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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


UMA AVENTURA NO ESTÁDIO / Magalhães & Alçada
UMA AVENTURA NO ESTÁDIO / Magalhães & Alçada

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

- Teresa! Luisa! Venham cá!

A mãe acabava de se arranjar à pressa, e circulava pela casa de banho, às voltas com as pinturas e a laca.

- Está muito bonita! - exclamaram as gémeas. - Onde é que vai?

- Vou ao aeroporto esperar a minha maior amiga dos tempos do liceu.

- De onde é que ela vem?

- Do Brasil. Casou com um brasileiro e há uma data de anos que não vem cá. Agora está aí para passar férias.

- Férias nesta altura? - estranhou a Luisa.

- Claro! Cá é Inverno, mas lá é Verão. Vem com o marido e o filho, para aproveitar as férias grandes.

- E o filho que idade tem?

- Não sei ao certo. Mas se julgam que é algum borracho para namoriscarem, tirem daí o sentido - brincou a mãe. - Ela casou muito depois de mim. O rapaz é mais novo que vocês.

- Azar! - disse a Teresa. - Estávamos muito precisadas de amigos novos!

- Porquê? Zangaram-se com os vossos companheiros?

- Não! Mas eles estão chatíssimos. O Chico inscreveu-se em não sei quantas modalidades desportivas, e ninguém lhe põe a vista em cima...

- E o Pedro resolveu subir as notas. Não faz outra coisa senão estudar.

- Sobra o João...

- O João? Esse anda sempre atrás do Chico. Vai assistir aos treinos e está à espera de vaga para se inscrever também não sei em quê.

- Bom, o melhor que vocês têm afazer é arranjar mesmo outros amigos.

- Ah! Pois! É muito fácil... não haja dúvidas.

- Esforcem-se, meninas! Na escola deve haver para aí mil e quinhentos rapazes e raparigas, alguém há-de servir!

 

 

 

 

Admiradas, as gémeas olharam para a mãe. Os adultos às vezes dizem cada uma!

Ela terminava o penteado; com um borrifo de laca, olhou-se nO espelho, pareceu ficar satisfeita com o aspecto e despediu-se:

- Até logo! E não desanimem! - acrescentou ainda, antes de bater com a porta.

As gémeas arrastaram-se para a sala, mergulhadas no mais profundo tédio. Não sabiam o que haviam de fazer, e o pior de tudo é que não lhes apetecia fazer nada.

A Teresa acendeu a televisão, mas o programa era sobre desporto. O desporto, que de momento lhes roubava os amigos. Irritada, deixou ficar a imagem mas tirou o som.

- Que estucha de feriado! - queixou-se à irmã.

- Queres jogar às cartas? - perguntou a Luisa.

- Não, não me apetece.

- E se fôssemos fazer os trabalhos de casa?

- Nem penses! Hoje é feriado, não tenciono estudar.

- Mas amanhã temos aulas.

- Quero lá saber!

- Então vem comigo passear o Caracol.

- Vai tu sozinha. Agora não estou para ir à rua...

- Francamente! Já não basta o dia estar tão chato, ainda resolves armar em parva!

A Teresa, amuada, não respondeu.

- Pois vou mesmo à rua sozinha com o Caracol. Não estou para ficar aqui a aturar-te!

E, prendendo a trela na coleira do cão, a Luisa saiu de casa batendo a porta com força desnecessária.

A Teresa ficou sozinha, cheia de pena de si mesma. Uma raivinha surda crescia-lhe no peito. De certo modo, culpava o mundo inteiro por estar ali sem nada que fazer. O Chico e o João, porque nunca queriam combinar nada, sempre a correrem para o estádio. O Pedro parecia parvo, com a mania dos cincos! Para que é que lhe serviam tantos cincos? Se tivesse quatros, ou mesmo três, passava de ano na mesma...

"Está-se a fazer um peneirento", pensou, sem a consciencia da sua injustiça. O Pedro tinha sido sempre bomaluno, e nunca se armava em bom. Pelo contrário, era discreto com os sucessos que obtinha e procurava, sempre que possível, ajudar os outros.

- A mãe podia ter-nos levado ao aeroporto - disse em voz alta. - Sempre era melhor do que ficar para aqui a pasmar! Ou então dava-nos dinheiro para ir ao cinema. Afinal de contas, nunca vamos ao cinema. Nem ao cinema, nem a parte nenhuma!

Quanto mais pensava mais a fúria crescia. Num gesto automático, pegou numa almofada do sofá e arremessou-a à televisão.

Para seu grande espanto, no écran estava a cara risonha de um rapaz igualzinho ao Chico. De um salto, levantou-se e premiu o botão do controlo remoto. Sem querer enganou-se e apagou tudo quando queria ouvir-lhe a voz.

- Bolas!

Corrigiu rapidamente o engano, e lá estava outra vez a imagem do Chico! Era mesmo o Chico! Visivelmente satisfeito, respondia às perguntas do repórter sobre a preparação de um jogador de voleibol.

- O essencial éo treino - explicava. - Precisamos de muita elasticidade e espírito de equipa.

- E treinam todos os dias?

- Agora temos treinado todos os dias, porque estamos a preparar-nos para um campeonato...

- E isso não prejudica os estudos?

O Chico e os que estavam à volta riram-se, encolhendo os ombros. Um rapaz alto, muito louro, tomou a palavra.

- A questão não se pode pôr assim. O voleibol é essencial na nossa vida.

- Mas vocês querem ser todos desportistas profissionais? - perguntou o repórter.

- Não, nem todos.

O rapaz louro voltou a tomar a palavra.

- Eu, por exemplo, tenciono tirar um curso de design. Mas o desenvolvimento físico é fundamental para qualquer pessoa.

- Mas quando é exagerado não vos prejudica?

Foi a vez de o treinador responder.

- É evidente que é preciso senso. Mas aqui não há esse problema do exagero, porque eles estão enquadrados num clube, recebem uma orientação correcta.

A reportagem sobre os juniores ficou por ali. No écran apareceu só a cara do repórter, com um sorriso afivelado, a dizer:

- Esperamos assim ter contribuído para aumentar o entusiasmo por esta modalidade, e que muitos rapazes e raparigas procurem nos clubes uma orientação para a prática desportiva. Mas vamos agora passar aos estúdios do Porto...

A Teresa ficou agitadíssima com o que vira. Não é todos os dias que os amigos chegados aparecem na televisão! Habituada a comunicar imediatamente as suas impressões à irmã, sentiu uma ânsia quase sufocante de falar com alguém.

Assim, primeiro correu para a janela, tentando avistar a Luisa e o Caracol. Mas nem sombras! Talvez já viessem no elevador..: foi à porta, espreitou. O elevador estava parado. Tentou então o telefone. E discou para o Pedro. Nada! Ninguém respondeu. Depois seguiu-se o número do João. Só estava a avó em casa. Não tinha visto nada na televisão pois andava lá fora a jardinar.

Já desesperada, ligou para casa do Chico, talvez o programa não tivesse sido transmitido em directo... mas tinha. Em casa só estava a mãe do Chico, que a recebeu "de braços abertos"! Também ela vira, com emoção, o filho a ser entrevistado. Também ela estava ansiosa por falar no assunto com alguém.

E assim, duas pessoas que mal se conheciam conversaram um bom bocado porque tinham um interesse comum: o Chico feito vedeta.

Só desligaram porque as vizinhas começaram a tocar à porta da mãe do Chico, para lhe dar os parabéns.

 

Na escola foi uma loucura. A professora Teresa, a mais nova e mais gira de todas as professoras de Educação Física, estava satisfeitíssima e fez um alarido no ginásio. Tinha sido ela a iniciar o Chico no volei e, quando apanhava alguns vocacionados para o desporto, incentivava-os muito a irem inscrever-se num clube. Tinha mesmo afixado no ginásio a lista dos clubes possíveis, as modalidades, os horários e os preços. Além disso, o grupo de professores de Educação Física, em colaboração com os professores de Português, tinham lançado um jornal desportivo na escola, para o qual os alunos eram convidados a escrever artigos, noticias, etc.

Naquele dia, a professora Teresa apareceu de máquina fotográfica em punho e mandou os outros alunos afastarem-se, numa berraria gesticulante.

- Cheguem-se todos para lá! Hoje só quero aqui o Chico na minha frente! Vou-lhe tirar uma fotografia para o Meia Bola e Força.

O Meia Bola e Força era o jornal desportivo da escola.

- Vais sair na primeira página! - disse ela, antes de disparar. "Clic... Clac... Pzzzz.

A máquina era polaroid, ou seja, revelava as fotografias no mesmo minuto. Foi um êxito! Assim que a fotografia saiu por uma frincha, todos queriam ver. Por pouco não a rasgavam.

- Quietos! Que chatice!

- ó "stôra", tire-me uma também a mim...

- A nós as duas!

- à turma! à turma toda!

- Não tiro nada! Vocês não merecem! São uns sornas... - disse ela de brincadeira.

- Oh, "stôra"! Vá lá! Tire! Tire!

- Então só se for à turma toda junta; que estas fotografias são caríssimas...

- Éêêê!

- Pouca barulheira! Ponham-se lá a jeito!

A jeito, foi uma confusão enorme! Uns queriam ficar de pé, outros queriam ficar sentados, outros queriam ficar ao pé de uns outros que estavam do lado de lá...

Finalmente arrumaram-se como as equipas de futebol. O Chico ao meio, ajoelhado entre as meninas.

No momento exacto do disparo, o Zé Manel não resistiu e levantou a mão direita sobre a cabeça do Chico, com dois dedos a fazer "corninhos". E quando a fotografia ficou pronta, foi de novo um alarido!

- Estou a ver que hoje não consigo dar aula! Vamos lá embora ao aquecimento. Correr à volta do ginásio!

"Pam... Pam... Pam. . . " A fúria com que se lançaram na corrida até ressoou pelas paredes.

Era sempre assim! A excitação não impediu o bom funcionamento da aula, pelo contrário! Com a professora Teresa, de resto, quanto maior era o entusiasmo melhor trabalhavam.

As gémeas só conseguiram ver o Chico no intervalo grande. Deram-lhe os parabéns e quiseram saber pormenores. Por que motivo tinham ido entrevistá-lo?

- É que está a haver uns campeonatos de volei - explicou ele -, e nós estamos muito bem classificados. De certeza vamos ganhar!

- Ei! Lá estás tu!

- Estou-te a dizer! Somos os melhores!

- Quem? - perguntou o Pedro, que chegara naquele momento.

- Nós, claro! Lá do volei. No sábado, vamos jogar a Beja.

- Sábado para Beja. E domingo para onde? Agora estás ocupado todos os fins-de-semana, é?

- Estou a ver que as gémeas têm ciúmes das minhas actividades desportivas - riu-se o Chico.

- Ciúmes, não. Mas estás a exagerar. Assim, nunca mais na vida fazemos um programa juntos.

- Nunca mais na vida? ó Teresa, espero não morrer.

- "Se não podes vencê-los, junta-te a eles"

- atalhou o Pedro. - Eu cá por mim já me inscrevi na ginástica. O João conseguiu vaga no futebol de salão. Só faltam vocês! Com tanta preparação física, quando tornarmos a ter uma aventura seremos praticamente invencíveis!

- Não! Nós não queremos - responderam as gémeas em coro.

- Mas não querem por que razão?

Verdade se diga, elas não sabiam por que é que não queriam. às vezes é assim mesmo. Quando os outros se entusiasmam muito por uma coisa, a gente rejeita-a sem saber porquê.

- Temos muito que fazer - balbuciou a Teresa, desviando a vista.

- É isso. Não temos tempo - corroborou a irmã.

- Mas que afazeres são esses, afinal?

- Temos de estudar - mentiu a Teresa.

- Ora, ora! Deixem-se de tretas! O Pedro é o melhor aluno da aula, estuda que se farta, mas foi para a ginástica...

As gémeas encolheram os ombros, sem responder.

A campainha estridente, chamando para as aulas, interrompeu a conversa. Iam a separar-se, quando um grupo de barraqueiras do 2.o ano avançou para eles trazendo pequenos livros de autógrafos na mão.

- Olhe, faz favor - disse uma delas, fingindo-se muito formal. - Pode dar-nos um autógrafo?

- Quem? Eu? - perguntou o Chico admirado.

- Sim - disse outra, disfarçando um sorriso de gozo. - Não é o campeão de volei que foi ontem à televisão?

- Sou - disse ele, já pronto a alinhar na brincadeira.

- Então quer dar-nos o seu autógrafo?

Com ar superior, o Chico pegou num dos livrinhos de capa azul. Uma ideia maluca acabara de lhe atravessar o espírito! Em vez de uma simples assinatura, ia fazer dedicatórias...

As gémeas, o Pedro e o João decidiram logo chegar um bocadinho atrasados à aula. Queriam ver o que aquilo ia dar!

O Chico, muito compenetrado do seu papel, rabiscava, rabiscava, rabiscava, nas folhinhas geralmente enfeitadas com desenhos em rosa e azul-pálido. De cada vez, fechava o livro e devolvia-o à dona, pedindo:

- Só abres na aula, está bem?

Elas concordaram. E quando a "sessão de autógrafos" terminou, correram para a sala 7, mortas de curiosidade. Só não abriram os livros pelo caminho, porque lhes pareceu mais divertido abrirem mesmo na aula conforme o combinado.

Chegando à porta, afogueadas, de olhos brilhantes, perguntaram à professora de Inglês:

- "Stôra", podemos entrar?

A professora respondeu-lhes em inglês.

- Go ahead! Take your places...

Era campinchona, mas aquela mania de falar sempre em inglês irritava-as um bocadinho...

Correram lá para trás e, logo que se sentaram, a Beatriz deu "ordem de abertura".

- Um... dois... três! Abrir os livros de autógrafos.

Uma gargalhada comum deixou a professora e a turma perplexas.

É que o Chico tinha escrito em todos os livros de autógrafos a mesma dedicatória!

 

No sábado, enquanto os amigos praticavam desporto freneticamente, as gémeas tiveram de acompanhar a mãe a uma festa de anos. A ideia não podia agradar-lhes menos. A Luisa implorou quase de joelhos que as deixassem ficar em casa.

- Por favor! - pedira mil vezes. - Nós não conhecemos ninguém! Vai ser uma chatice!

- Ainda por cima aos anos de um miúdo! Não deve estar lá ninguém da nossa idade - insistira a Teresa.

- Se está lá alguém da vossa idade ou não, não sei. Mas até é provável que esteja. A Margarida convidou várias amigas do nosso tempo de liceu, e pediu que levassem os filhos. Algumas casaram mais ou menos quando eu casei. Se calhar a maioria até tem a vossa idade...

- Se têm a nossa idade, com certeza baldam-se.

- Vão ver que não. A festa acaba por ser divertida. Não queriam arranjar amigos novos?

