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- Afinal sempre viemos.
- Até custa a acreditar!
Só agora, diante da Torre Eiffel, tinham a sensação de chegar a Paris. Porque aquela rede metálica, imensa e leve, plantada no meio da cidade para surpreender, se tornara um símbolo muito forte. Basta que apareça em fotografia, desenho, filme ou postal, e toda a gente pensa: «Lá está Paris, a França»!
Vê-la de perto era bom de mais.
Pedro afastou-se dos companheiros e avançou pela plataforma muito devagarinho. Sentir que um sonho se torna realidade no momento exacto em que está a acontecer, que experiência rara! Valia a pena tentar prolongá-la.
Os seus devaneios foram interrompidos pelo Chico, que, pouco dado a reflexões, corria de um lado para o outro sem saber se preferia fixar-se nas miúdas giras que por ali andavam, nos rapazes que faziam proezas inacreditáveis em skate ou no toldo onde vendiam crepes apetitosos.
- Eh pá, isto é super! Que sorte terem-nos seleccionado para a viagem.
- Pois foi. Devia haver mais intercâmbios deste género.
- Também acho. A troca de alunos entre as escolas portuguesas e francesas é excelente. Adoro «ser trocado». Sinto-me um cromo.
Pedro riu-se. O amigo tinha cada ideia mais louca!
Aguardavam as famílias que os haviam de receber em grande expectativa. O local de encontro era aquele sítio chamado Trocadéro. Bem escolhido, por sinal.
A pouco e pouco iam chegando pessoas muito sorridentes, apresentavam-se ao professor responsável, diziam o nome do rapaz ou rapariga que vinham buscar, e pronto. Já tinham seguido quase todos.
Naquele momento avançava um casal gordinho com uma filha de aspecto tímido. Pensando que pudesse ser para eles, aproximaram-se. Mas era para o João. Tinham sido os únicos a aceitarem em casa um rapaz que trazia um cão e ainda por cima enorme.
- Que belo exemplar. Como é que se cháma? - perguntou o senhor, afagando-lhe o pêlo com à-vontade.
- Faial - disse o João, sem nunca largar a coleira, cheio de medo que reagisse à presença de estranhos.
Preocupação inútil. Faial recebera-os sem desconfiança e eles mostravam-se familiarizados com pastores-alemães.
- Já fui treinador. Se quiseres ensino-lhe umas habilidades.
Pedro e Chico entreolharam-se satisfeitos. Custava-lhes separarem-se do amigo, mas ouvindo a conversa tiveram a certeza que ficava bem entregue. No entanto, pediram o número de telefone para se poderem encontrar sempre que lhes apetecesse.
A tarde caía em tons frescos, suaves, de pintura. Hora de regresso a casa, burburinho, trânsito. Um carro preto procurava desesperadamente onde encostar, mas era difícil porque os que vinham atrás buzinavam impacientes. O condutor encolheu os ombros, deu uma guinada para a direita e travou. Lá de dentro saiu um rapaz. Pedro e Chico, verificando que trazia um papel com o nome deles, apresentaram-se.
- Temos que ir já embora porque o meu pai não consegue estacionar.
Pedro olhou em volta, aflitíssimo. Impossível desandar sem mais nem menos.
- A... o professor foi tomar um café e disse-nos para ficarmos à espera.
- Bom, nesse caso posso pedir-lhe que dê uma volta. Ou que procure lugar mais adiante. Ou melhor, que siga para casa e nós vamos a pé.
Sem esperar resposta, correu a resolver o assunto e voltou muito prazenteiro.
- Chamo-me Maxime. Sou filho único e vivo aqui perto. Quando chegou a lista de viajantes, fui o primeiro a escolher. Em vez de convidar só um, achei mais divertido convidar dois.
- Ainda bem. Gostamos imenso de ficar juntos.
- O tal professor, demora muito? Porque se demora, podemos esperar ou então ir procurá-lo no café. Se calhar não sabem onde está mas eu conheço a zona muito bem...
Pelos vistos aquela maneira de falar era um estilo. Maxime punha uma questão e apresentava logo várias hipóteses para a resolver.
«Tem alma de cientista», pensou o Pedro.
- Olha o nosso professor! Está a atravessar a passagem de peões.
- Ah! Vem acompanhado por duas raparigas iguaizinhas. Ou sou eu que estou a ver a dobrar?
- São gémeas - disse o Chico. - Sensacionais. Chamam-se Teresa e Luísa.
- É engraçado porque ninguém as distingue. Andamos sempre em grupo, sabemos que têm uma pequena diferença e não conseguimos descobrir qual é.
Maxime ficou a observá-las com interesse. Traziam um cão pequenino ao colo.
- À primeira vista diria que fazem desporto.
- Acertaste. Praticam vólei.
O contacto com o novo amigo não podia estar a correr melhor. Todos tinham a sensação de que já se conheciam há muito, por isso não estranharam quando ele interpelou as gémeas dizendo que só lamentava não ter sabido que faziam parte do mesmo grupo, senão em vez de dois, convidaria quatro.
- Espaço não falta. Claro que não há quartos para tanta gente. Mas podiam dormir no sofá. Ou então punham-se colchões pelo corredor.
Embalado com os seus projectos, continuou:
- O cão também não era problema. Eu sempre quis ter um mas a minha mãe nunca deixou. Agora por pouco tempo, conseguia convencê-la. Dizia-lhe que uma família não está completa sem a experiência de cuidar de um animal, ou que ando cheio de complexos por nunca ter tido um bicho de estimação, que um caniche dá sorte, sei lá! Argumentos não faltam.
Teresa e Luísa trocaram um olhar rápido como quem diz: «Que tipo engraçado. Pena não irmos para casa dele.» E na cabeça de ambas esboçou-se um plano. Como a decisão de levarem o Caracol tinha sido tomada à última hora, receavam ser mal recebidas por causa disso. Assim, se necessário, mandavam-no com os rapazes.
Já se dispunham a falar no assunto quando viram surgir no passeio uma mulher invulgar. Muito alta, loira, de calças justas, túnica roxa e saltos altíssimos, deslocava-se como quem flutua no espaço.
Não percebiam bem se tinha os olhos semicerrados, se era míope ou se o efeito resultava da sombra azul e verde nas pálpebras.
Sem hesitar, dirigiu-se ao grupo e quando falou, fê-lo numa voz quente, misteriosa.
- Desculpem a demora, está um trânsito infernal. - Depois olhou para as gémeas com simpatia e, embora nunca as tivesse visto antes, Htratou-as pelo nome. - Estava ansiosa por conhecer as minhas companheiras.
Num gesto ondulante, inclinou-se para pegar no cão e exclamou:
- Também vou gostar muito do Caracol. E ele vai adorar a Elise, não é verdade?
Que pessoa estranha! Disfarçadamente, tentaram perceber por que os perturbava tanto. Seria a voz? A maneira de se mexer? A túnica roxa? Os caracóis enrolados no alto da cabeça, presos numa espécie de flor, roxa também? Ou todo o fascínio residia na expressão esquisita de quem olha as coisas próximas como se as visse ao longe?
Entretanto o professor remexia nos papéis. Já tinha lido e relido várias vezes a lista completa, sem encontrar nenhuma Elise.
- A senhora desculpe - gaguejou por fim.
- Deve haver um engano.
Ela encarou-o com um vago sorriso nos lábios.
- Não se aflija. O que parece muito complicado tem a explicação mais simples do mundo.
Dito isto, calou-se.
O Sol já se tinha posto, a escuridão ia envoivendo a cidade, levantara-se uma brisa fresca das bandas do rio. Queriam dizer qualquer coisa, resolver o assunto, ir embora, mas não conseguiam tomar iniciativas, como se estivessem prisioneiros de uma força invisível. Até o professor parecia perturbado. Mesmo assim insistiu:
- As indicações que trago são para entregar as gémeas à família Simon, que tem uma filha Clarisse.
- Precisamente. Sou a tia de Clarisse, que está doente. Para evitar o contágio, ficam em minha casa até ela melhorar.
A partir daí a conversa tornou-se banal. Elise apresentou os documentos de identificação, despediu-se e foi-se embora levando as gémeas.
Os rapazes seguiram caminho com um certo desconforto interior. Alguma coisa não batia certo. Mas o quê?
Transpunham a entrada do prédio quando Pedro estacou.
- Já sei!
Os outros aguardaram em suspenso.
- Fizemos mal em deixar ir as gémeas com aquela mulher.
- Porquê?
- Ela provou ser tia da tal Clarisse.
- Pois é. Mas nesta história há um pormenor inquietante.
- Qual?
- As pessoas que deviam receber as gémeas não sabiam que elas traziam um cão. Nós até achámos disparate. Lembras-te, Chico?
- Lembro-me muito bem.
- Então agora explica-me como é que ela não ficou surpreendida, não perguntou nada e até lhe chamou Caracol?
Se a pergunta era desconcertante, as ideias que atravessaram o espírito de Maxime ainda eram muito mais. Talvez Elise soubesse ler o pensamento. E se fizesse parte daquelas organizações tenebrosas que às vezes aparecem nos filmes? Essa gente não tem dificuldade nenhuma em obter documentos falsos, informações a respeito das pessoas. E fazem raptos para pedir resgate. Também já tinha lido numa revista que em certos países longínquos se vendem raparigas, de preferência muito novas e louras...
Elise criava à sua volta uma atmosfera enigmática. As gémeas seguiam-na vagamente apreensivas, embora não soubessem dizer porquê. Quando entraram em casa foi a surpresa total. O ambiente não condizia com a dona!
As salas eram enormes, tinham paredes pintadas de amarelo muito clarinho, reposteiros do mesmo tom, e quase não havia móveis, só uma cómoda de madeira antiga com ferragens de bronze impunha a sua presença entre duas janelas. Ao fundo, numa lareira de pedra branca, amontoavam-se restos de papéis semiqueimados em montículos de cinza.
Não devia viver ali mais ninguém, pois estava tudo às escuras e o único barulho vinha da rua, abafado pelas vidraças duplas.
- É uma hora bonita, não é? - perguntou Elise com aquela voz quente e grave que perturbava as pessoas.
Nenhuma delas soube o que responder. Verdade se diga que nem perceberam muito bem a que se referia. Hora bonita?
- Na penumbra as coisas esbatem-se, ganham outros contornos, envolvem-se, encaixam com tanta harmonia que só vemos o que é essencial...
Luísa deu uma cotovelada discreta na irmã, que lhe respondeu encolhendo os ombros. Não precisavam de luz para saber que tinham a perplexidade estampada no rosto. A mulher seria doida? Pelo menos lunática era de certeza. Por que raio não acendia o candeeiro?
Bastante confusas, não se atreveram a pousar os sacos de viagem no meio do chão e atravessaram a sala em bicos de pés, como se tivessem medo de dar um passo em falso.
- Antes do mais sentem-se e descansem um pouco.
Sentar? Mas onde?
Nesse momento o interruptor fez «clic» e viram então dois sofás que, sendo exactamente da cor da parede, no escuro desapareciam.
Embaraçadas, continuaram de pé, com o saco ao ombro e um sorriso meio tolo.
- É sempre difícil integrarmo-nos em casa alheia! - exclamou Elise, agora num tom perfeitamente vulgar. - Mas daqui a pouco vão ver que se sentem muito bem.
Pousou o Caracol no chão, começou a abrir portas, acendendo as luzes todas pelo caminho.
- Ficam neste quarto que tem duas camas. Deixem aí os sacos e venham comigo.
De passagem por uma saleta forrada a papel, ligou a televisão. Estava a dar uma série policial que já conheciam, e isso de certo modo ajudou-as a descontraírem-se. No écran circulavam caras conhecidas e quase podiam adivinhar a proeza seguinte. Lá ia o carro a grande velocidade, depois saía pela berma da estrada, aterrando de rodas para o ar, sem que o condutor sofresse o mínimo dano, pois na janela aparecia imediatamente a manga dejean desbotado, a cara, o corpo esgueirando-se com agilidade para continuar a fuga correndo pelo matagal... enfim, tal como em casa.
Elise deixara-se de enigmas e falava alegremente de coisas normais. Mostrou a despensa, explicou como funcionava o fogão, o esquentador, deu ordem para mexerem à vontade no frigorífico, garantindo que as queria receber como grandes amigas e nunca como visitas de cêrimónia.
- Podem pôr discos, ligar a televisão ou o rádio, petiscar sempre que lhes apetecer. Agora suponho que querem arrumar a roupa. Há várias gavetas livres e espaço suficiente no armário.
A ideia sorriu-lhes. Com certeza a senhora não ia ficar a vê-las dobrar camisolas e portanto podiam trocar impressões.
De facto, Elise deixou-as dizendo:
- Instalem-se que eu já volto.
Teresa ia a entrar quando viu que tinha pela frente a sua figura reproduzida mil vezes, porque havia espelhos por todo o lado, inclusive na porta do quarto. Fazendo-a mover, conseguia captar a própria imagem e vários recantos da casa.
- Olha que giro, Luísa! Anda cá. Entretida à procura de umas cassetes que tinha levado na bagagem, ela não ligou importância.
- Espera, já vou...
A irmã continuava a explorar os efeitos do jogo de espelhos. Num certo ângulo apanhava um grande quadro a óleo com prateleiras à volta.
«Que sítio mais estranho para guardar livros», pensou. «Numa casa com tantas divisões não valia a pena fazer uma estante no topo do corredor.» Tentou ler os títulos das lombadas.
- Demasiado longe, não consigo.
- Estás a falar sozinha?
- Estou. Tu não queres falar comigo. Por que é que não deixas isso para depois?
- Não posso. Irrita-me não encontrar as cassetes. Tenho a certeza que as enfiei aqui dentro...
Ajoelhada no chão, Luísa ia-se rodeando de sapatos de ténis, camisolas, rolos de fotografias, duas escovas de cabelo, meias, tudo a monte.
- Que maçada. Vem-me ajudar!
Antes de atender o pedido, Teresa deitou uma última mirada aos espelhos e ficou atónita. Elise acabava de empurrar o quadro a óleo para dentro da parede, passara-se para o lado de lá e tudo voltou ao seu lugar em poucos segundos!
- Luísa... - gaguejou -, esta casa... a ...tem uma passagem secreta!
- Ha?
- A Elise entrou pela parede.
- Que disparate!
- Juro! Anda cá ver.
Absolutamente incrédula, deixou finalmente a pilha de roupa e objectos que retirara do saco e foi ter com a irmã. Esta apontou-lhe o quadro.
- Foi por ali que ela desapareceu.
- Não acredito. Estás a inventar.
- Inventar? Para que é que eu ia inventar uma estupidez dessas? - respondeu abespinhada. - Já não acreditas em mim?
- Acredito. Mas hás-de concordar que isso parece mentira.
- Só que é verdade. Vi no jogo de espelhos! Para explicar melhor o processo, pôs-se a abanar a porta, fazendo dançar as imagens a uma velocidade razoável.
- Já percebi o que aconteceu. Este jogo cria ilusões de óptica. Ela entrou por uma porta qualquer e pareceu-te que era por ali.
- Nem penses. Tenho a certeza absoluta que não foi ilusão.
- Deixa-te de coisas!
- Garanto-te...
- Oh! Vou chamá-la...
O nervosismo de Teresa comunicara-se à gémea e apetecia-lhes gritar em altos berros: «ELISE! ELISE!»
Mas tiveram vergonha e dominaram-se. À medida que percorriam os compartimentos iam dizendo baixinho: «Elise! Elise!» Ninguém lhes
respondeu.
Especadas no meio do corredor, sentiram um calafrio. O silêncio tornara-se pesado e o medo impedia-as de afastar as ideias terríveis que lhes vinham à cabeça. Quem era Aquela mulher afinal? Seria mesmo tia da Clarisse? Nesse caso por que não telefonara à sobrinha a dizer que tinham chegado bem? E onde se metera? Por que raio as deixava para ali sozinhas?
Se formulassem tais pensamentos em voz alta o mais certo era entrarem em pânico! Pareceu-lhes preferível não dizerem nada uma à outra e distraírem-se com elementos do exterior. Fixaram-se então nas fotografias que havia na casa. E havia muitas! Engraçado, porque todas representavam mulheres. Velhas, novas, gordas, magras, com trajes de épocas diferentes e penteados a condizer. Mas sempre loiras, de traços semelhantes. Lembravam Elise.
Ao analisarem as feições de cada senhora em pormenor, foi como se o fluxo do olhar se tivesse invertido. Pobres gémeas! Sentiram-se observadas por mil pares de olhos, todos iguais!
Só não perderam o controlo porque nesse momento apareceu o Caracol a dar ao rabo.
- Caracoll
- Ó meu Caracolinhol
Não podia protegê-las mas era um velho amigo. Bastara a sua presença para que se refizessem do susto e resolvessem agir. Pé ante pé, dirigiram-se ao quadro misterioso, onde duas figuras femininas vestidas de branco se esfumavam num areal infinito.
- Empurro? - perguntou a Luísa em surdina.
- Empurra. Ela disse que podíamos fazer o que nos apetecesse.
Primeiro só com dois dedos, depois com a palma da mão, em seguida com o ombro, tentaram forçar a entrada, se é que aquilo era uma entrada!
O quadro não se mexeu um milímetro.
Encostaram então a cabeça na tela com muito cuidado e suspenderam a respiração. Do lado de lá não se ouvia ruído algum!
No dia seguinte os rapazes dirigiram-se ao liceu do bairro. Fazia parte do programa assistirem a algumas aulas e participarem em actividades escolares. Se não estivessem tão inquietos por causa das gémeas, teriam apreciado melhor Aquela bonita zona de Paris. Os prédios eram em pedra bege e muitos tinham jardim protegido por gradeamento de ferro. As lojas, geralmente pequenas, exibiam montras arranjadas com requinte e cuidado. Nos cafés houve uma coisa que lhes chamou a atenção: as cadeiras. De modelo antigo, cobertas de verga ou palhinha, tão frágeis como graciosas.
Habituados a uma escola com vários pavilhões independentes espalhados numa colina sobre o Tejo, passaram em frente do Liceu Molière sem abrandar o passo. Maxime chamou-os:
- O liceu é aqui!
- Aqui? Encaixado no meio dos prédios?
- Sim. Por que não?
Eles riram-se. De facto podem-se dar aulas em qualquer tipo de edifício!
Integraram-se no grupo de rapazes e raparigs que avançava pelo passeio com livros debaixo do braço ou mochilas às costas, transpuseram a entrada e ficaram encantados. Aquela escola era solene, monumental, mas ao mesmo tempo alegre. A construção crescera à volta de um pátio enorme, ajardinado, com árvores e campos de jogos. Pelas paredes subiam trepadeiras farfalhudas e as arcadas em tijolo criavam uma atmosfera tão acolhedora que Pedro exclamou:
- Não sei porquê tenho a sensação que já estive num sítio parecido com este!
- Talvez seja por causa das trepadeiras disse Maxime. - Se calhar costumas passar férias numa casa com este tipo de plantas. Ou então já visitaste algum convento do género.
- Isto é um convento?
- Foi, em tempos.
- Ah!
Um pouco desviado, Chico observava os grupos que circulavam conversando. Havia representantes de várias nacionalidades.
«Miúdas giras com fartura», pensou. «Vou gostar imenso de assistir às aulas!»
- Está na hora, temos de ir.
- Hum... preferia esperar pelas gémeas. Estou preocupado.
- Também eu, mas não podemos chegar tarde...
- Por que será que se atrasaram?
- Acham que aconteceu alguma coisa?
- Talvez não - disse Maxime para os sossegar -, lembrem-se que não ficaram onde estava previsto. Se calhar a casa da tia da Clarisse é longe e a esta hora há muito trânsito.
Contrafeitos, seguiram-no através do pátio e quando já entravam na sala, que alívio! Teresa e Luísa apareceram esbaforidas. Não foi possível conversarem logo ali mas puderam verificar que estavam inteirinhas, bem-dispostas e obviamente ansiosas por contar qualquer coisa.
Por muito que lhes custasse, não tinham outro remédio senão esperar. No intervalo seguinte falariam.
Claro que a impaciência não ajudou. Gaguejaram bastante quando se apresentaram, o que os deixou frustrados porque queriam causar boa impressão e assim receavam que os classificassem de patetas. Também não conseguiram participar no debate, apesar de estarem dentro do assunto. Pedro mordia os lábios com fúria, recriminando-se:
- Já fiz tantos trabalhos sobre a defesa dos animais em extinção e agora não me ocorre nenhuma frase inteligente para dizer. Bolas!
Remetido ao papel de espectador, decidiu tentar adivinhar como seriam os novos colegas. Maxime já não constituía motivo de espanto. Ora fazia perguntas ora dava respostas em catadupa. Se a professora não o moderasse, a aula ficava só para ele! Quanto aos outros, havia quem seguisse o tema com atenção e quem fingisse que o fazia. A certa altura passou um bilhetinho discreto por baixo da mesa.
