Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
UMA CANÇÃO RUSSA
Naquela noite escura de São Petersburgo, chamava a atenção dos transeuntes, pela sua iluminação, o belo Palácio dos Conde Polenski. Por certo, pensavam, ia haver ali uma festa...
Na verdade, Alena, a única filha do conde, completava dezenove anos, e os pais davam um grande baile, para a sua apresentação à sociedade.
O czar havia dito, confidencialmente, ao conde, que a czarina queria fazer-lhes a surpresa de sua imperial presença.
A Condessa Xênia, em grande gala, com a cabeça ornada por um lindo diadema, desceu a artística escadaria de bronze e mármores, que vinha dar ao hall. Peter, o velho mordomo, aproximou-se com uma mesura.
— Devo dizer à senhora condessa que tudo está em ordem.
— Está bem, Peter.
Ela sabia que, quando ele fazia tal afirmativa, seu espírito podia ficar tranquilo. E, na verdade, ele acabara de passar em revista os salões, cujos candelabros brilhavam de luzes, refletidas no cristal de milhares de pingentes. Dera uma última arrumação às inúmeras cestas de flores, colocando-as em lugares onde pudesse melhor sobressair a arte com que tinham sido confeccionadas. Retocara as pregas das cortinas e sorrira de satisfação, porque, realmente... tudo estava em ordem. Alena, a pequenina flor que ele vira nascer e crescer, era hoje uma linda moça, e ele se orgulhava dela. Seus muitos anos de serviços aos Polenski davam-lhe esse direito.
Os lacaios, em suas vistosas librés, estavam já postados de cada lado do vestíbulo, quando Alena, irradiando vida e beleza, desceu por sua vez a escadaria, pelo braço do pai, e foi juntar-se à mãe.
O General-Conde Polenski, amigo particular do imperador e chefe do seu estado-maior, trazia ao peito a Cruz de São Vladimir, de esmalte vermelho, com duas espadas cruzadas, a mais alta condecoração do Exército Imperial, e a pequenina Cruz de São Jorge, a mais alta condecoração do Império.
Alena exigira que as usasse. Ela tinha um grande orgulho daquele pai, tão bom e tão valente, que soubera conquistar um lugar de destaque no coração do seu soberano. Gostava também de ouvir elogiar a deslumbrante beleza da mãe. A condessa era chamada a mais linda mulher da corte, e isso satisfazia a vaidade de Alena, que nunca pensava em si própria. Era como o pai, desprendida de preconceitos e, às vezes, por demais independente. Tinha ideias que fugiam à rotina da vida na aristocracia russa. Por exemplo: Desejava estudar Medicina. Essa sua ideia tinha causado verdadeiro escândalo entre as suas amigas, que a tachavam de extravagante. Uma menina que era amiga das grãs-duquesa, que muitas vezes ia com elas passar as férias em Gatchina! Que frequentava o palácio de inverno! Uma médica! Era ridículo! Elas não tinham estes gostos burgueses! Esperavam, pacientemente os princes charmants que viriam, com certeza, fardados de hússares, busca-las para as conduzir a seus palácios, onde continuariam a mesma vida que haviam levado suas mães e suas avós. Luxo e ociosidade. Todas elas, no entanto, admiravam Alena e, invejavam-na um pouquinho. Desde pequena, nas suas assembléias infantis, tinha o desembaraço de quem sabe o que quer. Olhava as pessoas de frente; nunca desviava o olhar. Suas sobrancelhas tinham uma linha firme, que lhe davam um ar enérgico. O mais trivial de seus gestos denunciava a sua estirpe e o sangue ardente dos eslavos. Era, muitas vezes, impetuosa, o que bem caracterizava a sua raça.
Logo que soaram as onze horas, começaram a chegar os convidados. Eram ministros de estado; embaixadores de países acreditados junto ao governo, além dos mais destacados membros da nobreza russa. Os salões apresentavam um aspecto encantador, pela multiplicidade de fardas, com suas dragonas douradas; pelas jóias deslumbrantes, com que se ataviavam as senhoras. Tudo isso era refletido por enormes espelhos, que ornavam as paredes, parecendo multiplicar os candelabros. Os convidados foram se reunindo em grupos de amigos, que se cumprimentavam.
Em dado momento, o mestre-de-cerimônias chamou a atenção geral, batendo com o bastão dourado, e anunciou: Sua Majestade a Czarina e Suas Altezas Imperiais as Grãs-duquesa Olga e Maria.
Imediatamente se formaram alas, por entre as quais elas caminharam, recebendo os cumprimentos dos que se curvavam à sua passagem.
A czarina, muito bela, com sua coroa de brilhantes; as grãs-duquesa, lindas e sorridentes, na simplicidade de seus vestidos brancos.
Depois do beija-mão protocolar, o mestre-de-cerimônias anunciou a marcha com que na nobreza se dava início aos bailes — Os Lanceiros. E vieram as valsas, e, mais tarde, algumas danças modernas, americanas, que já se iam introduzindo nos salões russos.
Ao champanha, servido em salvas de prata, por inúmeros criados, muito bem postos em suas casacas, com os calções e meias compridas, o general fez um brinde à filha e apresentou-a à sociedade, onde iria começar uma vida nova. E, por brincadeira, a entregou aos cuidados dos oficiais do seu regimento, que daí por diante responderiam por sua segurança. Esses levantaram as taças, com hurras de entusiasmo. Um desses oficiais, talvez o mais elegante na farda branca e dourada dos cavaleiros da Guarda Imperial, mostrava-se muito assíduo junto de Alena. Era o Conde Dmitri Razoukhine, que voltara recentemente de um país, em cuja embaixada servira, como adido militar. Como era protegido do imperador, conseguira ficar ausente alguns anos, mudando de um país para outro. Tinha uma grande atração pessoal, o que lhe valera diversas conquistas "internacionais", das quais, no entanto, saíra ileso, pois que voltara à Rússia com o coração desimpedido.
Quando partira de São Petersburgo, Alena era quase uma criança, de quem pouco se lembrava. Nesse tempo, vira-a algumas vezes em companhia de sua prima, a Baronesa Zamenoff, de quem era afilhada. Na noite do baile, ao revê-la, logo foi atraído pela sua graça e elegância.
Há jovens que poderão passar inúmeras vezes diante de nós sem serem notadas, mas Alena atrairia a atenção desde a primeira vez. E quem observasse a expressão do seu olhar, não poderia ignorar a sua rara inteligência.
Ela também sentira uma agradável surpresa ao rever o conde que, certamente, se destacava dos outros oficiais pela sua elegância e refinamento de maneiras.
Ao terminarem os brindes, a czarina e as grãs-duquesa beijaram Alena, que se mostrava radiante de felicidade. Ela estava realmente linda, com as cores que lhe davam a alegria. Seu vestido muito vaporoso, de filó branco, salpicado de strass, tinha vindo de Paris. Paquin e Drecol, que nessa época estavam no auge da fama, usavam a nobreza russa. As damas que preferiam os costureiros nacionais destacavam-se pela deselegância.
Depois de servido o bufê, no grande e luxuoso salão de banquetes, a czarina e as grãs-duquesa se retiraram. Os outros convidados esperaram pela madrugada, como é hábito na sociedade russa, onde o dia é quase sempre trocado pela noite.
Ouvindo tocar a campainha da porta, o mordomo foi abri-la. A baronesa entrou e encaminhou-se para a sala.
— Nada de novo, Josef? Ninguém chamou?
— Apenas o Conde Razoukhine avisou que vem esta tarde.
— Que horas são?
— Seis horas, excelência.
— Podes trazer o chá.
A baronesa tirou as luvas e atirou-as, com a bolsa e o chapéu, para cima de uma poltrona.
Chegou a um espelho, que estava detrás de uma grande floreira, e começou a retocar o cabelo. A campainha soou novamente. Era o conde que, em seguida, apareceu à porta do salão.
— Alo, minha cara prima! Não precisa enfeitar-se tanto; ainda está bastante bonita!
A baronesa, que o estava vendo pelo espelho, voltou-se.
— Tratante! Já se passaram oito dias da festa dos Polenski e não te vi mais!
— Peço-lhe desculpas, querida prima, mas estive ocupadíssimo! O General Polenski pediu-me um relatório das minhas observações sobre certas coisas que estão passando por aí, principalmente na Alemanha, de onde acabo de chegar. Precisei coordenar notas etc., o que me tomou muito tempo.
— Eu estava ansiosa para conhecer a tua impressão da festa, e... de Alena.
— A melhor possível, prima; ambas estavam maravilhosas! As grãs-duquesa também estão umas lindas moças... Ainda não vi o czar; deve estar muito crescido...
— Tem estado adoentado e a czarina anda muito preocupada; achei seus olhos pisados, como se houvesse chorado.
— Talvez se tivesse confirmado o diagnóstico feito há tempos por um especialista: hemofilia?
Quando a baronesa ia responder, ouviu a voz de alguém que acabava de chegar. Alena conhecia muito bem o caminho e dirigiu-se logo para a sala. Ao chegar à porta deu com o conde e estacou. Aquela presença inesperada a perturbou, o que deu ensejo ao mordomo de anunciar a Condessa Polenski e a Senhorita Alena.
— Que bela surpresa! — exclamou a baronesa, indo ao encontro das duas.
O Conde Dmitri curvou-se, respeitosamente.
— Estamos vindo do Palácio Anitchcof; fomos saber notícias do czar.
— Está melhor? — perguntou o conde.
— Disse-me a czarina que o Monge Rasputin estava com ele e que só a sua presença aliviava as dores do menino e o fazia dormir Era um enviado de Deus, certamente!
— Há dias — disse Alena — quando eu estava com as grãs-duquesa, ele entrou sem pedir licença e sem mesmo bater à porta. Nós nos entreolhamos assustadas. É um homem feio, de cabelos compridos, com uma batina miserável e suja. É quase um gigante! Ele se aproximou de nós e perguntou o que fazíamos. Maria respondeu, e como as outras, ousou levantar os olhos.
— A minha afilhada, também? — perguntou a baronesa com ironia.
— Não, madrinha, eu o encarei, mas... ao encontrar aqueles olhos que nos fitam com uma fixidez estranha, senti um mal-estar, como se estivesse na presença do demônio. Quando ele deixou a sala, as meninas se puseram a rir do susto que lhes causara. Olga as repreendeu: "Não devem rir. Mamãe diz que ele é um santo; faz passar as dores de Alex."
— Hoje, quando almoçava no Cassino dos Oficiais — atalhou o conde — ouvi um comentário sobre as relações do General Grabinski com esse monge...
— Que diziam? — indagou a baronesa.
O Conde Razoukhine olhou para Alena e hesitou.
— Ora, diga! — insistiu a baronesa; e a sua impaciente curiosidade fez rir o conde.
— Diziam — anuiu ele, afinal — que a Senhora Grabinski é amiga de Rasputin, por quem se faz acompanhar muitas vezes. Dizem, também, que desde que isso acontece surgiram grandes intrigas na corte.
— Pudera! — exclamou a baronesa — ela sempre foi alcoviteira! Se encontrou um companheiro que a ajude, em pouco tempo ninguém mais se cumprimentará em São Petersburgo.
— Quem o terá levado ao Palácio Anitchcof? — interrogou o conde.
— Ela mesma — tornou a baronesa. — Deve ter dito à czarina que ele sabe fazer rezas que curam, e, para a mãe amantíssima que ela é, qualquer meio é bom, desde que lhe dê esperanças. Ela é mesmo muito supersticiosa e tem recorrido também ao espiritismo.
— Qual a mãe que não procurará em qualquer religião, ou mesmo seita, a esperança que os médicos já lhe tiraram? — disse a condessa.
Josef entrou para servir aperitivos.
Conversaram ainda sobre as próximas festas e se retiraram.
O Conde Razoukhine levantou-se, pondo-se a caminhar de um lado para outro.
Abriu a cigarreira e ofereceu-a à baronesa, que se serviu de um cigarro. Bateu com ele no braço da poltrona, como é hábito dos fumantes, e colocou-o entre os lábios. O conde curvou-se para acendê-lo. Ela encostou a cabeça ao espaldar e ficaram ambos, uns momentos, em silêncio, pensativos. De súbito, em movimento rápido, ela se entesou, e perguntou.
— Dmitri, não achas que já estás em idade de casar?
Ele sorriu.
— Eu já esperava o ataque, querida prima... e sei aonde quer chegar.
— Melhor assim, porque poupa explicações.
— Confesso que voltei à Rússia inclinado a dar este "terrível" passo — continuou Dmitri.
— Então, por que não o dás logo? — replicou a baronesa.
— É um passo muito perigoso e tenho receio de escorregar em Alena, pois creio que seja ela o motivo do vosso interesse, agrada-me plenamente.
— Pois tens que andar depressa!... Quando ela se fez moça, conhecendo as suas belas qualidades, além de seu físico encantador, eu pensei em ti. E a tua prolongada ausência me deixava muito apreensiva, pois via-a rodeada de jovens, que podiam ser ótimos pretendentes.
— Talvez Alena me ache demasiado velho para ela, que acaba de completar dezenove anos. É como um lindo botão de rosa que conheça a desabrochar!
— Acho que ambos estão na idade própria e que formarão um belo par!
— E que serão muito felizes... e que terão muitos filhos... — concluiu o conde, rindo.
Quem era Rasputin?
Grigory Rasputin era um sórdido mujique[1] siberiano, que tinha mulher, filhos... e todos os vícios imagináveis. Um dia abandonou tudo — menos os vícios — e, filiando-se à seita dos klystys, peregrinos errantes, passou a andar sem rumo, pousando em conventos e tavernas. Os klystys são perseguidos pela polícia, mas por toda parte encontram isbas, cabanas onde se reúnem, secretamente, para a prática de todas as baixezas, sendo a luxúria a preferida por ser a mais degradante. A santificação pelo pecado é o credo dessa seita.
Rasputin quer dizer — libertino — nome que ele justificava com a sua vida desregrada. Pelas isbas onde passava, dirigia as mais desenfreadas orgias. Os klystys o respeitavam como a um santo, pois que tantos tinham sido já os seus pecados, que devia estar purificado. Com uma força hipnótica extraordinária, conseguia arrastar para a lama em que chafurdava, as lindas mulheres que se lhe aproximavam; entre elas, algumas da melhor sociedade russa. Aproveitou também essa força para fazer curas; algumas delas tidas como milagrosas. De chegada a São Petersburgo foi esconder-se da polícia em uma isba, porque o seu nome como curandeiro era já conhecido.
Quando os seus feitos chegaram ao conhecimento da imperatriz, o czar passava por uma terrível crise de hemofilia, e. os médicos tinham já desanimado de salva-lo. Alguém levou o monge à imperial presença e ele prometeu cura-lo. A pobre mãe agarrou-se a essa esperança, talvez a última.
O imperador e a imperatriz da Rússia formavam o casal mais feliz entre os soberanos da Europa. Fora um casamento exclusivamente de amor, sem que nele influísse nenhuma razão de Estado. E a lua-de-mel durava ainda, quando chegaram as bodas de prata. Olhavam-se com tanta ternura como nos primeiros dias. Havia, no entanto um senão, para empanar aquela felicidade, para impedir que fosse completa. Era a falta de um herdeiro, para continuar a dinastia dos Romanov, no trono russo. Quatro vezes ele foi esperado, com ansiedade e alegria, e quatro foram as esperanças malogradas. Nesse lar feliz havia quatro meninas, quatro grãs-duquesa, porém na Rússia as filhas não sobem ao trono, sendo este, por falta de um filho varão, passado ao irmão do imperador e, por falta deste, ao sobrinho mais velho.
Finalmente, quando pela quinta vez se apresentava um enxoval feminino, surgiu o czar.
A multidão, acostumada às salvas que anunciavam uma grã-duquesa, delirou ao ouvir aquelas que festejavam a chegada do futuro imperador Ainda desta vez, a felicidade não foi completa para a pobre mãe. E ela o sentiu quando compreendeu que havia transmitido ao filho, tão longamente esperado, a terrível moléstia que lhe vinha dos seus. E o desespero da infeliz czarina foi duplicado com os sofrimentos do infeliz menino.
Rasputin conseguira debelar algumas crises e daí vinha a submissão da imperatriz às suas exigências. Não só na doença do czar recorria ela ao poder sobrenatural do monge, mas julgava-o apto a resolver todas as suas dificuldades... e as do imperador. Diziam, os que se lhe opunham, que o Império Russo estava nas mãos de um reles mujique.
As grãs-duquesa ficavam, uma tarde em cada semana, livres de preceptores e damas de companhia. A czarina reunia-as em seu salão, na intimidade da família, para conversarem e para que ela conhecesse o progresso em seus estudos. Exibiam, então, seus desenhos, seus bordados e tocava, cada qual, o instrumento que havia escolhido; sendo que, às vezes, tocavam em conjunto, tendo como acompanhante a própria czarina. Cada tarde deviam conversar num idioma diferente. Ela guardava, com fervor, os hábitos mães, que eram os de sua pátria. Assim, para aniversários, as grãs-duquesa preparavam, com antecedência, os presentes e até poesias. A poetisa era a Grã-duquesa Olga.
Para o dia de São Nicolau, em que celebravam a festa do imperador, elas andavam a idealizar as surpresas que fariam ao pai, a quem adoravam, pelo carinho com que as tratava. A mãe orientava-as na escolha, e os dias de recreio, quando, então, se reuniam para combinar e apresentar suas ideias, eram ansiosamente esperados e tão agradáveis como uma festa.
O czar, apesar dos sofrimentos que lhe causava a moléstia, era uma criança muito alegre; gostava sobretudo de fazer pilhérias. Com uma acentuada inclinação para o desenho, vivia a fazer caricaturas das irmãs e, às vezes, também, dos preceptores, que nem sempre as apreciavam, mas que... sempre riam delas.
Maria adorava os pássaros e recebia-os, dos mais raros e exóticos, que lhe mandavam altas personagens que haviam visitado a Rússia. Cuidava-os com o maior desvelo e dava-lhes os nomes das pessoas que estimava ou que lhe eram simpáticas.
Uma vez, entrou quase a correr na sala onde a czarina se achava com algumas amigas, e exclamou alegremente: Tatiana pôs um ovo. E só caiu em si, quando ouviu a gargalhada geral.
Um dos mais ricos rajás da índia, de volta ao seu país, enviara-lhe um pássaro maravilhoso, dentro de uma gaiola de ouro. Era da espécie dos faisões, porém todo branco, com enorme crista amarela. As pernas eram pretas, como se estivesse de botas. Maria tinha por ele cuidados especiais e levou-o para o seu quarto, onde o colocou junto à janela. Uma tarde em que lhe foi levar uma guloseima, encontrou-o vestido de oficial da guarda imperial, tendo nas asas dragonas e no peito botões pintados de ouro. A corista também dourada como os capacetes. Debaixo da asa esquerda havia uma espada. Vendo-o, a surpresa foi tal que a jovem não pode reprimir um grito. As irmãs acorreram e ao depararem com o pássaro, de cabeça erguida, em pose de general, tiveram verdadeiros acessos de hilaridade. Os pais e os preceptores também acudiram e acharam muita graça na travessura do menino.
Uma das coisas que mais o divertiam era, quando em férias, no Palácio de Gatchina, pôr-se a uma das janelas que davam para o pátio interno, e ver os soldados fazerem a continência militar, quando passavam diante da estátua do Imperador Paulo. Um dia lembrou-se de pedir ao pai para mandar colocar a sua no parque do Palácio Anitchcof, porque gostaria que os soldados lhe fizessem, também, a continência.
O czar achou muita graça na originalidade do pedido e prometeu fazer-lhe a vontade, quando as suas notas, apresentadas pelos preceptores, fossem ótimas.
Ele fez uma carinha desanimada, como a dizer que o pai lhe cobrava juros demasiado altos.
Devido à doença, cujas crises o deixavam muito enfraquecido, os preceptores sabiam que não deviam exigir dele um grande esforço, do que muitas vezes se aproveitou, relaxando os estudos.
Em sua última crise, quando estivera de cama, ele queixara-se à mãe de que Rasputin colocava a cabeça na sua, com os cabelos compridos a lhe roçarem pelo rosto, e isso lhe causava repugnância. Pediu a ela que os fizesse cortar. A czarina ficou alarmada com aquele pedido do filho e convenceu-o de que o monge pertencia a um convento, onde era obrigado a usar cabelos longos. Ele não gostou da desculpa, mas não falou mais nisso. Já uma vez lhe pedira que o obrigasse a lavar as mãos, pois quando as passava sobre seus olhos, o mau cheiro lhe dava náuseas. A mãe sabia o que havia de verdade nessa queixa e procurava um meio para a remediar. Um marinheiro de confiança zelava por ele, acompanhando-o sempre, não o deixando correr e, principalmente, pular, pois que a hemorragia causada pelo rompimento de uma veia, dificilmente era estancada e punha em perigo a sua preciosa vida, além das dores que lhe causava. O guarda era quase um gigante e tinha por ele verdadeira devoção. Muitas vezes, em passeios, para que não cansasse, e mesmo para evitar acidentes, carregava-o ao colo.
A conversa entre os dois era interessante de se ouvir. O menino gostava muito que lhe contasse histórias da vida no mar e lhe fazia muitas perguntas. Derevenko pensava algum tempo antes de responder, e só o fazia quando achava que suas respostas estavam corretas. Aleksei impacientava-se, muitas vezes, com a demora.
Logo que as crises eram superadas, ele se tornava, novamente, uma criança alegre. Como todas as crianças, depressa esquecia as dores.
As grãs-duquesa adoravam o irmão e não raro, durante as crises que o assaltavam, eram encontradas a chorar. Reuniam-se as quatro para fazer orações aos pés do ícone da Santa Virgem, onde havia uma lâmpada permanentemente acesa.
Finalmente, tinha chegado o dia da última reunião, antes da Festa de São Nicolau. Algumas jovens, aparentadas da família imperial, estavam lá. A Condessa Xênia, como grande musicista, havia sido reclamada para ensaiar a Grã-duquesa Maria, que devia cantar uma linda canção russa, referente ao dia, acompanhada pelas irmãs. O czar, já restabelecido, fazia parte do coro, e estava convencido de que fora requisitado porque uma voz masculina daria mais encanto ao conjunto. Não percebia que essa harmonia era trazida pela bela voz de contralto da Grã-duquesa Olga.
Ele estava decorando uma saudação para fazer ao pai, mas... como sempre esquecia o princípio, uma das irmãs ficava perto para lhe servir de ponto.
Havia no centro da sala uma grande mesa redonda, à qual se sentavam, depois dos ensaios, para continuar os trabalhos. E ali estavam Tatiana, Anastácia e outras moças. O czar tinha junto dele uma caixa de lápis e outra de aquarelas, e pôs-se a desenhar caricaturas. Já tinha feito a do pai, que sempre tolerava com paciência as suas pilhérias, quando pelo olhar perpassou uma chispa de malícia. Lembrou-se de alguém de quem nunca havia feito uma caricatura... e começou logo por uma longa batina.
Algumas das senhoras e jovens estavam a bordar e a conversar junto da czarina. Todas a esconder seus trabalhos para que o czar não os visse, quando viesse tomar chá com bolinhos como costumava fazer.
A porta abriu-se, silenciosamente, e por ela passou a figura sinistra do Monge Rasputin. A fim de chegar onde estavam, parou junto ao czareviche, que não o pressentiu. Diante do monge estava risonho e satisfeito, viu a sua caricatura, de tranças, amarradas com dois laços de fita, como usavam as meninas. O sórdido monge sentiu uma onda de furor lhe subir à cabeça. Tomou o desenho, rasgou-o e atirou-o ao rosto do futuro imperador da Rússia! O susto que este recebeu com aquela aparição inesperada e, principalmente, com o gesto brusco e violento, fizeram com que empalidecesse terrivelmente.
A czarina, surpresa e desorientada, num impulso irresistível, correu para defender o filho. Rasputin compreendeu que havia exorbitado e, olhando-o fixo nos olhos, ordenou que se levantasse. O czar obedeceu como um autômato. Em seguida falou com a mãe como se nada tivesse acontecido.
O monge, encolerizado, e sabendo que o czar entraria a qualquer momento, quis furtar-se a explicações e retirou-se. Ao passar pela Condessa Xênia, ouviu-a dizer à filha: "Ele o hipnotizou!"
Aquela frase soou aos seus ouvidos como um tiro de canhão. A Condessa Xênia desconfiava! Era, então, preciso separá-la da czarina, de quem era muito amiga. E pensou em quantas mulheres da nobreza estavam já sob o seu domínio. Mas aquela bela mulher nunca se deixaria influenciar pelo seu olhar caricioso ou dominador. Rasputin viu nela uma inimiga... e, portanto, um perigo. A sua franqueza e a sua amizade pela czarina permitir-lhe-iam abrir-lhe os olhos. E desde esse instante, decidiu afasta-la da corte.
Ele não receava os comentários daquela triste cena porque sabia que não seriam feitos.
Sua palavra era como um oráculo e convencera a czarina de que a sua obediência a ele era a condição para a cura do czar. A pobre mãe, sabendo que uma espada estava suspensa sobre a cabeça do filho, e acreditando que somente ele a poderia afastar, deixou de ter vontade própria. Procurava mesmo encobrir do imperador as faltas graves, o péssimo comportamento do imundo mujique, que chegavam ao seu conhecimento.
O povo russo adorava Nicolau a quem chamava "Paizinho", e quando compreendeu que ele e a imperatriz estavam sob a influência de um mujique, que andava à noite pelas tavernas, onde se embriagava e dava escândalos, começou a murmurar.
O general Polenski e o General Grabinski tinham tido a primeira rivalidade desde o dia em que vestiram a primeira farda. Ambos homens bonitos e elegantes, cortejavam a Baronesa Xênia Romanovna, que, como a sua homônima, era de uma beleza incomparável. Polenski amava-a sinceramente. Grabinski, vaidoso e volúvel, desejava-a por ser a mais bela jovem da corte, e cobiçava o seu vultoso dote, para recompor uma fortuna esbanjada no jogo. A Baronesa Xênia, porém, não se deixara iludir e fora buscar a felicidade onde sabia que a poderia encontrar Casou-se com o Conde Vladimir Polenski. O despeito que essa derrota causou em Grabinski, transformou uma simples rivalidade de rapazes num profundo ódio, que iria durar toda a vida. Assediado pelos credores, cujos veementes protestos ele havia adormecido com noticia desse casamento, não teve outro remédio senão levar ao altar a feia e presunçosa Martha, cujo dote deu apenas para pagar as dívidas. A propriedade de campanha que ela lhe trouxera estava em tal decadência, que uma fortuna seria necessária para restaurá-la.
Martha era a única filha do rico industrial Mikhail Rantzov. Sua mãe morrera quando ela era ainda muito pequena e o pai a entregara aos cuidados de uma governanta, que não compreendeu a responsabilidade que tomava. Desde cedo deixou-a viver completamente à vontade; e a vontade das crianças conduz a muitos erros, quando não têm quem as guie e corrija. Assim, Martha adquiriu vícios terríveis como a preguiça, a mentira, a deslealdade e a intriga. Esta começou a ser exercida entre a criadagem, quando ela estava ainda na infância, e criou problemas sérios à governanta. Mais tarde, ocasionou conflitos, alguns bastante sérios, na sociedade, que começara a frequentar. Sua instrução muito precária, porque os livros de estudo a enfastiavam, preferindo aqueles que eram, nesse tempo, proibidos às jovens.
O pai nunca se interessara pela sua educação. Chegava à hora das refeições, que a governanta tinha o cuidado de mandar preparar ao seu próprio gosto. Nas horas de trabalho, era sóbrio nas bebidas, mas à noite, a ceia era regada com o que havia de melhor em sua adega. Depois, ele e a governanta, ambos intumecidos e eufóricos, iam se sentar em cômodas poltronas, onde dormiam o primeiro sono. As vezes aí ficavam até tão tarde, que o criado, que esperava para ajudá-lo a despir-se, se tornava impaciente e ia acordá-lo para o levar à cama.
Uma noite encontrou-o morto. Tivera uma congestão cerebral.
Martha sentiu-se ainda mais à vontade, e não demorou muito a recomeçar a vida social. Vendo-se senhora de uma grande fortuna, sem ter quem a aconselhasse, quem olhasse, com interesse, pelos negócios, começou a gastar tão desmedidamente, a esbanjar, mesmo, em jóias e festas, o seu patrimônio, que este ficou reduzido ao dote que levou a Grabinski.
Havia vinte anos que essa guerra tinha começado entre os dois tenentes, e foi com eles ao generalato...
Depois da conquista do amor veio a das posições.
Grabinski não podia perdoar a Polenski a que este ocupava junto ao imperador. As missões políticas, que exigiam tato e diplomacia, assim como as que deviam ter por base a segurança de um caráter reto e justo, eram confiadas a Polenski. Aquelas que levavam a reprimir uma revolta, afogando-a em sangue; aquelas que exigiam astúcia e poucos escrúpulos, eram confiadas a Grabinski. Ele notava a diferença de tratamento que lhes dava o czar e isso fazia referver o ódio em seu coração, que, ainda por falta de lealdade, não era externado.
Mas ele contava agora com um poderoso trunfo... Rasputin.
Martha Grabinski, com sua futilidade, era uma das mais entusiasmadas por esse monge. Atraíra-a a novidade, o cunho de sobrenatural que dava a todos os seus atos e gestos. O monge criticara-a, a princípio, pela intimidade com que o recebia em sua casa. Contava-lhe "em segredo" o que ouvira a Polenski contra Rasputin, certo de que ela, leviana como era, iria confiá-lo ao monge. Este acabou por detestar, também, o general.
O conde Dmitri Razoukhine estava realmente apaixonado por Alena, porém poucas eram as oportunidades de encontrá-la, desde que, fazendo parte do estado-maior do imperador, este o chamava continuamente para trabalhar em sua companhia. Assim, quando uma tarde se dirigiu ao Clube Atlântico, na Morskaia, teve a agradável surpresa de vê-la em uma das mesas de salão de chá, em companhia da Baronesa Nadia. Naquela sala cheia de gente Dmitri logo distinguiu a jovem, como se ela fosse um imã para seus olhos. A baronesa também o viu, e fez-lhe um sinal; convite que ele aceitou de boa vontade.
Passando por entre as mesas e cumprimentando amigos, chegou junto delas.
— Estás convidado para tomar uma xícara de chá — disse a baronesa.
— Com o maior dos prazeres, querida prima. Não imaginava que o tomaria esta tarde em tão agradável companhia! Ignorava, mesmo, que frequentassem este clube...
— Vimos sempre que minha afilhada e suas amigas resolvem jogar tênis, o que acontece algumas vezes.
— Por que não me contou isso, Nadia? Gosto também de jogar tênis e tê-las-ia acompanhado, certo de que, como parceiro para a Senhorita Alena não seria dos piores.
—A tua longa ausência te tornou alheio aos nossos hábitos. Aliás, eu também ignorava esse pendor pelos esportes...
Dmitri riu, porque, na verdade, ele nunca fora muito esportivo.
— Felizmente, prima, agora estou aqui para recuperar o tempo perdido.
Um grupo de jovens alegres e barulhentos chegou à porta do terraço. Um rapaz forte e bonito abanou com a raqueta. Alena apanhou a dela que estava sobre uma cadeira e levantou-se para sair.
— Não vem conosco, madrinha? — perguntou.
— Vou tomar outra xícara de chá... Irei, depois com Dmitri, apreciar o jogo.
— Bonne chance, mademoiselle! — desejou Razoukhine.
— Merci — respondeu a jovem, sorrindo.
Na aristocracia russa, talvez por esnobismo, falava-se mais o francês que o próprio russo. Assim, o tratamento de monsieur, madame e mademoiselle tinha sido adotado definitivamente.
Enquanto o grupo de jovens se afastava, o rapaz que abanara com a raquete esperava Alena, a quem beijou a mão. Esse gesto, que escapara à baronesa, desagradou ao conde, que perguntou:
— Quem é esse rapaz?
— É o filho do Embaixador da França.
— Por que lhe beijou a mão, quando em seu país não é costume beijar a mão das moças solteiras?
— Dizem que está apaixonado por Alena... e talvez seja uma maneira de o demonstrar. — A picada estava dada... Ela esperava, ansiosa, pela reação.
O Conde Razoukhine estava visivelmente preocupado.
— Escuta, Dmitri, parece-me que estás um tanto enciumado... Se é isso, por que não te declaras logo? O rival também é um belo rapaz!
O conde cerrou as sobrancelhas, como se estivesse a discutir com o próprio coração. De súbito voltou-se para a baronesa:
— Nadia, encarrego-te de sondar Alena... Se consentir em ser minha esposa, irei amanhã mesmo pedi-la ao Conde Polenski.
— Finalmente, Dmitri! — exclamou a baronesa.
— Agora me retiro — concluiu ele. — Não quero tornar a vê-la, antes de ter a sua resposta.
Logo que Dmitri partiu ela foi sentar-se em um dos bancos que ficava junto aos courts de ténis, para apreciar o jogo. Alena, ao vê-la só, sentiu um certo desapontamento.
Finda a partida, elas tomaram o auto que as esperava e que as conduziu ao Palácio Polenski.
Os pais de Alena conversavam na biblioteca, onde ela os foi beijar, antes de subir ao quarto, para mudar de roupa. A baronesa aproveitou para tratar do assunto de que fora encarregada. No velho continente era costume falar-se primeiro aos pais e saber a opinião destes sobre o pretendente; a da verdadeira interessada vinha em ultimo, e nem sempre era levada em conta.
A baronesa, seguindo os hábitos de seu tempo, dirigiu ao conde a pergunta que Dmitri a mandou fazer. E a resposta, que demorou um pouco a vir, não traduzia o entusiasmo que ela esperava.
— Acho Alena demasiado jovem para o casamento; acabou, apenas, de sair da infância e nada conhece da vida... Não está ainda apta para tão grande responsabilidade.
— Vladimir — atalhou a baronesa — deves pensar que Dmitri é o melhor partido, atualmente, em toda a Rússia; além da bela posição que ocupa, é um rapaz muito rico.
— Quanto a isso, em verdade, nada tenho a opor-me. O que acho estranho é que Dmitri tenha encontrado em Alena algo que o autorizasse a ir falar de amor!
— Alena nunca nos falou do Conde Razoukhine como um provável pretendente — disse a condessa. — Se o amasse nós o teríamos percebido. Demais, ela nunca teve segredos para nós. Fomos sempre seus confidentes.
— Ora, Xênia — atalhou a baronesa — precisas concordar que os segredos da moça de agora devem ser bem diferentes daqueles que te confiava a criança mimada... — E vendo a jovem, que aparecia à porta:
— Olhem meus amigos, aí está quem vai resolver o caso!
Alena aproximou-se risonha e graciosa em seu vestido branco.
— O que é que devo resolver, madrinha?
— Em primeiro lugar, queremos saber o que pensas do casamento?
— Sinceramente, penso que é o ideal de toda moça... solteira — respondeu a rir.
— E o teu também?
— Decerto No meu caso há, porém, uma exigência que o dificulta. É que só me casarei quando encontrar um homem igual a meu pai, que possua aquelas qualidades que fizeram de minha mãe uma mulher feliz!
— Esse homem existe, Alena, e me encarregou de saber como receberias o seu pedido de casamento. Trata-se do Conde Dmitri Razoukhine.
O conde estudava a impressão que estas palavras causavam na filha e percebeu que estava tomada de grande emoção. Ela havia empalidecido para, em seguida, tornar-se fortemente rosada. Por fim, perguntou.
— Que disse meu pai?
— Nada poderia dizer, filha, antes de conhecer teus sentimentos. Como homem, sei que Razoukhine é um gentleman. E quanto a possuir as minhas qualidades, penso que as tem. Espero, no entanto — continuou ele a rir — que não possua os meus defeitos.
A baronesa mostrava-se nervosa, temendo uma recusa. E sem poder conter-se, perguntou:
— Afinal, que devo dizer a Dmitri?
O conde ficou suspenso dos lábios da filha...
— Se meus pais não se opõem, se meu casamento não lhes desagrada, pode lhe dizer que o aceito.
A esperança, que, por um momento, vivera no coração do conde, acabava de morrer. A condessa, ao contrário do marido, mostrou grande satisfação pela escolha da filha.
No dia seguinte o Conde Razoukhine veio fazer o pedido oficial. O General Polenski deu o consentimento, sob a condição de Alena não casar antes dos vinte anos.
Esse contrato, entre duas famílias da mais pura nobreza russa, teve vasta repercussão na sociedade. Os jornais estamparam, em grande relevo, o retrato dos noivos. Sucediam-se convites para banquetes e bailes, com que eram homenageados. A própria imperatriz abriu seus salões para uma reunião que lhes ofereceu, o que levou ao cúmulo o ódio e o despeito no coração de Grabinski. E daí, o seu cérebro perverso começou a maquinar um plano para desmoralizar o poderoso rival.
O czar recebia em palácio, quase diariamente, todos os ministros. Semanalmente, reunia o seu estado-maior, para conhecer a marcha das questões militares e tomar decisões para dirimir as dificuldades que surgiam, agora mais freqüentes, com greves e rebeliões. O chefe de polícia trazia, a todo instante, notícias alarmantes de complôs, ora de anarquistas, velhos e ferrenhos inimigos da monarquia, cujos atentados tinham, muitas vezes, impressionado o mundo pela sua crueldade; ora de bolchevistas que começavam a se manifestar, parecendo já organizados. Descobertos esses complôs, os implicados que não eram logo executados, por uma condenação sumária, eram mandados para as minas da Sibéria ou desapareciam no fundo das prisões. Entre estes havia sempre mulheres.
Na última reunião tinha havido sério conflito de idéias. No dia seguinte, devia haver uma grande manifestação em frente ao palácio, para festejar uma data nacional. O chefe de polícia dizia que os bolchevistas se infiltrariam por entre o povo para fomentar desordens e era de opinião que se devia mandar colocar dois canhões diante do palácio, para evitar qualquer surpresa. Muitos dos generais estavam de acordo, porém o General Polenski se negava a consentir. Achava uma precaução hostil e injusta para com o povo, que amava ao seu imperador e lhe era leal...
O czar sempre acatara as opiniões do amigo e chefe do seu estado-maior, mesmo quando divergiam da sua, porém havia, agora, uma certa mudança em sua atitude. Seu olhar acolhedor tornara-se duro e desconfiado. O povo, desde o atentado que tirara a vida do Grão-duque Sérgio, não lhe inspirava mais confiança e, às vezes nem compaixão. Apesar disso, concordara com o General Polenski e dera ordens para que nenhum ato de hostilidade fosse praticado contra o povo. Mais uma vez o general, chefe do estado-maior, vencera a poderosa corrente que se lhe opunha.
O salão, onde se realizavam as reuniões, tinha uma porta que comunicava com a sala de estudos do czar. Encobrindo-a havia um pesado reposteiro de veludo. As duas salas tinham saída para o largo corredor interno. Quando os generais se retiravam, viram a figura de um homem, quase um gigante, de batina, que se afastava apressadamente. Entreolharam-se receosos de alguma complicação. E o dia seguinte justificou esse receio.
O Conde Razoukhine fora jantar com os Polenski, para depois acompanha-los ao teatro, onde era levada um récita de gala. Bóris, o ajudante de ordens do general, também estava presente na sala onde conversavam e tomavam aperitivos, enquanto esperavam as senhoras.
— Não o vi esta tarde, Dmitri — disse o conde.
—Estive no Palácio Anitchcof, a chamado do czar, para estudarmos certos documentos, que estavam pendentes de sua imperial sanção. Mas o trabalho não rendeu o que se esperava. O imperador o interrompia a cada instante, e se recostava em sua poltrona, para pensar. Fumava muito e estava excessivamente nervoso. Pareceu-me mesmo que encontrava certa dificuldade em concentrar-se.
— Certamente a reunião tumultuosa de ontem o abalou — disse o general.
— Quando nos encaminhamos para cá, uma grande multidão se dirigia ao palácio e o largo já se encontrava repleto de gente. Será uma manifestação extraordinária — disse Bóris.
— Penso que a czarina e as grãs-duquesa assistirão à representação esta noite — tomou Dmitri.
A condessa e Alena entraram para cumprimentar os visitantes. Estavam ambas muito elegantes e lindas. Os célebres brilhantes dos Polenski reluziam sobre a pele alva da condessa.
— Finalmente, as deusas nos deram a honra de descer do Olimpo, para maravilhar os nossos olhos — exclamou o conde ao vê-las.
— Que pai lisonjeiro! Merece um grande beijo — disse Alena, juntando o gesto à palavra.
Ouviu-se o gongo e Peter correu à porta que comunicava com a sala de jantar, pronunciando as palavras usuais.
