Biblio "SEBO"
Montana, 1988
- Filha, és tu?
- Sim, mãe, sou eu - Linnea cruzou a esfera de luz criada pelo candeeiro a óleo e os seus passos ressoaram no chão de madeira. - Pensei que já estivesses a dormir.
- Há muita coisa que pode perturbar o sono de uma velha - respondeu a mãe, com os olhos sem visão fixos no tecto. - Vem cá e conta-me porque não foste ainda para a cama.
- Já vou.
- Ainda não te vais deitar? Trabalhas demasiado, filha.
- Não é nada, mãe - Linnea agachou-se e o canto da cama desdobrável que ainda estava arrumada acertou-lhe no joelho. - Tens sede? Queres um copo de água?
- Não. Sinto-me muito sozinha numa noite fria de Inverno como esta.
Linnea sentiu a mão da sua mãe. Estava fria.
- Vou trazer-te outro edredão.
- Devias estar a tomar conta da tua própria família em vez de teres de andar atrás de mim.
Linnea sentiu uma dor intensa no peito, e uma imagem concreta e breve materializou-se à frente dos seus olhos: uma menina brincava com bonecas em frente à lareira. Mas era só um sonho. Um sonho a que uma solteirona como ela não devia aspirar.
Estendeu cuidadosamente o edredão sobre o corpo frágil da mãe.
- Vais ver como te passa o frio num instante.
- És uma boa rapariga, Linnea.
Uma mão ossuda apertou a sua, com o amor de toda uma vida.
- Nem por isso, mãe - respondeu, e com um nó na garganta saiu do quarto e fechou a porta.
Na cabana silenciosa ouvia-se até o barulho das saias e dos seus passos sobre o chão descoberto de madeira. Linnea fechou o livro do pai e deixou-o na mesinha ao lado da cadeira de baloiço.
Talvez fosse do modo como o vento ululava nas folhas dos cedros e do crepitar do fogo que já começava a apagar-se, mas naquela noite a sala acolhedora parecia-lhe abandonada e vazia. Tirou o xaile de lã do bengaleiro e, com ele sobre os ombros, saiu.
O vento gelado da noite cortou-lhe a cara e atravessou as várias camadas de flanela e lã como
uma faca. Linnea desceu a escada rapidamente, a tremer. O gelo que cobria a neve estalava sob os seus pés, quebrando o silêncio da pradaria. Não havia uma única estrela a iluminar as milhas e miLhas de neve, já que as nuvens escondiam a lua e as estrelas, ameaçando tempestade.
Sim, o ar cheirava a neve. Poderia ir à cidade no dia seguinte, tal como tinha planeado? Tinha esperado a semana inteira. Talvez, com um pouco de sorte, a tempestade amainasse.
Estava ali sozinha há quinze dias, com a mãe como única companhia, e desejava poder fazer aquela viagem. Cuidado com o que desejas, Linnea, disse para ela própria, porque, ao contrário das estrelas escondidas pelas nuvens, os seus desejos costumavam acabar por cair ao chão, parti dos em mil pedaços.
O ar queimava-lhe o peito de puro frio quando se agachou junto ao tronco onde cortava a lenha. A luz vinda da janela da cabana era muito ténue e não chegava para lhe iluminar o caminho, pelo que teve que empilhar a lenha sobre o seu braço esquerdo às escuras. A solidão da noite envolvia-a e o vento soprava tristemente, varrendo tudo.
Apesar do frio que atravessava a sua roupa e a gelava até aos ossos, permaneceu ali por um instante. Aquela solidão era bela, havia algo de quase sagrado naquela noite. Respirou fundo, desfrutando daquele momento de intimidade, mas a seguir voltou para a luz e para o calor da casa. Tinha tirado com os pés a neve do primeiro degrau do alpendre quando ouviu um ruído débil no horizonte. Como um trovão, foi aumentando de volume à medida que se aproximava, ecoando nas planícies sem fim.
Seriam trovões? Que mais poderia ser? Deixou a lenha no alpendre e, com o coração nas mãos, voltou para a neve gelada e correu o mais de pressa que pôde.
Passou junto ao celeiro, que no escuro parecia um monstro mitológico, e seguiu em direcção a Este. Não havia nem sinal deles, mas tinham de estar perto... conseguia ouvi-los.
A noite escondia os cavalos selvagens com o seu manto, mas o ribombar dos seus cascos sem ferraduras sobre a superfície dura da pradaria ecoava com uma música sem ritmo que a atraiu até Norte, até ao ponto mais negro do horizonte.
Estão aqui". Como fantasmas, corriam pelo rosto da noite, as suas crinas voando ao vento. Como se não fossem criaturas terrestres, moviam-se como um só, fluidos como as sombras, avançando em direcção a ela.
Saltaram por cima da vedação e continuaram a correr, fazendo tremer o chão sob os seus cascos. Então, o chefe da manada levantou a cabeça e relinchou, e as fêmeas detiveram-se.
O único som que Linnea conseguia ouvir era o bater do seu coração. Estava a tremer, imóvel, o frio e o cansaço esquecidos. Os cavalos batiam com as patas no chão para afastar a neve e chegar ao feno seco que tinha ficado escondido. No Verão anterior tinha trabalhado arduamente para cortar aquele feno, mas a raiva que sentia pelo trabalho perdido não era nada quando comparada com o privilégio de os poder obserar assim. Que beleza. Como seria sentir-se assim livre e correr o mais rápido possível pelas pradarias selvagens?
O garanhão levantou a cabeça, magnífico, e cheirou o ar. Então, voltou a relinchar e as fêmeas retomaram a marcha. Imensos, cheios de encanto, surpreendentes, os cavalos selvagens passaram a galopar Parecia que nem tocavam o chão. O garanhão ia em último lugar, com as orelhas para trás, as narinas muito abertas, os músculos e tendões vincados sob a pele.
Aquela imagem majestosa deixou-a sem fôlego, e viu-os perderem-se na escuridão e mais uma vez voltarem a fazer parte da noite. O baruLho dos cascos foi ficando mais fraco, até que restou apenas o silêncio. O arfar de surpresa surgiu nas costas dela, e um cavalo com ferraduras mudou rapidamente a sua trajectória sobre a neve gelada.
- Hei! - exclamou a voz suave e profunda de um homem. - Senhora, sabe que está no meio de um caminho?
Saiu imediatamente do meio. Devia parecer maluca, uma mulher adulta a contemplar, boquiaberta, um sonho. Não só adulta, como também solteira.
- Lamento ter assustado o seu cavalo - desculpou-se.
- Viu-os?
- Os Mustang? - deu um passo em direcção ao celeiro. Não devia ficar ali, em plena noite, a falar com um desconhecido. - Sim...
- São lindos, não são? Venho a segui-los desde o rio. A verdade é que vê- los assim deixa-nos sem fôlego.
A sua voz era rica em matizes e suave como o veludo, fluida e cheia de graça masculina. Sentiu uma pontada de alarme e aproximou-se mais de casa. Por mais maravilhosa que a sua voz fosse, era um estranho, e estava sozinha com ele e desprotegida.
A beleza do chão tinha desaparecido, os cavalos tinham-se perdido na noite e nas vastas pradarias de Montana, pelo que voltou para casa.
- Não precisa de ter medo de mim. Sou inofensivo.
Linnea voltou-se. Estava demasiado escuro para conseguir distinguir mais do que a silhueta de um homem grande. Tinha os ombros largos, o chapéu voltado para as costas e os braços descansavam no puxador da sela.
- Não queria ser mal- educada - disse, a meio do jardim. Iron County era um lugar seguro e com boa vizinhança, mas não era imune aos problemas. - Tenho de ir.
- Estes cavalos selvagens aparecem muito por aqui?
Era a única pergunta à qual não podia deixar de responder.
- Vêm comer o feno e os cereais que se deixam na pradaria para o gado. Nesta altura do ano vêm sempre.
- De certeza que os fazendeiros locais não acham muita piada.
- Pois não, mas eu não me importo. São tão lindos que não tenho coragem de os afugentar.
- Então gosta de cavalos?
- Conheço pouco, mas admiro o seu esplendor ao vê-los correr livremente pelo horizonte.
Era precisamente o que ela queria fazer. Com o desejo na garganta, voltou-se uma vez mais. Quem era ela para ter desejos, ambições secretas? Já os tinha desperdiçado numa ocasião anterior, e não tinha o direito de o voltar a fazer, pelo que se encaminhou para casa antes que pudesse vir a arrepender-se de falar com aquele estranho.
- Também penso assim.
As palavas voltaram a chamá-la, tão verdadeiras e sinceras que quase tropeçou.
O homem não a conseguia ver. Não podia saber que não passava de uma mulher normal, com rugas a vincar-lhe o rosto e sonhos quebrados. Devia pensar que estava a falar com alguém mais jovem, por isso continuava ali, escondido no frio das sombras.
- Boa noite - disse, dando por terminada a conversa. Bastava de perguntas.
Além disso, tinha de ir apanhar a lenha, atiçar a fogueira e tirar água do poço para a ter preparada no dia seguinte. Dentro de casa, a sua mãe estava à espera, acordada e só.
Linnea subiu ao alpendre, onde um ténue fio de luz caía sobre a pilha de lenha, e voltou a carregá-la nos braços enquanto ouvia os passos do cavalo no gelo e o estalar do couro da sela.
Estaria a observá-la?
Olhou por cima do ombro e o coração começou a galopar. Sim, estava a olhar para ela, erguido na sela, o chapéu num ângulo orgulhoso, a sua presença mais substancial do que a das sombras.
A sua parte insensata, a que resistia a deixar de sonhar, perguntou que aspecto teria ele à luz do dia. Teria o cabelo escuro ou claro? E os olhos? Seriam azuis? A pele seria morena ou clara? Mas a sua parte mais sensata não, aquela governada pelo dever nem perguntava nem perdia tempo com desejos vãos. Com o último pedaço de lenha na mão, entrou rapidamente em casa. Quando fechou a porta e a trancou, o coração continuava a ecoar nos ouvidos. Sem fôlego e a tremer, procurou o apoio das sólidas paredes de madeira sem conseguir evitar o pensamento de que ele continuava a observá-la.
Afastou a ponta de uma cortina e viu a sua silhueta recortada no meio do caminho.
largou a cortina e decidiu não sonhar. Nem sequer nas horas da noite solitárias, enquanto atiçava o fogo, com cada movimento encontrando o seu eco nas divisões vazias. Nem sequer quando por fim se meteu na estreita cama desdobrável, aninhada por baixo do edredão que tinha feito há tanto tempo, ponto por ponto, com o amor e a esperança de uma jovem.
Fechou os olhos e adormeceu, e nem sequer então sonhou.
Seth Gatlin cerrou os dentes. Doíam-lhe as pernas de cavalgar todo o dia e metade da noite com aquele frio demoníaco, e subiu com dificuldade as escadas do alpendre.
A casa da sua meia-irmã pedia muitos cuidados, algo óbvio até no escuro. O telheiro que cobria a porta estava partido, como se o telhado não tivesse parado de pingar há muito tempo. As tábuas de madeira que formavam o alpendre afundavam-se com o seu peso.
A casa estava às escuras e em silêncio. A criança devia estar a dormir. Levantou a mão para bater à porta, mas não se atreveu a fazê-lo.
Como que em resposta à sua hesitação, a porta entreabriu-se com um ranger áspero de dobradiças a precisarem de óleo.
- Gmny? - perguntou ele. - És tu?
- Ouvi o teu cavalo - disse, chegando-se para o lado. A sala estava tenuemente iluminada com a fogueira que ardia na parede do fundo. - Imaginei que fosses chegar gelado, então pus um pouco de guisado a aquecer. Vem e senta-te junto à lareira.
- Não era preciso esperares por mim - respondeu, tentando não parecer brusco.
- Não faz mal. Fizeste o caminho desde Fort Benton com este frio só para me ajudares.
Passou com a mão na gola do casaco para o ajudar a tirá-lo e pendurou- o com cuidado junto à lareira. O peito dele contraiu-se com aquele gesto. Ambos pertenciam a uma família despedaçada, caótica e doente. Tinha aproveitado a primeira oportunidade que lhe apareceu para fugir sem olhar para trás. Talvez tivesse errado ao não continuar em contacto com as meias-irmãs.
- Anda, este é o sítio mais quente da casa. Sei que não é grande coisa. Tenho saudades da casa que tinha na cidade - Ginny apoiou as mãos nas costas de um cadeirão forrado com tapeçaria. - Senta-te, que eu sirvo-te o guisado. Queres chá ou café?
- Posso fazê-lo eu.
- Não sejas tonto. Senta-te agora mesmo à lareira e deixa que me sinta útil.
Ginny olhou para ele e ele viu a dor nos seus olhos, mesmo no escuro.
Parecia um fantasma, com os olhos afundados nas covas, a cara magra e pálida com as maçãs salientes. A tristeza transformara-Lhe o rosto, outrora belo, numa máscara macilenta de preocupação.
Surpreendido por encontrá-la assim, não discutiu e observou-a a mexer-se. Parecia um sussurro na escuridão da cozinha.
O que lhe teria acontecido? Na carta que Lhe escrevera no Natal apenas falava do filho e da casa que tinha na cidade, e ele não se tinha preocupado mais. na verdade, nunca tinham sido muito unidos, e essa única carta que recebia pelo Natal era mais do que o unia às outras meias- irmãs. Pensou na mãe, intimidada e desfeita por um homem, o pai de Ginny, que tinha prometido amá- la e respeitá-la, e a raiva juntou-se em remoinho, formando-lhe um nó no estômago.
- Aqui tens - Ginny voltou à sala com uma bandeja onde trazia tudo o que pudesse precisar: prato e talheres, mel, manteiga e fiambre, fatias grossas de pão fresco e uma grande tigela fumegante de guisado. - Acabei de pôr a cafeteira ao lume. O café estará pronto num instante.
Ela parecia nervosa, e isso não Lhe agradava.
- Já te disse que não era preciso esperares por mim. Anda, senta-te e ajuda-me com este pão. Há muito tempo que não via uma comida assim:
Para ser preciso, desde que tinha casa própria e mulher que a fizesse.
- Sou uma cozinheira vulgar - disse ela, sentando-se na borda do sofá de crina de cavalo e mordendn o lábio inferior com ansiedade. - Gostas do guisado?
- Está muito saboroso - respondeu, mas ficou inquieto por ela se preocupar em agradar-lhe. Somos da mesma familia, Ginny, embora sejamos estranhos em alguns aspectos. Dei-te a minha palavra em como te ia ajudar, e cumpri-la-ei. Não penso mudar de opinião mesmo que não goste da maneira como cozinhas.
- Obrigada - murmurou ela, e o seu alívio pareceu iluminar a sala.
- Quem vive no princípio desta estrada, naquele rancho com a vedação branca?
- Ah, são os Holmstrom. Agora só estão lá a senhora mais velha e a filha. São boas arrendatárias, calmas e reservadas, mas não gosto de as ter como vizinhas.
Ginny não parecia gostar daquelas mulheres. Que razões teria?
- Então deve ter sido a filha que eu vi. Estava lá fora, a contemplar as manadas de cavalos selvagens. Eram um espectáculo.
- E uma chatice. Perdi metade dos meus pastos de Inverno por causa dessas criaturas - Ginny parecia muito zangada e virou o olhar. - Linnea devia estar a trabalhar.
- Acho que sim - lembrou- se da lenha que estava a apanhar no alpendre, com uma graça e ligeireza que o surpreendeu. Não conseguia evitar reparar na beleza de uma mulher. - Quer dizer que a conheces.
- É melhor que nos mantenhamos afastados dela - disse, e cerrou os lábios. - Essa mulher só tem causado problemas a esta família.
Não soube o que pensar, mas lembrou-se da sua voz, doce e sonhadora, insegura e preocupada. Não parecia ser desse tipo de mulheres que gostavam de criar problemas, mas na verdade, também não dava demasiada importância ao conselho de Ginny. O seu coração já estava enterrado há demasiado tempo num cemitério nos arredores de Miles City. O seu tempo para amar uma mulher já tinha passado e nunca mais ia voltar.
- Arranjei-te um quarto no sótão, como tinhas pedido - disse Ginny em voz baixa. - Não sei se vais gostar, e gostaria muito de o trocar por.
- O sótão é perfeito.
Tentou fazer com que a raiva não se notasse na voz, mas não deve ter conseguido, a julgar pela maneira como ela se encolheu.
- Não preciso que me trates de um modo especial - disse-lhe suavemente. - E também não deves ter medo do meu feitio. Não sou o teu pai, e não sou o teu marido.
- Eu sei - sorriu com lágrimas nos olhos. Pegou nos alforges com uma mão e com a outra levou a bandeja de volta para a cozinha, recusando a ajuda de Ginny. Disse-Lhe boa noite e subiu as escadas estreitas. A cama era confortável, a melhor que tinha tido nos últimos tempos.
E, ao adormecer, sonhou com cavalos selvagens e com a mulher que os contemplava, o seu cabelo solto emaranhado com o vento.
A neve caía em flocos pesados e húmidos. O vento agitava os pinheiros e os álamos da Virgínia, e a corrente de ar que passava por baixo das portas já não era tão fria como há semanas atrás. O Inverno acabaria rapidamente. Mas por aquele momento, isso não era grande consolo para Linnea, estando ali de pé, junto à janela da cozinha.
Seria mesmo necessário abrir caminho por entre a neve para chegar à cidade? Não tinham cavalos, já há muito tempo que os tinham vendido para pagar o funeral do pai. Talvez se a neve deixasse de cair conseguisse chegar lá.
- Linnea, por muitas voltas que dês, não vais conseguir mudar o tempo - disse a mãe docemente. - Sinto o cheiro da Primavera, embora saiba que está a nevar.
- Como sabes?
- Consigo ouvir. Anda, vem. Comes pouco e trabalhas muito. És só pele e ossos. Acaba o pequeno- almoço e conta-me, achas que te vão pagar bem pelas camisas?
- A senhora Mclntyre disse que me pagará todas as camisas de homem que consiga fazer - respondeu, tentando esconder o cansaço na voz.
Gostava de criar beleza com bordados e linhas, mas os anos a confeccionar roupas normais e práticas tinham tirado o prazer à sua arte. Ainda assim, precisava desse dinheiro para viver. Sem isso, não teriam como pagar o tecto sob o qual se refugiavam.
Talvez fosse aquele o dia em que se ia atrever a mudar.
- Esses McIntyre... não te pagam o que mereces pelo teu trabalho - queixou-se a mãe enquanto soprava o café do pequeno-almoço para o arrefecer. - Aproveitam-se de ti. Como isso me enfurece.
- São os únicos que estão dispostos a comprar-me as camisas - desde que uma modista tinha chegado a Bluebonnet, no ano anterior, o sector tinha sido prejudicado: A zona era pequena e a procura de roupa pré- fabricada ainda menor. - A menos que encontre outro trabalho na cidade.
- Nenhuma filha minha vai servir à mesa num bar.
Era uma velha discussão. Ganharia mais dinheiro como empregada, mas a mãe teria de passar todo o dia sozinha, cega e com o seu frágil estado de saúde.
- Não disse que ia fazer isso.
Tentaria atrasá-lo ao máximo por bem da sua mãe.
- Está a parar de nevar - disse a mãe, olhando com os seus olhos azuis pela janela, e deixou a chávena no centro do pires sem derramar uma gota. - Bem. Assim podes ir. Sei que tens vontade de sair daqui.
- É só para vender as camisas e fazer umas compras - respondeu, enquanto levantava a mesa. Não queria pensar naquilo que tinha pensado em fazer para que não se formasse um nó no seu estômago. - Queres que te traga alguma coisa?
- Sabes que não preciso de mais nada, se tiver a minha fillha comigo - uma vida de amor brilhou nos seus olhos. - Vai, que eu lavo a loiça. Não sou inválida.
- Mas sou eu quem vai lavar a loiça - tirou a água quente que tinha deixado ao lume e deitou-a na bacia. - Se quiseres, sirvo-te mais um pouco de café e...
- Faz o que a tua mãe manda - disse, e as suas mãos apertaram ligeiramente as da filha. - Vai à cidade, vende as tuas camisas, compra qualquer coisa para ti e diverte-te um pouco, filha.
- Não preciso de nada, tenho-te a ti.
- Ai, minha filha! Anda, ouve a tua mãe e vai. Não te esqueças de comprar algo bonito. Quero ver quando voltares.
Linnea apressou-se a envolver as camisas no seu edredão mais recente, cosido à mão com branco sobre branco e o desenho de uma rosa, formada com aplicações de um tecido rosa brilhante cosidas pacientemente nas noites longas em frente ao calor da lareira.
Talvez a senhora Mclntyre gostasse do edredão. Talvez pudesse até convencê-la a deixá-lo na loja para que o vendesse. E se ela mesma o comprasse? Quem sabe assim conseguia um trabalho mais interessante do que coser mangas e golas.
- Estás bem abrigada? - as mãos da mãe percorreram-lhe o pescoço e a cabeça. - Ata o cachecol, filha. Só faltava que te constipasses.
- Mãe, não tenho cinco anos - protestou, embora se sentisse tão feliz que estava quase a rir. As cestas estão cheias de lenha e deixei-te uma sandes em cima da mesa. Tem cuidado, sim?
- Sou perfeitamente capaz de tomar conta de mim própria, filha - respondeu a mãe antes de lhe dar um beijo na face. - Agora vai e diverte-te.
Não lhe agradava ter de deixar a mãe sozinha, mas a caminhada sobre a neve era demasiado difícil para ela. Esperava que não tardasse muito a derreter. Olhou para o céu. Parecia anunciar melhorias. Mas ela não se importava nada de caminhar sobre a neve imaculada, e o estalar das suas botas no caminho parecia o único som daquele mundo brilhante e branco. Das agulhas dos pinheiros caíam de vez em quando flocos de neve brancos e as vedações de madeira acolhiam uns montículos graciosos de neve. O rio, quase totalmente gelado, enviava a sua corrente para desfazer o gelo que o oprimia. Era uma bela manhã.
Então ouviu atrás de si o chiar dos esquis de um trenó sobre a neve fresca e o galope abafado dos cascos de um cavalo. Reviu mentalmente a lista de quem podia ser: os Neilson, os Hansson, os Schwartz ou Ginny McIntyre... e temia encon trar qualquer um deles no caminho.
Ergueu-se, decidida a não baixar a cabeça, e a não deixar- se intimidar. O galope e o chiar aproximavam-se e viu um belo cavalo negro, muito
maior do que todos os que alguma vez tinha visto. Nenhum dos seus vizinhos tinha um animal tão magnífico, nem sequer Ginny McIntyre.
- Cuidado, rapaz!
Uma voz profunda como a noite e rica como o cetim, a mais masculina das vozes que conhecia, soou atrás dela.
Era o homem da noite anterior. O pânico acelerou-Lhe a pulsação, e não só por ser um estranho, mas também porque não estava preparada para aquele encontro.
Para ir à cidade precisava de uma boa dose de coragem desde que a sua reputação ficara definitivamente arruinada, desde que as suas acções tinham sido a causa da morte do seu querido pai.
- Quer boleia até à cidade? - perguntou aquela voz maravilhosa.
- Não, obrigada - respondeu sem olhar para ele. Ele tinha parado perto dela e falava em cima do trenó.
Não se atreveu a olhar para a cara dele, porque imaginava-o bonito, jovem e forte. Não era homem para ela. Olhou em direcção ao fim do caminho e desejou que a interminável vedação de madeira não a encurralasse.
E que ninguém voltasse a vê-la sozinha na companhia de um homem. o seu peito contraiu-se com tanta força que não conseguia respirar. Não, não podia voltar a passar por aquela humilhação.
Mas o cavalo e o trenó começaram a andar ao mesmo ritmo que ela. Apressou o passo.
- Chamo-me Seth Gatlin.
Não conseguiu resistir a olhar para ele, para ver como era o homem a quem pertencia aquela voz. Esteve prestes a tropeçar, não porque o homem fosse de algum modo surpreendente. Na verdade, não o podia qualificar de bonito no sentido tradicional da palavra, mas era agradável para a vista. Mais ainda, era impressionante, com aquele cabelo negro que lhe caía na cara e as feições queimadas pelo sol; mesmo naqueles meses de Inverno.
- Já que sou novo aqui, faça o favor de acompanhar-me - pediu. Não chegou a sorrir, mas houve um brilho no seu olhar ao dirigir-se a ela. Preciso de encontrar um ferreiro e não sei onde fica.
- É na rua principal. Reconhecê-la-á pelo movimento e pelas fachadas altas.
- Podia ajudar-me muito - replicou.
- Bluebonnet é uma cidade pequena: Não precisa que lhe mostre o caminho.
- Imaginava que sim: A verdade é que era uma desculpa, porque não posso ir embora e deixá-la a pé com tanta neve - dirigiu-se a ela com a mesma amabilidade com que toda a mulher sonha ser tratada por um homem. - Tento comportar-me como um cavalheiro sempre que posso, por isso não se preocupe. As mulheres que precisam de alguém que as leve à cidade estão sempre seguras no meu trenó.
Ela continuou a andar, como na noite anterior.
- Não o conheço.
- Nem eu a conheço a si, mas estou disposto a correr o risco.
- O risco não é igual para um homem.
- Isso é verdade, mas eu sou um cavalheiro, lembra-se?
- Tinha dito que tentava ser.
Ele era novo na zona e não sabia nada sobre ela, mas mesmo assim não devia considerar... Que parvoíce. Na verdade só estava a querer ser amável, e isso abonava em seu favor. Podia nomear uns quantos vizinhos que não estariam dispostos a fazer o mesmo.
- Traz muito peso.
- Posso perfeitamente com este peso até à cidade - respondeu sem deixar de olhar para ele, o rosto oval emoldurado pela capa cinzenta:
Parecia úm pássaro de Inverno, escuro e sem cor contra o mundo sepultado por baixo da neve, frágil e assustadiço.
- Quer dizer que não aceita que um estranho Lhe dê boleia de trenó, não é? Mas eu sou um vizinho.
Ela mandou-Lhe um olhar de advertência, como uma professora faria a um aluno que se portou mal. Era uma mulher forte, sem dúvida, mas doce também. A sua doçura brilhava no fundo dos olhos.
- É o novo ajudante dos Hansson? - perguntou-lhe, com o embrulho preso em ambos os braços.
- Não. Estou a ajudar a minha irmã, Ginny Mclntyre.
- Ah, pois - o brilho dos seus olhos apagou-se e recuou um passo. - Não posso aceitar a sua oferta. Falo a sério. Espero que não tenha dificuldades em encontrar a loja que procura.
- Disse alguma coisa de errado?
- Não, bom dia.
Voltou-se e continuou a caminhar, e Seth não soube o que fazer. Podia segui-la até chegar à cidade para assegurar-se de que ela chegava ao destino sem qualquer percalço, mas a verdade é que ela não parecia querer a sua protecção. Nem sequer se voltou para olhar para ele. Claro que, ao fazê-lo, não veria mais do que um homem cansado por dentro e demasiado velho para ela, uma mulher jovem e feminina com um rosto que parecia de seda.
Não conseguia dizer por que continuava a observá-la. Talvez porque lhe lembrava um tempo em que não precisava de esperanças. Um tempo em que vivia para ver outra mulher sorrir
Mas parecia muito só. A sua atenção também foi atraída por um certo orgulho que reparou nela. Parecia reservada, como se estivesse muito habituada a ter de se proteger.
Talvez fosse isso o que o atraía nela. Então lembrou-se das palavras da irmã: uma mulher que só tinha trazido problemas à familia. Tinha dito isso daquela mulher, cujos caracóis da cor do sol espreitavam por baixo da capa cinzenta e que tinha os olhos de um azul celestial.
Os problemas podiam ser de mil tipos diferentes, mas apostava o que fosse preciso em como Linnea Holmstrom tinha sofrido mais problemas do que os que causara ao longo da sua curta vida. E ele conhecia bem esse tipo de peso.
Passou junto a ela lentamente. Se ela mexesse um dedo que fosse, ele parava, mas manteve o olhar fixo no chão por cima do seu volumoso embrulho.
Pressentiu que continuar a insistir apenas serviria para a aborrecer, pelo que seguiu caminho, mas sem conseguir deixar de pensar na mulher que tinha deixado para trás:
Linnea reconheceu o cavalo e o trenó de Seth Gatlin em frente ao ferreiro. A traseira do veículo estava carregada de lenha e tentou não olhar, mas não consegúiu. Tinha sido gentil com ela, nada mais. Ainda assim, continuava a recordar a suavidade da voz e o reflexo do sorriso.
O sol apareceu por entre as nuvens como um bálsamo quando atravessava a rua em direcção- à loja de importações.
Encontrou-a a rebentar pelas costuras. O barulho das conversas e o tilintar do sino da porta soaram-lhe estranhos depois do silêncio do passeio.
Assim que entrou, viu o aceno da senhora Mclntyre e foi para junto do mostrador do fundo para esperar. Todos os empregados estavam ocupados, até mesmo os que estavam a atender na secção de tecidos onde várias mulheres falavam sobre a última moda de Primavera que tinha saído na Godey's.
Linnea estudou o colorido das linhas e dos tecidos, e imediatamente o embrulho que trazia nos braços deixou de lhe pesar. E se a senhora McIntyre gostasse da ideia? Dar-lhe-ia a oportunidade de pôr o seu plano em prática. Algo em diferentes tons de azul, talvez, com verdes e amarelos.
- Menina Holmstrom - cumprimentou-a a senhora Mclntyre, seca como sempre. - Mostre-me o que traz.
Com as mãos a tremerem ligeiramente, Linnea mostrou-lhe a dúzia de camisas. Apenas conseguiria uns quantos dólares por cada uma, mas es tavam bem feitas, e estendeu-as cuidadosamente sobre o mostrador, alisando os vincos do algodão.
- Bom trabalho, como sempre - disse, e imediatamente cerrou os lábios sem a olhar nos olhos em momento algum, embora o facto de aceitar o seu trabalho já fosse suficientemente satisfatório. A mulher deu a volta e afastou-se. - Fico com todas. Traga-me outra dúzia no princípio do mês que vem.
- Senhora McIntyre - respirou fundo. - Queria que visse isto - disse- lhe, e estendeu o edredão branco como a neve, as mulheres ficaram em si lêncio ao verem perante elas aquela rosa feita com aplicações numa variedade de tons da mesma cor.
Com o coração nas mãos, olhou para a mulher.
- É para uma cama dupla.
Os sapatos da senhora Mclntyre soaram sobre o soalho de madeira ao aproximar-se, e nos seus duros olhos castanhos apareceu uma faísca de interesse, mas os seus lábios continuaram cerrados. Passou uma mão pela superfície de pontos precisos. Os segundos passaram em silêncio. Linnea suportou o silêncio da dona da loja e o calor do olhar das restantes mulheres. Tentou não reparar, não pensar no passado.
Então viu um músculo palpitar no pescoço da senhora Mclntyre, e soube que ia dizer não.
- É um bom trabalho, Linnea.
- Gosta? - A esperança floresceu de novo. Estaria disposta a deixá-lo na loja para que o vendesse.
Os segundos pareciam demorar outra vez uma eternidade, e Linnea apenas conseguia ouvir a sua própria pulsação. A senhora Mclntyre não tirava os olhos do edredão.
- Lamento, mas não posso fazê-lo - aqueles olhos implacáveis mostraram um surpreendente breve brilho de arrependimento. - Tendo em conta o nosso passado, bem te podes dar por satisfeita que te compre as camisas. A senhora Johanson esteve aqui na semana passada para me dizer
que consegue fazê-las melhores e mais baratas do que tu.
- Certo - precisou de uma grande dose de coragem para voltar a olhar para ela. - Obrigada pelo seu tempo, senhora Mclntyre.
A mulher voltou a cerrar os lábios e voltou-se sem pronunciar palavra. Linnea tinha prometido não recordar o passado, não o sentir como uma pedra pesada sobre as costas, mas o seu peso sufocava-a enquanto dobrava o edredão. As mãos tremiam-lhe, apesar de detestar que os sentimentos surgissem com tanta facilidade. A loja permanecia em silêncio.
A filha mais velha dos Mclntyre estava a embrulhar uma compra e passou-Lhe um envelope disfarçadamente. Na escola, Shannon e ela tinham sido melhores amigas, mas a sua amizade tinha-se desfeito há muito tempo, embora as memórias de melhores tempos continuassem vivas.
- Gosto dessas camisas - disse uma voz masculina, não mais forte do que as outras, mas diferente e familiar. - Levo meia dúzia.
- O senhor é o irmão de Ginny, o Major.
- É verdade, senhora.
Linnea viu a linha impressionante dos ombros de Seth Gatlin por cima dos armários da loja. Não trazia o chapéu, pelo que viu que o seu cabelo era quase negro e formava um contraste intenso com o azul dos olhos.
- Até levava mais umas quantas, mas não a quero deixar sem mercadoria.
- Posso encomendar mais, se precisar, Major. A senhora Mclntyre parecia desejosa de lhe agradar.
- Agradecia. Acabei de sair do exército e não tenho roupa civil suficiente.
Por cima dos frascos de pêra em calda, o seu olhar encontrou o de Linnea num momento carregado de energia. Os sons da loja pararam, a luz do candeeiro ficou mais fraca e, durante esses escassos segundos, apenas restou o esboço do seu sorriso.
Então compreendeu. Ouvira como a senhora Mclntyre a tinha tratado e ia comprar todas as camisas.
Sentiu um calor maravilhoso no peito, porque era uma sensação nova para ela, alguém estava a defendê-la. Não que precisasse ou merecesse, ou que ele estivesse a fazer mais do que comportar-se como um cavalheiro. E no fundo sabia que, com o tempo, o cavalheirismo desapareceria. Era melhor não contar com isso.
- Ficarei com outra dezena assim que as conseguires terminar - disse a senhora McIntyre a Linnea. - Mas temos de negociar o preço.
Pelos vistos, as coisinhas que tinha estado a ver teriam de esperar, pelo que escolheu umas meadas de lã azul para a mãe.
Viu Seth Gatlin junto à caixa a pagar todas as camisas e, sorrindo-lhe furtivamente, ficou atrás do mostrador para evitar parar atrás dele. Queria agradecer-lhe, mas não ali, em frente a toda a gente.
- Menina Holmstrom? - uma mulher bonita e com roupas da última moda aproximou-se dela. Era a modista. - Se quiser levar o seu edredão à minha loja antes de voltar para casa, estaria interessada em vê-lo.
Linnea lembrou-se de todos aqueles vestidos e chapéus lindos expostos na montra da loja.
- A senhora faz tudo o que vende, não é? Por que estaria interessada no meu edredão?
- Porque faço muitos vestidos de noiva e penso que qualquer noiva que veja um edredão assim, quererá vestir a sua cama com ele - com um sorriso, deixou um cartão de visita no pequeno bolso de Linnea. - Se não puder passar lá hoje, venha quando quiser.
Linnea quis dizer qualquer coisa, mas não encontrou palavras de agradecimento e ficou a vê-la sair da loja. A campainha soou e a porta fechou-se.
Poderia ser verdade o que acabara de acontecer? Não se atrevia a albergar esperanças, mas também não o conseguia evitar. Do outro lado da loja, Seth Gatlin inclinou ligeiramente a cabeça, agarrou no seu embrulho e saiu, enquanto a filha mais velha dos McIntyre lhe dirigia um sorriso deslumbrante.
Um militar. Devia ter imaginado. Possuía uma espécie de dignidade serena, talvez devido ao hábito de ter poder.
Deu a volta e examinou as estantes dos tecidos enquanto o coração lhe batia na garganta. Ia demorar o tempo que fosse preciso para planear o próximo edredão. Mais tarde voltava para comprar as cores de que precisava.
Talvez a sua sorte tivesse começado a mudar.
- Onde está o seu edredão?
Uma voz, a voz dele, interrompeu os seus penssamentos.
Linnea deteve-se sobre a neve que começava a derreter e esteve prestes a deixar cair os seus embrulhos. Seth Gatlin levou a mão ao chapéu desde o alto do banco do seu trenó.
Meu Deus, ia tão absorvida nos seus planos que nem o tinha ouvido a aproximar-se.
- Na loja da senhora Jance. Ela acha que con segue vendê-lo.
- Parabéns.
- Não quero ter ilusões enquanto não for vendido - Linnea tentou não pensar como ele era atraente, com o nariz recto, a testa alta e o queixo forte e bem barbeado. Ou que parecia ter um carácter sólido e firme, ao contrário de muitos que tinha conhecido. - Obrigada pelo que fez hoje na loja.
- Precisava de roupa nova - respondeu, encolhendo os ombros. - Agora aceita a minha boleia no trenó?
- Não me importo de andar.
- Sim, mas não penso deixá-la no caminho outra vez - quase sorriu. - Além disso, está em dívida para comigo, depois de lhe ter comprado as doze camisas.
- Nisso tem razão - não via mal nenhum em aceitar a oferta de um homem que não parecia julgá-la. - Mas, se vai ser meu vizinho, tem de me deixar caminhar quando nos encontrarmos.
- Combinado.
E estendeu-lhe a mão ao mesmo tempo que se chegava para o lado para arranjar espaço.
Ela apoiou os dedos na palma da mão dele, com o menor contacto possível, mas, mesmo assim, o seu coração saltou. Baixou o olhar e subiu para o trenó, ajeitando os embrulhos e a saia com a mão que estava livre.
Ele não perdeu nenhum dos seus movimentos e sentir que estava a ser observada deixou-a nervosa. Seth não disse nada e o silêncio começou a arrastar-se. Devia ser ela a começar a conversa? Não estava com um homem desde os dezasseis anos. O que devia dizer? Não encontrava uma única palavra.
Seth assobiou ao cavalo e a bela criatura agitou a sua crina farta, antes de começar a andar num elegante trote que fazia ondular as suas crinas.
- É lindo - disse ela em voz baixa. - Nem os Mustang são tão lindos.
- Ele sabe disso. Olhe para ele.
O garanhão púnha as orelhas para trás, atento à conversa, e trotou ainda com mais orgulho.
Linnea riu-se.
- Estava a ouvir-nos. Além de bonito, é es perto.
- Claro. É capaz de fazer qualquer coisa para ouvir o elogio de uma mulher bonita.
Linnea corou. Seth estava simplesmente a ser cortês. Irradiava integridade e cortesia e ela sentia-se vulgar e grosseira ao lado dele.
- Como se chama?
- Eu chamo-Lhe General, porque ele acha que é muito importante - ela olhou-o furtivamente e viu que ele contemplava o cavalo com afecto. - É um bom amigo e salvou-me a vida em tantas ocasiões que já lhes perdi a conta.
- No exército?
- Na cavalaria. Criei-o desde que era um potro - disse e apontou para a frente com a mão. - Repare, continua a ouvir. Certamente, à espera de mais elogios.
Qualquer pessoa podia apreciar daquele animal, as linhas perfeitas da sua figura, as curvas suaves do dorso e dos cascos. O seu pêlo suave brilhava como o marfim à luz do sol.
O silêncio voltou a instalar-se entre eles e Linnea olhou para as suas mãos. Não sabia o que dizer. Talvez fosse melhor assim. Já era demasiado velha para sonhar, demasiado velha para voltar a desejar que chegasse um homem para lhe mudar a vida.
Além disso, Seth Gatlin não a olhava dessa maneira, como um homem que procura companheira.
Então, ele falou:
- Fui sincero em relação às camisas. Alguns ajustes davam jeito e pagaria por isso.
- Quer que as arranje?
- Quem melhor que Linnea, que as fez e além disso é minha vizinha?
O seu sorriso era tão caloroso que o calor lhe chegou aos dedos dos pés.
- Então, aceito.
- Também me davam jeito outras peças e sei que a minha irmã não gosta de coser.
Ginny McIntyre. Linnea quase se tinha esquecido dela.
- Terei o maior prazer em fazer o que precisar. Que maravilha voltar a ter trabalho extra. Há muito tempo que ninguém requisitava as suas habilidades com a agulka...
Certamente, por aquela altura já alguém teria falado a Seth Gatlin do seu passado, mas, por agora, ele parecia não julgá-la. Mais ainda, ti nha-a contratado. Que diferença enorme iria fazer o dinheiro extra.
O trenó parou em frente da sua casa e o garanhão soprou impacientemente, como se quisesse continuar a puxar o veículo e mostrar a sua grandeza.
A porta abriu-se e a mãe surgiu, pequena e frágil, os seus olhos cegos brilhavam e tinha a cabeça inclinada para ouvir melhor.
- Sou eu, mãe - disse, para não a preocupar. O Major Gatlin foi muito gentil e ofereceu-me boleia no trenó. É irmão de Ginny.
- Ah, veio ajudá-la - a mãe sorriu-lhe. – Muito prazer em conhecê-lo, Major. Sou Elsa Holmstrom. Toma uma chávena de chá?
Enquanto descia do trenó, Linnea sentiu que Seth olhava para ela como se quisesse fazer uma pergunta. Conteve a respiração. Não era qualquer um que tratava bem a sua mãe.
- Gostaria muito, minha senhora, mas talvez seja melhor voltar daqui a umas horas para dar à sua filha a oportunidade de Lhe contar tranquilamente as boas notícias que tem. Sei que foi Ginny quem vos alugou estes terrenos, mas, uma vez que agora sou eu quem trata de tudo, gostaria de vir dar uma vista de olhos à propriedade.
- Claro. Diga-me, Major, o senhor é guloso?
- Completamente!
- Nesse caso, vou preparar qualquer coisa para acompanhar o chá. Obrigada por tomar conta da minha filha.
- Foi um prazer.
Linnea sentiu que as emoções lhe formavam um nó na garganta e levantou uma mão para se despedir. O cavalo começou a andar, todo ele esplendor e graça. Tal como o dono. Linnea não conseguia mexer-se e ficou ali, vendo como o trenó carregado de lenha e embrulhos desaparecia de vista.
Que tipo de homem seria Seth Gatlin? Mesmo sabendo do seu passado como decerto sabia, tinha falado com ela, tinha-lhe dado boleia no trenó, tinha-lhe comprado as camisas e tinha tratado com amabilidade e respeito uma senhora de idade cega e com forte pronúncia estrangeira. Não se parecia com nenhum outro homem que tinha conhecido, à excepção do pai.
- Linnea, que fazes aí especada com este vento tão frio? Espero que pelo menos tenhas posto o capuz.
- Mãe... - protestou, mas continuou sem se mexer, embora o trenó já tivesse desaparecido e apenas tivesse ficado o branco da paisagem. - Não está assim tanto frio. O vento está mais ameno.
- Do que precisamos é de um bom chinook, um bom vento que leve toda esta neve. Este Inverno está a durar demasiado. Anda e mostra-me o que compraste na loja da Mclntyre. O Major disse que trazes boas notícias.
- Muito boas notícias - Linnea começou a andar com os embrulhos nos braços. - Comprei umas quantas coisas.
- Café. Consigo cheirá-lo - adivinhou desde a ombreira da porta.
Linnea sacudiu a neve das botas, antes de entrar. Que bonita Lhe parecia a casa, disse para si mesma ao fechar a porta.
O fogo ardia alegremente na lareira de pedra cinzenta. O soalho de madeira afagada brilhava como o melaço. Os tapetes feitos pela mãe alegravam as paredes e as suas próprias almofadas grandes e pequenas, toalhas e cortinas acrescentavam um toque muito acolhedor. Era o seu lar. Sempre se tinha sentido segura e amada ali, por mais difíceis que fossem as circunstâncias ou por muitos erros que tivesse cometido.
Pousou as compras e tirou a capa.
- Comprei também um pouco de açúcar branco para o adoçar.
- Que maravilha! - exclamou a mãe. - Mimas-me demasiado, Linnea. O nosso orçamento é muito apertado.
- Sim, mas vendi outra dúzia de camisas, graças ao Major Gatlin:
Por agora não queria falar sobre o edredão até que o tivesse vendido... se é que conseguia vendê-lo.
- Para já, tem uma voz dóce - suspirou a mãe.
- Espero que isto signifique que não vamos ter mais problemas com Ginny McIntyre.
- Quem sabe - Linnea não conseguia suportar pensar nos problemas, sendo aquele um dia tão magnífico como estava a ser. Tinha de fazer o dobro das camisas, arranjar as que o Major tinha comprado e planear um novo edredão. Era tanta coisa boa de uma só vez que mal podia acreditar.
- Senta-te, mãe, vou dar- te uma coisa - disse, enquanto abria os embrulhos. - Toma, isto é para ti - afirmou, ao entregar-lhe as meadas de lã.
A mãe percorreu a superfície das meadas com as mãos sensíveis.
- Mas, rapariga, não devias ter comprado isto para mim. Para que quer uma velha como eu algo
tão bonito?
- Diz-me tu. A lã é para ti - respondeu e beijou-a na face, que parecia de papel. - O que compraste para ti?
- Bem, algo que, na realidade, não se pode comprar, mas, acredita, mãe: hoje aconteceu algo muito especial.
Linnea serviu duas chávenas de chá e imaginou o edredão na montra da senhora Jance juntamente com os requintados vestidos e saias, os elegantes chapéus e bordados.
E isso não era tudo. Imaginou também o sorriso dele, sereno e sincero, e guardou-o no seu coração.
Quando a cabana da família Holmstrom apareceu perante ele, apenas um reflexo escuro contra as planícies brancas, puxou as rédeas. O animal questionou a ordem e apenas afrouxou a marcha.
No dia anterior, tinha-lhe dado um bom castigo e o pobre animal devia estar com vontade de esticar as patas, mas Seth continuou a puxar as rédeas com firmeza e o General acabou por acatar a ordem e parou.
Mantém-te afastado dela", tinha-o advertido Ginny, ao vê-lo sair de casa, e esse conselho começava a preocupá-lo. Sabia como eram as cidades pequenas; com os seus boatos e mexericos, bons em alguns sentidos, menos bons em muitos outros.
Mas tinha aprendido muito nos anos que tinha passado a lutar pelo país. Tinha viajado até ao México e depois regressado a Virgínia. Tinha visto muitas coisas e aprendido mais ainda sobre homens que conduziam e homens que se deixavam conduzir. Ele era capaz de formar os próprios júízos.
E Linnea Holmstrom? Jamais esqueceria o brilho de felicidade nos seus olhos, azuis como o céu, quando tinha comprado as camisas. Mas essa felicidade trouxera-lhe recordações e isso não lhe agradava. Mas a culpa não era dela. Além disso tinha de a admirar: depois da maneira como tinha sido tratada pela senhora McIntyre, tinha sido capaz de se comportar com dignidade.
Sobre isso também percebia um pouco. Era precisamente essa a razão pela qual tinha comprado as camisas e lhe tinha pedido que fizesse mais umas peças. Ajudar os arrendatários da irmã era ajudar-se a si próprio a longo prazo. Tinha de impedir que a irmã acabasse numa casa vazia e com uma economia falida.
Linnea. Viu-a nos campos, uma silhueta delgada no branco sem fim. Por baixo da sua capa escura, sobressaía a bainha de um vestido vermelho, que era a única nota de cor na paisagem. O seu cabelo louro e dourado como o mel tinha escapado dos ganchos que o prendiam e voava ao vento num abandono descuidado, quando se voltou para olhar para as montanhas no horizonte. A seguir viu-a dar a volta com um balde de água em cada mão e desaparecer.
O coração ficou mais pequenino. Sim, aquela mulher trazia-Lhe recordações. Fechou os olhos brevemente, tentando não reavivar sentimentos que lhe tinham custado tanto a enterrar e que se tinham gasto como o pavio de uma vela.
Quando abriu os olhos, o General tinha começado a andar a trote ligeiro, e só teve tempo de o parar para o conduzir para o abrigo de um velho celeiro. Deixou-o numa pequena divisão junto a uma vaca leiteira, agarrou no embrulho onde tinha as camisas e saiu do celeiro.
Havia umas manchas de humidade nas vigas e o edifício inclinava-se ligeiramente para a direita. A casa também pedia cuidados. O soalho do alpendre tinha sido arranjado recentemente, mas o telhado tinha de ser substituído naquele Verão, a julgar pela camada desigual que a neve formava sobre ele. E aquelas mulheres continuavam a ter de tirar água de um poço.
Talvez possamos aumentar-lhes a renda", tinha sugerido a irmã. Não ia ficar satisfeita quando lhe dissesse que bem se podia contentar com o que lhe pagavam.
Levantou a mão para bater à porta, mas, antes que o conseguisse fazer, esta abriu-se. Não se encontrou de frente com Linnea, mas com a senhora Holmstrom, uma mulher magra e frágil como um junco e com rugas da idade, mas com o sorriso de uma jovem bela e cheia de vida.
- Major, tenho o maior prazer em recebê-lo em minha casa - abriu completamente a porta. Nunca tínhamos tido um Major do exército aqui.
- Estou reformado, senhora - respondeu, embora quisesse dizer que era só um título, nada mais. - Têm uma casa muito acolhedora.
- Muito obrigada. O meu querido Olaf construiu esta casa quando Linnea ainda era um bebé e tínhamos acabado de chegar das terras da nossa familia no Oregon. Tivemos de percorrer um caminho muito longo até aqui, mas queríamos dar uma vida melhor à nossa filha.
Aquela pequena mulher estava tão cheia de amor que até irradiava como o próprio sol. Seth nunca tinha visto nada assim e ficou ofuscado.
- Pode pendurar o seu casaco aqui, junto à porta.
A senhora Holmstrom percoreu confiantemente a distância entre a sala de estar e a sala de jantar.
Seth pendurou o seu casaco no bengaleiro e reparou naquelas peças feitas à mão que transformavam aquela casa num lar. As mobílias eram velhas, mas brilhavam como se fossem novas.
Livros com páginas já amareladas com o tempo ocupavam as estantes que ladeavam a chaminé.
Os Holmstrom não tinham muita coisa, mas estimavam bem o que tinham e isso comoveu-o porque o fazia lembrar-se da casa que ele próprio tivera outrora, uma vida que nunca mais ia reaver.
Onde se esconderia Linnea numa casa tão pequena? Ou estaria lá fora a sonhar acordada pelas pradarias?
- Veio aumentar-nos a renda? - perguntou a senhora Holmstrom, preocupada, voltando-se para lhe dirigir o olhar com surpreendente precisão. Ou mandar-nos embora? Estou a perguntar porque não quero que Linnea ouça nenhuma destas surpresas, quando está tão feliz com as boas notícias.
- Não tenho intenções de fazer nada disso - Seth atravessou a sala e respirou fundo. Ainda trazia as camisas debaixo do braço. - Espero que queiram ficar. Serei eu o supervisor das vossas propriedades até que a minha irmã possa fazê-lo sozinha e se habitue a viver no rancho.
- Que homem tão horrível... abandoná-la assim, deixando-a quase na falência - a senhora Holmstrom voltou-se para a bancada e a tampa do bule soou contra a madeira. - Um homem horrível. Terrível.
Uma brisa fria veio da cozinha e Linnea apareceu à porta. A sua boca entreaberta e a dor que palpitava nos seus olhos encolheram-Lhe o coração. Vinha carregada de lenha e ele levantou-se para lha tirar dos braços.
Mas ela adivinhou a intenção e moveu-se rapidamente: fechou a porta com o pé e correu para o pequeno fogão que estava ao lado da mãe para descarregar a lenha.
- Mãe, não consinto que se pronuncie o nome desse homem nesta casa.
