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Series & Trilogias Literarias
Meredith Gentry, Princesa da alta corte das Fadas, está se passando como humana em Los Angeles, vivendo como detetive particular especialista em crimes sobrenaturais. Mas agora o assassino da Rainha foi despachado para cuidar dela – goste ela ou não. De repente, Meredith se encontra como um peão nos planos terríveis de sua tia. O trabalho que a espera: gostar da companhia constante dos homens imortais mais bonitos no mundo. A recompensa: a coroa – e a oportunidade de continuar a viver. A pena por falha: morte.
Capítulo 1
A luz da lua inundava de prata o quarto, fazendo com que a cama adquirisse centenas de tons de cinza, branco e preto. Os dois homens deitados sobre ela estavam profundamente adormecidos. Tão profundamente que quando escapuli do meio dos dois e saí da cama, nem se moveram. O branco da minha pele resplandecia com os beijos de luz da lua. O natural vermelho sangue do meu cabelo parecia preto. Coloquei um robe de seda, porque fazia frio. As pessoas falam do sol da Califórnia, mas quando o amanhecer não é mais que um sonho distante, faz frio. A noite que chegava a mim como doce benção através da janela era uma noite de dezembro. Se eu estivesse em casa, em Illinois, poderia sentir o cheiro da neve, tão puro que quase podia senti-lo através da língua. Um frio que podia queimar os pulmões, que era como respirar fogo gelado. Esse era o sabor que se supunha que devia ter o ar do começo de dezembro. A brisa que penetrava pela janela tinha um gosto de eucalipto e o distante cheiro do mar. Sal, água e algo mais, essa essência indefinida que diz: “oceano”, nada de água doce, nada utilizável, nada bebível. Pode-se morrer de sede na beira do oceano.
Por três anos eu estava na costa desse oceano em particular e cada dia eu morri um pouquinho. Não me refiro a morrer literalmente, já que eu tinha sobrevivido, mas a simples sobrevivência pode ser bastante solitária. Sou a princesa Meredith NicEssus, membro da corte suprema dos duendes. Eu sou uma princesa real, a única nascida em solo americano. Quando desapareci há uns três anos, os meios de comunicação se voltaram loucos. As pessoas me viam por toda parte, a princesa americana dos elfos, igual viam ao Elvis. Tinham me visto por todo o mundo. Na verdade, eu tinha estado em Los Angeles todo o tempo. Havia me escondido, era simplesmente Meredith Gentry, Merry para os amigos. Só outro ser humano a mais com duendes entre seus antepassados que trabalhava para a Agência de Detetives Grey, especializada em problemas sobrenaturais com soluções mágicas.
A lenda fala que um duende exilado da terra dos duendes murcha e se desvanece, morre. Isso é verdade e é mentira. Eu disponho de suficiente sangue humano para poder estar rodeada de metal e tecnologia e continuar viva. Uns poucos duendes murchariam literalmente e morreriam em uma cidade construída por humanos. Mas a maioria pode viver nelas, eles podem não ser felizes, mas sobreviveriam. Mas parte deles se murchariam, essa parte que sabe que nem todas as borboletas que vemos são realmente borboletas. Essa parte que já viu o céu noturno cheio de várias asas como o vento de um tornado, asas de carne e escamas que fazem os humanos sussurrar: dragões e demônios; essa parte que já viu os sidhes1 cavalgarem sobre cavalos feitos com a luz das estrelas e sonhos. Essa parte começa a morrer.
Não haviam me exilado, eu tinha fugido, porque não podia ter sobrevivido a todas as tentativas de assassinato. Não disponha da magia nem das influências políticas para me proteger. Tinha salvado minha vida, mas tinha perdido algo. Tinha perdido o contato com os duendes. Tinha perdido meu lar.
Agora estava apoiada no peitoril da janela aspirando o ar do oceano pacífico olhei os dois homens e senti que estava em casa. Ambos eram sidhe da suprema corte, sidhe da escuridão, parte dessa corte da escuridão que um dia eu reinarei se eu for uma mão caindo por um lado da cama e a outra debaixo do travesseiro. Mesmo em repouso podia apreciar os músculos de seu braço. Seu cabelo estava formando uma brilhante cascata de ondas brancas que acariciavam seus ombros e desciam ao longo da linha forte de suas costas. Tinha a parte direita de seu rosto apoiada no travesseiro, então eu não podia ver as cicatrizes onde seu olho tinha sido tirado. A boca parecia o arco do cupido estava arqueada pra cima com um meio sorriso em seus sonhos. Tinha uma beleza juvenil que não ia perdê-la em toda a eternidade.
Nicca se encontrava deitado de lado, quando estava acordado, seu rosto era bonito quase belo; dormindo tinha um rosto de uma criança angelical. Parecia inocente, frágil. Mesmo seu corpo era mais macio, menos musculoso. Suas mãos estavam calosas devido ao manejo da espada, e tinha massa muscular debaixo dessa suave pele de veludo, mas mesmo assim era mais delicado em comparação com os outros guardas, mais cortês que mercenário. O sue rosto podia ou não combinar com o corpo. Media um pouco mais que um metro e oitenta e tinha umas longas, longas pernas. Uma fina cintura e uns braços largos e ágeis se equilibrando em sua altura. Nicca era todo marrom. Sua pele era da cor do leite com chocolate, e o cabelo caía em uma cascata reta até os joelhos, um cabelo rico do verdadeiro marrom escuro. Não era moreno, mas da cor das folhas caídas que estão a muito, muito tempo no chão da floresta até quando se agitam e aparece essa cor marrom escuro. Era como colocar a mão dentro de algo e ela sair molhada e cheirando a vida nova. Devido a escuridão da noite não dava para ver direito suas costas nem sequer a parte superior de seus ombros. A maior parte dele se encontrava em baixo da savana. Sem dúvida, eram as suas costas o que mais impressionava. Seu pai era algo com asas de borboletas, algo que não era sidhe, mas duende. A genética tinha lhe dado umas asas como se tratasse de uma tatuagem gigante, mas mais vibrante mais vivo que qualquer tinta existente. Desde a parte superior dos ombros descendo pelas costas, atravessando as nádegas, passando pelas coxas ate chegar a tocar a parte posterior de seus joelhos, era um festival de cores: marrom claro, canela, círculos azuis, rosas e pretos salpicados como nas asas das borboletas noturnas.
Descansava na escuridão de maneira que ele e Rhys eram como sombras envoltas na cama, um pálido e outro escuro, entretanto havia coisas muito mais escuras que Nicca, muito mais.
A porta do quarto se abriu sem fazer ruído e como se tivesse conjurado sua presença através de meus pensamentos, Doyle entrou no quarto. Fechou a porta atrás de si de forma tão silenciosa como a tinha aberto. Nunca tinha sabido com fazia isso. Se eu abrisse a porta, fazia ruído, mas quando Doyle queria se movia como a própria noite, silencioso, ligeiro, indetectável até você perceber que já não há luz e se encontra sozinho na escuridão com algo que não pode ver. Era conhecido como a Escuridão da Rainha, ou simplesmente a Escuridão. A rainha somente dizia: “Onde está a minha Escuridão? Tragam a minha Escuridão.”, o que significava que logo alguém iria sangra ou morrer. Mas agora, estranhamente, ele era a minha escuridão.
Nicca era marrom, mas Doyle era negro. Não negro como os humanos, mas o negro total de um céu a meia noite. Não desaparecia na penumbra do quarto porque era mais escuro que as sombras iluminadas pela lua, uma forma escura que avançava pra mim. Usava umas calças de vaqueiro pretas e uma camiseta preta que se adaptava a seu corpo como uma segunda pele. Nunca tinha o visto com algo que não fosse de ombro eram pretas.
Me separei da janela para ficar de frente a ele a medida que se aproximava de mim. Teve que se deter nos pés da enorme cama porque quase não havia lugar para passar entre ela e as portas do armário. Era impressionante ver como Doyle se deslizava ao longo da parede sem encostar na cama. Era uns trinta centímetros mais alto que eu e provavelmente pesava uns cinquenta quilos a mais, a maior parte de músculo. Eu tinha batido contra a cama ao passar umas centenas de vezes, no mínimo. Ele escorregou com agilidade através do estreito espaço, como se qualquer um fosse capaz de fazer isso.
A cama ocupava a maior parte do quarto, assim que quando Doyle finalmente chegou a mim, nós estávamos muito próximos um do outro, quase nos tocando. Ele se posicionou de forma que pudéssemos manter uma ligeira distância de maneira que nem sequer nossas roupas se roçavam. Se tratava de um espaço artificial. Teria sido mais natural nos tocarmos, e a maneira que fez tanto esforço para não me tocar, tornou a situação ainda mais incômoda. Me incomodava, mas tinha decidido deixar de discutir com o Doyle acerca desta distancia. Quando lhe questionava só me dizia: “Quero ser especial para você, não só mais um na multidão.” No começo tinha parecido algo nobre, agora me dava nos nervos. A luz era mais forte aqui, perto da janela, e era capaz de ver parte da delicada curva de suas altas maçãs do rosto, a mandíbula muita afilada, suas orelhas em ponta, e o brilho prateado dos brincos que perfilavam a cartilagem até os pequenos arcos situados na pontiaguda parte superior. Só as orelhas pontudas delatavam que era de sangue misto como eu, e como Nicca. Podia ter escondido as orelhas entre tanto cabelo, mas quase não fazia isso. Usava o cabelo negro azeviche como sempre, recolhido em uma trança que fazia com que de frente parecia que era curto, mas por detrás a trança chegava até os tornozelos.
? Ouvi algo – me disse sussurrando. Sempre falava em voz baixa e escura como um licor doce e espesso para o ouvido em vez de para o paladar.
Eu olhei pra ele.
? Algo ou eu me movendo de um lado a outro?
Moveu os lábios esboçando o mais perto que era um sorriso pra ele.
?Você.
Sacudi a cabeça com as mãos cruzadas sobre o estômago.
? Tenho dois guardas na cama comigo e te parece que não é proteção suficiente? – falei sussurrando.
? São bons homens, mas não sou eu.
Franzi o cenho e respondi:
? Está dizendo que não confia em ninguém mais que você para me manter a salvo?
Nossas vozes soavam muito baixas, tranquilas, como as vozes dos pais quando falam com seus filhos dormindo. Era muito reconfortante saber que Doyle estava alerta. Era um dos melhores guerreiros de todos os sidhe. Era bom tê-lo do meu lado.
?Frost... talvez – ele falou.
Sacudi a cabeça; meu cabelo tinha crescido e chegava justo para me fazer cosquinha nos ombros.
? Os corvos da rainha são os melhores guerreiros da terra dos duendes, e você diz que não há nenhum como você. Que arrogante...
se moveu, de forma que a borda do meu robe roçou em suas pernas. A luz da lua revelou o curto colar que sempre usava, uma pequena jóia em forma de aranha que tecia uma delicada teia de prata. Inclinou a cabeça pra baixo, podia sentir seu hálito no meu rosto.
?Eu poderia te matar antes que qualquer um dos dois soubesse o que estava acontecendo – me disse.
A ameaça acelerou meu pulso. Sabia que não me faria mal. Sabia, mas ainda assim... tinha visto o Doyle matar com suas mãos, sem necessitar de nenhuma arma, só com a força da carne e da magia. Estava de pé ali em contato íntimo com a escuridão, sabia sem nenhum tipo de dúvida que se quisesse me matar, conseguiria, e nem eu nem os dois guardas que dormiam atrás de mim não poderiam fazer nada para detê-lo.
Não podia lutar contra ele, mas sabia outras coisas que podia fazer na escuridão, coisas que podiam distrair e desarmar tão bem, ou melhor, que uma espada. Me virei lentamente para ele até estar com o rosto na curva de seu pescoço, movi os lábios junto a sua pele enquanto falava. Sentia a velocidade de seu pulso batendo contra minha bochecha.
? Você não quer me fazer mal, Doyle.
O seu lábio inferior acariciou a curva da minha orelha, quase como um beijo, mas sem chegar a ser.
? Eu poderia matar vocês três.
Se ouviu um claro ruído mecânico atrás de nós, o som que produz uma arma quando é engatilhada. Soou tão alto no silêncio da noite que não pude evitar dar um salto.
? Não acho que você poderia matar a nós três. – disse Rhys. Sua voz era clara, precisa, não havia nenhum resquício de sono nela. Estava desperto e apontava uma pistola para as costas do Doyle, ou pelo menos era isso que eu pensei que estava fazendo. Não podia ver muito além do corpo do Doyle. E ele, que eu saiba, não tinha olhos na parte de trás da cabeça, assim que também tinha que adivinhar o que o Rhys estava fazendo.
? As armas de mão de ação dupla não precisam ser engatilhadas antes de disparar, Rhys – Doyle falou com a voz calma quase divertida. Mas eu não podia ver seu rosto para comprovar se a expressão acompanha o tom, estávamos congelados em nosso semi abraço.
? Eu sei – disse Rhys, ? um pouco melodramático, mas você sabe o que dizem:
um som assustador pode impressionar mais que mil ameaças.
Falei, minha boca, todavia estava em contato com a cálida pele do pescoço de Doyle:
? Ninguém fala isso.
Doyle não tinha se movido, e eu tinha medo de fazer isso, medo de desencadear algo que não poderia parar. Não queria nenhum acidente essa noite.
? Mas deveriam – contestou Rhys.
A cama rangeu atrás de nós.
? Eu tenho uma arma apontada para sua cabeça, Doyle.
Era a voz de Nicca. Mas não soava tranquila; não, sem dúvida alguma, uma ameaça cheia de ansiedade acompanhava as palavras. A voz de Rhys não havia precisava olhá-lo para saber que era verdade e que seu dedo já estava no gatilho. No final das contas Doyle os tinha treinado.
Senti como a tensão abandonava o corpo do Doyle, e ele levantou o rosto apenas para deixar de falar na minha pele.
?Talvez eu não pudesse matar os três, mas poderia matar a princesa antes que vocês me matassem, de modo que suas vidas não teriam nenhum sentido. A rainha faria muito mais mal a vocês do que eu poderia fazer, por terem permitido que assassinassem sua herdeira.
Eu pude ver seu rosto, mesmo a luz da lua parecia relaxado, com o olhar distante, já sem olhar para mim. Estava muito absorto na lição que estava dando a seus homens para se preocupar comigo.
Apoiei as costas contra a parede, mas ele não prestou atenção a este ligeiro movimento. Coloquei uma mão no meio do seu peito e o empurrei. Fez com que se inclinasse um pouco pra trás, mas não tinha espaço para se mover, já que a cama o impedia.
?Parem vocês todos – eu disse, e me assegurei de que minha voz se escutasse em todo o quarto. Olhei para o Doyle. ? Se afasta de mim.
Fez uma pequena reverência com a cabeça já que não dispunha de espaço para nada mais formal. Depois se afastou e mostrou suas mãos para que os outros guardas vissem que estava desarmado. Estava entre a cama e a parede sem lugar para se virar. Rhys estava atrás dele apontando com a arma na mão enquanto acompanhava seus movimentos pelo quarto. Nicca estava no outro extremo da cama segurando a arma com ambas as mãos a uma distância padrão de disparo. Continuavam considerando a Doyle uma ameaça e eu estava cansada disso.
? Estou farta desses joguinhos, Doyle. Ou confia em que teus homens me manterão a salvo ou não. Se não confia neles, procure a outros homens, se assegure de que ou você ou o Frost estejam sempre comigo. Mas acabe com isso.
? Se eu fosse um dos seus inimigos, teria te matado enquanto seus guardas dormiam.
? Eu estava acordado – disse Rhys, ? mas sinceramente pensava que você voltaria a teus sentidos e a tomaria contra a parede.
Doyle franziu o cenho.
? Pensava em algo tão vulgar?
? Se você a quer, Doyle, só tem que dizer. Amanhã a noite pode ser o seu turno. Acho que todos nós nos manteríamos a distância por uma noite se você decidir acabar com sua... abstinência – a luz da lua suavizava as cicatrizes de Rhys como uma espécie de textura pintada no lugar onde havia estado seu olho direito.
? Guardem as armas – eu disse.
Olharam para Doyle para obter sua confirmação.
? Guardem as armas – eu gritei. ? Eu sou a princesa, herdeira do trono. Ele é o capitão da minha guarda e quando eu falar para fazerem algo, é para vocês fazerem. Pela Deusa, façam logo.
Continuaram olhando para o Doyle, que inclinou a cabeça de maneira quase imperceptível como confirmação.
? Fora – disse ? todos vocês, fora.
Doyle negou com a cabeça.
? Não acho que seja uma boa idéia, princesa.
Normalmente, preferia que todos me chamassem de Meredith, mas acabava de invocar meu status, e eu não podia retirá-lo na frase seguinte.
? Então minhas ordens diretas não significam nada, é isso?
Doyle mostrava uma expressão neutra, prudente. Rhys e Nicca tinham guardado as armas, mas nenhum deles me olhava nos olhos.
? Princesa, sempre deve haver ao menos um de nós contigo. Nossos inimigos são bastante... insistentes.
? O Príncipe Cel será executado se sua gente fizer alguma coisa para me matar enquanto está cumprindo o castigo pela última vez que tentou acabar comigo. Nós temos seis meses de descanso.
Doyle sacudiu a cabeça.
Olhei para os três, todos tão bonitos, cada um a sua maneira e, de repente, tive vontade de estar sozinha. Sozinha para pensar, sozinha para averiguar exatamente de quem aceitavam ordens, de mim ou da rainha Andais. Pensei que eram as minhas, mas nesse momento não estava segura. Os olhei um por um. Rhys me olhou nos olhos, mas Nicca continuava me evitando.
? Não aceitam minhas ordens não é verdade?
? Nosso dever principal e te manter a salvo, Princesa e só depois fazê-la feliz. –
disse Doyle.
? O que você quer de mim, Doyle? Tenho te oferecido minha cama e a tem rechaçado.
Abriu a boca para começar a falar, mas o impedi.
? Não, eu não quero ouvir nenhuma desculpa mais. Eu achava que queria ser o último dos meus homens, e não o primeiro, mas se qualquer um dos outros conseguir me engravidar, segundo a tradição sidhe, essa pessoa será meu marido. A partir de então serei monógama. Terás perdido a oportunidade de acabar com mil anos de celibato forçado. Não tem me dado nem sequer uma boa razão para aceitar esse risco.
– Dobrei meus braços através do meu estômago e embalei meus seios. ? Me diz a verdade, Doyle, ou sai do meu quarto.
Continuava sem nenhuma expressão em seu rosto, mas apareceu um pouco de raiva.
? Certo, quer a verdade. Então olha para a janela.
Franzi o cenho, mas me virei para olhar através da janela, onde tinha umas finas cortinas brancas que se moviam com a brisa. Me encolhi de ombros, mas continuei com os braços cruzados.
? E?
? Você é uma Princesa dos sidhe. Olha com algo mais que só os olhos.
Respirei profundamente e expulsei o ar pouco a pouco; tentando não responder ao calor de suas palavras. Me chatear com o Doyle não ia me levar a lugar nenhum. Era uma princesa, mas isso não me conferia muito poder, sempre foi assim.
Não utilizava muito a minha magia, havia colocado um escudo nela para não passar os dias tendo visões mágicas. Os médiuns humanos e inclusive as bruxas, tinham que trabalhar para achar a magia de outros seres, outras realidades. Eu era em parte duende, o que significa que gastava uma grande quantidade de energia em não ver a magia, para não ver o passo apressado de outros seres, outras realidades que tinham muito pouco que ver com meu mundo, com meus propósitos. Mas magia sobrenatural que passa pela Terra.
Me desfiz dos escudos e olhei com essa parte do cérebro que tem visões e que te permite ver os sonhos. Por incrível que parece, a percepção não muda tanto, mas de repente, era capaz de ver melhor na escuridão e conseguia captar o poder brilhante das proteções da janela, os muros. E no meio de todo esse brilho podia ver algo através das cortinas brancas. Algo pequeno pregado a janela. Quando afastei as cortinas não havia nada na janela salvo o reflexo de cor pálida das proteções. Olhei de lado utilizando minha visão periférica para olhar o vidro. Ali estava, uma pequena marca de mão, menor que a palma da minha mão, estava marcada nas proteções da janela. Tentei observá-la mais de perto, mas se desvaneceu diante de mim. Me forcei a olhar de lado outra vez, mas dessa vez mais de perto. A marca era de uma garra humanóide, mas não humana. Soltei a cortina e falei sem me virar.
? Algo colocou a prova as proteções enquanto dormíamos.
? Sim – confirmou Doyle.
? Não tinha notado nada – disse Rhys.
? Eu também não – adicionou Nicca. Rhys suspirou.
? Falhamos com você, Princesa. Doyle tem razão. Poderia ter sido morta. Me virei e olhei para os três, depois encarei ao Doyle.
? Quando foi que notou que tinham tentado atravessar as proteções?
? Eu vim aqui para ver se estava bem.
Sacudi a cabeça.
? Não, não foi isso o que eu perguntei. Quando foi que notou que tinham tentado atravessar as proteções?
Me olhou com descaso.
? Já lhe disse isso, Princesa. Só eu posse te manter a salvo. Voltei a sacudir a cabeça.
? Nada bom, Doyle. Os sidhe nunca mentem, não abertamente, e você já evitou duas vezes responder a minha pergunta. Me responda agora. Pela terceira vez, quando foi que notou que tinham tentado atravessar as proteções?
Me olhou meio incomodado e meio bravo.
? Quando eu estava sussurrando no seu ouvido.
? Você os viu através da cortina – eu disse.
? Sim – respondeu irritado.
? Você não sabia que algo havia tentado entrar – disse Rhys. ? Tinha vindo aqui só porque tinha ouvido a Merry passear pelo quarto.
Doyle não respondeu, porque não necessitava fazer. O silêncio já era suficiente resposta.
? Essas proteções são trabalho meu, Doyle. As coloquei quando me mudei para esse apartamento, e as recarrego periodicamente. Foi a minha magia e meu poder que impediu que essa coisa entrasse. Foi o meu poder que o queimou de forma que agora temos suas... impressões digitais.
? Suas proteções aguentaram porque se tratava de um poder pequeno – replicou Doyle, ? Algo grande teria atravessado qualquer proteção que tivesse colocado.
sabíamos. Estava tão as cegas como nós.
? Você não é infalível – disse Rhys. ? É bom saber.
? De verdade? – perguntou Doyle. ? De verdade? Então, pensa no que te digo: esta noite nenhum de nós sabia que uma criatura do mundo dos duendes subiu até essa janela e tentou entrar. Nenhum de nós percebeu isso. Pode ter sido um poder pequeno, mas contou com uma grande ajuda para se esconder tão bem.
Eu o encarei.
? Acha que a gente do Cel tem arriscado a vida dele para colocar a minha em perigo de novo?
? Princesa, ainda não entende o que é a Corte da Escuridão até agora? Cel era o queridinho da rainha, seu único herdeiro durante séculos. Quando te nomeou co-herdeira ele perdeu seus favores. O primeiro de vocês que tiver descendência será o seguinte governante da corte, mas o que acontece se morrem os dois? O que acontece se você é assassinada pela gente do Cel e a rainha se vê obrigada a executá-lo por sua perfídia? Ela se encontrará de repente sem herdeiro.
? A rainha é imortal – disse Rhys. ? Aceitou abdicar só pra Merry ou o Cel.
? E se alguém pode realizar um complô para acabar com as vidas do príncipe Cel e da princesa Meredith, acha, de verdade, que se deterá e não matará também a rainha?
Ficamos todos olhando para ele. Foi Nicca quem falou, com uma voz suave.
? Ninguém se arriscaria a enfrentar a ira da rainha.
? Se arriscariam se soubessem que não seriam pegos – contestou Doyle.
? E quem seria tão arrogante para pensar isso? – perguntou Rhys. Doyle começou a rir, com um som profundo que arrepiou a todos nós.
? Quem seria tão arrogante? Rhys, você é um nobre da corte dos sidhe. Seria melhor perguntar quem não seria o bastante arrogante?
? Pode dizer o que quiser, Doyle – disse Nicca, ? mas a maioria dos nobres temem a rainha, têm pavor dela, a temem muito mais do que temem ao Cel. Você tem sido o campeão favorito dela. Não sabe o que é encontrasse a sua mercê.
? Eu sei – respondi, e todos se viraram pra mim. ? Estou de acordo com Nicca. Não conheço a ninguém mais que o Cel que seja capaz de se arriscar a provocar a raiva da rainha.
? Somos imortais, princesa. Gozamos do luxo de dispor de todo o tempo do mundo. Quem sabe que pérfida serpente está a séculos esperando que a rainha se debilite. Se se ver forçada a matar seu único filho, se debitará.
? Eu não sou imortal, Doyle, assim que desconheço esse tipo de paciência. A única coisa que sabemos com segurança é que algo tentou transpassar as proteções esta noite, e que e nesse momento tem uma queimadura na mão ou na garra, ou o que seja, alguma marca. Pode compará-las com as impressões deixadas.
? Eu já vi proteções levantadas para danificar qualquer coisa que tente atravessá-las, ou até marcar ao intruso com uma cicatriz ou uma queimadura, mas nunca tinha visto nada que deixasse suas impressões assim – disse Rhys.
? Muito inteligente – comentou Doyle, coisa que era um grande elogio da sua parte.
? Obrigada. – franzi o cenho e o olhei. ? Se nunca viu antes nada fazer algo assim com uma proteção, como sabia o que estava vendo através das cortinas?
? Rhys disse que nunca tinha visto, eu não.
? E onde mais viu?
? Sou um assassino, um caçador, princesa. A melhor forma de encontrar alguém é seguir seu rastro.
? A marca de sua mão coincidira com esta, mas não deixará marcas pelo caminho enquanto se move.
Doyle deu de ombros levemente.
? É uma pena, teria sido muito útil.
? Pode conseguir que uma criatura do reino dos duendes deixe um rastro mágico? – perguntei.
? Sim.
? Mas as veriam com sua própria magia e arruinariam o encanto. Se encolheu de ombros.
? O mundo nunca foi demasiado grande para esconder uma presa que eu tenha perseguido.
? Você é sempre tão... perfeito. – eu disse. Olhou por trás de mim pela janela.
? Não, minha princesa. Temo não ser perfeito, e nossos inimigos, onde quiser que estejam, agora sabem disso.
A brisa havia se convertido em vento e fazia ondear as cortinas brancas. Podia ver a pequena marca da garra congelada na magia brilhante. Me encontrava a meio continente da fortaleza dos duendes mais perto. Tinha pensado que Los Angeles estava o bastante longe para nos manter a salvo, mas suponho que se alguém realmente quiser te ver morto, será capaz de pegar um avião ou qualquer coisa com asas.
Depois de anos de exílio, finalmente voltava a desfrutar de uma pequena porção do lar comigo. Minha casa, realmente, não tinha mudado nada. Sempre havia sido adorável, erótica, e muito, muito perigosa.
Capítulo 2
As janelas do meu escritório mostravam um céu quase perfeito, como se alguém tivesse pego uma pétala azul de cornflower (flor azul) e o tivesse estirado e preenchido o ar que se encontrava sobre nossas cabeças. Um dos céus mais perfeitos que já tinha visto sobre Los Angeles. Os edifícios do centro da cidade resplandeciam debaixo da luz do sol. Era um desses escassos dias em que nos permitimos acreditar que Los Angeles vive em um eterno verão onde sempre o sol brilha, a água é sempre azul e cálida, e todo mundo é bonito e sorridente. A verdade é que nem todo mundo é bonito, algumas pessoas têm um mau humor terrível (Los Angeles continua contando com uma das mais altas taxas de homicídios do país, o que não é precisamente para se estar de bom humor se parar pra pensar), o oceano é mais anil que azul, e a água sempre está fria. Os únicos que entram no mês de dezembro nas águas do sul da Califórnia sem uma roupa de neopreno são os turistas. A verdade é as vezes chove e a neblina é pior que qualquer nuvem escura que já tenha visto. Na verdade, esse era o dia mais bonito, o mais com cara de verão que tinha visto em mais de três anos. De todas as formas tinha que ser mais frequente para que o mito sobrevivesse. Ou talvez as pessoas só precisavam de um lugar mágico em que acreditar, e o sul da Califórnia parecia ser para alguns. Era mais fácil de chegar e menos perigoso que a terra dos duendes, eu imagino.
Odiava ter que desperdiçar um dia tão bonito trancada entre quatro paredes. Tipo, eu sou uma princesa, não dizem que as princesas não têm que trabalhar? Pois parece que não. Mas eu sou uma princesa dos duendes, e isso não significa que com apenas um desejo um montão de ouro apareceria por arte de magia ante mim? Quem dera. O título, igual a outros muitos títulos reais, tinha muito pouca relação com o dinheiro, terras ou poder. Se chegasse a ser rainha, a coisa mudaria mas, até então, encontrava-me sozinha. Bom, não exatamente.
Doyle estava sentado na cadeira junto às janelas, quase detrás de mim, enquanto eu me achava frente a minha mesa de trabalho. Estava vestido igual à noite anterior, mas tinha colocado além disso uma jaqueta de couro negra sobre a camiseta e um par de óculos de sol negros também. A brilhante luz do sol produzia brilhos em todos os aros de prata e fazia que os adornos de diamantes dos lóbulos de suas orelhas dançassem e enviassem pequenos arco íris a minha mesa. A maioria dos guarda-costas se preocupariam mais com porta que com as janelas. Afinal de contas, encontrávamos- nos no piso vinte e três. Mas era possível que as coisas das que me protegia o Doyle pudessem voar igual caminhavam. A criatura que tinha deixado seu pequeno rastro em minha janela tinha chegado até ela subindo como uma aranha ou voando.
Continuava sentada à mesa, e sentia a cálida carícia da luz do sol sobre as costas;
um arco íris do diamante do Doyle se refletia sobre minha mão, destacando o verde do esmalte de unhas. O esmalte combinava com minha jaqueta e a minissaia que se escondia sob a mesa. A luz do sol e o tecido verde esmeralda realçavam o vermelho do meu cabelo, de maneira que parecia repleto de rubis. A cor também enfatizava o verde e dourado de minhas íris tricolores, e tinha escolhido uma sombra de olhos que acentuava esses verde e dourado. Estava com os lábios pintados de vermelho. Todo meu corpo resplandecia de luz e cor. Uma das coisas boas de não ter que me fazer passar por humana era que não tinha que esconder o cabelo, as pupilas e a luminosa pele. Estava tão cansada que meus olhos ardiam, e seguíamos sem ter nenhuma pista sobre o que ou quem tinha chegado até minha janela na noite anterior. Tinha me vestido para ir ao escritório, só que com um pouco mais de maquiagem e um pouco mais de brilho. Se ia morrer, ao menos queria estar bonita. Também tinha acrescentado a meu traje uma faca de dez centímetros. Levava-a presa à parte superior da meia, de forma que o frio metal tocava minha pele nua. O simples contato com o metal dificultaria que qualquer duende realizasse qualquer tipo de magia contra mim. Depois do que tinha acontecido na noite anterior, ao Doyle tinha parecido uma boa idéia, e eu não pensava em discutir com ele. Tinha as pernas cruzadas educadamente, não devido ao cliente que estava sentado frente a mim, mas sim porque havia um homem debaixo da mesa, escondido no oco que formavam os três painéis que a rodeavam. Bom, não era um homem, era um trasgo. Sua pele era branca como a luz da lua, tão pálida como a minha ou a do Rhys ou a do Frost. O cabelo negro, curto, grosso e ligeiramente encaracolado era perfeitamente escuro como o do Doyle. Media só um metro e vinte, era como um boneco perfeito, exceto pela tira de escamas iridescentes que lhe percorria as costas, e os enormes olhos em forma de amêndoa de um azul tão limpo como o céu desse dia, mas com pupilas alargadas como as de uma serpente. No interior de sua perfeita boca de cupido possuía umas presas retrateis e uma larga língua bífida que o fazia ciciar a não ser que se concentrasse. Kitto não estava bem na grande cidade. Parecia se sentir melhor quando me tocava, quando se enredava entre meus pés, sentava-se em meu colo ou se enrolava a meu redor enquanto dormia. A noite anterior tinha desaparecido do quarto porque Rhys não lhe tinha permitido ficar. Os trasgos lhe tinham arrebatado o olho fazia uns milhares de anos e ele nunca o tinha perdoado. Tolerava a presença do Kitto fora do quarto, mas isso era tudo.
Rhys se encontrava de pé na esquina mais longínqua, perto da porta, no lugar em que Doyle lhe tinha ordenado fazer guarda. Quase toda a roupa que vestia ficava oculta sob uma cara gabardina branca como a que estava acostumado a usar Humphrey Remam, mas esta era de seda e a usava mais para luzir que para proteger- se das inclemências do tempo. O Rhys adorava o fato de que fôssemos detetives particulares, e estava acostumado a usar essa gabardina quando ia para o trabalho, além de cobrir cabeça com um chapéu de sua crescente coleção de chapéus de feltro de aba larga. Colocava-se também o emplastro para o olho que levava de dia. Este era branco para combinar com a roupa e o cabelo, e tinha umas pequenas pérolas bordadas sobre ele.
Kitto deslizou sua mão sobre a meia que cobria minhas pernas e me acariciou o tornozelo. Não estava tentando ultrapassar os limites; simplesmente, necessitava a reconfortante sensação de me tocar. O primeiro cliente do dia permanecia sentado ante mim, ante nós. Jeffery Maison media um pouco menos de um metro e oitenta, possuía uns ombros largos e uma cintura estreita, usava um traje de marca e umas unhas perfeitas graças à manicure, que combinavam com seu cabelo moreno perfeitamente penteado. Seu sorriso era do branco perfeito que só se consegue com um bom dinheiro gasto na consulta do dentista. Era atraente, mas de uma forma quase imperceptível. Se tinha feito cirurgia, tinha desperdiçado o dinheiro, porque possuía essa tipo de rosto que a gente considera atraente, mas que nunca se lembra. Dois minutos depois que saísse pela porta, já teria dificuldades para recordar qualquer um de seus traços. Se tivesse usado roupa menos cara, haveria dito que era um aspirante a ator, mas os aspirantes não podem pagar por trajes de desenho feitos à medida como os que ele usava.
Permaneceu todo o momento com um sorriso inalterável, mas seus olhos não deixavam de mover-se e olhar detrás de mim, e não sorriam. Mostravam preocupação. Não deixava de observar ao Doyle e parecia que lhe custava um grande esforço não voltar-se para olhar ao Rhys. Jeffery Maison não gostava nada da presença dos dois guardas na sala. Não era só a sensação que têm a maioria dos homens quando se aproximam de mim, essa sensação de que se tiverem que brigar, não teriam nada que fazer contra eles. Não, o senhor Maison falava de privacidade, afinal de contas eu era uma detetive particular, não pública. Estava tão embaraçado que estive a ponto de dizer ao Kitto que saísse de debaixo da mesa e, com um salto, gritasse: “Boo”. Era tentador, mas não o fiz. Não teria sido nada profissional. Mas estive me entretendo com a idéia de fazer enquanto tentava que Jeffery Maison deixasse de queixar-se sobre os guardas e começasse a me dizer algo realmente relacionado com o trabalho.
Só quando Doyle disse com sua profunda voz que era uma entrevista com todos nós ou com nenhum, Maison se acalmou um pouco. Muito. Sentou-se e sorriu, mas não abriu a boca.
Logo, de repente, falou:
— Nunca tinha conhecido a ninguém cuja cor de cabelo verdadeiro fora vermelho sidhe. É como se seu cabelo estivesse formado por uma cascata de rubis.
Sorri, afirmei com a cabeça e tentei ir direto ao assunto.
— Obrigada, senhor Maison, mas o que lhe traz para a Agência de Detetives Grei? Abriu a boca perfeita e tentou de novo:
— Tinha instruções de falar com você em particular, senhorita NicEssus.
— Prefiro que me chame senhorita Gentry, NicEssus significa filha do Essus. É mais um título que um nome.
Sorria com nervosismo, e os olhos mostravam modéstia, caramba, pela Deusa.
Parecia um olhar que tinha praticado ante o espelho.
— Sinto muito. Não estou acostumado a tratar com princesas duendes. — Me deu de presente o melhor de seus sorrisos, aquele que deixava seus olhos de um limpo bom humor, e alguma coisa mais profundo, algo que podia perseguir ou ignorar. Esse olhar bastava. Estava bastante segura de como Jeffery pagava os trajes de marca que usava.
— As princesas não abundam muito hoje em dia — disse sorrindo e tentando me mostrar agradável. Mas a verdade é que não tinha dormido muito a noite anterior e estava cansada. Se conseguisse me desfazer do Jeffery, possivelmente poderia fazer um descanso para tomar um café.
— O verde de sua jaqueta destaca o verde e dourado de seus olhos. Nunca tinha visto alguém com as íris de três cores — comentou, e seu sorriso se fez mais cálido.
Rhys riu da esquina onde se encontrava e nem sequer se incomodou em procurar que parecesse que tossia. Rhys era um perito em sobreviver na corte, ao igual a mim.
— Eu também tenho as íris de três cores, mas a mim não disse quão bonito sou. — Rhys tinha razão; tinha chegado o momento de deixar os elogios de lado.
— Não sabia que esperava que o dissesse. — Parecia confundido, e por fim mostrava um olhar genuíno, espontâneo.
Descruzei as pernas, inclinei-me para frente e apoiei as mãos sobre a mesa. A mão do Kitto se deslizou por minha panturrilha, mas se deteve ao chegar ao joelho.
Tínhamos tido uma conversa sobre qual era o limite se se escondia debaixo da mesa, e o limite eram os joelhos. Se traspassasse essa linha, iria pra casa.
— Senhor Maison, estamos atrasados e tivemos que trocar um montão de entrevistas para poder atendê-lo. Fomos educados e profissionais, e os elogios a minha beleza não são nem educados nem profissionais.
Olhou-me desconcertado, mas seus olhos mostravam provavelmente a maior sinceridade desde que tinha transpassado a porta.
— Acreditava que se considerava de boa educação oferecer elogios sobre a beleza de uma fada. Haviam me dito que era uma ofensa muito grave fazer caso omisso dela quando está muito claro que tenta mostrar-se atraente.
Fiquei lhe olhando. Por fim havia dito algo realmente interessante.
— A maioria das pessoas não sabem muito sobre a cultura dos duendes, senhor Maison. Por que sabe você estas coisas?
— Minha chefa queria estar segura de que não iria ofendê-la. Deveria ter apresentado meus elogios aos homens também? Não me disse que tinha que fazer isso.
Chefa. Assim que seu chefe era uma mulher. Era a única informação que tinha obtido dele durante todo o momento que tinha sentado frente a mim.
— Quem é ela? — perguntei-lhe. Olhou ao Rhys, a mim, por um momento ao Doyle, e logo voltou a olhar pra mim.
— Tenho ordens expressas de dizer única e exclusivamente a você, senhorita Gentry. Não sei... não sei o que fazer.
Bom, ao menos era sincero. Senti-me um pouco mal por ele; estava claro que Jeffery não era nada bom em encontrar soluções rápidas. E isso era algo do que sentir lástima.
— Por que não liga para sua Chefa? — sugeriu Doyle. Jeffery deu um salto ao ouvir essa voz profunda. Eu não me assustei, estremeci-me, sua voz era profunda, trêmula, um som que fazia vibrar todo o meu corpo. Deixei escapar um suspiro, quando Doyle acrescentou; — lhe diga o que aconteceu e possivelmente ela encontre uma solução.
Rhys voltou a rir. Doyle o olhou com dureza, e o outro se calou, embora teve que tampar a boca com a mão e tossir. Não me importou. Tinha a sensação de que se nos ríssemos do Jeffery, ficaria conosco todo o maldito dia.
Dei a volta ao telefone da mesa para colocá-lo de frente para ele. Disquei o código para pedir linha externa e lhe entreguei o fone.
— Liga para a sua chefa, Jeffery. Todos queremos seguir com nossas obrigações, não é?
— Chamei-lhe por seu primeiro nome deliberadamente. Algumas pessoas respondem quando lhes chama senhor ou senhora, mas outras necessitam que lhes chamem diretamente por seu nome para reagir.
Pegou o fone e discou o número.
— Olá Marie, sim, preciso falar com ela. — Depois de uns segundos em silêncio se incorporou um pouco na cadeira e disse: — Agora mesmo me encontro sentado frente a ela. Há dois guarda-costas que se negam a abandonar a sala. Posso falar diante deles ou vou embora?
Ficamos todos esperando enquanto ele a escutava e ia dizendo: «Entendo, entendo, sim, não»; finalmente, pendurou o telefone. Recostou-se na cadeira com as mãos entrelaçadas sobre o colo e com um ligeiro olhar de preocupação em sua bonita cara.
— Minha chefa me disse que posso lhe dizer o que necessita mas não seu nome, ao menos não ainda.
Levantei as sobrancelhas e fiz cara de compreensão.
— Adiante, nos conte.
Olhou de novo com nervosismo ao Doyle, logo respirou profundamente.
— Minha chefa se encontra em uma situação um tanto delicada. Quer falar com você, mas diz que seus... — deteve-se para procurar a palavra adequada. Parecia que ia levar um bom momento, assim que lhe ajudei.
— Meus guardas.
Sorriu, obviamente aliviado.
— Sim, sim, seus guardas acabariam por sabê-lo antes ou depois, e suponho que será antes. — Parecia estar muito orgulhoso por ter articulado esta pequena frase. Não, definitivamente, pensar não era o forte do Jeffery.
— Por que simplesmente não vem ela ao escritório e fala conosco?
O sorriso que enchia sua cara desapareceu, e voltou a aparecer a expressão de perplexidade. Confundir ao Jeffery atrasava as coisas e eu queria acabar com o assunto quanto antes. O problema estava em que era realmente fácil lhe confundir, e não sabia como evitar isso.
— Minha chefa tem medo da publicidade que a rodeia, senhorita Gentry.
Não precisava lhe perguntar a que se referia. Nesse mesmo momento, havia um grupo de jornalistas, de imprensa e audiovisuais, apostados frente ao edifício de meu escritório. Mantínhamos as cortinas fechadas por medo às teleobjetivas dos fotógrafos.
Como iriam resistir os meios de comunicação a real filha pródiga que voltava para casa depois de ter sido dada por morta? Só isto já apresentava um certo interesse, ao que terei que acrescentar uma enorme dose de romance, para que os meios alguma vez tivessem suficiente de mim, ou deveria dizer de nós? A história pública era que eu tinha saído de meu esconderijo para encontrar um marido entre a corte real. A maneira tradicional para as pertencentes a corte real de encontrar um cônjuge era deitar-se com os candidatos. Quando a princesa ficava grávida, casava-se. Se não ficava grávida, não se casava. As fadas não têm muitos filhos; as da realeza ainda menos, de modo que um casamento, inclusive se se estava apaixonado, no que não houvesse filhos, não era o suficientemente bom. Se não procriar, não pode te casar.
Fazia mais de mil anos que Andais governava a Corte da Escuridão. Meu pai disse uma vez que para ela ser rainha significava mais que tudo no mundo. Mesmo assim, tinha prometido abdicar se Cel ou eu lhe déssemos um herdeiro — Como já disse, as crianças são muito importantes para os sidhe.
Esta era a história pública. Havia muito escondido atrás dela, como o fato de que Cel tinha tentado me matar e agora lhe castigavam por isso. Havia muitas coisas que os meios de comunicação não sabiam e, como a rainha queria que assim fosse, não fazíamos nada por mudar isso.
Minha tia havia me dito que queria um herdeiro de seu próprio sangue, mesmo que esse sangue estivesse mesclado, como o meu. Uma vez, quando era menina, tentou me afogar porque considerava que não era o suficiente mágica e, portanto, para ela não era uma sidhe, embora tampouco era realmente humana. Era bom manter contente a meu estuário; se estava contente, morria menos gente.
— Posso entender que sua chefa não queira ver-se mesclada no circo da mídia daí de fora — disse.
Jeffery voltou a me dar de presente seu brilhante sorriso; mas seus olhos mostravam alívio, não luxúria.
— Então, estará de acordo em reunir-se com minha chefa em algum lugar mais privado.
— A princesa não se reunirá a sós com sua chefa em nenhum lugar — afirmou Doyle. Jeffery sacudiu a cabeça.
— Não, compreendo. Minha chefa só quer evitar os meios de comunicação.
— A não ser que usemos feitiços ilegais contra os meios — sugeri, — não sei como podemos nos desfazer deles.
Jeffery voltou a franzir o cenho. Eu suspirei. A única coisa que queria nesse momento era que se fosse. Certamente, o seguinte cliente do dia seria menos confuso, se a Deusa quisesse. Meu chefe Jeremy Grei cobrava antecipações sem direito a devolução. Tínhamos mais trabalho de que podíamos aceitar. Possivelmente poderia dizer ao Jeffrey Maison que fosse pra casa.
— Não tenho permissão de mencionar o nome de minha chefa em voz alta. Disse-me que esta frase teria algum significado para você.
Encolhi-me de ombros.
— Sinto muito, senhor Maison, mas não me diz nada. Franziu ainda mais o cenho.
— Ela estava muito segura de que sim. Sacudi a cabeça.
— Sinto muito, senhor Maison — repeti, e me levantei.
A mão do Kitto se deslizou para baixo pela minha perna de maneira que pudesse seguir totalmente escondido no pequeno espaçou que havia debaixo da mesa. Não se desfazia com a luz, ao contrário do que contam as histórias, mas padecia de agorafobia.
— Por favor — suplicou Jeffery. — Por favor. Estou seguro de que é porque não o estou dizendo de maneira correta.
Cruzei os braços sobre o estômago, mas não voltei a me sentar.
— Sinto muito, senhor Maison, mas todos tivemos uma manhã longa, muito longa para ficar jogando com perguntinhas. Nos diga algo concreto sobre o problema de sua chefa ou vá a outra agência de detetives particulares.
Adiantou a mão até quase tocar a mesa, logo a deixou cair sobre suas calças de marca.
— Minha chefa deseja voltar a ver gente de seu tipo de novo. — Ficou me olhando como se estivesse me pedindo que lhe entendesse. Franzi o cenho.
— O que quer dizer com gente de seu tipo?
Também franziu o cenho, notava-se que não estava em seu lugar, mas seguia tentando-o com persistência.
— Mim chefa não é humana, senhorita Gentry, ela é... muito consciente do que são capazes os duendes da corte suprema. — Sua voz soava mais acalmada, mas com um toque de súplica, como se tivesse me dado todas as pistas que podia e esperava que agora eu o adivinhasse.
Por sorte, ou por azar, tinha-o adivinhado. Havia outras fadas em Los Angeles mas além de mim e de meus guardas, só havia outra que pertencesse a corte real; Maeve Reed, a deusa de ouro de Hollywood. Fazia cinquenta anos já que era a deusa de ouro de Hollywood e, dado que é imortal e nunca envelhece, possivelmente seria a deusa de ouro de Hollywood durante os próximos cem anos.
Fazia muito tempo tinha sido a deusa Conchenn, até que o rei Taranis, o rei da Luz e da Ilusão, exilou-a da Corte Luminosa, exilou-a da terra dos duendes, e proibiu a todos seus habitantes que lhe dirigissem a palavra. Teriam que marginá-la completamente, teriam que tratá-la como se estivesse morta. O rei Taranis era meu tio avô e, tecnicamente, eu era quinta na linha de sucessão a seu trono. Em realidade, não era muito bem-vinda entre a gente luminosa. Fazia tempo que o tinham deixado bem claro, quando eu era muito pequena: meu pedigree era um pouco menos do desejado e nenhuma quantidade de sangue real luminoso podia compensar minha metade escura.
Amém. Agora dispunha de uma corte a que podia chamar de lar. Já não os necessitava. Houve um tempo, quando era mais jovem, no que sim tinha significado algo para mim, mas me tinha visto obrigada a me desfazer dessa dor fazia anos. Minha mãe fazia parte da Corte Luminosa, e tinha me abandonado aos escuros para poder perseguir suas ambições políticas. Não tinha mãe.
Não quero que me interpretem mal. À rainha Andais tampouco gostava de mim.
Inclusive agora, seguia sem estar completamente segura de por que tinha me escolhido como herdeira. Possivelmente era porque estava ficando sem parentes de sangue. Isto costuma acontecer se morre uma quantidade suficiente deles.
Abri a boca para pronunciar o nome do Maeve Reed, mas me detive. Minha tia era a rainha do Ar e da Escuridão qualquer coisa que se dissesse na escuridão viajaria até ela. Parecia-me que o rei Taranis não dispunha de um poder semelhante, mas não estava cem por cento. Era melhor andar com cuidado. À rainha não importava Maeve Reed, mas sim lhe importava ter que negociar, ou ter que enfrentar o rei Taranis. Ninguém sabia por que tinham exilado a Maeve, mas Taranis tinha tomado como algo pessoal. Possivelmente tinha algum interesse para ele saber que Maeve tinha violado as regras. Tinha entrado em contato com um membro das cortes. Existe uma regra não escrita que diz que se uma das cortes expulsa a alguém da terra dos duendes, a outra corte deverá respeitar o castigo. Teria que ter enviado ao Jeffery Maison de volta para Maeve Reed no momento. Teria que haver dito que não. Mas não o fiz. Uma vez, quando era jovem, perguntei a alguém da corte sobre o destino do Conchenn. Taranis o ouviu. Deu-me uma surra que quase me mata; pegou-me como se fosse um cão que cruzou seu caminho. E toda sua bonita e brilhante corte ficou olhando, e ninguém, nem sequer minha mãe, tentou me ajudar. Concordei em me reunir com Maeve Reed um pouco mais tarde esse dia porque, pela primeira vez, possuía suficiente poder para desafiar ao Taranis. Se agora me fizesse mal, significaria uma guerra entre ambas as cortes, Taranis podia ser um egocêntrico, mas nem sequer todo seu orgulho valia mais que evitar uma guerra.
É obvio, conhecendo minha tia, possivelmente no princípio não fosse uma guerra. Encontrava-me sob o amparo da rainha, o que significava que qualquer um que me fizesse mal deveria responder pessoalmente ante ela. Taranis possivelmente preferiria uma guerra a ser o objetivo da vingança pessoal da rainha. Afinal de contas, na guerra ia ser o rei, e os reis raramente têm que situar-se na primeira linha de fogo. Se fizesse que a rainha Andais se zangasse o suficiente, Taranis seria ele mesmo a linha de fogo. Eu tentava me manter com vida, e não dizem em vão que saber é poder.
Capítulo 3
Quando a porta se fechou detrás de Jeffery Maison, esperava que os dois guardas ficassem a discutir comigo. Acertei pela metade.
— Nada mais longe de minha intenção questionar as decisões da princesa — disse Rhys.
— Mas o que aconteceria se o rei apresenta alguma objeção a sua violação do exílio de Maeve Reed?
Estremeci-me ao ouvi-lo mencionar o nome em voz alta.
— Possui o rei a capacidade de ouvir tudo o que se diz à luz do dia, ao igual à rainha ouve tudo o que se diz de noite?
Rhys me olhou desconcertado.
— Não... não sei.
— Então, não lhe ajudemos a averiguar o que estamos fazendo mencionando o nome dela em voz alta.
— Nunca ouvi que Taranis dispunha de tal poder — disse Doyle. Girei a cadeira para me situar de frente a ele.
— Bom, esperemos que não, já que acaba de pronunciar seu nome em voz alta.
— Levo milênios conspirando contra o rei da Luz e da Ilusão, princesa, e uma grande parte de dita conspiração se realizou à luz do dia. Muitos de nossos aliados humanos de todos os séculos se negaram categoricamente a reunir-se com a Escuridão de noite. Acredito que pensavam que reunir-se de dia era um sinal de que confiávamos neles, e de que eles podiam confiar em nós. Parece que Taranis nunca soube o que fazíamos, nem de dia nem de noite — disse Doyle com a cabeça inclinada, e enviando um grande número de arco íris que dançavam por toda a sala procedentes dos diamantes de suas orelhas. — Acredito que não possui o dom de nossa rainha. Andais pode escutar tudo o que se diz na escuridão, mas eu diria que o rei é tão surdo como qualquer humano.
A qualquer outro teria perguntado se estava seguro disso, mas Doyle nunca falava se não estava seguro. Se não sabia algo, dizia-o. Não possuía nenhum tipo de falso orgulho.
— Assim que o rei não pode nos ouvir falar com milhares de quilômetros de distância — disse Rhys. — Perfeito, mas diga a Merry que é uma má idéia.
— O que é uma má idéia? — perguntou Doyle.
— Ajudar Maeve... — Rhys ficou me olhando e logo terminou a frase — a atriz. Doyie franziu o cenho.
— Não recordo a ninguém com este nome que tenha sido exilado de alguma das cortes.
Girei de novo a cadeira e fiquei olhando-o. Sua cara era escura e ilegível por causa da brilhante luz do sol. Os óculos escondiam boa parte de sua expressão, mas teria apostado, com óculos ou sem eles, a que apresentava uma expressão de desconcerto.
Ouvi a capa de seda do Rhys enquanto ele se aproximava para nós. Olhei-lhe. Olhou-me e levantou as sobrancelhas. Ambos dirigimos a vista ao Doyie.
— Não sabe quem é, verdade? — perguntei.
— O nome que mencionastes, Maeve «não sei o quê», deveria reconhecê-lo?
— É a rainha de Hollywood há mais de cinquenta anos — lhe explicou Rhys. Doyle olhou aos dois.
— A gente dessa tal Hollywood se dirigiu à rainha e a corte durante anos para fazer filmes, ou para lhes permitir filmar filmes sobre suas vidas.
— Viu realmente algum filme em alguma ocasião? — perguntei-lhe.
— Vi filmes em seu apartamento — respondeu. Olhei ao Rhys.
— Temos que levar a todos pra ver um filme. – Rhys se inclinou e meio se sentou sobre a mesa.
— Poderíamos ir uma noite que tenhamos livre — propôs.
Kitto puxou a barra da minha minissaia, e eu afastei a cadeira para poder ver seu rosto. Um raio de sol lhe alcançou. Durante um segundo, a luz tocou seus olhos com forma de amêndoa, e esclareceu essa azul safira como se fosse água e pudesse ver-se através deles, até divisar um lugar situado nas profundidades azuis no que dançava uma luz branca. Depois, fechou os olhos, protegendo-se da intensidade luminosidade. Escondeu a cara em minhas meias, e se abraçou a minha panturrilha com uma de suas mãozinhas. Falou sem olhar pra acima.
— Eu não gosssto dos filmes.
Não podia evitar que os “esses” escorregassem, o que significava que estava preocupado. Kitto tentava com todas suas forças falar com normalidade, o que não é nada fácil se tiver uma língua bífida.
Toquei-lhe a cabeça; seus cachos negros eram tão sedosos, sedosos como o cabelo de um sidhe, não ásperos como o cabelo de um trasgo.
— O cinema é escuro — lhe disse, enquanto lhe acariciava o cabelo. — Poderia se aninhar a meus pés e não teria que olhar a tela em nenhum momento.
Esfregou a cabeça contra minhas meias como se fosse um gato gigante.
— Sério? — perguntou.
— Sério — respondi.
— Você gostará — disse Rhys. — É um lugar escuro e às vezes está tão sujo que lhe pegam os pés quando caminha.
— Me manchará a roupa — protestou Kitto.
— Nunca teria pensado que a um trasgo preocupasse manter-se limpo. A terra dos trasgos está repleta de ossos e carne podre.
— Ele só é metade trasgo, Rhys — afirmei.
— Ah, sim. Seu pai violou a uma de nossas mulheres. — Estava olhando ao Kitto, embora possivelmente a única coisa que podia ver era uma pálida mão ou um braço.
— Sua mãe era da luz, não da escuridão — lhe disse.
— E o que importa isso? Seu pai violou a uma mulher sidhe. — Sua voz delatava um aborrecimento crescente.
— E quantos de nossos guerreiros sidhe forçaram a mulheres, inclusive as trasgas, durante as guerras? — perguntou Doyle.
Olhei ao Doyie, mas não pude ver nada através dos óculos escuros. Olhei rapidamente ao Rhys e observei um indício de rubor em suas bochechas.
— Nunca encostei em uma mulher sem seu consentimento prévio — disse ao Doyle.
— É obvio que não, você é um membro da Guarda da Rainha, de seus Corvos, e se qualquer um de seus Corvos toca a uma mulher que não seja a própria rainha significará uma morte por tortura. Mas o que me diz de quantos guerreiros não são membros dos guardas pessoais?
Rhys desviou o olhar, e o ligeiro rubor se transformou em um vermelho profundo e brilhante.
— Sim, olhe para outro lado, tal como tivemos que fazer todos nós ao longo dos séculos — disse Doyle.
Rhyg se voltou lentamente, como se cada um de seus músculos tivesse ficado duro pela raiva. Na noite anterior tinha segurado uma pistola entre suas mãos e não tinha conseguido dar nada de medo. Agora se encontrava sentado no bordo da mesa e sim dava medo.
Não fez nada; inclusive tinha as mãos apoiadas sobre os joelhos, mas podia notar a tensão em suas costas, na posição dos ombros, podia sentir a maneira em que se controlava, como se fosse saltar de um momento a outro e destroçar a sala e salpicar o resplandecente vidro de sangue e coisas mais densas. Rhys não tinha feito nada, nada e, entretanto, a violência se apalpava no ambiente, igual a se nota um beijo sobre a pele, algo que te faz estremecer antes de que aconteça, inclusive embora não passe nada. Ainda não, ainda não.
Queria olhar ao Doyle, que estava detrás de mim, mas não era capaz de dar as costas ao Rhys. Tinha a impressão de que a única coisa que lhe impedia de saltar era meu olhar. Sabia que não era certo, mas sentia que se desviasse os olhos para outro lado, embora fosse só por um segundo, aconteceria algo muito, muito mau.
Kitto se encontrava tão pego a minhas pernas que podia sentir o leve tremor que lhe percorria todo o corpo. Ainda tinha a mão sobre seus cachos, mas acredito que já não lhe parecia algo reconfortante, porque eu podia sentir a tensão de meu braço e da mão.
A cara do Rhys se voltou leitosa como se algo branco e luminoso se movesse por debaixo da pele, como suaves e brilhantes nuvens deslizando-se não diante de sua cara, mas sim por debaixo da pele. O brilhante azul como as flores do milho de seu olho cintilava como um néon; o azul céu que o rodeava combinava com o ensolarado céu do exterior; e o último círculo da cor do céu de inverno resplandecia como um rogo azulado. O olho só brilhava. As cores não formavam redemoinhos, e sabia que odiava fazer isso. Seu cabelo seguia formado só por cachos brancos; o brilho não os tinha alcançado. Tinha visto o Rhys quando mostrava todo seu poder, e esta não era uma dessas vezes, embora estava perto de ser, muito perto para o luminoso escritório e o homem situado a minhas costas.
Também queria me girar para ver a cara que punha Doyle, embora não o fiz. De maneira nenhuma queria presenciar um duelo nesse momento e nesse lugar, sobre tudo por algo tão estúpido.
— Rhys — disse com suavidade. Não me olhou. Seu olho brilhante permanecia fixo sobre o homem situado a minhas costas, como se não existisse nada mais.
— Rhys! — repeti de novo, esta vez em voz alta.
Piscou e me olhou. Ao sentir todo o peso de seu enorme olhar dirigir-se a mim, vi-me obrigada a jogar um pouco a cadeira para trás. No momento em que fui consciente do que tinha feito, detive-me. Não podia desfazer o movimento, mas podia atuar como se fosse deliberado. Levantei-me, e esse foi meu grande erro. Ao me mover provoquei que Kitto saísse de debaixo da mesa para seguir em contato com minhas pernas. Assim que o pequeno trasgo apareceu, o furioso olhar do Rhys se posou sobre essa pálida figura e se fez mais duro.
forças a minhas pernas, tão forte que quase me fez perder o equilíbrio. Tive que fazer um esforço por não cair. Apoiei uma mão sobre a mesa, e Rhys se equilibrou sobre o trasgo pegando um salto por cima dela. Senti Doyle de pé detrás de mim, mas não havia tempo. Tinha visto o Rhys matar com apenas um golpe. Agarrei-lhe pela frente e por detrás da gabardina e utilizei seu impulso para lançá-lo por cima de mim contra a parede, junto às pernas do Doyle. A parede tremeu por causa do impacto, e dispus de um segundo para me perguntar o que teria acontecido se tivesse se chocado contra a janela em lugar de contra a parede. Vi pela extremidade do olho que Doyle tinha tirado sua pistola, mas eu seguia em movimento, deixava-me levar pelo impulso.
Tirei a faca que levava na meia e; assim que Rhys ficou a quatro patas e sacudiu a cabeça, pressionei-lhe ponta do fio contra seu pescoço. Teria sido melhor se lhe tivesse cravado, ou se tivesse feito algo para me assegurar de que não se giraria e me agarraria nas pernas para me lançar contra o chão, mas era o melhor que pude fazer com o pouco tempo de que dispunha. Sabia com que rapidez se recuperam os guardas, assim só dispunha de uns segundos para agir.
Rhys ficou gelado, com a cabeça encurvada e a respiração entrecortada. Podia sentir a linha de seu corpo tensa contra minhas pernas. Eu estava muito perto, muito, mas mantinha a folha da faca firme contra seu pescoço. Pude sentir como a pele cedia um pouco e soube que lhe tinha feito sangrar. Não era minha intenção; simplesmente tive que atuar muito depressa para tomar cuidado. Mas ele não sabia que tinha sido um acidente, e não há nada melhor para convencer às pessoas de que vai a sério que seu próprio sangue.
— Pensei que com o tempo foste ser mais tolerante com o Kitto, mas parece ser cada vez pior. — Minha voz era suave, quase um sussurro, cada palavra pronunciada com muito cuidado, como se não confiasse no que podia fazer se gritasse, na realidade quase não podia falar devido às palpitações que sentia na garganta.
Voltou a cabeça e eu mantive a faca sobre seu pescoço, cravando ainda mais a sua pele — Se tinha pensado que iria relaxar um pouco, equivocava-se. Deixou de mover- se.
— Ver se me entende, Rhys. Kitto é meu, igual a você é meu. Não vou permitir que seus prejuízos lhe ponham em perigo.
Deixou escapar um fio de voz, como sim por fim fossa consciente de que podia utilizar a faca em seu contrário.
— Mataria-me por um trasgo.
— Mataria-te por danificar algo meu que devo proteger. Ao lhe atacar assim, não demonstraste nenhum tipo de respeito por mim. Ontem noite, Doyle não me mostrou nenhum respeito. Se aprendi algo de minha tia e de meu pai, é que um líder que não é respeitado por seu povo é só uma boneco. Não vou ser algo com o que foda e se aconchegue. Serei rainha ou não serei nada para vocês.
Minha voz ainda era mais baixa, assim que as últimas palavras pronunciei quase em um sussurro. E nesse momento soube que era sério o que dizia, que se derramar o sangue do Rhys significava conseguir o poder que necessitava, estava disposta a matá-lo. Conhecia-o de toda a vida. Era meu amante e, até certo ponto, também meu amigo, Mas poderia matá-lo. Sentiria sua falta, e me arrependeria de ter que fazer isso, mas nesse instante, soube que devia fazer o que fosse para que os guardas me respeitassem. Desejava com veemência aos guardas, eu gostava desses com os que me aos que queria ver no trono. O poder absoluto, a vida verdadeira e a morte... Em quem confiar com essa classe de poder? Qual dos guardas era incorruptível? Resposta: nenhum. Todo mundo tem seus pontos cegos, esse lugar no que estão tão seguros de si mesmos que só vêem sua própria virtude. Eu confiava em mim mesma, embora havia dias nos que duvidava de mim. Esperava que essa dúvida conseguisse me manter honesta. Possivelmente estava me enganando. Possivelmente ninguém pode receber essa classe de poder e seguir sendo justo — Possivelmente o velho dito é verdade; o poder corrompe, e o poder absoluto corrompe absolutamente. Fazia o melhor que podia, mas sabia que uma coisa era certa: se não tomasse as rédeas da situação nesse momento, os guardas passariam por cima de mim. Possivelmente conseguiria o trono, mas perderia todo o resto. Em realidade, nem sequer queria o trono; mas queria governar, governar e conseguir que as coisas melhorassem. E, mas é obvio, este desejo talvez era meu ponto cego, e o princípio da corrupção. Acreditar que sabia o que era o melhor para todos os da escuridão. Que arrogante, pela Deusa.
Comecei a rir. Tanto que tive que me sentar no chão. Sustentei a faca ensanguentada e observei como os dois guardas olhavam para baixo para ver-me, com um olhar de preocupação em suas caras. Rhys já não brilhava. Kitto tocou meus braços, como se tivesse medo de fazê-lo. Abracei-lhe atraindo-o para mim. Começaram a me brotar lágrimas dos olhos e a risada se transformou em pranto. Sujeitava ao Kitto e segurava obstinada à faca ensanguentada enquanto chorava.
Não era melhor que outros. O poder corrompe, é claro que corrompe. É para isso serve. Me encurvei no chão e Kitto me embalou, e não opus nenhum tipo de resistência quando Doyle tomou, com supremo cuidado, a faca que ainda sujeitava com a mão.
Capítulo 4
Acabei agachada em uma das cadeiras reservadas para meus clientes com uma xícara de chá de hortelã quente entre as mãos e com meu chefe ao lado, Jeremy Grei. Não sei o que lhe tinha posto em alerta sobre o problema, mas tinha entrado pela porta como uma tormenta pequena e rápida. Tinha ordenado que saísse todo mundo, e Doyle, é obvio, tinha discutido com o Jeremy porque ele não podia garantir minha segurança. Jeremy lhe respondeu com um: «Tampouco nenhum de vocês». Se fez um silêncio sepulcral na sala, e Doyle saiu sem dizer nenhuma palavra mais. Rhys lhe seguiu com um lenço apoiado contra seu pescoço, com o que tentava não manchar-se de sangue a gabardina branca.
Kitto tinha ficado porque eu estava abraçada a ele, mas agora tinha me acalmado um pouco. Limitava-se a sentar-se a meus pés, com um braço obstinado a meus joelhos e o outro deslizando acima e abaixo por minha perna. Quando um duende tocava a alguém de uma maneira tão íntima e tão constante era um sinal de nervosismo, mas eu estava brincando sem cessar com seus cachos, assim não passava nada. Estávamos em paz.
Jeremy se inclinou por cima da mesa e me olhou. como sempre, estava vestido com um traje de marca, perfeitamente adaptado a seu corpo de quase um metro e meio de altura. Era uns três centímetros mais baixo que eu, forte e atlético, com uns ombros muito masculinos. Usava um traje de cor cinza carvão, uns cinco tons mais escuros que sua pele. Seu corte de cabelo era impecável. Tinha o cabelo curto e era de um cinza mais claro que sua pele, embora não muito mais. Inclusive seus olhos eram cinzas. Seu sorriso era de um branco luminoso, com as melhores dentaduras que existem no mercado, e combinava com a camisa branca que tinha escolhido esse dia. A única coisa que realmente arruinava essa perfeita imagem de modernidade era o nariz. Gastou muito dinheiro em seus dentes, mas não tinha feito nada com o longo nariz em forma de pico. Nunca lhe perguntei por que, mas Teresa sim. Depois de tudo, ela só era humana e não entendia que entre os duendes uma pergunta sobre o aspecto pessoal é o pior insulto — Manifestar algo sobre o físico de alguém não é cortês...; bom, simplesmente não se faz. Jeremy lhe explicou que um nariz longo era para os trows o que os pés grandes eram para os humanos. Teresa tinha se ruborizado e não perguntou nada mais. Eu me aproximei e lhe acariciei o nariz com a ponta dos dedos enquanto exclamava; «Uau!», o que provocou sua risada.
