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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


UM TOQUE MÁGICO / Hannah Howell
UM TOQUE MÁGICO / Hannah Howell

 

 

                                                                                                                                                

  

 

 

 

 

 

Determinada, ela foi em busca do homem de sua vida!

Sir Edmund MacEnroy encontrava-se diante do altar com uma noiva escolhida a dedo. Meiga e tímida, seria uma dama respeitável para cuidar do castelo e uma ótima mãe para seus filhos ilegítimos. E o mais importante: não lhe despedaçaria o coração nem lhe desintegraria a vida. Contudo, as núpcias foram interrompidas por uma ruiva bela e corajosa que trazia consigo dois bebês. Alegava ser a esposa dele e acusava-o de ser o pai dos gêmeos. Viera reclamar seus direitos, acompanhada de sete irmãos corpulentos.

Ilsa Cameron MacEnroy cansara-se de esperar pela volta do belo homem que a seduzira e com quem se casara. Resolvida a fazer valer seus direitos, saiu a procura do pai de seus filhos, a quem amava apaixonadamente. Atônita por não ser nem ao menos reconhecida, soube que Edmund perdera a memória. O novo desafio seria recuperar o passado e vencer a relutância do marido em romper as barreiras dos sentimentos!

 

 

 

 

                           Escócia, Primavera de 1471

Ilsa suspirou. Oito de seus catorze irmãos irromperam em seu chalé, com as costumeiras expressões reprovativas. Nenhum deles aprovara sua decisão de mudar-se do castelo. Não entendiam que a superproteção fraterna a constrangia. Embora a visitassem diariamente, Ilsa regozijava-se com a liberdade que ali encontrara, mesmo receando perdê-la.

— Dentro de uma quinzena, terá se passado um ano — Sigimor, o irmão mais velho, abaixou-se perto dos sobrinhos, ao lado de Somerled, seu gêmeo.

— Eu sei.

Ilsa deixou duas jarras enormes de cerveja sobre a mesa ampla do recinto principal. Tanto os bancos quanto a mesa tinham sido feitos para acomodar todos eles, assim como a sala de estar que tomava quase todo o pavimento térreo. Nos fundos do chalé havia uma cozinha, uma pequena lavanderia, um quarto de banho e um dormitório para a dama de companhia. Em seus aposentos, no mezanino, Ilsa ocupava-se com o que lhe dava prazer. Pressentia, com desalento, que os irmãos a forçariam a abandonar o lar de sua independência.

— Os meninos precisam do pai. — Sigimor fitou o sobrinho, Finlay, que agarrava seu dedo.

— Catorze tios não são o bastante? — Ilsa resmungou e trouxe oito canecas de estanho com tampa.

— O pai deles é fidalgo, tem propriedades e dinheiro. Os filhos têm direito à herança.

— Acredito que o pai deles não seja da mesma opinião. — Ilsa fez um esforço para esconder a dor. — Meu irmão gostaria de ver-me rastejar diante do homem que me abandonou?

Sigimor suspirou e juntou-se aos irmãos ao redor da mesa. Ilsa serviu pão, queijo e um bolo achatado de aveia feito sem fermento.

— Nada disso, minha irmã. Quero que reivindique apenas as prerrogativas da lei para os filhos dele.

Ilsa inspirou fundo e sentou-se ao lado de Tait, seu gêmeo. Seus irmãos sabiam como atingir seu ponto fraco. Os filhos.

— Talvez na próxima semana — Ilsa procurou adiar o inevitável, mas os irmãos recUsaram, sacudindo a cabeça.

— Queremos resolver isso logo. Partiremos amanhã.

— Mas...

— Devo admitir que estou bastante desapontado com o rapazola.

— Ele não é uma criança. Tem a sua idade. - Sigimor ignorou-a.

— Acreditei na história de que ele precisava resolver o problema de uma ameaça e preparar o castelo para a esposa. Ainda bem que insisti em realizarmos o enlace por contrato e na apresentação de documentos. Ele não poderá ignorá-la e nem aos meninos. Temos meios de fazê-lo honrar os compromissos que assumiu. Não me agrada pensar que minha única irmã ainda gosta dele. Isso é péssimo.

— A maior tolice foi ter a ilusão de que ele gostava de mim. Por um momento esqueci que sou muito magra, pequena e ruiva. Ele estava apenas interessado em conquistar e deflorar mais uma donzela.

— Isso não faz sentido, Ilsa — Tait argumentou. — Se pretendesse escapar das conseqüências, ele teria se oposto a revelar-nos onde mora.

— E quem lhe dá a certeza de que as informações foram verdadeiras? —- Ilsa balançou a cabeça em um gesto de dúvida. — Podemos presumir que a palavra dele não tem muito valor.

— Iremos mesmo assim — Sigimor afirmou. — Se descobrirmos que tudo não passou de um punhado de mentiras, não descansaremos enquanto não o apanharmos. — Os outros sete murmuraram concordâncias. — Somerled ficará aqui, assim como Alexander, cuja esposa espera o primeiro filho. Eles tomarão conta dos mais novos. Eu, Gilbert, Ranulph, Elyas, Tait, Tainhas, Brice e Bronan iremos com nossa irmã. Estou pensando em levar alguns dos nossos homens e certo número de primos.

— Mas isso é quase um exército! — Ilsa protestou.

— O que fará valer nossas palavras, mas poderá não ser ameaçador o suficiente.

Ilsa tentou demover os irmãos do intento, sem nada conseguir. Depois de eles terem saído, escondeu o rosto entre as mãos e lutou contra a vontade de chorar. Já derramara lágrimas em demasia. Um toque nos ombros a fez erguer a cabeça. Era Gail, sua dama de companhia e a ama-de-leite que a ajudava a saciar a fome dos meninos. A moça fora brutalmente estuprada. Além de rejeitada pela família, perdera a criança resultante da gravidez indesejável. Gail ficara com horror de homens, vivia em tensão constante e sofria muito por todas as perdas. Ela sempre se escondia quando os irmãos de Ilsa apareciam para uma visita.

— A senhora precisa ir — Gail sussurrou.

— Eu sei. Entendo que tenho feito papel de tola. Ele não voltou nem mandou notícias. — Ilsa suspirou. — Fiz o impossível para jogar o sofrimento no fundo do coração e encher a cova de pedras. Não gostaria de ver tudo florescer como um canteiro de ervas daninhas.

Gail pegou no colo Finlay, que berrava sem parar, entregou o à mãe e socorreu Cearnach. Por alguns momentos Ilsa saboreou a paz das duas amamentando as crianças. Mas ao fitar os olhos azuis, belos e grandes, de seus filhos, a recordação do homem que os gerara fez a dor ressurgir, lancinante. Quiçá incurável.

Sentira-se amada, desejada e bela durante algumas semanas alucinantes. Aos vinte anos, considerada solteirona por muitas pessoas, conhecera um homem atraente que a fizera suspirar. Deveria ter desconfiado. Homens bonitos não se aproximavam de jovens insignificantes como ela. Ficara cega pela necessidade de amar. Acertar as contas com ele, conforme a imposição dos irmãos, somente a faria aumentar a convicção sobre a própria idiotia.

Como se a houvesse esquecido em um só momento.

— Essa é uma atitude necessária por caIlsa dos meninos. — Gail apoiou Cearnach no ombro estreito e esfregou-lhe as costas.

— Também sei disso. — Ilsa fez o mesmo com Finlay. — Não posso roubar-lhes o direito hereditário. Bem, isso se houver algum direito. Poderemos acabar descobrindo que o belo senhor nos contou um monte de mentiras. Gail, acredito que terá de vir conosco.

— Está bem. Não tenho receio de seus irmãos. Se eu me escondo, é por eles serem muito grandes e ocuparem a sala inteira. Nem sempre encontro lugar para ficar. — Gail franziu a testa. — Não me sinto bem em um lugar apinhado de homens. Sei que seus irmãos nunca me fariam mal, o que não impede que eu continue com os meus receios.

— O que é facilmente compreensível.

— A senhora ainda ama aquele homem?

— Acho que sim. Veja que loucura. Chego a pensar que eu gostaria de encontrar aquele patife não só para o bem dos meninos, mas por mim mesma. Preciso encarar o diabo bem dentro dos olhos e comprovar minha ingenuidade. Se pudesse, eu me esconderia nas sombras e o faria sofrer.

Gail deu uma risadinha.

Pobre Gail. Mas ela se recuperaria, mesmo que as cicatrizes permanecessem. Ilsa concluiu a reflexão com um firme propósito. Se encontrasse novamente o amor, seria mais esperta e mais dura. Não se tornaria, mais uma vez, vítima de um sonho idiota.

 

— Meus filhos precisam de mãe.

— Ora, mas não é que está falando sozinho de novo?

Sir Edmund MacEnroy sorriu para o irmão Angus, sentado à sua direita. À esquerda, o irmão Antony ou Nanty, como fora apelidado. Eles tinham vindo para assistir ao seu casamento, o que lhe agradara sobremaneira. Gostaria mais ainda de conversar com Connor, seu irmão mais velho. Mas Connor viera com Gillyanne, sua esposa e que estava grávida. Apesar dos protestos da jovem dama, insistira para que ela descansasse e acompanhara-a até os aposentos que ocupariam. Edmund almejou poder trocar algumas palavras com ele antes da cerimônia.

— Estou em dúvida quanto a esse matrimônio — Edmund afirmou.

— Achei que fosse desposar essa jovem por vontade própria.

— Não nego o fato. Apenas preciso não esquecer os motivos que me levaram a essa decisão.

— É uma jovem bonita e calada — Nanty deduziu.

— Também de trato fácil e obediente — Edmund disse. — Casta.

— O oposto da primeira esposa — Angus murmurou.

— Exatamente como eu queria. Anabelle foi uma desgraça. Margaret será uma bênção. — Enfadonha e provavelmente fria. — Um bom dote e uma propriedade excelente.

— Ela sabe a respeito das crianças? — Angus quis saber.

— Ah-ah. Eu os apresentei a Margaret e ela não pareceu incomodar-se. O pai dela não ficou muito satisfeito a princípio. Acalmou-se ao saber que somente Alice era legítima. Qualquer filho homem gerado por sua filha poderá ser meu herdeiro.

— Desconfio de que não se trata do mesmo amor que uniu Connor e Gilly, não é? — Nanty supôs.

— Não. Pensei que tivesse encontrado o verdadeiro amor com Anabelle. Mas tudo não passou de uma maldição. Nem todos os homens podem ter a sorte de Connor, embora a desejemos. — Os irmãos resmungaram seus apoios. — Agora eu procuro apenas um pouco de alegria e muita paz.

Edmund ignorou os olhares penalizados dos irmãos. Já se lamentara o suficiente. Dispensava a piedade alheia. Sofrera bastante e estava na hora de voltar a ter uma vida normal. Vagueara por muito tempo depois do fracasso de seu casamento com Anabelle. Mergulhara na bebedeira e na devassidão, o que resultara em uma porção de filhos. Somente a pequena Alice era legítima, embora às vezes ele chegasse a duvidar do fato. Depois do milagre de recuperar o juízo, sofrera um ataque e fora largado agonizante. Os meses de convalescença deixaram-lhe muito tempo para pensar. O que o levaram a planejar um casamento com Margaret Campbell. Garantiu a si mesmo que seria o passo mais correto.

Era bem tarde quando Edmund conseguiu falar a sós com Connor. Chegara a pensar em desmarcar o encontro, depois dos olhares de censura do irmão e de Gilly durante o jantar com Margaret e família. Temia que Connor tentasse dissuadi-lo de suas intenções. Sua própria incerteza talvez não resistisse à persuasão. Sentados em frente à lareira e bebericando vinho, Edmund fitava Connor com precaução.

— Tem certeza do que pretende fazer, Edmund? Não o achei muito inclinado por ela.

— Isso não deixa de ser uma verdade, mas é o que me convém no momento.

— Não estará sendo instigado pelo seu sofrimento ou pela perda de memória?

— A maioria das minhas feridas está cicatrizada. Meu coração virou pedra. Quanto às lembranças, ainda existem pontos obscuros relacionados ao período anterior e posterior ao ataque. Mas nada disso tem a ver com o casamento. — Edmund suspirou e tomou mais um gole da bebida. — Nem todos homens têm a sua felicidade de poder encontrar uma mulher como Gillyanne. Eu tentei e falhei miseravelmente. Agora procuro somente a paz. Quero uma mulher que tome conta do meu lar e dos meus filhos, e que me sirva no leito, quando eu estiver disposto. Nada mais.

— Então, por que precisava falar comigo?

— Bem, não o vejo há meses... — Edmund desistiu de faltar com a verdade ao ver o olhar divertido de Connor. — Acredito que, como um garoto, eu gostaria de ouvir a sua aprovação.

Connor anuiu.

— Porém não vejo nenhum garoto na minha frente. Mas sim um homem adulto capaz de raciocinar e concluir se está certo ou não.

— Não vai me dar sua opinião, não é mesmo?

— Não acho que lhe agradaria ouvi-la e creio que nem quer saber do meu ponto de vista. De acordo com os costumes, foi ao encontro de um bom casamento que lhe trará dinheiro, terras e uma noiva virginal. E, por isso, merecerá congratulações de todos.

— Mas não as suas nem as de Gilly.

— Edmund, não posso decifrar o que se passa no seu coração. Apesar do que me disse, não sei o que deseja ou o que está procurando. Para ser franco, fiquei olhando para a jovem apagada que foi objeto da sua escolha e imaginei de quanto em quanto tempo meu irmão se lembrará de que tem uma esposa.

Edmund deu uma risada.

— Talvez de mês em mês, mas é do que preciso. Entretanto há alguma coisa que me atormenta e enfraquece minha resolução. Uma daquelas memórias perdidas tentando atravessar a névoa da minha mente. Quanto mais a data do matrimônio se aproxima, o tormento fica mais agudo. Ultimamente tenho sonhos estranhos, cujo sentido não consigo decifrar.

— Quais as imagens que aparecem neles?

— Coisas absurdas. A noite passada sonhei com um elfo escarlate que me espetava e amaldiçoava. O duende afirmava que era necessário aclarar minha mente, antes de que eu cometesse uma estupidez. Depois vi uma porção de demônios ruivos, talvez uma dúzia deles. Ameaçavam-me dizendo que, se eu não me comportasse com dignidade, cortariam minhas pernas. Por um breve momento, tudo pareceu bem, até que o primeiro golpe foi dado. Acordei suado e com o gosto amargo da morte na minha boca.

— Posso entender isso perfeitamente. Temos consciência de que morreremos algum dia. Mas ser atacado no escuro por desconhecidos que o deixam à morte por motivos ignorados deixaria qualquer homem apavorado.

— Sei disso — Edmund anuiu —, mas eu também gostaria de acordar e descobrir na memória quem é quem.

— Ora, vamos. De elfos e demônios eu não entendo. Gilly poderia nos dizer algo. Talvez seja uma artimanha da sua mente para forçá-lo a lembrar. Por isso o aviso para afastar a névoa e tudo mais. Uma alternativa seria adiar o casamento.

— Sonhar com elfos escarlates não representaria uma justificativa convincente.

— Poderíamos alegar a volta da sua memória. Conte a sir Campbell sobre o pressentimento do perigo depois do que lhe aconteceu. E pelo fato das lembranças estarem prestes a surgir, seria melhor esperar para descobrir qual é esse perigo.

Edmund conservou-se em silêncio por alguns momentos, fitando as chamas da lareira. A proposta de Connor era boa. Os sonhos estranhos dos últimos tempos poderiam de fato significar que começava a lembrar-se do assalto que sofrera.

Ora! O que importava se conseguisse lembrar-se dos fatos antes ou após o casamento? O perigo era só dele, mas se houvesse um prolongamento, atingiria tanto a noiva com a esposa.

— Isso de nada adiantaria, Connor. Acarretaria mais problemas do que soluções. O risco é exclusividade minha.

— E se estiver errado?

— De qualquer maneira, Margaret já está comprometida por ser minha noiva. Não adiantaria adiar agora.

— Tem razão. Talvez seja mais fácil protegê-la como sua esposa. Pelo visto, eu não o ajudei o suficiente. Vejo que ainda está indeciso. No passado, eu o cumprimentaria tendo em vista a genealogia, as terras e o dote de sua noiva. Depois de casar-me com Gilly, perdi essa cegueira.

— Se Gilly tivesse feito da sua vida um inferno como Anabelle fez da minha? Voltaria a confiar em uma jovem e lhe daria poderes outra vez?

— Claro que não. Lamento que tenha passado por isso.

— Portanto é preferível uma esposa inexpressiva cuja presença não seja notada a uma que rasgue nosso coração em pedaços.

Connor foi até a porta e virou-se.

— Terá até amanhã cedo para decidir-se.

— Qual seria essa decisão?

— Nada de matrimônio.

Edmund pensou nas palavras de Connor até o amanhecer. Dormiu muito pouco, perturbado pelo sonho estranho e pela apreensão. Aquela insistente preocupação não era uma constante de seu caráter.

Até começarem aqueles pesadelos, contentara-se com a escolha da esposa e com os planos do futuro. O que o intrigava era não atinar com o significado de elfos escarlates e demônios ígneos.

Edmund criticou a si mesmo por haver perdido a aurora e pediu o banho. Não sentira vontade de levar as jovens permissivas de Clachthrom para a cama, e isso o mantivera no celibato por quase um ano. Em poucas horas estaria casado. Seria uma maneira de resolver o problema.

Companhias constantes e os preparativos finais para o banquete de núpcias mantiveram-no ocupado. Felizmente.

Edmund venceu o trajeto até a igreja, caminhando ao lado de Connor. Começou a duvidar de sua aptidão para ir às cegas até o altar, desposar sua noiva e terminar logo com tudo. Percebeu que o irmão pretendia dizer-lhe algo.

— Bem, o que há?

— Eu preferia que houvesse optado pela terceira alternativa — Connor murmurou. — E Gilly também.

— Por quê?

— Gilly diz que Margaret é dócil, tímida e obediente. E... também vazia.

— O que ela quis dizer com isso? Connor deu de ombros.

— Margaret é uma jovem vazia de sentimentos.

— Mas isso é ótimo. — Edmund mostrou descaso. — Eu já tive minha cota emocional. Anabelle me afogou em emoções. Boas e más. A calmaria será uma boa mudança.

— Margaret pode ser uma esposa maçante.

— Não me importo. — Edmund desviou o olhar da expressão descrente do irmão. — Poderei não encontrar fogo na cama de minha mulher. Quando, porém, eu decidir fazer amor, tenho certeza de que a encontrarei à minha espera. Poderá não me receber com muito entusiasmo, mas também não receberá mais ninguém, seja homem ou mulher.

— Surpreendeu Anabelle com alguma mulher?

— Sim. Embora a moça tenha fugido, houve tempo para certificar-me de que não se tratava de um homem. Anabelle achou muita graça no assunto. Confirmou que ela e a garota tinham sido amantes por vários anos. Tentou convencer-me de que não poderia acusá-la de adultério. Connor, eu poderia passar dias e dias contando as histórias sobre Anabelle. Seus amantes, seus acessos, sua teia de lamentações e suas fugas. Foi como se eu tentasse, todos os dias, sobreviver em meio a uma tempestade implacável. Depois disso, o enfado tem um quê de suavidade.

Edmund sentiu alívio por Connor encerrar o assunto. Não queria restaurar detalhes trágicos do passado, embora a lembrança não lhe permitisse duvidar do acerto na escolha de Margaret.

Quando se ajoelhou ao lado da noiva, as dúvidas retornaram.

Embora sem nenhuma explicação plausível, uma voz interior o advertia do erro que estava para cometer. A mão de Margaret na sua era fria e seca, e sua expressão, tranqüila. Ou vazia.

No momento em que o sacerdote perguntou se haveria algum impedimento, houve um zunzum na porta de entrada e ouviu-se uma voz clara e irada de mulher:

— Acredito ter um, ou melhor, dois motivos!

Chocado, Edmund virou-se e arregalou os olhos. Uma mulher magra e pequena aproximava-se pela nave central, sacudindo uma brilhante cabeleira vermelha. Atrás dela, marchavam oito homens corpulentos, carrancudos e igualmente ruivos. A jovem carregava uma trouxa. A seu lado, uma moça morena e também de baixa estatura carregava outra.

— Ora vejam, Edmund. — Connor deu um sorriso débil e começou a erguer-se. — Suas fantasias eram proféticas.

— O quê?

— Não sonhou com um elfo escarlate e uma tropa de demônios ígneos?

Edmund decidiu que, assim que descobrisse o que estava acontecendo, daria um soco no estômago do irmão zombeteiro.

 

Ilsa teve a nítida impressão de que poderia morrer de tanta dor. Seus irmãos, assim como ela mesma, tinham ficado irados ao descobrir que o proprietário das terras de Clachthrom estava se casando. Passados os primeiros minutos de estupefação, ela só desejara uma coisa. Voltar para casa. Porém a idéia da retirada fora recIlsada de forma categórica pelos irmãos. Forçada por eles a entrar na pequena igreja de pedra, Ilsa dividira-se entre rezar para que fosse tarde demais e desejar que não fosse. Sua maior esperança, no entanto, fora confiar em suas inteligência e energia para que não houvesse derramamento de sangue.

Sentiu o coração partir-se em mil pedaços ao ver seu amante, pai de seus filhos, ajoelhado ao lado de uma jovem sem graça, mas bonita, murmurando os votos matrimoniais.

Ilsa foi invadida pelo ódio nascido do sofrimento e da traição. Nem mesmo podia acreditar que houvesse falado antes dos irmãos. A fúria cresceu quando viu Edmund tropeçar ao erguer-se e depois ajudar a noiva a ficar em pé. Ele a olhou aproximar-se, como se nunca a houvesse visto.

Edmund continuava tão belo como antes. Alto, atlético e forte, deslumbrava os olhos e o coração de qualquer mulher. Os cabelos longos tinham cor de mel e pendiam um pouco abaixo dos ombros largos. Testa alta, nariz reto e lábios carnudos. A mesma imagem que a perseguira durante um ano, apesar de seus esforços em bani-la da mente. Os olhos azuis profundos que a encaravam somente aumentavam sua dor. Já não havia neles o calor suave que irradiaram quando Edmund a apertara junto ao peito e prometera que em breve estariam novamente juntos. Naquele momento, eram visíveis apenas a desconfiança e a frieza.

Por que a desconhecida o lembrava de seus sonhos?

— Com que direito a senhora oIlsa interromper esta cerimônia? — Edmund procurou esconder a insegurança.

— Com o mesmo direito que o senhor me deu há um ano — Ilsa respondeu.

— Não sei do que a senhora está falando.

Que homem audacioso!

— Sigimor, mostre a ele os papéis.

O mais velho dos Cameron adiantou-se e entregou a Edmund o contrato de casamento. Os outros irmãos permaneceram atentos aos convidados, muitos dos quais murmuravam palavras de descontentamento. Ilsa procurou ignorar a palidez de Edmund depois de ler o que estava impresso no pergaminho. Notou que o homem alto e loiro ao lado de Edmund leu o documento e fitou-a com curiosidade.

— Parece verídico, Edmund — Connor murmurou.

— O que está acontecendo? — Margaret pendurou-se no braço de Edmund para espiar os papéis.

— Lamento informá-la de que seu noivo já está casado... comigo — Ilsa respondeu por Edmund. — Nós assinamos esse contrato há um ano.

— Contrato? Esses tipos de matrimônios são facilmente anulados.

Ilsa fitou a mulher, boquiaberta, mas com vontade de estapeá-la. O que mais a surpreendia era a pouca emoção demonstrada pela moça diante da possibilidade de ter sido enganada e de quase ter sido levada a uma união bígama.

Aquela frieza era inacreditável.

Ilsa não notou o menor sofrimento nos olhos azuis muito claros da noiva. Ou ela não amava o noivo, ou era uma retardada mental.

— Margaret, isso não pode ser feito com tanta facilidade assim — Edmund explicou.

— Aliás, não pode ser feito de maneira alguma — Ilsa corrigiu-o.

Desenrolou a manta de Finlay e, com o canto dos olhos, viu Gail, tão furiosa quanto ela, fazer o mesmo com Cearnach.

— Finlay e Cearnach, seus filhos. — Ilsa apontou cada um deles, enquanto falava. — Estão com três meses. Esses garotos deram-me o direito de reivindicar sua posição como meu marido. Eles também o compelem a tornar-me sua esposa diante de Deus, dos homens e de um sacerdote.

— Eles não são meus filhos!

Sigimor chegou mais perto de Edmund e resmungou, feroz. Houve um eco quando os outros sete irmãos grunhiram com ferocidade ainda maior.

Apesar de tão irada quanto eles, Ilsa agradeceu ao costume de os homens terem de deixar as armas do lado de fora da igreja.

— Não, Sigimor — Ilsa pediu e enrolou o cobertor no filho.

— Ele a insultou — Sigimor retrucou, ácido. — Ele ofendeu a todos nós.

— Isso é verdade, tanto que eu mesma gostaria de vê-lo no chão, reduzido a frangalhos. Apesar de tudo, meu irmão, tenho de impedi-lo de fazer justiça. Foi o seu incentivo que me fez vir procurá-lo para que ele honrasse suas obrigações. Moído de pancadas, ele não poderá cumprir o que prometeu. Além do mais, não seria bom para os meninos saber que o pai deles foi assassinado pelos tios.

— Como posso ser o pai deles se nem mesmo a conheço, minha senhora? — Edmund indagou com espanto genuíno.

Edmund gostaria de afastar-se daquela mulher e dos oito homens mal-encarados. Se não se tratava de um pesadelo, alguém tentava enganá-lo. Não acreditava que pudesse ter esquecido uma esposa, a despeito da gravidade de seus ferimentos. Ainda mais sendo uma jovem de brilhantes cabelos ruivos e olhos verdes estonteantes. Entrou em pânico quando Connor e o clérigo se voltaram para ele, depois de examinar os papéis, com expressões constrangidas.

— A assinatura é sua? — o sacerdote perguntou.

— É, mas...

— Este contrato diz que está comprometido com... — O religioso voltou a ler o pergaminho — ...Ilsa Cameron. — Olhou para os gêmeos. — Essa é a mulher com quem deverei casá-lo.

Antes de Edmund pensar em defender-se, os Campbell ergueram as vozes, rugindo, furiosos. Ele fitou Margaret, plácida diante do altar, e não soube o que dizer ou fazer. Notou uma certa satisfação, incompreensível, aliás, naquele olhar cristalino. E, por instinto, abaixou-se antes que um soco o atingisse. Um segundo depois, viu-se encurralado em meio a um mar de punhos fechados e ameaças de retaliação.

Ilsa recuou depressa até o fundo da igreja, seguida por Gail, que não escondia o pavor. E, ao virar-se para falar com a ama-de-leite, viu aproximar-se uma mulher bonita e grávida.

— Sou Gillyanne MacEnroy — a estranha apresentou-se. — Esposa de Connor, o grandalhão que estava ao lado de Edmund.

— Eu sou Ilsa e esta é Gail. Os bebês são filhos de Edmund.

— Eu sei. Os olhos dos três são idênticos. — Gillyanne passou a mão no braço de Gail. — Fique tranqüila. Embora estejam com muita raiva, os MacEnroy e os Cameron jamais machucariam uma jovem.

— Eu sei, porém milady não incluiu os Campbell, parentes da noiva — Gail considerou, assustada.

— É, por eles eu não garanto. — Gillyanne acariciou a penugem vermelha e encaracolada da cabeça pequena de Cearnach. — Adorável.

— Eu gostaria que eles tivessem nascido com os cabelos do pai — Ilsa murmurou e notou que a presença de Gillyanne acalmara Gail.

— Não vejo nada de errado em ser ruiva. Além do mais, os cabelos tendem a escurecer com o tempo. — Gillyanne fitou os homens e estremeceu. — Nanty acaba de cair. Ah, já se levantou.

Ilsa observou que havia mais dois homens parecidos com seu marido que lutavam junto com ele e alguns de seus irmãos contra os Campbell.

— Nanty?

— Antony, irmão de Edmund. Nós o chamamos de Nanty e é o que está à esquerda dele. Angus, outro irmão, está à direita de Connor. Andrew e Fiona, também irmãos, permaneceram em Deilcladach. Aquele que desapareceu sob uma porção de parentes da noiva também é seu irmão?

— É Elyas, mas Gilbert e Tait logo o socorrerão. Tait é meu gêmeo.

— Espero que isso não se transforme em uma inimizade familiar perene.

— O que seria uma maldição, com certeza. Sentirei muito por ter sido a caIlsa de tanto transtorno. Talvez...

— Nada de hesitações. A senhora é a esposa de Edmund.

— A senhora acredita em mim? — Ilsa surpreendeu-se.

— Claro. Meu sexto - sentido me diz que suas palavras são verdadeiras. — Gillyanne apontou Margaret. — Essa me deixa apreensiva, pois não consigo sentir nada a respeito dela. Existem pessoas, como meu marido, que parecem proteger os próprios sentimentos com um escudo, e eu não consigo ultrapassar a barreira. O que não deve ser o caso de lady Margaret. Não sinto nada por essa moça. É como se ela tivesse um buraco vazio no lugar do coração.

— Para ser sincera, achei estranho que a noiva não tivesse demonstrado reação diante do que aconteceu. Ela permaneceu calma, quase serena.

— O que, convenhamos, não é natural — Gail murmurou.

— Não é mesmo. — Gillyanne deu uma risada. — Cheguei a perceber nela um traço de raiva. Mas tão sutil que duvidei da sua existência. Fico contente por ela não fazer mais parte da família.

Ilsa analisou a ex-futura esposa de Edmund. Margaret se encontrava em pé ao lado do sacerdote, que desistira de interromper a contenda. A moça devia estar dividida entre a dor e o ódio. Entretanto sua calma era impressionante. Com as mãos entrelaçadas na frente, nem mesmo parecia incomodar-se que seus parentes estivessem apanhando ou que o incidente pudesse transformar-se em uma hostilidade sangrenta e duradoura entre famílias.

— Eu diria que ela parece divertir-se com tudo isso — Ilsa comentou em voz baixa. — Não possuo seus dons, milady, mas tenho alguma experiência em anaUsar as atitudes das pessoas. Ou, pelo menos, pensei que tivesse.

— Tem, sim, Ilsa — Gail murmurou.

— Será? Se fosse assim, eu não me teria enganado tanto com Edmund. Acreditei que ele fosse honesto, confiável, e errei por completo. Ele diz que desconhece a mim e ao nosso contrato de casamento.

— Pois posso afirmar que não se enganou. Edmund é honesto e confiável.

— Mas ele disse...

— Uma porção de bobagens. Infelizmente, ele acredita no que diz. Ilsa, Edmund foi atacado e quase morreu. Isso deve ter acontecido pouco depois de a ter deixado. Conseguiu arrastar-se até a choupana de um lavrador e dizer o nome dos irmãos. O homem enviou um mensageiro avisar Connor em Deilcladach. Fomos buscá-lo e eu fiz o que pude. Nem imaginávamos que pudesse sobreviver. De volta a Deilcladach, mandamos buscar Maldie Murray, minha tia e curandeira renomada. A despeito da grande experiência de Maldie, demorou até termos certeza de que Edmund não morreria. Edmund insistiu em voltar para cá e, quando achamos que ele poderia agüentar o longo trajeto, nós o trouxemos de volta a Clachthrom. A recuperação levou muito tempo e até hoje eu me espanto de ver como os ferimentos cicatrizaram. Entretanto as seqüelas ficaram na mente.

— Como assim?

— Ele não se lembra de nada do que aconteceu. Por que estava naquele lugar, por que sofreu o ataque e muito menos do autor da barbárie. Também pouco se recorda da pior fase do seu sofrimento e da sua cura. Sei que é difícil de acreditar, mas essa fase da vida de Edmund permanece mergulhada nas trevas.

— Não acho que a senhora esteja mentindo.

— Mas não acredita em Edmund.

— Não sei o que pensar. Esquecer uma esposa? Ele esteve comigo antes de ser atacado. Deveria lembrar-se de mim.

— Quem é que pode duvidar dos desígnios divinos? Procure impedir que o ódio e os sentimentos feridos tranquem seu coração e sua mente. Se me permite um conselho, acho que deveria tentar um recomeço. Sei que não será fácil.

— Não será. — Ilsa estremeceu quando um Campbell voou por cima dos bancos da igreja e aterrissou ao lado da porta.

— Oh, Senhor! — Gail lamentou-se. — Sigimor está possesso. Vejam como atira pessoas para todo lado.

Gillyanne deu umas risadinhas.

— Essa tolice vai acabar logo — Ilsa comentou, com um sorriso leve. — Os Campbell vão recuar quando virem quantos deles estão gemendo, amontoados pelo chão.

— Seu irmão costuma acabar com as lutas dessa maneira? — Gillyanne perguntou.

— Eles partem do princípio de que, se o inimigo não tem o bom senso de ficar quieto quando apanha, é preciso tirá-lo da frente. — Outro Campbell foi jogado de encontro à parede e Ilsa notou que o ânimo de luta dos opositores diminuía aos poucos. — Tait diz que Sigimor fica cansado de bater neles e por isso os joga longe. Ele deve tê-lo feito uma vez e comprovou os resultados, por isso adotou o processo como uma tática de batalha.

— Deve ser... Vejo que meu marido está aprovando a atitude — Gillyanne fez o comentário e olhou para Ilsa, sem dizer nada.

Ilsa sentiu-se desconfortável pelo escrutínio.

— Ilsa Cameron, pense apenas em amá-lo como tem feito. Terá de esperar muito tempo até que tudo se normalize, mas será um esforço bem empregado. Veja, o sacerdote se aventurou novamente para serenar os ânimos.

Ilsa não perguntou o significado daquelas palavras, por saber que não obteria resposta. Lady Gillyanne a aceitara sem questionar e, se quisesse relatar outros detalhes, já o teria feito.

— Ele envergonhou minha filha! — sir Lesley Campbell gritou, lançando olhares fulminantes para Edmund. — Isso foi um insulto a mim e à minha família.

— Não se tratou de uma desfeita intencional — padre Goudie interveio.

— Eu jamais poderia imaginar que tivesse uma esposa — Edmund murmurou.

— Espera que eu acredite nisso? — sir Lesley questionou, irado.

— Eu lhe contei tudo sobre os meus ferimentos e a minha falta de memória, quando tratamos deste casamento. — Edmund não teve de olhar para os Cameron para comprovar o tamanho da descrença e da suspeita nas fisionomias deles.

— Pagará por isso, MacEnroy. Minha filha deveria ser sua esposa e a senhora deste castelo.

— Pelo visto, ele não está em condições de cumprir o combinado, não é verdade? — Sigimor entrou na conversa. — Edmund MacEnroy fez um contrato matrimonial com minha irmã há um ano e as crianças dão a ela o direito de ser a esposa dele.

— Se os bebês forem mesmo dele... — sir Campbell alfinetou e afastou-se de Sigimor, que dera um passo à frente.

Padre Goudie impediu o avanço de Sigimor e fitou a família Cameron com severidade.

— Não quero mais lutas dentro da minha igreja! Os papéis trazidos por Ilsa Cameron são provas suficientes para mim. Também sei que sir Edmund esteve muito doente. Acredito nele quando diz que não se lembra de ter uma esposa. Trata-se de um erro não intencional. Não houve insulto, e desejo acabar logo com esse desatino.

Sir Campbell encheu-se de coragem e ódio ao ver Sigimor recuar.

— O senhor é um Goudie, clã aliada aos MacEnroy.

Padre Goudie permaneceu impassível, com expressão gélida.

— O senhor está me ofendendo. Sou um sacerdote. Meu compromisso principal é com Deus, com a Igreja e com a verdade. O senhor deveria acabar com suas blasfêmias e agradecer ao Senhor por sua filha ter sido poupada de descobrir que era a esposa ilegítima de um casamento bígamo.

Sir Campbell limitou-se a encarar o clérigo.

— Vamos embora, Margaret. — O pai arrastou-a pela mão. A ex-noiva passou por Edmund e deu um leve sorriso. Ele não encontrou palavras para desculpar-se. A serenidade da jovem deixava-o abismado. Mesmo que o enlace deles não houvesse sido por amor, qualquer mulher estaria pelo menos aborrecida com o incidente desagradável. O que lhe parecera uma natureza cordata e serena talvez fosse o resultado de uma mente limitada.

— No fim tudo dará certo — Margaret murmurou na passagem.

Edmund observou todos saírem atrás de Margaret, tão confusos como ele.

— O que ela quis dizer com isso?

— Talvez Margaret seja uma pessoa que sabe perdoar — padre Goudie sugeriu. — Ela entendeu que tudo não passou de um engano inocente e deseja que milorde renove os votos com lady Ilsa. Podemos começar a cerimônia?

Edmund cerrou os lábios para não acusar Goudie de ser muito ingênuo. Não lhe importavam os documentos trazidos pela mulher ruiva nem os bebês que ela carregava. Na certa, haviam preparado para ele uma grande armadilha.

— Eu não acredito... — Edmund foi arrastado por Connor para longe dos ouvidos dos Cameron. — Isso não passa de um jogo sujo, Connor.

— Pois eu não acho — o irmão retrucou. — Os papéis não são falsos. — Fitou a pequena multidão que invadia a igreja, após a saída dos Campbell. — Devem ser as testemunhas. Veja, Gillyanne está ao lado de Ilsa e parece ter acreditado nela.

— Ora, ela não gostava de Margaret.

— Para que tanta teimosia, Edmund? Não estava procurando uma esposa? Pronto, já encontrou.

— Ela não é a que eu queria.

— E por que não? Ilsa é uma jovem bonita e o presenteou com dois belos meninos. Legítimos.

— Se ela estiver dizendo a verdade. — Edmund fez uma careta e passou as mãos nos cabelos. — E também não satisfaz o modelo do que eu procurava. Não é calma nem dócil. Vejo nela sinais de temperamento forte que não me agradam nem um pouco.

— Edmund, ela veio atrás do marido que pensou que tivesse. Do marido que nunca mais deu notícias. E o encontrou prestes a casar-se com outra. Isso despertaria a ira em qualquer mulher com um mínimo de cérebro.

Edmund não defendeu Margaret da referência direta. Ele mesmo não a entendia.

— Ela é franzina e ruiva. — Edmund praguejou ao sentir o tapa do irmão na nuca.

— Isso não impediu que a achasse encantadora há um ano. Ela pode não ser meiga ou serena, e suas curvas não serem pronunciadas. Mas os meninos lhe serão muito úteis. Se eu estiver certo, não haverá dote, o que também não o incomodou quando a conheceu. — Connor arqueou uma sobrancelha. — Algum outro argumento?

Edmund tinha vários, mas Connor os rebateria com igual vigor. Afinal, o arrazoado final sempre seria que ele não hesitara em empenhar a palavra com Ilsa e seus irmãos. Ou pelo menos era no que os Cameron acreditavam.

— Como posso saber que assinei os documentos por minha livre e espontânea vontade?

— Não pode e nem se lembra. O contrato é verdadeiro e não há sinal de artifícios ilegais. Por isso deverá proferir os votos matrimoniais diante de um sacerdote. Se for algum truque, nada mais inteligente de que ficar com Ilsa bem à vista. Ora, Edmund. Diz que não se lembra dela, mas também se esqueceu de quem o atacou. Case-se com Ilsa. Se descobrir que se tratava de um engodo ou de uma mentira, o matrimônio poderá ser anulado a qualquer hora. Por enquanto, entre no jogo.

Edmund não podia negar o raciocínio lógico de Connor. Assim mesmo, hesitava. Por mais incrível que pudesse parecer, Ilsa o fazia reviver emoções que não desejava sentir mais. Ele desejava paz. E não era o que Ilsa despertava nele.

Sem nenhuma alternativa viável, Edmund caminhou em direção a Ilsa Cameron.

Ilsa também não teve chance de discutir o assunto. Viu-se ajoelhada no altar, ao lado de Edmund. Um pouco zonza, repetiu o juramento ditado pelo padre Goudie. Edmund fez o mesmo e as palavras dele ditas com raiva tiveram o efeito de uma punhalada. O beijo que se seguiu foi apressado e frio.

Ilsa deu um sorriso débil em agradecimento a Gillyanne, que segurara Finlay durante a cerimônia rápida. Todos mantiveram silêncio. A mão de Edmund em seu braço assemelhava-se a uma algema.

Ah, quanta diferença de seus sonhos de adolescência!

Ao entrar no castelo, lembrou-se de que os meninos precisavam ser amamentados.

— Milorde, por acaso existe em Clachthrom uma ala para crianças? — Ilsa indagou, e Edmund se deteve. — Os bebês precisam mamar e também temos de trocar-lhes as fraldas.

Com um sorriso enigmático, Edmund puxou-a pela escada estreita que conduzia ao pavimento superior. Ilsa não entendeu os murmúrios de protesto dos MacEnroy e nem a própria vontade repentina de retroceder.

Ilsa e Gail entraram no recinto cuja porta foi aberta por Edmund.

Ilsa sentiu-se pregada no chão.

Seis crianças pequenas apressaram-se em saudar o pai. Ilsa engoliu em seco e lembrou-se das regras de cortesia a que estava acostumada. Fez uma mesura diante de cada um que se aproximava.

— Junte os seus aos outros — foi o comentário de Edmund antes de sair.

Ilsa teve a impressão de que acabavam de enterrar todas as suas esperanças junto com seus sonhos.

 

- Milady, permita-me segurar o bebê. Acredito que o está apertando demais.

Ilsa piscou e fitou a mulher gorducha parada diante dela. Os olhos escuros brilhavam com simpatia e havia alguns fios de cabelos grisalhos misturados aos negros. Um gemido leve de Finlay convenceu-a a entregar o garoto para a mulher. Confusa, não poderia dar aos filhos a atenção de que necessitavam. Sua preocupação acabaria por deixá-los irritados.

— Quem é a senhora? — Ilsa surpreendeu-se com a própria calma. — Acredito que não devo ter ouvido seu nome.

— Ninguém nos apresentou. Não sei o que ele está pensando e nem qual a tolice de suas intenções. "Junte os seus aos outros". Isso é coisa que se diga? Ele precisa de uns puxões de orelha. Sou a sra. Fraser, porém quase todos me chamam de Fraser. — A mulher fez uma cortesia. — Meu nome de batismo é Mary, mas aqui há muitas Mary.

— Muito prazer em conhecê-la, Fraser. — Ilsa tocou no ombro de Gail. — Esta é Gail, minha dama de companhia. Ela me ajuda a alimentar e a tomar conta dos gêmeos.

Fraser chamou as crianças e apresentou-as uma a uma.

Alice era uma linda menina de cachos louros e grandes olhos castanhos. Fraser identificou-a como a única filha legítima de Edmund, nascida do primeiro casamento com uma tal de Anabelle. Ilsa refletiu que teria sido gentil se Edmund houvesse contado que era viúvo. Ivy tinha cinco anos, cabelos loiros e olhos azuis. Odo era um menino forte, também com cinco anos, cabelos castanhos e olhos azuis. Aulay, tímido, com quatro, tinha pele trigueira, olhos e cabelos castanho-escuros. Ewart, de dois, era um garoto loiro, de olhos azuis, muito bonito. Gregor, também com dois anos, era gorducho, tinha cabelos loiro-escuros e olhos cinzentos.

Cinco filhos nascidos fora do casamento. Alguns gerados antes e alguns durante o mesmo. Era evidente que Edmund não honrava seus votos. Duas crianças de cinco e duas de dois provavam que sir MacEnroy nem mesmo fora fiel às suas amantes, quanto mais à esposa. O futuro pareceu a Ilsa ainda mais sombrio.

Fraser apresentou Cearnach e Finlay aos irmãos. O fato de não haver nenhuma criança com menos de um ano em nada aplacou a raiva que Ilsa começava a experimentar. Edmund espalhara seu sêmen pelo mundo e não fora fiel à primeira esposa. Ele nem sequer mencionara que possuía uma pequena tropa de filhos ilegítimos. Também a desculpa da falta de memória não serviria. Haviam ficado juntos antes de ele ter sido atacado. De certa forma, Edmund mentira e a enganara. A decepção seria ainda mais profunda se descobrisse que tudo o que se passara entre eles também fora uma mentira.

A maneira como Edmund a largara no dormitório infantil também fora cruel e insultuosa não só para ela como também para os gêmeos. Se na realidade ele esquecera do contrato nupcial, algumas dúvidas seriam até razoáveis. Mas não era justo desconfiar de que os filhos não fossem dele. Ilsa não permitiria que o pai os desprezasse, por mais irado ou suspeitoso que houvesse ficado.

Ilsa viu um jarro e apanhou-o. Mesmo vazio, era pesado. Virou-se e saiu do quarto.

— Voltarei logo — ela avisou Gail.

— Santo Deus. — Gail fez o sinal-da-cruz.

— Se Ilsa precisava de água, era só pedir — Fraser comentou. — Aqui há servos em quantidade suficiente para tudo.

— Ilsa não foi buscar água.

— Então, o que ela foi fazer?

— Atirar o cântaro na cabeça do marido. — Gail admirou-se da risada de Fraser. — Ela está muito brava.

— E com razão. Presenteá-la com essa ninhada sem uma palavra de explicação não incluiu decência. Foi uma atitude cruel e com intenção de insultar. Sir Edmund merece qualquer desaforo em troca.

— Ilsa é esposa dele de verdade.

— Eu sei. Mesmo sem ver os papéis assinados. Aquela jovem não é de enganar ninguém. — Fraser sacudiu a cabeça. — Infelizmente, sir Edmund só enxerga decepções pelos cantos. Ele tem até o direito de ser desconfiado, mas creio que a perda de memória o deixou pior. Quando Ilsa se acalmar, eu lhe revelarei algumas coisas que o marido ocultou.

— Isso ajudará?

Fraser respondeu com um encolher de ombros.

Carrancudo, Edmund fitava os Cameron. Explicara-lhes, com a ajuda de sua família, a extensão de seus ferimentos e a perda de memória. Teve de admitir que os irmãos de sua esposa só continham a ira pela presença e pelas palavras de Gillyanne. Embora não o chamassem abertamente de mentiroso, as expressões deles eram acusatórias. Talvez suspeitassem de que ele teria mentido para a família.

Por sua vez, Edmund também não acreditava neles. Não teria sido tão idiota a ponto de casar-se com uma jovem que possuía oito irmãos gigantescos, todos ruivos e temperamentais. A despeito da crença de Gillyanne de que eles falavam a verdade, suas dúvidas persistiam.

Em uma reação infantil, Edmund desejava ver-se livre deles. Queria de volta a sua ex-noiva, sonsa e fácil de ser ignorada. Bastava uma espiada para a beldade de cabelos vermelhos para ter certeza de que ela jamais seria calma nem passaria despercebida.

A mesma certeza de que os Cameron apertariam sua mão, elogiariam a nova aliança e iriam embora. Os irmãos e os primos de Ilsa formavam um exército suficiente para reduzir Clachthrom a pó. O que lhe parecia mais perigoso era a ligação afetiva muito forte entre os membros da família. O que explicava o rancor remanescente, mesmo depois de ele ter-se casado com Ilsa, conforme as ordens deles.

— Edmund.

Ele virou-se devagar e olhou na direção das portas do grande hall. Não entendia como seu nome, apesar da pronúncia cortante, poderia ter silenciado um recinto daquele tamanho. Prendeu a respiração. Impossível conter uma ponta de desejo ao fitar Ilsa. Nunca vira uma mulher tão furiosa e nem entendia por que isso o excitava e nem por que sentia vontade de sorrir.

A maneira como Ilsa o chamara faria fugir qualquer homem esperto.

— Canalha! — ela sibilou. — Patife devasso e mentiroso! O senhor é mais imundo de que um monte de esterco.

— Abaixem-se! — um dos Cameron preveniu-os. Edmund ouviu o barulho dos movimentos e concluiu que o aviso fora seguido. Aturdido, observou Ilsa erguer o jarro pesado. Demorou alguns segundos para entender o que ela pretendia fazer. De repente, Connor agarrou-o pelo braço e jogou-o de lado. O cântaro bateu no espaldar de sua cadeira e espatifou-se no chão atrás dele. Quando se endireitou e fitou a porta, Ilsa já sumira. Achou uma injustiça os olhares fulminantes dos Cameron em sua direção. Afinal, não fora ele quem praguejara e quebrara vasos de porcelana.

— Na certa, ela se irritou ao conhecer meus filhos — Edmund alegou e tomou um gole de cerveja para esconder a inquietação.

— Que filhos? — Sigimor fez a pergunta.

— Alice, a única filha que tive de minha falecida esposa, e mais outros cinco.

— Cinco bastardos?

— Não gosto muito dessa palavra.

— Que pena. Tenho a impressão de que ainda terá de ouvi-la muitas vezes dirigidas a si mesmo. O senhor nunca disse à minha irmã que já tinha sido casado nem que costumava engravidar mulheres como um garanhão entre fêmeas no cio.

Edmund sentiu-se insultado, mas ignorou as risadinhas dos Cameron.

— Por que acha que eu não disse a ela? Talvez Ilsa não lhe tenha contado.

— Ela teria dito a Tait.

— O que o faz dele um abençoado?

— Ele é gêmeo de Ilsa.

Edmund praguejou em silêncio.

— Isso não quer dizer que Ilsa conte a ele todos os segredos.

— É onde o senhor se engana. Tait soube da sua existência muito antes de nós. Se minha irmã soubesse da sua devassidão, teria ficado apavorada e nem pensaria em partilhar seu leito tão depressa. Nós também teríamos feito algumas perguntas básicas, antes de consentir no contrato matrimonial. E o que milorde fez, assim que se casou perante Deus? Empurrou Ilsa para dentro de uma sala cheia de filhos seus, sem uma só palavra de advertência!

Edmund sentiu-se corar pelo sentimento de culpa.

— Ilsa pediu um quarto para as crianças. Eu a levei até lá.

— Quando o conhecemos, o senhor não era tão mal-humorado nem tão cruel. Acho que bateram demais na sua cabeça. — Sigimor cruzou os braços sobre o peito largo. — Lamento não ter deixado os outros virem conosco. Uma rodada de pancadas poderia trazer de volta um pouco de juízo e caridade nessa sua cabeça.

— Quais outros? Quantos irmãos Ilsa tem?

— Catorze. Três pares de gêmeos. Ela é a única mulher. Temos ainda muitos primos. Somente três são garotas.

Edmund franziu o cenho. Gillyanne ria tanto que teve de apoiar-se em Connor. Os outros três irmãos mal escondiam as risadas. Edmund não achou a menor graça no assunto. Um pai ou irmão superprotetor era um conhecido problema dos maridos. Ele estava sitiado por um exército de guarda-costas de cabelos vermelhos.

— Por que não acredita que perdi a memória? Diga-me exatamente quem é Ilsa Cameron e como foi que assinei esse contrato nupcial. Talvez isso me ajude a lembrar de alguma coisa.

— Ouvi dizer que um bom golpe na cabeça ajuda muito. — Tait levantou-se devagar, com os punhos fechados.

— Sente-se, Tait — Sigimor ordenou e esperou o irmão obedecer. — Muito bem, Edmund, farei sua vontade. Ilsa o conheceu quando impediu os primos Ivar e Marcus de lhe darem uma surra. Eles consideravam a moça da cervejaria sua propriedade e entenderam que milorde havia ultrapassado os limites. Ilsa deve estar lamentando o fato de não ter se dado conta de que o incidente foi um indício da sua natureza devassa.

Novamente, Edmund fez ouvidos moucos diante da afronta.

— Como foi que decidi casar com ela?

— Pelo mesmo caminho lúbrico usado por outros patifes. A sedução. Ilsa era uma presa fácil. Ela sempre achou que não atrairia ninguém pelo fato de não haver dote substancioso, de suas curvas não serem provocantes e de não gostar do próprio rosto.

— Na certa, ela sempre teve muitos pretendentes — Gillyanne murmurou.

Sigimor anuiu.

— Teria sido melhor se Ilsa conhecesse a realidade. Queríamos que ela escolhesse um marido com o coração, mas sempre nos preocupamos em afastar os canalhas que poderiam torná-la infeliz. Nossa mania de separar o joio do trigo ficou conhecida e acabou afastando os interessados. Uns covardes, todos eles. Quando Ilsa conheceu sir Edmund, nós estávamos ausentes. Chegamos tarde demais. Eu e mais cinco dos meus irmãos encontramos os dois matando a sede na floresta. Verdade seja dita, quase passamos os cavalos por cima deles. Como Ilsa não queria que o matássemos, exigimos a reparação.

Gillyanne escondeu o rosto entre as mãos, e seus ombros tremeram.

— Não foi tão ruim, milady. O orgulho de sir Edmund pode ter sido arranhado, nada mais. Contudo, acho que ele merecia mais do que isso. E ainda merece.

Gillyanne ergueu a cabeça. Não estivera chorando, mas apenas rindo.

— Eu não estava preocupada, Sigimor. Pensei em como o senhor adivinhou que ela iria atirar o jarro. Que pontaria certeira!

— Ela treinou conosco. De vez em quando gostávamos de provocá-la.

— Por que o contrato, e não um sacerdote?

— O nosso padre havia morrido um mês antes de sir Edmund chegar e a vaga não tinha sido preenchida.

— Morreu na cama da amante — Tamhas Cameron explicou. — E não foi fácil prepará-lo para o enterro. Tivemos de usar toucinho e... — Ele resmungou uma praga quando Ranulph, irmão um pouco mais velho, empurrou-o para fora do assento.

— Perdão, milady — Sigimor pediu, constrangido, antes que a disputa entre os irmãos terminasse. — O rapaz tem dezenove anos e ainda não aprendeu as boas maneiras.

— Não tem importância. — Gillyanne mal continha o riso. — Continue.

— Nós levamos os amantes para a cervejaria, ao encontro de nosso primo Liam. Enfiamos o noivo dentro de uma barrica, e meu irmão Gilbert — Ele apontou um rapaz de compleição bastante robusta, de cabelos cor de fogo e olhos muito azuis — sentou-se em cima, enquanto discutíamos o assunto com Liam.

Edmund afundou na cadeira e esvaziou a caneca de cerveja. Nada poderia ser mais humilhante do que aquele relato. Contudo ele prestava atenção a todas as palavras. Queria muito surpreender os Cameron em uma mentira. Ignorou a voz interior que afirmava ser impossível tanta gente mentir sem ser apanhada em falta.

— Liam é um rapaz muito inteligente e passou algum tempo no monastério, onde aprendeu várias coisas. Mas abandonou a carreira religiosa, pois o celibato era difícil de ser seguido. Liam preparou os documentos, e fizemos sir Edmund assina-los. Liam conduziu a cerimônia do contrato. Depois disso, os noivos ficaram por uma quinzena em um pequeno chalé.

— Em seguida Edmund foi embora e sofreu o ataque. Por que Ilsa não foi com ele?

— Edmund insistiu que um perigo o ameaçava e que teria de ir sozinho para resolver o problema, antes de levar Ilsa para a casa dele. Ficamos indecisos, mas não queríamos arriscar a segurança de Ilsa. Pobre irmã. Foi muito para ela não ter mais notícias do marido. Passado um ano, insistimos para que ela viesse procurá-lo.

— Se meu raciocínio está certo, Edmund sofreu o ataque ainda na sua aldeia.

— Acho que não. Todos o conheciam e sabiam que havia se casado com a nossa Ilsa. Ninguém lhe faria mal.

— Tínhamos certeza de que a agressão ocorreu em Muirladen.

— Mas nós somos os Cameron de Dubheidland.

— Quem controla Muirladen? — Connor perguntou.

— Atualmente é sir Randolph Ogilvey, porém acredito que ele trabalha para outra pessoa. As terras pertencem a uma viúva. Cada novo lorde que chega traz sua própria gente, que passa a viver na aldeia. Seria preciso alguma pesquisa para saber quem são os verdadeiros proprietários. Nunca fizemos isso, pois eles nunca nos perturbaram.

— Poderia descobrir isso?

— Ah, sim, se for importante.

— Talvez assim possamos identificar os agressores de Edmund.

— Mandarei meus irmãos a Dubheidland para averiguações.

— E por que não vai o senhor mesmo? — Edmund indagou, tenso.

— Tait e eu ficaremos aqui por algum tempo. Queremos conhecer...

— Acha que sua irmã precisa da sua proteção? — Edmund alterou-se.

— Bem, talvez tenhamos de protegê-lo de Ilsa.

— Milady o matou? — Gail fez a pergunta quando Ilsa voltou à creche familiar.

— Não. Gilbert ordenou que todos se abaixassem. — Ilsa pegou Finlay nos braços, sentou-se ao lado da lareira e começou a amamentar o filho. Só Edmund permaneceu sentado. Um alvo excelente. Mas sir Connor tirou-o do caminho.

— Foi melhor assim. — Gail sentou-se em frente e amamentou Cearnach. — Não acho que o coitado merecia ter a cabeça novamente aberta.

— Tem razão, srta. Gail — Fraser concordou e sentou-se ao lado de Ilsa, em um banco estofado. — Ele quase morreu, milady. Eu nunca tinha visto um homem ferido com tanta gravidade. E só o visitei bem depois do acidente. Foram precisos muitos meses para sir Edmund ficar curado.

— Eu nada tenho a ver com isso. — Ilsa deu de ombros.

— Eu sei, mas a minha Anabelle deixou para milorde como herança muita amargura, desconfiança e precaução exagerada. A agressão somente piorou tudo.

— Sua Anabelle?

— Sim. Eu era sua dama de companhia. Desde o princípio eu soube que sir Edmund estava apaixonado por ela, mas nada pude fazer. Nenhum homem aceita conselhos nem enxerga o demônio enrustido na mente da mulher amada. Ele, na certa, não escutaria uma pobre parenta forçada a satisfazer os menores desejos de Anabelle. Ela era uma verdadeira artista. Sabia agir com doçura e recato.

— E esse não era seu caráter? Fraser sacudiu a cabeça.

— Ela era uma mulher cruel, mimada e manipuladora. — Fraser suspirou. — E também era uma rameira.

Que mulher poderia trair um homem como Edmund?

— Ela foi infiel?

— Eu não diria que todas as mulheres infiéis sejam prostitutas. Alguns maridos merecem ser enganados. Quando não há amor no casamento, poderá ser procurado fora dele e assim está cometido o pecado. Mas Anabelle era mesmo uma meretriz. Deitava-se com qualquer homem, adorava seduzir os tolos, os espertos, os parentes e as mulheres. Não sei como ela conseguiu esconder de sir Edmund seu verdadeiro caráter. A verdade veio à tona um mês depois do casamento. Milorde a surpreendeu com dois homens da aldeia.

— Dois?

— É. Eu mesma não acreditei.

Ilsa corou.

— Sei que há pecados que deveriam ser ignorados, mas não se pode evitar a curiosidade a respeito.

Ilsa apoiou Finlay no ombro e bateu-lhe levemente nas costas. Sorriu para Alice, que se virara na cadeira infantil. Era uma criança bonita como as demais. O recinto das crianças era limpo, bem abastecido, e Fraser, uma atendente adorável. Edmund poderia ser culpado por sua depravação, mas não por abandonar os resultados. E a idade das crianças contava uma história. Três anteriores ao enlace com Anabelle e dois, certamente, depois da descoberta da infidelidade da esposa. Nenhuma observação foi mais uma vez satisfatória, do tempo em que estivera comprometido com Ilsa Cameron. Edmund talvez houvesse descoberto uma maneira de prevenir a gravidez.

