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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


UMA BALA PARA CINDERELA / John D. Macdonald
UMA BALA PARA CINDERELA / John D. Macdonald

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

UMA BALA PARA CINDERELA

 

        Uma persistente chuva de Abril ensopava a terra, mas apesar disso não fora complicado conduzir o carro até ao anoitecer. Contudo, no lusco-fusco já se tornava difícil ver a estrada, pois as cortinas de água eram suficientemente intensas para fazer com que as luzes dos meus faróis se reflectissem nos vidros do carro. Foi então que, ao olhar a marcação no conta-quilómetros, me dei conta de que não podia estar muito longe de Hillston.

        Quando vi o letreiro do motel, à direita, abrandei a velocidade e dirigi-me para a área de estacionamento, que fora pavimentada com essas pedras redondas que estalam debaixo dos pneus. Parei o mais perto possível do escritório e corri do carro até à recepção, onde uma mulher com os olhos frios e brilhantes e os movimentos rápidos de uma ave aquática me alugou um quarto afastado dos ruidos da estrada, informando-me também de que aquele local se encontrava a quatro milhas dos limites da cidade.

        Quando vi o quarto decidi que me servia, seria um bom lugar para ficar enquanto fizesse o que precisava de fazer em Hillston. Estendi-me na cama e pensei se teria sido inteligente escrever o meu nome verdadeiro no registo do motel, mas a verdade é que, se conseguisse descobrir o dinheiro, não haveria ninguém que pudesse afirmar que fora eu quem o levara, pelo que não faria qualquer diferença usá-lo ou não.

        Quando por fim a chuva diminuiu saí, encontrei um pequeno restaurante à beira da estrada e a rapariga que se encontrava ao balcão disse-me onde poderia comprar uma garrafa de uísque. Parecia também disposta a aceitar um possível convite para me ajudar a bebê-la, mas, apesar de ela ser razoavelmente bonita, na verdade eu não estava interessado. Pensava naquilo e queria voltar para o quarto sozinho, beber uns copos e imaginar como poderia executar o meu projecto.

        Talvez tenham visto fotografias nossas, daqueles que se encontravam realmente mal quando se deu a troca de prisioneiros, e eu fui um dos que tiveram de ser transportados em maca. O meu estômago deixara de digerir a porcaria que eles nos davam e pesava menos de quarenta quilos. Mais uma semana e teria sido enterrado para além do rio, como sucedeu a tantos outros. Estava mal, não só física, mas mentalmente (perdera a memória), e achava-me demasiado doente para ser transportado de avião, pelo que fiquei internado no hospital, onde começaram a alimentar-me com um tubo.

        Foi durante os meses passados no hospital militar que comecei a ter as ideias mais claras e a recordar-me de mais pormenores a respeito de Timmy Warden, de Hulston, e quando os homens dos Serviços Secretos me interrogaram eu disse-lhes como ele morrera, mas nada mais, não lhes contei nada daquilo que me revelara.

        Fomos ambos capturados ao mesmo tempo, naquela acção junto do reservatório. Mal o conhecia, pois estávamos em pelotões diferentes, mas depois de sermos capturados permanecemos a maior parte do tempo juntos. Já foram escritas bastantes coisas sobre o que se passou, e sabe-se que não foi bom.

Uma experiência como aquela no campo de prisioneiros pode alterar a atitude de uma pessoa para com a vida e para consigo própria, e foi isso o que sucedeu a Timmy Warden. O seu único pensamento era sobreviver, o que acontecia com todos, mas Timmy parecia mais fanático do que qualquer de nós - precisava de regressar.

        Uma noite falou-me nisso quando já se encontrava muito enfraquecido e eu ainda estava numa condição razoável. Sussurrava e eu não lhe via a cara.

        - Tal, preciso de voltar para corrigir uma coisa. Sempre que penso nisso sinto-me envergonhado. Na altura julgava que estava a ser esperto, achava que era a maneira de obter aquilo que queria, mas talvez agora tenha amadurecido e preciso de emendar o que fiz.

        - Que querias?

        - Consegui o que pretendia, mas agora não o posso utilizar. Também a quis a ela e tive-a, mas agora de nada me serve.

        - Não te estou a perceber bem, Timmy.

        Ele contou-me então a história. Fora sócio de seu irmão, George Warden, seis anos mais velho que ele, que tinha jeito para vender e para a promoção, enquanto Timmy percebia de contabilidade e possuía uma habilidade natural para os números. O negócio deles era comercializar materiais de construção civil, e englobava, além de uma casa de venda de ferragens a retalho, uma serração e vários camiões para transporte de cimento.

        Mas George era casado com uma jovem mulher lasciva, petulante, amoral e ambiciosa, chamada Eloise...

        - Não me atirei a ela, Tal. Aconteceu sem eu saber como. Tratava-se da mulher do meu irmão e eu sabia que procedia mal; mas não conseguia parar. Tínhamos de nos esconder dele, e Hillston não é uma cidade muito grande, precisávamos de agir com muito cuidado. Creio que sempre soube o que ela era, mas George considerava-a a melhor pessoa do mundo. Foi ela que me disse para fugirmos, Tal, e que insistiu que precisávamos de dinheiro, por isso comecei a roubar.

        Contou-me como o fizera, mas muitas das coisas que ele me disse não tinham grande sentido para mim. Era ele quem formalizava todas as encomendas, que tratava das contas bancárias e dos depósitos. Era um negócio grande e lucrativo, e então ele começou a tirar um pouco daqui, um pouco dali, sempre em dinheiro, enquanto prosseguia o seu caso com Eloise. Disse-me que levara cerca de dois anos para subtrair quase sessenta mil dólares e que os revisores de contas não deram por nada.

        - Não podia abrir uma conta bancária com esse dinheiro e claro que era impossível guardá-lo num cofre no banco, pelo que resolvi então metê-lo em frascos de compota, desses que tem uma borracha vermelha e arame a prender a tampa, e enterrá-los. George preocupava-se por os lucros não serem maiores, mas eu continuava a mentir-lhe. Entretanto Eloise ia-se tornando cada vez mais exigente, mais descuidada, e eu receava que George descobrisse, pois não sabia o que faria ele nessa altura. Ela mantinha-me praticamente hipnotizado até que finalmente marcámos a data em que devíamos fugir. Planeáramos já tudo, quando fui mobilizado, e nada podia fazer para o evitar. Disse a Eloise que, logo que voltasse da guerra, realizaríamos os nossos planos, mas agora estou aqui metido e também não quero concretizá-los. O que desejo é regressar, dar o dinheiro a George e contar-lhe tudo. Tenho tido muito tempo para pensar nessas coisas todas.

        - E como sabes que ela não desenterrou o dinheiro e se foi embora?

        - Eu não lhe disse onde o meti. Ainda lá está, ninguém será capaz de o descobrir.

        A história deu-me muito que pensar, pois o estado de Timmy Warden degradava-se cada vez mais. Nessa altura, aqueles de entre nós que se mantinham ainda em condições razoáveis haviam-se tornado peritos em saber quanto tempo durariam os moribundos, e eu sabia que Timmy Warden era um dos que estavam a morrer, sabia que ele nunca sairia dali vivo. Tentei descobrir onde enterrara o dinheiro, mas esperei demasiado, ele já não regulava bem da cabeça. Ouvia-o delirar e prestava atenção a todas as palavras que proferiu, mas Timmy nunca indicou o local do esconderijo. Contudo, certo dia, num momento de relativa lucidez, ele agarrou-me o pulso com a sua mão esquelética.

        - Não vou conseguir, Tal.

        - Vais, sim.

        - Não; tu, quando voltares, tratarás disso por mim. Dizes a George e entregas-lhe o dinheiro. Contas-lhe tudo.

        - Certo. Onde está o dinheiro?

        - Cindy saberá - replicou, ficando subitamente ofegante e soltando uma gargalhada débil, louca. Cindy saberia.

        Foi tudo quanto consegui que ele me dissesse e, como me encontrava ainda suficientemente forte para manejar uma pá, nessa noite ajudei a abrir a cova para enterrar Timmy Warden.

        No hospital voltei a pensar nesses sessenta mil dólares, nesses frascos de compota cheios de rolos de notas

- desenterrá-los-ia, tirar-lhes-ia a terra que os envolvesse e apreciaria o brilho verde do dinheiro - e isso ajudou-me a passar o tempo.

        Finalmente, deixaram-me sair, mas a ideia já não estava à superfície no meu pensamento, encontrava-se escondida no subconsciente - pensava no assunto, mas não muitas vezes. Voltei então para o meu antigo emprego, que me pareceu insípido, sentia-me desassossegado e deslocado. Utilizara uma porção de energia emocional para me manter vivo, para voltar para aquilo, para o meu emprego, para Charlotte, a rapariga com quem eu planeara casar, mas agora que regressara nada disso parecia chegar-me.

        Há duas semanas despediram-me e dou-lhes a razão, estava a fazer o meu trabalho duma maneira desinteressada. Disse então a Charlotte que ia para fora durante uns tempos e as lágrimas dela deixaram-me completamente frio - era apenas uma rapariga a chorar, uma estranha. Contei-lhe que não sabia para onde ia, mas a verdade é que me preparava para me deslocar a Hillston. O dinheiro continuava lá, e alguém chamado Cindy saberia onde encontrá-lo.

        Iniciara a longa viagem com uma previsão de sucesso inteiramente irrealista, mas agora não me sentia tão confiante. Parecia-me que procurava mais do que os sessenta mil dólares, tinha a impressão de que buscava algum significado para a minha vida. Possuia mil dólares em cheques de viagem e levara comigo tudo quanto possuia, o que enchera duas malas.

        Charlotte soluçara, mas isso não me comovera, e aceitara ser despedido sem qualquer interesse especial. Desde o meu regresso, depois da minha estada no hospital, que me sentia como meio homem, era como se a outra metade tivesse sido enterrada e eu quisesse procurá-la.

ali em Hillston, uma pequena cidade que eu nunca vira. Precisava, de certo modo, de recomeçar a viver. Quase morrera num campo de prisioneiros e nunca voltara completamente à vida.

        No quarto do motel bebi até sentir os lábios dormentes. Depois saí, fui à recepção e pedi à mulher-pássaro, que me olhou com óbvia desaprovação, que condescendesse em trocar-me dinheiro para eu poder telefonar.

        Tinha-me esquecido da diferença horária e Charlotte estava a jantar com a família. Foi a mãe que atendeu, e percebi frieza na voz dela, mas foi chamar a filha.

        - Tal, Tal, onde estás?

        - Numa terra chamada Hillston.

- Sentes-te bem? Pareces-me tão estranho.

        - Estou bem.

        - Que andas a fazer? Procuras emprego?

        - Ainda não.

        Baixou a voz, de modo que eu mal podia ouvi-la.

        - Queres que vá ter contigo? Se quiseres vou, e sem compromissos, Tal, querido.

        - Não, falei apenas para saberes que estou bem.

        - Obrigada por teres telefonado, querido.

        -Bem... adeus.

        - Por favor escreve-me.

        Prometi, desliguei e voltei para o meu quarto. Queria que as coisas voltassem a ser o que dantes tinham sido entre nós, não queria magoá-la nem magoar-me a mim, mas sentia-me como se toda uma área do meu cérebro estivesse morta, atordoada - a parte que dantes ela ocupara. Charlotte fora leal durante a minha ausência, tivera fé em que eu havia de voltar e não merecia isto.

        Na manhã seguinte, quinta-feira, Hillston brilhava ao sol de Abril, lavada pela chuva da noite anterior. Timmy falara-me muitas vezes acerca da cidade.

        - É mais uma vila que uma cidade. Não há muita população flutuante e toda a gente se conhece. É um sítio bastante bom, Tal.

Ficava situada entre colinas suaves e estendia-se para norte, seguindo ao longo do rio Harts. Subi a rua principal, Delaware Street, cujo trÂnsito era demasiado intenso em relação à largura. A estandardização dera à maior parte das nossas pequenas cidades o mesmo aspecto, com as fachadas das lojas monotonamente uniformes. Havia a Woolworth, a J.C.Penney, a Liggett e a Timely, e as cadeias de supermercados. No entanto, apesar de as características essenciais de Hillston terem sido desvanecidas pela modernização, possuía ainda mais individualidade que a maior parte das outras cidades. Notava-se ali um ar de lazer, de maneiras suaves e de calmos prazeres. Nenhuma estrada importante por lá passava, Hillston mantinha-se afastada do grande fluxo.

        Sem dúvida haveria muita gente que se queixava de a cidade ser parada, de os jovens terem de sair dali para procurarem melhores oportunidades, mas isso não chegava para alterar o seu ar complacente e acolhedor. A população andava à volta das vinte e cinco mil pessoas e Timmy dissera-me que pouco mudara nos últimos vinte anos. Havia ali uma fábrica de tubagem, uma pequena indústria electrónica e uma outra fábrica que produzia ferramentas baratas, mas o dinheiro que corria em Hillston provinha do facto de ser um centro comercial que servia toda a região campestre que a rodeava.

        Eu tinha andado o mais rapidamente possível, esforçando o motor, ansioso por chegar a Hillston, mas o carro havia vindo a falhar e falhou mais uma vez quando parei no semáforo em Delaware Street. Um pouco mais adiante vi uma oficina e dirigi-me para lá.

        Um homem encaminhou-se para mim quando saí.

        - Precisa de uma revisão, o motor está a afogar-se, e creio que é melhor mudar também o óleo.

        Ele olhou para o relógio de parede.

        - Ficará pronto às quinze horas. Está bem?

        - Com certeza.

        - A matrícula é da Califórnia. Está de passagem?

        - Apenas de férias. Parei aqui porque conheci um tipo desta cidade: Timmy Warden.

        O mecÂnico era um homem muito magro, com cabelo prematuramente branco e maus dentes. Tirou um cigarro do bolso de cima do seu fato-macaco.

        - Conhecia Jimmy, não é verdade? Pela maneira como falou calculo que saiba que ele morreu.

        - Sim. Estava com ele.

- No campo de prisioneiros, hem? Imagino que tivesse sido muito duro.

        - Foi, sim. Ele costumava falar desta terra, e a respeito do irmão, George, de modo que pensei em passar por aqui, falar com o irmão e contar-lhe como as coisas se passaram com Timmy.

        O homem cuspiu para o chão da garagem.

        - Creio que George sabe.

        - Não compreendo.

        - Há um outro homem que também veio desse campo, e ainda aqui está. Chegou há um ano e chama-se Fitzmartin, Earl Fitzmartin. Trabalha para George, na serração. Creio que o deve conhecer, não?

        - Conheço-o - respondi.

        Todos os que tinham sobrevivido no campo de prisioneiros conheciam Fitzmartin, que fora para lá cerca de um mês depois de nós. Era um homem entroncado, com braços e mãos fortíssimos, cabelos claros, de um tom indefinido, e cujos olhos lembravam a cor fugidia do fumo. Nascera no Texas e pertencia à Marinha.

        Eu conhecia-o - numa noite fria seis de nós havíamos jurado que, se alguma vez fôssemos libertados, o perseguiríamos até o matar. Nessa altura acreditávamos nisso, mas já me esquecera do que então se passara e só agora todas essas recordações voltaram.

        Fitz não era bom camarada, exercia uma influência desagregadora. No campo nós sentíamos que, se mantivéssemos uma frente unida, aumentávamos as nossas possibilidades de sobrevivência, por isso organizámo-nos, nomeámos comités, distribuímos responsabilidades. Encontravam-se ali dois homens que tinham estado prisioneiros num campo japonês, numa outra guerra, e que conheciam os melhores processos de fazer isso. Fitz, mais hábil, mais forte e mais rápido do que qualquer outro homem do acampamento, nunca se quis juntar a nós. Era um solitário, mas possuía um instinto de sobrevivência animalesco e mantinha-se em forma. Comia tudo o que fosse organicamente são, cuidava de si e tratava-nos com um desprezo gélido e divertido, não se aproximava mais de nós do que dos nossos carcereiros. Contava-se entre os doze "aquartelados" na mesma cabana que Timmy e eu.

        Talvez isto não pareça constituir causa suficiente para se jurar matar um homem, e não o era, de facto, numa situação normal, mas, no cativeiro, pequenos ressentimentos adquirem grande importÂncia. Fitz não estava por nós, por isso era contra nós. Precisávamos dele e ele provava todos os dias não precisar de nós.

        Na altura em que fomos trocados, Fitz devia ter perdido uns dez quilos, mas achava-se em boa forma. Embora muitos tivessem morrido, ele mantinha-se saudável. Eu conhecia-o, sim!

        - Gostaria de o ver - disse eu ao homem da oficina. - A serração fica longe daqui?

        Ficava no lado norte da cidade e tive de apanhar um autocarro, que me deixou perto de uma ponte, e percorrer depois meia milha a pé, pela berma da estrada

- passando por terrenos cheios de ferro velho, por um cinema drive-in barato e por pequenas casas para alugar, abandonadas. Perguntava a mim próprio por que motivo teria Fitz ido para Hillston, pois não podia saber da existência do dinheiro, embora me lembrasse da sua astúcia, da sua maneira de se movimentar sem fazer o mais ligeiro ruído.

        A serração era grande, com um escritório, perto da estrada e um comprido barracão aberto, no qual se conservavam, em contentores, peças semifabricadas. Chegou até mim o barulho de uma serra e, para além dos dois edifícios, viam-se altas pilhas de madeira. Um camião estava a ser carregado, enquanto, no barracão aberto, um empregado ajudava um cliente a escolher caixilhos e janelas. No escritório, uma rapariga de rosto magro e cabelo escuro, que se inclinava sobre uma máquina de calcular, respondeu à minha pergunta dizendo-me que poderia encontrar Fitzmartin lá atrás, perto do camião a ser carregado.

        Dirigi-me para lá e vi-o antes de ele me ver a mim. Estava mais forte, mas não mudara em mais coisa alguma. Permanecia junto de outro homem e ambos observavam dois empregados, que carregavam o camião. Vestia calças de caqui e conservava as mãos metidas nos bolsos. O seu companheiro disse qualquer coisa e Fitzmartin riu, um som que me sobressaltou, pois no campo nunca o ouvira rir.

        Voltou-se quando eu me aproximei e o seu rosto mudou, enquanto os olhos esfumados me fitavam especulativamente.

        - Não me engano no nome, pois não? é Tal Howard.

        - Exacto.

        Claro que não houve qualquer gesto para estendermos a mão um ao outro.

        Voltou-se para o outro homem.

        - Joe, continue a vigiar isto. Quando sair daqui deixe estes papéis no escritório.

        Fitzmartin começou a andar por entre as pilhas de tábuas e, depois de uma ligeira hesitação, seguiu-o até um barracão situado num canto afastado, com um Ford coupé antigo estacionado perto. Fitzmartin abriu a porta, indicou-me que entrasse e pude ver que o interior do barracão estava imaculadamente asseado. Via-se ali uma cama estreita, uma mesa, uma cadeira, uma prateleira com um pequeno fogão eléctrico e pratos. Havia também uma provisão de comida enlatada, roupas limpas penduradas em cabides e uma pilha de revistas e livros a um canto. Noutro encontrava-se um grande calorífero e, por uma porta aberta, via-se a casa de banho, com as paredes ainda por acabar.

        Fitz convidou-me a sentar e enfrentámo-nos.

- é agradável encontrar qualquer velho amigo a norte do rio - começou ele.

        - Ouvi dizer, na cidade, que trabalhava aqui.

        - Passou pela cidade e soube que eu trabalhava aqui?

        - Isso mesmo.

        - Talvez ande à procura dos rapazes todos, talvez queira escrever um livro?

        - É provável.

        - As suas experiências como prisioneiro de guerra...

        - Eu cito-o no livro, Fitz. O grande ego, demasiado impressionado consigo mesmo para tentar ajudar qualquer outra pessoa.

        - Ajudar aqueles tipos sem coragem? Vocês davam-me vómitos. Queriam transformar o campo num clube de rapazes. Vi muitos morrerem por não terem Ânimo ou imaginação para sobreviverem.

        - Com a sua ajuda talvez tivessem regressado mais alguns.

        - Diz isso como se se achasse que seria uma boa coisa.

        Havia na voz dele uma zombaria trocista que fez com que as recordações se tornassem mais vivas. Era isso que nós percebíamos nele: não se importaria nada se fôssemos todos enterrados ali, desde que ele próprio escapasse ileso. Julgava que a minha cólera e raiva tivessem desaparecido e que já não me importasse com o que se passara, e talvez apreciasse mal a extensão do desprezo que deixara transparecer e que me fizera menosprezar a sua força física, por demais evidente.

        Lancei-me sobre ele às cegas, apanhando-o quase completamente de surpresa, e o meu punho direito atingiu-o em cheio na face. O impacte fez-me vibrar o braço, o ombro e as costas, Fitz cambaleou e deu um passo atrás. Queria-o no chão, por isso, atirei novamente o punho para a frente e acertei num braço duro, rijo. Ele esquivou-se ao terceiro soco e agarrou-me no pwlso direito. Tentei libertar-me, mas Fitz era demasiado forte. Consegui resistir ao aperto esmagador durante vários segundos, fitando o seu rosto impassível, mas fui lentamente forçado a ajoelhar-me, enquanto lágrimas de cólera e de humilhação me chegavam aos olhos.

        Fitz libertou-me de repente e deu-me uma palmada na cabeça com a mão aberta, que acabou por fazer com que me estendesse no solo. Quando me levantei tentei apanhar a cadeira, para a utilizar como arma, mas ele arrancou-ma das mãos, pôs-me um pé no peito e empurrou-me com tanta força que me projectou contra a porta.

        Voltou a colocar a cadeira no mesmo sitio, foi sentar-se calmamente na cama e acendeu um cigarro. Levantei-me de novo, lentamente.

        Fitz fitou-me com toda a calma.

        - Já acabou?

        - Diabos o levem!

        - Cale-se e sente-se - disse Fritz com ar aborrecido.

- Não tente armar em herói, Howard. Deixo-o marcado, se é isso que quer.

        Sentei-me na cadeira, os meus joelhos estavam trémulos e doía-me o pulso. Fitz ergueu-se rapidamente, abriu a porta, espreitou para fora, voltou a fechá-la e sentou-se de novo.

        - Vamos falar a respeito de Timmy Warden, Howard.

        - Que há a dizer acerca de Timmy?

        - Não é altura para brincadeiras. A informação é que nos mantém vivos. Ouvi muita coisa naquele campo, fiz negócio disso. Sei que Timmy roubou sessenta mil dólares ao irmão e os escondeu em boiões, e que lhe contou isso. Ouvi a conversa, por isso não perca tempo a tentar fazer-se tolo. Eu estou aqui e você também, e é o que agora interessa. Cheguei primeiro, vim quando você estava no hospital, mas não tenho o dinheiro, se tal acontecesse não ficaria aqui, isso é óbvio. Pensei que Timmy lhe tivesse dito onde o escondeu. Tenho estado à sua espera. Porque demorou tanto?

        - Sei o mesmo que você, sei que ele escondeu o dinheiro, mas ignoro onde.

        Fitz ficou calado, a pensar.

        - Não sei se acredite nisso. Vim para aqui há muito. Queria estar preparado para quando você chegasse. Vim para longe, mas, para mim, todas as cidades são iguais. Não estou a imaginá-lo aqui, sem saber mais do que eu. Você é um tipo mais conservador, Howard. Sabe algo que eu também quero saber.

        - Exacto - respondi. - Tenho conhecimento exacto do sítio onde se encontra o dinheiro e posso ir buscá-lo imediatamente. Por isso esperei um ano, e por isso também é que vim ter consigo antes de o ir desenterrar.

        - Porque veio então?

        Encolhi os ombros.

        - Perdi o emprego, lembrei-me do dinheiro e pensei dar uma vista de olhos por aqui.

        - Passei um ano a procurar, e sei muito mais a respeito de Timmy Warden, a maneira como ele vivia, o modo como o cérebro dele funcionava, do que você alguma vez o saberá, mas não consegui encontrar o "tesouro".

        - Acha que eu também não serei capaz de o fazer, não é?

        - Acho que é melhor partir, Howard. Voltar para o sítio donde veio.

        - Creio que vou ficar por aqui.

        Inclinou-se para a frente.

        - Então deve possuir alguma pequena pista que eu ignoro, mas talvez não seja muito boa.

        - Não sei mais que você, apenas tenho mais confiança em mim do que em si.

Isso fê-lo rir, e a gargalhada dele espicaçou-me o orgulho. Parecia-lhe ridículo pensar fazer melhor do que ele.

                -       Você já perdeu um ano à procura. Pelo menos eu não fiz isso - respondi acaloradamente.

                Ele encolheu os ombros.

                -       Como preciso de estar em qualquer lado, posso bem ficar aqui. Que perco? Até tenho um bom emprego. Vamos recordar tudo o que sabemos sobre o assunto, e se conseguirmos localizar o dinheiro, um terço é para si.

                -       Não - respondi demasiado depressa.

                Ele manteve-se sentado muito quieto a observar-me.

                -       Tem alguma coisa a que se agarrar.

                -       Não, não tenho.

                -       Pode acabar por não receber nada, em vez de um terço.

                -       Mas também posso ficar com o dinheiro todo.

                -       Encontrá-lo e levá-lo daqui são dois problemas diferentes.

                -       Correrei o risco.

                Fitz encolheu os ombros..

                -       Como queira. Vá cumprimentar George e transmita-lhe os meus cumprimentos.

                -       E Eloise?

                -       Não lhe poderá falar, bateu asas enquanto nós estávamos ainda atrás do arame. Partiu com um caixeiro-viajante, segundo dizem.

                -       Talvez tenha levado o dinheiro com ela.

                -       Não creio.

                -       Mas Eloise sabia que Timmy escondera uma grande quantia e, pelo que ele me disse a respeito dela, não era pessoa para se ir embora sem o dinheiro.

                -       Mas foi - respondeu Fitz, sorrindo -, acredite no que lhe digo. Partiu sem ele.

 

        A serração pareceu-me razoavelmente próspera, mas a loja das ferramentas não era aquilo que eu pensava. Pelas conversas com Timmy, esperava encontrar um grande estabelecimento com cinco ou seis empregados e que vendesse toda a espécie de artigos desde tabuleiros para cocktail até canos e ferramentas. No entanto tratava-se antes de uma loja estreita e acanhada, mal iluminada, com um ar empoeirado de derrota, situada numa rua lateral no extremo menos próspero de Delaware Street. Atendeu-me um empregado que vestia uma camisa amarrotada e quando lhe disse que desejava falar com Mr. Warden, ele apontou para um pequeno gabinete envidraçado nas traseiras da loja, onde eu pude ver um homem inclinado sobre uma secretária.

        George Warden olhou-me quando eu entrei e reparei na sua semelhança com Timmy, mas este, antes de ser feito prisioneiro e mesmo nos primeiros tempos da nossa estada no campo, irradiava uma enorme vitalidade e boa disposição e aquele homem, pelo contrário, aparentava muito mais idade do que os seis anos de diferença de que Timmy me falara. Era alto, tal como Timmy o fora, e a testa alta e larga, o nariz ligeiramente adunco, o queixo forte, quadrado, tornavam-no bastante parecido com o irmão, mas a cor dele era má e a barba por fazer parecia-me grisalha. Além disso havia nos seus olhos uma expressão vaga, perturbada, e o pequeno gabinete cheirava a uísque.

        - Posso ser-lhe útil em alguma coisa? - perguntou-me.

        - Chamo-me Tal Howard, Mister Warden. Era amigo de Timmy.

        - Era amigo de Timmy - repetiu de uma maneira estranha, apática e todavia de certo modo cínica.

        - Estava junto dele quando morreu.

        - Também Fitz. Sente-se Mister Howard. Uma bebida?

        Aceitei. Ele passou pela minha cadeira, dirigiu-se para um lavatório e ouvi-o lavar um copo. Aproximou-se, pegou numa garrafa que se encontrava no chão, a um canto, e serviu generosamente dois copos.

        - A Timmy - brindou ele.

        - A Timmy.

        - Fitz escapou ileso, você também regressou. Timmy é que não.

        - Eu também estive quase a não voltar, Mister Warden.

        - De que morreu ele afinal? Fitz não me soube explicar.

        Encolhi os ombros.

        - É difícil de dizer. Não tínhamos cuidados médicos. Timmy perdeu muito peso e as suas resistências diminuíram. Constipou-se, ficou com febre e as pernas incharam-lhe. Começou a ter dificuldade em respirar, sentia dores intensas. Muitos morreram assim, sem nada de específico, apenas uma porção de coisas juntas. Pouco podíamos fazer.

        Warden dava voltas e voltas com o copo sujo.

        - Timmy devia ter voltado. Ele saberia o que fazer.

- A respeito de quê?

        - Deve ter-lhe falado daquilo que estávamos a fazer antes de ele partir.

        - Contou-me que os seus negócios eram prósperos.

        - Sim, esta loja ficava na Delaware Street. Mudámo-nos para aqui há cerca de seis meses. Trespassei a outra

e vendi também a minha casa. Agora só me resta isto

e a serração. O resto desapareceu.

        Senti-me desconfortável.

        - Os negócios estão maus, calculo.

        - Para certas pessoas estão bastante bons. Qual éo seu?

        - Neste momento não estou a trabalhar.

        Ele olhou-me com um sorriso sem alegria.

        - E tenciona ficar por aqui uns tempos.

        - Pensei nisso.

        - Fitz mandou-o vir?

        - Não sei a que se refere. Nem sabia que ele aqui estava.

        - Mas falou-lhe, ele disse-me que você iria provavelmente aparecer por aqui, para uma pequena conversa, e contou-me que era um velho amigo de Timmy. Fitz trabalha para mim há cerca de um ano, mas não sei como lhe poderei oferecer emprego a si. Não há dinheiro, não poderei pagar-lhe.

        - Não quero emprego, Mister Warden.

        Warden continuou a sorrir, mas os seus olhos eram estranhos. Fiquei com a impressão de que estava muito bêbado ou não regulava bem da cabeça.

        - Deseja alguma coisa da loja? Ainda temos algumas coisas boas, armas, por exemplo. Deseja uma bela espingarda com incrustações de ouro e coronha de nogueira francesa? Ofereço-lha.

        - Não, obrigado. Não o compreendo, Mister Warden, conhecia Timmy e pensei que faria bem em passar por aqui e ter uma conversa consigo.

- Com certeza, mas foi primeiro à serração.

        - Sim, fui lá primeiro porque quando deixei o meu carro a arranjar, revelei ao empregado da oficina que conhecera Timmy no campo de prisioneiros. Ele disse-me então que se encontrava cá na terra outro homem que também estivera com ele, Earl Fitzmartin, por isso fui lá vê-lo. Depois vim aqui. Poderia de facto ter começado por vir visitá-lo a si em primeiro lugar e só depois ir lá. Não percebo porque acha que me deve oferecer emprego ou dar qualquer coisa.

        Warden olhou-me, inclinou-se para pegar na garrafa outra vez e deitar mais um pouco de uísque nos dois copos.

        - Pronto, então é só isso, não ligue ao que eu digo. De resto, já quase ninguém me liga, só Fitz. Ele é um bom trabalhador e a serração faz algum dinheiro. Isso é bom, não é?

        - Sim, acho que sim.

        Não era nada a conversa que eu esperava, Warden era um homem estranho, parecia vencido e contudo divertido, como se a sua própria derrota o alegrasse.

        - Timmy falava muito a respeito de Hillston - disse eu.

        - Calculo que sim. Viveu aqui a maior parte da sua vida.

        Apesar de não me sentir muito à vontade para fazê-lo, resolvi saber mais coisas.

        - Tínhamos muito tempo para conversar. Eles obrigava-nos a assistir a palestras e a ler propaganda para depois escrevermos relatórios sobre o que líamos, mas durante o resto do tempo, deixavam-nos conversar. Tinha a impressão de conhecer Hillston muito bem, até sei os nomes de algumas das raparigas com quem ele costumava sair. Ruth Stamm, Janice Currier, Cindy qualquer coisa.

        - É verdade - respondeu George em voz baixa, com um meio sorriso. - Ruthie Stamm e Judith, não, Janice, Currier. Essas eram duas delas, boas raparigas, mas nos últimos dois anos, antes de se ir embora, deixou de sair tanto. Passava noites inteiras agarrado aos livros. Até era de mais para o meu gosto.

        - Não havia nenhuma chamada Cindy?

        Warden franziu a testa, pensativo.

        - Não, Cindy não conheço. Qualquer das outras duas poderia ter sido uma boa esposa para ele. Ruthie ainda vive aqui na cidade e ainda continua solteira. Judy casou-se e foi-se embora. Qualquer delas seria uma mulher melhor do que a minha, Eloise. Ele falava dela?

        - Sim, mencionou-a algumas vezes.

        - Foi-se embora.

        - Bem sei, Fitz disse-me.

        - A linda Eloise. Grande cabra enganadora. Enquanto estiver por cá passe outra vez por aqui para conversarmos.

        "é onde estou quase sempre. Dantes tinha uma quantidade de coisas para fazer, pertencia à CÂmara do Comércio, aos notáveis, andava sempre de um lado para O outro. Agora tenho muito tempo, todo o tempo do mundo.

        Estava a despedir-me, por isso atravessei a estreita loja em direcção à porta da rua. O empregado continuava encostado ao balcão, perto da entrada, palitando os dentes com um fósforo. Soube-me bem sair novamente para a luz do sol, a bebida barata deixara-me um gosto desagradável na boca. Como era muito cedo para ir buscar o carro, entrei no bar mais próximo e pedi uma cerveja. Era um local escuro, cheio de sombras violetas e castanhas, com armações de veado e peixes cheios de pó suspensos da parede. Dois homens idosos jogavam às damas numa mesa a um canto. O empregado era anão, por isso o soalho atrás do balcão fora subido para ele lá poder chegar.

Fui bebendo a cerveja e pensando em Fitz, na minha acção inesperada e violenta, tornada ridícula pela força pior dele. Não previra que ainda sentisse aquilo, pois dccorrera muito tempo desde que sairamos do campo, m'as a presença dele avivara todas essas recordações. No entanto, nem tudo representara um fiasco, sentia ter obtido uma pequena vitória na conversa que se seguira à luta desigual: ele não tinha a certeza daquilo que eu sabia ou tencionava fazer. Depois, a conversa com George anulara essa pequena vitória, o irmão de Timmy surpreendia-me: havia uma estranha corrente no seu relacionamento com Fitz, algo que eu não conseguia compreender.

        Os empregados dos bares são boas fontes de informação e como percebi que o homenzinho me observava, tentando imaginar quem eu seria, fiz-lhe sinal de que queria outra cerveja, e quando ele ma trouxe, perguntei-lhe:

        - Que fazem as pessoas nesta cidade para se divertirem?

        O anão possuía uma voz aguda, esganiçada.

        - é estranho na cidade, não é? Bem, isto é bastante sossegado. Aos sábados à noite há alguns sítios aonde ir, mas poucos durante a semana. Há pessoas que vão até Redding, onde há jogo, mas vigarizado. Contudo, é mais fácil encontrar lá mulheres do que aqui. É vendedor?

        Precisava de dar uma resposta rápida e de súbito recordei-me de algo que Fitz me dissera e que me fornecera uma ideia para responder de forma razoavelmente plausível.

        - Estou a trabalhar num livro.

        O homem mostrou-se interessado.

        - Ah! é escritor? E que há nesta cidade com interesse? Assuntos históricos?

        - Não, trata-se de um livro diferente. Fui feito prisioneiro na Coreia, e alguns rapazes morreram lá, rapazes que eu conhecia bem. Este livro é uma espécie de história pessoal acerca deles, a maneira como viviam, o que faziam, para onde teriam voltado se fossem vivos. Um deles nascera nesta cidade: Timmy Warden.

        - Oh, conheceu Timmy? Foi uma pena, era um bom rapaz.

        - Falei há pouco com o irmão dele, George, numa loja que fica perto daqui.

        O homenzinho abanou a cabeça.

        - George perdeu completamente a cabeça de há um ano para cá. Ele e Timmy possuíam um negócio próspero, tinham umas boas casas, mas a mulher de George deixou-o e, ainda por cima, ele recebeu a notícia da morte de Timmy, o que o destroçou, calculo. Agora não realiza nem um décimo do negócio que costumava fazer, e dentro em pouco nada terá se continuar a beber daquela maneira. A pequena do Buck Stamm tem tentado curá-lo, mas está a perder tempo, embora Ruthie seja obstinada. Digo-lhe que se Timmy tivesse voltado e o encontrasse assim teriam grandes lutas. George tem vendido tudo para beber e vive agora num quarto no Hotel White. Embriaga-se constantemente e, de vez em quando, é apanhado pela polícia. Durante um certo tempo limitavam-se a levá-lo a casa, por ele dantes ser um homem importante na cidade, mas agora deixam-no na prisão até estar sóbrio.

        Um dos velhotes que jogavam damas disse:

        - Stump, tu falas de mais.

        - Toma atenção ao jogo e deixa as pessoas conversarem em paz, Willy.

        Voltou-se novamente para mim e perguntou:

        - Que vai escrever sobre Timmy?

        - Vou falar da maneira como ele vivia. Quero entrevistar os professores dele, falar com as raparigas com quem ele saía.

Stump olhou para os jogadores de damas, depois debruçou-se sobre o balcão e falou de modo que ninguém mais o pudesse ouvir, sorrindo ao mesmo tempo com ar trocista.

        - Não posso garantir isto e não é coisa que o senhor vá incluir no seu livro, mas ouvi dizer de fonte bastante segura que, antes de Timmy ser mobilizado, ele e Eloise Warden eram um pouco mais do que apenas cunhados e amigos. Percebe o que eu quero dizer? Ela era bonita e não se pode censurar o rapaz, se ela é que o estava a pedir. De qualquer modo, não prestava, foi-se embora com um caxeiro-viajante e desde então nunca mais se soube dela.

        Recuou um pouco e olhou-me com um sorriso de conspiração.

        - Claro que George não sabia de coisa alguma e, como se costuma dizer, seria sempre o último.

        - Existem mais alguns parentes de Timmy na cidade, além de George?

        - Nenhum. O pai deles morreu há seis ou sete anos. George casou-se logo a seguir e ficaram os três - George, Timmy e Eloise - a viver na casa dos Warden. George vendeu-a este ano, foi comprada por um homem chamado Syler e ouvi dizer que a dividiu em apartamentos.

        Falei com o homem mais meia hora, mas ele não tinha muito mais a acrescentar. Disse-me que passasse por ali outra vez, e embora a atmosfera do bar me agradasse não gostava dele. Mostrava-se um pouco ansioso de mais em significar que sabia tudo, especialmente os pormenores mais escandalosos.

        Quando voltei à garagem, pouco depois das quinze horas, o meu carro estava pronto. Paguei o trabalho e conduzi-o sem problemas até ao motel. Uma vez metido no meu quarto, com a porta bem fechada, passei mentalmente em revista tudo o que se passara. Se bem que tivesse mentido ao dizer que ia escrever a respeito de Timmy, não via que isso pudesse prejudicar alguém, podia até tornar tudo bastante mais fácil. Decidi que seria melhor comprar um bloco-notas para apontamentos e ir anotando algumas coisas para dar maior verosimilhança à minha história.

        Não havia qualquer razão para não se escrever sobre Timmy e outros como ele, recordo-me até de que uma revista fizera o mesmo relativamente aos progressistas que não queriam ser repatriados. Então porque não escrever acerca dos mortos? Seria mais interessante que falar nos vira-casacas que, quase sem excepção, cabiam em dois grupos: ou eram ignorantes e praticamente pobres de espírito, ou mostravam-se neuróticos, desequilibrados e tinham atrás de si uma vida inteira de rejeição social. Não, os mortos eram mais interessantes.

        Fizera uma única tentativa para descobrir quem seria Cindy e falhara, mas, usando a cobertura de querer escrever a história de Timmy, poderia talvez encontrá-la. Pelo que Timmy dissera, tratava-se de uma rapariga que conhecia um esconderijo especial, e o dinheiro devia ainda lá estar a não ser que Eloise o tivesse levado. Sentia-me, porém, perplexo com a insistência de Fitz em garantir que isso não acontecera.

        Quando voltei à cidade para jantar comprei um bloco de apontamentos e, depois de comer, enchi três páginas com anotações. Podia ter escrito mais, Timmy falara muito, mas preferi ir a um cinema, embora não conseguisse concentrar-me no enredo do filme. A pessoa com quem devia ir falar a seguir seria com Ruth Stamm, poderia vê-la na manhã seguinte.

