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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


UMA AVENTURA ALARMANTE / Magalhães & Isabel
UMA AVENTURA ALARMANTE / Magalhães & Isabel

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

- Que férias sensacionais! Acho que nunca tive um Verão assim! - disse a Luísa, saindo da água e espanejando-se como o Faial, que respingava tudo em redor.

- Luísa! Cuidado! Estás a molhar a minha roupa! – gritou       -lhe o João.

- Não sou eu! É oFaial

- Ora! Sai mas é daí!

O João refilava, com a cabeça de fora, nadando para a margem da represa. Aquele sítio tinha-lhes sido recomendado pelo pai do Chico, que conhecia a vila. Não era muito longe de Lisboa e foi uma boa solução para quando os pais tiveram de recomeçar a trabalhar. Faltava um mês inteirinho para o princípio das aulas, e ficar em casa, sem nada que fazer, era péssimo.

Assim, acampando juntos, divertiam-se imenso. E aquela vila era giríssima. Há mais de uma semana que davam belos passeios, e sobretudo tomavam banhos óptimos na represa, que parecia mesmo feita de encomenda!

Na margem havia uma faixa bastante estreita de areão grosso e escuro, debruada por árvores enormes, cujos ramos se inclinavam até ao chão, formando um túnel de verdura, muito agradável para montar as tendas à sombra. De resto, era giro porque, de longe, nem se percebia que estava ali um acampamento. A folhagem disfarçava tudo.

 

 

 

 

- Estamos camuflados! - dissera o Pedro, todo satisfeito, quando acabaram de se instalar.

- Assim não há perigo de nos roubarem. Ninguém topa que estamos aqui.

- Pelo sim pelo não, é melhor não deixarmos dentro das tendas nada de valor...

- Eu cá, a única coisa que tenho de valor é o relógio. Como nunca o tiro!

- Então, e o dinheiro?

-- Eu ando sempre com o meu dinheiro dentro dos ténis.

- Que desagradável!

- Já estou habituado!

- E quando vais ao banho?

- Ora! Deixo-o na tenda! Estamos aqui ao pé, e, se aparecesse alguém, eu via.

- Mas tens muito?

- Eu? Isso é que era bom!

Mas não devia haver grande perigo. Nos primeiros dias nem apareceu por ali quase ninguém. Só avistaram, à hora de maior calor, um grupo de miúdos pequenos a chapinhar

- Nadas muito bem!

- Eu gostava era de ganhar uma medalha... Aposto que nenhum de vocês me consegue bater!

- Queres uma aposta? - perguntou o Chico, saltitando na margem.

- Quero!

- Vamos a isso?

- Vamos! Tudo para a margem!

- Eu também entro! - gritou o João.

- É bruços ou livre?

- Livre? Livre é crawl

- Mas nos campeonatos chama-se livre. Diz-se os «cem metros livres».

- Então é livre!

Já estavam todos alinhados na margem, prontos a mergulhar, quando o Pedro perguntou:

Quem dá o sinal de partida?

Eu! Eu! - propuseram-se todos.

- Eu sou o árbitro!

- Então não entras.

Fico eu, que estou quase seca e não me apetece molhar mais.

A Luísa empertigou-se e começou, numa voz invulgarmente grossa:

- Atenção... reparar! Aos vossos lugares... Estão prontos? LARGAR!

«Schplacht! Schallct!» Quatro corpos mergulharam de cabeça, seguidos pelo Faial, que se atirou atrás deles, nadando tão perto do João que lhe dificultava os movimentos. O Chico tomou rapidamente a dianteira e foi o primeiro a tocar na margem oposta, logo seguido pela Teresa que, com grande perícia, fez uma cambalhota debaixo de água e deu balanço, ultrapassando-o. Mas a braçada do Chico era mais forte...

A Luísa saltava e gritava na margem, fazendo sozinha as vezes de uma claque, só que tão depressa gritava «força Chico», como «passa-lhe Teresa», «anda João», «para a frente Pedro»...

O que ninguém contava era com a actuação do Faial Excitadíssimo, resolveu nadar para um lado e para o outro, junto à linha de chegada, ganindo e ladrando.

Um a um, todos acabaram por chocar com ele e, entre gritos e gargalhadas, rebolaram para a margem uns por cima dos outros. Como não havia vencidos nem vencedores, a Luísa largou a correr, levantando e baixando os braços.

- Ga-nhei! Ga-nhei!

O Pedro, que repousava de costas, na areia, respirando ainda com alguma dificuldade, assobiou-lhe.

- Fora o árbitro!

- Vamos a outra? - propôs o Chico.

- Eh! Nem pensar! - replicou a Teresa, embalando-se na areia.

- Vais ficar a parecer um croquete...

- E eu ralada!

- Estou esganado com fome! Não querem comer?

- Eu por mim alinho!

- Eh, pá! Fartei-me de engolir água. Desde que cá estamos, não faço outra coisa - disse o João, tossicando.

- Eu nunca engulo, nem um pirolito! respondeu-lhe o Chico, todo ufano.

- Eu agora engolia mas era uns bons petiscos...

- Então, toca a trabalhar! Se julgam que eu faço o mesmo que ontem, estão muito enganados!

- Ó Teresinha! Tu és tão querida e ontem fizeste um jantarinho tão bom!

- Nem pensar! Hoje, cada um que se amanhe!

A Teresa dirigiu-se para a tenda e começou a tirar cá para fora uma imensidade de embrulhinhos e caixas plásticas. O Chico seguiu-a e, pegando numa faca-de-mato, com cabo de osso às risquinhas, atacou o pão saloio, cortando quatro nacos.

- Isso assim é muito grosso, Chico! Não dá para sanduíches!

- Ai, não? Queres ver?

Como se estivesse atacado de fúria comilona, o Chico arrebanhou ao acaso fatias de carne assada, rodelas de ovo cozido, rodelas de tomate, folhas de alface, fatias de mortadela, azeitonas... A sanduíche crescia, crescia, formando um volume disparatado. Os outros olhavam, divertidos com o exagero.

- Vais conseguir dar uma dentada nessa montanha?

O Chico levantou a sanduíche no ar e passeou-a pela frente dos olhos dos amigos, dizendo:

- Já viram? Já viram coisa com melhor aspecto? Hum... Está-me a crescer água na boca...

E escancarando a bocarra ferrou os dentes no pão e arrancou-lhe um pedaço que quase o sufocou.

- És doido, pá!

O Pedro sentou-se no chão e dispôs-se a preparar as suas sanduíches, mas com outro cuidado. Uma, de pão fininho com atum, manteiga, ovo cozido e alface.

- Isto é o meu prato de peixe. Já viram o requinte? O atum quer-se muito desfiadinho! E agora o prato de carne... Manteiga para acamar, fiambre para enfeitar, carne assada para alimentar, e tomate para colorir...

- O que é isso? Poesia na alimentação? troçou a Teresa, que se deliciava com umas empadas de galinha que tinham comprado na véspera, na padaria da vila.

- Essas empadas são boas?

- Uma delícia! Ainda estão a estalar. Prova uma!

- Aquela padaria é um espanto!

- É, é! Acho que nunca comi pão tão bom.

- E além do pão, tens os bolos, as empadas e os bolos de creme que o João come aos quatro de cada vez. Se o dinheiro chegar, compro mais!

- Aquilo mais parece uma pastelaria!

- Passa aí o refresco, ó João.

O João entregou o cantil ao Chico, que, encarando-o, lhe estranhou o aspecto.

- Que é que tens? Estás maldisposto?

- Ha... Não sei! Não me apetece comer.

- Estás tão amarelo!

- Sentes-te bem? - insistiram as gémeas, solícitas.

- Sin...to! Isto não é nada. Deve ter sido água que engoli. Já passa.

O João estiraçou-se ao comprido e deitou a cabeça no dorso do Faial.

- Vais dormir?

- Não! Que ideia!

- É que agora, a seguir ao almoço, estava a pensar ir à vila. Queria visitar o laboratório de análises. Lembram-se de que eu disse que trabalhava lá um médico que foi colega de curso da minha mãe? Ela até lhe escreveu...

- Lembro, pois! Eu também gostava de ir ver.

- Então, arranjem-se e venham.

- E se ele não estiver lá? Com certeza não nos deixam entrar.

- Se ele não estiver, voltamos noutro dia. Perguntamos quando está de serviço.

- Então, mexam-se.   Está-me a apetecer imenso ver frasquinhos de vidro com líquidos às cores e micróbios ao microscópio...

- Micróbios quase tão grandes como o João - brincou a Teresa.

- Anda, micróbio! Levanta-te! Vamos visitar os teus manos ao laboratório!

- Não quero que me chamem micróbio resmungou o João, levantando-se com certa moleza.

- Vá, despachem-se!

 

Depois de arrumarem tudo e trocarem de roupa, dirigiram-se para a vila, conversando animadamente. O Faial acompanhou-os, sempre ao lado do João, que se ia deixando ficar para trás e parecia alheado de tudo.

- Anda, João. O que é que tens?

- Nada...

E fazendo um esforço para vencer aquela moleza, lá acelerou o passo para acompanhar os outros.

O hospital era à entrada da vila. Um edifício novo, de linhas rectas, com uma fachada envidraçada. Do lado esquerdo ficava um anexo destinado ao laboratório. Na garagem rebrilhava uma ambulância branca, novinha em folha.

- Este hospital parece um hotel! - disse a Teresa.

- Oxalá que seja só por fora que parece um hotel - declarou o Pedro, com ar entendido.

- O que é que queres dizer com isso?

- Que às vezes os hospitais têm um aspecto muito bom por fora, mas por dentro falta tudo: instrumentos, aparelhos, até médicos e enfermeiras... Pelo menos, é o que diz a minha mãe.

Ah! Mas este tem um aspecto tão novinho, que deve estar bem equipado.

- Oxalá!

- Parece é pequeno.

Também não era preciso muito maior!

Para esta vila e arredores...

- E trabalha-se melhor num hospital mais pequeno. É mais humano, não acham?

- Eu acho!

- Nem tudo o que se faz neste país é mau... Eu gosto deste hospital.

O grupo deteve-se à porta do laboratório. Um letreiro informava: «Proibida a entrada a pessoas estranhas ao serviço».

- Vês? Afinal, não podemos entrar! - disse a Luísa.

- Eu vou tentar. Espero que o tal médico amigo da minha mãe nos receba...

O Pedro bateu levemente à porta e apareceu logo um homem baixote, com um carapuço de pano branco na cabeça.

- Que é que querem? - perguntou, com uma certa agressividade.

- O Dr. Natércio está?

- Ah... o Dr. Natércio! Mas o que é que querem dele?

- Queríamos visitar o laboratório.

- Na! Nem pensar! - respondeu o homem, começando a fechar a porta.

- Mas...

- Não há mas nem meio mas. Não há tempo para visitas numa altura destas. Toca a andar, que é melhor para vocês. - E, metendo a cabeça pela frincha, acrescentou ainda, num tom estranho:   - Ouçam o que lhes digo! Vão-se embora, que é melhor para vocês.

«Vlamp!» A porta fechou-se-lhes na cara e o homem desapareceu.

O Pedro olhou para os amigos e encolheu os ombros.

- Paciência! Ainda não é desta!

- Que malcriado... Aquele homem é um malcriado! á

- Para   quem   trabalha   num   laboratório colado a um hospital, parece que se preocupa pouco com o silêncio!

- Espera aí - disse a Luísa. - Não reparaste?

- Não reparei em quê?

- Ele arecia assustado,   assustado com qualquer coisa! Não acharam?

- Pensando bem, talvez!

- E aquilo de dizer que era melhor para nós irmos embora...

- Estarão a tramar alguma lá dentro?

- Ali? O quê?

- Não sei. Pode haver perigo de explosão.

- Até podem ter posto uma bomba lá dentro.

- Achas? - e a Luísa começou a recuar devagarinho para o portão.

- Qual bomba,   qual carapuça!   És uma medricas.

- Não sou nada.

- Olha ali, Pedro - disse o Chico, apontando uma janelinha mal fechada. - Se a gente fosse espreitar?

- Queres?

- Eu, cá por mim, ia.

- É melhor não - disse o João, que se tinha encostado à parede e parecia cada vez mais pálido.

As gémeas aproximaram-se dele, solícitas.

- Estás mal-disposto?

- Não. Estou cansado. Acho que foi do banho. Dói-me um bocado o corpo.

O Chico e o Pedro tinham-se aproximado da janela entreaberta e fizeram sinal aos amigos.

- Esperem aí um bocadinho, que já voltamos.

Com todo o cuidado, espalmaram as mãos contra o vidro e fizeram deslizar silenciosamente a janela. Depois, içaram-se para o parapeito e desapareceram lá dentro.

Lá vão eles meter-se em encrencas... - murmurou a Luísa.

Ao entrarem no edifício, uma impressão se sobrepôs a todas as outras: o cheiro.

A que é que cheira aqui?

- A éter?

- Não. É uma mistura... Desinfectantes. Parece-nos um cheiro estranho porque não estamos habituados.

- É um bocado enjoativo! - disse o Chico, franzindo o nariz.

- A mim, vê lá tu, faz-me saudades da minha mãe. Às vezes traz este cheiro na bata.

O Pedro e o Chico falavam em surdina, agachados por baixo da janela, observando tudo com muita atenção. Não era prudente irromperem por ali dentro, fazendo-se notar. Se passassem despercebidos, talvez conseguissem saber o que havia de estranho por ali, se é que havia...

Aquela sala era espaçosa, muito branca e estava impecavelmente limpa e arrumada. O chão, de mosaico claro, mais lembrava as revistas de decoração, com fotografias de cozinhas e casas de banho que ainda ninguém pisou.

A toda a volta, em ângulo recto com a parede, prolongavam-se bancadas de fórmica branca cheias de aparelhos a mexer sozinhos, botões a abanar, outros aparelhos com luzinhas vermelhas a piscar, bicos de gás, muitos balões com rolhas de algodão, uns com um líquido vermelho, que parecia sangue, e outros com um líquido mais escuro,   que arecia chá. Dossiers enormes, perfeitamente alinhados em prateleiras de armários metálicos muito luzidios, eram a única nota escura do ambiente. E na parede os únicos quadros eram posters com recomendações da Organização Mundial de Saúde.

- Não estará aqui ninguém? Não se ouve nada.

- Talvez tenham ido tomar café.

- Achas?

- Não sei.

- Assim à primeira vista está tudo tão em ordem, que custa a acreditar que haja problemas!

- O que é que querias? Lá porque se receia qualquer coisa, o pessoal não ia encher tudo de lama e escaqueirar os vidros com o nervoso...

- Oh! Estás parvo!

- O que é que fazemos? Vamos embora?

- Não. Já que entrámos, vamos ver o que se passa.

Mas como? Assim que nos virem, põem-nos lá fora.

Talvez... - o Pedro suspendeu a frase a meio. Tinha dado com os olhos num cabide, suspenso na parede, com batas brancas. Uma ideia divertida atravessou-lhe a mente: passarem por enfermeiros!

- Chico! Olha!

- Ah! Mesmo a calhar!

Nem foi preciso explicarem-se melhor. Pé ante pé, dirigiram-se para o canto, retiraram as batas do cabide e vestiram-se, contendo o riso. Na cabeça enfiaram um barretinho branco, achando-se mutuamente bastante ridículos.

- Pomos a máscara na cara? - perguntou o Chico. - Sempre nos disfarçávamos melhor.

- Acho que não. As pessoas não andam pelos corredores de máscara.

- Então, vou pôr a minha ao pescoço. Se vir que alguém me pode descobrir, tapo a cara - afirmou o Chico, não resistindo a completar o disfarce.

- Boa! Também acho! - concordou logo o Pedro.

E, «mascarados» de enfermeiros, empurraram a porta que dava para um corredor e avançaram atrás um do outro.

- Vê lá não largues a rir...

Ao longo do corredor havia portas e mais portas. Cada uma tinha o seu cartão, com um ou vários nomes escritos. E à altura dos olhos abria-se um visor quadrado que permitia espreitar e ver o que se passava lá dentro, sem ter de se abrir a porta.

Por sorte, naquele momento o corredor estava deserto e puderam seguir em frente. As salas estavam quase todas vazias e pareciam praticamente iguais.

- Vê lá tu se descobres o gabinete do tal médico... Como é que ele se chama?

- Natércio.

- E o apelido?

- Acho que é Sousa. Nunca me lembro dos apelidos...