— Madame, est servie!
Razoukhine ofereceu o braço à Condessa Xênia e o conde, por brincadeira, ofereceu o seu a Alena. Esta, lembrando-se de que Bóris não tinha par, ofereceu-lhe o outro braço, e a rir entraram na sala.
O jantar corria animadamente, quando ouviram um tiro e daí a instantes, outro. Eram, positivamente, tiros de canhão. O general trocou um olhar de espanto com Dmitri. Os dois, lembrando o que fora tratado na reunião da véspera, sabiam o que aqueles tiros poderiam significar.
Dmitri e Bóris saíram para averiguar do que se tratava e voltaram com a notícia de que o povo havia sido metralhado, e que dezenas de cadáveres jaziam espalhados pelo largo diante do palácio, cuja porta estava guardada por dois canhões. O General Polenski empalideceu assustadoramente e de súbito sua cabeça pendeu para o lado. Deitaram-no sobre o sofá, enquanto Bóris corria ao telefone para chamar o médico, que veio imediatamente. Com a injeção que lhe aplicou, o conde foi aos poucos voltando a si, mas o Doutor Kostomarov seu médico e amigo, obrigou-o a ficar em completo repouso.
Razoukhine partiu em seguida para o palácio, pondo-se à disposição do czar. Este que, em diversas situações difíceis, se mostrara sempre de uma calma admirável, não podia, agora, controlar os nervos. Estava em seu gabinete, acompanhado apenas pela czarina e caminhava de um lado para outro, falando sozinho e até gesticulando. Ela procurava acalma-lo, abraçando-o e dizendo palavras carinhosas. Ele parecia arrependido e mesmo horrorizado da ordem que emanara de seu gabinete, contra a palavra dada ao chefe de seu estado-maior. Aproximando-se de Razoukhine perguntou.
— Onde está Polenski? Por que não está aqui?
— O General Polenski teve uma síncope e tem o médico a sua cabeceira.
— Maldição!
O czar era muito religioso e tão suave no trato com outras pessoas que somente um grande descontrole de nervos o levaria a falar dessa maneira.
O povo estava tão aterrorizado que nem mesmo tivera a coragem de ir buscar os cadáveres de seus mortos. Estes, ainda de manhã, estavam espalhados pela praça. A czarina, ao chegar por trás das cortinas da janela, deparou com aquele quadro desolador. Cobriu os olhos com as mãos e gritou numa irreprimível crise de desespero.
Tinha ela visto corpos mutilados de crianças, naquele campo de batalha, onde como armas elas haviam levado apenas o entusiasmo e a grande fé que depositavam no seu adorado "Paizinho". Pensou no filho, e, supersticiosa como era, teve medo de que a Justiça Divina lhes cobrasse aquelas vidas, levando-lhes a dele. Rasputin foi chamado, e quando percebeu o estado de espírito em que se achava a czarina, pediu que os deixassem a sós. Ela lhe confessou o medo de que estava possuída e o quanto se sentia culpada, por não ter impedido que aquela terrível ordem fosse dada.
O monge começou a falar, tendo os olhos fitos nos dela e antes de uma hora, a pobre czarina já estava convencida de que aquela inaudita selvajaria, aquele massacre, fora necessário como um exemplo, para assegurar a estabilidade do trono cujos alicerces estavam procurando solapar. Na verdade, os anarquistas, como outros inimigos do trono, estavam indignados, mas já não precisavam de palavras para indispor o povo contra os seus soberanos; aquela ordem indigna e torpe os tinha divorciado.
Em todas as camadas sociais o caso era comentado com amargura. A nobreza retraíra-se; as classes armadas dividiram-se.
Jornais e revistas de toda a Europa estamparam fotografias da terrível cena. E o mundo inteiro ficou estarrecido com aquela brutalidade inominável.
O doutor Kostomarov, além de médico, era amigo particular do Conde Polenski. Tinha trazido Alena a este mundo e a cuidava com um carinho todo especial. Com a intimidade e a franqueza com que falava ao conde, não hesitou em lhe dizer que o estado do seu coração não era bom.
— Quero a verdade, sem rodeios — exigiu o amigo.
— Sim, Vladimir, eu a direi... Quero, porém, que me dês a tua palavra de que acreditarás nela, não duvidarás do que eu vou dizer, além de que as minhas ordens serão, escrupulosamente, observadas.
— Está bem, terei confiança e obedecerei.
— Foste sempre um homem de compleição robusta e de excelente saúde — começou o médico — por isso abusaste muito das tuas forças e deste demasiado trabalho ao teu coração. De mais, meu caro, já não somos jovens e a velhice começa a nos mandar os seus avisos. Tomemos, pois, precauções necessárias para estarmos aptos a vencê-la.
— Até agora só fizeste rodeios, eu quero a verdade — exigiu novamente o conde.
— Já vai, meu velho... Teu coração está cansado, mas não há nele nenhuma lesão perigosa. O que tenho a receitar é repouso. Por enquanto, absoluto repouso! Terás também que evitar contrariedades, pois que foi uma delas que te deu o alarma.
— Conheces a minha situação, Kostomarov, e sabes, portanto que não poderei evitá-las... e muito sérias.
— Bem, posso dar-te ainda um conselho, porém este não será do médico e sim... do amigo.
— Será bem recebido — tornou o conde.
— Poderás aproveitar o pretexto dessa síncope para pedir reforma.
— Não posso abandonar o imperador! — exclamou o general, com veemência.
— Ele já te abandonou! — retrucou o doutor.
Uma nuvem de infinita tristeza passou pelo rosto másculo e belo do conde.
A franqueza rude do amigo tinha-o tocado, trazendo à luz o que ele escondia no âmago do coração — a decepção cruel e injusta.
— Tens razão, meu amigo. Vou pensar seriamente no que me aconselhas.
— E quanto antes — tornou o doutor — por que muitas coisas ainda estão por vir, das quais tivemos, apenas, uma amostra. O que se passou acendeu um rastilho, e Deus que nos livre de que ele atinja a bomba!
Quando o Doutor Kostomarov saiu, o conde ficou por muito tempo abismado em profunda concentração. Repassava pela mente fatos e personagens que iam surgindo, transformando o ambiente de amizade, lealdade e confiança, que existia entre o imperador e os seus generais. Nomeações que se faziam contra o conselho destes. A do chefe de polícia, por exemplo... amigo de Rasputin e nomeado por influência da czarina. A maneira como o ministro do exterior conduzia as relações com os outros países. Enfim, tudo ia mal! Pobre czar!... Pobre Rússia!
Naquela noite Razoukhine trouxe notícias das arbitrariedades cometidas pelo chefe de polícia, contra o povo, das prisões, das casas varejadas.
Depois do jantar reuniram-se na biblioteca e comentavam aquela situação anormal, quando o conde declarou sua inabalável resolução de pedir reforma. E como num conselho de família, todos foram consultados, e todos estavam de acordo. Não só pelo estado de saúde do conde como também pela desconsideração manifestada pelo imperador. Como poderia ele continuar a seu lado, sabendo que suas ordens seriam contrariadas ou mesmo anuladas por uma força mais respeitada que a sua! Sentia-se ofendido em sua honra militar e não poderia colaborar com homens como o chefe de polícia ou obedecer a ordens, que, indiretamente, emanavam de Rasputin. Que aquele esperto mujique estava metido em tudo isso e que era um espião, já não tinha dúvida. Por trás do reposteiro da sala do czar colhia todas as informações secretas que eram discutidas nas reuniões do estado-maior Ele, o chefe, não poderia estar à mercê do monge de uma seita diabólica! O Doutor Kostomarov tinha razão, ele precisava se afastar de tudo isso para repousar... Sentou-se à sua mesa de trabalho e redigiu o seu pedido de demissão, de chefe do estado-maior Dmitri encarregou-se de levá-lo ao czar.
Estava calmo porque a sua consciência estava limpa como um céu sem nuvens.
Depois de alguns dias de repouso, ordenado pelo médico, que ia sempre verificar se suas ordens eram cumpridas, o conde começou a arrumar os documentos necessários ao seu pedido de reforma. A Condessa Xênia e Alena andavam muito tristes, mas nem por um instante deixaram que ele o percebesse. Quando achavam que estava moralmente abalado, procuravam logo alguma coisa de sua predileção. Alena trazia as bonitas coisas que comprara para que ele desse opinião. Vestia os vestidos novos e se punha a andar de um lado para outro, fazendo gestos de manequim, o que sempre o divertia.
Em uma de suas visitas o Doutor Kostomarov lhe perguntou.
— Sabes, Vladimir, em que estive pensando? Que devias passar uma temporada no teu castelo. Terás agora uma primavera e um verão pela frente... A distância e o tempo te ajudarão a superar esta crise; a esquecer as bisbilhotices que se dizem por aí... Se eu tivesse uma propriedade como a tua, não sairia de lá!
— Na verdade, muitas vezes pensei em licenciar-me e passar algum tempo fora. O castelo está precisando de reformas. As terras não me dão nenhum rendimento, pois que as deixei aos meus camponeses, para que plantem e vivam delas.
— Vai, então, visita-los. Imagino que terão muito prazer em rever um patrão tão generoso — disse o doutor — Demais, estou certo que, longe deste burburinho de intrigas e maldades, darás umas boas férias à tua cabeça e ao teu coração.
— A Condessa Xênia e Alena aproveitarão também.
— Sim, como amigas da czarina e das grãs-duquesa, a situação delas se tornou muito delicada... — disse o conde. — Compreendo que um afastamento, neste momento, é absolutamente necessário. Ver-me diante do imperador, entre generais que estavam presentes à última reunião, quando me bati contra a violência, ser-me-ia muito penoso... Tenho, no entanto, que esperar a minha reforma para retirar-me da vida militar, que terminou com um grande desgosto.
— Mas que encheu teu peito de medalhas — concluiu o amigo.
— Xênia ama a vida social a que está habituada e sentirá muito a mudança para a vida rústica e monótona que terá no exílio. Alena, apesar de deixar aqui o noivo, sentirá menos. É muito jovem ainda e a liberdade dos campos, os passeios a cavalo, a pescaria e as caçadas, que faremos juntos, a recompensarão da ausência.
— Quanto tempo necessitas para arrumar os teus negócios? — perguntou o doutor.
— Talvez um mês... ou pouco mais.
— Irei te fazer uma visita — disse o amigo, levantando-se para partir — Também ando precisando de descanso, e creio que umas férias entre vocês serão o melhor remédio para um velho solteirão.
— Pego-te na palavra, Kostomarov, meu bom e leal amigo — disse o conde comovido. Ele sabia que o doutor não iria tão longe para descansar, mas para ajudá-los a suportar o exílio.
Absolvida a viagem, começaram os preparativos. Estes, porém, demoravam, porque eram sempre interrompidos pela grande afluência de amigos que vinham trazer sua solidariedade ao General Polenski. Este era um dos homens mais estimados e respeitados do exército. Assim, só as manhãs restavam aos viajantes para o trabalho de separar o que devia ir, do que devia ficar A Condessa Xênia não queria levar muita coisa, porque pensava que em pouco tempo estariam de volta. Dizia ela que o czar havia de refletir e compreender que não poderia passar sem o seu leal confidente e conselheiro. Então, explicaria o seu insólito procedimento e pediria desculpas. O conde, ao contrário, mandara encaixotar os seus livros e tudo aquilo de que por certo iria precisar em uma longa ausência.
A baronesa estava desolada com o acontecimento. A situação anormal dos amigos a desorientava. Os comentários ferviam e ela os vinha repelir ali. Assim, contou que o General Grabinski, amigo de Rasputin, seria o novo chefe do estado-maior e que isso levantaria uma onda de indignação entre os militares. Essa notícia, confirmada por Razoukhine que a ouvira em palácio, no próprio gabinete do imperador, encheu o coração do conde de ressentimento. E foi num tom de profunda tristeza que falou a Dmitri.
— Então, o czar não encontrou entre os seus generais um homem digno para me substituir? E nomeou um desclassificado como Grabinski, de péssimos instintos, desleal com os colegas, mentiroso e perverso! O único inimigo que tenho no exército!
— Não creio que o czar tivesse pensado em ofende-lo — retrucou Razoukhine.
— Parece-me muito nervoso e desorientado, tornando-se presa fácil nas mãos do hábil Rasputin, que o estará dominando por intermédio da czarina. É incrível como uma mulher pode transformar a vida de um homem...
— E até de um império — atalhou a condessa — quando a move o amor maternal.
A condessa e Alena não tinham voltado ao Palácio Anitchcof e a desculpa à inusitada ausência, era a doença do conde, a quem deviam acompanhar. Razoukhine não só andava tristonho, como de muito mau humor, e quando se sentia nesse estado de espírito, recorria à companhia da prima, que sempre achava palavras para reanimá-lo e dar-lhe confiança. Num desses dias ele se queixou.
— Nadia, venho de ter uma conversa com o Conde Polenski e estou certo de que é um grande egoísta... Por que não consente que Alena e eu nos casemos antes da partida? Penso que não está tão doente que a companhia da condessa não lhe seja suficiente! Demais, creio que vai por tempo indeterminado.
— Deves perguntar a Alena a sua opinião. Estou segura de que acompanhará o pai a qualquer distância e por qualquer tempo. Ele ocupa o primeiro lugar em seu coração. Ademais, bem sabes que uma condição te foi imposta, quando a pediste em casamento...
— Porém, as circunstâncias agora são outras... Não será justo que fiquemos separados. Se Alena pedisse ao pai que consentisse no nosso casamento, ele acabaria por ceder Ela, no entanto está de acordo. Diz que o conde precisa dela... Chego a pensar que não me ama...
— Dmitri — interrompeu a baronesa — olha que estás ficando neurastênico. Alena não gostará, por certo, de ter um marido com tão terrível moléstia! Deves procurar o Doutor Kostomarov.
Ele sorriu.
— Está bem, prima, eu o farei.
E partiu para se encontrar com a noiva.
O czar relutara em dar ao conde a demissão de chefe do estado-maior e só o fez pelas razões apresentadas. Agora, concedida também a reforma, achava-se Polenski completamente desligado de qualquer compromisso com o seu soberano, a quem havia servido com dedicação e amizade incondicionais. Mostrava-se forte e desejava mesmo deixar São Petersburgo o mais breve possível, porém, o que sentia intimamente, e que não revelava, nem mesmo aos seus, ia-o abatendo e envelhecendo prematuramente. Os seus cabelos, nas fontes tinham embranquecido. Parecia outro homem! Alena afligira-se muito ao observar essas mudanças e convenceu o pai de abreviar a partida. Foi isso que desgostou Razoukhine.
Havia, enfim, chegado o dia da viagem.
Agora, deixemos para trás as despedidas. Quem não as terá sofrido já, com seus abraços, promessas e lágrimas! Com as saudades que, muitas vezes, se antecipam à ausência, que se confundem com o último beijo! Vamos nos antecipar ao Conde Polenski e sua família e espera-los no castelo.
Depois de uma monótona viagem de trem, até a cidade que ficava mais próxima, tomaram as tróicas e as kibitkas que os esperavam na estação, para os conduzir ao castelo dos seus antepassados, que ficava a muitas verstas[2] de distância.
O velho mordomo e Varvara, auxiliados por alguns serviçais que os precederam, tinham arrumado tudo. Havia grande diferença entre o palácio ensolarado de São Petersburgo e o sombrio castelo, mas os fiéis e dedicados servidores se haviam esmerado em diminuir essa diferença, enchendo-o de plantas e flores e fazendo preparar para o chá guloseimas preferidas de cada um. Quando subiu ao quarto, acompanhada da ama, Alena abraçou-a.
— Obrigada, querida Varvara — disse ela. — Como pudeste arranjar tantas flores para enfeitar as salas?
— Eu fiz como a menina mandou. Pedi aos rendeiros e eles trouxeram tudo isso.
No dia seguinte, todos os camponeses que trabalhavam nas terras do conde vieram cumprimentá-lo. Vestiam as suas roupas domingueiras. Os homens, com botas de cano alto, calções de veludo e blusões, com uma tira bordada e ajustada ao pescoço, que descia pelo lado esquerdo até a bainha. Todos traziam cintos de couro. A vestimenta das mulheres era simples e completada por um avental e uma coifa bordada.
O conde os recebeu no vasto salão térreo, aonde eles vinham antigamente prestar contas ao administrador A condessa e Alena estavam ao seu lado. As mulheres traziam cestas cheias de legumes e frutas que ofereceram às senhoras. Os homens mostravam-se tímidos, rodando os bonés nas mãos. Estavam assustados, julgando que as terras lhes iam ser retomadas. O conde os pôs logo à vontade, perguntando se estavam satisfeitos, se tinham tido boas colheitas aquele ano. Foi então que, acalmados os receios, ousaram se aproximar do Senhor, para lhe contarem, uns, as suas alegrias, outros, as suas desditas, as suas doenças.
Em toda a parte há os que têm ambição, que trabalham não só para o sustento diário, como para alcançar aquilo que lhes trará a segurança no futuro. Há, também, os que não se esforçam, contentando-se com o que chega, apenas, para as necessidades mais prementes, sem pensarem nos anos maus e nas doenças inesperadas. E há, ainda, aqueles que, além de preguiçosos, têm um único objetivo: trabalham para ter com que passar o maior tempo possível nas tavernas embriagando-se com vodca ou com kioas, bebida russa, que é preparada com água fervendo sobre a farinha de cevada, que se deixa fermentar
O conde conhecia bem os diversos tipos de camponeses da sua terra, e prometeu ajuda-los, estudando um plano para melhorar a sua situação.
Naquela noite toda a região festejou a chegada do barin, do homem bondoso que havia anulado o suplício do knut, — azorrague de tiras de couro com bolas de metal nas pontas.
No dia seguinte, o conde se levantou cedo e ficou muito admirado de encontrar Alena à mesa, tomando o seu chocolate
— Bom dia, papai — disse ela, indo ao seu encontro para beijá-lo. — Devia ter repousado até mais tarde... A viagem foi muito cansativa, e as ordens do Doutor Kostomarov foram peremptórias!
— Ora, minha filha, o dia está lindo e estou ansioso para dar uma caminhada até a aldeia. E tu, aonde vais?
— A minha primeira visita será à igreja.
— Então, faremos a caminhada juntos. Serei teu cicerone, pois imagino que não te lembrarás do caminho, quando aqui estiveste, eras muito pequena.
— Como a temperatura é suave aqui, papai!
— É o que pensas, minha filha. Teremos daqui a pouco dias escaldantes.
— Então, as nossas caminhadas terão que ser limitadas..
Assim, como bons amigos, foram conversando até chegarem à aldeia. Dirigiram-se à igreja, aonde o "Pope" veio cumprimentá-los e dizer-lhes o quanto os aldeões se sentiam felizes pela sua presença no castelo.
— Recebi-os ontem — disse o conde — e alguns se lamentaram da má situação e doenças. Gostarei de ajudá-los, porém preciso saber quais os que o merecem, realmente.
— Se o Senhor Conde me permitir, irei ao castelo e levarei uma lista daqueles que necessitam de ajuda imediata — respondeu o "Pope".
— Muito bem — tornou o conde — espero que não demore muito.
Como era domingo, foram, em seguida, se ajoelhar nos lugares que lhes foram preparados para rezarem a missa.
Alguns dias mais tarde estavam sentados no terraço do castelo, quando avistaram o velho "Pope", que subia lentamente as escadarias. O conde foi ao seu encontro e trouxe-o para junto das senhoras.
— Chegou em boa hora — disse a condessa. — Sente-se para nos acompanhar numa xícara de chá. Mandei servi-lo fora por ser mais agradável, nesta época e, para gozarmos a linda paisagem que daqui se descortina.
— É para mim um real prazer encontra-los tão bem dispostos, Senhor Conde. Parece-me que a campanha lhes tem sido muito favorável!
— Até Rex, o meu cavalo, está contente com a mudança, padre. Mostra-se mais esperto e, às vezes, parece-me notar nele um ar de riso.
Todos acharam graça da descoberta do conde.
Rex era o lindo alazão, que havia acompanhado o dono no exílio. Era um puro-sangue inglês, que lhe fora presenteado por um lorde, seu amigo, quando da sua última viagem à Inglaterra. Alena e Mitka o tinham levado a passear no campo. E para ver o que faria se o soltassem, retiraram-lhe o freio. O animal, que sempre andara preso nas cavalariças, ao sentir-se livre, relinchou de alegria e começou a correr em volta como se estivesse em um picadeiro. Quando o chamavam, ele vinha até junto deles, mas ao vislumbrar as rédeas nas mãos de Mitka, negaceava e fugia novamente. Em dado momento se deitou no chão e se rebolou, relinchando de prazer. Depois se levantou e, como uma criança que já está cansada de brincar, veio mansamente entregar-se à prisão.
Quando Alena relatava esta cena interessante, o conde lhe disse:
— Volia — liberdade — é a coisa mais estimável deste mundo, minha filha. Como vês, até os animais a amam. E os homens lutam por ela!
— E por ela se destroem, se aniquilam! — exclamou a condessa.
— Tem razão. A humanidade, da maneira como anda, nunca alcançará a perfeição. Precisamos rezar muito para que Deus tenha piedade de nós e nos guie no caminho da felicidade!
— Deus—padre — tornou a condessa — sofreu o suplício da Cruz, para nos ensinar esse caminho, mas em todos esses séculos ninguém aprendeu a piedosa lição!
Depois de uns momentos, o "Pope" pediu licença para se retirar. Lembrou-se, então, do pedido que lhe fizera o conde, e tirando um papel do bolso, disse:
— Aqui tendes a lista dos infelizes que necessitam de vossa proteção.
— Nós vamos ajudá-los, "Pope".
Na verdade, a condessa e a filha organizaram a vida de maneira a poderem se ocupar dos pobres. Alena fazia questão de ir, pessoalmente, levar seu amparo moral aos doentes. Acompanhada de Varvara, sua fiel ama, entrava nas miseráveis isbas, que procurava arrumar o melhor possível; ensinava noções de higiene; levava-lhes flores para enfeitar a mesa, porque, dizia-lhes, Deus estava presente às refeições.
Aos paralíticos mandou velhas, mas confortáveis, cadeiras, do castelo. Enfim, tornou-se o anjo da guarda dos camponeses.
A pedido do "Pope", que já se sentia velho, cansado, aquiesceu em dar aula de religião às crianças. Assim, depois da missa, quando os pais se retiravam, ela ficava na igreja, rodeada pelas crianças, que a julgavam uma fada. Um dia, perguntou a uma das meninas, por que a olhava tanto. A pequena, toda enleada, torcendo a ponta do avental, confessou que era porque a achava muito mais linda do que a boneca que lhe dera o Barin Nicolai.
Alena riu, com gosto, da comparação. No domingo seguinte, na hora da aula, um menino, ainda bem pequeno, ao vê-la, correu a abraçá-la.
— Estava com muitas saudades da senhora!
Alena ficou emocionada com a espontânea manifestação de carinho e perguntou.
— Mas tu sabes o que é saudade?
— Sei, bariknia — e na sua linguagem simples explicou. — É quando a gente acaba de ver uma pessoa e sente vontade de ver outra vez.
Assim é que um camponês russo, na sua infantil ingenuidade, tinha definido, e muito bem, esse sentimento que tanta amargura traz a quem o sofre!
Além das aulas de religião, Alena organizara jogos, no parque do castelo, com prêmios para os vencedores. Isso levantou logo o nível dos estudos e o mestre-escola não se cansava de elogiar a ideia da jovem.
De volta ao castelo, Alena ia relembrando o que se tinha passado com as crianças.
E pensou. Quem será o Barin Nicolai? Talvez algum velho proprietário, que viera ali, visitar suas terras...
O verão estava ainda escaldante, apesar de estar chegando ao fim. Logo que o sol baixava, os castelões iam para o terraço, aproveitar a brisa da tarde. O conde e a condessa estavam diante da mesa de gamão, disputando uma renhida partida. Alena apareceu com um livro na mão. Olhou um pouco o jogo dos pais, depois foi sentar-se em uma espreguiçadeira e ficou por algum tempo gozando a paisagem. Abriu então o livro e começou a ler. Quando o servo apareceu, empurrando a mesa do chá, ela se levantou para servi-lo. O conde dizia sempre que gostava mais do chá, quando era preparado pela filha.
— Sabe, papai — disse — ontem, quando voltava da igreja, encontrei uns rapazes da aldeia dos mineiros, que vinham da pesca. Traziam as cestas de lindos peixes prateados. Alguns ainda estavam vivos. Disseram que vinham do rio, antes do lago e que estamos na época da pescaria. Contaram-me que as mulheres faziam conservas que guardavam em barricas ou esfumavam-nos para o inverno. Ó, papai — concluiu — fiquei louca por uma pescaria!
— Pois bem, minha filha, poderemos ir amanhã, se quiseres... Mas terás que te levantar muito cedo; depois das dez horas já o calor é muito forte, impróprio para velhos.
— Meu pai, não gosto que fale assim! — respondeu ela amuada. — O senhor ainda não tem cinquenta anos... Um moço bonito é o que é!
Ele riu do entusiasmo da jovem.
Na manhã seguinte, ainda não eram sete horas quando o conde foi bater à porta do quarto de Alena, e daí a pouco estavam ambos à mesa, tomando o chocolate.
Ao descerem as escadarias do terraço, Mitka, que os acompanhava, levava os anzóis e uma cesta para trazer o peixe. Ele preparara as iscas e ia tão alegre quanto a jovem.
As margens do rio, no lugar onde este começava a se alargar para formar o lago, eram protegidas por árvores, que os abrigavam do sol, porém, por precaução, tinham levado grandes chapéus de palha, tecidos pelos aldeões.
De vez em quando, os peixes saltavam à flor da água, o que fazia com que os jovens dessem gritos de alegria. O conde divertia-se com aquela exuberância de vida, porém os advertiu de que espantavam os peixes; para apanhá-los teriam que ficar em silêncio.
Era a primeira vez que pescavam e a ânsia com que espiavam ás iscas, levantando, a cada instante os anzóis, avisava os peixes do perigo e os afastava.
Um homem chegou também à margem, preparado para a pesca. Vestia roupas de camponês. O grande chapéu que trazia amarrado sob o queixo, encobria-lhe o rosto. Sentou-se a alguns metros de distância e atirou o anzol na água. Nesse momento, o conde sentiu fortes puxões na linha e, de um golpe, retirou o anzol. O peixe que caiu sobre a relva era de belas proporções e saltava tanto que Mitka não podia segura-lo. A alegria, inclusive do conde, foi bastante ruidosa. O homem se levantou e mudou-se para mais longe.
— Por que se afastou ele? — perguntou Alena.
— Porque é alguém que conhece o ofício, minha filha, e achou que o barulho que fazemos afugenta os peixes. Certamente ele precisa deles para ir vendê-los aos mineiros.
Alena e Mitka compreenderam que o conde tinha razão e se aquietaram. Logo depois, os peixes começaram a morder as iscas. E quando voltaram a casa, traziam alguns para o almoço.
O conde receara que Alena sofresse com a separação do noivo e viesse a adoecer Mas, vendo-a em tão boa disposição de espírito, sempre ativa e alegre, tranquilizou-se.
O Doutor Kostomarov proibira ao conde os passeios a cavalo, e Alena aproveitara Rex para suas cavalgadas. Todas as manhãs percorria o sul da aldeia, onde se estendiam as terras pertencentes ao castelo. Ao norte ficavam as minas de carvão e a aldeia dos mineiros. Ela nunca fora para esse lado, onde estavam as florestas. Mitka, que pastoreava, agora, um rebanho de ovelhas, levava-a, às vezes, para lá, por achar que o campo, na proximidade das matas, estava menos ressequido pelo sol, que queimava. E Alena começou a passear por esse lado.
Alguns dias mais tarde, Mitka voltou mais cedo do que de costume. De longe, ainda, gritou para Vasili.
— Os lo—o—bos Os lo—o—bos!
Tinha os olhos esbugalhados e gaguejava.
— Estás louco, menino? — perguntou o pai. — Ainda é cedo para eles.
— Eu os vi!
Tal era o terror estampado em seu rosto que Vasili lhe disse:
— Conta o que viste...
— Eu havia deixado as ovelhas pastando e fui até o bosque caçar passarinhos. Quando subi a uma árvore para tirar um ninho, Tigre começou a ladrar de uma maneira esquisita, arranhando o tronco da árvore como se quisesse subir Pareceu-me assustado. Ralhei com ele, mas continuou a ladrar, desesperadamente, como a querer advertir-me de um perigo. Olhei para a clareira, ao longe, e vi dois lobos comendo o que me pareceu um leitão. Desci de um salto e corri como um louco. As ovelhas alertadas pelo latido do Tigre, como temendo um ataque, também correram de volta.
Alena, ouvindo mais tarde a mesma narração, achou muita graça, julgando que era pura imaginação do rapazinho.
— Por que, então, os lobos não o perseguiram? — perguntou ela, para confundi-lo.
— Porque tinham já uma presa para lhes saciar a fome, bariknia.
A pronta resposta fora amplamente satisfatória, e a jovem teve que se contentar com ela.
No dia seguinte, porém, havia na aldeia um grande burburinho. Ninguém fora ao trabalho. Não só aves e porcos, mas também o cavalo de um camponês fora comido pelos lobos. O pobre homem estava sempre rodeado de gente, que queria ouvi-lo contar o triste episódio. E ele o repetia, lamentando-se e dizendo que esse animal era um velho companheiro que o ajudava a viver, levando a carroça com os legumes que ia vender na aldeia dos mineiros.
Os homens se juntavam para discutir a maneira de organizarem a defesa, pois que não se tratava de dois lobos, apenas, como dissera Mitka, mas de uma matilha esfomeada, que descia das montanhas. Não só os animais estavam em perigo, mas também as crianças, e até eles próprios que ficavam isolados nos campos.
A notícia correu toda a região que passou a viver em pânico.
O conde soube do desespero do pobre camponês, que perdera o cavalo e para que não desanimasse em seu trabalho, mandou-lhe um dos seus.
Ao montar naquela tarde, Alena notara que Rex não estava de bom humor. Havia nele uma superexcitação que a surpreendia.
— Que tem este animal, Vasili?
— Certamente ouviu o uivo dos lobos — respondeu o mujique.
— Crês que se atreverão outra vez?
— Não vos deveis afastar da aldeia, bariknia.— tornou Vasili.
Mas a advertência não chegou a ser ouvida. Rex, em uma violenta arrancada, partiu num galope acelerado.
Havia algumas noites, já, que a alcatéia de lobos esfaimados tentava invadir a aldeia, sendo contida pelo tiroteio dos aldeões. Vacas e cavalos passaram a ser trancados. Carneiros e galinhas foram dormir dentro das casas, em promiscuidade com os donos. De noite, a aldeia era guardada por alguns homens que se revezavam na vigília. Quando percebiam o tropel da matilha, davam tiros para alertar os que dormiam. Estes saltavam de seus catres e corriam para as janelas, onde tomavam posição para o combate. A guerra era de morte e, a cada incursão ficavam alguns mortos, que eles mesmos devoravam. Para os aldeões, o prejuízo ainda não passara de um cavalo, de alguns porcos e de ovelhas desgarradas. Os próprios cachorros se escondiam, apavorados.
Depois de uma noite em que haviam sido rechaçadas com muitas perdas, essas terríveis feras tinham resolvido dar uma trégua aos defensores da aldeia, que já não podiam trabalhar, com receio de se afastarem para os campos. Os pastores já levavam suas ovelhas a pastar O inverno chegaria em breve e era preciso aproveitar o pasto que ainda verdejava.
A tarde estava radiosa. Alena fazia correr o cavalo, procurando obstáculos que o impeliam a saltar. Com o rosto afogueado, o chapéu pendurado às costas, chegou à orla do bosque.
— És um valente! — disse ela, afagando o pescoço do animal.
Nesse momento, como para desmentir o elogio, Rex recuou horrorizado e deu um salto que, encontrando-a desprevenida, a atirou ao solo. O lobo, que surgia do bosque, mediu as duas presas e optou pela maior. Atirou-se, então, ao pobre Rex, que fugiu espavorido. Alena, desorientada, correndo de um lado para outro, sem saber onde abrigar-se, lembrou-se de pedir socorro, o que fez em gritos lancinantes.
A fera, vendo quão difícil seria para um lobo, sozinho, vencer um cavalo à disparada, mudou de ideia e voltou para atacar a infeliz jovem, que gritava sempre. Quando já diminuía a distância que os separava, ela, que o fixava desesperadamente, viu-o arreganhar o focinho, preparando as agudas presas para a primeira dentada. Por certo, antegozava já o sabor daquela carne fresca e rosada e daquele sangue puro e quente. Alena sentiu-se perdida e suas pernas começaram a vergar. Com um soluço levantou o braço para cobrir o rosto. Nesse instante, o tropel de um cavalo fez estacar a fera. Um cavaleiro avançava em desabalada carreira, e quando passou por Alena, que já estava de joelhos, esta se sentiu levantada por um braço forte.
Reanimada, a jovem, como boa cavaleira, acomodou-se à garupa, mas, por instinto de conservação, abraçou a cintura de seu salvador, de quem ainda não vira o rosto. O cavalo, assustado, exigira de suas próprias pernas o máximo que elas podiam dar. E havia razão para isso porque já não era um lobo desgarrado, mas toda a matilha, que o perseguia.
O jovem pensava, com horror, no que aconteceria se o animal tropeçasse. Ele estava armado mas, de que serviriam cinco balas contra um exército de lobos esfaimados! No entanto, lembrou-se que devia avisar a aldeia.
— Senhorita, veja se pode tirar o meu revólver... Dispare um tiro de vez em quando.
— Compreendo — disse ela — é o sinal convencionado...
Era domingo. Os aldeões, aos poucos, iam deixando a igreja, onde tinham ido às vésperas, quando viram Rex, que todos conheciam chegar sem a dona. Alguns rapazes que se aproximaram, notaram que estava fremente assustado. Não tinham dado, ainda, início às conjeturas quando ouviram um tiro. Estava dado o alarme. O povo, tomado de pavor, corria em todas as direções, procurando se abrigar. Os homens corriam em busca das espingardas, para se colocarem em suas trincheiras, as mulheres, aos gritos, juntavam os filhos. Algumas, mais ousadas, tentavam recolher os animais. Aquelas cujas casas eram mais afastadas ficaram rezando na igreja, cuja porta o "Pope" guardava para fechar a seu tempo.
Os tiros se sucediam a intervalos e eram ouvidos cada vez mais perto.
Finalmente, o último anunciou que pediam socorro, tinham já alcançado a aldeia... E passaram diante das rústicas moradas, montados em Relâmpago, que naquele instante, mais do que nunca, justificava o seu nome.
A matilha, que ele conseguira conservar sempre na mesma distância, foi então, alvo de tremenda fuzilaria. Muitos lobos caíram. Os companheiros, desorientados, misturavam-se em louco entrevero. Os jovens, aproveitando essa confusão, atiraram-se do cavalo e correram para a porta da igreja, que foi logo fechada. Relâmpago entrou com eles. Os lobos sobreviventes à chacina, fugiram, uivando espavoridos.
O segundo encontro dos dois jovens foi também inesperado. Porém, em vez de trágico, teve um certo cunho de comicidade.
Nicolai não tornara a ver Alena. Isso o fazia andar mal-humorado. Como a manhã estivesse amena, pois que o inverno, já próximo, ainda permitia ao sol as suas últimas exibições, ele andava a passear o seu tédio. Avistou um rebanho que estava bem afastado da aldeia.
— Estás vendo, Relâmpago — disse ele ao cavalo — aquele grande idiota de pastor? Vem trazer ovelhas para banquete dos lobos. Vamos até lá dar-lhe uma boa lição.
Levantou a chibata num gesto de ameaça, o que fez com que o cavalo pensasse que devia correr. Ele e seu cavaleiro atravessaram por entre o rebanho, que se espalhou para todos os lados, indo estacar junto ao pastor, que, comodamente deitado, à sombra de uma árvore, de barriga para baixo e pernas a balançar no ar, estava absorvido em leitura. De um salto o jovem estava sobre ele.
— Grande canalha — gritou — é assim que velas pelo rebanho do teu amo?
E levantou novamente a chibata, que desta vez não ficou na ameaça, acertou diretamente no alvo. Este se levantou, distribuindo socos e pontapés.
— Deus meu! — exclamou Nicolai — a Senhorita...
— Eu mesma — respondeu Alena, arfando pelo esforço empregado em deixar uma mancha vermelha no rosto do agressor.
— Como iria imaginar que o pastor era...
— E com que direito vinha agredir um pobre pastor que nada lhe fez?
Nicolai ajoelhou-se diante dela.
— Senhorita, é de joelhos que lhe peço perdão.
Alena viu-o tão compungido que desatou a rir.
Sentaram-se, um ao lado do outro, encostados ao tronco da velha árvore que, com a aproximação do inverno, já se havia despojado de suas folhas.
— Agora, diga-me, senhorita, por que a encontro pastoreando um rebanho?
— Ora, é muito simples. Mitka, o pastor, é filho de Varvara, a minha niania — ama. Ele hoje não podia vir, e eu lhe prometi guardar as ovelhas.
— Por que não pôde vir? Está doente?
Alena respondeu com uma risada.
— É o dia de tomar banho... Como faz uma só vez ao ano, não quis que se perdesse a oportunidade.
Nicolai também se pôs a rir.
— Por que foi o dia de hoje determinado? — perguntou ele.
— É o dia de seu santo. Dei-lhe uma roupa nova.
Ambos riram. O riso de Alena, porém, terminou em uma careta, enquanto esfregava as pernas, que ardiam.
— Doem? — perguntou Nicolai, num tom sentido.
— Se doem! Essa chibata é perfeitamente consciente de sua finalidade — respondeu Alena, meio amuada.
— Ela nunca mais tocará em quem quer que seja, ficará guardada como uma relíquia.
— De que se livrou o pobre Mitka! Por que o queria castigar?
— Porque ele devia cuidar melhor do rebanho de seu amo, e não vir oferecê-lo aos lobos.
— Acredita que eles voltem? — perguntou Alena alarmada.
— Talvez, se souberem quem é o pastor que está guardando estas ovelhas. Parece que mostraram bastante simpatia pela senhorita.
— Nunca levei tão grande susto! Estava verdadeiramente horrorizada.
— Ninguém o dirá. Como pastor, ao menos, é bem temerária.
— Agora, estou começando a ter medo. Vou levar meu rebanho para lugar seguro.
— Permite que a proteja?
— Decerto — respondeu Alena — estou contando com isso.
Relâmpago, atendendo ao assobio do dono, aproximou-se e acompanhou-os.
As ovelhas precediam-nos mansamente; algumas que tentavam ficar para trás, atraídas por uns capinzinhos mais verdes, eram logo tocadas pelos cães de guarda.
— Tem um lindo cavalo, senhor...
— Nicolai — rematou o rapaz. — E a senhorita, como se chama?
— Alena.
— Um nome lindo... e todo nosso!
— E tu, como te chamas? — perguntou ela ao cavalo, afagando-o.
— Relâmpago — respondeu Nicolai.
— Quanto te devo meu caro Relâmpago! — tornou Alena, repetindo o afago. — Foste mais corajoso do que o meu Rex! Este me abandonou na hora do perigo. Foi vergonhoso!
Ao aproximarem-se da aldeia, avistaram Mitka que vinha rendê-la no posto de pastor Um tanto enleado em sua roupa nova, com o cabelo cortado e o rosto limpo.
— Como estás bonito, Mitka! — exclamou Alena. — Por que não estás sempre assim?
— Estarei, sempre que a bariknia queira ser generosa — respondeu o menino, com ar brejeiro.
Os jovens despediram-se com termos bem mais amáveis do que os de boas-vindas, trocados por eles duas horas antes.
Os russos têm o hábito de tomar o chá das cinco. Um samovar que o conserva quente está sempre preparado. Os Polenski não faltam a esse prazer. Em São Petersburgo, a essa hora, o salão da condessa estava sempre repleto de amigas que faziam música, jogavam cartas, conversavam e riam. Depois da apresentação de Alena, o grupo havia aumentado, pois muitas jovens também faziam parte da reunião. O Conde Dmitri, quando estava de folga, vinha muitas vezes surpreende-las.
Era talvez nisso que pensavam agora, Alena e seus pais, nessa tarde sombria de outono, reunidos no salão do castelo. A condessa, sentada ao piano, tocava lindas baladas. O conde, recostado em uma cômoda poltrona, ouvia-a com o encantamento de sempre. Alena estava pensativa, mas ninguém poderia dizer, ao certo, quem era o alvo de seus pensamentos.