        De regresso ao motel fui olhar mais uma vez para a fotografia de Ruth, que trazia na carteira - amanhã, sexta-feira irei vê-la pela primeira vez em carne e osso -, apesar de já o ter feito um milhar de vezes. Timmy mostrara-ma pela primeira vez no acampamento e lembrei-me do dia em que nos sentámos encostados à parede, ao sol pálido, e ele a tirara do bolso.

        - Esta é que é, Tal, e eu não tive o senso suficiente para ficar com ela. Esta é que é boa, Tal. Ruthie Starnrn. A mim tinham-me tirado os documentos, incluindo a fotografia de Charlotte, e ergui a de Ruthie para a observar melhor voltada para o sol. Estava toda quebrada, mas nenhum dos vincos lhe atingira a cara, embora as cores tivessem desbotado e mudado. A rapariga encontrava-se sentada sobre os calcanhares e acariciava a barriga de um cocker amarelo, enquanto ria para a máquina. Vestia uns calções amarelos e uma camisola e o seu riso era fresco, sadio e alegre.

        Coisa de certo modo absurda, mas a verdade é que se tornou a nossa fotografia - de Timmy e minha. Tirei-lha depois de ele morrer e passou a ser só minha. Representava um mundo estranho a nós, de sanidade, bondade, força, e eu olhava-a muitas vezes.

        Agora, com ela na mão, estendi-me na cama do motel e observei-a à luz do candeeiro, sentindo uma certa excitação com a perspectiva de a ir conhecer. Permiti-me pensar se aquela peregrinação a Hillston não seria em parte devida à existência daquela fotografia de uma rapariga que nunca vira, e também se o desaparecimento do meu amor por Charlotte não teria também algo a ver com ela.

        Pus a fotografia de lado, levei muito tempo a adormecer, mas o sono que, por fim, chegou foi bom e profundo.

 

        Na sexta-feira de manhã, quando abri a gaveta da cómoda para tirar uma camisa limpa, percebi que alguém estivera no quarto. Arrumara as camisas todas de um lado da grande gaveta do meio e agora encontravam-se espalhadas, como se tivessem sido remexidas por mão apressada. Fui examinar todas as minhas coisas e encontrei mais provas de que alguém lhes mexera sem cuidado, mas nada havia para descobrir, eu não escrevera coisa alguma sobre a misteriosa Cindy.

        Não me parecia provável que a criada ou a mulher que me alugara o quarto tivesse feito aquilo, nem achava que a busca pudesse ter ocorrido na véspera, enquanto eu me encontrava fora. Fui verificar a porta, que me recordava distintamente de ter fechado à chave, e vi que alguém a abrira, isto é, fora visitado enquanto dormia. Felizmente, devido a um longo hábito, não me esquecera de esconder a carteira dentro da fronha da almofada, pelo que o dinheiro estava seguro. O ar fresco da manhã que entrava pela porta aberta, batendo-me no peito e na cara, fez-me reparar que transpirava ligeiramente. Lembrei-me de como Fitz era capaz de se mover silenciosamente de noite e não me agradou a ideia de ter estado ali no quarto e de haver sido capaz de abrir a porta, mas não via que pudesse tratar-se de qualquer pessoa. Surpreendia-me que tivesse encontrado tão facilmente o motel - não dera a direcção a ninguém

mas com a lista telefónica não lhe era, de facto, difícil saber onde eu me instalara. Talvez demorasse uma hora ou uma hora e meia a descobrir onde o meu nome estava registado, fora necessária paciência, mas não me podia esquecer de que Fitzmartin esperara mais de um ano... Tomei o pequeno-almoço, verifiquei o endereço e meti-me no carro para ir falar com a rapariga da velha fotografia quebrada e tão apreciada - aquela que, sem o saber, suavizara uma grande solidão e dera forças a uma frágil coragem.

        Buck Stamm era veterinário e a residência dele, onde tinha também o consultório, ficava situada na parte leste da cidade. Surgiu-me como uma casa antiga, de aspecto agradável, e perto dela existia um canil, cujos ocupantes começaram a ladrar ruidosamente quando me aproximei. Um pouco mais longe vi também uma cavalariça.

        Stamm apareceu na sala de espera quando a campainha da porta tocou. Tratava-se de um homem enorme, com cabelo ruivo e abundantemente revolto, que começara a ficar grisalho. Possuía uma forte voz de barítono e não aparentava um ar muito prazenteiro.

        - Ainda não abrimos, meu rapaz. A não ser que estejamos perante um caso de urgência.

        - Não se trata de uma consulta. Gostava de falar com a sua filha durante uns minutos.

        - A respeito de quê?

        - é uma questão pessoal. Fui amigo de Timmy Warden.

        Stamm não se mostrou muito satisfeito.

-       Bem, acho que não a posso impedir de falar consigo. Ela está em casa, a tomar o pequeno-almoço, vá lá ter. Diga-lhe que Aí ainda não apareceu e eu necessito de ajuda para dar de comer aos animais. Diga-lhe também que o Butch morreu durante a noite e que tem de telefonar aos Bronsons. Percebeu?

        - Não me esquecerei.

        - E não a demore muito, preciso de que ela me venha ajudar aqui. Vá pela porta das traseiras, ela está na cozinha.

        Atravessei o relvado e subi os degraus que davam acesso à porta das traseiras, que se encontrava aberta, e Ruth Stamm apareceu logo à entrada. Era de estatura mediana e tinha o cabelo ruivo escuro, dessa cor vermelha que se vê em mobiliário antigo feito de madeira de cerejeira, brilhante e polido, onde o sol acende raios luminosos. Vestia uma saia-calça, uma blusa azul-clara, e os seus olhos amendoados e acinzentados conferiam uma estranha vivacidade ao seu rosto, onde se destacava a boca grande de lábios carnudos. Reparei que a sua pele tinha um tom dourado, ao contrário da da maior parte das ruivas, que é de um branco deslavado. Devia andar pelos vinte e seis, vinte e sete anos e impunha-se de imediato graças à sua encantadora figura.

        Existem no mundo muitas mulheres tão atraentes como Ruth Stamm, mas a expressão que arvoram denuncia-as: os rostos delas são arrogantes, petulantes ou sensuais. A tal não damos importÂncia, porque são desejáveis e isso faz esquecer o resto, e sabemos que serão de excelente convivência durante algum tempo, mas quando estivermos habituados à sua beleza restará apenas a arrogÂncia e a petulÂncia.

        Contudo Ruth tinha uma expressão de força, humildade e bondade, e mesmo quando uma pessoa, porventura, se habituasse à sua beleza, essas qualidades continuariam sempre a existir. Tratava-se realmente de uma rapariga que se poderia amar por toda a vida, não podia ser de outra maneira, porque não havia nela qualquer das habituais poses e artifícios. Era uma jovem extremamente vulnerável, que exigia e merecia total lealdade.

        -       Creio que fiquei parado a olhar para si - disse eu.

        -       Acho que sim - respondeu ela, sorrindo.

        Tentou tornar o sorriso e as palavras casuais, mas nesses poucos momentos, como tão raramente acontece, nascera entre nós uma evidente curiosidade pessoal, intensa e recíproca.

        Tirei a fotografia do bolso, entreguei-lha e ela olhou-a, fitando-me depois de olhos franzidos.

        -       Onde arranjou isto?

        -       Timmy Warden trazia-a com ele.

        -       Timmy! Não sabia que ele a tinha. Esteve também no... nesse lugar?

        -       No campo com ele? Sim. Espere um minuto. O seu pai deu-me uns recados para si. Disse que Aí ainda não apareceu e que precisa de ajuda para dar de comer aos bichos, e tem de telefonar aos Bronsons para lhes dizer que o Butch morreu durante a noite.

        No rosto dela apareceu imediatamente uma expressão de preocupação.

        -       Mas que pena!

        -       Quem era o Butch?

        -       Um grande e simpático setter amarelo. Alguém o atropelou e nem sequer parou. Vou já telefonar.

        -       Gostaria de conversar consigo mais demoradamente. Posso convidá-la para almoçar hoje?

        -       Sobre o que quer conversar?

        A mentira foi-me útil outra vez.

        -       Estou a escrever um livro sobre aqueles que não regressaram e pensei que pudesse ajudar-me a saber coisas acerca do Timmy. Ele falava muito em si.

        -       Nós saíamos às vezes juntos. Eu... sim, estou pronta a ajudar no que puder. Pode vir buscar-me aqui ao meio-dia e um quarto? Com todo o gosto. E... posso voltar a ficar com a fotografia?

        Ela hesitou e entregou-ma.

        - A rapariga desta fotografia tinha dezoito anos. Isso foi há muito tempo. - Franziu a testa. - Ainda não me disse o seu nome.

        -       Howard, Tal Howard.

        Os nossos olhares encontraram-se durante uns segundos, mais uma vez ocorrendo uma forte sensação de interesse, e creio que isso a sobressaltou tanto como a mim. A figura da fotografia era a de uma rapariga, mas na minha frente estava uma mulher, a realização de todas as promessas da foto, uma mulher madura e encantadora -, e nós sentíamo-nos tímidos e desajeitados um com o outro. Após uns momentos disse-me adeus e entrou em casa. Meti-me no carro e voltei para a cidade. Durante muito tempo tivera no pensamento a imagem da fotografia, agora a realidade sobrepunha-se à foto desbotada. Julgara ter idealizado a imagem, atribuindo-lhe qualidades que ela não possuía, mas finalmente sabia que a realidade era mais forte, mais persuasiva, que o sonho.

        Encontrei a antiga casa dos Warden e conversei durante um bocado com o afável Syler, que a comprara a George Warden. Tratava-se de uma casa enorme e alta e o seu novo proprietário dividira-se em quatro apartamentos. Syler não precisava de ser encorajado a falar, com efeito era difícil fugir dele, e começou a queixar-se das condições existentes no interior da residência quando esta lhe fora vendida.

        -       Esse George Warden morou aqui sozinho durante um certo tempo e deve ter vivido como um urso.

        Lamentou-se também do estado do pátio.

        Não esperava que tivesse muita relva, mas a verdade é que fora todo ele revolvido com uma pá como se alguém tivesse preparado a terra para ser semeada e depois decidisse não a cultivar.

 

        Tratava-se de uma indicação de algumas das actividades de Fitzmartin. Certamente que ele remexera bem todo aquele terreno, pois o isolamento da casa, rodeada de altas vedações, dera-lhe oportunidade de o fazer à vontade.

        Voltei a casa de Stamm para ir buscar Ruth à hora que ela sugerira. O dia estava ameno, a rapariga mudara de roupa e vestia agora uma saia verde-escura e uma camisola branca. Parecia mais reservada, como se começasse a duvidar da conveniência de ter aceite o meu convite para almoçar. Quando entrámos no carro perguntei-lhe:

        -       Como aceitaram os Bronsons a notícia?

        -       Muito mal. Sempre pensei que isso sucedesse. Disse-lhes que arranjassem já outro cão, é a melhor maneira. Não da mesma raça, mas um cão novo, suficientemente jovem para precisar de atenção e para exigi-la.

        -       Onde podemos ir almoçar? Um sitio onde seja possível conversar?

        -       A cafetaria da Hillston Inn é agradável.

        Lembrava-me de já a ter visto por fora e felizmente havia espaço para estacionar o carro mesmo em frente. Ruth conduziu-me através de um pequeno vestíbulo e, em seguida, descemos meio lance de escadas para entrarmos na cafetaria, na altura quase cheia, e onde largas divisórias de madeira escura separavam as mesas, cujas cadeiras tinham estofos de plástico vermelho.

        As empregadas pareciam atenciosas, desembaraçadas, e cheirava bem, a bifes e costeletas.

        Como Ruth aceitasse tomar uma bebida antes do almoço e disse que gostaria de um oldfashioned, comecei por pedir dois. Ruth tinha um aspecto excepcionalmente fresco e asseado, e os seus modos eram calmos e naturais.

- Conheceu bem Timmy? - perguntou-me

        - Bastante bem. Numa situação daquelas fica-se a conhecer as pessoas, mostram aquilo que são. Você também o conhecia bem, creio.

        -       Namorámo-nos. Tudo começou há sete anos, mas parece-me há muito mais tempo. Éramos alunos do último ano da escola secundária e ele andava então com uma amiga minha, Judy Currier. Aborreceram-se por qualquer motivo e eu zanguei -me também com o rapaz que namorava na altura. Quando Timmy me passou a convidar para sair com ele, eu nunca recusava e a partir daí principiámos a andar juntos. Quando acabámos o curso da escola secundária, fomos ambos para a Universidade Estatal de Redding, mas ele só lá esteve dois anos, depois veio ajudar George, e eu regressei também a Hillston. Nessa altura toda a gente pensou que fôssemos casar - Ruth sorriu timidamente - e eu também, creio, mas depois as coisas mudaram. Creio que perdeu o interesse por mim, trabalhava muito, e afastámo-nos.

        -       Estava apaixonada por ele?

        Fitou-me com uma expressão ligeiramente surpreendida.

        -       Julgava estar, claro, de outro modo não teríamos sido tão íntimos, mas... não sei como hei-de explicar isto. Timmy era muito popular na escola secundária, era um bom atleta e toda a gente gostava dele. Foi o delegado da turma no último ano, eu fui eleita rainha da escola, e ambos gostávamos de dançar e fazíamo-lo bem. Parecia que todas as pessoas esperavam que andássemos juntos, achavam que formávamos um bom par, e talvez isso nos tivesse sugestionado. Talvez nos apaixonássemos pela maneira como aparecíamos juntos e sentíssemos a responsabilidade daquilo que os outros esperavam de nós. Constituíamos uma boa equipa. Compreende isso?

        -       Com certeza.

- Quando finalmente acabou, não custou tanto como eu pensava, mas se não tivesse terminado, provavelmente, casaríamos e... e creio que seríamos felizes. - Ruth parecia estar um pouco perplexa.

                -       Que espécie de homem era ele, Ruth?

                -       Já lhe disse. Popular, simpático e...

                -       Por baixo disso.

                -       Não quero sentir-me... desleal ou qualquer coisa.

                -       Outra bebida?

                -       Não, é melhor pedirmos o almoço, obrigada.

                Depois de termos escolhido o que queríamos, Ruth continuou, com uma expressão contrafeita:

                -       Havia algo de fraco em Timmy. Sempre foi tudo fácil para ele, demasiado fácil, o seu cérebro e o seu corpo eram bons e ele fazia amigos sem querer. Nunca foi... posto à prova. Eu tinha a sensação de que ele achava que as coisas seriam sempre assim durante toda a sua vida, que poderia sempre conseguir o que desejava e isso preocupava-me, porque aprendera que não é assim. Dava a sensação de que ele não amadurecera, e eu pensava muitas vezes no que sucederia se algo começasse a correr-lhe mal. Sabia que ou ele se faria homem, ou principiaria a gemer e a lamentar-se.

                -       Ele fez-se um homem, Ruth.

                Subitamente as lágrimas vieram-lhe aos olhos.

                -       Fico satisfeita por saber isso, muito satisfeita. Desejava que ele tivesse voltado.

                -       Penso que concordaria comigo. Depois de ele ter deixado de sair consigo, com quem passou a andar até ser mobilizado?

                Os olhos dela tornaram-se evasivos.

                -       Com ninguém.

                Baixei a voz.

                -       Ele contou-me a respeito de Eloise.

        O rosto de Ruth tornou-se mais pálido.

-       Então era verdade. Não podia ter a certeza, mas

suspeitava e pensar nisso tornava-me doente. No entanto, isso não me surpreende. Para Timmy tudo era fácil. Não creio que se apercebesse sequer daquilo que fazia a si próprio e ao George. Ela não valia nada, toda a gente teve pena dele e ficou chocada quando casaram.

        -       Timmy contou-me o que se passou com Eloise e afirmou-me que lamentava o ocorrido. Queria voltar a emendar o mal que praticara. Creio que sabia que não podia fazer retroceder as rodas do tempo e conseguir que tudo ficasse como dantes, mas, no entanto, desejava corrigir o que lhe fosse possível.

        -       Não creio que George tenha alguma vez suspeitado, mas mesmo que o soubesse agora já não o podia magoar muito. Neste altura já sabe o que ele e.

        -       Como era Eloise?

        -       Bastante bonita, um género de mulher bem desabrochada, loura com pele morena e um rosto de cigana. Não sei onde foi buscar aquelas feições, não se parece nada com a família. Ao princípio estava um ano à minha frente, na escola, depois no mesmo ano e mais tarde no ano anterior ao meu, nunca acabou sequer o curso secundário. No que diz respeito ao aproveitamento escolar, revelava ser muito estúpida, mas mostrava-se esperta de muitas outras maneiras, muito esperta mesmo. Tinha um aspecto desleixado, usava habitualmente as golas dos vestidos sujas, os tornozelos mal lavados, e ainda por cima andava sem meias, mas encharcava-se em perfume. Tinha um modo de andar muito sexy, pernas bonitas, cintura estreita e ancas largas. As maneiras dela eram provocantes e os rapazes andavam sempre à volta dela como cães apalermados, de olhos esbugalhados e língua de fora. Nós fazíamos troça, mas, ao mesmo tempo, invejávamo-la e detestávamo-la. Fazia o q

ue queria, parecia estar sempre a zombar de toda a gente, e casar com George representou para ela um excelente negócio. Ficaram a viver os três na casa dos Warden, e quando ela se começou a aborrecer Timmy tinha tantas possibilidades de lhe escapar como... como um hamburger na jaula de uma pantera. Creio que foram cuidadosos, mas numa terra pequena como esta tudo acaba por saber-se e muita gente falava deles, na altura em que Timmy partiu. Mas, já há dois anos que eu não saía com ele.

        -       Mas Eloise acabou por fugir com um caixeiro-viajeiro...

        -       Foi uma coisa muito estúpida da parte dela. Tinha tudo quanto queria e George confiava nela. O homem chamava-se Fulton, e era um tipo corpulento, de rosto avermelhado, que conduzia um Studebaker cinzento e que vinha a Hillston só de seis em seis meses. Eloise foi-se embora quase... não, foi há mais de dois anos. George encontrava-se fora da cidade, em negócios, e Fulton e Eloise ainda jantaram aqui à vista de toda a gente. Devem ter partido nessa mesma noite, pois quando George voltou tinham desaparecido.

        -       George tentou segui-la?

        -       Não, ficou muito magoado. Ela embalara as suas melhores roupas, levara o dinheiro da casa e partira sem sequer deixar um bilhete. Aposto que um dia ainda acaba por voltar para aqui a rastejar.

        -       Acha que George a aceitaria?

        -       Não sei, não sei o que ele faria. Tenho tentado ajudá-lo - disse corando. - O meu pai arrelia-me por eu andar sempre a levar para casa gatos e cães abandonados, afirma que os meus protegidos lhe comem tudo o que ganha e é mais ou menos o mesmo que acontece em relação a George. Ele agora não tem ninguém, absolutamente ninguem no mundo, bebe constantemente e já perdeu quase tudo. Eu faço o pouco que posso: cozinho-lhe as refeições, algumas vezes, limpo-lhe o quarto, trato-lhe da roupa, mas não consigo fazê-lo despertar. Cai cada vez mais baixo e isso torna-me doente.

- Fui visitá-lo à loja e não me pareceu muito bem. Agiu de uma maneira estranha.

        - A loja quase não faz negócio.

        - Mas a serração parece que dá lucro, fui lá falar com Fitzmartin. Ele também esteve no campo de pri sioneiros connosco.

        - Eu sei. Ele disse-me. Eu... ele é seu amigo?

        - Não.

        - Não gosto dele. Tal, é um homem estranho, e não sei como George lhe deu trabalho. É como se tivesse poder sobre ele e tenho a sensação de que ainda está a empurrá-lo mais para baixo, não sei como nem por que motivo. Fitzmartin incomodou-me, vinha constantemente falar comigo a respeito de Timmy. Achei-o muito estranho.

        - Sobre que queria ele falar?

        - As coisas que dizia não faziam muito sentido. Queria saber onde Timmy e eu costumávamos fazer piqueniques quando andávamos na escola secundária, perguntava se alguma vez tínhamos realizado escaladas juntos e falava de tal modo, com tais insinuações, que da última vez me zanguei e o preveni de que não voltaria a falar-lhe. Acho-o esquisito e mete-me medo, sabe? Os olhos daquele homem são tão estranhos e sem cor...

        - E ele tem-se mantido afastado?

        - Oh, sim, mostrei-me muito positiva acerca disso... Ele revelava um interesse tão pouco normal pela vida de Timmy que cheguei a pensar que você fizesse o mesmo, mas se vai escrever um livro é natural que queira informar-se sobre a vida do seu amigo.

        A franqueza do olhar dela fez-me sentir envergonhado. Houve uma pausa desajeitada na nossa conversa, brincou uns momentos com a colher do café e depois, sem me olhar, perguntou:

        - Como Timmy lhe falou no que se passou entre ele e Eloise, chegou a dizer-lhe também o que houve entre nós?

Ruth corou mais uma vez.

        -       Falou-me em si, mas não me revelou muita coisa. podia inventar algo para a fazer sentir-se melhor, só que não quero faltar à verdade.

        Ruth ergueu a cabeça para me fitar, ainda corada.

        -       Isto não é coisa que escreva no seu livro, mas também não é nada de que me envergonhe, e talvez o possa compreender melhor a ele, ou a mim, se lhe contar. Nós namorámo-nos durante o nosso último ano da escola secundária, e muitos rapazes e raparigas, muitos dos nossos amigos, tomando por garantido que casariam logo que pudessem, era uma coisa quase certa, dormiam juntos. Mas nós nunca o fizemos. Depois, fomos ambos para Redding, estávamos longe de casa, sentiamo-nos solitários, desambientados, e aquilo... aquilo sucedeu. Tornou-se muito intenso durante alguns meses, até que começámos a perceber que isso não nos estava a ajudar em nada e parámos. Oh, houve alguns lapsos, acidentes, alturas em que não prevíamos que sucedesse, mas parámos e sentimo-nos muito orgulhosos do nosso carácter... Sabe, às vezes imagino se isso não terá comprometido tudo que implicava com o nosso relacionamento. é uma atitude muito antiquada pensa

r assim, mas por vezes não posso deixar de o fazer.

        Senti-me perturbado, pois nunca encontrara aquele género de honestidade. Ruth dera-me de livre vontade uma informação desagradável a respeito de si própria e eu senti-me obrigado a retribuir.

        Respondi demasiado depressa:

        -       Sei o que quer dizer, sei também o que é reconhecer-me culpado do ponto de vista masculino. Quando fui mobilizado tive trinta dias até me apresentar e nessa altura andava com uma rapariga: Charlotte. Estava bem empregado, pensámos em casar antes de eu ir para a guerra, mas não o fizemos, e eu aproveitei-me da situação: o homem que vai para a guerra e tudo o mais. Por isso ela sentiu-se na obrigação de cuidar completamente do guerreiro que ia partir. Foram uns trinta dias frenéticos e em seguida fui-me embora sem falar mais em casamento. Aquilo que as palavras ternas não tinham conseguido, lograram-no os norte-coreanos. Charlotte é boa rapariga.

        -       Mas regressou e não casou?

        -       Não, vim em muito más condições físicas. O meu sistema digestivo ainda não está refeito e passei bastante tempo num hospital militar. Quando saí, voltei para o meu emprego, mas não me sentia lá bem, ao contrário do que sucedia dantes. Não me interessava pelo meu trabalho e Charlotte parecia-me uma estranha. Pelo menos fui suficientemente íntegro para não voltar a dormir com ela, que estava pronta a fazê-lo, mas eu tinha a consciência da minha inquietude e desinteresse por tudo. Finalmente, fui despedido do emprego, creio que se fartaram do meu alheamento por tudo aquilo que se relacionava com o trabalho, por isso resolvi começar este... este projecto. Julgo-me terrivelmente culpado a respeito de Charlotte, pois ela manteve-se leal para comigo enquanto estive fora e pensava que casaríamos logo que eu regressasse. Não compreende o que se passa comigo, e eu também não. Só sei que me sinto culpado e continuo inquieto.

        -       Como é ela, Tal?

        -       Charlotte? é bastante bonita. É uma rapariga baixa e delgada, com lindos olhos e cabelos escuros. Seria uma boa esposa. é asseada, eficiente, activa, tem gosto e o pai dela está cheio de dinheiro.

        -       Talvez não deva sentir-se culpado.

        -       Que quer dizer com isso, Ruth? - perguntei, sem a perceber.

        -       Disse que ela lhe parece uma estranha, Tal, e talvez o seja. Mas é possível que o que você era quando partiu, se lhe afigure também agora alheio relativamente a si próprio. Afirmou-me que Timmy mudara e provavelmente passou-se o mesmo consigo. Pode ter amadurecido de uma maneira que lhe passou despercebida, e talvez a Charlotte que tanto agradava ao Tal Howard que partiu não corresponda aos anseios da nova personalidade do Tal Howard que voltou.

        -       E por isso despedacei-lhe o coração.

        -       Talvez seja melhor despedaçar-lho agora, desta maneira, do que casar com ela e destroçá-lo depois, doutro modo, mais lentamente. Posso explicar isso melhor reportando-me ao que se passou entre Timmy e eu.

        -       Não compreendo.

        -       Quando Timmy perdeu o interesse por mim o choque que senti foi menor do que eu esperava. Na altura, não percebi porquê, mas agora, depois deste tempo todo, já compreendo. Timmy era uma pessoa muito menos complicada do que eu, os seus interesses eram mais limitados. Vivia mais ao nível físico do que eu, eu sou mais imaginativa, tal como você o deve ser mais do que ele era. Se tivesse casado com Timmy, as coisas teriam corrido bem durante uns tempos, mas inevitavelmente eu acabaria por começar a sentir-me sufocada. Não fique com a ideia de que sou uma intelectual, não, mas gosto de ler, de uma conversa interessante e de coisas assim. Timmy preferia jogar bowling, beber cervejas e fazer desporto. Os nossos gostos não seriam partilhados. Percebe?

        -       Talvez não. Eu também tenho gostos semelhantes aos de Timmy... e até uma atitude idêntica à dele perante a vida.

        Ela fitou-me gravemente.

        -       Tem, Tal?

        Tratava-se de uma pergunta desconfortável e lembrei-me das primeiras semanas junto de Charlotte depois de ter saido do hospital, quando tentava voltar a integrar-me no mesmo padrão de vida que seguira dantes. Os nossos amigos pareciam-me insípidos e as conversas deles aborreciam-me. Charlotte, com as suas tagarelices infindáveis a respeito de casas, da cor dos cortinados, dos filmes da televisão, das roupas que usava "não achas estes sapatos bonitos e baratos? Com que cor gostas mais de me ver? As cozinhas decoradas a amarelo são sempre alegres , acabara também por aborrecer-me.

        A minha Charlotte, aninhada contra mim no assento do carro, com os olhos fixos no ecrã do cinema drive-in, onde se desenrolavam banalidades, maçava-me sem o saber. Comecei a perceber onde tudo tivera início: fora no campo. O tédio era o inimigo e todas as minhas defesas tradicionais contra o enfado tinham desaparecido muito rapidamente. Antes, estava habituado a conviver com um certo tipo de homens, divertiam-me e entretinham-me, mas no campo de prisioneiros tudo isso se tornou oco, as velhas conversas deles, de proezas sexuais, vitórias da juventude e bebedeiras, passaram a enfadar-me terrivelmente.

        Para fugir ao tédio o meu cérebro teve de procurar outras áreas de interesse e eu começara a pretender a companhia daqueles cuja presença me fora outrora desagradável, daqueles de quem, em tempos, teria troçado. Conheci um tipo de aspecto frágil e com o cérebro cheio de coisas que eu nunca ouvira. Ao princípio pareciam-me disparates, mas depois as suas ideias assumiram um significado mágico. Havia também um cabo, musculoso como um Tarzan, que discutia ferozmente com um jovem marinheiro acerca da filosofia e da ética da arte, enquanto eu ficava sentado a ouvi-los, sentindo que portas desconhecidas se abriam no meu pensamento.

        A calma pergunta de Ruth deu-me a primeira pista válida para o meu próprio descontentamento. Se eu pudesse voltar às minhas antigas dimensões, integrar-me-ia facilmente no meu antigo emprego, no mundo de cortinados azuis, das cozinhas amarelas de Charlotte, e nos jogos de póquer com que o nosso grupo se entretinha aos sábados á noite.

        Contudo, se não conseguisse fazê-lo, nunca mais me sentiria bem nesse mundo, e eu não desejava voltar para lá. Queria continuar com a nova mentalidade que conquistara, porque muitas das coisas que outrora me eram estranhas se tinham tornado altamente significativas para mim.

        -       Tem, Tal? - perguntou de novo Ruth.

        -       Talvez não tanto como julgava.

        -       Você anda à procura de qualquer coisa - declarou Ruth, e a estranha verdade daquela afirmação sobressaltou-me. - Está a tentar escrever um livro e isso é uma indicação de inquietude: procura aquilo que deverá ser, ou aquilo que realmente é. - Subitamente esboçou um sorriso, que me deixou ver um dos seus dentes brancos ligeiramente torto. - O meu pai afirma que eu quero ser mãe do mundo, por isso não presta atenção ao que eu digo. Estou sempre a fazer diagnósticos, a receitar e a tentar remediar as coisas. - Olhou para o relógio. - Oh! A esta hora já ele deve estar furioso por eu não aparecer. Tenho de ir já.

        Paguei a conta e dirigimo-nos para o carro. No regresso encaminhei a conversa de maneira a poder-lhe perguntar, a dada altura:

        -       Ele também me falou de uma rapariga chamada Cindy. Sabe quem é?

        Ruth franziu a testa.

        -       Cindy? Lembro-me de uma... não, não havia nenhuma Cindy com quem Timmy pudesse ter andado. Tenho a certeza de que nunca conheceu uma Cindy bonita, e para Timmy uma rapariga tinha de ser bonita. Tem a certeza de que era esse o nome?

        -       Absoluta.

        -       Mas que contou a respeito dela?

-       Mencionou-a casualmente algumas vezes, mas de maneira que dava a impressão de que a conhecia bem. Não recordo exactamente o que ele disse, mas fiquei com a impressão de que eram íntimos.

        -       Não consigo perceber - respondeu Ruth.

        Parei o carro em frente da clínica veterinária e saí na altura em que Ruth o fez. Tínhamos estado à vontade um com o outro, mas agora voltávamos a sentir-nos acanhados. Queria arranjar um pretexto para a tornar a ver, mas não sabia como proceder, e esperava que o ar constrangido dela fosse por esperar que eu descobrisse um meio. Houvera muitos pequenos sinais e indicações de uma inesperada proximidade entre nós, ela não podia ter deixado de se aperceber disso.

        -       Quero agradecer-lhe, Ruth - disse, estendendo-lhe a mão.

        Ela estendeu-me a sua, quente, firme, e os seus olhos fitaram os meus. Contudo, desviaram-se e creio que ela corou um pouco, não tive a certeza.

        -       Tive muito gosto em poder ajudá-lo, Tal. Se desejar fazer-me mais perguntas, telefone.

        A abertura lá estava, mas era demasiado fácil, e senti-me impelido a dar-lhe a conhecer o que eu sentia.

        - Gostaria de estar consigo outra vez, mesmo que não fosse por causa do livro.

        Ruth retirou a mão dela da minha e fitou-me de frente, com o queixo erguido.

        -       Creio que também gostaria, Tal - afirmou, sorrindo novamente. - Vê? Uma total falta das tradicionais técnicas femininas.

        -       Gosto disso, gosto muito disso.

        -       Mas é melhor não começarmos a ser muito intensos, Tal.

        -       Intensos? Não sei. Andei muito tempo com a sua fotografia e isso exprimia qualquer coisa. Agora deu-se uma transição, você significa algo.

-       Diz coisas como essas só para se ouvir a si próprio?

        -       Desta vez não.

        -       Telefone-me - disse Ruth, começando a afastar-se.

        Antes de ela entrar na clínica lembrei-me daquilo que lhe queria perguntar, chamei-a e aproximei-me.

        -       Com quem devo falar agora a respeito de Timmy?

        Ruth mostrou-se ligeiramente desapontada.

        -       Oh, experimente Mister Leach, chefe do Departamento de Matemática da escola secundária. Interessou-se bastante por Timmy, e é uma pessoa muito simpática, muito agradável.

        Voltei para a cidade, cheio de presença dela, do impacte que causara em mim. Era uma impressão que tornava tudo mais vivo... o dia, a cidade, as árvores... O rosto dela, especial, retratava-se vivamente na minha memória - a boca generosa, o dente ligeiramente torto, os olhos cinzentos, amendoados. Tinha boa figura, com os ombros talvez um pouco largos e as ancas um pouco estreitas para se assumir como clássica, mas as pernas compridas e bem torneadas, a cintura estreita, os seios altos e afastados, com um ar arrogante, quase impertinentes, tudo isso contribuía para formar um conjunto encantador. Porém, o que mais me seduzia eram as suas tonalidades: a pele dourada, os olhos cinzentos, o cabelo de um ruivo-escuro.

        Olhei para o relógio: quase três da tarde. Tentei afastar a imagem de Ruth do meu pensamento e pensar na entrevista com Leach, que poderia muito bem ser o elo que me levasse a Cindy...

Devia encontrar-me a meia milha da casa dos Stamm quando comecei a pensar se oFord coupé que me seguia seria o mesmo que eu vira junto do barracão de Fitzmartin. Dei duas voltas, ao acaso, e o carro continuou atrás do meu, não fazendo qualquer tentativa para se ocultar. O Ford perseguia-me, sem dúvida, a uns trinta metros de distÂncia. Parei na berma da estrada, sai e vi que era Fitz quem o conduzia. Ele parou e saiu também.

        Dirigi-me para ele e disse:

        -       Que ideia foi essa de ir passar revista ao meu quarto?

        Fitzmartin encostou-se ao carro.

        -       Você ressona muito suavemente, Howard, um som muito tranquilizador.

        -       Podia dizer à Polícia.

        -       Certo. Diga-lhes tudo.

        Franzia os olhos ao sol da tarde, parecendo indolente e bem-disposto.

        -       De que lhe serve andar a seguir-me?

        -       Ainda não sei. Almoçou bem com a Ruthie? É uma rapariga muito jeitosa e tem todo o equipamento adequado. Não engraçou comigo, não sei porquê. Talvez goste do género mais indefeso e se você trabalhar bem pode ser que tenhamos oportunidade de a levar a...

        Calou-se subitamente e a sua expressão mudou. Olhou para um ponto para além de mim e eu segui o seu olhar. Vi então um sedan azul-escuro que se aproximava a grande velocidade, e quando passou por nós notei de relance que ao volante ia um homem corpulento e calvo, com uma face dura. Apercebi-me também de que viajava sozinho e de que a matrícula não era daquele estado, mas não tive tempo para verificar a sua proveniência.

        Voltei-me novamente para Fitz.

        -       Não serve de nada seguir-me. Já lhe disse que nada mais sei...

        Parei porque não valia a pena prosseguir, era como se eu me tivesse tornado invisível e inaudível. Fitz passou por mim, meteu-se no carro e partiu, desaparecendo rapidamente da minha vista. Entrei no meu automóvel - aquele episódio

afigurava-se-me incompreensível.

        Afastei-o da minha mente e comecei de novo a pensar em Leach.

 

        Apesar de os alunos já terem saído, as portas permaneciam abertas, e um empregado que limpava o mosaico vermelho do corredor disse-me que provavelmente encontraria Leach no seu gabinete, no rés-do-chão. Os dois corpos do edifício, um novo e outro velho, estavam ligados e os meus passos ecoavam no comprido corredor deserto. Uma pequenita saiu de uma aula e fechou a porta sobre si. O seu aspecto era tímido e meigo, parecia-me um cãozito assustado, perdido num pátio desconhecido. Ia carregada com livros, olhou rapidamente para mim e apressou-se a afastar-se, com os ombros inclinados e o cabelo preso num rabo de cavalo.

        Encontrei a porta com o nome de Leach, bati e uma voz cansada disse-me que entrasse. Leach, um homem baixo, com um rosto duro, sobrancelhas hirsutas e cabelo grisalho cortado em escova estava sentado a uma secretária coberta de livros e parecia corrigir provas.

        -       Que deseja?

        -       O meu nome é Tal Howard. Gostaria de falar consigo acerca de um antigo aluno seu.

        Apertou-me a mão sem entusiasmo.

        -       Um ex-aluno metido em sarilhos?

-       Não. Não e...

        -       Ainda bem. Sabe, é que recebo aqui muitos tratantes: gentes dos narcóticos, autoridades policiais, advogados. às vezes tenho a sensação de que só saíram daqui criminosos de todas as dimensões. Mas desculpe, interrompi-o.

        -       Não quero maçá-lo e vejo que está muito ocupado. Estou a reunir material acerca de Timmy Warden e Ruth Stamm sugeriu que viesse falar consigo.

        O professor encostou-se para trás e esfregou os Olhos.

        -       A reunir material sobre Timmy Warden? Parece-me tratar-se de um livro, mas terá ele vivido o tempo suficiente para lhe proporcionar material que chegue?

        -       Timmy e alguns outros que morreram no campo de prisioneiros. Também lá estive, mas escapei.

        -       Sente-se. Estou perfeitamente disposto a falar sobre ele. Creio que não seja um profissional?

        -       Não, senhor.

        -       Então isso, como um trabalho de amor, deve ser tratado com todo o respeito. Ruth sabe tanto acerca de Timmy como qualquer outra pessoa que o tivesse conhecido, creio.

        -       Ela contou-me muito, e eu soube outras coisas pelo próprio Timmy, mas preciso de mais. Ruth disse-me que o senhor se interessou por ele.

        -       Sim, Mister Howard. Provavelmente já ouviu falar de cretinos que conseguem multiplicar dois por cinco números dígitos e darem a resposta quase imediatamente?

        -       Sim, mas...

        -       Eu sei, eu sei. Timmy não era um cretino, tratava-se de um rapaz muito normal, quase anormalmente normal, se percebe o que estou a dizer. No entanto, possuía uma centelha para as matemáticas criativas, era capaz de sentir... o ritmo por detrás dos números. Imaginava soluções únicas para os problemas tradicionais dados nas aulas e possuía um talento raro, a intuição de perceber relacionações intrincadas e de as ver numa forma simplificada. Contudo, não havia dedicação da parte dele, e sem amor pelo estudo, Mister Howard, tal capacidade não passa de um mero acidente que se desvanece numa inteligência vazia. Eu gostava de ser matemático, mas limito-me a ensinar números numa escola secundária, e isto apenas por não ter nascido com aquilo que Timmy Warden possuia. Cheguei a alimentar esperanças de que ele viesse ainda a sentir aquela tãonecessária paixão pelo estudo que lhe faltava, mas não teve tempo para isso.

        -       Pois não.

        -       Mesmo que tal sucedesse, duvido de que chegasse mais longe. Era um rapaz bom, decente, tudo se tornava fácil para ele.

        -       No fim não foi fácil.

        -       Não imagino que tenha sido, não o é para centenas de milhões de outros homens em qualquer parte do mundo. é um século mau, Mister Howard, mau para os jovens, mau para a maior parte de nós.

        -       Como acha que seria a vida dele, se fosse vivo, Mister Leach?

        o professor encolheu os ombros.

        -       Nada de excepcional. Casamento, trabalho, filhos e morte. Não daria qualquer contributo, o nome dele desapareceria como se nunca tivesse existido. Seria um dos sem rosto, como nós, Mister Howard. - Esfregou novamente os olhos e depois sorriu sem alegria. - Habitualmente não sou tão deprimente, mas foi uma semana má... que fez aumentar a minha convicção de que algo está a comprometer o futuro dos noSSOS jovens. Esta semana pareceram-me piores, mais sombrios, mais desmotivados do que nunca. Uma jovem aluna dos últimos anos foi levada para o hospital com uma septicemia causada por um aborto provocado por ela própria, um rapaz muito simpático foi agredido e esfaqueado, dez alunos morreram num desastre de automóvel quando vinham de Redding, embriagados, e o condutor do outro veículo também não se deve salvar. Quando Timmy frequentava a escola eu já achava isto mau, mal não era como agora, em comparação, esses eram os bons velhos tempos,

apesar de bastante recentes.

        - Timmy causava problemas disciplinares?

        -       Não. Era preguiçoso, por vezes provocava distúrbios, mas no conjunto era cooperante. Esperava que Ruth fosse a rapariga que conseguisse despertá-lo. É uma pessoa sólida, boa de mais para ele, talvez.

