem era a criança, mas ela não falou.

Ele nunca mais falou com ela. A criança era minha irmã que você detesta tanto. Não foi bem tratada pelo pessoal da casa. Não creio que meu pai sequer pronunciasse o seu nome. Nem uma só vez. Em conseqüência, ela se tornou a favorita de minha mãe. Isso nos incomodou muito e fomos todos desagradáveis para com as duas. Quando muitos anos depois meu pai viajou para Palermo a negócios, o primo de minha mãe, que era o pai de minha meiairmã, voltou à casa. Minha meiairmã tinha 17 anos.

Uma noite, numa fúria embriagada, o primo violentou a própria filha. Ela engravidou. Minha mãe jogou o amante para fora de casa. Pelo que lembro, ele foi na verdade apedrejado. Meus irmãos e eu morávamos naquela casa grande mas só tivemos idéia do que havia acontecido muito tempo depois. Dizem que se valeram de misturas herbais para se livrar da criança e conseguiram, mas ela nunca se recuperou. Quando um primo me contou a história, confrontei minha mãe. Ela chorou e admitiu que era verdade.

Culpou a frieza e crueldade do meu pai e estou seguro de que há alguma verdade nisso, mas sempre me lembro do meu pai como de rosto moreno, alto, dignificado e simples em seus gostos. De qualquer modo, depois de saber desta tragédia, fiz de tudo para agradar minha meiairmã. Como você, meus irmãos não podem nem olhar para ela, o que é injusto. É nossa única irmã. Não espero que goste dela, mas tente entender. Ela é perfeitamente inofensiva."

Muhammad, meu querido muito amado, isso não é perturbador? O problema é que a mulher é maligna e venenosa e ainda a odeio. Tento imaginar o que diria nesta situação.

 

Começaria provavelmente com meu bondoso e ponderado marido...

Muhammad,

seu filho nasceu no dia em que o sultão morreu. Nós o chamamos de Hamdis ibn Aziz. Isso garantiria que ele jamais escreverá poesia. Meus seios estão transbordantes de leite. Se sua garganta doer, venha a mim.

Balkis

A leitura da sua carta o agitou e ele começou a esfregar as duas mãos na túnica de seda. Naquela noite ele declinou tanto a comida como o hammam, mas Mayya supôs que estivesse absorto no seu trabalho e não quisesse ser perturbado. Ele se retirou cedo para seu quarto e começou a andar furiosamente. Até então achara que sua paixão por ela desvaneceria gradualmente e se veriam uma, talvez duas vezes ao ano. Agora, subitamente, se deu conta de que era seu coração que não toleraria ausências tão longas.

Talvez devesse voltar a Siracusa com o Amir depois dos funerais do sultão. Quanto mais pensava nisso, melhor parecia a idéia. Elinore, Mayya e Afdal poderiam vir também. Iria visitar seus netos perto de Noto, talvez visitar a aldeia onde o Confiável realizara milagres e, acima de tudo, Balkis não estaria longe. A idéia melhorou o seu ânimo, mas ainda assim não tirou a túnica e quando, tarde naquela noite, houve uma batida na porta, ainda estava vestido. Ibn Fityan desculpou-se por acordá-lo, mas queria que soubesse que um incidente ocorrera nos jardins naquela noite. O jovem filho de um barão de Messina, que não chegava a ter vinte anos, acompanhado por dois ou três soldados mais velhos, saíra em busca de meninos nos jardins. Estavam para desonrar um menino quando se viram cercados por cinqüenta homens carregando adagas curtas e machadinhas. Os francos lutaram ferozmente e decapitaram um oponente, mas estavam em grande inferioridade numérica e foram subjugados. Foram executados no local e os corpos levados e jogados ao mar.

— Por que isso é considerado sério o bastante para me acordar no meio da madrugada?

— Quando o filho não voltou, o barão partiu à sua procura. Naturalmente não o encontrou e exigiu que, a não ser que o qadi apareça com o seu filho, ele tomará reféns e os levará para Messina.

— Intolerável e inaceitável.

— Querem que o senhor diga a Guilherme que se isso acontecer a cidade vai explodir e adiará sua coroação indefinidamente.

— Vou falar com ele depois do enterro. Ibn Fityan, esta emboscada foi cuidadosamente preparada?

— Parece que sim.

— Existe alguma possibilidade de que alguém pudesse revelar a verdade?

— Ninguém sabe quem organizou e executou esse ataque. É uma organização secreta e todos fizeram votos de sigilo.

— Notável.

— Gostaria que o ajudasse a se despir?

Idrisi olhou para si mesmo e riu.

— Acho que posso resolver isso sozinho. Siga em paz. Bem desperto e alerta, Idrisi despiu-se e fez suas abluções. Começou a compor uma resposta para Balkis em sua cabeça, mas só estava pela metade quando adormeceu profundamente. Foi acordado por Ibn Fityan a fim de se preparar para o enterro.

A catedral estava cheia e poucas pessoas haviam se reunido nas ruas, mas o espectro do martirizado Felipe pairava sobre as cerimônias. O arcebispo de Palermo, que conduzia as exéquias, parecia tão jubiloso com seu papel que quase esqueceu que era para ser uma ocasião triste. Guilherme rendeu ao pai um flamejante tributo, com algumas das frases que ouvira no dia anterior de Idrisi. Mais tarde, o novo governante convocou seu antigo tutor ao palácio. Um velório fora organizado e a grande sala que testemunhara a humilhação de Felipe estava agora pródiga de comida e vinho.

Idrisi compareceu por uma razão apenas: afastando Guilherme dos bandos de cortesãos bajuladores, informou-lhe da situação na cidade velha. O jovem ficou muito zangado diante da idéia de que sua coroação fosse subvertida por excessos de barões e convocou o arcebispo. O prelado, deliciado por ter sido escolhido em tão distinta platéia, acenou com a cabeça obedientemente e desapareceu para executar a vontade do seu governante.

— Diga ao qadi que ele não precisa mais se preocupar. E, mestre Idrisi, descobri que foi o Amir de Catânia quem peidou nas duas ocasiões. Um homem notável.


16

Primavera em Siracusa.
Boa e má poesia.
Pais e filhos existem poucos deleites no mundo
tão agradáveis como uma primavera siracusana.

A fragrância das flores de limões, laranjas, abricós, amêndoas e pêssegos toma conta da cidade, enriquecida pelas brisas úmidas e salgadas do mar. Nas colinas nos arredores da cidade as plantações seculares, laboriosamente cultivadas, das oliveiras estão sendo cuidadosamente inspecionadas para se verificar os danos causados pelas tempestades de inverno e pelos relâmpagos. O sol irradia um calor de boas vindas e o ar está fresco, não tristonho e pesado como no verão.

E tudo isso é grandemente realçado quando uma pessoa está apaixonada. Desde sua chegada de Palermo um mês atrás, Idrisi e Balkis deleitaram-se na companhia um do outro. Não havia nada furtivo no seu comportamento, mas não fosse o fato de que saíam para cavalgar abertamente e às vezes eram acompanhados pelo próprio Amir, haveria uma incessante onda de mexericos. Os eunucos do palácio e algumas poucas serviçais leais sabiam que Balkis freqüentemente passava a noite no quarto de Idrisi e, embora comentassem entre si, garantiam que o segredo ficasse confinado ao palácio.

Uma manhã gloriosa e fresca, antes que o sol secasse a terra, ela insistiu que tirassem suas sandálias e banhassem seus pés no orvalho, nas folhas e na grama.

Era uma de suas curas para dores de cabeça persistentes e ele perguntou se ela estava se sentindo bem.

— Li um poema ruim de Ibn Hamdis esta manhã enquanto você ainda dormia e isso me deu uma dor de cabeça.

Ele sorriu:

— Balkis, você é injusta com o poeta. Existem alguns poemas insuportáveis, mas ele também escreveu versos muito belos. Não o deve punir porque Aziz pertence à mesma família.

— Não pode imaginar os elogios que reservam para ele. É como se nenhum outro poeta tivesse existido. Aziz é mais contido, mas mesmo ele insistiu em chamar nosso filho de Hamdis. Por que está rindo?

— Eu não a encorajaria, mas subitamente lembrei-me de uma quadra escrita por Ibn Hamid, um de meus amigos de infância em Noto.

— Nunca o mencionou antes.

— São muitas lembranças dolorosas. Brigamos antes que ele partisse. Acusou-me de ser uma criatura do sultão. Sinto muita falta dele agora e...

— A quadra?

— Deixe-me tentar lembrar. Um poeta menor de Noto, um freqüentador de bares e bordéis, está visitando Siracusa para escolher seu prostituto favorito.