- Oh!

- Pensem lá - tentou a mãe, ainda conciliadora. - O miúdo, coitado, é brasileiro. Não conhece ninguém aqui em Lisboa. Se faz anos, gosta de ter uma festa...

- E o que é que nós temos com isso?

- Não sejam antipáticas!

- Pois, a mãe fala bem! Para si, vai ser divertido encontrar-se com as amigas que não vê há muito tempo. Agora para nós vai ser uma chatice! - declarou a Teresa, num tom de voz já impertinente.

A mãe fechou a cara e, assumindo a sua autoridade, encerrou o assunto:

- A-ca-bou! Vêm comigo, e não há mais discussão.

Elas sabiam que, quando chegava àquele ponto, era inútil replicar. Semiamuadas foram-se vestir.

A festa era em casa dos avós portugueses, que moravam na Baixa, num prédio antigo, quase todo já ocupado por escritórios.

- Que saudades! - exclamou a mãe assim que transpôs a soleira da porta. - As vezes que eu aqui vim ter com a Margarida para estudar, para irmos para festas... a casa é giríssima, enorme! Tem uma varanda com vista para o Tejo. Vocês vão gostar.

A Teresa e a Luisa olharam para o tecto, e dispensaram-se de responder.

O elevador era incrível! Parecia uma gaiola, com um bruto espelho, e um banquinho de abrir e fechar estofado de seda velha.

- Já viram o elevador? - perguntou a mãe, entusiasmada. - Isto é uma relíquia de "Arte Nova". E ainda funciona!

- Quase tenho medo de entrar ali - resmungou a Luisa.

A mãe fez de conta que não ouviu.

Já iam a entrar quando se abriu a porta do prédio e apareceu outra senhora sozinha, carregando um bruto presente.

- Eduarda!

- Nixa! Há quanto tempo!

As duas caíram nos braços uma da outra com grandes manifestações de regozijo.

- Não fazia a menor ideia de que a nossa mãe era Nixa - comentou a Teresa.

- Pois era assim que me chamavam no liceu!

- Ah!

- Então estas são as tuas gémeas? Que giras... São iguaizinhas. E estão enormes!

A Teresa e a Luisa ficaram embaraçadas e um pouco irritadas também. Por que seria que os adultos se sentiam no direito de fazer aquele tipo de comentários? O que pensaria a senhora, se uma delas se voltasse para a mãe e dissesse assim:

"Então esta é que é a sua amiga Eduarda? Que gorda! E cresceu pouco! Ficou baixota!"

A tortura daquela tarde, no entanto, ainda mal tinha começado.

A confusão que reinava na casa era indescritível. Havia de facto pessoas de todas as idades mas, apesar disso, dava a sensação de se entrar numa creche. Uma caterva de miúdos pequenos corria sem destino pelos corredores, aos encontrões e às gargalhadas. Atrás deles, o mais pequeno de todos, ainda com as calças deformadas pelo uso da fralda, mal se equilibrando nas pernas, brandia um chicote de plástico tentando bater-lhes. A brincadeira, pelos vistos, consistia em fugir, gritar e fazer negaças ao bebé que, cada vez que falhava o alvo, dava chicotadas na parede e guinchos horríveis.

As gémeas, estarrecidas, fizeram meia volta e entraram na sala. Ali, no entanto, ainda era pior. Imensas senhoras que elas não conheciam, todas muito bem vestidas e muito bem penteadas, conversavam e riam alto de mais, porque, como falavam todas ao mesmo tempo, era a única maneira de se ouvirem.

- Olhe as gémeas da Nixa! Que amor! Ó

Nixa, que sorte! Foste a única que tiveste gémeas! Lembras-te dos planos que a gente fazia no liceu?

- Tu querias ter três rapazes!

- E afinal só tive uma rapariga...

- Onde é que ela está?

- A Rita? Ó filha, não consegui arrastá-la. Está com um feitio infernal! Estas idades...

As gémeas trespassaram a mãe com um olhar furibundo, como quem diz "Vê?".

Mas a mãe não lhes ligou nenhuma, e obrigou-as a ir dar um beijinho a toda a gente, o que fizeram, escarlates de vergonha.

Assim que puderam, escapuliram-se e foram à procura de um canto sossegado. A casa era de facto enorme, com um corredor muito comprido e estreito. Foram por ali fora, abrindo portas. Finalmente encontraram uma saleta, onde estava a televisão, um divã cheio de presentes e papéis rasgados, e uma pequena estante pejada de livros aos quadradinhos.

Lançaram-se imediatamente sobre eles, ansiosos por se evadirem daquela festa infernal, mergulhando no mundo colorido da banda desenhada. Instalaram-se comodamente num canto, quando descobriram outro "fugitivo". Era um rapaz que devia ter mais ou menos a idade delas, e que, semiescondido atrás da estante, nem levantou a cabeça do que estava a ler.

Lançaram-lhe um olhar avaliador. Seria de meter conversa, ou não? Mas ele não tugiu nem mugiu. Pelos vistos, já tinha decidido passar a tarde enfronhado na leitura, sem falar com mais ninguém.

Ali passaram um bom bocado, hesitando várias vezes sobre o que fazer quanto a uma caixa de bombons apetitosíssimos que o menino dos anos tinha recebido de presente.

- Se abrissemos a caixa e comêssemos alguns? - propusera a Teresa em voz baixa.

-Hum... é chato! Ainda tem a fita-cola à volta - respondeu a Luisa, passando um dedo pela aresta da caixa de bombons, morta por fazer o que a irmã lhe sugeria.

- Ele recebeu tanta coisa, que nem reparava!

- Mesmo assim, acho que não. Se já estivesse aberta, podíamos comer alguns. Tínhamos até esse direito, pois somos visitas... abrir a caixa, é grosseiro.

A Teresa riu-se e concordou.

- Está bem, pronto! Desiste-se!

Ansiosas como estavam por comer doces, correram ambas para a sala de jantar logo que chamaram para o lanche. E o lanche foi a única coisa boa da tarde. Pãezinhos fofos com fiambre e queijo, pastéis de nata em miniatura, mousse de chocolate, gelatina de morango, várias tartes e bolos grandes muito bem enfeitados com chantilly! Hum, que delícia! No centro da mesa estava o bolo de anos que, como não podia deixar de ser, era um enorme campo de futebol com jogadores em plástico sobre o "relvado".

As gémeas empanturraram-se até não poderem mais. E o que lhes soube melhor foram os bombons, gordos e recheados, que a dona da casa tinha numa taça de vidro. Só elas as duas comeram mais de metade.

A festa acabou quando, após várias campainhadas repetidas, num frenesim, surgiu à porta um senhor muito bem vestido, com a cabeça e o casaco cobertos de lama...

Vinha histérico de fúria! Só então as mães perceberam por que motivo os mais pequenos brincavam em silêncio... É que, depois do lanche, tinham ido para a varanda regar abundantemente os vasos, de onde retiravam punhados de terra molhada para acertar nas pessoas que passavam lá em baixo...

 

O Pedro consultou o relógio pela terceira vez.

"Nesta altura do ano anoitece tão cedo!", pensou, olhando em volta. As luzes da cidade acabavam de se acender, e o fluxo de trânsito era ainda grande, circulando os automóveis de faróis acesos. O resultado de mil pontinhos de luz de várias cores, era parecer-se a cidade com uma gigantesca árvore de Natal.

"Estou farto de estar aqui à espera. Se calhar tinha feito melhor em combinar outra coisa. Os treinos de volei ainda demoram mais um quarto de hora..."

Como estava a ficar com frio, resolveu ir averiguar. Pegou no saco de ginástica que tinha pousado no chão e entrou de novo no estádio, caminhando em passo acelerado pelos corredores, por baixo das bancadas.

O Chico treinava num ginásio que ficava um pouco distante daquela porta.

"Espero não me desencontrar dele", pensou, de caminho.

Os corredores eram escuros e, desertos como estavam. tornavam-se pouco agradáveis. Apesar de tudo, era preferível do que estar para ali especado, a arrefecer. Os companheiros da classe de ginástica já se tinham ido todos embora.

O estádio era enorme! Aqui e além havia umas escadinhas que ele não fazia a menor ideia onde iam dar. e portas com emblemas do clube e o símbolo da modalidade que ali se praticava ou que tinha ali os seus escritórios.

O Pedro avançava, de cabeça no ar, tomando consciência de que ainda conhecia muito mal o espaço que percorria.

"Isto é um mundo! Parece quase um labirinto. Tenho de vir aqui um dia ver tudo de ponta a ponta."

Embora seguisse sempre na mesma direcção, ou porque fosse tarde, ou porque estava cansado, sentia-se vagamente perdido. E o pior é que não estava por ali ninguém a quem perguntar onde ficava o ginásio dos treinos de voleibol.

A certa altura teve de interromper a marcha.

"Ó diabo! O que é isto?"

De 'uma torneira estragada saía água em borbotões, inundando o corredor.

O Pedro olhou em volta, na esperança de que aparecesse alguém. Já teriam dado por aquela avaria?

"Não posso passar por ali, que fico encharcado... "

A única hipótese de tornear a inundação era subir uma das tais escadinhas laterais. Meteu por ali acima, já arrependido de não ter ficado à porta calmamente.

No patamar superior descobriu luz. Uma porta entreaberta chamou-lhe a atenção e dirigiu-se para lá.

- Faz favor! - chamou, batendo ao de leve com os nós dos dedos.

A porta abriu-se de repelão e um indivíduo com o cabelo muito rapado e ar de boxeur apareceu-lhe na frente, congestionado de fúria.

- Que é que estás aqui a fazer? - berrou.

O inesperado da reacção deixou o Pedro sem fala.

- Que é que queres? Isto aqui é vedado a pessoas estranhas! - continuou o homem no mesmo tom.

- Está ali uma torneira avariada, a inundar tudo - balbuciou o Pedro.

- Quero cá saber de torneiras avariadas! Não sou canalizador! Põe-te mas é daqui a andar!

O boxeur, ou lá o que era, virou-lhe as costas atirando a porta com estrondo. Não contara no entanto com a teimosia do Pedro. Determinado, voltou a bater. Possesso, o homem abriu só uma frincha e enfiou a cabeça para o lado de fora com ar ameaçador.

- Mas afinal o que é?

- Desculpe! - disse o Pedro, firme. - Preciso de encontrar o ginásio onde estão a praticar volei e não sei o caminho!

- Se não sabes o caminho, volta para trás que eu não tenho tempo para te dar explicações.

E, sem mais conversa, atirou-lhe com a porta à cara outra vez. Mas apesar disso ainda deu tempo para o Pedro perceber que estava outra pessoa com aquele malcriadão e se ocupava de uma maquineta qualquer...

Intrigado, o Pedro fez o que o homem lhe ordenara: voltou para trás. No entanto tomou as suas precauções. Queria poder encontrar de novo aquele sítio... Ali passava-se de certeza qualquer coisa estranha. Já tinha contactado com muitos treinadores, pessoas responsáveis por várias modalidades desportivas, ou simplesmente com sócios do clube, e todos tinham sido muitíssimo simpáticos. Sentira mesmo espírito associativo, e verificara que os jovens eram muito bem recebidos. O que, aliás, tinha achado natural, pois um clube sem juventude está condenado a morrer.

Por que motivo então aqueles dois tipos se mostravam tão hostis e desagradáveis, recusando-se mesmo a dar-lhe uma simples informação? E que maquineta seria aquela? Parecia ter um ecranzinho minúsculo...

Entretido com os seus pensamentos, perdera a noção do tempo. E assim, quando chegou à zona de saída, olhou para o relógio num gesto automático e ficou desesperado.

"Chi! Demorei-me tanto! Isto é grande para burro...

Foi a correr que alcançou a porta onde o Chico, impaciente, esperava por ele, saltitando ora num pé ora noutro.

- Pedro! Onde é que te meteste?

- Olha pá, desculpa. Fui à tua procura e acho que me perdi.

- Deixa lá, pronto! Vamos embora que é tardíssimo.

- Já devemos ter perdido aí uns cinco autocarros - disse o Pedro, sem se mexer.

- E se ficas aí pasmado, ainda perdemos o sexto...

- É que aconteceu uma coisa esquisita!

- Está bem, contas-me pelo caminho, anda!

O Pedro percebeu que, se o Chico tinha tanta pressa, é porque estava com a fome proverbial de quem acaba um treino. Seguiu-o então, disposto a contar tudo depois, com mais calma. Até era melhor, porque, mal contada e mal ouvida, a sua história acabaria por parecer uma estupidez sem nexo. E ele tinha a certeza de que ali havia mesmo qualquer coisa estranha...

Lado a lado, avançaram pelo caminho que circundava o estádio. No parque de estacionamento estavam poucos automóveis. Passaram ao longe, mas uma voz interpelou-os:

- Chico! Pedro!

Admirados, voltaram-se à procura de quem os chamava.

- Chico! Pedro! - repetiu a mesma voz.

E a ca'ra do pai das gémeas assomou à janela de um carro.

- Ah! Olá!

- Querem boleia? - perguntou ele, abrindo a porta.

- Sim, obrigado!

Os rapazes entraram para trás, sem perceberem o que é que o pai das gémeas estava ali a fazer.

- Vocês acabam a esta hora? - perguntou ele. - Se eu soubesse, não tinha vindo buscar a Teresa e a Luisa, iam convosco no autocarro.

- A Teresa e a Luisa? - perguntaram em coro. - Mas elas estão aqui?

- Claro, não sabiam? Meteu-se-lhes na cabeça que haviam de se inscrever na natação para aperfeiçoarem o estilo! Já só havia vaga a esta hora, o que foi um transtorno para mim. Não gosto que elas andem sozinhas à noite, e por isso tenho de as vir buscar.

- Ah! Elas andam na natação? - disse o Chico, divertido. Pelos vistos, as exortações do Pedro tinham funcionado!

- Aquelas parvas não tiveram coragem de confessar! Gostam de se armar em boas...

O pai riu-se.

- Olhem! Lá vêm elas!

De fato de treino igual, o cabelo ainda húmido, e de saco à tiracolo, lá vinham, de facto, todas satisfeitas. Acompanhava-as um rapaz de cabelo curto, vestindo também' fato de treino, cujas pernas tinham sido cortadas à tesoura, terminando por isso numa franja de pano sobre os joelhos.

- Ó pai! Pode dar boleia ao André?

O André encostou a cabeça ao vidro. Tinha a cara redonda, olhos redondos e vivos. Quando sorria, formava uma covinha discreta na bochecha. Ele próprio respondeu:

- Não pode, porque já ali estão dois candidatos à boleia.

- Dois candidatos à boleia? - estranharam as gémeas. - Quem?

- Nós!

Quando viram os amigos, as gémeas desmancharam-se a rir.