«As aulas são iguais em toda a parte do mundo!», pensou.
Divertido com as conclusões, concentrou-se no parceiro do lado, que tomava apontamentos frenéticos como se estivesse a acabar um trabalho urgentíssimo. Só que as frases não tinham nexo. De vez em quando abria no colo um papel onde fazia sinais com a ponta da esferográfica. Que seria aquilo? Um jogo? Sem dar nas vistas conseguiu aproximar-se um pouco, e se estava admirado, mais admirado ficou. O papel era uma planta de Paris onde ele assinalara diversas zonas a vermelho.
«Seja o que for que está a fazer, é pouco provável que se relacione com a defesa dos animais em extinção...»
Na capa do dossier leu o nome dele: Bento.
Quando a aula chegou ao fim não pensou mais no rapaz nem nas suas actividades clandestinas. Correu à procura das gémeas, que também já lá vinham em ânsias. Juntaram-se num canto do pátio e, antes que tivessem oportunidade de fazer perguntas, elas desataram a falar tipo «metralhadoras».
- Vocês sabem lá onde nos fomos meter!
- Que casa!
- Quando entrámos nem se via a casa...
- Quer dizer, a casa via-se, não se viam era as coisas, os sofás estavam camuflados!
Os rapazes bem queriam interrompê-las mas sem qualquer êxito. Já falavam as duas ao mêsmo tempo e cada vez mais alto para se fazerem ouvir.
- Quando ficámos sozinhas tive tanto medo!
- E eu? Parecia um filme de terror, com haquelas mulheres todas a olharem para nós!
Depois da última frase, dita quase aos gritos, verificaram que se tinham tornado o centro das atenções. Estava tudo pasmado a ouvir a conversa! Coradas até à raiz dos cabelos, embucharam. Eles também ficaram envergonhadíssimos. Maxime, mais à vontade naquele espaço, puxou-os para um canto e Pedro repetiu o que já lhes dissera mil vezes na vida:
- Olhem lá, se começassem pelo princípio? Luísa tomou a palavra. Mais calma e serena, conseguiu fazer um relato inteligível e até expressivo. Falou no comportamento desconcertante de Elise, que tão depressa assumia ares misteriosos como aparentava ser a pessoa mais vulgar deste mundo, descreveu a casa e terminou dizendo:
- No fundo adorámos, percebem? Vivemos ali momentos fantásticos do género «quente-frio». Saltávamos de um grande susto para um bem-estar incrível.
Teresa interrompeu-a:
- O pior de tudo foi quando ela entrou pela parede!
Estupefactos, os amigos largaram à gargalhada.
- Entrou pela parede? Ha! Ha! Ha!
- Vocês estão «contaminadas pelos tons amarelos»... enlouqueceram de vez.
- Ou resolveram gozar-nos.
- Bom - disse a Teresa. - Eu estava a vê-la reflectida num jogo de espelhos. Se calhar foi ilusão de óptica, mas parecia mesmo, juro.
- Apanhámos cá um susto!
- Enfiámo-nos no quarto a tremer como varas verdes.
- E depois?
- Depois ela apareceu como se não fosse nada. Explicou que tinha ido à rua procurar biscoitos especiais para o cão.
- E aconteceu mais alguma coisa?
- Não. Jantámos lindamente, vimos televisão, conversámos imenso.
- Para dizer a verdade eu gosto de lá estar, mas há qualquer coisa de estranho.
- O quê?
- Não sei, mas hei-de descobrir. Chico interveio:
- Nós também tínhamos ficado inquietos. Aquele aspecto exótico, o facto de saber o nome do Caracol...
- Oh! Isso não tem mistério nenhum. Quando começámos a corresponder-nos com Clarisse, contámos logo que tínhamos um cão pequenino e mandámos a fotografia. Por isso até pensámos que não fazia mal trazê-lo de surpresa...
- Olhem lá - sugeriu Maxime. - Vocês podiam perguntar às colegas da Clarisse se alguém conhece esta tia.
- Não foi preciso perguntar porque o professor falou no assunto e a melhor amiga dela conhece muito bem a Elise, acha-a sensacional!
- Não te pareceu que até a quer imitar um bocadinho? - disse a Luísa com um sorriso meio trocista. - Também diz assim umas frases...
Com alívio visível, os rapazes consideraram o assunto arrumado.
- Ainda bem. Trata-se portanto apenas de uma senhora extravagante. O resto, é pura imaginação.
As gémeas torceram o nariz. Quanto mais os amigos se esforçavam por lhes provar que não havia nada de extraordinário na casa, mais elas insistiam em referir pormenores eventualmente suspeitos.
Quase a perder a paciência, Pedro rematou dizendo:
- Já vi paredes pintadas de todas as cores possíveis, conheço imensa gente que tem em casa montes de retratos, e sendo da família é natural que se pareçam, não?
- E por que é que só tem fotografias de mulheres?
- Sei lá! Se calhar dividiu assim com a irmã em partilhas. Uma ficou com as mulheres, outra com os homens!
A ideia era tola mas fê-los rir. Chico tentou mudar o rumo da conversa:
- Onde é a casa? Fica longe?
- Um pouco. Mas é numa praça muito bonita, a Praça dos Vosgos.
O burburinho dos estudantes diminuiu de intensidade no momento em que apareceram dois homens altos, distintos, com fato escuro e gravata. Toda a gente se afastou para os deixar passar.
- Quem são? - perguntou a Luísa.
- O director e o adjunto.
- Parecem ministros...
Maxime olhou-a sem perceber e ela também não soube explicar por que dissera aquilo. Claro que, se pensasse um bocadinho, concluía dever-se a resposta a uma experiência diferente. Nas escolas portuguesas não há director, os professores encarregados da direcção são vários, em nada se distinguem dos outros, raramente usam gravata e sobretudo nunca provocam semelhante efeito nos alunos.
- A escola francesa é mais solene - balbuciou Pedro, a quem tinham ocorrido ideias semelhantes.
- Olhem, estão a chamar-nos. Agora não há aula, há teatro.
Naquele liceu os alunos podiam escolher área de teatro e dispunham de um teatrinho com palco, cadeiras, sistema de iluminação, cenários, camarins, guarda-roupa e até piano. Ali decorriam as aulas mais deliciosas, ensaios e por vezes espectáculos. De momento preparavam-se para participar num festival, e quando lhes pediram que deixassem os visitantes assistir a um ensaio aceitaram com entusiasmo, pois os actores, por definição, gostam de público!
O público foi portanto muito bem recebido. Enquanto iam entrando para se sentarem nos lugares marcados, um jovem pianista tocava músicas que todos conheciam e duas raparigas, muito bonitas por sinal, distribuíam o programa. Aos visitantes entregaram também um crachat com o símbolo do liceu, que não podia ser outro senão a cabeça do próprio Molière (’), de caracóis até aos ombros.
Antes de começar o espectáculo, o director fez um pequeno discurso de boas-vindas, desejou-lhes uma alegre estada, depois retirou-se.
As luzes diminuíram, a música cessou e ouviram-se as pancadas tradicionais na madeira. A cortina foi-se enrugando devagarinho e ficou à mostra um amor de cenário. Não conheciam a peça mas já apetecia imenso vê-la. Focos de luz iluminavam certas zonas, deixando o resto da cena na penumbra. O ambiente tinha algo de indefinível, uma certa magia que levou as gémeas a reviverem os primeiros momentos passados em casa de Elise. Evocaram a sala amarela, os objectos que apareciam e desapareciam conforme a iluminação, as figuras femininas vestidas de branco, o jogo de espelhos... e de repente perceberam o que lhes lembrava: um palco. Não podia deixar de ter bastidores, sítios escondidos, mistérios para desvendar.
Tal como na véspera, sentiram um calafrio mas de natureza diferente. O medo fora substituído por muita curiosidade e excitação.
No estrado movia-se um «génio da floresta» de corpo franzino e grandes barbas postiças que dava saltos, guinchos, gargalhadas roucas, numa actuação espectacular. Pedro reconheceu-o e ficou pasmado. Era o Bento! Teria feito comentários se a assistência não seguisse o desenrolar da história num silêncio absoluto. Só quando a peça terminou explodiram palmas e gritos:
- Bravo! Bravo!
No meio dos outros, Bento agradecia com um sorriso de satisfação.
Orgulhoso do colega, Maxime explicou:
- Sabem que foi escolhido entre cem candidatos? As aulas de teatro são para os mais velhos, só que desta vez, como precisavam de alguém mais pequeno para aquele papel, fizeram testes. O Bento ganhou!
- Não admira. Tem tanto jeito!
- Talvez isto seja o início de uma carreira, porque a peça vai ser apresentada no Festival de Teatro de Nancy.
- Quando?
- Dentro de poucos dias, não sei ao certo a data. Nós vamos assistir, faz parte do programa que se preparou para vos receber.
As gémeas entusiasmaram-se com a ideia.
- Que bom!
- Apetece-me imenso.
Ouvindo-as, uma professora aproximou-se.
- Então? Gostaram?
- Adorámos.
- Este Bento é formidável - disse o Chico.
- Vais ter oportunidade de o conhecer melhor hoje à tarde. Depois do almoço está prevista uma visita à cidade e ele é um dos guias.
- Ainda bem.
- Subimos à Torre Eiffel?
- Claro. Isso é obrigatório. Depois seguem para o Museu de Orsay...
Chico bem queria disfarçar mas não foi capaz. Não gostava nada de ir a museus. Quando era pequeno até tinha medo daqueles quadros antigos pintados a óleo. Achava as caras demasiado sérias, muito severas. Faziam-no sentir-se pouco à vontade, como se tivessem adivinhado todas as asneiras que fizera na vida. Havia também cenas de guerra cheias de mortos, feridos, cavalos resvalando pela ribanceira com a boca aberta e as narinas dilatadas de aflição, que lhe causavam repulsa.
Agora já não tinha medo, mas a sensação de estranheza persistia. Museus? Ba!
Habituada a ler na fisionomia dos alunos, a professora não teve dúvida quanto aos sentimentos do Chico.
- Eu sei, eu sei! Muitas obras de arte e todas juntas podem gerar confusão. É preciso fazer um trabalho prévio, foi pena não termos tempo. - Dir-se-ia que lhe captara os pensamentos, pois acrescentou: - Gosta-se mais de um quadro quando se sabe alguma coisa a respeito do autor, da época, porque cada pincelada traduz o génio do artista e o mundo a que pertenceu.
Ele sorriu-lhe, quase embaraçado.
- Bom, de qualquer forma acho que vale a pena. Sabes que o edifício era uma estação de comboios?
- Ah sim?
- Sim. Tão bonita e luxuosa que funcionava como uma espécie de sala de visitas. Se um rei estrangeiro visitava a França, arranjava-se maneira de ele tomar a linha que parava ali, de modo que as primeiras impressões a respeito do país eram logo muito boas. Ao menos repara no edifício, está bem?
«Esta mulher deve ser boa professora», pensaram as gémeas, a quem já apetecia ir ver o tal museu para compararem o antes e o depois. Teriam mantido os carris de ferro? Provavelmente não. As paredes é que sim. E o relógio. Há sempre relógios nas estações de comboio. E as bilheteiras, salas de espera, depósitos de bagagem, ter-se-iam transformado em quê?
Por azar o programa delas era outro.
- Que pena!
- Ainda por cima temos que nos separar! Só se consolaram quando viram o guia. Chamava-se Bruno, trazia uma câmara de vídeo ao ombro, e que grande borracho!
- Eu também sou português mas nasci em França - explicou, olhando-as de uma forma tão insinuante que, para variar, lamentaram ser iguais. Gostariam de saber qual das duas é que o Bruno preferia...
Afastaram-se com ele sem oferecer resistência nenhuma.
Quem não se mostrava muito contente no meio daquilo tudo era o Bento. Tentou convencer a professora a dispensá-lo. Ela mostrou-se implacável:
- Não é costume faltar aos compromissos, Bento. Depois do almoço acompanhas os teus colegas conforme ficou decidido.
O tom firme, seguro, não deu lugar a réplicas. De olhos baixos, o rapaz prometeu comparecer à hora marcada e desandou.
- Não percebo o que se passa - disse Maxime. - Anda tão esquisito! Vocês podem não acreditar mas ele é muito simpático. De há uns dias para cá não fala a ninguém e só diz disparates na aula.
Como a professora já se tinha afastado, Pedro pôde comentar o que vira:
- Esteve a fazer sinais numa planta de Paris? Tens a certeza?
- Absoluta. Fiquei ao lado dele.
- Se calhar o êxito no teatro deu-lhe volta ao miolo.
- Hum... não me parece que seja isso. Acho-o triste, preocupado. Deve andar com qualquer problema.
- Talvez anime durante o passeio. Chico não podia adivinhar, mas o passeio ia ser animadíssimo...
Bento não faltou à palavra. Apareceu, mas vinha tão disfarçado que nem o reconheceram. Empastara o cabelo em gel escuro, de modo que não parecia loiro, parecia moreno. Por cima da camisola trazia um blusão que talvez fosse do pai ou da mãe, mas dele é que não era de certeza. E completara a toilette com óculos escuros e cachecol de lã grossa.
- Estás doente? - perguntou Maxime admirado.
- Dói-me um bocadinho a garganta.
- Um bocadinho? Olhando para ti dir-se-ia que estás com quarenta de febre.
- A febre das estrelas - comentou o Chico entredentes. - Quem sobe ao palco uma vez fica com necessidade de dar nas vistas.
Pedro fez um trejeito de dúvida. Aquela indumentária tanto podia destinar-se a chamar a atenção como a tentar passar despercebido. De cachecol enrolado por cima da boca e óculos escuros, só deixava à mostra a ponta do nariz!
- Vamos a pé - propôs Maxime. - A Torre Eiffel não fica longe e aproveitam para ver a zona.
Bento não fez comentários e seguiu-os cabisbaixo.
Àquela hora estavam as gémeas diante do monumento que lhes coubera em sorte. Curiosamente, tiveram a sensação que lhe faltava a fachada, porque em vez da parede com portas e janelas exibia uma superfície coberta de andaimes e tubos em vidro e metal.
- Não nos tinham dito que ainda está em construção!
Bruno riu-se, divertido.
- É mesmo assim. Moderníssimo, não acham? Chama-se Centro Pompidou.
- Moderno não pode ser mais!
Olhando com atenção, verificaram que as pessoas deslizavam pelo tubo maior, no interior do qual havia uma escada rolante.
- Que giro!
- Parece um brinquedo.
Talvez por isso, cá fora gerava-se um ambiente de grande brincadeira. Havia rapazes novos com a cara pintada de branco a fingir que eram estátuas, grupos a tocar batuque, outros a dançar rock, palhaços e vários pintores a desenhar no chão.
Os turistas deliravam! Tiravam centenas de fotografias e incentivavam o espectáculo de rua atirando moedas para a caixa dos artistas.
- Avancem para a entrada que quero filmá-las.
Teresa e Luísa afastaram-se fazendo trejeitos semicómicos e aproveitaram a distância para trocarem impressões quase sem mexer os lábios.
- Acho que podias desistir e deixares-me ser eu a gostar dele. Há imenso tempo que não tenho um namorado.
- Ora essa! Nem eu!
- Vá lá, não sejas chata.
- Até posso concordar, mas não estás a considerar uma hipótese...
- Qual?
- É que talvez ele goste mais de mim.
- Não me parece. No metro veio sempre ao meu lado.
- Pudera! Naqueles apertos cada um fica onde calha.
- Tenho quase a certezinha absoluta que fez de propósito.
Pouco disposta a desistir, Teresa lembrou-se de outra solução.
- Se ele não gostar de nenhuma podemos apaixonar-nos as duas ao mesmo tempo. Fica a ser o nosso amor impossível.
A proposta soou lógica. Aliás, junto daquele edifício todas as loucuras pareciam aceitáveis. Por que não um amor partilhado sem conflitos?
Bruno terminara as filmagens e juntou-se às gémeas dizendo:
- Começamos pelas exposições temporárias do rés-do-chão.
Lá dentro esperava-os uma surpresa bem agradável. Os organizadores tinham dado grande destaque a uma exposição de trabalhos em cristal cujo autor era português: Pedro Veloso. Junto das peças havia um cartaz com notas biográficas explicando que o artista pertencia a uma família de artesãos do vidro.
- Dá gosto ver coisas tão bonitas feitas por um compatriota. Isto pede reportagem!
As gémeas debruçaram-se sobre frascos, jarras, objectos sem utilidade aparente, maravilhando-se com as formas elegantes e explosivas que o tal Pedro obtinha daquela matéria delicada. Bruno pôs-se a filmar com volúpia. Desde que tinha a câmara, o vídeo tornara-se a sua segunda natureza.
Furioso, um empregado interrompeu:
- Não sabe que é proibido tirar fotografias ou filmar?
- Desculpe. Não sabia.
Por sorte não lhe tirou a cassete e ele pôde oferecê-la às gémeas de recordação.
- Guardo eu - disse uma.
- Não. Dá cá - pedia a outra.
- Ó meninas, que entusiasmo...
Entusiasmadíssimo estava também o Chico no Museu de Orsay. Seguira o conselho da professora e correra o edifício de alto a baixo ignorando as obras de arte. O que ele queria era ver a estação! E não encontrava palavras para descrever tanto luxo. Apetecia-lhe ter poderes mágicos para fazer desaparecer tudo o que foi acrescentado depois e assistir à chegada de um comboio. De preferência antigo, ruidoso, a fumegar. E um rei de grandes bigodes loiros, à janela, mudo de espanto.
- Eh pá! Deixa-te agora de comboios insistia o Pedro. - Que diabo, não és capaz de apreciar um museu?
- Não. Não gosto.
Embora contrafeito, acabou por seguir os amigos e a certa altura estacou diante de um quadro magnífico. A tela apresentava um grupo sentado ao ar livre. Os homens estavam vestidos e as mulheres nuas ou seminuas. E tinha o nome de Almoço na Relva.
- Ora aqui está a época em que eu gostava de ter vivido.
- Porquê?
- Porque os passeios ao campo eram muito originais. Os homens iam vestidos e as mulheres nuas. Deviam ser cá uns piqueniques!
- Endoideceste?
- A professora é que disse, não te lembras? Os quadros variam conforme a época em que foram feitos. Se ele pintou assim, por algum motivo foi...
A partir daí só disse disparates. Aproximava-se das raparigas bonitas e murmurava em português:
- Gostava muito de as convidar para um «almoço na relva»...
Se lhe sorriam, mostrava-se triunfante:
- Vês? Aceitou!
Só Bento não parecia achar graça. Passara o tempo todo a olhar para o relógio, sem nunca tirar os óculos nem o cachecol.
- Estás igualzinho a uma múmia! - rcclamava Maxime.
Ele encolhia os ombros, irritado.
- Deixa-me.
De repente encaminhou-se para a saída.
- Bento! Onde é que vais? Ignorando a pergunta, acelerou o passo.
- O que é que ele tem?
- Sei lá!
- Talvez seja melhor irmos atrás.
Não era fácil abrir caminho por entre a multidão que invadira o museu. Além dos estudantes de pintura que faziam cópias de quadros célebres, circulavam inúmeras excursões vindas de toda a parte do mundo. Como cada grupo tentava manter-se junto, formavam barreiras humanas difíceis de ultrapassar.
Esticando-se em bicos de pés, procuravam não lhe perder o rasto e bendiziam o estúpido cachecol vermelho, que lhes servia de referência.
- Por aqui! Depressa...
Chico optou por furar um magote de japoneses, enquanto os outros contornavam o pedestal da estátua mais próxima e balbuciavam desculpas:
- Com licença, com licença...
- Deixem passar, por favor!
Já na rua, procuraram ansiosamente a mancha vermelha e viram-na ao longe. Bento corria como louco pela margem do rio.
- Ele não está bom da cabeça! Temos que o apanhar...
Chico já lá ia, radiante por sinal. Nunca deixava escapar uma oportunidade para dar largas à energia em excesso que tantas vezes lhe causava problemas. Esticar as pernas à maluca, esbracejar no meio de gente, saltar obstáculos, oh, que beleza!
«Hei-de apanhá-lo! Hei-de apanhá-lo!», pensava.
Os motivos que o faziam desejar em absoluto deitar a mão ao rapaz do cachecol vermelho eram nebulosos. Se lhe perguntassem, talvez respondesse que ele tinha todo o direito de se ir embora quando muito bem lhe apetecesse. Mas já que se tinham lançado a persegui-lo, daria tudo por tudo para o alcançar. De língua de fora, arfava que nem um cachorro.
«Aquele tipo devia-se inscrever no atletismo. Safa!»