Depara-se com Ibn Hamdis. O grande poeta está agitado e suas roupas amarrotadas. O visitante de Noto pergunta polidamente qual é a causa e um breve diálogo entre os dois chega abruptamente a um fim:

"Fui roubado! Os ladrões me arruinaram!" "Eu me solidarizo, compartilho sua desolação." "Roubaram um maço de páginas da minha poesia!" "Eu me solidarizo — com o pobre ladrão."

Ela riu desenfreadamente.

— Minha dor de cabeça passou. Sua cura funcionou.

Idrisi viera preparado para uma longa estada, acompanhado por Elinore, Ibn Thawdor e trezentos livros considerados necessários para o trabalho ainda incompleto.

Mayya prometera vir depois quando Afdal estivesse um pouco mais crescido. O dia de Idrisi era cuidadosamente organizado. Passava cinco horas na biblioteca do palácio, onde se surpreendeu ao encontrar alguns manuscritos de autores que lhe eram desconhecidos. Ficava impaciente com todo livro que contivesse superstições e as apresentasse como conhecimento científico. E houve muitos destes que descartou raivosamente no curso de seu trabalho.

O resto do dia era passado na companhia de Balkis. Eram capazes de conversar e rir durante horas. Ela aceitava sua ponderada crítica de Ibn Hamdis e fazia suas próprias observações mais cautelosamente, mas sua visão básica do poeta permanecia inalterada, embora concordassem em nunca discutir a questão com os descendentes do poeta.

Elinore implorara a ele que a deixasse casar o mais cedo possível. Observara o jovem casal na viagem de barco e estava convencido de que se destinavam um ao outro.

Perguntou-lhes se seriam felizes em se casar na ausência da mãe dela e dos pais dele e lhe disseram que ambas as partes haviam recomendado este curso de ação.

O Amir tomou conta da questão e numa bela manhã de domingo Elinore bint Muhammad e Ibn Thawdor foram casados pelo bispo numa cerimônia quieta na velha igreja bizantina. Reservaram-lhes uma série de aposentos no palácio e na festa daquela noite Ibn Thawdor tocou flauta para marcar seu próprio casamento.

Várias semanas depois um mensageiro chegou de Noto com uma carta de Sakina, sua filha mais velha, informando a Idrisi que a mãe dela morrera tranqüilamente poucos dias antes. O resto da família havia se reunido, com a exceção de Walid, e ela implorou a Idrisi que voltasse à propriedade para decidir o que deveria ser feito.

Não era uma decisão para ela ou qualquer outra pessoa.

— Tenho de ir — falou a Balkis.

— Estava contente de morrer sem ver minha casa de novo, mas Alá quis que fosse diferente. É estranho, mas nada sinto para com a mulher que partiu. Nada.

— Leve Elinore e Ibn Thawdor com você. Gosta da companhia deles e ela deveria ver a casa onde seu pai nasceu. Se eu não tivesse de executar as cinco amamentações obrigatórias para Hamdis, eu o acompanharia também, quando não para a eventualidade da poeira na jornada causar-lhe uma dor de garganta.

Partiram cedo uma manhã numa grande carroça coberta puxada por dois cavalos e com um séquito de quatro criados armados. Um novo caminho fora aberto para reduzir o tempo necessário para chegar a Noto. As razões disso eram militares, mas todo mundo se beneficiava e os mercadores ficaram especialmente contentes. Ao passarem por um antigo aqueduto insistiu para que interrompessem a jornada. Ele o tinha visto de longe em viagens anteriores e agora tinha uma oportunidade de observar sua estrutura mais de perto.

— Concordo em parar — disse Elinore — contanto que sejamos poupados de uma palestra sobre a Roma antiga.

Idrisi sorriu e ignorou o comentário, mas para puni-la levou Ibn Thawdor consigo e enriqueceu a compreensão do rapaz sobre o mundo antigo. Ao reiniciarem a jornada, caíram em silêncio. Pensavam todos no que vinha à frente.

Idrisi não via seu filho mais velho, Uthman, há quase vinte anos e sofria só de pensar no rapaz. Como médico, podia tentar a cura de dores e desordens estomacais, febres e picadas de cobras, mas não tinha idéia do que causava o sofrimento mental ou por que seu filho mais velho nascera com uma mente desordenada. Não havia problema com seu corpo. Fora normal como qualquer outra criança, com a exceção de que demorou a falar. Isto não o preocupara indevidamente até que o menino completou cinco anos e mal chegava a falar. Acabou aprendendo, mas via-se obviamente que era diferente dos demais. Preferia ficar sozinho. Falava longamente com animais da fazenda e podia ser visto rindo com eles, mas quando um humano se aproximava ele corria e se escondia num celeiro ou atrás de uma árvore ou se agachava no campo aberto e imaginava que ninguém podia vê-lo.

Não desejando que Elinore fosse apanhada de surpresa, Idrisi contou-lhe toda a história. Sua única reação foi segurar com força sua mão. Ela vinha pensando como a família receberia a ela e a Ibn Thawdor. Talvez fosse um erro ter vindo com seu pai.

O sol ainda estava alto quando entraram na propriedade nos arredores de Noto. A grande casa ficava no alto do morro aberto. Era construída em dois níveis ao redor de um pátio margeado por uma fileira de laranjeiras. Atrás da residência havia casas de camponeses construídas na encosta e perto delas uma pequenina mesquita com uma cúpula.

Abaixo da casa, de cada lado do caminho, havia terraços cultivados que desciam suavemente a encosta, construídos por seu avô. Frutas de toda variedade eram flanqueadas por amoreiras para os bichos-da-seda. Legumes e trigo cresciam nos campos planos das proximidades. A paisagem o agradou. A mãe de Sakina devia ser uma boa administradora — algo em que não podia inteiramente acreditar — mas não havia mais ninguém que pudesse ter supervisionado tudo, desde que ele partira e deixara claro que não tinha nenhuma intenção de voltar.

Viu Khalid cavalgando em sua direção, acenando, e Idrisi respondeu ao aceno. O menino tinha perdido a mãe e a avó no espaço de um ano. Um menino em crescimento precisa de uma mulher na casa. Umar deveria casar-se de novo.

— Jiddu, Jiddu — o menino gritava, ao se aproximar. Abandonou o cavalo que montava em pêlo e saltou para a carroça, abraçando o avô e dando um sorriso amplo ao ser apresentado à sua nova tia e a Ibn Thawdor. Havia crescido muito nos últimos seis meses. Barba e bigode começavam a brotar no seu rosto. Elinore esperava que seu pai não se referisse a isso e embaraçasse Khalid, mas ficou desapontada.

— Fico feliz em ver uma barba a caminho. Já decidiu se vai usá-la comprida ou curta?

— Não vou deixar crescer, Jiddu. Nem barba, nem bigode.

— Impensável, meu jovem. Impensável. Todo mundo em nossa família usa uma ou outra. Vou falar com seu pai.

Vamos ver o que ele tem a dizer sobre o assunto.

— O Confiável diz que estas coisas não têm nenhuma importância.

— Então por que ele usa barba?

— Porque é preguiçoso demais para se barbear. Está ansioso para vê-lo de novo.

— Ele está aqui?

— Sim, naturalmente. Veio conosco. Ele e Abu ficaram muito amigos.

Lá se vai minha propriedade, pensou Idrisi. O resto deles, também, o havia visto e esperava para recebêlo. Sakina beijou suas mãos e ele abraçou-a e beijou-a na cabeça. Seu marido estava presente, bem como os gêmeos. Abraçou Abu Khalid com calor especial. Foram todos apresentados aos recém-casados. Sakina, tendo perdido uma irmã, estava ansiosa para agradar à nova. Levou Elinore e Ibn Thawdor aos seus quartos. Idrisi olhou ao seu redor.

— Onde está Uthman?

— Vou levá-lo a ele — disse Khalid. A visão do seu primogênito sempre tinha um efeito perturbador sobre ele. Devia completar 35 anos este ano. A mulher que cuidava de Uthman viu quando se aproximavam. Pelo menos ainda está viva, Idrisi pensou consigo mesmo. Seu corpo forte e ossudo deve tê-la ajudado a sobreviver ao pior de uma dura vida. Então viu Uthman escondido atrás de uma árvore observando-o.

— A paz esteja com você, filho. Não vai se aproximar e cumprimentar seu velho pai?

Idrisi ficou chocado ao ver Uthman emergir do esconderijo. Tinha envelhecido muito além dos seus anos. Seus cabelos estavam brancos e caminhava com o ar de um frágil ancião. No entanto, falou com uma voz forte e segura.

— A paz esteja com o senhor, Abu. É bom vê-lo depois de tantos anos. Sabe, naturalmente, que minha mãe e minha irmã foram mortas por soldados romanos.