Cruzou os braços e pude observar o brilho de seu Rolex. Ficou me olhando. Entre os duendes era de má educação perguntar a alguém por que estava histérico. Diabos, em ocasiões inclusive era de má educação mostrar que tínhamos notado que alguém estava histérico. De todas as formas, estava acostumado a ser assim para os governantes. Todo mundo tinha que atuar como se o rei ou a rainha não estivessem loucos de arremate. Ninguém podia admitir que tantos séculos de endogamia eram a causa de algumas perturbações.
Respirou profundamente, deixou escapar o ar, e logo suspirou.
— Como teu chefe, preciso saber se pode cumprir com o resto de suas entrevistas para hoje. — Era uma bonita forma de perguntar dando um rodeio o que ia mau, sem perguntá-lo realmente.
Afirmei com a cabeça, e levantei a xícara de chá até aproximá-la a minha cara, não para beber, a não ser só para aspirar o doce aroma da hortelã.
— Estou bem, Jeremy.
Levantou as sobrancelhas, que eu sabia que tinha depilado e perfilado. É sabido pelos duendes que os trows possuem uma só sobrancelha muito cheia que lhes percorre toda a testa. Mas essa imagem de homem de Neandertal não combina nada bem com os trajes Armani e os sapatos Gucci.
Poderia ter dado por resolvido o tema nesse momento e, devido a nossas tradições, ele teria que ter se conformado com minha palavra e ter passado a outra questão. Mas Jeremy fazia anos que era meu chefe e meu amigo, muito antes de saber que eu era a princesa não sei o quê. Tinha me dado trabalho por meus próprios méritos, não porque a publicidade de dispor de uma verdadeira princesa dos duendes no trabalho ajudasse no negócio. De fato, a enorme cobertura da mídia tinha feito impossível que pudesse trabalhar como investigadora secreta a não ser que utilizasse um encanto pessoal importante para trocar meu aspecto. A maioria dos repórteres especializados em seguir aos duendes dispunham de alguma capacidade mágica. Se detectavam o encanto, este se desvanecia. Em ocasiões, só ante o repórter, mas em outras, se possuíam o suficiente talento, o encanto falhava diante de tudo mundo, o qual era algo muito, muito mau se acontecia em meio de uma operação secreta. Levava o suficiente tempo entre os humanos para saber que devia uma explicação ao Jeremy.
— Não sei muito bem o que passou, Jeremy. Rhys começou a destrambelhar contra os trasgos, logo tentou atacar ao Kitto e eu o lancei contra a parede.
Jeremy parecia surpreso, o que não era muito adulador nem educado.
Franzi o cenho.
— Possivelmente não seja da mesma categoria de pesos pesados a que pertencem eles, Jeremy, mas posso atravessar a porta de um carro com meu punho e não me romper nem um só osso.
— Provavelmente, seus guardas seriam capazes de levantar o carro e lançá-lo contra alguém.
Tomei um sorvo de chá.
— Sim, são mais fortes do que parecem. Estalou em gargalhadas.
— Minha linda, não aparenta nem de longe quão forte é.
— Devolvo-te o elogio — eu disse, elevando minha xícara para brindar por ele. Sorriu, mostrando sua caro sorriso em todo seu esplendor.
— Sim, surpreendi a alguns humanos em seu dia. — Seu sorriso se desvaneceu ligeiramente. — Sim tivesse me dito que me metesse em meus assuntos, o teria feito, mas te ofereceste a me proporcionar informação, assim vou perguntar algumas coisas. Se não quiser responder, só tem que me dizer isso.
Assenti com a cabeça.
— Eu comecei, Jeremy. Pode perguntar.
— Rhys não manchou de sangue a gabardina por havê-lo jogado contra a parede.
— Isso não é uma pergunta. Encolheu-se de ombros.
— Como sangrou?
— Com uma faca.
— Doyle?
— Fui eu — respondi negando com a cabeça.
— Porque tentou fazer mal ao Kitto?
Assenti com a cabeça, mas olhei ao Jeremy diretamente aos olhos.
— Não quiseram obedecer minhas ordens ontem noite. Se não consigo que me respeitem, Jeremy, possivelmente consiga o trono, mas serei rainha só de nome. Não quero arriscar minha vida e a de outras pessoas que me importam para ser unicamente uma espécie de boneco.
— Então, feito o Rhys sangrar para demonstrar sua teoria?
— Em parte, e em parte foi uma reação, não tive tempo para pensar. Queria fazer mal ao Kitto por uma estupidez que passou faz séculos. O duende nunca deu ao Rhys nenhuma razão para que lhe odeie como o faz.
— Nosso guarda de cabelo claro odeia aos trasgos, Merry.
— Kitto é um trasgo, Jeremy. Não pode fazer nada pra mudar isso. Jeremy assentiu com a cabeça.
— Não, não pode.
Olhamo-nos um ao outro.
— O que vou fazer?
— Não se refere ao que vais fazer só com o Rhys, não é?
Trocamos outro longo olhar, mas tive que apartar os olhos e cravá-los no chão, embora isso significou me encontrar com o olhar azul do Kitto. Olhasse onde olhasse, havia alguém que esperava algo de mim. Kitto queria que lhe cuidasse. Jeremy, bom, acredito que ele unicamente queria me ver feliz.
— Acreditava que tinha seu respeito quando estávamos em Illinois, mas parece que algo mudou nos últimos três meses.
— O quê?
— Não sei — respondi negando com a cabeça.
O trasgo elevou a cabeça, com o que mim mão escorregou até a cálida curva de seu pescoço.
— Doyle — disse em voz baixa, e eu lhe olhei.
— O que tem o Doyle?
Baixou a vista, como se tivesse medo de me observar diretamente. Não estava sendo covarde, tratava-se de um gesto habitual de submissão.
— Doyle disse que começou bem, mas que não soubeste utilizar sua aliança com os trasgos. — Levantou um pouco o olhar. — Tem aos trasgos como aliados teus só durante três meses mais, Merry. Nos próximos três meses, se a Corte da Escuridão vai à guerra, a rainha terá que se dirigir a ti para conseguir a ajuda dos trasgos, não ao rei Kurag. Doyle teme que te limite a te colocar na cama com todo mundo e não atue frente a seus inimigos.
— E o que quer que faça, que declare guerra a alguém?
Kitto escondeu sua cabeça em meu joelho.
— Não sei, ama, mas sei que outros seguem ao Doyle. A ele é a quem deve ganhar, não a outros.
Jeremy se separou da mesa e se aproximou de nós.
— Parece-me um pouco estranho que os guerreiros sidhe falem com tanta liberdade diante de ti. Não te ofenda, Kitto, mas é um trasgo. Por que foram confiar em ti?
— Como você bem disse, não confiam em mim. Mas, em ocasiões, falam diante de mim como se eu não estivesse, como o que acaba de acontecer agora.
Jeremy franziu o cenho.
— Eu estou falando contigo, não de ti, Kitto. Olhou aos dois.
— Mas antes estavam falando como se eu fosse algo não pudesse lhes entender, como um cão ou uma cadeira. Todos vocês fazem isso.
Baixei a vista até me encontrar com essa cara inocente. Queria negá-lo, mas mordi a língua e pensei no que acabava de dizer. Tinha razão? A conversa que acabava de ter com o Jeremy tinha sido privada, mais ou menos. Kitto tinha se limitado a estar ali. Não tinha querido sua opinião nem sua ajuda. Francamente, não acreditava que pudesse ser de nenhuma ajuda. Via-lhe como alguém a quem cuidar, um dever, não como um amigo nem, sinceramente, como uma pessoa.
Suspirei e deixei cair a mão, de maneira que ele me tocava, mas eu não tocava a ele. Abriu os olhos como pratos, tomou minha mão e a pôs de novo sobre a cabeça.
— Por favor, por favor, não te zangue comigo.
— Não estou zangada, Kitto, mas acredito que tem razão. Trato-te como se fosse meu mascote, não uma pessoa. Nunca acariciaria assim a nenhum dos outros. Tomei-me muitas liberdades contigo. Sinto muito.
Ficou de joelhos.
— Não, não, não me referia a isso. Eu adoro que me toque. Faz-me sentir seguro. É o único que me faz sentir seguro aqui, neste... lugar. — Seu olhar era distante, perdido.
Ofereci a xícara de chá ao Jeremy, que a agarrou e a colocou sobre a mesa. Tomei a cara do Kitto entre as mãos, e a levantei um pouco para poder lhe ver os olhos.
— Diz-me que te trato como a um cão ou uma cadeira, digo que tentarei te tratar como a uma pessoa e me diz que tampouco quer que te trate assim. Não entendo o que quer de mim, Kitto.
Pôs seus cálidas mãos sobre as minhas efetuando uma ligeira pressão. Suas mãos eram tão pequenas... era o único homem que tinha conhecido com umas mãos menores que as minhas.
— Quero que me toque sempre, Merry. Não deixe de fazê-lo. Não me importa que as pessoas falem diante de mim com se eu não existisse. Permite-me ouvir coisas, saber coisas.
— Kitto — disse com suavidade.
Encarapitou-se até meu colo como um menino, me obrigando rodeá-lo com meus braços para que não caísse. Percorri com a mão direita a suavidade das escamas de suas costas; com a esquerda sustentei a curva pelada e suave de sua coxa. Os sidhe não têm muito pêlo corporal, e os trasgos serpente não têm nada. A mescla genética tinha feito que Kitto fosse suave e perfeito como se estivessem depilado do pescoço aos dedos dos pés. Esta característica se acrescentava ao aspecto de boneco que tinha e fazia que parecesse um menino eterno. Tinha sido resultado da última guerra entre sidhes e trasgos, o que significava que Kitto tinha um pouco mais de mil anos. Conhecia a história de meu povo, conhecia as datas, mas enquanto o sustentava entre os braços como se fosse um boneco, era algo difícil de acreditar. Resultava quase impossível pensar que o homem que sustentava em meu colo tinha nascido muito antes da morte de Cristo.
Doyle era ainda mais velho, igual a Frost. Rhys, com um nome que nunca tinha querido me dizer, tinha sido adorado como uma divindade da morte. Nicca só tinha umas centenas de anos, era jovem em comparação com os outros. Galen tinha setenta anos a mais que eu; na corte era quase como se tivéssemos sido criado juntos.
Tinha crescido vendo-os todos sempre igual. Eram imortais; eu não. Envelhecia um pouco mais devagar que os não puros, mas não muito mais. Aparentava uma década ou duas a menos que os anos que tinha. Dispor de vinte anos extra estava bem, mas não era o mesmo que a eternidade.
Olhei ao Jeremy para ver se me ajudava a decidir o que fazer com o trasgo.
Levantou as mãos me mostrando as palmas.
— Não me olhe. Nunca tive a um empregado aninhado sobre o colo me pedindo que lhe acaricie.
— Não é o que quer exatamente. Quer uma reafirmação.
— Se tiver todas as respostas, Merry por que não lhe dá a reafirmação que deseja? — espetou-me.
— Possivelmente com um pouco de privacidade — respondi. No momento em que pedi um pouco de privacidade, senti como o corpo do Kitto começava a relaxar-se. Deslizou seu braço por debaixo da jaqueta de meu traje para agarrar-se a minhas costas. Relaxou as pernas o bastante para as situar debaixo de meu braço, com o que minha mão se deslizou por sua coxa até chegar à barra dos shorts que usava. Como os clientes nunca o viam, vestia-se como queria.
Jeremy alisou a gravata com a mão e arrumou a parte inferior da jaqueta. Todos eles, gestos nervosos.
— Os deixarei a sós, embora acredite que assim que Doyle saiba que está só com o Kitto, virá.
— Não necessitamos de muito tempo — lhe respondi.
— Acompanho-te no sentimento — disse. Abriu a boca como se fosse acrescentar algo, logo sacudiu a cabeça, atirou das mangas da jaqueta e se dirigiu, com passo firme, para a porta.
A porta se fechou detrás de si, e eu olhei para baixo ao trasgo. Não íamos fazer o que obviamente tinha pensado Jeremy que íamos fazer. Nunca tinha tido relações sexuais com o Kitto, e não tinha nenhuma intenção de começar a ter agora. Tinha-me visto obrigada a compartilhar carne com um dos trasgos para fechar o pacto entre eles e eu, embora compartilhar carne pode significar muitas coisas para um trasgo. Tecnicamente, o dia que permiti que Kitto deixasse uma marca perfeita de seus dentes sobre meu ombro tínhamos compartilhado carne. Mas o que teria que ter sido uma cicatriz, desapareceu, desvaneceu-se da pele. Tinha-lhe mostrado ao rei Kurag a marca da dentada quando estava recém feita, e nem Kitto nem eu tínhamos mencionado que já havia desaparecido. Sem a cicatriz não havia nenhuma prova de que eu pertencesse ao Kitto.
A dor da dentada do Kitto se perdeu em algum ponto em meio de uma sessão de sexo com alguém, perdeu-se quando meu corpo tinha ido mais à frente até o lugar no que o prazer e a dor se confundem. No frio, sem nenhum tipo de jogos sexuais prévios, uma dentada desse tipo dói.
Segundo a cultura dos trasgos, Kitto se encontrava no direito de esperar uma reafirmação em forma de compartilhar carne, seja o que for o que isso significasse para nós. Tinha muita sorte com meu pequeno trasgo; era servil comigo e gostava de sê-lo. Meu pai se assegurou de que compreendesse todas as normas da Corte da Escuridão sabia o que era uma reafirmação e o que não no mundo do Kitto. Tinha que jogar limpo com ele, não devia fazer armadilha. Suspeitava, com razão, que Kurag se zangaria se não via meu corpo com uma marca visível de trasgo; e, para todos os efeitos, eu me deitava com o Kitto. De maneira que ia ter que andar na linha para não violar nenhuma norma nem tabu de outras culturas.
Tinha que reafirmar ao Kitto e seguir com os assuntos do dia. Tinha que me reunir com outros dois clientes antes de poder visitar Maeve Reed. A senhora Reed, através do Jeffery Maison, tinha insistido muito em nos ver depois do almoço, em lugar de na última hora da tarde. Se não pudéssemos nos reunir depois do almoço, ia ficar para o dia seguinte pela manhã.
Kitto se aninhou ao meu lado e me acariciou com suas mãozinhas as costas e a cintura. Era um doce aviso para me dizer que seguia aí, esperando.
Abriu-se a porta. Rhys ficou um momento parado na soleira da porta, duvidando e nos olhando. Podia apalpar a tensão.
— Entra Rhys, e te una a nós. — Minha voz era fria, distante e seca.
— Vou procurar ao Doyle — repôs negando com a cabeça.
— Não — respondi.
Seguiu de pé na soleira da porta. Finalmente me olhou, e nossos olhos se encontraram.
— Sabe que não te compartilho com o... — conteve-se antes de dizer: «trasgo» e terminou a frase com estupidez: — ...com ele.
— O que aconteceria te dissesse que tem que me compartilhar com ele?
— Vim pra me desculpar, Merry. Se tivesse ferido ao Kitto, teria posto em perigo seu tratado com os trasgos. Sinto ter perdido os estribos.
— Se tivesse sido o primeiro incidente deste tipo, aceitaria suas desculpas. Mas não é o primeiro. Aconteceu já mais de vinte vezes. As palavras já não são suficiente.
— O que quer de mim, Meredith? — De novo sua expressão era de aborrecimento e mau humor.
— Que me distraia enquanto reafirmo ao Kitto.
Sacudiu a cabeça com tanta força que seus cachos pareciam voar. Percorreu-lhe um calafrio e tocou o pescoço com a mão. Usava uma atadura, mas parecia lhe doer ainda. A ferida não lhe duraria muito tempo, ao cabo de um par de horas teria se curado.
— Jurei não voltar a permitir jamais que a carne de trasgo tocasse a minha, Merry. Você sabe.
— Ele vai me tocar Rhys, não a ti.
— Não, Merry, não.
— Então, faz as malas e vai embora. Abriu os olhos como pratos.
— O que quer dizer?
— Digo que não posso me arriscar a que faça mal ao Kitto e que vá para o ralo nosso tratado com os trasgos.
— Já disse que sinto muito.
— Mas não o suficiente para te fazer amigo do Kitto. Não o suficiente para te comportar como um guarda-costas em lugar de como um menino mimado. Permaneceu na soleira da porta me olhando.
— Não posso acreditar que me jogue e prefira a este... trasgo. Neguei com a cabeça.
— Meus inimigos são os inimigos dos trasgos durante três meses mais. Este tratado me protegeu mais que qualquer um de vocês. Ninguém quer arriscar-se a enfrentar-se contra todo o exército dos trasgos. O fato de que não pode ver além de seus prejuízos e te dar conta do importante que é isto, significa que tem muitos defeitos para ser meu guarda.
Acariciei com a mão o braço do Kitto, e apertei sua cabeça contra meu ombro. Obriguei ao Rhys a olhá-lo.
A raiva alagava toda sua cara.
— Eles — disse assinalando ao Kitto — são os culpados de meu defeito. — tirou o emplastro do olho e entrou lentamente na sala. — Eles me fizeram isto. — Seguia assinalando Kitto enquanto avançava para nós. — Ele me fez isto.
Kitto levantou a cabeça o justo para dizer:
— Eu nunca te fiz mal.
Os braços do Rhys tremiam de raiva e apertava os punhos com força. Permaneceu de pé frente a nós, a ponto de explodir, como se precisasse golpear algo ou a alguém para extravasar toda sua fúria.
— Não o faça, Rhys — lhe disse com voz tranquila e suave.
Temia que levantar a voz fosse o detonador que lhe fizesse explodir. Realmente não queria perdê-lo, mas tampouco queria que fizessem mal ao Kitto. Ouvi um ruído detrás de nós, embora o corpo do Rhys impedia que pudesse ver o que acontecia no exterior da sala. A voz do Doyle chegou clara e profunda.
— Há algum problema?
— Graças ao Rhys tenho que renovar meus votos com o Kitto, assim que lhe disse que necessitava que me distraísse enquanto o fazia.
— Seria um prazer para mim te distrair, princesa — disse Doyle.
— Ah, claro, é muito bom com as preliminares enquanto não haja nada mais depois. Me deixe te dizer que estou começando a me cansar de sua atitude — lhe espetei.
— Frost voltará em breve de sua missão. Disse a estrela que terá que buscar a outra pessoa para que a proteja da perseguição de seus fãs. Seguíamos falando sem que Rhys se movesse um ápice.
— Acreditava que o trabalho de guarda-costas do Frost durasse até o final desta semana, pelo menos.
— Acreditei que era prudente o ter conosco, depois o intento da noite passada. O enviei a casa da senhora Reed para que estude o terreno antes de que cheguemos.
— Estudar o terreno?
— No final das contas, ela é uma sidhe completa da Corte da Luz. Uma vez foi uma deusa, mas já não pertence a nenhuma das duas cortes. Possivelmente acha que se encontra por cima de nossas leis. De fato, seria um péssimo guarda se permitisse que entrasse sem mais em sua casa sem me assegurar antes que não há perigo.
— De maneira que enviaste ao Frost a um trabalho para a agência e logo lhe atribuíste outro sem consultar nem o Jeremy nem a mim.
Silêncio.
— Considero-o um sim. — Franzi o cenho e olhei ao Rhys. — Te afaste, Rhys. Este jogo de ameaças começa a ser aborrecido.
Rhys pareceu um pouco surpreso, como se se supusesse que eu tinha que estar tremendo de medo. Possivelmente o espetáculo não foi para mim. Kitto estava pálido e parecia muito assustado.
— Te mova! — gritei-lhe.
— Faz o que ordena a princesa — disse Doyle.
Só então se moveu, sem muita convicção, para um lado. Olhei além dele ao Doyle, que acabava de entrar na sala.
— Ou Rhys me ajuda a me distrair enquanto reafirmo ao Kitto, ou já pode ir fazendo as malas e voltar para Illinois.
A expressão do Doyle era de surpresa total. Quase nunca se via este tipo de expressão na Escuridão da Rainha. Alegrou-me um pouco.
— Acreditava que você gostava dos cuidados do Rhys.
— Eu adoro ter ao Rhys em minha cama, mas isso agora não importa. Se não pode controlar-se na presença do Kitto, chegará um dia em que explodirá e lhe fará mal. Sabe que Kurag não queria celebrar nenhum pacto comigo, Doyle. Desde o começo tentou rompê-lo. Eu forcei uma aliança com ele, mas se alguém faz mal ao Kitto ou, o que seria pior, matam-lhe, então Kurag poderá usá-lo como uma desculpa para romper o pacto. — Tomei a cara do Kitto com as mãos e a girei para que Rhys pudesse vê-la. — E acha que se Kurag tiver que enviar outro trasgo será alguém tão agradável como Kitto? Estou oferecendo minha carne e meu sangue, não a do Rhys nem a tua.
— É certo, princesa — respondeu Doyle. — Mas se o enviar a casa a rainha mandará a outro guarda para substituí-lo, e muitos guardas bastante menos agradáveis que Rhys.
— Não me importa. Ou Rhys faz o que lhe peço ou se vai. Estou cansada de toda esta comédia.
Doyle respirou fundo, tão profundamente que pude ver como se elevava e voltava a baixar seu peito do outro lado da sala.
— Então, fico para garantir a segurança de todos.
Rhys se girou para ele.
— Não fala sério quando diz que tenho que fazê-lo.
— A princesa Meredith NicEssus, possuidora da mão de carne, deu-te uma ordem direta. Se não a obedecer, já te disse qual será o castigo.
Rhys caminhou para o Doyle enquanto a ira se desvanecia de sua cara.
— Sacrificaria-me por isso? Sou um de seus melhores guardas.
— Odiaria ter que te perder — respondeu Doyle, — mas não posso ir contra os desejos da princesa.
— Isso não é o que disse ontem de noite — replicou Rhys.
— Ela tem razão, Rhys. Puseste em perigo nossa aliança com os trasgos. Se não pode controlar sua raiva para o Kitto, então constitui uma ameaça para todos nós. Faz bem em te obrigar a enfrentar a seus medos.
— Não lhe tenho medo — replicou Rhys assinalando ao Kitto.
O trasgo ficou detrás de mim para proteger-se da ira do Rhys.
— Todos os ódios irracionais têm sua origem no medo — sentenciou Doyle. — Os trasgos lhe fizeram mal faz muito tempo, e teme acabar em suas mãos de novo. Pode odiá-los, se quiser, e pode temê-los, se o necessitar, mas são nossos aliados, e deve tratá-los como tais.
— Não penso ajudar a... essa criatura a cravar suas presas em uma princesa da Escuridão.
— Se te tivesse comportado como é devido — repliquei — não me teria visto obrigada a voltar a fazê-lo tão logo. Estão a ponto de me causar dor Rhys, e já que tenho que suportá-lo, quão mínimo pode fazer é tentar que seja para mim o mais suportável possível.
Rhys se aproximou da janela e ficou olhando para exterior. Falou sem girar-se.
— Não sei se serei capaz de fazê-lo.
— Tenta-o — disse — mas tenta-o seriamente. Não pode te limitar a te molhar o dedo no rio, dizer que a água está fria e sair correndo para casa. Tem que pôr de sua parte. Se de verdade não pode suportá-lo, já falaremos, mas primeiro deve tentá-lo.
Apoiou a cabeça contra o vidro da janela. Finalmente, levantou-se, elevou os ombros e se voltou para nos olhar.
— Farei o que puder. Mas te assegure de que não me toque.
Olhei para baixo para me encontrar com a carinha pálida do trasgo e com seus olhos temerosos.
— Rhys, não é por nada, mas acredito que ele tampouco quer te tocar.
Rhys afirmou com a cabeça.
— De acordo, então. Há clientes esperando. — Esboço uma ameaça de sorriso. — Mistérios que resolver e malfeitores que deter.
Sorri-lhe.
— Esse é o espírito que eu gosto.
Doyle fechou a porta e se apoiou contra ela.
— Não vou intervir a não ser que alguém corra perigo.
Pela primeira vez, Doyle não me protegia de nenhuma força externa, mas sim de um de meus próprios guardas. Olhei ao Rhys enquanto caminhava para o Kitto e para mim. A vendagem do pescoço era quase tão grande como a palma de minha mão. Possivelmente Doyle não estava ali só para proteger a mim e ao Kitto do Rhys; possivelmente, só possivelmente, também estava ali para proteger ao Rhys de mim.
Capítulo 5
Rhys depositou a gabardina branca de seda sobre minha mesa; se aproximou de nós. Kitto se fez uma bola sobre meu colo olhando fixamente como os ratos olham aos gatos. Como se o gato não fosse o ver se permanecerem muito quieto.
A moderna cartucheira branca podia entrever-se devido a que usava a camisa meio desabotoada. A culatra da pistola robusta uma imperfeição negra em meio de tão branco e nata.
— Dá sua pistola ao Doyle, Rhys, por favor.
Olhou ao Doyle, que havia tornado a sentar-se na cadeira situada frente às janelas.
— Rhys, parece-me que põe nervoso ao pequenino.
— Bom, que pena — respondeu com um tom de voz cruel.
Fiquei olhando-o e senti a excitação do poder. Não lutei contra a raiva nem a magia, mas sim deixei que me alagassem o olhar, sabendo que meus olhos iriam brilhar com uma luz e umas cores sem igual.
— Tome cuidado, Rhys, ou irá agora sem poder desfrutar de uma segunda oportunidade. — Pronuncie estas palavras baixo e lentamente. Tentava conter minha magia, igual a se controla a respiração para não perder os estribos e começar a gritar.
Acredito que dava uma imagem de que era sério o que dizia porque se voltou sem meias palavras e caminhou para o Doyle. Entregou a pistola pela culatra ao homem escuro, logo ficou de pé durante uns segundos, com as mãos fechadas e em tensão a ambos os lados. Parecia como se se sentisse mais inseguro sem a pistola. Se estivesse se encontrando em perigo de morte, o teria entendido, mas Kitto não lhe supunha nenhuma ameaça. Com ele não necessitava a pistola.
Girou-se para nós e respirava de forma entrecortada, podia ouvi-lo de onde estava. Tinha conseguido desfazer-se de parte de sua raiva, e o que ficava era basicamente uma espécie de medo disfarçado. Doyle tinha razão; Rhys tinha medo do Kitto, ou melhor, dos trasgos. Era como uma fobia para ele. Uma fobia com uma base de realidade, o tipo de fobia que é impossível curar.
Deteve-se justo diante de nós me olhando tímido, embora podia ler em sua cara uma vulnerabilidade que me empurrava a dizer: «Não, não tem que fazê-lo». Mas teria mentido. Sim tinha que fazê-lo. Se não se fazia nada a respeito, Rhys seguiria perdendo os estribos com muita frequência e poderia chegar a ferir o Kitto, ou algo pior. Não podíamos pôr em perigo o pacto com os trasgos. E Kitto era meu e minha obrigação era cuidar dele. Não estava muito segura de como deveria atuar no caso de que Rhys matasse ao Kitto em um ataque de ira. Não queria ter que ordenar a execução de alguém que tinha conhecido de toda a vida.
Queria reafirmar ao Kitto, lhe dizer que tudo iria bem, mas tampouco queria parecer débil. Assim que fiquei sentada, com o Kitto feito uma bola sobre meu colo e sem dizer nada.
— Sempre saí d quarto quando tratava com isso... com ele — disse Rhys. — O que passa agora?
Minha paciência chegou a seu limite e de repente deixei de sentir pena pelo Rhys. Olhei ao Kitto.
— Ofereço-te carne pequena ou sangue débil.
«Carne pequena» queria dizer em jargão trasgo preliminares ligeiras. «Sangue débil» significava atravessar um pouco de pele, ou inclusive produzir umas mordidas. Havia muitas possibilidades de que Kitto escolhesse algo para o que não necessitasse distração alguma — Pouco a pouco, eu lhe tinha ensinado novas definições de carícias e preliminares, definições que eram muito menos estressantes para todos os implicados.
Olhou como estava acostumado, evitando cruzar o olhar com algum de nós e murmurou:
— Carne pequena.
— Feito.
Rhys franziu o cenho.
— O que acaba de acontecer? Olhei-lhe.
— Com os trasgos sempre terá que negociar antes de ter relações sexuais, Rhys. Se não o fizer, pode acabar ferido.
Olhou-me com o cenho franzido.
— Eu fui seu prisioneiro durante uma noite. Não tive possibilidade de negociar.
Suspirei e neguei com a cabeça. A maioria dos sidhe tanto os pertencentes a Corte da Escuridão ou a da Luz sabem muito pouco das culturas que não fossem a sua própria, trata-se de uma espécie de prejuízo que considerava que a cultura sidhe era a única que valha a pena conhecer.
— Em realidade, segundo a lei dos trasgos, poderia ter negociado com eles. Se lhe torturaram, então não teria que haver te limitado a suportar o que lhe fizeram, embora a verdade é que dispunha de uma ligeira margem de negociação, inclusive em relação com a tortura. De todas as formas, no sexo sempre há espaço para negociar. É o costume entre eles.
Sua cara mostrou mais desconcerto ainda. Seu único olho parecia tão confundido tão doído...
Depositei ao pequeno trasgo no chão e fiquei de pé frente a Rhys. Situei ao Kitto entre ambos. Por uma vez, Rhys pareceu não dar-se conta do perto que se encontrava dele.
— Os trasgos violam, e não pode te liberar disso, mas você pode ditar as condições, coisas que podem fazer e coisas que não.
Içou lentamente a mão até a cicatriz, embora se deteve justo antes de tocá-la, deixando-a no ar.
— Significa isto que... — Entretanto, não terminou a frase.
— Que poderia lhes haver proibido que lhe desfigurassem para sempre, sim. Tentei falar com uma voz muito, muito doce. Desde que fazia uns meses tinha me informado de como tinha perdido o olho, tinha muita vontade de dizer isto ao Rhys, embora me dava um pouco de medo sua possível reação.
Girou-se para mim com o horror marcado na cara. Toquei-lhe suas s bochechas, me coloquei nas pontas dos pés e aproximei sua cara à minha. Beijei-lhe com enorme delicadeza nos lábios, um ligeiro roce entre sua boca e a minha, e logo me aproximei mais até que a totalidade de nossos corpos estiveram em contato. Seguia lhe sujeitando a cara com as mãos, e lhe aproximei de mim um pouco mais. Beije com a mesma delicadeza a cicatriz de sua cara.
Apartou-se de repente e me fez perder o equilíbrio. Só o braço do Kitto ao redor de minha cintura impediu que caísse.
— Não — disse Rhys, — não. Estendi os braços para ele.
— Vêem comigo, Rhys.
Mas ele seguia recuando. Doyle tinha se colocado detrás dele sem que nenhum de nós se precavesse disso. Rhys se deteve assim que se topou com o corpo de seu chefe.
— Se falhar agora Rhys, deverá voltar para a terra dos duendes.
Ficou olhando ao Doyle e logo fixou a vista em mim.
— Não falhei, é que... não sabia.
— A maioria dos sidhe não sabem nada sobre a cultura dos trasgos — afirmei. — É uma das razões pelas que são uns guerreiros tão temidos, porque ninguém os entende. Possivelmente teríamos ganho as guerras contra eles faz muitos séculos se alguém tomasse a modéstia de estudá-los. E não me refiro a torturá-los. Não aprende a cultura de alguém mediante a tortura.
Doyle pôs as mãos sobre os ombros do Rhys e começou a lhe empurrar pouco a pouco para mim. Este já não parecia apavorado, a não ser encerrado em si mesmo, como se uma das peças que formava seu mundo se desprendeu e lhe tivesse deixado pendurado com os pés no ar.
Doyle voltou a lhe empurrar para nós, e eu lhe toquei a cara com muita delicadeza. Piscou sobressaltado, como tivesse esquecido que eu me encontrava ali.
— Não está acabado, Rhys. É bonito.
Inclinei sua cabeça para mim para poder observá-la melhor, mas o palmo de diferença na altura dificultava minhas intenções. Podia lhe beijar na boca, mas não no olho. Voltei a me pôr nas pontas dos pés, com o que meu corpo se aproximou um pouco mais ao dele. O braço do Kitto permanecia ao redor de minha cintura, assim agora se encontrava apanhado entre nossos corpos devido à pressão. Rhys não se queixou, já não fez nada para impedi-lo. Tinha intenção de acabar o que tinha começado. Beijei-lhe lentamente toda a cara até que cheguei à cicatriz. Retirou-se e acredito que as mãos do Doyle situadas sobre seus ombros eram a única coisa que o impedia que saísse correndo.
Fechou o olho com tanta força como a de um condenado que não quer ver corno lhe aproxima a bala. Beijei-lhe as cicatrizes e a concha vazia onde deveria haver se encontrado o outro maravilhoso olho.
Estava tão tenso que quase tremia. Beijei-lhe com mais firmeza sobre a pele enrugada da cicatriz abrindo e fechando os lábios com muita delicadeza. Rhys deixou escapar um som. Lambi, com muito cuidado, toda a cicatriz. Deixou escapar outro som, e não se tratava de um som que delatasse dor.
Lambi com cuidado e com suavidade toda a pele rugosa. Sua respiração se voltou entrecortada. Os punhos que mantinha apertados começaram a tremer, mas não de raiva. Percorri com a língua e os lábios toda a cicatriz, até que começaram a lhe tremer as pernas, e então foi Kitto quem lhe segurou pela cintura. O homenzinho lhe segurava como se não pesasse nada.
Beijei-o na boca e ele me devolveu o beijo, como se estivesse afogando-se e pudesse encontrar o sopro de vida em minha boca. Terminamos de joelhos no chão com o Doyle de pé atrás de nós, e Kitto ainda abraçado à cintura do Rhys.
Este me rodeou com os braços e me apertou ainda mais contra si, de maneira que, embora Kitto seguia entre ambos, pude notar sua incipiente ereção. Alguma fivela ou zíper deve ter roçado a pele do trasgo porque deixou escapar um leve gemido.
Esse pequeno som bastou para fazer que Rhys se separasse um pouco. Olhou a seu redor e quando viu que os braços do pequeno lhe rodeavam a cintura, deixou escapar uma espécie de chiado e de um salto se separou de ambos.
Estava a ponto de abrir a boca para dizer que Rhys já tinha feito bastante e que estava satisfeita, quando Kitto falou:
— Declaro que estou satisfeito.
Fiquei lhe olhando.
— Ainda não recebeste sua parte.
Sacudiu a cabeça e piscou com esses olhos azul profundo.
— Estou satisfeito. — Pareceu que ia acrescentar algo, mas como se tivesse pensado melhor, se limitou a sacudir a cabeça de novo.
Então foi Rhys quem disse:
— Ainda não tiveste sua parte de carne.
— Não — respondeu o trasgo, — mas estou em meu direito de renunciar a isso.
— E por que faria isso? — perguntou Rhys. Seguia ajoelhado no chão, com a cara pálida.
— Merry necessita que todos seus guardas estejam com ela. Eu não gostaria que tivesse que perder a um deles por minha culpa.
Rhys ficou olhando-o.
— Renunciaria a sua parte de carne e sangue só para que possa ficar? Kitto piscou e olhou ao chão.
— Sim.
Rhys franziu o cenho.
— Está com pena de mim? — perguntou com um ligeiro ar de ira na voz. O trasgo elevou o olhar claramente surpreso.
— Pena? Por quê? É bonito e compartilha o corpo de Merry e sua cama. Tem a oportunidade de ser rei. As cicatrizes que você acha que lhe desfiguram a cara são uma marca de enorme beleza entre os trasgos, e uma marca de grande valor, que mostram que sobreviveste a uma dor descomunal. — Sacudiu a cabeça. — É um guerreiro sidhe. A única coisa que te intimida é a rainha. Olhe pra mim, guerreiro, olhe pra mim. — Mostrou suas diminutas mãos. — Não disponho de garras. Sou como um humano entre os trasgos. — Pela primeira vez, a voz do Kitto delatava certa amargura.
Uma amargura causada por anos de abuso, por viver em uma cultura em que a violência e a força física são o que contam, por encontrar-se apanhado em um corpo que era muito fraco para eles. Tinha nascido sendo uma vítima. Mostrou as diminutas mãos ao Rhys, e sua pequena e delicada cara mostrava raiva, ira. Raiva e impotência procedente da verdade. Kitto sabia muito bem o que era, e o que não era. Entre os trasgos era o brinquedo de qualquer um. Por essa razão preferia ficar ao meu lado, inclusive na grande e cruel cidade.
Capítulo 6
Pergunte a qualquer um, sobretudo aos turistas, onde vivem os ricos e famosos do sul de Califórnia, e lhe responderão que em Beverly Hills. Mas Holmby Hills está transbordando de dinheiro e fama, e propriedades; propriedades rodeadas de altos muros que impedem aos pedestres ver como vivem os ricos e famosos ao passar por diante delas. Holmby Hills deixou de ser o lugar de moda que um dia foi, o lugar eleito pelas jovens estrelas para estabelecer seu lar, mas uma coisa não mudou: terá que ter dinheiro para construir esses muros, essas portas, muito dinheiro. Possivelmente essa seja a razão pela que os novos famosos não se transladam a viver em Holmby Hills; não podem pagar por isso.
Maeve Reed sim podia pagar. Era uma das maiores estrelas, mas por sorte para nós, não se encontrava entre os dois por cento principais. Se tivesse sido, digamos Julia Roberts, teríamos que ter nos esquivado da enorme quantidade de mídia que a perseguem além de esquivar aos que me perseguem. Uma manada de fotógrafos já era o bastante para um dia.
Havia maneiras de esquivar à imprensa sem necessidade de usar a magia, por exemplo, com uma van branca com buracos oxidados que permanecia sem usar no estacionamento durante a maior parte do tempo. A Agência de Detetives Grei a utilizava para os trabalhos de vigilância quando a van normal destacava muito. Se a vigilância se efetuava em um bairro com dinheiro, utilizava-se a van normal. Se, ao contrário, era em uma zona mais pobre, utilizava-se a van oxidada. A imprensa tinha começado a seguir sem cessar à van normal acreditando que nela se escondia a princesa e seu entorno, o que nos deixou só com a van, embora cantava mais que os pés no Holmby Hills.
Uma das janelas traseiras estava tampada por um papelão preso com fita adesiva. O óxido decorava a pintura branca como se fossem feridas. Tanto o papelão como o óxido eram lugares para esconder as câmaras e demais equipamentos. Os buracos para esconder coisas podiam inclusive servir para disparar em caso de emergência.
Rhys conduzia. O resto de nós permanecia ocultos na parte traseira. Recolheu a grande massa de cabelo branco sob um gorro. Uma barba e um bigode falsos de grande qualidade ocultavam seus preciosos traços infantis. O chapéu e o cabelo facial lhe tampavam a maioria das cicatrizes. A imprensa tinha começado a ser capaz de reconhecer a meus guardas para encontrar a mim, assim tinham que ir disfarçados. E Rhys adorava brincar de detetives. Camuflou-se como se se tratasse de outro dia mais e todo o acontecido durante a manhã só tivesse sido um sonho.
Kitto estava literalmente escondido sob minhas pernas no chão da caminhonete. Doyle se encontrava sentado no assento mais afastado do meu. Frost tinha ocupado o assento do meio.
Sentados um ao lado do outro, ambos os homens eram quase da mesma altura. De pé, Frost o superava em uns cinco centímetros. Era um pouco mais largo de ombros e ligeiramente mais corpulento. Em realidade, a diferença não era destacável, normalmente quando estavam vestidos era imperceptível, mas seguiam sendo diferentes. A rainha Andais os tratava como se fossem as duas caras de uma mesma do apelido da rainha; Frost não. O era só Frost ou Frost Assassino, nada mais.
Frost estava vestido com um traje cinza piçarra folgado, o suficiente comprido para cobrir a parte superior dos mocassins da mesma cor que levava. Os sapatos brilhavam como uma patena. Vestia uma camisa branca com um adorno no pescoço que emoldurava o suave, mas firme perfil do pescoço. Uma jaqueta cinza pálido escondia a cartucheira e uma reluzente 44 chapeada. A arma era tão grande que eu quase não podia sustentá-la com uma mão, muito menos dispará-la.
Recolheu o cabelo prateado em um rabo que limpava sua forte cara, com o que era agradável olhá-lo, quase muito. A cauda caía sobre o assento e sobre seus ombros. Umas mechas chapeadas acariciavam meu ombro e meu braço enquanto ele falava com o Doyle. Toquei esses preciosos cabelos sentindo sua suavidade. O cabelo parecia de metal, como se tivesse que ser duro, mas era maravilhosamente suave. Eu tinha desfrutado de toda essa cascata de suavidade sobre meu corpo nu. Havia uma parte de mim que pensava que o cabelo de um homem deveria chegar ao menos até os joelhos. Os sidhe da corte estavam muito orgulhosos de seu cabelo, entre outras coisas.
O quadril do Frost exercia pressão sobre o meu, algo difícil de evitar no espaço limitado da van. Entretanto, suas coxas se apertavam contra as minhas, e isso sim era algo que podia evitar-se.
Tinha pego uma mecha de seu cabelo, sujeitava-o ante mim, brincava com ele enquanto observava o mundo passar através dessa mecha.
— Ouviu o que dissemos, princesa Meredith? — perguntou-me de repente Doyle. Sobressaltei-me e deixei cair a mecha.
— Sim, ouvi.
A forma de me olhar dizia claramente que não acreditava o que eu lhe dizia.
— Então, não te importará em repetir.
Poderia ter lhe dito que era uma princesa e que não tinha que repetir nada, mas teria sido algo certamente infantil, além de que, em realidade, sim tinha ouvido algo do que haviam dito.
— Frost viu a gente do Kane & Hart detrás dos muros. O que significa que estão fazendo algum tipo de trabalho para ela, seja como guarda-costas ou algo para o que se necessitem propriedades psíquicas.
A Agência Kane & Hart era a única competência real que tinha em Los Angeles a Agência de Detetives Grei. Kane era médium e um perito em artes marciais. Os irmãos Hart eram dois dos magos humanos mais poderosos que tinha conhecido. A agência tinha mais trabalhos de segurança que nós, ao menos até que apareceram meus guarda-costas.
— E? — perguntou-me Doyle.
— E o quê? — repliquei.
Frost pôs-se a rir com um som tão masculino e puro que expressava melhor que as palavras quão contente estava. Estava encantado de que sua mera presença perto de mim tivesse me distraído tanto. Para mim, Frost era o guarda que mais me distraía de todos com os que estava me deitando.
Voltou-se e me observou com seus olhos cinza tormenta, e com o sorriso ainda presente neles. Este suavizava a perfeição de seus traços e o fez parecer mais humano.
sorriso foi desaparecendo lentamente da cara, e os olhos se voltaram sérios e se encheram de uma enorme quantidade de palavras não pronunciadas, coisas não feitas ainda.
Olhei aos olhos. Eram só cinzas, não tricolores como os meus ou os do Rhys, embora, é obvio, não eram só cinzas. Eram da cor das nuvens em um dia de chuva e, ao igual às nuvens, trocavam de cor não segundo como soprava o vento, a não ser segundo seu estado de humor. Quando abaixou a cabeça para me beijar, voltaram-se de um cinza suave como o peito de um cisne.
O meu pulso acelerou e me custava respirar. Seus lábios se apressaram para os meus, e depositaram neles um doce beijo que me fez estremecer. Retirou-se e ficamos nos olhando nos olhos, a uns poucos centímetros de distância. Houve um instante de conhecimento. Fazia três meses que compartilhávamos a cama. E se encarregava de minha segurança. Eu lhe tinha introduzido no século XXI. Tinha observado como o solene Frost voltava a aprender a sorrir e a rir. Tínhamos compartilhado centenas de intimidades, dúzias de brincadeiras, milhares de coisas novas do mundo em geral, e nada disso tinha conseguido que ultrapassássemos o limite. E logo, um olhar e um doce beijo tinham conseguido que meus sentimentos por ele chegassem a um ponto crítico, como se tivesse estado esperando essa carícia, esse olhar sustentado antes de sabê-lo. Amava ao Frost e, enquanto cravava meu olhar no seu, consegui ver que ele também me amava.
A voz do Doyle acabou com o encanto do momento e conseguiu que ambos déssemos um salto.
— O que não ouviste, Meredith, é que a propriedade do Maeve Reed está protegida.
Protegida como só uma deusa, que viveu na mesma parte de terra durante mais de quarenta anos, poderia proteger com um feitiço.
Pisquei e sacudi a cabeça ante o Frost tentando me esquecer de meus sentimentos para escutar com atenção ao Doyle e permanecer atenta a suas palavras. Tinha-lhe ouvido, mas não estava segura de que me importasse, não ainda.
Se Frost e eu tivéssemos estado a sós, teríamos falado disso, mas não estávamos e, embora estivéssemos apaixonados um pelo outro, as coisas não iriam mudar nada. Quero dizer que mudava tudo e ao mesmo tempo não mudava nada. Estar apaixonado por alguém te modifica, mas a realeza virtualmente nunca se casa por amor. Nos casamos para selar tratados, para deter ou evitar guerras, ou para forjar novas alianças. No caso dos sidhe, nos casamos para procriar. Tinha estado compartilhando a cama com o Rhys, Nicca e Frost durante mais de três meses e seguia sem ficar grávida. A não ser que algum deles me deixasse grávida, não me permitiriam casar com nenhum. Só tinham se passado três meses e em geral, às sidhe leva um ano ou mais conseguir engravidar. Até então não tinha me preocupado, E não me preocupava não estar grávida; preocupava-me está e que isso pudesse significar que ia perder Frost. Justo no momento em que me veio esta idéia à cabeça, tive que desprezá-la porque sabia qual era meu destino.
Devia entregar meu corpo ao homem cuja semente conseguisse me deixar grávida. Podia entregar o coração a quem quisesse, mas o corpo ficava comprometido. Se Cel chegasse a ser rei, teria o poder da vida e a da morte na corte. Teria que me matar, e também a qualquer um que significasse uma ameaça para seu poder. Frost e Doyle nunca sobreviveriam. Não estava segura de se perdoaria a vida ao Rhys ou Nicca. Cel não parecia temer seus poderes, possivelmente lhes deixasse viver. Possivelmente não. Separei-me um pouco do Frost sacudindo a cabeça.
— O que foi Meredith? — perguntou-me. Agarrou minha mão quando a separei de sua cara e a apertou com tanta força que quase doía, como se tivesse visto o que estava pensando.
Se não podia falar de amor diante de outros, menos ainda do preço de ser uma princesa. Tinha que ficar grávida, tinha que ser a próxima rainha da Corte da Escuridão, ou acabaríamos todos mortos.
— Princesa — disse Doyle com suavidade.
Olhei mais à frente do ombro do Frost para me encontrar com os olhos escuros do Doyle. E algo nesses olhos me disse que, ao menos ele, sabia o que estava pensando. O que significava que também era consciente do que sentia pelo Frost. Eu não gostava que estivesse tão claro ante outros. O amor igual à dor, deveria ser um pouco privado até que desejasse compartilhá-lo com alguém.
— Sim, Doyle — respondi, e minha voz soou áspera, como se precisasse esclarecer a garganta.
— Amparos de tanto poder evitam que outros duendes possam ver através da magia o que acontece dentro. Frost explorou tudo o que pôde, mas a força dos amparos é tal que não podemos saber que surpresas místicas nos estão esperando depois dos muros da propriedade da senhorita Reed. — Falava de coisas normais, mas sua voz seguia mantendo um ar de suavidade. Em qualquer outra pessoa, haveria dito que era uma lástima.
— Está dizendo que não deveríamos entrar? — perguntei-lhe, e soltei a mão que Frost segurava.
— Não, estou de acordo em que seu desejo de reunir-se contigo, com todos nós, é intrigante.
A van se deteve frente a uma enorme grade. Rhys girou tudo o que o cinto de segurança lhe permitiu.
— Eu voto por que voltemos para casa. Se o rei Taranis se inteira de que nos reunimos com ela, se zangará. Há algo pelo que valha a pena correr esse risco?
— Seu desaparecimento foi um grande mistério quando aconteceu — disse Doyle.
— Sim — confirmou Frost. Moveu-se um pouco no assento, com o olhar distante, como se tentasse separar-se de mim. Antes tinha me afastado um pouco dele, o que não pareceu lhe sentar nada bem. — Os rumores diziam que ia ser a próxima rainha da Corte da Luz e, de repente, foi exilada.
Separou a perna da minha e conseguiu que estivéssemos fisicamente separados.
Observei como sua cara se voltava fria, dura e arrogante, a velha máscara que tinha levado na corte durante todos esses anos, e não podia suportá-lo. Agarrei-lhe a mão. Franziu o cenho, claramente desconcertado. Aproximei seus nódulos a meus lábios e os beijei, um a um, até que lhe cortou a respiração. Pela segunda vez em um dia, as lágrimas me brotaram dos olhos. Mantive-os bem abertos e quietos, e obtive não me pôr a chorar.
Frost voltava a sorrir, visivelmente aliviado. Alegrava-me que estivesse contente.
Sempre se deve tentar que a pessoa a que ama seja feliz. Rhys se limitava a contemplar a cena com um olhar neutro. Ele tinha tido seu turno na noite anterior, hoje era o turno do Frost, e Rhys não se importava.
O olhar do Doyle se cruzou com o meu, mas sua expressão não era neutra, mas sim denotava preocupação. Kitto olhou para cima, mas não pude determinar o que pensava a partir de sua expressão. Embora às vezes parecesse tão sidhe, não o era, assim havia vezes nas que não tinha nem idéia do que estava pensando ou sentindo. Frost me segurava pela mão e se sentia feliz por isso. Feliz de que não lhe tivesse dado as costas. De todos eles, só Doyle parecia entender exatamente o que estava sentindo e pensando.
— Que importa a razão pela que foi exilada? — perguntou Rhys.
— Possivelmente não importa — respondeu Doyle, — ou possivelmente importa muito. Não saberemos até que perguntemos.
Olhei-lhe com surpresa.
— Perguntar-lhe. Perguntar-lhe diretamente sem um convite prévio a perguntar algo tão pessoal.
Afirmou com a cabeça.
— Você é uma sidhe, mas também tem uma parte humana. Pode perguntar coisas que nós não podemos, Meredith.
— Sim, mas sou uma pessoa o bastante educada para não perguntar algo tão pessoal de repente — repliquei.
— Claro que sim, mas Maeve Reed não sabe.
Fiquei lhe olhando. Os dedos do Frost percorriam meus nódulos, uma vez atrás da outra.
— Está dizendo que deveria agir como se não tivesse nenhum tipo de educação?
— O que estou dizendo é que deveríamos usar todas as armas das que dispomos. Sua natureza mista poderia ser uma grande vantagem.
— Seria quase o mesmo que mentir, Doyle.
— Quase — confirmou, e então apareceu um leve sorriso em seus lábios. — Os sidhe nunca mentem Meredith, mas esconder a verdade constituiu um valorado passatempo para nós a muito tempo.
— Sou muito consciente disso — respondi, com tanto sarcasmo que se saía pelas janelas da van.
Seu branco sorriso resplandeceu de repente na escuridão de sua cara.
— Como todos nós, princesa, como todos nós — respondeu Rhys. Sacudi a cabeça.
— Já tivemos esta conversa antes, Rhys, não acredita que valha a pena correr esse risco — disse sacudindo a cabeça, e olhei ao Frost. — O que você acha? Girou-se para o Doyle.
— O que acho? Não poria em risco a segurança de Meredith por nada do mundo, mas precisamos conseguir aliados seja como for, e uma sidhe exilada da terra dos sidhe durante um século possivelmente queira arriscar-se para poder voltar.
— Refere-te a que Maeve queira ajudar a que Meredith seja rainha. — Doyle pronunciou a frase meio como uma pergunta meio como uma afirmação.
— Se Meredith chegar a ser rainha, então poderia perdoar Maeve e lhe permitir voltar para casa. Não acredito que Taranis se arriscasse a ir pra guerra por uma sidhe que voltasse do exílio.
— Acha de verdade que alguém da realeza da Corte da Luz quereria vir pra Corte da Escuridão? — perguntei. Frost me olhou.
— Sejam quais forem os prejuízos que Maeve Reed teve em seu momento contra a Corte Escura, esteve privada do contato com duendes durante um século. — Levou minha mão até a boca, beijou a ponta de meus dedos, soprando seu fôlego ao longo de cada um deles antes de me tocar. Conseguiu que me percorresse a pele toda uma série de calafrios. Falou com a boca o mais perto possível de minha pele sem chegar a roçar, — sei o que é querer o contato com outro sidhe e não poder ter. Eu ao menos dispunha da corte e de outros duendes para me consolar. Não posso imaginar sua solidão durante todos estes anos. — Isto último o disse em um murmúrio. Os olhos tinham se tornado cinzas como as nuvens de um dia chuvoso.
Custou-me muito esforço, mas consegui desviar minha atenção do Frost para olhar ao Doyle.
— Acha que ele tem razão? Acha que está procurando uma maneira de voltar para a terra dos duendes?
Elevou os ombros fazendo que o couro da jaqueta rangesse com o movimento.
— Quem sabe, mas o que sei é que depois de um século de isolamento, eu sim quereria.
Assenti.
— Tudo bem, então. Estamos de acordo. Entremos.
— Não estamos de acordo — disse Rhys. — Eu vou entrar contra minha vontade.
— Vale, queixe tudo o que queira, mas está em minoria.
— Se nos acontecer algo realmente horroroso aí dentro, que conste que eu lhes avisei. Assenti.
— Se vivermos o suficiente para que nos possa recordar isso mais te valerá estar morto.
— Deusa querida, se morrermos tão depressa, terei que voltar e te perseguir como um fantasma.
— Se houver algo aí dentro que pode te matar, Rhys, eu terei morrido muito antes que você.
Apesar de sua barba, pude ver que franzia o cenho.
— Mas isso não me consola Merry, não me consola nada.
Voltou-se para ficar frente às enormes grades e apareceu pela janela aberta da van com o objetivo de apertar o botão do interfone e anunciar que tínhamos chegado. Embora tivesse apostado que ela sabia que estávamos aí. Tinha levado quarenta anos para proteger com um feitiço sua propriedade. Conchenn, deusa da beleza e do carisma, sabia que tínhamos chegado.
Capítulo 7
Ethan Kane não era tão alto como parecia; de fato, era mais ou menos da estatura do Rhys, mas sempre parecia mais alto, como se ocupasse mais espaço de algum jeito que não tem nada que ver com o tamanho físico. Usava o cabelo curto, de cor morena escura, quase negro mas sem chegar a sê-lo. Usava óculos sem aros, de forma que quase não se notavam. Ethan devia ter sido bonito. Era de ombros largos, compleição atlética, mandíbula quadrada, e possuía uma covinha no queixo. Os olhos que se viam através dos óculos eram cor avelã, e suas pestanas eram espessas e longas. A roupa que usava tinha sido confeccionada a medida, assim não desafinava entre as estrelas com as que sempre estava acostumado a estar perto. Tinha tudo menos uma boa personalidade. Sempre parecia estar chateado por algo; essa amarga expressão eterna conseguia acabar com todo seu encanto.
Estava de pé, com uma mão segurando o pulso da outra, as pernas separadas, e o peso repartido entre ambas por igual. Franziu o cenho assim que nos viu nos aproximar da casa. Chegamos até o princípio da escada de mármore que conduzia a grande porta de entrada. Os homens do Ethan se encontravam situados em fila ao longo de uns esbeltos pilares brancos que sustentavam o telhado do estreito alpendre de Maeve Reed. Tratava-se de um alpendre enorme e com presença, mas não havia lugar para colocar umas cadeiras e beber um chá gelado nas cálidas noites do verão. Era um alpendre para admirar, não para desfrutar.
Quatro homens, obviamente todo músculo, achavam-se situados na escada que nos separava do Ethan e da porta. Reconheci a um deles. Max Corbin tinha quase cinquenta anos. Tinha sido guarda-costas em Hollywood durante a maior parte de sua vida adulta. Media um metro e oitenta e seu corpo era como uma caixa, todo ângulos, quadrado, inclusive as enormes mãos com os nódulos marcados. Usava o cabelo cinza talhado a escova, o que conseguia lhe conferir um certo estilo e um ar destruidor, apesar de que fazia quarenta anos que usava o mesmo penteado. Tinham-lhe quebrado o nariz tantas vezes que tinha ficado torcido e um pouco esmagado. Provavelmente poderia ter renunciado a seu traje feito a medida para se arrumar, mas Max pensava que o fazia parecer um homem duro, e era verdade.
— Olá, Max — disse.
Assentiu com a cabeça.
— Senhorita Gentry. Ou deveria dizer princesa Meredith?
— Senhorita Gentry está bem.
Sorriu, um breve brilho de humor, até que a voz do Ethan interrompeu nossa pequena conversa, e a cara do Max voltou a adquirir esse olhar típico dos guarda- costas. Esse olhar que diz: «Não vemos nada e não recordaremos nada, e vemos tudo e reagiremos em um abrir e fechar de olhos. Seus segredos estão seguros conosco, igual a seu corpo». Os guarda-costas não encontram trabalho em Hollywood sim adquirem fama de vazar informação à imprensa, ou a qualquer outra pessoa.
— O que está fazendo aqui, Meredith?
Ethan e eu não nos conhecíamos o suficiente como para brincarmos, mas não me importou porque eu pensava lhe tratar da mesma forma.
— Estamos aqui porque a senhorita Reed nos convidou Ethan. E você? O que faz aqui?
Olhou-me com surpresa e efetuou um ligeiro movimento com um ombro, como se algo lhe incomodasse ou tivesse se movido a ombreira e tentasse voltar a colocá-la em seu lugar.
— Somos seus guarda-costas. Assenti e sorri.
— Imaginei isso. Parece-me que não faz muito que trabalha nisto.
— O que te faz supor que não?
Notei como se aumentava meu sorriso.
— Tem a seus homens mais fortes aqui. Se Kane e Hart estivessem ocupados em outros assuntos, outros trabalhos seriam para nós.
Franziu o cenho um pouco mais.
— Tenho muitos mais homens, Meredith, e você sabe. Pronunciou meu nome como se fora um palavrão. Assenti. Sabia.
— Está nos retendo aqui fora por alguma razão concreta, Ethan? A senhorita Reed parecia muito interessada em que nos reuníssemos hoje, não de noite, a não ser durante o dia. — Fiquei olhando o sol que brilhava através das folhas de uns eucaliptos plantados perto da casa. — Está ficando tarde, Ethan. Se nos fizer perder mais tempo aqui fora, quando entrarmos já será de noite. — Era um exagero, ainda ficavam horas de luz solar, mas estava cansada de perder o tempo.
— Diga a que veio e possivelmente lhe deixemos entrar — respondeu Ethan.
Suspirei. Estava a ponto de dizer algo grosseiro inclusive para um ser humano; os duendes nunca diziam grosserias, mas nesse momento não me importava nada. Queria ir a algum lugar tranquilo e pensar. Frost e Doyle se encontravam de pé detrás de mim, um junto ao outro e de cara aos guarda-costas, situados ao longo da escada. Rhys se achava de pé diante do Max, sorrindo pra ele com cumplicidade. Este último admirava Humphrey Bogart quase tanto como Rhys. Viram-se obrigados a passar uma longa tarde juntos devido a um de seus trabalhos de guarda-costas para diferentes clientes, um assunto escuro relacionado com o cinema. Eram amigos após.
Kitto não estava frente ao último guarda-costas, mas sim se achava meio escondido detrás de mim. Parecia um peixe fora da água com seus shorts curtos, a camiseta regata e as sapatilhas Nike de menino. Pôs-se uns grandes óculos de sol, mas além disso, poderia ter passado pelo sobrinho de alguém, o típico que mais que sobrinho está acostumado a ser o menino de companhia. Kitto sempre dava a sensação de ser servil, o brinquedo de alguém, inclusive a vítima de algo. Não tinha nem idéia de como tinha podido sobreviver entre os trasgos.
Olhei a todos os que tínhamos em frente. Ethan estava de pé na escada como se fosse uma versão mais alta do Napoleão. Sacudi a cabeça.
— Ethan, quer saber por que a senhorita Reed nos chamou quando já contratou a vós. Está-te perguntando se lhes vai despedir.
Começou a protestar, mas lhe detive.
— Ethan, por favor, diga a alguém a quem lhe importe. Te vou economizar toda a comédia. A senhorita Reed não nos contou exatamente por que quer nos ver, mas queria falar comigo, não com meus guardas, assim acredito que podemos estar seguros de que não nos quer para nenhum trabalho de guarda-costas.
Se franzia mais o cenho, acabaria por se machucar.
— Não só trabalhamos como guarda-costas, Meredith. Também somos detetives. Para que lhes necessita?
O que não disse, «quando nos tem», flutuava no ar entre os pressente. Encolhi-me de ombros.
— Não sei Ethan, de verdade. Mas se nos deixa entrar, nós todo podermos averiguar.
Pouco a pouco sua expressão voltou para a normalidade. Sua cara parecia agora mais jovem, mas desconcertada.
— Isso seria muito agradável da sua parte, Meredith. — Olhou-me com intriga, como se estivesse se perguntando qual era meu plano.
— Posso ser muito agradável com as pessoas que me deixarem ser, Ethan. Max falou em voz baixa de maneira que Ethan não pudesse lhe ouvir.
— Agradável quanto?
Rhys respondeu, também em voz baixa.
— Muito, muito agradável.
Os dois compartilharam um desses sorrisos masculinos dos que nunca fazem partícipe às mulheres, mas que sempre as incluem.
— Há algo engraçado? — perguntou Ethan voltando para sua expressão amarga de antes e com uma voz seca e cortante.
Max sacudiu a cabeça como se não confiasse no que poderia dizer.
— Aqui, passando o momento, senhor Kane — respondeu Max.
— Não nos pagam para passar o momento, pagam-nos para proteger a nossos clientes.
— Varreu a tudo com o olhar. — Seríamos uns péssimos guarda-costas se lhes deixássemos entrar a todos na casa, especialmente armados como estão.
— Sabe que Doyle não me deixará ir a nenhuma parte sem guarda-costas, e também sabe que eles não se desfarão de suas armas — repliquei sacudindo com a cabeça. Sorriu com um sorriso bastante desagradável.
— Então, não podem entrar.
De pé na entrada da casa, com saltos de dez centímetros, sob um sol que estava começando a conseguir que o suor alagasse minha pele, não gostava de seguir mais com esse jogo. Provavelmente, fiz a coisa menos profissional de toda minha vida. Comecei a gritar com todas minhas forças:
— Maeve Reed, Maeve Reed, sai e vem brincar conosco! Sou a princesa Meredith e meu séquito! — Segui gritando a primeira parte. — Maeve Reed, Maeve Reed, sai e vem brincar conosco!
Ethan tentou gritar para que não me ouvisse, mas eu tinha educado minha voz e me respaldavam anos de prática de falar em público, com o que tinha mais potência que ele. Os homens do Ethan não sabiam o que fazer. Não fazia mal a ninguém, limitava-me a gritar. Depois de cinco minutos de confusão, uma jovem abriu a porta. Era Marie, a secretária pessoal da senhorita Reed. Se queremos entrar? Sim, claro. Demoramos outros dez minutos em entrar porque Ethan queria que deixássemos as armas fora. Ao final, Marie teve que ameaçá-lo que os despediriam se não nos deixavam entrar.
Max e Rhys continuavam rindo com tanta vontade que tivemos que deixá-los fora, apoiados um sobre o outro como se fossem um par de bêbados. Ao menos alguém estava se divertindo.
Capítulo 8
A sala de estar de Maeve Reed era tão grande como todo meu apartamento. Seu tapete de cor branca quebrada se estendia como baunilha ao longo dos degraus pelos que se baixava ao salão propriamente dito. Havia uma chaminé o suficientemente grande para assar um filhote de elefante. Só o suporte ocupava a maior parte de uma das paredes brancas de estuque; os tijolos vermelhos e marrons salpicavam o branco estrito da parede. Havia um sofá branco em forma de ‘L’ que podia acolher a umas vinte pessoas diante da chaminé. Várias almofadas marrons, douradas e brancas estavam repartidas com gosto por cima dele. A mesa, de madeira de cor pálida, encontrava-se rodeada por suas correspondentes cadeiras de cor branca. Sobre ela tinham disposto um jogo de xadrez com peças de um tamanho considerável, e um abajur que estou acostumado a ver na Tiffany, outorgava a nota de cor em que, de outro modo, teria sido uma sala monocromática.
Um quadro pendurado a um dos lados da chaminé recordava as cores do abajur, e um segundo grupo de cadeiras e almofadas dispostas para facilitar as conversações estava situado no lado oposto da sala, em um nível mais alto. Em meio das cadeiras havia uma enorme árvore branca de Natal. Estava coberta de luzes brancas e de adornos dourados e chapeados que deveriam ter dado mais vida à sala, embora não era assim. A árvore era, simplesmente, outro elemento de decoração sem vida nem emoção. Tinham retirado a um lado uma mesa para que coubesse, e sobre ela havia o que parecia ser limonada e chá gelado em jarras altas. Uns quantos quadros mais penduravam das paredes, a maioria deles combinando com o desenho de cores do abajur. O ambiente falava de um decorador profissional e da pouca ou nenhuma intervenção de Maeve Reed, com o que a única coisa que podia saber dela observando a sala era que tinha dinheiro e que deixava que outras pessoas decorassem sua casa. Quando alguém tem uma sala em que não desafina nada, dos móveis até a árvore de Natal, então não é real. É só um espaço para mostrar aos outros.
Marie era alta e estilizada, estava vestida com um impoluto traje calça branca ostra que não favorecia sua cor de pele azeitona e seu curto cabelo moreno. Embainhada em umas botas de salto alto, ultrapassava o metro e oitenta. Era uma garota alta e sorridente de uns vinte e tantos.
— A senhorita Reed se reunirá conosco breve. Alguém deseja tomar algo? — aproximou-se da mesa onde se achavam o chá e a limonada.
Em realidade, gostaria bastante, mas uma de nossas normas é que nunca aceita comida nem bebida de alguém até que está seguro de que não querem te fazer nenhum mal. O que nos preocupava não era que houvesse veneno, a não ser algum feitiço, umas gotas de poção mescladas com a limonada.
— Obrigado... é Marie, não é? Estamos bem — respondi.
Sorriu e assentiu com a cabeça.
— Então, por favor, sentem-se. Como se estivessem em sua casa. Enquanto isso irei comunicar à senhorita Reed que já chegaram.
Desceu a escada com um andar elegante e saiu pela porta que conduzia a um saguão que entrava até desaparecer em alguma parte da casa.
Joguei uma olhada ao Ethan e a seus dois musculosos homens. Tinha deixado a outro deles fora com o Rhys e Max. Marie não lhes tinha oferecido refrescos, suponho que devido a que não tem por que entreter a alguém enquanto espera se trabalhar para ti. O que tirava a luz a dúvida de que se não ia contratar a nós então, o que íamos fazer ali? A única coisa que Maeve Reed queria era reunir-se com outros sidhe da corte suprema? Estava disposta a arriscar um século de proibição só por um pequeno bate-papo? Me parecia que não, mas vi personagens da realeza das cortes supremas fazer coisas mais parvas por razões mais ínfimas.
Baixei os degraus que conduziam ao enorme sofá em forma de ‘L’. Kitto me seguia como se fosse minha sombra. Girei-me para ver os homens.
— Venham meninos, nos sentemos e finjamos que nos damos bem.
Percorri uns dois metros de sofá antes de me sentar. Movi as almofadas até estar cômoda, e coloquei bem a saia, que tinha subido ao me sentar. Kitto se agachou entre meus pés, embora bem sabe a Deusa que havia suficiente espaço no sofá para todos. Não o obriguei a levantar-se porque, apesar dos óculos escuros que usava, podia ver quão nervoso estava. A grande sala de estar branca parecia aumentar seu agorafobia. Achava-se sentado no chão, muito apertado contra minhas pernas e com uma mão as rodeando, como se eu fosse um grande urso de pelúcia.
Os homens seguiam de pé sob o grande arco de entrada da sala, olhando uns aos outros.
— Cavalheiros — eu disse, — nos sentemos.
— Um guarda-costas não descansa nunca em seu trabalho — afirmou Ethan.
— Sabe que não somos uma ameaça para a senhorita Reed, Ethan. Não sei de quem pretende protegê-la neste momento, mas não é de nós.