- Ninguém o pronunciou:
Seth viu a tristeza no rosto da idosa e a dor no da filha. Não sabia como aquela terra tinha acabado nas mãos da irmã, mas pelos vistos era um tema difícil e que Lhes causava mágoa.
- Não vim aqui para vos causar problemas.
- Não, claro que não - Linnea levantou-se, agora livre da carga, e voltou à porta das traseiras para tirar a capa. - Vejo que trouxe as camisas.
- Tal como combinámos.
De imediato, o embrulho pareceu-Lhe estranho e deixou-o na ponta de uma mesinha, por cima de um delicado tapete bordado.
Levantou os olhos e a presença de Linnea foi para ele como um murro no estômago. Ela tinha uma beleza serena, que não impressionava à primeira vista, mas que o deixou sem palavras naquele momento. Oxalá ninguém tivesse reparado mas parecia que não conseguia fazer chegar ar aos pulmões.
- Vamos dar-lhes uma vista de olhos – disse ela, aproximando-se, doce e tímida.
O seu cheiro a vento de Inverno e a lilases acelerou-lhe o coração. Não pôde deixar de reparar nos fios dourados que brilhavam no seu cabelo nem no movimento das saias, ou no sorriso tão feminino que alertou todos os seus sentidos.
Abriu o embrulho e estendeu no ar uma camisa de musselina azul. A sua pele arrepiou-se ao senti-la atrás de si e ao sentir as mãos dela a ajeitar a camisa contra os seus ombros.
- Posso soltar aqui as costuras para que seja mais confortável para trabalhar.
Falava como uma mulher prática e razoável uma mulhér conformada com o facto de ser solteira, uma mulher que não andava à procura de um homem. Isso ajudou-o a descontrair-se. O ar saiu-lhe dos pulmões e voltou a respirar normalmente.
- As mangas também estão curtas.
- Também posso arranjar isso.
Afastou-se, a olhar para o chão, gentil e reservada, e tão linda que até doía olhar para ela. Tinha a pele branca como as natas, o nariz delgado e as maçãs do rosto delicadas e salientes. Era incrível que não fosse casada.
Mas, quando a senhora Holmstrom levou o prato de bolo para a mesa, contando os passos desde a bancada, soube porquê.
- Mãe, deixa-me ajudar-te, por favor - disse Linnea, largando a camisa e correndo para a mãe.
- Não sou tão inútil que não consiga servir a um belo convidado uma fatia do meu bolo de amora - a mulher não parecia deixar o seu problema afectá-la e sorriu de um modo que fez briLhar a sua beleza oculta. - Venha, Major, sente-se e aproveite. Talvez o meu bolo consiga convencê- lo a arranjar aquela pequena goteira que está ao lado da chaminé.
- Corte-me duas fatias desse bolo e temos negócio fechado.
Aproximou-se da mesa e Linnea quase deixou cair os pratos ao vê-lo. Tinha-se aproximado dela com movimentos tão rápidos que a tinha deixado boquiaberta. Atrás de si, os raios de sol brincalhões brilhavam e desfaziam pedaços de neve, pelo que a sua silhueta estava envolvida numa aura que destacava a largura dos seus ombros poderosos.
Era um homem masculino sem ter de se esforçar por parecê-lo. Não era como nenhum outro que tivesse conhecido, honesto e firme, mas não presunçoso. Só de olhar para ele o seu coração batia mais depressa e sentiu-se imediatamente exaltada. Assim, dando a desculpa de ir buscar mais água, saiu da sala.
A mãe, que sabia que ela tinha acabado de trazer dois baldes, não disse nada, mas Linnea vestiu a capa e saiu para se afastar da vista dele antes que fizesse alguma figura ridícula.
Desceu as escadas e afundou-se na neve quase até aos joelhos. A tranquilidade da paisagem acalmou-a e esvaziou a mistura de atracção e saudade que lhe doía no peito como uma ferida. Não está interessado em ti; Linnea. Tinha passado dez anos com o peso de uma vergonha " tão grande que pensava que nenhum homem decente quereria sequer dirigir-lhe a palavra. Sonhos. Uma parte do seu coração sofria e tinha ambições, por isso perguntou-se como seria sentir-se amada por um homem como o Major Seth Gatlin. O seu afecto seria sereno e firme como ele. O seu sorriso seria todo para ela.
Ajoelhou-se na neve e encheu o balde nas profundidades da terra. Ouviu o eco distante da água a cair. A saudade rodeou-a como o vento e sentiu-a tão vasta como a pradaria.
Esperar amor com aquela idade? Onde tinha a cabeça? Estaria tão louca a ponto de ter sentimentos pelo irmão de Ginny Mclntyre, a esposa do homem que tinha destroçado todos os seus sonhos?
Olhou para a colina distante onde duas cruzes marcavam o lugar de duas sepulturas. Onde duas cruzes marcavam a perda de duas vidas. E muita vergonha.
Para ela, não podia haver amor, nem homem de ombros largos e sorriso calmo que pudesse saciar o desejo do seu coração.
Sê razoável, Linnea. Pensa em tudo o que tens". Era verdade. Ali, a vida com a mãe era maravilhosa. Acordava com o sussurro majestoso da pradaria. Ia para a cama, sabendo que o dia tinha sido repleto de amor.
Voltaria para casa, sentar-se-ia à mesa e comeria uma fatia de bolo com a mãe e o Major Gatlin, sem um único pensamento absurdo, sem mais parvoíces.
Ele era um vizinho, um cavalheiro e o seu senhorio. Ponto final.
Atirou a corda para o poço, fechou a tampa cuidadosamente e, quando se levantou, uma rajada de vento quase a atirou ao chão. O chinook. Demorou, mas tinha chegado ao fim. O longo e cru Inverno tinha terminado e as maravilhas da Primavera estavam prestes a chegar.
Seth sentou-se à cabeceira da mesa na cadeira de madeira trabalhada, que a senhora Holmstrom lhe tinha indicado.
Viu-a aproximar-se da bancada e trabalhar facilmente, deslizando as mãos pelas prateleiras do armário até achar os pratos de sobremesa. O chocalhar da porcelana penetrou os muros grossos que cercavam o seu coração. Talvez fosse do calor da lareira. Ou dos aromas tão femininos a sabão e flores.
Independentemente da razão, não lhe agradava porque lhe trazia, com uma força extrema, recordações de memórias enterradas há muito. Tentou
resistir, mas não conseguiu. Imagens de épocas mais felizes. O eco ténue dos risos das crianças. O aroma a bolo de maçã acabado de fazer.
E sol. Sempre o sol.
Não fazia sentido voltar a passar por tudo aquilo, disse para ele próprio, enquanto punha açúcar na chávena fumegante que a senhora Holmstrom acabara de colocar à sua frente. No passado apenas existia dor.
- Quer um pouco de leite com o café?
- Sim, obrigado.
A senhora Holmstrom colocou um delicado jarrinho ao lado da chávena.
O som da porcelana sobre a toalha de mesa voltou a arrancar parte da armadura que lhe protegia o coração.
A porta da cozinha voltou a abrir-se e um vento forte entrou na sala. Sentiu a presença de Linnea antes de pousar a colher e virar-se.
Quente como a Primavera, tão bem-vinda como o chinook. Levantou-se sem pensar. Tirou-lhe o balde de água da mão e roçou-lhe a mão na pele ao fazê-lo. Também não teve pressa em afastar-se.
Embora estivesse frio lá fora e a pele dela estivesse também fria, a sensação de tocar numa mulher era sempre a mesma: seda nova. Ouviu-a conter a respiração, o que revelou a surpresa que a sua acção tinha causado. Tinha o rosto suavemente oval, e os lábios rosados fizeram-no questionar se teriam um gosto tão doce como aparentavam, mas como era um homem sensato, voltou-se.
Lentamente, de propósito, deixou o balde de água junto ao fogão, junto a outro balde a transbordar. Para fazer bolos e lavar a louça era preciso muita água, disse para si próprio. Mas Linnea corou e isso fê-lo suspeitar que ela fugira da casa por causa dele.
Não era um homem que atraísse as mulheres. Sentia-se muito mais velho do que na verdade era e parecia. Uma mulher tão bela como Linnea Holmstrom não poderia interessar-se por um homem como ele, e não podia culpá-la por isso.
Ainda assim, não foi mais fácil voltar para a cadeira. A conversa vivaz da senhora Holmstrom e o seu requintado bolo não conseguiam apaziguar as memórias indesejadas. Memórias de outra cozinha com uma mulher de seda capaz de transformar uma cabana num lar com tapetes e bordados.
Foi preciso uma grande força de vontade para responder a todas as perguntas da senhora Holmstrom sobre a sua viagem de Fort Benton, enquanto a filha permanecia em silêncio a seu lado.
Comeu rapidamente, sem sequer saborear o delicioso bolo.
Por fim, após recusar o convite para repetir uma terceira fatia, levantou-se da mesa. Mas as lembranças permaneceram dentro dele como a neblina matinal.
Despediu-se delas, vestiu o casaco e saiu para as altas pradarias de Montana.
O chinook tinha afugentado o frio intenso com a sua doçura, e as estalactites que pendiam do teLheiro da casa pingavam, criando uma melodia alegre que para ele só serviu para cerrar os dentes e sentir a falta do frio.
Porque o seu sangue estava em ponto de ebulição. O passado continuava a ser um eco inexorável e a beleza serena de Linnea Holmstrom era uma imagem clara do que se recusava a desaparecer.
Não sabia dizer se era o passado ou o presente que o inquietavam mais, ou o facto de não poder voltar a percorrer aquele caminho:
O General saudou-o ao vê-lo entrar e levantou a cabeça por cima da porta do estábulo para Lhe pedir uma guloseima. Seth tirou um torrão de açúcar do bolso do casaco e deu-lho na palma da mão.
Quer dizer que te sentes atraído por essa mulher, não é, Gatlin? Sim. Era atracção... e luxúria. Algo que seguramente uma solteira como Linnea Holmstrom não apreciaria muito.
O General empurrou-o suavemente com o focinho e conseguiu preencher um pouco do vazio que sentia por dentro. Deu-lhe outro torrão e tirou o martelo da pequena caixa de ferramentas que trazia no trenó. Era melhor começar o trabalho.
Tal como lhe tinha dito a senhora Holmstrom, encontrou uma escada de madeira atrás do celeiro e colocou-a contra a parede da cabana. A velha escada não parecia digna de confiança, mas não cedeu sob o seu peso quando a testou, pelo que ignorou os seus ameaços ao subir por ela até ao telhado.
Sentiu-se melhor ao colocar os pés no telhado. O mundo parecia diferente visto dali de cima, distante dos problemas. O vento batia-lhe na cara e assobiava-lhe nos ouvidos. O sol que derretia a neve fazia-a brilhar como um diamante que fazia doer os olhos.
Então, um movimento chamou-lhe a atenção, e protegendo os olhos com a mão, semicerrou-os e olhou.
Sozinha, no pico distante de uma elevação no terreno, estava uma mulher de capa, as suas saias a voarem ao vento. Estava a contemplar as planícies intermináveis, e parecia tão perdida quanto ele.
" Linnea.
Não conseguia tirar os olhos dela. A sua saia colorida era como a Primavera a tocar o branco do Inverno. Custou-lhe imenso prestar atenção ao teLhado em vez de continuar a contemplar o horizonte como um jovem a perseguir um sonho.
A julgar pelo estado do telhado, ia ter de o substituir completamente no próximo Verão. Com o martelo pregou umas telhas que se tinham separado na base da chaminé. Que desastre.
Ginny não ia achar piada. Naquela manhã na cozinha ela fora apenas uma sombra, com medo de que ele não gostasse do pequeno-almoço consistente com ovos estrelados e porco fumado. Tinha de encontrar uma maneira de cuidar da irmã, de apagar as linhas que o tempo e o medo lhe tinham desenhado no rosto.
Sentiu a presença de Linnea antes de ouvir as suas botas na neve, mas fingiu não saber que estava ali. Na verdade, nunca tinha conseguido mentir, e além disso precisava de uns pregos, pelo que desceu com cuidado:
- Tenho de ir buscar as ferramentas. Diga à sua mãe que vou ter de martelar no telhado durante um bocado.
- Vai aumentar-nos a renda, não vai? É essa a verdadeira razão pela qual veio.
Linnea não era um ratinho assustado, mas também não era uma harpia. A expressão dos seus olhos. era demasiado adulta para a idade que real mente devia ter, e isso preocupava-o.
Uma mulher tão bela não devia sofrer assim. Não era difícil imaginar o peso que um aumento na renda constituiria. Tinha reparado nas mãos dela enquanto recolhia as chávenas e o resto do bolo: eram umas mãos calejadas pelo trabalho duro, vermelhas por causa do frio de Inverno. Mãos que tinham costurado a dúzia de camisas que ele tinha comprado naquela manhã para ajudar a sua velha mãe.
- Por favor, conte-me a verdade. Não podemos pagar mais de maneira alguma...
- Já lhe disse...
- Sei o que disse à minha mãe, mas sei o que quer Ginny. O que sempre quis: que saiamos daqui. Paguei cada um dos aumentos que a familia dela impôs.
- Não tenho intenções de vos aumentar a renda.
- Agora, não, mas e depois? Não posso trabalhar mais e tomar conta da minha mãe ao mesmo tempo. Se aceitasse um trabalho na cidade, ela teria de ficar sozinha o dia todo, e se mudássemos de casa, teria de deixar para trás a casa que o meu pai construiu para ela com as próprias mãos.
- Estou aqui para arranjar o telhado, não para vos expulsar de casa.
- Talvez Ginny tenha outros planos.
- Não se eu a puder impedir.
Não havia margem para erros na interpretação das palavras dele e na honra da sua voz. As preocupações de Linnea derreteram-se como a neve que pisava.
- Se não nos vai aumentar a renda, devo ajudá-lo.
E seguiu-o até ao celeiro.
- Sabe utilizar um martelo? Pensei que fosse costureira.
- Já utilizei um martelo umas quantas vezes quando foi preciso. Além disso, não quero ficar em dívida consigo, uma vez que não nos vai aumentar a renda.
Tinha deixado as suas ideias muito claras.
- Está bem. Pode passar-me as ferramentas quando precisar delas. Assim trabalharei mais rápido.
- Combinado, Major.
- Trata-me por Seth, só Seth. Posso tratá-la por Linnea?
Ela baixou o olhar e assentiu.
O vento batia-lhe nos cabelos negros, formando remoinhos, e ele não olhou para ela enquanto atravessavam juntos o jardim. Tratou-a como uma mulher para a qual não vale a pena olhar uma segunda vez.
Seth. Queria dizer o nome dele, sentir que a palavra se formava nos seus lábios. O que se passava com ela? Não conseguia controlar o seu lado sonhador.
- Tem cuidado. Esta escada é velha e treme muito - Seth olhou para ela a partir do alto. – A tua mãe nunca mais convidaria para comer bolo se eu te deixasse cair.
- Não vou cair. Já não sou a criança que ela pensa que eu sou, nem uma mulher indefesa como algumas que conheço - disse, com um certo orgulho.
Não tinha muitos motivos para se sentir orgulhosa, e não ia envergonhar se dos poucos que tinha. Tinha tomado bem conta da mãe, melhor do que muitas outras raparigas da sua idade o podiam ter feito.
Viu-o a apoiar a escada contra a parede, e não pôde deixar de reparar que as suas mãos pareciam muito fortes. Pára de olhar para ele", ordenou a si mesma, e começou a subir.
- Por que não contaste à tua mãe sobre o edredão?
- E por que é que achas que podes perguntar-me isso?
- Porque sou o teu senhorio.
- Tecnicamente, não; além disso, isso não te dá o direito de te intrometeres.
- Não, mas estou curioso - afirmou; e o seu olhar transmitia-lhe segurança. - Ela nem sequer sabe que o levaste para a cidade.
- Não quero que ela saiba, posso não conseguir vendê-lo.
- E por que razão não conseguirias vendê-lo? Linnea hesitou, e o sol brilhava tanto que a fez piscar os olhos várias vezes. Não podia contar- lhe a verdade.
- A modista pensa que consegue e espero sinceramente que ela não esteja enganada. O dinheiro extra dava-nos muito jeito. Oxalá pudesse dedicar-me a fazer edredões para ganhar a vida.
Seria maravilhoso.
- Não gostas de fazer camisas?
- Gosto de costurar, mas era bom poder mudar de vez em quando.
- Há quanto tempo fazes camisas para sustentar a tua mãe?
- Desde os dezasseis anos.
Através do olhar que ele lhe dirigiu, teve a impressão de que estava a ver demasiado. Baixou a cabeça e debateu-se com a vergonha habitual.
- E tu? Pensas voltar ao exército depois de teres ajudado Ginny?
- Não. Reformei-me. Essa parte da minha vida acabou para sempre. Quero ser fazendeiro: criar vacas, cavalos e cultivar milho.
Aqueles sonhos apagaram as rugas do rosto de Seth e fizeram-no parecer um homem à margem do mundo, forte e poderoso. E mais belo do que ela tinha direito a contemplar.
- Quer dizer que te vais embora?
- Sim. Quando a situação da minha irmã tiver melhorado. Suponho que não tardará muito. Depois das colheitas, talvez - pendurou a caixa das ferramentas na ponta das escadas. - Primeiro vou tirar esta neve do telhado e depois quero que me vás passando esses trapos que estão aí dentro.
Linnea procurou entre as ferramentas ásperas. encontrou umas tiras de musselina velha e passou-lhas.
Ocupado a tirar a neve da chaminé, ele não lhe estava a prestar atenção, mas ela não conseguia olhar para outro lado. Nem para as nuvens rápidas que brincavam às escondidas com o sol e o céu. Nem para os cães da pradaria que corriam sobre a neve. Nem sequer para a extensão do horizonte que tanto a fascinava.
A única coisa que via era a silhueta de Seth Gatlin recortada contra a luz do sol. Ele voltou-se e passou-lhe o trapo molhado.
- Tem de estar bem seco para podér aplicar o alcatrão - disse, apontando para a lata.
Ela destapou-a e passou-lha, e o cheiro a resina de pinheiro impregnou o ar. Vê-lo a trabalhar era como uma prenda. Tinha o sobrolho franzido devido à concentração e os lábios cerrados enquanto aplicava a resina entre as pedras e a madeira. vento sacudia-lhe o cabelo que espreitava por baixo do chapéu e, de repente, o Stetson voou por cima do telhado e caiu na neve.
- Vou buscá-lo!
Sem pensar duas vezes, desceu a escada com o vento a sacudir-Lhe as saias até deixar as suas pernas à mostra. Ainda bem que Seth estava no teLhado e não lá em baixo.
Com as faces escarlates e a agarrar as saias com a mão, foi a correr atrás do chapéu, mas não era nada fácil. As camadas inferiores da neve continuavam geladas, enquanto a superior còmeçava a derreter, pelo que correr era um caso escorregadio. Os seus pés insistiam em desaparecer na neve enquanto continuava a correr em direcção ao celeiro.
Quando estava prestes a apanhá-lo, o vento fê-lo voar novamente.
- Deixa, Linnea. Não vale a pena que torças o tornozelo por causa disso - disse à medida que descia a escada.
- Está quase, se não fosse este vento...
De novo, uma rajada levantou-o do chão quando estava quase a alcançá-lo. Não conseguiu evitar começar a rir, e continuou atrás dele.
Ouviu o barulho da água atrás dela. Seth ganhava terreno, correndo como um gamo, com mais força e agilidade que qualquer outro homem.
Nem sequer os cavalos selvagens tinham aquela flexibilidade.
Linnea saltou para capturar o chapéu rebelde mas o vento levou-o noutra direcção. Tentou parar, mas perdeu o controlo e escorregou.
- Eu vou lá. Não quero que te magoes.
- Não vou desistir agora.
Estava a rir-se e ele começou a rir também, um som de chocolate quente que afastou a solidão da planície e do seu coração.
Tropeçando, Linnea correu até ao trilho. Seth alcançou-a. Ele também se estava a rir, e isso atrasava-o.
O vento continuou a empurrar o chapéu pelo trilho abaixo.
Precisamente no caminho de um cavaleiro.
O cavalo relinchou em protesto, e o chapéu imobilizou-se perante os seus cascos. O cavaleiro escondido numa capa cujo capuz quase lhe cobria o rosto, franziu o sobrolho. Era Ginny Mclntyre.
O sorriso de Linnea desvaneceu, e o calor do seu coração apagou-se como o gelo repentino que se abate sobre a terra. A vergonha cobriu-a, uma vergonha para a qual não existia cura.
- Seth - disse Ginny asperamente. - Há um problema em casa e precisamos de ti imediatamente.
Linnea sentia a reprovação na voz da outra mulher, e, como uma nuvem perante o sol, sentiu-se pequena e sem valor. Era o que Lhe faltava. Que a vissem a correr e a rir com um homem, casado ou solteiro. As coscuvilhices que iam fazer por causa disso.
A felicidade deu lugar ao frio, e cravou o olhar no chão enquanto Seth recuperava o Stetson, parcialmente molhado e com uma aba dobrada.
- Já vou - respondeu Seth, contrariado, como se também ele tivesse notado que algo não estava bem. - Volta para casa, Ginny, que eu vou já a seguir. Tenho de pregar umas quantas telhas.
- Fico à tua espera - respondeu, olhando para Linnea com um brilho mordaz nos olhos.
Ela corou, e não Lhe ocorreu uma única coisa para dizer em sua defesa. De qualquer modo, de nada serviria, embora Seth não parecesse julgá-la, decerto porque ainda não sabia a verdade sobre ela. Quando soubesse, não voltaria a oferecer-lhe boleia para ir à cidade, nem voltaria a dirigir-Lhe aquele sorriso deslumbrante.
Então, fez a única coisa que podia fazer: voltou para casa. Escorregando várias vezes e desejando que a terra a engolisse, chegou finalmente ao alpendre e entrou.
Que diria Ginny sobre ela? Não era difícil imaginar.
- Linnea, és tu? O Major está a arranjar-nos o telhado.
- Tivemos sorte.
- Tens os pés molhados, filha - a mãe procurou uma chávena. - Anda, preparei o chá. Já sabia que te ias meter nas poças maiores. Vem, senta-te e aquece-te antes que apanhes uma grande constipação.
- Sim, mãe.
Linnea aceitou a chávena e sentou-se no chão ao pé da lareira; depois tirou as botas e deixou-as em cima das pedras da lareira para que secassem.
Os passos de Seth no telhado assustaram-na.
Sabia bem o que Ginny teria dito ao irmão. Como enfrentá-lo agora? Como devolver-lhe as camisas e pedir-lhe dinheiro pelos arranjos?
- Está tudo bem? - perguntou a mãe, sempre capaz de ver o que era importante.
- Sim, está tudo bem.
E estava. O seu lado sonhador podia não estar disposto a aceitá-lo, mas o seu lado responsável sim.
A mãe sentou-se na cadeira de baloiço ao pé da lareira e com as suas mãos habilidosas procurou a lã nova e as agulhas, e começou a tricotar.
- O Major Gatlin deve ser um homem bastante alto, mais do que o meu Olaf. Diz-me filha, ele é bonito?
Mãe... " Sabia perfeitamente onde ela queria chegar.
- Infelizmente o Major é um homem com pouca sorte.
- Como assim?
- Ele é muito feio. Tem a cara toda marcada pela varicela, um nariz enorme e uma pele amarelenta.
- Não posso acreditar. Que pena! Tem uma voz tão bonita.
- De certeza que é por isso que con aquela idade ainda não está casado.
- Que idade terá ele? - as suas mãos ficaram imóveis enquanto ouvia o martelar no telhado. Não pode ser muito mais velho que tu.
- Sei que pela voz parece novo, mas deve ter no mínimo mais quinze anos do que eu.
- Estás a mentir, menina - respondeu, e voltou ao trabalho com o ruído das agulhas a baterem uma na outra. - De qualquer forma, já respondeste à minha pergunta.
- Não exist nenhum homem para mim, mãe, e tu sabes disso. Nem sequer um homem como o Major.
Isso, sim, era verdade. Não fazia sentido negá-lo, nem deixar-se levar por fantasias estúpidas. Seth Gatlin jamais ia querer uma mulher como ela.
A ira silenciosa de Ginny era como uma camada de gelo que tinha coberto uma sala quente e aconchegante. Tinha tirado todo o sabor ao frango e aos vegetais que havia para o jantar. E naquele momento em que a escuridão da noite já tinha chegado e aquelas horas se estendiam perante ele
Seth disse para si próprio que não ia conseguir suportá-lo.
Fechou o livro e levou-o para a mesa da cozinha. O dia tinha sido muito longo, e talvez fosse melhor passar o resto dele sozinho.
As dobradiças da porta da sala chiaram e a luz de um candeeiro de luz fraca, para não gastar querosene, iluminou Ginny, que fechava a porta do quarto do filho.
- O uísque de Jimmy conúnua no fundo da dispensa, se é disso que estás à procura - disse, com extrema frieza.
Seth parou com a mão na maçaneta.
- Vou ver o meu cavalo. Quero ver se precisa de mais alguma coisa para passar a noite.
- entrou mais um pouco na sala, e o reflexo alaranjado das chamas iluminou-lhe as saias. - Posso aquecer um pouco de café para te
aqueceres quando voltares.
- Não é preciso - respondeu ao vestir o casaco.
- Achava que tínhamos chegado a um acordo quanto a isso. Não vim cá para seres minha criada. Aproveita para descansares um pouco à lareira antes de te ires deitar.
- Seth...
Ele continuava com a mão na maçaneta da porta. A noite chamava por ele, mas sentia a ansiedade de Ginny a segurá-lo como a mão de uma criança desesperada.
- Que foi?
- Sei que vieste para me ajudar, e não tenho mais ninguém. Os Mclntyre lavaram as mãos no que me diz respeito. Mas tenho de te dizer uma coisa, mesmo que depois decidas parár por causa disso.
Seth aproximou-se, resignado. Queria evitar discussões, mas, pelos vistos, não havia escapatória possível, de modo que quanto antes, melhor.
- Que queres dizer?
- Quero que te mantenhas afastado da casa dos Holmstrom.
- Suponho que te refiras a Linnea.
- Vi-vos a rirem juntos.
- Estávamos a perseguir o meu chapéu.
- Eu sei o que vi.
- Estás enganada - sentiu que o peso que carregava sobre os ombros duplicava. - Não me obrigues a falar nisso. Não quero voltar a esse assunto. O meu tempo para amar já passou.
- Não se estiveres à procura do consolo de uma mulher fora do casamento - Ginny levantou-se e o ódio distorceu-lhe as feições. - Sei como são os homens. Como touros no meio de um rebanho de vacas...
- Deixa isso, Ginny. Sei que o teu marido te abandonou e meteu outra mulher na cama dele, mas isso não é razão para descarregares a tua fúria em mim nem em qualquer outra pessoa.
- Mas Linnea...
- Linnea não te diz respeito, Ginny. Preocupa-te antes com o teu filho.
E saiu à rua para arrefecer a ira que ardia dentro dele como numa chaminé.
Compreendia a dor da irmã, e embora ele não tivesse sido abandonado, tinha perdido o amor da sua vida. Conhecia bem a dor no coração. Sabia como ele podia sangrar. Sabia como as coisas nunca mais voltariam a ser iguais.
Teria feito alguma figura ridícula com Linnea Holmstrom naquele dia? Talvez. Sentir o roçar das suas mãos, enquanto ela tirava a medida dos ombros para a camisa, e ouvir o seu riso tinham amenizado por um instante o Inverno que se tinha abatido sobre o seu coração.
O fresco da noite não era suficiente, e deu graças por estar escuro. Como podia olhar-se ao espelho? Um homem demasiado velho para uma mulher tão jovem, além disso, um homem cujo tempo para amar já tinha passado.
A luz da lua iluminava partes do caminho coberto de gelo que conduzia para lá do celeiro. O ar gélido queimava-lhe os pulmões e respirou fundo.
O frio invadiu-o, circulou pelas suas veias e preencheu-lhe o coração.
Esperou perto de uma pequena colina, contemplando a vasta pradaria que se estendia num negro azulado até ao horizonte, e permaneceu ali até à última das suas lembranças se desvanecer. Até que restou apenas o barulho do vento e o ritmo da própria respiração.
Linnea experimentou uma agradável sensação de liberdade ao sair naquela manhã. A neve tinha voltado a gelar durante a noite e estava dura e estaladiça por baixo dos seus pés, mas em breve desapareceria por completo. As pradarias brilhavam com o primeiro alvor da Primavera.
O canto ligeiro da cotovia preenchia o ar e deu-lhe algo em que pensar para além das camisas prontas que levava nas mãos e no seu dono.
Ao atravessar a primeira subida do caminho viu-o à alegre luz do sol. Estava a arranjar a vedação, o chapéu para trás despreocupadamente, a cabeça inclinada para o trabalho.
Aproxima-te dele e dá-lhe as camisas"; raciocinou. Não fales com ele. Não fiques lá. Não comeces a sonhar.
Parecia tudo muito simples até que alcançou a sua sombra e olhou para ele. Soube imediatamente que ele tinha notado a sua presença. O ritmo do martelo aumentou para logo a seguir abrandar até que ele pousou a ferramenta no chão e se voltou para ela.
- Não me digas que já acabaste as camisas?
- Já passou uma semana, e não havia assim tanto para arranjar. Vou deixá-las aqui, no banco da carroça.
Dá-lhe as camisas e vai-te embora, : Ignorou o desejo de olhar para o rosto dele por baixo da sombra do chapéu, embora sentisse o olhar dele como uma labareda de fogo nas costas. O garanhão que estava a pastar ali perto levantou a cabeça e deixou que o vento sacudisse a sua crina brilhante como que à procura de um elogio. Resistiu ao desejo de o acariciar, sabendo que a razão principal para o fazer seria para poder ficar ali um pouco mais, perto de Seth.
Deixou o embrulho no banco da carroça e recuou.
- Estás a pensar fugir sem eu te pagar?
- Estás ocupado. Pagas- me mais tarde.
- Ao menos diz quanto te devo.
Já tinha tirado a carteira e estava com duas notas nas mãos.
- Antes cobrava vinte e cinco centavos por cada camisa.
- Antes?
- Antes da senhora Jance abrir a loja. Não sei quanto vou cobrar agora por este tipo de trabalho.
- Cinquenta centavos parece-me um preço justo - disse, e contou três dólares.
Linnea pôs-se em bicos dos pés para tirar as notas da mão de Seth. Estava suja de terra e com pequenas feridas nos dedos.
Pára de olhar para ele, repreendeu-se, e guardou as notas no bolso da saia.
- Olha! - exclamou ele de repente por algo que devia ter visto à distância.
- Os Mustang! - respondeu ela ao ouvir o galope. - Não acredito que ainda estejám aqui.
- Para onde vão no Verão?
- Para as montanhas.
Pôs-se em bicos dos pés para tentar ver a manada, mas continuavam longe do alcance da sua vista.
- Sobe - disse ele, subindo a vedação e estendendo-Lhe a mão a ela, Linnea Holmstrom. - Da qui consegues vê-los.
À luz do dia, conseguia ver que ela não era nem bonita, nem jovem. E depois de tudo o que a irmã lhe devia ter contado. Continuava a estender-lhe a mão de um modo que a fez sentir- se mulher, como nunca se tinha sentido antes.
Como podia resistir?
Agarrou-se às tábuas da vedação e subiu para conseguir ver para lá da elevação no terreno. Estavam ali Os cavalos selvagens. pareciam planar sobre a neve, as crinas a voar ao vento. O bater dos cascos ribombava como música de tambores na terra.
Sem pensar, agarrou-se ao braço de Seth. O calor queimou-lhe a mão, e uma sensação estranha agitou-se no seu estômago, um desejo tão real que a fez perder o equilíbrio, e ele teve de a agarrar.
Que bonito, Linnea". Se continuasse assim Seth ia reparar que ela sentia qualquer coisa por ele. Tinha prometido a si mesma controlar as emoções, mas era impossível deixar de ter desejos. Estar ao lado dele e sentir o seu aroma fazia-a sentir-se vulnerável.
Demasiado vulnerável.
"Pensa só nos Mustang", ordenou a si mesma.
Eram quase tão magníficos como o próprio Seth.
Aproximavam-se a galopar e conseguia distingui-los um a um. Pareciam criaturas aladas, os seus músculos brilhavam com o suor à medida que se dirigiam para sul, em direcção a eles.
- Vêm para cá! - exclamou. Não conseguia conter o entusiasmo.
Mas Seth não parecia partilhá-lo.
- Tiros. Ouve.
Uma explosão uniu-se à música do galope e os animais mudaram de direcção. O garanhão levantou a cabeça para morder em várias fêmeas e obrigá-las a correr mais depressa. O vento trazia o medo dos Mustang até eles.
- Aqueles são os campos dos Neilson.
- Oxalá tivesse aqui a minha Winchester. De certeza que apenas os quer assustar.
- Têm muita fome nesta altura do ano. Os Mustang desapareceram de vista com um homem a persegui-los a cavalo. Ouviram o estrondo de um tiro de repetição e o grito frenético do garanhão.
- Algo se passa - Seth saltou da vedação a toda a velocidade. - Fica aqui!
Nem sonhes. Linnea saltou a vedação e começou a correr. Ele levava já vários metros de avanço e corria até à cerca que separava a propriedade dos McIntyre da dos Neilson.
Ouviu-se o relinchar de um cavalo para além do galope dos outros junto com o praguejar de um homem. Será que o Neilson tinha disparado contra os Mustang? Como é que alguém podia fazer mal a criaturas tão belas? A raiva fê-la recuperar a velocidade, mas Seth já saltava por cima da vedação e desaparecia de vista.
De repente, uma fêmea dourada saltou por cima dos postes. Uma segunda e uma terceira fizeram o mesmo, tinham os olhos esbugalhados e debruados a branco com o medo, as suas belas crinas despenteadas. Ao vê-la, mudaram rapidamente de direcção.
Dezenas de éguas, com os ventres volumosos com a gravidez, voaram por cima dos postes da vedação. Linnea sentiu o calor que emanavam dos corpos e o solo por baixo dela tremeu antes da melodia do galope se afastar e desaparecer por completo.
Mas as vozes zangadas dos homens continuaram. Trepou a meio da vedação e viu Seth num pequeno buraco a agarrar uma égua no chão exercendo todo o seu peso sobre o pescoço do animal. O sangue tingia o seu pêlo com linhas vermelhas.
- Linnea - chamou-a Seth sem deixar de prestar atenção ao animal. - Corre até ao meu celeiro!
Preciso das tenazes que estão na estante da esquerda e todas as cordas que consigas encontrar!
Vai depressa!
- Esta besta malvada partiu-me o arame farpado que pus há pouco tempo - queixou-se o senhor Neilson quando Linnea já tinha saltado para o chão e começava a correr a toda a velocidade.
- Calma, rapariga - sussurrava Seth para a égua amedrontada. - Já te soltamos. Calma, linda.
Mas era como pedir a um furacão que se transformasse numa brisa suave. Os músculos poderosos do animal agitaram-se, e embora ele a mantivesse com a cabeça para trás e contra o chão, para que ela não se conseguisse levantar, teve de se sentar em cima dela para que não fugisse. Os dois suavam dos pés à cabeça. Neilson não ajudava.
- Sabe quanto me custou montar esse arame farpado novo? Foi uma fortuna, maldita seja! Mas achei que valia a pena para manter estas malditas bestas fora da minha propriedade. Foi isso que o vendedor me disse. Que os cavalos não se chegavam perto dela. Bem se vê.
- Pois enganaram-no, Neilson. Os cavalos não conseguem evitar o que não vêem. Vai ter o mesmo problema quando trouxer o seu gado. Tente pendurar bocados de tecido vermelho de tantos em tantos metros.
- Agora é que me avisa.
A égua tentou soltar-se, esperneando com toda a força. Seth conteve um palavrão e falou-lhe com meiguice. O animal não deixou de se debater, atenorizado, esperando uma nova oportunidade para tentar escapar.
- Talvez consiga qualquer coisa por ela no mercado - murmurou Neilson, sem se importàr com o facto de a sua voz poder assustar mais o animal. - Posso vender a carne.
Seth aproveitou a calma momentânea para fixar as mãos nela, antes que a luta voltasse a começar. Com o arame enrolado à volta da pata traseira como estava, ficaria coxa para sempre e aquele belo animal não merecia isso.
- Neilson - murmurou entre dentes. - Só vou dizer isto uma vez: até lhe arranjo a maldita vedação, mas este animal é meu.
- Está nas minhas terras:
- Azar. E faça o favor de se ir embora antes que me chateie a sério.
O homem rosnou qualquer coisa entre dentes e Seth sentiu que a égua estava a perder forças.
Estava a sangrar demasiado.
- Linnea! - chamou-a ao ver aparecer a sua capa cinzenta por cima da vedação.
Saltou com a capa a pender dos ombros e os seus caracóis louros desfeitos. Tinha a bainha da saia toda molhada e cheia de lama, mas nunca uma mulher lhe tinha parecido tão bela.
Parou de correr e levantou a saia para não assustar a égua. A preocupação fazia-lhe rugas na testa quando se agachou junto a ele.
- Toma - tirou as tenazes do bolso da capa. Queres que a agarre?
- Não - a égua mexeu-se e Seth precisou de toda a concentração para não permitir que se levantasse. - Tens de cortar os arames. Não faças movimentos bruscos, mas tens de trabalhar depressa. Não vou conseguir agarrá-la por muito mais tempo. Está a ficar cansada, e eu também.
Linnea agiu como o sol da manhã: suavemente mas com firmeza. Com os dentes, tirou as luvas e o contacto das suas mãos pareceu acalmar a égua enquanto tirava o pedaço de arame enrolado à volta da pata traseira. Cortou-o com a tenaz, e o arame soltou-se com um barulho metálico. Neilson recomeçou a protestar por causa do preço da vedação.
A égua, sentindo-se quase livre daquele doloroso arame, esperneou e virou-se com todas as forças, tentando levantar a cabeça. Seth apertou-a contra o chão com toda a sua força, sofrendo ao ver a orla branca de medo nos olhos da égua. O suor cobria-os a ambos.
- Calma, rapariga. Não te vamos fazer mal.
- Já cortei tudo o que vi.
- Agora tens de fazer uma peia com essa corda. Já fizeste alguma vez?
- Não, mas sei bordar, e para isso tenho de fazer muitos nós. Explica-me como se faz.
Seth foi-lhe explicando e ela ajoelhou-se na lama para prender as patas traseiras da égua. Trabalhou rápida e habilmente, falando com mei guice para não assustar ainda mais o animal. O seu cabelo brilhava como o ouro, e os seus olhos de um azul violáceo irradiavam compaixão.
Talvez fosse por causa do cuidado que mostrou ao rasgar uma tira de algodão do seu saiote para tapar a ferida da égua. Ou talvez fosse só da pena que ele sentia daquele belo animal ferido.
Fosse porque fosse, começou a doer-lhe o coração, como se também ele estivesse preso num arame farpado. Uma dor que provinha de um sentimento que ele não sentia há muito tempo.
Linnea sentiu o estômago a contrair-se ao ver o pobre animal a coxear. A terra tinha sido lavrada há pouco tempo, de modo que devia ser mais fácil
caminhar. Mesmo assim, a ligadura estava já a começar a ficar manchada e a pingar.
- Está a sangrar muito.
- Se a conseguisse levar para o estábulo sem deslocar um ombro, poderia solucioná-lo – Seth agarrou a cabeça da égua e tentou baixá-la. Os músculos dos braços e do pescoço retesaram-se com o esforço. - Continua a querer debater-se muito.
- Não a podemos censurar. A família anda a galopar livremente por aí e ela é nossa prisioneira.
- Exactamente.
- Vais ter de a abater?
- Só se não o puder evitar. A ferida é profunda mas é um animal muito forte.
- Ainda bem.
É um animal sortudo, por ter ficado enleado no arame farpado quando Seth andava por perto.
Sabia lidar com ela muito bem. Com mão forte e firme, mas respeitosa ao mesmo tempo. Mais admiração ardeu no peito de Linnea.
- Não a vamos levar para o teu celeiro?
- Não, podemos levá-la para o teu? Vai precisar de cuidados e não a queria levar para casa.
Ginny já está bastante chateada comigo.
- Por minha causa?
- Bem, descobriu aquilo da costura. Não achou muita piada, mas esse não é o verdadeiro motivo; é porque o marido a abandonou. E porque se viu obrigada a depender de mim.
- Não me admiro - brincou.
Ele sorriu.
- Não sou um irmão perfeito, mas faço tudo o que posso.
Que sorte tinha Ginny.
Seth foi abrir o portão da propriedade, mas Linnea adiantou-se.
- Vais precisar de ambas as mãos para a agarrar.
- Está a começar a cansar-se: Repara: Gosta do som da tua voz. Não pára de olhar para ti.
- Está é demasiado cansada para tentar fugir.
- Acho que está a tentar descobrir qual de nós dois a vai ajudar. Acho que não vai tentar saltar, se te aproximares.
- Se lhe tentar tocar, queres dizer?
- Sim. Ela tem de sentir que só a queres ajudar.
- E como faço isso?
- És uma mulher muito doce, Linnea. Esta égua é um animal selvagem, mas tem coração. Além disso, está habituada a viver numa manada e a ter alguém perto dela em quem confiar.
- Outros cavalos.
- Sim, mas contentar-se-á com outra pessoa que mereça essa mesma confiança. Acredita em mim: aproxima-te dela.
Aquele animal era grande como o sol e Linnea entrou na sua sombra. Que beleza de égua: Um animal selvagem e cheio de força que voltou li geiramente a cabeça para olhar para ela e nos seus olhos cor de chocolate conseguiu ver o seu medo. E o seu sofrimento.
Seth tinha razão, por isso, confiando nas suas palavras, levou, lentamente, uma mão ao focinho da égua.
Os seus olhos esbugalharam, colou as orelhas ao crânio, ficou alerta, mas não tentou fugir. Linnea voltou a acariciá-la. Era tão suave. Parecia veludo aquecido ao sol. Era o mesmo que tocar no céu. Aquela criatura, que viajava livre em direcção ao horizonte, conhecia essa mesma liberdade como o próprio vento.
- Linnea, és tu, filha? Chegas tarde para o almoço - disse a mãe, que acabava de sair ao alpendre. - Estava a começar a ficar preocupada. O Major vem contigo? O cavalo dele vem a coxear?
- Não é o meu, senhora. É um Mustang que se enleou no arame farpado do Neilson.
- Arame farpado? Esse Neilson nunca teve um pingo de senso comum. Temos espaço de sobra no celeiro.
- Mãe, não devias vir à rua com este vento, sobretudo sem vires agasalhada - Linnea afastou-se da égua e de Seth, sentindo o olhar dele atrás de si, e subiu ao alpendre a correr. - Entra, que vou pôr a sopa a aquecer.
- A aquecer? Já tenho tudo pronto. Só falta pôr mais um prato na mesa para que o Major nos faça companhia.
- Ele vai ficar um pouco com a égua - disse, olhando-o através da janela. Estava já a conduzir a égua para o celeiro. Parecia tão forte, e tão delicado. Era incrível que um homem pudesse ser ambas as coisas ao mesmo tempo... A sua pulsação acelerou.
- Então metemos o almoço dele numa bandeja e vais lá levá-la - a mãe apressou-se a tratar de tudo. - Ainda bem que ontem fizemos dois tabu leiros de biscoitos de canela.
Linnea deu uma vista de olhos à sopa. A fogueira estava acesa, o pão cortado e a mesa posta. Devia ter sido ela a fazer tudo aquilo.
- Mãe, isto é demais.
- Não sou inválida, filha. O Major gosta de café, não é verdade? Vou pôr a cafeteira ao lume enquanto tu vais ver se ele precisa de ajuda com aquele pobre animal.
Por que parecia a mãe tão feliz? Uma luz diferente parecia brilhar- lhe nos olhos. Estava a sorrir?
- Seth só vai passar o Verão aqui - disse, decidida a não alimentar as esperanças da mãe. Achei que devias saber.
- A sério? Onde está a faca? - perguntou, remexendo a gaveta. - Está aqui. Eu não deixo a comida arrefecer. Cuidar de um animal ferido leva o seu tempo. Quando tu e o Major tiverem terminado, terei mais pão cortado e o café pronto.
A mãe deu a volta e começou a cortar o pão.
Está a tentar juntar-me com o Seth". Aperceber-se disso foi como se uma bola de neve lhe tivesse acertado na testa. Onde tinha a mãe a ca beça? Como podia pensar que Seth a fosse aceitar?
Coitada da mãe. Sempre a querer o melhor para a filha. Não compreendia a situação. Linnea pôs panos limpos numa cesta, tirou uma lata de unguento da dispensa e levou um biberão com água fervida.
- Se tiveres fome, vai comendo, mãe. Eu não demoro.
- Não tenhas pressa. O Major vai precisar da tua ajuda.
Para já, a mãe estava com uma alegria suspeita.
Seth estava a tirar dois baldes de água do poço quando ela saiu.
- A primeira coisa que vou fazer quando terminar de lavrar os campos é construir aqui um moinho de vento.
- Para bombear a água? A sério?
- Claro. Que quantidade de água tiras por dia?
- Uns cinquenta galões.
- Pois já são mais do que horas de isso mudar disse, como o faria um amigo preocupado com o seu bem-estar. - A égua já está amarrada numa das cavalariças. Tem medo do celeiro, porque está habituada a poder cheirar o ar e a olhar em todas as direcções para poder detectar o perigo.
Mexe-te lentamente e fala com ela, para que saiba que não lhe queres fazer mal. Entra, que eu vou a seguir.
- Vim preparada - disse, mostrando-lhe a cesta.
- Boa. A tua ajuda vem mesmo a calhar - o seu sorriso era o de um amigo, não o de um homem que pretendia conquistar uma mulher, mas foi um sorriso que a fez sentir-se menos só.
A mãe é que ia ficar desiludida, pensou ao encaminhar-se para o celeiro.
A vaca cumprimentou-a com um mugido assim que entrou, e a seguir levantou a cabeça por cima da porta da cavalariça para lhe lamber a manga e olhar para ela com aqueles olhos meigos, e Linnea não resistiu a fazer-lhe umas caretas.
Pelo canto do olho viu a Mustang que as estava a observar, a respiração alterada, as orelhas para trás.
- Não dizes nada porque estás zangada; não é, linda? - Linnea aproximou-se lentamente da cavalariça seguinte, pousando primeiro a cesta e o biberão para não assustar a égua. - Estás a sangrar, mas Seth já vai tratar disso.
A égua não se mexeu. Seth tinha-a amarrado e estava bem presa à parede com o laço improvisado para que não pudesse magoar ninguém ou magoar-se a si própria. O sangue escorria-lhe pelo dorso e pela pata traseira. Tinha a pata no ar e o sangue já tinha formado uma pequena poça no chão.
A sombra de Seth surgiu à porta e a presença dele disparou-lhe a pulsação. Linnea manteve o olhar baixo, mas observava-o pelo canto do olho.
Tinha as mangas arregaçadas até aos cotovelos. A pele estava bronzeada pelo sol e os braços cobertos com uma pelugem suave. Os músculos estavam desenvolvidos por carregar com aparente facilidade aqueles baldes de dez litros.
- Como está a nossa menina?
- Tem mais feridas do que eu pensava.
- Temos de ver se são profundas.
Esvaziou um dos baldes no pequeno bebedouro.
A égua sobressaltou-se mas as cordas contiveram o seu movimento.
Seth olhou para ela depois de esvaziar o segundo balde.
- Achas que a consegues agarrar?
- Vou tentar.
- Ainda bem.
Seth aproximou-se dela, tão perto que ela se arrepiou como se ele lhe tivesse tocado. Abriu a porta.
Um passo aproximou-os tanto que ela mal conseguia respirar. Era muito mais alto do que ela, e sentia o calor que o corpo dele emanava. Não se conseguia mexer, o que era absurdo, uma vez que
conseguia respirar e pestanejar. Devia afastar-se. Estava demasiado perto daquele homem.
Seth aproximou a mão do rosto dela, e, com a luva calçada, acariciou-a. Linnea já não queria sa ber o que estava certo ou errado. A mão esquerda dele roçou-lhe o rosto e ela fechou os olhos enquanto a mulher que estava dentro de si ganhou vida como se tivesse acordado depois de um longo estado de letargia. Como as flores recém nascidas perante o sol da Primavera, sentiu que o seu coração se abria.
- Devias usar o cabelo solto mais vezes - disse ele. - Nunca tinha visto um cabelo tão bonito. - O seu coração deixou de bater. Os seus pulmões deixaram de respirar. Todo o seu interior permaneceu em silêncio.
Não estava a ser sincero. Simplesmente queria ser amável. Não podia levar a sério aquelas palavras. Era mais provável que todas as estrelas caíssem do céu do que Seth Gatlin se apaixonasse por ela, uma mulher vulgar e suficientemente madura para saber o que era impossível.
- Limpei tudo o que consegui - não gostava do aspecto daquele corte, mas já tinha visto piores. Linnea, fazes-me o favor de soltar a corda que lhe amarra a cabeça aos joelhos?
- Vai poder voltar a correr? - perguntou, olhando-o nos olhos.
Na profundidade do azul, Seth leu o seu receio pelo cavalo, e gostou do modo como ela acariciou o pescoço da égua. Gostou muito.
O Mustang relinchou, as orelhas ainda para trás, mas não Lhe tentou morder. Linnea não parecia assustada, mas sim maravilhada, e a sua ternura comovia.
- É maravilhosa - sussurrou ela, como se estivesse a ver brilhar perante si uma estrela caída do céu. - Gosto do pêlo dela. É dourada como o sol da manhã sobre a pradaria e as suas crinas são da cor da lua.
- Chama-se Palomino - respondeu, e decidiu não ligar as feridas. - Deve ter cerca de dez anos, e falta-Lhe mais ou menos um mês para parir.
- Não respondeste à a minha pergunta.
- Não - Seth não a queria enganar - Acho que a julgar pela ferida, podemos ter esperanças.
- Ainda bem.
Viu que as rugas na testa de Linnea se alisavam por baixo da espessura dos seus cabelos revoltos pelo vento, uns fios dourados que emolduravam o seu rosto oval e nos quais desejava tocar, porque sabia que eram tão suaves como pareciam.
Estava louco. Como é que um omem da idade dele podia estar a sonhar com uma mulher tão jovem e bela, que podia ter os homens que quisesse?
Seth fechou a porta da cavalariça e trancou-a firmemente.
- É melhor deixá-la em paz durante um bocado para ela descansar. Essa é a melhor maneira de a curar.
- Deixamos-lhe comida?
- Não. Eu volto mais tarde, quando estiver mais calma - meteu o unguento da senhora Holmstrom na cesta de Linnea. - Tenho de ir à cidade para comprar um rolo de arame farpado antes que a loja feche, ou o Lars Neilson começará a pedir a minha cabeça.
- Ele pôs aquele arame de propósito.
A raiva tingia as suas faces de escarlate. Era uma mulher lutadora e terna ao mesmo tempo, e ele gostava mesmo dela.
- Claro. Mas não penses que era o pior que podia fazer, porque podia ter disparado directamente para os outros cavalos, em vez de disparar para o ar, para os assustar. Há muitos fazendeiros que o fazem. Mas creio que pensou que umas quantas feridas ensinariam a manada a manter-se afastada do feno dele.
- Vais dar-lhe razão?