— Uthman, é bom vê-lo depois de todos estes anos. Precisa de alguma coisa? Qualquer coisa?

— Preciso de uma esposa, Abu. Uma esposa.

— Tem alguém em mente? Uthman levou o pai pelo braço até o cercado das ovelhas. Apontou para uma delas.

— Estou vendo, Uthman. Ovelhas.

— Aquela ali — disse ele, apontando de novo.

— Quero casar-me com ela. Não me diga que não é permitido, Abu. Quem não permite?

Quem?

Idrisi se deu conta de que uma referência ao Corão não surtiria muito efeito com seu filho. Decidiu tentar outra coisa.

— O imperador Romano proibiu o casamento entre humanos e animais.

Uthman gritou.

— Eu sei disso, naturalmente. É para desafiá-lo que vou levar adiante este casamento. Deixe que seus soldados venham. Nós os emboscaremos e mataremos.

Está com seu escudo e espada prontos, jovem Khalid?

— Sim, tio.

— Vá buscá-los. Quando Khalid desapareceu Uthman sentou-se na cadeira debaixo da árvore e falou de novo.

— Foi o grande pensador grego Pitágoras quem nos ensinou que os humanos foram reencarnados como animais, pai. Sabia disso? Por favor, prepare o meu casamento.

— Eu sabia disso, filho, mas onde ouviu falar a respeito?

— Na sua biblioteca. Vou lá muitas vezes para ler. Existem muitos livros de interesse. Gosto muito deles.

Lágrimas encheram os olhos do pai. O que saíra errado nesta criança? Os antigos escreviam sobre pessoas perdendo a cabeça, mas não tinham cura. Devia haver uma cura.

Por que deveria uma doença mental ser ignorada ou depender de remédios baseados em pura superstição?

— Não quer entrar em casa e dividir a comida conosco?

— Não posso, Abu, porque vocês vão sentar-se e comer minha madrasta. Eu a vi ser morta, despida, marinada, depois do que pequenas lanças de alho perfuraram seu corpo e então a cobriram com tomilho silvestre porque até eles estavam envergonhados da sua nudez. Pode vê-la agora sendo assada suavemente no fogo.

— Amanhã prometo que não consumiremos nenhuma carne. Comerá conosco então?

— Com grande prazer, Abu. Fico feliz em vê-lo de novo. E fiquei feliz em saber por meu sobrinho que seu livro foi completado. Obrigado por ter vindo me ver.

Ao caminhar de volta para casa, Idrisi refletiu sobre o fato de que o único membro da família que mostrara qualquer interesse pelo livro fora seu filho mentalmente perturbado. Depois, Sakina contou-lhe que na maioria dos dias, à parte suas conversas com os animais, Uthman era completamente normal. Apenas quando imaginava que os soldados o iam encontrar e matar é que deixava a casa e escondia-se fora dela durante dias. E tinha medo de visitantes — achava que eram espiões que voltariam e o delatariam ao comandante da Legião Romana em Siracusa.

— Por que envelheceu tanto?

— Aconteceu lentamente, mas não sabemos por quê. Ummi achava que devia ter alguma relação com a doença.

— Não estou nada seguro de que seja isso. Khalid, que os escutava, tinha outra teoria. — Acho que foi a tristeza que deixou seus cabelos brancos. Dia após dia, fica sentado na cadeira e observa os animais serem mortos. Isso realmente o perturba. Sabe de uma coisa, Jiddu, fico sentado com ele enquanto fala com os animais.

Tenta ensinar-lhes nossa história e sobre o nosso Profeta e as batalhas, mas geralmente fala com eles sobre a Grécia antiga e seus grandes filósofos. Aprendi muito com ele. Por que não o deixa casar com quem quiser?

— Khalid! — advertiu sua tia.

— O menino pode estar certo sobre a causa do seu envelhecimento prematuro. Não existe modo algum de afastá-lo dos animais? E se tirássemos todos os animais da propriedade?

A sugestão deixou Khalid em pânico.

— Nunca faça isso, Jiddu. Ele só acharia que foram todos mortos e se mataria também.

— Parece conhecê-lo melhor do que qualquer pessoa, meu filho. Claro que algo poderia se organizar para fazer com que os animais sejam abatidos à noite enquanto ele dorme. Se isso lhe causa tanta aflição, por que fazem à sua frente? O que acham?

Khalid pensou por um tempo.

— É uma boa idéia, mas ele conhece todos eles e sentiria sua falta. Ainda assim, seria a melhor solução.

Naquela mesma noite Sakina instruiu o açougueiro e as ovelhas e cabras foram removidas à noite. Na semana seguinte, Uthman parecia muito mais feliz e certa tarde sussurrou para Khalid.

— Meus amigos estão aprendendo a escapar. Sabem que vão ser abatidos e fogem toda noite. Eu lhes disse para fugir e se esconder nas cavernas perto do mar. Espero que minha noiva não fuja.

— Mas, querido tio. Não preferia que ela fugisse? E se eles a matassem?

— É um menino esperto. Sinto orgulho de você. Acho que vou ter de casar com outra pessoa.

Naquela noite a ovelha que havia chamado a atenção de Uthman foi tirada do cercado e preparada para a cozinha na manhã seguinte. Eles a comeram ao almoço e Idrisi notou Khalid remexendo nervosamente na carne sem comer quase nada.

Talvez não haja remédio para sua doença, pensou Idrisi, mas se existe uma cura deve ter a ver com entrarmos dentro de sua cabeça e Khalid fez mais do que qualquer adulto na casa.

O Confiável era da mesma opinião. Empenhara-se em um número de conversas com Uthman na biblioteca e ficou espantado ao ver que ele sabia onde se achava cada livro e, dos livros que havia lido, era capaz de citar números de páginas e referências sem qualquer problema.

— Talvez só uma parte da sua mente tenha deixado de funcionar. O resto é normal. Esta é a parte do corpo humano que os médicos menos conhecem.

Uma noite, depois do jantar, reuniram-se em torno de uma fogueira que fora acesa do lado de fora, comeram frutas secas e beberam chá de menta debaixo das estrelas.

Aquilo lembrou a Idrisi sua juventude. Chamou Elinore de lado e apontou para as luzes de uma aldeia distante.

— Eu cavalgava até lá uma vez por dia só para ver de relance sua mãe.

— E minha tia? — Não, sua danada. Ela era pequena demais para ser levada a sério.

Abu Khalid sugestivamente clareou a garganta e Idrisi e Elinore voltaram ao círculo familiar. Idrisi falou das mortes na família e elogiou sua falecida esposa pela maneira eficiente como havia administrado a propriedade. Uma reflexão inesperada o interrompeu.

— Gostaria que Walid estivesse presente para ouvi-lo dizer isso, Abu. Teria ficado feliz.

Idrisi sorriu.

— Eu também gostaria que ele estivesse aqui, Uthman. Que Alá proteja todos os meus filhos.

Descreveu como era uma terra inculta cheia de morros quando seu avô ali chegara num verão. Precisaram de seis meses só para arrancar as pedras do chão para construir os primeiros poucos terraços. Muitas das pedras foram usadas para construir a casa. Quando as chuvas de inverno chegaram, a terra se transformou, os morros ficaram verdejantes e os riachos transbordaram. Só então ficaram seguros de que tinham feito uma boa escolha.

— E agora temos decisões a tomar. Ainda que eu permaneça nesta ilha, nunca mais viverei aqui de novo. Sakina mora com a sua família. Abu Khalid e Khalid são felizes na sua propriedade. Uthman, naturalmente, viverá aqui com seus amigos, mas não pode dirigir a propriedade. Os camponeses que trabalham nestas terras, como seus ancestrais antes deles, sofrerão muito se vendermos a propriedade. Eu me perguntava como deveríamos resolver esse problema quando Khalid me contou que ele e o pai haviam convidado o Confiável para juntarse a nós. Então eu me volto para ele. Homem santo, se é isto o que realmente é, explique-nos como vamos ensinar os camponeses a prestar falso testemunho descaradamente a fim de se defender contra o futuro. Soubemos todos da aldeia onde milagres aconteceram depois da sua visita.

O porte do Confiável havia se alterado desde que se encontrara com a irmã de Bulbula. Cortara o cabelo e aparara a barba. Banhava-se com mais freqüência e vestia roupas limpas, tudo em parte por causa de um pedido feito pela irmã de Bulbula. Mas também estava ciente de que descrições suas circulavam em toda a ilha e que os lombardos velhacos logo estariam em busca de sua vingança.

O erudito havia feito perguntas que requeriam uma resposta.