— Possivelmente se disfarçam ante a imprensa, mas eu sei o que são, Meredith — disse Ethan.
— E o que somos? — A profunda voz do Doyle retumbou no ambiente provocando alguns ecos.
Ethan deu um salto. Eu tive que girar a cabeça para esconder o sorriso que aparecia nela.
— São escuros. — Ethan pronunciou a última palavra arrastando-a em um vaio.
Voltei a me girar para eles. Doyle estava de pé ante ele me dando as costas. Não podia saber o que estava pensando, embora certamente tampouco o poderia ter sabido se tivesse me olhando. Doyle colocava a melhor cara de pôquer do mundo. Frost se encontrava mais perto do homem musculoso desconhecido, e sua cara mostrava de novo a máscara arrogante que estava acostumado a exibir na corte. Inclusive o homem musculoso punha cara de pôquer, exceto por um pequeno tic nervoso que afetava os olhos. Mas as mãos do Ethan tremiam de aborrecimento. Olhava fixamente ao Doyle como se lhe odiasse.
— O que acontece é que está ciumento, Ethan, ciumento de que a maioria das super estrelas prefiram a um guerreiro sidhe como guarda-costas que a ti.
— Os enfeitiçaram.
Levantei uma das sobrancelhas ante esta afirmação.
— Quem? Eu?
Assinalou com um gesto de aborrecimento aos dois guerreiros. Acredito que desejava que seu gesto tivesse ficado mais claro, mas tinha medo da reação do Doyle.
— Eles.
— Ethan, Ethan. — Outra voz masculina lhe chamou do outro extremo da sala — Já te disse mil vezes que isso não é verdade.
Soube em seguida que se tratava de um dos irmãos Hart. Descia a escada que levava ao sofá quando tive a certeza de que se tratava do Julian Hart. Jordon e Julian eram gêmeos idênticos, ambos com o cabelo castanho muito curto aos lados e um pouco mais comprido na parte superior, de maneira que podiam pentear-lhe em forma de um pequena crista, algo muito à última, muito última moda. Ambos mediam um metro e oitenta, ambos eram o bastante bonitos para trabalhar de modelos, coisa que tinham feito aos vinte e poucos para conseguir dinheiro com o propósito de pôr em marcha a agência de detetives. A jaqueta do Julián era de cetim cor vermelho escuro, e sob ela usava um par de calças de pinças cor granada — marrom simples, mas de marca. Calçava uns mocassins negros brilhantes sem meias três quartos, assim podia entrever seus pés bronzeados pelo sol enquanto caminhava com graça pela sala. Protegia os olhos depois de uns óculos de sol com lentes amarelas, uns óculos que a ninguém lhe teria ocorrido combinar com essa roupa, mas que lhe sentavam de maravilha.
Fiz um gesto de me levantar, mas ele me disse:
— Não, não minha estimada Merry, não te levante; me aproximo eu. — Rodeou o sofá enquanto observava aos quatro homens que seguiam de pé sob o arco. — Ethan, querido, já te disse mais de um milhão de vezes que os guerreiros sidhe não fazem nada para tirar nosso mercado. Simplesmente, são mais exóticos, mais belos que qualquer de nossos homens.
Tomou a minha mão e a beijou descuidadamente. Continuando, sentou-se com graça a meu lado, e passou um de seus braços por detrás de meus ombros, de maneira que parecíamos um casal.
— Já sabe como é Hollywood, Ethan — disse por cima do ombro. — Qualquer estrela com um guerreiro como guarda-costas tem publicidade assegurada. Acredito que algumas pessoas inventam coisas só para que as tenham que proteger.
— Essa é minha experiência — disse Frost.
O homem musculoso situado mais perto dele deu um salto. Ou seja, que histórias teria Ethan contado aos outros sobre os escuros.
— E quem não gostaria de que você o protegesse, Frost? – disse Julian.
Frost se limitou a o olhar com seus olhos cinzas muito quietos. Julián riu e me abraçou.
— É a garota com mais sorte que conheço Merry. Seguro que não quer compartilhá-los?
— Como está Adam?
Julian ficou a rir.
— Adam está maravilhosamente bem.
E voltou a rir. Adam Kane era o irmão mais velho do Ethan e o namorado de Julian. Fazia ao menos cinco anos que saíam juntos. Quando estavam em privado, onde não tinham que aguentar comentários grosseiros de estranhos, ainda se comportavam como um par de tolinhos.
— Venham aqui, cavalheiros. Venham e sentem-se — disse Julian movendo a mão.
Olhei pra atrás. Ninguém se moveu.
— Doyie e Frost não se moverão até que Ethan e o outro homem o façam. Julian se girou para vê-los todos.
— Frank — disse — nossa última aquisição.
O homem era alto e parecia jovem, bastante jovem. Não parecia um Frank. Um Cody possivelmente, ou um Josh.
— Prazer em conhecê-lo, Frank — disse.
Olhou-me e logo olhou ao Ethan; finalmente, assentiu com a cabeça. Parecia como se não estivesse seguro de que seguiria mantendo seu posto de trabalho se fosse agradável conosco.
— Ethan — disse Julian — falou seu ponto de vista sobre os guerreiros sidhe no conselho de direção e perdeu na votação. — Sua voz tinha perdido esse ponto de alegria e era agora séria e estava repleta de algo similar a uma ameaça.
Perguntei-me qual seria essa ameaça. Ethan Kane era um dos sócios fundadores da empresa. Era possível despedir um dos fundadores?
— Ethan — repetiu Julian — sente-se, — Disse-o com um matiz de mando que nunca tinha ouvido antes. Durante um segundo, perguntei-me se tinha me equivocado de gêmeo, já que Jordon era mais propenso a recorrer à força, enquanto que Julian era mais diplomático e brincalhão. Estudei seu perfil e, não, a covinha era um pouco mais fundo junto à boca, as bochechas com um pouquinho menos de forma. Era Julian. O que tinha acontecido entre o Kane e Hart para que sua voz fosse tão dura?
Fosse o que fosse tinha sido suficiente, porque Ethan começou a baixar os degraus que conduziam até o sofá. Frank lhe seguiu. Doyle e Frost lhes observaram durante uns segundos e, lentamente, baixaram também. Ethan se sentou na parte situada frente a mim. Frank se instalou como se não estivesse seguro do que era o correto. Ficou a uma distância prudencial do Ethan para não chegar a se tocarem.
Doyle se sentou a meu lado, assim que fiquei entre ele e Julian. Tinha obrigado ao Frost a mover um assento para sentar-se a meu lado. Tinha murmurado: «Meredith precisa concentrar-se». De repente, dava-me conta de que ultimamente tinha estado me chamando de Meredith. Normalmente, eu era a princesa ou a princesa Meredith, embora no princípio me chamasse Meredith, quando chegamos pela primeira vez a Los Angeles. Logo tinha se afastado de mim através do nome quando se distanciou também fisicamente.
Estava claro que Frost não tinha gostado de nada a partilha dos lugares, mas duvido de que alguém mais o notasse. A ligeira rigidez dos ombros dizia muito do que estava pensando se lhe conhecia bem. Eu tinha passado muito tempo estudando seu corpo e suas reações. Doyle conhecia o estado de humor de todos seus homens como qualquer bom líder. Kitto possivelmente também o tinha notado, mas era muito difícil saber do que se dava conta o pequeno trasgo e do que não.
Julian permaneceu apertado contra mim, muito mais perto em comparação com o Doyle, embora tenha afastado a mão para permitir que o ombro do Doyle tocasse o meu, e deixou cair sua mão por detrás do sofá de maneira que tocasse as costas do Doyle.
Julian estava apaixonado pelo Adam, estava segura disso, mas também estava segura de que quando me falava de compartilhar a meus homens não dizia totalmente em brincadeira. Possivelmente ele e Adam tinham chegado a alguma espécie de acordo, ou possivelmente era que não se podia estar perto de um sidhe sem sentir curiosidade. Não sei.
Agora Julian estava mais tenso, mais quieto, como se se concentrasse em não mover muito a mão. Doyle aguentaria que lhe tocasse, mas não se passava da raia; tinha as mesmas regras para os homens que lhe desejavam que para as mulheres. Mil anos de celibato forçado tinham feito que Doyle, e muitos dos guardas, não seguissem as regras dos duendes quanto a roces casuais. Se não podia chegar até o final, os preliminares podiam chegar a ser uma tortura. Rhys sempre tinha tido umas regras diferentes, igual a Galen: eles preferiam algo antes que nada.
Ethan olhou aos dois guardas com o cenho franzido. Desviou a vista para o Kitto e lhe cravou os olhos com desagrado.
— Tem algum problema, Ethan? — perguntei-lhe. Olhou-me surpreso.
— Eu não gosto dos monstros, não importam quão bonitos sejam.
Julian retirou o braço que me rodeava e se sentou mais diante, aproximando-se do Ethan.
— Vais me obrigar a te enviar pra casa?
— Não é meu pai... nem meu irmão. — Isto último o disse com raiva. É que o Ethan não gostava que seu irmão saísse com o Julian?
Julian se virou um pouco para trás e inclinou a cabeça como se lhe acabasse de ocorrer algo.
— Não vamos lavar roupa suja diante de outras pessoas, de maneira nenhuma. Mas se não for capaz de cumprir com seu trabalho, chamarei o Adam e podem trocar os casos. Seguro que não lhe importará nada que Meredith esteja aqui.
— Há muitas coisas que não lhe importam — replicou Ethan com um tom de raiva claramente dirigido para o Julian.
— Vou ligar pra o Adam e lhe direi que vai para lá — disse Julian tirando um pequeno celular do bolso interior da jaqueta.
— Sou o encarregado desta operação, Julian. Você está aqui só se por acaso necessitarmos de apoio mágico.
Julian suspirou observando o telefone que tinha na mão.
— Se for o chefe, Ethan, atua como tal. Porque agora está se pondo em evidência diante de toda esta boa gente.
— Gente? — Ethan ficou de pé e o mais firme que pôde. — Isto não é gente; não são humanos.
Uma voz clara e de tilintem soou detrás do Ethan.
— Bom, se essa for sua opinião, senhor Kane, possivelmente cometi um engano quando decidi contratar sua agência.
Maeve Reed estava de pé no saguão ao final do tapete baunilha. Não parecia contente.
Capítulo 9
Maeve Reed estava utilizando magia para parecer mais humana. Era alta, esbelta, e os quadris rompiam a linha reta de suas calças marrons. Sua blusa era de manga larga e de cor dourada pálido. Levava os primeiros botões desabotoados, assim, quando se movia, podia entrever o decote moreno e o princípio de uns firmes peitos. Se eu tivesse posto algo similar, nunca me teria ficado tão bem. Sua constituição era como a da maioria das supermodelos, embora ela não tinha que morrer de fome nem ir a academia para manter a linha. Era seu aspecto natural.
Tinha no cabelo loiro uma fina fita marrom. O cabelo murcho lhe caía em cascata até a cintura. Sua pele era de uma ligeira cor bronzeada. Afinal de contas, os imortais não têm que preocupar-se com o câncer de pele. Levava uma maquiagem tão ligeira e adequada que ao princípio pensei que não usava nada. Tinha as maçãs do rosto altas e bem formadas, e os olhos eram de um azul brilhante e profundo.
Era bonita, mas mostrava uma beleza humana. Estava se escondendo de nós. Possivelmente tinha se convertido em um costume para ela ou possivelmente tinha suas razões para fazer isso.
Julian ficou em pé para recebê-la enquanto se aproximava de nós. Murmurou- lhe algo ao ouvido, provavelmente para lhe pedir desculpas pelo comentário pouco afortunado do Ethan em relação aos não humanos.
Ela sacudiu a cabeça conseguindo balançar os pequenos brincos de ouro que usava.
— Se for o que realmente pensa dos duendes, acredito que se sentiria mais cômodo trabalhando em outro lugar.
Ethan caminhou para onde se encontrava ela.
— Não tenho nenhum problema com você, senhorita Reed. Você pertence a Corte da Luz, os portadores de beleza e bons desejos. — Assinalou-nos de maneira um pouco melodramática. — Eles são os que aparecem nos pesadelos, e não deveria permitir lhes entrar nesta casa. São um perigo para você e para qualquer um que se aproxime.
— Que quantidade de mercado estão perdendo por nossa culpa? — perguntei-lhe e, por alguma razão, minha voz provocou um silêncio repentino.
Ethan se girou para mim, provavelmente para dizer algo desafortunado. Julian lhe agarrou pelo braço; de onde me encontrava, parecia que o fazia com força. O corpo do Ethan reagiu como se lhe tivessem golpeado e, por um segundo, pensei que estávamos a ponto de presenciar uma briga.
— Vai embora, Ethan — disse Julian em voz baixa.
Ethan se soltou do braço que lhe sujeitava e se despediu rapidamente da senhorita Reed.
— Vou, mas quero que entendam que sei que os luminosos são diferentes dos escuros.
— Não ponho um pé na Corte da Luz há mais de um século, senhor Kane. Nunca voltarei a ser um membro de dita corte.
Ethan franziu o cenho; acredito que pensava que a senhorita Reed estaria de acordo com sua opinião. Em geral, era insondável e desagradável, mas não até este extremo. Devíamos lhe haver tirado uma boa porção do mercado.
Murmurou algumas desculpas mais e saiu da sala.
— Está acostumado a ser sempre assim? — perguntei quando fechou a porta. Julian se encolheu de ombros.
— Há muita gente que o Ethan não gosta.
— Realmente, sinto-me muito abandonada, Julian, com a saída do Ethan e tudo isto — se queixou Maeve.
Olhei surpreendida seu formoso e cuidado rosto. Parecia tão sincera, inclusive os seus olhos azuis brilhavam com força enquanto falava. Estava se esforçando por ser encantadora, e humana. Teria sido muito mais fácil para ela ser encantadora se se desfizesse do encanto que estava utilizando para parecer bela segundo os humanos, em lugar de segundo os não humanos.
Julian me olhou, logo dirigiu um grande sorriso a Maeve Reed. A sua própria maneira, Julian também estava pondo em marcha seu encanto. Dava-me conta nesse momento de que ele dispunha de seu próprio encanto pessoal. Possivelmente se tratava de magia real consciente, mas o duvido. Quase sempre, a maior parte do encanto pessoal que reforça o carisma é acidental nos humanos.
Olhei-lhes enquanto faziam um pequeno esforço por deslumbrar-se um frente ao outro, e me dava conta de que o encanto não era para nós. Voltei a vista para o Frank, que se encontrava detrás de mim. Olhava-a como se nunca tivesse visto uma mulher em sua vida, ou ao menos não a uma como esta. Maeve Reed estava tentando ser encantadora não humanamente, embora sim bela ao estilo humano, para alegria de seu guarda-costas, não para nós. Teria usado mais efeitos especiais se o espetáculo tivesse sido para nós.
— Senhorita Reed — disse Julian efusivamente e movendo-se para tomá-la pelo cotovelo e separá-la de nós, — nunca a abandonaríamos. Você não é só nossa cliente, a não ser uma das coisas mais preciosas que tivemos que vigiar. Daríamos nossas vidas sem pigarrear por você. Que mais pode fazer um homem por uma mulher?
Pensei que estava passando um pouco com os elogios, mas não tinha passado muito tempo com Maeve Reed e desconhecia se isso era o que gostava.
Ruborizou-se ligeiramente, um rubor resultado da magia e não real. Podia senti-lo no ambiente. Em ocasiões, as mudanças físicas mais simples requerem o máximo de magia. Soltou-se delicadamente do braço que a sujeitava e baixou sua voz para que não ouvíssemos o que dizia. Claro que poderíamos ter ouvido se tivéssemos querido, mas teria sido algo grosseiro e certamente ela teria notado o feitiço. Não queríamos desagradar à deusa; ao menos, não no momento.
Giraram-se para nós, ambos sorridentes, ambos encantadores, ela lhe sujeitando pelo braço firmemente. Algo nos olhos do Julian tentava me dizer algo, mas não pude saber o que era através dos óculos de lentes amarelas que usava.
— A senhorita Reed me convenceu para que fique a seu lado enquanto dura sua visita — disse levantando uma sobrancelha.
E, finalmente, captei a mensagem. A senhorita Reed tinha contratado ao Kane e ao Hart para proteger-se de nós. Ela tinha medo da Corte da Escuridão, o suficiente para não ficar a sós conosco sem alguém que a protegesse, tanto mágica como fisicamente. Embora sua magia alagava a casa, o terreno e as paredes, seguia tendo medo de nós.
Pode-se pensar que os duendes não são supersticiosos, sobretudo com outros duendes, mas sim revistam sê-lo. Meu pai dizia que provinha do fato de não saber virtualmente nada das culturas de outros duendes, só daquela em que se nascia. A ignorância provoca medo.
Havia tanta magia nas paredes da casa de Maeve que, quase do momento em que tínhamos atravessado a grade com a van, tinha começado a deixar de... ouvi-la. Tratava-se de uma habilidade que aprendia se passava muito tempo rodeada de magia frenética e potente. Tinha que aprender a suavizar sua presença se não queria está todo o tempo notando que te rodeava constantemente, além de que te impedia de sentir novos feitiços e perigos mais imediatos. Era como receber o sinal de centenas de emissoras de rádio ao mesmo tempo. Se tenta escutar todas de uma vez, não pode entender nada de nada.
Olhei a cara sorridente e desconcertante de Maeve Reed, e sacudi a cabeça.
Girei-me e olhei ao Doyle. Tentei lhe perguntar com os olhos e a cara que nível de humanidade e de grosseria podia utilizar esse dia.
Pareceu entendê-lo porque assentiu levemente. Compreendi que podia ser tão grosseira e tão humana como quisesse. Esperava que isso fosse o que tinha querido me dizer, porque estava a ponto de lançar uma réstia de insultos mortais à rainha dourada de Hollywood.
Capítulo 10
Levantei-me e rodeei o sofá para me aproximar e saudar a deusa. Kitto me seguiu, e tive que lhe ordenar que ficasse ao lado do sofá. Se tivesse podido escolher, teria permanecido pego a mim como se fosse um cachorrinho muito carinhoso.
Sorri à medida que me aproximava de Maeve e de Julian.
— Não imagina que grande honra é conhecê-la, senhorita Reed.
Adiantei a mão, e ela soltou Julian para poder me saudar. Tocou-me só com as pontas dos dedos; mais que nos dar as mãos, roçamo-nos. Havia visto muitas mulheres que não sabiam como dar a mão, mas Maeve nem sequer o tentava. Possivelmente se supunha que devia tomar-lhe e me ajoelhar, mas se estava esperando uma genuflexão, deixaria claro. Eu já tinha uma rainha, e só uma. Maeve Reed podia ser a rainha de Hollywood, mas não era o mesmo.
Sabia que minha cara refletia uma expressão de desconcerto, mas não pude adivinhar o que se escondia atrás de sua preciosa cara. Tínhamos que sabê-lo.
— Contratou ao Kane e ao Hart para que a protegessem de nós, verdade?
Maeve me olhou com um olhar perfeito, agradável, incrédula: com os olhos completamente abertos e a boca grafite com carmim em forma de pequena «ou». Se tratava de um olhar para a câmara, para uma tela que convertesse sua cara em uma imagem de uns seis metros. Era um rosto para conseguir ganhar ao público e aos chefes dos estudos. Era um grande olhar, embora não o suficiente.
— Um simples sim ou não bastará, senhorita Reed.
— Sinto muito — respondeu com uma voz que comunicava arrependimento e um olhar confundido. Sujeitava-se ao Julian cada vez com mais força, mas a única coisa que conseguia era que essa atitude de confusão parecesse falsa.
— Contratou ao Kane e ao Hart para proteger-se de nós?
Nos deu de presente a risada que a revista People tinha batizado como a risada do milhão de dólares, aquela em que seus olhos cintilavam, sua cara brilhava e sua boca se entreabria ligeiramente.
— Que idéia mais desatinada. Asseguro-lhe, senhorita Gentry, que não lhe tenho medo.
Tinha evitado uma resposta direta. Não tinha medo de mim, essa parte devia ser verdade, porque entre nós está proibido mentir. Se Doyle não me houvesse dito na van que seria grosseira, teria deixado aí o tema, porque seguir com ele ia ser cada vez mais violento; teria sido inclusive insultante, e muitos duelos tinham começado por muito menos. Entretanto, só os sidhe nascidos na corte real estavam obrigados a conhecer as normas. Confiávamos em que Maeve acreditasse que eu tinha sido criada entre selvagens, escuros e humanos.
— Então, tem medo de meus guardas? — perguntei-lhe.
A risada ainda fazia que lhe resplandecesse mais a cara e os olhos enquanto me olhava.
— O que é o que lhe tem feito pensar algo tão absurdo?
— Você.
Sacudiu a cabeça e a larga cascata de cabelo dourado se balançou no ar. O brilho da risada ainda podia ver-se em sua cara, e seus olhos eram um pouco mais azuis. De repente, dava-me conta de que não se tratava do brilho da risada, que já deveria ter desaparecido, mas sim de uma espécie de encanto muito sutil. Estava brilhando de propósito, só um pouco. E, se estava brilhando, significava que estava utilizando magia para tentar me convencer de que acreditasse. Franzi o cenho porque não era capaz de sentir a magia usada contra mim. Em geral, quando outro sidhe a utiliza, a gente sabe.
Girei-me para olhar a meus guardas, situados detrás de mim. Doyle e Frost estavam de pé, mas suas caras eram ilegíveis, inclusive arrogantes. Kitto seguia de pé ao lado do sofá, no lugar onde lhe tinha deixado antes. Com uma mão se segurava ao sofá branco, como se fosse melhor agarrar-se a algo que estar de pé sem tocar nada.
Perguntei-me se sentia coisas que eu não podia sentir. Eu era duende só pela metade; sempre tinha acreditado que havia coisas que me perdia devido a minha ascendência mesclada. Também tinha ganho outras coisas (ser capaz de realizar magia grande rodeada de metal, por exemplo), mas cada ganho comporta uma perda.
— Senhorita Reed, perguntarei uma vez mais, contratou ao Kane & Hart para proteger- se de meus guardas?
— O que eu disse a Julian e seus homens é que eu tenho alguns fãs descontrolados. Eu não me importei em olhar para Julian para uma confirmação.
— Eu acredito que foi isso que você disse ao Julian, Srta. Reed. Agora, qual é a verdadeira razão de porque os contratou?
Olhou-me fixamente com um horror fingido, ou possivelmente fosse real. Jogou uma olhada ao Frost e ao Doyle, e disse:
— Não lhe ensinastes boas maneiras?
— Tem as maneiras que precisa — respondeu Doyle.
Algo cruzou o olhar de Maeve, acredito que foi medo. Voltou a me olhar; continuando, baixou a vista ao chão com esses doces olhos azuis e tremendo. Tinha medo. Tinha muito, muito medo. Mas por quê?
— A sério contratou ao Julian e a sua gente para protegê-la de algum fã um pouco descontrolado?
— Basta — sussurrou.
— De verdade acredita que lhe faremos mal? — perguntei-lhe.
— Não — respondeu, embora o disse muito depressa, como se finalmente estivesse aliviada de poder oferecer uma resposta direta.
— Então, por que nos teme?
— Por que estão me fazendo isto? — perguntou com uma voz que continha toda a dor de uma dama a que lhe faz a mesma pergunta um amante que não cessa de lhe provocar sofrimento.
Estirei o pescoço para poder ouvi-la. Julian parecia esgotado.
— Acredito que já perguntaste muitos coisas, Meredith. Sacudi a cabeça.
— Não, ainda não — respondi negando com a cabeça, e enfrentei a esses olhos azuis cheios de dor. — Senhorita Reed, não tem por que esconder-se de nós.
— Não sei a que se refere.
— Pense que o que acaba de dizer é quase uma mentira. –Seus olhos se voltaram de repente azul cristal, e me dava conta de que estava vendo-os através do brilho de lágrimas reprimidas. Logo, as lágrimas caíram lentamente ao longo de suas douradas bochechas e, à medida que escorregam por elas, o azul de seus olhos foi mudando de cor; seguia sendo azul, mas agora era tricolor, como meus olhos. Tinha um largo círculo exterior de cor azul profunda, como uma safira, logo outro círculo muito mais estreito de cor cobre e um terceiro círculo também estreito de cor ouro líquido ao redor do ponto escuro que formava sua pupila. Mas o que diferenciava seus olhos dos de outros, inclusive de outros sidhe, era que as cores ouro e cobre atravessavam o círculo externo como raios de cor em uma boa peça de lapislázuli, de maneira que o anel de azul profundo estava repleto de brilhos metálicos. Seus olhos eram como um céu azul tormentoso atravessado por relâmpagos de cores.
Nos quarenta anos que levava como estrela de cinema, nenhuma câmara tinha visto esses olhos. Seus verdadeiros olhos. Estou segura de que algum agente ou chefe de algum estúdio a tinha convencido para que escondesse o menos humano de seus traços. Eu tinha escondido o que era e como era durante só três anos, e tinha sentido partes de mim morrer por causa disso. Maeve Reed levava décadas escondendo-se.
Manteve o olhar afastado de Julian, como se não quisesse que lhe visse os olhos. Tomei uma das mãos com as que se sujeitava ao braço do Julian; ela opôs resistência, assim não a forcei. Limitei-me a pressionar levemente seu pulso até que retirou a mão voluntariamente. Continuando, tomei sua mão com a minha e a apertei. Ajoelhei-me ante ela e aproximei sua mão a meus lábios. Beijei-a da forma mais doce possível.
— Tem os olhos mais bonitos que vi em minha vida, Maeve Reed — lhe disse.
Soltou a outra mão que seguia sujeita ao braço do Julian e se limitou a ficar ali, de pé, me olhando e com lágrimas como gotas de cristal lhe escorregando pelas bochechas. Pouco a pouco, desfez-se do resto de encanto. O bronzeado começou a desaparecer, ou melhor a mudar, até que deixou de ser marrom mel e se converteu em um dourado suave. O cabelo se clareou, cada vez mais loiro, até que acabou sendo de um loiro quase branco. Não entendia por que tinha trocado a cor de seu cabelo a esse loiro tão comum, quando sua cor natural também estava dentro dos padrões humanos.
Sustentei suas duas mãos entre as minhas enquanto ela se desfazia de um século de mentiras e aparecia ante mim como algo deslumbrante. De repente, pareceu haver mais cor na habitação, e um aroma de flores doces que cresciam a milhares de quilômetros de distância deste lugar deserto invadiu a estadia. Agarrou-se a minhas mãos como se fossem sua única ancoragem, como se fosse desvanecer-se entre a luz e a doçura se a soltasse.
Jogou a cabeça para trás, fechou os olhos, e seu brilho dourado encheu toda a sala como se um pequeno sol tivesse saído de repente ante mim. Brilhou, e chorou, e segurou minhas mãos tão forte que doía. Em algum momento deste processo, dava- me conta de que eu também estava chorando, e seu brilho chamou ao meu, de maneira que minha pele parecia banhada pela luz da lua.
Ficou de joelhos frente a mim, e olhou maravilhada suas mãos e as minhas, um brilho abraçado a outro brilho. Começou a rir de alegria, quase histérica.
Entre risada e risada pude entender o que dizia.
— E eu... que pensava que os homens... eram os perigosos. – Inclinou-se para mim de repente e pressionou seus lábios contra os meus. Surpreendeu-me tanto aquele beijo que fiquei gelada durante uns segundos. Não sei o que teria feito se tivesse tido tempo para pensar, porque em seguida se separou de mim e se foi correndo par onde tinha vindo.
Capítulo 11
Julian correu atrás dela. Deixou ao jovem Frank de pé ao lado da entrada com cara de desconcerto. Os olhos pareciam sair da sua cara, duvido que Frank tivesse visto antes em sua vida a um sidhe mostrando todo seu poder.
Eu seguia de joelhos, embora o brilho tinha começado a desvanecer-se de minha pele quando Doyle se aproximou de mim.
— Princesa, encontra-te bem?
Olhei-lhe e me dava conta de que eu também devia ter cara de susto. Podia sentir o calor em minha boca ali onde seus lábios tinham meio que tocado os meus. Tinha sido como tomar um sorvo de sol da primavera.
— Princesa? Assenti.
— Estou bem — respondi, mas minha voz soou áspera e tive que esclarecer a garganta antes de poder continuar. — É que nunca... — Tentei explicá-lo com palavras. — Tinha o gosto da luz do sol. E até este momento não sabia que a luz do sol tinha sabor.
Doyle se ajoelhou frente a mim e me falou com doçura.
— O contato direto com possuidores de poderes tão elementares sempre é difícil. Franzi o cenho.
— Disse que acreditava que era aos homens a quem devia temer. O que quis dizer?
— Pensa em como estaria você se tivesse que permanecer sozinha uns poucos anos aqui fora... e logo multiplica-o por um século humano.
Notei que abria os olhos como pratos.
— Quer dizer que se sente atraída por mim. — Sacudi a cabeça antes de que ele pudesse dizer algo. — Se sente atraída pelo primeiro sidhe que a tocou em cem anos.
— Não te superestime Meredith, mas nunca ouvi que Conchenn gostasse das mulheres, assim, sim, o que deseja é o contato com carne sidhe.
— Não posso culpá-la por isso — disse com um suspiro, e logo outra idéia me veio à cabeça. — Não acredita que nos tenha convidado aqui para me pedir que compartilhe a um de vós com ela?
Doyle levantou as sobrancelhas escuras por cima dos óculos de sol.
— Não me tinha ocorrido. — Parecia estar pensando no que acabava de lhe dizer. — Suponho que é uma possibilidade. — Franziu o cenho. — Mas seria o cúmulo da grosseria te pedir algo assim. Não somos só seus amantes, a não ser maridos potenciais. Não é algo casual.
— Você mesmo disse Doyle, ela leva um século sozinha. Cem anos podem acabar com o sentido da educação de qualquer um.
Houve um movimento detrás de mim; giramo-nos e vimos o Frost de pé olhando para a porta. Era Rhys.
— O que aconteceu aqui?
— A que te refere? — perguntei-lhe.
Assinalou ao Doyle e a mim, que seguíamos ajoelhados no chão. Ainda ficavam alguns brilhos do brilho em minha pele, como uma lembrança da luz da lua.
Deixei que Doyle me ajudasse a levantar; me custava manter o equilíbrio.
Maeve tinha me pego com a guarda baixa, certo, mas ao longo de minha vida havia sido tocada por muitos outros sidhe e nunca tinham me transtornado tanto.
— Maeve Reed se desfez de seu encanto — disse. Rhys abriu muito os olhos.
— Senti desde lá de fora. Estão me dizendo que a única coisa que fez foi desfazer-se de seu encanto?
Assenti e ele deixou escapar um assobio.
— Doce Deusa.
— Disso que se trata — disse Doyle. Rhys lhe olhou.
— A que te refere?
— Todos nós fomos adorados no passado, mas para a maioria foi em um passado muito longínquo. Para a Conchenn faz menos de trezentos anos. Ela ainda era adorada na Europa quando nos pediram que... partíssemos.
— Está dizendo que ela tem mais poder porque foi adorada? — perguntou Rhys.
— Mais poder não — respondeu Doyle, — a não ser mais...
— Elegância — sugeri.
— Não estou muito familiarizado com o termo — replicou.
— Mais graça, mais soltura, mais força. — Fiz um gesto com a mão para me desentender. — Não sei. Rhys sabe a que me refiro.
Baixou os três degraus que conduziam ao salão.
— Claro que sei a que te refere. Ela tira mais partido de sua magia. Doyle assentiu por fim.
— Vale, isto já me serve.
Frost veio para nosso lado. Doyle lhe olhou através dos óculos escuros e o enorme homem duvidou durante um instante.
— Tenho algo que acrescentar, meu capitão.
Os dois homens se estudaram mutuamente durante uns segundos.
— O que acontece com vocês dois? Se Frost tiver algo que dizer, lhe deixe que o diga — ordenei.
Frost seguia olhando ao Doyle como se estivesse esperando sua confirmação. Finalmente, Doyle assentiu brevemente e o outro fez uma pequena reverência.
— Vi filmes na televisão de Meredith. Vi como reagem os humanos ante as estrelas dos filmes. Seu culto pelos atores é uma espécie de adoração.
Todos nós o olhamos e foi Rhys quem murmurou:
— Minha mãe, se alguém pudesse demonstrar que a adoraram... — Deixou que sua voz fosse cada vez mais baixa até que se apagou.
Doyle terminou o que estava pensando Rhys.
— Então, exilariam a todos deste país. A única coisa que nos proibiram fazer foi manipular as pessoas para conseguir que nos adorassem como se fôssemos deuses.
— Mas ela não manipulou a ninguém para que a adorassem como se fosse uma divindade. Limitou-se a buscar um trabalho para viver — intervi sacudindo a cabeça.
Os homens refletiram sobre o que acabava de dizer durante uns segundos e, depois Doyle assentiu.
— A princesa está certa, segundo a lei.
— Não acredito que a intenção de Maeve fosse burlar a lei — disse.
Ele balançou a cabeça. — Não quero que ninguém me interprete mal, mas fosse qual fosse sua intenção desfrutou do benefício acrescentado de ser adorada pelos humanos durante os últimos quarenta anos. Uma estrela de cinema humana não pode aproveitar-se desse tipo de intercâmbio de energia, mas Maeve é uma sidhe e sabe exatamente como usar essa energia.
— E o que passa com todos os modelos e atores da Europa com sangue sidhe em suas veias? — perguntei. — E inclusive as famílias reais da Europa? Os sidhe tiveram que se casarem entre todas as casas reais da Europa para selar o último grande tratado. Estão se aproveitando todas elas de seus admiradores humanos?
— Não posso opinar sobre isso — respondeu Doyle.
— Eu posso imaginar – disse Rhys.
O primeiro franziu o cenho, e seu olhar pôde ver-se claramente apesar dos óculos escuros.
— Não nos pagam para imaginar coisas.
Rhys sorriu entre dentes através da barba falsa.
— Tome como se fosse um extra além de meu contrato.
Doyle baixou os óculos o suficiente para que Rhys lhe visse os olhos.
— Bom — disse Rhys. Logo, rindo, acrescentou: — Arrumado a que qualquer um com suficiente sangue sidhe em suas veias pode conseguir poder de toda essa adoração humana. Possivelmente não sejam conscientes disso, mas como se poderia explicar se não o êxito dos reinados das casas reais com as percentagens mais altas de sangue sidhe? Todas elas seguem na ativa, enquanto que as casas que se uniram aos sidhe só uma vez as trataram como uma praga e logo se separaram delas, desapareceram.
Julian voltou a entrar na sala.
— A senhorita Reed solicitou que a reunião prossiga no jardim, ao lado da piscina, a não ser que algum de vocês tenham alguma objeção a respeito.
— Não vejo nenhum problema em seguir com a reunião no exterior em um dia tão bonito como hoje — disse.
— Eu tampouco — conveio Doyie.
Os outros também estiveram de acordo, bom, todos menos Kitto. Seguia agarrado ao sofá. Tive que ir até onde se encontrava e tomar sua mão.
— Será tudo muito espaçoso e muito luminoso aí fora — murmurou.
Kitto tinha passado séculos nos escuros túneis do mundo dos trasgos. Sempre tinha me perguntado por que nos velhos contos os trasgos sempre lutavam sob um céu escuro, como se levassem a escuridão do chão com eles. Se a todos incomodava tanto o ar livre e a luz como ao Kitto, possivelmente não tinham sido capazes de lutar sem sua escuridão. Ou possivelmente só era assim Kitto. Não podia extrapolar dados tão ao extremo me apoiando só em um trasgo. Agarrei-o da mão e o arrastei como se fosse um menino.
— Pode ficar ao meu lado. Se chegar um momento em que não possa suportar, Frost te acompanhará até a van.
— Há algum problema? — perguntou Julian.
— Sofre agorafobia.
— Pobrezinho.
— Se quer seguir aqui em Los Angeles, tem que aprender a superá-la — eu disse. Julian assentiu levemente, quase a modo de saudação.
— Como queira, ele é seu... empregado.
Kitto era um dos poucos guardas que não trabalhavam para a agência. Não era adequado para esse tipo de trabalho. De fato, não sei para que tipo de trabalho era adequado, mas seguro que não era o de guarda-costas, nem tampouco o de detetive, Entretanto, não corrigi ao Julian em relação à situação trabalhista do Kitto.
— Está segura? — perguntou Julian.
Sujeitei a mão do Kitto com mais força.
— Sim, estou segura.
— Então, me sigam princesa, cavalheiros.
Começou a descender pelo vestíbulo pelo que tinha desaparecido Maeve Reed e nós lhe seguimos. Doyle insistiu em ir na frente e em que Frost fosse o último. Eu fiquei no meio dos dois com o Rhys a um lado e Kitto ao outro. O primeiro me agarrou da mão que tinha livre e tentou que fôssemos dando saltos até o jardim, enquanto cantarolava em voz baixa:
— Nos vamos ver o mago, o mágico mago de Oz.
Capítulo 12
Julian nos conduziu através de diversas habitações cuja decoração era muito cara até que chegamos à piscina. Era azul e refletia a luz, como se se tratasse de um vidrol esquartejado. Maeve estava sentada à sombra de um enorme guarda-sol. Envolvia-a um vestido de seda branco. Ao chegar, pudemos ver de soslaio o traje de banho branco e dourado antes de que se tampasse com o vestido, de maneira que o único que ficou à vista foram seus pés, que mostravam uma pedicura perfeita. Estava fumando, aspirava grandes imersões e apagava os cigarros antes de chegar na metade. Ao Julian tinha adjudicado a pouco invejável tarefa de lhe acender os cigarros com um isqueiro de ouro situado em uma bandeja em que se encontrava também o pacote de cigarros. O pouco invejável do trabalho não era acender os cigarros em sim tentar acalmar a Maeve, que era o difícil.
Havia tornado a ficar com o encanto como se se tratasse de uma camiseta gasta. Seguia sendo bonita, mas voltava a parecer Maeve Reed, a estrela de cinema, embora em uma versão bastante estressada. A ansiedade entrava e saía dela como se fossem as ondas do mar.
Outros guarda-costas, incluindo o jovem Frank e ao Max, haviam voltado e se situaram ao redor da piscina. Sua atitude era desafiante. Parte do desafio parecia estar dirigido para nós, embora não nos tomamos como algo pessoal ou, ao menos, eu não o fiz. Não estava segura cem por cento do que pensavam meus homens. Fosse o que fosse, o guardavam para eles.
Maeve insistiu em que nos sentássemos todos a pleno sol. Não estou segura de por que razão, mas acredito sabê-lo. A superstição dizia que a Corte da Escuridão não podia tolerar a luz do sol. Em realidade, alguns não podiam, mas nenhum de nós tinha esse problema. Os olhos do Kitto eram muito sensíveis à luz, mas podia solucionar-se com um bom par de óculos escuros.
Decidi não romper a borbulha em que se encontrava Maeve. Seguia tremendo claramente, tentava que o vestido de seda cobrisse a totalidade de seu bonito corpo, e tinha passado de fumar a beber enquanto nos sentávamos nas cadeiras. Ao menos, a diferença do tabaco, o álcool não me invadia o estômago sem meu consentimento prévio. De maneira que, pessoalmente, acredito que avançamos um passo mais. Se Maeve se embebedava, possivelmente mudaria de idéia.
Julian se sentou em uma cadeira muito meno colocada ao lado da poltrona da deusa. Ela tinha insistido em que estivesse o suficiente perto dela para que tocasse com o ombro o respaldo de sua poltrona. Outros guarda-costas do Kane & Hart se encontravam de pé detrás de Maeve, como se se tratasse de três damas de companhia, embora umas damas de companhia realmente muito musculosas.
A proprietária da casa também tinha insistido em que eu tivesse minha própria poltrona. Eu era um pouco muito baixa e minha saia muito curta para uma poltrona assim; entretanto, sentei-me com graça nela. A única coisa que tinha que tentar era não mostrar muita perna nem a roupa interior. Se tivesse havido mais duendes, não teria me importado tanto, mas com mais humanos que duendes presentes, tentávamos ser educados segundo as normas dos humanos. Além disso, fazia anos que tinha descoberto que, se permitisse que um grupo de homens desconhecidos visse minha roupa interior, tendiam a formar uma impressão incorreta de mim. Em troca, os homens duendes teriam desfrutado do espetáculo e nunca teriam mencionado nada a respeito.
Doyle e Frost estavam detrás de mim como bons guarda-costas. Rhys tinha ido com a secretária pessoal, Marie para tirar o disfarce. Maeve parecia fascinada pelo fato de que tivesse utilizado um disfarce humano em vez do encanto para esquivar à imprensa.
Ou seu encanto era melhor que o nosso, ou os jornalistas não queriam vê-la como outra coisa que não fosse Maeve Reed, a estrela de cinema. A palavra encanto procede da idéia do encanto das fadas; possivelmente a contemplação da verdade que se escondia detrás da fachada da estrela de cinema não era o que a imprensa desejava ver.
Kitto se sentou junto a mim em sua própria cadeira, mas se aproximou tudo o que pôde a minha poltrona. Julian tentou manter uma distância entre ele e Maeve; Kitto se assegurou estar tocando alguma parte de meu corpo durante todo o momento.
Uma mulher humana de uns sessenta e tantos anos saiu de um barraco situado perto da piscina. Levava um traje de empregada, completado com um avental, embora a saia fosse bastante longa e os sapatos adequados para sua idade. Ofereceu-nos algo de beber a todos, mas nenhum aceitou. Só Maeve seguia ingerindo uísque escocês escuro. Tinha começado a tomá-lo com gelo, mas quando este se desfez, não acrescentou mais. Embora tinha bebido já uma quinta parte da garrafa enquanto outros olhavam, não parecia produzir-se nenhuma mudança nela. Era uma fada e nós podemos beber muito sem nem sequer notar a ninharia, mas uma quinta parte de uma garrafa é uma quinta parte, e eu esperava que tivesse bebido o suficiente para acalmar os nervos e deixar de beber já. Mas não o fez.
— Eu tomarei um rum com coca. Alguém gostaria de algo?
— Não, obrigado — respondi.
— Sei que os homens estão de serviço, tanto os teus como os meus, assim não deveriam beber. Poderiam perder a rapidez de reflexos. — Pôs um pouco do ronrono típico da antiga Maeve Reed na voz, uma pálida imitação de sua usual voz lhe sugiram. Parece ser que eu não a tinha quebrado de tudo. — Mas você e eu podemos nos permitir o luxo de tomar uma cuba libre.
— Não gosto, mas obrigado pela oferta.
Apareceu um pequeno sinal de desgosto em sua bonita cara.
— Honestamente, eu não gosto nada de beber sozinha.
— Eu não gosto de uísque escocês nem de rum.
— Dispomos de uma enorme adega de vinhos. Estou segura de que poderíamos encontrar algo que você goste.
Sorriu, não com o encantador sorriso com a que nos tinha recebido nada próximo a isso, mas ao menos seguia sendo um sorriso. Era um sinal esperançoso, mas neguei com a cabeça.
— Sinto muito, Maeve, mas nunca bebo tão cedo.
— Cedo? — disse arqueando suas perfeitas sobrancelhas. — Querida, esta hora não é cedo segundo o costume em Los Angeles. Depois do meio-dia, é perfeitamente aceitável beber uma taça.
Sorri e me encolhi de ombros.
— Obrigado, mas, seriamente, não quero nada.
Franziu o cenho, mas assentiu à empregada, que voltou para o barraco para preparar a taça de Maeve, supus.
— Beber sozinha é algo que realmente odeio — voltou a repetir.
— Estou segura de que tem um marido por aqui perto.
— A apresentarei a Gordon quando tivermos acabado de falar de negócios. — Não pareceu dizê-lo com chateação.
— E de que negócios se trata? — perguntei.
— Em particular.
— Já discutimos isto antes com seu enviado no escritório. Não importa aonde eu vá, meus guarda-costas vêm comigo. — Olhei a seu próprios guarda-costas. — Estou segura de que me entende.
Assentiu com impaciência.
— É óbvio que te entendo, mas poderiam sentar-se um pouco mais afastados para que possamos falar de... coisas de garotas?
Arqueei as sobrancelhas para ouvir a expressão «coisas de garotas», mas não disse nada. Olhei ao Doyle e ao Frost.
— O que acham meninos?
— Suponho que poderíamos nos sentar à mesa situada na sombra enquanto você e a senhorita Reed falam de... «coisas de garotas». — Doyle as arrumou para que a última parte da frase soasse a mentira.
Escondi o sorriso que me escapou me girando e olhando ao Kitto. Ele não quereria ficar à sombra sob o guarda-sol. Nem sequer me incomodei em perguntar-lhe.
— Doyle e Frost se sentarão à mesa, mas Kitto deve ficar comigo.
— Não é possível — repôs Maeve negando com a cabeça.
— É o melhor que posso oferecer se insistir em permanece em um espaço aberto como este — lhe disse me encolhendo de ombros.
Inclinou a cabeça para um lado.
— Isto é algo bastante direto para uma princesa dos sidhe. De fato, foste muito direta, por não dizer mal educada, por ser uma princesa de sangue.
Lutei contra um impulso de me voltar para olhar ao Doyle.
— Poderia dizer que fui criada entre humanos.
— Poderia, mas me parece que não acreditaria. — Sua voz soava muito grave, quase zangada. — Ninguém tão humano se veria tão favorecido pela Senhora e o Senhor como foi você faz só uns instantes. — Estremeceu-se e colocou o vestido por cima dos ombros. A temperatura ambiente rondava os vinte e sete graus e o sol ardia com força. Se tinha frio, não era o tipo de frio que se alivia abrigando-se.
Fiz a melhor reverência que pude e me sentei na poltrona.
— Obrigado.
Sacudiu a cabeça, e a cascata de cabelo dourado lhe acariciou as costas.
— Não me agradeça, porque eu não vou agradecer pelo que você tem feito por mim.
Comecei a lhe dizer que tinha sido um acidente, mas me detive. Maeve tinha utilizado a magia de propósito para tentar me persuadir. Tratava-se de um grave insulto entre dois sídhe nobres. Nunca utilizávamos estratagemas até esse ponto contra outro nobre. Mostrava com claridade que me considerava uma fada inferior, assim não se via obrigada a cumprir as normas de cavalheirismo dos sidhe comigo.
Olhava-me com curiosidade, e me dava conta de que estava calada a muito tempo. Consegui esboçar um sorriso.
— Os sidhe levam séculos especulando a respeito de sua partida.
— Não fui embora Meredith. Jogaram-me. Bom, ao fim algo que queria saber.
— Seu exílio foi como o homem do saco para os meninos sidhe da Corte da Luz. «Se não agradar ao rei, acabará igual a Conchenn».
— É isso o que acreditam? Que me exilaram por não agradar ao rei?
— Quando lhe pressionam, isso é o que diz ele. Que não lhe agradou. Ficou a rir tão forte que quase fazia mal ouvi-la.
— Suponho que não lhe agradei, mas ninguém se perguntou por que um castigo tão duro simplesmente por não agradar ao rei? – ela perguntou. Assenti.
— Contaram-me que alguns questionaram a dureza do castigo. Tinha muitos amigos na corte.
— Tinha aliados na corte. Ninguém tem amigos verdadeiros ali. Acreditei nisso.
— Como queira, tinha muitos aliados na corte. Contaram-me que eles questionaram seu destino.
— E? — Só esta palavra continha uma enorme quantidade de ânsia.
Parecia querer saber de verdade. Queria dizer-lhe: “você responde a minhas perguntas e eu respondo às tuas”, mas era uma solução muito torpe. O que precisava era um pouco de sutileza. Eu nunca fui sutil por natureza, mas tinha aprendido a sê-lo. Ao final.
— Deram-me uma surra por perguntar a respeito de seu destino — lhe disse.
— O quê? — perguntou me olhando com surpresa.
— Quando era menina perguntei por que lhe tinham exilado, e o próprio rei me deu uma surra por perguntar.
Parecia desconcertada.
— Ninguém o tinha perguntado antes que você?
— Sim, perguntaram-no.
A expressão de sua cara bastava para me fazer continuar, mas não terminei de expor o que pensava. Evitei que lhe desse a volta à conversação, porque queria saber por que a tinham exilado. Se tinha mantido seu segredo durante tantos anos, não podia confiar em que agora o rompesse com facilidade.
— Quando cheguei aqui, as pessoas tinha deixado de perguntar.
— O que aconteceu com meus aliados da corte? — tratava-se de uma pergunta muito direta, e eu não podia dissimular e fingir que não entendia o que ela queria me dizer.
— O rei matou ao Emrys — respondi. — Depois disso, todo mundo tinha medo de perguntar sobre seu destino.
Era difícil dizê-lo, mas acredito que ficou pálida sob o moreno dourado. Abriu os olhos como pratos e deixou cair o olhar sobre sua saia. Começou a beber de um copo, mas se deu conta de que estava vazio.
— Nancy!
A senhora apareceu quase por arte de magia. Levava uma bandeja com um copo alto e escuro de rum, e um par de óculos de aros brancos situados ao lado da bebida. Também trazia três trajes de banho pendurados no braço. Tratava-se de trajes de banho caros, pequenos e bonitos. A maioria da roupa interior que possuía me tampava mais que esses trajes, e que conste que possuía uma nada desdenhável coleção de lingerie.
Pareciam trajes de banho elegantes e normais, embora o aspecto podia enganar. À roupa lhe pode fazer coisas para que o feitiço apareça só quando se leva o traje. E alguns feitiços são bastante cruéis. Pela primeira vez, perguntei-me não se Maeve desejava unir-se a nosso corte, mas sim se havia alguém na Corte da Luz que me quisesse morta. Bastaria minha morte para que a deixassem voltar do exílio? Só se o próprio rei desejava minha morte. Por isso sabia, eu não gostava nada do Taranis, mas ele não me temia, de maneira que minha morte não significava nada para ele. Maeve deixou de falar. Estava olhando fixamente a piscina, mas não acredito que a visse. Levava tanto tempo calada que decidi romper o silêncio.
— Para que são os trajes de banho, senhorita Reed?
— Disse que me chame Maeve. — Mas não me olhou ao me dizer isso e a frase parecia vazia, como se nem sequer ela estivesse escutando suas próprias palavras.
— De acordo, para que são os trajes de banho, Maeve? — repeti sorrindo.
— Pensei que possivelmente gostaria de te pôr mais cômoda, isso é tudo. — Sua voz soava monocórdia, como se se tivesse estudado o diálogo, mas não lhe importasse nada quão bem ficasse ao recitá-lo.
— Obrigado, mas estou bem assim.
— Estou segura de que também posso encontrar trajes para seus acompanhantes. — Finalmente me olhou ao falar, mas sua voz seguia sem denotar nenhuma emoção.
— Não, obrigado — eu disse fazendo a suficiente insistência no «obrigado» para que ficasse claro que não ia ceder.
Maeve colocou o copo vazio sobre a bandeja, pegou os óculos e tomou o outro copo com a mão. Esvaziou um quarto da bebida de um só gole; logo me olhou. Os óculos eram grandes e redondos, com uns finos aros brancos, e a lente era de espelho, de maneira que podia ver nelas uma imagem distorcida de mim mesma quando movia a cabeça. Os olhos e uma grande parte de sua cara ficaram totalmente escondidos. Já não necessitava encanto; tinha algo mais depois do que esconder-se.
Subiu o pescoço do vestido um pouco e deu outro sorvo do rum negro.
— Nem sequer Taranis se atreveria a ordenar a execução do Emrys. — Disse com voz grave, mas clara. Acredito que estava tentando não acreditar em mim. Tinha tido suficiente tempo com a história dos trajes de banho para pensar no que eu lhe havia dito. Não gostava, assim tinha decidido tentar convencer-se de que não era certo.
— Não foi executado — lhe respondi, e de novo fiquei olhando-a e esperei a que perguntasse algo mais. Frequentemente se sabe mais quanto menos se diz.
Desviou a vista do copo para mim, e seus óculos refletiram a luz do sol.
— Mas acaba de dizer que Taranis ordenou sua morte.
— Não, disse que Taranis matou ao Emrys.
Era difícil adivinhar sua expressão devido aos óculos de sol, mas acredito que era de estranheza.
— Está jogando com as palavras e comigo, Meredith. Emrys era um dos poucos da corte ao que poderia ter chamado amigo de verdade. Se não foi executado, então o que aconteceu? Está dizendo que foi assassinado?
— De maneira nenhuma. O rei desafiou a um duelo pessoal.
Deu um salto como se a tivessem golpeado e derramou parte do rum sobre o vestido branco. A senhora lhe ofereceu um guardanapo para limpar-se. Maeve entregou a bebida à mulher e começou a secar mão, mas não como se estivesse prestando atenção no que estava fazendo.
— O rei não aceita provocações pessoais. É muito valioso na corte para arriscar-se a um duelo.
Encolhi-me de ombros e observei como minha imagem me imitava nos óculos do Maeve.
— Limito-me a te comunicar a notícia, não a explicá-la.
Deixou o guardanapo sobre a bandeja, mas não quis agarrar a bebida de novo. Inclinou-se adiante, ainda segurando o pescoço do vestido perto de seu pescoço.
— Me jure, me dê sua palavra de que o rei matou ao Emrys em um duelo.
— Dou-te mim palavra de que é verdade.
Tornou-se para trás repentinamente, como se tivesse ficado sem energia em um abrir e fechar de olhos. Seguia segurando o pescoço do vestido com as mãos, mas parecia a ponto de desfalecer.
— Encontra-se bem? Necessita algo? — perguntou a senhora.
Maeve sacudiu ligeiramente a mão.
— Não. Estou bem. — Tinha respondido às perguntas em ordem inversa, um pequeno deslize, porque obviamente não estava bem.
— Assim que eu tinha razão, — falava em voz muito baixa, quase inaudível.
— Tinha razão sobre o quê? — perguntei-lhe também em voz baixa. Aproximei-me até ficar sentada no bordo da poltrona para me assegurar de que me ouvia. Então sorriu, embora era um sorriso débil e sem humor.
— Não, não vou te contar meu segredo tão facilmente. Franzi o cenho e foi uma reação automática.
— Não sei a que te refere.
— Por que vieste aqui hoje, Meredith? — perguntou com voz mais sólida, mais segura de si mesma à medida que falava.
Retirei-me um pouco para trás.
— Vim porque você me pediu isso.
Emitiu um suspiro comprido e sonoro, não para conseguir nenhum efeito, mas sim porque acreditou que de verdade o necessitava.
— Arriscaste-te a ser o objetivo da ira do Taranis simplesmente para ver outro sidhe?
Não acredito.
— Sou herdeira ao trono da Escuridão. A sério acha que Taranis se arriscaria a me fazer mal?
— Desafiou ao Emrys a um duelo pessoal só por perguntar por que tinha me exilado. A ti deram uma surra quando menina por perguntar sobre meu destino. Agora está aqui sentada falando comigo. Nunca acreditará que não te contei a razão de meu exílio.
— Mas não me disse nada — lhe espetei, e tentei manter o anseio afastado da minha linguagem corporal, embora acredite que não o obtive.
Voltou a me dar de presente outro de seus pequenos sorrisos.
— Nunca acreditará que não compartilhei meu segredo contigo.
— Pode pensar o que quiser. Se me fizer mal, significará uma guerra entre as cortes. Não acredito que nenhum segredo que tenha valha uma guerra.
Riu, de novo mofando-se.
— Acredito que o rei sim se arriscaria a uma guerra entre as cortes por isso.
— Tudo bem, o rei poderia arriscar-se a ir à guerra porque ele fica detrás da linha do frente, mas a rainha Andais estaria em seu direito de lhe desafiar a um combate corpo a corpo. Não acredito que Taranis se arriscasse a isso.
— É a herdeira ao trono Escuro, Meredith. Não tem nem idéia de quanto poder reside na Luz.
— Vi a Corte da Luz, Maeve, e estou de acordo em que uma vez que enfrentaste a ela tem-lhe medo sem embargo, todo mundo teme ao Escuro, Maeve, todo mundo.
— Está dizendo que o rei supremo da Corte da Luz tem medo da Corte da Escuridão? — Pronunciou estas palavras com uma incrível carga de cepticismo.
— Sei que todos na Corte da Luz temem aos sluagh. Maeve se reclinou na poltrona.
— Todo mundo lhes teme, Meredith, em ambas as cortes.
Tinha razão. Se a Corte da Escuridão representava tudo o que era escuro e tenebroso, os sluagh eram piores. Na terra dos sluagh viviam as coisas que temiam os escuros. Era um caldo de cultivo de pesadelos muito horríveis para contemplar.
— E quem detém o poder sobre o reino dos sluagh? — perguntei. Parecia confundida, mas ao final disse:
— A rainha.
— Os sluagh podem ser enviados para castigar determinados crimes sem julgamento nem aviso. Um desses crimes é o assassinato de familiares.
— Mas não está acostumado a fazer isso — replicou.
— Mas se Taranís matasse à herdeira da rainha não acha que ela se lembraria desta pequena lei?
— Nem sequer Andais se atreveria a enviar aos sluagh pelo rei.
— E, repito de novo, nem sequer o rei se atreveria a matar à herdeira de Andais.
— Acredito que te equivoca nisto, Meredith, porque possivelmente sim se atreva.
— E por esse crime Andais poderia enviar aos sluagh contra ele. Inclusive o rei da Luz e da Ilusão não teria mais remédio que fugir deles.
Agarrou a bebida da bandeja que a empregada seguia sustentando perto dela e tomou um comprido sorvo antes de dizer:
— Não acredito que o rei tenha as coisas tão claras sobre este tema. Eu... eu não queria ser a causa de uma guerra entre cortes. — Tomou outro sorvo. — Faz anos que desejo que alguém castigue a arrogância do Taranis, mas não os sluagh. Não lhe desejaria isso a ninguém, nem sequer a ele.
Devido a que eu tinha enfrentado os sluagh, podia falar com conhecimento de causa e afirmar que eram terríveis. Mas tampouco terei que exagerar. Ao menos os sluagh se limitam a te matar, possivelmente a te comer vivo, mas no final das contas, acaba morto. Não lhe torturam, não lhe obrigam a sofrer uma morte lenta e longa. Havia formas de morrer muito piores que cair nas mãos dos sluagh.
Além disso, sabia algo que Maeve não tinha forma de saber. O rei dos sluagh Sholto, senhor daquilo que acontece no meio, chamado Feto das Sombras, mas nunca à cara, não era muito leal a Andais; de fato, não era leal a ninguém. Cumpria sua palavra, mas Andais tinha descuidado da política durante uns anos e agora dependia em grande medida, muito possivelmente, de sua aliança com os sluagh. Supunha-se que eram a última aliança a que se devia recorrer. Tinha aprendido durante minhas conversações com o Doyle e Frost que os sluagh se converteram em uma arma muito usada, e essa não era sua função original, o que denotava uma grande debilidade por parte de Andais ao recorrer a eles com tanta frequência.
Mas Maeve não sabia nada disto. Ninguém na Corte da Luz sabia, a não ser que houvesse espiões, que, bem pensado, era muito provável, mas Maeve não sabia.
— A sério acha que o rei se inteirará de que falamos? — perguntei-lhe.
— Não estou segura disso, mas é um deus, ou ao menos um dia foi. Temo que nos descubra.
— Bom, quero saber por que lhe exilaram, embora você também quer algo de mim. Quer algo pelo que seria capaz de arriscar a vida. O que poderia ser, Maeve? O que poderia ser tão importante para ti?
Inclinou-se para frente, com o vestido ainda pego ao pescoço. inclinou-se para mim até que pude cheirar a manteiga de cacau de sua pele e o rum de seu fôlego.
— Quero um filho — me sussurrou ao ouvido.
Capítulo 13
Permaneci inclinada para frente, com os ombros quase tocando os de Maeve, porque não queria que ela visse meu rosto. Um filho? Queria um filho? Por que me dizia isso?Tinha pensado em um montão de coisas que poderia desejar Maeve Reed e um bebe não aparecia na lista. Ao final a olhei no rosto.
— O que posso te oferecer eu, Maeve? — Essa era a pergunta.
Reclinou-se na poltrona acomodando-se com um movimento breve e sinuoso que recordou a sua antiga maneira de provocar.
— Já te disse que queria de ti, Meredith.
Olhei-a fixamente e franzi o cenho.
— Ouvi o que há disse, Maeve, mas não vejo... — Voltei a tentar. — Não sei como eu posso te ajudar. — Enfatizei a frase com o «eu» porque tinha pensado em algo que ela possivelmente necessitava de mim e que não era minha pessoa: homens.
Olhou aos homens situados a nosso redor, a todos, inclusive a seu guarda-costas.
— Agora entendo por que queria ter uma conversa em particular, não é? — Sua voz denotava um certo ar de súplica.
Suspirei. Queria ter sentido comum político. Queria ser cuidadosa, mas entendia por que queria intimidade. Algumas coisas invalidam a política, e uma delas é a súplica de uma mulher a outra. Maeve tinha me suplicado, em silêncio, mas seguia sendo uma súplica. «Mãe, me ajude», porque não podia fazer caso omisso de sua súplica.
— De acordo — eu disse. Maeve inclinou a cabeça.
— De acordo com o quê?
— Privacidade.
Senti como Doyle e Frost se moviam detrás de mim. Em realidade, não tinham se movido, não tinham dado nem um só passo, mas tinham se posto tão tensos que parecia que tivessem saltado.
— Princesa... — começou a dizer Doyle.
— Está tudo bem, Doyle. Você e os outros homens podem se sentar sob o guarda sol enquanto nós falamos de coisas de garotas.
Maeve franziu o cenho e fez careta com sua bonita boquinha pintada de rosa pálido. Definitivamente, estava recuperando a compostura. Ou possivelmente passou muitos anos sendo Maeve Reed, a deusa do sexo, e já não sabia comportar-se de nenhuma outra forma.
— Esperava um pouco mais de intimidade que uns quantos metros. Sorri-lhe sem caretas, sem vaidade.
— Ficou claro que tenta me convencer com magia. Seria estúpido da minha parte confiar em ti completamente.
O olhar infantil se desvaneceu e foi substituída por uns lábios finos, quase de aborrecimento.
— Demonstraste que ganha com a magia, Meredith. Não sou tão estúpida para tentar provar a sorte uma segunda vez.
De novo, estava bastante segura de que não tinha superado ao Maeve com a magia. Era mais como se ela tivesse arrojado sua magia metafísica a minha cara e tivesse despertado minhas capacidades naturais. Eu não tinha feito nada com deliberação; de fato, não estava cem por cento segura de ser capaz de fazer o mesmo em caso de tentar de novo. Mas Maeve acreditava que podia fazer segunda a minha vontade, e não ia ser eu quem lhe tirasse essa idéia da cabeça. A deixaria acreditar que meu poder era enorme e maravilhoso, e que estava paranóica. Porque não ia a nenhum lugar fora do alcance visual de meus homens. Poderosa e paranóica, a receita da realeza.
— Meus guardas podem sentar-se à sombra enquanto falamos aqui. Esta é a máxima intimidade que vou te oferecer, inclusive para uma conversa de mulher pra mulher.
— Não confia em mim — me disse.
— E por que deveria?
— Não, claro que não — respondeu sorrindo. — De maneira nenhuma. — Sacudiu a cabeça e tomou outro sorvo de rum. Logo me olhou por cima do bordo do copo. — Rechaçaste todas as bebidas que te ofereci. Teme que haja veneno ou magia nelas. Assenti.
Riu em um estalo delicioso. Tinha ouvido o mesmo tipo de risada na tela do cinema mais de uma vez.
— Dou-te minha palavra mais sagrada de que nada aqui te fará mal de propósito.
O adendo final era um truque muito inteligente. Significava que se me acontecesse algo, não seria culpa dela, mas também significava que podia sofrer algum tipo de dano. Tinha que sorrir. Essa conversa com duplos sentidos era parte das relações na corte, onde a palavra de honra era algo pelo que lutar a morte para defendê-la.
— Quero sua palavra de honra de que nada, nenhuma pessoa, nenhum animal e nenhum ser de nenhum tipo me fará mal enquanto esteja aqui.
Voltou a fazer careta.
— Ouça Meredith. Um juramento tão solene? Dou-te minha palavra de que protegerei sua segurança o melhor que possa.
— Sua palavra de que nada, nenhuma pessoa, nenhum animal e nenhum ser de nenhum tipo me fará mal — repeti sacudindo a cabeça.
— Enquanto esteja aqui — acrescentou.
— Enquanto esteja aqui.
— Se tivesse deixado a última parte, teria sido responsável por ti sempre, fosse onde fosse. — estremeceu-se, e não acredito que fosse algo intencionado. — Você vai a Corte da Escuridão, e esse não é um lugar no que eu gostaria de ter que garantir sua segurança.
— Parece-me que todo mundo acha o mesmo, Maeve. Não se sinta mal por isso.
Franziu o cenho e, de novo, acredito que foi algo real.
— Não me sinto mal, Meredith. Proteger sua segurança nessas galerias escuras e cheias de sombras não entra dentro de minhas competências.
Encolhi-me de ombros.
— Há luz e sorrisos no império da Escuridão, igual a há escuridão e dor no império da Luz.
— Não acredito que a Corte da Escuridão possua as maravilhas que esperam a um na Corte da Luz.
Olhei por cima do ombro ao Doyle e ao Frost. Olhei-lhes durante um bom momento, e logo me girei de novo, olhando Maeve permitindo que sua beleza me alagasse os olhos.
— Bom, não sei, Macve, há algumas jóias também na Corte Escura.
— Ouvi histórias sobre a libertinagem que há na corte da rainha Andais. Isso me fez rir.
— Leva muito tempo vivendo entre humanos se acha que a libertinagem é algo desagradável. O gozo da carne é uma bênção que se deve compartilhar, não uma maldição da que terei que escapar.
— Como bem saberão seu guarda e minha doce Marie.
Olhou detrás de mim, sorrindo. Rhys e Marie vinham caminhando para nós. Os brancos cachos do Rhys voltavam a cair soltos até a cintura. Levava a bonita cara de criança bem barbeada, como sempre. O emplastro do olho com as pérolas incrustadas voltava a estar em seu lugar. Sorria, agradado, até o ponto de quase rir, como se lhe acabassem de contar uma piada nova.
Marie lhe seguia. Levava o cabelo um pouco despenteado e a saia branca um pouco deslocada. Mas não parecia contente. Se a insinuação de Maeve tivesse sido correta, Marie teria estado sorrindo. Rhys podia ter seus defeitos, mas não conseguir fazer sorrir a uma mulher não se encontrava entre eles. Não podia lavá-lo tão a sério na cama, ou fora dela, como a alguns de outros guardas, mas era alguém com o que te divertia seriamente nas relações sexuais.
Dava-me conta de que voltava a franzir o cenho. Se tinha tido algum tipo de contato sexual com Marie como eu me sentiria? Afinal de contas, era meu. Exclusivamente meu, segundo a rainha.
Tentei me sentir ferida, ciumenta, e inclusive desgostada de que tivesse feito algo sexual Marie, mas não o obtive. Possivelmente era porque estava me deitando também com outros homens. Possivelmente para estar realmente ciumenta tem que ter uma relação de monogamia. Não sei por que, mas não me incomodava absolutamente. Se tivesse se deitado com ela, teria me incomodado porque eu era a que tinha que ficar grávida, e não qualquer secretária de uma estrela. Além disso, não acredito que me importasse.
Rhys se ajoelhou ante mim, o que fez que Kitto se retirasse um pouco; entretanto, o fato de que estivesse disposto a tocar ao pequeno trasgo era realmente um sinal muito bom.
Levou minha mão aos lábios e sorriu entre dentes.
— A encantada Marie me ofereceu seus favores.
— E? — perguntei arqueando as sobrancelhas.
— E teria sido uma grosseria fazer caso omisso de uma oferta assim. — Segundo os costumes dos sidhe, tinha razão.
— Ela é humana, não uma fada — lhe disse.
— Ciumenta? — perguntou. Neguei com a cabeça sorrindo.