- Não. Só estou a dizer que esta égua teve sorte em não ser abatida. Não gosto que façam mal aos animais. Eu nunca o fiz, nem nunca farei.
- Ah, bom. Achei que ia ter de usar a força para te fazer entender - brincou.
- Sim? - sorriu. - Tu e mais quantos?
- Sou mais forte do que pareço.
- Tenho a certeza, porque, se andas a carregar baldes de dez litros para trás e para a frente, deves ter uns bons músculos.
Aquela mulher fazia-o sorrir, e decidiu sair daquela escuridão para a segurança da luz do sol.
- Bem. agora já tens um cavalo.
- Foste tu que a salvaste - respondeu Linnea, caminhando atrás dele. Os seus passos eram meros sussurros sobre aquele chão de terra. - Devias ficar com ela assim que estiver curada.
- Eu vou partir brevemente, e que faria com ela depois? A ti é que te dava jeito um cavalo.
- Eu seria incapaz de a domar, de acalmar o seu espírito.
As suas palavras continham tudo o que significaria para a égua carregar uma sela, e sentiu uma dor no peito como se o gelo, que durante tanto tempo lhe tinha protegido o coração, começasse a estalar.
- Toma - disse, devolvendo-lhe a cesta. A bainha do saiote dela espreitou brevemente e ele afastou o olhar. Era melhor assim.
Mas o que não conseguia afastar era a presença dela e o efeito que causava nos seus sentidos. O cheiro a lilases provocava-lhe calafrios. Até o som da sua respiração. Ouviu-a dar um passo atrás e teve a mesma reacção do que se ela lhe tivesse tocado na nuca.
O que estava a acontecer com ele? Por que reagia assim perante Linnea Holmstrom? Nenhuma outra mulher tinha voltado a afectá-lo daquela maneira depois da sua esposa.
Uma rajada de vento tirou-lhe a porta do celeiro da mão e mandou-a contra a parede. Virou-se e viu-a, de pé no meio do caminho, rodeada de erva recém-nascida. O vento revolvia-lhe as saias e emaranhava-lhe o cabelo.
Parecia tão inocente como o amanhecer e tão tentadora como o sol, e não conseguiu evitar desejar o calor das suas carícias. Já estava a passar frio há muito tempo...
- Voltarei para dar de comer e beber à égua.
Não precisas de te preocupar - resistiu à necessidade imperiosa de afundar os dedos no cabelo dela. Era um homem com necessidades, claro mas não podia render-se assim.
- Agradece à tua mãe em meu nome. O unguento dela vai evitar que a ferida infecte.
- Eu dou-lhe o recado - respondeu, e continuou a olhá-lo com aqueles olhos luminosos de um azul violáceo, demasiado grandes para a sua cara pálida.
Tinha a capa suja, o vestido enrolado, os sapatos cheios de lama e o penteado quase desfeito mas naquele momento, sozinha ao vento da pradaria, era a mulher mais bela que alguma vez tinha visto.
- Ouvi-vos a falar - disse a senhora Holmstrom, aparecendo no alpendre e cobrindo os seus ombros com o xaile. - Espero que tenha fome, Major. A sopa e as sandes estão prontas. Entre.
Era óbvio que a mulher estava encantada por poder fazer de anfitriã, mas ele sentia o peito tenso com emoções que não queria analisar, e sa bia que nunca iria ser capaz de esquecer o que Lhe fazia doer o coração se se sentasse naquela cozinha. Ver tudo o que outrora tivera: uma casa acolhedora, o toque de uma mulher, a sua presença calorosa... apenas serviria para tornar a solidão insuportável.
- Obrigado, senhora, mas tenho de ir. Agradeço muito o convite, e espero não lhe ter causado muito incómodo.
- Da próxima vez utilizarei todas as minhas armas para o convencer a ficar cá para a refeição. Dar-lhe-ei as boas-vindas com um prato de bis coitos de canela, para ver se é capaz de recusar.
- Se me receber assim, não se vai conseguir livrar de mim nem com água quente - brincou, e foi recompensado com o sorriso dela, mais belo devido a todos os anos em que o tinha treinado.
- Obrigada.
Linnea tocou-lhe na manga e a sua beleza foi quase insuportável. Aquela mulher era tudo o que lhe faltava na vida.
Meteu-se a caminho e afastou-se o mais rapidamente possível, sentindo o olhar de Linnea atrás de si, ou talvez fosse a solidão, que lhe doía mais a cada passo que dava.
- O Major disse que voltava? - perguntou a mãe sobre o ruído das agulhas de tricotar. - Não o ouvi.
Linnea levantou o olhar da sua costura.
- Deve ter vindo dar de comer e beber à égua quando saímos para passear.
- Que pena. Queria voltar a agradecer-lhe. As reparações que fez no telhado foram muito boas. Está a chover e não pinga nem uma gota. Foi uma
bênção que ele tenha vindo tratar de tudo - a mãe inclinou a cabeça para ouvir as badaladas do relógio. - Já são horas de uma velha como eu ir para a cama. Não, não preciso de ajuda. Deixa-te estar e trata da tua costura.
- É só um edredão de retalhos, mãe - dissesse o que dissesse, a mãe precisava de ajuda, pelo que
Linnea pôs de lado o que estava a fazer e levantou-se. - Espera, que vou buscar a tua camisa de
dormir. Quero que a vistas aqui, em frente à lareira.
- Mimas-me demasiado, filha, quando devias estar a tomar conta dos teus próprios filhos. - Sou feliz aqui contigo, mãe.
Entrou no quarto às escuras e apalpou até achar a camisa de flanela. O quarto parecia estar hú mido depois da chuva da tarde, pelo que foi à cozinha buscar o aquecedor.
- Hoje passaste muito tempo com o Major - disse a mãe, parando de tricotar.
- Precisava de ajuda com a égua - Linnea deixou o aquecedor nas pedras quentes da lareira e respondeu à mãe com cuidado para que os sentimentos não transparecessem na voz. - A égua estava a dormir quando fui ordenhar a vaca.
- Está calma?
- Não diria isso. Está com muito medo, mas as feridas doem-lhe demasiado para poder fazer seja o que for. Já comeu um pouco dos cereais que lhe dei. Quem consegue resistir às bolachas de melaço?
- Essa égua é uma menina esperta. Não sei se o Major gostaria dessas bolachas.
- Mãe... - Linnea começou a desabotoar-lhe o vestido. - Prometeste- me que ias parar. Fazes com que Seth se sinta desconfortável.
- Só o convidei para almoçar connosco.
- Sim, mas foi do modo como o disseste. Como se estivesses pronta a começar os preparativos para o casamento.
- Não fiz nada disso. Tu é que és uma exagerada.
- Saiu daqui quase a correr - tinha desabotoado os botões e pegou na mão da mãe. - Levanta-te para eu te tirar o vestido.
- Sei despir-me sozinha e sabes bem disso, mas agarras-te a mim quando na realidade devias estar a viver a tua própria vida. E um homem como o Major podia dar-te essa vida.
- Eu sei, mãe.
Tentou que a voz não lhe tremesse, mas não conseguiu. Nunca tinha sido capaz de enganar a mãe.
Era tão teimosa! Estava convencida em acreditar no impossível, em apagar o passado e começar de novo. Como se isso fosse possível.
Assim que meteu a mãe na cama, decidiu aproveitar o silêncio. Já bastava de perguntas sobre o Major. Nada de ilusões secretas com o casamento de uma filha.
Agora faltava apenas controlar as próprias ilusões. A sala parecia-lhe deveras vazia naquela noite. Uma única luz brilhava na mesa redonda que havia junto à cadeira de baloiço, iluminando tenuemente a sala. A sua sombra projectava-se no tapete que mostrava um espaço vazio onde não havia brinquedos de criança depois de um dia de brincadeira, e nos móveis que um marido não usaria.
O fogo da lareira acrescentava um esplendor alaranjado quando começou com as tarefas da noite: alimentar o fogo da cozinha e encher o depósito de água para se lavar de manhã. A seguir vestiu o velho impermeável do pai para sair e ir buscar lenha ao bosque para que secasse um pouco.
A chuva continuava a cair, empurrada pelo vento, e a noite pareceu-Lhe um lugar triste e solitário, como se o mundo inteiro estivesse a chorar.
Os pingos formavam lágrimas que Lhe escorregavam pelo rosto quando saiu do alpendre e pisou
uma poça de lama ao pé das escadas. O vento arrefeceu e ela apertou bem o capuz do impermeável.
Apressou-se a sair com o vento a bater-lhe na roupa e a lama a tentar roubar-lhe os sapatos. Não havia nenhum Mustang para perseguir naquela noite de tempestade. E a égua? Estaria a escutar os sons da noite, talvez à espera que a manada regressasse?
O vulto escuro formado pela lenha mal se via na escuridão e pegou no primeiro tronco. Os pêlos da nuca eriçaram-se e ficou imóvel. Um sapato afundou-se na lama atrás de si. Não estava sozinha. Voltou-se.
- Linnea?
O tronco escorregou-lhe da mão e foi cair numa poça que lhe molhou os pés.
- Seth! Não te ouvi chegar.
- Nem podias ter ouvido, com uma tempestade destas. Acho que isto quer dizer que já chegou a Primavera: Assustei-te?
- Só um pouco.
- Desculpa. Deixa-me ajudar-te - agachou-se à frente dela, um homem de coragem que Linnea sentia demasiado bem. - Já que estou aqui, deixa- me levar a lenha que precisas.
- Posso fazê-lo sozinha - respondeu, tirando-lhe o tronco da mão e virando-se para o restante monte. - Vieste ver a égua?
- Sim. Queria ver se ia passar a noite mais ou menos calma - tirou- Lhe a lenha e continuou a carregá-la. - Senti a tua falta esta tarde. Pensei que viesses ter comigo ao celeiro quando me ouvisses chegar.
- Levei a minha mãe a passear. Ela adora sair sempre que pode. O Inverno manteve-a presa em casa. Posso perfeitamente fazer as minhas tarefas, obrigada - insistiu, tirando-lhe outro tronco da mão.
- Não disse que não eras capaz. Mas um cavalheiro não pode ficar a olhar enquanto uma bela mulher trabalha.
- Guarda os teus elogios para a viúva Johanson. De certeza que a consegues impressionar.
- E a ti, não? - brincou. Estava tão perto que ela conseguia sentir o calor da sua respiração. Não quero impressionar ninguém, acredita. Quero ser apenas um bom vizinho, só isso.
- Está bem. Então acompanha-me até lá dentro.
A noite não pareceu tão triste com Seth a seu lado. Não se preocupou por a lama querer prender-lhe os pés, ou que o vento lhe atirasse chuva para a cara; nem o caminho até casa lhe pareceu tão longo. Antes de se dar conta, estava a passar da escuridão para a luz, do frio para o calor, e Seth estava a pousar a sua carga na cesta junto à lareira.
- Estou a pingar-te o chão todo - disse. - E sei por experiência própria, que as mulheres não acham piada nenhuma a isso. Perdem muito tempo a manter o chão brilhante.
- Isso é verdade, mas desta vez, escapas. Pela água e pela lama.
- Posso varrer.
- O quê? Um homem que varre? Não conheço tal criatura.
- Vê e aprende - colocou o último toro na cesta e arregaçou as mangas. - Onde está a vassoura?
- Não te preocupes. Além disso, deixarias um rasto de lama daqui até à cozinha. Acredito que saibas varrer.
- Mas não posso permitir que ponham em causa as minhas habilidades.
Tirou as botas, e umas faíscas que brilharam nos seus olhos fizeram- no parecer mais novo.
Linnea viu um homem não muito mais velho do que ela, desaparecidas as rugas da sua cara. O seu sorriso era diferente, lento e resplandecente, só para ela, antes de desaparecer na cozinha que estava às escuras. Mal o conseguia ver. Uma pancada forte ouviu-se por toda a casa.
- Ai! Pelo menos não se partiu.
- Tenho uma fila de potes de barro na prateleira de baixo. Assim, se entrar algum rato em casa, consigo ouvi-lo e expulsá-lo à vassourada.
- Não têm um gato?
A porta da dispensa fechou-se e os passos descalços de Seth ouviram- se no escuro.
- Não, morreu o Verão passado. Nesta parte do país, os gatos são caros, e como não consigo encontrar um por menos de um dólar e cinquenta centavos, cheguei à conclusão que íamos ter de passar sem gato durante uns tempos.
- É disso que Ginny precisa: de um gato que ande a caçar pela casa e pelo celeiro.
Saiu da sombra e a luz do candeeiro da mesa pareceu descobrir-lhe imediatamente os ombros e adorá-los.
As mãos de Linnea desejavam fazer o mesmo. Saber qual era a sensação de tocar num homem a sério, explorar-lhe os músculos dos braços e do peito. Era uma solteira, sim, mas ainda tinha desejos de mulher. Queria sentir-se segura nos braços de um bom homem, conhecer os seus beijos e carícias, sentir o calor da sua pele, o prazer do seu amor.
- Vês que sei fazê-lo? - disse Seth, varrendo. Para veres que não estava a mentir.
Para já, era um homem em quem podia confiar.
Seth deixou as botas no alpendre porque não queria voltar a sujar o chão. O vento frio penetrou-lhe na roupa e a chuva molhava-lhe a cara. Mas por mais forte que fosse a tempestade, não conseguia eliminar o aroma a lilases de Linnea.
Ela estava na ombreira da porta, com a sombra projectada na rua pela luz de dentro, e a sua presença provocava-Lhe um calor no qual não queria pensar.
Fechou bem o casaco para enfrentar a tempestade:
- Queres vir comigo ao celeiro?
Surpresa seguida de alegria apareceram no seu rosto delicado.
- Vou buscar o impermeável.
Os seus passos afastaram-se e ele cometeu o erro de olhar para trás. Ela não estava ali, mas sim tudo o que representava: a lareira no lar, a costura em cima da cadeira de baloiço, um santuário acolhedor à base de bordados e tapeçarias.
Uma mulher. Um lar. Tudo o que não voltaria a ter.
A solidão acertou-Lhe com mais força do que a chuva, entranhando-se até aos ossos. Os braços de Linnea deviam ser quentes, os seus beijos de seda. Nunca tinha conhecido uma mulher que o fizesse desejar começar de novo. Ter outra oportunidade para amar.
Aquele pensamento assustava-o e saiu para a escuridão para ficar rodeado de sombras.
Naquela noite o frio não o acalmou, mas deixou-o faminto e inquieto, até que Linnea surgiu de novo na ombreira da porta, com a luz do candeeiro reflectida nos seus caracóis dourados, e voltou a sentir-se completo. Depois, viu-a pôr o capuz e fechar a porta.
A luz da casa desvaneceu- se e, sem saber porquê, ofereceu-lhe a mão para ela descer.
- Os degraus estão escorregadios.
- És um cavalheiro, mas estou sempre a subir e a descer estes degraus, com chuva ou neve.
Mas não baixou a mão.
- A tua mãe está a dormir?
- Ou está a dormir, ou estava a escutar atrás da porta quando entraste para deixar a lenha. Está apaixonada por ti por teres arranjado o telhado. Não pára de enumerar as tuas qualidades durante todo o dia.
- Quando acabar de semear, vou substituir o telhado.
- Então, ficará em dívida contigo a vida toda. Fica magoada por ver como a casa que o meu pai construiu para ela necessita de arranjos que nós não podemos fazer.
- Os teus pais deviam estar muito apaixonados.
- Muito - suspirou, relembrando tempos melhores. - Foi muito bom crescer rodeada do amor que sentiam um pelo outro, e saber que esse tipo de sentimento existe.
- Não é fácil de encontrar - o vento ficou mais forte e ele chegou- se para junto dela, de costas para o vento, para a proteger. - Não conheço outra mulher disposta a renunciar ao casamento e à própria familia para tomar conta da mãe.
- Da maneira como o dizes parece um gesto muito nobre da minha parte, mas não é assim. Não é - a luz desapareceu da sua voz e as suas palavras voltaram a ficar escuras como a noite. - E tu? São poucos os homens que estariam dispostos a ajudar uma meia-irmã, sobretudo se não houver nada a ganhar em troca.
- Não tinha nada melhor para fazer.
- Suponho que te refiras a mulher ou filhos.
- Sim. Não tenho mulher nem filhos.
A tristeza bateu-lhe com a força de um pontapé no estômago.
Tinha sofrido e conseguira sobreviver e ir vivendo o dia-a-dia, mas nem por isso tinha deixado de sentir falta do que tinha: uma esposa para abraçar, que o recebia no final do dia no seu lar com o brilho do amor no olhar E os gritos do filho e da filha quando corriam para o cumprimentar, brigando entre si para contarem ao pai o que tinham feito durante o dia.
Ser aguardado, querido e necessário, sentir com todo o coração e ter uma vida verdadeira.
Era aquilo que o perseguia, o que o feria de um modo insuportável.
Abriu a porta do celeiro e chegou-se para o lado, para ser Linnea a primeira a fugir da tempestade.
Um relinchar agudo de aviso atravessou a es curidão, quase como o grito de uma mulher. A vaca leiteira mugiu suavemente, e o barulho dos passos de Linnea ao aproximar-se tranquilizou-a, alegrando-a por ter um pouco de atenção.
Enquanto ouvia Linnea falar com a vaca, pro curou o candeeiro e acendeu-o. O cheiro a querosene picou-lhe o nariz, mas também lhe esvaziou a cabeça.
- A égua não está muito feliz por nos ver.
- Achas que está melhor?
Seth sacudiu a chuva do casaco e encaminhou-se para a cavalariça. Outro relinchar assustado e a pancada sonora de um casco na madeira recebeu- o.
- Está a sofrer? - perguntou Linnea com ansiedade.
- Creio que deve estar melhor, para ter tanta força - Seth parou em frente à cavalariça, movendo-se lentamente. - Calma rapariga, ainda te magoas.
A égua tinha decidido que não precisava de ajuda e arreganhou-Lhe os dentes.
- Sim, está bastante melhor.
Não havia água no bebedouro e tinha comido parte do feno, e Seth tomou o seu tempo para repor ambas as coisas, consciente de que Linnea o estava a observar.
- Se este casco não tiver iafectado, desamarro-te amanhã de manhã - disse para a égua ao mesmo tempo que o animal o observava com os seus olhos escuros brilhantes, como se estivesse a medir o nível de perigo da situação.
Linnea ficou calada e permaneceu de pé junto à vaca, que lhe mordiscava a bainha do impermeável amarelo. Aquela vaca mais parecia um cachorrinho. Linnea tinha jeito para os animais e aquela Mustang tinha sorte por estar presa no celeiro dela.
Talvez conseguisse amansar um pouco a égua antes do Verão acabar e ele partir, a não ser que ela o conseguisse fazer antes.
- Disse uma asneira, não foi? - perguntou ela, mordendo o lábio inferior.
Parecia tão vulnerável e tão bela que o deixava sem fôlego. Aquele enorme impermeável amarelo com as mangas gastas e o capuz roto devia fazê-la parecer gorda e pouco feminina, mas não era assim.
- Desculpa - continuou. - Falei de casamento e não o devia ter feito. Não quero que te sintas incomodado, ou que penses que ando à caça de um marido, porque não é verdade.
A voz tremia-lhe, e parecia envergonhada, e ele não conseguia encontrar palavras para a fazer parar.
- Linnea, eu...
- Já passou. Não preciso de o ouvir. Sei que nunca podias querer uma mulher que tem uma mãe para tomar conta. Não ando à procura de casamento, pelo que não precisas de te sentir inco modado ao pé de mim.
Tinha levantado ligeiramente o queixo e os punhos estavam cerrados, como se estivesse disposta a lutar. O brilho que tinha nos olhos não era de lágrimas, mas da emoção. Ele conhecia bem a tristeza e como podia obscurecer a luz interior de uma pessoa e como as esperanças começavam a deitar faíscas como o pavio de uma vela que se gasta e acaba por se apagar, deixando apenas frio e escuridão.
Estava a mentir. Pura e simplesmente. Linnea Holmstrom queria que um homem a desejasse, mas o mais provável era achar que nenhum estaria disposto a fazê-lo.
Era um sentimento que ele compreendia muito bem.
- Não é por tua causa, Linnea.
Avançou um passo em direcção a ela e em direcção à luz, porque não queria que a mentira se instalasse no meio deles, como também não queria que ela pensasse que não era uma mulher desejável. Também tinha lido isso nos olhos dela.
- Não me sinto desconfortável contigo. Não como com a viúva Johanson, por exemplo. Já esteve lá em casa três vezes a tomar chá com Ginny, sem parar de olhar para mim um minuto.
- Não me admiro. É jovem e bela, e está habituada a que um homem tome conta dela.
- Aquela mulher assusta- me.
- As mulheres ansiosas por se casarem têm assustado os homens desde que o mundo é mundo-
quase sorriu. - Por acaso não se diz que os homens fogem sempre do compromisso?
- Eu não - não sabia como o dizer Não tinha falado da sua perda desde o dia em que saiu do cemitério, enterrando aí o seu coração. - Já tive família. Uma esposa bonita que cantava enquanto fazia as tarefas domésticas. Um filho e uma filha que tinham o sorriso da mãe.
- Não sabia - Linnea apoiou uma mão no braço dele. - Que aconteceu?
- Febre. Não sabemos de onde surgiu e, quando saí de casa de manhã, estavam bem. Quando voltei, à noite, já estavam de cama. Dois dias depois estavam mortos. Assim, sem mais nem menos - doía-lhe a garganta e virou-se. Quando um homem enterra a sua familia, é como se o sol se apagasse para sempre. Um Inverno sem a promessa da Primavera. Só isso. Não que não queira uma esposa, mas já a tive. Depois tudo mudou, e esse tempo já passou para mim: Como podia voltar a ter essa sorte?
Agradeceu por ela não tentar dizer o quanto lamentava pela perda dele. Deixou-o simplesmente em silêncio. O ardor na garganta não abrandava e a noite começava a parecer-Lhe sufocante.
Tudo o que tinha à sua espera quando se fosse embora era uma cama vazia numa casa triste, onde a sombra de uma criança nunca fazia barulho e a ira contida da irmã palpitava nas tentativas para lhe agradar.
Sempre haveria uma cama vazia num quarto solitário, tanto em casa de Ginny como em qualquer outro sítio. Há muito tempo que tinha assimilado essa verdade, assim que viu que a sua dor não o ia matar. Não tinha tido outra alternativa senão continuar a viver, mas naquela noite a solidão doía- Lhe demasiado.
Ouviu o barulho das saias de Linnea atrás de si, e sentiu a mão dela no seu ombro, firme e conso ladora. Não disse uma única palavra, mas conseguiu exprimir os seus sentimentos com muita nitidez. A mão dela era de uma suavidade como não tinha sentido há uma eternidade.
Um porto na tempestade.
Uma luz na escuridão.
A solidão cresceu até se tornar insuportável, trazendo cónsigo as memórias e a dor ao ponto de não conseguir respirar. Ardiam-lhe os olhos e a garganta. O peito estava quase a rebentar e não conseguiu aguentar mais. Virou-se e tomou-a nos seus braços.
O seu cabelo dourado era como seda, e o seu corpo quente e suave. Fundiu-se com ele no abraço, rodeando-lhe as costas com os braços. Era tão pequena, mas ao mesmo tempo, tão forte, cheia de sentimentos. Afundou a cara no cabelo dela.
Como a noite que encontra a sua manhã, a solidão começou a ceder. Ela preenchia os seus sentidos com aquele aroma a lilases e com o seu calor. Seth agarrou-a pela nuca, e, quando ela apoiou. o rosto no seu ombro, sentiu as lágrimas dela a arder.
Uma ternura feroz e surpreendente apoderou-se dele, como se um rio partisse o gelo que o prendia. Acariciou-lhe o rosto com uma mão, cegamente, e beijou-a depois como um faminto, esperando que ela o empurrasse.
Mas quase como um milagre, ela virou-se e os seus lábios encontraram-se. Era suave como o cetim e beijou-a profunda e apaixonadamente. Tinha a respiração alterada e o coração palpitava como se tivesse corrido dez quilómetros, mas não conseguia afastar-se dela. Prendeu-lhe o queixo com uma mão e bebeu dela como um homem que, tinha estado sedento a vida toda.
Ela gemeu, e aquele protesto fraco caiu-Lhe em cima como água fria. Tinha sido demasiado violento e estava envergonhado. Soltou-a e recuou um passo, tentando pensar no que dizer.
Tinha o cabelo despenteado e os lábios avermelhados. Ainda sentia o sabor dela na sua boca. Queria voltar a abraçá-la e não parar de a beijar. Queria ter direito a tocar-lhe.
O que queria era muito simples: precisava do seu calor e consolo.
Ela olhou-o com os olhos muito abertos. Assustada? Talvez apenas surpreendida.
- Não tinha o direito de... - sentia-se tão ridículo. Como um jovem que não consegue controlar as suas acções. - Desculpa. É que... não sei o que dizer. Não há desculpa.
- Eu compreendo - respondeu ela, baixando a cabeça.
Tinha cometido um grande erro. Como corrigi-lo? Não podia voltar atrás no tempo, como se não tivesse acontecido, e a doçura dela fê-lo estremecer com uma necessidade que não sentia há anos.
- Foram as memórias que te levaram a isto - encolheu os ombros, um gesto quase insignificante que Lhe fez contrair o coração. - Não te preocupes, sei que não era a mim que querias beijar.
- Sinto muito. Deixei-me levar... não sei.
- Não faz mal. Vamos fingir que não aconteceu.
- Sim.
Ia ser difícil fingir que não se tinha comportado como um idiota naquela noite. Pelo menos ela não tinha ficado furiosa com as liberdades que ele tinha tomado.
Pelo contrário, parecia triste. Não havia outra forma de o definir. Quando se virou e apagou o candeeiro, a imagem de Linnea no meio do corredor, com aquele aspècto de ter sido rejeitada e esquecida, permaneceu perante os seus olhos.
Tinha-a usado e magoado. Era tão simples quanto isso, Mas ao abrir a porta do celeiro e sentir de novo o seu cheiro a lilases, teve de perguntar-se se não teria havido algo mais para além da solidão e das memórias a empurrá-lo para os braços dela.
- Não vieste a cavalo? - pergùntou-lhe do alpendre.
- Gosto de andar de noite.
- As pradarias são belas à noite, até mesmo quando chove. É como música.
- Também acho.
Inclinou a cabeça para ouvir o barulho da chuva. Havia melodia e ritmo nesse som, como mil hinos entoados ao mesmo tempo.
- Não ficaste chateado comigo, pois não? Refiro-me ao beijo. Ficaria muito magoada.
- Eu também - recuou um passo. - Somos amigos.
- Ainda bem.
Ela sorriu, e mesmo na escuridão, achou-a bela.
Sentia-se muito tenso, frágil como o vidro. Não confiava na própria voz, e por isso começou a caminhar, deixando que a noite o escondesse e que a chuva lavasse a dor que sentia no coração.
Mas outra dor ainda mais intensa era impossível de apagar. Uma dor ardente: a sensação dos lábios de Linnea durante o caminho de quase um quilómetro que teve de percorrer até casa.
Porque ela tinha-o beijado. Insegura, ardente e terna; mas sem dúvida que o tinha beijado.
Ao dar-se conta disso, a chuva não Lhe pareceu tão fria. Nem a tempestade tão escura.
Não podia voltar a vê-lo. Linnea deixou cair a cortina que tinha afastado para olhar pela janela. Tremendo por causa da roupa ensopada, aproximou-se da lareira. Já não tinha chamas, mas as brasas ainda aqueciam, embora não tanto como o beijo de Seth.
Não penses nele". Não tinha o direito de o beijar, apesar dos lábios ainda lhe tremerem. Como ia conseguir esquecê-lo? Como ia esquecer o modo como a tinha abraçado, com uma necessidade tão feroz que o coração ainda batia descon troladamente?
Tinha de ser razoável e acreditar na explicação que ele tinha dado. Tinha-se sentido comovido com a imensidão da sua perda e precisava de consolo. Era tudo. O beijo não tinha significado nada... para ele.
Mas a sala parecia-lhe mais vazia do que nunca. As sombras projectavam-se num tapete onde nunca veria as botas de um homem a secar num quarto onde nenhum homem a teria nos braços.
O cheiro de Seth tinha ficado impregnado na sua roupa. um odor masculino, limpo como a noite, intenso como o trovão, e respirou fundo. O que estava a fazer? Não tinha acabado de prometer a si mesma ser razoável?
Tens mais senso comum do que isto, Linnea Holmstromi.
Tapou as brasas e apagou o candeeiro. Os seus passos ecoaram na casa. Depois de se assegurar que a porta estava fechada, caminhou às escuras para o único quarto da casa onde a mãe estava a dormir, um vulto minúsculo por baixo dos edredões.
Trocou de roupa rapidamente e agachou-se
para tirar a cama desdobrável. Quando roçou a mão no edredão que tinha feito há tanto tempo, caiu de joelhos no chão.
Embora estivesse às escuras, não precisava de luz para percorrer com os dedos os círculos perfeitos aplicados sobre o tecido cor pastel que tinha comprado na loja da Mclntyre. O edredão com um desenho em forma de aliança que tinha feito para a sua noite de núpcias. Para o casamento com que qualquer miúda de dezasseis anos sonha.
Lições que aprendera. Lições que não podia esquecer, agora que o beijo de um homem lhe queimava os lábios como o ferro de marcar gado.
A alvorada chegou com uma coroa de cor no Este, onde as montanhas tingidas de azul tocavam o horizonte. Uns traços escarlates, laranjas e púrpuras insinuavam-se por baixo do ventre pançudo das nuvens.
A tempestade já tinha amainado há muito. As toutinegras e os tentilhões saltitavam na erva recém nascida, saudando o sol. O novo dia chegava com uma reverência serena que fazia Linnea sentir-se renovada e fortalecida.
Não ia pensar em Seth Gatlin uma única vez durante aquele dia. Nem uma só.
Caminhou sobre a terra amolecida pela chuva com um balde em cada mão.
Esta vida é boa", disse para si própria. Podia até nunca chegar a ter marido, ou a conhecer o maravilhoso peso do filho recém-nascido nos braços.
Mas tinha aquilo: o nascimento de um novo dia e a companhia muda de um veado de colarinho branco, que ergueu a cabecita da erva para olhar para ela, os flancos arredondados com o peso da sua cria ainda por nascer.
Os escamudos levantaram voo e o cervo fugiu. Linnea ouviu o barulho abafado do metal a bater na pedra, virou-se e um dos baldes acertou-lhe na perna.
Um homem, de chapéu que lhe escondia o rosto, cavalgava na sua direcção à luz dourada do amanhecer. Do topo do seu garanhão negro, Seth Gátin parecia tão poderoso como a paisagem e tão impressionante como o céu.
- Bom dia, Linnea - cumprimentou-a, levando a mão ao chapéu. - Pensei em começar o dia dando uma vista de olhos à égua.
- Ainda não fui ao celeiro. Queria primeiro levar água para casa.
- Então proponho-te um trato - desmontou com um ranger de couro e passou-lhe as rédeas. Tu levas o General para o celeiro e eu encho os baldes.
- Sou perfeitamente capaz de tirar água do poço.
E os baldes voltaram a acertar-lhe na perna ao virar-se.
- Pois. E queres que eu fique a olhar enquanto trabalhas - respondeu, e tirou-lhe um balde da mão.
- Hei! Isso é meu.
- A sério, Linnea, sou militar e estou habituado a levar a minha avante - o seu olhar brilhava, divertido. - Não penso render-me.
- Nem eu - respondeu ela, agarrando o balde que lhe restava com as duas mãos. - Já ando a acartar água desde que o meu pai ficou doente, e não me importo nada.
Ele começou a caminhar ao lado dela.
- Já estás a tomar conta da tua mãe há muito tempo, e suponho que também trabalhes no campo. Não subarrendaste estas terras, pois não?
- Não.
Agachou-se, mas Seth adiantou-se e tirou a tampa do poço.
Uma vez que parecia tão decidido, passou-Lhe também o outro balde, que ele atou à corda da roldana.
- Alugámos vinte acres à Ginny das terras que eram nossas.
- E que fazes com eles? Semeias feno?
- Sim. Tenho uma pequena manada e vendo as crias na Primavera. Decerto não reparaste. Estão no campo do outro lado do caminho.
- Uma manada de vinte, ou coisa parecida? V-o; pois.
- Vendo as melhores vacas leiteiras da região. Com isso e com a costura, ganho o suficiente para
nos sustentarmos.
Seth tirou o balde pesado sem precisar da ajuda da roldana.
- Vais ter alguma para vender brevemente?
- Muito em breve. Porquê?
- O meu sobrinho Jamie é o garoto mais fraco e doente que conheço, e a minha irmã não tem nenhuma vaca. Acho que uns quantos copos de leite por dia lhe fariam bem.
- A Ginny tem sorte em te ter como irmão. A dor voltou a acordar, pesada como uma pedra, e afastou- se de Seth. Sentia pena de Ginny, mas era difícil esquecer toda a dor que ela lhe tinha causado ao longo dos anos.
- Ainda bem que estou aqui - Seth alcançou-a com um balde na mão. - Tomar a decisão de me reformar do exército não foi fácil. Como já não tinha família, sentia-me perdido, mas quando a Ginny me escreveu a dizer que precisava de ajuda, ofereci-me para vir. Pensei que assim teria a oportunidade de rever os meus conhecimentos sobre como administrar um rancho antes de com prar um para mim.
- Já sabes para onde gostavas de ir?
- A verdade é que ainda não pensei nisso. Sempre pensei que ia reconhecer o sítio assim que o visse.
- Major? - a voz doce da mãe soou vinda da casa. - É o senhor? Que sorte. Precisamente agora que estava a fazer panquecas. É uma das minhas especialidades. Posso convidá-lo para o pequeno- almoço?
- Estou muito ocupado, senhora - as rugas no rosto de Seth suavizaram-se ao olhar para a mãe dela. - Talvez noutra altura.
- Também tenho salsichas frescas para fritar. Nem com isso o convenço?
- Vai ficar desiludida se recusar, não vai? Terei o maior prazer em tomar o pequeno-almoço convosco - acedeu, e a Linnea pareceu- lhe ainda mais homem pela sua amabilidade.
- Estupendo! - exclamou a mãe; batendo palmas. - Como quer os ovos?
- Mãe, já o envergonhaste bastante, coitado - protestou Linnea, que suspeitava que Seth já tinha adivinhado as verdadeiras intenções da mãe.
- Ainda não tomei o pequeno-almoço, por isso podem ser estrelados, senhora Holmstrom.
A mãe voltou a entrar em casa e a sua felicidade brilhou como a manhã.
- Perdoa-a. É uma mãe muito teimosa.
- Há muitas por estes lados - respondeu com um sorriso que se desenhou lentamente nos seus lábios.
Linnea respirou fundo. Lembra-te que prometeste esquecer aquele beijo.
Oxalá fosse assim tão fácil.
O celeiro já estava próximo, e o General levantou a cabeça. O seu relinchar quebrou a paz da manhã. O garanhão que até agora tinha seguido Seth como um cachorrinho, saiu a galopar directamente até ao celeiro com a cauda levantada.
Seth não conseguiu agarrar as rédeas e abanou lentamente a cabeça.
- Não nos servirá de nada chamá-lo. Quer pavonear-se em frente à bela Égua que está no celeiro.
- Relinchou a manhã toda. Suponho que isso queira dizer que está melhor.
- Mais zangada - corrigiu ele. - Agora que já descansou vai custar- nos o céu e sabe-se lá que mais para lidar com ela. Ainda bem que estás aqui. Temos de conseguir que se habitue a ti, já que agora é tua. Dentro de seis meses vai considerar-te da familia.
- Não acredito. Como se pode domar uma criatura selvagem? Assim que tiver oportunidade, saltará a cerca e irá ter com os outros:
- Depende de como a tratares - Seth afastou o General das portas do celeiro e pousou os baldes.
- Agora vai ficar muito zangada porque a deixámos amarrada a noite toda, mas tem razão. Vamos desamarrá-la e vai agradecer-nos.
- É essa a tua filosofia para domar cavalos? Conseguir que um animal fique agradecido e decida ficar? - Linnea alcançou a porta e abriu-a antes que ele a conseguisse deter - Podes ter tido sorte com o General, mas o teu sistema não se parece com o de nenhum outro domador que conheça.
- Então não deves ter conhecido nenhum bom
- brincou, sorrindo parcialmente.
Quando sorria assim era dificil não olhar para os lábios dele, e mais difícil ainda esquecer as caríciaS dos seus beijos. Era impossível esquecer os seus braços de aço a prendê-la contra o peito.
Abriu a porta, grata pela brisa que lhe refrescava o rosto. O garanhão de Seth passou-lhe ao lado como um furacão de crina e cauda.
- General, comporta-te como um cavalheiro, se faz favor - disse-Lhe Seth, deixando os baldes à porta e correndo pelo corredor central para agarrar o cavalo. - Linnea, deixa os baldes, que eu encho o bebedouro.
- Pensas fazer todo o meu trabalho?
- Sim, por que não?
Ela abanou lentamente a cabeça. Aquele homem era demasiado cavalheiro. Se continuasse assim não ia conseguir esquecer o beijo que continuava a fazer-Lhe tremer os lábios e relembrar a sua solidão.
- Trata da égua, que eu vou ordenhar - esva ziou um balde no bebedouro da vaca. - Já comeu e bebeu?
- Tem menos água, mas nem tocou na comida - prendeu o General ao poste do meio. - Não te preocupes. a forma que ela tem de protestar pela maneira como a temos tratado. Alguns cavalos selvagens deixaram-se morrer à fome em cativeiro.
- Agora sinto-me muito melhor - replicou. Linnea aproximou-se da segunda cavalariça. A Mustang estava escondida. Levantou o outro balde e esvaziou-o no bebedouro. A égua emitiu um aviso agudo e penetrante. Seth agarrou a asa de metal do balde.
- Deixa que eu acabo isso. Tu tens de falar com ela e tranquilizá-la. Ontem, arame farpado. Hoje uma cavalariça e cordas. É duro ser cavalo. Ser mulher perto de Seth Gatlin é que era duro.
Embora o sangue lhe galopava pelas veias, lembrou-se do seu objectivo. Não ia deixar que a ten tação a vencesse. Seth sentia-se só. Ela também.
Era só isso. Mas o seu lado sonhador chamou-a de mentirosa.
- Já estás a ficar curada, linda. Vais ver como logo te vais sentir melhor.
Embora tivesse soltado o casco da égua, continuava a agarrar as cordas com força. O animal tentou dar coices, mas não conseguiu.
- Parece que os teus encantos não a afectam - comentou Linnea, do outro lado da cavalariça.
- Dá-lhe tempo. Vais ver como consigo conquistá-la - soltou as cordas e afastou-se rapidamente para evitar um coice. - Parece que me vou arrepender de a ter desamarrado.
- Pelo menos assim consegue deitar-se. A égua estendeu o pescoço, com as orelhas para trás, e arreganhou-lhe os dentes.
- Calma, rapariga. Sei que estás assustada, mas podes dar te por satisfeita de estares aqui e não no celeiro de Neilson. De certeza que por esta altura devia estar a preparar-te para te levar ao carrúceiro.
- Não digas isso nem a brincar! - respondeu Linnea, olhando-o com fogo nos olhos. Gostava desse fogo, isso era certo. - Não sei onde é que Neilson estava com a cabeça, mas não penso baixar nem um único centavo no preço da próxima vaca que me comprar.
- Ainda bem que não sou teu inimigo, porque ainda não negociámos o preço da minha vaca - fechou a porta da cavalariça. - Quero que venhas aqui de pouco em pouco tempo. Dá-lhe as guloseimas que tiveres.
- Torrões de açúcar?
- Ou pedaços de maçã. Até cenouras, se te sobrar alguma. Fala com ela quando os deixares. Vamos ver se ela te começa a associar a algo bom para comer.
- Era o que me faltava, que quando me visse me arreganhasse os dentes. Vai ficar boa da pata?
- Ficará como nova. Teve sorte porque o corte não era profundo. Não senti calor na ferida, por isso não deve ter infectado.
Começaram a caminhar e Seth tirou-Lhe o balde do leite das mãos. Pena que ela se tivesse afastado tão depressa. Gostava das mãos dela: magras, de dedos compridos e cheias de graça.
O sol da manhã já secava a humidade da érva quando se encaminharam para casa. Seth não se lembrava de uma manhã mais bonita do que aquela. A Primavera tinha começado a transformar a terra, e a tempestade da noite tinha trazido a mudança às pradarias.
E talvez ao seu coração também.
Do outro lado do caminho, as vacas estavam junto à cerca e os seus mugidos queixosos começavam a atingir níveis ensurdecedores.
- Estas são as minhas meninas mimadas. Comecei a dar-lhe cereais pela manhã, e não vão permitir que me esqueça delas.
- Estás a ver? Se funciona com as vacas, funcionará com a égua.
Ela lançou-llhe um olhar de advertência:
- Esperem por mim, está bem? - pediu, como se conversasse com velhas amigas. - Não vou demorar muito, sim?
- Não me parece que estejam muito entusiasmadas. Posso dar-Lhes uma espreitadela?
Era muito agradável algo tão simples como caminhar ao lado dela, ouvir o vento a brincar com as suas saias, respirar o seu aroma, ouvir os seus passos. Estar junto a ela fazia-o sentir-se como o homem que fora antigamente.
As vacas aproximaram-se deles rapidamente atropelando-se junto à vedação para receber a carícia da mão de Linnea, e ele compreendia perfeitamente.
Sentia-se atraído por ela como pela luz do sol e não conseguia parar de olhá-la enquanto ela cumprimentava cada vaca pelo nome e ia passando os dedos pelos focinhos tostados.
Tinha seis delas quase a parir, e os seus ventres inchados arfavam pesadamente com cada inspiração de ar. Seis fêmeas que ainda podiam ficar prenhas naquele ano. Os bezerrinhos brincavam ao lado das mães, tentando morder as saias de Linnea por entre os postes da vedação.
- E se levasse esta?
Linnea olhou na direcção da mão dele.
- É a Parches. É muito carinhosa, e não dá coices. Portar-se-ia bem com o filho de Ginny.
- Já imaginava.
- Dir-te-ei assim que estiver pronta – Linnea aproximou-se para acariciar as orelhas de Parches, e os seus braços roçaram um no outro. Não vai demorar muito.
- Pago-te agora ou depois?
- Pagas quando a levares.
Linnea virou-se e ignorou os protestos ensurdecedores das vacas.
Ele começou a caminhar ao lado dela, sentindo o sol a bater-lhe na cara e algo mover-se dentro do coração.
Talvez não fosse nada. Talvez fosse por tê-la beijado. Ou talvez aquele sentimento agudo e novo fosse outra coisa.
Teria de esperar para ver. Linnea subiu rapidamente as escadas a chamar a mãe, e descalçou-se à porta. De seguida, tirou-lhe o bálde do leite com um sorriso que o fez recordar a beleza do seu beijo, o sabor, a textura.
Preferiu não questionar por que é que o coração Lhe batia com tanta força ao entrar em casa. Ou por que é que as memórias não surgiram dolorosamente ao sentar-se à mesa com o aroma a panquecas e salsichas. Tinha aprendido durante os trinta e três anos de vida que era melhor não fazer perguntas quando acontecia algo extraordinário.
Do outro lado da mesa, Linnea sorriu ao passar-lhe um prato de ovos estrelados, tal como ele gostava.
Pela primeira vez desde que chegou àquele canto remoto de Montana, estava extremamente feliz por estar ali.
- Não há pressa - Linnea guiou a mãe com cuidado para que não pisasse um buraco da estrada. Não quero que torças um pé.
- Fico tão contente por ir à cidade. Tenho estado à espera todo o Inverno.
- E vais esperar mais se não tiveres cuidado - retorquiu, agarrando com mais força o seu braço.
- Por aqui, que há menos buracos.
- É maravilhoso ter uma filha que se preocupa tanto comigo.
- E que tu possas acompanhar-me. A última vez que estive na Mclntyre tinham chegado imen sos tecidos novos. Penso que, com o dinheiro extra que ganhei com a costura, podemos comprar tecido para te fazer um vestido novo.
- Para mim? E para que é que eu quero um vestido novo? Já tenho o de espigas para quando vamos à cidade e não preciso de mais nenhum. Que tal um novo para ti, jlicka? Algùm algodão azul que te realce os olhos.
- Eu não preciso de nada e tu sabes. Contigo já tenho tudo o que necessito.
- Ai, o amor de uma filha. Tenho tanta sorte - replicou, apertando a mão de Linnea.
A tristeza penetrou o seu peito como o gume de uma espada e ficou contente porque a mãe não o pôde ver.
- Um vestido novo não vai fazer com que eu seja cortejada pelo Major.
- Não te faria mal nenhum.
- É viúvo. Já enterrou uma esposa e dois filhos e não quer mais familia.
- Eu não estaria tão segura - a sua mãe baixou ligeiramente a cabeça, como se tivesse perdido parte das suas esperanças. - Há muita solidão na sua voz.
- Vai-se embora depois da colheita.
- Não precisa de ir sozinho.
- És tão teimosa quando metes uma ideia na cabeça! - respondeu e quase deixou cair as camisas engomadas que levava. - Vivemos bem e sei perfeitamente a sorte que tenho cada manhã quando me levanto e cada noite quando me vou deitar. Fim da discussão.
- Mas vamos comprar tecido para fazeres um vestido novo. Um único erro não deve durar toda a vida, Linnea.
Mas assim era.
O sol que lhe aquecia as costas era como uma carícia reconfortante. Linnea escutou o canto do prado: a melodia do vento entre a erva nova, o canto das cotovias e a harmonia dos escamudos: A tensão foi desaparecendo.
Sim, aquela vida era boa. Não queria mais. E, mesmo sendo mentira, não ia reconhecê-lo em voz alta.
O chocalho de uma carroça chamou-lhe a atenção e virou-se, puxando suavemente a sua mãe para que se encostassem a um lado da es trada.
- Parece a carroça de Ginny, mas também podiam ser os bois de Neilson - comentou a mãe, virando os olhos cegos para o ponto da estrada no qual um par de bois negros puxava uma carroça sólida.
Seth ia no banco da carroça a conduzir os animais com as suas mãos capazes. Tinha o chapéu de lado para o sol não lhe bater nos olhos.
- Que sorte tive ao encontrar-me com duas mu lheres bonitas a caminho da cidade.
- Major! - exclamou a sua mãe, entusiasmada.
- Onde é que está o seu precioso garanhão?
- A pastar à sombra, de certeza - parou a carroça junto a elas. - Fizeram-me um bom preço por estes bois, por isso comprei-os. Querem que as leve até à cidade?
Os olhos de Seth brilharam porque sabia que Linnea não podia dizer que não estando com a sua mãe.
- Obrigada. É um caminho muito longo para a minha mãe.
- Fico contente por poder ajudar - disse na altura em que saía da carroça.
Uma pequena nuvem de pó levantou-se quando os seus pés tocaram o solo. Vestido para trabalhar trazia umas calças remendadas nos joelhos e uma das suas camisas de flanela.
- Vejo que te ficam bem - comentou ela, quando ele lhe ofereceu uma mão para a ajudar a subir.
- Um momento - interveio a mãe. - Não quero ir no meio. Nunca gostei. Ajuda-me a subir primeiro a mim, jovem.
- Tem a certeza? Se apanhamos algum buraco " pode sair disparada.
Tentou esconder um sorriso, mas não conseguiu.
- Ninguém o ensinou que não se deve questionar os mais velhos - retorquiu a mãe quando ele já a agarrava pelo cotovelo.
- Sim, senhora, mas não pude evitá-lo. Ajudou-a a subir com força mas com delicadeza. Era evidente o cuidado com que a tratava. Algo passou pelo peito de Linnea, deixando-a vulnerável. Que homem maravilhoso. Quando viu como acomodou a sua mãe no banco da carroça, assegurando-se de que estava confortável, sentiu de novo essa dor Mais forte desta vez. Mais penetrante.
Então virou-se para ela e apoiou uma mão no seu ombro. O desejo queimou-a mesmo até ao fundo. Desejava-o. Mais do que havia desejádo qualquer outra coisa na vida. Desejava que aquele homem a rodeasse com os seus braços quando fizesse frio durante as noites. Desejava conhecer as profundidades do seu beijo e a força do seu coração. Partilhar com ele o seu corpo e senti-lo muito profundamente.
Das suas roupas saía um cheiro a terra e da sua pele, um leve cheiro a sal. Uma barba incipiente escurecia-lhe o rosto, como se não tivesse tido tempo de fazer a barba antes de começar a trabalhar.
- Dá-me o pacote - disse, tirando-lho das mãos.
Linnea não podia pensar em mais nada a não ser no toque da sua mão no cotovelo para a ajudar a subir e no ritmo da sua respiração. Sem fôlego subiu para o assento da carroça e aceitou o pacote que ele lhe devolvia.
Apaixonaste-te por ele, precisamente aquilo que prometeste não fazer". E não podia culpar ninguém excepto a si mesma. Muito menos o homem que estava sentado ao seu lado. Era uma sonhadora incorrigível.
Só uma coisa era certa: iria guardar aquele segredo no recanto mais profundo do seu coração. Nunca ninguém saberia o quão tola podia ser ao querer um homem que jamais poderia merecer.
Era como tocar na Primavera. Tocar no seu fogo, na sua beleza. Seth cerrou os dentes e tentou não olhar para Linnea nem sequer pelo canto do olho. As suas coxas roçavam com o passar dos quilómetros e aquela tensão constante tinha vindo a subir a sua temperatura interior até ter lava líquida nas veias em vez de sangue.
A cidade já estava próxima e a estrada começáva a ter trânsito. Os bois eram jovens e não podia descuidar-se, mas a verdade continuava presente no fundo da sua consciência.
Não podia acreditar. Era impossível que voltasse a sentir-se assim.
- Bem, parece que a loja está muito cheia - comentou a senhora Holmstrom, virando-se para a loja como se a pudesse ver. - Há gente por todo o lado. Ouço os passos no passeio.
- Bem, tenho pena, mas acho que não posso levá-las mais longe - disse Seth, parando a carroça na estrada.
Linnea apertou o seu pulso.
- Aqui está muito bem. Não é necessário ajudar-nos a descer dado que existe tanto trânsito.
- Seria para mim uma desilusão não o fazer. Ajudar umas damas tão bonitas é o que mais gosto de fazer na vida.
Linnea corou e o rosto de porcelana adquiriu um rubor rosado.
- Mãe, não ligues a este intrujão - sorriu. Dá-me a mão.
Que bem se sentia com ela! Era como voltar a estar vivo de mil formas diferentes. Desceu da carroça e ofereceu a mão à senhora Holmstrom.
Há muito tempo que não cortejava uma mulher e já não se lembrava de como é que tinha de o fazer, mas não tinha dúvida nenhuma de que o iria fazer, bem ou mal. Acompanhou a senhora Holmstrom ao passeio e voltou à carroça.
Linnea já estava a descer mas ainda a agarrou pela cintura, mantendo-a por um instante no ar. O tinido dos arreios e o ruído de fundo das vozes desapareceram. Olhou-a nos olhos, tão azuis como as pétalas das violetas silvestres e o coração sal tou-lhe no peito.
Sim, senhor. Não tinha dúvidas. Nenhuma.
- Esperem-me quando tiverem acabado e estiverem prontas para voltar para casa - ofereceu-se.