— Douto mestre Idrisi, eu lhe agradeço e à sua família pela hospitalidade que me deram. A meu ver, existem poucos problemas em relação a esta propriedade. Os camponeses não foram maltratados e são todos Crentes. O tamanho da propriedade não é excessivo. Andei fazendo alguns cálculos.

Existem cem famílias camponesas, além de seis empregados na casa.

— Na verdade, Confiável — disse Uthman — existem 103 famílias e oito empregados. Esqueceu de contar o açougueiro e o lenhador que comem diariamente em nossa cozinha.

— Obrigado por me corrigir, Uthman ibn Muhammad. Há terra suficiente para ser dividida entre estas famílias. Isso deixará terra bastante para manter a propriedade, não como antes, mas certamente sem criar um problema. Existe ainda a questão de prestar falso testemunho. Isso é desnecessário pois o próprio Ibn Muhammad assinará os documentos de transferência, que podem ser registrados em Noto. O problema é o futuro. Se formos derrotados, a única maneira que os camponeses têm de conservar as terras é fingir que são nazarenos. Vocês têm uma pequena mesquita aqui, mas nenhuma igreja. Acho que precisamos de uma. Grega, não latina. É mais simples. Se os camponeses concordarem, vi um local onde poderia ser construída facilmente. Uma vez feito isso, precisamos de um monge e de um registro em que ele testemunhará que converteu a aldeia no dia em que Rujari morreu para honrar sua memória.

— Confiável — Uthman perguntou numa voz nervosa -, meus amigos serão forçados a se tornar nazarenos?

— O que são eles no momento?

— Não são nem Crentes nem nazarenos. Ainda adoram o antigo deus grego, Posêidon.

— Não será necessário que se convertam.

— Nem eu, então. — Isso não será um problema.

— Talvez tudo isso possa ser feito — disse Idrisi — mas nossos camponeses são muito religiosos e duvido que concordarão em mudar de religião para conservar sua terra.

— Esta é uma ilha estranha — disse o Confiável.

— Seu clima e seu modo de vida têm uma maneira de afetar todo mundo. A escolha é ou deixar que o tirano colha os frutos que semearam e serem expulsos da terra ou fingir que foram batizados. Podem rezar para Alá cinco vezes por dia nos campos ou em casa. Mas a escolha é deles, não sua ou minha. Isso eu aprendi na outra aldeia. Havíamos vencido, mas os camponeses tinham medo de represálias. E prometer-lhes que não haveria matanças de vingança porque íamos ser vitoriosos e retomar a ilha não era convincente. Não estou seguro de que isso seja possível, dado nosso atual estado, por isso como poderia convencer outra pessoa? Foi então que pensei nas conversões planejadas por nós como uma defesa para aquelas forçadas ao nosso povo pela força da espada. O que há de mau nisso? Alá seja louvado, se vencermos. Se perdermos, vamos garantir que os camponeses e suas famílias fiquem seguros, embora nós possamos não ficar. É o mínimo que pode ser feito por eles.

— É conselho sensato, devo concordar — disse Idrisi.

— Mas nesta propriedade eles não tiveram de lutar contra a adversidade e isso lhes deu uma extraordinária autoconfiança.

Vou apoiar o seu conselho.

Elinore e seu marido discutiram seu futuro através da noite. Ela queria deixar Siqilliya, mas ele queria ficar para que seus filhos nascessem ali. Lembrou a ela que sua família havia vivido em Siracusa desde que a cidade fora construída. Ela argumentou que não podia suportar a idéia de ver seus filhos nascerem em meio a carnificinas e à incerteza. Se Rujari, que ela amava, pôde matar Felipe, a quem ela admirava, o derramamento de sangue nesta ilha jamais iria parar. Ele debruçou-se e sussurrou algo no ouvido dela que a fez rir. Foi uma risada profunda, sonora, espontânea, saída direto do coração.

— Isto quer dizer que chegamos a um acordo, minha senhora?

— Apague a vela, Simeão, e deixe-me dormir. Você saberá pela manhã.

Na manhã seguinte o som de sua flauta a acordou. À primeira luz matinal na janela ela o viu, seu rosto inclinado para um lado, os olhos fitando tristemente o mar distante. Nunca percebera que a música poderia tal um efeito em si. Agora desejava ter cedido à pressão da mãe e ter aprendido a tocar o alaúde quando ainda moravam no palácio. Havia tomado sua decisão, mas comunicaria a Simeão depois.

O Confiável acordou cedo para que pudesse falar com as famílias camponesas. Tinha organizado um mehfil no final da tarde, uma hora antes do tempo em que normalmente acabavam de lavrar os campos. Tudo o que lhes disseram foi que Ibn Muhammad alIdrisi havia voltado à propriedade e desejava conversar com eles. Sakina já estava na cozinha supervisionando a comida que tinha de ser preparada para alimentar a assembléia.

Idrisi havia levado Uthman numa caminhada para respirar e inspecionar os pomares. Uthman também se mostrou competente aqui, olhando atentamente para cada árvore e calculando as frutas que daria mais para o fim do ano. Sua constante ânsia de se afirmar alegrou o pai, que ficou a pensar se não o teriam abandonado por muito tempo e falar com ele todo dia e tratá-lo como uma pessoa normal não poderia tê-lo curado parcialmente.

Subitamente, à distância, ouviram o som de pessoas correndo em sua direção e acenando para eles. Uthman congelou, o rosto tomado pelo medo. Idrisi colocou os braços em volta dos ombros do filho e disselhe para não se preocupar, eram amigos, não soldados romanos.

— Tem certeza, Abu? Nenhum de nós está usando espadas. Uma Elinore de olhos brilhantes e Simeão, seus cachos dourados agitados pela brisa, ambos ligeiramente ofegantes, pararam de correr quando viram o pai. Uthman sorriu e relaxou de novo. Gostava de Elinore e adorava ouvir Simeão tocar a flauta. Idrisi olhou para ela e soube no instante que tinha algo a lhe dizer mas não esperava encontrar Uthman com ele.

— O que se passa em sua cabeça, filha? Não há segredos para o seu irmão.

— Vou sentar-me debaixo da árvore, se quiserem — disse Uthman.

— Não!

— Então fale.

— Simeão ibn Thawdor e eu temos pensado muito. Chegamos a uma decisão, mas só se ela tiver a sua aprovação, Abi. Gostaríamos de vir morar aqui com Uthman e... se o Confiável está certo quanto à necessidade de construir uma igreja, então Simeão poderia, quando fosse necessário, vestir uma batina de monge e esconder sua flauta.

Uthman bateu palmas de entusiasmo e Idrisi riu. Estava surpreso e contente. O que o preocupava era a idéia de Uthman, abandonado por sua família e dependendo apenas dos criados. Sentia-se culpado de ter abandonado o rapaz quando ainda era jovem. Agora sua filha decidira fazer o que ele deveria ter feito anos atrás.

— Uma decisão maravilhosa! Contanto que se sintam felizes aqui, todo mundo será feliz. Mas até que precise se tornar um monge, Simeão, você deveria escolher um pedaço de terra e cuidar dele.

— Vou fazer isso — respondeu -, mas antes precisamos construir uma pequena igreja. Um cúpula, uma cruz e bancos toscos de madeira, sem adornos, dentro dela. O mapa está na minha cabeça. Podia ser usada como escola. Elinore está decidida a ensinar as crianças a ler e escrever em árabe e grego.

— Quando vão ter as crianças?

— Uthman! — ela gritou ao vê-lo de pé, as pernas afastadas, as mãos nos quadris.

— Acabamos de casar. Nos dê um tempo. Simeão estava falando das crianças da aldeia.

— Fico muito feliz que você e Simeão vão morar aqui comigo. Muito feliz. Temos muito a discutir, mas agora, se me derem licença, preciso ir para informar meus amigos.

Quando os aldeãos chegaram para o mehfil, vestiam suas melhores roupas. Idrisi, que conhecia a maioria das famílias, sentou-se com eles um pouco enquanto comiam e falavam de como a ilha era antes de chegarem. Tudo o que se cultivava era trigo. Agora tinham algodão e bichos-da-seda e a árvore de sumagre para curtir e tingir e nossas tecelãs — e falavam só de Noto — eram as melhores da ilha, se não no mundo inteiro. Uma voz acrescentou:

— Noto foi a última a se entregar e será a primeira a se levantar contra eles.

Depois que comeram, Idrisi e o Confiável falaram cada um por sua vez e explicaram como viam o futuro da propriedade. Os aldeãos ficaram exultantes quando Idrisi lhes disse que a terra pertenceria a eles, mas menos felizes quando o Confiável gentilmente explicou que o caminho da sobrevivência a longo prazo poderia necessitar um desvio pela igreja.