        -       Creio que se tratava de um rapaz muito popular entre as raparigas...

        -       Muito, como em quase tudo o resto. Tudo parecia ser fácil para ele.

        -       Timmy, no campo de prisioneiros, falou-me em algumas delas: Ruth, Judy, Cindy.

        -       Eu não poderei identificá-las. Se bem me lembro, em certa altura havia oito Judy numa mesma aula, agora é que, graças a Deus, esse nome parece não estar tanto na moda. Nunca houve muitas Cindy, mas, mesmo assim, vão aparecendo regularmente.

        -       Gostaria de falar com algumas dessas raparigas, além de Ruth. Judy já não vive aqui e não consigo recordar-me do apelido de Cindy. Não haverá alguma lista de estudantes que me permita identificá-la?

        -       Creio que pode tentar - respondeu Leach. Nesta altura não se encontra ninguém no gabinete da administração, mas vá lá na segunda-feira. Deixe-me ver, Timmy acabou o curso em quarenta e seis e conservo aqui antigos livros de ponto, estão ali, naquela prateleira de baixo. Pode tirar os desse ano e dos dois anos seguintes e sentar-se ali ao pé da janela a consultá-los. Preciso de continuar a ver estes exercícios e, de facto, não posso dizer-lhe muito mais a respeito de Timmy. Gostava dele e tinha esperanças nele, mas faltava-lhe motivação. Aliás parece ser esse o mal da maior parte dos jovens de hoje, não têm motivação, não vêem qualquer objectivo para o qual mereça a pena trabalhar. Deixaram de sonhar, contentam-se com as ficções fabricadas que lhes são apresentadas através da televiSão e do cinema.

        Sentei-me junto da janela e comecei a folhear os livros que Leach me indicara. Não havia qualquer Cindy em 1946, no do ano seguinte existia uma, mas quando vi a fotografia dela percebi que não podia ser aquela, tratava-se de uma rapariga gorda, com feições miúdas e descontentes e uns olhinhos rebeldes. No livro de 1948 descobri outra Cindy, mas esta tinha um rosto estreito, dentes saídos e os olhos escondiam-se atrás de umas grossas lentes, que lhe davam uma expressão de estupidez incrível. No entanto, tomei nota dos nomes, podia ser que valesse a pena tentar.

        Regressei ao livro de 1946 e voltei página após página, mais atentamente até que cheguei a uma rapariga chamada Cynthia Cooper, a qual era relativamente atraente, de nariz arrebitado e loura. Pensei que talvez Timmy lhe chamasse Cynthy, uma deformação de Cynthia, mas, apesar de a voz dele nessa altura soar muito fraca, tinha quase a certeza de que dissera Cindy, pois até repetira o nome. No entanto, escrevi também o nome dela.

        A fotografia de Ruth Stamm não era muito boa, mas estava ali a promessa do que ela viria a ser. As suas actividades anotadas debaixo do nome perfaziam uma longa lista e com Timmy, que se mostrava sorridente, passava-se o mesmo.

        Quando me levantei, Leach olhou-me.

        -       Encontrou alguma coisa?

        -       Tomei nota de alguns nomes. Podem ajudar.

Agradecia-lhe e, antes de eu chegar à porta, já ele se absorvera novamente na sua tarefa de corrigir os pontos dos alunos. Um tipo curioso, com a sua maneira própria de se dedicar e de se preocupar. Tratava-se de um homenzinho pomposo, sem dúvida, mas havia nele muita bondade oculta.

        Cheguei à Hillston Inn um pouco depois das cinco, troquei dinheiro para o telefone e dirigi-me de imediato para uma das quatro cabinas existentes no corredor. li o apelido da rapariga gorda, Waskowitz, vi que havia dois na lista, John e Paul, e resolvi começar pelo primeiro. Uma mulher com voz nasalada atendeu.

        -       Estou a tentar localizar uma rapariga chamada Cindy Waskowitz, que acabou o curso da escola secundária de Hillston em quarenta e sete. É aí que ela mora?

        -       Um minuto - respondeu a mulher.

        Ouvi-a falar com outra pessoa, mas não percebia o que estava a dizer, até que ela voltou daí a pouco.

        -       Quer saber da Cindy? - perguntou.

        -       Exactamente, se faz favor.

        -       Esta não é a casa dela, mas eu sou sua tia e posso dar-lhe informações. Quer saber o que lhe aconteceu?

        -       Sim.

        -       Morreu por causa das glÂndulas, não me lembro do nome exacto da doença, mas a minha filha sabe. Quando saiu da escola secundária pesava quase cem quilos e daí em diante aumentou sempre de peso, parecia um balão. Antes de ir para o hospital, onde morreu, chegou a pesar duzentos. Foram as glÂndulas.

        Recordei os olhos rebeldes, a rapariga prisioneira da sua pele branca, macia. Uma rapariguinha ágil e activa perdida dentro daquele lento e inevitável avanço de gordura e que fora finalmente enterrada dentro da sua prisão.

        -       A sua filha tem mais ou menos a idade que Cindy teria agora?

        -       É um ano mais velha, casou e já é mãe de três filhos -        acrescentou a mulher com um risinho afectuoso.

- Poderiafalar com ela?

                -Com certeza. Espere um momento.

                A voz da filha era mais fria e desconfiada.

                - Que deseja? Que quer afinal sobre Cindy?

        -       Gostava de saber se ela seria amiga de um rapaz chamado Timmy Warden?

        -       Timmy morreu, li nos jornais.

        -       Bem sei. Eles eram amigos?

        -       Cindy e Timmy? Não, nem por sombras. Devia saber quem ela era por ser tão gorda, mas não creio que alguma vez lhe tenha falado. Porque o faria? Andavam todas as meninas bonitas à volta dele... Porque pergunta tudo isso?

        -       Estive prisioneiro com ele e, antes de morrer, Timmy confiou-me uma mensagem para transmitir a uma rapariga chamada Cindy. Queria saber se seria essa.

        -       Não teve sorte. Deve ser outra qualquer.

        -       Havia outra Cindy na escola?

        -       Sim, noutro ano, mas tinha um aspecto estranho. é a única de que me lembro: dentes saídos, óculos e com o cabelo cor de areia. Não me recordo do apelido dela.

        -       Kirschner?

        -       Exacto, mas não faço ideia onde a poderá encontrar. Creio que a vi uma vez na cidade, o ano passado, e talvez o nome dela esteja na lista, mas também não me parece que seja essa. Timmy Warden andava com as raparigas do grupo dele, a gente importante da escola. Cindy Kirschner não pertencia a essa categoria, nem eu, claro.

        O azedume estava implícito na voz. Agradeci-lhe de novo e ela desligou.

        Procurei em Kirschner e, como havia apenas um na lista, a busca ficou facilitada. Foi uma mulher que atendeu o telefone.

        -       Estou a tentar localizar Cindy Kirschner, que acabou o curso na escola secundária de Hillston em quarenta e oito.

- É a minha filha. Quem fala, por favor?

        Poderia dizer-me onde será possível encontrá-la?

        - Casou, mas não tem telefone. Costumam utilizar o da loja da esquina, mas ela não gosta que lhe liguem para lá, porque maça as pessoas da loja. Além disso, tem filhos pequenos que não quer deixar sós para ir atender o telefone. Se pretende falar com ela, vá lá a casa. É na Blackman Street, número cento e sessenta, perto da esquina de Butternut, uma casinha azul. O apelido de casada é Rorick. Como disse o senhor que se chamava?

        Repeti as indicações e disse:

        - Muito obrigado, Mistress Kirschner. Agradecido pela sua ajuda. Adeus.

        Pensei ainda em ligar para Cynthia Cooper, mas decidi tratar de um caso de cada vez, eliminando uma antes de procurar falar com outra. Saí da cabina e vi Earl Fitzmartin sair igualmente da cabina contígua, sorrindo-me com uma expressão quase jovial.

        -       Então trata-se de algo relacionado com alguém chamada Cindy.

        -       Não sei de que está a falar.

        -       "Estive prisioneiro com Timmy e antes de morrer ele deu-me um recado para transmitir a uma rapariga chamada Cindy." Tentou duas Cindy seguidas e até sabe o ano em que elas se formaram. Tem andado atarefado não é?

        - Vá para o inferno, Fitz!

        Ele ficou a balouçar-se sobre as pernas com as grandes mãos nas ancas, sorrindo-me placidamente.

        -       Tem andado muito ocupado, Tal. Almocinho agradável com Ruth, depois uma ida à escola secundária e as tentativas de encontrar Cindy. Ela sabe onde está a "massa")?

        Fitzmartin vestia um fato escuro, de bom corte, camisa branca, impecável, e sapatos reluzentes. Pensei, devia ter sido mais prudente, pois não lhe fora difícil meter-se numa cabina e ouvir a minha conversa na outra. Eu nem sequer tivera o cuidado de verificar que não era ouvido e agora ele sabia quase tanto como eu.

        -       Como se entendeu com George, Howard?

        -       Bem.

        -       Um tipo estranho, não é?

        -       Sim, pareceu-me um pouco esquisito.

        -       E está quase falido. É uma pena, não é?

        -       Isso é mau.

        -       Ruth Stamm tenta ajudá-lo e talvez isso faça com que ele se sinta melhor. Pobre tipo. Sabe que até teve de vender a cabana? Timmy alguma vez lhe falou nela?

        De facto, Timmy falara-me numa pequena cabana rústica à beira de um lago, que o pai mandara construir e onde ele e George costumavam ir muitas vezes pescar, mas a verdade é que, até então, não voltara a lembrar-me disso.

        -       Sim, ele mencionou a existência de uma pequena cabana.

        -       Ouvi falar nela depois de vir para aqui e pareceu-me um bom sítio, por isso fui lá com a minha pá. Nada, Tal, cavei quase toda a margem do lago e abri mais de cem buracos. Vê como sou simpático para si? É mais um sítio onde já se sabe que não está. George deixou-me utilizá-la enquanto a não vendeu. é um sítio agradável, você devia gostar de lá estar, mas não há lá nada.

        -       Agradecido pela informação.

        -       Não o perco de vista, Tal. Estou interessado nos seus progressos. Manter-me-ei em contacto.

        -       Faça isso.

        -       Blackman Street fica na zona leste de Delaware e começa a três quarteirões de distÂncia daqui. Butternut deve estar a uns catorze quarteirões, não é difícil de descobrir.

        -       Obrigado.

Voltei-lhe as costas e dirigi-me para o carro. Encontrei Butternut sem dificuldades, avistei a casinha e e estacionei o carro em frente da porta.

        Quando atravessei o passeio para tocar à campainha acenderam-se luzes dentro de casa e uma mulher abriu a porta, com uma criança ao colo. A luz iluminava-a pelas costas.

        -       Mistress Rorick?

        -       Sou eu própria - disse com uma voz suave, agradável e afectuosa.

        -       Sei que em solteira se chamava Cindy Kirschner e que foi colega de liceu de Timmy Warden, que morreu num campo de prisioneiros, na Coreia.

        Ela hesitou uns momentos e depois disse:

        -       Quer entrar um minuto?

        Quando entrei vi-a melhor: os dentes tinham sido arranjados e o rosto parecia agora mais cheio. Era ainda uma mulher descolorida, com óculos de grossas lentes, mas havia nela um orgulho, uma firmeza, que faltavam à rapariga da fotografia. Uma outra criança, sentada num triciclo, olhou-me com curiosidade, e as duas pareciam-se muito com ela. Mrs. Rorick não me convidou a sentar.

        -       Conhecia bem Timmy, Mistress Rorick?

        -       Creio que ele nunca soube que eu existia.

        -       No campo, antes de morrer, ele falou numa Cindy. Poderia ser a senhora?

        -       Duvido disso.

        Senti-me confuso.

        -       Quando falei nele disse-me que entrasse. Não percebo...

        Ela sorriu.

        -       Creio que vou ter de lhe explicar. Tive uma paixão terrível por ele, durante anos e anos, foi uma coisa patética. Sempre que estávamos na mesma sala, eu olhava-o durante todo o tempo, escrevia-lhe cartas que

depois não lhe mandava, enviava-lhe cartões, que não assinava, na Páscoa, no Natal, no Dia de São Valentim e no seu aniversário. Sabia quando fazia anos porque uma vez uma rapariga que eu conhecia foi convidada para uma festa em casa de Timmy. Foi realmente horrível, passei uns tempos extremamente infelizes. Agora parece-me engraçado, mas na altura não lhe achei piada nenhuma. Começou na sexta ou sétima classe, ele estava dois anos mais adiantado, e durou até ao fim do curso secundário. Ele costumava usar um gorro vermelho de malha, no Inverno, de modo que roubei-o do vestiário e dormi com ele debaixo da almofada durante meses e meses. Não é ridículo?

        Cindy Rorick era uma pessoa muito simpática. Sorri-lhe.

        -       Mas ultrapassou isso - observei.

        -       Ah, sim, consegui e depois conheci Pat. Tenho pena do que sucedeu a Timmy, foi uma coisa terrível. Não, se ele mencionou alguma Cindy não se referia a mim. Talvez me conhecesse de vista, mas certamente que desconhecia o seu nome.

        -       Poderia ser alguma outra Cindy?

        -       Devia ser alguém que eu conhecesse. Havia uma rapariga chamada Cindy Waskowitz, mas não creio que fosse ela. Morreu.

        -       Não imagina quem possa ser?

        Ela franziu a testa e abanou lentamente a cabeça.

        -       não. Todavia estou com a impressão de que há ainda qualquer coisa que poderia acrescentar acerca do assunto, algo que vi ou ouvi há muito tempo. Mas não sei, não me lembro, é uma coisa vaga. Não, agora não o posso ajudar.

        -       Mas o nome Cindy significa alguma coisa?

        -       Durante um momento pensei que sim, mas confesso que não sei o que é. Lamento.

        -       Se se lembrar poderá entrar em contacto comigo?

Ela sorriu abertamente.

        -       Ainda não me disse quem era!

        -       Desculpe. O meu nome é Howard, Tal Howard, e estou no Sunset Motel. Pode deixar lá qualquer recado para mim.

        -       Porque está interessado em encontrar essa Cindy?

        Podia pelo menos ser coerente.

        -       Estou a escrever um livro. Quero reunir todas as informações disponíveis sobre Timmy.

        -       Ponha no livro que ele era bondoso. Escreva isso.

        -       De que maneira, Mistress Rorick?

        Ela mexeu-se, pouco à vontade.

        -       Eu tinha uns horríveis dentes saídos e os meus pais não podiam mandá-los arranjar. Um dia, frequentava eu a John L. Davis Scool, para onde Timmy fora também antes de construírem a nova escola secundária, quando um rapaz apareceu com uns dentes postiços que saíam da boca, tal como os meus, e começou a fazer caretas para mim. Eu tentava não chorar enquanto a maioria dos rapazes e raparigas riam a bandeiras despregadas. Então Timmy foi junto do rapaz, tirou-lhe os dentes, deitou-os ao chão e esmagou-os. Nunca mais esqueci isso. Depois, no ano em que estava a acabar o curso da escola secundária arranjei trabalho e juntei dinheiro, mas já era tarde para corrigir os meus dentes e tive de os tirar e pôr outros postiços. Queria casar e ter filhos e com aqueles dentes ninguém olharia sequer para mim. - Endireitou um pouco os ombros. - Creio que resultou - concluiu.

        -       Creio que sim.

        -       Por isso ponha isso no livro. Ficará lá bem.

        -       Fá-lo-ei, Mistress Rorick.

        -       E se me conseguir recordar de alguma coisa telefono-lhe, Mister Howard.

        Agradeci-lhe, saí e fui até ao centro da cidade, pensando outra vez em Fitz. Ruth tinha razão quando dizia que o tipo lhe metia medo. Percebia-se que ele não experimentava restrições do género das que qualquer pessoa normalmente possa ter. Provara no campo que não dava a mínima importÂncia àquilo que os outros pudessem pensar a seu respeito, pois só se importava consigo próprio de uma maneira que fazia lembrar uma psicose. Sentiamo-nos incapazes de negociar fosse o que fosse com ele, nem era possível fazer-lhe qualquer género de pedido. Nada o poderia assustar e seria impossível apelar para a sua compreensão de qualquer raciocínio... era tão primitivo e funcional como um machado. Também as suas reacções se tornavam imprevisíveis, pois a sua lógica não seguia os padrões normais, e, além disso, possuía uma espantosa força física.

        No acampamento eu vira algumas pequenas amostras dessa força, mas uma houve que deixou todos aqueles que a presenciaram a falar nela durante muito tempo, e até os próprios guardas do campo passaram a tratar Fitz com um evidente respeito crivado de perplexidade. Um dia um dos camiões com abastecimentos ficou atolado dentro do campo, com as rodas da retaguarda enterradas na lama e, depois de terem quebrado a corrente de um reboque tentanto desatolá-lo, reuniram um grupo de prisioneiros para o descarregar. Os caixotes tinham obviamente sido levados para ali com um guindaste, mas, apesar disso, conseguimos descarregar todos, excepto um, enorme, cujo conteúdo ignorávamos. Tentámos então colocar uma espécie de oleado debaixo dele para o puxarmos, mas não lográmos incliná-lo. Os guardas gritavam ordens incompreensíveis e creio que Fitz perdeu a paciência: saltou para o camião, encostou os ombros ao caixote, e, com os músculos tensos e salientes n

a garganta, soergueu-o e meteu os dedos por baixo, levantando-o o suficiente para nós colocarmos o oleado. Em seguida largou-o e saltou do camião, pálido e a suar fortemente. Quando conseguimos puxar o caixote para a beira do camião, foi preciso mais de meia dúzia de homens para o colocar no chão. Nessa altura um dos guardas do campo, um tipo fortíssimo, tentou fazer o mesmo, mas apenas conseguiu levantar o caixote algumas polegadas, muito menos do que Fitz. Ficou humilhado e vingou-se nos prisioneiros, mas não em Fitz, a ele deixou-o em paz.

        De regresso à cidade decidi ir tomar uma bebida à estalagem e comer uma refeição solitária, pensando no que devia fazer a seguir, mas fui apanhado a dez passos do meu carro.

 

        Eram dois. Um deles, magro e de cabelo claro, vestia o uniforme da Polícia, o outro, corpulento, de meia-idade, tinha um rosto corado e enrugado e envergava um fato cinzento.

        -       Chama-se Howard?

        -       Sim, chamo.

        -       Policia. Acompanhe-nos.

        -       Para quê?

        -       O tenente quer falar-lhe.

        Fizeram-me entrar num carro da Polícia e percorremos oito quarteirões até entrarmos num pátio murado, onde se encontravam estacionados outros carros. Conduziram-me por uma porta, aliás, uma das muitas existentes no pátio, e subimos depois umas escadas de madeira, de degraus gastos, até ao segundo andar. O edifício velho cheirava a pó, a urina e ácido fénico. Ultrapassámos então várias portas abertas, uma das quais dava para uma grande sala iluminada por luz fluorescente, onde existiam grandes ficheiros de aço cinzento e onde alguns homens jogavam cartas. Ouvia-se também o som roufenho e metálico de uma voz a falar por um qualquer sistema de comunicação.

Finalmente, chegámos a um pequeno gabinete onde um homem magro e calvo se encontrava sentado a uma secretária de frente para a porta. O seu rosto jovem, de um tom moreno, indicava ser de origem indiana e as sobrancelhas escuras e hirsutas emprestavam-lhe um ar severo. Num pequeno letreiro de madeira, colocado sobre a secretária, podia ler-se Tenente Stephen D. Prine. No gabinete, de paredes de estuque, eram as fendas que sobressaíam. Livros e papéis em desordem enchiam um pequeno armário com portas de vidro. Um homem mais baixo, com cabelos brancos e rosto corado, permanecia sentado um pouco atrás de Prine, em cima do radiador colocado junto da única janela.

        Um dos homens que me trouxera deu-me então um empurrão desnecessário, fazendo-me bater com um joelho na secretária... razão por que quase me estatelei no chão. Prine fitou-me com uma frieza total.

        -       Este é o tal Howard - disse um dos homens que me acompanhava.

        -       Está bem.

        A porta fechou-se atrás de mim. Olhei e vi que o polícia saira, enquanto o outro ficava encostado à porta fechada.

        -       Esvazie os bolsos e coloque tudo sobre a secretária - ordenou Prine. - Tudo.

        -Mas...

        -       Tire tudo dos bolsos.

        Não havia qualquer tom de ameaça nas palavras dele, era apenas frio, aborrecido, imperativo.

        Pus tudo em cima da secretária. Carteira, trocos, lápis e caneta, bloco-notas, cigarros, isqueiro, canivete, carteira com cheques de viagem. Prine estendeu as suas grandes mãos e separou os objectos em dois pequenos montes; a agenda, a carteira e os cheques foram puxados para ele.

        -       Guarde essas coisas.

-       Posso saber qual a razão...

-       Cale-se.

        Mantive-me num silêncio desconfortável enquanto ele me examinava a carteira. Vi-o observar cuidadosamente todos os cartões e pedaços de papel, a fotografia de Charlotte, o meu cartão militar na disponibilidade e os cheques de viagem.

-       Agora responda a algumas perguntas. - Abriu uma das gavetas da secretária, ligou um gravador e disse: - Vinte de Abril, dezanove e dez, interrogatório feito pelo tenente Prine ao suspeito apanhado por Hills e Brubaker nas proximidades da Hillston Inn. Qual e' o seu nome completo?

-       Talbert Owen Howard.

-       Fale um pouco mais alto. Idade e local de nascimento?

-       Vinte e nove. Bakersfield, Califórnia.

-       Endereço na terra natal.

-       Actualmente nenhum.

-       Qual foi o seu último endereço?

-       Norwald Road, dezoito, San Diego.

-       Está empregado?

-       Não.

-       Qual foi o seu último emprego e quando o deixou?

-       Estive a trabalhar até há duas semanas e meia para a Companhia de Seguros Guaranty. Fui despedido.

-       Por que razão?

-       Não dava rendimento.

-       Quanto tempo lá trabalhou?

-       Quatro anos ao todo. Três anos e meio antes de ser mobilizado para a guerra da Coreia e seis meses após o meu regresso.

-       É ou foi casado?

-       Não.

-       Tem os pais vivos?

-       Não.

-       Irmãos ou irmãs?

        -       Uma irmã mais velha que vive em Perth, na Austrália. Fez parte das Wave e casou com um australiano durante a guerra.

        -       Tem cadastro criminal?

        ..... - não.

        -       Parece não ter a certeza.

        - Não sei se lhe hei-de chamar cadastro criminal. Foi num desses distúrbios estudantis. Perturbação da paz pública e resistência à autoridade.

        -       Foi preso, tiraram-lhe as impressões digitais e declararam-no culpado?

        -       Sim, paguei uma multa e estive preso três dias.

        -       Então tem registo criminal. Há quanto tempo está em Hillston?

        -       Cheguei aqui na quarta-feira à noite. Há dois dias.

        -       Qual é a sua direcção actual?

        -       O Sunset Motel.

        -       O carro pertence-lhe?

        -       Sim.

        - Tem aqui um pouco mais de mil dólares. Onde os arranjou?

        -       Ganhei-os e poupei-os. Estou a ficar um pouco aborrecido e irritado com tudo isto.

        -       Que motivo o trouxe a Hillston?

        -       Preciso de ter um motivo?

        -       Sim. Precisa.

        -       Conheci Timmy Warden no campo de prisioneiros na Coreia, além de outros que também não voltaram, e vou escrever um livro sobre eles. Tem aí as minhas notas.

        -       Por que motivo não disse isso a George Warden?

        -       Não sabia como ele aceitaria a ideia.

        -       E porque não o contou também a Fitzmartin?

        -       Não há motivo para lhe revelar o que faço.

        -       Mas foi vê-lo. Esteve no mesmo campo que ele e Timmy Warden e seria natural dizer-lhe.

-       Não quero saber se seria ou não.

        - O facto de vir para a cidade com essa história de escrever um livro dá-lhe pretexto para fazer averiguações, não é?

        -       Creio que sim.

        -       O que já escreveu?

        -       Não escrevi coisa alguma.

        -       Encontra-se familiarizado com as leis do estado e com as regras locais relativas aos investigadores privados?

        Olhei-o sem compreender.

        -       Não.

        -       Tem licença de algum estado?

        -       Não. Não percebo o que...

        -       Mesmo que a possuísse seria, de qualquer modo, necessário saber se é válida neste estado, para o que bastaria fazer-nos uma visita de cortesia, informar-nos da sua presença aqui e dar-nos o nome de quem lhe estivesse a pagar

        -       Não sei de que está a falar.

        -       Conhece uma mulher Rose Fulton?

        -       Não, nunca ouvi falar dela.

        -       Fomos avisados, há cerca de um mês, de que Rose Fulton contratara um investigador particular para vir a esta cidade sob disfarce, e temos andado à procura desse homem. Seria o terceiro que ela enviaria para aqui, mas os dois primeiros fizeram um trabalho mal feito. De resto nada tinham que procurar entre nós. Rose Fulton é uma mulher persistente e mal orientada, pois o caso, se é que houve algum, foi totalmente investigado por este departamento. Faz parte do nosso trabalho impedir que os cidadãos de Hillston sejam incomodados e perseguidos por pessoas que nada têm a ver com a nossa terra. Compreende?

        -       Não estou a perceber de que está a falar. De facto, não.

Prine fitou-me demoradamente. Depois disse:

        -       Fim do interrogatório, presenciado por Brubaker e Sparkman. Cópias para arquivar. Prine.

        Desligou o gravador, fechou a gaveta da secretária, recostou-se na cadeira e bocejou. Em seguida empurrou a carteira, os cheques e o bloco-notas para mim.

        -       é só isto, Howard. Estamos fartos de tipos que vêm aqui meter o nariz onde não são chamados, o que implicitamente pode dar a ideia de que não fizemos o nosso trabalho. Essa Rose Fulton é casada com o tipo que fugiu com Eloise Warden, a mulher de George.

        O nome de Fulton era-me familiar, mas eu não sabia porquê.

        -       O caso deu-se há aproximadamente dois anos. O primeiro inquérito foi da iniciativa da firma para a qual ele trabalhava e fizemos investigações a fundo. Fulton esteve na cidade durante três dias, alojando-se na Hillston Inn, era sempre lá que ficava quando vinha à cidade. No último dia que aqui passou, sexta-feira, jantou no hotel com Eloise Warden, esta aguardou depois no vesti'bulo enquanto ele foi buscar as malas ao quarto, meteram-se ambos no carro e dirigiram-se para a casa dos Warden. Eloise entrou e Fulton esperou-a no carro, Isto passou-se na noite do dia onze de Abril e um vizinho, que assistiu a tudo enquanto o carro esteve estacionado, viu Eloise sair de casa com uma grande mala. George Warden não nos contactou, percebeu o que se passara quando chegou a casa e viu o que a mulher tinha levado. Tratou-se de uma situação bem clara, são casos que sucedem todos os dias, mas Rose Fulton não quer convencer-se de que o seu querido marido des

apareceu com outra mulher. Em consequência, continua a mandar para aqui esses investigadores e você podia ser o terceiro. Creio que não, embora não possua provas, e seja apenas um palpite. Ela está convencida de que algo aconteceu aqui, ao marido, mas perdi a paciência, por isso desta vez estamos a ser mais duros. Se acaso eu estiver enganado e você foi contratado por essa maluca, é melhor pôr-se a andar daqui, amigo. Temos uma pequena força policial na terra e sabemos fazer o nosso trabalho.

        O homem corpulento, vestido de cinzento, afastou-se da porta, para me deixar sair, mas não se ofereceu para me conduzir ao local donde me tinham trazido, pelo que decidi ir a pé. Contudo, o passeio não foi suficientemente longo e quando cheguei à Hillston Inn ainda ia furioso com Prine e companhia. Pude admitir, embora de má vontade, que talvez ele tivesse algum motivo para proceder daquela maneira, mas também não gostava de ser tratado assim, e irritava-me ter-lhes confessado que não possuía emprego nem residência fixa. Além disso dava-me a impressão de que não fora legal interrogarem-me como o fizeram.

        Fui tomar uma bebida no bar situado na extremidade da estalagem e enquanto bebia ia pensando como me teriam descoberto tão depressa. Calculei que fosse devido ao registo do motel, pois tivera de escrever a marca do meu carro e o número da matrícula. Também sabiam com quem eu falara e o que fora dito - a cidade era pequena e eles estavam empenhados em saber tudo o que nela se passava.

        Preparava-me para pedir uma segunda bebida quando reparei num homem corpulento que aparecera na outra extremidade do bar, o qual me pareceu o mesmo que vira passar na estrada, no sedan azul, embora não pudesse ter a certeza. Esquecera-me dele e do efeito que causara em Fitzmartin. O homem apercebeu-se do meu interesse, olhou-me demoradamente e voltou-se depois para a bebida que o empregado do bar colocou na sua frente. Tive um pressentimento instintivo da existência de perigo - Fitz queria dizer perigo numa medida conhecida, mas desconhecia aquele homem e o que ele significava, nem queria tentar perguntar-lhe. O homem ingeriu rapidamente a bebida e saiu. Olhei para o meu Copo e vi-me a mim próprio morto, estendido, frio. Tratava-se de uma fantasia que me atormentara no campo de prisioneiros e não só Pensamos na nossa pró pria morte, tentamos imaginar como será deixar de existir, abruptamente, para sempre , pensamento gélido que se torna difícil de afastar

.

        Senti-me deprimido durante o resto da noite. Pensava em Ruth e no novo ênfase que ela dera à minha vida, mas isso de pouco serviu para aliviar o efeito que produziam em mim a escuridão e o medo. A minha missão em Hillston parecia-me sem significado, era como estar a fugir de mim próprio. Não havia POssibilidade de descobrir o dinheiro e, mesmo que houvesse e eu o encontrasse, não podia imaginar que isso alterasse fosse o que fosse. De certo modo, eu tornara-me um desajus tado no meu mundo, na minha época. Fora tirado de uma confortável rotina e agora parecia não haver qualquer lugar onde me pudesse adaptar. Além de Charlotte e, com grande optimismo, Ruth , não conhecia nin guém que se importasse de que eu estivesse vivo ou morto.

        Depois de apagar aluz, fiquei mergulhado na escuridão e rendi-me à autopiedade. Pensava no que seria de mim e daí a quanto tempo morreria, imaginava em quantas mais camas solitárias dormiria ainda e onde. Por fim, adormeci.

 

        O sábado amanheceu terrível, com um vento húmido, nuvens baixas e escuras, o que obrigou as lojas a acender as luzes. Nada podia saber de Cynthia Cooper até segunda-feira, altura em que o edifício da administração voltaria a estar aberto. As poucas pistas que tivera haviam acabado por se esvair em fumo e não sabia que iria fazer durante todo o dia.

        Depois de ter comprado lÂminas de barbear e pasta de dentes, andei às voltas com o carro até enfrentar o facto de estar a tentar arranjar uma boa desculpa para ir ver Ruth Stamm. Resolvi por fim ir ter com ela, mesmo sem qualquer desculpa. Fui encontrá-la na recepção da clínica veterinária e quando entrei sorriu-me afectuosamente. Uma mulher estava sentada com um pequeno cão ao colo, esperando a sua vez, assim como um rapaz, com um gato siamês preso por uma trela. O gato, arrogante e emproado, parecia ignorar deliberadamente o pobre cão, que tremia.

        Sorrindo, Ruth perguntou-me em voz baixa:

        -       Mais problemas?

        -       Não, apenas uma depressão geral.

        -       Enganou-se no hospital.

       -       Mas eu estou interessado é no pessoal.

        -       Precisa de algum género de tratamento?

        -       Sim, acho que sim.

        Ruth olhou para o relógio.

        -       Volte ao meio-dia, ao sábado fechamos a essa hora. Almoçará connosco e combinaremos fazer qualquer coisa.

        Quando saí da clínica o dia não me parecia tão mau. Ao meio-dia voltei, acompanhei-a a casa e almoçámos os três na grande cozinha. Buck Stamm era perito em contar histórias e aparentemente haviam-lhe sucedido todos os percalços que podem acontecer a um veterinário. Falou mal da sua profissão e confessou-se estúpido por se ter dedicado a ela. Depois de fumar um charuto, saiu para ir dar consultas a várias quintas dos arredores e eu fui ajudar Ruth a lavar os poucos pratos.

        -       Que diz a darmos uma volta pelos arredores? sugeriu ela. - Há Sítios muito bonitos.

        -       Depois podemos jantar e ir em seguida ao cinema, está bem?

        -       Está. Afinal de contas é sábado.

        Ruth foi mudar de roupa e apareceu com umas calças e uma camisola amarela por baixo de um casaco de tweed. Fomos no meu carro e ela ia-me dando indicações. Circulámos por estreitas estradas secundárias, apreciando a beleza da região, com colinas suaves e rochedos protuberantes que irrompiam aqui e ali no meio dos montes. Se na cidade o dia estava mau, no campo não era melhor, mas a brisa húmida parecia trazer um cheiro a Primavera e as folhas novas exibiam um tom verde-pálido. Ruth, um pouco inclinada para a frente, com um joelho encostado ao porta-luvas, apontava para as quintas, falava-me na história das pessoas que lá viviam e da região.

        Por sugestão dela, entrei por uma estrada secundária que ia dar a um sítio chamado Highland Lake, e, ao chegarmos a um cruzamento, voltámos à direita e enveeredamos por uma estrada de terra batida, lamacenta e escorregadia, que percorremos durante uma milha, até Vermos um letreiro que dizia B. STAMM. Continuei cautelosamente por um caminho cheio de ervas que seguia através dos bosques, até chegarmos junto de uma pequena cabana com uma larga varanda voltada para o lago, o qual devia ter cerca de um quilómetro de comprimento por meio de largura, donde divisei outras cabanas, no meio das árvores, ao longo da margem do lago. Saímos do carro, fomos até à varanda, sentámo-nos no muro que a cercava, fumámos e conversámos, enquanto víamos o vento enrugar a superfície do lago.

        - Agora deslocamo-nos aqui muito menos vezes do que acontecia quando a minha mãe era viva. O meu pai fala em vender, mas não creio que o faça, porque gosta de vir para aqui caçar, no Outono. Fica apenas a dezoito milhas da cidade, aproveitando o caminho mais curto. é bastante tosca, Tal, mas creio ser um bom sitio para escrever.

        Senti outra vez uma picada forte e rápida, de remorso.

        O entusiasmo dela aumentou.

        -       Ninguém está a utilizá-la. Não existe electricidade, mas temos muitos candeeiros de petróleo e uma lanterna Coleman. Há muita lenha no alpendre e um pequeno fogão de gás. Os beliches são confortáveis e mantas não faltam. Não teria de pagar renda, sei que o meu pai não se importaria nem um bocadinho.

        -       Obrigado, Ruth, mas realmente não poderia...

        -       Porque não? Fica apenas a meia hora da cidade.

        -       Não creio que venha a estar aqui o tempo suficiente para merecer a pena mudar-me.

        -       Bem, então - disse ela -, está bem. - Julguei perceber um certo desapontamento na voz dela. - De qualquer modo, gostava que a visse.

Ruth foi buscar a chave, que se encontrava escondida num dos suportes do telhado perto da porta, e entrámos. A cabana tinha pouco mobiliário, mas era confortável, vendo-se a um canto várias canas de pesca e uma enorme lareira de pedra.

        -       é agradável - murmurei.

        -       Sempre gostei disto e ficarei verdadeiramente zangada se o meu pai resolver vendê-la. Quando vim aqui pela primeira vez ainda tiveram de trazer a minha cadeira alta para eu comer. Foi neste sítio que aprendi a andar e até parti uma clavícula quando caí de um desses beliches de cima.

        Ruth sorria-me, estávamos de pé, muito perto um do outro e havia algo de doce e de melancólico no sorriSO dela. Fez-se um demorado silêncio na sala, ouviam-se os pássaros a cantar lá fora e o som distante do motor de um barco, no lago. Os nossos olhos fitaram-se uma vez mais e o sorriso desapareceu-lhe dos lábios, que tomaram uma expressão ainda mais suave. As pálpebras de Ruth pareciam agora pesadas, quase sonolentas, demos um pequeno passo na direcção um do outro e ela veio calma, graciosamente, para os meus braços, como se fosse uma cena previamente ensaiada. O beijo que trocámos foi suave ao princípio e depois ávido e intenso. Quando ela se encostou a mim, senti a rijeza dos seus seios, enquanto os seus braços me enlaçavam o pescoço.

        Cambaleámos, como se estivéssemos entontecidos, eu dei um passo para o lado, a fim de recuperar o equilíbrio e separámo-nos, tímidos e desajeitados como duas crianças,

        -       Tal - disse Ruth. - Tal, eu... - e a voz dela era rouca e pouco firme.

        -       Eu sei - respondi. - Eu sei.

        Ela virou-se repentinamente e encaminhou-se para a janela que dava para o lago. Segui-a e pousei-lhe as mãos nos ombros com força, envergonhado por tudo o que estava a acontecer, nomeadamente pelas minhas mentiras e receoso do que poderia suceder quando ela as descobrisse.

Apercebi-me de uma nova tensão no corpo dela, quando se inclinou para a janela e espreitou para fora mais atentamente.

        - Queé?

        -       Veja! Não está um animal qualquer, ali, mesmo

em frente? Era a casa dos Warden, antes de George a

ter vendido, aquela que tem o telhado verde. Repare à

direita da varanda.

                Olhei e vi algo de corpulento, parcialmente oculto pelos argustos - talvez pudesse ser um urso - Ruth afastou-se e voltou daí a pouco com um binóculo. Observou e disse:

        -       é um homem. Veja!

        Assestei o binóculo e vi-o - um homem alto, quase careca, com um fato castanho, cujo rosto largo exibia uma expressão dura. Fora o mesmo que passara por mim e por Fitz no sedan azul e que eu vira depois no bar da estalagem. Sacudiu as calças, estivera por certo ajoelhado, e em seguida esfregou as mãos. Depois inclinou-se e apanhou o que parecia ser um pedaço de madeira ou de uma cana de pesca.

        -       Deixe-me ver - pediu Ruth tirando-me o binóculo. - Eu conheço as pessoas que compraram a casa a George. Não, não é aquele homem.

        -       Talvez esteja lá a fazer qualquer trabalho.

        -       Não creio, conheço a maior parte das pessoas daqui. Olhe, agora entrou na varanda e está a tentar abrir a porta. Eh, partiu o vidro da janela e procura entrar. - Voltou-se para mim com os olhos muito abertos. - é um ladrão, Tal. é melhor irmos lá.

        -       Como queira, mas pode estar armado.

        -       Espere um minuto.

        Correu para o quarto e voltou com uma pistola automática de cano comprido, de calibre vinte e dois, e uma caixa de munições. Ruth carregou-a com rapidez e perícia e entregou-ma.

- Você causará mais impressão, se a empunhar, do que eu. Vamos.

        Como não havia qualquer estrada que contornasse o lago, o sedan azul-escuro encontrava-se estacionado à entrada do atalho que ia dar à antiga cabana dos Warden. Parei o meu carro perto e percorremos o resto do caminho a pé. Fiz então sinal a Ruth para que segui-se atrás de mim e pouco depois vimos o homem a sair da casa. Ele também nos viu, aproximou-se e os seus olhos fixaram a arma e desviaram-se para Ruth.

        -       Como entrou nesta propriedade? - perguntou ela zangada.

        -       Calma, minha senhora. Afaste essa arma, amigo.

        -       Responda à pergunta - disse eu, mantendo a pis tola apontada para ele, mas o homem mostrava-se tão pouco impressionado que eu me sentia ridículo com a arma na mão.

        -       Sou um investigador privado e tenho a devida licença, amigo. Não dispare enquanto eu tiro a carteira, eu mostro-lhe.

        Tirou a carteira do bolso, retirou de lá um cartão plastificado e atirou-o na nossa direcção. Ruth apanhou-o. Tinha a fotografia e as impressões digitais dele e uma declaração com duas assinaturas onde se dizia que era um investigador particular com licença para exercer a profissão, passada pelo estado do Jlinóis. Referia ainda que se chamava Milton D. Grassman, tinha quarenta e um anos, pesava cem quilos e media um metro e noventa.

        -       O que anda a investigar? - perguntou Ruth.

        O homem sorriu.

        -       Ando apenas a investigar. E quem é a senhora? Talvez também esteja a invadir a propriedade alheia.

        O sorriso dele era meio trocista, meio desdenhoso.

        -       Trabalha para Rose Fulton, não é assim? - perguntei eu.