Finlay arrotou e as crianças riram. Ilsa sorriu-lhes e entendeu que não teria problemas para cuidar delas. Na certa, o povo de Clachthrom acreditava, como ela mesma, que os filhos não deviam pagar pelo pecado dos pais. Os infantes pareciam felizes e não demonstravam temor.

— A senhora vai ser nossa mãe? — Alice puxou-lhe a manga.

— Vou, sim. — Ilsa comoveu-se com o sorriso dos mais velhos. Ewart e Gregor logo trataram de imitar os irmãos. — De agora em diante, serei a mãe de todos.

— E ela — Alice apontou Gail —, quem é?

— Sua tia.

— Ela é sua irmã?

— Não de sangue. Famílias também podem ser formadas por laços nascidos do coração. — Os mais velhos olharam para Fraser. — Isso mesmo. Ela também pode ser considerada parente de coração.

Fraser deliciou-se ao ser nomeada de tia por eles.

O pequeno Odo parou diante de Ilsa.

— Nosso pai tem quatro irmãos, uma irmã e uma cunhada. Agora temos quatro tios e quatro tias. A senhora tem irmãs?

— Minha única irmã é Gail, a do coração.

— E irmãos?

— Alguns.

— Quantos?

— Catorze.

Ilsa deu risada quando o menino tentou perfazer o número nos dedos.

— E mais dois irmãozinhos para a sua tropa — Ilsa apontou Finlay e Cearnach.

— Precisamos de mais meninas — Alice filosofou, muito séria, ao ver os meninos darem vivas por estar em maior número.

— Temos de aceitar a realidade, Alice. Não se preocupe. Eu lhe ensinarei como tirar vantagem.

— Como se pode fazer isso? — Ivy aproximou-se.

— Bem, reflita um pouco. Se alguém lhe fizer alguma maldade, terá de se haver com seis irmãos e dezoito tios, além do pai, é claro.

As duas meninas franziram o cenho e depois sorriram. As crianças eram espertas. O melhor era que pareciam tê-la aceitado como a nova mãe. Desejou que o pai delas a aceitasse como esposa.

Ilsa prometeu a si mesma que faria o que pudesse para o casamento com Edmund ser feliz. As crianças precisavam de paz e segurança.

E dela.

 

- O que milorde está fazendo aqui?

Edmund fechou a porta do quarto, encostou-se no painel e cruzou os braços na altura do peito. Ilsa, perto da lareira, vestia apenas uma camisola fina. Os cabelos brilhantes e fartos estavam soltos e chegavam aos quadris. Apesar do cenho franzido, era uma imagem tentadora.

Diferente de todas as mulheres que ele conhecera, era esbelta, quase magra e tinha curvas suaves. O busto avantajado na certa diminuiria quando deixasse de aleitar os gêmeos. Sob o tecido diáfano, notava-se a cintura fina, os quadris estreitos e as pernas delgadas. Nem mesmo parecia ter dado à luz havia pouco tempo.

O brilho dos olhos grandes e verdes era visível mesmo sob a luz difusa das velas espalhadas pelo quarto. Os cílios espessos eram longos. Os lábios, carnudos. O nariz era estreito e pequeno. A ossatura, delicada. Poucas sardas na pele alva e sedosa. O pescoço longo lembrava perfeição.

Edmund admitiu a possibilidade de tê-la seduzido. E, ao observar os gêmeos com mais cuidado, considerou que poderiam ser seus filhos. Já que fora obrigado a aceitá-la como esposa, pelo menos teria de tirar algum benefício do fato.

— Vim partilhar do leito de minha mulher.

Ilsa fitou-o e constatou que não se tratava de uma volta inesperada da memória.

— O senhor não acredita que sou sua mulher.

— Posso duvidar do que afirma ter ocorrido há um ano. — Edmund caminhou na direção de Ilsa. — Mas não de que agora somos casados.

— O senhor espera que eu banque a esposa dócil diante de um homem que me considera uma mentirosa?

— Pelo que me consta, o que o marido pensa ou sente não o impede de exigir os próprios direitos. — Edmund não resistiu à vontade de acariciar-lhe os cabelos.

O argumento era inegável, Ilsa pensou com tristeza ainda maior diante do calor que a invadia pelo toque do marido em seus cabelos. Tornava-se óbvio que seria difícil controlar o desejo por ele. Tê-lo tão próximo, sentir o cheiro do frescor masculino e imaginar a nudez sob o robe pesado despertavam-lhe a feminilidade em níveis intoleráveis.

— O senhor não me aceitou como esposa, apesar das bênçãos de padre Goudie. Acha que estou tentando prendê-lo em alguma armadilha. Por que eu faria uma coisa dessas?

— Suponhamos que tivéssemos sido amantes há um ano e por isso assinamos um contrato nupcial. O que deu à senhora e a seus filhos o direito de exigir tudo o que é meu. Exatamente nessa época, alguém tentou matar-me. Uma coincidência tão grande pode despertar as suspeitas de qualquer um, até do mais imbecil dos camaradas.

— Então, além de mentirosa, o senhor acha sou uma quase assassina. O surpreendente é que, apesar de tudo, queira ter comigo algum tipo de intimidade. — Ilsa recuou e fitou-o com desdém. — Tem certeza de que pretende ir para a cama com uma mulher tão perigosa?

— Nada haverá para ser temido se estiver desarmada e nua.

Que ousadia!

— Então, com certeza, essa não sou eu!

Edmund deu de ombros e avançou, fazendo Ilsa retroceder mais e encostar-se no colchão.

— Eu queria uma mulher na minha cama e uma mãe para meus filhos. De preferência que fosse dócil, tímida e obediente.

— Em vez disso, foi obrigado a aceitar uma em quem não tem a menor confiança.

— Seja como for e até que a verdade seja revelada, a senhora agirá de acordo com as regras.

— Quanta sutileza para cortejar uma mulher!

— Não vejo por que lhe fazer a corte. A senhora fez um juramento diante de um sacerdote. O que a faz ter obrigação de servir-me quando eu assim o desejar. Ou vamos preparar um enlace não consumado?

— Esse já chegou ao termo há um ano.

— Não diante dos olhos da Igreja.

Tensa, com o dorso das pernas pressionadas na cama, Ilsa considerou a falta de tempo para refletir sobre a melhor maneira de lidar com Edmund. Durante o exaustivo jantar no grande hall, ele não demonstrara a menor inclinação para assumir o papel de marido. E, no momento, exigia seus direitos. Que mudança radical!

Se a amnésia fosse verdadeira, Edmund teria motivos para desconfiar e agir como se fora enganado. O que não tornava menos irritante aquela prepotência. Nem suavizava a angústia que Ilsa enfrentava. Por não acreditar nela, Edmund era insensível ao sofrimento por que Ilsa passara. Fora abandonada, tivera de correr atrás dele, encontrara-o no altar com outra e ainda era obrigada a enfrentar uma situação constrangedora.

Era injusto, Ilsa lastimou. Mas haveria de provar sua lealdade! Edmund alegava esquecimento. Logo, ela não passava de uma estranha. Em virtude disso, ele faria o possível para manter-se a distância. Se ela fizesse o mesmo, o casamento estaria condenado. No leito matrimonial, haveria uma pequena chance de suavizar a desconfiança amarga do marido.

Mas deitar-se com um homem que a considerava ameaçadora e mentirosa? Seria uma humilhação. Uma vergonha. Sentir-se-ia miseravelmente usada.

De repente, Ilsa entendeu as razões da própria hesitação.

E se a paixão dele houvesse morrido junto com as lembranças? Teria Edmund amado verdadeiramente a mulher com que estivera prestes a casar-se? Seria muito difícil aceitar que ele esquecera o arrebatamento que os unira, quaisquer que fossem os motivos.

Ilsa lutou para permanecer alerta, quando Edmund tornou a aUsar-lhe os cabelos, brincando com as madeixas revoltas. Passou-lhe a ponta dos dedos no pescoço, nos ombros e no rosto. Uma verdade era incontestável: ela ainda o amava, apesar de toda rejeição, da falta de confiança e do fato de que ele pretendia usá-la para satisfazer, sem amor, as necessidades masculinas.

— O senhor pretende usar-me como faria com uma meretriz — Ilsa protestou e em vão tentava empurrá-lo.

— Não, senhora. Como minha legítima esposa. Essa é a diferença.

— Não na sua cabeça.

Ilsa agarrou a frente da camisola que Edmund acabava de abrir e encarou-o. Era um momento decisivo. Ou iria com ele para a cama, ou teria de procurar outro lugar para dormir.

Estavam casados perante Deus. Ela desejava o marido e, pelo olhar dele, a recíproca devia ser verdadeira.

Por que não ser indulgente consigo mesma? Por que não saciar a fome que a consumia havia tanto tempo?

Mais do que depressa, Ilsa enumerou as razões por que deveria partilhar com Edmund os prazeres conjugais. O enlace tornar-se-ia legal perante a Igreja. Seria uma oportunidade para fazer uma trégua, tentar recuperar o passado e diminuir as suspeitas. O ressurgimento do ardor que os incendiara seria um caminho mais fácil para alcançar o coração e a mente do marido. Aquele matrimônio era de suma importância para o futuro dos gêmeos e dos seis inocentes que dormiam na ala das crianças. Viera até ali para exigir que Edmund se casasse com ela, conforme prometera. A união fora sacramentada. Nada mais natural do que ela aceitar as responsabilidades de esposa. Ilsa pediu a Deus para que Edmund não se aproveitasse do desejo dela para arrasá-la outra vez.

— Muito bem, sir Edmund. — Ilsa subiu na cama e deitou-se de costas. — Cumprirei com o meu dever. Fique à vontade.

Surpreso e um tanto desgostoso pela frieza, Edmund conteve um sorriso. Não pretendia achar graça. Seria um sinal de ternura que poderia ser usado contra ele. Se a instalara nos próprios aposentos, era para ver até onde Ilsa iria com o jogo. Como ela consentira em recebê-lo, ele não recusaria, embora o fizesse com relutância. Apenas aproveitaria para saciar um desejo havia muito relegado ao esquecimento.

Edmund tirou o robe e subiu na cama.

Ilsa prendeu a respiração. Seria muito difícil manter-se presa apenas ao dever diante daquela exibição. Procurou demonstrar uma calma que não sentia e permitiu-se observá-lo. Não se via nenhum sinal de gordura. Só músculos rijos. Peito largo, quadris estreitos, pernas longas e bem-feitas. Uma faixa estreita de pêlos encaracolados começava sob o umbigo, adensava-se na virilha e cobria levemente as pernas. As cicatrizes pelo corpo davam o toque de veracidade à alegada agressão que ele sofrera. A masculinidade ereta e majestosa indicava que o nível de desejo não diminuíra. Parecia ainda maior do que antes.

Então, por que o receio?, Ilsa perguntou-se. Não era mais virgem. E exceto pela primeira vez em que haviam feito amor, ela só sentira prazer.

Ficou tensa quando Edmund se agachou sobre ela e começou a tirar-lhe a camisola. Ilsa reprimiu um protesto. Edmund apenas usava seus direitos. E se ele planejava fazer mais do que uma cópula corriqueira, seria impossível fingir o cumprimento de uma simples obrigação. Sentiu-se enrubescer quando o marido atirou a camisola de lado e mirou-lhe o corpo desnudo, como se nunca o houvesse visto. Mesmo sem memória do passado, o desejo estava presente.

Por ora, bastava.

Edmund disse a si mesmo que seria melhor satisfazer, sem perda de tempo, suas necessidades. Mas reconheceu que admirar tanta beleza e graça seria natural para qualquer homem. Os seios de Ilsa, redondos e cheios, tinham mamilos róseos. O abdômen liso mostrava pequenas estrias resultantes da gravidez. As pernas longas eram fortes e sedosas. A pele era suave, sem jaca. Entre as coxas, um triângulo de pêlos ruivos o deixava arfante só pela idéia de desfrutar aquele tesouro.

E por que não? O mais retardado dos homens sabia que a paixão nada tinha a ver com as emoções mais profundas que um marido podia ter por sua esposa. Todo aquele encanto era dele pelas leis de Deus e dos homens. Por que não saboreá-lo? Nem mesmo lhe importava despertar o entusiasmo de Ilsa. Ela lhe devia uma recompensa por estragar-lhe os planos daquela maneira.

Edmund notou os olhos de Ilsa se arregalarem quando abaixou a cabeça para beijá-la. Os lábios carnudos eram uma tentação grande demais para ser ignorada. A hesitação de Ilsa durou apenas alguns segundos. Ela abraçou-lhe a nuca e entreabriu os lábios diante da língua provocativa. Edmund estendeu-se sobre Ilsa e sentiu os tremores leves do corpo macio, enquanto procurava descobrir os segredos daquela boca saborosa. Abandonou-se à paixão que havia muito não sentia.

Ciente de que sua rendição fora rápida demais, Ilsa reconheceu que não havia como fingir desinteresse. Mesmo se aquela fosse sua única dádiva, ela a aproveitaria. Pelo menos, o relacionamento sexual serviria para expressar todo o amor que teria de manter oculto. E como os homens em geral não acreditavam que a paixão tivesse origens mais profundas, Edmund jamais suspeitaria da vulnerabilidade que a dominava.

Edmund beijou-lhe a garganta e, entre gemidos de prazer, Ilsa jogou a cabeça para trás quando ele lhe acariciou os seios e, com a ponta dos dedos, provocou-lhe os mamilos até estes ficarem doloridos de tão rijos. Ilsa agarrou-se nos cabelos fartos de Edmund, que beijou e depois sugou-lhe os seios. Desesperada, quase gritou de alegria ao sentir as mãos dele entre suas pernas.

— Deus, como está molhada... — Edmund murmurou, preparando-se para possuí-la.

Ilsa gritou com a penetração, e ele se conteve, temeroso da própria rudeza. Ela abraçou-o com as pernas vigorosas para incentivá-lo a prosseguir.

As investidas de Edmund encontraram um envoltório apertado, macio, quente e úmido. Os movimentos de ambos eram ritmados e harmônicos. Sentir o corpo esguio agarrado no dele fez com que Edmund perdesse o controle. Ilsa gritou o nome do marido e arqueou-se ao atingir o êxtase. Edmund segurou-lhe com força os quadris, enterrou-se o mais que pôde e acompanhou Ilsa no vôo cego.

Depois de alguns minutos, Edmund deixou-se cair de costas, ao lado da esposa. Teve a impressão de que seus ossos haviam amolecido. Com um olhar de revés, constatou que o mesmo devia estar acontecendo com Ilsa e reconheceu um sentido de familiaridade em todo o processo. Até mesmo o desenlace gratificante pôde ser antecipado no momento em que a beijara. Tudo lhe parecera conhecido. A sensação dos cabelos e da pele. O gosto dos lábios e dos seios. Até a paixão de Ilsa fora de certa forma esperada.

O que o fez supor que ela fazia parte de seu passado. Por isso o desejo imediato, apesar da falta de exuberância que ele sempre preferira. Ilsa o inflamava de maneira inebriante, perigosa. Entendeu que seria incapaz de fugir do prazer que encontrara em seus braços esguios. Mas era imprescindível não se deixar cegar por isso. Ilsa poderia preparar uma cilada, o que representaria uma ameaça. Depois das lições penosas que aprendera de seu casamento com Anabelle, esperava manter a loucura à parte.

— Bem, talvez eu possa acreditar que já fomos amantes. — Edmund estreitou os olhos.

— Ah, quanta generosidade... — Ilsa virou a cabeça para mirá-lo. — Além de mentirosa e assassina, também sou uma rameira.

— Só porque abriu as pernas para seu marido, não quer dizer...

Ilsa impediu-o de prosseguir, fechando-lhe a boca com a palma da mão que, em seguida, levantou devagar.

— Suas necessidades masculinas foram satisfeitas?

— Foram — Edmund concordou, apesar da descrição pálida do que sentira.

— Então o senhor pensa em considerar a possibilidade de repetir a dose de vez em quando?

Várias vezes durante uma noite e provavelmente também pela manhã.

— Sim, penso.

— Então posso sugerir que modere sua linguagem comigo? A despeito da minha raiva anterior...

— Quando pretendeu matar-me com a jarra? - Ilsa ignorou o comentário e continuou:

— Sou uma pessoa que consegue controlar o temperamento. Sabemos quais são nossos pontos de vista e tenho a impressão de que continuaremos a expressá-los com freqüência. Contudo este quarto não seria o melhor lugar para duelos. Minha raiva poderia ficar quente e eu, gelada.

Apesar da ameaça oculta, Edmund não pôde deixar de dar-lhe razão, embora a trégua no leito o impedisse de usar o desejo contra ela. Tentativas de fazê-la revelar alguma verdade em meio aos arroubos da paixão estariam condenadas. Mas considerando-se os píncaros a que haviam sido levados, Edmund julgou que, de qualquer forma, haveria dificuldade de raciocinar de maneira desleal.

— Seria uma suspensão de hostilidades? — Edmund perguntou.

— Isso mesmo. — Ilsa cobriu-se com o lençol e jogou a outra ponta em cima do marido. — A batalha cessa na entrada. É bem capaz que não possamos seguir as regras, mas pelo menos devemos tentar.

Rindo, Edmund aceitou a mão estendida.

— Isso quer dizer que não tentará armar nenhuma cilada aqui dentro? Não fará nenhuma ameaça?

Ilsa revirou os olhos, curvou-se para o lado e apanhou a camisola.

— Pode ficar tranqüilo — ironizou. — Não ameaçarei seu corpo franzino com minha força e destreza no manejo das armas.

A perícia de Ilsa era com o sarcasmo, Edmund refletiu e surpreendeu-se ao vê-la sumir sob o lençol. Os movimentos circulares e as imprecações suaves eram um indício de que ela tentava vestir a camisola. Ilsa reapareceu após alguns segundos, afogueada e com os cabelos em desalinho.

— Uma modéstia inútil — Edmund fez pouco caso. — Há poucos momentos...

— Não quero lembrar o que houve há pouco — Ilsa interrompeu-o. — Engraçado. O senhor não crê em mim. Não entendo por que aceitou a minha palavra. Eu não aceitaria.

— Esqueça. Nossa trégua já começou.

— Promete que não tentará nenhuma falseta, nem mesmo prejudicar-me?

— Prometo.

— Então eu lhe dou minha palavra. — Ilsa pulou da cama, depois de novo aperto de mãos.

— Aonde vai?

— Para trás daquele biombo. A propósito, a peça deveria ter-me feito suspeitar de que me acomodaram nos seus aposentos. Milorde não precisaria esconder-se em seu quarto, nem eu no meu.

Ilsa sumiu atrás da tela e começou a lavar-se.

— Não prestei muita atenção aos detalhes. — Ela espiou para fora do biombo. — É um ambiente simples. Pensei que fosse para os hóspedes. — Voltou às abluções. — Não se vêem traços marcantes de quem o ocupa.

Edmund teve de concordar. Não havia nada que denunciasse o dono, a não ser que se abrisse as arcas com as roupas. Sem saber como faria para modificar a situação, achou estranho que ainda não o tivesse feito. Era incrível que não houvesse sinal de sua presença, apesar dos longos meses de restabelecimento que passara ali dentro.

Ilsa voltou para a cama. Edmund levantou-se e foi para trás do anteparo de seda. Ilsa engasgou ao ver-lhe novamente o físico atlético. Amaldiçoou a própria fraqueza diante daquele homem. Teve de reconhecer a impossibilidade de resistir-lhe aos encantos.

Virou-se de lado e aconchegou-se entre o colchão de penas e os travesseiros fofos. Desistiu de pensar em resistência. Essa tática poderia prejudicá-la no futuro. Seria uma batalha perdida antes mesmo de ser iniciada.

Ser sempre terna e submissa também despertaria as suspeitas de Edmund. Teria de continuar a ser ela mesma. Consagraria honestidade nos atos e nas palavras como suas armas. Mesmo sem falar em amor, ela o concederia ao marido. Continuaria a entregar-lhe paixão. Aquele seria o melhor plano. Esperava fazer com que Edmund esquecesse a amargura, a desconfiança e o ódio. Assim talvez ele acabaria por encontrar os sentimentos que os haviam unido e descobrir que não houvera nenhuma mentira.

Sentiu Edmund deitar-se atrás dela. Em segundos, ele arrancou-lhe a camisola e pressionou-se nas suas costas e nádegas. A excitação do marido provocou a sua e a fez estremecer.

— Eu estava pensando em dormir — Ilsa alegou com voz rouca, enquanto Edmund lhe mordiscava a orelha e lhe acariciava os seios.

— E por que não faz isso? — Ele lambeu-lhe o lóbulo e o contorno da orelha. — Vou continuar da mesma maneira.

Ilsa riu suavemente.

— Não poderá fazer nada se eu estiver dormindo. — Prendeu o fôlego ao sentir a mão de Edmund entre as pernas, admirada com a rapidez da resposta do próprio corpo. — Acho que ficarei acordada mais um pouco.

A risada de Edmund despertou-lhe as esperanças. Tratava-se de um começo, porém palpável. Apenas uma fenda, mas que poderia ser alargada. Era preciso pensar em maneiras de enfraquecer a barreira que fora erguida, involuntariamente, era verdade, entre eles.

Ah, pensaria nos planos de batalha mais tarde!

 

— Nossos novos tios são todos grandes como o senhor? Sigimor levantou Odo até os olhares ficarem no mesmo nível.

— Eles são anões comparados comigo, meu rapaz. Eu sou o maior, o mais forte e o mais inteligente.

As risadas de Odo animaram os outros meninos a se aproximarem. Ilsa e Gail haviam trazido os mais velhos para o pátio e deixado os gêmeos com Fraser. Triste com a partida iminente dos irmãos, Ilsa gostaria de pedir-lhes para ficar ou para a levarem de volta. Engoliu em seco. Escolhera Edmund e não poderia passar a existência escondida atrás dos irmãos só por que a vida conjugal não ia às mil maravilhas.

Fizera amor com o marido naquela manhã e Edmund saíra em seguida. Ele mal lhe dirigira a palavra, exceto nos momentos de maior paixão. O silêncio poderia ser um modo de honrar a trégua, mas fora uma maneira de esfriar-lhe o ânimo. Continuava a acreditar na estratégia de ser ela mesma na cama, onde receberia Edmund com demonstrações de boa vontade. Mas se o plano dele fosse ignorá-la durante o dia, depois passar noites repletas de prazer, a construção da harmonia conjugal seria muito difícil.

Ilsa resolveu caminhar para fazer um reconhecimento do espaço descoberto, e Sigimor acompanhou-a com Ewart em um braço, Gregor no outro, Aulay nos ombros, Odo e Ivy abraçados em suas pernas, e Alice agarrada em sua jaqueta. Sigimor adorava crianças, e Ilsa muitas vezes se perguntara por que ele continuava solteiro.

— Como vão as coisas, minha querida? — Sigimor fitou-a com perspicácia.

Ilsa corou.

— Estou bem. Pode ter certeza de que não apresento nenhum hematoma.

— Não estou me referindo ao exterior.

— Bem, o restante é de minha exclusiva competência.

— Ilsa, acha que a história de Edmund é verdadeira?

— Creio que sim. Ele tem muitas cicatrizes recentes pelo corpo. Lady Gillyanne e Fraser confirmaram o relato. O que estranho é ele afirmar que não se recorda de mim nem do tempo em que estivemos juntos, embora o acidente tenha sido posterior. Mesmo assim, não notei o menor sinal de reconhecimento em seu olhar. — Ilsa encolheu os ombros. — Preciso de algum tempo para decidir em que devo acreditar. Um fato negativo é Edmund não ter dito que havia sido casado nem que possuía seis filhos. De uma certa maneira, foi uma mentira. Quem mente uma vez...

Chegaram a um jardim pouco cuidado e Sigimor deixou as crianças no chão.

— É o que também penso. Tait e eu resolvemos ficar aqui. Tenho o pressentimento de que um perigo ainda ronda nas sombras. Uma ameaça a Edmund poderia facilmente atingi-la.

Ilsa e Sigimor sentaram-se em um banco de pedra, enquanto Gail se afastou com as crianças.

— Haverá alguma perspectiva de descobrir os culpados? Edmund e a família devem ter tentado e, pelo visto, nada conseguiram.

— Eu sei. As propriedades e o povo de Clachthrom não deixam muito tempo para Edmund dedicar-se a tarefas extras. Depois da tentativa de assassinato, todos se concentraram na recuperação de Edmund e na certa não lhes sobraram horas livres para mais nada. Tait e eu podemos iniciar a investigação com maior rapidez. Embora eu seja o responsável por Dubheidland, tenho um pequeno exército de parentes em condições de administrar a propriedade e cuidar do povo, enquanto eu estiver aqui resolvendo o caso. Nanty ficará conosco. Trabalharemos em conjunto.

— Como pretendem chegar ao inimigo?

— Não sei, mas estou convicto de que pegaremos o criminoso. Minha querida, quero saber se ainda ama Edmund.

— Sim. Não é tão simples desfazer-se dos sentimentos.

— Hoje eu o vi só de relance e parece que a noite de núpcias não alterou muita coisa.

— Ele admitiu que havíamos sido amantes. — Ilsa corou. — Já é um bom começo. A paixão continua existindo entre nós. Fizemos um pacto de armistício que vigerá dentro dos nossos aposentos.

— Hum.

— Edmund disse que, independente de acreditar ou não na minha história, agora sou a esposa dele e terei de aceitar a situação. E é o que decidi fazer.

— Tem certeza de que é o melhor a fazer, Ilsa?

— Depois de pensar muito, resolvi que seria apenas eu mesma. Uma esposa sem fingimentos ou truques. Esconderei meu coração ferido da melhor maneira que puder, mas no resto serei honesta com meu marido. Creio que será a melhor maneira de lidar com um homem desconfiado como Edmund MacEnroy.

— Não é justo que tenha de pôr-se à prova.

— Concordo, mas é o que terei de fazer. Se Edmund realmente não se lembra de nada, então não me conhece. Como ele se sente ameaçado, nada mais natural do que suspeitar de mim.

— Tem razão, Ilsa. A melhor maneira de mudar a opinião dele é ser absolutamente sincera em tudo. Edmund terá de aprender a confiar na esposa. Se ele estiver mentindo para nós...

— Eu permitirei que lhe dê uma surra até deixá-lo desacordado.

— Muito justo.

— O que está olhando? — Nanty perguntou ao entrar no gabinete de Edmund e vê-lo à janela.

— Sigimor Cameron literalmente coberto de crianças. — Edmund deixou espaço para Nanty comprovar a afirmação.

Nanty sorriu. As crianças desceram do poleiro humano e espalharam-se pelo jardim.

— Seus filhos confiam no grandalhão.

— Era o que eu deveria fazer?

— Seria interessante notar que eles não têm medo dele, apesar do tamanho excepcional. As crianças possuem uma percepção maior que a dos adultos.

Edmund não estava inclinado a admitir aquela verdade. Ao ver o carinho das crianças com Sigimor, percebera uma ponta de ciúme. Os filhos não tinham aquela intimidade com o pai. E por sua própria responsabilidade, o que o deixou com sentimento de culpa. Incomodado por duas emoções a que não estava acostumado, recusava-se a enxergar Sigimor com bons olhos.

— Tenho a impressão de que os Cameron são uma família unida — Nanty murmurou.

Edmund fitou Nanty de soslaio e irritou-se com a expressão de falsa inocência.

— Acredita neles, não é?

— Não precisa dizer isso como se me acusasse de traição.

— E por que não? Eles podem ter tentado matar-me.

— Se os irmãos de Ilsa quisessem assassiná-lo, Edmund MacEnroy já estaria enterrado há muito tempo. Eles não o teriam deixado agonizante com a oportunidade para contar a história mais tarde. Nós falamos com todos em Muirladen e não obtivemos nenhuma informação útil. Duvido que um bando de gigantes ruivos tivesse passado despercebido.

Seria preciso apenas um deles, e toda a aldeia notaria sua presença, Edmund teve de admitir. O vilarejo de Muirladen localizava-se bem próxima das terras dos Campbell. E os camponeses jamais mencionaram ninguém parecido com os Cameron. Esse era um fato a ser levado em consideração.

— Bem, os Cameron, sabendo que seriam facilmente reconhecidos, poderiam ter contratado alguém para fazer o serviço. — Edmund não se deu por vencido.

Nanty revirou os olhos e sacudiu a cabeça.

— Por que faz tanta questão de culpá-los?

— Porque não imagino mais ninguém que pudesse ter motivos para eliminar-me. Prefiro ser mais drástico. Não se deve confiar em excesso desde o início. Alguém quer atirar-me em um sepulcro. A última agressão não foi um acidente. Houve alguns outros que poderiam ser considerados fatores de má sorte. Se os episódios anteriores ao espancamento forem apenas acidentes, isso significa que os Cameron poderiam estar tentando matar-me. Se aqueles acidentes foram na verdade tentativas de assassinato, então não podemos culpar a família de Ilsa. Por mais que a minha memória esteja apagada, tenho certeza de que não conheci nenhum Cameron até um ano atrás.

— Então já começou a lembrar-se de alguma coisa.

— Eu não me lembro de como os conheci. Mas me recordo bem dos meses anteriores aos fatos, e nenhum deles está presente nas lembranças.

— Acha que Ilsa não se tornou sua esposa?

— Tenho certeza de que fomos amantes. Soube disso no momento em que a beijei. Reconheci-a pelo gosto e pelo tato.

— Por que, então, não acreditar nela?

— Eu não me lembro do tempo que passamos juntos, se fizemos alguma promessa nem se ela era virgem.

Edmund observou Sigimor e Ilsa sentados em um banco e Gail perambulando pelo jardim com as crianças, que pulavam sem parar. Suspirou ao observar os canteiros abandonados. Quando herdara Clachthrom, dera vida nova ao jardim. No princípio do casamento com Anabelle, chegara a pensar que as plantas ornamentais a atraíam. Descobrira mais tarde que ela usava o local para enganá-lo com qualquer homem que se dispusesse a trair seu senhor. O desleixo datava daquela época. Na verdade, fora quando parara de incomodar-se com uma porção de coisas. Antes de casar-se com Anabelle, tomara algumas providências para suavizar a severidade da fortaleza de Clachthrom. Atualmente trabalhava apenas para não contrair dívidas e manter seu povo alimentado e seguro. Nada mais. Surpreendeu-se ao fazer um balanço e concluir que nada fora feito em vista do casamento com Margaret. Não gostava de admitir, mas o primeiro matrimônio fizera com que ele perdesse a alegria e o interesse pela vida.

— Ela era uma donzela — Nanty afirmou.

— Por acaso esteve lá examinando os lençóis? — Edmund ironizou.

Nanty sacudiu a cabeça e torceu os lábios.

— Ilsa tem catorze irmãos e muitos primos, a maioria homens. Sem dúvida, foi muito bem vigiada. Fico até surpreso que tenha conseguido seduzi-la.

No jardim, Sigimor começou a correr atrás de Ilsa, sob o coro das gargalhadas das crianças.

— Até hoje eles a adoram e se preocupam com ela.

— Então, por que permitiram que Gail ficasse tão próximo dela?

— Para ajudar a amamentar "seus" filhos, que são muito gulosos. Além disso, o que aconteceu com aquela pobre moça foi muito triste. Ela deve ter sofrido demais. Basta ver como se afasta de qualquer homem e como treme sem controle quando está em um recinto com várias pessoas do sexo oposto. Foi uma sorte Gail ter ficado sob a proteção dos Cameron. Se não fosse isso, sabe-se lá o que teria sido dela.

— Ora, Nanty, então os Cameron são verdadeiros santos — Edmund carregou no sarcasmo. — Devo estar blasfemando aos considerá-los criminosos. Ou pior, meus inimigos.

— Não entendo esse mau humor, depois de haver passado a noite nos braços de uma bela jovem.

— Ilsa interrompeu e estragou meu casamento, fez afirmações sobre as quais não tenho nenhuma lembrança, exibe documentos com a minha assinatura e, antes que eu me recuperasse do susto, já estava casado com ela. O fato de eu reconhecer que já fizemos amor não é motivo para confiar nela ou nos seus parentes. Nem que todos sejam bondosos com crianças e jovens estupradas. — Edmund afastou-se da janela.

— Apegue-se às suas dúvidas e suspeitas, Edmund. Não concordo com elas, mas posso entender que as tenha. Continue tentando provar que os Cameron estão mentindo. Eu trabalharei para demonstrar o contrário.

— Por quê?

— Acredito na história deles. Confio no sexto sentido de Gillyanne. Só vejo neles uma raiva mais do que justa pelo sofrimento da irmã. Quando Ilsa conheceu seus filhos, expressou carinho e compreensão por crianças que não tiveram culpa de ter nascido. Também não se recusou a recebê-lo na cama, apesar da maneira desprezível como foi tratada. E tem mais. Suponho que a noite de núpcias tenha sido bastante satisfatória.

Nanty foi até a porta, segurou o trinco e voltou-se.

— Há um ano o meu nobre irmão viu-se finalmente livre da miséria em que Anabelle o deixou atolado e encontrou uma esposa digna desse nome. Prometo que farei o possível para que não a torne infeliz.

— Ainda bem que meu querido irmão ficará por aqui apenas por alguns dias.

— Oh, eu não lhe contei? — Nanty sorriu com doçura. — Decidi deixá-lo contente, mano. Eu lhe farei companhia por mais tempo.

Edmund quedou-se pasmo diante da porta, que foi fechada com uma batida. Seria urna infantilidade quebrar um vaso de encontro à mesma. Segundos depois, um canecão pesado de estanho deixou a marca impressa no painel maciço de carvalho. Um punhal teve o mesmo destino.

Edmund largou-se na poltrona e fitou a arma encravada na madeira. Era uma tolice sentir-se traído por membros de sua família que acreditavam em Ilsa. Era um direito deles, assim como teriam de aceitar que ele desconfiasse. Porém essa aceitação trazia um pouco de piedade ou simpatia por um homem atormentado.

E isso era intolerável.

Edmund suspirou, fechou os olhos e descansou a cabeça no espaldar estofado. Era difícil de admitir, mas a sua família estava certa. Um homem com tantas falhas mentais era um homem ferido. Seu casamento desastroso provocara-lhe chagas de vários tipos. A escolher. O medo não lhe permitiria confiar em Ilsa. Estremeceu. Anabelle deixara-lhe a certeza de que ele não sabia julgar com critério as pessoas, principalmente as mulheres que desejava. Naquela altura, uma avaliação errônea poderia matá-lo.

Havia algumas semelhanças leves entre Ilsa e Anabelle. As duas eram emotivas. Em Ilsa ele vira caráter, humor e paixão. E sofrimento, embora não soubesse determinar a causa. Mas outros pontos em comum não tardariam a aparecer.

As diferenças entre as duas eram fundamentais. Bastara contemplar o cenário no jardim para ter certeza da aceitação de Ilsa pelas crianças. Anabelle nem mesmo dera atenção a Alice, sua própria filha. Ilsa era temperamental, mas sem demonstrações histéricas como Anabelle fazia. Edmund reconheceu que Ilsa tivera bons motivos para enraivecer-se. Anabelle nunca precisara de uma razão. Ilsa era dada a paixões, no bom sentido, bem ao contrário de Anabelle. Apesar de todo seu pessimismo, concordava que Ilsa jamais seguiria os passos de Anabelle.

Edmund mexeu-se no assento e fez uma careta. Lembrar-se dos momentos íntimos com Ilsa deixava-o excitado. Ilsa era quente e suave. Com ela, encontrara uma satisfação nunca antes sentida, nem quando acreditara amar Anabelle. Isso poderia ser considerada uma fraqueza, mas ele aprendera algumas lições. Mesmo sem poder controlar o desejo por Ilsa, não ficaria cego diante de força tão poderosa.

Para ser honesto consigo mesmo, Edmund teria de admitir que fora uma sorte contar com Ilsa em sua cama, e não com Margaret. Era fácil entender por que haviam sido amantes. O fogo entre eles era instantâneo, uma aspiração de qualquer homem. A despeito de suas dúvidas, receios e suspeitas, pretendia aproveitar ao máximo a permanência de Ilsa em seu leito e aquecer-se naquelas chamas sempre que possível. Seria preciso tomar cuidado para não sair tostado.

 

Ilsa sorriu com tristeza diante do adeus dos irmãos. Eles beijaram Cearnach em seu colo e Finlay no de Gail. Era o primeiro passo da separação. Sigimor e Tait ficariam com ela por um tempo. Devido às circunstâncias, aquela mudança dolorosa fora adiada por um ano. Embora trêmula pelos receios dos quais ainda não se libertara, Gail estava em pé a seu lado, suportando com heroísmo a proximidade dos gigantes ruivos que se despediam de Finlay. Ilsa entendeu que Gail passara a considerar os Cameron sua própria família.

Elyas aproximou-se de Gail e entregou-lhe um objeto.

— Um presente para a senhorita.

Gail segurou com cuidado o punhal embainhado e franziu o cenho.

— Este é um punhal, senhor.

— É. Ilsa lhe mostrará como usá-lo.

— Qual o motivo deste presente?

— Aprenderá a proteger-se, mesmo que seja com uma arma pequena. Precisa entender que não é tão indefesa assim. — Elyas deu um sorriso breve. — Poderá usar o pequeno punhal para proteção de nossa Ilsa.

Gail corou.

— Agradeço sua bondade, senhor.

— Ah, que gesto simpático — Ilsa derreteu-se ao ver Elyas ir embora. E fez uma careta quando Sigimor a abraçou pelos ombros.

— Isso mesmo, Ilsa — Sigimor concordou, ignorando a expressão de dor da irmã. — Elyas tem se preocupado com os pavores da rapariga.

— Gail vem melhorando dia a dia.

— Graças a Deus. — Sigimor ficou atento aos votos de boa viagem dos MacEnroy. — Não obstante a natureza desconfiada desse seu marido sempre mal-humorado, acredito que fizemos uma boa aliança.

— Fico satisfeita de ter podido beneficiá-lo e também ao clã. — Ilsa gemeu quando Sigimor lhe puxou a trança como castigo por sua ironia, e acenou para os irmãos que cavalgavam para fora de Clachthrom. — Será tão estranho não trombar com eles toda hora...

— Por isso não. Tait e eu poderemos empurrá-la dobrado, enquanto estivermos aqui.

— Que interessante — Edmund resmungou ao aproximar-se. — Não me lembro de tê-los convidado para permanecerem em Clachthrom.

— Sei disso. Mas Tait e eu não somos rancorosos. Relevaremos sem pestanejar essa sua falta de boas maneiras — Sigimor retrucou.

— Como ambos são caridosos...

— Ah, somos mesmo.

A tensão era tanta que Ilsa esperou ouvir algum osso estalando. Edmund irritara-se pela intenção evidente de Sigimor em proteger a irmã contra ele. Ou talvez supusesse que a estada dos Cameron fosse para certificar-se de que o complô contra ele seria bem-sucedido. Pela expressão de Sigimor e de Tait, ambos se consideravam insultados pela desconfiança.

Ilsa suspirou, aliviada. Os outros MacEnroy aproximaram-se. Mas a carranca acusatória de Edmund contra a própria família fez com que ela perdesse a esperança de paz. Seu marido voltou para o castelo a passos largos, sem dizer mais nada.

— Acredito que eu não os agradaria muito se torcesse aquele pescoço — Sigimor murmurou para os MacEnroy.

— Tem razão — Connor respondeu por todos. — Afinal, aquele imbecil, rabugento e teimoso é meu irmão.

— Vai ser difícil fazê-lo enxergar a verdade.

— Com certeza. Quando um homem se recupera de um ataque daqueles e com falhas graves de memória, tende a ser mais cauteloso e desconfiado de que os demais.

— Correto. Ele não sabe onde o inimigo se esconde. É o mesmo que ter uma lâmina apontada para o seu coração, o que acaba por corroer-lhe o bom senso.

Connor anuiu.

— Como se não bastasse, Edmund ainda sofreu muitas traições nos últimos anos.

— Bem, teremos de ser pacientes. — Sigimor franziu a testa para Tait, que suspirou com escárnio. — Eu tenho paciência. Ainda não matei nenhum Cameron, matei?

— Não, mas esteve perto de fazê-lo. Lembra-se de quando atirou nosso primo Maddox pela janela?

— Ora, ele bem mereceu aquilo. Além do mais, só sofreu algumas escoriações — Sigimor defendeu-se. — O rapaz tinha adquirido alguns maus hábitos enquanto flanava pela corte do rei com seus amigos bem-nascidos e ricos. Ele precisava de alguém que lhe desse uma lição de vida.

— Ah-ah. E quando atirou Gilbert no rio e segurou a cabeça dele embaixo da água?

— Eu estava limpando as orelhas dele, por que o idiota não escutava o que eu dizia. Era uma questão de disciplina.

Ilsa abandonou os irmãos na disputa de quem tinha razão e voltou ao castelo para amamentar os filhos. Gail acompanhou-a pela direita e lady Gillyanne, pela esquerda. Olhou por sobre o ombro e viu os três MacEnroy entretidos na batalha dos Cameron.

— Sua família é muito parecida com a minha — lady Gillyanne afirmou quando entraram na creche familiar. — Os Murray são barulhentos e numerosos. E os homens também são maioria.

— Meu pai teve quatro esposas, e eu fui a única menina da família. Quando a última esposa morreu ao dar à luz Fergus, que está com onze anos, afirmou que já havia enterrado muitas esposas e que não se casaria mais. Ele faleceu menos de um ano depois de uma febre virulenta que grassou em Dubheidland. Muitos idosos morreram. Aos onze anos, fiquei órfã também de pai e fui criada por irmãos e primos, todos homens.

Os filhos de Edmund correram para saudá-la.

— Por isso nem estranhei ficar de repente com seis filhos e duas filhas. Parece-me muito natural.

— Enfrentar um homem teimoso também não deve lhe parecer estranho.

— É verdade. Poderá não ser fácil, mas não será incomum.

— Tenho certeza de que vencerá.

— É uma opinião nascida de algum sonho profético, lady Gillyanne?

— Não. Trata-se apenas da crença no poder do amor.

— Rezo para que eu possa sobreviver aos testes que Edmund certamente haverá de preparar.

 

Ilsa achou graça na rapidez com que seus irmãos e os dois jovens MacEnroy entraram na cervejaria. Haviam dado a desculpa de matar a sede, mas estavam mesmo à procura de mulheres fáceis. Ela crescera rodeada por homens e conhecia bem esses estratagemas, embora não entendesse por que gastar dinheiro em encontros rápidos com prostitutas.

— Eles pensam que somos retardadas e não conhecemos as intenções deles — Gail resmungou.

— Não é isso — Ilsa retrucou, rindo. — Eles sabem que estamos cientes do que procuram. Porém não querem chocar-nos com uma franqueza exagerada.

— Não compreendo os homens. E muito menos essas raparigas que se deitam com muitos que nem conhecem e de quem talvez nem gostem.

— Elas fazem isso por dinheiro. Algumas não têm alternativa de sobrevivência. Acredito que as moças da cervejaria escolhem seus parceiros. Se estão contentes com esse tipo de vida, paciência. Nada poderemos fazer. Mas farei o possível para ajudar aquela que for forçada a entrar nessa vida e quiser abandoná-la.

As duas caminhavam pela feira e Gail se deteve diante de uma mesa com vários rolos de tecidos finos.

— Ah, Ilsa, veja que lindos!

— Gillyanne disse que os mercadores sempre param aqui, antes de dirigir-se às cidades maiores. — Ilsa examinou uma peça de linho azul. — São maravilhosos.

Mesmo reconhecendo que se tratava de uma extravagância, Ilsa regateou com o comerciante, comprou o linho e alguns tecidos mais baratos. Gostaria de trocar a herança de Anabelle deixada no castelo. Algo novo e diferente que refletisse seu próprio gosto.

Escolheu fitas para si, para Gail e para as enteadas. Comprou um perfume suave para Fraser e lembranças para todas as crianças. Mesmo sabendo que não seria bem recebida, escolheu um presente de casamento para Edmund. Decidiu-se por uma fivela de prata trabalhada com motivos antigos e um grifo com olhos vermelho-granada. Por estarem casados havia apenas três dias, poderia guardar o mimo até que a situação se tornasse menos incerta entre eles.

Pediu para que mandassem tudo para Clachthrom.

Atraída pelos aromas de lavanda e rosa, Ilsa parou diante da banca da vendedora local de ervas e que também era curandeira. O suprimento de ervas medicinais do castelo estava desfalcado e até que pudesse restaurar o jardim, teria de comprar o que fosse preciso. Admirou-se pela variedade oferecida e elogiou a mulher de cabelos brancos pela excelência de suas mercadorias.

— Milady é a nova senhora do castelo? — a curandeira perguntou.

— Sou, sim. — Ilsa disse o próprio nome e apresentou Gail.

— Ouvi dizer que sir Edmund casou-se com outra que não era sua noiva. Uma que ele havia esquecido. Vi os Campbell irem embora naquele mesmo dia. — Estendeu a mão muito limpa e suave. — Sou Glenda, a parteira.

Ilsa aceitou o cumprimento e refletiu que a notícia de seu casamento já se espalhara pela aldeia.

— A memória de milorde foi afetada pela violenta agressão sofrida.

— Assim me disseram. Não tive oportunidade de tratar dele, pois as mulheres da família Murray são exímias curandeiras e também suas parentas. Nada mais justo que viessem em auxílio de sir Edmund. Eu trato da maioria dos doentes aqui na aldeia.

— Sua velha feiticeira, por que não conta que vendeu ao lorde a poção que ele usou para matar a mulher? — Um homem de cabelos escuros aproximou-se de Ilsa.

— Wallace, o senhor sabe muito bem que eu só negocio com ervas curativas — Glenda respondeu.

Wallace ignorou o protesto da mulher e fitou Ilsa.

— Milady, é melhor prestar atenção ao que bebe e come. Lady Anabelle não se preocupou com isso e está morta. Edmund não suportou a idéia de que a esposa preferisse outro homem. Por isso a matou.

— É difícil acreditar que sir Edmund mataria uma mulher — Ilsa manteve a voz firme, apesar do calafrio que a acusação provocara nela.

— Uma pena, milady. Logo testemunharemos também o seu enterro — disse Wallace afastando-se.

Alto, bonito, forte e jovem, devia ter sido um dos amantes de Anabelle, Ilsa deduziu. Enciumado, queria denegrir a imagem de Edmund a qualquer preço. Apesar da lógica do argumento, Ilsa sentiu-se inquieta e fitou Glenda. O rosto ligeiramente vincado traduziu simpatia.

— Senhora, Wallace fala com ciúme e raiva.

— O povo de Clachthrom pensa como ele?

— Nem todos, milady. Tenho horror de falar mal dos mortos, mas lady Anabelle não era benquista. — Glenda suspirou e sacudiu a cabeça. — Era impossível compreendê-la. Tinha um marido atraente que gostava dela e era dona de um castelo. Possuía dinheiro à vontade para gastar, embora sir Edmund não seja tão rico. Ela vivia insatisfeita e infeliz. Queria ter todos os homens do mundo a seus pés. Acho que ela se deitou com quase todos os homens de Clachthrom, ou pelo menos com os que não eram muito feios ou velhos.

Para Ilsa, parecia uma loucura uma mulher ser infiel ao marido de maneira tão flagrante e repetida. A punição para esse tipo de comportamento costumava ser severa. Anabelle tivera sorte que Edmund simplesmente passasse a ignorá-la.

A acusação de Wallace seria verdadeira?

— A senhora foi chamada para tratar de lady Anabelle?

— Não. Ela recusou minha ajuda. Lady Anabelle não me suportava por eu ter me recusado a vender uma poção para fazê-la perder a criança que carregava no ventre. — Glenda anuiu ao ver Ilsa e Gail sufocarem um grito. — Eu não a atendi porque não trabalho com esse tipo de ervas.

— Acha que outra pessoa deu a ela o abortivo? Talvez a própria Anabelle tenha preparado a poção.

— Tenho pensado nas mais variadas hipóteses que possam ter causado a morte de lady Anabelle, mas nenhuma delas aponta para sir Edmund. — Glenda deu de ombros. — E digo mais. Mesmo se ele tivesse feito qualquer coisa nesse sentido eu não o culparia. Lady Anabelle o envergonhava constantemente e afirmou que o filho não-era dele.

— Edmund não mataria uma criança, mesmo que não fosse dele, estando dentro ou fora da barriga. — Ilsa odiou a ponta de dúvida em sua mente.

— Eu também acredito nisso, senhora. Porém se a história a perturba, deveria falar com a dama de companhia de lady Anabelle.

— Fraser?

— Ela tratou de lady Anabelle até a morte.

— Essas suspeitas têm sido levantadas com freqüência?

— Como a maioria dos boatos.

— Acho melhor reunir alguns fatos com presteza.

Ilsa fitou a cervejaria onde os irmãos haviam entrado. Escolheu as ervas das quais necessitava, pediu a Glenda para enviá-las ao castelo e despediu-se, apressada.

— Acha que milorde matou a esposa? — Gail perguntou, acompanhando-lhe o passo.

— Não. Porém tudo o que tem acontecido diminuiu minha confiança nele. E no fundo de minha alma, eu me pergunto se isso foi possível. Edmund é um homem orgulhoso e Anabelle o envergonhava sem piedade, fazendo-o de tolo. Por causa dela, Edmund tornou-se amargo e desconfiado das mulheres. No pouco tempo em que estamos juntos, pude perceber traços de um coração ferido. Ousei pensar que poderia diminuir-lhe o sofrimento.

— E por isso ele se tornou tão duro.

— Pode ser. O importante agora é descobrir a verdade sobre a morte de Anabelle. O mais depressa possível.

— Para aplacar a pequena dúvida?

— Sim. Eu não quero tornar-me tão amargurada e suspeitosa como Edmund. Se isso acontecer, não haverá esperança para o nosso casamento.

— E por que precisamos voltar com urgência ao castelo?

— Quero a verdade, antes que meus irmãos escutem os rumores.

— Oh, Senhor!

Elas começaram a correr. Ilsa considerou que o pouco tempo em que parara na aldeia fora o suficiente para ficar sabendo do que se comentava sobre Edmund. Com os irmãos ocorreria o mesmo. Se não houvessem ficado aqueles dias dentro da fortaleza, teriam escutado a história bem antes. Teve esperança de que os moradores do castelo nada houvessem comentado, por não acreditar nas acusações. O problema seria ainda maior se algum dos habitantes de Clachthrom estivesse interessado em despertar a suspeita dos Cameron. Isso seria um veneno lento a minar qualquer esperança de paz em seu novo lar.

Elas ignoraram os olhares espantados dos servos e correram para a ala das crianças. Ilsa ficou contente ao encontrar lady Gillyanne ao lado de Fraser. Pediu para Gail ficar com as crianças por algum tempo e foi com Gillyanne e Fraser até um pequeno solar que lhe fora cedido para os trabalhos de bordado e leitura.

— O que houve? — Gillyanne sentou-se ao lado de Fraser em um banco estofado.

— Escutei alguns boatos na feira.

— Oh, não — Fraser murmurou.

— Sobre que assunto? — Gillyanne perguntou, quase ao mesmo tempo.

— Fui avisada de que meu marido tem uma certa tendência para envenenar esposas. — Observou o espanto no rosto da cunhada. — Talvez milady não tenha ido muito à aldeia desde a morte de Anabelle, mas Fraser sabe a que estou me referindo.

— Eu esperava que essa tolice já tivesse sido esquecida. O bom senso costuma aniquilar a suspeita. E evidente que nem todos aqui têm consideração com um lorde que vem trabalhando duro para dar-lhes alimento e segurança. Quem foi que lhe contou essa história horrenda?

— Um jovem chamado Wallace.

— Ah, um dos muitos amantes de Anabelle. Um rapaz idiota que acreditou na culpa de sir Edmund pela alma atormentada da esposa. Ela era mesmo perturbada, mas também egoísta, frívola e mesquinha. Wallace, coitado, não deve ter enxergado isso. Sir Edmund nada teve a ver com a morte de Anabelle.

— Não sou eu que tenho de ser convencida. Meus irmãos estão na cervejaria e na certa não faltará alguém para assoprar-lhes os mexericos. Preciso saber de tudo, antes que eles voltem a Clachthrom.

— O que não vai demorar, e virão ferozes como dragões a cuspir fogo — Gillyanne comentou.

— Disso não tenho dúvida. — Ilsa suspirou. — Angus e Nanty não poderão conter-lhes a fúria, ou talvez nem se dêem conta do que está acontecendo. Edmund acha que meus irmãos são mentirosos e que podem estar por trás da tentativa de assassinato, o que já é um insulto violento. Se ficarem ainda mais desconfiados de meu marido, Sigimor e Tait não hesitarão em dar uma surra em Edmund, levar-me para casa e deixar as explicações para depois.

— Não podemos permitir que isso aconteça — Fraser alegou. — Anabelle descobriu que estava grávida, e não era de sir Edmund. O marido a tinha tocado para fora do leito conjugal havia quase um ano, e creio que todos os moradores do castelo sabiam do fato.

— Pelo que ela vinha fazendo, até me surpreendo que se incomodasse pelo fato de estar grávida.

— É verdade. Anabelle nunca fez segredo de suas aventuras amorosas. Aliás, vangloriava-se de suas conquistas. Deus que me perdoe, mas nunca duvidei de seu desequilíbrio mental. Ela não queria o bebê de maneira alguma, assim como não desejava que Alice viesse ao mundo. A menina nasceu e a mãe a esqueceu por completo. O parto de Alice foi muito simples. Não creio que Anabelle temesse o nascimento de mais um filho.

— Ela mesma fez uma poção para livrar-se do feto?

— Não tenho certeza, mas acredito que sim, depois de ter ficado furiosa com Glenda, a curandeira, que se recusou a lhe fornecer o remédio. Ela o tomou uma noite após uma discussão com sir Edmund. Horas depois todos ficaram sabendo o que Anabelle tinha feito e o porquê. E passamos a rezar por sua vida.

— Oh, Deus! — Gillyanne suspirou e acariciou o ombro de Fraser. — A senhora não conseguiu parar o sangramento?

— Não. Tentamos de tudo a noite inteira e nada deu certo. Quando pensávamos que a hemorragia havia parado, começava tudo de novo. Ela estava grávida de apenas dois meses e nem sofreu quando perdeu a criança. Anabelle morreu sem se arrepender, culpando a humanidade por sua desdita. Chamamos padre Goudie, mas ela não lhe permitiu absolvê-la. O que disse ao ministro de Deus me fez corar de vergonha. E ele nem mesmo se abalou.

— Um sacerdote não costuma se impressionar com procedimentos levianos, ainda mais que se tratava de um Goudie. — Gillyanne fitou Fraser. — Ela não disse onde conseguiu o medicamento?

— Não, mas sei que não foi com sir Edmund. Anabelle praguejou muito contra o marido por ele não a ajudar quando ela mais necessitava.

— Então Edmund talvez soubesse da gravidez — ponderou Ilsa.

— Anabelle jurou que não. Mais tarde, refletindo e tentando pôr os pingos nos "is", concluí que ela deve ter tentado seduzi-lo e que milorde se recIlsava a recebê-la novamente em seu leito.

— O que afundou a chance de afirmar que o filho era dele — Ilsa concluiu. — Na certa, a discussão foi sobre isso. Assim mesmo, não é compreensível que Anabelle se importasse em dar à luz um filho que não fosse do marido. A menos que ela imaginasse que teria um menino.

— Isso mesmo! — Gillyanne apostou na idéia. — Anabelle havia perdido o controle sobre Edmund e podia temer por um banimento. Mas se ela lhe desse um filho, não precisaria mais de Edmund. Poderia livrar-se do marido e administrar Clachthrom por meio do filho.

— Ela encarregaria algum amante de cuidar das terras e da criança.

Era uma história bem triste, e Ilsa compreendeu toda a amargura de Edmund. As sombras em sua memória escondiam o começo da cura que na certa fora iniciada durante o curto romance que haviam vivido. Além das cicatrizes morais deixadas Por sua esposa, Edmund ainda carregava as físicas impostas Por um inimigo desconhecido. Não seria fácil trazer de volta o Edmund que ela conhecera e pelo qual se apaixonara. Ilsa teve uma vontade repentina de abandonar tudo e regressar a Dubheidland.

O pior seria contar aos irmãos a história sórdida, quando voltassem ansiosos para dar uma surra em Edmund. Ele teria de reviver o drama e as humilhações que o tinham feito perder a fé nas mulheres.

Ilsa sentiu um aperto no coração. O pesar pelo marido era tamanho que ela não conteve as lágrimas.

Quanto mais a história se esclarecia, mais Ilsa ficava surpresa por Edmund ter sido um amante tão carinhoso que aceitara casar-se com ela. Passou a entender por que Edmund lhe ocultara que fora casado e que possuía filhos.

— Acreditou que os boatos tivessem alguma ponta de verdade? — Gillyanne perguntou-lhe.

— Apenas por um breve instante. A dúvida foi mínima e em relação à morte de Anabelle. Eu jamais acreditaria que Edmund fosse capaz de tirar a vida de um inocente, mesmo sendo um embrião. O que me deixa consternada é o fato de ele não ser o mesmo homem que eu encontrei há um ano. Mas, na verdade, eu não o conhecia. Edmund escondeu muita coisa de mim.

— Os homens não gostam de trazer à baila memórias dolorosas. Quando me casei com Connor, soube de muitas coisas pelos outros. Ele era um homem muito fechado que via as emoções como uma fraqueza. Ainda é reservado, mas isso não me incomoda mais, pois sei que ele me ama.

— E essa certeza pode dar-nos a força para enfrentar o mundo. Infelizmente não sei se Edmund me ama. Mesmo quando nos conhecemos, não me lembro de tê-lo ouvido dizer isso. Se meus irmãos não nos tivessem encontrado, nem sei se ele teria se casado comigo. Edmund não se opôs à vontade dos rapazes, mas se fosse por ele...

— Bem, agora são marido e mulher — Fraser apaziguou as dúvidas de Ilsa.

— Terei de agüentar firme até a memória voltar e ele descobrir quem é seu inimigo. No momento, tenho de assegurar-me de que os cunhados não o matarão.

— Então será melhor irmos até o pátio, ao encontro deles. — Gillyanne levantou-se.

Ilsa ficou em pé e sacudiu as saias.

— Em parte, eu até gostaria que Edmund apanhasse um pouco por ter escondido tantos segredos de mim. Mas se a briga começar, será muito difícil terminá-la. Os irmãos de Edmund tomarão sua defesa e o estrago será grande. Vamos embora.

No corredor, Fraser avisou que iria espiar as crianças e que se encontraria com elas em seguida. Ilsa deu o braço para ajudar Gillyanne a descer a escada, agradecida pelo apoio da cunhada.

Saíram do castelo e sentaram-se em um banco junto aos degraus, de onde tinham boa visão dos portões. Ilsa conjeturou que tudo poderia ser bem diferente naquele dia agradável de primavera. Seus irmãos eram bem teimosos quando se tratava de proteger a irmã. Por outro lado, Edmund não se encontrava em fase conciliatória. Ilsa não teria alternativa a não ser interpor-se no conflito. Fraser aproximou-se e sentou-se ao lado delas. O conforto oferecido agradou a Ilsa, que suspirou.