Ao fundo do corredor havia uma porta de batentes. Quando se aproximaram, ouviram do lado de lá o barulho de vozes que pareciam exaltadas.

- Schiu, edro, está aqui gente... - o Chico sentia o coração pulsar-lhe com força na garganta. - O que é que a gente faz?

- Ha... Vamos tentar ouvir o que estão a dizer, senão não valeu a pena...

- Abrimos a porta?

- Entreabrimos...

O Pedro apoiou o indicador junto da frincha e empurrou um dos batentes, fazendo-o deslizar, «liiinch...» A porta, mal oleada, rangia.

Bolas! - disse ele, largando-a imediatamente.

Recuaram, tentando esconder-se. Mas onde?

Entra para uma dessas salas vazias! - bichanou o Pedro, empurrando o Chico.

Não vale a pena. Ninguém ligou... Lembra-te de que, para quem trabalha aqui, o ruído da porta é natural...

- Também tens razão.

- Então, anda daí.

O Chico, afoito, voltou a empurrar o batente e enfiou a cabeça para o lado de lá. O corredor continuava. As vozes ouviam-se bem mas, quem quer que fosse, estava dentro de uma sala.

O Chico avançou, cobrindo parcialmente a cara com a mão. O Pedro endireitou-se e coçou o nariz, também para se disfarçar melhor.

As vozes ouviam-se agora com mais nitidez. E o que diziam deixou-os estarrecidos. Não podia ser!

- Espero estar a ouvir mal! - murmurou o Pedro, inquieto.

- Eh, pá! Que horror!

- Talvez seja brincadeira...

- Brincadeira? Aqui?

- Sim, não se brinca com estas coisas..

Sem darem por isso, tinham elevado o tom de voz e, instintivamente, aproximaram-se da sala onde o pessoal reunia.

Um homem saiu subitamente de um gabinete ali ao lado e passou por eles, sem ligar nenhuma. Parecia apressado e percorreu o corredor em passadas largas, desaparecendo lá ao fundo atrás de outra porta-batente.

- Safa!...

- Julguei que íamos ser apanhados!

- Pelos vistos, o disfarce está a funcionar...

Pela porta entreaberta ouvia-se, além das vozes, um tilintar de loiça.

- Devem estar mesmo na hora do café.

- Achas que se a gente entrasse e nos misturássemos com eles reparavam em nós?

- Eh, pá! Isso é muito arriscado. Não sabemos quantos são e viam-nos a cara.

- Púnhamos a máscara.

- Que ideia! Pôr a máscara para ir tomar café! Estás doido!

- Pois é!

- Então? O que fazemos?

- O que já ouvi, já me chega. Piramo-nos...

- Não. Quero saber melhor...

Naquele preciso momento, a porta escancarou-se e, na frente deles, surgiram cinco pessoas que’estacaram, assombradas. Dois rapazes ali dentro vestidos de bata branca? Com barretinhos e tudo?

- Que vem a ser isto? - perguntou indignada uma mulher, dando um passo em frente.

O Pedro e o Chico recuaram, sem conseguirem desfitar aquela figura que, apesar de ser muito mais baixa que os outros e muito magrinha, paradoxalmente parecia capaz de os dominar a todos, tal era a impressão de energia e força que dela se desprendia.

- Quem são vocês?

Completamente aterrados, sem saberem o que responder, permaneceram estáticos. Era como se estivessem hipnotizados por aquela mulher, que os trespassava com um olhar azul, frio e cortante.

- Calma, senhora directora, eu acho que posso tratar destes engraçadinhos...

Uma figura rotunda, de costas ligeiramente abauladas, tentou entrepor-se e estendeu o braço, como se quisesse empurrá-los para a porta. Tinha a cara bolachuda, com barba cerrada muito preta, e um ar bonacheirão. Na bata branca, umas letras bordadas a vermelho indicavam tratar-se do Dr. Alvarez.

Mas a chefe não permitiu que o assunto ficasse por ali.

- Não senhor! Eu quero saber como é que estes rapazes entraram aqui! – declarou, eremptória. E com voz estridente acrescentou;

- Onde está o Anastácio? On-de es-tá o A-nas-tá-cio? Para que é que o laboratório tem um orteiro?

Por um breve instante fez-se silêncio. Na cabeça de ambos uma única ideia tomava vulto:. FUGIR. E, rodando ao mesmo tempo, largaram! a correr pelo corredor, logo perseguidos pelos médicos todos, menos pela chefe, que permaneceu no mesmo lugar, embora espumasse de raiva.

- Isto é formidável! Isto só visto! - repetia, de dentes cerrados.

Pelo laboratório, sempre silencioso, ecoava agora a barulheira de gente a correr. O Chico e o Pedro nem olhavam para trás, e atiraram-se com toda a força de encontro aos batentes, que se abriram de par em par, projectando-os de” encontro a um médico que vinha em sentido contrário. «Catapum!» Estatelaram-se todos no chão.

- Mas o que é isto? Estupefacto,   o   Dr.   Natércio   ergueu-se, olhando alternadamente para os miúdos e parios colegas, que tinham fechado um círculo em seu redor.

- Dr.   Natércio... - começou o edro com ar tímido.

- Tu?! Tu aqui?!

- Queríamos falar consigo...

Só então o médico reparou como estavam vestidos. E levantando-se, perdido de riso, pás sou um braço à volta dos ombros do Pedro.

- Mas que palhaçada vem a ser esta? Ha!

- Queríamos falar consigo...

Os outros médicos estavam também divertidíssimos, embora procurassem disfarçar, e sabendo que a chefe não os podia ver nem ou vir, começaram no gozo.

- Então, ara falarem com o Natércio acharam melhor vestir-se a rigor, não?

- Claro, nem ele vos recebia, se não viés sem de bata branca...

- E barretinho!

Escarlates de vergonha, permaneceram cabisbaixos. O Chico retirou o barrete da cabeça e amachucou-o nas mãos.

Natércio riu-se.

- Bem, eçam lá desculpa à directora porque parece que a culpa é minha... Diga que eu assumo a responsabilidade.

- E bem podes! Ela está capaz de comer o Anastácio vivo! - comentou uma médica novinha que o Pedro olhou de relance e achou muito gira.

- Venham comigo até ao meu gabinete!

propôs Natércio, cheio de pachorra.

E empurrou-os na sua frente para uma porta cujo letreiro dizia «Dr. N. Santos».

«Afinal é Santos», pensou o Pedro. «E só pela inicial nunca mais descobríamos o gabinete.»

 

- Então, vamos lá a ver como é que vocês se explicam!

O Pedro e o Chico despiam as batas, um pouco enfiados, sem saberem por onde começar.

- Bem... - ia a dizer o Pedro.

- Esperem, uxem aqueles bancos ara aqui e sentem-se. Eu já sabia que estavas aqui acampado por perto - disse o médico, dirigindo-se ao Pedro. - A tua mãe tinha-me escrito. Nunca pensei foi que o nosso encontro seria tão... original! O que é que vos deu na cabeça?

- Olhe - disse o Pedro, corando -, nós! viemos à sua procura para visitar o laboratório. Mas não nos deixaram entrar.

- E então vocês resolveram que entravam na mesma...

- Não foi só por teimosia, sabe? - esclareceu o Pedro. - É que a atitude do porteiro foi esquisita e nós ficámos a magicar...

O médico franziu-se e apoiou a cabeça na palma da mão.

__ Ora explica-te lá melhor, Pedro...

Via-se à légua que estava interessado e intrigado com o rumo que a conversa tomava.

Não sei bem explicar... Não achámos natural o que ele nos disse, sabe? Já não sei exactamente quais foram as palavras...

Não há dúvida de que vocês são espertos! A tua mãe bem me tinha dito que tu mais os teus amigos andavam sempre à cata de mistérios!

- Mas há ou não há um mistério? - perguntou o Chico.

O que acabara de ouvir no corredor não lhe saía da cabeça. Estava inquieto por ouvir uma explicação sobre o assunto. Mas o médico fez-se desentendido.

- Antes de mais nada, quero saber tudo sobre o vosso «assalto» ao laboratório...

- Assalto?

- Assalto, invasão... O que quiserem. Têm de me dar uma boa explicação, pois, como’ viram, assumi a responsabilidade...

- Olhe, a verdade é muito simples: como não conseguimos entrar pela porta, entrámos Pela janela!

O médico riu-se.

- Ah! Muito bem. E depois a mascarada ?

Para que foi a mascarada?

- Vestimos as batas para passarmos despercebidos e podermos procurá-lo à vontade sem correrem connosco...

O médico riu-se outra vez. Passou a mão pela barba, num gesto de cansaço, e olhou-os de frente.

- Bom, então, já me encontraram. O que é que querem saber? Isto é um laboratório, anexe a um hospital regional. Não é propriamente um local para aventuras... Não creio que haja nada aqui que vos interesse.

- Ai há, há! Nós ouvimos os seus colegas a dizerem que morreram mais de mil pessoas.. Queremos saber o que se passa.

O médico endireitou-se bruscamente.

- E o que é que ouviram mais?

- É verdade? Morreram mesmo? - perguntou o Chico, assustado.

- O que é que ouviram mais? - insistiu o médico.

O Pedro, sem saber bem o significado da palavras que retivera, explicou:

- Ouvi falar de uma... «salmonela resistente aos antibióticos...». Não sei bem o que quer dizer, mas...

- Parece-te grave, não?

Parece.

Não há dúvida, vocês são espertos...

O Pedro e o Chico sorriram, orgulhosos. É sempre agradável ouvir elogios!

- Então o melhor é eu explicar tudo. Ora digam-me cá, vocês sabem o que são antibióticos?

EU Sei que é um remédio que se toma

quando se tem certas doenças, como anginas... Pois é. São uns remédios que foram descobertos há poucos anos, e que matam micróbios. Vocês talvez não percebam a importância que isto tem porque, desde que nasceram, houve sempre esses remédios. Mas antes de haver antibióticos, uma pessoa podia morrer se tivesse uma angina forte, por exemplo. Agora cura-se em poucos dias, não é?

- É! Eu estou farto de ter anginas, e poucos dias depois já ando a pé... Às vezes até gostava que demorassem   um ouco mais   a curar, para não ter de ir à escola! - confessou o Chico.

O médico sorriu, compreensivo.

- Eu sei como isso é... Também pensei o mesmo muitas vezes, quando tinha a tua idade... Mas isso é outra coisa!

Mas continue lá, por favor - pediu o Pedro.

- Há outras doenças também de que você. já ouviram falar, com certeza; por exemplo , tuberculose...

- Já, já. Falou-se disso até na aula de Ciências, lembras-te, Pedro? Mas ninguém ligou nenhuma. A professora era muito gorda e muito feia e, quanto mais falava dessas coisas mais sono me dava...

- Ó Chico!

- É verdade, para que é que eu hei-de mentir? Era uma chata!

- Isso é uma mania que vocês têm todos disse o médico. - Se a professora vos agrada, ligam ao que ela diz, se, por qualquer motivo, não lhe acham graça, já não querem saber...

- E é uma estupidez, lá isso concordo...

- Mas explique lá...

- Está bem, está bem. Voltando ao assunto: antes de se descobrirem os antibióticos, as doenças que eram provocadas por micróbios, geralmente...

- Era morte certa, não era? – interrompeu o Pedro.

- Era. Em muitos casos, as pessoas não se safavam.

- E então?

- Bom, já ouviram falar na febre tifóide’! Febre tifóide ou tifo, é a mesma coisa.

- Já. Porquê? Não tem cura?

Tem. É também uma doença provocada por micróbio. O nome mais correcto de micróbio é bactéria, mas, neste caso da febre tifóide, é um bacilo.

- Isso sabemos.

-Óptimo. Bom, agora é que vem o pior: os micróbios são seres vivos. E como todos os seres vivos têm a sua espécie de inteligência...

Micróbios inteligentes? Está a brincar connosco ou está a falar a sério?

Antes estivesse a brincar! Não, filho, estou a falar a sério. Os micróbios começam por vezes a reagir, a encontrar maneira de se defenderem dos remédios e os remédios, portanto, a não fazerem efeito...

- Que horror! E porquê?

- Como te digo, porque eles têm uma espécie de inteligência. Mas nós, às vezes, contribuímos para isso...

- Como?

- Olha, por exemplo, quando estás doente e tens de tomar um remédio de seis em seis horas, e te esqueces, não cumpres o horário e tomas quando calha... De certo modo, «dás tempo ao micróbio ara aprender a defender-se». Ou quando não acabas o frasco porque Já te sentes melhor.

- Faço isso tantas vezes!

- Eu sei. Quase toda a gente o faz! O que é grave. E também é grave tomar remédios de mais, quando não é necessário...

- Não me diga que por isso morreram mais de mil pessoas aqui nesta vila?!

- Não, o que aconteceu aqui, nesta vila, e agradeço que guardem segredo por enquanto, é que estão a chegar todos os dias muitos doentes com tifo. E o pior é que alguns não estão a melhorar com o tratamento. Através das análises, verificámos que o micróbio está resistente ao remédio que se costuma usar. Se isto se espalha, podem morrer de facto muitos milhares de pessoas.

- Mas já morreram mil?

- Por enquanto, não. Os meus colegas de viam estar a falar de um caso semelhante que aconteceu no México aqui há uns anos. Morreram mais de mil pessoas, e, por acaso, quase todas entre os cinco e os vinte e cinco anos. Foi uma coisa horrorosa... E na verdade aqui estamos todos bastante assustados...

- Safa! Deve ser horrível ver as pessoas doentes, ter os remédios e ver que não fazem feito...

- Pois é, Pedro. Mas agora que já sabem tudo, o melhor que têm a fazer é irem-se em e não pensarem mais no assunto. E não comentem por aí...

__ Claro que não. Fique descansado...

__ Então, até breve - disse o médico, levantando-se. - Se precisarem de alguma coisa, procurem-me aqui ou em casa.

__ E onde é que mora?

__ A minha casa é fácil de encontrar...

O Dr. Natércio foi explicando melhor o caminho que deviam seguir para encontrarem a casa, enquanto os conduzia à porta de serviço do laboratório.

- Saiam por aqui, ara não haver mais aborrecimentos...

- Adeus!

- Adeus e obrigado...

Já cá fora, o Pedro e o Chico apressaram-se a ir procurar as gémeas e o João. Encontraram-nos, já fartos de esperar, sentados num relvado.

- Eia! Estamos aqui!

- O que é que lhes aconteceu? Foram apanhados?

- Que chatos! Nunca mais vinham!

As gémeas barafustavam as duas ao mesmo tempo, mas satisfeitas por terem os amigos de volta.

Foi «quase uma aventura»!

- Era o que faltava! Vocês a meterem-se em aventuras e nós para aqui a pasmar!

- Livrem-se!

- Estou farto de laboratório - disse o Chico. - Vamos embora, que já contamos o que se passou lá dentro.

- Anda, João! Upa! - disse-lhe o Pedro estendendo-lhe a mão para o ajudar a levantar-se.                                                              

- O que é que tens? Estás tão amarelo!  

- Não é nada. Isto já passa. Sinto-me ,murcho, dói-me um bocado a barriga, mas daqui a nada arrebito...

- Pois, pois! O que tu tens é fome. E eu também. Se fôssemos à padaria?

A ideia sorriu a todos e para lá se encaminharam.

O Pedro e o Chico foram relatando o que sabiam. Mas, talvez por não terem estado dentro do laboratório, ou por estarem fartas de esperar, ou ainda porque a perspectiva de se encherem de bolos na padaria as entusiasmava, as gémeas não ligaram muita importância ao que eles diziam.

- A ciência está muito avançada... Vai ver que não tardam a descobrir outros remédios...

A atitude da Teresa, aliás, era compreensível.

Estava um dia tão bonito, tão azul, que apetecia pensar em tudo menos em doenças graves...

- Mas, se há uma epidemia?

- Ora, por que é que há-de haver?

- Estas doenças pegam-se muito. Por isso é que se chamam «infecto-contagiosas». Contagiam, pegam-se...

- Mas os doentes já estão no hospital e não vão pegar a ninguém - insistiu a Luísa, com ligeireza. - Agora, não quero pensar em tragédias. Quero é pensar em tartes de maçã!

- Tostadinhas...

O Chico encolheu os ombros. Estas gémeas! Mas também ele, à medida que se afastava do hospital, ia esquecendo, a pouco e pouco, a questão. No fundo, o problema não lhe dizia respeito. Não era médico, não era enfermeiro, não estava doente nem conhecia ninguém que estivesse...