- A tua mãe não precisa de percorrer toda essa distância a pé.
- És muito amável, Seth - Linnea olhou-o como se acabasse de olhar para a lua, com os olhos muito abertos e iluminados desde o interior. De seguida, a luz apagou-se e separou-se dele. Não vamos demorar.
- Eu tenho de fazer uns quantos recados e voltarei em seguida- disse, levando a mão ao chapéu.
Subiu para a carroça e soltou o freio. Os bois estavam nervosos com todo o ruído que havia à sua volta, mas, ao falar-lhes em voz baixa, pô-los a andar e logo se virou no momento em que Linnea entrava na loja.
Perdeu-a de vista, mas não se afastou dos seus pensamentos:
Parou de novo a carroça à frente da loja da modista. O sol reflectia-se no cristal da montra e fixava a atenção num magnífico edredão vermelho e branco. O que Linnea tinha costurado com as suas próprias mãos.
Não podia dizer o que o impeliu a deixar de novo o freio e aproximar-se da montra. Com a roupa que trazia não devia entrar numa loja elegante como aquela, mas mesmo assim fê-lo.
Um timbre suave soou por cima da sua cabeça ao entrar. Havia meia dúzia de mulheres junto ao balcão folheando uns livros grossos e esteve quase a ir-se embora. Sentindo-se mais deslocado do que alguma vez se tinha sentido na vida, tirou o chapéu.
- Posso ajudá-lo? - perguntou-lhe uma mulher que se aproximou.
- Não sei bem - respondeu com sinceridade. Nem sequer podia dizer porque é que tinha entrado.
- Gostaria de dar uma vista de olhos.
- Tenho muitos presentes para um homem que quer cortejar uma mulher - afirmou a mulher em voz baixa para que as suas palavras só fossem ou vidas por ele. De seguida, apontou para os cabides onde estavam belos vestidos de seda e para os distintos chapéus. - Talvez algo mais pequeno. Esteja à vontade e, por favor, não hesite em pedir-me ajuda se necessitar.
- Muito obrigado, senhora.
Seguramente que Linnea iria dar pouco uso a um enorme chapéu com penas ou com frutas. E ainda que os vestidos fossem lindíssimos, segura mente que seria demasiado atrevido dar um vestido a uma mulher com a qual não estava casado, assim aproximou-se da montra onde brilhavam o ouro e a prata.
- Quando é que vais tirar esse edredão da montra, Ellie - perguntou uma das mulheres do grupo.
- Quando o vender - respondeu a proprietária do fundo da loja. - Podias pensar em comprá-lo para o enxoval da tua filha. Seria um excelente presente.
- Muito obrigada, mas não penso comprar alguma coisa que tenha sido feita por Linnea Holmstrom.
- Não sejas assim. A pobre rapariga já pagou o suficiente por um único erro - respondeu a outra.
Seth olhou primeiro para a porta e depois para o grupo de mulheres. Cidade pequena, mentes pequenas. Acontecia nas melhores cidades e esta não seria excepção.
- Já viu algo de que goste?
A proprietária da loja aproximou-se dele, com as costas bem direitas e o queixo erguido.
- Vou levar isto - não tinha ideia de como se chamavam, mas eram bonitos. Um presente que uma mulher de campo como a Linnea, com o seu amor pela costura e a beleza, podia usar.
- Magnífica escolha. Deixe- me embrulhá-los. É um instante.
- Obrigado, senhora.
Entretanto, aproximou-se da montra. O edredão que estava exposto éra o de Linnea. Era incrível a paciência que se devia ter para dar tantos pontos minuciosos. Sem dúvida que era o mais bonito que já tinha visto.
roubou o marido. Duas vezes!
Alguém pretendeu sussurrar, mas as suas palavras chegaram ao outro lado do estabelecimento.
Seth olhou por cima do ombro e cruzou-se com os olhos de uma das mulheres. Em seguida virou-se de novo para a montra, preocupado.
- Primeiro que tudo tenho pena da Ginny, isolada no campo ao lado dessa mulher.
Estão a falar de Linnea". Seth cerrou os dentes para conter a raiva. Falavam suficientement alto para que ele ouvisse, para que fosse obrigado a perguntar pelo seu passado. Por um lado, queria saber a verdade, mas não seria correcto, nem seria respeitoso para com Linnea. Tentou não escutar, mesmo quando a mulher subiu o tom.
Talvez devesse esperar no passeio enquanto lhe preparavam o presente.
- Major - a proprietária da loja aproximou-se, muito séria. Mesmo não sabendo o seu nome; sabia quem era. - Aqui tem. São nove dólares e cinquenta centavos - tirou a carteira sentindo o olhar curioso das mulheres e o bater acelerado do seu pulso.
- Vou levar também este edredão. em razão. Ficaria muito bem numa cama de casal.
- O senhor é um bom homem - a modista sorriu de orelha a orelha e teve a estranha sensação de que sabia porque comprava aquele edredão. - Vou embrulhá-lo bem. Espere um instante, por favor.
E afastou-se com o edredão nos braços. As mulheres guardaram silêncio, observando-o a contar notas verdes. Entre todos aqueles rostos, um pareceu-lhe familiar.
- Bom dia, senhora Johanson.
A viúva ficou vermelha como um tomate.
- Olá, Major.
- Encontrei alguém que se ocupa da minha costura - disse com calma para que não existissem mal entendidos com aquelas mulheres com mais tempo livre do que princípios.
Não tinha dúvidas de que o que se tinha passado andaria na boca de todos num abrir e fechar de olhos, mas não se importou. Não tinha nada a esconder. Um homem que acabava de se aperceber que ainda tinha um coração, e que não estava morto e enterrado como tinha pensado, não se importava com o que pudessem pensar aquelas intrometidas.
Quando saiu da loja, com o edredão debaixo do braço, a felicidade inundou-o com toda a força.
- Estas são as últimas camisas que posso aceitar - a senhora Mclntyre parecia tão implacável como uma tempestade do norte. - Shannon pagar-lhe-á na caixa.
- Mas se já baixei o preço - Linnea falava em voz baixa para que a mãe, que estava no balcão central, não a pudesse ouvir. - Preciso deste trabalho, senhora McIntyre.
- Não posso fazer nada. A senhora Johanson fez-me uma oferta mais razoável e decidi que, de agora em diante, será ela a trabalhar para mim. Não volte a trazer aqui o seu trabalho porque a minha decisão é irreversível.
- Mas... não compreendo. Nunca se queixou das minhas camisas.
- Não tem nada a ver com as camisas - disse, bruscamente.
- O que ganho com estas roupas é o meu rendimento mais importante - acrescentou e corou. Toda a loja parecia ter ficado em silêncio. Dúzias de pessoas escutavam, incluindo a mãe. - Não fiz nada de mal.
A vergonha apoderou-se dela e de algum modo, as pernas levaram-na até à caixa, apesar de estar a tremer. A ira espicaçava-a mas ela esforçava-se para se controlar
Na caixa, Shannon colocou os dólares num envelope.
- Os clientes estiveram sempre satisfeitos com as tuas camisas. Suponho que gostarias de saber que nunca recebemos uma só queixa que fosse.
Linnea guardou o envelope no bolso. Oxalá pudesse agradecer à mulher que outrora fora a sua melhor amiga. A humilhação fez-lhe um nó na garganta e não se atreveu a falar. Estavam tantos olhares fixos nela que se sentiu pequena e desprezível.
cuidando da sua mãe. A vida dela não é fácil. Não se pode culpá-la por ter tentado encontrar um pouco de afecto. - sussurrou uma voz do outro lado da estante dos metais.
- Uma mulher decente não anda por aí à pro cura do afecto de um homem. Se calhar ainda não lhe chegaram os nove meses de vergonha. Linnea cerrou os punhos e continuou a andar.
Só via o que tinha à frente e os seus passos faziam demasiado barulho. Encontrou a mãe em frente ao balcão dos tecidos.
- Mãe, vamos.
- Estou à espera que Donna corte o tecido. A mãe parecia mais feliz que nunca, mas Linnea viu as suas rugas ao redor da boca mais marcadas do que de costume e os seus olhos tinham perdido o brilho habitual.
A dor arrasou-a como um tornado de Verão.
Como se atrevia a senhora Mclntyre a dizer algo que pudesse magoar a sua mãe?
- Vamos comprar o tecido a outro lado.
- Mas aqui é mais barato e escolhi um que penso que vais gostar.
- Agora não nos podemos dar ao luxo de termos um vestido novo. Vamos respirar um pouco de ar fresco.
- Quero comprar-te este tecido para que se veja a beleza da minha filha - com a cabeça erguida apoiou-se na borda do balcão e recusou mover-se.
- Donna ajudou-me a escolher a mesma cor dos teus olhos e pedi tecido para um vestido e um chapéu.
Do outro lado da loja os miúdos riram-se dissimuladamente. Miúdos com idade suficiente para terem modos.
- Vamos, mãe.
- Ah, aqui está Donna. Quanto é que te devemos? Linnea leu a compaixão no olhar da empregada e enraiveceu-se pelo modo como tremeram as mãos ao tirarem uns quantos dólares do envelope que tinha no bolso.
Não tinha mais camisas para coser. Odiava fazê-las, isso era certo, um trabalho repetitivo e aborrecido que lhe provocava dor de costas e dos pulsos. Mas um trabalho que Lhe dava os rendimentos necessários para cuidar da mãe.
- O que é que ia fazer agora?
Agarrou a mãe pelo braço e conduziu-a até à porta. Os clientes já tinham voltado aos seus afazeres, mas os miúdos continuavam a apontar para ela. Nos seus lábios podia ler as palavras desagradáveis que lhe dirigiam. Palavras que sujavam o amor juvenil que tinha sentido uma vez, tão puro e inocente, por Jimmy McIntyre. - O Major já está à nossa espera? - perguntou a mãe, esforçando-se para parecer feliz, como se aquela fosse a verdadeira razão pela qual Linnea a tinha obrigado a sair da loja.
- Ainda não.
Sentia o coração quase a rebentar. Há muito tempo, tinha sido suficientemente estúpida para pensar que úm homem bonito podia escolhê-la.
Mas continuava a ser ridícula, mesmo sendo já uma mulher adulta.
- Vês por que deves abandonar essas esperanças estúpidas? - disse com rispidez - Sou demasiado velha para casár e uma mulher que cometeu os meus erros nunca tem uma segunda oportunidade.
- Eras jovem e estavas apaixonada. - Tu estás sempre disposta a perdoar, e eu não o suporto.
Não queria ferir a mãe, mas ali mesmo, na rua, estava a ver tudo o que não podia ter. Mulheres a descerem dos seus coches, com os filhos nos braços. Bebés saudáveis e lindos que mexiam os bracinhos no ar e emitiam uns sons adoráveis.
O buraco que tinha no coração abriu-se um pouco mais.
- Não pretendia magoar-te, minha filha - disse a mãe colocando uma mão no seu braço. Falei sem pensar. Tens razão, mas é que eu gosto de ti, minha linda fillha. Vejo em ti uma beleza que mais ninguém pode ver, porque todos estão cegos.
Linnea tirou a mãe do meio do passeio, onde mais pessoas passavam, com lágrimas enevoando-lhe o olhar. Gostava tanto da mãe que sentiu uma dor aguda. Que faria sem ela, sem o seu amor, que nunca tinha vacilado ou diminuído?
A voz de um homem que ordenava aos seus animais para pararem chamou-lhe a atenção, e viu Seth no cimo do banco da carroça. Estava maravilhoso, ainda que sujo aqui e ali pelo trabalho na terra. Tão nobre que a sua alma cantava só de o ver.
- Estas duas damas estão dispostas a voltar para casa?
Largou o freio e desceu com um pulo. Olhava-a com respeito; tratava-a como se não existisse nenhuma mancha na sua reputação. Como se as pessoas não coscuvilhassem já sobre o tempo que passava em sua casa.
- Por que é que não levas a mãe para casa? conseguiu dizer, contendo as lágrimas que lhe ardiam os olhos. - Preciso de dar um passeio.
- Mas Linnea... - queixou-se a mãe.
- Preciso de estar só - explicou, agarrando a sua mão, tão frágil. - Além disso, desta forma terás o Major só para ti.
- Tens cuidado, filha?
- Linnea, não nos vamos embora sem ti - as botas de Seth, sujas de pó, apareceram no seu campo de visão, mas ela não levantou o olhar. Teria ele também ouvido os rumores? - Sou um cavalheiro. Lembras-te? Não posso ir na carroça sabendo que tu vais a pé com este sol.
- Gosto de caminhar - mentiu como pôde e escapuliu-se rapidamente, tão depressa que quase caiu do passeio.
Não iria piorar as coisas lendo mais do que havia na sua amabilidade. Era um bom homem por dentro e por fora. E já estava na hora de ela deixar de sonhar com aquilo que não podia ser.
A partir daquele momento, colocaria as suas esperanças numa caixa fechada à chave. Por mais só que se sentisse, por mais vazia que encontrasse a casa quando a mãe fosse dormir, nunca mais voltaria a albergar esperanças, nem a sonhar, nem a acreditar.
Os seus braços ficariam vazios para sempre.
E nada nem ninguém poderia alterar isso.
A carroça de Seth estava à frente do celeiro e os bois estavam a pastar à sombra. O medo apoderou-se dela. Seth devia estar em casa, preso junto à mesa da sua mãe graças aos biscoitos de canela do dia anterior. Conhecendo a mãe como conhecia, esta não renunciaria a um gènro mesmo depois do que tinha acontecido.
- Linnea! - chamou-a. Estava no curral que havia atrás do celeiro, a agarrar o Mustang selvagem com uma corda e a força dos braços.
Não iria aproximar-se mais dele. Não depois do que tinha ouvido na cidade, por isso afastou-se, com esperança que o sussurro da pradaria a tranquilizasse.
Um coelho de cauda branca levantou-se sobre as suas patas traseiras para estudá-la, com as suas orelhas esticadas para trás e o focinho franzido.
Quando terminou, desatou a correr, desaparecendo por entre a erva alta.
Linnea subiu a um monte e deixou vaguear o olhar pelo horizonte, onde a terra e o céu se uniam para sempre. Como gostaria que o vento a levasse dali, para onde não existissem nem problemas nem acusações. Um falcão de cauda vermelha bradou do céu, sustendo-se sem mover nenhuma das suas penas vermelhas e fazendo círculos como se nada no mundo pudesse inquietá-lo.
Mas ela não podia ir para nenhum lado. Tinha de cuidar da mãe, daquela mulher encantadora doce e teimosa que se negava a deixar de a amar apesar dos muitos erros que pudesse cometer.
As cruzes mal se viam sobre a erva alta. Linnea ajoelhou-se perante elas e passou a mão pelas letras que ela própria tinha gravado. Olaf Holmstrom, seu querido pai. Ninguém podia trazê-lo de volta à vida, nem alterar a existência daquele segundo túmulo.
Quase que não podia olhar para as letras que tinha gravado naquela segunda cruz. Tremia de fraqueza depois de um parto muito prolongado e isso via-se na caligrafia tremida. Christopher Olaf Holmstrom, dizia, amado filho.
Deixou que as lágrimas escorressem pelo rosto e o rasgassem como garras. Lágrimas que se tinha negado a deixar sair na loja; depois de a senhora Mclntyre, avó do seu bebé, Lhe ter falado daquela maneira. Onde os outros se compadeciam por ela ou a desprezavam por aquele bebé que descansava na terra, o filho que não tinha chegado a respirar, nem a mexer as mãozitas ou a observar maravilhado o mundo.
A sua vergonha chamava-o. Mas para ela, era o seu filho e todo o seu coração.
Nada podia doer mais do que os sonhos destroçados, enterrados e sem vida.
Chorou até não ter mais lágrimas, até que ficou só o vazio e o vento a soprar sobre a pradaria, esquecido dela.
O latido nocturno do coiote convertia a pradaria num lugar quase sobrenatural. Linnea parou no primeiro degrau da escada ao ver uma luz pelas brechas da porta do estábulo. Seth estava ali.
Esteve quase a dar meia volta e a entrar de novo em casa. Era mais de meia-noite e não podia esperar mais para se ir deitar, assim baixou-se e enquanto transportava nos braços lenha para a manhã seguinte, manteve as costas encostadas ao celeiro com determinação. Com um pouco de sorte, ele não sairia até que ela pudesse estar de novo a salvo dentro de casa.
- Uh. uh. - piou o mocho que vivia no celeiro ao lançar-se sem o menor ruído sobre um ra tito de campo que corria assustado. Como um fantasma, levantou voo de novo com o roedor nas garras e desapareceu nas sombras.
- Estás bem?
A lenha caiu-lhe dos braços com o susto de ter ouvido de repente a voz de Seth atrás de si.
- Já é a segunda vez que me fazes o mesmo.
- Desculpa. É que os coiotes estão a uivar muito esta noite. Deve ser por causa da lua cheia
- atirou o chapéu para trás, mas o seu rosto permaneceu oculto nas sombras. - Hoje não vieste ao curral. Chamei-te.
- Tinha outras coisas na cabeça.
- Bem me parecia. Queres vir agora?
- Tenho que fazer umas coisas em casa. Baixou-se para apanhar a lenha, mas ele já estava ali, tão perto que os seus braços se tocaram.
Os seus olhos escureceram e viu que olhava para os seus lábios. Os de Linnea palpitavam esperando que ele os beijasse, e ao aperceber-se, levantou-se rapidamente, deixando que ele acabasse de apanhar a lenha. Entretanto, entrou para ir buscar a cesta e tirou-a do alpendre sem dizer uma palavra.
- Como é que te estás a dar com a égua? - perguntou-lhe ao subir as escadas.
- Não estou mal.
- Está quase curada. Hoje deixei-a correr no curral, mas sem Lhe tirar as cordas para que não pudesse saltar avedação. Já são amigas?
- Não quer comer da minha mão, mas quando me vou embora, come todas as maçãs que lhe levei.
- Dá-lhe tempo - deixou a lenha na cesta. - Eu estou quase a acabar de arar e semear. Hoje comprei a semente que me faltava.
- De certeza que Ginny te fica grata. Sentiu o estômago revoltar-se e entrou na segurança de sua casa.
- Linnea... tenho pena pelo que a Ginny te fez. A sua desculpa fê-la parar quando estava prestes a fechar a porta. Seth parecia um guerreiro no alpendre; forte e irredutível como a noite. Mas era a sua ternura que a comovia.
Aproximou-se um pouco. Um pouco não, demasiado.
- Ginny especulou com as amigas acerca do que tu e eu podemos estar a fazer juntos e não tinha o direito de te magoar.
- Não me magoou - respondeu sem dificuldade, porque não iria falar mal da familia de Seth.
- Penso que a partir de agora não nos deveríamos ver. Não quero dar aos vizinhos mais motivos para coscuvilharem.
- Não quero saber dos vizinhos - agarrou a sua mão e tirou-a da segurança da sala para a escuridão do alpendre. - Aprendi da maneira mais dura o que é importante e o que não é importante na vida.
- Eu também.
- Bem.
Aproximou-se com o olhar virado para a sua boca e o ar crepitou entre eles.
- Tenho de ir tratar da minha mãe - foi a única desculpa de que se lembrou ao mesmo tempo que lhe empurrava os braços. - Está a dormir, mas tenho de ir ver como ela está.
- Escuta - disse ele logo a seguir, agarrando-a pelos pulsos. - Os cavalos.
O retumbar de centenas de cascos à distância ia-se aproximando. E chegaram tão perto que pareciam voar sobre a planície, como se não fossem criaturas deste mundo. O chefe da manada levantou o focinho e relinchou e o seu grito solitário ecoou nas pradarias.
A égua dentro do estábulo respondeu com melancolia.
- Parece sentir-se sozinha.
- Sim.
Linnea voltou a escutar o chamamento do garanhão e a resposta da égua. A manada saltou a vedação e entrou nos seus pastos.
- Nunca estive tão próximo de uma manada selvagem. Observa-os.
Seth tirou o chapéu, observando-os com reverência e desejo.
Os chamamentos da égua saturaram Linnea até esta não poder mais e, afastando-se de Seth, desatou a correr. As suas saias enrodilharam-se na erva e esteve quase a cair, mas continuou a correr. A quatro ou cinco metros da vedação, o relinchar do garanhão rasgou a noite e pateou o ar.
- Linnea!
Seth estava nas suas costas. Ia pará-la e ela não queria. Já tinha bastante solidão, mais tristeza da que era suportável. Com todas as suas forças, abriu a porta e entrou a correr na escuridão.
- Linnea, espera! Pode magoar-te!
Seth tinha adivinhado as suas intenções e agarrou-a por um ombro, mas ela soltou-se, chegou à porta da cavalariça e levantou o fecho.
- Não penso mantê-la presa!
Não estava a chorar, mas tinha a face molhada ao abrir a porta.
- Linnea! - exclamou ele uma vez mais, tentando agarrá-la, mas ela soltou-se, procurou a corda que prendia a égua e soltou-a.
O animal retrocedeu. Seth encurralou Linnea contra a parede e a Mustang saiu rapidamente a galope e com relinchos triunfantes. chamamentos que fazia à manada para lhes dizer que voltava a ser livre.
Linnea sentiu-se melhor, mais forte. Apertada contra o peito de Seth, podia ouvir o bater rápido do seu coração. Teria tido receio por ela?
Os seus olhares encontraram-se na escuridão. Com a escassa claridade da lua que entrava através das tábuas envelhecidas, pôde ver o seu medo.
- Podia ter-te dado um coice - disse, apertando-a entre os braços - Ainda bem que estás bem.
- Estou bem.
Sentiu que lhe acariciava o rosto e quis render-se às suas carícias, fechar os olhos e deixar que fizesse desaparecer a solidão. Necessitava do seu beijo, ansiava pelas suas carícias.
Teve que fazer um esforço enorme para sair do refúgio dos seus braços e dirigiu-se para a claridade da luz que entrava pela porta. Qualquer coisa para se afastar dele.
- Linnea... - ouviu os seus passos atrás de si. Estou a começar a ficar farto de te perseguir. Podes dizer-me porque é que soltaste a égua. Hoje tinha feito alguns progressos com ela.
- Merece ser livre.
- A liberdade pode ser perigosa. Foi por isso que acabou aos teus cuidados.
- A vida em si é perigosa. Não se pode evitar.
- Não me referia a isso. Tu tinhas algo para lhe oferecer: úm lugar seguro onde viver. Feno e cereais e uma cama cómoda todas as noites.
- Mas ela queria ser livre.
- Com o tempo, teria sido um bom cavalo para ser montado é teria sido feliz.
- A sério, imagina-la aqui por vontade própria? Olha - apontou para o horizonte, no qual a manada de Mustang era apenas uma silhueta. - Escolheu e eu estou contente.
- És uma mulher incrível Linnea Holmstrom - disse e parecia aborrecido mas também intrigado.
- Há alguma possibilidade de me convidares para beber um chá ou outra coisa?
- Nem a mais remota.
E deixou-o à porta do celeiro, banhado pela luz da lua, tão confuso como ela.
Tinha sido má para ele, e essa maldade pesou-lhe na consciência enquanto apagava a luz da sala. Assim não voltaria a chamá-la. Assim não tentaria conseguir o beijo que ela lhe tinha recusado.
Mas sentou-se junto à janela e viu-o a ir para casa, a cabeça baixa, o chapéu na mão.
Tinha-o ferido, quando a única coisa que queria era manter a distância entre eles. Preocupada, apoiou o rosto no cristal frio. Fez o que tinha a fazer, mas não se sentia bem. Nem um bocadinho.
- Não te ponhas a lavar agora, filha. Fá-lo mais logo, quando voltares da cidade.
- Não vou à cidade - Linnea afundou o caneco no balde de água fresca do poço e bebeu com pra zer. Sentia-se pegajosa e suja de tanto acartar água do poço e doíam-lhe as costas e os braços. Deixou a concha no balde. - Já devia ter começado a lavar.
- Linnea, diz-me por que é que a lenha está no alpendre.
- Não quis que o Seth entrasse em casa ontem à noite.
- Esteve aqui? - maravilhou-se a mãe, como se tivesse acontecido o milagre da criação. - Que pena que estivesse a dormir. Ofereceste-lhe biscoitos de canela? Ontem gostou tanto deles.
- Veio trazer-te a casa?
- Claro. Deixou isto. Quer que continues a costurar para ele - mostrou-Lhe umas calças verdes. Disse-lhe que fosse a casa e trouxesse as suas calças favoritas, para que tu pudesses tirar um modelo.
Quer que lhe faças quatro pares, três são para trabalho.
- Não vou costurar para ele.
Ia-se embora mas parou ao ver a nota de vinte dólares que a mãe lhe mostrava.
- Se é pelo que aconteceu ontem.
- Não é pelo que aconteceu ontem - abriu a porta e atulhou os braços de lenha - é porque há que fazer o que há que fazer. Tem uma irmã que lhe pode costurar tudo o que quiser e metade das mulheres solteiras da cidade.
- Mas prefere-te a ti.
Linnea entrou em grandes passadas e deixou a lenha no chão à frente da cozinha. Ferida e furiosa, tentou deixar de pensar no ocorrido no dia anterior, mas como consegui-lo?
Desde que permitira que Jimmy McIntyre a deixasse grávida aos dezasseis anos, as difamações sobre ela não tinham parado. Nem tão pouco as invenções. Se tudo o que diziam fosse verdade, tinha ido para a cama com metade dos homens do condado.
Mas não iria permitir que coscuvilhassem sobre Seth e ela. Meteu umas cavacas de madeira na cozinha e viu as chamas crescerem.
- Perdeste o trabalho da cidade. Que mal te pode fazer costurar umas quantas roupas para um homem solteiro que não sabe costurar? Além disso, acho que tem problemas com a irmã. Tenho a impressão de que não confia nela.
- Não tenho nada a ver com isso.
Recordar a noite anterior e como Seth se tinha afastado, caminhando com a cabeça cabisbaixa, era como andar sobre brasas para a sua consciência.
- Por favor, filha, pensa bem mas não terminou a frase. - Há alguém no jardim. Um coche só com um cavalo. Não conheço ninguém com um coche...
- Vou ver quem é.
De facto havia um coche elegante parado à sombra do celeiro, puxado só por uma égua que já mordiscava a erva. Uma mulher bonita vestida com uma blusa azul-turquesa e saia preta caminhava em direcção a sua casa. Um chapéu a condizer enquadrava o seu rosto.
O seu coração gelou. Sabia exactamente por que vinha: queria devolver-lhe o edredão.
- Bem-vinda, senhora Jance.
- Gosto de te voltar a ver, Linnea. Por favor chama-me Ellie. Esta senhora é tua mãe? Muito prazer, senhora Holmstrom.
- Fico tão contente por nos ter vindo visitar exclamou a mãe, entrelaçando as mãos e sorrindo de felicidade. - Não consigo dizer-lhe a quantidade de coisas boas que tenho ouvido sobre o seu estabelecimento. Deve ser uma modista com muito talento.
- Pois isso não sei, mas tento conduzir o meu negócio da melhor forma possível e por isso vim aqui. Vendi o teu edredão de retalhos, Linnea - Abriu o porta-moedas e tirou dez notas grandes - estes são os sessenta por cento que te correspondem.
Não podia ser verdade. Linnea sentiu as pernas a fraquejar e teve que apoiar-se.
- Vendeu-o?
- Já agora gostaria de saber se tens algum outro que possa expor na montra.
- Vendeu-o de verdade?
Não podia acreditar que aquilo estava realmente a acontecer. Alguém da cidade tinha comprado o seu edredão e tinha dado tanto dinheiro
por ele?
- Um homem jovem comprou-o para a futura
esposa.
- Filha, o que é que se está a passar? Não me tinhas contado - que feliz e orgulhosa parecia a mãe. - O trabalho da minha filha esteve exposto na sua loja, senhora Jance? Não posso acreditar que esta criatura horrível tenha sido capaz de não me dizer nada para eu me poder envaidecer!
- Mãe! Adivinha porque é que não te disse - Linnea conúnuava a não acreditar que a senhora Jance trazia algo mais do que dinheiro.
- Quer mais edredões?
- A minha filha tem mais - exclamou a mãe. A senhora Jance conteve o riso.
- Trar-lhe-ei o que tenho - Linnea guardou o dinheiro no bolso. - Ainda que tenha vendido o melhor.
- Isso não tem importância. De certeza que os outros também são lindíssimos.
As mãos tremiam-lhe quando se ajoelhou perante o baú do quarto. E se não gostasse deles? Tinha muito poucos sem estarem estreados e todos eram de desenhos tradicionais que tinha retirado do livro que o pai lhe tinha dado como prenda quando completou catorze anos.
Os quadrados não lhe pareceram bonitos. Se pudesse começar um novo...
- É lindíssimo - a senhora Jance agachou-se junto a ela e olhou, sorrindo, o desenho de casulos
rosa e folhas verdes, feitos de algodão rosa e branco.
- Não tem retalhos como o outro.
- Mas é feminino e muito bonito - a senhora Jance tirou-o do baú e estendeu-o sobre a cama. É uma maravilha. Posso levá-lo?
Linnea concordou.
- Tenho aqui outro com um cesto de flores. Fi-lo de memória a partir de um desenho que vi
num livro.
A senhora Jance passou a mão pelo centro do motivo.
- Também o levo. Que é que achavas de costurar um para mim? Tu escolhes o motivo e eu dou-te os tecidos da loja. Depois fica cinquenta por cento para cada uma.
- Está bem.
Como é que podia dizer que não? Já não tinha de voltar a fazer colarinhos, nem alinhavar mangas, nem fazer buracos para os botões.
- De acordo. Então levo estes dois e espero que passes depressa na loja. Sei que vou ter muito pra zer em trabalhar contigo, Linnea.
Ellie Jance foi-se embora com os edredões nos braços.
- Não sei como é que me pudeste esconder uma coisa assim - repreendeu-a a mãe. - Tivemos cá uma sorte. O que é que eu sempre te digo? Quando se fecha uma porta abre-se uma janela.
- Sim, mãe - riu-se. Não podia evitá-lo: Estava tão feliz. Tinha muitas bênçãos. Não podia pedir mais.
- Vais-te embora? - perguntou Ginny nas sombras da noite.
Seth sentiu que os músculos do pescoço faziam um nó. Em vez de se virar para olhar para a irmã, continuou a dobrar as camisas, colocando- as ordenadamente sobre a cama.
- Vou para o telheiro. - Mas aos anos que está abandonado.
- Eu vou arranjá-lo - respondeu num tom neutro. Chatear-se com Ginny não resolveria nenhum dos problemas.
- Mas prometi que cozinharia e cuidaria da casa em troca da tua ajuda.
A tristeza inundava as suas palavras. Oxalá também o arrependimento.
- Eu posso cozinhar. E de vez em quando podes convidar-me, se quiseres.
- Não deveria ter dito essas coisas sobre Linnea.
- Claro que não - enfurecia-o o facto dela não ter pensado nisso antes. Ginny tinha aprendido a bater e a esconder a mão e lamentá-lo quando já era tarde. - As horas do dia não me chegam para fazer tudo o que tenho de fazer, mas tu pareces ter tempo suficiente para destruir tudo em que tocas.
- Não era essa a minha intenção.
- Era sim.
Não ia engolir isto. Tinham vivido na mesma casa durante um tempo. O pai era um homem cruel que tinha por costume atacar e retirar-se, cordial até que encontrava a debilidade do outro. Ele não tinha que voltar a passar pela mesma situação, ainda que agora estivesse oculto atrás dos silêncios de Ginny e das suas tentativas para lhe agradar. E o seu ódio.
- Dei a minha palavra. Isso é a única coisa que me retém aqui - tirou as peúgas da gaveta superior da cómoda. - A única.
- Se te fores embora, vamos morrer de fome. Casei-me com um homem das familias mais ricas da cidade para que tivesse todas as necessidades cobertas e para que o meu filho não tivesse o tipo de vida que nós tivemos de suportar.
- Pobres ou ricos, no campo ou na cidade, não há diferença - meteu com demasiada força as peúgas no saco. - A esta altura já deverias sabê-lo. A tua casa preciosa não te protegeu da realidade, não?
Ela baixou a cabeça e olhou para o chão, e ter-se recusado a fazer frente ao que tinha feito, a ser responsável, chateou-o ainda mais.
Fechou o saco e colocou- o ao ombro.
- Tens um filho saudável. Eu sentir-me-ia feliz por ele e levaria a minha vida a tentar tornar a sua o melhor possível, em vez de te lamentares por seres uma mulher indefesa que não fez nada de errado.
- Pensas que estou errada.
- Não penso: sei-o.
- Entendo - houve uma pausa. - Estás aborrecido porque o meu filho está vivo e o teu não.
- De acordo. Fiquemos por aqui se preferes.
Já estava farto daquela casa, escura e opressiva, e da sua passividade.
Desceu dois a dois os degraus da escada do sótão. Sentia uma opressão no peito, uma espécie de claustrofobia que não o deixava respirar. Tinha ficado demasiado tempo naquele lugar.
- Inga Neilson viu Jimmy na pradaria uma noite em que ela voltava tarde de uma reunião na igreja. Voltava a cavalo muito contente, a assobiar, e nessa direcção só ficava a casa dos Holmstrom. Estava com Linnea. Eu sei.
Seth abriu a porta e foi ao telheiro e a escassa luz da lâmpada da cozinha foi suficiente para sair.
- A tua amiga Linnea já esteve com ele antes, quando Jimmy e eu estávamos comprometidos. Sabias?
- Basta - disse em voz baixa, mas o seu olhar bastou para que ela baixasse a cabeça, não sem que ele antes pudesse ver a amargura e o ódio nas suas feições.
- Pensei que devias sabê-lo - continuou. - Não quero que te magoe.
- Tu não tens nada que me dizer como é que eu devo viver a minha vida e não quero ouvir nem mais uma palavra contra Linnea.
- Mas é que.
- Nem uma só!
A noite tornou-se mais escura, e Ginny era só uma sombra quando a lua ficou oculta atrás das nuvens.
- Está bem. Lamento - sussurrou, e as suas palavras soaram a derrota.
Não estava convencido que lhe estava a dizer a verdade, mas o tempo Lhe diria.
- Não penso ceder nisto, Ginny. Basta de bisbilhotices. Basta de comentários cruéis.
- Ela não é a mulher que tu pensas que é.
- Nem tu. - foi-se embora. Ouviu-a chorar, mas não deu a volta. Sentia pena da irmã mas tinha que amadurecer.
O telheiro não era mais que uma cabana construída num pequeno monte atrás da horta. A porta rangeu ao abrir-se sobre as dobradiças enferrujadas e faltavam bocados do telhado, mas ele trataria de o arranjar.
Deixou o saco no chão. Não estava frio, por isso não acendeu o lume na lareira que tinha reparado umas horas antes. Estendeu o saco de cama e tirou as botas.
Tinha que fazer algumas mudanças na sua vida, ainda que não soubesse como é que as iria fazer. O que é que teria de fazer para conseguir que Linnea fosse sua esposa? Do saco tirou a prenda que a senhora Jance tinha embrulhado, puxou o fio suavemente e abriu-a. Gostaria de um presente como aquele e com o dedo traçou o perfil de um dos dedais.
Linnea estava muito aborrecida com ele e talvez tivesse direito a estar. Tinha tentado beijá-la. Bastava pensar nela para se sentir invadido pela felicidade. Um fechar de olhos chegava para a imaginar com os seus caracóis louros a brilharem ao sol como se fossem ouro. Gostava da sua cara e do seu sorriso, da sua forma de rir e de quem era. O desejo palpitou nas suas veias e excitou-se só de pensar como seria se tivesse direito a fazer algo mais do que beijá-la.
Ela desejava-o? Todo o seu futuro dependia da resposta a esta pergunta. A julgar pela forma como se tinha comportado na noite anterior; não podia dizê-lo.
Uma coisa era certa: não iria ficar ali sentado a pensar nisso. A sua vida já estava vazia há demasiado tempo.
- Já não te via há muito tempo - foi o cumprimento da Linnea ao vê-lo chegar.
Seth colocou o chapéu para trás e demorou algum tempo para decidir o que. é que havia de dizer Se errasse, tinha a impressão de que ela ficaria logo de garras afiadas, e isso era o. que ele não queria.
- Tenho estado bastante ocupado nas terras.
- As tuas plantações estão a sobreviver à seca?
- Por enquanto, sim.
- Fico contente - respondeu, e afundou os braços na bacia de lavar, cheia de água com sabão. Já te disse que não vou costurar para ti. Deixa- me devolver-te o dinheiro.
- Fica com ele por causa da vaca.
- Já está boa. Já teve o vitelo há alguns dias. Quando quiseres ir, podes levá-la.
Esfregou uma peça de roupa contra a tábua de lavar, furiosamente, e não disse mais nada.
Pelo que parecia continuava chateada por causa do beijo.
- Major! Como fico contente de o voltar a ver - o acolhimento da senhora Holmstrom foi para ele como um porto seguro na tempestade. - Se esperar uns minutos, irei tirar o bolo do forno.
- É impossível resistir aos seus doces. Trouxe-lhe uma coisa - da parte de trás da carroça tirou um animal peludo. - Esta manhã comprei um a Ginny. São da senhora Neilson, e lembrei-me de trazer um para as minhas damas favoritas.
- Não pode ser! Um gatinho? - como se pudesse ver, a senhora Holmstrom virou-se para a criatura silenciosa. - Isto é demasiado, Major. Não podemos pagá-lo.
- Não é necessário, senhora. É um agradecimento pela amabilidade que têm tido para comigo. É uma gatinha linda, preta com tons de branco.
E colocou-a nas suas mãos.
- Que linda é. Sempre tive gatos, o último era um animal muito carinhoso que ficou doente o ano passado. Como senti falta da sua companhia. Linnea, vem ver o que o Major nos trouxe.
- És muito generoso.
Linnea aproximou-se das suas costas e a sua presença foi como uma carícia.
Era difícil não pensar em beijá-la.
- Vim para instalar o moinho de vento que prometi.
- Uma bomba para a água? - perguntou a senhora Holmstrom, como se as palavras fossem demasiado boas para serem verdade.
- Exacto. Linnea não terá de acartar mais baldes de água nem para casa nem para o celeiro:
- Bendito Deus, o senhor é uma bênção. É melhor ir ver do meu bolo.
Entrou com a gatinha nos braços.
- Fizeste a minha mãe muito feliz.
- Fico contente, porque assim espero que não continues chateada comigo.
- Não estou chateada contigo.
- Pois. Por isso é que fizeste essa cara ao ver-me chegar - ela pareceu conter um sorriso, o que era um progresso. - Devo-te uma desculpa.
- Não. Sou eu que te devo uma, por ter deixado fugir a tua égua. Não pensei bem no que estava a fazer Podia ter valido mais de cem dólares e foste tu que a apanhou e curou as suas feridas. Pertencia-te.
- Isso não me preocupa. Não devia ter tentado beijar-te.
- Pois é. Não devias.
Deu a volta e voltou à sua bacia para continuar a lavar.
Tinha-a magoado mais do que ele pensava. Uma mulher bela como ela que tinha de enfrentar rumores desse tipo quando era a inocência personificada, uma mulher amável e simples como as flores da pradaria.
- Lamento ter querido beijar-te.
Linnea tirou por instantes o olhar do que estava a fazer. A ira tinha desaparecido.
- Estás desculpado. Já está tudo esquecido.
- Esquecido, não - passou os dedos pelo seu rosto e o veludo da sua pele fez-lhe disparar o sangue. - Não sou capaz de compreender porque é que não estás casada.
- Já estiveste na cidade, por isso sabes porquê. Para mim os sinos da igreja não vão tocar.
- Algum dia irá chegar um homem para te cortejar, vais ver.
Ela separou-se e a luz que brilhava nos olhos apagou-se como um fim de tarde. A água salpicou ao esfregar um lençol contra a tábua.
- Um homem que me queira cortejar? Esse homem não existe. O que sempre terei são homens, como tu, que tentam roubar-me um beijo na escuridão.
Continuou a esfregar com força o lençol e Seth teve a impressão de que chorava, ainda que não tenha visto lágrimas a escorrerem-lhe pelo rosto. E continuou a esfregar como se não tivesse compreendido o que ele tentava dizer.
O sol queimava-lhe as costas e os músculos ardiam-lhe por estar a cortar madeira, mas não foi por causa disso que deixou de o fazer. Tinha passado a manhã a cortar madeira. Meteu a mão com a luva na lata dos pregos e encheu o bolso. Olhou para Este, para o cimo da estrada que ocultava a granja dos Holmstrom.
Mas na sua mente viu Linnea. esbelta e cheia de graça, o vento a ondear as suas saias, o sol a resplandecer nos seus cabelos. O sorriso que suavizava os traços do seu rosto e mostrava o seu coração. Teria chorado depois de ele se ter ido embora ou iria esperar pela noite para que ninguém a pudesse ver?
Um movimento na pradaria fê-la pestanejar, mas a sua imagem continuou ali; as saias a esvoaçarem ao vento e abraçando as suas curvas de mulher. Um chapéu dava sombra ao seu rosto e tapava os seus caracóis dourados e desejou poder tirá-lo para dançarem ao vento. Para poder entrelaçar as suas mãos neles e beijá-la uma vez mais.
- A trabalhar?
Colocou uma mão sobre os olhos para os tapar do sol.
- Pelo menos tento. Espero ter isto terminado dentro de poucos dias.
O vento colava-lhe o vestido como se fosse uma segunda pele e nem os corsários; nem o corpete podiam ocultar as suas ancas e os seus seios. Uns seios tão bonitos", pensou. Não era cavalheiro da sua parte reparar em algo assim, mas não conseguiu evitá-lo.
- A minha mãe manda-te isto - disse, oferecendo-lhe um prato tapado com um guardanapo no qual ainda não tinha reparado: - Não queria que tivesses de voltar a tua casa para ires comer Desta vez, penso que os seus motivos são sinceros. Finalmente, aceitou que não vais ficar para sempre, por isso estás a salvo.
- Desde que me deixe provar o que sai da sua cozinha, perdoarei qualquer coisa.
- Ah, é? Pois eu não.
Mas o seu sorriso dizia o contrário.
Só o vento os separava quando deu mais um passo para agarrar o prato. Estavam suficientemente perto para poder ver o violeta dos seus olhos azuis e o ligeiro tremèr dos seus lábios. As suas mãos tocaram-se e, mesmo por cima das luvas de couro, a pele arrepiou-se.
Estava linda quando as maçãs do rosto ganhavam aquele delicado tom rosa.
- A mãe deu-te duas fatias de tarte, na esperança de te conquistar por seres tão guloso, mas não te preocupes, já lhe disse que um homem com o teu físico não pode estar à procura de esposa.
- O que é que tem o meu. físico?
- Ah, tolices... refiro-me ao facto de seres careca e ao infeliz tamanho do teu nariz.
- E ela acreditou?
- Sim. Mas como continua encantada contigo terei de a colocar ao corrente das tuas outras desagradáveis qualidades.
- Que são.
- Suficientemente desagradáveis para desanimá-la por completo - sorriu. - Espera até que lhe fale da tua paixão pelo jogo.
- Não digas tudo de uma só vez, Linnea, não quero que deixe de me dar de comer.
Ela desatou a rir e ele sentiu-se como novo. A sua boca era suculenta, os seus lábios de um rosa escuro que o fizeram engolir saliva como uma abelha que corteja uma flor.
De imediato, ela deu a voltta, como se não pudesse esperar para se afastar dele.
- Linnea, vais deixar-me assim?
- Claro. Porque não? Já és crescido para comeres sozinho - tirou suavemente o seu chapéu. - A mãe queria convidar-te para ires comer lá a casa, mas eu disse-lhe que não, porque seguramente não querias interromper o teu trabalho.
- Pois. Por que é que haveria de me querer sentar um pouco à sombra?
- Isso foi o que eu pensei. És um Major do exército, um homem duro acostumado a comer tendo as moscas como companhia.
- Moscas? Eu não atraio moscas.
- Isso é o que tu pensas.
Deixou-o a rir-se e a ver como se afastava. Tinha sido impossível, com o vento a abanar-lhe o vestido daquela maneira.
Viu-a parar para apanhar umas flores, certamente para a mãe; antes de entrar em casa. Assim era Linnea, sempre dependente da mãe. - Alguma vez lhe tinham levado flores a ela?
A ternura cresceu dentro dele até lhe encher o peito e lhe doer como uma ferida, mas não teve medo. O amor tinha chegado à sua vida pela segunda vez como um milagre de Verão nas pradarias, e não iria deixá-lo fugir.
A manhã chegou à pradaria não com um sussurro, mas com uma celebração. Os cantos dos pássaros anunciaram a aurora antes que o primeiro raio de luz irrompesse a escuridão do horizonte.
Seth respirou fundo o ar perfumado da manhã. Á fragrância das flores silvestres e as ervas im pregnavam tudo com um perfume que antes lhe era desconhecido, um perfume que lhe lembrava Linnea a apanhar o primeiro punhado de violetas.
A primeira pincelada de ouro sobre as colinas do Este fez com que o mundo brilhasse com uma claridade estranha. Então os raios dourados expandiram-se, e o rosa e a lavanda fundiram-se no horizonte e pintaram as nuvens. O céu tornou-se cor de pêssego no horizonte.
A terra parecia esperar num silêncio imprevisto e Seth deixou as flores e o dedal na sua caixa, à frente da porta de Linnea. A emoção palpitava-lhe no peito com o barulho de um comboio que se aproximava. E, quando o sol se ergueu para iluminar aquele recanto do mundo, sentiu que acontecia o mesmo no seu coração.
- Mãe, tenho que ordenhar as vacas - ouviu Linnea dizer dentro de casa. - Hoje temos que fazer manteiga.
A maçaneta da porta rodou e Seth correu para se esconder na erva alta. Levava duas vasilhas de leite, uma em cada mão, e fechou a porta com o pé. As saias embrulharam- se nos tornozelos ao parar de repente, e viu-a olhar boquiaberta para a prenda.
Seth secou as mãos nas calças. Tinham começado a suar. Será que não gostava das flores? Teria errado ao fazer aquilo?
Viu-a deixar as uasilhas no alpendre e baixar-se para as apanhar e depois, uma vez nos seus braços, acariciar as pétalas delicadas.
A sua cara tinha um sorriso? Não podia saber ao certo, mas se o coração continuasse a bater daquela maneira, ia matá-lo. Era demasiado velho para aquilo.
Levou as violetas azuis à cara e cheirou-as com os olhos fechados, como que a saborear a sua fragrância e a sua beleza.
As pernas fraquejaram e teve que sentar-se totalmente no chão, e mudo de felicidade, continuar a contemplá-la.
De seguida viu-a tirar o dedal e examiná-lo, passar os dedos sobre as delicadas flores que o adornavam. Olhou para ambos os lados e a sua boca curvou-se. Naquele sorriso, Seth viu o seu futuro.
Linnea olhou para o dedal que tinha na mão. A superfície brilhava pálida como manteiga acabada de fazer. Passou o dedo pela sua superfície, irregular por causa das flores que tinha pintadas.
Tão delicado. Tão caro. Não tinha nada igual. Quem poderia ter-Lhe levado algo assim? Porque não podia ser para a sua mãe.
Não conseguiu deixar de pensar nele toda a manhã. Tinha posto as flores numa jarra em cima da mesa e levava o dedal no bolso, um peso real e inegável.
Ordenhou as poucas vacas que restavam no estábulo, entregou o leite à carroça que passava diariamente para o recolher e deu de comer aos vitelos. A sua mãe tinha pão torrado, ovos e presunto prontos quando ela voltou para casa.
"Que nem te passe pela cabeça pensar que alguém pretenda cortejar-te, Linnea. Isso não vai acontecer" A meio do pequeno-almoço, a mãe pôs o copo de leite em cima da mesa e inclinou a cabeça.
- Meu Deus, pensas que será o Major, tão cedo? Não sei se frite mais ovos.
Seth? Linnea levantou-se da cadeira como um raio e foi olhar pela janela.
Ia a conduzir a carroça, seguro de si mesmo, confiante, amável. O homem dos seus sonhos. Fez parar os bois no jardim.
- Como estão nesta manhã tão maravilhosa? perguntou, levando a mão ao chapéu.
- Bem, até que tu apareceste. Continuas a atrair moscas, pelo que vejo.
- Bem, sendo o macho da espécie, suponho que não se pode evitar. Mas se queres ter água corrente na cozinha, eu no teu lugar pensaria em não fazer esse tipo de comentário até que eu tenha terminado.
- Água corrente? Isso é possível, Major? - A mãe atravessou a cozinha num instante e saiu para o alpendre. - Eu pensava que ia só instalar uma bomba no jardim. Agua dentro de casa! Que luxo! Não sei como começar a agradecer-lhe.
- Certamente vai aumentar-te a renda, mãe.
- Ou também poderiam convencer-me a chegar a um acordo. Digamos uns quantos biscoitos de canela e temos um trato.
Queria continuar zangada com ele. A sério que queria. Mas de repente ele piscou-lhe o olho, aquele maldito homem que pensava poder beijá-la sempre que quisesse, e soube que estava perdida. A zanga desapareceu como folhas levadas pelo vento.
O que é que lhe tinha dito? Algum dia virá um homem para te cortejar, vais ver.
Não foi ele que te deixou as flores, Linnea". Mas desejava que tivesse sido ele, porque signifi caria que a via a ela, e não à mulher de que falavam as más-línguas da cidade.
- Major, venha sentar-se connosco à mesa. Vou fritar mais ovos.
- Gostaria muito de aceitar, mas é que já tomei o pequeno-almoço, amanhã quem sabe?
- Maravilhoso - respondeu a mãe.
- Não sei, mãe... já lhe estamos a dar de comer ao almoço. Na melhor das hipóteses devíamos co meçar a cobrar. Digamos que um dólar a refeição.
- Há alguma possibilidade de que me façam um desconto?
- Não ligue, ela está a brincar, Major! Faz o favor de te comportares, filha.
Rindo, Seth pôs a carroça em marcha e olhou Linnea nos olhos, descarada e confiantemente.
Que ia fazer com aquele homem?
Na manhã seguinte, voltou a encontrar violetas azuis na porta de casa. Eram selvagens, sim, mas as suas preferidas.
Quem as teria deixado?
Aproximou-se do caminho, mas não havia pegadas recentes que viessem da cidade. Mas Seth já tinha chegado, a julgar pelas pegadas dos bois e das rodas de uma carroça bem carregada.
Correu para a parte traseira e viu-o a trabalhar com uma pá na mão. Cumprimentou-a com um aceno e continuou com o seu trabalho.
Não tinha deixado as flores, raciocinou. Por que o faria? O que era possível era que tivesse visto quem o tinha feito.
Esquecendo-se das tarefas que a esperavam e das promessas que tinha feito a si mesma de não ficar sozinha com Seth Gatlin, caminhou em direcção a ele. Seth limitou-se a levantar os olhos por um instante. De imediato compôs o chapéu e continuou a trabalhar no mesmo ritmo, quase como se esperasse que ela passasse ao longe.
Claro. Agora que já não deixava beijá-la, não queria falar com ele.
- Não é um pouco cedo para andar a arrancar flores? - comentou quando ela estava mais perto.
- Ou quem queres arrancar daqui sou eu? Linnea ficou envergonhada. Ela tinha começado a batalha, decidida a mantê-lo o mais longe possível. Então viu que tentava conter o sorriso. Estava a fazer troça dela.
