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Um Vizinho Perfeito / Nora Roberts
Um Vizinho Perfeito / Nora Roberts

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

Um Vizinho Perfeito

 

O amor ainda era o maior legado dos Macgregor. Fazer parte da família MacGregor era o mesmo que estar destinado a encontrar um grande amor. Sim, porque para os descendentes daquele poderoso clã escocês, não havia como escapar do olhar carinhoso e mais do que casamenteiro de Daniel MacGregor, o patriarca da família. Dessa vez, sua "vítima" seria a esfuziante Cybil Campbell, uma de suas netas preferidas. Com aqueles belíssimos olhos verdes e aquele jeito tão especial de ser, claro que a menina estava mais do que pronta para o amor. E sendo ele um homem prevenido, e evidentemente, sábio com seus noventa e tantos anos, claro que também já tinha o pretendente perfeito para ela. Com sorte, Preston McQuinn se sentiria enfeitiçado por aqueles olhos de pantera desde o primeiro instante. Mas antes teria de dar seu costumeiro e mais do que discreto "empurrãozinho” para aqueles dois se convencerem tanto quanto ele de que haviam nascido um para o outro.

 

- Então ainda não falou com ele?

- Hum? - Cybil Campbell continuou a trabalhar em sua mesa de desenho, marcando traços divisores no papel com uma experiência adquirida ao longo de anos.

- De quem você está falando?

Seguiu-se um longo suspiro de censura. Ao ouvi-­lo, Cybil teve de se esforçar para não rir. Conhecia muito bem Jody Myers, sua vizinha do andar de baixo, e sabia exatamente sobre quem ela estava falando.

- Do irresistível sr. Misterioso do 3B, Cyb. Ele se mudou para cá há uma semana e ainda não trocou uma palavra com ninguém! É mistério de­mais para mim. Seu apartamento fica bem em frente ao dele e você nem tentou dizer "olá"? Pelo amor de Deus, mulher! Você precisa fazer alguma coisa!

- Tenho andado muito ocupada ultimamente. - Cybil levantou a vista e arriscou olhar para Jody, que estava andando pelo estúdio com ar impaciente, fazendo os cabelos loiros balançarem com veemência.

- Mal notei a presença dele.

Jody revirou os olhos, parecendo não acreditar no que estava ouvindo.

- Não me venha com essa história, Cyb. Notou a presença dele, sim.

Jody se aproximou da mesa de desenhos e in­clinou-se por cima do ombro da amiga, então tor­ceu o nariz. Nada além de algumas linhas azuis. Gostava mais quando Cybil começava a esboçar as figuras.

- Ele ainda nem pôs o sobrenome na caixa do correio. E ninguém o vê sair do prédio durante o dia. Nem mesmo a sra. Wolinsky, e olha que nin­guém escapa àquele olhar de falcão.

- Talvez ele seja um vampiro.

- Uau... - Intrigada com a idéia, Jody aper­tou os lábios. - Sabe que essa hipótese seria mesmo excitante?

- Excitante demais - anuiu Cybil, voltando a se concentrar no desenho, enquanto Jody reto­mava sua caminhada impaciente pelo estúdio, fa­lando sem parar.

Cybil nunca se importara em ter companhia en­quanto trabalhava. Na verdade, até gostava disso. Não era do tipo que gostava de isolamento e quie­tude. Talvez por esse motivo se sentisse tão feliz vivendo em Nova York, em um prédio de aparta­mentos cheio de vizinhos animados e, quase sem­pre, muito barulhentos.

Aquele tipo de coisa a satisfazia não apenas em nível pessoal, mas também servia de base para seu próprio trabalho.

De todos os moradores do prédio, Jody Myers era sua vizinha preferida. Três anos antes, quando Cybil se mudara para o prédio, Jody era uma enér­gica recém-casada que acreditava plenamente que todo mundo tinha de ser tão feliz quanto ela. E felicidade, para Jody, era sinônimo de casamento.

Depois que se tornara mãe de Charlie, um ado­rável bebê de oito meses, Jody passara a se em­penhar ainda mais em sua campanha casamen­teira. E Cybil sabia muito bem que era a principal "vítima" da amiga.

- Nem mesmo o viu no corredor? - Jody quis saber.

- Ainda não.

Pensativa, Cybil pegou uma caneta e apoiou-a entre os lábios rosados e polpudos. Seus olhos ex­pressivos eram de um profundo tom de verde, se­melhante ao das águas de algumas praias privi­legiadas ao redor do mundo. Os suaves matizes amarelados, que permeavam o estonteante tom de verde das íris, sugeriam a imagem das luzes do crepúsculo sobre o mar. Seriam considerados "olhos de tigresa", não fosse o fato de viverem constante­mente iluminados por um brilho de bom humor.

- Acho que a sra. Wolinsky está é perdendo a prática. Eu o vi sair do prédio durante o dia, o que elimina a "hipótese vampiresca".

- Viu mesmo? - Jody se aproximou dela no mesmo instante, com ar de interesse. - Quando? Onde? Por quê?

- Quando? De madrugada. Onde? Indo na di­reção leste da cidade. Por quê? Por causa de uma crise de insônia. - Decidindo entrar na brincadeira, Cybil girou a cadeira, mostrando um brilho de divertimento no olhar.

- Acordei cedo e fiquei pensando nos biscoitos que sobraram da festa da outra noite.

- Biscoitos atômicos - brincou Jody.

- Sim. E não consegui voltar a dormir até pro­var outro deles. Já que havia levantado e estava sem sono, decidi vir até aqui trabalhar um pouco e, em certo momento, acabei indo parar diante da janela. Foi quando o vi sair. Aliás, é impossível não notá-lo. Deve ter um metro e oitenta, mais ou menos. E aqueles ombros...

As duas reviraram os olhos, imaginando como deveria ser tudo aquilo de perto.

- Bem, ele estava carregando uma espécie de mochila de ginástica e trajava jeans e camiseta pretos. Portanto, deduzi que ele estivesse saindo para o trabalho, em alguma academia. Ninguém consegue ter aqueles ombros comendo batatinhas fritas e bebendo cerveja por aí, meu bem.

- A-ha! - Jody estalou os dedos no ar. - Você está interessada.

- Não estou morta, Jody. Ele é lindo de morrer. E como se não bastasse isso, aquele ar misterioso e o traseiro perfeito moldado no jeans justo... - Cybil levantou as mãos no ar. - O que mais uma mulher pode fazer, senão fantasiar?

- E por que só fantasiar? Por que não bate à porta dele e lhe oferece alguns biscoitos ou algo do gênero? Dê-lhe as boas-vindas como vizinha. Quem sabe, assim, conseguirá descobrir o que ele faz lá dentro o dia inteiro. Tente descobrir se ele é solteiro, no que trabalha... Se é solteiro... E o que... - Ela se interrompeu, levantando a cabeça, em alerta. - Charlie está acordando.

- Eu não ouvi nada. - Cybil virou a cabeça, mirando o ouvido na direção da porta. Concen­trou-se, mas não ouviu nada.

- Puxa, Jody, desde que deu à luz está com uma audição de morcego.

- Vou trocá-lo e levá-lo para um passeio. Quer vir também?

- Não, não posso. Preciso trabalhar.

- Nos veremos à noite, então. O jantar será às sete horas.

- Está bem.

Jody foi até o quarto de Cybil, onde havia dei­xado o filho dormindo, e o pegou no colo. Acenou para a amiga, ao passar pela porta do estúdio, e saiu em seguida. Cybil sorriu consigo. Jody podia até ser meio excêntrica, mas havia se tornado uma mãe maravilhosa.

Com uma careta, lembrou-se do jantar que te­ria pela frente. Um jantar tedioso com Frank, primo de Jody. Quando criaria coragem para di­zer a Jody que parasse de tentar lhe arranjar um pretendente? Provavelmente no mesmo ins­tante em que reunisse coragem para dizer o mes­mo à sra. Wolinsky, concluiu. E à sra. Peebles do primeiro andar. Por que as pessoas insistiam em manter aquela obsessão de ficar lhe arran­jando pretendentes?

Estava com vinte e quatro anos, era solteirís­sima e feliz por isso. Não que não pensasse em formar uma família algum dia. Como qualquer garota, queria ter uma casa confortável, com um jardim onde seus filhos pudessem brincar. Ah, e um cachorro... Sim, teria de haver um cachorro. Mas isso era coisa para o futuro. Gostava de sua vida no presente e não pensava em mudá-la. Não mesmo.

Mantendo os cotovelos sobre a mesa de dese­nho, apoiou o queixo sobre as mãos unidas e se permitiu olhar através da janela e divagar um pouco. Devia ser o ar da primavera, pensou, que a estava fazendo se sentir tão inquieta e cheia de energia.

Considerou a possibilidade de sair com Jody e o bebê para se distrair um pouco, mas logo em seguida viu sua amiga já no portão do prédio, saindo para seu passeio. Suspirou. Bem, não es­tava mesmo com vontade de sair.

"Então desenhe, Cybil Campbell", pensou con­sigo, voltando a se concentrar na mesa de traba­lho, onde os primeiros esboços de sua tira de jornal aguardavam ser terminados.

- Amigos e vizinhos - leu o título em voz alta.

Tinha uma mão bastante firme e treinada para desenhar, por isso os traços seguintes foram sur­gindo naturalmente, sem grande esforço. Sua mãe era uma .artista de sucesso, reconhecida interna­cionalmente. Seu pai, o gênio recluso por trás das famosas tiras de jornal do personagem "Macin­tosh". Juntos, haviam transmitido a ela e aos ir­mãos o amor pela arte, o senso do ridículo e uma sólida formação.

Mesmo depois de haver deixado a atmosfera de segurança da casa dos pais, em Maine, Cybil sabia que seria aceita de volta com todo carinho, se Nova York a rejeitasse.

Mas, felizmente, não fora o que acontecera. Ha­via mais de três anos que vinha apresentando suas tiras cômicas em um famoso jornal local e seu trabalho estava ganhando cada vez mais re­conhecimento. Sentia-se orgulhosa disso, orgulho­sa da simplicidade, do contexto agradável e do humor que conseguia criar com seus personagens, em situações vividas no dia-a-dia. Não tentava imitar a ironia de seu pai ou as sátiras políticas que ele costumava fazer. Seu estilo era outro. Para ela, a vida era uma fonte de risos. Entrar em uma fila quilométrica para ir ao cinema, encontrar um par de sapatos que combinasse com a roupa, sobreviver a outro almoço de negócios, esse tipo de coisa.

Enquanto muitos viam sua personagem, Emily, como uma criação autobiográfica, Cybil a via sem­pre como uma maravilhosa fonte de idéias, nunca como um reflexo de si mesma. Afinal, Emily era uma linda loira alta que vivia sempre com pro­blemas para se manter nos empregos e para ar­ranjar namorados.

Cybil, por outro lado, era morena, de estatura mediana, e tinha uma carreira bem-sucedida. Quanto aos homens, bem, eles não eram exata­mente uma prioridade em sua vida para que fi­casse se preocupando muito com isso.

Um ar de censura surgiu em sua expressão, fazendo-a estreitar os belos olhos verdes ao se flagrar tamborilando a caneta, em vez de estar usando-a para trabalhar. Não estava conseguindo se concentrar. Passou a mão nos cabelos casta­nho-claros, mordeu o lábio bem delineado e deu de ombros. Talvez estivesse precisando mesmo pa­rar um pouco e comer alguma coisa. Provavel­mente um chocolate resolvesse seu problema.

Empurrou a cadeira para trás, colocando a ca­neta atrás da orelha, repetindo o gesto do qual vinha tentando se livrar desde a infância. Então deixou o estúdio ensolarado e desceu para o andar de baixo.

Seu apartamento dúplex era incrivelmente are­jado e um pouco separado de seu local de trabalho. Aliás, fora justamente esse o motivo que a le­vara a ficar ali quando se mudara para Nova York. Um longo balcão separava a cozinha da sala, criando um espaço aberto e agradável para receber visitas. As janelas amplas permitiam que a luz do sol entrasse com vigor no ambiente, criando uma atmosfera saudável. Nos primeiros dias em que se mudara para ali, o único pro­blema que tivera de enfrentar fora o barulho vindo da rua, que a mantinha acordada durante a maior parte da noite. Nova York nunca dor­mia, mas, aos poucos, ela acabara se acostu­mando com isso.

Com seu andar elegante, outra característica herdada de sua mãe, Cybil encaminhou-se des­calça para a cozinha. Tinha pernas esguias, ad­quiridas na época em que implorara para fazer aulas de balé, só para, pouco depois, enjoar e abandonar o curso.

Cantarolando baixinho, abriu a geladeira e examinou seu interior. Poderia preparar alguma coisa para si. Também havia tido lições de cu­linária na adolescência, e só se cansara delas quando sua criatividade começara a sobrepujar à de sua instrutora.

Suspirou, quando começou a ouvir aquele som que já estava se tornando familiar. Atravessando as paredes do prédio e o corredor, a música lhe chegou aos ouvidos com a mesma suavidade dos últimos dias. Triste e sexy, pensou ela. Era assim que definia aquela espécie de lamento do sax alto. O sr. Misterioso do 3B não tocava todos os dias, mas Cybil gostaria que ele o fizesse.

Aquelas lânguidas notas prolongadas sur­tiam um efeito estranho em seu ser. Uma es­pécie de emoção que ela não sabia explicar. Bem, talvez porque a música era sempre tocada com muita emoção.

Seria ele um músico em começo de carreira, tentando encontrar seu lugar ao sol em Nova York? Sem dúvida, devia ter sofrido alguma de­silusão amorosa para tocar daquele jeito, pensou ela, enquanto tirava alguns ingredientes dos ar­mários. Devia haver uma mulher por trás de todo aquele sentimentalismo. Provavelmente uma rui­va deslumbrante que o enfeitiçara com seus en­cantos sedutores, fizera-o abrir o coração e depois pisara nele, ainda vivo, vulnerável e pulsante, com seu salto de sete centímetros.

Poucos dias antes, havia inventado um contexto diferente para seu novo vizinho. Nele, o sr. Mis­terioso havia saído da casa de sua renomada fa­mília com dezesseis anos. Vivera nas ruas, tocan­do sax nas esquinas de Nova Orleans, uma de suas cidades preferidas, e recebendo alguns tro­cados por isso. Depois seguira em direção ao norte, enquanto aquela mesma família perseguidora, li­derada por um tio insano, vasculhava o país à procura dele.

Não desenvolvera muito bem a idéia do motivo pelo qual eles eram perseguidores, mas isso tam­bém não importava muito. Ele estava buscando seu lugar ao sol no mundo, confortado apenas por sua música.

Também havia a possibilidade de ele ser um agente federal trabalhando disfarçado. Ou um la­drão de jóias internacional fugindo de um agente do governo. Ou, quem sabe, um serial killer à procura da próxima vítima.

Sorriu consigo, então olhou para os ingredientes que havia acabado de separar sem prestar muita atenção. Quem quer que ele fosse, ponderou com outro sorriso, pelo visto estava prestes a ganhar biscoitos feitos por ela.

 

O nome dele era Preston McQuinn. Não se considerava particularmente misterioso, apenas reservado. De fato, fora justamente o desejo de privacidade que o levara, ironicamente, a ir pa­rar bem no coração de uma das maiores cidades do mundo.

Felizmente, seria por pouco tempo, pensou ele guardando o sax na maleta própria para o ins­trumento. Seria por pouco tempo. Com sorte, dali a alguns meses a reforma de sua casa na costa rochosa de Connecticut estaria terminada. Algu­mas pessoas diziam que o lugar parecia um forte, mas ele não se importava com isso. Pelo menos em um forte era possível se ter paz e silêncio durante semanas, caso fosse necessário. Além dis­so, ninguém podia entrar no local sem permissão.

Começou a subir a escada, deixando para trás a sala praticamente vazia. Costumava ficar ali apenas quando decidia tocar, pois a acústica do ambiente era ótima. Ou então para se exercitar, quando não tinha vontade de caminhar até a aca­demia alguns quarteirões adiante.

O segundo andar era o local onde ele passava a maior parte do tempo. Mas felizmente aquilo não duraria muito, pensou mais uma vez. Tudo que precisava enquanto estava ali era de uma cama, um guarda-roupa, iluminação adequada e uma mesa de escritório com um tamanho sufi­ciente para comportar seu notebook e os papéis de trabalho que ele costumava usar. Não quisera ter um telefone, mas sua agente insistira para que ele mantivesse pelo menos um telefone celular, para o caso de ela precisar entrar em contato com ele. Preston aceitara a idéia, mesmo não gostando dela.

Sentou-se à mesa de trabalho, satisfeito por seus pensamentos estarem mais claros depois do breve exercício com o sax. Mandy, sua agente, andava preocupada com o progresso de seu último roteiro teatral. Mas, em sua mente, tudo já estava bem definido. A peça ficaria pronta quando tivesse de ficar, e nem um minuto antes. Fora assim que ele sempre trabalhara, e não seria àquela altura de sua carreira que iria mudar de atitude, devido ao nervosismo de uma agente.

O problema com o sucesso, pensou ele, era o nível de cobrança que ele trazia consigo. Ao fazer algo que as pessoas apreciavam, você era sempre cobrado a repetir o feito, só que de maneira mais rápida e mais eficiente. Preston não dava a mí­nima para o que as pessoas queriam. Elas pode­riam arrombar as portas do teatro para ver sua próxima peça, laureá-lo com outro Pulitzer ou lhe pagar um caminhão de dinheiro. Nada disso era importante para ele. Também não dava a mínima para críticas. Se o público não gostasse, que fosse à bilheteria e exigisse seu dinheiro de volta.

Para Preston, o trabalho em si era o mais im­portante. E isso dizia respeito apenas a ele e a mais ninguém.

Financeiramente, estava seguro como sempre estivera. Mandy costumava dizer que isso era par­te do problema. Sem a necessidade ou o desejo de ganhar dinheiro para incentivá-lo, ele havia se tornado arrogante e indiferente ao público. Por outro lado, dizia ela, isso também era o que o tornava um gênio da criação teatral. Preston não se importava com nada, e isso era o que fazia seu trabalho ser tão especial.

Continuou sentado à mesa, pensativo. Porém, logo despertou do devaneio e passou a mão por entre os cabelos castanho-avermelhados. Seus olhos, de um azul intenso, perscrutaram as últi­mas palavras que havia digitado. A expressão sé­ria e os lábios ligeiramente apertados denotavam sua concentração.

Com os ruídos característicos da rua chegando-­lhe aos ouvidos, Preston estava tendo de se es­forçar mais para voltar a penetrar na alma do homem que ele havia criado no texto mostrado na tela do computador. Um homem que lutava deses­peradamente para superar os próprios desejos.

De súbito, o incômodo som da campainha o fez praguejar, desconcentrando-o mais uma vez. Pen­sou em continuar ali e não dar atenção, mas sua noção da natureza humana o fez mudar de idéia, ao concluir que provavelmente o intruso continua­ria insistindo até obter uma resposta. Por isso, decidiu despachá-lo de uma vez por todas.

Imaginou que se tratasse da senhora do andar térreo. Aquela com olhos de águia, que parecia viver bisbilhotando a vida de todos. Ela já havia tentado abordá-lo por duas vezes quando ele es­tava saindo para o clube à noite, mas não tivera êxito. Preston sempre fora muito bom em escapar àquele tipo de situação, mas aquela insistência já estava começando a aborrecê-lo. Seria melhor bancar o mal-educado de uma vez e deixar que ela saísse falando mal dele, afinal, não era do tipo que se importava com isso.

Porém, ao espiar através do olho mágico, não se deparou com a mulher corpulenta que ele havia imaginado estar ali, mas com uma bela morena de cabelos castanhos e lindos

olhos verdes.

 

O que diabos ela poderia querer? Reconheceu-a como uma vizinha do mesmo corredor, cujo apartamento ficava quase em frente ao que ele estava ocupando. Depois de haver sido deixado em paz por quase uma semana, imaginara que a situação fosse continuar assim. O que, em sua mente, faria dela a vizinha perfeita. Mas, pelo visto, enganara-se mais uma vez.

Ainda aborrecido por ter sua paz perturbada, abriu a porta e apoiou-se nela. - Sim?

- Olá. - Oh, Deus, ele era a ainda mais bonito de perto, pensou Cybil, contendo a vontade de suspirar.

- Sou Cybil Campbell, sua vizinha do 3A - apresentou-se com um sorriso amigável, in- dicando a porta de seu apartamento.

Preston se limitou a arquear uma sobrancelha.

- Pois não?

Um homem de poucas palavras, concluiu Cybil, mantendo o sorriso. Desejou que ele se distraísse pelo menos por um instante, para que ela pudesse esticar o pescoço e dar uma espiada no interior do apartamento. Claro que não poderia tentar fazer isso com aquele olhar perscrutador centrado bem em seu rosto, sem nenhuma indicação de que iria se desviar.

- Eu o ouvi tocar há alguns minutos. Trabalho em casa e, você sabe como é... O som atravessa as paredes.

Se ela fora até ali para reclamar do barulho, não iria conseguir nada, pensou Preston. Ele tocava quando sentia vontade de tocar, e isso não mudaria devido à mera reclamação de uma vizi­nha, por mais encantadora que fosse ela.

Continuou a observá-la com atenção. Nariz arrebitado, lábios polpudos, sensualmente curvados...

- Geralmente esqueço de ligar o aparelho de som quando estou trabalhando - continuou ela em um tom animado, interrompendo os pensa­mentos de Preston. - Por isso gosto de ouvi-lo tocar. Ralph e Sissy ouviam Vivaldi durante a maior parte do tempo. Não deixa de ser agradável, mas se torna monótono quando isso é a única coisa que você ouve o dia inteiro. Eram eles que ocupavam o apartamento antes de você se mudar. Ralph e Sissy - acrescentou ela, indicando o apar­tamento atrás dele.

- Eles se mudaram para Whi­te Plains, depois que Ralph teve um caso com uma vendedora da Saks. Bem, ele não chegou a ter um caso de verdade, mas parecia estar pen­sando na possibilidade. Por isso Sissy deu-lhe o ultimato: se não mudassem de cidade, ela pe­diria o divórcio. A sra. Wolinsky deu seis meses de prazo para os dois continuarem juntos. Par­ticularmente, acho que eles vão conseguir re­solver o problema.

Dizendo isso, mostrou um prato com uma sim­pática decoração com detalhes amarelos cheio de biscoitos de chocolate cobertos por um plástico pro­tetor, próprio para alimentos.

- Estes biscoitos são para você - disse, es­tendendo o prato na direção dele.

Preston abaixou a vista para olhá-los, dando a Cybil a breve oportunidade de espiar a sala vazia atrás dele. Pelo visto; ele não tivera condições nem mesmo de comprar um sofá, pensou ela. Então os introvertidos olhos azuis voltaram a fitá-la.

- Por quê?

- Por que o quê?

- Por que me trouxe os biscoitos?

- Bem, fui eu mesma que os fiz. Às vezes, co­zinho para arejar um pouco a cabeça, quando não estou conseguindo me concentrar no trabalho. Na maioria das vezes, é cozinhando que eu consigo relaxar o suficiente para voltar a trabalhar. Mas se eu ficar com tudo isso, acabarei comendo tudo sozinha e vou me detestar por isso. - O brilho bem-humorado continuou presente nos olhos ver­des.

- Não gosta de biscoitos?

- Não tenho nada contra eles.

- Então, sirva-se - falou Cybil, entregando o prato a ele.

- E bem-vindo ao prédio. Se precisar de alguma coisa, estou sempre por aqui. - Indicou a porta do outro apartamento com um gesto vago. - Se quiser conhecer os outros vizinhos, também poderei apresentá-lo a eles. Moro aqui há alguns anos e conheço todo mundo.

- Não quero conhecer ninguém - respondeu Preston, dando um passo atrás e fechando a porta.

Cybil ficou ali parada por algum tempo, atônita com o que acabara de acontecer. Em seus vinte e quatro anos de vida, nunca alguém havia fe­chado a porta em sua cara, mas, mesmo tendo acabado de passar pela experiência, felizmente concluiu que aquilo não a afetara tanto assim.

 

No entanto, teve de se conter para não bater à porta e pedir seus biscoitos de volta. Não iria descer tão baixo, disse a si mesma, girando deci­didamente sobre os calcanhares e encaminhando­se para seu apartamento.

Agora sabia que o sr. Misterioso era irresisti­velmente atraente, que tinha o corpo de um deus grego e também que ele era tão mal-educado quan­to uma criança de dois anos necessitada de umas boas palmadas no traseiro. Mas tudo bem, tudo bem. Iria sobreviver àquilo e aprender a ficar lon­ge do caminho dele.

Não bateu a porta de seu apartamento, para não dar a ele o gostinho de ouvir e deduzir que ela ficara irritada. Mas ao se ver no ambiente seguro de seu apartamento, virou-se para a porta e fez uma porção de caretas, mostrando a língua e mexendo as mãos ao lado das orelhas. E isso a fez se sentir incrivelmente melhor.

Contudo, a questão principal era que ele havia fi­cado com seus biscoitos, seu prato de sobremesa pre­ferido e com uma boa dose do seu bom humor. E tudo isso sem que ela sequer soubesse o nome dele!

 

Preston não se arrependia das atitudes que to­mava. Nem por minuto. Tinha quase certeza de que sua rudeza propositada manteria sua atraen­te vizinha a distância por algum tempo. A última coisa que precisava era do comitê local de boas­ vindas reunido à sua porta, principalmente sendo este liderado por uma bela morena falante, falante até demais, e com olhos de fada.

 

"Droga!", praguejou ele, em pensamento. Em Nova York, era de se supor que as pessoas igno­rassem os vizinhos. Ao se mudar para ali, tinha quase certeza de que esse era o comportamento vigente, mas, pelo visto, enganara-se.

A sorte era que ela era solteira, segundo Preston pudera notar, pois se tivesse um marido, o pobre coitado provavelmente já estaria maluco com toda aquela tagarelice. O fato de ela trabalhar em casa e de haver deixado claro que estaria sempre por ali não era um detalhe lá muito agradável.

Como se não bastasse, também fazia os biscoitos de chocolate mais apetitosos que ele já tinha visto,            isso também não era nada promissor. De fato, era quase imperdoável.

Conseguiu ignorar os biscoitos por algum tempo enquanto trabalhava. Na verdade, era capaz de ignorar até mesmo um holocausto nuclear quando assunto em questão era lidar com palavras em um texto. Entretanto, assim que Preston se des­concentrou voltou a lembrar-se dos biscoitos que havia deixado na cozinha.

Continuou pensando neles durante horas, ao se vestir e enquanto massageava a nuca dolorida depois de horas sentado no mesmo lugar, em uma postura que sua professora do terceiro ano fun­damental, irmã Mary Joseph, classificaria como "deplorável".

Por isso, quando foi à cozinha buscar sua me­recida latinha de cerveja, não conseguiu deixar de olhar para o prato sobre a mesa. Abriu a la­tinha, tomou um gole de cerveja e continuou olhando para os biscoitos, pensativo. E se pro­vasse alguns deles? Afinal, não havia motivo para jogá-los fora, se já havia deixado bem claro para Cybil Campbell que não estava interessado em amizades.

Evidentemente, ela iria querer o prato de volta, e ele teria de esvaziá-lo de alguma maneira. Foi então que provou um deles e gemeu baixinho, aprovando o delicioso sabor. Depois comeu outro, com um suspiro de pura apreciação.

Quando já havia comido quase duas dúzias, foi que se deu conta do que estava fazendo e pra­guejou. Olhou para o prato quase vazio com um misto de autocensura e de indignação. Então foi para a sala e pegou seu sax. Seria mais saudável fazer uma breve caminhada antes de ir para o clube.

Ao abrir a porta, ouviu Cybil se aproximando com passos firmes pelo corredor. Com ar de de­sagrado, ele deu um passo atrás, deixando apenas um pequeno vão aberto na porta. Mesmo a certa distância, ouviu a voz dela e arqueou- uma so­brancelha ao notar que ela estava sozinha.

- Nunca mais! - protestou Cybil. - Nem que ela me ameace de morte. Nunca mais pas­sarei por essa tortura novamente! É isso, e pon­to final!

Preston notou que ela havia mudado de roupa. Estava vestida com uma pantalona e um blazer pretos, por cima de uma elegante blusa de seda lilás. Um par de brincos de argola dourados dei­xaram-na com uma aparência mais sensual.

 

Continuou falando sozinha, enquanto abria a bolsa do tamanho de um envelope do correio.

- A vida é curta demais para ter suas horas desperdiçadas com uma pessoa tão insuportável. Ela não vai me fazer isso novamente. Sei como dizer "não", e é isso que farei da próxima vez. Preciso apenas praticar um pouco, só isso. Onde diabos está aquela chave?

O som de uma porta se abrindo atrás dela a fez se sobressaltar e virar-se de repente. Preston, notou que os brincos que ela estava usando não eram totalmente iguais e imaginou se aquilo seria um novo tipo de moda ou falta de atenção mesmo. Porém, ao se lembrar de que ela não estava con­seguindo encontrar uma chave dentro de uma bol­sa menor do que a palma de sua mão, optou pela última hipótese.

Cybil parecia refrescada, como se houvesse aca­bado de sair do banho, deixando para trás uma nuvem de um perfume maravilhoso. E o fato de Preston haver se sentido afetado por isso, deixou-o ainda mais aborrecido.

- Espere um pouco - pediu a ela, então voltou ao apartamento para pegar o prato.

Cybil não tinha a mínima intenção de ficar ali esperando. Finalmente encontrou o escon­derijo da chave: no canto do bolso interno, onde ela mesma a havia colocado justamente para se lembrar de onde encontrá-la quando fosse necessário.

Preston conseguiu alcançá-la antes que ela en­trasse. Saiu do apartamento pouco depois e fechou a porta atrás de si. Em uma mão, trazia a maleta do sax e na outra o prato onde Cybil havia colocado os biscoitos.

- Aqui está - disse a ela, jurando a si mesmo que não iria perguntar o que provocara aquele brilho de indignação nos olhos dela. Se o fizesse, era bem capaz que ela passasse a meia hora se­guinte contando a história a ele.

- De nada - ironizou ela, aceitando o prato.

Estava com a cabeça doendo, depois de haver passado as duas últimas horas ouvindo a conversa monótona de Frank, primo de Jody. Mas do que estava reclamando?, pensou com sarcasmo. Afinal, agora estava sabendo tudo sobre o mercado de ações e sobre as aplicações mais seguras que po­deriam ser feitas nele. Levada pelo mau humor, decidiu dizer poucas e boas ao sr. Misterioso.

- Ouça, se não quer fazer novas amizades, tudo bem. Não preciso mesmo de mais amigos - declarou ela, balançando o prato para enfa­tizar o que dizia.

- Na verdade, tenho tantos no momento que estou querendo me livrar de alguns deles. De qualquer maneira, não havia motivo para você ser tão rude. Tudo o que fiz foi me apresentar e lhe oferecer alguns malditos biscoitos!

Preston teve de se esforçar para se manter sério.

- Malditos biscoitos deliciosos - confessou ele, arrependendo-se assim que viu um brilho de di­vertimento surgir nos olhos dela.

- E mesmo?

- Sim.

Dizendo isso, ele seguiu pelo corredor em di­reção à saída, deixando-a surpresa com aquela reação.

Foi então que Cybil decidiu seguir seu impulso, um de seus hobbies preferidos. Destrancou rapi­damente a porta de seu apartamento e deixou o prato sobre a mesinha de centro. Em seguida, saiu novamente e trancou a porta. Então começou a seguir o sr. Misterioso, esforçando-se para não fa­zer nenhum barulho ao andar.

Seria um ótimo roteiro para uma nova aventura de Emily, pensou ela, contendo a vontade de rir. Claro que seria preciso criar um contexto onde Emily estivesse completamente apaixonada, con­cluiu, enquanto tentava descer a escada com ra­pidez e na ponta dos pés. Uma atitude como aque­la não poderia ser justificada como normal, ad­vinda de uma mera curiosidade. Teria de ser algo mais intenso, uma espécie de paixão desenfreada.

Ofegante sob o efeito de uma intensa expecta­tiva, flagrou-se com a mente repleta de possibili­dades. Ao sair do prédio, olhou rapidamente para os lados.

Ele já se encontrava no meio do quarteirão. Uma boa distância, concluiu Cybil, começando a segui-lo e disfarçando um sorriso.

Em seu lugar, claro que Emily manteria um ar de mistério, escondendo-se atrás de postes e nas esquinas, para o caso de ele se virar de repente e...

Com um sobressalto, escondeu-se de repente atrás de um poste, quando a "vítima" de sua per­seguição arriscou um olhar por sobre o ombro. Le­vando a mão ao peito, Cybil inclinou-se ligeiramente para frente a tempo de vê-lo virar a esquina.

Aborrecida por haver decidido usar saltos em vez de sapatos mais confortáveis para o jantar, ela respirou fundo e seguiu na mesma direção onde ele havia virado.

Seu vizinho caminhou durante vinte minutos, até Cybil sentir os pés em chamas e todo aquele ânimo inicial se desfazendo como uma nuvem as­saltada por um sopro insistente. Teria ele aquela mania de caminhar todas as noites pelas ruas com o saxofone?

Talvez não fosse apenas mal-educado, mas tam­bém maluco. Provavelmente fora liberado de al­gum hospício naqueles últimos dias, e por isso não sabia ao certo como se dirigir às pessoas de uma maneira normal.

A família abastada e cruel o mantivera em uma espécie de cativeiro, afastando-o do resto do mundo para que ele não reivindicasse seus direitos sobre a herança da avó falecida, que morrera sob circuns­tâncias suspeitas, deixando toda sua fortuna para o neto. Por fim, era provável que todos aqueles anos de cativeiro, tendo de lidar com um psiquiatra cor­rupto, haviam-no deixado meio amalucado.

Sim, seria exatamente isso que Emily deduziria, chegando à conclusão de que somente seu amor puro e dedicado seria capaz de curá-lo. Então to­dos os amigos e vizinhos tentariam dissuadi-la, tentando mostrar os riscos que ela estaria cor­rendo. Mas Emily, sendo Emily, iria até o fim.

 

E antes que o sr. Misterioso pudesse...

Cybil parou de repente, quando ele entrou em um clube chamado Delta's.

Finalmente, pensou ela, afastando os cabelos para longe do rosto. Agora, tudo que precisaria fazer seria entrar ali, encontrar um canto escuro onde pudesse se ocultar e ver o que aconteceria em seguida.

 

O lugar tinha cheiro de uísque e ci­garro. No entanto, não chegava a ser necessariamente ofensivo, segundo Cybil pôde no­tar. Era algo mais... atmosférico, se é que se po­deria chamar assim. O ambiente era permeado por uma iluminação suave, tendo como destaque o agradável tom de azul dos holofotes que ilumi­navam o palco. Pequenas mesas redondas se dis­tribuíam por todo o salão, e embora a maioria delas estivesse ocupada, o nível de ruído era bem baixo.

Cybil percebeu que as pessoas conversavam sus­surrando, desfrutando a companhia umas das ou­tras ou realizando novas conquistas.

Diante do espesso balcão de madeira do bar, à direita da entrada, alguns clientes se mantinham ligeiramente inclinados sobre suas bebidas, como que protegendo-as de possíveis invasores.

O ambiente lembrava o tipo de clube noturno que aparecia nos filmes em preto-e-branco da dé­cada de quarenta. Aquele tipo no qual a heroína usava vestidos longos e justos, batom vermelho ­escuro e uma mecha de cabelos caído sobre o olho esquerdo, enquanto se mantinha no palco, ilumi­nada por um único foco de luz, interpretando can­ções a respeito de amores frustrados.

Enquanto cantava, os homens que a desejavam, e contra os quais ela fazia seu protesto, manti­nham-se debruçados sobre seus copos de uísque, com os olhos parcialmente ocultos pelas abas de seus chapéus.

Em outras palavras, pensou Cybil com um sor­riso, o ambiente era simplesmente perfeito.

Esperando não ser notada, andou sorrateira­mente junto a uma das paredes e sentou-se à mesa mais próxima. Então passou a observá-lo através da nuvem formada pela fumaça dos cigarros.

Ele estava todo vestido de preto. Cybil não conteve um suspiro. O jeans e a camisa pretos ressaltavam ainda mais aquele ar sedutoramen­te másculo. A jaqueta preta de couro havia sido deixada sobre uma cadeira próxima ao palco. A mulher com quem ele estava conversando era uma linda negra trajando um macacão vermelho feito de um tecido brilhante e muito justo, evi­denciando cada curva do corpo perfeito. Cybil calculou que ela devia ter mais ou menos um metro e oitenta de altura. Como se não bastasse toda aquela beleza, quando ela inclinou a cabeça para trás, o rico som de seu riso se espalhou pelo ambiente.

Pela primeira vez, Cybil o viu sorrir. Mas aquilo não era apenas um sorriso,, pensou ela, encantada com a transformação na, expressão do atraente semblante masculino. Aquilo era um intenso raiar do sol após uma noite sombria. Aquilo que o tor­nava tão irresistivelmente atraente a seus olhos, não poderia ser chamado meramente de "sorriso". Era uma expressão repleta de afeição, divertimen­to e charme. Mesmo àquela distância, Cybil sentiu todo seu impacto. Com um suspiro, apoiou o quei­xo sobre a mão e sorriu, como se o sorriso houvesse sido dirigido a ela.

Imaginou que ele e a bela negra fossem aman­tes, e confirmou isso quando a mulher segurou o rosto dele entre as mãos e o beijou enfaticamente. Claro que um homem magnífico como aquele tinha de ter uma amante, no mínimo, exótica, concluiu Cybil. E o lugar perfeito para um encontro entre os dois seria um clube noturno permeado por fu­maça de cigarro e músicas melancólicas.

Cybil suspirou alto, considerando aquilo tudo romântico demais.

 

No palco, Delta pousou a mão afetuosamente sobre o rosto de Preston.

- Então, agora passou a ser seguido por mu­lheres, meu querido?

- Ela é maluca.

- Quer que eu a ponha para fora?

- Não. - Preston não olhou para trás, mas podia sentir aqueles olhos verdes observando-o.

- Estou quase certo de que ela é uma maluca inofensiva.    

- Um brilho de divertimento surgiu nos olhos ne­gros de Delta.

- Então, vou só verificar se isso é mesmo ver­dade. Quando uma mulher começa a seguir um homem, meu querido, é melhor averiguar do que ela é capaz. Certo, André?

O homem negro e magro sentado ao piano parou de dedilhar as teclas por um instante e sorriu para ela, em resposta.

- Faça isso, Delta. Mas não assuste a moça. Olhando daqui, ela parece ser bastante inofensiva. Pronto para começar? - perguntou ele, dirigin­do-se a Preston.

- Você começa, eu acompanho.

Enquanto Delta descia do palco, os dedos longos de André começaram a exercer sua magia. Preston deixou-se levar pelo ritmo do piano, então fechou os olhos, permitindo que a música entrasse em seu ser.

Era assim que sempre acontecia. Aquilo sempre esvaziava sua mente das palavras, das pessoas e das cenas que geralmente a preenchiam. Quando ele tocava, era como se não houvesse nada além da música e do magnífico prazer de executá-la.

Certa vez, dissera a Delta que aquilo era como sexo, que tirava algo de você mas lhe dava o dobro em troca. E que quando terminava, era como se houvesse sido rápido demais.

No fundo do salão, Cybil também se deixou levar pelo ritmo suave e contagiante da música. Era diferente vê-lo se apresentar de simplesmente ouvi-lo tocar, com o som abafado atravessando as paredes do prédio. Vê-lo ali no palco era algo mais poderoso, mais excitante, quase como um apelo sensual.

 

Aquela música era um sonho. Do tipo perfeito para servir de fundo musical para um casal em pleno ato de amor. Deus, como ele tocava bem, pensou ela, mal contendo outro suspiro. Será que ele faria amor com aquela mesma intensidade? O pensamento provocou-lhe um arrepio pelo corpo.

Estava tão concentrada no que estava aconte­cendo no palco que não viu Delta se aproximar da mesa.

- Está gostando, meu bem?

- Hein? - Cybil levantou a vista, sorrindo com ar de distração. - Oh, é maravilhoso. Quero dizer, a música é maravilhosa. Causa uma espécie de nostalgia em mim.

Delta arqueou uma sobrancelha. A garota tinha um rosto lindo e até inocente. Não parecia ser a lunática que Preston descrevera.

- Está bebendo ou apenas ocupando o lugar?

- Oh. - Cybil se deu conta de que um lugar como aquele se sustentava pela venda de bebidas. - Esta música pede um uísque - disse com outro sorriso. - Então vou tomar um uísque.

Delta arqueou a sobrancelha com mais ênfase.

- Você não parece ter idade suficiente para andar tomando uísque por aí, mocinha.

Cybil suspirou. Estava acostumada a ouvir aquele tipo de coisa. Sem dizer nada, abriu a bolsa e tirou seu documento de identidade.

Delta o examinou.

- Está bem, Cybil Ângela Campbell. Vou pegar seu uísque.

- Obrigada.

 

Satisfeita, Cybil apoiou o queixo sobre a mão mais uma vez e continuou ouvindo a música. Ficou surpresa quando Delta voltou com dois copos de uísque e sentou-se à mesa, a seu lado.

- O que está fazendo em um lugar como este, minha cara Cybil?

Ela abriu a boca para responder, mas, no mesmo instante, deu-se conta de que não poderia revelar que seguira seu misterioso vizinho até ali.

- Moro perto daqui, e acho que apenas segui um impulso. - Levantou o copo de uísque e in­dicou o palco com ele.

- Estou contente de ter vindo - disse e tomou um gole da bebida.

Delta apertou os lábios. A garota podia até parecer inocente, mas tomava uísque como um homem.

- Se continuar andando sozinha pelas ruas, à noite, pode acabar tendo problemas, minha cara.

Um brilho de sagacidade surgiu nos olhos de Cybil, acima da borda do copo.

- Não se preocupe, minha cara - respondeu ela, no mesmo tom.

Delta assentiu, considerando a resposta.

- Talvez não seja mesmo preciso eu me preo­cupar. Sou Delta Pardue - acrescentou ela, to­cando o copo no de Cybil, em um brinde. - Este é meu clube.

- Gostei do seu clube, Delta.

- Ora, que bom - admitiu ela, com outra de suas ricas risadas. - Mas vejo que também gostou do meu homem, logo ali. Não tirou seus olhos felinos dele desde que chegou.

 

Cybil moveu o uísque no copo, pensando em como deveria atuar naquele jogo. Mesmo sabendo que poderia se cuidar nas ruas, ou em qualquer outro lugar, calculou que Delta era muito mais forte do que ela. Além disso, estavam no território de Delta, e sua desvantagem era mais do que evi­dente. Aquele modo de dizer "meu homem" dei­xara a situação bem clara. De qualquer maneira, não havia motivo para estragar logo no primeiro encontro aquilo que poderia se transformar em uma boa amizade.

- Seu homem é muito atraente - admitiu, em um tom casual. - Confesso que é difícil não olhar para ele. Portanto, vou continuar apenas olhando se isso não a incomodar. Além do mais, aposto que ele não tem olhos para outra mulher tendo alguém como você por perto.

Delta riu, exibindo os dentes alvos e perfeitos.

- Acho que não preciso realmente me preocu­par. Sabe mesmo se cuidar, não é, menina?

Cybil sorriu, tomando outro gole de uísque.

- Sim, eu sei. - Decidindo mudar de assunto, ela acrescentou: - Gostei mesmo deste lugar. Há quanto tempo você o tem, Delta?

- Estou aqui há dois anos.

- E antes? Esse seu sotaque é de Nova Orleans, não é?       -

Delta inclinou a cabeça de lado, com um sorriso.

- Tem bons ouvidos, garota.

- Tenho sim, mas foi fácil reconhecer seu so­taque. Tenho família em Nova Orleans e minha avó foi criada lá.

 

- Não conheço nenhum Campbell... Qual é o sobrenome de solteira de sua mãe? - Grandeau.

Delta se encostou uma cadeira.

- Ei, conheço os Grandeau! Por acaso, é pa­rente da srta. Adelaide?

- Ela é minha tia-avó.

- Grande dama - asseverou Delta.

Cybil fez uma careta, tomando outro gole de uísque.

- Impaciente, ranzinza e fria como um iceberg. Os gêmeos e eu costumávamos pensar que ela fosse algum tipo de bruxa ou algo do gênero.

- Gêmeos? - Delta se surpreendeu.

- Sim, meu irmão e minha irmã são gêmeos - explicou Cybil.

Após uma breve pausa, Delta falou:

- Ela tem poder, mas apenas por causa do dinheiro e do sobrenome que carrega. Então você é parente dos Grandeau? Mas que agradável sur­presa. Quem é sua mãe?

- Genviève Grandeau Campbell, a famosa artista.

- Srta. Gennie. - Delta deixou o copo sobre a mesa e levou a mão ao peito, encostando-se na cadeira com um sorriso.

- Quem diria que a filha da srta. Gennie algum dia visitaria minha boate. O mundo é mesmo pequeno.

- Conhece minha mãe?

- Minha mãe trabalhou como governanta para sua grandmère, minha cara.

- Mazie? Você é filha de Mazie? Ah, meu Deus!

 

- Cybil tocou a mão de Delta, comovida. - Minha mãe falava de Mazie o tempo todo. Nós chegamos a visitá-la uma vez, quando eu ainda era criança. Lembro que ela fez bolinhos maravilhosos para nós - acrescentou com um sorriso saudosista. - Sentamos na varanda da casa, tomando limonada enquanto comíamos aqueles bolinhos divinos. Meu pai fez um desenho dela.

- Ela mandou emoldurá-lo e pendurou o qua­dro na parede. - Delta riu.

- Vivia toda orgu­lhosa dele. Eu estava na cidade quando sua fa­mília nos visitou. Estava trabalhando. Minha mãe falou daquela visita durante semanas. Ela gostava muito da srta. Gennie.

- Espere até eu contar a eles que encontrei você. Como está sua mãe, Delta?

- Ela morreu no ano passado.

- Oh. - Cybil segurou a mão de Delta com mais firmeza. - Sinto muito. Muito mesmo.

- Ela teve uma boa vida. Morreu dormindo, portanto, acho que também teve uma boa morte. Seus pais compareceram ao funeral. Teve uma base familiar muito boa, Cybil.

- Sim, eu sei. O mesmo serve para você - acrescentou ela, com um sorriso.

 

Preston não estava entendendo mais nada. Lá estava Delta, a mulher que ele considerava a mais sensata das criaturas, conversando com aquela maluca como se ambas fossem velhas amigas. Compartilhando o uísque, as risadas e segurando a mão uma da outra como as mulheres costuma­vam fazer quando tinham muita amizade.