De facto distanciara-se muito. A certa altura virou-se e olhou para trás. Reconhecendo os amigos ao longe, fez meia volta e enfiou por uma rua lateral.
Chico acelerou ao máximo até à esquina. Tarde de mais. Tinham-lhe perdido o rasto. Os outros dois aproximaram-se desolados.
- Viste para onde é que ele foi?
- Não. Quando cheguei aqui já não havia nem sombras de Bento.
- Se calhar escondeu-se numa escada. Ou então anda por aí em ziguezague e só por acaso damos com ele. Também pode conhecer alguém que viva na zona e procurou refúgio...
Pedro sorriu. Lá estava o Maxime com as suas alternativas!
- Refúgio? Mas porquê?
- Não faço ideia. Parece-me óbvio que ele não queria estar connosco.
- Mas não precisava de fugir. Se tem dito que se queria ir embora, a gente não o segurava à força.
- Exacto. Por isso é que é estranho. Somos muito amigos, sabem? Geralmente, quando há qualquer problema conversamos.
- E desta vez não te disse nada que permita tirar conclusões?
- Nem uma palavra.
Sendo impossível solucionar o caso, decidiram regressar a casa.
A correria abrira-lhes o apetite. Sempre meditativos, prepararam croissants, fatias de queijo, tiras de fiambre, e fizeram um lanche monumental. Sumo de laranja, de maçã e de ananás, bolo de chocolate e tarte de amêndoa, não faltava nada nos tabuleiros. Instalados diante da televisão, comiam sem parar, entretidos a carregar nos botões do comando à distância. Como saltavam de um canal para o outro, não viam programa nenhum. Mas era divertido ter diante dos olhos um concurso, depois desenhos animados, a seguir divulgação científica... Só uma notícia escaldante pôs fim à brincadeira. Rebentara uma bomba num armazém de Paris.
- Deixa ver, deixa ver...
As imagens eram mesmo «bombásticas». O armazém estava reduzido a escombros, havia estilhaços de vidro por todo o lado, bocados de parede, de porta, de janela, e comida em farrapos por cima daquilo tudo.
O repórter pegou numa cebola intacta e apresentou-a aos espectadores.
- Esta é talvez a única peça que não sofreu danos e pode ainda ser consumida por quem o desejar...
À volta dele imensos curiosos tentavam perceber o que se passara, dar uma versão dos acontecimentos ou simplesmente aparecer no écran e dizer adeus à família.
- A explosão ocorreu fora das horas de serviço. Não houve vítimas porque o guarda fazia uma ronda no exterior. Temo-lo aqui connosco...
As câmaras tomaram outro ângulo para se fixarem num velhote de boina que se pôs a explicar o sucedido. Mas quanto mais se explicava, menos se percebia! Também, coitado, era de mais. Nunca lhe acontecera nada semelhante, e ainda por cima entrevistavam-no para a televisão...
O jornalista viu-se obrigado a interromper o discurso incoerente, optando por fazer perguntas. E os técnicos, para apanharem os dois homens com nitidez, tomaram a cena de outra maneira. Ao fazê-lo incluíram várias pessoas da assistência. Entre homens, mulheres e crianças embasbacados, surgiu um cachecol vermelho.
- O Bento! - gritaram os três em coro.
- Meu Deus! O que será que ele foi para ali fazer?
- Achas que sabia do atentado?
- Se calhar por isso é que estava com tanta pressa. Queria avisar alguém.
Maxime torceu o nariz.
- Hum... Não me parece. Se fosse o caso, não precisava de fugir. Dizia-nos e a gente ajudava a dar o alarme.
- Claro. Esta história não faz sentido.
Por muitas voltas que dessem à cabeça, foi impossível encontrar uma explicação lógica.
- Resumindo: ele estava assustado, tentou disfarçar-se e fugiu. Agora se foi parar ao local do crime por coincidência, isso não podemos saber.
- Mas havemos de descobrir!
O pai de Maxime veio encontrá-los perturbadíssimos. Tantas perguntas fez que lhe contaram a história.
- Vocês têm uma imaginação muito fértil!
- Oh, pai, não diga isso!
Compreensivo, risonho, fez questão de explicar.
- Não se trata de um insulto, é um elogio! Vocês são inteligentes, vivos, e recebem tantos estímulos que se transformam em «máquinas de pensar». Ainda bem.
- Garanto-lhe que o Bento...
- O Bento deve estar com a mania de armar em estrela.
- Também pusemos essa hipótese - disse o Chico.
- E é a mais correcta. Surpreende quando chega ao palco e depois arranja maneira de prolongar o efeito. Não lhe liguem importância e vão ver como muda de atitude. Em vez de ficarem a remoer problemas venham comigo dar uma volta, está bem?
Saíram portanto a passear, agora de carro e em grande galhofa porque o senhor era divertidíssimo.
Contava anedotas, alinhava em disparates, mas também ia chamando a atenção para pormenores muito interessantes.
- A cidade cresceu nas duas margens, por isso o rio Sena participa na vida das pessoas. Estamos constantemente a atravessar pontes. Vai-se comprar um livro ao lado de lá, depois trata-se de um assunto do lado de cá. Nestas andanças há muita gente que não repara que o Sena tem ilhas.
A palavra «ilha» é irresistível. Pedro e Chico pediram imediatamente para se apearem.
- Boa ideia. Vamos a pé.
Encantados, percorreram aquela zona superanimada e andaram quilómetros sem dar por isso. Havia imensa gente nova nas ruas, com roupa exótica e livros debaixo do braço. As montras eram um espectáculo e não faltavam cartazes convidativos. Um concerto rock anunciado em letras gordas, tabuletas indicando a plataforma de acesso aos passeios de barco, outra com o horário da visita aos subterrâneos da cidade!
As pontes eram de várias épocas e não só ligavam a margem direita à margem esquerda como faziam também a ligação das ilhas para os dois lados.
- Foi na ilha maior que nasceu Paris. Uma tribo de Celtas chamada Parisii escolheu-a para se instalar. A povoação tinha o nome de Lutecia. Tudo o resto eram florestas!
Para tornar a conversa mais sugestiva, fez-lhes um esboço num guardanapo de papel.
- Aqui viveram descansados até à invasão dos Romanos. Resistiram com bravura e, quando viram a batalha perdida, deitaram fogo às casas. O chefe dos Parisii era Camulogène. Morréu em combate.
- Nós temos uma história parecida - disse o Pedro. - Quando os Romanos invadiram a Península Ibérica, na zona onde é Portugal vivia uma tribo que descendia dos Celtas. Eram os Lusitanos. Também resistiram, comandados pelo chefe Viriato. Só que «o nosso» não foi derrotado -- acrescentou com indisfarçável orgulho.
- Então o que é que lhe aconteceu?
- Mataram-no à traição quando dormia na tenda.
- Temos pois muita coisa em comum. Tribos celtas, chefes fantásticos e os inevitáveis Romanos mais a sua brilhante civilização...
O passeio continuou até anoitecer. Paris não cansa. Dá a sensação de ser uma cidade inesgotável. Quanto mais se vê, mais se deseja ver. Apetece explorar cada recanto, percorrendo o espaço ou mergulhando no tempo em busca dos outros que por ali andaram e deixaram marcas visíveis da sua passagem ou apenas a força do pensamento.
Pedro e Chico lamentavam a ausência das gémeas e do João. Que seria feito do João? Pena ter ido para os arredores. Se não fosse a mania de andar sempre com o Faial, podia estar com eles.
João não estava nada arrependido de ter trazido o Faial. Nunca pensara até que lhe fosse tão útil!
A família que os recebera vivia numa pequena moradia com jardim. Tinham-se mudado há pouco tempo e ainda faltava pintar os quartos do andar de cima. Nas horas vagas o dono da casa entretinha-se a dar os últimos retoques. Era português, casado com uma francesa, ambos muito simpáticos. E então a filha... magrinha, de cabelos compridos e nariz arrebitado, não podia ser mais atraente.
Como nunca tinha tido uma namorada, não sabia bem o que havia de fazer para a conquistar. Quase sem dar por isso, começara a servir-se do Faial porque ela adorava cães. Nos primeiros dias contou-lhe histórias do cão em pequenino e obrigava-o a exibir as suas habilidades no jardim. Fartavam-se de rir os dois quando ele se sentava de língua de fora, à espera de ordens. Depois começaram a dar grandes passeatas no bairro, caminhando quase sempre em silêncio. Às vezes olhavam um para o outro e ficavam ambos muito corados. Ocupavam-se então do Faial. Festinhas na cabeça, festinhas no lombo...
«Enfim, namoramos através do pêlo do cão», pensava divertido.
Em casa era mais difícil vencer o embaraço. Vendo-o tão ajuizado, os senhores tratavam-no como se fosse mais velho, e falavam-lhe de assuntos sérios.
- Isto de casar com estrangeiros e viver noutro país tem muito que se lhe diga. É preciso fazer um esforço para que resulte.
A única resposta que lhe ocorreu foi:
- O meu pai também diz isso.
- Ambos tivemos que aceitar coisas diferentes no nosso dia-a-dia, mas adaptámo-nos.
- Quando nasceu a Sara, combinámos que ela havia de conhecer muito bem as duas famílias, os dois países e as duas línguas. Sendo meia-portuguesa e meia-francesa, queremos que se sinta segura das duas metades.
- Quem está seguro de si é que vence na vida.
- Sabes o que fiz? - perguntou a mãe com um sorriso. - Aprendi português suficiente para me sentir em casa quando vou de férias. Porque estar numa terra e não perceber patavina do que as pessoas dizem, não entender por que riem, não poder participar na conversa, é uma grande maçada.
OJoão achou-se na obrigação de fazer um comentário.
- E valeu a pena o esforço?
- Se valeu! Agora divirto-me muito mais nas férias.
Nesse momento apareceu no écran da televisão uma rapariga lindíssima a tomar duche para anunciar sabonetes.
- Que mulher tão gira. É parecida contigo - disse o João num impulso.
Depois corou até à raiz dos cabelos! Felizmente toda a gente achou graça e pôde descontrair-se.
- É verdade, não sei se ja te informaram que foste seleccionado para ir assistir ao Festival de Teatro de Nancy com os teus colegas que estão em Paris.
A notícia deixou-o dividido por dentro. tinha saudades dos amigos, apetecia-lhe juntar-se a eles, mas também lhe custava afastar-se de Sara. No entanto, agradou-lhe ver que ela baixava os olhos com tristeza.
«É porque gosta de mim», concluiu. «Agora tenho a certeza. Vou dizer ao Pedro e ao Chico.» Depois reconsiderou. «Eles põem-se a gozar. Digo primeiro às gémeas.»
Se pudesse vê-las dali, ficaria admirado...
Teresa e Luísa dedicavam-se a uma tarefa bastante bizarra.
Depois da visita de estudo, tinham regressado a casa falando acerca de Bruno.
- Achas que ele percebeu?
- O quê?
- Não te faças de parva.
- Talvez sim, talvez não. Nós disfarçámos. Luísa entortou uma sobrancelha.
- Para dizer a verdade, não sei se disfarçamos muito. Olhavas para ele de uma maneira!
- E tu?
- Eu também.
- Claro. A expressão mostra o que nos vai na alma. Se há alguma coisa lá dentro, vê-se por fora.
Ao ouvir aquilo, a irmã deteve-se. Estavam diante da fachada do prédio onde morava Elise.
- O que foi?
- Repara nas janelas. Não correspondem por dentro e por fora.
- Ha?
- Raciocina, Teresa. Dentro da casa há três janelas viradas para a frente. Mas, vistas daqui, são quatro.
- Então é porque a última pertence à casa ao lado.
- Nem penses. A linha divisória entre os prédios não pode ser mais nítida.
- Então...
- Há um quarto secreto! - gritaram em uníssono.
Excitadíssimas, recuaram alguns passos, tentando descortinar através das vidraças algo que pudesse confirmar a suspeita.
As cortinas corridas defendiam o interior de olhares indiscretos.
- E agora?
- Agora entramos e fingimos que não sabemos de nada. Na primeira oportunidade... zaca! Revistamos o corredor de alto a baixo.
Teresa meteu a chave à porta e chamou com voz maviosa:
- E... li... se!
Não obteve resposta a não ser do Caracol, que as recebeu no entusiasmo do costume. Fizeram-lhe imensa festa, lamentando que não pudesse dizer-lhes se a dona da casa saíra por momentos, se demorava ou ainda se se teria enfiado num certo compartimento privativo.
Sempre com o cachorrinho ao colo, dirigiram-se à sala maior. Pelo sim pelo não, queriam fazer a contagem, pois podiam ter-se enganado.
- Uma, duas, três! Não restam dúvidas. Acertámos.
Em bicos de pés espreitaram o corredor. Lá ao fundo, as figuras femininas vestidas de branco tinham adquirido um significado muito especial. Que encontrariam do outro lado? E como passar para lá?
Estavam decididas a desvendar o mistério mas a decisão mordia-lhes a consciência. Se Elise não lhes mostrara uma zona, devia ter os seus motivos. Receando que as fotografias voltassem a «olhá-las» e desta vez com ar reprovador, meteram-se no quarto. Ali encontraram um bilhete que lhes acelerou o coração.
Olá Companheiras! Vou visitar um amigo a Versailles, por isso chego tarde. Jantem e façam o que lhes apetecer.
Alvoroçadas, olharam uma para a outra.
- Que sorte.
- É incrível.
Numa agitação, atiraram os casacos para cima da cama e foram a correr direitas ao quadro. Mesmo sem combinarem, percorreram a moldura com a ponta dos dedos em busca de qualquer saliência mínima, orifício ou pequena alavanca. Nada. Depois passaram a mão pela superfície pintada. Sendo uma tela, oscilou ao de leve.
- Carrego com mais força?
- Não. Pode rebentar.
- Se o tirássemos do prego?
As tentativas nesse sentido resultaram infrutíferas. O quadro não estava pendurado como é habitual mas preso a toda a volta.
Um ruído suave assustou-as.
- Vem aí gente - gaguejou a Luísa. - Que vergonha!
Muito hirtas, deixaram-se ficar à espera. Pela cabeça de ambas circulavam mil desculpas tolas para justificarem os seus actos.
Quando viram que afinal era o Caracol, respiraram de alívio mas não recuperaram imediatamente o à-vontade para fazerem explorações em casa alheia.
- Se calhar devíamos desistir.
- Não vejo porquê - respondeu a outra, embora pouco convicta.
- É indecente. As pessoas na sua própria casa têm o direito de esconder o que quiserem. Sinto-me como se andasse a remexer nas gavetas ou na carteira de alguém.
- Isso é diferente. Nas gavetas e nas carteiras guardam-se coisas pessoais.
- E num quarto secreto, guarda-se o quê?
- Não sei e quero descobrir.
Para se desculparem, puseram-se a desfiar argumentos mirabolantes.
- Supõe que a Elise é ladra e usa o esconderijo para guardar objectos roubados?
- Também pode andar metida em negócios escuros e ter arranjado um sítio para receber os cúmplices.
- E se fizeram um rapto? Que sítio ideal para esconderem a vítima.
- Já vi isso num filme.
- Nos filmes é diferente.
- Porquê? Os filmes inspiram-se na realidade,
- Até há quem diga que a realidade ultrapassa a imaginação.
- Nesse caso, em vez de estar ali uma pessoa, talvez estejam duas.
- Hum... se fosse assim, ouvíamo-las conversar.
- Uma pessoa sozinha também pode dar gritos.
- Não pode, se estiver amordaçada.
- Quem amordaça uma, amordaça duas!
A associação de ideias em catadupa ia-lhes tomando conta do espírito.
Sacudidas por um riso nervoso, continuavam:
- Os prisioneiros não falam porque já não têm forças.
- Estão a morrer de fome...
- Ou mudos de terror...
Foi preciso um esforço tremendo para porem ponto final à torrente de palavras.
- Queres mesmo tentar descobrir o segredo? - perguntou a Teresa.
- Quero - respondeu a Luísa sem hesitação.
- Ainda bem, porque eu também quero. Pensando que o botão pudesse estar escondido atrás dos livros que rodeavam a moldura, afadigaram-se a retirá-los das prateleiras. E a pressa era tanta que, depois da vistoria, não os repunham no sítio e tiravam mais.
- Maldita estante. Não tem interesse nenhum. Só madeira, madeira, madeira!
O Caracol é que ficou radiante. Livros pelo chão, uns por cima dos outros, formavam casinhas amorosas para ele brincar. Entrava numa, depois esgueirava-se por um «túnel», empurrava um monte de revistas e aparecia no meio, todo satisfeito.
- Está quieto. Não faças disparates.
Ele não ligou nenhuma e ainda fez pior. Ferrou os dentes numa bela encadernação e vá de roer.
- Caracol - berrou a Luísa.
Assustado, abandonou o calhamaço e fugiu para um canto, onde se instalou com a cabeça entre as patas.
Foi então que as gémeas ouviram um ruído seco. O quadro moveu-se, deixando à vista uma frincha...
Sufocadas de emoção, perderam a fala. Era verdade. Havia mesmo um quarto secreto!
Ignorando que acccionara um mecanismo mcrustado no rodapé, Caracol limitou-se a ganir. Quanto às gémeas, dilaceravam-se entre a curiosidade e o medo. Diante daquela frincha que lhes daria acesso ao desconhecido repetiam para si próprias: «Entro ou não entro?»
- Queres ir primeiro? - arriscou a Teresa.
- Sozinha? Que ideia! Ou vamos as duas ou não vai nenhuma. , ,
- Não» julgues que estou a ser cobarde. La dentro tudo pode acontecer. Convinha que ficasse alguém a proteger a retaguarda.
- Enttão fico eu.
- Se tirássemos à sorte?
- Acho bem.
Retiramdo uma moeda da algibeira, baralhou atrás das costas e depois apresentou os punhos cerrados.
Luísa hesitou. Depois deu-lhe uma palmada na mão esquerda.
- Quero esta.
- Ganhaste. Entro eu à frente. Engolindo em seco, levantou-se e empurrou o quadro muito devagarinho.
- Bem me parecia que não era ilusão de óptica!
Logo que os olhos se habituaram à escuridão, vislumbrou um candeeiro de pé alto. Sem pensar, premiu o botão e quedou-se extasiada. A irmã não resistira e já estava ao seu lado. - Esperava por tudo, menos por isto. - É bruxa!
I De facto, o quarto secreto dir-se-ia um resumo de todas as descrições que já foram feitas para relatar o ambiente em que se movem as bruxas. Ao centro havia uma mesa de pé-de-galo coberta por um xaile de seda vermelha de longas franjas. Em cima, a inevitável bola de cristal. E depois cartazes enormes representando mãos humanas cujas linhas apareciam assinaladas por etiquetas: «linha da vida», «linha do coração», «linha da inteligência», «linha da sorte». Um mapa celeste exibia em tons de azul e dourado os signos: Carneiro, Touro, Gémeos, etc. Algumas corujas e mochos enbalsamados, mais rolos de papel amarelecido, grandes calhamaços manuscritos e baralhos de cartas com figuras estranhas davam um último retoque ao compartimento.
Aquela atmosfera condizia com a dona na perfeição. Recordaram-na tal como a tinham visto pela primeira vez, de túnica roxa esvoaçando ao vento, caracóis presos no alto da cabeça, pálpebras carregadas de pintura. Uma mulher assim não se limita a poucos móveis e paredes amarelas. De certo modo, faltava aquilo que agora tinham pela frente. O quarto secreto desvendava o mistério.
Teresa debruçou-se para uma fotografia pousada sobre os livros.
- Está aqui uma senhora com roupas antigas que é igual à Elise.
Uma voz quente, grave, fê-las estremecer da cabeça aos pés.
- Naturalmente. É minha avó.
As gémeas voltaram-se, estarrecidas. Primeiro ficaram vermelhas como um pimentão. Depois o sangue foi-se e empalideceram. Até os lábios se tornaram brancos. Não lhes ocorria nada que pudessem dizer para se desculparem e temiam as consequências daquele acto impensado. Se ela era bruxa, que iria fazer? Encarando-a, verificaram que tinha as pálpebras pintadas de castanho. Os olhos já não pareciam azuis, brilhavam soltando chispas de cor indefinida.
- A...
- Foi o Caracol, sabe...
- Deitou-se ali ao canto e depois...
Com uma expressão bastante equívoca, interrompeu-as.
- O Caracol descobriu o que vocês procuravam. Ou será que foi ele quem tirou os livros da estante?
Argumento irrefutável. Mais valia ficarem caladas. Baixaram a cabeça à espera da reacção. E a reacção foi excelente. Elise deu uma gargalhada sonora.
- Se eu fosse a vocês, tinha feito exactamente a mesma coisa. Somos almas gémeas disse por fim.
Sentou-se num banquinho estofado, pequeno de mais para o seu tamanho, e ajeitou os caracóis.