— Tudo bem com as crianças?

— Não poderia estar melhor. Gail é maravilhosa com elas. Ofereceu mingau para os bebês, e os outros estão adorando a desordem.

— Talvez seja um pouco cedo para dar-lhes papinhas, mas eles estão querendo um alimento a mais, além do peito.

— Eles crescerão depressa — Gillyanne afirmou. — Beathan, meu primogênito, também exigiu alimento mais sólido bem cedo. Eu poderia tê-lo desmamado aos seis meses, mas a irmã menor ainda mamava. Então dava o seio a ela, enquanto ele comia a papa, e depois eu dava a ele um pouco de leite.

— As pessoas divergem quanto às melhores práticas. Qual a sua opinião?

— Assim que os dentes nascem, eu me recuso a deixar que os diabretes me mordam.

Ilsa acompanhou os risos das outras duas. Em Dubheidland, havia poucas mulheres, ainda mais depois da morte da terceira madrasta. Como as demais não eram do mesmo nível social de Ilsa, mantinham-se afastadas. O interesse delas era nos charmosos Cameron. A esposa de Alexander chegara depois de Ilsa ter se casado com Edmund e mudado para o chalé. Assim, Ilsa nem tivera oportunidade de familiarizar-se com aquela mulher.

Na companhia de Gail, Gillyanne e de Fraser, Ilsa sentiu que perdera muito com essa falta de amizade fraternal.

Nem tudo se podia conversar com homens, mesmo sendo irmãos. Eles se amavam muito, mas havia assuntos que só podiam ser discutidos com mulheres.

— Ilsa, seus irmãos estão chegando sozinhos. Devem ter ludibriado Angus e Nanty — Gillyanne avisou.

Pela expressão de Sigimor e Tait, Ilsa poderia jurar que o pior acontecera.

— Oh, céus! — Ela fez o sinal-da-cruz.

— Talvez pretendam ser razoáveis.

— Duvido. Olhe só a cara de Sigimor.

— Não dá para ver daqui.

— Eu sei. Mas ele vem com a cabeça baixa e os ombros curvados para a frente. Caminha a passos largos e com as mãos fechadas em punhos. Sigimor ouviu os rumores e não pretende ser cordato!

— Bem, tente falar com ele, antes que encontre Edmund.

— Receio que hoje não seja meu dia de sorte. — Ilsa suspirou ao ver Edmund e Connor saindo do estábulo.

— Acho que os quatro alcançarão a arena ao mesmo tempo — Gillyanne comentou.

Ilsa levantou-se e endireitou os ombros.

— Não permitirei que se matem.

— O que pretende fazer?

— Agarrar o touro pelos chifres!

— Meus Deus! — Fraser benzeu-se.

 

— Saia do caminho, Ilsa — Sigimor ordenou. Ilsa não se intimidou. Ela se aproximara dos irmãos, enquanto o marido e o cunhado se avizinhavam. Mesmo sem saber do que se tratava, os MacEnroy ficaram tensos ao pressentir a fúria dos Cameron, que haviam caminhado na direção deles a passos largos. Não haveria tempo para descobrir.

— Saia da frente, Ilsa — Edmund endossou a ordem de Sigimor.

Pelo menos nisso, eles concordavam. A fisionomia de Edmund não deixava dúvida sobre sua ansiedade em iniciar um combate.

— Calma, Edmund. — Ilsa não percebeu o olhar de estupefação do marido diante de sua audácia. — O senhor nem mesmo sabe o motivo da fúria deles.

— Não me interessa. — Ilsa fitou os irmãos.

— Primeiro preciso explicar-lhes algumas coisas.

— Pode começar — Sigimor concedeu com brusquidez.

— Ainda bem que resolveram ser razoáveis. — Ilsa não acreditou naquela rápida capitulação.

— Melhor dizendo, racionais! Racionais, escutou? Enquanto Tait e eu deixamos seu imprestável marido desacordado no chão, a senhora faça-me o favor de subir, chamar Gail, pegar as crianças e tudo o que é seu. Conversaremos durante o trajeto de volta a Dubheidland.

— E vai deixar-me tão cedo, meu amor? — Edmund ironizou. — Estou arrasado.

Ilsa deu uma cotovelada no estômago de Edmund. Achou ótimo ele dar um grito sufocado, mas se surpreendeu com a própria ousadia. Fitou o marido de relance. Curvado, ele procurava retomar o fôlego.

— Mas que droga, Ilsa! — Sigimor irritou-se. — Agora teremos de esperar até que a respiração dele volte ao normal. Não seria justo bater em um homem arfante.

— Sigimor, escute. Sei o que ouviu dizer na aldeia.

— Então também sabe por que não poderá ficar aqui. Seu marido envenenou a falecida esposa.

— É mentira. Ela envenenou a si mesma. Sigimor resfolegou, descrente.

— Pelo que ouvi falar da mulher, ela não era do tipo que se mataria.

Ainda bem que Sigimor ouvira as histórias assombrosas sobre lady Anabelle, Ilsa cismou. Seria mais fácil fazê-lo acreditar na verdadeira versão. E também não teria de enumerar as traições cometidas, o que evitaria mais reminiscências dolorosas para Edmund.

— Lady Anabelle não tentou se matar. Ela quis fazer um aborto.

— Foi isso o que seu marido lhe disse?

— Não. Fraser me contou tudo, quando eu lhe perguntei a respeito dos boatos que percorrem a aldeia.

— Ela tem de defendê-lo. Edmund é seu senhor.

— Na verdade, ainda que ele seja meu senhor agora — Fraser interveio —, cheguei aqui como dama de companhia de lady Anabelle.

Fraser e Gillyanne haviam se aproximado, com esperança de poder evitar o início de um conflito.

— Escute, Sigimor — Ilsa implorou. — Ela sabe a verdade melhor que qualquer um. Lady Anabelle não queria a criança e pediu a Glenda, a curandeira, para lhe dar uma poção abortiva. Glenda recusou-se a fazê-lo, pois só trabalha com ervas que possam curar. Lady Anabelle conseguiu a droga com outra pessoa e não hesitou em tomá-la. O aborto foi rápido e a hemorragia, também.

— Isso não faz sentido. Por que tirar a criança? Ela já era mãe de uma e... casada!

— O bebê não era de Edmund e nem poderia ser. Todos sabiam disso.

— Ah! Por isso Edmund fez com que ela tomasse a infusão. Ele não suportou a idéia de que a esposa estivesse grávida de outro. Teria de passar mais uma vez por essa vergonha.

— A pequena Alice não é nenhuma vergonha! Sigimor, não quero ouvi-lo mais dizer uma coisa dessas. Tente raciocinar com imparcialidade. Isso não dói. — Ilsa ignorou a carranca e o resmungo de Tait. — Edmund tem uma ala cheia de crianças que a maioria dos homens iria ignorar ou desdenhar. Duvido que as cinco mulheres que lhe deram filhos tenham sido virgens quando o conheceram. Edmund tinha todo o direito de questionar a paternidade em todos os casos. No entanto não titubeou em ser responsável por eles. Não me parece ser a atitude de um homem que pensaria em dar veneno à esposa para livrar-se de um feto.

— Talvez ele não soubesse da gravidez. Na certa queria livrar-se da mulher.

Ilsa não diria a Sigimor que ele acertara uma parte. Ele e Tait pareciam mais calmos. Nada de tornar a irritá-los.

— Quem lhe contou tais mentiras?

— Um tal de Wallace — Sigimor revelou.

— Ah, só podia ser ele. Wallace me abordou no mercado com a mesma história. Também acusou Glenda de ter dado o veneno a lady Anabelle e chamou-a de bruxa. Ele foi um dos amantes de lady Anabelle. Isso não faz dele um relator muito confiável, não é? A não ser que se aceite a palavra de um homem que traiu seu senhor de maneira infame.

— Ilsa... — Sigimor começou.

— Um homem que amou a mulher com quem cometeu pecados. — Ilsa apertou as mãos de encontro ao peito. — Um homem que a rotulava como uma alma triste e perturbada, levada ao desespero e ao pecado pelo jugo cruel do marido. Um jovem que pensava salvá-la com seu amor e que a perdeu para um túmulo. Um homem que...

— Chega — Sigimor resmungou e Tait revirou os olhos, enojado.

— Ah, então aceita que errou em dar ouvidos às palavras de um adúltero amargurado?

— Não suporto mais escutar esses absurdos. Juro que mais um pouco e eu teria vomitado.

— Isso mesmo — Tait concordou com o irmão.

— Então não vejo por que bater em meu marido!

— É... suponho que não... — Sigimor não poderia estar mais desapontado. — Bem, não duvido de que encontrarei outros motivos para dar-lhe uma surra.

— Ah, eu também gostaria de uma oportunidade para dar-lhe uns bons socos — Edmund afirmou.

— Então por que não se agarram logo e arrebentam os ossos uns dos outros? — Ilsa virou-se em direção ao castelo, ladeada por Gillyanne e Fraser. — Podem começar.

— Aonde pensa que vai? — Sigimor perguntou.

— Tenho coisas mais importantes para fazer.

— A senhora está de parabéns — Gillyanne comentou ao entrarem no grande hall.

— Obrigada, mas quando se cresce em meio a tantos marmanjos, aprende-se a usar a cabeça.

— E um pouco de arte teatral.

— Ah, isso é muito útil em certos casos. As três caíram na risada.

— Bem, vamos resgatar a pobre Gail, sozinha com aquele bando!

Edmund esfregava o abdômen, enquanto Ilsa se afastava.

— Está doendo, não é? — Sigimor perguntou, assim que a mulheres entraram e a porta foi fechada.

— Ilsa é mais forte do que parece — Edmund admitiu.

— Se é! E aquele cotovelo pequeno e pontudo é uma arma perigosa. Ainda bem que ela o usou no seu estômago. Certa vez atingiu o primo Dennis na virilha. O pobre rapaz andou de maneira engraçada por uma semana.

— Pequeno e pontudo? — Edmund murmurou e franziu o cenho quando Connor riu.

— Sigimor, acredito que não educou direito nossa irmã — Tait zombou.

Sigimor deu-lhe um soco. Tait disse uma imprecação, perdeu o equilíbrio e caiu de costas. Após alguns minutos apoiou-se sobre um cotovelo, esfregou o queixo machucado com a outra mão e fitou Sigimor com olhar faiscante.

— Por que fez isso? — Tait resmungou, feroz.

— Não gosto de impertinências. — Sigimor estalou os dedos das duas mãos. — Além do mais, vim da aldeia até aqui pensando em uma boa briga e sua irmã fez com que eu desistisse da idéia. Fiquei um pouco tenso. Agora estou melhor.

Sem mais comentários, Sigimor virou-se e foi para o castelo. Rindo, Connor ajudou Tait a ficar em pé.

— Tudo bem, rapaz?

— Ah-ah. — Tait limpou a terra da roupa. — Ele não bateu forte.

— Foi Sigimor quem criou Ilsa? — Edmund interessou-se.

— Não só ela, como a todos nós. A quarta esposa de meu pai morreu ao dar à luz Fergus, que agora está com onze anos e alguns meses. Papai faleceu pouco tempo depois. A febre virulenta que grassou em Dubheidland atingiu as crianças mais fracas e os mais idosos. E muitos adultos fortes não escaparam. A doença vitimou meu pai, dois dos meus tios e uma das minhas tias. Muitos perderam os pais, e restou um grande número de viúvos. Sigimor, com vinte anos recém-completados, tornou-se senhor de um bando de necessitados. Somerled, seu irmão gêmeo, ajudou-o. Éramos doze mais novos do que ele e tínhamos vários primos que haviam ficado órfãos ou sem pai.

— Não havia nenhuma parenta que pudesse cuidar de Ilsa?

— Várias se ofereceram. Algumas eram viúvas com muitos filhos e outras não podiam morar em Dubheidland. Sigimor agradeceu a todas e explicou que o lugar de Ilsa era ao nosso lado. Muitos primos, todos homens, vieram morar conosco. Ilsa não teve companhias femininas, o que pode tê-la deixado com um certo verniz de rudeza. Por outro lado, também não se assustará com uma casa cheia de crianças para cuidar.

— Isso foi fácil de perceber — Edmund falou com um carinho que o deixou surpreso. — Diga-me uma coisa. Será que os habitantes da aldeia e de Clachthrom ainda pensam que matei Anabelle?

— Ouvimos isso somente de Wallace. Aqui no castelo não houve comentários. — Tait deu um sorriso amarelo. — Ilsa estava certa. Deveríamos ter feito algumas perguntas ao homem, e não simplesmente aceitar a palavra dele como verdadeira. Se Ilsa não estivesse envolvida, Sigimor não teria escutado um homem que confessava abertamente ter pecado contra o seu senhor. Na certa teria lhe dado uma surra.

— Nem deveríamos ter deixado Ilsa sair sem proteção. — Era o pensamento de Edmund, mesmo que não a quisesse por esposa e não confiasse nela.

— É verdade. De nossa parte, peço que nos desculpe. Acha mesmo que Ilsa possa estar ameaçada?

— Existe uma grande possibilidade — Edmund não conteve uma ironia —, se não foram os Cameron que tentaram me matar.

Tait não deu importância à provocação, o que deixou Edmund desapontado.

— Não entendo por que alguém pensaria em atingir Ilsa.

— Nem eu, mas também não sei por que querem me assassinar. Os motivos poderiam incluir minha esposa e meus filhos. Eu não deveria ter-me casado antes de resolver esse caso. E era o que planejava fazer. Embora se possa classificar o atentado na categoria de assalto, pois levaram todos os meus pertences. Ainda tenho a sensação de que há muito mais por trás disso.

— Meus irmãos e primos vão procurar esclarecer a verdade.

— E acha que já não fizemos isso?

— Eu sei, mas os MacEnroy são desconhecidos em Muirladen. Ao contrário dos Cameron. Alguns parentes nossos são casados com moças de lá. O senhor não passava de um estranho ferido. Tenho a impressão de que meus irmãos obterão resultados melhores. Espere um pouco. Poderíamos mandar Liam descobrir não somente quem administra aquelas terras, mas quem é o dono delas.

— Tentei falar com o administrador do castelo, porém não consegui — Connor interveio. — Precisávamos levar Edmund embora e não pude demorar-me mais. Ele também não respondeu a nenhuma das questões que mandei entregar lá.

— O homem se esconde dentro do castelo como um caracol na concha. A esposa faleceu há muito tempo e não deixou filhos. Se eu estiver certo, o camarada não ajudará ninguém a encontrar seu senhor, o verdadeiro dono da herdade. Liam saberá a quem procurar. Alguns dos mais velhos terão nomes para citar.

— Assim espero. Algo me diz que as respostas estão em Muirladen. — Connor notou que Angus e Nanty atravessavam os portões do castelo. Repreendeu-os assim que se aproximaram. — Por acaso perceberam que foram deixados para trás pelos Cameron?

Angus fechou a carranca.

— Nem dei importância. Sigimor e Tait ainda não tinham feito o serviço. — Angus olhou para Tait e deu um sorriso sem graça. — Maggie ficou desapontada ao descobrir que eu a visitei em seu lugar.

— Ela se comportou bem? — Tait perguntou.

— Teria sido melhor se ela parasse de falar, esperando a sua volta.

— Hilda não fala muito — Nanty contou —, mas cheira a cebola. — Fitou Connor. — Disseram-nos que os Cameron tinham vindo aqui para dar uma surra em Edmund. Pelo jeito, não foi o que aconteceu.

Connor explicou de maneira sucinta o que ocorrera.

— Quer que voltemos para dar uma palavrinha com esse tal de Wallace? — Angus se ofereceu. — Ele pode ser o inimigo que está procurando, Edmund.

— Duvido. Depois de eu ter me recuperado, passei a investigar os amantes de minha mulher.

— E como soube onde encontrá-los? — Tait admirou-se.

— Anabelle deixou diários onde anotava tudo. — Edmund resolveu não dizer que as anotações eram ricas em detalhes. Como, onde e com que freqüência. — Um homem sucumbe facilmente ao desejo e a uma mulher bonita. Poucos levaram em conta o risco de trair seu senhor. Somente Wallace mostrou sinais de rebeldia, mas ele não teria coragem para agredir-me e nem teria dinheiro para contratar alguém para fazê-lo.

— A família de minha esposa fez uma investigação sobre os amantes de Anabelle — Connor afirmou. — Alguns despertaram dúvidas, mas pareceu haver sempre uma relutância em confessar a traição feita ao lorde de Clachthrom.

— Jesus... — Tait sacudiu a cabeça, inconformado. — Eu me admiro de que não a tenha matado.

— Ela não valia o meu pescoço na forca — Edmund confessou com tristeza e voltou para o castelo.

— Edmund pode estar certo sobre Wallace — Connor disse, assim que o irmão sumiu atrás da porta fechada. — Mas sou de opinião de que não custa fazer outra averiguação a respeito do rapaz.

— Concordo — os outros três disseram em uníssono.

— E procurem não fazer isso na cervejaria. Os três enrubesceram.

Edmund parou no corredor e ouviu o barulho de água em seus aposentos. Pôs a mão no trinco, pensou em Ilsa nua no banho, entrou e fechou a porta.

Bastou um olhar para despertar-lhe o desejo. Ilsa estava dentro da tina, coberta de espuma, apoiando a nuca na beira sobre uma toalha dobrada. Os cabelos brilhantes caíam para fora e alcançavam o chão. De olhos fechados, mantinha os braços fortes sobre as laterais da banheira.

Uma visão maravilhosa.

Edmund refreou a vontade de tirar a roupa e deitar-se com ela na água. Não queria envolver-se demais na paixão que os consumia, por sentir que sua ternura por Ilsa aumentava a cada momento. Não podia negar que se comovera com a defesa que ela sustentara perante os irmãos. Ilsa soubera controlar a semente de dúvida que, certamente, se instalara em vista das Palavras de Wallace. Não o procurara para fazer acusações.

Tentara descobrir a verdade com Fraser e Gillyanne. Qualquer que fosse a opinião de Ilsa a seu respeito, fora incapaz de acreditar que ele mataria um inocente. Como conservar a severidade diante dessa atitude?

Apesar de todas as recomendações em contrário do bom senso, Edmund aproximou-se da banheira. Ilsa ouviu os passos e corou. Abriu os olhos devagar, e Edmund não se conteve mais. Sem deixar de fitá-la, tirou as roupas. Ela dobrou as pernas e segurou-as de encontro ao corpo.

Ilsa tinha pernas lindas.

— Não está pensando em tomar banho comigo, está?

— Claro que sim. — Edmund terminou de despir-se.

— Não vai dar certo.

— Vai, sim.

Ilsa disse uma imprecação leve quando o marido entrou na banheira. O nível da água chegou às bordas. A excitação de Edmund aumentava a dela. Ele se banhou, de olhar fixo na esposa. Ilsa se sentiu bonita e desejada.

— Entre marido e mulher não é necessária tanto recato. — Edmund achou graça por Ilsa manter-se imóvel no outro canto.

— Um banho é algo íntimo, privativo.

— Pretendo um pouco mais do que isso.

— Mas agora? Logo teremos de descer para jantar no grande hall.

Edmund não respondeu. Levantou-se, a excitação no máximo, tirou Ilsa da banheira e deixou-a em pé sobre a toalha, de frente para ele. Apesar dos protestos murmurados, começou a enxugá-la devagar e sensualmente com uma toalha seca.

O pescoço, os ombros, os seios, que levantou cuidadosamente um por um, e o abdômen. Ajoelhou-se para secar-lhe os pés. Quando foi beijada no estômago, Ilsa reconheceu que o recato começava a abandoná-la. Edmund passou a toalha nas pernas sedosas e beijou-lhe as coxas. Ilsa gemeu ao sentir que ele lhe afastava as pernas para enxugar o espaço entre as coxas.

Edmund deixou a toalha cair no chão, e Ilsa só queria deitar-se com o marido. Nisso, sentiu que ele a beijava onde acabava de enxugar. Assustada, tentou afastar-se, mas Edmund a agarrou pelos quadris e segurou-a com firmeza. Ilsa não teve certeza do que era certo e nem mesmo se importou, depois de experimentar as carícias feitas com a língua ávida. Agarrou-se nos ombros do marido e em segundos perdeu-se no prazer do êxtase. Zonza, não caiu no chão porque Edmund a segurava com firmeza.

Ele levantou-se lentamente, beijando-lhe o corpo de baixo para cima. Ilsa notou que Edmund estava úmido. Soltou-se e, com desejo renovado, começou a passar a toalha nos braços dele.

Ilsa traçou um rasto de beijos no tórax e no abdômen. Sentiu-o estremecer, e, com receio de que Edmund terminasse o jogo antes de ela estar pronta, rodeou-o e enxugou-lhe as costas. Sem pressa, interrompendo a tarefa com beijos, desde os ombros largos até as panturrilhas.

Ilsa voltou para a frente, secou os tornozelos e subiu. De maneira meticulosa e com leveza, secou-lhe a umidade da virilha.

Teria coragem suficiente para beijar-lhe a masculinidade?

Teve.

Deixou cair a toalha, acariciou-lhe as coxas musculosas e tocou com os lábios a pele sedosa e distendida. Edmund estremeceu e, sem importar-se com a coerência, murmurou palavras de aprovação e de encorajamento.

A delicadeza das carícias fez Edmund gemer e também refletir que teria de interromper o jogo erótico.

Tarde demais. Não teria força de vontade para tanto.

Cedo demais. Por mais que Ilsa estivesse ansiosa, não estava pronta para o prazer íntimo que ele desejava.

Edmund afastou-a e deitou-a de costas sobre as toalhas espalhadas no chão.

— Ah, eu pensava apenas em agradá-lo. — Ilsa temeu tê-lo chocado ou ofendido com sua intrepidez.

— Eu gostei até demais. — Edmund ajoelhou-se entre as pernas de Ilsa. — Outra hora, quando eu estiver menos empolgado.

Ele notou a pele rosada pela paixão, os mamilos eretos e a respiração arfante. Passou a mão entre as pernas de Ilsa e constatou a umidade convidativa e cálida. Ela estremeceu ao toque do marido. Mesmo com o mundo explodindo em sua cabeça. Edmund ouviu-a gritar e teve consciência do desespero com que Ilsa se agarrava nele.

Passaram alguns minutos deitados juntos. Em seguida Edmund ficou em pé e começou a vestir-se, sem pronunciar uma só palavra.

Ilsa irritou-se. Ele poderia ao menos tentar um diálogo informal que não ameaçasse a trégua imposta.

Ela arregalou os olhos quando Edmund hesitou por alguns segundos e beijou-a no alto da cabeça.

— Não se demore. O jantar será servido logo.

Ele retirou-se, e Ilsa fitou por alguns momentos a porta fechada. Afastou a idéia de atirar alguma coisa no painel maciço. Seria uma tolice.

Era muito mais interessante relembrar aquele beijo breve, porém afetuoso. Fora, na verdade, um fato significativo. Talvez Ilsa Cameron MacEnroy houvesse começado a vencer a batalha pela conquista do coração e da mente de sir Edmund MacEnroy.

Saiu da cama, começou a vestir-se e disse a si mesma para não alimentar demasiadas esperanças. Estavam juntos havia poucos dias. Edmund carregava muitas cicatrizes na alma. Não seria fácil livrar-se delas, abandonar a amargura e voltar a ser confiante. As marcas eram sua defesa contra a dor.

Ilsa pediu a Deus para que não a deixasse com o coração destroçado, na luta que empreenderia para provar ao marido que jamais o faria sofrer.

 

Gillyanne despediu-se de Cearnach e de Finlay com beijos e demonstrações de carinho. Ilsa entristeceu-se com a separação. Conhecera a cunhada havia apenas quinze dias, mas a ligação afetiva tornara-se muito forte e não era apenas por serem casadas com irmãos.

No pátio, tudo estava pronto para a partida de Gillyanne, Connor e Angus. Edmund mostrou-se tão irritado pela insistência de Nanty em não ir embora quanto ficara com a permanência de Sigimor e de Tait. Ele não escondeu desaprovar a necessidade de proteção.

— Terá uma batalha dura pela frente — Gillyanne afirmou para Ilsa. — Eu gostaria de ficar por mais tempo para ajudá-la.

— Eu também gostaria que ficasse, mas não por esse motivo. Tenho de enfrentar sozinha a luta para conquistar a confiança de Edmund.

— Não pretende o amor dele?

— Até sentir que pode confiar em mim, Edmund protegerá seu coração como se fosse o Santo Graal. — Ilsa deu um sorriso imperceptível diante das risadas de Gillyanne. — As feridas deixadas por lady Anabelle ainda estão abertas.

— O comportamento dela era tão insano que às vezes chego a pensar que odiava os homens.

— Isso tem lógica. Acredito que possuísse uma espécie de poder que fazia dos homens uns tolos. Pelo que ouvi contar, os mais empedernidos e resistentes caíam em seu laço, se ela assim o desejasse.

— Espero que a sua estratégia inteligente dê certo.

— Deus a ouça. Mas nem sempre é fácil ignorar acusações injustas. Às vezes tenho vontade de passar um sermão em Edmund ou mesmo dar-lhe umas palmadas na cabeça.

Gillyanne tornou a achar graça, e Ilsa, a sorrir sem vontade. Enfrentar a desconfiança de Edmund era uma tarefa muito mais exaustiva do que alguém poderia supor. Depois de que se tornara esposa dele perante Deus, queria de volta o homem pelo qual se apaixonara. Ansiava pela alegria que os iluminara por tão pouco tempo havia um ano. Apesar de sua determinação e dos planos traçados, Ilsa encontrava-se impaciente. Advertia-se a todo instante que a calma e a perseverança traziam bons resultados. Nada adiantava.

— Não vai demorar para que suas intenções sinceras frutifiquem. Um homem só protege o coração quando acredita que está em perigo. Caso contrário, abaixa o escudo sem hesitar.

Os filhos de Edmund reuniram-se em volta das duas, para despedir-se de Gillyanne.

As palavras da cunhada despertaram a esperança de Ilsa. Não se podia negar a veracidade de seus argumentos. Se Edmund sentisse por ela apenas o desejo natural de um homem por uma mulher, não se mostraria tão insistente em conservar as barreiras que impusera a si mesmo. Edmund se deitaria com ela quando sentisse vontade e continuaria com o ritmo de vida anterior ao casamento. No entanto ele a evitava a todo custo e mantinha-se reservado em sua presença.

As crianças se afastaram e rodearam Fraser. Gillyanne tirou Cearnach dos braços de Gail para a jovem pode auxiliar a governanta. Edmund aproximou-se e Ilsa ficou tensa. O marido raramente chegava perto quando ela carregava os gêmeos. Naquele instante Gregor caiu e começou a chorar. O menino gritava pela mãe, desprezando o consolo de Gail, Fraser e dos irmãos.

Pelo menos os filhos de Edmund a aceitavam, Ilsa considerou. Deixou Finlay nos braços do pai, que não escondeu o assombro, e correu para o lado de Gregor.

Edmund não tirava os olhos do bebê que segurava no colo. O garoto tinha um chumaço de madeixas ruivas no alto da cabeça e olhos azul-escuros. Iguais aos do pai?

Ora que bobagem. Olhos azuis não eram tão raros. O menino, muito bem-humorado, exibiu a gengiva sem dentes, e Edmund retribuiu o sorriso e afagou-lhe os pequenos cachos vermelhos.

— Esse é Finlay — Gillyanne explicou. — Ele é bem mais alegre do que Cearnach e tem uma cicatriz minúscula no braço que o identifica como o primogênito. Sigimor tem uma semelhante. Segundo ele, é tradição marcarem os bebês dessa maneira, ainda mais em uma família onde abundam gêmeos.

— Gilly, acha mesmo que são meus filhos, não é?

— O senhor teria a mesma opinião se os olhasse com atenção ao menos uma vez.

— Nessa época do ano há muito trabalho. Nem mesmo tive tempo de visitar a ala das crianças.

Edmund ignorou o olhar de desalento da cunhada e estremeceu quando Finlay lhe puxou uma mecha de cabelos e a levou à boca. A força do bebê era surpreendente, assim como a expressão de teimosia de quem não pretendia largar o "brinquedo". Edmund acabou tirando da boca de Finlay os fios de cabelos umedecidos. Mas o garoto substituiu-os com grande rapidez pelo cordão do gibão.

— Acha que ele está com fome? — Edmund arregalou os olhos.

— Não. — Gillyanne beijou a testa de Cearnach. — Ele apenas gosta de mastigar objetos. E preciso muito cuidado com isso. Mas os seus outros filhos o vigiam muito bem.

— Outros filhos? Até admito que Ilsa tenha sido minha amante. Mas isso não quer dizer que os filhos sejam meus.

— Eles têm seus olhos.

Edmund pensara a mesma coisa, porém sua obstinação não lhe permitia aceitar o fato.

— Azul é uma cor de olhos bem comum. A certeza de que eles são meus filhos é a mesma que tenho em relação aos outros.

— Ilsa tem razão! Milorde está precisando de uns tapas na cabeça. Se continuar a tratá-la dessa maneira, sua esposa acabará por perder a paciência. E o senhor terá arruinado as perspectivas de um bom casamento.

— E o que a faz pensar que tenho um?

— Acho um contra-senso confiar em quem não merece e não acreditar em quem se deveria confiar. Ilsa não lhe deu o menor motivo para merecer a rudeza com que a vem tratando. Ela tem lhe aquecido a cama e, por favor, não queira enganar-me dizendo que não foi do seu agrado. Ilsa vem se esmerando na administração do castelo, que está melhor a cada dia. Ela o defendeu diante dos irmãos enfurecidos. Ilsa cuida do povo da aldeia e das pessoas que vivem na herdade. E tem o maior carinho por seus filhos como se fossem dela, algo que poucas mulheres fariam. Muito bem, apegue-se às suas dúvidas e suspeitas, mesmo com o risco de um dia acordar sozinho. Acho que, pelo menos, poderia tratá-la com maior cortesia.

Ilsa aproximou-se e Edmund não chegou a responder. Arrancou o cordão da boca do menino e devolveu-lhe o garoto.

— Pegue seu filho. Tenho mais o que fazer do que bancar a ama-seca.

— Gillyanne, poderia ficar um pouco com Finlay? — Ilsa perguntou com toda a calma.

— Claro. — Gillyanne balançou os dois bebês nos quadris. Estupefato, Edmund viu Ilsa erguer um punho fechado. A força do golpe no queixo o fez cambalear para trás. Tropeçou sobre o chão em desnível e caiu sentado.

— Obrigada, Gillyanne. — Com a mesma tranqüilidade anterior, Ilsa pegou os gêmeos e acomodou-os na cintura, como a cunhada fizera. — Desejo-lhe uma boa viagem e, por favor, mande avisar-me quando o bebê nascer.

Ilsa beijou Gillyanne no rosto e voltou ao castelo.

Edmund esfregou o queixo e fitou os que haviam se reunido ao redor dele. Seus irmãos, os de Ilsa, seus filhos, Gail, Fraser e Gillyanne. Por trás da roda, outros esticavam o pescoço para ver o espetáculo. As mulheres fitavam-no com asco. As crianças, com curiosidade. Os irmãos e os cunhados, com semblante divertido que o desagradou profundamente. Levantou-se e tirou a poeira da roupa.

— Disse algum insulto ou se comportou com ignorância? — Connor perguntou com ironia.

— Por acaso não está atrasado? — Edmund resmungou.

Connor segurou Gillyanne pelos ombros e ajudou-a a subir na carroça que a aguardava.

— Acabei de crer que não foi só a memória que o está faltando. Deve ter perdido também o pouco que possuía de boas maneiras.

Edmund não respondeu, ciente de que merecia a reprimenda. Depois que os MacEnroy partiram, Gail e Fraser levaram as crianças para dentro. Sigimor e Tait foram até a estrebaria e avisaram Nanty de que trariam o cavalo dele.

— Aonde é que os senhores três pretendem ir? — Edmund perguntou a Nanty, que estava com o cenho franzido.

— Caçar.

— Temos estoque suficiente de carne.

— Não é esse tipo de caça. Queremos descobrir o autor da agressão e o porquê, e se ainda existe alguma ameaça. Agora, se continuar agindo como um idiota, o número de seus inimigos poderá triplicar depressa. E ainda poderá levar um belo golpe na virilha, desferido por alguém possuidor de um pequeno cotovelo pontiagudo.

— Ilsa tem um péssimo temperamento.

— Pois eu acho que o mesmo se deve à sua maestria em despertá-lo. A sua teimosia poderá custar-lhe uma esposa excelente muito em breve. Só espero que os Cameron e eu possamos encontrar o verdadeiro inimigo, antes de Ilsa tornar-se um deles.

Edmund refletiu em ciúme e traição ao ver Nanty cavalgar para fora de Clachthrom ao lado dos Cameron. Embora com opiniões divergentes das suas, Nanty poderia ao menos manter-se atento aos irmãos de Ilsa. Admitiu, com relutância, que chegava a invejar a amizade de Nanty com eles. Depois do fracasso de seu casamento anterior, reconheceu ter se tornado um sujeito solitário.

Anabelle o isolara, embora de maneira não intencional. Suas tentativas de seduzir os cunhados fizeram com que os irmãos se afastassem de Clachthrom. Ele procurava não viajar com Anabelle, pois ela o envergonhava. Sair sozinho e deixá-la no castelo era uma situação ainda pior. Edmund compreendeu que se tornara um homem amargo e irritadiço, uma péssima companhia. A quantidade de homens que haviam passado pelo leito de Anabelle era grande e a maioria deles evitava a companhia do marido e senhor a quem traíam.

Teria de livrar-se das imagens de Anabelle e das conseqüências de seu comportamento ignóbil, Edmund refletiu, voltou-se, mas não chegou a entrar no castelo.

O pequeno Odo, com as mãos na cintura, aguardava o pai com a minúscula testa franzida. Edmund teve de reconhecer que, desde a chegada de Ilsa, via muito mais seus filhos. Pôs as mãos para trás e encarou o olhar beligerante do garoto.

— Acho que não deveria andar sozinho por aí, meu rapaz.

— Tia Fraser deixou que eu viesse até aqui. Mamãe e tia Gail estão ocupadas no solar, e tia Fraser ficou tomando conta do nosso descanso. Os outros estão dormindo, mas eu precisava falar com o senhor.

— Sim, e o que gostaria de dizer-me?

— O que o senhor fez para que mamãe lhe batesse? O senhor foi mau?

Ao notar os punhos fechados do garoto, Edmund pensou em culpar Ilsa por ter feito dele um inimigo perante os filhos. Mas seu senso inato de justiça fez com que afastasse aquela idéia.

Ele era um estranho para as crianças, sempre largadas aos cuidados de outros. Ilsa não só assumira o papel de mãe, como também gostava sinceramente de todos.

— Veio até aqui para defendê-la, Odo?

— Sim. Ela é minha mãe. Nós nunca tivemos uma. Se o senhor for cruel com ela, mamãe poderá ir embora.

— Aceito a reprimenda, mas os adultos às vezes ficam irritados uns com os outros. Isso não quer dizer que Ilsa nos deixará. Quer que ela permaneça em Clachthrom, não é?

— Eu quero. — Odo anuiu com gestos enérgicos da cabeça. — Ela é mãe de verdade. Conversa com a gente, brinca com todos, conta histórias e... nos dá muitos beijos. Eu não quero que ela saia daqui. De jeito nenhum. Quero que ela fique — Odo assumiu uma expressão de mártir —, mesmo se for para não me beijar mais.

Edmund teve de esforçar-se para não rir.

— Ilsa não pensa em partir. Ela é minha esposa. — Edmund pôs a mão no ombro do filho e sentiu um impulso estranho de segurar-lhe a mãozinha. — Vamos. Eu o levarei de volta ao dormitório das crianças. Por que nunca considerou a sra. Fraser sua mãe?

— Por que ela sempre disse que era nossa ama-seca. Agora ela é nossa tia.

Edmund compreendia bem a atitude exemplar de Fraser. Ela não desejara criar-lhe problemas, caso ele voltasse a casar-se. Em relação a Margaret, a providência teria sido inútil. A jovem Campbell jamais haveria de incomodar-se nem que Fraser sumisse com as crianças, quanto mais se chamassem a babá de mãe.

Sabendo que Margaret não seria uma madrasta zelosa, Edmund perguntou a si mesmo por que decidira casar-se com ela, se procurava uma mãe para seus filhos.

Ilsa fora jogada ao encontro dele, com alegações de um relacionamento passado e promessas das quais não se recordava. Mesmo assim, estava provando ser uma mãe excelente para filhos alheios. Na verdade, ele não poderia ter escolhido melhor.

Ilsa não o censurava diante dos filhos, nem descontava neles a raiva que sentia pelo pai. Embora recriminasse a devassidão que lhes dera origem, dispensava-lhes o mesmo carinho devido aos gêmeos. A despeito de todos os problemas que Ilsa e ele enfrentavam, sem querer conseguira o que vinha procurando: uma verdadeira mãe para seus filhos.

Edmund entrou na ala das crianças e soltou a mão de Odo. O recinto apresentava modificações. Fraser sempre o conservara confortável e limpo, mas com certa severidade. Ilsa vinha impondo a sua presença. Embora fosse difícil especificar as modificações—exceto alguns almofadões, bancos e tapeçarias —, o ambiente tornara-se mais alegre, convidativo e suave.

Apesar de advertir a si mesmo para voltar ao trabalho, Edmund aproximou-se dos gêmeos. Eles estavam deitados de costas em um catre ao lado da poltrona de Fraser, sonolentos, mas de olhos abertos. Um deles fitou-o e sorriu. Devia ser Finlay. Cearnach dava mostras de ser mais cauteloso. Embora fosse urna idiotice creditar tais atributos a crianças tão pequenas, Edmund manteve sua impressão.

Como também não pôde ignorar os olhos grandes, parecidos com os seus. Edmund ajoelhou-se, acariciou os cachos de Finlay e resignou-se quando o bebê lhe agarrou um dos dedos e levou-o à boca. Odo sentou-se no colo de Fraser, e ambos fitavam-no, embevecidos.

— Vá deitar-se, Odo — Fraser pediu, beijou o menino e indicou a cama do outro lado do quarto. — Espero que Odo não o tenha perturbado muito, meu senhor.

— Não poderei culpá-lo pelos motivos que o levaram a procurar-me. — Edmund fitou os gêmeos, que seguiam a conversa com o olhar. — São crianças ótimas, apesar de Finlay enxergar tudo o que o rodeia como alimento.

— São mesmo. Inteligentes e fortes. Ainda duvida que sejam seus filhos?

— Às vezes penso se algum deles — Edmund fitou a prole — é meu de verdade. Acha que são, não é?

— Creio que sim, meu senhor. Em sua maioria, as mulheres, mesmo as de vida fácil, sabem quem gerou os filhos delas. Nem todas são devassas como Anabelle foi e têm uma grande probabilidade de acertar. Estou mais do que convencida de que estes dois meninos também são seus filhos.

Finlay adormeceu. Edmund tirou o dedo da boca da criança e levantou-se.

— Talvez esteja certa. Quanto aos outros, receio que as mães tivessem os mesmo motivos de Anabelle para duvidar.

— Quem é que poderá ter certeza? Somente lady Ilsa não tem nenhuma semelhança com as mulheres às quais estamos nos referindo. Meu senhor sabe disso tão bem quanto eu.

— O que a leva a fazer uma afirmação tão categórica?

— A convivência com uma daquela laia, senhor.

— Eu sei. Vivi com uma.

— Se me permite a pergunta, senhor, quais as lições aprendidas depois de tanto sofrimento?

— Que não se deve confiar em nenhuma jovem, principalmente nas que despertam meu desejo.

— Era o que eu temia. — Fraser suspirou. — Meu senhor culpa todas pelos pecados de uma.

Edmund bateu em retirada de maneira covarde. Fraser não lhe dera alternativa. Ela o fazia sentir-se uma criança idiota, embora não fosse tão mais velha de que ele. Além disso, Fraser tinha um jeito especial de arrancar a verdade do coração de uma pessoa. O seu estava imerso em sentimentos conflituosos. Seria melhor que ninguém os descobrisse.

Edmund fechou a porta de seu gabinete e serviu-se de uma caneca de vinho. Sentou-se na cadeira de espaldar alto, ao lado do fogo que crepitava. Demorou alguns segundos para perceber que havia mais conforto de que o habitual. Era por causa de uma almofada fofa no assento e de uma pele de ovelha jogada no encosto. Observou as outras cadeiras. Haviam recebido inovação idêntica.

Não satisfeita em alterar o resto do castelo, Ilsa entrara em seu santuário. Edmund perguntou a si mesmo se ela passara a infância depenando os gansos da Escócia para fazer travesseiros e se naquela altura dedicava-se a esfolar ovelhas.

Edmund largou-se na cadeira, mal-humorado. Reconheceu irracionalidade na sua irritação. Tudo fora feito para melhorar a beleza e a comodidade. As almofadas bordadas eram uma verdadeira obra de arte.

Que petulância queixar-se! Afinal, era tarefa da mulher tornar o lar mais convidativo e elegante. Como ele passava grande parte do tempo no quarto, não podia imaginar quando Ilsa fizera aquelas modificações.

Notou uma tapeçaria pendurada sobre a lareira, outra atrás da mesa e mais uma ao lado da porta.

Onde Ilsa achara tudo aquilo? Ela nem mesmo viera com tantas arcas na bagagem.

— Entre — Edmund respondeu a uma batida na porta. Geordie, um de seus homens de confiança, entrou o olhou ao redor, admirado.

— Mas que beleza, sir Edmund! Na verdade, o castelo inteiro está ficando muito bonito.

— Minha esposa tem se ocupado em fazer modificações por aqui. Eu só gostaria de saber de onde ela trouxe tudo isso.

— Ah, de um depósito que fica nos calabouços. Na parte subterrânea, há um labirinto de salas e passagens. Lady Ilsa quis passear por lá e acabou descobrindo um verdadeiro tesouro.

— Não me lembro de ter ouvido menção a isso.

— Nós pensávamos que soubesse do fato, sir Edmund. Nunca tocamos em nada do que foi reunido por seu tio. Há uma infinidade de objetos admiráveis, raros e valiosos que jamais foram usados. Tenho a impressão de que ele gostava de coisas bonitas, mas não sabia o que fazer com elas. Seu tio deve ter sido um homem muito rico.

Ou talvez ele tivesse sido, se não houvesse desperdiçado o dinheiro em coisas que não poderia usar. Edmund sentiu de novo a revolta ao lembrar-se do pouco que seu tio ajudara Connor a cuidar da família e do clã, e na reconstrução de Deilcladach depois da guerra.

Seu tio acumulara riquezas, enquanto Connor e a família lutavam contra a fome. O tio não desejava que eles sobrevivessem. Por isso nunca trouxera a família para Clachthrom. Um deles poderia descobrir sua riqueza, e todos passariam a suspeitar dele.

— Acha que ele foi um ladrão?

— Quem é que sabe? Os que viveram naquele tempo dizem que foi mesmo um desperdício de dinheiro com inutilidades. Lady Ilsa descobriu as peças raras quando se interessou em saber se havia objetos de decoração descartados que pudesse ter outro uso. Ela também fez uma pesquisa nos aposentos de lady Anabelle. Sua falecida esposa também armazenava muitos objetos de valor.

Edmund terminou de beber o vinho e pediu a Geordie que o levasse para conhecer o tesouro do tio. Atônito, acompanhou o passeio a dois enormes recintos subterrâneos lotados de tesouros de grande valor. Edmund jamais suspeitara de que houvesse tantas riquezas no castelo. Ele herdara a fortuna do tio. Se pudesse esquecer o ódio que sentia por seu parente, ficaria satisfeito.

— Com tudo isso, Clachthrom acabará por tornar-se um palácio real. — Edmund encantou-se com a coleção de tapeçarias.

— Acredito que lady Ilsa pensou o mesmo, sir Edmund. Por que não estava tão aborrecido como deveria? Afinal Ilsa avançava gradualmente por trás de seus escudos e ameaçava derrubar as barreiras com a paixão, com o amor às crianças e ao seu lar.

Se ele não tomasse cuidado, poderia acordar um dia embriagado de amor.

O que mais o aterrorizava era a facilidade com que Ilsa minava as bases de seus propósitos.

 

Ilsa olhou para trás e sorriu. Odo, Ivy e Aulay caminhavam atrás dela em linha reta como pequenos soldados. Alice, tristonha, aceitara os argumentos de que crianças com menos de cinco anos eram muito pequenas para andar pela mata.

Pouca coisa mudara desde a partida de Gillyanne, Connor e Angus, havia uma semana. Sigimor, Tait e Nanty continuavam na busca incessante do inimigo. Edmund distanciava-se cada vez mais. À noite, era um amante apaixonado. Durante o dia, um estranho. Ilsa não sabia por quanto tempo poderia agüentar a situação. As tentativas de conseguir o afeto e o respeito do marido começavam a lembrar uma autoflagelação.

Em que altura se localizava o tênue limite entre paciência e humilhação?

Ilsa resolveu esquecer as tristezas e aproveitar o dia. A colina rochosa pela qual pretendiam subir não era muito alta e havia até uma trilha para facilitar o passeio. Não tinha a intenção de alcançar o alto, e as crianças subiriam até a caverna com facilidade.

Tom, um dês guardas, era um rapaz magro de dezessete anos e viera com eles puxando o pônei pelo cabresto. Bom guardião e muito confiável, Tom sempre se mostrara paciente com os filhos de Edmund.

— Meninos, agora vamos escalar a colina — Ilsa avisou as crianças.

— Para quê? — Ivy pareceu não gostar do obstáculo à frente deles.

— Lá em cima há uma pequena caverna. — Ilsa percebeu o interesse dos meninos. — Estou interessada nas pedras que existem por lá.

— Não sei por que carregar pedaços de rocha daqui — Tom murmurou. — Em Clachthrom podemos escolher à vontade...

— Eu as tenho usado, mas não são as que quero para fazer os caminhos no jardim. É difícil de explicar, Tom. Era preciso que tivesse visto os jardins que conheci. Nosso pároco tinha um pátio maravilhoso. Até os canteiros de ervas e vegetais eram lindos.

— Esse sacerdote foi o que morreu na cama...

Ilsa interrompeu-o. Não queria falar sobre um assunto pouco digno na frente das crianças.

— Isso mesmo. Os jardins eram muito organizados e os canteiros, bem definidos. Em meio à grande exuberância, havia belos caminhos de pedra.

— Hum, deviam ser mesmo bonitos. — Tom tirou os sacos do lombo do animal e amarrou o pônei a uma árvore. Distribuiu os sacos de aniagem entre Ilsa e as crianças. — Não os encham demais, para não ficarem muito pesados.

— Para cima, auxiliares valorosos! — Ilsa entusiasmou-os, e começou a subida na frente deles. — Prestem atenção por onde andam.

— E se nós cairmos? — Ivy amedrontou-se.

— Tom virá atrás para amparar-nos.

— Há dragões na caverna?

— Que bobagem — Aulay fez pouco caso. — Essas coisas não existem.

— Claro que existem — Ivy afirmou. — Odo me disse. Ele falou que esses bichos fazem barulhos esquisitos durante a noite e têm um bafo fedorento. Odo sabe disso porque o dragão sempre chega perto da cama dele.

Ilsa crescera em meio a meninos de todas as idades e sabia muito bem o que eram aqueles barulhos e cheiros. Conteve o riso e fitou Odo. Corado, ele fez uma careta, denunciando o diabrete que era. Aulay e Tom olhavam para os lados e disfarçavam as risadas. Odo tinha inteligência superior à esperada para a sua faixa etária, mas, felizmente, nenhum indício de maldade.

— Muito bem, teremos de descobrir por que o dragão vai com tanta freqüência ao dormitório das crianças. — Ilsa olhou para o alto. — Então poderemos ficar livres dele.

Não demorou para chegarem à gruta e Ilsa instruiu o grupo sobre quais tipos de pedras teriam de recolher. A saliência em frente à caverna estava forrada delas. Ilsa entrou na grande cavidade, seguida pelas crianças e por Tom. O rapaz examinou tudo, acendeu uma pequena fogueira e saiu. Odo seguiu-o. Aulay e Ivy ajudaram Ilsa a selecionar o que lhe interessava no solo da gruta.

Entretida nas pesquisas, Ilsa assustou-se com um barulho forte que lhe pareceu um deslizamento. Olhou para cima e nada constatou. Apesar disso, resolveu que seria melhor abandonar o local por precaução. Nisso, um ruído muito mais violento ecoou pela caverna.

O grito de advertência de Tom soou quando os primeiros pedaços de rocha começaram a cair. Ilsa agarrou Aulay e Ivy, afastou-os da entrada e cobriu-os com o próprio corpo. Rezou para que as pedras de todos os tamanhos que despencavam não atingissem Odo e Tom.

Depois veio o silêncio. Ilsa esperou um pouco antes de fazer um movimento. Percebeu umidade no rosto. Passou a mão para limpar e, apesar da obscuridade, reconheceu sangue em seus dedos. Sentiu ardor nos braços e nas costas. Deviam ser ferimentos. Na ânsia de proteger as crianças, nem percebera que fora atingida por pedras. Ao notar a boca da gruta totalmente bloqueada, concluiu que seus ferimentos seriam o menor dos problemas.

— Nossa, que pedras enormes — Ivy comentou, com voz chorosa.

Grandes demais para Ilsa conseguir removê-las.

— São mesmo, minha querida.

— Mamãe! Mamãe!

— Odo! Você está bem, meu filho?

— Estou, mamãe, mas Tom está coberto pelas rochas. Acho que morreu.

— Fiquem aí — Ilsa ordenou às duas crianças assustadas e foi em direção à entrada.

A voz de Odo estava trêmula de pavor. Ilsa sabia que era arriscado, mas tirou as pedras com cautela até abrir uma fenda pequena no alto. Viu Odo espiando para dentro e suspirou, aliviada. Embora sujo, não parecia ferido. Esperava que ele estivesse em cima de algo estável.

— Está ferido, Odo? — Ilsa só via o rosto dele.

— Não. Tom ficou em cima de mim. Quando as pedras pararam de cair, eu saí debaixo dele. Mamãe, ele não está se mexendo.

— Meu querido, isso não quer dizer que esteja morto.

— Preciso tirar os escombros de cima dele?

— Não, amor. Nós não conseguiríamos ajudá-lo. Talvez até piorássemos a situação dele. Agora, terá de demonstrar que é mesmo um rapaz corajoso e inteligente.

— Está bem. — Odo esfregou o rosto e borrou a sujeira das faces com as lágrimas.

— Odo, meu querido, precisa ir buscar ajuda para seu irmão, sua irmã e para Tom.

— Para a senhora também, mamãe. Mas como vou deixar Tom?

— Odo, terá de endurecer seu coração de guerreiro e fazer o que tem de ser feito. É preciso voltar a Clachthrom e trazer alguns homens fortes para cá. É a única maneira de ajudar-nos. Sabe voltar sozinho para o castelo?

— Sei. Plodding também sabe.

— Muito bem. Faça o seguinte. Desça a trilha com muito cuidado, monte em Plodding e vá até Clachthrom. Conte o que aconteceu e explique que Tom está ferido. Pode fazer isso, meu cavaleiro corajoso?

— Posso, sim.

— Vá com muito cuidado — Ilsa repetiu a recomendação. — Terá de alcançar Clachthrom são e salvo.

— Pode deixar, mamãe. Fique tranqüila.

Ilsa ficou atenta à descida do menino. Depois, nada mais pôde perceber. Voltou até o fundo da caverna, sentou-se ao lado de Aulay e Ivy, abraçou-os e conservou-se de olhar fixo na fresta da entrada. O resgate deles dependia de um menino assustado de cinco anos. Pediu a Deus para que não houvesse exigido demais do garoto, mesmo sem ter outra escolha.

— Odo nos salvará, mamãe — Ivy garantiu. — Odo é muito corajoso e esperto.

Aulay concordou com acenos de cabeça. Os dois haviam se acalmado por ter fé absoluta no irmão, apesar dos três terem apenas cinco anos.

Edmund franziu a testa ao ver Fraser empalidecer. Ela estava de olhar fixo por cima do ombro dele.

Edmund a encontrara saindo do estábulo com Alice, Ewart e Gregor, onde fora mostrar-lhes os gatinhos. Na última quinzena, ele procurara aproximar-se dos filhos e conhecê-los melhor. Não tinha sido muito fácil, mas o esforço valera a pena. No momento, encantava-se com a conversa sobre gatos recém-nascidos. E, de repente, Fraser parecia ter visto um fantasma.

— Está passando mal, Fraser?

— Odo... — ela sussurrou e começou a caminhar rumo aos portões do castelo.

Edmund voltou-se e, espantado, acompanhou Fraser a passos largos.

— Fraser, eu não dei permissão para ele cavalgar sozinho!

— Odo saiu com Tom, Ilsa, Aulay e Ivy.

Edmund sentiu um calafrio. Correu até o pônei e tomou Odo nos braços. Temeu pelos filhos, mas pensou primeiro em Ilsa. E havia várias razões para isso. Nenhuma delas muito boa. Uma lembrava a fraqueza que procurava ignorar e que teria de restabelecer, assim que o problema fosse resolvido. Outra, que os Cameron ainda não estavam livres de todas as suspeitas.

— O que houve, Odo? — Edmund comoveu-se diante da espontaneidade com que o menino se agarrou nele.

— As rochas caíram. Mamãe, Aulay e Ivy estão presos na caverna, e Tom está debaixo de um monte de pedras.

— Ilsa e as crianças estão feridas?

— Não. Eles só não podem sair. A entrada foi tampada por pedras muito grandes.

— Odo, como conseguiu sair? — Fraser perguntou, depois de Edmund colocar o menino no chão e começar a gritar ordens.

— Quando a avalancha começou, eu estava do lado de fora com Tom. Ele me cobriu e tudo caiu em cima dele. Então eu rastejei para fora e chamei a mamãe. Ela fez um buraco para me ver. Subi em cima de uma pedra e ela me disse que ninguém estava ferido. Mamãe pediu para eu vir buscar ajuda.

— Fez um belo trabalho, rapaz. — Edmund desmanchou os cachos do menino. — Um ótimo exemplo para seus irmãos.

Nanty, Sigimor e Tait entraram no pátio, depois de mais uma das inúmeras investigações levadas a efeito atrás do inimigo.

— O que houve? — Sigimor fitou Odo, Fraser e Edmund.

— Um deslizamento de rocha prendeu sua irmã e dois de meus filhos na caverna. — Edmund pulou no cavalo que Peter, o cavalariço, trouxera. — Vamos atrás deles.

— Ainda bem que voltamos na hora.

— Quero ir junto. — Odo ergueu os braços para o pai. — Preciso mostrar ao senhor onde eles estão.

Edmund conhecia o local da caverna, mas Odo ganhara o direito de auxiliar no resgate. Abaixou-se, suspendeu o garoto e sentou-o na sela à sua frente. Acabou por irritar-se pelo tanto que lhe agradou o sorriso de aprovação de Fraser.

Cavalgando na frente do grupo que saía de Clachthrom, Edmund permitiu a Odo apontar o caminho. Apesar de sua pouca idade, o menino revelava um extraordinário senso de direção e uma observância acurada das marcas indicativas do trajeto. Edmund admitiu um certo orgulho e disse a si mesmo que, apesar das dúvidas ocasionais sobre a paternidade, ele aceitara os filhos como seus. Lembrou-se da mãe de Odo e alegrou-se por ela ter entregue o bebê aos seus cuidados. Embora fosse bastardo, Odo teria uma vida melhor que se houvesse ficado ao lado dela.

Quando chegaram perto da colina, Edmund viu os sinais do deslizamento. Inquieto, lembrou-se de ter vindo ali havia uma semana. Nada o fizera suspeitar de solo instável. Também não era época de chuvas pesadas que poderiam deslocar a terra sob as pedras. No entanto não imaginava como uma pessoa poderia causar tal acidente. Havia maneiras mais fáceis e certeiras de ver-se livre de alguém.

Desmontou, lembrou a si mesmo que o momento não era propício para cálculos hipotéticos e ajudou Odo a também desmontar. Reconhecia ter motivos para desconfiança, mas também que não havia necessidade de ver ameaças onde elas não existiam. Não desejava tornar-se um camarada infeliz que via um assassino atrás de cada árvore.

— Diga-nos onde é, Odo. Ilsa e os outros devem estar ansioso para voltar para casa.

— Mamãe! Mamãe! É Odo! Eu trouxe ajuda!

Ao ouvir a voz do garoto, Ilsa fez uma prece e foi até a abertura. A volta de Odo demorara bastante e abalara a confiança de Aulay e Ivy no irmão. E talvez a dela mesma. Espiou pela fresta e encontrou o olhar de Sigimor.

— Posso saber o que a senhora estava fazendo aqui?

— Escolhendo pedras para os caminhos do jardim.

— Hum. — Sigimor fitou a quantidade enorme delas que os candidatos a alpinistas haviam separado. — Pois eu duvido que se possa andar sobre esses pedregulhos.

Aulay e Ivy acharam graça, mas Ilsa detestou a ironia.

— Muito esperto, meu irmão. E Tom?

— Estava acordando quando chegamos. Pelos movimentos e pelo praguejar que ouvi enquanto tirávamos o entulho de cima dele, acredito que deve ter apenas contusões leves.

— Graças a Deus. E Odo? Não pude vê-lo direito. A abertura é muito pequena.

— Está apenas sujo, nada mais. Ah, seu encantador marido vem se aproximando.

Ilsa não teve tempo para pensar, e o olhar de Sigimor foi substituído pelo de Edmund. Nem era preciso vê-lo para saber que estava furioso. O olhar abrasador era suficiente para fundir a rocha. Ela suspirou.

Mesmo se ele não encontrasse motivos para culpá-la, Ilsa desconfiou que ficaria sem o pouco de liberdade que lhe fora concedida.

— Mas o que diabo está fazendo aqui? — Edmund perguntou, sem saber o que o aborrecia mais, se o perigo no qual Ilsa se metera ou o fato de estar preocupado com ela.

— Esperando alguns camaradas fortes para tirar-nos daqui.

— Ela estava procurando pedras — Sigimor explicou. Mesmo sem ver o irmão, Ilsa teve certeza de que ele sorria de modo irônico. E percebeu que Edmund fitava os pedaços de rocha que fechavam a entrada.

— Não estas. As pequenas. São para fazer trilhas bonitas entre os canteiros.

Edmund fitou-a como se ela fosse completamente louca, e Ilsa não gostou da avaliação. O planejamento para um jardim era um item muito além do entendimento de um homem. Na certa, Edmund achava tudo uma idiotice. E depois do que acontecera, seria preciso muito tempo para que ela juntasse os pedriscos necessários para terminar o jardim e mostrar o valor de seu trabalho.

— Será melhor afastar-se e proteger a cabeça de outro golpe, enquanto desobstruímos a entrada — Edmund avisou-a.

Ilsa obedeceu e recuou com as crianças, aborrecida com a alusão à sua falta de juízo.

Se pudesse, ela atiraria uma pedra na cabeça de Edmund e de Sigimor, dois intrometidos.