- Apanhámo-vos! - disse-lhe o Chico.

- Suas doidas! Por que é que não nos disseram que estavam aqui?

- Queríamos fazer uma surpresa.

- É! Mentirosas...

- Bom, bom, bom! Vamos lá, que tenho pressa. O André também pode vir. Apertem-se aí atrás. Ou não, o melhor é virem vocês as duas à frente - disse o pai. - Já vejo que têm bons companheiros para as levarem a casa. Para a próxima, vão de autocarro.

- Com que então não tinhas tempo para praticar desporto! - disse o Chico, puxando uma madeixa do cabelo da Teresa, num gesto amigável.

- Ora, só não muda de ideias quem é parvo.

- Ainda bem! - disse o Pedro, metendo-se na conversa. - Ficamos muito contentes de as ter no clube! É divertido ou não é?

- É. Vocês tinham razão - concordou a Luisa. - Praticar desporto é o melhor que há para ocupar tempos livres.

"As aulas de natação e outras actividades do clube são o ideal para nos livrarmos de programas chatos como aquela maldita festa", pensou a Teresa. Pensou, mas nada disse.

 

Na segunda-feira, em casa do Pedro, o despertador não tocou. A mãe, como entrava de serviço no hospital muito cedo, já tinha saído. O pai acordou sobressaltado, e correu a abanar os filhos.

- Acordem! Despachem-se que o despertador não tocou!

Foi uma correria, mas ainda deu tempo para o Pedro discutir com a irmã sobre qual dos dois ia primeiro para a casa de banho.

O pai acabou por lhes dar três berros, e o dinheiro para comerem qualquer coisa no café, pois ainda por cima não havia pão em casa.

O Pedro foi o primeiro a sair, com os olhos empapuçados.

Quando entrou na pastelaria mais próxima, teve de se esforçar muito para ser atendido, porque o empregado discutia acaloradamente o jogo de futebol da véspera, com dois clientes.

- Não foi penálti, não senhor! Vocês não viram a repetição nos resumos do programa desportivo?

- Eu vi, claro que eu vi. O árbitro estava comprado...

- O Anastácio é o melhor jogador da temporada!

- Está em excelente forma! Ele é que vai fazer-nos ganhar o campeonato!

- Já viste o que diz o jornal? - perguntou um deles, apontando a primeira página.

Inclinados sobre o jornal, ficaram a ler em silêncio, dizendo apenas de vez em quando:

- Tsch! É formidável!

- Faz favor - repetiu o Pedro, já chateado. - Um galão e um queque.

Contrariado, o empregado do café decidiu-se a atendê-lo. Serviu-o rapidamente e voltou a juntar-se ao grupo que discutia futebol.

O Pedro ficou a observá-los, enquanto comia ao balcão.

"É engraçado!", pensou. "Não há nenhum desporto que faça as pessoas perderem a cabeça como o futebol. Chega a morrer gente de excitação, por causa de um golo a mais ou a menos. Zangam-se amigos, há cenas de pancadaria..."

Um último trago de leite ajudou o queque a ir para baixo. E o Pedro correu para a escola, entrando na aula de Português alguns segundos depois do toque.

A turma retirava cadernos e livros de dentro dos sacos, com a maior das pastelices. A professora também parecia menos dinâmica que de costume.

- Estamos todos com ar de segunda-feira! - exclamou ela, passeando na frente do quadro. - Vamos acordar, meninos!

E, pegando num pau de giz, abriu a lição.

- O melhor é começarmos por corrigir os trabalhos de casa.

Uma movimentação inequívoca deu a entender que vários não tinham feito trabalhos de casa nenhuns. A professora percebeu isso muito bem, mas decidiu não ralhar. Geralmente não passava trabalhos para o fim-de-semana, e só o fizera desta vez para verificar se os alunos tinham aprendido mesmo a matéria na sextafeira. E como o Pedro nunca deixava de fazer os trabalhos, chamou-o a ele.

- Bom, quem se esqueceu de fazer em casa, tenta agora prestar muita atenção... Pedro, lê lá a primeira pergunta.

O Pedro retirou todos os cadernos que tinha na mochila, e olhou para a professora desconsoladamente, abanando a cabeça.

- Não trouxe o caderno, "stôra". Troquei tudo!

- Bom, está bem. Deixa lá, são coisas que acontecem. Lê tu, Carlos.

O Carlos encolheu os ombros, a pedir desculpa.

- Não fiz, "stôra". Deixei para domingo, mas depois fui ao futebol com o meu pai...

- Isto hoje está fraco... Vamos lá a tentar de outra maneira: quem fez os trabalhos?

Só quatro levantaram os dedos no ar. E um deles acrescentou logo:

- Eu fiz, mas devo ter tudo mal. Acho que não percebi a matéria.

Face àquela declaração, a professora decidiu orientar a aula de outra forma.

- Bom, vamos fazer o seguinte: cada um relê para si o que está no livro e o que tem escrito no caderno. A seguir tentam responder às perguntas, em grupos de dois... Se tiverem dúvidas, digam, que eu explico melhor.

Ainda mal tinha acabado a frase, já uma aluna estava de braço no ar.

- "Stôra"! Chegue aqui!

A partir daquela altura, a professora não teve mais um minuto de sossego constantemente chamada por uns e por outros.

O Pedro, como já tinha feito o trabalho, não teve dificuldade nenhuma em explicar ao Chico o que era necessário, e assim foram dos primeiros a acabar.

- Chico - disse o Pedro em voz baixa. - Sexta-feira passou-se uma coisa estranha lá no estádio...

- É verdade! - lembrou-se o Chico. Não me chegaste a dizer o que foi!

- Pois não. Não nos vimos nem sábado nem domingo...

- Então diz lá, conta!

Em poucas palavras, procurando não ser ouvido por mais ninguém, o Pedro relatou o seu encontro tempestuoso com o homem que tinha cara de boxeur, e que escondia algo numa saleta do clube.

- Mas isso é incrível! - disse o Chico. - Temos de averiguar. Hoje vais à ginástica?

- Vou.

- Se combinássemos também com as gémeas e com o João? Dava mais hipóteses...

- Hipóteses de quê?

- Sei lá! Hipóteses de nos organizarmos melhor... pode ser preciso ficar por exemplo a entreter alguém. Para isso, as gémeas são óptimas.

O Pedro concordou. E combinaram procurar os amigos no intervalo.

Quando a campainha tocou, vários grupos ainda estavam a trabalhar. Aquilo era difícil para burro!

- Estou a ver que o melhor é explicar outra vez - disse a professora. - Podem guardar. Fazemos o sumário na próxima aula.

É claro que não precisou de repetir duas vezes. O sono tinha desaparecido completamente. Livros, cadernos, canetas e lápis foram enfiados à matroca dentro dos sacos. E, cheios de energia, saíram todos para o pátio.

O dia estava cinzento, com grossas nuvens muito carregadas, ameaçando chuva. Um ventinho desagradável provocou-lhes um arrepio, e mal tinham despido o anorak voltaram a vesti-lo.

- Vamos jogar ao elástico para aquecer? perguntou uma rapariga às companheiras.

O Chico olhou em volta, indeciso. Apetecia-lhe imenso ir comer uma bola à cantina mas, se fosse, não tinha tempo de procurar as gémeas... Um aperto no estômago decidiu por ele.

- Estou cheio de fome, sabes? Parece-me que é melhor procurar os outros no intervalo grande, que agora quero ir comer.

- Está bem. Eu vou contigo.

Na cantina já se formara a bicha do costume. A empregada girava, numa azáfama, entregando bolas e sanduíches com a pinça de metal.

- Vamos lá a despachar! - resmungou, por ter de ir à gaveta em busca de troco. - Estou farta de pedir que venham com o dinheiro trocado.

- Olha! É o João! - disse o Pedro.

- João! Chega aqui! - gritou logo o Chico.

A empregada reagiu imediatamente.

- Calados, que isto assim não pode ser! Não quero gritos na cantina, que fico com dores de cabeça...

- Se não quer gritos, para que é que está a gritar? - perguntou uma miúda atrevida.

O Pedro, o Chico e o João, sem paciência nenhuma para discussões, saíram logo cá para fora.

- Precisamos de falar contigo e com as gémeas.

- Temos um mistério para desvendar.

- Um mistério? Aonde?

- No estádio.

- No estádio? - perguntou o João, incrédulo.

- Sim. Previne as gémeas que, logo depois das aulas, nos reunimos no vão da escada.

- Está bem.

A campainha voltou a chamá-los, insistente.

- Até logo!

- Até logo! E não te esqueças!

 

- Estamos com sorte, hoje! Pode ser que seja bom sinal - disse o Pedro, instalando-se no banco de trás do autocarro, com os amigos.

- Sorte, porquê?

- Então, assim que chegámos à paragem, apareceu logo o autocarro. E quase vazio! Podemos ir juntos a conversar...

- Vê lá o que dizes - atalhou a Teresa, baixando a voz.

- Descansa, que não digo nada de especial - respondeu o Pedro, olhando as outras pessoas que, como era evidente, não lhes prestavam atenção nenhuma.

Algumas horas antes, recolhidos no vão da escada do prédio das gémeas, o Pedro relatara pormenorizadamente a cena em que tinha estado envolvido. Todos concordaram que valia a pena averiguar. Se fosse apenas um homem malcriado, querendo cuidar de uma máquina em sossego, não pensavam mais nisso. Caso contrário, nenhum deles hesitaria em se meter de novo numa aventura.

Para já, o combinado era assim: cada um tentava recolher informações sobre a tal salinha e sobre o tal homem. Podiam perguntar no escritório que tratava dos assuntos da sua modalidade, ou junto do treinador. Como eram praticantes, tinham esse à-vontade!

As gémeas, no entanto, não sabiam bem como abordar a questão.

- O que é que achas que a gente diga, ó Teresa?

- Não sei bem. Temos de ter cuidado para não dar bronca.

- Se a gente perguntasse assim: "olhe faz favor, que sala é aquela por cima da torneira estragada?".

- ó Luisa, que disparate! Deve haver dezenas de torneiras no estádio, e se calhar muitas estão estragadas.

- então como é que há-de ser?

A Teresa encolheu os ombros.

- Deixa, não penses mais nisso. Quando lá chegarmos logo se vê.

O resto do percurso foi feito em silêncio, embalando-se ao sabor das curvas para um lado e para o outro. Através do vidro a cidade corria, parda, em sentido contrário. O dia continuava feio e não tardou que desabasse uma chuva miudinha e irritante.

Antes de saltarem para o passeio, puxaram o capuz do anorak.

- Brr... que frio! - queixou-se o João.

- Não me apetece nada ir para dentro de água!

- Porquê? A piscina é aquecida!

- Mesmo assim não me apetece. Depois de lá estar, não custa. Mas agora, só de pensar em despir-me, fico gelada.

Já no estádio, separaram-se com grandes piscadelas de olho e sinalefas. O Chico, como tinha treinos um pouco mais tarde, resolveu primeiro ir ver o local que o Pedro lhe indicara.

As gémeas dirigiram-se para a piscina.

O edifício era separado do estádio, e ainda tiveram de caminhar um bocado à chuva. De nariz franzido, e muito encolhidas, comentaram:

- Tinha graça se viéssemos a ter uma aventura no estádio!

- Confesso que duvido um bocado, sabes?

- disse a Teresa. - O clube é uma organização tão completa, parece tudo tão controlado!

Acho que o Pedro, cada vez que vê um homem mal-encarado, imagina logo que é um gangster, tal é o desejo de ter úma aventura!

-... não sejas pessimista. Era bem divertido termos uma aventura no estádio!

A Luisa empurrou a porta dos balneários. O cheiro característico da piscina coberta, de água desinfectada com cloro, dominava o ambiente. Lá dentro ecoava o bruaá de conversas, ordens gritadas pelos professores e os "chaps" "chaps" de mergulhos sucessivos. Ali fazia calor. Podia dizer-se até que estava abafado.

No balneário mudaram-se, penduraram a roupa num cabide e puseram as toucas próprias de competição, muito agarradinhas à cabeça.

- Isto, no fundo, deixa entrar a água à mesma! - disse a Luisa, ajeitando a cartilagem da orelha.

- Mas é obrigatório e ainda bem. Já pensaste o que era a piscina cheia de cabelos?

- Bá! Que horror!

A classe a que pertenciam já estava alinhada e pronta para o mergulho inicial. O professor era um homem atlético, com músculos salientes de quem praticou desporto toda a vida. Além disso era um brincalhão. Os alunos gostavam imenso dele.

A Teresa e a Luisa hesitaram uns segundos. Que haviam de perguntar? E como?

Nenhuma delas teve qualquer ideia aceitável, pelo que se limitaram a mergulhar, quando ele lhes deu uma palmadinha, ordenando:

- As sereias do mar do Norte, para dentro de água!

Entretanto, o Chico percorrera a parte do estádio onde o Pedro tinha andado, e só parou quando viu vestígios da inundação proveniente da torneira estragada. Já não corria água nenhuma, mas o cimento do chão estava mais escuro.

"Só pode ser aqui... vamos lá a ver a tal escadinha."

Fez meia volta e subiu ao outro patamar, assobiando para se fingir descontraído. Não via ninguém, mas, pelo sim pelo não, era melhor mostrar-se à vontade.

"Onde será a tal porta?"

Já ia a passar quando, de repente...

- Mas é esta! - exclamou, admiradíssimo. - Só pode ser aqui!

Especado no meio do corredor, nem queria acreditar no que os seus olhos viam.

"Pelo que o Pedro disse, é mesmo esta! Que estranho."

Para ter bem a certeza que não se enganava, o Chico resolveu entrar no aposento...

Não muito longe dali, o Pedro torrava a paciência de um funcionário.

- Desculpe lá - insistiu pela quinta vez.

- Tem a certeza de que é mesmo assim?

O empregado olhou para ele, dominando a irritação.

- Tenho a certeza, sim senhor. Já te disse várias vezes o que tinha a dizer.

- E à noite também é assim?

- Ó rapaz, já estás a abusar um bocadinho, não achas? Eu tenho mais que fazer! Vou repetir a história pela última vez, e depois pões-te a andar. Combinado?

O Pedro assentiu, com um movimento de cabeça.

- Bom, sou guarda. Durmo cá. Sei tudo o que se passa neste estádio de noite e de dia. Acabou-se!

O funcionário virou-lhe as costas. Colocou um colchão sobre uma pilha de outros colchões, e saiu do ginásio apressadamente.

- Não pode ser! - murmurou o Pedro. - Ou ele está a mentir, ou percebeu mal qual era a sala...

De qualquer maneira, não tinha tempo para ir chatear outra pessoa com perguntas. A aula dele ia começar.