O sorriso desapareceu-lhe imediatamente dos lábios e ficou imóvel, sem dar sequer a impressão de respirar. pensei que um cérebro muito capaz trabalhava activamente por detrás daquela aparência impassível.

        -       Receio não conhecer esse nome - respondeu por fim, mas levara demasiado tempo. - Quem é você, amigo?

        -       Vamos informar a Polícia disto - declarou Ruth.

        -       Vá, minha senhora, seja boa cidadã. Informe-os.

        -       Venha, Tal - disse Ruth.

                Dirigimo-nos para o carro e, quando entrámos, olhei para trás. Vi-o parado junto do seu automóvel, a observar-nos, e não tirou os olhos de nós enquanto acendia um cigarro e atirava o fósforo para o chão.

Ruth mantinha-se estranhamente silenciosa e quando estávamos a chegar à sua propriedade perguntei:

 

- Que se passa?

        -       Não sei. Ao princípio pensei que estava a mentir-me,  depois acreditei em si, mas agora não sei.

-Como é iSSO?

        -       Deve saber o que eu estou a pensar. Você falou numa Rose Fulton ao investigador e ele ficou chocado, qualquer pessoa o teria percebido. Eloise Warden fugiu com um homem chamado Fulton. Que o levou a fazer essa pergunta? - Voltou-se para me fitar. - Que está você a fazer em Hillston, Tal? Se é esse, de facto, o seu nome.

        -       Já lhe disse o que estou a fazer.

        -       Por que motivo fez aquela pergunta?

        -       A Polícia apanhou-me a noite passada. Tinham sabido que Rose Fulton contratara outro detective particular para vir aqui investigar, o terceiro, e julgaram ser eu esse homem. Interrogaram-me e deixaram-me vir embora. Por isso, calculei que fosse este.

        Saimos do carro, mas Ruth continuava a fitar-me com estranheza.

-       Tal, se não está aqui para escrever sobre Timmy, acho que já mo devia ter contado antes. É uma ideia interessante e não creio que seja algo com que se deva brincar.

- Achei melhor não o dizer.

        -       Isso não serve, Tal.

        -       Bem sei.

        -       é algo que não possa revelar-me?

        Ouça, Ruth. Eu... existe outra razão para eu ter vindo para aqui, de facto menti-lhe, mas não quero dizer-lhe qual é. Prefiro que não saiba.

-       Mas é algo relacionado com Timmy?

- Exacto.

-       Ele morreu, não morreu?

-       Morreu.

        Mas como posso saber se está a mentir ou não?

        -       Creio que não pode - repliquei desanimadamente. Ruth fechou a casa e, no caminho de regresso, indicou-me as voltas que havia de dar, mas não disse nem mais uma palavra. Quando chegámos, abriu rapidamente a porta do carro e preparou-se para sair.

        -       Espere um minuto, Ruth.

        Ela já tinha o pé direito no chão. Sentou-se à beira do assento e virou-se para mim.

        -       O que é?

        -       Lamento muito tudo isto.

        -       Fez-me sentir uma tola. Falei muito consigo, acreditei em si e contei-lhe coisas que nunca disse a ninguém, apenas para o ajudar, quando afinal não tencionava escrever a respeito de Timmy.

        -       Já lhe disse que lamento muito.

        -       Isso não serve de nada, mas vou dar-lhe pelo menos o benefício da dúvida. Olhe-me bem de frente e diga-me que não tem motivo para se envergonhar das razões que o trouxeram aqui.

        Fitei os olhos cinzentos de Ruth e, como acontecera com Grassman há pouco, hesitei demasiado. Ela atirou com a porta do carro, entrou em casa sem olhar para trás e, a partir daí, deixou de ser agradável para mim pensar nesse sábado à noite. Sem saber como, agindo impulsivamente e de um modo desajeitado, caíra numa armadilha que eu próprio arranjara, e sentia-me como se tivesse perdido muito mais do que um simples encontro de sábado à noite. Ela não era uma rapariga a quem se pudesse mentir, a minha pequena história de cobertura parecia-me suja e descabida. Dirigi-me para a cidade e comecei a beber na Hillston Inn.

        Antes de sair da estalagem troquei dois cheques de viagem e, em seguida, passei por muitos bares. Lembro-me de ter visto o empregado de bar anão, houve uma mulher para quem comprei bebidas e a determinada altura encontrei-me nuns lavabos de homens na companhia de três, e todos cantávamos. A porta estava fechada à chave e alguém bateu com força, mas estávam a cantar uma bela música. Depois acabei por vomitar para cima de uma sebe e, por mais que procurasse, não conseguia encontrar o carro. Andei de um lado para o outro, durante muito tempo, até o descobrir, já bastante tarde e, ao conduzir até ao motel, precisei de manter um dos olhos fechados, de outro modo, o traço central da estrada persistia em se me apresentar em duplicado.

        Estacionei o carro em frente do meu quarto do motel

e fui directamente para a cama, sem sequer me lavar.

o domingo acabou por ser igual ao sábado, um dia chuvoso e de bebedeira.

        Eram onze horas quando me levantei, na segunda-feira, e meia dúzia de copos de água levaram a que eu me sentisse limpo por dentro, mas não me tiraram a sede, enquanto parecia que me martelavam surdamente a cabeça, num ritmo constante. Fiz a barba com lentidão, dolorosamente, e o duche acabou por proporcionar-me umas leves melhoras. Decidi finalmente abalar, era altura de me ir embora dali, se bem que não soubesse qual direcção tomar. Qualquer Sítio me servia, aceitaria qualquer trabalho, mesmo manual, demasiado atordoado para pensar.

        Guardei as minhas coisas nas duas malas, deixei-as no quarto e saí para abrir o porta-bagagens. Todos os carros que ali se encontravam na véspera tinham partido. Um grande cão estava parado junto do meu carro, a espreitar lá para dentro, e a mulher magra, fria e com olhos de pássaro tirava toalhas e lençóis de um dos outros quartos e atirava-os para dentro de um cesto com rodas. O cão afastou-se quando eu me aproximei e ficou parado a uns cinco metros de distÂncia, a uivar. Fingi atirar-lhe uma pedra e o animal fugiu. Não sabia o que poderia atraí-lo no meu carro.

        Sucedeu olhar de relance para o interior do automóvel, quando me preparava para abrir o porta-bagagens, e então vi um corpo enorme estendido no fundo do carro, atrás, com as pernas dobradas e a cabeça inclinada para o lado. Era Milton Grassman e vestia o mesmo fato castanho-escuro, ainda com vestígios de lama seca. Da testa aberta, na área onde devia começar o cabelo, se ainda o tivesse, escorria uma espécie de geleia vermelha. Nenhum homem poderia ter vivido mais que uns momentos com uma ferida daquelas.

        Percebi que a mulher me chamava com a sua voz aguda.

        Voltei-me e perguntei:

        -       O que é?

        -       Vai ficar aqui mais algum dia?

        -       Sim, sim, fico mais um dia.

A mulher entrou noutro quarto, e logo após seguir-se-ia o meu. Corri para lá, peguei numa das malas e meti-a dentro do armário. Depois agarrei na outra, abri-a, fui colocar as minhas coisas da barba na casa de banho e saí. O cão voltara de novo para junto do carro, a uivar. Afastei-me da cidade, pois não queria ser obrigado a parar num sinal de trÂnsito num sítio onde nem pudesse espreitar para dentro do carro, e então lembrei-me de um velho oleado que tinha no porta-bagagens. Parei, fui tirá-lo de lá e cobri o corpo de Grassman com ele. Tentei não olhar para o homem enquanto o tapava, mas não fui capaz de evitar ver-lhe o rosto - a flacidez da morte tirara-lhe toda a expressão.

        Conduzi sem objectivo e parei novamente na berma da estrada. Queria ser capaz de raciocinar, sentia a terrível presença do morto atrás de mim, mas o meu cérebro estava imóvel, petrificado, inútil. Não servia de nada pensar onde e como poderiam ter metido o corpo no carro, pois nem sequer me lembrava dos sítios por onde passara.

        Porque o teriam posto no meu carro? Alguém quisera ver-se livre dele, alguém pretendia desviar as atenções de si próprio. Pelo aspecto do golpe, a morte fora violenta e não premeditada, uma pancada tremenda que lhe esmagara o crÂnio, e naturalmente veio-me à ideia Fitz. Das pessoas que eu conhecia em Hillston ele era certamente o único capaz de assassinar, e tinha, com certeza, a rapidez e a força necessárias para matar daquela maneira um homem como Grassman, que, pelo que eu observara, era duro e competente.

        Mas por que razão quereria Fitz implicar-me? A resposta foi rápida e fez-me gelar: ele descobrira a verdadeira Cindy, aquela que saberia onde Timmy enterrara o dinheiro, e podia até já o ter.

        O problema imediato era livrar-me do corpo, tinha de fazê-lo num sítio onde não houvesse testemunhas, onde ninguém se lembrasse de ter visto o meu carro. Não podia ir à Polícia e dizer: "Estive aqui outro dia, estou desempregado e não tenho endereço permanente. Possuo registo criminal, segundo a vossa definição. Sucede que encontrei um corpo no meu carro, deve ter sido posto lá a noite passada. Se eu estava embriagado? Oh, se estava. Podem encontrar uma dúzia de testemunhas que dirão qual o meu estado. Foi a pior bebedeira de toda a minha vida, mesmo pior que a da noite anterior.",

        Não haveria, por certo, qualquer brilho compreensivo no olhar frio do tenente Prine.

        Um carro-patrulha da Polícia passou por mim lentamente e o agente que ia ao volante olhou-me com curiosidade. Depois parou, talvez já andassem à minha procura.

        Inclinou-se na janela do lado oposto ao meu e perguntou:

        -       Há algum problema?

        -       Nenhum. O motor estava a aquecer demasiado e parei um bocado para que arrefecesse. A estação de serviço fica longe?

        -       A cerca de uma milha, mas arrefecerá mais depressa se abrir o capot.

        -       Sim? Obrigado.

        -       E afaste-se um pouco mais da estrada.

        O polícia seguiu e eu retirei o carro da estrada e abri o capot. Admiti ainda que ele talvez ficasse desconfiado comigo e voltasse a trás para me pedir os documentos, pelo que, se calhar, seria sensato dar meia volta e afastar-me, mas resolvi arriscar-me e enfrentar essa hipótese. Em consequência, permaneci naquele local o tempo suficiente para decidir o que havia de fazer ao corpo.

        O sol do meio-dia aqueceu, e do carro já emanava um cheiro subtil, estranho, que me agoniava. Um tractor vermelho-escuro andava para trás e para diante num monte distante e a água dos esgotos borbulhava na valeta. Um camião passou por mim a grande velocidade, fazendo estremecer o carro.

        Descobri que uma bebedeira de dois dias dá ao cérebro uma sensação fantasmagórica. A memória fica abalada, os sonhos misturam-se com a realidade e comecei a pensar se não teria imaginado tudo o que acontecera. Olhei para o banco de trás: o oleado encontrava-se ali, cobrindo o corpo, embora não muito bem. Vi um tornozelo grosso com uma meia verde e um sapato castanho, bastante usado, com atacadores com um nó duplo, tal qual como a minha mãe me costumava fazer em criança, para que eu não andasse com os cordões caídos- Aquele pormenor tornava Grassman mais credível como pessoa... a pessoa que se sentara na beira de uma cama a atacar os sapatos, antes de sair e se tornar num corpo inerte, sem lhe passar pela cabeça que esses mesmos atacadores poderiam vir a ser desatados por outras mãos que agissem com frieza e competência profissionais. Voltei-me de súbito ao ouvir que se aproximava um veículo e quando a estrada ficou novamente livre

puxei o oleado para cobrir o tornozelo e o sapato, mas com esse gesto acabei por destapar-lhe a cabeça. O meu estômago teve um espasmo e eu voltei o olhar para o lado.

        Passado um bocado arranjei o oleado e saí do carro. Não queria ver outra vez o corpo, mas dei por mim a fixá-lo pela janela.

        Precisava de me livrar do cadáver fosse como fosse, mas a sua própria proximidade me impedia de pensar com clareza.

        O lago? Era capaz de lá ir, mas podia também ser visto, como Ruth vira Grassman. Seria também possivel seguir ao acaso por uma estrada secundária e deixar o corpo num local que me parecesse bom, mas acabaria por ser encontrado e identificado e a sua fotografia apareceria no jornal com a indicação do nome. Ruth vê-lo-ia e lembrar-se-ia então da estranha pergunta que eu fizera a Grassman e da resposta evasiva que ele dera. Os minutos iam passando lentamente, sem que eu soubesse o que fazer. A armadilha que Fitzmartin me preparara era bem urdida e o meu maior prazer seria poder deixar o corpo à porta dele, devolver-lhe e fazê-lo suar.

        à primeira vista a ideia parecia absurda, mas quanto mais pensava nela melhor me parecia. Seria visto a dirigir-me para a serração - se posteriormente me interrogassem diria que ia ver Fitzmartin -, falaria como ele e deixaria o corpo algures entre as pilhas de tábuas da serração.

        Não, isso não servia, nenhum homem seria tão estúpido que matasse outro e o deixasse no seu local de trabalho. No entanto, se fosse feita alguma tentativa para esconder o corpo, poderiam pensar que Fitzmartin o guardara ali temporariamente até encontrar um sítio seguro.

        Por outro lado, que pessoa se mostraria tão falha de inteligência que, depois de assassinar outra, conduzisse o corpo no seu carro até a esquadra da Polícia, afirmando que não o matara? Talvez fosse precisamente o que eu deveria fazer... até porque seria sempre a melhor reacção de um inocente.

        Sentia que as mãos, geladas e suadas, deixavam marcas húmidas no volante, enquanto tentava pensar em todas as alternativas, em todos os possíveis planos de acção. Podia voltar ao motel, recolher a bagagem, dirigir-me para oeste e tentar abandonar o corpo onde nunca pudesse ser encontrado; ou comprar uma pá e cavar uma cova no deserto; ou ainda colocar o corpo no assento a meu lado e atirar o carro contra qualquer coisa. As minhas ideias pioravam em vez de melhorarem, e a própria presença do corpo tornava tão difícil em pensar como tentar correr com água até à cintura. Não queria entrar em pÂnico, mas sabia que tinha de me livrar do corpo o mais depressa possível, e não me imaginava a ir pedir misericórdia a Prine. Grassman fora morto por qualquer razão e esconder o corpo dar-me-ia um período de espera, mas, eventualmente, o corpo poderia vir a ser relacionado comigo. Na altura em que isso sucedesse eu teria de saber por que razão fora morto e isso significaria saber por quem. Estava certo de que fora Fitz o criminoso. Mas porquê? O que o levara a matar Grassman?

        Fechei o capot, pus o carro em andamento e estava já a cerca de nove milhas da cidade quando descobri, do lado esquerdo, uma estrada que me pareceu adequada. Era de asfalto, mas encontrava-se em mau estado devido ao Inverno e à passagem dos tractores. Trepei colinas suaves e desci para vales esquecidos até chegar a uma zona densamente arborizada. Mais à frente vi uma alta chaminé de pedra, o que restava de uma casa que ardera, além de um grande celeiro meio derribado, que fazia lembrar uma enorme aranha, com as pernas a arrastarem. A estrada continuava deserta. Voltei por onde fora dantes o caminho de acesso à quinta. Pequenas árvores inclinavam-se sobre a parte da frente do carro, roçavam pelas portas e soerguiam-se após a minha passagem. Dei a volta ao que restava da casa e estacionei perto de um emaranhado de arbustos silvestres, onde não podia ser visto da estrada. O silêncio rodeava-me, apenas quebrado pelo grito súbito e rouco de um corvo.

        Abri a porta de trás do carro e forcei-me a agarrar os grossos tornozelos, mas como a rigidez da morte se começava a fazer sentir, precisei de todas as minhas forças para retirar o corpo do acanhado espaço onde se encontrava. Ele libertou-se subitamente, batendo no chão com um baque surdo e fazendo-me largar os tornozelos do morto e cambalear. Estivera qualquer coisa debaixo do corpo, e a qual, arrastada quando eu o puxara, caíra ao pé da porta do carro e vi que se tratava de um curto cano de ferro galvanizado com uma mancha castanha-escura numa das extremidades. Deixei o corpo estendido no solo, fui ver onde o poderia esconder e foi então que avistei um grande buraco na parede traseira do celeiro. Passei por lá e entrei. O úcilho parecia ainda sólido e a luz entrava largamente pelos orifícios do telhado.

        Tornei para junto do corpo e se não foi muito dificil arrastá-lo até à abertura, fazê-lo passar através dela revelou-se bastante complicado. Estive um bocado a pensar como havia de proceder, e finalmente coloquei o corpo sentado, com as costas voltadas para a abertura, trepei por cima dele, inclinei-me, agarrei-lhe ospulsos e puxei-o então para dentro, arrastando-o para um canto escuro. Como havia algum feno velho e bolorento no solo, cobri o corpo com ele. Fui depois buscar o pedaço de cano, utilizando uma folha seca para lhe pegar, e deixei-o cair sobre o feno que cobria o corpo, após o que voltei para o exterior.

Pensava em Grassman, tentando imaginar a razão que o levara a escolher aquele género de trabalho - sujo, monótono e por vezes perigoso. Pelo aspecto do homem quando faláramos com ele junto do lago, calculei que não fizesse ideia de que iria acabar daquela maneira, pois mostrara-se duro e confiante. Aquele corpo que se encontrava ali oculto sob a palha não se parecia em nada com os detectives particulares da ficção, nem com os delicados, nem sequer com os astutos ou inteligentes. A história dele terminara, não se voltaria a sentar para sacudir a palha ou estenderia a mão para uma loura ou uma garrafa. Deixando-o ali, proporcionara-lhe uma espécie de enterro, tal como se tivessem sido proferidas algumas palavras solenes.

        Inspeccionei o carro. O tapete ficara manchado em quatro Sítios, mas não vi nada nos bancos ou no lado de dentro das portas. Tirei o tapete do chão, enrolei-o e coloquei-o ao meu lado, à frente. Depois, fiquei sentado, de ouvido à escuta, tentando detectar o mínimo som de motor de um qualquer carro que passasse nos montes, mas apenas chegava até mim o canto dos pássaros e o sibilar do vento.

        Pus o carro em movimento, mas não segui pelo caminho por onde viera. Um carro que se vê ir e regressar por uma estrada campestre tem mais probabilidades de ser recordado do que outro que só passa uma vez. A cerca de três milhas de distÂncia cheguei a uma encruzilhada e virei para norte, pensando que essa estrada corresse paralela à principal, mas, daí a cinco milhas, desemboquei nesta última, descrevendo um Ângulo pouco pronunciado. Meti pela estrada secundária seguinte, voltei à direita - já estava perto da cidade e em breve deveria passar por um sitio onde se encontrava amontoado muito lixo. Misturei o tapete sujo com colchões de molas partidas e motorizadas meio destruidas e atirei depois com algumas latas para cima dele.

        Na altura em que passei pelo motel, em direcção à cidade, fiquei surpreendido por ver que era apenas um quarto para a uma. Fui comer a um pequeno restaurante de Delaware Street e à saída encontrei Cindy Rorick no passeio, carregada de embrulhos. Sorriu e disse:

        - Olá, Mister Howard.

        - Recordou-se de alguma coisa, Mistress Rorick?

        - Não sei se isto terá alguma utilidade para si, mas lembrei-me de um pequeno pormenor. Trata-se de uma peça que a oitava classe representou, e em que Timmy entrou, baseada na história de Cinderela. Não me lembro da rapariga que desempenhou esse papel, mas recordo-me de como era engraçado ouvir Timmy chamar-lhe Cindy. Contudo, provavelmente, isto não significa coisa alguma.

        - Pode ser que sim. Obrigado.

        - Ainda bem que o encontrei, pois hesitava em

telefonar-lhe por causa de uma coisa que me parecia tão estúpida. Agora preciso de correr, vem aí o meu autocarro.

-       Eu levo-a a casa.

-       Não, não se incomode.

Convenci-a e entrámos no carro. Ela colocou embrulhos no colo e imaginei o que sentiria se soubesse qual fora o meu último passageiro.

-       E como poderei descobrir quem era essa rapariga?

        - Bem, não sei, foi há tanto tempo que ignoro se alguém se recordará. A directora de turma da oitava classe era Miss Major, que mais tarde foi também minha professora, uma pessoa muito boa. Creio que foi ela quem escreveu a peça que eles representaram. Não sei o que foi feito dela, penso que casou e se foi embora daqui, mas pode ser que saibam, na escola. É a John L. Davis, em Holly Street, perto da ponte.

 

        A Escola John L. Davis era um edifício antigo, de tijolo vermelho com uma vedação de ferro a cercar o pátio. Ao subir os degraus ouvi um coro de vozes infantis a repetirem algo em uníssono, um som sonolento e nostálgico naquela tarde de sol.

        No largo corredor assoalhado havia pequenas fontes que pareciam absurdamente baixas. Um rapazinho veio a,correr pelo corredor, batendo ao de leve com uma regua na sua própria cabeça, olhou-me com desinteresse e continuou o seu caminho.

        No gabinete da recepção encontrava-se uma mulher nova que parecia bastante nervosa pois enquanto escrevia à máquina chupava no lábio inferior. Quando levantou a cabeça para me olhar apercebi-me de que ficara obviamente irritada pela interrupção.

        - Estou a tentar encontrar uma Miss Major que deu aulas aqui. Ensinava disciplinas da oitava classe, creio.

        - Aqui só temos até à sexta - respondeu ela. - Depois seguem para outra escola.

        -       Bem sei, mas a dada altura leccionavam aqui a sétima e a oitava classes.

        -       Já há muito que isso sucedeu, já não foi no meu tempo.

-       Não possuem registos? Não pode procurar em qualquer sítio?

        -       Não faço ideia onde. Não sei nada disso.

        -       Há aqui professores que tenham trabalhado com Miss Major?

        -       Talvez. Há quanto tempo esteve ela cá?

        -       Há doze anos.

        -       Mistress Stearns ensina aqui há vinte e quatro anos. Terceira classe, sala dezasseis. é neste piso, mesmo à esquina do corredor.

        -       Não quero interromper uma aula.

        -       Está quase na hora de tocar para a saída. Os alunos irão para casa e poderá perguntar-lhe. Eu não sei nada a esse respeito, nem sei onde procurar.

        Esperei junto da sala dezasseis. Fez-se silêncio e, de súbito, alguém pôs um gira-discos a funcionar, enchendo o corredor com o som de uma marcha, reproduzida muito alto. Houve grande rebuliço em todas as salas, as portas abriram-se e todos os pequenos saíram então para o corredor, formando duas filas, desalinhadas, que marcharam ao som da música. O soalho tremia, professores cansados vigiavam atentamente as fileiras. Os alunos do andar de cima desciam também as escadas a marchar, abandonando a escola pelas portas abertas de par em par. Depois foi a vez de saírem os do rés-do-chão, gritando logo que se encontravam em liberdade. A escola esvaziou-se, a marcha ouviu-se por mais uns momentos e calou-se a meio de um acorde.

        -       Mistress Stearns?

        -       Sim, sou eu.

        Tratava-se de uma mulher pálida e rechonchuda, com cabelo que fazia lembrar palha de aço e uns olhos escuros, pequenos e vivos.

        -       Chamo-me Howard, Talbert Howard. Conheceu uma Miss Major que foi professora aqui?

-       Com certeza, conheço muito bem Katherine. Isso fez-me lembrar que preciso de passar por casa dela para ver como tem passado.

                -       Vive na cidade?

                -       Vive, sim, coitada.

                -       Está doente?

        - Oh, julguei que sabia. Katherine cegou quase de repente, há cerca de dez anos, o que foi um choque para todos nós. Sinto remorsos por não a visitar mais frequentemente, mas depois de um dia inteiro a ensinar crianças estou tão cansada que não me apetece ver ninguém.

        - Pode dizer-me onde ela mora?

        - Não sei bem a direcção, mas vem na lista. O apartamento fica na Finch Avenue. Sei onde é, mas não consigo recordar-me do número. Ela vive sozinha. é muito orgulhosa, sabe, e, com efeito, desembaraça-se notavelmente bem, dadas as circunstÂncias.

        Era um pequeno apartamento no rés-do-chão nas traseiras de um prédio antigo. Ouvi música a tocar bastante alto, uma sinfonia que não reconheci, mas silenciou momentos depois de eu ter batido à porta.

        Foi Miss Major quem abriu. Envergava um vestido azul, trazia o cabelo branco preso na nuca e as suas feições eram correctas. Em tempos devia ter sido uma mulher bonita, pois continuava ainda bastante atraente, e quando lhe falei os seus olhos pareceram fitar-me. Dificilmente se acreditava que não vissem.

        Disse-lhe o meu nome e expliquei-lhe que gostava que ela me pudesse informar sobre uma aluna sua que frequentava a oitava classe anos atrás.

        - Faça favor de entrar, Mister Howard. Sente-se na cadeira vermelha. Estava a tomar chá. Quer uma chávena?

        - Não, muito obrigado.

        - Então um destes bolinhos. é uma amiga minha que os faz, são muito bons.

Segurou no prato e estendeu-mo como se visse. Tirei um e agradeci-lhe. Ela voltou a colocar o prato sobre a mesa e ficou sentada na minha frente. Depois pegou na chávena com o chá e levou-a aos lábios.

        - De que estudante se trata, Mister Howard?

        - Lembra-se de Timmy Warden?

        - Claro que me lembro, era encantador. Disseram-me que morreu e tive muita pena. Um homem que veio falar comigo há seis ou sete meses contou-me que tinha estado com Timmy num campo de prisioneiros, mas nunca percebi bem a razão que o trouxe aqui. Chamava-se Fitzmartin e fez-me toda a espécie de perguntas estranhas. Não me senti à vontade com ele, não me pareceu... boa pessoa, sabe? Quando perdemos um sentido, os outros tornam-se mais perspicazes.

        -Eu também estive nesse campo, Miss Major.

        - Oh, desculpe. Provavelmente Mister Fitzmartin é seu amigo.

        -       Não. Não é.

        - Que alívio. Agora não me diga que também vem fazer-me perguntas estranhas, Mister Howard.

        - Bastantes estranhas, creio. No campo Timmy falou-me de uma rapariga chamada Cindy e tenho tentado encontrá-la por... por razões pessoais. Uma outra sua aluna, Cindy Kirschner, disse-me que a senhora escreveu uma pequena peça, baseada na história de Cinderela, para a oitava classe quando Timmy a frequentava. Ora ele não estava... muito bem quando me falou nela, e eu tenho pensado se não estaria a referir-se a essa Cindy da peça.

        - Que sucedeu a Cindy Kirschner, Mister Howard? Era uma criança tão meiga, tão tímida. Tinha uns dentes horríveis.

        - Os dentes foram arranjados. Casou com um homem chamado Pat Rorick e é mãe de dois garotos.

-       Gosto de saber isso. As outras crianças eram terríveis para ela. Por vezes, são capazes de parecer uns verdadeiros animaizinhos.

                - Recorda-se de quem desempenhou o papel de Cindy na peça?

                - Claro que me recordo, lembro-me bem porque aquilo foi uma espécie de experiência. Chamava-se -toinette Rasi. Espere um momento, vou mostrar-lhe uma coisa.

        Dirigiu-se para outra sala e voltou uns cinco minutos depois, trazendo na mão um álbum de fotografias.

        -       Uma amiga ajudou-me a organizar este álbum depois de eu ter aprendido Braille. Estão todas marcadas, por isso sei bem qual é. Tenho as fotografias de fim de ano de todas as minhas classes, apesar de não saber para que me servem.

        Entregou-me uma e disse:

        -       Creio que Antoinette está na fila de trás, à esquerda. Veja se não é uma rapariga com uma grande massa de cabelo escuro e um rosto bonito, de expressão sombria. Não creio que esteja a sorrir.

        -       Julgo que a descobri.

        -       Antoinette constituía um problema. Um pouco mais velha que os outros, meio francesa e meio italiana, era indisciplinada e arranjava constantemente sarilhos. Mas eu gostava dela e julgava compreendê-la, pois a família era muito pobre e em casa não lhe davam grande atenção. Creio que tinha, além de um irmão mais velho que estivera envolvido em problemas com a Policia, uma irmã também mais velha, e apresentava-se na escola mal vestida para o frio. Possuía muito espírito e vivacidade e creio que era sensível, mas ocultava-o muito bem. Muitas vezes penso no que lhe terá sucedido. Os Rasis viviam na zona norte da cidade, onde o rio alarga. Creio que o pai dela trabalhava com o seu pequeno barco, de Verão, negociando isco e pescando, e que durante o Inverno fazia biscates de ocasião, mas a casa deles era um verdadeiro casebre. Fui lá uma vez porque Antoinette faltou às aulas durante uma semana seguida e descobri que isso se devia a ela anda

r com um olho negro, fora o irmão que lhe batera. Dei-lhe o papel de Simderela numa tentativa de conseguir que ela se interessasse mais pelas actividades escolares, mas receio que tenha sido um erro. Creio que ela pensou que isso se deveu ao modo como vivia.

        -       Timmy mostrava-se amigável para ela?

        -       Bastante, e eu não sabia bem se isso seria bom. Ela parecia bastante... precoce em vários aspectos, e Timmy era um rapaz tão meigo...

        -       Ele ficaria a chamar-lhe Cindy por causa da peça?

        -       Penso que sim, as crianças gostam de alcunhas. Lembro-me de um rapazinho que não tinha céu-da-boca e os outros tornavam-no infeliz chamando-lhe Roncador.

        -       Quero agradecer a sua ajuda, Miss Major.

        -       Espero que a informação lhe seja útil. Quando encontrar Antoinette diga-lhe que eu perguntei por ela.

        -       Com certeza.

        Acompanhou-me à porta e disse:

        -       Vêm trazer-me um novo aluno de Braille às dezasseis, mas parece um pouco atrasado. Está metido em algum género de sarilho, Mister Howard?

        A pergunta abrupta desconcertou-me.

        -       Sarilhos? Sim, estou metido em grandes sarilhos.

        -       Não quero pregar-lhe sermões, já dei demasiados, estava apenas a verificar as minhas próprias reacções. Notei em si uma profunda sensação de preocupação, e em Mister Fitzmartin uma maldade mal contida.

        Quando cheguei à porta vi uma mulher a ajudar um jovem a sair de um carro. O rapaz usava óculos escuros e a sua boca exibia uma expressão colérica, queixando-se azedamente a respeito de qualquer coisa.

Senti que descobrira Cindy, houvera uma sugestão daquilo que ela seria na própria voz de Timmy. Fraco como se encontrava, dera ao tom da sua voz uma nota de afectuoso apreço... um eco de lascívia. Cindy saberia. A maneira de dizer fora estranha: não Cindy sabe, mas sim Cindy saberia. Seria um lugar conhecido dela. permaneci sentado no carro durante uns momentos. Ignorava quanto tempo teria, nem sabia se devia continuar a procurar Cindy ou se seria preferível diligenciar no sentido de estabelecer uma relação entre Fitzmartin e Grassman. Ocorreu-me que fora estupidez não revistar o corpo, poderia ter com ele papéis, cartas, documentos, relatórios... algo que indicasse qual a razão por que fora assassinado. Contudo, sabia que não podia arriscar-me a voltar ao lugar onde o escondera, isto para além de ser pouco provável que o criminoso tivesse deixado ficar no corpo algo que o pudesse indirectamente incriminar.

        Hesitava em decidir por onde começar. Não acreditava que ganhasse alguma coisa em ir falar com Fitzmartin, pois certamente ele não responderia a qualquer pergunta. Por que motivo se tornara necessário matar Grassman? A sua morte ou estava relacionada com as investigações que ele andara a fazer, ou fora devida a outro problema. O trabalho de Grassman naquela cidade relacionara-se aparentemente com a convicção de Rosa Fulton de que sucedera algum mal ao marido, ali em Hillston.

        A investigação empreendida por Prine havia por certo chegado muito longe, ele ficara convencido de que Fulton e Eloise tinham fugido juntos e até existia uma testemunha da partida. Todavia, Grassman andara a investigar na antiga cabana dos Wardens e eu não conseguia imaginar o que esperava ele encontrar em tal sítio.

Não conseguia deixar de pensar que a morte de Grassman estava de qualquer maneira relacionada com os sessenta mil dólares. Pensava se Grassman não teria obtido a informação de que uma quantia apreciável desaparecera dos negócios da firma dos Wardens no decorrer de um certo período, ou talvez tivesse sucedido que, ao procurar o corpo de Fulton, se lhe deparasse o dinheiro enterrado, e muitos crimes são cometidos por causa de uma décima parte daquela quantia. Relativamente a Grassman havia apenas um ponto de partida: Rose Fulton, e talvez ele lhe enviasse periodicamente relatórios.

        Tentei imaginar quem conheceria o endereço dela, mas só poderia perguntar a alguém que não suspeitasse de mim. Pensei se não haveria maneira de o descobrir sem interrogar ninguém, mas pareceu-me difícil, pois mesmo que a investigação feita pela Polícia tivesse sido noticiada no jornal local, fora provavelmente indicada a cidade natal de Fulton, mas não a rua onde morava.

        Apercebi-me de que não me atreveria a fazer qualquer esforço para contactar Rose Fulton, por isso relacionar-me-ia demasiado intimamente com Grassman. Iria então procurar Antoinette Rasi.

        O casebre, situado na margem do rio, tinha uma entrada alpendrada, em ruínas, e partes de automóveis semienterradas na lama do pátio. A roupa, pobre e mal lavada, secava, pendurada numa corda, um pneu isolado pendia do ramo de uma árvore e no telhado do casebre via-se uma antena de televisão novinha em folha. Uma pequenita de cabelo negro tentava prender um cão gordo e humilde a uma carroça partida e mais longe um rapazito magro, dos seus doze anos, pintava cuidadosamente um barco voltado. Um outro pequenito, ainda de fraldas, observava-os, enquanto algumas galinhas esgaravatavam o solo de terra solta, junto da entrada.

        As crianças olharam-me quando eu saí do carro e logo apareceu uma mulher grávida, à porta da casa. Os seus olhos eram hostis e a expressão pouco amigável. O bebé começou a chorar e ouvi o irmão gritar-lhe que se calasse. A mulher podia ter sido em tempos bastante bonita, mas já não o era e tornava-se difícil calcular que idade teria.

        -       O seu nome é Rasi? - perguntei.

        -       Foi em tempos. Agora é Doyle. Que quer?

        -       Procuro Antoinette Rasi.

        -       Por amor de Deus cala-te com essa lamúria, Jeanie, este homem não vem buscar o televisor. - Sorriu-me, como que a desculpar-se. - Uma vez levaram-no, por isso quando aparece por aqui algum estranho ela julga que é para isso. Estes miúdos são loucos por televisão, não fazem os trabalhos de casa, nem nada, só querem estar especados diante do aparelho. Põem-me doida. Para que quer saber de Antoinette?

        -       Tenho um recado para ela. De um amigo.

A mulher fungou.

        -       Ela tem muitos amigos, calculo. Já não vive aqui, está em Redding e ao tempo que nada sei dela. O nosso velho morreu, Jack está na gaiola, em Atlanta, e Doyle não pode nem vê-la, por isso que viria ela fazer aqui? No entanto como sou a sua única irmã, manda-me dinheiro para os miúdos, mas nunca escreve. Não diz nada.

        -       Que faz ela?

A mulher fitou-me com um sorriso entendido.

        -       Creio que passa a vida a arranjar amigos.

        -       Como poderei entrar em contacto com ela?

        -       Dê umas voltas por Redding. Tente o Aztec, o Club Room, e experimente também ir ao Doubloon. Ouvi-a falar nesses nomes. Provavelmente, encontra-a lá.

Redding ficava a cerca de oitenta quilómetros e era já escuro quando cheguei. Era uma cidade com o dobro do tamanho de Hillston, cheia de letreiros luminosos, de movimento e de gente. Havia muitas raparigas nas ruas escuras e muitos uniformes. Carros velozes, buzinas a tocarem, pneus a rangerem. Perguntei onde ficavam situados o Aztec, o Club Room e o Doubloon, e indicaram-me uma estrada larga na zona oeste da cidade, chamada inevitavelmente a Strip. Aí os letreiros de néon desabrochavam realmente e não se via tanto trÂnsito nos paseios, mas, apesar de ser uma noite de segunda-feira, os parques de estacionamento estavam cheios de carros. Uma música ruidosa enchia o ar e havia lugares suficientes para qualquer pessoa ficar sem o seu dinheiro, ou gastando-o ou perdendo-o.

        Fui ao Aztec, ao Club Room e ao Doubloon, em todos estes sítios perguntei aos empregados do bar por Antoinette Rasi e de todas as vezes recebi como resposta um encolher de ombros e as palavras: "Nunca ouvi falar nela."

        -       Uma rapariga de cabelo escuro?

        -       E isso é alguma coisa de especial? Não sei, amigo.

        A cadência da noite começava a intensificar-se e os três sítios animaram-se, fazendo lembrar as salas dos hotéis da Collins Avenue, em Miami Beach, e os bistros de Beverly Hilís. A iluminação permanecia cuidadosamente velada e cheirava a Las Vegas, cheirava a dinheiro. Ali, os jogos estavam escondidos, mas não eram difíceis de encontrar.

        A forma como Mistress Doyle falara da irmã levou-me a pensar que a Polícia talvez me pudesse ajudar a localizá-la. A esquadra encontrava-se instalada num edifício novo, moderno, só que o sargento não parecia sentir-se muito confortável na longa cadeira de aço inoxidável.

        Contei-lhe o que a mulher me dissera sobre a maneira de a encontrar.

        -       Sim, devemos ter algo a respeito dela. Espere uns minutos. Vou saber.

        Falou ao telefone, teve de esperar um bom bocado, depois agradeceu ao seu interlocutor e desligou.

-       Foi apanhada duas vezes. Chama-se de facto -toinette Rasi, mas usa o nome de Toni Raseile, e define-se a si própria como uma entertainer. Cantou durante um certo tempo numa dessas casas. É uma prostituta de luxo e o seu último endereço é no Glendon Arnis... um hotel de apartamentos de alta categoria na zona oeste da cidade, não muito longe da Strip. Da última vez que foi dentro estava envolvida numa variante do "conto do vigário", mas não conseguimos apresentar provas. Ela anda metida com gente perigosa, por isso tenha cuidado, há por aqui muitos tipos desse género.

Agradeci-lhe, saí e eram quase vinte e duas horas quando voltei à Strip. Fui primeiro ao Aztec e dirigi-me ao mesmo empregado de bar com quem falara anteriormente.

        -       Já descobriu a tal rapariga? - perguntou-me ele.

        -       Descobri que ela agora se chama Toni Raseile.

        -       Ah! Conheço-a. Aparece aqui de vez em quando. Pode ser que venha esta noite. é algum velho amigo ou coisa assim?

        -       Não é bem isso.

        Tentei nos outros dois sítios e também a conheciam, mas não a tinham visto. Enquanto comia um prego no Doubloon, uma rapariga que se encontrava sozinha no bar fez um esforço para me apanhar. Pôs um cigarro apagado na boca e começou a vasculhar a bolsa à procura de fósforos. Depois, começou a falar em voz demasiado alta com o empregado do bar e tentou meter-me na conversa. Era uma morena esbelta, com olhos brilhantes e mãos trémulas. Pedi ao empregado do bar que voltasse a encher-lhe o copo e sentei-me no banco ao lado.

        Falámos sobre banalidades até que ela apontou para o tecto e disse:

        -       Vai tentar a sua sorte? Eu tenho sempre sorte. Sabe que há tipos que não se atrevem a sentar-se a uma mesa de jogo sem me darem algumas fichas?

-       Não quero jogar.

        -       Sim. às vezes também me farto disso. Há alturas em que não se consegue extrair prazer do nosso dinheiro.

        -       Conhece uma rapariga chamada Toni Raseile?

        Ela deixou de sorrir.

        -       Que há com ela? Procura-a?

        -       Alguém me falou dela e lembrei-me do nome. simpática?

        - é terrivelmente bonita, mas é doida, completamente doida. Não me agrada nem um bocadinho.

        -       Porque a acha doida, Donna?

        -       Bem, ouça isto. Há por aqui alguns tipos importantes, como Eddie Larch, o dono desta casa, que gostam dela. é uma oportunidade que não se pode perder. Dão tudo, apartamento, carro, roupa. Tudo, sabe? E é preciso apenas ser simpática e não fazer ondas. Contudo Toni não aceita isso, quer que se passe sempre qualquer coisa, quer ser uma loba solitária, e dessa maneira está sempre a meter-se em encrencas. Se eu tivesse as possibilidades dela, queria era arranjar títulos e acções, pode crer, mas essa Toni só faz o que lhe agrada. Se não gosta de uma pessoa, nada feito, até pode vê-la com o cabelo a arder que não será capaz de cuspir para apagar o fogo. Por isso é que a acho doida.