Quando a abertura atingiu tamanho suficiente, Ilsa passou as crianças, apagou o fogo, juntou os sacos quase cheios e estendeu-os para fora. Ela mesma começou a sair. e Edmund quase a arrancou pelo buraco, impaciente ao extremo. Sigimor abraçou-a pelo ombro, e Ilsa, carente, encostou-se no irmão.

— Minha querida, vejo que também está machucada. — Sigimor segurou-a pelo queixo e examinou-lhe o rosto.

— Pedriscos menores voaram para dentro da gruta. — Ilsa sentia forte ardor nos locais em que fora atingida. — Onde está Tom?

— Em uma maca improvisada, de volta a Clachthrom. — Edmund respondeu, aborrecido por não ser ele a confortar Ilsa. — Não vi nele nenhum ferimento mais grave e nada quebrado.

— Levará uns dois dias para se recuperar. A senhora também precisa de alguns curativos. — Franziu a testa para os sacos cheios de pedregulhos que Ilsa pusera do lado de fora. — Espera que levemos isso até Clachthrom? — Aumentou a carranca ao ver Odo trazer mais dois.

Ilsa ignorou a pergunta e sorriu para Odo.

— Meu bravo cavaleiro, seu desempenho foi maravilhoso.

— Obrigado, mamãe. — Odo franziu o nariz. — A senhora está machucada. — Fitou Edmund. — Temos de levá-la para casa. Fraser cuidará dela. Mamãe está com sangue.

— Uma boa idéia, meu rapaz — Sigimor aprovou e começou a descer a ladeira, com um braço na cintura de Ilsa.

— Sou eu que terei de levar isso de volta?

— Papai, tivemos muito trabalho para pegá-las — Ivy alegou, muito séria. — Queremos ajudar a fazer um jardim bonito.

Edmund atirou um saco para Tait. Outro para Peter e desceu carregando três. Peter e Tait seguiram-no, de olhar atento às crianças. Chegaram perto dos cavalos e Sigimor sentou Ilsa à sua frente. Edmund alcançou-os, jogou os sacos para Nanty e ignorou o olhar de surpresa do irmão. Tait foi com Ivy, e Peter, com Aulay. Em vez de voltar com Ilsa, Edmund teve de levar Odo.

Muito justo. Odo era o herói do dia.

Ao chegarem ao castelo, Ilsa e as crianças foram socorridas por Gail e Fraser. Edmund providenciou um atendimento correto para Tom e foi conversar com Nanty, Sigimor e Tait no grande hall. Serviu-se de cerveja, pão e queijo. Os outros três, muito quietos, limitavam-se a encará-lo.

— Não gostariam de dizer mais alguma coisa? Todos foram salvos, os ferimentos não foram graves. Um final feliz, não é mesmo?

— Pode-se dizer que sim — Tait filosofou. — Entretanto não posso livrar-me da idéia de que não foi tão simples assim. Olhei em volta e não encontrei motivos aparentes para um deslizamento. Também não notei indícios de que tenha sido provocado por um ser humano. O que realmente me incomoda é a falta de algum sinal.

— Pedras deslizam sempre.

Edmund admitiu que se alegrava por mais alguém partilhar de suas idéias. Só gostaria que não fosse um Cameron. O incidente enfraquecia bastante a premissa de que eles poderiam ser seus inimigos. Os Cameron não exporiam a irmã nem as crianças a um risco. Sem a menor sombra de dúvida. Até a possibilidade de eles terem preparado uma artimanha para conseguir um marido para a irmã perdia a importância.

— Como alguém poderia ter feito isso? — Nanty perguntou. — Seria preciso um planejamento.

— Muitos sabiam do passeio de Ilsa. Não era segredo — Tait comentou. — Não seria difícil para alguém preparar o acidente para o momento em que ela entrasse na gruta. Ilsa já esteve lá antes e falava muito do lugar. Bastaria soltar algumas pedras e dar um leve empurrão. Uma avalancha inevitável.

— Por que alguém pretenderia atingir minha esposa e meus filhos? Se estou certo de que tenho um inimigo, então eu seria o alvo, e não Ilsa.

Tait deu de ombros.

— Não é um fato incomum um camarada atingir os que são próximos ao inimigo. Até descobrirmos a verdade, não posso rotular esse acidente como obra do acaso.

— Bastante razoável. Ilsa e as crianças devem ser vigiadas até que tenhamos repostas coerentes. Os senhores têm alguma?

— Não — Nanty respondeu. — Eliminamos um grande número de pessoas que não poderiam ser culpadas. O que praticamente exclui Clachthrom. Wallace fala muito mas não age. Cão que ladra não morde. Tivemos uma conversa com ele a respeito das calúnias que anda espalhando. Sigimor foi convincente ao fazer o tolo entender que é uma sorte ele estar respirando, depois de ter traído o seu senhor. Começo a pensar que estamos olhando na direção errada.

Edmund deu de ombros, desanimado.

— Continuaremos as buscas até vermos uma luz no final do túnel — Sigimor afirmou. — Isso poderá acontecer quando descobrirmos quem controla as terras onde o senhor foi atacado.

— Eu já começo a imaginar se não estamos atrás de algum produto da imaginação.

Edmund considerou a possibilidade e sacudiu a cabeça.

— Nada disso. Alguém me quer morto. A agressão em Muirladen não foi um simples roubo.

— Tem se lembrado de alguma coisa?

— Parece-me ter escutado uma voz dura ordenando para verificar se eu estava morto, caso contrário não receberiam a recompensa. Do que se presume que possam ser pessoas contratadas.

— Isso mesmo — Sigimor concordou. — O que me convence ainda mais de que as respostas estão em Muirladen. Darei mais quinze dias para a minha família encontrá-las ou, pelo menos, demonstrar que estão fazendo progressos. Se nada for descoberto, Tait e eu iremos até lá. Até que tudo seja esclarecido, reconheço como decisão acertada querer proteger Ilsa e as crianças. Se o episódio de hoje não foi um acidente, Edmund, então o inimigo voltou-se contra sua família. Será ótimo quando puder lembrar-se por que estava passando pelas nossas terras. — Acha que já não pensei nisso milhares de vezes? Concordo com o senhor. Acredito que lá poderei encontrar a solução.

 

Deitada na cama e coberta apenas pelo lençol, Ilsa observava o marido fazer as abluções e vestir-se. Era sempre um prazer inenarrável vê-lo movimentar-se e admirar-lhe o físico musculoso. Suspirou de maneira discreta.

O que mais a entristecia era estar cada vez mais apaixonada, apesar dos esforços em contrário. Edmund, por outro lado, parecia ter revestido o coração com o mais fino aço espanhol.

No entanto Ilsa se apegava a um raio de esperança, embora advertisse a si mesma por tamanha imprudência. Desde o acidente na caverna, havia duas semanas, Edmund não a tratava mais como uma ameaça. Também já não se portava com grande distanciamento e frieza fora do leito conjugal. Alguns comentários murmurados ocasionalmente eram evidências de que ele ainda duvidava do bendito contrato nupcial. Porém muitas atitudes indicavam que não somente passara a aceitá-la como esposa, mas também aos gêmeos como filhos.

Edmund parou ao lado da cama, com as mãos nos quadris. Ilsa rezou para que não fosse para romper a trégua da qual partilhavam ali dentro. Naquela manhã, imersa em idéias melancólicas, não saberia revidar os ataques à altura nem defender-se como deveria.

— Eu estava pensando em levar Aulay e Odo comigo hoje.

— Para onde?

Ilsa arrependeu-se de imediato da pergunta que fizera. Aulay e Odo eram filhos dele e Edmund tinha o direito de levá-los para onde quisesse.

— Cavalgar um pouco pelos campos. — Ele deu de ombros. — Para fazer a marcação do gado, inspecionar as plantações, falar com a minha gente. Aulay e Odo podem não ser meus herdeiros, mas são meus filhos e fazem parte do clã.

— Esse passeio será seguro para eles?

Edmund já esperava essa preocupação por parte dela. Por isso lhe comunicara suas intenções, embora não necessitasse fazê-lo. Independente do que pensava a respeito de Ilsa, conformara-se com a sua posição não só como madrasta, mas sobretudo como mãe de seus filhos. Supôs que devesse refletir em como o aceite e o carinho de Ilsa pelas crianças contradiziam suas opiniões anteriores.

— Não se preocupe, iremos com alguns homens de confiança. Há muito não tenho saído sozinho. — Edmund deu-lhe um beijo suave antes de sair. — Eles estarão bem protegidos.

Ilsa virou-se de um lado para outro, sem saber no que pensar. Edmund dera-lhe satisfações a respeito das crianças, coisa que nunca fizera antes.

Passara a acatá-la como mãe dos filhos dele ou teria a mesma atitude com Fraser, se não tivesse uma esposa? Não ousou pensar em resposta favorável.

Saiu da cama, lavou-se e vestiu-se. Sua pele trazia algumas marcas do acidente, mas nada de assustador. Tom se recuperara rapidamente e havia quinze dias a paz reinava naquele lar. Seria uma bobagem preocupar-se com Edmund, Aulay e Odo. De fato, a tranqüilidade deixava-a tentada a sair do castelo, conquanto não se arriscasse com outras ousadias.

— Bom dia. — Gail empurrou a porta. — Trouxe algo para comer.

— Bom dia. Entre, por favor. — Ilsa terminou de abotoar o vestido e saiu detrás do biombo.

— Que traje adorável. — Gail fechou o painel de madeira e deixou a bandeja sobre a arca que servia de mesa, ao lado da lareira. — A cor verde lhe vai muito bem.

— Esta é uma das roupas da minha antecessora. — Ilsa passou a mão na saia de lã finíssima. — Fraser ajustou-a para mim. Fico imaginando quanto dinheiro Edmund desperdiçou com esse luxo todo. Creio que Anabelle usava um vestido a cada dia do mês.

— Ou dois meses. Todos confeccionados com tecidos da mais alta qualidade e de cores incomuns. Como se fossem feitos para uma rainha. — Gail pôs uma cadeira ao lado da arca onde deixara a comida. — Venha sentar-se aqui e eu prenderei seus cabelos.

Ilsa aceitou a sugestão e serviu-se de um bolinho de aveia adoçado com mel.

— O guarda-roupa de Anabelle revela a futilidade da personagem, mas sou até capaz de entender a ânsia por coisas tão bonitas e caras. Contudo é imperdoável ela quase ter arruinado Edmund com tantos gastos. Segundo Nanty me contou, naquela época Edmund enfrentava dificuldades para cuidar das suas terras e da sua gente.

— Agora sir Edmund poderá administrar melhor suas terras e recuperar o bolso. — Gail escovava os cabelos longos de Ilsa. — Anabelle deixou tantos vestidos e tantas peças de tecido que a senhora não terá de comprar nada por muitos anos.

— Oh, céus. Começo a sentir-me culpada por ter comprado aquele linho azul.

— Bobagem. A senhora merece um pequeno prazer. Uma peça de tecido de vez em quando não arruinará seu marido. Garanto que sir Edmund não contava com uma esposa tão controlada em relação às moedas dele. Outra mulher não teria aceitado fazer uso das roupas da primeira esposa. Qualquer uma se recusaria a tocar em qualquer pertence da falecida.

— Talvez por superstição.

— Não se deve negar essa possibilidade. Mas também suspeito de que haja um receio de não parecer glamourosa com os trajes da primeira esposa. Eu lhe afirmo que isso é um disparate sem tamanho.

— Como pode estar tão certa? — Ilsa sentiu uma vontade repentina de tirar a roupa.

— Eu a conheço bem, Ilsa. Sempre se achou feia por ser ruiva e magra. E não é nada disso. Esse vestido lhe cai maravilhosamente, além de realçar a cor de seus olhos e de seus cabelos, que são lindos. É melhor nem pensar em trocá-lo.

— Moça impertinente — Ilsa murmurou, para disfarçar a insegurança. — Pelo que ouvi contar, Anabelle era uma mulher muito bonita. Pelo tanto de ajustes que Fraser teve de fazer, suponho que ela tivesse curvas capazes de deixar os homens de queixo caído e com os olhos saltados para fora das órbitas.

— Ah, que imagem sem graça. — Gail sorriu, serena. — Parece de alguém tendo um ataque.

— E de desejo. Anabelle fascinava os homens. Ela convertia homens corretos em traidores, e eles arriscavam a vida por isso. Eu jamais faria coisa semelhante, mesmo se tivesse os dotes físicos de Anabelle.

— E nem precisaria. Seu marido deita-se com a senhora todas as noites, não é? E acredito que ele não se restrinja a murmurar cumprimentos antes de dormir. Sir Edmund é o único homem que lhe interessa. O único que a senhora gostaria de deixar com a língua pendurada e os olhos saltados. — Gail fez uma careta de riso. — Então para que preocupar-se?

Ilsa deu uma risada sonora.

— Devo admitir que, em certas horas, ele parece ter ataques.

— O penteado está pronto. — Enrubescida, Gail puxou mais uma cadeira, sentou-se do outro lado da arca e pegou um bolinho de aveia. — As mulheres anseiam por uma beleza que faça os homens arriscarem a fortuna e o pescoço por elas. Imagino que lady Anabelle era muito bonita, mas desconfio de que sua maior atração era uma sensualidade vigorosa. Pode ser que eles sonhassem em domá-la, ou então ela não passava de uma reles prostituta. Os homens são mesmo tolos e agem de acordo com seus instrumentos de trabalho.

— Essa é uma grande verdade. — Ilsa deu uma risada sonora. — Mesmo sem saber como ela atraía os homens, acredito que tivesse sido de maneira diferente com cada um deles. Lamento ter desejado alguma vez a beleza de Anabelle. O aspecto físico torna-se irrelevante perante o legado desprezível que ela deixou. Estou certa de que Edmund não sente mais nada por ela. O meu receio é de que Anabelle o tenha tornado incapaz de amar outra vez.

— Não acredito nisso. Se todos os sentimentos estivessem mortos e a senhora não os ressuscitasse, sir Edmund não se esforçaria tanto para proteger o coração, não é verdade?

— É o que Gillyanne afirmou.

— Eu também estou convicta disso. A falecida deixou-o cheio de amargura e desconfiança. E sir Edmund apega-se neles como um escudo. Ele abaixou a armadura uma vez com a senhora. Abaixará a segunda.

— Assim espero, Gail. Vejo-a muito preocupada com a situação.

— Eu quero que seja feliz. Além do mais, começo a observar melhor as diversas maneiras de homens e mulheres interagirem. Isso me faz pensar que o acontecido comigo foi um acaso terrível. Os patifes não me desejavam. Fariam com qualquer uma que passasse na frente deles naquele exato momento o mesmo que fizeram comigo. Precisavam mostrar que eram fortes e valentões. Aos poucos começo a perceber que nem todos são como aqueles que tive a infelicidade de encontrar.

— Gail, fico feliz por ouvi-la falar assim. Sei que é uma moça inteligente e não permitirá que alguns bandidos lhe roubem a alegria de viver. — Ilsa ergueu a mão e impediu Gail de interrompê-la. — Tenho convicção de que o futuro haverá de lhe sorrir. Veja bem. Todos imaginam o que sucedeu, mas ninguém a evita. Um bom homem jamais a condenará.

— Essa crença vem aumentando e é o que me dá esperança. Comparo a diferença na honestidade de seus irmãos, de seus primos e dos homens de Clachthrom. Também aprenderei a usar a faca com que Elyas me presenteou.

— Assim que eu terminar de comer, irei até a ala das crianças e depois teremos outra lição para o uso de armas brancas. Aproveitaremos melhor o tempo na ausência de Aulay e Odo. Eles não nos perturbarão para que os ensinemos. — Ilsa suspirou. — Espero que estejam bem.

— Não duvide disso. Eles estão com o pai. Acho ótimo que sir Edmund tenha começado a interessar-se pelos filhos.

Gail tinha razão, Ilsa refletiu. Quando os homens voltassem, teria de esconder a ponta de ciúme que a atormentava.

— Papai, quem mora nesta cabana? — Odo espiou o caldeirão vazio em cima do fogão.

— No momento, ninguém — Edmund respondeu. — O casal idoso que vivia aqui morreu há alguns anos.

Sem ver sinal de moradores, Edmund resolvera parar e entrar. Olhou ao redor. Tudo muito limpo. Não havia roupas nem alimentos ou fogo na lareira. Sobre a cama, um colchão de palha e uma manta dobrada. Possivelmente um local para encontros amorosos.

O que explicaria a limpeza, apesar da vacância atual. Um lugar perfeito para quem precisava esconder seu amor. Edmund procurou algum indício dos prováveis ocupantes. Sua atenção foi atraída por alguma coisa enfiada entre o pé da cama e a parede. Deitou-se de barriga para baixo e achou graça quando foi imitado pelos filhos. Puxou o que parecia ser uma mensagem.

— Meu Deus, o que vejo? Temos ali um milorde esfregando o rosto bonito na sujeira. — O comentário foi feito por alguém com voz rouca.

Edmund sentiu um calafrio gelado. Estava de volta a Muirladen, estatelado na lama, ensangüentado e com os ossos quebrados. Arrepiou-se ao lembrar o pontapé violento que o atingira de lado e quebrara uma costela. Por um momento, o pesadelo voltou e Edmund sentiu o gosto amargo do pavor. A espera pelo próximo golpe o fez suar frio.

— Papai, ficou preso aí? — Odo perguntou.

Quatro pequenas mãos agarraram-se nas suas roupas e Edmund escapou daquelas memórias funestas. Arrastou-se e saiu debaixo da cama. Escondeu o pergaminho em um dos bolsos internos do gibão e procurou sorrir para os filhos. A preocupação nos semblantes inocentes comoveu-o. Perguntou a si mesmo por quanto tempo estivera ausente.

— Tudo bem, rapazes.—Edmund levantou-se.—Eu estava encalhado embaixo da cama.

Edmund espiou para os lados, ansioso para descobrir o dono da voz que tanto o afetara. Geordie estava parado na entrada da cabana, com os braços musculosos cruzados na altura do peito.

Teria sido imaginação ou o comentário inofensivo de Geordie estimulara sua memória? Edmund teve a vaga idéia de que um dos agressores dissera algo semelhante e por isso as palavras de Geordie o haviam perturbado.

— O que milorde estava fazendo ali? — Geordie afastou-se para Edmund sair com os garotos.

— Pensei ter visto uma pedra brilhante — foi o que lhe ocorreu dizer —, mas não era. — Não revelaria a descoberta até ter certeza de que ninguém sofreria pelo que pudesse estar escrito no papel. — Tenho de encontrar inquilinos novos para esta cabana. É uma pena vê-la vazia, as terras em volta sem cultivo e os campos não arados. Geordie, sei que conhece os moradores da região. Talvez possa encontrar alguém que esteja interessado em tornar-se rendeiro aqui.

— Pode deixar, sir Edmund. Procurarei com critério.

Edmund franziu o cenho e fitou seu auxiliar afastar-se. O tom estranho com que Geordie se expressara causou-lhe espécie. Geordie estaria usando a cabana para encontros secretos? Precisava ler logo a mensagem encontrada.

Sentou Aulay diante de Tom. Montou em seu cavalo, levantou Odo e acomodou-o na sua frente. Durante o trajeto de volta para o castelo, os meninos não pararam de fazer observações e perguntas.

Edmund lutava para afastar o calafrio que voltara a congelar-lhe o sangue nas veias. Desde o casamento com Ilsa, não tivera mais pesadelos. O corpo esguio e quente aconchegado ao seu parecia neutralizar seus receios, mesmo que ela não pudesse servir-lhe de proteção, caso fosse atacado. Porém não estar sozinho fazia com que se acalmasse. Na noite em que sofrera a agressão, não havia uma vivalma a quem pudesse recorrer. Era uma sensação da qual ainda não pudera se livrar.

Edmund teve esperança de que sua memória estivesse lutando para voltar. O que explicava um pesadelo em plena luz do dia, sem que estivesse dormindo. Por isso as palavras de seu homem de confiança o haviam deixado tão confuso. Precisava de muitas respostas que se encontravam presas no limbo de sua mente. Qualquer pista, por menor que fosse, ajudaria a desvendar o mistério da identidade de seu inimigo.

Ao atravessar os portões de Clachthrom, Edmund pensou em Ilsa. Precisava dela e não poderia esperar até a noite. Odiava admitir que o ardor de sua esposa seria o melhor remédio para o tremor gelado que não o abandonava.

Deixou os meninos com Fraser, lavou-se em um compartimento ao lado da cozinha e foi procurar Ilsa. Ficou satisfeito ao encontrá-la nos aposentos deles.

Ilsa sorriu, mas franziu a testa ao vê-lo trancar a porta.

— Aconteceu alguma coisa? — Ela deixou de lado o bordado que trouxera do solar e levantou-se da poltrona.

— Outra almofada? — Edmund perguntou, aproximando-se da esposa.

— O senhor há de convir que os assentos deste castelo são muito duros. Tudo bem com Aulay e Odo?

— Apenas cansados e sujos. — Edmund acariciou-lhe o braço e gostou de vê-la estremecer. — Está usando um vestido muito bonito. A cor lhe cai muito bem.

Ilsa surpreendeu-se com o cumprimento e fitou-o com desconfiança. Durante aquelas seis semanas de matrimônio, Edmund raramente a elogiara, a não ser nos momentos de paixão. A suposição das pretensões do marido àquela hora da tarde explicaria a porta trancada e a ausência do gibão.

— Obrigada. — Ilsa reparou nos cabelos molhados. — O senhor tomou um banho.

— Eu estava muito suado e com cheiro forte de cavalo. — Edmund tomou-a nos braços com suavidade e sorriu ao ver-lhe a testa franzida. — Não queria ofender este seu nariz delicado.

Edmund beijou-lhe a ponta do nariz e as pálpebras. Ilsa engoliu em seco e agarrou-se na camisa dele. Edmund passou a ponta da língua no contorno da orelha, e ela arrepiou-se. Ali estava o calor de que precisava. Uma fraqueza absurda! Uma sorte que a esposa não soubesse por que ele a procurara.

— Estamos no meio da tarde — Ilsa murmurou um protesto sem ênfase.

Edmund ignorou a reclamação quase inaudível e beijou-a.

Tirou-lhe o vestido e carregou-a até a cama. Sentou-a na beira do colchão, tirou-lhe os sapatos e despiu-se. Corada e confusa, Ilsa estava linda. A despeito de seis semanas de intimidade conjugal, ela ainda não perdera a timidez. Edmund não queria dar-lhe tempo de perceber que o sol entrava pela janela e iluminava-lhe a roupa de baixo, tornando os tecidos transparentes.

Ilsa atribuiu a uma ânsia fora do normal a velocidade com que Edmund tirava as próprias roupas. Desnudo, parecia um deus grego sob a luz dos raios solares. Nisso percebeu a claridade que invadia o quarto, mas Edmund não lhe deu tempo para refletir. Deitou-se sobre ela.

O beijo do marido varreu de sua mente a preocupação com o horário inadequado. Perdida em desejos, ergueu os braços para Edmund livrá-la da camisa. Ele acompanhou a subida do pano com beijos e lambidelas sensuais. Jogou a peça de lado e agachou-se sobre Ilsa. Ela estremeceu ao ver o que Edmund fitava com olhar intenso e corou da cabeça aos pés.

— Oh, não — Ilsa sussurrou e cobriu a virilha com as mãos.

— Ah, sim. — Edmund prendeu-lhe as mãos de encontro ao colchão.

Apesar de tensa e envergonhada, ela teve imenso prazer ao ser beijada na parte interna das coxas e em sua feminilidade palpitante. Em instantes, a vergonha desapareceu. Ilsa libertou as mãos e enlaçou os dedos nos cabelos de Edmund, enquanto ele prosseguia com os beijos e as carícias íntimas. Sem poder controlar-se, percebeu que estava próxima do auge. Agarrou-se na cabeça do marido, implorando mentalmente pela penetração. Edmund fez um caminho ascendente de beijos até alcançar a boca carnuda e procurar-lhe as profundezas com a ponta da língua.

Edmund insinuou-se no interior da esposa. Ilsa estremeceu e beijou-o com a violência de uma esfaimada. Abraçou-o com os braços e as pernas e segurou-o com firmeza. Os movimentos ferozes de Edmund e as investidas rígidas aumentavam a paixão de Ilsa. Ele gemeu alto, chamou-a pelo nome e inundou-lhe o ventre com suas sementes. Ilsa tornou a estremecer e, cega de desejo, agarrou-se em Edmund. Atingiu a realização quando ele se largou em cima dela.

Ilsa não saberia dizer por quanto tempo ficou deitada, satisfeita e sonolenta. Abriu os olhos e piscou por causa do sol. Estava com as pernas abertas e suportava o peso de Edmund sobre ela.

— Estou de meias!

Ele deitou-se de lado e sorriu ao vê-la corar.

— O que a deixou tentadora.

Ilsa virou-se de costas para Edmund. Pegou a camisa que se encontrava no chão e vestiu-a. Amarrou-a e voltou-se para o marido. Ele já estava de calção e camisa. Ela preparou-se para a retirada habitual que Edmund sempre empreendia depois de satisfeito. Mas ele estava sentado na beira do colchão, segurando o que parecia um pergaminho amassado. Ilsa atravessou a cama de joelhos.

— O que é isso?

Edmund hesitou e suspirou. Não haveria sentido em esconder a mensagem que encontrara na cabana. Não adiantaria mentir. Na verdade, não acreditava mais no fato de que Ilsa pretendesse matá-lo. Não faltaram ocasiões para que ela ou os irmãos pudessem tê-lo eliminado. Contudo a teimosia não lhe permitia aceitar que Ilsa fosse inocente na preparação de um embuste destinado a levá-lo ao altar.

Alguém quer vê-lo morto e os Cameron são os que mais ganharão com isso, Edmund torturou-se pela centésima vez.

Revelar o que encontrara não faria diferença para provar a culpa ou a inocência de Ilsa.

— Achei esta mensagem em uma cabana a oeste da minha propriedade. O lugar deveria estar vazio e sujo, pelos anos de desocupação. Mas não estava. Desconfio que é usado por casais de amantes. Descobri isto enfiado entre o pé da cama e a parede. — Edmund entregou-lhe o pedaço de pergaminho. — Na parede há vazamento, e a umidade tornou a escrita quase ilegível.

— Tem razão — Ilsa estudou a mensagem. — Foi escrito por uma mulher.

— Como pode ter tanta certeza?

— Algumas palavras podem ser lidas e formam frases nitidamente femininas. A carta é recente. Apesar de manchado, o papel não é antigo e a tinta não está descorada. — Ilsa franziu o cenho. — É uma missiva amorosa. A saudação e o encerramento são carinhosos. Não há citação de nomes, "...encontre-me... precisamos conversar... demorando demais... ficando impaciente". As palavras finais podem indicar que nem tudo estava bem.

Edmund concordou e guardou a carta dentro de uma caixa na mesa-de-cabeceira.

— Paciência. Pensei que pudesse desvendar quem vem ocupando a cabana. A habitação precisa mesmo de novos arrendatários. — Edmund levantou-se e vestiu um gibão limpo. — Não é recomendável deixar uma casa vazia. Terras não cultivadas são um desperdício.

— Uma boa escolha seria um casal que estivesse prestes a casar-se e que, premido pelas circunstâncias, teria de morar com um dos pais. Ou um par que já fosse casado e que enfrentasse dificuldades. Qualquer um ficaria agradecido pela oportunidade de tornar-se arrendatário.

— A gratidão a seu senhor lhes despertaria lealdade.

— Sem dúvida.

Edmund beijou-a e foi até a porta.

— Uma ótima idéia de minha esposa.

Um novo cumprimento, Ilsa refletiu, depois do marido sair. E não fora gerado em um momento de paixão. Edmund também revelara sua descoberta, embora houvesse hesitado a princípio.

A esperança quanto ao futuro tornava-se mais consistente, e nada a faria duvidar disso.

 

— Onde está sir Edmund? — Ilsa achou graça na expressão constrangida de Tom. O rapaz olhava para os lados, sem saber o que responder. Ela procurara o marido por todos os cantos do castelo. Ele devia ter saído de Clachthrom sozinho. Naquelas três semanas que se seguiram ao incidente da gruta, ninguém tivera permissão de ultrapassar desacompanhado os muros do castelo.

— Meu senhor saiu a cavalo. — Tom suspirou. — O dia está bonito e sir Edmund encontrava-se impaciente para cavalgar.

— Espero que tenha levado alguém com ele.

— Geordie o acompanhou.

— Acabei de ver Geordie no grande hall tomando cerveja e conversando com Peter.

— Bem, ele retornou há pouco. Disse que sir Edmund voltaria em seguida. — Tom fitou os portões, carrancudo, como se isso fizesse Edmund voltar correndo.

Ilsa entendia a ânsia de liberdade de Edmund. Ela mesma gostaria de sair um pouco e pensara em dar um passeio com o marido. Por isso, segurando as rédeas da égua Rose, indagava de Tom sobre o paradeiro de Edmund.

— O que está fazendo, milady?

— Montando em minha égua, Tom

Ilsa subiu e ajeitou-se na montaria. Achou graça no rosto corado de Tom, que desviou o olhar ao ver-lhe as meias antes de que ela pudesse arrumar as saias condignamente.

— Vou procurar meu marido. Tem idéia para onde ele possa ter ido?

— Talvez devesse esperar um pouco, milady. Meu senhor pode voltar a qualquer momento. Se seus irmãos e sir Nanty regressarem nesse meio-tempo, poderão acompanhá-la.

— Meus irmãos e Nanty foram para longe e só estarão de volta amanhã. Sir Edmund não pode arriscar-se, não acha? Muito bem. Diga-me para onde pensa que ele foi.

— Geordie disse que meu senhor estava cavalgando no cômoro. Alguns carneiros desapareceram e ele queria saber se morreram ou se foram presos em alguma armadilha. Às vezes é possível salvá-los. Milady! — Tom gritou quando Ilsa passou por ele. — Não pode sair sozinha!

— Daqui a pouco estarei com meu marido — Ilsa afirmou, olhando por sobre o ombro e ouvindo o rapaz praguejar.

Ilsa não pensou em remorso. O maior culpado era quem encarregara Tom de vigiar os portões. Ele era muito jovem e despreparado para um posto tão importante. Em vista disso, não tinha autoridade para constranger ninguém. Mesmo assim, recomendou a si mesma atenção com a segurança, para que Tom não tivesse de pagar por um descuido seu.

Como era delicioso sair do castelo!, Ilsa suspirou, satisfeita. Não estava acostumada a ter sua liberdade cerceada. Com muitos irmãos e primos espalhados pelos cantos, sempre pudera percorrer tranquilamente Dubheidland e arredores, sem que ninguém ousasse encostar-lhe um só dedo. Mas também fora ensinada a acatar ordens que visassem seu bem-estar. E aquela desobediência às regras não agradaria aos irmãos.

Ah, voltaria sã e salva a Clachthrom, ao lado do marido e sem que os irmãos suspeitassem de sua rebeldia. Se descobrisse, Sigimor não hesitaria em passar-lhe um sermão odioso, mesmo ela sendo uma senhora casada e mãe de oito filhos. Aliás, ele era um mestre naquela arte.

Chegou a um trecho muito arborizado e diminuiu a marcha da égua. Havia muitos lugares inóspitos na propriedade.

Perigo e beleza selvagem caminhavam lado a lado. As crianças teriam de ser ensinadas a respeitar a natureza e os riscos que trazia. Imaginou se conseguiria prendê-las dentro do castelo até os vinte anos e sorriu. Embora lhe agradasse mover-se livremente, não gostaria que as crianças fizessem o mesmo.

Em meio à paz da floresta, o som inconfundível de lâminas de aço que se chocavam cortou-lhe o fio dos pensamentos. Ilsa agarrou as rédeas com força, para não ceder ao instinto de galopar a toda velocidade e ver o que estava acontecendo. Respirou fundo para acalmar-se. Sigimor sempre comentava que a precaução era o melhor escudo. Deduziu que Edmund poderia estar em perigo e teria de decidir o que fazer.

Naquele caso, a dificuldade maior seria aplacar a aflição e agir com cautela. Se disparasse rumo ao ponto da contenda, não salvaria Edmund, mesmo considerando a si mesma forte e capaz. Não era nenhum guerreiro e, no momento, carregava apenas um punhal. Um cavalo também poderia ser uma arma, mas Rose não fora treinada para ser um animal de batalha.

Ilsa desmontou, amarrou Rose a um tronco de árvore e caminhou sem fazer ruído em direção aos sons. Precisava ter noção da força do inimigo, antes de tomar uma atitude. Voltar ao castelo para pedir ajuda demandaria muito tempo. E talvez o auxílio nem fosse necessário.

Pé ante pé, Ilsa chegou à beira da floresta. A primeira visão confirmou o que ela mais temera. Edmund lutava contra quatro homens. Ilsa deitou-se de barriga no chão e arrastou-se para trás de uma moita de amoras-silvestres. Ali não seria vista.

Como ajudar Edmund? Se os surpreendesse, distrairia os atacantes, mas também o marido. Se caísse nas mãos dos bandidos, ela se tornaria um trunfo para ser usado contra Edmund. Porém a inércia seria ainda pior.

Atacar o grupo montada em Rose seria a melhor solução. Confiava em sua habilidade com um punhal e acreditava que pudesse derrubar pelo menos um dos homens. Até Sigimor a elogiava pelo alvo certeiro. Esperava que Edmund aproveitasse a distração que ela pretendia causar e agisse com rapidez.

Ao dar o primeiro passo, as esperanças de salvar o marido caíram junto com ele. Após alguns segundos, os homens passaram a discutir a hipótese de esperar para ter certeza de que Edmund morrera. Ilsa fixou-se na fisionomia deles com atenção. Avaliou os cavalos, lembrando-se de como Tait lhe ensinara a distinguir um animal de outro. A justiça teria de ser feita e esses homens iriam de pagar pelo crime.

Sem conseguir montar Challenger, o cavalo de Edmund que se empinava sem cessar, os sujeitos bateram em retirada. Ilsa permaneceu imóvel por alguns momentos, até supor que os homens não retornariam para certificar-se da morte de Edmund. Horrorizou-se ao imaginá-lo despedaçado nas rochas.

Devagar, com o corpo dolorido pela tensão, Ilsa voltou até a égua. Conduziu Rose em direção à beira do abismo, sem pressa. O medo do que poderia encontrar pregava seus pés no chão. Teve vontade de correr até Clachthrom e mandar alguém procurá-lo. Inspirou fundo e lutou contra o pavor que lhe gelava o sangue. Mas, como esposa de Edmund, teria de cumprir com seu dever.

Nisso, Challenger aproximou-se trotando.

— Ah, meu rapaz — Ilsa murmurou e acariciou-lhe o pescoço, que trazia a marca de vários ferimentos. — Suas tentativas falharam, não foi?

Verificou que os ferimentos eram superficiais e amarrou os dois cavalos na árvore atrofiada, que também lutava para sobreviver no solo rochoso.

— Tenha paciência, rapaz. Logo iremos para casa e trataremos de tudo isso.

Finalmente chegou à borda do precipício e espiou, com um aperto no coração. Edmund jazia de bruços sobre uma saliência estreita. Mas ele não caíra pela encosta nem se estatelara em cima das enormes pedras do fundo. Ilsa amarrou as saias na cintura e não pensou duas vezes.

A descida não foi difícil, apesar do declive escarpado. Se os homens houvessem se aventurado a verificar a morte ou a sobrevivência de Edmund, na certa teriam lhe cortado o pescoço.

Ajoelhou-se ao lado do marido com receio de tocá-lo e confirmar a terrível verdade. Ensangüentado e pálido... A visão era medonha. Os cabelos escurecidos e empapados de sangue cobriam parte do rosto lívido. A imagem de um moribundo. Por isso os homens tinham ido embora.

Ilsa criou coragem e encostou nele os dedos trêmulos. Quente. A pulsação no pescoço era contínua, embora fraca. Edmund gemeu. Com o coração batendo em descompasso, Ilsa aproximou o rosto da cabeça do marido e deu vazão às lágrimas. Mas logo conseguiu controlar-se.

— Edmund? — Ela limpou-lhe o sangue da face com o lenço. — Pode me ouvir?

— Ilsa — ele falou em um fio de voz.

Edmund nada mais disse nem abriu os olhos. Com infinito cuidado para não machucá-lo — Edmund poderia mexer-se e cair do suporte precário —, ela apalpou-o à procura de ossos quebrados. Não encontrou nada evidente. Um milagre. Sentou-se nos calcanhares e pensou no que fazer.

— Eu poderia voltar ao castelo e trazer ajuda — falou consigo mesma. — Não serve. Ele poderia mover-se e cair no despenhadeiro.

Olhou para cima, inconformada. Não poderia levar Edmund até o alto por aquela subida íngreme.

— Não se mova nem um milímetro — ordenou ao marido inconsciente, depois de decidir subir.

Chegou ao alto, voltou para perto dos cavalos e estudou as ferramentas à mão. Poucas, mas úteis. Edmund saía preparado quando o objetivo era inspecionar as terras.

Tirou a corda da sela de Challenger, amarrou uma ponta em Rose e jogou o restante pela encosta. Prendeu a capa e uma manta no pescoço e desceu o trecho da colina até Edmund. Atou a outra ponta da corda debaixo dos braços dele. Envolveu-lhe o corpo com o cobertor t a manta, e a cabeça, com o manto. Era preciso protegê-lo na escalada abrupta. Calculou que precisaria das duas mãos para subir e Rose teria de ser instigada para puxar Edmund. Ilsa desceu mais um trecho, recuperou a espada de Edmund, que ficara presa entre duas pedras, e embainhou-a. Com bastante esforço, conseguiu sentá-lo encostado nas rochas.

Subiu depressa até os cavalos e inspirou várias vezes para recuperar o fôlego.

— Agora, menina — Ilsa segurou as rédeas de Rose —, vamos andar devagar e puxar Edmund com o maior cuidado.

Depois de um algum tempo de trabalho árduo, foi até a beira, olhou para baixo e voltou para puxar a égua. Ilsa teve de ir e vir mais duas vezes para poder agarrar Edmund. Instigou Rose e praguejou contra o tamanho do marido. Nem acreditou quando conseguiu trazer Edmund para cima e deitá-lo afastado da margem. Desatou a corda que envolvia tanto o ferido quanto Rose, amarrou de novo a égua, tirou a capa da cabeça de Edmund e sentou-se a seu lado.

— Não posso deixá-lo aqui. — Ilsa fitou o peito do marido. A respiração débil continuava no ritmo esperado. — E se eu esperar que venham à minha procura? — Fitou as nuvens negras no horizonte. — Não dará tempo. Terei de levá-lo de volta a Clachthrom. Ou... — Franziu a testa, fitou os cavalos, depois Edmund e praguejou. — Eu não conseguiria montá-lo em um dos animais.

Ilsa desenrolou a manta que protegera as costas do marido, pôs a mão no peito de Edmund e certificou-se das batidas do coração.

O vento e o frio aumentavam de intensidade. Ilsa compreendeu que teria de agir. Levantou-se, cobriu novamente Edmund com as laterais do cobertor e pegou a machadinha que estava no alforje de Challenger. Cortou toda a madeira necessária para fazer uma maca rústica, sem sentir as esfoladuras nas mãos. Usou os cordões das botas de Edmund para amarrar os pedaços uns nos outros. A corda serviu para fixar uma extremidade da maca nos arreios de Rose. Trouxe a égua pelo cabresto e deixou o conjunto bem perto de Edmund, em paralelo.

— Devo confessar-lhe, meu amor, que para salvá-lo, esse seu físico de atleta não me agrada nem um pouco. Passei minha vida bajulando uma tropa de imbecis. Onde estão agora? A meu lado, para ajudar-me a carregá-lo? Claro que não.

Ilsa resmungava e puxava, centímetro por centímetro, a manta sobre a qual Edmund permanecia inconsciente.

— Devem estar percorrendo as maravilhosas colinas escocesas, procurando pelos inimigos. Veja que estupidez, meu querido! Seus agressores estavam aqui do lado e quase o mataram.

Ilsa conseguiu tirar o cobertor debaixo de Edmund, mas caiu sentada. Não dispensou uma imprecação e atirou o tecido de lã grossa sobre o trançado de galhos. A seguir concentrou-se em arrastar o marido para cima da maca, segurando um braço ou uma perna por vez, em um processo penoso.

— Acredito que os meus braços ficarão mais longos depois disso. — Ilsa foi para o outro lado e empurrou Edmund pelo gibão. — E ficarei furiosa se o senhor acordar depois de que eu o tiver acomodado neste estrado. — Voltou à posição inicial e tornou a puxar. — Na verdade, é como os homens são. Deixam as mulheres fazer todo o trabalho pesado enquanto descansam o esqueleto. Depois acordam, bocejam, sorriem e perguntam o que há para comer.

— Ilsa.

Antes de reconhecer a voz, Ilsa desembainhou o punhal, pronta para atirá-lo. Sigimor foi mais rápido. Segurou-lhe o pulso e tirou-lhe a arma da mão.

— Mas que droga, Sigimor! Eu poderia tê-lo atingido. — Ilsa aceitou o punhal de volta e guardou-o. — Não se deve assustar uma pessoa dessa maneira. — Sorriu, contrafeita, ao ver Nanty e Tait aproximarem-se.

— Se estivesse de boca fechada, não teria ficado surpresa — Sigimor criticou-a, enquanto erguia Edmund para acomodá-lo na maca. — Se não me ouviu chegar foi por que estava muito ocupada queixando-se dos homens. O que houve?

Irritada pela facilidade com que Sigimor executara a tarefa, Ilsa respondeu de maneira sucinta. O corpo lhe doía e as feridas queimavam. Nem queria pensar no sofrimento de Edmund. Era uma bênção que estivesse desacordado.

— Os cavalos ficaram ali — Ilsa apontou a direção —, depois os bandidos montaram e foram para o Norte.

Tait foi até o lugar indicado e examinou as pegadas.

— Como foi que me descobriram aqui? — Ilsa perguntou a Sigimor.

— Voltamos a Clachthrom antes do prazo previsto e Tom me avisou que milorde e milady tinham saído havia muito tempo. Decidimos verificar se tudo estava bem. Vamos levar Edmund para casa. Tait! Siga os rastros até onde puder, antes que a tempestade despenque. Se tivermos sorte, eles não irão longe. Talvez possamos agarrá-los amanhã.

— Vamos precisar de Glenda para tratar de Edmund — Ilsa afirmou, enquanto Sigimor sentava-a na sela de Rose.

— Irei procurá-la — Nanty ofereceu-se.

Nanty e Tait montaram e saíram em direções diferentes. Sigimor examinou os ferimentos de Challenger.

— Ele ficará bom, não acha? — Ilsa indagou.

— Sim, sim. Nenhuma ferida é profunda. — Sigimor acariciou o pescoço cinzento de Challenger e montou em seu cavalo. Recuou para segurar as rédeas do animal ferido. — Ilsa, está em condições de cavalgar?

Na certa, ela parecia tão exausta quanto se sentia.

— Estou bem. Preciso apenas de um bom banho e de um pouco de descanso. O problema é Edmund. Está desfalecido desde que caiu.

— Pelo jeito como Nanty disparou, a curandeira estará à nossa espera no castelo. Seu marido vai sarar. — Sigimor piscou e incitou o cavalo para a frente. — Não fique inquieta. Ele foi muito bem atendido. Muito bem mesmo.

Ilsa sentiu-se corar. Embora fosse adulta, esposa e mãe, ainda havia uma porção infantil que se emocionava com os elogios de Sigimor.

Deus haveria de permitir que seus esforços não tivessem sido em vão.

— Ele está muito melhor, senhora.

Ilsa sorriu para Glenda e aproximou-se da cama de Edmund.

Fora difícil deixá-lo nas mãos da curandeira e sair. Mas não tivera escolha. Gail e Fraser, auxiliadas por Sigimor, haviam-na feito sair do lado do doente. Tomara um banho. Suportara os curativos de todos os seus pequenos ferimentos. Falara com as crianças e as acalmara. E cedera à vontade de descansar. Depois de três horas de sono profundo, acordara assustada e correra até os aposentos deles, onde entrara sem bater.

— Glenda, tem certeza do que está me dizendo?

— Claro, milady. Não há ossos quebrados e nem sinal de ferimentos internos. Contusões e hematomas. Pouca coisa mais.

— E o sangue da cabeça? — Ilsa acariciou os cabelos, que tinham sido lavados.

— Apenas um pequeno corte. Esse tipo de ferimento sangra muito e parece sempre pior do que é na realidade. Não encontrei nenhum afundamento ósseo. Se quiser, milady, pode ficar com ele.

— Tem certeza? — Ilsa não hesitou em sentar-se na cadeira ao lado da cama. — Não sou curandeira.

— Nem há necessidade que seja. Apenas fique atenta à febre, à dor excessiva ou a qualquer outro sinal de alarme. Destinaram-me um belo quarto no castelo. Ficarei aqui alguns dias até que eu possa ter certeza de que a convalescença está em vias de efetivar-se. Se precisar de mim, chame a qualquer hora.

Glenda saiu e Sigimor entrou em seguida. Ele sentou-se aos pés da cama e franziu o cenho. Ilsa sentiu-se literalmente esmagada no assento. Teria de avisar o irmão de que, se ele pensava em casar-se, teria de modificar aquele modo de encarar as pessoas. Nenhuma mulher suportaria aquilo.

— A senhora deveria ter ficado por mais tempo na cama. Esse camarada não irá a lugar nenhum por enquanto.

— Sigimor! — Ilsa repreendeu-o. — Edmund pode estar seriamente ferido.

— Que nada. Glenda não achou nada de grave. Mas se pretende choramingar em cima dele, faça como quiser.

— Ah, quanta bondade... Tait já voltou?

— Já. Seguiu os homens até um vilarejo. Quero saber se viu bem a fisionomia deles.

— Não só isso, como também prestei atenção nos cavalos. Apanhar os criminosos poderá ajudar-nos?

— Talvez sim. Talvez não. Temos encontrado tão pouca coisa em nossas buscas que começamos a imaginar que tudo não passou de uma praga de coincidências e que a primeira agressão tinha sido mesmo com intenção de roubar. Mas a de hoje foi uma tentativa de assassinato, disso não há como duvidar. Quem planejou o esquema é inteligente. Ou não estaríamos correndo em círculos e duvidando da existência de um inimigo.

— Esses que agrediram Edmund podem nem saber quem os contratou. É isso?

— Exatamente. Mas também eles vão nos levar até outro, e mais outro. — Sigimor levantou-se e beijou Ilsa no alto da cabeça. — O que mais me deixa impressionado é outra coisa.

— O quê?

— Como esse inimigo amaldiçoado toma conhecimento do paradeiro de Edmund e também do seu.

Ele estava certo!

Sigimor saiu e Ilsa largou-se na poltrona. A idéia lhe ocorrera uma ou duas vezes, mas não se detivera no assunto. E era um item alarmante. Havia um traidor em Clachthrom. O inimigo de Edmund poderia ser um dos moradores do castelo. Aquilo era terrível. Ilsa estremeceu. Ali não havia segurança nenhuma.

— Ilsa, os homens! Cuidado! São eles!

— Calma, meu querido. — Ela sentou-se na beira da cama e acariciou a testa de Edmund. — Agora está tudo bem.

Ele abriu os olhos, mas Ilsa percebeu que não estavam alertas. Edmund não acordara.

— Os homens. — Ele suspirou e cerrou as pálpebras. — Cuidado com os homens. Quatro bandidos.

— Eles já foram embora. Meu senhor está a salvo em sua cama, em Clachthrom.

Edmund prosseguiu nos balbucies sobre os quatro homens, mas Ilsa conseguiu acalmá-lo. Sem estar consciente, ele a chamara pelo nome e conservava a memória do ataque daquele dia.

Talvez ele pudesse lembrar-se de alguns fatos anteriores, Ilsa cismou e voltou a ocupar a poltrona.

Gail esgueirou-se para dentro do quarto, trazendo Cearnach e Finlay. Atrás dela, Fraser, com uma refeição na bandeja. As três sentaram-se ao lado da lareira. Ilsa amamentou Finlay, e Gail, Cearnach. Depois elas comeram em silêncio e Ilsa não conteve um bocejo.

— A senhora não descansou o bastante.—Fraser tomou-lhe Finlay dos braços.

— Por ora, será suficiente — Ilsa defendeu-se. — Preciso ficar atenta durante a noite. Edmund poderá acordar a qualquer momento.

— Maldizendo as dores, o sofrimento e a necessidade de ficar acamado.

— Com certeza. — Ilsa sorriu e beijou os filhos. — Contudo sempre há um lado positivo em qualquer evento ruim. Agora temos certeza de que alguém quer Edmund morto e que, hoje, quatro homens tentaram acabar com a vida dele. Já é um ponto de partida.

Fraser anuiu.

— Um caminho a ser seguido, em vez de tentar descobrir o maldito caminho.

— Isso mesmo. As duas terão de manter silêncio sobre o assunto, mas devo contar-lhes o que me parece óbvio. Alguém em Clachthrom trabalha para o inimigo. Como Sigimor tão bem lembrou, o que o preocupa é como o adversário conhece os itinerários que fazemos, tanto o meu quanto o de Edmund. Não há como duvidar disso.

— Um espião — Gail deduziu. — Um miserável traidor. Nós nada diremos, esteja certa, Ilsa. O bandido não imaginará do que desconfiamos. E daqui para a frente, manteremos olhos e ouvidos atentos.

— Obrigada. — Ilsa aproximou-se da cama, fitou o marido e tirou-lhe uma mecha de cabelos do rosto.

— Não fique impressionada, senhora — Fraser confortou-a, do outro lado do leito, perto de Gail. — Sir Edmund vai se recuperar.

— Deus a ouça, Fraser. Só espero que, ao acordar, ele não tenha me esquecido outra vez.

 

Edmund abriu os olhos devagar, com a sensação de que fora esmagado por um cavalo de batalha. Uma idéia muito semelhante àquela decorrente do primeiro atentado. Com uma diferença fundamental. Lembrava-se de tudo.

Virou a cabeça devagar e fitou a jovem vestida a seu lado dormindo sobre a colcha. À pele clara estava marcada por alguns arranhões e um hematoma. Sob os olhos, olheiras negras de exaustão. Na mão delicada que lhe segurava o braço, mais arranhaduras e cortes remanescentes da luta obstinada que ela empreendera para salvá-lo. Não fora um sonho vê-la junto de si na saliência estreita da rocha. Na certa, ela o achara caído e se apressara em ajudá-lo. Pela maneira como a tratara, era inacreditável que houvesse se preocupado com ele.

Sua esposa. Edmund admirou-lhe os cílios espessos. A ardente e pequena Ilsa Cameron, naquela altura MacEnroy. Lembrava-se do que se passara entre eles antes que punhos de ferro afundassem sua memória em algum buraco negro da mente. Admitiu que tentara resistir à atração que sentia por Ilsa, em virtude de ela demonstrar um temperamento exaltado. E perdera a batalha na tentativa de mantê-la a distância. Os dias e as noites de amor, assim como a despedida e as promessas de retorno haviam ressurgido das trevas.

Podia imaginar quanto Ilsa sofrera quando ele sumira, sem ao menos mandar uma carta. Estremeceu ao refletir sobre o que a fizera passar, desde que ela irrompera na igreja no dia em que ele e Margaret estavam no altar. Não seria surpresa a descoberta de que matara todo o amor existente no coração de sua esposa.

Moveu o outro braço com cuidado e pôs a mão sobre a de Ilsa. Apesar das dores, conseguia mover-se, o que era um alívio. Estava machucado, mas não com ossos quebrados. A recuperação não seria demorada. Em breve poderia reiniciar a procura do inimigo oculto que havia se empenhado em matar não só ele, como também Ilsa.

O que fazer a respeito de Ilsa?, Edmund observou-a acordar. Entendia agora a atração exercida por ela e por que tivera de advertir-se continuamente para não confiar nela. Apesar de seus esforços para ignorá-la, mais e mais se envolvia com Ilsa. A mente podia esquecer, mas não o coração. Não era de admirar que ele houvesse passado tanto tempo confuso e frustrado.

Ilsa abriu os olhos, e Edmund sorriu, apesar da cautela que obscurecia a expressão da esposa.

— Como está se sentindo? — Ela não soube interpretar a ternura no olhar do marido.

— Arrebentado.

— Não notamos ossos quebrados.

— Ah-ah. Com certeza ainda posso considerar-me uma peça inteira, embora machucado. E a senhora, como está?

Uma batida na porta interrompeu-os. Ilsa foi atender. Era Geordie.

Uma pena.

Ela gostaria de ficar cuidando do marido, mas Edmund na certa preferia conversar com seu homem de confiança.

Uma bênção.

Assim poderia fugir e evitar que fizesse papel de tola.

Resolvida a dar ouvidos à sua covardia, murmurou uma desculpa pela urgência de comer e tomar um banho.

Saiu do quarto, refletindo sobre o olhar suave do marido. Não adiantaria ter esperanças. Edmund já as espatifara uma vez. Precaução excessiva não lhe faria mal nenhum.

— Impressionante o que um banho, roupas limpas e estômago cheio podem fazer por um homem — Edmund comentou, recostado nos travesseiros, enquanto Geordie arrumava o quarto.

Geordie anuiu, parou, fitou Edmund e coçou a barba rala e grisalha do queixo proeminente.

— Estou admirado como uma pancada na cabeça pode trazer de volta as lembranças perdidas por causa de uma pancada anterior.

— É verdade. Embora não tenha me lembrado de tudo, terei de pedir desculpas à minha esposa.

— Eu sei. — Geordie pegou a bandeja com comida e foi até a porta. — Uma lástima ter acontecido tudo aquilo logo depois de assinar o contrato nupcial e, por isso, perdido um ano com lady Ilsa.

Edmund observou a saída de Geordie e tornou a deitar-se, gemendo por causa das dores. Pensar nas palavras de seu escudeiro fez com que voltassem as dúvidas e os receios. Não queria suspeitar de Ilsa, mas teria de ser precavido. Pagara um preço alto por haver confiado uma vez. Não cometeria outro engano.

Ilsa acordou gemendo. Os músculos estavam doloridos pelo esforço demasiado que fizera. Virou a cabeça para a janela. Era dia claro. Depois de assegurar-se de que Edmund não estava gravemente ferido, ela fora até um dos quartos contíguos, onde tomara um banho, comera e praticamente desmaiara na cama. O cansaço tinha sido o responsável pelo sono tão longo, de quase um dia inteiro. Sentiu uma pontada de culpa. As crianças deviam estar estranhando sua ausência. Depois de ver o pai naquele estado, precisavam de carinho e conforto.

Sentou-se aos poucos, entre gemidos. Na certa, mancaria como uma velha nos próximos dias. Se pudesse prever que lhe caberia puxar o marido para cima de um rochedo, teria se casado com um homem muito menor. Conseguiu chegar até a beira da cama e suspirou. Nisso, Gail apareceu e Ilsa alegrou-se. Não conseguiria vestir-se sozinha, por mais que lhe custasse admitir o fato.

— A senhora parece ter sido arrastada por um canteiro de espinhos. — Gail deixou a bandeja em cima da arca. Trouxera pão, queijo e cidra. — Muita dor?

— Bastante. — Ilsa estremeceu quando Gail a ajudou a ficar em pé. — Estou entrevada.

— O que não me surpreende. A senhora achou que fosse Sigimor para puxar um homem do tamanho de sir Edmund e não sofrer as conseqüências?

— Eu não poderia deixá-lo morrer.

— Sei disso. Mas se considerarmos como ele a vem tratando, duvido que alguma mulher chegasse a tanto.

Ilsa resmungava "ais" e "uis" enquanto Gail a ajudava a caminhar até a bacia com água e sentar-se perto do fogo para a higiene matinal.

— Tenho motivos para suportar aquele teimoso mal-humorado. — Viu Gail fitá-la de cenho franzido, enquanto esfregava os dentes com um pano molhado. — O que foi?

— A senhora o aprecia na cama, não é mesmo?

— Muito. Ele me incendeia. A paixão que nos uniu ainda está presente e muito forte. Eu já lhe expliquei, Gail. O que lhe aconteceu nada teve a ver com paixão. Tratou-se de uma agressão bárbara. Pelo que me falou no outro dia, acredito que já tenha entendido isso.

— Às vezes concordo com esse ponto de vista, mas nem sempre. Chegará o dia em que eu pensarei no caso com maior calma. Voltemos ao seu assunto. Confesso que a rudeza de sir Edmund me fez temer pela senhora. Porém ele nunca lhe causou nenhum sofrimento físico, independente das circunstâncias. Pode berrar, mas não lhe encosta um dedo. Isso é muito diferente de tudo o que experimentei. Eu me admirava com o que passei a presenciar diariamente, desde que cheguei a Dubheidland.

— Aqueles homens...

— Não me refiro apenas aos que me estupraram. Meu pai foi cruel com minha mãe. Meus cunhados eram desumanos com minhas irmãs. Meu pai nunca hesitou antes de erguer a mão para castigar os filhos. Eu vivia testemunhando homens agirem com brutalidade contra as mulheres. Depois que fui morar com os Cameron, constatei que havia outra realidade. Um tipo diferente de convivência entre homens e mulheres. Isso me fez enxergar que a minha vida anterior era uma exceção.

Ilsa tirou a camisola com a ajuda de Gail e começou a lavar-se.

— Não cheguemos a extremos. A violência doméstica ainda é um hábito comum. Porém uma coisa é certa: nem meus irmãos, nem os MacEnroy bateriam em uma mulher. Podemos acreditar na palavra de lady Gillyanne.

— Analisar o comportamento dela com o marido foi muito bom para mim. Sir Connor é tão forte que poderia quebrar-lhe o pescoço com a maior facilidade. Porém o medo não passa pela cabeça de Gillyanne. Não demorei muito para perceber que ele arrancaria o próprio coração, se tivesse de causar-lhe algum dano. Certo que é um homem rude. Por isso o cuidado com a esposa não é muito óbvio, embora sempre presente.

Gail entregou uma toalha para Ilsa.

— Uma vez eu os vi subindo a escada. Ele acariciava lady Gillyanne como um guerreiro sem mulher há tempos, e ela ria. Então... — Gail apertou as mãos de encontro ao peito e suspirou.

— Sim?

— Ele a chamou de "minha vida". O sentimento entre ambos tornou-se visível, e, no tom de voz dele, ficou evidente a idolatria pela esposa. — Gail sacudiu a cabeça e ajudou Ilsa a vestir-se. — Acho que o meu coração já começa a cicatrizar-se. Eu me vi desejando que, um dia, um homem dissesse tais palavras para mim.

Ilsa ficava muito satisfeita por Gail estar se recuperando do trauma sofrido, e sentiu uma ponta de inveja de Gillyanne.

— Tem razão. Os ferimentos de sua alma já não se mostram tão dolorosos. — Ilsa deu um suspiro. Gail terminou de abotoar-lhe o vestido e ajudou-a a sentar-se em um banco. — Deve ser maravilhoso para uma jovem ouvir isso.

— Sir Edmund dizia coisas semelhantes para a senhora, antes de perder a memória? — Gail começou a escovar os cabelos de Ilsa.