Já equipado, tomou o seu lugar no meio dos outros. Mas, obcecado como estava por aquela investigação, fez figura de urso o tempo todo. Na corrida, desencontrava-se. Raramente acertou com o exercício que o professor queria, desorganizando a classe, que várias vezes largou a rir. E no minitrampolim, então, foi uma festa! Tropeçou, estampou-se num lance mais brusco e acabou escarranchado em cima do professor, atirando-o para o tapete.

Não teve outro remédio senão inventar uma desculpa. Disse que estava mal-disposto e que precisava de sair mais cedo, o que o professor autorizou de imediato, com alívio.

O pior foi que teve de esperar bastante até se reunir com os amigos!

Para passar o tempo, comprou um pacote de batatas fritas e sentou-se no bar. Era ali que vinham ter. Absorto, comeu as batatas todas sem quase reparar no que fazia. E, quando acabou, levantou-se, sempre meio distraído e comprou mais... Quando as gémeas finalmente apareceram, ficaram pasmadas! O Pedro mastigava molemente, com uma expressão agoniada, o último punhado de batatas fritas. E em cima da mesa estavam pelo menos cinco sacos vazios e amachucados numa bola.

- Pedro! Que é que tens?

- Não sei! Estou agoniado. Se calhar é por causa da cor.

- Da cor? Qual cor? Estás parvo?

- Não estou nada parvo! Vocês não vêem que aqui no bar está tudo pintado com a cor do clube? É de mais! Enjoa.

A Teresa e a Luisa largaram à gargalhada.

- Que disparate! Estás enjoado, é por causa das batatas. Olha o que comeste! - disse a Luisa, empurrando na direcção dele os sacos vazios.

- Ena, pá! Comi isto tudo? Nem reparei! Estava a pensar na tal história. Vocês descobriram alguma coisa?

-Não.

- Nem tivemos lata para perguntar. E tu?

- Eu perguntei.

A conversa foi interrompida pelo Chico.

- Então, pá?

- As gémeas não sabem nada. Nem perguntaram. E eu chateei quanto pude um guarda que arruma o ginásio. Ele só me disse uma coisa muito estúpida...

- O quê?

- Que a sala onde eu vi os homens e a maquineta não tinha nada há mais de um mês, porque vai para obras!

- Mas falaste-lhe nos homens e na máquina? - perguntou a Luisa.

- Não! Expliquei só onde era.

- Ah! Então, se calhar, ele não percebeu e falou de outra sala - lembrou a Teresa.

- Foi o que eu pensei. Mas expliquei tantas vezes... ele parecia perfeitamente seguro de que naquele sítio não havia nada. Só uma sala vazia.

- E não há! - declarou o Chico.

- Hen?

- Eu estive lá antes do treino. Fiquei admiradíssimo porque a porta estava aberta para trás. A única coisa que tinha eram as paredes e, de facto, com ar de precisarem de obras.

- Não pode ser!

- Juro-te!

- Tu andas um bocado esquisito, Pedro! Se calhar não foi ali ou sonhaste...

- Sonhei? Tu estás doida? Agora sonho acordado, não?

- Hen... não era nada de extraordinário, para quem consegue comer seis pacotes de batatas fritas sem dar por isso!

- Oh! É muito diferente. Estava distraído. Agora o homem garanto-te que o vi e falei com ele. Ou achas que ia inventar a história para gozar à vossa custa?

A conversa estava mesmo à bica de se transformar em discussão. Felizmente o João apareceu. Vinha triunfante.

- Vi-o! - declarou, abrindo os braços.

- Viste quem? - perguntaram os outros em coro.

- O homem com cara de boxeur e cabelo rapado. Era exactamente como tu descreveste.

Olharam todos para o Pedro.

Vêem? Não estou doido!

- Onde é que o encontraste? - perguntou o Chico ao João.

- Tive uma sorte danada! Quando ia a entrar para o treino, vi o tipo a sair da secção de futebol.

- E depois?

- Depois, não aconteceu assim nada de especial. Fui atrás dele. Vi-o dIrigir-se a uma carrinha azul-escura. Tirou uns papéis lá de dentro e voltou ao estádio.

- E tu?

- Eu?

O João, com um sorriso maroto, retirou dois papelinhos da algibeira.

- Se a carrinha é dele, têm aqui o nome e a morada. Copiei da placa de metal que tinha no tablier, com S. Cristóvão e tudo!

O João leu alto os seus papelinhos.

- João! És um génio! Foste o único a descobrir qualquer coisa de jeito!

O João, todo contente com o comentário do Chico, acrescentou ainda:

- Mas não fica por aqui. Fui à secção de futebol e fiquei a saber...

- O quê? O quê?

- Que o homem não tem nada a ver com o clube. Ninguém o conhece, nem sabem o que é que ele cá veio fazer. Se calhar veio falar com um amigo, ou assim.

As gémeas torceram o nariz.

- Bom, não se entusiasmem muito. Não é para desfazer nas tuas descobertas, João. Mas se juntarmos as "Peças" deste "jogo", o que é que temos?

A Luisa interrompeu a irmã.

- Temos um malcriadão que, "se é o dono da carrinha, mora nessa tal rua. Não pertence ao clube E se calhar sexta-feira passada veio falar com alguém, o Pedro viu-o e pronto! Isto tudo junto não quer dizer nada. Não é mistério nenhum.

- E a maquineta, há? E a maquineta?

- Ora, Pedro! exclamou a Teresa, encostando o indicador à testa. - Tu é que andas avariado da maquineta!

 

A falta de outras pistas levou-os a abandonar a ideia de que iam ter uma aventura no estádio. Nem voltaram a falar nisso entre si. O Pedro, no entanto, mantinha-se convicto.

"Eu sei, pressinto que aqueles homens tramavam qualquer coisa", pensava muitas vezes.

Mas como não tinha provas, guardava os pensamentos sem os comunicar.

Alguns dias depois, o Chico apareceu na escola com ar radiante! Tinham-lhe dado bilhetes para um jogo de futebol importante da temporada.

Convidou o Pedro e o João, que aceitaram logo.

- Ainda tenho mais dois... quem é que havemos de convidar?

- As gémeas! - propôs o João.

- Hum! Elas não querem. Raparigas não se interessam por futebol.

- Isso não é bem assim - disse o Pedro.

- A minha irmã vai sempre com o namorado e fartam-se até de discutir. Ela percebe do assunto tanto como ele.

- Então pergunta-se-lhes. Se não quiserem, há-de haver muito quem queira.

Para grande espanto do Chico, as gémeas aceitaram com entusiasmo! Desde a malfadada festa de anos, preocupavam-se sempre em arranjar programas a tempo e horas, não fosse o diabo tecê-las e terem de gramar outras festas no género!

- Vamos, pois! - dissera a Luisa. - E até fico muito contente. Pelos vistos, já não tens a mania de que há divertimentos próprios para rapazes e divertimentos próprios para raparigas...

O Chico dispensou-se de fazer comentários. Se elas queriam ir, tudo bem!

Assim, no domingo, combinaram encontrar-se bastante cedo para arranjarem um bom lugar na bancada. Quando havia jogos importantes, os verdadeiros adeptos iam para o estádio com muita antecedência, levando farnel. Ali se instalavam a comer e a beber, a comentar a forma física dos jogadores, a constituição da equipa, o árbitro, o treinador, e até a fazer previsões sobre os resultados. Havia mesmo quem apostasse a dinheiro! Era divertido. A própria ida já tinha ar de festa.. Viam-se grupos com bandeirinhas e cachecóis da cor dos clubes em disputa, carros cheios de rapaziada buzinando, numa animação. Á porta do estádio, era um estendal de barracas a vender emblemas, bonés, bebidas, pacotes de bolachas, queijadas de Sintra...

- Isto parece uma autêntica feira! - comentou a Luisa. - Se comprássemos qualquer coisa?

- Vou comprar pipocas! - decidiu a Teresa.

- Então, despacha-te! Daqui a nada já não arranjamos um lugar capaz!

O movimento era de facto intenso. O Pedro observava, meio azamboado, aquela aglomeração de gente. Havia carros estacionados por tudo quanto era sítio. Grupos e mais grupos surgiam em avalancha, com uma energia redobrada. Quer as gémeas quisessem, quer não, a maioria eram mesmo homens. Mas também havia mulheres. E não se podia dizer que revelassem menos entusiasmo!

- Se se pegam ao estalo, não era eu que gostava de estar ao pé daquela matulona - disse o Pedro, apontando uma mulher alentada que arrastava os filhos pela mão.

- Já reparaste como isto fica irreconhecível, assim apinhado de gente? - perguntou-lhe o Chico, encantado.

- De facto, nem parece o mesmo estádio onde vimos aos treinos!

A pouco e pouco foram-se aproximando da entrada. Procuraram a zona que correspondia aos bilhetes e seguiram na onda, instalando-se num degrau da bancada.

- Deve ser empolgante jogar com tanta gente a assistir - disse o João. - O público é essencial no futebol!

A pouco e pouco, o cimento ia desaparecendo para dar lugar a uma grande mancha humana, que fervilhava de expectativa.

Os comentários em volta cingiam-se ao jogo. Havia quem trouxesse pequenos rádios de pilhas, para poder ouvir o relato daquilo a que estava a assistir ao vivo. Era a maneira de não perder pitada!

- Sempre quero ver como é que se porta o guarda-redes! Cá para mim, é um franguista! - dizia um senhor.

- Eu estou interessado é no Anastácio. O treinador enche a boca a dizer que ele é o fenómeno da temporada... Sempre quero ver se tem razão - respondeu o outro.

- Que ele é um bom goleador, não há dúvida nenhuma.

- E entrega bem a bola...

- Anastácio! Anastácio! Até já irrita estarem sempre a falar dele - comentou bem alto um adepto do outro clube. - Nós temos quem chegue para esse fenómeno...

As gémeas olharam naquela direcção, divertidíssimas.

- Daqui a nada, temos "molho" - disse o Chico em voz baixa. - E ainda nem começou o jogo!

- Vai ser um jogo e pêras! - exclamou o Pedro, esfregando as mãos.

- Se calhar ainda nos divertimos mais com as reacções do público!

A Luisa não deixava de ter certa razão.

Logo que os jogadores entraram no campo, foi um delírio. Palmas, gaitinhas a apitar, buzinas, e sobretudo as bandeiras, de duas cores distintas, acenando furiosamente.

- É, ó! É! ó! - gritavam todos a uma só voz.

As equipas saudaram o seu público, houve os cumprimentos da praxe e o árbitro atirou a moeda ao ar para decidir quem escolhia o campo. Pouco depois ouviu-se o apito para o pontapé de saída.

Os espectadores sentados perto do Chico estavam prestes a rebentar de fúria. O famoso Anastácio não tinha alinhado!

- Uma coisa destas exige explicação! - barafustava um velhote.

- Sim! Os sócios têm o direito de saber! Por que carga de água é que não põem a jogar o melhor avançado do clube?

- Talvez o estejam a guardar para o segundo tempo

- Não me parece! Não me parece! Isto cheira-me a...

O jogo decorria animado, mas ainda não tinha acontecido aquilo por que todos esperavam, ansiosos, ou seja, o golo na baliza do adversário. E à medida que os minutos passavam, a tensão subia, subia...

Sempre que havia uma avançada, parte do público punha-se de pé. Mas voltavam a sentar-se, desanimados, quando a bola voltava ao meio campo ou saía pela linha lateral ou pela cabeceira.

E até ao intervalo foi sempre assim. A segunda parte, apesar de bem renhida, não trouxe novidades. O precioso Anastácio não apareceu, e o resultado foi uma espécie de anticlimax: empate zero a zero.

à saída, não havia sorrisos triunfantes nem expressões carrancudas, como de costume. Os espectadores arrastavam a sua desilusão. De certo modo, todos tinham perdido. Entre os Sócios do clube generalizara-se a ideia de que a falta de Anastácio fora decisiva.

Pelo menos era o que diziam.

Por que teria ficado de fora um elemento tão importante?

Nessa noite, a resposta inundou a cidade através da televisão. Foi mesmo a primeira notícia do telejornal.

"-O famoso futebolista Anastácio desapareceu misteriosamente esta madrugada. O caso está entregue à polícia, que tem envidado esforços para descobrir o seu paradeiro. Até ao momento, no entanto, não há qualquer pista que permita localizá-lo, ou explicar o motivo por que desapareceu. Temos aqui connosco, no estúdio, o presidente do clube a que pertence o jogador... "

O Pedro não ouviu mais nada. De um salto correu para o telefone, desesperando-se por não poder comunicar com os amigos todos ao mesmo tempo. O mistério! Lá estava o mistério que ele aguardava, desde o dia em que surpreendera um estranho infiltrado nas instalações do clube!

Ligou para o João, saltitando de impaciência até ser atendido.

- Estou? João? Guardaste a morada da carrinha azul-escura?

- Guardei. Porquê?

O Pedro soltou um suspiro de alívio.

- Porquê? - insistiu João do outro lado do fio.

- Acende a televisão e já ficas a saber.

- Mas o que é que foi?

- Aquele jogador, o Anastácio! Desapareceu sem deixar rasto. Eu tenho um palpite que depois te conto.

O Pedro até gaguejava de excitação.

- Agora vou telefonar ao Chico!

- Espera! Diz-me lá qual é o palpite.

- É o homem com cara de boxeur. De certeza que ele está metido nisso... adeus!

Sem esperar mais, desligou, carregando nas molas do telefone e, de seguida, discou o número do Chico.

 

O autocarro ia apinhado de gente, pelo que foi com alívio que saltaram para o passeio quando chegaram à paragem mais perto da Calçada do Mirante.

O Pedro, de roteiro aberto, tentava orientar-se naquele bairro desconhecido.

- Espera aí, Pedro - chamou a Luisa. - A gente nem combinou nada!

Ele parou e olhou os amigos, atarantado. De facto, com a precipitação, não tinham feito um plano, como era costume. Mas na cabeça dele estava bem claro o que iam ali fazer: averiguar tudo o que fosse possível sobre o tal Venceslau Santos...

- Olha lá - disse o Chico. - Eu já percebi que queres ir a casa do tal tipo. Mas chegamos lá, e dizemos o quê?

- Não dizemos nada. Vamos rondar-lhe a porta disfarçadamente. Talvez seja possível entrar em contacto com algum vizinho... Talvez ele vá a sair ou a entrar, e a gente possa segui-lo. Supõe que ele raptou o jogador?

- ... isto parece-me um bocado tolo.

- Pois é - concordou o João. - Não temos prova nenhuma de que ele esteja relacionado com O desaparecimento do futebolista. Verdade se diga, nem sequer sabemos se foi raptado!

- Ou seguimos o meu plano, ou não fazemos nada - declarou o Pedro, peremptório. O que é que preferem?

- Se pões a questão nesses termos, claro que preferimos actuar.