As duas já estavam ali, no fundo do salão, havia mais de uma hora. De vez em quando, Cybil co­meçava um daqueles que só poderia ser outro de seus monólogos, gesticulando muito e rindo. Então Delta ouvia algumas palavras com atenção, e logo inclinava a cabeça para trás, rindo com satisfação e balançando a cabeça com ar de surpresa.

- Veja só aquilo, André - disse, inclinando-se sobre o piano.

André parou de tocar e acendeu um cigarro.

- Como velhas comadres - falou ele, após a primeira baforada. - A garota é muito bonita, Preston. Tem uma animação fora do comum.

- Detesto pessoas animadas demais - resmun­gou Preston, já sem vontade de continuar tocando. Em silêncio, começou a guardar o sax. - Até a próxima - despediu-se, ao terminar.

- Até - foi a resposta de André.

Preston pensou em sair e ir direto para casa, mas sentiu-se irritado com a possibilidade de sua amiga estar sendo aborrecida por aquela lunática. Além disso, seria bom mostrar à sua vizinha abe­lhuda que também estava de olho nela, e que sua perseguição não passara despercebida.

Quando parou ao lado da mesa onde as duas estavam acomodadas, Cybil se limitou a levantar a vista e sorrir para ele.

- Oi. Não vai tocar mais? A música estava maravilhosa.

- Você me seguiu.

 

- Eu sei. Foi indelicado de minha parte, mas estou contente por tê-lo feito. Adorei ouvi-lo tocar e nunca teria encontrado Delta se não tivesse vin­do até aqui. Estávamos acabando de...

- Nunca mais faça isso - falou ele, antes de se encaminhar para a saída.

- Ooh, ele está mesmo uma fera. - Delta riu. - Esse olhar fuzilante é capaz de intimidar qual­quer um.

- Preciso pedir desculpas a ele - declarou Cy­bil, ficando de pé.

- Não quero que fique bravo com você.

- Comigo? Mas...

- Voltarei logo - dizendo isso, Cybil deu um beijo estalado na face de Delta, fazendo-a pesta­nejar de surpresa.

- Não se preocupe, vou resol­ver isso.

Enquanto ela se afastava, Delta ficou observan­do-a por algum tempo, antes de soltar outra de suas sonoras risadas.

- Não tem idéia de onde está se metendo, me­nina. E nem meu querido Preston - acrescentou, com um brilho de divertimento no olhar.

Do lado de fora, Cybil saiu correndo pela calçada.

- Ei! - gritou para Preston, que já se encon­trava a certa distância.

Então se repreendeu por não haver sequer per­guntado o nome dele a Delta, depois de todo aquele tempo de conversa.

- Ei! - repetiu, acelerando a corrida e conse­guindo finalmente alcançá-lo.

- Sinto muito - começou a falar, segurando a manga da jaqueta dele.

- A culpa foi toda minha.

- E quem disse que não foi?

- Eu não deveria tê-lo seguido. Mas foi um impulso, eu tenho dificuldade de resistir aos im­pulsos. Sempre tive. Além disso, eu estava irritada por causa do idiota do Frank e... Bem, isso não vem ao caso agora. Eu só queria... Poderia dimi­nuir um pouco o ritmo dos passos?

- Não.

Cybil revirou os olhos.

- Tudo bem, tudo bem. Sei que está desejando que um piano caia sobre minha cabeça, mas não precisa ficar bravo com Delta. Nós começamos a conversar e acabamos descobrindo que a mãe dela trabalhou para minha avó e que ela, Delta, co­nhece meus pais e alguns dos meus primos de sobrenome Grandeau. A partir daí, não paramos mais de conversar.

Preston parou de repente e olhou para ela.

- Com tantos clubes noturnos em tantas cida­des do mundo... - resmungou ele, fazendo-a rir.

- Já sei: eu tinha logo de segui-lo até aquele e fazer amizade justo com sua namorada. Sinto muito.

- Minha namorada? Delta?

Para espanto de Cybil, ele sabia rir. Rir de ver­dade, fazendo o som grave de sua voz se espalhar pelo ar.

- Por acaso Delta parece ser namorada de al­guém? Puxa, parece que você veio mesmo de outro planeta.

 

- Foi apenas uma suposição. Eu só não quis parecer indelicada, chamando-a de sua "amante".

O brilho de divertimento continuou nos olhos dele quando Preston voltou a fitá-la.

- Não deixa de ser uma idéia engraçada, mas a verdade é que aquele homem com quem eu estava tocando é o marido de Delta, um velho amigo meu.

- O homem alto e magro que estava ao piano? É mesmo? - Mordendo o lábio, Cybil pensou no lado romântico daquele contexto. - Não é lindo? - disse quase para si mesma.

Preston se limitou a balançar a cabeça e con­tinuou a andar.

- O que eu quero dizer é... - Cybil recomeçou a falar, confirmando a certeza que Preston tivera de que ela não havia terminado o raciocínio, e de que, como sempre, não o terminaria tão cedo.

- E que percebi que ela foi apenas verificar qual era minha intenção. Para ter certeza de que eu não iria aborrecê-lo entende? Então uma coisa acabou levando a outra, e você sabe como é... Só não quero que fique bravo com ela.

- Não estou bravo com ela. Você, por outro lado, já me deu razões mais do que suficientes para ficar bravo.

Cybil pareceu desapontada.

- Bem, sinto muito por isso. Prometo que o deixarei em paz, já que isso, aparentemente, é o que parece agradá-lo.

Preston ficou parado por um momento, obser­vando-a se afastar pela rua deserta, em direção à calçada oposta. Por fim, deu de ombros e virou a esquina, tentando se convencer de que ficara aliviado ao se livrar dela. Afinal, não era de sua conta se Cybil não se importava em se arriscar andando sozinha à noite. Além do mais, se não houvesse decidido segui-lo de repente, não estaria usando aqueles saltos tão altos e teria mais chance de correr, caso fosse necessário, diante de algum perigo.

Não, não iria se preocupar com isso.

Seguiu em frente com passos firmes, mas bastou percorrer alguns metros para girar sobre os cal­canhares com um resmungo abafado. Iria apenas certificar-se de que ela chegaria em casa em se­gurança, só isso. Assim que tivesse certeza disso, lavaria as mãos de qualquer responsabilidade e trataria de esquecê-la.

Havia acabado de virar a esquina, quando se espantou com o que viu. Mais adiante, um homem surgiu das sombras e agarrou Cybil, que soltou um grito e começou a lutar. Preston soltou a ma­leta do sax no mesmo instante e saiu correndo para ajudá-la.

Entretanto, parou de repente ao ver que Cybil havia não apenas se livrado do marginal, como o atingira com um golpe certeiro do joelho em sua parte mais sensível, fazendo-o cair gemendo de dor no chão.

- Eu só tinha dez míseros dólares aqui. Dez míseros dólares, seu imbecil! - gritou ela para o homem, enquanto Preston se aproxi­mava.

- Se precisava de dinheiro, por que sim­plesmente não pediu?

- Está ferida?

- Sim, droga. E por sua culpa! - protestou ela. - Eu não teria batido nele com tanta força se não estivesse tão furiosa com você!

Notando que ela estava massageando a junta dos dedos da mão direita, que provavelmente ha­via sido usada antes do "golpe fatal" com o joelho, Preston lhe segurou o pulso.

- Deixe-me ver. Mexa os dedos.

- Vá embora.

- Vamos, obedeça. Mexa os dedos.

- Ei! - gritou uma mulher abrindo a janela de uma casa do outro lado da rua.

- Querem que eu chame a polícia?

- Sim - respondeu Cybil, movendo os de­dos, como Preston lhe pedira. Então gemeu quando ele tentou massageá-los.

- Já estou bem, obrigada.

- Vítima polida, você, não? - ironizou ele. - Pelo visto, não quebrou nada. Mas será melhor fazer um exame mais detalhado.

- Muitíssimo obrigada, doutor. - Cybil afastou a mão e levantou o queixo, indicando a rua com a outra mão.

- Pode ir agora, eu estou bem.

Quando o homem caído na calçada começou a se mexer e a gemer, Preston o imobilizou com o pé.

- Acho que vou ficar mais um pouco por aqui. Por que não vai pegar o sax para mim? Eu o deixei perto da esquina enquanto ainda estava sendo ingênuo o bastante para pensar que você corria perigo.

Cybil quase mandou que ele mesmo fosse pegá-lo, mas mudou de idéia ao pensar que se tivesse de bater novamente naquele bandido tal­vez já não tivesse tanta força quanto antes. Com o que lhe restava de dignidade, andou em di­reção à esquina e pegou a maleta que Preston deixara para trás.

- Obrigada - agradeceu ao se aproximar.

- Por quê? - indagou ele, surpreso.

- Por haver se preocupado comigo.

- Não precisa agradecer.

Preston forçou mais o pé ao ver o marginal co­meçar a praguejar, querendo se levantar. Somente quando a polícia chegou, dez minutos depois, foi que ele se afastou do bandido.

Cybil não teve nenhuma dificuldade em des­crever o que havia acontecido, enquanto Pres­ton rezava para que ela conseguisse ser breve o suficiente para que eles fossem liberados logo. Evidentemente, tinha noção de que sua esperança era vã. Mas um homem podia so­nhar, não podia?

Porém, sua esperança arrefeceu de vez quan­do um dos policiais uniformizados se voltou para ele.

- O senhor viu o que aconteceu aqui? Preston suspirou.

- Sim.

 

Portanto, já eram quase duas horas da manhã quando ele e Cybil finalmente voltaram para casa. Continuava com aquele gosto horrível do café da delegacia na boca e com aquela dor de cabeça que começara quando o policial lhe fizera a primeira pergunta.

- Foi um bocado excitante, não foi? Todos aqueles policiais e marginais reunidos em um mesmo lugar... A certa altura, notei que a única diferença entre eles era o fato de os policiais estarem uniformizados, por que os rostos inti­midadores pareciam todos os mesmos. Por que será que eles insistem em manter aquela ex­pressão todo o tempo? Um sorrisinho não faria mal a ninguém. Foi muito gentil da parte deles me mostrar a delegacia. Você deveria ter nos acompanhado. As salas de interrogatório pare­cem exatamente como aquelas que vemos nos filmes: escuras e assustadoras.

Preston tinha certeza de que ela era a única pessoa do mundo que se interessava em fazer ex­cursões por delegacias.

- Estou elétrica - anunciou ela. - Você não está? Acho que não vou dormir tão cedo. Quer alguns biscoitos? Ainda tenho uma porção deles.

Preston quase ignorou o convite enquanto tirava a chave do bolso, porém a sensação de vazio em seu estômago o fez lembrar-se que não havia co­mido nada nas últimas oito horas. E aqueles bis­coitos eram um pequeno milagre.

- Acho que vou aceitar.

- Ótimo! - festejou Cybil, abrindo a porta e tirando os sapatos, antes de se dirigir à cozinha. - Pode entrar - disse por sobre o ombro. –

 Vou colocá-los em um prato, para que possa comê-los no refúgio de sua casa, mas também não precisa ficar esperando no corredor.

Preston entrou no apartamento, deixando a por­ta aberta atrás de si. Não ficou surpreso ao ver um ambiente decorado com cores alegres e com detalhes chamativos. Andou pela sala, mantendo as mãos nos bolsos, enquanto ouvia a voz de Cybil vinda da cozinha.

- Você fala demais.

- Eu sei - respondeu ela, colocando os bis­coitos no mesmo prato que emprestara antes para ele. - Principalmente quando estou nervosa ou elétrica.

- E alguma vez você já se sentiu de outra maneira?

- Sim, mas isso é raro.

Preston viu uma série de porta-retratos sobre a estante, vários pares de brincos, um par de sa­patos a um canto da sala, um romance sobre a mesinha de centro e sentiu um leve aroma de maçã pelo ar. Tudo aquilo combinava com ela. Continuou examinando os detalhes da sala até parar diante de uma tira de jornal emoldurada e presa à parede.

- Amigos e vizinhos - leu o título impresso e observou a assinatura no canto direito inferior da tira. Lia-se apenas "Cybil". - Isto é seu? - perguntou, no momento em que ela entrava na sala.

 

Cybil olhou para o quadro.

- Sim, é minha tira de jornal. Não acho que você seja do tipo que lê as tiras cômicas do jornal, ou estou enganada?

Sabendo muito bem reconhecer uma pergunta pessoal quando uma lhe era dirigida, Preston olhou-a por sobre o ombro. Devia ser o sono, con­cluiu, que o estava levando a considerá-la tão atraente àquela hora da noite.

- "Macintosh", de Grant Campbell - Preston leu outra tira emoldurada, pendurada ao lado da de Cybil.

- É seu pai?

- Sim - ela assentiu.

Ler o sobrenome "Campbell" era o mesmo que ler "MacGregor", pensou Preston. Não era mesmo uma interessante coincidência?

Atravessando a sala, serviu-se de um dos bis­coitos que Cybil havia colocado sobre o balcão que separava a sala da cozinha.

- Gosto do estilo do trabalho dele.

- Tenho certeza de que ele ficaria lisonjeado em ouvir isso. - Cybil sorriu ao vê-lo pegar outro biscoito.

- Quer um pouco de leite?

- Não. Você tem cerveja?

- Com biscoitos chocolate?

Ela fez um ar de quem considerara aquilo muito esquisito, mas mesmo assim foi até a geladeira. Preston teve a chance de ver que estava muito bem abastecida quando Cybil se inclinou para exa­minar seu conteúdo, que também lhe deu a chance de ver o que uma calça preta sob medida era capaz de fazer a um traseiro feminino irresistivelmente

arredondado. De fato, só se deu conta de que havia contido a respiração quando Cybil se virou para ele com uma garrafa de Beck's Dark.

- Isto não serve? O Chuck gosta.

- Essetal de Chuck tem bom gosto. É um namorado?

Enquanto pegava os copos para servi-lo, ela respondeu:

- Chuck é o marido de Jody. Jody e Chuck Myers do 2B - explicou ela. - Fui jantar com eles esta noite e com Frank, o primo excessiva­mente insuportável de Jody.

- Por isso estava resmungando quando voltou para casa?

- Eu estava resmungando? - Cybil franziu o cenho, então apoiou-se sobre o balcão e comeu outro biscoito. Resmungar era outro dos hábitos dos quais ela não conseguia se livrar.

- É pro­vável. Essa foi a terceira vez que Jody arranjou um encontro entre mim e Frank. Ele é corretor da bolsa. Trinta e cinco anos, solteiro e bonito, se você for do tipo que aprecia tipos atléticos e másculos. Tem um BMW, um apartamento em Upper East Side, Westchester, uma casa de praia em Hamptons, só usa ternos Armani, aprecia a cozinha francesa e tem dentes perfeitos.

Divertindo-se com a maneira como Cybil estava descrevendo o sujeito, Preston tomou um gole de cerveja e perguntou:

- Então por que já não está casada com ele e morando em Westchester?

- Ah, você acabou de descrever o sonho de Jody.

 

E vou lhe dizer por que não quero isso para mim. - Ela comeu outro biscoito.

- Primeiro, não que­ro me casar ou ir morar em Westchester. Segundo, e mais importante, eu preferiria a morte a ter de me casar com Frank.

- O que há de errado com o sujeito?

- Ele... Ele me cansa! - desabafou ela, com uma careta de desagrado.

- Oh, droga, acho que fui indelicada, não?

- Por quê? Soou sincera para mim.

- Sim, estou sendo completamente sincera. - Cybil pegou outro biscoito e o comeu, sentindo-se apenas um pouquinho culpada.

- Ele é uma boa pessoa, mas acho que não leu um livro ou foi ao cinema nos últimos cinco anos. Talvez tenha as­sistido a alguns filmes selecionados, mas não a um filme para se divertir, entende? Tudo que ele sabe fazer é criticar o cinema o tempo inteiro, ou melhor, durante os cinqüenta e nove minutos de cada hora em que não fica falando das aplicações da bolsa de valores.

- Eu nem conheço o sujeito e já me cansei dele.

O comentário fez Cybil rir e pegar outro biscoito.

- Ele é conhecido por ter a mania de olhar o próprio reflexo na colher quando está sentado à mesa - continuou ela. - Para se certificar de que continua perfeitamente "irresistível". E como se não bastasse tudo isso, ele beija como um peixe.

Preston arqueou uma sobrancelha.

- Como é isso exatamente?

- Ah, você sabe... - Cybil fez um biquinho arredondado com os lábios e depois começou a rir. - É possível imaginar como os peixes beijam, mesmo que eles não façam isso. Mas se beijassem, seria como Frank. Quase consegui escapar sem ter de passar pela experiência esta noite, mas Jody, como sempre, deu um jeitinho de interferir.

- E não lhe ocorreu simplesmente dizer "não"?

- Claro que me ocorreu! Todo o tempo! - Cybil forçou um sorriso, exasperada. - Mas parece que nunca consigo me expressar no momento certo. Jody me adora e, por razões que até a própria razão des­conhece, ela também adora Frank. Está convencida de que formamos um casal perfeito. E você sabe como é quando alguém que você estima começa a fazer esse tipo de pressão "para o seu bem".

- Não, não sei.

Cybil inclinou a cabeça. Então lembrou-se da sala vazia no apartamento dele. Nenhum móvel, nenhum membro da família...

- A situação se torna muito inconveniente por que você corre o risco de magoar alguém, e isso não me agrada nem um pouco.

- Como está sua mão? - perguntou Preston, ao vê-la massagear as juntas.

- Ainda está um pouco dolorida. Provavelmen­te terei dificuldade para trabalhar amanhã. Mas tentarei transformar a experiência em uma boa tira cômica.

- Não consigo imaginar Emily tendo coragem de nocautear um bandido - disse Preston.

- Ei, você lê minhas tiras! - exclamou Cybil, rindo com satisfação.

- Uma vez ou outra.

 

Ela era realmente encantadora, pensou Preston, admirando aquele lindo sorriso e o brilho de di­vertimento nos olhos incrivelmente verdes de Cy­bil. De súbito, flagrou-se imaginando como seria provar o sabor daqueles lábios rosados.

Era isso que acontecia quando um homem se dava a liberdade de ficar comendo biscoitos de chocolate no meio da noite na casa de uma linda mulher capaz de fazê-lo ver o mundo sob uma nova perspectiva. Uma perspectiva que, para ele, ainda oferecia riscos.

- Não tem o tom irônico de seu pai nem o gênio artístico de sua mãe, mas tem um talento inusitado para o absurdo.

Cybil riu com indignação.

- Ora, muitíssimo obrigada pela crítica construtiva.

- Não há de quê. - Preston pegou o'prato que ela havia separado para ele levar.

- E obri­gado pelos biscoitos.

Cybil estreitou o olhar enquanto ele se dirigia à porta. Bem, ele iria ver quanto talento ela tinha para o "absurdo" ao longo das próximas tiras.

- Ei!

Ele parou e olhou para trás.

- Ei, o quê?

- Você tem nome, apartamento 3B?

- Sim, eu tenho um nome, apartamento 3A. McQuinn.

Dizendo isso, levantou no ar a latinha de cerveja e o prato, em sinal de agradecimento, e saiu, fe­chando a porta atrás de si.

 

Quando muitas idéias a respeito de cenas e de pessoas preenchiam sua mente, Cybil era capaz de trabalhar até seus de­dos começarem a doer e se recusarem a segurar adequadamente o lápis ou a caneta.

Nos dias em que isso acontecia, geralmente ali­mentava-se apenas com biscoitos e bebidas diet, por gostar de ter a sensação de que estava equi­librando as calorias em relação aos dias em que havia abusado delas.

No papel, a cada tira cômica, Emily e sua amiga Cari, que durante os últimos anos vinha apresen­tando muitas características da personalidade de Jody, planejavam e arquitetavam mil maneiras de descobrir os segredos do sr. Misterioso. Iria chamá-lo de "Quinn", mas não por muitos episódios.

Durante três dias, Cybil mal saiu da mesa de desenho. Jody tinha uma cópia da chave de seu apartamento, por isso não era necessário ficar se preocupando em atender à porta quando a amiga aparecia para uma visita. E Jody nunca fazia ceri­mônia para abrir a porta para a sra. Wolinsky, ou para algum outro vizinho que decidia visitar Cybil.

 

De fato, em um dado momento da terceira noite, havia tantas pessoas no apartamento de Cybil que foi possível fazer até uma festinha informal, en­quanto ela terminava de colorir a tira cômica que sairia no jornal de domingo.

Alguém havia ligado o aparelho de som, mas a música não a distraiu. Os risos e a conversação chegavam até seus ouvidos, vindos do andar de baixo, mas ela não se importava com isso. Gostava da animação de seus vizinhos, mesmo quando não podia compartilhá-la.

Sentiu um delicioso aroma de pipoca e imaginou se alguém levaria um pouco para ela. Encostan­do-se na cadeira, examinou o que já estava pronto em seu trabalho. De fato, não tinha a veia irônica de seu pai nem a genialidade artística de sua mãe, mas tinha o que poderia ser considerado como um "talento inusitado".

Tinha a mão muito ágil e precisa para o dese­nho. Sim, gostava do que fazia e do resultado final de seu trabalho. Mas gostava principalmente do fato de ele fazer as pessoas rirem.

Se McQuinn, do 3B, achava que ela ficara ofen­dida com o comentário dele, estava muito enga­nado. Cybil estava mais do que contente com seu "talento inusitado para o absurdo".

Agitada pelo êxito de três dias de trabalho in­tenso, pegou o telefone assim que este começou a tocar.

- Alô?

- Ora, ora, se não é minha neta preferida.

- Vovô! - Cybil se encostou na cadeira, com um sorriso satisfeito.

- Eu estava morrendo de saudade, mas não me venha com essa história de "neta preferida", porque eu sei que você diz isso para todos.

Tecnicamente, Daniel MacGregor não era avô de Cybil, mas isso nunca a havia impedido de considerá-lo como tal. Para ela, o amor ignorava tecnicidades.

- "Morrendo de saudade"? - Daniel repetiu. - Então por que não me telefonou ou para sua avó? Você sabe quanto ela se preocupa com você, aí sozinha, nessa cidade imensa.

- Sozinha? - Com um sorriso, ela segurou o te­lefone no alto, para que o som da festa no andar de baixo de seu apartamento pudesse ser ouvido por seu avô. –

 Parece mesmo que estou sozinha, vovô?

- Está com seu apartamento cheio de pessoas de novo?

- É o que parece. E vocês, como estão? Está tudo bem por aí? Quero saber tudo.

Os dois passaram a conversar a respeito da fa­mília. Cybil ouvia tudo com um brilho de diver­timento no olhar, rindo e fazendo seus próprios comentários de vez em quando. Ficou contente ao saber que havia uma reunião familiar marcada para dali a algumas semanas.

- Que bom! Mal posso esperar para ver todos novamente. Parece que faz tanto tempo que nos vi­mos, desde o casamento de lan e Naomi, no último outono. Estou morrendo de saudade de vocês.

- Ora, então por que esperar até a reunião de família? Você sabe que estamos aqui o tempo todo.

 

- Talvez eu faça uma surpresa a vocês.

- Pois telefonei para fazer uma a você - de­clarou Daniel, com seu costumeiro tom firme mas bem-humorado. - Aposto que ainda não sabe que nossa Naomi está esperando um bebê. Teremos mais uma caixinha de presente sob nossa árvore no próximo Natal.

- Oh, vovô, isso é maravilhoso! Vou telefonar para eles ainda hoje. E com Darcy e Mac prestes a ter o deles nos próximos dias, teremos uma por­ção de bebês para mimar nesse Natal.

- Para alguém que gosta tanto de bebês, de­veria estar preocupada em ter um também - insinuou Daniel.

O velho tema, mais do que conhecido por Cybil, fez com que ela começasse a rir.

- Meus primos já estão cuidando disso muito bem, vovô.

- Ah, se estão! - concordou ele. - Mas isso não a livra de sua incumbência, mocinha. Você pode até ser uma Campbell de nascimento, mas carrega a chama do amor dos MacGregor no coração.

- Bem, em último caso, ainda me resta a chan­ce de jogar tudo para o alto e me casar com Frank.

- Aquele sujeito com boca de peixe?

- Não, vovô. - Ela riu.

- Ele só beija como um peixe. De qualquer maneira, sim, é ele mesmo. Poderíamos dar algumas "trutinhas" como netos para você.

Daniel fungou, impaciente.

- Você precisa é de um homem, não de uma truta vestida com um terno italiano. Um homem com mais interesses na mente do que apenas dó­lares e investimentos. Alguém que entenda de arte e que tenha juízo suficiente para mantê-la longe de problemas.

- Sei me manter longe de problemas - lem­brou Cybil, achando melhor não mencionar o in­cidente daquela fatídica noite.

- Além disso, vovó não iria gostar que eu o roubasse dela, portanto, terei de me conformar em continuar sozinha, aqui, nesta imensa cidade.

Daniel riu alto, do outro lado da linha.

- Com todos os homens que existem em Nova York, não é possível que não acabe encontrando um que lhe sirva. Você sai para passear de vez em quando, não sai? Não acredito que passe o dia inteiro sentada aí, desenhando seus papéis engraçados.

- Tenho feito isso apenas ultimamente, porque tive uma ótima idéia e precisei aproveitá-la logo. Estou com um vizinho novo, vovô. Ele é meio ta­citurno e reservado. Bem, digamos que ele é "cer­tinho" demais e que detesta que invadam o espaço dele. Acho que ele está desempregado, embora to­que sax de vez em quando em um clube aqui perto. É simplesmente o vizinho perfeito para Emily.

- Só isso?

- Bem, ele passa o dia inteiro fechado no apar­tamento e não fala com ninguém. O nome dele é McQuinn.

- Mas se ele não fala com ninguém, como sabe o nome dele?

- Vovô. - Cybil sorriu com ar travesso. -

 

Alguma vez já me viu desistir de falar com alguém quando decido fazer isso? Não que ele seja do tipo que se solta depois de alguns biscoitos de choco­late, mas, mesmo assim, consegui descobrir o nome dele.

- E o que achou dele? - indagou Daniel, fin­gindo um tom casual.

- Ele parece muito, muito incrível. Capaz de deixar Emily maluquinha.

- É mesmo? - Daniel riu com satisfação.

Quando conseguiu saber tudo o que precisava da neta, Daniel fez a ligação seguinte. Cantaro­lando baixinho e examinando as unhas, lustrou-as sobre a camisa e sorriu quando Preston atendeu ao telefone com um impaciente:

- Sim, o que é?

- Ah, essa sua natureza dócil sempre me deixa surpreso, McQuinn. Chega até a me comover.

- Sr. MacGregor?

Preston-se ajeitou na cadeira no mesmo instan­te. Não havia como confundir aquele sotaque es­cocês. Mudando subitamente de humor, riu e afas­tou-se do computador.

- Isso mesmo, meu rapaz. Como está se saindo no apartamento?

- Muito bem. Quero lhe agradecer mais uma vez por me deixar usá-lo enquanto minha casa continua naquela infinita reforma. Eu nunca con­seguiria trabalhar com todo aquele barulho. - Dizendo isso, lançou um olhar de censura para a parede, enquanto o barulho do outro apartamento lhe chegava aos ouvidos.

- Não que a coisa esteja muito diferente por aqui esta noite. Minha vizinha parece estar comemorando alguma coisa.

- Cybil? Ela é minha neta, sabia? Uma garota muito sociável.

- Até demais - falou Preston, quase em um resmungo.

- Não imaginei que ela fosse sua neta.

-Bem, apenas informalmente. Precisa se sol­tar um pouco, rapaz, e ir participar da festa.

- Não, muito obrigado. - Ele preferiria saltar de pára-quedas, sem pára-quedas.

- Acho que metade da população do bairro deve estar lá nesse momento. Este seu prédio, sr. MacGregor, está cheio de pessoas que preferem mais falar do que viver. E sua neta parece ser a líder da "gangue de tagarelas".

Daniel riu. Admirava a sinceridade de Preston McQuinn.

- Ela gosta apenas de ser amigável com todos - disse, em defesa da neta.

- De qualquer modo, fico mais tranqüilo em saber que você está mo­rando no apartamento em frente ao dela. Você é um rapaz sensível, Preston. Por isso não me im­porto em pedir que você fique de olho nela. Cybil é muito ingênua às vezes, se é que entende o que eu quero dizer. Eu me preocupo com ela.

Preston riu, lembrando-se de quando a vira acertar uma boa ajoelhada nas "partes baixas" do bandido que tentara atacá-la.

- Eu não me preocuparia se fosse o senhor. Pode acreditar.

- Bem, não vou mesmo me preocupar sabendo que você está por perto. Minha Cybil... Ela é uma gracinha, não é?

- Linda como uma flor - anuiu Preston.

- E inteligente. Também é responsável, embo­ra às vezes pareça levar a vida feito uma borboleta esvoaçante. Ora, mas também não é possível ser um iceberg e conseguir produzir uma tira cômica por dia para um jornal, não é mesmo? Só tendo muito senso de humor, e isso é o que não falta à minha Cybil.

- Sem dúvida, sr. MacGregor.

- Para trabalhar nesse tipo de coisa - conti­nuou Daniel -, é preciso ser criativa, ter uma boa veia artística e ser prática o suficiente para encontrar temas nas situações do dia-a-dia. Mas você sabe de tudo isso melhor do que ninguém, certo? Escrever roteiros de teatro também não é um trabalho fácil.

- Não mesmo - concordou Preston, massa­geando os olhos cansados depois de horas diante do computador.

- Mas você tem o dom, meu rapaz. Um dom raro que eu admiro muito.

- Esse dom tem sido mais como uma maldição para mim ultimamente, sr. MacGregor, mas obri­gado pelo elogio mesmo assim.

- Precisa sair um pouco, arejar a mente, beijar uma bela garota... Não que eu entenda muito do processo de escrever, embora tenha dois netos que se dedicam a isso, e muito bem por sinal. Deveria aproveitar mais o fato de estar aí, em Nova York, antes de voltar para sua cidade e se fechar em sua casa.

- Talvez eu ainda faça isso.

- Oh, McQuinn? Poderia me fazer o favor de não mencionar a Cybil que eu lhe pedi para ficar de olho nela? Ela não gosta muito de superpro­teção. Mas é que a avó dela vive preocupada com aquela menina e, você sabe como é, na idade em que estamos não é bom facilitar...

- Pode ficar tranqüilo, sr. MacGregor. Não di­rei nada a ela - Preston prometeu.

Ciente de que aquele barulho não o deixaria mesmo trabalhar, Preston saiu do apartamento. Tocou no clube de Delta, mas, dessa vez, nem mesmo a música o distraiu dos pensamentos que andavam rondando sua mente.

De onde estava, sobre o palco, não era difícil imaginar Cybil sentada no fundo do salão, com o queixo apoiado sobre a mão, os lábios curvados em um sorriso e um brilho sonhador no olhar. De fato, ela conseguira invadir um de seus bens mais preciosos: a música. E ele estava se sentindo pro­fundamente irritado com isso.

O Delta era um de seus refúgios. Havia noites em que ele viajava de carro de Connecticut a Nova York só para subir no palco com André e tocar até que toda sua tensão desaparecesse por meio da música.

Então voltava para casa ou, se já. fosse muito tarde, apenas se acomodava em um sofá no fundo do Delta e dormia até a manhã. Ninguém o abor­recia no clube ou esperava que ele desse mais do que queria dar.

Mas depois que Cybil estivera ali, seu olhar insistia em se voltar para a mesa que ela havia ocupado, enquanto ele se flagrava imaginando se ela não estaria ali, observando-o com aqueles olhos de pantera.

- Rapaz - disse André, tomando um gole de água da garrafa deixada ao lado do piano -, você está mesmo esquisito esta noite.

- Sim, acho que sim.

- Geralmente, quando um homem fica com essa expressão, é porque há alguma mulher en­volvida na história.

Preston balançou a cabeça, negando o fato mais para si mesmo do que para o amigo.

- Não, não há nenhuma mulher. Estou preo­cupado com o trabalho.

André se limitou a dar de ombros enquanto Preston levava o sax novamente aos lábios. - Se é o que você diz...

Preston chegou em casa às três horas da manhã, preparado para bater à porta do apartamento de Cybil e exigir silêncio. Por isso, foi um alívio chegar e descobrir que a festa havia terminado. Não se ouvia nenhum ruído vindo do apartamento dela.

Entrou em casa, trancou a porta e prometeu a si mesmo que aproveitaria ao máximo aquele mo­mento de paz. Depois de preparar um café forte, acomodou se novamente diante do computador, preparando-se para entrar na mente das perso­nagens que estavam arruinando suas próprias vi­das por não conseguirem seguir os impulsos de seus corações.

O sol já estava alto quando ele parou de tra­balhar, depois que o súbito surto de energia cria­tiva que se apoderara de sua mente finalmente se desvaneceu. Concluiu que aquele fora o pri­meiro trabalho mais consistente que ele consegui­ra realizar na última semana, e decidiu comemo­rar isso caindo sobre a cama com a mesma roupa com que estava vestido.

Não demorou muito para começar a sonhar. Um belo rosto com expressivos olhos verdes se apo­derou da maioria das imagens que surgiram em meio a seu estado onírico. E juntamente com ele, uma voz insistente que parecia não parar mais de falar.

Por que tudo tem de ser tão sério?, ela pergun­tou, rindo ao deslizar a mão sobre o peito dele.

Porque a vida é um negócio sério.

Mas esse é apenas um dos lados da moeda. E há muitas e muitas moedas em nossa vida. Não vai dançar comigo?

Ele já estava dançando. Estavam no Delta, e embora o clube estivesse vazio, havia música no ar. Uma música suave e sensual.

Não vou ficar de olho em você. Não conseguirei fazer isso.

Mas você já está.

Preston apoiava o queixo no alto da cabeça dela. Quando ela inclinou a cabeça para trás e mordis­cou-lhe o queixo com sensualidade, ele sentiu um arrepio pelo corpo.

Ficar de olho em mim não é tudo que você quer fazer comigo, não é?

Eu não quero você.

Ouviu-se uma risada leve como o ar.

Acha que adianta negar isso até mesmo em seus sonhos? Pode fazer o que quiser comigo em seus sonhos. Não fará diferença.

Eu não quero você, ele repetiu, já deitando-se com ela sobre o chão.

Preston acordou ofegante e suando, enrolado en­tre os lençóis. Depois de alguns segundos, quando sua mente finalmente começou a clarear, não con­teve o riso.

Cybil era mesmo uma ameaça, concluiu. De fato, a única coisa que parecera mais sensata em seu sonho erótico fora o detalhe de ele repetir que não a queria.

Depois de passar as mãos pelo rosto, olhou para o relógio ainda em seu pulso. Já passava das qua­tro horas da tarde, e foi somente então que ele se deu conta de que aquela fora a primeira vez que ele conseguiria dormir por oito horas na úl­tima semana. Que culpa tinha ele, se seu relógio biológico andava meio maluco?

Ao chegar à cozinha, notou que teria de descer e comprar algo para comer. Tomou um banho e se barbeou pela primeira vez, depois de três ou quatro dias sem fazê-lo.

Pensou em comer algo fora, para ter uma re­feição decente. Quem sabe assim teria mais ânimo de enfrentar o horror de ter de fazer compras e ver todas aquelas pessoas armazenando carrinhos e mais carrinhos de comida no mercado.

Já vestido e sentindo-se mais bem-disposto, abriu a porta.

Cybil abaixou a mão que havia acabado de le­vantar para tocar a campainha.

- Graças a Deus que você está em casa.

Preston não conseguiu deixar de se lembrar do sonho que tivera havia poucas horas.

- O que foi?

- Você precisa me fazer um favor.

- Não, não preciso não.

- Mas é uma emergência! - Ela o segurou pelos braços antes que ele pudesse se afastar. - E uma questão de vida ou morte! A minha vida e muito provavelmente a morte de Johnny, sobrinho da sra. Wolinsky. Sim, porque um de nós vai morrer se eu tiver de sair com ele! Foi por isso que eu disse a ela que já tinha um encontro esta noite.

- E você acha que eu tenho algo a ver com isso porque...

- Oh, não seja ranzinza justo agora, McQuinn. Não está vendo que sou uma mulher desespera­da?! Ouça, ela não me deu tempo de pensar, e eu sou péssima com mentiras. Quero dizer, não minto com muita freqüência, por isso não consigo mentir direito. Ela ficou insistindo em perguntar com quem eu ia sair, e eu não consegui pensar em ninguém mais a não ser você.

Cybil continuou de pé bem diante dele, impe­dindo-o de sair. Preston respirou fundo, tentando se manter paciente.

- Vamos deixar uma coisa bem clara, está bem? - disse a ela. - Isso não é problema meu.

- Não, eu sei que é meu. E com certeza teria inventado uma coisa melhor se ela não houvesse me pegado de surpresa, enquanto eu estava tra­balhando e pensando em outra coisa. - Deses­perada, Cybil passou a mão pelos cabelos.

- Ela vai ficar me vigiando, entende? Vai querer se cer­tificar de que eu vou mesmo sair com alguém.

Dizendo isso, começou a andar de um lado para outro massageando as têmporas, como que para estimular os pensamentos. Preston aproveitou o momento de distração de Cybil e começou a seguir em frente pelo corredor.

- Ouça, tudo que terá de fazer será me acom­panhar para fora do prédio fingindo ser alguém que está interessado em mim - falou ela, atrás de Preston.

- Poderemos tomar um café, ou algo do gênero, e passar algumas horas fora an­tes de voltarmos. Sim, porque ela também vai saber se não voltarmos juntos. Aquela mulher sabe de tudo! Prometo que lhe pagarei cem dó­lares por isso.

Ouvir aquilo o fez parar de repente.

- Quer me pagar para que eu saia com você?

- Não é bem assim, mas é quase - admitiu Cybil. - Sei que o dinheiro lhe será útil, e acho justo compensá-lo pelo tempo que você vai gastar. Cem dólares, McQuinn, por algumas horas. Ah, e eu pagarei o café.

Preston se encostou na parede e ficou obser­vando-a. A idéia parecia tão absurda que chegava a ser cômica.

- Nem um pedaço de torta? - perguntou a ela. A risada de Cybil foi de puro alívio. - Torta? Você quer torta? Pois terá sua torta.

- Onde está ele? - indagou Preston, olhando para o bolso dela.

- Ele? Ah... o dinheiro? Espere um pouco aqui.

Cybil entrou no apartamento e Preston pôde ouvi-la andando de um lado para outro, abrindo e fechando gavetas e armários.

- Deixe-me apenas me arrumar um pouco - disse ela, lá de dentro.

- O cronômetro está correndo, garota.

- Tudo bem, tudo bem. Onde diabos está mi­nha... A-ha! Dois minutos, só dois minutos. Não quero que ela fique dizendo por aí que saio com rapazes sem nem mesmo passar batom.

Preston teve de admitir: quando ela dizia dois minutos realmente eram dois minutos. Quando voltou, dois minutos depois, estava usando um par de sandálias de salto alto, batom cor-de-rosa e um par de brincos de argola. Segundo ele pôde notar, quando ela lhe entregou o dinheiro, os brin­cos continuavam não combinando. Devia ser uma questão de preferência mesmo, concluiu ele. Uma "inusitada preferência pelo absurdo".

- Ficarei muito agradecida por isso - disse Cy­bil.

- Sei que a situação deve estar parecendo ri­dícula, mas é que não tenho coragem de magoá-la.

- Se os sentimentos da mulher valem cem dó­lares para você, tudo bem. - Preston deu de om­bros.

- E melhor para mim - acrescentou, guar­dando o dinheiro no bolso de trás da calça. - Agora vamos. Estou faminto.

- Oh, quer jantar? Também posso lhe pagar um jantar. Há um restaurante ótimo no final da rua, onde eles servem massas deliciosas. Tudo bem, vamos começar o teatrinho agora - avisou ela, enquanto se encaminhavam para a saída do prédio.

- Finja que não sabe que está sendo ob­servado por ela. Aja naturalmente e segure minha mão, está bem?

- Por quê?

- Ah, pelo amor de Deus, McQuinn! - res­pondeu ela por entre os dentes, entrelaçando os dedos com firmeza entre os dele e sorrindo com ar sonhador. - Estamos saindo para um encontro, lembra-se? Nosso primeiro encontro. Faça um es­forço e finja que está se divertindo.

- Mas você só me deu cem dólares.

A ironia fez Cybil dar uma gargalhada.

- Puxa, você é mesmo "durão", 3B. Vamos sa­borear uma refeição quente e ver se isso melhora seu humor.

De fato, melhorou e muito. Seria preciso ser um sujeito muito mais mal-humorado do que ele para conseguir resistir ao apelo de uma enorme travessa cheia de espaguete com almôndegas, alia­da à esfuziante companhia de Cybil.

- Maravilhoso, não é mesmo?! - falou ela, gos­tando de vê-lo saborear o prato com tanta empolgação.

Provavelmente o coitado não tinha uma refeição decente havia semanas, pensou ela, lembrando-se do apartamento vazio. Talvez ele estivesse mesmo com dificuldades financeiras.

- Sempre como demais quando venho aqui - confessou. - Eles servem uma porção suficiente para meia dúzia de adolescentes famintos, mas acho que é isso que dá um certo charme ao lugar. Toda essa fartura. Depois, termino sempre levan­do para casa. o que sobrou e comendo demais tam­bém no dia seguinte. Mas dessa vez poderá me salvar levando um pouco para sua casa - acres­centou ela, com um sorriso.

- Negócio fechado - respondeu Preston, to­cando a taça de Chianti na dela.

- Sabe de uma coisa? Aposto que há dezenas de clubes noturnos na cidade que se mostrariam mais do que interessados em contratá-lo.

- Hum?

- Para tocar sax.

Cybil sorriu novamente para ele, que não re­sistiu ao impulso de observar aqueles lábios pol­pudos e convidativos.

- Você é muito bom no que faz - continuou ela. - Aposto que conseguirá arranjar um bom emprego logo, logo.

Divertindo-se com o comentário, Preston le­vantou a taça novamente, sugerindo outro brinde. Então a srta. Cybil Campbell pensava que ele era um músico desempregado? Bem, melhor assim.

- As oportunidades vêm e vão - foi tudo que Preston falou.

- Você toca em festas particulares? - Subita­mente animada, ela se inclinou sobre a mesa. - Conheço uma porção de pessoas, e há sempre al­guém oferecendo uma festa.

- Imagino que isso seja mesmo muito comum no seu círculo social - ironizou Preston.

- Posso divulgar seu nome, se quiser. Impor­ta-se de viajar?

- E para onde eu iria?

- Alguns dos meus parentes são donos de hotéis - explicou Cybil. - Atlantic City não fica muito longe daqui. Acho que você não tem carro, certo?

Preston conteve a vontade de rir, lembrando-se de seu Porsche "novinho em folha" guardado em uma garagem da cidade.

- Não aqui comigo - foi sua resposta.

Cybil sorriu, mordiscando um pedaço de pão.

- Bem, de qualquer maneira, não é difícil se deslocar de Nova York para Atlantic City.

Por mais divertido que aquilo estivesse sendo, Preston achou melhor amenizar um pouco as coisas.

- Cybil, não preciso de alguém para adminis­trar minha vida.

Ela fez uma careta.

- Eu sei. Esse é um dos maus hábitos dos quais não consigo me livrar. - Sem parecer ofendida, ela partiu o pedaço de pão em dois e ofereceu um a ele.

- Eu me envolvo demais com as coisas - admitiu.

- Depois fico aborrecida quando as ou­tras pessoas se metem na minha vida. Como a sra. Wolinsky, atual presidente do partido "Vamos Encontrar um Pretendente para Cybil". Isso me deixa furiosa.

- Porque você não quer um pretendente - afir­mou Preston.

- Oh, sei que encontrarei um no devido tempo. Vir de uma família grande meio que nos predis­põe... A mim, pelo menos... A querer ter uma tam­bém. Mas ainda há muito tempo para isso. Gosto de morar na cidade grande e de fazer aquilo que quero quando eu quero. Detestaria ter de me sub­meter a horários rígidos, o que, definitivamente, não combina com meu trabalho de criação. Não que o meu trabalho não exija um certo tipo de disciplina, mas sou eu quem a faz, do meu jeito. Como acontece com sua música, imagino eu.

- Creio que sim - anuiu Preston.

O trabalho dele raramente se tornava um pra­zer, como o dela parecia ser. Mas sua música, sem dúvida, era feita por prazer.

- Ei, McQuinn - começou ela, com outro de seus sorrisos marotos -, quantas vezes você real­mente já se soltou e respondeu a uma pergunta com mais do que três frases curtas em uma mesma conversa?

Preston comeu o último pedaço de almôndega de seu prato e olhou para ela.

- Gosto do mês de novembro. Geralmente, falo muito mais em novembro. É o tipo de mês de transitoriedade que faz com que eu me sinta mais filosófico.

- Três de uma única tacada - brincou ela. - E todas inteligentes. - Sorriu para ele.

- Você tem um senso de humor escondido em algum lu­gar, não tem? - Antes que ele pudesse responder, ela se recostou na cadeira com um suspiro e per­guntou:

- Quer sobremesa?

- Claro que sim - respondeu Preston, como se aquela fosse a resposta mais óbvia.

Cybil sorriu.

- Tudo bem, mas não peça o tiramisu, porque serei forçada a lhe implorar um pedaço, depois dois e então terminarei comendo metade dele e provavelmente entrarei em coma.

Sem desviar os olhos dos dela, Preston fez um sinal para o garçom, com a autoridade casual de um homem acostumado a dar ordens. Aquilo fez Cybil franzir o cenho.

- Tiramisu - pediu ele, sem hesitar. - E dois garfos - acrescentou, fazendo Cybil rir alto. - Talvez entrando em coma, você fale menos.

- Acho que nem assim - salientou ela, ainda rindo. - Falo até dormindo, sabia? Minha irmã costumava ameaçar pôr um travesseiro na minha cabeça.

- Acho que eu iria gostar de sua irmã.

- Adria é maravilhosa. Provavelmente o seu tipo também. Contida, sofisticada e inteligente. Ela dirige uma galeria de arte em Portsmith.

Preston notou que estavam quase terminando de tomar a garrafa de vinho. O Chianti era mesmo muito bom, e provavelmente estava sendo a causa de ele se sentir tão relaxado. De fato, não se sentia assim havia semanas. Ou meses. Talvez anos.

- Então vai me apresentar a ela?

- Acho que ela iria gostar de você - considerou Cybil, observando-o por sobre a borda da taça e apreciando a sensação de leveza que a bebida lhe dera.

- Você é bonito de uma maneira meio... Como posso dizer... Meio selvagem, acho. Além disso, toca um instrumento musical, o que apela­ria para o lado de Adria que é sensível às artes.

E é auto-suficiente demais para tratá-la como al­guém da realeza. Muitos homens fazem isso.

- E mesmo? - Preston se surpreendeu.