— Ah-ah. Agora as palavras de amor ficaram perdidas no olvido.

— Sir Edmund não pronuncia mais frases ternas?

— Eu não diria que são exatamente ternas. No auge da paixão, Edmund esquece que não confia em mim, que me considera uma ameaça e uma mentirosa. Nesses momentos, embora não faça declarações de amor, Ilsa termos elogiosos. E, depois de satisfeito, raramente retorna às acusações, aos insultos e aos vocábulos cruéis. Concordamos em fazer uma trégua dentro do quarto.

— Mas isso é ótimo! — Gail terminou de trançar os cabelos de Ilsa.

— Também pode ser que ele queira simplesmente saciar suas necessidades masculinas e suponha que eu possa recusá-lo se ele for grosseiro na cama comigo. — Ilsa levantou-se devagar.

— Hum. Aposto que haveria muitas jovens em Clachthrom que se prestariam a satisfazer tais necessidades, se a senhora o repelisse.

— Elas que ousem! — Ilsa resmungou e saiu do quarto com passos lentos.

Gail deu risada e as duas foram até o grande hall.

— Eu não faria pouco caso dessa paixão. Dizem que o caminho do coração de um homem é através do estômago, mas desconfio de que o trajeto seja um pouco mais embaixo.

— Com Edmund, o rumo ficou enterrado no esquecimento. Mas ontem, quando ele acordou, olhou-me como se as lembranças tivessem voltado. Mas não houve tempo para que eu me certificasse. Geordie chegou naquele momento.

— Assim que voltar ao lado de sir Edmund, tente comprovar se ele recuperou a memória.

As duas ocuparam os lugares que lhe eram reservados à mesa. Uma das criadas apressou-se a servir-lhes pão, queijo, maçãs e duas canecas de leite de cabra. Ilsa comeu uma fatia grossa de pão com mel e achou graça no olhar impaciente de Gail.

— Ilsa, não pretende abandonar a cabeceira da cama de seu marido, não é? — Gail indagou em voz baixa.

— Claro que não. O dever de uma esposa é cuidar do marido enfermo ou ferido. Mais tarde voltarei para o lado dele e observarei como dorme.

— Quando?

— Depois de comer e de falar com as crianças. Ah, e depois de dar uma espiada no canteiro de ervas.

— Isso poderá levar o dia todo.

— Talvez... Gail, não sou nenhum exemplo de abnegação e candura, mas fiz o melhor que pude. Entendo o que perturba Edmund e esforcei-me para perdoá-lo, apesar de suas grosserias e de seus insultos. Eu salvei a droga da vida dele. Se depois disso Edmund ainda não confia em mim, não há muito mais que eu possa fazer. Meus sentimentos continuarão inalterados. Mas as tentativas de fazê-lo lembrar de Dubheidland e de provar que sou honesta e sincera terminaram. Daqui para a frente, terei de trilhar meu próprio caminho. Não me atormentarei mais. Se meu marido vier a enxergar a verdade, então nosso casamento voltará a ser o que era antes. Continuarei sendo sua esposa, partilharei o leito conjugal, amarei as crianças e cuidarei da herdade. E só. Agora, chegou a vez de Edmund provar que confia em mim.

— Está lembrado de tudo? — Nanty perguntou, escarrapachado em uma cadeira ao lado da cama de Edmund.

Edmund bebericou a cerveja e procurou ignorar a dor que os pequenos movimentos provocavam.

— Bem, quase tudo. Algumas partes ainda estão obscuras, mas tenho certeza de que voltarão a ficar nítidas com o tempo.

— Então já sabe que Ilsa é sua esposa.

— Sim, eu me lembro de termos feito um contrato nupcial.

Edmund também se recordava das promessas que haviam feito. Ilsa expurgara-lhe a amargura, abafara seu sofrimento e inundara-o com alegria. Depois de assinar os papéis que haviam dado a ela os direito de esposa, fora atacado e ficara à beira da morte. Um ano depois, Ilsa irrompera na igreja, acompanhada por um bando de asseclas. Sua mente conspurcada não pudera acreditar na inocência de Ilsa. Alguém pretendera matá-lo e Ilsa lhe parecera a única a beneficiar-se .com sua morte. Impossível ignorar o fato, só porque ela fazia seu sangue ferver.

— Por que essa cara feia? — Edmund perguntou ao irmão.

— Edmund, por que não acredita na honestidade de Ilsa?

— Essa última agressão prova que estão tentando me matar. Até agora, Ilsa é a suspeita mais racional.

— Se isso fosse verdade, por que ela arriscaria a vida para salvar essa carcaça imprestável?

— Sobre o que está falando?

— Eu o ouvi afirmar que havia recuperado a memória.

— Sim, mas não toda. Quando eu caí no rochedo, bati a cabeça e fiquei inconsciente. Ontem, ao acordar, pude notar escoriações e hematomas em Ilsa. Pensei que ela tivesse ajudado a me salvar. Nanty, não sei o que aconteceu lá. Eu estava desacordado.

Nanty hesitou por alguns minutos, antes de relatar o que Ilsa fizera.

Era simplesmente espantoso!, Edmund admirou-se. O que uma jovem tão delicada e esguia conseguira fazer! Nanty estava certo. Se ela quisesse matá-lo, não teria feito um esforço tão extraordinário. Ainda assim Edmund não se deu por vencido. Impossível exonerar Ilsa de toda culpa. Ela poderia ser uma inocente útil nos planos diabólicos dos irmãos. Sem um deles para incitá-la, Ilsa fora incapaz de deixá-lo morrer. Era uma explicação muito pobre, mas era o que ele teria em que apegar-se.

Recuperar a memória era um alívio, apesar das lacunas remanescentes. Mas também um empecilho para a precaução ainda necessária. Queria acreditar em Ilsa como havia um ano. Gostaria de voltar àquele tempo de alegria e paz, porém sua vida estava em perigo. Confiar plenamente, só na própria família.

— Ilsa não pareceu muito machucada — Edmund disse, ao término do relato de Nanty.

— Por acaso não comprovou que ela tem arranhões, esfoladuras e hematomas? Geme por causa das dores, mas e daí? Ilsa dormiu de exaustão desde a hora que o marido dela acordou, até hoje pela manhã. Está mancando e anda com dificuldade. E não foi ela quem caiu do penhasco, foi? Apesar de tudo, Ilsa continua em pé e trabalhando.

— Já estamos no fim da tarde e ela ainda não veio aqui.

— Um pouco de paz é necessária, após tantas acusações e insultos.

— Mas que droga, Nanty! Será que você não entende? Estão tentando assassinar-me! — Edmund não conseguiu deixar a caneca vazia na mesa-de-cabeceira. O braço doía demais. — Obrigado — agradeceu a ajuda do irmão. — Por que não admite que Ilsa e seus irmãos terão muito a ganhar com a minha morte? Por acaso temos outros suspeitos?

Nanty voltou a sentar-se, suspirou, esticou as longas pernas e apoiou os pés na cama de Edmund.

— Antes de Angus voltar a Alddabhach, aventamos a hipótese de o suspeito ser alguém que desejasse apoderar-se de Clachthrom por direito hereditário. Nenhum indício. Clachthrom pertence aos MacEnroy há muito tempo e nós constituímos o último ramo, por mais fino que seja, da árvore genealógica MacEnroy. Sigimor, Tait e eu passamos a conjeturar que pudesse tratar-se de um dos amantes de sua falecida esposa. Alguém que, acreditando nos boatos, o culpe pela morte de Anabelle.

— Anabelle morreu após ingerir uma poção abortiva. Ela foi bem-sucedida naquele pecado, mas a hemorragia não pôde ser contida. Ilsa contou a história a seus irmãos, quando eles foram alertados de que eu era o responsável pela morte de Anabelle. Connor e Gillyanne também ouviram os boatos. O filho não era meu. — Edmund assegurou ao irmão. — Eu não tocava nela fazia quase um ano.

— Por que escondeu isso de nós?

— Nem sei. O mundo inteiro sabia que Anabelle era uma prostituta. Acho que não falei nada por ela estar morta. Não vi motivos para enlamear ainda mais seu nome.

— Pois é. E essa bondade manteve vivos os rumores. Muitos podem ter acreditado que ela foi envenenada pelo marido. E um desses pode ter sido o pai da criança. Talvez ele soubesse da gravidez e o culpasse pela morte da amante. Não acredito que seja alguém de Clachthrom. Não deparamos com nenhum suspeito. Tait e Sigimor estão atrás dos homens que o atacaram dessa vez. Eles poderão nos dizer alguma coisa decisiva.

Edmund suspirou e deixou-se afundar nas almofadas fofas empilhadas às suas costas.

— Anabelle não tinha idéia da paternidade da criança. Poderia ser qualquer um dos muitos com quem ela se deitava.

— A verdade não importa. Temos de levar em consideração o que um tolo fosse levado a supor. Alguém apaixonado que imaginava ter encontrado o amor de sua vida e acreditava que Anabelle também o amasse com o mesmo ardor. Uma pessoa com esse perfil poderia querer vingar a morte da amada e do filho.

— Não acredito que houvesse um homem tão estúpido. Após um mês de casamento, Anabelle deixou cair a máscara que havia usado para atrair-me em sua rede. A primeira vez que a encontrei com outro, ela parou de fingir. Por isso não tenho certeza de que Alice seja minha filha. Anabelle nunca foi fiel e nem pretendia ser.

— Bem, isso corrobora minha teoria sobre um amante enfeitiçado por Anabelle e que está decidido a fazê-lo pagar pela morte dela. Não acredito que Ilsa e os irmãos tentassem contra a vida de alguém por cobiça.

— Até eu descobrir o culpado, todos, exceto minha família, serão suspeitos. A hipótese de ser Ilsa também não deve ser descartada. Afinal, horas depois de assinar o contrato que lhe dava direitos tão generosos, quase fui assassinado. Apresente-me fatos mais concretos e eu esquecerei os outros, nem que seja para o bem de meus filhos.

— Como queira. — Nanty suspirou. — Ainda assim, reservo-me o direito de acreditar que está errado a respeito de sua mulher. Continuarei atento a todos e a tudo. Quer que eu espione Odo também? Apesar dos cinco anos, é muito inteligente. Pode ser um "inocente útil".

— Mas que engraçadinho. Se não estivesse preso a esta cama, eu lhe daria uma boa lição. — Edmund ouviu seu estômago roncar. — Não está na hora de comer?

— Espera que sua esposa venha trazer-lhe o jantar?

— E por que não? É dever dela atender às necessidades do marido.

— Felizmente Gillyanne não está aqui para ouvi-lo. — Nanty estremeceu com exagero e fechou a carranca. — Creio que está esperando demais, pela maneira como vem tratando Ilsa.

— Foi ela quem apareceu em Clachthrom exigindo um matrimônio diante da Igreja. — Edmund não gostava de sentir-se culpado e desumano. Nanty não perdia por esperar. — Posso não confiar em Ilsa, mas ela tem lá suas utilidades.

— Fico surpreso por havê-la deixado partilhar seu leito. Não tem medo de que ela o mate debaixo dos lençóis?

— Nua e embaixo de mim, Ilsa não pode causar-me nenhum tipo de malefício.

Edmund arrependeu-se do que acabara de afirmar. O remorso foi maior quando ouviu a porta do quarto ser aberta. Ilsa entrou, carregando uma bandeja com comida e bebida. O olhar de sua esposa não deixava dúvida. Ela estava com vontade de atirar-lhe na cabeça tudo o que trouxera. Ficou tenso ao vê-la aproximar-se. E mais aliviado ao constatar que Ilsa deixava a bandeja na mesa-de-cabeceira, embora da maneira menos delicada possível. Os pratos chocalharam e os copos tiniram. Foi difícil para ela fingir uma impassibilidade que em absoluto não sentia.

— Eu poderia arrancar-lhe um pedaço da garganta com os dentes. — Ilsa atacou, mal-humorada. — Coma! Precisa recuperar as forças.

— Para onde vai? — Edmund indagou ao vê-la dar meia-volta.

— Jantar no grande hall, depois darei boa-noite para as crianças e irei para a minha cama.

— A sua cama é esta.

— Não, senhor. Estou ocupando outro quarto.

— O lugar da esposa é ao lado do marido. Pode trazer suas coisas de volta.

Se Edmund não estivesse tão machucado, Ilsa lhe teria acertado um soco no queixo. Pensou em recusar, mas nada ganharia com isso. Edmund acabaria por interpretar sua atitude como uma perfídia básica das mulheres. O leito conjugal permanecia como o único território neutro. A paixão mútua, a única fonte que diminuía a desconfiança e o ódio do marido.

Se desistisse, não haveria oportunidade para abrandar-lhe o coração, Ilsa refletiu com um suspiro. Como também era impossível negar o desejo que os incendiava desde que haviam se conhecido.

— Voltarei quando o senhor estiver recuperado. — Ilsa fechou as mãos em punhos diante do olhar presumido de Edmund. — Afinal, já que tenho um marido, seria tolice não aproveitar a única coisa boa em tudo isso.

Edmund continuou boquiaberto, mesmo depois da porta ser batida com força.

— Nanty, ouviu a impertinência dela?

Nanty fingiu estar chocado e depois caiu na gargalhada.

— Ah-ah. Pelo menos ela confirmou que o marido é bom de cama.

Não poderia mesmo contar com Nanty como aliado! Edmund irritou-se e fitou o irmão com olhar faiscante. Assim que ficasse curado, faria amor com Ilsa até deixá-la com os olhos para fora das órbitas. Em seguida daria uma surra em Nanty.

 

— Que manhã mais desagradável — Edmund murmurou e sentou-se em sua cadeira à mesa principal do saguão.

— Enforcamentos nunca são espetáculos prazenteiros — Sigimor comentou, enquanto passava mel em uma fatia grossa de pão.

Edmund tomou um gole grande de cerveja, sem notar o menor sinal de abalo ou repugnância no cunhado. Nanty e Tait pelo menos estavam pálidos. Edmund teve de esforçar-se ao máximo para não vomitar na frente dos rapazes. Com certeza Sigimor tinha um temperamento tão rígido quanto o de Connor. O que era compreensível para um homem que, aos vinte anos, ficara responsável pela criação de uma horda de irmãos e primos.

Sigimor, Tait, Nanty e mais alguns homens de Clachthrom haviam encontrado os assaltantes, dois dias após o atentado. Os dois sobreviventes da perseguição tinham sido trazidos a Clachthrom e encerrados no calabouço. Aguardara-se a recuperação de Edmund que, dois dias depois, afirmara estar apto para o julgamento. Os bandidos não haviam esclarecido muita coisa, mas confessaram ser os mesmos do atentado em Muirladen. Edmund lembrara-se do mascarado que fizera o comentário zombeteiro sobre o lorde com o rosto na lama e depois o acertara com um violento pontapé.

Edmund esvaziou a caneca de cerveja. Ele mesmo os sentenciara à morte. Não tivera outra opção. Os sujeitos haviam tentado matá-lo duas vezes. Não lhes importara quem encomendava o serviço e nem o porquê. Interessava-lhes somente o dinheiro. Homens como aqueles, com sangue nas mãos, jamais se emendariam nem ao comprovar as conseqüências de seus atos. Edmund garantiu a si mesmo ter feito a coisa certa. Um proprietário de terras tinha de ser forte o suficiente para fazer valer a lei, embora preferisse mil vezes destruir os inimigos em uma luta de espadas.

— O senhor não teve escolha — Sigimor consolou-o. — Eles pretendiam assassiná-lo por algumas moedas que gastariam com cerveja e meretrizes.

Edmund aborreceu-se por Sigimor ter percebido seu estado de ânimo.

— Sei disso. Se eu tomasse outra atitude, teriam me chamado de tolo sem energia. Contudo não deixa de ser uma maneira horrível de mandar alguém para o outro mundo. Em Deilcladach, nunca tivemos um enforcamento.

— Lá se vivia em paz?

— Não totalmente. Os poucos inimigos eram eliminados com punhal ou espada. Havia uma trégua entre nós, os Goudie e o clã dos Dalglish. Depois de anos de lutas, os povos passaram a ocupar-se mais com a sobrevivência, sem muita disposição para ofender as leis. Aliás, durante muito tempo não tivemos nada de valor que merecesse ser roubado.

— Agora o senhor está com as mãos sujas de sangue. Isso me aconteceu aos vinte e dois anos. Tive de enforcar um de meus primos.

— Jesus! O que ele fez?

— O suficiente para ser enforcado umas dez vezes. Ele nunca foi uma pessoa correia. Ignoramos por muito tempo sua maldade e seus vícios. Tinha uma predileção sombria por estupros. Tentamos bani-lo, mas ele conseguiu voltar, sem que soubéssemos. Nessa época, o crápula achou que precisava divertir-se mais. Resolveu matar as jovens a quem violava. Cometeu quatro vezes esse crime terrível. Quando estava para fazer o mesmo com a quinta vítima, nós o apanhamos. Essas mortes pesaram no meu coração. Eu tinha errado em simplesmente bani-lo, mas não podia aceitar a idéia de enforcar um parente. Essa fraqueza emocional custou a vida de quatro jovens inocentes. A morte delas foi da maneira mais terrível que se possa imaginar. Quando nós, finalmente, o pegamos, não hesitei um só instante diante do dever.

A despeito do horror da narrativa, Edmund quase sorriu. Imaginou que Sigimor devia ter muitas histórias semelhantes e todas teriam uma mensagem ou um ensinamento moral. Admitiu que não se irritara com o cunhado. Talvez chegasse a gostar dos irmãos de Ilsa. A desconfiança que não o abandonava começava a falhar. Pelo que se lembrava deles na época em que conhecera Ilsa e quanto mais convivia com eles, mais incerto ficava a respeito da culpabilidade dos Cameron.

No entanto havia dois fatos contrários à aceitação total da inocência deles. Ainda não aparecera nenhum outro suspeito.

Além disso, Edmund não se lembrava de tudo o que acontecera entre ele e Ilsa.

— A maldade costuma estar no sangue — Sigimor continuou. — Na família do rapaz, não encontramos nenhum traço de mau caráter. Mas a mãe dele não era a mesma dos irmãos. A herança devia ser essa. A mulher já havia tentado matar o ferreiro.

— E também tia Elizabeth — Tait interveio. — A mulher correu atrás de tia Elizabeth com um machado na mão por toda a aldeia. Queria arrancar-lhe a cabeça.

— E verdade. Ela acabou por afogar-se na perseguição ao coitado do primo David.

— Como assim?

— Ela o acossava com uma faca na mão — Sigimor falou.

— David pulou no lago para livrar-se do perigo, e ela o imitou. Ele sabia nadar, mas ela não.

Edmund perguntou-se como o cunhado podia falar de acontecimentos tão escabrosos com um toque de humor.

— Tem razão, ele devia ter herdado a maldade de sua mãe.

— Edmund suspirou. — Bem, voltando aos últimos acontecimentos, não há mais como duvidar de que tenho um inimigo. Um homem que se esconde e paga a outros para me matarem. Ele também não aparece para certificar-se se o serviço foi executado a contento.

— Ainda não se lembrou por que esteve em Dubheidland?

— Não consegui. Esses são os trechos que permanecem na penumbra. Mas com certeza acabarei me recordando. Suponho que eu tenha ido atrás de alguma pista ou suspeita. Uma pena eu não ter contado para ninguém. Agi por minha conta e fiquei sem indicações.

— Por que saiu sem levar nenhum de seus homens?

— Não sei. Acabarei por lembrar disso também e então descobrirei os motivos. Faz poucos dias que minha memória começou a voltar. Terei de ter paciência até todos os fatos virem à tona.

Sigimor anuiu.

— Tem razão. Tait, Nanty e eu iremos até Dubheidland. Veremos o que poderá ser solucionado. Qualquer detalhe, por menor que seja, será levado em consideração. Esperaremos aqui por mais uma semana. Se puder lembrar-se de mais alguma coisa, será muito útil. Assim não teremos de procurar às cegas. Estou ficando cansado desse jogo.

— Tenho a impressão de ter lido os diários de Anabelle. Não me lembro bem quando fiz isso, mas pode até ser que eu tenha encontrado uma pista neles. Meu Deus, eu não gostaria de ler tudo novamente, mas é o que terei de fazer.

— São assim tão desagradáveis?

— Bem pior de que isso. Foi até bom eu não os ter descoberto antes de sofrer vários acidentes que, mesmo na época, deram-me a idéia de atentados contra a minha vida.. Eu teria jogado os diários no fogo, sem saber que poderia conter indícios importantes. — Edmund levantou-se. — Testemunhar um enforcamento deixou-me com uma disposição apropriada para a leitura.

Edmund saiu do grande hall a passos largos. Apressou-se até o gabinete e pegou os diários.

— Tait? — Sigimor chamou-o.

— Sim? — Tait fitou o irmão de revés, ocupado em passar o mel sobre outra fatia de pão.

— Se eu puser os olhos em uma mulher que tenha a mais leve semelhança com lady Anabelle, lhe darei permissão para surrar-me até eu criar juízo.

— Com o maior prazer.

Edmund gemeu, afundou na poltrona e esfregou o rosto com as palmas suadas. Passara a maior parte do dia lendo os diários de Anabelle. Só interrompera a leitura para tratar de algum assunto muito importante. Mesmo com relutância, retornara à tarefa logo depois do jantar. Sentia-se enojado. De Anabelle e de si mesmo, por ter sido tão cego. A beleza dela não lhe permitira ver quem sua esposa era na realidade.

O pior de tudo era achar que, se não houvesse encontrado aqueles relatos minuciosos, não teria sofrido.

Acabou por entender algumas coisas sobre Anabelle que haviam lhe escapado na primeira leitura. Na época, seu coração e sua mente estavam por demais obscurecidos pela dor e pelo ódio.

Anabelle detestara os homens. Vira todos como personagens brutos, lamentáveis e patéticos que podiam ser conduzidos por estímulo de suas partes pudendas. A maneira como Anabelle relatara seus inúmeros encontros amorosos soava como se ela travasse uma batalha para sair vitoriosa. De certa maneira assemelhava-se ao pior dos sedutores. Homens que usavam as mulheres e encontravam maior satisfação em elaborar uma lista extensa de conquistas do que nas mulheres em si.

Edmund não afastava a idéia de ter ido a Dubheidland por causa daqueles diários, apesar de não ter encontrado nenhuma indicação de que estivesse certo. Com a cabeça latejando, continuou a folheá-los. Descobrira uma coisa muito importante. Tudo aquilo não o fazia sofrer mais.

Anabelle estava fora de seu coração. Não havia mais ódio nem orgulho ferido. Ao ler as frases nem sempre bem elaboradas, era como se lesse os diários de uma estranha. A Anabelle com quem se casara fora apenas uma quimera criada sob o domínio da beleza e do desejo. O desdém com que ela se referia ao marido era o mesmo que dedicava a todos os homens. Anabelle não o conhecera o suficiente para julgá-lo, assim como ele fora incapaz de imaginar o que havia por trás de um rosto tão lindo.

— Entre! — Edmund respondeu ao ouvir uma batida na porta.

Espantou-se ao ver Ilsa abrir. Não a via havia quatro dias, desde que ela ouvira por acaso as palavras rudes que ele dissera para Nanty. Admitiu que deveria desculpar-se, mas hesitou. Lembrava-se de muitas coisas sobre o amor deles em Dubheidland, mas ainda não conseguia confiar nela como antes. Reler o que Anabelle escrevera dava-lhe a certeza de que não era um bom juiz de caracteres.

Ilsa aproximou-se e Edmund reafirmou para si mesmo que a paixão recíproca era a única coisa no relacionamento deles que aceitava sem hesitação ou questionamento. Queria ter Ilsa de novo nos braços, pois estavam praticamente curados dos últimos ferimentos. Como Ilsa o procurara, talvez ela quisesse voltar ao leito do marido. Sentira muito a falta da esposa. Depois de ler os diários sórdidos de Anabelle, ansiava ainda mais pela paixão honesta de Ilsa.

— O que o manteve escondido aqui durante o dia todo e parte da noite? — Ilsa chegou perto dele.

— Os diários de Anabelle. Guardo a nítida impressão de que li algo nessas linhas que me fez ir a Dubheidland ou suas adjacências.

— Conseguiu recordar-se do que se tratava?

— Não. — Edmund reparou que Ilsa empalidecia ao ler alguns trechos do caderno aberto sobre a mesa e tratou de fechá-lo. — Acredito que não lhe agradaria ler tamanha imundície.

Ilsa fitou o marido e disfarçou o choque que tivera.

— Encontrou pelo menos alguma pista?

Edmund negou com gestos de cabeça e puxou Ilsa para sentar-se em seu colo.

— Nada.

— Ajudaria se eu lesse em voz alta?

— Ilsa, não se trata de uma leitura fácil. E é sempre no mesmo estilo do que acaba de ver.

— Não duvido, mas acredito que eu poderia suportar. Não conheci Anabelle e não fui enganada por ela. Por isso eu talvez pudesse analisar o texto sem ódio, sofrimento ou qualquer outra emoção. Ficarei chocada, é claro. Mas isso passa. Sou mulher e posso enxergar coisas que um homem não veria.

— Palavras são lidas da mesma maneira tanto por homens quanto por mulheres.

— Eu sei, mas a compreensão delas pode diferir. Cada leitor faz uma interpretação pessoal das frases. Acredite. Uma mulher pode dizer ou escrever coisas que tenham significados diferentes para homens e para mulheres. Contudo, se prefere que eu não...

— Eu não me importo e acho que está certa. Se houver alguma mensagem enigmática que eu não consegui captar, talvez a leitura feminina poderá encontrar a resposta que estou procurando.

— Esses aí são todos?

— Não, há mais. Os outros se referem a anos anteriores. Anabelle gastou uma pequena fortuna nesses volumes só para deixar impressas suas idéias grandiloqüentes. — Edmund beijou-lhe a orelha e sentiu-a estremecer.

— Chegou a ler os demais? — Ilsa recostou-se no marido e murmurou monossílabos de prazer.

— Sim, quando os encontrei. Mas deduzi que os últimos, escritos durante o nosso casamento, poderiam elucidar o enigma.

— E por que algum trecho dos mais antigos não poderia ter-lhe despertado a curiosidade?

Edmund praguejou em silêncio, pôs Ilsa em pé e foi até a estante onde todos os volumes ficavam guardados. Pensou em ler ele mesmo e poupar Ilsa daqueles disparates, mas desistiu. Ela estava certa. Um olhar imparcial poderia descobrir indícios que, para alguém envolvido emocionalmente, passariam despercebidos. Deixou os mais antigos em cima dos mais novos e levantou a pilha toda.

— Foi por isso que veio procurar-me?

— Não. Vim para lhe dizer que voltei para o seu quarto. Edmund divertiu-se com a expressão de mártir da esposa.

— Nosso quarto. Ainda bem. Aquele é o seu lugar — ele afirmou e chegou até a porta. — Assopre as velas e apague as chamas antes de sair.

Ilsa gostaria de ter um dos diários nas mãos para acertá-lo na cabeça do marido. Suspirou e obedeceu-lhe. Depois de ter passado dois dias amuada, repreendera a si mesma. Edmund começara a lembrar-se do tempo em que haviam permanecido juntos, mas não conseguira livrar-se da desconfiança por causa dos dois atentados. Isso Ilsa até podia aceitar, apesar da angustia que o fato lhe causava. Admitiu, também, que a situação não se modificaria se continuasse a evitar o marido. Edmund recordava-se de que haviam sido amantes e de que assinaram um contrato matrimonial. Ela teria de fazer com que os motivos ressurgissem. Não podia ter certeza de que Edmund a amara, mas ele encontrara a paz a seu lado e ela o fizera feliz.

Edmund era um poço de contradições!, Ilsa refletia, caminhando em direção ao quarto. Ele continuava a manter-se distante, embora fosse óbvio que a desejava na cama. As suspeitas e o receio da ameaça não o impediam de dormir com ela nem de aceitá-la como mãe de seus filhos. Não acreditava nos cunhados, mas deixava-os à vontade em Clachthrom e aceitava as opiniões deles na caça ao inimigo.

Ilsa abriu a porta do quarto e indagou a si mesma se Edmund tinha consciência de quanto era confuso. Ao entrar, perdeu o fio da meada.

Edmund estava deitado na cama, envergando apenas um sorriso. Ilsa notou hematomas remanescentes e algumas feridas quase cicatrizadas. E a prova evidente de que o marido já se recuperara. Ilsa fechou a tranca e caminhou até a cama.

— Impressionante — ela murmurou.

— Obrigado, querida. — Edmund franziu a testa quando Ilsa se afastou. — Aonde vai?

— Por acaso acha que vou arrancar as minhas roupas em um ataque libidinoso? — Ilsa foi para trás do biombo, onde pôde sorrir sem que o marido a visse.

— Isso seria ótimo.

— Não para mim. Gosto muito deste vestido. Também já vi tudo isso aí antes.

Ilsa tampou a boca para que ele não ouvisse a risada. Edmund resmungara alto quando ela fizera pouco caso de seus encantos masculinos. Ao entrar no quarto, tivera a impressão de que vira um resquício do Edmund brincalhão que ela conhecera. Um lampejo do homem a quem amara, um breve retorno à alegria da qual desfrutara no passado. Com certeza haveria outros momentos iguais àquele. Aos poucos, teria de volta o mesmo Edmund de antes.

Ilsa apressou-se. Tirou as roupas e lavou-se. Escovou os cabelos e enfiou a camisola enfeitada de rendas que confeccionara com a cambraia de linho azul que comprara. A maneira como Edmund a fitou na volta para a cama deixou-a lisonjeada.

— Encantadora — ele murmurou. — Na verdade, imagino algo ainda mais provocante.

— E o que é?

— Tirar o traje de noite.

Pelo olhar de Edmund, ele não esperava aceite pela provocação. Uma ponta de recato da qual não podia livrar-se a fez hesitar. Apenas por alguns segundos. Aquela seria a primeira noite que passariam juntos, desde que a amnésia cedera. Era uma ocasião perfeita para agir com audácia. Com um sorriso sedutor, Ilsa tirou a camisola devagar e com sensualidade.

— Agora está melhor? Edmund não deixava de fitá-la.

— Muito. — Ele estendeu os braços e praguejou quando Ilsa se afastou. — E agora, aonde vai?

— Certamente não até o grande hall pegar vinho. Gostaria de diminuir o fogo.

— Ótimo. Venha apagar este que está me consumindo. Ilsa foi até os pés da cama, escalou-a e engatinhou até Edmund.

— Será que temos aqui um fogo para ser extinto?

Ela subiu devagar pelas pernas dele, beijando e acariciando cada centímetro de músculo rijo com as mãos, os lábios e a língua.

— Ah, sim, mas as chamas estão ficando mais quentes a cada segundo.

Edmund imaginou se Ilsa tinha idéia do alcance de seu erotismo inato. O modo como ela rastejara para cima da cama e os movimentos do corpo esguio e forte traziam implícitos convites e promessas. Um verdadeiro deleite para os olhos. A boca carnuda e o olhar incendiado tinham feito a paixão do marido chegar ao ápice. Ela movimentava os cabelos longos e brilhantes com a graça de uma mulher experiente. O fascínio de Ilsa deveria preocupá-lo. Deveria... Deitado de costas, Edmund saboreava o contato das mãos pequenas e macias, o calor da boca e da língua quentes, a carícia sedosa das mechas ruivas.

Ele estremeceu. Ilsa usava a mesma técnica na masculinidade manifesta. Edmund sentiu a umidade quente envolvê-lo, apoiou-se em um cotovelo e afastou-lhe a massa de cabelos para contemplar a dádiva com que ela o presenteava. Apesar dos esforços para controlar-se, Edmund foi preso na urgência de penetrá-la. Sentou-se, agarrou-a por debaixo dos braços e a fez montar em cima dele. A abundância do humor interno deu a Edmund a certeza de que Ilsa sentia prazer em agradá-lo. Ela arrastou-se com naturalidade em cima das pernas do marido, e o aumento da excitação o fez estremecer. Edmund não pôde se conter mais. O ritmo da penetração e o volume da rigidez chegaram a causar desconforto em Ilsa que, no entanto, não se incomodou. O êxtase estava próximo e ela o atingiu com violência.

Ilsa acordou de um cochilo e sentiu uma ponta de inquietação. Edmund poderia estranhar de vê-la escarrapachada em cima dele. Um comportamento devasso não seria a melhor maneira de ganhar a confiança de um homem. Ainda mais para quem fora casado com alguém como Anabelle. Ilsa saiu de cima dele e viu-o de testa franzida.

— Um belo desempenho, minha senhora.

Agir de maneira intuitiva nem sempre trazia alegrias, Ilsa cismou.

— Está falando do quê?

— Sabe muito bem ao que estou me referindo.

Ilsa curvou-se sobre o marido, pegou a camisola do chão e vestiu-a pela cabeça.

— Quer saber com quantos homens eu fiz isso, não é? Por acaso não lhe passou pela cabeça que eu quisesse recompensá-lo pelo que fez comigo? Oh, não. Seria simples demais. É melhor desconfiar. Deve haver muito mais por trás disso! Na certa, trata-se de mais um ardil que, sinto confessar-lhe, também desconheço. — Ilsa pulou da cama e foi para trás do biombo. — Pois trate de preparar-se. Da próxima vez, não me darei por satisfeita enquanto não o vir sangrando e gritando de dor!

Edmund engoliu a vontade de gargalhar. Ilsa estava tão irada que nem sabia o que dizia. Ela continuou a murmurar. Ainda bem. Ele não resistiria às risadas. Reconheceu que Ilsa tinha todo o direito de ficar enfurecida. O comentário dele fora maldoso e dispensável. Mas era uma delícia ouvi-la dizer disparates.

A alegria de Edmund apagou-se quando Ilsa saiu do esconderijo e encaminhou-se até a porta.

— Aonde vai? — Ele não agüentava mais perguntar aquilo.

— Para o "meu" quarto. Não ficarei aqui...

Ilsa deu um grito de susto ao ver Edmund a seu lado. Ele a pegou no colo e carregou-a de volta para a cama. Tirou-lhe o vestido, deitou-se com ela e aconchegou-a junto ao próprio. Puxou o acolchoado sobre eles.

— Seu lugar é aqui. — Edmund encaixou-se perfeitamente nos quadris de Ilsa.

— Nunca vi homem mais contraditório. Agradável em um momento e no outro desfere um direito no queixo.

— Se isso a deixa perturbada, imagine o que acontece comigo.

Ilsa admitiu a veracidade do comentário. Edmund era inteligente e sabia que às vezes se comportava de modo incoerente com atos, palavras e sentimentos. As grandes lacunas de memória deixavam-no inseguro, perdido. Embora ele não se desculpasse, Ilsa suspeitou de que a admissão da insegurança era uma forma de pedir perdão.

— Está tentando apelar para a minha simpatia?

— Isso a fará tirar a camisa?

— Não. Se eu não posso ir embora, fico de camisa.

— Certo. — Edmund beijou-lhe o alto da cabeça e decidiu não discutir. Ilsa adormeceu. Edmund tiraria a peça mais tarde.

 

— Veneno?

— Isso mesmo, veneno. — Margaret encarou o homem.

— O que vou fazer com isso?

Margaret andou de um lado para outro da cabana, com vontade de mandá-lo beber tudo. Fitou a cama estreita onde acabara de servir o idiota, lembrou-se do colchão de palha. A manta de lã rústica que ainda a fazia coçar-se. Queria ir embora voltar para a casa da prima e lavar-se para tirar do corpo o cheiro fétido daquele homem. Inspirou fundo para acalmar-se e fitou-o novamente.

— Ponha na comida ou na bebida dela.

— Eu não sou encarregado de servi-la.

— Espere até que ela esteja entretida por muito tempo em uma tarefa. Ofereça-lhe vinho e talvez alguma coisa para comer. Diga-lhe que o marido mandou.

— Por que ela? Pensei que quisesse matá-lo.

— Era o que eu pretendia. Porém não estamos conseguindo, não é verdade? Se a segunda esposa morrer, ele poderá ser acusado de assassinato e será enforcado. Não será tão satisfatório, mas já é alguma coisa. Se isso não ocorrer, poderei casar-me com o viúvo. Então eu mesma me encarregarei dele. Como eram os meus planos antes daquela ruiva idiota aparecer.

— Não acho que vai adiantar. Dizem que ele começou a lembrar-se de alguns fatos.

— Então será melhor apressar-se, para que eu possa aproximar-me dele outra vez. Não queremos vê-lo de volta a Muirladen. Se ele recobrar a memória, o senhor e eu acabaremos numa bela encrenca.

 

Ilsa fez uma careta e espreguiçou-se para aliviar a dor nas costas. Desde a manhã, analisava os diários de Anabelle. Pela posição do sol, já era final de tarde. Interrompera a tarefa apenas para amamentar Cearnach e ficar um pouco com as crianças. Estava cansada e um tanto sem coragem. E arrasada pelo que lera.

Fraser dissera que Anabelle fora uma pessoa perturbada. Eram palavras excessivamente gentis para a mulher que se revelava nos manuscritos. Anabelle ridicularizara e zombara de todos.

Não exatamente de todos, Ilsa refletiu, depois de ler outro trecho. O Amor Precioso, quem quer que fosse, fora poupado a maior parte do tempo. De vez em quando o Amor Precioso comportava-se mal. Anabelle fora sarcástica nas denúncias, falando de traições e necessidade de vingança. Nisso, o Amor Precioso voltava a ser perdoado, embora na opinião de Ilsa, aquilo não representara uma grande dádiva para ele. O amor de Anabelle parecia ter sido dominador e exaustivo. Exigira submissão completa, adoração cega e obediência inconteste.

Era de duvidar-se da sanidade de qualquer pessoa que suportasse tal situação durante tantos anos.

Ilsa endireitou-se, sentindo a excitação da descoberta. O Amor Precioso era a única pessoa mencionada com insistência nos relatórios pessoais de Anabelle, do começo ao fim de cada volume analisado. Outras, como Edmund e Fraser, eram citadas com freqüência. Mas nenhum deles com a constância do Amor Precioso. Aquele nome presumido permeava parágrafos inteiros e citações menores. Com certeza, fora parte integrante da vida de Anabelle.

Naquele momento, Geordie entrou no solar. Ilsa aborreceu-se por ele não ter batido, mas se repreendeu pela irritação. Deixara a porta entreaberta para ouvir o choro de alguma das crianças ou mesmo se elas a chamassem. Geordie, na certa, pensara que qualquer um poderia entrar sem ser convidado. Ilsa sorriu, agradecida ao vê-lo deixar uma bandeja com vinho e bolachas doces de aveia sobre a mesa.

— Muita bondade sua.

— Não foi minha a idéia, milady — Geordie respondeu. — Sir Edmund achou que a senhora iria gostar. Esteve trabalhando o dia todo com essas brochuras? Encontrou alguma coisa importante?

— Não. — Ilsa não entendia a própria necessidade de mentir. — Começo a pensar que meu marido está certo. Outra coisa o obrigou a ir para Dubheidland.

— Vai deixar isso de lado?

— Sim. — Ilsa bebericou o vinho. Achou-o amargo e resolveu comer biscoitos para melhorar o sabor. — Acredito que a melhor sugestão será queimá-los. Não seria nada estimulante se Alice os encontrasse no futuro.

Trocou mais algumas palavras com Geordie, antes de ele sair. Franziu a testa. Não tinha idéia por que mentira para o camarada. Edmund parecia confiar no homem e não era segredo que estivesse analisando os diários de Anabelle na busca de indicações que pudessem levar ao inimigo do marido. Na certa, se contagiara com a natureza desconfiada de Edmund.

Um copo de vinho e várias bolachas mais tarde, Ilsa confirmou suas suspeitas. O Amor Precioso fizera parte da vida de Anabelle desde o começo. O encontro ocorrera durante o período em que Anabelle fora adotada por L. O., uma mulher citada apenas pelas iniciais. Anabelle devia ter na época catorze anos e já passara por vários amantes. O primeiro homem não fora bem-vindo. O ódio ao sexo masculino poderia ter sua origem com ele.

Exceto pelo Amor Precioso, Ilsa refletiu e serviu-se de mais uma taça de vinho. Não entendia por que Anabelle não se casara com ele, se o amava tanto, nem por que a obstinação pela infidelidade. Em vários segmentos, Anabelle e o Amor Precioso haviam falado sobre outros homens, a quem se referiam com escárnio.

Muito estranho. Muito estranho.

Sem saber por que o fazia, Ilsa procurou outros trechos em que Anabelle se referia a momentos íntimos com o Amor Precioso. Tomando vinho, leu todos do começo ao fim. A maneira como Anabelle descrevia as relações com o Amor Precioso diferiam totalmente do relacionamento com os outros amantes. Não havia o desdém habitual, mas sim uma nota de triunfo, embora às vezes se notasse uma certa relutância por parte dele. O Amor Precioso tinha mãos suaves, pele macia e exalava fragrância adocicada. Anabelle não descrevera nem uma vez a genitália do Amor Precioso. Coisa que as mulheres adoravam fazer quando escreviam sobre os amantes. O Amor Precioso tinha estatura mais baixa que Anabelle e cabelos lindos. Uma voz adorável, pés elegantes.

Ilsa praguejou, terminou o vinho e releu os parágrafos. Com o coração aos saltos, teve certeza de haver feito uma descoberta importante. Anotou em uma folha a lista dos elogios ao Amor Precioso. Releu duas vezes. Depois acrescentou mais uma linha de louvor contido em uma parte que se referia a um encontro rápido. O Amor Precioso sabia como tocar uma mulher, como saciar os desejos e as necessidades de uma mulher como nenhum homem seria capaz de fazer.

— Droga, como não vi isso antes? — Ilsa murmurou e levantou-se, ansiosa para falar com Edmund.

Agarrou-se no encosto da poltrona, suando. Não se sentia bem e piorava rapidamente. Com vontade de vomitar, afastou-se da mesa para não estragar os diários. A dor a fez gritar e cair de joelhos. Esvaziou o estômago no chão e sentiu-se melhor. Em instantes, as dores recomeçaram. Apertou o ventre e tentou ficar em pé. Impossível. Rastejou até a porta. Ouviu alguém aproximar-se e procurou gritar. Vomitou de novo. Tentou afastar-se da poça nauseante, sem conseguir. Encolheu-se na tentativa de diminuir o sofrimento que lhe retalhava as vísceras.

— Ilsa!

— Alguma coisa está errada — ela sussurrou.

Fraser e Gail ajoelharam-se a seu lado e Fraser abraçou-a.

— Ela está muito mal — Fraser disse e praguejou quando Ilsa começou a se contorcer. — Precisamos levá-la para a cama!

—Meu Deus... que agonia! — Ilsa gritou. — Livre-me disso! Sigimor entrou na sala, seguido por Edmund, Tait e Nanty.

Ilsa desvencilhou-se de Fraser no momento em que Sigimor a alcançava. Edmund sentiu um aperto violento no estômago ao ver o estado de Ilsa. Sigimor levantou-a nos braços e caminhou para a porta.

— O vinho... — ela gemeu. — Estava... muito... amargo... — As convulsões recomeçaram e Sigimor segurou-a com força. — O vinho... está... queimando!

— Fraser, guarde o vinho em um local seguro para que possamos examiná-lo mais tarde — Edmund ordenou e correu atrás de Sigimor. Parou apenas para dizer a Peter que precisava de Glenda com urgência.

Tirar as roupas de Ilsa, vesti-la com uma camisola limpa e segurá-la na cama foi tarefa para Edmund, Sigimor, Fraser e Gail juntos. Tait e Nanty esperaram, inconsoláveis, no corredor. Ilsa vomitou com força mais duas vezes, porém as dores continuavam. Ela dizia coisas desconexas. Não entendia o que Edmund e Sigimor falavam. Edmund achou que teriam de amarrá-la na cama. Naquele momento, Ilsa desmaiou. Fraser certificou-se de que se tratava de uma síncope e procurou acalmar os dois homens.

— Gail, ajude-me a limpar a sujeira — Fraser pediu.

— Não toquem nisso ainda! — Glenda gritou e correu até a cama.

Edmund limpou o rosto de Ilsa com um pedaço de linho umedecido que Fraser lhe entregou. Glenda examinava o que saíra do estômago de Ilsa, quando esta abriu os olhos e fitou o marido.

— O vinho... — ela falou em um fio de voz. — O vinho é amargo.

— Que vinho? — Glenda perguntou, e Fraser mostrou-lhe a bandeja que trouxera para o quarto.

— Onde pegou esse vinho, Ilsa? — Edmund indagou.

— Do senhor — Ilsa gemeu e apertou o estômago. — Ele disse que o senhor mandou. O vinho era amargo e está queimando!

— É veneno — Glenda anunciou e voltou até a cama. — Estava na bebida.

— Não! — Inconformado, Edmund recuou, diante do avanço de Sigimor.

Edmund puxou a espada, um segundo depois de Sigimor puxar a dele. Tait veio para o lado do irmão, e Nanty aproximou-se de Edmund. Os dois jovens também desembainharam as espadas. Fraser gritou, mas ninguém lhe deu atenção.

— O senhor tentou matá-la! — Sigimor acusou, ameaçador. — Cansou-se de tentar afastá-la com a sua crueldade, não é?

— Não! — Edmund protestou. — Eu jamais...

— Foi Ilsa mesmo quem disse. O senhor mandou um vinho envenenado para ela.

Sigimor assumiu posição de ataque, e Nanty praguejou. Edmund sentiu o sangue gelar. Sua esposa estava morrendo e os irmãos dela pensavam em matá-lo. Não tinha defesa nem conseguiria que os Cameron mudassem a intenção. As palavras de Ilsa tinham sido decisivas. Edmund preparou-se para o golpe, sem saber o resultado da luta nem quantos morreriam. Nisso ouviu-se um baque surdo. Sigimor, com os olhos esbugalhados, caiu no chão, atordoado. Após a queda, Edmund pôde ver Gail com a bengala pesada que ele usara na convalescença depois do ataque em Muirladen.

— Às vezes é preciso enfiar à força um pouco de juízo na cabeça de um homem — Gail resmungou, fitando Sigimor, que começava a recuperar-se dos efeitos do golpe.

Sigimor encarou sua pequena agressora, sentou-se devagar e esfregou a cabeça.

— A senhorita podia ter-me estourado os miolos com esse cajado.

— Desculpe-me, não foi o que eu pretendia fazer. Eu precisava chamar a sua atenção e não havia esperança de fazê-lo com polidez. O senhor estava com o sangue fervendo e começou a agitar a espada, não foi? Quem conseguiria fazê-lo raciocinar?

— Maldição! Ilsa disse que Edmund a fez tomar vinho envenenado! Espera que eu o cumprimente? — Sigimor levantou-se devagar e esfregou novamente o local da pancada.

— Ilsa "pensa" que sir Edmund deu-lhe o vinho. — Gail suspirou. Os quatro homens a encaravam. — Foi o que "disseram" a ela. Lembra-se de Ilsa ter acrescentado: "Ele disse que o senhor mandou"? Alguém trouxe a bebida e afirmou que foi a mando de sir Edmund!

— A senhorita está me acusando — Sigimor murmurou, mas embainhou a espada.

— Esqueça. Agora vamos aos fatos. Alguém deu o vinho a Ilsa e disse que foi por ordem de sir Edmund. Sir Edmund nega ter mandado a bebida. O senhor não acha que já temos provas suficientes de um crime? Será que ainda pensa em retalhar os outros em pedaços e deixar ainda mais sujeira para limparmos?

Sigimor fechou a carranca.

— A senhorita tinha de escolher logo este momento para tornar-se audaciosa e cínica?

— Não poderia haver momento melhor. Será melhor pararmos de discutir até descobrirmos exatamente o que está acontecendo. Se o senhor não pode fazer isso enquanto está neste quarto, é melhor sair.

— Edmund! — Ilsa gritou e recomeçou a contorcer-se. — Os diários! Procure nos diários!

Edmund voltou a espada para a bainha e correu para o lado da cama.

— Psiu, Ilsa... — Ele segurou-lhe a mão.

— Os diários. É preciso que os leia, Edmund. Sem falta.

— Eu já os li várias vezes.

— O Amor Precioso... Leia sobre o Amor Precioso. Minhas anotações estão lá. Precisa ler as minhas anotações!

Edmund não chegou a responder. Ilsa gritou, arrancou a mão das dele e cravou-a no estômago. O breve momento de lucidez já não existia. Edmund sentiu Tait puxá-lo para o lado e quis avançar sobre o rapaz. Imediatamente foi agarrado por Fraser e Nanty, que o levaram até a porta.

— Tenho de ficar com ela! — Edmund viu Gail e Glenda amarrarem as mãos de Ilsa com um lençol para que ela não pudesse ferir-se.

— Aqueles dois podem ter desistido de estripá-lo no momento — Fraser explicou —, mas isso não quer dizer que eles confiam no senhor perto de Ilsa. A última coisa de que Ilsa precisa agora é de quatro grandes tolos lutando por causa dela.

Os três já estavam no hall e Fraser fechou a porta.

— Eu não a envenenei.

— Sei disso, meu senhor. — Fraser deu-lhe uma pancada carinhosa no braço. — Ilsa está doente, não tem noção do que está dizendo. Também sabe que o senhor não faria nada contra ela.

— Será? Quando me viu a seu lado, pareceu-me ver medo em seu olhar.

— Pode ter sido uma reação instantânea. Alguém mentiu a ela, para dar a impressão de que o marido lhe havia enviado o vinho. Veja só. Ilsa disse-lhe qualquer coisa sobre os diários. Ela não se esforçaria tanto para revelar-lhe algo importante se estivesse convencida de que o senhor tentou envenená-la, não é mesmo?

— É... acho que não. Mas os Cameron pensam o contrário.

— Ora, o senhor não deve esperar que raciocinem com lógica, enquanto a única irmã deles está agonizando. Além disso, o senhor também nunca demonstrou muito afeto pelos cunhados. Agora, por que o senhor não vai... — Fraser olhou para o corredor e praguejou.

Edmund seguiu-lhe o olhar e ecoou a imprecação. Odo, Aulay, Ewart, Gregor e Alice estavam parados a poucos passos. Ivy devia estar com os gêmeos, aguardando as novidades. Alice chorava baixinho e os meninos continham as lágrimas com heroísmo. Ewart e Gregor, por sua pouca idade, seriam mais fáceis de consolar. Não fariam muitas perguntas. Edmund foi até Odo, que precisava de mais atenção. Fraser e Nanty aproximaram-se dos outros. Edmund desconfiou de que os diários teriam de esperar.

— Estou sangrando — Ilsa sussurrou.

— Não, minha querida — Sigimor respondeu. — Está apenas doente. Não tem nenhum ferimento.

— Mas estou sangrando — Ilsa repetiu. — Eu não deveria estar perdendo sangue. Oh, Deus, que pena.

Glenda levantou as cobertas e viu o sangramento.

— Minha filha, está na época de menstruar?

— Foi o veneno que provocou isso? — Sigimor quis saber.

— Não. — Glenda reparou nos rostos mortalmente pálidos de Sigimor e Tait, que fixavam as paredes. Depois examinou melhor a paciente. — Ela abortou. Por isso as dores foram tão lancinantes. Coragem, rapazes. Gail e eu vamos precisar da sua ajuda para limpar a nossa enferma.

Depois de momentos aflitivos, Sigimor segurava em seu colo Ilsa adormecida. Ela já fora banhada e estava enrolada em um lençol alvo. Gail e Glenda trocavam as roupas da cama.

Como uma mulher tão delicada podia sobreviver a tanto sofrimento?, Sigimor comoveu-se.

— Tem certeza de que ela perdeu uma criança?

— Tenho, sim — Glenda respondeu. — Era um início de gestação. Por isso Ilsa afirmou que não poderia estar sangrando. Ela desconfiava da gravidez. Melhor assim. O feto poderia ser afetado pelo veneno. Deus sabe o que faz.

— Acha que o aborto poderá ter conseqüências para Ilsa? — Tait tirou uma mecha de cabelos da testa da irmã.

— Não. O esvaziamento foi completo e uma hemorragia leve é normal. Ilsa tem um constituição forte e seu organismo se encarregará da cura. A maneira como ela eliminou o veneno é admirável.

— Desde pequena, Ilsa teve facilidade de rejeitar o que seu corpo não aceitava. Se comia alguma coisa de que não gostava, aquilo não parava mais de que alguns minutos em seu estômago.

— Isso mesmo — Sigimor concordou. — Sabíamos quando isso ia acontecer pela expressão estranha da sua fisionomia.

Glenda estreitou os olhos.

— Provavelmente os irmãos nunca lhe deram nada só para ver o que acontecia. — Glenda viu os dois corarem. — Hum, muito bonito, era o que faziam. Deite Ilsa na cama, por favor.

Sigimor obedeceu e cobriu Ilsa com o acolchoado. Glenda tocou na face da enferma.

— Ilsa dormirá por algum tempo. Não se preocupem. Ela vai sarar. Daqui para a frente, eu serei de pouca valia. O organismo dela se encarregará da cura. Nem tive de dar-lhe um purgativo. Ilsa se livrou de tudo o que não presta com maior eficiência do que eu teria conseguido fazer.

— Todo o veneno já foi eliminado?

— Ilsa não vai morrer, fiquem sossegados. Os vômitos persistirão durante alguns dias até seu organismo ficar livre das substâncias nocivas. Tentarei fazê-la tomar uma poção curativa e só. Ilsa não terá vontade de comer. Ah, antes que me esqueça, os bebês não poderão mais ser amamentados e o leite deverá secar. Isso e o fato de perder a criança a deixarão desanimada por um tempo.

— Edmund... — Gail começou a falar e foi interrompida.

— Não quero aquele patife perto de Ilsa — Sigimor atalhou com rudeza. — Ele tentou envenená-la. — Fitou Gail que resmungava. — A senhorita parece uma Cameron.

— Estou com os senhores há tanto tempo que já devo ter me contaminado. Sir Edmund não lhe deu o veneno! Alguém disse a ela que o marido havia lhe mandado o vinho. É bem diferente, não acha? Sir Edmund pode agir como um tolo, mas não é um assassino.

— Concordo com Gail — Glenda afirmou, muito séria. — Meu senhor pode estar perturbado, porém jamais faria isso. — Ergueu a mão diante dos protestos de Sigimor e Tait. — Desconfiem, se isso lhes faz bem. Mantenham-no afastado da esposa, se isso os alegra. Mas se levantarem a espada contra ele, serão culpados de matar um inocente. O homem que sua irmã ama é o pai dos filhos dela. Querem carregar esse peso pelo resto da vida só porque não conseguem refrear um pouco o temperamento? Comportem-se. Ilsa acordará logo.

— Ficarei com ela por enquanto — Gail ofereceu-se. — Na hora de amamentar os gêmeos, um dos senhores virá fazer-lhe companhia. Farei meu turno agora. — Esperou Sigimor e Tait saírem. — A senhora disse a verdade para eles?

— Sobre a recuperação de lady Ilsa? — Glenda beijou Gail no rosto. — Sim, minha jovem. Poderá demorar um pouco, mas ela ficará boa. O mais difícil será convencer esses dois cabeças-duras que o meu senhor não é o culpado.

— Não será difícil, se Ilsa também não acreditar nisso. Os Cameron podem às vezes parecer insensatos, mas não são. Precisarão apenas de um tempo para refletir. Eles não têm certeza do que afirmaram ou eu não teria conseguido impedi-los de matar sir Edmund. Se estivessem convencidos de que ele havia tentado matar Ilsa, neste momento estaríamos limpando as espadas do sangue de um MacEnroy.

— Tem razão. Bem, vou descansar um pouco naquele mesmo belo quarto que me deram da outra vez. Se precisar de mim, saberá onde encontrar-me.

Glenda saiu e Gail sentou-se em uma poltrona ao lado da cama. Mas não conseguiria dormir enquanto Ilsa não acordasse e falasse com ela.

— Quando acordar, Ilsa, terá um trabalho bem grande — Gail falou em voz baixa. — Terá de persuadir seus irmãos a não escapelarem seu marido, nem pendurá-lo como troféu na parede do estábulo. Talvez seja até bom sir Edmund experimentar o gosto da comida que tem lhe servido, desde que a senhora chegou aqui. Ele verá como é bom alguém considerá-lo uma ameaça. Quem sabe começará a pensar com mais clareza.

— Mas que droga, só quero ver como ela está, seu idiota! — Edmund queixou-se ao ser afastado por Nanty da entrada do quarto de Ilsa, quando passaram pelo corredor. — Também acha que eu pretendo cortar-lhe a garganta?

Edmund lançou um olhar fulminante para Sigimor, que guardava a porta como um cão bravio.

— Ouviu o que Glenda lhe disse. Ilsa vai se recuperar, mas até lá os irmãos não deixarão que se aproxime dela. Chegou sua vez de aceitar isso. Ilsa tolerou uma situação idêntica durante semanas. A suspeita tornou-se uma praga neste castelo. Até Odo vem mantendo uma inquisição permanente.

— Odo é muito inteligente e não aceitará palavras vagas. — Edmund gostou de mudar de assunto. — Ele é esperto, perspicaz e observador. Se eu não soubesse o caminho da gruta naquele dia, ele teria me levado até lá sem hesitar. Apesar de aterrorizado, foi capaz de voltar até aqui para procurar ajuda e dizer-me exatamente o que eu precisava saber. Odo administra a ala das crianças e elas o aceitam sem discutir. Ivy não é boba, mas Odo a convenceu de que havia um dragão fazendo ruídos e que o cheiro era do bafo do animal. Quando, na verdade, ele emitia as ventosidades.

Entraram no solar de Ilsa.

— É, Nanty, Odo promete.

— Lamenta o fato de ele não ser seu herdeiro?

— Sim e não. Para ser meu herdeiro, eu teria de casar-me com a mãe dele. Isso teria sido um desastre. — Edmund estremeceu. — Precisa ver como ele cuida dos gêmeos. Odo tem uma percepção acentuada dos fatos, muito maior do que seria esperada para a sua idade. Já me perguntou qual dos gêmeos seria o proprietário das terras de Clachthrom. Ilsa deve tê-lo esclarecido de como são as regras, sem ferir sentimentos nem despertar mágoas. Duvido que eu fosse capaz de fazer isso tão bem.

— Ilsa trata as crianças como se fossem filhos dela. Ei, o que houve? Os diários ainda estão aqui.

Edmund franziu o cenho diante das brochuras em cima da mesa.

— Sim, mas fechados. Quando Ilsa gritou e corremos para cá, estavam abertos e espalhados. Eu notei o fato quando ela falou do vinho e olhei ao redor para procurar a garrafa.

— Podem ter limpado a sujeira e fechado os diários.

— Não creio. Os apetrechos da tapeçaria que Ilsa estava bordando ainda estão espalhados perto da poltrona onde ela costuma sentar-se. O trabalho de costura também. A pena e a tinta não foram tiradas do lugar. Alguém limpou o vômito, mas nada mais foi mexido. Exceto pelos diários, que foram fechados. As anotações às quais Ilsa se referiu não estão aqui, embora seja visível que ela estivesse escrevendo.

Nanty praguejou e passou a mão pelos cabelos.

— Ilsa deve ter encontrado provas importantes.

— O que poderá representar um perigo para ela. Mas não é isso o que mais me preocupa.

— Não? Se alguém está na posse das anotações, significa que o inimigo sabe o que ela descobriu.