- De qualquer forma, não podemos fazer nada - murmurou o Pedro, que sentia também o problema a apagarse dentro dele.

- Não pensem mais nisso!

Com certo remorso, o Pedro suspirou, pensando:

«Realmente, o provérbio ”longe da vista longe do coração’ é uma grande verdade! Há um bocado ali dentro, estava em pânico, preocupadíssimo. Agora, já só penso em comer arrufadas

A padaria ficava ao fundo da Rua do Arco. Tinha uma montra toda catita, debruada de azulejos amarelos com espigas em relevo. Era uma loja antiga, via-se logo! As prateleiras de vidro tinham sido postas ali há pouco tempo, quando os novos donos a remodelaram. E estavam cheias de pãezinhos com ar estaladiço e bolos de creme apetitosíssimos.

O Chico foi o primeiro a entrar, deliciando-se com o bafo quente a farinha e a fermento.

Por trás do balcão, uma porta larga deixava ver um pouco a zona de fabrico. Vários padeiros e pasteleiros, todos vestidos de branco, agitavam-se em volta dos fornos, retirando tabuleiros enormes com pães redondos, acabadinhos de cozer.

- Que delícia! É uma sorte esta padaria fornecer as terras todas aqui à volta, porque assim está sempre a sair pão quente!

Coitados! Mas os padeiros assim nunca descansam...

Não te aflijas, que trabalhamos por turnos...

Um rapagão moreno, de olhos pretos, encostou-se ao balcão, muito sorridente.

- Ai é?

- Pois é. Trabalhamos por turnos, umas vezes de dia e outras de noite.

- De noite deve ser chatíssimo!

- Enganas-te. Eu, cá para mim, às vezes até prefiro. Fico com mais tempo para namorar - acrescentou, piscando-lhes o olho. - Mas afinal, o que é que querem?

- Hum... Eu cá... A Luísa não sabia o que escolher. Hesitava,

olhando para tudo o que estava na montra.

- Eu, por mim, quero dois pães de leite, para começar - decidiu o Pedro.

- E eu quero dois pães de leite e uma tarte de maçã...

- Eh! Não se pode dizer que tenhas fastio. Ora pega lá.

- Como é que te chamas?    

- Eu sou o Zé Alberto! O maior pasteleiro do mundo! O maior! Especialista em bolos de creme e pastéis de nata. - O rapaz abriu os braços, satisfeitíssimo.

- As gémeas riram-se.

- O melhor pasteleiro do mundo? Isso é que é exagero!

- Não serei ainda - continuou ele, Bem prazenteiro -, mas hei-de ser. Até a televisão um dia me há-de convidar para ir mostrar os magníficos bolos que inventei.Ainda hão-de ouvir falar muito de mim!

Aquele rapaz era um gozo! Tão bem-disposto, tão satisfeito com a sua profissão! E depois. metia logo conversa, mesmo sem os conhecer. Parecia pouco mais velho do que o Chico. E igualmente desempenado e forte.

- Que idade tens? - perguntou-lhe .

Luísa.

- Dezassete. Mas pareço mais velho, nãopareço?

- Eu dava-te aí uns dezoito... O rapaz sorriu, radiante.

- Pois é, toda a gente me dá dezoito. Foi por isso que consegui engatar a minha miúdaacrescentou, num tom confidencial.

- Que idade é que ela tem?

- Já fez dezoito. É mais velha do que eu mas só uns meses.

- E vive aqui?

- Vive.

- Ó Zé Alberto! - gritou uma voz grossa lá de dentro.

- Sim! Já lá vou. Estou a aviar - respondeu ele, encolhendo os ombros. - Digam lá que é que querem, senão ainda tenho chatice

- Embrulhe aí vinte carcaças e uma tarte de maçã.

E vocês comem isso tudo? – perguntou ele, enquanto preparava a encomenda.Deve chegar para o jantar, para a ceia e para amanhã de manhã. Estamos acampados ao pé da represa.

- Que sorte! ’ É um sítio bestial para acalmar No domingo, talvez apareça lá com a Suzana. Ainda lá estão?

__ Estamos, estamos. Aparece!

__ Queremos conhecer a Suzana.

__ E vão ver que vale a pena. É muito bonita... - despediu-se ele, regressando ao interior da padaria.

_ Que simpático! - comentou a Teresa.

__E comunicativo! Deve adorar conversar...

O João continuava alheado do que os amigos diziam. Com um suspiro profundo, queixou-se:

- Estou tão mal-disposto! Dói-me a barriga, dói-me a cabeça e estou enjoado. Quem me dera chegar depressa ao acampamento, para me deitar.

- Não estás   melhor? Não te fez bem comer?

- Eu não comi nada. Estou enjoado...

O Pedro olhou-o, com certa apreensão. Pareceu-lhe que o olhar do João estava esquisito, com um brilho invulgar... Mas afastou da cabeça ideias tristes.

- Talvez precises de fazer uma sesta. O cansaço, às vezes, também dá enjoo.

- Talvez seja isso - concordou ele, Con pouca convicção.

- Depois de uma soneca, acordas como novo.

- Oxalá...

- Hoje estás enjoado, e não comeste nada Mas nos outros dias enches-te de bolos de créme, pastéis de nata, sei lá... Isso enjoa muito mais do que bolos secos.

 

Deitada de costas, com a cabeça apoiada nos braços,   a Teresa não conseguia conciliar o sono.

- Luísa...

- Ha?

- Estás a dormir?

- Não!

- Porquê?

- Ó Teresa, que pergunta tão estúpida!

- Pois é.

- O que é que tens?

- Não consigo dormir.

- Porquê?

- Vês como a pergunta não era estúpida Há muitos motivos que podem fazer uma pessoa ficar acordada...

- Então, quais são?

- Sei lá! Estar doente, ter dores de dentes, ter dores de ouvidos, ter dormido de mais na véspera...

- Ter comido de mais no próprio dia...

- Eu não comi de mais. Comi tanto como tu.

__ Então, afinal, o que é que tens?

__ Estou preocupada. De vez em quando, lembro-me daquilo que o médico disse ao Pedro e ao Chico, e fico preocupada. Na altura não liguei muito, sabes? Mas desde que me deitei...

Também eu. Parece que de noite as ideias assustadoras crescem dentro da nossa cabeça, não é?

-É, é.

- Por que será?

- Será por estarmos deitadas? - peguntou a Teresa, sentando-se.

- Acho que não deve ser exactamente da «posição horizontal»... - redarguiu a Luísa, sentando-se também.

- Se houvesse uma epidemia, odíamos morrer todos, já pensaste?

- Ai, Teresa, que parva! Por que é que havia de aparecer uma coisa assim tão grave, logo aqui nesta terra?

- Uma epidemia trágica em Seixo Branco - começou a Teresa, num tom de voz parecido com o de um locutor do Telejornal.

- Teresa, que estupidez!

Esta epidemia ameaça fazer mais vítimas

Do que a peste negra...

- Mau! Daqui a nada, chateio-me e vou dormir lá para fora...

- Seixo Branco é teatro de cenas trágicas... - continuava a Teresa, sem ligar nenhuma aos protestos da irmã, e ensaiando relatos de notícias bombásticas.

- Estarás boa da cabeça? Daqui a nada,   erco a paciência...

- Seixo Branco... Seixo Branco... -

Teresa fingia não ouvir.

- Seixo Branco é um nome de terra muito bonito - declarou a Luísa, quase gritando.

- Não dá para misturar com esses palavrões aterradores, «mortes... pestes...».

A Teresa riu-se, e estendeu-se outra vez ao comprido.

- Talvez tenhas razão. É melhor não pensar mais no assunto. Está-se tão bem aqui nesta terra, não achas?

- Acho. E tem nome de livro de histórias...

- Há outras terras com nomes assim poéticos. Lembras-te de quando fomos a Trás-os Montes? Na viagem passámos por uma aldeia que se chamava Avelãs do Caminho. Acto tão giro!

__ E Venda das Raparigas?

__ Isso é mais vulgar. Pelo menos, parecenos, porque passamos por ali mais vezes.

- Por que será que se chama assim?

__ Das duas uma: ou era um lugar onde raparigas vendiam coisas... ou então era um lugar onde alguém vendia raparigas!

- Que disparate! Agora vender raparigas!

- Disparate, não! Ora essa, podia muito bem ser, se fossem escravas. As escravas eram vendidas!

- Escravas?

- Schut! Cala-te... Ouve!

Juntas apuraram o ouvido. Da tenda ao lado vinha um som duvidoso...

- Parece alguém a chorar baixinho...

- Achas que...

- O João! - exclamaram as duas ao mesmo tempo.

- O João deve estar doente! Eu bem tinha um pressentimento!

A Teresa saiu de gatas para o exterior e procurou a entrada da tenda dos rapazes, às apalpadelas. A Luísa seguiu-a, chamando alto:

Pedro! Chico! Acendam uma lanterna!

- O João está a gemer! Acordem!       A tenda tinha o fecho corrido e de lá de dentro só se ouviam os lamentos do João e uma espécie de roncos. O Pedro ou o Chico, um deles ressonava bem.

- Pedro! Acorda! - gritou a Teresa, encostando a boca à lona.

- Chico! Acorda! Mas que bruto!

- PEDRO!

Alguma coisa remexeu finalmente lá dentro.

- Hum... O que foi? Quem está aí?

O Pedro, estremunhado, esfregava os olhos sem perceber o que queriam as gémeas àqela hora.

- Pedro, tu estás surdo? O João está doente! Abre a tenda!

- Quem é que está doente?

- O João!

As gémeas entraram na tenda e deram-lhe um encontrão, para chegarem mais depressa! junto do doente. O Chico acordou finalmente e.” meio abananado, perguntou:

- O que é que há?

Instintivamente levou a mão à lanterna e acendeu a luz.

As gémeas debruçaram-se, aflitas, sobre oJoão, que delirava e gemia com a mão na bar riga.

- É uma vaca! É uma vaca enorme! - gritava ele, fitando um ponto qualquer acima da cabeça dos amigos. - FUJAM! FUJAM!    

- Ele está a delirar, não sabe o que diz - murmurou a Luísa, com um soluço contido.

- João! João! - o Pedro tentava acordá-lo abanando-o suavemente.

- Deixem-me! Temos de fugir...

- Vês? Nem nos conhece...

- Não o abanes mais - disse o Chico. Temos de o levar depressa.

Uma restolhada no exterior fê-los voltara cabeça, assustados. Mas era o Faial que voltava de algum passeio nocturno.

- Tinha-me esquecido completamente do cão!

O Faial entrou na tenda e dirigiu-se logo para ao pé do dono, lambendo-lhe a cara.

- Quieto, Faial, quieto!

- O João está doente.

Como se tivesse compreendido, o Faial soltou um latido triste e sentou-se nas patas traseiras. Parecia esperar ordens.

- O melhor é vestirem-se com roupa mais grossa, que está frio. E calcem-se. Vamos levá-lo para o hospital.

- Como?

- Ao colo.

- Achas que conseguimos?

- Acho. Fazemos uma cadeirinha e vamos” devagar. Ele é muito leve.

_ Não seria melhor ir lá eu a correr buscar a ambulância?

_Hum... Não sei...

O Pedro repetiu maquinalmente um gesto que sempre vira a mãe fazer: apoiou a mão na sua própria testa e depois na testa do João, para comparar as temperaturas Safai Ele está a arder em febre! Vamos já embora, que não há tempo a perder.

Então, toca a andar. Chegamos lá num instante...

Mas não foi tão fácil como pretendiam... O João não parava quieto nos braços dos amigos. Agitava-se, repetindo sempre os mesmos disparates sobre vacas de que era preciso fugir. O Pedro e o Chico seguravam-no com quanta força tinham e as gémeas iam amparando o melhor possível. A Luísa fazia-lhe festas na cabeça e falava-lhe de mansinho para o tentar acalmar.

O caminho pareceu a todos interminável e tiveram de parar várias vezes para descansarem um pouco e mudarem de posição.

Já tenho os braços dormentes - queixou-se o Pedro, que sentia faltarem-lhe as forças.

- Está quase.

- Já se avista o hospital além ao fundo...

Quanto mais se aproximavam mais difícil lhes parecia aguentarem até ao fim. O João serenara, mas assim, sem oferecer resistência ainda pesava mais.

Transpuseram a porta mesmo a tempo!

- Por pouco, não o deixava cair! - exclamou o Chico, lívido, deitando-o suavemente num banco de madeira.

- O que é que se passa? - perguntou un homem que surgiu pela porta da esquerda.

O ar exausto e aterrado dos quatro impressionou-o.

- Estão assustados? O que é que aconteceu ao vosso amigo?

- Não sei, ele estava bem... – balbuciou o Pedro.

- Então, vamos lá a dar entrada o mais depressa possível, para ele ser visto por um médico. Não se alarmem...

O homem era afável. Pediu ao Pedro uma série de dados para preencher a ficha de admissão e dois enfermeiros vieram buscar o doente

Quando o viu desaparecer, o Chico agarrou com força os braços das gémeas, sentindo uma onda de lágrimas toldar-lhe a vista. Deitado na maca o João parecia mais pequeno e franzino. Queria ir atrás dele, não o deixar um só minuto ouvir palavras que o sossegassem da boca dos médicos: «Isto é uma febre passageira.

O melhor agora é irem-se embora e virem De manhã saber notícias - propôs o homem, dirigindo-se-lhes sempre num tom carinhoso.

Nem pensar! - responderam todos ao mesmo tempo.

Ficamos aqui o tempo que for preciso - declarou o Pedro com firmeza.

O homem hesitou um instante, mas viu nos olhos de cada um a mesma determinação. E percebeu que não valia a pena insistir. Nem à força arredariam pé.

- Bom, compreendo. Mas não podem ficar aqui. Venham comigo.

Seguiram-no docilmente. E instalaram-se numa sala quadrada, de paredes nuas, onde não estava mais ninguém. Sentaram-se lado a lado num banco corrido. O Chico cruzou os braços, preparando-se para uma longa espera.

 

Pode seguir-se a pista de um micróbio!

Quando a porta se abriu, para finalmente dar passagem a um médico, levantaram-se todos ao mesmo tempo, como se o banco fosse accionado por uma mola.

Estavam exaustos e nervosíssimos. A luz mortiça do tecto fazia-os parecer ainda mais pálidos do que estavam na realidade.

O médico aproximou-se devagar. Era evidente que vinha preocupado. Tirou os óculos e esfregou os olhos demoradamente, antes de falar.

Embora ansiosos por saberem notícias, ninguém perguntou nada. Queriam prolongar o mais possível a esperança de que tudo estivesse a correr bem... apesar de a atitude do médico indicar o contrário.

- Estão sozinhos aqui na terra? - disse por fim o médico.

- Sozinhos?

- Sim. Quero dizer, não está nenhum adulto convosco?

O Pedro sentiu o sangue gelar-se-lhe nas veias de tal forma que enterrando as unhas das mãos na carne, engoliu em seco e perguntou:

- Porquê? É assim tão grave?

Com voz pausada e neutra, o médico explicou:

Pelos sintomas, tudo indica que o vosso amigo é capaz de estar a fazer uma febre tifóide Já fizemos as análises necessárias mas os resultados demoram dois dias. É melhor comunicarem com alguém da família. Sabem com quem hão-de comunicar, não sabem?

Fez-se silêncio. Um silêncio pesado. As gémeas tinham os olhos marejados de lágrimas e não conseguiam articular palavra.

- Sabem com quem hão-de comunicar? repetiu o médico no mesmo tom.

- Sabemos... - balbuciou o Chico, subitamente muito rouco.

- Bom, então telegrafem assim que abrir o correio. E logo de manhã apresentem-se no laboratório aqui ao lado. Esta doença é altamente contagiosa. É necessário verificar se ele vos contagiou ou não.

Um mesmo arrepio fê-los estremecer por dentro. Estariam todos doentes? Gravemente?

Saíram juntos do hospital, arrastando os pés n« maior desânimo.

«Quero chorar e não consigo», pensou a Teresa. «Quero chorar e não consigo!»

O Faial esperava-os cá fora, bastante agitado. Quando os viu, correu para eles mas não ladrou. Limitou-se a farejá-los de alto a baixo e a erguer a cabeça, como se quisesse perguntar pelo João.

O Pedro afagou-o tristemente.

- Vamos, Faial! Vamos para a porta dos correios esperar que chegue alguém.