- Não lhes mostrei este compartimento porque tive receio de as assustar. Podia passar-lhes pela cabeça que me dedico a bruxarias.
Elas trocaram um olhar cúmplice.
- Mas eu não sou bruxa. O que tenho é uma grande paixão por estas ciências.
«Ciências? Quais ciências?», pensavam as duas.
- Saber ler as linhas da mão, estudar os astros, compreender os signos. Há quem chame ocultismo, e de facto, em parte, é isso mesmo. Mas se virmos bem, todas as ciências começaram por estar ocultas e foram-se desvendando ao longo dos séculos. Havia elementos que os homens entendiam, outros que provocavam confusões... Endireitando-se, voltou a ajeitar os caracóis e continuou: - As trovoadas, por exemplo. Há milhares de anos, as pessoas tinham medo, pensavam que era castigo, que havia um deus furioso atrás das nuvens. Hoje em dia já não tem mistério nenhum. Qualquer criança pequena descreve o fenómeno atmosférico e até faz a contagem para avaliar se os raios caem longe ou perto.
Ainda mal refeitas do susto, as gémeas não sabiam o que dizer. Elise entusiasmara-se com os seus próprios argumentos. Via-se que já os utilizara muitas vezes para convencer variados tipos de assistência.
- Se alguém tivesse dito à vossa trisavó que daí a alguns anos seria possível voar dentro de uns aparelhos monstros, ver cenas que se estão a passar no outro lado do planeta, ou que, em vez de subir pela escada de um prédio poderia elevar-se dentro de uma caixa com botõezinhos, ela não acreditava. Ou então considerava esses efeitos fruto de bruxaria!
- Tem razão - disse a Luísa, para não ficar calada mais tempo.
- Bom, pois eu acho que dentro de alguns anos os signos, as linhas da mão e tudo o resto hão-de fazer parte de uma ciência exacta qualquer. De certo modo, até acabam por perder a graça. Já pensaram o que será escrever um sumário na aula que diga «Características positivas e negativas do signo Caranguejo»?
Impossível não rir! Teresa e Luísa descontraíram-se finalmente e, aproximando-se da mesa, ousaram perguntar:
- E a bola de cristal?
- Oh! Essa é o elemento mais delicioso da minha colecção!
Elise levantou-se, imprimindo ao corpo o movimento ondulante que a caracterizava, estendeu a mão e afagou a bola de cristal com a ponta dos dedos.
- é uma preciosidade. Pertence à família há mais de trezentos anos. Só pode ser usada por quem possuir talentos especiais.
Encolhendo os ombros, acrescentou:
- Ler na bola de cristal é uma arte mágica. Aliás, todas as formas de arte são mágicas e exigem talentos especiais. Só um pintor arranca quadros ao pincel!
- Sabe ler na bola de cristal?
- Sei. Aliás, é um talento de família. Geralmente salta de avós para netos. Quando era pequena a minha avó chamou-me e disse: «Pensa numa pessoa e olha para ali.» Eu pensei na minha irmã e vi-a claramente a saltar à corda dentro da bola de cristal. E pronto! Passei a acompanhá-la, a estudar estas coisas. Quando vim para aqui viver, resolvi transformar uma divisão em esconderijo, porque há muita gente que reage mal, sabem? Desconfiam, criticam! Preferi ter uma zona reservada.
- Acho divertidíssimo. Adorava ter um quarto secreto.
- Também eu.
- Não sei se repararam nos retratos? - perguntou-lhes Elise. - Consegui reunir todas as minhas antepassadas que utilizaram a bola de cristal.
- Reparámos, sim.
- E tivemos imenso medo. Parecia que estavam a olhar para nós.
- É natural. Todas foram mulheres de «olhar penetrante».
- Escute - perguntou a Luísa, já completamente à vontade. - Ali dentro vê-se aquilo que uma pessoa pensa ou pode-se adivinhar o futuro?
- Às vezes. Mas é muito difícil. Nem sempre atingimos a concentração necessária. Acontece aparecerem indícios que se podem interpretar. E ora sai certo ora sai errado. - De súbito lembrou-se. - Tenho andado louca a tentar adivinhar um mistério. Talvez vocês possam ajudar.
- Nós? - exclamaram em coro.
- Sim. Ora venham cá. Instalem-se à volta da mesa.
Delirantes, sentaram-se, a rebentar de expectativa.
- Um amigo meu é inventor. Dedica-se sobretudo a composições químicas.
Elas seguiam a conversa com muita atenção.
- Pois aqui há tempos telefonou-me desesperado porque a casa tinha sido assaltada.
- Roubaram-lhe alguma coisa?
- Várias. Mas o pior não foram os objectos, foi uma fórmula em que andava a trabalhar com muito entusiasmo.
- E pediu-lhe que descobrisse os ladrões por artes mágicas?
- Sim. Ou pelo menos uma pista, um indício que o ajudasse a localizar o papel em que escreveu os resultados do trabalho.
- E que tipo de produto é?
- Não sei. Mas ele mostra-se tão aflito que admito a hipótese de ser um produto perigoso. Se cair em mãos pouco escrupulosas...
- Já tentou procurar os tais indícios?
- Já. Sem grande sorte. Tentemos agora todas juntas. Vocês têm um certo magnetismo. Como são gémeas, entram facilmente em sintonia. Já pensaram o que é captar o magnetismo de duas pessoas iguais?
Teresa e Luísa sorriram, felizes.
- Concentrem-se, está bem?
- Como?
- Toquem na bola com a ponta dos dedos.
Para começar, afastem os outros pensamentos e concentrem-se num único.
- Em quê?
- Num rapaz, por exemplo. Mas que seja uma presença suficientemente forte, para que não se dispersem.
Na cabeça das duas surgiu de imediato a figura do Bruno.
Fez-se silêncio. Durante alguns instantes não se ouviu um pio. Imóvel, fixa, Elise parecia uma estátua de olhos pregados no vidro. Dispostas a ajudar, concentraram-se ao máximo.
A pouco e pouco foi-se estabelecendo uma espécie de corrente eléctrica invisível que as unia no mesmo círculo. E vibrava com tanta força, tanta força que... Pás! A bola explodiu.
Consternação e assombro deram lugar a uma cena de choro torrencial.
- Não pode ser! Isto não pode ter acontecido! - soluçava Elise.
Lágrimas gordas escorriam-lhe pela cara a quatro e quatro, tingidas de castanho porque esfregara as pálpebras.
Convencidas que a culpa era delas, as gémeas só queriam fugir dali para fora, evaporarem-se se possível fosse.
Em cima do xaile de seda restava apenas um montículo de pó branco e alguns pedacinhos mais resistentes.
Luísa tentou acalmar a senhora, abraçando-a com muito carinho.
- Eu sei que é horrível, Elise. Mas não chore.
- Nós vamos consigo procurar outra bola... Elise passeava agora de um lado para o outro torcendo as mãos. Estava desfigurada pelo choro, os caracóis tinham-se desprendido e caíram-lhe sobre os ombros, respirava com dificuldade.
- Todas as bolas que existem têm dono!
- Se mandasse fazer uma de propósito para si?
- Encomendar? Onde? - Numa atitude de grande desânimo, prosseguiu: - Só faz uma bola destas quem tiver o cristal no coração!
A frase soou-lhes enigmática mas logo a seguir perceberam.
- É necessário que várias gerações da mêsma família trabalhem o vidro para que nasça um artista genial, capaz de obter uma esfera perfeita, impregnada de magia.
As gémeas até deram um pulo. Se os requisitos eram esses, talvez pudessem solucionar o problema.
- Escute, nós conhecemos uma pessoa que corresponde exactamente à descrição.
- Quer dizer, não conhecemos. Sabemos que existe.
Ela olhou-as, incrédula.
- É português e vive em França.
- Vimos trabalhos dele no Centro Pompidou.
- Havia um cartaz com o nome dele e vários pormenores...
- Pertence a uma família de artesãos do vidro. Chama-se Pedro Veloso.
- Os trabalhos eram lindos!
No meio de tão grande desgosto, julgaram vislumbrar um lampejo de esperança.
- Posso tentar - balbuciou. - Vive em Paris?
- Não faço ideia. Lembro-me de ver a morada escrita mas não li.
- Isso vê-se já. Um amigo nosso filmou a exposição e ofereceu-nos a cassete. Vamos passá-la no vídeo?
Agitadíssimas, correram para a sala, enfiaram a cassete no aparelho e sentaram-se no tapete de olhos bem abertos.
Graças à intervenção do empregado, o filme era curto. Estava muito bem feito, porque Bruno ora tomava planos de conjuntos ora se fixava em detalhes. A certa altura apareceu o cartaz no écran.
- Pára! Pára!
Foi Elise quem carregou no botão do comando. A imagem ficou paralisada.
As letras, demasiado pequenas, não se conseguiam decifrar, mas com uma lupa tudo se resolveu.
- Conhece esta terra? - perguntou Luísa.
- Conheço. Fica perto de Nancy, que é onde vive o inventor de que vos falei, o Gaston.
- Que coincidência fantástica!
- Nós depois de amanhã vamos para lá.
- Faz parte do programa assistir a um festival de teatro.
- Eu sei, eu sei! - respondeu Elise com um sorriso tristonho. - A vida é feita de coincidências fantásticas. Podemos ir juntas. Vai-me saber muito bem a vossa companhia.
O convite deixou-as atarantadas. Sentiam-se na obrigação de lhe dar apoio e queriam fazê-lo.
Por outro lado, estava previsto irem de combóio com os amigos todos, incluindo o João, que não viam há tanto tempo.
Sem coragem para confessar que preferiam juntar-se ao grupo, baixaram os olhos. A recusa implícita não podia escapar a uma pessoa sensível e vibrátil como Elise!
- Parece-me que a ideia não vos agradou muito.
Iam protestar, mas ela atalhou:
- Se é por causa dos vossos amigos, não se preocupem. Fazemos um pacto para arrumar o assunto.
- Um pacto?
- Já estou em pulgas. Diga!
- Bom, eu arranjo uma carrinha de nove lugares e convidam quem quiserem, mas em troca não revelam os meus segredos. Aceitam?
- Claro que aceitamos!
- Vai ser estupendo irmos todos juntos.
- Então amanhã combinem. É melhor virem cá ter bem cedo.
No dia seguinte procuraram os rapazes ao primeiro intervalo. Foram dar com eles num canto do pátio a discutir com o Bento, e que discussão estúpida!
- Eras tu. Tenho a certeza - insistia Maxime.
- Enganas-te. Nunca na minha vida apareci na televisão.
- Tem paciência, mas apareceste. Estavas no meio das pessoas que foram ver a bomba.
- Eu?
- Sim, tu.
- É melhor confessares. Começa pelo princípio, vá. Por que é que fugiste?
- Não fugi. Estava farto de vos aturar e fui-me embora.
- A correr que nem um desvairado?
- Ora essa! Não posso correr quando muito bem entendo?
Teresa e Luísa não percebiam patavina. Como o tempo de intervalo se estava a esgotar e eles não se calavam, decidiram intervir e disseram ao que vinham. A proposta foi aceite de imediato. Dadas as circunstâncias, não se atreveram a convidar Bento. Curiosamente, foi ele quem prestou mais atenção à conversa.
Logo que se afastaram, Chico retomou a discussão.
- Ouve lá, Bento, por que é que não nos contas a verdade?
Ele reagiu quase com raiva:
- Deixem-me, deixem-me, deixem-me! Maxime ainda tentou acalmá-lo, mas quando lhe pousou a mão no ombro ele sacudiu-o de repelão e afastou-se.
- Não me procurem mais! Perplexos, resolveram desistir.
- Pelo menos por agora não podemos fazer nada - concluiu o Pedro.
- O pior é que ninguém me tira da cabeça que ele tem alguma coisa a ver com a bomba.
- Puxamos-lhe pela língua quando o encontrarmos em Nancy.
- Achas que fala connosco? Está tão agressivo. Parece que não nos quer ver nem pintados.
- Hum... ele anda nervoso e a gente irritou-o. Talvez entretanto lhe passe a zanga.
A zanga passou-lhe muito mais depressa do que podiam sonhar!
Quando se encontraram à porta de Elise para partirem de viagem, lá estava Bento, de gorro enfiado até às orelhas, óculos escuros, cachecol e mochila às costas.
Bastante comprometido, aproximou-se e perguntou:
- Posso ir com vocês? -
Só não o bombardearam com perguntas porque o João apareceu e logo as gémeas se atiraram a ele numa euforia de beijos, abraços e disparates.
- João!
- Que saudades!
- Ainda bem que vieste.
- Não tem graça nenhuma estarmos separados.
- Quando nos separamos, o mundo descai dos eixos e os oceanos ficam a pingar de tristeza...
- Só me sinto bem quando estamos juntos! Pedro e Chico manifestaram a sua alegria com
pancadas nas costas, murros secos e breves no ombro, grande estardalhaço também.
- Não trouxeste o Faial.
- Não. Era complicado trazê-lo. Ficou com a Sara.
Ao pronunciar o nome deu mostras de um certo embaraço que as gémeas captaram.
- Quem é a Sara?
- Por que é que coras quando falas dela?
- Arranjaste uma namorada, confessa.
- Tens que nos contar tudo tintim por tintim.
Baixando a voz, perguntaram ainda:
- Já lhe deste um beijo?
- Ou andam no «quase quase»... Maxime observava-as, divertido.
- São completamente doidas - disse para o Bento, tentando integrá-lo na alegria geral.
Ele limitou-se a um ligeiro abanar de cabeça. Encolhido na soleira da porta, envolvido em lãs, parecia doentíssimo, à espera que o levassem para o hospital. Os outros estranharam que os procurasse se continuava com uma disposição de cão, mas enfim! O melhor era não fazerem comentários.
Elise entretanto descera e trataram de comprimir as mochilas na parte de trás da carrinha.
- E o Caracol? Não vem?
- Não. Fica com a porteira, que adora animais.
- Ora cá vamos nós a caminho da Lorena.
- Da Lorena? Então não íamos para Nancy? Os franceses riram-se.
- Nancy é uma cidade, Lorena uma região.
- Das mais bonitas, por sinal - disse o Bento.
Admirados, voltaram-se para ele. Em vez da expressão carregada chispando mau génio, depararam com um sorriso luminoso.
- A minha avó nasceu na Lorena - explicou. - Passei muitas férias em casa dela quando era pequeno.
Maxime teria gostado de lhe fazer uma observação do tipo «Ora ainda bem que acabaram as parvoíces e começas a falar como toda a gente», mas conteve-se. Talvez fosse preferível deixá-lo normalizar a pouco e pouco.
À medida que se afastavam de Paris, o amigo ia-se transformando noutra pessoa. Primeiro desembaraçou-se do gorro, do cachecol e dos óculos com alívio visível. Depois começou a contar anedotas das suas próprias graças com um riso tão contagioso que pôs o grupo todo à gargalhada.
«Este rapaz deve ser um caso de dupla personalidade» matutava Elise. «Os pais deviam levá-lo ao médico!»
Quando já rodavam na Lorena, Bento perdeu a cabeça- Tal qual uma matraca falante, descrevia-lhes o que viam, num entusiasmo febril.
Esta paisagem não pode ser mais linda.
Merece «um olhar comprido, até ao horizonte. Reparem nas colinas muito verdes dominando a planície. Lá em cima a vista é um sonho. E as árvores, estão a ver? Formam grandes tufos no meio do campo. São restos da antiga floresta. Antigamente isto era quase tudo floresta. Agora ainda há claro. Mas menos. Reparem também nos pomares de frutos redondos e amarelinhos. São pomares de mirabelle, uma fruta pouco vulgar, muito saborosa.
De repente deu um grito:
- GÍ! Guil
Chico respondeu-lhe sem pensar:
- Cri! Cri!
Ele ficou atarantado.
Por que é que disseste isso?
- Sei lá! Julguei que estivesses a falar com os grilos e quis meter-me na conversa.
A resposta caiu-lhe no goto. Bento desatou a rir, a rir como se tivesse enlouquecido. E os outros, mesmo sem querer, seguiram-lhe o exemplo. Até Elise, esquecida dos seus problemas, tinha dificuldade em concentrar-se na condução.
Os ocupantes dos carros que entretanto os ultrapassavam viravam a cabeça admirados.
- Já me dói o estômago! Ha! Ha! Ha!
- E a cara! Ho! Ho! Ho!
Demorou algum tempo a recuperarem a serenidade. Assim que lhe foi possível, Bento voltou à carga;
- Vocês não sabem o que é gui, mas eu explico.
- E quem é que te disse que queremos saber? - perguntou a Luísa na brincadeira.
- Querem, querem! Vão adorar. Apontou-lhes então uma espécie de grandes novelos encaixados nos ramos das árvores.
- São ninhos?
- Não, é gui.
- O que é gui?
- Embora me custe, vou satisfazer a tua curiosidade - disse ele, assumindo um tom professoral. - É uma planta parasita, ou seja, vive enrolada nas outras. Escreve-se com y, portanto guy. Quando a França se chamava Gália e os habitantes eram gauleses, cada tribo tinha o seu druida, o feiticeiro. E os druidas faziam poções mágicas com aquelas plantas, que colhiam apenas nos ramos de carvalhos. A recolha era uma cerimónia solene.
- Adoro!
- Eu sabia!
Maxime olhou para os amigos como quem diz: «Eu não menti. O Bento é sensacional.» Eles retribuíram o olhar, anuindo.
- Para terminar a minha exposição, quero lembrar-lhes uma coisa importantíssima. Joana’ d’Arc, a maior heroína de França, nasceu na Lorena.
- Não vale a pena insistires mais. Rendemo-nos. Convenceste-nos acerca dos encantos desta região. Quando tiver uma filha chamo-lhe Maria Lorena. Ha! Ha!
Retomando a galhofa, continuaram o caminho cantando a plenos pulmões canções portuguesas e francesas.
Em Nancy, Elise dirigiu-se imediatamente ao seu destino.
- Se quiserem, podem vir comigo -propôs. As gémeas estranharam o convite. Então proibira-as de falarem no segredo e agora levava a malta toda para casa do cientista? Tentaram lembrar-lhe o combinado com uma cotovelada discreta, e ela respondeu em voz alta:
- Gaston anda triste. Acho que a presença de um grupo tão alegre lhe pode fazer bem.
Depois piscou o olho à Teresa, que concluiu não ser necessário mencionar a bola de cristal só porque visitavam o senhor.
- Não me diga que ele mora naquele castelinho de conto de fadas.
- O castelinho, como tu lhe chamas, é uma antiga porta da muralha de Nancy. A Porta de La Craffe. Por ali é que entravam os duques da Lorena quando vinham à cidade. Linda por fora e terrível por dentro.
- Porquê?
- Porque antigamente foi usada como prisão e sala de tortura.
- Ba!
- A casa de Gaston é aqui mesmo ao lado. Por sorte conseguiram arrumar a carrinha um pouco adiante. Elise encaminhou-os para um prédio antigo cuja entrada dava acesso a um pátio interior.
- Vai adorar receber-nos!
Todos eles já tinham visto cientistas e investigadores na televisão. Se a entrevista decorria em laboratórios, apareciam de bata branca, rodeados pela equipa, junto de aparelhos sofisticadíssimos. Se os repórteres iam procurá-los a um congresso ou os convidavam para um debate no estúdio, apresentavam-se geralmente de fato completo, gravata, e falavam das pesquisas com ar muito sério, circunspecto. Era portanto esse tipo de indivíduo que esperavam encontrar, desta vez em casa, rodeado de livros e revistas científicas da especialidade. Assim, a surpresa não podia ter sido maior quando, depois de várias campainhadas, a porta se abriu e depararam com um homem esquelético, de olhar alucinado, envergando uma bata larga e pingona coberta de nódoas e esburacada pelos ácidos que há muito lhe tinham comido a cor. Seria um ajudante louco? A dúvida desapareceu no mesmo instante, pois Elise lançou-se-lhe ao pescoço, exclamando:
- Gaston! Meu querido amigo!
Ele retribuía-lhe os abraços e manifestava uma espécie de alegria infantil por a ter ali, acompanhada de uma série de jovens desconhecidos. Brindou-os com um chorrilho de perguntas e comentários, sem lhes dar tempo para responder.
- Tanta gente, que bom! Quero conhecê-los um por um. Como é que se chamam? O que é que fazem? Por que é que vieram? Estas são gémeas... que engraçado, iguaizinhas. Não se distinguem, pois não? Com certeza os rapazes nunca sabem com qual das duas estão a falar! Mas digam-me, já conheciam Nancy? Se conheciam, ainda bem que voltaram. Se não conheciam, vão ficar deslumbrados... A cidade é um sonho. Nem precisam de guia, basta irem pelas ruas ao açago. Eu também, ainda que quisesse, não podia gservir-lhes de cicerone porque de momento estou muito ocupado... - Ao pronunciar a última frase, susteve a respiração, empalideceu e deu uma palmada na testa, gritando: - A minha experiência!