— O que mais me preocupa é saber quem as levou — declarou Edmund. — Suponho que o inimigo tenha um aliado em Clachthrom. O desconhecido hostil mandou uma cobra para dentro do meu ninho.

 

Ilsa teve consciência de que o corpo inteiro estava tão dolorido como se houvesse levado uma surra. Por dentro, o calor incessante das chamas. Alguém tentara envenená-la, incriminando Edmund. Na verdade, tinha dúvidas e muitas incertezas a respeito do marido. Porém jamais suspeitaria de sua inocência. A questão toda era descobrir quem pretendera fazer a culpa recair sobre Edmund.

Uma dor no baixo-ventre lembrou-lhe a perda do filho de cuja existência havia tão pouco tempo vinha suspeitando. A tristeza continuava apesar de saber que, por causa do veneno, fora um desfecho preferível. Sentiu lágrimas escorrerem pela face e ouviu passos perto da cama.

— Edmund? — Ilsa sussurrou e esforçou-se para abrir os olhos.

— Não, querida. Sou eu, Tait. — Ele limpou-lhe a umidade do rosto com um lenço de linho. — Está com sede?

— Bastante.

Tait segurou-lhe as costas e encostou-lhe nos lábios a beira do copo com água.

— Onde está Edmund? — Ilsa desapontou-se por não vê-lo a seu lado.

— Por que deseja falar com ele? — Tait abraçou-a, enquanto arrumava as almofadas. — Edmund tentou envenená-la. — Recostou-a nos travesseiros.

— De onde é que tirou essa idéia maluca?

— Minha querida, quando lhe perguntamos onde pegou o vinho, você nos respondeu que Edmund o havia mandado trazer.

— Ora, eu na certa delirava de dor. Por quanto tempo estive mal?

— Na verdade, esteve muito mal por algumas horas. Depois dormiu quase dois dias. Glenda tem lhe dado poções curativas.

Ilsa pôs as mãos nos seios.

— Não poderá mais amamentar os gêmeos. Glenda afirmou que não se sabe por quanto tempo o veneno permanece no corpo, e o leite poderá secar. Em todo caso, não é aconselhável correr o risco.

— Ela tem razão. O que me surpreende são os efeitos desaparecerem tão depressa.

— Glenda é muito experiente e medicou-a. Mas ela declarou que seu organismo tem o poder de automedicar-se e de livrar-se do veneno.

— Perdi meu bebê. Eu apenas começava a suspeitar da gravidez. Fiquei muito triste, embora sabendo que foi para melhor.

— Essa é exatamente a opinião de Glenda.

— Edmund já sabe?

— Ilsa, ele pode ter tentado matá-la.

— Não...

— Sei que ama aquele...

Ilsa fechou-lhe os lábios com a ponta dos dedos.

— Edmund jamais pensaria em causar-me algum mal. Não estou segura quanto aos sentimentos dele. Talvez até queira que eu vá embora. Mas ele nunca tentaria nada contra mim. O que sinto por Edmund nada tem a ver com esse julgamento. Sabe que eu estive lendo os diários de lady Anabelle? — Ilsa viu-o anuir e abaixou a mão. — Ela escreveu sobre o dia, cerca de um mês após o casamento com Edmund, em que ele a encontrou na cama com dois homens.

— Jesus! Dois homens?

— Isso mesmo. Mas não espere que eu lhe diga como foi, pois até ela não foi muito explícita. Anabelle descreveu a confrontação e deixou muito claro que, na opinião dela, Edmund era um tolo patético. Sabe por quê? Por mais que a amaldiçoasse, ele não levantou a mão contra ela. E olhe que Anabelle o provocou a extremos. Edmund nunca bateu nela e nem mesmo encostou-lhe um dedo!

— Tem certeza? Pode até ser que, cansado das provocações, tenha-lhe ministrado veneno.

— Não foi ele. Anabelle descreveu o dia em que tomou a poção abortiva que causou a sua morte. Eu não me surpreenderia se ela tivesse descrito os acontecimentos minutos antes de ingerir a droga. Anabelle lamentou não ter conseguido atrair Edmund para a cama. Assim poderia responsabilizá-lo pelo filho que carregava no ventre. Escreveu em como pensava livrar-se da criança. Não poupou gratidão e louvores para quem lhe havia proporcionado os meios de abortar. O Amor Precioso.

Tait franziu a testa.

— Eu a ouvi falar sobre o Amor Precioso quando ainda estava mal.

— Edmund disse-lhe alguma coisa sobre isso?

— Não. Não temos conversado.

— São mesmo uns tolos. Preciso falar com ele. — Ilsa suspirou ao vê-lo franzir a testa de novo. — Sabe muito bem que não poderá contradizer-me. Se um homem é incapaz de castigar a mulher com quem acabou de se casar, por tê-la encontrado na cama com dois homens, acha que ele seria capaz de ferir qualquer outra?

— Provavelmente não. Quer que eu mande entrar uma das mulheres primeiro? — Tait perguntou, da porta.

— Sim, por favor.

Tait pediu a Fraser que atendesse Ilsa e saiu à procura de Sigimor. Encontrou-o no grande hall, sentado diante da enorme lareira, limpando a espada. Tait serviu-lhe uma caneca de cerveja, encheu outra para si e sentou-se defronte do irmão.

— Ilsa acordou e quer falar com o marido — Tait explicou.

— Espero que a tenha feito recobrar a razão. — Sigimor franziu os lábios.

— Na verdade, foi ela quem me fez raciocinar. — Tait relatou a conversa que tivera com a irmã. — Ilsa está certa. Ele não faria isso. Quando tive certeza de que ela não iria morrer, pude esfriar a cabeça e achei que era muito difícil acreditar na culpa de Edmund. Ilsa apenas confirmou minhas suposições.

Sigimor tomou um grande gole de bebida e suspirou.

— Eu também tenho dúvidas. Desde que chegamos aqui, não notei nenhuma crueldade em Edmund. Convenhamos que ele não tem sido muito bondoso com Ilsa porque sua mente está perturbada. Mas acho que nada faria contra ela. Ilsa acertou-o no queixo e derrubou-o na frente de todos e ele não revidou. Também não me sai da cabeça a expressão de angústia de Edmund quando a viu imersa em tanta dor e vomitando por todo o castelo.

— Eu percebi. Não era a fisionomia de um homem que espera o sucesso da sua trama.

— Nem de quem temia ser apanhado. Ainda assim, Ilsa corre perigo por causa dele. Quem foi o demônio que lhe deu a bebida e disse que foi a pedido de Edmund?

— Mas que droga! Esqueci de perguntar-lhe. Acha que essa pessoa é o próprio inimigo ou apenas um contratado?

— Não sei. Não temos tido sorte em nossas buscas e peregrinações. Nem ouso ter esperanças.

Edmund e Nanty aproximaram-se. Edmund serviu-se da cerveja que estava sobre a mesa, fitou os Cameron de revés e praguejou diante dos olhares deles. Tentava ser compreensivo e paciente, mas ser tratado como um cão raivoso, dentro de sua própria casa, era difícil de aceitar. Tinha certeza de que não tratara Ilsa tão mal. O pior era ter de ficar afastado dela e procurar notícias com Glenda.

— Ilsa está pedindo para vê-lo — Sigimor foi o primeiro a falar.

Edmund engasgou e, quando conseguiu falar, a suspeita já fora instalada.

— O que foi que disse?

— Será que também é surdo? Eu disse que Ilsa pediu para vê-lo — Sigimor repetiu em voz alta.

— E por acaso vai permitir que eu vá até o quarto dela? Tem certeza de que não irá desafiar-me para uma luta? Talvez me faça ir até lá com a ponta da espada em minhas costas.

— E por que eu faria isso? Aquele é o seu quarto. Eu teria de ir junto, se o senhor não soubesse o caminho. Ou será que não sabe?

Edmund ficou indeciso. Se corria para ver Ilsa ou se dava um soco na cara daquele grandalhão metido a engraçado. Terminou de tomar a cerveja e saiu devagar, à espera que o detivessem no meio do caminho. Como não viu nenhuma cabeça vermelha aproximar-se, saiu correndo, assim que deixou o grande hall. Era melhor contar com a possibilidade de Sigimor mudar de idéia.

Ilsa espantou-se com a entrada repentina do marido. Se não o conhecesse, pensaria que ele viera correndo. Estranhou ao vê-lo manter vigilância constante sobre a porta. Depois de alguns minutos, Edmund virou-se e passou a tranca. Ilsa nem chegou a perguntar o que estava acontecendo. Em segundos, Edmund sentou-se na cama e beijou-a. Ela agradeceu a eficiência de Fraser pelo banho refrescante de esponja e entregou-se ao prazer do beijo.

— Meus irmãos causaram-lhe algum problema? — Ilsa perguntou, quando Edmund afastou os lábios, endireitou as costas e segurou-lhe as mãos.

— O que acha? — Edmund deu um sorriso que não alcançou os olhos. — Ilsa, sua aparência é bem melhor. As crianças ficarão satisfeitas de saber que está se recuperando depressa.

— Fraser disse que gostaria de trazê-las para um beijo de boa-noite, mas acha que preciso de mais um pouco repouso para enfrentar oito crianças. Pois eu gostaria de vê-las neste instante.

— Fraser tem razão. — Edmund inspirou fundo para conter a avalancha de emoções que o atingiam. — Ilsa, não fui eu quem lhe mandou o vinho.

— Sei disso. Geordie trouxe a bebida e disse-me que foi a seu pedido. Era o que eu queria explicar, mas não conseguia.

— Terei de falar com Geordie para saber de onde ele tirou aquela garrafa. Como está se sentindo, Ilsa? Glenda manteve-me a par do que estava acontecendo. A perda do feto e a impossibilidade de amamentar os gêmeos. Foram muitos golpes de uma só vez. Sinto muito, Ilsa.

— Não é sua culpa. Foi uma pena perder a criança, mas prefiro assim a ter um filho deficiente. Quanto a Cearnach e Finlay, já estão precisando de uma alimentação mais consistente. Gail continuará a amamentá-los e complementará com papinhas de legumes. Resolvido o assunto, vamos conversar sobre o que decifrei nos diários.

— E o que foi?

— Será que não fui clara o suficiente?

— Ilsa, eu não vi as anotações. Quando cheguei ao solar, as brochuras estavam fechadas e não havia nenhum papel solto. — Edmund anuiu a confirmação ao vê-la alarmada. — Por certo não queriam que eu visse o que havia sido anotado e pensaram que a descoberta morreria com a descobridora. Nos últimos dois dias tenho tentado encontrar quem entrou no solar depois do envenenamento. Jenny limpou a sujeira do chão e jura que não tocou em mais nada. Acredito nela.

— Jenny não mentiria. Temos um traidor entre nós. Depois da tentativa de matá-lo no rochedo, Sigimor aventou essa hipótese. Parece que acertou.

— O que não deixa de ser irritante.

— Ah, está bem, esqueça. Pegue os diários e algumas folhas em branco.

— Nada disso. O repouso é fundamental.

— Por favor, Edmund! É preciso analisar o que eu vi o mais depressa possível. É importante. Já perdemos dois dias. Edmund, tentaram matá-lo dentro de sua propriedade! E fizeram o mesmo comigo. Envenenaram-me dentro do castelo. Isso na hipótese de consideramos acidente o que houve na gruta. O que traz o inimigo para muito perto das crianças. Não ficarei sossegada enquanto não lhe mostrar o que encontrei.

Edmund teve de concordar e foi buscar os diários. Ilsa estava certa. Precisavam encontrar o traidor que agia dentro do castelo. Embora não lhe agradasse admitir, podia confiar em Nanty, em Tom e nos Cameron. Talvez fosse injusto, mas não poderia incluir Geordie na lista até ter certeza de onde o homem pegara o vinho. Confiava em Gail, Fraser e Glenda. Havia também Jenny e mais uma ou duas criadas de confiança, porém nenhuma delas capacitada para proteger Ilsa e as crianças.

Pegou de cima da mesa o que Ilsa lhe pedira e virou-se para sair. Quase colidiu com Nanty, que entrava.

— Pensei que estivesse com Ilsa.

Edmund explicou do que se tratava e resolveu aproveitar-se da curiosidade do irmão.

— Carregue os volumes. — Edmund saiu do solar. — Milagre que os Cameron não estão vigiando.

— Foram caçar coelhos, agora que estão mais confiantes. Sigimor gosta de ensopado de coelho.

— Será que pelo menos agora acreditam em mim?

— Ah, estão mais confiantes. Os dignos de fé são eles mesmos, nós dois e Tom. E das mulheres, Gail, Fraser, Glenda e Jenny. Tait acha que Peter também pode ser merecedor de crédito, mas não quer acrescentá-lo no rol. Geordie também não faz parte da lista.

— A relação deles é parecida com a rainha. Um consolo, embora desagradável.

Nanty deu uma gargalhada, e Edmund apenas sorriu.

Edmund entrou em seus aposentos e hesitou. Ilsa estava de olhos fechados. Ela pressentiu o marido e descerrou as pálpebras, sorrindo.

— Tem certeza de que não quer repousar mais um pouco antes de começarmos?—Edmund fez um sinal, e Nanty deixou as brochuras sobre a cama.

— Estou tão ansiosa para mostrar-lhe o que descobri que não conseguiria descansar. — Ilsa começou a folhear os diários e encontrou as páginas que deixara marcadas. — O Amor Precioso é mencionado desde o primeiro volume até o último. Anabelle deve tê-lo conhecido quando foi adotada por uma tal de L. O. Na época, ela devia ter catorze anos.

— Um amor de tanto tempo? Não parece coisa de Anabelle. Ela nunca foi fiel.

— Eu sei. Por que não se casou com o Amor Precioso? Por que essa infidelidade constante? Às vezes ela e o Amor Precioso falavam sobre os amantes de Anabelle. Vejam. — Ilsa fitou o caderno que estava na sua frente e depois Nanty, sentado ao pé da cama. — Vou ler algumas palavras e quero que as escreva.

A lista começou a crescer e também o espanto no rosto de Edmund e de Nanty. Ilsa deixou de lado o parágrafo com a sentença que considerava o golpe de misericórdia. Edmund leu o que Nanty escrevera. Os dois homens a fitaram e Ilsa sorriu. Haviam um brilho de entendimento nos olhos azuis dos irmãos, mas também de hesitação.

— O Amor Precioso me parece uma espécie diferente de homem.

— Estranha, eu diria. Agora escreva o que vou ler aqui. "O Amor Precioso sabe como tocar uma mulher, como saciar os desejos e as necessidades de uma mulher, como nenhum homem será capaz de fazer."

Eles escutaram, leram e praguejaram.

— Uma vez eu a surpreendi com uma mulher, mas não vi quem era — Edmund falou. — Estava escuro e eu, bêbado. A moça se escondeu sob um manto e saiu voando, antes que eu pudesse esfregar os olhos. Embora o que ocorreu seja um pecado perante a Igreja, isso não quer dizer que essa mulher seja quem estamos procurando.

— Eu sei — Ilsa concordou. — Também não acredito que foi a descoberta de que o Amor Precioso era uma mulher que o fez ir correndo para Dubheidland e arredores. No entanto o Amor Precioso era muito importante. Uma parte da vida de Anabelle, pois as duas eram muito jovens. Pelo que entendi das leituras, Anabelle controlava aquela mulher com mão de ferro. Ela a escravizava, se assim se pode dizer. Sinto arrepios ao lembrar, mas Anabelle escrevia sobre as vezes que pedia uma penitência e fazia a mulher rastejar até ela, nua. Como se sentiria uma mulher fazendo isso e o que ela sentiria por Anabelle? Embora, quando jovem, Anabelle tivesse sido o seu amor.

— Um amor doentio — Nanty comentou —, e não por ser entre mulheres. O assunto é tabu, mas todos sabemos que também existe amor entre homens. Por que não entre mulheres? O que vem atrás disso é muito pior. Penitências. Rastejar. E sabe-se lá mais o quê! Isso me deixa de estômago virado. Anabelle não era apenas a amante. Era o mestre. Provavelmente representava a vida da outra.

— E ela não podia casar com o amor de sua vida — Ilsa considerou. — Teve de aceitar o fato de Anabelle unir-se a outro em matrimônio, pertencer a esse outro e dar um filho àquele homem odioso.

— E deve acreditar que esse homem a matou — Edmund deduziu.

— Não. Ela deve culpar a si mesma por isso. — Ilsa recostou-se nos travesseiros, cansada pelo esforço. — O Amor Precioso deu a Anabelle a poção que a matou.

Edmund tornou a praguejar e juntou os diários.

— Como poderemos encontrar essa mulher?

— Pensei que tivesse alguma idéia, Edmund. A tal de L. O. que a adotou poderia ser uma pista.

— Descanse, Ilsa. — Edmund beijou-a. — Fez um grande achado e tenho de pensar sobre isso. Somente o Amor Precioso poderá ter as respostas de que preciso, seja ela ou não quem tentou matar-me. Terei de encontrá-la.

Depois de que os MacEnroy saíram do quarto, Ilsa ajeitou-se e fechou os olhos. Estava exausta, mas valera a pena. Tinha um pressentimento: o Amor Precioso era o inimigo que procuravam. Se fosse homem, Edmund teria concordado imediatamente com isso. Mas era difícil para os homens aceitarem que uma mulher, se quisesse, poderia ser tão ou mais perigosa e mortífera do que um homem.

— Amor Precioso? — Sigimor resmungou entre colheradas de guisado de coelho. — Que nome ridículo. Dá até enjôo.

— Ainda bem que o senhor tem estômago forte — Edmund comentou. — Era assim que Anabelle chamava a amante.

— Uma mulher! Será que essa também odiava homens?

— Também. Assim como aconteceu com Anabelle, essa aversão deve ter nascido quando ainda era muito nova e talvez por causa de estupro. Anabelle me contou que havia sido estuprada, para explicar a falta de virgindade. E era verdade. Pelo que Anabelle escreveu, sua amante também foi estuprada quando ainda era muito jovem.

— E por isso decidiu amar as mulheres?

— Não creio. Conheço mulheres que foram vítimas de brutalidades masculinas e que passaram a evitar qualquer tipo de amantes. Depois de recuperadas do trauma, assim com Gail está procurando fazer, elas queriam um homem. Essa moça provavelmente sempre preferiu as mulheres. Anabelle não mencionou que o Amor Precioso tivesse outro amante, um homem. — Edmund deu de ombros. — Pelo jeito, minha esposa gostava de tudo. Não se costuma questionar os homens que preferem amores do mesmo sexo. Apenas se aceita. Deve ser a mesma coisa com as mulheres.

— É, deve ser. — Sigimor molhou um pedaço grande de pão no ensopado de sua tigela. — Se imaginássemos esse amante como um homem louco de sofrimento e querendo vingança, suspeito de que não estaríamos tendo esta conversa. Iríamos sair à caça do pilantra. É exasperante pensar que uma jovem nos tem feito andar em círculos e quase conseguiu matar o senhor e Ilsa debaixo do nosso nariz.

— Não podemos ter certeza de que seja essa mulher que vem cometendo os atentados — Edmund ponderou.

— É ela, sim. Ela deve ter alguém que a ajuda, mas esse Amor Precioso está por trás disso tudo. — Sigimor revirou os olhos. — Deus permita que a encontremos antes que ela consiga seu intento. O senhor não vai querer na sua lápide a inscrição: "Assassinado pelo Amor Precioso". — Piscou e enfiou na boca o pedaço de pão ensopado.

Edmund refletiu que Sigimor tinha um senso de humor muito estranho e não gostou das risadas de Nanty e Tait. Reconhecia a necessidade de alguma descontração para amenizar a irritabilidade dos últimos dois dias. Contudo, até apanhar a pessoa que tentava matá-los, não se sentia disposto a brincar.

— Ainda não conseguiu lembrar-se por que foi até Dubheidland, não é? — Sigimor perguntou.

— Não. Li e reli os manuscritos de Anabelle, e Nanty fez o mesmo. Não encontramos nenhuma palavra que nos indicasse Dubheidland ou Muirladen. Fraser também não pôde ajudar-nos. Anabelle raramente falava do passado nem considerava Fraser uma confidente. A tal de L. O. também não deve saber de nada.

— Se for alguém das proximidades de Dubheidland, poderíamos saber se o "L" se refere ao nome ou ao título.

— Penso que deve referir-se ao nome de batismo.

— Quantos anos elas deviam ter quando foram adoradas?

— Cerca de dez. Ilsa acha que Anabelle começou a anotar nos diários aos catorze. O Amor Precioso era um pouco mais jovem. O que nos faz supor que as duas foram submetidas a abusos sexuais ainda meninas. Esse foi mais um fator de entendimento entre elas. Devo ter ido a Dubheidland e a Muirladen à procura de esclarecimentos. Posso não me lembrar do porquê, mas encontrar L. O. parece ser o melhor começo.

Sigimor anuiu.

— Também estou ansioso para ir até lá, a fim de ver se descubro o que meus parentes não souberam me dizer. Nanty, Tait e eu partiremos em dois dias. Gostaria de dar uma espiada nos primeiros diários, da época em que sua esposa foi adotada. Conheço bem as propriedades e todos os que moram nos arredores de Dubheidland. Talvez eu possa enxergar algum ponto que tenha ficado obscuro para o senhor.

— Poderíamos ir juntos.

— Alguém deve ficar com Ilsa e as crianças.

— Eu os deixarei aos cuidados de Tom, Peter, padre Goudie e das mulheres. E de Geordie.

— Geordie?

— Ele me explicou que a bandeja com o vinho lhe foi entregue por uma criada, dizendo ter sido ordem minha. Deve ser verdade, pois a criada sumiu logo depois de Ilsa passar mal. Fraser e Gail podem preparar a comida de Ilsa e das crianças. Todos sabem que elas não devem sair desacompanhados. Acredito que poderei restaurar os trechos falhos da memória, se voltar a Muirladen.

— Isso faz sentido, Sigimor — Tait concordou. — Talvez valha a pena tentar.

— Eu ficarei aqui — Nanty ofereceu-se. — Pode ir descansado, Edmund. Tomarei conta de Ilsa e das crianças.

— Obrigado, Nanty.

Edmund serviu-se de guisado. O apetite aumentou com a esperança de descobrir pistas que revelassem o mistério e fizessem cessar os atentados. Poderia dar um nome ao inimigo e visualizar-lhe o rosto. Terminaria com a angústia de vigiar as sombras e de não saber em quem confiar.

A paz voltaria a Clachthrom, e seu matrimônio poderia ser restaurado. Esperava que as dúvidas e receios que carregava havia tanto tempo não houvessem estragado tudo.

 

Ilsa escovava os cabelos molhados diante da lareira para que secassem mais depressa. Deu um suspiro e conjeturou que banhar-se nunca lhe dera tanta satisfação. As lavagens parciais com panos molhados durante o período em que estivera na cama não lhe haviam dado a sensação de limpeza. Naquela manhã, assim que Edmund saíra do quarto, pedira um banho e aproveitara-o de corpo e alma.

Sentia-se muito bem e creditava a Glenda, sempre modesta, a rapidez de sua recuperação, apesar de ela mesma sempre curar-se com facilidade. As poções herbáceas de Glenda haviam restaurado seu vigor e eliminado o veneno de seu organismo. Os remédios tinham ajudado a secar o leite sem conseqüências e a limpar o ventre depois do aborto espontâneo. Uma pena que não pudesse eliminar a dor daquela perda.

Edmund entrou de repente no quarto e Ilsa assustou-se. Pensou que o marido estivesse ocupado com os preparativos para a viagem a Dubheidland.

— Hum, pelo visto acabou de tomar um banho. — Edmund aproximou-se.

— É verdade. — Ilsa sentiu-se nua, apesar do robe pesado que vestia.

— Então o sangramento parou.

— Sim. — Ilsa corou.

— Que bom. — Edmund começou a tirar as roupas.

— Pensei que o senhor meu marido estivesse de partida.

— Estou. Mais tarde.

— Ah, entendi. Está pensando em uma relação rápida antes de sumir no nevoeiro.

— O dia está bonito e ensolarado. — Edmund ignorou a irritação de Ilsa e continuou a despir-se. — Nenhuma bruma à vista.

— E quando vai partir? — Ilsa evitou olhar para aquele físico magnífico e nu.

— Em uma hora. — Edmund carregou-a até a cama. — Tempo suficiente para uma bela despedida.

 

— Foi mesmo uma despedida satisfatória — Ilsa comentou, e Edmund deu uma risadinha.

Rápido, furioso e um tanto rude. E que os deixara esgotados. Parecia uma tolice, mas Ilsa se sentiu lisonjeada. Apesar da importância daquela viagem, o marido viera procurá-la. Edmund deixaria Clachthrom com a memória da paixão a que se haviam entregado. O que era muito desejável.

— Nada no mundo me agradaria mais de que ficar a seu lado — ele afirmou depois de beijá-la. Em seguida levantou-se.

Dessa vez, Ilsa não encontrou motivos para lamentar sua saída rápida da cama. Sentou-se e cobriu os seios com o lençol.

— Sigimor encontrou alguma pista nos diários de Anabelle?

— Ele não disse, apenas encolheu os ombros. — Edmund vestia-se com pressa. — Quer falar com Liam antes de mais nada. Liam é o primo inteligente?

— Ah, sim. Para mim, todos os Cameron são sagazes — Ilsa vangloriou-se. — Mas Liam é a nossa estrela-guia.

— Toda família tem uma. Odo é a nossa, apesar dos gêmeos ainda serem muito pequenos e não poderem ser avaliados.

Ilsa escondeu a emoção ao ouvi-lo elogiar Odo.

— Preciso ir. — Edmund tornou a beijá-la e abriu a porta.

— Não ouse ir embora antes de eu chegar ao pátio.

— Não se demore. Estamos ansiosos para chegar a Dubheidland.

Edmund esbanjava satisfação por terem feito amor. Ilsa nem mesmo reclamara de sua entrada intempestiva no quarto e da saída rápida. Admitiu que não pudera resistir à idéia de ela ter pedido água para um banho. Fora uma despedida bem mais agradável de que um simples aceno de mão. Contente, Edmund saiu do castelo.

— Sabe de uma coisa, Tait? — Sigimor falou devagar, com intenção de ser ouvido. — Como irmãos de Ilsa, acho que temos obrigação de tirar a tapas essa expressão do rosto do patife.

Edmund sorriu com doçura e tratou de verificar a sela de seu cavalo.

— Concordo. Por que ele tem e nós não temos? — Tait lamentou.

— É mesmo uma injustiça — Nanty apoiou os dois. Fraser e Gail trouxeram as crianças para as despedidas e interromperam a sucessão de disparates. Edmund fitou os oito filhos, com um discernimento que não era de longa data. Certeza de que eram seus, somente os gêmeos. Contudo isso não importava mais. Até a chegada de Ilsa, nem mesmo conversava com os filhos. Alegrava-se por Ilsa ter tirado as crianças da redoma em que viviam e tê-lo feito conviver com elas. Mais um motivo para a ida a Dubheidland. Recuperar a memória e descobrir a verdade. Encontrar a paz.

Ao ver Ilsa chegar correndo, um tanto desarrumada, Edmund teve certeza do que mais queria e precisava em sua vida. Ali estava a família que ele pensara constituir quando se casara com Anabelle. Sua esposa e seus filhos reunidos para desejar-lhe uma boa viagem e um breve regresso, sob as bênçãos de Deus. Durante quase seis anos, fora o senhor de Clachthrom e nunca tivera nada disso. Agora, tudo o que sonhara se encontrava ao seu alcance. As crianças não pararam de acenar até perdê-lo de vista.

— Sigimor, poderia dizer-me agora o que descobriu nos diários de Anabelle?

— Não muita coisa, exceto que a falecida era, como direi...

O único sentimento de Edmund em relação a Anabelle era a vergonha de ter sido tão idiota a ponto de casar-se com ela.

— Uma rameira?

— Isso. — Sigimor sorriu, sem jeito. — Depois de ler tudo à procura de alguma pista, eu me fiz uma pergunta. Por que ela agia daquela maneira, se não era por dinheiro nem por ser ninfômana?

— Encontrou uma explicação?

— Segundo meu ponto de vista, lady Anabelle queria o poder.

— Poder? — Tait admirou-se. — Só por ter alguns tolos que acreditavam nela? Nessa situação, a mulher torna-se mais vulnerável.

— Acredito que o mesmo se aplica ao homem que sucumbe à atração.

— Concordo, mas no caso dela, o estupro representou sua primeira fraqueza. Acredito que houve outros abusos e estupros.

— Eu já pensei nisso — Edmund confessou.

— Lady Anabelle decidiu virar o jogo. E como? Contra os homens. Os encontros amorosos são descritos como batalhas rápidas e vitoriosas. Interessante, ela demonstrava ter fascinação pelas partes íntimas masculinas.

— Também percebi isso. Anabelle fazia da arma de um homem a fraqueza dele.

— Ela acreditava estar certa. Alguns homens levam uma jovem para a cama por se acharem bonitos, machões ou grandes amantes. Há mulheres que pensam ser bonitas, desejáveis e até amadas, ao ir para a cama de um homem. Lady Anabelle queria provar sua força e a debilidade masculina. Tive a nítida impressão de que ela considerava fracos os que sucumbiam aos seus encantos. Alegrava-se sobretudo em seduzir os habitantes de Clachtnrom. Para que traíssem seu senhor nos braços dela. Considerou uma derrota amarga não ter conseguido conduzir os outros MacEnroy para o pecado. Ela odiava lady Gillyanne.

— Deve ser porque ela jamais pôde enganar Gillyanne.

— Concordo. Muitas vezes me pareceu que lady Anabelle agia como se estivesse empenhada em uma cruzada vingativa. O que a perturbava demais, e por isso a ânsia sem limites, era imaginar que dava a seus amantes apenas o que eles queriam, quando, na verdade, só queria castigá-los.

— A jovem amante dela também não devia ser mentalmente sã.

— Tem razão. Pela leitura dos manuscritos, convenci-me ainda mais de ser a outra a quem procuramos.

— Qual a indicação que o fez chegar a esse ponto?

— Não tenho certeza. Primeiro terei de falar com Liam. Não pretendo correr o risco de alimentar falsas esperanças.

Edmund agradeceu às boas intenções de Sigimor. Não fora bem-sucedido nas tentativas anteriores de tolher o crescimento de suas expectativas. Não suportaria mais uma desilusão. O que não o impedia de pressentir uma solução próxima.

A amargura, o ódio e o medo haviam tomado conta de sua vida. Os dois primeiros tinham desaparecido pela atuação do tempo e, principalmente, por causa de Ilsa. Mas as lacunas da memória e o desconhecimento do rosto hostil alimentavam o receio. E este tornara-se ainda maior quando ficara evidente de que nem Ilsa nem as crianças estavam imunes ao perigo.

Precisava afastar a ameaça de sua família. Edmund não queria mais temer o desconhecido. Quando voltasse a Clachthrom, teria de ser não apenas um homem que se lembrasse do passado, mas que estivesse livre dele.

— Acha que sir Edmund descobrirá o que realmente aconteceu? — Fraser perguntou.

Ilsa, Fraser, Gail e Glenda almoçavam no grande saguão, sentadas à mesa principal. Ilsa chamara as mulheres para um "conselho de guerra". A ocasião lhe parecera favorável. Nanty estava com as quatro crianças mais velhas, e Jenny, com as mais novas.

— Se não for de maneira integral, pelo menos em grande parte. Uma palavra ou um pequeno incidente poderão desencadear as lembranças perdidas. Edmund está retornando ao local onde tudo começou. Contudo a verdade poderá não trazer todos os esclarecimentos.

— Ele poderá não encontrar o inimigo, é isso?

— É uma possibilidade. Acredito que o primeiro atentado ocorreu porque Edmund tinha chegado muito perto de desvendar o mistério. O que me intriga é a paz aparente que se prolongou por tanto tempo.

— Bem, se sir Edmund não se lembrava de nada, para que matá-lo? — Gail franziu a testa. — Não, isso não faz sentido, porque tentaram assassiná-lo antes disso.

— Claro, e depois da morte de Anabelle, Edmund parecia ter ficado muito infeliz — Ilsa comentou.

— Tem certeza de que os problemas tiveram início nessa época?

— Tenho. Eu perguntei, e a resposta foi afirmativa. Mas não foi para falar disso que as chamei aqui.

— Não? — As três admiraram-se em coro.

— Embora esteja desesperada para desvendar o mistério, sei que somente Edmund poderá fazê-lo.

— Então para que a reunião?

Ilsa cruzou as mãos sobre a mesa e fitou cada uma das presentes.

— Os homens saíram à procura de uma identidade e de vários motivos. Acho que é nosso dever fazer uma outra investigação. Quem será o traidor? Isso poderá ser feito mesmo sem conhecer o mandante.

Fraser anuiu com gestos repetidos de cabeça.

— Não será perigoso? — Gail indagou.

— Fui envenenada dentro do meu solar, no castelo que pertence a meu marido — Ilsa considerou. — O perigo já nos rodeia.

— Certo. Mas creio que Nanty já está à procura de quem cometeu o crime.

— E por que não podemos fazer o mesmo? Nanty, como irmão de Edmund, poderá ter dificuldade em obter respostas sinceras. O terrível tio deles certamente não conquistou o coração da maioria do povo de Clachthrom. Além do mais, Edmund casou-se com Anabelle logo depois de haver se tornado o senhor destas terras. E Anabelle somente aumentou o constrangimento e a desconfiança que ainda rondava o lugar e seu dono. Tenho de admitir que a infelicidade de Edmund e sua natureza precavida a extremos não devem ter granjeado muitos aliados.

— Não, não — Glenda discordou. — Sir Edmund é muito mais dedicado a estas terras e à sua gente do que o tio foi. O que deixa as pessoas desconfiadas é a distância que ele mantém dos outros. Edmund não teve a oportunidade de reunir seu pequeno clã antes de ser tragado pelos problemas. E depois do primeiro atentado, passou a olhar todos como prováveis agressores.

Ilsa mastigou um pedaço de pão com queijo e pensou na tristeza da situação. O tio de Edmund passara a maior parte da vida bêbado, com ciúme do próprio irmão. Afundara em um mar de intrigas que quase extinguira três clãs. O homem nada fizera para fortalecer seu povo e melhorar o rendimento de suas terras. Era possível que a esperança houvesse entrado no coração de todos quando Edmund viera assumir seu posto de senhor e proprietário de Clachthrom. Um ânimo que durara pouco. O novo lorde perdera-se rapidamente em uma existência tormentosa. Alguns itens haviam melhorado, mas não fora estabelecido nenhum sentido de união ou lealdade. Para o povo de Clachthrom, seu senhor não passava de um estranho mal-humorado. Para Edmund, os habitantes de Clachthrom eram vistos como prováveis assassinos.

Quando os enigmas fossem deixados para trás, Edmund enfrentaria um grande desafio. Teria de trazer não somente o senso de unidade a esse pequeno ramo do clã dos MacEnroy, mas sobretudo o sentido familiar que era a origem da força do clã. Edmund teria de ganhar a confiança e o respeito de seu povo para que Clachthrom pudesse florescer. Para Ilsa, não parecia uma tarefa impossível. Apesar dos empecilhos, Edmund melhorara as condições de sua gente. Seria preciso apenas permitir que eles o conhecessem como homem.

— As pessoas devem estar cansadas de desconfiar de Edmund, e tudo começará a melhorar, assim que ele descortinar a face do inimigo.

— Será que sir Edmund poderá esquecer e perdoar? — Glenda suspirou. — Nem gosto de imaginar a quantidade de homens de Clachthrom que o enganaram.

— Por acaso ele baniu, enforcou ou matou alguém a golpes de espada?

— Não. Acredito que ele deve ter posto a culpa na esposa e parou de incomodar-se por isso.

— Eu não vejo os homens com isenção de culpa. Afinal, os irmãos de Edmund resistiram. Anabelle não agarrava os homens à força. Talvez uma parte dos problemas aqui seja decorrente de um belo sentimento de culpa. Não importa. Se Edmund não castigou ninguém antes, não o fará agora. Ele só quer apagar de sua mente Anabelle com seus erros e pecados. Os homens que o enganaram logo entenderão isso. Agora, temos de concentrar-nos apenas no traidor.

— Acha que ele é um homem? — Gail conjeturou.

— Eu acredito que sim — Ilsa comentou. — Isso não quer dizer que devemos ignorar as mulheres. Ele, ou ela, está ajudando o assassino frustrado e anda livremente pelos corredores do castelo. O que trouxe o perigo para muito perto das crianças.

As três concordaram com veemência.

— De quem suspeita, lady Ilsa?

— De todos, exceto de nós, de Jenny, de Nanty e de Tom.

— Também de Geordie? Mas e o que ele disse a sir Edmund? A criada ainda não apareceu.

— Essa história precisa ser comprovada e Nanty pretende verificar o paradeiro da moça. Não sei o porquê, mas não posso acreditar em Geordie. Como se o instinto me prevenisse contra ele. Não o perderei de vista.

— Verei o que posso aclarar sobre as mulheres que trabalham neste castelo — Glenda prontificou-se. — E Gail pode ajudar-me. Fraser, não me leve a mal, mas a senhora está ligada intimamente à antiga senhora do castelo e, agora, à nova.

— Não discordo. — Fraser tomou um gole de vinho. — Por acaso Gail também não está ligada a lady Ilsa?

— Sim, mas ela é apenas a ama-de-leite, de origem plebéia e muito jovem. Está muito mais próxima das outras, apesar de ser muito bem tratada, como se fizesse parte do clã. A senhora e milady observarão os homens. Jenny nos ajudará.

— Se as mulheres desconfiarão de Ilsa ou de mim, por que os homens não?

— Porque os homens raramente vêem uma mulher como ameaça. E por não se sentirem ameaçados, falarão abertamente. Tom e Nanty também vigiarão os homens, mas creio que a senhora, como uma pobre e indefesa mulher, terá mais chances de descobrir alguma coisa. — Glenda piscou e as outras riram.

Fizeram planos enquanto comiam e Ilsa sentiu-se esperançosa. O número de pessoas em que Edmund e ela podiam confiar era pequeno, mas todos eram inteligentes e leais. O traidor teria de procurar informações e levá-las ao mandante. Certamente haveria de deixar pistas. Ilsa gostaria muito de presentear o marido e os irmãos, quando voltassem, com essa descoberta.

Gail e Fraser saíram. Ilsa segurou Glenda pelo braço.

— Por favor, Glenda, não queira enganar-me. Estou muito contente que tenha decidido morar no castelo. Porém preciso perguntar-lhe se tem certeza de que é isso mesmo o que deseja.

— Claro que sim — Glenda afagou a mão de Ilsa. — Tenho a minha casa na aldeia, mas lá eu fico sozinha. Aqui, terei com quem conversar e posso ir lá tratar de quem precisa. Também não terei de me preocupar com o calor, o frio ou a fome. Aqui, eu ficarei segura.

— Por acaso sentiu-se ameaçada na aldeia? Sei o que Wallace anda dizendo.

— Bobagem. Ele não passa de um rapaz irritadiço que diz palavras ásperas sem refletir. Todavia há ocasiões que o medo ou o sofrimento fazem as pessoas me fitarem com ódio. Esse é o quinhão de uma curandeira. Todos procuram as ervas milagrosas que podem curar. Quando a saúde não é restabelecida, a dor faz as pessoas tornarem-se sombrias e ameaçadoras. Não se pode contar sempre com o bom senso dos que sofrem. Aqui, eu terei companhia, e minhas necessidades de sobrevivência serão satisfeitas. E, se precisar, poderei esconder-me atrás de muralhas grossas guardadas por belos homens. Milady, eu gostaria muito de ficar.

— Seja bem-vinda a Clachthrom.

Ilsa apoiou os braços nas ameias e perscrutou as terras de Clachthrom sob a luz do luar. Não conseguira dormir. Pensou no que Edmund estava fazendo, se fora bem-sucedido e o que isso mudaria no relacionamento deles. Suspirou. Odiava dormir sozinha naquela cama.

— Para onde está olhando, mamãe?

— Odo! — Ilsa procurou ser severa. — Não deveria subir nestas muralhas, meu jovem. Não posso acreditar que Fraser o tenha deixado vir até aqui sozinho.

— Eu precisava falar com a senhora, mamãe. Já vim aqui antes.

— Sem ninguém? À noite?

— Bem... não.

— Odo, meu amor, sei que é um menino inteligente. Mas é preciso não esquecer que é apenas um garoto. Subir até as muralhas, à noite, não é algo que um guri de cinco anos deva fazer.

— Desculpe, mamãe. Ilsa abraçou-o.

— Tente lembrar-se de que é um menino pequeno. Não vai demorar e se tornará um belo rapaz. Bem, o que há de tão importante que o fez arriscar-se a ganhar uma repreensão?

— Por que papai está infeliz?

— Eu não podia imaginar que você tivesse notado. Existem vários motivos, mas nenhum deles se refere aos filhos, certo?

— Certo, mas ele não gostava da gente antes da senhora chegar.

— Ele estava muito ocupado e não lhe sobrava tempo para ficar com os filhos. Seu pai teve problemas com lady Anabelle, a primeira esposa. Havia muito trabalho a ser feito em Clachthrom, pois o tio dele não foi um proprietário zeloso de suas terras nem de seu povo. Isso não é desculpa por ter ignorado os filhos. Mas se ele agiu dessa maneira, não foi por não lhes querer bem. E também não passou a gostar por eu ter lhe chamado a atenção. Na verdade, foi seu pai quem se descontraiu e passou a dedicar mais atenção a vocês. O meu trabalho restringiu-se a tirar a ninhada da gaiola e conversar com seu pai a respeito.

— Sei. Ele estava ocupado e não entendia que precisávamos de atenção.

— Exatamente. É sobre isso que desejava conversar?

— Papai e meus tios encontrarão aquela pessoa malvada e a matarão, para que ele e a senhora tenham paz?

— Esse é o plano deles. Eu gostaria que houvesse uma maneira de seu pai resolver o problema sem matar ninguém. Creio que isso será impossível. Não se preocupe. Seu pai é forte, inteligente e está rodeado pelos Cameron.

— O que, sem dúvida, deixará Edmund meio maluco — Nanty aproximou-se de cenho franzido. — É muito difícil ser responsável por pessoas que não querem ficar onde ordenamos que fiquem.

Nanty levou o sobrinho e a madrasta de volta para o castelo. Ilsa achou que o cunhado exagerara na censura, mas não fez comentários. Não seria um bom exemplo para Odo. Deu um beijo de boa-noite no garoto e voltou para seu quarto.

 

O castelo de Dubheidland impressionava pela magnificência. As muralhas eram altas e largas. Os portões, intimidativos. O grande hall era suntuosamente mobiliado. Edmund espantou-se de que seus olhos não ardessem, de tantas cabeças ruivas que via à sua frente. Até se aproximarem da enorme mesa principal, Sigimor apresentou-o a todos por quem passavam. Certamente levaria anos para lembrar-se dos Cameron pelo nome de batismo, exceção feita para Somerled, gêmeo de Sigimor.

Somerled serviu-lhe vinho. Edmund observou que poucos o olhavam com simpatia. Na certa, ao retornar de Clachthrom, os outros irmãos não deviam ter dado boas referências do cunhado.

— A esposa de Alexander já teve o bebê? — Sigimor perguntou ao sentar-se entre Somerled e Edmund.

— Sim, Mairi deu um filho a Alexander — Somerled explicou. — Deram-lhe o nome de James e foram até o castelo da família dela para mostrar o garoto. É o primeiro menino que nasce naquela família depois de muito tempo. Ele poderá até ser nomeado herdeiro.

— Será ótimo para Alexander, embora não tenha se casado com Mairi pensando em lucro. — Sigimor fitou os irmãos e os primos. — Por que essas carrancas?

— Sigimor, por que trouxe o marido de Ilsa, e não ela mesma? — Um rapaz alto e magro fez a pergunta por todos. — Pelo que Gilbert nos disse, nem sei por que ainda não o matou.

— Patone, eu não posso fazer isso com o marido de sua irmã — Sigimor falou devagar. — Por outro lado, ou Gilbert não soube contar o que aconteceu ou suas orelhas estão entupidas. Agora, trate de limpá-las antes que eu o faça, e escute com atenção. Só contarei a história uma vez.

E foi o suficiente. Sigimor não inventou mentiras nem suavizou as verdades. Edmund considerou que Sigimor não precisava repetir tantas vezes que julgava comprometidas as faculdades mentais do marido de Ilsa. Mas quando Sigimor terminou de falar, a maioria dos Cameron pareceu mais amistosa. Porém muitos o fitavam como se esperassem que começasse a babar.

—Estranhei que não nos tenha mandado notícias — Sigimor dirigiu-se a Somerled. — Achei que tivesse descoberto alguma coisa.

— Na verdade, Liam estava se preparando para se dirigir a Clachthrom.

— O que ele apurou?

— Assim que os vi chegando, mandei Gilbert avisá-lo. Ele não vai demorar e poderá revelar os fatos pessoalmente.

— Está na hora do jantar, e a ausência de Liam me surpreende. O rapaz odeia perder uma refeição.

— Ele odeia perder outras coisas também. Sabe como é, saiu para comer o antepasto.

— Por isso é que ele não engorda, apesar de tudo o que enfia naquela barriga. Vive correndo atrás das raparigas. Eu conheço essa?

— Não. Não é casada, mas duvido que fará pressão para casar-se. Seus conselhos devem ter feito a cabeça de Liam. Engraçado, nunca imaginei que tentar afogá-lo na gamela dos cavalos o fizesse concordar. Pode ser que ele tema pela própria vida. — Somerled ignorou o cenho franzido de Sigimor.

— Achei tê-lo ouvido afirmar que Liam sossegaria em pouco tempo e que agia como um bode enfurecido por ter estado com os monges, onde não podia fazer nada — um rapaz de cabelos vermelho-claros falou.

— Foi o que eu disse, Thormand — Sigimor retrucou. — E eu estava certo.

— Liam tem levado para a cama ou para o celeiro todas as moças das redondezas, há quase dois anos.

— Ora, mas ele ficou cinco com os monges.

Edmund tomou um gole de vinho para disfarçar a vontade de rir e notou que vários outros faziam o mesmo. Sigimor adotou o sorriso afetado que tanto o irritava. Talvez por isso foi tomado por uma simpatia súbita pelo pobre mancebo, que nada mais disse.

O homem que entrou no grande hall devia ser o famoso Liam, Edmund concluiu ao ouvir os comentários obscenos a ele dirigidos. Liam vinha acompanhado de Gilbert e chamaria a atenção em qualquer lugar.

Liam Cameron era um belo espécime masculino, Edmund foi obrigado a admitir. Parecia-se com Payton, o primo de Gillyanne, só que mais alto. Cabelos longos, acobreados em tom escuro. Feições perfeitas e pele dourada. Corpo atlético e andar felino. Liam sorriu ao aproximar-se. O olhar azul-esverdeado era amigável. Edmund, de repente, solidarizou-se com as inúmeras queixas de Connor em relação a Payton Murray, Perfeições masculinas eram exasperantes.

— Ele é um bom rapaz — Sigimor cochichou para Edmund —, embora seu aspecto muito agradável às vezes possa incomodar.

— É verdade. — Pela primeira vez Edmund não se incomodou por Sigimor ter lido seus pensamentos. — Lady Gillyanne tem um primo parecido com Liam. Agora posso entender por que Connor vive dizendo que o camarada precisa de um tempero. Ou seja, um nariz quebrado ou algumas cicatrizes.

Sigimor achou graça. Liam sentou-se entre o primo e Edmund, e pôs comida no prato.

— Que fome, hein? Por que será?

— Foi um longo trajeto até aqui — Liam resmungou e fitou Edmund. — Como vai minha doce prima Ilsa? Aquela formosura veio junto?

— Não. — Edmund resolveu retorquir à altura da provocação. — Deixei-a em casa com os meus oito filhos.

A expressão chocada de Liam foi cômica.

— Não o desafie, Liam — disse Sigimor. — Ele é mais esperto do que parece. Vamos lá. Conte-nos o que sabe.

— É preciso falar com lorde Ogilvey.

— Isso é tudo o que tem para dizer? — Sigimor irritou-se.

— Sim. Vá falar com lorde Ogilvey e pergunte-lhe sobre Lorraine, sua esposa.

Sigimor e Edmund trocaram olhares de entendimento.

— L. O., Lorraine Ogilvey — Sigimor fitou Liam. — Por que não vai me dizer mais nada?

— Porque ouvi muitos boatos. Tudo é muito sórdido e pecaminoso, como dizem os monges. Não quero manchar o nome de ninguém à custa de mexericos. Fale com lorde Ogilvey e confirmará ou não o que ele diz.

— Vamos juntos, Liam.

Edmund examinou a pequena clareira entre os carvalhos frondosos e procurou manter-se impassível. Os quatro Cameron não deixavam de fitá-lo e sabiam por que ele se desviara do caminho e viera até ali.

Por alguns momentos Edmund perdera-se nas divagações da memória que ressurgia e nem notara que eles haviam chegado. Como já acontecera antes.

Várias vezes fizera amor com Ilsa naquele local. Aquele fora o lugar favorito deles e também onde tinham sido encontrados pelos irmãos dela. Ali, ele a possuíra pela primeira vez.

Tudo o que Ilsa lhe dissera era verdadeiro. Antes de voltar a Dubheidland, já acreditava nela, mas era um alívio confirmar tudo com a memória. Finlay e Cearnach eram seus filhos. Não poderiam ser de outro homem. Isso ele também já concluíra, mas as lembranças apagavam de vez qualquer dúvida insidiosa.

Edmund montou e reuniu-se aos outros. Sem fazer comentários, dirigiram-se ao castelo de Ogilvey, em Muirladen. O silêncio era bem-vindo. Edmund precisava de tempo para aceitar as imagens que chegavam aos borbotões, para acalmar-se e para enfrentar os próximos acontecimentos. Queria estar com a mente afiada para a confrontação com lorde Ogilvey.

No entanto gostaria de voltar para o bosque onde fizera amor com Ilsa pela primeira vez. Saborear a alegria que encontrara naquele dia. A paixão seguida pela paz e felicidade que não o abençoavam havia tempos. As palavras sussurradas por Ilsa pareceram ecoar na clareira. Edmund nunca ouvira nada mais doce. Com a voz eivada de alegria e paixão, Ilsa lhe confessara seu amor. E nada fora nem era mais verdadeiro.

Por sua própria culpa, ele perdera tudo aquilo. Nem mesmo a perda de memória justificava a maneira como tratara Ilsa. De nada adiantaria voltar com as lembranças restauradas. Ela não esqueceria o pouco caso e a rispidez a que fora submetida. Fora um erro não ter revelado a Ilsa a mudança de sua opinião e de seus sentimentos. Naquela altura, ela daria como certo de que a boa vontade se devia ao preenchimento dos vazios em sua mente.

Já estivera ali antes!, Edmund teve certeza ao ultrapassar os portões de Muirladen e desmontar, junto com os Cameron. Na ocasião, o lorde se recusara a recebê-lo. Edmund se retirara, furioso e jurando voltar. Depois ocorrera o ataque, e o homem fora esquecido. Dessa vez não iria embora sem falar com lorde Ogilvey.

Sigimor e Somerled começaram a remover as barreiras. Sigimor deu um empurrão no guarda que não lhes permitiu a entrada, mesmo ele tendo alegado que era um vizinho e proprietário de terras. Somerled fez o mesmo com o soldado que se postara à sua frente. Os outros homens começaram a afastar-se do caminho.

Sigimor entrou no grande hall de Muirladen, seguido pelos companheiros.

— Devemos reconhecer que meu primo tem uma maneira peculiar de apresentar-se aos vizinhos — Liam murmurou, caminhando ao lado de Edmund.

Edmund teve de concordar e começou a imaginar que todos os Cameron eram meio loucos. E lorde Ogilvey devia ser da mesma opinião, pela maneira como fitava os gêmeos. Sigimor e Somerled flanquearam o lorde, ocuparam os assentos e serviram-se de vinho. Liam deu de ombros e acomodou-se ao lado de Somerled. Edmund ficou à direita de Sigimor, e Tait, a seu lado.

— O que os senhores estão fazendo aqui? — lorde Ogilvey gritou.

— Temos algumas perguntas a fazer-lhe sobre sua esposa — Sigimor respondeu com educação.

— Lorraine morreu há onze anos.

— Naquela época, viviam duas jovens aqui que haviam sido deixadas aos os cuidados dela.

Lorde Ogilvey empalideceu.

— Não quero falar sobre aquelas crias do diabo.

— Isso não me importa — Sigimor declarou com voz gélida. — Milorde terá de dizer-me o que eu quero saber. Isso poderá ajudar-me a proteger a vida de minha irmã. Eu a adoro e é a única que tenho. Não ficarei nada contente se alguém me recusar auxílio.

— Não conheço sua irmã e não fiz nada contra ela.

— Não o estou acusando de nada. Quero saber o que aconteceu há muitos anos, pois creio que isso me levará ao inimigo de minha irmã. Reconhece este homem? — Sigimor apontou para Edmund.

— Não. E por que eu deveria?

— Porque eu o procurei o ano passado — Edmund explicou —, depois de deixar Dubheidland. E milorde não me recebeu.

— Naquela noite ele sofreu um atentado e foi deixado agonizante em uma aldeia próxima — Sigimor acrescentou. — Milorde não tem curiosidade de saber o que ele tinha para dizer e nem por que alguém tentou silenciá-lo?

— Os senhores não pretendem ir embora, não é?

— Não, milorde. Não pretendemos.

— Suponho que minha falecida esposa foi uma das jovens adotadas por lady Lorraine, há mais ou menos dez anos. Ela se chamava Anabelle. — Edmund arregalou os olhos diante da imprecação dita por lorde Ogilvey.

— Minha pobre Lorraine não teve filhos — o lorde começou a narrativa. — Imaginou como seria maravilhoso ter duas meninas para criar e educar. Duas jovens sensíveis e ternas que lhe dessem alegrias e a quem poderia ensinar tudo o que sabia. Em vez disso, trouxe para cá dois demônios. A sua Anabelle era linda por fora e tenebrosa por dentro.

— E por que milady não as mandou de volta?

— Minha Lorraine era muito teimosa. Declarava que não se deixaria vencer por aquelas duas. Creio que ela pensou ter o dever de tentar salvá-las. — Ogilvey deu uma risada cínica. — Eu me arrependo de não lhe ter dito que não haveria salvação possível para elas, pois tinham sido amaldiçoadas muito antes de chegar aqui. Se eu soubesse o que elas me custariam, teria me livrado de ambas pessoalmente.

— O que elas lhe custaram, milorde? — Liam indagou.

— Minha esposa. Ah, o senhor quer as provas? Não as tenho. Se eu tivesse, teria pendurado aquelas duas pequenas bruxas pelo pescoço. A primeira seria Anabelle. Eu não teria sobrevivido se enforcasse a outra, mesmo tendo certeza de que havia sido ela a responsável pela morte de minha mulher.

— Por que não podia castigar a outra?

— Família poderosa.

Ogilvey não parava de tomar vinho e estava próximo da embriaguez. Na certa passava a maior parte do tempo naquele estado.

— O que aconteceu com sua esposa, milorde? — Edmund estava ansioso por respostas. Receava que, em breve, Ogilvey não tivesse condições de falar.

— Anabelle era uma prostituta de língua viperina. Minha mulher usou de todas as armas para modificar a jovem. No começo tentou falar com Anabelle e fazê-la entender os erros. Nada resolveu. Mais tarde. Lorraine surpreendeu-a com o pastor de ovelhas e deixou-a trancada no quarto por três dias, sem comer, só com um pouco de água. Naquela noite, Lorraine caiu da escada e quase morreu. Ela não soube dizer se tinha sido empurrada, mas se recusou a acreditar que fosse obra das meninas. Eu tive certeza disso. Lorraine não me escutou. Estava certa de que disciplina era tudo do que a moça precisava.

— O que também não adiantou.

— Não. Toda vez que Lorraine castigava Anabelle, alguma coisa lhe acontecia. Foi quando Lorraine apanhou Anabelle fazendo uma coisa que a deixou chocada e sem palavras. Nunca me disse do que se tratava. Minha esposa era muito religiosa e não foi capaz de verbalizar o que havia visto. Eu tentei convencê-la de que nem tudo o que a Igreja considera pecado é mesmo. Mas Lorraine acreditava em tudo o que o padre lhe tinha contado sobre transgressões religiosas. Não poderia tolerar meios-termos. Lorraine deu uma surra em Anabelle. E nem foi tão severa quanto a garota merecia pelos vícios anteriores. Dois dias depois, minha Lorraine estava morta.

— E o que lhe causou a morte?

— Não sei. Lorraine morreu gritando. Creio que ela deve ter sido envenenada, mas ninguém descobriu como. Mandei as duas cadelas embora e enterrei minha mulher. — Ogilvey limpou os olhos com as costas da mão. — A maior vontade de Lorraine era ter um filho. Aceitou até tomar duas emprestadas. E conseguiu dois demônios que a mataram.

— Quem era a outra?

— A pior das duas. Anabelle era exaltada e não disfarçava sua maldade. Era uma inimiga palpável, se é que me entende. A outra parecia calma, uma doçura. Demorei um pouco para entender de quem se tratava. Como poderia uma jovem tão bonita e quieta ser tão maléfica? Atrás do rosto suave, havia uma mulher fria. Uma assassina. Era o inimigo que se emboscava nas sombras. Quando percebi do que ela seria capaz de fazer, contei a Lorraine, mas ela não me deu ouvidos. A frieza que emanava de seus olhos azuis da cor do céu era tão grande que, muitas vezes, eu não suportava ficar no mesmo recinto com ela.

Edmund sentiu um calafrio intenso. Calma, doce, olhos azuis. Lembrou-se de uma mulher que correspondia a essa descrição.

Ah, que absurdo!, Edmund recriminou-se por tirar conclusões apressadas.

— Quem era a outra moça? — Edmund tomou a perguntar.

— A filha do proprietário destas terras.

— Quem é ele?

— Sir Lesley Campbell. Encantou-se ao saber que Lorraine se dispunha a treinar sua filha Margaret. — Ogilvey franziu a testa ao perceber o espanto dos estranhos sentados à sua mesa. — Recentemente houve um problema com ela. Um casamento desfeito, me parece. Por isso foi mandada para a casa de uma prima.

Edmund conteve a vontade de largar tudo e correr para Clachthrom.

— Qual prima?

— Hum, deixe-me pensar. — Naquela altura não era fácil. — A tal mulher mora em um chalé não muito distante de um lugar que tem um nome esquisito. Crackdrum... Clackhum... — Ogilvey deu de ombros. — Se não me engano, o nome da mulher é Elspeth Hamilton.

Edmund emudeceu e teve a impressão de que o nevoeiro invadia de novo a sua mente. O primeiro pensamento razoável que lhe ocorreu um pouco depois foi que teria de dar uma surra nos Cameron, assim que conseguisse soltar-se deles.

Estavam no pátio de Muirladen, mas os Cameron não o deixavam montar.

— Acalme-se, filho — Sigimor aconselhou-o.

— Tenho de voltar a Clachthrom! A mulher a quem lorde Ogilvey se referiu reside a uma hora de minhas terras. Margaret pode alcançar Ilsa quando quiser.