O cão, no entanto, não queria afastar-se dali. Puxaram-no pela coleira, mas ele esticava-se com toda a força em direcção à porta, soltando latidos.

- Calma, Faiall   O   João   tem   de   ficar aqui... Está doente!

- Anda, Faiall Vamos embora!

A Teresa abraçou o cão pelo pescoço, com muita ternura.

- Vamos, Faial, anda!

Lentamente, encaminharam-se para o centro da vila. As ruas estavam desertas àquela hora. O ruído dos passos na calçada fazia-os sentirem-se ainda mais sós e mais tristes.

O correio era um edifício pequeno, caiado de branco, com uma porta de madeira compacta e envernizada. Sentaram-se na soleira, muito juntos, com o Faial estendido aos pés. E ali ficaram até amanhecer, cabeceando de sono, com um vazio no estômago que não sabiam se era fome, se era ansiedade...

Assim que os empregados abriram a porta, precipitaram-se lá para dentro. O Pedro preencheu um impresso de telegrama para a avó do João, e, sem grandes comentários, retomaram o caminho do hospital.

- Estou com fraqueza - arriscou o Chico.

- Mas não podes comer. As análises têm de ser feitas em jejum.

- Tens a certeza?

- A certeza não tenho. Mas é melhor.

- Achas que nos tiram o sangue da veia ou do dedo? - perguntou a Teresa, encolhendo-se. Já tinha feito análises e guardava uma recordação pouco agradável...

- Eu preferia que tirassem do dedo. Na veia deve doer muito.

- Enganas-te - argumentou o Pedro, fazendo-se forte. - A picada no dedo é rápida, mas se formos a ver bem, dói mais do que na veia. E nenhuma delas dói muito.

- Ai não, que não dói!

- A dor é mais psicológica do que real, já pensaram? Ver uma pessoa avançar com uma agulha direito à nossa carne, é qualquer coisa que nos mete medo desde pequenos. Mas afinal, com as novas seringas de plástico, é uma dorzita de nada.

- Estás muito   sensato,   logo ela manhã...

- Não, não estou. No fundo, estou apenas a repetir coisas que a minha mãe me diz sempre.   Mas, ensando bem, acho que ela tem muita razão. Afinal, às vezes andamos ao murro e ao pontapé, ou cortamo-nos com uma navalha...

- Ou somos picados por uma abelha...

- E por uma vespa? Já foram picados por uma vespa? É horrível! É muito pior! - corroborou a Luísa, a quem aquela conversa começava a animar um pouco.

- É isso. As análises são uma picadinha de nada!

- Oxalá que o Dr. Natércio esteja de serviço - suspirou a Teresa.

- Vais ver que está!

E estava mesmo! Recebeu-os com o ar pachorrento e simpático que já lhe conheciam. E, embora falando do assunto com a gravidade que o assunto requeria, procurou aligeirar um pouco o ambiente.

- Nada de desânimos, ha? Então, malta valente como vocês, que se têm metido em trinta por uma linha, estão aí a morrer de medo de um micróbio? - gracejou, quando finalmente acabou a operação «tirar sangue».

O Pedro, encostado à janela, bastante amarelote e olheirento, resolveu brincar também.

- Pois é, o problema é que nós somos especialistas em perseguir ladrões. E como não se pode seguir a pista de um micróbio...

Mas, para seu grande espanto, o médico declarou:

- Aí é que tu te enganas. É perfeitamente possível seguir o rasto deste micróbio.

- O quê? - perguntaram logo as gémeas.

- É como lhes digo - continuou o médico -, pode seguir-se o rasto deste micróbio como se ele fosse um ladrão. Mas para isso são precisos «detectives especializados em bactérias»...

- Está a gozar connosco, não está? - duvidou o Chico, a quem não escapara uma certa expressão nos olhos do médico, que lhe pareceu de troça amigável.

- Não, não estou - disse ele, agora muito sério. - Gostaria de vos ajudar a passar este mau bocado, isso sim. Gosto muito do Pedro, e já gosto muito de vocês todos, afinal - acrescentou, abraçando as gémeas pelo pescoço. Ganhei aqui duas amigas tiradas a papel químico, ha?

- Mas então isso que diz é para nos animar ou não?

- Não. O que eu disse é verdade. Ora ouçam lá, para ver se percebem: há noventa e seis tipos diferentes do micróbio que provoca a febre tifóide. Quando se obtém o resultado das análises, fica-se a saber qual é o tipo deste micróbio. Depois, pode-se fazer uma investigação para saber de onde é que ele veio. Se detectarmos a origem, evita-se a propagação da doença...

- Mas como é que se detecta a origem?

- Fazendo análises.

- A quem? A toda a gente da vila? O médico riu-se.

- Não. Isso não era possível.

- Então como é?

- Tem de se conseguir saber como é que o doente apanhou a doença.

- É verdade, como é que se apanha esta doença?

- Pode ser de várias maneiras.

- Mas por exemplo?

- Olha, comendo alimentos cozinhados por uma pessoa que estava doente, ou comendo legumes crus, que foram regados com água de um esgoto onde andava esse micróbio, ou bebendo água contaminada, ou através de leite não pasteurizado, ou de natas, ou de creme...

Pelo intercomunicador, uma voz interrompeu a conversa: «Dr. Natércio ao telefone, por favor...»

- Estão a chamar-me. Tenho de ir. Agora calma, está bem? Tenham cuidado convosco. E apareçam cá depois de amanhã, para saberem o resultado das análises. Se houver algum problema, entretanto, rocurem-me aqui ou em casa.

- Então, obrigado por tudo! Despediram-se um pouco mais animados. Já sabiam que era impossível ir ver o João. A única coisa que lhes restava era esperar.

- Estou tão cansado! - bocejou o Chico.

- Não admira. Não dormimos em toda a noite!

O melhor é irmos para a tenda ferrar uma boa soneca.

- Mas primeiro temos de comer qualquer coisa.

- Tem graça, estou cheia de fome, mas não tenho apetite.

- Que disparate! Essa frase não tem sentido.

- É uma não-frase!

- Vocês são mesmo parvos de todo! Tem nexo, sim senhor. O que vos falta é subtileza de espírito!

- Luísa, a subtil! - brincou o Chico.

- Subtilíssima! O que eu queria dizer é só isto: estou fraca. Tenho necessidade de comer; de comida no sentido de alimento. Mas não tenho aquele apetite que dá prazer. Percebes?

- Hum... Acho que sim. E digo mais! Passa-se o mesmo comigo.

- Olhem lá, com ou sem prazer, eu preciso de uma carcaça.

- Só uma, Chico?

- Uma é pouco. Talvez aí... quatro!

- E leite?

- Também marcha. Mas vou ali ao café e digo que só quero leite pasteurizado.

- É melhor, sim. Eu também quero desse.

- Afinal, o que é leite pasteurizado?

- Para te dizer a verdade, não sei. A única coisa que sei é que «esse» não tem micróbios!

- Hei-de perguntar ao meu pai - disse a Teresa.

- Ora! Se calhar, ele também não sabe! O melhor é perguntarmos à professora de Ciências quando começarem as aulas.

- Boa!

- Uah! Despachem-se, meninas! Preciso de comer e dormir um bocado. Se acordar com forças, digo-vos uma ideia que tive.

- Ideia? Que ideia?

- Diz lá!

- É sobre micróbios?

- É!

- Então diz lá.

- Não, agora não. Só quando acordar. Talvez pudéssemos ajudar a resolver isto.

- Oh! Pedro, que chato!

- Não me macem. Quando acordar, se me sentir com forças, faço-vos uma proposta interessante.

As gémeas e o Chico encolheram os ombros. Todos juntos entraram na padaria.

 

- Acho sensacional!

- Eu também!

- Então, alinham?

- Claro que alinhamos!

- E tu, Chico?

- Nem se fala! Alinho em tudo o que vocês quiserem.

-- Mas quando é que vamos fazer isso?

- Cá por mim, começava já.

Tinham acordado cheios de energia. Todos se sentiam bem e desejavam ardentemente fazer qualquer coisa que pudesse ajudar a resolver a situação.

- Estas horas de sono foram fundamentais - disse o Pedro. - Agora, sinto-me capaz de raciocinar com clareza.

- Ainda bem, porque quando tu raciocinas, geralmente dá certo. E essa proposta que nos fizeste é de facto interessante.

- Só tenho uma dúvida - declarou a Teresa. - Achas que as pessoas vão colaborar?    

- Eu acho que sim - respondeu-lhe a irmã -, afinal de contas, as pessoas doentes são todas da vila, menos o João.

- O interesse é delas, pelo menos daqueles que têm os parentes no hospital... - disse o Pedro, aconchegando os óculos no nariz.

- Não pareces lá muito convencido do que estás a dizer, Pedro.

- Confesso que   tenho   um   certo receio, porque às vezes há reacções esquisitas!

- Não ficamos a saber como é que as pessoas reagem, se não experimentarmos!

O Chico, já de pé, espreguiçou-se demoradamente e começou a saltitar sem sair do mesmo sítio.

- Estás morto por fazer alguma coisa!

- E estou mesmo! Vamos?

- Começamos por onde? - hesitou ainda a Luísa.

- Hum... Pela Quinta de Santo António.

- Está bem.

E com um passo tão decidido que até pareciam marchar, lá se dirigiram para a Quinta de Santo António.

O Pedro levava no bolso uma lista que tinha feito com os amigos. Era a lista de todos os síHOS onde tinham estado a comer ou comprado comida. Tencionavam pedir que lhes dessem elementos para levarem para análise. Assim, talvez fosse possível saber de onde partira aquela doença que já afligia tanta gente.

- Deixa cá ver a lista.

- Para quê?

- Quero ver se há outro sítio melhor para começar - pediu a Teresa, ao avistar o portão de ferro verde, ao fundo do caminho. Não sabia a quem abordar, nem como falar do que ali os levava. Se descobrisse outro sítio mais fácil... Aquela quinta era enorme. De cada vez que lá tinham ido,   falaram com essoas diferentes. Ninguém os conhecia. Receava que achassem os pedidos idiotas, não lhes dessem nada e ainda lhes atiçassem os cães...

- Um sítio ou outro, ara começar, no fundo tanto faz - comentou o Pedro, estendendo-lhe a folha de papel.

- Deixa cá ver...

A Teresa leu os nomes em voz alta. Depois dobrou o papel e tornou a dá-lo ao Pedro.

- Tens razão. Um sítio ou outro, tanto faz. Palpita-me que vamos ser mal recebidos em todo o lado.

- Ai, Teresa, que pessimista!

- Vais ver se eu tenho ou não tenho razão. Contra o que era costume, o portão estava fechado e não se via ninguém por perto. Encostaram-se às grades, à espreita. Um caminho de saibro branco, ladeado por tufos de hortênsias cor-de-rosa, conduzia até um pátio fronteiro à casa. Ao longe, ouvia-se o ladrar dos cães, alternando com o gluglu irritante dos perus.

- Chamamos?

- Quem?

- Aquele caseiro. Lembram-se do nome do caseiro?

- Qual? O filho ou o pai?

- Sei lá! Um deles!

- Não me lembro.

- Então, por que é que estavas a perguntar?

- Deixem-se de conversas. uxa lá esse arame para tocar o badalo.

A Luísa pôs-se em bicos de pés e puxou o arame com toda a força.

O ressoar do badalo fez os cães ladrarem ainda mais alto e ao fundo da vereda surgiu o caseiro mais velho. Era gordo e baixo, usava calças de cotim cinzento ligeiramente descaídas, uma camisa larga sem colarinho e na cabeça trazia um boné de fazenda aos quadrados. Foi-se aproximando do portão, num passo cadenciado, balouçado, que lembrava o caminhar de um pato.

A Teresa, impaciente, em vez de aguardar que ele abrisse o portão, pôs-se a gritar, pendurada nas grades:

- Faz favor! Faz favor!

- Já lá vou! Mas que pressa vem a ser esta? - ripostou o homem, um pouco irritado.

- Desce daí, Teresa! Que coisa! Não vês que é má-criação? O homem é velho! Não consegue andar mais depressa!

A Teresa saltou para o chão e fez estalar a língua entre os dentes, embaraçada.

- Que estupidez... Tens razão! Ofegante, o homem já deitava as mãos à fechadura. Fez rodar uma chave enorme e puxou pela porta, que deslizou num rodízio de metal.

- Então o que é que há? - perguntou, com maus modos. - Se é para ovos, vão ao aviário, que os daqui já se acabaram.

Consultaram-se com o olhar. Quem fala? Como todos hesitassem, a Teresa começou:

- Olhe, é que... Sabe? Aquele nosso amigo mais novo adoeceu...

- Está no hospital - continuou a Luísa, tentando ajudar. - Nós pensámos que talvez tenha sido da comida e como viemos aqui comprar comida...

- Não é nada disso -atalhou o Pedro, empurrando as gémeas.

Mas a intervenção do Pedro chegou tarde. O homem mal podia falar, sufocado de fúria. As bochechas ficaram vermelhas, tão vermelhas que até pareciam inchadas. E os olhos quase lhe saltavam das órbitas, de tão esbugalhados.

- O QUE É QUE eu TENHO A VER COM ISSO?

- Calma, senhor... Oiça! - tentou ainda o Pedro.

- Mafarricos! Malandros! - berrou-lhes o homem, cada vez mais enfurecido. - Virem aqui acusar-me de vender comida estragada!

- Ninguém   o   acusou -   interrompeu   o Chico.

- Ai não? Ai não? - repetia o homem - gaguejando e deixando juntar saliva ao canto da boca.

- Não...

- Ai és tu que dizes que não? - perguntou, fitando a Luísa com ira. - Não foste tu que ainda agora disseste que o teu amigo estava no hospital por causa da comida que eu vendi? Ha?

- Eu não disse isso! Tanto pode ter sido dos legumes que comprámos aqui como de outra coisa qualquer...

- E nós queríamos era levar alguns para análise...

- PARA ANÁLISE,   OS   MEUS   LEGUMES?

O homem arrancou o boné da cabeça, amarfanhou-o num canudo e bateu com ele na cara do Chico, que recuou, espantado.

- Vocês pensam que eu nasci ontem? Daqui não levam nada! Acusarem-me de vender comida estragada!... Vocês queriam era saladas à borla! Se calhar nem está ninguém no hospital, seus aldrabões! Anda uma pessoa a perder o seu tempo com esta canalha! RUA DAQUI! FORA!

- Mas...

- FORA! OU AINDA LARGO OS CÃES E VOCÊS VÃO VER...

Com um pontapé, fechou-lhes o portão na cara. «ZZZSCHCLAMP!»

- Safa! - murmurou a Teresa.

- Que anormal!

- Nunca vi um atraso assim... Afastaram-se lentamente,   danados com o que acabava de passar-se. O Chico apanhou um torrão de terra e, virando-se, arremessou-o com toda a força de encontro ao muro.

- Só me apetecia espetar-lhe uma data de terra nas trombas - resingou entredentes.

- A culpa também não foi toda dele... disse o Pedro.

- Ai, não foi? Se calhar foi minha, não?

- E até foi...

- Minha? Porquê? - perguntou a Luísa, empertigando-se na frente dele.

- Agora viras-te contra nós, é? - acrescentou logo a Teresa, colocando-se ao lado da irmã.

- Foi!   Foi!   Foi!   Não tinhas   nada que começar a conversa assim - ripostou o Pedro, enraivecido com o fracasso.

- Pois é! Vocês são uns atados! Ficaram a olhar para o homem que nem uns parvinhos...

- Assim! Que nem uns anormais... - e a Teresa deixou descair o queixo, entortou os olhos e fez uma careta horrível.

- Foi pena não teres feito essa cara ao homem. Era capaz de pensar que pertencias à família e não nos punha fora...

- Que engraçadinho...

- Estás para aí a armar, e o que eu   sei é que, se não fôssemos nós, ainda a esta hora o homem estava a perguntar «então o que querem? são ovos?» - disse a Luísa, imitando a voz do homem.

Estavam nervosíssimos e discutiam aos gritos, gesticulando no meio do caminho.

As gémeas, afogueadas, pareciam ter apostado quem gritava mais. Tinham os olhos Cheios de lágrimas. O Pedro fungava e sacudia-se, dando pontapés na terra. O Chico fez então ouvir a sua voz grossa, berrando-lhes:

- Estão para aí a discutir feitos parvos! Não basta o João estar doente? Ha? Nào basta? Precisamos de nos zangar uns com os outros? Não basta o que basta?