Depois rodou nos calcanhares e desatou a correr lá para dentro.
Elise não pareceu ficar surpreendida e explicou num tom de grande condescendência.
- Faz sempre isto. Sabem que já ia pegando fogo à casa várias vezes?
Com o maior à-vontade seguiu-o e fez sinal para que fossem também.
- Isto é um cientista de desenhos animados
- murmurou o João em voz baixa. - Que gozo.
- Acham que um tipo assim é capaz de inventar alguma coisa?
- Só se for uma máquina de pentear macacos!
- Pschiu! Olhem que ele pode ouvir... Atrás uns dos outros, percorreram aquela espécie de labirinto em que Gaston transformara duas casas antigas ao ligá-las por dentro. Havia quartos sem janela a dar para uma despensa que obviamente se destinava à cozinha, salas com arcos para o corredor, duas casas de banho juntas e escadinhas sem fim, três degrauzinhos aqui, quatro acolá. Enfim, se quisessem voltar para trás sozinhos, o mais certo era demorarem um bom pedaço até encontrarem a saída! Mas nenhum deles queria voltar para trás. Ansiavam por ver o laboratório. Pertencendo a quem pertencia, devia ser uma divisão espectacular!
De facto o laboratório não os desiludiu. Ocupava as traseiras do prédio, avançando mêsmo sobre um quintal à maneira de estufa. Lá dentro não faltava nada do que seria previsível: tinas, tubos, retortas, aparelhos moderníssimos, outros velhíssimos, frascos de vidro grandes e pequenos com líquidos de todas as cores, balanças, bancadas, mesas de trabalho.
Gaston, aparentemente esquecido da presença de estranhos, acabara de deitar umas gotas vermelhas dentro da tina. Eles aguardaram, em silêncio para não perturbar.
- Daqui a cinco segundos começa a libertar-se um perfume... inesquecível! - anunciou Gaston.
Nos olhos miudinhos bailava de novo uma alegria de criança grande, às voltas no seu quarto de brinquedos.
- Prestem atenção ao cronómetro.
No momento exacto em que se esgotou o tempo previsto, a superfície líquida borbulhou, exalando rolos de fumo cor de ferrugem, muito espesso. O cheiro era realmente inesquecível, pestilencial! Dir-se-ia uma amálgama de ovos podres, estrumeira e cano de esgoto. Ainda por cima fortíssimo. Penetrou-lhes nas narinas, na garganta, desceu ao estômago, subiu ao cérebro. Um horror!
Felizmente Elise abriu a janela de par em par. Que alívio! O fumo espalhou-se, invadindo o quintal. Nenhum deles se admirou que as plantas ali existentes se apresentassem num estado deplorável!
Por estranho que pudesse parecer, Gaston continuava feliz e perguntava:
- Então? Gostaram? Não é magnífico? «É doido varrido», pensaram.
Mas se era doido, nem por isso era menos simpático. Quem teria coragem de o desiludir? Só uma vizinha do prédio em frente, saturada por muito já ter sofrido com experiências do género, não esteve com contemplações. Deitou a cabeça de fora e berrou:
- Gaston! Basta! Não aguento mais!
As gémeas morderam a bochecha para não rir. Os rapazes também se esforçavam para não perder o controlo...
Quanto a Gaston, quase chorava de tristeza. «Falhei mais uma vez! Não posso acreditar! Digam-me a verdade. O produto cheira mal? Eles baixaram a cabeça, embaraçadíssimos.
- Bem...
- Quer dizer…
Elise preferiu ser mais directa: - Tu não tens olfacto?
- Não. Perdi o cheiro há dois anos por causa de um acidente no laboratório.
Ah!
- Já percebi tudo! Outro fracasso.
Sentou-se então numa cadeira de verga, apoiou a cabeça nas mãos e ficou prostrado.
Cheios de pena, aproximaram-se. Gostariam de lhe dizer uma palavra encorajadora, mas o quê?
- Tens que reagir - continuou Elise. – Não foi desta, será na próxima...
- Não vale a pena. Desde que desapareceu a tal fórmula, fiquei transtornado e nunca mais inventei nada de jeito.
Levantando-se de rompante, agarrou a amiga pelos ombros e sacudiu-a.
Só tu me podes ajudar. Já procuraste uma pista na bola de cristal?
Gaston revelara o segredo. Se não explicassem tudo aos rapazes, era pior. Como Elise não queria que fizessem mau juízo acerca do amigo e dela própria, decidiu dar autorização às gémeas para contarem o que sabiam. E mais, sugeriu-lhes que fossem comer qualquer coisa e dar uma volta pela cidade.
- Gaston precisa de se distrair. Vou com ele passear de carro. Daqui a uma hora venham cá ter.
- Eu tenho ensaio geral - disse Bento.
- Então os rapazes ficam contigo, mas as gêmeas voltam para me fazerem companhia. Quero que me ajudem a tratar do problema que me trouxe aqui. Está bem?
- Está.
Já na rua, Teresa e Luísa apressaram-se a contar a sua história sem esquecer nenhum pormenor. Radiantes, concluíram:
- Tínhamos prometido não falar no assunto mas custava-nos imenso.
- Adoramos partilhar convosco todos os segredos. Não é emocionante?
Eles encolheram os ombros com certa indiferença. Vendo-as frustradas, Pedro tentou atenuar o efeito negativo da reacção:
- Essas coisas são engraçadas, claro. Agora emocionantes, só para quem acredita.
- A Elise é uma pessoa exótica, portanto é natural que se interesse por actividades exóticas - acrescentou Maxime. - Ficam-lhe bem.
Que balde de água fria! As gémeas amuaram. Cabisbaixas, carrancudas, entraram num pequeno restaurante típico que vendia especialidades da terra.
- Tarte de queijo e bacon? Chama-se Quache Lorraine? Para mim serve.
Bento quis animá-las.
- E tarte de mirabelle, querem provar? Há também uns bolos de amêndoa fofinhos, estaladiços. A receita foi inventada por umas freiras há trezentos anos. Chamam-se os macarons.
- Está bem. Compra - foi a resposta seca.
- Isto passa-lhes, não ligues - disse o Chico.
Em vez de responder, Bento ficou especado.
Ia olhar para a rua através da montra. O sangue fugiu-lhe da cara, abriu e fechou a boca várias vezes, a testa cobriu-se-lhe de gotas de suor.
- Que foi?
- Sentes-te mal?
Vendo-o dar um passo em direcção à saída, barraram-lhe o caminho.
- Tem paciência! Não vamos começar tudo de novo.
- Se tens algum problema, diz.
- Tenho, sim. Tenho - balbuciou. - Ajudem-me que não posso mais.
O empregado do restaurante fitava-os com desconfiança. Já lhes passara para a mão o pacote com fatias de tarte e receava que inventassem qualquer estratagema de modo a saírem sem pagar. Um dos rapazes acabava de pôr óculos escuros e gorro de lã. Com certeza preparava-se para fazer alguma partida...
Apercebendo-se do que lhe ia no espírito, Pedro entregou o dinheiro, recebeu o troco e propôs:
- Voltamos para casa de Gaston. Lá estaremos mais à vontade.
Esquecidos de que não encontrariam ninguém que lhes abrisse a porta, atravessaram a rua e entraram no pátio. Bento manteve-se sempre no meio deles, encolhido, aflito. Mesmo assim foi quem se lembrou:
- Saíram de carro. A única hipótese é refugiarmo-nos numa das arrecadações.
O termo refugiar não podia ser mais elucidativo. Andava portanto a esconder-se, temia alguém!
Apesar de muitas perguntas lhes queimarem a língua, contiveram-se até encontrarem um abrigo adequado a confidências no local da antiga cocheira. Servia agora de armazém a bidons de produtos químicos, sacas de pó e aparelhos à espera de arranjo ou ferro-velho. Lá ao fundo João descobriu um monte de caixotes onde se podiam sentar. Instalaram-se transpirando impaciência.
Bento, porém, não conseguia articular palavra e mostrava-se desorientado.
- Preferes que a gente faça perguntas? arriscou Maxime.
- Se tens um problema, diz o que foi.
Sim tenho, ajudem-me.
- Sim. Ou melhor, não.
- Se começasses pelo princípio?
- O princípio foi há vários dias.
- Muito bem. Nesse caso basta repetires devagarinho a primeira frase. Ora experimenta lá.
Ele levantou-se e, com um movimento brusco, arrancou os óculos escuros e o gorro, ficando de cabelos em pé. Depois começou a falar num ritmo alucinante.
- Os meus pais estão separados, vivo com a minha mãe, que é actriz. Quando ela parte em tournée mudo-me para casa do meu pai.
Ninguém se atreveu a interrompê-lo, mas entreolharam-se, comunicando a mesma ideia: «Não admira que tenha tanto jeito para o teatro. É de família.»
Esse talento transparecia com clareza na forma de contar histórias. Bento não se limitava a referir pessoas e factos, representava. E de forma tão expressiva que lhes dava a sensação de verem as caras, os sítios, as coisas, enfim, tudo o que descrevia.
- O meu pai é superdespistado. Não admira, porque quase todos os pintores são assim. Pega nos pincéis, mergulha na tela, passa-se para um mundo de sonho e esquece-se de tudo. Por isso às vezes desencontramo-nos. Combino ir lá a casa, ele nunca mais se lembra e sai. Foi o que aconteceu naquela tarde maldita. Toquei à campainha e nada. Ainda pensei voltar para trás, mas como ia para ficar, decidi fazer horas e fui dar um passeio. O prédio é num bairro novo que ainda não está pronto. Há pouca gente nas ruas durante o dia. Andei a explorar a zona...
Com uma pausa sábia redobrou o suspense. Corpo inclinado, voz quase em surdina, gestos contidos, enfim, o actor perfeito.
- Acabei por ir ter a um barracão daqueles que se costumam montar para apoio às obras, sabem como é? Enorme, quase sem aberturas, porta reforçada para ninguém roubar as ferramentas...
- E depois?
- Depois? Aproximei-me porque me pareceu ouvir barulho. Antes nunca o tivesse feito!
As gémeas já não podiam mais:
- Bolas, desembucha!
- O que é que estava lá dentro?
Ele olhou-as, lisonjeado. Não resistia a prolongar efeitos daquele género. Adorava pôr os ouvintes ao rubro.
- Lá dentro estava uma quadrilha... uma quadrilha perigosíssima.
Já dispostas a acreditar em tudo o que lhes contasse, imaginaram de imediato um bando mal-encarado, com barba por fazer e olhar assassino.
- Planeavam pôr uma bomba num armazém. Chico até deu um salto.
- No armazém de comidas?
- Exacto.
- Então sabias o que se ia passar! - exclamou Maxime, assombrado. - Foi por isso que fugiste do museu.
Como as gémeas e o João não percebiam nada, Pedro resumiu em poucas palavras o que acontecera na antevéspera.
- Por que é que não preveniste a polícia?
- Espera aí, ainda não acabei.
Mais calmo, sentou-se numa pilha de caixotes.
- A conversa era de molde a provocar dúvidas. Uma pessoa vê as coisas mais inacreditáveis no Telejornal mas acha sempre que só podem acontecer longe de nós. Estar ali ao pé dos bombistas e ouvi-los discutir pareceu-me esquisito. Uns queriam pôr a bomba à noite, outros insistiam em pô-la de dia porque morrendo gente tinha mais impacto...
- Isso é de mais.
- Foi o que eu pensei. Convenci-me que podia ser um grupo de jovens cineastas a combinarem o argumento para um filme ou para uma série de televisão.
- Que ideia! Com tão mau aspecto não podiam ser artistas - disse a Teresa.
- Nem jovens - acrescentou a Luísa.
- Ora essa! Eu ainda não vos disse como é que eles eram.
As gémeas riram-se.
- Nós é que imaginámos.
- Por que é que eles queriam pôr a bomba? - perguntou o João.
- Chantagem... Falaram dos cúmplices que estão presos. Tanto quanto percebi, tencionavam aterrorizar a população até conseguirem que os amigos fossem libertados.
- Mesmo assim duvidaste? A história faz sentido.
- Claro que faz, mas não quer dizer que seja verdadeira. E eu não tinha provas.
- Há uma coisa que ainda não explicaste. Por que é que foges e te mascaras?
- É que o encontro acabou mal. Um dos tipos resolveu sair e deu de caras comigo.
- E tu?
- Fugi a sete pés! Mas vimo-nos perfeitamente. Se eu sou capaz de o reconhecer em qualquer lado, acho que ele também é capaz de me reconhecer a mim. Na hipótese de ser uma quadrilha, preferi disfarçar-me.
- Que disparate, devias ter contado.
- A quem? A minha mãe não estava, o meu pai afinal tinha partido em viagem...
- Ficaste sozinho?
- Fiquei com a empregada. É uma velhota. Se lhe falasse no assunto, a pobre morria de susto.
- Podias ter contado no liceu.
- Ora! No liceu com certeza ninguém acreditava.
- Então cruzaste os braços?
- Não. Como os tinha ouvido referir um dia, uma hora e um lugar para porem a bomba, resolvi passar por lá. Se andassem nas imediações, se descobrisse algo suspeito, então sim, dava o alerta. Só que não avaliei bem a distância. Atrasei-me. Quando cheguei era tarde.
- E depois? Denunciaste os culpados?
- Claro. O pior é que ninguém me ligou nenhuma. O repórter afastou-me para longe, a polícia nem prestou atenção. Quando telefonei para a esquadra julgaram que era uma rapariga a fazer voz grossa e desligaram-me o telefone na cara. Já tinham recebido uma data de chamadas a reivindicar o atentado ou a denunciar os criminosos. Tudo fantasias de engraçadinhos.
- Bom, mas tu sabes que é verdade. Tens que fazer alguma coisa.
- O quê?
- Não sei.
- Nem eu.
O caso era complicado. Por muito que vassourassem o cérebro em busca de uma sugestão inteligente, não lhes ocorria nada aproveitável.
Bento deslizara para o meio deles. De pé, muito pálido e sereno, ergueu o queixo e inclinou ligeiramente a cabeça, obrigando-os a olhar todos na mesma direcção.
- Andam atrás de mim. Tenho medo.
O silêncio tornou-se pesado. Já não se sentiam em segurança naquele abrigo. Apetecia-lhes fugir porta fora e ao mesmo tempo receavam o que pudessem encontrar do lado de lá.
- Por que é que dizes isso? - perguntou o Chico.
- Porque vi o homem através da montra. Estava nesta rua. Julguei que os tinha despistado quando saí de Paris no carro de Elise. Afinal seguiram-me até aqui.
Pedro tossiu para aclarar a voz. Queria mostrar-se firme, quebrar a tensão.
- Deve ter sido engano. Viste outra pessoa e pensaste que era ele.
- Não. O homem tem uma mancha branca no cabelo. Inconfundível.
- Há muita gente com manchas brancas no cabelo - disse Maxime cheio de boas intenções.
- Ora escuta... - Como de costume, equacionou o problema apresentando hipóteses sucessivas; - Esses tipos são profissionais. Se te andassem a perseguir, já te tinham apanhado. Viste um homem através do vidro da montra e pareceu-te que era o da mancha branca? O mais certo foi tratar-se de algum reflexo de luz no cabelo. Claro que há sempre uma probabilidade em mil... - E, deixando-se arrastar pelo prazer do raciocínio, acabou expondo novas hipóteses aterradoras: - De facto podem ter sabido que vens participar no festival. Bastava falarem para tua casa e a empregada com certeza dizia-lhes. Se perguntassem no liceu, também lhes diziam. Talvez tenham decidido pôr uma bomba durante o espectáculo. Se querem vítimas, que sítio estupendo!
Vendo os outros espavoridos, deteve-se.
- Bom, eu não quero assustar-vos...
Um ruído lá fora cortou-lhe a palavra. Alguém empurrava o portão de mansinho para entrar no pátio. Apesar das precauções, os gonzos davam sinal de si. «Rnhéc...»
Quem seria?
Pregados ao chão, não conseguiam mover um só músculo. Continuavam a ouvir ruídos no pátio como se alguém avançasse em bicos de pés.
O homem teria visto Bento através da vidraça? Teria ficado à coca? Teria ido chamar os cúmplices?
Apavoradas, Teresa e Luísa encolheram-se atrás de uma saca. Depois levantaram-se de rompante. Em caso de bomba era preferível estarem perto da saída... Os rapazes olhavam uns para os outros, indecisos.
- A melhor defesa é o ataque - murmurou o Chico.
Chamando a si toda a coragem, avançou para a porta. À cautela, muniu-se de uma tranca e levantou o braço no ar.
- Se me derem, também levam!
Logo que decidiu agir, o medo deu lugar à confiança. Sentia-se forte, capaz de enfrentar um bando de inimigos. Quase desejava até que estivessem à espera dele, para os zurzir de pancada. Atirou a porta contra a parede e investiu que nem um toiro. A luz do Sol nos olhos cegou-o por instantes mas não se imobilizou. Enquanto agitava as pálpebras para recuperar a visão, fez rodar a tranca no ar em todas as direcções! Como não encontrou nenhum obstáculo, perdeu o equilíbrio e por pouco não se estatelou em cima de um canteiro de urtigas. No meio das plantas estava o causador de tanto sobressalto. Era um gato e já lá ia que nem uma seta a fugir por cima dos muros. Quando na arrecadação ouviram «Miau! Ffss!», saíram todos cá para fora de roldão, entre divertidos e envergonhados. Tanto susto por causa de um gato? Que ridículo!
- Está quase na hora do ensaio geral - disse o Bento. - Não sei o que hei-de fazer.
- Onde é o encontro?
- No sítio onde montaram o palco, a Praça Stanislas.
- É longe daqui?
- Não. É muito perto.
Já de cabeça fria, pareceu-lhes que Bento não corria perigo.
- Nós somos sete. Se alguém tentar agarrar-te, saltamos-lhe em cima e havemos de fazer tal estardalhaço que as pessoas ajudam.
- Claro. A cidade está cheia de gente.
- Em todo o caso vou-me disfarçar.
- Não te disfarces de mais, que é pior. Chámas a atenção.
- Basta pores os óculos escuros.
- Tive uma ideia - disse o João. - Como ninguém sabe que andamos juntos, se te procuram, procuram uma pessoa só. Talvez não reparem num parzinho. Por que é que não dás a mão à Teresa e fingem que são namorados? Era outro tipo de disfarce.
Teresa não ia muito fora disso mas sentiu-se na obrigação de replicar:
- A mim ou à minha irmã. Se calhar ela representa melhor.
Luísa anuiu:
- Talvez. Posso tentar.
- Não, deixa, eu dou um jeito.
Bento aproximou-se, já de óculos escuros e com um sorriso insinuante. Não lhe desagradava nada fazer aquele papel.
Pedro sugeriu que tomassem posições estratégicas.
- Todos ao monte, parecemos parvos. O Bento tem que ir à frente porque é o único que sabe o caminho. Nós seguimo-lo sempre alerta mas com o ar mais natural deste mundo, está bem?
Apesar das boas intenções, saíram dali em procissão, hirtos, empertigados, de olhar nervoso. O único que conseguia mostrar-se descontraído era Bento, o actor. Quem o visse, diria que estava apaixonadíssimo. A própria Teresa já pensava de si para consigo:
«Hum... Talvez a Luísa possa ficar com o Bruno. Gostarmos as duas do mesmo rapaz é disparate.»
Para disfarçar um certo embaraço, pôs-se a olhar em volta com muita atenção.
- Esta zona é antiga, não é?
- Muito antiga. E muito bonita, como tu sussurrou-lhe ele ao ouvido.
Ela sentiu uma onda de sangue tingir-lhe as bochechas mas não se deu por achada.
- Logo vi.
A rua, embora se chamasse Rua Grande, não era muito comprida nem muito larga. As lojas tinham montras forradas de madeira e tabuletas de ferro em vez de anúncios luminosos. Na fachada de um palácio transformado em museu, um cavalo de pedra e o respectivo cavaleiro recordavam tempos de glória.
Passaram perto de uma igreja imponente e penetraram num jardim acolhedor ladeado de prédios simétricos, rectilíneos, construídos de forma a impor um percurso, a obrigar as pessoas a irem até ao fim, a prepará-las para um desfecho-surpresa. Quando transpuseram o último arco detiveram-se, impressionados.
- Que linda praça.
Bento sorriu, orgulhoso da terra da sua avó.
- A Praça Stanislas.