- Ela é tão linda que eles não conseguem deixar de agir assim. Adria detesta esse tipo de atitude, por isso acaba sempre tendo de dispensá-los. Pro­vavelmente terminaria arrasando seu coração - completou Cybil, fazendo um gesto com o copo.

- Mas a experiência seria boa para você.

- Não tenho coração - declarou ele, quando o garçom chegou com a sobremesa. - Pensei que já houvesse deduzido isso.

- Claro que tem. - Com um suspiro de ren­dição, Cybil pegou o garfo e provou a primeira porção do doce, com um gemido de prazer. - Só que você o mantém guardado dentro de uma ar­madura, para que ninguém possa feri-lo novamen­te - finalizou ela. - Deus, não é maravilhoso? Não deixe que eu coma mais do que esse outro pedaço, está bem?

Preston continuou a observá-la, aturdido com a precisão com que Cybil tão casualmente o des­crevera, sendo que nem mesmo aqueles que di­ziam amá-lo haviam chegado tão perto.

- Por que disse isso?

- Isso o quê? Eu não lhe disse para não me deixar comer mais disso? Está querendo me matar?

- Esqueça. - Decidindo deixar o assunto de lado, Preston afastou o prato do alcance dela. - O restante é meu - disse e começou a comer.

Felizmente, teve de ameaçar dar uma garfada na mão de Cybil apenas uma vez.

- Nem sei como agradecer por você haver me livrado de ter de sair com Johnny - disse Cybil, quando os dois voltavam para casa.

- Por que simplesmente não diz a toda essa gente que não está interessada em ter um namo­rado? - perguntou Preston, intrigado.

Ela suspirou.

- O problema é que não tenho coragem de ma­goar ninguém, e acabaria fazendo isso ao dizer a verdade. Eles só querem o meu bem.

- Mas estão controlando sua vida, Cybil, mes­mo que com a melhor das intenções.

- Oh, eu não sei o que fazer! - Ela exalou outro suspiro. - Veja meu avô, por exemplo. Bem, na verdade ele não é meu avô no sentido estrito da palavra. Ele é sogro de Shelby, irmã de meu pai. Pelo lado da minha mãe, ela é prima das esposas de dois netos dele. É meio complicado, mas tentarei resumir ao máximo.

- Será que terei mesmo o privilégio de pre­senciar esse milagre? - Preston arqueou uma sobrancelha.

- Pare de me provocar - ralhou Cybil, sem con­ter o riso. - Bem, a ligação familiar entre Daniel e Anna MacGregor e meus pais é mesmo complicada, então para que me esforçar em simplificar? Minha tia Shelby se casou com o filho deles, Alan Mac­Gregor, você já deve ter ouvido falar nele, da época em que morava na Casa Branca.

- O nome não me parece estranho.

- E minha mãe, que antes tinha o sobrenome Grandeau, é prima dos irmãos Justin e Diana Bla­de, que se casaram, respectivamente, com outros dois netos de Daniel e Anna MacGregor, Serena e Caine MacGregor. Por isso, Daniel e Anna são considerados como meus avós, entendeu?

- Acho que sim, mas já esqueci o motivo que nos levou a falar sobre isso.

- Oh, eu também. - Cybil começou a rir, tendo de se apoiar nele para não perder o equilíbrio. - Acho que tomei vinho demais. Deixe-me ver... Sim, já lembrei. Casamenteiros. Estávamos falando de pessoas casamenteiras,-o que meu avô, que por acaso é Daniel MacGregor, mostra ser em todos os sentidos. Quando o assunto é arranjar casa­mentos, é ele quem dita as regras. O homem é uma verdadeira raposa, McQuinn. Você nem ima­gina... - Cybil parou um instante e começou a contar nos dedos. - Hum... Até agora, acho que sete dos meus primos se casaram com pretenden­tes arranjados por ele.

- O que você quer dizer com "arranjados"?

- Não me pergunte como, mas ele meio que escolhe a pessoa certa para os netos e depois dá um jeito de uni-los de alguma maneira, deixando a natureza seguir seu curso. Então, antes que você se dê conta, já está a caminho do altar. No último telefonema, ele me contou que meu primo, lan, e a esposa dele, que se casaram no último outono, já estão esperando o primeiro filho. Meu avô está nas nuvens.

- E alguém já mandou ele parar de se meter na vida dos netos?

- Ah, constantemente - respondeu Cybil, lem­brando-se das reprimendas da avó.

- Mas ele não dá atenção. Tenho a impressão de que a pró­xima "vítima" será Adria ou Mel, enquanto ele ainda estiver disposto a dar algum tempo de paz a meu irmão, Matthew.

- E quanto a você?

- Ah, sou esperta demais para ele. Conheço todos seus truques e não pretendo me apaixonar tão cedo. E você, já esteve lá?

- Lá onde?

- Na terra dos apaixonados, McQuinn. Não seja tão lento.

- Ora, não é um lugar, é uma situação. E não, acho que realmente não estive lá.

- Mas acabará indo - falou Cybil, com ar so­nhador. - Eventualmente... - Ela ia dizer mais alguma coisa, mas parou de repente.

- Essa não! Aquele é o carro de Johnny. Pelo visto, ele acabou vindo mesmo de Nova Jersey. Droga, droga, droga! Muito bem, lá vamos nós novamente com o plano. - Dizendo isso, virou-se para Preston, mas teve de se apoiar nele ao sentir uma onda de tontura. - Eu não deveria ter tomado aquela última taça de vinho, mas acho que ainda sou dona do meu destino.

- Pode apostar que sim, menina.

Cybil fez uma careta de desagrado.

- O suficiente para saber que o fato de você me chamar de "menina" demonstra que está sendo ar­rogante e querendo parecer superior a mim, mas isso não vem ao caso. Teremos apenas de andar mais um pouco de mãos dadas, até passarmos pela janela da casa dela. Com muita naturalidade, está bem?

- Não vai ser fácil, mas verei o que posso fazer.

- Adoro essa sua veia sarcástica. Muito bem, estamos prontos e preparados. Agora vamos fi­car só mais um pouco aqui porque ela está olhando - acrescentou Cybil, arriscando um -olhar na direção da janela da casa da sra. Wo­linsky. - A qualquer momento a cortina vai se fechar. Tenho certeza.

O fato de a situação não oferecer nenhum risco, e de ele estar começando a se divertir com tudo aquilo, manteve Preston no lugar. Segundos de­pois, olhou disfarçadamente para trás, tentando notar se a mulher continuava à janela.

- Parece que ela não vai desistir assim tão fácil. O que faremos agora?

Cybil moveu os olhos com rapidez, como que tentando pensar em algo.

- Terá de me beijar.

- O quê?!

- E terá de ser convincente - salientou ela. - Se formos convincentes, ela se convencerá de que não estou realmente interessada em Johnny. Prometo que lhe pagarei mais cinqüenta dólares por isso.

Preston teve de se esforçar para continuar sério.

- Então, vai me pagar cinqüenta dólares para que eu a beije?

- Como um bônus - justificou Cybil. - Farei qualquer coisa para mandar Johnny de volta para Nova Jersey. Aja como se estivesse sobre o palco, representando. Isso não precisa significar real­mente alguma coisa. Ela ainda está olhando? - perguntou, mudando de posição.

 

- Sim - respondeu Preston, mesmo sem olhar para a janela da sra. Wolinsky.

- Ótimo, então vamos lá. Aja com romantismo, está bem? Posicione os braços assim, em torno de mim, incline-se um pouco e...

- Sei como beijar uma mulher, Cybil.

- Claro que sabe. Mas um pouco de ensaio não fará nenhum mal...

Preston se deu conta de que a única maneira de fazê-la parar de falar seria agindo. Em vez de circundar os braços em torno dela, puxou-a de uma vez para si. A última coisa que viu antes de seus lábios esmagarem os dela, foram os expres­sivos olhos verdes se arregalarem de espanto.

Ele estava certo. Completamente certo, pensou Cybil. De fato, ele realmente sabia como beijar uma mulher. Teve de se apoiar nos ombros dele para não cair, pois seus pés mal estavam tocando o chão. Então, para seu próprio espanto, deixou escapar um gemido.

Sentia a cabeça zonza, como se, de repente, os dois estivessem em outro lugar, longe das pessoas e do mundo. Seu coração acelerado parecia estar batendo alto a ponto de ser ouvido, e seu corpo se tornara trêmulo, vulnerável ao apelo sensual da proximidade máscula daquele que estava se tornando uma pessoa cada vez mais presente em seus pensamentos mais íntimos.

Era quase como no sonho, pensou Preston, só que melhor. Muito melhor. O sabor dos lábios de Cybil era adocicado e único, incapaz de ser res­gatado apenas pela imaginação. Depois de sabo­reá-los com voracidade, afastou-a um pouco, mas somente para verificar se o ar de desejo estava tão evidente no semblante dela quanto deveria estar no dele.

Cybil ficou olhando para ele, ofegante, ainda com os braços circundando seu pescoço.

- O próximo é meu - disse ele.

Então Cybil se entregou mais uma vez àquele turbilhão de sensações deliciosas e provocantes. Não protestou quando ele insinuou a língua por entre seus lábios e começou a explorar os recantos mais secretos de sua boca.

Quando ele se afastou pela segunda vez, mo­veu-se tão devagar que foi quase como se não qui­sesse fazê-lo. Preston queria poder tê-la ali mes­mo, em meio à penumbra da noite e sob os olhares surpresos, e provavelmente escandalizados, dos transeuntes. Pouco lhe importava que olhassem. Queria saciar aquela sua sede pela energia sensual de Cybil. De fato, só se conteve por saber que uma atitude mais ousada acabaria assustando-a. Ele pró­prio estava assustado com sua reação. Era como se sempre houvesse guardado um vulcão dentro de si que, de repente, resolvera entrar em erupção.

- Acho que isso será suficiente - disse a ela.

- Suficiente? - repetiu Cybil, como se hou­vesse acabado de chegar de outro planeta.

- Suficiente para convencer a sra. Wolinsky.

- Sra. Wolinsky? - Ela balançou a cabeça, ten­tando ordenar os pensamentos. - Oh, sim, claro. Puxa, você é mesmo muito bom nisso, McQuinn.

Um sorriso relutante curvou os lábios dele. A sinceridade de Cybil era realmente encantadora, pensou Preston. E perigosamente irresistível.

- Você também é muito boa nisso, menina - respondeu ele, conduzindo-a em direção à entrada do prédio.

Cybil começou a cantar enquanto tra­balhava, fazendo um dueto com Aretha Franklin. Atrás dela, a janela aberta re­velava um belo dia ensolarado, vez por outra as­saltado pela leve brisa fria de abril e permeado pelo inevitável ruído das ruas de Nova York.

No entanto, o sol do lado de fora não estava menos radiante do que o humor de Cybil. Viran­do-se para o espelho preso à parede, a seu lado esquerdo, tentou imitar uma expressão de espanto que pudesse ajudá-la na caracterização de sua per­sonagem. Porém, tudo que conseguiu fazer foi sor­rir. Sorrir com plena satisfação.

Já havia sido beijada antes, claro. E também fora envolvida pelos braços de um homem. En­tretanto, todas as experiências que tivera se com­paravam a um mero "incendiozinho" local, se com­paradas à explosão vulcânica que fora se ver nos braços de Preston.

Na noite anterior permanecera com aquela de­liciosa sensação de zonzeira durante horas. Ado­rara cada um dos momentos daquela espécie de arrebatamento de sensualidade feminina. Poderia haver algo mais incrível do que sentir-se vulne­rável e forte, boba e sábia, confusa e esclarecida, tudo ao mesmo tempo?

E tudo que precisava fazer para sentir aquilo era fechar os olhos e deixar sua mente devanear, livre de qualquer censura. Imaginou o que ele estaria pensando, o que estaria sentindo. Nin­guém conseguiria ficar indiferente a um experiên­cia daquela... magnitude. Um homem não poderia beijar uma mulher daquela maneira e não sofrer... digamos... algum efeito colateral.

Sofrer até que era uma palavra adequada, con­cluiu ela, pensando nas conseqüências em seu pró­prio corpo. Riu, suspirou alto, então voltou a se concentrar no trabalho, cantando com Aretha Franklin as maravilhas de se sentir like a natural woman. Sim, estava mesmo se sentindo como mu­lher natural. Natural até demais. O beijo de McQuinn deixara um rastro de chama em seu corpo e, embora aquilo fosse delicioso, era também assustador ao mesmo tempo.

- Pelo amor de Deus, Cyb, está muito frio aqui!

Cybil levantou a vista.

- Oi, Jody. Olá, meu amor! - acrescentou, olhando para Charlie.

O bebê olhou para ela com um sorriso sonolento, enquanto Jody se aproximava da janela, manten­do-o apoiado sobre seu quadril.

- Está sentada diante de uma janela aberta, e a temperatura não deve estar mais do que quin­ze graus lá fora. - Jody fechou o vidro, com um arrepio de frio.

 

- Eu estava sentindo um pouco de calor - declarou Cybil, deixando o lápis de lado para aper­tar a bochecha rechonchuda de Charlie.

- É mi­lagroso, não, que os homens se transformem dessa maneira? Nascem como bebês lindinhos assim e depois... Uau! Transformam-se naquilo tudo.

Jody franziu o cenho, olhando a amiga com ar de curiosidade.

- Está com uma expressão meio engraçada - disse ela. - Sente alguma dor? - Pousou a mão sobre a testa de Cybil, em uma atitude maternal.

- Não está com febre. Agora mostre a língua.

Cybil obedeceu, ficando vesga ao mesmo tempo só para fazer Charlie cair na gargalhada.

- Não estou doente. Estou é em estado de graça.

- Hum... - Jody apertou os lábios, não parecendo muito convencida. - Vou pôr Charlie em sua cama para tirar uma soneca. Ele está até zonzo de sono. Depois prepararei um café para nós duas e quero que me conte o que está acontecendo.

- Claro.

Voltando a adquirir o mesmo ar sonhador, Cybil pegou o lápis novamente e desenhou pequenos corações sobre o papel. Então se empolgou e co­meçou a desenhar outros maiores, esboçando o rosto de McQuinn dentro de um deles.

Sim, ele tinha traços fortes e marcantes, mas que se amenizavam quando sorria. Ela adorava fazê-lo sorrir. Aliás, fazer as pessoas sorrirem era um de seus talentos.

Ficaria mais tranqüila quando conseguisse ar­ranjar um emprego para ele. Depois providencia­ria um sofá para aquela sala vazia, mas isso não seria difícil com seus contatos. Tinha muitos ami­gos que poderiam ajudá-la a encontrar móveis prá­ticos e por um bom preço. Queria ver McQuinn instalado com mais conforto, só isso. Claro que não havia nenhum interesse de sua parte, afinal, faria isso por qualquer pessoa. Ainda mais por um vizinho maravilhoso que beijava como um deus saído diretamente do sonho de toda mulher.

Satisfeita com seus planos, cruzou as pernas sob si e voltou a se concentrar no trabalho.

 

Depois de deixar Charlie no quarto, dormindo feito um anjinho, Jody desceu para o andar de baixo e abaixou o volume do aparelho de som. Então, sentindo-se como se estivesse em sua pró­pria casa, foi até a cozinha e preparou o café. Subiu a escada pouco depois, carregando uma ban­deja com duas xícaras de café e alguns biscoitos. Aquele pequeno ritual matinal era um de seus momentos preferidos do dia.

Considerava Cybil como uma irmã e por isso fazia de tudo para vê-la feliz. De fato, não se dava tão bem nem com as próprias irmãs, que só sabiam viver reclamando da vida e dos maridos.

Deixando a bandeja sobre a mesa, entregou uma xícara de café a Cybil.

- Obrigada, Jody.

- Fez uma ótima tira esta manhã. Não acredito que Emily esteja disfarçada com um casaco e um chapéu, seguindo o sr. Misterioso por todo o dis­trito de SoHo. De onde ela tirou essa idéia?

- Você sabe que ela é uma criatura impulsiva e dramática. - Cybil provou um biscoito. Era co­mum as duas se referirem a Emily e aos outros personagens como se fossem pessoas de verdade.

- E abelhuda também. Ela simplesmente preci­sava saber.

- E quanto a você? Já descobriu alguma coisa sobre nosso sr. Misterioso?

- Sim - respondeu Cybil, com um suspiro. - O nome dele é McQuinn.

- Também ouvi dizer isso. - Instantaneamen­te alerta, Jody apontou o dedo para a amiga.

- Ei, você suspirou!

- Não, só respirei mais fundo.

- Não, você suspirou. E por qual motivo?

- Bem, na verdade... - Cybil estava morrendo de vontade de falar sobre aquilo.

- Nós... acaba­mos saindo ontem à noite.

- Vocês saíram? Como um casal? - Jody puxou a cadeira mais para perto da amiga no mesmo instante. - Onde? Como? Quando? Detalhes, Cyb. Quero detalhes.

- Está bem, então. - Cybil virou mais a ca­deira, até ficarem uma de frente para a outra. - Você sabe que a sra. Wolinsky está sempre que­rendo que eu saia com o sobrinho dela, não é?

- Ah, de novo?! - Jody revirou os olhos. - Será possível que ela não vê que vocês não têm nada a ver um com o outro?

O imenso carinho que Cybil sentia pela amiga foi o que a impediu de dizer que aquilo também servia para ela e Frank.

 

- Bem, é que a sra. Wolinsky adora o sobrinho. De qualquer modo, ela arranjou outro encontro entre nós ontem à noite, só que eu não estava com a mínima vontade de ir. Mas você terá de jurar que não vai dizer isso a ninguém.

- Exceto Chuck.

- Tudo bem. Maridos estão excluídos do voto de silêncio nesse caso. Bem, o fato é que eu disse a ela que já tinha um encontro... com McQuinn.

- Você tinha um encontro com ele?

- Não, eu só disse isso porque fiquei deses­perada. E você sabe como começo a gaguejar quando minto.

- Deveria praticar mais. - Jody comeu outro biscoito.

- Talvez. Mas assim que acabei de dizer isso, percebi que ela iria ficar olhando pela janela para se certificar de que eu ia mesmo sair com ele, por isso tive de apelar e fazer uma espécie de acordo com McQuinn. Dei cem dólares a ele e lhe paguei um jantar.

- Você pagou a ele?! - Jody arregalou os olhos, mas estreitou-os em seguida, com ar especulativo. - Mas isso é brilhante. Se eu houvesse tido essa idéia na época da faculdade, quando não estava namorando ninguém e nem tinha com quem sair, a história teria sido outra, minha amiga. Como se decidiu pela quantia de cem dólares?

- Achei que parecia justo. Ele não está traba­lhando regularmente, e achei que ficaria agrade­cido pelo dinheiro e pela refeição. Até que nos divertimos - acrescentou, com um sorriso. – Foi realmente muito bom. Só espaguete e boa conver­sa. Bem, na verdade, o encontro tendeu mais para o monólogo, porque McQuinn não é muito de falar.

- McQuinn - Jody repetiu o nome devagar. - Ainda soa misterioso. Não sabe o primeiro nome dele?

- Ele não o disse em nenhum momento e nem me ocorreu perguntar. De qualquer maneira, é melhor assim. Acho que fui meio precipitada, Jody. Ele estava parecendo relaxado, quase ami­gável, então vi o carro de Johnny e entrei em pânico. Imaginei que a sra. Wolinsky não iria me deixar em paz se eu não demonstrasse com clareza que estava interessada em outra pessoa. Então fiz outro acordo com McQuinn e ofereci a ele cin­qüenta dólares por um beijo.

Jody apertou os lábios, antes de tomar outro gole de café.

- Deveria ter deixado claro que esse valor es­tava incluído nos cem dólares - disse ela.

- Não houve tempo - justificou Cybil. - Já havíamos definido o acordo e não havia mais tem­po para renegociar. A sra. Wolinsky estava nos espiando através da janela. Então ele me beijou bem ali, na calçada do prédio.

- Uau! - Jody comeu outro biscoito. - E qual movimento de impacto ele usou?

- Ele me puxou de uma vez e colou meu corpo ao dele.

- Minha nossa! A puxada súbita. Oh, adoro esse movimento.

- Então fiquei lá, em meio aos braços dele e mal conseguindo me equilibrar na ponta dos pés, porque ele é alto.

- Sim, ele é bem alto - anuiu Jody, ainda mastigando o biscoito. - E atlético também.

- Realmente atlético, minha amiga. Quero di­zer, seus músculos parecem rocha.

- Oh, Deus. - Jody lambeu os dedos, sem des­viar os olhos da amiga. - Então você estava lá, na ponta dos pés. E depois?

- Bem, ele... se inclinou.

- Ah, meu Deus... Uma puxada súbita com inclinação! - Em sua empolgação, Jody quase derrubou o outro biscoito que havia acabado de pegar. - Um movimento clássico. Quase nenhum homem utiliza isso hoje em dia, minha cara. Chuck fez isso em nosso sexto encontro, e foi assim que terminamos no meu apartamento, experimen­tando a comida de um fast food chinês, na cama.

- Pois McQuinn agiu como um perito no as­sunto. Então, quando eu estava sentindo a cabeça girar, ele se afastou de repente e simplesmente olhou para mim.

- Homens - disse Jody, com ar de censura.

- E fez tudo novamente! - festejou Cybil.

- Um duplo?! Não acredito! - Jody segurou a mão da amiga, quase dando um-pulo de alegria. - Você recebeu um duplo, Cyb! Há mulheres que passam a vida inteira sem sequer saber o que é isso! Sonham com isso, claro, mas nunca passam pela emoção de experimentar a puxada súbita com inclinação seguida de beijo, olhar in­tenso e beijo.

 

- Foi minha primeira vez - confessou Cybil. - E foi... maravilhoso!

- Tudo bem, tudo tem. Agora apenas a parte do beijo, certo? Apenas a parte dos lábios e das línguas. Que tal foi essa parte?

- Muito ardente.

- Ah, meu Deus! Acho que terei de abrir a janela de novo. Estou começando a suar.

Dizendo isso, levantou-se com um movimento súbito e abriu a janela, respirando fundo.

- Então foi ardente. Muito ardente. Continue.

- Foi como ser... Sei lá, devorada. Sabe quando seu corpo inteiro fica trêmulo, um calor gostoso se espalha por seu corpo e... - Cybil moveu as mãos, tentando encontrar as palavras certas para se expressar. - Não sei como descrever.

- Tem de se esforçar. - Aflita, Jody segurou-a pelos ombros. - Tente isso: -na escala de um a dez, que nota você daria?

Cybil fechou os olhos.

- Não há escala...

- Sempre há uma escala - Jody a interrom­peu. - Não é possível...

- Não, Jody, o que eu senti não se enquadra em nenhuma escala.

Jody deu um passo atrás.

- Deus meu... Preciso me sentar. - Jody sen­tou-se, passando a mão pela testa. - Você experi­mentou um beijo que não se enquadra em nenhuma escala. Acredito em você, Cyb. Mas muita gente não acreditaria. Muitas pessoas poderiam até zombar dessa afirmação, mas eu acredito no que disse.

 

Cybil sorriu.

- Eu sabia que poderia contar com você.

- Sabe o que isso significa, não sabe? Significa que McQuinn arruinou sua vida. Agora, nem mes­mo um beijo nota dez vai satisfazê-la. Você vai sempre procurar um que não se enquadre em ne­nhuma escala.

- Isso já me ocorreu. - Pensativa, Cybil pegou lápis e começou a tamborilá-lo sobre a mesa.

- Mas creio que será possível levar uma vida tranqüila e feliz, alcançando com certa regulari­dade uma escala entre sete e dez, mesmo depois dessa experiência. O homem pode até ir à lua, Jody, viajar pelo espaço e se ver em outro mundo por algum tempo, mas tem de voltar para a terra e continuar vivendo.

- Puxa, isso foi sábio. - Jody tirou um lencinho de papel do bolso da calça. - Quase heróico.

- Obrigada - Cybil agradeceu e, com um de seus sorrisos marotos, acrescentou:

- Mas, en­quanto isso, não fará nenhum mal bater à porta em frente de vez em quando, certo?

 

Cybil estava descendo para o andar de baixo, após uma manhã de intenso trabalho. Ao ouvir o familiar e agradável som do sax, pensou em bater à porta de seu vizinho para lhe oferecer um café, mas o som do interfone lhe interrompeu os pensamentos.

- Sim?

- Estou procurando o sr. McQuinn, do 3A - disse uma voz feminina.

- Não, ele está no apartamento 3B.

 

- Oh, droga, então por que ele não está respondendo?,

- Provavelmente porque não ouviu o interfone, já que está tocando sax - explicou Cybil.

- Então poderia me anunciar, querida? Sou a empresária dele e já estou cansada de ficar aqui tocando esse interfone.

- Empresária dele? - Cybil repetiu.

Bem, se McQuinn tinha uma empresária, queria conhecê-la. Já havia pensado em indicá-lo a várias pessoas e talvez essa fosse sua chance de ajudá-lo de alguma maneira.

- Claro, pode subir - dizendo isso, acionou o botão que destravava o portão de entrada.

Em seguida, abriu a porta de seu apartamento e ficou esperando do lado de fora. A mulher que saiu do elevador parecia muito profissional e bem­sucedida, segundo Cybil notou- com certo espanto. O tailleur vermelho lhe atribuía um ar de ele­gância e sofisticação, assim como a pasta execu­tiva de modelo feminino.

Cybil franziu o cenho. Então por que o clien­te dela parecia estar passando por dificulda­des financeiras?

- Você é a moradora do 3A?

- Sim, meu nome é Cybil.

- Sou Amanda Dresher, mas pode me chamar de Mandy. Obrigada por haver aberto o portão para mim, Cybil. Nosso "garotão" aqui não está atendendo ao telefone e, pelo visto, esqueceu-se de que tínhamos uma reunião à uma hora, no Restaurante Four Seasons.

- O Four Seasons? - Cybil se surpreendeu. Aquele era um dos restaurantes mais caros da região. - No parque?

- Esse mesmo. - Com um sorriso, Mandy apertou a campainha do apartamento 3B. - Pres­ton é muito talentoso, mas temperamental demais de vez em quando.

- Preston? - Cybil levou um instante para entender sobre quem ela estava falando. - Ah, Preston McQuinn. - Com um suspiro de indig­nação, acrescentou: - O autor de Rede de Almas.

- Isso mesmo - confirmou Mandy. - Vamos lá, Preston, abra logo esta porta... - falou ela, tam­borilando os dedos sobre a madeira. - Quando ele decidiu passar alguns meses na cidade, pensei que conseguiria ter mais acesso a ele. Mas, pelo visto, eu me enganei mais uma vez. Ora, até que enfim.

Ambas ouviram o ruído das trancas sendo aber­tas com gestos súbitos e, aparentemente, mal-hu­morados. Então ele abriu a porta.

- O que diabos... Mandy?

- Você perdeu o almoço - ironizou ela. - E não atendeu ao telefone.

- Eu me esqueci do almoço e o telefone não tocou.

- Você carregou a bateria?

- Provavelmente não. - Preston continuou no mesmo lugar, olhando para Cybil, logo atrás de Mandy.

- Entre - disse à empresária. - Só me dê um minuto, sim?

- Eu já lhe dei uma hora - ironizou Mandy, falando por sobre o ombro enquanto passava pela porta. - Obrigada mais uma vez, querida - ela agradeceu a Cybil.

 

- Não há de quê. - Cybil forçou um sorriso. Então fuzilou Preston com o olhar. - Canalha - disse ela por entre os dentes, antes de entrar em seu apartamento e bater a porta.

- Não há nenhum lugar para se sentar aqui? - protestou Mandy, atrás dele.

- Não. Quer dizer, sim. No andar de cima - resmungou em resposta, tentando ignorar a onda de culpa que o atingiu. - Não costumo ficar muito neste andar.

- Estou vendo. Quem é a garota que mora em frente?

- O nome dela é Cybil Campbell.

- Achei que ela me parecia familiar. É a cria­dora das tiras cômicas Amigos e Vizinhos, não é? Conheço o empresário dela. O homem é louco por ela. Vive dizendo que ela é sua única cliente à prova de ego e livre de neuroses. Nunca se queixa, não atrasa os prazos e está sempre lhe dando lucro com a venda de seus personagens em agen­das, calendários e outras coisas do gênero.

Diante do silêncio de Preston, Mandy acrescentou:

- Imagino como seria bom ter um cliente livre de neuroses, que se lembrasse dos almoços de negócios e que me mandasse presentes no meu aniversário.

- As neuroses fazem parte do pacote, mas sinto muito sobre o almoço.

O aborrecimento de Mandy cedeu lugar à preocupação.

- O que aconteceu, Preston? Parece alterado por algum motivo. O roteiro não está indo bem?

- Não, ele está caminhando. E melhor do que eu esperava. O problema é que não tenho dormido muito bem ultimamente.

- Continua saindo para tocar seu sax até altas horas da noite?

- Não.

Estava era passando as noites em claro pen­sando em Cybil, Preston admitiu para si mesmo. Andando de um lado para outro e desejando tê-la em seus braços. Só que agora ela devia estar pro­fundamente magoada com ele.

- Bem, já que não teremos mesmo o almoço, que tal me oferecer um café? - sugeriu Mandy.

- Ainda há um pouco na garrafa - disse ele. - Estava fresco às seis horas da manhã.

- Então, deixe-me preparar outro.

Depois de preparar o café, com os ingredientes que já se encontravam sobre a pia, Mandy abriu alguns armários, à procura de algo para comerem. Considerava o bem-estar de Preston como parte de seu trabalho.

- Meu Deus, Preston, por acaso está fazendo greve de fome? Não há mais nada aqui, além de restos de batatas fritas e do que um dia foi um pão francês, mas que agora só serve para expe­rimento científico.

- Não fui ao supermercado ontem - explicou ele, sem conseguir deixar de pensar em Cybil. - Para jantar, geralmente faço um pedido a algum restaurante.

- Pelo mesmo telefone que você não atende? - Eu vou recarregar a bateria, Mandy.

 

- Espero que sim. Se pelo menos ele estivesse funcionando, agora estaríamos sentados a uma mesa do Four Seasons, tomando champanhe Cris­tal para comemorar. - Com um sorriso, acres­centou: - Fechei o contrato, Preston. Rede de Al­mas vai se transformar em um grande sucesso do cinema. Terá os produtores que quiser, o di­retor que preferir e a opção de fazer o roteiro pessoalmente. Tudo isso regado a uma generosa quantia, claro.

- Não quero que estraguem o roteiro - foi a primeira reação dele.

- Isso só dependerá de você. - Mandy suspi­rou.

- Para não correr o risco de que algo não o agrade, faça você mesmo o roteiro.

Sem dizer nada, Preston se aproximou da ja­nela, ainda tentando absorver a notícia. Um filme mudaria a perspectiva que a peça havia atingido no teatro, mas, por outro lado, geraria uma renda de milhões de dólares.

- Não quero me envolver demais nisso, Mandy. Toda aquela loucura do cinema não me agrada.

Ela serviu duas xícaras de café e se aproximou da janela, entregando uma a ele.

- Então faça apenas o trabalho de supervisão. Ou de consultoria, se preferir.

- Sim, acho que isso será suficiente para mim. Providencie tudo, está bem?

- Pode deixar comigo. Agora, se você conseguir parar de dar pulos de alegria, poderemos conver­sar sobre seu trabalho atual.

Preston curvou os lábios, sem conter o sorriso.

 

Levado por impulso, deixou a xícara sobre o pa­rapeito da janela e segurou o rosto de Mandy entre as mãos.

- Você é a melhor e, com certeza, a mais pa­ciente empresária desse ramo.

- Está absolutamente certo. Espero que esteja tão orgulhoso de você quanto eu estou. Vai dar a notícia à sua família?

- Deixe-me primeiro digerir a idéia por al­guns dias.

- A notícia vai se espalhar logo, Preston. Não vai querer que eles a recebam por outros meios, não é?

- Tem razão - anuiu ele. - Vou ligar para eles. - Com um sorriso, completou: - Depois de recarregar a bateria do telefone, claro. Por que não saímos para comemorar, tomando champanhe?

- Pensando bem, por que não? Ah, só mais uma coisa - falou Mandy, em um tom casual. - Não vai me dizer o que está havendo entre você e a bela garota do apartamento 3A?

- Não tenho certeza de que haja alguma coisa para dizer - respondeu Preston, em um resmungo.

 

Preston continuava a não ter certeza sobre aqui­lo quando bateu à porta de Cybil naquela mesma noite. Mas sabia que tinha de fazer alguma coisa a respeito daquela sombra de indignação e tristeza que vira nos olhos dela, horas antes.

Não que aquilo dissesse respeito a ela de algu­ma maneira, lembrou a si mesmo. Não pedira a ela que bisbilhotasse sua vida. De fato, fizera tudo para que ela se mantivesse afastada. Pelo menos até a noite anterior, concluiu ele, com um suspiro exasperado.

Sempre detestara agir por impulso, e fora justa­mente isso que fizera na noite anterior. Para come­çar, não deveria ter aceitado sair com ela. Ainda mais por um motivo tão idiota. E muito menos bei­já-la, ainda que por um motivo louvável: puro desejo.

Quando Cybil abriu a porta, Preston estava mais do que pronto para um pedido de desculpas.

- Ouça, sinto muito - começou, com um certo tom de impaciência. - De qualquer maneira, isso não era da sua conta. Vamos apenas esclarecer as coisas.

Ele fez menção de entrar, mas parou de repente quando Cybil o deteve, levando a mão a seu peito.

- Não o quero na minha casa.

- Não diga tolices, Cybil, foi você quem come­çou. Talvez eu tenha deixado as coisas saírem um pouco do controle, mas...

- Comecei o quê?

- Isso!

Preston levantou as mãos, aborrecido pela falta de palavras e detestando ver aquela sombra de tristeza no olhar dela.

- Tudo bem, eu comecei - Cybil admitiu. - Nunca deveria ter levado biscoitos para você. Sim, foi pura idiotice da minha parte. Também não deveria ter me preocupado em arranjar um em­prego para você e nem em lhe oferecer uma re­feição decente, por pensar que você não tinha con­dições de pagar uma.

 

- Droga, Cybil...

- Você deixou que eu pensasse tudo isso! - ela o interrompeu, furiosa. - Deixou que eu acreditasse que estava passando por dificuldades, que era um músico desempregado, e aposto que deve ter rido muito disso. O brilhante e premiado roteirista Pres­ton McQuinn, autor da magnífica peça Rede de Al­mas. Aposto que está surpreso por eu conhecer o seu trabalho. Uma idiota feito eu não anda por aí lendo críticas sobre peças de teatro.

Preston continuou em silêncio, e ela o fez dar um passo atrás.

- Não é mesmo, Preston? O que uma "dese­nhistazinha" de tiras cômicas de jornal iria en­tender de arte? Ainda mais sobre teatro, sobre literatura séria? Deve ter rido muito à minha cus­ta, não? Seu arrogante elitista! - A voz de Cybil falhou, sendo que ela havia prometido a si mesma que isso não aconteceria. - Eu estava apenas tentando ajudá-lo.

- Mas eu não pedi sua ajuda. Eu não queria sua ajuda.

Preston notou que ela estava prestes a explodir em lágrimas. E quanto mais isso se evidenciava, mais furioso ele se sentia. Sabia muito bem como as mulheres usavam o choro para arrasar um ho­mem, e não deixaria isso voltar a acontecer em sua vida.

- Meu trabalho diz respeito apenas a mim - acrescentou.

- Seu trabalho é produzido na Broadway e, se você não sabe, isso o torna público – retrucou Cybil.

- Não tinha nada que andar por aí fingindo ser um saxofonista.

- Toco sax porque gosto de tocar, só isso. Não estava fingindo ser, alguma coisa, foi você quem deduziu isso.

- E você não fez a mínima questão de me esclarecer.

- E se eu tivesse feito isso? Eu me mudei para cá em busca de um pouco de paz e tranqüilidade. Queria ficar sozinho. Mas quando me dei conta, lá estava você me trazendo biscoitos, seguindo-me pela rua e me fazendo passar metade da noite em uma delegacia de polícia. Como se não bas­tasse, depois apareceu pedindo que eu saísse com você para se livrar do olhar bisbilhoteiro de uma mulher de setenta anos, só porque não tem coragem de dizer a ela para não se meter em sua vida pessoal. E quando pensei que já tinha visto tudo que poderia ver, qual não foi meu espanto ao receber a proposta de ganhar cinqüenta dólares por um beijo.

O sentimento de humilhação finalmente fez uma lágrima rolar pelo rosto de Cybil, enquanto uma espécie de nó se formava em sua garganta.

- Não comece com isso - disse Preston.

- Quer que eu não chore vendo-o me humilhar desse jeito? Vendo você me fazer sentir idiota, ridícula e envergonhada? - Cybil não se importou com as lágrimas que começaram a molhar seu rosto. Simplesmente continuou a encarar Preston com toda sua indignação. - Sinto muito, mas não sou tão fria assim. Ainda choro quando alguém me magoa.

- Foi você mesma quem pediu isso.

Preston tinha de dizer aquilo. De fato, ele estava desesperado para acreditar naquilo.

- Você conhece os fatos, Preston - disse ela, num fio de voz. - Tem todos eles à sua disposição, mas insiste em ocultar seus sentimentos por trás deles. Levei biscoitos para você porque pensei que poderia precisar de um amigo. Já me desculpei por havê-lo seguido, mas posso me desculpar novamente.

- Eu não quero...

- Ainda não terminei - Cybil falou com tanta dignidade que o fez sentir uma onda de culpa. - Levei-o para jantar porque não queria magoar uma senhora muito doce e por pensar que você poderia estar faminto. Gostei de sua companhia e senti algo diferente quando você me beijou. Na verdade, pensei que você também houvesse sen­tido. Portanto, você está certo - ela assentiu, en­quanto outra lágrima rolava por seu rosto. - Fui eu mesma quem pediu isso. Suponho que guarde todas suas emoções para o seu trabalho e que por isso não encontre uma maneira de aplicá-las em sua vida. Sinto muito por você. E sinto muito por haver pisado em seu solo sagrado. Nunca mais farei isso.

Antes que Preston pudesse pensar em algo para responder, Cybil fechou a porta. Então ele ouviu as trancas sendo acionadas com fúria. Girando sobre os calcanhares, voltou para seu apartamento e seguiu o exemplo dela, também fechando as trancas da porta.

Finalmente tinha o que queria, disse a si mes­mo. Solidão. Quietude. Cybil não voltaria a bater à sua porta, não o interromperia, não o distrairia e nem o envolveria em conversas das quais ele não queria participar. Não lhe traria sentimentos com os quais ele não sabia o que fazer.

De pé, na sala vazia, suspirou alto. Estava exausto daquilo tudo.

 

Preston só estava conseguindo dormir por alguns breves cochilos. E estes eram invadidos por sonhos, sempre envolvendo Cybil de alguma maneira. Via-se em lugares es­treitos e era sempre como se ela o houvesse levado até ali. Então ela se aproximava e o sonho se tornava perigosamente erótico, fazendo-o acordar excitado e furioso ao mesmo tempo.

Também não estava conseguindo comer. Era como se nada o satisfizesse, como se nada pare­cesse tão saboroso como a refeição que os dois haviam compartilhado noites antes. Passara a se sustentar de café, até sentir seus nervos à flor da pele e o estômago queimando em protesto.

Mas estava conseguindo trabalhar. Quando suas emoções ficavam tumultuadas, seus surtos de cria­tividade se tornavam mais intensos. Era quase do­loroso ter de arrancar aqueles sentimentos de seu próprio coração, transferindo-os para as atitudes de seus personagens, mas era assim que ele trabalhava. Sempre fora. Arrancando seus próprios sentimentos e fazendo-os dar vida e personalidade àquelas pes­soas, por meio das palavras. Em sua mente, era como se já visse a peça sendo encenada no palco, com toda aquela avalanche de emoções sendo tro­cada entre os atores e o público.

A certa altura, Preston lembrou-se do que Cybil havia lhe dito antes de fechar a porta. Que ele devia usar todas as emoções no trabalho, esque­cendo-se de aplicá-las à própria vida.

Ela tinha razão, e talvez fosse melhor assim. Para ele, havia muito poucas pessoas nas quais poderia confiar. Seus pais, sua irmã... Ainda que sua necessidade de atender às expectativas deles agisse em sua vida como uma faca de dois gumes.

Havia também Delta e André, amigos leais que não esperavam dele mais do que poderia oferecer. Mandy, que sempre lhe chamava a atenção nos momentos certos e que o ouvia quando ele preci­sava de alguém para desabafar.

Não precisava de mais ninguém. Muito menos de uma mulher que, de um momento para outro, poderia decepcioná-lo. Não passaria novamente por isso. Aprendera a lição da primeira vez e ainda mantinha muito vívidas na lembrança todas as conseqüências que as atitudes de Pamela haviam provocado em sua vida.

Com todas suas mentiras, decepções e traições, ela meio que o deixara imunizado quanto àquele tipo de armadilha sentimental. Uma lição dura como aquela, aprendida aos vinte e cinco anos, não era algo fácil de se esquecer na vida de um homem. Desde que percebera a tolice que era acre­ditar no amor, nunca mais perdera tempo procu­rando por ele.

Ainda assim, não conseguia parar de pensar em Cybil.

Tinha ouvido ela sair várias vezes naqueles úl­timos três dias. E também flagrara-se distraído com o som de risos, vozes e música vindos do apartamento dela. Cybil não estava sofrendo, dis­se a si mesmo. Então por que ele estava?

Sentimento de culpa, concluiu. Havia magoa­do uma pessoa especial, ainda que sua atitude não houvesse sido necessária ou intencional. Havia-se deixado levar pelo charme de Cybil, mesmo relutantemente. Não tivera intenção de magoá-la ou de fazê-la se sentir a pior das cria­turas. As lágrimas de uma mulher ainda surtiam um forte apelo em seu ser, por mais que ele sou­besse quanto elas podiam ser sinal de falsidade e de manipulação.

No entanto, as lágrimas Cybil não haviam lhe parecido falsas ou manipuladoras. Muito pelo contrário.

Por fim, convenceu-se de que não resolveria seu problema, enquanto não esclarecesse aquilo tudo de uma vez. Não havia se desculpado devidamen­te. Sim, iria pedir desculpas mais uma vez, agora que Cybil havia tido algum tempo para refletir sobre o que havia acontecido.

Não havia motivo para os dois se tornarem ini­migos, claro que não. Afinal, ela era neta de um homem que ele admirava e respeitava muito. Além disso, duvidava que Daniel MacGregor ficasse sa­tisfeito se soubesse que ele havia feito sua querida neta chorar. E a opinião de Daniel MacGregor im­portava muito para ele. Sempre importara.

 

Sabia que ela estava fora, pois a tinha ouvido fechar a porta algum tempo antes. Talvez fosse melhor ficar esperando-a, para não perder a chan­ce de falar com ela enquanto ainda estava movido por aquela onda de determinação.

Porém, provavelmente teria desistido se visse a expressão furiosa de Cybil meia hora depois, quando ela entrou no elevador, vindo do mercado. Estava aborrecida com o simples fato de ter de passar diante da porta de Preston. Detestava o fato de ter de se lembrar dele ao passar por ali, de como agira feito uma idiota, e pior: de quanto ele a fizera sentir-se uma idiota.

Equilibrando os dois pacotes que trazia nos bra­ços, tentou encontrar logo a chave na bolsa, para não correr o risco de passar muito tempo no cor­redor. O elevador fez o característico ruído indis­creto ao parar em seu andar, mas ela continuou procurando a chave depois de sair dele.

Então enrijeceu o maxilar e estreitou o olhar ao notar a presença de Preston no final do corredor.

- Oi, Cybil. - Preston nunca vira um olhar tão gélido a ponto de deixá-lo desconcertado. - Ah, deixe-me ajudá-la com isso.

- Não preciso de sua ajuda, obrigada - replicou ela, rezando para encontrar logo a maldita chave.

- Precisa sim, se vai mesmo ficar aí vascu­lhando a bolsa.

Preston tentou sorrir, antes de começar uma espécie de cabo-de-guerra por causa de um dos pacotes. Por fim, conseguiu tirá-lo de Cybil.

- Escute aqui, já disse que sinto muito. Quan­tas vezes terei de dizer isso até que você se con­vença de que estou sendo sincero?

- Vá para o inferno! - bradou ela. - Quantas vezes terei de dizer isso até que você comece a sentir o calor das chamas?

Cybil finalmente encontrou a chave e colocou-a na fechadura.

- Agora me dê meu pacote.

- Eu o levarei para você.

- Já disse para me dar maldito pacote - man­dou ela, por entre os dentes. Os dois voltaram a "brincar" de cabo-de-guerra, até ela deixar escapar um suspiro resignado.

- Então, fique com ele!

Ela abriu a porta com um movimento abrupto, mas antes que pudesse fechá-la, Preston a segurou e entrou sem maiores dificuldades. Os dois se en­treolharam, estreitaram os olhos e Preston teve a impressão de ver um brilho de vingança nos olhos dela.

- Nem pense nisso - avisou ele. - Não estou usando cueca de ferro.

Ainda assim, Cybil pensou na possibilidade de causar algum dano. Mas desistiu ao concluir que isso só o faria sentir-se mais importante do que ela estava determinada a fazê-lo se sentir. Então, limitou-se a girar sobre os calcanhares e tirar os tênis cor-de-rosa, como costumava fazer ao chegar em casa. Em seguida foi até a mesa e colocou sobre ela o pacote que estava carregando. Quando Preston fez o mesmo, ela assentiu.

- Obrigada. Quer uma gorjeta?

-- Muito engraçado. Primeiro vamos acertar isso. - Preston pegou a carteira no bolso, tirou dela uma nota de cem dólares e a entregou a Cybil.

- Aqui está.

- Não vou aceitar o dinheiro de volta. Você fez por merecê-lo.

- Não vou aceitar seu dinheiro por aquilo que acabou se tornando uma piada de mau gosto.

- Piada de mau gosto?! - A sombra de frieza nos olhos dela se transformou em chamas verdes.

- Então foi isso para você? Bem, mas não estou surpresa. Já que tocou no assunto, acho que ainda estou lhe devendo cinqüenta dólares, não?

Preston enrijeceu o maxilar quando ela abriu a bolsa e começou a procurar o dinheiro. Aquilo já estava indo longe demais.

- Não me provoque, Cybil. Pegue o dinheiro de volta de uma vez.

- Não.

- Eu disse para pegar esse maldito dinheiro de volta. - Dizendo isso, ele lhe segurou o pulso e co­locou o dinheiro palma da mão dela.

- Agora... - interrompeu-se, atônito, quando a viu rasgar a nota de cem dólares em pedacinhos e jogá-los no ar.

- Pronto! Problema resolvido.

- Essa foi uma atitude muito idiota - Preston a censurou.

- Idiota? Bem, para que quebrar a regra, não é mesmo? Pode ir embora agora.