— Não.
Ficou de pé com um suave movimento e me plantou um rápido beijo na bochecha.
— Sabia que era mais fada que humana.
Marie se achava de joelhos ao lado do Maeve. Estava de costas a nós, mas podia ver como sacudia a cabeça. Maeve nos olhou com cara de desaprovação.
— Marie me disse que rechaçaste seus favores, guarda.
— Deixei-lhe claro que a achava encantadora — disse Rhys.
— Mas não aproveitou a ocasião.
— Sou o amante da princesa Meredith. Por que deveria ficar com outra? Demonstrei a sua secretária a quantidade de atenção que merecia, nem mais nem menos. — Já não parecia estar contente; mas bem, quase zangado.
Maeve acariciou a mão da mulher e a enviou pra dentro da casa. Marie evitou com muito cuidado olhar ao Rhys. Acredito que estava envergonhada. Possivelmente não estava acostumada a ser rechaçada frequentemente, ou possivelmente Maeve lhe havia dito que era algo seguro.
Me coloquei em pé.
— Já jogamos o bastante, Maeve.
Tentou me segurar, mas não alcançou a fazê-lo.
— Por favor, Meredith, não era minha intenção te ofender.
— Enviaste a sua secretária para que seduza a meu amante. Tentou me seduzir, não porque me desejasse diretamente, a não ser para conseguir mais controle sobre mim. Levantou-se de um só movimento.
— O último não é verdade.
— Mas não nega ter enviado a seu ajudante a seduzir a meu amante.
Tirou os enormes óculos de sol para que pudesse ver quão confundida estava. Apostaria o que fosse que se tratava de uma atuação.
— Vocês são da Corte Escura e qualquer tentação está a seu alcance. Agora era eu que estava confundida.
— O que tem que ver minha corte com tudo isto? Insultaste-me e aos meus.
— Vocês são da Corte Escura — repetiu. Sacudi a cabeça.
— E o que tem que ver isto com todo o resto?
— Não quiseram pôr os trajes de banho — afirmou com uma voz suave e o olhar encurvado.
— O quê? — perguntei.
— Se Marie o tivesse visto nu, teria sabido que seu corpo é puro, além das cicatrizes. Franzi o cenho ainda mais.
— Mas, em nome do Senhor e da Senhora, do que está falando?
— Todos vocês são da Corte da Escuridão, Meredith. Tenho que me assegurar de que não são... impuros.
— Quer dizer disformes — lhe disse sem tentar sequer que não se notasse o aborrecimento em minha voz. Assentiu levemente.
— Por que teria que te importar o aspecto que tenham ou não nossos corpos?
— Já te disse o que queria, Meredith.
Assenti, e fui o bastante boa como para não desvelar seu segredo diante de todo mundo, embora o céu sabe que não o merecia.
— Se a pessoa que me ajudar em dito favor é impura, então... — Olhou-me e assentiu levemente, como se esperasse que eu terminasse a frase em minha cabeça. Aproximei-me dela e disse, um pouco mais alto que um sussurro:
— O criança será disforme.
Nenhuma quantidade de encanto podia esconder a mescla de aromas de manteiga de cacau, licor e fumaça de tabaco de seu cabelo e pele. De repente, senti uma náusea incontrolável.
Me separei dela e teria caído ao chão a não ser pelo Rhys, que me segurou a tempo.
— O que acontece? — sussurrou.
— Estou cansada de estar aqui com esta mulher.
— Então, vamos — sentenciou Doyle.
— Ainda não. — Sujeitei-me ao braço do Rhys e me voltei de volta pra Maeve. — Agora vais me dizer por que lhe exilaram. Vais me contar toda a verdade aqui e agora ou iremos e nunca mais voltará a nos ver.
— Se alguém se inteirar do que contei, me matará.
— Se descobrir que estive aqui, falando contigo, de verdade acha que esperará a descobrir se me contaste isso ou não?
Agora parecia assustada. Mas não me importava.
— Me diga, Maeve, diga-me isso ou vamos, e nunca encontrará a ninguém mais fora do reino dos duendes capaz de te ajudar.
— Meredith, por favor...
— Não — lhe interrompi. — A grande Corte da Luz e sua pureza. Olham-nos por cima do ombro. Se uma criança nasce disforme, matam-no, ou ao menos antes o matavam, porque agora deixaram ter filhos. Por isso agora até os monstros são preciosos. Sabe o que passou com as crianças ao cabo de um tempo, Maeve? Sabe o que passou nos últimos quatrocentos anos mais ou menos com os filhos da Luz disformes? Porque não te equivoque, a endogamia também afeta aos imortais.
— Não... não sei.
— Claro que sabe. Todos os dessa resplandecente e deslumbrante corte sabem. A minha própria prima a aceitaram porque era em parte brownie. Não a expulsaram porque os brownies são luminosos, não da corte, mas sim criaturas da Luz. Mas quando os próprios sidhe dão a luz monstros, os sidhe puros e luminosos dão a luz seres disformes, monstruosidades, então o que acontece? Onde vão parar essas crianças?
Nesse momento estava chorando, com lágrimas suaves e de prata.
— Não sei.
— Sim, sabe. Os bebês vão para Corte da Escuridão. Nós aceitamos aos monstros, a esses monstros da Luz puros. Acolhemo-los, porque acolhemos a todo mundo. A ninguém, a ninguém se o proíbe a entrada na Corte Escura, e menos aos pequenos bebês recém-nascidos cujo único crime foi ter uns pais que não souberam estudar sua árvore genealógica o suficiente para evitar casar-se com seus próprios putos irmãos. — Agora eu também chorava, mas era um pranto de raiva, não de pena. — Te dou minha palavra de que Frost, Rhys e eu somos puros de corpo. Parecem-lhe mais fáceis agora as coisas? Ajuda-te em algo? Se o único que quisesse fosse te deitar com os homens, não te teria importado comigo ou nem com traje de banho, mas sim te importou. Quer um rito de fertilidade, Maeve. Necessita-me, e ao menos a um homem.
Estava muito zangada para saber se alguém além do Maeve tinha ouvido o que acabava de dizer, ou tinha entendido o que dizia. Mas não me importava o mais mínimo. Separei-me do Rhys, e a raiva que sentia me fez lhe cuspir as palavras à cara.
— Me diga por que lhe exilaram, Maeve. Diga-me isso agora ou vamos e lhe deixamos tal como lhe encontramos, ou seja, sozinha.
Assentiu sem deixar de chorar.
— De acordo, de acordo, que a Senhora me proteja, mas lhe direi isso. Te direi o que quer saber, se me prometer que me ajudará a ter um filho.
— Prometa-me isso você primeiro — lhe disse.
— Prometo-te que te contarei a verdade de por que fui exilada da Corte da Luz.
— Eu te prometo que quando me houver dito por que foi exilada da Corte da Luz, meus homens e eu faremos todo o possível para que tenha um filho.
Esfregou os olhos com os punhos fechados. Tratava-se de um gesto realmente infantil. Parecia estar totalmente transposta e me perguntei se um desses pobres bebês desgraçados tinha pertencido a Conchenn, deusa da beleza e da primavera. Tinha lhe açoitado durante todo este tempo a lembrança de haver se desfeito do único filho que possivelmente teria alguma vez? Esperava que assim fosse.
Capítulo 14
— Faz cem anos, o rei supremo das fadas, Taranis, estava a ponto de repudiar a sua mulher, Conan de Cuala. Tinham sido um casal durante cem anos e não tinham tido filhos. — Automaticamente, a voz tinha adquirido a entonação dos contadores de histórias. — Assim decidiu repudiá-la.
Eu adoro as histórias contadas do modo antigo, mas estava farta de permanecer ao sol e não queria passar todo o dia naquela casa, de maneira que a interrompi.
— Repudiou-a — eu disse.
Maeve sorriu, mas não de alegria.
— Pediu-me que ocupasse seu lugar e fosse sua prometida. Eu o rechacei. — Agora me falava, sem o tom de contador de histórias. Possivelmente não era tão agradável, mas a conversação normal era mais rápido.
— Mas essa não é uma razão para exilar a ninguém, Maeve. Ao menos há outra que rechaçou a oferta do Taranis e segue formando parte da Corte Luminosa. — Tomei um sorvo da limonada e a olhei.
— Mas Edain estava apaixonada por outro. Minha razão foi outra.
Não me olhava, nem ao Kitto, nem a ninguém, acredito. Parecia ter o olhar perdido no horizonte, possivelmente estava vendo as lembranças de seu interior.
— E essa razão foi...? — perguntei-lhe.
— Conan era a segunda mulher do rei. Tinha estado cem anos com ela e não tinham conseguido ter um filho.
— E? — Tomei outro comprido sorvo de limonada.
Ela bebeu um comprido gole de rum e voltou a me olhar.
— Disse que não ao Taranis porque acredito que é estéril. Não são as mulheres as que não podem ter um herdeiro, a não ser o rei.
Ao ouvi-la não pude evitar cuspir a limonada por cima de mim e do Kitto. O trasgo pareceu ficar gelado com a limonada caindo pelo braço e os óculos de sol.
A empregada apareceu com guardanapos. Tomei umas quantas e logo lhe indiquei com um sinal que podia retirar-se. Estávamos falando de algo que ninguém devia ouvir. Quando fui capaz de pronunciar sem balbuciar, e Kitto e eu estávamos relativamente secos, perguntei-lhe:
— Disse isso ao Taranis na cara?
— Sim.
— É mais valente do que parece. — «Ou mais tola», pensei.
— Exigiu-me que lhe dissesse por que não lhe queria como marido. Disse-lhe que queria ter um filho e que não acreditava que ele pudesse me dar um.
Fiquei olhando-a tentando pensar nas implicações do que acabava de dizer.
— Se o que diz é verdade, então a realeza obrigaria ao rei a realizar o sacrifício máximo. Poderiam lhe obrigar a deixar-se matar como parte da celebração de um dos grandes dias sagrados.
— Sim — disse Maeve. — Me obrigou a partir essa mesma noite...
— Por medo de que contasse a alguém — acrescentei.
— Certamente, não sou a única que suspeita algo. Andaria teve filhos com outros dois, mas foi incapaz dos ter durante séculos com nosso rei.
Nesse momento, compreendi por que tinha me dado uma surra por perguntar pela Maeve. A própria vida de meu tio pendurava de um fio.
— Poderia limitar-se a abdicar — eu disse.
Maeve baixou os óculos o suficiente para me olhar esgotada.
— Não seja inocente, Meredith. Não te pega nada.
— Sinto muito, tem razão. Taranis nunca o aceitaria. Teriam que lhe obrigar a reconhecer que é estéril, e a única forma de fazê-lo seria lhe levar ante os nobres, o que significa que deveria convencer a um número suficiente deles para que votassem a seu favor.
— Não, Meredith. Não acredito que eu seja a única que suspeita. Sua morte devolveria a fertilidade a nosso povo. Todo nosso poder descende de nosso rei ou rainha. Acredito que a incapacidade do Taranis para ter filhos condenou ao resto de nós a não os ter.
— Continua tendo crianças na corte — lhe disse.
— Mas quantos deles são de sangue sidhe puro? Pensei-o durante um segundo.
— Não estou segura. A maioria deles nasceram muito antes que eu viesse aqui.
— Estou segura disso — disse. Inclinou-se para frente e, de repente, sua linguagem corporal se voltou séria, sem nenhuma classe de tolices. — Nenhum. Todas as crianças que nasceram em nossa corte nos últimos seiscentos anos são de sangue mesclado, seja por causa de violações durante as batalhas contra os guerreiros da Escuridão ou os que são como você, muito mesclados de fato. O sangue mesclado é um sangue mais forte, Meredith. Nosso rei nos condenou a morrer como povo porque é muito orgulhoso para deixar o trono.
— Se abdicasse porque é estéril, outros membros da realeza seguiriam pedindo sua morte para assegurar a fertilidade do resto.
— E é seguro que o fariam quando descobrissem que lhe disse qual era seu pequeno problema faz um século.
Estava certa. Se Taranis não o tivesse sabido, possivelmente lhe teriam perdoado e lhe teriam permitido abdicar. Mas sabê-lo durante um século e não fazer nada a respeito... Pulverizariam seu sangue pelos campos por isso.
O murmúrio de vozes fez que me desse a volta. Havia um novo homem contando um pouco divertido aos que estavam sentados à mesa da sombrinha. Voltou- se e nos sorriu mostrando uns perfeitos dentes brancos. O resto tinha tão mau aspecto que a única coisa que esses dentes conseguiam era pôr em relevo a palidez da pele e os olhos afundados. Estava tão corroído pela enfermidade que demorei uns segundos em reconhecer a Gordon Reed. Tinha sido o diretor de cinema que levou Maeve dos pequenos papéis ao estrelato. De repente, veio-me à mente uma imagem de seu corpo podre com os dentes ainda resplandecentes na tumba. Nesse instante, soube que a macabra visão que acabava de experimentar era real: estava morrendo.
A pergunta era: eles sabiam?
Maeve levantou a mão para ele, que agarrou essa suave eternidade dourada com a sua e depositou um beijo no dorso dessa pele perfeita. Como devia sentir-se ao ver desaparecer sua própria juventude, ao sentir como morria o corpo, enquanto ela permanecia tão jovem como o primeiro dia?
Voltou-se para mim sustentando ainda a mão de sua mulher.
— Princesa Meredith, é um prazer que tenha vindo nos visitar. — As palavras eram muito normais, como se se tratasse de um lanche em uma tarde qualquer na piscina. Maeve lhe deu umas palmadinhas sobre a mão.
— Sente-se, Gordon.
E se levantou da poltrona para ceder-lhe o lugar e se ajoelhou no chão ao bordo da piscina, tal como tinha feito Kitto pouco antes. O senhor Reed se sentou pesadamente e uma pequena careta em seus olhos foi a única coisa que delatou a dor que padecia.
Maeve tirou os óculos e seguiu olhando-o. Estudou o que ficava daquele homem alto e bonito com o que se casou. Estudou-o como se cada osso baixo dessa pele pálida e doente fora bonito para ela.
Com esse olhar bastou. O amava. O amava de verdade, e ambos sabiam que ele estava morrendo.
A atriz descansou sua cara sobre essa pálida mão e me olhou com grandes olhos azuis que brilhavam em excesso ante a luz que não se tratava de encanto; eram lágrimas contidas.
— Gordon e eu queremos um filho, Meredith — disse em voz baixa mas clara.
— Quanto...? — Detive-me, não podia perguntar-lhe com os dois me olhando.
— Quanto fica de vida? — perguntou Maeve por mim. Assenti.
— Seis... — Não pôde continuar. Tentou recuperar a calma, mas finalmente foi Gordon quem respondeu.
— Seis semanas, possivelmente três meses no máximo. — Sua voz soava tranquila, resignada. Acariciou o sedoso cabelo de sua esposa.
Maeve girou a cara para me observar. Seu olhar não era tranquilo nem resignado, mas sim de desespero.
Nesse momento soube por que, depois de cem anos, estava disposta a arriscar-
se a provocar a fúria do Taranis procurando a ajuda de outro sidhe. A Conchenn, deusa da beleza e da primavera, lhe estava acabando o tempo.
Capítulo 15
Quando chegamos ao apartamento já era quase de noite. Teria dito lar, mas não era meu lar, e nunca o tinha sido. Tratava-se de um apartamento de um só quarto desenhado para que vivesse nele uma só pessoa. Nem sequer se supunha que havia lugar para um companheiro de quarto, e eu estava compartilhando esse espaço com cinco pessoas. Dizer que estávamos um pouco apertados era pouco.
Era estranho, mas não tínhamos falado muito durante a viagem de volta ao trabalho para trocar a van por meu carro, nem sequer depois, durante o trajeto do escritório ao apartamento. Não sei o que preocupava aos outros, mas ver o Gordon Reed morrendo, virtualmente ante meus olhos, tinha acabado com meu entusiasmo. A verdade é que o que me doeu não foi ver o Gordon morrendo, a não ser ver como Maeve lhe olhava. Um imortal apaixonado de verdade por um mortal. Sempre acabava mau.
Esquivava a outros carros de maneira automática, e a única coisa que dava um pouco de vida à viagem eram os pequenos sustos do Doyle. Não era um bom co-piloto, mas como nunca tirou a carteira de motorista, não tinha escolha. Em geral, eu gostava dos pequenos ataques de pânico do Doyle. Era uma das poucas vezes nas que lhe via totalmente desamparado. Por estranho que pareça, resultava-me reconfortante. Quando entramos na sala de estar de paredes rosa pálido, não pensava que nada pudesse me alegrar o dia. E, como tinha acontecido bastante ultimamente, me equivoquei.
Em primeiro lugar, um rico aroma de guisado e pão recém assado alagava o apartamento. Cheirava ao típico guisado que precisa estar o dia inteiro no fogo para adquirir todo seu sabor. Além disso, não há nada como o pão feito em casa. Em segundo lugar, Galen saiu da pequena cozinha e apareceu na ainda menor copa. Normalmente, o primeiro em que me fixo dele é em seu sorriso. É maravilhoso. Ou possivelmente nos cachos de cabelo verde pálido que lhe caem por detrás das orelhas. Essa noite me fixei em como se vestia. Estava sem camiseta. Usava um avental branco com volantes, tão fino que se deixava aparece os mamilos, o cacho de pêlo verde escuro que lhe adornava a parte superior do peito, e a fina linha de pêlo que nascia no umbigo e descendia em linha reta para baixo até perder-se no interior das calças jeans. Deu a volta para terminar de pôr a mesa e vi sua impecável pele, cor branca pérola com um ligeiro toque verde. As tiras do avental que lhe percorriam as costas não escondiam nenhuma pingo de suas fortes costas, largos ombros e braços largos e fortes. A única e fina trança que lhe caía por debaixo da cintura lhe roçava a pele como uma carícia.
Não tinha me dado conta de que tinha ficado parada ao entrar até que Rhys disse:
— Se te mover um pouco para frente, outros também poderão entrar no apartamento. Notei como me ardia a pele ao me ruborizar. Entretanto, movi-me e deixei que os outros passassem.
Galen seguia com seu ir e vir da cozinha, como se não tivesse percebido minha reação, o que possivelmente estava certo. Às vezes, era difícil saber o que pensava Galen. Nunca parecia ser consciente de quão belo era, o que, pensando bem, era parte de seu atrativo. A humildade é um bem muito escasso em um nobre sidhe.
— O guisado está pronto, mas o pão tem que esfriar ainda um pouco antes de poder cortá-lo. — entrou de novo na cozinha sem nos olhar.
Houve um tempo no que lhe teria dado e teria recebido dele um beijo de boas- vindas. Mas agora havia um pequeno problema. Galen tinha sido ferido durante um dos castigos da corte justo antes do Samhain, a véspera de Todos os Santos. Ainda podia ver a cena em minha memória: Galen encadeado à rocha, seu corpo quase fora da vista sob o lento bater das asas de mariposa de uns semiduendes. Pareciam verdadeiras mariposas no bordo de um atoleiro, aspirando líquido e movendo lentamente as asas ao ritmo ao que se alimentavam. Mas não estavam aspirando água, a não ser bebendo seu sangue. Levaram pedaços de carne junto com o sangue e, por razões que só conhece o príncipe Cel, ordenou-lhes que se enfurecessem nas virilhas.
Cel tinha se assegurado de que não pudesse levar Galen à cama até que se curasse. Mas ele era um sidhe, e os sidhe se curam em um abrir e fechar de olhos, seus corpos absorvem as feridas como se se visse em um filme como se fecha uma flor. Todas as dentadas se desvaneceram da impecável pele, exceto as feridas das virilhas. Tinha sido castrado a todos os efeitos.
Visitamos todos os curadores que pudemos, tanto médicos como metafísicos. Os médicos ficavam desconcertados; as bruxas só tinham acertado a dizer que se tratava de algo mágico. As bruxas do século XXI têm problemas para utilizar a palavra «maldição».
Ninguém amaldiçoa a ninguém; as maldições são muito fechadas para seu carma. Se faz uma maldição, acaba voltando-se contra ti, sempre. Nunca pode fazer magia maligna verdadeira, do tipo cuja única intenção é fazer mal, sem pagar um preço por isso. Ninguém fica isento de dita norma, nem sequer os imortais. Esta é uma das razões pelas que as verdadeiras maldições são tão escassas.
Observei como Galen passava pela cozinha com seu avental meio transparente evitando me olhar, e o coração me doeu.
Aproximei-me dele e lhe rodeei a cintura com os braços, pressionando meu corpo contra a calidez de suas costas. Ficou muito quieto, e logo, lentamente, levantou as mãos para segurar meus braços. Apertou-os contra si em um abraço. Apoiei a bochecha nas suaves costas. Era o mais parecido a um abraço que tinha conseguido dele em semanas. Para o Galen, qualquer tipo de interação era dolorosa, em mais de um sentido.
Começou a separar-se de mim e eu lhe abracei com mais força. Poderia haver se afastado à força, mas não o fez. Limitou-se a ficar ali de pé e deixou cair os braços aos lados.
— Merry, por favor — disse com voz suave.
— Não — respondi lhe sujeitando com força e apertando-o contra mim. — Me deixe entrar em contato com a rainha Niceven.
Sacudiu a cabeça e sua trança me roçou na cara. O aroma de seu cabelo era doce e limpo. Lembrava-me de quando o cabelo chegava aos joelhos, como à maioria dos sidhe da corte suprema. Doeu-me muito quando o cortou.
— Não permitirei que fique em dívida com essa criatura — disse com uma voz de solenidade nada típica dele.
— Por favor, Galen, por favor.
— Não, Merry, não. — Tentou separar-se de novo de mim, mas não pensava permitir.
— E se não existir nenhum tipo de cura sem a ajuda de Niceven?
Pôs as mãos sobre meus braços, embora nesta ocasião não para me acariciar a não ser para me pedir que lhe soltasse. Galen era um guerreiro sidhe; podia atravessar com os punhos as paredes dos edifícios. Se ele tivesse querido soltar-se, não poderia ter evitado de maneira nenhuma.
Aproximou-se da entrada da cozinha, fora de meu alcance. Não quis me olhar com esses pálidos olhos verdes. Ficou observando o quadro pendurado da parede da copa, um quadro de mariposas em um verde prado. Recordavam-lhe as mariposas do semiduende ou simplesmente estava observando o quadro? Ou é que preferia olhar para qualquer outro lugar que não fosse eu?
Levava tempo pedindo permissão ao Galen para entrar em contato com a rainha Niceven e descobrir o que lhe tinha feito. Ele tinha me proibido isso. Não queria que eu ficasse em dívida com ela só por ajudá-lo. Tinha tentado convencê-lo chorando e rogando, o que teria funcionado com qualquer outro, mas ele seguia negando-se terminantemente. Não queria ser responsável por que eu tivesse uma dívida com Niceven e seus semiduendes.
Fiquei ali, de pé, observando-o. Tinha um corpo maravilhoso que tinha amado desde que era uma menina. Galen tinha sido meu primeiro amor. Se se curava, poderíamos apagar por fim esse fogo que ardia entre nós desde que alcancei a puberdade.
De repente, dava-me conta de que não estava atuando como devia. Kitto me havia dito que Doyle pensava que estava me limitando a foder com todos e não usava o poder que tinha conseguido. Não se referia só aos trasgos. Era eu a futura rainha da Escuridão ou não? Se ia ser a rainha, o que estava fazendo pedindo permissão a alguém para fazer algo? Decidir com quem ia estar em dívida e com quem não, não era assunto do Galen. Absolutamente.
Lhe dei as costas e me dirigi de novo para a sala. Outros homens estavam nos olhando. Se houvessem sido humano, teriam fingido que não viam nada, teriam estado lendo umas revistas ou simulando que as liam, mas eles eram duendes. Se fizer algo diante de um duende, olhará. Se quiser intimidade, não faz algo em um lugar onde possam te ver, assim é nossa cultura.
Só faltava Kitto, mas sabia onde estava: em sua cesta de dormir, coberto totalmente com a manta. Era como uma pequena e cômoda loja de campanha. Sentei-me na esquina mais afastada da sala de tal maneira que ele pudesse ver a televisão, uma das poucas maravilhas da tecnologia que Kitto parecia apreciar.
— Doyle — disse.
— Sim, princesa — respondeu com um tom neutro.
— Entre em contato com a rainha Niceven de minha parte. – Efetuou uma pequena reverência com a cabeça e se dirigiu ao dormitório. Ali se encontrava o espelho maior da casa. Ia tentar contatar com primeiro semi fada através do espelho, igual a faria para ficar em contato com outro sidhe. Possivelmente funcionasse, possivelmente não. Os semiduendes não permaneciam dentro do mundo interior dos duendes durante muito tempo. Preferiam o ar livre. Se não se encontravam perto de uma superfície reflexiva, o feitiço do espelho não funcionaria. Podia conseguir com outros feitiços, mas o melhor era começar pelo espelho. Possivelmente teríamos sorte e pilharíamos à pequena rainha revoando por cima de uma tranquila superfície de água.
— Não — protestou Galen. Deu duas enormes pernadas e se plantou diante do Doyle e lhe agarrou pelo braço. — Não vou permitir que o faça.
Os olhos de ambos se encontraram durante uns segundos, e Galen não se acovardou pelo olhar do Doyle. Possivelmente Galen era mais valente do que eu acreditava, ou mais estúpido. Eu apostava pelo segundo. Galen não entendia nada sobre política, nem pessoal nem de outro tipo. Agarrou o Doyle pelo braço e lhe impediu de deixar a sala, apesar de que isso podia significar um duelo entre ambos. Tinha visto o Doyle lutar, e tinha visto Galen lutar. Sabia quem ganharia, mas Galen não o pensou, limitou- se a reagir e, é obvio, essa era sua maior debilidade e a razão pela que meu pai me tinha entregue a outro. Galen não tinha todas as características necessárias para sobreviver às intrigas da corte.
Mas Doyle não tomou como uma ofensa. Desviou o olhar do Galen a mim e arqueou uma sobrancelha como me perguntando o que devia fazer.
— Está agindo como se já fosse rei, Galen — eu disse, e soou duro inclusive para mim porque sabia que ele não estava pensando nisso. Mas tinha que mantê-lo sob controle antes que Doyle se metesse no meio. Era eu a que devia mandar, não Doyle.
O olhar de estupefação do Galen quando me olhou era tão genuína, tão típica dele.
Virtualmente, qualquer de outros Corvos da Rainha teria sido capaz de esconder seus sentimentos, mas Galen não. Sempre podia ver seu estado de ânimo refletido na cara.
— Não sei o que quer dizer. — E provavelmente fosse verdade.
— Dei uma ordem a um de meus guardas e você lhe impediu que a levasse a cabo. Quem se não o rei poderia contradizer as ordens de uma princesa? — eu disse e lancei um suspiro.
A confusão lhe banhou a cara e, lentamente, soltou o braço do Doyle.
— Não o tenho feito com essa intenção.
Sua voz soou jovem e insegura. Tinha setenta anos mais que eu, embora politicamente seguia sendo um pirralho, e sempre o seria. Parte de seu encanto era sua inocência. Também era um de seus pontos débeis mais perigosos.
— Obedece minhas ordens, Doyle.
Doyle me ofereceu a reverência mais leve e cortesã que pôde e a seguir, dirigiu-se à porta do quarto para encontrar-se com o espelho que havia atrás dela. Galen o observou enquanto desaparecia pela porta, e logo me olhou.
— Merry, por favor, não aceite as ordens dessa criatura por minha culpa.
— Galen, eu amo você, mas nem todo mundo é tão inepto em questões de política como você — lhe respondi sacudindo a cabeça.
Franziu o cenho.
— O que se supõe que significa isto?
— Significa querido, que negociarei com o Niceven. Se o preço que pede é muito alto, não o pagarei. Mas confia em que me encarregue do assunto. Não cometerei nenhuma estupidez, Galen.
— Não gosto nada disso. Não sabe no que se converteu Niceven desde que a rainha Andais perdeu parte de sua influência na corte.
— Se Andais permite que seu poder lhe escape das mãos, outros se apressarão a agarrá-lo. Isso eu já sei, Galen.
— O quê? Como pode saber tendo estado fora enquanto acontecia tudo isto?
Suspirei de novo.
— Se Andais tiver perdido tanto poder que até seu próprio filho, Cel, conspira a suas costas, se seu poder se deteriorou até o ponto de que estão utilizando aos sluagh como polícia da corte em lugar de constituir o último recurso tal como deveria ser então todo mundo deve estar brigando para conseguir os restos do bolo. E farão tudo o que esteja em suas mãos para conservar o poder conseguido.
Galen me olhou como se não entendesse nada.
— Isso é exatamente o que esteve acontecendo durante os últimos três anos, mas você não esteve lá. Como sabe...? — Olhou-me com surpresa e logo acrescentou: — Tinha um espião.
— Não Galen, não tinha nenhum espião. Não faz falta que esteja ali para saber o que fará a corte se a rainha é débil. A natureza aborrece os vazios, Galen.
Franziu o cenho. Não tinha desejos de poder, nem ambições políticas. Era como se lhe faltasse essa parte e devido a que carecia totalmente de ambições, não entendia que outros as tivessem. Sempre tinha sabido que ele era assim, mas nunca tinha me dado conta de até que ponto era tão diferente que não chegava a compreendê-lo. Não podia entender como tinha sido capaz de compor o quebra-cabeças sem ter visto primeiro as peças. Devido a ele nunca teria sido capaz de fazê-lo, não entendia que outros sim pudessem.
Sorri, mas me sentia triste. Aproximei-me dele e lhe acariciei a cara com as gemas dos dedos. Precisava tocá-la para saber que era real. Foi como se por fim tivesse me dado conta da profundidade de seu problema e, ao sabê-lo, tive a impressão de que nunca lhe tinha conhecido de verdade.
Tinha as bochechas tão quentes, tão suaves como sempre.
— Galen, negociarei com Niceven. Vou fazer porque deixar a um de meus guardas tão mutilado é um insulto para mim e para todos nós. Os semiduendes não deveriam poder castrar a um guerreiro sidhe.
Deu um salto ao ouvir minhas últimas palavras e desviou o olhar. Tomei o queixo e lhe girei a cara para que me olhasse nos olhos.
— E eu te amo, Galen. Quero-te como uma mulher quer a um homem. Não vou sacrificar meu reinado para te curar, mas farei tudo o que possa para que volte a ser como antes.
Um ligeiro rubor lhe alagou as bochechas e obscureceu o tom verde de sua pele até que ficou quase laranja, em lugar de vermelho.
— Merry, eu não...
Toquei-lhe os lábios com as gemas dos dedos.
— Não, Galen, vou fazer isso, e você não vai me deter, porque eu sou a princesa. Eu sou a herdeira ao trono, não você. Você é meu guarda, e não o contrário. Acredito que esqueceu durante um momento, mas não voltará a acontecer.
Olhou-me com preocupação. Tomou a mão que descansava sobre seus lábios e a pôs as palmas pra acima. Depositou um doce e tenro beijo sobre ela, um beijo que me fez tremer de cima abaixo.
Era tão mau em questões de política que fazê-lo rei equivalia quase a uma sentença de morte. Teria sido um desastre não só para o Galen, mas também para a corte, e para mim. Não, não podia ter ao Galen como meu rei, mas podia o ter um pouco. Durante um breve tempo antes de encontrar a meu verdadeiro rei, poderia desfrutar do Galen na cama. Podia apagar o fogo que tinha estado ardendo entre nós, apagá-lo com a carne de nossos corpos. À medida que separava minha mão de sua boca, o olhar desses pálidos olhos verdes foi suficiente para que me passasse pela cabeça sacrificar meu reino. Não ia fazer isso, mas era capaz de fazer tanto para que esses olhos me olhassem enquanto me encontrava tombada debaixo dele...
Depositei um breve beijo sobre seus nódulos, porque não confiava em poder parar se fazia algo mais.
— Vai acabar de pôr a mesa. Acredito que o pão já estará bastante frio agora. Sorriu, de repente alcancei a ver um brilho de seu sorriso dourado.
— Não sei... parece que faz bastante calor aqui.
Sacudi a cabeça e lhe empurrei entre risadas para a cozinha. Possivelmente ficaria com o Galen como meu amante real. Os sidhe levavam existindo milhares de anos, e certamente haveria algum precedente de um amante real em algum momento da história.
Capítulo 16
Durante o jantar falamos sobre o que fazer quando Niceven entrasse em contato conosco. Doyle lhe tinha deixado uma mensagem dizendo que eu queria falar com ela. Estava seguro de que estaria tão intrigada que entraria em contato comigo, e também estava seguro de que sabia o que queríamos.
— Niceven esteve esperando esta chamada. Tem um plano. Não sei do que se trata mas é seguro que tem um plano.
Doyle estava sentado a minha direita de maneira que seu corpo se interpunha entre a janela e eu. Tinha me obrigado a fechar as cortinas, embora tinha me permitido deixar a janela aberta para que corresse a brisa.
Era dezembro na Califórnia, e o vento que entrava era agradável e fresco, como o de finais da primavera ou princípios do verão em Illinois. De maneira nenhuma se tratava de uma brisa fria ou muito forte.
— Ela é um animal — afirmou Galen, retirando a cadeira para trás. Tomou seu prato vazio e o levou a pia. Lavou-o e logo voltou para a mesa.
— Não subestime aos semiduendes pelo que fizeram a ti, Galen. Serviram-se dos dentes porque desfrutavam fazendo-o, não porque não disponham de espadas — disse Doyle.
— Espadas do tamanho de um alfinete — replicou Rhys. — Não acredito que suponham uma grande ameaça.
— Me dê uma faca do tamanho de um alfinete e poderei despedaçar a um homem — repôs Doyle com uma voz suave, mas profunda.
— Sim, mas você é a Escuridão da rainha — respondeu Rhys. — Estudaste todas as armas conhecidas pelos homens e os imortais. Duvido que o pessoal de Niceven tenha sido tão aplicado.
Doyle ficou observando ao homem de cabelo pálido sentado frente a ele.
— E se se tratasse de sua única arma, Rhys, não a estudaria para conseguir o máximo dela contra o inimigo?
— Os sidhe não são os inimigos dos semiduendes — replicou.
— Os semiduendes, ao igual aos trasgos, são tolerados e não muito mais nas cortes. E os miniduendes não têm a feia reputação dos trasgos para proteger-se das fundas e flechas da desgraça.
Por alguma razão, a menção dos trasgos obrigava a desviar a vista para o Kittó. Não tinha se sentado à mesa, mas sim havia se agachado debaixo dela. Comeu o guisado, e logo se tombou feito um novelo em sua enorme cama de cachorro. Parecia cansado por ter passado a tarde na piscina de Maeve Reed. Muito sol e ar fresco para um trasgo.
— Ninguém faz mal aos semiduendes — afirmou Frost. — São os espiões da rainha. Uma mariposa, uma traça, um pequeno mosquito, qualquer deles pode ser um semiduende. Seu encanto é virtualmente indetectável inclusive pelo melhor de nós. Doyle assentiu com a boca cheia de comida. Sorveu um pouco de vinho tinto e a seguir, disse:
— Tudo o que disse é certo, mas os semiduendes foram em uma época muito mais respeitados nas cortes. Não eram simples olhos espiões, a não ser aliados de verdade.
— Com os miniduendes — interveio Rhys. — Por quê?
— Se os semiduendes abandonarem a Corte Escura, o que fica da terra dos duendes começará a desaparecer — respondi.
— Isso é um velho conto chinês — replicou Rhys. — Como o que diz que se os corvos abandonarem a torre de Londres, a Grã-Bretanha desaparecerá. Bom, pois o Império Britânico já está cansado e seguem lhes cortando as asas aos pobres corvos e cevando- os ao máximo. Os malditos insetos são tão grandes como perus.
— Diz-se que quando os semiduendes viajam, o reino dos duendes lhes segue — disse Doyle.
— E o que significa isto? — perguntou Rhys.
— Meu pai dizia que os semiduendes são o mais próximo à essência do mundo dos duendes, ao que nos diferencia dos humanos. Os semiduendes são sua magia mais que nenhum de nós. Não se podem exilar do reino dos duendes porque este viaja com eles vão onde vão.
Galen se apoiou sobre a pia no final da cozinha, com os braços cruzados diante do peito nu. Tinha tirado o avental, acredito que para me economizar a vergonha. Não sei por que seu peito nu não me atraía tanto como entrevê-lo através do delicado tecido, e não podia estar sentada ante ele e comer enquanto levava o avental posto. A segunda vez que não acertei a levar a comida à boca, Doyle lhe pediu que o tirasse.
— Isso não se aplica à maioria de outros duendes pequenos. A norma é que quanto menor é, mais depende do país dos duendes e mais probabilidades tem de falecer quando te encontra longe dele. Meu pai era um pixie. Sei do que estou falando — assegurou Galen.
— Um pixie grande quanto? — perguntou Rhys. Galen sorriu.
— O suficiente.
— Há muitas classes diferentes de pixies — sentenciou Frost, esquecendo-se da parte graciosa ou prescindindo dela de propósito. Amava ao Frost, mas o senso de humor não era sua melhor qualidade. E, é obvio, uma garota nem sempre tem que rir.
— Alguma vez conheci a outro pixie que não fosse membro da Corte da Luz — disse Rhys. — Soube em algum momento o que fez seu pai para ganhar o exílio do Taranis e sua turma?
— Só você podia te referir ao império da Luz como Taranis e sua turma — repôs Doyle. Rhys se encolheu de ombros, sorriu bobamente e perguntou:
— O que fez seu papai?
O sorriso da cara do Galen desapareceu, mas logo se fez maior.
— Meus tios me contaram que meu pai seduziu a uma das damas do rei.
O sorriso lhe apagou da cara. Galen nunca tinha conhecido a seu pai, porque Andais ordenou sua execução pela audácia de seduzir a uma de suas damas de companhia. Ela nunca o teria feito se tivesse sabido que havia um menino no caminho. De fato, o pixie teria sido elevado a fila de nobre e teria se casado com a dama. Já tinha passado com mesclas mais estranhas. Mas o temperamento de Andais lhe fez tomar a decisão de sentenciá-lo a morte precipitadamente, por isso Galen nunca conheceu seu pai.
Se tivesse havido algum humano na sala, teriam pedido perdão por tirar colação um tema tão doloroso, mas não havia nenhum e não nos importava. Se ao Galen tivesse doído, haveria dito algo e nos teríamos calado. Ele não o pediu e nós seguimos dizendo o que pensávamos.
— Trata a Niceven como a uma rainha, uma igual. Gostará e a pilhará com o guarda baixa — disse Doyle.
— É uma semifada. Nunca poderá ser quão mesmo uma princesa sidhe. — Frost, sentado frente à cadeira que tinha ocupado Galen, pronunciou estas palavras com o tom mais grave e arrogante que jamais lhe tinha ouvido.
— Minha avó era uma brownie, Frost — disse com uma voz suave para que não pensasse que lhe estava arreganhando.
Não tomou nada bem. Parecia tão impenetrável, embora eu tinha descoberto que era um dos guardas que se sentiam feridos com mais facilidade.
— Os brownies são uns membros úteis da terra dos duendes. Possuem uma longa e respeitada história. Os semiduendes são parasitas. Estou de acordo com o Galen: são animais.
Perguntei-me que mais tinha que dizer Frost a respeito. O que outros membros do país dos duendes consideravam inúteis?
— No país dos duendes não sobra nada — disse Doyle. — Todo mundo tem sua intenção e seu lugar.
— E para que servem os semiduendes? — perguntou Frost.
— Considero que são a essência da terra dos duendes. Se se fossem, a Corte da Escuridão começaria a desaparecer ainda mais depressa que agora. Assenti e me levantei para levar meu prato à pia.
— Meu pai acreditava que era assim, e não encontrei muitas coisas que meu pai acreditasse e que logo resultassem ser falsas.
— Essus era um homem muito sábio — afirmou Doyle.
— Sim — respondi. — Era.
Galen pegou o prato das minhas mãos.
— Eu os lavo.
— Você fez o jantar. Não pode lavar os pratos.
— Agora mesmo não sirvo para nada mais. — Sorriu enquanto o dizia, embora só com a boca, os olhos não diziam o mesmo.
Permiti que agarrasse o prato para poder lhe tocar a cara.
— Farei o que possa, Galen.
— Isso é o que temo — disse com suavidade. — Não quero que fique em dívida com o Niceven, não por mim. Não é uma razão suficientemente boa para dever nada a esse inseto.
Franzi o cenho e olhei a todos os pressente.
— Por que chamá-la inseto? Não recordava que a reputação dos semiduendes fosse tão ruim quando parti da corte.
— A corte de Niceven se converteu em pouco mais que os mandados da rainha ou do Cel. Não pode pretender que lhe respeitem se acostumaste a uma ameaça e nada mais.
— Não entendo. Que ameaça? Todos vocês disseram que os semiduendes não supõem uma ameaça.
— Eu não disse isso — afirmou Doyle, — mas o que os semiduendes fizeram ao Galen não era a primeira vez que faziam, embora essa vez foi mais... grave. Foi a vez que tiraram de alguém uma maior quantidade de carne.
Galen se girou para ouvi-lo e começou a mudar de um lugar a outro na cozinha limpando os pratos e colocando-os na lava-louça. Parecia fazer mais ruído do que o necessário, como se não quisesse ouvir a conversa.
— Sabe que enfrentar-se à rainha pode significar que te envie ao corredor da morte para ser torturado pelo Ezequiel e seus redcaps.
— Sim.
— Agora, às vezes nos ameaça nos entregando aos semiduendes. De fato, a corte do Niceven, que em seu momento foi uma corte de duendes com o respeito e as cerimônias de qualquer outra corte, viu-se reduzida a outro simples fantasma para levá-lo fora do Escuro e enviá-lo a atormentar a outros.
— Os sluagh não são simples fantasmas — afirmei, — e dispõem de uma corte com seus próprios costumes. Eles foram uma das maiores ameaça do arsenal dos escuros durante mil anos.
— Muito mais que mil anos — corrigiu Doyle.
— Mas souberam manter suas ameaças, seus costumes, seu poder.
— Os sluagh são o que fica da Corte da Escuridão original. Eram escuros inclusive antes que dito termo existisse. Não são eles os que se uniram a nós, a não ser nós quem unimos a eles. Entretanto, ficam muito poucos dos nossos que ainda o recordam, ou que queiram recordá-lo.
Frost falou:
— Estou de acordo com os que afirmam que os sluagh são a essência da Corte Escura e que se se forem, desapareceremos. São eles, e não os semiduendes, os que possuem nosso poder mais primitivo.
— Ninguém tem o sabor de ciência certa — respondeu Doyle.
— Não acredito que a rainha queira arriscar-se a descobrir — replicou Rhys.
— Não — disse Doyle.
— O que significa que os semiduendes se encontram em uma posição parecida com os sluagh — sentenciei.
Doyle me olhou.
— Te explique.
Todo o peso desse repentino olhar escuro me fez querer desaparecer, mas resisti. Já não era a menina temerosa desse homem alto situado ao lado de minha tia.
— A rainha faria quase qualquer coisa para manter aos sluagh ao seu lado e dispostos a ajudá-la assim que os chamasse, mas não pode dizer o mesmo dos semiduendes? Se ela temer de verdade que sua partida signifique que os escuros entrem em uma época de decadência ainda pior que a atual, não fará tudo o que esteja em suas mãos para retê-los em sua corte?
Doyle me observou durante o que me pareceram séculos e logo piscou.
— Possivelmente. — inclinou-se para mim e apoiou as mãos na mesa quase vazia. — Galen e Frost têm razão em uma coisa, Niceven não reage como nenhum outro sidhe. Está acostumada a cumprir as ordens de outra rainha, a entregar, de fato, sua autoridade real a outro monarca. Devemos conseguir que te veja dessa maneira, Meredith.
— A que te refere? — perguntei.
— Devemos lhe recordar de todas as maneiras possíveis que é a herdeira de Andais.
— Sigo sem entender.
— Quando Cel fica em contato com os semiduendes, é o filho de sua mãe. Suas demandas revistam ser tão sangrentas, ou mais, que as de sua mãe. Mas você está pedindo cura, ajuda, com o que automaticamente te situa em uma posição de debilidade, porque pedimos o favor de Niceven e dispomos de muito pouco poder para lhe oferecer em troca.
— De acordo, isso eu entendo. Mas o que podemos fazer?
— Se deite na cama com seus homens. Se rodeie de nós igual faria a rainha. É uma forma de parecer poderosa, já que Niceven inveja à rainha seu grupo de homens.
— Não tem Niceven uns quantos homens semiduendes? — Não, ela teve três filhos com um macho, e ele é seu rei. Não pode separar-se dele.
— Não sabia que Niceven tinha um rei — disse Rhys.
— Muito poucos sabem. Ele é rei só de nome.
Esta frase não foi uma fofoca divertida para passar o momento. Deitar-se com todos os guardas era algo muito agradável, mas ser obrigada a casar-se com um deles só porque te deixou grávida... O que aconteceria se o pai fosse alguém a quem não respeito? A idéia do doce Nicca para sempre me aterrava. Era muito bonito, mas não possuía o suficiente poder nem a força para me ajudar como rei. De fato, havia mais possibilidades de que acabasse sendo uma vítima em vez de uma ajuda. O que me recordou algo.
— Segue trabalhando Nicca nesse caso de guarda-costas?
— Sim — respondeu Doyle, — substituiu ao Frost.
— Como se sente o cliente ao trocar de guardas na metade do caso? Doyle olhou ao Frost, que se encolheu de ombros.
— Ela não se encontra em perigo de verdade. Simplesmente quer um guerreiro sidhe para pendurar-se em seu braço e mostrar ao mundo a grande estrela que é. Para o que ela o quer, um guerreiro sidhe é como qualquer outro.
— Que quantidade de espetáculo temos que representar para Niceven? — perguntei.
— Tudo o que possa — respondeu.
Elevei as sobrancelhas ante sua resposta e tentei pensar.
— Não me incluam no espetáculo — interveio Galen. — Não quero ver nenhuma dessas coisas, nem sequer de longe.
Tinha enchido a lava-louça e a tinha posto em marcha, de maneira que o rítmico ruído da máquina lhe marcava o passo enquanto voltava para a cadeira. Ao que parece nos ajudaria no plano, enquanto não lhe incluíramos nele.
— Isto dificulta as coisas. Você e Rhys são aos únicos deste grupo aos que não lhes importa nada flertar em público. Tanto Frost como Doyle se envergonham mais se houver gente perto.
— Esta noite estou disposto a ajudar — afirmou Doyle.
— Vais brincar diante dos pequenos? — perguntou Frost. Doyle se encolheu de ombros.
— Acredito que é necessário.
— Eu estarei na cama, como estive quando me chamou a rainha, mas não vou brincar, não para Niceven.
— Bom, como queira. Mas se não está disposto a representar o papel de amante de Meredith, coisa que em realidade é, não arruíne o espetáculo que o resto de nós vamos montar. Possivelmente deveria esperar na sala de estar enquanto falamos com os miniduendes.
Frost entrecerrou seus olhos cinzas.
— Hoje me impediste de me aproximar de Meredith para ajudá-la. Duas vezes. Agora sugere que não esteja em sua cama enquanto brinca de ser seu amante. O que será a seguir, escuridão? Vais romper seu jejum e tirará minha noite em sua cama de verdade e não só de brincadeira?
— Estou em meu direito de fazê-lo.
Estas palavras me fizeram olhar ao Doyle. Como sempre, sua expressão não deixava adivinhar nada. Acabava de dizer que ia compartilhar a cama comigo essa noite ou simplesmente estava discutindo com o Frost?
Por último se levantou e se inclinou sobre a mesa. O outro permaneceu sentado olhando-o com calma.
— Acredito que deveríamos deixar que Meredith escolha com quem quer compartilhar a cama esta noite.
— Não estamos aqui para que Meredith escolha — respondeu Doyle. — Estamos aqui para lhe dar um filho. Vocês três levam três meses compartilhando a cama com ela e ainda não está grávida. A sério está disposto a lhe negar a oportunidade de ter um filho, de ser rainha, sabendo que se Cel obtiver o objetivo e Meredith não, a matará?
As emoções atravessaram a cara do Frost muito depressa para poder as detectar. Por fim abaixou a cabeça.
— Nunca desejaria a desgraça de Meredith.
Adiantei-me e lhe toquei o braço. A carícia fez que me olhasse. Seus olhos estavam alagados de dor, e me dava conta de que estava ciumento por mim. Por muito que me importasse, não tinha ganho o direito de estar ciumento dessa maneira. Ainda não. Embora em seguida me dava conta de que a idéia de não voltar a tê-lo nunca mais entre meus braços me fazia mal, não podia me permitir o luxo de sentir sua perda mais do que ele podia permitir-se o de estar ciumento.
— Frost... — comecei a dizer.
Não sei o que haveria dito porque nos chegou um som como de campainhas procedente do dormitório. Era como se alguém tivesse pego o delicado som dos sinos de prata e o tivesse convertido em sinos de alarme. Me acelerou o pulso, e não de maneira positiva. Soltei o braço do Frost quando ouvi esse som. Ficamos de pé, nos olhando uns aos outros, exceto Galen e Kitto, que se dirigiram para o dormitório.
— Devo ir, Frost. — Estive a ponto de lhe pedir desculpas, mas não o fiz. Não as tinha ganho, e eu não as devia.
— Irei contigo — disse.
Olhei-lhe com olhos como pratos.
— Farei por minha rainha o que não faria por ninguém mais. E, nesse momento, soube que não se referia ao Andais.
Capítulo 17
Doyle estava de joelhos sobre a colcha cor vinho tinto falando com o espelho quando Frost e eu entramos no quarto.
— Lhe oferecerei uma visão geral quando nossa princesa se encontre conosco, rainha Niceven.
O espelho era um redemoinho de névoa no momento em que subi à cama. Doyle ficou de joelhos detrás de mim e um pouco a um lado. Rhys se sentou detrás de nós, apoiou-se contra o travesseiro e se acomodou entre as almofadas granadas, violetas, malvas, rosas e negros. Não podia afirmá-lo com certeza, mas parecia estar nu, exceto por uns quantos almofadas situadas de forma estratégica. Não tinha nem idéia de como se despiu tão depressa.
Frost se recostou na cama e se situou detrás de mim e a um lado, de forma que fiquei escoltada por ele e Doyle.
Este realizou um movimento circular com a mão e a névoa desapareceu. Niceven estava sentada em uma delicada cadeira de madeira, um pouco curvada para que suas asas pudessem descender com o passar do respaldo sem danificar-se. Sua cara era um triângulo quase perfeito de pele branca. Mas sua brancura não era igual à minha ou a do Frost ou a do Rhys. Sua pele branca possuía um tom cinza. O cabelo brancos cinzentos estavam penteados em elaborados cachos, como os das bonecas antigas, e uma pequena tiara impedia que os cachos caíssem sobre a cara. Brilhava com a calidez fria que só se obtém com diamantes. Seu vestido era branco e vaporoso. A folga de sua roupa teria escondido seu corpo, mas era totalmente transparente, de maneira que podiam ver-se os pequenos peitos em ponta, a quase esquelética magreza das costelas, e as pernas cruzadas com elegância. Levava umas sapatilhas que pareciam fabricadas com pétalas de flores. Um camundongo branco, que comparado com ela era tão grande como um pastor alemão, estava sentado a seu lado. Niceven lhe acariciava o cabelo entre as orelhas.
Um trio de damas de companhia se encontrava de pé detrás da rainha, cada uma com um vestido de uma cor que combinava com o brilho das asas, rosa — vermelho, narcisista — amarelo e íris — púrpura. Seu cabelo era negro, amarelo e moreno respectivamente.
Niceven tinha tomado muitas mais moléstias que nós para representar sua pequena cena.
Eu me sentia muito normal com a saia verde que usava. Entretanto, não me importava muito porque, de todas formas, tratava-se de uma chamada de negócios.
— Rainha Niceven, muito obrigado por me devolver a chamada.
— Em realidade, princesa Meredith, faz três meses que espero sua chamada. Seu afeto para o cavalheiro verde é bem conhecido na corte. O que mais me surpreende é que tenham demorado tanto em se pôr em contato comigo.
Estava sendo muito formal. Dava-me conta de que não só seu discurso era formal. Levava a coroa; eu não tinha nenhuma coroa, ainda não. Encontrava-se sentada no trono, enquanto eu estava sentada no centro de uma cama meio desfeita. Tinha umas damas de companhia, como se fossem um silencioso coro grego, a suas costas. E um camundongo, não esqueçamos o camundongo. Eu só tinha ao Doyle e ao Frost a cada lado, e ao Rhys recostado sobre os travesseiros. Niceven estava tentando me pôr em desvantagem. Já veríamos.
— Em realidade, procuramos a ajuda de curadores do mundo dos mortais, mas no final, vimo-nos obrigados a reconhecer que lhes chamar era a única solução possível.
— O que demonstra uma grande obstinação da sua parte, princesa.
— Possivelmente, mas já sabe por que chamei e o que quero.
— Não sou nenhuma fada madrinha para ir cumprindo desejos por aí, Meredith. — Não mencionou meu título, o que constituía um insulto deliberado.
De acordo, eu também podia ser mal educada.
— Como queira, Niceven. Mas sabe o que quero.
— Quer uma cura para seu cavalheiro verde — disse enquanto percorria com a mão a orelha rosa do camundongo.
— Sim.
— O príncipe Cel insistiu muito em que Galen seguisse castrado.
— Uma vez me disse que o príncipe Cel ainda não dirige a Corte da Escuridão.
— Certo, mas ainda não é seguro que você chegue a viver para poder ser rainha algum dia, Meredith. — Voltou a omitir o título. Doyle se moveu para ficar de costas ao Rhys. Assegurou-se de que seguia ao bordo da cama, no limite de minha visão periférica e bem à vista da rainha. Como se se tivessem posto de acordo com antecipação, Rhys ficou de joelhos diante dos travesseiros e mostrou com claridade que ia nu. Enrolou-se a larga trança do Doyle ao redor do braço e, quando chegou ao final, começou a desfazer o laço que a segurava.
Os olhos de Niceven seguiram o movimento que se desenvolvia detrás de mim, e logo voltaram a me olhar.
— O que fazem?
— Estão se preparando para ir pra cama — respondi, embora não estava segura de tudo.
Enrugou as sobrancelhas cinzas e delicadas.
— Mas se forem, o quê?... as nove da noite onde vivem vocês. A noite é jovem para esbanjá-la dormindo.
— Não disse que vamos dormir — repliquei com uma voz uniforme.
Respirou tão fundo que pude ver como se elevava e baixava seu delicado peito. Tentou seguir atenta ao que eu lhe dizia, mas seu olhar se desviava continuamente para os homens. Rhys estava soltando o cabelo do Doyle. Tinha visto o Doyle com o cabelo solto só uma vez. Só uma vez em que tinha sido como um escuro manto com vida que lhe cobria o corpo.
Niceven os olhava de esguelha, assim não podia estabelecer contato direto visual com ela. Não estava segura de se se tratava do cabelo do Doyle ou da nudez do Rhys. Duvidava que fosse a nudez, porque estar nu não era algo tão estranho na corte. É obvio, possivelmente admirava os músculos abdominais duros como uma tabela do Rhys, ou inclusive o que havia justo debaixo deles.
Frost se levantou, tirou a jaqueta, e começou a desfazer-se da cartucheira. Niceven desviou o olhar para ele.
— Niceven — disse com suavidade. Tive que repetir duas vezes seu nome para conseguir que me fizesse caso. — Como curo ao Galen?
— Não é certo que seja a rainha e, se o príncipe Cel chegar a ser rei, se lembrará de que te ajudei.
— E se eu for a rainha, me lembrarei de que não me ajudou.
— Assim tenho que encontrar uma maneira para ter contentes aos dois cães raivosos — disse com um sorriso. — Te ajudarei porque já ajudei ao Cel. Isso equilibrará a balança.
Recordei os gritos do Galen, e a dor em seus olhos durante estes últimos meses, e não acredito que isso equilibrasse a balança. Não acredito que arrumar o que ela tinha arruinado fosse nada próximo a equilibrar a balança. Mas estávamos fazendo política de duendes, não terapia, assim não disse nada. O silêncio não é uma mentira. Um pecado de omissão, mas não uma mentira. Nossas culturas lhe permitem omitir tudo o que possa enquanto possa suportá-lo.
— Como pode se curar o Galen? — voltei a perguntar. Sacudiu a cabeça conseguindo que os cachos dançassem e a tiara de diamantes enviasse brilhos pra direita e pra esquerda.
— Não, primeiro falemos do preço. O que vai me dar para que seu cavalheiro verde volte a ser um homem?
Frost e Doyle se adiantaram para colocar-se a meu lado quase ao mesmo tempo.
— Terá o favor da rainha da Escuridão, e isso deveria te bastar — disse Frost com uma voz tão fria como seu nome.
— Ainda não é a rainha, Frost Assassino. — A voz de Niceven estava repleta de ódio frio, gelado. Parecia habitar nela algum rancor antigo. Era algo pessoal contra Frost?
Vi como Doyle fazia um gesto de agarrar ao outro homem e lhe detive com um olhar.
Essa noite havia bastante tensão entre ambos. As brigas entre nós não iriam transmitir uma imagem de força. Doyle ficou a meu lado, e se limitou a seguir ao Frost só com o olhar; com um olhar nada amistoso, por certo.
Toquei o braço do Frost e o apertei ligeiramente. Ficou rígido, com os músculos tensos, e olhou ao Doyle. Logo se deu conta de que era eu quem lhe segurava. Pouco a pouco foi se relaxando. Respirou fundo lentamente, e se separou uns centímetros de mim.
Voltei a olhar para o espelho e me encontrei com a ardilosa e atenta cara de Niceven. Estava esperando que dissesse algo, mas não o fez. Limitou-se a ficar sentada e aguardou a que falasse eu.
— Que deseja a rainha Niceven dos Duendes Diminutos da princesa Meredith da Corte Escura em troca de curar a seu cavalheiro? — Utilizei de propósito ambos os títulos na mesma frase para destacar que era consciente de que ela era rainha e eu não. Esperava que isso servisse para compensar o ataque de ira do Frost.
Observou-me durante uns quantos pulsados e logo assentiu levemente.
— O que nos oferece a princesa Meredith da Corte Escura?
— Uma vez disse que daria o que fosse por um gole mais comprido de meu sangue. Olhou-me desconcertada antes de poder recuperar a cara de pôquer típica da corte.
— Sangue é sangue, princesa. Por que deveria desejar o teu? — disse quando pôde controlar-se.
Agora estava se fazendo de dura.
— Disse-me que eu tinha sabor de magia superior e sexo. Ou é que me esqueceste tão depressa, raiha Niceven? — Baixei a cabeça e olhei ao chão. — Tão pouco significou para ti? — Encolhi-me de ombros e permiti que a juba, larga até o ombro, caísse-me sobre a cara. Falei através de uma cortina de cabelo que reluzia como cristais de rubis.
— Se o sangue da herdeira ao trono não significa nada para ti, então não tenho nada que te oferecer.
Olhei-a nos olhos sabendo o efeito que essas íris tricolores verde e ouro podiam ter emoldurados com o cabelo vermelho sangue, e junto com uma insinuação de pele como alabastro gentil. Tinha crescido entre mulheres, e homens, que utilizavam a beleza como uma arma. Nunca teria me passado pela cabeça fazê-lo com outro sidhe, porque todos eles eram mais bonitos que eu, mas observando a Niceven e como seus olhos famintos seguiam a meus homens, estava segura de que com ela sim que podia utilizar esta arma, igual a ela tentaria utilizar outras.
Golpeou com sua diminuta mão o braço da cadeira com suficiente força para assustar ao camundongo.
— Pela Flora, tem mesmo o sangue de sua tia. O príncipe Cel nunca dominou sua beleza, a diferença de Andais e de ti.
Fiz uma pequena reverência, porque sempre é difícil inclinar-se quando se está sentada.
— Um bonito elogio de uma formosa rainha.
Mostrou-se satisfeita, sorriu e acariciou ao camundongo. Logo se reclinou sobre a cadeira, de maneira que o vestido vaporoso que levava deixou ver mais partes de seu corpo, que tinha passado de magro a cadavérico, assim era como ver uma coisinha morta de fome. Mas ela pensava que seu corpo resultava bonito, e isso era o que devia mostrar minha cara.
Frost permanecia imóvel detrás de mim. Tirou o cinto, a cartucheira e a jaqueta, mas nada mais. Levava postos inclusive os sapatos. Não ia despir se para Niceven.
Por outro lado, Doyle tinha tirado a cartucheira, o cinto e a camiseta. O aro de prata do mamilo esquerdo brilhava de forma que Niceven podia vê-lo, inclusive de perfil. Rhys seguia trabalhando com toda esse grosso arbusto de cabelo negro, como se estivesse arrumando a cauda de um vestido.
Os homens se moviam a meu redor como se fossem damas de companhia preparando- se para ir pra cama. Deixaram-me a sós para negociar com Niceven, o que significava que o estava fazendo bem sozinha. Era bom saber isso.
Olhei-a enquanto desenhava um círculo com uns lábios tão vermelhos como a rosa vermelha, vermelhos sem necessidade de batom.
— Um sorvo de meu sangue em troca da cura para meu cavalheiro, aceita?
— Dá o líquido que te proporciona a vida com muita facilidade, princesa. — Tentava ser precavida.
— Só dou o que possuo.
— O príncipe acredita que possui toda a corte.
— Eu sei que a única coisa que possuo é o corpo no que vivo. Qualquer outra coisa é presunção.
A rainha ficou a rir.
— Virá a casa para que possa me alimentar?
— Está de acordo em outro sorvo em troca da cura de meu cavalheiro?
— Sim, estou.
— Então, o que estaria disposta a me dar por um sorvo por semana?
Notei como os homens situados as minhas costas ficavam tensos. De repente, o ambiente no quarto se fez mais pesado. Tomei cuidado de não olhá-los. Era uma princesa e não necessitava da permissão de meus guardas para fazer nada. Ou mandava eu ou não mandava, mas nada pela metade.
Niceven entreabriu os olhos até que pareceram duas pequenas chamas.
— O que se supõe que significa «um sorvo por semana»?
— Significa exatamente o que disse.
— Por que te ofereceria a me entregar uma oferenda de sangue semanal?
— Para conseguir uma aliança contigo. Frost se aproximou de mim.
— Meredith, não...
Ia dizer algo desafortunado e a arruinar tudo. Tinha começado a esboçar uma idéia, e era uma idéia boa.
— Não, Frost — lhe disse. — Não pode me dizer que não. Sou eu a que te digo que sim ou que não. Não o esqueça. — Lancei-lhe um olhar que esperava que entendesse, um olhar que dizia: «fecha a boca e não estrague meu plano».
Fechou a boca com tanta força que os lábios se converteram em uma fina linha quase imperceptível, o que significava que não estava nada contente. Entretanto, permaneceu sentado sem dizer nada.
Ouvi como respirava de Doyle, e o olhei. Uma olhada foi suficiente. Assentiu com a cabeça e permitiu que Rhys começasse a lhe pentear o comprido cabelo. A enorme massa de cabelo negra estava repleta de ondas, acredito que devido à trança que tinha levado, já que eu recordava que o deixava liso: Por um momento, distraí-me ao observar ao Rhys de joelhos e tão pálido em comparação com a negrume do Doyle. Então, este esclareceu garganta, o que me devolveu a realidade e me convidou a olhar de novo para o espelho.
Niceven ria com um som parecido a campainhas desafinadas, como se fosse algo precioso que se distorceu um pouco.
— Perdão por minha distração, rainha Niceven.
— Se eu tivesse umas maravilhas assim me esperando, esta seria uma conversa realmente curta.
— E se tivesse a maravilha de meu sangue te esperando? O que faria?
Ficou séria.
— É insistente. Não é um traço característico dos duendes.
— Sou em parte brownie, e nós somos um povo mais insistente que os sidhe.
— Também é em parte humana.
— Os humanos são como os sidhe, alguns são mais insistentes que outros — repus sorrindo.
Não me devolveu o sorriso.
— Por outro sorvo de seu sangue, curarei a seu cavalheiro verde, mas isso é tudo. Um sorvo, uma cura, e estamos em paz.
— Por um sorvo de meu sangue, o rei Kurag dos trasgos se converteu em meu aliado durante seis meses.
Elevou as delicadas sobrancelhas.
— Esse é um assunto entre trasgos e sidhe, e não me incumbe para nada. Nós somos os semiduendes. A ninguém importa com quem nos aliemos. Não lutamos nas batalhas. Não desafiamos a duelos. Encarregamo-nos de solucionar nossos assuntos e não nos metemos nos dos outros.
— Então, rechaças a aliança?
— Considero que agora a precaução é o mais valioso, princesa, sem importar quão bom seja seu sangue.
Nas negociações sempre terá que ser agradável primeiro, mas se sendo agradável a coisa não funciona, existem outras opções.
— Todo mundo te deixa sozinha, rainha Niceven, porque consideram que é muito pequena para preocupar-se com ti.
— O príncipe Cel pensou que fomos o suficientemente grandes para danificar seus planos com o cavalheiro verde. — Pela primeira vez, apareceu um pouco de raiva em sua voz.
— Sim, e o que te ofereceu por esse pequeno trabalho?
— Provar a carne de sidhe, a carne do cavalheiro, e seu sangue. Passamo-nos bem essa noite, princesa.
— Pagou-te com o sangue de outro, quando seu corpo estava repleto de sangue só um passo abaixo da própria rainha. Provaste à rainha alguma vez?
Niceven parecia nervosa, quase assustada.
— A rainha só compartilha com seus amantes ou seus prisioneiros.
— Como deve te chatear ver algo tão precioso esbanjado. Niceven fechou com força os pequenos lábios chapeados.
— Se pelo menos ela levasse a algum de nós à cama, mas somos...
— Muito pequenos — terminei por ela.
— Sim — disse vaiando, — ssssssim, sempre muito pequenos. Muito pequenos para estabelecer alianças, muito pouco poder para nos usar de outra maneira que não seja como espiões.
Fechou as pequenas mãos pálidas e as apertou com força. O camundongo branco se assustou e se separou dela como se soubesse o que acontecia. Inclusive o trio de damas situadas atrás do trono tremeram como se tivesse soprado uma rajada de vento gelado.
— E agora te encarrega de fazer o trabalho sujo para seu filho — lhe disse. Esforcei-me em que minha voz soasse neutra, quase agradável.
— Ao menos recorreu a nós para lhe fazer o trabalho.
A ira dessa pequena e delicada criatura era aterradora. A raiva fazia que ocupasse mais espaço que o que abrangia fisicamente. A ira nela a fazia parecer mais majestosa.
— Ofereço-te o que a rainha não te oferecerá. Ofereço-te o que o príncipe não te oferecerá.
— E do que se trata?
— Sangue real, sangue do próprio trono da Corte da Escuridão. Te alie comigo, rainha Niceven, e terá esse sangue. E não só uma vez, mas também muitas.
Voltou a entreabrir os olhos, pareciam umas simples ranhuras que brilhavam com um fogo mais frio que os diamantes da coroa que levava.
— O que ganharemos ambas com dita aliança?
— Você conseguirá a atenção e a ajuda de meus aliados.
— Os trasgos têm muito pouco que ver conosco.
— E o que acontece com os sidhe?
— O que tem eles?
— Como aliada de um dos herdeiros, conseguiria um status maior. Já não poderão te desprezar, por temor a que você venha correndo me contar isso.
Olhou-me fixamente aos olhos.
— E o que consegue você com a aliança?
— Que espie para mim, assim como para a rainha.
— E o que acontece com o Cel?
— Deixaria de espiar para ele.
— Não gostará nada disso.
— Não tem que gostar. Se for minha aliada, aquele que te faça mal me estará insultando. A rainha decretou que estou sob seu amparo. Agora se alguém me faz mal, significa uma sentença de morte.
— Assim se me insulta, intervém você. E então, o quê?
— Ameaça-os trazendo toda sua corte aqui, a Los Angeles, para estar comigo. Estremeceu-se.