- Um homem a quem vão convidar para tomar o pequeno-almoço deveria dizer coisas mais agradáveis. Agora vou recolher os ovos, e não seria muito difícil que eu tropeçasse e que os ovos caíssem. Além disso, a minha mãe não saberia se os ovos se tinham partido primeiro na cesta ou noutro lugar.
- Ganhaste. A partir de agora, serei mais amável - apoiou-se na pá e sorriu. Um sorriso cativante, tão tentador que deveria ser ilegal. - Vi flores na tua porta quando cheguei. Então tens um admirador secreto.
O seu olhar estava cheio de malícia, mas as palavras pareciam tão sinceras que não soube se havia de acreditar nele ou não.
- Por acaso não viste ninguém.
- Não. Não vi vivalma.
Não pestanejou. Uma única vez.
- É a segunda manhã seguida. Não foste tu que mas deixaste, não é verdade?
- Não - negou com a cabeça, mas o seu olhar foi como uma carícia no rosto. - Vês? Não te disse que um dia viria algum homem disposto a cortejar-te?
Sei, disseste-me - deu um passo para trás, olhando-o fixamente. - Se alguma vez vires quem me deixâ as flores, dizes-me?
- Tens a minha palavra.
E voltou a empunhar a pá, com mãos fortes que ela sabia também poderem estar cheias de ternura.
Recordando a sensação de tê-las no rosto, no calor dos seus beijos, abraçou as flores com cuidado e voltou para casa.
Linnea secou o suor da testa com a ponta do avental. Ainda que tivesse apagado o fogo, o ferro da cozinha continuava a emanar calor.
Esgotada depois das tarefas da manhã e de cozinhar com aquele calor, tapou o frango com um trapo.
Ouvindo um miar que vinha da almofada da mãe, Linnea afastou a ponta da toalha de renda e encontrou a gatinha que se aproximava do frango, agachada.
- Os gatos não podem subir para a mesa - disse-lhe, pondo-a no chão. A gatinha protestou com outro miar, é que o frango cheirava tão bem.
Levou a cesta da costura para o alpendre e inspirou a &escura da brisa. O Verão estava quase a chegar. Sentia-se o cheiro na erva e na terra.
As folhas das árvores de fruto estremeciam alegremente e o odor doce das maçãs, pêssegos e peras que cresciam nelas era tão intenso que o estômago protestou.
As agulhas da mãe pararam. Estava sentada num banco à sombra.
- Já acabaste de cozinhar? Agora que eu ia entrar para te ajudar.
- Tu não tens que apanhar calor e não se fala mais nisso - Linnea deixou a gatinha, que só lá ficou unz segundos. - Talvez amanhã não faça tanto calor.
- Não me parece. O Verão veio mais cedo. Está calor mesmo à sombra.
- Queres que te traga um pouco de água?
- Mimas-me demasiado, filha. Senta-te e faz-me companhia. O Major já deve ter cavado bastante. Creio que já vai a meio caminho da distância que o separa da casa.
Linnea sentou-se no banco, que casualmente Lhe oferecia uma vista perfeita de Seth Gatlin. A pá enterrava-se na terra uma e outra vez. Tinha um corpo bem proporcionado, com ombros largos, ancas estreitas, e pernas fortes.
Ela não deveria estar a reparar nessas coisas.
- Vou pôr mais fio - disse a mãe. - Não, não preciso de ajuda e em casa já não fará tanto calor, agora que acabaste de cozinhar. Senta- te e descansa, Linnea. Trabalhas demais.
- Há muito que fazer.
Não se importava e enquanto viu a sua mãe en trar em casa sem percalços, fechou os olhos e deixou que a brisa a refrescasse.
- A sonhar com o teu admirador secreto? Abriu os olhos e viu Seth a caminhar pela horta.
- Parece-te divertido que uma solteira como eu esteja a receber flores de um desconhecido, não?
- Em absoluto. És uma mulher muito atraente Linnea.
- Em risco de perder a reputação.
- Isso incomodaria um homem inteligente.
- Quem por exemplo?
Seth apoiou o ombro contra o tronco da árvore e os seus olhos escureceram como a noite enquanto pensava na resposta.
- Pois, por exemplo, o homem que comprou a tua colcha na loja da senhora Jance. Pode ser que seja ele que te deixe as flores.
- Como sabes que foi um homem que comprou a colcha?
Não suportava pensar que podia estar a rir-se dos seus sentimentos.
- Eu estava na loja da senhora Jance nesse dia e vi tudo. A viúva Johanson também lá estava e ficou muda, garanto-te.
Tirou o chapéu e a brisa remexeu-lhe o cabelo.
Parecia selvagem, indomado e tão desejável que não se atreveu a sonhar.
- Achas que o mesmo homem que comprou a colcha me deixou as flores?
- De certeza que sim.
- E quem é?
- Não te vou dizer. O romantismo da história perder-se-ia - baixou- se diante dela até ficar à mesma altura: - E não ia querer fazê-lo.
- Não sabia que eras um homem romântico.
- Não, mas a vida é muito aborrecida para mim, e pensei que observar-vos, a ti e ao teu admirador, poderia ser divertido.
- Divertido? Eu diria antes uma tortura.
- Isso é uma questão de perspectiva.
O seu olhar fixou-se nos lábios dela os seus olhos tornaram-se totalmente negros. O ar entre eles faiscou.
- Major, está aí? Ouvi-os falar e pus um prato para si. De certo que tem uma fome de lobo - Estava à porta com um prato na mão. - Não me atrevo a dar mais um passo, ainda caio. Quer vir resgatar-me?
- Com todo o gosto!
Linnea parou de respirar. Por um instante pensou que Seth ia beijá- la, mas depressa se pôs de pé e correu pela horta até à porta da cozinha.
- Tinha esquecido a fome que um homem pode ter quando trabalha muito - continuou a sua mãe, sem se dar conta que os tinha interrompido. Temo que o pequeno-almoço não tenha sido suficientemente abundante. Espero que goste da salada de batatas. Linnea preparou-a seguindo a receita da minha mãe.
- Salada de batatas é uma das coisas de que mais gosto no mundo.
O encanto de Seth deixou a sua mãe com um sorriso de orelha a orelha. Seth levantou a manga e ofereceu-Lhe uma mão para a ajudar a descer e a levar para junto de Linnea.
- Toma!
Deixou algo no colo de Linnea e sorriu-lhe daquela maneira maliciosa tão própria dele, essa que a deixava sem ar e depressa voltou ao seu trabalho.
- O que te deu? - perguntou a sua mãe.
- Um dólar de prata - Linnea não sabia se devia ir atrás dele e devolver-lhe o dinheiro, ou dar-lhe com alguma coisa na cabeça. - Pelas refeições do dia.
- Que homem!
E Linnea, sem poder evitar, desatou a rir.
Seth agitou as rédeas para que os bois andassem. Bocejou. Era cedo, mas tinha a impressão que tinha despertado a curiosidade de Linnea. Se queria deixar-Lhe as flores que tinha colhido, teria de o fazer antes que acordasse.
Quem dera que a carroça não fizesse tanto barulho. Um veado fugiu cruzando o campo. Tornara-se um mau admirador secreto, anunciando a sua presença a toda a gente.
A granja Holmstrom estava tranquila. Guiou os bois sobre a erva, onde não haveria raízes que fizessem barulho e estudou a casa. As janelas estavam fechadas e as cortinas corridas. Ainda ninguém se tinha levantado.
Vitória.
Então um movimento chamou a sua atenção. Uma cortina movia-se, como se alguém a tivesse soltado de imediato na sala. Afinal tinha-se levantado cedo para tentar ver o seu admirador.
Decidido a não perder a partida, conduziu os bois ao campo, desatou- os e amarrou-os como de costume. Recolheu as flores que tinha no assento da carroça e correu até à casa, escondendo-se o melhor que pode.
Linnea vigiava o alpendre como um falcão, assim decidiu deixar o ramo junto à porta de trás, bem à vista e voltar a escapulir-se pelo mesmo caminho. Uma vez junto da carroça, serviu-se de uma taça de café do termo que tinha levado e agachou-se à espera.
O sol trouxe consigo um novo dia. Os cervos pastavam tranquilamente no ervaçal e o falcão da pradaria iniciou a sua ronda diária pelos céus em busca de comida.
Serviu-se de uma segunda taça e saboreou aquele gosto ligeiramente amargo. Que pena não se ter lembrado do açúcar.
Por fim a porta da cozinha abriu-se e Linnea ficou petrificada no meio da ombreira da porta. O cabelo comprido e sedoso caía-lhe solto pelas costas e, quando se baixou para apanhar as flores, os seus caracóis dourados roçaram-lhe o rosto, os dedos de Seth ficaram dormentes com o desejo de poder acariciá-los, tomá-la nos braços e beijá-la até que nenhum dos dois fosse capaz de pensar.
Levantou-se e o seu olhar trespassou-o. Tinha que pensar rápido em como convencê-la de que não era ele o seu admirador secreto. Surpreendentemente não foi na sua direcção, em vez disso entrou em casa. Bebeu o café que lhe restava e ela voltou a sair, com um balde vazio na mão.
Avançava depressa. Já não sorria.
Ele já tinha visto uma mulher zangada antes, mas mesmo assim não tinha ideia de como a enfrentar Não soube o que fazer quando a viu caminhar direito a ele com o cabelo e as saias a voar ao vento.
- Bom dia - cumprimentou-a.
Não deve ter acertado no cumprimento, porque ela apertou os lábios.
- Há quanto tempo estás aqui sentado?
- Tu devias saber.
- Viste-me na janela?
- Eu e certamente o teu admirador também. Por isso deve ter dado a volta para deixar as flores aqui atrás.
- Viste-o?
- Não exactamente. Estava a servir-me de um café e quando levantei os olhos, as violetas já es tavam no alpendre, mas não estava lá ninguém. Depois saíste tu e viste- as.
- Pois. Quer dizer que daqui sabes que tipo de flores eram.
- Claro. Olha - disse, apontando para a casa com a caneca.
Ela voltou-se e virou os olhos para olhar.
- É incrível como foi capaz de chegar e ir embora sem que o tenhamos visto - disse esforçando-se por parecer inocente.
- Deve ser muito escorregadio. Um homem da pior espécie.
- Não creio que achasse muita graça que a mulher a quem dedica a sua atenção falasse assim dele.
- Ah, não? Estará tão próximo que possa ouvir-me?
- Suponho que ainda deva andar escondido por aqui, atrás desse montinho, ou mesmo entre a erva. Está tão alta que basta baixar-se;
- Isso só demonstra- que a minha teoria está certa. Deve ser um homem da pior espécie e um mentiroso.
- Seguramente - bebeu o último gole de café. Queres um pouco? Trouxe outra caneca.
- És muito amável, mas dado que o meu admirador pode andar escondido por aqui, não quero que me veja contigo, não vá ficar com uma ideia errada e deixe de me trazer flores.
- Não creio que o fizesse. Qualquer homem lutaria por uma mulher como tu, Linnea - não conseguindo esconder mais tempo o sorriso, disfarçou-o procurando a outra caneca na carroça. - E dado que conheço a identidade do teu apaixonado, posso dizer-te que é um homem de carácter.
- De carácter, sendo mentiroso? - franziu uma sobrancelha.
- Ora, toda a gente tem falhas - respondeu oferecendo-lhe a caneca. - É um homem trabalhador e com bom aspecto. Até pode ser o solteiro mais bonito do estado.
- Mas pode ser que quando finalmente o conheça, não fique com essa ideia - respondeu, agarrando na caneca. - Pode ser que seja moreno e eu gosto de homens louros.
- É uma possibilidade, mas não deverias pô-lo de parte. É evidente que está apaixonado por ti.
- É evidente?
- Claro. Um homem não corteja uma mulher por diversão. O casamento é uma tortura demasiado dura.
Linnea engasgou-se com o café, mas o riso fez desaparecer toda a sua tristeza e o azul dos seus olhos brilhou com afecto.
- És um homem perverso, Seth Gatlin.
- Faço por isso.
Como desejava abraçá-la, senti-la junto a ele. E como desejava passar o resto da vida a fazê-la rir.
Linnea deu-lhe o balde.
- Enche-o de água e não te cobro o pequeno-almoço.
- Está combinado. Gostas do meu café?
- Chamas a isto café?
- Era o que eu Lhe chamaria.
- Vou ensinar-te o que é um café. Anda, vem comigo.
Na manhã seguinte esperava-o antes mesmo dos pássaros acordarem. Ia apanhá-lo com a boca na botija porque pensava colocar-se numa pequena elevação de onde se viam ambos os alpendres, o da frente e o da cozinha. E que Seth Gatlin tentasse enganá-la outra vez!
A brisa fresca da manhã suspirava entre as ervas quando escolheu o seu observatório. Tal como esperava, quando o canto dos pássaros começou com as primeiras luzes da aurora, um par de bois cinzentos puxavam uma carroça em direcção à sua casa.
Seth não parou no jardim. Nem sequer olhou para as janelas enquanto guiava a carroça em direçção à vala que tinha aberto entre as ervas para a condução da água e da qual ainda faltava um terço para completar.
Não levava flores nas mãos e nem sequer olhou furtivamente para a casa. Nem sequer parecia dar-se conta de que estava ali sentada.
Desatou os bois e amarrou-os a uma estaca cravada no chão. Gostava de o ver mexer-se enquanto trabalhava, com o desenho dos músculos debaixo da camisa... uma das que tinha cosido. Não ficavam tão bem a nenhum outro homem.
Então com uma cafeteira e duas canecas velhas na mão, dirigiu-se a ela. Saberia onde estava desde o princípio?
- Bom dia, Linnea. Madrugaste para descobrir o teu admirador, não?
- Gosto de ver o amanhecer, Major.
- Major? - surpreendeu-se, cobrindo-a com a sua sombra. - Pensei vir sentar-me aqui contigo para esperar por ele.
- Que amável. Mas se não sais da frente, não vejo a casa.
- Ah, desculpa - desculpou- se e com meio sorriso, sentou-se junto dela. - Podia estar à frente do teu nariz e voltavas a perdê-lo.
- Tenho a impressão de que esta manhã não vou ter flores.
- Se calhar imaginou que ias estar à espera dele e foi mais esperto que tu. Visto que é o solteiro mais bonito do estado, é provável que seja também o mais esperto.
- A mim parece-me que é um pouco presunçoso.
- Nada disso. É o homem mais agradável que já conheceste. Queres um pouco de café?
- Não, obrigada. Ontem já tive que o suportar, como tortura já é o suficiente. Espero que o meu admirador faça café melhor do que tu - sorriu. Tenho que tirar água para o pequeno-almoço. Tenho muitas coisas para fazer.
Seth serviu-se de café na caneca lascada. Já tinha troçado o suficiente.
- Anders Neilson deve estar a chegar. Vai ajudar-me a instalar a bomba e o moinho.
Linnea levantou-se.
- Não sei como agradecer- te por seres tão amável com a minha mãe.
- Gosto da tua mãe, mas não estou a fazer tudo isto só por ela.
- Ah, não?
Os seus olhos azuis encheram-se de esperança, mas antes que ele pudesse dizer outra palavra, agarrou no balde e começou a andar.
Teve que admirar o balanço suave das suas ancas e o movimento das saias sobre as nádegas firmes. O vento ajudava, colando as saias às pernas.
Não tinha saiote, de certo por causa do calor e olhar para ela era uma festa para os olhos.
Quando ela permitisse, ia acariciar cada centímetro do seu corpo e quando terminasse conheceria cada curva e cada textura, o peso dos seus seios, a suave curva do seu ventre e o calor das suas coxas.
Os seus caracóis dançavam flutuando na brisa ao baixar-se na borda do poço, esperou a sua reacção.
Linnea voltou-se para ele e mostrou-Lhe o ramo de violetas. Tinha vindo de noite para deixá-las ali.
- Amanhã apanho-o - disse ela, ao passar com o balde numa mão e as flores na outra. - Vais ver.
E ele viu-a passar, fazendo planos.
Na manhã seguinte, encontrou um ramo de violetas diante das portas do estábulo, com um dedal de ouro colocado entre os caules. Mas não tinha podido apanhar Seth enquanto as deixava. Chegou mais tarde conduzindo a carroça carregada com as tubagens e Anders Neilson numa égua castanha cavalgando ao seu lado.
A sua mãe apressou-se a sair ao alpendre para convidá-los a tomar o pequeno-almoço, mas eles já o tinham tomado na cidade, assim depois de despedir-se com a mão, Seth guiou a carroça para o local onde trabalhavam.
Não paràram ao almoço, nem mesmo quando a sua mãe e ela lhes levaram uns pratos de comida bem generosos. Enquanto um comia o outro continuava a trabalhar.
Por azar era dia de fazer pão, por isso Linnea viu-se atrapalhada na cozinha e não teve oportunidade de olhar para ele de vez em quando. Era difícil concentrar-se a preparar aqueles pães e pô-los na bandeja barrada com gordura. Era difícil evitar que a esperança tomasse conta do seu coração.
Ia embora no fim do Verão e além do mais, tinha-lhe dito que não queria voltar a casar.
Então, que queria dizer tudo aquilo? Que tinha mudado de opinião, ou que simplesmente pretendia ser amável com ela?
Na semana seguinte, Seth e Anders tinham levantado o moinho, instalado a bomba, acabado de estender as tubagens e instalado a torneira na co zinha.
Quando Seth se afastava naquela noite levantando alto o chapéu para se despedir dela, soube que no dia seguinte voltaria cedo com o ramo de violetas.
E ela esperá-lo-ia.
Seth colocou um recado entre a corda e o pacote da prenda e deu-se conta de que as mãos lhe tremiam, o que não era de surpreender, tendo em conta que tinha um nó no estômago. Tinha escrito e corrigido aquele recado muitas vezes. Qual seria a reacção dela quando o lesse?
- Seth? - chamou Ginny fora da cabana. - Estás aí?
- Sim, estou aqui - cobriu o presente com o chapéu. O que sentia por Linnea era pessoal e sabia que Ginny tinha as suas razões para não o aprovar. - Já dei a ração à vaca. Fico contente que por fim tenhas decidido ordenhá-la.
- Parecia incomodada - Ginny não se atrevia a entrar. - Sabia que estavas muito ocupado e tive pena dela. Os cereais têm muito bom aspecto.
- Sei que não sou agricultor, mas a verdade é que parece que o trigo não está mal.
- Acabaste o trabalho na propriedade?
- Na granja dos Holmstrom? Sim - sabia que estava a tentar. Sabia também que estava assustada, mas havia tão pouco da jovem que ele recordava na mulher que estava diante dele sem se atrever a sair das sombras. - O menino já se deitou?
- Sim. Jamie queria saber se vais ficar connosco quando já se tiverem vendido os cereaisapoiou-se na ombreira da porta por pura necessidade. - Tu és o único que nos impede de. morrer à fome. Sei que me enganei. Sobre a Linnea, quero dizer. És um bom homem Seth e eu duvidei da tua moral, mas não podia suportar pensar que essa mulher podia afastar-te de nós, quando o Jamie e eu precisávamos tanto de ti.
- Não vou voltar a viver convosco. Podes ser educada e colaborar o quanto queiras nos trabalhos da granja. Até podes deixar de falar da Linnea, mas não penso mudar de opinião, porque não posso viver com a tua tristeza. Lembras-me demasiado a minha mãe.
- Ah - Ginny baixou a cabeça. - És um bom homem e não podes compreender, como o casamento é duro para uma mulher. Mais duro do que eu poderia explicar-te.
- Eu tive um lar e um casamento feliz, então não tentes usar a saída mais fácil, Ginny. Eu nunca bati na minha mulher, nem enchi a minha casa de ira e dor. Uma mulher não é um saco de pancada para desanuviar quando algo corre mal.
- Eu não estou de acordo - respondeu ela, com a voz cheia de dor e o rosto, que já fora bonito, desfigurado pela amargura. - Tu és um homem, com todos os direitos e toda a liberdade, enquanto que uma mulher tem que fazer de tudo para ser o que o marido quer que ela seja, até que não lhe reste orgulho, só para conseguir que ele a queira.
- O amor não se ganha, nem se julga, nem im põe condições.
- O de um homem, sim.
- Não o de todos.
O silêncio estendeu-se entre eles como um arame farpado demasiado denso. Tinha pena da irmã por causa do seu casamento. Certamente, o melhor que Jimmy McIntyre tinha feito tinha sido ir embora. Isso era o melhor que lhe podia ter - acontecido a ela.
Ginny mudou de lugar e as tábuas do chão rangeram.
- Arranjaste bem esta cabana. Ao menos o telhado não tem goteiras - passou a mão pela testa como se lhe doesse a cabeça. - Convidei Sidney Johanson para almoçar amanhã depois da igreja. É uma boa mulher, Seth.
- Ginny.
- Sei que não queres ouvir o que vou dizer-te mas vou dizer na mesma. Se acabares por casar com a mulher adequada e decidires ficar aqui, não me importarei, porque estou certa de que na Primavera que vem, já serei capaz de tratar do rancho sozinha.
- Não estou a ouvir-te, Ginny - disse-lhe com ternura, porque conhecia as sombras que pairavam sobre o coração da sua irmã. E uma infância demasiado pobre e a fivela do cinto.
- Enfim, mereceu a pena tentar. Boa noite Seth. Sei que deveria ter- te dito mais vezes, mas mais vale tarde do que nunca. Obrigada.
- Boa noite Ginny.
Esperou que tivesse ido embora para sair. Naquela noite a lua era a dos amantes, redonda e brilhante como um sonho. Punhados de estrelas brilhavam por todo o lado, ardendo sem fim, lutando sempre contra a escuridão.
Como o coração de um homem. Ou a sua sorte. Na manhã seguinte já saberia qual ia ser a sua. Se haveria uma luz acesa para sempre. Ou se só o esperava a escuridão.
Onde podia estar? Linnea estava a vigiar o jardim ainda antes do amanhecer e nem rasto de que tivesse estado ali.
O sol já brilhava, iluminando a pradaria cheia de flores silvestres, para onde ela olhava de vez em quando enquanto trabalhava, tentando vê-lo aparecer.
De repente o balde saiu- lhe da mão a voar. O leite foi parar à saia e ao chão poeirento. A vaca deu uns passos para trás e, assustada, mugiu com todas as suas forças.
- Calma, pequena - Linnea estendeu-lhe uma mão e a vitela de olhos grandes e negros voltou a correr para a segurança da sua saia. Acariciou-lhe as orelhas até que o animal se tranquilizou e foi à procura do balde. - Da próxima vez não lhe dês uma patada, está bem?
A vaca voltou a mugir e empurrou-o com a cabeça e Linnea, rindo, virou-se mesmo a tempo de vèr uma mancha azul no alpendre da frente.
Maldito homem! Como teria conseguido que não o visse?
Olhou à volta. As ervas, já carregadas de semente, inclinavam a cabeça, em direcção ao solo, mas não o viu entre elas. Podia já estar longe, oculto atrás da vegetação e o dia pareceu-lhe logo muito comprido não contando com a perspectiva de o ver.
O ramo daquela manhã tinha também as alegres margaridas dos prados e junto ao ramo encontrou uma pequena caixa atada com um lindo laço azul.
O que traria Seth entre as mãos? Perguntou-se com o coração na garganta enquanto descia as escadas com a caixa na mão.
Puxou o laço e o papel e desembaraçou-se da caixa.
Um recado dobrado caiu-lhe no colo.
- Já terminaste, filha? - perguntou-lhe a mãe de casa. - Será melhor que comecemos já com a limpeza. Hoje vai fazer muito calor.
- Vou já, mãe.
Quase não se atrevia a desdobrar aquela nota. Não é mais que um pedaço de papel", repreendeu-se e por fim abriu-o.
Linnea, gostaria que me permitisses cortejar-te e que me acompanhasses num passeio esta tarde. Chegarei às duas com o meu coche. Espero que aceites.
Respeitosamente, o teu admirador secreto.
Voltou a dobrá-lo com cuidado e guardou-o no bolso da saia. As mãos tremiam-lhe tanto que não tentou abrir o presente. Gostaria que me permitisses cortejar-te... Um bonito Major do exército, um homem nobre e com sentido de humor queria cortejá-la a ela. A ela, Linnea Holmstrom.
Pôs a caixa no colo e ganhou coragem suficiente para levantar a tampa. Lá dentro encontrou todos os utensilios de uma costureira, de um brilhante esmaltado pintado à mão e com reflexos dourados.
Seth viu Linnea a caminhar em direcção a ele e soube que ia ao seu encontro sem que a mãe se desse conta.
Estava maravilhosa com um vestido azul que se ajustava na perfeição às suas curvas.
- Em busca do teu admirador secreto? - perguntou-lhe.
- Sim, mas deves tê-lo assustado.
- Certamente. Mas como está calor e estás a pé, o que achas se eu te levar?
- Não é má ideia.
Ela sorriu e deu-lhe a mão e Seth ajudou-a a subir para o seu lado tal como planeava fazer durante o resto da sua vida.
- Conseguiste ver por fim o teu admirador?
- Sim - respondeu, arranjando as saias. - Olha e é uma pena, porque não penses que gosto muito.
Ele soltou o travão tentando não rir.
- Não me digas. É um homem atraente?
- Nem por sombras - respondeu, com os olhos a brilhar. - Mas uma mulher solteira da minha idade não pode ser demasiado exigente sobretudo tendo em conta os homens solteiros que há por aqui, por isso terei que me esquecer de como é feio e aproveitar a oportunidade.
- Não sei se lhe diga para convidar Sidney Johanson em vez de ti.
Linnea não pôde conter mais o riso. Estaria mesmo ali sentada com Seth? Afinal, a brisa era real, era domingo e estava ali a passear; como muitos outros casais.
Seth pegou-lhe na mão e não a largou. O silêncio ficou maior entre eles e abandonou o caminho principal para tomar o que seguia o curso do rio. Não pensava em nada para dizer aquele homem com quem nunca tinha tido problemas em falar. Ao homem cuja mão quente, segura e possessiva, continuava na sua.
Diz alguma coisa. Qualquer coisa"
- Há muito tempo que não cortejava uma mulher e já tinha esquecido o quão complicado pode ser - tirou o chapéu e deixou-o no chão do coche.
- Este casaco faz um calor de morte. Queres tomar um banho no rio?
- Parece-me uma ideia estupenda. Eu tenho calções vestidos e estou a assar.
Guiou o General até à sombra de umas árvores. A carruagem parou e Linnea reparou como era bonita. Tinham usado madeiras nobres para a construir e também a melhor tapeçaria. A condução tornava-se tão suave como se fossem a flutuar.
Seth ajudou-a a descer, agarrando-a por mais tempo do que o necessário. Atrás do assento estava uma manta e Linnea ouviu o coração a latejar nos ouvidos quando sentiu a sua mão nas costas para a conduzir ao lugar escolhido:
Estava a tratá-la como a uma dama, pensou enquanto ele estendia a manta. Deu-lhe a mão para que se sentasse, tirou-lhe os sapatos e as meias. Sentia-se como uma princesa.
Umas madeixas escuras caíram na testa de Seth enquanto desatava os sapatos e inundou-a uma ternura como nunca tinha sentido. Quando arregaçou um pouco as calças, ajudou-a a levantar-se de novo.
Como um cavalheiro, sentou- se junto a ela à beira da água e afundou os pés na corrente.
- Que maravilha.
Linnea levantou um pouco as saias para que a renda que a mãe tinha aplicado na barra do saiote não se estragasse e pôs também os pés na água. - Porque compraste um coche novo?
- Pareceu-me que ia precisar dele. Qualquer homem que se preze não pode apresentar-se numa carroça velha para cortejar a mulher mais bonita de todo o Oeste.
- Não compraste o coche só para me levar a passear.
- Não - respondeu, pondo uma mão no seu rosto. - Comprei-o porque não penso ir-me embora.
- Queres ficar?
- Quero ver como acaba o romance entre o teu admirador secreto e tu.
Com o polegar acariciou a linha do seu queixo muito devagar, de um modo que um calafrio percorreu as costas de Linnea e a levou a fechar os olhos e a apoiar-se na sua mão, a embriagar-se da sensação de estar com ele, da excitação da sua carícia, do seu odor a sabão, couro e homem.
A sua boca reclamou-a com a mesma ternura que a brisa de Verão acaricia a terra. O frio da água, o canto dos pássaros, o coro das folhas dos álamos da Virgínia foi se desvanecendo até que só restou o seu beijo. O seu beijo abrasador.
Sentiu a sua mão na nuca e o beijo tornou-se mais intenso, deixando-a sem ar e teve que agarrar-se à camisa para não desmaiar.
Nada no mundo lhe tinha parecido melhor. Quando beijo acabou, ele continuou a apertá-la contra o peito e o bater acelerado do coração dele imitava o seu e Linnea deu-se ao luxo de sonhar. sonhar com passar o resto da vida com aquele homem.
Ginny tirou o balde do bebedouro. Como odiava o barro que se moldava ao pé e lhe atascava os sapatos. Tinha prendido a bainha da saia ao avental para que não tropeçasse, mas o vulto que fazia impedia-lhe o andar.
O barro fê-la resvalar, a água do balde salpicou e bateu com bordo na canela e enquanto a dor Lhe subia pela perna, maldisse Jimmy McIntyre por a ter abandonado. E voltou a maldizê-lo, quando o ombro lhe começou a doer por causa do peso daquele balde enorme. E voltou a fazê-lo quando as costas lhe começaram a doer como se uma mula lhe tivesse dado um coice.
Aquele homem que cada vez estava mais bonito, enquanto o tempo deixava nela a sua marca nas rugas do rosto e na deformação do corpo. Aquele homem que não tivera que pagar por uma só coisa na vida e que a tinha conduzido àquela situação: a trabalhar como uma mulher vulgar do campo.
Então assaltaram-na recordações da sua infância: o cheiro a uísque do pai, o pranto da mãe, o trabalho sem fim e a fome que nem quando dormia passava.
Quando chegou à horta, deixou o balde no chão. A dor lacerava-lhe as costas e o pescoço e quando baixou os olhos viu que o balde estava meio vazio. Tinha caído tanta água quanto a que restava.
Os olhos ficaram cheios. de lágrimas. Se pudesse deitar a mão a Jimmy, fá-lo-ia pagar por aquilo. Mas isso era impossível e a sua raiva aumentava.
Sentia falta da sua casa na cidade e do seu alpendre tão bonito com um baloiço. Sentia falta de estar com as amigas e comprar o que lhe desse vontade, um chapéu por exemplo, ainda que não precisasse dele. Sentia falta da sua governanta e das reuniões semanais do clube de leitura.
- Estás triste mãe?
A preocupação de Jaime tirou-a da sua cisma. Estava sentado no chão, a brincar com dois cavalinhos que tinha pedido na loja dos Mclntyre o Natal passado. Ver aqueles brinquedos tão caros e depois ver a sua cara suja e as calças velhas que tinham sido do primo, feriu o seu orgulho como se a tivessem arrastado por brasas.
Não podia suportar a ideia de que o seu filho pudesse crescer como ela, trabalhando a terra todo o Verão, vestindo roupa usada para ir à escola no Inverno. A raiva era insuportável, mas conseguiu manter a voz serena.
- Não, amor. Só estou um pouco cansada: O menino pareceu aceitar a explicação e continuou a brincar e ela esvaziou o balde num dos sulcos.
Mas como só conseguiu encher um foi buscar mais.
O tilintar dos arreios de um coche chegou aos seus ouvidos. Seria Seth? Tinha-o visto sair com a sua carruagem pelo caminho ao lado da horta, mas não lhe tinha dito onde ia. Certamente à cidade, a julgar pelo que tinha vestido. Quem sabe ver o sogro dela.
Deixou o balde no sulco. A vaca olhou para ele a boiar na água, mas não se importou. Quem sabe se os McIntyre não teriam mudado de opinião. Quem sabe tivessem concordado em pôr a terra em seu nome. Assim poderia vendê-la e com esse dinheiro construir uma casa na cidade.
Mas não era o garanhão de Seth que puxava o coche, mas sim a égua árabe de Sidney. Sidney cumprimentou-a do assento e ela devolveu-Lhe o cumprimento. De todas as amigas que tinha na cidade, Sidney era a única que a tinha apoiado quando Jimmy a abandonara exactamente no primeiro dia do ano novo. Rapidamente tirou o avental e deixou que as saias lhe tapassem os pés descalços.
- Apanhaste-me a regar a horta - desculpou-se, alisando as saias.
- Não gosto de vir sem avisar, mas é que trago notícias.
Sidney parou o coche e desceu e a bonita saia do seu vestido moveu-se com graça.
Que inveja. Ela tinha um vestido de algodão vulgar e sentia-se como a rapariga da granja que sempre tinha querido esquecer.
- Deixa-me entrar para mudar de roupa. Não podia pôr roupa decente para regar a horta.
- Estás bem assim, Ginny, não te preocupes com isso. Em todo o caso não posso ficar. Tenho de voltar para jantar com os meus sogros. Só vim para te dizer que o meu irmão foi ter com o senhor Hansson para falar da colheita e viu o coche novo do teu irmão.
- Sim. Comprou-o ontem. Vê bem, gastar esse dinheiro quando podia perfeitamente usar o meu...
- Não vim por isso - Sidney olhou por cima do ombro. - Pensei que deverias sabê-lo. Não é que eu goste de trazer e levar intrigas, mas tu foste sempre a minha melhor amiga e não quero ver-te sofrer.
- O que queres dizer? - perguntou, assustada. O que está Seth a fazer?
- Viram-no pelo caminho do rio com Linnea Holmstrom.
Ginny sentiu uma náusea.
- Pode ser que a tenha apanhado no caminho para a levar a casa. Já o fez outras vezes.
- Com a melhor roupa de domingo? Acho que não. Mark disse-me que parecia estar a cortejá-la.
Ginny sentiu-se enjoada e teve que agarrar-se ao muro.
- Não pode ser. Um homem decente como o meu irmão nunca se casaria com uma mulher como Linnea.
- Sejam quais forem as suas intenções, parecem sérias. A passear no seu coche a um domingo. Já sabes que é isso que os casais fazem por aqui.
Se casar com Linnea, ela pô-lo-á contra mim e eu preciso dele.
Linnea parecia disposta a procurar um marido e Seth era vulnerável. Já há muito tempo que não partilhava a sua cama com uma mulher e ela es tava a dar-Lhe o que ele precisava. Tão simples como isso.
- Seth não sabe o tipo de mulher que é. É só isso - consolou-a Sidney - Quando souber, já não vai querer cortejá-la e muito menos casar com ela.
- Ameaçou-me que se ia embora se eu dissesse alguma coisa contra ela.
- Então a situação é pior do que eu imaginava. Anda a sério com ela.
Ginny procurou uma sombra.
- Não posso arriscar-me a que se zangue ainda mais. Já não quer viver aqui. Mudou-se para a cabana, imagina tu. Que posso fazer?
- Não sei, querida, mas tinha que avisar-te. Sei que a tua situação é precária pelo facto do teu marido se ter ido embora. Se precisares, eu tenho um sítio onde podes viver. A casinha de trás está livre. Só tens que ma pedir.
Ginny corou de ira e de vergonha. Que espécie de amiga era Sidney, oferecendo-lhe a casa dos empregados.
- Não te preocupes. Linnea pode ter arruinado o meu casamento.
- Ginny, o teu marido não fugiu com ela, como disse Ellie Jance. Nem sequer sabemos se chegaram a estar juntos e não se deve dar por certo que...
- Ele deixou-a grávida, lembras-te? Mesmo antes de me pedir em casamento. Ela só queria tirar-mo.
E, para ela, bastava.
- Tenho que ir.
Sidney subiu de novo para o seu bonito coche, sacudiu as rédeas e afastou-se, despedindo-se com a mão.
Ginny não pôde deixar de reparar nas luvas francesas que calçava e depois olhou para as suas unhas cheias de terra e a pele queimada pelo sol.
Linnea Holmstrom não ia cravar as suas garras em Seth. Não ia deixar.
Começava a escurecer e para ela era como a primeira vez que um homem a convidava para passear num domingo. Seth conduzia o General até sua casa.
- Deixa-me na curva. Assim a minha mãe não suspeitará que estive contigo.
- Claro! não podemos permitir que pense que estiveste sozinha com um homem careca e feio - sorriu.
- Desculpa por ter troçado de ti dessa maneira.
- Eu também o fiz, por isso estamos quites. Desceu do coche e ofereceu-lhe a mão e enquanto descia pensou que era bom que existisse um meio de empurrar o sol de novo para o céu e poder estar mais tempo com ele.
- Obrigada por este dia.
- Queria pedir-te outro passeio para a semana que vem, mas é que vou estar muito ocupado nas colheitas. Os vizinhos convidaram-me para me juntar a eles. Os Hansson têm ùma máquina e se vamos de rancho em rancho, o trabalho faz-se mais rápido que se o fizer à mão e sozinho.
- Fico contente que te tenham incluído nos seus planos. O meu pai também costumava fazê-lo assim e lembro-me bem o quanto tive que cozinhar para os homens. A mãe e eu trabalháva mos desde o amanhecer até à meia-noite durante dois dias numa cozinha que parecia toda ela um forno. Ginny poderá cozinhar para todos os homens?
- Ainda não falámos disso.
- Não me importaria de ajudar, ainda que Ginny e eu não sejamos propriamente amigas.
- Já me tinha apercebido.
Ela sorriu mas o contacto da sua mão no braço relaxou-a. Sentia-se no paraíso.
- Imaginei que cortarias o feno à mão nas tuas terras, por isso inclui-as nas minhas, se te parecer bem.
- Pensas que vai parecer- me bem não passar os dias inteiros sem deixar de trabalhar com a gadanha debaixo de um sol abrasador? Ficarei satis feita por vos dar de comer em troca.
- Está combinado - sentia-se bem, começando a tratar dela, deixando-se levar pela ternura que lhe inspirava. - Há mais uma coisa antes de ires embora.
Sorriu. Desejaria que a beijasse?
- Um ramo de flores - disse, arrancando algumas que cresciam à beira do caminho. - Temos de fazer ciúmes a esse teu admirador.
- Já adivinhei quem é.
- Ah, sim? E parece-te o solteiro mais bonito do estado?
- Anders Neilson? Bom, é louro e bastante bonito, mas tu tens um coche novo e isso fez-me decidir.
- Então sou um tipo com sorte - respondeu, entregando-Lhe as flores. Aquela mulher era o sol, o Verão, tudo de bom que há no mundo e queria tomá-la nos seus braços e voltar a beijá-la, saborear a sua doçura e a sua paixão.
Com tempo, disse para si mesmo, podia torná-la sua e descobrir todas as curvas que aquele vestido azul bonito ocultava.
- Espero que gostes de violetas - disse. - São da mesma cor dos teus olhos e por isso são as minhas flores preferidas - beijou-a no rosto, um verdadeiro cavalheiro, em vez de desabotoar os botões daquele vestido, que era o que realmente desejava fazer. - Fico contente por me ter adiantado a Anders. Vão ser duas semanas muito compridas até que possa voltar a fazê-lo.
E, depois de beijá-la novamente no rosto, deixou-a ir-se embora. Não tinha outro remédio. Da carroça viu-a afastar-se até que não era mais do que um ponto dourado e azul ao longe e depressa desapareceu. O sol perdeu a força, a beleza abandonou o dia e ele ficou sozinho.
Sacudiu as rédeas e encaminhou-se para casa.
- Seth, Jamie está contigo?
- Sim.
Seth pediu-lhe que lhe passasse o maço.
- Estou a ajudar o tio. Mãe.
- Já vi - a expressão de Ginny suavizou-se ao olhar para o filho. - E certamente és um bom ajudante.
- O melhor - concluiu Seth.
- Jamie sorriu contente enquanto tirava o martelo da caixa de ferramentas. Umas madeixas escuras roçavam-lhe a testa e Seth recordou-se de outro menino que não tinha chegado a fazer cinco anos.
- Obrigado, Jamie - disse-lhe com um nó na garganta.
- De nada.
Ensinou o sobrinho a pôr o raio na roda, batendo-lhe não com demasiada força mas com a firmeza suficiente para o pôr no sítio.
- É isso mesmo. Já reparámos a roda da carroça.
- Jamie, está na hora do banho. A água já está pronta.
- Vá lá, mãe, estou a ajudar.
- Sim, mas o tio Seth já terminou.
- Vai tomar banho, Jamie. Já terminei e vou tomar banho também - fechou a caixa. - Obrigado pela tua ajuda.
- De nada.
O menino levantou-se. Era um pouco pequeno para a sua idade. Devia ser o mais baixinho da sua turma. Um menino doente de que Jimmy Mclntyre não tinha querido responsabilizar-se.
Alguns homens estavam loucos. Levou a caixa para o celeiro com uma dor a palpitar-lhe nas fontes.
- Seth...
Pôs a caixa no sítio e continuou de costas para ela. Não queria que visse o quanto estava afectado.
- Achas que conseguiríamos um bom preço pelo feno se o vendêssemos?
- Não sei, Ginny. Pensarei nisso quando souber quanto resta para vender.
- Não foste ter com o meu sogro, certo? - Ouviu o tom de acusação e fechou os olhos.
- Não. Levei Linnea a dar um passeio. Mas isso tu já sabes, não? Os rumores voam.
- Passeaste com ela no teu coche e toda a gente viu.
- Deviam meter-se nos seus próprios assuntos. Assim como tu também deverias fazer.
- Tu também és um assunto meu.
- Nesse caso, deverias ficar contente que tenha encontrado alguém que me tenha feito sentir de novo - passou junto a ela com grandes passos. Não quero ouvir uma só palavra contra ela, Ginny.
- Bem - murmurou entre dentes. - Então; permite-me ao menos perguntar-te sobre a terra. Achas que conseguias convencer o meu sogro a pô-la em meu nome?
- Não terei tempo para averiguar até depois da colheita. Terás que esperar.
- De acordo - suspirou. - O que tu quiseres.
- Linnea ofereceu-se para te ajudar com a cozinha na sexta-feira.
- Não preciso da ajuda dela.
- Era o que eu pensava que ias dizer. Lembra-te que terás vinte homens à espera na porta da tua cozinha famintos como leões.
Ginny empalideceu, mas levantou a cabeça.
- Posso ocupar-me perfeitamente da cozinha. Ajudava a tua mãe quando era pequena e vinham os ceifeiros.
- Bem. Então, posso contar contigo? - Ela assentiu, mas sem olhar para ele nos olhos.
- É melhor ir ver o que Jamie está a fazer. Ele assentiu e, ao vê-la ir-se embora, perguntou-se se se daria conta do que estava a conseguir com a sua ira: desperdiçar um tempo precioso com o seu filho. Tinha querido abaná-la para que compreendesse, mas de certo não teria adiantado nada. Algumas lições tinham que ser aprendidas da maneira mais difícil.
A dor que sentia no coração era insuportável. Sentou-se à luz do candeeiro para contemplar a pequena fotografia da sua família e estudar a lembrança dolorosa e doce de cada detalhe do rosto da sua mulher, do seu filho e da sua pequena filha. Que orgulhoso se via entre eles, com Angelina sobre as pernas e o braço à volta dos ombros da sua mulher.
Sentiria sempre falta deles. Mas um dia não muito distante a solidão terminaria, teria a oportu nidade de voltar a formar uma familia e desfrutaria de cada dia com eles, cada segundo.
- Mãe, estás a dormir? - perguntou Linnea em voz baixa. A luz do candeeiro iluminava só parcialmente a página do livro que estava a ler e a esquina da cama.
Não houve resposta. Fechou o romance de Dickens e pô-lo em cima da mesa-de- cabeceira. A mãe não se mexeu. Era tão frágil que quase parecia não respirar.
Linnea levantou-se acompanhada com um rangido das molas da cama. Uma brisa suave entrava pela janela aberta, agitando as cortinas. O amor incitou-a a acariciar o rosto enrugado da mãe, que não se mexeu, perdida como estava nos seus sonhos. Apagou a luz e saiu do quarto.
A casa estava silenciosa, a ocasião perfeita para sonhar acordada. Levantou a gata da almo fada da cadeira de baloiço e pô-la no colo quando se sentou. A gatinha ronronou, acompanhada pelo barulho do relógio.
Não tinha muita vontade de trabalhar. A costura esperava-a na biblioteca, com as pequenas peças que deveria unir para a colcha que Lhe tinha encomendado a senhora Jance. Também não tinha vontade de ler. Demasiados pensamentos ocupavam-lhe a cabeça... e demasiadas preocupações.
Seth estava a cortejá-la. Apesar do seu passado. Apesar do que os outros dissessem dela.
Era demasiado bom para ser verdade. Mas os presentes que lhe tinha dado estavam ali, na sua caixa de costura. A coroa dourada do dedal reflectia a luz do candeeiro.
Recordou os seus beijos e uma felicidade profunda invadiu-a, um sentimento que suavizou as sombras do quarto e afastou a solidão das noites.
Linnea parou de repente diante da loja da senhora Jance. Aquela colcha era sua. O sol reflectia nos cristais da montra, acariciando a cadeia irlandesa dupla confeccionada em rosas e verdes. Um desenho simples, mas que parecia quase elegante ao lado do chapéu de palha e do vestido de Verão salpicado de pérolas.
Não conseguia acreditar na sua boa sorte. Doía-lhe o pescoço de coser até altas horas da noite, mas o esforço tinha valido a pena. A sua sorte tinha mudado.
Abriu a porta da loja com um pouco mais de confiança. A campainha tocou e as mulheres que tomavam chá, sentadas à mesa diante de um livro de moda, entre as quais se encontrava Ginny Mclntyre, voltaram-se para olhar para ela. Que pensassem o que quisessem. Não ia permitir que a chateassem numa manhã de Verão tão bonita quando o passado já não era uma marca para ela. Seth estava a cortejá-la e isso dava-lhe forças. Sornu e aproximou-se do balcão do fundo.
- Linnea - cumprimentou-a afectuosamente a senhora Jance, que saía da parte de trás da loja com uma bandeja de prata carregada de chávenas de porcelana e um bolo. - Dá-me licença enquanto sirvo as minhas clientes. Já venho ter contigo. - Que bom, acabaste a colcha!
Linnea pôs o pacote sobre o vidro do balcão e não pode resistir a passar a mão sobre aquelas sedas maravilhosas que deviam ter acabado de chegar. Que maravilha.
- Far-te-ei um desconto em qualquer coisa que decidas comprar para ti, ou para essa mãe tão encantadora que tens - disse Ellie ao voltar para junto dela. - Mal posso esperar para ver o que fizeste - disse, abrindo o pacote. - A esposa do médico comprou a colcha que está na montra, mas permitiu-me que a tivesse exposta por mais uns dias.
- A mulher do médico comprou a minha colcha?
- Disse que lhe fazia lembrar uma colcha que a avó lhe tinha feito há já muitos anos e que se perdeu na viagem, quando veio do Este - Ellie acabou de abrir o pacote e conteve a respiração ao ver aquele desenho que alternava entre rectângulos de flores de Verão e corações. - Perfeito. Conheço uma dama que vai querer comprá-lo, de certeza. Como a acabaste tão rápido?
- Cosendo em todos os momentos que tinha livres.
- Não vi nenhuma outra feita com tanta perfeição. O que tu fazes nestas colchas é árte, Linnea.
Tenho de admitir que já gostaria de ter outra aqui, mas leva o tempo que precisares a escolher os tecidos que quiseres. Vou buscar o dinheiro para te pagar e um pouco de bolo. Já venho ter contigo.
Aquilo ainda era melhor que o Natal. Centenas de cores de tecidos bordados chamavam por ela das estantes. Como ia escolher? Em primeiro lu gar compraria um presente para a sua mãe e depois decidiria as cores que ia usar no seu próximo projecto.
Estava a escolher um lindo tecido de linho para a mãe quando ouviu passos sobre o chão de madeira. Passos que se aproximavam. Era Ginny Mc Intyre.
- É uma vergonha que uma mulher tenha de trabalhar - Ginny passou a mão enluvada sobre os tecidos. - Eu estou a passar um mau bocado, mas ainda não sou uma trabalhadora vulgar.
- Fico feliz por ti, Ginny.
A mão de Linnea tremeu ao agarrar uma pequena amostra de uma seda dourada.
- Uma mulher nas tuas circunstâncias, com uma mãe já idosa para cuidar, costuma espantar os homens solteiros. Porque iria um marido querer sustentar também a sogra? E; se acrescentares a isso o filho que tiveste fora do casamento, nenhum homem decente quereria estar nem a dez quilómetros de ti.
- Sei que te referes a Seth e não penso falar dele contigo.
Linnea abriu uma peça de tecido branco. Ginny aproximou-se.
- Sei que estás desesperada por encontrar um homem que te sustente, mas esse homem não vai ser o meu irmão. Está só, e os homens sós estão sempre dispostos a aceitar a comodidade de ter uma mulher que os satisfaça.
- Não deves ter o teu irmão em boa conta se acreditas que é capaz de algo assim.
- É a ti que não tenho em boa conta. Sei que a minha sogra já não te compra camisas e uma mulher sem moralidade tem que ganhar dinheiro de alguma maneira.
- Eu não estou a fazer nada de imoral e tu sabes disso - replicou em voz alta, para que as mulheres sentadas à mesa, ansiosas por saber de que estavam a falar, pudessem ouvi-la bem. - A única coisa que te interessa é que continue a sustentar-te.
- É verdade. E quero que te mantenhas afastada dele.
O veneno que aquela mulher trazia dentro dela impressionou-a.
- Eu nunca quis pôr-me entre ti e o teu irmão. Cortejar-me foi uma decisão dele.
- Sim, pode dizer-se que sim... - o seu aspecto era dócil e frágil, mas ela não era nenhuma das duas coisas. - Tem cuidado, Linnea, se não queres que suba a renda do casebre onde vives até que não a possas pagar e tenhas que ir embora. Bom vento te leve.
- Seth não vai permitir.
- Seth não sabe a verdade sobre ti - Ginny olhou-a fixamente nos olhos, sem se importar que as amigas estivessem a ouvir as suas palavras avidamente.
- Não sabe nada do filho que tiveste, sem teres uma aliança no dedo, de um homem que queria casar-se comigo.
- Jimmy tinha acabado contigo, Ginny, e tu sabes e é claro que Seth também sabe. Não acredito que não lhe tenhas dito nada.
- Só porque ele não quer ouvir nada que eu diga contra ti, mas isso vai mudar. O meu irmão é um homem decente e não vai voltar a aproximar-se de ti.
Tremendo visivelmente, Ginny afastou-se com os punhos cerrados e ao aproximar-se da mesa, as suas amigas receberam-na, apoiando-a.
- Ginny, não posso acreditar no que acaba de acontecer aqui, na minha loja - Ellie entrou com um pacote debaixo do braço. Estava corada e as suas sobrancelhas moviam- se com nervosismo. Devia ter vindo de fora. - Não posso permitir que voltem a pronunciar-se palavras desse tipo na minha loja. Se não consegues respeitar os meus desejos, peço-te que te vás embora.
- Bem - Ginny agarrou a mala que estava em cima da mesa - Não penso voltar a comprar nada aqui.
Ellie deixou uma bandeja em cima do balcão, perto de Linnea.
- Estás bem? Só posso pensar que esta mulher está desesperada.
- É verdade - Linnea não deixava de tremer. Era como se o chão não parasse de se mexer. A vista começou a ficar enevoada e tentou não perder a calma. - Levarei dez metros deste algodão creme.