- Então deixem-se de hesitações e venham comigo.

As gémeas encolheram os ombros e seguiram-no.

Estavam num bairro antigo, construído na encosta de uma das colinas da cidade. As ruas eram estreitas, muito íngremes, e tinham um ar desarrumado, pois havia prédios de todas as épocas, de todos os tamanhos e de todas as cores. As casas mais modernas, como tinham ido ocupar o espaço de pequenas moradias, pareciam comprimidas de um lado e do outro, extravasando varandins de cimento e impondo os últimos andares acima do nível geral da rua.

Para se orientar, o Pedro consultava furiosamente o roteiro, e andava às curvas, para trás e para diante.

- Não percebo nada disto! - comentou ele. - Nesta rua devia começar a Calçada do Mirante.

- Por que é que não perguntamos a alguém?

- Espera. Se encontrarmos o caminho através do roteiro, é muito melhor.

- Não vejo porquê!

A Teresa piscou o olho à irmã e afastou-se em direcção a uma taberna. Sem hesitar, entrou por ali dentro, saindo pouco depois satisfeitissima.

- Já sei onde é, Pedro. Não te canses. A calçada vinha dar aqui, mas há três anos construiram aquele prédio grande e taparam as escadinhas... O teu roteiro é antigo. Está desactualizado.

- Bom, está bem! - disse ele, fechando o livro. - Então por onde é?

- Por aqui. Sigam-me.

Deram a volta ao quarteirão, e lá estava a Calçada do Mirante. Que sítio tão giro! De calçada tinha muito pouco. Na realidade, tratava-se de um beco sem saída, terminando num pequeno muro de onde se avistavam os telhados de Lisboa até ao Tejo. Lá em baixo, na zona portuária, havia barcos, guindastes e um amontoado de caixotes e containers prontos a embarcar para terras longínquas. Um cacilheiro, a meio do rio, visto dali parecia um barquinho de brinquedo. E do lado de lá os fumos das fábricas envolviam o cenário numa cortina baça.

- Olha aqui um chafariz!

- Vou beber água! - disse o Chico.

Aproximaram-se, mas a Teresa antecipou-se. Abriu a torneira e deixou a água jorrar à moda antiga. Soube-lhe bem, beber assim, sem copo, com os respingos a saltarem-lhe para a cara, para os braços e para as pernas.

Um a um, todos quiseram beber, claro!

- O número dez é o último prédio! Só tem três andares. Rés-do-chão e mais três andares.

O Pedro acabava de descobrir a casa do homem. Os outros olharam para ele, à espera de ordens.

- Aguentem aqui um bocadinho, o melhor é não irmos todos. O prédio é tão pequeno, que podemos chamar a atenção...

- Mas não te demores, que a aventura não é só para ti.

- E tem cuidado...

- Devíamos ter trazido o Faial - lembrou o João, melancólico.

- Deixa-te agora disso! Se for preciso, da próxima vez vem.

O Pedro afastou-se, de mãos nos bolsos, a assobiar.

Junto à porta, verificou que havia campainhas para quatro pessoas.

- Vou tocar para o porteiro - decidiu.

Carregou no primeiro botão e aguardou uns instantes. Em vez do ruído do trinco, que esperava ouvir, apareceu-lhe um velhote com ar miserável. Tinha a barba por fazer, óculos de lentes muito grossas, e a roupa que trazia era velhíssima. As calças, largas e coçadas nos joelhos, estavam seguras por suspensórios. Um casaco de pijama de flanela às riscas, entreaberto, deixava à vista uma tira da camisola, a que muitas lavagens tinham dado um tom indefinido.

- O que é que queres? - perguntou, desconfiado. - Se é outra vez por causa do futebolista, podes ir embora. Já disse a toda a gente que não sei nada!

O Pedro ficou gago de espanto. A polícia teria seguido a mesma pista que eles?

- não! Não era por causa do futebolista - preferiu dizer. - Mas por que é que vieram aqui à procura dele?

-Então onde é que haviam de ir? Foi daqui que ele desapareceu!

O Pedro cada vez percebia menos!

Seria possível que o Anastácio vivesse na mesma casa que o homem com cara de boxeur?

- Desapareceu daqui? - repetiu.

- Claro! Não ouviste na televisão que ele desapareceu de casa?

- Ele morava aqui no primeiro andar? - perguntou o Pedro, de olhos arregalados.

- Não, senhor! Morava no segundo.

O Pedro sorriu, satisfeito. Por aquela é que ele não esperava! Então o jogador de futebol vivia mesmo por cima do outro malandro? Sendo assim, mais certo ficava de que as suas suspeitas tinham fundamento... Desse lá por onde desse, tinham de investigar ali!

Para prolongar a conversa, resolveu servir-se de um estratagema.

- Olhe lá, o senhor é o porteiro do prédio, não é?

- Sou, sou. Vim para aqui vai para vinte e três anos. Vivo no rés-do-chão.

- É que eu estava a jogar à bola com os meus amigos, e a bola saltou de mais e foi parar à varanda do primeiro andar. Sabe se está lá alguém?

- A esta hora, não está lá ninguém.

- E o senhor não tem a chave? É que queríamos ir lá buscar a bola.

- Não tenho chave nenhuma! E, se tivesse, não te ia abrir a porta sem ordem do inquilino!

- e a que horas é que ele vem?

- Hum, não faço ideia! A senhora que morava neste rés-do-chão foi viver para Castelo Branco e alugou a casa mobilada a um tipo mal-encarado. Ele às vezes está cá, outras vezes não está... não sei nada da vida dele.

O Pedro não sabia que mais inventar para se introduzir no prédio. Olhou para trás e viu os amigos, impacientes, empoleirados no chafariz.

- São os teus amigos? - perguntou o velhote.

- São, sim. Sem bola não podemos jogar... estão aborrecidos.

- Pois é, mas eu não posso fazer nada. Se quiserem, fiquem aí à espera. Eu vou dar de comer aos meus pombos.

- O senhor tem pombos?

A cara do homem abriu-se num sorriso largo.

- Tenho!

- Podemos ver?

- Podem! Até é uma maneira de se entreterem. Chama lá os teus companheiros, que os pombos não fazem mal a ninguém. São amigos de toda a gente!

Aquilo caía que nem ginjas! Era a oportunidade ideal para, enquanto viam o homem dar milho aos pombos, estudarem disfarçadamente o local. Ou até de sacarem informações ao velho, sem ele dar por isso.

Fez sinal aos outros para que se lhe juntassem. E apresentou-os cordialmente.

Nas traseiras do prédio, havia um quintal minúsculo, totalmente ocupado por pombais.

O porteiro abriu a primeira portinha de rede, e começou a despejar milho nas latas.

"Crrrrúúú... Crrrúúú... Crrrrúú... Crrruu.

Era confortável, o arrulhar dos pombos!

- São pombos-correios, sabem? - disse ele, entre orgulhoso e enternecido.

- Levam mensagens? - perguntou o João.

- Podem levar, sim senhor!

O Pedro fez sinal ao Chicó para ir com ele. As gémeas e o João que entretivessem o homem.

- Quantos pombos tem?

- Eu tenho dezoito. Os outros são do Anastácio. Fui eu que o meti na columbofilia... Temos entrado em muitos concursos. Aqui este, vêem? O Pascoal já ganhou um primeiro prémio!

- E como é o concurso? - perguntou a Luisa.

- O concurso é uma espécie de corrida de pombos. Mandam-se os bichinhos numas gaiolas próprias para O Sítio da largada. A última vez em que concorremos, a largada foi numa cidade espanhola, em Burgos.

- Então, os pombos sabem vir aqui ter?

- Claro! São pombos-correios! Podem ser largados em qualquer parte do mundo, que eles sabem orientar-se. Voltam sempre a casa.

- Se uns vão ter a um sítio, e outros vão ter a outro, como é que sabem qual é que ganhou?

- É conforme a distância que o pombo teve de percorrer. O que atingiu maior velocidade é que ganha.

- Mas os pombos não têm conta-quilómetros!

O homem riu-se.

- Os pombos trazem uma anilha na pata. Mal entram no pombal, tira-se-lhes a anilha e vai-se registar a hora da chegada... O Pascoal é formidável. Quando se aproxima, parece que sabe o que tem a fazer. Entra no pombal que nem uma seta! Há outros que são uns patetas. Ficam lá em cima a voar, pousam no telhado, andam às voltas... assim, chegam primeiro que os outros e não ganham nada.

- Eh, campeão! - disse a Teresa, falando

cOm O Pascoal.

"Crrúú... Crrrúúú.

O pombo, inchado, parecia compreender que o gabavam.

- São animais inteligentes - disse o porteiro, muito vaidoso.

Era um homem velho e só, que canalizava toda a ternura para aqueles bichinhos, a sua única companhia.

- A pomba é o símbolo da paz, sabiam?

- Eu por acaso sabia, mas por que é?

- Ora, ora, ora! Estes meninos andam a estudar e não sabem as histórias mais bonitas...

Com um sorriso bonacheirão, explicou:

- Já ouviram falar na arca de Noé?

- Sim, já.

- Pois é por causa disso. Há muitos séculos, Deus zangou-se com os homens, que só faziam asneiras... e por isso resolveu acabar com aquela raça que tantos desgostos lhe dava!

Por trás dos óculos grossos, os olhinhos piscos brilhavam de satisfação. Não havia dúvida de que lhe sabia bem ter com quem conversar. Após uma pequena pausa, continuou:

- Para acabar com a raça, Nosso Senhor resolveu mandar um dilúvio.

- Dilúvio é chuva, não é?

- É. Mas só se for muita chuva. Deus, como estava zangado, fez chover quarenta dias e quarenta noites. Inundou tudo, e as pessoas morreram.

As gémeas e o João olhavam-no, fascinados. O arrulhar dos pombos, a atmosfera quentinha do pombal, e aquele homem velhote, tão simpático, a contar histórias da Bíblia com ar ingénuo... tudo aquilo os fazia sentir meninos pequenos

- Morreram todos? - perguntou o João.

- Ná! Deus pensou melhor. Havia um que era bom tipo. Um tal Noé. Chamou-o, explicou-lhe o que ia acontecer e mandou-o construir um barco enorme com casa lá dentro para ele, para a família dele, e para os animais. Que os animais não tinham culpa da maldade dos homens... Agora, como não cabiam todos, Deus ordenou-lhe que levasse um casal de cada espécie.

- Um casal de cada espécie? Como é que ele terá metido no mesmo barco um casal de girafas, um casal de elefantes, um casal de moscas... - brincou a Luisa.

O homem encolheu os ombros e continuou.

- Lá isso não sei. A história é assim. Choveu, choveu, choveu... a terra deixou de se ver e eles lá andaram na arca até que parou de chover. Noé, que tinha de governar aquele pessoal todo, quando viu o céu enxuto soltou um corvo, a ver o que acontecia. Mas o corvo não voltou. Passado uns dias, soltou uma pomba. E ela voltou,, com um ramo de oliveira no bico. Era sinal que Deus já estava em paz com os homens. Podiam sair e espalhar-se pelo mundo, que a copa das árvores já estava de fora.

- Que giro! Então por isso é que o símbolo da paz é a pomba com um raminho de oliveira no bico!

- Foi um bichinho escolhido por Deus! - repetiu o homem, afagando a cabeça do Pascoal. - Escolhido para representar a paz! E apesar disso é muito útil na guerra!

- Na guerra? Não me diga que os pombos também vão à guerra! - duvidou a Luisa.

- Olha, na última guerra mundial ainda se usaram muitos pombos para transportar mensagens por cima do campo do inimigo. Há países que até fizeram monumentos ao pombo-correio...

O Chico e o Pedro interromperam a conversa, entrando no pombal. Vinham agitadíssimos! Tinham descoberto uma forma de penetrar no prédio.

Tentando não ser grosseiros com o velhote, fingiram ter muita pressa, e despediram-se, arrastando os amigos atrás de si. Quando se viram sozinhos, explodiram em explicações.

- Temos de cá voltar!

- Descobrimos uma solução sensacional para entrar no prédio... É arriscado, mas vale a pena.

- Achas? - perguntou a Luisa. - A polícia já deve ter lá estado dentro e não descobriu nada.

- Mas a polícia não sabe o que nós sabemos! Com certeza foram só a casa do futebolista.

- E nós vamos entrar na casa do tipo com cara de boxeur...

- Como?

- Já vais saber!

 

Nessa mesma noite voltaram à Calçada do Mirante, para porem em prática um plano arriscadíssimo. Esperarem que escurecesse e tocarem à campainha do porteiro. O velhote apareceu, contrariado, porque estava a ver a telenovela. Mas como eram eles ficou logo todo risonho.

- Então outra vez por aqui?

- Lembramo-nos de vir perguntar se o inquilino já estará em casa para nos dar a bola - explicou o Pedro.

- Não veio, não, meus filhos. Estou sozinho no prédio.

As gémeas entreolharam-se, satisfeitas. Era mesmo isso que lhes convinha!

- Pronto! Então, obrigado e descúlpe!

- Se não querem mais nada, vou ver o resto da novela.

- Faz favor! Até amanhã!

O porteiro, com a pressa, voltou para dentro e fechou a porta de casa. Conforme desejavam, ficaram sozinhos na escada.

A ideia era saírem pela porta das traseiras, para o quintal dos pombos.

O Chico e o Pedro tinham verificado que em todos os andares estava aberta uma janelinha pequena, que devia ser da casa de banho.

Pé ante pé, esgueiraram-se para o quintal sem fazer o menor ruído.

Escondidos atrás de um pombal, desdobraram o papel onde o Pedro tinha desenhado o seu plano.

- Está aqui o esquema do prédio...

De cabeças juntas, observaram de novo o desenho.

- Como estás a ver, no terceiro andar, onde vive a escultora, há um guincho com um balde na ponta. Deve servir para içar pedras e outro material de escultura. A ideia é esta - explicou ele de novo. - O Chico sobe pelos cabos do guincho até à varanda da escultora. Achas que consegues, não achas?

- Claro, pá!

- Eu se calhar também conseguia - disse o João, lançando um olhar avaliador ao prédio.

- É melhor não, espera. O Chico, já lá de cima, puxa-te no balde até à janelinha do primeiro andar. Entras em casa do boxeur e depois abres-nos a porta.

- E nós - disse a Luisa -, ficamos na escada, entretanto, para dar o alarme se aparecer alguém...

- Então o melhor é pormos o plano em prática já, enquanto o porteiro está entretido com a novela.

- Se ele ouvir alguma coisa, vocês distraiam-no, hen, gémeas?

- Fica descansado!

O Chico, com uma comichãozinha de nervoso, aproximou-se do guincho. Esfregou as mãos uma na outra e agarrou os cabos com força.

- Acham que isto aguenta com o meu peso?