— Não desejo levar a meu povo à cidade dos homens. — Falou como se só houvesse uma cidade dos homens, «a cidade».
— Poderiam viver nos jardins botânicos, onde há acres de terreno ao ar livre. Ali há espaço para vocês Niceven, prometo-lhe isso.
— Mas eu não desejo abandonar a corte.
— Onde vão os semiduendes, o país dos duendes irá com eles.
— A maioria dos sidhe não recordam isto.
— Meu pai se assegurou de que conhecesse a história de todos os duendes. Os semiduendes são o mais próximo à matéria prima do país dos duendes, a matéria prima que nos diferencia dos humanos. Não é um leprechaun, nem um pixie, que se consomem e morrem longe do país dos duendes. Você é a terra dos duendes. Não é certo que se diz que quando desaparecer o último semiduende desaparecerá o país dos duendes?
— Uma superstição — respondeu.
— Possivelmente, mas se abandonar a Corte Escura e a Corte Luminosa reter a seus próprios semiduendes, os escuros serão mais débeis. Cel possivelmente não recorda essa parte de nosso saber popular, mas a rainha com certeza que sim. Se Cel te insultar tanto como para te obrigar a fazer as malas, a rainha intercederá.
— Nos ordenará a ficar.
— Não pode lhe ordenar a outro monarca que faça nada. É o que diz a lei. Niceven parecia nervosa. Temia a Andais. Todo mundo a temia.
— Não desejo desgostar à rainha.
— Eu tampouco.
— De verdade acha que a rainha castigaria a seu próprio filho se nos obrigasse a partir, em lugar de dirigir sua fúria contra nós? — Havia tornado a cruzar as pernas, e tinha cruzado os braços diante do peito esquecendo-se de ser majestosa em seu aborrecimento.
— Onde está Cel agora? — perguntei.
Niceven soltou um risinho tolo, uma risada do mais desagradável.
— Castigado durante seis meses. Há apostas sobre se sua saúde mental sobreviverá a seis meses de isolamento e torturas.
Encolhi-me de ombros.
— Deveria ter pensado isso antes de ser um menino mau, muito mau.
— É impertinente, mas se Cel acabar louco, será seu nome que gritará. Será sua cara a que esteja desejando amassar.
— Não vou pôr o carro na frente do cavalo.
— O quê?
— É um dito humano. Significa que solucionarei o problema quando chegar, se chegar.
Pareceu refletir muito, e logo disse:
— Como vais me entregar o sangue? Não acredito que a nenhuma de nós goste de viajar semanalmente entre o país dos duendes e o mar do oeste.
— Poderia pô-la em uma parte de pão, e te enviar a essência por via mágica.
Negou com a cabeça e seus cachos fantasmagóricos flutuaram sobre seus ombros.
— A essência nunca é a mesma.
— Então, o que sugere?
— Se lhe envio a algum dos meus, poderia atuar como meu delegado.
Refleti sobre isso durante uns instantes. Ouvia a quietude do Frost e o som que produzia Rhys ao escovar o cabelo do Doyle.
— De acordo. Me diga como curar a meu cavalheiro e envia a seu delegado. Riu, outra vez campainhas desafinadas.
— Não, princesa, conseguirá a cura dos lábios de meu delegado. Se lhe disser isso agora, antes de receber o pagamento, possivelmente volte atrás.
— Dei-te minha palavra. Não posso voltar atrás.
— Levo muito tempo negociando no país dos duendes para acreditar que todo mundo mantém sua palavra.
— É uma de nossas leis mais severas. O perjúrio é castigado com o exílio.
— A não ser que tenha amigos nas altas esferas que se assegurem de que ninguém saiba o acontecido.
— O que está dizendo, rainha Niceven?
— A única coisa que digo é que a rainha quer tanto a seu filho que tem quebrado mais de uma proibição para mantê-lo a salvo.
Olhamos a uma à outra, e soube sem perguntar que Cel fazia promessas que logo tinha quebrado, o que constituía uma razão suficiente para ser exilado e sem dúvida alguma, afastado do direito a ocupar o trono. Andais sempre tinha mimado o Cel, mas nunca tinha sido realmente consciente de até que ponto.
— Quando chegará seu delegado? — perguntei.
Pareceu refletir sobre isso enquanto adiantava uma mão para acariciar ao camundongo, que agora jazia a seus pés. O roedor se aproximou; movia os largos bigodes e ergueu as orelhas em sinal de alerta, como se não estivesse seguro de quão recebida ia ter. Acariciou-o com cuidado.
— Dentro de uns poucos dias — respondeu.
— Nem sempre estamos em casa para receber aos convidados. Eu gostaria de receber como corresponde a seu enviado.
— Deixa um vaso com flores na porta; será suficiente para ele.
— Ele?
— Imagino que um macho você gostará mais, não é certo?
Assenti ligeiramente porque não estava segura de que me importasse. Ia compartilhar sangue, não sexo, assim não tinha nenhuma preferência, ao menos que eu soubesse.
— Estou segura de que a rainha será sábia em sua eleição.
— Bonitas palavras, princesa, fica ainda por ver se as ações que devem seguir a essas palavras também serão bonitas. — Voltou a desviar o olhar para os homens e se deteve sobre o Doyle e Rhys. — Doces sonhos, princesa.
— Igualmente, rainha Niceven.
De repente sua cara se obscureceu, os olhos se fecharam ainda mais e se endureceram, parecia que usava uma máscara. Se nesse momento se levantasse e arrancasse cara de um puxão, não acredito que tivesse sido capaz de seguir mantendo a cara de pôquer nem um segundo mais. Mas não o fez. Limitou-se a falar com uma voz que era como um sussurro de escamas sobre a pedra.
— Meus sonhos são assunto só meu, princesa, e seguirão sendo os que eu gosto. Fiz uma pequena reverência.
— Não pretendia te insultar.
— Não importa, princesa, é pura inveja.
Depois destas palavras, desapareceu, e o espelho voltou para seu estado normal.
Fiquei sentada observando meu próprio reflexo. Um movimento me chamou a atenção, girei-me e vi o Rhys e o Doyle, que seguiam de joelhos. Os músculos dos braços do Rhys estavam em tensão enquanto escovava o cabelo do Doyle. Frost virtualmente não se moveu, o suficiente para ver meu reflexo no espelho, e me olhou com tanta dureza que me obrigou a me girar para ele.
Sustentou-me o olhar. Os outros dois pareciam não dar-se conta do que acontecia.
— Niceven se foi. Já podem deixar de dissimular — eu disse.
— Ainda não acabei que escovar todo este cabelo — repôs Rhys. — Por isso cortei o meu quando chegava aos tornozelos. É quase impossível cuidá-lo sozinho.
Separou outra mecha de cabelo, colheu-o com uma mão e começou a penteá-lo com a outra. Doyle permanecia em silêncio enquanto Rhys lhe penteava com uma cara de concentração como a dos meninos. Não havia nada mais que fosse infantil nele, aí ajoelhado, nu, rodeado por muito cabelo negro e travesseiros multicoloridos. Seu corpo era, como sempre, musculoso, pálido e brilhante. Resultava maravilhoso lhe olhar, mas não estava excitada. A nudez não significava sexo para os sidhe, não sempre.
Frost realizou um pequeno movimento que me fez dar meia volta e olhá-lo. Seus olhos eram cinza escuro como o céu justo antes de uma tormenta. Estava zangado; percebia-se em cada linha de sua cara, na tensão dos ombros, na forma de sentar-se, com tanto cuidado, imóvel, e irradiando energia ao mesmo tempo.
— Lamento que não gosta do que fiz, mas sabia o que estava fazendo com Niceven.
— Deixaste muito claro que é você a que manda aqui e eu me limito a obedecer — disse com uma voz dura e iracunda.
Suspirei. Era cedo ainda, mas tinha sido um dia muito comprido. Estava muito cansada para os sentimentos feridos do Frost. Sobretudo porque estava equivocado.
— Frost, não posso me permitir o luxo de parecer débil ante ninguém neste momento. Inclusive Doyle não fala sua opinião em público, sem importar o quanto contra esteja logo em privado.
— Parece-me bem tudo o que tem feito hoje — disse Doyle.
— Alegra-me ouvi isso.
Olhou-me com altivez, embora algumas mechas de cabelo impediam de obter o efeito desejado. É difícil parecer ameaçador quando há alguém jogando com seu cabelo. Observou-me fixamente. A maioria das pessoas teriam desviado a vista, mas eu lhe cravei os olhos e lhe sustentei o olhar. Estava cansada de tanto joguinho. Só porque sabia jogar com eles, e bastante bem por sinal, não significava que me divertissem.
— Já tive bastante com os joguinhos de poder de hoje, Doyle. Não quero nenhum mais, especialmente por parte de meus guardas.
Olhou-me surpreso com esses olhos negros e escuros.
— Pára, Rhys. Meredith e eu temos que conversar.
Rhys se deteve obedientemente e voltou a se sentar apoiado sobre os travesseiros. Seguia com a escova na mão.
— Em particular — acrescentou Doyle.
Frost saltou como se lhe tivessem golpeado. Foi sua reação, mais que as palavras do Doyle, o que me fez suspeitar que estávamos falando de algo mais que de uns segredinhos.
— Hoje é minha noite com o Meredith — disse Frost. Sua raiva parecia haver se desvanecido sobre as asas da possibilidades que não tinha previsto.
— Se fosse a do Rhys, teria que esperar seu turno de novo. Eu ainda não tive meu turno, assim estou em meu direito de pedir esta noite.
Frost ficou em pé e quase tropeçou devido à pressa e à falta de espaço.
— Primeiro me impede de ajudá-la e agora tira minha noite em sua cama. Se não te conhecesse tanto, te acusaria de ciumento.
— Pode me acusar do que quiser Frost, mas sabe que não sou ciumento.
— Pode ser que sim, pode ser que não, mas te passa algo e esse algo tem que ver com nossa Merry.
Doyle suspirou com um som profundo, quase ferido.
— Pensei que talvez, se fazia esperar à princesa para conseguir meus cuidados conseguiria despertar seu interesse. Hoje vi que há mais de uma forma de perder o favor de uma mulher.
— Fala claro, Escuridão.
Doyle permaneceu de joelhos, meio nu, com as mãos relaxadas e apoiadas sobre as coxas, rodeado por muito de seu próprio cabelo. Deveria ter irradiado uma imagem de debilidade, ou de feminilidade, mas não era assim. Parecia algo recém saído da escuridão elementar, como se tivesse emerso como uma das primeiras coisas que existiram, inclusive antes que a luz. O aro de prata do mamilo apanhava a luz quando respirava. O cabelo lhe tampava o resto de brincos, assim que esse brilho prateado era a única nota de cor nele. Resultava difícil apartar a vista dessa reluzente luz chapeada.
— Não sou cego, Frost — disse Doyle. — Vi como te olhava na van, e você também o viu.
— Está ciumento.
— Não, mas tiveste três meses e ainda não está grávida. É uma princesa e será rainha. Não pode se permitir o luxo de entregar o coração a alguém com o que não se casará.
— De maneira que então entra você na cena e leva seu coração? — A voz do Frost continha mais calor que nunca, à exceção de na cama.
— Não, mas ela verá que tem mais opções para escolher. Se tivesse estado mais atento, teria intervindo antes.
— Claro, assim que a tenha entre seus braços se esquecerá de mim, verdade?
— Não sou tão pretensioso, Frost. Já lhe disse isso, hoje me dei conta de que há mais de uma forma de perder o coração de uma mulher, e fazê-la esperar muito é uma delas. Se existir alguma possibilidade de que Meredith não se incline por ti ou pelo Galen, terá que atuar agora. Não mais adiante, a não ser agora.
— O que tem que ver Galen com tudo isto? — perguntou Frost.
— Se perguntas isso, significa que o cego aqui não sou eu — respondeu Doyle.
A confusão invadiu a cara do Frost. Finalmente, franziu o cenho e sacudiu a cabeça.
— Eu não gosto disto.
— Não tem que te gostar — disse Doyle.
Por mais interessante que fosse a conversa, eu já estava farta.
— Estão falando todos de mim como se não estivesse presente, ou como se não tivesse nem voz nem voto.
Doyle girou sua séria cara para mim.
— Você é contra que compartilhe a cama contigo esta noite? — perguntou com um tom neutro de voz, o mesmo que teria usado para pedir em um restaurante ou falar com um cliente, como se minha resposta não significasse nada para ele.
Entretanto, eu sabia que às vezes utilizava esse tom neutro quando sentia algo. Era uma maneira de proteger a si mesmo da emoção; atuar como se não importasse, embora possivelmente era certo que não lhe importava.
Olhei-lhe, observei a curva de seus ombros, o perfil do peito e o reluzente aro de prata, os músculos abdominais perfeitos e a linha por onde as calças jeans cortavam seu corpo. Nunca tinha visto o Doyle nu, nunca. Ele não participava da nudez casual da corte; tampouco Frost.
Olhei ao Frost. O cabelo de prata seguia recolhido em um rabo-de-cavalo, de maneira que a cara ficava limpa e simples, se algo tão belo podia chamar-se simples. Levava a jaqueta e a cartucheira, com a pistola e tudo, penduradas sobre o braço. Tornou a pôr a máscara de arrogância, a que se escondia com tanta frequência na corte. Pensar que ele sentia que devia levar essa máscara nesse momento e comigo me doeu bastante.
Queria me aproximar dele, abraçá-lo, pregar a bochecha a seu peito e lhe rogar que não se fosse. Queria sentir seu corpo contra o meu. Queria despertar em uma nuvem de cabelo prateado.
Então me movi para ele, embora não da forma que tivesse desejado. Aproximei-me, mas evitei lhe tocar porque não confiava em mim. Tinha medo de tocá-lo e não poder deixá-lo partir.
— Tenho a oportunidade de satisfazer minha curiosidade e a de muitas damas da corte esta noite, Frost.
Girou-se para que não pudesse lhe ver a cara.
— Se divirta. — Mas não soou nada sincero.
— Quero-te esta noite, Frost.
Ao dizer estas palavras voltou-se de novo para mim e me observou com olhos de surpresa.
— Apesar de ter ao Doyle na cama meio nu, e da longa espera, sigo te querendo. O corpo me dói quando não está comigo. Até hoje não me tinha dado conta do que isso significa. — Custava-me não mostrar a dor, e ao final optei por deixá-la escapar através dos olhos.
Olhou-me e levantou uma mão para me acariciar a cara, mas se deteve justo antes de me tocar.
— Se isso for certo, então Doyle tem razão. Um dia será rainha. E para algumas coisas... não pode ser como os outros. Deve ser rainha antes que nada.
Apoiei a cara sobre a palma de sua mão, e inclusive esse pequeno contato me fez estremecer.
Retirou-a e a esfregou contra as calças, como se algo lhe tivesse ficado pego à pele.
— Amanhã de noite, princesa.
— Amanhã de noite, me... — e me detive aí por medo a utilizar alguma palavra inadequada.
Deu meia volta sem dizer nada mais e saiu do quarto, fechando a porta com firmeza detrás de si.
Um pequeno ruído fez que me voltasse. Rhys descia da cama pelo outro lado e recolhia sua roupa, que permanecia feita um novelo no chão.
— A primeira noite não deveria ser em grupo.
— Em nenhum momento tinha pensado em fazer um trio — disse Doyle. Rhys estalou em risadas.
— Supunha isso.
Dirigiu-se para a porta, enquanto sustentava a roupa e a escova entre os braços, por cima da linha da cintura para que pudesse seguir desfrutando da vista. Era uma vista muito agradável.
— Ajuda-me com a porta, por favor.
Assim que o pediu, dava-me conta de que se sentia deslocado. Estava mostrando seus encantos e eu não lhe estava fazendo nenhum caso, o que é um terrível insulto entre os duendes.
Levantei-me para lhe abrir a porta, como se ele não tivesse sido capaz de sujeitar a roupa com uma mão e abri-la com a outra. Entretanto, antes me detive e me pus nas pontas dos pés para beijá-lo. Consegui manter o equilíbrio pondo uma mão em sua nuca, enredada nos cachos do pescoço, enquanto com a outra estudava o perfil de seu corpo, acariciava-lhe as costelas e seguia a curva de seus quadris. Permiti que visse em meus olhos quão belo era para mim.
Consegui que sorrisse, e me olhou com um pouco de acanhamento com seu único olho perfeito. O acanhamento era falso, mas não o prazer.
Permaneci nas pontas dos pés o tempo suficiente para apoiar minha testa na sua.
Segui jogando com os cachos da parte posterior de seu pescoço, o que o fazia tremer ao tato. Depois, separei-me dele e me separei da porta para que pudesse sair.
Sacudiu a cabeça.
— Essa é sua idéia de um beijo de despedida, Doyle. — Olhou ao outro homem, que seguia de joelhos sobre a cama. — Passem bem, meninos. — Embora a seriedade da cara não correspondia com a alegria das palavras.
Rhys me ofereceu a escova colocada em cima do montão que formava sua roupa e logo saiu. Fechei a porta atrás dele e nesse momento, fui muito consciente de que tinha ficado a sós com o Doyle. Doyle, a quem não tinha visto nunca nu. Doyle, que me assustava quando era menina. Doyle, que tinha sido a mão direita da rainha durante mil anos. Tinha me protegido, tinha cuidado de minha vida e de meu corpo, mas de alguma forma, nunca tinha sido meu. De alguma forma, nunca poderia ser meu até que não tocasse esse corpo escuro, até que não lhe tivesse visto totalmente nu ante meus olhos. Não estava segura de por que isso me resultava tão importante, mas era. Ao ter se mantido afastado de mim, era como se tivesse mantido aberta o resto de possibilidades. Como se acreditasse que uma vez que tivesse estado comigo, já não poderia estar com ninguém mais. O que não era certo. Eu tinha estado com o que em seu dia foi meu prometido, Griffin, durante sete anos e, ao deixá-lo, ele encontrou muitas opções e eu não era nenhuma delas. Ter se deitado comigo não lhe tinha mudado a vida de maneira irremediável. Por que ia ser diferente para o Doyle?
— Meredith. — Pronunciou meu nome uma só vez, mas nesta ocasião sua voz não foi neutra. Essa única palavra levava consigo incerteza, uma pergunta e uma esperança.
Mencionou meu nome uma vez mais, depois do qual me voltei e observei o que me esperava ali convexo entre os lençóis da cor do vinho tinto.
Capítulo 18
Sentou-se na borda da cama mais próximo ao espelho, mais próximo a mim. Virtualmente se perdia entre o sonho negro formado por seu cabelo. Quase todos os outros sidhe que conhecia apresentavam diferenças entre o cabelo, a pele e os olhos, mas Doyle era todo da mesma cor. O cabelo solto lhe caía em uma cascata e lhe rodeava como uma nuvem negra, de forma que a pele de ébano se perdia nele. Uma larguíssima mecha lhe caía sobre a cara, e os olhos negros se escondiam nessa escuridão. Parecia um pedaço de noite que tinha cobrado vida. Levantou uma mão para apartar o cabelo da cara e tentar ficar detrás de uma das orelhas bicudas. Os brincos brilharam como estrelas entre tanto negrume.
Caminhei para ele até que me encontrei com as coxas encostadas à cama. Pressionei as pernas contra o colchão e a única coisa que pude sentir foi a grossura de seu cabelo, apanhado entre meu corpo e os lençóis. Girou a cabeça e senti o cabelo saindo. Então fiz mais pressão contra a cama para não deixar escapar o cabelo que sujeitava com as pernas.
Girou esses olhos escuros para mim e neles vi cores que brilhavam por toda o quarto, como um enxame de vaga-lumes cegadores; azuis, brancas, amarelas, verdes, vermelhas, violetas e de cores para os que não tinha nome. Os diminutos pontos dançavam e giravam e durante um segundo, quase os senti voar a meu redor, pude sentir a pequena brisa que produziam enquanto revoavam, era como me encontrar apanhada em uma nuvem de mariposas; nesse momento, desmaiei, mas Doyle me agarrou antes de cair.
Recuperei a consciência entre seus braços, em seu colo.
— Por quê? — perguntei quando pude falar.
— Sou um poder que terá que ter em conta, Meredith, e quero que não o esqueça nunca. Um rei deveria ter algo mais para oferecer que uma mera semente.
Deslizei as mãos por sua pele e lhe rodeei o pescoço com os braços.
— Está fazendo um teste?
— Todos o estamos, Meredith — respondeu sorrindo. — Alguns dos outros possivelmente se esquecem disso devido à paixão da carne e o sexo, mas você não deve esquecê-lo nunca. Tem que escolher a um pai para seus filhos, a um rei para a corte, e a alguém ao que permanecerá ligada para sempre.
Escondi a cara na curva de seu pescoço. A pele era quente ao tato. O pulso pulsava contra minha cara. Cheirava a calor, a muito calor.
— Estive pensando nisso. — Pronunciei as palavras sem me separar de sua pele. Roçou-me a cara com o pescoço.
— E a que conclusões chegaste?
Separei-me o suficiente para lhe ver o rosto.
— Que Nicca seria uma vítima e um desastre no trono. Que Rhys é encantador na cama, mas não o vejo como rei. Que meu pai tinha razão e Galen acabaria sendo um desastre. Que há mais cavalheiros na corte que preferiria matar antes que me veja atada a eles para o resto de minha vida.
Pressionou os lábios contra meu pescoço sem chegar a me beijar. Falou com a boca me roçando a pele, de maneira que as palavras eram como pequenos beijos no pescoço.
— Logo fica Frost... e eu.
O contato de seus lábios me fez tremer e conseguiu que me arqueasse em seu colo. Doyle tomou fôlego, rodeou-me a cintura com as mãos e logo os quadris. Sussurrou:
«Merry» em minha pele. Senti sua respiração cálida e impetuosa, senti como seus dedos se afundavam em minhas coxas, em minha cintura. Havia tanta força em suas mãos, exerciam tanta pressão, que parecia como se com um pequeno esforço pudesse inundar os dedos dentro de meu corpo e tirar sangue e carne, me cortar como se fosse uma fruta amadurecida e doce. Algo que tinha estado esperando a que sua mão abrisse, a que se derramasse em uma onda de prazer sobre suas mãos, por todo seu corpo.
Levantou-me e me lançou sobre a cama. Acreditei que então ia pressionar seu corpo contra o meu, mas não o fez. Ficou a quatro patas e se situou sobre mim como uma égua sobre seu potro, embora não havia nada maternal na forma em que me olhava. Passou todo o cabelo por cima de um dos ombros, de forma que a parte superior nua de seu corpo ficava exposta à luz. A pele lhe brilhava como ébano gentil. Respirava profunda e rapidamente, fazendo que o anel do mamilo dançasse e brilhasse em cima de mim.
Levantei a mão para tocá-lo, brinquei com os dedos com esse pedaço de prata e Doyle emitiu um som, procedente do mais profundo de seu corpo, que crescia, um grunhido como se tratasse de uma enorme besta, que produzia um eco nesse enorme e musculoso corpo. Estava a quatro patas sobre mim e entreabriu os lábios. Então vi como reluziam os dentes brancos, enquanto emitia esse som profundo, que atravessava seus dentes como um aviso.
Me acelerou o pulso, embora ainda não tinha medo. Me aproximou da cara e grunhiu:
— Corre!
Olhei-lhe com surpresa e me acelerou o pulso.
Jogou para trás a cabeça e uivou, emitiu um som que ressonou e ressonou como um eco no pequeno quarto. Me pôs o cabelo em pé e durante um segundo, deixei de respirar, porque conhecia esse som.
Era o único e claro rugido diabólico das matilhas do Gabriel, os cães escuros de caça selvagem. Com seu rosto a uns centímetros do meu, grunhiu:
— Corre!
Escapuli-me de onde estava, e ele me olhou com esses olhos escuros, com o corpo imóvel, mas tão tenso que parecia tremer com a promessa de alguma ação violenta, violência contida, retida, refreada, reprimida.
Tinha rodado pelo colchão para o lado equivocado. Encontrava-me apanhada entre a janela e a cama. A porta estava do outro lado, detrás do Doyle. Tinha brincado de pega pega outras vezes. Muitas coisas da Corte Escura preferem te pegar primeiro, mas se trata de um jogo, algo de brincadeira. Os olhos do Doyle refletiam fome, mas de que classe de fome se tratava? Terá que ter em conta que os diferentes tipos de fome se parecem muito entre eles até que é muito tarde.
A voz lutava por sair entre seus dentes fechados com força.
— Não... está... correndo!
Justo depois de pronunciar a última palavra, equilibrou-se sobre mim a quatro patas como uma mancha negra. Saltei no bordo da cama, rodei e fui parar ao chão, frente à porta de saída. Me coloquei em pé, com uma mão sobre o pomo da porta, quando seu corpo se chocou contra o meu. A porta tremeu e meu corpo se machucou com a violência do golpe. Tirou bruscamente a mão do pomo e não pude resistir a sua força. Gritei.
Empurrou-me longe da porta e me atirou sobre a cama. Tentei escapar por um dos lados, mas aí estava ele, com a parte inferior de seu corpo fazendo pressão sobre o meu. Fiquei entre o colchão e ele sem poder me mover. Sentia a firmeza de seu membro através das calças jeans, através de minhas calcinhas.
Abriu-se a porta e Rhys nos olhou. Doyle lhe grunhiu.
— Gritaste? — perguntou com a cara séria. Levava uma pistola na mão, sem apontar a nada nem a ninguém, junto a sua perna, mas aí estava.
— Fora! — rugiu Doyle.
— Partirei se me ordena isso a princesa, não você, sire. — encolheu-se de ombros. — Sinto muito. Está tudo bem, Merry, ou...? — Realizou um ligeiro movimento com a pistola.
— Não..., não estou segura. — A voz me saiu com dificuldade. A sensação do Doyle exercendo tanta força contra mim e com o membro ereto me excitava, inclusive a promessa de violência me excitava, mas só se era uma promessa, um jogo.
As mãos agarradas a meus quadris tremiam, todo seu corpo se sacudia com o esforço por não terminar o que tinha começado. Toquei-lhe a cara com cuidado. Estremeceu- se como se lhe tivesse feito mal, logo se girou e me observou. Seu olhar resultava muito pouco humano. Era como olhar aos olhos de um tigre, precioso, impávido, faminto.
— Nós estamos passando isso bem, Doyle, ou vais me comer? — perguntei com uma voz mais firme, mais segura.
— Esta primeira vez não confiaria em pôr a boca em lugares tão tenros. Demorei um segundo em me dar conta de que tinha me interpretado mal.
— Não quero dizer me comer de forma eufemística, Doyle. Quero dizer sou comida? — Minha voz soou muito mais acalmada agora, mais normal. Cravada à cama por seu corpo, com os olhos que me olhavam ainda animais e selvagens, fui capaz de conversar como se estivesse no escritório falando de negócios.
Olhou-me com surpresa e vi confusão em seus olhos. Dava-me conta de que lhe estava pedindo que pensasse muito. Tinha deixado sair uma parte dele que quase nunca deixava livre. Essa parte não pensava como uma pessoa.
Realizou algum movimento com as pernas que conseguiu me pressionar mais contra ele. Fez-me gritar, mas não de dor.
— É isto o que quer? — Sua voz era quase normal, entrecortada, mas quase normal.
Procurei seu rosto e tentei ler algo nele que me reconfortasse. Havia um brilho de si mesmo em seus olhos, umas migalhas do Doyle que tinha deixado atrás. Respirei profundamente.
— Sim — respondi.
— Já a ouviste. Agora vai embora. — Sua voz começou a transformar-se de novo em um grunhido, cada palavra era mais grave que a anterior.
— Está segura, Merry? — perguntou Rhys.
Quase tinha me esquecido de que estava ali de pé.
— Sim, estou segura.
— Assim simplesmente fechamos a porta e não fazemos caso do que ouçamos e confiamos em que estará bem?
Olhei ao Doyle nos olhos e a única coisa que vi foi necessidade, uma necessidade como nunca tinha visto antes em nenhum homem. Ia mais à frente do desejo e se convertia em uma necessidade real, como a comida ou a água. Para ele, essa noite, aquilo era necessidade; se agora o decepcionava, possivelmente poderíamos chegar a ser amantes, mas nunca voltaria a permitir-se a si mesmo chegar tão longe. Possivelmente fecharia essa parte de si mesmo para sempre, o que seria como morrer um pouco.
Eu tinha sofrido essa pequena morte durante anos, morrendo centímetro a centímetro nas costas do mar humano. Doyle tinha me encontrado e tinha me levado de volta ao país dos duendes. Tinha recuperado todas essas partes de mim que tinha me visto obrigada a abandonar para ser mais humana, menos fada. Se agora lhe decepcionava, voltaria a encontrar essa parte de si mesmo algum dia?
— Estarei bem, Rhys — disse, mas não olhava a ele, a não ser ao Doyle.
— Seguro?
Doyle se girou e falou com uma voz tão grave e tão animal que quase não se entendia.
— Já a ouviste. Agora sai.
Rhys realizou uma leve reverência e fechou a porta detrás de si. Doyle me olhou com esses olhos de novo. Sua voz era mais um grunhido que palavras:
— É isto o que quer?
Estava me dando uma última oportunidade para dizer que não. Entretanto seu corpo pressionava o meu e os dedos se afundavam em minhas coxas enquanto o dizia. Sua mente e sua voz tentavam me proporcionar uma saída, mas seu corpo se negava.
Tive que fechar os olhos. Todo meu corpo tremia sob a pressão do dele. Grunhiu muito perto de minha cara, e o som atravessou todo seu ser, vibrando junto ao meu, como se o rugido pudesse viajar a lugares que seu corpo ainda não havia me tocado. Inclusive estando pego a mim e forçando pequenos sons que emergiam de minha garganta, grunhiu:
— É isto o que quer?
— Sim, é o que quero.
Uma de suas mãos subiu por minhas coxas até chegar ao bordo das calcinhas. A seda produziu um ruído molhado ao rasgar-se, como se alguém estivesse cortando carne. Meu corpo se estremeceu quando me tirou isso e notei a pressão da áspera malha de suas calças contra minha pele nua. Deixou-se cair sobre mim até que me fez gritar, meio de prazer, meio de dor.
Me colocou sobre a cama e em um abrir e fechar de olhos, tirou as calças. Desabotoou o cinto, o botão da calça, baixou-se o zíper, e deixou cair as calças. Então foi quando lhe vi nu pela primeira vez. Seu membro era comprido e grosso, perfeito. Deslizou um dedo dentro de mim. Fez-me gritar de prazer, mas não o tinha introduzido para isso. Quando viu que estava molhada e aberta, introduziu-se em meu interior e, inclusive molhada, custou-lhe consegui-lo. Não podia deixar de gritar debaixo dele até que conseguiu me penetrar com todo o membro. Senti que me enchia, cada centímetro de meu corpo, e me contorci debaixo dele, simplesmente notando esse membro enorme e rígido dentro de mim.
Então começou a separar-se e sair de mim, para logo voltar a investir e entrar, e começaram a chegar as ondas de prazer. Observava como seu membro enorme e escuro entrava e saía de minha pele branca, e essa visão me fez gritar de prazer. Minha pele começou a brilhar como se tivesse tragado a lua, e sua pele escura brilhou em resposta, mostrando todas as cores que tinha visto antes em seus olhos. Parecia como se ele fosse um mar negro que refletia o brilho da lua, e o astro. As brilhantes cores dançantes saíram de sua pele e o quarto se iluminou, cada vez mais, até que a luz foi tal que parecia que ambos estávamos envoltos em chamas de cores. Produzíamos sombras na parede, o teto, como se estivéssemos tombados no centro de alguma enorme luz, alguma chama gigante, e nos convertêssemos nessa luz, esse fogo, esse calor.
Era como se as peles se fundissem uma com outra, e senti como essas luzes dançantes atravessavam a minha. Afundei-me em seu brilho escuro enquanto engolia meu resplendor branco e em algum lugar, fez que gritasse, gritasse e gritasse, que me afogasse em um prazer tão intenso que doía. Ouvi-o gritar, ouvi esse uivo, mas nesse momento não me importou. Poderia ter cortado minha garganta e teria morrido com um sorriso nos lábios.
Recuperei a consciência com o Doyle desabado sobre mim, respirando pausadamente, e com as esplêndidas costas coberta de sangue e suor. Levantei as mãos e vi que também havia sangue em minha pele branca, sangue que brilhava como um néon, em comparação com o brilho do corpo que se apagava. No último momento, quando já não era consciente de nada, tinha lhe ferido nas costas. Notei um pequeno pingo vermelho sobre mim e descobri a marca de seus dentes em meu ombro, sangrando, ligeiramente dolorosa, mas não muito, não ainda. Nada podia doer muito com o corpo do Doyle sobre o meu, com ele ainda dentro de mim, enquanto ambos voltávamos a aprender a respirar, a viver de novo em nossos próprios corpos.
As primeiras palavras que pronunciou foram:
— Te machuquei?
Toquei com os dedos manchados de sangue a dentada de meu ombro, mesclei ambos os brilhos de néon como quem mescla pintura, e elevei a mão para que a visse.
— Acredito que deveria te fazer a mesma pergunta.
Tocou as feridas das costas, como se até esse momento não as tivesse notado. Apoiou-se sobre um cotovelo e ficou olhando as mãos manchadas de sangue. Logo jogou para trás a cabeça e estalou em gargalhadas, até que voltou a desabar-se sobre mim e, quando terminou de rir, ficou a chorar.
Capítulo 19
Permanecemos abraçados sobre o leito que formava o cabelo do Doyle. Era como estar tombada nua sobre o cabelo de um animal. Me aconcheguei entre seu braço e seu torso. Seu corpo era como seda musculosa quente. Percorri-lhe com as gemas dos dedos a cintura e a curva do quadril, com um gesto ocioso, sem conotações sexuais. Só para saber que podia tocá-lo. Levávamos uns quantos minutos nos acariciando. Uma de suas mãos estava apanhada debaixo de meu corpo, me abraçando, me sustentando perto dele, mas não muito perto. Queria espaço para poder percorrer com a mão todo meu corpo, e queria me deixar espaço para que pudesse tocá-lo. Queria notar minhas mãos sobre seu corpo. Era como se a única coisa que lhe tivesse faltado não fosse o sexo, mas sim o contato da pele com a pele. Os bebês podem morrer por falta de contato físico, inclusive embora o resto de suas necessidades fiquem cobertas. Mas não sabia que acontecia o mesmo com os sidhe, especialmente com o imutável objeto conhecido como a Escuridão da Rainha.
E aí estava ele, convexo a meu lado, com os dedos passando pelo meu estômago e riscando o perfil do meu umbigo.
Olhei de esguelha o penteadeira com espelho situado além de sua cabeça. Minha blusa pendurava no meio do espelho, como se a tivessem jogado.
Se deu conta de que eu estava olhando além dele. Aproximou a mão do meu rosto e desenhou o perfil das bochechas.
— O que viu?
— Estava me perguntando como demônios foi minha blusa parar no espelho — respondi sonrrindo.
Girou a cabeça tudo o que pôde tendo em conta que seu peso e o meu descansavam sobre seu cabelo. Quando voltou a me olhar, descobri um amplo sorriso em sua cara.
— Sabe onde está o sutiã?
Olhei-lhe com olhos como pratos e me incorporei ligeiramente para ver a totalidade da penteadeira e comprovar se também se encontrava aí. Voltou a me tombar sobre a cama pondo uma mão delicada sobre meu ombro.
— Detrás de ti.
Olhei para trás, ainda rodeada por seu braço. O elegante sutiã verde oliva, que combinava com a blusa e as saias, pendurava de um filodendro que crescia sobre a cômoda prta envernizada situada em uma das esquinas. Pendurava como se fosse um adorno de Natal de mau gosto.
Sacudi a cabeça meio rindo.
— Não recordo ter tido tanta pressa.
Rodeou minha cintura com a mão que ficava livre, percorreu meu quadril, e me aproximou mais e mais dele.
— Eu sim tinha pressa. Queria te ver nua. Queria sentir o contato de sua pele com a minha.
Moveu-se até que estivemos o mais perto possível um do outro. A sensação da força de seus braços me fazia estremecer, mas quando notei como seu membro crescia e crescia pego a meu corpo, embargou-me a emoção.
Deslizei as mãos sobre suas suaves mas firmes nádegas e lhe atraí ainda mais para mim. Então ele me sujeitou também pelas nádegas e pressionou até que tive que me perguntar se fazia mal ter o pênis tão próximo a meu corpo sem poder entrar nele. À medida que crescia, seu membro começou a fazer pressão sobre meu estômago, até que decidiu voltar a me penetrar. Então gritei.
Senti como começava a aparecer a magia justo um segundo antes de que essa voz alagasse a habitação.
— Ora, ora, que cena mais bonita.
Nós dois giramos nossos corpos para nos encontrar com a rainha do Ar e da Escuridão, Andais, minha tia, a ama do Doyle, sentada aos pés de sua própria cama, nos olhando.
Capítulo 20
A rainha luzia um elaborado vestido de festa de cetim negro, que resplandecia à luz das velas. Uns laços sustentavam o busto em seu lugar e as alças lhe percorriam os brancos ombros. Levava umas luvas de cetim negros que lhe cobriam os brancos braços. Penteou o negro cabelo recolhido no alto da cabeça, e uns cachos lhe emolduravam o rosto e escorregavam até o tenro pescoço. Os lábios eram da cor do sangue fresco, e tinha pintado os olhos cinzas tricolores com o Kohl para que parecessem enormes em meio dessa fina cara.
Não era nada novo vê-la vestida de gala. Andais gostava muito das festas, e qualquer desculpa era boa para celebrar uma. O que era novo é que a cama que se via a suas costas estivesse vazia. A rainha nunca dormia sozinha.
Quando a vimos ficamos como pedras devolvendo o olhar desses olhos que nos observavam. Doyle me apertou o braço, e eu falei sem pensar.
— Majestade, que alegria lhe ver, embora sua aparição foi um pouco inesperada. — Pronunciei estas palavras em um tom neutro, ou ao menos tudo quão neutro fui capaz. Considerava-se de boa educação enviar algum sinal antes de aparecer desta forma. Nunca sabia o que as pessoas podiam estar fazendo.
— Está me criticando, sobrinha? — disse com um tom frio, quase de aborrecimento.
Não tinha feito nada que pudesse desgostá-la, ao menos que eu soubesse.
Acomodei-me um pouco mais contra o corpo do Doyle. Eu teria gostado de ter um vestido à mão, mas sabia que me cobrir quando ela não tinha sido nada educada, era um sinal de que eu não gostava da rainha, ou de que não confiava nela. O fato de que fosse verdade era meu problema, não dela.
— Não pretendia te ofender, tia Andais. Só falava da situação. Não esperávamos sua chamada esta noite.
— Não é de noite, sobrinha, é pela manhã, o que acontece é que ainda não saiu o sol. Já vejo que não dormiste muito mais que eu.
— Eu, ao igual a você, tia, tinha coisas melhores que fazer que dormir.
Engomou com a mão a saia do vestido de baile.
— Sim, outra festa. — Não parecia nada contente.
Quis lhe perguntar se a festa não tinha sido de seu agrado, mas não me atrevi. Era uma pergunta muito pessoal para fazer-lhe à rainha, e se ofendia com muita facilidade. Respirou tão fundo que a parte dianteira do vestido se abriu, quase como se não estivesse suficientemente preso a seu corpo, e mostrou um sutiã meio vazio. Se não estava muito bem dotada, podia levar esses trajes que pareciam flutuar ao redor do corpo. Para mim, teria sido algo realmente incômodo, já que em qualquer momento poderia ter saltado tudo. A nudez intencionada é muito diferente que mostrar um peito sem querer.
Observou-me com olhos melodramáticos. O olhar descontente mudou, fez-se mais profundo, um olhar que eu tão bem conhecia. Malícia.
— Está sangrando, minha Escuridão.
Olhei ao Doyle e me dava conta de que estava convexo de lado para mim, com o que ela podia ver suas costas e a marca das unhas na pele escura.
— Sim, minha rainha — disse com seu típico tom neutro e minucioso.
— Quem tem feito mal a minha Escuridão? — Seus olhos já se posaram sobre mim, e se tratava de um olhar muito pouco amistoso.
— Não o considero um dano, minha rainha — disse Doyle.
Os olhos da rainha lhe percorreram, e logo voltaram a dirigir-se a mim.
— Vejo que estiveste ocupada, Meredith.
Separei-me do Doyle para poder me incorporar e me sentar na cama.
— Pensava que queria que estivesse muito ocupada, tia Andais.
— Não sei se tinha visto antes seus peitos, Meredith. São um pouco grandes para uma sidhe, mas muito bonitos.
Não me olhava com olhos luxuriosos, nem amáveis, mas via neles uma luz perigosa. Tudo o que havia dito até o momento podia confundir-se com boa educação. Nunca tinha visto meus peitos nus, assim estava obrigada a mencionar algum elogio sobre eles, embora só se eu estava tentando aparecer atrativa, coisa que não acontecia. Simplesmente, tinha me flagrado nua. Não sentia nenhum pingo de luxúria por minha tia, e não se tratava só do fato de que eu fosse heterossexual, mas sim de muito mais.
— E você, minha Escuridão, fazia tantos séculos que não te via nu que já não me lembrava. Está de costas pra mim por alguma razão? Há algum motivo para que te esconda de meu olhar? Há alguma... aberração que não recordo que danifique toda essa escuridão?
Encontrava-se em todo seu direito de lhe adular, mas lhe perguntar se era disforme, lhe pedir que se pavoneasse ante ela, isso era de má educação. Se tivesse sido qualquer outra pessoa, haveria lhe dito que fosse para o inferno.
— Não há nada que o danifique, tia Andais — respondi, e soube que o tom de voz não era quão neutro deveria ter sido. Tinha perdido o costume de manter o tom uniforme de voz depois de anos vivendo longe da corte. Ia ter que reaprendê-lo de novo, e depressa.
Olhou-me com olhos de gelo.
— Não falava contigo, princesa Meredith. Falava com minha Escuridão.
Tinha utilizado meu título em lugar de me chamar de sobrinha, ou simplesmente por meu nome, o que não era um bom sinal. Doyle voltou a me apertar o braço, mais forte desta vez, como me dizendo que me comportasse. Respondeu a Andais, mas não com palavras. Ficou de costas pra cama com os joelhos dobrados, de forma que as coxas impediam de ver seu membro. Logo estirou a perna situada mais perto dela, pouco a pouco, como se fosse um pano de fundo que se abre.
Apareceu o calor nos olhos da rainha, calor de verdade, necessidade de verdade.
— Ora, minha Escuridão, você vem guardando segredos. Deu meia volta e a olhou.
— Nada que não pudesse ter descoberto em qualquer momento dos últimos mil anos.
— Agora era sua voz a que não era neutra. Havia uma ligeira mudança no tom, uma tênue inflexão de recriminação; nunca lhe tinha visto perder nem sequer esse pouco de controle diante de Andais.
Então foi minha vez de apoiar uma cálida mão sobre seu estômago, só uma carícia para lhe recordar com quem estávamos falando. Não acredito que minha cara mostrasse o medo que me percorria todo o corpo.
O rei Taranis possivelmente não me faria mal por medo a Andais, mas Andais podia me fazer muito mal em um de seus arranques de ira. Possivelmente depois se arrependeria, mas uma vez morta já não há remédio.
A cara com a que olhou ao Doyle bastou para que me agarrasse com força a sua pele, para lhe cravar ligeiramente as unhas. Fez que seu corpo reagisse, e esperei ter feito suficiente para lhe recordar como devia comportar-se.
— Tome cuidado, Doyle, ou me distrairei e me esquecerei da razão de minha chamada.
— Estamos escutando, nos conte a notícia, rainha Andais — disse.
Então me olhou; parte do calor dos olhos se desvaneceu e o tinha substituído o desconcerto e, detrás, o cansaço. Andais não estava acostumada a mostrar com tanta claridade o que sentia, por isso acredito que já não devia seguir tomando cuidado.
— O Inominável está livre.
Doyle pôs os pés sobre o chão e se levantou de um salto. De repente, já não importava se estava nu, a ninguém importava. O Inominável era o pior de cada corte, a Luminosa e a Escura. Tratava-se do último grande enfeitiço no que tinham cooperado ambas as cortes. Desfeito-se de tudo o que era muito horrível, muito faminto, para que nós pudéssemos viver neste novo país. Ninguém tinha pedido aos sidhe, mas não queríamos nos ver obrigados a abandonar o último país que possivelmente nos acolhesse, assim tínhamos decidido sacrificar parte do que fomos para poder ser mais... humanos. Alguns disseram que o Inominável foi a causa de que começasse nossa decadência, mas não era certo. Os sidhe levavam séculos em decadência. O Inominável era só um mal necessário, para não transformar os Estados Unidos em outro campo de batalha.
— Viu-lhe em liberdade, minha rainha? — perguntou Doyle.
— É obvio que não — respondeu.
— Então, quem lhe viu?
— Poderia te contar uma bonita história, mas ao final a resposta seria a mesma: não sei.
Era óbvio que não gostava de confessá-lo, e também é óbvio que o que dizia era verdade. Tirou uma das luvas negras em um movimento brusco e começou a passar- lhe por uma das mãos.
— Há muito poucos seres no reino dos duendes capazes de fazer algo assim — afirmou Doyle.
— Acha que não sei? — espetou.
— Que desejas que façamos, minha rainha?
— Não sei, mas o último que se sabe dele é que se dirigia para o oeste.
— Acha que virá aqui? — perguntou Doyle.
— Não acredito — respondeu enquanto dava golpezinhos com a luva no braço. — Mas o Inominável é quase impossível de parar. É tudo o que abandonamos, e se trata de uma grande quantidade de poder. Se o enviaram por causa de Meredith, necessitarão todo o tempo de preparação que possam conseguir.
— Acha de verdade que o liberaram para dar caça à princesa?
— Se se tivessem limitado a soltá-lo, a estas alturas já teria devastado todo o campo. Entretanto, não o tem feito. — ficou em pé e nos mostrou a parte posterior do vestido, com um grande decote que deixava descoberta quase toda suas costas. Voltou-se de novo e nos olhou com um gesto brusco. — Se desvaneceu ante nossos olhos, ante todos nós, muito depressa. Não podemos lhe seguir o rastro, o que significa que recebe ajuda de alguém situado em um posto muito alto.
— Mas o Inominável é parte das cortes, uma parte do que foram. Deveria ser capaz de lhe seguir o rastro, igual a segue sua sombra. — Assim que acabei, soube que teria que ter permanecido calada.
A raiva apareceu em sua cara, em seu corpo, em suas mãos. Estremeceu-se de raiva. Acredito que durante um segundo estava muito zangada para falar.
Doyle ficou em pé e se colocou entre ela e eu.
— O comunicaste a Corte Luminosa?
— Não é necessário que a esconda, Escuridão. Já me custa bastante trabalho mantê-la com vida para matá-la eu. E, sim, a Corte da Luz sabe o que passou.
— Aliarão-se ambas as cortes para caçar ao Inominável? — perguntou.
Não tinha se afastado de diante de mim, com o que eu tinha que aparecer por um de seus lados como se fosse um menino pequeno. Não era a idéia que tinha eu de uma presença com força. Movi-me para poder ter uma visão completa do espelho, mas nenhum dos dois me fez o mínimo caso.
— Não.
— Mas é para benefício de ambos, sem dúvida.
— Taranis está sendo difícil. Age como se o Inominável só estivesse formado por energia escura. Finge que toda sua luz não tem nenhuma mancha. — Era como se tivesse provado algo azedo. — Não reconhecerá seu parentesco, de maneira que não oferecerá nenhuma ajuda, já que se nos ajudasse, seria como reconhecer sua parte na criação do Inominável.
— Isso é tolice.
— Sempre esteve muito mais interessado na ilusão da pureza que na pureza em si.
— O que pode vencer ao Inominável? — perguntou, com uma voz suave, quase como se estivesse pensando em voz alta.
— Não sabemos, porque o criamos sem nenhuma prova prévia. Mas está cheio de magias muito, muito velhas, coisas que já não se toleram nem sequer entre os escuros.
— sentou-se na borda da cama. — Seja quem for que o soltou e escondeu..., se podem controlá-lo de verdade, trata-se de uma arma muito potente.
— O que necessita de mim, minha rainha?
Elevou o olhar e seus olhos não eram de tudo distantes.
— O que aconteceria se te dissesse que voltasse para casa, que voltasse para casa e me protegesse? O que aconteceria se te dissesse que não me sinto segura sem ti e Frost a meu lado?
Apoiou um joelho no chão. A cara ficou oculta em uma onda de seu cabelo.
— Sigo sendo o capitão dos Corvos da Rainha — respondeu.
— Viria? — perguntou ela com uma voz suave.
— Se me ordenasse isso.
Sentei-me na cama e tentei manter uma expressão normal. Abracei aos joelhos, e procurei parecer imutável. Se obtinha não pensar em nada, não poderiam ler meus pensamentos.
— Diz que segue sendo o capitão de meus Corvos. Mas segue sendo minha Escuridão ou agora pertence a outra? – Manteve a cabeça encurvada e permaneceu em silêncio. Eu seguia tentando não pensar em nada. Olhou-me com cara de poucos amigos.
— Roubaste a minha Escuridão, Meredith.
— O que quer que diga, tia Andais?
— É bom que me recorde que é sangue de meu sangue. Ao ver suas costas arranhada me deste esperanças de que tem mais sangre meu do que eu pensava.
Nada, nada, não ia pensar em nada. Imaginei o vazio como olhar através de um vidro transparente pelo que se via outro vidro, e outro, e outro. Transparência. Nada.
— O Inominável foi liberado por uma razão, Escuridão. Até que descubra qual é essa razão, devo proteger meus ativos. A fada Meredith é um desses ativos. Ainda tenho a esperança de conseguir uma criança dela.
Olhou-me, e não se tratava de um olhar amistoso.
— É tão magnífico como parece?
Pensei em utilizar um tom neutro que combinasse com a minha cara.
— Sim — disse.
A rainha suspirou.
— É uma lástima, mas eu não queria dar a luz a filhotinhos.
— Filhotinhos? — perguntei.
— Ele não lhe disse isso? Doyle tem duas tias cujas formas verdadeiras são cães. Sua avó foi uma dos cães da grande caça. Hellhounds*, cães guardiães do inferno, tal como os chamam agora os humanos, embora saiba que não temos nada que ver com o inferno. Trata-se de um sistema religioso completamente diferente.
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Recordei os uivos e o olhar faminto nos olhos do Doyle.
— Sabia que Doyle não era um sidhe puro.
— Seu avô era um phouka* tão malvado que copulou em forma de cão com a própria matilha selvagem e viveu para contar a história. — Sorriu, mas seu sorriso era docemente malicioso.
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BR&um=1&sa=1&q=phouka&biw=1259&aq=f&oq=
— Então, Doyle é uma mescla de genética igual a mim — consegui dizer com um tom neutro; um viva pra mim.
— Mas sabia que tinha uma parte de cão antes de levá-lo à cama?
Doyle permanecia de joelhos enquanto falávamos, embora o cabelo lhe cobria a cara.
— Sabia que em sua linha de sangue havia uma parte da matilha selvagem antes de que se introduzisse dentro de mim.
— Sério? — Obteve que soasse como se não acreditasse em mim.
— Ouvi os sons da matilha sair de sua boca. –Retirei o cabelo para que pudesse ver a marca da dentada em meu ombro, muito perto do pescoço; — Sabia que sonhava com minha carne em mais de uma forma antes de lhe permitir satisfazer todas suas fomes. Seu olhar voltou a endurecer-se.
— Surpreende-me, Meredith. Nunca pensei que você gostasse da violência.
— Não desfruto fazendo mal às pessoas. A violência no quarto, se ambos estiverem de acordo, é algo diferente.
— Eu nunca vi a diferença — replicou.
— Eu sei — respondi.
— Como o faz? — perguntou.
— Como faço o que, minha rainha?
— Como consegue falar com um tom de voz tão neutro, e é capaz de dizer: «vai pra o inferno» com um sorriso nos lábios e palavras neutras?
— Não é deliberado, tia Andais, acredite em mim.
— Ao menos não tentaste negá-lo.
— Não mentimos entre nós — lhe respondi, desta vez com voz cansada.
— Te levante, Escuridão, e mostre a sua rainha suas costas ferida.
Ficou em pé sem dizer uma palavra, deu as costas ao espelho e afastou o cabelo para um lado.
Andais se aproximou da superfície, alargou a mão em que tinha posto a luva e por um segundo, pensei que ia ser capaz de atravessar o espelho e entrar na habitação como se fosse uma imagem tridimensional.
— Pensei que fosse dominante, Doyle, e eu não gosto que me dominem.
— Nunca me perguntou o que era que eu gostava, minha rainha. — Seguia de costas ao espelho.
— Tampouco imaginei nunca que fosse tão bem dotado. — Nesta ocasião, sua voz soou melancólica, como a de uma menina a que não lhe deram de presente o que queria para seu aniversário. — Quero dizer que descende de cães e phoukas, e eles não são tão bem dotados.
— A maioria dos phoukas têm mais de uma forma, minha rainha.
— Cão e cavalo, às vezes águia, sim. Já sei tudo isso. O que tem isso que ver...? — deteve-se na metade da frase e um sorriso apareceu nos lábios pintados. — Está dizendo que seu avô podia converter-se em um cavalo igual a em um cão?
— Sim, minha rainha — respondeu com suavidade.
— Você é dotado como um cavalo. — Começou a rir.
Ele não disse nada, limitou-se a encolher-se de ombros. Eu estava muito assustada com a sua risada para me unir a ela. Divertir à rainha nem sempre era algo bom.
— Minha Escuridão, você é admirável, mas você não é um cavalo.
— Os phoukas sabem mudar de forma, minha rainha.
O sorriso se apagou de sua cara, então disse com uma voz que ainda mantinha o tom da risada:
— Está me dizendo que pode mudar o tamanho?
— Diria-te algo assim? — perguntou com um tom neutro.
Vi como as emoções atravessavam sua cara muito depressa para as entender: incredulidade, curiosidade e, finalmente, desejo. Ficou olhando-o como os pobres olham o ouro, com uns olhos de desejo egoísta.
— Quando tudo isto terminar, Escuridão, se não tiver conseguido dar um filho à princesa, o obrigaremos a que demonstre este alarde.
Acredito que nesse momento não consegui manter a cara neutra, mas tentei.
— Não alardeio de nada, minha rainha — disse Doyle quase em um suspiro.
— Não sei o que quero agora, minha Escuridão. Se tiver um filho com o Meredith, nunca conhecerei a alegria de te ter. Entretanto, sigo acreditando o que sempre acreditei, e o que te manteve de verdade afastado de minha cama.
— Posso perguntar o que é?
— Pode. Inclusive vou te responder.
O silêncio se interpôs entre ambos durante um segundo ou dois, logo Doyle disse:
— O que acha que me manteve longe de sua cama todos estes anos? — Girou a cabeça o suficiente para olhá-la enquanto perguntava.
— Que seria um rei de verdade, não simplesmente de nome. E eu não penso compartilhar meu poder. — Eu estava detrás dele e me olhou. Lutei por manter a cara de pôquer, mas sabia que estava perdendo. — O que acha você, Meredith? Como se sentiria tendo um rei de verdade, um que te exija compartilhar o poder, algo mais além da cama?
Pensei em diversas respostas, descartei-as, e tentei, com muito cuidado, dizer a verdade.
— Eu sou melhor compartilhando que você, tia Andais.
Cravou-me a vista com um olhar que não pude decifrar. Devolvi-lhe o olhar e deixei que a sinceridade de minhas palavras aparecesse em meus olhos.
— «Sou melhor compartilhando, sou melhor compartilhando». O que significa isso quando eu não compartilho nada?
— É a verdade, tia Andais. Significa exatamente o que eu disse, nada mais, nada menos. Seguiu me olhando durante um comprido, comprido momento.
— Taranis tampouco compartilha seu poder.
— Eu sei — respondi.
— Não pode ser um ditador se não ditar.
— Estou aprendendo que uma rainha deve governar sobre os que a rodeiam, governar de verdade, mas não estou aprendendo que uma rainha deve ditar sobre tudo o que a rodeia. Estou me dando conta de que o conselho de meus guardas, que tão sabiamente me enviou, vale a pena escutá-lo.
— Eu disponho de conselheiros — disse, e soou em um tom quase defensivo.
— Também Taranis — repliquei.
Andais se apoiou sobre um dos pilares da cama. Pareceu que quase ia se desabar enquanto com a mão nua brincava com os laços negros do vestido.
— Mas nenhum de nós escuta a ninguém. O imperador não tem roupas.
Este último comentário me pegou despreparada. Deve ter notado em minha expressão, porque acrescentou:
— Parece surpreendida, minha sobrinha.
— Não acho que conheço a história.
— Tive um amante humano faz algum tempo que gostava muito das histórias para crianças. Lia-me contos quando não podia dormir. — Havia um matiz de melancolia em sua voz, uma nota verdadeira de arrependimento.
Continuou com um tom de voz normal.
— O Inominável foi liberado. Viram-no pela última vez dirigindo-se para o oeste. Duvido de que chegue tão longe como até a costa Oeste, mas pensei que deveria saber de todas formas. — depois de dizer estas palavras, fez um gesto e desapareceu do espelho.
Fiquei olhando o espelho com os olhos muito abertos.
— Pode fazer algo para que ninguém possa apresentar-se sem antes chamar? — perguntei ao Doyle.
— Sim.
— Pois faça-o.
— A rainha pode não gosta disto.
Assenti enquanto observava minha cara de medo no espelho, porque agora que já não tinha que dissimular, podia mostrar todo o medo que quisesse.
— Faz, Doyle, faz. Não quero mais surpresas esta noite.
Aproximou-se do vidro e fez pequenos gestos nas bordas. Senti o feitiço me acariciar a pele enquanto voltava a me colocar na cama.
Doyle se girou e ficou de pé duvidando na borda da cama.
— Segue querendo minha companhia? Adiantei os braços para ele.
— Vêem a cama e me abrace enquanto dormimos.
Sorriu e se deslizou sob os lençóis. Rodeou-me com o corpo até que fiquei envolta entre seus braços, seu peito, seu ventre, sua virilha, suas coxas, como se estivesse em um berço. Abraçou-me e eu atraí para mim seu quente corpo de seda.
Falou com doçura enquanto eu começava a adormecer.
— Não te importa que minha avó tenha sido um cão da matilha selvagem e meu avô um phouka?
— Não. — Minha voz soou profunda devido ao sono. Logo lhe perguntei: — Poderia acabar tendo filhotinhos?
— Não acredito.
— OK.
Estava quase dormindo quando notei que me sujeitava com mais força, como se eu fosse seu salva-vidas e não o contrário.
Capítulo 21
A Agência de Detetives Grei não está acostumada a encarregar-se de casos de assassinatos. Tínhamos ajudado à polícia no passado quando algo místico fazia algo mau, mas estava acostumado a ser em qualidade de conselheiros ou assessores. Podia contar nos dedos das mãos o número de cenas de assassinatos que tinha visto e ainda me sobravam um par.
Hoje, sobraria-me um a dedo menos. O corpo da mulher estava já sobre uma maca. O cabelo loiro lhe caía pela cara e era de cor ouro mais escuro nas partes molhadas pelo mar. Usava um vestido de festa muito curto cor azul pálida em algumas parte, e azul escuro nas úmidas. Um largo laço, possivelmente branco, adornava-o justo por debaixo dos peitos, ajustando-o o suficiente para luzir seus encantos. Não usava meias que lhe cobrissem essas largas e moréias pernas. Pintou as unhas dos pés de cor azul elétrica, combinando com as das mãos. Os lábios eram também de uma estranha cor azul; entretanto, tratava-se de batom, não de um sinal de sua morte.
— A cor do batom se chama Sufoco.
Voltei-me para a mulher alta que se encontrava justo detrás de mim. A inspetora Lucinda Tate se aproximava com as mãos metidas nos bolsos das calças. Tentou sorrir da forma habitual, mas não pôde. Havia um traço de preocupação em seu olhar, e o sorriso se apagou antes inclusive de esboçá-lo. Embora estava acostumada a sorrir, os olhos sempre escondiam um pouco de cinismo, mas esse dia o cinismo tragou o humor.
— Me desculpa, Lucy, o que você disse sobre o batom?
— Chama-se sufoco. Supõe-se que imita a cor de um corpo morto por asfixia. Que irônico, não? — disse.
Voltei a olhar à mulher. Tinha matizes azulados e brancos ao redor dos olhos, o nariz e o contorno dos lábios. Tive um estranho impulso de lhe tirar rapidamente o batom e ver se os lábios eram realmente da mesma cor. Não o fiz, mas tinha tanta vontade de fazê-lo que minhas as mãos coçavam.
— Então ela se asfixiou — eu disse.
— Sim — corroborou Lucy. Franzi o sobrecenho.
— Não se afogou?
— Duvido. Nenhuma das outras se afogou. Olhei-a aos olhos.
— Outras?
— Jeremy teve que acompanhar Teresa ao hospital.
— O que aconteceu?
— Teresa tocou o batom de uma das mulheres que estava a ponto de maquiar-se antes de morrer. Começou a ter problemas de hiperventilação e logo lhe custava respirar. Se não tivéssemos tido a disposição paramédicos aqui mesmo, poderia ter morrido. Deveria havê-lo pensado melhor antes de convidar a uma das videntes mais poderosas do país a este bagunça.
Jogou uma olhada ao Frost, que estava de pé um pouco afastado com uma mão segurando o pulso contrário, em uma postura muito de guarda-costas. O efeito ficava um pouco arruinado pelo cabelo prateado que dançava balançado pelo vento, como se quisesse soltar-se da cauda em que o tinham recolhido. Uma camisa rosa pálido fazia conjunto com o elegante lenço que levava na gola, combinando com as calças. O fino cinto de prata combinava com o cabelo. Os impecáveis mocassins eram de cor nata. Parecia mais um anúncio de moda que um guarda, embora o vento conseguia lhe abrir a jaqueta e deixava entrever a cartucheira negra situada sob todo esse rosa e branco.
— Jeremy me disse que chegaria tarde hoje — disse a inspetora Lucy. — Me parece que ultimamente não dorme muito.
— Não muito.
Não me incomodei em lhe contar que a razão pela que não tinha dormido a noite anterior não era Frost. Estávamos falando por falar, sem querer dizer nada sério, simplesmente pretendíamos encher o silêncio enquanto nos encontrávamos de pé ante a mulher morta.
Olhei a cara do cadáver. Era bonita mesmo morta. Parecia ter um corpo magro, não graças a ginástica, mas sim por ter seguido uma estrita dieta até alcançar o peso desejado. Se tivesse sabido que ia morrer essa noite, teria deixado a dieta no dia anterior?
— Quantos anos tinha?
— O carteira de identidade diz que vinte e três.
— Parece mais velha — comentei.
— As dietas e muito sol são a causa. — Agora não havia nem uma só fresta de humor em sua voz. Sua expressão era sombria enquanto olhava por cima de nós à colina situada detrás. — Está preparada para ver o resto?
— Claro, mas ainda não entendo muito bem por que nos chamastes. É triste, mas a mataram, ou estrangularam até morrer, ou algo assim. Morreu por asfixia. É horrível, sim, mas por que nos chamastes?
— Não chamei a seu dois guarda-costas. — Pela primeira vez sua cara mostrava uma hostilidade real. Assinalou para o Rhys, que estava mais à frente na praia. Frost possivelmente se encontrava um pouco incômodo, mas Rhys estava passando bem. Observava tudo com olhos de desejo, sonrrindo, enquanto cantarolava a canção da série Hawai 5 — 0 em voz baixa. Ou ao menos isso é o que ia cantando quando se afastou pela praia para ver uns surfistas. Antes tinha estado cantando o tema do Magnum, até que Frost lhe fez calar. Ao Rhys adorava o cinema noir e sempre tinha sido um fã do Bogart de coração, mas Humphrey já não fazia filmes. Nos últimos meses, Rhys tinha descoberto filmes em cor, com os que também desfrutava.
Voltou-se e nos saudou sorridente com a mão. Quando começou a caminhar de volta para nós, a gabardina branca começou a flutuar a seu redor como se tivesse um par de asas. Tinha se visto obrigado a tirar o chapéu de feltro cor torrada para que o vento não o levasse.
— Rhys desfruta na cena do crime — afirmou a inspetora Lucy. — Sempre age, como se se alegrasse de que alguém tenha morrido.
Não soube como lhe explicar que Rhys foi adorado em uma época como deus da morte, assim que esta não lhe incomodava o mais mínimo. Mas era melhor não compartilhar esse tipo de informação com a polícia.
— Já sabe quanto gosta dos filmes de cinema noir — lhe disse.
— Mas isto não é um filme — respondeu ela.
— O que é o que lhe afeta tanto, Lucy? Vi-te em cenas de assassinato piores que este. Por que está tão... inquieta?
— Espera e verá. Quando o vir, não terá que voltar a me perguntar isso.
— Não pode simplesmente me contar Lucy, por favor?
Rhys chegou onde estávamos. A cara lhe resplandecia, como a de um menino na manhã do Yule.
— Olá, inspetora Tate. Não percebi nenhum vaso sanguíneo estourado nos olhos da garota, nem hematomas em nenhuma parte do corpo. Alguém sabe como se asfixiou?
— Estiveste observando o corpo? — perguntou com uma voz fria. Assentiu sem deixar de sorrir.
— Acreditei que para isso estávamos aqui.
Lhe assinalou o peito com um dedo.
— Não lhe convidaram ao espetáculo, a não ser a Merry, e Jeremy, e Teresa, mas você... — Tocou-lhe o peito com o dedo. — Você não.
Apagou-se o sorriso de sua cara e apareceu a frieza nesses olhos azuis tricolor.
— Merry deve ter dois guarda-costas com ela em qualquer momento. Sabe disso.
— Sim, claro que sei. — Voltou a pressionar seu peito com o dedo, tão forte que lhe obrigou a inclinar-se um pouco para trás. — Mas eu não gosto de te ver nas cenas de assassinatos.
— Conheço as normas, inspetora. Não toquei em nenhuma prova. Não atrapalhei o trabalho de ninguém, desde os policiais até o fotógrafo.
Chegou uma forte rajada de vento que despenteou totalmente à inspetora, por isso teve que tirar uma das mãos dos bolsos para apartar o cabelo da cara.
— Então, se mantenha longe de meu caminho também, Rhys.
— Por quê? O que eu fiz de errado?
— Você gosta disso. — A última palavra foi quase como um insulto. — Se supõe que você não deva gostar disso. — Afastou-se da praia para a escada que conduzia à estrada, o estacionamento e o clube situado em um pequeno promontório.
— Quem a lambeu como não devia? — perguntou.
— Está aterrorizada pelo que há ao subir a escada e precisa desafogar-se com alguém. Você foi o escolhido.
— Por que eu?
Frost tinha se unido a nós.
— Porque é humano, e os humanos lamentam a morte. Não se divertem passeando-se perto dela como você.
— Isso é mentira. Há muitos inspetores que desfrutam com seu trabalho, e eu sei que o médico legista gosta do seu.
— Mas não passeiam pela cena do crime cantando — eu disse.
— Às vezes sim — replicou Rhys.
Olhei-lhe com o cenho franzido tentado pensar como podia explicar-lhe melhor.
— Os humanos cantarolam, ou cantam, ou contam piadas más diante dos cadáveres para espantar seus temores. Você cantarola porque está contente. A morte não te inquieta.
Olhou ao cadáver da mulher.
— Ela já não se importa. Está morta. Poderíamos representar uma ópera do Wagner e não lhe importaria.
— Rhys, não é ao morto a quem lhe importa, é aos vivos — disse lhe tocando o braço. Olhou-me com o cenho franzido.
— Não esteja tão contente diante dos humanos quando olhar a seus mortos — aconselhou Frost.
— Tudo bem, mas não entendo porque tenho que fingir.