— Confiável — um jovem camponês perguntou -, é normal sonhar com vitórias e triunfos, mas o senhor só fala de derrota. Tem certeza de que seremos derrotados? Nossa aldeia ofereceu cinqüenta jovens para lutar na jihad.

— Meu amigo — respondeu o Confiável -, é melhor estar preparado para tudo. Não sei se vamos vencer ou perder. O que fizerem deve ser da sua própria escolha. Se formos derrotados estou lhes dizendo que, assim como a noite sucede ao dia, os lombardos virão para matar todos vocês e roubar sua terra. Mataram gregos também, de modo que a igreja poderia não ser proteção suficiente, mas pelo menos lhes oferece uma oportunidade.

Idrisi apresentou-lhes Elinore e Simeão. Explicou sem embaraço como ambos haviam sido batizados e viveriam na casa com seu filho Uthman. Falou do desejo de Elinore de ensinar seus filhos a ler e escrever. Aconselhou-os a seguirem os conselhos do Confiável e então, talvez porque pensasse em Balkis, citou uma parelha de versos de Ibn Hamdis.

— Nosso poeta escreveu: "Exauri as energias da guerra! Carreguei em meus ombros os fardos da paz." Estes fardos permanecem e é para aliviar a carga que o Confiável sugere que, caso se torne necessário, escondam sua verdadeira religião. Tais períodos não são desconhecidos na história do nosso povo.

Depois de novas discussões, chegou-se a um entendimento e na sua presença Idrisi pediu ao Confiável que preparasse uma série de registros, um para a terra, outro para a igreja. E então, como se para confirmar seus novos sonhos, Simeão tocou uma melodia jubilosa na flauta e todo mundo começou a bater palmas em ritmo, até que alguns jovens se levantaram e começaram a dançar. Era, como Idrisi contou depois a Simeão, uma dança tradicional berbere que ele não via há muitos anos, memórias da vida no passado distante.

Naquela noite Idrisi chamou o pai de Khalid de lado.

— Umar, você é como um filho para mim. Posso falar francamente com você?

— Claro, Abu Uthman. Por favor.

— Khalid está crescendo rapidamente. Daqui a pouco vai estar discutindo e implorando com você para deixar esta terra e fincar seus pés e sua fortuna em outro lugar.

Mas sinto que falta ao menino o afeto de uma mulher. Já pensou em se casar de novo?

— Já, mas ainda não encontrei uma mulher que me atraia.

— Noto e Siracusa estão cheias delas, suas peles da cor de abricó e sua risada como as ondas de um regato.

Não encontrará ninguém na sua propriedade. Saia por uns tempos. Dê a si mesmo uma oportunidade.

— É um bom conselho e vou ver se posso satisfazer tanto ao senhor como a mim mesmo.

Na manhã seguinte, Khalid e seu pai, acompanhados pelo Confiável, deixaram a propriedade e Sakina os seguiu poucas semanas depois. Seu marido e filhos tinham voltado no dia seguinte aos funerais e ela achava que era hora de voltar e cuidar de suas necessidades. A casa estava virtualmente vazia e Uthman sentia falta do sobrinho, por isso Simeão e Elinore decidiram não voltar com Idrisi no dia seguinte para buscar suas coisas.

— Todas as nossas roupas já estão em Siracusa e minha tia Balkis pode empacotá-las e mandá-las para cá. Não quero deixar Uthman. Se todos nós fôssemos embora o choque poderia ser demais para ele.

— Por favor, transmita meus respeitos e amor ao meu pai quando voltar a Palermo. E diga a ele que estou construindo uma pequena igreja. Isso agradará a minha mãe.

Idrisi abraçou e beijou cada um deles e ficou profundamente afetado ao ver lágrimas nos olhos de Uthman.

— Abu, foi um prazer verdadeiro ver o senhor depois de tanto tempo. Por favor, volte e antes de vinte anos, oito meses e quatro dias.

Os olhos de Idrisi estavam úmidos ao embarcar na carroça e era Uthman quem ocupava mais seus pensamentos na jornada de volta a Siracusa. Lembrou como todo o seu amor e suas esperanças tinham se concentrado em Walid, como era Walid quem ele levava por toda parte consigo. Foi Walid quem se encontrou com o sultão e viajou para conhecer velhos amigos da família em Shakka e Marsa Ali. Foi a Walid que ele fez confidências. Não se arrependia disso, mas ficou furioso agora por seu fracasso em entender que Uthman precisava muito mais dele.

Observar a mudança em Uthman fora uma revelação. Talvez escrevesse sobre isso no seu livro para ajudar outros que tinham de lidar com crianças anormais. Em muitas aldeias, crianças como Uthman eram deixadas na rua para morrer. Não tinham feito isso, mas os cuidados que lhe dispensaram foram muito melhores? O menino fora largado nas mãos de uma surda que cuidara de alimentá-lo e vesti-lo. Quem podia culpá-lo por buscar consolo no reino animal? Idrisi ficou até pensando se não deveria voltar à propriedade por um tempo. Poderia completar o Formulário em sua própria biblioteca. Mayya e Afdal viriam também. Era a vez da casa de Palermo ficar vazia por algum tempo. E Balkis poderia vir aqui sempre que o desejasse. Quanto mais pensava nisso, mais a idéia o atraía. Seu navio estava ancorado em Siracusa; voltaria a Palermo e traria todos a Noto. A enseada não era tão grande como a de Siracusa, mas ótima para o seu barco. E talvez levasse Uthman consigo para Veneza e surpreendesse Walid. Estava longe de Palermo há quase três meses — surpreendente como não sentia falta da cidade.

Mesmo um ano atrás a idéia de morar em qualquer outro lugar teria sido risível. A História havia mudado tudo. Felipe e Rujari. Os dois homens mais próximos de si no palácio. Não apenas História. Mayya e Elinore e Balkis.

Quem poderia ter previsto o que acontecera? Não Alá. Então pensou: se Felipe estivesse vivo e Rujari morto teria sentido o mesmo em relação a Palermo? Tinha dito não a Guilherme, mas se Felipe houvesse insistido que ele pudesse ser de serviço vital para o estado, teria sido capaz de declinar tão rapidamente, ou chegaria sequer a declinar? Quem teria vencido o cabo-de-guerra por seus serviços? Felipe ou Balkis? A História só poderia ser o resultado de uma imaginação desordenada.


17

Massacre em Palermo.
Ydrisi decide nunca mais visitar a cidade.
Parte para Bagdá.

Sabia que algo estava errado no minuto em que entrou no palácio em Siracusa. Quando o guarda o viu no portão, assinalou para o porteiro e rostos tristes se desviavam dele enquanto um tristonho camareiro o conduzia à câmara privada do Amir.

Espero que nada tenha acontecido com Balkis, pensava consigo mesmo o tempo todo. Foi a visão de Abu Fityan que o espantou. O homem caiu de joelhos e recostou a cabeça nos pés de Idrisi.

— Perdoe-me, Ibn Muhammad. Perdoe-me.

— Alguém pode me contar o que aconteceu? Mayya?

Balkis acenou com a cabeça.

— Morta? Por quê? — ele chorou convulsivamente.

— Afdal?

— Está seguro aqui conosco e dorme profundamente.

— Alá seja louvado. Ibn Fityan, pare de chorar e me conte o que aconteceu.

Mas as lágrimas continuavam a rolar. Depois de algum tempo, a história começou a desdobrar-se, interrompida pelo choro e pelas perguntas dos presentes. Concluiu-se que o que aconteceu foi uma chacina de vingança.

O barão de Messina queria saber por que o jovem sultão lhe ordenara que não fizesse reféns em Palermo. O sultão explicou que era um comportamento inaceitável e que mestre Idrisi o aconselhara de que poderia provocar uma reação explosiva. O barão fizera uma mesura e se retirara. Foi o que relataram a Ibn Fityan os eunucos do palácio que entreouviram a conversa. A atmosfera na cidade estava tensa. Houvera outra refrega e os dois lados injuriavam um ao outro. Dois dias depois, Mayya achou que Afdal, que se recuperava de uma febre, poderia se beneficiar do ar marinho. Pediu a Thawdor e a Ibn Fityan que acompanhassem a criança e a aia até a beira-mar.

Quando voltei, mestre, havia sangue nas escadas e meu coração começou a martelar. Corri e vi os corpos dos empregados caídos no chão. Tinham sido destripados e suas gargantas foram cortadas. Só havia um sobrevivente. Estava no seu quarto e escondeu-se debaixo da cama. A senhora Mayya fora desonrada e morta.

Idrisi e Baileis, ignorando a presença de Ibn Fityan, consolaram-se, enxugando as lágrimas das faces um do outro.