- Claro! Se aguenta com pedras, também aguenta contigo!

Com um impulso, o Chico empoleirou-se, apertando com força os joelhos de encontro ao cabo. E depois, lentamente, foi-se elevando, encostado ao prédio. Para estar assim, pendurado sobre o vazio, ainda era uma altura considerável...

Os outros ficaram a vê-lo subir, atacados de nervoso miudinho...

Mas ele chegou lá acima e, apoiando-se no rebordo da varanda, saltou para dentro.

Foi a vez de o João se meter dentro do balde.

- Estás pronto, pá?

- Prontíssimo! - respondeu o João.

De braço no ar, o Pedro fez o sinal combinado. O Chico começou imediatamente a dar à manivela, e o balde a subir. Lá dentro, o João oscilava, com um sorriso de orelha a orelha.

- Isto é porreiro! Adoro andar de balde!

O pior foi que, a poucos metros do chão, o mecanismo começou a fazer ruídos que era impossível não serem ouvidos no prédio!

"Crinch... Crinch... Crinch. . . "

- Pára! Chico, pára! - ordenou o Pedro em voz surda.

O João ficou a baloiçar, entre o rés-do-chão e o primeiro andar. Ainda olhou para a janelinha que o Pedro assinalara com uma cruz, mas não. Dali, não conseguia entrar.

- E agora, o que é que eu faço? - perguntou o Chico lá em cima.

- Escondam-se!

A ordem era fácil para todos, menos para o João que, por mais que se encolhesse, não cabia inteiro dentro do balde.

- Já sei! - disse a Teresa. - Nós resolvemos isto. Continuem...

As gémeas correram para a porta do prédio e tocaram freneticamente para casa do porteiro outra vez. Ele ficou admirado de as ver de novo, mas elas explicaram-se sem demora.

- Está a ver a novela, não está? A nossa televisão avariou. Podemos ver consigo?

- Podem, sim. Entrem, entrem! Mas está quase a acabar.

As gémeas instalaram-se ao pé do homem e aguardaram. Assim que voltaram a ouvir-se os estalidos do guincho, a Teresa pediu.

- Posso pôr um bocadinho mais alto?

- Podes.

A Teresa rodou o botão, pondo os actores a falar em altos berros.

- Assim está alto de mais! - reclamou o porteiro.

- Ora, não diga isso! Esta música é tão bonita! É bom é ouvir assim...

- Bom, está bem! Ouçam lá como vocês quiserem...

Na verdade, elas não ouviam senão o ruído do guincho, que se esbatia lá fora.

Logo que parou, suspiraram de alívio. Naquele momento, já o João devia estar a arrombar a janelinha...

De facto, o João acabava de resvalar para dentro da casa do boxeur, através da janela da casa de banho. E, desequilibrando-se, estatelou-se na banheira.

- Bom, vamos lá a ver se consigo abrir a porta aos outros!

Com o coração alvoraçado, percorreu a casa, tacteando no escuro. Se aparecesse alguém era o fim! Não tinha hipótese nenhuma de justificar a sua presença ali. Portanto, o melhor era despachar-se.

Como a casa era pequena, depressa encontrou a porta da rua. Abriu-a com cuidado, espreitando para o patamar.

Acocorados num canto, lá estavam o Pedro e o Chico.

- As gémeas?

- Não sei. Parece que foram entreter o porteiro.

- Então o que é que fazemos?

- Avancemos. Deixa a porta encostada!

O Chico introduziu-se em casa do boxeur, mas o Pedro ficou ainda um instante a ver se as gémeas vinham.

Não tardou que as ouvisse despedirem-se do porteiro, agradecendo muito.

- Adeus!

- Obrigadinha!

- Se quiserem ficar a ver o concurso que dá a seguir, fiquem à vontade.

- Temos de ir para casa. Obrigada!

- Boa noite!

Assim que o homem voltou para dentro, elas juntaram-se aos amigos.

- Então? - perguntaram em coro.

- Vamos ver. O Chico e o João andam lá dentro.

Durante um bom bocado, percorreram todas as divisões sem encontrarem nada de especial. Abriram armários, espreitaram debaixo da can'a, vasculharam nas gavetas, e pelo menos à vista não havia nada de suspeito.

- Se calhar, enganámo-nos! - ia a dizer o Chico.

Mas o Pedro chamou-os da sala, radiante!

- Encontrei! Está aqui!

- O quê? - perguntaram os outros, admirados.

- A maquineta que vi no estádio. É esta.

Em cima de uma mesa estava um aparelho pequeno fora do vulgar, que parecia um minúsculo televisor, cujo écran, em veZ de ser liso, era quadriculado.

- Acende lá isso, para ver o que acontece! - pediu o João.

O Pedro accionou um interruptor e no ecran quadriculado surgiu uma linha verde, a direito. Na parede, estava pendurado um microfone redondo.

- Que diabo é isto?

- Sei lá!

- É esquisito que se farta.

- Já repararam que a máquina e o microfone esrao ligados ao tecto?

- Ah! É, é! - exclamou a Luisa, seguindo o fio com os olhos.

Achas que isto tem alguma coisa a ver com o rapto? - perguntou o Chico.

- Deve ter - disse o Pedro. - Repara que a máquina está ligada ao tecto, e por cima vive o jogador.

- Pois é. Mas não estou a ver a relação de uma coisa com a outra.

O Pedro encolheu os ombros.

- Nem eu.

- Então o que é que fazemos? - Entreolharam-se, na esperança de que surgisse uma ideia brilhante...

 

A noite do assalto a casa do boxeur tinha terminado sem grande graça.

O Pedro continuava firme na sua opinião. O jogador tinha sido raptado. O homem que vira no estádio estava envolvido. Aquela máquina tinha alguma coisa a ver com o assunto, embora não soubessem o quê. à falta de melhor, decidiram montar um esquema de vigilância ao prédio. Tiraram à sorte, para ver quem havia de começar. Escreveram os nomes em papelinhos, mas o Chico insistiu em que as gémeas ficassem juntas. Eram raparigas e, pelo que o Pedro dizia, o tal marmanjo podia ser perigoso.

Foi ele quem, depois de bem misturados, abriu o primeiro papelinho.

- Gémeas! - leu em voz alta.

- Bestial! - disse logo a Teresa. - Somos nós que começamos!

- Não sei se... - ia o Pedro a atalhar.

- Deixa-te de coisas! - interrompeu a Luisa. - Combinámos que era à sorte, e a sorte calhou-nos a nós.

Aquele argumento era forte. Combinado é combinado!

Despediram-se, os rapazes cabisbaixos e elas radiantes!

Mas um motivo inesperado impediu-as de concretizarem o plano. Para grande fúria de ambas, a mãe tinha convidado o miúdo brasileiro para ir lá a casa, prometendo-lhe que as gémeas o levariam ao Aquário Vasco da Gama, visto ser sábado e não terem aulas.

Consternadas, não tiveram outro remédio senão telefonar aos amigos. Mas só encontraram o João, que se prontificou a tomar a vez delas.

Assim, quem começou a vigilância foi ele, enquanto a Teresa e a Luisa, fazendo das tripas coração, seguiram para o Dafundo com uma criancinha atrás.

- Que bucha de programa! - resmungou a Luisa entredentes.

- Cala-te, que é chato. O miúdo não tem culpa!

Todo o caminho, no entanto, foi a Teresa quem respondeu às mil perguntas que ele fazia sem parar.

- Como se chama este rio? Do lado de lá

também é Lisboa? Quantos barcos tem? Aqui há praia? Aquele é o Cristo redentor igual ao do Rio de Janeiro?

- Não! É o Cristo-Rei - respondeu a Teresa, percebendo finalmente por que motivo os pais se chateavam com elas quando, há uns anos, os bombardeavam com perguntas.

- Olha, lá está o Aquário! suspirou a Luisa, contrafeita.

A paragem era mesmo ao pé do edificio. As gémeas estugaram o passo em direcção à entrada. Quanto mais depressa despachassem aquele pincel, melhor! Pagaram os bilhetes e entraram.

Para não demorar muito, a Luisa arrastou o miúdo pela mão, e pôs-se a dar explicações "do tiPo instantâneo".

- Vês? Esta sala não interessa nada. São só frascos com bichos lá dentro. Caranguejos e assim. Tens melhor no Brasil. Anda!

O corredor que se seguia era escuro, com a parede revestida de aquários quadrados e redondos. Por baixo de cada um havia um painel com informações sobre as plantas e os animais marinhos. Premindo um botão, iluminava-se o painel e podia-se ler um texto detalhado.

- Que gracinha! - disse o miúdo, carregando a eito em vários botões.

- Não tem gracinha nenhuma! Tu não sabes ler o que aí está...

A Teresa deu uma cotovelada na irmã.

- Luisa - disse-lhe em voz baixa. - Estás a exagerar.

- Pois é, mas isto é enjoativo, e eu queria era estar na Calçada do Mirante! Aposto que hoje vai acontecer alguma coisa, e nós não estamos lá!

- Está bem, pronto! É chato, mas não sejas antipática.

Embora fazendo um certo esforço, não conseguiu grandes resultados em termos de simpatia. Voltou a puxar Nelson por um braço, mostrando-lhe, enfadada:

- Vês uma lula gigante? Mede mais de oito metros e pesa duzentos e sete quilos. Anda!

- Hi! Que grande bicho! É uma lula?-disse ele, debruçando-se sobre a caixa de vidro onde o molusco descomunal, cinzento e repelente, se exibia aos visitantes.

- Olha - exclamou a Teresa. - Que giro o que está ali escrito, já viste? Há milhares de anos que estas lulas gigantes aparecem no mar e assustam os marinheiros...

A Luisa não ligou. Já ia direita à sala seguinte. Um tanque enorme ocupava-a quase por completo.

- Tartarugas!

O Nelson, de tão entusiasmado, quase caiu na água.

- Que tamanhão!

- Sai daí! Vamos ver o resto!

O Nelson virou-se de costas para o tanque e ficou especado em frente a um aquário enorme, onde nadavam vários peixes.

- Anda! - chamou a Teresa. - Ali é mais bonito!

Quase obrigaram o miúdo a subir três degrauzinhos e, seguindo por outro corredor, foram ter às focas.

Uma delas mergulhava e nadava, escorregando na água com o seu corpo fusiforme. De vez em quando levantava uma barbatana para dar novo impulso.

A outra dormia calmamente num rebordo. O Nelson adorou as focas! Mas de repente deu com os olhos num vidro encostado na parede, e gritou:

- Piranhas!

As gémeas não tiveram outro remédio senão ir atrás dele.

Com a cabeça encostada ao vidro, ele parecia hipnotizado.

- É um peixe carnívoro! Come bicho, come gente...

As gémeas, apesar de enfadadas com aquela visita forçada, não resistiram às piranhas! Era um peixe tão diferente dos outros todos! Redondo como se estivesse inchado. E com uma bocarra enorme, saliente, cujos dentes afiados pareciam capazes de triturar um elefante!

- São horríveis, estes peixes!

- Diz aqui que só existem na América do Sul. Andam no rio Amazonas e no Orinoco.

- Olha, que giro! As piranhas excitam-se com o sangue. Se uma pessoa ou um animal cair à água e tiver uma ferida a sangrar, está tramado! Elas, zás! Devoram tudo num instante.

Desta vez foi Nelson quem se fartou primeiro.

- E agora? O que é que há mais para ver?

- Nada! - arriscou a Luisa.

Mas ele não era parvo! De uma corrida, voltou para trás e entrou numa outra sala bastante escura, dividida em duas secções.

Mal sabiam as gémeas o que ali iriam encontrar!

Havia vários peixes, uns vulgares, outros exóticos... mas, num aquário grandinho, deslizavam algumas espécies de enguia-eléctrica.

Um aviso recomendava ao público: "Ouça no altifalante e repare no osciloscópio".

E a placa informava: Estes peixes possuem ó'rgãos eléctricos cuja descarga atinge 300 vóltios, e é capaz de paralisar um cavalo. Habitam zonas pantanosas e rios calmos da América do Sul.

A Teresa e a Luisa observaram as enguias. Eram uns peixes compridos, com o corpo parcialmente coberto de uma espécie de borbulhas rosadas.

- Bá! Que nojo!

- Leste aquilo? Já pensaste que um bicho destes é capaz de imobilizar um cavalo?

- Safa! Deve ser cá um choque! Trezentos vóltios é mais do que a corrente eléctrica que temos em casa!

Naquele momento, uma das enguias fez um movimento rápido:

"Brôôô Brôôô..." Um ronco pelo microfone- fê-las dar um salto para trás.

O Nelson- fartou-se de rir.

- Assustaram-se! Birutas! Birutas!

Só então repararam bem no dístico, no microfone e na maquineta.

Quando as enguias soltavam as descargas eléctricas, ouvia-se o barulho no microfone, e um risco de luz verde oscilava, formando desenhos no quadriculado do écran.

A mesma ideia atravessou-lhes o espírito como uma seta.

- A maquineta! A maquineta! - disseram em coro.

Certas de terem descoberto o segredo do boxeur, não houve mais hipótese de terem paciência para o brasileiro. Cada uma pegou-lhe por um braço e, de roldão, fizeram o caminho inverso, saindo do aquário a correr.

Apanharam o primeiro táxi que lhes apareceu pela frente e foram direitinhas entregar o miúdo à mãe.

Tinham de falar com o Chico e com o Pedro!

A máquina que o boxeur tinha ligada ao tecto só podia ter uma finalidade: registar no microfone e no écran os movimentos do jogador. O processo devia ser o mesmo com que o osciloscópio registava as descargas eléctricas da enguia! Assim, era-lhe possível saber se ele estava em casa, se estava sozinho ou acompanhado, para poderem atacá-lo na melhor altura.

Aquela descoberta era a prova de que precisavam para terem a certeza de que o homem estava envolvido no rapto!

O Pedro e o Chico, que estudavam juntos para o ponto de Matemática, ficaram assombrados quando as viram aparecer. Vinham desvairadas!

- Que é que lhes aconteceu? – perguntou o Chico.

- Descobriram alguma coisa na casa do homem?

- Não! Não viemos de lá! - disse a Teresa, afogueada da corrida.

- Não vêm? Não tinha ficado combinado que eram vocês a iniciar a vigilância!

- Mas não pudemos ir!

- Fomos ao Aquário Vasco da Gama.

O Pedro e o Chico entreolharam-se, cada vez mais admirados.

- Ao Aquário? Para quê?

- Não interessa - respondeu a Luisa.

Titubeante, a Teresa interrompeu-a.

- E... descobrimos... descobrimos a prova de que precisávamos!

- Onde?

- Lá no Aquário!

- No Aquário!

- No Aquário? Vocês estão doidas!

- Descobrimos, juro!

Com o entusiasmo, a Luisa pôs-se aos murros na mesa.