— Mas ela está lá faz tempo. Algumas horas a mais não farão diferença. Nanty, Tom e as mulheres estão vigiando Ilsa. Por enquanto está protegida. Logo ficará muito escuro e, se sair agora, acabará quebrando o pescoço. O que não vai resolver nada.

Edmund inspirou fundo e sentiu Sigimor soltá-lo. O cunhado estava certo. Era muito tarde para viajar. Esperar a madrugada seria mais sensato, seguro e dar-lhe-ia tempo de pensar no que faria ao chegar. O perigo os rondara o tempo todo. Não se tornara mais agudo só por que acabara de conhecê-lo.

— E não me chame mais de filho — Edmund resmungou ao montar Challenger. — Somos da mesma idade.

Os Cameron montaram e seguiram Edmund para fora do castelo.

— Como queira. — Sigimor deu de ombros. — Como prefere ser chamado? Patife? Idiota? Porco lascivo? Corruptor de minha única irmã?

— Como é que seus parentes o deixaram vivo por tanto tempo?

— Não tem sido fácil — Liam falou baixo, afastando-se do primo.

Liam conversou sobre vários assuntos com Edmund e, quando chegaram ao grande hall de Dubheidland, Edmund já estava mais calmo. Conhecendo os Cameron, admirou-se da aparente indiferença aos fatos e de ter sido Sigimor quem o impedira de sair em uma corrida louca até Clachthrom.

Sentou-se ao lado de Sigimor à mesa principal e encheu o caneco de cerveja.

— Mal posso acreditar que quase me casei com aquela mulher.

— Está se referindo a Margaret, doce, serena e com carinha de anjo? — Sigimor ironizou, depois de um gole de cerveja. — A que iria trazer paz à sua vida? A que não era assediada por emoções perturbadoras? Bem, exceto a compulsão de matar pessoas.

Edmund apenas ergueu as sobrancelhas. Começava a acostumar-se ao jeito do irmão de Ilsa.

— O senhor conheceu a moça. Por acaso pareceu-lhe uma assassina?

— Não. Fico lhe devendo essa.

— Quanta bondade.

— Com certeza o senhor não teve muito discernimento para escolher suas esposas. Ainda bem que o convencemos a casar com a nossa Ilsa.

Por nada deste mundo Edmund admitiria a veracidade da afirmação de Sigimor.

— Está se referindo à Ilsa que atirou um jarro na minha cabeça? À Ilsa que me acertou no queixo e que me fez cair sentado na frente dos meus homens e de parte da minha família? À doce e pequena Ilsa que disse que sou mais imundo de que um monte de esterco? A essa Ilsa?

— Ah-ah — Sigimor respondeu, com brilho matreiro no olhar. — Mas, por outro lado, o senhor pode ficar tranqüilo. Ela não lhe cortará a garganta.

— Correto. Ainda assim, já ameaçou estraçalhá-la com os dentes. — Edmund piscou para Somerled, que ria junto com Tait e Liam, e ficou sério em seguida. — Agora tenho certeza de que é Margaret que vem tentando nos matar. Margaret é o Amor Precioso.

— Isso mesmo — Sigimor concordou com igual seriedade. — Ela pretendia casar-se com o senhor, para ser mais fácil assassiná-lo. Com muita doçura e serenidade, Margaret arquitetou o plano não só do primeiro encontro, como também do matrimônio. O que explica o intervalo em que houve paz e segurança. Como as tentativas anteriores de acabar com a sua vida foram mal-sucedidas, Margaret planejou aproximar-se e tratar ela mesma do problema. Foi Ilsa quem arruinou o golpe de mestre.

— Por isso os ataques a esmo e as tentativas de matar Ilsa disse Edmund. — Agora conhecemos o inimigo. Falta descobrir quem é o aliado de Margaret em Clachthrom. Pode ser homem ou mulher. Quando Margaret foi embora de Clachthrom, deixou para trás duas criadas, uma das quais desapareceu depois de Ilsa ter sido envenenada.

— Por que elas ficaram no castelo?

— Disseram que não tinham para onde ir e que seriam úteis no castelo. Cheguei a pensar que haviam encontrado amantes em Clachthrom. Confesso não ter prestado muita atenção às serviçais. A governanta disse que trabalhavam bastante. Alguém deveria ter estranhado vê-las saindo com freqüência ou fazendo muitas perguntas.

— Quando voltarmos a Clachthrom poderemos esclarecer essas questões. Nanty já deve ter encontrado algumas explicações. Ele pensava em sair atrás da sumida.

— O que poderá ajudar bastante — concordou Edmund. — O difícil de entender é por que Margaret tentou matar Ilsa. O casamento foi uma armação para vingar-se de mim, e ela contratou homens para executarem a tarefa. O que Margaret teria a ganhar se acabasse com a vida de Ilsa? Ilsa nunca fez nada de errado contra ela.

— Exceto entrar na igreja e destruir um plano cuidadosamente elaborado — Liam afirmou. — Estamos lidando com alguém que não é muito certo da cabeça. Como achar lógica em suas atitudes? Ilsa arruinou tudo. Margaret contratou, mais uma vez, homens para matá-lo. Mais uma vez, o plano fracassou. Assim, resolveu eliminar Ilsa, casar-se com o senhor e matá-lo com maior facilidade.

— Acha que ela desistiu de acabar com a minha vida e resolveu concentrar as atenções em Ilsa? — Edmund ventilou a hipótese.

— Provavelmente. Não há dúvida de que o veneno era destinado a Ilsa. Viúvo, sir Edmund MacEnroy seria uma presa fácil. — Sigimor fitou-o com intensidade.

— Já sei, não precisa dizer nada. Não sairemos antes do alvorecer. Só espero encontrar tudo exatamente como deixei em Clachthrom.

— Não se preocupe. O senhor conta com bons homens e boas mulheres para vigiar Ilsa.

— Mas isso será o suficiente? Duvido de que algum dos senhores possa assegurar-me que minha esposa não cometerá nenhuma tolice.

Edmund não obteve resposta e suspirou.

 

Ilsa assustou-se com a expressão sombria de Nanty, que viera procurá-la no jardim. Edmund viajara havia uma semana. Tempo considerável para chegar a Dubheidland, possivelmente enfrentar um conflito e ainda para uma notícia ruim ter alcançado Clachthrom. Ilsa levantou-se da beira do canteiro que estivera semeando e procurou acalmar-se.

— Aconteceu alguma coisa?

— Uma notícia nada agradável. Um rapaz que acaba de chegar ao castelo contou que ele e o pai encontraram o corpo de uma moça em uma vala.

— Oh, Deus! Acredita que pode ser o da criada que desapareceu?

— E quem mais poderia ser? Não demos pela falta de mais ninguém.

— É melhor o senhor ir até lá para ver do que se trata.

— Fui encarregado de ser seu guardião, Ilsa. Reconheço não ter ficado a seu lado vinte e quatro horas por dia, mas fiz apenas algumas fugas rápidas até a aldeia. Não poderei deixá-la sozinha agora. Se for mesmo a criada e tratar-se de um assassinato, o que vínhamos pensado sofrerá um grande desvio de rota.

— Claro. — Ilsa limpou as mãos no avental. — Isso poderá significar que não foi ela a executora do envenenamento. A pobre moça deve ter sido levada do castelo e morta só para acreditarmos em sua culpa. Que horror!

Nanty passou a mão nos cabelos.

— Mais do que isso, Ilsa. Quem a envenenou provavelmente continua no castelo. E o pior: essa pessoa não hesitou em matar uma jovem inocente só para desviar a atenção dos indícios da própria culpa.

Ilsa apoiou-se no braço do cunhado e eles saíram do jardim.

— Então será melhor investigar o que está acontecendo, não acha?

— Prometi a seus irmãos e a Edmund que iria vigiá-la.

— E é o que tem feito. Porém é imprescindível que saibamos se o cadáver é mesmo da criada, se ela morreu por acidente ao fugir da cena do crime, ou se era apenas um simples peão no jogo da morte. Isso faz parte da minha segurança, Nanty. Só assim teremos certeza de que o assassino ainda se encontra no castelo, o que é muito importante.

Nanty sorriu com tristeza quando se aproximaram da estrebaria.

— Não tenho como discordar. A senhora verbalizou o que eu estava pensando. E se, por acaso, o assassino ainda estiver aqui?

— Ele ou ela tem estado aqui há tempos. E conseguiu envenenar-me, apesar da presença de meu marido e de meus irmãos. Não fará diferença se o senhor, meu cunhado, se ausentar por algumas horas. O perigo continua dentro do castelo. Ainda tenho as mulheres para vigiar minha retaguarda.

— Eu poderia deixar Tom...

— Nada disso. Vá com ele. Será perigoso ir sozinho. Se o problema da gruta não foi um acidente, então o inimigo não deve ter a menor consideração por quem estiver em seu caminho. Talvez o próximo empecilho seja o senhor. Leve Tom.

— Voltarei o mais depressa possível — Nanty prometeu e saiu à procura de Tom.

Ilsa voltou para o castelo e refletiu sobre o profundo senso de responsabilidade de Nanty. O que era um conforto para ela devia ser um aborrecimento para ele, que fora obrigado a vigiar a cunhada e oito sobrinhos.

Ilsa entrou em seus aposentos, convencida de que a criada fora um joguete nas mãos do criminoso. Considerou o tempo desde que a moça sumira e deduziu que não haveria como apurar a causa mortis. O que para o assassino era ótimo. Irritada, lavou as mãos e o rosto.

Secou-se com uma toalha limpa e foi até a janela. Mirou o jardim, que ficava cada dia mais bonito sob seus cuidados. Geordie caminhava em direção à muralha que margeava o jardim nas laterais, sempre olhando ao redor, como se temesse ser visto. O homem foi até a extremidade do terreno e desapareceu.

Ilsa levantou a barra da saia, desceu a escada correndo e foi para o pátio. Chegou até o lugar onde vira Geordie sumir. Ali, havia uma porta antiga, entalhada e escondida por uma macieira torta. Era uma entrada oculta que serviria de acesso fácil para o castelo de Edmund. Um perigo.

Seu marido não saberia da existência dessa entrada? Caso soubesse, por que não a eliminara?

Ilsa inspirou fundo e abriu a porta. Deu de frente com uma parede de pedra. Teria de mover-se de lado para sair. A passagem era escondida com uma irregularidade da muralha. Chegou à beira do muro alto e espiou. Geordie acabava de sumir do lado oposto da elevação onde Clachthrom fora edificado.

As idéias se acumularam em sua mente. Precisava de alguém para acompanhá-la na perseguição a Geordie. Ele poderia ser o traidor. No mínimo, tratava-se de um homem esquivo. O perigo dobraria se o destino dele fosse encontrar-se com quem tentara assassinar Edmund. Se quisesse segui-lo, ela teria de apressar-se, ou o mistério não seria desvendado.

Ilsa tornou a segurar a barra da saia e correu atrás dele. Geordie seguia com maior tranqüilidade do outro lado da colina, sem se preocupar mais com uma eventual perseguição.

Todavia Ilsa não facilitou e procurou manter-se escondida. Geordie foi até um abrigo rústico e saiu de lá com um pônei troncudo. Embora o animal não andasse depressa com um adulto de físico avantajado nas costas, Ilsa teria de correr para não perdê-lo de vista.

Geordie tornou a olhar ao redor, montou, e o pônei saiu trotando. Ilsa esperou alguns minutos e foi atrás dele o mais depressa que pôde. Quando a falta de fôlego a fez pensar em desistir da caçada, viu-o parar diante de uma cabana. Na frente, uma bela égua negra amarrada. Um animal que certamente pertencia a alguém de posses.

Uma mulher envolta em um manto respondeu às batidas de Geordie. Ele tomou a mulher nos braços, beijou-a, empurrou-a para dentro e fechou a porta.

Mas que droga! Tanto trabalho e é só um encontro amoroso!

Para ter certeza de que não se enganara, Ilsa sentou-se e, recostada em um tronco de árvore, permaneceu observando a cabana. Depois de mais ou menos uma hora, Geordie saiu.

A mulher seguiu-o, escondida pela capa. Não houve despedidas afetuosas nem beijos nem mesmo olhares prolongados. Ou os amantes haviam discutido, ou o amor esfriava. Geordie virou o pônei em direção a Clachthrom. A mulher entrou e bateu a porta.

Ilsa voltou por onde viera, dessa vez sem pressa. Procurou convencer-se de que o esforço não fora uma perda de tempo. Descobrira uma porta que, embora bem disfarçada, consistia em uma falha na segurança do castelo. Esperava que Nanty tivesse mais sorte do que ela.

Nanty tampou o nariz com um pano e tentou não vomitar. Pelo visto, a moça morrera logo após desaparecer. A cova rasa não a protegera dos corvos. Seria impossível predizer a causa da morte, sem uma inspeção mais acurada. E Nanty não tinha certeza de que conseguiria fazê-lo.

— Essa é a garota que o senhor estava procurando? — o pai do garoto que fora procurá-lo perguntou.

— É, sim. A cor dos cabelos e o traje são os mesmos descritos pelas mulheres. Ela também não tinha o dedo médio da mão direita, por causa de um acidente de infância.

— Podíamos enrolar a coitada em um lençol, colocá-la na carroça e levá-la para ser enterrada. A menos que tenha parentes que queriam seu corpo.

— Ela não tem ninguém, Duncan. Faremos como sugeriu. Mas antes quero ver se encontro algum sinal do que lhe causou a morte.

Nanty fez uma careta, mas não chegou a se abaixar. O homem idoso segurou-o pelo braço.

— Farei isso, meu rapaz.

— Mas é meu dever — Nanty protestou.

— Pela expressão de seu rosto, é capaz de esvaziar até as tripas em cima do cadáver. Eu tenho estômago de aço e olfato reduzido. O que o senhor está procurando? — Duncan ajoelhou-se ao lado da defunta.

— Algum indício de que ela não tenha morrido de causa natural. Uma queda ou coisa parecida.

— Eis aqui uma boa indicação. A garganta foi cortada.

— Tem certeza?

— Sim, senhor. Um corte grande e fundo de orelha a orelha. Pobre moça. Quem manejou o punhal tinha mão forte. Não precisava de tanta coisa para matar alguém tão magro e com um pescoço tão fino. — Duncan levantou-se e limpou a terra da roupa. — Era o que o senhor queria saber?

— Era. — Nanty suspirou. — Gostaria que não houvesse sido dessa maneira, mas era o que eu esperava.

— Sabe quem a matou?

— Ainda não, mas pretendo descobrir. Meu irmão, nosso lorde, também quer saber.

Nanty engolia em seco para não lançar tudo para fora, enquanto ajudava Duncan e Tom a carregar o corpo para a carroça. Depois, acompanhado de Tom, seguiu Duncan e o filho até a igreja. Nanty consolou-se por sua debilidade estomacal ao comprovar o mesmo sintoma no padre Goudie, quando enterraram a moça. Em seguida acompanhou o sacerdote até seu quarto, nos fundos da pequena igreja de pedra.

— Imaginei que o senhor estivesse acostumado à morte — Nanty comentou com padre Goudie, ao vê-lo tomar de uma só vez um cálice de vinho.

— Morte por doença, talvez. Por velhice ou por acidente. Um ou dois enforcamentos. Durante toda a minha vida tenho sido abençoado pela paz. Poucas mortes em batalhas. Mas assassinar uma pobre moça? Nunca havia visto isso. E a maioria dos cadáveres que tive de enterrar eram, como posso dizer, mais frescos.

— Eu sei. O estado dela era deplorável.

— Isso tem alguma ligação com os problemas de sir Edmund?

— Acredito que sim. Essa foi a criada que desapareceu no dia em que Ilsa foi envenenada. Ela pode ter sido morta para desviar nossa atenção do verdadeiro culpado. Ou pode ter participado do envenenamento e ter sido assassinada para não revelar nada. Eu não saberia dizer-lhe. Só entendo de inimigos que me encaram de espada na mão. Mas isso? Tantas voltas e tanto mistério? Eu tropeçaria em cada palavra que dissesse. Se encontrar quem está por trás disso, juro que o estriparei.

— Mesmo se for uma mulher?

— Uma mulher não faria isso. Pelo menos, não desse jeito. Duncan teve razão ao dizer que a mão que empunhou a lâmina deve ser forte. — Nanty terminou de beber o vinho e levantou-se. — Preciso voltar para o castelo.

— Tem razão. Não deve deixar milady sozinha por muito tempo. Já está escurecendo.

O padre Goudie acompanhou Nanty até o pátio de igreja.

— Gail, Glenda, Jenny e Fraser estão com Ilsa.

— Mas elas são mulheres.

— E duas não passam de garotas. — Nanty sorriu. — Mas são fiéis e não a largam um minuto sozinha. Não é isso o que me preocupa.

— Então o que é?


—Essa minha cunhada é um tanto impaciente e não costuma aceitar nossos conselhos para não sair do castelo.

Ilsa alcançou o jardim e suspirou, aliviada. Voltara para o castelo com muito cuidado para não ser vista pelos guardas, que vigiavam ainda mais atentamente as muralhas, depois dos últimos acontecimentos. Não gostaria de ser apanhada em flagrante e ter de escutar outra reprimenda de Nanty.

Caminhou pelas alamedas, e um pequeno cavalo de madeira ao pé de uma roseira chamou-lhe a atenção. Era o brinquedo favorito de Alice e fora esculpido por Tom. A menina não o largava por nada. Ilsa guardou o objeto na sacola de couro que levava na cintura e correu até o castelo. Inquieta, nem avaliou a hipótese de Alice ter deixado cair o brinquedo e ainda não ter notado sua falta.

Entrou na ala das crianças, cumprimentou Fraser e Glenda com um sorriso rápido e relanceou um olhar ao redor. Ayley, Ewart, Gregor, Ivy e Odo brincavam com jogos. Alice, os gêmeos e Gail não estavam presentes. Ilsa experimentou um calafrio e sentou-se no banco estofado ao lado de Fraser e Glenda.

— Onde esteve? — Fraser perguntou com severidade. — Gail procurou por milady.

— Para quê? — Ilsa não queria revelar o que fizera. Fraser era outra que adorava passar sermões. — Aconteceu alguma coisa com os gêmeos?

— Não. Ela queria levá-los ao jardim e pediu a Lucy para ajudá-la. Alice foi junto. Gail pensou que a encontraria mais tarde.

— Fraser, eu estava no jardim e não havia ninguém lá.

— Também não os viu na volta?

— Não. — Ilsa levantou-se e foi até a porta.

— Odo, Ivy, tomem conta dos mais novos. — Fraser ficou em pé, seguida por Glenda.

Ilsa correu de volta ao jardim, sem esperar por elas que, no entanto, a alcançaram em segundos. As três foram em direções diferentes.

— Venham aqui! — Glenda chamou.

Ilsa e Fraser dispararam rumo à voz angustiada. Glenda estava abaixada na extremidade do jardim onde as gramíneas eram mais altas e abanava a cabeça como se estivesse desconsolada. Ilsa sufocou um grito ao ver Gail amarrada e amordaçada. Ajoelhou-se e ajudou Glenda a desvencilhar a amiga dos panos e das cordas que lhe amarravam os pulsos para trás e os tornozelos.

— Gail, onde estão Alice e os gêmeos? — Ilsa lutou para não explodir em gritos.

— Sumiram. Eles os levaram.

— Eles, quem?

— A criada que estava comigo e Geordie.

— Oh, não!

Ilsa estivera tão perto de Geordie. Poderia ter impedido a tragédia. Em vez disso, perdera um tempo de grande valia para segui-lo até um encontro amoroso. Pelo menos, era o que lhe parecera. Na certa se tratara de uma reunião para ultimar os preparativos do plano hediondo para seqüestrar as crianças. Respirou fundo várias vezes até conseguir falar.

— Gail, preciso que me diga exatamente o que aconteceu. — Ilsa segurou-lhe a mão, e Fraser abraçou a jovem pelos ombros.

— Achei que seria bom para os meninos tomar um pouco de sol. Eu a procurei e não a vi em lugar nenhum. Onde estava?

— Eu lhe contarei em seguida. Seu relato é muito mais importante.

— Lucy chegou de repente e disse que era importante para bebês tomarem sol. Como eu já pensava em fazer isso, não achei estranho o fato de ela ter vindo dizer-me aquelas coisas.

— Um conluio e Gail nem precisou ser convencida — Ilsa comentou. — Lucy na certa não contara em tanta sorte. — Continue, Gail.

— Seguramos os gêmeos, e Alice quis vir também. Pareceu-me que a idéia não agradara a Lucy, mas não pude recusar o pedido da menina. Mas Lucy logo começou a rir e a tagarelar, e a minha impressão se desfez. Mal havíamos chegado ao jardim, quando fui agarrada por trás.

Gail estremeceu com a lembrança. Ilsa apertou a mão da amiga com força e encorajou-a a continuar. Fraser abraçou a moça para confortá-la.

— Lucy amordaçou e amarrou a pobre Alice com presteza. O homem que fez o mesmo comigo e me deixou aqui. Ele usava uma máscara. Mas eu o reconheci pela voz, pelo tamanho, pela pequena cicatriz na boca e pelas mãos. Grandes, fortes, nós largos nos dedos e tufos de pêlos em cada um deles. Era Geordie.

Ou Gail tinha um olhar atilado, ou passava o tempo livre observando o povo de Clachthrom.

— Eles machucaram as crianças, Gail?

— Não. Geordie disse que a senhora deveria ir até uma cabana — Gail tirou um pedaço de papel do corpete — e deixou este mapa. Quer que esteja lá uma hora depois do pôr-do-sol. Se a senhora não aparecer lá até o sol sumir no horizonte, matarão os bebês e Alice. Ele disse ainda que dariam um fim nas crianças, se alguém a seguisse. Ilsa olhou o mapa e praguejou.

— Sei onde fica a cabana. Estive lá hoje. — Anuiu diante dos olhares espantados das três mulheres.

Ilsa fez um rápido relatório sobre o que presenciara.

— Eu me contorci para espiá-los e agora entendo por que ele e Lucy sumiram atrás da macieira — Gail falou.

— E eu que estive tão perto e pensei que se tratasse de um encontro romântico. — Ilsa não se conformava. — Eu poderia ter feito alguma coisa para impedir o seqüestro.

— Fazer o quê? Atacar a cabana com gritos ferozes de guerra e retalhar o homem com sua faca de cozinha? — Glenda consolou-a.

Ilsa foi obrigada a concordar. Caso suspeitasse de uma intriga contra si mesma ou contra as crianças, nada poderia ter feito naquele momento. Estava sozinha e desarmada. Mesmo que houvesse voltado mais cedo, eles teriam levado os pequeninos de suas mãos, se quisessem.

— Quem era a mulher com quem Geordie se encontrou? — Fraser perguntou.

— O manto e o capuz não permitiram que eu lhe visse a fisionomia.

— O que nos faz supor que ela não quer arriscar-se a ser vista, pois poderia ser reconhecida por qualquer pessoa de Clachthrom.

— Saberei que é a maldita logo, logo. — Ilsa levantou-se e ajudou Gail a ficar em pé.

— Não está pensando em ir lá sozinha, está? — Fraser perguntou enquanto ela e Glenda se erguiam.

— Se eu ficar de braços cruzados, estarei arriscando a vida das minhas crianças. Não posso fazer uma coisa dessas!

— Ilsa, ele a querem ver morta!

— Eu sei, mas qual seria a alternativa? Os gêmeos são muito pequenos e só sabem gritar até deixar uma pessoa com dor de cabeça. Alice tem apenas três anos. Os bandidos poderão mata-los, cumpridas ou não as exigências. Tenho de ir até lá.

— Alguns homens poderão seguí-la sem ser vistos.

— Não duvido, Fraser, mas a cabana fica em uma clareira. Eles teriam de ir até certo ponto. Em volta não há uma só pedra onde alguém possa esconder-se. Os homens não se aproximariam em tempo de impedir uma matança.

As outras três disseram imprecações pesadas.

— Os bandidos conseguiram uma grande vitória, Deus que me perdoe. — Glenda benzeu-se.

— Não é bem assim. Geordie foi reconhecido, mas não sabe disso. Por intermédio dele, Edmund pode encontrar seu inimigo.

— Antes ou depois de enterrá-la, milady? — Fraser atalhou com cinismo.

— Fraser, não sou nenhuma ovelha indefesa. — Ilsa virou-se em direção ao castelo. Pretendia pegar algumas coisas, antes de ir para o chalé. — Eles não me matarão com tanta facilidade. Quanto à mulher, não deve ser uma grande ameaça. — Ela corria, com as três no seu encalço. — Não fez nada sozinha Teve de contratar matadores. A minha preocupação é com Geordie.

— Sei que não há escolha — Glenda ponderou —, mas não seria conveniente refletir melhor?

— Não tenho um minuto a perder.

As mulheres seguiram Ilsa até o quarto, murmurando recriminações. Ilsa apanhou três punhais e escondeu-os junto ao corpo. Pegou uma boa porção de ervas fortes e guardou-as na pequena sacola da cintura. Se surgisse uma oportunidade, poderia Usar a droga para cegar o oponente.

— Lady Ilsa, não estou gostando nada disso — Fraser recriminou-a.

— A senhora sabe que não há outra coisa a ser feita. Fraser, se Nanty voltar, conte-lhe o que houve e peça para ele agir com a máxima cautela. Se Nanty sair correndo atrás de mim, tudo estará perdido. Em vez de enterrar a mim, choraremos todos à beira da sepultura de meus filhos.

— A senhora acha mesmo que poderá lutar contra essas pessoas?

— Eu cresci rodeada por homens. Nunca fui uma donzela chorosa e indefesa. Posso ser pequena e magra, mas sei como agir e posso tornar-me até perigosa. Se a sorte estiver de meu lado, terei uma chance de derrotar esses porcos. Tudo dependerá de como eles agirem com as crianças. Se estiverem com uma faca na garganta delas, terei de hesitar.

Fraser, Gail e Glenda apressaram-se atrás de Ilsa, que seguia para o jardim.

— Irei até lá, e pensarão que obedeci às ordens deles. Nessa altura, acredito que alguém poderá aproximar-se da cabana sem ser visto. Posso manter as atenções sobre mim. Não me diga o que está planejando — Ilsa acrescentou ao perceber que Fraser estava disposta a falar. — Não quero saber. Durante o trajeto até a cabana, terei de concentrar-me no meu plano. Uma vez dentro do chalé, darei um jeito para que eles não olhem para fora. É tudo o que posso fazer. — Ilsa parou diante da porta camuflada e beijou as três amigas. — Lembre-se de contar a Nanty sobre esta passagem e sobre Geordie.

— E sobre Lucy, que também é uma traidora.

— Acho que não devemos nos preocupar com ela.

— Não estou gostando nada disso — Fraser reafirmou, entrando no castelo, depois de Ilsa sair pela porta secreta.

— Os guardas poderiam ajudar Ilsa um pouco depois — Glenda conjeturou. — Mas se contarmos do que se trata, eles não observarão os perigos e os riscos, e nós perderemos o controle sobre o assunto. Não posso deixar de imaginar que, em vez de trazer benefício para Ilsa e as crianças, estaremos colaborando para a morte deles.

— Discussão inútil. — Gail praguejou, procurando pelos cantos do quarto de Ilsa. — Ilsa levou o mapa.

— Ela fez a propósito, como também aquela conversa foi para acalmar-nos — Fraser deduziu, enquanto voltavam ao dormitório das crianças . — Podemos procurar todo o socorro do mundo, mas de nada adiantará se não soubermos informar a localização da cabana. Onde está Odo?

— Foi até o vestiário — Ivy falou sem olhar para Fraser.

— Ivy, responda, onde está Odo?

— Ele foi ver o que estava acontecendo no jardim.

— Eu não o vi.

— Mas ele estava lá. A senhora voltou e ele se escondeu. Nós não o vimos até Ilsa sair. Depois ele foi até a muralha e sumiu.

— O menino a seguiu! — Glenda afirmou o óbvio.

— Vou buscar Jenny e iremos atrás dele — Gail sugeriu.

— Nada feito — Fraser discordou. — Ele é bem pequeno e qualquer canto lhe servirá de esconderijo. Odo tem esperteza para encontrar o caminho de volta. Mesmo que o virem, ninguém se incomodará por isso. No entanto vários adultos à procura do garoto serão vistos e ouvidos. Geordie poderá interpretar o fato como uma armadilha, uma ameaça. Não. Deixemos o garoto ir.

— Tem certeza, Fraser? Ele só tem cinco anos.

— Quase seis. Entendo que pode não ser a solução ideal deixá-lo sozinho por aí. Mas Odo é um garoto esperto e poderá auxiliar-nos a afastar Ilsa e as crianças do perigo. Ele a salvou uma vez, não foi?

— Deus permita que ele corresponda às suas expectativas e que possa ajudar-nos a salvar Ilsa e os filhos. — Glenda benzeu-se. — Daí para a frente a preocupação será outra. Fazer com que Ilsa entenda por que deixamos um de seus preciosos rebentos sair sozinho.

— E de uma maneira que atenue o seu primeiro impulso. — Fraser fez uma careta.

— E qual seria?

— Sede de sangue.

— Oh, Senhor!

 

Ilsa ouviu um ruído na mata às suas costas. Olhou para trás e para os lados. Nada. Repreendeu-se pela imaginação fértil que a fazia ouvir demais. Caminhou até a clareira que rodeava a casa, procurando manter a maior calma possível. Se Deus lhe concedesse uma oportunidade de salvar as crianças e a si mesma, teria de agir com a mente clara.

Uma determinação fria invadiu o coração de Ilsa. Vingança. Essas pessoas ameaçavam seus filhos e punham em risco a vida de crianças inocentes. Se pudesse, não hesitaria em mata-los. Poderia até arrepender-se mais tarde, mas o sorriso dos filhos seria um consolo eterno.

Assim que alcançou a porta, esta foi aberta. Ilsa viu-se face a face com a amante de Geordie, dessa vez sem o manto. Ilsa escondeu como pôde a surpresa. Margaret Campbell e seu olhar azul-pálido. Sem o menor traço de impassibilidade. Os olhos de Margaret cintilavam de ódio mesclado com um leve triunfo e alguma loucura, sem a menor dúvida.

Ilsa refletiu que teria de dizer a Gillyanne que acertara quanto àquele rancor.

As peças se encaixavam. Margaret era o Amor Precioso de Anabelle. Edmund teria encontrado a paz com aquela mulher. A paz da sepultura.

Margaret a aguardava, mas Geordie não vigiava as janelas. Crentes de que as ordens seriam cumpridas, não estavam preparados para outra contingência. Uma pena. Se Ilsa soubesse disso, teria trazido um exército junto com ela.

— Salve, Ilsa Cameron — Margaret falou alto, por causa do berreiro de Finlay.

— Sou Ilsa MacEnroy. A senhora ignora o fato da mesma forma como faz pouco caso do bom senso e da razão? — A vontade de correr até os filhos era insuportável.

— Não quero saber de nada que tenha vida efêmera. — Margaret afastou-se. — Entre.

Ilsa disse a si mesma que não era o momento certo para enfiar um de seus punhais no coração daquela maldita. Entrou na cabana e prestou atenção a quaisquer detalhes, conforme Sigimor lhe ensinara a fazer. Alice estava sentada em uma cama pequena e Cearnach, deitado à sua direita. Ela lhe acariciava as costas e observava o esforço de Lucy para acalmar Finlay. Geordie tomava cerveja junto a uma mesa pequena. Comia biscoitos de aveia e de vez em quando espiava Lucy.

Margaret bateu a porta.

— Será que não consegue fazer esse fedelho parar de chorar? — gritou.

— Ele deve estar com fome — Lucy respondeu com humildade.

— Ele não está gostando de quem o tem no colo — Ilsa murmurou e tomou Finlay nos braços.

O bebê parou imediatamente de chorar. Ilsa fingiu não perceber a surpresa de Geordie, Lucy e Margaret, e embalou o filho até ele se acalmar. Deixou-o perto de Alice, e a criada afastou-se. Ilsa calculou sua posição entre as crianças e os raptores. Pelo jeito, Geordie e Margaret não a consideravam uma ameaça. Sigimor acharia muito engraçado se visse a cena.

— A senhorita é uma retardada e não tem a menor utilidade — Margaret franziu o cenho para Lucy.

Ilsa percebeu a tempo o que iria aconteceu e cobriu os olhos de Alice. A criada, que ocupava uma cadeira ao lado de Geordie, mostrou-se inquieta. Margaret fitou Geordie com dureza e entendimento. Ele deu de ombros, envolveu a garganta de Lucy com as mãos enormes e, antes que a moça pudesse dar um gemido, quebrou-lhe o pescoço. O corpo de Lucy deslizou até o chão e Geordie voltou à sua cerveja e aos seus biscoitos.

Margaret, com expressão de enfado, serviu-se de vinho, e Ilsa estremeceu. Era aterrorizante a completa falta de emoção com que o casal executara a criada, quando ela não lhes serviu mais.

Ilsa tirou a mão dos olhos de Alice e confortou a menina trêmula. Ela podia não ter visto o assassinato, mas percebeu que algo de muito grave acontecera. No momento, seria impossível deter-se nas lágrimas de Alice. Ilsa esperava poder fazer alguma coisa mais tarde.

— Gostaria de tomar um pouco de vinho? — Margaret perguntou, com um sorriso cínico.

— Não, obrigada. Já experimentei um dos seus e achei-o muito amargo.

Geordie parou de tomar a cerveja.

— Margaret? — ele resmungou. A mulher fitou-o e suspirou.

— Geordie, está me ofendendo. Eu jamais teria sucesso sem a sua ajuda e devoção. Acha mesmo que eu poderia recompensar isso com um copo de veneno?

Geordie voltou a atenção para a cerveja. Ilsa considerou duas hipóteses. Ou ele acreditava no poder de sua atração, ou era um imbecil. Em qualquer um dos casos, o camarada não cogitava da possibilidade de Margaret executá-lo.

— Alice se parece muito com a mãe — Margaret comentou, deu um passo na direção da garota e recuou quando Finlay começou a choramingar.

— O que há de errado com esse garoto?

Finlay aquietou-se assim que Margaret deu um passo atrás.

— Tenho a impressão de que ele não gosta da senhora.

— Não seja ridícula. Ele não chorou quando foi levado do jardim.

— Chorou, sim — Alice desmentiu-a, de cenho franzido —, mas Geordie o amordaçou. O malvado quase matou meu irmão.

— Cale a boca, menina, ou eu me encarregarei de fazê-lo — Geordie grunhiu. — Não tenho de tolerar descaramentos da filha bastarda de urna meretriz.

Margaret empalideceu.

— Vamos com calma, Geordie — Ilsa resolveu intervir. — Não deveria ofender lady Anabelle.

— O que a senhora tem a ver com isso? A falecida não era nada sua.

— Menos do que nada. Contudo lady Anabelle significava alguma coisa para Margaret. Não é verdade, Amor Precioso?

— A senhora se acha muito inteligente, não é verdade, Ilsa Cameron? Prove, se for capaz.

— Edmund o fará em breve. Ele e meus irmãos descobrirão o que for necessário. A verdade está em Muirladen, não é, Margaret Campbell? Por isso, há pouco mais de um ano, Edmund seguiu até lá. E também por isso, a senhora mandou atacá-lo.

— E mais uma vez, Edmund nada encontrará.

— Ledo engano. A senhora com certeza não deve ter matado todos os que sabem da verdade. Edmund não se casará com a senhora, mesmo que ficar viúvo. Tê-se por muito feliz se ele não a caçar como se faz com um cão raivoso.

Margaret avançou sobre Ilsa. Finlay recomeçou a chorar e a mulher recuou.

— Qual o truque que está usando com esse pirralho? — Margaret irritou-se.

Embora espantada pelo comportamento de Finlay, Ilsa afastou alguns fios de cabelos da testa do filho.

— Eu não fiz nada. Ele apenas não gosta da senhora.

— Hum, logo ele ficará quieto — Margaret murmurou e tomou mais um gole de vinho. — Desejo apenas falar com Edmund. Ele precisa acreditar que só ouviu mentiras a meu respeito. Estávamos no altar e a senhora estragou tudo. Ele viu concretizadas em mim suas aspirações a respeito de uma esposa.

— Ah, quanta estupidez!

Margaret, com o rosto crispado pelo ódio, voltou-se para Geordie, que não conteve uma risada. Ilsa espantou-se pelo pouco caso que ele dava à situação. Na certa, Geordie considerava a si mesmo o elemento mais importante daquela sociedade. Além disso, devia imaginar-se seguro de que somente ele poderia ajudar Margaret e que estaria a salvo por tudo o que sabia a respeito da amante.

Com toda certeza, aquelas não eram opiniões partilhadas por Margaret Campbell.

— A senhora se acha a mulher certa para Edmund, não é?

— Margaret voltou sua fúria de novo para Ilsa. — Ah, com esses seus horríveis cabelos ruivos e magra como um esqueleto? Além de todos aqueles malditos irmãos idiotas de cabeça vermelha?

— Exatamente, Amor Precioso. Será melhor não esquecer da existência de meus irmãos na elaboração de seus planos macabros. Além deles, tenho muitos primos que também não descansarão enquanto não encontrarem quem matou a mim e a meus filhos, e não a levarem à sepultura. Eles serão implacáveis em sua caçada.

— Margaret?

Ilsa virou-se para Geordie, pensando que ele pretendia dar seu parecer sobre o assunto. Extremamente pálido, o homem suava em bicas. Os olhos esbugalhados eram de quem entendia ter sido atraiçoado.

— Sugiro que o senhor se apresse e esvazie o estômago repetidas vezes — Ilsa avisou-o.

— Sua rameira imunda! — Geordie queixou-se com a voz rouca por caIlsa da dor e tentou levantar-se.

— Essa é a paga por ter-me enganado — Margaret sentenciou.

— Enganá-la? — Geordie conseguiu ficar em pé, cambaleou para a direita, bateu na parede e deslizou até sentar-se no chão.

— Nós éramos amantes. A senhora me atraiu para a sua cama e eu me deixei seduzir como um tolo.

— Um horror, nem quero me lembrar. — Margaret estremeceu. — O senhor não queria me ajudar. Eu tive de fazer isso para vencer sua hesitação. Fui obrigada a tomar uma medida drástica para castigar Edmund MacEnroy pela morte de Anabelle. Além do mais, considere o veneno um ato de bondade.

— Bondade?

— Claro. O senhor sofrerá menos do que se fosse enforcado pela morte de Ilsa e das crianças.

— A se... senhora en... enlouqueceu.

— Agora que o senhor percebeu? — Ilsa admirou-se. — Será que nunca imaginou o porquê dessa ânsia de querer matar Edmund? Margaret nem mesmo era parente de Anabelle.

— Ela dizia que a amava como irmã.

— Elas foram amantes, Geordie, e durante muitos anos. Margaret era o Amor Precioso de Anabelle. Essa demente culpa Edmund pela morte de Anabelle, mas foi ela mesma quem deu a Anabelle a droga que a matou. O senhor encomendou a alma ao diabo por nada.

— E tudo isso foi planejado por essa maldita — Geordie sussurrava, arfando. — Cuidado, Ilsa... ela pegou minha espada.

Geordie tentou em vão agarrar Margaret. Caiu para o lado, encolhido e gemendo como uma criança. A morte estava próxima. Ilsa observou Margaret tirar a lâmina da bainha, e a expressão da assassina deu-lhe a certeza de que teria de agir depressa.

Nanty deixou a estrebaria ao lado de Tom. Pensou em como explicar para Ilsa o que acabava de descobrir. Um tumulto nos portões chamou-lhe a atenção. Os homens gritaram que o sol já se escondera, mas em seguida amontoaram-se para escancarar a entrada. Edmund entrou a galope, seguido por Tait, Sigimor e outro muito parecido com ele, e um quarto cavaleiro também ruivo.

— Voltaram antes do planejado — Nanty comentou, enquanto Edmund desmontava. — Descobriu alguma coisa?

— Sim. — Edmund apresentou Somerled e Liam a Nanty. Franziu a testa ao ver um pequeno grupo de mulheres que passavam pelos portões. — Nanty, lembra-se de Payton, primo de Gillyanne?

— Ah, sim — Nanty entendeu a sugestão ao fitar Liam e observar as mulheres embasbacadas diante do jovem Cameron.

— Esse é um pouco pior. — Ele se virou para as recém-chegadas. - Senhoras, em que podemos ajudá-las?

As seis murmuram desculpas variadas como visitar Glenda ou algum parente e sumiram castelo adentro.

— Edmund, encontrei a serva... — Nanty parou de falar quando uma criada aproximou-se com uma travessa cheia de canecos de cerveja espumante. Ela serviu a todos, sem deixar de fitar. — Existem algumas vantagens de se ter Liam por perto.

Nanty tomou um bom gole e observou a carranca de Sigimor dirigida ao primo.

— Nanty, encontrou a moça... morta? — Edmund deduziu.

— Isso mesmo. E com a garganta cortada. Acabo de vir do local onde o corpo foi achado. Ou melhor, da igreja onde a enterramos. Foi assassinada ou porque sabia demais ou para desviar nossa atenção.

— Aposto na primeira opção. Margaret Campbell é o Amor Precioso.

— Senhor! Essa criada tinha vindo com ela. E ainda há uma outra, acho que se chama Lucy. Então Margaret arquitetou tudo isso?

— Difícil de acreditar, não é? — Edmund contou a Nanty tudo o que descobrira sobre a mulher com quem estivera a ponto de casar-se.

— Ela enganou a todos nós e até mesmo a Gillyanne.

— Gillyanne tentou prevenir-me, mesmo sem entender direito por que Margaret a perturbava. Se eu tivesse me casado com ela, não teria vida longa.

— Papai! Papai!

Odo vinha correndo dos fundos do castelo, onde ficavam os jardins. Gail, Fraser, Glenda e Jenny saíram apressadas pela porta da frente, ao mesmo tempo que Odo abraçava as pernas do pai. Gail e as duas mais velhas saudaram Liam apenas com cortesia. Jenny arregalou os olhos e ficou boquiaberta. Edmund compreendeu que não se tratava de uma recepção de boas-vindas.

— O que houve com Ilsa? — Arrepiou-se. Gail explicou o que acontecera no jardim.

— E ela foi sozinha?

— Sim, como eles mandaram que fizesse — Glenda desculpou-se. — O tempo era curto e não encontramos nenhum plano que não pusesse as crianças em risco ainda maior. Lady Ilsa cumpriu as ordens deles. E disse também que poderíamos mandar alguém mais tarde, pois ela distrairia Geordie e a mulher.

Edmund tratou de apagar o desgosto de ter sido traído por seu homem de confiança.

— Para onde ela foi?

— Ela não deixou o mapa, para que não pudéssemos seguí-la — Gail lamentou.

— Então Ilsa está sozinha com Geordie e Margaret.

— Margaret! — Fraser gritou, surpresa.

— Isso mesmo, Margaret — Edmund afirmou. — Explicarei tudo mais tarde. Agora teremos de dar um jeito de encontrar minha esposa. Ah, que tolice ela cometeu!

— Papai! Eu sei onde ela está. — Odo ergueu a cabeça para fitar Edmund, antes de encarar Fraser com receio. — Eu a segui.

— Para onde é que sua mãe foi, meu rapaz? — Edmund acariciou-lhe os cabelos.

— Até aquela casa pequenina onde o senhor ficou preso embaixo da cama.

— Seguiu-a até lá e voltou tão depressa?

— Sim, papai. Eu corri bastante na volta.

Edmund agachou-se na frente de Odo e abraçou-o, comovido. Depois segurou-o pelos ombros.

— Diga-me. Havia algum homem do lado de fora, como os guardas que temos aqui?

— Não, papai. Nenhum. Mamãe foi direto para a cabana. A mulher apareceu na porta e mamãe entrou. Era a mulher com quem o senhor ia se casar, antes da mamãe chegar. Por que ela quer machucar mamãe, Alice e os gêmeos? Será porque o senhor escolheu mamãe, e não ela?

— Alguma coisa parecida, meu corajoso rapaz. Se quiser, conversaremos mais tarde, depois de que eu trouxer sua mãe e seus irmãos para casa. — Edmund beijou Odo no rosto e deixou-o perto de Fraser. — Foi errado sair sozinho, filho, e também falaremos sobre isso. Mesmo assim, agiu muito bem, meu nobre cavaleiro. Gail, tem certeza de que se tratava de Geordie?

— Sim, milorde, apesar de estar mascarado. Conheci a voz e a compleição física. Ilsa havia seguido Geordie antes, quando ele saiu de Clachthrom. Ele foi até a cabana para encontrar-se com aquela mulher, na certa a fim de arquitetar o planos para seqüestrar as crianças. Ilsa estava a pé e não se apressou em voltar, pensando que se tratava de um encontro amoroso. Ah, Ilsa recriminou-se tanto por isso!

— Jesus amado, será que ninguém desta família consegue ficar onde ordenamos que fiquem? — Nanty exasperou-se. — Saí por algumas horas e todos se espalham por aí sozinhos e desprotegidos!

— O que nos faz pensar que o corpo da moça foi deixado ali de propósito. Era uma maneira de afastá-lo de Clachthrom, Nanty.

— Ela foi morta provavelmente no dia em que desapareceu ou logo depois. — Nanty estremeceu. — Não acredito que alguém fosse carregá-la naquele estado de putrefação.

— Correto. Bem, mãos à obra — declarou Edmund. — Precisamos de cavalos descansados.

— Irei buscá-los. — Nanty e Tom recolheram os animais que haviam trazido Edmund e os Cameron.

— Se quiser educar esse garoto fora daqui, terei o maior orgulho em apadrinhá-lo. — Sigimor observou Odo afastar-se com as mulheres. — Não sou favorável a deixar os meninos longe de casa a vida inteira. Mas um pouco de treinamento fora faz bem a eles.

— Sigimor, por acaso não está nem um pouco preocupado com Ilsa?

— Muito mais de que "um pouco". Por isso procuro mudar de assunto. Ajuda a manter o sangue frio que, nesses casos, é fator imprescindível. Nervosos, não pensamos com clareza.

— E quando raciocinamos — Somerled interveio —, podemos lembrar-nos de que a nossa Ilsa não é nenhuma jovem indefesa e tímida, para quem a faca só serve para comer. Ela é uma Cameron. E não permitirá que a matem ou encostem nas crianças, sem derramar sangue.

— Geordie é grandalhão e poderá facilmente derrotar Ilsa — Edmund afirmou.

— O senhor também é, e ela o derrubou com apenas um soco — Tait lembrou-o.

— Ilsa é muito inteligente. Passou a vida toda lidando com homens mais fortes e bem maiores do que ela — Somerled salientou. — Ou acha que ílsa sobreviveu a todos nós sorrindo com timidez? Não duvido que nossa irmã esteja em perigo, mas ela sairá vencedora dessa contenda. Posso até afirmar que Ilsa foi até lá armada, que arquitetou planos durante o trajeto e que estará atenta ao menor sinal de vulnerabilidade dos seqüestradores.

— O que acontecerá então? — Edmund falou para si mesmo.

— Tudo o que eles enxergam é uma mulher frágil que poderia ser afastada com um vento mais forte.

Edmund teve de dar razão aos Cameron e sua inquietação cedeu um pouco. O raciocínio lógico abriu um leque de esperanças, Ilsa era delicada, esguia e forte. Sentira muitas vezes a força daquele corpo delgado. Ela era inteligente e conhecia a necessidade de ter cabeça fria e mão firme. O amor pelas crianças e a importância de mantê-las em segurança lhe dariam toda energia que fosse preciso para vencer a batalha. Se Geordie e Margaret cometessem algum engano, por menor que fosse, haveria uma boa chance de Ilsa derrotar a morte mais uma vez.

 

—A senhora acaba de cometer um grave erro. — Ilsa, de costas, empurrou as crianças, prensando-as delicadamente na parede.

— É mesmo? — Margaret fitou a espada que segurava e sorriu. — E qual seria ele?

— A senhora matou a única pessoa que poderia me ameaçar.

— Por acaso esta bela arma não é uma ameaça?

— Não em suas mãos.

— Eu já a usei antes, sua tola. Entretanto não gostaria de matar Alice. Ela se parece demais com Anabelle. É como se Anabelle revivesse em sua filha.

— Deus que me perdoe. Anabelle era perturbada e perversa. Ela usava as pessoas, como também a usou, Amor Precioso.

— A senhora não conheceu Anabelle e jamais poderia entendê-la. Os homens, uns porcos todos eles, pensaram que a haviam derrotado. Mas ela se ergueu, vitoriosa. Ela os fez rastejar e expôs a fraqueza imunda deles para a humanidade. Anabelle usou-os um a um, mas era a mim que amava. — Margaret suspirou. — Se fosse viável, eu pouparia a menina e a criaria como se fosse minha. Mas isso é impossível. Todos terão de morrer, para que a minha vingança contra Edmund seja completa.

— Já que matou Geordie e Lucy, como pretende explicar nossas mortes?

— Muito simples. Depois de matá-la, Geordie se envenenou, movido pelo remorso. Hum, talvez eu possa deixar uma pequena carta onde ele confessa tudo. Ah, também a morte de Lucy. Não devo me esquecer disso.

— Claro. Ocorre-me, entretanto, que a senhora não deve imaginar que eu possa ter algumas objeções aos seus planos. Ou espera que eu levante os cabelos para que a senhora não erre o golpe?

Ilsa viu o ódio crescente de Margaret e teve certeza de que seu plano estava funcionando.

Por acaso esperava que assim não fosse?

Sua intenção era enfurecer Margaret a ponto de fazê-la agir às cegas com a ânsia de matar. Ilsa correria para a porta e atrairia Margaret para fora. As crianças ficariam a salvo da assassina. Na clareira, Ilsa poderia Usar seus punhais para lutar.

Como pensara que a artimanha poderia não dar certo?

— Ainda não entendeu que a sua mísera vida está em minhas mãos? — Margaret sibilou.

— Vejo que perdeu o juízo há muito tempo. Não lhe tenho nenhum receio. A senhora não passa de uma prostituta assassina, da mesma forma que a sua amante, Anabelle.

A fúria de Margaret cresceu inesperadamente e Ilsa disparou porta afora, com a outra atrás de si, de espada em punho, praguejando. Virou-se ao escutar Margaret tropeçar, mas a louca equilibrou-se depressa, sem largar a arma. Ilsa enfiou a mão na abertura da saia e pegou o punhal que escondera ali. Embora não pretendesse matar Margaret, estaria pronta para fazê-lo, se fosse necessário.

Edmund quis invadir a clareira, mas foi puxado para trás por Sigimor.

— Margaret vai matá-la!

— Se for até lá agora, acabará por distrair Ilsa e poderá causar-lhe a morte.

— Onde estão Geordie e Lucy?

— Fugiram ou morreram. Se apresentassem condições, estariam pelo menos observando a luta. Se Geordie estivesse por perto ou vivo, Margaret não correria atrás de Ilsa com uma espada.

— Tem razão, Sigimor. Então meus filhos devem estar sozinhos na cabana.

— Hum, faz sentido. Por isso Ilsa atraiu Margaret para fora. Para lutar com as próprias armas, sem medo de ferir as crianças. — Sigimor espiou para os fundos da cabana. — O senhor merece congratulações por seus filhos.

Alice vinha saindo pela porta dos fundos e arrastava um cobertor sobre o qual repousavam os gêmeos. Com grande dificuldade, tropeçava a cada passo e puxava a maca improvisada como podia, com determinação estampada no rosto angelical.

— Vamos — Sigimor ordenou. — Poderemos dar a volta e entrar por trás.

Após um último olhar para a esposa, Edmund seguiu os outros. Sua vontade era avançar sobre Margaret, mas resolveu aceitar a decisão dos Cameron. Eles conheciam Ilsa. Conformou-se ao pensar que pelo menos ajudaria os filhos.

Quando Edmund alcançou Alice, a menina chorava baixinho e estava muito arranhada de tanto cair. Mas continuava lutando para afastar os irmãos da cabana. Arregalou os olhos ao ver o pai e os outros, porém obedeceu ao sinal para calar-se. Edmund pegou-a no colo, enquanto Sigimor procurava ferimentos nos gêmeos.

— Papai, eles queriam machucar meus irmãos — Alice se queixou em voz baixa.

— Eu tenho uma filha muito corajosa que os salvou — Edmund cochichou.

— Odo disse que temos de cuidar uns dos outros. Liam saiu da cabana e abaixou-se ao lado deles.

— Restou somente Margaret.

— Parece que Geordie quebrou alguma coisa de Lucy — a menina contou. — Mamãe cobriu meus olhos e eu não vi o que era.

— E Geordie? — Edmund quis saber.

— Lembra quando o senhor contou que mamãe estava doente por ter tomado um vinho ruim? — Alice orgulhou-se de pode explicar. — Então. Acho que Geordie tomou uma cerveja que também não era boa. — Olhou para a frente da cabana. — O senhor vai ajudar a mamãe?

— Vou, minha querida.

— Milady não gostaria que eu limpasse essas pequenas feridas com um pano e, hum... com um pouco de água? — Liam perguntou.

Alice soltou-se do pai, sentou-se no cobertor e fitou Liam.

— Claro, sir. Estou muito suja e não gosto nada disso.

Edmund, Sigimor, Somerled e Tait rodearam a habitação tosca até enxergar Margaret e Ilsa. Edmund observou a esposa e duvidou que alguma coisa no mundo pudesse distraí-la. Viu nela a concentração de um guerreiro, o olhar atento para o perigo e para uma oportunidade de atacar. Sigimor puxou o punhal, e Edmund acalmou-se um pouco. Surpreendeu-o a maneira como passara a confiar nos Cameron. Não teve a menor dúvida de que Sigimor não hesitaria em matar para defender a vida de Ilsa.

— Margaret, largue a espada — Ilsa disse. — Não quero matá-la.

Margaret deu uma gargalhada.

— E como pretende matar-me? Afogando-me no seu sangue? Sou eu quem está com a espada.

Ilsa puxou o punhal.

— Eu não vim desarmada. Posso enfiar esta lâmina no fundo do seu coração, antes que faça um movimento completo com a espada. — Ilsa notou o olhar de incerteza de Margaret. — Largue a arma. Não será enforcada por isso — prometeu, com esperança de que Edmund concordasse. — Nós a levaremos a seu pai e ele a protegerá.

— Meu pai? — Dessa vez o riso foi amargo. — Ele nunca me protegeu, nem mesmo do irmão, de meus primos ou de seus amigos bêbados!

Ilsa considerou a infelicidade de haver tocado no nome de sir Campbell e entendeu a origem da loucura de Margaret. Apesar de lamentar sinceramente a infância e a juventude difíceis que Margaret teria enfrentado, não hesitaria em matá-la se a outra a pressionasse.

— Haverei de vingar-me! Edmund tirou Anabelle de mim, e eu tirarei a bruxa ruiva dele!

— Foi a senhora quem deu a Anabelle a poção que a matou.

— Edmund a engravidou e não aceitou o filho! Ela ficaria desonrada!

— Anabelle estava grávida de outro homem. E se estava envergonhada, deveria pensar antes de tornar-se uma meretriz.

— Não diga isso! A senhora não a conheceu. Ela era uma guerreira. Mostrava aos homens as fraquezas e as idiotices deles. Fazia o mais pio dos homens desejá-la. Mostrava-lhe que ele não era melhor de que os animais.

— Acha que Anabelle foi uma batalhadora só porque excitava qualquer um? Não é preciso ser muito perita para conseguir isso. Os homens ficam estimulados com um simples sonho fugaz. E se estão famintos, poderão facilmente relacionar-se até com uma mulher horrorosa. É só fechar os olhos. Não enxergo nenhuma vitória nas atitudes de Anabelle. Ela só contava mentiras, talvez até para si mesma.

— Nada disso! Ela os fazia passar vergonha, e por isso está morta!

Margaret deu um golpe. Ilsa saiu do caminho e passou uma rasteira na oponente. Margaret deixou a espada cair, e as duas se abaixaram para pegá-la. Margaret, apesar da pouca habilidade como espadachim, começou a lutar como uma desvairada. Ilsa enfrentou uma adversária difícil, mas em minutos imobilizou Margaret no chão. Com o canto dos olhos, viu uma cabeça ruiva perto da cabana. Não estava mais sozinha.

— Margaret, sabe que eu poderia matá-la. Mas também posso dar-lhe uma oportunidade para viver, embora confinada em um convento ou coisa parecida. Mesmo assim, será melhor do que morrer. Aceita a rendição?

— Aceito.

Ilsa endireitou-se devagar, sem tirar os olhos de Margaret. Para quem envenenara o parceiro, lady Campbell era pouco confiável. Puxou o segundo punhal da manga, pois deixara cair o primeiro no furor da batalha.

Ilsa recuou e Margaret ficou em pé, armada com uma adaga que tirara da saia. Ilsa praguejou e atingiu com seu punhal a mão da assassina. Margaret gritou e soltou a arma. Ilsa deu-lhe um soco no queixo e sacudiu a mão para aliviar o ardor, enquanto observava Margaret desabar no chão.

Certificou-se de que a mulher estava inconsciente e virou-se para buscar os filhos. Os irmãos e Edmund apareceram à sua frente, mas Ilsa escutou um movimento muito leve às suas costas. Entendeu que errara. Deveria ter tirado a adaga do alcance de Margaret. Naquela altura, não havia mais alternativas. Sua posição, entre os homens e Margaret, era um obstáculo para que eles a ajudassem. Deu um suspiro profundo, voltou-se e atirou o punhal.

Em pé, ainda com a arma na mão, Margaret fitava a lâmina enterrada em seu peito. Devagar, dobrou os joelhos. Ilsa correu até ela, porém Margaret já caía de costas. Ilsa viu a névoa do fim iminente.

— Eu lhe disse que poderia matá-la. Por que não acreditou em mim?

— Eu... acreditei — Margaret sussurrou.

Ilsa abaixou-se e fechou-lhe os olhos sem vida. Angustiou-a pensar que fora escolhida como carrasca. Edmund aproximou-se e tomou-a nos braços. Ilsa aconchegou-se nele, sob os olhares de Sigimor, Somerled e Tait. Alguns segundos depois, sentiu alguém abraçar-lhe as pernas e sorriu para Alice. Liam e Nanty vinham chegando com os gêmeos.

— Como me encontrou? — Ilsa perguntou a Edmund e levantou Alice no colo.

— Odo a seguiu. — Edmund ficou em frente à filha, para que a menina não visse os gêmeos Cameron carregarem o corpo de Margaret para a cabana.

Agarrada no pescoço de Ilsa, Alice não parecia muito perturbada. Ilsa rezou para que a aventura trágica não deixasse muitas cicatrizes na mente infantil. Naquele momento, notou as arranhaduras nos braços e nas pernas da criança. Olhou com mais atenção e notou que alguém já as havia tratado.

— O que foi, minha querida?

— Ela é uma mocinha muito corajosa e inteligente. — Edmund sorriu e contou o que a garota fizera.

— Mas que coisa maravilhosa! — Ilsa beijou a testa de Alice.

— Podemos ir para casa? — a garota pediu.

— Tait, Liam e eu podemos levá-las de volta a Clachthrom — Nanty ofereceu-se.