        -       Creio que compreendo o que quer dizer.

        Donna percebeu que cometera um erro táctico. Sorriu largamente e acrescentou:

        -       Não me leve a sério por eu falar nos títulos e acções, não sou esse género de rapariga. Gosto de me rir, de me divertir e como o meu rapaz está fora sinto-me só. Sabe como é uma pessoa sentir-se só! Tem a certeza de que não quer ir tentar a sua sorte?

        -       Creio que não.

        A rapariga franziu os lábios, observou o copo meio cheio e resolveu jogar outra cartada.

-       Com o preço de cada bebida devem ganhar um dinheirão com uma só garrafa. Se as pessoas fossem espertas, bebiam em casa, ficaria muito mais barato.

        -       Com certeza que sim.

        -       Sabe, se arranjássemos uma garrafa, em minha casa tenho copos e gelo. Podíamos deitar a cabeça, levantar os pés, ver televisão e brincar um bocado. Que diz?

        -       Acho que não.

        -       O meu rapaz não voltará antes do próximo

fim-de-semana. Tenho a casa livre.

        -       Não, obrigado, Donna.

        -       O que quer fazer?

        -       Nada em especial.

        -       Joey - disse ela para o empregado do bar -, que espécie de lugar é este? Tens um cliente aqui sentado que é um morto. Causa-me calafrios.

        Mudou-se para outro banco mais à frente e não voltou a olhar-me. Uns quinze minutos depois apareceram dois homens fortes, sorridentes, e em breve ela travava conversa com eles. Depois foram os três para cima, para as mesas de jogo. Desejei que tivessem sorte.

Assim que ela se afastou o empregado do bar aproximou-se e disse-me em voz baixa:

-       O patrão quer que eu a mantenha afastada daqui. Era bastante mais bonita, mas agora embriaga-se e torna-se desagradável. Contudo quando ele não está eu deixo-a ficar. Que diabo, são velhos conhecimentos, como se costuma dizer. Você sabe como e.

        -       Claro.

-       Ela é capaz de ser muito desagradável e não vai

a parte alguma com aquele par, tenho a certeza de que

entre os dois não possuem vinte dólares. Está a perder

o faro, o ano passado, por esta altura, já teria percebido

isso antes de eles dizerem uma única palavra. A velha

Donna anda muito por baixo.

-       Que há-de ela fazer?

O homem encolheu os ombros.

        - Não sei, mas creio que poderá sempre ir dar um passeio, fazer uma viagem ao estrangeiro ver o mundo.

        O homem piscou-me o olho.

        -       Bem, a verdade é que não sei.

        Voltei novamente ao Aztec e o empregado do bar avisou-me de que Toni Caselle se encontrava no casino acompanhada por um general. Disse-me também que vestia uma blusa branca, uma saia comprida vermelho-escura e tinha uma abafo leve a condizer.

        Dei-lhe uma gorjeta, dirigi-me para o casino e comprei fichas num compartimento mesmo junto da porta. A grande sala estava apinhada, fortemente iluminada, com luzes brancas como uma sala operatória, as quais faziam com que os rostos das pessoas parecessem doentes. As cartas, os dados, as fichas, tudo era impiedosamente iluminado por aquela luz crua. Reparei num uniforme do outro lado da sala e vi que o general era um homem de peito largo e que, a julgar pela sua expressão, devia considerar-se um novo MacArthur (talvez se assemelhasse um pouco, mas não o bastante, com as suas três filas de medalhas ao peito).

        Antoinette Rasi encontrava-se ao lado dele e ria com o mesmo rosto da fotografia da escola secundária, mais maduro, menos sombrio. O cabelo forte parecia seda preta, espessa, e mantinha o abafo dobrado sobre um braço. Os ombros morenos exibiam a sua nudez e o seu aspecto era quente, vibrante, fazendo lembrar mel derretido. Os dentes brancos brilhavam, quando ela ria, destacando-se sobre a pele morena. Tinha as maçãs do rosto largas, olhos profundos, nariz um pouco largo, um aspecto de cigana e uma expressão selvagem. Uma mulher madura, tão cheia de vida que fazia com que as outras que se encontravam na sala parecessem ter sido colocadas ali apenas para fazer ressaltar o contraste entre a sua moleza e a Ânsia de viver que irradiava de Antoinette.

        Ela e o general aproximaram-se da roleta e eu sentei-me do lado oposto da mesa. O general jogava solenemente no preto e quando perdeu Toni riu. Ele pareceu não gostar muito disso, mas pouco podia fazer. Eu, que comprara fichas no valor de vinte dólares, comecei a jogar no vinte e nove e, enquanto a roleta girava, observei Toni. Ganhei trinta e seis dólares, depois joguei no vermelho e continuei a ganhar. Toni tomou consciência do meu interesse por ela e o mesmo sucedeu com o general, que me ordenou mentalmente que me atirasse sobre a sua espada. Toni lançou-me alguns olhares irritados. Por fim, o general teve de voltar ao guiché para comprar mais fichas, não as vendiam nas mesas, e logo que ele se afastou murmurei:

        -       Antoinette?

        Ela fitou-me. atentamente:

        -       Eu conheço-o?

        -       Não. Queria uma oportunidade para falar consigo.

        -Como sabe o meu nome?

        -Foi Timmy Warden quem me disse. Lembra-se

deLe.

        - Claro que sim, mas não posso falar-lhe agora. Telefone-me amanhã ao meio-dia. Oito três oito nove um. Consegue lembrar-se?

        -       Oito três oito nove um. Não me esqueço.

        O general voltou, olhou-me com ar desconfiado e eu afastei-me, levando na memória os olhos escuros e a voz rouca e baixa de Antoinette Rasi.

        Meti-me no carro, voltei para Hillston e já passava bastante da meia-noite quando cheguei. Pensei por momentos se a Polícia se acharia lá à minha espera, mas não, o quarto estava vazio e escuro.

        Deitei-me e adormeci imediatamente, mas uma hora mais tarde acordei com um pesadelo que me encharcara em suor. Sonhara que Grassman ia às minhas cavalitas e se agarrava à minha cintura e me passava os braços fortes em redor do pescoço. Caminhava assim por uma rua movimentada, pedindo socorro, mas as pessoas olhavam-nos, tapavam a cara e gritavam, fugindo de mim. E eu sabia que o rosto de Grassman era mais horrível do que me podia lembrar e que ninguém me ajudaria. Passou a ser Timmy que ia às minhas costas, e cheirava-me à terra onde o tínhamos enterrado. Acordei em pÂnico e levei um grande bocado a acalmar de novo.

 

        Telefonei-lhe ao meio dia e ela só atendeu ao décimo toque, quando eu já me preparava para desistir.

A voz dela parecia sonolenta:

        -       Quem fala?

        -       Tal Howard.

        -       Quem?

        -       Falei consigo a noite passada no Aztec. Acerca de Timmy Warden. Disse-me que telefonasse mais tarde.

Ouvi-a bocejar molemente.

        -       Oh, bem sei. Vá tomar café ou qualquer coisa e depois passe por aqui.Vivo num sítio chamado Glendon Arms. Dê-me uns quarenta minutos para despertar.

        Gastei meia hora a tomar um café e a ler o jornal e depois encontrei Glendon Arms sem dificuldade. Era um edifício tão pretensioso como o nome, com um toldo de riscas, portas de vidro e aço, vestíbulo de mosaico, secretária para o porteiro e tudo o mais. Este falou pelo telefone interno e disse-me que eu podia subir ao apartamento de Miss Raselle, no terceiro piso, o 3 A. O elevador era de self-service e o corredor bastante largo. Carreguei no botão ao lado da porta.

Antoinette veio abrir e sorriu ao convidar-me a entrar. Vestia uma blusa sem mangas, de angora, e umas calças aos quadrados, em tons de verde. Esperava ir encontrá-la sonolenta, mole da dissipação, com uma indolência matinal, mas o aspecto dela era fresco, bronzeado, limpo. A espessa cabeleira escura achava-se presa na nuca, numa complicada trança.

        -       Olá, Tal Howard. Consegue tomar mais um café? Venha.

        Havia um pequeno terraço com portas deslizantes que dava para o quarto e para a cozinha e foi aí que bebemos café e comemos pãezinhos com manteiga, numa mesa com tampo de vidro.

        -       A noite passada foi uma maçada - disse ela. - Ele era amigo de um amigo, um uniforme empertigado até à bebida número dez. Depois mais nada, só mãos e conversa fiada, armas, aviões de combate. Já estou velha de mais para brinquedos.

        -       Ele tinha uma quantidade de condecorações.

        -       Disse-me várias vezes para que serviam. Como me descobriu, Tal Howard?

        -       Por intermédio da sua irmã.

        -       Deus do céu, aquela Anita tornou-se uma verdadeira desmazelada. é por causa do Doyle, que é um idiota. Os miúdos são engraçados, não sei como os fizeram, mas é um facto. O que se passa com Timmy? Foi o meu primeiro amor. Como está ele?

        -       Morreu, Toni.

        O rosto dela perdeu a vivacidade.

        -       Você não perdeu tempo a preparar-me para a notícia. Como?

        -       Foi feito prisioneiro pelos chineses, na Coreia, assim como eu. Estávamos na mesma cabana. Ele adoeceu, morreu e foi enterrado lá.

        -       Que maneira horrorosa de morrer. Era um bom rapaz, entendemo-nos muito bem até ao segundo ano da escola secundária, mas nessa altura ele começou a dar demasiada importÂncia à sua posição social e pôs-me de lado. Não o censuro, era muito novo para ter m'ais discernimento. Nessa época a minha reputação não era muito boa, e ainda não é - concluiu, sorrindo.

        -       Ele falou em si quando estávamos no campo.

        -       Sim?

        -       Chamou-lhe Cindy.

        Durante um longo momento ela pareceu ficar surpreendida, depois o rosto desanuviou-se-lhe.

        -       Oh! Já quase não me lembrava disso. Foi uma representação. Na oitava classe tínhamos uma professora que se interessava muito pelas actividades extra-escolares e como eu era rebelde ela deu-me o papel de Cinderela. Timmy era o príncipe e passou a chamar-me Cindy durante um certo tempo, um ano, talvez, bem agradável, por sinal. Eu era uma garota selvagem, não sabia o que queria, desejava mudar, mas ignorava como, era muito nova. Tenho muita pena de Timmy, é deprimente pensar que ele morreu. Faz-me sentir velha e eu não gosto disso.

        -       Quando voltei da Coreia, tentei encontrar uma Cindy, mas não sabia o seu nome. Encontrei duas:

Cindy Waskowitz...

        -       Uma grande porca gorda. Não havia nada de bonito nela, era má como as cobras.

        -       Morreu também, teve qualquer problema glandular.

        -       Você parece vir de uma agência funerária.

        -       Desculpe. Havia também uma Cindy Kirschner.

        -       Kirschner? Um minuto. Com os dentes saídos, assim?

        - é essa mesmo, mas os dentes foram arranjados, ela casou e tem dois filhos.

        -       Ainda bem para ela.

        -       Foi ela quem se lembrou da peça que representaram na aula e do nome da professora da oitava classe. Por isso fui falar com Miss Major. Ela cegou há uns tempos e...

        -       Por amor de Deus... É o que eu digo!

-       Desculpe. De qualquer modo foi ela quem a identi ficou. Fui então falar com a sua irmã e vim aqui à procura de Antoinette Rasi. Pelo modo como a sua irmã a descreveu, quando não a descobri, achei que seria útil ir à Polícia e então foi fácil.

Ela olhou-me com uma expressão desconfiada.

-       Foi à Polícia? E eles deram-lhe todos os pormenores escabrosos?

-       Disseram-me algumas coisas, não muitas.

        -       Mas o suficiente para fazer com que entrasse aqui como se fosse um rapazinho a inspeccionar uma leprosaria. Que esperava encontrar? Paredes de espelho? Um torniquete?

        -       Não se zangue.

        -       Você parece-me muito empertigado, Tal Howard, e as pessoas empertigadas aborrecem-me. Para que diabo aqui veio? Trata-se de uma viagem sentimental, desde o campo de prisioneiros, para me descobrir?

-       Não é bem isso, e eu não sou empertigado. Não me interessa nada daquilo que você é ou aquilo que faz.

        A cólera dela esvaiu-se e encolheu os ombros.

        -       Não faça caso. Não sei porque me tornei sensível de repente mas creio que foi por ter falado em Timmy, um ponto sensível, e também por pensar como eu era nessa altura. Aos treze anos queria apanhar o mundo com as minhas mãos. Agora tenho vinte e oito e vivo como quero. Pareço tê-los?

        -       Não, de facto não.

        Apoiou o rosto nas mãos, parecendo pensativa.

        -       Você sabe, Tal Howard, outra razão que me levou a zangar-me consigo foi eu estar a começar a sentir-me aborrecida. Creio que preciso de uma mudança.

-       De que género?

- Disse que não se tratava de uma viagem sentimental. Então o que é?

        -       Há outra coisa envolvida.

        -       Mistério, hã? Que se passa consigo?

        -       Que quer dizer com iSSO?

        -       Que faz? é casado?

        - Por agora não faço coisa alguma e não sou casado. Vim para aqui da costa oeste. Não tenho morada fixa.

        -       Mas não é desse tipo.

        -       Não a entendo.

        -       Essas informações não condizem consigo, por isso trata-se apenas de algo temporário. Sente-se entre duas maneiras de viver, se calhar, está tão desassossegado como eu.

        -       É possível.

        Piscou-me um olho.

        -       E penso também que você se está a levar a sério de mais ultimamente. Já reparou nisso?

        -       Creio que sim.

        -       Então qual é o mistério?

        -       Estou à procura de uma coisa. Timmy, antes de ir para a guerra, escondeu aquilo que eu procuro. Eu sei o que é, mas desconheço onde está. Antes de morrer, não muitas horas antes, ele disse: "Cindy saberá." É por isso que aqui estou.

        -       Veio aqui, desde a costa oeste, à procura de Cindy. Então ele escondeu algo de importante. Dinheiro, talvez?

        -       Se me puder ajudar, dar-lhe-ei algum.

        -       Quanto?

        -       Isso depende de quanto ele escondeu.

        -       Talvez tenha admitido depressa de mais que se tratava de dinheiro, Tal. Eu sou conhecida por gostar muito de dinheiro, gosto do cheiro dele, do aspecto dele, de lhe tocar. Sou louca por dinheiro, quanto mais tiver melhor, e isto talvez seja por haver passado tanto tempo sem nenhum. Um psiquiatra meu amigo disse-me ser basicamente o dinheiro a única coisa que me impele. Nunca o acho demasiado.

        - Se isso fosse verdade, não mo diria assim. Creio que gosta apenas de pensar de si desse modo.

        Toni mostrava-se zangada de novo.

        Porque será que cada tipo que encontramos teima em nos dizer aquilo que acha que realmente somos?

        -       é um pensamento popular.

        -       Pronto, está bem. Então ele escondeu algo. Mas agora sou eu que lhe vou causar um grande desapontamento: não faço a mínima ideia de qual possa ter sido o esconderijo dele.

        -       Tem a certeza?

        -       Não olhe assim para mim. Sei o que está a pensar, julga que eu sei e que não lhe quero dizer para ficar com tudo para mim, mas sinceramente, Tal, não sei, não faço ideia do que ele possa ter querido dizer.

        Acreditei nela.

        -       O sol está a ficar demasiado quente. Vamos para dentro - disse ela.

        Ajudei-a a levar as coisas para dentro e ela lavou a louça. Tendo-a visto na véspera, não pensara que tivesse figura para usar calças, mas as que vestia eram de bom corte e ficavam-lhe bem. Fomos para a sala, que se encontrava decorada com coisas de mais e com candeeiros de mau gosto. Contudo sentia-se ali asseio e conforto.

        Antoinette sentou-se e entrelaçou as mãos sobre um joelho.

        -       Quer que eu lhe conte o que se passou entre mim e Timmy? Uma história triste, embora eu ache que não.

        -       Se quiser...

        -       Nunca o fiz e talvez seja chegado o momento. Nessa altura andava eu pelos quinze anos, era mais velha do que os outros alunos, e Timmy fizera catorze. Nunca tínhamos tido nada a ver um com o outro até entrarmos na peça, mas nos ensaios tornÂmo-nos amigos. Não éramos namorados, parecíamos mais dois rapazes. Eu não podia ser considerada muito feminina, creio. Corria como o vento e sabia lutar com os punhos.

        "Não queria que Timmy fosse à nossa casa, pois envergonhava-me do sitio onde morava, e nunca permiti que os meus colegas vissem como e onde eu vivia. Meu Deus, parecíamos animais. Não foi tão mau enquanto a minha mãe viveu, mas depois passou a ser péssimo. Esteve lá?

        -       Estive.

        -       O velhote andava constantemente bêbado, o meu irmão nada valia e a minha irmã dormia com qualquer um que se desse ao trabalho de lhe pedir. Vivíamos na porcaria. Estávamos incluídos na lista da beneficiência e davam-nos roupas e alimentos no Natal e no Dia de Acção de Graças. Interiormente eu era terrivelmente orgulhosa, mas o mais que podia fazer era andar sempre asseada e não deixar que os outros vissem onde vivia. Antoinette inclinou-se para tirar um dos meus cigarros do maço e esperou que eu lho acendesse.

        -       Timmy apareceu lá uma vez, o que me deixou para morrer, mas depois vi que não tinha importÂncia. Ele não dava qualquer valor às coisas, aceitava-as tal como eram. Tornou-se meu amigo e depois disso foi-me possível desabafar com ele, contar-lhe os meus sonhos e escutar os seus, pois também os tinha.

"Quando as aulas acabaram, nesse ano, passámos a sair juntos. Timmy fazia pequenos trabalhos, como cortar relvados e coisas assim, e com o dinheiro que ganhava íamos ao cinema. Nadávamos no rio e passeávamos de bicicleta, pois ele arranjara uma velha, de rapaz, para mim. Consertou-a e eu pintei-a. A gente da beneficiência ralhou com o meu pai por me ter comprado uma bicicleta e tive de explicar como a obtiv- e provar que a não roubara. Ainda me lembro dos olhares manhosos dos polícias.

        "Quando aquilo se deu entre nós foi súbito. Estávamos em finais de Agosto e eu arranjara um emprego numa loja, mentindo a respeito da idade e preenchendo os impressos com dados falsos. Passava então muitos domingos com Timmy e embora o pai e o irmão não gostassem de que andasse comigo, ele iludia-os.

        "Timmy tinha um cesto na parte da frente da bicicleta e muitas vezes fazíamos piqueniques. Certo domingo percorremos umas quinze milhas através do campo e depois fomos com as bicicletas à mão por um atalho estreito até descobrirmos um sítio, debaixo de umas árvores, que parecia um ninho, longe de tudo. Dava-nos a sensação de nos encontrarmos sozinhos no mundo, e talvez estivéssemos. Comemos e estendemo-nos na relva a conversar sobre as aulas na escola secundária, que teriam início em Setembro. Fazia calor, apesar de estarmos à sombra, e Timmy acabou por adormecer. Observei-o enquanto dormia e, reparando nas suas pestanas, fez-me lembrar um bebé.. Senti um calor dentro de mim, era uma nova maneira de reagir em relação a ele e, quando já não podia aguentar mais, passei-lhe um braço por baixo da cabeça e beijei-o. Ele acordou e pareceu perplexo, satisfeito e amedrontado ao mesmo tempo. Eu tinha uma educação muito liberal, como pode

calcular, mas creio que tudo aquilo foi uma coisa caricata, dois garotos a procurarem-se desajeitadamente, embora ansiosamente também. No entanto, apesar da nossa experiência, o facto deu-se, ali, à sombra das árvores.

        "Mal falámos no caminho de regresso, pois eu sabia o suficiente para me sentir verdadeiramente assustada, mas felizmente nada sucedeu. Daí em diante tornámo-nos diferentes um com o outro, era uma coisa que faziamos quando tínhamos oportunidade, contudo já não éramos os mesmos amigos de antes, às vezes parecíamos quase inimigos, tentávamos magoar-nos um ao outro. Descobrimos bons sítios para satisfazermos os nossos desejos e isso durou ano e meio, mas nunca falámos em casamento ou coisas do género. Vivíamos o dia-a-dia. Havia um lugar, em especial, onde íamos muitas vezes, levávamos um dos barcos e...

        Calou-se repentinamente e fitámo-nos nos olhos.

        -       Sabe agora ao que ele se referiu?

        -       Creio que sim.

        -       Onde?

        -       Não creio que deva dizer já...

        -       Porquê?

        -       Acho melhor irmos lá os dois.

        -       Não há nada que a impeça de lá ir sozinha, Antoinette.

        -       Sei isso. E se lhe disser que não irei?

        -       Apesar da sua avidez pelo dinheiro?

        -       Mesmo assim seria honesto numa coisa destas, creia. Quanto dinheiro lá está?

        Esperei alguns momentos, observando-a a avaliando a situação. Não poderia obter o dinheiro sem a ajuda dela.

        -       Perto de sessenta mil dólares, disse-me Timmy. Antoinette sentou-se subitamente, soltando um "oh!" quase inaudível.

        -       Como arranjou Timmy esse dinheiro todo?

-       Era ele que fazia as contas das quatro companhias pertencentes ao irmão e levou dois anos para retirar essa quantia, em dinheiro contado.

-       Por que razão faria ele tal coisa a George? Não parece dele.

-       Tencionava fugir com Eloise.

-       Essa fulana com quem George casou, essa porca. Eu conhecia-a. Onde está agora?

-       Fugiu há dois anos, com outro homem.

        -       Talvez tivesse levado o dinheiro.

        -       Timmy disse-me que ela não sabia onde ele o enterrara.

        -       E seria difícil encontrá-lo, posso garantir isso. Mas então, o dinheiro pertence a George, não é?

        -       Sim, é - respondi um momento depois.

        -       Mas já lhe foi roubado.

        -       Com efeito.

        -       E ninguém sabe da existência dele, George não suspeita de coisa alguma. Apenas nós temos conhecimento, Tal.

        -       Há outra pessoa que sabe, um homem chamado Earl Fitzmartin, que esteve também no campo de prisioneiros. Não conhecia o nome de Cindy, mas agora já o conhece. é esperto e muito capaz de chegar até si.

        -       Como é ele?

-       é esperto e mau.

        -       Como muitos dos meus amigos.

-       Não creio que eles sejam tão maus como Fitz. Julga que, se fosse indicar o local a Fitz, não regressaria. Ele meteria o seu corpo no sítio onde o dinheiro está enterrado.

-       Assim mesmo?

        -Estou convencido disso. Creio que a cabeça dele não regula bem, não é como as outras pessoas.

        -       Nós podemos... podemos confiar um no outro, Tal?

        -       Penso que sim.

        Apertámos as mãos com formalidade e Antoinette olhou-me com curiosidade.

        -       E você, Tal. Por que anda atrás do dinheiro?

        -       é como costumam dizer acerca de escalar montanhas. Porque ele está lá.

        -       E que significará para si?

        -       Não sei, preciso de o encontrar primeiro.

- E nessa altura terá uma resposta para tudo?

                -Talvez.

-       O que opôs assim, Tal? O que o desnorteou?

- Não sei.

                - Sou capaz de entender a maior parte das pessoas, mas a si não o percebo muito bem. Parece-me um certo tipo de homem, o género de ter jogado à bola na escola, deter um emprego estável, de gostar de vestir bem, de Casar, ter filhos, de ir passar umas férias às Bermudas quando eles forem crescidos. Tudo isso me parece muito certo para si, mas há qualquer coisa nos seus olhos...

        -       O que têm os meus olhos?

                -       Tem olhos de um cavalo que sabe que vão matá-lo por ter partido uma perna.

                -       Quando podemos ir procurar o dinheiro?

                Antoinette foi à porta da cozinha e olhou para o relógio de parede.

                -       Sentir-se-ia melhor se ficássemos juntos até O irmos buscar, não é?

                -       Creio que sim, mas não será essencial.

                -       A sua confiança é comovedora. A Polícia não lhe contou?

                -       Disseram-me qualquer coisa a respeito de uma hábil variante do conto-do-vigáriO.

        -       Muito hábil, pois não conseguiram provas, mas foi muito desonesto, Tal. Contudo, não se tratou de enganar inocentes, antes de pregar uma partida a cidadãos que queriam ganhar uns dinheiros mal ganhos. Foi assim: dizia aos palermas que queria aldrabar que O meu rapaz era um dos empregados das mesas do Aztec, onde o jogo estava viciado, e que ele se zangara com Os patrões (os palermas tinham normalmente dois ou três mil dólares que queriam ver triplicados). Depois dizia-lhes que não os podia acompanhar e dava-lhes uma senha para o meu rapaz. Deixavam-nos então ganhar seis ou sete mil dólares e eles vinham para aqui com o dinheiro. O meu rapaz chegava mais tarde, mas acompanhado por outro homem de mau aspecto, que a dada altura, e após discussão acerca da divisão dos "lucros", apontava uma arma munida de silenciador e disparava. O meu rapaz "gemia" e "morria", e o outro tipo ameaçava matar também o aldrabão aldrabado. Este implorava que lhe

poupasse a vida, o que lhe era concedido com relutÂncia, mas impunha-se-lhe que saísse rapidamente da cidade, ordem que cumpria com prontidão, pois não queria de maneira alguma ver-se envolvido num caso de morte. O dinheiro ganho ao jogo voltava para a casa e eu recebia uma boa fatia. Sou assim, gosto de representar. Devia ver-me tremer e desmaiar.

-       E se a vítima não voltasse aqui com o dinheiro?

- Voltam sempre. Gostam de ganhar o dinheiro e a rapariga, julgam que é como no cinema. Ainda está disposto a confiar em mim?

        -Tereideofazer,não?

        -       Creio que sim, não tem outro remédio - retorquiu sorrindo preguiçosamente. - Preciso de dar umas voltas por uns sítios onde você não pode acompanhar-me. Espere-me aqui ou venha cá ter comigo. Demorarei três ou quatro horas, mas nessa altura será muito tarde para ir buscar o dinheiro hoje. Poderemos ir procurá-lo amanhã de manhã.

        -       Como o vamos dividir?

        -       Não será melhor contá-lo primeiro?

        -       Mas depois de o contarmos?

Antoinette aproximou-se de mim e pôs-me as mãos nos ombros.

        -       Talvez não mereça a pena dividi-lo, Tal, se calhar o melhor é gastá-lo como nos apetecer até ele desaparecer todo, espalhando-o desde Acapulco até Paris. Depois talvez deixemos de nos sentir inquietos. Poderíamos brindar a Timmy em muitos sítios interessantes.

Sentia-me pouco à vontade e disse-lhe:

        -       Não creio que você me ache assim tão atraente.

        -       Pois não, gosto de homens com um aspecto mais sórdido. - Retirou as mãos. - Talvez para si eu seja aquilo que se costumava chamar nos livros antigos de "mercadoria danificada".

        -       à vista não parece.

        Ela abanou a cabeça.

        -       Você confunde-me. Foi apenas uma ideia, acho-o simpático e agradável, nada exigente; digamos, tranquilo. Disse também que não sabia o que iria fazer com o dinheiro.

        -       Afirmei que talvez soubesse quando o tivesse.

        -       E se não souber?

        -       Nessa altura voltaremos a falar no assunto.

        -       Espera-me aqui?

        -       Virei ter consigo.

        -       Ás dezassete e trinta.

        Antoinette disse que precisava de mudar de roupa e eu saí. Pensei se não estaria a ser idiota. Almocei sem grande apetite e fui a um cinema, mas não conseguia seguir o enredo do filme. Comecei a convencer-me de que fora um tolo, Antoinette não era mulher em quem se pudesse confiar. Pensei por que artes mágicas ela me hipnotizara de modo a confiar nela. Podia imaginá-la a desenterrar o dinheiro e uma vez que o tivesse em seu poder eu nada poderia fazer. Pensei também se, ao confiar nela, eu não estaria a procurar inconscientemente afastar de mim o problema moral de ficar ou não com o dinheiro.

        Antoinette não regressou à hora marcada e fiquei à espera no vestíbulo. Sentia-me transpirar. Chegou um quarto de hora depois, mas vinha pálida e perturbada. Subimos juntos no elevador e quando me deu a chave para abrir a porta reparei que os seus dedos estavam frios. Mordia constantemente os lábios e logo que entrámos começou a andar de um lado para o outro.

-       Que se passa?

-       Cale-se e deixe-me pensar. Aquilo ali é um bar, arranje-me um scotch on the rocks.

        Preparei as bebidas e, depois de ter engolido a dela, Antoinette pareceu ficar mais calma.

        -       Desculpe ter sido desagradável, Tal. Estou perturbada, pois as coisas não me correram da forma que eu esperava, mas não preciso de entrar em pormenores. Tenho alguns fundos aqui e ali. Fui ao banco a tempo, aí tudo bem, mas o resto já não correu tão bem. Refiro-me aos fundos que se encontram, digamos, guardados em segurança. Eles deram-me alguma coisa mas nada daquilo que me era devido, não querem que eu possa sair daqui. Cometi o erro de lhes dizer que estava a pensar em me ir embora da cidade e apresentaram-me alguns argumentos muito fortes. Fiz de conta que mudei de ideias, mas fui seguida. Que diz a isto? Que vão para o inferno. Podem até estar a pensar em me raptar e agora sei que preciso de sair daqui. Creio que já arranjei maneira de o conseguir. Pode ajudar-me?

        -       Acho que sim.

        -       Vou partir de vez, mas não poderá ser amanhã. Talvez ainda consiga obter um pouco mais daquilo que me é devido. Na quinta-feira de manhã, você vem até aqui com o carro e, como este prédio tem uma saída para as traseiras, pela cave, posso untar as mãos ao porteiro. Você estaciona o carro numa rua paralela, às dez em ponto, eu saio pelas traseiras e partimos. A verdade é que detesto deixar tanta coisa que é minha, um guarda-roupa completo.

        -       Eles são perigosos?

-       Não sei até que ponto serão capazes de ir, mas o que vi não me agradou nada. Não gosto que me dêem palmadinhas nos ombros e me digam com um grande sorriso: "Então, então, Toni, com certeza que não quer sair da cidade. Todos nós gostamos muito de si."

        -       Posso ficar aqui até ser escuro e esperar que você encha as duas malas com roupa para eu levar.

        -       Tem a certeza de que quer fazer isso?

        - Estou disposto a fazê-lo. Se alguém a seguiu, não sabe que eu aqui estou. Você pode sair antes de mim, para os despistar, e nessa altura eu levo as malas para o meu carro.

        -       Acho que isso resultará. Seria de facto uma ajuda, pois investi uma porção de dinheiro em roupas. Creio que seria melhor que tentar levar daqui a bagagem de manhã, mesmo com a sua ajuda. Quero que as coisas se passem depressa e sem atritos. Mantenha-se afastado das janelas.

Antoinette demorou tempo e já era escuro quando acabou. Encheu duas grandes malas, ambas bastante pesadas.

-       Deixe-as no sítio onde se encontra hospedado, quando me vier buscar.

-       É um motel.

-       Arranje-me lá um quarto, por favor.

Antoinette pareceu então descontrair-se.

-       Creio que isto vai correr bem. Eles, bem... assustaram-me um bocado. Eu sei muita coisa, mas não tenciono falar, embora seja isso que os preocupa. Não calcula como lhe agradeço. Hei-de... hei-de compenSá-lo.

Ela queria ser beijada e eu beijei-a. Havia nela uma tão quente sensualidade que, só por si, o tocar-lhe e o agarrá-la provocava um choque. Desequilibrámo-nos um pouco ao beijarmo-nos, mas recuperámos o equilíbrio e sorrimos timidamente.

-       Por agora - disse ela.

Levei as malas para junto da porta e ela desceu também no elevador. O porteiro olhou-me com desconfiança quando me viu sair carregado, parecia querer dizer qualquer coisa, mas eu afastei-me antes que ele soubesse que objecção fazer... Comi num drive-in no extremo da cidade e voltei para Hillston. Levei as malas para o meu quarto no motel, mas eram como que uma presença estranha ali, quase tão viva como se ela estivesse comigo. Guardei-as no armário.

 

Quarta-feira foi um dia cinzento. Escondera o corpo de Grassman na segunda-feira, mas parecia-me há muito mais tempo. Vi as malas quando abri o armário para tirar a minha roupa e senti curiosidade em saber o que Antoinette gúardara nelas, embora achasse que não as devia abrir. Por fim, decidi que adquirira o direito de espreitar.

Coloquei a maior das duas malas sobre a cama, experimentei os fechos e abri-a com facilidade. Em cima vi peles, sedosas e brilhantes, muito bem arrumadas, e por baixo havia casacos, fatos de saia e casaco e vestidos. No fundo estava a roupa interior, cheia de rendas, de sedas e bordados, em todas as cores, desde o mais puro branco ao preto.

A outra mala continha mais ou menos o mesmo. As roupas cheiravam a perfume, mas não se tratava de um odor forte, pesado, era antes uma fragrÂncia fresca de flores. Pude compreender como aquilo era importante para Antoinette, ao lembrar-me de que ela falara das roupas oferecidas pela beneficiência.. Encontrei uma caixa de cabedal preto no fundo da segunda mala. Jóias destacavam-se sobre as divisórias de veludo preto: anéis, pulseiras e alfinetes. Não podia saber se as pedras verdes e vermelhas eram ou não verdadeiras, mas reluziam à luz. Levantei a divisória e por baixo havia dinheiro, em notas de cinquenta, de cem e de vinte dólares. Contei-o e verifiquei que se encontravam ali seis mil e quarenta dólares. Quando voltei a colocar a divisória, as pedras pareceram-me mais reais.

Depois de as malas estarem de novo no armário, tentei imaginar o que ela pensara quando ali guardara o dinheiro. Talvez achasse que eu não passaria revista às malas, e de facto, eu não tencionara fazê-lo, ou talvez pensasse que, mesmo que eu as abrisse e visse o dinheiro, este estaria mais em segurança, comigo não haveria problemas, pois mesmo que fosse capaz de ficar com tal importÂncia e fugir, esperaria antes pela oportunidade de deitar a mão a muito mais... oportunidade essa que só Antoinette me poderia proporcionar.

Como encontrei a mulher-pássaro a limpar um dos quartos, paguei-lhe adiantadamente mais duas noites pelo meu e pedi-lhe que guardasse outro ao lado para um amigo que viria na quinta-feira. Aproveitei para lhe pagar também uma noite de aluguer por este último.

Quando me dirigia para a cidade ia pensando se aquilo que Antoinette propusera seria a melhor solução para mim. Pelo menos era tentadora. Pensei no seu belo corpo maduro, na sua personalidade e no impacte espantoso dos seus lábios. Não haveria ilusões entre nós, ela tornaria fácil esquecer uma porção de coisas. Nada teríamos a pedir um ao outro... ficaríamos ligados apenas pelo dinheiro e separar-nos-íamos quando este acabasse.

Depois de comer, dirigi-me para a loja de George Warden, parando o carro a meio quarteirão de distÂncia. Desejava falar outra vez com ele, queria ver se podia encaminhar a conversa para Eloise e Fulton. Precisava de ver se George dizia algo que me fizesse perceber melhor a razão por que Grassman fora morto. Obviamente, Fitz não contactara Antoinette e ela parecia confiante em como mais ninguém encontraria o dinheiro, por iSSO, começou a parecer-me menos lógico que a morte de Grassman estivesse relacionada com os sessenta mil dólares. Então porque fora assassinado? Talvez tivesse discutido com Fitz. Nós víramos Grassman no lago, no sábado, e Fitz podia tê-lo morto no domingo, sem que o premeditasse, escondendo depois o corpo no seu carro enquanto procurava um local para odeixar. Nessa altura vira o meu, a matrícula da Califórnia é fácil de reconhecer, e pusera lá o cadáver para me incriminar. No entanto, ao fazê-lo, não estaria a elimi

nar qualquer possibilidades de eu o conduzir ao local onde Timmy enterrara o dinheiro?

Talvez que Fitz estivesse convencido de que com as indicações que possuía e com o nome de Cindy poderia conseguir o mesmo que eu ou mais. Era um homem que tinha grande confiança em si próprio e, como começava a desconfiar, não era mentalmente são.

        Se Grassman tivesse contactado Fitz, era muito provável que George me pudesse dar algumas indicações úteis sobre o motivo que levara o meu antigo companheiro de cativeiro a cometer o crime.

Mas deparou-se-me um letreiro na porta a informar que a loja estava encerrada, sem mais qualquer outra informação.

Pus as mãos em volta dos olhos e espreitei, mas parecia estar tudo na mesma, não devia estar fechada para sempre.

        Levei alguns minutos a tentar recordar-me do local onde George vivia sem conseguir lembrar-me de quem mo dissera. Por fim lembrei-me - White's Hotel - e descobri-o a três quarteirões de distÂncia. Tratava-se de um edifício antigo, maltratado pelo tempo e mal conservado, de aspecto deprimente, que fora em tempos pintado de branco e amarelo. Entrei no vestíbulo e vi alguns velhotes sentados em cadeiras de cabedal coçado, fumando e lendo jornais, e perto de uma secretária encontravam-se dois rapazes concentrados num jogo qualquer. O homem sentado à secretária olhava-os com uma expressão de tédio incurável, deixando que o fumo do cigarro que tinha entre os lábios se elevasse no ar em espiral, mesmo na frente da sua cara.

- Desejava falar com George Warden.

- Segundo andar, as escadas são por ali. Ainda há pouco subiu uma rapariga para o visitar.

        Calculei que fosse Ruth e, embora quisesse vê-la, não sabia como reagiria. No entanto, não queria falar com George na presença dela, e assim comecei a subir lentamente as escadas.

Quando os meus olhos ficaram acima do nível do segundo andar, vi Ruth a correr pelo corredor sombrio na minha direcção.

Atingimos o cimo das escadas ambos ao mesmo tempo mas os olhos da rapariga, muito abertos, pareciam não ver. Abria a boca sem que, contudo, de lá saísse qualquer som e o rosto estava branco como a cal.

Chamei-a pelo nome, ela olhou-me, hesitou, e, em seguida, lançou-se nos meus braços, a tremer. Encostou a testa ao meu peito, agitando a cabeça de um lado para o outro e soltando gemidos incompreensíveis. Passados momentos, recuperou o controlo suficiente para falar.

- É George. No quarto, na cama.

        -       Espere aqui.

        -       não. tenho de telefonar à Polícia.

Os saltos altos dos sapatos dela batiam com força nos degraus de madeira. Fui até ao quarto duzentos e três e vi que a porta estava aberta. George encontrava-se estendido em cima da cama, nu, e havia uma espingarda no chão, com uma toalha enrolada, meio solta, em redor do cano... chamuscada no sítio por onde a bala lhe roçara. Avancei até onde pudesse ver a cabeça e verifiquei que a nuca desaparecera, aliás já calculava isso, porque vira a parede manchada de sangue. No momento da morte, todas as funções do corpo tinham partilhado a mesma explosão e o quarto cheirava horrivelmente mal. Recuei até junto da porta e passei a mão pela testa húmida, pensando que fora terrível para Ruth ter entrado ali naquelas circunstÂncias. O letreiro da loja seria agora bem mais adequado ali, naquele quarto, naquela porta, naquela vida. Fechada, encerrada para sempre.

        Fiquei no corredor e ouvi as sirenes. O empregado da recepção caminhava pesadamente pelo corredor, seguido por alguns velhotes. Rodearam-me e ficaram parados à porta, a olhar.

- Valha-me Deus! - exclamou o empregado da recepção.

- Que horror! Que horror! - disse um dos velhotes.

        Alguns dos rostos eram-me familiares. Conhecia Hillis, Brubaker e Prine, que recebia ordens de um certo capitão Marion, um homem de aspecto tranquilo, cabelo claro, com um rosto largo, marcado por rugas de tanto sorrir. A sua voz suave condizia de certo modo com os plácidos olhos azuis encimados por sobrancelhas louras.

        Em vez de fazer um interrogatório individual, organizou uma espécie de seminário e, pela expressão aborrecida de Prine, percebi que ele de maneira alguma aprovava tal procedimento.