- Este? É lindo - Ellie apressou-se a cortar o tecido. - Que mais? Queres fazer o teu pedido e tomar um chá no meu escritório enquanto eu o corto? Lá, poderás sentar-te tranquilamente e recompor-te, se quiseres.
- Sim, obrigada.
Lmnea corou, sem saber porque é que a amabilidade de Ellie a incomodava tanto. Pediu os teci dos de que ia necessitar para a sua próxima colcha, temendo ainda que ela pudesse cancelar o acordo. Sem pensar, pediu uns quantos metros de tecido a mais para a sua mãe. Depois, com a bandeja na mão, entrou no escritório de Ellie, ao fundo da loja. Estava calor, apesar de as cortinas impedirem que o sol abrasador entrasse, mas estava sozinha e podia sentar-se um pouco e acalmar-se. As palavras de Ginny voltavam uma e outra vez à sua cabeça. Seth não sabe a verdade sobre ti.
Como podia ser? Ele tinha-lhe dito que não Lhe importavam os rumores nem as maledicências. Podia ser que fosse verdade. Quem sabe tivera de masiada integridade para dar ouvidos aos boatos. Ainda assim, não podia acreditar. Não podia ser verdade. Como podia estar na ignorância quando toda a gente sabia, ou achava que sabia, o que tinha acontecido? O mesmo que pensavam adivinhar cada vez que um homem passava perto dela.
A cabeça latejava nas fontes e o chá não acalmou a dor. As mãos não paravam de tremer. Ainda tinha que passar pelo posto dos correios e fazer as compras para a comida que tinha prometido a Seth e aos outros homens.
Ginny mentia. Tinha que mentir para tentar assustá-la. Estava desesperada e tinha medo que Seth também a abandonasse.
Ellie chamou à porta.
- Linnea, já arranjei o que me pediste. Vou deixá-lo atrás do balcão. Fica aqui o tempo que precises.
Não fazia sentido adiar por mais tempo o inevitável e a dúvida que Ginny tinha semeado na sua mente fez com que a viagem até à loja dos McIntyre fosse ainda mais difícil.
Agarrou nas compras e saiu da loja.
- Darei ordem agora mesmo para que to levem a casa - prometeu-lhe Shannon atrás do balcão. Suponho que um pedido assim tão grande signifique que vais cozinhar para os ceifeiros.
- Sim: Obrigada por tudo.
Linnea agradeceu-lhe a consideração, enquanto recebia o troco. Agradeceu ainda mais ouvir tocar a campainha da porta como um sinal de que por fim tinha terminado e podia voltar para casa.
Com o sol a brilhar no alto do céu e carregada de pacotes, pôs-se a andar pela estrada em direcção ao fim da cidade.
Nunca tinha estado tão satisfeita por deixar para trás a civilização como quando tomou o caminho de areia e o pó começou a pegar-se aos sapatos.
Uma carroça aproximava-se dela pelas costas e o estômago deu um nó. Com a sorte que tivera naquela manhã, certamente seria Ginny.
Apertando com força os pacotes, abandonou o caminho poeirento, subiu para a berma de erva e estreitou o passo olhando para a frente.
Se me disser alguma coisa, não vou responder. Não ia desperdiçar com ela mais um só minuto daquele dia bonito.
Uma parelha de bois ficou à sua altura... não a égua de Ginny. Era a carroça de liansson. Ela sabia que os homens estavam a trabalhar na ceifa, mas decidiu não voltar a cabeça, e continuar a andar, apertando os pacotes contra o peito e sem desviar os olhos do caminho. "Passa de uma vez, rogou em silêncio.
Os cavalos ultrapassaram-na, mas depressa reduziram o passo: As enormes rodas da carroça levantavam pó até à altura dos seus ombros. Então viu umas botas sujas e umas calças cobertas de pó. Os rapazes dos Hansson.
Estreitou o passo mas a carroça continuava à sua altura.
- Ouvi dizer que gostas de passear de coche - disse um daqueles adolescentes com uma voz pegajosa. - Eu também gosto.
- Oscar - repreendeu-o o irmão. - Deixa a menina em paz.
- Não é uma menina - Oscan desviou os cavalos para a direita, de maneira que Linnea ficou
encurralada entre a vala e as rodas dianteiras da carroça. - Quanto te paga o Major? Dizem que coses para ele. Coser. Se é assim que queres chamá-lo, eu também posso romper as calças para que tu...
- Não.
Sentia-se encurralada. Os cavalos remexiam-se inquietos, deste modo não podia arriscar passar entre eles e os postes da vala. Deu a volta e tentou correr.
Oscan Hansson saltou do banco e cortou-lhe o caminho. Era alto e forte e olhava para ela com os braços abertos.
Estava encurralada. O arame farpado impedia-a de saltar a vala.
- Deixa-me sair, por favor.
- Quanto cobras? Tenho ouvido dizer que és barata, o que é uma sorte, porque não tenho muito. O que te parece um dólar?
E tirou uma moeda do bolso.
- Deixa-me ir embora - o medo dificultava-lhe a respira ção. - A minha mãe está à minha espera.
- Essa velha pega? Pode esperar um pouco mais enquanto a filha ganha um pouco de dinheiro para a renda.
Lançou a moeda ao ar, que foi bater no queixo dela.
A dor fê-la retroceder. A moeda caiu para a areia e ela bateu com as costas contra a carroça.
- Oscan, estás a assustá-la. Sobe, que o papá precisava da faca nova da ceifeira rapidamente.
- Não te metas, Bo, a menos que queiras ajudar-me. Não és tão submissa como as prostitutas da cidade, mas és muito mais bonita.
Sentia o sabor a medo na boca, ouvia-o nas batidas fortes do seu coração, na tensão dos seus músculos. Ele aproximou-se, com a maldade a brilhar nos olhos e arrancou-lhe o pacote dos braços. Os tecidos, as linhas e os laços caíram no pó e pisou-os para os enterrar.
Linnea não conseguia tirar os olhos dos tecidos tão bonitos despedaçados aos seus pés. Estava a brincar com ela, compreendeu isso ao ver o gozo no seu olhar e a humilhação sacudiu-a como um tornado.
Agarrou-a pelos ombros e Linnea sem pensar deu-lhe um pontapé na canela. Foi como dar um pontapé numa parede, mas ao menos surpreendeu-o. O medo fê-la saltar por cima da vala, ainda que, o metal se espetasse nas palmas das mãos.
Oscan agarrou-a pela bainha da saia e puxou-a antes que pudesse saltar para o outro lado. As mãos engataram-se nas farpas do arame, a saia rasgou-se e ela caiu ao chão:
- Rapazes! Pode saber-se que diabos estão a fazer? - perguntou alguém.
Oscan baixou-se para apanhar o dólar do chão.
- Bem... não, nada.
- Pois a mim parece que sim - o senhor White o homem de idade que se encarregava de distribuir os pedidos da loja dos McIntyre, travou. Pede desculpa à menina Holmstrom e vai embora.
- Sinto muito - Oscan voltou a pisar os tecidos ao subir para a carroça. - Vamos, Bo.
Os irmãos afastaram-se e Linnea voltou a respirar.
- Obrigada, senhor White.
- Os jovens estão sempre a meter-se em problemas. - disse, aproximando-se. - Magoaram-te. - Não é nada - respondeu, apesar do sangue que manchava a terra. - Agradeço que os tenha assustado, mas estou bem e não quero que se faça tarde. Sei como são os McIntyre.
- Posso levar-te até casa - baixou-se e abanou a cabeça. - Deixaste cair as compras. Eu ajudo-te a apanhá-las e levo-te a casa.
- Não, a sério, estou bem. Vá-se embora.
- Não me parece bem.
- Por favor - não podia olhar para ele. - Quando deixar as compras em casa, não diga nada à minha mãe, por favor Não quero que se preocupe.
Passaram uns segundos antes que se levantasse e voltasse à sua carroça. Fê- lo de propósito, movendo-se com lentidão para lhe dar a oportunidade de mudar de ideia, mas não o fez.
Os tremores sacudiam-na intermitentemente enquanto arrancava tiras do seu saiote, o melhor que tinha, para ligar as mãos.
Com cuidado para não os manchar de sangue, apanhou os tecidos do chão e o coração caiu-lhe aos pés ao ver os restos de barro que manchavam o tecido que tinha comprado para a mãe.
O coche de Ginny passou sem parar, ainda que não lhe tenha dirigido a palavra, o seu desprezo queimou-a como o sol ardente.
Com as compras de novo nos braços, chegou a casa. A beleza do dia perdera-se, o respeito que Seth a tinha feito sentir por si mesma estava tão manchado como o tecido.
- Filha, estava tão preocupada ao ver que o senhor White chegava com as compras e tu ainda não estavas em casa. Depois pensei que devias es tar a divertir-te naloja da senhora Jance - a sua mãe tinha saído ao alpendre para a receber. - Divertiste-te? Trabalhas tanto, filha, que Deus sabe o que mereces.
- Escolhi os tecidos para a minha próxima colcha.
- A senhora Jance está satisfeita com o teu trabalho, não? Não me surpreende. Fui eu quem te ensinou a coser.
O orgulho brilhava como diamantes nos seus olhos, e como a jóia de valor incalculável que era para ela, não podia permitir que soubesse o que tinha acontecido.
- Quando os ceifeiros tiverem terminado, tu e eu vamos à cidade para nos divertirmos juntas.
- Não nos podemos dar a esses luxos, ainda menos para uma velha como eu.
- Velhos são os trapos e tu és o meu coração, mãe. Quero que tenhas algo de especial e a senhora Jance faz-me um desconto.
- Essa mulher é um anjo do céu - disse, e ficou a acariciar a gata deitada à sombra do alpendre. Entra e conta-me como é o tecido que escolheste e o que vais fazer com ele. Quero imaginá-lo.
- Escolhi um tecido de algodão de cor creme como base - foi explicando enquanto entravam.
As mãos continuavam a sangrar e não tinha deixado de tremer, mas estava a salvo. - Quero lavar todos os tecidos esta tarde.
- Está demasiado calor para ferver água, filha! Além disso, já tivéste que passar calor suficiente no caminho. Espera por amanhã de manhã.
- Mas é que tenho de começar a preparar a comida dos ceifeiros.
Pensou imediatamente que todos aqueles homens iam olhar para ela sem escrúpulos, incluindo o filho dos Hansson que a tinha atacado.
Vários carros de linha caíram das suas mãos dormentes e rodaram no chão de madeira, repreendendo-se por ser desastrada, deixou a carga em cima do sofá e ajoelhou-se para apanhar os carros perdidos.
- Trouxeste mais do que o que dizes - comentou a sua mãe encantada enquanto passava as mãos sobre as sédas e os bordados. - Que maravilha.
- Ah, mãe, quase me esquecia. Trago uma carta da tia Eva.
- A tia Eva! Vamos para o alpendre de trás onde há sombra e lês-ma. Mal posso esperar para saber como vai a minha querida irmã.
- De acordo, mas antes quero pôr estes tecidos dentro de água - insistiu, esforçando-se por parecer alegre. - Vai sentar-te, que já saio.
A mãe saiu com as suas agulhas de tecer, um cómodo assento esperava-a à sombra.
Apertando os dentes devido à dor nas mãos acendeu o fogo no forno. Tinha o vestido roto mas consertá-lo-ia à noite, quando a mãe já se tivesse deitado. Ao menos já não sangrava. Cortou as ligaduras para que a mãe não notasse.
A humilhação sepultou-a debaixo do seu peso como um pó que flutuava no ar. Não ia chorar. De maneira nenhuma.
Pôs os tecidos de molho e juntou-se à mãe na sombra. Com um gancho do cabelo, abriu o envelope, enquanto a mãe se movia inquieta. A carta estava cuidadosamente dobrada e a escrita cobria até o último canto.
Linnea desdobrou o papel e deu-lhe uma vista de olhos. A palavra casamento chamou-Lhe a atenção.
- Parece-me que a tua irmã se casou.
- Casou-se? Ao fim de tanto, tempo? - a sua mãe sorria encantada. - Lê, depressa. Quero saber!
Enquanto lia a carta da tia que contava todos os detalhes do casamento, não conseguia deixar de pensar em Seth. Sempre nele. E no que lhe tinha acontecido no caminho.
- Imaginas o salão, com todas essas flores?
Imagina como devia estar bonito.
- Sim, mãe. Fico muito contente pela tia Eva.
- Que maravilha, pensar que a minha querida irmã encontrou o amor verdadeiro, como eu tive o meu Olaf. A Eva foi tão infeliz no primeiro casamento que me partia o coração, mas vivíamos tão longe que não me era permitido visitá-la. Mas agora está tudo bem. Vês? Há sempre alguma coisa para agradecermos.
- Sim.
E ela estava agradecida pelo que tinha. Os finais felizes eram para algumas pessoas, mas não para ela.
Seth chegou à casa dos Holmstrom antes de amanhecer com o ramo de flores na mão. O corpo doía- Lhe de todos os dias de trabalho duro nos campos, mas era uma satisfação trabalhar com os seus vizinhos. Estavam a conseguir progressos enormes. Dentro de dois dias teria o suficiente para sustentar os cavalos que tinha pensado comprar. O suficiente para vender e para que Ginny pudesse comprar carvão para todo o Inverno.
A satisfação era maior que o cansaço e ao menos sabia com certeza que ia ficar ali, naquela terra, para o resto da vida. Com Linnea a seu lado.
Parou como todas as manhãs para apanhar as flores azuis é vermelhas para compor um ramo estival. Em poucas ocasiões era oferecida a um homem uma segunda oportunidade na vida e queria fazê-lo bem. Queria mostrar a Linnea o que ela significava para ele.
As cortinas mexeram-se numa janela e a gatinha apareceu numa esquina da casa para cumprimentá-lo. Acariciou-a atrás das orelhas e foi recompensado com um áspero ronronar. Foi então que as viu, murchas e esquecidas no alpendre.
O ramo que tinha deixado no dia anterior.
Não era próprio dela esquecer-se do seu ramo. Estaria bem? Teria acontecido alguma coisa? Olhou em volta e viu que as vacas tinham feno fresco nos comedouros. Um alguidar estava posto a secar contra um dos lados da casa e esse alguidar não estava lá no dia anterior.
Se calhar estivera demasiado ocupada. Os ceifeiros estavam quase a chegar às terras. Sim, tinha que ser isso. A tarefa de cozinhar para tantos homens era exigente e tinha-se esquecido das suas flores. Não era nada de pessoal.
Então, porque é que o ramo não estava onde o tinha deixado, mas tinha sido afastado para um lado, como se quisesse que não estorvasse.
Um galo cantou no galinheiro e lembrou-lhe que tinha coisas para fazer e obrigações para cumprir.
Trouxe mais flores, . Linnea, a partir da sala, viu-o ir embora através das cortinas que subiam e baixavam com a brisa que entrava pela janela.
Ver o seu ramo esquecido não o tinha desanimado, mas se voltasse a fazer o mesmo com o daquela manhã, quem sabe compreendesse.
Ia demorar algum tempo, mas deixaria de aparecer por ali.
E o seu coração ficaria partido para sempre.
- Linnea, vem ver se o feijão já está pronto. Cheira como se já estivesse pronto - chamou a mãe pela janela da cozinha. - Não encontro a faca do pão.
- Já vou.
O sol estava quase no pico. Os homens chegariam a qualquer momento e ela não estava preparada.
Colocou os últimos pratos e correu para casa. O aroma do feijão e do presunto recebeu-a ao entrar na cozinha.
Procurou a faca do pão e afastou as panelas que ferviam com o feijão para as mexer com uma coLher de pau. Estavam bastante apresentáveis, então levou a panela para a mesa auxiliar que estava no jardim ao pé das outras.
- Como vai a ceifa? - perguntou a mãe, enquanto cortava o pão.
- Já estão no outro lado do caminho, não consigo vê-los.
Começou a cortar o presunto em tiras, que foram caindo sobre a bandeja.
- Já vêm aí, filha - disse a mãe, voltando-se para as janelas da sala. - Eu já terminei.
- Mesmo a tempo - não podia cortar com a rapidez suficiente. - Ao menos as batatas e o feijão já estão em cima da mesa, bem como. os jarros com água.
- Tirarei o pão e um jarro com leite. Alguns trouxeram os filhos e ainda são crianças e estão a crescer.
- Mãe, não quero que sirvas a comida. Espera...
- Não te intrometas, Linnea, posso fazê-lo sozinha.
Recolheu o cesto com as fatias de pão e procurou o jarro com leite fresco.
- Já está quase, mãe.
- Está a chegar o Major.
E assim era. Os seus passos firmes eram inconfundíveis. Tinha a camisa e as calças salpicadas de ervas e o cabelo tão despenteado como o de um pirata, mas o seu sorriso brilhou com o calordo sol ao tirar das mãos da sua mãe a cesta e o jarro.
- Deixe-me ajudar estas duas bonitas damas. Os homens estão mortos de fome.
- Só nos falta cortar o presunto - respondeu a sua mãe.
Linnea voltou-se, não queria olhar para ele. Continuou a cortar quase sem ver o que tinha à frente. Os passos de Seth afastaram-se sem mais uma só palavra.
Suspirou aliviada. Pelo menos tinha podido evitar falar com ele. Por enquanto.
Acabou de cortar, largoú a faca e limpou as mãos a um pano. No último momento, lembrou-se do seu chapéu de palha e colocou-o. Estava preparada para enfrentar os ceifeiros, disse a si mesma. Mas a bandeja pareceu-lhe de chumbo ao sair do alpendre.
Havia pelo menos vinte homens reunidos à volta da mesa, enchendo os pratos de feijão e batatas, passando o pão, falando em voz alta. Reconheceu os vizinhos que não via há anos, mas dois rostos chamaram a sua atenção: Os dos dois jovens que a tinham atacado no caminho.
Desce os degraus um a um", disse a si própria. Dá a bandeja a Seth e volta para casa, Era " muito simples. Não ia acontecer nada.
Avançou quase às cegas em direcção à mesa.
- Linnea - Seth levantou- se, o maravilhoso Seth, e tirou-lhe a bandeja das mãos. - Preparaste-nos uma refeição excelente.
- Muito obrigado, menina - disse Anders Neilson e os outros juntaram-se a ele agradecendo-Lhe em voz baixa.
- Obrigada a todos por terem vindo ceifar - disse quase a gaguejar e olhou para a cabeceira da mesa onde Anders estava a espetar a faca na barra de manteiga.
Um movimento chamou-lhe a atenção. Oscan Hansson piscara-Lhe o olho.
- Respeita a menina, rapaz - repreendeu-o Seth, com a voz carregada de autoridade. - Uma lição de bons modos ficava bem ao teu filho, Jon.
- Eu faço com que a receba - respondeu o pai, olhando- o muito sério.
- Tens as mãos geladas - sussurrou-lhe Seth e só então se deu conta de que lhe dava a mão. Não tens nada a temer.
Só perder-te. Era a nobreza personificada, um homem de bom coração que não fazia ideia do que os outros pensavam dela.
- Estarei na cozinha se precisarem de alguma coisa. Vou cortar o bolo de morango.
- Certamente estará delicioso - sorriu apertou a sua mão com ternura. - Estou orgulhoso de ti. Preparaste uma refeição magnífica.
A garganta fechou-se e correu para casa. Para a segurança das quatro paredes que a tinham protegido toda a vida.
Algo estava mal. Seth notou-o quando Linnea voltou com os jarros novamente cheios de água. Voltou a sair de casa com mais pão, presunto e outro recipiente com puré de batata. Não queria olhar para ele e viu nela a mesma tristeza que tinha notado ao vê-la pela primeira vez.
Está cansada, disse a si próprio. Tinha que ser isso. Devia estar a cozinhar há mais de um dia inteiro para preparar tudo aquilo e umas olheiras escuras circundavam os seus olhos.
Mas mesmo assim, nem mesmo o paraíso seria tão bonito para ele, entrando e saindo da casa com o seu vestido azul e o seu chapéu de palha. Tinha o cabelo apanhado; mas alguns caracóis escapavam na nuca e na testa.
Tirou a mesa, pálida e em silêncio. Sem lhe dizer uma única palavra, voltou com umas fatias de tarte de natas generosas. Era sem dúvida o melhor bolo que tinha comido, mas não teve oportunidade de dizê-lo, porque continuava de costas voltadas para ele.
Ficou dentro de casa até que os homens foram de novo para o campo. Todos menos ele, que entrou com passo decidido.
- Major, é o senhor? - perguntou a senhora Holmstrom que estava na bancada da cozinha a tapar as fatias de pão que tinham sobrado. - Os homens comeram o suficiente?
- Mais que o suficiente. Foi ùm festim.
- Linnea trabalhou muito, mas mesmo assim, fico contente que este ano não tenha tido que ceifar a erva como um homem. Devo-lhe uma ceia quando isto tudo terminar.
- Fico satisfeito com o convite. Já sabe que gosto muito da sua cozinha.
Linnea não estava por ali, voltou a sair Encontrou-a como um anjo do céu, com as saias a fazer cambalhotas em volta dela e os caracóis escapando-Lhe por baixo do chapéu de palha. Os pratos faziam barulho ao colocá-los numa pilha.
Estava de costas para ele e não pôde evitar admirar a linha do seu pescoço e o quanto a sua pele parecia delicada. Toda ela seria assim, fina como porcelana e suave como o creme.
O sangue ferveu e teve que se lembrar de que era uma dama e que merecia o seu respeito.
Para o resto da sua vida.
- Olá, linda - disse-lhe, aproximando-se. Os pratos caíram-lhe das mãos e voltou-se rapidamente. Os olhos desmesuradamente abertos e pálida como um fantasma.
- Hoje sinto-me muito orgulhoso de ti - disse-lhe, abraçando-a. Estavam sozinhos. Os homens estavam do outro lado da casa a caminho dos campos.
- Seth - soltou-se. - Devias estar com os outros.
- Queria ver como estavas e agradecer-te por...
- Não é preciso - retrocedeu um passo e voltou a colocar os pratos. - Será melhor que vás embora.
Seth sentiu que os pêlos da nuca se eriçavam.
- Estás zangada comigo - disse. - Por isso não apanhaste as flores. Não foi por te esqueceres delas.
- Não estou zangada contigo - recolheu a pilha de pratos e afastou-se dele. - Estou ocupada.
- Agora não tenho tempo, mas quero esclarecer isto assim que tenha terminado a ceifa.
- Não há nada para esclarecer - respondeu e encaminhou-se para casa. - Não te incomodes a deixar-me mais flores. Não é preciso.
- Maseu...
- Adeus, Seth.
Entrou em casa e bateu com a porta. Ginny. Tinha que ter sido Ginny. Mais zangado do que se lembrava de alguma vez ter estado, foi para os campos e teve que trabalhar muito é durante várias horas para que essa fúria acalmasse.
Já vem aí" pensou Ginny quando viu Seth pela janela da cozinha, a andar com passo decidido em direcção à casa.
Sentia-se mal pelo que tinha feito. A ansiedade era tal que durante dias só tinha sido capaz de se concentrar no trabalho. Tinha estragado um pão de milho enquanto dizia a si própria o quanto tinha sido estúpida, deixando que o orgulho a dominasse na loja de Ellie Jance.
O prazer de pôr Linnea no seu lugar já tinha desaparecido há algum tempo e o que sentia agora era o medo pelo que ela podia ter dito a Seth. E o que ele fizesse depois. Tirou o pão do forno, não fosse este queimar-se também, e deixou-o arrefecer.
- Ginny.
Chamou com tanta força que a porta parecia que ia sair das dobradiças.
Estava furioso.
- Amanhã estará tudo preparado. Já fiz tudo o que podia.
- Terás mais pão que este, certo? - perguntou-lhe, olhando para a mesa com as sobrancelhas franzidas.
- É o suficiente - respondeu ela, mas ao ver a sua evidente desaprovação, quis que a terra a engolisse. Não podia arriscar chateá-lo ainda mais, por isso manteve a voz baixa e tentou encontrar uma forma de dizer o que tinha a dizer. - O meu único lucro é o dinheiro da renda e o meu filho está em primeiro lugar para mim...
- Temos um acordo - respondeu ele e as suas palavras ficaram a vibrar no ar. - Tens que dar de comer a esses homens, e pronto, todas as outras mulheres já o fizeram.
Ginny baixou a cabeça, consciente de que não podia ganhar e detestando ao mesmo tempo que a considerassem mais uma daquelas mulheres do campo que faziam a sua própria roupa e que passavam a vida a fazer conservas.
- Farei tudo o que puder.
- Quero que esses homens comam bem amanhã ao meio-dia em ponto. É importante.
- Eu sei.
Tentou não pensar no dinheiro que aquela comida ia representar e concentrar-se no feno que ia poder vender e o dinheiro que poderia acrescentar aos seus fundos quando vendesse a terra.
- Há mais uma coisa? O que disseste a Linnea? A sua acusação foi como uma bofetada na cara com o vento frio do Inverno.
- Tinha uma colher na mão que caiu ao chão.
- Que desastrada sou - disse, baixando-se para apanhá-la.
Ele continuava a olhar para ela fixamente, e a acusação estava tão clara nos seus olhos que estremeceu da cabeça aos pés. Como explicá-lo?
Como dizer-lhe que tinha perdido as estribeiras e que o orgulho a tinha empurrado a dizer coisas que agora lamentava?
- Não lhe disse nada fora do normal.
- Espero que não me estejas a mentir.
Em vez de explodir e aproximar-se dela com o punho fechado como teria feito Jimmy, Seth ficou na ombreira da porta, longe do halo da luz. Parecia perdido e dorido.
Dorido? Como era possível? A sua força de homem continuava clara como a noite, mas também a sua tristeza.
- Ouvi dizer que ela é a culpada pelo que o teu marido te fez. Sei que tu acreditas nisso.
- Teria sido assim se ele tivesse querido.
- Ginny... - suspirou. - Não fazes nem ideia do que eu perdi e pensei que nunca voltaria a ter.
Vivi tanto tempo sozinho, com a sensação de ter morrido com a minha família e agora tenho a oportunidade de ser feliz... - empurrou a porta que bateu contra a parede. - Não te atrevas a tirar-me essa oportunidade. Se souber que me mentiste, não poderei ficar.
- Não lhe disse nada fora do normal, prometo-te.
Seth não queria chamá-la de mentirosa, mas não acreditou nela. Fosse o que fosse que tivesse feito, ele repará-lo-ia. Faria Linnea entender que ela era o sol para ele.
Tinha que tomar uma decisão. Não podia ajudar Ginny. Estava demasiado ocupada a destruir tudo o que tocava, tal como o seu pai, passando ao lado da beleza que poderia encontrar só por abrir o seu coração.
O anexo era pequeno, mas era o seù lar e preparou-se para dormir com a música de fundo dos uivos dos coiotes. Metido entre os lençóis, ouviu os sons da noite: o piar dos bufos, o vento sempre a soprar e os cavalos selvagens que galopavam pelas pradarias.
Os Mustang tinham voltado. Tinha que dizê-lo a Linnea.
Adormeceu na cama vazia, sonhando com ela. Sonhando sempre com ela.
- Deveríamos levar a Ginny o presunto e o pão que nos sobrou - sugeriu a sua mãe sentada num banco na horta. - Está sozinha e nunca cozinhou para os ceifeiros.
- Estou certa de que não precisa da nossa ajuda.
Ou precisa"; acrescentou para si mesma, enquanto espetava o último alfinete no tecido.
- Bom, a costura já está.
- De certeza que queres fazer isto?
- Sim. Quero fazer um vestido para a minha linda filha - colocou com cuidado as duas partes sobre o colo. - Só preciso de um pouco de ajuda, mas ainda posso ser útil.
- És indispensável e tu sabes - disse, antes de beijá-la no rosto. Sem o saber, a sua mãe tinha voltado a ser um porto seguro. Um lugar acolhedor onde se refugiar.
- Continuo a dizer que deveríamos levar a comida a Ginny. Sobrou tanta! Nós não vamos comê-la.
- Não, mãe. Já sabes que não gosto de Ginny.
- Há que perdoar, filha. A vida não foi fácil para ela. E pensa no bem que podemos fazer-lhe. - Não quero pensar nisso.
A mãe riu-se enquanto apalpava com as mãos a borda do tecido e começava a espetar a agulha. - Não podemos deixar que essa comida se estrague. Os homens que tão amavelmente ceifaram os nossos campos apreciariam um pouco de boa comida.
- Achas que a de Ginny não vai ser?
- É possível, por isso devemos fazê-lo pelos nossos vizinhos.
A sua mãe estava a brincar para tentar que mu dasse de opinião e funcionou.
- Está bem. Vou prepará-lo. Tu ficas aqui à sombra.
- Muito bem filha.
- Já não tenho cinco anos, mãe - respondeu e, rindo-se, entrou na cozinha. Se se despachasse poderia levar a comida bastante antes do meio-dia e assim evitar o risco de se encontrar com Seth. Pensar nele partiu-Lhe o coração um pouco mais, mas disse para si própria que não importava. Tinha perdido muito mais na vida e aquela dor era só culpa sua por acreditar no amor.
Quando a cesta ficou pronta despediu-se da sua mãe, mas ela insistiu em acompanhá-la.
- Está muito calor, mãe.
- Sim, mas se Ginny precisa de ajuda, é melhor se formos as duas.
O sol em pleno Verão caía com força sobre a terra ressequida. As ervas da pradaria crepitavam com o vento e num alto viam-se os homens a trabalhar. A máquina de ceifar puxada pelos bois de Seth e os homens a carregar a erva com as forquilhas para as carroças.
- Ouvem-se a trabalhar - disse a sua mãe, inclinando a cabeça para ouvir o ruído da máquina e o murmúrio longínquo das vozes dos homens. Sinto falta de tratar do rancho e sentir as estações da vida. Porque é assim que se sentem, quando se trata de um rancho. O arado e a sementeira na Primavera. O crescimento no Verão e a colheita no Outono. O Inverno, quando descansamos e preparamos a Primavera seguinte:
- Ter os ceifeiros em casa fez-te sentir mais a falta do papá, não é?
- Sim. Sinto muito a falta dele.
Eu também". A tristeza fez-lhe um nó na garganta e não conseguiu falar, então não disse nada, limitou-se a ouvir o ritmo dos seus pés em cima da terra ressequida e o roçar das suas saias.
De repente a sua mãe pareceu perder o equilíbrio.
- Mãe - exclamou, agarrando-a. - Estás bem?
- Meu Deus, espero que sim. Está tanto calor!
- Devia ter-te obrigado a ficar em casa.
- É só um enjoo. Já passa.
- Só um enjoo? - Linnea não conseguiu evitár
um calafrio. - Tens que sair deste sol.
- Sim já devemos estar a chegar. Só preciso de um copo de água fresca: Não te preocupes tanto filha.
A casa de Ginny depressa apareceu diante delas e de repente a cesta pareceu-lhe de pedra.
- Por aqui, mãe - agarrando-a pela cintura, tirou a sua mãe do caminho para a pôr no trilho de pedra desigual que se estendia ao lado da casa. Iremos pela porta de trás, dado que Ginny estará na cozinha. Tem cuidado. Já estamos quase lá.
A sua mãe não respondeu. A preocupação fazia cada passo mais lento. Não devia tê-la deixado vir.
- Aqui há um banco à sombra. Senta-te.
Linnea deixou a cesta de lado e tomou a mãe nos braços. Que fraca se sentia. Estava pálida como a cera.
- Tenho tanta sede.
- Vou buscar água.
E entrou na horta a correr.
Ginny voltou-se de onde estava, junto da mesa disposta à sombra da casa. O desprezo desenhou-se nas suas feições ao vê-la aproximar-se.
- Não me digas que vieste ver o meu irmão.
- É a minha mãe. Não está bem. Precisa de água.
- O que fazem a caminhar com este calor? Ginny tirou uma caneca pequena da mesa. Toma. O sulco está ali.
- Na horta?
- É água limpa e fresca.
Linnea arrancou-lhe a caneca da mão. Não tinha tempo para discutir. Correu para a horta e encheu a caneca num sulco fundo.
- Filha, não deves correr tanto com este calor - ralhou. - Vais ficar mal disposta!
- Bebe-a toda - disse, pondo-lhe a caneca na mão.
A mãe obedeceu.
- Já me sinto melhor.
- Nem penses. em mexer-te - advertiu-a e depois de a beijar no rosto, recolheu a caneca e atravessou rapidamente a horta desprezada.
- Linnea.
Era Seth quem lhe bloqueava a passagem. Parecia acalorado e cansado do trabalho do campo. Os homens iam atrás dele e mandou-os para o outro lado da casa.
Só de vê-lo, desejou que todos os seus sonhos pudessem tornar-se realidade com ele, com aquele homem que a olhava com doçura.
- Não esperava ver-te hoje.
O seu olhar era uma pergunta íntima à qual não podia responder.
Tinha-o visto muito cedo a deixar um ramo de flores junto ao passadio. Como podia fingir não estar apaixonada por ele?
- A minha mãe queria ajudar Ginny.
- Olá, Major - a sua mãe aproximou-se a coxear. - Viemos ver se queriam mais umas fatias de pão e de presunto. Há tanto tempo que não cozinhávamos para os ceifeiros que não me lembrava o muito que podem comer. Mas mesmo assim, fizemos comida a mais! Não conseguíamos comê-la nem numa semana.
- Mãe, tinhas prometido que ias ficar sentada Linnea deixou a cesta e a caneca no chão e correu para junto dela. - Vem comigo.
- A minha filha é uma exagerada.
- É que não está bem - explicou, conduzindo-a de novo ao banco. - Mãe, deixa-me cuidar de ti, por favor. És a única mãe que eu tenho.
- Isso, sim, não posso discutir - e passou deli cadamente a mão pela face da sua filha. - Vou ficar aqui.
- Bem - Seth estava ao seu lado. - Desculpa mas vou buscar mais água. Importar-te-ias de levar a cesta a Ginny?
Ele seguiu-a.
- Temos que falar.
- Não. A minha mãe pode ouvir-te - baixou a voz e entregou-lhe a cesta. - Além disso, não há nada para falar.
- Quero que esqueças o que quer que Ginny te tenha dito, seja o que for. Quero que o apagues da tua memória...
- Desculpa.
Abandonou o caminho, empurrou a rama de um lilás e passou ao longe.
Ginny cortou-lhe o caminho.
- Ainda estás aqui? Pensava que só querias água!
- Ginny... - a voz de Seth foi de uma dura advertência.
- A minha mãe ainda não se recuperou o suficiente para voltar para casa - Linnea apertou tanto a asa da caneca que as bordas se espetaram nos dedos - Vamos embora quando ela puder fazê-lo.
Ginny olhou então para a cesta que Seth levava com evidente desgosto, depois olhou para o chão. Um músculo tremeu no queixo.
- A senhora Holmstrom trouxe pão e presunto para acompanhar a refeição.
Seth entregou-lhe a cesta.
- Sou perfeitamente capaz de dar de comer aos homens - espetou. - No entanto estou certa de que eles vão apreciar o gesto. Obrigada Seth, queres levar a cesta para a mesa?
- Não. Prefiro tratar da senhora Holmstromfranziu as sobrancelhas. - Ginny, os homens estão à espera.
Ainda que fosse evidente que não gostava, Ginny aceitou a cesta e desapareceu.
Seth tirou-Lhe a caneca das mãos.
- Eu vou enchê-la. Não deixes a tua mãe sozinha.
Não conseguiu agradecer-lhe. Se fizesse só mais uma coisa com aquela nobreza, não ia ser capaz de o deixar ir embora.
Age assim porque ele não sabe do bebé. A verdade caiu-lhe como um jarro de água fria e deu a volta.
- Preocupas-te demais - queixou-se a mãe.
- Seth foi buscar mais água - respondeu Linnea, baixando-se em frente dela. - Verás que já te sentes melhor.
A mãe tapou a cara com as mãos, envergonhada pela sua fraqueza.
- Toma - Seth voltou com a caneca cheia. Fica aqui todo o tempo que a tua mãe precise e quando estiverem prontas, quero que levem o meu coche. Deixarei o General preparado no jardim. Quando chegarem a casa, desamarra-o e põe-no à sombra com um pouco de água. Eu passo por lá esta noite para buscá-lo.
- Como poderei pagar-te tudo isto?
- Já penso e depois digo-te - respondeu, piscando-lhe o olho. Mas ao olhar para a sua mãe voltou a franzir as sobrancelhas.
Não tinha bom aspecto.
- Toma, mãe. Bebe devagar - Linnea pôs-lhe a caneca na mão. - Vou buscar uma bacia e um pano. Podes ficar sozinha?
- Vai. Estou bem.
- Mentirosa.
Correu pelo caminho sabendo que Seth estaria perto se a sua mãe precisasse.
Os risos dos homens e o som dos talheres e dos pratos chegavam do jardim. De imediato sentiu medo. Deu a volta à casa e Oscan Hansson olhou para ela descaradamente.
- Vejam quem nos vem servir - disse em voz alta.
- Senta-te, rapaz - ordenou um homem.
Linnea entrou a correr em casa.
- Nunca vais ser bastante respeitável para ele - Ginny estava na cozinha, a encher um prato com pão. - Quando ele não estiver é assim que os outros homens te vão tratar.
- Preciso que me emprestes uma bacia e um pano.
Ginny tirou de uma caixa um trapo velho e atirou-o para cima da mesa.
- Não vieste porque me querias ajudar, mas sim porque querias que Seth pensasse bem de ti. Mas não vai funcionar Nada pode mudar o que tu és.
Linnea agarrou o trapo com fúria.
- Vais dizer-lhe?
- Se não te fores embora, sim. A tua mãe já pode subir para o coche. Pela janela, ouvi tudo o que Seth te disse.
- Adeus, Ginny.
Levou a bacia vazia que estava em cima da mesa e saiu.
- Tudo mudará quando souber a verdade - disse ainda. - A sua mulher era uma rapariga, linda, decente, inocente e pura.
Linnea tropeçou ao descer, cega de ira, e ouviu Oscan dizer:
- Tenho um dólar.
Mas não continuou, ao ver Seth chegar. Não conseguiu olhar para ele enquanto humedecia o trapo na água. Os homens estavam em silêncio, e nem sequer o roçar de um garfo num prato quebrou o silêncio. Os lilases fecharam-se em volta dela, ocultando-lhe a vista.
Que mais teria dito Oscan? E se algum dos homens explicasse a Seth em que se baseava a piada? Como iria suportar que soubesse da verdade?
- Toma, mãe. Isto vai refrescar-te a cara.
Linnea pôs o pano no rosto cor de papel da sua mãe.
- Ah... que bom.
- Ouviste que o Seth vai deixar-nos o seu co che bonito para voltarmos para casa: Queres experimentá-lo já?
- Claro que sim.
Levantou-se tremendo de fraqueza e Linnea passou- lhe o braço pela cintura.
- Apoia-te em mim mãe.
- Sempre, minha fillha.
A preocupação com a sua mãe continuou ao longo do dia e da noite. Esteve a ler para que adormecesse e depois tapou-a bem, ficando satisfeita por ter sido aquela a mulher que lhe tinha dado a vida.
Depois saiu com a sua costura para a sala, onde a gatinha a esperava para lhe fazer companhia.
Ouvindo o seu ronronar satisfeito, uniu os quadrados com alfinetes e coseu-os
Ouviu um ritmo fraco e desigual através das janelas abertas. Poderia ser? Largou a costura e correu para a porta. A noite era como sempre um mistério obscuro iluminado pelo brilho das estrelas e a luz da lua que banhava as pradarias.
O galope continuou, crescendo até que todas as planícies se encheram de vida. Moviam-se como sombras, absorvendo o resplandecer da lua sobre as crinas e os dorsos. Um instante depois voltaram a ser escuridão.
Desceu as escadas do alpendre a correr. Deviam estar longe.
- Não sabia se ia encontrar-te aqui fora.
- Seth! - exclamou, levando a mão ao peito. Tens de deixar de me pregar sustos.
- Parece que não te dás conta quando estou aqui. Não pode ser bom sintoma.
Ela deu um passo na escuridão.
- Uma mulher devia ficar satisfeita por ver um homem a cortejá-la.
- Suponho que sim.
Apesar de tudo, não queria renunciar à esperança. Não queria deixar de sonhar que a aceitava mesmo sabendo da verdade.
Estava ali alto como uma torre, com honra ganha ao longo de uma vida como militar e como homem: Os outros atiravam-Lhe moedas e faziam piadas à sua conta. Seth Gatlin não queria ter uma mulher assim como esposa. Ginny tinha razão.
A beleza da noite partiu-se como um cristal ao bater contra uma rosa.
Diz-lhe, LinneaH, reclamou. Tinha de o fazer. Devia-Lhe isso. Seth merecia uma mulher que o fizesse feliz, e não alguém com erros, defeitos e rugas na cara.
Ganhou a coragem suficiente para fazê-lo e virou-lhe as costas.
- A saúde da minha mãe está a piorar, por isso tenho que tomar algumas decisões difíceis.
- A que te referes?
- Precisa de mim mais que nunca. Ela é a minha principal responsabilidade.
- Claro que sim. É tua mãe. Estares a afastar-me do teu lado tem alguma coisa a ver com tudo isto? Depois do passeio de domingo, pensava que tinhas compreendido. Estou a cortejar-te, com a esperança de me casar contigo.
- Não - tapou a cara com as mãos. - Não digas mais nada.
- Estou a ir devagar - continuou. - Pretendo fazê-lo como deve ser. Quero que compreendas que as minhas intenções são honestas e desejo que seja para o resto da vida. Gostas de mim?
- Sim... - de onde tirar forças para lhe dizer? Não posso...
- O que queres dizer? Ou é sim, ou é não.
- Já te disse. Tenho outras responsabilidades.
- Com a tua mãe - parecia céptico, zangado e perdido. - Ginny tem alguma coisa a ver com isto? Ela não gosta de ti, não estranharia que te tivesse dito alguma coisa que pudesse ter-nos separado.
- Ginny não tem culpa.
- Não acredito em ti. Dissesse o que dissesse - engana-se. Eu tenho confiança em ti, Linnea.
Deixa-me cortejar-te como deve ser.
- Tenho que tratar da minha mãe e não posso dar-me ao luxo de andar por aí de coche contigo.
- Da próxima vez, levamo-la connosco e se nos casarmos, poderá viver na nossa casa. Não tenho nenhum problema com isso.
Porque tinha tão bom coração? Estava a ser impossível acabar com ele.
- Não quero estar contigo.
Não era verdade. Nunca seria.
- Compreendo - fez uma pausa e o mundo pareceu ficar imóvel, esperando o seu veredicto. Isto tudo não tem nada a ver com Ginny?
- Não.
Só ela bastava para cometer erros.
Seth deu um passo. Em seguida outro. Até que a largura do caminho os separou.
- Vou buscar o General e vou-me embora.
- Está bem.
Quisera deixar-se cair e chorar até que não lhe restassem sentimentos. Nada lhe tinha doído tanto como aquela perda, a sua segunda oportunidade para o amor.
Levantou o olhar e vislumbrou a sombra fraca dos Mustang no horizonte.
O coiote cantava a sua canção triste e solitária e o piar do bufo que andava a caçar no celeiro pareceu-lhe tão desolado como ela se sentia.
As pegadas de um cavalo com ferraduras soaram no celeiro. As rodas de um coche rangeram. Seth aproximava-se.
Não podia olhar para ele. Ainda assim, ele parou o General, e a noite pareceu tornar-se tão fria que Linnea não conseguia deixar de tremer.
Ele não disse nada. Nem uma palavra. E afastou-se na escuridão, deixando-a sozinha.
E foi assim que tudo terminou entre eles.
- Major, é o senhor?
Uma voz doce e frágil chamou-o, fazendo-se ouvir por cima do som dos arreios quando entrava no jardim.
- Sou eu senhora.
- Que maravilha vir visitar- nos - sorriu a senhora Holmstrom. - Ainda não consegui acostumar-me à bomba na cozinha. Que luxo! Não consigo deixar de a adorar cada vez que a uso. - Então, suponho que ficará contente que tenha vindo hoje. Travou.
- Outra surpresa?
- Sim - desceu. - Não tenho muito que fazer enquanto o trigo amadurece, assim pensei em vir pôr um telhado novo, se lhe parecer bem.
- Claro que me parece bem! Vejo que não se esqueceu da sua promessa.
- Eu nunca me esqueço da palavra dada a uma mulher bonita - deu a volta à carroça. - Caso se sinta bem.
- Claro que estou bem! Muito barulho por um enjoo de nada.
- Ouvi dizer que o médico veio vê-la no outro dia - descarregou as ferramentas e um balde de pregos. - Vi o coche dele estacionado no jardim.
- Sou velha, é só isso. Ontem a Linnea fez-me tarte e sobrou muita. Venha comer um pouco antes de começar.
- Linnea está?
- Isso importa? - perguntou ela desconcertada.
- Não. Só queria perguntar-lhe se está de acordo. Talvez não seja um bom dia para trabalhar no telhado.
O olhar de desconcerto e esperança desapareceu do seu rosto.
- Claro. Tão educado como sempre. Asseguro-Lhe de que Linnea não se importará. Está na horta, a colher pêssegos.
A senhora Holmstrom fê-lo entrar em casa e Seth reparou nos bocados de uma colcha colocados na mesa do canto. O perfume a lilás impregnava o ar e olhasse para onde olhasse, encontrava a graça do toque de uma mulher: rendas, folhos, almofadas...
Tudo Lhe fazia lembrar Linnea. Linnéa que tinha dito que não o queria. Apertou os dentes e tentou não pensar na dor que tinha na alma. A senhora Holmstrom ofereceu-Lhe uma cadeira junto à mesa.
Uma mãe doente não era razão suficiente para recusar o amor de um homem. Era pura e simplesmente uma desculpa. Linnea era demasiado doce para Lhe dizer que não queria e ponto final.
Estar ali na sua casa não foi o mais fácil do mundo, mas sobreviveu. Gabou a receita da avó Holmstrom e a perícia da sua filha para fazer doces.
Reparou, quando acabava o último pedaço de bolo, que a saúde da mãe de Linnea parecia extremamente delicada. Esfregava a testa de vez em quando, como se lhe doesse a cabeça.
Um calafrio desceu-Lhe pelas costas e teve que admitir que talvez Linnea estivesse a dizer a verdade. Talvez a senhora Holmstrom não estivesse tão bem como dizia.
- Vou fazer muito barulho - disse-lhe - Se calhar devia trabalhar só até ao meio-dia. Assim teria um pouco de paz e de tranquilidade.
- O quê? Não pensará tratar-me como uma ga linha choca, não é verdade? Não me incomoda nada o barulho que possa fazer um homem a trabalhar.
- Mas prometa-me que se chegar a incomodá-la vai dizer-me.
- Está bem, mas vai fazer muito bem ao meu coração ver um telhado novo nesta casa.
A felicidade da senhora Holmstrom aqueceu-lhe um pouco o coração. Era impossível não se preocupar com ela, ao ver de perto as suas olheiras e a palidez da sua pele.
- Deixe-me acompanhá-la até lá fora para que se sente comodamente à sombra - sugeriu, dando- lhe o braço.
- Será uma honra. Senti muito a sua falta. A sua ausência tirou-me a oportunidade de fazer os doces de que tanto gosto. Agora há tanta fruta que não conseguimos apanhá-la toda e não tenho outro remédio senão fazer algumas tartes. De que prefere: de pêssego ou de morango?
- Morangos bem doces e estarei em dívida consigo para sempre.
Ela deu-lhe umas palmadas no braço.
- Perfeito. Convém-me manter o senhorio contente, já que tenho ouvido dizer que os Mclntyre lhe ofereceram estas terras.
- E pode ser que as compre. Ainda não me decidi.
- Seria estupendo tê-lo como vizinho. Já não teria Que me preocupar em perder a casa que o meu querido Olaf constru iu para mim. Só há outro lugar para onde poderia ir viver se tivesse que deixar a minha casa, é a casa da minha irmã em Oregon. É pena estar tão longe.
- Já chegámos ao banco. Sente-se e desfrute o dia.
- Obrigada, meu querido amigo - apalpou a borda do banco e sentou- se. - Você é tão mau como Linnea. Não há maneira de deixarem de se preocupar comigo, quando o que se passa é que tenho muitos anos! Algum dia pode ser que tenha uma filha que goste tanto de si como Linnea de mim.
Já tinha tido uma filha e as palavras bem intencionadas da senhora Holmstrom foram como facas que se enterraram no seu coração.
- Talvez. Nunca se sabe. Agora vou fazer-lhe uma pergunta e quero que me diga a verdade: enjoou muitas vezes?
- Estou bem e não quero que diga o contrário a Linnea. Já tem bastantes preocupações para nos sustentar.
Linnea tem razão: havia sérios motivos para preocupação. Seth apertou a mão frágil da anciã e desejou saber o que fazer.
- Senhor Gatlin...
Linnea apareceu, com as faces vermelhas por causa do calor e com uma folha presa no chapéu. Cheirava a pêssegos maduros e com o dedo indicador fez-Lhe um gesto para que se aproximasse.
Só de vê-la a solidão que tinha no coração pesou-lhe o dobro. Ela tinha-Lhe dito que não queria estar com ele, e nada no mundo, depois da perda da sua familia, lhe tinha doído tanto.
Palavras que tinha dito para o bem da mãe. Olhou para a anciã e recordou o quanto parecia estar doente em casa de Ginny. O frio voltou a arrepiar-lhe as costas. O que é que Linnea tinha dito mais? Precisa de mim mais do que nunca.
Linnea voltou a chamá-lo com um gesto e ele seguiu-a até à horta salpicada de sombras onde as abelhas chupavam o néctar preguiçosamente e as árvores de fruto se dobravam com o peso da sua colheita.
- Queres que tos leve à cozinha - perguntou-lhe ao ver os baldes cheios de pêssegos até cima.
- Posso fazê-lo sozinha - respondeu ela com frieza. - Por que é que vieste?
- Prometi à tua mãe quando nos conhecemos que lhe arranjaria o telhado este Verão e agora tenho tempo para o fazer.
- A minha mãe não está bem e não sei se tanto barulho não lhe fará mal.
- Ela não pensa o mesmo. Disse que quer um telhado novo e mais para a frente não terei tempo até que se tenha feito a colheita e nessa altura pode já estar a chover.
Linnea suspirou e olhou para onde a mãe estava sentada, com a cabeça inclinada, dormitava. O carinho fez suavizar a sua expressão. O amor e a devoção daquela filha estavam bem patentes.
O coração dele encheu-se de um amor renovado por ela. Pensaria ela que a ia obrigar a escolher entre a mãe e ele?
- Paro se vir que a incomodo, ou posso trabaLhar só da parte da manhã. O que quiseres.
- A sério? - olhou para ele com os olhos cheios de luz. - Isso estaria bem.
- Ofereceu-se para me fazer uma tarte de morangos, masnão consegui convencê-la a não fazer.
Recompensou-o com um sorriso.
- Eu faço-te a tarte se quiseres: Como forma de agradecimento - realçou e Seth arrepiou-se.
- Já te disse na outra noite, mas vou insistir. Pode ser que a tua mãe seja a razão pela qual outros homens não te tenham cortejado, mas eu gosto dela. Compreendo que é uma responsabilidade tua e estou disposto a que também seja minha.
Por um instante, a tristeza nublou-lhe o olhar, mas depressa pestanejou e desapareceu.