— Finja que a inspetora Tate é a rainha Andais –lhe disse, — e que lhe incomoda que fique cantarolando por onde tem mortos.
Observei como algumas ideia lhe cruzavam a mente, mas ao final se encolheu de ombros.
— Posso parecer menos contente diante da inspetora, mas sigo sem entender porque tenho que fazer isso.
Suspirei e olhei ao Frost.
— Você entende por quê?
— Se a mulher da maca fosse minha parente, sentiria algo por sua morte. Girei-me para o Rhys.
— Vê?
— Tudo bem. Estarei triste diante da inspetora Tate.
— De maneira que esteja sério bastará, Rhys. — Tinha-me vindo à cabeça de repente a imagem dele caindo sobre o seguinte cadáver e abraçando-o enquanto chorava e gritava. — Não exagere.
Sorriu-me com ironia e soube que tinha pensado exatamente a mesma coisa que eu.
— Digo-o a sério, Rhys. Se não te comportar, Tate poderia te proibir o acesso às cenas dos crimes.
De repente, sua expressão se voltou sombria, aí sim lhe doía.
— Tudo bem, tudo bem, serei bom. Droga.
A inspetora Tate nos chamou e sua voz cavalgou sobre o vento como se fosse uma das gaivotas que revoavam por cima de nossas cabeças. Tinha subido a metade da escada, e me impressionou que sua voz nos chegasse com tanta claridade.
— Se apressem. Não temos todo o dia.
— Em realidade, sim — disse Rhys.
Eu já estava caminhando pela suave areia para a escada. Arrependi-me muito de ter colocado sapatos de salto e não protestei quando Frost me ofereceu seu braço.
— Em realidade sim, o quê? — perguntei.
— Que temos todo o dia. Temos toda a eternidade. Os mortos não se vão a nenhuma parte.
Joguei-lhe uma olhada. Estava observando à alta inspetora com um olhar longínquo, quase sonhador na cara.
— Sabe o quê, Rhys?
Olhou-me elevando uma sobrancelha.
— Lucy tem razão. Desfruta das cenas dos crimes.
— Não tanto como poderia desfrutar — repôs sonrrindo com ironia.
— O que se supõe que significa isso?
Rhys não respondeu. Começou a caminhar na nossa frente com seus sapatos de salto baixo. Olhei ao Frost.
— O que quis dizer?
— Rhys se chamou em um tempo o senhor das Relíquias.
— E isso o que significa? — perguntei enquanto tentava avançar com grandes dificuldades a escada com os saltos e me segurava com mais força a seu braço.
— Um dos significados da palavra relíquia é cadáver.
Detive-lhe com os braços e tentei vislumbrar seus olhos através de uma mecha de cabelo prateado e de meu cabelo vermelho, que me tampava a cara devido ao vento.
— Quando um sidhe se chama o senhor de algo, significa que tem poder sobre essa coisa. — Assim, o que está me dizendo? Que Rhys pode causar a morte? Isso eu já sabia.
— Não, Meredith, estou dizendo que houve um tempo em que podia ressuscitar os mortos, os que já estavam frios e em processo de decomposição; podia fazer que se levantassem de suas tumbas e lutassem do nosso lado na guerra.
— Não sabia que Rhys tinha esse tipo de poder.
— Agora já não. Quando se criou o Inominável, Rhys perdeu seu poder de levantar exércitos de mortos. Já não utilizávamos exércitos entre nós, e lutar contra os humanos dessa forma teria significado nossa expulsão deste país. — Frost duvidou uns instantes mas, continuando, acrescentou. — Muitos de nós perdemos nossos poderes mais ultramundanos quando o Inominável foi criado. Mas não conheço ninguém que perdesse mais que Rhys.
Observei a este que caminhava diante de nós, com os cachos brancos ondeando ao vento para acabar se chocando contra o branco de sua gabardina. Tinha passado de ser um deus que podia formar exércitos a sua vontade, a ser... Rhys.
— É esta a razão pela que não quer me dizer seu nome real, o nome pelo que o veneravam?
— Quando perdeu seus poderes, tomou o nome de Rhys e disse que o outro morreu junto a sua magia. Todo mundo, incluindo à rainha, sempre respeitou sua decisão. Poderia ter sido qualquer de nós o que mais perdesse devido ao feitiço.
Tirei os sapatos de salto e segui caminhando pela areia embainhada ainda nas meias.
— Como conseguiram que todo mundo ficasse de acordo para criar ao Inominável?
— Os que detinham o poder decretaram a pena de morte para o que se oposse.
Teria que ter imaginado. Troquei os sapatos de mão e adiantei a outra de novo para me agarrar ao braço do Frost.
— Quero dizer, como conseguiu Andais convencer ao Taranis?
— Isso é um segredo entre a rainha e Taranis. — Tocou-me o cabelo retirando o da minha cara. — Diferente do Rhys, eu não gosto de passear entre tanta morte e tristeza. Estou ansioso para que chegue esta noite.
Voltei a cabeça e lhe beijei a palma da mão.
— Eu também.
— Merry! — Lucy Tate me chamou do alto da escada. Rhys quase tinha chegado a seu lado. Lucy desapareceu de nossa vista, enquanto ele a seguia a poucos passos.
Dei ao Frost uns tapinhas sobre o braço.
— É melhor nos apressarmos.
— Sim. Não confio nada do senso de humor que mostre Rhys a sós com a inspetora. Trocamos um olhar e aceleramos um pouco o passo. Acredito que ambos esperávamos chegar à escada antes de que Rhys fizesse alguma tolice. Eu, pelo menos, não acreditava que chegássemos a tempo.
Capítulo 22
Alguns dos corpos estavam em sacos funerários, como casulos de plástico dos que não ia brotar nada com vida. Entretanto, tinham acabado as bolsas, assim que se limitaram a tirar os cadáveres fora. Não pude contar a primeira vista quantos havia. Mais de cinquenta. Possivelmente cem, possivelmente mais. Não podia me pôr a contá-los como se fossem coisas colocadas em fila, assim deixei de tentar calculá-lo. Procurei não pensar.
Fiz um esforço por imaginar que estava na corte e que se tratava de uma das «diversões» da rainha. Ninguém se atreveria nunca a mostrar desgosto, repulsão, horror ou o mínimo medo ante um de seus pequenos espetáculos. Se o fazia, estava acostumado a te obrigar a participar dele. Entretanto, seus espetáculos estavam mais relacionados com o sexo e a tortura que com a morte de verdade, além de que a asfixia não era uma das predileções de Andais, assim que este desastre não teria sido de seu agrado. Certamente, veria-o como uma perda. Tanta gente que poderia havê-la admirado, tanta gente a que poderia ter aterrorizado.
Simulei que minha vida dependia de pôr cara de pôquer e não sentir nada. Era a única maneira que conhecia para poder caminhar entre os corpos e não perder os nervos. Minha vida dependia de não perder os nervos. Repeti-o mentalmente como se fosse um mantra — «Minha vida depende de não perder os nervos, minha vida depende de não perder os nervos» —, e me ajudou a seguir caminhando entre as fileiras de corpos, permitiu-me olhar todo esse horror sem gritar.
Os cadáveres que não estavam cobertos tinham a mesma cor de lábios azul que a garota da praia, exceto neste caso, obviamente, não era batom. Todos eles se asfixiaram, mas não imediatamente. Não tinham desabado por arte de magia e delicadamente. Havia marcas de arranhões em alguns dos corpos nos lugares nos que se cravaram as unhas: a garganta, o peito..., como se tivessem tentado obter o ar que os pulmões tinham deixado de receber.
Havia nove corpos que pareciam diferentes do resto. Não conseguia adivinhar o que era, mas fiquei observando-os, dispostos em fila entre outros. Frost tinha estado caminhando a meu lado, mas agora se achava afastado da cena tentando não atrapalhar o trabalho dos policiais, os inspetores, o pessoal médico, e de toda a demais gente que parece reunir-se em todas as cenas de crimes. Lembrei de quão surpreendida que fiquei a primeira vez que vi quanta gente passava pela cena de qualquer crime.
Detrás do Frost havia algo coberto com uma toalha, mas não se tratava de um cadáver. Demorei uns segundos em me dar conta de que era uma árvore de Natal. Alguém havia coberto todo esse verde artificial, tinha abafado esse aviso de que era Natal. Era como se alguém não tivesse querido que a árvore visse os corpos, como esconder os do olhar dos inocentes para que estes seguissem sendo inocentes. Deveria ter parecido algo ridículo, mas não era assim. De alguma forma, parecia apropriado cobrir os adornos da sala. Escondê-los para que não se corrompessem.
Com relação ao Frost, era como se não fosse consciente da árvore coberta nem de nenhuma outra coisa. Rhys, pelo contrário, parecia consciente de tudo.
Permanecia justo a meu lado. Agora já não cantava nem sorria. Estava como subjugado desde que tínhamos chegado a esse açougue. Embora «açougue» não era a palavra adequada para isso. Açougue implica sangue e partes de carne arrancados e pulverizados pelo chão. Esta cena era estranhamente limpa, quase impessoal. Não, não impessoal: fria. Tinha conhecido pessoas que desfrutavam com as matanças, e literalmente se regozijavam com a ação de cortar alguém em partes, a sensação de uma serra atravessando a carne. Entretanto, esta cena não tinha sido uma orgia selvagem de sangue. Era simplesmente morte, morte fria, como se a Morte tivesse cobrado vida para visitar este lugar.
— O que tem de diferente nestes nove corpos? — Não me dava conta de que tinha perguntado em voz alta até que Rhys me respondeu.
— Morreram tranquilamente, não apresentam arranhões, nem indícios de luta. Estes nove e só estes..., simplesmente se desabaram enquanto dançavam.
— Em nome da Deusa, o que aconteceu aqui, Rhys?
— Que diabos está fazendo aqui, princesa Meredith?
Ambos nos giramos para a parte mais longínqua da sala. O homem que se aproximava para nós desviando dos cadáveres era de compleição média, calvo, musculoso, e com muito mau humor.
— Tenente Peterson, não é? — perguntei.
A primeira e última vez que tinha coincidido com o Peterson era quando tentava convencer à polícia de que investigassem a possibilidade de que um afrodisíaco de duendes tivesse chegado à mãos humanas. Responderam-me que os afrodisíacos não funcionavam, nem tampouco os feitiços de amor. Eu demonstrei que sim funcionavam, e por pouco estive a ponto de provocar sérios distúrbios no Departamento de Polícia de Los Angeles. O tenente tinha sido um dos homens que tinha utilizado para demonstrar minha teoria. Tiveram que lhe pôr umas algemas para impedir que se jogasse sobre mim louco de paixão.
— Deixe de ser agradável, princesa. Que diabos está fazendo aqui?
— Eu também me alegro de lhe ver, tenente — lhe respondi sonrrindo, mas ele não sorriu.
— Fora daqui, já. Vá antes de que a jogue.
Rhys se aproximou um pouco mais a mim. Os olhos do Peterson se posaram sobre ele, e logo depois de novo sobre mim.
— Já vi seus dois gorilas. Se tentarem fazer algo, com imunidade diplomática ou sem ela, meto-os na cadeia.
Olhei para trás o suficiente para ver que Frost estava se aproximando. Neguei com a cabeça e se deteve. Franziu o cenho, não estava muito contente; mas não tinha que estar contente, tinha que me deixar espaço.
— Tinha visto alguma vez tantos mortos? — perguntei-lhe com voz tranquila.
— O quê? — perguntou a sua vez Peterson. Repeti a pergunta. Ele sacudiu a cabeça.
— O que tem que ver isso?
— É horrível — eu disse.
— Sim, é horrível, e que diabos tem que ver isso?
— Seria mais amável se a cena do crime não fosse tão grande. Emitiu um som parecido a uma risada, mas muito duro para sê-lo.
— Demônios, princesa, sou amável. Sou assim de amável com os assassinos como você, que se escondem atrás da imunidade diplomática. — Sorriu; de fato, me mostrou os dentes como se fosse grunhir.
Faz algum tempo fui suspeita de assassinar a um homem que tinha tentado me violentar. Não o matei, mas sem a imunidade diplomática, possivelmente teria acabado na cadeia de todas as formas. No mínimo, teriam me julgado. Não tentei voltar a negá-lo. Peterson não acreditaria, como não tinha acreditado antes.
— Por que estes nove corpos são os únicos que morreram sem violência? — perguntei.
— O quê? — perguntou franzindo o cenho.
— Por que estes nove corpos são os únicos sem sinais aparentes de luta?
— Esta é uma investigação policial, e eu sou o oficial encarregado do caso. trata-se da minha investigação, e eu não dou a mínima se você for uma de nossas conselheiras civis sobre essa merda metafísica. Nem sequer me importa se nos ajudou no passado. Nunca tem feito uma merda por mim, e não necessito ajuda de nenhuma maldita fada. Assim, pela última vez, dê o fora daqui.
Tinha tentado ser simpática. Tinha tentado ser profissional. Quando ser boa não ajuda nada, sempre se pode ser má. Aproximei-me dele como se foss lhe tocar a cara. Fez o que esperava que fizesse: afastou-se.
— O que foi, tenente? — Assegurei-me de pôr uma expressão de surpresa.
— Não lhe ocorra me tocar jamais. — Seu tom era mais baixo agora. E me dava conta de que resultava muito mais perigoso que os gritos.
— Não foi o contato de minha pele o que lhe fez voltar-se louco a última vez, tenente. Foram as Lágrimas do Branwyn.
Baixou ainda mais o tom da voz.
— Não... volte... a... me tocar... jamais. — Havia pânico em seus olhos. Tinha medo de mim, medo de verdade, e por isso me odiava.
Rhys se adiantou um pouco, sem interpor-se entre o tenente e eu, mas quase. Não o impedi. Nunca é cômodo estar frente a alguém que lhe olhe com tanto ódio.
— Só nos vimos uma vez, tenente. Por que me odeia? — Foi uma pergunta tão direta que nem sequer um humano a teria exposto. Mas não entendia, não podia entendê-lo, assim tive que perguntar-lhe.
Baixou a vista escondendo os olhos como se não me acreditasse capaz de chegar tão longe dentro de sua alma.
— Esquece-se de que vi o que deixou na cama: um montão de carne, pedaços de pele — disse em voz realmente baixa. — Sem os informe do dentista, não teríamos podido lhe reconhecer. E você se pergunta por que não quero que me toque? — Sacudiu a cabeça e me olhou, com os olhos totalmente inexpressivos, olhos de polícia. — Agora, vá, princesa. Pegue seus dois gorilas e parta. Sou o oficial encarregado do caso, e não permitirei que siga mais tempo aqui. — Falou com uma voz acalmada, muito acalmada, muito acalmada para estar em meio de tudo isso.
— Tenente, eu chamei à Agência de Detetives Grei. — Lucy Tate entrou na sala.
— E quem lhe deu autorização para fazê-lo? — perguntou Peterson.
— Nunca necessitei uma autorização especial para chamá-los. — abriu-se caminho entre as filas de corpos e quando chegou o suficientemente perto, pude ver que era uma cabeça mais alta que o tenente.
— Entendo que tenha chamado a clarividente. Inclusive ao senhor Grei, porque é um mago conhecido. Mas por que a ela? — Assinalou-me com um dedo.
— Os sidhe são muito conhecidos por usar magia, tenente. Pensei que quantas mais cabeças trabalhassem no caso, melhor.
— «Pensei, pensei...». Bom, pois não pense tanto, inspetora. Limite-se a seguir os procedimentos. E os procedimentos dizem que deve consultar o chefe do caso, e esse sou eu. E eu digo que não é bem-vinda.
— Tenente, eu...
— Inspetora Tate, se quer seguir trabalhando nesta equipe, deverá seguir minhas instruções, minhas ordens, e não discutir comigo. Fui claro?
Observei como Lucy lutava contra essas palavras afiadas. Logo, por fim, disse:
— Sim, senhor, muito claro.
— Bem, porque os de acima podem pensar o que quiserem, mas sou eu o que está ao pé do canhão, ante as câmaras, e eu digo que se trata de algum tipo de gás ou veneno. Quando finalizar o exame toxicológico dos outros corpos, saberão o que é, e nosso trabalho será descobrir quem o tem feito. Procure primeiro quem o fez, não o que o fez. Não precisa recorrer à terra dos contos de fadas para resolver estes assassinatos. Simplesmente, trata-se de outro filho de puta tão mortal como o resto dos desta sala. Girou a cabeça para um lado em um gesto estranho, depois me olhou, ao Rhys e ao Frost, que se encontrava ao fundo.
— Perdão, errei, eu quis dizer mortal como o resto dos humanos desta sala. Agora, tirem seus trazeiros imortais daqui imediatamente. E se me inteiro de que qualquer de meus subordinados falou com vocês, terão que enfrentar a um comitê disciplinador. Ficou claro para todos?
— Sim, senhor — respondeu Lucy.
— Muito obrigado, tenente — lhe disse sonrrindo. — Odiava estar aqui entre tanta morte. Foi uma das coisas mais horríveis que vi em minha vida, assim obrigado por permitir que vá, quando tive que utilizar todas minhas forças para não sair fugindo. Segui sonrrindo enquanto tirava uma das luvas cirúrgicas que tinha posto. Não havia tocado nada, nem nenhum corpo, porque não queria levar comigo a sensação da carne morta.
Rhys tirou as luvas também, mas ele sim havia tocado coisas. Dirigimo-nos para o cesto de papéis disposto para desprezar as luvas usadas e justo antes de sair pela porta não pude evitar dizer:
— Obrigado de novo, tenente, por permitir que vá. Estou de acordo com você, não sei que demônios estou fazendo aqui.
Depois de pronunciar estas palavras, parti dali, com o Rhys e Frost me seguindo como se fossem minhas sombras.
Capítulo 23
Estava sentada ao volante do Acura quando me dei conta de que não podia recordar onde tínhamos que ir. Fiquei olhando as chaves que tinha nas mãos e fui incapaz de pensar.
— Onde vamos?
Os homens trocaram um olhar, e Rhys disse do assento traseiro:
— Deixa que eu dirijo, Merry.
Inclinou-se para frente entre os dois assentos e pegou as chaves com delicadeza. Não disse nada. Tinha a sensação de que levava todo o dia ouvindo um zumbido constante, como se tivesse um mosquito invisível voando ao lado da orelha. Rhys me abriu a porta para poder sair, e caminhei até o lado do co-piloto. Frost abriu a porta e se assegurou de que estava sentada antes de meter-se na parte traseira do carro. Tinha sorte de que Rhys estivesse comigo. Frost não tinha carteira de motorista.
— O cinto — disse Rhys.
Não estava acostumada a me esquecer do cinto de segurança. Levei duas tentativas para conseguir fechá-lo. — O que está acontecendo comigo?
— Está em choque — respondeu Rhys enquanto punha o carro em marcha.
— Em choque? Por quê?
Frost respondeu indo pra frente para me ver melhor. A maioria dos guarda-costas não usavam nunca o cinto de segurança; podiam ser decapitados e não morriam, assim que uma pequena viagem através do pára-brisa não lhes preocupava o mínimo.
— Você mesma disse à polícia. Nunca tinha visto algo tão terrível como o que acaba de ver.
— E você viu algo pior?
Permaneceu em silêncio durante um segundo. — Sim — disse depois.
Fiquei olhando ao Rhys, que tinha se metido já na auto-estrada do Pacífico com suas preciosas vistas do oceano.
— E você?
— E eu o quê? — respondeu com um sorriso nos lábios.
— Viu algo pior?
— Sim. E não. Não vou lhe contar isso.
— Nem se eu lhe perguntar isso com amabilidade?
— Especialmente se me pergunta isso com amabilidade. Se estivesse o bastante zangado, possivelmente tentaria te deixar chocada com os horrores que presenciei. Mas não estou zangado contigo, e não quero te fazer mal.
— Frost?
— Estou seguro de que Rhys viu coisas piores que eu. Eu ainda não tinha nascido durante as primeiras batalhas, quando nosso povo lutou contra os Firbolgs.
Sabia que os Firbolgs tinham sido os primeiros habitantes semidivinos das ilhas Britânicas e da Irlanda. Sabia que meus ancestrais lhes tinham derrotado e conseguiram assim o direito a converter-se nos novos amos das terras. Fazia muitos milhares de anos isso, que eu soubesse. O que não sabia era que Rhys era mais velho que Frost, mais velho que a maioria dos sidhe. Que Rhys tinha sido um dos primeiros de nós a chegar às ilhas que agora se consideravam o lar original de todos os sidhe.
— Rhys é mais velho que você?
— Sim.
Olhei ao Rhys, que de repente parecia estar muito interessado em conduzir.
— Rhys?
— Sim — respondeu sem afastar a vista de em frente. Entrou em uma curva muito depressa, assim teve que efetuar uns movimentos com o volante para controlar o carro.
— Quantos anos mais que Frost tem?
— Não me lembro. — Respondeu com uma voz que continha uma nota de melancolia.
— Sim se lembra.
— Não, não me lembro. Faz muito tempo, Merry. Não me lembro em que ano nasceu Frost. — Agora soava mal-humorado.
— Se lembra de em que ano nasceu? — perguntei ao Frost. Pareceu pensar sobre isso e logo negou com a cabeça.
— Em realidade, não. Rhys tem razão em algo. Com o passar do tempo, é muito para lembrar-se.
— Estão me dizendo que começastes a perder parte de suas lembranças?
— Não — respondeu Frost, — mas o ano em que nasceu deixa de ser importante. Sabe que nós não celebramos nossos aniversários.
— Bom, sim, mas nunca me detive a pensar porquê. Voltei a olhar ao Rhys. Parecia um pouco mal-humorado.
— Assim viu coisas piores que o que acabamos de ver na discoteca, restaurante ou o que seja?
— Sim — respondeu com secura.
— Se te pedisse que me contasse isso, faria-o?
— Não.
Há alguns «nãos» que podem transformar-se em «sins», e outros que só apenas Não. O «não» do Rhys foi destes últimos.
Deixei de insistir. Além disso, não estava segura de querer ouvir histórias sobre mortes horríveis, em especial se eram piores que o que acabava de presenciar. Nunca tinha visto tantos mortos juntos, e eram muitos mais dos que teria gostado de ver.
— Respeitarei seus desejos.
Olhou-me quase como se não confiasse em mim.
— Isso diz muito de sua parte.
— Não precisa que seja sarcástico, Rhys.
— Sinto muito, Merry. É que agora mesmo não estou muito bem — disse encolhendo- se de ombros.
— Achei que era a única tinha problemas para digeri-lo.
— Não são os corpos o que me inquieta. É o fato de que o tenente se equivoca. Não se tratou que um ataque com gás ou veneno, nem nada parecido.
— O que quer dizer, Rhys? O que viu que eu não tenha visto?
Frost voltou a apoiar-se sobre o assento traseiro.
— Ok, o que vocês dois viram que eu não tenha visto? – Eu perguntei. Rhys manteve a vista fixa na estrada. No assento traseiro se fez o silêncio. — Alguém me diga algo — pedi.
— Parece que se sente melhor — disse Frost.
— Sim. Não há nada como zangar-se um pouco para esquecer das coisas. Bom, o que viram que eu não vi?
— Usava um escudo tão potente que não podia ver nada místico — disse Rhys.
— Claro que sim. Sabe quanta porcaria metafísica há em um lugar no que se acaba de cometer um crime, por não falar de uma execução em massa? Há muitos espíritos que se sentem atraídos por lugares como esse. Vão em massa como os abutres para alimentar-se da vida que fica, para alimentar do horror, da dor. Pode entrar limpo em um lugar como esse e sair coberto de viajantes.
— Sabemos o que são capazes de fazer os espíritos que voam — repôs Frost.
— E certamente melhor que eu — respondi, — mas vocês são sidhe e a os viajantes não se agarram em vocês.
— Não os pequenos — disse Frost, — mas vi a alguns como nós possuídos por seres imateriais. Pode acontecer, sobretudo se alguém trabalha com magia escura.
— Bom, sou o bastante humana para que se enganchem coisas por acidente. Não tenho que fazer nada para atrai-los; unicamente, não me proteger o suficiente.
— Tentou sentir ao menos o que podia enquanto te encontrava ali — disse Rhys.
— Sou detetive particular, não uma médium profissional. Nem sequer sou um mago ou uma bruxa profissional. Não tinha nada que fazer ali. Não podia ajudar.
— Poderia ter ajudado se tivesse reduzido um pouco as defesas — respondeu Rhys.
— Bom, a próxima vez tentarei ser mais valente. Agora me digam o que viram. Frost suspirou tão fundo que pude ouvi-lo sem problemas.
— Percebi os resíduos de um feitiço poderoso, muito poderoso. Persistiam como um eco agudo naquele lugar.
— Pôde senti-lo apenas ao entrar?
— Não, não gosto nada de tocar nos mortos, assim procurei com outros sentidos além do tato e da visão. Eu, tal como você diz, desfiz-me das defesas. Foi então quando percebi o feitiço.
— Sabe de que feitiço se trata? — perguntei. Olhei para o assento de atrás e pude ver como sacudia a cabeça.
— Eu sim. — A voz do Rhys fez que voltasse a olhar para frente.
— O que disse?
— Qualquer um que se concentrasse poderia ter percebido os resíduos da magia. Merry poderia havê-los percebido se tivesse querido.
— Mas não lhe teriam dito nada, igual a não me diziam nada — disse Frost. — Além de que poderiam lhe ter feito mais difícil digerir o que estava vendo.
— Não me refiro a isso — respondeu Rhys —, o que quero dizer é que eu me agachei e observei os corpos. Nove deles se desabaram no momento, mas outros tinham tido tempo de lutar, de ter medo, de tentar fugir. Entretanto, não fugiram como se, por exemplo, tivessem sido atacados por animais selvagens. Não correram para as portas, nem romperam as janelas assim que viram o que estava acontecendo. É como se não tivessem sido capazes de ver nada.
— Não te entendo — disse Frost.
— Eu tampouco. Fale claro, Rhys, por favor.
— E se não fugiram porque não se deram conta de que havia algo na sala?
— A que te refere? — perguntei-lhe.
— A maioria dos humanos não são capazes de ver nenhum tipo de espíritos.
— Certo, mas se está dizendo que uns espíritos, uns seres imateriais, mataram todos os da discoteca, não estou de acordo contigo. Os seres imateriais, viajantes, o que seja, não têm a força física para matar tanta gente dessa forma. Possivelmente poderiam acabar com alguém que fosse muito suscetível a sua influência, mas inclusive isso seria discutível.
— Não seres imateriais Merry, a não ser outro tipo de espíritos. Olhei-o com surpresa.
— A que te refere, fantasmas? Os fantasmas não fazem coisas assim, Rhys. Possivelmente sejam capazes de assustar alguém e obter que sofra um ataque do coração se a pessoa tinha um coração débil, mas isso é tudo. Os fantasmas verdadeiros não fazem mal às pessoas. Se sofrer um dano físico real, então se trata de outra coisa e não de fantasmas.
— Depende de que classe de fantasmas esteja falando, Merry.
— A que te refere? Só há um tipo de fantasmas.
Então ficou me olhando. Teve que voltar a cabeça quase completamente para ver-me devido ao emplastro. Frequentemente, estava acostumado a olhar para mim enquanto conduzia, embora se tratava de um movimento sem significado porque lhe faltava o olho direito; não podia me ver. Agora sim se esforçou em me olhar com o olho esquerdo.
— Sabe que não.
Sempre tinha achado é obvio que Rhys era um dos sidhe mais jovens porque nunca me fazia sentir que me encontrava no século equivocado. Era um dos poucos que possuía uma casa fora dos limites da terra dos duendes, com eletricidade, e carteira de motorista. Agora estava me olhando como se eu fosse uma menina e não pudesse entender nada.
— Pára já — disse.
Voltou a olhar à estrada.
— Pára o quê?
— Odeio quando me olham assim, com esse olhar que diz que sou tão jovem que como poderia entender suas experiências. Bom, nunca terei mil anos, mas já tenho mais de trinta e segundo o calendário humano, já não sou uma menina. Por favor, não me tratem como se o fosse.
— Então, deixa de te comportar como tal — repôs com recriminação, de novo como se se tratasse de um professor decepcionado.
Já tinha aguentado bastante tudo isso do Doyle. Não queria aguentar também do Rhys.
— Por que agi como uma menina? Porque não quis me desfazer das defesas e ficar exposta a todo esse horror?
— Não, porque afirma que só há uma classe de fantasmas como se fosse uma verdade universal. Acredite em mim, Merry, há algo mais que sombras humanas vagando por aqui.
— Como o quê? — perguntei.
Respirou fundo e estirou os dedos das mãos antes de voltar a aferrar-se ao volante.
— O que ocorre a um ser imortal quando morre? — perguntou.
— Reencarna, como todo mundo — respondi.
— Não, Merry, se podem matá-los, então por definição não podem ser imortais. Os sidhe afirmam ser imortais, mas não o são. Há coisas que podem nos matar.
— Não, sem ajuda mágica não há nada — repliquei.
— Não importa como se faça, Merry. O que importa é que pode fazer-se. O que nos leva de novo à pergunta: O que acontece com os seres imortais quando morrem?
— Não podem morrer, são imortais — respondi.
— Exato.
Olhei-lhe e franzi o cenho.
— Ok, rendo-me, o que quer dizer?
— Se algo não pode morrer, mas o faz, o que lhe acontece?
— Refere-se aos ancestrais? — disse Frost.
— Sim.
— Mas eles não são fantasmas — replicou Frost. — São o que fica dos primeiros deuses.
— Por favor, meninos — disse Rhys. — Pensem um pouco. Um fantasma humano é o que fica de um humano atrás de sua morte, antes de ir para a próxima vida. Ou, em alguns casos, uma parte fica porque é muito duro partir. Mas é o resíduo espiritual de um ser humano, não?
Ambos assentimos.
— Então, os resíduos dos primeiros deuses não seriam fantasmas dos próprios deuses?
— Não — respondeu Frost, — porque se alguém pudesse descobrir seus nomes de novo e lhes proporcionar seguidores, poderiam, em teoria, voltar para a vida. Os fantasmas humanos não dispõem de dita opção.
— Acha que o fato de que os humanos não disponham dessa opção faz que os ancestrais sejam menos fantasmas? — perguntou Rhys.
Começava a me doer a cabeça.
— Bom, tudo bem, digamos que há fantasmas dos deuses ancestrais vagando por aqui. O que tem que ver isto com todo o resto?
— Eu disse que conhecia o feitiço. Em realidade não o conheço, mas vi as sombras dos ancestrais cair sobre os duendes. Foi como se o próprio ar se fizesse mortal. Simplesmente, absorvia-lhes as vistas.
— Os duendes são imortais — eu disse.
— Algo que possa matar-se, embora logo se reencarne, é mortal, Merry. A duração da vida não importa neste caso.
— Assim está dizendo que soltaram a estes fantasmas nessa discoteca?
— É mais difícil matar aos duendes que aos humanos. Se a sala tivesse estado cheia de duendes, algum teria sobrevivido, ou teria sido capaz de proteger-se, mas, sim, estou dizendo que isso é o que aconteceu.
— De maneira que os fantasmas de deuses mortos mataram a mais de cem pessoas em uma discoteca da Califórnia.
— Sim — confirmou Rhys.
— Poderia ter sido o Inominável?
Pareceu refletir sobre isso, logo negou com a cabeça.
— Não, se tivesse sido o Inominável, o edifício não seguiria em pé.
— É tão poderoso assim?
— Tão destrutivo.
— Quando foi a primeira vez que viu algo assim?
— Antes de que Frost nascesse.
— Ou seja, faz uns milhares de anos.
— Sim.
— Quem chamou os deuses então? Quem fez o feitiço?
— Um sidhe que leva mais tempo morto que a Inglaterra dirigida pelos normandos e seus descendentes.
Realizei um repasse rápido à história da Inglaterra.
— Quer dizer, antes de 1066.
— Sim.
— Fica alguém vivo hoje em dia que possa realizar o feitiço?
— Provavelmente, embora esteja proibido realizá-lo. Se o fizerem, o castigo é uma execução automática, sem julgamentos, sem possibilidade de indulto, simplesmente lhe matam.
— Quem se arriscaria a tanto para fazer mal a um grupo de humanos situados à beira do mar do oeste? — perguntou Frost.
— Ninguém — respondeu Rhys.
— Com quanta segurança afirma que os deuses ancestrais são os culpados? — perguntei.
— Sempre existe a possibilidade de que algum mago humano tenha conseguido realizar um novo feitiço com efeitos similares, mas apostaria o que fosse que foram os deuses ancestrais.
— Os fantasmas roubam as vidas para seu mestre? — perguntou Frost.
— Não, ficam e se alimentam com elas. Em teoria, se lhes permitissem alimentar-se cada noite inverificado, voltariam a... a vida, a falta de um mundo melhor. Necessitam a ajuda de um mortal para consegui-lo, mas alguns ancestrais poderiam voltar com todo seu poder se conseguissem suficientes vidas. Em ocasiões, algum deles convencem às pessoas de alguma seita de que é o demônio e de que têm que sacrificar-se para ele, o que poderia funcionar, mas necessitaria uma quantidade enorme de visdas para consegui-lo. Se se apropriar das vidas diretamente pelas bocas das vítimas é mais rápido, e não faz falta esbanjar tanta energia, é como beber o sangue de uma taça que nos oferecem.
— Algum deles conseguiu voltar com todo seu poder? — perguntei.
— Não, sempre lhes detiveram antes de chegar tão longe. Mas, por isso eu sei, nunca lhes tinham deixado soltos para que se alimentassem diretamente, bom, exceto uma vez, e foi em uma situação controlada em que os detiveram assim que terminou o feitiço. Se os tivessem solto sem vigilância...
— O que pode detê-los? — perguntei.
— Terá que reverter o feitiço.
— E como se faz isso?
— Não sei. Terei que falar com alguns dos outros quando voltar ao apartamento.
— Rhys — disse com suavidade porque tinha me vindo à cabeça uma idéia terrível.
— Sim?
— Se a única pessoa que conheceste capaz de reverter o feitiço é um sidhe, significa isto que o tornou a fazer um de nós?
Fez-se o silêncio durante uns batimentos do coração, logo disse:
— Isso é o que eu temo. Porque se tiver sido um sidhe e a polícia o descobre, se forem capazes de prová-lo, expulsarão-nos e nos afastarão do território norte-americano. Há um anexo ao acordo entre nós e Jefferson que diz que se praticarmos magia que vá contra os interesses nacionais, seremos exilados e deveremos abandonar o país.
— Por isso não mencionaste nada disto diante da polícia — disse.
— É uma das razões — respondeu.
— Qual é a outra?
— Merry, não podem fazer nada a respeito. Não podem deter estas coisas. Nem sequer estou seguro de que há algum sidhe vivo ainda que seja capaz de detê-los.
— Tem que haver ao menos um que seja capaz de detê-los — respondi.
— Por que diz isso?
— Porque um sidhe os soltou. Ele poderia voltar a trancá-los.
— Possivelmente — disse Rhys —, ou possivelmente a razão pela que massacraram a centenas de humanos em questão de minutos é que o sidhe perdeu o controle sobre eles. Pode ser que lhe tenham matado quando não pôde controlá-los.
— Mas, se um sidhe liberou a essas coisas, por que estão na Califórnia e não em Illinois, onde vivem os sidhe?
Rhys voltou a girar totalmente a cabeça para me olhar aos olhos.
— Merry, não entende? E se procuravam uma maneira de te matar a que não pudesse seguir a pista até o país dos duendes?
— Mas conseguimos seguir a pista até o país dos duendes — repus.
— Só porque eu estou aqui. A maioria dos da corte se esquecem de quem fui e eu não o recordo, porque por culpa do Inominável já não tenho o poder de sê-lo. — Custava- lhe evitar que aparecesse a amargura em sua voz. Depois ficou a rir. — Pode ser que seja um dos poucos sidhe vivos que presenciou o que fez Esras. Eu me encontrava ali, e seja quem for o que soltou aos ancestrais se esqueceu de mim. — Voltou a rir, mas parecia uma paródia, como se a risada lhe fizesse mal quando saía pela garganta —. Se esqueceram de mim. Vou fazer que lamentem terem se esquecido deste pequeno detalhe.
Nunca tinha ouvido o Rhys falar com tanta... não sei, com algo que não fosse luxúria ou alvoroço. Nunca estava sério durante muito tempo se podia evitá-lo. Olhei-lhe enquanto conduzia o carro para o apartamento para recolher ao Kitto. Havia algo diferente em sua cara, na posição dos ombros. Inclusive a forma de segurar o volante parecia ter mudado. Nesse momento, dava-me conta de que realmente não o conhecia. Escondia-se atrás de um véu de humor e superficialidade, mas debaixo disso havia mais, muito mais. Era meu guarda-costas e meu amante, e não o conhecia. Não estava segura se lhe devia uma desculpa ou se era ele quem me devia isso.
Capítulo 24
O apartamento, situado no El Segundo, não estava no caminho do escritório, mas essa manhã Kitto se despertou com olheiras que pareciam hematomas, e sua pálida pele parecia papel de fumar, como se se tivesse feito mais fina durante a noite. Não podia imaginá-lo caminhando por uma praia a pleno sol sem nada que lhe protegesse. Quando me inteirei do lugar do crime, perguntei-lhe o que queria fazer, e preferiu ficar convexo em sua caminha.
Subi a escada que ascendia do estacionamento aos apartamentos, escoltada na frente pelo Frost e, por trás, pelo Rhys. Frost falava enquanto rodeávamos a piscina.
— Se o pequeno não começar a prosperar, terá que enviá-lo de volta para Kurag.
— Já sei — eu disse. Subimos o último lance de escada e chegamos em um momento à porta do apartamento —. Mas me preocupa o que será o próximo que nos envie Kurag. Ele esperava que me sentisse ofendida quando ofereceu ao Kitto em primeiro lugar. O fato de que eu o aceitasse e estivesse de acordo com sua escolha, incomodou-o bastante.
— Segundo o critério dos trasgos, Kitto é feio — comentou Rhys.
Girei-me para olhá-lo. Ainda não tinha recuperado seu habitual savoir faire. Lhe via melancólico. Não lhe perguntei como, se não entendia quase nada da cultura dos trasgos, sabia o que consideravam bonito. Com um guerreiro sidhe para eles durante uma noite, estava seguro de que lhe tinham entregue unicamente aos mais bonitos segundo sua opinião. Os trasgos valoravam muito os olhos e as extremidades adicionais, e Kitto não dispunha de nada disso.
— Sei, e ele não está relacionado com a casa real por nenhuma parte. Kurag esperava que eu me negasse, com o que teria conseguido desfazer nossa aliança.
Tínhamos chegado à porta. Alguém tinha colocado um pequeno vaso de barro com um gerânio rosa pálido. Galen se encarregava da maioria dos trabalhos domésticos, como procurar outro apartamento o bastante grande para todos nós e comprar flores para alojar aos duendes errantes. Já estaríamos há tempo vivendo em um apartamento maior se o dinheiro não fosse um problema, mas era muito difícil encontrar um lugar suficientemente amplo cujo preço pudéssemos pagar. A maioria dos lugares dispunham de limites sobre quantas pessoas podem viver nele, e seis adultos estava acostumado a encontrar-se por cima de dito limite.
Seguia me negando a aceitar dinheiro das cortes, porque ninguém dá nada grátis. Frost pensava que era uma cabeça dura, mas Doyle estava de acordo em que sempre terá que pagar o preço de qualquer favor. Eu estava bastante segura do que seria o que me pediria Andais em troca: que não matasse a seu filho se chegasse a ser rainha, e esse era um favor que não podia me permitir o luxo de garantir. Sabia que Cel nunca aceitaria que fosse rainha, não enquanto seguisse com vida. Andais não o entendia simplesmente por uma questão de amor de mãe. Cel era um ser retorcido e malvado, mas sua mãe o queria, que já era mais do que eu podia dizer da minha.
Frost empurrou a porta para abri-la, e entrou em primeiro lugar, depois de comprovar que os amparos estivam intactos. O doce aroma de limpo da lavanda e o incenso nos recebeu assim que entramos. O altar principal estava na esquina mais afastada da sala de estar, de forma que qualquer um pudesse usá-lo. Não necessitávamos um altar, podíamos nos situar em meio de qualquer prado, ou em um bosque, ou em um metro cheio de gente, e a divindade sempre estava conosco (se estava atento e a convidava a entrar em seu coração). Mas o altar era um bonito aviso. Um lugar no que começar cada dia com uma pequena comunhão com o espírito.
As pessoas estavam acostumadas a pensar que os sidhe não tinham nenhuma religião, quero dizer eles foram em seu dia deuses, não? Bom, mais ou menos. Foram adorados como deuses, mas a maioria dos sidhe possuem poderes maiores que eles. A maioria de nós nos ajoelhamos ante a Deusa e Consorte, ou alguma variação similar. Deusa é a criadora da vida, e Consorte é todo o masculino. São o modelo de tudo o que descende deles. Ela, em concreto, é um poder maior que algo no mundo, algo que seja carne, sem importar quão espiritual tenha sido a carne.
Exceto pelo sutil rastro de incenso procedente do altar, e uma pequena terrina com água acrescentada a ele, o apartamento parecia vazio à vista, embora não aos sentidos. Podia sentir-se na pele o tinido da magia próxima, não de magia grande, mas sim de magia corrente. Doyle certamente se acharia frente ao espelho falando com alguém. Tinha preferido ficar em casa e tentar solicitar toda a informação que pudesse sobre o Inominável de alguns de nossos amigos da corte. A magia do Doyle era o bastante sutil para poder acontecer totalmente desapercebido entre eles. Eu não teria sido capaz de fazê-lo.
Rhys fechou a porta com chave e agarrou uma nota que tinha presa nela.
— Galen saiu pra procurar um apartamento. Espera que nós gostemos da flor. — Continuando, arrancou uma segunda nota da porta —. Nicca acredita que hoje acabará seu trabalho de guarda-costas.
— A atriz não está em perigo — afirmou Frost enquanto tirava a jaqueta —. Estou convencido de que foi seu agente que a convenceu para nos contratar, a fim de conseguir mais atenção para uma... como a chamam, carreira em decadência.
— Os dois últimos filmes que fez foram um fracasso, tanto no aspecto econômico como no artístico.
— Não sabia. Mas os meios de comunicação preferem fotografar a nós antes que a ela.
— Está me levando a todos os lugares onde não se passa inadvertido.
Quis me desfazer dos altos saltos que usava, mas dentro de nada íamos voltar para o trabalho. Assim, em lugar disso, me dirigi a caminha do Kitto e me ajoelhei. Coloquei bem a saia por detrás para que as fivelas dos sapatos não rasgassem as meias. Podia ver suas costas curvada para a parte de acima.
— Kitto, está acordado? Não se moveu.
Toquei-lhe as costas e notei a pele fria.
— Mãe, nos ajude. Frost, Rhys, algo está errado.
Frost se plantou a meu lado em um instante; Rhys demorou um pouco mais em aproximar-se. Frost tocou ao trasgo.
— Está frio como o gelo. — Introduziu mais a mão para poder lhe buscar o pulso no pescoço. Esperou, esperou muito tempo, antes de dizer por fim: — Tem pulso mas é muito débil.
Tomou o Kitto nos braços e o tirou da cama. Quando o agarrou parecia morto, as extremidades lhe penduravam como se se tratasse de um boneco de pano.
— Kitto! — Não gritei seu nome mas quase.
Tinha os olhos fechados, embora me pareceu ver o azul vibrante de suas pupilas depois das pálpebras, como se a pele fosse translúcida. Abriu-os ligeiramente e pude distinguir um pouco desse azul antes de que pusesse os olhos em branco. Murmurava algo, assim que me aproximei para escutar. Tratava-se de meu nome: «Merry Merry», uma vez atrás de outra.
Usava só umas calças curtas, de forma que podia ver as veias através da pele e os músculos. Uma forma escura se movia no peito, e me dei conta de que era seu coração que pulsava. Podia vê-lo. Era como se se estivesse desfazendo, ou...
Levantei a vista para o Frost.
— Está se desvanecendo — eu disse, e ele assentiu.
Rhys tinha se aproximado da porta do dormitório e trouxe consigo ao Doyle. Olharam ao redor, e as expressões das caras disseram muito mais que qualquer palavra.
— Não — supliquei. — Ainda há esperança. Tem que haver algo que possamos fazer. Trocaram olhares, nesse jogo de lançar-lhe um ao outro, como se os pensamentos fossem muito pesados para carregá-los e tivesse que passar-lhe a seguinte pessoa, e esta a seguinte.
Sujeitei ao Doyle pelo braço.
— Tem que haver algo — insisti.
— Não sei como impedir que um trasgo se desvaneça.
— Sua mãe era uma sidhe. Salva-o como salvaria a um sidhe.
Doyle pareceu um pouco ofendido, como se os tivesse insultado a todos.
— Não se faça de superior comigo, Doyle. Não deixe que morra só porque está menos misturado que qualquer de nós.
Sua expressão se suavizou.
— Meredith, Merry, um sidhe se desvanece só se quer fazê-lo. Uma vez que começou o processo, não pode deter-se.
— Não! Tem que haver algo que possamos fazer. Franziu o cenho e olhou a todos.
— Sustente-o nos braços enquanto tento localizar ao Kurag. Se não podermos salvá-lo como sidhe, tentaremos fazê-lo como trasgo. Kitto permanecia imóvel nos braços do Frost.
— Merry tem que segurá-lo — disse Doyle enquanto se afastava para o dormitório.
Frost depositou o Kitto em meus braços. Sentei-me no chão, coloquei um braço sob suas pernas, e o acomodei sobre meu colo. Cabia perfeitamente; aqui tinha um homem que podia sustentar entre meus braços. Tinha passado a maior parte da vida entre seres menores que Kitto, mas nenhum deles tinha aspecto de sidhe. Possivelmente por essa razão às vezes parecia um boneco.
Apoiei a bochecha sobre sua testa gelada.
— Kitto, por favor, por favor, volta, volta de onde tenha ido. Por favor, Kitto, sou eu, Merry.
Tinha deixado de sussurrar meu nome. Tinha deixado de emitir qualquer som, e seu peso, a forma em que seu corpo descansava sobre o meu... parecia morto. Não como se estivesse morrendo, mas sim como se já estivesse morto. Os corpos mortos pesam de uma forma diferente aos vivos, sem importar quão doentes estes estejam. Lógicamente, o peso deveria ser o mesmo, mas nunca parece ser.
Doyle saiu do dormitório e disse entre sussurros:
— Kurag não se encontra perto de seu espelho, nem de nenhum conjunto de água em repouso. Não posso contatar com ele, Merry. Sinto muito.
— Se Kitto fosse sidhe, o que faria para salvá-lo?
— Os sidhe não se desvanecem por encontrar-se longe do país dos duendes — respondeu Doyle. — Os sidhe se desvanecem única e exclusivamente se querem fazê- lo.
Sustentava esse corpo gelado entre os braços e senti como as lágrimas afloravam aos olhos. Mas as lágrimas não iriam ajudá-lo, maldita seja. Precisava falar com o Kurag, já. O que levavam sempre os guerreiros trasgo consigo?
— Me dê sua faca, Frost.
— O quê?
— Minha faca está apanhada debaixo do corpo do Kitto. Necessito uma faca, agora.
— Faz o que te ordena — disse Doyle.
Frost não gostava de fazer algo que não entendia, mas tirou uma faca de detrás das costas, uma que era quase tão larga como meu antebraço, e me entregou isso pela manga.
Tirei a mão de debaixo das pernas do Kitto e lhe disse:
— Segura com força a faca.
Frost pôs um joelho sobre o chão enquanto segurava no alto a faca com ambas as mãos. Respirei fundo, coloquei o dedo justo em cima da ponta e empurrei para baixo. O sangue brotou em um segundo.
— Merry, pare.
— Segura a faca, Frost. É o único que tem que fazer, assim faz-o. Não posso segurar a faca e ao Kitto de uma vez. Faz o que te digo.
Franziu o cenho mas permaneceu ajoelhado com a faca enquanto eu percorria o dedo que sangrava por essa superfície brilhante. O sangue não a cobriu, só a manchou, quase como se fosse um rebordo na superfície imaculada.
Desfiz-me dos amparos que me impediam de ver espíritos, que me impediam de difundir magia como se fosse uma serpente que troca de pele. A magia brilhou durante um segundo, contente de ver-se livre, logo, dirigi-a para a faca. Imaginei ao Kurag, sua cara, sua voz, sua tosca educação.
— Kurag, eu te chamo; Kurag, assassino de milhares, eu te chamo; Kurag, rei dos trasgos, eu te chamo. Três vezes chamado, três vezes renomado, vêem a mim, Kurag, vêem responder a sua faca.
A superfície cintilou entre os pingos de sangue, mas só foi o metal.
— Nenhum sidhe chamou através da faca em séculos — disse Rhys —. Não responderá.
— O número três é muito poderos — interveio Doyle —. Possivelmente Kurag seja capaz de não fazer nenhum caso, mas muito poucos dos seus poderiam fazer o mesmo.
— Entretanto, eu tenho algo ao que fará conta.
Aproximei-me da lâmina e respirei com um fôlego quente sobre ela até que a empanei com o calor de meu corpo. A faca brilhou através do bafo formado e do sangue. O bafo se esfumou e o sangue foi absorvido pelo metal como se o tivesse bebido. Fiquei olhando a superfície chapeada. Uma faca, inclusive da máxima qualidade, não é como um espelho, apesar do que se mostre nos filmes. As facas refletem uma imagem incerta, imprecisa, como se fizesse falta ajustar algum botão, embora não há nada disso. Só pode ver-se um ligeiro esboço de uma pequena porção da cara de uma pessoa; os olhos é o que se vê com mais claridade.
Uma mancha de pele amarela coberta de protuberâncias e dois enormes olhos laranjas apareceram na metade inferior do fio; a metade superior estava menos clara, mas mostrava o terceiro olho do Kurag como poderia ver-se uma luz através das nuvens.
Sua voz se ouvia clara como se estivesse presente na habitação. Surgiu tão de repente que me fez saltar de susto.
— Meredith, princesa dos sidhe, foi seu doce fôlego o que me atravessou a pele?
— Saudações, Kurag, rei dos Trasgos, e saudações, gêmeo do Kurag, carne do rei dos Trasgos.
Kurag possuía um gêmeo parasita que consistia em um olho violeta, dois magros braços, duas perninhas, e umas genitálias pequenas mas completamente funcionais. A boca era capaz de respirar, mas não podia falar e ao que parece, eu era a única que sabia que existia outro ser além do rei. Sigo recordando o horror que senti quando me dei conta de que havia uma pessoa completa presa em um dos lados do corpo do Kurag.
— Fazia muito tempo que um sidhe não chamava os trasgos com sangue e faca. A maioria dos guerreiros que lutaram junto a nós depois do grande tratado esqueceram este velho truque.
— Meu pai me ensinou muitos truques — respondi.
Kurag e eu sabíamos que meu pai se pôs em contato com ele em muitas ocasiões mediante a faca e o sangue. Meu pai tinha sido o embaixador oficial dos trasgos ante a Andais, porque ninguém mais tinha querido esse trabalho. Meu pai tinha me levado a terra dos trasgos em muitas ocasiões quando menina.
O sorriso percorreu o fio da faca e se estendeu por toda a habitação.
— Que desejas de mim, Merry, filha do Essus?
Tinha devotado sua ajuda e isso era o que necessitava. Descrevi-lhe a situação em que tínhamos encontrado ao Kitto.
— Está se desvanecendo.
Kurag amaldiçoou na linguagem gutural típica dos trasgos de classe alta. Entendi uma palavra de cada duas. Algo sobre tetas negras.
— A marca lhes une a ti e ao Kitto. Sua força deveria mantê-lo com vida. — passou-se a mão por diante da cara, parecia um fantasma amarelo sobre o fio da faca. — Isto não teria que acontecer.
Então, me ocorreu.
— E se a marca se curou?
— A marca não se cura, forma-se uma cicatriz — respondeu.
— Pois se curou, Kurag, e não se formou nenhuma cicatriz. Aproximou os olhos laranjas ao fio da faca, e os abriu como pratos.
— Isso não deveria ter acontecido.
— Não sabia que era um problema se se curasse. Kitto não me disse nada.
— A marca de um amante sempre deixa uma cicatriz, Merry. Sempre. Ao menos entre os de nossa classe. — Fui incapaz de ler a expressão de sua cara em tão pouca superfície, mas de repente deixou escapar um enorme bufo e disse: — Lhe permitiste marcar sobre sua carne branca só uma vez?
— Sim — respondi.
— E o sexo? — perguntou em um tom de voz cheio de desconfiança.
— Se me lembro me obrigava só a compartilhar carne. Compartilhar carne verdadeira é mais apreciado entre os trasgos que o sexo.
— Matilhas do Gabriel, me levem com vós! Sim, valoramos a carne, mas o que é um mordidinha sem uma penetração? Terá que afundar os dentes e meter na carne, Merry, menina, disso se trata.
— Kitto compartilha minha cama, Kurag, e permanece a meu lado a maior parte do tempo, em contato direto comigo. Parece que precisa me tocar.
— Se o contato com sua pele foi quão único desfrutou...
Voltou a balbuciar em linguagem de trasgo de novo, coisa que os trasgos quase nunca faziam; era considerado de má educação utilizar um idioma que a outra pessoa não conhecia. Meu pai tinha me ensinado um pouco de trasgo, mas fazia muito tempo já, e Kurag falava muito depressa para minhas noções básicas.
Quando Kurag se cansou de amaldiçoar, fez uma pausa para respirar e falou em um idioma que ambos podíamos entender.
— Os superiores e poderosos sidhe, os trasgos são suficientemente bons para lutar em todas suas guerras, para matar a quem queira, mas não são suficientemente bons para foder. Às vezes, odeio- a todos. Inclusive a ti, Merry, e isso que é uma de minhas favoritas.
— Eu também te amo, Kurag.
— Não me enrole, Merry. Se tivess fodido com Kitto com regularidade, a marca teria se transformado em uma cicatriz. Necessita uma contribuição com constante de carne para poder manter-se com vida nas terras do oeste. Seja carne de verdade ou sexo, mas sua união contigo é agora muito fraco sem essa contribuição, e por isso está morrendo.
Olhei para baixo ao corpo imóvel e frio que sustentava entre os braços, então me dei conta de que não estava tão frio como antes. Seguia estando frio, muito frio, mas já não gelado.
— Está mais quente — eu disse com suavidade, acredito que porque não podia acreditar nisso.
Doyle lhe tocou a cara.
— Sim, está mais quente.
— É você, Escuridão? — perguntou Kurag.
— Sim, sou eu, rei dos Trasgos.
— É certo que está se desvanecendo? Não acredito que Merry tenha visto nunca a ninguém desvanecer-se.
— Está se desvanecendo — confirmou Doyle.
— Então, por que está mais quente? Se se está desvanecendo, deveria estar cada vez mais frio.
— Merry esteve embalando-o entre seus braços durante um momento. Acredito que isso é o que o está esquentando.
— Então, possivelmente ainda não seja muito tarde. Tem força para foder?
— Quase não está consciente — respondeu Doyle.
Kurag pronunciou uma palavra que eu sabia que era algo que um trasgo nunca desejaria a outro: impotência. Era o pior insulto entre trasgos.
— Pode lhe arrancar uma parte de carne com os dentes? – Todos ficamos olhando ao pequeno ser imóvel. Estava mais quente, embora seguia sem mover-se.
— Não acredito — eu disse.
— Então, sangue. Pode beber sangue? — perguntou Kurag.
— Possivelmente — respondi.
— Se o pomos na boca, talvez obtenhamos que trague um pouco — disse Doyle. — Se não se afogar.
— É um trasgo, Escuridão. Não pode afogar-se com sangue.
— Tem que ser sangue da Merry? — perguntou Rhys.
— Conheço-te a muito tempo, Rhys. — E o silêncio que seguiu a estas palavras continha um nome que já ninguém utilizava. — Teria que vir a nos visitar de novo, sidhe. As mulheres ainda falam de ti. Isso é algo muito bom em uma mulher trasgo.
Rhys havia se posto pálido e não movia nem um cabelo. Não respondeu. Kurag emitiu uma risada desagradável.
— Sim, tem que ser o sangue de Merry. Depois, se algum de vocês quizer compartilhar sangue e carne com o Kitto, podem fazê-lo. Os sidhe sempre são saborosos. — Olhou- me com esses olhos laranjas —. Se o sangue consegue revivê-lo, logo lhe dê carne, Merry, carne de verdade desta vez. — De repente, seus olhos se fizeram maiores na faca. Devia ter pego o nariz ao fio —. Pensou que teria aos trasgos como aliados durante seis meses sem levar a cama a nenhum de nós. Compartilhou carne, assim não posso dizer que mentiu sobre a aliança. Mas fez uma pequena trapaça com o espírito da aliança. Você sabe, e eu sei.
Aproximei o dedo ainda sangrando aos lábios do Kitto, e os pintei de carmesim enquanto falava com seu rei.
— Se me deitar com ele, tem a possibilidade de converter-se em rei, rei de todo a Escuridão. Isso vale mais que uma aliança de seis meses.
Kitto piscou e realizou um pequeno movimento com a boca. Deslizei os dedos por seus lábios, entre os dentes, e seu corpo tremeu.
— Ah, não, não me convencerá com tanta facilidade, menina Merry, não com tanta facilidade. Dá-lhe a carne que teria que lhe haver dado antes, e consegue três meses mais de aliança. Depois desse tempo, suas batalhas serão só tuas.
Kitto começou a chupar meu dedo, como se fosse um bebê, com suavidade ao princípio, e logo cada vez com mais força, até que começou a me fazer mal.
— Está chupando meu dedo, Kurag.
— Eu se fosse você tiraria o dedo de sua boca antes de perdê-lo. Agora mesmo não está plenamente consciente, e os trasgos podem atravessar o ferro em uma mordida. Kitto tentou impedir que tirasse o dedo de sua boca, esforçou-se em aferrar-se a ele com a boca. Quando pude me liberar, tentou abrir os olhos.
— Kitto — disse.
Não reagiu ante seu nome, nem ante nenhuma outra coisa, mas estava mais quente e tinha começado a mover-se.
— Está se movendo e está mais quente — expliquei.
— Bem, muito bem. Eu já tenho feito minha boa ação, Merry. O resto depende de ti. Olhei diretamente ao fio da faca em lugar de olhar ao Kitto.
— Você vai se manter à margem e ver quem ganha, não é?
— Por que teria que nos importar quem ocupe o trono Escuro? O único que nos importa é quem ocupa o trono trasgo.
A profunda voz do Doyle nos interrompeu.
— E se os seguidores do Cel estivessem planejando a guerra com os luminosos? — Doyle se ajoelhou, e com uma mão agarrou com suavidade, mas firme, meu ombro. Acredito que estava me avisando para que não lhe interrompesse.
— O que está dizendo, Escuridão?
— Conheço muitas coisas dos sidhe que os trasgos desconhecem.
— Mas agora não está na corte.
— Tampouco estou surdo.
— Refere-te a que tem espiões.
— Eu não utilizei essa palavra.
— Bom, bom, joga os jogos de palavras que tanto você gosta, mas a mim me fale claro.
— Há alguns na Corte Escura que acreditam que Andais deve estar muito desesperada para ter nomeado Meredith herdeira dela. Acreditam que ter a um mortal no trono significa o final. Falam de ir à guerra com os luminosos antes de que todos eles se convertam em impotentes mortais. Nossa força provém de nossos reis e rainhas, tal como sabe.
— O que está me dizendo basta para que compartilhe minha sorte com a gente do Cel.
— Se os trasgos fossem os aliados de Merry, ninguém da Corte da Escuridão se arriscaria a lutar contra ela. Atrevem-se a desafiar aos luminosos só porque pensam que gozarão do apoio dos trasgos.
— E a nós o que nos importa que os sidhe se matem entre eles?
— Estão obrigados mediante a palavra, o sangue, a terra, o fogo, a água e o ar a apoiar ao herdeiro legítimo do trono da Escuridão em qualquer luta. Se Merry subir ao trono e os rebeldes escuros lutam contra ela enquanto você te limita a observar e a não fazer nada, então seu juramento se voltará contra ti.
— Não me assusta, sidhe.
— O Inominável está solto, você acha que é a mim a quem deveria temer? Há coisas muito mais terríveis que eu que surgirão das profundidades, descenderão do céu e procurarão o pagamento legítimo daqueles que, como você, não cumprem os juramentos realizados.
Era difícil saber ao olhar a imagem imprecisa, mas Kurag parecia preocupado.
— Ouvi suas palavras, Escuridão, mas Merry permaneceu em silêncio. É sua nova marionete?
— Estou cuidando de seu trasgo, Kurag, e tenho melhores forma de usar a língua que te dizer o que já sabe.
— Recordo meus juramentos, menina.
— Não, Kurag, não referia a isso. Possivelmente os sidhe não levem histórias ao mundo dos trasgos, mas você e eu sabemos que tem outras maneiras de saber das coisas.
Não mencionei em voz alta que os duendes menores da corte, alguns deles serventes, mas outros não, falavam com os trasgos, às vezes por um preço, às vezes pela sensação de poder que lhes produzia. Meu pai tinha dado sua palavra de não revelar nunca o sistema de espiões do Kurag, mas eu não tinha prometido nada. Podia desentupir o segredo dos trasgos, embora não o fiz.
— Fale claro, princesa, e não jogue com este velho trasgo.
— Falei tão claro como posso, Kurag, rei dos trasgos — respondi, e ele respirou fundo.
— Merry, menina, está claro que é a filha de seu pai. Essus era meu favorito entre todos os sidhe. Sua perda foi algo muito triste para todas as cortes escuras, já que ele era um amigo de verdade para muitos.
— Isto significa muito vindo de ti, Kurag. — Não lhe disse obrigado, porque nunca dá as graças a um duende mais velho que você. Alguns dos mais jovens não lhe dão muita importância, mas é uma velha proibição entre nós, quase um tabu.
— Cumprirá todos os juramentos realizados por seu pai?
— Não, com alguns não estou de acordo, e há outros que desconheço.
— Pensava que lhe tinha contado isso tudo — disse Kurag.
— Já não sou uma menina, Kurag. Sei que inclusive meu pai tinha seus segredos. Era jovem quando ele morreu. Não estava preparada para saber todas as coisas.
— É tão sábia como sensual; que pena. Às vezes, preferiria que fosse um pouco mais tola. Eu gosto que minhas mulheres sejam menos brilhantes que eu.
— Kurag, velho charmoso.
Ficou a rir, com uma risada de verdade e contagiosa. Eu estalei também em risadas, e à medida que os olhos começaram a desaparecer do fio, falou:
— Vou pensar no que me disse sua Escuridão, e no que você me disse, e inclusive no que disse seu pai. Mas deve sustentar adequadamente a meu trasgo ou dentro de três meses me liberarei de ti.
— Nunca te liberará de mim, Kurag, não até que me tenha fodido. Ao menos, isso é o que me disse quando tinha dezesseis anos.
Voltou a rir.
— Estava acostumado a pensar — disse ao final — que as coisas teriam sido mais seguras se tivesse aceito ser minha rainha, mas estou começando a acreditar que é muito perigosa para permitir te aproximar tanto a qualquer trono.
Capítulo 25
Kitto estava convexo sobre os escuros lençóis de cor vinho como se se tratasse de um fantasma. Os cachos negros ainda lhe faziam parecer mais pálido. Seguia tremendo os olhos, às vezes os entreabria um pouco, mas logo voltava a fechá-los; pareciam dois hematomas brilhando através da fina pele das pálpebras.
Toquei-lhe o ombro nu.
— Segue parecendo... quase transparente.
— Os duendes menores se desvanecem literalmente — disse Doyle, que permanecia de pé a meu lado diante da penteadeira com espelho.
Rhys se achava aos pés da cama e olhava para baixo ao pequeno trasgo.
— Agora não pode deitar-se com ninguém.
Olhei-lhe. Parecia aborrecido, possivelmente inclusive preocupado, mas isso era tudo.
— Não irá se queixar porque compartilhe meu corpo com um trasgo, não é?
— Faria-me algum bem? — perguntou.
— Não — respondi.
Ofereceu-me uma sutil versão de um sorriso.
— Então, será melhor que procure o lado positivo. Além disso, não acredito que tenha que me preocupar porque faça chacachaca com ele esta noite. Não fica muito dele.
— Merry tem que compartilhar carne com o Kitto para que volte a ser o mesmo — disse Doyle.
Sentei-me no bordo da cama, e Kitto rodou por volta de mim como o mar empurrado pela lua. Enrolou-se sobre mim com um suspiro que foi quase um gemido.
— Não pode me morder se não está consciente.
— Lhe dê poder como fez com a espada — sugeriu Doyle —. Faz que seja consciente de sua presença, igual a fez que Kurag soubesse de ti.
Olhei ao homenzinho. Parecia está dormindo, mas a pele seguia apresentando esse aspecto horroroso, como se fosse papel de fumar que ia desprender se em qualquer momento. Sujeitei-lhe o ombro com a mão. Aproximou-se um pouco mais de mim, mas não recuperou a consciência.
Inclinei-me sobre ele e coloquei a boca de forma que roçasse a pele de seu ombro. Havia tornado a levantar as defesas de forma automática ao terminar de utilizar a magia para contatar com o Kurag. Para mim, as defesas eram como respirar. O que me custava concentração era me liberar delas. Tinha aprendido a me proteger com as defesas quase ao mesmo tempo que a ler.
Mas isto não era um feitiço; era menos, e mais. As bruxas humanas o chamam magia natural, que significa uma capacidade natural que pode aplicar sem muito esforço nem treinamento.
Carreguei meu fôlego de magia e de energia, e soprei sobre ele para lhe atravessar a pele. Queria que despertasse, que me visse.
Os olhos do Kitto se entreabriram e nesta ocasião, sim me viu. Sua voz soou rouca:
— Merry.
Sorri-lhe enquanto lhe acariciava os cachos que caíam a um lado dessa cara tão pálida.
— Sim, Kitto, sou eu.
Franziu o cenho e fez uma careta como se algo lhe doesse.
— O que está acontecendo?
— Precisa tomar uma parte de minha carne.
Franziu ainda mais o cenho, como se não entendesse nada.
Tirei a minha jaqueta e comecei a desabotoar a blusa. Certamente, poderia ter aberto um pouco a blusa para deixar o ombro ao descoberto, mas não queria que a malha branca se manchasse de sangue. O sutiã que usava também era branco, mas estava bastante segura de que podia impedir que se manchasse com um pouco de cuidado. Kitto abriu os olhos como pratos.
— Carne? — perguntou.
— Deixa sua marca em meu corpo, Kitto.
— Nos colocamos em contato com o Kurag — explicou Doyle —. Disse que te está acontecendo isto porque a marca que fez em Meredith se curou. Sua energia deve te manter com vida longe da terra dos duendes e, por essa razão, precisa voltar a compartilhar carne com ela.
Kitto ficou olhando ao enorme homem.
— Não entendo.
Toquei-lhe a cara e a girei para que seus olhos me olhassem.
— É o que importa? Há algo de maior importância além do aroma de minha pele? Coloquei o pulso ao lado de sua cara, logo deslizei com cuidado o braço justo por diante de seus lábios, de forma que nossos corpos se tocassem. Terminei me pondo de joelhos junto à cama, e com o braço que tinha detrás de sua cabeça aproximei sua cara à parte superior do braço que tinha livre, justo por debaixo do ombro. Quando se está na cama com alguém, as mordidas são maravilhosas, inclusive um pouco de sangue; mas isto era em frio, e não estava preparada. Doeria-me, assim preferi que me mordesse em algum lugar onde houvesse um pouco de carne para amortecer a dor. Suas pupilas se transformaram em duas finas linhas negras. Seguia quieto, mas não estático. Tratava-se de uma imobilidade cheia de muitas coisas, raiva, necessidade, e fome, uma tremenda fome cega. Algo nesse instante, enquanto ele observava a branca carne de meu ombro, recordou-me que seu pai não era um simples trasgo, a não ser um trasgo serpente. Kitto cada vez se parecia mais a um pequeno mamífero, mas seguia havendo nele uma parte de réptil. Seguia sendo uma versão em pequeno de um guerreiro sidhe, mas ao ver seu corpo em tensão, recordou a uma serpente a ponto de atacar. Durante um segundo, tive medo; então, equilibrou-se sobre mim e me vi obrigada a lutar com todas minhas forças para não me afastar.