A voz dela estava tão estridente e furiosa que Preston teve de se conter para não pestanejar.

- Muito bom, muito eficaz - disse ele. - A dama da voz supersônica finalmente apareceu.

 

Quando ela voltou a falar, em um tom ainda mais abrupto, conseguiu sobressaltá-lo.

- Muito eficiente mesmo - ironizou Preston.

Furiosa demais para continuar o combate ver­bal, Cybil simplesmente foi até a mesa e começou a esvaziar os pacotes. Se insultos e gritos não estavam funcionando, talvez ignorá-lo desse al­gum resultado.

De fato, talvez até houvesse funcionado se Pres­ton não tivesse visto suas mãos trêmulas, quando ela colocou uma caixa sobre a mesa. Ver aquilo, levou-o a sentir mais uma vez aquela onda de culpa que vinha experimentando nos últimos dias.

- Cybil, sinto muito. - Ele a viu hesitar, então pegar uma latinha de sopa e colocá-la sobre a mesa.

- A situação me escapou do controle e eu não fiz nada para corrigir meu erro. Eu deveria ter feito alguma coisa.

- Não precisava ter mentido para mim. Eu teria deixado você em paz.

- Eu não menti, pelo menos não comecei. Mas deixei que você, continuasse pensando algo que não era verdade. Quero minha privacidade. Preciso dela.

- Pois agora a tem. Afinal, não fui eu quem acabou de passar pela porta do apartamento de outra pessoa.

- Não, não foi você. - Preston enfiou as mãos nos bolsos, então tirou-as novamente e apoiou-as sobre a mesa.

- Eu magoei você, e não queria ter feito isso. Sinto muito pelo que aconteceu.

Cybil fechou os olhos, sentindo que o muro que havia levantado para se proteger começara a ruir.

 

- Por que mentiu?

- Porque pensei que isso a manteria em seu próprio lugar. Porque senti que sua proximidade era um pouco perigosa demais para mim. E por­que, no íntimo, parte de mim desejava que você continuasse querendo me ajudar a encontrar um emprego. - Preston hesitou ao vê-la encolher os ombros. - Cybil, eu não quis ofendê-la. Mas como poderia não me divertir vendo-a me oferecer cem dólares para jantar com você? E tudo isso para não magoar uma velhinha de setenta anos e poder, ao mesmo tempo, oferecer uma boa refeição a um saxofonista desempregado. Aquilo foi muito... doce de sua parte. E isso não é algo muito comum de eu dizer, pode acreditar.

- É humilhante - resmungou ela, pegando o outro pacote e se encaminhando para a cozinha.

- Não deixe que seja. - Preston deu a volta pelo balcão, de modo que os dois ficaram na co­zinha. - A situação só teve aquele efeito desas­troso porque deixei que a coisa fosse longe demais. Assumo a culpa por isso. Se eu tivesse lhe contado a verdade durante o jantar, como deveria ter feito, aposto que você teria rido muito de tudo. Mas, em vez disso, eu a fiz chorar e não consigo me perdoar por isso.

Cybil permaneceu onde estava, diante da gela­deira. Não imaginara que Preston fosse se importar tanto com aquilo, e que se desculpar houvesse se tornado uma questão tão essencial para ele. Mas, pelo visto, enganara-se. E ela simplesmente não con­seguia resistir à completa sinceridade de alguém.

 

Respirando fundo, disse a si mesma que talvez valesse a pena tentar fazer as pazes com ele.

- Quer uma cerveja?

Preston relaxou os ombros no mesmo instante.

- Claro que quero.

- Foi o que eu imaginei. - Cybil pegou uma garrafa, colocou-a sobre a pia e começou a procu­rar um copo para ele.

- Deve estar com sede. Eu nunca tinha ouvido você falar tanto de uma só vez desde que nos conhecemos.

Quando se virou para ele com o copo de cer­veja, Preston estava com um brilho de diverti­mento no olhar.

- Obrigado - agradeceu ele, aceitando o copo.

- Mas estou sem biscoitos.

- Ainda há tempo de fazer alguns.

- Talvez. - Cybil começou a examinar as com­pras.

- Para ser sincera, eu estava pensando em preparar uma torta. - Arriscando um olhar por sobre o ombro, arqueou uma sobrancelha.

- Nun­ca comemos torta juntos.

- É verdade.

A visão foi sensual demais para sua paz de es­pírito, pensou Preston. Cybil estava vestida com um camisão branco de algodão e com uma calça justa de um bonito tom de azul-claro. Porém, o detalhe mais provocante era o fato de ela estar descalça. A visão dos pés delicados, com as unhas pintadas de cor-de-rosa, provocou-lhe uma onda de excitação. As preferências exóticas de Cybil, como aquela de usar dois brincos de argola em uma mesma orelha e uma simples pedrinha de brilhante na outra, deixavam-no quase sempre en­cantado. Cybil era uma surpresa constante. De­liciosamente inesperada.

Quando ela se virou para continuar esvaziando o pacote de compras, Preston lhe segurou o pulso com a mão que se encontrava livre.

- Estamos de bem novamente? - Parece que sim.

- Então há algo mais que preciso lhe dizer. - Ele colocou a garrafa cerveja sobre a pia.

- Sonhei com você.

Foi a vez de Cybil sentir a boca secar.

- O quê?

- Sonhei com você - repetiu Preston, aproxi­mando-se dela o suficiente para que Cybil se en­costasse contra a parede.

Pelo menos dessa vez era ela que estava contra a parede, não ele, pensou Preston.

- Sonhei que estava tocando você. - Sem des­viar os olhos dos dela, ele roçou a ponta dos dedos sobre os seios dela.

- E acordei sentindo o sabor dos seus lábios.

- Ah, meu Deus.

- Você disse que sentiu algo quando a beijei, e que achou que eu também havia sentido. - Enquanto falava, foi deslizando as mãos devagar até os quadris dela.

- Você estava certa.

Cybil engoliu em seco, sentindo as pernas trêmulas.

- Estava?

- Sim. E quero sentir aquilo novamente.

Ela se endireitou junto à parede quando ele se aproximou mais.

 

- Espere!

Preston parou os lábios a centímetros dos dela.

- Por quê?

Cybil não soube ao certo o que dizer.

- Eu não sei.

Os lábios dele se curvaram em um de seus raros sorrisos.

- Mande que eu pare quando achar que deve - sugeriu ele, antes de tomá-la nos braços.

Foi a mesma coisa de antes. Cybil não tinha cer­teza de que voltaria a sentir todas aquelas sensações maravilhosas se Preston voltasse a beijá-la, mas foi exatamente isso o que aconteceu. No entanto, era como se todo seu ser estivesse preparado e esperando por aquele turbilhão de sensações. Jody tinha razão, pensou ela. Preston havia arrasado sua vida. Nunca mais ela conseguiria exigir menos do que aquilo.

Linda, receptiva, doce, carinhosa... Cybil era tudo isso. Tudo aquilo que ele havia esquecido de que tanto precisava estava bem ali, em seus bra­ços, concluiu Preston. Queria tê-la para si. E com uma urgência que nem mesmo ele esperava sentir.

- Quero beijá-la, Cybil - disse, com voz rouca. Roçando os lábios sobre a curva sensível do pes­coço delicado, acrescentou: - Aqui, bem aqui...

Cybil fechou os olhos.

- Não.

Aquela era a última coisa que ela esperava ouvir sair de seus próprios lábios, com as mãos de Pres­ton passeando por seu corpo e levando-a a desejar ir além, muito mais além. Ainda assim, porém, ouviu-se repetir:

- Não. Espere.

Preston levantou a cabeça, fitando-a com os olhos enevoados de desejo.

- Por quê?

- Porque eu... - Cybil se interrompeu com um gemido, quando Preston pousou a mão em concha sobre um de seus seios.

- Eu te quero, Cybil - sussurrou ele, junto ao ouvido dela. - E sei que você me quer.

- Sim, mas... - Ela abriu e fechou as mãos sobre os ombros dele, lutando contra a onda de desejo que a estava invadindo.

- Há certas coisas que não me permito fazer por impulso. Sinto mui­to, mas essa é uma delas.

Cybil exalou um suspiro trêmulo. Preston es­tava muito perto, pensou, observando os detalhes daquele rosto bonito. Perto demais.

- Não se trata de um jogo, Preston.

Ele arqueou uma sobrancelha, surpreso por ela haver sido tão perspicaz em deduzir seus pensamentos.

- Não? Não - afirmou em seguida, entendendo o que ela quisera dizer.

- Você não aceitaria esse tipo de jogo, não é?

Alguém aceitara antes dela. E provavelmente magoara Preston por isso, deduziu ela, lamentan­do por ele.

- Não sei. Nunca agi assim antes.

Ele deu um passo atrás e se afastou, parecendo recobrar o controle enquanto ela ainda continuava trêmula.

- Preciso de um tempo antes de me sentir su­ficientemente segura para compartilhar minha in­timidade com outra pessoa. Fazer amor é uma espécie de presente que não deve ser banalizado. Pelo menos na minha opinião.

As palavras de Cybil o tocaram de alguma ma­neira e, por motivos que nem ele mesmo conseguiu entender, levaram-no a se acalmar.

- E ouvir isso de você significa que devo recuar? - perguntou Preston, enfiando as mãos nos bol­sos, para conter a vontade de voltar a tocá-la.

- Significa que eu quero que você entenda por que estou dizendo "não", mesmo estando morrendo de vontade de dizer "sim", sendo que ambos sa­bemos que você poderia facilmente me levar a dizer "sim".

A chama de desejo se reacendeu nos olhos dele.

- Sua sinceridade chega a ser perigosa, sabia? - - disse a ela.

- Você precisa que eu lhe diga a verdade. - Cybil nunca conhecera alguém que precisasse tan­to ouvir a verdade.

- E não minto para alguém com quem eu esteja pensando em compartilhar minha intimidade.

Preston fitou-a nos olhos, parecendo surpreso com o que ouvira. Tinha noção de que poderia seduzir Cybil, mas usar esse artifício só serviria para arruinar algo que nem ele mesmo ainda es­tava seguro de que existia.

- Você precisa de tempo - Preston afirmou.

- Tem idéia de quanto?

Ela exalou outro suspiro trêmulo, mas acabou curvando os lábios em um sorriso incerto.

- Não posso dizer com certeza. Mas garanto que você será o primeiro a saber quando eu es­tiver pronta.

- Então, por enquanto, vamos ficar apenas com isso...

Cybil se surpreendeu quando ele se aproximou e roçou os lábios nos dela. Ela manteve os olhos abertos, esforçando-se para não se render às sen­sações. Porém, foi impossível ignorar a onda de calor que invadiu seu corpo.

- Hum... Sim, acho que, provavelmente, isso vá funcionar - respondeu.

- Vamos esperar uma semana - sugeriu Pres­ton, aprofundando o beijo ao ponto de levar Cybil a se afastar subitamente. Ao fazê-lo, ela levou a mão ao peito dele.

- Duas semanas - disse a ele.

A última coisa que Preston esperava fazer em um momento de desejo tão intenso era começar a rir.

- Não sei se agüentarei, mas poderei tentar - respondeu.

- Otimo.

Enquanto Cybil se esforçava para recuperar o fôlego, ele pegou novamente a cerveja.

- Bem, com toda essa... - Ela gesticulou, es­forçando-se forçando-se para encontrar as palavras certas. - Não sei se preparo alguma...

- Comida? - sugeriu Preston, lisonjeado pela maneira como seu beijo a afetara.

- Comida, isso mesmo. Bem, pensei em preparar...

Preston ficou esperando que Cybil terminasse a frase, mas Cybil se limitou a levar as mãos às têmporas e olhar para o fogão.

- O jantar?

- Isso. Isso mesmo, o jantar. Engraçado como as palavras nos escapam de vez em quando, não? Vou preparar o jantar. - Virou-se para a pia, mas logo em seguida voltou a se dirigir a ele.

- Quer ficar para o jantar?

Preston tomou um gole de cerveja e encostou o quadril na pia.

- Posso vê-la cozinhar?

- Claro. Pode se sentar ali e até me ajudar a picar alguns legumes, se quiser.

- Está bem. - Pensando na visão interessante que teria, Preston deu a volta pelo balcão e sen­tou-se em um banquinho, diante dela.

- Você cozinha muito?

- Sim, acho que sim. Gosto de cozinhar. Para mim, cozinhar é um processo inesperado, com todos aqueles ingredientes envolvidos, o calor e o tempo corretos, a mistura de aromas, texturas e sabores...

- Alguma vez já cozinhou nua?

Cybil estava inspirando o aroma de um maço de manjericão, mas parou de repente.

- Preston, isso foi uma piada? Se foi, não ima­gina quanto estou orgulhosa de você. Nunca o vi fazer uma piada.

- Não, não foi piada. Estou falando sério.

Ela riu, surpreendendo-o ao se inclinar e dar-lhe um beijo estalado nos lábios. Aquela imprevisibi­lidade de Cybil era o que mais o enfeitiçava. Tanto que o levou a sorrir.

 

- E então? Costuma fazer isso?

- Nunca quando estou dourando pedaços de frango, que é o que pretendo fazer.

- Tudo bem. Tenho uma ótima imaginação. Ela riu novamente. Mas limpou a garganta ao notar o brilho de sedução nos olhos de Preston.

- Acho que quero um pouco de vinho. Você quer? - Ao vê-lo levantar o copo de cerveja, mur­murou:

- Oh, claro.

Em silêncio, tirou a garrafa de vinho da gela­deira e voltou-se para ele, rindo.

- Terá de parar com isso.

- Parar o quê?

- De me fazer sentir como se eu estivesse nua. Vá pôr uma música no aparelho de som, para ouvirmos - sugeriu, indicando a sala com um gesto.

- Oh, e também abra uma janela, porque está meio quente aqui. Depois me dê algum tempo para voltar a pensar direito e poder pensar em algo para dizer.

- Você nunca teve problemas para falar.

- Sei que quer fazer isso soar como um insulto para mim, mas não é. Considero-me uma perita na arte da conversação.

- Ah, então é assim que passaram a chamar os tagarelas agora?

- Ora, está mesmo muito engraçadinho esta noite, não?

 E nada poderia tê-la deixado mais satisfeita, , concluiu Cybil, em pensamento.

- Deve ser a companhia - respondeu Preston, indo até a sala. Então arqueou uma sobrancelha, enquanto examinava os CDs.

- Tem um ótimo gosto para música.

- Não esperava isso?

- Na verdade, não esperava encontrar Aretha Franklin, Fats Waller e B.B. King. Se bem que também há muita "tralha" aqui.

- E o que você considera como "tralha"? - indagou ela,

Em resposta, ele apareceu no corredor e mos­trou um CD intitulado Greatest Hits da Família Partridge.

Cybil conteve a vontade de rir.

- Tudo bem, reconheço que não é nenhum clás­sico, mas esse CD me foi dado por um amigo muito querido.

- Com um amigo desse, quem precisa de ini­migos? - Preston resmungou em resposta.

Com um sorriso, Cybil recomeçou a picar os le­gumes que seriam servidos com o frango.

- Durante um período da adolescência, até fiz parte de uma banda, sabia? - disse a ele.

- É mesmo? - Preston se surpreendeu, en­quanto colocava B.B. King para tocar.

- Hum-hum. Eu fazia o vocal principal e tocava guitarra. - Ela sorriu para ele, que voltou a se sentar junto ao balcão da cozinha.

- Você tocava guitarra? - Preston riu. Cybil era mesmo uma constante surpresa.

- Sim. Uma Fender vermelha, linda de morrer. Minha mãe ainda a guarda no lugar que antes era meu quarto, junto com sapatinhos da época em que eu ainda era bebê, meu kit de química, os desenhos que eu fazia quando costumava dizer que ia ser designer de moda e também os livros sobre animais que eu colecionava antes de des­cobrir que, para me tornar veterinária, teria de fazer experiências de laboratório com os bichinhos.

- Começando a cortar cenouras, acrescentou:

- Tudo isso fez parte da minha busca.

Preston estava encantado. Cybil era mesmo fascinante.

- Guitarras vermelhas e kits de química fize­ram parte de sua busca?

- Eu não conseguia decidir o que ia ser. Tudo que eu começava a fazer parecia muito divertido no início, mas logo eu me cansava daquilo. Sabe cortar cenouras em cubinhos?

- Não. Nunca pensou que acabaria fazendo o que faz hoje em dia?

Cybil suspirou, começando a cortar a cenoura em cubinhos.

- Não - admitiu ela. - Mas gosto muito do que faço, embora eu tenha muito trabalho. De qualquer maneira, é muito divertido. Você não gosta de escrever?

- Não completamente.

Cybil olhou para ele, surpresa.

- Então por que faz isso?

- Porque não consigo me imaginar fazendo ne­nhuma outra coisa. Essa é minha única busca - respondeu Preston.

Ela assentiu com um sorriso. Entendia-o mui­to bem.

- Também é assim com minha mãe – disse a ele. - Ela nunca pensou em fazer outra coisa, exceto pintar. Às vezes, quando fico olhando ela trabalhar, noto quanto é doloroso para ela ter uma visão e ter de se esforçar ao máximo para conse­guir retratar na tela aquilo que ela quer comu­nicar. Mas quando ela termina um trabalho, quan­do este se mostra suficientemente bom, ela se rea­liza. A satisfação, ou talvez o choque de ver o que ela é capaz de fazer, é que surte esse efeito nela. Deve ser assim com você também.

Cybil levantou a vista, então notou que Preston a estava observando com um olhar perscrutador.

- Sempre se surpreende quando demonstro sa­ber algo a respeito de um assunto que você não esperava, não é?

Dizendo isso, colocou a tigela com os legumes picados sobre o balcão. Preston segurou-lhe o pul­so, antes que ela pudesse de virar.

- Se isso ainda acontece, é porque sou eu quem não consegue entendê-la, Cybil. E é provável que eu continue a magoá-la por isso.

- Mas é ridiculamente fácil me entender!

Preston riu.

- Era isso que eu pensava antes, mas estava enganado. Você é um labirinto, Cybil. Com deze­nas de caminhos e curvas inesperadas.

Um belo sorriso se insinuou nos lábios dela.

- Esta é a coisa mais bonita que você já me disse.

- Não sou do tipo que vive se derramando em gentilezas. Teria sido melhor me manter fora de sua vida, deixando que eu continuasse trancado no meu apartamento.

- Acho que até eu mesma já me convenci disso - admitiu ela. - Porém... - Pousou a mão no rosto dele, com gentileza.

- Você parece haver se tornado minha nova busca.

- Até ela deixar de ser divertida e você deixá-la de lado?

A expressão de Preston se mostrou muito séria. Ele parecia preparado demais para acreditar no pior.

- Preston, você está falando demais e traba­lhando de menos. Sabe cortar batatas em formato de palitos?

- Não tenho a mínima idéia de como fazer isso.

- Então olhe e aprenda, meu caro. Da próxima vez, quero que você prepare o jantar. - Cybil pegou uma batata descascada e cortou-a com des­treza, formando palitos. Então arriscou um olhar para ele. - Ainda estou nua?

- Você quer estar?

Ela riu e tomou um gole do vinho que deixara ao lado.

Levava muito tempo para preparar um sim­ples jantar quando se era distraída por uma conversa agradável, por olhares provocantes e toques sedutores.

Levava muito tempo para comer uma simples refeição quando o perigo de se apaixonar e a von­tade de fazer amor com o homem sentado à sua frente se tornavam cada vez mais evidentes.

Cybil reconheceu os sinais: as batidas acelera­das de seu coração, o insistente calor pelo corpo acumulando-se deliciosamente entre suas per­nas... Tudo isso aliado a sorrisos irresistíveis e a suspiros incontidos era um forte indício de que seria muito fácil se entregar ao amor.

Imaginou como seria se deixar levar. Provavel­mente maravilhoso.

Levava muito tempo para se despedir quando se era arrebatada por longos beijos provocantes à porta de seu apartamento. E mais tempo ainda para conseguir pegar no sono quando seu corpo ardia de desejo e sua mente se encontrava repleta de imagens eróticas.

De fato, só conseguiu dormir quando o som do sax vindo do outro apartamento finalmente ces­sou. Somente então se entregou ao sono. E com um sorriso nos lábios.

 

Com os cabelos ainda molhados do ba­nho da manhã, Preston entrou na cozinha e sentou-se no banquinho que Cybil havia feito questão de lhe emprestar. Enquanto comia cereais com banana, também mandados por Cybil, depois que ela vira que seus armários se encon­travam vazios, começou a ler distraidamente o que estava escrito na caixa de cereais.

Segundo ela, até mesmo um ignorante em ques­tões de cozinha, aparentemente ele próprio, seria capaz de preparar uma tigela de cereais com banana.

Preston havia decidido não tomar aquilo como ofensa, mesmo não se considerando tão ignorante assim em matéria de cozinha. Afinal, havia con­seguido preparar uma salada na noite anterior, não havia? Tudo bem que Cybil fizera maravilhas com aqueles legumes e os pedaços de frango, mas isso era um mero detalhe.

De fato, ela cozinhava muito bem. Do jeito que as coisas estavam indo, ele acabaria deixando de lado os sanduíches rápidos que estava acostumado a preparar para si mesmo.

Pensativo, olhou na direção da sala e franziu o cenho ao avistar o esquisito sapo de bronze se­gurando uma lâmpada de néon de formato trian­gular. Ainda não estava muito certo que como Cybil o convencera a comprar aquilo, e nem de como ela o levara a pagar à sra. Wolinsky uma boa quantia por uma cadeira reclinável de segun­da mão, da qual a mulher estava querendo se livrar. E com razão. Afinal, quem diabos iria que­rer ter na sala de casa uma cadeira reclinável com detalhes em verde e roxo?

No entanto, lá estava a cadeira em sua sala. Felizmente, apesar da horrível aparência, ela era bastante confortável.

Mas quando se possuía uma cadeira e um aba­jur, claro que também precisava de uma mesa. A sua era um modelo Chippendale, e estava preci­sando desesperadamente de uma reforma. Mas, como Cybil salientara, por isso mesmo é que seu preço havia sido uma barganha. Por acaso, ela tinha um amigo que restaurava móveis por hobby, e que poderia resolver aquele problema.

Também por acaso, tinha uma amiga que era florista, o que explicava a presença daquele vaso com belas margaridas sobre o balcão da cozinha.

Um outro amigo, pelo visto ela tinha uma legião deles, pintava cenas das ruas de Nova York e as vendia em uma calçada. Não seria interessante colorir um pouco as paredes do apartamento com algo assim? Sugerira Cybil.

Ele respondera que não queria colorir nada, ,mas, mesmo assim, lá estavam três aquarelas ori­ginais "colorindo" sua sala. E Cybil já havia co­meçado a falar em tapetes.

 

Não entendia direito como ela conseguia aquilo, pensou, voltando a se concentrar no desjejum. Simplesmente, ficava falando sem parar, até con­vencê-lo a tirar a carteira do bolso e comprar al­guma quinquilharia.

Mas ambos estavam conseguindo se manter em seus próprios espaços. Se bem que no sábado ela havia "invadido" seu apartamento com baldes, es­fregões, vassouras e só Deus sabia mais o quê. Se ele ia mesmo morar ali, dissera ela, o lugar deveria ao menos ser limpo. Por isso, ele termi­nara passando três horas de uma tarde chuvosa limpando o chão e as janelas, quando deveria estar escrevendo.

Naquele dia, Cybil quase fora parar em sua cama. Por muito pouco, ele não a deitara na cama e a seduzira, quando ela ficara boquiaberta com o estado em que se encontrava o quarto. Cybil era desejável até mesmo quando ficava brava.

Ao ver toda aquela bagunça, ela começara a lhe dar um verdadeiro sermão a respeito de como ele deveria zelar mais por seu local de trabalho que, pelo visto, também era o lugar onde ele dormia.

Por que diabos mantinha as cortinas fechadas daquela maneira? Por acaso gostava de cavernas? Tinha alguma objeção religiosa quanto a ajeitar lençóis de cama?

Em meio ao discurso inflamado de Cybil, ele a abraçara de surpresa e a fizera se calar com o mais prazeroso dos métodos. E se, a caminho da cama, eles não houvessem tropeçado em uma verdadeira montanha de roupas usadas, duvi­dava que eles houvessem terminado a tarde indo à lavanderia.

Apesar das inconveniências, a atitude de Cybil tinha lá suas vantagens, admitiu ele. Gostava de se verem um lugar limpo e arejado, embora quase nunca notasse quando este se tornava bagunçado. Gostava de se deitar em uma cama forrada com lençóis limpos e perfumados, embora a idéia lhe parecesse ainda melhor diante da possibilidade de compartilhá-la com Cybil. Além disso, era real­mente difícil encontrar motivo para reclamar ao abrir os armários da cozinha e vê-los repletos de mantimentos.

Tomou um gole de café, lembrando-se de que deveria perguntar a Cybil por que o seu sempre ficava com aquele sabor esquisito, como se faltasse alguma coisa. Então pegou o jornal, e foi direto à seção de tiras cômicas, para ver o que ela havia feito dessa vez.

Leu por alto, franziu o cenho, então recomeçou a ler a tira com mais atenção.

 

Cybil já estava trabalhando. Deixara a janela do estúdio aberta, já que, aparentemente, a pri­mavera havia decidido deixar a cidade com uma temperatura mais amena. Uma brisa deliciosa es­tava entrando no ambiente, juntamente com o ine­vitável ruído vindo da rua.

Depois de desenhar as medidas dos quadrinhos no papel, deixou a régua de lado, passando a se concentrar no que iria desenhar no primeiro deles. Inclinando ligeiramente a cabeça, olhou para oquadrinho com ar pensativo. Ele tinha o dobro do tamanho daquele que iria aparecer no jornal, dali a alguns dias. Já tinha mais ou menos em mente o que iria desenhar. O cenário, a situação e o tema que iriam preencher aqueles cinco qua­drinhos e dar ao leitor do jornal a oportunidade de rir um pouco durante o desjejum.

O esquivo sr. Misterioso, agora conhecido como Quinn, encontrava-se em sua caverna, escrevendo um grande roteiro para o teatro americano. Com seu jeito irresistivelmente másculo e sexy, Quinn se encontrava tão concentrado em seu próprio mundo que estava alheio ao fato de Emily se encontrar escondida na saída de incêndio, uti­lizando um binóculo para tentar ler o que ele estava escrevendo.

Riu consigo, pois, à sua maneira, sabia que suas perguntas e indiretas sobre como estava indo a última peça de Preston eram uma versão mais civilizada do voyeurismo de sua contraparte. Aos poucos, começou a esboçar os primeiros traços de sua interpretação profissional de Preston.

Por uma questão de estilo, tinha de exagerar certos detalhes na aparência e nas atitudes dele. O porte alto, o corpo atlético, o rosto atraente e o olhar penetrante, tudo servia de base para seu trabalho. O lado bem-humorado das tiras vinha quase sempre do detalhe de ele não saber o que fazer com as coisas que Emily "aprontava".

Quando a campainha tocou, Cybil pôs o lápis atrás da orelha, em um gesto automático, imagi­nando que Jody se esquecera de pegar a chave.

 

Ao se levantar, tomou um último gole de café, antes de se encaminhar para o andar de baixo.

- Já estou indo - falou, ao se aproximar da porta.

Ao abri-la, sentiu o coração acelerar e teve de se esforçar para conter um suspiro. Preston estava com os cabelos úmidos do banho e sem camisa. "Ah, meu Deus, veja só esse peito...", pensou ela, mal resis­tindo ao impulso de passar a língua pelos lábios.

Ele estava trajando um jeans desbotado e se encontrava descalço. O rosto... Ah, aquela se­riedade sempre a encantava, embora parecesse intimidadora.

- Oi - cumprimentou-o, com um sorriso. - Ficou sem sabonete para o banho? Quer um emprestado?

- O quê? - Preston franziu o cenho.

- Não, não é isso. - Ele se esquecera de que estava ape­nas parcialmente vestido.

 - Quero lhe fazer al­gumas perguntas a respeito disso - declarou, mostrando o jornal.

- Claro. Entre. - Seria mais seguro, pensou Cybil. Jody chegaria a qualquer momento, e pelo menos a impediria de "atacar" Preston, em algum momento de fraqueza.

- Por que não se serve de uma xícara de café e sobe até meu estúdio? Estou trabalhando e o andamento dos quadrinhos está indo muito bem.

- Não quero atrapalhar, mas...

- Não vai atrapalhar - falou ela, por sobre o ombro, já começando a subir a escada.

- Há ca­nela em pau em um potinho ao lado da cafeteira, se quiser pôr um em seu café.

- Eu...

"Oh, droga", pensou Preston, indo se servir do café e decidindo pôr um pedacinho de canela na xícara.

Nunca havia subido aquela escada antes, pois nunca fora até ali enquanto Cybil estava traba­lhando. Ao passar pela porta do quarto dela, ren­deu-se à curiosidade de parar um instante e olhar para a grande cama forrada com um lençol cor de marfim e cheia de almofadas brancas. Abaixo dos ferros trabalhados da cabeceira foi onde ele se imaginou segurando as mãos dela, enquanto finalmente fazia tudo que desejava fazer com ela.

O perfume feminino que vinha do quarto o fez respirar mais fundo. Um perfume adocicado e se­dutor, próprio de ambientes femininos. Ela man­tinha pétalas de rosas secas em uma tigela trans­parente, um livro sobre a mesinha-de-cabeceira e algumas violetas no peitoril da janela.

- Encontrou tudo?

Preston se sobressaltou.

- S-sim. Ouça, Cybil... - Ele entrou no estúdio.

- Meu Deus, como consegue trabalhar com todo esse barulho?

Ela mal levantou a vista do papel.

- Que barulho? Ah, esse. - Pegou outro lápis e continuou desenhando, como que esquecida da­quele que se encontrava atrás de sua orelha.

- Gosto de ouvir música enquanto trabalho, mas passo a maior parte do tempo sem ouvir nada.

O aposento tinha uma aparência eficiente e cria­tiva, com suas diversas prateleiras repletas de ins­trumentos para desenho e pintura. Preston reco­nheceu uma aquarela do amigo de Cybil pendu­rada em uma das paredes, e a elegância estilística da mãe dela em dois outros trabalhos pendurados na parede oposta.

Em um dos cantos, via-se uma escultura de me­tal de formato complexo, algumas violetas no pei­toril da janela e um confortável divã cheio de al­mofadas próximo a ela.

O modo como Cybil ocupava a sala, porém, não transmitia um aspecto de eficiência. Sentada à mesa de desenho, com as pernas cruzadas sob o corpo, exibindo parte dos pés com as unhas pin­tadas de cor-de-rosa, o lápis atrás de uma orelha eduas argolas de tamanhos diferentes na outra, ela era a própria imagem do inusitado. Perigosa­mente sexy, pensou Preston.

Curioso, aproximou-se por trás de Cybil e espiou o que ela estava fazendo. Uma atitude que o deixaria furioso se fosse ele quem estivesse trabalhando.

- Para que servem todas essas linhas azuis? - perguntou a ela.

- Para marcar a escala e a perspectiva. Fazer isso requer alguns cálculos, antes de se começar otrabalho propriamente dito. Trabalho com tiras de cinco quadrinhos - explicou ela, sem parar de fazer os esboços.

- Costumo colocá-los no papel dessa maneira, trabalhar o tema da piada e de­senvolvê-lo de modo que ele tenha começo, meio e fim dentro dos cinco quadrinhos.

Preston continuou observando em silêncio. Sa­tisfeita com o resultado do primeiro quadrinho, Cybil passou para o seguinte e continuou a falar:

 

- Primeiro faço esse tipo de esboço para ver se a idéia vai dar certo. É uma espécie de ensaio, para que eu tenha realmente certeza de que o tema poderá ser desenvolvido nos cinco quadri­nhos. Feito isso, começo a desenhar mais detalhes, antes de fazer o contorno final e de pintá-los.

Preston franziu o cenho, observando o primeiro esboço com mais atenção.

- Por acaso, este sou eu?

- Hum... Por que não se senta? Está bloquean­do a luz.

- O que ela está fazendo ali? - Ignorando a sugestão, ele apontou o segundo quadrinho. - Está me espionando? Você está me espionando?

- Não diga tolices. Nem há uma saída de in­cêndio em seu quarto.

Ela olhou para o espelho e fez várias expressões faciais, antes de recomeçar a desenhar.

- E quanto a isso? - perguntou Preston, mos­trando o jornal a ela.

- Isso o quê? Puxa, seu perfume é maravilhoso - disse Cybil, voltando-se para ele e inalando seu perfume.

- Que sabonete é esse?

- Vai pôr esse sujeito tomando banho nos pró­ximos quadrinhos? - Quando Cybil apertou os lábios, como que considerando a questão, Preston balançou a cabeça negativamente.

- Nem pensar. Achei até divertido quando você começou essa pa­ródia a meu respeito, mas...

Ele se interrompeu ao ouvir a porta da sala se abrir e fechar, no andar de baixo.

- Quem é? - perguntou a Cybil.

 

- Provavelmente Jody e Charlie. Então se re­conheceu nos quadrinhos? - Cybil parou de de­senhar e olhou para ele, com um sorriso.

- Al­gumas pessoas nem se reconhecem neles, sabia? Talvez por não terem autoconsciência suficiente. Mas tive a impressão de que você se reconheceria assim que visse os desenhos. Oh, olá, Jody! E aí está Charlie.

- O-oi - balbuciou Jody.

Deparar-se com um belo homem com o peito nu não era uma questão fácil nem mesmo para uma mulher casada e feliz no casamento.

- Hum, oi - repetiu ela. - Estamos atrapa­lhando alguma coisa?

- Não. Preston veio apenas me fazer algumas perguntas a respeito dos quadrinhos.

- Oh, adorei esse novo personagem - afirmou Jody. - Ele deixou Emily maluquinha! Mal posso esperar para ver o que vai acontecer em seguida.

Ela começou a rir quando Charlie soltou um sonoro "Pa!" e estendeu os bracinhos na direção de Preston.

- Ele chama todo homem de "Pa". Chuck não gosta muito quando o vê fazer isso, mas Charlie nem se importa com as reprimendas do pai. Já está demonstrando que vai ter personalidade forte - acrescentou ela, com um sorriso de mãe orgulhosa.

- Entendi. - Distraidamente, Preston passou a mão pelos cabelos do bebê.

- Vim apenas es­clarecer algumas coisas a respeito do que está acontecendo nos quadrinhos - explicou ele, vol­tando-se tando-se novamente para Cybil.

 

- Pa! - Charlie repetiu, estendendo os braci­nhos mais uma vez para Preston, com um sorriso sonolento.

- Quão próximo da realidade é o seu trabalho? - indagou Preston, pegando o bebê no colo, em um gesto automático.

Cybil se comoveu com a cena.

- Você gosta de crianças.

- Não. Costumo jogá-las pela janela do terceiro andar sempre que tenho uma chance - respondeu ele, com impaciência. Então começou a rir quando Jody lhe lançou um olhar apavorado.

- Relaxe, ele está seguro. Meu interesse é saber o que sig­nifica isso aqui - acrescentou, apontando o jornal e ajeitando Charlie no colo.

- Oh, o detalhe da "escala" - respondeu Cybil. - Bem, essa é realmente a primeira parte. As duas conversarão sobre a segunda parte amanhã. Acho que vai ficar bom.

- Eu e Chuck caímos na gargalhada quando lemos isso essa manhã - comentou Jody, mais relaxada ao ver Preston acariciando o bebê já adormecido em seus braços.

- Você desenhou essas duas mulheres...

- Emily e Cari - disse Cybil.

- Agora sei quem elas são - respondeu Pres­ton, estreitando o olhar para ela e Jody. - Elas estão falando... Não - corrigiu-se.

- Estão clas­sificando a maneira como Quinn beijou Emily al­guns dias antes! - bradou, indignado.

- Hum-hum - confirmou Cybil. - Então Chuck se divertiu? - perguntou ela à amiga.

-Fiquei pensando se os homens também iriam en­tender ou se essa seqüência seria mais compreen­dida apenas pelas mulheres.

- Oh, sim, ele morreu de rir.

- Com licença. - Com o que lhe restava de paciência, Preston levantou a mão.

- Eu só gos­taria de saber se vocês duas ficam comentando seus encontros íntimos e classificando-os com no­tas de um a dez, antes de oferecer isso para o público americano se divertir durante o desjejum.

- Classificando? - Cybil arregalou os olhos para ele, com ar inocente.

- Pelo amor de Deus, Preston, isso é apenas uma tira cômica de jornal. Está levando esse assunto a sério demais.

- Então essa história de "não existir escala" é apenas uma piada?

- O que mais poderia ser?

Ele a observou por um instante.

- Não quero correr o risco de, quando finalmente fizer amor com você, ter de passar depois pela si­tuação desagradável de ver meu desempenho ser avaliado nas tiras cômicas do jornal pela manhã.

- Oh-oh. Oh, bem. - Jody levou a mão ao peito, parecendo embaraçada.

- Acho que vou levar Charlie para tirar uma soneca no sofá lá de baixo.

Dizendo isso, tirou o bebê com cuidado dos bra­ços de Preston e se retirou em seguida.

- Francamente, Preston - disse Cybil, rindo e tamborilando o lápis sobre a mesa.

- Esse even­to seria digno de ir parar no caderno especial do jornal de domingo.

 

- Isso é uma ameaça ou uma brincadeira? - Quando ela apenas riu, ele se aproximou perigo­samente e beijou-a nos lábios.

- Mande sua ami­ga embora e descobriremos logo, logo.

- Não. Não quero que ela vá embora. Foi pen­sando que ela poderia aparecer a qualquer mo­mento que não o beijei assim que você chegou.

Preston estreitou o olhar.

- Está querendo me provocar?

- Não exatamente - respondeu ela, sentindo a pulsação acelerada.

- Precisa ir agora. Depois de tanto tempo de trabalho, encontrei uma dis­tração com a qual não consigo lidar, e essa dis­tração é você.

Sem dar ouvidos ao pedido, Preston se inclinou mais uma vez e beijou-a nos lábios.

- Quando falar disso... - Ele capturou o lábio inferior de Cybil delicadamente entre os dentes e provocou-a com sensualidade.

- Espero que sua descrição seja precisa.

Dizendo isso, dirigiu-se à porta e virou-se uma última vez para ela, fitando-a por sobre o ombro.

- Sem escala? - perguntou ele, dando-se conta de que até gostara da brincadeira.

Ver seu beijo ser considerado em uma escala aci­ma de dez não deixava de ser lisonjeador. Ao ver Cybil reagir apenas com um impotente gesto de mãos, começou a rir. E ainda estava rindo quando desceu a escada em direção à porta da sala.

- Posso entrar agora? - sussurrou Jody, co­locando a cabeça no vão da porta entreaberta do estúdio de Cybil.

 

- Ah, meu Deus, Jody. O que vou fazer aqui? - Aturdida, Cybil colocou um segundo lápis atrás da orelha, derrubando o primeiro sem nem parecer se dar conta disso. - Pensei que não iria haver nenhuma conseqüência. Quer dizer, o que há de mal em se deixar levar pelo encantamento de um homem bonito, atraente e irresistível?

- Deixe-me pensar... - Jody sentou-se diante da mesa de trabalho da amiga.

- Nenhum mal! Absolutamente nenhum mal.

- E se você acabar se apaixonando um pou­quinho por ele, isso fará parte do jogo, certo?

- Absolutamente certo.

- Mas o que fazer quando você vai um pouco além do limite?

Jody franziu o cenho, preocupada.

- Você foi além do limite?

- Acabei de fazer isso - Cybil respondeu.

- Oh, querida. - Em um gesto carinhoso, Jody deu a volta pela mesa e abraçou a amiga. – Tudo bem. Acabaria acontecendo, mais cedo ou mais tarde.

- Eu sei, mas sempre pensei que aconteceria mais tarde.

- Todos nós pensamos isso.

- Preston não vai gostar de saber que eu me apaixonei por ele. Vai ficar aborrecido com isso. - Apoiando a cabeça no ombro da amiga, Cybil exalou um suspiro trêmulo.

- Também não estou muito contente com isso, mas acabarei me acostumando.

- Claro que sim. Coitado do Frank. - Com um suspiro, Jody afagou o ombro da amiga e se afastou um pouco.

- Ele nunca a interessou de verdade, não é mesmo?

 

Cybil balançou a cabeça negativamente.

- Sinto muito.

- Ora. - Jody dispensou seu primo preferido com um gesto de mão.

- O que vai fazer?

- Ainda não sei. Para ser sincera, estou pen­sando em sair correndo e me esconder em algum lugar - confessou, forçando um sorriso.

- Isso é para covardes.

- Tem razão. Seria uma atitude covarde. E que tal dar tempo ao tempo e ver se isso passa?

Jody balançou a cabeça, rindo da ingenuidade da amiga.

- Sua boba. Quando se é atingido pela flecha de cupido, meu bem, a cura não vem assim, tão facilmente.

Cybil respirou fundo.

- Então, que tal irmos fazer compras?

- Agora, sim, começou a falar com sensatez. - Com um breve gesto de comemoração, Jody se encaminhou para a porta.

- Vou ver se a sra. Wolinsky pode ficar com Charlie, então enfrenta­remos esse problema como mulheres de verdade.

 

Cybil comprou um vestido novo. Um modelo pre­to, básico e discretamente colado ao corpo que fez Jody revirar os olhos e dizer:

- Ele está perdido.

Cybil também comprou um bonito par de sapa­tos pretos com saltos altos, finos e transparentes. Ah, e lingerie também, claro. Do tipo que uma mulher usa quando espera ser admirada por um homem e que o faça sentir vontade de tirá-la. De fato, sentiu um arrepio pelo corpo, ao imaginar Preston deslizando aquelas mãos firmes sobre seu corpo, retirando-lhe a lingerie com vagarosa sen­sualidade. Escolheu um conjunto de lingerie bran­ca para usar sob o vestido preto. Era excitante a idéia de surpreendê-lo.

Depois escolheu flores, velas para o candelabro e um ótimo vinho. Ingredientes delicados para despertar um outro tipo de apetite. Um apetite primitivamente voraz.

Quando chegou em casa, estava mais esperançosa e bem mais calma. Havia algo a ser feito, e pelo menos isso incutiu um foco a seus pensamentos. Sim, queria passar o restante do dia preparando cada detalhe, porque a noite teria de ser perfeita.

Escreveu um bilhete para Preston é enfiou-o por baixo da porta do apartamento dele. Depois trancou-se em seu próprio apartamento e respirou fundo, antes de deixar alguns itens na cozinha e levar os outros para seu quarto.

Arrumou as flores nos vasos e os distribuiu por lugares estratégicos. Depois ajeitou as velas no candelabro e o colocou sobre a mesa, junto ao va­sinho com flores frescas. Em um outro canto da sala, acendeu uma vela perfumada, para ir per­fumando o ambiente com um aroma agradável, enquanto ela terminava de preparar a mesa.

Desembrulhou dois elegantes cálices de vinho e colocou-os junto aos pratos, lembrando-se de que precisava pôr o vinho para gelar.

Ao chegar ao quarto e olhar para a cama, he­sitou. sitou. Puxar os lençóis até o pé da cama pareceria uma sugestão muito evidente? Pensando nisso, riu consigo. Havia sentido ter pudores daquele tipo àquela altura dos acontecimentos?

Quando terminou os preparativos, parou um ins­tante para admirar o resultado. De fato, tudo estava no lugar onde ela gostaria que estivesse. Satisfeita, providenciou os últimos detalhes para o jantar.

Manteve os ouvidos apurados, na esperança de ouvi-lo começar a tocar. Sempre que ouvia Preston tocar o sax, era como se parte dele estivesse ali com ela. No entanto, o apartamento em frente continuou silencioso.

Com cuidado, escolheu alguns CDs estratégicos e os deixou ao lado do aparelho de som. Em se­guida, foi para o quarto e, com um arrepio de expectativa, estendeu o vestido novo sobre a cama juntamente com a lingerie provocante, imaginan­do como seria usá-los. Com certeza, o efeito seria poderosamente sedutor.

Com outro arrepio de expectativa, dessa vez se­guido por um calor inesperado em seu âmago fe­minino, foi tomar um banho relaxante.

Antes de entrar na banheira, acendeu outra vela perfumada e serviu-se do vinho que costumava deixar ali, para quando estivesse relaxando na banheira. Ao sentir a água quente sobre o corpo, fechou os olhos com um suspiro. Então imaginou as mãos de Preston sobre sua pele, em vez da água cheia de espuma.

Quase uma hora depois, espalhou pelo corpo uma leve camada de creme hidratante perfumado, até sua pele se tornar acetinada e agradavelmente perfumada.

 

Enquanto ela fazia isso, Preston lia o bilhete encontrado à porta de seu apartamento: "Preston, tenho planos. Depois nos veremos. Cybil"

Planos? Cybil tinha planos sendo que ele pas­sara o dia inteiro em meio a um verdadeiro tur­bilhão emocional por causa dela?

Leu o bilhete mais uma vez, furioso consigo mes­mo por haver passado o dia inteiro pensando em quanto seria prazeroso passar outra noite ao lado de Cybil. Deus, comprara até flores para ela! E não se lembrava de comprar flores para uma mu­lher desde...

Droga, como ela pudera fazer isso?, pensou, amassando o bilhete quase sem perceber. Por ou­tro lado, o que mais ele poderia esperar? As mu­lheres sempre determinavam o curso de um re­lacionamento segundo seus próprios interesses. Ele sabia disso, aceitara isso e se, em algum mo­mento, esquecera-se de que em relação a Cybil, não tinha ninguém mais para culpar a não ser ele mesmo.

Pelo visto, ela decidira entrar em outro jogo. Mas ele não era obrigado a morrer de angústia por isso. Afinal, sabia muito bem quanto as mulheres eram perigosas em questões de jogos sentimentais.

Com um suspiro, foi até a cozinha e deixou o buquê de lilases sobre a pia. Não entendera direito o motivo, mas aquelas flores o haviam feito se lembrar de Cybil. Ao voltar para a sala, pegou seu sax e saiu, determinado a amenizar sua ira tocando no Delta's.

Exatamente às sete e meia da noite, Cybil tirou do forno o assado que havia preparado. A mesa estava arrumada para dois, com mais velas e mais flores precisamente arrumadas. Uma salada de colorido exótico, feita com abacate e tomates ge­lava juntamente com o vinho.

Assim que eles degustassem a entrada, preten­dia surpreendê-lo com crepe de marisco. E se tudo saísse de acordo com o planejado, terminariam a refeição com champanhe gelado acompanhando framboesas frescas com creme. Na cama.

- Muito bem, Cybil.

Dizendo isso, tirou o avental e foi até o espelho para checar seu visual. Então calçou os sapatos novos, aplicou algumas gotas de perfume em pon­tos estratégicos e sorriu para seu próprio reflexo.