- Tu é que não sabes! Nós descobrimos!

- Mas descobriram o quê?

- A enguia-eléctrica! - exclamaram as gémeas.

O Pedro e o Chico largaram à gargalhada. Aquelas gémeas!

 

Foi difícil desfazer o equívoco, mas as gémeas acabaram por se explicar.

- Vocês são capazes de ter razão - disse o Pedro. - Aquela máquina ligada ao tecto só podia servir para vigiar o jogador.

- Acham que é de comunicar à polícia?

- Hum... Mesmo assim não temos provas concretas.

- Se fôssemos lá ter com o João?

- Eu, cá por mim, alinho!

- Eu também! Estou louca por saber se aconteceu alguma coisa na Calçada do Mirante!

Mal sabiam as gémeas a aventura em que o João se tinha metido!

O porteiro ia a sair quando ele chegou perto do chafariz. Parecia cheio de pressa, disse-lhe adeus e desapareceu pela rua abaixo.

O João ficou rondando por ali. à primeira vista, o prédio continuava vazio. Sentou-se então no muro que fechava o beco e decidiu aguardar. De dois em dois minutos olhava para o relógio, impaciente.

- Quando não há nada para fazer, o tempo arrasta-se de uma maneira! - suspirou. - Era muito mais divertido termos vindo em grupo!

Teria passado aí uma meia hora, quando surgiu ao fundo da rua a carrinha azul-escura que já vira no estádio...

"Meu Deus! Vai acontecer qualquer coisa e eu estou aqui sozinho!"

Mas, visto que tinham confiado nele, resolveu que actuava, se tivesse oportunidade.

A carrinha estacionou mesmo junto ao prédio e saíram dois homens. Um era o tal Venceslau com cara de boxeur. O outro não tinha sinais particulares, era insignificante.

Chamando a si toda a coragem, o João deu uma corrida e entrou com eles no prédio.

Com a maior das latas, decidiu olhá-los de frente e fazer uma pergunta que o colocasse acima de qualquer suspeita.

- A minha prima está cá, não está?

O boxeur olhou para ele, admirado, e respondeu-lhe com maus modos:

- A tua prima? Sei lá quem é a tua prima!

- É a escultora!

- Ah! Sei lá!

O João encolheu os ombros e subiu a escada a quatro e quatro, como quem se dirige ao último andar. Eles não lhe ligaram nenhuma, e entraram na sua própria casa, atirando com a porta.

"Bom, já cá estou dentro!", pensou o João. "E agora? O que hei-de fazer?"

Só valia a pena estar ali se conseguisse ver ou ouvir alguma coisa...

"Vou para as traseiras. Se conseguir amarinhar pelo cabo, talvez ouça o que dizem através da janelinha!"

Em bicos de pés desceu a escada, parando sempre que a madeira rangia. Com mil cuidados, passou para as traseiras e tentou içar-se pelos cabos do guincho. Mas tinha as mãos suadas do nervoso e escorregava sempre.

"O melhor é esfregar as mãos com terra...

Mas nem assim.

Cada vez mais enervado, por não conseguir executar o plano, pôs a cabeça a funcionar. Queria que os amigos se orgulhassem dele. Tinha de fazer alguma coisa!

Uma ideia louca atravessou-lhe o espírito!

"Vou tentar fazer o mesmo que fez o Chico, quando apanhámos os ladrões de automóveis! Escondo-me na carrinha, e vou com eles. Depois fujo e venho dizer o que descobri. "

Mas, habituado a ter o Faial por companhia em todos os momentos difíceis, sentiu-se muito desprotegido.

"Se me apanham? Se dão cabo de mim? Se não consigo fugir? Se fico preso em qualquer parte, como é que comunico com eles?"

O João passeava, frenético, entre as traseiras do prédio e os pombais.

"Crrúúú... Crúúúú..."

O arrulhar dos pombos era o único ruído que se ouvia...

"Já sei! Já sei! Assim corro menos riscos... "

Num ápice, o João fez o que tinha pensado. E depois correu para a carrinha azul-escura. Por sorte, a porta de trás não estava trancada.

Com o coração aos pulos que nem um cavalo, esborrachou-se no chão, entre o banco da frente e o banco de trás, cobrindo-se com o capacho.

"Bâ... Vou ficar todo sujo!" Escondera-se mesmo a tempo. Não tardou que os homens abrissem o porta-bagagens, colocando lá dentro a maquineta e o microfone de que já não precisavam. Depois, o boxeur sentou-se ao volante e o outro ao lado. O motor foi posto em movimento e partiram.

"Rumo ao desconhecido!", pensou o João, encolhendo-se mais.

Até onde o iriam levar?

Acachapado no fundo do carro, não fazia a menor ideia! E ia bem desconfortável. Viajar assim, deitado numa superfície irregular, cujas saliências se lhe enterravam na carne com os solavancos, e coberto por um tapete cheio de pó, era pavoroso! E o pior ainda eram as curvas e contracurvas... Uma certa agonia fê-lo apertar as mãos de encontro ao estômago.

"Se enjoo, estou perdido! Fico sem reflexos para poder fugir. "

No fundo da carrinha havia uns buraquinhos que lhe permitiam ver a estrada. Só que a estrada era sempre igual - uma tira de alcatrão!

"Que estucha! Isto nunca mais acaba. Se vamos ao encontro do jogador raptado, deve estar bem longe... "

Subitamente, porém, o piso mudou.

O carro começou a vibrar mais, como se rolasse em cima de uma rede.

O João espreitou de novo, e o que viu deixou-o ainda mais aflito. Água! Estavam em cima da ponte sobre o Tejo! O que fazia vibrar o carro era mesmo a rede metálica da faixa central. Receando ser notado pelos empregados da portagem, que certamente estranhariam que viajasse assim, encaracolou o corpo, enfiando a cabeça quase entre os joelhos. Mas ninguém deu por nada. O carro, passada a portagem, acelerou valentemente. Estavam na auto-estrada do Sul!

Para onde iriam?

Um vómito subiu-lhe à garganta, mas ele dominou-se e fechou os olhos, que se encheram de lágrimas com o esforço.

"Se calhar fiz mal em me meter nisto!", pensou.

Mas agora era tarde para recuar.

Pouco depois de a carrinha ter abandonado a Calçada do Mirante, chegaram os amigos à procura dele. O beco estava deserto, e no prédio não havia ninguém. Em vão chamaram, gritaram, tocaram às campainhas.

- Onde se terá metido o João?

- Se calhar fartou-se e foi-se embora.

- Será que descobriu alguma coisa, resolveu Ir contar e afinal desencontrámo-nos? - sugeriu o Chico.

- É bem possível!

O Pedro franziu-se, inquieto. Não saberia explicar porquê, mas tinha um mau pressentimento...

Foi ele quem impediu os amigos de voltarem para trás.

- Tenham paciência! Se quiserem vão vocês cês, eu fico aqui à espera.

- Porquê, Pedro? Já se viu que ele não está cá!

- Não sei - respondeu ele, teimoso. - Daqui não arredo pé sem percorrer o prédio de ponta a ponta.

Tanta determinação impôs-se aos companheiros. Vagamente inquietos, sentaram-se na soleira da porta.

- Bolas! Ou o bandido, ou o porteiro, ou o jogador, ou a escultora, alguém há-de aparecer!

Foi a escultora. Com uns óculos escuros descomunais, o cabelo muito ondulado caindo sobre as costas, calças justas e um casaco largueirão, dobrou a esquina a cantarolar. Vinha absorta, e nem reparou neles. Meteu a chave à porta e empurrou-a, não se preocupando minimamente em saber quem eram, o que estavam ali a fazer e por que motivo se precipitaram para as traseiras.

O Pedro foi à frente e parecia louco, a vasculhar tudo no quintal. Mas aquilo era pequeno e não havia o menor indício da presença do João!

- Vais ver que ele foi à nossa procura - insistiu a Luisa. - Estamos aqui a perder tempo.

- Ei! - chamou de repente a Teresa. Olhem o que encontrei!

Correram todos para junto do balde onde tinha "viajado" João deixara uma mensagem.

O Pedro arrebatou-a das mãos e leu em voz alta.

Consternados, entreolharam-se em silêncio. O Pedro estava muito pálido, com a boca quase transparente.

- É louco! - murmurou o Chico.

- E agora? - perguntou a Luisa, quase a chorar. - O que é que a gente faz?

- Está na cara que vai ser apanhado! Está na cara!

- O João não podia fazer isto! - choramingou a Teresa.

- Calem-se! Deixem-me raciocinar!

Naquele momento, a porta das traseiras abriu-se de mansinho.

Vinha ali alguém! Em suspenso, ficaram a olhar, loucos de esperança que fosse o João...

 

Em vez do João, quem apareceu foi o porteiro. Como vinha apressado para tratar dos pombos, também ele não perguntou o que estavam ali a fazer. E eles não explicaram!

- Por acaso viu o nosso amigo, aquele mais pequeno, o João?

- Vi, vi. Estava lá fora no beco - disse o homem, empurrando a portinhola do pombal.

- O que é que ele estava a fazer?

- Nada!

As perguntas que faziam eram tolas, pois a mensagem deixada no balde era bem clara: o João tinha-se metido numa grande encrenca.

O velhote, às voltas com o milho e a água, não se apercebia da nervoseira em que todos se encontravam. Mas, de repente, levantou a cabeça e exclamou, aflito:

- O Pascoal? Falta o Pascoal!

- Quem? - a Teresa já não se lembrava que era o pombo.

- O Pascoal! O meu campeão!

Lívido, o homem encarou-os inquieto e zangado.

- Vocês abriram o pombal?

- Não, não mexemos em nada.

- Mas alguém andou aqui dentro! Ele não podia sair pelos buracos da rede!

- Não se aflija - disse o Pedro. - Tratando-se de um pombo-correio, se calhar anda por aí mas volta.

- Sim, mas eu gosto que ele coma às horas certas...

Saindo para o pátio, de cabeça erguida, pôs-se a chamar:

- "Miuc" "Miuc'" "Miuc"! Pascoal! Pascoal!

Todos levantaram os olhos para o céu, procurando vislumbrar a ave fugitiva. Havia pombos a esvoaçar por ali...

- Será algum daqueles?

- Não é! Vê-se logo que não é!

As gémeas entreolharam-se, incrédulas. Seria possível que ele conhecesse os animais à distância? Para elas, os pombos eram todos iguais. Mas o homem parecia muito seguro do que estava a dizer.

De repente, o Pedro bateu com a mão na testa.

- Já sei o que é que aconteceu!

Admirados, olharam todos para ele, à espera de que se explicasse.

- Foi o João que o levou...

- O que é que estás a dizer? O vosso amigo roubou-me o pombo? - berrou o porteiro, furioso.

- Não! Ele é incapaz de roubar seja o que for!

- Então, que farsada é esta?

Já todos tinham percebido menos o porteiro, claro. Mas como explicar-lhe?

O Chico, com um sorriso de satisfação, murmurou baixinho:

- Foi bem esperto, o gajo!

- O que é que estás a dizer? Hen?

O homem, de lívido, passara a escarlate.

- Bom, é o seguinte - começou o Pedro, cauteloso. - O João foi para um sítio que nós não sabemos qual é. Ou seja, foi atrás dos inquilinos do primeiro andar. E com certeza levou o Pascoal, para poder comunicar connosco.

- Sim - continuou a Luisa. - Como o senhor disse que os pombos-correios voltam sempre para casa, ele pode enfiar uma mensagem na anilha da pata.

Quando a Luisa acabou de falar, olharam todos de novo para o céu. Se já lá viesse, é que era bom! Mas nada.

O porteiro não percebia lá muito bem aquela história. Por que carga de água o rapaz tinha decidido ir atrás dos inquilinos do primeiro andar?

- Olhem uma coisa - gaguejou. - Vocês estão-me a dizer a verdade ou estão aqui a fazer pouco de mim?

- Não, fique descansado. Talvez fosse melhor irmos lá para dentro - propôs o Chico.

- A gente conta tudo em pormenor.

A ideia pareceu agradar-lhe. Com o desaparecimento do pombo, o homem tinha ficado muito mal-disposto e precisava de se sentar.

Instalaram-se na salinha da casa do porteiro, e ali estiveram que tempos! Para eles era tudo muito lógico, pois tratava-se de um assunto que andavam a seguir há já alguns dias. Agora fazer com que o homem acreditasse naquela história fantástica, é que foi pior!

Que o vizinho do primeiro andar fosse o raptor do futebolista, já era incrível. E então a maquineta, o altifalante e tudo o mais, pareceu-lhe mesmo inverosímil! Foi com muita relutância, e depois de repetirem tudo várias vezes, que se dispôs a aceitar os factos.

- Estou muito mais descansado, desde que percebi que o João levoú o pombo-correio. Assim, não devemos tardar a saber onde é que ele está - suspirou o Chico.

- Ele volta mesmo aqui para casa, se o soltarem em qualquer parte, não é? - perguntou a Luisa.

- Isso garanto-vos eu! O Pascoal não se perde. Assim ele lhe ponha a mensagem e o solte, daí a nada está aqui - declarou o porteiro, orgulhoso.

Sem querer, no entanto, acabara de lhes levantar dúvidas. - Se ele não conseguia mandar recado nenhum?

- O João terá levado papel e caneta? perguntou a Teresa.

- Com isso não te preocupes. Se ele deixou uma mensagem no balde, é porque tinha papel e caneta.

- Se agarram o pombo, é que é pior...

- Os inquilinos do primeiro andar sabem que os seus pombos são pombos-correios? - perguntou a Teresa.

- Sabem. Isso toda a gente sabe aqui nas redondezas. E mesmo que não soubessem, deduziam! Um perseguidor só leva um pombo quando precisa dele para comunicar.

- Então temos de pôr a hipótese que eles impeçam o pombo de voar - disse o Pedro.

- Ou que o matem! - exclamou o homem, de novo muito pálido.

O silêncio que se seguiu pareceu prolongar-se

indefinidamente. Se os homens apanhassem o João, mais o

pombo-correio, seria muito dificil encontrá-los. Pelo menos tão dificil como encontrar o Anastácio - o que a polícia, apesar de lhe andar no encalço, ainda não tinha conseguido!

 

A viagem de carro parecia não ter fim. Já deviam ter saído da auto-estrada, pois o carro fazia curvas apertadas. Meio tonto, o João sentia-se cada vez mais enjoado!

- É já ali adiante o Fogueteiro - disse um dos homens.

"Fogueteiro! Tomara que seja mesmo ali adiante!", pensou o João. "Já não posso mais!..."

Os homens continuaram a conversar em voz alta, e o que disseram foi bem esclarecedor! Com um sorriso, o João afagou as penas do corpo quentinho do Pascoal, cujo coração palpitava bem junto ao seu.