Presos de um encanto indefinível, esqueceram bombas e bandidos para se maravilharem com a leveza e elegância dos edifícios. Eram de pedra muito clarinha, com filas de janelas imponentes a todo o comprimento e remates graciosos numa balaustrada cimeira. Magníficãs grades de ferro decoradas a folha de ouro uniam os cantos. Completavam o conjunto duas fontes monumentais com deuses marinhos, conchas, cavalos, onde a água escorria em cãscata.
O sol derramando-se na pedra, na água, na folha de ouro e nos vidros criava uma atmosfera de sonho, cheia de reflexos dourados, espessos e frágeis, transparentes e cristalinos.
- Tudo isto foi obra de um rei polaco afastado do trono pelos rivais.
- Stanislas?
- Sim. Luís XV de França, seu genro, ofereceu-lhe a Lorena para o consolar. E ele perdeu-se de amores pela terra madrinha, rodeou-se de artistas /arnosos e o resultado está à vista.
- É majestoso!
- Não pode ser mais lindo.
- Acho justo que lhe tenham erguido uma estátua.
A estátua no meio da praça representava o rei de pé, com o braço estendido e um dedo enorme a apontar em frente. Atitude contraditória, pois poder-se-ia pensar que os mandava embora e afinal retinha-os. Não apetecia sair dali.
Junto do pedestal andava imensa gente a dar os últimos retoques no palco improvisado, muito simples, já que o envolvimento servia de cenário.
Circulavam rapazes e raparigas em grande animação. Alguns traziam só a roupa de todos os dias mas outros não tinham resistido aos acessórios da personagem que iam encarnar e exibiam-se de jeans e coroa na cabeça, sapatos de ténis e gola de rainha, chapéu de feiticeiro, cabeça de dragão. E olhavam para toda a gente como quem olha para um espelho, avaliando o efeito da sua própria imagem, numa espécie de volúpia guiosã.
O vaivém permanente tinha dois pólos: o palco e a porta daquilo que parecia ser um palacete mas era a Câmara Municipal, que as autoridades, num gesto de simpatia, abriram aos jovens actores para que as salas funcionassem como camarim. Para lá se dirigiram, à procura de alguém que fizesse parte da organização.
Bento não tirou os óculos escuros e conseguiu convencer o porteiro que devia deixar entrar o grupo, embora só ele figurasse na lista de participantes. Talvez fosse absurdo, mas mesmo num espaço fechado receava encontros desagradáveis. Lá dentro, uma magnífica escadaria dupla dava acesso ao andar superior e desembocava nas salas mais bonitas que imaginar se possa. Amplas, solenes, com pinturas no tecto e nas paredes, muito convidativas para a dança. Nem sequer faltava música, pois uma senhora de expressão meiga e olhos azuis estava lá ao fundo a tocar viola. Duas raparigas repetiam o texto da fábula A Cigarra e a Formiga. Outras ensaiavam passos de dança pela milionésima vez, fazendo rodopiar as túnicas de fada. Quando os viram chegar, deixaram cair os braços.
- Continuem mesmo sem música - disse a senhora, pousando a viola no chão. - Eu vou atender os recém-chegados.
Aproximou-se e recebeu-os da forma mais calorosa. Era uma das organizadoras do festival de teatro que nessa noite reunia em Nancy representantes de muitos liceus e colégios da França. Quando soube que entre eles estavam cinco portugueses fez a maior festa.
- Que coincidência! Sou professora de Português e conheço muito bem o vosso país.
- Gosta?
- Adoro tudo. O sol, as praias, as pessoas. E sinto-me em casa porque sei a língua!
- Virando-se para trás, chamou: - Rita! Vem cá. Temos aqui gente acabadinha de chegar de Lisboa. Podes matar saudades.
Rita era uma das fadas. Pequenina, magrínha, de cabelo preto e olhos escuros. Em vez de se mostrar satisfeita, ficou constrangida, não olhou para eles nem disse uma palavra.
«Que antipática!», pensaram as gémeas.
«Pelos vistos não tem saudades nenhumas», pensou o João.
«Não quer falar connosco», concluiu o Chico. «Se calhar já tem amigos franceses e acha-os mais interessantes.»
Enganavam-se, porém. Rita vivia em França há muito pouco tempo e ainda não se ambientara. Sentia-se profundamente infeliz longe de casa, dos avós, dos primos, dos colegas com quem tinha andado desde a primeira classe. Ela, que costumava até ser muito comunicativa, transformara-se num autêntico bicho-do-mato. Já percebia tudo o que as pessoas diziam mas, quando tentava falar em francês, tropeçava nas palavras e enchia-se de raiva. A pouco e pouco, entupiu. Mesmo em família, a conversa reduzira-se ao mínimo.
Se estava ali, era porque a professora tinha insistido, dizendo-lhe que dançava muito bem e fazia imensa falta no espectáculo. Acabara por aceder, mais para lhe fazer a vontade do que por outra coisa. Mas estava arrependida.
«Já nem dançar sei!», remoía a cada passo. «Estou trôpega, enferrujada.»
Os braços e as pernas não lhe obedeciam como dantes nas aulas de ballet, onde era a melhor. E isso provocava-lhe uma tristeza infinita.
Tentando ocultar os pensamentos negros que lhe atormentavam o espírito, fechou a cara numa expressão tão grave e tão séria que Chico a interpretou à sua maneira:
«Quer armar em intelectual.»
Decidiu então impressioná-la e pôs-se a falar com a professora nuns termos que os outros nunca lhe tinham ouvido:
- A estada em Paris tem sido uma descoberta permanente. Passámos uma tarde no Museu d’Orsay verdadeiramente inesquecível...
Pedro e Maxime desviaram-se para não rir.
- Sabe qual foi a obra de arte que mais me tocou?
A professora encorajou-o com um aceno.
- O Almoço na Relva. Que quadro espantoso!
Sem motivo aparente, puseram-se todos a rir.
- Vocês gostaram?
- Gostámos, gostámos imenso!
Rita continuava muda e quase agressiva. Ouvi-los fazia-lhe mal.
Aquele rapaz chegara há poucos dias a França e já parecia tão à vontade! Até falava de museus e obras de arte com tanta ligeireza que os outros riam!
«Só eu é que não me consigo integrar», suspirou. «Acho que nem consigo apreciar o que vejo à minha volta.»
Instintivamente recuou. Queria afastar-se. Se pudesse, iria mesmo encafuar-se num canto escuro, fechava a porta e apagava a luz!
Por azar chocou com a colega que representava o papel de «Formiga», a Silvana. E esta não se ralou nada! Fingiu que o choque fazia parte da peça e improvisou logo duas ou três frases a chamar a fada para dentro do formigueiro. Toda vestida de preto, com óculos redondinhos e antenas no ar, Silvana era a formiga perfeita. Não podia encaixar melhor na personagem da fábula! E falava, mexia-se, exibia-se com a maior das graças.
Vendo-a tão segura de si, Rita suspirou ainda mais fundo. Toda a gente lhe parecia viva, inteligente, despachada, só ela é que não.
«Quem me dera ver-me livre de mim. Quem me dera ser outra pessoa!»
Um roçagar de papéis desviou-lhe a atenção para uma porta lateral, de onde surgiu primeiro uma macieira de cartão com os frutos vermelhos a dar a dar e só depois o portador afogueado pelo esforço.
- Safa, que isto é pesado!
- Precisa de ajuda? - perguntou Bento. Ele pousou a árvore no chão, limpou a testa com a ponta dos dedos e respondeu:
- Preciso é do carpinteiro para montar este adereço no palco. A senhora por acaso não o viu?
- Qual deles? Há vários a trabalhar no espectáculo.
- Não sei o nome. O que eu procuro tem uma mancha no cabelo.
- Não estou a ver quem seja - disse a professora.
- É natural. Ele não é de cá. Acho que veio de Paris com um grupo que vai actuar, ou qualquer coisa do género.
Bento apoiou-se às costas da cadeira para não cair redondo no chão. As pernas fraquejavam-lhe e via tudo a andar à roda. Os amigos aproximaram-se, muito pálidos também.
Tinhas razão - disse Maxime entredentes.
- Acalma-te.
- Lembra-te que não estás sozinho. Estranhando a mudança súbita de atitude, a professora aproximou-se deles.
- O que foi? Sentes-te mal?
- Não... isto já passa.
Pedro ainda pensou dizer-lhe a verdade. Mas cada frase que compunha mentalmente, parecia-lhe mais absurda do que a anterior: «O homem da mancha não é carpinteiro.» «O carpinteiro é bombista.» «O homem da mancha disfarçou-se de carpinteiro para vir atrás do Bento.» «Pode não ser a mesma pessoa, mas é muita coincidência.»
Especado no meio da sala, pestanejava sem cessar. Incapaz de encontrar uma formulação lógica, acabou dizendo:
- Entrou-me qualquer coisa para o olho que me está a incomodar imenso.
Assim tinha um pretexto para enfiar os dedos por baixo dos óculos e tapar a cara. Queria virar-se para dentro e pensar melhor.
Um estalo na cara não teria tido efeito mais violento do que aquele homem em fato-macaco e martelo na mão.
- O carpinteiro! - exclamaram a uma só voz.
A reacção foi entendida como solidariedade para com o homem da macieira, que ficou contentíssimo.
- Ora ainda bem que apareceu. Andava louco à sua procura. Está na hora de plantarmos esta linda árvore!
Olharam todos para o Bento à espera que fizesse qualquer coisa. Ele sorria, entre sereno e aparvalhado. E apontou para a cabeça do carpinteiro com um gesto intencional.
- O senhor tem o cabelo sujo de tinta.
- É verdade. Foi o pintor que me despejou uma lata em cima. Vai ser um castigo para me ver livre da mancha!
E a mancha era amarela!
- Foi engano? - perguntou Maxime de forma quase imperceptível.
Bento chamou-os de parte.
- Não foi nada. O tipo que me persegue é outro e eu vi-o. Por amor de Deus não se vão embora. Preciso da vossa companhia no ensaio geral. Sozinho acho que não consigo encadear duas frases seguidas.
- Está bem, não te aflijas.
- Nós combinámos ir ter com a Elise lembraram as gémeas.
- Mas não faltam ao espectáculo?
- Claro!
Pedro ficou pensativo. Aquela história já lhe estava a fazer muita confusão. Revendo cada peripécia, podia concluir que nunca tivera pela frente nada de concreto. Na verdade, só o comportamento de Bento mais os seus relatos fantásticos serviam de suporte à malfadada rede de bombistas. Ora Bento tinha o teatro na pele. Talvez tudo aquilo se resumisse a uma encenação, magnífica aliás, já que lhes deixara a alma num susto.
«Ou tem uma imaginação doentia, ou necessita de público em permanência, ou então anda-se a divertir à nossa custa», pensava também Maxime.
Ambos tinham vontade de o encostar à parede, de o obrigar a dar pormenores. Se fosse mentira, havia de cair em contradições, trair-se. Mas puseram a ideia de lado. Pela janela viam o palco, os preparativos, a alegria dos actores, dos bailarinos, dos músicos. Esperar era um sacrifício, mas sacrificaram-se por amor às artes.
Sacrifício idêntico faziam as gémeas, a quem não apetecia nada afastarem-se daquele sítio tão animado e emocionante. Mas por muito que lhes custasse, não podiam faltar ao compromisso de ajudar Elise a conseguir uma nova bola de cristal.
- Seja pelas artes de adivinhação!
Viajaram em silêncio quase todo o caminho.
- É muito longe? - perguntou Luísa com um bocejo.
- Não. Estamos a chegar.
- Ainda bem. Sinto-me tão mole.
- E eu. Que sono!
A má disposição passou-lhes quando saíram do carro. Estavam numa aldeia pequenina rodeada de campos verdejantes. No ar puríssimo, leve, flutuavam os aromas esquecidos da terra molhada, feno, lenha cortada de fresco. Uma grande paz envolvia as ruas, as casas, a igreja e o campanado. Não se via por ali ninguém.
- Que sossego.
- Parece que entrámos numa gravura. Adiante viram dois homens a conversar. Um deles era grande, forte, de bochechas coradas e olhos azuis. O outro bastante moreno. Respiravam saúde e alegria de viver. Ficavam bem na paisagem.
Elise dirigiu-se para lá e foi perguntando sem mais delongas por Pedro Veloso.
Acolheram-na com tanta naturalidade que até dava gosto. Mas nas aldeias é mesmo assim, as pessoas ainda são capazes de falar com desçonhecidos sem os porem à distância.
- O Pedro? Estão com sorte. Ainda agora fomos buscá-lo
- Aquele rapaz só compra carripanas velhíssimas e passa a vida empanado em tudo quanto é sítio. Depois telefona a pedir ajuda e aqui o nosso presidente manda o jipe da Câmara para o trazer.
O ambiente na aldeia correspondia portanto ao que tinham imaginado. Todos se conheciam pelo nome e funcionavam como uma grande família que se entende bem.
Sabendo que Elise queria fazer uma encomenda por ter visto a exposição em Paris, exultaram.
- Tenho a certeza que o trabalho lhe agradará. Ele tem o cristal no coração.
Ao ouvir aquilo, as gémeas vibraram de contentes. Sem saber, o presidente repetira uma frase de Elise.
«É bom sinal!», pensavam ambas, cheias de esperança.
Já que de alguma forma tinham sido culpadas pelo desastre, queriam ser elas a encontrar a solução.
- Venham comigo até à fábrica onde trabalham os pais e os tios. Julgo que ele foi lá dizer que chegou - propôs o senhor de olhos azuis.
Tal como o resto da aldeia, a fábrica parecia tirada de um livro de histórias. Barracões de tijolo escurecido, grandes chaminés à moda antiga e uns armazéns deliciosos albergando montanhas de vidro partido, montanhas de areia finíssima, vagonetes em metal.
- Foi aqui que o Pedro começou a sua carreira. Fez muitos copos, frascos, jarras. Depois, quando percebeu que era capaz de criar modelos originais, montou um atelier privativo. E tornou-se um grande artista.
O artista apareceu finalmente. Trazia um capacete de mota debaixo do braço, jeans bastante velhos e blusão em cabedal castanho com arranhões e esfoladelas. Usava cabelo comprido préso por um elástico.
Talvez demasiado jovem e moderno para o efeito que pretendiam...
Se Elise partilhava as mesmas dúvidas, não ficaram a saber, pois assumira uma expressão tão misteriosa como quando a tinham visto pela primeira vez. Afastou-se com o rapaz, explicando-lhe o que desejava sem ninguém ouvir.
Pelos acenos e trejeitos, as gémeas calcularam que a resposta devia ser: «Isso nunca fiz, mas posso tentar.» Não se mostrava surpreendido. Na sua cabeça surgiram maravilhas que imprimia ao cristal, por fora. Aquela senhora adivinhava maravilhas no cristal, por dentro. Desconfiar, porquê?
Entraram num barracão imenso, escuro, que mais parecia uma oficina de gigantes trabalhando em segredo para conseguir objectos proibidos.
Homens altos, fortes, em tronco nu, retiravam do forno pedaços de massa incandescente e mole na ponta de uma vareta. Depois entregavam-na aos companheiros, que se punham a soprar devagarinho. À medida que sopravam, a massa estendia-se, alargava, encolhia, tomava a forma prevista como por encanto. As peças assim obtidas eram leves, frias, transparentes. Da matéria-prima, nem sinais!
Pedro Veloso pediu autorização, sentou-se ao pé do forno, levou a vareta aos lábios e começou a soprar.
Os outros homens observavam Elise de través. Por que motivo vinha de longe encomendar com a maior urgência uma coisa tão simples? Fantasias de quem não tem que fazer.
Mas o pai, a mãe, o irmão e os tios de Pedro pensavam de outra maneira:
«Já vem gente de Paris, só para lhe encomendar uma bola...»
E olhavam-no como os habitantes do reino do vidro olhariam o seu príncipe.
Assim que a obra ficou pronta, colocou-a numa caixa com mil cuidados.
- Aqui tem. Fiz o melhor que pude. O résto... é consigo!
- Será que funciona? - perguntaram as gémeas.
- Espero bem que sim. Vou tentar concentrar-me ao máximo e depois digo-lhes o resultado.
As despedidas foram rápidas. Elise quis regressar a Nancy a grande velocidade.
Já à porta de Gaston mandou-as embora.
- Vocês já provaram que são explosivas! Deixem-me só.
- Então vamos assistir ao teatro.
- Isso. Divirtam-se.
Teresa e Luísa correram para a Praça Stanislas. Ainda não tinham chegado e já ouviam palmas! O espectáculo decorria com o maior sucesso.
Estabelecera-se uma espécie de corrente eléctrica entre o público e os actores, porque as crianças presentes, e eram muitas, encaravam aquele mundo de sonho como se fosse real. E os jovens, sentindo o efeito que produziam, esqueciam-se de si mesmos para serem apenas bruxas, génios, gnomos...
Quando apareceram as fadas, o entusiasmo chegou ao rubro.
Rita deixara-se envolver pelo encantamento geral. De braços no ar, leve como uma borboleta, quase nem pisava o chão.
Atrás do palco, a estátua do rei polaco comunicava-lhe uma mensagem amiga:
«Também eu fui estrangeiro aqui. Também olhei os outros e fui olhado com desconfiança, tristeza, indiferença. Depois correu tudo bem. O entendimento conquista-se, mas quem chega é que tem de dar o primeiro passo. É sempre assim, quer se chegue de visita, para ficar ou até de regresso a casa»
E parecia indicar-lhe o caminho mais rápido com o seu dedo de bronze.
«Procura a escola de ballet. Mostra o que vales, sai do casulo!»
A música não cessou de repente. Ainda havia acordes no ar quando agradeceram com uma vénia.
Ofegante, Rita fez uma última pirueta no meio das companheiras e inclinou-se de modo a relançar-lhes uma mirada cúmplice. Tinham dançado tão bem! Todas lhe devolveram o mesmo sorriso feliz.
- Bravo! Bravo!
Aplausos em delírio saudaram todos os grupos que se exibiram. No entanto, se estivesse previsto eleger alguém como vencedor, a escolha recairia no Bento, o incomparável génio da floresta!
Os amigos receberam-no em apoteose, sem perceber de imediato que a sua agitação não era euforia e sim pânico.
- Temos de fugir! Temos de fugir!
- O quê?
- Depressa. Vi o homem da mancha entre os espectadores.
Pedro encolheu os ombros.
«Mal acabou de representar uma peça, quer começar outra... é preciso ter muita paciência para aturar estrelas!», pensou.
- Então não te vais mudar?
- Não há tempo. Não há tempo a perder. Fora do palco, aquele fato verde muito largueirão, as barbas até aos joelhos e o chapéu em bico, descomunal, davam-lhe um aspecto grotesco. Seguiram-no, bastante contrariados.
- Que disparate! - resmungavam entre si.
- Não acredito nada que tenha visto seja quem for naquela barafunda. E mais. Se calhar é tudo invenção.
Maxime, um pouco incrédulo também, ainda contrapôs:
- Ele não costuma ser mentiroso.
- Também não digo que nos esteja própriamente a aldrabar. Mas talvez não resista a fazer representações sucessivas. Quer mais palmas.
A correria terminou à porta de Gaston, onde depararam com Elise a meter-se no carro.
- Onde vai?
- Seguir uma pista...
- Quer dizer que a bola de cristal funcionou?
- Na perfeição! Melhor do que a outra, se possível for.
Bento não se deu ao trabalho de ouvir a conversa. Enfiou-se de cabeça no banco traseiro, amachucando o chapéu e largando tufos de barba, que arrancou com violência. Os adereços voaram pela janela fora.
- Leve-me consigo.
- É melhor não - disse Elise. - Com certeza estás cansado. Ficas aqui com os teus amigos.
Ele cortou-lhe a palavra.
- Por favor, leve-me! Por favor!
- Está bem, pronto. Mais alguém quer vir? Como não tinham sono e a perspectiva de um passeio nunca é para desprezar, instalaram-se todos na carrinha.
Gaston ficou a dizer-lhes adeus. Distraído como sempre, continuou a acenar mesmo depois de terem desaparecido.
Ia a entrar em casa quando dois indivíduos o abordaram delicadamente, perguntando se era ali que ficara alojado um rapaz parisiense que desempenhara o papel de génio no encerramento do festival.
- Usou um fato verde e barbas até aos Joelhos...
O cientista inclinou-se e apanhou do chão as barbas e o chapéu.
- Isto?
- Isso mesmo. É ele. Sabe onde está?
- Sei. Neste momento, a caminho da minha casa de campo, nos Vosgos.
- Mas que transtorno!
- Porquê?
- Por que vai haver uma ceia e no fim distribuição de prémios. Ele ganhou o primeiro prémio.
- Oh! Então têm absolutamente que o ir buscar. Não é muito longe. Eu explico-lhes onde fica a casa, ou melhor, a cabana. É uma pequena cabana de montanha.