- E eu também já te disse que o problema não é esse.
O lábio tremeu-lhe um instante antes que desse a volta e se afastasse como se nunca tivesse gostado dele.
O barulho insuportável do martelo, pregando pregos na madeira, parecia interminável e Linnea despachando-se o mais rapidamente possível, recolheu os recipientes e a faca que precisava e saiu de casa.
- Não há quem aguente lá dentro, pois não? – a sombra de Seth caiu sobre as escadas do alpendre traseiro, alargada pelo sol da manhã. - Lamento.
- Ninguém o diria.
- É porque já terminei.
Tinha tido que suportar a presença dele no telhado durante três dias, de onde vigiava até ao último dos seus movimentos. Quando estava a apanhar fruta das árvores, ou quando guardava pêssegos à sombra, sentia o seu olhar desde debaixo da ala do seu Stetson.
- Que trabalho maravilhoso nos fez, Major! elogiou-o a mãe, deixando de lado a costura e pondo-se de pé.
- Não vou recusar o elogio, senhora, mas não estará certo até que chova e se comprove se fiz ou não um bom trabalho.
- Tenho confiança em si.
- Não tens porque fazer essa cara, Linnea. Não deixará entrar água - a luz da sua voz apagava-se quando falava com ela. - Vou já arrumar as minhas coisas e vou-me embora.
- Está bem.
- Não vês a hora de te livrares de mim, não é?
- Exacto.
Enfiou a faca num suculento pêssego. Fazendo girar a ponta afiada, tirou-lhe o caroço e deitou-o para um balde.
Sentia o olhar de Seth nela, tão descarado como a carícia de um amante e não quis olhar para ele. A ameaça de Ginny e o desprezo de Os can Hansson continuavam a pôr-se entre eles.
Tirou outro pêssego do balde. Estava maltratado, como ela, e deixou-o de parte para fazer doce.
- Ai, meu Deus, o que fiz? - exclamou a mãe, apalpando a saia e o banco em que estava sentada.
- Perdi a agulha.
- Não te preocupes com isso. Eu encontro-a - Linnea não estava acostumada a ver a mãe assim, mais frágil cada dia. - Sabes que eu estou sempre a perdê-las.
- Nunca mais acabo o teu vestido se continuo assim.
Linnea pôs as mãos a tremer da mãe entre as suas.
- Ouve, mãe: o vestido acaba-se quando tiver que ser e eu gostarei muito dele porque tu escoLheste o tecido e coseste-o.
- Ai, minha filha, é que tenho tanta vontade de que o tenhas feito...
- O que a mim me importa és tu. Tu és a minha vida, não te aborreças por causa disso, por favor.
- É que não sei o que tenho ultimamente. Parece-me que não estou muito bem.
Os passos de Seth ouviram-se nas suas costas.
- Senhora Holmstrom, estou muito zangado com a senhora. Prometeu-me que se o martelo a incomodasse, me dizia.
- Sim, mas não me incomodou! Faz-me muito feliz ter um telhado novo. Se Olaf fosse vivo nunca teria permitido que estivesse tanto tempo sem ser reparado.
- Estou certo.
Se fosse vivo. Estas palavras envergonharam Linnea e viu que Seth agarrava na mão da sua mãe para beijá-la com respeito nos nós dos dedos.
A mãe não estaria sozinha, não estariam sem o seu pai se tivesse sido a rapariga sensata que os pais se tinham esforçado por educar.
Ajoelhou-se e procurou a agulha, mas a sua vista estava tão nublada que não conseguia ver nem o banco, como ia encontrar a agulha?
Tinha estado a ponto de cometer o mesmo erro.
O erro de desejar, de sonhar sempre com o mesmo tipo de amor que os pais tinham partilhado.
- Aqui está - disse Seth e a sua voz lembrou-lhe todas as vezes que as suas carícias tinham despertado o desejo nela, os seus beijos suaves como veludo e a alegria de encontrar a cada manhã um ramo de flores que a esperava na porta.
- Que maravilha! - disse, debilmente, a mãe.
Linnea levantou-se. A sua dor não tinha importância. Só o que importava era a mulher tão fraca que estava sentada à sua frente e cujas mãos tremiam de tal modo que não conseguia enfiar a agulha.
- Mãe, tens que descansar um pouco - disse e pôs a agulha e a linha na caixa de costura.
- Mas antes quero acabar esta costura.
- Depois - respondeu ela, pondo a caixa de lado.
- Como se arranja para coser? - perguntou Seth e, apesar de a sua voz parecer despreocupada, a expressão era de tristeza.
- A minha Linnea corta as peças e alinhava-as e, ainda que, esteja cega há muitos anos, as minhas mãos sabem o que fazem. Além do mais, coso desde pequena.
- Foi ela quem me ensinou - acrescentou Linnea, enquanto tirava o vestido do colo da mãe. Nem sequer agora sou tão boa como ela.
- Quando via, é verdade que cosia muito bem - admitiu e ficou a sorrir em silêncio, como se estivesse perdida noutro tempo.
- Vou buscar uma almofada - disse Linnea. Ficas com ela um pouco?
- Claro.
Seth era o tipo de homem em quem podia confiar o resto da vida. Depois de ter deitado a sua mãe, acompanhou Seth à carroça.
- Não sei como agradecer-te por seres tão bom para a minha mãe.
- É uma mulher encantadora. Gosto de pensar que a minha mãe teria sido assim se o meu pai não tivesse morrido tão cedo.
- Quantos anos tinhas?
Carregou um balde de pregos para a carroça.
- A minha mãe casou-se logo depois. A pobre não tinha outra alternativa. Mas o segundo marido foi muito cruel para ela e morreu pouco tempo depois.
A sua tristeza comoveu-a. Aquele homem tinha perdido muito. - Não sabia.
- Admiro-te pela forma como tratas da tua mãe, Linnea. Não há muitas filhas tão dedicadas como tu.
- Não sou eu, mas sim a minha mãe, que foi sempre maravilhosa. Nunca deixou de gostar de mim, nem sequer nos momentos em que pensava não conseguir sobreviver e por isso devo-lha a vida.
- Vou continuar a dizê-lo até que acredites: poderias tratar da tua mãe em minha casa, sendo minha esposa.
- E eu vou responder sempre o mesmo: a minha mãe não é o motivo pelo qual eu nunca serei tua esposa - olhou-o nos olhos e despediu-se dos seus sonhos.
- Dentro de uns dias passo por tua casa para levar o dinheiro da renda. Diz a Ginny que não me atrasarei.
- Esquece-te o dinheiro da renda este mês. A propriedade vai ser vendida.
- O quê? - gritou, apoiando-se na carroça. Alguém vai comprar esta propriedade? Mas se a minha mãe me disse que.
- O quê? - quis saber ele, enquanto fechava o portão das traseiras.
- Que as tuas obrigações para com a tua irmã acabaram e que vais embora.
A tristeza invadiu-a. Já sabia que ia embora depois da colheita, mas pensar que não ia voltar a vê-lo.
- Não, não vou embora. O comprador sou eu - subiu para o assento. - Queres que vá à cidade e traga o médico?
- Vem amanhã e a minha mãe ficará melhor depois de uma sesta. Não é a primeira vez que acontece.
- Se eu puder fazer alguma coisa, só tens que me pedir.
Franco e bom. Era assim o homem que ela amava. Não foi fácil deixá- lo ir enbora.
- És um bom senhorio, fico contente que sejas tu quem vai comprar a terra. Tinhas dito que querias montar um rancho.
- Sim.
Olhou para a frente e Linnea teve a sensação de que o tinha defraudado. Agarrou as rédeas e depois de inclinar levemente a cabeça, afastou-se.
A tristeza foi, então, tão densa como o pó que a carroça levantava. Ia comprar a terra. Ia ficar. De certa maneira, teria sido melhor que se fosse embora.
Então, viu o futuro perante si, pesado como uma pedra. Tinha que manter a cabeça bem levantada quando ele passasse pelo caminho em direcção à cidade. Um dia, quando se casasse com uma mulher digna dele, teria que coser um presente para o casamento. E, mais tarde, teria que tecer uma manta para o berço de cada um dos seus filhos.
O seu coche passaria cheio de familia e cheio da alegria e da doçura de Seth.
Não podia permitir que a tristeza criasse raízes no coração. Ela já tinha amor na sua vida. Tinha beleza. Tinha mais do que merecia.
Pestanejou várias vezes contra a luz abrasadora do sol. O pó do caminho já tinha pousado e Seth já não se avistava.
Já não estava na sua vida.
Já não estava nos seus sonhos.
Os dias sucederam-se com monotonia depois daquilo. O trabalho cansava-a o suficiente para não pensar em Seth. As maçãs amadureceram e, como o estado de saúde da sua mãe continuava a ser delicado, teve de fazer todo o trabalho sozinha: descascar, envasilhar, preparar molho de maçã, manteiga de maçã, conservas e sidra. Para além disso, realizou também as tarefas da horta.
Caía esgotada na cama depois da meia-noite e levantava-se antes do amanhecer. O esgotamento resultou ser uma boa terapia para não pensar em Seth Gatlin.
- Hoje estou melhor - disse a sua mãe. - Posso ajudar-te.
- Tu vais descansar, que foi o que o médico disse - Linnea afastou uma madeixa da cara e continuou a cortar maçarocas de milho. - Quando tiver posto este milho a secar, prepararei o jantar. O que preferes: milho ou ervilhas?
- Gosto das duas coisas. São tão boas, recém colhidas da horta - tropeçou e levou as costas da mão à testa. - Meu Deus, acho que preciso de me sentar.
- Estás bem?
Linnea largou a faca e correu para o seu lado.
A mãe tremia, procurando às cegas algo a que se agarrar. Linnea agarrou-a pela cintura. Que pequena era. Como um pássaro caído de um ninho, a tremer e fraco. Murmurou umas palavras sem sentido e desmaiou.
- Ginny, é o melhor.
A semana de Seth já tinha sido bastante dura para ainda ter que discutir com a sua irmã sobre algo que não tinha remédio. Deixou o documento assinado em cima da mesa da cozinha.
- Ficas livre da segunda hipoteca que Jimmy pediu sobre a casa antes de ir embora. Agora sou eu o dono da terra.
- Agora vais ser tu quem recolhe o dinheiro da renda - baixou a cabeça mas olhou-o de soslaio. Eu também terei que pagar?
- Deixar-te-ei viver na casa o tempo que quiseres sem pagar um cêntimo. Prometi ajudar-te e é o que farei, mas tu também terás que ajudar-te a ti mesma procurando um trabalho na cidade.
- Um trabalho? Como vou trabalhar tendo que tratar do Jamie? Já sabes que passa muito mal os Invernos por causa dos pulmões.
- Podes trabalhar enquanto está na escola. - E quando estiver doente? - apertou os lábios e levantou-se da cadeira com os punhos cerrados. Parou diante da janela e olhou fixamente para as maçãs que tinham caído da árvore. - Não penso viver assim, numa casa a cair e tendo que criar o meu filho com roupa usada.
- Tivemos um Verão muito seco, já sabes. Cavei dois poços para poder regar, mas o milho está na metade do que deveria estar, assim não vamos ter os lucros que esperávamos.
- Não é justo! Eu não mereço isto.
- Mas não te vi aí fora a cavar o poço, nem a cortar madeira para o moinho.
- Tinha que tratar do Jamie.
- Então perdeste o teu tempo, porque os teus cuidados não são os que deveriam ser - estava cansado e perdeu a paciência. - Trabalhei sem parar desde que cheguei e não te pedi um centavo. Cavei poços, cultivei os teus campos, arranjei as tuas valas e construções e comprei-te uma vaca. Esta terra está à venda e pode ser uma boa oportunidade para mim. E para ti é a melhor alternativa que tens.
- Queres dizer que podes chegar a expulsar-me daqui assim, sem mais? Disseste que ias ajudar-me. Onde está a tua palavra de cavalheiro?
- Estou a dar-te uma casa pela qual não vais ter que pagar renda mas, a partir daí, terás que continuar tu sozinha. Para o bem ou para o mal. Procura um trabalho. Trata do teu filho. Faz doces. Trata da tua casa.
- Por que me fazes isto? - a raiva ardia dentro dela, mas esforçou-se por controlá-la. Não queria chateá-lo mais. - Pensava que me ias ajudar a vender o feno e os cereais. E também que me ias ajudar a procurar um comprador para a terra. Teria dinheiro para comprar uma casinha na cidade. Não seria grande coisa, mas ao menos não estaria aqui no meio do nada.
- Seth! - gritou uma mulher do jardim de trás.
- Seth!
Linnea Holmstrom apareceu, o chapéu caído nas costas, a cara vermelha pela correria.
Bastou que Seth olhasse para ela para perceber o seu terror e o coração parou. Sabia porque estava ali.
- É a minha mãe. Desmaiou. Vais buscar o médico?
Ele já tinha começado a correr.
- Vai ter com ela. Trarei o médico o mais depressa que possa. Confia em mim.
- Eu confio.
Acontecesse o que acontecesse entre eles, as suas palavras acenderam a luz da esperança dentro dele. Estava a pôr-se nas suas mãos. Precisava dele. Tinha recorrido a ele.
Assobiou e o General levantou a cabeça e, como nos velhos tempos, o garanhão correu até ele. Não perdeu tempo a pôr-lhe a cela. Saltou para o seu dorso e correu pelo campo.
- Seth vai trazer o médico, mãe - Linnea escorreu a água do pano e dobrou-o em três. - Foi com aquele cavalo muito veloz que tem e voltará num abrir e fechar de olhos.
- Se... Seth - sussurrou a sua mãe, sorrindo com metade da boca paralisada:
- Podemos contar com ele.
Já há muito tempo que não tinham um vizinho com o qual pudessem contar. A partir daquele momento, e acontecesse o que acontecesse, estaria agradecida e não triste por Seth ser seu vizinho e senhorio.
Pôs o pano frio na testa da mãe.
- Sentes-te melhor?
A sua mãe só pôde assentir. Os olhos fecharam-se e ficou tão imóvel quase como se não respirasse. Parecia restar tão pouco dela debaixo da manta...
- não me deixes mãe, por favor - pediu-lhe, agarrando-Lhe na mão. - Não vás ainda com o papá.
O silêncio encheu o quarto. Linnea pôs os dedos no pulso da sua mãe para procurar os bati mentos do coração, fracos e irregulares.
Os cascos dos cavalos ouviram-se na rua. Saiu a correr, mas Seth já tinha aberto a porta e pôs- se de lado para que o médico pudesse entrar.
- Está no quarto - assinalou ela.
- O que aconteceu? - perguntou Seth, pondo uma mão debaixo da nuca.
Que consolo tão grande era senti-lo ali. Um consolo que não merecia e afastou-se.
- Estava enjoada e doía-lhe a cabeça. Vou ver se o médico precisa de alguma coisa.
- Eu ajudo-te.
Porque era tão bom para ela? Tinha-o tratado mal, tinha-o magoado e ainda assim estava disposto a ajudá-la.
- Tenho estado a pôr-lhe panos de água fria na testa - disse ao médico.
O médico assentiu em silêncio.
- Deve tê-la aliviado, sem dúvida. Seth, leva Linnea e faz com que se acalme.
- Mas eu estou calma!
- Não, não estás, e o que a tua mãe menos precisa é de sentir o quanto estás preocupada com ela. O melhor que podes fazer para a ajudar é sair daqui e controlar-te.
- Mas é a minha mãe. Não posso deixá-la.
- É o melhor - o médico deitou água na bacia e ensaboou as mãos. - Seth, leva-a lá para fora.
- Não - não iam afastá-la da sua mãe, que tanto precisava dela. - Não pode ficar sozinha.
- Eu ficarei com ela e se houver alguma mudança, digo-te.
- Vamos Linnea - disse Seth, passando-lhe o braço pela cintura e deixou de se sentir só. - Esperaremos uns minutos cá fora. Para que o médico faça o seu trabalho.
- Sou eu quem cuida sempre dela - disse ao pé da porta. - Não sei se respira.
- Ele sabe o que faz, Linnea. É médico.
Como resistir à sua ternura? Fazia-a sentir-se fraca quando devia lutar. Fazia-a derreter-se até ficar nua, temerosa, sozinha e vulnerável.
- Não consigo suportar a ideia de deixá-la - disse e afundou a cara no seu peito.
- Eu sei. Deixaremos que o médico faça o seu trabalho e depois voltamos a entrar.
A luz empalidecia no céu, num entardecer grande e lento de Verão. O mundo continuava como sempre, as vitelas a caminhar ao lado do celeiro para pastar. Os pássaros a piar alegres na árvore enquanto os passarinhos experimentavam as suas asas.
- É um dia como outro qualquer, a não ser pelo facto de que a minha mãe poderia morrer.
Seth passou-Lhe um braço pela cintura sem dizer mais nada. Não havia nada para dizer porque nada a podia consolar. A brisa suave da pradaria roçava-lhe a cara como todas as noites e os pardais discutiam diante do celeiro enquanto se banhavam no pó.
Como qualquer outro dia.
- Pode ser que fique boa. Talvez não seja mais que um desmaio. Acontece-lhe algumas vezes, mas depressa se recupera.
- É possível.
Os dois sabiam que daquela vez era mais sério até mais do que o médico tinha deixado antever.
- Podes ir para casa - disse-lhe. Não queria mostrar-se fraca. - Agradeço-te muito que tenhas ido buscar o médico.
- E eu fico contente que tenhas recorrido a mim - apertou-lhe a cintura e deu-lhe a mão. Gosto de saber que precisas de mim.
- Não preciso de ti.
Era verdade e mentira ao mesmo tempo. Não ia apoiar-se num homem que não era o seu.
- Pois é uma pena, porque vou ficar: Um homem não dá meia volta quando as coisas se tornam difíceis, sobretudo se é para a mulher que ama.
- Tu não podes amar-me.
- Nisso não podes interferir. É algo que o meu coraçãojá decidiu.
- Eu não te amo.
- E eu não acredito em ti.
Continuou a rodear-lhe a cintura, agarrando-a assim sem mais, enquanto o azul do céu ia escurecendo e o sol envolvia em chamas o horizonte do Oeste, que, por vezes, se prendia nas nuvens.
Um pôr-do-sol bonito num dia tão diferente dos outros.
- Não posso esperar mais - disse e fez um gesto para se soltar e entrar, mas Seth deteve-a.
- Dá um pouco mais de tempo ao médico.
- A minha mãe poderá estar assustada. Talvez precise de mim.
- Estou certo que sim.
- Está sozinha e é culpa minha - a verdade foi como uma sombra que se tomou conta da pradaria. - A culpa é minha que o meu pai não esteja aqui ao seu lado. Tratei dela o melhor que soube, mas nunca poderei compensá-la pelo que fiz.
- Chiu... - beijou-a na testa. - A tua mãe vai ficar boa e vamos pensar isso até que o médico nos diga o contrário.
Como poderia ser assim, tão maravilhoso, tão teimoso, tão sincero? Não podia gostar dela de verdade. Não ia permiti-lo.
- Tenho que ir - disse, afastando-se do seu lado. - Perdoa-me.
- Linnea - alcançou-a no alpendre. - Não entres estando assim. O médico queria que estivesses serena para o bem da tua mãe.
- Não posso ajudá-la se ficar aqui sentada.
- E também não podes ajudá-la nesse estado.
- Então, o que faço? Ficar tranquilamente sentada? Sou responsável por ela. Por minha culpa está sozinha e tenho que viver com este peso pelo resto da minha vida. Solta-me porque não me retinhas aqui se soubesses a verdade.
- Sempre quis reter-te.
Parecia tão seguro dele. Afastou-se dele uma vez mais, mas tropeçou em algo igualmente sólido no umbral da casa: o médico.
O medo gelou-lhe o sangue e retrocedeu para se agarrar ao corrimão.
- Como está?
- Teve um ataque. Têm que passar uns dias para que possamos conhecer a extensão das lesões. Precisa de descanso absoluto. Isso quer dizer que nada pode angustiá-la.
- Estou calma. Vou estar calma!
- Sei que é tudo o que tens Linnea.
A amabilidade do médico incomodou-a muito e fê-la perder força, mas respirou fundo.
- Estou calma.
- Está bem. Entra e senta-te ao seu lado. O Médico desapareceu nas sombras.
- Eu também fico. Se precisares de um ombro para te apoiares.
- Já me apoiaste o suficiente - desejava mais que tudo o consolo dos seus braços, mas ela era capaz de enfrentar a vida sozinha. A sua mãe tinha-a ensinado a fazê-lo. - Boa noite, Seth.
Linnea nunca tinha visto algo tão bonito como o despertar da mãe na manhã seguinte.
- Mãe, sou eu.
- Fi... Filha.
Tentou sorrir, mas só conseguiu fazê-lo com um dos lados e começou a chorar.
- Não quero que te preocupes - respondeu, secando-lhe as lágrimas. - O médico disse que vais ficar boa. Tens que descansar, isso sim, por isso nem penses em levantar-te desta cama para lhe fazeres uma tarte.
Mais lágrimas correram pelas suas faces.
- É assim mesmo. Nada de cozinhar durante os próximos dias - o médico aproximou-se, o rosto marcado pelo cansaço. - Linnea, porque não fazes um pouco de chá para a tua mãe? Quero ficar sozinho com ela para a examinar.
- Volto já, mãe.
Não queria ir embora. Nos olhos da sua mãe palpitava o medo. Teria o ataque sido muito grave? Queimou o dedo no fósforo e tirou água duas vezes antes de conseguir aquecê-la.
Alguém bateu à porta e a colher com que estava a medir o chá caiu.
- Desculpa - Seth entrou. Tinha cara de cansaço mas parecia mais forte que nunca. - Suponho que não me esperavas tão cedo.
Sentiu-se mais valente ao vê-lo.
- Fico contente por estares aqui.
- Vi fumo a sair da chaminé e supus que não seria demasiado cedo para perguntar pela tua mãe.
- Está acordada. E melhor - Linnea recolheu as folhas de chá soltas. - O médico está com ela.
- Trouxe o meu coche e o meu cavalo e quero que os guardes no celeiro. São teus enquanto precisares.
- Não. Isso não está cèrto - Linnea fechou a tampa da caixa do chá. - Esse cavalo vale mais do que eu ganho num ano e não posso aceitar. - Isso não estaria certo.
- E estaria certo que a tua mãe fosse à cidade a pé? Ainda que se recupere, demorará um tempo até recuperar a força.
- A minha mãe é responsabilidade minha.
- Quero que seja minha também.
- Não importa o que tu queres - disse-lhe, pondo a bola com o chá no bule.
Aquele homem estava a mostrar-se exactamente o que ela precisava. Era tudo o que não podia fazer. Empurrada pelo medo e pelo cansaço, deitou a água a ferver no bule e atirou-a pela cozinha.
- Fora!
Ele parou na porta.
- Podes pôr-me fora quantas vezes quiseres que eu não me vou embora. Vim para ficar e não há nada que possas fazer para me impedir.
- Nada? Fecharei a porta com a chave se for preciso.
- Assim não vais conseguir nada. Olha - assinalou o primeiro degrau do alpendre. - Ao que parece, o teu admirador secreto voltou.
- Não é um admirador secreto, é uma mula teimosa e insuportável.
- É possível, mas esse homem está apaixonado por ti. Para sempre, Linnea. Para o bem e para o mal.
Apoiou ligeiramente a mão no seu ombro.
- Dizes isso porque não sabes. Pensava que a tua irmã já te tivesse contado. Ou qualquer um dos vizinhos - afastou-se dele, do maravilhoso contacto com a sua mão que não merecia e recolheu as flores.
- Contar-me o quê?
- Que tive um filho fora do casamento.
Não podia olhar para ele. O amor e o respeito desapareceriam do seu olhar.
- Que filho?
- O que está enterrado no alto atrás da casa, ao lado do meu pai. Morreram com um mês de diferença. O meu pai porque Lhe parti o coração e o meu filho por ser prematuro - respirou fundo. Foi assim que prejudiquei a minha familia. O meu pai morreu, o meu filho morreu e tivemos que vender as terras. Agora já sabes, podes subir para o teu cavalo e ires-te embora.
E virou-lhe as costas para não ver como se ia embora. Não podia suportar ver desaparecer a ternura dos seus olhos.
Tem que ser assim", disse para si mesma, cravando o olhar nas flores que lhe tinha trazido. Passou as pontas dos dedos pelas flores delicadas, as últimas do Verão. A lembrança de que tudo tinha o seu momento.
De que tudo chegava ao fim.
Seth não se foi embora.
- Tu pensavas que eu já sabia do menino. Quando vim cortejar-te, pensavas que eu já sabia.
- Toda a gente sabe como fui estúpida ao acreditar num rapaz e não num homem, quando me disse que gostava de mim. É o filho dos Mclntyre...
- Jimmy?
- Sim, Jimmy. Tinha acabado com Ginny e interessou-se por mim e eu sentia-me tão honrada por me dar atenção... era de uma das melhores fa milias da cidade, bonito, atrevido e galante e encandeou-me de tal forma que eu, uma simples rapariga do campo, me deslumbrei.
Abanou a cabeça. Tinha um sabor amargo na boca.
- Sei que o que fiz está errado. Sonhava acordada e isso levou-me a cometer o maior erro da minha vida - caminhou em direcção aos degraus, encolhida pela pena e pela vergonha. - O chá já deve estar pronto. Tenho que voltar para junto da minha mãe.
- Linnea.
Mas ela entrou e fechou a porta.
- Linnea! - chamou-a.
Ela não ouviu, entrou na cozinha e procurou uma jarra para as flores.
- Linnea - insistiu pela janela, mas ela aproximou-se, fechou-a e correu as cortinas.
Sabia a verdade. Que mais queria dela? Uma confissão completa? As lembranças eram demasiado dolorosas. As canecas e o jarro tilintaram sobre a bandeja ao cruzar o quarto. Violetas que eram muito difíceis de encontrar naquela época do ano.
Tinha procurado aquelas flores porque gostava dela, mas isso tinha acabado. Era impossível.
- O Major trouxe-te umas flores, mãe. O sorriso da sua mãe continuava só com metade da boca, mas parecia melhor que antes.
- A sua mãe é uma mulher incrível, menina Holmstrom - comentou o médico enquanto guardava o estetoscópio. - Já está a melhorar e notei alguma força na mão. Penso que vai recuperar-se por completo.
A bandeja escapou-lhe das mãos e foi parar à mesa-de-cabeceira. O pior dos seus temores desapareceu.
- Obrigada, doutor.
E ajoelhou-se em frente da sua mãe.
Um filho ilegítimo. Isso explicava muitas coisas. Do umbral da porta, Seth viu Linnea aproximar a caneca dos lábios da mãe. As suas palavras eram serenas, as carícias delicadas, o seu amor como o sol que entrava no quarto.
Sim, isso explicava muitas coisas. Esfregou a testa. Ela pensava que aquele facto doloroso ia fazer mudar os seus sentimentos, mas enganava-se.
O médico entrou na divisão com uma caneca de chá na mão.
- Bom dia, Major. Já podemos ir para casa. Não posso fazer mais nada aqui. A senhora Holmstrom teve sorte, porque só teve um ataque leve. Penso que recuperará totalmente, mas a sua saúde será frágil durante um tempo.
- Quer dizer que precisará de cuidados.
- Sim - respondeu, deixando a caneca sobre a mesa. - Tenho que fazer umas quantas visitas. Voltarei para vê-la esta tarde.
- Envie-me a factura - disse-lhe, e a surpresa na cara do médico foi evidente. - A partir de agora eu serei responsável pela senhora Holmstrom.
- Compreendo - o médico assentiu. - Linnea é uma boa mulher e ficarei contente por vê-la feliz.
- O doutor não te vai enviar essa factura - Linnea fechou a porta com as costas, largando fogo pelos olhos. - Seth, não percebo o que pretendes.
- Não está claro?
- Eu vou-me embora - disse o médico e saiu.
- Entraste pela porta traseira e não tinhas esse direito. O que ofereceste ao médico é caridade e eu não preciso dela - avançou direito a ele com os punhos fechados. - Não penso admitir a tua compaixão, como também não admito a dessas muLheres da cidade.
- Isto não tem nada a ver com compaixão respondeu, agarrando-lhe nos braços. - Gosto de ti. É muito simples.
- Tu não podes gostar de mim.
- Por que não?
Ela não respondeu.
Ele sabia bem o muito que doíam as perdas e reconheceu essa mesma dor nos olhos de Linnea.
- O passado é isso mesmo, passado - disse- lhe.
- Não temos porquê desenterrá-lo e carregá-lo connosco para sempre. Sinto muito que o teu filho tenha morrido e sinto muito que um homem te tenha mentido. Mas eu estou aqui agora, diante de ti, com a verdade nos lábios. Temos uma segunda oportunidade. Estás disposta a vivê-la comigo?
- É o que mais desejo no mundo, mas não posso.
Começou a tremer e sentiu que as suas defesas se desmoronavam. Ele estendeu os braços e ela abraçou-se a ele, com as suas necessidades, temores e defeitos.
O mesmo que ele.
- A vida passa a factura a todos, mas juntos podemos conseguir que esses golpes sejam mais fáceis de assimilar - disse e beijou-a no alto da cabeça. - Dèves acreditar no meu amor por ti, Linnea. Não voltes a duvidar dele.
Estava a chorar e uns tremores sacudiam-lhe o corpo. Os dois tinham estado sós e os dois tinham sofrido muito. Mas já era hora de virar a página.
- Deixa-me tratar de ti e da tua mãe.
Era uma sensação de plenitude pensar que podia ser o homem de que ela precisava.
- Não me deixes - sussurrou.
- Nunca.
E abraçou-a, inalando o seu odor, bebendo o seu calor, adorando as suas curvas.
Era assim que a queria ter, para sempre.
- Diz-me o que posso fazer para ajudar. Ela olhou-o com os olhos cheios de um amor verdadeiro.
- Amo-te, Seth Gatlin.
E sorriu.
Tudo ia ficar bem.
- Bem, já estás limpa - Linnea deixou a toalha e a luva do banho no alguidar. - Agora, descansa.
- Obrigada, filha.
As suas palavras eram ainda algo turvas, mas começava a parecer-se com a sua mãe.
Deixou a mão no seu rosto e beijou-lhe a testa.
- O médico disse que se continuares a melhorar amanhã podes levantar-te da cama.
- Que bom. Pediste ao Major que levasse a minha carta?
- Sim. Pô-la ontem no correio - pegou nas coisas do banho. - E, sim, acrescentei uma nota sobre o teu ataque.
- Não o deverias ter feito.
- Precisava sabê-lo, mãe, mas também contei os prognósticos do médico para que a tia Eva não se preocupe. Agora, dorme um pouco.
Saiu do quarto, deixando a porta entreaberta. A tarde estava escura e as cortinas bailavam diante das janelas abertas.
Umas nuvens escuras percorriam o horizonte a Oeste. Ao entardecer, haveria tempestade.
Demasiado cansada para pensar em todo o trabalho que essa tempestade podia acarretar e que deveria acrescentar à sua lista interminável, Linnea deitou as toalhas e a luva para a pilha de roupa para lavar. Há uma semana que trabalhava dia e noite sem dormir. Tinha que tirar um tempo para lavar. A mãe precisava de lençóis limpos.
As rodas de uma carroça rangeram na parte da frente da casa. Afastou as cortinas e viu que era Seth que se aproximava. Uma mulher jovem estava ao seu lado, alguém que não conhecia. Seth viu-a na janela e sorriu.
- Linnea, apresento-te Claire Rhodes - Seth ajudou a jovem, pouco mais que uma menina, a descer da carroça. - Contratei-a para que te ajude com a tua mãe e com o trabalho de casa. Disse-me que é uma grande trabalhadora.
- Agradeço-Lhe o trabalho, senhora - disse a rapariga com um sorriso tímido e depressa cravou o olhar nos seus sapatos.
Sapatos muito remendados, reparou Linnea, até mais do que os seus. O seu vestido estava descosido em alguns pontos, mas limpo e passado a ferro. Como podia dizer que não à rapariga ou ao homem?
- Claire, estou muito contente por teres vindo. Por que não entras e pões água a aquecer para lavar?
- Sim, claro! Obrigada.
E entrou a correr na casa, entusiasmada. Seth sorriu devagar.
- O quê? Não vais protestar? Não posso crer!
- Sei bem o que é precisar desesperadamente de trabalho.
- Claire vive com uns parentes, então precisa mais de dinheiro que os outros. Vês como é fácil aceitar a minha ajuda? Até podes acostumar-te:
- Fazes demasiado e tu sabes disso.
- Isto é só o princípio. Pretendo mimar-te até te estragar.
O amor que lhe professava sentiu-o no seu abraço, na carícia aveludada do seu beijo, no modo como fechou os olhos para saboreá-lo.
O desejo aglomerou-se no seu interior, intenso e tentador e ele acariciou-a fazendo círculos lentos nas suas costas. Linnea abriu-se a ele, perdida no ritmo hipnótico da sua língua. Estar nos braços dele era uma maravilha.
Daquela vez com aquele homem, podia acreditar no amor.
Interrompeu o beijo mas não a soltou, apoiou a sua testa na dela.
- Como está a tua mãe?
- A fazer a sesta. Já tem mais força. Consegue andar sozinha, com a bengala que o médico lhe deixou, mas ainda não quèro que fique levantada.
- Talvez amanhã.
- Quero que venhas ter comigo esta noite quando já estiver a dormir. Claire toma conta dela.
Percorreu as suas costas com as mãos até chegar à cintura e abraçou- a com mais firmeza para
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que pudesse sentir o muro do seu peito e do seu abdómen, o poderoso contorno dos seus músculos e a sua erecção inconfundível.
- Há algo que te quero mostrar.
- Estou certa disso - riu-se. - Não posso deixar a minha mãe para isso. Além disso, eu...
- Não é isso que te quero mostrar. Bem, não só. O seu riso retumbou dentro dela, como se fizesse parte do seu corpo.
Linnea corou. Não sabia o que dizer.
- Amo-te, Linnea. Vem comigo esta noite, porque há algo que quero pedir-te.
E voltou a beijá-la, lentamente. Só um roçar dos seus lábios deixou os seus sentidos a dar voltas no ar.
Aquela terra era sua. Seth gostava da sensação de caminhar sobre o seu próprio pedaço de pradaria de Montana. Tinha sido muito caro, quase até ao último centavo das suas poupanças, mas tinha valido a pena. O vento que movia a erva seca parecia dar-lhe as boas vindas.
Era ali que pensava construir a casa, se Linnea achasse bem. O alto de onde se poderia contemplar as planícies salpicadas de flores no Verão. No outro lado da casa, onde poderia coser no Inverno, teria uma paisagem de cumes repletos de neve.
A casa seria espaçosa, com um quarto no piso de baixo para a sua mãe. Já a podia ver na sua mente, com um alpendre a rodeá-la e muito espaço no piso superior para os filhos que tivessem.
Filhos. Esse sim era um bom pensamento. Daria qualquer coisa para ter o privilégio de se casar com Linnea; mas ainda daria mais para ser o pai dos filhos dela. Meninas com caracóis dourados como a sua mãe. Talvez algum menino a quem poderia ensinar a montar.
Um sabor agridoce encheu-lhe a boca. Adorava os filhos que tinha perdido e os que viria a ter algum dia, não muito distante.
Era maravilhoso voltar a ter vida e tudo graças a Linnea. Ela devolvera-lha. Nenhuma outra mulher tinha despertado o seu coração. O amor dela tinha-o salvo. Tinha feito desaparecer a solidão insuportável. Tinha proporcionado um futuro.
Talvez constrúísse também um curral, a uma certa distância da casa, mas o bastante próximo para poder ver os cavalos do alpendre. Se a cerca fosse levantada o suficiente, não poderiam saltar.
Tirou do bolso o anel que tinha comprado nessa manhã na cidade. O pequeno diamante brilhava com alegria.
Era pouco frequente dispor de uma segunda oportunidade na vida e ele sentia-se um homem com bastante sorte.
Agora tudo dependia de Linnea.
- Mãe? - Linnea abriu a porta. - Estava à espera que acordasses. Seth trouxe outra surpresa.
- Ai, que homem! - a sesta tinha-lhe feito bem. Tinha cor nas faces. - O que fez agora?
- Contratou uma rapariga para nos ajudar.
Chama-se Claire, vive no outro lado do rio, próximo da cidade.
- Ah, deve ser essa rapariga órfã que vive com os Burgain - a mãe levantou-se, disposta a arranjar as almofadas. - Agora já não terei que me preocupar tanto com o trabalho.
- Tu és tudo o que importa, mãe - Linnea apressou-se a afofar a almofada. - Por isso deita- te. Queres alguma coisa para comer? Tenho sopa na cozinha. E os últimos pimentos e tomates.
- Sim, magnífico.
- Bom. Espera aqui - Linnea avivou a luz.
- Filha, traz-me as meias. Tenho que fazer algo.
- Tenho algo perfeito para ti.
Linnea levantou a tampa do seu baú de madeira de cedro. Dos três novelos de linha que tinha comprado, dois tinham ficado destruídos depois do ataque de Oscan Hansson. Só um estava como novo.
Não tinha sido capaz de olhar para eles sem se lembrar, mas talvez fosse aquele o momento de transformar a tristeza em algo bonito.
- Olha o que estava a guardar para ti - disse-lhe, pondo-lhe o novelo na mão. - A melhor seda da loja da senhora Jance.
- Deve ser linda - exclamou e aquele novo projecto pareceu dar-lhe vida. - Rápido, as agulhas. A minha mão não funciona tão bem como antes mas cá me arranjarei.
Linnea levou a cesta com as agulhas à mãe e viu-a tirar um pedaço comprido de linha.
Parece a de antigamente". Linnea não se importou com o cansaço ao entrar na cozinha. Claire estava no jardim, a esfregar algumas toalhas na tábua de lavar.
- Toma um pouco de sidra. Está fresca - Linnea entregou-Lhe um copo. - Por que não entras e comes alguma coisa? Trabalhaste muito.
- Estou contente por ter trabalho, senhora. Com as costas da mão, Claire afastou as madeixas que se escapavam do carrapicho.
- Deixa as toalhas, não Lhes acontece nada por ficarem de molho.
Claire sorriu e umas rugas suaves apareceram-Lhe no canto dos olhos. Devia ser mais velha do que pensara ao princípio.
Claire encheu o prato com pão, bacon que tinha sobrado da refeição e umas rodelas de tomate e saiu para jantar na rua. Enquanto Linnea enchia uma malga com sopa, ouviu água no alguidar do jardim.
Claire era uma boa trabalhadora e a sua ajuda ia notar-se. Quanto devia a Seth e que bom homem era. E que magnífico marido seria.
Deveria atrever-se a sonhar que ele fosse casar com ela de verdade?
A sua mãe só teve tempo para jantar e continuou a trabalhar. A escuridão era total, as horas passaram e Linnea quase teve de lhe arrancar o trabalho das mãos. Tinha começado o que seria uma magnífica renda.
Como fazia todas as noites, abriu um dos livros do pai e começou a ler. Lentamente, a mãe foi adormecendo.
- Eu ficarei com ela - disse Claire em voz baixa ao entrar no quarto. - O Major Gatlin pediu-me que o faça. Cuidarei bem dela não se preocupe.
- Não estou preocupada.
Havia uma doçura inata em Claire que Linnea reconheceu. Não poderia ter encontrado melhor enfermeira em todo o estado.
Ainda assim, custou-lhe deixar a mãe e sair para o alpendre. Seth levantou-se das escadas.
Quando lhe sorria sentia-se a mulher mais desejável do mundo. Agarrou-lhe a mão e desejou que nunca se separasse dela.
- Parece que vai fazer uma tempestade hoje. Espero que não te incomodes de estar na rua.
- Uma boa tempestade até vem a calhar, mas vou fechar as janelas antes de ir embora.
- Claire fará isso - respondeu, apertando-lhe. a mão. - Como estás?
- Melhor depois de tudo o que fizeste. Aquelas palavras proporcionaram-lhe uma onda de satisfação.
- Já não vejo os Mustang há algum tempo.
- Virão quando a neve cobrir as montanhas. Dentro de um mês, pouco mais ou menos.
- Bem. Suponho que não lhes calhava mal uma casa permanente - olhou para ela pelo canto do olho. Linnea tinha um coração sensível, mas não estava certo de como ia reagir às notícias. - Neilson não é o único rancheiro cansado de lutar contra os animais selvagens e os Mustang vão passar por coisas muito difíceis. Eu poderia proporcionar-lhes uma vida melhor.
- Mas irias tirar-Lhes a liberdade.
- Não de todo.
Considerou as palavras que ia dizer enquanto o vento remoinhava à sua volta, fazendo voar as ervas secas que batiam nas saias de Linnea.
Pararam para que ela desenredasse os seus saiotes e os agarrasse com a mão.
- É aqui que estou a pensar construir um curral bastante grande para que possam correr.
- Grande como?
- Começarei com um acre e depois vou acrescentando. Suponho que terei que passar todo o Inverno sem fazer nada e assim terei com que me entreter - podia ver o seu sonho tão claramente que lhe bastaria esticar o braço para lhe tocar. Estava a pensar construí-lo aqui, onde é mais plano. Domarei sozinho os Mustang que se adaptem. As éguas que queiram continuar selvagens, dar-me-ão potros todos os anos e domá- los-ei.
Ela não disse nada e ficou tão imóvel que parecia ter deixado de respirar. O vento puxou-Lhe o carrapicho até o soltar e deixar flutuar livremente os caracóis.
- Não gosto de pensar nas pradarias sem os seus cavalos selvagens.
- Tudo muda. Foi um Verão muito seco e não vão ter a comida que tinham no Verão passado. Os rancheiros venderam o seu feno excelente para conseguir dinheiro e protegerão com zelo o que lhes resta para o seu próprio gado.
Fechou os olhos.
- É verdade que as pessoas estão cada vez mais contra os Mustang.
- Eu posso dar-lhes uma casa segura. Aqui nunca passarão fome nem serão maltratados. Terão o seu próprio pedaço de pradaria para correr.
Ela assentiu.
- É o que sempre quiseste, não é?
- Sempre esperei possuir, algum dia, um pedaço de Montana. Demora um tempo a ter uma égua, mas se capturar os Mustang, tê-la-ei num instante.
Linnea apertou-lhe a mão e a sua aprovação silenciosa deu-lhe coragem para a conduzir à beira daquele terreno. Dali, podiam ver os confins da pradaria e as montanhas que fecham o horizonte. Sentaram-se juntos ombro a ombro.
- Gostas deste sítio? - perguntou-lhe. - Parece-me um bom lugar para construir uma casa.
- Uma casa? Eu julgava que vivias no anexo da Ginny.
- Não está mal para um homem solteiro, mas não é lugar para uma esposa.
- Uma esposa?
- És a dama mais doce que eu conheço e quero que tenhas o melhor de mim. E o melhor que possa dar- te - meteu a mão no bolso, a tremer. Estou a correr o maior risco da minha vida, Linnea. Nada me importa tanto como a resposta que me vais dar.
- Sim - os seus olhos eram luminosos, profundos e cheios de emoção. - Estás à procura de que resposta?
- Quero que me digas que sim - agarrou-lhe na mão esquerda e pôs o anel. - Seria uma honra para mim que aceitasses ser minha esposa.
- Queres casar-te comigo? - perguntou-lhe com a voz a tremer.
- Sim. Amo-te com todo o meu ser.
Sentiu que a mão de Linnea também tremia na sua.
- Queres casar-te comigo?
- Bem, a viúva Johanson recusou e como já tinha o anel e a madeira para construir a casa...
- Não gozes comigo - Linnea ria e chorava, abraçou-se a ele. Tê-lo assim era como ter alcançado o paraíso. - Sim, Seth Gatlin, casar-me-ei contigo.
Não podia acreditar que aquilo estivesse mesmo a acontecer. Ia ser a esposa de Seth.
A sua boca reclamou-a, marcando-a como um ferro em brasa, deixando-a fraca e sem ar. Era todo calor e paixão e não podia resistir.
Como os trovões que sacudiam o céu, assim, ela foi sacudida pelo desejo. Puxou-lhe o lábio inferior e ele riu-se antes de sentá-la no colo.
- Assim está melhor - murmurou Seth.
Aquele homem era um sonho tornado realidade.
Pensar que ia ter o direito de beijá-lo assim todas as noites. Para o resto da vida. O anel era um peso desconhecido na sua mão ao enredar- se no cabelo.
- Está a começar a chover - disse Seth.
- Não me tinha apercebido.
Foi então que reparou que cheirava fortemente a terra. A chuva caía em gotas preguiçosas, salpicando-Lhe a testa e as faces. Seth voltou a procurar a sua boca, a lambê-la, a absorvê-la e ela suspirou, embriagando-se com a doçura de estar com ele.
- Suponho que possamos casar-nos quando a tua mãe estiver um pouco melhor - disse ele e ambos se deitaram na erva.
- Sim, mas gostaria de ter mais tempo para fazer um vestido novo. Afinal, uma rapariga não se casa todos os dias.
- Isso é verdade - deslizou um dedo pela ponta do seu nariz e depois beijou-Lhe a ponta. - Não fazes ideia como desejo fazer amor contigo agora mesmo.
- Acho que tenho uma ideia - respondeu ela com uma sensação intensa na barriga.
- Ah sim? Ela corou.
- A necessidade de ser amado não é só dos homens. Uma mulher também pode desejá-lo.
- Fico contente de ouvir- te dizer isso - respondeu e beijou-a apaixonadamente e com tanto calor que poderia tê-la derretido. - Não temos que esperar. Não se nos vamos casar dentro de uma semana ou duas, no máximo.
- Eu deveria fazer-te esperar.
O pulso dele acelerou ao acariciar-lhe o lábio inferior com a ponta do dedo. Ela apertou o dedo com a sua mão e lambeu-o.
- Não me faças esperar - lamentou-se; apoiando a mão na base do seu pescoço. - Tenho a sensação de que esperei toda a vida.
- Sei muito bem a que te referes.
Seth foi depositando uma linha de beijos ao longo do seu pescoço. Os anos de solidão dissiparam-se como a neblina diante do sol. O céu abriu-se sobre as suas cabeças e o vento envolveu-os, mas ela só conseguia sentir Seth e o bater descontrolado do seu coração.
Começou a desabotoar os botões do vestido, mas não o fazia suficientemente rápido para ela, que queria sentir o calor das suas mãos. Então ajudou-o a fazê-lo, ainda que, as suas mãos se atrapalhassem constantemente.
Seth notou.
- És toda beleza e paixão - murmurou ao tirar o tecido e Linnea gemeu. A chuva fria caiu-lhe nos seios e depois sentiu o calor das suas mãos. Um calor doce derretia-lhe os ossos.
Tinha as mãos ásperas e, ao acariciá-la, a sua pele endurecida esfregava deliciosamente os mamilos. Linnea fechou os olhos e gemeu, atormentada.
Que sensação tão magnífica. Um calor abrasador marcou-lhe a cintura e arqueou mais as costas e quando voltou a sentir os seus lábios, agarrou-se a ele.
- Estás a tremer - disse Seth.
- Sim.
- Vais constipar-te - disse-lhe, cobrindo os seus seios. - Está a começar a chover torrencialmente.
- Não me importo com isso - respondeu, agarrando-o pela nuca. - Por favor, não pares.
Seth acariciou-Lhe os lábios com reverência, com uma ternura que não se podia medir.
- Não posso acreditar que estou aqui contigo, assim.
- Sou uma rapariga de sorte - respondeu, pondo-lhe a mão no rosto. O brilho do diamante chamou-Lhe a atenção. - Uma vez cometi o erro de acreditar nas palavras de amor de um homem.
- Desta vez não vais cometer esse erro - respondeu ele, beijando-lhe a mão. - Quero que sejas minha esposa e quero ter uma familia contigo e só contigo, Linnea.
O seu coração abriu-se de imediato e quando a acariciou, tocou-lhe mais que na sua pele, mais que nos seus mamilos endurecidos.
Amá-lo parecia-lhe tão natural como se tivesse nascido para estar com aquele homem naquele lu gar. A chuva humedecia-lhe a roupa e os botões estavam tão escorregadios que os dois começaram a rir.
- Não me tinha apercebido que tinha que desabotoar tantos botões para despir uma mulher. Não é cortesia o que faz falta, mas sim, destreza natural.
Ela riu-se e num abrir e fechar de olhos, tirou-lhe a camisa. As sombras da noite juntaram-se às suas formas. Era como uma estátua de mármore, mas parecia feita de aço quente.
- Vem, deita-te - disse Seth, acomodando-a sobre as roupas. - Será melhor que te tape com o meu corpo para que não te constipes.
- Boa ideia.
Linnea tremeu ao sentir a sua perna entre as dela, mas não era de frio. Ardia de necessidade apesar da chuva que lhe caía na testa.
Cobriu-a com o seu calor e a sua força. O seu
pénis erecto descansou na curva do seu ventre prova de que a desejava e beijou-a com ternura prova de que a amava.
Foi adorando o seu corpo com palavras, beijos carícias, fazendo-a sentir-se bonita e desejada e depois penetrou-a devagar. Linnea levantou levemente as ancas, impelida pela necessidade de senti-lo mais, tê-lo tão dentro de si quanto possível.
Sem ar, olhou-o nos olhos. O amor brilhava neles, inconfundível e intenso. Queria retê-lo assim para sempre. Desfrutar da sensação que lhe produzia ter o seu peso assim, a firmeza do seu corpo e o seu membro palpitante dentro dela.
Mas o desejo tomou conta da situação e ambos começaram a mover-se, retirando-se e voltando a unir-se com um ritmo lento e firme. O deséjo foi logo tão intenso que a fez gritar, apertando as pernas em torno das ancas dele. Mas aquele maravilhoso prazer não era suficiente. Queria mais muito mais.
Continuou a mover-se debaixo dele ao mesmo ritmo até que as sensações explodiram numa onda de prazer e de luz.
Ele gemeu, ficando imóvel em cima dela, empurrando com força e depois, a seguir a um trémulo suspiro, relaxou sobre o seu corpo, apoiando parte do peso nos cotovelos. Agarrou-lhe nas mãos para beijá-las ternamente.
O seu silêncio dizia tudo.
Linnea não tinha conhecido o amor até aquela noite. Nunca tinha sentido um prazer tão intenso ou um laço tão profundo.
Voltou a rodeá-lo com as pernas e iniciou de novo a conquista dos seus beijos até que Seth voltou a amá-la.
Do alpendre do anexo, Seth contemplava a tempestade. Os trovões enchiam o céu cor de ébano da noite de uma luz púrpura e os relâmpagos rasgavam-no com uma chicotada branca.
Mas ele só conseguia pensar em Linnea. Tinha dito que sim, tanto ao anel como a fazer amor. Estar com ela tinha sido como alcançar o paraíso. O amor que sentia era tão forte, que se fosse luz, destronaria o sol.
A primeira coisa que ia fazer quando amanhecesse seria comprar a madeira para a casa e as estacas para o curral dos Mustang. Ajulgar pela mudança de tempo, não tardaria a voltarem às planícies.
Outro relâmpago cortou a noite. Não chegou a cair no chão, mas não faltou muito. Devia estar na cama a sonhar com Linnea, mas a chuvada de antes não tinha bastado para humedecer a pradaria, ressequida como lenha. Uma faísca bastaria para que começasse um incêndio, por isso ia ficar acordado até à aurora, se fosse necessário. Faria o que fosse preciso para proteger a sua terra. Tinha que salvaguardar o seu futuro. O seu futuro com Linnea.