        Levaram-nos todos para a mesma sala da esquadra, onde se encontrava presente um estenógrafo. O capitão Marion pediu várias vezes desculpa por estar a causar incómodo às pessoas, remexeu nos seus papéis e pigarreou para aclarar a voz. Depois começou:

- Bem, à medida que for falando com vocês vou-lhes dizendo se se podem ir embora ou não. Isto não é nada de particularmente oficial, trata-se de uma espécie de investigação. Para estabelecermos os factos e vermos o que temos na nossa frente. Primeiro deixem-me dizer algumas palavras acerca de George. Eu conheci bem o pai e também a ele, assim como o Timmy. George poderia ter sido uma pessoa importante nesta cidade, ia a caminho disso, mas perdeu-se. Muitos homens nunca conseguem recuperar de uma situação idêntica à dele com as mulheres, mas eu tinha esperanças de que George conseguisse. Foi uma pena não o ter feito, pois era um tipo inteligente.

Vi Prine agitar-se desconfortavelmente.

-       Tenho escrito aqui neste papel que o corpo foi descoberto às dez e vinte desta manhã por Ruth Stamm. Que estava a Ruthie a fazer àquela hora no White's Hotel'?

-       Henry... capitão Marion, George não tinha ninguém que tratasse dele. De vez em quando eu ia ver como estava ... para o ajudar no que pudesse.

-       Andou em tempos com Timmy, não foi?

-       Sim, e agora tentava ajudar George.

-       Buck aprovava isso?

-       Não creio. De facto, sei que não aprovava.

-       Compreendo. Ruthie, que foi lá fazer esta manhã'?

-       Ontem à tarde passei pela loja e ao ver um letreiro a dizer que se encontrava encerrada, fiquei preocupada. Quando cheguei a casa telefonei para o White's Hotel e foi Herman Watkins quem atendeu, dizendo-me que George estava a beber. Esta manhã liguei para a loja, sem resultado, e depois tentei falar para o hotel, mas George não atendia, no quarto. Ele costuma fazer isso às vezes, isto é, costumava, mas como tenho uma chave resolvi vir à cidade e ir ao hotel. A porta nem sequer se encontrava fechada à chave. Abria-a e vi-o.

-       Que tencionava fazer?

-       Dar-lhe café, fazer que se lavasse, conversar com ele, talvez, como tantas vezes fiz.

-       Ruthie, pode ir-se embora ou ficar, se o preferir. Agora tenho aqui outro nome. Talbert Howard. Você foi ao hotel para falar com George logo a seguir a Ruthie. Que ia lá fazer?

        Vi Ruth Stamm começar a levantar-se e depois sentar-se outra vez.

        -       Queria falar com George e, como encontrei a loja fechada, fui ao hotel.

        -       Sobre o quê?

        Prine respondeu por mim.

        - A semana passada interrogámos este homem, meu capitão, julgávamos que era outro desses tipos que Rose Fulton tem mandado para aqui. Ele declarou que está a escrever um livro sobre os soldados que morreram no campo de prisioneiros onde Timmy Warden também veio a falecer e afirma ter estado igualmente nesse campo. Encontra-se desempregado, não tem residência fixa e possui registo criminal com uma condenação.

        - Por que motivo?

        Desta vez fui eu que respondi.

        - Por tomar parte num distúrbio de alunos quando andava no liceu. Perturbei a paz pública e resisti à autoridade! O polícia que me prendeu partiu-me uma clavícula com o seu cacete, e chamou a isso resistir à autoridade.

        O capitão Marion olhou para o tenente.

        - Prine, você faz com que tudo pareça terrivelmente grave. Talvez este rapaz queira escrever um livro, talvez esteja a tentar.

        -       Duvido, capitão - replicou Prine.

        -       E sobre que assunto desejava falar com George, meu rapaz?

        -       Queria mais informações sobre Timmy.

        Olhei de relance para Ruth, que me fitou com desprezo e logo desviou o olhar.

-       Que sucedeu quando chegou ao hotel?

        -       O empregado da recepção disse-me que acabara de subir uma rapariga. Encontrei Miss Stamm quando cheguei ao cimo das escadas, mas ela estava demasiado perturbada para falar.

        -       Eu próprio fui ver o quarto. Não admira que ela não pudesse falar, pois o espectáculo era terrível. Muito bem, meu rapaz, pode ir, se quiser.

        -       Preferia que ele ficasse, se não se importa, capitão Marion - interveio Prine.

        O capitão suspirou.

        -       Bem, então não se afaste, Mister Howard. Agora, Herman, é consigo. O doutor diz que a morte deve ter ocorrido por volta da meia-noite de ontem.

        -       Poderá, depois de a autópsia indicar a hora com maior certeza, mas não deve andar muito longe disso. Viu George entrar?

        -       Não, senhor, não o vi. Houve muito barulho no hotel a noite passada, muita gente a entrar e a sair. Ouvi dizer que George esteve a beber no Stump's até não lhe servirem mais nada e que saiu de lá cerca das vinte e duas horas. Francamente, capitão, eu estava a jogar uma partida de póquer na sala que fica por detrás da recepção. Dali não vejo a secretária, mas ouço a campainha e o intercomunicador, se alguém tocar. Foi por isso que trouxe Mister Caswell comigo.

        -       Caswell sou eu - disse um velhote baixo e delgado, com uma voz aguda e modos excitados. - Bartholomew Bons Caswell, reformado há onze anos, ex-maquinista da Companhia de Caminhos de Ferro Frie & Western. Não sou o que se chame um homem que beba e vi George Warden. Vinha atrás dele, talvez meio quarteirão, e calhou olhar para o pulso para ver a que horas ia entrar no hotel. Eram exactamente vinte e três e vinte sete, este relógio não se atrasa um minuto num mês. Vê? Um dos melhores que já se fizeram. Agora faltam dois minutos para as duas e esse, colocado aí mesmo na parede, está atrasado dois minutos.

        -       Tem a certeza de que se tratava de George?

                -       Tão certo como eu saber o meu nome. Ia muito bêbado, agitava os braços, cambaleava. Se não fosse o amigo, nunca teria chegado a casa.

                -       Quem era o amigo dele?

        -       Não o conheço e não reparei bem nele, mas tinha uma perna rígida, não a dobrava. Contudo, conseguia mesmo assim amparar George. Quando cheguei à porta do hotel já eles tinham subido as escadas e o vestíbulo estava deserto. Ouvi as vozes de alguns dos meus amigos no segundo andar, por isso dirigi-me para lá. Encontravam-se no quarto de Lester, que havia comprado duas garrafas de vinho tinto. Bebi um pouco no copo que levara do meu quarto, mas não me assentou bem e por isso desci para me ir deitar, passavam três minutos da meia-noite. Nessa altura ouvi um ruído estranho, precisamente no momento em que fechava a porta do meu quarto. Era como se alguém tivesse deixado cair um livro ou tropeçasse numa cadeira e desse uma pancada com a cabeça. Fiquei à escuta, mas, como nada mais ouvi, fui-me deitar. Deve ter sido nessa altura que George se matou.

                -       Isso condiz com as declarações do médico. Herman, descobriu mais alguém que ouvisse alguma coisa?

        - Não, mais ninguém.

                -       Mas não precisam de mais ninguém. Já lhes disse o que precisam de saber, não foi?

        - Muito obrigado, Mister Caswell. Pode retirar-se se o desejar.

        - Ficarei para ver o que sucede, muito agradecido.

                O capitão Marion estudou os papéis que tinha na sua frente e depois murmurou algo para si próprio. Por fim, levantou os olhos.

- Bom, não me compete a mim proferir um veredicto, isso só será feito após o inquérito, mas acho que todos sabemos que George estava muito em baixo. Perdeu a mulher, ficou sem o irmão, os seus negócios faliram e, além disso, bebia demasiado. Creio que George tinha muitas razões para se suicidar. Steve, que tem? Em que está a pensar?

        -       Capitão, não creio que as coisas sejam assim tão fáceis. Tenho visto muitos suicídios e aprendido algo com eles. Foi utilizada uma toalha como um silenciador rudimentar e nunca ouvi falar de tal coisa. Um suicida não quer saber do barulho, quer, sim, que as pessoas se precipitem, que corram, deseja dramatismo. O cano da espingarda, que era nova, acabada de sair da loja, estava embrulhado numa toalha, e metido na boca dele quando a arma foi disparada. Há impressões digitais muito nítidas na coronha e no cano, demasiado nítidas. Na maçaneta da porta não se notam quaisquer marcas, foi limpa, o que pode ter sido propositado. Muitos suicidas estão nus, mais de metade, mas faltam botões na camisa de George. Talvez ele estivesse com pressa, ou então, e muito possivelmente, alguém lhe despiu a camisa com toda a urgência. Havia uma garrafa de vinho no chão, debaixo da cama, meio cheia, também com as impressões digitais de George muito nitidas. Estou interessado no homem da perna rígida.

        -       Que quer dizer, Steve?

        -       Creio que alguém encontrou George depois de ele sair do estabelecimento de Stump. Falei com este, até porque George estava de tal maneira que não se podia mexer. Tinha a chave da loja e esse alguém deve ter ido à loja com ele e tirado de lá a arma. Penso que a enfiou numa perna das calças, foi isso que lhe deu o andar rígido. Depois, levou George para o quarto, deu-lhe mais vinho, e, quando ele ficou inconsciente, despiu-o, sentou-o na beira da cama, embrulhou o cano da espingarda na toalha, colocou-lhe o cano entre os dentes e puxou o gatilho. Pôs impressões digitais na arma e na garrafa, limpou a maçaneta da porta e saiu.

        -       Você complica sempre as coisas, Steve.

        -       Passam-se coisas estranhas. Recebi hoje um relatório do gabinete do xerife: um homem chamado Milton Grassman, de Chicago, deixou as suas coisas numa pequena casa que alugara e não voltou a aparecer para as ir buscar; estava ali há duas semanas. Os homens do xerife encontraram papéis nessa casa que indicavam que Grassman trabalhava para uma firma de investigadores e que viera aqui por causa do caso Fulton. A cabana alugada por ele fica a vinte milhas para norte da cidade, na estrada que vai ter a Redding. Ontem foi rebocado para a esquadra um carro que excedera o tempo de estacionamento, um sedan azul, do último modelo, com matricula de Ilinóis. Pouco antes de vir para aqui, descobri que está registado em nome de Milton Grassman. Bem, este desapareceu, deixando o carro e todas as suas coisas. George Warden morreu subitamente e Grassman encontrava-se aqui a investigar o desaparecimento de um tal Fulton, que fugiu com a mulher de Warden. Ora tudo isto pode e

star relacionado e quero saber de que maneira. Se conseguirmos descobrir isso, ficaremos cientes se foi crime ou suicídio. Eu creio que foi crime. Trata-se de uma maneira ousada e perigosa de o cometer e o homem que o fez correu riscos, mas julgo que foi assim mesmo. Seria Grassman? Ou terá sido esse tipo que afirma estar a escrever um livro? Quem foi? E porquê?

Marion suspirou longamente.

        -       Steve, nunca consegui perceber qual a razão que

o leva a mostrar tanta animosidade por aqueles que aqui

vêm investigar. Se a pobre Mistress Fulton quer gastar

assim o seu dinheiro, porque não se há-de permitir que

o faça?

- Não gosto que as conclusões de qualquer investigação que eu faça sejam postas em causa. Nós representamos aqui a lei e a ordem e não quero concorrência de amadores.

        -       Mas, por vezes, esses tipos ajudam, Steve.

        -       Ainda não vi chegado esse dia.

        -       Que disseram de Chicago? Pôs-se em contacto com eles?

        -       Não.

        -       Bem, então telefone-lhes, ou talvez seja melhor enviar um telex e deixá-los tratar do assunto com a agência. Esses tipos podem querer mandar qualquer outra pessoa para aqui.

        -       Mas porquê? - exclamou Prine, descontrolando-se.

        -       Para procurar Grassman, claro - retorquiu Marion com um ligeiro sorriso. - Ele desapareceu, não foi?

 

        Consegui sair da esquadra com Ruth, mas ela mostrava-se fria, quase a roçar pela indiferença total.

        -       Ruth, quero poder explicar-lhe um dia...

        -       Não creio que valha a pena incomodar-se.

        O dia começava a clarear e o sol rompia por entre as nuvens.

        -       Realmente não sei porque me hei-de preocupar com a sua boa opinião a meu respeito - respondi, tentando mostrar-me despreocupado.

        -       Se fosse a si não pensava mais nisso. Sou geralmente franca com as pessoas, demasiado franca, como se deve recordar, e espero que os outros procedam de igual modo para comigo, mas regra geral confio demasiado e fico desiludida. Estou a começar a habituar-me a isso.

        Nessa altura senti-me aborrecido com a atitude dela.

        -       Seria de facto bom que se habituasse. Tornaria mais fácil para si ser a única pessoa perfeita... rodeada pelo resto da humanidade.

- Que julga que...

        - Julga que é uma pessoa muito convencida da sua perfeição, só tem virtudes, e condena-me sem sequer conhecer o que se passa.

        -       E você não se mostra muito ansioso por me esclarecer...

        Ficámos a fitar-nos desafiadoramente e, de súbito, ela teve a sensação do ridículo. Vi-a esforçar-se para não sorrir. Nessa altura um rapaz aproximou-se de nós - era novo, magro e usava uns óculos com largos aros de tartaruga.

        -       Olá, Allan - disse Ruth. - Allan, apresento-lhe Tal Howard. Allan Peary.

        Apertámos as mãos e o rapaz disse:

        -       Ruthie, acabo de saber que vou ser nomeado para tratar da herança de Warden, do que resta dos seus bens. Sabe por acaso o que sucedeu ao mobiliário da casa que ele vendeu ao Sysler?

        -       George vendeu tudo, Allan.

        Allan Peary abanou a cabeça.

        -       Não sei para onde foi o dinheiro. Fui informar-me ao banco e há apenas três contas abertas: a da serração, a da loja e a conta pessoal de George, mas existem poucos dólares em qualquer delas. Você é a única pessoa, entre os seus antigos amigos, que teve algum contacto com ele nos últimos tempos. Para onde foi o dinheiro, Ruth? Ele realizou muito neste último ano. Em que andaria metido? Especulações do mercado? Jogo? Mulheres? Droga?

        -       Creio que apenas se entregou à bebida.

        -       Não pode ser. Sei o que Syler pagou pela casa, sei o que ele recebeu pelo trespasse da loja em Delaware Street e sei também o que ganhou com a venda dos camiões para transporte de cimento. Mesmo que ele bebesse apenas brande Napoleon, a vinte e cinco dólares a garrafa, teria de ingerir quarenta por semana para gastar esse dinheiro.

- Talvez o tenha posto numa outra conta, Allan.

        -       Duvido. Não quero falar de cor, mas sucede que

tenho conhecimento de que ele devia dinheiro a Stump

e o aluguer do quarto do hotel também estava em atraso.

E ouvi dizer a semana passada que 'Forrester se interessara pela serração e tinha um cliente à espera. A serração era a única coisa que dava dinheiro.

        -       Talvez quando examinar as contas dele descubra se ele passava cheques e em nome de quem.

        -       Ele passava cheques ao portador e ele próprio os levantava do banco, importÂncias que oscilavam entre os quinhentos e os dois mil dólares.

        - Ele não se mostrava interessado pelo dinheiro - respondeu Ruth, pensativamente. - Tentei várias vezes falar-lhe nisso, mas não parecia preocupado com coisa alguma. às vezes até dava a impressão de que se divertia com alguma partida... que estivesse a pregar a si próprio.

        Nesse preciso momento algo se tornou muito claro para mim, percebi aquilo que já devia ter visto antes. Não sabia porque fora tão estúpido, pois quando se entende determinado facto, o que se segue surge numa sequência lógica.

 

        Apercebia-me de que eles continuavam a falar, mas deixara de ouvir o que diziam. Depois vi que Ruth se dirigia a mim.

        - Desculpe.

        - Estou a dizer que preciso de ir andando.

        - Espere um momento, por favor. Podemos falar durante uns minutos? Consigo também, Mister Peary.

        Reparei que Ruth se encolhia como se estivesse com frio. O sol desaparecera outra vez e soprava um vento forte e bastante fresco.

        -       Podíamos sentar-nos no meu carro. Quero pôr uma hipótese sobre o que George andava a fazer com o dinheiro.

        Eles olharam-me com estranheza até que Peary encolheu ligeiramente os ombros e concordou:

        -       Com certeza.

        Atravessámos a rua e entrámos no meu carro. Ruth ficou no banco de trás.

        -       É apenas uma suposição. Sabe-se que Rose Fulton nunca se convenceu do desaparecimento do marido. Prine fez as suas investigações e chegou à conclusão de que Fulton saiu da cidade com Eloise Warden. George estava ausente nessa altura e houve um vizinho que a viu levar uma mala para o carro do caixeiro-viajante e pensou que ela fosse partir para sempre. Mas imaginemos que não era assim, que ela queria apenas passar uma noite com Fulton. Não desejava ficar na casa dela, pois receava que George voltasse, e também não poderia instalar-se no hotel ou num motel, pois era demasiadamente conhecida. Teria então resolvido ir para a cabana à beira do lago, levando apenas as coisas necessárias para uma curta permanência. Não se estava, porventura, numa época em que a zona devia estar deserta?

        -       Sim, é verdade - respondeu Ruth.

        -       Suponhamos agora que George chegou a casa, viu que a mulher não se encontrava lá e foi até à cabana do lago. Ou imaginemos que, por qualquer razão, no caminho para a cidade resolveu passar pela cabana e os encontrou lá. Que teria feito?

        -       Estou a ver aonde quer chegar - disse Ruth - e isso causa-me uma estranha sensação. George amava Eloise e confiava nela, era o único a não ver como ela era de facto. Se os encontrasse juntos, creio que se apoderaria dele uma loucura temporária, admito até que os mataria. George era um homem muito forte, Tal.

        -       Tê-los-ia então morto na cabana e depois livrar-se-ia dos corpos. Talvez lhes tivesse até prendido pesos para que ficassem bem no fundo do lago, mas estou mais inclinado a pensar que os enterrou e possivelmente no seu próprio terreno, ali perto. Teve sorte que ela fosse vista na estalagem com Fulton e que um vizinho presenciasse a partida, mas não tinha maneira de saber que as coisas correriam tão bem. Matou-os num acesso de fúria e enterrou-os tomado de pÂnico. Durante algum tempo sentiu-se seguro, tentou prosseguir a sua vida como se nada tivesse sucedido e fez o papel de marido abandonado, mas, a dada altura, alguém descobriu os corpos, e não foi à Polícia, foi procurar George.

Peary continuou interessadamente:

        - E esse alguém começou a fazer chantagem com George, exigiu-lhe cada vez mais dinheiro, e ele teve de começar a vender. Quando já quase nada lhe restava, matou-se, não foi capaz de suportar a ideia de ser levado a tribunal e condenado. Por isso é preciso procurar alguém que tenha enriquecido subitamente.

        -       Ou alguém suficientemente inteligente para guardar o dinheiro e não dar nas vistas - sugeri eu.

        -       Ele, às vezes, parecia-me muito estranho - murmurou suavemente Ruth -, dizia coisas que eu não entendia. Era como nesses maus filmes em que as pessoas riem quando não é ocasião para isso.

        -       Creio que a sua hipótese é cheia de lógica, Mister Howard - observou Peary - e quanto mais penso nela mais verosímil a considero. O próximo passo é provar a sua teoria, e isso significa procurar os corpos. No entanto, seria bom falar com Mistress Fulton a esse respeito. Ela tem aborrecido Prine enviando para aqui investigadores e gostava de saber por que razão está tão convencida que não desiste de gastar dinheiro.

        -       Podíamos telefonar-lhe - sugeri -, se soubessem a morada dela.

        Peary saiu do carro.

        -       Creio que a posso obter. Só um minuto.

        Fizemos o telefonema do escritório de Peary, que falou do seu gabinete, mas Ruth e eu ouvimos a conversa pela extensão. Ela colou o seu ouvido ao meu.

        A mulher tinha uma voz áspera.

        -       Como está o senhor metido no assunto? - perguntou.

        -       Não estou propriamente metido no caso - explicou Peary. - George Warden suicidou-se a noite passada e isso deu-nos uma ideia sobre aquilo que possa ter sucedido ao seu marido.

- Ele foi morto, e morto aí. Talvez fosse essa mulher que o matasse, ignoro. Mesmo agora soube que esse Grassman desapareceu, falei-lhe antes de ele partir não sei para onde. Quando é que acordam? Que espécie de terra é essa?

        - O que leva a pensar que o seu marido está morto?

        - Henry não prestava, não podia ver uma mulher sem andar atrás dela, mas depois voltava sempre para mim a rastejar, até acho que gostava de rastejar. Nesse caso, com essa tal Warden, foi a mesma coisa, nunca duraria dois anos. Ele tinha mil e quatrocentos dólares na sua conta pessoal e não lhes tocou. Não pagou as prestações do carro e a companhia de seguros nunca foi capaz de o descobrir. Nós temos dois filhos na escola secundária e ele gostava muito dos miúdos, tenho de o dizer, nunca ficaria dois anos sem os procurar. Pessoalmente, estou convencida de que não voltarei a vê-lo e já não me importo, mas ele tinha duas grandes apólices de seguro. Insisti nisso para me proteger, e aos meus filhos, e que protecção tenho agora? A companhia de seguros não paga, só o fará se ele não aparecer durante seis anos, mas faltam ainda quatro. E que faço eu entretanto? Como podem os meus filhos continuar a estudar? Digo-lhes que é melhor

acordarem e verem o que de facto aconteceu ao meu marido.

        A mulher de Fulton falou ainda mais tempo, mas apenas se repetiu, até que a conversa terminou. Desliguei e olhei para Ruth, que sorriu timidamente, um pouco trémula.

        -       Ela foi muito convincente, Tal - disse Ruth.

        -       Muito.

        Peary veio ter connosco, parecendo pensativo.

        -       Imaginemos que era eu o chantagista. Depois de encontrar os corpos por acaso, ou talvez tivesse sido suficientemente esperto para os procurar, que faria a seguir? Tentaria certificar-me de que mais ninguém os descobriria e me estragaria o jogo e para isso escondê-los-ia melhor do que George o fez. Mas não os faria desaparecer totalmente, pô-los-ia onde pudesse representar uma ameaça.

        Ruth disse então:

-       Esse homem, Grassman, nós vimo-lo no lago, eu e Tal, e agora desapareceu. Isso pode significar que teria encontrado os corpos.

-       E descoberto também o chantagista - concluiu Peary.

Lembrei-me da estranha conversa que George travara comigo quando me dissera que não me podia dar emprego e me oferecera uma arma das que tinha na loja, para vender. Por saber que eu acabara de falar com Fitz, julgara que eu era amigo deste e que também queria apanhar alguma coisa? Tornava-se óbvio que o chantagista era o antigo prisioneiro, e lembrei-me até do fato caro que usava quando eu o vira na estalagem. Fora para Hillston com a ideia de encontrar o dinheiro que Timmy escondera e estivera na cabana do lago, pois fizera questão de me informar de que o dinheiro não se achava ali. Ele já procurara, e achara algo de lucrativo e terrível.

        Mas o que tornava tudo isto ainda mais convincente era o facto de ele se mostrar seguro de que Eloise não levara o dinheiro, e até devia ter achado graça à piada. Eloise nunca tencionara partir definitivamente, pois seria loucura abandonar tudo quando havia ainda a possibilidade de Timmy regressar. Ela sabia que o cunhado escondera o dinheiro, mas ele não confiara nela a ponto de lhe revelar o local.

Pensei na conversa que devia ter havido entre Fitz e George depois de aquele encontrar os corpos.

-       Que fazemos agora? - perguntou Ruth. Vamos falar ao capitão Marion?

às dezasseis e trinta dessa quarta-feira cinzenta encontrava-me na margem do lago, com Ruth, Allan Peary, o sargento Brubaker e o tenente Prine, em frente da cabana que pertencera a George Warden, cujo estreito cais fora atirado para a margem pelos temporais do Inverno e ainda não fora substituído. O vento caíra, o lago fazia lembrar uma grande chapa de aço e as vozes adquiriram uma estranha ressonÂncia no meio do silêncio. O capitão Marion saiu da cabana acompanhado por um jovem polícia, que envergava um fato de borracha, de mergulhador, e trazia a máscara puxada para a testa. Tinha um ar grave, cheio de importÂncia e tremia de frio.

        O capitão Marion recomendou então:

-       Tente manter-se neste local, mas a água parece lodosa. Que tal a claridade?

        O polícia fez incidir a luz da lanterna nas águas.

-       Parece-me boa.

        Prine disse em voz baixa, de modo que o capitão não o pudesse ouvir:

-       Tudo isto é um disparate.

Ninguém lhe respondeu e Brubaker afastou-se de nós. Olhei para o rosto de Ruth, cujos lábios se comprimiram ao ver o polícia entrar na água. Quando esta já lhe chegava ao peito, o homem ajustou então a máscara no rosto, olhou para nós e mergulhou, deixando pequenas ondas à superfície, as quais foram desaparecendo lentamente.

        Prine acendeu um cigarro e atirou fora o fósforo num gesto brusco, impaciente. Quando o vira sentado à secretária parecera-me alto, mas agora, de pé a meu lado, verificava que, de facto, se tinha o tronco comprido, as pernas, por seu lado, eram curtas e grossas.

        Decorreram longos minutos durante os quais conversámos sobre banalidades, mas em voz baixa. Os pinheiros nos montes distantes pareciam negros.

        O homem surgiu repentinamente à superfície a cerca de quinze metros de distÂncia. Nadou para a margem e saiu da água, a pingar. Puxou então a máscara para a testa e vimos que tremia.

        - Está um frio terrível ali - disse.

        Aproximámo-nos dele.

        - Então? - perguntou Marion.

        - Tome, meu capitão - disse o homem, entregando a Marion um isqueiro de automóvel ferrugento e corroído. - O carro encontra-se a cerca de vinte metros de profundidade, quase virado, um Studebaker cinzento, matrícula do Ilinóis, número cinco, oito, cinco, um. Está vazio e ficou sobre um banco de areia muito íngreme. Creio que pode ser arrastado para aqui.

        - É este o número - murmurou Prine com relutÂncia. - Que diabo. Quem havia de imaginar uma coisa destas?

        - Steve - disse Marion -, creio que desta vez nos enganámos e que essa Rose Fulton tem razão.

        Ruth voltara para a cidade no carro de Peary, parecendo triste e pensativa. Por outro lado, como Peary dissera a Marion que fora eu quem lançara a suposição que levara à descoberta do carro, acabei por ficar nas boas graças do capitão. Porém, eu não lhes revelara a segunda parte da hipótese - que já não era só isso realmente -, a de que Fitzmartin fosse o chantagista.

        O camião-reboque chegou e ficou parado, a certa distÂncia da água, com o comprido cabo de aço estendido para o lago. Como anoitecera acenderam os grandes holofotes do camião-reboque, enquanto cerca de vinte pessoas observavam a manobra, perto da margem. O capitão Marion afastara-as para os homens poderem trabalhar à vontade, pois tinham vindo mais polícias da cidade, os quais revistavam a área, espetando grandes varas metálicas na terra macia.

        O cansado polícia mergulhador voltou mais uma vez à superfície e nadou para a margem.

- Creio que agora conseguiremos. Prendi o cabo em redor do eixo de trás e não deve soltar-se.

        - Vamos experimentar - ordenou Marion.

        O guincho começou a ranger e o cabo de aço esticou-se e principiou a enrolar-se no tambor. O progresso era desigual, mas por fim, como um monstro marinho, a retaguarda cinzenta do carro emergiu das águas e o veículo foi puxado para a margem, com o metal a brilhar nos sítios onde roçara pelas rochas. O grande camião avançou até ao automóvel ficar completamente a seco, ainda a escorrer água, que caía no lago. Cheirava a mofo e a humidade.

        - Vá-se secar, Ben - disse calmamente Marion. - George, abra o porta-bagagens com uma alavanca.

        O mergulhador dirigiu-se para a cabana e logo um polícia corpulento, uniformizado, abriu com facilidade o porta-bagagens, cujo interior foi prontamente iluminado por um holofote. Havia ali malas encharcadas, roupas molhadas e a água ainda corria para fora do carro.

        Marion disse:

        - Bem, aí não estão e também não esperava que estivessem, mas percebe-se como foi. Essas meias e camisas não devem ter caído das malas, foi ele que as encontrou, após os ter morto, e as guardou aí. Depois pôs o carro no declive, ligou o motor mas não acendeu os faróis, apesar de ser de noite para não atrair atenções. Não houve problemas, ele sabia que a água nesse ponto era profunda, e o veículo teria ido para o fundo da encosta submarina se não tivesse encalhado nos rochedos onde Ben o foi encontrar.

        Vi uma carteira de mulher, vermelha, a um canto, cuja cor se mantivera viva, parecendo suficientemente nova para Eloise a ter usado na véspera. O capitão estendeu a mão, abriu-a e virou-a para lhe tirar a água. Um bÂton corroido caiu para o chão e Marion gemeu ao dobrar-se para o apanhar. Havia também uma pequena carteira de documentos lá dentro e ele pegou-lhe e sacudiu os cartões encharcados.

        - É de Mistress Warden, sem dúvida. Aí, pode rebocar já o carro para a cidade?

        - Com certeza, meu capitão.

        - Bem, quando lá chegar, coloque todo este material no chão da garagem, a um canto, de modo que fique a secar, para eu depois o examinar.

        Dez minutos depois o automóvel partiu para a cidade, rebocado pelo camião, e ouvi o ruído do motor ao subir o monte em direcção à estrada.

        -       Capitão - disse Prine -, acha que mantenha os homens aqui a procurarem? Está já muito escuro e ainda nada encontraram.

        - É melhor deixarmos isso para amanhã de manhã. pode deixar aqui alguns homens, Tom? - perguntou Marion a um sargento.

        -       Ficarão alguns, capitão.

Os espectadores tinham-se já ido quase todos embora e então um homenzinho magro, de aspecto frágil, aproximou-se de nós. O mergulhador, novamente uniformizado, saíra da cabana, e notei que o seu hálito cheirava fortemente a álcool. Alguém lhe dera uma bebida, a fim de prevenir eventuais constipações.

        Prine disse para o velhote:

        - Recomendei às pessoas que se mantivessem afastadas.

        Não ladre nem mostre os dentes, meu rapaz. Quero falar com vocês, talvez possam aprender qualquer coisa comigo.

        - Desapareça...

        - Calma, Steve - interrompeu o capitão Marion com voz calma. - Como se chama?

        - Finister, Bert Finister. Se andam a procurar corpos, como ouvi dizer, ouçam o que lhes vou contar. Vivo ali atrás, do outro lado da estrada, e faço uns "ganchos" por aqui, em quase todas as casas, toda a gente me trata bem. Trabalhos de carpintaria, de pedreiro, de canalizador, e sou eu também que construo os cais e que OS tiro no Outono, por isso conheço bem estas propriedades.

        - Conhece? Então se andasse à procura de cadáveres por aqui por onde começaria, Finister?

        - Já lá vamos. Conheço as propriedades, as pessoas que as habitam, conhecia Timmy e George Warden e o pai deles, assim como essa Eloise. Lembro-me de Timmy vir para aqui e nadar até ao outro lado para ir ver Ruthie Stamm. O ano passado esteve aqui um tipo chamado Fitzmartin, creio que alugou a casa a George, foi a primeira vez que este fez isso, e depois vendeu-a, mas tal não importa para o caso. Sabem que agora há essas ferramentas para as pessoas fazerem elas próprias os consertos nas suas casas. Eu acho que é roubar o ganha-pão a um homem, é tirar-lhe a possibilidade de trabalhar honestamente. As pessoas arranjam as coisas, mas fazem tudo mal feito e eu considero isso um insulto. Esse Fitzmartin andava por aí a cavar, e eu, como não sabia o que ele estava a fazer, pensei que me poderia contratar para realizar essa tarefa. Depois trouxe cimento para aqui e eu percebi que ia cimentar o solo da garagem. Fez um trabalho bastante bom, para um amador,

mas tirou-me o pão da boca, por isso não me esqueci. Ele colocou o cimento em Maio passado e, se eu andasse a procurar corpos iria ver debaixo desse cimento, porque esse Fitzmartin é mau. Vim aqui para tentar ajudá-lo e ele escorraçou-me com brutalidade, levou-me por um braço até lá fora e afirmou que eu havia entrado em propriedade alheia. Nunca ninguém me dissera tal coisa, todos me conhecem, as pessoas mostram-se amigáveis. Ainda bem que não foi ele que comprou a casa, mas sim gente de Redding, um casal simpático, com dois garotos. Já os avisei que, quando precisassem de alguma coisa, deviam chamar o Bert Finister.

Estávamos parados, iluminados pela luz dos faróis do carro. O capitão Marion olhou para Prine.

        - Fitzmartin?

        - Éo homem que dirige a serração de George. Devo ir buscá-lo?

        - É melhor vermos primeiro, Steve.

        Fui observar atentamente o pavimento de cimento da garagem e vi que não tinha quaisquer remendos. Nunca me ocorrera que ele fora...

        -Vi uma picareta no alpendre - disse o capitão Marion - e talvez seja melhor ir buscá-la, Steve. O exercício far-lhe-á bem.

        - Sim, senhor-respondeu um humilde tenente Prine. Colocaram os carros de maneira que a luz dos faróis incidisse sobre o interior da garagem, tornando-a brilhante como um palco, enquanto Prine suava por todos os lados e gemia ao manobrar a picareta. Então o capitão Marion decidiu que o castigo já era suficiente e Finister surgiu da escuridão com outra picareta e uma enorme alavanca. O trabalho começou a avançar mais rapidamente, uma grande placa de cimento foi levantada. Os homens cavavam a terra escura em silêncio, e durante um bocado tivemos a impressão de que não iriam encontrar coisa alguma. Eu estava fora da garagem, a fumar um cigarro, quando ouvi alguém ordenar secamente:

        - Pare!

        Ia correr para a garagem, mas lembrei-me do que eles poderiam ter encontrado e parei. O policia chamado Ben saiu da garagem, inclinou-se e vomitou. Depois endireitou-se e tossiu.

        - Encontraram-nos? - perguntei.

        - Sim, Prine diz que é ela, lembra-se da cor do cabelo.

        Voltei para a cidade no carro do capitão Marion, pois Prine fora à frente para ir prender Fitzmartin. O capitão mostrava-se falador.

-       Que poderemos provar que tenha consistência? Chantagem? Precisaríamos de descobrir o dinheiro e do testemunho de George. Acusamo-lo de ocultar as provas de um crime? Pode argumentar que George lhe disse que cimentasse a garagem e que ignorava o que lá havia de baixo. Não, não vai ser tão fácil como Steve pensa. Por vezes, o tenente preocupa-me, é muito obstinado, não é suficientemente flexível.

        -       Mas o senhor pensa que o chantagista foi Fitzmartin.

        -       Teve de ser ele. Deixou George sem coisa alguma, mas ao infeliz não restava muito por onde escolher, ou pagava ou era denunciado. Se isso tivesse sucedido, creio que seria condenado a prisão perpétua, pois um bom advogado de defesa poderia dizer algumas coisas pouco agradáveis a respeito de Eloise que não soariam bem aos ouvidos ao júri. Contudo, George pode ter imaginado que quando já não houvesse dinheiro Fitzmartin poderia - e provavelmente fá-lo-ia - partir sem dizer nada, o que o deixaria livre para andar por aí, mesmo falido

- e sempre seria melhor do que estar preso. O que não consigo imaginar é que teria levado Fitzmartin a procurar os corpos, pois não se encontrava na cidade quando George os matou, creio que esteve no campo de prisioneiros com Timmy. Mas podia Timmy saber o que se passava? Há coisas que nunca saberemos, a não ser que Fitzmartin se decida a falar.

        Percebia bem que o capitão estava a pensar e vi-o olhar de relance para mim umas duas vezes.

        -       Você deu-nos uma boa ajuda, Howard, isso é verdade, mas confesso que também não' entendo muito bem o seu papel em tudo isto.

        -       Que quer dizer, capitão?

        -       Não terá o seu aparecimento na cidade sido muito conveniente? Mal chegou as coisas começaram a esclarecer-se. Porquê?

- Deve ser apenas coincidência, creio.

        - Você conhecia Timmy e Fitzmartin e talvez que antes de chegar aqui já soubesse que este último fazia chantagem com George. Provavelmente, foi por essa razão que veio.

        - Não sabia coisa alguma a esse respeito.

        - Ainda não arrumei o caso consigo, Howard, e não se lhe meta na cabeça desaparecer subitamente, meu rapaz. Preciso de conversar mais consigo para esclarecer muita coisa.

        Nesse momento, estávamos a cerca de uma milha de Hillston, começámos a ouvir uma mensagem transmitida pela rádio. Marion respondeu e eu mal podia perceber a voz de Pato Donald de Prine através do pequeno microfone.

        - Capitão, Fitzmartin desapareceu, foi-se embora. Já transmiti os sinais de identificação dele e do carro. Vivia num barracão, na serração, e todos os seus objectos pessoais e roupas desapareceram. Apalpei o aquecedor e ainda estava quente, não deve ter desaparecido há muito tempo. E se bloqueássemos as estradas?

        - Não pense nisso, Steve. Estou farto de lhe dizer que os bloqueios de estradas não são funcionais nesta região, pois há muitas vias secundárias e temos poucos homens e veículos nesta área. O aquecedor podia ter sido desligado há horas, e as estradas já deviam estar bloqueadas, neste momento, num raio de pelo menos cem milhas.

        - Que sugere, meu capitão? - perguntou mais humildemente Prine.

        - Temos de esperar e ver se alguém o apanha.

        Marion interrompeu a comunicação e voltou-se para mim:

        - Howard, você parece conhecer muito bem Fitzmartin. Donde é ele?

        - Creio que do Texas.

-       Qual era a profissão dele?

        -       Julgo que trabalhou nos poços de petróleo.

        -       Alguma vez disse alguma coisa a respeito de parentes?

        -       Nunca falou muito.

        -       Isso não é grande ajuda. Bem, onde quer que o deixe?

        -       O meu carro está estacionado em frente do escritório de Peary.

        -       Quero dizer-lhe que lhe agradeço haver feito tão boas suposições a respeito do que devia ter-se passado aqui, mas não posso deixar de lhe afirmar que não acredito que fosse apenas uma suposição. Você sabe mais alguma coisa e gostaria que pusesse as cartas na mesa comigo.

        Eu considerara-o amigável, ineficiente, um bocado mole, mas de hora para hora ia modificando a minha opinião. Julgava Prine perigoso, afinal ele não passava de um cretino, com o capitão Marion é que poderia haver problemas.

        -       Não estou a ocultar coisa alguma, capitão.

        -       George morreu, Grassman desapareceu, descobrimos os dois corpos enterrados e agora Fitzmartin fugiu. Preciso de relacionar tudo isto para me sentir melhor.

        -       Lamento não o poder ajudar.

        -       E eu lamento que você não queira, meu rapaz. Boa noite.

        O carro afastou-se. Passava das dez da noite, e eu sentia-me esfomeado. Daí a doze horas iria buscar Antoinette e com sorte dentro de mais doze já não estaria ali. Ou com ela ou sozinho, não fazia ideia alguma como seria. Não sabia se se tratava de uma forma de monomania, mas a verdade é que pensara demasiado tempo nesse dinheiro, há muito que tentava alcançá-lo. Uma vez que o tivesse em meu poder, talvez me fosse possivel voltar a reflectir com clareza. Encontrei um pequeno restaurante e estava a terminar a ligeira refeição quando entrou Brubaker. Sentou-se a meu lado, no balcão, e começou a folhear a ementa.

-       Um dia que nunca mais acaba - disse.

        -       Pois foi - concordei.

        -       E ainda não terminou. Pelo menos, deram-me tempo para vir comer, depois volto para o trabalho, até só Deus sabe quando.

        -       Mas o capitão Marion disse que iam esperar que alguém apanhasse Fitzmartin.

        -       Mas é por causa da rapariga.

        Subitamente senti-me gelar.

        -       Que rapariga?

        -       Julguei que soubesse. Ruth Stamm desapareceu. Peary trouxe-a para a cidade e deixou-a junto do carro dela, que foi mais tarde encontrado em North Delaware. Desde então, mais ninguém a viu. O pai está de cabeça perdida e toda a gente anda a correr em círculos.