Foi como ser golpeada no braço com um taco de beisebol, como ser mordido por um cão enorme. O que me sobressaltou foi o impacto, embora não me doeu exatamente, não em seguida. O sangue lhe escorregava pelos lábios e caía sobre meu braço. aferrou-se com os dentes ao braço, como um cão tentando romper o pescoço de um rato, e eu gritei.
Separei-me da cama, tentei me separar dele, mas permanecia obstinado a mim, com os dentes cravados na carne. O sangue me escorregava pelo peito manchando o sutiã branco.
Procurei a respiração no mais profundo de mim, mas não gritei. Era um trasgo e os gritos e a resistência avivam mais sua sede de sangue. Soprei sobre sua cara. Manteve- se sujeito a meu braço, com os olhos fechados e a cara extasiada. Soprei com força sobre seu rosto, igual a sopra aos animais quando remoem. À maioria deles não gostam de nada que lhes soprem na cara, em especial sobre os olhos.
Consegui que abrisse os olhos. Vi como Kitto voltava a ter seus olhos, observei-lhe enquanto voltava a ser ele e o animal retrocedia. Então me soltou o braço.
Retirei-me para trás, até que me choquei contra o aparador; a dor era aguda e persistente. Tive a necessidade de insultá-lo, de amaldiçoá-lo, mas ao lhe olhar à cara, fui incapaz de fazê-lo.
O sangue lhe cobria a boca como se tivesse borrado o batom. Descia-lhe pelo queixo e lhe manchava o pescoço. Tinha os olhos abertos e voltava a ser ele, embora seguia lambendo os dentes manchados de sangre com essa língua bífida. Rodou pela cama e se refugiou no resplendor crepuscular.
Eu fiquei no chão sentada e sangrando.
Doyle se ajoelhou detrás de mim com uma pequena toalha nas mãos. Levantou meu braço, envolveu a toalha ao redor dele, não o suficientemente forte para deter a hemorragia, mas sim ao menos para recolher o sangue e evitar que acabasse por toda parte.
O aroma de flores encheu o ar, agradável mas forte. Doyle olhou para o espelho.
— Alguém pede permissão para falar através do espelho.
— De quem se trata?
— Não estou seguro. Niceven, possivelmente. Olhei o braço ensanguentado.
— Um pequeno espetáculo, não?
— Se não mostrar dor enquanto enfaixamos a ferida, não passará nada.
— Genial. Me ajude a me sentar no bordo da cama. — Levantou-me entre seus braços e me depositou sobre a cama —. Não necessitava tanta ajuda.
— Sinto muito. Não sabia quão ferida que estava.
— Sobreviverei.
Agarrei a toalha e a sustentei contra a ferida. Kitto se enrolou a meu redor, com a cara ainda manchada de sangue. Tinha revolto todo os lençóis, assim com o corpo tão pego ao meu não podiam ver-se os shorts que usava. Parecia nu. Acomodou-se contra mim, e seguiu lambendo-se com a língua bífida o sangue que lhe caía pelos lábios e por toda a boca. Sujeitou-se com as mãos a minha cintura.
Kurag podia dizer o que quisesse, mas agarrar carne desta forma era considerado sexo para os trasgos.
— Lhes responda, Doyle. Logo me dê algo que detenha a hemorragia.
Sorriu e efetuou uma pequena reverência. aproximou-se do espelho que cobrava vida e no que aparecia um homem com nariz em forma de gancho e a pele da cor azul das campânulas.
Tratava-se do Hedwick, o secretário social do rei Taranis. Não só não era Niceven, mas também além não ia gostar de nada o espetáculo.
Capítulo 26
Hedwick nem sequer me olhou enquanto falava. Estava repassando uma lista e permanecia com o olhar fixo no papel.
— Saudações, princesa Meredith NicEssus, da parte do rei supremo Taranis Thunderer. Informo-te que há um baile de pre — Yule dentro de três dias. Sua majestade espera verte ali.
Durante o discurso, não tinha olhado para a habitação. Quando comecei a falar, ele estava a ponto de limpar o espelho com a mão.
Eu disse a única palavra que provavelmente não esperava ouvir.
— Não.
Baixou a mão e olhou para a habitação com expressão contrariada. Logo pôs uma expressão de surpresa, e ao final de desgosto. Possivelmente era porque via o Kitto retorcer-se na cama. Possivelmente era porque eu estava coberta de sangue. Fosse o que fosse, não gostou de nada o que viu.
— É a princesa Meredith NicEssus, verdade? — Sua voz continha grande quantidade de desdém, como se não pudesse acreditar no que acabava de lhe dizer.
— Sim.
— Então, veremo-nos no baile. — De novo, levantou a mão para limpar o vidro.
— Não — repeti.
Baixou a mão e me olhou de cima abaixo.
— Ainda ficam uns quantos convites para entregar, princesa, assim não tenho tempo para representações dramáticas.
Sorri, embora podia sentir como meu olhar se endurecia. Entretanto, sob a raiva havia prazer. Hedwick sempre tinha sido um bola oficioso, e sabia que era o encarregado de entregar os convites a todos os duendes menores, às pessoas menos importantes. Outro sidhe entregava todos os convites sociais importantes. Que Hedwick me tivesse entregue o convite era um insulto; a forma em que a tinha entregue era outro insulto.
— Não estou sendo dramática, Hedwick. Não posso aceitar o convite desta maneira.
Ficou tenso e alisou com os dedos o gravata-borboleta branca. Estava vestido como se o século XVIII não tivesse acabado. Ao menos não usava peruca, por isso estive muito agradecida.
— O próprio rei supremo requer sua presença, princesa. — Soava como sempre, como se adular servilmente ao rei fosse a máxima honra.
— Sou escura e não tenho nenhum rei supremo — disse. Doyle se ajoelhou a meus pés com uma pequena cesta que fazia as vezes de estojo de primeiro socorros. Tínhamos começado a guardá-la à mão, embora as dentadas de outros guardas não estavam acostumadas a ser tão graves como esta.
O olhar do Hedwick se desviou para o Doyle, logo voltou a me olhar com o cenho franzido.
— É uma princesa luminosa.
Doyle me rodeou para situar-se do lado da ferida. Agarrou a toalha e aplicou uma pressão direta com ela.
Respirei fundo quando apertou a malha com firmeza sobre a dentada mas, além disso minha voz era normal. Utilizava o tom dos negócios, enquanto Doyle me curava a ferida e Kitto se enroscava em mim.
— Lembrou-se que meu título da Corte Escura substituiria a meu título da Corte Luminosa. Agora sou a herdeira ao trono da Escuridão e já não posso reconhecer a meu tio como rei supremo. Já que se reconhecesse seu título, poderia significar que também é o rei supremo da Escuridão, o que não é certo.
Hedwick tinha ficado completamente perplexo. Era muito bom cumprindo ordens, adulando aos que estavam por cima dele e desempenhando o papel de menino dos recados. Eu estava lhe obrigando a pensar. Não estava acostumado a fazer algo tão complexo.
Voltou a engomar a gravata-borboleta e, por fim, com um claro olhar de insegurança disse:
— Como queira, então. O rei Taranis requer sua presença no baile dentro de três dias. Para ouvir estas palavras, Doyle elevou a vista para me olhar. Sorri e sacudi ligeiramente a cabeça. Tinha o entendido.
— Hedwick, o único monarca que pode requerer minha presença é a rainha do Ar e da Escuridão.
Sacudiu a cabeça com obcecação.
— O rei pode requerer a presença de qualquer um com um título inferior ao dele, e você ainda não é uma rainha — pronunciou o «ainda» com grande ênfase —, princesa Meredith.
Doyle desenrolou a toalha para ver se a ferida tinha deixado de sangrar. Acredito que sim, porque tirou da cesta um anti-séptico para limpá-la.
— Se fosse a herdeira real do rei Taranis, então poderia me ordenar o que quisesse, mas não sou sua herdeira. Sou a herdeira da rainha Andais. Só ela pode me mandar, porque só ela é superior a mim.
Hedwick se estremeceu ante a menção do nome verdadeiro da rainha. Todos os luminosos eram como ele, nunca pronunciavam seu nome verdadeiro, como se tivessem medo de invocá-la se o faziam.
— Está dizendo que é superior ao rei? — Sua voz soava realmente zangada.
Doyle começou a limpar cuidadosamente a ferida com uma gaze; inclusive assim, os pequenos toques me enviavam ondas de dor através do braço. Apertei os dentes um pouco e tentei não mostrar o dano que me fazia.
— Estou dizendo que a hierarquia da Corte da Luz já não significa nada para mim, Hedwick. Quando era só uma princesa da Corte da Escuridão, poderia ter desfrutado da mesma fila na Corte da Luz. Mas vou ser rainha. Não posso possuir uma fila inferior em nenhuma outra corte se for governar.
— Há um grande número de rainhas na corte que reconhecem ao Taranis como seu rei supremo.
— Já sei, Hedwick, mas formam parte da Corte Luminosa e não são sidhe. Eu formo parte da Corte Escura e sou uma sidhe.
— É a sobrinha do rei — disse, ainda tentando procurar uma solução política ao problema que eu lhe tinha exposto.
— É agradável que alguém se lembre, mas seria como se Andais tivesse chamado a Eluned e lhe tivesse pedido que a reconhecesse como sua rainha superior.
— A princesa Eluned não tem nenhum laço com a Corte Escura. — Hedwick parecia terrivelmente ofendido.
Suspirei e falei com mais dureza enquanto Doyle terminava de limpar a ferida.
— Hedwick, tenta compreendê-lo. Vou ser a rainha da Corte da Escuridão. Sou a herdeira real. O rei Taranis não pode me ordenar que faça nada nem que vá a nenhum lugar, porque não sou sua herdeira real.
— Está se negando a se apresentar ante o requerimento do rei? — Seguia parecendo como se não confiasse em seus próprios ouvidos. Tinha que ter ouvido algo mal.
— O rei não tem nenhum direito de me ordenar nada, Hedwick. Seria como se te mandasse chamar o presidente dos Estados Unidos para lhe ordenar que se ajoelhasse ante ele.
— Está passando da raia, Meredith.
Deixei que o aborrecimento aparecesse refletido em minha cara.
— E parece que você não sabe até onde pode chegar, Hedwick.
— Está realmente se negando ante o requerimento do rei? — Sua voz, sua postura e sua cara mostravam surpresa, incredulidade.
— Sim, porque ele não é meu rei, e não pode ordenar nada a ninguém fora de seu próprio reino.
— Está dizendo que renuncia a todos os títulos que possui na Corte da Luz?
Doyle tocou o meu braço e me obrigou a lhe olhar. Seu olhar dizia: «Atenção, tome cuidado».
— Não, Hedwick, e que diga algo assim constitui um insulto deliberado. É um funcionário menor, um mensageiro, nada mais.
— Sou o secretário social do rei — disse tentando parecer o mais alto possível apesar de sua pequena estatura e de que estava sentado.
— Leva mensagens aos duendes menores e aos humanos não importantes. Todos os convites importantes se recebem através da Rosmerta, e você sabe. O envio de seu convite através de ti, em lugar de através dela, foi um insulto.
— Não merece as cuidados da duquesa Rosmerta.
— Sua mensagem está incompleta, Hedwick. Será melhor que volte com seu amo e aprenda uma nova. Uma que tenha possibilidades de ser bem recebida.
Assenti olhando ao Doyle. Levantou-se e pôs o espelho em branco ante o estupor do Hedwick. Doyle sorriu quase de orelha a orelha.
— Muito bom.
— Acaba de insultar ao rei da Luz e da Ilusão — disse Rhys, que estava pálido.
— Não, Rhys, é ele quem me insultou, e inclusive mais que isso. Se tivesse aceito o requerimento do Taranis, poderia ter interpretado que, quando eu alcançasse o trono Escuro, deveria reconhecê-lo como rei supremo dos escuros igual a dos luminosos.
— Poderia ter se tratado de um engano do secretário? — perguntou Frost —.
Possivelmente utilizou as mesmas palavras contigo que com o resto dos da lista.
— Possivelmente, mas embora assim fosse, segue sendo um insulto.
— Sim, pode ser que seja um insulto, Merry. Entretanto, podemos aguentar uns quantos insultos para nos manter afastados da ira do rei — disse Rhys, e se sentou no extremo mais afastado da cama como se lhe falhassem os joelhos.
— Não, não podemos — respondeu Doyle. Ficamos todos lhe olhando.
— Não o vê, Rhys? Merry dirigirá o reino rival do Taranis. Deve estabelecer as regras agora, ou ele a tratará sempre como se fosse inferior. Pelo amor de todos nós, não deve parecer débil.
— O que vai fazer o rei? — perguntou Frost.
Doyle lhe olhou e se observaram mutuamente como estavam acostumados a fazer.
— A verdade é que não tenho nem idéia.
— Desafiou alguém ao rei assim? — perguntou Frost.
— Não sei — respondeu Doyle.
— Não — respondi. Olharam-me.
— Da mesma forma em que se caminha perto de Andais como se fosse uma serpente a ponto de dar o bote, se caminha nas pontas dos pés perto do Taranis pela mesma razão.
— Não parece tão terrível como a rainha — disse Frost.
Encolhi-me de ombros, o que me doeu.
— É como um menino grande mimado que leva muito tempo fazendo o que lhe dá a vontade. Se não conseguir o que quer, agarra um manha de criança. Seus serventes e lacaios vivem temendo essas manhas de criança. É conhecido por matar acidentalmente durante seus chiliques. Às vezes se arrepende, às vezes não.
— E você acaba de lhe lançar uma baqueta de aço à cara — disse Rhys me olhando da outra ponta da cama.
— Algo que sempre me surpreendeu no temperamento do Taranis é que nunca descarrega sua raiva sobre alguém poderoso. Se de verdade sua raiva fora incontrolável, por que sempre a descarga sobre as pessoas que não podem defender- se? Sempre, sempre, suas vítimas são inferiores mágica ou politicamente, ou pessoas sem aliados fortes entre os sidhe. — Neguei com a cabeça —. Não, Rhys, sempre sabe com quem se mete. Não é algo inconsciente. Não me fará mal porque me mantive firme. Respeitará-me e possivelmente comece a preocupar-se comigo.
— Preocupar-se contigo? — perguntou Rhys.
— Teme a Andais, e inclusive ao Cel, porque Cel está louco, e Taranis não está seguro do que fará quando chegar ao trono. Provavelmente Taranis pensava que podia me controlar. Agora começará a duvidá-lo.
— É interessante que o convite tenha chegado depois de ter falado com Maeve Reed — mencionou Doyle.
— Sim, não é?
Os três trocaram olhares. Kitto se limitou a permanecer a meu lado, mais quieto agora.
— Não acredito que ir ao baile tivesse sido seguro para Meredith — disse Frost.
— Estou de acordo — repôs Doyle.
— Todos o estamos — confirmou Rhys. Fiquei olhando-os.
— Não tenho intenção de ir. Mas por que essas caras tão sérias?
Doyle se sentou no outro lado da cama, obrigando ao Kitto a mover-se um pouco.
— É Taranis tão bom em questões políticas como você?
— Não sei. Por quê?
— Pensará que te negaste a assistir pelas razões verdadeiras ou se perguntará se te negaste por algo que te disse Maeve?
Ainda não lhes tinha contado o segredo de Maeve e eles não tinham me perguntado isso. Certamente tinham se dado conta que tinha me obrigado a lhe prometer que não diria nada a ninguém, coisa que não tinha feito. Não o tinha compartilhado com eles porque era o tipo de segredo que pode te custar a vida. E agora, de improviso, procedente de um nada, chegava-me um convite da corte. Merda.
Olhei ao Doyle e a outros. Frost tinha se movido um pouco para reclinar-se sobre o aparador com os braços cruzados. Rhys seguia na cama. Kitto se tinha feito um novelo a meu redor. Olhei-lhes um a um.
— Não queria lhes contar o que me disse Maeve porque se trata de informação perigosa. Pensava que podia me limitar a evitar a Corte Luminosa, e que não passaria nada. Taranis não me envia um convite para nada há anos. Mas se fomos ter que lhe fazer frente, devem saber.
Contei-lhes a razão do exílio do Maeve. Rhys se limitou a levar mãos à cabeça mas não disse nada. Frost ficou uma pedra. Inclusive Doyle ficou sem fala. Foi Kitto quem disse algo:
— Taranis condenou a seu povo.
— Se for certo que é infértil, então sim, condenou a morte a todo seu povo — disse Doyle.
— Sua magia está morrendo porque seu rei é estéril — comentou Frost.
— É o que acredito que Andais teme que aconteça a Corte Escura. Mas ela teve um filho e Taranis nunca teve descendência.
— Por isso está tão interessada em que Cel ou eu tenhamos descendência — disse.
— Isso acredito — conveio Doyle —, embora guardou para si os motivos reais para lhes enfrentar a ti e ao Cel.
— Taranis matará a todos nós. — A voz do Rhys soava acalmada, mas muito segura. Ficamos todos lhe olhando. Começava a parecer uma partida de tênis, tanto olhar de um a outro.
Tirou a cabeça de entre as mãos.
— Está obrigado a matar a todos os que saibam que é estéril. Se os outros luminosos descobrirem que os condenou, exigirão que realize o grande sacrifício e seu sangue deverá correr para que sua gente recupere a fertilidade.
Ao ver a expressão de segurança do Rhys era difícil lhe discutir nada, sobre tudo porque eu pensava igual a ele.
— Então, por que segue Maeve Reed sã e salva? — perguntou Frost —. Julian nos disse que ninguém tentou matá-la em nenhum momento.
— Não posso explicar — respondeu Rhys —. Possivelmente seja porque não existe nenhuma forma de que possa contar-lhe a ninguém do país dos duendes. Nos reunimos com ela, mas ela não pode falar com ninguém mais a não ser que se encontre exilado como ela. Meredith não está exilada e pode falar com as pessoas que interessaria bastante saber. Gente que acreditaria e que atuaria em consequência. Ficamos todos sentados pensando. Doyle rompeu o silêncio.
— Frost, liga pra o Julian e lhe diga que possivelmente temos problemas.
— Não posso lhe dizer porquê — replicou Frost.
— Não — confirmou Doyle.
Frost assentiu e saiu para a outra habitação para usar o telefone. Fiquei olhando ao Doyle.
— Falaste com alguém mais sobre isto?
— Só com o Barinthus — respondeu.
— A terrina de água do altar — disse.
— Em uma época foi o senhor de todos os mares que rodeavam nossas ilhas, assim se contatarmos com ele através da água será virtualmente indetectável.
— Meu pai estava acostumado a falar com o Barinthus dessa forma. Como está?
— Como seu aliado mais forte entre os escuros, está realizando progressos ao formar alianças para ti.
Fiquei olhando os escuros olhos do Doyle.
— O que está me escondendo? Fechou os olhos e olhou ao chão.
— Antes não podia ver em minha cara.
— Estive praticando. O que me está escondendo?
— Tentaram matá-lo duas vezes.
— Senhor e Senhora, nos protejam. Algo grave?
— O suficiente grave para mencioná-lo, não tão grave para pôr sua vida em perigo realmente. Barinthus é um dos mais velhos. É parte do elemento água. Não é fácil matar à água.
— Tal como disse, Barinthus é meu aliado mais forte. Se lhe matarem, o resto irá para o ralo.
— Me preocuparia, princesa, e a muitos preocupa como será Cel quando for liberado de sua tortura. Têm medo de que, volte-se completamente louco e não querem a alguém assim no trono. Barinthus acredita que por essa razão os seguidores do Cel estão estendendo o rumor de que poluirá a todos com sua mortalidade.
— Parecem desesperados — eu disse.
— Não, a parte se desesperada é o debate sobre se declarará guerra a Corte Luminosa. O que não disse ao Kurag é que se debaterá a declaração de guerra sem importar qual de vocês dois ocupe o trono. Vêem a loucura do Cel, sua mortalidade e a debilidade da rainha como sinais de que os escuros estão desaparecendo, de que vão extinguir-se como povo. Há alguns que falam de ir à guerra pela última vez enquanto tenhamos ainda alguma possibilidade de vencer aos luminosos.
— Se sustentarmos uma guerra de grande escala em terra americana, os exércitos humanos intervirão. Violaria-se uma parte do tratado que nos permitiu entrar nos Estados Unidos — afirmou Rhys.
— Eu sei — respondeu Doyle.
— E acreditam que Cel está louco — acrescentou Rhys.
— Mencionou Barinthus quem é a pessoa que quer convencer a outros de ir à guerra com os luminosos?
— Siobhan.
— A chefa dos guardas do Cel.
— Só há uma Siobhan — disse Doyle.
— Demos graças ao Senhor e a Senhora por isso — comentou Rhys.
Siobhan era o equivalente do Doyle. Era pálida como um morto, seu cabelo parecia uma teia de aranha e não era muito alta. Fisicamente não se parecia em nada ao Doyle. Mas igual a quando a rainha dizia: «Onde está minha Escuridão? Me tragam minha Escuridão», e alguém sofria algum dano ou morria, assim fazia Cel com o Siobhan. Mas ela não tinha nenhum apelido; era, simplesmente, Siobhan.
— Odeio ser suscetível — eu disse —, mas recebeu algum castigo por seguir as ordens do Cel e tentar me assassinar?
— Sim — respondeu Doyle —, mas se passaram meses, Meredith, e seu castigo já acabou.
— Quanto durou o castigo? — perguntei.
— Um mês.
— Um mês por quase matar a um herdeiro real. Que classe de mensagem comunica a todos outros que me querem morta?
— Cel deu a ordem, Meredith, e ele está sofrendo um de nossos piores castigos durante meio ano. Ninguém acredita que sua mente sobreviva intacta ao castigo. Vêem isso como seu castigo.
— E estiveste alguma vez sob os atentos cuidados do Ezequiel durante um mês seguido? — perguntou Rhys.
Ezequiel era o torturador da corte, e levava sendo-o durante muitas vidas mortais. Mas ele era mortal. A rainha lhe tinha descoberto trabalhando para uma cidade humana e ficou tão maravilhada com seu trabalho que lhe ofereceu o posto.
— Nunca estive no Corredor da Mortalidade durante um mês, não, mas passei um tempo ali. Ezequiel estava acostumado a dizer que tinha que ter muito cuidado comigo. Tinha passado tantas centenas de anos com imortais que tinha medo de me matar por acidente. “Devo tomar cuidado contigo, princesa, tão delicada, tão frágil, tão humana...”
Rhys se estremeceu.
— Imita-lhe muito bem.
— Gostava de falar enquanto trabalhava.
— Sinto muito, Merry. Passaste um tempo ali, mas isso quer dizer que entende o que significou para o Siobhan passar um mês inteiro aos cuidados do Ezequiel.
— Entendo-o, Rhys, mas teria me sentido melhor se a tivessem executado.
— A rainha é muito reticente a perder sidhe nascidos nobres — afirmou Doyle.
— Sei, não há suficientes para esbanjá-los.
Mas não fiquei satisfeita com a solução. Se tenta matar a um herdeiro real, o castigo teria que ser a morte. Qualquer castigo menos severo, significa que alguém voltará a tentar. Chegados a este ponto, possivelmente Siobhan voltaria a tentá-lo.
— Por que ela quer entrar em guerra? — perguntei.
— Gosta da morte — disse Rhys. Olhei-lhe e se explicou:
— Não sou o único que foi uma divindade da morte nem sou o único que perdeu grande parte de seu poder com a criação do Inominável. Tampouco Siobhan foi seu nome sempre.
Então me lembrei.
— Diga ao Doyle o que descobriu na cena do crime hoje.
Contou-lhe a história dos deuses ancestrais e seus fantasmas. Doyle parecia cada vez menos e menos contente.
— Não vi o Esras fazê-lo, mas sei que a rainha o ordenou. Um dos acordos entre nós e os luminosos era que alguns feitiços não podiam voltar a realizar-se nunca. Este era um deles.
— Em teoria, se pudéssemos demonstrar que um sidhe de qualquer das cortes realizou o feitiço, acabaria isso com nosso tratado de paz? Doyle pareceu refletir sobre isso.
— Não sei. Segundo o acordo atual, sim, mas nenhum sidhe deseja uma guerra de tal calibre.
— Siobhan sim — disse —, e me quer morta. Poderia havê-lo feito ela?
Ambos efetuaram uma pausa para pensá-lo durante uns minutos. Kitto se limitou a permanecer em silêncio a meu lado.
— Ela quer ir à guerra, assim não teria nenhum problema em fazê-lo — concluiu Doyle ao final —. O que não sei é se teria suficiente poder.
Ficou olhando ao Rhys e este suspirou.
— Em uma época o teve. Demônios, inclusive eu poderia havê-lo feito. Possivelmente teria sido capaz de fazê-lo, mas isso significaria que se encontra aqui, na Califórnia. Não os envia longe de sua vista e espera ser capaz de controlá-los. Fora da vista de seu custódia mágica, limitam-se a rondar por aí assassinando as pessoas a torta e a direita. Não iriam atrás de Merry, não como um objetivo fixo.
— Está seguro disso? — perguntou Doyle.
— Sim, disso estou seguro.
— Não o teria mencionado Barinthus se Siobhan tivesse faltado na corte? — perguntei.
— Disse literalmente que ela é como um pé no... saco.
— Assim permanece ali — eu disse.
— Mas isso não significa que não tenha saído durante um tempo.
— Assim não poderia matar a Merry — repôs Rhys.
— É bom saber disso — disse. Logo, acrescentei — : Mas e se minha morte for só uma atividade secundária? O que aconteceria se a verdadeira intenção é conseguir que as cortes vão à guerra?
— Então, por que não deixar que os mais velhos efetuem a matança em Illinois, perto das cortes? — perguntou Doyle.
— Porque seja quem for quer uma guerra, não que a dissiminação dos sidhe — respondi.
— Certo — conveio Doyle —. Se a rainha descobrisse que alguém levou a cabo um dos feitiços proibidos, executaria-o com a esperança de que Taranis não tomasse represálias.
— E não tomaria — disse Rhys —, porque nenhum dos governantes quer uma guerra entre as cortes.
— Assim para começar sua pequena guerra, têm que ter com um plano — afirmei —. Pensa-o; se se demonstrar ante as cortes que se utilizou magia sidhe, mas não pode demonstrar-se quem o tem feito, começarão a levantar suspeitas em ambos os lados.
— E o Inominável — recordou Doyle —. Só um sidhe poderia havê-lo liberado. Só um sidhe poderia havê-lo mantido oculto ante ambas as cortes.
— Siobhan não é capaz de liberar o Inominável — afirmou Rhys —. Disso estou seguro.
— Espera — eu disse —. Não disse a rainha que Taranis se nega a ajudá-la para buscá- lo? Nega-se a admitir que um pouco tão horripilante possa ser uma parte de sua corte?
— Sim, ela disse — respondeu Doyle.
— E o que aconteceria se o liberou alguém da Corte da Luz? — perguntei —. Teríamos mais problemas em encontrar seu rastro?
— Possivelmente.
— Está dizendo que o traidor é um luminoso? — perguntou Rhys.
— Pode ser, ou pode ser que tenhamos dois traidores. Siobhan poderia ter conjurado aos deuses ancestrais e alguém da outra corte poderia ter liberado ao Inominável.
— Por que quereriam liberar o Inominável? — perguntou Rhys.
— Se pudesse controlá-lo — começou a dizer Doyle, quase como se estivesse falando para si mesmo —, poderia ter acesso aos poderes mais temíveis e velhos do país das fadas. Se pudesse controlá-lo, poderia ser impossível de pará-lo.
— Alguém está se preparando para a guerra — conclui.
Doyle respirou fundo e deixou escapar o ar pouco a pouco.
— Devo informar à rainha sobre os fantasmas dos ancestrais. Compartilharei também com ela algumas de nossas especulações sobre o Inominável. — ficou me olhando —. E até que estejamos seguros de que os deuses ancestrais não têm intenção de te fazer mal, ficará dentro dos limites dos amparos.
— Podem os amparos mantê-los afastados?
Franziu o cenho e ficou olhando ao Rhys, que se encolheu de ombros.
— Eu os vi soltos em uma batalha. Sei que os amparos podem manter afastado algo que possa fazer mal, mas não sei que quantidade de poder podem conseguir essas coisas. Sobretudo se lhes permitem alimentar-se. Possivelmente cresçam até serem capazes de atravessar qualquer amparo.
— Obrigado, isso me anima — eu disse.
Olhou-me com seriedade.
— Não pretendo te animar, Merry. Quero ser honesto. — Sorriu pensativo —. Além disso, todos nós daríamos nossas vidas para salvar a tua e é bastante difícil nos matar.
— Não acho que possa ganhar — eu disse —. Como enfrenta a algo invisível e intocável, mas que pode te ver e te tocar? Algo que pode absorver a vida pela boca, como quando bebemos na boca de uma garrafa. Como lutas contra isso?
— Para lhe responder me porei em contato com a rainha.
Doyle se levantou e se dirigiu ao lavabo, onde havia um espelho menor. Parecia que queria intimidade. Deteve-se ante a porta.
— Liga pro Jeremy e lhe diga que hoje não voltaremos para o escritório. Até que saibamos se se trata de uma ameaça direta contra Merry, protegeremos única e exclusivamente a ela.
— E do que viveremos? — perguntei.
Suspirou e esfregou os olhos como se estivesse cansado.
— Admiro sua determinação de não dever nada a ninguém. Inclusive estou de acordo contigo. Mas as coisas poderiam ser mais fáceis se aceitasse um pagamento da corte e só tivesse que preocupar-se com as questões políticas. Chegará um dia, Meredith, no que não poderemos ter um trabalho normal e corrente e sobreviver às intrigas políticas.
— Não quero ter que aceitar o dinheiro dela, Doyle.
— Sei, sei. Liga pro Jeremy, lhe explique que vais ficar com o Kitto. Quando lhe disser que Kitto está se desvanecendo e que você lhe salvaste, Jeremy entenderá.
— Não quer que saiba nada dos fantasmas ancestrais?
— É um problema dos sidhe, Meredith, e ele não é sidhe.
— Claro, mas se os sidhe vão à guerra, todos os duendes irão com eles. Minha bisavó era uma brownie. A única coisa que queria era permanecer perto de sua casa humana e cuidar dela, mas a mataram em uma das grandes guerras. Se forem ver-se envoltos na guerra, não deveriam sabê-lo de antemão?
— Jeremy está exilado da terra dos duendes, assim que ele não se verá envolvido.
— Não me respondeste — eu disse.
— Não, Meredith, não te respondi, mas não sei o que dizer sobre o que pensa. Enquanto não saiba o que dizer, não direi nada.
Depois destas palavras, afastou-se. Ouvi como se abria a porta do lavabo e como se fechava depois.
Rhys me deu uns tapinhas sobre o ombro.
— É muito atrevida ao sugerir que outros duendes além dos sidhe tenham direito a voto. Muito democrática.
— Não me trate como a uma menina, Rhys. Deixou cair a mão.
— Inclusive estou de acordo contigo, Meredith, mas nosso voto não conta muito. Quando chegar ao trono, possivelmente mude as coisas; entretanto, agora mesmo, em nenhum dos reinos da terra dos duendes não há nenhum dirigente sidhe que esteja de acordo em incluir os duendes menores em nossos debates de guerra. Lhes notificará quando decidirmos ir à guerra, não antes.
— Mas não é justo — protestei.
— Não, mas assim é como fazemos as coisas.
— Me dê um trono e possivelmente as coisas mudem.
— Mas, Merry, não nos obrigue a arriscar a vida para conseguir que seja rainha, só para que logo dê a volta às coisas e ponha a todos os sidhe contra você. Podemos lutar contra algum deles, mas não contra todos.
— Há muitos mais duendes menores que sidhe, Rhys.
— Mas a quantidade não é o que conta, Merry.
— E que conta?
— A força, a força das armas, a força da magia, a força da liderança. Os sidhe possuem todo isso, e por essa razão, minha bela princesa, levamos milênios governando a terra dos duendes.
— Tem razão — disse Kitto com suavidade.
Baixei a cabeça para lhe olhar, seguia pálido, mas não com essa espantosa cor transparente de antes.
— Os trasgos são grandes guerreiros. – eu disse.
— Sim, mas não grandes magos. E Kurag teme aos sidhe. Todos os que não são sidhe temem aos sidhe — afirmou Kitto.
— Não estou segura de que seja certo — repliquei.
— Eu sim — disse, e se aproximou ainda mais a mim me rodeando com todo o corpo, sujeitando-se com tanta força como pôde —. Eu sim.
Capítulo 27
A parte positiva da experiência quase mortal do Kitto foi que pude dormir. Sugeri que Doyle podia unir-se a nós, mas Frost se zangou ante tal proposta, assim Doyle esteve de acordo em não deitar-se na cama se tampouco o fazia Frost. Tentei explicar ao Frost que Doyle e eu fomos os dois que menos tínhamos dormido a noite anterior, mas ao Frost não importou o mínimo. Também lhe expliquei que só íamos dormir, de maneira que tanto importava quem dormisse comigo? Mas a nenhum deles lhes convenceram meus argumentos.
De modo que decidi voltar para a cama e embalar ao Kitto. Deixei-o tombar-se em meu lado da cama, de maneira que pudesse abraçá-lo sem ter que apoiar no colchão o braço que tinha me mordido. Tinha tomado uns calmantes, mas seguia doendo e pulsava como se tivesse seu próprio pulso. A primeira vez que me marcou não me tinha doído tanto. Possivelmente era um bom sinal. Esperava que sim. Odiava que algo tivesse que me doer tanto para nada.
Jeremy havia ficado furioso quando lhe dissemos que nenhum de nós ia voltar para o escritório, mas mudou quando lhe contei que Kitto tinha estado a ponto de morrer. Permaneceu em silencio durante um comprido momento, durante tanto tempo que, ao final, pronunciei seu nome com suavidade.
— Sigo aqui, Merry. Vieram-me algumas más lembranças à cabeça. Faz o que tenha que fazer para cuidá-lo. Já nos arrumaremos no escritório. Decidiram que Teresa tem que ficar toda a noite no hospital em observação. Está sedada, assim não sei o que vão observar.
— Ficará bem?
Duvidou um momento.
— Provavelmente. Mas nunca a tinha visto neste estado. Seu marido esteve me repreendendo por pô-la em perigo. Não quer que vá a nenhuma cena de crime mais. Não posso culpá-lo.
— Acha que Teresa estará de acordo com ele?
— Não sei se isso importa, Merry. Tomei uma decisão executiva. A Agência de Detetives Grei não fará mais trabalhos policiais. Sou um bom mago, mas não tenho nem idéia do que aconteceu ali hoje. Podia sentir os resíduos de um feitiço, mas nada mais. Contei à inspetora Tate o que havia sentido, mas o tenente Peterson não quis ouvir nada sobre o tema. Está convencido de que foi algo terrestre. Extraordinário, mas terrestre. — Jeremy parecia cansado.
— Acredito que você também precisa ir à cama e te abraçar a alguém.
— Oferece-te como voluntária? — ficou a rir —. A gulosa Merry quer conseguir a todos os homens duendes de Los Angeles.
— Se precisa vir e que te rodeie com os braços, é bem-vindo. Ficou calado um momento.
— Quase tinha esquecido.
— Esquecido o quê?
— Que não acontece nada se seus amigos lhe abraçarem de maneiras que os humanos consideram sexuais. Que não passaria nada se fosse a sua casa e nos abraçássemos enquanto dormimos.
— Se for o que necessita.
— Levo muito tempo entre humanos, Merry. Deixei que pensar como um trol. Não sei se poderia me colocar na cama contigo e não tentar ter relações sexuais.
Ante isso, não soube o que dizer.
Quando despertei, a luz que atravessava as cortinas estava desaparecendo. Seguia rodeando o corpo do Kitto, e ele continuava obstinado a mim tão forte como podia. Parecia que nenhum dos nós dois tínhamos nos movido em todo o dia. Fiquei quieta uns instantes, e notei quão duro tinha o corpo por não ter me movido em tanto tempo. A dor se atenuou, quase tinha desaparecido. A respiração do Kitto era profunda e regular. O que tinha me despertado?
Então voltaram a bater na porta com os nódulos e abriram antes de que pudesse dizer nada. Galen colocou a cabeça. Sorriu quando viu que estava acordada.
— Como está Kitto?
Levantei-me um pouco para me apoiar sobre um cotovelo e olhei ao trasgo. Deixou escapar um pequeno som e voltou a abraçar-se a mim de maneira que, de novo, não havia espaço entre seu corpo e o meu.
— Tem melhor aspecto e está quente.
Penteei-lhe os cachos com os dedos. Moveu a cabeça para trás empurrado pelos dedos, mas não despertou.
— Há algum problema? — perguntei.
Galen pôs uma cara que não consegui decifrar.
— Bom, não exatamente.
— O que acontece?
Entrou na habitação e fechou a porta detrás de si com delicadeza. Falamos em voz baixa para não incomodar ao Kitto. Galen se aproximou da cama e ficou de pé no bordo. Usava uma camiseta de manga larga cuja cor verde pálida destacava o tom verde da pele, e intensificava o verde mais escuro do cabelo. As calças que usava eram uns jeans lavados até ficar quase brancos. Estavam furados à altura da coxa, onde algumas fios brancos deixavam entrever o verde pálido da pele.
Percebi que havia dito algo, mas eu não o tinha ouvido, estava um pouco distraída.
— Desculpe, o que disse?
Sorriu e me mostrou a fileira de dentes brancos.
— O representante da rainha Niceven chegou. Diz que tem ordens estritas de recolher o primeiro pagamento antes de nos revelar o segredo de minha cura.
Meu olhar voltou a desviar-se para o buraco das calças, logo percorreu seu corpo para terminar encontrando-se com esses olhos verde grama. O calor de seu olhar se via correspondido com a tensão de meu corpo.
Kitto se moveu e abriu esses enormes olhos azuis. O bate-papo, o abrir e fechar de portas e o movimento não lhe tinham despertado; entretanto, a tensão de meu corpo reagindo ante o Galen sim tinha conseguido.
Expliquei-lhe brevemente que o homem de Niceven tinha chegado. Kitto não pôs nenhum inconveniente a que o semiduende entrasse na habitação. Sabia que ele não se importaria. Tinha perguntado por educação. A rainha não teria se incomodado em perguntar-lhe simplesmente porque não lhe importava o mínimo o que pensassem outros.
Galen se dirigiu para a porta e a abriu totalmente. Uma diminuta figura entrou batendo as asas. O corpo era do tamanho de uma boneca Barbie. As asas eram maiores que o corpo, a maior parte de cor amarela brilhante, com linhas e barras negras, e lunares azuis e vermelhos alaranjados. Aproximou-se da cama revoando por cima de mim. O corpo era uma versão ligeiramente mais pálida das asas amarela brilhante. Usava uma fina saia amarela, uma espécie de saia escocesa, como único traje.
— Saudações à princesa Meredith dos escuros da parte da rainha Niceven dos semiduendes. Sou conhecido como Sage, o duende mais afortunado ao ter sido eleito por sua alteza real como embaixador para as terras do oeste. — Sua voz parecia um tinido de sinos, como o som da risada. Fez-me sorrir e nesse instante soube que se tratava de encanto.
Emiti uns sons de reprovação.
— Nada de encanto entre nós, Sage, porque é um tipo de mentira.
Pressionou o diminuto peito com as mãos perfeitas, moveu as asas com mais rapidez, com o que me enviou uma baforada de ar à cara, e disse:
— Encanto eu? Seria capaz um humilde semiduende de dirigir encanto ante uma sidhe da Corte Escura?
Tinha tido muito cuidado em não negar o cargo imputado; limitou-se a esquivar a questão.
— Pode te desfazer do encanto, ou eu posso lhe tirar isso. Logo poderá voltar a lhe pôr isso mas em nossa primeira entrevista quero ver com o que, ou com quem, estou tratando realmente.
Aproximou-se um pouco mais, o suficiente para que o ar que levantava com as asas jogasse com as mechas que me emolduravam a cara.
— Minha encantadora dama, fere-me. Sou tal como está me vendo.
— Se for assim, te aproxime e me permita que comprove a verdade de suas palavras. Se for realmente tal como te vejo, quando tocar minha pele não mudará mas, se está me enganando, o simples roce comigo mostrará seu verdadeiro eu. — A própria formalidade das palavras constituía um tipo de feitiço. Tinha falado com sinceridade e tinha acreditado no que havia dito; portanto, era certo. Quando tocasse minha pele, veria-se forçado a aparecer tal qual era.
Sentei-me sobre a cama para poder estender o braço. Os lençóis escorregaram por meu corpo até deter-se na cintura. Kitto voltou a me rodear com o corpo, enquanto olhava com seus enormes olhos ao duende voador. Observava a diminuta figura como um gato fascinado por um pássaro. Sabia que os trasgos não sentiam ascos em comer uns ou outros duendes. O olhar da cara do Kitto dizia que possivelmente os semiduendes fossem um aprimoramento.
— Está bem Kitto?
Piscou e me olhou. Desviou o olhar do duende voador a meus peitos nus e esse olhar de fome mudou, embora muito pouco. Assustou-me a forma em que me olhava. Algo deve ter se refletido em minha cara porque Kitto escondeu o seu rosto em meu colo nu escondendo-se sobre os lençóis.
— O sabor da carne voltou para nosso pequeno trasgo um pouco descarado. — Doyle se encontrava na soleira da porta.
O pequeno duende girou no ar e realizou uma pequena reverência.
— A Escuridão da Rainha, que grande honra.
Doyle realizou uma mínima reverência, um simples movimento de cortesia.
— Sage, devo dizer que me surpreende te ver aqui.
O diminuto homem voador se aproximou batendo as asas até situar-se à altura dos olhos do homem, embora se manteve longe de seu alcance, como o tímido inseto que parecia.
— Por que te surpreende, Doyle? — Sua voz tinha deixado de soar como alegres campainhas.
— Não sabia que Niceven podia prescindir de seu amante preferido.
— Deixei que sê-lo, Escuridão, e você sabe bem.
— Sei que Niceven teve um filho de outro e se casou com ele, mas não pensava que aos semiduendes importassem tanto esses detalhes.
Sage voou um pouco mais alto, um pouco mais perto.
— Pensa que porque não somos sidhe não conhecemos a lei. — A raiva poderia ter parecido impotente procedente de um algo tão diminuto e com voz de campainhas, mas não foi assim. Era como o som dos sinos quando os ventos tormentosos as golpeiam, uma música espantosa.
— Assim — começou a dizer Doyle —, já não é o amante da rainha. O que estiveste fazendo então, Sage?
Nunca lhe tinha ouvido falar de forma tão discarada. Estava provocando ao semiduende deliberadamente. Nunca lhe tinha visto fazer algo assim, sem perseguir nenhum objetivo, assim não lhe interrompi. Entretanto, parecia ser algo pessoal. O que poderia ter feito este minúsculo homem à Escuridão da Rainha para que sentisse por ele uma aversão tão pessoal?
— Gozei da companhia de todas as mulheres de nosso reino para me agradar, Escuridão. — Voou até chegar quase a roçar a cara do Doyle —. E você, um dos eunucos da rainha, o que estiveste fazendo?
— Olhe para a cama, Sage. Me diga se não se tratar de um tesouro pelo que qualquer homem ou duende venderia sua alma.
O homenzinho não se incomodou nem em girar-se.
— Não sabia que você gostava dos trasgos, Doyle. Pensava que essa era a debilidade do Rhys.
— Pode ser quão obtuso queira, Sage, mas já sabe a que me refiro.
— Os rumores voam, Escuridão. Dizem que protege à princesa mas que não compartilha sua cama. Especulou-se muito sobre por que não tomava uma parte da bota de cano longo, quando seus companheiros o estavam repartindo entre eles. — O homenzinho voou tão perto do Doyle que quase lhe roçou a cara com as asas —. Os rumores dizem que possivelmente haja mais de uma razão pela que a rainha Andais nunca te levou a sua cama. Os rumores dizem que é um verdadeiro eunuco, não só por proibição.
Não podia ver a cara de meu guarda através do rápido bater das asas do semiduende. Dava-me conta de que as asas, que se pareciam com as de uma mariposa, moviam-se muito mais depressa e de uma forma que não era idêntica a das mariposas às que tanto se assemelhavam.
— Dou-te minha mais sagrada palavra — disse Doyle — de que desfrutei com a princesa Meredith da forma em que um homem desfruta com uma mulher.
Sage ficou imóvel no ar um segundo, então pareceu precipitar-se sobre o chão, como se tivesse esquecido de voar, embora em seguida se recuperou e voltou a subir para situar-se frente aos olhos do Doyle de novo.
— Assim já não é o eunuco da rainha, a não ser o amante da princesa. — Sua voz soou maliciosa, com um ligeiro vaio. Fosse o que fosse o que estava passando, definitivamente era algo pessoal.
— Tal como diz, Sage, os rumores se estendem como a pólvora, e os rumores dizem que Niceven tomou o exemplo de Andais. Foi seu amante preferido antes de que seu escarcéu de uma noite com o Pol a deixasse grávida. Quando foi proibida de te ter em sua cama, proibiu-te de te colocar na de ninguém mais. Se ela não podia desfrutar de seu amante preferido, ninguém o faria.
Sage emitiu um som que parecia o de uma abelha zangada.
— Deve te ter produzido um grande prazer esta mudança de posições, Escuridão.
— Não sei a que te refere, Sage. — Entretanto, o tom da voz do Doyle delatava que sabia perfeitamente do que estava falando o semiduende.
— Zombei de ti e dos teus durante séculos. Os grandes guerreiros sidhe, os colossais Corvos da Rainha, reduzidos a meros eunucos da corte. Vá que sim, zombei de todos vocês. Alardeava de minhas proezas e dos encantos de minha rainha como um sussurro maligno em seus ouvidos.
Doyle se limitou a lhe observar.
Sage se afastou um pouco dele realizando uma curva no ar como se se encontrasse no chão.
— Para que me servem agora meus encantos? O que tem de bom em vê-la em toda seu esplendor quando não posso tocá-la? — girou-se por volta do Doyle —. Pensei muito durante estes anos, Escuridão, em quanto te atormentei. Não acha que a ironia de tudo não me afeta porque não sou sidhe. — aproximou-se muito a sua cara e embora sabia que se tratava de um sussurro, o assobio encheu toda a habitação —. Suficiente ironia para afogar-se, Escuridão, suficiente ironia para morrer, suficiente ironia para me matar e me liberar dela.
— Então, te desvaneça, Sage, te desvaneça e acaba de uma vez por todas.
O pequeno duendezinho revoou para trás.
— Te desvaneça você, Escuridão. Te desvaneça e acabe contigo. Estou aqui cumprindo as ordens da rainha Niceven para atuar como seu delegado. Se desejas uma cura para o cavalheiro verde, terá que me aguentar. — A voz denotava uma importante ameaça. Galen se aproximou da porta ainda aberta da sala de estar.
— Desejo me curar, mas não a qualquer preço. — Seu habitual sorriso tinha desaparecido e tinha uma expressão sombria.
— Já estou farta — comentei com voz tênue e sossegada.
Todos se voltaram para me olhar. Eu os percorri com o olhar a todos, inclusive aos que não tinham participado da conversa, incluindo a Nicca, que nesse momento entrava pela porta do piso.
— Eu negociei com o Niceven, não Doyle. E só negociei a cura do Galen. O preço de dita cura é meu sangue.
Sage revoou por cima da cama, embora não por cima do Kitto e de mim.
— Um gole de seu sangue azul, uma cura para seu cavalheiro verde, tal como me indicou minha rainha. — Sua voz tinha deixado de ser o tinido de sinos. Agora era quase normal, como a voz de um homem, pequeno e magro, mas homem.
Os olhos escuros e negros pareciam os de um boneco. Não havia nada agradável neles, essa carinha de bonequinho não tinha nenhuma expressão.
Elevei uma mão e se posou sobre ela. Era mais pesado do que parecia, mais sólido. Lembrança que Niceven era mais ligeira, mais osso que músculo. Ela parecia um esqueleto e pesava o mesmo um saco de ossos. Sage parecia ter mais... carne, ou ao menos seu esbelto corpo contava com mais substância que a que parecia ter o de Niceven.
Deixou de mover as asas e as mostrou em todo seu esplendor, umas asas de mariposa preciosas. Movia-as lentamente enquanto me observava. Perguntei-me se as asas se moviam ao ritmo de seu coração.
O cabelo cor manteiga era grosso, liso, e lhe caía despenteado a ambos os lados da cara triangular. Escorregava-lhe sobre os ombros. Houve um tempo em que Andais lhe teria castigado por usar o cabelo tão comprido. Só os homens sidhe podiam usar o cabelo tão comprido como as mulheres. Era uma marca de status, de realeza, um privilégio.
As mãos não eram maiores que a unha de meu mindinho. Apoiou uma dessas mãozinhas sobre a cintura e a outra deixou pendurando. Tinha posto um pé um pouco na frente do outro, em atitude desafiante.
— Se nos concederem um pouco de intimidade, cobrarei o que me deve e te entregarei a cura para seu cavalheiro. — Soou mal-humorado.
Fez-me sorrir, e o sorriso desatou sua ira.
— Não sou um menino ao que se olhe com ternura, princesa. Sou um homem. — Realizou um gesto com ambas as mãos —. Pequeno segundo seus padrões, mas sigo sendo um homem. Eu não gosto que me olhe como olharia a um menino travesso.
Era quase exatamente o que tinha estado pensando, que lhe via muito menino aí de pé, tão pequeno, com essa atitude desafiante. Tinha-lhe tratado como se fosse um boneco ou um brinquedo, inclusive um menino.
— Peço te desculpas, Sage, tem razão. É um duende e é um homem, o tamanho não importa.
Franziu o cenho.
— É um membro da realeza e está se desculpando?
— Ensinaram-me que a verdadeira realeza significa saber quando se está equivocado e quando não, e em admitir a diferença; não em uma perfeição falsa.
Girou a cabeça para um lado com um movimento parecido ao dos pássaros.
— Ouvi de terceiras pessoas que trata a todos por igual, como fazia seu pai. — Seu vozinha parecia pensativa.
— É agradável saber que ainda se recorda de meu pai.
— Todos recordamos ao príncipe Essus.
— Sempre me alegra compartilhar a boa memória de meu pai com outros.
Sage me olhou de perto, embora não era o mesmo quando uma pessoa de maior tamanho lhe olhe aos olhos. Sua idéia do contato visual era essa. Toda sua cara parecia observar só a meu olho direito, embora acho que tinha visto meu sorriso e o tinha julgado de maneira correta, o que significava que podia ver toda minha cara. O que passava é que não estava acostumada a tratar com semiduendes. Meu pai sempre tinha sido muito respeitoso com eles, mas não tinha me levado a corte de Niceven, como tinha feito com a do Kurag e outras cortes.
— Nós respeitávamos ao príncipe Essus, princesa, mas o tempo não se detém e devemos avançar com ele.
Parecia quase triste. Olhou-me, com uma cara cada vez mais arrogante, e me custou não sorrir de novo ante essa figurinha tão cheia de si. Não era nem divertido nem gracioso, era uma pessoa como qualquer outra das da habitação. Mas resultava difícil acreditar de verdade.
— Nos concedam um pouco de intimidade para cumprir com os desejos de minha rainha. Logo poderão ter a cura para o cavalheiro verde.
Olhei ao Doyle e ao Galen, que seguiam na habitação; os outros estavam fora. Frost já negava com a cabeça.
— Meus guardas não me permitem ficar a sós com nenhum membro das cortes.
— Acha que deveria me sentir adulado porque me considerem uma possível ameaça?
— deu-se a volta em minha mão e assinalou com um dedo ao Doyle —. Escuridão me conhece há muito tempo e sabe do que sou capaz, ou ao menos isso eu acho. — Sage se voltou de novo para mim e me fez cócegas com os pés descalços na mão —. Mas sigo querendo intimidade para isto.
— Não — disse Doyle.
Sage o olhou de novo movendo uns centímetros sobre minha mão.
— Você deveria entendê-lo, Escuridão. Cumprir os desejos de minha rainha é o único que fica. Fazer exatamente o que diz é tudo o que tenho. O que farei esta noite nesta habitação é o mais perto que vou estar de uns encantos femininos em muito tempo. Não acredito que um pouco de intimidade seja pedir muito.
Os guardas não estavam nada contentes com isso, mas por fim, aceitaram partir. Só Kitto ficou obstinado a meu corpo, enterrado entre os lençóis.
— Este também — disse Sage assinalando ao trasgo.
— Esteve a ponto de desvanecer-se hoje Sage — respondi.
— Pois parece bastante recuperado.
— Seu rei Kurag, informou-me que meu corpo, meu sangue, minha carne e minha magia é o que mantém o Kitto com vida entre os humanos. Precisa estar em contato com minha pele durante mais tempo.
— Possivelmente lhe jogaria de sua cama por um de seus guerreiros sidhe.
— Não — disse Kitto com suavidade —. Desfruto do privilégio de estar presente enquanto têm relações. Vi as sombras que criam as luzes nas paredes, tão brilhantes que resplandeciam.
Sage voou até ficar frente à cara do Kitto.
— Trasgo, os teus comem os meus nas guerras.
— O forte come ao fraco. Assim é o mundo — respondeu Kitto.
— O mundo dos trasgos — corrigiu Sage.
— É o único que conheço.
— Agora está muito longe desse mundo.
Kitto se embalou entre os lençóis de maneira que só lhe viam os olhos.
— Merry é meu mundo agora.
— Você gosta deste novo mundo, trasgo?
— Estou quente, a salvo e leva minha marca no corpo. É um bom mundo.
Sage se manteve suspenso no mesmo lugar durante um momento, mas depois voltou a posar-se sobre minha mão.
— Se o trasgo der sua palavra mais solene de que tudo o que veja, ouça e sinta não o repetirá de maneira nenhuma a ninguém, então pode ficar.
Kitto repetiu a promessa palavra por palavra.
-Muito bem -disse Sage. Olhou-me de cima abaixo e, embora não media mais que meu antebraço, impulso de me tampar. Uma diminuta língua vermelha, como uma gota de sangue, lambia os pálidos. -Primeiro o sangue, logo a cura. -A forma em que disse: «cura» me fez arrepender de ter aceitado a que todos os guardas me deixassem a s6s com ele.
Era menor que uma boneca Barbie mas, nesse instante, tive medo dele.
Capítulo 28
Elevou o vôo desde minha mão e se dirigiu a meus peitos. Coloquei o outro braço entre ele e meu corpo. Posou-se sobre meu pulso, que separei um pouco do corpo para poder vê-lo com mais facilidade. Levantei o lençol até me cobrir o peito com a outra mão.
Pareceu desgostar-se.
— Vais negar sangue do coração?
— Vi o que fizeram a meu cavalheiro. Seria uma parva se te deixasse aproximar de carne tão tenra antes de ver com o que cuidado te alimenta.
Sentou-se sobre meu pulso com os tornozelos cruzados e as mãos a ambos os lados para apoiar-se no braço. Parecia pesar mais agora que estava sentado; não muito mais, mas se notava a diferença.
— Serei muito cuidadoso, doce dama. — Sua voz soava como os sinos movidos por uma brisa cálida do verão.
Tinha me parecido seus lábios uma diminuta flor de carmesim fazia só uns instantes?
Tocou-me a mão com essa boca suave como uma flor, e recostou o corpo ao longo de meu braço como qualquer que se recosta em um sofá. Percorreu o pêlo com seu boquinha e suas mãos. Um amante de maior tamanho os teria penteado com a boca ou com as gemas dos dedos, mas Sage jogava com eles como se estivesse tocando algum tipo de instrumento, embora produzindo uma música que só ele podia ouvir, mas que eu podia sentir. Jogou ao longo de minha pele, do braço, como se fosse de maior tamanho, não como era realmente.
Sacudi o braço e o lancei ao ar, de onde me zumbiu como uma abelha zangada.
— Por que fez isso? Nós estávamos indo bem.
— Nada de encanto, recorda — eu disse olhando-o com reprovação e me agarrando ao lençol.
— Sem encanto não será algo prazeroso para ti. — encolheu-se de ombros —. Pra mim é igual, porque Niceven terá o que quer de todas as formas, mas para ti, doce princesa, não será o mesmo. Permite que te economize parte da dor e o desconforto, e deixemos que seja algo agradável.
Se isto acontecido em um dia no que não me doesse a dentada do Kitto, haveria lhe dito que não, que agarrasse o sangue da rainha e se fosse. Os trasgos não podem realizar nenhum tipo de encanto, assim Kitto não tinha tido escolha; sem o encanto natural do sexo para suavizar a dentada, não havia nada que ele pudesse fazer magicamente. Sage me oferecia uma escolha.
Respirei fundo, deixei escapar o ar pouco a pouco e logo assenti.
— Só o encanto suficiente para fazê-lo agradável, mas nada mais, Sage. Se tenta usar mais encanto, chamarei os guardas e você não gostará de nada o que lhe farão.
Deixou escapar um som que teria parecido grosseiro, exceto que soou como uma diminuta trompetista, como se uma mariposa pudesse emitir um zurro.
— A Escuridão leva séculos esperando a que me passe da raia, embora seja um pouco, princesa. Sei bem, possivelmente melhor que você, o que me deve.
— Já me dei conta de que parece haver algo pessoal entre vocês dois, e não com outros.
— Pessoal? Bom, sim, poderíamos dizer que sim. — Sorriu e o arrumou para que fosse algo agradável e malicioso ao mesmo tempo, como se estivesse pensando em coisas terríveis que seria divertido fazer.
Poderia lhe ter perguntado o que era isso tão pessoal, mas não o fiz. Doyle me contaria isso ou ficaria sem saber. Não acreditava que o Doyle gostasse muito de inteirar-se de que lhe tinha perguntado sobre seus segredos a um duende que ele odiava. Uma coisa era conseguir informação de um amigo sobre outro amigo e outra muito diferente era falar de seus amigos com os inimigos das pessoas, e não terei que permitir que ditos inimigos falassem contigo escondido de seus amigos. Não era jogo limpo.
— Pode te alimentar, Sage, e pode utilizar um pouco de encanto para que não seja tão desagradável. Mas tome cuidado com o que faz.
— Tanto te preocupa sua segurança? Tem a seu trasgo justo ao lado. Só teria que me caçar ao vôo com essas garras, e poderia me fazer pedacinhos todos os ossos se te enganar.
— Os trasgos têm muito pouco que fazer contra um encanto forte, e você sabe bem.
Levou os braços ao peito e abriu muito os olhos.
— Mas eu só sou um semiduende. Não posso ter o encanto de um senhor sidhe. Por que ia me temer um trasgo?
— Os semiduendes têm um encanto muito poderoso, sabe você e sabe todo mundo. Arrastaram aonde quiseram a viajantes e a imprudentes perdidos durante séculos.
— Um pouco de água inundada nunca tem feito mal a ninguém — respondeu aproximando-se mais a mim.
— Não, a não ser que por acaso haja areias movediças debaixo dessa água. É um duende escuro, o que significa que se o viajante cair e se afoga nas areias movediças, lhe passará isso melhor.
Cruzou os braços, que eram mais finos que um lápis, sobre o peito.
— E o que acontece quando uma ilusão luminosa guia aos viajantes para terras pantanosas e caem em areias movediças? Não me diga que pedem socorro e lhes ajudam a sair com uma corda. Possivelmente deixem cair algumas lagrimas pelo pobre mortal, mas assim que já não saiam borbulhas do pântano, partirão assobiando e procurarão a outro viajante para conseguir que se perca. Possivelmente evitem essa parte concreta do pântano, mas não deixarão seu jogo simplesmente porque um pobre humano tenha tido má sorte e morreu.
Aterrissou sobre meu joelho coberto pelo lençol.
— É tão injusto conduzir a um caçador de mariposas à morte, tendo em conta que se ele me caçasse, me meteria em uma jarra e me cravaria em um painel me atravessando o coração com um alfinete?
— Tem encanto suficiente para escapar desse destino — eu disse.
— Sim, mas meus irmãos mais débeis, as mariposas e os insetos aos que nos parecemos os semiduendes, o que acontece com eles? Um idiota com um caça borboletas pode acabar com toda uma pradaria no verão.
Apresentado assim tinha razão, ou ao menos isso parecia.
— Está usando encanto agora?
— Uma princesa sidhe deveria saber quando a estão chavecando — respondeu, com os braços ainda cruzados.
— Muito bem — disse suspirando —, não é encanto, mas não posso estar de acordo em que te encontre em seu direito de conduzir a um entomólogo à morte só porque está recolhendo mariposas.
— Bom — disse Sage me olhando —, mas ao menos está um pouco de acordo, ou não teria me perguntado se usava encanto.
Voltei a suspirar. Tinha cometido o terrível engano de tomar aulas de entomologia na universidade. Nunca cheguei a entender que tinha que matar insetos para aprovar o curso. Lembrava um carrossel de mariposas apanhadas em uma jarra. Foi uma das coisas mais maravilhosas que vi. Vivas eram algo mágico; mortas eram como papel de fumar e palitos. Ao final, perguntei quantos insetos tinha que recolher para conseguir uma aprovação e capturei o suficiente, nenhum mais. Não havia nenhuma razão para matar mais insetos quando a universidade dispunha de uma completa coleção de quase todos os que estávamos liquidando. Foi a última aula de biologia que tomei em que tinha que recolher algo.
Fiquei olhando ao homenzinho com asas de mariposa posado sobre meu joelho e não pude encontrar nenhuma razão para rebater seus argumentos que não me fizesse sentir uma hipócrita. Eu não mataria a alguém por caçar mariposas, mas se tivesse umas asas de mariposa nas costas e passasse a maior parte da vida de flor em flor, possivelmente veria a morte de uma delas de maneira diferente. Possivelmente, se fosse do tamanho de uma boneca Barbie, matar pequenas criaturas seria quase tão terrível como matar pessoas. Possivelmente. Possivelmente não. Não estava o suficientemente segura para discutir nada.
Capítulo 29
Amaciei e coloquei bem os travesseiros situados detrás de mim para poder me recostar sobre eles. Tinha tido que dizer ao Kitto que se apartasse para poder mover os travesseiros. Estava obstinado a mim com as mãos e os braços, mas seus olhos permaneciam fixos sobre o Sage. Olhava ao semiduende como se não confiasse nele, ou como se esperasse que fosse fazer algo perigoso, ou possivelmente só se estava se perguntando o que saberia Sage. Pensasse o que pensasse, não era nada agradável. Sage parecia não dar-se conta do olhar tão pouco amistoso do trasgo. Limitou-se a manter-se no ar, batendo as asas, até que acabei de me pôr cômoda.
Tampei-me o peito com o lençol e o segurei para que não escorregasse. Alarguei a mão para ele, com a palma para cima para que Sage pudesse acessar às gemas dos dedos, porque era aí onde ia chupar o sangue. Niceven tinha bebido sangue desse lugar e, se era suficientemente bom para sua rainha, seria também bom para o Sage. Além disso, havia algo nele que me punha nervosa. Era ridículo sentir-se nervosa ante alguém ao que podia estrelar contra a parede de só um tapa, mas fosse uma tolice ou não, não podia negar como me sentia. Não o pus em questão, limitei-me a cobrir as partes mais vulneráveis e lhe ofereci a mão.
Sage se posou sobre meu pulso. Ficou de joelhos sobre a palma da mão e me rodeou com suas minúsculas mãos o dedo do meio. Acariciou-me isso, e o movimento era agradável, mas inquietante.
Devo ter ficado tensa, porque disse:
— Deste-me permissão para usar encanto, não é? Assenti porque não confiava em tudo de minha voz.
Sorriu, sua boca parecia uma diminuta pétala vermelha, e os olhos quentes, sinceros. Notei que me relaxava, como se uma mão levasse com uma carícia todo o nervosismo que havia sentido antes. Não lutei contra isso porque tinha dado minha permissão e a dor do braço tinha desaparecido. Não me doía nada.
Kitto se enroscou ao redor de minha cintura e deslizou uma perna em paralelo à minha. Soltei o lençol que estava sujeitando e acariciei os cachos do trasgo. O cabelo era incrivelmente suave. Afundou a cara em minha cintura e o roce de sua cara contra minha pele me fez vibrar. Acredito que qualquer um poderia ter me tocado nesse momento, e eu teria reagido ante as carícias. Olhei ao Sage.
— É muito bom — disse com voz rouca.
— Temos que ser — respondeu enquanto percorria com as mãos meu dedo acima e abaixo.
Tinha deixado de ser agradável; agora era erótico, como se houvesse nervos nesse dedo que nunca tinham estado aí antes. Sabia que se tratava do encanto, a magia natural dos duendes, mas era tão apetecível, tão apetecível...
Render-se ante o encanto de alguém, se dito encanto era tão sensual, podia ser uma experiência fabulosa. Os sidhe não o utilizam entre eles, porque usar encanto com outro sidhe em uma situação íntima se considerava um insulto grave. Mas os duendes menores o utilizavam frequentemente entre eles e quase sempre quando estavam na cama com um sidhe. Possivelmente se tratasse de insegurança. Possivelmente era só uma maneira de dizer: «Olhe o que posso te oferecer».
Sage tinha muito que oferecer.
Rodeou com os braços o dedo e foi como se estivesse me tocando em outras partes, em lugares muito mais íntimos. Depositou um beijo sobre a gema do dedo, que foi como o roce com a seda mais fina. Senti como se separavam seus lábios e os notei maiores do que em realidade eram. Tive que abrir os olhos e lhe olhar para me assegurar de que seguia sendo pequeno, e que permanecia ajoelhado sobre minha mão. Tinha me afundado nos travesseiros, o braço descansava sobre meu colo.
Kitto entrelaçou sua perna com a minha e notei como seu membro ia se endurecendo contra mim. Durante um instante, perguntei-me o que estava fazendo o encanto com o trasgo e por ele quando, de repente, Sage me cravou os dentes na carne. Mordeu- me como se estivesse mordendo uma maçã, com força, mas a dor se dispersou e quando começou a chupar o sangue da ferida, foi como se me percorresse com um fino fio vermelho da gema do dedo até a pélvis. Cada movimento de sua boca despertava sensações na parte inferior de meu corpo.
Alimentou-se, chupando cada vez mais depressa, com mais força, e foi como se acariciasse partes do corpo mais íntimas, cada vez mais depressa, com mais força. Senti como aumentava esse calor em meu corpo, que dizia que me encontrava no limite, no limite do prazer. Foi como se Sage tivesse me enrolado para me levar ao bordo de um precipício que não tinha visto, e tinha que escolher se saltava ao vazio desses braços que me esperavam.
Não podia pensar. Era incapaz de decidir nada. Tinha me convertido em sensações, com impulsos crescentes de prazer, com o estremecimento de um calor gradual, cada vez maior. Então, esse calor percorreu todo meu corpo, atravessou-me, rodeou-me, alagou-me. Gritei, mas não foi dor o que surgiu de meus lábios. Gritei de prazer e me agarrei com força aos lençóis, apanhada entre a boca do Sage ainda obstinada a meu corpo e o membro ereto do Kitto pressionado contra minhas pernas. O corpo do Kitto se colocou sobre o meu enquanto eu me agarrava à cama. Percorreu-me a cintura com as mãos, e logo foi subindo até chegar a acariciar o nascimento de meus seios. Tratou- se só de um roce, mas no estado em que me encontrava, pareceu muito mais.
Voltei a gritar e, quando Kitto deslizou seu corpo ao longo de minhas coxas e se apertou contra mim, sem entrar dentro de mim mas convexo em cima, ambos nus, ambos os ofegantes, não protestei.