O criado entrou, empurrando a mesa de rodas que trazia o chá. Em uma salva de prata vinha a correspondência. Alena levantou-se para distribuí-la. O general tirou do bolso os óculos, limpou-os com o lenço e encaixou-os sobre o nariz. Desamarrou, então, um pacote de jornais, e começou a ler. A condessa rasgou um dos envelopes que lhe vinha endereçado. Alena reconheceu logo a letra da carta que ele trazia e um mau pressentimento apertou-lhe o coração. Baixou os olhos para o bordado que fazia, esperando que a mãe falasse.
— Teremos, em breve, uma hóspeda, Alena. Tua madrinha anuncia-nos sua próxima visita. É bem gentil de sua parte fazer essa longa jornada para confortar-nos, no exílio, principalmente quando o inverno está às nossas portas.
O general continuou absorvido pela leitura e a filha pelo bordado.
— Mas, parece que não ficaram tão entusiasmados, como era de se esperar — disse a condessa, virando-se para eles.
— É que nós estávamos gostando do exílio, não é verdade, filhota? — perguntou o general, olhando por cima dos óculos.
Alena piscou-lhe um olho.
— Teremos a sua boa palestra para nos distrair e alegrar — continuou a condessa. — Ela é tão inteligente! Suas narrações valorizam qualquer história, por mais insignificante que seja. Sempre foi nossa amiga sincera. E que melhor prova poderia dar-nos do que enfrentar centenas de verstas de péssimas estradas, que em poucos dias estarão cobertas pela neve?
— Se pudesse ter a certeza de que a visita da madrinha tem realmente o objetivo de acompanhar-nos em nossa solidão, ninguém a apreciaria mais do que eu, que a adoro. Mas, temo que seja portadora de alguma mensagem, que, neste momento, não me seria agradável.
— Falas de Dmitri? — perguntou a condessa. — Creio que não precisas temer as suas mensagens. Certamente terá desistido de suas pretensões, sabendo que a filha do General Polenski não consentiria em frequentar a corte.
Ao ouvir estas palavras, o general levantou a cabeça.
— Penso que, ao contrário, Dmitri manterá seu compromisso, ainda que tenha de renunciar a sua alta posição junto ao czar Conheço-o e sei que é homem de caráter.
— Com essa conversa, esquecia-me de servir o chá — disse Alena, deixando o bordado sobre a cadeira e aproximando dos pais a mesinha de rodas.
— Como foi o passeio esta manhã, minha filha? — perguntou o general. — Não se fala mais dos lobos? Creio que tenham fugido para as montanhas. Em todo caso será bom que não te afastes da aldeia. E por falar em lobos, lembro-me agora que ainda não agradeci ao teu salvador o seu belo ato de bravura. Preciso saber quem é e aonde mora, para ir visitá-lo e convida-lo a vir ao castelo.
Alena ia contar aos pais o que lhe acontecera naquela manhã, quando fora pastorear as ovelhas, mas, sem saber por que, calou-se. O pai teria rido se soubesse da sua cômica aventura, principalmente que tinha apanhado de chibata, mas a condessa teria achado o caso de uma inconveniência a toda a prova, e não lhe teria poupado um sermão. Ela sempre exprobrara ao marido a sua fraqueza na educação da filha, que era um tanto independente.
O general levantou-se, flexionando as pernas.
— Vou dar uma caminhada para aquecer os pés. Já está no tempo de se acenderem as lareiras... Não achas, minha querida? — perguntou ele, virando-se para a esposa.
A condessa sorriu, bondosamente.
— É a vida sedentária que te faz friorento. Devias procurar uma ocupação que te obrigasse à atividade. Por que não montas um pouco? É um bom exercício... a que estavas acostumado. Ademais, poderias acompanhar Alena em suas cavalgadas.
— Kostomarov aconselhou-me a não montar. Alena terá que arranjar um cavaleiro mais "jovem e destemido" para acompanhá-la.
Alena corou, mas respondeu prontamente:
— Nenhuma companhia ser-me-ia mais grata do que a sua, querido pai!
Ele abraçou-a e beijou-lhe os cabelos. Depois dirigiu-se para a porta, vestiu o casaco, pôs o casaco de veludo, pegou as luvas e saiu.
Naquela tarde em que Alena fora salva da voracidade dos lobos, pela corajosa intervenção do jovem, o Destino começara a fazer um desvio na estrada, já traçada, de sua vida.
Ao partir da igreja, ela lhe agradecera o te-la salvo de uma morte horrível, mas, por um lapso de memória, esquecera de pedir-lhe o nome. Dessa falta só se deu conta, quando o quis dizer ao pai. No segundo encontro ficara sabendo que ele se chamava Nicolai, mas ainda desta vez esquecera de lhe perguntar o nome de família. Melhor fora que o soubesse, porque seu coração se teria retraído a outro sentimento que não fosse o de gratidão. Nessa ignorância, o seu pensamento ocupava-se mais do que lhe seria permitido, com Nicolai Grabinski, filho do acérrimo inimigo de seu pai. Pensava nele como um rapaz bravo e destemido, capaz de defender pátria e família. E era tão bonito, com sua pele morena, seus cabelos negros, e uns olhos brilhantes, que olhavam de frente. Devia ser um homem de bem... Na verdade, não era fantasia de seus dezenove anos, nem o prestígio de seu ato de bravura, que faziam com que Alena o visse por esse prisma. Nicolai era, realmente, tudo isso. Ninguém diria que o sangue de Grabinski corria em suas veias. Aliás, ele sempre sofrera pelos atos de violência do pai e pelas enervantes frivolidades da mãe. Como reação, entregara-se ao estudo... e de tal maneira, que, ao receber o diploma de engenheiro, seu organismo achava-se ressentido pelo excesso. Então, a conselho médico, fora refazer-me na campanha, na velha mansão, que lhes vinha do lado materno.
Na companhia de Relâmpago corria pelas campinas. Sua tez estava queimada e seus músculos enrijecidos pelo exercício. Aprendera com os cossacos do regimento do pai a apanhar objetos, no chão, em desabalada carreira. E ali, na liberdade dos campos, aproveitara para aperfeiçoar-se nesse esporte.
Enfim, seus vinte e poucos anos o tinham masculinizado ao contato com a natureza. Aquele ar de esgotamento e tristeza com que ali chegara já tinha desaparecido. Gostava de ir à mina de carvão, acompanhar os trabalhos, e acabou por interessar-se neles. Como sentisse que havia recuperado a saúde e que a inatividade o enfastiava, aceitou o lugar, deixado por um dos engenheiros que se desligara da companhia.
Agora se surpreendia muitas vezes pensando na mocinha que salvara. Nunca frequentara a sociedade, que o teria posto em contato com lindas jovens. Sua infância fora quase desamparada, não conhecera os carinhos, que em geral são proporcionados aos filhos únicos. Sua adolescência não fora melhor Vivia como sequestrado, para que sua presença não eclipsasse a "permanente mocidade" da mãe. Só tivera convivência com professores que, com real vantagem para ele, formaram seu caráter Aquele encontro inesperado e quase trágico, havia atirado Alena para dentro de sua vida. E ele tinha um vago pressentimento de que ela aí ficaria para sempre.
O criado veio avisar Alena de que o cavalo estava à porta. Ela se dirigiu ao hall, vestiu um pulôver e pôs um gorro que escondia todo o cabelo. De calções e botas, mais parecia um rapazinho.
— Não devias sair só, minha querida — aconselhou a condessa. — Vasili poderá acompanhar-te.
Alena sorriu intimamente, pensando que, por certo, não estaria só. Nicolai a encontraria "casualmente" Mal tinha saído da aldeia, pôde comprovar a exatidão do seu prognóstico.
Ele lá estava montado em Relâmpago, cujo pêlo reluzia como se tivesse tomado um banho de óleo.
— Senhorita, como vão as pernas? — indagou. — Não pude dormir, pensando nelas.
Alena sorriu.
— Varvara friccionou-as — disse. — Se visse como ela estava indignada! Rogou-lhe todas as pragas que cabiam em seu espírito... Felizmente para o senhor, este não é muito elástico. Mas há umas tantas ameaças que é capaz de pôr em prática, se o encontrar.
Nicolai soltou uma gargalhada.
— Terei, então, que evitar um encontro com a senhora Varvara!
Iam lado a lado.
— A senhorita é agora a professora de religião, não é verdade?
— Sim. Quis ajudar o "Pope", que anda muito cansado... Como o soube, se nunca o vi na igreja?
— Uma de suas alunas é filha dos meus caseiros. Está tão encantada com a professora que me disse ser a moça mais linda que já viu. E eu compreendi de quem se tratava.
— Ah, deve ser a menina loura, de olhos azuis que me achou mais bonita que a boneca que lhe deu o Barin Nicolai!
— Sim, é ela! Mandei buscar aquela boneca para recompensá-la da boa companhia que me fez, quando estava doente e só. Agora me pede que lhe ensine as lições que a senhorita lhe passa. E eu o faço de bom grado, porque ela é inteligente e aplicada. — Afagou o pescoço de Rex, e perguntou. — Este foi o covarde que a abandonou? É um belo animal. Um puro-sangue inglês! Parece-me muito nervoso.
— Foi o regimento que o pôs assim alerta. Pertence a meu pai.
— O pai da senhorita é oficial?
— Meu pai é o General Polenski — respondeu Alena, com orgulho. Nicolai deu tal puxão nas rédeas que o cavalo estacou.
— O Conde Vladimir Polenski?
Alena balançou com a cabeça. Não podia compreender por que o fato de ser filha do General Polenski causava tanta perturbação ao jovem.
— Eu sou filho do General Grabinski — disse ele, de olhos baixos, como se estivesse a fazer uma confissão vergonhosa.
Um ah! prolongado foi o único som que conseguiu escapar da garganta da jovem. Ficaram alguns instantes calados, como sucumbidos por aquela revelação. Finalmente ele reagiu.
— Quer que corramos um pouco? — perguntou, para sair daquela situação embaraçosa, para sacudir o peso daquele desmoronamento que os oprimia.
Marcaram o ponto da chegada e encetaram a corrida entre Rex e Relâmpago, que terminou com o triunfo do último. Quando os cavalos se aproximaram, espumando, excitados, Alena ofereceu a mão ao dono do vencedor. Ele a beijou e guardou um momento entre as suas.
Emocionados e sem uma palavra de despedida, eles se afastaram.
O outono tinha dado, já, o seu último suspiro. O inverno anunciara sua chegada, com rajadas muito frias. E, por fim, fizera sua entrada triunfal, com uma forte nevada.
O velho castelo dos Condes Polenski, berço de muitas gerações, nunca fora habitado no inverno. Na estação das grandes nevadas, seus donos se mudavam para São Petersburgo, onde eram obrigados ao serviço do imperador. Uns tinham sido diplomatas, mas a maioria fora de oficiais, que faziam parte da Guarda Imperial. Assim, o castelo não estava preparado e, com a reforma do General Polenski e a sua resolução de habitá-lo definitivamente, teve que passar por grandes transformações, que o adaptaram ao clima. As janelas eram, agora, duplas. Todas as peças tinham sido atapetadas; as cortinas e os reposteiros de verão substituídos por outros, grossos e pesados e as lareiras postas em estado de funcionar.
Do Palácio de São Petersburgo tinham vindo muitas coisas necessárias ao conforto dos castelões, principalmente os objetos de seu uso pessoal. A biblioteca fora enriquecida com muitas centenas de livros, dos melhores autores, antigos e modernos, em cuja companhia o conde pensava passar as horas. A condessa era também grandemente afeiçoada à leitura.
Depois do almoço iam fazer a arrumação das estantes. Cada um tinha escolhido a sua. O conde mandara encadernar luxuosamente as coleções de obras raras que dera a Alena. Quando era preciso chegar às prateleiras mais altas, era a jovem, leve e ágil que subia a escada. O pai alcançava-lhe os volumes, já catalogados. Entretinham-se ali sem notar as horas que passavam.
Havia no castelo uma galeria de retratos dos antepassados dos Polenski. Alguns, verdadeiras obras-primas, de antigos mestres, que haviam sido removidos para o Palácio de São Petersburgo, estavam, agora, de volta aos seus primitivos lugares. Alena gostava que o pai lhe contasse os feitos de cada um, alguns edificantes, a enchiam de orgulho; outros que seria preferível não recordar.
Quando Alena era criança, nas poucas vezes que viera ao castelo, não quisera dormir nos majestosos leitos de colunas e dosséis; receava que estes caíssem sobre sua cabeça. Varvara nunca conseguira convence-la de que isso não aconteceria, porque estavam bem seguros. Ainda agora, com dezenove anos, aquela impressão desagradável não se havia dissipado. Então, pedira ao pai para mandar vir de São Petersburgo tudo o que mobiliava o seu quarto. O belo ícone da Virgem Maria, pintado por um artista célebre, estava à cabeceira de sua cama, a qual era coberta com rica pele.
Para distrair o pai, agora que o frio o prendia em casa, ela lhe pedira para lhe dar lições de francês e de inglês, idiomas nos quais queria se aperfeiçoar, pois sabia que o conde os conhecia muito bem.
No hall, Peter, ajudado por um mujique, desencaixotava o arsenal de armas antigas e, guiado pelo conde, ia arrumando na parede uma enorme panóplia, onde havia armaduras completas de seus antepassados.
Naquela tarde, Alena e os pais estavam na biblioteca, onde a condessa mandara acender um belo fogo. Esta se dirigiu para a janela, onde se pôs a tamborilar nos vidros, vendo a neve cair.
— Estou enregelado — disse o conde, andando de um lado para o outro a esfregar as mãos.
— Pobre Nadia! Que triste recepção lhe fazemos! — lamentou a condessa. — Certamente já se terá arrependido de ter escolhido esta época para nos fazer a sua visita.
— É melhor não lhe falarmos dos lobos — lembrou o conde. — Ela é tão medrosa que é capaz de querer voltar, apesar da nevada.
Alena soltou uma gargalhada, lembrando-se de um susto que lhe dera, quando não tinha mais de seis anos. Ganhara, pelo Natal, um rato de veludo cinza. Vendo que ela se dirigia para o quarto foi sentar-se muito quietinha junto da condessa. Não tardou que se ouvissem gritos e pedidos de socorro. O mordomo que subiu a correr voltou em seguida, trazendo o rato pendurado pelo rabo. Alena não pôde se conter e riu a bom rir, o que a denunciou. Foi, então, obrigada a pedir desculpas à madrinha e... ficou sem a sobremesa naquela tarde.
Ao lembrarem essa travessura todos se puseram a rir. Ouvia-se o chiar da água no samovar.
De repente chegou até eles o tilintar dos girinos da kibitka que conduzia a amiga.
— Aí está! — exclamou a condessa, alegremente E encaminhou-se para o hall de entrada, onde os outros a seguiram.
Quando o mordomo abriu a porta, por ela passaram a baronesa... e uma rajada de vento gelado, que fez com que todos se encolhessem dentro de seus abrigos.
Depois que a viajante foi despojada do excesso de agasalhos que a cobriam e recebeu o abraço dos amigos, dirigiram-se para a biblioteca, onde Peter já havia reforçado a lenha da fogueira, e veio servir o chá.
— Brrr! — fez a pobre baronesa, atirando-se em uma funda poltrona — isto é mesmo o fim do mundo!
Alena ajoelhou-se junto dela para friccionar-lhe as mãos, anquilosadas, enquanto a condessa ia preparava uma xícara de chá.
— Minha boa Nadia, quanto te agradecemos o sacrifício desta penosa viagem! — disse ela.
— Na verdade, meus amigos, estas estradas não são para gente, são para lobos!
Alena e seus pais entreolharam-se, sorrindo.
— Mas — continuou a Baronesa — uma madrinha tem suas responsabilidades, e eu queria verificar como andava a alma desta menina, se o seu belo rostinho não andava muito sombrio; se seus lindos olhos não estavam tristes e pisados! Demais... alguém que não poderia se ausentar neste momento, me pediu que fosse portadora de uma mensagem; e a esse alguém eu nada recusaria.
O General, hábil em táticas, pressentiu o ataque e procurou adia-lo, vendo pela fisionomia da filha o quanto o assunto, esperado aliás, a perturbava.
— Querida amiga — interrompeu ele — dê-nos notícias dos amigos, se é que ainda os temos... por lá.
— Decerto que os têm... e sinceros. Trago deles inúmeros recados e protestos de amizade. Quando me despedi da czarina, ela me pediu para dizer a Xênia que sente muito sua ausência, e as grãs-duquesa mandaram pequenas lembranças a Alena e encarregaram-me de fazer com que ela escreva um diário da vida no castelo, para que lhes leve à minha volta. Penso que não se deram conta da nova situação.
— Bem pouco terei para lhes contar — disse Alena tristemente. — Com este frio nem poderemos esperar que os vizinhos nos visitem. Aproveito o tempo para estudar, já que o meu querido professor está sempre às ordens.
O conde sorriu.
— Alena obrigou-me a aceitar esse emprego. Ela não gosta de ociosos — disse ele...
— Vladimir estava habituado a muito exercício e, com a inatividade começou a engordar; o que é preciso evitar — concluiu a condessa.
— Certamente, não gostarias de ter um marido barrigudo, não é, Xênia? — indagou a baronesa a rir. — Ele foi sempre tão elegante. Esse era um de seus títulos... Vocês formavam, mesmo, o casal mais elegante da corte! Na nova geração estarão Alena e Dmitri, para os substituir, e... por falar em Dmitri... vamos ao que realmente me trouxe aqui, com esta invernada. Dmitri me encarregou de lhes pedir para marcarem a data de seu casamento. Com as intrigas e os boatos que correm por lá não era possível afastar-se do imperador. Este anda tão nervoso e assustado que, dizem, a exemplo de um seu antepassado, dorme cada noite em lugar diferente. Eu penso que é Rasputin quem o amedronta para provar que com seu poder pode livrá-lo de malefícios. A nobreza russa está dividida. Há os que acompanham esse horrível monge, para obter favores, que ele alcança por intermédio da czarina. E há os que o odeiam e só desejam o seu Aniquilamento. Dmitri receia pelo czar e o acompanha a toda parte. Essa é a razão por que me pediu que viesse em seu lugar. E como prometi enviar-lhe um correio imediatamente, peço—lhes que me digam o que devo responder.
— Essa questão deve ser resolvida por Alena — disse o conde. — Xênia e eu deixaremos ao seu alvitre, exclusivamente, a resposta a essa pergunta, pois que se relaciona com seu futuro. Ela é quem deve dizer a última palavra. Quando nos comprometemos com Dmitri foi com seu pleno consentimento; apenas lhe pedimos que esperasse pelos seus vinte anos, porque a achamos muito jovem para o casamento.
— Que diz a isso a minha afilhada? — perguntou a baronesa, voltando-se para Alena.
— Que Dmitri foi o único rapaz que me inspirou uma grande simpatia. Sempre pensei que poderia ser feliz como sua esposa. Mas... as nossas condições de vida mudaram completamente. Casada teria que acompanhar meu marido, o que não seria possível, porque nunca me separarei de meus pais. Penso, pois, que o nosso dever é restituir-lhe a palavra.
— Minha filha — interveio a condessa — acho que deves refletir antes dê resolver assunto tão sério. A tua felicidade está, para nós, acima de tudo e não aceitaríamos, em hipótese alguma, que a sacrificasses por nós.
Alena passou por trás do sofá onde estava a condessa e abraçou-a pelas costas.
— Mãe querida! Eu sacrificaria a minha felicidade, se consentisse em separar-me de vós, mesmo que fosse para seguir o homem que amo.
— Tua resposta vai ferir profundamente o pobre Dmitri — disse a baronesa — mas estou certa de que se sentirá orgulhoso de ter-te escolhido para esposa!
Mais uma vez o general veio em socorro da filha, interferindo no assunto.
— Penso que devemos deixar a Alena o tempo de refletir... Agora, vamos tomar mais uma xícara de chá, e provaremos este lindo bolo, que tem um aspecto encantador.
E dizendo isso se encaminhou para a lareira, onde atirou algumas achas de lenha, que logo crepitaram tornando o ambiente mais agradável.
Fazia um mês que a baronesa era hóspede do castelo. Seus habitantes viviam como prisioneiros. O inverno tinha invadido toda a Rússia, chegando já à sua máxima intensidade. O termômetro havia descido tanto que tinha tornado a terra num mar de neve. As estradas apresentavam-se, pela manhã e à tarde, salpicadas de pontos escuros. Eram os mineiros que vinham das aldeias circunvizinhas para os trabalhos da mina de carvão. O lago, formado por um braço do rio, estava quase completamente gelado. Mas... por esse quase, ainda teriam que esperar alguns dias. As camadas de gelo iam sendo espiadas até que a sua espessura permitisse a patinação, sem perigo de afundamento.
As crianças, a cada instante, corriam a vigiá-lo, mas, antes de lhes ser concedida a licença, tinham que se conformar em namorá-lo de longe. Era um gosto vê-las, com suas faces rosadas, debaixo dos gorros de lã. Os mineiros jovens, assim como os camponeses das aldeias mais afastadas, também ansiavam pela solidificação do lago. Eles ali costumavam vir nos invernos, para esquiar e patinar com as suas namoradas. E no fim da estação, o "Pope" tinha sempre muitos casamentos a fazer.
Chegou finalmente o dia em que o lago foi coberto por uma multidão de patinadores. Era um lindo espetáculo o que ofereciam aquelas figuras a correrem de um lado para o outro sobre o gelo. Alguns pares dançando ou fazendo piruetas. Todos numa alegria transbordante.
Alena, também, havia esperado com ansiedade por esse momento, em que Rex teria que ser trocado pelos patins. Acalentava a esperança, quase certeza, de se encontrar com Nicolai. E ele chegou, trazendo ao ombro um par de patins. Cumprimentou-a e convidou-a para patinar. Levaram algum tempo brincando sobre o gelo, onde ele lhe ensinava alguns passos mais difíceis. Quando se despediram ela lhe transmitiu o convite dos pais para ir jantar no castelo.
Desde que soubera que Nicolai era filho do General Grabinski, Alena sentira certo mal-estar, por ter ocultado do pai esse fato. E um dia resolvera fazer-lhe a terrível revelação. Com grande espanto e maior alegria, ouviu a resposta que lhe deu o conde:
— Esquecerei de quem é filho... Esquecerei, mesmo, o seu nome, minha filha, para somente me lembrar que te salvou de uma morte horrível, arriscando a própria vida! A nossa dívida de gratidão é tão grande, que supera tudo o que se pudesse opor a ela!
E foi assim que Nicolai, na noite seguinte, achava-se numa reunião no castelo dos Polenski. Era um rapaz inteligente e instruído e a conversa versou sobre assuntos diversos, incluindo artes. Quando falava sobre pintura ele pediu permissão para oferecer a Alena um desenho, que representava um pastor, deitado debaixo de uma árvore, lendo. O título era Um Pastor Lendo Shakespeare. Alena teve que explicar aos pais o que não lhes havia contado antes, e, por vingança referiu-lhes, também, a surra. Nicolai, que não esperava que ela o fizesse, ficou muito atrapalhado, mas o conde riu às gargalhadas. As senhoras, também, acharam graça.
Falaram ainda dos trabalhos da mina, das péssimas condições em que se achavam as galerias, precisando urgentes reforços. Nicolai falou dos constantes pedidos enviados ao governo, que ficavam sem resposta, do descontentamento dos mineiros, que era a custo reprimido; da ameaça de desabamento e consequentes escapamentos de grisu.
— No entanto, precisamos deles! O carvão é a nossa necessidade mais premente — disse o conde.
— Convidei a senhorita para descer à mina e ver como os burrinhos que lá vivem e trabalham, tem o pelo branco, completamente descorado, pela falta de luz.
— Devem ser interessantes — disse a jovem.
— Eu lhes farei companhia — tornou o conde.
Como o frio tivesse abrandado um pouco, as senhoras resolveram fazer um passeio, aproveitando a tróica[3] que os levaria até a mina.
Essa tarde, de volta ao castelo, a Condessa Xênia não se sentia bem. Tinha muita dor de cabeça e tremia de frio. À noite veio a febre, acompanhada de fortes acessos de tosse. E a pneumonia logo se manifestou. O alarme foi terrível, e Peter, o mordomo, foi mandado de kibitka à cidade mais próxima passar um telegrama ao Doutor Kostomarov, pedindo-lhe que viesse imediatamente.
Passaram-se dias de grande aflição. Alena e a baronesa revezavam-se como enfermeiras, porém o conde não abandonava, nunca, aquela que era o grande amor de sua vida. O Doutor Kostomarov não consentia que ficassem mais de duas pessoas no quarto. Dizia que estavam roubando o oxigênio de que necessitava a doente, pois que, com aquela gélida temperatura, não poderiam fazer a renovação completa do ar. Ele mesmo só entrava lá quando se tornava necessária a sua presença. E com esse pretexto, conseguiu algumas vezes leva-lo à biblioteca, onde conversavam enquanto tomavam um cafezinho. E num desses momentos o Doutor Kostomarov anunciou que a condessa estava fora de perigo. A febre já havia baixado muito e os acessos de tosse eram muito espaçados. Precisava ainda de cuidados, porém, afirmava ele, em pouco tempo estaria completamente boa. A alegria foi geral, e os criados pediram licença ao conde para virem rezar no oratório da família. Na Rússia, em todo oratório, existem entre os santos da Igreja ortodoxa russa, as imagens de São Serafim, canonizado por influência do czar, e de São Voloss, protetor dos rebanhos. Também o "Pope" havia feito preces na igreja pela salvação da condessa. Esta melhorava rapidamente, mas, como a temperatura abaixara muito de zero, seria obrigada a guardar o leito ainda muitos dias.
O inverno, acabrunhador, não dava oportunidade para passeios. Alena, para distrair-se, tinha pedido permissão ao pai para ensinar a algumas crianças. Então, havia organizado uma pequena escola, em uma das salas baixas do castelo. À tarde, antes de voltarem aos seus humildes lares, os pequenos, enregelados, recebiam uma caneca com sopa, e um pão cheio de geléia. Saíam contentes, saltando, como pintinhos aos quais abrissem o galinheiro. Corriam pelas estradas atirando neve uns nos outros, em verdadeiras batalhas. E Alena, que ficava à porta, vendo-os se afastarem, sentia uma íntima alegria, pelo bem que fazia. Aos domingos ela inventava sempre um pretexto para sair e dava uma corrida ao lago, onde estava certa de encontrar Nicolai. Ele enlaçava-a, então, pela cintura e patinavam. Esses encontros eram, agora, o único prazer de que podiam gozar os dois jovens, nesse gélido e triste exílio.
Mitka tivera licença de acompanhar a jovem, e Nicolai lhe tinha ensinado algumas piruetas que, quando não eram levadas a bom termo, atiravam-no ao chão, em posições tão grotescas que os jovens soltavam boas gargalhadas.
Na volta ao castelo, eles conversavam sobre os alunos de Alena, sobre as ingênuas perguntas que lhe faziam. Ela lhe contou da declaração, espontânea e sincera, que lhe fizera um menino de seis anos. Nicolai riu e disse:
— A senhorita é uma conquistadora!
— Lástima é que a sinceridade, esse nobre sentimento, seja um predicado de infância e não chegue com os homens à idade adulta.
— A senhorita certamente teria gostado de viver na idade do ouro... quando os homens eram puros e inocentes...
— Sim — respondeu Alena — nessa era bendita, todos deviam ser felizes, a terra um paraíso, onde se vivia numa perene primavera. Antes nunca tivéssemos chegado à idade do bronze e de ferro que servem para fazer armas, canhões e outros engenhos de morte.
— A senhorita tem razão — tornou Nicolai — porém, temos também o alumínio que serve para fazer os aviões. E estes são de grande benefício para a humanidade.
— Permita Deus que a sua missão seja sempre de paz e amizade — concluiu Alena.
— Como a senhorita é pessimista.
— Como sabe, meu pai é oficial e por isso sempre pensei na guerra com horror!
Tinham chegado ao portão do parque e aí se despediram.
Nicolai sentia uma angustiante tristeza, ia solidão daquela mansão, quase em ruínas. Vivia ali, na companhia de um casal, com o qual não poderia trocar ideias, porque não só eram analfabetos, como nada conheciam da vida, além da que era vivida nas aldeias, por mineiros e camponeses. Estes, sem cultura e sem asseio. Os homens, com os cabelos longos e desgrenhados e as barbas emaranhadas; as mulheres tinham melhor aspecto. A que vivia na Mansão Solitária cozinhava para ele e lhe cuidava da roupa. Era uma boa criatura e sentia carinho por aquele jovem que conhecera ainda criança. O marido cuidava do cavalo e ajudava a mulher no serviço, carregando água e lenha, e plantando alguma coisa para o próprio sustento, pois que o General Grabinski raramente se interessava pela sua sorte. Como companhia, Nicolai tinha apenas a da pequenina Kátia, filha do casal, que com sua infantil meiguice o ajudava a passar o tempo.
Naquela noite, depois do jantar, Nicolai sentou-se em uma poltrona, junto à lareira, e se pôs a pensar em Alena, na diferença de suas vidas, no aconchego do castelo dos Polenski, cheio de calor e conforto, onde se pressentia o amor que os unia. Talvez porque Alena fosse filha única, eles tivessem concentrado nela todo o amor e carinho, o que os aproximara ainda mais. E ele? Não era também filho único? Porém o amor dos seus pais, se é que algum dia existira não se concentrara nele, mas se dispersara em futilidades e ambições, afastando-os cada dia. Pensou em Alena, tão distinta, com um coração cheio de meiguice; fruto da perfeita união de duas criaturas perfeitas. O seu lar, no futuro, seria, certamente, o reflexo daquele em que se conheceram amor, carinho e compreensão E pensou na felicidade daquele que a tomasse por esposa... Encostou a cabeça para trás, tirou umas baforadas do cachimbo e se pôs a dar largas à imaginação... Por que não poderia ser ele mesmo o escolhido da sorte? Mas, de súbito, um pensamento terrível surgiu em sua mente. Os Polenski tinham-no convidado e o tratavam com muita consideração, porque acreditavam ter contraído com ele uma dívida irresgatável, porém, nunca dariam a filha ao filho de Grabinski!
Um imenso desconsolo invadiu a sua pobre alma. Ficou algum tempo com a cabeça entre as mãos. Depois, levantou-se, apanhou o violino e se pôs a tocar; o que fazia sempre que estava triste ou se sentia só.
De repente assaltou-o um desejo irreprimível de tocar para ela; de lhe mandar nas notas do violino uma mensagem de amor, do seu grande e infeliz amor... Vestiu o casaco, pôs o gorro de peles e as botas altas. Ao lado da poltrona havia, sobre um tamborete, uma garrafa de vodca. Ele derramou o líquido no copo e tomou um bom trago, para melhor suportar o frio e, pegando o violino, saiu... Era noite de lua, mas esta não tinha forças para romper o espesso teto de nuvens, clareando-o, apenas.
Nicolai deixou-se guiar pelo coração e em pouco tempo estava diante do castelo dos Polenski que ainda tinha luzes em algumas janelas. Alena estava ajoelhada aos pés do ícone da Virgem, quando até ali chegaram as notas maviosas de um violino, em uma bela canção russa. Sentiu uma grande emoção e compreendeu que aqueles sons doloridos eram como palavras que traduziam um estado de alma. E, de joelhos, como estava, suplicou à Virgem que matasse a semente desse sentimento que começava a brotar em seus corações e que, se vivesse, traria grande sofrimento para ambos.
Nicolai continuava a tocar. Ela teve receio de que a temperatura, sempre baixando, lhe fizesse mal e apagou a luz. Ele pensou que ela ia dormir. Atirou-lhe um beijo, como "boa noite", e partiu.
Alena compreendeu que não podia retardar por mais tempo a sua confissão; tinha de lhe dizer que estava noiva. Ele, por certo, iria sofrer muito, porque a amava. Dissera-lhe um dia que, ocupado com os estudos, não frequentara a sociedade e que entre as poucas moças que conhecera, nenhuma lhe interessara. Nunca tivera, mesmo, uma namorada. E ela não tinha tido a coragem de lhe dizer que não era livre... Agora, porém, para o seu próprio bem, precisava definir aquela situação. Seus encontros iam se tornando embaraçosos Ele teria que se afastar... A esse pensamento sentiu um aperto no coração.
Que seria de sua vida quando não tivesse mais que esperar por aqueles momentos em que, tomando-lhe as mãos ou amparando-a pela cintura, ele a levava a patinar sobre o lago; quando lhe faltassem aqueles instantes, tão curtos, mas tão deliciosos, em que sentiam o vento gelado a lhes bater nas faces, tornando-as coradas, e excitando neles a vontade de viver! Alena nunca analisara antes esses sentimentos, que a tinham tomado de assalto, e ao fazê-lo, agora, na solidão do seu quarto, reconhecia que já não pensava tanto em Dmitri, e que pensava demais em Nicolai. Ao constatar essa verdade, sentiu-se culpada de traição Dmitri era nobre de caráter e bondoso de coração e, sobretudo, a amava, sinceramente E ela, amava-o? Decerto, pois que o havia aceitado por espontânea vontade, como dissera ao pai. Ele iria encontrá-la na Suíça, assim o prometera em sua última carta. E para lá seguiriam logo que terminasse o inverno e que o estado de saúde da mãe permitisse viagem tão penosa. Então ela e Nicolai estariam, forçosamente, separados para sempre. No entanto, para ser leal com ele devia dizer-lhe que estava noiva e que se casaria em breve.
E a pobre Alena, depois daquela noite insone, adormeceu, finalmente, sobre o travesseiro, molhado com suas lágrimas.
Quando o dia amanheceu menos sombrio mal o sol despertou, os mineiros puseram-se em fila, a caminho da mina. Iam satisfeitos, conversando e pensando na primavera, que se aproximava. O pior era o degelo, que alagava os campos e tornava os caminhos quase intransitáveis. Essa transição do inverno para a primavera era, talvez, a época mais difícil para os trabalhadores... Mas, aproximava-os de dias mais felizes, de uma vida mais alegre! Em pouco tempo a mãe Natureza, a levantaria aquele lençol branco, os bosques se ornariam às suas primitivas cores, com suas frondosas árvores, cujas copas multicores balançariam de novo ao sopro do vento; os galhos secos, a margem das estradas, que a neve cobria e que à noite davam a impressão de esqueletos a se retorcerem em uma dança macabra, voltariam à vida, vestindo-se de verde e enfeitando-se de flores. Os camponeses pensavam nas suas plantações, pois que os celeiros, onde haviam armazenado as provisões para o inverno, estavam com estas muito reduzidas. Em breve também a capelinha se engalanaria para receber os casais que iriam ser abençoados pelo Pope. A patinação e os serões junto ao fogo os tinha aproximado. As jovens aproveitavam as noites em que o frio não permitia que deixassem a casa, para fiar o pano com que fariam os seus parcos enxovais. Até os animais mostravam-se mais vivos, como se compreendessem que aqueles fracos raios de sol eram o prenúncio de uma benfazeja renovação.
Os mineiros chegaram à mina justamente na hora em que desceriam no elevador O capataz fazia a chamada até que o ultimo desapareceu, ficando ainda algum tempo com os engenheiros, conversando sobre o trabalho e recebendo ordens. Os mineiros deviam ter chegado já às galerias e começado o trabalho quando ouviram uma tremenda explosão que fez tremer a terra. Essa foi ouvida a quilômetros de distancia. O alarme foi enorme em todas as aldeias circunvizinhas, e em pouco havia uma multidão à entrada da mina. Enquanto as mulheres, em pranto, gritavam pelos parentes, os mineiros, que trabalhavam em galerias não atingidas pelos desabamentos, iam aparecendo. A confusão era tal que se tornava impossível saber quantos ainda faltavam.
O Conde Polenski e Alena acorreram ao local, com todos os servidores do castelo, para prestarem o auxílio necessário. Quando começaram a chegar os feridos, os que estavam em condições de se movimentar eram levados para as suas casas, em todas as viaturas disponíveis. Mas a confusão continuava...
O Conde Polenski sugeriu fazerem um cordão de isolamento para que pudessem proceder à chamada e verem, finalmente, quantos faltavam e quem eram eles.
Muitas galerias deviam ter desabado e o grisu escapado era em grande quantidade. No atropelo da fuga para os elevadores, certamente, algumas lanternas haviam sido atingidas pelos destroços e as chamas provocaram a explosão. Era o que pensavam os engenheiros.
Todos os homens válidos, inclusive os chefes, estavam trabalhando, procurando desobstruir as galerias, em busca dos mineiros que faltavam. As mulheres cujos maridos, filhos ou irmãos não tinham ainda aparecido, estavam ajoelhadas, chorando e pedindo, em altas vozes, à Virgem que os salvasse.
Alena procurava anima-las, dizendo-lhes palavras de esperança... E, àquelas para quem essa palavra já nada significava, procurava confortar. Com a permissão do pai ela havia transformado o salão da escola em enfermaria e para lá tinham sido transportados alguns feridos, que não tinham família.
Depois de instalá-los, o Doutor Kostomarov, com o auxílio das mulheres do castelo, pensou os seus ferimentos. Deixando-os aos cuidados da baronesa, Alena voltou à mina, onde Nicolai se havia internado com alguns mineiros em busca dos desaparecidos. Ela não podia ficar tranquila longe do local onde ele se achava em perigo.
Finalmente, eles voltaram à superfície, trazendo novos feridos e novos cadáveres. Tinham as roupas rasgadas, o rosto e as mãos negras de carvão, os cabelos desgrenhados.
Consultada a lista da chamada, verificaram que faltavam ainda uns trinta homens. Esses infelizes, se ainda viviam, deveriam estar loucos de desespero, pois dois dias e uma noite já haviam decorrido desde que estavam soterrados e ninguém os fora salvar... E estariam sofrendo o tormento da fome e da sede... Aqueles que tinham trabalhado durante todo esse tempo, socorrendo os companheiros, também estavam exaustos. Alguns, ao saírem da mina, caíram ao chão, sem forças para se manterem de pé.
Eram logo alimentados e as mulheres traziam vodca para reanimá-los. Quando o capataz leu o nome dos que faltavam, apesar da solidariedade que existe entre eles, ninguém se achou com coragem de reencetar o trabalho. As mulheres dos infelizes atiraram-se aos pés dos engenheiros, suplicando a salvação para eles... mas, estes, também estavam esgotados. Foi, então, que uma pobre velhinha agarrou-se aos joelhos de Nicolai, pedindo-lhe que salvasse Sacha, o seu querido neto. E tirando do pescoço um cordão com um ícone da Virgem, disse-lhe:
— Ela te dará o que mais desejares, se salvares o meu Sacha!
Nicolai, ao ouvir estas palavras e diante das lágrimas que corriam naquelas faces enrugadas, não resistiu mais e gritou para os mineiros.
— Eu vou voltar à mina e procurar nossos companheiros. Os que não estiverem mortos devem estar passando por torturas indefiníveis. Preciso de voluntários que queiram ir comigo, pois que só, nada poderei fazer... Quero homens resolutos e sem família, que estejam prontos para qualquer sacrifício... pois poucas serão as nossas probabilidades de voltar... As galerias, por onde passaremos, para atingir aquela em que devem estar os mineiros, se já não desabaram, estarão prestes a isso. Mas devemos pensar que se estivéssemos em lugar desses companheiros, por certo eles não ficariam indiferentes e tentariam nos salvar... E ademais, são quase todos homens casados, que deixariam muitas crianças na orfandade...— E como ninguém se manifestasse, ele perguntou. — Então, amigos, vão deixar que pobres homens, que ainda poderão ser salvos, tenham uma morte horrível?
De súbito, os mineiros se reanimaram e foram se juntar a Nicolai, que já se preparava, com a equipagem necessária, constante de picareta, um chapéu próprio, que leva uma lâmpada dentro da copa e uma lanterna envolta em tela metálica. Além das provisões para se alimentarem, caso tivessem a infelicidade de ficarem, eles mesmos, prisioneiros de algum desabamento.
Todos, uns vinte, apenas, estavam já prontos para seguir Nicolai, que estudava com os outros engenheiros, na planta da mina, o lugar onde estariam localizados os mineiros, quando ouviram o estampido de nova explosão.
— Mas isso é uma temeridade, um suicídio! — comentou um dos chefes.
Alena, que havia acompanhado, em silêncio, ao lado do pai aqueles preparativos, ao ouvir essas palavras sentiu um tal horror em pensar que Nicolai podia não voltar que, não podendo controlar seus nervos, correu para ele, gritando:
— Não, Nicolai, não quero que vá! — Para o rapaz, aquele grito desesperado penetrou até o fundo do coração, dando-lhe novo alento para a luta que ia encetar, mas para o Conde Polenski foi uma terrível revelação. Ele abraçou a jovem, penalizado, e pediu.