Cheio de boas intenções, apressou-se a fornecer os elementos necessários para que pudessem chegar até ao Bento. Os homens agradeceram! dispondo-se a ir buscá-lo. Que simpáticos!
Só quando se afastaram é que Gaston se lembrou que não lhes perguntara o nome.
- Se não derem com o sítio, nem sequer posso dizer ao rapaz quem é que o procurou.
Meteu a chave à porta, rodou a fechadura tentando ao menos recordar-se de algum pormenor que servisse de identificação.
- Já sei! O mais alto tinha uma mancha branca no cabelo...
A cabana era um assombro! Feita de troncos, com uma enorme chaminé em pedra, lâminas de ardósia a rematar o telhado e assim escondida no meio da floresta, parecia a casinha dos anões da Branca de Neve. Por dentro, não podia ser mais acolhedora. Sobre as tábuas do soalho estendiam-se várias peles de carneiro, tão fofas que convidavam a uma soneca. Havia estantes a abarrotarde livros, um armário de comida, mesa, bancos e cestos com toros e jornais velhos.
- Vou acender o lume - disse o Chico
- Eu ajudo.
Enquanto eles se entretinham a atear as chámas, Elise lançara-se numa busca desenfreada pelas estantes.
- Afinal qual era a pista? - perguntou a Teresa.
- Se não me enganei, a fórmula está dentro de um livro nos Vosgos. O mais lógico portanto é que esteja aqui. O Gaston julga que lha roubaram na altura do assalto, mas com certeza tinha-a metido num livro que deixou por cá nas férias ou num fim-de-semana.
Uma chamazinha irrompia, fazendo crepitar os galhos secos. O calor atraíra-os para junto da lareira. Bento encafuara-se tão perto que tinha as bochechas a arder.
- Estou exausto!
- É natural. Aproveita e descansa.
- Cá por mim tenho é fome.
- Querem comer? Procurem no armário. Há sempre provisões de emergência - disse Elise.
Vasculharam as prateleiras mas, além de uma saca de batatas, só descobriram queijo.
- Pena não termos trazido pão. Ao menos fazíamos sandes.
Desanimada com a longa tarefa que tinha pela frente, Elise abandonou os livros e arregaçou as mangas.
- Isto vai demorar mais tempo do que eu pensava. Com certeza passamos aqui a noite, portanto é necessário cozinhar uma refeição.
- Com quê? Não há nada!
- Há batatas. Encham a panela grande com água e ponham-na em cima das brasas.
Cozidas que foram as batatas, ensinou-os a derreter fatias de queijo numa frigideira e a ensopar as batatas naquele molho elástico.
- Se pensam que é recurso, enganam-se. Batatas com queijo derretido é um prato tradicional muito apreciado na Lorena. Ora experimentem.
Quem provou primeiro foi o Chico.
- Hum! Que delícia.
Todos lhe seguiram o exemplo e adoraram. Se mais houvesse, mais comiam. A despensa do Gaston ficou no ponto zero.
De barriga cheia, recostados nas peles de carneiro, deixaram-se invadir por um agradável torpor e quase adormeciam a olhar para as labaredas.
Elise retomara as pesquisas, mas, como amontoava os livros no chão, o aposento ia ficando num pandemónio. Pratos, copos, talheres e cascas de batata para um lado. Pilhas de livros, cadernos de apontamentos e dossiers para o outro.
- Nem posso pensar que amanhã antes de irmos embora temos que arrumar esta tralha toda - suspirou a Luísa.
Bento, que tinha comido em silêncio e em silêncio continuava, pestanejou. Depois espreguiçou-se.
- Talvez alguém o faça por nós.
«Que será que vai inventar agora?», pensou o Pedro.
Mas não se tratava de invenção e sim de uma lenda, muito engraçada.
-A floresta dos Vosgos é habitada por seres fantásticos - explicou. - O mais simpático cháma-se Sotré. É pequenino, peludo, com pés de cabra. Tem uma força colossal e pode tornar-se invisível e mudar de tamanho para entrar onde lhe apetecer. Pelo buraco da fechadura, por exemplo...
À medida que ia falando, esquecia os seus problemas. Levantou-se e, como de costume, deu ao relato uma vivacidade tal que os amigos passaram a espectadores.
- Durante o dia, o Sotré dorme no fundo de um poço, de um rio ou de um lago. Também acontece refugiar-se nos campanários. À noite, quando todos dormem, não pára quieto. Se a madeira estala, se as tábuas rangem, é ele que anda por aí a fazer ronda... e se gosta das pessoas da casa, arruma tudo muito bem arrumadinho, limpa o pó, lava a loiça...
- Excelente! Vê se o chamas que precisamos de ajuda - disse João na brincadeira.
Bento ainda não tinha terminado. No meio da sala, com a fatiota de génio e restos de barba esfiapada, as bochechas vermelhas e o olhar brilhante, parecia ele próprio um ser fantástico dos Vosgos.
- Não me atrevo a chamá-lo, porque é muito susceptível... Só vem quando lhe apetece. E se embirra com as pessoas, faz as piores tropelias. - Saltando ora num pé ora no outro, concluiu: - Espalha pó, fura tachos e panelas, mete cabelos na comida e despeja a despensa porque é muito guloso...
- Isso já nós fizemos.
- Somos um bando de Sotrés. Satisfeito, risonho, julgando-se em segurança naquele recanto do bosque, agarrou uma das gémeas pela mão e propôs:
- Vamos até lá fora apanhar ar fresco? Ela hesitou.
- Vai - disse Elise. - Olha que as lendas têm sempre um fundo de verdade. Os seres fantásticos de certo modo correspondem a forças naturais, vibrações positivas desta montanha... vale a pena absorvê-las.
Saíram então os dois, ficando os outros em grande risota.
- Temos romance!
- E a ideia foi minha. Propus-lhe que fimgisse namorar a Teresa como disfarce e aquilo pegou.
- Os artistas não conseguem distinguir a realidade da fantasia!
Só a gémea não dizia nada.
- Que é que tens, Luísa?
- Ficaste aborrecida por ele gostar da tua irmã?
- Eu não sou a Luísa, sou a Teresa. Os rapazes desataram à gargalhada.
- Ha! Ha! Ha!
- O tipo enganou-se!
- Também não admira, vocês são iguais!
- Não te rales. Quando ele perceber que não és tu, vem trocar de namorada.
- Se me deixassem em paz, hã?
- Como sou teu amigo, em vez de te deixar em paz, vou tratar do assunto - disse o Chico.
Abriu a porta e gritou:
- Bento! Bento!
Não obtendo resposta, insistiu:
- Bento! Luísa! Onde é que se meteram? Ao fundo da clareira as plantas moveram-se, numa restolhada.
- Ah! Estão ali.
Avançou então muito silenciosamente, porque queria pregar-lhes uma partida. A surpresa foi completa. Diante de si estava um veadinho a roer cascas de árvores! Chico estacou, maravilhado.
Não cultivava grandes emoções poéticas, mas aquilo era de mais. Um veado na floresta e ele a ver! Sozinho, sem testemunhas, deu-se ao luxo de recuar a infância e de se deixar invadir por uma onda de ternura. Que lindo!
A cena não durou senão breves instantes porque o animal fugiu.
- Bom, vamos lá a ver onde é que se meteram aqueles dois. Aqui não estão
Enveredou por um caminho íngreme que contornava o morro. A vegetação era cada vez mais densa. Arrefecera bastante e um vento agreste levantava-se, assobiando por entre as ramagens. O céu dava sinais de tempestade
- Não tarda, começa a chover. Mas onde é que eles se meteram? Se calhar desencontrámo-nos.
Já se dispunha a voltar para trás quando lhe pareceu ouvir um grito abafado. Inquieto acelerou o passo e qual não foi o seu terror quando viu Bento e Luisa serem levados à força por três matulões.
Que fazer? O raciocínio disparou-lhe em flecha. Sem ajuda, não podia enfrentar tanta gente Se gritasse? Na cabana, demasiado longe, não o ouviam. Quem o ouvia de certeza eram aqueles indivíduos.. Só havia uma hipótese, barrar-lhes O caminho, impedi-los de ir embora. Mas como? Calculando que tivessem um carro no limite da estrada transitável, lançou-se a corta-mato por -entre moitas, troncos, arbustos, sem se importar com os picos que lhe arranhavam a pele Quase a deitar os bofes pela boca, conseguiu chegar onde queria poucos segundos antes dos outros. Mas foi o suficiente para sacar do canivete que sempre trazia no bolso e furar os dois pneus traseiros! Com» a precipitação, não reparou que o caminho era muito estreito, que o carro estava estacionado mesmo à beirinha de uma ribanceira, e, quando recuava uns passos para se esconder, perdeu o equilíbrio, caiu desamparado e foi a rebolar por ali Abaixo até que bateu com a cabeça numa árvore e desmaiou.
Teresa já tinha ido espreitar à porta várias vezes.
- Nunca mais aparecem - resmungou
- Pois não. É por causa das «forças naturais»...
- O quê?
- As forças da montanha são tão fortes que agarram as pessoas. Quem lá vai, lá fica
- Que disparate.
- Por que é que estás tão preocupada, hã?
- Porque vai chover, é só por isso.
- Descansa que aos primeiros pingos, voltam Ela bem gostaria de falar no pressentimento negativo que lhe tomara conta do espírito, mas receando mas interpretações, disse apenas- Vou procurar a Luísa.
E saiu. Eles foram atrás, mais para se divertirem com o encontro, do que por outra coisa
- Não se afastem muito que se podem perder! - lembrou Elise.
- A gente vem já.
Começaram por percorrer a clareira, certos de que os amigos estavam por ali. Não os vendo puseram-se a berrar:
- Chico! Luísa!
- Bento!
Nada.
- O que será que lhes aconteceu? Embora não confessassem, começaram a sentir um vago mal-estar.
Teresa tomou balanço e declarou:
- Tenho a certeza que a Luísa está em perigo.
A frase deixou-os sem pinga de sangue, porque as gémeas já tinham dado provas de possuírem uma inexplicável capacidade de comunicação à distância. Mas tentaram sossegá-la.
- Que ideia!
- Com certeza estão por aí.
- Então por que é que não respondem?
- Não ouvem por causa do vento.
Uma rajada forte fez balançar a copa das árvores e o assobio longo, fino, ondulante, avolumou-lhes a inquietação.
- Não deve ter acontecido nada de especial mas acho melhor avisarmos a Elise. Se calhar perderam-se.
- Não te aflijas. Ela conhece esta zona muito bem e encontra-os enquanto o diabo esfrega um olho!
Teresa não respondeu e entrou em casa com tal angústia no rosto que Elise ficou alarmada.
- O que foi?
- Desapareceram!
Ela nem fez mais perguntas e saíram todos outra vez, agora munidos de pilhas e com o coração pequenino, pequenino...
Dividiram-se em grupos para procurarem melhor. E chamavam em altos berros:
- Luísa!
- Bento!
- Chico!
Os gritos ressoavam na floresta, mas quanto a resposta, nada. A inquietação ia aumentando de momento a momento.
Pedro, aflito, olhava para todos os lados, mas dos amigos nem sombra. João teve a triste ideia de perguntar:
- Há lobos?
Apesar da resposta negativa, sentiram-se mais desamparados do que nunca. Òh! Se ao menos tivessem trazido o Faial...
Um pouco adiante Maxime estacou.
- Olhem! Vejam isto!
Fez incidir o foco de luz e mostrou-lhes uma série de ramos partidos, repisados, e dois farrapinhos de fatiota verde presos num pico.
- Apanharam o Bento.
- Houve luta - concluiu o Pedro atónito. Um calafrio percorreu-lhe a espinha de alto a baixo. Que remorsos! Afinal era verdade! Os bombistas tinham-no seguido até ali, tinham-no capturado juntamente com a Luísa e, o Chico e tinham-nos levado sabe Deus para onde!
Teresa largou num choro convulsivo. João abraçou-a. Enquanto isso Pedro tentou seguir o rasto deixado pelo grupo e Maxime pôs Elise ao corrente da história toda. Ela caiu das nuvens e ficou possessa.
- Por que é que não me disseram antes? Um problema tão grave e ficaram calados?
Pedro viu-se obrigado a confessar que a culpa era dele.
- Pensei que fosse mentira...
- E vocês?
- Nós? No fundo também duvidámos. Era tudo demasiado fantástico.
- Pareceu-nos que ele queria armar em herói... acho que fomos apressados a julgá-lo.
- Somos sempre apressados a julgar os outros! - balbuciou Elise, desnorteada. - E agora?
- Agora seguimos esta pista.
Atrás do Pedro, seguiram por um trilho de plantas esmagadas. Quando se aperceberam que havia marcas de pneus na berma do caminho, ficaram estarrecidos.
- Foram de carro. Nunca mais os apanhamos!
- Pschiu! Escutem...
Apuraram o ouvido. Alguém gemia baixinho não muito longe dali. Rápido e despachado, João desceu a ladeira e logo soltou um berro.
- É o Chico! Encontrei o Chico!
- Onde estás? - perguntaram.
- Aqui em baixo!
- Mas onde? Não te vemos.
As árvores e o mato ocultavam os rapazes.
- Fala, para te localizarmos.
Ele hesitou. Quando se diz a uma pessoa: «Fala», geralmente essa pessoa não sabe o que há-de dizer. Mas acabou por descrever a situação.
- Só encontrei o Chico. Está desmaiado. Vou tentar acordá-lo.
O som da voz foi substituído por sons de estalada na cara: «Baf... Baf...»
Quando os outros chegaram ao pé, já ele recuperara os sentidos. Não precisaram de perguntar nada porque lhes resumiu tudo em poucas palavras:
- Raptaram-nos. Como furei os pneus, não podem ter ido longe.
Depois levantou-se e, ainda cambaleante, trepou encosta acima com os outros na peugada.
Elise não conseguia acompanhar aquele bando de jovens! Há muito que não fazia escaladas e os sapatos de salto alto impediam-na de se mover com a agilidade necessária. Fartou-se de chamar mas eles corriam como loucos pela estrada.
Um clarão roxo iluminou o céu, logo seguido pelo ribombar de mil trovões que ecoaram na montanha. «Caboumm... Boum... Boummm...»
- Vem aí uma tempestade daquelas...
Mal acabara a frase, desabou uma chuva torrencial de bátegas em remoinho!
Encharcada até aos ossos, dirigiu-se à carrinha. Os caracóis soltaram-se e colaram-se-lhe à cara em pastas, partiu um salto do sapato, a sombra dos olhos desbotou.
- Vou buscar ajuda à aldeia mais próxima... acho que é Rémiremont.
E acelerou a fundo, pedindo a Deus que as pessoas da aldeia não a tomassem por uma doida fugida do manicómio.
- Tenho que tentar tudo para salvar a Luísa e o Bento!
Luísa e Bento bem precisavam que os salvassem!
Depois de capturados, viajaram algumas centenas de metros no automóvel, que sacolejava de uma maneira incrível e derrapava descaindo nas jantes.
- Temos os pneus em baixo! E logo os dois. Nenhum deles se atrevia a articular palavra, com medo de represálias.
O homem da mancha branca largou o volante e ordenou:
- Saiam!
Deu-lhes um encontrão e foi-os empurrando pelo caminho. Os outros estavam fulos.
- O melhor é acabar com isto sem demora! O fragor da tempestade não permitiu que ouvissem o resto da conversa, mas era óbvio que combinavam qualquer coisa. No entanto, continuaram a avançar por um atalho.
- ... aquele abrigo de montanha serve! gritou um deles... - Vão buscar os explosivos.
Bento e Luísa entreolharam-se, pálidos de terror! O homem rebentara a porta do abrigo para os enfiar lá dentro. Depois amarrou-lhes os pulsos e os tornozelos e armou uma laçada para os prender à trave de madeira que segurava o tecto. Não contente com isso, enfiou uma mordaça em cada um. Não se podiam mexer nem gritar!
Os outros apareceram pouco depois com uma espécie de pequeno baú em metal.
- Tenho aqui uma carga suficiente para fazer ir tudo pelos ares. É o ideal, porque não deixa grandes vestígios.
E começou a preparar os materiais com os gestos seguros de quem sabe o que está a fazer.
Os companheiros olhavam alternadamente para as ferramentas e para eles. Vendo-os tão pequenos e indefesos, ainda argumentaram:
- Achas que vale a pena?
- São dois miúdos.
- Miúdos ou graúdos, tanto faz. Não admito que ninguém se atravesse no nosso caminho.
- Hum... não creio que possam prejudicar-nos!
- Vocês estão doidos? Viemos atrás deste fedelho e agora põem-se com parvoíces?
- Mas nós não o tínhamos visto. Julgámos que fosse mais velho.
- Então é uma questão de idade?
- Claro. Se forem denunciar-nos achas que alguém acredita?
- Não sei, mas não quero correr riscos inúteis. - Sem nunca parar de ligar os fios para montar a bomba de relógio, continuou: - Temos que levar o nosso plano até ao fim. Se cometermos o mínimo deslize, em vez de livrarmos os outros da cadeia nós é que lá vamos parar e para o resto da vida!
- Tens razão. Dois miúdos a mais ou a menos, pouca diferença faz.
- Já está. Vamos esperar lá fora.
- Esperar? Para quê?
- Para ter a certeza que não há percalços... Bento e Luísa ficaram sozinhos. A chuva e o
vento açoitando a floresta tinham-se tornado um rumor longínquo. Dentro da cabeça deles ecoava o tic... tic... tic... da bomba de relógio, que lhes parecia cada vez mais forte. Quanto tempo demoraria o suplício?
- Chico!
- Schiu. Não faças barulho.
Ocultos pela folhagem, tinham assistido às entradas e saídas da quadrilha.
- Deixaram-nos fechados no abrigo! exclamou a Teresa. - Vamos soltá-los.
Mas Pedro agarrou-a por um braço.
- Espera!
A atitude dos homens parecia-lhe suspeita. Então davam-se ao trabalho de ir procurar o Bento tão longe só para o fecharem num abrigo de montanha?
- Ou já os mataram ou puseram uma bomba - disse Maxime.
Teresa abafou um grito.
- Controla-te - ordenou o Pedro. - Se queres salvar a tua irmã tens que te controlar.
- Faço o quê? Faço o quê?
Com a voz entrecortada de emoção, esboçou-lhes um plano.
- Vamos tirar partido do facto de vocês serem iguais. Mostra-te. Quando te virem, julgam que a tua irmã fugiu e tentam apanhar-te. Tens coragem?
- Tenho! Claro que tenho!
- Quando começar a correria, o Chico e o João correm também, cada um para seu lado de modo a desnorteá-los. Eu e Maxime entramos na cabana e soltamo-los. Estão prontos?
Teresa nem esperou o sinal de partida! Saltou a moita de braços no ar, gritando:
- Socorro! Socorro!
A chuva abrandara, as nuvens tinham-se dissipado ligeiramente e a luz da Lua iluminou-lhe as feições.
- A miúda escapou! - disseram os homens em coro.
- Agarrem-na!
Mas não era fácil agarrá-la. Tanto vólei, tanto desporto, tinham-lhe conferido uma bela musculatura e grande resistência. Com a mesma rapidez com que tinha aparecido, Teresa desapareceu, galgando a moita a pés juntos! Chico e João dispararam também em direcções opostas. A restolhada tornou-se confusa e os homens berravam:
- Por aqui!
- Não! Por aqui...
Atarantados, enveredaram cada qual por seu caminho.
«Já sei o que sentem as raposas em dia de caça», pensou o Chico, sem abrandar a correria desenfreada. «Pobres bichos...»
Uma associação de ideias brilhantes veio ajudá-lo. A raposa é manhosa, quem é manhoso tem manha, quem tem manha, engana...
«Vou fazê-lo cair numa esparrela», decidiu.
Meu dito, meu feito. Deixou que o perseguidor se aproximasse o suficiente para ver um vulto. Depois aproveitou um desnível de terreno e agachou-se. O ruído de passos desapareceu e o homem, perplexo, parou.
Muito quieto, em posição de alerta, Chico preparava-se para actuar.
«Estás à espera de encontrar uma rapariguinha assustada? Pois vais ter uma grande surpresa... Eh! Eh! Eh!»
Deixou que ele se aproximasse e, quando já o tinha ao alcance da mão, irrompeu num ímpeto feroz. De dentes arreganhados, soltou um verdadeiro rugido de fera.
- Uáá!
Ao mesmo tempo enfiava-lhe uma cabeçada no estômago.
Com o impacte, o homem foi projectado a alguns metros de distância e caiu redondo no chão, sem perceber donde tinha surgido aquele louco.
Aproveitando-se da vantagem, Chico ferrou-lhe uma paulada na nuca que o deixou fora de combate. Depois esfregou as mãos contentíssimo.
- Menos um!
Apercebeu-se então que um dos amigos devia andar nas imediações e seguiu atrás, devagarinho, caminhando na ponta dos pés...