- Vamos capturá-lo.

Atravessou o corredor, tocou a campainha do apartamento de Preston e ficou esperando, com o coração acelerado. Segundos depois, tocou mais uma vez.

- Como tem coragem de não estar em casa? - protestou em voz alta. - Como ousa? Não leu meu bilhete? Claro que deve ter lido. Eu não deixei bem claro que iríamos nos encontrar depois?

Com um resmungo, bateu a mão fechada contra a porta. Em seguida, respirou fundo e endireitou as costas.

- Eu disse que tinha planos. Ah, meu Deus, você não entendeu, não é, seu cabeça-dura? Planos para nós dois! Oh, droga.

Sem hesitar, trancou a porta de seu aparta­mento e, na falta de uma bolsa para guardar a chave, colocou-a dentro do sutiã. Então começou a descer a escada com passos firmes, em direção à saída do prédio.

 

- Está com algum problema afetivo, querido?

Preston olhou para Delta, parando um instante para tomar um gole de água.

- Não estou com nenhum problema, muito me­nos afetivo.

- Ei, está falando com Delta, lembra-se? Sua velha amiga. - Ao longo dessa semana, em todas as noites em que o vi tocar, percebi que você estava tocando como se estivesse pensando em uma mu­lher. Hoje apareceu mais cedo, e está tocando como um homem que teve problemas com uma mulher. Por acaso discutiu com aquela garota?

- Não. Ambos temos mais o que fazer do que ficar discutindo.

- Ela ainda o está tirando do sério, não é? - Delta riu.

- Algumas mulheres exigem um pouco mais de romance do que outras.

- Isso não tem nada a ver com romance.

- Talvez seja justamente esse o seu problema. - Delta circundou o braço sobre os ombros dele, afagando-o com carinho. - Já comprou flores para ela? Disse que ela tem olhos lindos?

- Não. - Droga, já havia comprado flores para Cybil. Mas o receio de se desapontar o levara a se conter.

- O que sentimos um pelo outro é ape­nas atração física. Não tem nada de romântico - completou.

 

- Oh, meu querido. Se quiser realmente con­quistar uma mulher como Cybil, terá de ser ro­mântico, por mais que deteste a idéia.

- Por isso mesmo é que quero ficar bem longe dela. Quero continuar com minha vida simples. - Posicionando o sax, arqueou uma sobrancelha. - Agora vai me deixar tocar, ou quer me dar mais algum conselho a respeito da minha vida amorosa?

Delta balançou a cabeça negativamente, dando um passo atrás.

- Quando você realmente tiver uma vida amo­rosa, meu caro, pensarei em lhe dar conselhos.

Preston recomeçou a tocar, enquanto ouvia a música em sua mente. Em seu sangue. No ritmo de sua pulsação. Como sempre, tocou a música com todo seu sentimento, mas não conseguiu im­pedir-se de continuar pensando em Cybil. Talvez acabasse se acostumando com isso, pensou. Com aquela constante fixação em querer saber o que Cybil estaria fazendo e pensando.

A música continuou a sair do sax feito o lamento de um homem desesperado.

Então ela passou pela porta. Seus olhos, cheios de segredos, encontraram os dele através da ne­blina do ambiente. O modo como ela lhe sorriu ao se sentar à mesa, fez as mãos de Preston co­meçarem a suar. Ela umedeceu os lábios e deslizou o dedo indicador sobre a frente do vestido, em um gesto sensual.

Preston ficou olhando, hipnotizado, enquanto, com movimentos provocantes, ela cruzava as per­nas esguias cobertas por sensuais meias de seda fumê. Depois, a maneira como ela deslizou a mão do joelho até o quadril era designada justamente a fazer o olhar de um homem acompanhar o mo­vimento. E foi o que ele fez, com a respiração alterada.

Ela continuou ouvindo a música e mantendo aquele brilho provocante no olhar. Quando as úl­timas notas ecoaram no ambiente, ela passou a língua sobre os lábios cobertos por um intenso batom vermelho.

Então Cybil se levantou e, sem desviar os olhos dos dele, passou a mão pelo quadril, girou sobre aqueles saltos arrasadores e se encaminhou para a saída. Antes de passar pela porta, porém, virou-se uma última vez para ele e lançou-lhe um convite silencioso com um mero arquear de sobrancelha.

O murmúrio que escapou dos lábios de Preston, quando ele afastou o sax, foi de absoluta reverência.

- Não vai fazer nada, meu amigo?

Preston começou a guardar o instrumento na maleta.

- Por acaso pareço idiota, André?

- Não. - O marido de Delta riu e continuou tocando o piano. - Definitivamente não.

 

Cybil o estava esperando na calçada quando ele saiu. De pé, sob a luz de um poste elétrico, mantinha uma mão sobre o qua­dril, a cabeça ligeiramente inclinada e um ar de riso nos lábios.

A imagem fez Preston pensar naquelas fotos em preto-e-branco, tiradas por fótógrafos profis­sionais para serem incluídas em revistas de moda. "Sexy em preto-e-branco", foram as palavras que lhe vieram à mente.

Ele foi se aproximando devagar, notando mais detalhes conforme a distância entre eles ia se tor­nando menor. Os sedosos cabelos castanhos emol­duravam o rosto delicado de um modo discreto e sensual ao mesmo tempo. O vestido preto, curto, moldava cada curva do corpo perfeito, fazendo-o engolir em seco, ao ter uma visão mais aproxi­mada. Nenhuma jóia para distrair seu olhar. Sa­patos com salto alto e transparente delineando pernas completamente esguias. Deus, ela queria mesmo matá-lo.

As únicas cores intensas no visual de Cybil eram a de seus olhos verdes e a de seus lábios pintados de rubro. Lábios que, segundo ele logo notou, en­contravam-se ligeiramente curvados, com um ar de satisfação feminina.

Estava a três passos dela quando um delicioso perfume lhe invadiu as narinas, deixando-o exci­tado e expectante ao mesmo tempo.

- Olá, vizinho - disse ela, em um tom sensual.

Preston inclinou a cabeça, arqueando uma sobrancelha.

- Mudança de planos... vizinha?

- Espero que não.

Cybil se aproximou mais, deslizando as mãos deliberadamente sobre os braços, os ombros e o pescoço dele. Então moldou o corpo ao dele, antes de sorrir e dizer:

- Os planos eram para nós dois, seu bobo.

Imaginou se fora o esclarecimento ou o insulto velado que o levou a estreitar o olhar, com um ar especulativo.

- É mesmo?

- Preston - disse ela, aproximando-se até dei­xar seus lábios a centímetros dos dele. Mantendo os olhos fixos nos dele, umedeceu os lábios deva­gar.

- Eu não lhe disse que você seria o primeiro a saber?

- Sim. - Com a mão que se encontrava livre, Preston segurou-a pela nuca, mantendo aqueles lábios convidativos a centímetros dos dele.

- Con­segue andar rápido com esses saltos?

Cybil riu, ligeiramente ofegante.

- Não muito. Mas temos a noite inteira, não temos?

- Talvez seja necessário um pouco mais do que isso. - Preston se afastou, oferecendo a mão a ela.

- Onde conseguiu essa arma letal? O vestido - acrescentou, quando Cybil lhe lançou um olhar confuso.

- Oh, isso. - Dessa vez, o sorriso dela foi re­pleto de lisonja.

- Eu o comprei hoje, pensando em você. E quando o vesti esta noite, estava pen­sando em como seria acompanhar cada um de seus movimentos quando você o tirasse de mim.

- Deve ter andado praticando algum método de sedução - concluiu ele.

- Está se mostrando boa demais nisso.

- Posso parar, se estiver se sentindo incomodado...

- Nem pense nisso - Preston a interrompeu.

Parecia incrível que uma simples noite de pri­mavera em Nova York pudesse se transformar em um tórrida noite de verão nos trópicos.

- Sinto muito por não haver sido mais espe­cífica ao escrever o bilhete. Eu estava com a cabeça cheia de idéias. - Virou-se, satisfeita pela altura de seus saltos deixá-la com os olhos na altura dos lábios dele.

- E todas elas rela­cionadas a você.

- Fiquei aborrecido e saí. - Preston não se sentiu tão mal em admitir aquilo quanto imaginou que se sentiria.

- Sinto muito, mas considero isso lisonjeador. Quando bati à sua porta e ninguém respondeu, tive essencialmente a mesma reação. Passei muito tempo me preparando para você. Portanto, tam­bém pode se sentir lisonjeado.

 

- De fato, deve ter levado algum tempo para se arrumar desse jeito - observou ele.

- Não apenas isso - salientou Cybil, com um sorriso. - Também preparei o jantar.

Até aquele momento, havia conseguido manter seu coração batendo em um ritmo normal. Con­tudo, sentiu que ele acelerou ao chegarem à en­trada do prédio.

- É mesmo? - Preston se surpreendeu.

Cybil notou que ele não pareceu apenas lison­jeado e excitado com tudo aquilo, mas essencial­mente tocado.

- E dos mais saborosos, se me permite dizer - acrescentou ela, seguindo na frente. - Com um vinho leve para acompanhar e uma taça de champanhe para a sobremesa.

Ao chegar ao elevador, apertou o botão do ter­ceiro andar e encostou-se em uma das paredes.

- Pensei em tomarmos o champanhe com a sobremesa na cama - sugeriu, provocante.

Preston se manteve a um passo dela, sabendo que se a tocasse os dois acabariam demorando tempo demais no elevador.

- Há algo mais que eu precise saber a respeito de seus planos?

- Oh, não creio que seja necessário eu lhe ex­plicar todos os detalhes.

Dizendo isso, ela saiu do elevador e lançou um de seus sorrisos sedutores por sobre o ombro, enquanto se encaminhava até a porta de seu apartamento.

Se conseguisse entrar ali sem explodir de desejo, pensou Preston, talvez fosse capaz de mostrar a ela que também tinha planos.

- E a chave? - perguntou a ela.

- Hum...

Mantendo os olhos fixos nos dele, Cybil insinuou o dedo indicador para dentro do decote até tocar o metal da chave, deliciando-se ao ver o olhar de Preston se enevoar de desejo. Então tirou o dedo do decote e o deslizou sensualmente pela base do pescoço.

- Puxa, acho que não estou conseguindo en­contrá-la. Não quer procurá-la para mim?

Preston chegou à conclusão de que havia aca­bado de se transformar em um experimento cien­tífico: era possível se permanecer totalmente lú­cido e consciente mesmo sem nenhum vestígio de sangue na cabeça.

Insinuou o dedo ao longo da convidativa curva do decote de Cybil e foi penetrando-o devagar, até encontrar a renda da lingerie. Notou quando ela estremeceu, tornando-se ligeiramente ofegan­te. Então insinuou o dedo mais para dentro, tatean­do a pele macia até roçar o mamilo de Cybil, que se tornou túrgido sob seu toque. Os olhos verdes se tornaram enevoados e ela os fechou devagar.

- Acho que foi você quem andou praticando - murmurou ela, fazendo-o sorrir.

- Estou apenas fazendo o que me pediu.

- E melhor do que eu esperava - ela confessou. - Não se detenha por minha causa.

Preston não pretendia mesmo parar. Pelo me­nos pelas horas seguintes.

- Parece que a encontrei - anunciou ele, ta­teando a chave.

- Sim. - Cybil deixou escapar um longo sus­piro. - Eu sabia que você conseguiria.

Retirando a chave do seu esconderijo, segurou-a no ar.

- Convide-me para entrar, Cybil.

- Entre.

Preston abriu a porta e puxou-a delicadamente para dentro, antes de voltar a girar a chave na fechadura, isolando-os do resto do mundo.

- Vamos jantar? - perguntou Cybil, quando ele pousou as mãos em sua cintura.

- Isso pode esperar.

Quando passaram pelo telefone, ele o tirou do gancho.

- Quer vinho?

- Depois - foi a resposta. - Bem depois... Quando chegaram à base da escada, Cybil he­

sitou. Preston sorriu com charme e disse:

- Continue subindo.

Com as pernas trêmulas, ela começou a subir devagar.

- Peça-me para tocá-la.

Cybil sentiu um arrepio ao ouvir a voz avelu­dada de Preston tão próxima a seu ouvido.

- Toque-me.

Suspirou quando as mãos dele deslizaram sobre seus quadris. Ao chegarem ao alto da escada, Preston a virou de frente para ele. Fitando-a nos olhos, falou:

- Peça-me para prová-la.

- Prove-me.

E gemeu quando Preston deslizou a ponta da língua pela base de seu decote. No momento em que alcançaram a porta do quarto, ele lhe mor­discou o lóbulo da orelha e a delicada curva de seu pescoço, deixando-a sedenta por um beijo.

- Beije-me, Preston.

- Vou beijar - respondeu ele, roçando o canto dos lábios dela com a ponta da língua.

- Assim que eu acender a luz.

- Não, eu espalhei velas perfumadas pela casa. - Dizendo isso, ela pegou uma caixa de fósforos, mas desistiu de usá-la.

- Não vou conseguir - confessou.

- Estou tremendo muito. Não é ridículo?

Preston pegou a caixa de fósforos.

- Quero que fique trêmula - afirmou ele.

- Fique aqui - pediu, indo acender as velas.

Em pouco tempo, o ambiente do quarto se tor­nou agradavelmente iluminado, com um suave perfume se espalhando no ar. Deixando os fósforos de lado, Preston voltou para junto dela.

- Agora... - Puxou-a para si.

- Peça-me para possuí-la.

Cybil não desviou os olhos dos dele.

- Me possua.

Os lábios de Preston capturaram os dela, em um beijo intenso e exigente. Cybil se rendeu a ele sem receio, unindo a chama de seu desejo à do desejo de Preston. Fora por isso que ansiara. Por aqueles gestos incontidos e aquela exigência silenciosa. Aquela tormenta de sentidos, verda­deira guerra de emoções e desejos.

- Eu te quero, Preston - confessou, com voz rouca, beijando-o com voracidade.

- Quero tê-lo em minha cama.

Sobressaltou-se quando ele a levantou nos bra­ços de repente. Por um instante, viu o reflexo de ambos no espelho do quarto. Uma visão perfeita. Excitante.

- Temos a noite inteira - Preston lhe sussur­rou ao ouvido.

- Agora fique olhando...

Dizendo isso, ele a deitou na cama e ocultou o rosto junto ao pescoço dela, antes de ir descendo devagar, mordiscando-a e sugando-a sensualmen­te por cima do vestido.

Cybil gemia a cada gesto, trêmula de antecipa­ção. Ficou observando as mãos de Preston desli­zarem para cima até alcançarem seus seios. Então eles os segurou com ar de possessividade, por cima da seda. Em seguida, começou uma doce tortura, acariciando-lhe os mamilos por sobre o tecido, fa­zendo-a arquear o corpo e desejar que ele a li­vrasse de uma vez daquele empecilho.

Quando pensou que já houvesse sido suficiente­mente torturada, gemeu alto quando Preston tocou seu centro de prazer por cima da seda, deslizando a mão sensualmente para cima e para baixo.

Foi quando ele voltou a beijá-la, insinuando a língua entre seus lábios. Ela o havia deixado louco no clube e, pelo visto, ele pretendia revidar aquilo até o último instante.

- Diga que quer mais.

Cybil estava lânguida, movendo o corpo rendido à sensualidade.

- Preston, por favor...

 

Ele continuou movendo a mão para cima e para baixo, sentindo o excitante calor da intimidade de Cybil sob o tecido deslizante.

- Diga que quer mais.

- Oh, Deus... - Cybil inclinou a cabeça para trás, com um gemido ofegante.

- Eu quero mais.

- Eu também.

Esforçando-se para conter a urgência que ameaçava dominá-lo, Preston virou-a de lado e puxoo zíper do vestido para baixo. Quando livrou Cybil da peça, jogando-a de lado, não conteve um gemido de prazer.

"Sexy em preto-e-branco", as palavras lhe vieram à mente mais uma vez.

Naquele momento, Cybil notou que o brilho do desejo nos olhos dele se tornou quase selvagem. E, para sua surpresa, deu-se conta de que era exatamente isso que ela queria. Queria que Preston a possuísse de um modo incontido, como que mal conseguindo conter a ânsia do desejo.

Levada por um ímpeto de sensualidade, guioas mãos dele até seus seios.

- Comprei esta lingerie hoje - sussurroumantendo as mãos sobre as dele.

- Para que voca tirasse de mim esta noite.

Então entrelaçou os dedos nos dele, quando Preston deslizou a mão sobre a renda macia.

Sobressaltou-se quando, com um gesto súbito ele abriu o fecho, localizado na frente da peça. Os seios eretos finalmente se libertaram, preenchendo a visão de Preston com a imagem de algo que precisava ser tocado, saboreado.

 

Capturando um dos mamilos entre os lábios, lambeu-o e mordiscou-o até que o bico se tornasse túrgido e úmido, feito uma fruta recém-provada. Ofegante, Cybil gemia de puro prazer, pergun­tando-se se conseguiria sobreviver a tanto prazer. Quando pensou que fosse explodir, sentiu seu ou­tro mamilo ser submetido à mesma tortura deli­ciosa que levou seu corpo a se arquear e a ondular sobre os lençóis.

Com um sorriso de satisfação se insinuando nos lábios, Preston deslizou a mão para dentro da ou­tra peça de lingerie. E, em questão de segundos, levou Cybil a emitir um gemido sensual e prolon­gado, rendida a seu primeiro ápice de prazer. En­tão livrou-a daquela última peça, ao notar que ela queria mais.

Um perfume sensual lhe invadiu as narinas, enquanto Cybil levava as mãos à sua roupa, tam­bém ansiosa para despi-lo. Quando Preston se li­vrou da camisa, adorou sentir os dedos femininos afundando em suas costas, enquanto ela o puxava mais para junto de si. Com as mãos e a boca tão impacientes e ávidas quanto as dele, não demorou muito para que ela também o ajudasse a tirar as peças restantes.

No momento em que ambos finalmente se uni­ram em um abraço íntimo, durante o qual Preston a possuiu por completo, a explosão final de prazer não tardou a chegar. Passo a passo, movimento a movimento, o ritmo que envolvia os corpos nus foi se tornando cada vez mais intenso, até Cybil arquear o corpo em um espasmo mais prolongado.

Seduzido pelo prazer de vê-la sentir prazer, Pres­ton observou o lindo rosto absorver a chama do desejo para expulsá-la novamente na forma de um longo e prazeroso gemido sensual. Então, fi­nalmente ele sentiu-se livre para se entregar. Quando veio, seu próprio clímax o arrebatou com a força que move uma tempestade que chega em meio a um vento e uma chuva intensos, para de­pois ceder lugar à calmaria, à tranqüilidade.

Os dois permaneceram deitados naquele abraço íntimo por um longo tempo.

- Ainda estamos respirando? - Cybil foi a pri­meira a quebrar o silêncio.

Deitando-se ao lado dela, Preston pousou a mão em seu pescoço, examinando-lhe a pulsação.

- Seu coração ainda está batendo.

- Ótimo. E o seu?

- Também parece estar.

- Tudo bem - falou ela. - Então talvez seja mais seguro ficarmos aqui pelos próximos cinco ou dez anos. Somente então acho que terei forças para me mexer.

Preston levantou a cabeça. Mesmo mantendo os olhos fechados, Cybil sabia que estava sendo observada por ele, mas não se importou com isso. Com um sorriso, disse:

- Eu consegui provocá-lo, Preston McQuinn. E foi incrivelmente bom vê-lo responder à altura da provocação.

- Era o mínimo que eu poderia fazer.

- Nunca alguém me fez sentir assim antes. - Cybil abriu os olhos.

- Ninguém me tocou dessa maneira antes.

Assim que terminou de falar, Cybil percebeu que havia cometido um erro, pela maneira como Preston se retraiu. Eles poderiam até haver compartilhado algo maravilhoso, mas, para ele, aquilo não poderia ser confundido com nada além de atração física.

- Tem mãos maravilhosas - disse Cybil, notando a tensão no semblante dele e tentando recuperar a atmosfera de antes.

- Definitivamente milagrosas - insinuou, com um sorriso.

- Você também tem detalhes bem interessantes.

Preston deitou de costas, aborrecido consigo mesmo por estar querendo manter certa distância enquanto Cybil o olhava com tanta ternura no olhar. Mas não podia permitir que as coisas se confundissem entre eles. Se isso acontecesse, teriam de romper para sempre. Seu lado sonhador e romântico havia desaparecido havia muito tempo.

Cybil notou que Preston continuava muito tenso. Queria abraçá-lo e aninhar seu corpo junto ao dele, mas achou melhor se conter. "Mantenha as coisas simples", disse a si mesma. "Ou ele irá embora por aquela porta e nunca mais voltará."

Sentando-se na cama, passou a mão pelos cabelos desalinhados.

- Acho que aquele vinho cairia bem agora, não?

- Sim. - Preston deslizou a mão pelas costas dela. Tinha de fazer aquilo e manter o contato com ela de alguma maneira.

- Mencionou algo sobre jantar antes?

- Tenho um jantar maravilhoso esperando por você - respondeu Cybil, com um sorriso. - Inclinando-se, beijou-o nos lábios.

- Está tudo pron­to, exceto o crepe de marisco, que eu vou preparar diante de seu olhar espantado.

- Vai cozinhar?

- Hum-hum.

Preston ficou olhando ela se levantar e ir até o guarda-roupa.

- Para que isso?

- Isto? Chama-se robe - respondeu Cybil, com um sorriso, vestindo a peça. - Geralmente é usa­do para encobrir a nudez.

Ele também se levantou e se aproximou dela.

- Tire isso - mandou, abrindo o cinto do robe.

Cybil sentiu um arrepio pelo corpo.

- Pensei que quisesse jantar.

- E quero. Mas também quero vê-la cozinhar...

- Então... Oh. - Cybil riu novamente, voltando a fechar o robe.

- Não vou cozinhar crepes nua. Essa sua fantasia é perigosa demais para o meu gosto.

Preston olhou para os lados.

- Na verdade, eu estava pensando se você não teria algo mais... - Ele olhou para a cama, onde as peças de lingerie haviam sido deixadas.

- Mais parecido com aquilo.

Surpresa, depois intrigada, Cybil arqueou as sobrancelhas.

- Uma mulher inteligente nunca tem apenas um único conjunto sedutor de lingerie - admitiu ela.

- Tenho outro conjunto como esse, só que vermelho.

Um sorriso charmoso se insinuou nos lábios dele.

- Então por que não o veste? Estou com fome.

Preparar crepes vestida com uma lingerie sensual tinha lá seus riscos, mas também era compensador.

Cybil logo teve a chance de descobrir como era ser acariciada junto à porta da despensa: incrível. E "nocauteada" sobre o tapete da sala. Inacreditável.

Oh, e fazer amor sob o jato quente e intenso da água do chuveiro foi uma experiência que ela logo se mostrou ávida por repetir.

Preston passou a noite acariciando-a, nunca pa­recendo completamente satisfeito mesmo tendo Cybil bem ali, a seu lado. E a atitude dela em relação a ele também não era muito diferente dis­so. Os dois estavam tão sintonizados que, por ve­zes, chegavam a dizer uma mesma palavra ao mesmo tempo. Então, logo caíam na risada, com­partilhando uma atmosfera de cumplicidade.

As velas perfumadas já haviam se apagado em meio a pequenas poças de parafina e a única luz presente no quarto era a da lua, entrando sua­vemente pela janela e pairando sobre parte da cama onde Cybil finalmente adormeceu, exausta.

Quando acordou, estava sozinha. Sabia que não deveria haver se importado com o fato de Preston não ter dormido com ela. Afinal, não era mesmo para ser assim entre eles. Sabia disso, aceitava isso. Nada de palavras de carinho ou de atitudes que pudessem unir suas almas mais intimamente.

A intimidade entre eles se limitava ao nível físico e as questões ligadas ao coração eram pro­blema dela, somente dela.

Como Preston poderia saber que ela nunca se entregara tão completamente a nenhum outro ho­mem? Por que deveria esperar que ele percebesse que a intensa atração entre eles, pelo menos de sua parte, era sinal de amor?

Pensando nisso, massageou os olhos cansados por alguns segundos e saiu da cama.

Havia entrado no relacionamento com os olhos abertos, concluiu, enquanto arrumava o quarto. Conhecia as limitações do contexto e as de Pres­ton. Os dois poderiam permanecer juntos e des­frutar a companhia um do outro, desde que certos limites não fossem cruzados.

Então, que assim fosse. Não iria ficar se preo­cupando e suspirando por causa disso. Tinha o controle de suas próprias emoções, era responsável por suas ações, e não iria ficar chorando pelos cantos só porque estava apaixonada por um homem fasci­nante sem ser completamente correspondida.

- Droga! - Jogou os sapatos dentro do guar­da-roupa. - Droga! Droga!

Deitando-se sobre a cama, pegou o telefone, le­vada por um impulso. Precisava falar com alguém, desabafar de alguma maneira. E quando se tra­tava de uma questão vital, como essa, só havia uma pessoa a quem ela poderia recorrer.

- Mamãe? Oh, mamãe, estou apaixonada - disse e explodiu em lágrimas.

Os dedos de Preston se movimentavam com agi­lidade sobre o teclado. Tivera menos de três horas de sono, mas sentia-se renovado e com a mente clara. Seu primeiro roteiro mais importante havia sido como que arrancado de seu ser, palavra por palavra, em um processo quase doloroso. Mas des­sa vez estava sendo diferente. As palavras fluíam com a mesma facilidade de um bom vinho saindo de uma garrafa para um cálice fino, pronto para ser saboreado e elogiado.

A peça estava cheia de vida. E pela primeira vez em muito tempo, também era assim que ele estava se sentindo.

Estava conseguindo ver tudo com perfeição: os cenários, o posicionamento dos atores no palco e o modo de eles interpretarem seu texto. Estava criando um mundo em três atos.

Havia energia em tudo aquilo, dentro de cada um daqueles personagens que se formavam nas páginas de seu roteiro e que já criavam vida no palco, dentro de sua mente. Conhecia cada um deles e a maneira como seus corações iriam se entregar e se desiludir.

O tênue fio de esperança que permeava suas vidas ainda não havia sido planejado, mas se en­contrava lá, em algum recanto da mente de Pres­ton, e pronto para ser expressado.

Escreveu até sentir-se zonzo. Então olhou para a sala, meio desorientado. Estava escuro, exceto pela pouca luz oferecida pela luminária sobre a mesa e pela tela do computador. Não tinha idéia de que horas eram e nem mesmo da data, para dizer a verdade.

Seu pescoço e ombros estavam doloridos, seu estômago vazio e seu café havia sido esquecido na xícara sobre a mesa.

Ficando de pé, massageou a nuca e foi até a janela, onde afastou as cortinas. Somente então notou que havia uma tempestade se preparando para castigar a cidade. Os flashes de alguns re­lâmpagos anunciavam que ela não tardaria a che­gar, fazendo os pedestres acelerarem os passos, devido ao receio de serem apanhados pela chuva.

Um camelô na esquina não perdera tempo em anunciar seus guarda-chuvas, objeto do qual todo mundo em Nova York só parecia se lembrar no último instante em que precisava dele.

Imaginou se Cybil também estaria olhando a cidade através da janela e vendo aquela mesma cena. Então começou a devanear, vendo em sua mente a imagem de Cybil interpretando um fato simples, como uma chuva na cidade, sob um as­pecto todo engraçado e gozador.

Provavelmente ela criaria "O Homem do Guar­da-Chuva", concluiu ele, com um sorriso se insinuan­do nos lábios. Criaria toda uma biografia para ele, vestiria o sujeito de preto, daria-lhe um nome es­quisito e criaria uma série de histórias com ele. En­tão ele passaria a fazer parte do mundo de Cybil.

Sem dúvida, ela tinha o dom de trazer as pessoas para seu mundo. Ele próprio estava fazendo parte dele no momento. Não conseguira deixar de passar por aquela porta colorida que dava acesso à vida de Cybil e entrar naquele universo confusões, ale­grias e muita energia. Cybil parecia não compreen­der que Preston não pertencia àquele mundo.

Quando se encontrava dentro dele, cercado pela energia contagiante de Cybil, era como se pudesse ficar ali para sempre. A vitalidade de Cybil fazia tudo parecer simples e extraordinário ao mesmo tempo.

Como uma tempestade sobre a cidade, pensou ele. Mas tempestades passavam.

Ele quase se deixara levar naquela manhã. Quase se rendera ao desejo de continuar naquela cama quente, junto àquele corpo perfeito que se aninhara ao seu durante o sono.

Cybil era tão carinhosa, tão receptiva... O que lhe invadiu a alma enquanto ele a olhava sob a luz suave da lua entrando pela janela, fora um tipo diferente de desejo. Um desejo que ameaçava ficar e, perigosamente, estabelecer território. Por isso, fora mais seguro para ambos ele sair e dei­xá-la dormindo sozinha.

Fechou as cortinas com um gesto decidido e des­ceu para o andar de baixo. Preparou café fresco, procurou algo para comer e pensou em tirar um cochilo. No entanto, as lembranças da noite que passara ao lado de Cybil não lhe saíam da mente e ele sabia que os efeitos disso não o deixariam descansar por algum tempo.

O que ela estaria fazendo naquele momento? Não iria bater à porta do apartamento dela e in­terromper seu trabalho só porque o dele estava terminado. Só porque a visão daquela chuva o fizera se sentir inquieto e sozinho. Só porque ele a queria.

Gostava de ficar sozinho, lembrou a si mesmo, enquanto atravessava a sala. Necessitava da so­lidão para realizar seu trabalho.

Ainda assim, o desejo de se sentar ao lado de Cybil para observar aquela chuva continuou a tor­turá-lo. Sentiu o corpo esquentar ao se imaginar fazendo amor com ela com o barulho da chuva batendo contra a janela do quarto. Perfeito.

Ele a queria, admitiu, e com intensidade demais para seu próprio conforto. Quando uma mulher entrava tanto assim na vida de um homem, mu­dava-o inevitavelmente, deixando-o vulnerável a cometer erros e a expor partes de si que seria melhor serem mantidas na obscuridade.

Mas Cybil não era Pamela. E ele não era ne­nhum idiota que acreditava que toda mulher fosse mentirosa e manipuladora. Se conhecia alguém sem nenhum potencial para a crueldade e o fin­gimento, esse alguém era Cybil Campbell. Mas isso não mudava o fator principal.

A distância entre querer ter por perto e amar era muito curta. Quando um homem passava por isso e sofria uma grande decepção, aprendia a manter o equilíbrio entre ambas as coisas, para seu próprio bem. Não queria aquela sensação de desespero e de vulnerabilidade que andava de mãos dadas com a verdadeira intimidade.

Mas já se acreditava incapaz de sentir tais coisas, o que significava que não havia com que se preo­cupar. Tomando um gole de café, olhou para a porta como se pudesse enxergar através dela. Cybil não estava pedindo nada além de paixão, companhei­rismo e prazer. Exatamente como ele. Estava ciente de que o envolvimento entre eles era temporário. De que ele iria embora dentro de algumas semanas e que suas vidas retomariam a rotina de antes, se­guindo por caminhos diferentes. Ela com sua mul­tidão de amigos, ele com sua segura solidão.

Colocou a xícara sobre a pia com mais ímpeto do que o necessário, e foi somente então que se deu conta de que a idéia não o agradara.

Poderiam continuar se vendo de vez em quando, disse a si mesmo, andando de um lado para outro. Sua casa, em Connecticut, era um refúgio seguro, longe de toda aquela loucura da cidade. Não fora justamente por isso que a escolhera?

Já passara tempo demais na cidade, e não havia motivo para continuar ali além do necessário. Além disso, havia também a possibilidade de Cybil acabar encontrando outra pessoa, concluiu, en­fiando as mãos nos bolsos. Afinal, por que uma mulher maravilhosa como ela iria ficar esperando suas visitas esporádicas?

Mas isso não o incomodava, pensou ele, sentindo as têmporas latejarem. Quem estava pedindo a ela que o esperasse? Claro que Cybil tinha a li­berdade de se envolver com o primeiro idiota que a procurasse, provavelmente por indicação de al­guma amiga ou vizinha abelhuda.

Ah, mas isso não, concluiu. Não mesmo.

Sem hesitar, foi até a porta do apartamento dela com a intenção de deixar algumas coisas bem claras. E a abriu bem a tempo de ver Cybil caindo nos braços de um homem alto e atlético.

- Continua sendo a garota mais bonita de Nova York - disse ele, fitando-a com um olhar cari­nhoso. - Agora me dê um beijo.

Cybil se mostrou mais do que disposta a obe­decer, segundo Preston pôde notar de onde estava.

 

- Matthew! Por que não disse que viria? Quando chegou? Quanto tempo vai ficar? Oh, estou tão feliz em vê-lo! Deus, mas você está todo molhado. Entre e tire essa jaqueta. Quando vai comprar uma nova? Essa aqui parece que passou por uma guerra!

Matthew apenas riu e abraçou-a mais uma vez, levantando-a do chão e dando-lhe um beijo sonoro.

- Continua tagarela.

- Você sabe que eu não consigo parar de falar quando estou feliz. Quando... Oh, você está aí, Preston. - Ela foi até a porta, com um brilho de felicidade no olhar. - Não vi que estava aí.

- Isso ficou evidente - respondeu ele, contendo a vontade de agarrar o sujeito pelo colarinho e colocá-lo para fora do apartamento. –

 Mas não interrompam o encontro por minha causa.

- Matthew, esse é Preston McQuinn - Cybil os apresentou.

- McQuinn? - Matthew sorriu, mostrando os dentes muito alvos, sem sequer desconfiar que Preston estava com vontade de acertá-los com seu punho. - O roteirista de teatro. Vimos seu tra­balho da última vez em que estive na cidade. Cybil chorou um bocado. Tive praticamente de ampa­rá-la para fora do teatro.

- Não exagere, Matthew. Eu não fiquei tão mal assim.

- Ficou, sim. Se bem que você é do tipo que chora até vendo comerciais de tevê. Então não sei se todo aquele seu sentimentalismo contou muito...

- Oh, Matthew, como você gosta de me provo­car e... Oh, o telefone. Esperem um minuto, eu já venho.

Cybil foi atender ao telefone na cozinha, dei­xando os dois se entreolhando com ar desconfiado.

- Sou escultor - declarou Matthew, contendo o riso. - E já que preciso da mão para trabalhar, acho melhor ir logo dizendo que sou irmão de Cy­bil, antes de oferecê-la para cumprimentá-lo.

- Irmão? - O olhar ameaçador de Preston se amenizou um pouco, mas não desapareceu por completo.

- Não se parece muito com ela.

- Todo mundo diz isso. Mas se quiser conferir minha identidade...

- Era a sra. Wolinsky - anunciou Cybil, vol­tando para a sala. - Ela o viu entrando, mas não conseguiu abrir a porta a tempo de cumpri­mentá-lo. Acho que ela queria apenas dizer que você está mais bonito do que nunca. - Sorrindo, apertou as bochechas dele. - Ele não é lindo?

- Não comece.

- Ah, mas você é mesmo. Tem um rosto lindo, desses que fazem as mulheres suspirarem. – Ela sorriu e pegou a mão de Preston. - Venha, vamos beber algo para comemorar.

Ele fez menção de recusar, então deu de ombros. Não faria nenhum mal passar alguns minutos ao lado de Cybil e do irmão dela.

- Com que tipo de escultura você trabalha?

- Esculturas de metal - respondeu Matthew, tirando a jaqueta e jogando-a sobre uma cadeira.

Cybil, porém, pegou-a no mesmo instante.

- Vou pendurá-la no banheiro para secar. Pres­ton, sirva-nos um pouco de vinho, sim?

- Claro.

- Não tem cerveja? - indagou Matthew, ar­queando uma sobrancelha ao ver a familiaridade com que Preston foi até a cozinha, procurar a bebida.

- Tem, sim. - Preston tirou duas latinhas da geladeira e abriu-as, antes de servir vinho para Cybil.

- Você trabalha na região sul?

- Isso mesmo - Matthew respondeu. - Para mim, é mais prático ficar em Nova Orleans do que na Nova Inglaterra. Raramente chove por lá e isso me dá mais oportunidade de trabalhar ao ar livre. Cybil não havia falado de você. Quando se mudou para cá?

Preston tomou um gole de cerveja , notando que os olhos de Matthew eram quase da mesma cor dos cabelos de Cybil. Um tom de uísque envelhecido.

- Mudei-me há pouco tempo - respondeu.

- Age rápido, não? - insinuou Matthew.

- Dependendo do meu interesse...

- Preston - Cybil suspirou ao entrar na co­zinha -, poderia pelo menos ter servido a cerveja em copos, não?

- Não precisamos de copos - respondeu Mat­thew, dando uma piscadela para Preston.

- Be­bemos diretamente da lata, como homens de ver­dade, não é, McQuinn?

Cybil riu.

- Então não vai nem querer o queijo temperado e o patê com torradas que eu pretendia lhe ofe­recer para acompanhar a bebida? - provocou ela.

- Quem disse? - indagou Matthew, em um tom de protesto, sentando-se em um dos banqui­nhos diante do balcão.

- Você tinha quatro dessas banquetas, não tinha?

- Oh, emprestei uma para Preston. O que veio fazer em Nova York, Matthew? - perguntou ela, examinando o que havia na geladeira.

- Vim fazer alguns contatos para minha pró­xima exposição. Estou aqui apenas há alguns dias.

- E se hospedou em um hotel, não é? - ques­tionou Cybil, com ar ofendido.

- Essa sua "política de boa vizinhança" me dei­xa louco, irmãzinha. - Olhando para Preston, continuou: - Está aqui há algum tempo, não é? Então já deve ter visto como este apartamento vive cheio de gente. É um horror. Ela deixa... - ele fez um ar dramático -...as pessoas entrarem aqui a todo momento.

- Matthew é um recluso profissional - expli­cou Cybil, começando a arrumar a mesa. - Vocês dois vão se dar muito bem. Preston também não gosta de ter contato com muitas pessoas.

- Ah, finalmente alguém com bom senso. - Matthew sorriu para Preston, concluindo que cer­tamente os dois iriam se dar bem.

- Certa vez, cometi a tolice de pedir para ficar aqui - conti­nuou ele, pegando uma torrada. - Foi um pesa­delo. Três dias vendo gente entrando sem bater, falando alto e trazendo seus parentes e bichos de estimação.

- Era apenas um cachorrinho.

- Que insistiu em ficar no meu colo, sem ser convidado, e depois comeu minhas meias.

- Se você não tivesse deixado no chão, ele não as teria comido. Além do mais, ele só as furou um pouquinho.

- Isso é uma mera questão de perspectiva - salientou Matthew. - De qualquer maneira, em um hotel, as únicas pessoas que entram e saem são os funcionários, e eles batem à porta antes de entrar e não trazem "cachorrinhos" consigo. - Aproximando-se apertou o queixo dela com cari­nho.

- Mas vou deixar que cozinhe para mim, irmãzinha.

- Você é o melhor irmão do mundo, Matthew.

- Já comeu o rocambole de frango que ela faz, McQuinn?

- Acho que ainda não.

- Não sabe o que está perdendo - completou Matthew, com um sorriso. Voltando-se para Cybil, acrescentou: - Esse pode ser nosso cardápio para hoje, irmãzinha?

Ela revirou os olhos.

Não deixava de ser uma maneira interessante de passar á noite, pensou Preston algum tempo depois, observando Cybil conversar com o irmão. Lembrava-se de que o relacionamento que tinha com sua irmã era mais ou menos como aquele. Pelo menos até Pamela aparecer em sua vida.

Depois disso, evidentemente que continuara a haver afeição entre eles, mas a descontração de­saparecera. Com freqüência, passara a se sentir pouco à vontade na presença da própria irmã, coi­sa que nunca acontecera antes.

Mas ficar pouco à vontade era algo que estava longe da atmosfera familiar que envolvia os Campbell. Cybil e Matthew contavam histórias embaraçosas a respeito um do outro com a mesma facilidade com que contavam piadas, caindo na gargalhada como se aquilo fosse a coisa mais na­tural do mundo.

Algumas horas depois, ao deixar o apartamento de Cybil, pensou na possibilidade de trabalhar algumas características dos dois em seus perso­nagens, no segundo ato de sua peça, para dar ao texto um ar mais leve e cômico.

Trabalhar seria seu melhor consolo pelo resto da noite, já que, pelo visto, Cybil ficaria algum tempo ocupada com assuntos familiares.

- Gostei do seu amigo - falou Matthew, sen­tando-se no sofá e esticando as pernas, enquanto saboreava o conhaque que Cybil havia aberto em sua homenagem.

- Que bom, porque eu também gostei de Preston.

- Ele pareceu um pouco sério demais para você.

- Ah, bem... - Cybil sentou-se ao lado dele. - Mudar um pouco de estilo de vez em quando não faz mal a ninguém.

- É só isso que ele representa para você? - Matthew deu-lhe um carinhoso puxão de orelha. - Notei que vocês não perderam tempo em aproveitar ao máximo o momento em que os deixei sozinhos, quando fui dar um telefonema lá em cima.

- Se estava dando um telefonema, como pode saber o que eu e Preston estávamos fazendo? A menos que tenha ficado nos espiando...

Ela sorriu e pestanejou, não tardando a levar outro puxão de orelha.

- Eu não estava espiando. Apenas olhei por acaso para o andar de baixo, em um momento bastante estratégico. Além disso, também notei o detalhe de Preston haver olhado para você, por várias vezes durante o jantar, como se estivesse considerando-a mais apetitosa do que o prato prin­cipal. Então somei dois mais dois e tirei minhas próprias conclusões.

- Você sempre foi brilhante, Matthew. Portan­to, acho melhor eu confessar a verdade de uma vez, já que está sendo intrometido: Preston e eu estamos juntos.

- Você está dormindo com ele.

Cybil arregalou os olhos deliberadamente.

- Matthew! - exclamou, fingindo estar escan­dalizada. - Claro que não! Nós decidimos trocar apenas alguns beijinhos e tentar lidar com o resto apenas como bons amigos.

Matthew estreitou o olhar.

- Você sempre foi muito engraçadinha.

- Foi assim que conquistei minha fama e mi­nha fortuna, meu caro.

- E agora está mantendo a "fortuna" transfor­mando McQuinn no amigo muito sério e carran­cudo de Emily.

- Como eu poderia resistir?

Matthew tamborilou os dedos sobre o braço do sofá. - Emily acha que está apaixonada por ele. Cybil não disse nada por um momento, então balançou a cabeça negativamente.

- Emily é uma personagem de quadrinhos que faz o que eu digo para ela fazer, Matthew. Ela não sou eu.

- Mas tem características suas, e algumas das mais provocantes e inusitadas.

- É verdade - admitiu Cybil. - Por isso gosto dela.

Matthew deixou escapar um suspiro e tomou outro gole de conhaque.

- Ouça, Cyb, não quero me intrometer na sua vida pessoal, mas continuo sendo seu irmão mais velho.

- E você cumpre tão bem esse papel, Matthew. - Ela o beijou no rosto. - Não precisa se preo­cupar comigo. Preston não está se aproveitando, e nem vai se aproveitar de sua irmãzinha. - Ela provou um gole da bebida dele. - Na verdade, eu me aproveitei dele. Preparei biscoitos de cho­colate para ele e, desde então, Preston se tornou meu escravo e amante.

- Lá vem você com essa língua solta de novo - ralhou ele, parecendo tomado por um raro mo­mento de embaraço. Ficando de pé, deu alguns passos pela sala.

- Tudo bem, não quero saber os detalhes, mas...

- Oh, mas eu estava tão ansiosa para contar tudo a você... Principalmente sobre a parte dos vídeos caseiros...

- Chega, Cybil. - Matthew passou a mão pelos cabelos, dessa vez parecendo realmente embara­çado. - Sei que é uma mulher adulta e que é incrivelmente bonita, apesar desse nariz.

- Ei! Meu nariz é muito bonito, ouviu?

- Trabalhamos duro na terapia familiar para fazê-la acreditar nisso. Ainda bem que você con­seguiu superar tão bem essa deformidade.

Cybil não conteve o riso.

- Oh, cale essa boca, Matthew.

- Mas, voltando a falar sério, tudo que eu quero lhe pedir é que tome cuidado. Entendeu? Cuide-se.

Cybil ficou de pé, fitando-o com olhar carinhoso.

- Eu te amo, Matthew. Apesar desse seu ca­coete horroroso.

- Ei! Não tenho nenhum cacoete!

- Trabalhamos duro na terapia familiar para fazê-lo acreditar nisso. - Rindo, ela enlaçou os braços em torno do pescoço dele e o abraçou com carinho.

- É tão bom tê-lo aqui. Não pode ficar por mais tempo?

- Não posso, meu anjo. - Ele pousou o queixo sobre a cabeça dela. - Vou passar alguns dias em Hyannis. Quero trabalhar um pouco, fazer al­guns esboços. Vovô reclamou que faz tempo que eu não vou visitá-los.

- Oh, ele é mestre em fazer isso. Por acaso, vovó está "morrendo de preocupação por sua cau­sa"? - falou ela, rindo e afastando-se para fitá-lo.

- Descabelando-se - respondeu ele, também rindo. - Por que não vem também? Dê um bônus a ele. Assim poderemos salvar um ao outro quando ele começar com aquela história de nos perguntar por que ainda não estamos casados e dando bis­netos a ele.

- Bem, ele andou me telefonando algumas ve­zes nas últimas semanas, sem me dar a chance de telefonar primeiro. - Cybil tornou-se pensa­tiva por um instante, considerando os compromis­sos que tinha para cumprir. - Estou com o serviço um pouco adiantado, mas tenho um compromisso, depois de amanhã, que não pode ser adiado.

- Então viaje depois disso - sugeriu Matthew. - Convide Preston para ir com você. Teremos uma reunião familiar por lá.

- Acho que ele iria se divertir - disse ela. - Vou ver se ele quer me acompanhar. De qualquer maneira, eu irei.

- Ótimo.

Matthew ficou torcendo para que Preston acei­tasse o convite. Iria se divertir muito vendo seu avô intimando-o a pedir a mão de Cybil.

Como já passava da meia-noite quando Mat­thew foi embora para o hotel, Cybil achou melhor tomar um banho e ir direto para a cama. Não havia dormido o suficiente na noite anterior, e nem Preston. Portanto, a coisa mais prática e sen­sata a fazer no momento seria tentar ter seu me­recido descanso.

Porém, quando deu por si, já havia atravessado o corredor e estava apertando a campainha do apartamento em frente ao seu. Estava começando a pensar que Preston já havia ido dormir quando ouviu a chave girando na fechadura.

- Oi, não quer tomar um último drinque antes de ir dormir?

Ele olhou por cima da cabeça dela, tentando enxergar o interior do apartamento em frente.

- Onde está seu irmão?