— Deixa-o ir, minha filha Ele vai cumprir uma missão, por demais penosa para que a tornemos ainda mais difícil.
Nicolai, muito embaraçado e comovido com aquela feliz surpresa, apertou as mãos do conde e de Alena e, juntando-se aos companheiros, embrenhou-se na mina. Era como se espontaneamente se fosse fechar dentro de um túmulo!
Os mortos eram velados na igreja. Conforme uma antiga crença eslava tinham pesadas moedas sobre as pálpebras, para que estas se conservassem fechadas para sempre. Também fumo e aguardente eram colocados no caixão, para que pudessem oferecer aos amigos que encontrassem. O costume de ser colocada uma escada no túmulo, para que o morto possa subir ao paraíso é mais remoto e a civilização vai fazendo com que desapareça.
O conde e Alena voltaram ao castelo. Ele obrigara a filha a descansar algumas horas, como se isso fosse possível, na angustiosa tensão em que se achava. Ele mesmo sentia-se atordoado, numa grande confusão, depois que descobrira os sentimentos da filha em relação a Nicolai. Sempre temera aquela convivência, no isolamento do castelo, com um inverno tão rigoroso que não permitia que recebessem e nem que fizessem visitas às cidades mais próximas. Antes de conhecer Nicolai ele não imaginava o perigo que representava para a jovem a presença daquele belo rapaz, aumentada de prestígio pelo sou heroísmo, salvando-a dos lobos, com o risco da própria vida.. Mas, na noite em que Nicolai foi, pela primeira vez, jantar no castelo, ele temeu pelo coração da filha. Nada dissera à esposa para não afligi-la. Sentia-se agora muito cansado e a condessa obrigara-o a recostar-se no divã e mandara servir o chá. Ao mordomo que entrou ela disse:
— Peça à Senhora Baronesa que venha tomar uma xícara de chá. Ela deve estar muito fatigada e precisa repousar um pouco.
— Na verdade, Senhora Condessa, foi uma terrível catástrofe, que trouxe muito sofrimento para todos.
— Nós sentimos muito, Peter, e estamos prontos a ajudar essa pobre gente a vencer esta crise. Deus lhes dará coragem.
Peter, o velho mordomo, curvou-se respeitosamente e saiu.
O conde tomou uma xícara de chá, e por insistência da esposa, comeu uma fatia do bolo de que tanto gostava. Mas não conseguiu dormir. Pensava na filha, que, por certo, também não estaria dormindo. Imaginou quanto ela estaria sofrendo e resolveu ir levar-lhe uma palavra de conforto, de carinho. Subiu ao seu quarto e bateu. Como não obtivesse resposta, abriu a porta lentamente e entrou. Alena estava caída ao chão, aos pés do ícone da Virgem, a qual fora pedir, não só por Nicolai, como por todos aqueles bravos e destemidos rapazes que o tinham acompanhado.
O conde, tomando-a nos braços, deitou-a sobre a cama e logo saiu quase a correr, em busca do médico.
— Que tem ela, Igor? Está mal? Oh, diga-me por favor!
Estava tão pálido que o médico receou por ele.
— Nada disso meu amigo... É um simples desmaio, devido ao cansaço. Está esgotada por esses terríveis dias que temos vivido. Com esta injeção que lhe apliquei voltará logo a si... Mas é absolutamente necessário que fique deitada e que durma umas horas. Vou, agora, tomar uma xícara de chá, para a qual a condessa me mandou convidar e depois, estarei na enfermaria.
— Como vão os feridos?
— Apenas um me inspira cuidados; os outros em breve estarão bons.
Logo que o médico se retirou, o conde se sentou ao lado da cama de Alena. Ela abriu os olhos e vendo-o ali lhe estendeu a mão. Ele a segurou entre as suas e beijou.
Com uma voz débil como de uma criança, ela lhe disse então:
— Perdão, papai.
O Conde sentiu tal emoção que não pôde falar... mas, os seus olhos cheios d'água disseram a Alena que ela estava perdoada.
— Paizinho — tornou ela, timidamente — ha notícias?
— Sim, minha filha. Um homem voltou para dizer que estavam em bom caminho e que os alcançariam em pouco. — E, voltando-se para o ícone da Virgem disse, mentalmente — "Perdoai-me também Senhora, por esta mentira."
— Papai, eu tenho que lhe contar como tudo aconteceu...
— Agora não, minha filha. O doutor disse que tens que dormir algumas horas, senão terás que ficar na cama. Eu ficarei a teu lado e dormirei também, nesta poltrona.
Rendidos pelo cansaço, pai e filha adormeceram por fim.
Um novo dia ia surgindo, quando o conde acordou, sobressaltado. O relógio de bronze que estava à lareira marcava já sete horas. Alena dormia profundamente, alquebrada pela fadiga e pelas emoções. Ele se afastou, lentamente, cerrou as cortinas de veludo e saiu, na ponta dos pés.
Ao passar pela porta da sala de jantar encontrou o velho mordomo, que o esperava.
— Que notícias tens, Peter?
— Nenhuma, senhor. E a bariknia como passou?
— Está dormindo. Diga a Varvara que vá ficar a seu lado e que não a deixe sair. Eu vou até à mina e volto logo.
— Não vai tomar alguma coisa, senhor?
— Agora apenas um cafezinho...
Peter serviu-lhe uma pequena xícara de café, que ele tomou em movimento, tal era a ânsia de correr à mina, na esperança de uma notícia animadora.
Na mina a situação era quase a mesma do primeiro dia. Agora já não eram somente trinta, mas cinquenta homens, de quem não se tinha notícias. E as famílias continuavam ali ou iam à igreja, onde o "Pope" fazia preces pelo seu salvamento.
Felizmente o inverno ia se afastando aos poucos, e a primavera chegava a passos lentos. Ao cair da noite o frio ainda castigava aquela pobre gente.
O conde dera ordens a Peter para mandar distribuir bebidas quentes. E mais duas noites e um dia se passaram numa dolorosa expectativa.
O resto dos mineiros continuou a tarefa de desobstruir as galerias, que haviam desabado posteriormente à passagem de Nicolai e seus companheiros.
Finalmente, ao amanhecer do segundo dia, alguns desses homens voltaram, trazendo quase mortos, todos os sobreviventes da terrível catástrofe. Entre eles estavam Nicolai e Sacha o neto da velhinha.
O conde mandou conduzi-los ao castelo, mas quando quis instalar Nicolai num dos quartos de hóspedes, ele pediu que o deixassem junto dos operários.
Dos trinta homens soterrados, alguns tinham lá ficado para sempre, e dos vinte voluntários havia alguns gravemente feridos, mas satisfeitos por terem ajudado a salvar os companheiros.
Kátia, a avó de Sacha, não se afastava dele, abraçando-o e beijando-o. E foi a custo que salvaram as pernas de Nicolai de seus abraços intempestivos. De joelhos, ao lado dele, ela repetia sempre " A Santa Virgem te dará o que lhe pedires!" O pobre rapaz sorria, com um sorriso duvidoso, pois o que ele pretendia era um pedido muito ousado. Na entrada da mina havia grande tumulto; ouviram-se gritos de alegria... e de dor.
Alena, quando o pai lhe levou a feliz notícia, saltou da cama, onde a tinham mantido prisioneira, desobedecendo às ordens do médico. E reanimada por uma vida, que tinha por base uma juventude sadia, deu todos os seus esforços à cura dos feridos.
O conde tinha proibido a todos de lhe darem o feliz resultado da expedição à mina, reservando-se o direito de o fazer. A razão disso era que, conhecendo a filha, adivinhava que ela teria um irresistível impulso de alegria, de felicidade, que não devia ser presenciado por ninguém a não ser ele, o seu confidente Nicolai, com as injeções que lhe aplicavam, para acalmar as dores, vivia em estado de torpor. Alena, ao ver aquele rapaz forte e enérgico, que, por duas vezes havia arriscado a vida para salvar a dos seus semelhantes, ali inerte, sem vontade própria, saía chorando e ia se esconder na biblioteca, para que os seus principalmente a madrinha, não a vissem. O pai, porém, notou a sua palidez e obrigou-a a ir descansar Ela respondeu.
— Sim, papai, vou lhe fazer a vontade, mas o senhor terá que ir comigo; tenho que lhe falar.
O conde compreendeu do que se tratava e pensou que seria melhor que entrassem logo no assunto que os preocupava. Acomodou-se em uma larga poltrona, na biblioteca, tendo Alena sentada, numa banqueta, a seu pés.
— Estou às suas ordens, minha senhora — disse ele, querendo, com o gracejo, pôr a filha à vontade, dar-lhe mais confiança.
— Meu papai querido, tenho mais uma vez que lhe pedir perdão! Eu sei que sou uma grande pecadora, por amar um homem, quando estou comprometida a me casar com outro. Sinto até vergonha, papai, de ter que lhe confessar isso! Mas peço-lhe que acredite! Eu mesma ignorava a existência desse amor, até que ele se manifestou naquele grito de dor! Pensava em Nicolai como num companheiro agradável, que me tornava a vida menos insípida, que me ajudava a tolerar a tristeza deste inverno, com sua neve eterna! Ó papai, como o senhor deve estar sentido comigo, julgando que calei esse sentimento, que fui desleal!
O conde agarrou-lhe a mão, muito emocionado.
— Minha querida filha — disse, com carinho. — Desde a noite em que esse rapaz veio pela primeira vez ao castelo, eu previ o perigo que ele representava para o teu coração; principalmente, porque nunca confiei na firmeza do teu amor por Dmitri... Quando este te pediu em casamento, eu lhe pedi uns dias para responder, porque receava o teu entusiasmo de menina inexperiente, que se vê preferida por um homem que está em grande destaque na corte, cobiçado por muitas jovens. Esse amor que, muitas vezes, observei, não fazia com que teus olhos, de dezenove anos, brilhassem à sua aproximação, não seria bastante forte para resistir aos encantos, à personalidade deveras marcante, de Nicolai... Devo te dizer que não estou te encorajando e que ficaria mesmo muito triste se insistisses nessa inclinação pelo filho de Grabinski...
— Não, querido papai, nunca, nunca! Eu também detesto o General Grabinski, e não suportaria a sua presença em minha vida! Em breve, devemos partir para a Suíça e tudo terminará. Tenho muita pena de Nicolai, pois já compreendi que me ama sinceramente. Peco-lhe, papai, que tudo isto fique entre nós dois, que nada revele a mamãe e... principalmente a madrinha, pois que estou resolvida a cumprir a palavra empenhada ao Conde Razoukhine.
Finalmente, tanto na mina como nas aldeias e no castelo, a vida ia se normalizando. Os feridos, já recuperados, tinham voltado ao trabalho. Aqueles cujo estado não era ainda plenamente satisfatório para o Doutor Kostomarov, viviam na enfermaria improvisada por Alena que, auxiliada pela madrinha, lhes dava todos os cuidados necessários. Entre eles estava Nicolai, com uma perna e um braço fraturados.
Alena tinha achado que era um dever avisar aos pais dele do que acontecera. O conde concordara, mas não queria que o seu nome fosse usado na carta que ia ser enviada. Alena foi procurar os caseiros dos Grabinski e pediu-lhes que mandassem dizer aos pais de Nicolai o estado em que este se encontrava.
— Mas, bariknia, nós não sabemos escrever — disseram eles.
— Vocês me dirão o que querem e eu escreverei — respondeu a jovem.
Foi a mulher, mais desembaraçada do que o marido, quem tomou a palavra e ditou a carta, nos termos, às vezes, pitorescos, usados pelos camponeses analfabetos. Em todo caso, punha-os ao fato do acontecido, dizendo-lhes que tinha havido explosão na mina e que o bari fora um verdadeiro herói, descendo até o fundo com outros homens para salvar os mineiros soterrados. Que escapara da morte, mas que fora ferido gravemente e ainda se achava muito doente. Que bom seria que viessem vê-lo.
Decerto que a carta levaria muitos dias para checar ao seu destino. Alena, no entanto, temia que eles viessem e encontrassem o filho na situação embaraçosa em que se achava, recebendo a hospitalidade dos Polenski. O médico pensava que não seria prudente que ele se transportasse para a Mansão Solitária, pois que ainda sofria dores, e ali, na enfermaria, todos os recursos lhe eram proporcionados... Ele, facilmente, se deixou convencer. O tempo havia melhorado consideravelmente com a entrada da primavera. A terra tinha agora um ar risonho, depois de ter estado envolta num sudário de neves. As árvores começavam a se revestir de diversos tons de verde, que cobriam os seus esqueletos. Era como se a natureza despertasse de uma morte aparente.
Uma tarde, Nastásia chegou ao Castelo dos Polenski com uma carta para Nicolai. Era a resposta. Ele, depois de lê-la, ficou silencioso e de cabeça baixa. A carta dizia que ele tinha idade bastante para refletir, antes de atirar-se à morte para salvar miseráveis mujiques. Que nem ela e nem o marido estavam dispostos a fazer o sacrifício de tal viagem... Que ele deveria voltar a São Petersburgo, logo que melhorasse.
Depois de quase um mês de cama, o médico permitiu que se levantasse, mas para caminhar ou para se manter de pé tinha que usar uma muleta, que o conde mandara buscar numa cidade próxima. Muitas vezes, ajudado pelo médico, subia para tomar chá ou jantar, a convite da condessa, que muito apreciava a sua convivência. Não podia, por causa do braço, tocar violino; a condessa e Alena faziam música para entretê-lo, o que tornava as tardes muito agradáveis. A noite, depois do jantar, jogava algumas partidas de pôquer, que acabavam em conflito A baronesa era muito hábil no blefe e isso levantava celeumas entre ela e o conde, que não o permitia.
Uma tarde, o conde estava à janela, apreciando a paisagem, que ia, aos poucos, passando por uma maravilhosa transformação. O céu já se havia colorido de um azul que fazia bem aos olhos. Os campos começavam a verdejar novamente. E ele pensou que a situação em que se encontravam principalmente a filha, não devia se prolongar mais. Alena estava emagrecendo e tinha um ar infeliz, que o penalizava. Disse, então:
— O tempo melhorou muito, e está se firmando rapidamente. Já podemos pensar na nossa partida para a Suíça. Kostomarov pensa que no clima das montanhas e com o ar fortificante dos pinheiros, a nossa querida Xênia recuperará logo a saúde; voltará a ter aquelas boas cores que a tornavam tão bela!
— Lisonjeiro! — exclamou a baronesa. — Ele é que quer passear Xênia, já está pensando nas suíças, gorduchas e avermelhadas.
O conde sorriu.
— As suíças, realmente, não são bonitas... são coradas demais. Mas, em compensação as turistas...
Alena e Nicolai tinham ficado calados e tristes.
A baronesa notou e achou que era momento de pôr as coisas a claro.
— A minha afilhada deve estar contente, com a próxima viagem — disse ela — pois Dmitri prometeu ir ao nosso encontro.
Antes que Alena tivesse que responder, o conde veio em seu auxílio, continuando a pilheriar.
— Nadia está satisfeita, pois não somente as turistas, mas os turistas lá estarão. E entre eles há homens muito bonitos. Há principalmente, americanos milionários... que gostarão de ter por esposa uma baronesa russa.
Nicolai pretextou cansaço e pediu licença para se retirar. Alena alcançou-lhe a muleta e o ajudou a se levantar. Ele cumprimentou as senhoras. O conde acompanhou-o.
Mas o pobre Nicolai não pôde dormir naquela noite, imaginando quem seria esse Dmitri que tanto devia interessar a Alena. Sentiu aquele mal-estar que, como um pressentimento, anuncia uma notícia desagradável.
Alena também não pôde dormir. Sofria por ele e por si mesma. A tristeza que notou em seus belos olhos negros causou-lhe um imenso pesar.
E pensava com amargura no dia, próximo, da separação... definitiva. Certamente Nicolai lhe perguntaria quem era Dmitri e o que representava em sua vida. Então, começou a evitar, o que antes procurava estar a sós com ele. Houve um dia, porém, em que o acaso se meteu a conspirar e conseguiu reuni-los. Estava uma linda noite de luar Alena sentiu a necessidade de estar só, de respirar desafogadamente, para aliviar o peso que oprimia seu coração. Saiu por uma porta lateral e dirigiu-se ao grande parque, que já começava a se enfeitar de flores, que exalavam um aroma suave, inebriante. Depois de andar um pouco, ela se sentou num banco, por baixo de uma frondosa árvore. E ali estava pensando em sua jovem vida já tão amargurada, como se um inimigo invisível a fosse semeando de obstáculos. E tão abstraída estava que não viu um vulto que se encaminhava para ela. Era Nicolai, que ali vinha pelo mesmo motivo Aproximou-se e pediu licença para sentar-se a seu lado.
— Se não a incomodo, gostaria de conversar um pouco com a senhorita.
A jovem sentiu que era chegado o momento da embaraçosa confissão, e que não devia mais adia-la.
— Eu também desejo conversar com você, Nicolai, ainda que isso me custe muitas lágrimas... Mas, prefiro que fale primeiro; assim, talvez, terei coragem.
— Eu quero saber quem é Dmitri e por que se interessa por ele.
— O Conde Dmitri Razoukhine é meu noivo.
Alena disse aquela frase numa voz tão débil, como se não quisesse que ela fosse ouvida.
— Seu noivo? — perguntou Nicolai, incrédulo, julgando uma brincadeira.
Ela só teve forças para abanar com a cabeça, nem mesmo levantou os olhos para não ver a sua decepção.
Dizem que os russos, por mais finos e diplomatas que sejam, têm o seu momento de selvajaria. Nicolai estava no dele. Apertou o braço de Alena e puxou-a para si, com violência.
— Está mentindo, não pode ser! Há muito tempo que venho a este castelo e nunca ouvi mencionar esse noivado!.. Não, Alena não posso crer que seja tão cruel para me esconder um fato desses, quando conhecia os meus sentimentos a seu respeito! Diga, por Deus, que não é verdade!
Alena sentiu tão profundamente o desgosto que causara àquele pobre rapaz, para quem representava o único afeto no mundo, que esqueceu o seu próprio sofrimento. Pousou sua delicada mão sobre a dele e disse:
— Nicolai, quero que saiba que o amo! Mas é preciso que ouça a minha história, para poder julgar-me. Quando completei dezoito anos, meus pais deram um grande baile para minha apresentação à sociedade. Um dos convidados era o Conde Dmitri Razoukhine, primo da baronesa, minha madrinha, que eu conhecera quando era ainda criança. Ele voltava de uma longa estada pela Europa, onde servira como adido militar É um belo homem e muito elegante Eu, que nunca sentira inclinação por nenhum dos rapazes conhecidos, senti a sua forte atração. Vi-o depois, diversas vezes em casa de minha madrinha, que preparava esses encontros à minha revelia. E, talvez, a sua influência tenha cooperado para que eu aceitasse a corte que ele abertamente me fazia. Quando me pediu em casamento, meu pai exigiu um prazo para resposta, alegando que eu era muito jovem para saber o que queria.
Dmitri, porém, insistiu e ele acabou por ceder. Enquanto o tinha a meu lado, enchendo-me de mimos, a sua presença era-me muito agradável. Sentia orgulho dele, pois que todas as mulheres o admiravam e todas as minhas amigas se sentiriam felizes de te-lo por esposo. Eu estava certa de ter alcançado a felicidade que todas almejamos, principalmente porque Dmitri era o único em minha vida.
Quando deixei São Petersburgo, vinha triste pela separação e sentia a sua falta. Logo depois, porém, eu o encontrei, Nicolai, em circunstâncias que pareciam criadas por Deus para o porem em meu caminho. E naquele momento terrível em que o vi pela primeira vez, senti que um sentimento novo e desconhecido para mim despertava o meu coração. Era um amor, que em nada se parecia com o que me prendia a Dmitri. Agora, que lhe fiz a minha confissão, diga-me se me acha culpada.
— Por que me escondeu que era noiva, deixando que uma esperança inatingível tomasse conta de minha alma?!
— Você, como eu, sabia que uma união entre nós seria impossível, que a filha do General Polenski não poderia unir-se ao filho do General Grabinski. Julguei que isso impediria que me declarasse o amor que lia em seus olhos e que poderia partir para a Suíça sem que fosse necessário aumentar a sua pena, revelando-lhe o meu noivado.
Nicolai apertou a cabeça entre as mãos, como a impedir que rebentasse.
— Por que, Senhor, não me deixaste morrer dentro da mina, para onde fui cheio de felicidade que me deu aquele grito inesperado?! Teria sido melhor para nós dois...
— Lembre-se de que tem pais, de quem é o único filho!
— Pais, que sabendo o filho gravemente ferido, deixaram-no aos cuidados de ignorantes camponeses. Talvez esses miseráveis mujiques, como os chamaram, tenham um coração mais brando do que o deles! Alena, eu, certamente, nasci numa noite tempestuosa, quando não havia estrelas no céu! A primeira que encontrei brilhante, luminosa, não está a meu alcance. Porém, hei de te-la diante de meus olhos, até que a morte os cerre!
— Nicolai querido, podes ter certeza de que não estás sofrendo sozinho. Ao menos terás a liberdade de pensar sempre em mim... enquanto eu serei obrigada a cumprir a palavra empenhada por meu pai, e uma vez casada, não trairei meu marido, nem mesmo em pensamento. Esta noite será a última em que nos encontraremos a sós...
— Amanhã partirei, já que posso andar Pedirei ao Doutor Kostomarov que vá diariamente ver-me. Alguma coisa como um pressentimento, me diz que nos tornaremos a ver, Alena. Deus não pode nos desamparar assim!
— Nicolai querido, tenha coragem! Não abandone o seu trabalho; ele o ajudará a viver, a esquecer...
— Quero lhe pedir perdão, Alena, por ter procurado despertar em seu coração um sentimento que nos era proibido. Mas... nunca a esquecerei!
Por trás de uma das vidraças apareceu a sombra do conde, que já os tinha visto ali mas que lhes deixara a oportunidade de uma explicação.
— Papai, certamente, está achando o meu passeio muito demorado. Vou entrar... Até amanhã, Nicolai!
A enfermaria do castelo, já livre dos feridos, que haviam voltado ao trabalho, servia de consultório ao Doutor Kostomarov. A pedido do conde, ele estava tratando os doentes, não só da aldeia dos camponeses, como daquela em que estavam reunidos os mineiros. Alena ajudava-o como enfermeira, e o levava a visitar os "seus" doentes, isto é, os paralíticos, ou aqueles que não podiam deixar o leito. Saíam do castelo de braço dado e iam conversando como dois bons amigos, que o eram, realmente.
A vida no castelo tinha se modificado com os últimos acontecimentos. A Condessa Xênia, a conselho do médico, repousava depois do almoço, pois que a doença a debilitara muito. A baronesa e Alena também desapareciam por algumas horas. Diziam que iam pôr a correspondência em dia... mas acabavam dormindo até a hora em que Varvara as chamava para o chá. O conde e o Doutor Kostomarov tomavam o café na biblioteca e aí ficavam conversando sobre os acontecimentos de São Petersburgo. O doutor contava os boatos espalhados pela capital, sendo o mais insistente o dos preparativos bélicos da Alemanha, parecendo tratar-se de uma guerra iminente...
— Dizem que todo boato tem seu fundo de verdade e o povo anda alarmado! Qual a tua opinião, Vladimir? — perguntou ele.
— Quando Razoukhine veio de lá, me contou certas coisas que observou, e que me deram a impressão de que o Kaiser tem, na verdade, planos muito funestos para toda a Europa. Diz Dmitri que está superpreparado para uma guerra por ele provocada.
— E que faremos nós? — perguntou o doutor — Que papel nos tocará!
— O que ele nos designar...
— Vladimir, há dias que estou para te fazer uma pergunta...
— E qual é? — meu amigo.
— O que é que te preocupa tanto, a ponto de te cavar uma profunda ruga na fronte? Acho-te em muito melhores condições de saúde do que quando partiste de São Petersburgo... No entanto, andas, agora, abstrato e tristonho. É ainda a lembrança do que se passou com o czar?
O conde que sempre tivera em Kostomarov o seu melhor conselheiro abriu-lhe o coração, contando-lhe o que se passava com a filha.
— Alena está emagrecendo e já não é a menina viva e alegre que corria a cavalo pelos campos, que patinava, pescava e a quem tudo interessava. Seus lindos olhos estão sempre tristes...
— Eu o notei — disse o médico — mas levei em conta da catástrofe da mina; das cenas emocionantes que presenciou, da doença da condessa, e também da separação do noivo...
— Não, Igor, não é nada disso. O mal que a afeta está nela própria, dentro do seu coração. Alena está apaixonada... pela primeira vez.
— Santa Virgem! — exclamou o doutor .
— Bem sabes — continuou o conde — quanto relutei em consentir no seu noivado. Achava-a muito jovem para que conhecesse o verdadeiro amor. Faltou-me, porém, o apoio de Xênia. Alena se entusiasmou pelo homem elegante que é Razoukhine, pelo casamento brilhante que representava, porém, não nutria por ele o sentimento que deve durar toda a vida. E o pior é que ela mesma se deu conta disso, tarde demais.
— Mas Vladimir, um noivado pode se desfazer, quando existe para isso um motivo plausível.
— Na verdade... eu não hesitaria em defender a felicidade de minha filha, se Nicolai, um rapaz cheio de belas qualidades, não fosse filho de Grabinski!
— É que no lodo também nascem flores! — exclamou o Doutor Kostomarov.
— Razoukhine vai ao nosso encontro na Suíça e insiste em que demos permissão para o casamento. Alena, porém recusa a se separar de nós, não quer voltar a São Petersburgo. Como vê, amigo, a minha situação de pai, que ama extremosamente a sua filha, é muito penosa.
— Lastimo-o, Vladimir! E só vejo uma coisa a fazer. Fica na Suíça o tempo que for possível, e se achares o inverno muito rigoroso para a condessa, vai para a França, para a Cote d'Azur, onde o clima é muito ameno. — E, depois de ficar uns momentos pensativo, continuou. — Pobre Alena! Que triste surpresa! Que traição, mesmo, lhe preparou o destino.
— Quando aqui chegamos, ela se mostrava tão alegre e despreocupada que eu pensei. “Ou esta menina tem uma invulgar força de vontade, ou a separação do noivo não a afetou...” Vejo agora a segunda hipótese era a verdadeira.
— Como foi que Nicolai se aproximou dela? — perguntou o doutor — Ele deve saber que o pai é teu inimigo.
O conde contou, então, o terrível episódio dos lobos, que não fora mencionado antes, por causa dos temores da Baronesa Nadia.
— Mas Vladimir, tudo isso é fantástico, inacreditável!
— Peço-te que não toques com Alena nesse assunto. Eu lhe prometi que ele ficaria entre nós dois. Xênia e Nadia deverão ignorar; principalmente esta, que é prima de Dmitri.
Eram oito horas da manhã quando Alena bateu à porta do quarto do Doutor Kostomarov que já estava de pé, veio abri-la.
— Já pronta! É ainda muito cedo, menina! Devias repousar mais.
— Devemos sair antes que o sol esteja muito quente. Vou esperá-lo na sala de jantar.
— Em cinco minutos estarei lá.
Quando ele desceu, encontrou Peter arrumando a grande cesta de comestíveis, que Além costumava levar aos seus pobres. Tomaram o chocolate e se prepararam para partir.
— Você não pode carregar esta cesta, Alena, é muito pesada.
— Eu sempre a levo desde que Mitka guarda as ovelhas.
— Hoje quem carrega sou eu! — E pegou as alças para passá-las no braço, mas a jovem protestou:
— É muito pesada também para o senhor eu o ajudarei — E segurou uma das alças deixando-lhe a outra. E assim se foram, rindo e pilheriando, debaixo de largos chapéus.
— A nossa clientela tem aumentado tanto, que temos que dividi-la pelos dias da semana.
— Não sei o que seria se não tivesse a "colega" para me ajudar.
— Quando penso que vamos partir doutor, sinto por essa pobre gente, que ficará, de novo, entregue à sua própria sorte.
— É só por eles que sentes ter que partir? — indagou o médico.
Alena corou e não respondeu. Ele continuou:
— Não precisa corar e nem ficar constrangida diante do teu velho amigo. Eu percebi tudo. Há muito tempo que te venho observando e leio em tua alma o desespero que te está desfigurando. A minha ciência, querida menina, não só cura o corpo, mas também tem remédios para a alma.
— Eu confio no senhor, meu bom amigo. Receite que prometo seguir à risca o seu trata mento.
— É muito simples... Paciência e fé em Deus! Só Ele conhece a sua própria escrita e sabe o destino que te reservou. Nós não sabemos quais são os seus desígnios e é muito cedo para descrermos deles!
— Ah, doutor, se o tivesse sempre a meu lado, a minha vida seria outra. O senhor encontra logo a palavra que deve aliviar as penas alheias. Meu pai é muito compreensivo, mas tenho que lhe esconder as minhas lágrimas, pois se as notar, em vez de me animar, chorará muito.
— É que não pode te dizer uma palavra de esperança... Eu pressinto que as coisas vão mudar muito, na face da terra... e nós mudaremos com elas.
Começaram, finalmente, a fazer as visitas e distribuir o que haviam levado, até que a cesta ficou vazia.
— Vamos agora olhar a perna de Nicolai, pois que o braço já está bem.
— Felizmente, doutor! Ele teria um grande desgosto se não pudesse mais tocar violino.
Quando passavam diante de uma humilde isba, ouviram gritos de desespero. Aproximaram-se e, como a porta estivesse aberta, resolveram entrar. Numa enxerga, achava-se um menino de seus oito anos, agitado numa convulsão. O doutor e Alena tomaram imediatamente providências. Enquanto Alena aquecia água para um escalda-pés, o doutor enrolava-lhe na cabeça panos frios que tinha que molhar a todo instante, porque ficavam logo aquecidos pela febre.
— Ele costuma ter isso? — perguntou o doutor à mãe.
— Não senhor — respondeu a mulher — é a primeira vez. Eu disse que não tínhamos em casa o que comer, e ele foi pescar. O sol está muito quente e lhe fez esse "desarranjo".
— É um ataque de insolação — disse o doutor à Alena.
— É grave? — perguntou ela.
— Num adulto seria mortal, mas as crianças têm fôlego de sete gatos.
Depois de algum tempo o menino já não gemia mais e estava dormindo. O doutor prometeu voltar mais tarde, e seguiu para a Mansão Solitária. Nesse momento o pai do menino chegou correndo, muito assustado. O vizinho que trouxera a criança tinha ido chamá-lo, a pedido da mulher. Quando esta lhe contou o que tinha acontecido e o socorro que recebera, ele ficou pensativo... e por fim disse:
— Mulher, ela é mesmo uma fada, e recebe avisos da Virgem Maria! Não poderia saber que Mikhail estava mal e trazer o doutor para curá-lo, se não tivesse recebido um aviso do céu...
— É verdade! — disse a mulher, benzendo—se.
O médico e a jovem encontraram Nicolai estendido sobre uma chaise—longe e ao lado, sentada em uma banqueta, a pequena Kátia, a quem ele ensinava a lição passada por Alena.
— A fada! — exclamou ela, correndo ao encontro da professora, que retribuiu, com carinho, aquele gesto espontâneo.
Nicolai fez menção de levantar-se e Alena apressou-se em ajudá-lo.
— Como se sente meu rapaz? — perguntou o médico.
— Graças ao senhor estou bem, doutor. Mas a inatividade me cansa mais que o trabalho.
— Pois o seu aspecto não é dos melhores. Acho-o estes dias, depois que deixou o castelo, mais magro e mais abatido. Não tem dormido bem?
— Sofro de insônia, doutor — E olhou para Alena, como a dizer-lhe que ela era a causa do seu mal-estar
O Doutor Kostomarov notou o olhar. Depois de examinar-lhe a perna, sentou-se a seu lado e disse:
— A perna vai bem, para o resto vou receitar um sedativo... — Depois aconselhou—o. — Paciência e fé em Urus!
— Obrigado, doutor, não o esquecerei — respondeu Nicolai, rindo.
Sacha entrou, amparado por uma bengala e trazendo uma cestinha de frutas mandadas pela avó. Ele ainda não podia trabalhar e vinha todos os dias visitar seu salvador. Quando se lembrava dos horríveis dias que passara, soterrado nas galerias desabadas da mina, sofrendo a tortura da fome e da sede, além das dores da perna fraturada, quando pensava nos companheiros que viu morrer e naquele desgraçado que enlouqueceu, cujas gargalhadas sinistras lhe arrepiavam os cabelos, o que ele sentia por Nicolai já não era gratidão, mas tocava as raias da devoção.
— Como vê doutor, tenho dois bons amigos, que me acompanham e me servem de enfermeiros. E a senhora condessa, como passa?
— Mamãe vai bem. Encarregou-me de lhe dizer que sente muito a sua falta e que breve virá lhe fazer uma visita.
— Peco-lhe, senhorita, que diga à Senhora Condessa que será uma grande honra para mim, recebe-la na "Mansão Solitária".
A condessa e sua amiga Nadia estavam sentadas debaixo do toldo, no terraço, que era, agora, o lugar predileto. Ambas faziam tricô para o próximo inverno das crianças pobres. Tinham recebido naquele dia uns pacotes de lã, mandadas vir da cidade.
Alena estava na biblioteca ajudando o pai a fazer um novo catálogo, agora muito aumentado com os livros vindos da capital. O Doutor Kostomarov havia subido para descansar um pouco, pois, apesar do calor, tinha voltado a ver o menino, que, felizmente, estava fora de perigo.
— É bem desagradável trabalhar em lã, numa temperatura como esta. Não achas, Xênia?
— Sim, minha querida, mas se não trabalharmos agora, estes casacos não estarão prontos no inverno. E o frio aqui começa muito cedo.
Como sabes, na Rússia, temos, apenas, duas estações o inverno e o verão. A primavera é muito quente e o outono muito frio.
— Sinto não poder acompanhá-los à Suíça. É um país adorável, com seus lagos azuis, que se foram de prata quando a lua se reflete neles; em suas montanhas, eternamente cobertas de gelo, que dão à paisagem um encanto, único no mundo. É um país abençoado de Deus, um verdadeiro paraíso, onde há sempre paz e alegria...
— Se gostas tanto da Suíça, por que não vens conosco, Nadia? Nada te prende na Rússia.
— Preciso voltar a São Petersburgo. Josef não saberá o que fazer sem a minha presença. Irei mais tarde com Dmitri.
O Doutor Kostomarov apareceu à porta.
— Que belo quadro! — exclamou ele. — As castelãs tricotando... — Costume tradicional e muito nobre — disse ele. — Não acham que o calor está hoje excepcional? Talvez seja o prenúncio de uma tempestade. Pareceu-me ouvir uns roncos, ao longe... Não seria nada mau que viesse uma chuvinha para nos refrescar.
Naquele instante, como se sua prece tivesse sido ouvida, um aguaceiro forte, tocado pelo vento, caiu sobre eles. De repente, por entre as nuvens, surgiu um raio de sol que fez com que as gotas d'água parecessem pingentes prismáticos pendurados no céu.
Tudo se passou tão rapidamente que, momentos depois o céu havia retomado seu belo azul-cobalto.
As senhoras que se haviam abrigado na sala, voltaram para baixo do toldo, onde a temperatura era, agora, mais agradável.
Peter se encaminhou para lá, empurrando a mesinha de rodas. Desta vez, porém, não trazia o samovar, mas copos com refrescos, acompanhados por um grande bolo.
— Senhora Condessa — disse ele, curvando-se — como está muito calor, tomei a liberdade de preparar refresco em vez de chá.
— Fizeste bem, Peter Há dias em que preferimos os refrescos... Avisa ao Senhor Conde e a Senhorita Alena de que os estamos esperando.
O Conde veio em seguida, com um maço de cartas, que um mensageiro acabara de trazer da cidade. Depois de distribuí-las aos seus destinatários, sentou-se numa das poltronas de vime, para ler a que lhe fora endereçada. Era de Razoukhine.
Depois de lê-la passou-a ao amigo, que a devolveu, dizendo-lhe:
— Estou de pleno acordo com ele.
Razoukhine aconselhava-o a transferir todo o seu dinheiro disponível para a Suíça, e ainda, a partir o mais breve possível. Se a Alemanha deflagrasse a guerra, o que se esperava e temia, a França, sua tradicional inimiga, seria logo envolvida, dificultando desse modo atingir-se a Suíça. À Baronesa Nadia, sua prima, aconselhava a acompanhá-los, ou voltar imediatamente.
— Creio que devemos marcar o dia da partida... Razoukhine não pode dizer tudo o que sabe mas sabe muito mais do que disse — concluiu o conde. — O certo é que há algo de anormal, e de grave.
Continuaram a conversa até as nove horas, quando o gongo deu o primeiro sinal para o jantar.
A tarde estava maravilhosa no esplendor do sol poente. O crepúsculo é na Rússia muito bonito, e o sol havia, apenas, desaparecido.
No dia seguinte foi marcada a data da partida e começaram os preparativos.
A vasta criadagem do castelo, de um lado para outro, carregava malas.
Após o almoço, o conde e o doutor estavam, como sempre, trocando ideias na biblioteca, enquanto tomavam o cafezinho.
— Quando aqui cheguei — disse o conde — reuni os mujiques, para saber se estavam satisfeitos, se tinham tido boas colheitas... Como sabes, eu lhes havia emprestado as terras por cinco anos. Alguns mostraram-se agradecidos e confessaram haver economizado alguma coisa, além de terem vivido com fartura, durante esse período, felizmente poucos, queixaram-se terras, do mau tempo. Esses eram os vadios, os bêbedos.
Há dias, lendo a história da Rússia, achei algo interessante, que me fez pensar. Os primeiros eslavos que aqui chegaram, no oitavo e nono séculos, organizaram-se em grupos, para se poderem defender. Reuniam-se trinta a quarenta consanguíneos que, sob contrato, iam viver numa grande isba. O trabalho era coletivo. O mais velho ou o mais apto era escolhido e fazia, ao mesmo tempo, as vezes de sacerdote e de médico. Findo o contrato, aqueles que não estivessem satisfeitos poderiam se separar. Os nossos mujiques já vivem em suas isbas, em aldeias, onde se podem defender dos seus únicos inimigos... os lobos. Mas, para o trabalho, poderiam formar granjas coletivas.
O Doutor Kostomarov, que se conservava calado, ouvindo o amigo, disse:
— Por quê?
— Porque os vadios e os bêbedos continuarão a vadiar e a beber. Independentes, não prejudicarão nem incomodarão os outros, porém, numa coletividade, só servirão de ponto de discórdia.
O conde pensou um pouco, antes de responder:
— Tens razão, meu amigo. Esses são incorrigíveis! Esta noite estudarei um plano em que o contrato seja diretamente comigo; em que darei garantias mais amplas.
Naquela tarde, o Conde Polenski, tendo que apressar a partida, resolveu mandar convocar os mujiques para a manhã seguinte. E na hora aprazada, no salão, que já fora escola e enfermaria, estavam eles, uns quarenta ao todo, esperando respeitosamente. O conde, ao entrar, cumprimentou-os com cordialidade e disse:
— Meus amigos, peco-lhes que ouçam com toda a atenção a leitura que lhes vou fazer de um contrato entre nós. — E leu o plano que havia redigido na noite anterior, e que dizia. — "O contrato terá a duração de cinco anos. Findo esse prazo, aqueles cujas terras, recebidas por empréstimo, tiverem sido beneficiadas pelo trabalho, produzindo e se valorizando, as receberão em dobro. Aqueles que, no mesmo prazo nada tiverem feito, tendo vivido embriagados, e deixando as terras em abandono, perderão os direitos que reverterão em favor dos outros, como prêmio. Mais tarde, aqueles que provarem o seu bom comportamento como trabalhadores e bons chefes de família, ficarão para sempre fixados às terras, que lhes serão doadas."
Tendo acabado a leitura, o conde dirigiu-se-lhes, novamente:
— Os que tiverem alguma coisa a dizer, podem fazê-lo com toda a franqueza.
E como ninguém se manifestasse, continuou:
— Como nem todos sabem escrever, aquele dentre vocês que for mais hábil, deverá assinar por todos.
Todos passaram diante do conde para agradecer. Uns iam cabisbaixos e descrentes, porque se sabiam incapazes de cumprir o que lhes fora exigido. Tinham acalentado a esperança de que as terras lhes iam ser doadas sem condições, e que as poderiam vender imediatamente. Porém, os honestos sentiam tal felicidade que, ao passar diante do conde, se ajoelhavam para beijar-lhe os pés, chamando-o batuchka — paizinho. Aquela pobre gente tinha vivido na escravidão, sob o azorrague de impiedosos senhores, até a bem pouco tempo. Volia — liberdade — não passara de uma palavra para eles, porque as vantagens e os direitos que ela traz lhes foram sempre negados. O conde havia "descido" até eles chamando-os de "amigos"... e isso os enchia de orgulho.