        Não conseguia engolir opedacinho que tinha na boca nem era capaz de beber o café, foi como se a garganta se tivesse fechado. Pensava quando seriam eles capazes de relacionar o desaparecimento da Ruth com Fitzmartin e lembrei-me de que ela se mostrara calada e pensativa ao sair do lago. Devia ter-se recordado de que Fitzmartin procedera estranhamente, mas não sabia que ele era um assassino. Ruth era o género de pessoa que iria fazer investigações por conta própria e teria sido muito capaz de ir falar com Fitzmartin, subestimando a sua astúcia. Este não levaria muito tempo a saber que tinham descoberto o carro e que estavam a revistar a área da cabana do lago, concluindo daí que chegara a altura de partir, o que o fio começava a esticar de mais. Eu podia calcular o que se passara com Grassman. Como resultado das suas calmas investigações, o detective conseguira, por certo, imaginar o que se passara, e fizera uma visita a Fitzmartin. Talvez quisess

e receber parte do dinheiro e possívelmente teria revistado o barracão onde Fitzmartin vivia, enquanto este se encontrava fora, descobrindo a grande quantia que ele extorquira a George Warden. Provavelmente, Fitz fora encontrá-lo, matara-o e em seguida levara o corpo para a cidade e metera-o no meu carro.

                Pela violência da pancada que matara Grassman, podia concluir-se que a morte não fora premeditada por Fitz, que a partir desse momento, ficara mais profundamente envolvido no caso. Esperou que eu fosse preso, acusado da morte de Grassman, e quando isso não sucedeu percebeu que eu conseguira livrar-me do corpo. Ninguém o descobrira no meu carro e assim, se acabasse por ser encontrado, podia ser tão facilmente relacionado com ele como comigo.

                Supondo-se que poderia ser interrogado a respeito de Grassman, George passou a ser o ponto fraco, pois, se falasse, poderia revelar os motivos de Fitz para matar o investigador e assim tinha de morrer. Fitz assassinara-o ousadamente, correndo riscos, mas saíra-se bem, e Prine raciocinara com lógica a respeito da toalha.

                Justamente na altura em que Fitz pensa que estava tudo bem encaminhado para fugir, aparece Ruth Stamm. Ele sabe que não pode partir sem que a rapariga dê imediatamente o alarme e, por outro lado, precisa de tempo suficiente para se afastar antes que alguém faça a mesma suposição que ela. Isso dava-lhe apenas duas alternativas: podia amarrá-la e deixá-la ali, mas isso seria uma clara confissão de culpa, ou levá-la com ele, o que se tornaria perigoso e difícil. Por isso, o melhor seria matá-la: mais uma morte não faria qualquer diferença, se viesse a ser apanhado.

                -       Você está a suar - observou Brubaker - e não há aqui tanto calor assim.

                Consegui esboçar um Sorriso, despedi-me, paguei a conta e saí. Imaginava-a morta, com o cabelo ruivo

e molhado pela terra húmida, na noite fria. O que mais me chocava era aquela terrivel sensação de perda, e isso fez-me perceber que subestimara o que ela significava para mim. Contudo, não compreendia como podia ser tanto em tão pouco tempo, mais do que Charlotte alguma vez fora.

 

        Dirigi-me directamente para a esquadra e pedi para falar com o capitão Marion. Este, que parecia mais velho e mais cansado, concordou com as minhas palavras, sem mostrar surpresa.

        -       Ruth conhecia muito bem George - disse ele - e possivelmente recordou-se de qualquer coisa que ele dissera sobre Fitzmartin, pelo que decidiu ir investigar por conta própria.

        -       Pensei nisso, Howard, e não me agrada nada a ideia. Mandei homens para a serração a fim de passarem revista a tudo. Lembrei-me também de outra coisa:

talvez Grassman tivesse adivinhado, e provavelmente por isso sucedeu-lhe algo de mau. Obrigado por ter vindo aqui, Howard. Parece-me que consegui relacionar os factos e não me agradam as conclusões.

        -       Posso ajudar de alguma maneira?

        -       Você está exausto, vá dormir um bocado.

        -       Não creio que consiga dormir.

        Meti-me no carro e dirigi-me para o motel. Já não me parecia importante ir encontrar-me com Antoinette na manhã seguinte. Fora para Hillston, a fim de descobrir um tesouro e julgara ir encontrá-lo enterrado no solo, mas afinal achara-o a andar de um lado para o outro, com cabelos ruivos, olhos cinzentos e muito orgulho. E não o reconhecera, procedera tolamente, tentara fazer o papel de um ladrão, mas não fora capaz, nunca seria, o dinheiro nada significava e Ruth significava tudo. Tivera uma oportunidade e perdera-a, e ninguém tem duas.

        Parei o carro em frente do meu quarto. O escritório da recepção estava às escuras, o letreiro de Não Há Vagas iluminado. Um débil luar alumiava os carros ali estacionados.

        Abri a porta com a minha chave e entrei, estendendo a mão para o comutador, mas algo saiu da escuridão, atingindo-me no queixo. A dor invadiu-me e fez-me ver as estrelas, enquanto milhares de campainhas tocavam nos meus ouvidos. Depois, mergulhei na inconsciência. Recuperei os sentidos num sítio brilhantemente iluminado, e ao abrir os olhos vi apenas essa claridade forte. Depois, voltei a fechá-los, a luz fazia-mos arder. Tinha as mãos presas atrás das costas, encontrava-me numa posição forçada e algo macio me enchia a boca, mantendo-a aberta.

        Abri novamente os olhos, piscando-os e vi que estava na pequena casa de banho do quarto do motel, onde fora estendido no chão, de lado. Earl Fitzmartin sentava-se na beira da banheira e fitava-me com os seus olhos cor de fumo. O seu cabelo claro, descolorido, apresentava-se desgrenhado e apercebi-me imediatamente de que ele ultrapassara o vago limiar da sanidade mental, o que me fez sentir como se estivesse numa jaula com um animal.

        Fitzmartin levantou-se, baixou a tampa da retrete, inclinou-se sobre mim e com uma facilidade desconcertante ergueu-me e colocou-me sobre a tampa, segurando-me por um momento até ter a certeza de que eu não cairia para a frente. Depois voltou a sentar-se na beira da banheira, na minha frente.

- Vamos falar apenas num murmúrio, Tal, não iremos fazer quaisquer ruídos súbitos. Se isso acontecer, quebro-lhe o pescoço, não é difícil. Diga que sim com a cabeça se estiver disposto a manter-se calado.

        Eu acenei afirmativamente e Fitz tirou uma navalha do bolso, abriu-a e inclinou-se novamente sobre mim. Pôs a lÂmina fria contra a minha cara, mantendo-a ali, sorrindo de um modo estranho e depois cortou rapidamente o fio que prendia o esfregão que eu tinha na boca. Consegui então cuspi-lo e o pedaço de trapo caiu no chão aos meus pés.

        -       Onde está Ruth?

        -       Isso é um pouco alto de mais. Não muito, mas um pouco. Calma, Tal. Ruth está bem.

        -       Graças a Deus.

        -       Graças a Deus não, graças a mim. Eu é que tive a ideia, não foi Deus. Ela estava estendida no solo, de cara para baixo, apagada como uma luz. Peguei naquele belo cabelo ruivo com a mão esquerda e com a direita, aproximei esta navalha bem afiada da garganta de Ruth. Ia cortar-lha quando de repente pensei que aquela mulher ainda me podia servir para alguma coisa, por isso não a matei. Ela está bem, mas não agradeça a Deus, antes a Earl Fitzmartin. Ruth não estará confortável, nem feliz, mas está viva, Tal.

        -       Onde a prendeu?

        -       Não se encontra a mais de meia milha daqui no campo, mas não digo em que direcção. Fui treinado para lutar de noite, movo-me bem, Tal, e sou eficiente. Lembra-se de como eu costumava andar à noite pelo campo? Ela ficou bem amarrada, não se pode mexer, nem emitir um único som. Está preocupado com ela, não é verdade, Tal? Ruth apareceu na serração, queria ter uma conversa comigo. Encontraram os corpos?

        -       Levantaram o pavimento da garagem.

-       Agora podem perguntar tudo a George, mas ele nada dirá, não poderá proferir uma palavra. Já pouco possuía, apenas alguns lucros da serração e um pouco proveniente das mercadorias existentes na loja, mas os seus bens valeram-me quarenta e sete mil e setecentos dólares. Podia ter entrado na dança e tentado arranjar mais mas não quis, era egoísta. Desse modo ainda viveria.

        - Você matou-o.

        - Falou um pouco alto, Tal. Mais baixinho. Que tal vão as coisas a respeito de Cindy? Já a encontrou?

        -       Correu um grande risco ao matar George.

        Ele sorriu outra vez.

        -       Você não vai acreditar, Tal, mas eu não o matei. começou a recobrar a consciência quando o estava a despir, mas eu dei-lhe mais vinho. Li que as pessoas se afogam, cortam as veias e disparam sobre si nuas. Sabia iSSO? Muito interessante. Sentei-o na beira da cama e meti-lhe o cano da arma, embrulhado na toalha, entre os dentes. A arma era praticamente a única coisa que o amparava, enquanto eu procurava que o Ângulo fosse adequado para disparar quando houvesse muito barulho. Mas desejava fazê-lo, Tal, planeia-se uma coisa, ela sai bem e deseja-se completá-la. De repente, George abriu os olhos e fitou-me. Tinha um aspecto ridículo, com a arma na boca. Olhou-me, meteu o dedo grande do pé no gatilho e puxou antes que eu fosse capaz de o deter. Não sei se foi um acidente. Que acha?

-       Penso que o fez de propósito.

        -       Também eu, também eu, e acho isso um pouco estranho. Talvez ele o tenha feito como uma brincadeira, mas saiu-lhe bem. Também poucas mais coisas fez bem na vida, não acertou ao casar com aquela mulher nem quando a enterrou. Julguei ter encontrado os sessenta mil dólares na altura em que comecei a cavar debaixo dos pinheiros, mas, afinal, era a mulher e o caixeiro-viajante. Fiquei desapontado, Tal, embora ao fim e ao cabo fosse como se tivesse encontrado dinheiro.

        -       Andam todos à sua procura agora.

        -       Julga que isso me preocupa? Não, nem um bocadinho. Talvez você é que se devesse preocupar. Onde está Grassman? Não pensei que conseguisse livrar-se dele, surpreendeu-me um pouco, Tal. Que lhe fez?

        -       Escondi o corpo num celeiro abandonado.

        -       E aposto que suou um bocado. Grassman era esperto, pertencia ao meu tipo, não ao seu. Relacionava as coisas e tratava-se de um verdadeiro profissional. Pensou no caso e foi procurar o dinheiro, sabia que eu o teria algures, que era demasiado esperto para o gastar. Apanhei-o a procurá-lo e tivemos uma pequena conversa. Ele mostrou-se agressivo, enfureceu-me e bati-lhe com demasiada força, o que complicou tudo. Meti-o no meu carro, mas não sabia onde havia de o deixar. Pensava num atalho, numa ruela qualquer, para pensarem que fora atacado naquele local, até que encontrei o seu carro por acaso, o que me poupou muito tempo. Depois de matar Grassman sabia que precisava de neutralizar George, ele era o único que podia fazer com que me relacionassem com o investigador. Foi necessário muito planeamento e alguma sorte, por isso não tive tempo para tratar do caso de Cindy. Como vai o assunto?

        Estava a ver o que se passava. George podia ligá-lo a Grassman e fora morto; eu, que podia relacioná-lo com ambos, só através da sua avidez pelo dinheiro é que poderia ganhar tempo, conservar-me vivo.

        - Encontrei-a - disse.

        Ele esteve calado durante dez segundos, depois comentou

        - Cento e sete mil soa melhor que quarenta e sete. Creio que será melhor arranjar essa quantia antes de partir, Tal.

        -       Eles vão apanhá-lo.

- Não creio, não imagino as coisas assim. Podiam apanhar-me se eu tivesse cortado a garganta à rapariga, nessa altura eles ter-me-iam perseguido implacavelmente, mas agora pode trocar as informações que obteve por ela, Tal. Se Ruth nada significa para si, é pena. Posso matá-lo já aqui e depois ir matá-la a ela, fugir e arriscar-me. Não posso deixá-lo aqui para contar à Polícia o que se passou com George e de Grassman e procurar depois os sessenta mil. Prefiro que ninguém os encontre.

        -       Mas, de qualquer maneira, alguém acabará por

achá-los. A rapariga sabe onde está o dinheiro. Irá buscá-lo.

        - Onde está, Tal?

        - Ela não me disse. Eu contei-lhe demasiadas coisas, não consegui arranjar outra saída. Ela... ela é mais parecida consigo, Fitz. Vou buscá-la amanhã de manhã a Redding, às dez horas. Depois irá comigo ao sítio onde o dinheiro se encontra escondido.

        Fitzmartin sorriu com uma expressão selvagem desagradável.

        - Está a querer aldrabar-me, bem percebo, pretende ganhar tempo. Assustei-o e tentou arranjar uma história. Sabe que irá buscar o dinheiro amanhã, mas ainda ignora onde ele está, sendo assim eu terei de o deixar e por isso inventou essa história.

        -       É a verdade.

        -       Não acredito, tenho a impressão de que não tem qualquer pista. Creio que já me demorei muito aqui e sinto vontade de ouvir o seu pescoço a partir-se. Posso fazê-lo tão depressa que nem dá por isso.

        -       Ouça, vá ao armário do meu quarto. As malas dela estão lá.

        Pela primeira vez, Fitz mostrou-se hesitante. Fechou a luz da casa de banho, entrou no quarto, voltou com as duas malas e acendeu novamente a luz. Abriu-as e olhou para as roupas.

-       Isto é bom. É dela? Porque as trouxe para aqui?

        -       Tencionávamos desenterrar o dinheiro e fugir nós dois. Percebi que ela avaliava a minha declaração e que parecia quase convencida a aceitá-la.

        -       Não me agrada a ideia de o deixar ir buscar o tesouro. Não o posso vigiar.

        - Fitz, ouça-me. Não quero saber do dinheiro, pode ficar com todo depois de eu o descobrir, troco-o por Ruth Stamm. Você ficará com os cento e sete mil dólares. A Polícia pensa que o George se suicidou e talvez nunca encontre Grassman. Eu cobri o corpo com feno, o celeiro está prestes a cair em ruínas e ninguém vai para aqueles sítios. Não o procurarão com muita insistência. Ficará muito mais seguro.

        -       Está a mentir, só quer é demorar-me.

        -       Não estou. Provo-lhe que íamos fugir juntos quando tivéssemos o dinheiro. Veja a pequena caixa preta que se encontra no fundo da mala mais pequena, debaixo da roupa. Sim, é essa. Veja sob a divisória.

        Fitz tirou o dinheiro da caixa, contou-o, dobrou-o e guardou-o no bolso da camisa. Olhou para mim durante muito tempo, com olhares desconfiados.

        Não gosto de pensar na meia hora que se seguiu. Ele voltou a colocar-me a mordaça. Tinha as suas mãos fortes, a pequena navalha afiada e um conhecimento sádico do sítio dos nervos. De tempos a tempos, esperava que eu acalmasse, depois tirava-me a mordaça e interrogava-me. A dor e a humilhação faziam-me chorar como uma criança e cheguei a desmaiar. Por fim, ficou satisfeito. Sabia como Ruth era importante para mim; sabia que era preciso ir de barco até ao sítio onde o dinheiro estava escondido; sabia que eu planeara partir da casa dos Rasi, a norte da cidade; e sabia também que eu ignorava tudo o mais. Depois disso cortou a corda que me prendia as mãos. Estava perfeitamente seguro, pois eu ficara tão enfraquecido pela dor que não podia representar qualquer ameaça para ele.

        -       Vai desenterrar o dinheiro, trazê-lo para aqui e entregar-mo.

        -       Não.

Fitz deu meio passo para mim e não pude deixar de me encolher. A recordação daquilo que ele podia fazer era demasiado clara.

        -       O quê?

        -       Não confio em si, Fitzmartin. Primeiro preciso de saber que Ruth está bem, tenho de ficar certo de que ela se encontra em segurança, ou não lhe darei o dinheiro.

        -       Já viu o que lhe posso fazer. Quer que vá mais longe?

        -       Não creio que seja capaz disso. - ele encolheu desdenhosamente os ombros.

-       Como quer então combinar o que faremos?

        -       Quero vê-la, saber se está viva antes de lhe entregar o dinheiro. Pode ser junto do rio e nessa altura, se vir que me enganou, atirarei o dinheiro para a água, juro que o farei.

        -       Seria capaz disso, não? Está a ser duro. Não posso arriscar-me a ser visto.

        -       Vou ver se partimos no barco às treze horas. Não sei se é longe, nem quanto tempo demoraremos. Pode levar Ruth a casa dos Rasi, às catorze.

- É um risco.

        -       A casa fica isolada, não há telefone, pelo menos estou convencido disso. Dar-lhe-ei o dinheiro e farei com que possa ganhar algum avanço. A partir daí tornarei as coisas seguras para si.

        -       Mas promete dar-me um bom avanço?

- Prometo.

        Fitz fechou a luz da casa de banho, ouvi a porta abrir-se e depois a que dava para a rua abrir-se também e fechar-se logo a seguir. Cambaleei pelo quarto escuro até junto da janela. A lua desaparecera e o vento bramia através dos arbustos baixos do outro lado da estrada. Não havia qualquer sinal que Fitzmartin tivesse estado ali, tudo permanecia silencioso. Ele era eficiente na noite, não me podia esquecer disso.

        Tinha um estojo de primeiros socorros na mala do meu carro e fui buscá-lo. Os pequenos cortes não tinham sangrado muito. Lavei-os e desinfectei-os. O corpo doía-me todo, sentia-me doente e fraco como se estivesse a convalescer de uma longa doença. Não podia deixar de pensar nos olhos dele e as suas mãos poderosas haviam-me magoado nervos e músculos, até os ossos me doíam. Deitei-me com a certeza de que Ruth ainda estava viva. Esperava que a avidez de Fitzmartin pelo dinheiro fosse mais forte que o seu desejo de matar, e tinha esperança de que essa avidez durasse toda a noite. Contudo, os seus pensamentos pareciam divagar, havia incoerência na maneira como ele falava, saltando de um assunto para outro.

        Tentei imaginar onde teria ele sequestrado Ruth. A meia milha de distÂncia, no campo, dissera. Talvez se encontrasse no carro dele, que devia estar estacionado numa qualquer das muitas estradas secundárias, ou, provavelmente, descobrira algum barracão abandonado.

        Enquanto eu me conservava estendido na cama, acordado, tentando arranjar uma posição em que me sentisse mais confortável, ouvi começar a chover. A chuva foi leve de início, um mero sussurro, mas de repente passou a cair com muita força, martelando o telhado. Encharcava o mundo, fazendo saltar a tinta dos carros e caindo como se todas as portas do céu se tivessem aberto.

 

        Acordei de madrugada. Continuava ainda a chover e parecia-me que ainda mais do que de noite. Fiquei surpreendido por ter conseguido dormir. Tomei um duche quente para suavizar os músculos rígidos, mas os pequenos cortes ardiam-me e o meu rosto, no espelho, parecia-me o de um estranho: olhos encovados e faces pálidas, tensas.

        Rezei para que Ruth continuasse ainda viva, para que tivesse resistido à noite. Sabia muito bem qual seria a minha situação se, na noite anterior, não houvesse já descoberto Cindy: estaria estendido no chão da casa de banho, morto, encontrar-me-iam ali.

        Barbeei-me, vesti-me e saí do motel, molhando-me só de atravessar o curto espaço que me separava do carro. Conduzi lentamente para a cidade, com os faróis acesos, tentando ver através da pesada cortina de chuva. Encontrei um posto de gasolina e parei para atestar o depósito. Mais adiante, descobri um desses pequenos cafés que permanecem abertos toda a noite. Por trás do balcão havia um rádio e o locutor de uma pequena estação emissora de Redding transmitia o noticiário.

quanto ao desaparecimento de Ruth Stamm, filha única do doutor Buck Stamm, de Hillston, julga-se que a jovem tenha sido raptada por um homem chamado Earl Fitzmartin, veterano e ex-prisioneiro da guerra, que trabalhou durante o último ano para George Warden, homem de negócios de Hillston. Fitzmartjn chegara a Hillston há um ano e George Warden suicidou-se esta semana, mas certas peculiaridades respeitantes às circunstÂncias em que ocorreu o suicídio levam a Polícia de Hillston a desconfiar de crime. Ontem, a Polícia de Hillston, ajudada pela de Gordou, passou revista a uma vivenda de Verão outrora propriedade de George Warden e encontrou, debaixo do cimento da garagem, os corpos de Eloise Warden, mulher de George, e de Henry Fulton, de Chicago. Na altura do desaparecimento da mulher de Warden, há dois anos, pensou-se que ela fugira com Fulton, mas a descoberta dos dois corpos e do carro deste, que foi atirado para o lago, num ponto onde a água é profu

nda, levou a Polícia a supor que George Warden os matou a ambos quando os encontrou juntos na cabana do lago.

        "Estão a ser feitas buscas intensivas para descobrir Fitzmartin e Miss Stamm. Ainda não temos pormenores completos sobre o caso, mas julga-se que há alguma ligação entre Fitzmartin e os corpos descobertos ontem na garagem. Espera-se que as autoridades federais sejam hoje chamadas para investigarem o caso. Miss Ruth Stamm tem vinte e seis anos, mede um metro e cinquenta e seis centímetros de altura e pesa cerca de cinquenta e quatro quilos. Tem cabelo ruivo escuro, olhos cinzentos e quando foi vista pela última vez vestia uma saia verde-escura e uma camisola branca. Fitzmartin, que tem o cabelo muito louro, quase branco, e olhos cinzentos, aparenta cerca de trinta anos, deve ter um metro e setenta de altura e pesa mais de oitenta quilos. Pode estar a conduzir um Ford preto, com a matrícula seis, sete, zero, seis, três. Quem vir pessoas com estas particularidades deve contactar imediatamente a Polícia. Ouçam o noticiário das oito para saberem mais por

menores.

        O locutor parou, assobiou suavemente e disse;

        -       E esta, amigos? Dão-me estas coisas para ler e eu às vezes nem ouço o que digo. Mas desta vez as notícias são escaldantes. Corpos enterrados debaixo de uma camada de cimento, carros em lagos, suicídios que são crimes, uma ruiva e um ex-veterano de guerra! Que grande confusão vai por Hillston, que parece querer ser eleita a capital do crime. Bem, antes de voltar ao assunto deixem-me aludir a algo que os interessará a respeito da Lavandaria Atlas, aqui, em Redding, na Downey Street. Se têm realmente orgulho nas vossas roupas, então devem...

        A rapariga gorda que estava ao balcão desligou o rádio.

        -       Que gente! - disse voltando-se para mim com modos afáveis. - Entre cada número são dez minutos de anúncios. Põem-me maluca. Só queria ouvir as notícias, mas, se quiser, eu volto a ligar. Ou se preferir outro posto...

        -       Não, obrigado.

        -       Que me diz a essa tal Ruth Stamm? Encontrei-a uma vez, fui lá com o meu cão. Foi atropelado aqui na estrada e levámo-lo à clínica. A rapariga mostrou-se muito simpática e é bonita. Mas o pobre Blackie não pôde ser tratado, ficou com a espinha quebrada e teve de ser abatido. Eu até chorei. E sabe o que penso? Que a rapariga fugiu com o tipo, já não era muito nova. Quando souber dos problemas que está a causar, contacta com o pai. Pode muito bem ser isso.

        - Pode - respondi eu.

        - Claro que sim. Deseja mais café? às vezes chego a pensar que seria capaz de fugir com quem me pedisse só para sair daqui. Estou nos meus dias maus, sabe? É por causa da chuva. Se continua a cair assim ainda acaba por haver inundações. Causa-me calafrios pensar naqueles dois enterrados debaixo do chão da garagem. Eu nunca a vi, mas a minha irmã conhecia-a, foi colega dela na escola antes de eu lá andar, e diz que era muito sabida. A minha opinião, senhor, é que quando um marido encontra a mulher com outro tem o direito de os matar, é uma espécie de lei não escrita. Quando casar não enganarei o meu marido. Acho que isso não fica tão mal a um homem, são todos iguais, desculpe, mas uma mulher casada não tem o direito de proceder dessa maneira. O grande erro dele foi enterrar os dois, como fez, devia antes ter ido ao telefone, chamado a Polícia e dizer-lhes que viessem ver o que fizera e porquê. Nessa altura a prisão dele não pass

aria, por assim dizer, de uma mera formalidade. Segundo a minha opinião...

        Fui salvo por dois motoristas de um grande camião vermelho, que parara em frente do café. Quando ela acabou de os servir e se aproximou de novo de mim já eu me preparava para sair.

        Ao dar-me o troco ainda acrescentou:

        - Lembre-se do que eu lhe estou a dizer, a rapariga e o homem estão em qualquer sítio. Conduza com cuidado.

        Continuava a chover e os carros que eu encontrava avançavam cuidadosamente. Já devia ser dia, mas a chuva fazia com que a claridade pouco tivesse aumentado desde a madrugada. Eram quase nove horas quando cheguei a Redding. Parei o carro perto de um drugstore onde havia uma cabina e marquei o número do telefone de Antoinette Rasi.

        Ela atendeu imediatamente.

        - Está?

        - Daqui fala Tal.

        - Enganou-se no número.

- Estarei aí às dez, como disse.

        -       Não tem importÂncia.

        Antoinette desligou e percebi que se encontrava alguém com ela, pois respondera como se eu tivesse pedido desculpa. Fiquei a pensar se estaria livre para sair às dez e não sabia se havia de experimentar outra vez. Fui ao balcão do drugstore tomar um café, e vi que a loja ia ficando deserta à medida que as pessoas saíam para irem para os seus empregos. Comprei um jornal de Redding onde a descoberta dos corpos era narrada com grande realce. O artigo dizia um pouco mais do que o noticiário da rádio, mas, no essencial, não adiantava mais nada.

        às nove e meia tentei outra vez, e ela atendeu ao segundo toque.

        - Está?

        - Tal outra vez.

        -       Sim?

        -       O que se passa? Vamos, ou não? Devo estar aí às dez?

        - No próximo sábado? Não. Lamento imenso. Estou ocupada.

        - Encontro-me numa cabina, o número éo quatro, seis, zero, quatro, zero. Espero aqui o seu telefonema.

        -       Não, lamento, talvez noutra altura. Telefone-me.

        -       Fale logo que possa.

        - Muito obrigada. Adeus.

Sentei-me numa mesa perto do telefone, continuei a ler o jornal e pedi outro café. Esperei. Duas pessoas utilizaram a cabina e já eram quase dez quando ela ligou.

        - Está?

        -       É você, Tal? Não pude falar antes. Ainda bem que telefonou. Venha às dez e um quarto. Que horas tem?

        - Exactamente dois minutos para as dez.

        -       Não estacione junto da porta das traseiras. Pare a um quarteirão de distÂncia e não desligue o motor. Quando me vir aparecer ponha o carro em andamento, abra a porta e não perca tempo a afastar-se.

        Comecei a sentir-me ainda mais nervoso. Não sabia em que é que Antoinette se encontrava metida, calculava apenas que os "seus amigos" eram pessoas sem escrúpulos e também não fazia ideia se ela estaria de facto a ser vigiada muito de perto.

        A chuva começara a diminuir um pouco. Parei a um quarteirão de distÂncia do prédio onde ela vivia, não desliguei o motor e olhei para o relógio. Quando eram exactamente dez e um quarto pus o carro em andamento, lentamente. Vi um homem, de gabardina, parado em frente da porta das traseiras do edifício, encostado a uma cabina telefónica.

        Quando me aproximei do prédio, vi-a sair a correr e abri a porta do carro. Vestia um casaco e um chapéu preto com véu e trazia na mão uma pasta castanha.

        - Depressa! - ordenou ela, com uma voz aguda, assustada.

        Aumentei a velocidade e ela olhou para trás.

        - Depressa! Ele está a correr para o carro que se encontra estacionado em sentido contrário. Colocaram um homem nas traseiras, só ontem à tarde é que me apercebi disso.

        O sinal vermelho caiu no semáforo e havia muito trÂnsito, mas passei mesmo assim. Pneus rangeram e buzinas tocaram indignadamente. Consegui passar noutro semáforo com luz verde, enquanto ela continuava a olhar para trás. Levei quinze minutos para atingir a estrada do sul, em direcção a Hillston.

        Então pude descontrair-me um pouco e observei Antoinette. Tinha um olho inchado e escuro e uma nódoa negra na face. Lembrei-me de ela ter faltado à escola durante uma semana por o irmão lhe ter posto um olho assim.

        -       Que aconteceu à sua cara? - perguntei.

-       Aborreceram-se comigo e maltrataram-me um pouco.

        -       Em que tem andado metida?

- Não se preocupe com iSSO.

        - Mas eu não sabia os riscos que vinha correr.

        -       Não é você que os corre, sou eu. Eles não queriam que eu partisse. Se alguém os deixa receiam logo que haja uma denúncia e que apareça um comité de investigações. Foram descuidados, eu fiquei a saber demasiado, por iSSO, tinham um problema: ou me matavam ou me vigiavam. Resolveram vigiar-me. Creio que sou estúpida, tinha uma boa vida e julgava que me podia vir embora em qualquer altura. Ignorava que eles jogavam tão forte. Se soubesse que eram capazes de se mostrarem tão duros não teria ido tão longe.

        -       Então não pode voltar.

        - Claro que não, mas não se preocupe. Guie o mais depressa que puder.

        Antoinette mudara naqueles poucos dias. Quando a vira era uma pessoas cheia de arrogÂncia e de confiança em si própria, parecia até divertida, mas isso desaparecera, agora mostrava-se azeda, assustada e sombria.

        Continuei a conduzir o carro. A chuva parara finalmente, mas o céu estava amarelado. As valetas da estrada pareciam riachos. Atravessámos uma aldeia, onde crianças brincavam no pátio da escola, sob o céu pardacento.

        Não gostava do que tinha de fazer a Antoinette. Ela confiara em mim, mas não podia saber que a situação se alterara. Ignorava que eu estava disposto a traí-la... mas que era obrigado a fazê-lo. Sabia que não me era possível levá-la ao motel, pois ela quereria logo as suas bagagens, verificar se ainda estava o dinheiro, e eu não podia dar-lhe qualquer explicação.

Iria trai-la, mas aquele dinheiro resgataria a vida de Ruth. Afigurava-se-me fantástico que eu tivesse considerado a hipótese de fugir com aquela mulher que ia sentada ao meu lado, com as mãos a apertarem nervosamente o tecido escuro da saia, e ainda mais fantástico que me encontrasse envolvido em tudo aquilo. Charlotte pertencia ao passado. Quando eu saira do hospital estava só meio vivo, agora sentia-me completamente vivo, sabia o que queria e porquê, e que faria tudo para o obter.

        -       Fala a sério quando diz que eles seriam capazes de a matar? -perguntei.

Ela riu, uma gargalhada curta, sem alegria.

        -       Eu sei onde o corpo está enterrado. Já alguma vez ouviu esta expressão? Fui a uma festa onde não queria ir, sabia que não iria correr bem e não correu. Foi morto um homem por minha causa, embora eu não tivesse culpa. Não era mau tipo, jovem, rico, gostava de andar metido naquele meio, de tratar pelo primeiro nome fulanos que tinham saído da cadeia. Sentia prazer em não pagar as multas do carro. Um estróina, sabe? Mas morreu estupidamente, um tipo, também muito importante, deu-lhe um tiro na cabeça, foi uma espécie de acidente. Eu era a única estranha ao meio e sei onde o puseram. A família dele gastou uma fortuna, nos últimos cinco anos, para tentar descobri-lo e ainda estão a procurá-lo. Foi muito mau na altura, eu nunca estivera metida numa coisa daquelas.

        -       Els seriam capazes de a matar?

        -       Se pensaram que eu vou falar, e se tiverem oportunidade para isso. Não lhes faria grande diferença e ninguém se importaria com a minha morte, mas com o rapaz foi diferente. O homem que o matou estava embriagado, e eu tinha ido com ele. O rapaz pensou que ele se achasse demasiado bêbado para se aperceber do que se passava à sua volta, ou para se preocupar com isso, e preparava-se para pôr os braços em torno do meu corpo quando o tiro o atingiu na cabeça. Nessa altura agarrou-se a mim com tanta força que, ao fim de uma semana, ainda me doía o peito ao respirar. Depois ele caiu, tentou levantar-se e, por fim, ficou estendido, morto. Isto passou-se numa quinta. Colocaram-no depois numa grande cisterna e cobriram-no com pedras.

        "Mandaram pintar o carro dele, mudaram-lhe a matrícula e venderam-no. Se nada suceder dentro de seis meses, mais ou menos, eles deixarão de se preocupar comigo, mas eu sei o que vou fazer; pinto o cabelo de louro e passo a usar óculos escuros. Vou mudar a minha aparência.

        Enquanto ela falava eu ia pensando na maneira de a afastar do motel e de me demorar o suficiente para chegar ao casebre dos Rasi às treze horas.

        Ela ajudou-me, dizendo subitamente:

        -       Que se está a passar em Hillston? Eloise e o amiguinho debaixo do cimento, essa tal Stamm desaparecida, George a suicidar-se! Parece que as coisas não vão bem por lá.

        -       Quero falar-lhe a respeito disso.

        Percebi que ela ficara desconfiada.

        -       Que quer dizer com isso?

        -       Sou um forasteiro na cidade e passaram-se ali factos estranhos. Eu nada tive a ver com coisa alguma, fui apenas um espectador, nada mais, mas a Polícia gosta de se manter ocupada. Creio que seria melhor não atravessarmos a cidade em direcção ao motel. Talvez seja melhor irmos buscar o dinheiro primeiro.

        -       Podem prendê-lo?

        -       Possivelmente.

        -       Mas porquê? Isso não me agrada. Se o apanham a si, eu sou também agarrada, e as notícias chegam depressa a Redding.

        -       Lamento, mas é assim.

        -       Não me agrada.

-       Nada posso fazer. Creio que é preferível irmos buscar o dinheiro e quando o tivermos podemos circundar a cidade e chegar ao motel pelo lado sul. Depois pegamos na bagagem e seguimos.

        -       Mas isso significa passarmos muito tempo na área com o dinheiro. Porque não damos agora a volta para ficarmos já com as malas no carro? Depois de desenterrarmos o "tesouro" partimos logo.

        -       A Polícia sabe onde eu estou alojado. Imaginemos que ficaram à minha espera para me apanharem?

        -       Que diabo, Tal Howard. Em que complicações se meteu?

        -       Não me meti em coisa alguma, mas estamos numa cidade pequena e eu sou um estranho. Eles perseguem um homem chamado Fitzmartin.

        -       Lembro-me desse nome, é o tal que também está informado da existência do dinheiro.

        -       Ele não sabe onde se encontra. Só você é que conhece o sítio.

        -       Porque o perseguem? Por causa da rapariga? Pensam que ele a raptou?

        -       E acham que exercia chantagem com George a partir do momento que descobriram os corpos de Eloise e do amigo. Julgam também que o matou e talvez um detective particular chamado Grassman.

        -       Um homem muito atarefado, já vejo.

        -       E desconfiaram de mim porque eu estive no campo de prisioneiros com Timmy e Fitzmartin.

        -       Eu sabia que isto ia correr mal, eu sabia...

        -       Não seja tão pessimista.

        -       Por que diabo não trouxe logo as bagagens consigo no carro? Porque não deixou o motel?

        -       Não pensei nisso.

        -       Você não parece pensar muito, pois não?

        -       Não se zangue, não serve de nada.

-       Está a complicar-se tudo. Mal me livro de um sarilho meto-me noutro- Isto dá vontade de rir.

                -       Acho que é melhor irmos buscar primeiro o dinheiro.

                -       Não posso ir assim. Não quero estragar estas roupas.

                -       Estragar as roupas? Aonde vamos?

                -       Não se preocupe com isso.

                -       Mas nas malas só tem... - calei-me tarde de mais.

                -       Então foi bisbilhotar - exclamou ela, vibrante de cólera. - Divertiu-se? Gostou do que viu?

- Coisas bonitas.

        - Sei que são bonitas. Nem sempre foi agradável ganhar o dinheiro para as comprar, mas são bonitas. Eu tenho bom gosto. Contou o dinheiro? Tem uma cor atraente, não acha? Verde.

                -       Contei-o.

                -       É bom que lá esteja, e as jóias também, todas elas. Muita gente pensa que se trata de quinquilharia, mas são verdadeiras, valem três ou quatro vezes mais que o dinheiro.

                -       Está tudo em segurança.

                -       É preferível que sim. Mas não posso ir com estas roupas, preciso de arranjar umas jeans. Pensei

comprá-las em Hillston, agora não podemos passar por lá. Onde havemos de ir?

                -       Você conhece a área melhor do que eu.

                - Deixe-me pensar um minuto.

                Antoinette disse-me aonde devia ir. Virámos à esquerda, para leste, vinte milhas a norte de Hillston, e metemos por uma estrada estreita e movimentada. A dez minutos ficava Westonville, uma cidadezinha feia com uma rua principal estreita. Dei a volta a um quarteirão até encontrar lugar para estacionar. Vi-a afastar-se do carro e os homens voltavam-se para a olhar... de resto fá-lo-iam sempre para verem aquela maneira de andar. Fui a um drugstore comprar cigarros e Antoinette reapareceu dez minutos depois, trazendo um saco castanho na mão.

        -       Pronto, já tenho o que preciso. Vamos.

        Voltámos para trás, seguimos em direcção à estrada de Redding, e a certa altura Antoinette disse:

        -       Arranje um sítio onde possa sair da estrada. Necessito de mudar de roupa. Talvez ali, à esquerda, por aquela transversal.

        Voltei para a pequena estrada que ela indicara, passámos por duas casas velhas, de campo, e fomos dar a uma zona arborizada. Entrei num atalho, senti as rodas deslizarem na lama e parei o carro depois de uma curva.

        Antoinette saiu, inclinou-se sobre o assento de trás e abriu o embrulho. Tirou de lá umas calças de um tom alaranjado-escuro, uns ténis baratos e uma camisola de algodão, de manga comprida. Em seguida despiu o casaco preto, dobrou-o cuidadosamente e colocou-o no banco de trás. A estranha claridade do céu pardacento filtrava-se através dos ramos das árvores e as folhas pingavam. Antoinette desabotoou a saia e tirou-a com toda a cautela, não dando o menor sinal de inibição por se despir à minha frente. Tanto lhe fazia que eu a olhasse ou desviasse o olhar. Dobrou a saia e colocou-a junto do casaco. Em seguida tirou a blusa, arrumou-a também e ficou parada por instantes, sob os ramos das árvores, apenas com um soutien e umas calcinhas brancas, sapatos pretos e um chapéu também preto na cabeça. Era simultaneamente provocante e ridícula. Por fim, livrou-se do chapéu.

        Olhou-me de soslaio e disse:

        -       Strip tease ao ar livre. Não ficou excitado?

        -       Não tem frio? - retorqui, iludindo a resposta.

        -       Sou um animal de sangue quente.

        Vestiu a camisola ordinária, enfiou as calças e puxou-as para cima, sobre as ancas largas, abotoando-as em seguida, com o fecho e botões. Sentou-se no carro, descalçou os sapatos e enfiou os pés nos ténis baratos.

        -       Há anos que não me vestia assim - murmurou.

-       Que tal me acha?

        Não lhe podia dizer como a achava, mas não parecia a rapariguinha que em tempos andava de bicicleta com Timmy. Ela talvez tivesse pensado que aquela roupa a fazia parecer mais nova e mais fresca, mas não, o seu corpo era demasiado maduro, a expressão muito sabida. Já passara a idade de poder vestir aquelas roupas e parecer mais nova.

        Percebeu, pela minha cara, o que eu estava a pensar.

        -       Não fico muito bem, calculo, nada bem, mesmo. Não precisa de fingir.

        - Está óptima.

        - Não seja tolo. Espere um minuto e depois podemos pôr-noS a andar.

        Antoinette afastou-se por entre as árvores até eu deixar de a ver e voltou pouco depois. Fiz recuar o carro e olhei para o relógio. O problema que se relacionava com o tempo considerava-o resolvido, pois já passava um pouco do meio-dia.

        Parei no pátio do casebre dos Doyle, a antiga casa dos Rasi onde Antoinette nascera. Vi que o rapaz acabara de pintar o barco.

        -       Isto é ainda pior do que aquilo de que eu me lembrava - murmurou Antoinette dirigindo-se para a entrada.