- A caminho do hotel. Abri uma garrafa de conhaque para ele e...

Cybil não se surpreendeu quando, antes mesmo de terminar a frase, Preston puxou-a para dentro do apartamento, trancou a porta e enlaçou os bra­ços em torno da cintura dela. E também não se surpreendeu quando os lábios dele esmagaram os dela em um ávido beijo.

- Pelo visto, não vai querer tomar conhaque - falou ela, ofegante. Sem se importar com o fato de Preston já haver começado a tirar sua blusa, acrescentou: - Ou alguma outra bebida.

A força do desejo que sê apoderara dele no mo­mento em que vira Cybil era quase incontrolável. Saber que poderia tê-la novamente para si dei­xara-o ansioso, impaciente para amá-la outra vez.

Cybil também se deixou levar pelo desejo, co­lando seu corpo ao dele com gemidos de prazer, enquanto sentia Preston deslizar sua calça para baixo, por sobre seu quadril. Sim, queria pertencer a ele mais uma vez. E por isso não perdeu tempo em se livrar do restante das peças que cobriam seu corpo.

Sentiu as mãos de Preston acariciarem seus seios, segundos antes de ele tomar um dos ma­milos entre os lábios, sugando-o e mordiscando-o sensualmente. Ofegante, Cybil foi deixando pon­tos avermelhados nas costas de Preston, causados pelo efeito de suas unhas, em meio ao enlevo de prazer.

A pele acetinada de Cybil era como um convite ao toque e à carícia. Um convite irrecusável para um homem atormentado pelo desejo. Devagar, ele foi deslizando os lábios sobre o corpo dela, até alcançar o ponto mais sensível do corpo de Cybil e sentir os dedos dela se cravarem em seus om­bros. Gemidos de prazer começaram a soar pelo ambiente.

Não era possível que alguém pudesse sobreviver a todo aquele prazer, foi o último pensamento coe­rente que passou pela mente de Cybil, antes de ela se deixar levar completamente. Preston afun­dou os dedos em suas nádegas, enquanto a levava à loucura com os lábios e a língua.

Um grito de prazer logo irrompeu em sua gar­ganta, enquanto, por um instante, o ar pareceu su­mir de seus pulmões. Rendida, encostou-se à porta, ainda entregue aos lábios ávidos de Preston.

Sua postura pareceu acender ainda mais a cha­ma do desejo nele. Preston deslizou as mãos pela pele úmida de Cybil, enquanto continuava sua doce tortura com os lábios, exigindo mais, mais...

Até sentir-lhe o corpo recomeçar a estremecer e se mover com cada vez mais sensualidade, em busca do novo êxtase.

Deixando-a quase no limiar do clímax, Preston levou-a até a única cadeira que havia na sala. Livrando-se das próprias roupas, sentou-se e pu­xou-a para si de maneira quase selvagem. Então guiou-a até seu membro pulsante e ambos final­mente se tornaram um. Sem deixar de fitá-la nem por um instante, maravilhou-se ao ver o verde intenso dos olhos dela se escurecerem de prazer.

Então, com um gemido erótico, ela começou a se mover. Dessa vez, seria Cybil quem ditaria o ritmo do prazer. E ela o fez melhor do que ele poderia esperar. A cada movimento daqueles qua­dris perfeitos, Preston sentia como se fosse explo­dir de prazer a qualquer momento. O gosto da sensualidade de Cybil permanecia em sua boca, enquanto o excitante aroma de seus corpos unidos lhe invadia as narinas, enevoando-lhe os sentidos e fazendo-o ansiar pelo alívio final.

Aqueles sons sensuais e quase selvagens emi­tidos por Cybil o estavam deixando louco, assim como o arrebatamento erótico presente na expres­são do rosto dela e naqueles lábios entreabertos.

Preston sentiu que estava muito próximo do clí­max e teve de se esforçar para conseguir se conter mais um instante, só mais um instante, até sa­tisfazer Cybil completamente.

De fato, não teve de esperar muito, pois logo a viu inclinar a cabeça para trás, com uma concen­trada expressão de êxtase, ao mesmo tempo em que um gemido mais alto e mais prolongado anun­ciou a força de seu ápice de prazer.

Então Preston também fechou os olhos, arre­batado por uma intensa onda de prazer. Gemeu, ao sentir os lábios e a língua de Cybil em seu pescoço, o complemento perfeito para aquele mo­mento tão especial.

Lembrou-se do que ela havia lhe dito antes, que ninguém a havia tocado como ele. Também ninguém o havia tocado como ela. No entanto, por mais que fosse hábil com as palavras, não conseguia imaginar uma maneira de dizer a Cybil quanto ele a considerava especial.

- Passei a noite inteira querendo fazer isso com você. - Pelo menos isso ele podia dizer, sem arriscar o futuro de ambos.

- E pensar que eu quase fui dormir. - Com um longo suspiro pleno de satisfação, Cybil passou a mão pelos cabelos, ajeitando-os. - Eu sabia que esta cadeira era perfeita para você.

Preston sorriu com charme.

- Eu estava pensando em mandar restaurá-la, mas agora acho que vou mandar pintá-la de dou­rado, como uma espécie de troféu.

Ela riu inclinando a cabeça para trás, então voltou a olhá-lo e segurou o rosto dele entre as mãos.

- Adoro quando você tem esses surtos de bom humor.

- Não estou brincando - declarou Preston, com expressão séria.

- Isso vai me custar uma fortuna.

Queria vê-la rir, fazendo aquele som, do qual ele se tornara quase dependente, soar pela sala.

Mas Cybil se limitou a sorrir, com um brilho de divertimento no olhar.

- Preston - disse, antes de beijá-lo nos lábios.

O beijo suave, mas intenso, foi como uma es­pécie de compartilhamento de algo muito especial. Preston estremeceu. Aqueles dedos carinhosos en­trelaçados a seus cabelos e os lábios doces de Cybil o fizeram ansiar por algo que ele se recusava a admitir.

Algo muito intenso estava acontecendo em seu ser, tornando suas mãos trêmulas no esforço de se manter imune àquele turbilhão de sensações. Mas Cybil era encantadora demais para ele con­seguir resistir. Havia cruzado aquela tênue linha entre querer e precisar, sentindo-se perigosamen­te próximo do limite de amar.

Cybil suspirou, encostando o rosto junto ao dele. Se pelo menos Preston pudesse amá-la tanto quanto ela o amava...

- Está com frio? - perguntou Preston, ao notar a temperatura do rosto dela.

- Um pouquinho. - Ela manteve os olhos fe­chados por mais algum tempo, lembrando a si mesma que nem sempre era possível se ter tudo que se queria.

- Estou com sede. Também quer um pouco de água?

- Sim, eu vou pegar - respondeu ele.

- Não, não precisa se incomodar. - Cybil ficou de pé, deixando Preston com uma incômoda sen­sação de perda. - Matthew gostou de você - comentou, indo em direção à cozinha.

- Também gostei dele. - Preston respirou fun­do, recuperando o autocontrole.

- Aquela escul­tura em seu ateliê é trabalho dele?

- Sim. Maravilhoso, não? Matthew tem uma visão muito singular das coisas. E vê-lo trabalhar, quando ele está de bom humor e não ameaça ma­tar quem o estiver observando, é uma experiência incrível.

Cybil abriu uma garrafa de água, encheu um copo alto até a borda e bebeu quase um terço de seu conteúdo, antes de entregá-lo a Preston. Não notou o olhar surpreso que recebeu quando se ani­nhou feito uma gata manhosa sobre o colo dele.

- O que acha de fazermos uma viagem? - perguntou ela, de repente.

- Uma viagem?

- Sim. Passar alguns dias em Hyannis Port. Matthew vai visitar nossos avós, os MacGregor, e pensei em fazer o mesmo. Vovô adora reclamar que não os visitamos o suficiente. O lugar é lindo e a casa é... Bem, é impossível descrevê-la. Mas tenho certeza de que você vai gostar tanto dela quanto dos meus avós. E então? Está interessado em deixar a loucura dessa cidade um pouquinho, Preston McQuinn?

- Isso está me soando a reunião familiar.

Ele se surpreendeu com a súbita sensação de tristeza que o invadiu diante da idéia de ter de passar alguns dias longe de Cybil.

- Com os MacGregor por perto, tudo soa como uma reunião de família. Vovô adora conversar e fazer novas amizades. Está com mais de noventa anos e tem uma energia invejável.

- Eu sei. Ele é fascinante. Aliás, os dois são. - Preston sorriu quando Cybil franziu o cenho. - Eu já os conheço. Eles são conhecidos de meus pais.

- É mesmo? Eu nunca imaginaria isso. Eu lhe falei sobre todas aquelas ligações familiares meio complicadas, não falei? MacGregor com Blade. Blade com Grandeau. Grandeau com Campbell. Campbell com MacGregor... Não necessariamente nessa ordem.

- Não comece com isso de novo, por favor. Só de ouvir essa porção de nomes já estou sentindo a cabeça doer.

Cybil riu e o beijou.

- Bem, se já os conhece e também já foi apre­sentado a Matthew, pelo menos não vai se sentir em meio a um grupo de estranhos. Venha comigo. - Ela mordiscou a orelha dele. - Será divertido.

- Poderíamos continuar bem aqui, nesta ca­deira, e nos divertirmos muito mais...

Cybil riu, lisonjeada.

- Há muitos e muitos quartos no castelo Mac­Gregor - murmurou ela, junto ao ouvido dele. - E, em vários deles, camas enormes e macias.

- Quando partiremos?

- Oh, está falando sério, Preston? - Ela se afastou para olhá-lo, entusiasmada com a idéia. - Que tal depois de amanhã? Tenho uma reunião pela manhã, mas poderemos partir depois do al­moço. Oh, e posso alugar um carro para viajarmos.

- Eu tenho carro.

Cybil inclinou a cabeça, estreitando o olhar.

- Hum, é um carro sexy?

- O que acha dos sedãs de quatro portas? Ela hesitou.

- Bem, é um carro que tem uma certa presen­ça... Gosto de carros assim.

- Que pena, então acho que não vai gostar do meu Porsche.

- Um Porsche?! - Cybil arregalou os olhos.

- Oh, não me diga que é conversível?

- Que outro modelo poderia ser?

- Sim, claro. Oh, e diga que ele tem cinco marchas.

- Sinto muito, mas são seis. Ela ficou boquiaberta.

- É mesmo? Verdade? Posso dirigi-lo?

- Claro. Se depois de amanhã o inferno de repente resolver congelar, deixarei você se sentar ao volante dele.

Com uma careta de desagrado, Cybil começou a brincar com os cabelos dele.

- Mas sou uma excelente motorista.

- Tenho certeza de que sim.

Preston achou que seria mais produtivo tentar distraí-la do que continuar ouvindo-a e deixar que ela acabasse fazendo-o mudar de idéia. Encostou o copo frio sobre as costas dela, fazendo-a arquear o corpo levemente, em um arrepio, enquanto seus seios roçavam o peito dele.

- Hum... O que acha que conseguiremos fazer se reclinarmos essa cadeira um pouco para trás? - indagou ele, em um tom sensualmente sugestivo.

Um brilho sedutor surgiu nos olhos de Cybil.

- Hum... Uma porção de coisas loucas e deli­ciosas... - murmurou, inclinando a cabeça para que os lábios de Preston tivessem mais acesso a seu pescoço. - Sabia que meu avô é o dono desse prédio? - falou, por acaso, mantendo os olhos fechados.

- Sim, eu sei. Aliás, foi ele quem me falou sobre este apartamento quando eu estava procu­rando um lugar para ficar temporariamente.

- Ele lhe falou sobre este apartamento?

Preston moveu-se de modo a ficar por cima dela, distraindo-a momentaneamente de um vago pen­samento que começara a se formar na mente dela.

- Quando ele... Oh, Deus, você é tão bom nisso...

- Obrigado. Mas pretendo ficar ainda melhor.

Um sorriso se insinuou nos lábios de Cybil. Seria possível Preston conseguir fazer amor de maneira ainda melhor? Era o que iria tentar descobrir.

 

A casa dos MacGregor se localizava em um belíssimo conjunto de colinas com vista para o mar. Tudo ali era sóbrio e mar­cante, principalmente a imponente construção de pedra. Tudo na aparência do lugar, desde suas torres semelhantes às dos castelos, até a bandeira tremulando com o símbolo do clã, parecia bradar a palavra "orgulho" aos quatro ventos.

O velho Daniel havia mandado construíra casa em seu lugar preferido: o cume de uma das colinas mais altas e com uma das mais belas vistas do mar que se poderia ter dali. E era mais do que evidente que a construção havia sido feita para durar. Como um sólido legado dos MacGregor aos descendentes do clã.

Os inúmeros canteiros de rosas, que floresce­riam com todo vigor na primavera seguinte, não amenizavam o efeito de imponência do lugar. De fato, serviam apenas para enfatizar aquela aura mágica e quase mítica.

- Pare - pediu Preston, pousando a mão sobre o braço de Cybil. - Pare o carro.

Um sorriso se insinuou nos lábios dela. Sabia muito bem o que era ter aquela reação ao ver a casa dos MacGregor ao longe. Feliz em notar que a visão o afetara tanto quanto sempre a afetava, Cybil parou o carro com movimentos cuidadosos.

- Parece um castelo de conto de fadas, não? - disse, apoiando-se sobre o volante, enquanto ambos observavam a mansão através da leve ga­roa. - Não aqueles das versões mais românticas, mas um castelo com personalidade própria.

- Eu já o tinha visto em fotografias, mas elas nunca são como a imagem real.

- Não se trata apenas de uma mansão, mas de um lugar que transmite uma aura de genero­sidade. Sempre que a visitamos, encontramos al­guma novidade aqui e acolá. E geralmente algo que nos surpreende.

E dessa vez, não seria diferente, pensou Cybil. Só que seria ela quem levaria a surpresa até a mansão.

- Essa garoa combina com a paisagem, não? - disse a ele.

- Acho que essa paisagem fica bem em qual­quer clima.

- Tem razão - anuiu Cybil, com um sorriso. - Precisa ver esse lugar no inverno. Sempre via­jamos para cá na época do Natal. É lindo como o efeito da neve e do vento deixam-na com a apa­rência de um castelo de gelo. No ano passado, quando as rosas começaram a desabrochar e o céu estava tão azul que chegava a ofuscar a vista, meu primo, Duncan, casou-se aqui. Mas assim, em meio à garoa... - Ela sorriu com ar sonhador. - O lugar lembra uma paisagem escocesa.

- Já esteve na Escócia?

- Hum-hum. Duas vezes. E você?

- Não. Nunca estive lá.

- Pois deveria viajar até lá. Por uma questão de raízes - acrescentou ela. - Ficará surpreso com a força que você passa a sentir ao respirar o ar das Terras Altas e ao ver as lindas paisagens das Terras Baixas.

- Talvez eu viaje para lá em breve. Vou querer algumas semanas de descanso quando esse meu último roteiro estiver terminado. - Preston olhou para ela e arqueou as sobrancelhas. - E então? Está gostando do carro?

- Bem, levando-se em conta que você só me deixou dirigi-lo por aproximadamente quarenta e cinco segundos, acho meio difícil lhe dar um pa­recer. Mas se me deixar dar uma volta mais de­morada com ele amanhã...

- Nem mesmo seu maior poder de persuasão vai me convencer a deixá-la dirigi-lo por mais tem­po do que daqui até a mansão.

Cybil deu de ombros, como que não dando im­portância ao fato. Porém, no íntimo, pensou: "É o que veremos", e partiu novamente pela estrada.

Quando chegaram, ela estacionou o carro diante da suntuosa mansão.

- Muito obrigada - agradeceu e deu um leve beijo nos lábios de Preston, antes de lhe entregar as chaves do carro.

- Não há de quê.

- Não vamos nos preocupar com a bagagem agora, está bem? Vamos esperar primeiro essa garoa passar, depois viremos pegá-la ou manda­remos um dos empregados fazê-lo.

Dizendo isso, ela abriu a porta do carro e saiu correndo em direção à varanda coberta, onde pa­rou para sacudir os cabelos e secá-los com as mãos.

Durante algum tempo, Preston ficou parado no carro, apenas admirando o jeito encantadoramen­te infantil de Cybil. Não se cansava de olhar aque­le belo sorriso de menina misturado ao ar sensual que se manifestava nela com naturalidade, e do qual Cybil nem parecia ter consciência. De certa maneira, esse último detalhe parecia torná-la ain­da mais sedutora.

Queria acreditar que o que estava sentindo era apenas desejo, mas, por outro lado, sabia que de­sejo puro e simples não despertava o receio de ficar longe ou de perder a outra pessoa. O mero desejo era algo mais simples de se lidar, e menos perigoso. No entanto, já que não tinha como ig­norar aquilo que estava sentindo, pelo menos ten­taria continuar negando o fato para seu próprio bem, e para o de Cybil.

Respirando fundo, saiu correndo em direção à va­randa, deixando que a garoa e o vento, a essa altura mais intensos, atingissem seu rosto e seus cabelos. Quando alcançou Cybil, não resistiu ao riso divertido que ela soltou e puxou-a para si, tomando-lhe os lábios com uma paixão quase violenta.

Por um momento, Cybil apenas agitou as mãos no ar, aturdida com a pressão do corpo másculo de Preston junto ao seu e com urgência daqueles lábios quentes colados aos seus. Porém, não de­morou muito para se render mais uma vez àquela sedutora aura de desejo, retribuindo o beijo com a mesma intensidade.

- Preston...

Ele ouviu o murmúrio em meio à tormenta que varria seu corpo e sua mente, feito ondas batendo contra rochas sólidas. De fato, foi somente o som da voz de Cybil que o fez despertar para a rea­lidade e se lembrar de onde eles se encontravam.

- Com sua família por perto, não poderei fazer isso por algum tempo - explicou ele, prendendo uma mecha dos cabelos dela atrás de sua orelha delicada.

Cybil sentiu um carinho todo especial naquele gesto e o sorriso que curvou seus lábios foi de puro encantamento. Já não se importava que Preston percebesse que ela estava apaixonada por ele. Aquele sentimento era bonito e intenso de­mais para continuar sendo mantido apenas em seu coração.

- Bem, pelo menos isso exigirá que eu também me comporte. Mas sei que não vai ser fácil... - acrescentou dando um último beijo nele.

Com um sorriso, segurou-o pela mão e o puxou para dentro.

O interior da mansão, apesar de grandioso, era inusitadamente aconchegante. Pelas paredes, via-se espadas e escudos antigos polidos ao ponto de bri­lhar. Afinal, tratava-se da casa de um guerreiro. Um aroma de flores e de madeira recendia pelo ar, tornando o ambiente ainda mais agradável.

- Cybil!

 

Anna MacGregor desceu a ampla escada, sor­rindo com satisfação. Os cabelos quase brancos estavam penteados para trás, em um coque ele­gante, e os olhos castanho-escuros transmitiam um brilho de sabedoria impossível de passar des­percebido. Ao se aproximar, ela abriu os braços para envolver a neta em um abraço.

- Oh, vovó... - Cybil fechou os olhos com ca­rinho, adorando sentir o familiar perfume de la­vanda da avó. - Como consegue ficar cada vez mais bonita? - disse ao se afastar.

Anna afagou o braço dela com carinho e sorriu.

- Uma mulher tem de saber manter um pouco de vaidade, menina. Mesmo se tratando de uma com a minha idade.

- Não consigo vê-la como uma mulher velha. Está sempre tão linda. Não é mesmo, Preston?

- Sem dúvida - anuiu ele, com um sorriso.

- Ora, um elogio vindo de um lindo jovem é sempre bem-vindo, mesmo que seja por pura gen­tileza - gracejou Anna. Mantendo o braço em torno da cintura de Cybil, ela estendeu a mão para cumprimentar Preston.

- Olá, Preston. Não deve se lembrar muito bem de mim. Acho que você não tinha mais do que dezesseis anos da última vez em que o vi.

- Isso mesmo - confirmou ele, apertando a mão dela. - Mas lembro-me muito bem da se­nhora. Estávamos em um baile de primavera em Newport, e a senhora foi muito compreensiva co­migo, quando eu a cumprimentei e disse que pre­feriria ter ido a outro lugar.

- Ah, então você se lembra. - Anna sorriu. - Agora fiquei mesmo lisonjeada. Venham se aquecer, meninos. Devem estar com frio depois de haverem tomado essa garoa.

- Onde estão vovô e Matthew? - Cybil quis saber.

- Ah. - Anna riu baixinho enquanto os con­duzia ao aposento que a família costumava cha­mar de "Sala do Trono". - Daniel levou o coitado para nadar com ele na piscina. Disse que Matthew estava precisando se exercitar um pouco, e você sabe como seu avô leva a sério esse negócio de nadar diariamente. Vive dizendo que é isso que o mantém jovem.

- Tudo o mantém jovem. - Cybil riu.

A melhor palavra para definir aquele aposento era "apropriado", pensou Preston. Uma cadeira de espaldar alto, com certeza pertencente ao velho Daniel, dominava a sala forrada por um felpudo tapete vermelho-escuro. Os móveis eram antigos, feitos de madeira maciça e trabalhada. As luzes do lustre antigo se encontravam acesas, assim como a lareira de pedra, cujo calor deixara a sala com uma temperatura extremamente agradável.

- Vamos tomar o chá da tarde. Imagino que Da­niel vá insistir para acrescentarmos uísque ao chá e que usará o fato de termos visitas como desculpa para isso. Sentem-se e fiquem à vontade - acres­centou Anna, indicando as poltronas. - Se eu não o avisar que vocês estão aqui, ouvirei reclamações por semanas - explicou, com um gesto de mão.

- Sente-se a senhora, vovó - falou Cybil. - Pode deixar que eu avisarei vovô e servirei o chá.

- Oh, continua prestativa como sempre, não é, minha querida? - Anna afagou a mão da neta, enquanto se sentava. - Sempre foi. - Indicando a poltrona ao lado da dela, continuou: - Sente-se aqui, Preston. Daniel e eu assistimos à sua peça, em Boston, há alguns meses. Achei o roteiro po­deroso, contestador. Sua família deve se sentir muito orgulhosa de seu talento.

- Na verdade, acho que eles ficaram mais sur­presos do que orgulhosos.

- Às vezes, essas reações levam ao mesmo re­sultado - disse ela, com sabedoria. - Na verdade, nunca esperamos que nossos parentes, por mais que os admiremos, demonstrem genialidade. Isso sempre nos espanta e nos leva a pensar: "Como não notei isso durante todo esse tempo?".

- A senhora conhece minha família - falou Preston. - Então deve ter notado que abordei vários comportamentos deles na minha peça.

- Sim, eu notei. Mas, às vezes, é bom desabafar por meio da arte. Além de facilitar o processo de catarse, permite a alguém de talento, como você, criar uma bela obra artística. Sua irmã está bem?

- Sim, apesar dos filhos. - Ele riu. - Eles são o centro da vida dela.

- E quanto a você, Preston. O trabalho é o centro" de sua vida?

- Creio que sim.

- Oh, desculpe-me. - Aborrecida consigo mes­ma, Anna tocou o braço dele. - Estou sendo bis­bilhoteira, e geralmente deixo isso a encargo do meu marido. Estou interessada em saber mais detalhes porque me lembro muito bem da maneira como você olhava para sua irmã naquela festa, em Newport. Lembrou-me a maneira como Alan e Caine sempre olharam para Serena, e de como isso sempre pareceu aborrecê-la, como pareceu aborrecer... Jenna, é isso?

- Sim - confirmou Preston, com um sorriso. - Ela ficava mesmo muito brava. - O sorriso logo desapareceu. - Se eu tivesse agido com mais cautela nos anos que se seguiram, ela não teria ficado magoada.

- Preston, você não a magoou. E, na verdade, eu não pretendia fazê-lo recordar esses fatos do passado. Agora me conte no que está trabalhando, ou será que isso é segredo por enquanto? - acres­centou ela, com um sorriso gentil.

- Não, não é segredo. - Ele sorriu com charme. - É uma história de amor que se passa em Nova York. Pelo menos, é nisso que está se transformando.

- Ainda não serviu um uísque para o rapaz, Anna?

Daniel entrou na sala com passos firmes e, como sempre, sua presença logo dominou o ambiente. Os responsáveis por isso eram sua postura, seu porte elegante e aquela voz firme que se negava a enfraquecer com a idade. Os olhos muito azuis continuavam com um brilho sagaz e os cabelos completamente grisalhos lhe atribuíam um char­moso ar de sabedoria.

- Isso é maneira de receber um homem que andou nessa garoa fria e que conseguiu trazer nossa neta preferida até aqui?

- Oh, que ótimo - resmungou Matthew, vindo atrás dele. - Quando quis ter sua piscina con­sertada, eu era seu neto preferido.

- Bem, ela está consertada agora, não está? - falou Daniel, com uma piscadela para todos e um sorriso afetuoso para o neto.

- É muito bom revê-lo, sr. MacGregor.

Preston ficou de pé e cruzou a sala com a mão estendida, para ir cumprimentá-lo. Mas para Da­niel isso não era suficiente quando havia algum tipo de interesse de sua parte em um "pretendente em potencial". Por isso, enlaçou Preston em um abraço que pareceu deixar o rapaz sem fôlego por um instante.

- Está com uma aparência ótima, McQuinn. Só está faltando mesmo uma boa dose de uísque escocês para pôr um pouco de cor em seu rosto.

- Terá uma gota de uísque em seu chá, Daniel, se é isso que está querendo - Anna interveio, indo buscar a bebida.

- Uma gota? - Para um homem daquela idade, Daniel ainda sabia choramingar como um bebê. - Anna...

- Duas gotas - corrigiu ela, com um sorriso que parecia querer dizer: "Estou sendo mais do que generosa, portanto, não me provoque".

- Diga-me uma coisa, Preston, você fuma charutos?

- Não por hábito - respondeu ele.

Anna virou-se e olhou para Daniel com ar de aviso.

- Então, se eu chegar em algum lugar e o vir com um charuto entre os dedos, saberei quem o passou para você.

- Essa mulher é mesmo uma carrasca - res­mungou Daniel. –

 Bem, mas sente-se, rapaz, e diga­me como estão indo as coisas entre você e Cybil.

Alarmes soaram na mente de Preston.

- Como estão indo as coisas?

- Ora, vocês são vizinhos, não são?

- Sim. - Preston sentou-se, sentindo-se um pouco mais aliviado, mas não muito. - Nossos apartamentos ficam um em frente ao outro.

- Ela é linda como uma flor, não é mesmo?

- Vovô - ralhou Cybil, colocando a bandeja com chá sobre a mesa. - Não comece. Não faz nem dez minutos que Preston está aqui.

- Começar o quê? - indagou Daniel, com ar inocente. Estreitando o olhar, acrescentou: -Você é bonita ou não é?

- Ah, sou adorável. - Ela riu e beijou-o no nariz. Aproveitando que estava perto dele, sus­surrou-lhe ao ouvido: - Comporte-se e eu colo­carei um pouco do meu uísque no seu chá quando ela não estiver olhando.

Os lábios de Daniel se curvaram em um amplo sorriso.

- Esta é minha garota.

- Não vai acreditar no sabor desses bolinhos, Preston - emendou Cybil, satisfeita por haver conseguido subornar o avô.

- Nem eu mesma consigo imitar essa receita. Os daqui sempre ficam mais gostosos.

- Cybil é uma ótima cozinheira - falou Daniel, fazendo uma careta de desgosto ao ver Anna co­locar exatamente duas gotas de uísque em uma das xícaras, antes de entregá-la a ele. – Tem levado pratinhos com petiscos para ele uma vez ou outra, não é, querida? Como uma vizinha pres­tativa deve fazer.

- Ela preparou rocambole de frango para nós, ontem à noite - falou Matthew, enquanto pas­sava geléia de morango em um bolinho. Lembran­do-se de que havia prometido a Cybil que a "sal­varia" nos momentos críticos, acrescentou:

- Preston, você quer uísque puro ou prefere chá?

- Vou querer o uísque, obrigado. Puro.

- E de que outro modo um homem deve tomá­-lo? - resmungou Daniel, olhando com desprezo para sua xícara de chá.

- Então já experimentou alguns dos dotes de nossa Cybil - perguntou ele, contendo o riso ao ver Preston quase se engasgar com o bolinho.

- O que disse?

- Os dotes culinários de Cybil - esclareceu Daniel, com ar inocente. - Mulheres que cozi­nham tão bem como minha neta precisam ter uma família para alimentar, sabia?

- Vovô... - avisou ela, apontando o próprio uísque com discrição.

Quando um homem se encontrava dividido en­tre uma dose de uísque escocês e o futuro de sua neta, o que ele deveria escolher?, Daniel se per­guntou. Às vezes, era preciso fazer sacrifícios.

- Qual é o homem que não aprecia uma refeição quente e bem-feita? Estou errado, rapaz?

Preston notou uma espécie de aura de perigo no ar.

- Não.

 

- Aí está! - Daniel bateu o punho fechado sobre a mesinha, fazendo a louça estremecer sobre a bandeja. - McQuinn é um sobrenome muito respeitado hoje em dia, não? E graças a você.

- Obrigado - Preston agradeceu com cautela.

- Mas um homem de sua idade já deveria estar pensando em transmiti-lo a seus descendentes. Deve estar com trinta anos, não?

- Isso mesmo. - "E como diabos ele sabe dis­so?", Preston se perguntou.

- Quando um homem chega aos trinta anos, deve começar a pensar em suas obrigações para com a continuação do sobrenome da família.

- Felizmente, ainda tenho alguns anos pela frente, antes de ser "sentenciado" - Matthew co­chichou ao ouvido de Cybil.

Ela lhe respondeu com uma discreta cotovelada.

- Faça alguma coisa! - pediu, por entre os dentes.

- Se ele começar com essa história para cima de mim, você é quem vai agüentar minhas recla­mações depois - avisou Matthew.

- Diga seu preço.

- Pensarei nisso depois. - Dizendo isso, ele não perdeu tempo em ocupar a poltrona próxima aos outros dois homens. - Vovô, por acaso, já lhe falei sobre a garota que conheci há pouco tempo?

- Garota? - Daniel pestanejou, distraindo-se da conversa com Preston. Voltando-se para o neto, con­tinuou: - Que garota é essa? Pensei que estivesse ocupado demais, montando seus brinquedos de me­tal, para ter tempo de pensar em garotas.

- Penso nelas com mais freqüência do que ima­gina. - Matthew riu, levantando o uísque em um brinde. - Essa que conheci é muito especial.

- É mesmo? - Daniel se recostou na poltrona e cruzou as pernas. - Bem, deve ser mesmo para ganhar mais do que um ou dois olhares de sua parte.

- Oh, já faz algum tempo que estou de olho nela. O nome dela é... Lulu - Matthew inventou no último instante. - Lulu LaRue, embora eu desconfie que esse seja seu nome artístico. Ela é dançarina de mesa.

- Dançarina de mesa?! - bradou Daniel, en­quanto Anna escondia o riso com a mão, antes de continuar tomando o chá. - Ela dança nua em cima de mesas?

- Claro que dança nua! Que graça teria se fosse de outra maneira? Oh, vovô, e ela tem uma tatuagem tão interessante no...

- Nua! Uma dançarina nua e tatuada! Nem por cima do meu cadáver, Matthew Campbell! Quer dei­xar sua mãe arrasada? Está ouvindo isso, Anna?

- Claro que estou, querido. Matthew, pare de brincar com seu avô.

- Seu desejo é uma ordem, vovó - gracejou ele, dando de ombros e rindo ao ver o avô estreitar o olhar. - Mas não vejo por que não posso na­morar uma garota que dança nua e que tem uma linda tatuagem no...

- Chega, Matthew! - ralhou Daniel, indigna­do, fazendo os outros disfarçarem o riso.

 

Muito tempo depois de a garoa haver cessado, de a noite haver caído e de Preston haver apare­cido sorrateiramente em seu quarto para matar a saudade e testar a enorme cama de casal, Cybil suspirou alto.

O dia havia sido quase perfeito. Quase tão per­feito que ela se aninhou mais junto de Preston, deitado ali, a seu lado. Então se permitiu imaginar que ele era um príncipe que havia escalado as paredes da torre do castelo para ir ao encontro dela. Para amá-la. Para ficar com ela para sempre.

- Diga-me uma coisa - sussurrou Preston, re­laxado e desfrutando o calor do corpo de Cybil junto ao dele.

- Hum-hum - murmurou ela, em resposta. - Qualquer coisa.

- O que diabos significou toda aquela conversa com seu avô?

Cybil levantou a cabeça e afastou os cabelos do rosto. Então revirou os olhos.

- Oh, aquilo. Eu não o avisei antes porque tive a ingênua esperança de que não seria neces­sário. Reconheço que a culpa foi toda minha. - Passando a perna sobre as dele, ela o fitou por um momento. - Sabia que tem olhos lindos, Pres­ton? Eles são de um tom de azul diferente, como a cor da água do mar ao cair da tarde.

- Esse foi um comentário sincero ou apenas um artifício para fugir do assunto principal?

- Ambas as coisas. - Ela riu.

Porém, vendo que não teria como escapar das perguntas dele, Cybil se sentou, beijou-o e vestiu o robe que havia deixado ao pé da cama.

 

- Por que sempre se veste para conversar co­migo? - Preston perguntou.

Cybil olhou-o por cima do ombro, parecendo sur­presa e acanhada ao mesmo tempo.

- Um impulso puritano latente?

- Incrivelmente latente - anuiu ele, sorrindo ao vê-la amarrar o robe com firmeza na cintura. - Agora, a respeito de seu avô e do súbito inte­resse dele pelo sobrenome da minha família... Ou, como ele disse durante o jantar, o "sangue forte" dos meus ancestrais...

- Bem, Preston, você é escocês.

- Da terceira geração de minha família.

- Isso pouco importa no vasto e histórico es­quema das coisas. - Cybil serviu um copo de água. - Primeiro, quero me desculpar - disse, sem olhar para ele. - Espero que compreenda que meu avô não fez aquilo por mal. Ele age assim porque se preocupa conosco e não teria feito aquilo se não houvesse gostado de você.

Preston sentiu um aperto no estômago.

- Feito o quê, exatamente?

- Não me dei conta... Pelo menos, não até che­garmos aqui. Mas deveria ter prestado mais aten­ção - murmurou ela, sentando-se na cama e en­tregando o copo a ele, antes de tomar um pouco da água. - Na outra noite, quando você mencio­nou que já o conhecia e que ele havia sugerido que você ficasse no apartamento em frente ao meu, eu deveria ter prestado mais atenção aos detalhes. Bem... - Ela deu de ombros. - De qual­quer maneira, não teria importado muito.

 

- Sobre o que está falando, Cybil? - Preston franziu o cenho, confuso.

Ela exalou um suspiro e fitou-o diretamente nos olhos.

- Meu avô o escolheu para mim, Preston. Isso porque ele me ama muito - ela se apressou em acrescentar. - Ele quer apenas aquilo que acha que é melhor para mim, e isso significa um ca­samento, uma família e um lar. E, pelo visto, ele está achando que você me dará tudo isso.

Preston passou a mão nos cabelos, aturdido.

- E como diabos ele chegou a essa conclusão? - indagou, colocando o copo sobre a mesinha-de­cabeceira com um ruído seco.

- Não se trata de um insulto, Preston - falou ela, quase indignada. - É um elogio. Como eu disse, vovô me ama muito, portanto, deve ter uma grande estima por você, por achá-lo suficiente­mente adequado para se tornar meu marido e o pai dos meus filhos, que serão os bisnetos que ele tanto deseja ter.

- Pensei que você não quisesse se casar.

- Eu não disse que queria. Eu disse que ele queria isso para mim. - Levantando-se, ela foi até a penteadeira e pegou uma escova. Em segui­da, começou a escovar os cabelos. - E fique sa­bendo que o fato de você estar tão abalado é muito insultante.

- E aposto que você considera tudo isso divertido.

- Acho encantador.

- Acha encantador que seu avô de noventa e tantos anos escolha um marido para você?

 

- Ele não colocou um anúncio no jornal e nem um luminoso diante da casa. - Sentindo-se ma­goada, ela deixou a escova sobre a penteadeira. - Mas não precisa entrar em pânico, Preston. Não vou me deixar levar pelos planos de meu avô. Serei perfeitamente capaz de arranjar um marido sozinha, quando e se eu achar que devo arranjar um. Por enquanto, continuo não queren­do nada disso.

Ela inclinou a cabeça, olhando em torno de si. Na falta de algo melhor para fazer, abriu um pote de creme e começou a passá-lo nas mãos.

- Agora, estou cansada e quero dormir. E já que não se importa mesmo em dormir comigo de­pois do sexo, então é melhor ir embora.

Aquilo era apenas indignação, pensou Preston, ou haveria algo mais por trás da reação de Cybil?

- Por que está brava?

- Por que estou brava? - repetiu ela, sem saber se começava a chorar ou a gritar. - Como é possível que uma pessoa que escreve sobre os sentimentos dos outros com tanta precisão, com tanta sensibilidade, faça uma pergunta dessa? Por que estou brava, Preston? - Respirou fundo e continuou: - Porque você está sentado aí, na cama que acabamos de dividir, completamente chocado com o fato de que alguém que me ama possa querer que exista algo mais do que apenas sexo entre nós.

- Claro que há mais do que sexo entre nós - declarou ele, começando a vestir o jeans. - Há mesmo? Há mesmo, Preston?

 

O tom frio de Cybil o levou a olhá-la fixamente. Sentiu uma onda de culpa ao ver a sombra de tristeza nos olhos dela.

- Eu gosto de você, Cybil. Você sabe disso.

- Você me acha divertida. Não é a mesma coisa.

Sim, era mais do que indignação, concluiu Pres­ton. Cybil estava magoada. De alguma maneira, ele a havia magoado novamente sem querer. Se­gurando o braço dela, virou-a de frente para ele, com delicadeza.

- Eu gosto de você.

A expressão de Cybil se amenizou.

- Tudo bem. - Pousou a mão sobre a dele, for­çando um sorriso. - Vamos esquecer tudo isso, sim?

Preston queria concordar com ela e resolver aquilo de maneira simples. Mas o sorriso de Cybil não foi espontâneo. A sombra de tristeza conti­nuava presente nos olhos dela.

- Cybil, não posso lhe oferecer mais do que isso.

- Não estou lhe pedindo mais. - Aproximan­do-se da janela, ela mudou de assunto: - A lua apareceu e não há nenhuma nuvem no céu. Po­deremos caminhar pelas colinas amanhã. A pai­sagem fica linda nessa época do ano. - Contendo um arrepio, massageou os braços. - Puxa, está ficando frio aqui. Talvez seja melhor eu pôr mais um pouco de lenha na lareira.

- Pode deixar que eu ponho - Preston se ofereceu.

As chamas da lareira ainda estavam bem ativas, mas, mesmo assim, Preston acrescentou mais um pedaço de lenha a elas. Então ficou parado porum momento, vendo as chamas crepitarem, co­meçando a consumir o novo pedaço de lenha.

Durante algum tempo, o único som que se ouviu no quarto foi o da madeira crepitando em meio às chamas da lareira. Por fim, Preston foi o pri­meiro a falar:

- Poderia se sentar um instante?

- Prefiro ficar aqui, olhando as estrelas - res­pondeu Cybil, diante da janela. - Não consegui­mos ver muitas estrelas em Nova York, com todas aquelas luzes. Acabamos nos esquecendo de olhar para cima e nem nos lembramos de que existem estrelas. Em Maine, onde fui criada, o céu vivia repleto delas. Nunca me dei conta de quanto sen­tia falta daquela visão até ir morar na cidade. É possível passarmos longos períodos sem uma por­ção de coisas e nem mesmo nos darmos conta de quanto elas nos fazem falta.

Cybil se tornou tensa ao sentir as mãos de Pres­ton sobre seus ombros. De fato, teve de se esforçar para voltar a relaxar e não demonstrar quanto a proximidade dele a afetava. Ao virar-se para ele, conseguiu até sorrir.

- O que acha de sairmos para vê-las melhor?

- Cybil, quero que se sente e que me ouça.

- Está bem. - Esforçando-se para parecer ca­sual, ela caminhou até uma das duas cadeiras ao lado da lareira. - Sou toda ouvidos.

Preston sentou-se ao lado dela e inclinou-se um pouco para frente, fitando-a nos olhos.

- Eu sempre quis ser escritor, e não me lembro de haver pensado em me tornar outra coisa - começou ele. - Mas eu não queria escrever ro­mances, como meu pai desejava. Eu queria escre­ver roteiros de teatro. Tudo estava muito claro na minha mente. O palco, cada cenário, o movi­mento dos atores, o ângulo e a intensidade das luzes... Com freqüência, talvez freqüência demais, aquele era o mundo em que eu vivia. Você vem de uma família proeminente, Cybil. Uma família com obrigações e exigências sociais.

- Acho que é verdade.

- Eu também vim de uma família assim. To­lerei aquilo durante algum tempo, chegava até a me divertir de vez em quando, mas, durante a maior parte do tempo, sentia como se não per­tencesse àquele mundo cheio de eventos sociais.

- Eu sei, você valoriza sua privacidade - anuiu ela. - Compreendo isso. Meu pai e Mat­thew também são assim.

- Eu gostava de ficar sozinho. Precisava disso. - Inquieto demais para continuar sentado, Pres­ton começou a dar alguns passos pelo quarto. - Adoro meus pais e minha irmã, por mais que nos desentendamos de vez em quando. Sei que os ma­goei muitas vezes com atitudes inconseqüentes, mas eu os amo, Cybil.

- Claro que sim... - Ela começou a falar, mas voltou a se calar quando Preston balançou a cabeça.

- Minha irmã, Jenna, sempre foi muito sociá­vel. Ela é uma pessoa adorável. Mal havia com­pletado vinte e um anos quando se casou com meu melhor amigo da época da faculdade. Na ver­dade, fui eu quem os apresentou.

 

Preston ainda lamentava se lembrar daquilo. Lamentava que o primeiro passo de todo o infor­túnio que passaria depois houvesse sido uma ini­ciativa sua. Olhou para o jarro de água sobre a mesinha-de-cabeceira, desejando que ele fosse uma garrafa de uísque.

- Os dois se davam muito bem - continuou. - Estavam muito apaixonados, cheios de planos para o futuro. Jacob nasceu um ano depois. E menos de um ano depois, Jenna ficou radiante quando engravidou novamente.

Preston enfiou as mãos nos bolsos e foi até a janela. Mas não viu as estrelas.

- Naquela época, minha primeira peça estava sendo produzida. Era um pequeno grupo local, mas haviam conseguido fechar um contrato com um importante teatro. Meu pai é um escritor im­portante, por isso o trabalho do filho dele desper­tou um certo interesse nas pessoas.

- Um interesse que acabou se transformando em admiração, diante de seu talento - salien­tou Cybil.

Preston olhou para ela, agradecido pelo elogio.

- Sim, talvez tenha razão. Mas no início não foi assim. Para mim, era uma questão de honra ter meu talento reconhecido pelo que ele era, e não por eu ter o sobrenome de meu pai. Reconheço que parte disso era orgulho - acrescentou, pen­sativo. - Mas parte também era o desejo de ser respeitado. Aquela primeira peça era muito im­portante para mim.

O fato de Preston ficar algum tempo em silêncio levou Cybil a querer se manifestar de alguma ma­neira, demonstrando sua solidariedade.

- Não consegui dormir nem um pouco na noite anterior à estréia dos meus quadrinhos no jornal - disse a ele. - Por mais que eu adorasse meu trabalho, não teria suportado se as pessoas co­meçassem a insinuar que eu estava usando o so­brenome de meu pai para obter prestígio.

- Algumas pessoas sempre dirão isso - sa­lientou Preston. - Mas você não pode se deixar influenciar por esse tipo de opinião. O trabalho tem de ser o mais importante e aquela primeira peça era o mais importante para mim. Eu me envolvi em absolutamente todos os aspectos: os cenários, a montagem do palco, o elenco, os en­saios, a iluminação... Tudo.

Cybil sorriu.

- Imagino que deva ter deixado todo mundo maluco, inclusive você mesmo.

Preston também sorriu.

- Pode acreditar que sim. Os atores eram muito talentosos. A atriz que desempenhou o papel prin­cipal era, com certeza, a mulher mais linda que eu já tinha visto. Ela me deixou fascinado. - Olhando diretamente para Cybil, ele prosseguiu: - Eu havia acabado de completar vinte e cinco anos e fiquei completamente apaixonado por ela. Cada minuto que eu passava ao lado dela era um presente para mim. Vê-la no palco, encenando o texto que eu havia escrito, deixava-me encantado a cada apresentação. Durante os ensaios, após uma determinada seqüência, ela costumava sorrir para mim e perguntar se era mesmo daquela ma­neira que eu havia imaginado a cena. Quanto mais eu me envolvia com ela, menos a peça foi tendo importância para mim.

Preston suspirou. Mesmo depois de tanto tempo, lembrar-se daquilo ainda tinha um efeito esquisito sobre ele.

- Ela era gentil - continuou. - E muito en­volvente. Chegava a ser até um pouco tímida quando estava no palco. Eu inventava desculpas para ficar com ela e logo comecei a perceber que ela estava fazendo o mesmo para ficar comigo. Nós nos tornamos amantes em uma tarde de do­mingo, na cama dela. Naquele mesmo dia, ela chorou no meu ombro e disse que me amava. Na­quele momento, eu teria sido capaz de morrer por ela se fosse preciso.

Cybil uniu as mãos sobre o colo, imaginando como seria ser amada pelo menos um pouquinho por um homem maravilhoso como Preston. Não falou nada porque percebeu que ele ainda tinha coisas para contar. Pelo visto, coisas dolorosas.

- Durante semanas, meu mundo girou em tor­no dela. A peça estreou, recebeu ótimas críticas, mas tudo que eu conseguia pensar era que fora por causa da peça que eu a havia conhecido. Isso era tudo que importava para mim.

- O amor deveria importar mais.

- Deveria? - Preston riu, mostrando um brilho de ironia no olhar. - As palavras têm força, Cybil. Por isso é que um escritor deve tomar cuidado com elas.

 

O amor também tem força, pensou ela. Queria dizer isso a ele, e quase o fez, mas logo percebeu que o amor que ele sentira acabara enfraquecendo por algum motivo.

- Comprei presentes para ela - Preston pros­seguiu. - Gostava de ver o brilho de felicidade nos olhos dela sempre que ganhava um presente. E também a levava para dançar porque ela ado­rava ir a festas e manter contato com as pessoas. Ela era tão linda que eu achava que ela merecia ser mostrada de alguma maneira. E que precisava de roupas e de jóias adequadas para isso. Então, por que não presenteá-la com elas? E quando ela precisava comprar alguma coisa, que mal havia em dar um cheque em branco a ela? Afinal, aquilo era só dinheiro, e o que eu tinha para gastar era mais do que suficiente.