Mais tarde, o Doutor Kostomarov, voltando da visita aos doentes, foi ao encontro do amigo.
— Então, Vladimir? Estás satisfeito? Saiu tudo como desejavas?
— Sim, meu amigo, estou satisfeito comigo mesmo, porque estou certo de ter agido de uma forma humana e justa, para com essa pobre gente. Esta manhã — continuou o conde — expedi ordens ao meu banqueiro para transferir todo o meu depósito no banco para Lausane. Há, porém uma coisa que me vem martelando a cabeça e que é preciso ser resolvida imediatamente. É para isso que quero pedir o teu conselho amigo.
— De que se trata? — indagou o doutor.
— Desde que aqui cheguei veio-me a ideia, persistente, de vender o meu palácio de São Petersburgo, pois que estou resolvido a não mais voltar para lá. Os invernos, já insuportáveis para Xênia e para mim, passaremos na Cote d'Azur, e os verões voltaremos ao castelo, onde me sinto muito à vontade. Há dias recebi uma revista na qual encontrei o anúncio duma bela mansão, na falda da montanha, junto a Lausane, com maravilhosa vista para o lago e para as montanhas geladas dos Alpes. Fiquei seriamente tentado a comprá-la... Sei que Xênia não concordará, por que está na ilusão de que o czar vai precisar de mim e me chamar para junto dele. Alena não chegou a se prender à vida mundana da capital e se sentiu feliz aqui no campo. A sua vida, no futuro, é um enigma para mim; já não tenho a certeza de que se casará com Razoukhine... Se, porém, isso acontecer, terão para morar a magnífica residência que o noivo possui em Moscou. Agora, dize-me, Igor, que farias no meu caso?
— Pesando bem todas as tuas razões, eu faria o que queres fazer Porém, penso que sendo Alena tua única herdeira, deve ser consultada.
— Tens razão e eu acatarei a sua vontade. Se estiver de acordo, escreverei ao meu advogado, dando instruções. Essa carta tu entregarás em mão. Nela lhe direi que as providências só deverão ser tomadas depois da nossa partida da Rússia. Vou também escrever sobre isso a Razoukhine e pedirei a sua opinião.
Alena entrou ralhando com o pai e com o seu velho amigo:
— Então, não se preparam para o almoço?! Estou louca de fome e Peter me disse que o gongo já vai soar
— Minha filha, a tua chegada foi providencial. Tenho que te falar sobre um assunto que não posso resolver sem a tua opinião... Esse assunto é muito sério para nós e requer calma e reflexão. Peço-te, que penses bem antes de responder, e que o faças com a franqueza e sinceridade que sempre usaste para comigo...
Ficando a sós, o conde contou a filha os seus planos. Estava nervoso, sem saber qual seria a motivação.
Os Polenski tinham sido sempre ricos. Possuíam inúmeras propriedades. Essa fortuna imensa que lhes vinha dos antepassados, tivera origem em uma mina de diamantes, cujo veio desaparecera mais tarde. Além disso a Condessa Xênia trouxera a sua parte, que era bastante respeitável. Porém, de tudo isso a jóia, a menina dos seus olhos, era o Palácio de São Petersburgo. E, para ter resolvido desfazer-se dele, era preciso que a ferida aberta em seu coração tivesse sido muito profunda e ainda estivesse sangrando.
Alena não esperou pelo prazo que o pai lhe dera para pensar, e respondeu logo o que seu coração lhe ditara.
— Meu pai, estou de pleno acordo, porque também não voltarei a São Petersburgo.
O conde abraçou-a, comovido.
— És a melhor filha deste mundo! Espero que Deus te recompense de tudo o que tens renunciado por mim... Agora o que me preocupa é tua mãe. Estou certa de que não concordará conosco.
— Não se incomode, papai. Nós aos poucos a convenceremos. Depois de viver algum tempo na Suíça, ela mudará de opinião.
— Deus te ouça, filha.
O gongo soou anunciando que o almoço estava servido.
Quando pai e filha chegaram à sala de jantar, o Doutor Kostomarov compreendeu, pelas suas fisionomias repousadas e tranquilas, que tudo estava em ordem.
As cartas do Conde Razoukhine eram cada vez mais alarmantes e os Polenski resolveram abreviar a partida. Faltavam, apenas, dois dias para deixarem o castelo onde as reuniões eram agora, tristonhas, com as fisionomias apreensivas. Tinham acabado as discussões no pôquer e as pilhérias do conde e do doutor, para divertir a baronesa. Esta, muito mundana, apreciava as festas da sociedade, principalmente no tumulto da Corte, porém, como era muito amiga da Condessa Xênia e da afilhada a quem adorava, sentira-se também afetada no que se passava entre o conde e o czar. Aqueles meses passados na campanha tinham sido de grande vantagem para ela. As noites, por falta de divertimentos, gastava-as a dormir tranquilamente. A alimentação sadia e a vida ao ar livre tinham-na remoçado. E o Doutor Kostomarov, que era grande galanteador, não se cansava de lhe dizer; o que não lhe era desagradável.
Alena mostrava uma grande força de vontade, mas o Doutor Kostomarov, que a observava, lia o sofrimento em seu rosto, quando estavam a sós e ela podia relaxar os nervos, e em seus belos olhos, que já não podiam esconder os sinais das lágrimas que por eles haviam passado. Era como uma linda flor, que mal desabrochada, estava sendo castigada por um vento impiedoso.
Ela e o doutor tinham ido naquela manhã fazer as suas despedidas aos doentes. Ele quis deixar a cada um o tratamento a seguir, porém como os mujiques são de uma desencorajante falta de compreensão, depois de cansativas recomendações, era, às vezes, obrigado a fazer desenhos explicativos, receoso de que lavassem as feridas com os líquidos purgativos e comessem a pomada mercurial. Durante essas consultas, Alena não podia esconder o riso, e disfarçava-o brincando com as crianças, prometendo-lhes brinquedos para o Natal.
Como sempre, foram à Mansão Solitária, fazer um pouco de companhia a Nicolai. Cada dia que passava os aproximava mais da separação e tornava-o mais triste e abatido. Havia como um abismo no fundo de seus olhos negros. O doutor notou-o.
— Oh, rapaz! — exclamou ele —— estás me desmoralizando como médico Acho-te ainda mais abatido hoje. Nunca tive um cliente tão rebelde aos meus remédios.
— Sinto muito, doutor. Porém a culpa não é sua. Há males incuráveis... para os quais nem sua ciência encontraria remédios...
— Há também os doentes que não se querem curar, e para esses...
Alena, temendo que a conversa tomasse um rumo constrangedor, interveio para avisar a Nicolai que os pais iriam aquela tarde levar-lhe as suas despedidas.
Chegaram de volta ao castelo quando soava o primeiro toque do gongo. Só tiveram tempo de refrescarem um pouco e o gongo fez a segunda chamada.
Depois do almoço Alena convidou o doutor para ir até as cavalariças levar uns tabletes de açúcar ao Rex. Este estava com o focinho enfiado num grande bornal, cheio de forragem, porém, quando viu a jovem, pôs-se a dar passinhos dum lado para outro como para fazê-la compreender que queria passear. Quando acabou o lauto almoço, sacudiu a cabeça para que lhe tirassem o bornal. Alena abriu a mão e lhe ofereceu o açúcar.
— Não imagina, doutor, quanto sinto deixar o Rex. Mas compreendo que papai tem razão. Lá, certamente, um barco será de mais utilidade que um cavalo.
— Lastimo não poder acompanhá-los, Alena e, dar umas boas remadas naquele lago azul. Já me acostumei à ociosidade e à boa companhia...
— Mas o senhor até trabalhou muito, doutor Curou muita gente, inclusive mamãe, que lhe deu bastante preocupações.
— É verdade! Felizmente curou-se depressa, mas devo adverti-los, a você e seu pai, que ela não deve passar lá os invernos. Devem passar os piores meses na Cote D'Azur ou no Egito.
— É o que faremos.
Quando voltavam ao castelo viram os carroções dos mujiques carregando caixotes e malas.
— Mais parece uma mudança! — exclamou o doutor. — Por que levam tanta coisa?
— São as pratas, as porcelanas e os cristais. Peças antigas, velho patrimônio da família. Mamãe pensa que vão ser guardados em lugar mais seguro, mas como teremos lá uma propriedade, papai acha que o lugar mais seguro é justamente a Suíça.
Subiram ao terraço onde não encontraram ninguém. Tinham ido para seus quartos concluir as arrumações. O conde estava na biblioteca, selecionando os documentos que precisava levar. Mais tarde saíram, ele e a condessa, para fazer as despedidas. Levaram a Nicolai, como lembrança, uma rica carteira de ouro, com diamantes, da antiga mina da família Polenski. Ao "Pope" entregaram um envelope com uma grande quantia, para que nos momentos de doenças e miséria ele pudesse socorrer os pobres. O "Pope" ficou emocionado e pediu-lhes que se reunissem na igreja, na manhã seguinte, porque desejava dar-lhes a bênção.
O correio daquela tarde só trouxe uma carta. Era de Dmitri para Alena. Ela subiu ao quarto para lê-la.
Dmitri lhe anunciava que, resolvidos certos problemas, o czar pensava manda-lo como adido militar para um país que precisava ser controlado, e então, esperava que o conde permitisse o casamento, pois poderia ir viver junto deles. Foi um golpe para a pobre Alena.
— Minha Santa Mãe! Que vai ser de mim?! — exclamou ela, com as mãos no rosto, como se pudesse impedir as lágrimas de correrem pelas faces.
Varvara entrou para ajudá-la a preparar-se para o jantar. Vendo o seu desespero, que ela não compreendeu, por desconhecer o drama que lhe ia à alma, perguntou:
— Que é que está acontecendo com a bariknia? O que é que tanto aflige a minha menina?
Alena não pôde resistir àquelas palavras de mimo. Era como se elas a tivessem transportado a infância, e abraçou-se à sua niania, num incontrolável desabafo.
— Oh, Varvara, sou tão infeliz!
A ama, que estava acostumada àquelas súbitas explosões, apertou-a entre os braços e disse-lhe que tivesse fé na Mãe de Deus e rezasse. Acabaram as duas de joelhos, rezando diante do Altar da Virgem, como faziam quando ela era pequena e que a ama a queria acalmar. Quando desceu, tinha os olhos pisados.
Naquela noite, sentaram-se todos à mesa para o último jantar. Procuravam não o tornar muito triste, mostrando-se animados e palradores, o que em boa parte era devido aos velhos vinhos que o conde mandara servir.
O conde contou anedotas de sua vida militar. O Doutor Kostomarov narrou passagens pitorescas de sua vida de médico, e principalmente dirigiu pilhérias à baronesa, que as refutava com muito espírito.
— Sabem o que estou pensando? — disse Alena — Que devíamos carregar o doutor e a madrinha para a Suíça, já que não podem viver separados.
— Qual menina — contrariou o médico. — A baronesa só aprecia homens elegantes e refinados... não passo de um solteirão sem modos...
Houve um protesto geral.
— Engana-se, doutor — contestou a baronesa. — O que me atrai no senhor é a sua franqueza rude, sem subterfúgios.
Peter serviu a champanha.
O conde levantou a taça e brindou: "Ao meu excelente amigo e grande cientista, Igor Kostomarov!" Este, muito emocionado, tocou todas as taças. Outros brindes foram feitos, antes que se levantassem daquela mesa onde, como o tempo provou, nunca mais se sentariam.
— Além — disse o conde — esqueci-me de te dar uma boa notícia. Nicolai ofereceu-se para ficar com o Rex. Relutei em aceitar, porque penso que lhe dará trabalho. Porém, ele insistiu, mostrando-se tão interessado, que prometi manda-lo para lá hoje.
— Oh, papai, é realmente uma boa notícia! Fico tão contente! Ele decerto o cuidará, como faz com Relâmpago, que está sempre com o pêlo reluzente e bem alimentado.
Passaram em seguida ao salão onde a condessa tocou as baladas de sua predileção. Como, porém, a música os estava entristecendo, resolveram jogar. E acabaram a noite, com uma partida barulhenta de pôquer.
Na manhã seguinte, foram à igreja e tiveram a surpresa de encontrá-la florida. Um grupo de crianças estava à porta, esperando por Alena. Eram os seus discípulos, que queriam lhe dizer adeus. Cada um deles tinha na mão um raminho para lhe oferecer. Ela beijou a todos com carinho e pediu que estudassem, para que Deus ficasse contente com eles. Sua voz estava alterada e tinha os olhos cheios d'água.
O conde e as senhoras voltaram ao castelo. O doutor e Alena se dirigiram para a Mansão Solitária.
— Não a imaginava tão sensível, Alena — disse-lhe o médico.
— É que se vão quebrando os elos da corrente que me prende a esta terra, doutor, e em cada um deles fica um pedacinho do meu coração.
— Alena — tornou o doutor — que te disse Razoukhine naquela carta? Desde que a recebeste que a tua fisionomia se transfigurou... Tens agora uma expressão de desespero.
— Estou realmente desesperada doutor. — E contou o que lhe escrevera Dmitri. Estavam chegando à Mansão Solitária. Subiram os degraus que os levavam à entrada, abriram a porta, como de costume e foram até a sala, onde encontraram Nicolai sentado na poltrona, com a cabeça entre as mãos. Tão absorvido estava que não os ouviu entrar.
— Bom dia, meu rapaz! — disse o doutor.
— Bom dia, doutor... Bom dia, senhorita.
— Como vai a perna? Não sentiu mais nada? — indagou o médico.
— Creio que está curada, doutor.
— Então, vamos tirar-lhe as talas...
— Não, doutor. Preferiria te-las ainda por alguns dias. Sinto mais firmeza para caminhar.
— Isso se chama "medo", meu rapaz.
Nicolai riu.
— É bem capaz de ser, doutor.
Alena pegou um vaso que estava sobre um velho consolo, pôs água e arrumou nele todos os raminhos que recebera na igreja.
— Foi lembrança dos meus discípulos — disse ela. — Ponho-os aqui para alegrarem um pouco a sala. Quero, agora, agradecer-lhe o oferecimento que fez de ficar com Rex. Creia que fiquei muito satisfeita de deixá-lo em mãos tão amigas.
— Pode estar tranquila, senhorita. Relâmpago terá agora um irmão, que será igualmente tratado.
— A nossa visita, hoje, tem que ser curta — disse o doutor. — Vamos almoçar mais cedo, para partirmos em seguida. Devemos alcançar a cidade antes da noite. Ficaremos no hotel e seguiremos de trem, amanhã de manhã. Aí, cada um tomará o seu rumo... Não imagina o quanto me custa separar-me desta menina, que é quase uma filha para mim...
— Mas não quer nos acompanhar... — interferiu Alena.
— Tenho obrigações que me chamam à capital; clientes que abandonei; estudos interrompidos... — E vendo que Alena e Nicolai olhavam-se tristemente, levantou-se e disse: — O tempo está passando e nós precisamos ir. — Ajudou Nicolai a se levantar e estendeu-lhe a mão: Até um dia, meu rapaz. Não desanime com a vida. Ela nos faz às vezes maravilhosas surpresas.
Alena também lhe estendeu a mão, que ele beijou respeitosamente. Não trocaram uma única palavra. Os lábios ficaram cerrados, mas os olhos falaram a linguagem eloqüente do desespero. Eles partiram, e Nicolai ali ficou, de pé, com o olhar fixo na porta, por onde haviam desaparecido.
Ao chegarem ao portão, Alena disse, num soluço:
— Espere meu amigo, eu já volto. — E subindo a correr os degraus que acabara de descer, foi atirar-se nos braços do jovem.
— Oh, Nicolai, eu sou muito infeliz!
Ele a apertou contra o peito.
— Dushka, ia vas bli at vsego serdtza! Querida, eu te amo de todo o coração!
Ela continuou abraçada a ele, soluçando como uma criança. De súbito, afastou-se, dizendo:
— Adeus, Nicolai... para sempre!
Ele abraçou-a novamente e beijou-a, num verdadeiro desespero. Quando a deixou ir, ela correu ao encontro do doutor, que a esperava pacientemente, encostado ao gradil do portão. Quando viu a sua fisionomia amarga, sentiu que a alma se confrangia.
— Coragem, Alena! — disse, tomando-lhe o braço e levando-a.
No parque do castelo estavam algumas kibitkas, já alinhadas, esperando os viajantes. Vaily, o marido de Varvara partira de manhã, acompanhando os carroções, com as bagagens, que deviam ser despachadas com o tempo.
Depois de um almoço rápido e frugal, partiram afinal.
Alena queria mostrar-se forte, mas cada poste que passava, indicando as veredas percorridas, ela os olhava como se fossem passos, no caminho para a Cruz.
O pai observava-a, e pensou que a partida de São Petersburgo, onde deixara o noivo e tudo o que lhe tornava a vida agradável, não a tinha perturbado assim.
De chegada ao hotel, as senhoras, que estavam muito fatigadas, foram repousar. O conde acompanhou a esposa, enquanto o doutor e Alena foram dar uma volta pela cidade. Alena aproveitou para arrancar do amigo a promessa de que os iria encontrar o mais breve possível.
— É lá que mais vou precisar de sua presença — disse ela. — O senhor é para mim como uma fortaleza, e se estiver longe dela, sentir-me-ei desamparada para a luta, como um soldado que se vê isolado em campo aberto.
— Seu pai estará sempre do seu lado, Alena, e pronto para defender sua felicidade.
— Porém, minha mãe estará com Dmitri, e influirá sobre a sua vontade, procurando aplainar os obstáculos. Madrinha também deverá estar lá e representará uma força poderosa em favor dele. Eu sei que estou cometendo uma feia traição para com Dmitri, mas amo Nicolai, com toda a minha alma.
— Disso estou bem seguro, minha querida menina. O teu noivado com Razoukhine foi fruto do meio fútil em que vivias. Ele é bonito e elegante... Isso foi o bastante para os teus olhos, mas não para o teu coração. Quando encontraste um homem simples, forte e corajoso, arriscando a própria vida para salvar outras; um jovem verdadeiramente belo, de uma beleza máscula e sem pretensões; quando sentiste a sua alma em uníssono com a tua, os corações a palpitarem como o mesmo ritmo, compreendeste o teu erro.
— Seus diagnósticos são sempre perfeitos, doutor; tanto os do corpo como os da alma. Mas o destino foi muito cruel comigo, colocando em meu caminho, para que eu amasse e sofresse, o filho de Grabinski.
— Dizem que o destino toma, às vezes, as suas bebedeiras. Talvez estivesse nesse estado quando decidiu o teu encontro com Nicolai.
— Oh, doutor, o senhor acaba sempre por me fazer rir!
Voltaram ao hotel. Na manhã seguinte, tomaram o trem, que os levou... para sempre.
Estamos agora em Lausane, à margem do lago Leman, para onde viemos, acompanhando os Polenski. A mansão, comprada pelo conde, era, antigamente, um castelo, quase em ruínas, deixando ao tempo, impiedoso e destruidor, a liberdade de fazê-lo desaparecer. Depois dos seus proprietários que morreram sem deixar herdeiros, nunca mais fora habitado. O povo, supersticioso, dizia que suas almas vagavam pelo castelo, enxotando quem lá ia. Muitos diziam, mesmo, ouvir gritos e maldições, quando por lá passavam à noite, e o apelidaram de Castelo Encantado. Essa tola crendice tinha isolado essa obra de arte, posta na falda da montanha, numa situação maravilhosa.
Um milionário americano que por ele se apaixonou, adquiriu-o, por concessão do Governo, e o mandou restaurar. Era rodeado por um velho bosque de gigantescos pinheiros, que deixavam livre, apenas, a fachada, de onde se descortinava o lago. Este, a quem o visse de cima, dava a impressão de uma enorme safira.
O banco onde o conde depositara uma verdadeira fortuna havia recebido ordens de comprá-lo e, quando os Polenksi, depois de uma curta permanência em Paris, chegaram à Suíça, foram diretamente para lá, onde Peter e os outros serviçais os esperavam. Tudo o que viera da Rússia estava já em seus lugares.
A biblioteca era uma peça muito grande e muito linda. Seu teto era atravessado por toros de madeira envernizada. Uma grande porta envidraçada abria para o terraço, de onde a paisagem era um deslumbramento.
Na Suíça todas as casas têm terraços dando para os lagos, o que muito as valoriza.
Havia uma sala, redonda como o torreão em que estava localizada. A pintura mural representava a lenda de Guilherme Tell, o herói da independência helvética.
No começo do século XIV, Gessler, o Usurpador, mandado para lá por Alberto I, Imperador da Áustria, ordenou que todo o povo se inclinasse, em reverência, diante do seu chapéu, exposto na praça pública. Tell não obedeceu a essa ordem e foi condenado a alvejar com a seta uma maçã posta sobre a cabeça do filho ou a morrer com ele. Tell hesitou, mas o menino pôs a maçã sobre a própria cabeça e pediu ao pai que atirasse. Este reuniu toda a sua coragem, e como bom besteiro que era, disparou a seta, que se foi cravar na maçã. Tendo Gessler sabido que ele prometera aos seus compatriotas mata-lo, mandou acorrenta-lo num barco, que foi deixado no Lago de Quatro Cantões. Sobrevindo uma grande tempestade, as correntes arrebentaram e ele escapuliu, indo para a estrada onde o usurpador devia passar, e matou-o.
Esta lenda, dividida em quadros, cobria toda a parede.
Na manhã que se seguiu a noite da chegada, Peter tocou o gongo e, quando os patrões vieram para o chocolate, conduziu-os a essa sala, como uma surpresa. E foi realmente uma surpresa a originalidade da sala e o panorama que dela se avistava.
Alena se debruçou na larga abertura que havia na torre.
— Oh, papai! Venha ver o Dent du Midi, o alto pico dos Alpes; como brilha ao sol a sua neve! Venha a senhora também, mamãe. Venha ver como isto é belo!
A condessa foi debruçar-se ao seu lado.
— As paisagens são mais lindas quando possuem um rio, mínimo que seja — disse. — O gelo sozinho torna-se monótono e cansa...
— A manhã está boa para um passeio — disse o conde. — Não querem dar uma caminhada a Ouchy?
— Prefiro repousar — respondeu a condessa — o corpo e a alma, neste maravilhoso sanatório. Mas Alena por certo gostará de remar um pouco, não é, minha filha?
A jovem concordou. Daí a pouco, dando o braço ao pai, desceram pela ladeira, que leva à margem do lago.
No embarcadouro havia lanchas e baleeiras para alugar. Algumas delas tinham os barqueiros que, às vezes, pela vida ao ar livre e pelo exercício, eram belos tipos de rapazes, fortes e musculosos.
O conde e Alena fizeram um longo e agradável passeio e só voltaram à casa porque já eram horas do almoço. Antes, porém, foram a um quiosque comprar jornais. Em seguida tomaram um auto, porque a subida era ali muito íngreme. Ao chegarem à praça, em cima, o conde lembrou-se de comprar uns óculos escuros; achava que a luz muito forte o incomodava, principalmente o reflexo do sol na água. Alena aderiu à idéia e comprou uns também para ela.
Na salva de prata do living encontraram jornais e cartas da Rússia. Dmitri anunciava a sua visita para breve. Alena sentiu um aperto no coração e uma sombra passou pelo seu rosto, mas tão fugaz que só foi visível pelo pai, que já a esperava.
À tarde, sentaram-se no terraço, apreciando o arrebol, que parecia estar pintando aquele belo quadro. Aos poucos, porém as cores foram se suavizando, cobertas por um tênue véu de névoa, até que a noite estendeu seu manto negro, bordado de diamantes. Então, na outra margem, na Sabóia francesa, apareceram suas pequenas cidades, estações termais, que com seus cassinos fartamente iluminados, formavam um maravilhoso colar de brilhantes, rodeando o lago.
De súbito, Alena deixou escapar um suspiro tão profundo, que o conde voltou a cabeça para ela.
— Gostaria de saber qual o pensamento que provocou esse desabafo, minha filha.
— Estava pensando, meu pai, como seria bom viver uma vida que fosse tão calma quanto este lago.
— Ilusão, filha, ele não é eternamente calmo, como julgas; como a vida, tem, também, as suas tempestades... E essas tempestades costumam ser terríveis! Em minutos apenas, ele se transforma, torna-se cinzento, levanta-se, ondeia, ulula, regouga, como se um monstro marinho, adormecido em seu seio, despertasse em um acesso de cólera. Os barqueiros, ao primeiro sinal, fogem com suas embarcações para os abrigos. A lancha salva-vidas sai à procura de algum retardatário, que esteja em dificuldades. Vê, pois, como as aparências iludem...
— Em compensação, foi uma tempestade que deu independência à Suíça... — disse Alena. E depois de uns momentos: — Não acham que está refrescando muito? Mamãe não pode se resfriar...
— Entremos minhas queridas — disse o conde.
O doutor Kostomarov havia recomendado repouso, tanto à condessa como ao conde e, principalmente a este, que devia deixar que seu coração se habituasse à altitude, antes de qualquer exercício. Do primeiro passeio ele tinha voltado um pouco cansado, e Alena que o notara, prendia-o, agora, em casa. Assim, ela ia sozinha ao lago, antes que o calor aumentasse muito. Quando descia a ladeira, ao passar pelo terraço do hotel Beau—Rivage, onde havia alguns turistas, deitados em espreguiçadeiras, tomando banho de sol, alguém a chamou pelo nome e desceu correndo, para alcançá-la.
— Oh, Jean Paul! — exclamou ela, tendo no rosto a expressão da surpresa.
— Que maravilhoso encontro! — exclamou o rapaz, por sua vez. — Onde estão seus pais? Em que hotel estão parando?
— Não estamos em hotel, mas em nossa casa. Papai comprou o "Castelo Encantado", como o chamam aqui, e lá vivemos como no paraíso... Precisa vir conhecê-lo, Jean Paul, é lindo!
— Sim, certamente irei... agora, porém, poderíamos remar... Quer?
— É o que ia fazer, e terei muito prazer na sua companhia.
Os jovens encaminharam-se para o embarcadouro, onde tomaram uma baleeira, afastando-se em seguida.
A manhã era radiosa. As embarcações estavam espalhadas pelo lago e as lanchas ziguezagueavam entre elas. Algumas dessas lanchas, cujos proprietários eram por demais destemidos, apostavam corridas e passavam como bólides, respingando água.
— Jean Paul, ainda não me disse por que deixou a Rússia e está aqui... O embaixador ainda está lá? — perguntou Além.
— Meu pai continua na embaixada. Eu estou aqui, porque tomo parte num concurso de tênis... o que não impede que façamos alguns passeios juntos.
— Nós viemos a conselho médico.
— Quem está doente? — perguntou ele alarmado, pois que a aparência da jovem não era realmente boa; não tinha as belas cores de quando a conhecera.
— Não se trata de mim — disse ela rindo. — Mamãe teve uma pneumonia e ainda está enfraquecida.
— Neste clima privilegiado certamente se restabelecerá.
— Nossa casa é rodeada de pinheiros, o que será o melhor remédio para ela.
— Esta tarde vou treinar um pouco... Quer vir comigo ao clube? — perguntou o jovem.
— Será um verdadeiro prazer para mim... Nunca mais joguei tênis, e gosto tanto desse esporte!
— Seu noivo também está aqui? — indagou Jean Paul, com certo constrangimento.
— Não — respondeu Além. — Com os boatos alarmantes sobre a guerra, ele não pôde se ausentar da Rússia, mas creio que virá, logo que lhe seja possível.
— Eu, também, não sei quanto tempo poderei ficar aqui. Parece-me que o momento é realmente grave. Fiz o serviço militar há dois anos e poderei ser chamado a cada instante.
— Nós estivemos alguns dias em Paris e também notamos esse nervosismo. Deus que nos livre de uma guerra. Para a Rússia, principalmente, será uma terrível calamidade, porque temos inimigos internos, mais perigosos que os outros, e que não deixarão de aproveitar a oportunidade.
— O futuro está muito nublado, Alena; aproveitemos, pois, o presente, que ainda nos sorri. Vamos voltar, agora, já ouvi a sineta do hotel, chamando para o almoço. Esta tarde irei buscá-la e aproveitarei para cumprimentar seus pais.
— Você é muito amável, Jean Paul. Papai vai ficar muito satisfeito quando souber que já tenho um companheiro para as minhas excursões. Ele prefere fazer companhia à mamãe e, depois, aqui há sempre ladeiras, que muito o cansam.
Ao chegar ao castelo, Alena encontrou os pais no grande living. O conde lia os jornais e a condessa bordava um lencinho. Ela os beijou com carinho.
— Como passaram os meus queridos? — perguntou. — Sentiram muito a minha falta? — E sem esperar resposta, continuou. — Adivinhem quem encontrei... e com quem fui remar?
— Deve ter sido um encontro muito agradável, pelo teu bom aspecto — disse a condessa.
— Foi Jean Paul...
— Que faz ele aqui? — indagou o conde.
— Está de férias e veio para o concurso de tênis.
— Ótimo — continuou o conde. — É um bom companheiro para ti; um verdadeiro cavalheiro.
— Ele virá esta tarde cumprimenta-los e iremos em seguida ao clube para jogarmos algumas partidas.
Faltavam poucos dias para o aniversário da Condessa Xênia. O conde e Alena viviam em confabulo, imaginando o presente que lhe daria maior prazer. Depois de discutirem o assunto, chegaram por fim a um acordo. E na manhã do dia tão ansiosamente esperado, convidaram a aniversariante para um passeio ao Castelo de Chillon.
Um belo automóvel estava à sua espera. Quando se aproximaram, o chofer abriu a porta tocando, respeitosamente, a viseira do boné. Sobre o acento havia um lindo ramo de flores, com um cartão de felicitações do marido e da filha.
O dia foi de grande alegria para todos, e Alena chegou a esquecer, por instantes, os seus íntimos tormentos. A condessa melhorava dia a dia; já não sentia cansaço, e as belas cores de antigamente voltavam-lhe às faces. Era como se a rica seiva dos pinheiros tivesse atuado em seu organismo, como uma transfusão de vida.
Jean Paul lhe mandara uma cesta de flores, e em troca recebera um convite para jantar.
Ao champagne o conde disse:
— Temos hoje duas datas a comemorar... Façamos, pois, um brinde pela felicidade de nossa querida Xênia e pela prosperidade de nossa pátria...
Como a noite estivesse muito serena, foram tomar o café e os licores no terraço. De lá avistaram a costa francesa, excepcionalmente iluminada. É que todas as embarcações concorriam a uma festa veneziana, e usavam lanternas de diversas cores.
— Será que a senhora condessa não se anima a dar um passeio até lá? — perguntou Jean Paul.
— Não — atalhou o conde — Xênia ainda não pode se expor ao sereno, no lago. Porém Alena talvez aceite o seu convite, não é, filha?
— Se o senhor consentir, irei com prazer.
E lá se foram os dois jovens. O conde e a esposa entraram, para jogar uma partida de gamão.
Os turistas de Lausane tinham se bandeado para a margem francesa, atraídos pelas festas e o Cassino de Evian estava repleto de pares que dançavam animadamente. Os concorrentes ao concurso de tênis lá estavam também, e Jean Paul apresentou alguns deles a Alena. Dançaram, jogaram roleta, beberam refrescos e, por fim, voltaram a Lausane.
Na tarde seguinte, o conde convidou a filha para dar um passeio pela cidade. Queria caminhar um pouco. Depois de olharem as vitrinas, procurando uma lembrança para levarem à condessa, entraram numa casa onde todos os objetos eram musicados. Compraram uma pozeira a qual, ao se lhe destampar fazia ouvir uma música suave e linda. Entre os muitos e variados objetos ali expostos, havia uma cadeira, trabalhada em estilo suíço, com pinturas de motivos regionais. Quando alguém se sentava ouvia-se uma música que começava por acordes tão fortes que assustavam. Alena ficou encantada, pensando na madrinha. Era a criança arteira que revivia nela. E a cadeira foi comprada para o quarto de hóspedes.
Depois das compras, voltaram a casa para tomarem chá com a condessa. Encontraram-na lendo uma carta da baronesa. Esta dizia que, sem os Polenski, São Petersburgo lhe era intolerável; que a sua visita estava mais próxima do que havia pensado... Falava nas desordens; nas prisões; nas calamidades cometidas pelos chefes da Polícia e do Estado-Maior, entregues às suas fúrias sanguinárias, sem que houvesse já forças para conte-los. "Parece-me", dizia ainda, "que estão todos hipnotizados pelo demônio de batina. Pensei em aproveitar a companhia de Dmitri, o que tornaria a viagem mais agradável... para ambos, mas acho que não será fácil para ele ausentar-se neste momento. O czar apega-se a esse único amigo que ainda o pode acompanhar, desde que os maus elementos de que se rodeou afastaram os outros."
— Fico muito satisfeito com a vinda de Nadia — disse o conde. — Xênia ficará mais acompanhada e poderá fazer alguns passeios de automóvel, para os quais, estou certo, ela estará sempre pronta.
— Madrinha tem uma vida extraordinária — disse Alena. — No castelo, passou noites em claro, cuidando os feridos; trabalhava todo o dia... e nunca a ouvi queixar-se de cansaço!
— Nadia tem muito bom coração e é ele que lhe dá forças.
Para a Condessa Xênia, a amiga era uma criatura perfeita; estimava-a como a uma irmã.
— Ainda não me contaram como foram de passeio... viram coisas bonitas?
— Ah, mamãe! Compramos uma cadeira para o quarto da madrinha, que é um assombro!
O conde riu do exagero da filha.
— Que tem de extraordinário a tal cadeira? — perguntou a condessa.
— Quando chegar, a senhora vai ver como é engraçada. A madrinha vai levar um susto!
O conde tinha ficado triste com as notícias da Rússia. Ele amava com extremos a pátria e o seu soberano. Por mais que procurasse ocultar, via-se que suportava mal a idéia da humilhação que sofrera. Para Alena, as notícias tinham trazido a esperança de ver adiada a visita de Dmitri. E isso aliviava-lhe o coração de um grande peso!
O conde Polenski voltava de dar uma caminhada pelo bosque de pinheiros que rodeava a casa e encaminhou-se para a biblioteca. Peter veio ao seu encontro com a salva, onde trazia a correspondência e os jornais.
— Hoje, Vossa Excelência vai ter novidades, que, talvez, lhe interessem.
— Como o sabes, Peter?
— O jornaleiro contou-me que há grande agitação na cidade, por causa do assassinato de um arquiduque. Todos os jornais já foram vendidos e há, pelas ruas, muitos grupos que discutem.
O conde sentou-se na poltrona, pôs os óculos e, abrindo o jornal, disse:
— Veremos do que se trata... meu bom Peter.
Peter servia à família há tantos anos que já era considerado membro integrante. Apesar disso, guardava uma atitude sempre respeitosa dos patrões.
Os jornais traziam em grande destaque a notícia do assassinato, em Serajevo, do Arquiduque Ferdinando, da Áustria.
Serajevo é a capital da Bósnia, província turca que, pelo Tratado de Berlim, em 1878, foi ocupada pela Áustria até 1908, quando foi a esta anexada definitivamente.
Essas anexações, de raças e religiões diferentes, são um verdadeiro cancro, transplantado de país para outro. E para este, também, não há remédio.
— Oh, que catástrofe! – exclamou o conde.
— É alguma coisa grave, Excelência? – Perguntou Peter.
— Muito grave, Peter. Talvez, mesmo, o princípio de uma grande guerra!
— Que Deus livre a Rússia! – exclamou o velho, retirando-se.
Daí a pouco a Condessa Xênia apareceu, com ar assustado.
— Que há Vladimir? Varvara disse-me que os criados estavam comentando sobre um assassinato...
— O Arquiduque Ferdinando foi assassinado em Serajevo, e isso vai agravar muito a situação.
— A Rússia será envolvida?
— Infelizmente, minha querida. Temos compromissos e a nossa honra obriga-nos a respeitá-los.
Nesse instante, apareceram Alena e Jean Paul. Vinham quase correndo agitados.
— Já sabem? — perguntou a jovem.
— Sim, minha filha. Estávamos comentando a situação, que me parece muito grave...
— Acha que virá a guerra, senhor conde? — perguntou o rapaz.
— Penso que acenderam o rastilho e em breve, arrebentará a bomba. O Kaiser não perderá a oportunidade para levar avante os seus planos sinistros.
Peter veio avisar que o almoço estava servido. Jean Paul levantou-se para partir, porém a condessa o convidou a ficar, o que ele, de bom grado, aceitou.
Durante a refeição o assunto foi ainda a guerra e as suas terríveis conseqüências. De súbito, Alena lembrou-se de alguma coisa que ainda não tinha contado, e disse:
— Sabe papai, quando estava no clube, apreciando uma partida de tênis, ouvi duas jovens conversando em russo. Dirigi-me logo a elas e me apresentei. Eram ambas muito simpáticas e agradáveis, e disseram-me que estudam na Universidade, aqui. Uma delas estuda Medicina, e a outra Arquitetura. Estão no primeiro ano... Como já sabiam o francês, por esse lado não encontraram dificuldades e estão muito satisfeitas. Tomei a liberdade de convidá-las, sem a sua permissão, mas fiquei tão contente de ter com quem falar a minha língua, que não hesitei...
— Fizeste bem, filha... Estás muito isolada aqui entre dois velhos; o natural é que os jovens se sintam bem entre os da mesma idade.
— Infelizmente, terei que partir breve — disse Jean Paul — e não sei se poderei voltar um dia. O futuro é uma incógnita...
— Imagino quantos não serão os países cujos Estados-Maiores estejam reunidos — disse o conde, tristemente. Pensava, talvez, no que se estaria efetuando no Palácio Anitchkof, presidido pelo czar e onde Grabinski ocupava o seu lugar.
A condessa notou o tom magoado do marido e procurou mudar de conversa.
— Aonde é o passeio esta tarde? — interferiu ela.
— Temos que voltar ao clube, para novo turno. De noite, permito-me convida-los para um concerto sacro, na catedral. O concertista é um organista de fama e os coros são maravilhosos, pelo que me disse um amigo que os ouviu ontem.
— Aceitarei com prazer o seu convite, Jean Paul. A noite está quente e penso que o meu carcereiro me dará liberdade, por algumas horas.
— Decerto, querida. Nós, também, precisamos de distrações.
— Ótimo! — exclamou Alena. — Teremos então uma noite alegre.
O conde riu-se.
— Não creio que um concerto sacro seja alegre, mas ao menos, teremos uma noite de arte. Contaram-me que a catedral, devido a sua maravilhosa acústica, tornou-se um salão de concertos, não mais se oficiando ali atos religiosos. Não só músicas sacras são permitidas, mas todos os artistas célebres — cantores, violinistas e outros — vão lá cantar e tocar, porém, as entradas não são pagas.
— É mais uma atração para os turistas, excelência — disse Jean Paul. — Os suíços conhecem bem a arte de atrai-los. Não lhes bastam as belezas naturais... Eles sabem como mostrá-las, como chamar a atenção para elas. Ao redor do lago há recantos maravilhosos, preparados, com orquestras, bebidas e ótimas ceias. Eles têm, também, a vantagem de um clima excelente para a prática de qualquer esporte.
— Pelo que ouço, é um grande entusiasta da Suíça, Jean Paul.
— Não conheço lugar mais lindo... Seus panoramas são muito variados. Um pintor deve sentir-se aqui grandemente inspirado!
— São os lagos que tomam este país encantador — disse a condessa. — Que profundidade terá o Leman?!
— Dizem que no centro vai até trezentos metros — respondeu Jean Paul. — Tanta gente já se terá afogado aí, que o fundo deve ser um cemitério.
— Não acho prudente que Alena vá remar sozinha... ela não sabe nadar — tornou a condessa.
— Na verdade... será melhor levares sempre um dos barqueiros — disse o conde: — são rapazes fortes e, certamente, bons nadadores.
— Ah, papai, lembra-se daquele que o senhor achou que parecia um Hércules?
— Sim, filha, lembro-me perfeitamente. Era um belo tipo de homem.
— Sabe o que lhe aconteceu
— Afogou—se? — perguntou o conde, penalizado.
— Não, papai!!! — respondeu Alena, com uma risada. — Enforcou-se.
— Como? Que lhe aconteceu?
— Casou-se! Sônia contou-me que foi um caso muito comentado aqui. Uma rica americana apaixonou-se por ele e pediu-o em casamento. Ele recusou, dizendo que era um homem simples, acostumado à vida de barqueiro, vestido apenas de calção e camiseta; que nunca saberia usar uma casaca, nem apresentar-se num salão. Ela, porém, tanto insistiu que ele acabou por ceder. Para que o escândalo não fosse maior, resolveram casar em Paris.