- O João... - a Luísa não conseguiu acabar a frase. Um soluço subiu-lhe à garganta, deixando-a em suspenso. Uma onda de tristeza, de aflição, rebentou-lhe finalmente do Peito e a Luísa desfez-se em lágrimas, soluçando alto.

O Pedro aproximou-se logo, com os óculos embaciados.

«Um homem não chora», repetia ele baixinho, «um homem não chora...». Mas parecia que um garrote lhe apertava o pescoço.

A Teresa chorava também desabaladamente. E o Chico assoava-se e tossia para disfarçar a comoção.

- Desculpa, Pedro! Desculpa lá! Acho que tinhas razão.

- O homem não tem culpa de ser ignorante - articulou ele, com dificuldade -, mas vamos embora daqui.

- Vamos tentar noutro sítio?

- Tentar? Eu não tento mais nada. Eu vou ao café, mas não digo nada. Compro os bolos...

- Está bem, mas antes, tens de lavar a cara.

A Luísa esfregou os olhos com as costas das mãos e encarou os amigos, exibindo uma cara vermelha, com riscos de sujidade, olhos vermelhos e inchados.

- Estás linda! - riu-se a irmã, ainda em lágrimas.

- E tu também...

- Vamos lavar a cara ali ao chafariz e passar no café.

 

No café tudo se passou sem história. Compraram bolos, um de cada qualidade, por não saberem qual seria melhor escolher. Gastaram um dinheirão e saíram com o embrulho debaixo do braço. O cheirinho dos bolos abria-lhes o apetite, e o Chico suspirou, aborrecido.

- Que grande pacote! Agora marchavam e encaminharam-se para a horta do Sr. Joaquim, onde nos primeiros dias do acampamento tinham comprado alfaces.

O Sr. Joaquim tinha uma quintarola mesmo junto ao rio. E habitualmente passava ali os dias, abrindo e fechando regos com um sacho, a cuidar de alfaces, couves, cenouras, feijão, com uma paciência e carinho admiráveis. Mas por azar naquela manhã não estava lá. Ainda chamaram, procuraram-no na casota das ferramentas e nada!

- Bolas! Está tudo a correr mal!

- Que é que fazemos?

- Eu   acho   melhor apanharmos   qualquer coisa. Depois vimos cá explicar. Afinal, isto é para o bem de todos.

- E se ele não quiser entender, então pagamos...

Ainda hesitaram, com receio de aborrecerem o homem.

- E se ele se chateia?

- Ora! Por que é que se há-de chatear?

- Uma alface, uma couve não lhe fazem falta nenhuma...

- Mas os donos das hortas costumam ser muito sôfregos das suas coisas...

- Se ele se chatear, depois pagamos. Não foi o que combinámos?

- Vamos a isto, então.

O Chico arregaçou as mangas e começou a apanhar legumes a eito. As gémeas seguiram-no. Sem qualquer critério, arrebanharam alfaces, couves, tomates, agriões, arrancaram cebolas, alhos, rabanetes e um enorme nabo arroxeado. Como não tinham nenhum cesto, serviram-se de uma saca esquecida na casinha das ferramentas. E, ajoujados, resolveram retomar o caminho.

Só que... havia muitas outras hortas até chegar à vila!

- E se...

- Se, o quê?

- Se os micróbios estão nestas hortas?

- Também podem estar!

- Devíamos levar também daqui... Dava mais hipóteses.

- Não se vê é ninguém a quem pedir...

- Não faz mal. Arrancamos uma ou duas coisas de cada, e depois vimos cá explicar.

A Teresa e a Luísa, muito despachadas, lançaram-se pelo meio dos canteiros alinhadinhos e bem cuidados, sem sequer repararem que pisavam e destruíam os rebordos de terra.

O Chico e o Pedro seguiam-nas e guardavam nas sacas tudo o que elas apanhavam.

Entusiasmados com a ideia de levarem tantas amostras para análise, resolveram fazer o caminho de volta todo por dentro das hortas. E iam arrancando tudo, cada vez mais depressa, cada vez mais depressa... íá estavam carregadíssimos e continuavam a apanhar à maluca, misturando tudo em sacos e cestos velhos que iam encontrando à mão.

- Eh, lá! Que é isso?

O dono surgiu-lhes de repente, bramindo no ar uma enorme forquilha. Estacaram, apavorados. Como explicar o que estavam a fazer? Como convencê-lo que não queriam estragar nada nem eram ladrões?

- QUE É isso?

- Larguem já tudo aí, seus malandros!

- Ai isso é que não largamos...

O Chico segurou uma saca com força e pôs-se a correr, seguido pelos amigos, pisando tudo o que lhes aparecia à frente. Com a precipitação, deixavam cair atrás de si cebolas, batatas, meloas, que rebolavam em todos os sentidos.

O homem, furibundo, chamou alguém:

- Ó Manel! Manel! Caça-me esta malandragem...

E sem esperar pela resposta foi-lhes no encalço, assobiando pelo seu cão.

- Por onde andará o Faial! - perguntou o Pedro, arfando da corrida.

- Deve estar à porta do hospital! Corre, senão apanham-nos...

O homem parecia não ter grande fôlego. E pata aqui, pata ali, procurando não pisar também ele a horta dos vizinhos, perseguia-os fazendo balançar uma pança redonda.

Alertados pelos gritos e barafunda, surgiram vários outros homens e mulheres, que se lançaram também atrás deles, julgando que se tratava de ladrões.

- Agarrem-nos! Agarrem-nos!

- Ah, malandros!

- Se lhes ponho as mãos em cima...

Um cão preto ladrava, ladrava, dando saltos enormes que faziam esticar a corrente que o prendia à casota.

- Acelera, Teresa!   Acelera! - gritou o Chico, que ia bastante à frente, numa correria louca, mas sem nunca abandonar o saco de legumes...

- Já... se vê... o... hospital... - disse o Pedro sem se voltar, procurando dar ânimo às gémeas.

Mas elas não paravam! Sentiam já dificuldade em respirar, e a Teresa tinha cravado a mão com toda a força na cintura, para dominar uma dor forte que a trespassava, do lado esquerdo.

- Estou com dor de burro...

- Também   eu...   Mas corre   ou  apanhas uma tareia...

- Ah, malandros!

Uma mulher, de voz esganiçada, toda vestida de preto, juntou-se ao grupo, agitando uma

vassoura no ar.

Cada vez se juntava mais gente. A distância entre eles ia diminuindo assustadoramente. E o alarido crescia, crescia.... Assomavam cabeças às portas e janelas, que, ao vê-los carregados de legumes, se punham logo a gritar também:

- Ladrões! Ladrões!

«Irra, que esta gente é estúpida!», pensava a Teresa, dominando-se para não chorar. Finalmente, aproximavam-se do recinto do hospital.

«Mais uma arrancada e estamos lá dentro», pensou o Chico. Só que, voltando-se, verificou que corriam riscos de serem apanhados antes de entrar no hospital. E resolveu então largar aos berros, para atrair a atenção dos médicos ou enfermeiros, ou fosse de quem fosse que os pudesse ajudar, protegendo-os da fúria dos camponeses.

- Socorro! Socorro!

O Pedro e as gémeas perceberam imediatamente a ideia e fizeram coro com ele:

- Socorro! Socorro!

De um caminho lateral, surgiu naquele momento um homem em fato de treino, que corria em passo cadenciado.

«Não posso acreditar!», pensou a Luísa. «O Dr. Natércio!»

Assombrado com o que via, o médico juntou-se a eles.

- Que se passa? - perguntou, sem abrandar a marcha.

Mas reparando no carrego de legumes e no grupo de camponeses que os perseguia, entendeu imediatamente o que tinha acontecido. Perdido de riso, acenou-lhes.

- Venham! Se nos apanham, dão cabo de nós!

E pôs-se a correr à frente deles.

Os camponeses, pasmados, diminuíram ligeiramente a corrida. Então aqueles malandrins, que os tinham roubado, em vez de fugirem, corriam para o hospital a pedir socorro? E aparecia mais um?

- Socorro! Socorro!

A Teresa gritava, gritava, mas com o nervoso e a gritaria já não lhe saía qualquer som. Arrastando uma saca meia vazia, galgou os últimos metros que a separavam do Chico e caiu, exausta, à porta do laboratório que, nesse preciso momento, se abriu com violência, surgindo na soleira a directora!

- MAS O QUE VEM A SER ISTO? O QUE VEM A SER ISTO?

O Chico e o Pedro olharam-na, sem coragem para articular palavra. Tinham pousado as sacas e ficaram ali especados, desgrenhados e sujos. A Teresa, sem forças para se levantar, olhava meia aparvalhada para a quantidade absurda de folhas de couve que juncavam a parte fronteira do hospital. E a Luísa, um pouco atrás, ansiava por um buraco onde se pudessem esconder! O grupo de lavradores, carregando forquilhas, varapaus, e um deles até um regjor, juntaram-se a meio do caminho, entre o portão e a entrada do laboratório, intimidados.

- Mas o que vem a ser isto? - repetiu a directora, faiscando de raiva.

Só que... Deu com os olhos no colega! Vacilou, apoiando-se na ombreira. Abriu e fechou várias vezes a boca, até conseguir perguntar, assombrada:

- Dr. Natércio! O senhor endoideceu?

O médico fazia esforços terríveis para não largar à gargalhada. Inspirando fundo, encarou a directora.

- Eu explico. Eu acho que sei o que se passou!

- Sabe?

- Sei,   sei.   Ora venham cá, meus caros amigos, cheguem-se ara aqui - pediu aos camponeses. - Eu sou médico. Trabalho neste hospital e nos laboratórios. Se estou nesta figura

- acrescentou, apontando o fato de treino - é porque aproveito sempre a minha folga para fazer corrida. Um médico pode e deve ser um bom desportista!

Aquela conversa, que nada tinha a ver com o assunto, o ar risonho e pacífico do médico, acalmaram um pouco os ânimos. A directora apertava os lábios, num ricto de desagrado, mas aguardou explicações.

- Tudo isto que vocês trazem aí era para análise, não era?

- Era - respondeu a Teresa.

- Eu não disse que adivinhava?

- Adivinhava? Ainda não percebi de que é que estamos a falar - disse a directora, desabrida.

- Eles são meus amigos, e são malta fixe. Só que têm um companheiro doente, aqui internado. Eu falei-lhes na febre tifóide, na necessidade de detectar a origem da doença e eles resolveram ajudar, rebuscando legumes pelas redondezas, para nós analisarmos. Não foi?

- E bolos, também - respondeu a Luísa, estendendo o pacote com os bolos.

- Que ricos bolos que nos arranjaste, Teresinha - gracejou ele, pegando no pacote. Como é que resistiram a comê-los?

- Eu não sou a Teresa, sou a Luísa - disse ela, desviando os olhos, envergonhada.

O que tinham feito, agora, parecia a todos bastante disparatado. Aparecerem assim, perseguidos por um bando de camponeses, a espalharem legumes pelo chão e com um pacote de bolos enorme...

Mas o médico ajudou-os a recomporem-se. Explicou aos homens e mulheres da vila o que se passava mais detalhadamente, insistindo para que tivessem cuidado, não regassem as hortas com água do esgoto e bebessem água fervida, sem no entanto entrarem em pânico. Disse-lhes que aqueles quatro amigos só queriam ajudar. Acalmou a directora. Chamou dois empregados para limparem o recinto. E lá conseguiu dispersar toda a gente. Depois mandou guardar os sacos, levar os bolos para o laboratório e convidou-os a irem com ele até casa.

- Venham daí comigo tomar um refresco, ha? Devem estar precisados...

- Mas não vamos a correr! - pediu o Pedro.

- Não,   vocês   hoje já tiveram   um bom «treino»...

 

A casa do médico era um amor! Ficava quase à saída da vila. Só tinha um piso, e a fachada minúscula estava toda caiadinha de branco, com uma risca larga à volta da porta e das duas janelas quadradas. Os caixilhos eram antigos, de madeira, e em vez de abrirem para o lado, a parte de cima era fixa e a de baixo deslizava no sentido vertical.

- Olha as janelas, são iguais às da Quinta da Amendoeira! (’)

- Chamam-se janelas de guilhotina - esclareceu o médico. - Estavam podres quando comprei a casa. E foi um sarilho para as mandar substituir por outras iguais. Queriam por força convencer-me a mudar a porta e as janelas para alumínio.

- E por que é que não quis? - perguntou a Luísa. - É mais moderno, o alumínio.

- E dura mais!

O médico riu-se.

- Mas não acham que estas são muito mais bonitas? Ora olhem bem!

As gémeas olharam para as janelas com outra atenção. E realmente a graça daqueles caixilhos não se podia comparar com a das outras casas.

- Parece uma casa de um livro de histórias antigo...

- É isso mesmo. Isto é uma casa antiga, de aldeia, feita ainda de pedra e cal, cheia de personalidade. Dantes, as casas eram diferentes umas das outras! E as janelas... Já viram algum palácio? Geralmente, as casas apalaçadas tinham sempre janelas destas!

- São mesmo bonitas!

- Bonitas e acolhedoras, desde que tenham todo o conforto moderno por dentro. Eu adoro a minha casa! - concluiu, metendo a chave à porta.

Lá dentro, estava tudo tão limpo e arrumado que até fazia impressão. O soalho de madeira brilhava, cheirando a cera de alfazema. Não se via um grão de pó em sítio nenhum e os objectos estavam dispostos em rigorosa simetria.

- Vê-se bem que não tem filhos! - comentou a Luísa. - Nunca vi casa tão arrumada.

- Até os toros da lareira, já reparaste? - tão alinhados dentro do cesto, como se fossem figuras geométricas!

O médico riu-se outra vez.

- Cada louco com a sua mania. Eu tenho a mania de arrumar tudo. Não suporto confusão. Talvez seja por isso que ainda não me casei.

- Porquê? Acha que as mulheres são desarrumadas?

- Algumas são. E logo por azar, as que eu namorei, eram. Acabávamos a discutir, elas fartavam-se das minhas esquisitices e pronto!

- Mas não parece ralar-se muito com isso.

- Pois não - acrescentou num tom confidencial -, no fundo tenho feitio de solteirão. Adoro viver no campo, dedicar-me ao estudo, ler romances, fazer desporto, jardinar... e fazer só o que me apetece, sem correrias nem ter de dar satisfações a ninguém.

- Eu também gostava de viver assim! disse o Chico, instalando-se comodamente num cadeirão estofado de cabedal.

- E vive-se muito bem. As grandes cidades são muito desarrumadas para meu gosto! Mas vamos lá*a ver, o que é que querem tomar?

Sem esperar pela resposta, tirou uma lata redonda do armário, e ofereceu-lhes argolinhas de chocolate.

A Teresa trincou duas ao mesmo tempo, porque estavam coladas. E procurando não deixar cair migalhas, inclinou-se para a frente e pôs a mão esquerda debaixo do queixo.

- Afinal, em que é que está esta história do bacilo? - perguntou o Pedro, servindo-se também.

- Não está famosa, não! Continuam a chegar doentes todos os dias.

- E o João?

- Está a ser tratado...

- A avó dele deve chegar amanhã.

- Ele está melhor? Não o podemos ver?

- Por enquanto, não. Mas descansem, que toda a gente gosta muito dele e tratam-no lindamente.

- Aquela história dos legumes foi uma estupidez... - começou a Teresa.

- Disparate, disparate, não foi. A origem da epidemia pode estar de facto nas saladas que se comem cruas. Mas nós estamos convencidos que se trata de água contaminada.

- E não analisam a água?

- Já analisámos. Esta aldeia tem água canalizada. Foi fácil ir à central verificar se estava tudo em ordem.

- E estava?

- Estava. O problema é que muitas pessoas têm poços e bebem deles.

- Então, por que é que não analisam os poços?

- Isso é muito bom de dizer. Em primeiro lugar, não sabemos ao certo quais as pessoas que têm poços. Depois, muitas vezes as pessoas não querem colaborar, como vocês sabem...

- Se sabemos!

- E é uma idiotice!

- Pois é. Ou melhor, as pessoas não são estúpidas. Estão é mal esclarecidas. Acabam por ter reacções...

- Estúpidas! - disse o Chico, completando a frase.

- Tens razão. Mas no fundo não têm muita culpa. Olha, uma vez, no Barreiro, chegou a mandar-se a guarda para junto do rio, pois sabia-se que era perigoso comer berbigão naquela altura. Pois as pessoas iam às escondidas apanhar berbigão, e comiam-no! Apesar dos avisos, era o que faziam!