Deduzindo o desfecho da história, Cybil conteve a vontade de abraçá-lo e consolá-lo. No entanto, não era tristeza aquilo que surgira nos olhos dele. Era rancor.

- Ela tinha talento e eu queria ajudá-la a se tornar uma atriz famosa. Então, pensava eu, por que não usar minha influência, ou a do sobrenome da minha família, para alavancar a carreira dela?

- Você a amava - Cybil se justificou por ele. - E isso deve ter tornado a decisão de utilizar o sobrenome da família para beneficiá-la justa aos seus olhos.

- E você acha que isso tornou as coisas mais corretas? - Preston balançou a cabeça negativa­mente. - Nunca é certo se aproveitar das outraspessoas ou do sobrenome delas. Mas foi o que eu fiz. Ela começou a falar de casamento, com timidez ainda. Eu hesitei a princípio. A carreira dela ainda precisava de atenção e poderíamos esperar mais algum tempo para nos unirmos em um compro­misso mais sério. Certa noite, depois de uma apre­sentação, eu disse isso a ela. Falei também que iríamos para Nova York e que lutaríamos juntos para ter nosso próprio teatro.

Cybil continuou a ouvi-lo, sem dizer nada.

- Até que um dia ela me procurou toda trê­mula, pálida e chorando muito, para contar que estava grávida. Disse que a culpa fora toda dela, por não haver tomado as devidas precauções, e implorou para que eu não a abandonasse. Para onde ela iria? O que faria? Tinha pouco dinheiro, estava com medo e achava que eu iria odiá-la pelo que havia acontecido.

- Não - Cybil sussurrou. - Claro que você não iria odiá-la.

- Não, claro que não. Na verdade, fiquei um pouco assustado, mas não pensei em abandoná-la em nenhum momento. Enfim, pensei em me casar com ela, em começarmos uma vida a dois. Di­nheiro não era problema. Eu havia herdado uma parte da minha herança aos vinte e cinco anos e herdaria outra parte ao completar trinta. Di­nheiro não era problema - repetiu ele, colo­cando outro pedaço de lenha na lareira, em um gesto automático.

Em silêncio, Cybil acompanhava cada um de seus movimentos. Devia estar sendo muito difícil para uma pessoa reservada como Preston confes­sar tudo aquilo.

- Eu a consolei e disse que tudo terminaria bem. Falei que iríamos nos casar em breve, que ficaríamos em Newport até o bebê nascer, e que depois nos mudaríamos para Nova York, como ha­víamos planejado. Tivemos uma despedida como­vente, antes de ela partir para o pequeno apar­tamento onde morava, dizendo que iria telefonar para a família e contar a maravilhosa novidade. Combinamos que iríamos à casa dos meus pais depois da apresentação daquela noite, para dar a notícia a eles. Comecei a fazer planos de ime­diato, já me vendo como marido e como pai.

- Você queria aquela criança - afirmou Cybil, lembrando-se da facilidade com que ele havia se­gurado Charlie no colo.

- Sim. - Preston se voltou para ela, manten­do-se de costas para a lareira. - Enquanto eu ainda estava envolto por aquela atmosfera de mu­dança, minha irmã bateu à minha porta. Como Pamela, ela também estava trêmula, pálida e cho­rando. E como Pamela, também estava grávida, só que em um estágio um pouco mais avançado. Por isso fiquei preocupado ao vê-la naquele estado. Depois de chorar muito, finalmente ela conseguiu me contar que o marido dela estava tendo um caso.

Cybil se surpreendeu com o tom frio que Preston passou a demonstrar.

- Ela me disse que, depois de deixar Jacob com minha mãe, havia voltado para casa porque esquecera alguma coisa. Havia sido acertado que ela e o bebê ficariam fora durante a maior parte do dia, por isso seu retorno não era nem um pouco esperado. Do mesmo modo, ela também não es­perava chegar em casa e encontrar o marido com outra mulher em sua própria cama.

- Oh, Preston, que situação horrível. - Cybil se levantou, querendo confortá-lo de alguma ma­neira. - Ela deve ter... - Ela começou a falar, mas logo se interrompeu, ao se lembrar da peça mais famosa de Preston e de como a trama se desenvolvia. - Oh, não. Ah, meu Deus...

Ele se afastou, parecendo não querer receber consolo.

- O nome dela era Leanna em Rede de Almas, mas aquela era Pamela. Linda, inteligente e fria­mente calculista. Uma mulher que conseguia re­presentar com perfeição sem nenhum ensaio. Que conseguia enganar um homem sem que ele no­tasse, tirando-lhe todo o dinheiro e conquistando fama no meio artístico. Ela teria se casado comigo por esses motivos e para dar um sobrenome de prestígio ao filho que o meu melhor amigo e ma­rido da minha irmã havia feito nela.

- Mas você a amava, Preston. E ela o magoou. Aliás, magoou todos vocês.

- Sim, eu a amava, mas aprendi a lição. Não se pode confiar no coração. Minha irmã confiou no dela e isso quase a arrasou. Se não fosse Jacob e o bebê que ela estava esperando, acho que ela teria enlouquecido. Mas as crianças precisavam dela, e foi isso que a manteve de pé.

- Só que você não teve esse tipo de consolo.

 

- Eu tinha meu trabalho. Mas tive de enfrentar o desprazer de encarar a mulher que havia arra­sado nossas vidas. Ela chorou, jurou que aquilo era mentira e que tudo não passara de um grande engano. Implorou para que eu acreditasse nela e, para ser sincero, quase cheguei a acreditar. Ela representava muito bem.

- Você estava apaixonado, Preston - salientou Cybil. - Era natural que acreditasse nela.

- De qualquer maneira, acabei vendo Pamela como ela realmente era: uma mulher ambiciosa, ca­paz de fazer qualquer coisa para conseguir aquilo que queria. Apesar de tudo, ela terminou a tempo­rada de apresentações. - Preston sorriu com ironia. - Afinal, o show sempre deve continuar.

- E como você suportou tudo isso?

- Ela era competente como atriz, e foi apenas uma questão de lembrar a mim mesmo que o trabalho era mais importante do que ela ou do que qualquer outra coisa. - Ele arqueou uma sobrancelha. - Acha que foi uma atitude fria de minha parte?

- Não. - Cybil pousou as mãos sobre os om­bros dele. - Acho que foi uma atitude corajosa. - Fechou os olhos por um instante, quando ele finalmente aceitou seu abraço. - Ela não merecia ter alguém como você, Preston.

- Agora ela é apenas uma personagem inte­ressante em uma peça de teatro. - Enxugando uma lágrima que escorreu pelo rosto de Cybil, ele disse: - Não chore. Eu não lhe contei isso para vê-la chorar, mas apenas para ajudá-la a me com­preender melhor.

 

- Eu o compreendo, Preston. Mas, mesmo assim, não posso deixar de lamentar o que lhe aconteceu.

- Cybil. - Ele a trouxe mais para perto. - Se continuar expondo seu coração desse jeito, al­guém pode acabar arrasando-o.

Ela fechou os olhos, sem coragem de dizer a ele que isso já havia acontecido.

 

Chegara a hora de ter uma boa con­versa com Preston McQuinn, pensou Daniel. Mas não seria nada dificil. Tudo que teria de fazer seria levá-lo até seu escritório, enquanto Cybil estivesse ocupada com Anna em algum outro aposento da casa. Quanto a Matthew... Bem, com ele não haveria problema, já que o rapaz passava a maior parte do tempo procurando inspiração para montar seus brinquedos de metal. As esculturas de Matthew sempre o deixavam surpreso e orgulhoso ao mesmo tempo. Não podia negar que o rapaz era talentoso, embora criasse coisas esquisitas.

- Sente-se, meu rapaz. E aproveite para esticar um pouco as pernas. - Dizendo isso, caminhou até a estante de onde tirou um exemplar de Guerra e Paz. - Aceita um? - perguntou ele, abrindo o livro e revelando se tratar de uma caixa de charutos.

Preston arqueou uma sobrancelha.

- Não, obrigado. Literatura interessante, sr. MacGregor.

- Bem, um homem deve saber o que fazer para não ser aborrecido pela esposa.

Daniel passou o charuto sob o nariz, apreciando seu aroma, e suspirou alto ao sentar-se, anteci­pando o prazer que teria em fumá-lo. Com calma, destrancou uma das gavetas de sua mesa e tirou dela uma concha que, pelo visto, era usada regu­larmente como cinzeiro. Em seguida, também ti­rou da gaveta um pequeno ventilador movido a pilha. Sem dúvida, seu mais novo artifício para evitar que a esposa sentisse o cheiro do charuto.

- Anna não quer que eu fume - declarou ele, balançando a cabeça. - E quanto mais velha ela está ficando, mais apurado está ficando também seu nariz. Às vezes, mais parece o de um cão de caça - resmungou, encostando-se na cadeira.

- E se ela aparecer? - indagou Preston, ao notar que ele pretendia mesmo acender o charuto.

- Vamos nos preocupar com isso se e quando acontecer, meu rapaz.

Apesar da aparente despreocupação, Preston não deixou de notar que o velho Daniel manteve o pequeno ventilador bem junto de si.

- Muito bem, sua nova peça está fazendo sucesso? - Sim, está.

- Quero que saiba que estou lhe perguntando isso porque quero saber mais detalhes a seu respeito.

- Hum-hum - anuiu Preston, sem querer se arriscar a oferecer respostas mais elaboradas.

- Admiro o trabalho de seu pai. Tenho alguns livros dele na minha estante. - Daniel se ajeitou melhor na cadeira, dando uma baforada no cha­ruto. - Alguém me contou que Hollywood está bastante interessada em seu trabalho.

- Tem informantes muito bons, sr. MacGregor.

Daniel sorriu.

- Faço o possível para me manter sempre bem informado. Então, como vai indo esse negócio com o cinema?

- Bem.

- Prefere manter a discrição, não é mesmo? Gosto disso. - Daniel bateu o charuto levemente sobre a concha, antes de prosseguir: - Vai ficar em Nova York por mais algumas semanas?

- Por mais um mês, provavelmente. A essa altura, a maior parte da reforma da casa já deverá ter acabado.

- Uma belíssima casa com vista para o mar, não? - Daniel sorriu ao ver Preston estreitar o olhar. - Alguém me disse todas essas coisas. E bom para um homem ter uma casa própria. Al­guns de nós simplesmente não conseguem viver em prédios, dividindo as páredes da própria casa com as de outras pessoas. E bom ter espaço para a família. Um lugar suficientemente grande para que seja possível se fumar charuto sem ter de ouvir um sermão durante horas seguidas.

Preston pressionou os lábios, disfarçando o riso, enquanto Daniel dava outra baforada no charuto.

- Tem razão - concordou Preston. - De qualquer maneira, tenho noção de que, em questão de tama­nho, minha casa não chega nem aos pés da sua.

- Você ainda é muito jovem. Irá aumentando a casa conforme for ficando mais velho, pode acre­ditar. Também vai precisar da atmosfera do mar, como eu precisei, e ainda preciso, para me manter em forma.

- Prefiro o mar à cidade - confessou Preston. Sem saber ao certo onde aquela conversa iria dar, não estava conseguindo se sentir muito relaxado. - Se eu tivesse de viver por muito tempo em um centro urbano, acho que acabaria ficando maluco.

Daniel riu, olhando para Preston através da fu­maça do charuto.

- Você é um homem que precisa de privacidade. Mas quando essa necessidade se transforma em iso­lamento, ela deixa de ser saudável, não é mesmo?

Preston inclinou ligeiramente a cabeça.

- Desculpe-me, mas não estou vendo vizinhos entrando e saindo de sua casa, sr. MacGregor.

Um sorriso curvou os lábios de Daniel.

- Tem razão. Porém, por mais que tenhamos privacidade, não estamos isolados. Cybil também foi criada à beira-mar. - Daniel moveu o charuto entre os dentes. - Mais especificamente em uma casa no litoral de Maine, onde o pai dela guardava sua privacidade como um pit bull.

- Foi o que ouvi dizer - anuiu Preston.

- O pai dela é um bom homem. E não poderia ser diferente, já que se trata de um Campbell. - Daniel tamborilou os dedos sobre o braço da ca­deira. - E a esposa dele é uma verdadeira dama, vinda de uma família tradicional. Os dois se or­gulham muito dos filhos.

- Bem, eles devem ter motivo para isso.

- Claro que têm - afirmou Daniel, com seu costumeiro tom incisivo. - Viu por si mesmo, não? Minha Cybil é uma jovem brilhante e ado­rável. Tem um coração enorme e é estimada por todos. Ela tem uma espécie de aura luminosa, você não acha?

- Eu a considero única.                              -

- E ela é mesmo. Cybil é a sinceridade em pessoa - continuou Daniel, observando com aten­ção cada uma das reações de Preston. - Com mais freqüência do que você imagina, ela deixa de considerar os próprios sentimentos para dar importância aos sentimentos dos outros. Não que ela viva servindo de capacho por aí, não com aque­le sangue escocês correndo nas veias. Ela revida quando é provocada, mas geralmente prefere se magoar a ter de magoar outra pessoa. E confesso que isso me deixa um pouco preocupado.

Embora não estivesse ouvindo nada que já não houvesse presenciado, as palavras de Daniel cau­saram uma certa inquietação em Preston.

- Não creio que deva se preocupar com Cybil, sr. MacGregor.

- Preocupar-se com os netos é um direito, um dever e... por que não? Um prazer, para alguém com uma família tão grande quanto a minha. Sin­to que Cybil quer ter um lar, para pôr em prática todo o amor que traz guardado dentro de si. E o homem que conquistar aquele coraçãozinho tirará a sorte grande.

- Sim, tem razão.

- Notei o modo como você a olha, meu rapaz. - Daniel se inclinou para frente. - E não foi preciso que alguém me dissesse isso.

Preston se tornou mais do que cauteloso.

- Como o senhor mesmo já disse, Cybil é uma mulher adorável.

 

- E você é um homem solteiro com trinta anos de idade. Quais são suas intenções?

Ora, ora, aquela conversa estava ficando real­mente séria, pensou Preston.

- Não tenho nenhuma intenção.

- Então está na hora de começar a ter. - Ba­tendo o punho cerrado sobre a mesa, Daniel acres­centou: - Não é cego ou idiota, é?

- Não, claro que não.

- Então o que está esperando, meu rapaz? A garota é exatamente o que você precisa para ani­mar um pouco essa sua natureza séria, para evitar que você se feche em uma caverna, feito um urso com indigestão. - Estreitando o olhar, Daniel ti­rou o charuto da boca e o segurou entre os dedos. - E se eu não soubesse que você é a pessoa certa para ela, não estaria aqui, nesse momento, tendo esta conversa com você. Pode acreditar.

Furioso por sentir-se encurralado, Preston ficou de pé.

- O senhor praticamente me atirou à porta dela, utilizando-se da desculpa de me fazer um favor.

- Eu lhe fiz o melhor favor de sua vida, rapaz, e você deveria estar me agradecendo por isso, em vez de ficar me olhando com esse ar indignado.

- Não sei como o resto da família lida com essa sua atitude de se meter na vida das pessoas, sr. MacGregor. De minha parte, posso dizer que não gosto e nem preciso disso.

- Se acha que não precisa da intervenção de alguém, por que continua lamentando algo que já terminou há muito tempo, ou mesmo que nunca existiu? Por que se negar a aceitar aquilo que está bem diante de seus olhos?

O olhar de Preston se tornou frio.

- Isso é problema meu.

- E seu defeito - replicou Daniel, satisfeito ao ver que seu comentário o afetara de alguma maneira. - Já vivi mais de noventa anos neste mundo, tendo a chance de observar as pessoas e a maneira como elas se comportam. E vou lhe dizer uma coisa, Preston McQuinn, algo que você ainda não notou por si mesmo, talvez por ser mui­to jovem ou muito teimoso: vocês dois combinam. Um equilibra o outro.

- O senhor está enganado.

- Ah, essa é boa! - ironizou Daniel. - Cybil não o teria deixado freqüentar a casa dela se não estivesse apaixonada. E você não teria aceitado vir até aqui, se também não estivesse apaixonado por ela.

Daniel se recostou novamente na cadeira, sa­tisfeito ao notar que Preston empalidecera. O amor, para alguns, era mesmo algo assustador.

- O senhor entendeu mal - insistiu Preston, tentando manter a calma mesmo sentindo uma sensação de aperto no estômago. - O que existe entre mim e Cybil não tem nada a ver com amor. E se eu a magoar... Quando eu a magoar - ele corrigiu -, parte da culpa será sua.

Dizendo isso, saiu com passos firmes. Daniel continuou fumando seu charuto. Magoar-se era algo que fazia parte do amor, pensou consigo. Ain­da da assim, não pôde deixar de lamentar o fato de que sua preciosa menina sofreria um pouco ao longo do caminho. E sim, sabia que em parte a culpa era sua. Mas quando o rapaz parasse de teimar feito uma mula e a fizesse feliz... Ora, quem mais receberia o crédito por isso a não ser o astuto Daniel MacGregor?

Sorrindo, terminou de fumar o charuto enquanto repassava seus planos com a calma que somente um homem suficientemente vivido e sábio conseguia ter.

 

Cybil lamentou que a viagem até Hyannis hou­vesse deixado Preston de mau humor. Algo que, segundo vinha notando, ainda não havia mudado mesmo depois de eles haverem retornado para Nova York havia uma semana.

Preston era uma pessoa dificil. E ela aceitava isso. Agora que sabia tudo pelo que ele havia passado, e tudo que haviam feito a ele, não conseguia ver muita possibilidade de ele agir de modo diferente.

Para um homem com tanta sensibilidade, seria preciso um longo tempo até que fosse possível ele voltar a confiar em alguém. E talvez mais tempo ainda para se permitir sentir algo mais profundo por alguém.

Mas ela poderia esperar. Por mais que isso does­se. Não conseguia deixar de lamentar quando ele a deixava e partia de maneira súbita, ou quando ele se isolava, usando o trabalho como desculpa. Ultimamente, Preston também havia adquirido o estranho hábito de tocar sax em horários inusi­tados, como se aquilo fosse uma espécie de desa­bafo que precisava ser posto para fora no exato momento em que algo o afligia.

 

Cybil tentou se convencer de que o trabalho devia estar causando problemas para ele, embora Preston nunca mais houvesse falado a respeito dele com ela. Talvez ele imaginasse que ela não fosse capaz de compreender toda a angústia que envolvia o ato da criação artística. Embora isso a magoasse, convenceu-se de que seria melhor aceitar a opção e o silêncio de Preston. Sempre havia conseguido mentir melhor para si mesma do que para os outros.

Seu próprio trabalho havia tomado um novo rumo e estava exigindo mais tempo e energia de sua parte. A reunião que ela havia tido antes de partir para Hyannis havia sido importantíssima, mas ela não a mencionara para ninguém. Talvez fosse um pouco de superstição de sua parte, concluiu ela, descendo do táxi diante de seu prédio, mas era assim que ela preferia agir. Não quisera contar nada a ninguém antes de ter certeza de que o negócio seria fechado. Mas agora tinha certeza.

Levando a mão ao peito, sentiu as batidas fortes de seu coração. Então ouviu seu próprio riso. Sim,agora tinha muita certeza, e mal podia esperar para contar para todo mundo.

Talvez até oferecesse uma festa para comemo­rar. Uma festa animada, com muita música e ri­sos. Ah, e também com champanhe, balões colo­ridos e caviar.

Como que já entrando no espírito da festa, subiu os degraus que levavam à entrada meio que dan­çando. Precisava ligar para seus pais, para o res­tante tante da família e também teria de contar a Jody, para que as duas pudessem trocar um daqueles grandes abraços cheios de entusiasmo.

Mas primeiro, teria de contar a Preston.

Respirando fundo, bateu com animação à porta do apartamento dele. Sabia que ele estava traba­lhando, mas isso era algo que não poderia esperar. Ele iria entender. Eles tinham de comemorar. To­mar champanhe no meio da tarde até ficarem zon­zos e depois fazer amor loucamente.

Quando a porta se abriu, um sorriso radiante iluminava o rosto dela.

- Olá! Acabei de voltar de uma reunião e você não vai acreditar no que aconteceu.

Preston estava com a roupa amassada e a barba crescida. Lamentou o fato de que um simples olhar para Cybil pudesse fazê-lo esquecer completamen­te de sua peça.

- Estou trabalhando, Cybil.

- Eu sei. Sinto muito, mas é que acho que vou explodir se não contar a alguém. - Segurou o rosto dele entre as mãos. - De qualquer maneira, parece estar mesmo precisando de um descanso.

- Estou no meio da elaboração de uma cena importante... - Ele começou, mas Cybil continuou a falar.

- Aposto que ainda não almoçou. Por que não comemos sanduíches enquanto eu...

- Eu não quero nenhum sanduíche. - Preston notou que o tom de sua voz se alterara, mas não se importou com isso. - Não tenho tempo para comer agora. Quero trabalhar.

- Mas você precisa se alimentar. – Abrindo a geladeira, Cybil começou a procurar algo que pudesse preparar para eles. Então ouviu Preston subindo a escada.

- Oh, droga.- resmungou com um suspiro desanimado e foi atrás dele.

- Tudo bem, vamos esquecer o sanduíche. Pre­ciso apenas lhe contar como foi meu dia. Pelo amor de Deus, Preston, este escritório está escuro feito uma tumba.

Instintivamente, ela foi até a janela, com a in­tenção de afastar as cortinas.

- Mas que droga, Cybil! Deixe as coisas como estão!

Ela parou de repente, soltando a cortina deva­gar. Notou que Preston já havia sentado nova­mente diante do computador, voltando a se isolar do resto do mundo. Iluminado apenas pela lâm­pada sobre a mesa e com uma xícara de café dei­xada de lado, Preston continuou a trabalhar, man­tendo-se de costas para ela.

Naquele momento, nada do que ela dissesse im­portaria para ele.

- Para você, é tão fácil me ignorar, não? - protestou Cybil, magoada.

Preston manteve a mesma postura, recusando­se a se sentir culpado.

- Não é fácil. Mas, no momento, isso é necessário.

- Claro, você está trabalhando, e é mesmo muita ousadia de minha parte interromper um gênio cria­dor, não é mesmo? Alguém cujo trabalho grandioso eu simplesmente não tenho condições de entender.

Irritado, Preston se virou para ela.

- Você consegue trabalhar com pessoas fazendo algazarra à sua volta, eu não.

- Não se trata disso - continuou Cybil, no mesmo tom indignado. - Você também já me ignorou em outras situações que não diziam respeito a trabalho.

Preston empurrou o teclado para o lado.

- Não quero discutir com você, Cybil.

- Sim, claro. Tudo depende do seu estado de humor: se quer ficar comigo ou sozinho, se quer conversar ou ficar quieto, ou se quer me tocar ou me mandar embora.

A voz de Cybil revelou um tom definitivo que deixou Preston apreensivo por um instante.

- Se isso não a estava agradando, deveria ter dito antes.

- Você tem razão. Está absolutamente certo. Pois agora isso não está me agradando, Preston. Não gosto de ser tratada como se eu fosse uma pessoa inconveniente, à qual você só dá atenção quando isso o interessa. Não me agrada ver as­suntos que são tão importantes para mim sendo considerados como coisas menores diante da "grandiosidade" do seu trabalho.

- Cybil, pelo amor de Deus. Você quer mesmo que eu pare de trabalhar para ouvi-la falar como foi seu dia de compras enquanto comemos sanduíches?

Ela abriu a boca, mas fechou-a em seguida. Não sem antes emitir um breve som de mágoa.

- Desculpe-me. - Furioso consigo mesmo, Preston ficou de pé. Cybil continuou olhando-o como se houvesse levado uma bofetada.

- Estou tendo de me esforçar para conseguir terminar esse roteiro e estou impaciente por isso. - Passou a mão pelos cabelos ao notar que ela não tivera nenhuma reação.

- Vamos lá para baixo.

 

- Não, eu preciso ir. - Cybil decidiu ir embora, antes que acabasse passando pela situação ridí­cula de chorar na frente dele.

- Preciso dar al­guns telefonemas, e estou com dor de cabeça - acrescentou, massageando a têmpora.

- Acho que preciso de uma aspirina.

Ela fez menção de sair, mas parou ao sentir a mão de Preston em seu braço. Foi então que ele notou quanto ela estava trêmula.

- Cybil, eu...

- Não estou me sentindo bem, Preston. Vou para casa me deitar um pouco.

Desvencilhando-se dele, ela se encaminhou para a porta. Preston se encolheu ao ouvi-la bater.

- Seu idiota - ralhou consigo mesmo.

Aborrecido, perambulou pelo aposento manten­do as mãos nos bolsos. Por fim, aproximou-se da janela e afastou as cortinas.

O sol intenso o fez estreitar o olhar. Talvez ele estivesse mesmo muito isolado do que se encontrava do outro lado daquela janela, pensou. Mas traba­lhava melhor assim, sem ter de dar explicações sobre seus hábitos de trabalho para ninguém.

Ainda assim, não precisava ter magoado Cybil daquela maneira. O problema fora ela haver apa­recido feito por um furacão, e no pior momento possível. Ele estava em meio a um momento de intensa concentração, com as falas e as atitudes das personagens fervilhando em sua mente.

Não havia dispensado ou ignorado Cybil. Como diabos seria possível ignorar alguém que ocupava a maior parte de seus pensamentos ao longo do dia?

 

Contudo, era isso que vinha tentando fazer, não era? Ignorá-la. E deliberadamente, desde aquela conversa com Daniel MacGregor, em Hyannis. No íntimo, sabia que o velho estava certo, por mais que detestasse ter de admitir isso. Sim, estava apaixonado por Cybil. Mas se continuasse tentan­do negar o sentimento, mantendo-o o mais de lon­ge possível de seus pensamentos, talvez ele de­saparecesse por si só.

Não queria se arriscar no amor novamente, não depois de saber com tanta precisão o que aquele sentimento era capaz de fazer a uma alma e a um coração. Não iria se permitir ficar vulnerável mais uma vez. Não poderia.

Fechou as cortinas com um gesto súbito, dizendo a si mesmo que iria superar aquilo. Logo as coisas voltariam a se equilibrar e ambos ficariam mais felizes.

De qualquer maneira, teria de encontrar um modo de se desculpar pela atitude que havia tomado nos últimos dias. Cybil não fizera nada para merecer aquilo. Desde que o conhecera, ela não havia feito outra coisa a não ser se doar inteiramente. E ele não fizera outra coisa a não ser aceitar isso.

Ciente de que não conseguiria mais trabalhar, desceu para o andar de baixo. Pensou em bater à porta do apartamento dela e se desculpar, mas, pro­vavelmente, nesse momento era Cybil quem devia estar querendo ficar sozinha. Então daria algum tempo para ela, enquanto saía para uma caminhada.

Não havia pensado em comprar flores para ela até passar diante de uma grande floricultura. Não levaria rosas, elas eram muito formais. Margaridas também não cairiam bem para a ocasião. Embora fossem alegres, eram muito comuns. Então, decidiu-se por um belo vaso amarelo com tulipas vermelhas.

Havia sido muito rude com Cybil, mas mudaria aquela situação desagradável. Ofereceria a ela tanto quanto ela lhe oferecera, até que ambos fi­cassem em pé de igualdade. Assim, quando che­gasse o momento da despedida, e ele chegaria, ainda restaria a chance de eles se tornarem ami­gos. Por outro lado, já não conseguia imaginar sua vida sem Cybil fazendo parte dela.

Passou o resto daquela tarde fora. Quando voltou para casa, no início da noite, não se sentiu tolo por estar trazendo flores. Sentiu-se aliviado. E quando Cybil abriu a porta, sentiu que aquele era o momento certo para ele estar ali, daquela maneira.

- Conseguiu descansar um pouco?

- Sim, obrigada.

- Posso lhe fazer companhia?

Dizendo isso, Preston mostrou as flores a ela. Ao vê-las, Cybil não conseguiu disfarçar a surpresa.

- Gosta de tulipas? - perguntou ele.

- Ah... Sim, claro. São lindas - respondeu ela, aceitando o vaso e levando-o até a mesa.

- Sinto muito sobre o que aconteceu essa tarde - Preston se desculpou.

- Oh.

 Então as flores eram um pedido de desculpas, concluiu Cybil. Deixando de lado a vaga sensação de desapontamento, virou-se para ele com um meio sorriso.

- Não tem importância. É isso o que acontece quando se perturba um urso em sua caverna.

- Importa sim - insistiu ele. - E eu realmente sinto muito.

- Tudo bem.

- Só isso? Muitas mulheres fariam um homem se ajoelhar em uma situação como essa.

- Não sou do tipo que gosta de humilhar os ho­mens. Portanto, considere-se um homem de sorte.

Preston levou a mão dela aos lábios e beijou-lhe a palma com delicadeza.

- Sim, sou um homem de sorte.

Pela segunda vez, viu um brilho de surpresa nos olhos dela. Nunca havia sido verdadeiramente terno com ela, concluiu ele, indignado com a pró­pria tolice. Nunca havia oferecido a Cybil um pou­co mais de romance.

- Pensei em convidá-la para jantar, se você estiver se sentindo melhor, claro.

Cybil pestanejou, cada vez mais surpresa.

- Jantar fora?

- Sim, se você quiser. Mas, se preferir, poderemos ter um jantar mais calmo aqui mesmo - acrescen­tou, aproximando-se dela. - Você é quem decide.

Segurando o rosto de Cybil entre as mãos, roçou os lábios junto à testa dela.

- Quem é você? E o que está fazendo no corpo de Preston?

Ele começou a rir e beijou-lhe uma face, depois a outra.

- Diga-me o que você quer, Cybil.

"Apenas receber seu carinho, assim", respondeu ela, em pensamento.

Eu vou preparar alguma coisa para co­mermos aqui mesmo.

- Se prefere ficar, então eu vou providenciar alguma coisa.

- Você? - Ela riu. - Você?! Tudo bem, já entendi. Vou chamar os bombeiros porque, com certeza, estaremos correndo risco de vida.

Preston abraçou-a com força e riu.

- Eu não disse que vou cozinhar. Vou apenas pedir alguma coisa para nós.

- Oh, bem. Sendo assim...

Cybil não conteve um suspiro. Era maravilhoso se ver envolta mais uma vez por aqueles braços fortes.

- Você está tensa - observou ele, deslizando as mãos pelos braços dela para tentar fazê-la relaxar. - A dor de cabeça ainda a está incomodando?

- Não muito.

- Bem, por que não sobe e toma um banho relaxante na banheira? Depois poderá vestir uma daquelas camisetas grandes e confortáveis, que você tanto gosta, e então poderemos jantar.

- Eu estou bem. Posso...

Cybil se interrompeu quando os lábios de Pres­ton capturaram os seus em um beijo deliciosa­mente inesperado. Um beijo carinhoso e sensual que a deixou com as pernas trêmulas.

- Agora suba - mandou ele, sorrindo quando ela o olhou com ar confuso. - Eu cuidarei de tudo.

- Tudo bem. Acho que ainda estou mesmo um pouco zonza. - Isso explicaria por que ela não estava nem conseguindo subir direito os degraus da escada de seu próprio apartamento. - O nú­mero... Ah, o número do telefone da pizzaria está sobre a mesinha...

- Pode deixar que eu cuidarei de tudo por aqui - ele repetiu, fazendo um gesto para que ela su­bisse.

- Relaxe, sim?

- Está bem. - Cybil subiu alguns degraus, mas logo parou e olhou para ele. - Preston? - Sim?

- Você... - Ela sorriu e balançou a cabeça. - Nada. Prometo que não vou demorar.

- Demore o tempo que quiser - respondeu ele.

De fato, levaria algum tempo para fazer com que tudo estivesse perfeito quando ela voltasse. Se aquela pequena demonstração de romantismo a deixara surpresa, com certeza Cybil ficaria sem palavras quando visse a noite que ele havia pla­nejado para os dois.

Ao pegar o telefone, procurou em qual das teclas de memória estava registrado o número da melhor amiga de Cybil.

- Jody? Oi, aqui é Preston McQuinn. Sim, tudo bem. Você sabe se Cybil tem preferência por al­gum restaurante aqui por perto? Não. - Ele riu. - Nada de fast food. Vamos sofisticar um pouco o cardápio, sim? Que tal um restaurante francês ou algo do gênero?

Preston não conseguiu deixar de rir ao ouvir o longo "Oh" da amiga de Cybil, do outro lado da linha. Então anotou o número de telefone do res­taurante que ela lhe passou.

- Agora vamos ver se você consegue me fazer o grande favor final - disse a ela, ainda sorrindo.

- Qual das sobremesas servidas por esse restau­rante a deixa maluca? Hum... Ótimo, já anotei. Noite especial? - Ele riu, olhando para o teto.

- Não, nada especial. Apenas um jantar tran­qüilo. Muito obrigado pela dica, Jody.

Riu novamente quando Jody continuou a lhe fazer perguntas.

- Ei, ambos sabemos que ela vai lhe contar tudo isso manhã.

Após se despedir, ligou para o restaurante e fez os pedidos. Então, puxou as mangas "metafo­ricamente", e partiu para o trabalho.

 

Cybil seguiu o conselho de Preston e demorou um bom tempo relaxando na banheira. Precisava daquele tempo para se acostumar àquela nova atitude dele. Ou seria aquilo, ponderou ela, apenas um lado de sua per­sonalidade que ele ainda não havia tido oportu­nidade de demonstrar?

Como poderia imaginar que Preston tinha um lado tão romântico? E como poderia prever que o fato de ele lhe demonstrar isso dificul­taria ainda mais o controle de seus próprios sentimentos?

Amava-o de qualquer maneira, sob qualquer cir­cunstância. Mas não havia mulher que resistisse a todas aquelas demonstrações de gentileza e ro­mantismo. Deus, até onde seu amor iria chegar? Seria possível conseguir amá-lo ainda mais? Di­fícil. Mas não impossível.

Tinha noção de que Preston estava fazendo aquilo para se desculpar, por havê-la magoado. Na verdade, ele não tinha idéia do que realmente havia feito a ela. Contudo, o mais importante, pelo menos para ela, era o fato de ele querer se desculpar de alguma maneira. Como poderia ne- gar um pedido de desculpas vindo de Preston?

Uma noite tranqüila, com um jantar íntimo e casual, seria perfeita para eles. Preston não gostava de multidões e, no momento, ela própria também não estava com disposição para ir a um lugar mais agitado. Por isso, comer pizza diante da tevê lhe pareceu um bom programa. Ela e Preston teriam a chance de rir e de conversar sobre ame- nidades. Mais tarde, talvez até fizessem amor no sofá enquanto um filme em preto-e-branco estivesse sendo exibido na sessão da madrugada. Finalmente as coisas voltariam a ser simples entre eles.

Sentindo-se mais calma e relaxada, vestiu um longo robede seda azul, escovou os cabelos e começou a descer a escada. Foi então que uma música suave lhe chegou aos ouvidos. Um som envolvente e sedutor. Não ficou surpresa. Afinal, Preston gostava daquele tipo de música e até tocava aquele estilo com seu sax.

Porém, ao descer mais alguns degraus, viu o candelabro sobre a mesa com suas velas acesas. Preston estava ao lado da mesa, esperando-a com um sorriso charmoso. Havia trocado de roupa e estava trajando uma calça e uma camisa pretas, além de haver feito a barba.

Ao vê-la, ele lhe estendeu a mão. Cybil se aproximou devagar e pousou a mão sobre a dele, encantada com a maneira como a chamas das velas se refletiam sobre os cabelos e os olhos dele.

- Está se sentindo melhor?

- Sim, muito. O que está acontecendo aqui?

- Nós vamos jantar.

- Mas o cenário está um pouco elaborado para... - Cybil se interrompeu quando Preston levantou-lhe a mão e roçou os lábios sobre seus dedos, deixando-a sem fôlego por um instante. - Pizza - completou ela.

Preston sorriu.

- Gosto de olhar seu rosto à luz de velas - explicou. - Gosto do efeito das chamas no brilho de seus olhos. - Puxando-a delicadamente para si, beijou-a nos lábios. - E sobre sua pele. - Roçou os lábios sobre a face dela. - Acho que esqueci de quanto você é delicada e acabei indo longe demais em minha falta de consideração.

- O quê? - Cybil estava se sentindo ligeira­mente zonza.

- Tenho sido descuidado com você, Cybil. Mas não serei esta noite. - Dizendo isso, beijou a mão dela, provocando-lhe um arrepio. - Tenho algo para você - falou ele, pegando uma pequena caixa com um laço cor-de-rosa que havia sido deixada sobre o balcão.

Cybil levou as mãos às costas, em um gesto instintivo.

- Não quero nenhum presente, Preston. Não preciso de presentes.

Ele franziu o cenho, surpreso com o tom defen­sivo na voz dela. Somente depois de alguns se­gundos, foi que se deu conta de que ela estavapensando em Pamela.

- Não estou lhe oferecendo isso porque você precise, ou porque tenha pedido - explicou a ela.

- Quero lhe dar isso porque me fez lembrar de você. - Ele entregou a caixinha a ela. - Abra antes de se decidir. Por favor.

Sentindo-se meio infantil, Cybil pegou a caixi­nha e retirou o laço com cuidado.

- Bem, quem não gosta de presentes? - disse, com bom humor. - Além do mais, você esqueceu meu aniversário.

- Esqueci?

Preston se mostrou tão chocado que a fez rir.

- Sim, ele foi em janeiro, e o fato de que você ainda não me conhecia não serve de desculpa para não ter me dado um presente. Então este aqui...

Cybil se interrompeu de repente, olhando para o inusitado par de brincos repousados sobre o ve­ludo da caixinha. Dois pingentes de hematita mos­trando vários peixinhos sobrepostos. Feito um pe­queno cardume de sardinhas prontas para entrar na lata.

- Eles são ridículos. - Cybil riu, encantada.

- Eu sei.

- Mas eu adorei.

- Eu sabia que você ia gostar. - Preston sor­riu, satisfeito.

Com um brilho de felicidade no olhar, ela se­gurou os pingentes junto às orelhas.

- Que tal?

- Adoráveis e inusitados, como você.

Cybil enlaçou os braços em torno do pescoço dele e o beijou com uma paixão que fez Preston sentir o sangue esquentar. Então ouviu um soluço.

 - Ah, meu Deus. Não, não faça isso.

- Sinto muito. - Cybil soluçou novamente, es­condendo o rosto junto ao pescoço dele. - É que flores, candelabros e peixinhos... Muita coisa de uma vez, entende? - Respirando fundo, tentou se acalmar e deu um passo atrás. - Muito bem, já passou - declarou, passando as mãos pelo ros­to, com ar decidido.

- Graças a Deus. - Preston passou o polegar pelo rosto dela, enxugando uma lágrima que in­sistira em surgir. - Pronta para o champanhe?

- Champanhe? Ora, é difícil não se estar pronto para tomar champanhe.

Cybil ficou olhando Preston ir até a cozinha e começar a abrir o champanhe deixado em um balde com gelo. O que dera nele afinal? Tinha de haver um motivo para todo aquele contentamento...

- Já sei! - exclamou ela, de repente. - Você ter­minou o roteiro! Oh, Preston, você conseguiu terminar?

- Não, não terminei.

A rolha do champanhe finalmente saltou e ele serviu a bebida.

- Oh. - Voltando a se sentir confusa, Cybil fran­ziu o cenho.

- Então, o que estamos celebrando?

- Você. - Preston tocou o copo no dela, em um brinde. - Apenas você.

Ele pousou a mão sobre o rosto de Cybil, antes de levar seu próprio copo aos lábios dela.

Cybil provou a bebida, fechando os olhos por um instante para apreciar melhor aquele sabor todo especial. A maneira como Preston a estava fitando quando ela voltou a abrir os olhos deixou-a entontecida.

- Não sei o que lhe dizer.

- Não precisa dizer nada - respondeu ele.

- Apenas aproveite a noite que preparei para você. Cybil sentiu um arrepio de expectativa.

- Puxa, quais serão as surpresas que me aguar­dam? Já estava me sentindo feliz demais com as que tive até agora.

- Eu ainda nem comecei... - Preston tirou o copo da mão dela e o deixou de lado, antes de envolvê-la em seus braços. Roçando os lábios nos dela ao ritmo da música, ele sussurrou: - Nunca a tirei para dançar.

- Não. - Cybil fechou os olhos. - Nunca.

- Então dance comigo, Cybil.

Como se aquele fosse o gesto mais natural na­quele momento, ela levou a mão ao ombro dele e encostou a cabeça em seu ombro, deixando-se le­var pelo ritmo da música. Iluminados apenas pe­las suaves chamas das velas, os dois ficaram ali durante algum tempo, desfrutando aquela agra­dável atmosfera de intimidade.

Ao sentir os lábios de Preston roçando seu quei­xo, Cybil levantou o rosto de modo que seus lábios encontrassem os deles. Sua pulsação estava ace­lerada, mas seus movimentos, ao ritmo da música, eram lentos, quase preguiçosos.

- Preston... - murmurou, equilibrando-se na ponta dos pés para beijá-lo com mais intensidade.

- Deve ser o jantar - falou ele, ainda com os lábios junto aos dela.

 - Hum?

 - O jantar. A campainha.

 - Oh.

Cybil tivera a impressão de ouvir uma campainha, mas o ruído lhe parecera tão distante que

ela pensara que o som. houvesse vindo de outro apartamento.

- Espero que não fique desapontada - disse Preston, enquanto abria a porta.

- Não é pizza.

- Oh, tudo bem. Qualquer coisa está bom para mim.

Como ele queria que ela se preocupasse com comida com todo seu corpo ardendo de desejo por ele? Entretanto, não conseguiu esconder o ar de espanto ao ver garçons uniformizados entrando no apartamento.

Aturdida, ficou observando os homens arruma­rem as iguarias sobre a mesa com eficiência e discrição. Eles partiram em menos de dez minutos, e somente então Cybil conseguiu voltar a falar.

- Isso... parece estar maravilhoso.

- Venha sentar-se. - Preston lhe segurou a mão e indicou um lugar para ela, antes de se inclinar e beijá-la na nuca.

Cybil se lembrava de haver comido alguma coi­sa, mas não tinha muita certeza do que fora e nem de como o fizera. Era como se seu poder de observação houvesse decidido abandoná-la de re­pente. Toda sua atenção estava centrada em Pres­ton, e somente nele. Só conseguia se lembrar da maneira como os dedos gentis haviam tocado os seus e de como aqueles lábios macios haviam ro­çado a pele sensível de sua mão em determinados momentos. A maneira charmosa como ele sorrira e servira mais champanhe, que ela bebera até sentir a cabeça ficar leve, muito leve.

Também se lembrava com clareza da maneira como ele a carregara nos braços, com infinita gen­tileza, até o andar de cima. E de como ele a co­locara com todo cuidado sobre a cama, em meio aos lençóis perfumados. Acendeu as velas do can­delabro, como já havia feito antes, mas dessa vez se aproximou de uma maneira diferente. Uma ma­neira permeada por uma espécie de magia cari­nhosa e sensual que Cybil não saberia ao certo como definir, apenas sentir.

Um beijo intenso e apaixonado iniciou o ritual de amor. Preston ofereceu a ela mais do que con­seguia se imaginar capaz de oferecer a alguém, e encontrou na resposta sem reservas de Cybil mais do que poderia sonhar.

Fizeram amor lentamente, sem pressa, sem re­ceios. Para ambos, aquele delicioso compartilhamen­to íntimo foi uma espécie de descoberta mútua, algo que viveria apenas na lembrança dos dois.

Quando Preston abriu o robe de Cybil, ficou algum tempo admirando suas formas perfeitas, lisonjean­do-a com aquele olhar de indisfarçável desejo.

- Você é tão linda, Cybil - disse, fitando-a nos olhos.

- Quantas vezes deixei de lhe dizer isso? De lhe mostrar isso?

- Preston...

- Deixe que eu lhe faça isso. Deixe-me vê-la sentir prazer ao ser tocada como eu deveria tê-la tocado antes. Assim... - murmurou ele, percor­rendo toda a extensão do corpo macio e cheio de curvas com a ponta do dedo indicador.

Cybil conteve o fôlego e fechou os olhos, envolvida por uma sensual onda de prazer. Então ele inclinou a cabeça, traçando com os lábios e a língua a mesma trilha de fogo que seu dedo havia deixado.

Gemidos de prazer irromperam na garganta de Cybil, emergindo por entre seus lábios entreaber­tos. Vulnerável ao toque das mãos e dos lábios experientes de Preston, estremeceu completamen­te quando uma onda mais intensa de prazer ar­rebatou-a de repente.

Preston continuou a doce tortura, sentindo-se satisfeito ao vê-la gemer e arquear o corpo em meio ao poderoso abandono sensual. Mas ainda não era suficiente. Queria oferecer mais a Cybil. Muito mais.

Ao se unir a ela por completo, deixou que o desejo, dessa vez permeado por uma infinita ter­nura, conduzisse seu corpo e o de Cybil por aquela escalada de sensualidade. Com movimentos in­tensos e ternos ao mesmo tempo, Preston a ar­rastou consigo para aquele universo de prazer que sempre guardava uma surpresa, nunca se reve­lando exatamente da mesma maneira.

Quando Cybil acordou, sorriu ao ver que Pres­ton continuava ali, a seu lado, abraçando-a com o mesmo carinho com que a envolvera quando os dois haviam adormecido nos braços um do outro, exaustos depois do amor.

- Definitivamente, essa foi a primeira colocada na lista moderna dos "Dez Tipos de Noites Ro­mânticas Possíveis de Acontecer na Vida de uma Mulher" - disse Jody; trocando a fralda de Char­lie com sua costumeira habilidade, enquanto o bebê insistia em dar suas opiniões naquela lin­guagem que somente ele mesmo entendia. - Ga­nhou de longe do passeio de carruagem no Dia dos Namorados, com uma dúzia de rosas brancas e um par de brincos de diamante que minha pri­ma, Sharon, ganhou. Ela vai ficar indignada.

- Nunca alguém me deu tanta atenção - con­fessou Cybil, abraçada a um dos ursinhos de pe­lúcia da vasta coleção de Charlie. - Não foi ape­nas o... Você sabe.

- Mas o "você sabe" também foi maravilhoso, certo? - indagou Jody, fechando a fralda.

- Foi indescritível. Você se lembra daquela cena em Corações em Chamas, quando Martin e Alessa finalmente descobrem que haviam sido se­parados durante anos pelo tio cruel e ambicioso?

- Oh, meu Deus. - Jody revirou os olhos, pe­gando Charlie no colo. - Se me lembro! Fiquei acordada até as duas horas da manhã lendo aque­le livro, e acabei acordando Chuck. - Sorriu com ar maroto. - Ficamos um pouco cansados no dia seguinte, mas valeu. a pena. - Ela levou Charlie para a sala e colocou-o sobre o tapete, para ele engatinhar. - Foi mesmo tão bom assim?