— Que moça leviana! — comentou a condessa.
— Esse rapaz talvez seja um bom elemento — disse o conde — mas haverá, por certo, uma profunda discordância entre eles... em todos os sentidos. A sua linguagem deve ser a gíria dos barqueiros. Enfim, nunca se entenderão. Daqui a pouco ele estará de volta!
Estavam todos ao redor da mesa de chá, no salão da torre. A baronesa, chegada havia pouco, estava extasiada com o que via. O conde explicava-lhe a lenda de Guilherme Tell e ela apreciava as pinturas com sua costumada exuberância de expressões. Por fim, falaram da Rússia e as notícias eram desanimadoras.
— O assassinato do Arquiduque Ferdinando causou um grande choque ao czar. Disse-me Dmitri que, se a Áustria quiser castigar a Sérvia por essa morte, a Rússia terá que se pôr a seu lado, pois que o seu tratado é defensivo. Ele acha que a guerra é iminente — continuou a baronesa - porque a Alemanha instigará a Áustria e como sua aliada, aproveitará o pretexto para disparar guerra a toda a Europa.
— Há muito que se vem preparando para isso — disse o conde. — Razoukhine, quando lá esteve, como adido militar, observou coisas verdadeiramente surpreendentes.
— Os outros países, com seus serviços secretos, deviam estar a par de tudo isso... Por que não se prepararam? — tornou a Baronesa Nadia. — A guerra com o Japão devia ter-nos servido de lição... Ainda bem que não tenho filhos, mas quando olho para os nossos rapazes, fortes e belos e penso que podem servir de bucha para canhões!
— Quando será, meu Deus, que as paixões, o ódio, o orgulho, a ambição... a maldade, enfim, desaparecerão do mundo?! — exclamou a Condessa Xênia.
— Esqueceste a injustiça, minha amiga, que dos males não é, certamente, o menor... e que muitas vezes provoca os outros.
Alena pensou em Nicolai. Se ele tivesse que ir para a guerra, ela nunca mais teria notícias dele... E antes que as lágrimas denunciassem o seu pensamento, convidou a madrinha para um passeio no bosque.
— Não nos convida filha? — perguntou o conde gracejando.
— Ó, papai! Será que o senhor precisa convite para percorrer as suas propriedades?
O bosque estava perfumado pela resina dos pinheiros.
— Respirem profundamente — tornou o conde. — Este ar é um excelente fortificante...
Depois de algumas voltas, regressaram ao castelo.
— Preciso tirar as roupas da mala — disse a baronesa. — Devem estar muito machucadas.
— Varvara, certamente já destinou uma das criadas, para o teu serviço, Nadia.
— Eu vou ajudá-la, madrinha; a senhora deve estar cansada da viagem.
Alena estava ansiosa pelo sucesso da cadeira musicada e fez um sinal à mãe, que não estava menos curiosa e acompanhou-as ao quarto da baronesa.
Como era realmente original e fora colocada em lugar bem visível, a baronesa logo a notou.
— Que linda cadeira! — exclamou ela.
— É uma lembrança de Alena para ti, Nadia — disse a condessa.
— Assim que a vi, lembrei-me da senhora, madrinha.
— Estou encantada, querida — disse a baronesa, beijando-a. — Agora — continuou ela — vou me sentar, para tomar posse do presente...
E juntando o gesto à palavra, sentou-se de repente. Mas, no mesmo instante deu um salto e abraçou-se à amiga, que ria a bom rir. A música, depois daquele primeiro acorde, que mais parecia uma bomba, continuou maravilhosa e linda.
— Alena acaba por me matar! — exclamou ela. — Creio mesmo que já estou sofrendo do coração, depois de tantos atentados que tenho sofrido!
— Desculpe, madrinha; não pensei lhe causar tamanho susto — disse a jovem, com ar brejeiro.
E as três acabaram por rir a gargalhadas. Quando contaram ao conde o resultado da brincadeira, ele também riu, mas seu riso não era expansivo, como sempre. Notava-se nas linhas de seu rosto que uma grande preocupação o estava torturando.
— Já leu os jornais da tarde, Vladimir? - perguntou a condessa.
— Sim, querida, e as notícias não são boas. A Áustria—Hungria já mandou seu ultimato à Sérvia. Parece que os aliados das duas facções estão procurando resolver o incidente, pacificamente, porém devemos esperar o pior.
— Na Rússia fala-se, abertamente, na influência exercida por Rasputin sobre o imperador, por intermédio da esposa — disse a baronesa. — Este imundo mujique conseguiu dividir o exército, pondo o General Grabinski na chefia do Estado-Maior. O czar, sempre apaixonado pela esposa, sofreu a sua influência nesse sentido. Rasputin convenceu-a de que é ele a única pessoa capaz de conjurar o mal que ameaça o pequeno czar, e por esse filho, que adora, ela é até capaz de trair o Império Russo.
— É uma acusação muito grave, Nadia — disse o conde.
— Diz Dmitri que esse endemoninhado mujique está enfraquecendo a Rússia, dividindo as forças armadas, e até a nobreza.
— Eis por que receio uma guerra neste momento. Além da Rússia não estar preparada para ela, as suas forças estão divididas. Esse maldito monge ainda nos causará muito mal. Não sei até onde nos levará, para satisfazer a sua demasiada ambição, pois, estou certo de que tem planos muito altos, não para a Rússia, mas para ele próprio — concluiu o conde.
— Em São Petersburgo é muito comentada a atitude de algumas das mais altas patentes do nosso exército, como Grabinski e outros, e mesmo de nobres, como o Príncipe Sabakine, que o acompanham por toda parte. Já os apelidaram "A Corte de Rasputin".
— É que esperam alcançar posições, ambicionadas, por meio desse esperto monge — tornou o conde. — Já colocou muitos deles nos postos-chaves. Não me admirarei se vierem a descobrir que é um espião.
— Dmitri também desconfia dele... — disse a baronesa. — E por falar em Dmitri — continuou ela — imagino como andará nervoso, nessa expectativa de guerra... Ele estava ansioso para reunir-se a vocês e resolver o seu caso com Alena.
O conde pretextou ir ler os jornais, que Peter acabava de trazer, e retirou-se.
Os jornais eram agora esperados com uma ânsia crescente. As notícias que traziam eram cada vez mais alarmantes. As negociações continuavam sem resultado positivo e a humanidade vivia em suspenso; principalmente os povos da Europa, onde devia rebentar a bomba. As igrejas, de todos os credos, viviam cheias de devotos, que iam rezar para que a paz fosse conservada. Nas aldeias, sobretudo nos países como a Bélgica, ameaçados pela passagem dos exércitos alemães e austríacos, os aldeãos, que tinham suas economias, procuravam onde oculta-las. Não era raro perceber-se à noite, uma luzinha andando pelos bosques. Era a lanterninha de algum deles que buscava um lugar seguro para enterrar os seus parcos haveres. Muitos não voltaram a encontrá-los, porque a morte os ceifou.
No dia 29 de julho, veio a notícia de que a Rússia ordenara a mobilização de alguns corpos do exército, para a fronteira da Áustria, que na véspera havia declarado guerra à Sérvia. E depois disso, tudo se precipitou. O Kaiser quis impor ao czar a retirada dessas tropas, mas em resposta, a 31 de julho a Rússia decretou a mobilização geral, dizendo-se o seu Governo seguramente informado de que a Alemanha havia já alguns dias estava secretamente mobilizando suas tropas.
A 4 de agosto a Alemanha invadia a Bélgica. A bomba havia explodido e o incêndio alastrou-se por toda a Europa. As declarações de guerra se sucederam. Neutralidade passou a ser uma palavra sem significação.
No "Castelo Encantado" havia tristeza, desolação... As notícias eram, às vezes, contraditórias e dificilmente podiam recebê-las, diretamente, de parentes e amigos.
Jean Paul partira logo para juntar-se ao seu regimento, ficando Alena sem o único companheiro, que ainda dava um pouco de animação à sua vida.
O conde recebera uma carta do seu banqueiro, anunciando a compra do seu palácio, em São Petersburgo, por uma embaixada estrangeira. Apesar de esperar por esse acontecimento, sentiu-se deprimido, lembrando as horas felizes que ali passara, quando se unira à Condessa Xênia, uma das mulheres mais lindas da Rússia e que ele amava apaixonadamente... Lembrava a ultima festa, o grande baile no qual apresentara a filha à sociedade e a entrega à proteção dos oficiais do seu regimento... desses pobres rapazes que iriam agora dar a vida pela pátria... E estava ali impotente, inútil, já que lhe tinham tirado o direito de guiá-los para a vitória ou morrer com eles...
A porta abriu-se e apareceu Alena.
— Há novidades, papai? Quais são as notícias? — perguntou ela.
— Senta-te aqui, filha e vamos conversar.
A jovem ajoelhou-se sobre o tapete que estava a seus pés e abraçando-o indagou:
— Que o está preocupando, meu querido paizinho?
— Alena, acabo de receber notícias de que o Palácio Polenski foi vendido. Apesar de já o esperar, senti um grande abalo...
Ela também sentiu um aperto no coração, mas a sua invulgar força de vontade impediu que o manifestasse.
— Foi melhor assim, meu pai, pois, certamente, não voltaríamos a habitá-lo.
— Mandei pôr esse dinheiro em teu nome — continuou ele — e será o teu dote. Penso, no entanto, que não devemos dizê-lo já à tua mãe. Mais tarde havemos de prepará-la para receber a notícia.
Os jornais, essa tarde, já anunciavam a invasão da Galícia austríaca, pelas forças russas. E daí por diante vieram algumas vitórias, que foram muito comentadas ao redor da mesa do chá. O conde, porém, que conhecia a insuficiência do preparo russo, não se entusiasmava.
— Estás muito pessimista, Vladimir — disse a baronesa. — Eu penso que Deus estará conosco!
— Assim seja! — concluiu ele.
Mas, o tempo mostrou quem estava com a razão. Os russos contidos por um grande exército inimigo, tiveram que se retirar... sofrendo derrotas.
Uma manhã chegaram cartas do Conde Razoukhine para Alena, e para a baronesa. A esta, ele aconselhava não voltar à Rússia, no momento e a Alena dizia ter de acompanhar o czar aos campos de batalha. Este pensava que a sua presença daria novo ânimo aos seus soldados e ia tomar o comando das tropas. Dmitri despedia-se da noiva, dizendo-lhe quanto sentia a separação.
No Castelo Encantado a vida era monótona e triste, a não ser à noite, quando se reuniam à mesa do jogo, que a baronesa procurava animar com suas pilhérias. Mas as risadas e mesmo as brigas já não tinham a mesma espontaneidade.
— Kostomarov está fazendo falta — lembrou a condessa...
— Ele nos prometeu uma visita e eu vou lhe mandar uma carta, para avivar-lhe a memória — disse Além.
— Não creio que se ausente da Rússia, onde seus serviços serão necessários. Kostomarov é um patriota apaixonado.
Alena voltava de Ouchy, onde fora remar, em companhia de Olga e Sônia, suas compatriotas, às quais se unira estreitamente. Ao subir a ladeira do castelo viu o carteiro que a galgava com certo esforço, levando a sacola com a correspondência.
— Olá, meu velho! — gritou ela. — Espere por mim!
Ele se virou e viu a jovem. Sorriu tocando a aba do boné.
— Não precisa subir mais, eu levarei as cartas.
— Há, também, jornais... que pesam muito...
Alena compreendeu que o velho queria fazer jus ao copo de vinho, que Peter lhe dava todos os dias e respondeu:
— Vamos subir, então, mas... devagar, porque estive remando, e estou muito cansada.
E subiu, passo a passo, aquela ladeira, que sempre subia correndo.
Entre a correspondência havia uma carta de Kostomarov, em resposta à que lhe escrevera. Ele se desculpava por não poder cumprir a promessa que lhe fizera, mas o dever o prendia, por tempo indeterminado. Dizia sentir terrivelmente a falta dos amigos.
Quando voltava à noite para casa, depois de um trabalho exaustivo, no hospital, onde atendia os feridos, cujo número crescia sempre, sentava-se em uma cômoda poltrona, para descansar... Lembrava, então, os belos dias passados juntos, e tinha ímpetos de ir encontrá-los... e reatar as discussões com a "ferina" Nadia, a quem cumprimentava, cordialmente. Dizia-se muito satisfeito com a notícia de que seus clientes estavam curados e não precisavam mais dos seus cuidados. Recomendava, porém, ao seu velho amigo, não fumar muito, porque esse vício seria prejudicial.
Quanto ao conselho que lhe pedia sobre os estudos de Medicina, só lhe poderia dizer que achava uma ótima idéia. Uma vida ociosa não seria a própria a fazer esquecer ou mesmo amenizar tristezas. Com os estudos ela iria ocupar o espírito em alguma coisa útil, não só a ela própria, como à humanidade. Estava contente que tivesse encontrado duas compatriotas para ampará-la e anima-la. Essas jovens que mostraram ser inteligentes e criteriosas seriam, certamente, uma boa companhia para sua querida amiga.
Com o apoio que lhe dava o Doutor Kostomarov, Alena sentiu-se forte para encetar uma nova vida. Com o consentimento dos pais, começou logo a se preparar para os exames de admissão.
Alena ia, agora, raramente ao lago. Aproveitava as manhãs para estudar com o pai, que continuava a lhe dar lições de Matemática, Inglês e, principalmente, Francês, pois que os estudos eram nesse idioma. As amigas também a ajudavam, dando-lhe notas.
Esses momentos em que o conde se ocupava com a filha, serviam para distrai-lo das más notícias que chegavam da Rússia. A inteligência de Alena enchia-o de orgulho, e sentir-se-ia completamente feliz, na intimidade daquelas duas criaturas que eram o seu amor, se não fosse a guerra, a terrível guerra, ceifadora de preciosas vidas.
Uma tarde em que conversavam no terraço apreciando a paisagem, o lago que brilhava sob a luz forte do solo, como se estivesse coberto de brilhantes, falaram com tristeza nas derrotas que sofriam os exércitos russos.
— Esta conflagração de toda a Europa — disse o conde — vai deixá-la num verdadeiro caos...
— Nós ainda seremos vitoriosos — disse a baronesa.
— A guerra, Nadia — tornou o conde — mesmo vitoriosa, significa ruínas, tristezas e ódios...
— Quantos homens temos em armas?
— Mobilizamos quinze milhões. A metade, certamente, não tornará aos seus lares, não mais verá suas esposas e seus filhos...
— Ó, Vladimir! Não tens fibra de general!
— Mas tenho um coração de pai... e penso nos milhões de crianças que ficarão órfãs...
— Bem, falemos em coisas menos tristes, pois o nosso desânimo não os ajudará.
— Precisamos trabalhar Nadia — disse a condessa. — O inverno nos encontrará muito desprevenidos. Amanhã daremos uma volta pela cidade e compraremos as lãs. Imagino como estarão trabalhando, a czarina e as grãs-duquesa! Sinto, sinceramente, não estar a seu lado, neste momento...
— Sabe mamãe, em que estou pensando? Que poderíamos fazer reunião aqui e trabalhar para a Cruz Vermelha... Os russos que estão em Lausane são todos ricos e, por certo, gostarão de cooperar conosco.
— Por falar nisso — atalhou o conde, tirando do bolso um envelope — recebi estes cartões para o concerto desta noite, na catedral, em benefício da Cruz Vermelha Internacional.
— Deixe-me ver, papai, quem é o concertista. A madrinha vai gostar muito de ouvir o órgão; o seu som é único no mundo!
O concertista era Caruso, que estava de passagem por Lausane.
O mundo todo trabalhava para a guerra. Uns para atiçá-la; outros para amenizá-la. Os Polenski pertenciam ao segundo grupo.
Havia, agora, no Castelo Encantado, um movimento desusado. Eram russos que tinham emigrado, por não poderem mais prestar serviços militares e por temerem a revolução, já há muito esperada. Os que, por suas ocupações, eram obrigados a ficar na Rússia, mandavam suas famílias para a Suíça, único país onde estariam em segurança.
Os Polenski encabeçaram um comitê para trabalhar pela pátria, já muito esgotada.
O povo era como um termômetro, que subia com as vitórias e descia com as derrotas.
Ultimamente, instigado pelos bolchevistas, mostrava-se plenamente descontente. Era preciso ajudá-lo, e para isso o comitê organizava festas, chás, quermesses e até bailes, cujo brilho contrastava com as misérias da guerra que enlutavam a humanidade.
Alena continuava seus estudos e trabalhava nos hospitais. Tinha, agora, vinte e três anos e seu belo rosto mostrava uma expressão mais séria, resultado de sofrimentos passados.
Uma manhã entre a correspondência da Rússia, que era entregue na Cruz Vermelha, teve o conde a surpresa de encontrar uma carta de Nicolai. Ao ouvir esse nome, a jovem sentiu que o sangue, indiscreto, lhe purpureava o rosto. O pai, depois de tomar conhecimento do seu conteúdo, passou-lhe a carta. Tal foi a sua emoção que não pôde ler; era como se as letras se tivessem transformado em hieróglifos.
Nicolai dizia sentir-se na obrigação de dar notícias de Rex. Não o tinha feito a mais tempo, porque fora ferido, quando apartava um conflito entre mineiros, que andavam muito exaltados com as notícias da guerra. Dizia ter sido recusado como soldado e mandado ficar na mina, onde seus serviços eram mais necessários. O trabalho tinha dobrado e era, seguidamente, perturbado por maus elementos, que ali se haviam infiltrado, com esse propósito.
Rex, como Relâmpago, estava muito gordo e preguiçoso, esperando que, terminada esta infeliz guerra, a senhorita Alena o fizesse correr e saltar.
Dizia que, tendo morrido a avó de Sacha, este fora morar com ele, ajudando-o a cuidar dos cavalos. Dizia ainda que a pequenina não esquecia a querida professora e em sua homenagem tinha batizado sua boneca com o lindo nome de Alena.
O conde percebeu a emoção da filha, retirou-se, pretextando um passeio pelo bosque, e Alena fugiu para o quarto, antes que a mãe e a madrinha viessem ao seu encontro. Fechou a porta para ler a carta, que releu muitas vezes... Depois tapou os olhos para que a visão exterior não perturbasse o pensamento... e viu-o, belo e feliz, montando Relâmpago, que o atendia, como se o compreendesse. Reviu o lago, onde ele a enlaçava para patinar, reviveu-o na cama do hospital, inerte e desacordado; depois, de muletas, suportando as dores corajosamente... E, por fim, ouviu a canção russa, que fez com que seus olhos se enchessem de lágrimas ardentes. Uma sensação de culpa apertou-lhe o coração. Ajoelhou-se aos pés da Santa Virgem e lhe suplicou que a perdoasse, que lhe limpasse o coração desses sentimentos que o assaltaram à traição... E ao levantar para a Mãe de Deus os seus belos olhos, desesperadamente súplices, pareceu-lhe que Ela lhe sorria meigamente, como a lhe dizer que a culpa era do destino, que zombara da sua juventude. Levantou-se reanimada, certa de que estava perdoada, e prometeu que faria tudo por esquecer Nicolai... e amar Dmitri.
Quando voltou das aulas, aquela tarde, contou que a ladeira de Ouchy estava coberta de folhas secas, caídas das árvores.
— O outono está no fim, filha. Aqui na Suíça a transição é lenta e esta estação é ainda muito agradável... Nem calor, nem frio... apenas fresco. Porém, em breve teremos que enfrentar o terrível inverno! — disse o conde.
— Com o aquecimento central — atalhou a condessa — será muito mais suportável que os passados na Rússia.
— Principalmente o último que lá passamos que nos fez sofrer dias amargurados, na iminência de perdê-la, minha querida — tornou o conde.
— Temos que trabalhar mais nas lãs — disse a baronesa — os nossos soldados devem estar sofrendo muito frio... Daqui a pouco terão 25 graus abaixo de zero.
— E, certamente, mal alimentados — interrompeu Alena. — As reservas hão de estar esgotadas, pois que os camponeses negam—se a plantar, esperando alguma coisa que lhes foi prometida.
— Na Rússia todos sabem que os bolchevistas lhes prometeram as terras — disse a baronesa.
— E eles esperam ser os proprietários, para depois planta-las. Não querem valorizá-las, antes — concluiu o conde.
— Deus nos livre das feras bolchevistas! — exclamou a baronesa.
— Que eles não te ouçam falar, Nadia — acrescentou o conde.
— Como vão os estudos, minha filha? — perguntou a condessa.
— Vão bem, minha mãe. Brevemente terei os exames, e preciso estudar muito mais, privando-as da minha colaboração, condessa.
Em 1916, a guerra continuava ainda, intercalando vitórias com retiradas do exército russo, que procurou, durante o inverno, reconstituir as suas forças, depois da vitória nos Cárpatos. A essa, porém, seguiu-se a reação da Alemanha, vindo em socorro da Áustria-Hungria, cujo exército ficara em completa desorganização.
Retomadas as operações, o General Mackensen avançou com um grande número de divisões novas e bem equipadas, contra o exército russo, já muito esgotado, que perdeu, então, além de terreno, grande quantidade de material e um número muito elevado de prisioneiros.
O czar resolveu, à vista desse fracasso, tomar pessoalmente o comando do exército, julgando que sua presença animaria os soldados enfraquecidos, os quais, a exemplo dos franceses na guerra de 1870, combatiam de pés descalços. A alimentação era, também, precária, pelo afastamento, cada vez maior, das fontes de abastecimento e pela manutenção de milhares de prisioneiros, tomados ao inimigo.
A presença do soberano, infelizmente, não melhorou em nada a situação; ao contrário, a sua ausência da capital foi aproveitada pelos traidores que até aí não tinham tido coragem de se manifestar. Entre eles, o maior e mais perigoso era Rasputin, cujo poder hipnótico era uma arma poderosa. O seu assassinato, pouco tempo depois, veio tarde demais; já estavam minadas as bases do Império Russo.
Apesar desses contratempos, o fatigado exército russo ainda conseguiu algumas vitórias sobre os austríacos, também enormemente esgotados. O seu avanço porém começou a ser muito lento, até que se estabilizou.
Na retaguarda, um outro exército lutava com todas as suas forças. Era o exército feminino, composto das mães, esposas, irmãs e noivas dos soldados. Este, porém, não matava nem feria, antes, curava as feridas que os outros faziam. Os soldados eram as enfermeiras e seus quartéis eram os hospitais, onde passavam, dias e noites, à cabeceira dos pobres feridos e mutilados, que se perguntavam que mal haviam feito, que pecados haviam cometido, para que os tivessem inutilizado para a vida que, apenas, começavam a conhecer... Muitos ignoravam, mesmo, a causa daquela terrível guerra...
As mulheres que não podiam prestar serviços como enfermeiras, trabalhavam em suas próprias casas, fazendo roupas, ataduras e tudo o que fosse necessário.
A czarina, também visitava diariamente os hospitais, e as grãs-duquesa trabalhavam em palácio, guiadas pelas damas de companhia.
Uma manhã, ao receber a notícia do assassinato de Rasputin, a czarina ficou profundamente abatida, sendo mesmo preciso chamar o médico para atendê-la.
As filhas e o czar foram, por sua ordem, rezar por ele, no oratório da família.
O czar, ao ter conhecimento do ocorrido, passou o comando das tropas a um de seus generais e voltou imediatamente a capital, com receio de represálias a sua família. A czarina, por ser alemã, nunca tivera a simpatia do povo russo e, agora, apesar de sua dedicação pela sua causa, não estava isenta de suspeitas por parte dos inimigos da monarquia, principalmente depois que planos de ataques secretamente guardados pelo Estado-Maior tinham sido conhecidos pelos alemães, que atacaram antecipadamente, mostrando estarem de posse de informações seguras.
A czarina amava demasiado o marido, para trai-lo, porém o povo, atiçado pelos bolchevistas, desconfiava dela. O czar sabia disso e apressou-se a vir reunir-se à família.
As igrejas ficavam sempre abertas para que todos pudessem rezar pela vitória. Mas ninguém queria esperar por ela. O povo reunia-se em frente do Palácio Anitchkof para pedir a paz; gritar por pão e agasalhos, porque seus filhos morriam de fome e de frio...
Faltava já o essencial à vida. Os operários negavam-se a trabalhar mal alimentados e embriagavam-se. Foram dias de grande aflição, aproveitados pelas forças do mal, que iam fazendo seu trabalho de sapa.
O czar voltara da frente muito cansado e apreensivo. Procurava estar só e concentrar-se para pensar. Uma profunda ruga, atravessada em sua fronte, dizia, claramente, que uma idéia fixa o atormentava. Não tendo, agora, Rasputin para lhe tapar os olhos, começava a ver claro a situação em que se encontrava, sem um conselheiro leal que o orientasse. Grabinski, incompetente, tinha aproveitado a sua posição, amparada pelo monge, para se vingar daqueles que o tinham desprezado, pela vida inescrupulosa que levara, sendo até expulso de casas de jogo, por trapacear.
Depois que tivera a certeza de que os planos do Estado-Maior tinham sido vendidos aos alemães, o czar começara a desconfiar dele. Certas lembranças, vagas, mas persistentes, voltavam sempre ao seu espírito, como se procurassem alerta-lo, dar-lhe uma pista.
Lembrou-se que uma vez, tarde da noite, estando muito atormentado com as notícias chegadas da frente, viera ao seu oratório particular. Este ficava junto a sua sala de trabalho, onde se reunia o Estado-Maior, e onde se achava o cofre, com os planos secretos. Grabinski, como chefe, era o único que tinha as chaves, inclusive a do cofre e conhecia sua combinação. Podia lá entrar sem a permissão do czar. Quando fechava a porta interior, que dava para os seus aposentos, viu alguém que saía pela porta da sala. Bateu palmas e a pessoa, surpreendida voltou-se... Era Grabinski.
"Que faz aqui a estas horas, general?" — tinha-lhe perguntado. E ele lhe respondera que, preocupado com os planos, não pudera dormir e, então, lhe parecera que havia alguns pontos fracos, que precisavam ser revistos. Era o que viera fazer, aproveitando a calma da noite. Receava que qualquer falha pudesse ser prejudicial.
No dia seguinte falara disso a Rasputin, que se mostrara extremamente nervoso e respondera que, felizmente, os planos estavam certos. Como soubera ele? Estava como demonstrara, a par do que se passava no Estado-Maior. Seria cúmplice de Grabinski?
Pensando em tudo isso e na responsabilidade que acarretaria o seu silêncio, sentiu necessidade de comunicar suas suspeitas a alguém.
O Coronel Conde Razoukhine, seu ajudante de ordens, cuja dedicação nunca lhe faltara, era o único amigo em quem podia confiar, sem restrições, desde que os generais que lhe eram leais estavam nas frentes de batalha. Chamou-o, então, e lhe confiou a causa das suas preocupações.
Razoukhine concentrou-se por um momento, e por fim, falou:
— Peço a Vossa Majestade alguns dias para pesquisar o caso, e prometo desmascarar o traidor.
— Pedirei a Deus que o ajude em missão tão espinhosa — respondeu o czar.
Razoukhine ao sair dali, convocou em sua casa os oficiais da Guarda Imperial, que eram seus amigos inclusive Boris, que fora ajudante de ordens do General Polenski e lhes contou o que acabara de ouvir do czar. Todos odiavam Grabinski e fizeram um juramento mútuo, de vingar a derrota sofrida por sua culpa. Mas nada poderiam fazer sem provas. Passaram então, a combinar planos que, depois de estudados, eram postos de lado, por impraticáveis. Por fim se decidiram por um deles.
Boris, que fora ajudante de ordens do General Polenski, vestiu-se de mendigo, e usando um gorro que cobria toda a cabeça, por causa do frio, que já era intenso, postou-se em lugar de onde pudesse vigiar quem entrasse ou saísse da casa de Grabinski. Já estava impaciente, com os pés enregelados, quando viu lá entrar e sair um tipo que lhe pareceu suspeito. Vestia como um operário e levava uma caixa de ferramentas. Boris o seguiu de longe até uma taverna subterrânea, onde ele foi beber. Esperou muito tempo, no seu posto de observação o que o fez supor que o tal sujeito bebia muito. Finalmente, saiu muito vermelho e meio trôpego. O oficial seguiu-o novamente até uma oficina de mecânico, onde entrou.
O chefe de polícia tinha sido substituído por um coronel, leal ao czar e de sua inteira confiança. Boris o procurou e dando-lhe o endereço do mecânico, pediu a sua ficha. Soube, então, que ele era alemão, naturalizado russo, que vivia em São Petersburgo havia vinte e cinco anos. Era casado com mulher russa e tinha filhos russos. Ora, bastava a nacionalidade alemã para se tornar suspeito. Esse homem passou a ser vigiado noite e dia. No percurso da casa de Grabinski a oficina, três oficiais o esperavam de distância em distância. Quando o primeiro que o acompanhava chegava ao posto do segundo, voltava, e este o seguia até o posto do terceiro, que o vigiava até em casa. Os três vestiam disfarces diferentes, para não serem notados. Razoukhine ficava em palácio, com o pretexto de que o czar poderia precisar dos seus serviços com urgência. Ele e o outro amigo cuidavam a entrada da saiu do imperador, onde se achava o cofre-forte, com os documentos secretos.
Uma noite, com a impaciência de quem tem sono e não pode dormir, viu entrar, finalmente, o General Grabinski. Vinha muito encapotado. Ao passar pela guarda, esta nem o reconheceu, fazendo, apenas, uma simples continência. Durante mais de uma hora esteve fechado na sala, onde, certamente tomava notas. E saiu com o mesmo cuidado com que entrara, como se quisesse evitar algum encontro indesejável naquele momento. Se não tivesse culpa, não seria necessário tomar tal atitude, sendo natural que viesse a qualquer hora conferenciar com o czar, como fazia o novo chefe de polícia, abarbado com os complôs bolchevistas.
Razoukhine resolveu prender Herman imediatamente e dele obter a confissão que denunciaria Grabinski. Levado à presença do chefe de polícia, o alemão sentiu tal horror, imaginando que o iam torturar que ofereceu contar tudo. Disse que era alemão, mas naturalizara-se russo, a pedido da mulher com quem se casara havia vinte e cinco anos. Não era espião... Rasputin, com quem bebera muitas vezes, levara-o à presença do General Grabinski, que dissera precisar dele, por falar perfeitamente o russo. E sob ameaça de fuzilamento, encarregara-o de uma missão, que dissera ser muito importante. E ele partira como pertencendo ao serviço secreto, com uma leva de soldados que iam para frente. De lá o deixaram passar julgando que ia como espião russo, infiltrar-se nas linhas alemãs. O resto foi fácil, senhores, concluiu ele.
— Qual era a missão? — perguntou o chefe de polícia.
— Era entregar um tubinho de metal a um oficial alemão, que iria me encontrar num lugar combinado e ao qual eu daria a senha, que tive de decorar.
— Que continha no tubinho? — perguntou Razoukhine.
— Ignoro senhor — respondeu Herman.
— Pois saiba que levou planos do Estado-Maior aos nossos inimigos, para que eles pudessem nos atacar. E foi o causador da perda de milhares de soldados russos.
— Podemos mandá-lo fuzilar como espião — disse o chefe de polícia.
Herman empalideceu terrivelmente e levou as mãos à cabeça, apertando-a com desespero.
— Ah! Senhores! Como poderia eu ajudar a matar soldados russos, quando meus dois filhos estão combatendo?... Eles também são russos!
Razoukhine e o chefe de polícia retiraram-se a um canto, para combinarem um plano pelo qual pudessem agarrar o General Grabinski. E depois de concertá-lo dirigiram-se novamente a Herman.
— Bem — disse o chefe de polícia — nós pediremos o seu perdão ao imperador, se você nos ajudar... Diga-me, o que foi fazer hoje à casa de Grabinski?
— Ele me mandou chamar, para avisar que devo partir amanhã, com os soldados. Desta vez para um ponto diferente e como mecânico. Lá teria que proceder como da primeira vez.
— Ouça, Herman — tornou o chefe de polícia. — Você receberá a incumbência do General Grabinski e nos entregará o que ele lhe confiar. Saiba, no entanto, que será seguido e vigiado. Ai de você se procurar nos trair!
— Ó, senhores, eu lhes ofereço a minha vida! Somente quero pedir que meus filhos nunca saibam que fui um covarde; que para não ser fuzilado traí a pátria deles! Terão vergonha do pai!... e minha mulher nunca mais há de querer saber de seu Herman!
— De qualquer maneira, você seria fuzilado, quando não mais precisassem dos seus serviços e tivessem receio da sua língua, quando estivesse bêbedo.
— Mein Gott! — exclamou o pobre-diabo, horrorizado.
Naquela noite, os falsos mendigos estavam atentos, nos seus postos. Um deles fingia dormir sobre o banco de uma praça. Quando Herman chegou à oficina já lá estavam Razoukhine e os outros dois oficiais, seus amigos. Entraram no carro com o alemão e seguiram para o palácio, onde o chefe de polícia já os esperava.
De posse do documento, comprobatório da traição do General Grabinski, o czar deu ordens para sua prisão imediata, e incomunicabilidade, até ser levado a conselho de guerra. Qual não foi, porém a surpresa para os que o foram prender, quando não o encontraram mais!... A casa estava vazia e em grande desordem; as gavetas abertas, papéis espalhados pelo chão.
O fato era explicável. Grabinski, certamente, também tinha a sua polícia particular, que vigiava Herman. Seus agentes avisaram-no, imediatamente, de sua prisão, e ele vendo-se irremediavelmente perdido, tratou de fugir. Um verdadeiro exército da policia secreta foi posto a sua procura. Tudo em vão.
Em Lausane tudo corria normalmente. As senhoras do Comitê Pró-Soldados Russos continuavam a se reunir no Castelo Encantado, e trabalhavam arduamente, em costuras e tricôs. A notícia do assassinato de Rasputin não as tinha abalado. O infeliz mujique não tivera como oração fúnebre uma única palavra de pesar. Ao contrário, era como se peitos oprimidos tivessem, enfim, podido respirar livremente.
Razoukhine, tendo voltado da frente com o czar, escrevia seguidamente a Alena. Dizia-lhe estar orgulhoso dela, pela coragem e força de vontade com que levava avante seus estudos, trabalhando ao mesmo tempo pelos soldados russos. Agradecia o pulôver, as luvas e o cachecol que lhe mandara e que muito tinham servido na frente, onde o frio era terrível. Eram tão lindos, que o czar os notara e elogiara. Beijava, pois, as mãos de fada que os haviam confeccionado. Dizia sentir muito a falta de Nadia, mas estava mais tranqüilo sabendo-a ao lado dos amigos e ajudando-os na árdua tarefa a que se tinham dedicado.
Dias depois, apresentou-se no castelo um senhor russo, que acabava de emigrar para a Suíça. Era portador de recados para o Conde Polenski da parte do Conde Razoukhine. Foi recebido imediatamente. Disse, então, que Dmitri, de quem era velho amigo, tinha lhe pedido que os procurasse e os inteirasse de tudo o que se estava passando na Rússia e que não podia dizer por carta. Foi, então, que o conde teve conhecimento da traição de Grabinski, que lhe foi narrada com detalhes e da sua fuga precipitada. Soube também da conivência de Rasputin, que facilitara ao traidor os meios para consumar a infâmia. Disse que o czar estava muito perturbado e abatido com tudo isso e que, seguidamente, falava no General Polenski como o seu maior amigo.
O senhor Rabinovitch foi apresentado às senhoras e convidado a tomar chá. Contou que suas duas filhas haviam estudado em Lausane e se casado aí. Ele, achando que a situação na Rússia era de insegurança, tinha resolvido vir com a esposa para junto delas. Pediu licença para trazê-las ao Castelo Encantado, onde poderiam prestar serviços ao comitê... Ele mesmo estava pronto a coadjuvar no que fosse preciso.
Estavam em vésperas de Natal. A condessa e Nadia aproveitavam as saídas de Alena para as aulas e iam ao centro comprar os presentes. O conde ficava fazendo a escrita do comitê; anotando entradas de dinheiro, despesas feitas com fazendas, lãs e tudo que era necessário. Alena, por sua vez, aproveitava as horas de folga, entre as aulas, e ia com as amigas comprar o que iria dar aos pais, à madrinha e aos criados. Comprou um lindo relógio de pulso para mandar a Dmitri. Quando o auto ia buscá-la à escola, ela entregava os pacotes a Mitka, que era, agora, ajudante de chofer, para escondê-los no quarto de Varvara. Mitka era já um rapaz, bonito e elegante, no seu uniforme. De chegada a Lausane, o conde o matriculara num colégio, onde se mostrara muito aplicado. Falava bem o francês e se preparava para qualquer curso superior. Ele, porém, preferia guiar o automóvel da condessa e estava treinando para tomar o lugar do chofer.
O Natal ocupava todos os habitantes do Castelo. O conde mandou cortar um pinheiro, que foi colocado no centro da grande sala. Mitka, trepado numa escada e guiado por Alena, colocava as velas e os enfeites. Num dos cantos havia uma mesa, onde estavam inúmeros pacotes, com os nomes de cada um.
Todos os russos emigrados e que pertenciam ao comitê, se reuniram essa noite no Castelo Encantado.
Quando os relógios bateram a meia-noite, os sinos de todas as igrejas começaram a repicar, nos seus diferentes sons. Os estudantes, com seus gorros, de cores que diferiam em cada escola, passavam, em grupos, pelas ruas, carregando pinheiros, deitados, e cantando o hino a Jesus.
No Castelo Encantado, um dos popes da igreja russa de Lausane, acompanhado pelos emigrantes, ajoelhou ao redor da árvore, fez preces pela paz e para que os que lutavam em frentes tivessem uma noite tranqüila. Depois cantaram, em surdina, os hinos religiosos, a música maravilhosa e triste, enquanto a neve, que começava a cair, ia pintando as vidraças. Por fim, repartidos os presentes, vieram os doces, a vodka, que reanimou os espíritos.
A essa mesma hora em São Petersburgo, o czar com a família, oficiais da Guarda Imperial, alguns parentes e amigos, ouviam a missa, na capela do palácio. E cantavam os mesmos hinos que os imigrantes, na Suíça. Todos os russos espalhados pelo mundo voltavam seus corações para a pátria e pediam por ela, nessa noite de glória para o Cristianismo.
Alena estava profundamente triste pensando em Nicolai, nesse pobre rapaz, órfão de carinho, que vivia dia e noite na escuridão de uma ravina, arriscado a inúmeros perigos, e que estaria, certamente, pensando nela com desespero, pois que não se resignava a perdê-la. Imaginava-o sentado na velha poltrona, bebendo vodka em companhia de Sacha. Se já sabia o que se tinha passado com o pai, como havia de se sentir envergonhado e infeliz! A jovem sentiu que os olhos se enchiam de lágrimas e pediu ao Menino Jesus que velasse por ele.
Alena havia concluído seus exames, com muito boas notas e passara para o penúltimo ano do seu curso. Suas amigas tinham partido para São Petersburgo, onde passariam as férias com a família. O inverno estava mais intenso e ela não podia remar, porque no lago soprava sempre a bise, que era um ventinho gelado, causador de gripes e pneumonias. Não havia mais turistas na Suíça, mas os hotéis estavam superlotados de refugiados de todos os países em luta. Alena os encontrava às vezes no clube de tênis, onde ia jogar, para fazer exercício. Ela dedicara-se, quase completamente, aos trabalhos do comitê, que continuava a despachar caixotes de roupas para a Cruz Vermelha Russa. A condessa não ousava expor-se ao frio e o marido ficava para lhe fazer companhia. A Baronesa Nadia gostava de dar caminhadas, porém, só o fazia quando o sol se dignava aparecer. Dizia que, se a neve a surpreendia fora, ficava como um barco desarvorado, sem saber onde se meter. Que preferia ficar tricotando, na atmosfera amena do castelo, conversando e tomando chá.
— Ninguém dirá que és uma russa... — disse-lhe a condessa.
— Aqui na Suíça — continuou o conde — ainda não tivemos mais de doze graus abaixo de zero. Na Rússia, deve estar a vinte e cinco. E nas trincheiras, os pobres soldados estarão aguentando até quarenta graus. Muitos deles não resistem a uma temperatura tão baixa. Por isso bebem... e se embriagam.
Alena aproveitava os dias calmos para ir patinar, no lago de Santa Catarina, que fica, como uma bacia, entre montanhas, e para onde se sobe por um funicular. Porém o fazia sem entusiasmo, pensando em Nicolai. Muitos rapazes, atraídos por sua beleza e elegância, aproximavam-se e convidavam-na para patinarem juntos. Ela, porém, agradecia e continuava só.