Edmund considerou que, pelos crimes cometidos, Geordie e Lucy deveriam ser enterrados na floresta. Porém Margaret teria de ser levada de volta à casa da prima, a quem ele explicaria o que acontecera. Inspirou fundo pela dificuldade da tarefa e beijou as duas no rosto.

— Obrigado. Tenho algumas coisas para fazer aqui.

— Edmund — Ilsa começou. — Margaret...

— Soube tudo sobre ela em Muirladen. Por isso voltamos para cá antes do previsto. Depois eu lhe contarei o que houve.

Edmund beijou novamente a esposa e foi até a cabana onde estavam Sigimor e Somerled.

Na volta a Clachthrom, Ilsa montou na frente de Liam. com Cearnach nos braços. Nanty levou Alice, e Tait amarrou Finlay de encontro ao peito. A exaustão que Ilsa experimentava não era somente física. O sangue que derramara com suas mãos, por justiça ou não, dificilmente seria esquecido.

— Não havia escolha, Ilsa — Liam adivinhou-lhe os pensamentos. — De uma certa maneira, ela a provocou, sabendo o que aconteceria.

— Foram mais ou menos essas suas últimas palavras. Eu terei de acreditar nisso. — Ilsa suspirou fundo. — Margaret estava totalmente louca. Não houve meios de fazê-la entender como tinha se enganado a respeito de quem havia sido Anabelle.

— Quem somos nós para saber o que se passa na mente humana?

Edmund deixou o quarto de banho, que ficava atrás da cozinha, e foi para seus aposentos. Apesar de o triunfo sobrepujar a tragédia naquele dia, não teve certeza se teria forças para fazer amor com Ilsa.

O encontro com a parenta de Margaret fora mais fácil do que o esperado. A mulher assegurara-lhe de que não haveria pedidos de vingança. Margaret seria enterrada sem alarde e tudo seria esquecido.

Edmund estranhou o fato de a mulher nem ter-se espantado com o relato da loucura da prima. Talvez até sir Campbell suspeitasse da insanidade da filha. Naquele caso, o homem jamais deveria ter pensado em casá-la com quem quer que fosse. Resolveu que, no futuro, seria mais cuidadoso nos encontros com ele. E, em virtude da tragédia, esperava que eles fossem bastante escassos.

Os últimos acontecimentos haviam trazido uma revelação para Edmund: o amor por sua esposa. A suspeita, que se iniciara quando as lembranças vieram à tona em Muirladen, haviam se confirmado ao ver Ilsa sob a ameaça da espada de Margaret.

Porém não tinha mais certeza do amor que Ilsa lhe dedicara no passado. Lembrava-se do sofrimento que via em seu olhar toda vez que ofendia aquele amor. Mesmo que os atos pudessem ter sido inconscientes, os danos existiam. Nada lhe garantia que houvesse uma reparação possível. Apavorava-o a idéia de que pudesse ter matado o sentimento que se tomara mais importante do que o ar que respirava.

Entrou no quarto e decidiu que o mais certo seria cortejar a esposa. Daria o melhor de si para isso, mesmo reconhecendo não ser muito versado naquela habilidade. Naquele período de incertezas, calculou a impropriedade de começar declarando seu amor e seu desejo. Teria de ir a passos lentos, mostrar que confiava em Ilsa e, em troca, ganhar-lhe a confiança.

Edmund tirou as roupas, entrou debaixo dos lençóis e abraçou Ilsa.

— Edmund? — ela murmurou e virou-se. Sonolenta, beijou-lhe o queixo.

— Sim, desculpe-me se a acordei. — Ele deu-se conta de que não estava tão exausto quanto imaginara.

Ilsa aninhou-se e acariciou-lhe o peito.


— Houve algum problema quando foi levar o corpo de Margaret para a prima?

— Não. — Edmund afagou-lhe as costas e sorriu ao senti-la colar-se nele com murmúrios de prazer. — A mulher nem pareceu surpreender-se com os relatos que fiz.

— A família conhecia sua loucura?

— Creio que sim, mas isso não importa.

— Acho que importa, sim. Três pessoas foram assassinadas e pelo menos uma delas era inocente. E muitas sofreram atentados.

— Margaret também pode ter matado lady Ogilvey. — Edmund contou-lhe o que soubera em Muirladen, sem interromper as carícias.

— Meu Deus. Como tudo vinha acontecendo há tanto tempo, sem que ninguém se desse conta?

Ilsa admirou-se da paixão que começava a incendiá-la, apesar do horror do relato. O calor do corpo do marido e a perícia de seus dedos ajudavam a mitigar o frio que lhe invadia os ossos. Um nos braços do outro, encontravam a vida. Melhor prova disso era paixão que compartilhavam.

— No futuro, eu não confiaria mais em Lesley Campbell — Ilsa afirmou e gemeu de prazer ao senti-lo lamber o mamilo sobre o tecido diáfano da camisola.

— Eu já havia pensado nisso. — Edmund despiu Ilsa e deitou-se sobre ela. — Estive fora por uma semana.

— Pareceu-me um século. — Ela beijou-lhe o pescoço.

— Senti muito a sua falta, principalmente à noite.

— Meus irmãos não foram uma boa companhia? — Ilsa caçoou, enfiou a mão por baixo do corpo do marido para acariciá-lo e adorou os grunhidos de prazer.

— Nem um pouco. — Edmund beijou-lhe a pele suave entre os seios. — Também não tinham esse cheiro tão gostoso.

Ilsa sufocou o riso. Edmund começava a sugar-lhe o mamilo. Ela agarrou os cabelos do marido, trêmula de ansiedade.

Pelo menos naquele ponto, marido e mulher combinavam, Ilsa refletiu, não sem certa amargura.

O amor tornou-se feroz e selvagem. Ilsa e Edmund deram livre vazão ao desejo contido havia tantos dias. As peripécias eróticas não foram prolongadas e nem precisariam ser. Assim que Edmund a penetrou, Ilsa teve certeza do êxtase que se aproximava. Satisfeita, agarrou-se no marido, que alcançou o clímax em seguida.

Depois de um longo momento, Edmund deslizou para o lado e puxou-a junto.

— Agora estou literalmente extenuado — ele murmurou, acariciando-lhe os cabelos desalinhados.

— Meus irmãos também não podiam cansá-lo? — Ilsa indagou, sonolenta,

— Seus irmãos são capazes de exaurir um santo. Levei um susto quando entrei em Dubheidland. Nunca tinha visto tantas pessoas ruivas. Era um vermelhidão capaz de cegar. — Edmund sorriu ao ouvi-la dar uma risadinha marota. — No começo, não me receberam com muito entusiasmo, mas Sigimor tratou de explicar tudo.

— Oh, Senhor!

— Alguns Cameron passaram a aceitar-me, enquanto outros esperavam que eu começasse a babar. — Edmund beijou-lhe o pescoço e fechou os olhos. — Acabou, Ilsa.

— Um triste fim, apesar do alívio.

— Agora poderemos viver nossas vidas, sem nos preocuparmos com sombras em cada canto. Teremos tempo para investir no nosso casamento.

Ilsa suspirou. O marido nada mais disse e, em segundos, começou a ressonar. A tensão foi abandonando-a. Pensara em como reagir diante de uma mudança de comportamento, depois de que Edmund recuperara a memória e da derrota do inimigo. Não entendia por que essa idéia a deixava inquieta.

O casamento deles não era perfeito, mas bem melhor de que a maioria. Tinham uma grande paixão em comum e aos poucos a afinidade se estendia a outros níveis. A família era grande e tinham muitos amigos. Dali para a frente, poderia aceitar a amizade do povo de Clachthrom, sem ter de suspeitar de ameaça ou traição. E, para sua surpresa, nem mesmo gostaria de saber quais eram os planos de Edmund para o futuro.

O que teria acontecido com seus sonhos e suas esperanças?, Ilsa perguntou-se. Teriam desaparecido no dia em que entrara na igreja e vira Edmund prestes a casar-se com outra? Teria o ódio e o rancor gerado um receio profundo que ela não reconhecera até aquele momento? Precisaria refletir muito antes de aceitar qualquer mudança. Mas sua intuição lhe dizia que Edmund não lhe concederia esse tempo.

Os homens eram todos iguais. Edmund estava mais tranquilo, e o inimigo, morto. Dali para a frente, ele voltaria as atenções para a esposa e o casamento. A mente masculina era simples demais. E prosaica.

Ilsa respirou fundo para acalmar-se. Era tarde, estava cansada e não era hora para lucubrações mentais. Assuntos tão importantes como seu matrimônio ou tão complicados como seus sentimentos teriam de ser avaliados com a cabeça fria do amanhecer.

Ilsa fechou os olhos e pôs a mão sobre a de Edmund que descansava em sua cintura. Sentiu tristeza ao lembrar-se da criança que lhes fora arrebatada. Edmund tornara-se um bom pai, e ela pretendia dar-lhe mais um filho, apesar da incerteza de seus desejos e de suas verdadeiras emoções.

 

— Não posso entender por que estamos fazendo isso — Gail queixou-se. Ilsa ajudou Gail a subir no cavalo e, em seguida, montou em sua égua. Gail levava Finlay junto ao peito, seguro por uma espécie de tipóia, e Ilsa usava o mesmo sistema para carregar Cearnach. Ilsa decidira sair às escondidas, para que Edmund não viesse à sua procura.

— Eu já lhe disse, Edmund está me deixando louca — Ilsa afirmou e incitou a montaria para a frente.

— Ele está apenas empenhado em fazer-lhe a corte. — Gail seguiu-a. — Nesses dois dias, sir Edmund tem-se dedicado a isso com maestria.

— E para quê?

— Talvez milorde não a queira apenas como um cobertor de orelha.

— Ah! Nem consigo raciocinar com Edmund à minha volta o tempo inteiro.

— Eu achei que as atenções lhe agradassem e que essa fosse a maneira correta de um marido agir.

Gail se tornara mais confiante e decidida nos últimos tempos, Ilsa cismou. Alegrava-se em constatar que a moça se recuperava dos traumas sofridos. Mas no momento gostaria de contar com a Gail dócil e tímida de antes.

— É difícil explicar. Depois de eu ter aceitado a maneira como o meu casamento se desenrolava, Edmund quer mudar tudo, e isso me deixa nervosa.

— A senhora está com medo...

O primeiro impulso de Ilsa foi negar com veemência, mas depois desistiu.

— Pode ser, mas não sei por quê. Cada vez que começo a refletir no assunto, Edmund aparece para beijar-me, murmurar palavras doces no ouvido ou mesmo para trazer presentes.

— Ah, quanta crueldade e falta de consideração!

— Estou percebendo uma falta de simpatia de sua parte.

— Pode ser. Talvez eu não compreenda, pois não sou eu quem vive o problema. Contudo, se a senhora acha que deve afastar-se um pouco de seu marido, não vejo por que não faze-lo. Porém discordo em manter tanto segredo sobre o assunto. Por que não diz a sir Edmund que deseja visitar sua família e viaja com seus irmãos?

— Porque Edmund com certeza iria acompanhar-me. Aí eu teria de encontrar um motivo para ele não ir, para as crianças ficarem e para...

— Ah-ah. — Gail suspirou, tentando ser compreensiva. — Na verdade, talvez seja melhor assim. A senhora ainda não teve tempo para si mesma nem para fazer reflexões ou classificar desejos e sentimentos. Primeiro foi o belo presente de casamento: a tropa de filhos de sir Edmund. Seguiram-se as tentativas de assassinato. Ainda houve uma série de problemas criados pela perda de memória e desconfiança por parte dele. Acredito que alguns dias em um chalé com catorze irmãos e alguns primos de quebra seja o repouso ideal que a senhora está precisando.

— Quando começo a imaginar que finalmente me entendeu, a senhorita solta uma pedra sobre a minha cabeça — Ilsa murmurou, com vontade de rir. Não se podia ignorar o humor das palavras da amiga. — Não sei como explicar, mas eu preciso de um intervalo. Tenho certeza de que, a distância, poderei esclarecer minhas dúvidas.

— Se Sigimor não a fizer desistir de imediato dessas intenções, quando encontrarmos com ele.

— Não ignoro essa possibilidade. — Ilsa não queria pensar no acareamento com os Irmãos.

— Tia Fraser, por que mamãe foi embora? — Odo perguntou. Como explicar para uma criança a necessidade de Ilsa ausentar-se um pouco de Clachthrom e do marido?

— Garanto-lhe que não foi por causa dos filhos. Isso é assunto de mulher, meu rapaz. — Fraser ignorou o resfolego de Glenda, que se divertia em observá-los.

— Coisa de mulher? — Ivy repetiu e franziu a testa. — Não acredito. Acho que temos de conversar com papai.

— Concordo. — Odo anuiu com gestos de cabeça para reforçar sua opinião. — Ele deve saber para onde mamãe foi e o que ela pretende fazer. Na certa, mamãe contou-lhe tudo.

— Duvido um pouco — Fraser murmurou ao ver Alice, Aulay, Ewart, Gregor, Ivy e Odo saírem do dormitório.

— Vai deixá-los procurar o pai? — Glenda admirou-se. — Sir Edmund ainda deve estar dormindo.

— Ótimo. — Fraser sorriu diante da risada de Glenda.

— Não sei o que se passa na cabeça de lady Ilsa. Sir Edmund finalmente recobrou a memória e passa o tempo todo procurando agradar a esposa. E ela quer fugir. Onde está a lógica disso?

— Ilsa deve estar com medo, Glenda. Quando assinaram o contrato nupcial, lady Ilsa amava muito sir Edmund. Ao chegar a Clachthrom, o que ela encontrou? Desconfiança, ódio e uma maluca que tentou matá-la. Ilsa resistiu bravamente esse tempo todo, e então aconteceu aquele fim trágico. O abalo emocional foi grande. Mesmo sabendo que a culpa não é de sir Edmund, Ilsa deve estar angustiada pelo que aconteceu.

— Tem razão. Talvez seja melhor que os dois parem de pisar em ovos, um em relação ao outro. Assim poderão descarregar os sentimentos.

— Como assim?

— A senhora acha que sir Edmund ficará muito feliz com a decisão da esposa? — Glenda ergueu uma sobrancelha.

— Claro que não. E daí?

— Se Edmund enfrentar a esposa cuspindo fogo e orgulho ferido, Ilsa responderá à altura. E nessa troca de asperezas, acabarão dizendo algumas verdades. Com isso, cada um deles poderá enxergar os fatos com clareza, e o amor estará salvo.

— Para mim, isso é tão irracional quanto as desculpas de Ilsa.

— Vamos ver. Espere até ouvir os berros de milorde.

— Glenda, não sei como consegue divertir-se com coisas tão sérias.

 

— Papai, papai!

Edmund fez uma careta ao sentir a pequena mão batendo em seu rosto. Esticou o braço, mas não encontrou Ilsa. Abriu as pálpebras devagar. Fixou a vista e distinguiu seus seis filhos mais velhos ao redor da cama. Quando sorria, Odo tornava-se irresistível. Edmund preocupou-se diante da hipótese de algum pedido absurdo. Gregor esforçava-se para subir ao lado do pai.

— O castelo está em chamas? — Edmund esfregou os olhos, cansado.

Ficara acordado até tarde, conversando com os irmãos e o primo de Ilsa, que partiriam de madrugada. E quando viera para a cama, Ilsa o mantivera acordado por muito tempo. O que o agradara sobremaneira. Tratou de esquecer aqueles pensamentos por causa da reação imediata. Seria constrangedor explicar seu estado para eles. E, com certeza, Odo notaria a alteração. Sentou-se, recostado nos travesseiros.

— Não, papai, o castelo não está pegando fogo — Odo garantiu-lhe.

Edmund puxou as cobertas que Gregor arrancou ao subir na cama com seu corpo roliço e grunhiu quando o menino atirou-se sobre seu peito.

— Então por que me deram o prazer imenso de contar com esta visita tão cedo?

— Não é cedo, papai — Alice corrigiu-o. — É quase meio-dia.

— É mesmo? Bem, confesso que fui dormir muito tarde. Vamos ao que interessa. O que seis jovens tão inteligentes têm para me contar?

— Aonde é que a mamãe foi? — Odo perguntou.

— Não entendi.

— Aonde é que mamãe foi? — Odo repetiu devagar, quase soletrando as palavras.

— Deve estar executando alguma tarefa por aí.

— Odo, acho que ela não lhe disse nada — Ivy comentou. — Vai ver que mamãe não queria que ele soubesse sobre aquele assunto de mulher.

— Sobre o que estão falando? — Edmund imaginou que devia tratar-se de algum pesadelo provocado pelo consumo exagerado de cerveja na véspera.

— Mamãe foi embora e Fraser disse que isso era assunto de mulher — Odo respondeu. — Pensamos que o senhor soubesse do que se tratava e que ela tivesse lhe contado.

— Creio que o comportamento de mamãe não foi muito correio. — Ivy apertou os lábios rosados. — O que o senhor acha?

— Concordo. — Edmund levantou Gregor, beijou-lhe a face rechonchuda e deixou o garoto no chão. — Voltem para o dormitório. Preciso vestir-me e descobrir o que está acontecendo.

As crianças saíram e Edmund pulou da cama. Espantado pelo que ouvira, fez as abluções nem tão matinais e vestiu-se, inquieto. Os filhos supunham que Ilsa houvesse partido de Clachthrom. Fraser, indagada a respeito, não dera uma explicação plausível. Amarrou o gibão e correu até a ala das crianças.

O olhar de Glenda e de Fraser deixaram-no ainda mais apreensivo.

— Onde está Ilsa?

— Voltou para Dubheidland — Glenda respondeu.

— Não deveríamos contar para onde ela foi — Fraser recriminou Glenda.

— A "senhora" comprometeu-se a não falar. Se está lembrada, eu não prometi nada.

Edmund parou diante das duas mulheres que cerziam roupas, sentadas nas poltronas. Elas não se intimidaram com a desproporção da altura que ele imprimiu a propósito, o que o levou a considerar a desvantagem de estar rodeado por mulheres enérgicas.

— Ilsa voltou para Dubheidland? — Edmund repetiu, ainda sem acreditar no que acabara de ouvir.

— Sim, milorde — Fraser confirmou. — Ela deixou o castelo mais ou menos uma hora depois que os irmãos e aquele primo maravilhoso foram embora.

— Se Ilsa pretendia ir para Dubheidland, por que não foi com eles?

— Lady Ilsa não queria que eles descobrissem de imediato o seu destino.

— Se eles soubessem da intenção de milady e estivessem próximos daqui, poderiam trazê-la de volta, antes de continuar viagem.

Atônito, Edmund não podia distinguir nenhum motivo para Ilsa tê-lo abandonado. A noite passada, haviam passado horas fazendo amor. Depois Ilsa simplesmente saíra da cama e o deixara. Inacreditável. Nada mais desconexo.

— Não posso entender — Edmund murmurou e passou a mão nos cabelos.

— Muito menos eu, milorde — Fraser consolou-o. — Milady disse que precisava pensar, ficar um pouco sozinha e ordenar os pensamentos.

— Como é? Sozinha? Ordenar... Em Dubheidland? — Edmund deu uma gargalhada histérica.—Ao lado de uma centena de parentes? Nem mesmo um leproso conseguiria ficar isolado em Dubheidland!

— Nesse ponto, milorde tem razão. — Glenda fez uma careta ao comprovar os olhares faiscantes de Edmund e de Fraser. — Talvez o senhor devesse comer primeiro, milorde. Estou convencida de que um homem raciocina melhor de estômago cheio.

Fraser arregalou os olhos. Edmund saiu do dormitório pisando duro, com as seis crianças correndo atrás.

— Sir Edmund jamais vai compreender uma coisa dessas. Glenda deu risada.

Edmund reconheceu sentir-se um pouco melhor depois da refeição. Recostou-se na cadeira e fitou os seis filhos sentados com ele à mesa principal. Gregor e Ewart haviam comido mais de que os outros e todos permaneciam em silêncio, à espera de uma decisão. Infelizmente, ele mesmo não sabia qual seria a atitude mais apropriada nesse caso. Embora com o espírito mais alerta por haver comido, conforme Glenda afirmara, não seria capaz de dar-lhes uma resposta coerente.

— O senhor se comportou mal com ela, papai? — Alice foi a primeira a falar.

A paz terminara!

— Não, querida. Estou certo de não haver dado motivos para queixas. Não foi por isso que Ilsa foi embora.

— O senhor lhe deu flores — Odo conjeturou. — Talvez mamãe não goste delas.

— Odo, Ilsa passa muitas horas por dia no jardim. Impossível ela não amar as flores. — Edmund suspirou. — Isso para mim também não faz sentido. Fraser contou-lhe algo?

— Ela disse que não era por nossa causa. — Odo franziu a testa. — Se não foi por nós nem pelo senhor, então por que foi?

— Assunto de mulher — Alice filosofou.

Edmund calculou que os olhares de desdém de Aulay e Odo para a irmã eram similares aos que os homens lançavam para as mulheres quando não as entendiam. Se Ilsa estivesse presente, seria como ele a fitaria.

— Meus filhos, sei que talvez não compreendam tudo o que terei para lhes dizer. De qualquer modo, peco-lhes que escutem. Houve uma série de problemas entre mim e Ilsa. Algumas dificuldades no nosso casamento.

— Por que a sua memória estava estragada — Alice comentou com superioridade, antecipando-se aos irmãos.

— Não deixa de ser uma definição muito boa. Acontece o seguinte, crianças. Algumas vezes um casal não se entende muito bem. Daí podem surgir algum consentimento. E foi o que aconteceu conosco. Ilsa Voltou a Dubheidland para poder pensar com calma e chegar às conclusões certas.

— Papai, quer dizer então que vai deixar tudo como está?

— Odo indagou. — Se ela não entender alguma coisa, não seria melhor o senhor explicar-lhe? Às vezes os homens precisam passar sermão nas mulheres para que elas criem juízo.

— Esteve conversando com seu tio Sigimor, não foi, Odo?

— Edmund sorriu ao ver o pequeno concordar. — Apenas uma palavra de advertência, meu rapaz. Algumas jovens não gostam de sermões, principalmente se o pregador for homem.

— Mamãe vai voltar, não vai?

— Com certeza, porque eu pretendo ir buscá-la.

— Hoje mesmo? Vai trazê-la hoje?

— Não. Vou esperar, digamos... uns dois dias. Ilsa quer um tempo para refletir. Acredito que dois dias seja um bom prazo. Também não poderei viajar antes. Tenho vários assuntos para resolver. Encontros importantes e decisões que não podem mais ser adiados. Em seguida irei ao encontro de sua mãe para comprovar se ela conseguiu esclarecer as dúvidas.

— E se não?

— Ela voltará aqui, onde continuará as reflexões. Aqui é seu lar e onde terá de ficar.

Ah, como era bom ter aliados!, Edmund ponderou ao ver as crianças imitarem o olhar severo do pai.

— Ilsa, espero que tenha uma boa explicação para isso. — Sigimor ajudou a irmã desmontar e segurou Cearnach no colo.

Tait fez o mesmo com Gail e Finlay, depois entregou-lhe o bebê e levou os cavalos. Estava muito escuro e Ilsa quase se perdera no caminho. Felizmente Liam suspeitara de que estavam sendo seguidos e a encontrara. Ilsa procurou afastar a sensação de ser uma menina mal-comportada. Sentou-se perto de Sigimor à beira do fogo e agradeceu, sorrindo, quando Somerled serviu-lhe uma tigela com ensopado de coelho.

— Não sei se terei condições de dar-lhe alguma — admitiu Ilsa.

— Ilsa, abandonar o marido é um passo muito sério. Eu poderia apoiar a decisão se Edmund ainda fosse um desmemoriado agindo com rispidez. Talvez eu até a ajudasse a fugir. Mas não é esse o caso, não é verdade?

— Não. — Ilsa mastigava, para ter tempo de encontrar as palavras certas.

— Hum. Para falar a verdade e se não estou enganado, seu marido a vem cortejando de maneira até elogiável.

— Não nego. Mas por que um marido precisa fazer a corte para a esposa? Por acaso é uma atitude lógica?

— Sim e não. O marido tem de manter um clima de ternura para tornar a esposa feliz. Nesse caso em particular, Edmund seria até obrigado a mimá-la um pouco, pois desde que se casaram, o clima foi de tensão. Ele se lembrou de tudo e reconhece ter agido com rudeza excessiva. Acredito que queira desculpar-se pelas atitudes anteriores.

— Ah, sim. Edmund resolveu agradar-me depois de ter a memória de volta. Antes, eu podia ser a melhor esposa do mundo, e ele nem enxergava.

Sigimor fitou Somerled e Tait, que se mostravam tão confusos quanto ele. Com um aceno de cabeça, pediu ajuda a Liam, que sorria.

— Ilsa, do que está fugindo? — Liam perguntou.

— E o que o faz supor que eu esteja fugindo? — Ela franziu a testa ao perceber que estava a sós com Liam, ao pé do fogo. — Poltrões...

— Ah, são mesmo. Ilsa, eu sempre a tive na conta de uma jovem inteligente. Sabe muito bem que não poderá fugir para longe de seus problemas, por mais depressa que corra deles.

— Eu amo meu marido.

— Sei disso. Se não o amasse, não se deixaria seduzir. Ele teria sido escorraçado por Ilsa Cameron, debaixo de uma saraivada de impropérios.

— Que horror, Liam. Não sabia que eu era tão má assim. — Ilsa suspirou. — Na verdade, estou muito confusa. Sofri muito ao constatar que Edmund não se lembrava de mim. Então decidi aceitar o fato e recomeçar do zero. Durante esse tempo esforcei-me para fazer com que ele gostasse de mim como antes. Nada adiantou.

— Entendo. Edmund recuperou a memória e tudo voltou ao que era antes. Exceto a lembrança dos meses em que ele não lhe dava atenção.

— Isso poderia ser falta de coragem?

— Em assuntos do coração, quase sempre somos covardes. O amor pode deixar ferimentos que custam muito a sarar. As cicatrizem permanecem, o que nos leva a ter receios.

— Passei de amada amante a mentirosa e provável assassina. Depois voltei a ser apenas mentirosa. De repente, tomei-me outra vez a esposa de quem ele gostava.

— Uma grande confusão.

— Isso mesmo. Edmund foi para Dubheidland descobrir a verdade, achando que eu mentia um pouco. Nisso ele retornou, nosso inimigo foi derrotado e eu constatei o ressurgimento do homem que conheci há pouco mais de um ano. Eu precisava raciocinar sobre tudo isso.

— Entendo. Mas eu a aconselho a pensar depressa.

— Porque Sigimor me fará voltar, é isso?.

— Não, mas ele pode querer iniciar os discursos sobre os deveres das esposas e as regras que elas devem seguir. — Ambos riram. — Minha querida prima, pode ter certeza de que seu marido virá à sua procura bem antes dos famosos sermões.

Ilsa não concordou com essa assertiva. Edmund era um homem orgulhoso, e ela o abandonara sem nenhuma explicação. Não ficaria nem um pouco feliz de precisar explicar a ausência da esposa.

Depois de algum tempo, Ilsa MacEnroy e os Cameron empreenderam o trecho final da volta a Dubheidland.

Nada mais seria como antes, Ilsa cogitou. Apesar da distância e da perspectiva de regressar ao lar que ela amava, Edmund não lhe saía da cabeça. Quando entrou em sua cabana, estava cansada de tanto pensar nele.

— Chegamos, minha querida. — Sigimor largou a bagagem de Ilsa no piso da pequena sala. — Do jeito que a deixou. Mandarei trazer comida e cerveja.

Ilsa entregou Cearnach nas mãos de Gail, que se retirou para amamentar os gêmeos.

— Obrigada, Sigimor.

— Sei que Liam deve ter dito que eu a repreenderia, porém... — Sigimor inspirou fundo e passou a mão nos cabelos. — Ilsa, Edmund é um bom homem.

— Sei disso.

— Creio que foi um casamento acertado, e aquelas crianças a adoram.

Ilsa estremeceu. Era difícil não pensar em como sua partida devia tê-las feito sofrer. O remorso não era aplacado nem mesmo ao imaginar que, para elas, seria melhor se conseguisse ordenar as emoções emaranhadas.

Sigimor beijou-a no rosto.

— Faça como quiser. Mas não esqueça que o seu homem é um bom marido e que há seis crianças pequenas que a amam. Embora possa parecer injusto mencioná-las, creio que não deve tomar nenhuma decisão sem levá-las em conta.

— Tem razão, Sigimor.

— Pense bem e depressa, minha querida.

— Por quê?

— Porque seu marido não vai demorar a aparecer por aqui.

Sigimor acariciou-lhe o rosto e foi embora.

Mas que droga! Viera em busca de paz e tempo para refletir. Se Liam e Sigimor estivessem certos, não teria nenhuma das duas coisas.

Três dias depois, Edmund MacEnroy irrompeu no grande hall de Dubheidland, acompanhado de Nanty e Odo.

— Ora, o senhor demorou — Sigimor fez o comentário com tom de censura.

— Eu nem mesmo pensava em vir. — Edmund sentou-se, acomodou Odo a seu lado e serviu-se de um caneco de cerveja. — Tive de resolver alguns assuntos urgentes. — Edmund agradeceu ao rapaz que trouxe leite de cabra para Odo. — Qual o seu nome?

— Sou Fergus, o caçula. O senhor veio buscar nossa irmã, aquela jovem insensível e teimosa, para levá-la de volta a Clachthrom?

— Esteve falando mal dela, Sigimor? — Edmund indagou.

— Por acaso o senhor não fez o mesmo?

— Fez — Odo respondeu pelo pai. — Só que ele passava o tempo todo murmurando, e eu não o entendia muito bem. Glenda disse que poderia ser uma boa coisa se ele estivesse praguejando.

— Ah, sei. — Sigimor achou graça. — E por que veio até aqui, meu rapaz?

— Fui escolhido por meus irmãos para acompanhar nosso pai e impedir que ele cometa alguma tolice.

Os Cameron gargalharam e Edmund apenas suspirou ao ver a traição de Nanty, que ria com eles. Até mesmo Odo dava risada. Não houvera meios de convencer o filho de que não precisava do auxílio dele. E Edmund não tivera como deixá-lo em Clachthrom, diante de pedidos tão insistentes. As crianças não haviam se revoltado com a ausência de Ilsa, por confiarem que o pai a traria de volta. E Odo representava essa garantia.

— Foi difícil para eles, não foi? — Sigimor quis saber.

— As crianças têm sido pacientes. Tive de explicar-lhes algumas coisas. Fraser disse-lhes tratar-se de problemas femininos.

— Ilsa voltou para a cabana e Liam mantêm vigilância constante.

— Muita bondade da parte dele.

— Edmund, não me leve a mal. Não quero culpar nem um nem outro, mas Ilsa está perturbada. Eu mesmo não soube como aconselhá-la e tive de pedir a Liam para conversar com ela. Às vezes eu não a entendo. Mais tarde, Liam tentou explicar-me o que acontecia. Parece que foi um erro o senhor não cortejá-la quando sua memória ainda estava falha. Algo também como ser uma coisa, depois outra e outra. Acho que Ilsa não sabia o que na verdade o senhor era nem o que desejava ser.

— Nada mais confuso.

— Foi o que pensei. Parece que o senhor deveria agradá-la mesmo sem saber quem Ilsa era. Hum... não melhorou muito, não é?

— Não, mas não importa. Eu mesmo falarei com ela.

— Parece que o senhor escolheu uma boa hora para fazê-lo. — Sigimor apontou a porta do grande hall.

Gail entrava com Finlay no colo, seguida por Liam, que trazia Cearnach. Gail arregalou os olhos ao vê-lo, mas Odo agarrou-se em suas pernas e impediu-a de recuar. Edmund sorriu ao ver o garoto arrastá-la até a mesa.

— Bons olhos o vejam, milorde. — Gail permitiu que Edmund segurasse Finlay por um momento. — Vim trazer os meninos para visitarem os tios.

Edmund entregou Finlay a ela e pegou Cearnach no colo.

— Uma idéia excelente. Acho até que a visita deveria prolongar-se por, digamos, a noite inteira.

— Se milorde acha conveniente...

— Muito mais de que isso.

Gail suspirou e teve de concordar.

— Por que o trouxe junto? — Ela fitou Odo de viés.

— Eu vim para me certificar de que papai não cometeria nenhuma tolice — Odo repetiu a frase preparada e fez uma careta diante da risada de Gail. — Fui o escolhido.

— O que não me surpreende. Sir Edmund, não acredito que Ilsa pretenda ausentar-se por muito tempo.

— Isso é muito relativo. — Edmund deu de ombros. — Ela teve tempo para raciocinar em paz. Diante disso, é hora de conversarmos.

Edmund conjeturou que o sorriso de Gail não era muito animador. Apesar disso levantou-se e foi até a porta. Odo, Nanty, Tait, Sigimor e Liam apressaram-se em segui-lo. Durante muito tempo, Edmund fora um homem solitário, ensimesmado e rabugento. Com certeza, uma situação enterrada.

Caminhou até o chalé onde passara duas semanas maravilhosas ao lado de Ilsa, depois de ter assinado o contrato de casamento. Disse a si mesmo que deveria munir-se de calma, compreensão e ternura. Desde que chegara a Clachthrom, Ilsa enfrentara um problema atrás de outro. Era de esperar-se que estivesse aborrecida ou indecisa.

Edmund avistou a cabana e desistiu de convencer-se de que não era insensato, não causara prejuízos, que não fora insultado. Tudo era verdade. E seu maior receio era ter perdido a chance de recuperar a felicidade anterior, que havia sido tão efêmera. Aquilo azedou-lhe o humor.

Se Ilsa tivesse ficado em Clachthrom, poderiam ter resolvido a situação como adultos inteligentes que eram. Em vez disso, ele fora obrigado a deixar Clachthrom em uma época de muitos afazeres, vir a Dubheidland e enfrentar um exército de cabeças vermelhas. Nos dois castelos, todos sabiam que a esposa o abandonara. O que era vergonhoso. Ilsa nem ao menos se dera ao trabalho de incomodar-se com o fato. O orgulho masculino saíra arranhado naquela história. Ninguém o acusara formalmente, mas era fácil ver no rosto de todos a acusação pela fuga de Ilsa. Tivera de aturar uma boa dose de conselhos sobre um assunto delicado. Como lidar com esposas.

Ao aproximar-se da porta, Edmund constatou uma boa dose de irritação diante da ofensa que sofrera por parte de Ilsa. Ele a deixaria falar durante um certo tempo e depois a levaria para a cama. Em seguida regressariam a Clachthrom e não haveria mais necessidade daquela reivindicação inaceitável.

Onde já se viu isso? Tempo para refletir!

Isso posto, nem mesmo bateu na porta. Abriu-a e fitou a mulher que o fazia agir de maneira irracional. A expressão de pavor com que Ilsa o recebeu não deixou de agradá-lo. Se Ilsa estivesse amedrontada, ele não teria de perder tempo com palavreadas inúteis, iriam para a cama, ficariam exaustos e voltariam para casa.

Edmund cruzou os braços na altura do peito e, em silêncio, preparou-se para uma discussão.

 

Ilsa assustou-se com a abertura repentina da porta. Virou-se, decidida a repreender os irmãos por uma entrada tão brusca, e permaneceu boquiaberta por alguns instantes. Era Edmund e parecia bastante irritado. Com os braços cruzados na altura do peito, fulminava-a com o olhar. Odo, ao lado do pai, tinha a mesma expressão feroz, o que a deixou com vontade de rir. Atrás dos dois, Liam, Nanty, Sigimor e Tait, que mal disfarçavam um sorriso maroto. Considerou uma tragédia não poder estapeá-los.

Não encontrou nada coerente para dizer. De qualquer forma, fugira do marido como uma criança faltosa, e explicações seriam inúteis. Embora envergonhada por seu comportamento, jamais admitiria o fato para ninguém.

— Bons olhos o vejam, senhor meu marido — Ilsa cumprimentou-o e trouxe uma jarra de cerveja para a mesa. — Deve estar com sede depois da longa viagem.

Ignorou ter sido ela quem precisara de tempo para pensar e perguntou-se por que o marido demorara três dias para seguí-la.

Com os olhos estreitados, Edmund observou-a arrumar os canecos sobre a toalha.

— Muito bem, por enquanto faremos seu jogo. — Edmund sentou-se e Odo acomodou-se a seu lado.

— Não querem entrar? — Ilsa perguntou aos quatro marmanjos parados à porta.

— Estávamos decidindo se deveríamos... — Tait acedeu ao convite, foi seguido pelos demais e ocupou um lugar perto de Odo.

— E por que não? — Ilsa serviu a bebida fermentada para todos e leite de cabra para Odo.

— Eles têm sensibilidade suficiente para supor a irritação de um homem que, ao acordar, descobre que a esposa o abandonou — Edmund aproveitou a deixa para alfinetar. — Ou melhor, esgueirou-se para fora como um ladrão na calada da noite.

— Na verdade, eu saí ao amanhecer. O senhor deve ter dormido até tarde. — Ilsa não estava disposta a agüentar desaforos.

Edmund estreitou os olhos, enquanto os outros arregalavam os deles. Odo parou de tomar o leite, embasbacado. Pela rapidez com que os Cameron e Nanty bebiam a cerveja, era fácil imaginar que, em minutos, deixariam o casal a sós.

— Eu precisava descansar depois de minha esposa ter-me deixado exaurido durante a noite. — Edmund adorou vê-la enrubescer, embora o olhar fosse de quem pretendia atirar-lhe a jarra na cabeça. — Digo mais. Depois de uma noite daquelas, fiquei bastante surpreso em saber que ela fugira de casa.

Ilsa abriu a boca para retrucar, mas Sigimor levantou-se e interrompeu-a.

— Obrigado pela cerveja. Estamos de saída. Deixaremos que converse com seu marido com "calma" — frisou a palavra — e sem platéia.

Sigimor pegou Odo no colo e foi até a porta, com os outros no seu encalço.

— Pensei que eu fosse ficar para impedir que papai dissesse ou falasse alguma bobagem — Odo protestou.

—Daqui a instantes, meu rapaz, serão ditas muitas bobagens — Liam explicou. — Será melhor que os deixemos à vontade. Poderá voltar mais tarde, Odo, se for preciso, para consertar os estragos.

Ilsa mirou, com olhar acusatório, os parentes pouco corajosos que se retiravam. Edmund sorria. Ela disse a si mesma que não deveria ter permitido Gail levar os gêmeos até o castelo para visitar os tios. Edmund tomava a cerveja com despreocupação, o que a deixou cismada. O marido parecia muito mais tranqüilo do que ela, apesar da exasperação inicial. Ponto favorável para ele. Ilsa pôs um pouco de cerveja em um caneco e sentou-se na frente de Edmund.

— Não sentiu falta de mim? — Edmund sorriu ao ver-lhe a carranca.

A expressão divertida irritou-a. Reconheceu que fora uma covardia, talvez até uma infantilidade, sair de casa só por encontrar-se abalada e confusa. Mas em hipótese nenhuma deixaria que o marido desconfiasse disso. Edmund poderia levá-la de volta a Clachthrom, sem que as coisas se esclarecessem entre eles. Porém seu maior medo era ele exigir o amor que recebera havia um ano, sem estar disposto a retribuir na mesma moeda.

Ilsa analisara muitos fatos ao retornar à pequena casa que fora um ninho de amor e depois lhe servira de lar. Ela entregara a alma, o coração e a mente a Edmund, quando haviam se tornado amantes. Recordou-se de tudo o que acontecera no começo e uma triste evidência foi inegável. Edmund nunca dissera que a amava, embora ela houvesse enxergado amor em palavras doces e abraços calorosos. Quando Edmund partira, ela se agarrara às promessas e aos sonhos, certa de que o amado voltaria. Passaram-se dias e meses sem notícias. As promessas e os sonhos foram transformados em cinzas. Com certeza, nunca experimentara sofrimento maior.

Ilsa estava consciente de que seu amor, por ser verdadeiro, não morrera. Fora apenas enterrado em cova funda, para evitar que sofresse mais. Apesar de todo o seu empenho em conquistar o coração do marido quando chegara a Clachthrom, compreendeu que não pretendia libertar o amor antigo. Temia enfrentar novamente a dor de ter sido abandonada e, depois, esquecida. O casamento, na sua forma atual, tinha seus pontos favoráveis. Voltara a existir a confiança entre eles. Havia paixão e segurança.

Então Edmund começara a cortejá-la. Palavras doces, afeição e ternura haviam remetido ao amor que Ilsa mantinha escondido com tanto empenho. Mas ela não contara com aquela ânsia de abrir novamente o coração e a alma. Por isso, o terror que não a abandonava. A convicção de que não sofreria mais fora abalada.

— Ilsa — Edmund incomodou-se com o olhar ausente da esposa. — Por que foi embora?

— Eu já disse mil vezes. Precisava pensar. — Ilsa encontrava dificuldade em dominar o pânico emergente. — O que deve ter-lhe sido comunicado. Era necessário ordenar minhas idéias. Os choques foram sucessivos, desde minha chegada a Clachthrom. Margaret na igreja. Tornar-se mãe de oito filhos, em vez de dois. Alguém tentava matá-lo. Depois tornei-me alvo do suposto assassino. A sua perda de memória. Com tudo isso, o senhor há de reconhecer que não tive um minuto de paz para cogitar sobre o que acontecia.

— Ilsa, pare de tagarelar — Edmund murmurou e segurou-lhe a mão. — Sei que não tem sido fácil. A pressão foi muito grande. — Beijou-lhe os dedos. — Reconheço que fui rude a maior parte do tempo, mas não pretendo Usar a perda da memória como desculpa para os meus erros. Seria simples demais. Agora, porém, minha Ilsa, lembro-me de tudo. Da sua doçura, do amor apaixonado que fazíamos no bosque, dos planos e das promessas. Quero tudo de volta, Ilsa.

Edmund espantou-se ao vê-la desvencilhar-se e ficar em pé. Por um momento, experimentou a ferroada da rejeição. Fitou a esposa atentamente e percebeu-lhe outra vez o olhar aterrorizado. Deduziu que o problema entre eles era bem mais complicado do que supusera.

— Por que tentou mudar tudo? — Ilsa perguntou, incapaz de esconder o tom de desespero.

— Eu não quis modificar nada. Só pensava em recuperar a felicidade do passado.

— Não posso fazer isso. Será que não entende?

— Claro que não! Depois de suportar com heroísmo a minha crueldade, fugiu quando eu tentava reparar meus erros.

— O erro começou há um ano! Tornou-se mais grave com a sua ausência e falta de notícias! — Ilsa bateu o pé e, impaciente, limpou as lágrimas teimosas com o dorso da mão. — Durante três meses fiz um esforço terrível para manter a crença no amor que imaginava existir. Depois, com energia ainda maior, tive de encarar a verdade. Edmund MacEnroy não voltaria mais para mim. Fui obrigada a aceitar a situação, apesar do sofrimento que isso me causava.

Ilsa levou a mão ao peito. Sentiu o mesmo aperto do passado.

— Os gêmeos nasceram e se desenvolveram com saúde. Apesar de toda a minha vontade de continuar escondida nesta cabana, tive de sair à sua procura. Tínhamos dois filhos. Não seria justo negar-lhes o que era deles por direito. Ah, finalmente eu o encontrei! E como? Ajoelhado diante de um sacerdote, trocando juras com Margaret.

O impacto de ver Ilsa falar entre soluços, com as lágrimas escorrendo pelo rosto, deixou Edmund arrasado. Engoliu em seco, levantou-se devagar e aproximou-se, cauteloso. Era como se Ilsa estivesse declarando que seu amor por ele morrera por causa de tantos golpes.

Se isso fosse verdade, por que ela se mostrava transtornada e temerosa de aceitar a afeição do marido?

— Sabe muito bem por que pretendia casar-me com Margaret. Eu era incapaz de lembrar-me...

— Eu sei! Na minha cabeça, sei que tudo fez parte de uma triste realidade. Eu ter sido esquecida com todo o resto, o fato de não poder aceitar os gêmeos como seus filhos, as suspeitas e sei mais lá o quê. — Ilsa procurava acalmar-se, mas o pranto tornava-se mais copioso. — Afinal aceitei tudo. Resolvi que o melhor seria recomeçar. Também admiti que teria de provar o meu valor. Era uma necessidade.

— Mas agora acha que não pode aceitar-me, é isso? — Edmund acariciou-lhe os cabelos.

— Não seja idiota. — Ilsa foi ríspida, mesmo sem querer. Edmund sentiu nas costelas a força do punho fechado de Ilsa. Apesar disso, sorriu. Mesmo sem compreender o que tanto a perturbava, estava convicto de que ela não deixara de amá-lo. Não entendia essa certeza, depois de ter sido acusado de idiota e de ter sido golpeado.

Precisava decifrar o significado do que Ilsa acabara de dizer. Odiava vê-la chorar, ainda mais com aquela tristeza enorme.

— Achei que, se voltasse a confiar em mim, tudo seria resolvido — Ilsa continuou. — E pensei que essa fosse a minha vontade. Mas depois de recuperar sua memória, vieram os agrados e os presentes, e eu não soube definir mais quais eram as minhas aspirações. Tudo o que eu imaginava sepultado começava a ressurgir, e isso me apavorava. Não pude suportar essa carga emocional.

Edmund não agüentou mais testemunhar o pranto que Ilsa derramava por causa dele. Tomou-a nos braços, beijou-lhe o alto da cabeça e acariciou-lhe as costas.

— Psiu, Ilsa, tudo ficará bem.

— Não ficará nada. — Ela soluçava, abraçada ao marido pela cintura e com a face encostada no peito musculoso. — Sou chorona, fraca e medrosa.

— Exatamente o contrário. Eu lhe juro que é uma das mulheres mais fortes que conheci.

— Que nada. Eu fugi por medo dos meus sentimentos que ressurgiam.

— Quais sentimentos?

— Todo aquele amor e a fé imensa que eu lhe havia concedido no início. Pensei que eu quisesse isso, mas a verdade era outra. Não pude suportar o impacto. Não queria sofrer mais. A lembrança da espera inútil me apavorava.

— Ilsa, eu gostaria tanto que tudo tivesse sido diferente.

— Eu sei. Quando vim para Clachthrom, considerava o nosso amor trancafiado em uma masmorra. Mas um pouco deve ter conseguido escapar e a dor recomeçou. Eu tinha sido esquecida e não era amada. E depois, com tantos agrados e mimos, não consegui manter meu coração a salvo do medo de perder tudo outra vez.

— Ilsa, minha querida, o que a faz pensar que eu não a amo? Ela lamentou que o choro tivesse lhe afetado as faculdades mentais.

— O que foi que disse?

— Eu a amo. — Edmund segurou-lhe o rosto e forçou-a a fitá-lo.

Por um minuto, o olhar de Ilsa refletiu grande alegria. Em seguida fitou-o com severidade.

— Por que não disse isso antes? Por que não fez essa afirmação há um ano ou quando a memória começou a voltar? Poderia ter dito que me amava quando me presenteou com as flores, com o anel ou enquanto fazíamos amor.

— Confesso que não tive certeza até ver Margaret ameaçá-la com uma espada.

Ilsa recuou e, com raiva, esfregou as lágrimas do rosto. Não se aborrecera pela vagareza com que Edmund decidira que a amava. Em assunto tão importante como esse, os homens costumavam ser lerdos.

Mas, com os diabos, por que ele não confessara tudo dois ou três dias antes?

— Se tivesse falado em amor ao menos uma vez, eu não teria ficado quase louca com a minha ignorância. O que eu deveria fazer? O que eu realmente desejava?

Edmund tornou a abraçá-la e beijou-a.

— Achei que poderia agradá-la fazendo-lhe a corte. Imaginei que assim eu poderia cicatrizar as feridas por mim provocadas. — Edmund beijou-lhe a parte sensível atrás da orelha.

— Lembro-me de tê-la ouvido dizer que me amava. Fiz tudo para escutá-la repetir a frase. — Passou a ponta da língua no lóbulo da orelha e sentiu Ilsa estremecer. — Pode dizer agora.

— Dizer o quê?

— Ilsa... — Edmund resmungou e beijou-lhe o pescoço.

— Acho que terá de esperar por isso o mesmo tanto que eu esperei.

— Dois ou três dias?

— Quinze meses. — Ela fitou-o e sorriu com doçura. — Sabe muito bem que certas coisas não podem ser forçadas.

— Não? — Edmund tomou-a nos braços e subiu a escada.

— Veremos. Suspeito de que posso obrigá-la a falar.

Claro que podia, Ilsa refletiu, em cima de Edmund, lutando para recuperar o fôlego depois de fazer amor. Deveria ter adivinhado o que ele faria ao ser desafiado. E dessa vez, ele não a surpreendera. Admitiu um traço de ressentimento em seu coração ao recordar-se de como sofrera por causa daquelas três palavras. A paixão se encarregara de queimar os melindres e facilitara a remoção dos últimos traços de resistência.

Ilsa murmurou um protesto quando Edmund a empurrou delicadamente para o lado e levantou-se da cama. Enrubesceu ao ver o marido limpar os vestígios do amor que haviam feito. Edmund voltou para a cama e tomou-a novamente nos braços. Ela apoiou a face no tórax largo e com a ponta dos dedos acompanhou o traçado das costelas.

— Quando suspeitou de que poderia me amar? — Ilsa murmurou.

— Quando parei no bosque onde fizemos amor pela primeira vez. Eu ainda não tinha pensado em nenhum sentimento. Ali, a ouvi dizer que me amava e tive vontade de ouvi-la repetir isso três vezes, como antes. — Sorriu ao sentir Ilsa beliscá-lo levemente. — Eu me lembrei da paixão feroz e da doçura inacreditável da paz que senti.

— Paz?

— Isso mesmo. Quando nos conhecemos, havia muito tempo eu tinha desistido de encontrar a paz nos braços de uma mulher. Um dos motivos por que decidi casar-me com Margaret foi por estar celibatário havia um ano. Confesso quê não entendia por que as mulheres não me atraíam mais. Acredito que no fundo do coração, não pude esquecê-la. O curioso era eu ficar cada vez mais relutante com a aproximação da data do matrimônio. E os sonhos se sucediam.

— Que sonhos? — Ilsa beijou-lhe o peito.

— Havia sempre um elfo furioso e de cabelos vermelhos, rodeado por uma horda de demônios ígneos.

Ilsa não conteve as risadas.

— Então foram essas as lembranças que restaram de mim e da minha família!

Ela traçou um caminho de beijos leves e úmidos até o estômago liso.

— Nunca nos esquecemos de uma experiência forte.

— Ainda bem.

— Eu tive de dizer centenas de vezes a mim mesmo que Ilsa MacEnroy não era confiável, que minha esposa era a única suspeita da qual eu dispunha e a única a ganhar com a minha morte. — O remorso na afirmação era evidente.

— Eu não gostava dessa desconfiança e sofria por isso, mas entendia.

— Aceitava, melhor dizendo.

— Está bem, aceitava.

— Como também adotou minhas seis crianças, mesmo sem a certeza de que todos fossem meus filhos.

Ilsa afagou-lhe as coxas musculosas, sem deixar de fitá-lo.

— Sei que eles são seus filhos. Odo e Ewart têm seus olhos. Ivy possui a expressão de um MacEnroy. Alice e Gregor têm cabelos semelhantes aos seus. Mesmo que não os tenha realmente gerado, são suas crianças. Para elas, Edmund MacEnroy é o "papai". Eu não pretendi agradar ninguém ao afirmar que, em uma família, nem todos precisam ter o mesmo sangue. Os laços podem ser da alma e do coração.

— Eles também se sentem meus filhos.

Edmund deu um gemido quando Ilsa lhe acariciou a masculinidade, enquanto lhe beijava a parte interna das coxas.

— Quer que eu continue?

— Um pouco mais.

Ilsa satisfez-lhe a vontade. Edmund fechou os olhos ao sentir os lábios substituírem as carícias suaves dos dedos. A boca de Ilsa o fez almejar que o momento se prolongasse eternamente. E apesar de terem feito amor havia pouco, o desejo pela esposa alçou vôo com rapidez.

Edmund segurou-a pelas axilas e deitou-a de costas. Ilsa arregalou os olhos ao reconhecer a ameaça silenciosa da paixão. Edmund penetrou-a e controlou sua ansiedade ao máximo para alcançarem juntos o prazer. As estrelas invadiram a cabana e se multiplicaram aos milhares. Ninguém se importaria se o mundo tivesse acabado de explodir.

Satisfeito, Edmund acordou de um sono breve nos braços de Ilsa. Apoiou-se em um dos cotovelos e analisou a esposa. Desgrenhada. Encantadora. Exausta. Beijou-a levemente nos lábios. Afastou-se, deitou-se de lado e aconchegou-se às costas de Ilsa. Beijou-lhe o alto da cabeça e cerrou as pálpebras.

Regozijou-se com a volta da paz e da alegria serena da satisfação.

Edmund acordou assustado. Batiam na porta do chalé. Ilsa continuava dormindo. Ele se levantou e vestiu o calção. Pelo estrondo, calculou, irritado, que fosse um dos Cameron. Desceu correndo a pequena escada e constatou que mal amanhecera. Sonolento, abriu o painel de madeira maciça. Do lado de fora, estavam Odo e Liam que, encostado na parede, não parava de bocejar.

— Odo, o que está fazendo aqui?

— Vim ver se o senhor não cometeu algum engano. — O menino franziu a testa. — Onde estão suas roupas?

— Em algum lugar do quarto. Odo, está tudo bem.

— O senhor não falou nenhuma bobagem?

— Acredito que sua mãe e eu dissemos algumas, mas tudo foi resolvido a contento.

— Mamãe vai voltar para Clachthrom com a gente? — Odo fez a pergunta com voz trêmula.

— Claro, meu filho. — Edmund acariciou os cabelos escuros do filho. — Voltaremos juntos amanhã. Pode aproveitar o dia para ficar com seus novos primos e tios. Sua mãe e eu dormiremos até um pouco mais tarde.

— Que tal comermos alguma coisa agora? — Liam perguntou a Odo.

— Uma boa idéia — Odo respondeu, alegre, e sorriu para Edmund. — Papai, agora o senhor pode pensar em arranjar mais alguns irmãos para nós.

— Farei o possível.

— Precisamos de nove.

— Nove?

— É. Assim terei mais irmãos de que Fergus.

— Ah, sim.

Liam ainda ria quando Edmund fechou a porta e subiu a escada dando risada. Tirou o calção e entrou debaixo do lençol. Ilsa virou-se e fitou-o. Convencido de que, sonolenta, ela ficava ainda mais adorável, beijou-a com carinho.

— Parece-me ter ouvido vozes.

— Era Odo. — Edmund abraçou-a e mordiscou-lhe a orelha.

— Ele veio do castelo até aqui sozinho?

— Não, Liam o acompanhou. — Ilsa espiou a janela.

— O sol ainda nem apareceu.

— Odo estava ansioso para saber se eu não tinha dito nenhuma tolice. — Edmund beijou-lhe a garganta. — E, convencido de que tudo estava bem, pediu mais alguns irmãos.

O tom trocista levantou as suspeitas de Ilsa.

— Quantos?

— Nove. Ele quer superar Fergus.

— Oh, Deus...

 

Nove meses depois

— Um exército de homens ruivos está se aproximando das muralhas — Nanty anunciou, entrando no grande hall a passos largos.

Edmund parou de andar de um lado para outro. Os quatro filhos mais velhos o imitaram, o que fez Cearnach e Finlay, que haviam começado a andar havia pouco tempo, trombarem com os irmãos. Edmund socorreu-os e franziu o cenho.

— Com os diabos, como é que eles adivinharam que seria hoje?

— Talvez sentissem que o dia estava próximo.

— Hum, deve ser isso. — Edmund recomeçou a marcha. Nanty fitou o irmão, os seis sobrinhos e caiu na risada.

— O que estão fazendo?

— Andando. — Edmund admirou-se da pergunta.

— Isso mesmo, andando — Odo reforçou a resposta do pai. — Fraser disse que os homens ficam de lá para cá sem parar, enquanto as mulheres têm os filhos. Ela está ajudando a mamãe e falou para a gente ficar caminhando com o papai.

— Por que Ivy e Alice não vieram?

— Glenda falou que as damas ficam sentadas, costurando e dizendo umas às outras que não vai demorar.

Nanty tornou a rir. E com tanto gosto que teve de sentar-se. Edmund fitou-o com desdém, mas não chegou a repreendê-lo. A multidão de cabeleiras de fogo invadiu o grande hall, com Sigimor à frente.

Sigimor decidiu que andar não seria suficiente e começou a beber. Edmund não esquecia de Ilsa, embora a companhia acabasse por diverti-lo. Não via a hora do parto terminar. Queria ver Ilsa sã e salva, com o filho nos braços.

Como se o pensamento atraísse a realidade, Glenda apareceu na entrada, gritando.

— É uma menina!

Caos seria a palavra mais correta para descrever o que se seguiu. Edmund foi espremido para fora dos próprios aposentos pelos parentes grandalhões de Ilsa e por oito crianças excitadas. Glenda e Fraser, que também haviam sido expulsas por absoluta falta de espaço, sorriram para ele. E, sob seu olhar admirado, elas abriram caminho a cotoveladas e aos gritos. Atônito, Edmund viu-se de repente sozinho no quarto com a esposa e filha recém-nascida.

— Venha ver a menina, Edmund — Ilsa pediu com voz fraca.

Edmund aproximou-se da cama e Odo apareceu do outro lado.

— Odo — Edmund suspirou, sentado na beira do colchão —, por que ainda está aqui?

Ele espiou a nova irmã e bateu carinhosamente na mão de Ilsa.

— É uma criança bonita, apesar de ser menina. — O garoto foi até a porta. — Tenho certeza de que capricharão mais da próxima vez.

— Como pode achar graça em tamanha impertinência? — Edmund admirou-se das risadas de Ilsa, depois de Odo fechar a porta.

— E quem não acharia?

— Ele passa muito tempo com Sigimor — Edmund lamentou-se, enquanto travava conhecimento com o pequenino ser aninhado nos braços da mãe.

Ilsa puxou-o pela fivela do cinto com que o presenteara na manhã em que haviam confessado amor um pelo outro.

— Não tenha medo. Não será uma menina por ano. — Edmund beijou-a.

— Ficarei contente tanto com uma menina quanto com um menino. Lembre-se apenas de que eu a amo cada vez mais.

— Quero ter o privilégio de amá-lo, senhor meu marido, e de envelhecer a seu lado com esse mesmo amor.

Edmund estendeu-se ao lado da esposa e acariciou a face macia do bebê.

— Seja bem-vinda, minha pequena. — Edmund beijou Ilsa. — Eu a amo, minha querida.

— Eu também o amo, meu senhor.

— Esta menina será muito mimada.

— E poderia ser de outra forma, com tantos irmãos e tios?

— Que nome lhe daremos?

— Paz.

Edmund fitou a filha mais nova, pensou na multidão que ocupava o grande hall e sorriu.

— Bem lembrado. Paz. Sempre que olhar para ela, independente da confusão reinante, eu me lembrarei que poderemos encontrar a paz reconfortante um ao lado do outro.

— Sim, meu valoroso cavaleiro. Para todo o sempre.

— Para todo o sempre — Edmund repetiu, emocionado.

 

 

                                                                                                    Hannah Howell

 

 

 

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