— O que aconteceu, Baileis? Por quê? Eu devia ter insistido para que ela viesse para cá. Devia tê-la obrigado a vir. Minha pobre Mayya. Por que ela? Por que não eu? Era atrás de mim que estavam. Como vou encarar Elinore? Deve ir e contar a ela, Baileis. Sim, sim, Ibn Fityan, termine a sua história. Não chore, homem. Fico feliz que esteja vivo. Se não fosse assim, teriam matado Afdal, Thawdor e você. Como poderia tê-los salvo? Teria sido morto com o resto. Não foi sua falha. Não há razão para sentir-se culpado.

Ibn Fityan enxugou as lágrimas e continuou.

— O menino que sobreviveu contoume que os homens estavam bêbados, gritando obscenidades e destruindo tudo. Alguns de seus livros foram jogados pelas janelas. Os restantes estavam no chão onde aqueles animais defecaram e urinaram neles.

A tristeza de Idrisi misturou-se com raiva.

— Não há limite para estes bárbaros?

— Toda a cidade está chocada com o crime, Ibn Muhammad. O sultão ordenou a prisão do barão de Messina. Quer que o barão e seus asseclas sejam executados publicamente. O bispo inglês recomenda cautela.

Idrisi lembrou-se do inglês, de meia-idade, com olhos castanhos claros e cabelos ralos, inteligente, impiedoso com uma voz rouca irônica e desagradável, mas também com uma capacidade ilimitada de bajular aqueles no poder ou próximos a ele. A maioria das cortes os possuem, mas esse bispo era único. Rujari jamais gostara dele ou confiara nele, freqüentemente observando que o homem era pago pelo Vaticano.

— É uma figura do mal. Monges nunca recomendam cautela quando se trata de matar o nosso povo.

Ibn Fityan sacudiu a cabeça tristemente.

— O sultão envia suas condolências e deseja que o senhor retorne a Palermo.

— Não retornarei. Não desejo ver aquela casa de novo.

— Uma decisão sábia.

— Onde está Thawdor?

— Está aqui. Queria ver seu filho e, como eu, não suporta mais ver Palermo ou a casa. Trouxe a aia também, já que Afdal ibn Muhammad está acostumado com sua presença.

— Agiu bem em trazê-lo para cá. Vocês dois podem me acompanhar de volta à propriedade. Talvez Afdal...

— Deixe-o aqui — disse Balkis.

— Haverá tempo depois. Elinore precisa de você e não deve haver distrações.

— Ibn Fityan, seria oportuno se você e Thawdor permanecessem na propriedade. Ele pode trazer sua esposa também.

— Farei como sugere, mestre. Depois que Ibn Fityan deixou a sala, Balkis puxou Idrisi junto a si, repousando sua cabeça no seu colo, e acariciou seus cabelos com os dedos.

— É insuportável, Balkis, que ela fosse punida em meu lugar. É insuportável. E aqueles animais a violentaram e humilharam. Meu filho Uthman me reprovaria por referir-me a eles como animais. Ele acha que os humanos são muito piores.

— Uthman? Seu filho? Nunca falou dele antes.

— Os humanos têm esta capacidade de se escudar das verdades desagradáveis. Envergonho-me de nunca ter falado de Uthman.

Ficou tão feliz de conhecer Elinore que pediu que lhe contasse a respeito de Mayya.

— Quero saber tudo sobre Uthman. Para distrair a ambos da sua dor, descreveu-lhe a história de Uthman em detalhes, como achava mais fácil relacionar-se com animais ou jovens humanos como Khalid do que com a raça humana. Balkis decidiu-se a levar seus novos irmãos para conhecê-lo. Mas agora Idrisi devia partir de novo para sua propriedade a fim de dar a Elinore as notícias terríveis da morte de sua mãe. Antes de sua partida ele quis ver Afdal. Balkis levou-o pelo braço até o quarto onde o menino dormia.

Chorou de novo ao ver seu filho adormecido, com menos de seis meses de idade. Quem podia amá-lo como sua mãe o amara? Ela quase leu seus pensamentos.

— Tenho leite suficiente para os dois — disse.

— Vou criá-lo como se fosse meu próprio filho.

— Talvez dentro de poucos meses eu devesse levá-lo para nossas terras. Deixe-me falar com Elinore.

Ao deixarem o quarto, viram o Amir que cumprimentou Idrisi com um abraço caloroso.

— Alá tenha piedade de nós, Ibn Muhammad.

— Ninguém mais tem — disse o erudito.

Algumas horas depois que ele partiu, Balkis amamentava as duas crianças e notou que Afdal empurrava seu mamilo para o lado antes de agarrá-lo de novo, enquanto Hamdis agarrava-se ao mamilo como um inseto. Talvez meu leite tenha um gosto diferente e ele tenha notado. Mas Eudóxia, a criada que sobreviveu ao massacre, tranqüilizou Balkis.

— Ele é assim com cada teta, minha senhora, se perdoa meu jeito de falar. Sua irmã — que Deus a abençoe — lutava sempre para amamentá-lo. É um garoto forte e vai dar muito trabalho às mulheres, Deus o abençoe.

— Vai à igreja todo domingo?

— Sim, minha senhora.

— Acha que aqueles bárbaros que mataram minha irmã e os empregados a teriam poupado se vissem o crucifixo pendurado no seu pescoço?

— Não, minha senhora. Duas das garotas que foram mortas tinham a mesma cruz ao redor de seus pescoços. Eram animais, minha senhora, piores ainda. Lombardos! Não eram desta ilha. Nossa gente...

— Existe uma velha igreja grega em Siracusa. Dizem que existem dois ícones que reluzem e sorriem no escuro. Nunca estive dentro dela. Conte-me como é.

— Vou contar, minha senhora, e obrigada pela bondade. Quando Idrisi estava afastado por mais de quatro semanas, Balkis começou a entrar em pânico. Sentia-se negligenciada e lembrou algo que Mayya lhe dissera quando estavam ambas grávidas.

— Amor e ciúme são irmãs, Balkis. Eu sou o amor e você é o ciúme.

Na ocasião ela rira e saudara a observação com sonoros protestos, mas sabia que continha mais do que um único grão de verdade.

Enquanto Mayya vivia, Balkis se reconciliara com a idéia de ficar com Aziz e compartilhar Idrisi com a irmã. Agora ela o queria o tempo todo. Se ele decidisse morar na propriedade, poderia visitálo três ou quatro vezes por semana. Eram três horas a pé até Noto. Podia ir a cavalo em menos de uma hora. Começou a planejar.

O que ela queria agora era outro filho. Então poderia deixar Hamdis com seu pai e poderia morar com o seu Muhammad.

Idrisi voltou na semana seguinte e foi primeiro até o seu filho, que estava com Eudóxia nos jardins. Segurou o menino e o beijou muitas vezes antes de ir à procura de Balkis. Ela o abraçou firme enquanto ele lhe contava tudo o que acontecera.

— Nada que você não pudesse imaginar, minha amada. Elinore estava inconsolável. Não havia nada que eu pudesse dizer ou fazer para a consolar. Ficou no seu quarto e recusou-se a comer. Acho que foi a flauta de Simeão que a atraiu para fora de novo. Conversou interminavelmente com Ibn Fityan e Thawdor, mas eles lhe pouparam os piores detalhes. Então ela, também, disse que nunca mais queria voltar a Palermo. Uthman levou-a em longas caminhadas e ela voltou com alguma cor nas faces.

Quer muito que você vá com os meninos. Simeão ficou abalado pelas notícias, também. Foi por puro acaso que seu pai sobreviveu e implorou ao velho para que mandasse chamar sua mãe. Ibn Fityan vai ficar na propriedade. Portanto, a morte da minha pobre Mayya nos trouxe todos de volta ao Val di Noto.

— E você, habibi? Onde vai ficar?

— Quero ver as crianças crescerem e Elinore reencontrar a felicidade. Vou terminar meu livro aqui na fazenda. E antes que pergunte quanto tempo o livro vai demorar, deixe-me informála, senhora Balkis, mais três meses e estará terminado. Volto amanhã. Quando virá?

— Com você, amanhã.

— E com as crianças?

— Sim. Como sabe, Ibn Muhammad, meu marido é bondoso e...

Colocou a mão sobre a boca de Balkis.

— A morte de Mayya piorou as coisas para nós. Não vê-lo todo dia é agora muito mais difícil.

Ele acariciou a sua mão. Partiram cedo para evitar que os meninos fossem submetidos ao sol do meio-dia. Balkis e Idrisi cavalgaram, enquanto Eudóxia e outra empregada eram transportadas de carroça. O grupo de Siracusa foi recebido com genuíno calor. Elinore agarrou-se à tia enquanto as duas mulheres choravam. Simeão mostrou a igreja já pronta orgulhosamente para eles, Eudóxia caindo de joelhos no minuto em que entrou para fazer uma prece. Simeão observou-a calmamente.