E assim passaram-se os três meses que os separavam da primavera. Esta chegou, como uma fada benfazeja que, com sua varinha mágica, tudo transformou. As árvores começaram a se cobrir de brotos, que em pouco eram folhas grandes e largas, oferecendo sombra.
O céu, quase sempre plúmbeo, tornou-se novamente azul. Tudo era, agora, alegre, como um sorriso otimista.
Alena recomeçou os passeios a Ouchy, o lindo bairro dos hotéis de luxo, onde ia remar. Numa manhã ensolarada, tomou uma baleeira e se afastou. Uma outra baleeira ocupada por um rapaz, vinha na mesma linha, em sentido oposto. Estando os remadores de costas um para o outro, não se perceberam. Pessoas que estavam junto à amurada gritavam e lhes faziam sinais, para avisá-los do perigo, porém eles não o compreenderam até que os barcos se chocaram. Aquele em que vinha o rapaz virou e o atirou ao lago. A jovem pôde ainda puxa-lo por um dos braços para junto da baleeira a cuja borda ele se agarrou, inclinando-a perigosamente. Sangue escorria pelo seu rosto e Alena viu que tinha um talho na cabeça. Estava tão pálido que a jovem pôs-se a animá-lo, com receio de que desmaiasse. A situação era terrível... Felizmente, a lancha salva-vidas acorreu aos gritos dos que estavam na amurada, presenciando a cena.
O ferimento era profundo e o rapaz foi levado ao hospital, onde Alena o acompanhou. Como ele ficasse internado, ela lhe prometeu voltar no dia seguinte.
Quando chegou em casa procurou o pai e, pedindo-lhe segredo, narrou toda a sua odisséia. E pela primeira vez em sua vida o viu verdadeiramente zangado.
— Tinhas-me prometido, filha, que não irias remar sozinha e estou sinceramente magoado que tenhas faltado à tua promessa. Sempre confiei em ti... Imagina se o teu barco também tivesse virado? Pensa, Alena, o que seria de nós?!... Como iríamos suportar a vida?!
Ela sentiu que a emoção lhe dava um nó na garganta e não pôde falar. Atirou-se então, soluçando, nos braços do pai, que a apertou contra o coração.
— Perdoa, filha, se te fiz chorar, mas precisava te fazer ver a imprudência que cometeste. Nada diremos a tua mãe... e nem a Nadia; elas ficariam muito nervosas. Amanhã te acompanharei ao hospital e faremos uma visita ao rapaz.
Realmente assim aconteceu. Mas qual não foi a surpresa, ao saberem que eram compatriotas! Ele era filho do embaixador da Rússia em Paris. Com a guerra a vida lá tinha se tornado insuportavelmente cara, e o pai havia resolvido mandar a família para a Suíça, onde podiam viver melhor e estudar com tranquilidade. Também por questão de economia foram, ele e a irmã, internados em colégios. Pelo Natal, tinham ido a Paris passar as férias, e ele voltara, agora, para continuar os estudos. A mãe e a irmã viriam em seguida.
— Tenho que pedir desculpas à senhorita pelo susto do qual fui a causa — disse ele.
— Os dois fomos a causa e o susto foi mútuo — disse Alena, rindo.
O conde convidou o jovem a ir visitá-los no castelo, e retirou-se com a filha.
Dias depois, Alena o encontrou, com a irmã, no clube de tênis. Feitas as apresentações, Serge Sasonoff levou-as a uma das mesinhas do grande terraço, para tomarem um refresco. Conversaram sobre a Rússia; sobre a guerra, e sobre os seus estudos.
Estavam no princípio do ano letivo e as aulas começaram. Os jovens voltaram aos seus colégios e Alena à Universidade.
Em algumas aldeias, na Suíça, existem pequenos bangalôs, que são alugados aos turistas, que ali vêm fazer esportes. São de madeira, num estilo próprio e situados na escarpa das montanhas. Estas, no inverno fornecem ótimas pistas para a esquiagem. Champery é uma das preferidas não só pelos seus luxuosos hotéis, como por ser perto de Lausane, de onde se sobe de trem, em pouco mais de uma hora. A senhora Sasonoff também a escolhera, pela proximidade dos colégios onde estavam os filhos. Estes passavam com ela os fins de semana. Uma camponesa vinha, diariamente, fazer os serviços domésticos. Alena viera com a madrinha fazer-lhe uma visita, que ela retribuiu, poucos dias depois. Falando da vida tranquila e sadia que levava, contou que tinha um vizinho, no chalé ao lado, que vivia só e não recebia ninguém. Usava grandes óculos escuros e uma barba cerrada. Passava os dias caminhando pelas montanhas. Uma vez ela o viu regando os vasos de flores que havia na frente da casa. Estava sem os óculos e lhe pareceu que aquela cabeça, e aqueles olhos lhe eram muito familiares. Quando, por acaso, se encontravam na estrada, ele virava a cabeça, desviava os olhos.
Certo dia em que o procurara abordar, ele ficara muito nervoso e, sem mesmo atende-la, internara-se pelo bosque. Uma manhã, Rosa, a camponesa que a servia, vendo-o a regar os gerânios, parou junto à sebe e lhe perguntou se gostava de flores. Ele respondeu com um "sim" curto, para que compreendesse que não queria conversa. Porém quando ela se retirava, ele a chamou e lhe ofereceu um lindo gerânio rosa e lhe perguntou quem era a senhora que morava ali e o que fazia numa aldeia.
— Rosa disse-lhe que eu era francesa e estava ali para ficar perto de meus filhos que estavam nos colégios. Quando ela entrou, eu lhe perguntei se ele falava bem o francês. Ela me respondeu que sim, mas que se notava no sotaque que era um estrangeiro. Enfim, é um homem muito misterioso... e tenho quase a certeza de que é russo — concluiu a senhora Sasonoff.
— É certamente algum refugiado, ou, talvez, algum bolchevista, que se oculta para trabalhar à vontade e orientar daqui os companheiros. Sabe que na Suíça está em segurança.
Conversaram enquanto tomavam chá, e combinaram o que tinham a fazer para a Cruz Vermelha. A senhora Sasonoff recebeu a sua cota de lãs para os tricôs e despediu-se. Ela queria, antes de tomar o trem para a montanha, comprar doces e bombons para levar aos filhos. Havia duas reuniões semanais no castelo, para o comitê, e ela prometeu não faltar a elas.
A Rússia estava passando por uma crise interior, que a levava à borda de um abismo. O czar pressentia o desastre e mostrava-se abatido, mesmo acabrunhado. Via, com desespero, que esse grande império, rico e faustoso, que ele pretendera passar ao filho, estava se desmoronando. E o pior é que não se sentia com forças para reerguê-lo, para impedir a sua queda. Era um homem fraco, que sempre se apoiara em seus conselheiros. Esses nem sempre foram sinceros, e muitas vezes incompetentes; sendo o período em que se deixara guiar por Rasputin, o pior que passara desde sua ascensão ao trono da Rússia. Era um tímido diante da responsabilidade e, agora, sentia-se curvar ao seu peso, como se fora um novo Atlas, carregando o mundo.
Estavam em março, que entrou trazendo sérias perturbações. O czar convocou todos os seus ministros e o chefe de polícia, para uma reunião em seu gabinete. Estes lhes falaram da gravidade da situação, que já não podia ser controlada, das greves nas minas de carvão; das prisões que estavam cheias; do povo que reclamava e pedia a paz. Estavam sobre um vulcão...
Depois de ouvir tudo isso, o czar se levantou e, com grande emoção, passou a falar. Todos se puseram de pé, porém, ele fez um sinal com a mão para que continuassem sentados. Disse, então, que, tendo compreendido que o povo russo já não o estimava... e desconfiava dele, tinha reunido, na véspera, em palácio, todos os membros de sua família e, depois de conferenciar com eles, resolvera abdicar. Disse-lhes, ainda, quanto lhe custava renunciar a ser o guia de um povo para o qual fora sempre o "paizinho" e que tanto ele como a czarina queriam com amor e carinho. Não abdicara em favor do filho, porque este, infelizmente, não tinha saúde, para levar a cabo encargo de tal envergadura, que o obrigaria a renunciar, mais tarde, pára conservar a vida. Assim, ele tinha escolhido o Grão-Duque Miguel para substituí-lo, confiando no seu patriotismo, no seu grande amor à Rússia. Pedia-lhes que o amparassem na difícil tarefa de harmonizar e fazer feliz o povo russo. E fez sinal de que havia terminado.
Todos os presentes, emocionados, se levantaram, de cabeça baixa, entristecidos.
Ele apertou a mão a cada um e se retirou para seus aposentos.
A abdicação foi comunicada a toda a Rússia no dia 15 de março. Porém o Grão-Duque Miguel não se sentiu com coragem suficiente para tão grande responsabilidade e, no dia seguinte, renunciou também.
Foi então, formado o Governo Provisório, que se instalou no Palácio de Inverno e do qual Kerenski era o Ministro da Guerra. Dele faziam parte representantes de todos os partidos. Porém, essa República foi efêmera; não passou de uma ilusão, que se desfez em poucos meses. Kerenski tentou restabelecer a ordem e implantar a confiança no povo, mas, as forças com que imaginava contar não eram suficientes e os bolchevistas surgiram de toda parte, como a lava incandescente de um vulcão, que desce e se espalha pelos seus flancos. O governo tenta, ainda, resistir, mas à vista de um navio de guerra, conduzido por marinheiros, que subiu o Rio Neva e ancorou diante do palácio, foi obrigado a render-se.
Kerenski e alguns dos seus companheiros de aventura conseguiram fugir; outros foram presos.
A família imperial, prisioneira por ordem da Duma, fora mandada para Tobolsk, na Ásia.
Entre os amigos que acompanharam o czar, estavam o Príncipe Dolgorouky, o Conde Razoukhine, o médico que fora autorizado a tratar do czar, um general, a Condessa Hendrikof e alguns serviçais.
Lenine, vindo às pressas da Suíça, e Trotsky, eram praticamente os senhores da Rússia. A indisciplina era geral. Os soldados e os marinheiros não mais obedeciam aos oficiais e desertavam em massa. Os camponeses apoderavam-se das terras que lhes tinham sido prometidas, mesmo que para isso tivessem que sacrificar a vida dos proprietários. Os mineiros se proclamaram donos das minas, direito esse que lhes foi negado mais tarde, porque estas pertenciam ao Estado, e a revolução só lhes havia prometido as propriedades privadas.
A situação era de confusão e terror. Generais, almirantes e cientistas, cuja vida tinha sido passada em laboratórios, sacrificada ao bem da humanidade, eram encarcerados e desapareciam nas prisões. Era o salve-se quem puder! E começou o êxodo daqueles que ainda podiam fugir do país.
Os bolchevistas, três dias depois de se apoderarem do Governo, ofereceram o armistício à Alemanha e concluíram a paz em separado.
Para os aliados foi um golpe terrível. E não o foi menos para os emigrantes que viviam na Suíça, na França e em outros países. Ficaram isolados, sem notícias dos parentes e amigos, cuja sorte muito receavam. Os ricos sabiam que estavam agora pobres, pois que seus bens seriam confiscados. Como iriam viver?!
O comitê de Lausane, não podendo já mandar víveres e roupas para os necessitados da Rússia, resolveu continuar trabalhando para auxiliar os emigrantes sem recursos. Os caixotes que não chegaram a partir foram abertos e os víveres e as roupas distribuídos entre eles. No Castelo Encantado, as portas estavam sempre abertas para os compatriotas que chegavam. As refeições eram muito concorridas. Alguns, mais previdentes tinham como o conde, passado seus bens para o estrangeiro. Porém, os que nada tinham, foram obrigados a procurar emprego. Os que eram músicos formaram orquestras e tocavam as canções russas, que agradavam muito. Um príncipe, parente do czar, que tinha vivido no fausto de seu maravilhoso palácio, em Moscou, mostrava-se muito satisfeito por ter conseguido um lugar de porteiro num cinema. E aí era encontrado afastando a cortina para as senhoras que entravam.
Na França, onde os homens moços tinham sido mobilizados, era mais fácil se colocarem, substituindo-os. Assim, muitos oficiais e mesmo nobres serviam como garçons em bares e em hotéis. Havia, mesmo, um general, que era, agora, engraxate. Os jovens que conseguiram fugir, muitos dos quais soldados e oficiais, fiéis ao imperador, juntaram-se aos franceses e foram com eles para os campos de batalha. As mulheres, para as enfermarias dos hospitais.
O conde estava muito acabrunhado com a prisão da família imperial. Pensava também em Razoukhine e no seu amigo Kostomarov.
Uma noite, Peter anunciou ao conde que um mujique o estava procurando. Ele pensou que fosse algum refugiado, que vinha pedir auxílio, como acontecia diariamente, e disse ao mordomo que o fizesse entrar. Qual não foi, porém, a sua surpresa, quando viu que o camponês, de barba crescida e que trazia um saco às costas, era o Doutor Kostomarov. Sentiu tal emoção, que se abraçou a ele.
— Oh, Igor, meu amigo! — exclamou, quase chorando.
— Sim, sou eu, Vladimir... Fugi do inferno!
O conde mandou que Peter chamasse as senhoras, mas que não lhes dissesse quem tinha chegado. Quando entraram na sala elas olharam o mujique com curiosidade e desconfiança, porém Alena logo o reconheceu e apesar de todas as tristezas, não se furtou ao prazer de uma boa gargalhada. Depois de algumas explicações, Peter o acompanhou ao quarto e lhe levou roupas do conde.
Ao jantar, já escanhoado e limpo, contou os episódios pitorescos da sua fuga. Disse que uma noite, vindo apressadamente para casa, com receio de ser atacado por algum grupo de insurretos, viu um homem caído na rua. Estava gravemente ferido, escorrendo sangue. Ajudou-o a levantar-se e carregou-o... A casa estava vazia; os criados tinham desaparecido. Ele despiu o homem, deitou-o em sua própria cama e examinou a ferida, que sangrava muito. Não havia tempo a perder... Colocou o ferido sobre a mesa da sala de jantar, onde a luz do lustre era muito forte, desinfetou-o e anestesiou-o. Uma hora depois, tinha extraído a bala, que felizmente não atingira nenhum órgão vital. Deitou o operado novamente na cama e passou a noite sentado numa poltrona a seu lado. Tomava-lhe, de vez em quando o pulso, que se apresentava irregular. E então pensava que havia cometido uma leviandade... Se esse homem, a quem nem mesmo conhecia, morresse em sua casa, ele teria sérias complicações!
— Mas o Doutor Kostomarov é um homem de espírito forte, e esse pensamento não deteve o seu gesto humanitário... Não foi assim? — perguntou Alena.
— Certamente, minha menina — respondeu o médico. — Esse gesto, porém, não deixou de ser muito arriscado, porque não sou cirurgião. Enfim, tudo saiu bem e o homem se curou.
— Continue doutor — pediu a baronesa.
Ele continuou:
— O homem — disse — pertencia à milícia policial organizada pelos bolchevistas e quis impedir que alguns marinheiros assaltassem um palácio, para roubar. Eles o maltrataram e feriram. Querendo mostrar a sua gratidão, aconselhou-o a fugir de São Petersburgo. Para isso lhe trouxera roupas e lhe dera a senha Zemlia e Volia — Terra e Liberdade.
Depois do jantar retiraram-se para a biblioteca. E aí o Doutor Kostomarov falou-lhes dos horrores da Revolução; da anulação por esta de todas as leis vigentes, de todas as garantias pessoais; do destino incerto e perigoso da família imperial. O czar, temendo que o condenassem à morte tinha pedido a Razoukhine que o acompanhasse, porque queria ter junto a ele um amigo fiel, ao qual pudesse entregar a família.
Dmitri, antes de partir, tinha-o procurado para encarregá-lo de uma missão junto a Alena. Na incerteza de voltar, mandara-lhe as jóias de família, que só ela deveria usar. A baronesa que o queria como a um irmão, começou a chorar. Alena foi sentar-se a seu lado e encostou a cabeça no seu ombro. E assim ficaram unidas.
O Doutor Kostomarov, que saíra um momento, voltou trazendo o saco, já vazio.
— Aqui está o meu saco de viagem — disse ele, virando-o do avesso. Com uma navalha cortou o pano que estava colado no fundo e apareceu o esconderijo. Dele tirou então uma caixa, um pacote de dinheiro e papéis, que estavam embrulhados numa fazenda impermeável. Na caixa, que continha as maravilhosas jóias, vinha uma carta que Alena segurou com as mãos trêmulas. Além de um valioso adereço de esmeraldas e muitas outras jóias, havia uma preciosa coroa de pérolas e brilhantes. A jovem, sem dizer palavra, fechou novamente a caixa e a entregou ao pai para que a guardasse no cofre.
— Esperemos minha filha, que a possas usar um dia... — disse a condessa.
O conde estava muito pálido e tinha uma profunda ruga na testa. As notícias, tanto da família imperial como de Razoukhine, o tinham abalado muito.
Alena estava nervosa e sentia como se a carta de Dmitri lhe queimasse a mão. Pretextou ter que estudar e se retirou.
Na manhã seguinte, o conde e o doutor saíram para uma volta pela cidade. Este queria comprar roupas e tudo o que lhe era necessário. Alena aproveitou a condução que a deixou na Clínica do Doutor Roux, onde fazia a sua prática. Seguira a especialidade de olhos, porque tinha prometido a Varvara operá-la da catarata logo que se formasse e a ama não permitiria que faltasse à sua promessa. O Doutor Kostomarov riu do pretexto, mas essa era realmente a verdade.
Naquela tarde havia muita gente no Castelo Encantado. Sabendo da chegada do Doutor Kostomarov, vinham procurar notícias. Todos faziam perguntas, a muitas das quais não era possível responder. Fazia muito calor e Peter, sempre solícito, aparecia a cada instante, com deliciosos refrescos.
A Embaixatriz Sasonoff, que se tinha tornado frequentadora assídua do castelo, desceu da montanha trazendo uma notícia sensacional... Seu misterioso vizinho havia sido raptado.
— Como o soube? — perguntou a baronesa.
— Toda a aldeia está em alvoroço. A casa está guardada à espera do detetive que deve ir daqui.
— Quem será o desgraçado? — exclamou o conde.
— Estou certa de que é um russo e que o conhecia — respondeu a embaixatriz. Ela estava muito nervosa e apreensiva com o futuro. O marido lhe escrevera que ia ser necessário retirar os filhos do colégio... quase no fim do curso!
A baronesa estava desesperada.
— Como irei viver meus amigos, quando o que tenho na Rússia for confiscado? — dizia ela, irritada, caminhando de um lado para outro. — Nunca fui acostumada a trabalhar!
A Condessa Xênia compreendia a situação das duas e pensava muito no meio de ajudá-las. Um dia, afinal, sugeriu que se estabelecessem juntas, com uma casa de modas, ali mesmo, em Lausane. Ela entraria com o capital e ficaria como sócia comanditária. A idéia foi aplaudida pelo conde, por Alena e, principalmente, pelo doutor, que estava sempre pronto a insuflar coragem aos desanimados. Disse ele que, assim que a guerra acabasse os turistas voltariam e com eles viriam os bons negócios.
A senhora Sasonoff disse que ia escrever imediatamente ao marido, consultando-o. E não levou muitos dias a trazer a resposta. Ele se dizia encantado com a idéia e pedia licença a condessa para lhe beijar as mãos.
O Doutor Kostomarov sentia-se realmente esgotado pelo excessivo trabalho, nos hospitais de São Petersburgo, onde, operava feridos que vinham das frentes. O conde exigiu que repousasse e refizesse as forças, antes de partir para Paris. Ele pretendia continuar a prestar ali os seus serviços profissionais. Alena o obrigava a passar algumas horas no terraço, estendido em uma chaise-longue. Obedecendo, pois, as suas ordens, ali estava, quando Peter trouxe os jornais. Ele os abriu e começou a ler. De repente saltou da cadeira e, muito exaltado, entrou pela biblioteca, onde estavam os outros, sacudindo o jornal.
— Vejam esta notícia! O homem raptado era Grabinski!
Houve uma exclamação geral de surpresa e de espanto.
— Leia para nós, doutor — pediu a baronesa.
Ele puxou uma cadeira, sentou-se e leu um resumo da história.
“O rapaz que fora de madrugada, ainda com noite, deixar a garrafa de leite, viu um auto parado à porta do chalé. Não estranhou o fato, porquanto os turistas, sabendo que ali não havia ladrões, costumavam deixar os carros do lado de fora. Porém, quando se aproximara da casa, ouviu vozes que discutiam, e em seguida rumores de luta. Com a curiosidade de saber o que se estava passando, subiu, rapidamente, a uma árvore e escondeu-se entre a folhagem. E dali daquele mirante improvisado, presenciou uma cena que o encheu de terror. Três homens encapuzados saíram da casa, empurrando um outro, amordaçado, que lutava desesperadamente. Meteram-no dentro do automóvel, que partiu em grande velocidade. Aquele acontecimento insólito em uma aldeia tão pacata, lembrou-lhe um rapto de gangsters, que vira num cinema da cidade. E correu a avisar a polícia. Apesar de não acreditarem na fantástica história do rapaz, os guardas foram até o chalé, onde verificaram a autenticidade da denúncia. Estava tudo revolvido. Jornais e outros papéis estavam espalhados pelo chão e as cadeiras e mesas tombadas eram sinais evidentes de que a luta tinha sido feroz.
O senhor Schmidt, professor da escola de detetives inaugurada havia pouco, tinha sido encarregado de desvendar o mistério. Depois de dois dias de pesquisas, havia descoberto sobre um dos troncos de madeira que atravessavam o teto, uma caixa com dinheiro francês, jóias e papéis, pertencentes ao General Grabinski, ex-chefe do Estado-Maior do czar. Tudo indicava que esse foi o homem raptado, provavelmente por agentes soviéticos. A polícia estava no encalço deles.
— Que infeliz! — exclamou Alena. — Certamente vão matá-lo! — Essa idéia a horrorizou, não só porque era bondosa, como por pensar no sofrimento de Nicolai.
— Parece-me que os emigrantes russos precisam, agora, ter cautela — disse o doutor — principalmente nós, que estamos aqui muito isolados...
— Pediremos garantias à polícia... e licença para usar armas. Teremos um pequeno exército de seis homens — disse o conde.
— Esqueceu-se de nós, meu pai — interferiu Alena.
— Esse exército será de um soldado, apenas — atalhou a baronesa — pois Xênia e eu nunca teremos coragem de usar um revólver.
— Devemos é comprar um bom cão policial — aconselhou a condessa.
— Bem lembrado, querida — respondeu o marido. — As senhoras também devem evitar sair à noite. Esses selvagens podem servir-se delas como isca nas suas represálias.
— Então, eu também estive em perigo — disse a senhora Sasonoff. — Se eles soubessem que eu estava tão à mão, seriam capazes de levar- me, já que não podiam atingir meu marido.
— Eu não os temeria se eles agissem com Justiça — disse o conde — pois sempre os tratei com benevolência.
— Ora, justiça! — atalhou a baronesa — sabe lá essa gente o que isso é?
Apesar de nenhuma simpatia sentirem por Grabinski, o acontecimento os deixou abalados... e apreensivos.
Estavam às portas do verão e, portanto, as férias, as grandes, iam também chegar. As do Natal tinham a duração de um mês, apenas. Os exames haviam terminado em todos os cursos. Sônia e a irmã haviam recebido os seus diplomas. Como não podiam voltar à Rússia, tinham que procurar trabalho, pois que seus recursos tinham também chegado ao fim.
O Doutor Kostomarov, já refeito de seu passageiro esgotamento, partiria para Paris. Escrevera ao seu colega e velho amigo Doutor Deleage, agora chefe de um grande hospital, oferecendo seus préstimos. Esse respondera imediatamente, pedindo-lhe que seguisse o mais breve possível, pois que a colaboração de um cirurgião de tal nome seria de um valor inestimável. Havia, mesmo, alguns casos difíceis que só ele poderia resolver, salvando os pobres rapazes de mutilações.
A esse chamado, ele decidiu atender incontinenti e, muito pesaroso, deixou os amigos novamente.
As senhoras andavam muito atarefadas com os preparativos para a inauguração da casa de modas. Depois de muito pensarem, tinham, finalmente, acordado em localizá-la no melhor ponto da Praça Saint François. A senhora Sasonoff fora a Paris ver o marido e aproveitara para fazer as compras. A Condessa Xênia e a baronesa passavam o dia na organização dos preços e arrumação das mercadorias que chegavam. Serge, o filho da senhora Sasonoff, tomara conta da escrita e a irmã seria o modelo. Alena, agora livre de estudos por algum tempo, ajudava no que era necessário. Estavam todos muito animados e certos do sucesso.
Olga, a arquiteta, e o conde cuidavam da ornamentação do salão guiando os operários na colocação dos espelhos, do tapete e dos candelabros. A Embaixatriz Sasonoff, ao voltar de Paris, aventou a idéia de fazerem a inauguração com um chá e um desfile dos modelos que trouxera, em benefício dos refugiados russos. O alvitre foi recebido com aplausos, na reunião do comitê. As senhoras se prontificaram em oferecer sanduíches e doces e os senhores as bebidas. As quatro jovens, todas elegantes e bonitas, apresentariam os lindos modelos dos costureiros franceses.
A festa, anunciada com uma semana de antecedência, teve um grande sucesso e rendeu uma bela soma.
Sônia entrou como assistente interna da clínica do Doutor Narbel, e Olga colocou-se num escritório de arquitetura. Alena tinha preferido praticar, não uma clínica elegante, mas um hospital, onde pudesse cuidar dos pobres, daqueles que não tinham com que pagar.
E assim se passou quase um ano. Vieram novamente os exames e, finalmente, a formatura... Alena era agora médica!
O Doutor Kostomarov tinha vindo para a solenidade. Na triste situação em que se encontrava a pátria não podiam festejar o acontecimento; assim o jantar foi muito íntimo. Além da família, só a senhora Sasonoff e os filhos, Nadia e as duas amigas de Alena. Ao champanha, o conde felicitou-a e disse:
— Minha filha, antes de beber à tua saúde, quero dizer-te o quanto me sinto orgulhoso de ti! Escolheste a mais bela das carreiras; aquela em que terás muitas oportunidades de derramar sobre os infelizes, os enfermos, a inesgotável fonte de bondade que é teu coração... Peço a Deus que te ampare e guie para que nela só encontres alegrias!
Todos tocaram a sua taça. Ela esperou um pouco, para que lhe passasse a emoção de que estava tomada, e, então, falou:
— Queridos pais e queridos amigos. Agradecendo seus bons votos, quero também agradecer todo o carinho e estímulo que me destes, nestes anos de trabalho, e dizer-vos que este é o dia mais feliz de minha vida, por ser aquele em que concretizei um sonho que veio comigo desde a infância, o que me dá o direito de chamar "colega" o meu velho amigo Kostomarov. — Todos riram... e ela continuou: — Muitas ilusões foram ficando para trás, perdidas no pedregoso caminho percorrido. Mas sinto-me compensada pelos conhecimentos adquiridos que, certamente, me trarão, mais tarde, momentos de felicidade. Todos nós vamos seguir rumos diferentes daqueles que havíamos traçado, e espero que as boas estrelas nos acompanhem, iluminando as sendas por onde teremos que passar.
As taças se ergueram novamente.
O Doutor Kostomarov, que até ali estivera calado, disse então:
— Tenho uma sugestão a fazer. Penso que as minhas "colegas" deveriam ir comigo para Paris para praticar, lá encontrarão oportunidades extraordinárias; casos que, passada a guerra, talvez, nunca mais se apresentem...
— Assim seja! — atalhou a baronesa.
— Ficarão sob minha guarda e proteção — continuou o doutor. E depois de um instante, voltou-se para o conde e perguntou: — Que dizes da minha proposta, Vladimir?
Contra toda a expectativa, tanto o conde como a esposa não só não se opuseram como até animaram a filha a fazer essa viagem. Concordaram que ela muito aproveitaria com o estágio no hospital. E essa separação seria a cota com que eles entrariam para o sacrifício geral.
Alena ficou radiante com essa feliz solução, principalmente porque Sônia iria com ela. Olga estava noiva de um dos chefes da firma e se casaria em breve. As pobres meninas se sentiriam muito felizes se não fosse a falta de notícias dos pais e dos irmãozinhos que elas adoravam. Imaginavam as faltas por que estariam passando. O novo regime não comportava mais o negócio a que o pai se havia dedicado por anos... as jóias. Se as tivesse podido esconder, ainda seria possível continuar a vendê-las na Suíça, terra de turismo. Mas, se as tivessem confiscado, seria a ruína, a perda de anos de trabalhos e sacrifícios para poder educá-las e dar-lhes uma vida de conforto. Esse era o pensamento que constantemente as preocupava.
Os pais de Alena também sentiam o coração pesado ao acompanhar os preparativos que ela fazia para a viagem, porém mostravam sempre uma heróica resignação. Até os criados andavam tristonhos e comentavam essa partida, quando se reuniam na sua sala de jantar. Principalmente Varvara, não podia se conformar. Nunca separara da bariknia, desde que, bem pequenina, a carregara em seus braços. Vasily, o marido, lhe dizia: "Por que essa tristeza? Em Paris não há lobos!"
Para que não estivesse a chorar, Alena lhe dissera que as lágrimas fariam mal aos seus olhos, porém, ela mesma, escondia as suas, que teimavam em se manifestar.
E assim se passaram os dias até que um trem os levou.
A guerra continuava. Com a defecção da Rússia, os alemães puderam retirar de lá muitas divisões, que os foram reforçar nas frentes da França. As batalhas se sucediam, em todos os setores, o que vinha superlotar os hospitais.
Alena escreveu aos pais contando os casos penosos a que assistia como ajudante do Doutor Kostomarov, e que este obrigara, tanto ela como as amigas, a se instalarem numa pensão, perto do hospital. Achava que deviam se afastar, por algumas horas daquele ambiente de dores e gemidos, próprio a fanar a mocidade e a beleza.
Dizia que, quando estava só em seu pequenino quarto, estendia-se em seu leito para repousar, e fechando os olhos, para que não a perturbasse a visão exterior, passava em revista a sua vida, numa introspecção minuciosa e sincera e sentia o quanto havia sido acertada a sua resolução de estudar medicina, pois que suas mãos, até então, inúteis, tinham, agora, uma missão sagrada... a de aliviar sofrimentos. Dizia ainda, que Paris estava cheia de refugiados russos e que estes só tinham trazido notícias tristes. A família imperial continuava presa dos revolucionários que a levavam sempre para mais longe. Todos se mostravam apreensivos pela sua sorte; temiam pela sua segurança, em mãos tão inescrupulosas. Não conseguira notícias de Dmitri; ninguém ouvira falar dele. Sempre pedia à Virgem para que nada acontecesse! Mas não contava aos pais que fazia o mesmo pedido por Nicolai; que prometera, mesmo, dedicar sua vida a cuidar os pobres, enfermos, em troca da salvação de ambos.
Havia no hospital um pavilhão só para os cegos, onde um oculista, o Doutor Fleury os tratava. Alena foi-lhe apresentada pelo Doutor Deleage e ficou como sua assistente, desde que essa era a sua especialidade. Ele era ainda jovem e apesar das tristezas a que diariamente assistia, andava sempre alegre. Entrava nas enfermarias rindo e assobiando, para animar os infelizes que ali estavam, muitos dos quais esperando a terrível sentença. Mas, ao ouvirem o assobio, seus corações também se alegravam. Sabiam que era um amigo, uma esperança que chegava.
— De agora em diante, vou chamá-lo Doutor Otimista — disse-lhe Alena, um dia em que vinha muito satisfeito.
— Ótimo! — respondeu ele. — Não poderia ser pessimista tendo a meu lado uma ajudante jovem e... linda! Além disso, eu nasci entre flores — sou Fleury.
Alena riu com vontade. Eram bons camaradas. Ela o apreciava muito porque aquele bom humor não era futilidade. Quando tinha casos graves, tornava-se sério e preocupado; não brincava. Era a outra faceta do seu gênio.
Sônia também era assistente de um médico e trabalhava muito. À noite, quando se reuniam no quarto que ocupavam juntas, tinham sempre muito que contar uma à outra.
Um dia ela foi procurar Alena no pavilhão dos cegos. Esta a apresentou ao Doutor Fleury que a achou bonita e interessante. Depois disso, se encontraram algumas vezes e ele começou a convidá-la para jantar fora, para visitar museus e ir a concertos. Acabaram por se apaixonar um pelo outro. Mas o Doutor Kostomarov, sob cuja proteção ela se achava, aconselhou a que esperassem a terminação da guerra para que ele a pedisse aos pais. Felizmente para eles, na grande balança da guerra o prato aliado ia descendo, cada vez mais pesado. O outono já estava entrando e isso iria, talvez, apressar o fim, pelo esgotamento. O frio era o pior dos inimigos e esse já se anunciava impiedoso.
Alena, apesar do trabalho exaustivo, das preocupações de cada hora, sentia enormemente a falta dos pais. Nunca se haviam separado antes... E imaginava o sacrifício que estariam fazendo por ela. Isso a enchia de gratidão para com eles.
Logo que findasse a guerra, voltaria para a Suíça e não os deixaria nunca mais. Escrevia-lhes cartas cheias de amor e carinho, e as respostas eram sempre animadoras, erguendo-lhes o moral, quando compreendia que ele estava abatido. A madrinha também lhe mandava cartas encorajadoras; contava-lhe os sucessos da Moscovita, a casa de modas. Dizia que, agora, todos tinham trabalho; que todas as senhoras estavam tricotando, porque o frio se apresentara descaradamente. Alena sempre achava graça nos termos usados pela madrinha. Levou a carta ao Doutor Kostomarov, que riu a gargalhadas. Sônia, quando se encontraram à noite, também gostou das notícias. Ela apreciava muito a baronesa; a sua franqueza.
Uma manhã, de volta ao hospital, o "colega", como chamava, agora, o seu velho amigo, chamou-a à sua sala.
— Alena, tenho uma grande surpresa para ti.
— Boa ou má? — perguntou ela ansiosa.
— Para mim ela foi as duas coisas, e penso que, para ti, também, o será.
— Notícias de Dmitri?
— Não! De Nicolai.
— Onde está ele, doutor?
— Aqui.
— Ó, meu amigo, quero vê-lo imediatamente!
— Não será prudente. Alena. Ele tem os nervos muito abalados e... está cego.
Pobre Alena! Seus sofrimentos iam se acumulando cada dia, como se mãos invisíveis fossem semeando de espinhos o seu caminho. O seu velho amigo a abraçou, e ela chorou, com a cabeça encostada ao seu peito.
— Como soube que ele estava aqui? Como o encontrou, doutor? — perguntou, por fim, enxugando os lindos olhos.
— Ontem, depois que saíste o Doutor Deleage me pediu para ir ver um rapaz russo, que dizia chamar-se Nicolai Rantzov e que fora ferido na cabeça, resultando daí a cegueira. Imagina a minha surpresa ao dar com Nicolai. Sacha aquele mineiro que ele salvou e que o acompanha, ao ver-me soltou uma exclamação de alegria.
"O doutor do castelo! Aquele que nos curou!"
— O Doutor Kostomarov? — perguntou Nicolai.
— Sim, meu rapaz. Aqui vim para curá-lo, novamente.
— Desta vez não haverá cura, doutor, porque estou cego.
— Isto ainda veremos — disse-lhe eu, enquanto examinava o lugar por onde penetrou a bala, que se alojara na cabeça.
Alena o ouvia com a maior ansiedade.
— Haverá cura para ele, doutor?
— Deleage vai pedir ao melhor oculista da França para vir vê-lo. Sabe do meu interesse por esse rapaz e me prometeu que tudo fará por ele.
— Por que não o posso ver ainda, doutor?
— Por que ele está muito nervoso e precisa de calma. Tua presença o transportará ao passado e ao sofrimento.
— Quando será examinado?
— Amanhã pela manhã.
— Com que angústia passarei estas horas! — exclamou ela.
— Vou buscar Sacha para te falar, mas lhe direi que Nicolai não deve saber que estás aqui.
Na manhã seguinte, o Doutor Chester, depois de examinar Nicolai, teve uma conferência com o Doutor Kostomarov. Disse-lhe que os olhos do rapaz estavam perfeitos. Todo o mal estava na cabeça, onde se havia alojado a bala, que fazia pressão sobre os nervos. A operação devia ser aí, e seria muito arriscada. Em todo o caso haveria uma esperança, muito vaga; como um milagre. Mas, como sabia que o Doutor Kostomarov era o homem dos milagres, acreditava no sucesso. No entanto, o paciente deveria saber toda a verdade e declarar que desejava ser operado.
Nicolai, consultado, afirmou que preferia morrer a continuar cego, e pediu ao doutor que o operasse o mais breve possível. Porém, como se encontrasse muito fraco e nervoso, precisava ser submetido a um tratamento, antes. Alena dedicou-se a ele com todo o carinho. Tratava de sua alimentação especial e lhe fazia as injeções fortificantes. Ele sentia nela um perfume que lhe trazia a lembrança fatos passados. A memória do olfato é extraordinariamente pertinaz...
— Sacha — chamou ele um dia. — Como é a enfermeira? É jovem?
— É uma moça muito bonita, barin! Eu penso que, quando o senhor tornar a ver, vai se apaixonar por ela.
Nicolai riu da ingênua resposta.
— Por que pensas isso? — perguntou.
— Ela é muito parecida com a fada do castelo.
— Por que será que não fala?
— Talvez não saiba falar francês... Há muitas enfermeiras aqui que são de outros países.
— Ontem, eu estava muito nervoso e não podia dormir. Ela começou a passar a mão pela minha cabeça, tão suavemente, que os meus nervos se acalmaram e dormi...
— Sabe, barin — tornou Sacha — o doutor vai operar o meu braço, e disse que não vou ficar aleijado.
— Foi a Santa Virgem que nos mandou ao seu encontro, Sacha.
Um dia Nicolai resolveu perguntar ao Doutor Kostomarov se tinha notícias da família Polenski. O médico contou-lhe a vida que levavam na Suíça e que Alena concluíra o seu curso de Medicina, com distinção.
— Está casada, doutor? — perguntou com certo constrangimento.
— Não, meu rapaz. Dmitri acompanhou o czar e desde então não se soube mais notícias dele.
Alena estava aflita por essa operação; a espera a torturava. Mas, desde que o dia fora marcado andava desorientada, chorando pelos cantos. O Doutor Kostomarov obrigou-a a tomar calmantes e disse-lhe que a continuar assim, não poderia ajudá-lo e, como tinha, realmente, uma grande força de vontade, conseguiu dominar-se. O próprio Doutor Kostomarov andava sério, preocupado com a responsabilidade que assumira.
E chegou o dia tão angustiosamente esperado.
Nicolai disse ao doutor que, conhecendo a gravidade da operação, sabia que sua vida estaria em perigo, mas que se ele morresse, não o lastimasse nem se sentisse responsável por isso. A morte seria um benefício, pois que terminaria "todos" os seus tormentos.
A operação, por ser muito delicada, foi muito longa. Porém ele estava vivo, e isso já era muito, naquelas circunstâncias. Teriam que esperar algum tempo para saber se a visão voltava. E os dias arrastavam-se, penosos para eles.
A retirada dos pontos não modificou a situação e todos viviam numa terrível tensão nervosa, na expectativa do milagre. Nicolai nunca deixara de perceber a luz do dia e uma manhã começou a vislumbrar os vultos quando passava diante da janela. E assim, gradativamente, a névoa que embaçava seus olhos foi se alargando e pôde diferençar os objetos que estavam no quarto. Sacha estava tão impaciente que vivia a fazer testes. A cada momento punha alguma coisa na sua frente para saber se ele a via e isso o fazia rir. Com a esperança que começara a renascer, os nervos se tinham acalmado e em sua fisionomia já não havia aquela expressão de amargura que fazia tanto mal ao coração de Alena.
Uma manhã, ainda sob a ação de um sedativo, ele estava recostado com os olhos fechados, quando a enfermeira fazendo um sinal a Sacha se aproximou sutilmente para lhe dar uma injeção. Ao perceber sua presença ele abriu os olhos e levantou a cabeça.
— Alena! — exclamou quase num grito.
A surpresa dobrou os olhos da jovem e tirou-lhe a seringa da mão. Ela deitou a cabeça sobre a cama a soluçar como uma criança.
— A fada do castelo! — disse ele acariciando-lhe os cabelos.
Sacha, que presenciou a cena, saiu em busca do Doutor Kostomarov. Este, ao chegar, vendo aquele quadro, sentiu-se tão emocionado, que só pôde dizer:
— Louvado seja Deus!