- Só tu me podes safar desta! - disse-lhe baixo. - Eu e tu vamos salvar o Anastácio. Agora já sabemos por que o raptaram, hen?

Um solavanco final e o carro estacou. O João ficou logo morto de curiosidade; mas não se atreveu a levantar a cabeça e a espreitar. Instintivamente, abotoou muito bem o casaco, ficando assim com o pombo escondido junto do peito. Se fosse descoberto, era indispensável que não percebessem que ia acompanhado por um mensageiro.

Os homens saíram, batendo com as portas, e dirigiram-se à parte de trás da carrinha para retirarem a maquinaria.

O João deixou-se ficar onde estava. Não tinha traçado um plano de acção, mas pareceu-lhe que a única hipótese de não ser descoberto era esperar um bom bocado. Quando o caminho estivesse livre, iria investigar. Talvez a sorte estivesse do lado dele..,. e, de qualquer forma, aquela viagem tinha-lhe deixado a cabeça em papas. Aquela era a única ideia que lhe ocorria.

O pior é que estava tão nervoso que perdera a noção do tempo. Os homens tanto podiam ter saído dali há poucos segundos como há meia hora!

Lentamente, começou a levantar-se. Ainda não era noite, mas já estava lusco-fusco. Com a cabeça encostada ao vidro, espiou cá para fora. Era uma rua de prédios recém-construídos, incaracterística.

"Onde diabo estarei ao certo? O Fogueteiro deve ser grande!

Não se via por ali ninguém, e poucas janelas estavam iluminadas.

"O melhor é sair do carro, senão ainda me apanham e estou frito!"

Com uma nova mirada, certificou-se de que nenhum dos homens andava por perto, saltou para o banco da frente e abriu a porta. A lufada de ar fresco deu-lhe novo ânimo.

- Vamos a isto! - disse em voz alta.

Mas quase desmaiou de pavor! Na porta do prédio acabavam de surgir os bandidos, que estacaram, assombrados. O João desatou a fugir como um doido, correndo pela rua abaixo, com os homens no seu encalço. A distância entre eles diminuía cada vez mais, e as pernas fraquejavam-lhe, por ter vindo tanto tempo dobrado.

- Não desisto! Não desisto!

O coração parecia um cavalo a saltar dentro do peito... mas, quando chegou à esquina, levantou a cabeça e deu com os olhos na placa que indicava o nome da rua. Uma ideia magnífica atravessou-lhe então o espírito! Fez meia volta, e começou a correr, agora em sentido contrário.

Os homens, surpreendidos, pararam, e o João fintou-os passando pelo meio deles em ziguezague. Só parou junto à porta do prédio: olhou primeiro para cima, e depois sentou-se na soleira com ar insolente.

Estupefactos, os bandidos aproximaram-se e atiraram-se a ele.

- Não nos escapas, malandro!

- Estás apanhado! - berrou o mais gordo, fincando-lhe as unhas no braço.

- Que é que queres daqui? - gritou o outro, de tão perto que lhe encheu a cara de perdigotos.

Divertido com o que ia fazer, e com a coragem de quem decidiu "é tudo ou nada", o João declarou, arrogante:

- Vim buscar o Anastácio!

- Tu?!

O assombro na cara dos homens era indescritível

- Sim, eu! - repetiu no mesmo tom. - E se querem saber o que penso de vocês, fiquem-se com esta!

Com um trejeito de boca, "schclup!", atirou-lhes uma cuspidela, deixando-os ainda mais enfurecidos.

-Ah... besta!

Mas o outro não esteve com meias-medidas e pregou-lhe um estalo monumental.

Só que o João estava mesmo decidido a não fraquejar, e olhou-o bem de frente, deitou a língua de fora e pôs-se a borrifá-los de cuspo, como se não lhe tivesse doído nada.

- Vamos acabar com este badameco! Alguém pode ouvir, e estamos tramados!

- Força!

O homem levantou o braço... e desfechou-lhe tal pancada na nuca, que o João, "bâ"... viu tudo a andar à roda, antes de perder os sentidos.

- Rapaz! Eh, rapaz!

Como se emergisse de um sono profundo, pestanejou e viu um quarto flutuar na obscuridade.

- Acorda, rapaz! Então?

Muito perto de si, uma cara vagamente conhecida procurava reanimá-lo.

-Hum... - gemeu de dor.

- Vamos, acorda!

Com um esforço maior, o João conseguiu abrir os olhos e tentou endireitar-se. O seu companheiro ajudou-o imediatamente, amparando-o com carinho. Não percebeu logo onde estava, nem quem era aquele homem abatido mas sorridente que falava com ele. Mas de repente lembrou-se: o Anastácio.

- Parece que te mandaram cá para me salvar! - disse ele, meio irónico.

- O quê? - perguntou o João, sentando-se,

já totalmente desperto.

Sim! Os meus raptores atiraram contigo aqui para dentro, dizendo "olha quem mandaram para te salvar!".

O João riu-se.

- Não me mandaram. Fui eu que vim!

- Sozinho? - espantou-se o Anastácio, que nada compreendia daquela história.

- Sozinho, não. Trago comigo um mensageiro especial!

E, imitando o gesto que vira um ilusionista fazer no circo, exibiu perante o olhar confuso do jogador de futebol o inestimável pombo-correio!

- Vê? Está aqui a solução dos nossos problemas!

Anastácio esfregou os olhos, para ter a certeza de que estava acordado. Não fazia a mínima ideia por que motivo o tinham raptado. Ignorava por completo que lugar era aquele. E agora aparecia-lhe um miúdo armado em ilusionista a tirar pombos do peito. Aquilo era de mais!

O João levantou-se, satisfeito por ver que o quarto tinha uma janela.

- Abra a janela! - pediu.

- Isso queria eu! Já tentei abrir várias vezes, mas está pregada por fora e não tenho ferramentas. Mas que é que querias fazer? Gritar? Pedir socorro?

- Não! Vamos simplesmente mandar uma mensagem na pata deste pombo-correio. Aquela bandeirola de vidro por cima da janela deve ser suficiente. Com jeitinho, dá para o pombo passar.

- Mas que mensagem? Eu não faço ideia onde estou!

- Mas faço eu - disse o João, triunfante. - Estamos no Fogueteiro. Sei o nome da rua, e o número da porta... só não sei o andar, mas não faz mal.

Anastácio olhou-o com admiração. Fosse qual fosse o processo de que se tinha servido, aquele miúdo conseguira sozinho fazer mais do que a polícia a quem o clube certamente alertara!

- Eu já lhe explico tudo - disse o João, sentindo-se importantíssimo.

Era tão bom ser ele, o mais pequeno, o mais fraco, a ter a solução...

E, rapando da caneta e do papel que tinha no bolso, começou a escrever a mensagem, dizendo ainda:

- Foi sorte já estar escuro. Não repararam que eu trazia o pombo escondido no casaco... sem ele, é que nada feito!

 

As horas foram passando, sem que acontecesse nada do que esperavam ansiosamente. Nem o João, nem o Pascoal... nada mesmo! A tensão subia cada vez mais. As gémeas já tinham roído as unhas até ao sabugo. O velhote passeava, no quintal, com a cara e o pescoço cheios de malhas vermelhas. O Chico parecia um urso na jaula....

- Talvez fosse melhor prevenirmos a polícia! - disse o Pedro, a quem a inactividade punha fora de si. - Vou ligar para o 115... Posso?

- Podes, rapaz! Façam o que entenderem!

O Pedro correu para dentro de casa e num impulso ligou o 115. Mas, ao ouvir responderem do lado de lá, ficou entupido e pousou o auscultador.

- Assim não dá! Tenho de pensar no que vou dizer, senão ainda julgam que é brincadeira de mau gosto.

Estava ele ali às voltas, tentando resumir o que queria dizer em algumas frases bem articuladas, quando ouviu um "Vap..." ......", seguido de uma gritaria incrível.

- Pedro! Pedro!

- Depressa!

- É ele!

- O Pascoal!

Seguro da sua missão, o pombo desceu em voo picado e entrou no pombal. "Crúúú... ....... Crúúú..

Precipitaram-se todos atrás dele, mas o porteiro barrou-lhes a passagem.

- Calma! Sou eu que vejo a anilha do meu pombo.

Ansiosos, aguardaram cá fora, observando a operação com os olhos arregalados. Aquilo até parecia tirado de um livro de histórias! Lá estava mesmo a mensagem, enroscada na pata da ave!

- Deixe ver! - pediram em coro.

O Chico, já incapaz de se conter mais tempo, arrancou o papelinho das mãos do homem, desdobrou-o e leu alto.

O Chico virou o papel e leu de novo.

- Bravo, João! - murmurou o Pedro, enternecido.

- Bom trabalho! Bom trabalho, sim senhor!

- repetia o Chico, orgulhoso do seu amigo. As gémeas engoliram em seco. O João, o

Canina, era um tipo às direitas.. O que ele tinha feito faria tremer de medo muito marmanjão! E acabara de se antecipar à própria polícia, ao descobrir o local onde os raptores retinham Anastácio preso...

Um soluço subiu-lhes à garganta, mas elas dominaram-se. Não era altura para dar parte fraca... O João estava em perigo, precisava também da coragem delas.

- Vou já telefonar à polícia! - declarou o Pedro. - Agora sei o que lhes hei-de dizer. Dá-me cá o papel.

O Pedro correu para o telefone outra vez, e ligou o 115.

- Está? Tenho uma comunicação importante a fazer. É sobre o paradeiro do futebolista Anastácio.

- Sim?

A voz do polícia soou cheia de dúvidas, do lado de lá do fio.

Mas o Pedro não vacilou.

- Tenho uma informação segura. Quer tomar nota da morada onde ele está preso?

Com os olhos brilhantes de entusiasmo, o Chico, as gémeas e o porteiro ouviram-no ditar a morada.

Quando desligou, a ansiedade cresceu.

- E nós?

- Não podemos ficar aqui!

- Vamos para o Fogueteiro e é já!

- Mas como? Se nos metemos em transportes públicos, demoramos um tempão!

- Se eu tivesse dinheiro para um táxi.

- A escultora! - lembrou-se a Teresa. Ela podia levar-nos!

- Achas que ela vai nisso?

- Acho. Afinal de contas, o futebolista é um vizinho!

- Vou já lá acima pedir-lhe - disse a Luisa, disparando porta fora.

- Sabe se ela tem carro? -. perguntou Chico ao porteiro.

- Tem, tem. Uma furgoneta muito velha. Como anda sempre a carregar pedregulhos, ou lá o que é, se calhar dá-lhe mais jeito.

No patamar da escada, o Pedro, o Chico e o porteiro aguardaram um instante. Ela iria ceder ao pedido das gémeas ou não?

Uma "cavalgada" escada abaixo fê-los ter a certeza de que sim. A escultora era porreiríssima! Conhecia muito bem o Anastácio e alinhara logo, quando as gémeas lhe explicaram atabalhoadamente o que pretendiam. Num ápice, estavam todos amontoados na tal furgoneta que mais parecia adaptada ao transporte de galinhas!

O porteiro ficou a vê-los ir, abanando a cabeça. Uma coisa daquelas nunca lhe tinha acontecido em dias da vida!

Com um ronco, a carrinha pôs-se em marcha na direcção da ponte sobre o Tejo.

- Margem Sul, aqui vamos nós! - exclamou a escultora, que guiava à doida. - Ainda chegamos lá primeiro que a polícia! E se for preciso, somos nós a libertá-los! Esperem só para ver o tipo de traulitada que dou na cabeça dos bandidos!

- Eh! Eh!

- Isto é que é uma mulher de armas...

As gémeas iam as duas à frente e os rapazes de cócoras, atrás, inclinados sobre os bancos.

O caminho, todo feito de ultrapassagens violentas, pareceu-lhes uma autêntica gincana. Felizmente não havia bicha, e foi num instante que chegaram ao Fogueteiro. O pior foi descobrir onde era a almejada Rua 1.0 de Maio!

- Estes bairros novos são muito confusos - barafustava a escultora. - E as pessoas quase só conhecem o nome da sua própria rua!

Com a furgoneta em andamento, gritaram a vários transeuntes.

- Rua 1.o de Maio?

A maioria, de braços abertos, mostrava logo que não sabia onde era... e eles continuavam às voltas!

Numa curva apertada, acabaram por quase chocar com vários carros da polícia. Era ali! Um magote de gente gritava e gesticulava, comentando o acontecimento. Todos queriam ver de perto o jogador, e a rapaziada do bairro tentava erguê-lo em ombros, enquanto a polícia se esforçava por acalmar os ânimos.

A Teresa abriu a porta de repelão e saltáram todos para o passeio.

- João! - gritaram em coro.

Ele voltou-se e abriu-lhes os braços, com uma expressão radiosa de triunfo.

- Conseguimos! - exclamou, numa euforia, antes de ser envolvido pelo abraço apertado dos amigos.

- Conseguimos, não! Conseguiste. Foste tu, Canina! És o maior - disse-lhe o Chico, com a voz embargada de comoção.

-Eu e o Pascoal!

Para grande espanto dos circunstantes, aquele grupo que acabava de chegar gritou a uma só voz:

- Vivam os pombos-correios!

Só a escultora riu, compreensiva, e respondeu:

-Vivam!

As explicações vieram mais tarde, na esquadra. Os bandidos não tinham sido apanhados, e a única pessoa que tinha elementos sobre o motivo daquele rapto era o João. Quando viajara escondido na carrinha azul-escura, ouvira uma conversa esclarecedora. Aqueles homens queriam impedir o Anastácio de participar no jogo de domingo, para que a sua ausência e a desmoralização da equipa os fizesse ganhar a aposta de vulto que tinham feito a favor do clube adversário. Aposta clandestina, claro!

A polícia continuava em campo para os tentar descobrir.

Anastácio desfez-se em agradecimentos e ofereceu-lhes entradas para o jogo do dia seguinte. Apesar da aventura, por nada deste mundo deixaria de estar presente no estádio. A menos que o treinador se opusesse, por não o considerar em boa forma, lá estaria dando o seu melhór.

E foi assim mesmo. Nesse domingo, o estádio, à cunha, festejou de pé a entrada da equipa. Mesmo os sócios e adeptos do clube adversário aplaudiram com entusiasmo o regresso de Anastácio, cuja história fora divulgada em todos os noticiários.

- A-nas-tá-ci-o! A-nas-tá-ci-o!

Juntos, o Chico, o Pedro, o João, as gémeas, a escultora e o porteiro, que quiseram estar presentes tambem, ficaram roucos de tanto gritar. Era uma alegria imensa, pois, se o Anastácio ali estava, a eles o devia!

- A-nas-tá-ci-o! A-nas-tá-ci-o!

 

 

                                                                  Ana Maria Magalhães & Isabel Alçada

 

 

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