— Se os acontecimentos previstos pelo Confiável vierem a ocorrer, esta pequena edificação poderá ser a salvação desta propriedade.

Elinore era agora aceita como a senhora da casa e da fazenda. Havia reservado quartos para eles e Balkis ficou preocupada ao descobrir que iria compartilhar o quarto de Idrisi.

— Será prudente? — sussurrou para a sobrinha.

— Uthman não acharia isso de mau gosto?

— Ele é um verdadeiro pagão, tia. Acharia estranho se vocês tivessem quartos separados, pois sabe que Hamdis é nosso irmão.

— Você criou um mundo sem segredo de espécie alguma?

— Ninguém sabe que estou grávida. Balkis abraçou e beijou a sobrinha.

— Fico tão feliz por você.

— Espero que seja uma menina, tia. Quero chamá-la de Mayya.

— Às vezes o que a gente quer, a gente consegue.

— Não segundo Abi. Seu conhecimento médico ensinou-lhe diferentemente.

— Como vai seu livro?

— Está quase terminado, diz ele, mas Uthman, que usa a biblioteca mais do que o resto de nós, não está tão convencido assim. Diz que faltam ainda mais uns seis meses de trabalho. E isso é outro segredo. Seria repreendido se descobrissem que está lendo o manuscrito toda vez que Abi sai para uma caminhada.

Balkis expressou surpresa diante das capacidades de Uthman.

— Ele é normal a maior parte do tempo. Gosta de viver num mundo fechado. Certa vez perguntei se visitaria Siracusa e ele saiu correndo da sala e foi para a sua árvore. Descobri as coisas que o perturbam e se evitamos mencioná-las ele se comporta como qualquer outra pessoa. Fala coisas estranhas às vezes. Certa vez me disse que se não houvesse uma biblioteca na casa ele teria morrido. E fala sério, cada palavra que diz.

— Parece que ele se conhece melhor do que a maioria de vocês o conhece?

— É muito simples, tia, mas não posso explicar por quê. Balkis já se sentia à vontade. Não tinha responsabilidades domésticas, além de amamentar as crianças e, quando Idrisi trabalhava, persuadia Uthman a mostrar-lhe a fazenda, ouvindo atentamente enquanto ele descrevia cada árvore e planta. Então ela conheceu os animais.

Mais tarde naquela noite, depois de amamentar os bebês, voltou ao seu quarto e encontrou Idrisi com um terrível acesso de tosse. Ao se aproximar, ele ergueu os olhos com um ar de súplica.

— Em nome de Alá, mulher, não vê que preciso de leite? Então ela se deu conta.

— Meus seios estão vazios. Seus filhos são tão gulosos quanto o pai.

— Quando vão ficar cheios de novo?

— Dentro de poucas horas. Ela o aninhou.

— Não quero deixá-lo, Muhammad, mas preciso voltar amanhã. Vai ter uma festa em homenagem a Aziz.

— Por que nunca há uma festa em minha homenagem?

— Porque ele é o Amir de Siracusa e você, meu querido, é apenas o Amir do Livro. Os homens ricos da cidade adoram homenagear uns aos outros. O anfitrião de amanhã é um mercador judeu, o que significa que poucos nazarenos comparecerão. Aziz convidou todos os nossos notáveis e, o que é fora do comum, suas esposas deverão estar presentes também. A maioria delas são criaturas plácidas, caprichosas e mimadas e se queixarão amargamente de que foram forçadas a ir.

— Estranho como nos últimos quinhentos anos o destino dos judeus esteve muitas vezes ligado ao nosso próprio futuro. Quando nós sofremos, eles sofrem. Quando prosperamos, eles prosperam. Quando estão presentes e nós não estamos, não conseguem se defender e são chacinados como carneiros. É a mesma história aqui, em alAndalus e em al-Quds, Bagdá, Cairo e Damasco.

— Vou repetir estas palavras sábias para o meu marido. Talvez ele encontre um uso para elas na festa.

— E, se me permite, gostaria de encontrar um uso para você esta noite.

E Balkis ficou grávida pela segunda vez. Idrisi recordaria estes oito meses na fazenda como os mais felizes de sua vida. Uthman o surpreendia a cada dia. Seus momentos ruins tornaram-se cada vez mais raros e sua saúde melhorou consideravelmente. Sua manqueira desapareceu totalmente e as manchas na pele desapareceram.

Elinore confiou ao pai que, embora ele ainda amasse ovelhas, sentia que estava pronto para o casamento com uma mulher e talvez sua tia pudesse ajudar.

É possível, respondeu seu pai, que Balkis encontre alguém inteligente que se pareça também com uma ovelha.

Idrisi percebeu que Uthman estava lendo em segredo o seu livro, mas, longe de se zangar, ficou empolgado. Assim que o fato veio à tona, os dois discutiram vários trechos e ele pedia a Uthman para comparar al-Kindi com Hipócrates em relação a uma cura específica. Uthman conhecia cada livro da biblioteca. Sem os trezentos novos acréscimos, ele havia contado 3.421 volumes.

E havia Balkis, cujas visitas à fazenda se tornaram mais freqüentes à medida que sua barriga aumentava. Nunca amara uma mulher assim antes, nem mesmo Mayya. Via Balkis e Elinore, ambas na gravidez adiantada, caminhando juntas e comparando seus ventres. Agradava-lhe vê-las assim e certa vez Uthman se perguntara em voz alta quem nasceria antes, o sobrinho ou o irmão. E se fossem uma sobrinha e uma irmã, o pai lhe perguntou. Encolhera os ombros. Não tinha a menor importância para ele.

Enquanto Hamdis ficara no palácio sob os cuidados de uma ama-de-leite, Afdal crescia na fazenda. Mesmo quando Balkis tinha de voltar para Siracusa, ela o deixava nas mãos seguras de Eudóxia. Mas quem Afdal, já crescidinho, adorava era o seu tio Uthman, que passava grande parte do tempo com ele e lhe falava como se estivesse falando com um par. O resultado foi que as primeiras palavras que Afdal falou foram belamente expressas: amigo, ovelha, livro, manteiga, cabra, flauta e Simeão.

O livro foi terminado dois meses antes que as novas crianças nascessem e Idrisi ficou irritadiço. Foi Balkis quem sugeriu que ele e Uthman fossem visitar Walid em Veneza. A mera sugestão fez Uthman correr para a sua árvore e ele ficou lá até que Balkis e Elinore chegassem para consolá-lo e pedir desculpas pela sugestão.

— Por favor, não se livrem de mim — foi tudo o que disse para elas.

Balkis ficou mortificada. Ao contrário do seu filho, Idrisi estava pronto para viajar de novo. Sentia falta do mar, mas também sabia que se não fosse ver Walid agora logo poderia ser tarde demais. De lá iria para Alexandria e para o Cairo renovar velhas amizades quase esquecidas. Ele, que se perdera no seu trabalho por tanto tempo, agora sentia a necessidade de estar numa cidade em que os Crentes dominassem, mas não qualquer cidade. Os bárbaros já são ruins o bastante, pensou, mas temos nossos próprios bárbaros, que queimam livros dos nossos maiores filósofos e castigam os poetas. Se os verdadeiros bárbaros e nossos bárbaros chegarem um dia a se aliar, Alá sozinho não será ajuda suficiente para nós.

Sua decisão estava tomada. Pediu a Uthman para ler todo o manuscrito cuidadosamente e aparar as inconsistências. Quando voltasse prepararia a versão final.

— E quando será isso, Abu?

— Poucos meses, no máximo. Cuide de Afdal por mim. Foi a mais dolorosa despedida, pois tinham se tornado fortemente apegados um ao outro.

Depois de abraçar o pai, Uthman retirou-se de novo para a árvore. Não gostava que as pessoas deixassem a fazenda.

Idrisi desejou o melhor para Elinore e Simeão e perguntou se tinham pensado num nome, caso fosse um menino.

— Thawdor — respondeu Elinore.

— Original — respondeu o pai. Balkis havia jurado a si mesma que não iria chorar e seus olhos ficaram secos.

— Se nosso filho for uma menina e Elinore tiver um menino, vamos chamar nossa filha de Mayya. Concorda?

— Concordo. E se for um menino?

— Nuwas! Concorda?

— Concordo. E se as duas tiverem meninas?

— Não havia pensado nessa possibilidade.

— Que sejam duas Mayyas.

— Sim. Muhammad, preciso saber a verdade. Seria capaz de calcular um preço para o nosso amor?