- Foi melhor.

- Não acredito.

- Foi como se Preston houvesse me oferecido não apenas seu coração, mas também sua alma. E eu fiz o mesmo em relação a ele.

- Puxa. - Jody sentou-se na cadeira mais pró­xima. - Isso foi lindo, Cyb. Lindo mesmo. Você também deveria escrever um romance qualquer dia desses.

- Mas não foi apenas isso que me impressio­nou. Foi todo o conjunto, entende? - Brincando com Charlie, ela prosseguiu: - Estou tão apai­xonada, Jody. Não acredito que seja possível amar tanto assim sem ter esse sentimento transbordan­do por você. Ele parece grande demais para ficar contido apenas aqui, dentro de mim.

- Oh. - Jody exalou um longo suspiro. - Quando vai contar a ele?

- Não posso. - Também suspirando, Cybil pegou o martelinho de plástico de Charlie e começou a batê-lo na mão, produzindo um ruído que chamou a atenção do bebê.

- Não sou corajosa o suficiente para dizer-lhe algo que ele não quer ouvir.

- Cyb, o homem está louco por você.

- Ele tem sentimentos em relação a mim, e talvez se eu conseguir esperar e convencê-lo de que não pretendo magoá-lo, Preston se permita sentir algo mais.

- Magoá-lo? - Jody franziu o cenho. - Cybil, você nunca magoou ninguém. Mas talvez, dessa vez, esteja magoando a si mesma.

- Ele tem motivos para ser cauteloso - disse ela, levantando a mão antes de Jody fizesse al­guma pergunta. - Não posso lhe contar, mas sei que ele tem motivos para agir assim.

- Tudo bem. Eu entendo.

- Obrigada. Agora preciso ir, ainda tenho uma porção de coisas para fazer. Precisa de alguma coisa?

- Na verdade, preciso sim. Mas só se você for sair.

- Acrescentarei seu pedido à minha lista. Já vou pegar algumas coisas para a sra. Wolinsky e prometi, à sra. Peebles que lhe traria algumas uvas verdes do mercado, se elas estivessem boas. Deixe-me pegar a lista... - falou ela, procurando o papel nos bolsos.

- Só vou lhe pedir isso porque vai sair de qual­quer maneira e porque é você. - Jody mordeu o lábio, então sorriu. - Não conte a ninguém que vai comprar isso para mim, está bem?

- Pode deixar. - Distraída, Cybil finalmente encontrou a lista dentro da carteira.

Cybil acabou demorando mais tempo do que imaginara. Quando entregou os itens para a sra. Wolinsky, as uvas à sra. Peebles, uvas que ela achara tão bonitas que comprara uma porção para si mesma, e finalmente bateu à porta de Jody, já passava das cinco horas da tarde.

Fez um ar de frustração quando a amiga não respondeu. Pelo visto, Jody havia precisado sair por algum motivo. Carregando as compras, voltou para o elevador e foi para o andar de cima.

Um inevitável sorriso surgiu em seus lábios quan­do ela viu Preston esperando por ela no corredor.

- Oi!

- Olá, vizinha. - Ele pegou os pacotes e bei­jou-a nos lábios. - Ei, o que traz aqui dentro? Tijolos?

Cybil riu, procurando as chaves.

- Mantimentos, produtos de limpeza e algumas outras coisinhas. Comprei algumas coisas para você também. As maçãs estavam muito bonitas é mais saudável comê-las enquanto está traba­lhando do que ficar se empanturrando com doces e coisas do gênero.

Encontrou as chaves com um breve "A-ha!" e destrancou a porta.

- Oh, e também um pouco de amoníaco, para limparmos aquelas suas janelas.

- Maçãs e amoníaco. - Preston colocou os pa­cotes sobre a mesa. - O que mais um homem pode querer?

- Torta de nozes, diretamente da doceria. Sinto muito, mas não consegui resistir.

- Pois ela terá de esperar.

Dizendo isso, Preston a tomou nos braços e ro­dopiou com ela.

- Ei, está mesmo de bom humor, não? - disse ela, sorrindo ao beijá-lo. - Se seu sorriso for além disso, talvez acabe tendo problemas no maxilar.

- Terminei de escrever a peça, Cybil - decla­rou ele.

- Terminou? - Ela o abraçou com força. - Oh, Preston, isso é maravilhoso!

- Nunca terminei um roteiro tão rapidamente. Ele ainda precisa de alguns ajustes, claro, mas o principal está pronto. Está tudo lá. E você teve muito a ver com isso.

- Eu?

- Assim que parei de tentar afastá-la e me isolar para escrever, o conteúdo simplesmente fluiu.

- Posso ler o roteiro?

- Sim, depois que eu burilá-lo um pouco mais. Agora vamos jantar para comemorar.

- Jantar? Só se estiver disposto a celebrar um acontecimento tão importante assim com espague­te e almôndegas.

- Para mim, está ótimo. - Sem se importar em parecer sentimental, acrescentou: - Desde que seja com você, aquela que um dia pagou um jantar a um músico faminto.

- Ah, meu Deus, você colocou isso na peça? E sobre eu haver lhe pagado para jantar comigo? Oh, Deus, estou perdida.

- Você vai gostar, não se preocupe.

Cybil arregalou os olhos.

- Então eu apareço mesmo na peça? Com que nome eu apareço?

- Zoé.

- Zoé? - Ela apertou os lábios, pensativa. - Gostei.

- Nada que fosse muito comum iria combinar com você - Preston explicou.

- Você parece tão feliz. - Aproximando-se, Cybil acariciou os cabelos dele. - E é tão bom vê-lo feliz.

- Venho me sentindo assim com muita fre­qüência ultimamente. Agora vamos.

- Ei, primeiro preciso guardar as compras. De­pois me arrumarei um pouco e poderemos sair.

- Então vá se arrumar enquanto eu guardo as compras - sugeriu ele.

- Está bem - Cybil concordou, já se dirigindo à escada. - Mas tome cuidado para guardá-las nos lugares certos, sim?

 

- Pode deixar comigo - Preston respondeu, começando a tirar os itens de um dos pacotes.

Ele havia ficado impaciente durante aquela úl­tima hora, esperando Cybil voltar para poder lhe contar a novidade. Queria que ela fosse a primeira pessoa a saber. Também estava ansioso para dizer que, de alguma maneira, em algum momento ao longo das últimas semanas, tudo havia mudado em sua vida. Por mais que houvesse lutado contra aquilo e tentado ignorar o que estava sentindo, nada havia resolvido. Chegara à conclusão de que pela primeira vez depois de muito, muito tempo, voltara a se sentir feliz.

Cybil tinha razão, ele estava feliz. E não era apenas por causa da peça. Cybil era o motivo prin­cipal de sua felicidade, sempre fora.

Isso havia transparecido em sua peça, por meio das falas das personagens, e dos contextos que ele havia criado. Era impossível resistir ao brilho da personalidade de Cybil, e isso estava lá, em sua peça, para que todos pudessem ver e aplaudir.

A felicidade entrara em sua vida juntamente com Cybil, com seus biscoitos, sua conversa ani­mada, seus risos e seu jeito encantador.

O que sentia por ela o preenchera por inteiro, como que salvando-o de um destino solitário e desafortunado. Sim, ela o havia salvado. E, por isso, a última frase de sua peça era: "O amor cura".

Com algum tempo e certo esforço, tivera a chan­ce de construir ao lado dela o tipo de vida em que deixara de acreditar ao sofrer aquela desilu­são no passado.

Pensativo, começou a tirar os itens do segundo pacote de compras. E então, ao pegar uma deter­minada caixa, sentiu todo aquele mundo recém­ organizado cair de repente sobre sua cabeça.

- Eu ia trocar de roupa, mas decidi não perder tempo para começar nossa comemoração. - Cybil desceu a escada rapidamente, com os brincos que Preston havia lhe dado de presente balançando nas orelhas. - Só preciso ligar para Jody antes de sairmos, para ver se ela já voltou.

- O que diabos é isso, Cybil? - Pálido de fúria, Preston mostrou a ela o kit para teste de gravidez. - Você está grávida?

- Eu...

- Você acha que está grávida e não me disse nada? O que pretendia fazer? Esperar o momento, o lugar e o humor certos para me contar?

O brilho de animação que Cybil trazia no olhar desapáreceu de repente.

- E isso o que você pensa, Preston?

- O que diabos você acha que eu devo pensar? Sai por aí, toda sorridente, e depois eu encontro isso. - Ele mostrou a caixa. - E depois vem me dizer que não mente, que não brinca com os sen­timentos de ninguém. O que mais posso deduzir a seu respeito?

- Isso faz de mim alguém como Pamela, não é? - Toda a felicidade que havia preenchido o coração de Cybil ao longo do dia de repente pa­receu se transformar em cinzas. - Uma pessoa calculista e enganadora. Alguém disposta a usá-lo em, proveito próprio, é isso?

Preston disse a si mesmo que precisava se acal­mar, antes que acabasse fazendo alguma besteira ou perdendo o controle da situação.

- Isso é entre mim e você. Não diz respeito a ninguém mais. Quero uma explicação.

- Imagino se essa questão seja mesmo entre mim e você, sem envolver ninguém mais - re­plicou ela. - Vou lhe dar uma explicação, Preston. Comprei maçãs para você, uvas para a sra. Pee­bles, alguns itens para a sra. Wolinsky e esse kit de gravidez para Jody. Ela acha que está espe­rando um irmãozinho para Charlie.

- Jody?

- Isso mesmo. - Cybil continuou a sentir um aperto no peito.

- Não estou grávida. Portanto, pode ficar tranqüilo.

- Sinto muito.

- Eu também. Sinto realmente muitíssimo. -­Ela teve de se esforçar para conter as lágrimas ao pegar a caixa e examiná-la. - Jody estava tão feliz quando me pediu para comprar isso. Tão es­perançosa. Para algumas pessoas, a idéia de ter um filho é sinônimo de felicidade, mas para você... - Ela colocou a caixa sobre a mesa e olhou para Preston. - Para você é uma ameaça, uma lem­brança ruim do passado.

- Foi uma reação impensada, Cybil. Reconheço que fui precipitado.

- Cruel, seria a palavra mais apropriada. O que teria feito se eu estivesse mesmo grávida, Preston? Começaria a me acusar, dizendo que montei uma armadilha para arruinar sua vida?

Ou, quem sabe, começaria a pensar que dormi com outro homem e que nos divertimos muito à sua custa.

- Não, eu não diria isso. - A simples idéia o fez estremecer.

- Não diga tolices. Claro que eu não pensaria isso.

- Tolices? Tolice sobre o quê? Se ela fez, por que eu não o faria? Por que diabos eu não faria? Você acabou de trazê-la para cá e de colocá-la bem aqui entre nós, Preston. E foi você quem per­mitiu isso.

- Tem razão. Cybil, eu...

Ela deu um passo atrás quando ele tentou tocá-la.

- Não toque em mim! Não suportarei ser to­cada por alguém que me considera como uma mu­lher qualquer. Fui sincera com você durante todo esse tempo, Preston, e você não tinha o direito de me magoar desse jeito. Também fui idiota por permitir que você me magoasse. Mas agora chega. Vá embora, por favor.

- Não irei embora antes de esclarecermos essa situação.

- Ela já está esclarecida. Não o culpo pelo que aconteceu. Na verdade, também tive culpa nessa história. Você foi sincero comigo. "Isso é tudo que posso lhe oferecer. Não peça nada além disso", você mesmo disse. Eu me envolvi porque quis, mas isso não voltará a acontecer. Preciso de al­guém que me respeite e que confie em mim. E não aceitarei nada menos do que isso. Portanto, vá embora. - Ela foi até a porta e a abriu com um gesto firme.

- Vá embora daqui.

Apesar da fúria nos olhos de Cybil, eles estavam marejados de lágrimas e as mãos fechadas sobre suas coxas estavam trêmulas. Apesar de a porta haver sido aberta, Preston continuou olhando-a.

- Eu estava errado. Completamente errado, Cybil. E sinto muito por isso.

- Eu também. - Ela começou a tamborilar os dedos sobre a porta, então respirou fundo. - Eu menti. Não fui sincera com você em absolutamente todos os momentos, Preston. Mas serei de agora em diante. Estou apaixonada por você e lamento que tudo tenha de terminar assim.

Preston tentou argumentar uma última vez, mas Cybil passou correndo por ele e foi para o quarto, onde se trancou.

Aflito, ele passou a mão pelos cabelos e voltou para seu apartamento. Não precisava ser assim. Não precisava.

 

- Preciso achar esse sujeito e acertar algumas contas com ele - disse Grant Campbell por entre os dentes, andando de um lado para outro da cozinha e lem­brando um dragão prestes a cuspir fogo.

- Isso não a faria parar de sofrer - salientou Gennie, afastando-se da janela de onde estivera observando a filha.

Notando a atitude impaciente e irritada do ma­rido, lembrou-se do homem por quem ela havia se apaixonado muitos anos antes. Grant ainda mantinha alguns traços do caráter incisivo da ju­ventude, só que permeados pelo charmoso ar da maturidade. Seu amor por ele havia mudado ao longo dos anos, mas não havia dúvida de que con­tinuava tão intenso quanto antes.

- Pelo menos iria fazer eu me sentir bem me­lhor - resmungou ele. - Vou sair para buscá-la.

- Não, você não vai. - Gennie pousou a mão sobre o braço dele, antes que ele passasse pela porta. - Deixe-a sozinha por algum tempo.

- Mas está ficando escuro - argumentou Grant, sentindo-se impotente.

- Cybil virá quando sentir que está pronta.

- Não sei se vou agüentar isso. Detesto ver a sombra de tristeza que Preston deixou nos olhos dela.

- É preciso se ferir, antes de se curar. Ambos sabemos disso. - Gennie abraçou o marido e re­pousou a cabeça sobre o ombro dele. - Ela sabe que estamos aqui.

- Era mais fácil quando algum deles caía, se machucava e precisava de cuidados. Pelo menos sabíamos o que fazer.

Gennie sorriu.

- Não era o que você pensava na época. - Afas­tando-se um pouco, segurou o rosto dele entre as mãos. - Você sempre se feriu mais do que eles.

- Eu apenas queria aninhá-los no colo e fazer a dor passar. Como quero fazer com ela agora. Depois irei atrás do sujeito e acertarei as contas com ele.

- Também estou sofrendo por vê-la sofrer - confessou Gennie. Sorrindo, acrescentou: -- Se pu­desse, também quebraria o pescoço do "sujeito", como você diz. Mas sabemos que essas coisas não se resolvem assim.

Foi dessa maneira que Cybil os encontrou ao entrar na cozinha. Os dois abraçados diante da janela, fitando-se nos olhos.

Mais do que nunca, teve certeza de que era aquilo que ela queria para si. Havia sido criada em meio àquela atmosfera romântica e tranqüila, e não conseguia se imaginar criando seus próprios filhos em um ambiente diferente.

Aproximando-se devagar, abraçou-os ao mesmo tempo.

- Vocês têm idéia de quantas vezes na minha vida eu vim até aqui e os vi exatamente dessa ma­neira? E de quanto ,é bom poder ver isso de novo?

- Seus cabelos estão molhados - observou Grant, passando a mão por eles.

- Eu estava olhando as ondas se quebrando nas rochas. - Cybil o beijou. - Pare de se preo­cupar comigo, papai.

- Vou parar. Quando você estiver com cinqüen­ta anos. Talvez. - Ele pousou a mão sobre o rosto dela.

- Quer um pouco de café?

- Hum... não. Acho que vou tomar um banho quente e ir para a cama junto com um bom livro. Isso sempre funcionou para mim, quando eu era adolescente e passava por alguma crise.

- Naquele tempo, quando você estava em crise, era eu quem preparava seu banho - a mãe a lembrou.

- Então, por que quebrar a tradição?

- Não precisa fazer isso, mamãe.

- Ah, deixe que eu me intrometa um pouco também. Ou será que essa honra cabe apenas a seu pai? - Gennie sorriu, passando o braço pelos ombros da filha.

Com um suspiro, Cybil deixou que a mãe a con­duzisse em direção ao quarto.

- E eu que estava com esperanças de fazê-la desistir.

Gennie manteve o sorriso.

- Seu pai precisa ficar um pouco sozinho para ter tempo de andar de um lado para outro e xingar seu namorado.

- Ele não é meu "namorado" - protestou Cybil, quando as duas começaram a subir a ampla es­cada em caracol.

- Nunca foi.

- Você não é mais uma adolescente. - Com gentileza, Gennie virou Cybil de frente para ela quando os duas entraram no quarto que havia sido de Cybil.

- E isso não é uma crise.

Os olhos de Cybil se encheram de lágrimas mais uma vez.

- Oh, mamãe...

- Calma, minha querida.

Gennie a conduziu até a cama, ainda coberta com a colcha de retalhos coloridos preferida de Cybil, na época da adolescência. Sentando-se so­bre o colchão, Gennie fez um sinal para que a filha se sentasse ao lado dela. Quando Cybil obe­deceu, a mãe a abraçou.

- Eu quero odiá-lo. -- Aninhando-se no colo da mãe, Cybil começou a chorar.

 - Eu quero odiá­-lo - repetiu. -- Se pelo menos eu conseguisse deixar de amá-lo...

- Eu gostaria de poder lhe dizer que isso é possível, Cyb. Eu realmente gostaria. Alguns ho­mens são tão difíceis. - Gennie embalou a filha enquanto falava: - Eu a conheço muito bem, mi­nha querida. Sei que se você o ama é porque deve haver algo nele que seja digno do seu amor.

- Ele é maravilhoso. Ele é insensível. Oh, ma­mãe... - Cybil voltou a chorar.

- Ele é igualzinho a papai.

- Oh, minha querida. Então, que Deus a ajude.

 - Com um sorriso, Gennie abraçou-a com mais força.

- Eu sempre adorei a história de vocês dois - falou Cybil, enxugando as lágrimas e voltando a se acalmar. - A história de como vocês se co­nheceram, quando seu carro quebrou em meio à tempestade e você ficou aflita, indo buscar ajuda no farol onde ele estava vivendo feito um eremita. E de como ele foi rude com você.

Cybil parou um instante para assoar o nariz em seu lencinho.

- Ele não via a hora de se livrar de mim - falou Gennie, rindo e afagando os cabelos da filha.

- Da maneira como ele conta, você pratica­mente invadiu o espaço dele. E ele ficou aborrecido porque você era linda e estava toda encharcada. - Cybil suspirou, observando os traços clássicos do semblante da mãe, emoldurados pelos belos cabelos negros.

- Você é tão linda, mamãe.

- Você tem meus olhos -- afirmou Gennie, com seu costumeiro tom gentil. - Isso é que faz com que eu me sinta bonita.

Cybil sorriu.

- Não fomos feitos um para o outro. Preston e eu. Ele é tão conservador e vive tão absorto no trabalho... Não que ele não tenha bom humor, mas o humor dele é diferente do meu, entende? - Ficou de pé com um suspiro e caminhou até a janela, para ver a lua se refletindo sobre as águas além da casa. -- Às vezes, ele é incrivel­mente charmoso, surpreendente e encantador. Mas é tão temperamental que nunca sei como vai estar o humor dele quando nos encontrarmos de novo. Junto a isso, há também uma incrível sen­sibilidade que o faz sentir medo de confiar nos outros, de sentir algo mais intenso por alguém. Mas basta ele me tocar para eu me esquecer do resto do mundo...

- Oh, meu Deus. Ele é realmente igualzinho a seu pai. Cyb, precisa fazer o que é melhor para você. Mas se o ama tanto assim, talvez nunca con­siga ser feliz sem antes tentar acertar essa situação.

- Ele acha que sou uma inconseqüente - Cybil retomou o tom indignado, levando Gennie a sorrir com sabedoria. - E que meu trabalho é menos importante do que o dele só porque é diferente. Ele não confia em mim. Em um minuto me manda embora do apartamento dele, e no outro age como se não conseguisse ficar longe de mim. - Virou-se de repente, pronta para fazer mais algumas re­clamações, mas se espantou ao ver a mãe sorrindo.

- O que foi?

- Como conseguiu encontrar outro homem como esse? Pensei que eu tivesse o único do mundo - disse Gennie.

- Vovô o encontrou.

O sorriso de Gennie adquiriu um ar mais sagaz.

- Oh. - Ela arqueou uma sobrancelha perfei­ta. - É mesmo? Não me diga...

Pela primeira vez naquelas últimas vinte e qua­tro horas, Cybil começou a rir.

 

Preston resmungou algo, guardando o sax de volta na maleta. Mulheres, pensou. Conseguiam afetar tanto um homem que não o deixavam em paz nem mesmo para tocar seu instrumento pre­ferido ferido e liberar sua frustração. Como se não bas­tasse, também não estava conseguindo trabalhar.

Passara a maior parte do dia olhando para a tela do computador, indo até a janela ou ameaçando ba­ter à porta do apartamento de Cybil. Isso até final­mente perceber que ela não se encontrava mais lá.

Ela o havia deixado. O que, provavelmente, fora a atitude mais sensata que ela tomara desde que o conhecera. Após o primeiro momento de aflição, Preston ponderara um pouco mais a respeito da situação e chegara à conclusão de que a melhor coisa que poderia fazer para ambos seria ir em­bora antes que ela voltasse para casa.

Voltaria para Connecticut na manhã seguinte. Achava que poderia agüentar pedreiros, encana­dores, eletricistas e quem mais estivesse refor­mando a casa por mais algumas semanas. Mas não conseguiria agüentar ficar ali, morando bem em frente ao apartamento da mulher que ele ama­va e que perdera devido à sua idiotice.

Tudo que Cybil lhe dissera fora a mais completa verdade, e ele não tivera nenhuma defesa contra isso.

- Vou ficar fora durante algum tempo, André.

O pianista olhou para ele através da neblina formada pela fumaça dos cigarros.

- É mesmo?

- Vou voltar amanhã para Connecticut.

- Hum-hum. Levou um fora da garota? - per­guntou André. Esticando-se para olhar as costas de Preston, acrescentou:

- Por acaso é um rabo isso que estou vendo entre suas pernas, meu caro?

Preston pegou a maleta, forçando um riso.

- Nos veremos por aí.

- Vou continuar bem aqui. É só me procurar.

Quando Preston se virou de costas para ele, André esticou o pescoço e fez um sinal para a esposa, então apontou o polegar na direção do ami­go. Entendendo a mensagem, Delta se dirigiu à saída pelo outro lado.

- Está saindo mais cedo hoje, meu querido?

- Preciso arrumar algumas coisas porque vou viajar cedo amanhã. Vou voltar para Connecticut.

- Vai voltar às origens? - Delta sorriu, pas­sando o braço por dentro do dele. - Bem, então vamos tomar um drinque de despedida, porque vou sentir falta dessa sua carinha bonita.

Preston riu.

- Também vou sentir da sua.

- Aposto que não só da minha - disse ela, o mostrando dois dedos ao barman. - Aquela ga­rota linda acendeu o blues em sua alma, mas você não está conseguindo transmitir isso a seu sax, não é mesmo? Ainda não foi dessa vez?

- Não, não foi. - Preston levantou o copo, em um brinde. - Está terminado.

- Mas por quê?

- Porque ela disse que está - respondeu ele, tomando a bebida de um único gole. Delta riu com charme.

- E desde quando os homens passaram a acei­tar esse tipo de situação?

- Quando a mulher está sendo absolutamente sincera, não há o que argumentar.

- Preston McQuinn, não estou acreditando no que estou ouvindo...

- Você é mesmo um idiota - acrescentou, em um tom afetuoso.

 

- Sem argumentos, Delta. Por isso acabou. Eu estraguei tudo, e agora preciso aprender a conviver com isso.

- Se foi você quem estragou, será você quem terá de consertar.

- Quando se magoa uma pessoa tanto quanto eu magoei Cybil, ela passa a ter o direito de não querer lhe ver mais.

- Meu querido, quando se ama uma pessoa tanto quanto eu sei que você a ama, você passa a ter direito de agir, ainda que tenha de se ajoe­lhar e implorar pelo amor dela. - Delta fitou-o bem nos olhos.

- Você a ama tanto assim?

Preston olhou para o copo de uísque deixado sobre o balcão.

- Nem eu mesmo sabia que a amava tanto. Nunca imaginei que eu fosse capaz de amar tanto.

- Ah, meu amigo... - Delta o beijou no rosto.

- Então o que está esperando para ir atrás dela?

Preston balançou a cabeça negativamente, como se aquele assunto estivesse encerrado para ele. Dando um beijo de despedida na amiga, encami­nhou-se para a saída e voltou a pé para casa.

Delta estava errada, disse a si mesmo. Às vezes, não havia como consertar um erro. Que motivo teria Cybil para aceitá-lo de volta? Ainda trazia na lembrança a imagem da sombra de tristeza que surgira naqueles olhos verdes quando ele de­monstrara desconfiança quanto ao caráter dela.

Não tinha o direito de pedir a ela que o ouvisse, depois da maneira como agira. Ajoelhar-se e im­plorar talvez fosse pouco dessa vez.

Para seu espanto, só se deu conta de que havia começado a correr quando chegou ofegante ao apartamento de Jody. Levado por um impulso, começou a bater à porta.

- Pelo amor de Deus, o que é isso?

Depois de verificar quem era através do olho mágico, Jody abriu a porta e fechou o robe com mais firmeza em torno de si. Se Chuck não dor­misse feito uma pedra, ela não teria de ter saído correndo, antes que o barulho acordasse o bebê.

- Já passa da meia-noite - disse ela. - Ficou maluco?

- Onde ela está, Jody? Para onde ela foi? Jody torceu o nariz, levantando o queixo com um ar de dignidade dificil de ser sustentado naquele robe todo estampado com gatinhos cor-de-rosa.

- Você bebeu?

- Tomei um drinque - respondeu Preston. - Mas não estou bêbado. - De fato, ele nunca se sentira tão sóbrio, ou tão desesperado.

- Onde está Cybil?

- Como se eu fosse lhe dizer isso, depois de você haver arrasado o coração dela. Volte para sua toca - Jody apontou corredor com dramati­cidade -, antes que eu acorde Chuck e algumas outras pessoas por aqui. Elas vão querer matá-lo quando souberem o que você fez. - Os lábios dela se tornaram trêmulos.

- Todo mundo adora Cybil.

- Eu também a adoro.

- Sim, claro. E por isso a fez chorar como nunca. Preston fechou os olhos por um instante, lamentando o que havia feito.

- Por favor, diga-me onde ela está.

- E por que eu deveria?

- Porque eu quero ir até lá, me ajoelhar e dar a ela chance de me chutar enquanto eu estiver abaixado - respondeu ele, no mesmo tom dra­mático.

- Para que eu possa implorar. Vamos, Jody, me diga onde ela está. Eu preciso ver Cybil.

Jody estreitou o-olhar, examinando-o com cui­dado. Ao ver a sombra de desespero nos olhos dele, pareceu ceder um pouco.

- Você a ama de verdade?

- Tanto que me conformarei e irei embora para sempre se ela não me quiser. Mas primeiro preciso vê-la.

Jody levou a mão ao peito. O que uma mulher romântica poderia fazer em uma situação como aquela senão suspirar?

- Ele está na casa dos pais, em Maine. Vou anotar o endereço para você.

Tomado por uma onda de alívio, e de gratidão, Preston fechou os olhos mais uma vez, antes de beijá-la no rosto.

- Obrigado, Jody.

- Mas se você a magoar novamente - falou ela, enquanto anotava o endereço no papel -irei procurá-lo até no fim do mundo, para matá-lo com minhas próprias mãos!

Preston riu.

- Não se preocupe. Não terá de fazer isso. - Lembrando-se do que Cybil havia dito, ele acres­centou: - Você está mesmo...

Jody franziu o cenho, confusa, então sorriu e levou a mão ao ventre.

 

- Sim, estou. O nascimento está previsto para acontecer no Dia dos Namorados. O não é perfeito?

- É maravilhoso. Meus parabéns. - Preston guardou no bolso o papel que ela lhe entregou. - Obrigado - agradeceu mais uma vez e beijou-a no rosto antes de sair.

Jody ficou algum tempo ali, parada com ar sonhador.

- Sim... - murmurou, enquanto fechava a porta.

- Aí vai mais um encontro fora de qualquer escala. - Cruzando os dedos, sussurrou: - Boa sorte, Cybil.

- MacGregor - disse Grant, por entre os dentes, com um brilho de fúria no olhar.

- Raposa bisbilhoteira.

Aquele era apenas mais um dos termos que ele inventara para se referir a Daniel, desde que a esposa havia contado a ele sobre os planos casamenteiros do patriarca da família em relação a Cybil, na noite anterior.

Gennie riu. Sabia que, no íntimo, seu marido adorava Daniel MacGregor.

- Pensei que fosse "velho alcoviteiro" - disse ela.

-- Isso também. Se ele não estivesse com pelo menos seiscentos anos, juro que eu chutaria aquele traseiro dele.

- Grant. - Gennie deixou de lado o esboço que estava fazendo e olhou para ele.

- Você sabe que ele faz isso por amor.

- Mas não funcionou, funcionou?

Gennie começou a falar, mas se interrompeu ao ouvir o motor de um carro se aproximando.

Experimentando uma súbita onda de expectativa advinda de sua intuição feminina, respondeu:

- Não tenha tanta certeza disso.

- Quem diabos pode ser? - perguntou Grant, demonstrando mais uma vez a reação que costu­mava ter quando alguém ousava invadir seu ter­ritório.

- Se for outro daqueles repórteres, vou pegar a arma.

- Você não tem uma arma.

- Então vou comprar uma.

Sem conseguir conter o riso, Gennie ficou de pé e o abraçou.

- Oh, Grant, eu te amo.

A delicada proximidade de Gennie agiu sobre ele como o sol despontando por trás de uma nuvem escura e invadindo-a sem hesitar.

- Geneviève - murmurou ele, chamando-a pelo nome completo, como costumava fazer em momen­tos mais íntimos. - Diga, a quem quer que seja, que vá embora e que nunca volte.

Gennie manteve os braços em torno do pescoço dele e a cabeça repousada sobre seu ombro, en­quanto ouvia o possante motor do carro se apro­ximar cada vez mais.

- Acho que isso dependerá de Cybil.

- O quê? - Grant virou-se para a janela no mesmo instante, observando a estrada com ar des­confiado. A estrada que Gennie vivia lhe pedindo para ele mandar reparar.

- Acha que é ele? Ora, ora... - Teria saído de imediato, se a esposa não o houvesse detido. - Parece que vou poder chutar um traseiro afinal.

- Comporte-se.

- Uma ova que vou me comportar. Ela sorriu.

- Venha. Vamos para a varanda - disse, se­gurando a mão dele.

 

Preston os avistou a distância e enrijeceu o ma­xilar. Ao longo dos últimos quilômetros, havia se preocupado mais em xingar a falta de manutenção daquela estrada do que em imaginar como seria seu encontro com os pais de Cybil. Quem quer que fosse o encarregado pela manutenção daquela estrada, não era lá muito responsável.

Surpreendeu-se ao notar que o casal Campbell se encontrava abraçado na varanda da casa. E então se perguntou qual dos dois iria tentar matá­-lo primeiro.

Com um suspiro resignado, conduziu o carro adiante, observando o lugar onde, provavelmente, logo ele seria enterrado em uma cova rasa.

O lugar era maravilhoso, com a mansão branca cercada de uma vegetação bem cuidada. Cybil ha­via sido criada ali, pensou ele. E talvez por isso ainda carregasse no espírito aquele cativante com­portamento espontâneo.

Ao parar o carro diante da casa, sentiu que seus nervos não estavam tão calmos quanto ele imaginara que estariam naquele momento. O ca­sal continuou a observá-lo da varanda. Mesmo à distância, notou que a expressão do pai de Cybil não era de muito boas-vindas.

Respirando fundo, saiu do carro, determinado a viver pelo menos o suficiente para ver Cybil e abrir seu coração para ela. Depois disso, nada mais importaria.

Não era de admirar que sua filha estivesse per­didamente apaixonada, pensou Gennie, ao obser­var o belíssimo rapaz que se aproximou pelo pátio. Notando a tensão de Grant, segurou o braço dele com mais força, em sinal de apelo.

- Sra. Campbell, sr. Campbell - Preston os cumprimentou com uma inclinação de cabeça, ten­do o cuidado de não oferecer a mão ao pai de Cybil. Sabia que seria um bocado difícil. digitar com os dedos quebrados.

- Sou Preston McQuinn. Preciso de... Preciso ver Cybil - ele corrigiu.

- Quantos anos você tem, rapaz?

Preston franziu o cenho, parecendo surpreso com a pergunta.

- Trinta.

Grant inclinou a cabeça.

-- Pois se quiser completar os trinta e um, su­giro que entre novamente naquele carro e que volte para o lugar de onde veio.

Preston se manteve no mesmo lugar, encarando aquele olhar mortífero.

- Não irei embora antes de ver Cybil. Depois disso, o senhor mesmo pode me expulsar daqui se quiser. Ou tentar.

- Não vai chegar perto da minha filha nem por cima do meu cadáver.

Grant colocou Gennie de lado, como se esta não pesasse mais do que uma boneca. Mesmo quando ele deu um passo à frente, em uma atitude amea­çadora, Preston manteve os braços abaixados. O pai de Cybil poderia dar o primeiro soco, concluiu. Ele até que merecia.

- Chega!

Gennie se posicionou entre eles, levando uma mão ao peito de cada um. Então lançou um olhar de aviso para o marido, antes de dirigir outro mais ameno a Preston.

Ele levou um momento para se dar conta de que havia sido perdoado por uma rainha, como na História Antiga. Somente então respirou aliviado.

 

- Ela tem seus olhos - não pôde deixar de dizer, admirado. - Cybil. Ela tem seus olhos. Um brilho de satisfação surgiu nos olhos dela.

- Sim, eu sei. Ela está na colina, atrás do farol.

- Gennie! Mas que droga!

Quando deu por si, Preston já havia pousado a mão sobre aquela que ela ainda mantinha em seu peito.

- Obrigado, sra. Campbell. - Então levantou a vista para Grant e sustentou o olhar.

 - Não vou magoá-la, sr. Campbell. Eu prometo.

- Droga - resmungou Grant, quando Preston começou a se dirigir à colina com passos firmes. - Por que você fez isso?

Com um suspiro, Gennie se voltou para ele e lhe segurou o rosto entre as mãos.

- Por que ele me lembrou alguém. - Tolice.

Ela riu.

- E acho que nossa filha vai se tornar uma mulher muito feliz antes do que você imagina.

Grant ficou olhando Preston seguir em frente, até desaparecer a certa altura do caminho.

- O rapaz está mesmo apaixonado por ela - ele finalmente admitiu. --Pude ver isso nos olhos dele.

- Eu sei. E você se lembra de quanto a sensação era assustadora?

- Ainda é. - Com um sorriso, Grant a puxou para si. - O rapaz tem coragem. Mas se bem conheço nossa filha, duvido que ela o perdoe fa­cilmente. O coitado está perdido.

- Perdido de amor, você quer dizer - corrigiu Gennie, com ar sonhador. - Mas Cyb vai per­doá-lo, sim. Ele merece. Para variar, Daniel acer­tou mais uma vez.

- Eu sei. - Grant sorriu para ela. - Mas não vamos contar nada a ele durante algum tempo para fazê-lo sofrer um pouquinho.

 

Sentada sobre uma pedra, Cybil desenhava al­guns esboços. O vento fazia seus cabelos esvoa­çarem, deixando-a com um ar sensual e infantil ao mesmo tempo.

Ao vê-la, em meio àquela belíssima paisagem, Preston perdeu o fôlego. Havia dirigido a noite inteira, e também a manhã, imaginando durante todo o tempo como seria rever aquele rosto. Mas nada o preparara para aquilo.

Chamou-a uma vez, mas se deu conta de que o vento desviara o som de sua voz. Desistindo de chamá-la, seguiu em frente, pela trilha que levava ao local onde ela se encontrava.

Talvez Cybil o tivesse ouvido, ou talvez sua apro­ximação houvesse mudado a incidência da luz sobre o papel. Ou talvez simplesmente o houvesse sentido de alguma maneira, mas a verdade é que ela de repente parou de desenhar e olhou na direção dele.

De súbito, foi como se todo o mundo ao redor houvesse parado por um instante, restando ape­nas a tempestade de emoções que os dois com­partilharam naquela fração de segundo.

Então, como se a presença dele não fizesse a menor diferença para ela, Cybil voltou a desenhar.

- Você viajou um bocado, não, Preston?

- Cybil. - Ele sentiu a boca secar.

- Não costumamos receber muitas visitas por aqui. Meu pai não se importa muito em manter a estrada conservada justamente para afastar os visitantes.

- Cybil -- ele disse mais uma vez, contendo a vontade de tocá-la.

- Se eu tivesse mais alguma coisa para lhe dizer, teria dito em Nova York.

"Vá embora!", pedia ela, em pensamento. "Vá embora antes que eu comece a chorar."

- Eu tenho algo para lhe dizer.

Ela o olhou de relance, sem muito interesse.

- Se eu quisesse ouvi-lo... Bem, o que eu disse também serve nesse caso. -- Dizendo isso, fechou o caderno de esboços e ficou de pé. -- Agora...

- Por favor. - Preston levantou a mão, mas abaixou-a novamente diante do olhar indignado de Cybil. - Ouça. Apenas ouça. Se quiser que eu vá embora depois, eu irei.

Ela respirou fundo.

- Está bem - respondeu, sentando-se novamen­te sobre a pedra e abrindo o caderno de esboços. - Mas vou continuar trabalhando, se não se importa.

 

- Eu... - Preston não sabia por onde começar. Todas as frases que havia ensaiado simplesmente fugiram de sua mente. - Minha agente se en­controu com o seu agente ontem.

- É mesmo? Que mundo pequeno, não?

Preston deveria ter se sentido insultado com o tom de Cybil, mas estava ocupado demais em ob­servá-la para isso.

- Ele contou a ela sobre a série de televisão que se baseará nos seus desenhos. Disse que foi um grande acordo.

- Para alguns.

- Você não me contou.

Ela o olhou de soslaio.

- Você não está interessado no meu trabalho.

- Isso não é verdade, mas não posso culpá-la por pensar assim. Agi feito um idiota no dia em que você apareceu toda animada para me dar a notícia. Sei que arruinei tudo. Eu... - Preston sentiu a necessidade de se interromper e olhar a paisagem, tentando se acalmar. - Eu estava dis­traído, terminando meu roteiro. Mas também es­tava distraído com meus sentimentos por você. Com o que eu não queria sentir por você.

Cybil quebrou a ponta do lápis. Furiosa consigo mesma, colocou-o atrás da orelha e abriu seu es­tojo à procura de outro.

- Se foi isso que veio me dizer, então já disse. Agora pode ir.

- Não, não foi isso que vim lhe dizer. Mas peço desculpas por não tê-la ouvido naquele mo­mento. Estou muito feliz por você.

- Puxa, não imagina como isso me deixa ali­viada - ironizou ela.

Preston fechou os olhos, cerrando os punhos. Então Cybil também sabia ser cruel quando que­ria, pensou ele.

- Tudo que você me disse naquela noite em que me expulsou de sua vida estava certo. Deixei uma sombra do passado se instalar entre nós, e usei isso para arrasar o que de melhor poderia haver me acontecido. Vi o mundo de minha irmã se desfazer diante de meus olhos, presenciando quanto ela teve de lutar para superar a dor da traição e criar sozinha os dois filhos.

Cybil fechou o livro novamente.

- Sei que você e sua irmã viveram um inferno. Nem todo mundo agüentaria passar pelo que ela passou, Preston.

- Talvez. Mas as pessoas são mais fortes do que imaginam.

Ele se virou novamente e seus olhares se encon­traram. Preston sentiu um fio de esperança ao notar um tênue brilho de simpatia nos olhos de Cybil.

- Teria funcionado, não teria? Se eu tivesse usado minha irmã para despertar sua compaixão? Mas não é isso que quero fazer. Não é o que vou fazer. - Voltando a olhar a paisagem, Preston prosseguiu: -- Eu amei Pamela. O que aconteceu entre nós me mudou de alguma maneira.

- Eu sei.

Cybil sentiu que teria de perdoá-lo. Isso seria inevitável, já que seu coração começara a se en­ternecer só pelo fato de Preston estar ali, à sua frente, tentando se explicar.

-- Eu a amei - repetiu ele, virando-se e se aproximando dela. - Mas o que eu senti por Pa­mela não é nem a sombra daquilo que sinto por você. Do que eu sinto quando penso em você e quando olho para você, Cybil. Esse sentimento preenche meu ser, me dá esperança.

Os lábios entreabertos de Cybil começaram a tremer. Seu coração acelerou., preenchido por algo que ela identificou primeiramente como esperan­ça. Estava vendo no semblante de Preston algo que nunca imaginara ver. Lutando para capturar e compreender aquilo em toda sua amplitude, des­viou o olhar por um instante.

- Esperança de quê? - conseguiu dizer.

- Esperança de que um milagre seja possível. Sei que a magoei muito, e que não mereço des­culpa pela forma como fiz isso. Disse aquelas to­lices quando pensei que você estava grávida por­que estava aborrecido comigo mesmo. Aborrecido pelo fato de que uma parte de mim estava pen­sando que ter um filho com você seria uma ma­neira, de mantê-la junto de mim.

Quando Cybil voltou a fitá-lo, seus olhos esta­vam arregalados de surpresa. Preston passou a mão por entre os cabelos.

- Sabia que você não queria se casar, mas se estivesse... Pelo menos eu poderia forçá-la a se casar comigo de alguma maneira. E minha única defesa contra esse tipo de pensamento foi me vol­tar contra você.

- Me forçar a casar? - foi tudo que Cybil con­seguir dizer.

Aturdida, ficou de pé e deu alguns passos. Ob­servando a paisagem com olhar vago, perguntou-­se como deveria lidar com tudo aquilo. Como a situação pudera mudar tão rapidamente?

- Sei que isso não é desculpa, mas você tem o direito de saber que, em nenhum momento, eu achei que você havia me enganado ou montado uma ar­madilha para mim. Nunca conheci uma pessoa tão humana e generosa quanto você, Cybil. Tê-la na minha vida foi... Você me fez feliz, e acho que eu havia esquecido o que era sentir felicidade.

- Preston. - Ela se virou para ele com os olhos marejados de lágrimas.

- Por favor, deixe-me terminar. Apenas ouça. - Preston segurou as mãos dela. - Eu te amo. E você disse que me amava. Sei que você não mente, então pensei que pudesse haver uma chance...

- Não, eu não minto.

Cybil distinguiu os traços de cansaço no rosto dele. Preston parecia haver sofrido tanto quanto ela naquelas últimas horas.

- Eu preciso de você, Cybil. Muito mais do que você precisa de mim. Sei que pode continuar a viver sem mim. É uma mulher independente e aberta para a vida, e ninguém a impedirá de ser quem você é. Sei que minha ausência não fará diferença em sua vida e que isso não a impedirá de ser feliz. Você nasceu para ser feliz.

Enquanto falava, Preston observava cada deta­lhe do rosto dela, como se quisesse guardar aquela iInagem na lembrança.

- Nunca conseguirei esquecê-la - continuou eie. - Nunca deixarei de amá-la ou de lamentar o que fiz para perdê-la. Eu irei embora, se você quiser. Mas se houver uma única chance de re­começarmos... Por favor, não me mande embora.

- Você acredita nisso? - perguntou ela, em um fio de voz. - Acredita mesmo que eu conse­guiria ser feliz sem você? Além disso, por que eu o mandaria embora se quero que fique?

Preston soltou o fôlego que estivera contendo. Antes mesmo que um sorriso se formasse nos lá­bios de Cybil, Preston a puxou para si, em um abraço cheio de alívio.

- Pensei que a havia perdido, Cybil. Pensei...

Os lábios dele cobriram os dela em um beijo apaixonado. Quando eles se afastaram, ela estava com os olhos marejados de lágrimas.

- Não chore.

- Não consegue mesmo se acostumar, não é? - Ela sorriu.

- Nós, da família Campbell, somos muito emotivos.

- Eu imagino. Seu pai me olhou com um ar de quem estava querendo torcer meu pescoço "emotivamente" ainda há pouco.

- Quando ele vir que você me deixou feliz, ele o deixará viver. - Cybil riu.

- Ele vai adorá-lo, Preston, e minha mãe também. Primeiro porque eu já o adoro e depois por quem você é.

- Ranzinza, rude e temperamental?

- Isso mesmo. - Ela riu alto quando Preston fez uma careta de desagrado.

- Eu poderia tentar mentir, mas você sabe que eu sou péssima nisso. - Os dois começaram a andar de mãos dadas.

- Eu adoro este lugar. Foi aqui que meus pais se conheceram e se apaixonaram. Papai vivia no farol naquela época, como um eremita, guardando o trabalho e irritando-se com a mulher que apa­recia para distraí-lo. - Cybil olhou-o de soslaio.

- Ele é ranzinza, rude e temperamental.

Preston riu.

- Parece um homem bastante sensato. - Le­vou a mão dela aos lábios. - Cybil, quer ir a Newport comigo e conhecer minha família?

- Vou adorar. - Ela o olhou mais uma vez e franziu o cenho ao notar um brilho diferente nos olhos dele.

- O que foi?

Preston parou e a virou de frente para si, se­gurando-a pelos ombros.

- Sei que você não quer se casar agora e que prefere se dedicar à sua carreira e à vida agitada de Nova York... Nem espero que goste da minha casa, que fica em um lugar afastado da cidade, sem muito barulho. Ainda assim... - Ele hesitou.

- Não quero que mude seu estilo de vida, Cybil, mas se algum dia decidir que quer se casar comigo e ter um lar e uma família tranqüilos, não se esqueça de me avisar, está bem?

Cybil sentiu uma onda de felicidade que ameaçou explodir em seu peito, mas se limitou a assentir.

- Pode deixar. Você será o primeiro a saber.

Dizendo a si mesmo que deveria se sentir sa­tisfeito com aquilo, Preston beijou a mão dela.

- Está bem.

Fez menção de recomeçar a andar, mas sur­preendeu-se quando Cybil o fez parar de repente.

- Preston?

- Sim?

- Quero me casar com você e ter um lar e uma família. - O sorriso que surgiu no rosto dele foi um reflexo do dela.

 - Está vendo? Cumpri a pro­messa de avisá-lo.

Ele a tomou nos braços e rodopiou com ela, dan­do um grito de felicidade. Quem disse que sonhos não se realizavam?

Muito tempo depois, os dois se encaminharam de mãos dadas para a casa dos Campbell. Havia ainda toda uma família que precisava ser avisada da novi­dade. Principalmente um avô muito, muito especial...

 

                                                                                            Nora Roberts

 

 

                      

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