João adoptara a táctica do coelho. Pequeno, ágil, correu para longe da cabana e, quando se sentiu cansado, enfiou-se num tronco oco que estava ao comprido no chão, onde um adulto não cabia. Pensava assim reter o perseguidor tempo suficiente para que Pedro e Maxime pudessem cumprir a sua tarefa.
Furioso, o homem tentou obrigá-lo a sair, mas quando enfiou o braço lá dentro sentiu uma dor aguda e retirou os dedos a sangrar. João ferrara-lhe uma dentada digna do Faial.
- Enfiaste-te na toca, mas já vais ver o que te acontece!
Desatou então aos pontapés, sem outro efeito para além de se magoar horrivelmente porque a casca era mais grossa do que parecia.
Ignorando que havia gente atrás de si, ajoelhou-se e enfiou a cabeça pelo buraco...
Chico não pensou duas vezes! De um salto escarranchou-se-lhe em cima e entalou-o na abertura.
- Ai! Mas o que foi isto?
A voz soava abafada na madeira. Do outro lado escapulia-se não uma rapariga mas um rapaz! Afinal o bosque pululava de estranhos seres poderosos e vingativos...
- Tirem-me daqui! - berrava, na esperança de que os companheiros o viessem ajudar.
- Socorro!
- Calma! Calminha.
Para completar o trabalho, Chico enfiou-lhe outros pedaços de tronco nas pernas e nos braços.
- Já viste que linda árvore humana? Ha! Ha! Ha!
Privado das articulações, o homem ficou a estrebuchar sem conseguir soltar-se.
Tinha parado de chover e das folhas escorriam pingos grossos que ao caírem nas poças faziam «plinc».
- Vamos até à cabana. Suponho que esteja tudo resolvido!
Mas não estava...
Pedro e Maxime viviam os momentos mais angustiantes da sua vida.
Quando viram os amigos presos e amordaçados num canto, correram para eles. Bento emitia estranhos ruídos, espetando o queixo para a esquerda. Arrancaram-lhe a mordaça e só então ele pôde gritar:
- A bomba! A bomba!
A consciência do perigo iminente paralisou-os. Implacável, o relógio continuava o seu curso: tic... tic... tic...
- Está quase a rebentar!
Não se atreviam a tocar-lhe pois já tinham visto centenas de filmes com explosivos. Sabiam que qualquer mexidela podia ser fatal. Restava-lhes arrastar os amigos dali para fora, ou seja, desamarrá-los da viga de madeira a que os tinham prendido. Mas sem facas nem canivetes, como desfazer os nós? Aquele tic... tic... toldava-lhes o raciocínio. Maxime já repetira várias vezes:
- Está quase a rebentar... o tempo está-se a esgotar!
Talvez fosse mais fácil arrancar a viga do chão a pontapé e levantá-la de modo a tirar as cordas por baixo. O pior era se, fazendo-a oscilar, provocavam uma derrocada do telhado e a bomba explodia imediatamente.
Parados no meio do aposento, mostravam-se incapazes de agir, de tomar uma decisão.
- Já não há tempo. Faltam poucos segundos!
- Fujam vocês - gritou Bento. - Escusamos de morrer todos.
Luísa fechou os olhos, à espera do pior.
Nesse momento Pedro atirou-se à viga e abanou-a, dando tudo por tudo.
A viga deslizou ligeiramente e levantou-se uns centímetros. Maxime percebeu a manobra e ajoelhou-se, puxando as cordas para baixo. Gotas de suor escorriam-lhe pela testa, pelo pescoço e pelas costas.
Ao percorrer os últimos segundos, o tic... tic ganhava ressonâncias ensurdecedoras.
- A cabana vai pelos ares... a cabana vai pelos ares...
A ideia tornara-se obsessiva!
Voltara a cair uma chuva miudinha, mansa que depois da borrasca Chico e João receberam com indiferença. Tinham chegado a um sítio de onde se avistava a parte de trás da cabana Talvez fosse ilusão mas pareceu-lhes que o telhado oscilava ligeiramente.
- Talvez andem à bulha!
- O melhor é irmos ajudar.
Ainda não tinham dado dois passos quando a cabana explodiu. E que explosão monstruosa!
Numa bola de fogo, uma nuvem de poeira escura, pedaços de madeira voando em todas as direcções!
Depois foi o silêncio mais completo. Envolvidos pelo fumo espesso e malcheiroso, quase sufocaram.
- Cof! Cof!
Chico e João não queriam acreditar no que os seus olhos viam.
- Isto é um pesadelo. Diz-me que é um pesadelo!
Coitado do João, incapaz de dizer fosse o que fosse avançou como um autómato para o local onde receava encontrar uma verdadeira desgraça.
Ei!
- João!
A figura que o interpelava estava coberta de fuligem, com a roupa colada ao corpo, e sorria-lhe, deixando à mostra a dentadura, inesperadamente branca naquele conjunto. Era o Pedro!
Maxime não se apresentava em melhor estado. Bento e Luísa davam pulinhos idiotas, de canguru, porque continuavam de tornozelos atados. Ela tinha uma mordaça.
A alegria de se verem foi tanta que nem fizeram perguntas. Abraçaram-se assim mesmo, e ao fazê-lo enfarruscavam-se mutuamente, o que afinal pouca importância tinha.
Chico usou o canivete para cortar as amarras, enquanto Pedro e Maxime explicavam:
- Estavam presos a uma trave. Salvámo-nos no último minuto!
- Foi mesmo à tangente.
- Quase morríamos na explosão.
Luísa esfregava as bochechas, revolvia a língua dentro da boca, abria e fechava os maxilares.
- Safa! Nunca pensei que uma mordaça aleijasse tanto.
E olhou em volta à procura da irmã. Como não a visse em lado nenhum, perguntou:
- A Teresa?
O pânico voltou a assaltá-los. A Teresa? Não sabiam dela! Tinha atraído um dos bandidos para longe e não voltara a aparecer. Pela reacção dos amigos, Luísa percebeu muito bem que a irmã corria perigo e gritou desesperada:
- Teresa! Teresa!
Por entre a folhagem viram então surgir não a Teresa mas Elise, desfigurada, com a roupa em desalinho, coxeando por causa do salto partido. Com ela vinha um grupo de soldados muito jovens que por sorte faziam exercícios nas imediações.
- Oh, Elise!
- Ainda bem que trouxe ajuda! A Teresa desapareceu. Temos que ir procurá-la.
Os soldados queriam imenso ajudar mas não entendiam nada do que se passava ali. Foi necessário pô-los ao corrente. Um deles, que devia ser o comandante, organizou imediatamente vários grupos e distribuiu tarefas para uma batida ao terreno. Os rapazes dispunham-se a participar mas o comandante não deixou. Numa voz seca de quem está habituado a dar ordens sem admitir réplica, disse apenas:
- Vocês ficam. Só iam atrapalhar.
Num passo resoluto, os soldados afastaram-se e embrenharam-se na floresta.
Elise tentou disfarçar a angústia terrível que lhe invadira a alma. Tendo as gémeas à sua guarda, sentia-se responsável por tudo o que lhes pudesse acontecer!
Aproximou-se da Luísa, que tremia como váras verdes e chorava sem se dar ao trabalho de enxugar as lágrimas. Passou-lhe o braço à volta dos ombros com muito carinho.
- A tua irmã não tarda aí. Calma. Depois ficaram em silêncio. A expectativa tornara-se sufocante, não permitia conversas.
Incapaz de estar quieto muito tempo, Chico resolveu subir a uma árvore. Talvez lá de cima conseguisse vislumbrar alguma coisa à distância. Apesar de as copas se tocarem, impedindo que alongasse a vista, apercebeu-se que vinha lá alguém e anunciou triunfante:
- Os primeiros estão a chegar. Soltou-se e foi aterrar aos pés do comandante com tal energia que este teve que reprimir um sorriso de aprovação. De soldados assim é que um país precisa!
O grupo não regressava de mãos a abanar, mas infelizmente não era a Teresa que traziam.
- Encontrámos este homem meio desmaiado ali em baixo.
- É um dos bombistas. Consegui arrumá-lo numa luta corpo a corpo - disse o Chico, a rebentar de orgulho.
Se esperava reconhecimento público teve uma decepção, pois os militares não são pródigos em elogios. O comandante ignorou o comentário.
- Pois então prendam-no e levem-no para o jipe.
Logo a seguir apareceu outro grupo, bastante perplexo. O homem que tinham descoberto na mata envolvera-se em cascas de árvores!
- Não sabemos se é louco ou se tem alguma coisa a ver com este assunto.
Não fosse a ansiedade por causa da Teresa, tinham-se fartado de rir. Mas assim limitaram-se a identificá-lo e o jipe recebeu novo ocupante.
E a Teresa? Onde estaria?
Quando um soldado irrompeu ofegante e explicou qualquer coisa em voz baixa, arrebitaram a orelha. Más notícias, decerto!
- Cerquem a zona! - berrou o comandante. E ele próprio encabeçou a coluna militar que num ápice tomara posição e se encaminhava para o morro fronteiro.
Embora tivessem a certeza que não eram bem-vindos, foram todos atrás.
O homem da mancha branca esperava-os, encostado a um rochedo. Agarrara a Teresa pelo pescoço e apontava-lhe à testa o cano de uma pistola.
- Nem mais um passo, senão mato-a!
A coluna militar estacou, à espera de ordens.
- Entrega a rapariga e rende-te. Os outros já estão presos e confessaram tudo - mentiu o comandante. - Mais um crime só vai agravar a vossa situação.
Ele não pareceu impressionado. A sua expressão dura, arrogante, não se alterou.
- Exijo que libertem os meus companheiros e quero um carro para sair daqui. Se tentarem deter-nos mato a rapariga - repetiu.
O comandante tentou ainda ganhar tempo:
- Estás cercado por atiradores especiais... Uma gargalhada sinistra cortou-lhe a palavra:
- Ha! Ha! Ha! Serão atiradores especiais, mas não têm munições. Julgam que eu não sei? Os soldados não levam balas verdadeiras para exercícios no campo.
Num relance, confirmaram ser verdade o que ele dizia. Tantos homens, tantas espingardas, e balas, nicles! O comandante não desistiu e continuou a tentar entretê-lo.
- Não tenho carro nenhum. Estamos em exercícios de marcha.
- Mande buscar. Eu espero. Mas olhe que não espero muito.
Com um gesto brusco, para assustar, apertou mais o pescoço da Teresa, que soltou um gemido abafado.
Luísa queria implorar que lhe dessem tudo o que exigia e depressa para aquele brutamontes largar a irmã, mas a voz prendera-se-lhe na garganta em nós sucessivos.
Chico sentia uma raiva crescente. A vontade de agir era tanta que lhe provocava um formigueiro nos músculos. Observava o bandido, tentando imaginar de que maneira poderia neutralizá-lo. À luz da Lua via-o muito bem. Que indivíduo repugnante! De vez em quando retraía os lábios num esgar feroz e descobria os dentes podres e amarelos. Coitada da Teresa, além do medo tinha que suportar baforadas de mau hálito, porque uma boca assim não pode cheirar bem.
As ordens do comandante, fossem elas quais fossem, estavam a ser seguidas. Alguns soldados ficavam no seu posto, outros recuavam ou fingiam recuar. Ocorreu-lhe então aproveitar o movimento para poder agir. Se conseguisse aproximar-se sem o homem dar por isso, talvez pudesse acertar-lhe na cabeça com uma pedra.
O plano era arriscadíssimo, porque se o arremesso não fosse fulminante e certeiro ele punha-se aos tiros e a primeira a cair era a Teresa. No entanto, resolveu tentar, pois nada lhe garantia que, depois de ter o carro e os companheiros, se fossem embora sozinhos. O mais certo era levarem-na como refém, como garantia de fuga em segurança.
Agachou-se discretamente e rastejou morro acima como um lagarto. Os outros, absorvidos pelo diálogo que o comandante procurava manter com o bandido, não deram por isso.
Deitado no chão, Chico tacteou em volta, à procura da pedra ideal. Não podia ser muito grande nem muito pequena, tinha que ter arestas cortantes e peso suficiente para ferir.
«Esta é pequena... hum... esta é grande de mais...»
Quando achou o que pretendia, ergueu-se sem fazer barulho e pensou:
«Minha rica pontaria não me deixes ficar mal!»
Depois rolou a pedra na palma da mão, semicerrou os olhos, respirou fundo e... «Tzinc»! A pedra voou certeira, atingiu o homem em cheio na testa e partiu-lhe a cabeça. A dor foi tão forte que deixou cair a pistola, largou a Teresa e soltou um uivo:
- UiiH
Mesmo assim, com o sangue a escorrer-lhe sobre o nariz, ainda cambaleou, em busca da pistola. Tarde de mais! Os soldados lançaram-se sobre ele e imobilizaram-no.
Aquele desfecho inesperado provocou o maior alarido. Risos e gargalhadas não chegavam para exprimir o que sentiam. Portanto rugiram, guincharam, dançaram numa espécie de rito selvagem. E aquela floresta habitada por seres frágeis, assustadiços, encheu-se de sons dignos de uma floresta tropical.
Os soldados, talvez por serem muito jovens, entusiasmaram-se tanto como eles. Afinal, durante os exercícios tinham defrontado inimigos reais e perigosíssimos, com o maior êxito. Festejaram a vitória manifestando-se também ruidosamente.
Se não fosse o comandante, tinham passado ali o resto da noite. Mas era necessário entregar a quadrilha às autoridades de Rémiremont e prestarem declarações.
Depois de tudo concluído, voltaram à cabana de Gaston, que não podiam deixar virada do avesso.
Ao atravessarem a clareira, ainda atónitos com o que se tinha passado.
Os dias que se seguiram foram alucinantes!
Só por si, o desmantelamento de uma perigosa rede bombista já é notícia digna de jornais, rádio, televisão. Tendo-se efectuado com a participação de jovens, tornou-se o prato favorito dos jornalistas e do público. Foram entrevistados, fotografados, enfim, uma loucura.
Quando os ânimos acalmaram, Elise decidiu comemorar e convidou-os para jantarem em casa dela
À medida que iam chegando, pediam todos a mesma coisa:
- Mostre-nos o quarto secreto!
E deliciavam-se a accionar o mecanismo do rodapé, a circular por entre os livros da estante, a remexer nos objectos estranhos e invulgares que havia lá dentro. Em cima da mesa rebrilhava a bola de cristal, novinha em folha.
- Não me conformo de não ter encontrado os papéis do Gaston - queixou-se Elise.
- Mas tinha conseguido uma pista...
- Pois tinha. Se calhar não estou a interpretar bem.
João afastara as cortinas da janela e admirava a beleza daquela praça antiga pelas vidraças.
Ao dar com os olhos na placa com o nome escrito, delirou; Praça dos Vosgos. Que coincidência. Aquele nome adquirira ressonâncias fabulosas e Leu-o em voz alta:
- Praça dos Vosgos. Que giro.
A reacção de Elise foi inesperada.” Deu uma palmada na testa, repetindo:
- Que estúpida. Que estúpida que eu sou... Depois precipitou-se para a estante e revolveu os livros num frenesim.
- Como é que eu não me lembrei disto? Como é que eu não percebi logo?
Retirou então um calhamaço de capa verde, sacudiu-o com violência, e de dentro das folhas soltou-se um papel quadriculado muito dobradinho.
- Achei! Achei. A fórmula do Gaston esteve sempre em minha casa, entalada nas páginas de um romance que ele me emprestou! Oh, que alegria.
A alegria era geral. Teriam gostado de ver a cara do cientista ao receber a notícia mas, não sendo possível dar-lha pessoalmente, contentaram-se em ouvir os gritos de felicidade que soaram através do telefone.
O entusiasmo esmoreceu quando souberam que Gaston exigia fazer uma apresentação pública do novo produto. E contava com eles para o ajudarem. Como tinham conhecido imensos jornalistas, pedia-lhes encarecidamente que os convidassem a assistir a uma demonstração!
Elise bem tentou convencê-lo que era melhor experimentar em casa e só depois, com muita calma e segurança, mostrar a outras pessoas. Não houve argumentos que o demovessem. Marcou logo dia, hora e local.
- Trata-se de um produto muito moderno, portanto quero fazer o lançamento na zona mais moderna de Paris!
- O bairro mais moderno de Paris é La Defense.
- Exactamente. Sítio ideal porque tem um lago.
Convocaram portanto amigos, parentes e repórteres para aparecerem em La Defense na data escolhida. E lá foram, todos bastante ansiosos com medo de um fiasco.
- Que será que ele vai meter no lago?
- Se for qualquer coisa de parecido com o que já vimos, cobre-se de ridículo.
- Aquele cheiro a couves podres é inesquecível.
- A couves podres? Eu diria cano de esgoto.
- Oxalá não viesse ninguém.
- Quando chegarmos a La Defense, talvez fosse melhor dar uma palavrinha aos jornalistas, pedir-lhes que não gozem.
A intenção do Pedro era boa, mas desvaneceu-se logo que abandonou o metropolitano e se viu no meio dos edifícios colossais em vidro e em espelho, cujas dimensões e formato lembravam um filme de ficção científica.
- Parece que chegámos a outro planeta!
- Ou que viajámos na máquina do tempo em direcção ao futuro!
Maravilhados, percorreram o espaço imenso que se abria entre as construções, tão largo, tão liso, como se estivesse previsto aterrarem ali naves espaciais!
Ao fundo havia um grande arco, uma espécie de cubo oco, que o arquitecto concebera da forma mais extravagante, pois, sendo volumoso e pesado, dava a impressão de ser leve e plano, sem perspectiva.
Durante um bom bocado andaram para um lado e para o outro, como que hipnotizados por aquele bairro esmagador e fascinante.
- Os passos aqui não rendem. A pessoa anda, anda e nunca mais chega!
- Não admira. É tudo tão grande que perdemos as referências habituais.
- Apetecia-me ter um fato voador.
- Ou pelo menos sapatos mágicos. Talvez o mesmo desejo tivesse levado vários rapazes e raparigas a irem para lá de patins. Deslizavam sem outro objectivo do que imprimirem ao corpo grande velocidade.
À volta do lago juntara-se bastante gente. João tinha trazido a Sara e o Faial. As gémeas conversavam com Clarisse, já de perfeita saúde, cheia de pena de não ter participado na aventura. Os rapazes tentavam prevenir os colegas a respeito do possível fracasso. Elise era a mais aflita de todos. Já assistira a muitas experiências de Gástom e recordava com nervosismo as nuvens de fumo malcheiroso, os jactos de vapor quente que rebentaram o tecto do laboratório, os esguichos que deixavam nódoas escuras ou buracos na roupa, no chão e nas paredes.
- Que será que ele inventou desta vez? Ignorando esses receios, Gaston parecia um ilusionista de circo. Abrira uma mesa desengonçada e afadigava-se a preparar misturas curiosas de pós e líquidos. De vez em quando olhava em volta e sorria, satisfeito por ter tanto público.
Quando deu por concluído o produto, apresentou o frasco à assistência e avançou três passinhos miúdos em direcção à beira do lago. Depois verteu apenas quatro gotas.
Ao contacto com a superfície da água, as gotas incharam, borbulharam e elevaram-se pelo ar como bolas de sabão enormes mas opacas e amarelas. Subiram, subiram, desceram, desceram, fizeram ricochete na água e voltaram a subir.
Entretanto já ele vertera outro frasco, e mais outro e mais outro, provocando sempre o mêsmo efeito com bolhas azuis, vermelhas, verdes, roxas, castanhas, prateadas, douradas.
As pessoas riam e aplaudiam aquela espécie de fogo-de-artifício aquático. Gaston, delirante, aplaudia também, como uma criança grande, satisfeita com as suas brincadeiras.
- É doido varrido - diziam uns.
- Mas tem graça!
- Inventou um disparate que não serve para nada.
- Mas diverte.
- E é refrescante!
- Vamos fotografar o Gaston! Dispararam flashes em cadeia. A primeira fotografia apanhou-o com a Elise, as gémeas e o Caracol. Depois no meio dos rapazes, à gargalhada. A seguir ficou gravado para sempre numa posição cómica, de braços abertos, envolto em bolhas coloridas, que o Faial tentava desesperadamente abocanhar. Algumas iam rebentando. «Pac.» «Pac.» «Pac.»
Bento enfiou o braço numa das gémeas.
- Já pensaste no que podia ter acontecido? Ela olhou-o de frente, risonha.
- Estás a referir-te a quê?
- À explosão. Por pouco não voávamos pelos ares, como estas bolhas. Foi uma aventura fantástica, não foi, Luísa?
- Lá isso é verdade. Mas eu não sou a Luísa, sou a Teresa!
Ana Maria Magalhães & Isabel Alçada
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