— Como poderia? É inestimável.

— Então garanta que vai voltar para mim. Não quero pensar em você como um mendigo numa terra estranha. Esta ilha é o seu lar apesar de tudo. E o elixir que cura sua tosse não é da mesma qualidade em outras partes.

Ele beijou seus olhos e então seus lábios. Dois dias velejando e Siracusa já parecia muito distante. Idrisi não sabia, mas havia passado por um navio mercante que levava Walid para Siqilliya. Ele imaginava se conseguiriam um dia retomar a ilha dos francos e se livrar dos lombardos. Mas se o conseguíssemos, o que faríamos desta vez diferente da anterior? Conseguiríamos trabalhar juntos? Dar ao povo algo por que pudesse morrer, sem fazer muita pressão sobre ele? O Confiável tinha idéias úteis, mas o grande problema era romper com os modos tribais de pensamento e elevar-se ao nível de cultura que criamos. Mas tudo isso são sonhos dourados.

Como podemos lidar com centenas de milhares de pessoas que ignoram seus próprios interesses e mergulham orgulhosamente num desastre e depois em outro?

Talvez não devesse visitar Alexandria desta vez. Iria até a cidade dos califas e se misturaria com os poetas e com os filósofos e buscaria novos livros na Casa da Sabedoria. Iria até Bagdá, a cidade que sempre será nossa. A cidade que jamais cairá. A cidade que jamais cairá.

LUCERA 1250-1300


Epílogo

Idrisi encontrou Walid ao voltar a Siqilliya e viveu na sua propriedade até sua morte, 11 anos depois daquela de Rujari. Seu Formulário Médico foi publicado em Bagdá, mas não continha o remédio para tosses. Uthman e Walid nunca se casaram. O filho de Balkis, Nuwas, tornou-se um poeta errante, deixando Siracusa aos 18 anos e mudando de cidade em cidade em alAndalus. Nenhum de seus poemas sobreviveu. A filha de Elinore, Mayya, e seus três irmãos e seus filhos continuaram a viver na propriedade onde uma igreja maior foi construída para acomodar o novo rebanho. O Confiável, depois de ensinar filosofia e história para Khalid e seus filhos, morreu tranqüilamente aos 84 anos. A aldeia que ajudara a recriar ainda existe e venera sua memória — embora seja considerado hoje um santo cristão.

Nos cem anos que se passaram desde a morte de Idrisi, membros de sua família combateram em cada rebelião. Enquanto os francos lutavam entre si pelo trono de Palermo, bandos armados sob o comando de Khalid ibn Umar e Afdal ibn Muhammad haviam libertado grandes partes de Siqilliya ocidental. Os francos mandaram expedições para esmagá-los, mas se contentaram em mantê-los confinados em seus bastiões. Um levante em Palermo abalara a autoconfiança dos francos e severas restrições foram impostas. A khutba das sextas-feiras foi proibida e o comparecimento a qualquer mehfil era punido com a morte.

Khalid morreu aos sessenta anos enquanto os sinos das igrejas repicavam para marcar 12 séculos da religião nazarena. Seu filho Muhammad juntou-se a Afdal e por muitos anos eles infernizaram e destruíram muitas legiões despachadas por Palermo a fim de esmagá-los.

Foi o neto de Rujari, Frederico, quem finalmente destruiu os últimos bolsões de rebelião remanescentes em Siqilliya. Seu amor pela cultura árabe e seus próprios palácios e haréns haviam levado os Crentes a esperar que a Era de Ouro pudesse voltar. Mas haviam esquecido que o jovem Frederico era também o neto de Barba Ruiva.

As duas tendências nele geralmente levavam a conciliações. Não queria massacrar os muçulmanos, mas simplesmente removê-los e assim purificar a ilha. No ano de 1224 da Era Cristã, aqueles que se recusavam a se converter eram instados a empacotar suas posses e levados aos principais portos da ilha. Por doze meses, mais de cinqüenta mil siqillianos que se recusaram a render-se espiritualmente foram transportados em navios para o continente. Entre eles estavam os netos de Idrisi, Muhammad ibn Afdal, Muhammad ibn Khalid e suas famílias.

Na região de Apúlia, perto da antiga cidade romana onde César havia combatido Pompeu, havia uma minúscula aldeia, Lucera, virtualmente desabitada. Foi para ali que os transportaram. Dentro de dois anos, Lucera havia se tornado uma das cidades mais prósperas do sul. A terra que cercava o povoado fora cultivada depois de anos sem uso, lojas e oficinas brotaram e artesãos habilidosos produziam entalhes de madeira e cerâmicas que não eram mais feitas em Noto e Siracusa. Frederico construiu um castelo para si com seu próprio harém. Os colonizadores construíram uma bela mesquita com uma grande biblioteca, não longe do castelo. O papa excomungou Frederico por permitir a construção de edifícios onde o "amaldiçoado Maomé é adorado". Dizem que quando a excomunhão foi lida para ele no seu palácio em Lucera ele estava embriagado, cercado por concubinas, e reagiu com a tradicional saudação do lado siqilliyano da sua família. Ele peidou.

Dentro da colônia, três jovens começaram a organizar meh fils secretos. Encontravam-se toda sexta-feira à noite e discutiam o futuro do seu povo. Aos poucos, mais e mais pessoas, jovens, velhos e mulheres, começaram a escutar. Ibn Afdal lhes contava que Lucera parecia pacífica e que não eram perseguidos, embora muitos jovens tivessem sido mortos combatendo a guerra de Frederico contra outros nazarenos.

— Tendo nos forçado a deixar Siqilliya, ele pode ser generoso, mas esse mesmo rei que permitiu que construíssemos a Grande Mesquita aqui está destruindo todas as nossas mesquitas em Palermo e no resto da ilha. Vimos discutindo nosso futuro há muitos meses. Eu sugeriria que nos preparássemos para deixar este lugar. Não será seguro depois que Frederico morrer. Não estou sugerindo uma partida imediata. Eles nos matariam antes que tivéssemos ido muito longe. Mas cada mês uma família deveria sair.

— E para onde iríamos, Ibn Afdal? Existe ainda algum lugar para nós?

Quinze homens levantaram-se e ficaram de pé em diferentes partes do mehfil.

— Sim. Se desejarem partir, falem com um destes homens. Olhem para eles cuidadosamente. Se os conhecem, tentem esquecer seus nomes. Vão e falem com eles.

Poucos queriam partir e destes a maioria desejava ficar o mais próxima possível de Siqilliya. Um dia, pensaram, voltaremos. Nascemos aqui. Construímos estas cidades.

Por que não deveríamos voltar? Eles escolheram ir para Ifriqiya, para as cidades de Mahdia e Bone que, Alá seja louvado, haviam sido retomadas pela nossa gente. Se estas cidades podiam ser recuperadas, por que não Palermo e Atrabanishi?

Quando Frederico morreu em 1250, o pânico espalhou-se pela cidade, mas já era tarde. O primeiro massacre aconteceu alguns meses depois. Àquela altura Ibn Afdal estava morto. E Lucera, também, estava para perecer. Não muito tempo depois da morte de Frederico, a maioria de sua população foi massacrada. Poucos milhares, principalmente mulheres, foram convertidos à força. A mesquita foi queimada. Como a estrela brilhante que atravessa o céu e é vista por todos, mas rapidamente desaparece, a cidade florescente desapareceu, seus poucos traços enterrados sob o solo. O castelo de Fredrico foi deixado intocado.

No dia em que Frederico morreu, o filho de Ibn Afdal, Uthman, e seus primos Umar e Muhammad, decidiram que era tolice esperar mais. Haviam se preparado longamente para este dia e tiraram proveito da confusão. Seus cavalos estavam prontos para a jornada. Umar e Muhammad deixaram Lucera à tarde. Dirigiam-se para a costa, onde embarcaram num navio mercante para Ifriqiya.

Uthman não foi com eles. Quando criança, sua imaginação fora inflamada pelas histórias que seu pai lhe contava sobre o Confiável e como haviam organizado diferentes formas de resistência na ilha, mas a história que mais gostava era distante deste mundo. Adorava ouvir como os francos foram derrotados por Salah al-din e expulsos de al-Quds e como a Grande Mesquita fora limpa e preparada para o agradecimento a Alá pela vitória que tinham alcançado. Durante muitos meses Uthman vacilara quanto ao seu destino. Quanto mais pensava, mais se dava conta de que não queria morrer antes que seus olhos vissem a mesquita de al-Aqsa e de beijar a terra onde sua gente havia triunfado sobre os bárbaros. Levou sua família para a Palestina.

 

 

                                                   Tariq Ali         

 

 

 

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