- E morriam?

- Morrer, parece que não morreu ninguém, mas adoeceram gravemente.

- Então eram estúpidas.

- Não sejas tão radical, Teresinha...

- Afinal, podemos fazer alguma coisa para ajudar ou não? - perguntou o Pedro.

- Para já, não se preocupem muito com isso - respondeu o médico. - Vamos ver se os Serviços de Saúde tomam as medidas necessárias - acrescentou ele, com ar pouco convicto.

- E quando é que podemos ver o João?

- Apareçam por lá amanhã com a avó dele. Pode ser que esteja melhor e possa receber visitas. E de resto até convém, porque temos o resultado das vossas análises.

- Combinado, então!

Despediram-se do médico, e resolveram .regressar ao acampamento. Estava imenso calor para passear e de qualquer forma também não lhes apetecia fazer nada.

- Que buxa! Estou mesmo chateado!

- Se fôssemos dar um mergulho?

- É boa ideia. Estou sem energias, mas um mergulho para refrescar sabe sempre bem!

De volta ao acampamento, enfiaram os fatos de banho e juntaram-se à beira da água, para se atirarem.

- Coitado do João! - lamentou o Pedro.

- Metido na cama com um dia tão bonito!

- Sem ele, isto não tem graça nenhuma!

- Ele já estava bem esquisito no último dia...

- Enjoado, não era?

As gémeas conversavam com os pés dentro de água. O Chico recuou uns passos para se atirar de mergulho.

- Como será que ele apanhou a doença?

- Não bebeu água de nenhum poço... O Pedro levantou a cabeça, num repelão.

- O que é que vocês disseram? Ha?

- Afastem-se - gritou o Chico. - Lá vou eu!

- PÁRA! - berrou o Pedro. - Não te atires!

- Sai daí! Estás parvo?

- Pára, Chico!

- Mas o que é que te deu?

- Já sei onde é que o João apanhou a doença - disse o Pedro, agitadíssimo. - Não se lembram dos banhos?

- Os pirolitos! - exclamaram as gémeas.

- Foi isso! Só pode ter sido isso!

- É verdade, pá! Ele bebeu muita agua Todos os dias se queixava de que engolia pirolitos.

- E vocês, beberam? Alguém bebeu?

- Eu não!

- Eu também não!

- Eu nunca engulo pirolitos!

- Pronto, está tudo explicado.

O Pedro sentou-se no chão e cruzou as pernas.

Esta água deve estar inquinada. As pessoas que tomaram aqui banho ou beberam desta água, adoeceram.

- E muita gente rega as hortas com esta água!

- Pois é! E não só regam a horta como é possível que lavem a salada com água daqui.

- Descobrimos o micróbio! Nós à procura por todo o lado e afinal estava aqui tão perto.

O Chico olhou tristemente para a represa. A toalha de água azul, rebrilhando ao sol, muito mansa, espelhando a verdura das margens, convidava a um mergulho. E, porque era perigoso, ainda sentia mais desejos de se atirar! O calor apertava com força.

Do meio dos salgueiros ouviu-se naquele momento um coro de vozes juvenis: Aí vem um grupo! - disse o Pedro, levantando-se.

- Palpita-me que vamos ter um trabalhão para os convencer a não tomar banho!

- Ali ninguém entra! - declarou o Chico, plantando-se de pernas abertas e braços cruzados, de costas para a represa.

- Mas temos de lhes explicar...

Três miúdos um pouco mais novos do que eles apareceram por entre a folhagem, em calção de banho.

- Ei, miúdos! Não se pode tomar banho disse o Pedro, tentando parecer jovial.

- Ai não? Então orquê? - perguntou logo um deles, todo reguila.

- A represa é tua, não?

- Aqui toma banho quem quer!

- Mas agora não se pode...

- Porquê? Porquê?

- Tomo, sim senhor, e é já!

- Eu vou para a água - ripostou um ruivito, de cabelos aos caracóis.

- A água não está boa! Há perigo...

- Qual erigo, qual carapuça! Já tomei cinquenta mil banhos aqui e nunca me aconteceu nada!

O miúdo disparou a correr direito à água. Mas o Chico atirou-se em voo para o chão e agarrou-lhe um pé, fazendo-o cair.

- Larga-me! Larga-me!

- Teimoso! É para teu bem!

Os outros dois acorreram, tentando libertar o amigo. Mas como não conseguiram, correram em ziguezague, em direcção à água.

- Agarrem aquele, que eu tomo conta deste! - disse o Pedro, lançando-se em perseguição do mais velho.

Os miúdos eram danados!

Corriam, guinchavam, fugiam, fintavam-nos, e um deles acabou por atirar uma bola de cuspo aos óculos do Pedro, que, furioso, lhe pregou um tabefe.

- QUEREM MORRER? QUEREM MORRER? - berrou-lhes ao ouvido, abanando-os com toda a força.

Os miúdos encolheram-se, assombrados. Aquilo começava a parecer de mais...

- Mas porquê? - perguntou finalmente o ruivo, com voz sumida.

- A água está contaminada. Tem micróbios, percebes? Já está uma data de gente no hospital. Não se pode tomar banho aqui, percebes?

Uma voz de homem fê-los voltar todos a cabeça, na mesma direcção.

- Então o que é isso? Zangaram-se? Os vossos gritos quase chegam à vila.

- É que...

- Um dia tão bonito não se presta para zaragatas - acrescentou o homem, com o sorriso mais triste deste mundo.

- Não é bem uma zanga!

- Então o que foi?

O homem sentou-se numa pedra, apoiando os braços nos joelhos. Tinha umas bonitas mãos de dedos esguios, de pele muito branca, e rolava um estojo comprido, de madeira escura.

Parecia muito triste e ao mesmo tempo ansioso por conversar com eles.

- Eu vou explicar! - disse o Pedro, largando os miúdos, que já não fugiram.

Com frases curtas e simples, relatou a história toda, deixando os rapazes esbugalhados a olhar para ele. O homem nunca interrompeu, limitava-se a afirmar que sim, com a cabeça.

- Tens razão. Podes mesmo ter muita razão. É capaz de ser da água...

- É quase de certeza!

- Fizeste bem em impedir estes três de tomar banho. É escusado haver mais três doentes, não é? Vocês deviam era agradecer em vez de barafustar!

- Mas a gente não sabia!

- Nem queriam ouvir...

- Bom, bom, não recomecem agora a discutir.

- Nós vamos levar uma garrafinha de água para ser analisada.

- Mas tem de ser uma garrafa lavada com água fervida - disse o Pedro.

- Água fervida? Para quê?

- Porque há micróbios em toda a parte e assim, se a garrafa não for lavada com água fervida, os analistas ficam sem saber se os micróbios são da água ou da garrafa.

- Fazem bem. Lavem a garrafa. Se quiserem ajuda para alguma coisa, é só dizerem. Podem contar comigo para tudo.

- Também tem alguém doente? - perguntou-lhe a Luísa, perspicaz.

- Tenho. Um grande amigo. Um colega meu, da banda. É como se fosse meu irmão.

- Ah! Então o senhor é músico!

- Sou. Toco flauta na banda desde os catorze anos.

A Teresa espetou um dedo no estojo, curiosa.

- Isso é o estojo da flauta, não é?

- É. Querem ver?

O homem abriu o estojo, tirou a flauta e soprou-lhe ao de leve. Um silvo doce elevou-se no ar.

- Que lindo som!

- Adorava   saber   tocar   um   instrumento qualquer!

- Eu queria saber tocar viola...

- Eu adoro tocar flauta - disse o homem.

- É raro o dia que passo sem tocar.

- Toca músicas conhecidas ou inventa?

- As duas coisas. Eu e o meu amigo Ezequiel, o que está doente... costumamos juntar-nos para ensaiar. Às vezes improvisamos.

- Toque lá um bocadinho para nós...

O homem endireitou-se, levou a flauta à boca, semicerrou os olhos e começou a soprar, de mansinho.

A música suave, bonita mas muito triste, envolveu-os docemente. Sentaram-se sem ruído pelo chão e ficaram a ouvir, reprimindo uma vontade súbita de chorar.

Silenciosamente também, apareceu o Faial, vindo não se sabia de onde. Aproximou-se de um dos miúdos pequenos e deitou-lhe a cabeça no regaço.

«Está a matar saudades do João», pensou a Luísa, engolindo um soluço.

 

À porta do hospital, aguardavam notícias todos juntos. Os três miúdos tinham ido com eles, mais o flautista, que se chamava Gervásio.

Começavam a ficar impacientes; já tinham entrado e saído várias vezes para o átrio, já tinham feito a mesma pergunta a quantas pessoas encontraram no caminho, tinham até mandado um bilhete ao Dr. Natércio... e até àquela altura não tinham conseguido saber absolutamente

nada de novo.

- Eu vou entrar outra vez pela janela, e macacos me mordam se não encontro alguém que me dê notícias...

- Calma - aconselhou Gervásio. - Eu também estou ansioso por saber do meu amigo, mas não podemos fazer disparates.

- Nós já uma vez entrámos...

- Vocês já pensaram, se toda a gente se lembrasse de visitar os parentes no hospital, entrando pela janela? Passava a ser uma casa de doidos...

Distraídos com a conversa, não repararam numa figura que assomou a uma janela do primeiro andar e lhes fazia sinais.

- Pst! Ei! Cheguem aqui!

- Está alguém a chamar por nós! - disse a Luísa, olhando em volta.

- Pst! Ei, Pedro!

- Olha ali! É o Dr. Natércio, naquela janela!

- Olá! Podemos ir aí acima?

- Não. Dêem a volta a esta ala, que eu vou sair pela porta lateral.

Correram todos para o sítio indicado, ansiosos por ouvirem o amigo. Os três miúdos não os largavam. Também tinham ficado impressionados e queriam saber se havia perigo de epidemia ou não. Além disso, desejavam confirmar se era perigoso tomar banho na represa.

O Dr. Natércio surgiu finalmente diante deles. Estava pálido, parecia mais magro, e, com os braços caídos ao longo do corpo, agitava os dedos num gesto nervoso.

- Então?

- Bom...

- Como é que está o João?

- Como é que está o Ezequiel? Conhece o Ezequiel, não conhece? Como é que ele está?

O médico apertou a mão direita sobre os olhos e permaneceu um momento em silêncio, a tomar balanço para o que tinha a dizer.

- Está pior? Diga depressa que eu não aguento esta angústia! - pediu a Luísa, quase gritando.

- Infelizmente não está melhor.

Uma das gémeas avançou para ele e, com os olhos marejados de lágrimas, declarou, quase sem expressão:

- Está-nos a preparar para dizer que o João está muito mal, não é?

- E o Ezequiel? O Ezequiel? Diga-me a verdade!

Os três miúdos pequenos assistiam a tudo, sem se atreverem a meter o bedelho. Afinal, sempre havia gente em perigo!

- Não lhes vou mentir, não. O caso é complicado. É muito mais complicado do que julgávamos. Muitos doentes não melhoram, porque os remédios não fazem efeito. Este maldito micróbio sabe defender-se do antibiótico...

- E não há solução possível?

- Estamos a fazer tudo o que sabemos. Vamos administrar um novo antibiótico. Já está muita gente internada.

- É uma epidemia?

- Sim, já se pode considerar uma epidemia. Vocês são corajosos. É por isso que lhes estou a dizer a verdade. Se isto se espalha pelo País, podem morrer milhares de pessoas.

- Mas aqui na vila, não se vai avisar ninguém?

- As pessoas avisadas talvez pudessem ter cuidados especiais.

- Vamos   avisar,   mas   com recaução, para evitar o pânico. Senão, aparecem para aí imensas pessoas a gritar, com dores de barriga, com dores de cabeça... Enfim, com todos os sintomas da febre tifóide,   só orque se convenceram de que estão doentes, e não estão.   Fazem-nos erder   tempo   com histerias.

- A minha mãe já tem falado nisso. São doenças psicológicas...

- É. E o mal é que as pessoas sentem mesmo o que dizem sentir. E às vezes assustam-se tanto que podem até ter ataques de coração, enfim, complicações.

- Mas por que é que os micróbios resistem ao tratamento? - perguntou o flautista.

- Pensamos que seja por causa do aviário...

- Do aviário? - exclamou o ruivito, de olhos esbugalhados. - A minha mãe trabalha lá!

- Quem são estes camaradinhas? – perguntou - o Dr. Natércio, como se só então tivesse notado a sua presença.

- São uns miúdos que queriam tomar banho na represa e a gente não deixou, julgando que o mal fosse da água.

- Ah! Da água da represa? Não está mal pensado. Foi boa ideia não os deixarem tomar banho. Mas entrem aqui para dentro, vamos ao meu gabinete. Eu explico melhor o que se passa.

- Nós também podemos ir?

- Vocês? Hum... Não vale a pena. Vocês ainda são muito pequenos para perceberem certas coisas. O melhor é irem para casa e não pensarem mais nisto.

As gémeas voltaram-se, para se despedirem dos miúdos, e, face à expressão de fúria que tinham espelhada na cara, ficaram com pena deles. Ninguém gosta de ouvir dizer que ainda é muito pequeno...

- Não se ralem - murmurou a Luísa. Ele vai pôr-se para aí com explicações científicas, muito chatas...

- Quem me dera poder ir com vocês acrescentou a Teresa, baixinho, para os animar.

Mas eles não ligaram nenhuma. O ruivito deitou-lhes a língua de fora, enquanto um dos outros repetia:

- Sou miúdo? Sou miúdo, não é? Já vão ver como sou miúdo...

As gémeas encolheram os ombros. Não havia nada a fazer e também não estavam dispostas a aturar fedelhos. Viraram-lhes as costas e seguiram os amigos, que já tinham entrado.

No gabinete, o Dr. Natércio esperava as gémeas para começar as explicações.

- Ora agora que já estamos todos, prestem atenção. Há dois problemas nesta história toda: um, é a doença. A doença que é provocada por um micróbio.

-.- E o outro problema, qual é?

- É esse micróbio ser resistente ao remédio que o pode destruir. Ser resistente ao antibiótico.

- Mas como é que o João ficou assim?

- Apanhou um micróbio, e por azar ficou resistente.

. - E as outras pessoas?

- A mesma coisa.

- Mas como é que o micróbio ficou resistente?

- Hoje em dia - explicou o médico -, as pessoas passam a vida a tomar remédios por tudo e por nada. Às vezes não era preciso, sobretudo antibióticos! Por exemplo, nas constipações e gripes, é raro ser necessário antibiótico.

Basta um bom chá de limão com mel... Mas as pessoas tomam remédios que não devem. Resultado, quando é preciso os remédios, já não fazem efeito!

- Mas o João não tomou remédios nenhuns! Ele quase nunca está doente!

- Pois é... Mas o pior é que, quando uma pessoa qualquer tem no corpo um micróbio que já aprendeu a defender-se dos remédios, pode passá-lo a outras pessoas. Quando damos cabo da nossa própria saúde, geralmente também prejudicamos os outros, mesmo sem querer.

- E o aviário, o que é que tem a ver com isto tudo?

- Nós estamos desconfiados que as rações com que alimentam os frangos têm uma grande quantidade de antibióticos para os frangos engordarem mais depressa...

- E depois, o que é que isso tem?

- Tem que os empregados do aviário, ou as pessoas que comem muitos frangos, podem ter micróbios resistentes aos antibióticos...

- Ah, pois é - disse o Pedro, cada vez que se come frango, está-se a tomar remédio, se o frango foi alimentado com remédio...

- E o pior é que as bactérias se podem «casar», sabiam?

- Casar? - estranhou a Luísa.

- Sim. Nós chamamos a esse casamento «congregação». Se o «noivo» for um bacilo de febre tifóide e a «noiva» uma bactéria das fezes das galinhas, é o diabo!...

- Porquê?

- Porque   têm   uma   «bactéria-filho»   que provoca a febre tifóide, como o «pai», e é resistente aos remédios, como a «mãe». Deve ter sido isto que aconteceu.

- Eu continuo sem perceber muito bem confessou a Luísa.

- Acredito, Luísa. Mas também não sei explicar melhor. Quando voltares para as aulas, podes falar destes assuntos com a tua professora de Ciências. Sabes que a grande diferença entre um professor e outras pessoas, é que o professor «sabe explicar» aquilo que sabe...

- Isso às vezes não é bem assim! Alguns explicam-se tão mal, não é?