Ele havia feito mais um milagre! E quando deixou o quarto tinha os olhos cheios d'água.
Outubro já havia chegado ao fim, e o panorama da guerra havia mudado completamente. As nevadas se sucediam. Era o general inverno, como o chamou alguém, que avançava com seu exército e que chegando a todos os setores da luta, enfraqueceria as resistências. Os aliados estavam, então, reequipados, bem alimentados e com superabundância de material, ao contrário do inimigo, cujo desgaste havia sido enorme e sem probabilidade de refazer-se, pois que seus países estavam esgotados. Começaram, então, as capitulações. A 29 a Áustria e a 30 a Turquia seguiram o exemplo da Bulgária, que havia desertado fazia justamente um mês.
No dia 6 de novembro foi ouvido um rádio alemão anunciando que os parlamentares já haviam seguido ao encontro do comando-em-chefe dos aliados para saber as condições em que fariam o armistício. E a 11 do mesmo mês este era assinado.
O povo recebeu a notícia com delírio. Sua fisionomia mudou de expressão; todos se abraçavam; os homens se beijavam nas ruas, numa alegria transbordante. Seus corações eram como tambores a soar o toque da vitória.
No hospital, mesmo os mutilados e os cegos se regozijavam. Era a volta à vida, ainda que incerta e triste; aos lares, que muitos encontrariam em ruínas. Para alguns era uma esperança... indefinida.
Nicolai tomou parte naquelas manifestações por solidariedade humana, pois que seu futuro era agora uma incógnita, que tinha que procurar na devastação de sua vida. Seus pais, onde estariam? Que seria deles naquele meio hostil? Seus bens estavam para sempre perdidos... Seu amor...
Agora estava mais do que nunca preso a Alena e o fim da guerra seria a libertação da família imperial; portanto a volta do Conde Razoukhine... E o começo de novas torturas para ele.
Seus olhos não estavam completamente livres do perigo. A luz era ainda incerta; às vezes clara, outras muitas com sombras que o alarmavam.
"Como poderia trabalhar e viver, se ficasse cego?" — pensava.
Alena foi vê-lo e o encontrou abatido e tristonho.
— Que tem,Nicolai? Parece indiferente a esse tumulto que a alegria gerou em todo o mundo...
— Em meu coração, por mais que procuro, não encontro motivo para alegria; lá só existe tristeza e desolação... A morte, que tantas vezes me perseguiu e da qual sempre consegui fugir, lastimo agora que antes não me tivesse levado!
— Creio que está dizendo disparates! — atalhou Alena. — O oculista me garantiu que em poucos dias não haverá mais sombras em seus olhos... É preciso que tenha esperança, Nicolai!
— Esperança! É para mim uma palavra da qual nunca conheci a significação...
— Quem é que não conhece a esperança? — perguntou o Doutor Kostomarov, que entrava naquele momento. — A esperança, meu rapaz, é a única coisa que vale nesta vida... Ninguém pode viver sem ela, e é por isso que se diz: — "Da esperança vive o homem até a morte." — E depois de alguns instantes, continuou: — Você é jovem e forte, portanto lembre-se do que lhe disse um dia: Coragem e fé em Deus!
— Quando vai operar Sacha? — indagou Alena.
— Assim que o achar em condições. Ele ainda está depauperado. Espero que fique completamente bom, para poder trabalhar, porque a vida para nós vai ser dura! Não poderemos voltar à Rússia e o que temos por lá está perdido.
— É o meu caso, doutor, agravado pelo mau estado dos meus olhos. Sem eles, como poderei viver?
— Não desanime meu amigo! A sua recuperação total está por poucos dias... e, demais, seu diploma é um passe que lhe abrirá as portas do futuro. Os engenheiros, principalmente os de minas, serão muito solicitados no reerguimento de um mundo devastado pela incompreensão e pela ambição dos povos. Eu mesmo — continuou — terei que procurar uma "arrumação".
Nicolai e Alena riram do termo.
— Ora, colega, o senhor tem a faca e o queijo na mão — retrucou a jovem.
— É verdade que tenho a faca, mas o queijo vai faltar, depois da guerra. Ah! sabe menina, recebi carta de seu pai. Pergunta se vamos demorar muito a voltar para casa. Que diz a isso? Penso que eles não resistem mais às saudades.
— Eu também, meu amigo, creio que não posso mais esperar... O Doutor Fleury quer casar logo e Sônia está de acordo. Ela está procurando notícias dos pais, por intermédio da Cruz Vermelha. Na situação irregular em que vivemos, penso que eles se sentirão felizes por saber as filhas amparadas. Elas pensam casar no mesmo dia. Nós partiremos logo que formos dispensadas, e o Doutor Fleury irá ao nosso encontro, em Lausane. No entanto, eu não gostarei de ir antes da operação de Sacha e... de saber Nicolai completamente curado.
— Dentro de quinze dias tudo isso estará resolvido — disse o doutor, levantando-se para sair.
— Eu o acompanho, colega. — E quando caminhavam juntos pelo corredor ela continuou:
— Creio que ele nada sabe sobre o rapto do pai... e imagino que terrível golpe vai sofrer.
— Talvez ele nunca venha a saber que o pai foi um traidor. Julgará que o mataram em represália às suas maldades.
— Pobre e infeliz Nicolai! — tornou Alena.
— E tu não o és também? — perguntou o doutor, abraçando-a.
— Menos do que ele, porque tenho um pai bom, honesto e respeitado — respondeu ela.
Ficou uns instantes pensativa... para perguntar em seguida: Por que será que Nicolai não nos narrou a sua fuga? Parece-me também que evita falar de Rex... e de Relâmpago. Terá acontecido alguma coisa aos animais? Poderia perguntar a Sacha, mas temo que as notícias não sejam boas e se lhes aconteceu algum mal, prefiro não saber nunca.
— É uma sentimental, Alena... o que na nossa profissão é um estorvo e nos torna fracos, quando precisamos ser fortes.
— Sou, realmente forte, meu amigo, para suportar os males físicos ou materiais, mas terrivelmente pusilânime, para os do coração. E o destino parece que se diverte com esses sofrimentos... Por que conduziu Nicolai ao meu encontro, para nos separar, novamente?
O amigo ouvia-a penalizado.
— Um dia ele te trará a felicidade — disse ele.
— A nossa felicidade é como o rochedo de Sísifo, que despenca sempre que está prestes a alcançar a meta. Demais, essa felicidade depende... Não! — nem quero pensar! — exclamou, tapando o rosto com as mãos.
— Da morte de Razoukhine — concluiu o doutor. — Não, Alena, ela pode e deve vir por outro caminho... Depende de ti, da tua lealdade em lhe confessar que não mais o amas. Ele compreenderá que eras uma criança naquele tempo e que, depois de tantos anos de separação, era inevitável que o esquecesses.
— Mas não esqueci Nicolai...
— Porque sentias por ele o verdadeiro amor; o que sentiste por Dmitri não passou de uma ilusão, de uma nuvem que o vento levou.
— Penso que nunca terei a coragem de lhe fazer tal confissão.
— Ele a facilitará, porque é um cavalheiro.
— Tem razão, meu amigo, defenderei meu amor com todas as minhas forças, do destino cruel que se apraz em lhe dar punhaladas. Mas, até quando, meu Deus, Nicolai e eu teremos que esperar?!
— A tragédia está no seu último ato e em pouco cairá o pano.
— As suas palavras são sinistras e me assustam, doutor. Nunca o vi assim...
— Alena, é realmente terrível o que te vou dizer mas ouça-me: O Doutor Deleage me pediu ontem para examinar um prisioneiro alemão, gravemente ferido. Este ficou muito animado ao saber que era eu quem o ia operar, pois que meu nome lhe era muito conhecido. Depois de o examinar, conversamos, e ele que é um coronel, mostrou-se menos reservado que os outros alemães que operei. Lastimou a terrível situação da Rússia e me falou da família imperial. Disse que o Kaiser, sendo primo, tanto do czar como da czarina, havia exigido, ao assinar a paz com a Rússia, que os bolchevistas os libertassem e os deixassem ir para a Alemanha, com toda a família. E isso lhe foi prometido, mas sempre adiado, com desculpas injustificáveis, até que se falou, abertamente, em Berlim, que o czar havia sido fuzilado com toda a família.
— Que horror, meu amigo! — exclamou a jovem com os olhos cheios d'água. — Permita Deus que não passe de boato... Seria uma infâmia inominável!
— Porém muito provável... A história dos povos sempre nos mostrou, nas revoluções, nas mudanças de regime, quando a ralé sobe, a sua crueldade para com os vencidos, sempre de classe superior; a sua bestialidade toma proporções inenarráveis.
— Certamente os aliados vão pedir a entrega do czar e sua família, e se não o conseguirem, exigirão um inquérito – continuou o doutor.
— Meus pais vão sofrer muito se a terrível notícia se confirmar, e eu quero estar com eles.
— Estaremos todos juntos para o Natal – tornou o doutor.
O término da guerra havia produzido um relaxamento de nervos em todo o mundo, principalmente nos países beligerantes que, extinta, agora, a fogueira, podiam dormir e descansar em paz.
Sonia e Alena tinham voltado a Lausanne. Este feliz acontecimento havia mudado muito a vida no Castelo Encantado. Um sorriso de alegria substituíra em todos os rostos a expressão triste da saudade. Havia, porém, uma exceção... Alena, em cujo rosto essa torturadora de almas deixara seu estigma em caracteres bem visíveis. Os pais achavam-na muito abatida e julgavam que fosse cansaço. Obrigavam-na então a ficar no terraço, estendida numa chaise—longue[4], enquanto houvesse sol, pois o frio já era muito.
— Minha pobre querida! — dizia a condessa — trabalhou demais... Precisa repousar.
Porém, o que ela ignorava, mas que o marido compreendia, era que aquele depauperamento não provinha somente do trabalho no hospital; era o resultado das lágrimas derramadas nas noites insones, da alma angustiada. Era, enfim, Nicolai! Ele não revelara seu pensamento à esposa, por lealdade à filha, da qual sempre guardava o segredo. Resolvera, porém, escrever ao Doutor Kostomarov, pedindo-lhe que convidasse Nicolai e Sacha para virem se restabelecer na Suíça, onde lhes oferecia hospitalidade. Guardava uma viva gratidão por aquele rapaz que lhe salvara a filha, e desejava ajuda-lo em um momento de dificuldades, como aquele que passavam todos os emigrados. O amigo respondeu em seguida, avisando que em poucos dias chegaria ao castelo para passar o Natal. Nicolai mostrara-se muito grato pelo convite, mas, como estava completamente curado, precisava tratar de uma colocação e resolveu partir para o Sarre, onde conhecendo bem o alemão, certamente conseguiria trabalho.
Apesar de o outono estar no fim, as tardes eram amenas. É que a bise andava soprando por outras bandas e o sol enfeitava a terra. Agora, porém, deitava-se muito cedo, e quando descia, por trás dos Alpes, ia alourando os seus cumes gelados. Ao alto, as nuvens de um lilás rosado pareciam cortinas presas a uma imensa sanefa azul. Embaixo o lago, calmo e espelhado.
— Que belo espetáculo! — disse o conde aproximando-se.
Mas Alena já não sentia entusiasmo por aquelas belezas. O lago mesmo, paisagem que lhe era familiar e querida, tornara-se-lhe indiferente. Para animá-la a mãe fazia projetos para a noite de Natal e vinha a todo o instante pedir sua opinião sobre os presentes que devia comprar.
Sônia e Olga estavam juntas nas Alouetes, pensão de uma senhora, que só recebia moças, estudantes. Ambas estavam preparando os enxovais, pois que se casariam em breve. Olga estava muito satisfeita, porque estreara com a planta da própria casa, que o noivo estava construindo para o casamento. Essas jovens, de uma família modesta, tinham chegado ao que eram pelo seu esforço, pela sua força de vontade; e a esperá-las, no fim da estrada, encontraram a felicidade. Alena, nascida em berço de ouro, cuja família era da mais alta nobreza russa e que se dedicara a uma carreira, no intuito de ajudar os pobres; que havia a esperá-la no fim da estrada? Lágrimas e desespero. A felicidade é mal repartida... Parece não serem do mesmo tamanho as mãos que a distribuem! É que para uns, elas se abrem e para outros, se fecham.
Alena estava ali a recordar... Via Nicolai montado em Relâmpago, que fazia correr e saltar. Relembrava o momento terrível em que a salvara dos lobos. Revia seus cabelos, sempre desarranjados, e seus olhos, grandes e lindos, que a olhavam com paixão... Via-o, agora, abatido e sombrio... e, como ele, ela também já não tinha alegria e, nem mesmo, vontade de viver. Seus corações haviam sido devastados pelo mesmo furacão!
A condessa apareceu e lhe pediu que entrasse, porque havia esfriado muito.
O céu continuou mudando de cenários, até que o pano caiu e sua sombra o fundiu com as montanhas e o lago.
Os dias estavam sempre mais frios e já não era prudente passa-los no terraço. Alena preferiu, então, caminhar, e acompanhava a mãe nas compras. Ia também à Clínica do Doutor Narbel, que era seu grande amigo, e onde pensava operar Varvara, logo que suas mãos estivessem mais firmes. Havia também muito a fazer na Moscovita, para o grande desfile do Natal. Todos tinham trabalho, e no castelo as reuniões do comitê eram muito animadas.
Finalmente, na véspera do Natal chegou o Doutor Kostomarov e, para surpresa geral, trouxe em sua companhia o Tenente Boris, ex- ajudante-de-ordem do General Polenski. Essa era uma das surpresas prometidas pelo velho amigo e fez um rebuliço em todos os corações. Um amigo que se juntava a eles, escapando à sanha bolchevista, era sempre recebido com alegria, e o conde o abraçou com emoção, porque sua presença lhe recordava dias passados. Alena também teve prazer em revê-lo, pois que sempre se mostrara seu amigo, acompanhando-a a bailes e festas. E, quando se encontraram, no morno aconchego da sala de estar, quis saber como tinha chegado até aí.
Boris contou, então, que por ocasião do czar voltar da fronteira, onde fora como comandante-chefe do exército, ele e Razoukhine tinham continuado a seu serviço. Logo depois, para não desencadear uma guerra civil, já que estavam lutando contra poderosos inimigos, o imperador resolveu abdicar. Razoukhine, continuou ele, pensou em partir para a Suíça, porém, logo depois, houve a prisão da família imperial e ele resolveu acompanhar o czar.
— Eu, pressentindo dias muito maus, desci o Mar Negro até Constantinopla e de lá embarquei para a França, onde me engajei como voluntário, seguindo para o front. Ferido, fui mandado para Paris. E lá soube por compatriotas, que o Doutor Kostomarov estava prestando serviços como cirurgião, num hospital. Passei a procurá-lo até que o encontrei. Agora que a guerra terminou, na impossibilidade de voltar à Rússia, terei que procurar uma colocação.
Aquele dia amanhecera cinzento, com o teto baixo e opaco, o que não impedira que as ruas estivessem movimentadas e as lojas, principalmente as bombonières superlotadas, por compradores. A cidade estava alegre, com vitrinas enfeitadas de grinaldas verdes e objetos alusivos ao grande dia em que nasceu Jesus.
Pouco antes da meia-noite, os sinos começaram a badalar. Os emigrantes se dirigiram à igreja ortodoxa russa para ouvirem a missa. Raramente havia casa onde não se via, por trás dos vidros das janelas, e por entre as cortinas, uma árvore cuja iluminação fazia brilhar os enfeites dourados e prateados.
O termômetro baixara muito e Peter teve que aumentar a temperatura da sala. De volta ao castelo, os Polenski e seus hóspedes se reuniram, para distribuir os presentes, deixados por Papai Noel. Eram poucos, este ano, porque o comitê havia encaminhado, satisfatoriamente, os mais necessitados. Ali estavam, pois, além dos castelões, o embaixador com a família, o Doutor Kostomarov, a baronesa, Boris e Sônia, que preteria passar a noite em companhia de seus amigos. Olga fora passá-la com a família do noivo.
A condessa fez um sinal ao mordomo, que se retirou, para voltar em seguida, acompanhado de todos os serviçais. Estes entraram, respeitosamente, e se ajoelharam. Então, todos lhes seguiram o exemplo e, como no ano anterior, cantaram o hino a Jesus. De repente, ouviram como um pipocar nos vidros das janelas...
— A neve! — exclamaram todos com alegria.
Essa convidada nunca faltava e desceu do céu para festejar a noite sagrada.
Como a acompanhar a música do seu pipocar, ouviram o som de um violino, que tocava, em surdina, como se fosse, apenas, o eco de uma harmoniosa e linda canção russa, que chegava da pátria.
Alena estacou, com os olhos esgazeados e pondo a mão sobre o coração, que batia loucamente, gritou:
— Nicolai!
E antes que a pudessem segurar correu para fora. O conde ia segui-la, porém o Doutor Kostomarov abriu os braços, barrando-lhe a porta.
— Nicolai querido! — exclamou ela num soluço de emoção.
— Moia lubof! Moia jisinf! Meu amor, minha vida! — respondeu ele, apertando-a contra o peito. E ali mesmo, trocaram o seu primeiro beijo.
A neve caía branca, como um longo véu de noiva.
Dias depois da grande ceia de Natal, alegrada com a presença inesperada de Nicolai e na qual o Doutor Kostomarov proibira que se lembrassem tristezas, este reuniu os amigos na biblioteca, para narrar o que conseguira saber da família imperial e daqueles que a acompanharam. Contou, então, que tivera a idéia de mandar anúncio a um jornal parisiense, pedindo que se algum compatriota tivesse notícias do Conde Razoukhine, fizesse o favor de se comunicar com ele. Dera o nome do hospital e as suas iniciais. Poucos dias depois, um homem o procurara. Como já estivesse prevenido, o porteiro o introduzira na sua sala particular. Era um homem com ar desconfiado, que olhava para os lados, como quem tem medo de ser assaltado. “ Logo, porém, que soube com quem estava falando e se sentiu em segurança, contou-me que era o valet de chambre do imperador e que o seguira até Ekaterimburgo, onde este fora encarcerado, com a família na casa de Ipatief. Ele e todos os amigos do czar, inclusive alguns generais, e até senhoras, foram levados para a prisão. Entre esses estava o Conde Dmitri Razoukhine.
“Perguntei-lhe como tinha conseguido fugir. — continuou o Doutor Kostomarov — e ele respondeu: — Com boa quantidade de rublos fiz a conquista do guarda e ele um dia me aconselhou, e até facilitou a fuga, insinuando que outros não veriam mais a luz do sol. Tinha comigo um menino, a quem esse guarda se afeiçoou, porque lhe contava anedotas que ouvira ao czar e que o faziam rir. Mandou que o levasse também. Toda a gente da cidade esperava que os russos brancos chegassem para salvar a família imperial, mas, infelizmente, eles entraram tarde demais. E no inquérito, feito por eles, em seguida, verificou-se que, não somente o czar, como fora proclamado dias antes, mas todos os membros da família e os acompanhantes, seus amigos, haviam sido fuzilados. Então, desorientado, quase louco, fugi para a França. Esta, senhor, é a terrível história que tinha para lhe contar.”
— Como vive agora? — perguntei—lhe.
— Conheci um nobre francês, em São Petersburgo, que me tomou a seu serviço. Sou seu valet de chambre[5]”.
Todas as senhoras choravam e os homens tinham as cabeças baixas, ao ouvirem aquela narrativa, da mais hedionda e tenebrosa tragédia dos últimos tempos.
Nicolai já conhecia o rapto do pai e aconselhado pelo Doutor Kostomarov e pelo conde, foi com eles e o embaixador, à polícia, reclamar o dinheiro e as jóias que tinham sido encontradas no chalé, onde o General Grabinski se havia refugiado. O embaixador era ainda credenciado para responder pelo rapaz, porque o novo Governo russo não havia sido reconhecido pelos países ocidentais. Demais, o Conde Polenski era agora proprietário na cidade e isso bastava às autoridades locais.
Nicolai, ao receber aquele dinheiro, de cuja procedência desconfiava, entregou-o ao comitê, para o fundo de socorros aos refugiados russos. As jóias serviriam mais tarde para refazer sua vida, caso a mãe não mais vivesse. Por intermédio da Cruz Vermelha, havia escrito a um amigo, pedindo que a procurasse.
Uma tarde de frio excepcional estavam todos reunidos para o chá. As senhoras trabalhando, como sempre, em tricôs, para suprir a Moscovita. O Doutor Kostomarov caminhava de um lado para outro, esfregando as mãos enregeladas e se alguém o observasse, veria que, de vez em quando, lançava um olhar à baronesa, que nada tinha de indiferente, mas não pilheriava com ela. Sabia-a triste, abatida e respeitava a sua dor. Dmitri era o único parente que lhe restava e queria-o como a um irmão. Fora seu companheiro de infância e desde aí, o seu melhor amigo. Não podia se conformar que ele morresse de maneira tão inglória, quando o esperava um futuro brilhante. Porém, o Conde Dmitri Razoukhine não tinha morrido de maneira inglória, porque seu nome seria citado na história de sua pátria, como um exemplo de lealdade e de dedicação!
O Doutor Kostomarov, que já havia distendido as pernas, parou de repente e disse:
— Todos os refugiados, que conseguiram chegar até aqui, já nos contaram as peripécias de suas fugas; faltando somente Nicolai. Alena — continuou ele — está ansiosa para ter notícias dos que ficaram no castelo e, principalmente, de Rex.
Ao ouvir nomear Rex, o pobre rapaz empalideceu, porém, compreendeu que não poderia adiar por mais tempo o que já devia ter dito e se decidiu a falar. Todos se puseram atentos.
— Estava ainda trabalhando na mina — disse ele — mas o trabalho tinha se tornado difícil, pela infiltração de elementos perturbadores, mandados para lá, obedecendo a um plano previamente organizado de desordens, greves e conflitos, em um dos quais fui ferido. Nós, os engenheiros, sentíamos que os mineiros, mesmo os mais pacatos, iam mudando de atitude, desobedecendo e fugindo ao nosso controle. Cada dia se reuniam criando para nós situações perigosas, até que os bolchevistas, vitoriosa a revolução, se apoderaram do governo. Os camponeses correram a se apossar das terras, que lhes haviam sido prometidas, saqueando as propriedades, de onde expulsavam os proprietários, matando os que resistiam. A adega do castelo foi, mesmo, a causa de algumas mortes, porque brigavam pela posse dos velhos vinhos.
— Felizmente, os mais velhos e preciosos vieram conosco — disse o conde, rindo.
— Logo depois — continuou Nicolai — chegou um agente do Governo, para tomar conta da mina, com ordens severas de obrigar os engenheiros a permanecerem e continuarem a trabalhar. Os mineiros não estavam de acordo com essa nova autoridade, pois se julgavam com o direito às minas, como os camponeses às terras, e não queriam trabalhar. O próprio agente do Soviet não pôde impedir que se declarassem em greve e pediu reforço à cidade mais próxima. Nós, os engenheiros, estávamos ali como prisioneiros. Resolvi, então, fugir, antes que os soldados chegassem. Sacha e eu enchemos dois grandes sacos com tudo que podíamos levar e assim que a aldeia adormeceu partimos montados em Rex e Relâmpago. Durante muito tempo viajávamos à noite e durante o dia nos escondíamos em grotões ou nas florestas. Felizmente estávamos na primavera e não sofríamos o horror do frio... e dos lobos. Mas, muitas vezes tínhamos fome. Então um de nós ia sozinho a alguma cidade ou aldeia fazer compras, enquanto o outro ficava escondido com os cavalos. Enfim, não será preciso dizer tudo o que passamos até alcançarmos a fronteira da Polônia. Infelizmente, quando a atravessávamos, surgiram dois guardas que atiraram sobre nós. Rex que fora atingido, correu ainda um pouco e de repente caiu morto. Saltei para Relâmpago, apesar de estar com terríveis dores na cabeça, que sangrava muito. Os guardas não nos perseguiram, por pensarem, talvez, que éramos proprietários de terras que fugíamos de camponeses exaltados. Agarrado a Sacha, que também sofria com o braço quebrado, chegamos a uma granja, onde nos acolheram e trataram. Quantos dias ali passei, semimorto, não sei. E quando abri os olhos, novamente, verifiquei que estava cego... Tal foi o meu desespero, que só pensava na morte, na maneira como poderia acabar com a vida. Estava já muito fraco e resolvi não mais me alimentar... Porém, estava em casa de uma família profundamente religiosa, e a boa mulher sentava-se à beira da minha cama e me falava de Deus, da Virgem Maria e dos milagres que tinha feito na aldeia. Pedia-me, com o carinho de uma mãe, que comesse o que ela preparara com muito gosto. Um dia trouxe a minha presença o velho curandeiro da aldeia, que me falou com tanta bondade que me comoveu.
Nos domingos a família ia à missa no coração da granja, e na volta trazia o senhor vigário, para almoçar. Aquelas freqüentes visitas e, principalmente, a sua palavra, suave e convincente, acabaram por me catequizar. Com ele vinha às vezes o único médico que vivia no lugar. Era filho dali e logo que terminara o curso em Varsóvia, voltara à aldeia, onde se instalara. Era também um homem bom e simpático que me tratara enquanto estive inconsciente. Aconselhou-me ele a ir para a Alemanha, procurar um grande oculista que estava fazendo muitas curas entre os que haviam cegado na guerra. Como a Rússia havia concluído a paz com a Alemanha, não me foi difícil passar para lá. O oculista, a quem procurei logo, tirou-me toda esperança. Tendo, então, conhecimento de que ia haver uma troca de prisioneiros inválidos, entre a Alemanha e a França, pedi para ser incorporado, com Sacha, nessa leva, alegando que ambos tínhamos parentes em Paris. E aqui estamos, pela graça de Deus. — concluiu Nicolai.
— E Relâmpago? — perguntou Alena, com ansiedade.
— Dei-o, por gratidão, ao camponês que me acolheu... Isso me fez sofrer bastante. Ele ofereceu guarda-lo para mim, mas, depois de perder Rex, pareceu-me que não tinha o direito de conservar Relâmpago.
— Rex foi um soldado que morreu no cumprimento do dever. Não o lastimo — disse Alena. — Foi preferível isso a que caísse nas mãos dos bárbaros.
Alena, depois de uma conferência com os pais, foi ao quarto da baronesa, levar-lhe as jóias que havia recebido de Razoukhine. Esta, desde a véspera, estava muito abatida. Tivera sempre esperança de que o primo aparecesse e a certeza de que nunca mais o veria foi um terrível golpe para ela.
— Madrinha — disse a jovem — estas jóias lhe pertencem e meus pais concordaram em que não posso mais conserva-las em meu poder.
A baronesa abraçou-a com emoção, e afastando com a mão o cofre que ela lhe entregava, contestou:
— Não, minha querida, estas jóias são a herança que Dmitri te legou, pedindo que só tu as usasses.
— Madrinha — tornou Alena — eu tenho que lhe fazer uma confissão, que me vai tirar o direito sobre elas...
— Uma confissão?
— Sim, e bem penosa!
— Não, Alena, não precisas mais faze-la, porque o Doutor Kostomarov a fez por ti, contando-me, o que eu aliás, havia muito tempo adivinhara.
— Madrinha, que pensa a senhora de mim, agora que conhece o meu amor por Nicolai? Certamente, que fui falsa e leviana... não é assim?
— Penso minha querida, que foste uma heroína, pois que estavas pronta a te sacrificar, para cumprir a palavra dada a Dmitri, quando teu coração estava cheio de amor por outro! Desde que estive com vocês, na Rússia, compreendi o erro que ias cometer e percebendo o teu sofrimento, senti remorsos por ter influído no teu noivado com meu pobre e querido Dmitri!
— Não imagina madrinha, o quanto sinto o que lhe aconteceu. Nunca teria desejado a felicidade a preço tão alto! A sua morte ainda mais me convence da beleza do seu caráter... Dmitri era um homem excepcional, em todos os sentidos e eu me orgulharia de ser sua esposa. Porém, meu coração me traiu!
— Foi tudo encaminhado pelo destino, Alena. Deves aceitar a felicidade que ele te oferece, sem remorsos, porque o mereceste, pelo muito que sofreste.
— Há muito tempo que eu queria lhe contar tudo, porém, me faltou a coragem...
— Tiveste no Doutor Kostomarov um bom advogado. Ele é intransigente, quanto a tua felicidade!... E como sabe defende-la!
— Eu também gostaria de cuidar da dele! — respondeu a jovem, olhando-a de soslaio. Ela corou fortemente e procurou mudar de assunto.
— Quanto às jóias — disse — vou refletir ainda. E desejo mesmo consultar...
— O Doutor Kostomarov — concluiu Alena a rir. — Ó, madrinha, como eu seria feliz se pudesse reuni-los na vida, como os tenho reunidos em meu coração! Ele é um homem distinto, de uma inteligência rara, e possui a nobreza de alma que falta em muitos nobres. Demais, é elegante e bonito; duas qualidades que as mulheres muito apreciam.
— Porém, não pensa em casar; o que torna inútil toda a propaganda que acabas de fazer. — E riram ambas, unidas em um abraço.
Peter veio avisá-las de que o chá estava servido. O chá da tarde é o mais delicioso hábito russo. Reúne diariamente a família e os amigos, aproximando-os pela convivência e muitas vezes pelas confidências, que encontram ali ambiente apropriado.
Quando Alena descia em companhia da baronesa, encontraram Sônia que chegava, abanando com uma carta. Esta, fora, por certo, portadora de boas notícias, pois a jovem demonstrava grande alegria. A carta era do pai e ela a leu para os amigos.
Dizia ele que ainda poderiam ter dias felizes, porque "nem tudo estava perdido" desde que havia saúde e vontade de trabalhar. Isto, como todos compreenderam, queria dizer que as jóias estavam salvas. Falava em vir breve para a Suíça, para reunir-se às filhas e educar as crianças. Ele e a esposa estavam muito satisfeitos com as boas notícias e esperavam estar presentes aos casamentos.
Todos felicitaram Sônia. Entre os refugiados havia muita solidariedade e as alegrias como as tristezas eram compartilhadas.
— Sinto-me satisfeito — disse o conde — por ver que todos os desajustados pelas reviravoltas da sorte, que chegaram a este castelo, se acham agora amparados. E, se não completamente felizes, ao menos com probabilidades de o virem a ser, quando todas as dificuldades forem aplainadas e as flores tornarem a vicejar em seus caminhos. Fomos todos cruelmente feridos, mas esperemos que Deus nos ajude a apagar de nossos corações essas tristes lembranças.
A senhora Sasonoff dirigia, com rara competência, a casa de modas que, em pouco tempo era a mais elegante e procurada da cidade. Maria Ivanovska, que era agora uma moça, ajudava-a, como modelo, apresentando os lindos vestidos que ela ia buscar em Paris. A Moscovita tornou-se tão conhecida, que muitas senhoras vinham de outras cidades, fazer nela as suas compras. Serge pediu à mãe para continuar os estudos, e como o negócio permitia essa despesa, anuiu ao seu desejo. O Tenente Boris substituiu-o no escritório. Sacha, em uma boa bicicleta, fazia as entregas a domicílio. E estava muito satisfeito com o novo meio de vida. Desde a explosão, ele tomara horror ao trabalho na mina e só continuara por não haver na aldeia outra coisa a fazer.
Alena havia apresentado o Doutor Kostomarov ao Doutor Narbel e, como o segundo era uma edição suíça do primeiro, compreenderam-se maravilhosamente. Narbel era alegre e brincalhão, e tinha grande paixão pela caça; mas pela caça graúda. Os três meses de férias, que tomava anualmente, passava-os na África ou na Itália. As lindas peles que ornamentavam seu gabinete eram um testemunho do êxito dessas excursões. Um álbum de fotografias que havia sobre sua mesa, mostrava-o em diversos lances desse perigoso esporte. Em uma delas via-se o momento em que um tigre, mal ferido, o atacou, sendo morto por um indiano. Ele se referia a esse terrível episódio, com gargalhadas, e mostrava a pele do animal, que por "castigo" estava sob a mesa, a seus pés.
O Doutor Kostomarov já havia operado diversos casos difíceis, com excelente resultado, o que levou o Doutor Narbel a convidá-lo para trabalharem juntos, definitivamente. Assim, mais um refugiado russo se fixou no hospitaleiro solo suíço, como sócio de uma das melhores clínicas do lugar.
Varvara estava sendo preparada para a operação. Alena, sempre tão segura de si, sentia-se nervosa. Nicolai, que o percebeu; convidou-a a patinar em Santa Catarina.
Tomaram um trenó que os conduziu até lá. O lago estava repleto de patinadores. Quando ele a enlaçou pela cintura e começaram a deslizar pelo gelo, tiveram a impressão de que estavam na Rússia, como outrora, e esqueceram o tempo em que o destino os havia separado... talvez, para provar a firmeza do seu amor.
Na volta, quando desciam a montanha, a bise, esse elemento sempre desagradável, os enregelava. Ele puxou-a para si e cobriu-a com a manta de peles. Então, abraçados, sentindo o bater dos próprios corações, trocaram as confidências, havia tanto tempo guardadas.
— Sofri tanto, Alena, quando me confessaste que eras noiva! Senti tantos ciúmes, que se o conde estivesse lá, eu o teria matado.
— Dmitri foi um grande patriota, Nicolai, e é com respeito que devemos pensar nele!
— Perdoa-me, querida! Mas não posso esquecer que é ainda ele, a sua memória, que impede de ficarmos noivos...
— Parece-me cedo ainda, Nicolai. Meus pais e, principalmente, a madrinha estão muito sentidos com tudo o que aconteceu e eu não quero magoá-los. Pensarão que é indiferença de minha parte. No entanto não posso esquecer a família imperial, o horror por que passaram. A cada instante revejo as grãs-duquesa e o czar, com sua carinha linda e meiga!
— Não quero te ver triste, Alena... Agora só tens que pensar em mim — disse Nicolai, beijando-lhe os cabelos.
— Nestes dois dias operarei Varvara e se tudo correr bem, permitirei que fales a papai. Quero estar livre de qualquer preocupação, para pensar somente no nosso amor!
Os Condes Polenski haviam reunido os amigos para lhes anunciar o noivado da filha.
Alena e Nicolai entraram na sala de mãos dadas, com a felicidade estampada em seus rostos belos e simpáticos. Aproximaram-se dos pais e, diante deles se ajoelharam para que Nicolai colocasse o anel de noivado no dedo de Alena. O conde abençoou-os com o sinal da cruz, que na igreja russa se faz juntando o polegar, o indicador e o médio e cruzando da direita para a esquerda. É um casamento simbólico, antecipando o que será abençoado pelo pope. Quando se levantaram, o Doutor Kostomarov perguntou:
— E o beijo? Queremos o beijo!
Nicolai riu e segurando entre as mãos a cabeça de Alena, beijou-a respeitosamente na testa.
Os criados serviam o champanhe e Peter foi ao encontro deles, levando duas taças em uma salva. O velho mordomo sentiu-se tão emocionado ao ver a sua menina, alegre e linda, em seu vestido parisiense, depois de anos em que se acostumara a vê-la sempre triste, que não se conteve.
— Felicidades bariknia, que Deus a proteja! — disse, curvando a cabeça encanecida.
Ele fora o primeiro a felicitá-la e Alena sentiu-se comovida com a sinceridade dos seus votos. Em um gesto de carinho, pousou a mão sobre o seu braço e disse:
— Obrigada, meu bom Peter!
Todos felicitaram os noivos, tocando suas taças.
Começaram então os comentários e projetos. Sônia lembrou que poderiam casar todas, no mesmo dia.
— É uma idéia interessante — disse o conde.
Olga protestou:
— Não pode ser... Três é um número fatídico, que trará infelicidade a uma de nós.
— Nada feito, então! — exclamou o Doutor Kostomarov, penalizado.
Alena olhou para ele e uma idéia, como uma chispa, passou por sua cabeça.
— Um momento, meus amigos — disse ela. — Teremos o número quatro que é um bom número e que nos trará felicidades.
— Quem poderá ser o quarto par? — perguntou Sônia.
— O meu colega Kostomarov e a madrinha.
A baronesa compreendeu a intenção da afilhada; já esperava, mesmo alguma travessura dela nesse sentido. Mas o doutor olhou para Alena com ar interrogador, acreditando que se tratava de uma daquelas brincadeiras a que ela o acostumara e apontando para o peito, perguntou:
— Eu pedi a baronesa em casamento?!
Todos riram de sua atitude embaraçosa.
Alena respondeu prontamente:
— Não, colega! O senhor não a pediu por que não teve coragem e eu fiz o pedido em seu nome...
Ele voltou-se para a baronesa, que sorriu.
— Agora, queremos o beijo — disse Nicolai para se vingar.
O doutor sorriu constrangido e tomando a mão da noiva, beijou-a.
— Obrigado, Nadia! — foi o que pôde dizer, porque na verdade, aquele brincalhão, que a atacava sempre com pilhérias, estava diante dela, comovido e feliz. Porém, ao abraçar Alena, lhe disse:
— És um anjo, colega!
— Agora que chegaram a um acordo quanto ao número dos casamentos, devem também, combinar a data — disse a condessa.
— Porém, lembrem-se que há quatro enxovais a aprontar — atalhou a senhora Sasonoff, a rir.
— E nossa casa não estará pronta antes de dois meses... — disse Olga. — Demais, a esse tempo, papai e mamãe já poderão estar aqui.
— Nesse ponto, parece-me que os noivos é que devem opinar... — disse o conde — Eles é que sabem quando poderão dispor de tempo. O Doutor Fleury vem de fora, portanto ele é que deve ser consultado.
— Parece-me que devem esperar pela primavera — tornou a condessa. — O céu estará azul e haverá lindas flores. Falta tão pouco já para que o inverno nos deixe! Um casamento com o céu cinzento e a neve a cair, deve ser muito triste!
— De acordo — disse o Doutor Kostomarov. — E agora que está tudo decidido, toca a trabalhar, pois temos muito que fazer. Não é, colegas?
— Assim é, meu amigo! — respondeu Alena.
O conde tinha o hábito de todas as noites, antes de se deitar, ir à biblioteca fumar o seu cachimbo. Naquela noite, depois que todos se retiraram, Alena foi à sua procura. Encontrou-o sentado na grande poltrona, com a cabeça encostada ao espaldar, em atitude de meditação. Ela ajoelhou-se a seus pés, como sempre o fazia, e debruçou-se sobre os seus joelhos.
— Papai querido — disse — eu tinha lhe prometido nunca me casar com o filho de Grabinski, mas, amo-o tanto, que não tive forças para renunciar a ele. Receio, porém, papai, te-lo magoado e essa idéia é como um espinho em meu coração.
Ele a olhou com imensa ternura...
— Alena, minha adorada filha. Ouve o que te vou dizer: A minha vida, eu a dividi em duas. A primeira, cheia de decepções, de desgostos e até de ódios... foi vivida na Rússia e lá morreu. O nome de Grabinski, a sua lembrança, se fundiu com ela, nas brumas de um passado que já não existe. Viverei, agora, a minha segunda vida, neste solo abençoado, num ambiente amigo, junto da minha querida Xênia e de meus filhos. E estou certo de que teremos paz... e seremos felizes! Sempre gostei de Nicolai... e junto à gratidão imensa que lhe votava, nasceu uma amizade sincera. Quando soube que estava cego, sofri, como se essa desgraça tivesse atingido a um verdadeiro filho... e sua recuperação foi uma grande alegria para mim. Nunca esquecerei que te salvou a vida e que junto dele encontras-te, finalmente, a felicidade!
Ela encostou ao rosto a mão do pai que guardara entre as suas e, beijando-a com infinito carinho, disse:
— Obrigada, batushka!
Paizinho era como o chamava em pequena, quando queria enternecê-lo e livrar-se do castigo, por alguma travessura cometida. O conde sentiu tal emoção, que a sentou ao colo, com a cabeça encostada em seu peito como uma criança e ali ficaram longo tempo abraçados...
[1] Mujique era a denominação dada ao camponês russo, normalmente antes do país adotar o regime socialista (1917). Ela indica um certo grau de pobreza, uma vez que a maioria do mujiques eram servos.
[2] Versta: (russo vierstá) - s. f. - Medida itinerária da Rússia (1067 m). N. da R.
[3] Tróica, troica (ói) - s. f. - 1. Na Rússia, nome de três cavalos atrelados de frente. 2. Grande trenó russo, puxado por três cavalos./ Grafia alterada pelo Acordo Ortográfico de 1990: troica
Grafia anterior ao Acordo Ortográfico de 1990: troica. N. da R.
[4] Palavra francesa: Espreguiçadeira. N. da R.
[5] Do francês, significa: Criado de quarto. N. da R.
Eliana Tavares de Sá
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