        As galinhas debicavam a terra e o cão abanou a cauda ao vê-la. Antoinette inclinou-se, acariciou-lhe o dorso e o animal abanou a cauda com mais energia.

        A irmã apareceu à porta com uma toalha suja na mão.

        -       Olá, Anita - disse calmamente Antoinette.

        -       Que estás aqui a fazer? Doyle não quer que venhas cá. Sabes iSSO.

-       Doyle que... - retorquiu Antoinette.

        -       Não uses essa linguagem ao pé dos miúdos.

        A criança que chorava da outra vez, quando eu ali fora, apareceu e agarrou-se às saias da mãe.

        -       És muito cuidadosa com os miúdos - disse desdenhosamente Antoinette. - Olá, Sandy.

        -       Olá - respondeu a garotita com voz abafada.

        -       Dás aos teus filhos uma casa tão agradável e tudo o mais, Anita.

        -       Dou-lhes o melhor que posso, o melhor que posso.

        -       Olha para a maneira como ela está vestida. Eu mandei-te dinheiro e podias gastar algum em roupas. Ou Doyle derrete-o em bebida?

        -       Não há razão para ela vestir as suas coisas boas aqui em casa. Que queres, afinal? - Apontou para mim. Ele veio perguntar por ti e eu disse-lhe onde te havia de procurar. Creio que te encontrou.

        -       Sim, na grande cidade do pecado. Vá, Anita, acaba com isso. Estás ressentida por não te teres lembrado de ires para lá. Agora tens o Doyle, e olha para ti: gorda, feia e porca.

        A garotita começou a chorar. Anita voltou-se, deu-lhe uma bofetada e mandou-a ir para dentro. Depois fitou Antoinette, muito pálida.

        -       Não podes entrar em minha casa.

        -       Não pensaria em pôr os pés nesse casebre, Anita. Onde estão os remos?

        -       Para que OS queres?

        -       Vou levar aquele barco. Há uma coisa que quero mostrar a este amigo meu.

        -       Que estás a dizer? Não podes servir-te de nenhum dos barcos.

        -       Talvez queiras impedir-me de o fazer? Vou levar um.

        -       Se vais para o rio hoje, afogas-te. Olha bem para ele.

Voltámo-nos e olhámos para as águas cinzentas, que corriam agitadas e espumosas, com um aspecto quase ameaçador.

        - Tenho estado metida em coisas piores e tu bem o sabes. O barracão está fechado?

        - Não - respondeu com mau modo Anita.

        - Vamos, Tal - disse Antoinette.

        Segui-a até ao barracão, e ela escolheu dois remos, medindo-os para ver se eram iguais. Depois aproximámo-nos do barco virado, endireitámo-lo, apesar de ser pesado, e experimentámos meter os remos na forqueta, para ver se serviam.

        Antoinette colocou-se de um dos lados do barco e eu do outro, e fizemo-lo deslizar para a água, escorregando pelo terreno lamacento. Metemo-lo no rio e as vagas tumultuosas rodeavam-no, batendo no casco.

        Antoinette olhou para o rio. Anita observava-nos, da entrada, e a pequenita pálida espreitava atrás de uma janela com um vidro partido.

        - A corrente está forte - murmurou Antoinette. Não vamos ter dificuldade em chegar à ilha.

        - Ilha?

        - Ali em baixo. Vê? É para lá que vamos.

        A ilha ficava a trezentos metros de distÂncia. Devia ter uns cem metros de comprimento por metade de largura e era rochosa e arborizáda, dividindo o rio em duas estreitas áreas de turbulência.

        - Não creio que possamos voltar para aqui. Quando partirmos da ilha, teremos de ir até um ponto mais a jusante, deixar lá o barco e voltar a pé até ao carro, Depois dizemos à minha irmã onde ficou, para que possam ir buscá-lo quando o rio estiver mais calmo. A pior etapa vai ser a do princípio. Vamos seguir paralelamente à margem, Tal.

Tínhamos dificuldade em aguentar o barco e AntOinette escorregou na lama, caiu e praguejou. Eu segurava-o pela proa e a popa estava voltada, de modo a que descesse o rio.

        Antoinette entrou, colocou os remos na forqueta e Segurou-OS, fazendo-me sinal para que entrasse também. Fomos imediatamente apanhados pela corrente.

        - Quer que eu reme? - perguntei, elevando a voz acima do barulho das águas.

        - Eu estou habituada.

        A corrente ameaçava fazer o barco rodopiar mas ela controlou-o rapidamente, era hábil e competente. Quando nos aproximámos do local onde a corrente rápida se dividia, Antoinette mergulhou os dois remos na água e, com uma única remada forte, impeliu-nos directamente para a ilha.

        O barco embateu na margem e o casco roçou nos remos e nas pedras para ali levadas pela corrente forte.

        Antoinette foi a primeira a saltar, começando a puxar o barco para terra, e eu imitei-a. Os olhos dela tinham uma expressão triste e pensativa.

        - Costumávamos vir muitas vezes aqui. Siga-me. Obedeci-lhe. Passámos por entre um matagal denso e chegámos a um estreito atalho em declive. Ela e Timmy tinham ido muitas vezes à ilha e o mesmo sucedera a várias outras pessoas, que deixaram para trás latas de cerveja vazias e ferrugentas, garrafas partidas, pratos de papel sujos, maços de cigarro vazios e outro lixo.

        Antoinette caminhava rapidamente pelo atalho que subia entre rochedos e, chegando a um ponto alto, parou. Juntei-me a ela. Era o sítio mais elevado da ilha rochosa, talvez uns vinte metros acima do nível do rio, e encontrávamo-nos atrás de um muro de rochas natural que nos chegava à cintura. Via dali o casebre por entre as árvores.

        - Olhe! - exclamou Antoinette.

        Segui o seu gesto e vi um barco de fundo chato a descer o rio. Foi apanhado pela corrente e logo girou sobre si próprio, enquanto o homem que o tripulava, ajoelhado à popa, se servia de um único remo como leme. Conseguiu, por fim controlar a embarcação - um pequeno barco vermelho sob o céu pardacento, um rio tumultuoso, com um homem de cabelo claro a conduzi-lo. Aproximou-Se mais e eu reconheci- ao mesmo tempo que ele olhava para cima e nos via, recostados contra o céu pardo. Depois, as árvores anãs ocultaram-no.

        - Desembarcou na ilha - disse Antoinette.

        Eu sabia que ele o fizera, que nos vira. Calculava que tinha arranjado um barco e ficava à nossa espera na margem oposta. Fitzmartin não quisera correr o risco de confiar em mim, ou talvez não pudesse. Possivelmente, Ruth estaria morta.

        - É Fitzmartin! - exclamei.

        Ela fitou-me com dureza.

        - Foi você que preparou isto?

        - Não, acredite que não.

        - Que sabe ele? Porque nos seguiu?

        - Deve ter calculado que vínhamos procurar o dinheiro

        Ela encostou-se calmamente a uma rocha e cruzou os braços.

        - Está bem, Tal, acabou-se. Você e o seu amigo podem procurar o dinheiro, divirtam-se, mas diabos me levem se lhes digo alguma coisa.

        Agarrei-a pelos ombros e sacudi-a.

        - Não seja idiota- Aquele homem é louco, matou duas pessoas, talvez três. Não pode ficar à espera e dizer-lhe que nada revelará. Julga que ele se limitará a perguntar-lhe delicadamente? Quando lhe puser as mãos em cima, você vomita tudo.

        Ela afastou as minhas mãos e percebi nos seus olhos uma expressão de dúvida. Tentei explicar-lhe o que Fitzmartin era, enquanto Antoinette olhava para o atalho por onde tínhamos subido, mordendo os lábios.

-       Então venha - disse de súbito.

-       Podemos dar a volta e chegar ao barco?

-       Isto é melhor - respondeu ela.

Segui-a.

 

        Julguei ouvi-lo chamar, mas o som misturava-se com

o barulho do rio. Segui Antoinette, que enveredou por

um atalho que se dirigia para o extremo sul da ilha.

O caminho ia dar a uma superfície plana e de todos OS

lados se elevavam paredes rochosas. Era uma concavidade onde as pessoas tinham acendido fogueiras.

        Ela parou, hesitante.

        -       Há tanta vegetação!

        -       Que procura?

        Ela afastou-Se para um lado, espreitou para a muralha em declive e via-a acenar com a cabeça, em silêncio, começando depois a trepar, agarrada aos arbustos. Parou e afastou-os - encontrava-se agora em cima de um estreito terraço. Voltou-se então e fez-me sinal. As solas de cabedal dos meus sapatos dificultavam-me a subida, escorregava de quando em quando, mas mesmo assim consegui chegar à plataforma. Antoinette afastou os arbustos que nos rodeavam, estendeu as pernas e começou a entrar por um exíguo buraco. Quando estava lá metida até à altura das ancas deitou-se de costas e, apoiando as mãos na rocha que lhe ficava por cima, acabou por desaparecer na pequena abertura. Tive dificuldade em lá entrar também, mas ela puxou-me pelos tornozelos e finalmente consegui. Antoinette debruçou-se sobre mim e, estendendo os braços, cobriu novamente a entrada da caverna com os arbustos emaranhados. Ao principio não conseguia ver, mas depois os meus olho

s foram-se habituando à fraca claridade. A luz do dia entrava debilmente pela abertura, que não possuía mais de setenta centímetros de largura por trinta de altura. No interior, a pequena caverna alargava até cerca de dois metros, mas apenas com um de altura, e a sua profundidade devia andar pelos dois metros e meio.

        -       Timmy é que descobriu esta caverna - murmurou Antoinette. - Trepava pelas rochas, um dia, quando a descobriu. Isto permanece sempre quente e limpo. Veja, a areia está seca e é muito fina. Tornou-se a nossa casa. Era o meu lugar preferido em todo o mundo. Também vinha para aqui sozinha, algumas vezes, quando as coisas se tornavam demasiado... demasiado dificeis. Costumávamos ter aqui coisas, uma caixa com velas, cigarros e outros artigos, e até trouxe almofadas e cobertores. Ninguém os poderia descobrir. Chamávamos-lhe a nossa casa. Brincadeiras de garotos, mas era agradável. Nunca mais voltei aqui.

        -       Então era a este sítio que ele se referia.

        -       Vamos ver.

        Tornava-se fácil cavar na areia e foi ela que encontrou o primeiro boião. Desenterrou-o da areia macia, erguemo-lo à claridade e abrimo-lo. O arame saiu facilmente, mas a tira de borracha estava bem presa ao vidro. Por fim consegui levantar a tampa. As notas encontravam-se apertadamente enroladas e tirei algumas para fora, duas de dez dólares e uma de vinte.

        Cavámos ambos no sítio onde ela achara o primeiro boião, descobrimos mais três e alinhámo-los contra a parede do fundo. Lembrei-me então como imaginara que seria. Julgara que fosse uma resposta, mas descobrira-a antes de encontrar o dinheiro. Agora só tinha um significado para mim: o de poder ser trocado por uma vida.

        - Ele agora vem para este lado - sussurrou ela.

        Ouvi-o quando chamou outra vez.

        -       Howard, Tal Howard!

        Ficámos imóveis, apoiados sobre os cotovelos, com a cabeça perto da pequena abertura, a cara dela a poucos centímetros da minha.

        -       Tal Howard! - gritou Fitzmartin, alarmantemente perto.

        Passou mesmo por baixo do sítiO onde nós nos encontrávamos e a sua cabeça ficou a cerca de três metros abaixo da plataforma.

        Chamou outra vez, de mais longe e dai a pouco ouvíamos apenas o ruído do rio.

        -       Que faremos? - sussurrou ela.

        -       Apenas nos resta aguardar que se vá embora, é impossível negociar com ele. Teremos de esperar pela noite e tentar chegar à água. Sabe nadar?

        - Com certeza.

        - Então poderemos ir até à margem, com o dinheiro.

        Não valia a pena contar-lhe o combinado com Fitzmartin, pois ele não cumpria coisa nenhuma, estava certo de que se nos encontrasse nos liquidaria a ambos. Quando falara comigo percebera o prazer que sentia em matar. Jamais poderia esquecer a maneira como ele aludira a George e como dissera ter aproximado a navalha da garganta de Ruth. Tal anomalia pode suceder a um homem, há caçadores que tiram mais prazer em verem a sua presa morrer - o gamo cambalear ou a ave precipitar-se no solo - do que da sua perícia propriamente dita. Do prazer de abater animais até ao de matar homens há uma diferença de grau, não de género. Há indivíduos que sentem uma certa lascívia em matar, tem algo a ver com a sexualidade, e aperceber-me disso em Fitzmartin, podia até senti-lo no seu tom de voz. Era afável, quase jovial, sabia que nos encontrávamos na ilha e que acabaria por nos descobrir. Mostrava-se bem-disposto para connosco porque lhe daríamos prazer. "Saia

m e sejam mortos, Tal Howard." Uma voz afável e confiante. Não era bem como se houvesse perdido a sanidade mental, mas sim como se se tivesse convertido num monstro, numa criatura de uma raça diferente. Poderia muito bem ser que, um dia, os humanos fossem perseguidos de forma idêntica por seres estranhos, de planetas distantes. Quando e se esse dia chegar, como suplicaremos pelas nossas vidas? Que pode um coelho dizer ao cano de uma espingarda?

        Estendi-me de lado de Antoinette, que permanecia deitada na minha frente. Reparei no brilho dos seus olhos e na brancura dos dentes na semiobscuridade da caverna. Apercebia-me da sua respiração tranquila.

        -       Então temos de esperar - disse eu.

        -       Com certeza, vale a pena. Sabe, Tal, sempre pensei que isto acabasse por ficar tudo confundido, mas agora já não penso assim. Não é estranho? Neste momento em que tudo se mostra o pior possível, é que começo a pensar que conseguiremos.

        - Assim o espero.

        Deitou-se de costas e a voz era suave.

        -       Conseguiremos, havemos de chegar ao carro. Há aqui dinheiro suficiente. Não vale a pena voltarmos ao motel para buscar as minhas coisas. Partiremos através da noite, Tal, e podemos fazer turnos, sou boa condutora. Sei exactamente como vai ser. Iremos até Nova Orleães, não é difícil estar lá amanhã, ao fim da tarde. Conheço uma pessoa que nos ajudará. Venderemos o carro e apanharemos o avião. Teremos tudo novo, roupas novas. Primeiro iremos ao México, depois a Havana. Estive lá uma vez, com um amigo. Não, não foi em Havana. Para onde seguiremos, Tal?

        - Para o Rio, Buenos Aires e a Seguir Paris.

        - Paris, claro. É engraçado, tenho sempre andado à procura não sei bem de quê! É como nesse jogo em que as pessoas escolheram qualquer coisa para nós descobrirmos sem sabermos de que se trata. Alguma vez teve essa sensação?

        -       Sim.

        -       Não sabemos o que é, mas queremo-lo. Procura-se numa quantidade de sítios, tenta-se uma porção de coisas e não conseguimos o que queremos. Contudo, desta vez, tenho a certeza de que a vou encontrar.

        Ficámos calados durante um momento até que ela se voltou novamente para mim. Pus-lhe a mão na curva da cintura, deixei-a ficar ali e senti que o ritmo da respiração de Antoinette se tornava mais rápido. Não tento desculpar-me, até então não sentira qualquer atracção especial por ela - mas posso tentar explicar. É uma urgência que surge em momentos de perigo. - algo de profundo no nosso sangue, uma mensagem. Pode-se morrer, e quer-se viver mais uma vez, aquela última vez. Ou pode ser algo mais complicado, haver nisso como que um desafio, constituir a resposta à escuridão que nos quer envolver - Pretende-se deixar mais uma coisa no nosso rasto... realizar esse acto que pode originar uma vida, o único, afinal, que possibilita- em todos os sentidos, a satisfação da nossa tão profunda aspiração à imortalidade -

        Quando as catástrofes vitimam cidades, as pessoas conhecem essa urgência básica e os homens e as mulheres, na guerra, sentem-na também. Encontra-Se igualmente presente, e com intensidade, em muitos géneros de doenças - Os homens e as mulheres são impelidos pelo perigo, quando se encontram juntos na cave de uma casa bombardeada, em praias esquecidas, nos sanatórios.

Na altura em que isso se deu, eu estava loucamente apaixonado por Ruth Stamm, e sabia que aquela mulher que se encontrava comigo ali na caverna era dura como uma pedra. Mas apesar disso, tirei-lhe as calças justas, a camisola de malha barata e o soutien de cetim branco. A carne dela brilhava na semiobscuridade da caverna. Não falámos, mas foi muito completo.

        Bastara ela ser mulher, mas, após as suas primeiras palavras, voltou a ser Antoinette Rasi, e destruiu o que ficara de qualquer possível sensação emocional.

        -       Bem, nós não somos os únicos - disse com a sua voz um pouco nasalada.

        Bateu com a cabeça na rocha, ao vestir de novo a camisola, e soltou uma exclamação bastante rude. Voltei-me para não ter de olhar para ela e fiquei estendido a observar a entrada, através dos ramos dos arbustos. Podia ver a muralha rochosa, do outro lado da cova, a uns dez metros de distÂncia, e, baixando a cabeça e olhando para cima, divisava um pedaço de céu pardacento recortado sobre a rocha.

        Nesse momento avistei a cabeça de Fitzmartin, e depois os ombros, acima da parede rochosa. Atrás de mim, Antoinette ia começar a dizer qualquer coisa com voz queixosa, mas estendi a mão, agarrei-lhe um braço e apertei-o num gesto de aviso. Ela calou-se, imediatamente, avançou um pouco e inclinou o seu corpo quente, apoiando-se no meu ombro esquerdo, para poder ver também. Instintivamente quis recuar para o fundo da caverna, apesar de saber que ele não nos poderia ver através da vegetação densa.

        Fitzmartin encontrava-se de pé sobre a rocha, de pernas afastadas, balouçando-se, e a estranha cor do céu fazia brilhar sombriamente o cano da arma. Quando movia a cabeça fazia-o com rapidez, como um animal, e a boca semiaberta estava caída, com os lábios afastados. Tinha as calças de caqui encharcadas até aos joelhos. Observou a parede rochosa onde se encontrava a caverna, quase milímetro a milímetro, e encolhi-me involuntariamente quando o olhar dele pousou perto da abertura. Voltei-me e ele desapareceu da minha vista.

        Ela pôs o ouvido perto do meu.

        - Meu Deus, compreendo o que você queria dizer. Deus do céu, ainda bem que não fiquei à espera para conversar com aquilo! Ele é um verdadeiro monstro. Como anda à solta?

        - Dantes não se notava, estava lá dentro, agora é que começou a aparecer.

        - Francamente, ele assusta-me. Acho que o deviam abater a sangue-frio, como um cão raivoso.

        - Está a piorar.

        -       Não pode ficar pior do que já é. Que procura ele ali?

        - Creio que tenta eliminar lugares onde nos possamos ter escondido, pois ainda vai haver claridade durante muito tempo. Espero que tenha eliminado este sítio.

        -       Dali não pode ver muita coisa, só uma sombra, e a abertura parece muito pequena, mesmo sem a vegetação na frente.

        -       Espero que tenha razão.

        -       Ela causa-me calafrios.

        Continuei de vigia, e quando o vi outra vez, descia a muralha rochosa do lado mais afastado. Antoinette viu-o também e a mão dela apertou o meu ombro com mais força, enquanto a sua respiração cálida me aquecia a orelha.

        -       Que anda ele a fazer agora? - murmurou.

        -       Creio que procura pegadas nossas. Não sei se será perito nisso, mas, se for, descobre-as lá em baixo, na cova.

        - O terreno estava macio - sussurrou Antoinette -

        Deus queira que não as veja.

Fitzmartin desapareceu de novo da nossa vista e ouvimos uma pedra rolar sobre a rocha, um som bem audível acima do rumor, agora suave, das águas do rio. Recuámos o mais possível para o fundo da caverna, mas nada sucedeu durante um grande bocado. Gradualmente fomo-nos acalmando e aproximámo-nos do sítio donde podíamos ver.

        Devia ter sido uma boa meia hora mais tarde quando voltei a vê-lo do outro lado, agora a subir a muralha rochosa, até que se sentou em cima, na plataforma. Apontou cuidadosamente para um ponto à nossa direita e puxou o gatilho. O som foi surdo, atenuado pelo vento, e ele disparou outra vez, agora para mais perto.

        Percebi demasiado tarde aquilo que Fitzmartin estava a fazer, e então recuei e encolhi-me, mas Antoinette soltou um grande grito de agonia. O sangue jorrou-lhe da cara, pois a bala atingira-a aí, esmagando-lhe o queixo e os dentes e alojando-se por baixo da maçã do rosto. Ela gritou outra vez, com a boca dilacerada. O tiro seguinte atingiu-a abaixo da clavícula esquerda, entrando-lhe a bala pelo corpo e ela enterrou os dedos na areia, arqueando o corpo - estava morta.

        Eu mantive-me encolhido contra a rocha, ao seu lado, enquanto Fitz disparava mais duas vezes para o corpo dela, e, em seguida, fez-se silêncio. Tentei encolher-me, de modo a tornar-me um alvo o mais pequeno possível.

        Quando ele disparou novamente, fê-lo de um Ângulo diferente, e a bala ricocheteou dentro da pequena caverna, batendo em duas paredes tão rapidamente, antes de acabar por se enterrar na areia, que o som foi quase simultÂneo. A bala seguinte fez também ricochete e, pela dor que senti na cara, julguei que fora atingido, mas isso deveu-se ao facto de a minha face direita ter ficado cheia de fragmentos de rocha. Não podia afastar-me mais para o lado, pois se ele encontrasse o Ângulo apropriado para disparar, atingir-me-ia directamente, mas onde estava também podia ser morto por um ricochete. Agarrei então no corpo de Antoinette e protegi-me com ele. Fitz disparou vários tiros mais e um deles partiu um dos boiões, outro enterrou-se no corpo da rapariga. Apesar de sentir as mãos pegajosas do sangue dela, escudei a cabeça com os seus seios pesados e encolhi as pernas, tentando ajustar o corpo de modo a proporcionar-me a máxima protecção. No entanto,

uma bala de ricochete atingiu o salto do meu sapato com tal força que senti o pé dormente.

        Soltei um enorme grito de dor e os tiros pararam. Passados alguns minutos, ouvi-o dizer, num tom muito normal e muito próximo da caverna.

        -       Howard, Howard! Saia daí.

        Não respondi. Fitzmartin lembrara-se de que podiam haver ali cavernas e começara a disparar até que, ao acaso, atingira o sítio certo. Esperava que nos julgasse a ambos mortos, era a minha única oportunidade, e por isso sai lentamente debaixo do corpo de Antoinette. Não havia qualquer pedra solta ali na caverna e reparei então nos boiões de vidro.

        Peguei num, deixei-me ficar agachado, mesmo à esquerda da entrada, e quando ouvi o ruído de rochas a soltarem-se da muralha percebi que Fitz estava a subir. Vi os arbustos tremerem, preparei-me para lhe dar com o boião na cara, mas o rosto dele não apareceu, só uma das suas grandes mãos, avançando lentamente para dentro da caverna. Era um convite a tentar agarrá-la, mas não seria uma reacção inteligente, sabia que ele estaria à espera, com a arma na mão. O braço avançou mais para o interior da caverna, e vi-lhe depois um ombro, que tapava a luz.

        A sua mão morena, que rastejava pela areia, tocou no cabeço escuro de Antoinette, parou um momento e tacteou-lhe o rosto, aflorando-lhe ao de leve os olhos vidrados. Ela estava enrolada, pois eu deixara o corpo nessa posição ao sair debaixo dela, e a mão avançou outra vez pela areia, tocou no joelho dobrado da rapariga e apalpou o tecido das calças. Nesse momento percebi que ele julgava tratar-se do meu, pois, ao aproximar-se da ilha, só a vira da cintura para cima e não sabia se vestia calças de ganga. O corpo encontrava-se enrolado de tal maneira que Fitz não o relacionou com o joelho. Os seus dedos poderosos puxaram o tecido, agarraram a carne por baixo e torceram-na cruelmente.

        Ouvi-o soltar um murmúrio de satisfação e preparei-me. Ele meteu a outra mão dentro da caverna, segurando a arma, e a seguir a cabeça, mas eu sabia que ele não poderia ver imediatamente. Então, logo que a cara de Fitzmartin apareceu na abertura, no meio dos arbustos, bati-lhe com o boião de vidro, com todas as minhas forças.

        O vidro partiu-se, cortou-me a mão e ainda tentei tirar-lhe a arma, mas fui lento de mais, ele já desaparecera. Ouvi o baque surdo quando caiu e sabia que não lhe podia dar tempo para se recompor. Arranhei-me bastante ao deslizar pela entrada, agarrei-me aos arbustos e levantei-me, vacilando, na beira da plataforma. Vi-o lá em baixo, de joelhos, apoiado nas mãos, sempre a segurar a arma, e a abanar a cabeça lentamente. Era um salto de quatro metros, talvez mais, mas deixei-me cair sobre as costas dele, com as pernas direitas e os calcanhares juntos.

        O meu peso fê-lo ficar estendido no solo e a queda também me atordoou. Rebolei e levantei-me com uma lentidão desesperante, esperando ser alvejado a tiro, mas Fitz permanecia imóvel com os dedos a tocarem na arma. Apanhei-a, afastei-me, empunhando-a, e, olhando-o atentamente, podia ver os movimentos das suas costas. Apontei para a cabeça, mas não fui capaz de disparar e depois notei que a respiração de Fitz parara. Pensei que fosse um ardil seu e por isso peguei numa pedra e atirei-lha, mas ele não se moveu.

Finalmente, aproximei-me, voltei-o e vi então que estava morto. Morrera de uma maneira curiosa: caíra da estreita plataforma e levara agarrados ao corpo alguns pedaços de vidro do boião; atordoado, pusera-se de gatas, tentando recompor-Se, e quando eu lhe saltara para as costas, estatelara-se no chão, a todo o comprido, enterrando um grande pedaço de vidro na garganta. A areia ensopara o sangue e um grande maço de notas ficara também ensopado, tanto era o sangue que jorrara. Uma rajada de vento fez voar algumas notas soltas e uma delas ficou mesmo agarrada a mim. Agarrei-a e fiquei a olhá-la estupidamente: era de dez dólares.

        Voltei à caverna e creio que tinha a ideia de tirar Antoinette de lá, mas percebi que não o conseguiria. Olhei-a - nunca iria a Paris - e pensei se, afinal, não seria daquilo que ele andaria à procura. Na realidade, podia ter sido muito, convenci-me agora disso.

        No entanto, tinha a impressão de que se Antoinette tivesse podido escolher, não desejaria morrer assim, com a sua beleza destruída e vestida com aquelas roupas baratas.

        Desci novamente, mas a meio caminho escorreguei e caí, estava exausto. Apanhei o dinheiro e meti-o na caverna junto de Antoinette, a Polícia iria ali buscá-lo quando eu dissesse onde se encontrava. Voltei ao sítio onde ficara o barco e, como o rio parecia agora um pouco mais calmo, peguei na corda e arrastei-o até ao extremo sul da ilha, onde a corrente era mais fraca. Entrei e logo que peguei nos remos começou a chover de novo, a água caía de um céu amarelado e sussurrava sobre o rio cinzento. Lavei o sangue que me sujava as mãos, enquanto a chuva me caía pelo rosto como lágrimas.

As margens, naquela zona, eram altas, mas encontrei um sítiO onde deixar o barco, a cerca de um quilómetro do casebre dos Rasi, e caminhei pelo meio da erva húmida até à estrada. Dirigi-me ao casebre, Anita apareceu e perguntei-lhe se tinha telefone.

        -       Não temos. Onde está o barco? Que lhe fizeram? Onde ficou Antoinette? Porque tem tanto sangue nas roupas? Que se passou?

        Anita continuava a fazer-me perguntas, aos gritos, enquanto eu metia a chave na ignição, punha o carro em andamento e partia.

        Nuvens pesadas tornavam a tarde escura e sombria, nunca vira chover com tanta força. Os carros passavam com os faróis acesos, brilhando fracamente através das cortinas de água.

        Entrei pela passagem em arco e estacionei junto das viaturas da Polícia, no pátio da esquadra. Um homem gritou que não o podia deixar ali, mas não lhe prestei atenção. Encontrei Prine, o capitão Marlon não estava, fora para casa dormir.

        Prine olhou-me de uma maneira estranha, deu-me o braço e conduziu-me para uma cadeira.

        -       Está embriagado?

        -       Não, não estou.

        -       Então o que se passa consigo?

        - Sei onde podem ir procurar a rapariga. Ruth. A norte da cidade, perto do rio, se ela ainda estiver viva. Mas quero ir, quero ir consigo.

        Enviaram imediatamente carros para o local e telefonaram ao capitão Marion. As buscas intensificaram-se, debaixo de chuva, e eu fui com Prine. Por fim, acabou por ser um grupo de escuteiros, o qual tomara parte nas pesquisas, que a encontrou, descobriram o carro preto com o porta-bagagens entreaberto. Avançámos velozmente, apesar da chuva, quando ouvimos a notícia pela rádio, mas a ambulÂncia chegou lá primeiro. Fecharam as portas e a viatura afastou-se antes de eu poder aproximar-me.

O automóvel de Fitzmartin encontrava-Se estacionado junto de um sinal colocado à beira da estrada e fora tapado com uma cobertura apropriada, mas um pedaço de lona levantara-se com o vento e um dos escuteiros vira a matricula.

        Dois polícias envergando capas de borracha pretas permaneciam ali.

        -       Em que estado se encontrava ela? - perguntou Prine.

        Um dos homens respondeu:

        -       Não creio que se salve. Parecia quase morta, mal respirava, branca como a cal. Ficou muito maltratada.

        Prine voltou-se para mim:

        -       Pronto, já a encontrámos. E agora Fitzmartin. Onde está ele? Comece a falar.

        -       Está morto.

        - Como sabe isso?

        - Matei-o, conto-lhe o resto depois. Agora quero ir ao hospital.

 

        Fiquei sentado num banco, numa sala de espera do hospital, enquanto a água pingava da minha roupa encharcada. O capitão Marion sentou-se ao meu lado e Prine mantinha-se imóvel, encostado à parede. Um homem que eu não conhecia instalara-se igualmente a meu lado. Entretinha-me a observar os mosaicos do pavimento, enquanto falava, e de tempos a tempos eles faziam-me perguntas, com voz calma.

        Contei-lhes toda a verdade. Menti apenas a respeito de uma coisa, disse-lhe que Fitzmartin me contara ter ocultado o corpo de Grassman num celeiro em ruínas a oito ou dez quilómetros para sul da cidade, numa estrada secundária, perto de uma casa incendiada. Marion fez um gesto a Prine e este saiu para enviar homens à procura do corpo de Grassman. Já mandara também outros para a ilha - eu indicara-lhes a maneira de descobrirem a caverna e avisara-os do que iriam lá encontrar. Disse-lhes, igualmente, que a arma de Fitzmartin estava no meu carro. Além de mentir a respeito de Grassman, omiti também o que era do meu conhecimento no que se referia a Antoniette. Não lhes serviria de nada saberem mais do que aquilo que a Polícia de Redding lhes revelaria.

        Contei-lhes tudo o resto. Por que razão fora para Hillston, tudo o que vira e adivinhara, tudo o que Fitzmartin me dissera, bem assim como as declarações de Timmy antes de morrer. Tudo, absolutamente tudo, e quando terminei senti-me melhor.

        - Vamos esclarecer isto, Howard. Você chegou a um acordo com Fitzmartin. Iria com a rapariga ver onde estava o dinheiro e depois entregava-lho por troca com Ruth. Você próprio estabeleceu esse acordo. Julgava poder manobrar melhor do que nós, não é?

        -       Pensei que não havia outra coisa a fazer, dadas as circunstÂncias, mas ele atraiçoou-me e seguiu-nos.

        -       Podíamos tê-lo apanhado quando foi para o rio e teríamos encontrado Ruth mais cedo. Se ela morrer, você é o responsável.

        Olhei para ele pela primeira vez desde há uma hora.

        -       Não vejo as coisas dessa maneira.

        -       Fitzmartin contou-lhe como matou Grassman? Você já nos disse qual a razão que o levou a matá-lo.

        -       Bateu-lhe na cabeça com um pedaço de cano.

        - Que pensa que Antoinette Rasi faria quando o visse entregar o dinheiro a Fitzmartin, supondo que tudo se passava como você julgava.

        - Creio que não teria gostado.

        - Por que razão não foi ela buscar o dinheiro sozinha, visto, afinal, saber onde se encontrava?

        -       Não faço ideia, creio que deve ter pensado que precisava de ajuda e que achou que eu podia servir. Tenho a impressão de que ela planeara fugir com o dinheiro todo quando estivéssemos longe daqui, talvez quando eu me encontrasse a dormir, qualquer coisa assim. Julgo que achava que me poderia manobrar facilmente.

-       Quantos tiros disparou Fitzmartin para dentro da caverna?

        -       Não os contei. Talvez uns vinte.

        O médico entrou na sala e Marion levantou-se.

        - Como está ela, Dan?

        O médico olhou-nos com ar desaprovador, era como se fôssemos responsáveis pelo que sucedera a Ruth.

        - Julgo poder afirmar que fisicamente irá ficar bem. É jovem, tem um corpo saudável e pode curar-se bastante depressa, mas é difícil prever, dependerá muito do seu estado mental, e não posso responder por isso. Raras vezes vi alguém ser tratado tão brutalmente, vejam só esta lista: um ombro partido, um dedo deslocado, duas costelas partidas, O pélvis rasgado (foi violentada), dois dedos dos pés partidos (quase ia ficando sem eles) e contusões no rosto. Nada disto teria sido suficiente para a liquidar, mas o choque e a longa permanência ao frio, na mala do carro, deixaram-na às portas da morte. Está a delirar, não sabe onde se encontra, e pusemo-la a dormir. Contudo, não posso avaliar os danos mentais por ela sofridos.

        Levantei-me.

        - Onde está Ruth?

        O médico olhou-me.

        -       Não posso permitir que a veja, não há qualquer vantagem nisso.

        Aproximei-me mais dele.

        - Quero vê-la.

        O médico fitou-me, depois agarrou-me o pulso e apoiou nele as pontas dos dedos. Tirou uma pequena lanterna eléctrica do bolso e fez incidir a luz directamente sobre os meus olhos.

        Voltou-se para o capitão.

        -       Esse homem devia estar na cama.

        Marion suspirou.

        -       Tem uma cama livre para ele?

-       Sim.

        -       Está bem, colocarei um guarda à porta, porque ele encontra-se sob prisão. Deixe-o espreitar à porta do quarto de Ruth, talvez mereça isso. Não sei.

        Deixaram-me ir vê-la. Ruth estava num quarto particular e o seu pai encontrava-se sentado junto da cama, mas não olhou para a porta. Observei-lhe o rosto: ficara totalmente irreconhecível, inchado, pálido, e ela respirava com dificuldade pela boca aberta. Havia no quarto um cheiro a doença e, ao olhar para Ruth, pensei nas heroínas dos filmes de terror e de violência, que, alguns minutos após terem sido salvas dos seus raptores, surgem, com os cabelos perfeitamente penteados, os olhos pintados e um elegante vestido de Dior, nos braços de um Gable, de um Lancaster ou de um Brando. Mas ali havia apenas a realidade, e a realidade era dor, enfermidade e torpeza.

        Levaram-me dali.

As formalidades foram complicadas. Tive de comparecer perante uma comissão de inquérito e contei-lhes tudo quanto sabia a respeito das mortes de Antoinette Chistina Rasi e de Earl David Fitzmartin. Assinei seis exemplares do meu depoimento pormenorizado e o veredicto final foi de homicídio justificado. Matara em legítima defesa.

        O dinheiro encontrado no carro de Fitzmartin e na caverna passou a fazer parte da herança de George Warden e um seu segundo primo, acompanhado pela mulher, veio de Houston para reclamar o seu direito ao direito e ao que restava dos bens.

        Eloise e George Warden foram enterrados no jazigo da família Warden, no cemitério local, e a Fulton, identificado pela dentadura, enviaram-no para Chicago, para ser enterrado pela terceira vez. Não se encontrou qualquer parente de Fitzmartin e acabaram por ser as autoridades que se encarregaram do seu funeral.

O corpo de Grassman também foi encontrado e um irmão dele, que veio de avião de Chicago para o levar, regressou de comboio, com a urna.

        Falei-lhes também nas roupas e jóias de Antoinette,

e do dinheiro, a quantia exacta, que Fitzmartin levara.

O tribunal nomeou um executor testamentário para os

bens de Antoinettte e este ordenou que todos esses bens

fossem vendidos, revertendo o produto a favor dos

filhos de Anita Doyle.

        Quando alguma coisa cai e se quebra, é preciso apanhar os pedaços, e o que se sujou tem de se limpar.

        Os assuntos comigo ficaram todos esclarecidos na terça-feira seguinte. O capitão Marion desceu os degraus do edifício do tribunal ao meu lado, e ficámos parados no passeio, ao sol.

        -       Está tudo acabado para si, Howard. Já não temos nada a ver consigo. Podíamos ter-lhe feito algumas acusações, mas não quisemos, por isso dê-se por satisfeito. Contudo, não o queremos aqui, não queremos voltar a vê-lo.

        -       Não me vou embora.

        Marion olhou-me friamente.

        -       Não creio que isso seja muito inteligente.

        -       Vou ficar.

        -       Creio que sei o que você quer, mas não conseguirá. Passou todo o tempo que pôde junto dela, e não resultou, pois não?

        - Desejo permanecer aqui e tentar. Fiz as pazes com o pai dela e ele compreende. Não posso dizer que aprove, mas compreende o suficiente para não querer afastar-me.

        - Vai bater com a cabeça contra uma parede.

        -       Possivelmente.

        - Prine quer vê-lo fora da cidade.

        -       E o senhor? Também?

Marion corou.

        - Fique! Se quer ficar, fique, mas de nada lhe servirá.

        Voltei ao hospital. Como Ruth estava num quarto particular as horas das visitas eram menos rigorosas. Esperei que a enfermeira fosse falar com ela, receando, como sempre, que viesse dizer-me que ela não queria que eu entrasse no quarto.

        -       Recebe-o dentro de cinco minutos, Mister Howard.

        -       Muito obrigado.

        Fiquei à espera que me chamassem. Depois, entrei no quarto, como de costume, e puxei de uma cadeira para junto da cama. O rosto de Ruth não estava já inchado, mas cobria-o ainda uma intensa palidez. Como habitualmente fazia, ela virou a cara para a parede, após fitar-me durante uns momentos, inexpressivamente. Ainda não conversara comigo, mas eu falara com ela, não me calara durante horas, contara-lhe tudo. Dissera-lhe o que ela significava para mim, mas não obtivera qualquer resposta, era como se me dirigisse a uma parede. O único encorajamento residia no facto de Ruth me deixar vê-la. O médico dissera-me que ela recuperaria mais rapidamente se se recompusesse do alheamento, da depressão.

        Como nos outros dias, comecei a falar, não sabendo se ela me ouvia. Já lhe revelara tudo sobre o ocorrido, não merecia a pena repetir as mesmas coisas, nem continuar a implorar a sua compreensão e o seu perdão.

        Por isso falei de outras coisas e de outros tempos, de lugares que havia conhecido. Contei-lhe histórias de Tóquio e de Pusan, do hospital onde eu ficara internado, do meu anterior emprego, e fiz conjecturas acerca do trabalho que poderia arranjar em Hillston. Restavam-me ainda setecentos dólares. Tive o cuidado de não fazer perguntas, não queria dar-lhe a impressão de que esperava uma resposta.

Ruth continuava com o rosto voltado para a parede, podia até estar a dormir, e então, de repente, surpreendentemente, a mão dela surgiu fora do cobertor que cobria a cama, estendeu-se para mim, às cegas, e eu prendi-a entre as minhas. Ela apertou-mas com força, uma vez, e depois deixou ficar a dela imóvel entre as minhas.

        Era o sinal, bastava, o resto viria mais tarde. Agora tratava-se apenas de uma questão de tempo. Chegaria a altura em que haveria risos e em que ela voltaria a caminhar com o seu modo orgulhoso. Aquele pesadelo seria ultrapassado e as coisas acabariam por se revelar boas para ela e para mim. Ambos tínhamos muito que esquecer e podíamos fazê-lo melhor juntos. Ruth era a mulher que eu queria e nunca poderia ser afastado dela.

        Encontrara finalmente o tesouro...

 

                                                                                John D. Macdonald  

 

                      

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