- Então deviam escolher outra profissão... Um alarido medonho impediu o médico de continuar. Da rua vinham gritos, berros, de tal forma exaltados que correram todos para a janela. Homens, mulheres, crianças, alguns vendedores ambulantes, invadiam o recinto do hospital em grande fúria. E à frente de todos, com ar triunfante, gesticulavam os miúdos da represa!

- Patifes!

- Malandros!

- Abaixo os médicos!

- Queremos saber a verdade!

- Ou vem já aqui alguém ou pego fogo ao hospital!

A multidão engrossava cada vez mais. A várias janelas tinham assomado médicos, enfermeiras e até alguns doentes.

- Com esta é que eu não contava! Aqueles três diabos arranjaram-na bonita! - disse o Dr. Natércio, consternado.

- E agora? Como é que vamos acalmar esta gente? - perguntou o flautista.

«PÁS!» A porta do gabinete abriu-se com estrondo e surgiu a directora, furiosa.

- Natércio, você já viu...

A frase ficou em suspenso. Ao dar com os olhos no Chico e no Pedro, inspirou ruidosamente e ficou entupida.

- Parece um aspirador avariado - sussurrou a Teresa, escondendo-se atrás da irmã.

- ESTÁ-SE   MESMO   A   VER   QUE AQUELES DOIS TÊM ALGUMA COISA A VER COM ISTO!

- Senhora directora...

- Não me venha com falinhas! Eu quero saber, e já, o que é que se passa! Quem é que andou a espalhar boatos a alarmar a população?

Da rua subia um burburinho que se tinha tornado uniforme.

- Queremos o director! Queremos o director!

- Morte ao director!

Olharam todos para a directora com uma expressão elucidativa. Mas ela era uma mulher de armas e não se deixava intimidar. Toda sarrabeca, avançou para a janela disposta a enfrentar aquela multidão. Com gestos decididos abriu-a de par em par.

«Paf!» Alguém lhe acertou em cheio com um bolo de lama.

Sem se desviar um milímetro, permaneceu à janela, limpando rapidamente a cara com as costas da mão.

Perante aquela atitude de firmeza, a multidão serenou. Fez-se um silêncio pesado e a directora aproveitou imediatamente para falar:

- É inadmissível o que está aqui a passar! Já não há respeito por quem está doente?

Aquela voz de comando teve efeito instantâneo e a multidão recuou um pouco. Parecia até que as pessoas se tinham encolhido ligeiramente. O Dr. Natércio aproximou-se da janela, para ajudar a dispersar as pessoas com algumas palavras apaziguadoras. Mas uma vozita de criança fez-se ouvir de imediato:

- É aquele! Aquele disse que íamos morrer todos por causa dos frangos!

Foi o fim! Um bramido elevou-se de novo. Aos gritos, as pessoas exigiram ser esclarecidas.

- Queremos saber a verdade!

- Os frangos têm veneno?

- Vamos pegar fogo ao aviário!

- Fo-go! Fo-go!

Aterrada, a directora levou as mãos à cabeça, virando-se para o colega como que a pedir socorro. Aquilo estava a tomar proporções assustadoras... Mas para seu grande espanto, Natércio olhava fixamente para o exterior. Hesitou um instante e precipitou-se porta fora.

- Mas... Mas...

No meio das pessoas, o médico corria, deivairado, acotovelando para a direita e para a esquerda.

- O que é que lhe deu? Surpreendida, a assistência abriu alas, viu-o

saltar para cima da carrinha de um feirante, arrancar o megafone e regressar a correr para o hospital.

Apareceu logo à janela, e, falando com a voz ampliada por aquela espécie de grande funil, anunciou:

- Eu vou passar a palavra à senhora directora deste hospital.

 

Quando a directora acabou de discursar, as pessoas acalmaram um pouco e, ainda meio desconfiadas, dispersaram.

No entanto, ao regressarem a suas casas, não falavam noutra coisa. E o pior foi precisamente ninguém ter percebido muito bem até que ponto corriam perigo. Assim, cada um espalhava aos quatro ventos qualquer ideia louca que lhe viesse à cabeça.

- Vamos morrer todos de sede! - soluçava uma velhota. - A água tem micróbios! Ai, que vamos morrer todos de sede...

- Beba vinho, tiazinha! - respondeu-lhe um homem gordo e vermelhusco que observava tudo, encostado à porta da taberna.

- Você cale-se para aí!

- Beba vinho, que já não morre de sede! - repetiu ele.

Era um gozão, aquele homem. E raramente se deixava impressionar com o que quer que fosse. Só que, naquele dia, era mesmo o único a permanecer indiferente. Toda a gente andava por ali, desvairada. O medo pega-se! E quanto mais se discutia o assunto pelas esquinas mais o medo crescia.

- Já morreram muitos doentes...

- Não morreram nada!

- Nós é que vamos morrer...

- E de fome! Não é a água, é a hortaliça que está envenenada!

- Ai, valha-me Nossa Senhora, que ainda hoje comi uma pratada de caldo-verde...

- E não lhe dói nada? Está tão amarela...

- Amarela? Eu, amarela?

A mulher desapareceu dentro de casa, à procura de um espelho para se ver, já cambaleando como se fosse ter um chilique.

Na praça principal, entretanto, um rapazola que ninguém conhecia discursava em cima de um caixote.

- Senhoras e senhores, não há perigo... Não há perigo a não ser para os que comeram salada de alface.

- Alface comemos   todos!   - disse um homem da assistência, que se ia juntando à volta.

- Não se aflija, mesmo assim, caro senhor!

Há perigo, mas tudo, tudo, acaba por se resolver!

O rapaz gesticulava largamente e atirava a cabeça para trás, sacudindo uma melena comprida de cabelo preto e lustroso. Tinha uma voz forte e modelada, que prendia a atenção e atraía as pessoas com aquela conversa que não queria dizer nada...

- A senhora aí, por exemplo! - continuou, apontando para o meio do magote que o rodeava.

Várias mulheres julgaram logo que era com elas, e apertando as mãos ao peito, fitaram-no, ansiosas.

- A senhora, por exemplo, vê-se logo que comeu legumes mas... não se assustem, nem a senhora nem ninguém, porque...

Fez uma pausa, levantando um braço no ar. Depois inclinou-se e pegou numa criança pequena que estava ali agarrada às saias da mãe.

- Vêem esta criança? Estão a ver esta criança? Sabem por que é que eu peguei nesta criança? Ha?

Ninguém lhe respondeu. A expectativa era enorme. Por que teria ele pegado na criança?

- Eu peguei na criança porque também estive doente e curei-me! Sei que me curei! Eu tenho o remédio que cura, meus senhores e minhas senhoras!

E levantando a voz, afirmou, triunfal:

- Não há perigo, curei-me. Por isso agora posso beijar esta criança!

Num gesto teatral, cobriu a criança de beijos sonoros, apesar dos esforços desesperados que a mãe fazia para lhe arrancar a filha dos braços, à cautela. Finalmente soltou-a e continuou:

- O remédio, meus senhores, está a caminho! E quem o tomar, já não corre perigo, quer esteja doente quer esteja são...

- Ha?

O cerco cerrou-se em volta dele. Remédio para aquela doença?

- Não sei se chegará para todos, mas eu vou tentar! Com boa vontade, há-de chegar!

- Ó senhor, venda-me um frasco para o meu netinho que é a luz dos meus olhos! choramingou uma velhota. - Tenha dó! Eu pago o que for preciso!

- Eu também pago!

- Eu tenho já aqui o dinheiro!

- E eu! E eu!

- Venda-me a mim! A mim!

Na ânsia de obter o remédio, a populaça empurrava-se, acotovelava-se, tentando passar à frente.

- Não empurrem!

- Saiam da frente!

- Calma! Calma!

O rapaz fazia sinal para que serenassem, mas ninguém o ouvia.

- Está aqui o dinheiro!

- O remédio! O remédio!

Os da frente, pressionados pelos de trás, tinham arrastado o rapaz para fora do caixote, mas ele não se atrapalhou e continuou a esbracejar.

Subiu para os ombros de dois matulões e continuou:

- O remédio vem a caminho. Já telefonei ao meu irmão e ele está a chegar! Acalmem-se, que há frascos para todos!

Uma buzina insistente chamou a atenção de todos para a rua principal. Após uns segundos de hesitação, precipitaram-se em bloco para uma carrinha verde, onde outro rapaz acenava e buzinava com força.

- O salvador! O nosso salvador!

Com um salto ginasticado, o rapazola saltou dos ombros que o sustentavam para o chão e ficou de lado a ver as pessoas que agitavam notas no ar...

E o negócio teria sido muito compensador, se o miúdo ruivito não tem surgido no meio daquela bagunça, a gritar:

- Eu vi este homem a encher frasquinhos com água do chafariz...

 

Os dois aldrabões ainda tentaram agarrar o rapaz, mas ele trepou a uma árvore e continuou lá de cima:

- Eu vi! Eu vi! São mentirosos! Não é remédio!

Foi uma loucura! As pessoas viraram-se a eles, ao murro e ao pontapé.

- Morte aos aldrabões!

- Morte aos aldrabões!

- Aproveitarem-se da desgraça dos outros! Se não fugissem depressa na carrinha, ainda os linchavam ali mesmo. E quando já desapareciam na curva da estrada, foram atingidos com uma pedra que lhes estilhaçou o vidro de trás.

- Malandros!

- A enganar a gente...

- A mim não me enganaram eles... Agora afinal já ninguém acreditava...

- Que isto lhes sirva de lição! - O farmacêutico da terra tomara a palavra. - Não se deixem arrastar pelos boatos. Não ouviram o que disse a doutora? Vá, cada um para suas casas. Fervam a água. Lavem bem as hortaliças com água desinfectada com gotas de lixívia. E, se se sentirem doentes, dirijam-se logo ao hospital. Com calma! O pânico nunca ajudou ninguém.

 

- Isto é alarmante! - disse o Chico. Estavam reunidos   em casa do médico.

A avó do João tinha chegado e estava instalada numa pensão, ali perto. Deixaram-na espreitar o neto, que, muito magrinho e a arder em febre, lhe acenara de longe, quase sem forças. A senhora desde então não fazia outra coisa senão chorar. Passava os dias na sala de espera, aguardando notícias. Recusava-se a comer e só à força de muita conversa o Dr. Natércio a convencera de que era melhor alimentar-se e recolher à pensão ao fim da tarde, pois passar a noite ali sentada não tinha utilidade nenhuma.

- Ainda adoece também... - dissera.

O Pedro, o Chico e as gémeas tinham-se mudado para casa do médico. E reunidos à volta da mesa conversavam, bastante tristonhos.

- É alarmante. E o pior de tudo é não podermos fazer nada para ajudar - suspirou o Pedro.

«Trimmm...» A campainha do telefone quase os assustou. O Dr. Natércio levantou o auscultador.

- Estala?...

- Bem, obrigada. E tu?

- Sim? Não me digas!

O médico levantou-se, obviamente agitado.

- E já têm o resultado das análises?

- O quê? Tens a certeza?

- Então,   vamos encontrar a explicação! Vou tratar já, já, de fazer o inquérito. Fica descansado. Assim que souber alguma coisa, telefono-te! Até breve!

Pousou o auscultador e virou-se para eles, muito sério.

- Lembram-se de que eu lhes disse que havia noventa e seis tipos diferentes do micróbio que provoca a febre tifóide?

- Sim. E então?

- Pois um desses tipos está classificado com o nome de Ci. É dos mais raros. Foi o que apareceu aqui na vila. Tornou-se resistente aos remédios, como vocês sabem. Mandámos fazer análises em Lisboa, no Instituto Nacional de Saúde.

- Mas telefonaram a dar alguma novidade sobre o assunto?

- Telefonaram. Foi um colega meu que trabalha num hospital a 300 km daqui. Apareceram lá alguns casos e o micróbio também é Ci.

- E isso que tem?

- Temos de descobrir um contacto qualquer que explique o aparecimento da doença lá. Alguém aqui na terra deve ter lá estado. Ou alguém vendeu comidas para lá... Enfim! Tem de se fazer rapidamente um inquérito.

- Quem é que faz o inquérito? A polícia?

- Não. Quem faz estes inquéritos são os Serviços de Saúde Pública. Vou já falar com o director...

- Nós vamos consigo. Talvez queiram a nossa ajuda.

- Eu gosto imenso de fazer inquéritos disse a Luísa.

- E eu!

Mas as coisas não foram tão fáceis como o Dr. Natércio pensava. O director de Saúde Pública não estava. A enfermeira tinha partido de férias. Não havia ninguém para a substituir e, portanto, não havia ninguém que se pudesse encarregar do assunto!

Desesperado, o Dr. Natércio fartou-se de vociferar. Mas de nada lhe serviu! A rapariga era campista, tirava sempre férias naquela altura e ia geralmente de praia em praia, porque se maçava de estar sempre no mesmo lugar. Era completamente impossível localizá-la e fazê-la regressar.

- Mas que vida a minha! Eu fazia os inquéritos, mas como, se tenho tanto que fazer no hospital?

- Nós fazemos! - ofereceu-se a Teresa.

- É só dizer o quê!

- Não pode ser. Vocês não sabem! E, por outro lado, o mais certo era as pessoas não lhes responderem... A nossa intenção é boa, mas não creio que resulte!

- Tive uma ideia - disse o Pedro. - Por que é que não fala para essa terra a 300 km? Como há lá alguns casos até talvez seja mais fácil! E talvez a enfermeira de Saúde Pública não esteja de férias!

- Boa, Pedro! Como é que eu não me lembrei disso? É do cansaço...

O médico correu para o telefone. Mas foi impossível conseguir ligação para os Serviços de Saúde. O telefone estava avariado!

- Eu hoje ainda mato alguém! - berrou ele, atirando com o telefone à bruta.

- Não faça isso, olhe que estraga também este!

- Fale ao seu amigo. Ele que trate de tudo lá!

- Eu ligo. Diga lá o número - pediu a Luísa.

Assim que obteve a ligação, passou o telefone ao médico.

- Está a tocar.

Clic... Alguém atendeu, do lado de lá.

- Armando? - gritou o médico, impaciente.

- Malandro? Quem é que é malandro? perguntou uma voz fanhosa do outro lado do fio.

- Qual malandro, qual nada!

- Marmelada? Julga que estamos no Carnaval?

- Valha-me Deus! É a mãe do meu colega. É surda que nem uma porta e insiste em atender o telefone! - disse o médico para as gémeas, que lutavam com imensa vontade de rir.

- Tente mais alto ainda!

- O ARMANDO ESTÁ?

- MANDUSTÁ? O senhor quer brincar? Eu estou muito velha para brincadeiras!

E a velha, ofendidíssima, desligou-lhe o telefone na cara.

- E esta? Isto só a mim! Só a mim!

- Tenta-se mais logo! - aconselhou o Pedro.

- Uma coisa tão urgente e eu não consigo fazer nada! Vocês já viram?

- Ouça lá - disse o Chico, muito sensato.

- Eu sei que nós somos novos de mais para fazer este inquérito, e que o mais certo é as pessoas mandarem-nos à fava. Mas se nos dissesse o que devemos fazer, podíamos ir por aí e meter conversa com este e com aquele. Quem sabe se descobríamos uma pista?

- Tens razão, Chico. Não se perde nada em tentar, pois não?

Entusiasmadas, as gémeas e o Pedro chegaram-se logo, com os olhos a brilhar.

- Na pista do micróbio malvado! - gracejou a Teresa.

- Não te ponhas a brincar, que isto é muito sério.

- Eu sei! Mas não aguento mais esta tensão...

- Diga lá o que temos de fazer.

- Bom, é muito simples. Eu vou ao hospital falar com os doentes um por um. Pode ser que consiga descobrir se algum deles teve contacto com os doentes de Vila Velha de Ródão.

- E nós?

- Vocês passeiam por aí, e, sem falar em doenças, procuram averiguar a mesma coisa. Combinado?

- Combinado.

«Não vai ser fácil...», murmurou o Pedro, falando consigo mesmo.

 

Saíram os quatro a passear pela vila. Não sabiam bem o que fazer, mas tinham esperança de serem eles a descobrir uma pista. Bolas, havia de surgir oportunidade de falarem com alguém!

No entanto, deambularam pela vila imenso tempo, e as pessoas com quem se cruzavam na rua nem para eles olhavam! Cada um andava na: sua vida. Não havia também nenhum motivo plausível para interpelarem quem passava. As hipóteses de êxito começavam a parecer-lhes cada vez mais remotas.