Bebeu outro gole de café e esperou. Sonhando com ela. Sempre com ela.
O anel brilhou como uma promessa na sua mão, ao acender o fogo na cozinha. Era como um pedaço de céu que tinham arrancado só para ela.
- Bom dia, Linnea - cumprimentou-a Claire, que entrava da rua com uma braçada de lenha. Eu acendo-o. Tinha pensado passar a ferro esta manhã.
- Primeiro, tomamos o pequeno-almoço. A minha mãe continua a dormir e manteremos o seu quente até que acorde.
Fechou a porta da fornalha, abriu a chaminé e ouviu-se o anel bater contra o metal.
- É um anel lindo - comentou Claire, pondo um a um os bocados de lenha - foi o Major que deu?
Linnea sorriu ao lembrar- se da noite anterior.
- Vamos casar-nos.
- Fico contente por ti - o sorriso de Claire era sincero. - Ainda não disseste à tua mãe, pois não?
- Está a dormir - respondeu, pondo a frigideira ao lume. - Não sei se lhe diga directamente ou se espere que dê pelo anel.
- Vai ficar muito contente. Certamente vai melhorar o seu ânimo - Claire limpou as mãos sujas de lenha. - O que posso fazer para ajudar?
- Traz o bacon da dispensa e um frasco novo de doce.
Claire voltou logo a seguir com o bacon, enquanto Linnea não conseguia deixar de pensar na alegria que ia levar à sua mãe. Puseram-no a fritar e abriram o frasco de doce de morango, cujo odor impregnou a divisão.
- Já não há mais - disse Claire, enquanto cortava o pão às fatias. - Se quiseres, posso fazer mais.
- Estás aqui para ajudar e não para fazer todo o meu trabalho. Tu passas a ferro e eu faço o pão.
Era um bom plano. Depois de tomar o pequeno-almoço, Claire pôs a tábua de passar a ferro e começou com a pilha de lençóis e camisas de dormir, enquanto Linnea derretia a manteiga, aquecia a água e o leite e polvilhava a bancada com farinha.
Depois de medir os ingredientes, foi dar uma vista de olhos à sua mãe. Continuava a dormir, tão frágil como sempre, mas o seu peito movia- se com intervalos regulares e tinha boa cor.
Ainda que ardesse de desejo de lhe contar a boa nova, esperaria. Ia casar-se com Seth Gatlin e nada no mundo podia mudar isso, então fechou a porta para deixá-la dormir e voltou para junto do forno.
- Tio Seth? - chamou o sobrinho da entrada do anexo. Levava uma lancheira numa mão e na outra a correia que atava uns quantos livros. - Já está na hora de ir para a escola.
- Já é tão tarde?
O menino assentiu.
- Não quero chegar tarde. O Tommy Wheeler chegou tarde a semana passada e teve que estar sentado no canto durante uma hora.
- Então, será melhor irmos.
Tirou o chapéu do cabide, mais feliz do que tinha estado em anos e os dois saíram para o sol, onde um vento fresco os acompanhou até ao celeiro.
Engatou os bois à carroça e esperou que o menino subisse para o assento e depois de acariciar-lhe a cabeça, pôs os animais a andar.
Passaram junto à casa de Linnea e lembrou-se da noite anterior. A paixão que tinha mostrado. Nunca poderia fartar-se dela.
Viu-a através da janela, concentrada no trabalho e encheu-se de orgulho. Aquela mulher linda e doce ia ser sua mulher.
- Obrigado por me trazeres, tio Seth! disse-lhe Jamie, quando chegaram à escola e desceu a correr para se juntar aos outros meninos que brincavam na relva. A gritaria dos miúdos enchia o ar de alegria.
- Bom dia, Major - cumprimentou-o o xerife enquanto abria a porta do seu escritório.
Seth cumprimentou-o e continuou. Sim, ia ser uma boa manhã.
Parou a carroça na serração e desceu com um salto. A terra vibrava debaixo dos seus pés. O comboio ia chegar antes da hora.
Seth disse ao dono da serração o que precisava.
- Por que não leva já aquela madeira tratada? disse, assinalando dois montões de madeira cortada. - Enviarei o pedido das estacas no comboio da manhã.
- Agradeço-Lhe. Vou ajudá-lo a carregar O comboio chegou com um chiar de ferro contra feno e um sibilo agudo. Seth ajudou Randall a carregar a carroça com madeira, apesar do fumo asfixiante da locomotiva.
As costas já lhe ardiam quando o xerife chegou.
- Major, está aqui. Supus que ia encontrá-lo aqui. Preciso que me ajude.
- Bom dia, xerife - Seth assinou a factura que Randall lhe apresentou e devolveu-a. - Em que posso ajudá-lo?
- Chegaram umas pessoas no comboio. São idosos e não são de cá. Não me parece bem ter que mandá-los alugar um coche a Griswold.
- Quer que os leve a algum lado? Tenho a carroça cheia.
- Não se preocupe, porque me disseram que queriam ir a casa dos Hólmstrom. Como aquilo de ter comprado um anel se espalhou como um rastilho de pólvora, pensei que talvez quisesse ficar responsável por eles.
- Então já sabe, não é?
- Hoje, há um montão de mulheres tristes nesta cidade. A minha cunhada é uma delas - o xerife olhou para o céu. - A minha mulher e ela não pararam de falar disso durante o pequeno-almoço. Se quisesse fazer- me um favor a sério, teria de me ajudar a ver-me livre dela.
- Nisso não posso ajudá- lo.
Seth pôs o chapéu e destravou.
O xerife riu-se.
- Enfim, tinha que tentar. Estão à espera na plataforma da estação. Pareceram-me pessoas muito agradáveis.
E, montado no seu cavalo, começou primeiro a marcha.
Gente idosa que procurava a casa dos Holmstrom? Tinham que ser parentes pensou, lembrando-se da carta que Linnea tinha levado para o correio a semana passada. A curiosidade animou-o a apressar o passo dos bois.
Na plataforma da estação esperavam um homem e uma mulher de idade, com uma pequena mala no chão entre os dois. O homem estava vestido com roupa boa e esperava teso como um pau. Parecia forte apesar da idade.
A mulher que esperava junto dele era a imagem viva da senhora Holmstrom, começando pelo sorriso e continuando nos olhos de um azul violáceo. Mas ela via. De facto os seus olhos iluminaram-se ao vê-lo.
- Veio buscar-nos, jovem? O xerife prometeu-nos que enviaria alguém.
- Sou Seth Gatlin - apresentou-se, tirando o chapéu.
- O Major - o homem estendeu-lhe a mão. Soube de si pelas cartas de Linnea. - Sou Fred Hudson e esta é a minha esposa, Eva.
- Conhece Elsa? Somos gémeas. Como está? perguntou, angustiada. - Quando recebi a carta de Linnea, temi o pior. correio demora tanto! O meu querido Frederick decidiu comprar os bilhetes para o primeiro comboio para me trazer até aqui para poder vê-la.
Seth recolheu a mala e pô-la atrás do assento. Tinha outros recados para fazer, mas podiam esperar.
- A sua- irmã está melhor. Está fraca, mas melhora a cada dia.
- Fico tão contente.
Seth ofereceu-lhe a mão, mas Fred Hudson adiantou-se.
- É minha mulher. Acabámos de casar - sorriu, satisfeito. - É meu dever ajudá-la.
- Mima-me muito - respondeu Eva, sorrindo, e arranjou as saias. - Vamos já, jovem. Não vejo a minha irmã Elsa desde que Linnea tinha dois meses. Vamos ver se estes bois sabem andar depressa. Fred riu-se. - Que mulher com garra! Chegaremos depressa, amor, e já não voltarás a separar-te da tua irmã. Seth pôs a carroça em marcha, que rangeu sob o peso da carga. - Vêm viver para aqui? - Nós? Ai, não - Eva juntou as mãos. - Frederick tem o negócio em Oregon e não podemos sair de lá. Seth sentiu um calafrio. - Vamos levar Elsa e Linnea connosco. Durante todos estes anos não tivemos dinheiro para podermos vir cá e Elsa não pôde voltar a Oregon depois da morte de Olaf.
Mas agora, depois de todo este tempo, tenho o Frederick, que me deu o prazer de estar com a minha irmã.
Seth não soube o que dizer. Linnea não podia ir-se embora e ele gostava da senhora Holmstrom e ficaria satisfeito por tratar dela. Mas se queria ir viver com a sua irmã, assegurar-se-ia de que Linnea pudesse ir visitá-las tantas vezes quantas quisesse.
Mas os pelos da nuca continuaram eriçados.
- Mãe, está frio - disse Linnea, levando-a pelo cotovelo para que não tropeçasse. - Fica um pouco mais dentro de casa, até que a temperatura suba um pouco mais.
- Gosto muito do Outono - a sua bengala ia marcando o passo no chão de madeira. - Ficarei aqui sentada e não te incomodarei.
- Tu não me incomodas mãe, mas quero que fiques dentro de casa.
- Há tanto tempo que não saio, que já não aguento mais. Anda, filha, quero sentir a brisa da pradaria e imaginar onde esteve antes.
- Está bem - Linnea abriu a porta. - Mas mal me pareça que tens frio, levo-te para dentro, está bem?
- Vá lá; faz o favor de não te preocupares tanto.
- Vem, senta-te aqui.
Pôs duas cadeiras no alpendre e sentou a mãe numa.
- Ouço as folhas a correr pelo chão. Onde foi o Verão? - perguntou, sentando-se. Ainda tinha a camisa de dormir vestida. - Quanto tempo passou sem mim. Está a escapar-me por entre os dedos.
- Não digas isso, mãe - Linnea tapou-lhe os ombros com um xaile azul. - Vou servir o chá e falamos um pouco.
- Volta ao teu trabalho. Já te estorvei mais do que queria.
- Tu não incomodas, mãe.
- Quero estar sozinha.
O ataque tinha-lhe trazido uma melancolia que preocupava Linnea.
Voltou à cozinha e encheu duas taças de chá. A massa ainda tinha que levedar um pouco mais, por isso foi buscar Jane Eyre à biblioteca, pousou o livro na bandeja de madeira e saiu para o sol.
- Ah, vem aí o Major - disse a mãe, voltando a cabeça em direcção ao caminho. - Traz a carroça muito carregada. Este homem anda sempre ocu pado.
Seth. Voltou-se para cumprimentá-lo, animada só de pensar nele, pois não estava só. Um homem e uma mulher estavam sentados no assento também. Uma mulher que parecia... a bandeja escapou-se das mãos e caiu em cima da cadeira e o livro no chão.
- Filha! Estás bem?
Linnea pestanejou várias vezes, mas a mulher que continuava sentada ali, o retrato vivo da sua mãe. Tinha que ser... mas era impossível.
- Tia Eva.
A mãe voltou-se para ela.
- O que disseste filha?
- É a tia Eva! - exclamou e agarrou-lhe no braço. - Vem, vamos recebê-la.
- Deus seja louvado! Como Lhe ocorreu vir até aqui? Quanta despesa! - a mãe levantou-se a tremer e foi buscar a bengala. - Major, é o senhor? Linnea disse que não veio sozinho...
- Elsa - a mulher de cabelo castanho e aspecto frágil quase saltou da carroça. - Elsa! Estás bem?
- Eva? - a mãe agarrou-se ao corrimão. - Eva! Não é possível.
- Estava tão preocupada... - Eva subiu as escadas a correr. - Mas agora posso ver por mim mesma que estás bem. Que medo tive!
A mãe abriu os braços e a tia correu para eles e ambas abraçaram-se a chorar.
- Não consigo acreditar que tenhas vindo depois de tanto tempo.
- Mais de vinte e cinco anos, irmã. Os meus filhos já são adultos E olha a tua Linnea - Eva secou as lágrimas. - É linda, Elsa. Igual à mãe.
- Como fico contente de que nos tenhas vindo ver.
Linnea abraçou a irmã da mãe pela primeira vez.
- Apresento-vos o meu marido, Frederick. Foi ele quem me trouxe para te ver, Elsa. Para que pudesse tratar de ti.
- Ainda não posso acreditar - Elsa deixou-se cair na cadeira, ainda a chorar e a rir de felicidade.
- Bem-vindo, Frederick. Estou muito contente por te conhecer.
Linnea sentiu a mão de Seth no seu braço. Estava a tocá-la em segredo, enquanto as irmãs falavam.
- Penso começar a construir hoje mesmo - disse-lhe em voz baixa.
- Mais tarde levar-te-ei o almoço.
Os olhos dele brilharam.
- Uma ideia estupenda. Não sabes quanta fome consigo ter - disse, subindo várias vezes as sobrancelhas num gesto cómico.
- És perverso, Seth Gatlin - ralhou-Lhe em voz baixa, mas o seu corpo derreteu-se como se a tivesse beijado cem vezes.
- Eu arrumo as cadeiras - disse-lhe. - Vão entrar. Suponho que têm muitas coisas para contar uma à outra.
- Nós também temos notícias para dar - respondeu, recolhendo a bandeja e o livro.
Seth recolheu as cadeiras e entrou. Claire estava a retirar a tábua de passar a ferro e a roupa, com a ajuda de Frederick. Eva estava a ajudar a senhora Holmstrom a chegar ao seu sítio na mesa.
Era incrível vê-las juntas: rostos idênticos, a chorar ao mesmo tempo. E sorrisos idênticos. Sentaram-se uma junto da outra, conversando como se nunca se tivessem separado. A mãe irradiava felicidade, algo que Linnea não tinha visto desde que o seu pai morrera.
- Servirei o chá - ofereceu-se Claire. - O pão está pronto.
- Se o puser agora no forno, teremos pão fresco para comer.
Linnea agradeceu a Claire pela ajuda e tirou o pano com que tinha mantido a massa tapada, que estendeu com facilidade até às pontas para logo depois dobrá-la e voltar a uni-la no centro.
O anel! A massa colara-se a ele como se fosse cola; por isso tirou-o e deixou-o no parapeito da janela. O brilhante resplandeceu.
Depois de polvilhar a tábua de amassar, dividiu a mesa em quatro partes iguais e trabalhou. A conversa alegre das irmãs enchia a casa com música. Frederick estava sentado à mesa, a observá-las.
- Tenho que começar a trabalhar.
Seth despediu-se de todos e olhou fixamente para Linnea. Ela quisera dar a noticia naquele instante, mas preferiu esperar que se acalmassem. A ternura brilhava nos olhos de Seth quando pôs de novo o chapéu para se ir embora. Ao meio-dia levar-lhe-ia o almoço ao campo. À sua colina. O almoço e uma manta, claro. O chão não era o lugar mais cómodo para fazer amor, mas claro que não ia queixar-se. Não faltaria muito para partilhar a sua cama.
Terminou de preparar o primeiro pão, trabalhando com agrado e ouvindo distraidamente a conversa das irmãs.
Terra bonita. Com duas casas. Duas casas! Deve ser muito rico.
Linnea colocou a massa na bandeja do pão e agarrou na segunda porção de massa.
- A segunda é uma casinha linda e muito acolhedora.
Linnea estendeu mais farinha e empunhou o rolo da massa.
Eva agradeceu a Claire pelo chá e continuou a falar.
- Tem dois quartos amplos, com bonitos janelões por onde entra o sol. Tem um alpendre onde podemos sentar-nos para desfrutar o sol de Verão e um roseiral incrível. A casa cheira a rosas de Maio a Setembro.
Linnea parou um instante.
- E pensar que essa é a casa pequena! - exclamou a sua mãe. - Fico muito contente que a tua vida seja melhor agora, Eva.
Linnea passou a mão pela superfície do rolo para tirar os restos de massa e de farinha, mas já não estava concentrada no trabalho.
Uma colher bateu na chávena. A tia devia estar a mexer o chá.
- A casinha fica a uns metros da minha, comunicam por um pequeno caminho de ladrilho.
- Imagina - sussurrou a sua mãe.
- E o melhor de tudo: o Fred oferece-a a ti e a Linnea.
- O quê?
Linnea largou o rolo que foi estatelar-se contra a parede.
- Pensa, Elsa. Poderíamos voltar a viver juntas.
- Estás a falar em ir viver contigo para Oregon?
- Sonhámos estar juntas desde que perdeste o teu Olaf - Elsa agarrou a mão da irmã. - Pensa. Tu tens problemas de saúde. Nunca te queixaste , mas agora vejo o quanto foi difícil para ti estar aqui. Tiveste o ataque e não tens família que possa ajudar- vos. Levamo-vos connosco para Oregon e instalam-se na casinha.
- E Linnea?
- Linnea virá também. Como te ias arranjar sem a tua menina? Poderemos estar juntas e falar de tudo o que quisermos. Sentamo-nos no alpendre e tecemos. A cada dia que passa ficamos mais velhas, Elsa. Vem e deixa-me tomar conta de ti. Voltaremos a passar o dia juntas como quando éramos jovens.
Fred aclarou a garganta.
- Vem connosco, Elsa. Terás uma governanta para que a tua filha não tenha que voltar a esfregar nem mais um chão. Não vos faltará nada.
- É caridade, ainda que, oferecida com todo o amor do mundo. Não posso aceitar.
- Mas, Elsa! O que é de Frederick é meu também e o que é meu quero partilhar com a minha irmã. Faz-me feliz, Elsa. Diz-me que sim.
A mãe começou a chorar.
- Como posso dizer que não à minha querida irmã? E como dizer-te que sim? Primeiro tenho que falar com a minha Linnea.
Linnea sentiu-se tão vazia como um boneco de madeira. Respirou fundo e esperou que a tia e o marido pedissem licença e saíssem para se sentarem à sombra.
- Mãe, não vai dizer-Lhes que sim.
- É algo tão repentino. Frederick tem que voltar ao trabalho dentro de uns dias e, segundo a tia, tenho de me decidir agora. Creio que estou bastante forte para viajar e tu vais ajudar-me, mas a pergunta é: vou ou não?
- Diz-me o que queres fazer do fundo do coração - pediu-lhe, apesar da enorme tensão que sentia no peito. - O que queres, mãe?
- Quero as duas coisas. Quero ficar aqui, na casa que o meu querido Olaf construiu para mim e
quero ir com a minha irmã, mas não posso ter as duas coisas.
- Não, não podes.
Linnea baixou-se ao pé da mãe e agarrou-lhe na mão tão pequena.
- Há tantas recordações aqui. Se olho à minha volta, vejo o passado. Tu pequena, correndo pela casa e o meu Olaf a treinar os cavalos no curral. os olhos brilharam-lhe. - Mas a minha irmã está aqui e está viva. Quando tive o ataque, tive medo, filha. Não de morrer, mas de não poder ver a minha irmã pela última vez. Apesar dos anos em que não nos vimos, estamos muito unidas.
Linnea sentiu as lágrimas a arderem na garganta.
- Queres ir?
- Como posso ficar? Não sei quanto tempo de vida me resta.
Linnea pensou em Seth.
- Então, já decidiste.
- Não quero ir-me embora mas, sim, estar com a minha irmã... - os olhos encheram-se de lágrimas. - Fechou-se uma porta na minha vida, mas acaba de se abrir uma janela. O que achas que devo fazer?
- O que te faria feliz?
- Estar com Eva - o seu sorriso foi jovial. - Se formos para Oregon e vivermos em casa de Fre derick, teremos uma governanta. Imagina! A minha filha não terá que trabalhar tanto para tomar conta de mim. Eva até disse que tem uma mulher que só cozinha e que também cozinhará para nós! A vida será mais fácil para a minha menina.
- Mãe... - Linnea olhou para o anel que descansava na janela. - Posso imaginar-te instalada: em Oregon, mas isso é tudo. Não precisarás de mim se tens ao teu lado a tia Eva e a governanta.
- Não vou precisar de ti? Amor, morreria, se a minha menina não estivesse ao pé de mim. Preciso mais de ti que de qualquer outra coisa no mundo.
O seu sonho acabava de se partir e deixou-se cair na cadeira mais próxima. Devia falar à sua mãe sobre o anel de Seth? Como podia fazê-lo? Eva tinha oferecido uma casa, mas não de tomar conta dela dia e noite.
Pensou em Seth. Tudo o que significava para ele. Tudo o que tinha.
- Estás certa de que queres deixar a casa que o papá construiu para ti? Sempre disseste que não podias ir embora daqui, que há demasiadas lembranças: Seria como deixá-lo para trás.
- O teu pai virá buscar-me um dia e vai encontrar-me esteja eu em Oregon ou aqui. E tu virás comigo e encontrarás a felicidade na casinha da Eva.
Linnea sentiu a presença de Seth, ainda que não o tenha ouvido chegar. Viu-o na porta aberta, de pé à frente das escadas do alpendre.
Não disse uma palavra. Não precisava de fazê-lo. Soube-o pela surpresa no seu rosto e pela tristeza no olhar. Tinha ouvido tudo.
Deixou a mala de Frederick no alpendre, deu a volta e afastou-se.
Um vento frio fazia mexer as ervas. Linnea acariciou os bois que pastavam perto da carroça.
- Seth?
- Olha para a carroça.
Voltou-se em direcção ao som da sua voz, tão frio como o vento, estava ali, sentado no chão, os braços apoiados nos joelhos e a olhar para a planície. Parecia tão só.
- Olha.
Aproximou-se da carroça e o odor a madeira recém cortada chegou-lhe ao nariz. Uma madeira tão cara.
- Para a nossa casa nova - levantou-se e abriu os braços. - Tinha pensado que se começasse já, teria tempo para ter as paredes e o telhado levantados antes que começasse a nevar.
O vento aumentou, arrastando ervas secas entre eles.
- Não sei o que dizer, Seth - deixou a cesta com a comida no fundo da carroça. - Já ouviste o que disse a minha mãe: o que mais deseja no mundo é ir viver com a irmã.
- Então, deixa-a ir. Vai com ela. Espera que esteja instalada. E depois, volta para mim.
- Não quer que a deixe.
Respirou fundo.
- Prometeste casar comigo - parecia tão perdido. - Deitaste-te comigo aqui mesmo e deste-me o direito de te amar.
- Quero estar contigo mais do que qualquer outra coisa no mundo - respondeu, passando a mão pela superfície rugosa da madeira que seria o chão ou uma esquina da casa de Seth.
- Então, diz-me que não vais embora. Diz-me qualquer coisa menos que te vais embora.
- Oxalá pudesse, mas não posso mentir-te - voltou-se em direcção ao lugar em que Seth ia construir a casa. - O amor que sinto por ti é maior que qualquer outra coisa que conheça.
- Vou contigo para Oregon. Ajudo-te a instalar a tua mãe. Até podemos casar lá se quiseres. Depois voltamos para aqui e iniciaremos a nossa vida juntos.
Fechou os olhos para não ver as imagens que se materializavam diante dos seus olhos. Imagens a que não tinha direito Via-se a si mesma a confeccionar cortinas para a casa nova. Acordando junto a ele na cama. À espera de um bebé.
Tudo isso não eram mais do que sonhos. Como tantos outros que tinha tido ao longo dos anos. Fantasias sem fundamento que o vento podia arrastar com ele.
- Tenho uma obrigação para com a minha mãe. Não posso deixá-la. Se quer ir para Oregon, não tenho outro remédio senão ir com ela - disse- lhe.
- Por que não vens comigo? Podemos continuar juntos lá.
- Investi até ao último centavo nesta terra. Na tua terra - abraçou- a e beijou-Lhe as fontes, o cabelo, apertou-a nos seus braços: - Não tenho dinheiro para recomeçar.
- Não quero saber se o meu marido é rico ou pobre. Não precisamos de dinheiro para sermos felizes.
Ele apertou os dentes.
- Não posso ir-me embora. Deixaria tudo por ti, excepto a minha palavra. Eu também tenho responsabilidades.
Ela fechou os olhos.
- Ginny.
- Não posso deixá-la na rua. Ainda que lhe desse a terra, não vale aquilo que paguei por ela. Não poderia vendê-la, nem tão pouco seria capaz de cultivá-la. Não poderia sustentar-se a si mesma e ao filho com o salário que consiga a trabalhar na cidade.
- Tu não podes ir embora e eu não posso ficar. O que vamos fazer?
- Tu tens responsabilidades. Soube- o desde o princípio. Mas agora a tua mãe tem a irmã, Linnea - disse-lhe com toda a suavidade de que foi ca paz, mas não pôde evitar que a dor lhe contraísse o peito. - Porque não podes ficar comigo? Não queres que nos casemos?
Ela escondeu a cara no seu ombro.
- Também pensei nisso. Pensei deixar a minha mãe com a tia Eva, mas precisa de mim. Já a ouviste.
- Sim.
A verdade era que ele também não gostaria de ver a senhora Holmstrom sozinha.
- Precisa de mim. Como vou voltar- lhe as costas agora? Podia ter morrido com o ataque ou poderia ter sido muito pior. E se volta a acontecer? Tenho de estar ao seu lado. Devolver-lhe todo o amor que me deu.
- Não posso deixar-te ir Linnea. Já perdi o coração uma vez, não me faças passar por isso outra vez.
- Esteve ao meu lado enquanto estive grávida
Quando o Jimmy McIntyre me abandonou por não querer casar-se com a filha de imigrantes – as lágrimas rolaram-lhe pelas faces. - A vergonha e a humilhação destroçaram-me. Achava-me tão estúpida por ter acreditado num príncipe de contos de fadas, quando não era mais do que uma criança egoísta.
Separou-se dele e secou as lágrimas com a manga.
- Ela consolou-me quando chorei. Esteve ao meu lado enquanto vomitava de manhã. O meu pai morreu e nem sequer me culpou pela sua dor.
Quando o meu filho nasceu, esteve ao meu lado.
Até quando o médico disse que o menino tinha morrido e que eu sangrava muito. Ela não me deixou ir. Quis que vivesse e eu não poderia abandoná-la no fim. Devo-lhe a vida.
Seth ouviu tudo o que ela tinha dito: quantas famílias deserdavam e até expulsavam de casa uma filha grávida fora do casamento. Não conseguiu suportar a ideia de que tivesse estado a sofrer sozinha. Grávida e assustada. Dando à luz um filho que não ia viver.
- Apoiou-te durante um tempo insuportável.
- Gostou sempre de mim incondicionalmente a tristeza mudou-Lhe o rosto. - Quantas filhas podem dizer isso da sua mãe? Precisa de mim, Seth.
Depois de tudo o que fez por mim, não estaria certo que abandonasse agora, ainda que o que mais queira neste mundo seja estar contigo.
- Eu sei - sentiu dor Ira. Perda. Estava furioso por aquela injustiça de ter encontrado o amor só para o voltar a perder. - Talvez devesses falar com ela. Contar-lhe os nossos planos.
- Nesse caso sentir-se-ia culpada. Há muito tempo que está preocupada porque diz que é uma carga. Como se alguma vez pudesse ser isso para mim - baixou a cabeça e o chapéu ocultou a tristeza dos seus olhos. - Isto não é para sempre. Talvez pudesses esperar-me.
Tremia. Parecia vulnerável e ferida e ele sabia bem como era sentir-se assim. Então, tomou-a nos braços e beijou-lhe o rosto humedecido pelas lágrimas.
- Sempre é muito tempo - respondeu.
Ela deu meia volta e começou a correr, levando consigo tudo o que era importante para ele.
O seu mundo voltava a desmoronar-se e sentiu a escuridão a engolir-lhe o coração. Não podia voltar a passar pelo mesmo. Não podia enfrentar a pena.
Quis correr atrás dela e fazer com que ficasse, mas não seria homem se o fizesse.
Ela tinha as suas responsabilidades. E ele, as suas.
Linnea não conseguia pensar noutra coisa a não ser na cara de Seth antes de ela ter começado a correr, enquanto guardava o anel no baú.
- Linnea, amor - chamou a tia da porta principal. - Vamos levar a tua mãe ao médico. Tem que nos dar a sua aprovação para a viagem. Precisas de algo da cidade?
- Tenho umas coisas para fazer. Eu vou quando vocês voltarem.
Tinha que agradecer à senhora Jance e pagar-lhe a factura dos tecidos.
- De acordo. Que amável é o Major ao emprestar-nos o cavalo e o coche. Elsa disse-me que tinha esperanças em relação aos dois.
- Disse?
- Uma mãe nunca deixa de esperar o melhor para a sua filha. Continuarás a empacotar coisas enquanto não estivermos?
- Sim.
A dor era tão grande como se uma garra se tivesse cravado na garganta, mas não o demonstrou. Guardou os acessórios de costura que Seth lhe tinha dado entre a roupa do baú para que viajassem em segurança.
Não queria ir embora e sentia as mãos torpes e frias, enquanto começava a esvaziar a escrivaninha da sua mãe. Os baús novos que o tio Frede tinha levado brilhavam como se fossem prata à luz do Outono.
É o melhor para a mãe. Esta é a minha oportunidade de lhe devolver tudo o que fez por mim.
Tentou sentir felicidade mas não conseguiu. A verdade era que desejava estar com Seth mais do que tudo no mundo.
A casa estava de cabeça para baixo. Claire tinha ido à cidade com eles e as pegas de Linnea faziam eco na sala. As estantes que tinham os livros do pai estavam vazias. As tapeçarias já não estavam nas paredes e as rendas já não cobriam janelas e no dia seguinte, supondo que o médico diria que a mãe podia viajar, aquela divisão estaria completamente vazia eles a caminho de Oregon.
Alguém bateu com os nós dos dedos na porta e fê-la estremecer.
- Seth.
- Estava no campo a preparar o curral quando vi sair o coche - parecia incomodado, como se aquele alpendre fosse o último lugar do mundo onde queria estar. - Pensei que seria uma boa altura para te encontrar sozinha.
- E estou - não pôde evitar reparar na colcha que trazia debaixo do braço. - Não me digas que vais devolver-me a colcha.
- Foi o que comprei para a mulher com quem pretendia casar-me.
Pretendia. Linnea agarrou- se às costas do sofá. Tudo tinha terminado entre eles, a sério.
- Não a quero.
Seth deixou a colcha delicada em cima da cadeira de baloiço.
- Talvez a devolvas algum dia quando fores livre para te casares comigo.
- Esperar-me-ias.
- Esperar-te-ia toda a vida.
Ela conteve a vontade de chorar.
- Se conseguisse encontrar uma maneira, ficaria. Nunca te deixaria. Nunca.
- Eu sei.
Por muito que Lhe doesse compreendia. Se conseguisse deixar a sua mãe, que tinha acabado de sofrer um ataque, não seria a mulher que admirava acima de tudo.
- Quero fazer amor contigo uma última vez.
O desejo palpitava no sangue, mas não era de sexo que precisava.
Era dela. Queria poder abraçá-la uma última vez. Ser parte dela uma vez mais para poder recordá-la nas noites solitárias que estavam para vir.
- Não quero arriscar-me a ficar grávida já que não nos vamos casar - os seus lábios tremiam. Só é preciso uma vez. Sei por experiência própria.
- Não quero que te arrisques a ficar grávida.
Não estaria certo.
O amor por ele brilhou dentro dela mais que todas as estrelas do firmamento. Fazer amor com ele uma vez não era suficiente. Nunca seria. Precisava dele como do ar que respirava.
Como iria sobreviver sem ele, sem sentir de novo os seus beijos nem as suas carícias.
- Amanhã levo-te à estação.
Parecia morto por dentro, cansado, dorido e Linnea desejou abraçá-lo, mas temeu não conseguir separar-se mais dele se o fizesse.
- Penso que é melhor que não o faças. Seria ainda mais difícil subir para o comboio. O tio Frederick alugou uma carroça para levar a mudança.
- Então, esta é a nossa despedida - beijou-a brevemente no rosto. - Fizemos amor uma vez e estou preocupado. Escreves-me se descobrires que estás grávida?
- Se estiver, digo-te.
Era hora de o deixar. Desejou poder esquecer-se das suas responsabilidades e correr para os seus braços, mas uma parte de si mesma, a parte racional que nunca sonhava ou desejava, sabia a verdade. Já tinha escolhido o seu caminho há muito tempo, quando era jovem e amou sem reflectir. A sua sorte foi decidida nesse momento. Tinha a mãe e isso nada o podia mudar. Nem sequer o amor.
Seth levou a mão ao chapéu, sempre um cavalheiro, afastou-se dela pela última vez.
Naquela noite não dormiu. Mas também não sonhou.
A aurora chegou e Linnea obrigou-se a levantar-se da cama. Lavou-se e vestiu-se, tremendo com o ar frio da manhã.
- Filha, chegou o dia - a mãe afastou a roupa da cama e levantou-se. - Estou ansiosa por começar. Passei a noite a sonhar que perdíamos o comboio.
- Faltam horas para a partida, mas podemos vestir-te já, visto que estás com tanta pressa. Sei que isto te faz feliz mãe.
- A verdade é que tinha esperanças em relação ao Major e a ti, mas suponho que não podia ser - encolheu os ombros. - Talvez encontres um homem bom em Oregon. Eva disse que há um jovem que trabalha no escritório do tio Frederick que podia ser perfeito.
- Promete-me que não vais fazer de casamenteira - pediu-lhe enquanto lhe desabotoava a camisa de dormir e continha a dor no seu coração.
Ajudou-a a vestir-se e acompanhou-a à mesa.
Eva estava ocupada na cozinha e o chá estava preparado, enquanto Frederick tirava os baús para o alpendre da frente, os seus passos ressoavam na divisão vazia. Só restavam os móveis, que o tio de Claire tinha comprado.
Linnea procurou a leiteira e saiu. Ainda tinha tempo de ordenhar mais uma vez, antes que a familia de Claire ficasse também com o gado. Mais uma manhã naquele lugar em que tinha passado toda a vida. Aquele lugar onde ia deixar o seu coração. A manhã era fresca. Uma geada não demasiado
intensa fazia brilhar as ervas e as folhas caídas das árvores. Fechou a porta e mal tinha dado dois passos quando uma mancha de cor lhe chamou a atenção. Eram violetas, perfeitas e frágeis, feitas de seda e tecido. Certamente da loja da senhora Jance.
Seth. Olhou para o caminho e à sua volta, mas já não estava ali. Recolheu aquele último presente
sabendo que o guardaria como a um tesouro. Como lembrança do homem que a tinha amado.
- Tio Seth, não é por aqui - disse-lhe Jamie na cidade. - Tenho que ir à loja, porque perdi o apara-lápis e tenho que comprar outro.
O comboio entrava já na plataforma em direcção ao Oeste, cuspindo para o ar um rio de fumo negro. Seth não conseguia afastar o olhar. Não viu Linnea na plataforma, tinha que estar já num dos vagões. Talvez sentada junto da janela, pensando nele.
Como desejava subir também para esse comboio, mas o menino sentado ao seu lado precisava dele.
- Tio Seth, vou chegar tarde!
Sacudiu as rédeas e o General foi pela rua principal. Um sibilo soou e o comboio pôs-se em mo vimento, levando Linnea para longe dele. Levando tudo o que era realmente importante para ele.
- Mais chuva. Tinha esquecido o muito que pode chover aqui em finais de Janeiro - comentou a sua mãe, sentada na cadeira de balanço na sala espaçósa da sua casa em Oregon, com a gatinha enrolada a seus pés. - Olha, filha. Já terminei o teu vestido. E só demorei o Inverno todo.
- Porque não vês. É incrível que tenhas conseguido coser isso tudo - Linnea pôs de lado a colcha que estava a acabar como presente de agradecimento para a senhora Jance. - Fizeste um trabalho magnífico, mãe.
- Gostas?
- Adoro - os pontos eram tão pequenos e perfeitos que mal se viam. Até as aplicações de renda e os laços, os botões e as ilhós, eram perfeitos. Vou estreá-lo domingo para ir à igreja.
- Agora vou fazer um chapéu a condizer.
- Eu faço se quiseres - ofereceu-se a tia Eva que estava no sofá, com as, suas agulhas de tecer tilintando alegremente. - Linnea, convidei um jovem para jantar no domingo. Pode ser que gostes.
- Outra vez não!
- Este tem bons modos à mesa. Ou melhor, penso que tem. Espero que pelo menos não nos deleite com um mostruário dos seus problemas di gestivos durante a sobremesa.
A mãe e a tia Eva desataram a rir como se fossem colegiais. Era maravilhoso vê-las juntas.
Linnea voltou à sua colcha e aos seus pensamentos, a Montana. Estaria a nevar e, durante o dia, as pradarias estariam cobertas de neve brilhando à luz do sol. À noite, tornar-se-iam negras debaixo de um céu ameaçador e os Mustang correriam como o vento.
Teria Seth conseguido capturá-los? Os seus sonhos levaram-na a ele, como acontecia sempre. Como sempre acontecia.
- Já se estão a acostumar a mim, não é meninas?
Seth falava com suavidade aos Mustang valentes o suficiente para se aproximarem da vala do curral. Tirou uns bocados de maçã do bolso e atirou-os para o chão e as éguas apressaram-se a apanhá-los da neve, enquanto o resto da manada relinchava como protesto.
- Têm que se aproximar mais se querem uma guloseima - disse aos outros.
A égua dourada que Linnea e ele tinham salvo do arame farpado aproximou-se, pedindo mais maçã com um movimento imperativo de cabeça.
- Se te aproximares dou-te outra.
O animal não parecia muito convencido e não se aproximou. Era uma batalha que Seth sabia que ia ganhar com o tempo.
Tinha capturado mais que a metade da manada trinta e três éguas e quase tantos potros. Não era um mau modo de empregar o tempo, trabalhar com cavalos nas planícies de Montana.
A sua vida sem Linnea não era nada.
Entardecia rapidamente naquela altura do ano quando os ventos do norte uivavam, carregados de neve. O frio trespassava-lhe a roupa, gelando-o até aos ossos. Acabou de deitar o feno aos cavalos e partiu o gelo do bebedouro.
Encaminhou-se para casa, o anexo por trás da horta de Ginny, que tinha um aspecto tão frio e solitário como ele se sentia por dentro. Tirou as botas na escada.
- Seth? - aproximou-se Ginny. - Estás ocupado?
- Acabo de terminar com os cavalos. Entra que vou acender o fogo.
Recolheu as botas e entrou com elas na mão para as deixar diante do fogão. Acendeu um fósforo e um candeeiro pendurado na parede iluminou a moradia.
- O que precisas que faça? - perguntou-lhe baixando-se diante do fogão e abrindo a portinhola.
- Pensei que devias saber que encontrei trabalho na cidade. Vou trabalhar para a recepção do hotel.
- Fico contente por ti Ginny - respondeu, ocultando a surpresa o melhor que pôde enquanto punha lenha.
- A partir de agora, eu encarrego-me de levar o Jamie à escola, já que começo a trabalhar às oito - rodeou a cintura com os braços cruzados à frente.
- Pareces tão triste... Podes vir jantar connosco se quiseres. Temos frango assado, o prato preferido do Jamie. Sei que tu também gostas.
- Esta noite, não - agradecia-lhe o convite, mas nada podia preencher o vazio que sentia e não Lhe faria bem tentar. - Amanhã arreio a tua égua ao trenó.
- De acordo - assentiu e ficou um instante em silêncio. - Sentes falta dela.
- É mais que sentir falta - abriu a chaminé e fechou a portinhola. - Não quero falar dela.
- Ias casar com Linnea. Estavas apaixonado por ela.
- E continuo a estar.
Deu a volta e alcançou o moinho de café de uma estante.
- Nunca te vi tão triste.
- Amanhã de manhã terei o trenó preparado, Ginny - disse com aspereza. - Adeus.
- Separaram-se por minha culpa. Ela não te disse, pois não? - aproximou-se, envergonhada. Quando soube que andavas a sério com ela, ameacei-a. Disse-lhe que se não acabasse contigo, te contaria sobre o passado dela. Disse-lhe que não querias uma mulher que tinha tido um filho ilegítimo.
- Ginny! - deu um murro na mesa.
A dor era insuportável.
- Linnea teve que enterrar esse filho. Tu não fazes ideia de como dói ter um filho morto nos braços. É uma dor que nunca te abandona e que nada pode mudar ou suavizar. O que lhe fizeste foi cruel.
- Tão cruel como o que fiz contigo. Não vou dizer que gosto dessa mulher, mas fazia-te feliz. Quando estavas com ela, consegui ver em ti o irmão que recordava. Sinto muito, Seth.
Ele assentiu e o esforço por conter a sua ira fazia-o tremer.
- Se tivesse sabido antes tinha ido embora. Primeiro assegurava-me de que não passavas fome, mas não te cultivava as terras.
- Eu sei: Por isso soube que Linnea não te tinha dito. Disse mais coisas que não eram certas. Não foi ela que desfez o meu casamento, eu queria pensar isso para poder estar furiosa com alguém.
- E com quem estás furiosa agora?
- Comigo mesma. Hoje olhei demoradamente para o meu filho quando ia visitar Sidney. Estava a brincar no jardim da escola com as suas roupas tão usadas. Até vestia um casaco com remendos.
- Não tem nada de mal vestir roupa usada, Ginny.
- Eu sei, mas posso oferecer-lhe algo melhor.
O pai dele não o vai fazer e isso fez-me aperceber de que estou a descarregar a minha ira em toda a gente em vez de ocupar-me como deve ser do meu filho.
- Isso já eu te tinha dito.
- Também sei - pôs a mão na maçaneta da porta, mas ainda duvidou. - Talvez, algum dia, encontres alguém que possas amar. Há muitas mulheres boas na cidade.
Certamente dizia com boa intenção, mas estava claro que não entendia nada. Talvez porque nunca tinha estado apaixonada de verdade. A sua vida nunca tinha sido alterada pela beleza do amor.
- Não haverá nenhuma outra mulher para mim, Ginny. Amarei Linnea para o resto da minha vida, quer esteja aqui ou não.
Ginny saiu e deixou-o sozinho.
A luz resplandecente do sol entrava pela janela do seu quarto espaçoso, enchendo-o de alegria, enquanto Linnea dobrava dois xailes e camisolas de Inverno recém lavados. Não iam precisar deles em Maio.
- Linnea, trago-te mais um - disse a mãe, entrando no quarto com um xaile na mão. O que tinha sobre os ombros, que era um lindo xaile azul que tinha sido tecido na Primavera passada, não entregou. - Este é o meu preferido, portanto não vou guardá-lo. Deixa-me ajudar-te.
- Estou aqui para te ajudar a ti, mãe. Senta-te e desfruta do sol. Há tempo que não o víamos...
A mãe riu-se.
- Eu adorava as pradarias de Montana, mas sentia falta deste lugar, sempre verde e fresco. Eva convidou-nos para comer na casa dela. É verdade, mima-nos demasiado. Deixa-me ajudar-te.
- Não!
A mãe estava recuperada do ataque, mas parecia mais frágil que nunca, por isso aproximou uma cadeira da janela.
- Senta-te aqui e conta-me algo enquanto dobro estas coisas.
- Tontices. Vou guardar umas quantas camisolas. Aqui, na arca? - perguntou, levantando a tampa.
- Não! - aquele era o seu baú de cedro, em que guardava segredos que nem a mãe sabia. - A arca está junto à parede, ao lado do armário.
A alegria apagou-se do rosto da mãe. Ficou imóvel. Quando Linnea se aproximou, soube em que estava a tocar e as suas mãos eram tão sensíveis que conseguia reconhecer as coisas só de tocar nelas.
- Esta é a colcha que vendeste à senhora Jance.
- a mãe pôs-se de joelhos, passando as mãos sobre as rosas de tecido. - E esta, sim, o que faz aqui?
- Mãe, vamos guardar as camisolas na arca - disse, puxando-lhe suavemente o braço. - Vem ajudar-me.
- Deixa-me pensar, filha. Quero recordar o que disse a senhora Jance.
- Pediu-me mais colchas, lembras-te? - tentava pô-la de pé, mas a mãe resistia. - Esquece, mãe, por favor.
- Disse que um homem tinha comprado essa colcha para a sua noiva. A sua noiva - recordou, passando de novo as mãos pelas aplicações. - Por que o tens tu? Eras tu a noiva? Não pode ser. A minha filha ter-me-ia dito se tivesse intenção de se casar.
Linnea não soube o que responder.
- Temos que pôr naftalina com as camisolas para que.
- Não me mentiste, pois não? - os olhos da sua mãe encheram-se de lágrimas. - A minha própria filha.
- Não te menti, mãe, juro-te.
- Mas também não me disseste a verdade. O Major deu-te isto?
- Agora já não importa. Vamos sentar-nos ao sol. Podemos ler um pouco até ser hora de ir a casa da tia Eva...
- Linnea Anna Holmstrom, responde à tua mãe! - com um impulso de energia, pôs-se de pé quase de um salto. - Ias casar-te com o Major?
- Tinha-me pedido, sim.
- Mas não me disseste nada.
- Como podia fazê-lo? A tia Eva chegou no dia seguinte e eu não pude partir-te o coração.
- E preferiste que se partisse o teu - sentou-se na borda da cama. - Toda a minha vida sonhei que encontrasses a felicidade que eu desfrutei com o teu pai, que conhecesses a profundidade de um amor que protege e fortalece. Tinha dado a minha vida por satisfeita para que conhecesses o maior dos presentes e não me disseste.
- Tu eras mais importante, mãe.
- Não, minha filha. Enganas-te. Tenho a filha mais maravilhosa do mundo, disposta a fazer algo assim por mim, mas não posso permiti-lo - voltou a passar a mão pela colcha. - Agora estou bem, então já podes voltar para junto do Major e casar-te com ele.
- E quem cuidará de ti? - Linnea sentou-se junto da mãe e secou-lhe as lágrimas. - O teu amor protegeu-me durante toda a vida. Como posso fazer menos por ti?
- Sabes o que podes fazer para me devolver esse amor que pensas dever-me? Casar-te com o Major e amá-lo da maneira como eu e o teu pai te ensinámos. E que me dês muitos netos. Isso é o que quero de verdade.
- Ficarás sozinha, mãe.
- Terei o teu amor dentro do meu coração. Nunca estarei só.
- Eu amo-o mãe.
Por fim, as lágrimas que tinha contido durante todos aqueles meses rolaram ardentes pelo seu rosto. Tinha passado todo o Inverno sem ele. Mas não ia deixar que passasse mais uma só estação sem estar ao lado dele.
- Vamos dizer à tia Eva! - anunciou, sorrindo de felicidade. - Esta refeição será a comemoração. Uma festa de despedida para a minha filha que vai casar-se!
Que vai casar-se... Linnea ajoelhou-se e tirou do baú o anel que Seth lhe tinha dado, metido numa bolsinha de veludo. Ele tinha dito que a es peraria. Que a amaria sempre.
E era um homem de palavra. Estaria à espera.
Seth apoiou a pá no poste e procurou o cantil da água, tirou-lhe a tampa de cortiça e bebeu. A água estava fresca. O General bateu com as patas.
Certamente ele também queria, por isso Seth fez uma concha com as mãos e deitou-lhe água, mas o animal deu meia volta e relinchou. Estava a ver alguma coisa. Não era normal que os coiotes se vissem por ali de dia, sobretudo não havendo animais recém nascidos.
Deixou de lado o cantil e olhou atentamente para o horizonte ondulado pelo vento. Um movimento azul e dourado chamou a sua atenção. Pestanejou várias vezes, mas continuava lá.
Linnea. Em carne e osso e não num sonho. Levava a colcha ao ombro, a mesma colcha que lhe tinha devolvido. A colcha que aqueceria a sua cama.
- Seth! - correu para os seus braços como se esse fosse o seu lugar. Como se nunca tivesse ido embora. - Sabia que ia encontrar-te aqui.
- Vens para ficar?
Mas beijou-a antes que pudesse responder. Era seda suave e veludo morno e afundou a cara no cabelo dela. Lilás. Durante muitas noites, tinha acordado com aquele perfume em sonhos.
- Venho para casar contigo - o anel brilhava-lhe no dedo. - Se ainda me quiseres.
- Disse-te que esperaria sempre por ti - voltou a beijá-la com a alegria a transbordar-lhe do coração, mas separou-se dela. Se Linnea estava ali, significaria que a senhora Holmstrom falecera? E a tua mãe?
- Deve estar sentada no alpendre com a irmã, a especular sobre se será ou não avó dentro de nove meses.
Linnea corou e ele voltou a beijá-la. Nos lábios dele havia a mesma esperança; a mesma adoração que nos seus e rendia-se a ele como a pradaria fazia perante o céu.
- Terás que esperar uns dias para te casares comigo - disse-lhe entre beijos - porque o pastor está fora da cidade, mas quanto ao bebé podemos começar quando quiseres.
- Não pensava noutra coisa senão em amar-te - apoiou a cara no seu peito, abraçando-o con força. - Senti tanto a tua falta. Sentia-me morta sem ti.
O amor transbordou e pôs-Lhe uma mão na nuca para retê-la junto dele.
És o amor da minha vida, Linnea, e sempre serás.
Ela sorriu entre lágrimas, que ele secou com beijos, tal como lhe prometeu fazer para o resto da vida. Tinha-lhe devolvido a vida e o coração. Não podia esperar mais e tirou-Lhe a colcha que ainda tinha no ombro.
- Vem comigo. Conheço um lugar muito íntimo perto daqui. Já lá estivemos.
- Eu lembro-me.
Ajudou-o a estender a colcha em cima das ervas e das flores silvestres. Não disse uma palavra enquanto a alisava com delicadeza.
Como podia ter tanta sorte? Seth arrancou uma violeta e passou-a pela cara dela, devagar, porque aquele momento era muito importante.
- Deixa-me amar-te. Amar-te de verdade.
- Não consigo acreditar que isto esteja a acontecer de verdade. Não tinha conseguido deixar de sonhar com este momento. Não vou separar-me de ti nunca.
- Bem, porque eu não vou permiti-lo nunca mais. A felicidade inundou-a e deitando-se na colcha, deu as boas vindas a Seth entre os seus braços.
A mãe tinha razão. Amar um homem e sentir-se querida de verdade era o maior de todos os presentes.
O vento da pradaria virava as páginas da Bíblia que o pastor tinha nas mãos e agitava as flores silvestres debaixo da saia do seu vestido azul, o que a mãe tinha feito com tanto trabalho.
- Estás linda - sussurrou-lhe Seth ao ouvido.
- Nunca te tinha visto de fato, mas estás lindíssimo. Sinto-me orgulhosa de me casar contigo - declarou e olhou para as suas mãos cruzadas. Estou um pouco nervosa.
- Mas não tens porque estar. O pastor só vai unir-nos até que a morte nos separe, para o bem e para o mal.
- Porque será que me faz lembrar uma sentença?
- Fazem de propósito, para assustar os casais. Seth apoiou a testa na dela e ambos sorriram.
- Já chega - queixou-se o pastor, virando-se para que o sol não lhe batesse nos olhos. - Vamos para a sombra daquelas árvores.
- Temo que teremos que pronunciar os nossos votos aqui. É um lugar muito especial para nós respondeu Seth, embora tivesse cuidado para não revelar a razão.
Linnea corou. Ela também não ia dizer-Lhe o que tinham estado a fazer ali umas horas antes. E muitas vezes antes dessa.
- Será melhor que construa depressa a casa, porque fálta pouco para o Verão e vamos queimar-nos com o sol - acrescentou Seth.
Deste modo Linnea começou o seu casamento a rir, com Seth a seu lado. Onde permaneceria para sempre. O homem que Lhe tinha mudado a vida com o seu amor.
Jill Strickler
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