«Só por acaso...», repetia o Pedro, baixinho.

- Isto assim não dá.

- Se nos separássemos? - propôs a Luísa.

- Para quê?

- Tínhamos mais hipóteses de não dar nas vistas.

- Naturalmente tens razão.

- E como é que fazemos?

- Olha, vai cada um para seu lado. Combinamos daqui a uma hora ir ter a um sítio qualquer...

- Por exemplo, à padaria?

- Está bem.

- Mas eu, cá por mim, acho que era mais fácil a dois e dois. Sozinha não me dá jeito meter conversa.

- Também é verdade. Vocês vão as duas por aí. O Chico vem comigo.

- Então, boa sorte!

- Boa sorte e até daqui a uma hora! Separaram-se.   As   gémeas   seguiram elo passeio, devagar.

- E agora, Luísa?

- Agora o quê?

- Para onde é que vamos?

- Sei lá!

- Se fôssemos ao café? Às vezes, pode meter-se conversa com as pessoas da mesa do lado.

- Nunca meti conversa com pessoas de outras mesas.

- Mas experimentávamos.

- Como?

- Logo se vê.

O Café Brioso era o que ficava mais perto do sítio onde estavam. ara lá se dirigiram, apressadas. Pelo vidro da montra, verificaram que havia várias mesas ocupadas, o que vinha mesmo a calhar. Assim que entraram, franziram o nariz: «Snif, snif.»

- Cheira a lixívia, não é?

- Estes já começaram com as desinfecções. Algumas mulheres conversavam, à volta de duas mesas próximas, com sacos cheios de garrafas, mercearias e frutas pousados no chão.

Noutra mesa um velho lia o jornal pacatamente, com o chapéu descaído na nuca. Um parzinho de namorados segredava a um canto e pareciam não reparar em mais ninguém.

As gémeas hesitaram, mas resolveram ocupar a mesa mais central. Como o café era pequeno, conseguiam seguir dali todas as conversas.

- E agora?

- Agora pedimos um garoto e prestamos atenção ao que estão a dizer. Apura lá o ouvido.

Embora sem combinarem, concentraram-se ambas nos sussurros emanados do cantinho onde se namorava.

- Gostas mesmo do sinalzinho que eu tenho no queixo? - perguntava ela, toda derretida. - Eu não gosto nada de ter este sinal...

- É a coisinha mais linda que vi na minha vida - respondia ele, fazendo-lhe festinhas na mão.

- Dizes isso só para eu não ficar triste...

- Por que é que és tão patetinha? - perguntou ele, inclinando-se para lhe dar um beijo.

- Ah! Que ridículos que são os namorados! - comentou a Luísa, ligeiramente corada.

- Não param de dizer idiotices! - concordou a Teresa.

O empregado aproximou-se, de bandeja na mão.

- Que desejam?

- Dois garotos claros.

- E para comer?

- Um bolo de arroz.

- E para mím... Deixe ver... Também quero um bolo de arroz.

As mulheres da mesa ao lado falavam todas ao mesmo tempo. A Teresa e a Luísa tentaram seguir o que diziam.

- Coitada da minha prima Inácia! Tem o filho no hospital!

- Lá em casa ainda não houve nada, mas até ando numa pilha de nervos...

- Isto tem sido uma coisa...

- Teresa, mete conversa! - disse a Luísa, em voz baixa.

- Como?

- Não sei.

- Vê se tens uma ideia boa, senão daqui a bocado elas vão-se embora!

A Luísa virou-se para as mulheres e arriscou:

- Tem havido muitos casos de febre tifóide aqui na vila, não tem?

Olharam todas para ela e para a irmã, colhidas de surpresa.

- As meninas não são de cá, pois não?

- Não...

- Mas são gémeas!

- Nota-se muito? - perguntou a Luísa, com um sorriso manteigueiro. Até que enfim aquela conversa, que ouviam constantemente, lhes servia para alguma coisa.

- Ah! Se nota! São duas carinhas mesmo iguais!

- Como duas gotas de água!

«Já cá faltavam as gotas de água», pensou a Teresa, mantendo no entanto um sorriso afivelado de quem anuncia pasta de dentes.

- São iguais e bem bonitinhas!

- Não diga isso, que me está a envergonhar - pediu a Luísa, baixando os olhos e fazendo-se de parvinha.

A Teresa lutava com uma vontade louca de rir, pensando:

«Afinal, temos jeito para representar...»

- Estão aqui de férias? - inquiriu uma das mulheres.

- Estamos.

- Somos de...

- Vila Velha de Ródão - interrompeu a Luísa, dando um puxão na camisola da irmã, que não se desmanchou.

- Conhecem? - aproveitou logo a Teresa.

- Vila Velha de Ródão? Não. Já ouvi falar, mas nunca lá fui.

- O meu irmão, quando veio da tropa, esteve para ir para lá perto, mas depois arranjou um emprego aqui mesmo na vila e preferiu.

- Ah!

Pelos vistos, aquela conversa não ia conduzir a nada. A Teresa ainda tentou fazer falar as outras.

- E as senhoras? Também não conhecem a nossa terra?

Ninguém conhecia. Que desânimo.

«Oxalá o Pedro e o Chico tenham mais sorte», pensou a Luísa, emborcando melancolicamente o garoto.

O Pedro e o Chico, entretanto, desesperavam-se, sentados na sala da Sociedade de Cultura e Recreio, onde um associado lhes torrava

a paciência contando histórias acerca do passado glorioso daquele clube. Histórias essas que naquele momento não podiam interessar-lhes menos.

Tinham-se dirigido ali na esperança de encontrarem o flautista, para que ele os apresentasse à família do amigo ou a outras pessoas que pudessem lançar luz sobre o assunto. Mas ele não estava lá.

No entanto, quando deram por si, já estavam na sala onde se reuniam os frequentadores daquela associação. Era uma sala ampla, com mesas de madeira pesadas. Havia um balcão ao fundo, que funcionava como bar, e onde se podiam requisitar baralhos de cartas, jogos de xadrez e damas. Do lado oposto a parede era rasgada por quatro janelas altas que davam para um varandim protegido por uma grade de ferro bastante antiga. Os únicos ornamentos eram fotografias pardacentas de homens sisudos, uma bandeira de cetim vermelho e azul com letras bordadas a fio dourado e uma vitrina cheia de trofeus de campeonatos de pesca e de xadrez, ganhos por membros do clube.

Da sala ao lado chegava o som abafado de vozes e de bolas de bilhar que chocavam durante o jogo.

À falta de melhor dirigiram-se ao bar, e perguntaram a um velhote gordo se estaria por ali o Gervásio.

E, para seu desespero, foram verdadeiramente «apanhados» por ele, que nunca mais os largou, obrigando-os a visitar todas as dependências da associação, contando pormenorizadamente histórias dos fundadores, apontando os retratos e mostrando os trofeus... Pelos vistos, aquele homem vivia tão obcecado pela colectividade, que não pensava em mais nada.

- Que seca! - suspirou o Chico, quando finalmente se viu na rua.

Mas o homem ainda lhes acenou da varanda.

- Ó amigos! Ó amigos! Levantaram a cabeça, aterrorizados.

- Não deixem de aparecer por cá na quarta-feira à noite, ha?

- Sim, sim... - balbuciou o Pedro, afastando-se rapidamente.

- Que homem tão chato! Já não o podia ouvir!

- Nunca conheci   ninguém que   gostasse tanto do seu clube!

- E não descobrimos nada. Que buxa!

- Está na hora de irmos ter com as gémeas à padaria.

Para lá se dirigiram, bastante chateados com o insucesso. Elas esperavam-nos à porta, na mesma disposição.

- Então?

- Nada!

- Nicles!

 

Zé Alberto fez-lhes imensa festa quando os viu entrar.

- Olá! Então, nunca mais apareceram! Não tinham saudades dos meus pastéis de nata e dos meus bolos de creme?

- Temos andado preocupados - disse o Pedro.

- Por causa da doença, não é?

- Claro. Também temos um amigo no hospital. Aquele mais novo, lembras-te?

- O João. Lembro, pois. Que maçada! Como não estava mais ninguém na padaria, encostaram-se ao balcão a conversar.

Zé Alberto aconselhou-os a provar umas arrufadas que ainda estavam quentinhas, e levou-os à zona de fabrico para uma espreitadela.

Era tão simpático aquele rapaz! E via-se mesmo que estava a tentar animá-los. Fazia perguntas, dava explicações sobre a arte da pastelaria... Mas como os visse continuar macambúzios, acabou por lhes falar no assunto que os preocupava.

- Estão assustados, não é? Olhem que não vale a pena. A febre tifóide passa, cura-se. Garanto-vos.

- Mas...

- Vão ver que não há problema. Eu já tive febre tifóide, aqui há uns anos, bebi água inquinada de um poço. Mas curei-me. Estou aqui forte que nem um toiro! - concluiu, dobrando o braço para exibir a musculatura. O Pedro hesitava. Devia ou não contar o que sabia sobre a ineficácia dos remédios? A população já andava tão assustada, que talvez não fosse muito conveniente. Optou por calar-se.

- E como é que te curaste? - perguntou a Luísa.

- Ora! Com antibióticos!

- Pois é, mas é que agora...

O Pedro enfiou-lhe uma arrufada pela boca dentro, abrindo os olhos numa expressão intencional.

- Vê lá se gostas desta arrufada! Está tão quentinha...

Quase sufocada, a Luísa tossiu e cuspinhou tudo à sua volta.

- Estás parvo?

- Tu é que estás! - respondeu-lhe o Pedro, arregalando ainda mais os olhos.

Zé Alberto procurou evitar a discussão e pôs-se a gozar.

- Ainda no outro dia assisti a uma cena parecida com esta. Fui fazer pastéis para um casamento e um dos convidados pregou uma partida dessas ao noivo...

- Eu ouvi tocar o sino no domingo passado. Se calhar era esse casamento, não? - perguntou o Chico.

- Não. O casamento não foi cá. Foi em Vila Velha de Ródão. Conhecem?

A reacção deles foi tão espantosa, que Zé Alberto recuou um passo, admirado.

Primeiro deixaram cair tudo ao chão, e fitaram-no, boquiabertos. Depois, o Pedro pôs-se a repetir, como um disco avariado:

- Vila Velha de Ródão? Disseste Vila Velha de Ródão?

- Sim! - respondeu ele, pensando que os amigos tinham endoidecido. O Chico avançou para ele com um olhar alucinado, lançou-lhe a mão ao pulso e ordenou:

- Já para o hospital!

- Endoideceste? Larga-me! Estes gajos são doidos!

Com efeito, assim parecia. As gémeas agarraram-se também a ele.

ESTES gajos estão doidos.    

- Vamos para o hospital! Vamos para o hospital!

O Pedro e o Chico empurraram-no com toda a força, sem nada explicar. Aos repelões, quase lhe rasgavam a roupa...

Vendo que não conseguia libertar-se, optou por deixar-se levar sem mais resistência.

- Pronto! Eu vou! Não empurrem mais!

Alguns dias depois, quando chegaram os resultados das análises feitas ao Zé Alberto, o Dr. Natércio suspirou de alívio. Finalmente, deslindava-se o mistério! Chamou-os logo numa grande euforia e toda a equipa médica os quis abraçar e felicitar. Até a directora os cumprimentou, e com um aperto de mão e um sorriso simpático!

- Pensar que ainda há poucos dias nem sabíamos para onde nos virar - disse a médica novinha que o Pedro achava muito gira.

- Isto realmente era uma grande embrulhada.

- Mas afinal era o Zé Alberto que provocava isto tudo? Ele nem estava doente...

- Ele é um dos principais responsáveis. Não tem culpa, claro, mas como é que transmitia o micróbio, se não estava doente? - insistiu a Teresa.

- Não é muito vulgar mas acontece - explicou a médica. - É assim: há pessoas que se curam do tifo, mas ficam com o bacilo no corpo. Eles estão de saúde mas podem transmitir a doença aos outros.

- Uma pessoa que não está doente mas tem o bacilo e o elimina de vez em quando, chama-se um   «portador são»   - acrescentou   o Dr. Natércio.

- Vocês deram uma ajuda dupla - continuou a médica, com um olhar carinhoso. Trouxeram os bolos de creme para análise onde se descobriu o bacilo, que com o tempo quente se multiplica rapidamente.

- E então agora o que é que há a fazer? O que é que vai acontecer ao Zé Alberto? perguntou o Chico.

- Um «portador são» tem de ser constantemente vigiado e não pode ter certas profissões, por exemplo, não pode ser cozinheiro.

- Oh, coitado, ele que sonhava ser um grande pasteleiro!

- Não te preocupes, há uma solução que se utiliza nestes casos graves para libertar a pessoa do micróbio: fazer uma operação à vesícula.

- E ele vai ser operado?

- Vai ser operado dentro de dois dias.

- E depois não há mais perigo?

- Não.

- Mas disse que ele era o principal responsável. Se ele é o principal, quem é o secundário?

- O esgoto do aviário, que despeja micróbios resistentes ao antibiótico na represa. Já mandei falar aos donos para que mudem rapidamente de rações...

- Bem, está tudo bem quando acaba bem

- comentou a directora, saindo. - Só falta o rapaz ser operado.

- O pior é que há gente teimosa que não acredita nos médicos e se recusa a ser operada. Este ao menos é um rapaz inteligente - disse a médica, sorrindo.

«Parece ainda mais bonita quando sorri», pensou o Pedro. «Faz aquelas covinhas na cara que são de perder a cabeça...»

E o Pedro olhou-a tão derretido, que o Chico começou a gozar.

- Está-me cá a parecer que o Pedro se apaixonou...

- Cala-te! - disse-lhe o Pedro, recompondo-se e corando.

E para desviar rapidamente o assunto, lembrou:

- O melhor de tudo é que os doentes começaram finalmente a melhorar com outro medicamento!

- Até parece mentira! Que alívio!

- E o João está quase a ter alta!

- Quando é que o podemos ver?

- Vocês vão vê-lo daqui a nada.

- Sim? Vamos à enfermaria?

- Não - disse o Dr. Natércio -, mas os doentes desta ala vão aparecer ali à janela, porque...

«TCHIM... TCHIMMM TCHIBOUM!» Uma música infernal não o deixou acabar a frase. Com um gesto, o médico indicou-lhes a porta. Saíram todos para o átrio, e, para seu grande espanto,   a banda marchava, tocando desvairadamente   o hino do   clube   da terra. Os músicos andavam em círculos, a uma certa distância, pois queriam alegrar os doentes mas sem incomodar os que ainda estavam pior. Especados a meio, eles, os médicos, as enfermeiras e outras pessoas olhavam, ora a banda ora a fachada do hospital, a cujas janelas, por trás das vidraças, iam assomando as cabeças dos doentes.

- Olha o João! - berrou o Pedro, emocionado.

O João, mais magrinho, ainda abatido, acenava-lhes lá de cima com as duas mãos.

O Faial ladrava e corria de um lado para o outro, dando saltos enormes, como se quisesse chegar ao pé do dono.

- Estão-me a arder os olhos... - disse a Luísa, escondendo a cara atrás do punho cerrado.

Mas não valia a pena disfarçar! Olhando em volta, verificou que quase toda a gente chorava desabaladamente. O flautista, à frente de todos, deixava correr lágrimas gordas pela cara abaixo.

Quando a música acabou, de todo o lado estalaram palmas. Os doentes associavam-se, tamborilando nos vidros. E cá em baixo toda a gente se abraçava.

- Foi um pesadelo, mas chegou ao fim comentou o Dr. Natércio.

- Que estranha que foi esta nossa aventura, ha?

- Se foi!

- Foi   uma   aventura...   alarmante,   não acham?

Este é o primeiro livro da colecção que se passa numa terra imaginada, a que demos o nome de Seixo Branco. Quando lerem a história, percebem logo por que preferimos uma terra imaginada!

Todas as informações sobre a febre tifóide estão correctas e foram-nos dadas pela Dra. Maria Vitória Vaz Pato, que é uma especialista no assunto. Sem a sua ajuda, não tinha sido possível escrever esta história. Ela mostrou o maior entusiasmo pela possibilidade de se divulgarem conhecimentos científicos, úteis a toda a gente, em livros de aventuras. E recomendou-nos que não deixássemos de lembrar aos leitores que cada um pode e deve ser responsável pela sua saúde e contribuir para que os outros o sejam também!

 

 

                                                                  Ana Maria Magalhães & Isabel Alçada

 

 

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