Kurag havia dito que tinha que dar ao Kitto sexo de verdade e, para um trasgo, isso significava só uma coisa: coito. Mas também sabia que os trasgos não têm relações sexuais sem derramar sangue. Nesse momento, nada me fazia mal, nada me faria mal. Levantei a vista e vi o Sage revoando por cima de nós. Estava brilhando, com uma suave luz parecida com o mel, como se tivesse aceso uma vela em seu interior. Seus olhos ardiam como azeviches e as veias das asas resplandeciam com um fogo negro; as cores amarela, azul e vermelho alaranjado reluziam como umas vidraças atravessadas pela luz do sol mais radiante.
Ainda ficava um pouco de sentido comum para agarrar uma mecha de cabelo do Kitto lhe levantar a cabeça e aproximar sua cara à minha:
— Só sangre, Kitto. Que não me falte carne quando tivermos acabado.
— Seus desejos são ordens — sussurrou.
Soltei com violência a mecha de cabelo, e me olhou com uns olhos de cor azul profunda e as pupilas como duas finas linhas negras. Era como se pudesse me afundar no azul desses olhos; sabia que era o encanto do Sage ainda ativo, mas não me importava o mínimo. Abandonei às sensações, deixei que a ilusão se apoderasse de mim.
Kitto deslizou seu membro dentro de mim, e eu estava mais que molhada, mais que preparada. Seu membro parecia major do que eu sabia que era, encheu-me, expandiu- se dentro de mim. Apoiou-se sobre os braços, e fez pressão de forma que nossas pélvis se juntaram ao máximo. Durante um momento ficou muito quieto, com o corpo pego ao meu, unidos. Olhou para baixo, viu-me entregue a ele e uma só lágrima escorregou por sua bochecha.
Sabia o que os trasgos consideravam sexo, e não choravam na primeira união. Através do encanto vi o Kitto (através de toda a magia, vi-lhe de verdade) e levantei uma mão, uma mão que já se tornou branca e resplandecente. Recolhi essa única lágrima de cristal e fiz o que os trasgos fazem com os fluidos corporais preciosos: depositei-a em meus lábios. Bebi o sal de suas lágrimas, e ele emitiu um som do mais profundo da garganta, e começou a investir.
Com cada movimento, seu membro parecia crescer mais e mais, inchar-se, tocava partes de mim que nunca ninguém havia tocado, partes que se supunha que não podiam tocar-se. Observei-lhe enquanto entrava em meu corpo, e sua pele começou a brilhar, voltou-se de uma cor branca perolada. Voltou a investir e brilhou ainda mais, como se fosse feito de luz, e isso não era encanto. Permaneci tombada debaixo dele, com a pele me brilhando como a luz da lua. Meu corpo só brilhava assim quando me encontrava com outro sidhe. As cores começaram a dançar sob sua pele, como se uma multidão de arco íris dançasse dentro de seu corpo, aproximando-se da superfície como se fossem foguetes que atravessam uma água cristalina.
A única coisa que podia ver em seus olhos era uma chama azul depois de um cristal. Os cachos se moviam em sua cabeça como se um vento invisível jogasse com eles, e esse vento era Kitto. Ele era sidhe. Deusa nos ajude, ele era sidhe.
Alagou-me com um banho de luz e magia que me cegou por um instante. O único que podia ver eram brilhos de luz branca e arco íris passar por diante de mim. O único que podia sentir era meu corpo pego ao dele, como se o lugar pelo que estávamos unidos fosse a única parte de nossos corpos ainda sólida. Como se nos tivéssemos convertido em luz e em magia, e só o ponto de ancoragem de nossos corpos unidos nos mantivesse atados, vinculados, enlaçados. Então, inclusive isso se desmoronou quando gozou dentro de mim, e a única coisa que éramos era luz e magia e cor e uma onda de prazer atrás de outra. Era como se fosse possível converter-se em risada, em alegria, em algo que quisesse.
Recuperei a consciência pouco a pouco. Kitto tinha se desabado sobre mim. Seguíamos unidos, nossos corpos continuavam brilhando brandamente, como dois fogos que se unem em uma fria noite de inverno. Um calor que podia manter a salvo a casa, a família, tudo, durante as frias noites de inverno que estavam por chegar.
Ainda ficavam brilhos de cor percorrendo a habitação, como arco íris errantes procedentes de um caleidoscópio de mil cores e ampliadas pelo sol. Entretanto, não havia nenhum sol, nenhum caleidoscópio, só estávamos nós.
Bom, não só nós. Os guardas se encontravam de pé ao redor da cama, com as mãos levantadas e as palmas viradas para nós. Concentrei-me e pude ver a quase invisível barreira que tinham criado a nosso redor. Tinham erguido um círculo sagrado, um círculo de poder.
Doyle falou com voz profunda.
— A próxima vez que invocar tanta energia para levantar uma ilha do mar, Meredith, não viria mal um pequeno aviso.
Olhei-lhe com surpresa. Aproximou-se um pouco mais a mim.
— Produzimos algum dano?
— Pudemos pará-lo a tempo, embora certamente as notícias falarão de todo tipo de estranhas marés. Ainda fica por ver se a terra por si só permanecerá em seu lugar com uma liberação de tanto poder.
Kitto tinha escondido a cara entre meus peitos e sussurrou:
— Sinto muito.
— Não o sinta, Kitto. Somos nós os que lhe devemos uma desculpa. Te considerávamos um trasgo porque é meio trasgo. Nunca pensamos o que podia significar para ti ser meio sidhe.
Kitto levantou levemente a cabeça, o suficiente para olhar ao Doyle, embora logo voltou a escondê-la.
— Não entendo. — Falou com a boca pega a minha pele e inclusive depois de tudo o que tínhamos feito a sensação do sussurro contra meu peito me fez estremecer. Minha voz soou ainda um pouco entrecortada, mas lhe disse:
— É um sidhe, Kitto, um verdadeiro sidhe. Alcançaste seu poder.
Negou com a cabeça com a cara ainda afundada entre meus peitos.
— Não tenho nenhum poder.
Tomei o rosto com ambas as mãos e o levantei docemente para poder olhá-lo aos olhos.
— É um sidhe, um dos brilhantes. Agora terá poder.
Pôs uns olhos como pratos e pareceu assustar-se muito.
— O ajudaremos — disse Galen do extremo oposto da cama —. Lhe ensinaremos a controlar sua magia. Não é nada difícil; se eu posso fazê-la, qualquer um pode. — Sorriu, fazia uma brincadeira.
Entretanto, Kitto não parecia nada convencido.
Um ligeiro movimento me fez girar a cabeça para a parte mais afastada da habitação. Tratava-se do Sage, apoiado sobre um montão de travesseiros. Ainda brilhava ligeiramente como uma boneca dourada, carregada de jóias. As lágrimas lhe cobriam a cara, percorriam como um caminho de purpurina chapeada essa diminuta carinha. Ficou encantado.
— Maldita seja, princesa, e maldito seja este novo príncipe. Vislumbrei o céu e era realmente formoso, e agora aqui estou, na terra, abandonado. Até este momento não tinha entendido o que significava que vocês fossem sidhe e eu não.
Afundou a cara entre as mãos e chorou tombando-se feito um novelo sobre um travesseiro de seda, com as asas presas detrás de si, rígidas, quase esquecidas.
Kitto me tocou o peito, e me doeu um pouco. Dava-me conta de que tinha me mordido entre os peitos, um pouco para um lado, de maneira que parte da marca se encontrava no montículo que formava meu peito esquerdo. Não tinha doído até que me tocou. Não era uma marca tão profunda como a do braço, porque não tinha sido necessário. O sexo tinha compensado a violência. Teria que ter se curado de forma rápida, mas de alguma forma, soube que não seria assim. De alguma forma, soube que levaria sua marca sobre meu coração para sempre.
— Sinto muito — sussurrou como se tivesse lido meus pensamentos.
Sacudi a cabeça acariciando a sedosa pele de sua bochecha.
— Levo sua marca com honra, Kitto. Nunca o duvide.
Sorriu com acanhamento, logo se levantou sobre os braços, como tinha feito quando começamos a fazer amor. Então me fixei em que havia umas manchas de sangue sobre minha pele branca. Tinha-me feito mais mal de que pensava; mas depois o olhei e vi que o tinha marcado com as unhas do pescoço até a cintura. Uns sulcos de sangue percorriam a perfeição de sua pele e atravessavam os pequenos montículos sobre os que se encontravam seus mamilos. Tinha talhado em dois um deles, por isso essa zona sangrava mais que o resto.
Então me tocou dizer:
— Sinto muito.
Negou com a cabeça e seu sorriso já não era de acanhamento.
— Marcaste-me, e é o melhor elogio que qualquer um pode oferecer aos de minha raça. Que as marcas nunca desapareçam.
Percorri o bordo de uma delas com o dedo e se estremeceu.
— Agora está com os de sua raça, Kitto. Aqui e agora.
Doyle parecia saber o que eu queria, porque levantou a camiseta negra o suficiente para que Kitto pudesse ver as marcas de arranhões nessa pele negra.
— É um sidhe escuro — disse.
Separou-se de mim, seu corpo se relaxou com tanto bate-papo. Tombou-se a meu lado, com um braço pego a minha cintura. Observou aos homens situados ao redor da cama.
— O povo de minha mãe eram os luminosos. Abandonaram-me me acreditando morto às portas do reino dos trasgos. — Sua voz soava neutra, como se se limitasse a relatar algo que sempre tinha sabido.
Doyle baixou a camiseta e se girou para a cama.
— Nós não somos luminosos.
Não eliminou o círculo que rodeava a cama, mas sim o atravessou. Sujeitou ao Kitto pelo ombro com uma mão e o levantou. Kitto parecia assustado, mas não resistiu. Doyle depositou um casto beijo na testa do pequeno homenzinho.
— Já provaste o sangue de nossa corte e provaram a tua em troca. Agora recebe nosso beijo e seja bem-vindo entre nós.
Um por um, outros guardas se ajoelharam e beijaram ao Kitto na testa. Ao acabar, estava chorando e tremendo. E, quando o último de meus cavalheiros depositou o beijo sobre a testa do Kitto, Sage se elevou no ar e moveu as asas tão depressa que pareciam uma mancha de cor. Emitiu um som de chateio.
— Odeio-lhes a todos. — O rancor dessas palavras podia apalpar-se com toda facilidade —. Agora me deixem sair deste maldito círculo.
Doyle realizou uma abertura no círculo, o suficiente grande para que coubesse o semiduende. A minúscula figura voou através dela e Doyle voltou a fechar o círculo. Sage voou até a porta fechada do dormitório. Pensei que algum de nós ia ter que aproximar-se para abri-la, mas a porta se abriu sozinha, e Sage saiu apitando da habitação. Girou-se da escuridão da sala de estar, ainda brilhando levemente devido a toda a magia.
— A rainha recebeu seu pagamento, mas você ainda não tem a cura. Encontra-se em meu corpo, onde a rainha a introduziu. Minha intenção era te compartilhar com o trasgo para me assegurar seu silêncio, não que me deslocasse. — Bufou como um gato zangado —. Quem ia saber que os trasgos podiam ser sidhe? Teria que ter desfrutado eu entre seus braços, não ele. O que poderia ter feito com o agradável encanto não se fará nunca com um conserto desagradável. — Voltou a bufar, e se desvaneceu na escuridão.
A porta se fechou de uma portada quando saiu do apartamento. Ficamos todos olhando para ali.
— Quis dizer o que imagino? — perguntou Galen.
— A Niceven divertiria muito obrigar a uma princesa sidhe a dar prazer a um de seus homenzinhos — disse Doyle.
Levantei as sobrancelhas e perguntei:
— Como?
— É melhor não perguntar — respondeu, e logo olhou ao Kitto —. Esta noite já não temos que nos preocupar com nada mais. Encontramos novo sangue de nosso sangue, carne de nossa carne. Esta noite não nos lamentaremos de nada mais.
Realizamos uma modesta celebração. Pedimos comida a domicílio, o que Kitto escolheu, compramos umas garrafas de bom vinho, e celebramos até o amanhecer. Acabava de sair o sol quando um terremoto de 4,4 graus na escala Richter com epicentro no El Segundo afetou à área. Não há nenhum dano importante sob o El Segundo. Certamente, isso foi o que evitou que demolíssemos a cidade inteira. Durou só um minuto, e não causou danos realmente graves; ninguém morreu, embora houve alguns feridos. Mas acrescentou um giro totalmente diferente à idéia de sexo seguro.
Capítulo 30
No primeiro dia de confinamento no apartamento, escondida atrás dos amparos, chamou a secretária social principal do Taranis, dama Rosmerta. Estava vestida de rosa e ouro, cores que combinavam com sua pele dourada e o ouro escuro do cabelo. Era a personificação do decoro e a educação, um encanto em comparação com a má educação do Hedwick. Esclareceu-me que o baile em questão era o do Yule. Entretanto, vi-me obrigada a declinar seu convite. Se assistia a algum baile do Yule, seria ao da Corte Escura. Rosmerta me respondeu que, é obvio, compreendia-o perfeitamente.
Não sentiram nossa falta no caso do múltiplo assassinato porque Peterson tinha proibido que qualquer um da Agência de Detetives Grei interferisse no caso. Jeremy se zangou tanto que pediu a Teresa que não lhes dissesse o que tinha visto. Mas Teresa é uma pessoa muito disposta a ajudar aos outros, assim, cumprindo com seu dever, dirigiu-se à delegacia de polícia assim que saiu do hospital e depois de muito insistir, conseguiu que um inspetor redigisse um relatório sobre sua declaração.
Teresa havia sentido como as pessoas se asfixiavam, havia sentido como morriam e tinha visto os fantasmas, formas brancas, disse, sorvendo a vida dos ali presentes. A polícia lhe informou que todo mundo sabia que os fantasmas não faziam essas porcarias. Peterson entrou enquanto declarava e atirou o relatório ao cesto de papéis diante da Teresa. Em geral, a polícia espera a que a pessoa tenha partido para se desfazer do relatório.
Teresa conseguiu arrastar a seu marido fora da delegacia de polícia antes que o prendessem por agredir a um oficial de polícia. O marido da Teresa tinha jogado com os Rans, quando era da equipe de futebol americano de Los Angeles. Ray é como uma montanha firme, com um sorriso de ganhador e um apertão de mãos potente. Dispúnhamos de uma enorme quantidade de tempo para nós. Não, não nos limitávamos a ter relações sexuais todo o dia. Chateávamos ao Sage. Eu tinha pago o preço solicitado pela rainha Niceven, mas ainda não possuíamos o remédio para curar ao Galen. Por que Sage não nos tinha entregue a cura essa noite? Por que a transformação em sidhe do Kitto mudava tudo para o Sage? Falava a sério quando disse que precisava ter relações sexuais comigo para me entregar a cura? Sage se negava a responder a minhas perguntas.
Limitava-se a revoar pelo apartamento para evitar as perguntas, mas se tratava de um apartamento pequeno, inclusive para alguém do tamanho de uma boneca Barbie. A última hora do dia, lançou-se de uma das janelas e passou muito perto do Galen, que lhe golpeou com a mão como quando matas um mosquito. Não acredito que sua intenção fosse lhe pegar.
Sage caiu sobre o chão como morto. Permaneceu um momento imóvel, podia ver-se esse diminuto corpinho de um tom manteiga com as asas de brilhantes cores a modo de débil escudo. Pouco a pouco, começou a mover-se e se endireitou apoiando-se sobre um dos braços antes de me dar tempo a me ajoelhar junto a ele.
— Está bem? — perguntei-lhe.
Olhou-me com tanto ódio nesses minúsculos olhos que um calafrio me percorreu o corpo. Esteve a ponto de perder o equilíbrio enquanto se levantava, mas moveu as asas e conseguiu manter-se de pé. Rechaçou a mão que lhe oferecia para lhe ajudar.
Ficou de pé, plantado, com os braços em jarras, e observou a todos enquanto girávamos para ele.
— Se morrer, cavalheiro verde, a cura morrerá comigo. Mais te vale que recorde minhas palavras para evitar ser tão descuidado.
— Não era minha intenção te fazer mal — repôs Galen, embora havia algo em seus olhos que não era amável, não era cuidadoso, não era Galen. Possivelmente, os semiduendes tinham prejudicado algo mais que sua dignidade.
— Muito perto de uma mentira — disse Sage elevando o vôo e movendo as asas, que pareciam uma mancha.
Embora tinham o aspecto das asas de uma mariposa, não se moviam como tais. O movimento era mais parecido ao das asas de uma libélula. Quando se içou o suficiente para situar-se frente aos olhos do Galen, começou a mover as asas mais lentamente e se manteve a essa altura. Apesar de que o bater das asas não era tão rápido, tinha a suficiente força para agitar os cachos que rodeavam a cara do Galen.
— Não quis te pegar tão forte — se desculpou Galen com uma voz grave e cheia de raiva. Falava com uma dureza que não tinha detectado nunca antes nele.
Havia uma parte de mim que se lamentava por esse tom, mas outra sentia um pouco de esperança. Possivelmente inclusive Galen era capaz de aprender essas duras lições que necessitaria se algum dia se convertia em rei. Ou possivelmente só estava aprendendo a odiar. Se tivesse podido, lhe teria economizado essa lição.
Observei como os dois homens se olhavam mutuamente, ambos com ódio em seu olhar. Sage seguia sendo do tamanho de uma boneca Barbie, mas sua ira tinha deixado de ser divertida. Era aterrador que fosse capaz de provocar tanta ira no sorridente Galen.
— De acordo, meninos, deixem de jogo sujo. — Ambos se giraram e ficaram me olhando. Tentei aliviar a tensão sem muito êxito —. Tudo bem, como queiram, mas a que te referia quando disse que se morrer, a cura morrerá contigo?
Sage deu meia volta no ar, com os braços meio cruzados, como se não fosse capaz de cruzá-los totalmente e voar ao mesmo tempo.
— Referia-me, princesa, a que a rainha Niceven depositou um presente em meu corpo.
A cura para seu homem se encontra apanhada neste diminuto pênis. — Abriu os braços de par em par sem deixar de bater as asas.
— O que significa isto, Sage? — perguntou Doyle —. Quero uma resposta exata, nada de rodeios nem tolices. A verdade e nada mais que a verdade.
Voltou a dar meia volta no ar para poder olhar diretamente ao guarda. Sage poderia haver se limitado a olhar por cima do ombro, mas acredito que queria que Doyle soubesse que o estava olhando.
— Quer a verdade, Escuridão, a verdade e nada mais que a verdade?
— Sim — respondeu com uma voz grave, profunda, não de aborrecimento, mas com um tom que tinha feito empalidecer a mais de um sidhe.
Sage ficou a rir como um alegre tinido que quase conseguiu provocar um sorriso em minha cara. Era muito bom com o encanto, melhor do que eu pensava que podia ser qualquer semiduende.
— Oh, vai se zangar muito mais quando te contar o que minha querida rainha tem feito.
— Te limite a nos dizer isso Sage — disse —. Deixa de rodeios.
Girou-se e me olhou, batendo as asas tão perto de mim que podia sentir como o vento que levantava suas asas me acariciava a cara.
— Peça-me isso por favor. — O tom com o que pronunciou estas palavras as converteu em um insulto.
Galen ficou tenso e Rhys apoiou uma mão sobre seu ombro. Acredito que não era a única que não confiava muito na atitude do Galen ante os semiduendes.
— Por favor — disse. Tinha muitos defeitos, mas o falso orgulho não era um deles. Não me custou nada pedir por favor a aquele minúsculo homenzinho.
Sorriu, obviamente contente.
— Te direi isso porque me pediste com educação. — agarrou o pênis através da fina saia que levava —. A cura se encontra apanhada aqui, onde a depositou a rainha Niceven.
Pus uns olhos como pratos.
— Como pode vai entregar a Meredith a cura? — perguntou Doyle. Sua voz soou neutra, sem nenhum resquício de emoção. Sage sorriu, e inclusive em uma carinha não muito maior que um polegar, pude reconhecer a lascívia ao momento.
— Da mesma maneira que me entregou isso a rainha.
— Niceven não pode manter relações sexuais com ninguém que não seja seu marido — afirmou Doyle.
— Já, mas sempre existe a exceção que confirma a regra. Deveria sabê-lo, Escuridão, você melhor que ninguém.
Doyle pareceu ruborizar-se, embora devido à negrume tão pura de sua pele era difícil saber com certeza.
— Se a rainha Andais descobre que tem quebrado seus votos matrimoniais, sua rainha não passará nada bem.
— Os semiduendes nunca tinham cumprido essas regras até que Andais ficou ciumenta dos filhos do Niceven. Tem três filhos, três semiduendes puro-sangue. Só um deles era do Pol, mas Andais escolheu ao Pol para que fosse o companheiro permanente do Niceven. Andais inveja Niceven por ter três filhos, e toda a corte sabe.
— Eu teria muito cuidado pra quem conta isso — sentenciou Rhys. Não havia nenhum tipo de brincadeira em sua voz, só certeza.
Sage efetuou um gesto de reprovação com as mãozinhas.
— Pediu uma cura para seu cavalheiro verde e só existe uma. Ela se viu obrigada a deitar-se comigo para depositar o feitiço em mim. Andais esteve de acordo em que o cavalheiro verde devia curar-se a qualquer preço. E não parecia muito preocupada com qual ia ser esse preço.
— Não, não penso ter relações sexuais contigo — declarei negando com a cabeça. Sage se elevou no ar.
— Então, seu cavalheiro verde seguirá castrado.
— Isso já o veremos.
Comecei a me sentir raivosa. Estava acostumada a me controlar antes de perder os estribos. Nas cortes era algo que só podiam permitir aos mais poderosos. Eu nunca tinha sido tão poderosa. Possivelmente seguia sem sê-lo, mas isso ficava por ver.
— Doyle, chama à rainha Niceven. Preciso falar com ela. — A raiva podia detectar-se no tom de minha voz.
Sage se aproximou revoando, o suficiente para que notasse o vento que produziam suas asas sobre a cara.
— Não há nenhuma outra forma, princesa. A cura foi entregue para este feitiço, e não pode entregar-se duas vezes. Fiquei lhe olhando.
— Não sou uma parte de carne para o desfrute de qualquer homem pequeninho. Sou a princesa da Carne e herdeira ao trono Escuro. Não sou a puta de Niceven.
— Mas sim a do Andais — respondeu.
Estive a ponto de lhe dar um tapa, mas não estava segura da força que podia utilizar e não queria lhe fazer muito dano, ao menos não por acidente. Não, se de verdade machucasse ao Sage, queria que fosse de propósito.
— Doyle, me ponha em contato com o Niceven agora mesmo.
Não discutiu, limitou-se a dirigir-se para a porta do dormitório. Segui-lhe com outros caminhando detrás de mim. Sage continuou falando durante todo o percurso.
— O que vais fazer, princesa? O que pode fazer? É uma noite comigo um preço tão alto a pagar pela dignidade de seu cavalheiro verde? Não lhe fiz nenhum caso.
Niceven já se encontrava no espelho quando entrei no dormitório. Esse dia levava um vestido negro, tão transparente que seu corpo parecia cintilar através do tecido escuro. Uns discretos toques de lentejoulas negras adornavam o pescoço e as mangas. O cabelo branco lhe caía ao redor do corpo. A cabeleira lhe chegava quase a seus diminutos tornozelos, mas era um cabelo fino, fino e de aspecto estranho, como se não fosse corto. Recordava a um tecido de aranha balançando-se ao vento. As pálidas asas a emolduravam como uma cortina branca. As três damas de companhia permaneciam de pé detrás de seu trono; estavam vestidas só com minúsculos objetos de seda, como se acabassem de se levantar da cama. Cada um dos vestidos combinava com cada par de asas, rosa — vermelho, narcisista — amarelo e íris — púrpura. O cabelo que flutuava ao redor de suas caras estava despenteado por ter estado dormindo, igual ao que acontece ao cabelo de verdade.
O camundongo branco seguia a seu lado, adornado com um colar repleto de jóias.
Quando Niceven não levava coroa, nem jóias, significava que tinha tido que responder a nossa chamada com pressas.
— Princesa Meredith, a que se deve esta inesperada honra? — Sua voz continha um tom de mau humor. Ao que parece tinha tirado da cama a toda seu corte.
— Rainha Niceven, prometeu-me uma cura para o Galen se alimentasse a seu enviado. Cumpri minha parte do trato, mas você não cumpriu a tua.
Sentou-se um pouco mais erguida, com as mãos dobradas sobre o colo e os tornozelos cruzados.
— Sage não te entregou a cura? — Parecia realmente desconcertada.
— Não — respondi.
Desviou o olhar de mim para dirigi-la para o homenzinho, que tinha se elevado por cima do bordo da penteadeira, com o fim de que lhe vissem com facilidade do espelho.
— Sage, sobre o que é tudo isso?
— Negou-se a receber a cura — explicou enquanto abria as asas como dizendo: «não foi minha culpa».
Niceven voltou a me olhar.
— É certo?
— A sério pensou que ia consentir me deitar com ele?
— É um amante maravilhoso, princesa.
— Para alguém de seu tamanho, possivelmente, mas não para alguém do meu; tudo resulta um pouco ridículo.
— Ou possivelmente seja outra coisinha o que é muito ridículo — acrescentou Rhys da parte mais afastada do dormitório.
Olhei-lhe com dureza. Encolheu-se de ombros como pedindo perdão. Logo voltei a olhar para o espelho.
— Se o tamanho for o único problema, isso pode solucionar-se — disse Niceven.
— Majestade — interveio Sage —, não acredito que isto seja sensato. Meredith foi a única que jurou solenemente não revelar nosso segredo.
— Então, que o jurem todos — respondeu.
— Não vamos jurar nada — eu disse negando com a cabeça —. Se não me entregar agora a cura para meu cavalheiro, terá quebrado sua promessa. E já sabe que os que rompem as promessas não têm um grande futuro como políticos entre os duendes.
— A cura a tem aí. Só tem que recolhê-la. Não é minha culpa se te negar a fazê-lo. Aproximei-me um pouco mais ao espelho.
— O sexo é um favor maior que compartilhar sangue, e você sabe bem, Niceven. Sua cara pareceu afiar-se ainda mais, e os pálidos olhos lhe cintilavam com fúria.
— Excedeste-te, Meredith, esqueceste-te do meu título.
— Não, é você a que se excedeu, Niceven. Retém seu título de rainha graças à indulgência de Andais, e sabe bem. Contarei a minha tia que tem quebrado seu juramento se não entregar imediatamente a cura para o Galen.
— Não penso mudar o feitiço por uma raiva, não me importa quanto me provoque, Meredith — sentenciou Niceven —. Se revele, Sage.
— Minha rainha, não acredito que seja prudente.
— Não te perguntei o que acha. Ordenei-te que o faça. — inclinou-se por volta de diante no trono —. Agora, Sage. — Não fazia falta ser nenhum perito para dar-se conta da ameaça contida nessas palavras.
As asas do Sage se juntaram, depois se atirou pelo borda do penteadeira, sem voar, como se pretendesse suicidar-se, mas não se precipitou contra o chão. Cresceu. De repente começou a ser cada vez mais e maior. Era quase tão alto como eu, mais ou menos de um metro e meio. As asas, que tinham sido adoráveis quando era pequeno, pareciam agora uma vidraça, uma obra de arte a suas costas. Podia-se apreciar os músculos debaixo dessa pele amarelo manteiga e, quando girou a cabeça para me olhar, os olhos negros tinham adquirido a forma de amêndoas, e os lábios eram largos e carnudos. Dava-me conta de que havia algo exageradamente sensual nele enquanto observava como as asas ocupavam quase totalmente um dos lados da habitação.
— Não é adorável, Meredith? — perguntou Niceven com uma voz cheia de saudade.
— É um encanto — respondi suspirando — mas, dado seu tamanho atual, o sexo é um favor maior, já que se conseguir me deixar grávida, será rei. — Tive que me fazer a um lado para poder olhá-la diretamente sem que as asas do Sage me entorpecessem a visão —. Está tentando te fazer com o trono Escuro, Niceven? É esse seu objetivo? Não pensei que fosse tão ambiciosa.
— Não pretendo me fazer com nenhum trono — respondeu.
— Mentirosa e perjuradora — disse Doyle. Tinha permanecido todo o momento diante do espelho, como se quisesse que ela recordasse, sempre, que ele estava a meu lado. Olhou-lhe com cara de poucos amigos.
— Vigia suas maneiras, Escuridão.
— Entregue a Meredith a cura, tal como jurou que faria.
— A rainha Andais disse que o cavalheiro verde tinha que curar-se custasse o que custasse.
Doyle negou com a cabeça.
— Mas não teria imaginado nunca que terei que pagar este preço. Sempre houve rumores de que alguns semiduendes podiam aumentar de tamanho, mas eram isso, rumores, fábulas, ninguém tinha comprovado que fosse verdade há você agora. A rainha não estaria nada contente com um rei semiduende, especialmente um que é seu mascote em todos os sentidos.
Niceven bufou e ao fazê-lo, pareceu uma extraterrestre. Pensei que podia adivinhar o que era realmente se me concentrava o suficiente, embora seguro que não era nada humano. O camundongo branco estava escondido em uma esquina, como se temesse seu mau gênio.
— Pode escolher, rainha Niceven — disse —. Ou entrega a cura para o Galen tal como prometeu que faria, ou posso contar à rainha Andais suas maquinações.
Niceven me olhou com os olhos entreabertos.
— Se te entregar a cura, não contará a Andais nada de nada?
— Somos aliadas, rainha Niceven. Os aliados se protegem entre eles.
— Não estou totalmente de acordo em me aliar contigo só para poder beber seu sangue uma vez por semana. Se deite com o Sage e serei sua aliada.
— Me dê a cura para o Galen, leve meu sangue uma vez por semana e seja minha aliada, ou contarei a minha tia Andais o que tentaste fazer. Niceven já não parecia zangada, a não ser aterrada.
— Se não tivesse obrigado ao Sage que te mostrasse seu segredo, não teria nada com o que me chantagear.
— Pode ser que não, ou pode ser que inclusive uma pequena semente colocada no lugar equivocado se converta na causa de um grande problema.
— A que te refere?
— O pai do Galen era um pixie, que não são muito maiores que Sage em sua verdadeira forma. Houve mesclas muito mais estranhas nas cortes. Acredito que Andais consideraria sua petição de que um de seus homens me foda como uma grave violação de sua confiança.
Golpeou o braço da cadeira com força, e o camundongo correu a esconder-se inclusive as damas de companhia se tornaram para trás.
— Confiança, o que sabem os sidhe de confiança?
— O mesmo que os semiduendes — respondi.
Olhou-me com uma cara de verdadeiro ódio, mas já esperava isso, ao menos algo pelo estilo. Respondi a esse olhar com um sorriso.
— Pedi-te uma aliança para que você e os teus espiem para mim. — Fiquei olhando ao Sage, era quase tão alto como eu —. Entretanto, esta é a prova de que tem outras virtudes. Suas espadas não são simplesmente aguilhões de abelhas, a não ser muito mais.
Moveu-se irritada no assento, foi um pequeno movimento mas denotou com claridade seu nervosismo.
— Não sei a que te refere, princesa Meredith.
— Eu acredito que sim. Sigo desejando uma aliança, mas sua contribuição a dita aliança não se limitará a trabalhar como espião para mim.
— E até onde chegará? Sage é um só homem. Você dispõe de mais espadas de maior tamanho que lhe protegem.
Apoiei a mão sobre o ombro do Sage. Pegou um salto como se lhe tivesse doído, mas eu sabia que não. Apoiei-me em suas costas. Ficou tenso.
— É verdade o que diz a rainha, Sage? É sua espada pequeninha? — Olhei Niceven enquanto falava.
Cravou-me os olhos com irritação.
— Não se referia a isso, e sabe perfeitamente.
— Sei? — perguntei percorrendo com as gemas dos dedos o braço do Sage. Estremeceu- se ao acariciá-lo. Vi como o ciúme aparecia no rosto da rainha antes de poder controlá- lo —. Niceven, Niceven, não entregue a outros o que considera mais importante.
Estava zangada e podia ver-se claramente em sua expressão.
— Não sei a que te refere.
Acariciei o cabelo do Sage, que era suave como a seda de uma aranha ou como plumas aveludadas, mais suave que qualquer cabelo que houvesse tocado em minha vida.
— Nunca prometa renunciar ao que não pode te permitir o luxo de perder.
— Não te entendo, princesa.
— Pode seguir sendo uma cabeça dura, mas há algo que deve saber. Ofereço-te uma aliança, uma verdadeira aliança em troca de uma oferenda de sangue semanal. Deixará de espiar para o Cel e sua gente.
— Pode ser que o príncipe Cel esteja encerrado, princesa, mas Siobhan não o está, e ela é muito mais temível para alguns do que será em toda sua vida Cel. Me dei conta do trocadilho.
— Mais temível para alguns, mas não para ti.
Niceven assentiu com a cabeça.
— Considero a loucura do Cel muito mais temível que a crueldade de Siobhan. É possível aprender a tratar com alguém cruel, mas com um louco nunca se sabe como reagirá.
— Sua sabedoria é grande, rainha Niceven.
— Pela oportunidade de converter em rei dos escuros a um de meus homens, teria sido capaz de arriscá-lo tudo; mas por sangue, terei que pensar melhor.
— Não, uma aliança agora ou a rainha se inteirará de suas ambições.
Niceven me olhou com puro veneno.
— Contarei, Niceven, não pense que não. Uma aliança ou terá que responder ante a Andais.
— Acredito que não tenho escolha — disse.
— Não — lhe respondi.
— Aliança então, mas acredito que ambas o lamentaremos.
— Possivelmente — disse —, mas agora me entregue a cura para o Galen e por hoje teremos acabado com os negócios.
Niceven olhou para o Sage.
— Entregue a cura à princesa, Sage. Sage franziu o cenho.
— Como posso fazê-lo, minha rainha, se não me permite entregá-la tal como a recebi?
— Embora eu lhe entreguei isso através de um contato mais íntimo, só tem que introduzir seu corpo no seu para dar-lhe.
— Nada de sexo — disse.
Olhou-me durante um momento com cara de amargura.
— Um beijo, Meredith, um beijo e não estará obrigada a receber mais prazer dele.
Tive que me afastar um pouco para o Doyle para que Sage pudesse voltar-se. As asas pareciam encher todo o espaço entre a penteadeira e a cama. Quando se deu a volta, situei-me ante ele. Elevou as asas por cima dos ombros, de forma que pareciam uma jóia em forma de coração. O cabelo era como uma sombra, mais dourado que o suave amarelo de sua pele. Parecia quase irreal com tão atrativo, até que olhasse aos olhos. Os negros e brilhantes olhos delatavam não só raiva, mas também maldade. Então me lembrei de que se tratava simplesmente de uma versão de maior tamanho das coisas que levaram parte do corpo do Galen.
— Nada de dentadas e nada de sangue — eu disse.
Riu mostrando uns dentes muito bicudos para ser cômodo.
— Uma negociação bastante direta para uma princesa sidhe.
— Não quero que logo diga que me entendeu mal, Sage. Quero que isto fique muito claro entre nós.
Chegou a voz do Niceven do espelho:
— Não te fará mal, princesa.
Sage girou a cabeça para poder ver sua rainha.
— Um pouco de sangue dá um toque picante a um beijo — disse.
— Possivelmente para nós, mas fará exatamente o que te pede a princesa. Se houver te dito que nada de sangue, nada de sangue.
— Por que teria que cumprir as ordens de uma princesa sidhe? — perguntou.
— Não tem que cumprir as ordens da princesa, Sage, tem que cumprir as minhas. — Olhou-lhe com uma cara que conseguiu eliminar parte da maldade de seus olhos. Baixou um pouco os ombros e descendeu as asas até que roçaram o penteadeira.
— Farei o que minha rainha deseja. — Não parecia nada contente.
— Dou-te minha palavra de que não te fará nenhum dano — afirmou Niceven.
— Confio na palavra da rainha — respondi. Sage se girou para me olhar.
— Mas não na minha.
— Minha palavra é sua palavra — afirmou Niceven com uma voz que se transformou em quase um assobio.
A cara do Sage era tão antipática que soube que se a rainha a via, não ficaria nada contente. As costas do semiduende impedia que a visse e durante só um instante, um pouco parecido à dor atravessou seu olhar, me atreveria a dizer que algo humano. Desapareceu quase imediatamente, mas esse momento me proporcionou algo sobre o que refletir. Possivelmente a pequena corte de Niceven não era muito mais feliz que a de Andais.
Sustentei com ambas as mãos a cara do Sage, não por romantismo, a não ser para controlá-lo. Sua pele era suave como a de um bebê, incrivelmente fina e sedosa. Nunca tocado tanto a um semiduende, porque nunca tinha havido onde tocar. Inclinei- me para ele e se limitou a ficar plantado, com as mãos pendurando a ambos os lados. Esperou a que fosse eu a que acabasse o trabalho.
Girei a cabeça um pouco para um lado e duvidei, com a boca situada justo em frente da sua. Seus lábios eram mais vermelhos do que se supunha que deviam ser. Perguntei-me se possuiriam um tato diferente, como a textura de sua pele, então decidi pegar os lábios aos seus e obtive a resposta. Eram só lábios, mas brandos, suaves como a seda, como o cetim, e tinham sabor de fruta amadurecida.
Era interessante mas não havia magia. Separei-me dele com as mãos ainda lhe sujeitando a cara. Olhei ao Niceven dentro do espelho.
— Não havia nenhum feitiço, nenhuma cura.
— Entrou seu corpo no teu?
— Quer dizer a língua?
— A isso referia, já que parece tão determinada a não deixar entrar nada mais.
— Não — respondi.
— Beija-a, Sage, beija-a como é devido. Logo terá acabado tudo.
Sage emitiu um sonoro suspiro, todo seu corpo se moveu entre minhas mãos.
— Cumprirei os desejos de minha rainha.
Deslizou as mãos por meu corpo e me atraiu para si. Estávamos muito perto para seguir lhe sujeitando a cara com as mãos, mas quando decidi as deslizar para suas costas, topei-me com as asas e não soube por onde agarrá-lo.
— Debaixo, onde as asas se unem à costas — disse como se tivesse entendido o problema. Possivelmente já se encontrou na mesma situação com outras não semifadas.
Deslizei os braços por debaixo dos seus e percorri as costas até chegar ao lugar que tinha indicado. Além da incrível suavidade da pele, as costas parecia a de qualquer outro. Não deveria ter mais músculos para mover as asas?
Acariciou-me as costas enquanto aproximava a cara mais e mais. Beijamo-nos, mas esta vez me devolveu o beijo, ao princípio com delicadeza, mas logo me sujeitou com força entre seus braços e se introduziu em mim. Foi como se sua língua e sua boca fossem calor. Calor para encher minha boca, calor para escorregar por minha garganta, calor como uma corrente que fluía através de meu corpo, que se repartia por toda parte, até chegar à ponta dos dedos das mãos e dos pés, até me encher completamente, até conseguir me acender a pele com tanto calor.
A voz do Niceven foi o que me devolveu à realidade.
— Já tem a cura, princesa. Dá ela a seu cavalheiro verde antes de que se esfrie.
Sage e eu nos separamos, embora a nossos corpos não pareceu uma boa idéia. Nossas mãos percorreram os braços do outro até que nos separamos completamente e me girei para procurar o Galen. Galen tinha se aproximado de nós.
Aproximei-me dele, deslizei as mãos, quentes como brasas, por seus braços, e inclusive através das mangas de sua camisa pude sentir sua pele, pude sentir o calor percorrer seu corpo. Respirava depressa e com força no momento em que se agachou para receber o beijo.
Nossos lábios se tocaram e foi como se o calor lhe desejasse. Nossos lábios se selaram de maneira que não se pudesse perder nenhuma gota de calor. Lábios, língua, inclusive os dentes se alimentaram da boca do outro. O calor me alagou a boca quase como se fosse um líquido. Podia sentir uma espessura quente e doce, como se fosse mel quente, xarope quente que me enchia a boca e se derramava sobre a do Galen. Bebeu de minha boca, bebeu a magia que lhe entregava.
Levou o calor que tinha transbordado de meu corpo, tomou a magia de mim com a boca e com as mãos e com o corpo. O calor mágico se alimentou de calor de outro tipo diferente e, depois de emitir um pequeno gemido, dei um salto e me aferrei a seu corpo com as pernas. Gritou quando meu corpo tocou sua pélvis, mas não foi um grito de prazer.
Agarrou-me pela cintura e me depositou no chão em seguida. Com uma voz quase sem fôlego, disse-me:
— Não me sinto curado.
— Estará curado antes que anoiteça dentro de dois dias, ou possivelmente antes — afirmou Niceven.
Eu permanecia de pé, me balançando ligeiramente, enquanto tentava recuperar o fôlego. Quase não podia ouvir devido à força com a que me pulsava o pulso nas têmporas. Assim que cabia ao Doyle ser sensato.
— Quero sua palavra, rainha Niceven, de que Galen estará curado dentro de dois dias.
— Tem minha palavra — respondeu.
— Agradecemos.
— Não me agradeça, Escuridão, não me agradeça. — Então desapareceu, e o vidro voltou a ser um espelho normal e corrente.
Galen estava sentado no bordo da cama. Seguia ofegando, tentava recuperar a respiração mas me sorriu.
— Dentro de dois dias.
Tentei lhe tocar a cara, mas tremia tanto a mão que não o obtive. Agarrou-me a mão e a pôs contra a bochecha.
— Dois dias — eu disse.
Assentiu, ainda sorridente, com minha mão pega a sua bochecha. Mas não fui capaz de lhe devolver o sorriso; via a cara do Frost. Arrogante, zangado, ciumento. Pareceu dar- se conta de que estava olhando pra ele e se deu meia volta. Escondeu a cara porque não acredito que pudesse controlar sua expressão. Frost estava ciumento do Galen. Não era um bom sinal.
Capítulo 31
Essa noite era a noite do Frost, e ele parecia determinado a me fazer esquecer todos os outros. Estava lhe lambendo o estômago quando a voz de Andais nos chegou através do espelho como um pesadelo.
— Ninguém me impedirá que veja o que quero ver, e muito menos minha própria Escuridão. Tem um minuto, se não, farei-o a minha maneira.
Ficamos de pedra, logo tentamos nos pôr de pé, atamo-nos com os lençóis, e quase caímos.
— Minha rainha — disse Frost —, Doyle não está aqui. Agora mesmo iremos buscá-lo, se assim o desejar.
Emitiu um som grave, quase um grunhido.
— Esta noite tenho pouca paciência, meu Frost Assassino. Dou-te dois minutos para encontrá-lo e que libere o espelho, ou o farei eu por vós.
— Vou voando, minha rainha.
Em um segundo me plantei na porta.
— Doyle, depressa, a rainha está no espelho. Quer te ver. — Estava segura de que minha voz denotava a urgência que sentia, porque Doyle saltou do sofá, sem camiseta, com apenas as calças postas.
Entrou veloz no dormitório, com uma mão estendida, enquanto Frost suplicava só um minuto mais. Subi à cama o mais depressa que pude a fim de fazer lugar para que os dois homens coubessem diante do espelho. Doyle tocou um de seus lados e o vidro resplandeceu uma vez, e logo se esclareceu. Então apareceu algo no espelho. Não podia ver quase nada devido às duas largas costas que me tampavam a vista e o que conseguia distinguir não me animava a ter vontades de ver mais.
Havia uma tocha ardendo, paredes escuras de pedra, e se ouviam uns lamentos débeis e desesperados, como se o que emitia esses sons já não pudesse gritar mais, não pudesse falar mais, como se o único que ficasse fosse esse lamento desesperado. Quando era pequena sempre tinha pensado que os gemidos dos fantasmas deviam ser como os sons procedentes do Corredor da Mortalidade. Por estranho que pareça, os fantasmas não emitem esse tipo de ruídos. Ao menos nenhum dos que conheci.
— Como te atreveste a fechar o espelho, Doyle, como pudeste!
— Eu pedi ao Doyle que bloqueasse a entrada através do espelho — disse falando desde detrás de ambos os homens.
— Posso ouvir nossa pequena princesa, mas não a vejo. Se vamos brigar, eu gostaria de vê-la cara a cara. — Sua voz transbordava de ira, como se fosse uma tigela cheia até a borda de um líquido fervente e abrasador.
Os homens se separaram e apareci ante a rainha. Encontrava-me de joelhos sobre a cama, enredada entre os lençóis e os travesseiros. Andais também se fez visível. Estava de pé em metade do Corredor da Mortalidade, onde eu sabia que se achava. O espelho comunicador da zona de tortura se encontrava situado de forma que não pudesse ver nenhum dos instrumentos, mas Andais se assegurou de aparecer bastante aterradora.
Estava totalmente coberta de sangue, como se alguém lhe tivesse arrojado um cubo cheio em cima. Na cara tinha coágulos meio secos, e uma parte do cabelo estava cheia de sangue e coisas mais sólidas. Demorei um minuto em me dar conta de que não usava um vestido era tudo esse sangue. Estava tão coberta de sangue e restos que, a primeira vista, não tinha me dado conta de que estava nua.
Tomei ar pelo nariz e o deixei escapar pela boca. Repeti a operação umas quantas vezes enquanto Doyle enchia o silêncio.
— Tivemos muitas visitas, minha rainha. A princesa estava cansada de que os visitantes entrassem sem avisar.
— Quem mais te chamou, sobrinha?
Traguei saliva, deixei escapar o ar que tinha estado aguentando e falei com uma voz segura, nada tremente. Ponto pra mim.
— Sobretudo os secretários do Taranis.
— E o que queria esse? — Quase cuspiu a palavra «esse».
— Me convidar para o baile do Yule, mas rechacei seu convite. — Acrescentei o adendo precipitadamente, não queria que pensasse que pretendia humilhar a sua corte.
— Que arrogante, e que típico do Taranis.
— Se me permitir o atrevimento, minha rainha — disse Doyle com suavidade —, está de muito mau humor, apesar do fato de que obviamente estiveste desfrutando de algo. O que te desgostou tanto?
Doyle tinha razão. Tinha visto a rainha Andais voltar de sessões de tortura alegre coberta de sangue e cantarolando. Segundo seus gostos, tinha que ter estado acontecendo saltitante, mas não parecia nada contente.
— Peguei os que podiam ser capazes de liberar o Inominável ou de invocar aos ancestrais. Interroguei a todos eles a fundo. Se algum deles fosse culpado de algo, já teriam cantado. — Soava cansada, a ira parecia começar a desvanecer-se.
— Estou seguro, minha rainha, de que soubeste interrogá-los — disse Doyle. Ficou olhando-o durante uns instantes com dureza.
— Está rindo de mim?
Doyle efetuou uma reverência tudo o que lhe permitiu o espelho.
— Nunca, minha rainha.
Esfregou a testa com o dorso da mão manchando-a pele branca de sangue.
— Nenhum sidhe de nossa corte o tem feito, minha Escuridão.
— Então, quem foi se não um de nós? — perguntou Doyle, que não se levantou da reverência.
— Não somos os únicos sidhe, Doyle.
— Refere-te a corte do Taranis — interveio Frost. Andais desviou os olhos para ele e os entrecerrou de uma maneira muito pouco amistosa.
— Sim, a isso referia.
Frost realizou uma reverência adotando a postura do Doyle.
— Não pretendia ser desrespeitoso, majestade.
— Informaste ao rei do perigo? — disse Doyle desde sua postura encurvada.
— Nega-se a acreditar que alguém de seu preciosa corte resplandecente possa fazer algo assim. Diz que nenhum dos seus saberia como invocar aos deuses ancestrais mortos, e que ninguém tocaria ao Inominável, porque não tem nada que ver com eles. O Inominável é um problema dos escuros, e os deuses ancestrais são fantasmas, com o que também é problema dos escuros.
— Então, o que seria problema dos luminosos? — perguntei. Odiava ser outra vez seu centro de atenção, mas queria saber. Se nada disto era problema dos luminosos, qual era seu problema?
— Essa é uma pergunta excelente, sobrinha. Ultimamente, Taranis se negou a manchar as mãos com coisas importantes. Não sei o que lhe passa, mas parece viver cada vez mais e mais encerrado em seu pequeno mundo de sonhos, fabricado com bonitas ilusões e sua própria magia. — Cruzou os braços manchados e pôs cara pensativa —. Tem que ser alguém de sua corte. Isso é certo.
— O que podemos fazer para que o entenda? — perguntei.
— Não sei. Oxalá soubesse. — Agitou as mãos —. Mas vocês, por favor, se levantem. Os dois. Sentem-se na cama. Fiquem cômodos.
Frost e Doyle se ergueram e se sentaram na cama, um a cada lado de mim. Frost seguia nu, mas seu precioso corpo já não se encontrava no estado de excitação no que estava quando chamou a rainha. Sentou-se com as mãos sobre o colo, meio tampando as partes. Doyle ficou do outro lado, muito quieto, como um animal que tenta não mover-se para não atrair a atenção do predador. A escuridão não estava acostumada a me recordar a um animal assustado, de fato me fazia pensar no predador, mas essa noite a única predadora se encontrava justo diante de nós e nos olhava do espelho.
— Afasta as mãos, Frost. Quero te ver inteiro.
Frost duvidou durante um milésimo de segundo e logo levantou as mãos e as deixou cair a ambos os lados. Ficou ali sentado, nu, com o olhar encurvado, sem encontrar-se cômodo já com sua nudez.
— É realmente precioso, Frost. Tinha me esquecido. — Franziu o cenho —. Parece que ultimamente me esquecem muitas coisas. — O tom era quase triste, mas logo sua voz recuperou a força, voltou a ser a de sempre. Entretanto, havia algo no tom que nos inquietou, nos fez tremer, e era um tremor de preocupação pelo que se morava, não de prazer —. Hoje não me passei isso nada bem. Tratava-se de gente que respeitava, que eu gostava e que valorava, e depois disto nunca mais voltarão a ser meus aliados. A partir de agora me temerão, embora já me temiam antes, e o medo não é realmente o mesmo que o respeito. Parece que por fim estou entendendo. Me dêem alguma alegria para que apague a lembrança de esta noite. Me permitam lhes ver os três juntos. Me permitam observar como brilham as luzes de sua pele na noite como foguetes.
Ficamos os três sentados sem dizer nada durante um segundo.
— Eu já desfrutei de minha noite com a princesa — respondeu Doyle ao fim —. Frost deixou muito claro que não deseja compartilhá-la com ninguém esta noite.
— Pois se eu disser que a compartilhará, a compartilhará — respondeu Andais. Era muito difícil ir contra ela; com todo o sangue que lhe cobria o corpo e, ao ir nua, parecia um animal selvagem e temível. Entretanto, tentamos.
— Eu gostaria de pedir a sua majestade que não me obrigue a fazê-lo — disse Frost. Não parecia nada arrogante. Parecia quase assustado.
— Você gostaria? Você gostaria? O que você gostaria de me pedir?
— Nada — respondeu com a cabeça baixa de forma que o lustroso cabelo lhe tampava a cara — Nada de nada. — Pronunciou estas palavras com amargura e dor.
— Tia Andais — eu disse com um tom de voz suave como o que se utilizaria ao falar com alguém que está louco e que leva uma bomba atada à cintura —. Por favor. Não temos feito nada para te desgostar. Fizemos todo o possível para te agradar. Por que nos castiga então?
— Vai ter relações sexuais esta noite?
— Sim, mas...
— Vai foder com o Frost hoje ou não?
— Sim.
— Ontem de noite fodesse com o Doyle, certo?
— Bom, sim, mas...
— Então, que diferença há em que foda com os dois agora, esta noite? — Voltou a subir o tom de voz; aproximava-se outra vez ao limite de sua paciência.
Respondi-lhe em voz ainda mais baixa. Quanto mais se exasperava ela, mais tentava eu falar com calma.
— Nunca estive com os dois de uma vez, majestade, e um ménage Á trois deve fazer-se com muito cuidado para não danificar o jogo. Acredito que Doyle e Frost são muito dominantes para me compartilhar com comodidade.
— De acordo.
Parece-me que todos nós relaxamos e deixamos escapar o ar contido.
— Então, troca a um deles por um dos outros. Quero que me ofereça um espetáculo, sobrinha, me mostre algo para que me passe isso bem.
Tinha exposto o melhor raciocínio possível, inclusive ela o tinha aceito, e não nos tinha ajudado nada. Olhei a um homem e logo ao outro.
— Estou aberta a qualquer sugestão.
Esperava que Andais entendesse que a sugestão era a que homem devia convidar ou a quem devia substituir. E confiava em que os homens compreendessem que queria escapar dessa confusão fosse como fosse.
— Nicca é menos dominante — afirmou Frost. Tinha entendido minhas intenções?
— Ou Kitto — disse Doyle.
— Kitto já teve seu turno hoje, e Nicca não terá até dentro de duas noites. Acredito que todos estariam de acordo em adiantar o turno de Nicca antes de aceitar que Kitto desfrute de dois turnos em um dia.
— Estariam de acordo? — perguntou a rainha —. Por que têm que estar de acordo com nada? Por que é que não te limita a escolher o que gosta, Meredith?
— Não. Temos um calendário e estamos acostumados a cumpri-lo.
— Um calendário? Um calendário? — Começou a sorrir até quase a rir —. E como o tem feito?
— Por ordem alfabética — respondi tentando esconder o desconcerto que sentia.
— Fez um horário em ordem alfabética, alfabético.
Começou a rir. Ao princípio, era uma risada contida, mas logo se converteu em umas sonoras gargalhadas. Segurou a barriga as mãos, inclinou-se para frente e riu até chorar, até que as lágrimas se mesclaram com o sangue que a cobria. Em geral, este tipo de risada é muito contagioso; entretanto, esta não o era. Ou melhor dizendo, não era contagioso para nós. Podia ouvir como, detrás dela, havia outros que se uniram a sua risada. Certamente, Ezequiel e seus ajudantes pensavam que era muito divertido. Os torturadores têm um senso de humor bastante estranho.
Pouco a pouco, deixou de rir. Ao final, Andais voltou a erguer-se e se esfregou os olhos. Acredito que todos estávamos contendo a respiração, esperando com temor suas palavras. Conseguiu falar, embora seguia tendo problemas devido à risada:
— Acaba de me dar de presente o primeiro prazer verdadeiro do dia, e por isso não terá que cumprir as ordens que te dei. Embora ainda não entendo o que tem de mau em fazer diante de mim o que farão quando for. Não vejo qual é a diferença.
Como somos pessoas sensatas, ninguém lhe disse o que pensava. Acredito que todos sabíamos que se não entendia já a diferença, não haveria forma de explicar-lhe.
A rainha se foi e deixou aos três olhando para o espelho. Eu estava realmente pasmada, aturdida por nos haver liberado por um fio. A cara do Doyle não mostrava nada. Frost ficou de pé e gritou, emitiu um som com tanta raiva que ricocheteou por toda a habitação e fez que outros aparecessem com suas armas na porta do dormitório.
Rhys olhou ao redor do dormitório, desconcertado.
— O que passou?
Frost se girou para ele, nu, desarmado, mas havia algo temível nele.
— Não somos animais com a única missão de entretê-la!
Doyle se levantou e pediu a outros que se retirassem. Rhys me olhou e eu assenti. Foram-se e fecharam a porta com suavidade ao sair.
Doyle falou com muita delicadeza com Frost. Algumas partes soavam como um bate- papo para acalmá-lo, mas outras eram mais insistentes.
— Agora estamos a salvo, Frost — ouvi que lhe dizia —. Aqui não pode nos fazer mal. Frost levantou a cabeça e agarrou ao Doyle pelos ombros. As pálidas mãos eram como manchas brancas sobre a escura pele do outro.
— É que não entende, Doyle? Se não formos o pai do filho da Merry, voltaremos a ser os brinquedos de Andais, seus brinquedos descuidados. Não acredito que pudesse voltar a suportá-lo, Doyle. — Sacudiu-lhe, só um pouco —. Não posso voltar ali, Doyle, não posso! — Voltou a sacudir ao homem, para frente e para trás, para frente e para trás.
Imaginava que, em qualquer momento, Doyle se soltaria e se separaria dele, mas não o fez. Agarrou-se aos braços do Frost com as mãos. Foi o único movimento que realizou. Vi o brilho das lágrimas através do cabelo prata do Frost. Pouco a pouco, caiu de joelhos no chão, com as mãos deslizando-se pelos braços do Doyle, mas sem deixar de perder contato com ele. Colocou a testa junto à do outro homem, ainda sem soltá- lo.
— Não posso fazê-lo, Doyle, não posso fazê-lo. Prefiro morrer. Antes que fazê-lo deixarei-me desvanecer.
Depois de pronunciar essa terrível palavra, começou a chorar com intensidade, com umas lágrimas que pareciam proceder do mais profundo de seu ser. Frost chorava como se fosse partir-se em dois.
Doyle lhe deixou chorar e, quando se acalmou um pouco, ajudou-me a colocá-lo na cama. O tombamos em meio dos dois. Doyle se tornou de cara a ele, para protegê-lo com seu corpo, e Frost se entrelaçou comigo. Não se tratava de nada sexual e lhe abraçamos até que dormiu chorando. Doyle e eu nos olhamos através do corpo encolhido do Frost. O olhar do Doyle, seus olhos e sua cara eram muito mais horripilantes que a visão de Andais coberta de sangue e restos de carne.
Essa noite fui testemunha do nascimento de umas intenções alarmantes. Possivelmente fazia muito tempo que tinham nascido e eu não tinha me dado conta. Doyle tampouco pensava voltar. Vi-o em seus olhos. Abraçamos ao Frost e finalmente, também adormecemos.
Em algum momento da noite, Doyle se levantou da cama e nos deixou a sós. Despertei quando se ia, mas Frost não. Doyle me beijou com delicadeza na testa e logo depositou a mão sobre o precioso cabelo do Frost.
Falou com ternura e sua profunda voz soou como um ronrono, um pouco parecido a um murmúrio:
— Prometo-lhe isso.
Incorporei-me um pouco e lhe perguntei:
— O que lhe promete?
Limitou-se a sorrir, sacudiu a cabeça e partiu fechando a porta com suavidade ao sair. Me aproximei contra Frost, mas não fui capaz de conciliar o sono. As coisas que pensava não eram o suficiente agradáveis para poder dormir. A luz do amanhecer começava a brilhar justo quando consegui dormir.
Sonhei que me encontrava de pé junto a Andais no Corredor da Mortalidade. Todos os homens estavam encadeados às máquinas de tortura, mas não tinham sido golpeados nem torturados, de fato, eram o único que brilhava nesse escuro lugar. Andais tentava me convencer para que me unisse a ela na tortura. Eu me negava e não permitia que lhes fizesse nada. Ameaçava-me e a eles, mas eu seguia me negando a participar e meu rechaço conseguia, de alguma forma, mantê-los a salvo da rainha. Neguei-me até que as choramingações do Frost me despertaram. Estava chorando em sonhos, lutava contra algo. Despertei-o com toda a delicadeza que pude, lhe acariciando o braço. Voltou do sonho com um grito que lhe atravessou a garganta, e com o olhar perturbado.
O grito atraiu a outros homens à porta do dormitório. Fiz-lhes um sinal com a mão para que se fossem, enquanto abraçava com força ao Frost.
— Não passa nada, Frost, não passa nada. Só foi um sonho.
Negou com a cabeça e falou com raiva enquanto mantinha a cara escondida em meu corpo e me abraçava tão forte que doía.
— Não foi nenhum sonho, é real. Lembro-me. Não o esquecerei nunca.
Doyle foi o último a sair. Enquanto fechava a porta, olhei a esses olhos escuros e soube o que lhe tinha prometido.
— Não permitirei que lhe façam mal, Frost — disse.
— Não pode fazer isso — respondeu.
— Prometo-te que não deixarei que lhes façam mal, a nenhum de vocês. Levantou a mão e me tampou a boca com os dedos.
— Não prometa, Merry, isso não. Não te comprometa a fazer algo que não poderá fazer. Ninguém mais o ouviu. Perdôo-lhe isso. Nunca o disse.
A cara do Doyle era só uma forma escura na porta quase fechada.
— Mas eu disse, Frost, e falei sério. Converterei os Summerlands em um terreno baldio antes de permitir que voltem com ela — eu disse.
Assim que acabei de pronunciar estas palavras, produziu-se um som, bom, não pareceu um som, mas sim pareceu como se o próprio ar contivesse a respiração. Foi como se nesse preciso momento a realidade se congelasse para logo seguir discorrendo, mas um pouco diferente a como tinha sido antes.
Frost saiu da cama e não quis me olhar.
— Vais conseguir que lhe matem, Merry.
Caminhou para o lavabo sem olhar atrás. Uns segundos depois, ouvi o ruído da ducha. Doyle abriu a porta o suficiente para me saudar. Levou a pistola à têmpora, como quando se efetuam as saudações militares, mas armado. Assenti para lhe devolver a saudação. Então me enviou um beijo com a mão livre e fechou a porta.
Não entendi completamente o que acabava de acontecer. Entretanto, sabia o que significava. Acabava de jurar que protegeria aos homens frente a Andais. Tinha notado como o mundo mudava, como se o próprio destino se cambaleou. Alga tinha mudado no discorrer tão bem orquestrado do universo. Tinha mudado porque tinha me comprometido a proteger aos homens. Essa única afirma ao Tinha conseguido mudar o destino, embora ainda não sabia se para bem ou para mau e não saberia ate que fosse muito tarde para fazer nada a respeito.
Capítulo 32
Estávamos falando sobre o rito da fertilidade para Maeve Reed quando o espelho voltou a soar; entretanto, nesta ocasião era o tangido evidente de um sino, uma chamada forte e clara, quase como a música de uma trompetista.
— Alguém novo — disse Doyle, que tinha se levantado. — Voltou uns minutos depois com uma estranha expressão.
— Quem é? — perguntou Rhys.
— A mãe de Meredith. — Parecia desconcertado.
— Minha mãe. — Levantei-me de um salto, caíram os apontamentos que tinha estado tomando, e ficaram pulverizados pelo chão. Agachei-me para recolhê-los, mas Galen me tirou da mão.
— Quer que te acompanhe?
Pensei em todos os homens, e ele era o único que sabia o que era o que realmente pensava de minha mãe. Estive a ponto de dizer que não, mas logo mudei de opinião.
— Sim, eu adoraria que me acompanhasse.
Ofereceu-me o braço e sujeitei a ele com a mão, em um gesto muito formal.
— Quer que te eu acompanhe também? — perguntou Doyle.
Passeei o olhar pela habitação e tentei decidir se queria impressionar a minha mãe ou se pretendia insultá-la. Com os homens que havia na sala de estar, podia fazer qualquer das duas coisas, inclusive ambas.
Realmente, não havia espaço para todos no dormitório, assim decidi que me acompanhassem Galen e Doyle. Não necessitava amparo real frente a minha própria mãe. Ao menos, não o tipo de amparo que podiam me proporcionar os guarda-costas. Doyle entrou primeiro para lhe dizer que a princesa chegaria ao cabo de um momento. Galen e eu esperamos junto à porta durante uns minutos e logo entramos. Escoltou- me até nos situar frente ao espelho, depois se sentou na colcha de cor vinho para não incomodar.
Doyle permaneceu de pé, embora se situou no lado do espelho mais afastado. Não se importava em incomodar.
Plantei-me ante o vidro. O cabelo lhe caía em ondas grosas e perfeitas por debaixo da cintura, embora não podia saber ao olhar a figura que apareceu no espelho. Levava um elaborado penteado, com o cabelo recolhido em um coque alto de diferentes capa. Tinha utilizado umas folhas fabricadas com ouro trabalhado para segurá-lo recolhido. Ocultavam quase totalmente a cor morena tão comum de seu cabelo. Não era porque ninguém puro-sangue sidhe tivesse o cabelo moreno, porque alguns sim o tinham. Acredito que escondia o cabelo porque era exatamente como o de sua mãe, minha avó meio brownie, meio humana. Besaba, minha mãe, odiava que lhe recordassem suas origens.
Seus olhos eram de um bonito marrom simples, de cor chocolate com pestanas muito, muito longas. Tinha uma pele bonita. Sempre tinha passado horas se cuidando com banhos de leite, natas, loções, mas nada do que pudesse fazer lhe deixaria a pele da cor branca pura como a luz da lua ou dourado quente como a luz do sol. Nunca teria uma pele de sidhe, nunca. Sua irmã gêmea mais velha, Eluned, tinha a pele brilhante. Entretanto, era a pele de minha mãe, mais que o cabelo ou os olhos, o que delatava, a primeira vista, que não era uma sidhe pura.
O vestido cor nata estava repleto de adornos dourados e cobre. O decote quadrado realçava seu peito, dois montículos cor nata. Há uma razão pela que as sidhe são tão aficionadas aos estilos que engrandecem o peito: simplesmente é que não têm muito. Levava uma elaborada maquiagem e estava, como sempre, muito bonita. Nunca tinha me visitado sem esquecer-se de me recordar que era encantadora, uma princesa da Luz, e eu não. Eu era muito baixa, com muitas formas humanas, e meu cabelo, Minha deusa, era vermelho sangue, uma cor que só podia encontrar-se na Corte Escura.
Olhei-a, observei sua beleza e me dei conta de que poderia ter sido humana. Havia humanos altos e esbeltos, e isso era a única coisa que ela tinha para demonstrar que era mais sidhe que eu.
Estava muito arrumada para falar com a sua própria filha. O cuidado com o que se polia me fez perguntar se sabia o pouco que eu gostava. Então me dei conta de que quase sempre estava assim, arrumava-se com esmero.
Eu usava um par de shorts e uma camiseta de alça que deixava o umbigo aparecendo. Os shorts eram pretos, a camiseta era vermelho sangue, e a pele resplandecia entre ambas as cores. O cabelo que chegava aos ombros começava a adquirir essas ondas que tinha quando o deixava comprido. Não se tratava das maravilhosas ondas do cabelo de minha mãe ou de minha avó, mas seguiam sendo ondas. O cabelo era só dois tons mais escuro que o vermelho sangue da camiseta.
Não usava nenhuma jóia, meu próprio corpo era já uma jóia. Minha pele brilhava como marfim gentil; o cabelo resplandecia como granadas, e os olhos, tricolores. Olhei a minha preciosa mas muito humana mãe, e tive uma revelação. Começou a queixar-se de meu aspecto quando comecei a crescer. Ah, o cabelo, sempre tinha odiado meu cabelo, ao que sempre tinha criticado; mas os piores insultos começaram quando fiz dez ou onze anos. Então se sentiu ameaçada. Nunca até este momento em que se encontrava sentada com sua elegância luminosa, enquanto eu estava com roupas casuais de rua, tinha me dado conta: eu era mais bonita que ela.
Observei-a, dediquei-me a observá-la durante um momento, porque era como rescribir uma parte de minha infância no tempo que duram uns batimentos de coração.
Não era capaz de recordar a última vez que a tinha visto. Possivelmente ela tampouco, porque durante um momento ficou me olhando e pareceu surpreendida, inclusive atônita. Acredito que, de alguma forma, convenceu-se de que eu não era tão brilhante. Recuperou-se com rapidez, porque é, acima de qualquer outra coisa, uma importante política da corte. Pode manter uma expressão de serenidade ante qualquer situação.
— Filha, que alegria te ver.
— Princesa Besava, a Noiva da Paz, saudações.
Tinha omitido nossos laços de sangue de propósito. A única mãe verdadeira que tinha tido tinha sido vovó, a mãe de minha mãe. Se tivesse sido ela, lhe teria dado as boas- vindas, mas a mulher sentada nessa cadeira forrada de seda era uma desconhecida para mim, e sempre o tinha sido. Pareceu sentir saudades e lhe custou recuperar a expressão de neutralidade, mas suas palavras tinham sido bastante agradáveis:
— Princesa Meredith NicEssus, saudações da Corte da Luz.
Tive que sorrir. Tinha-me insultado como revanche. NicEssus significava filha do Essus. A maioria dos sidhe perdem dito sobrenome ao chegar à puberdade, ou ao menos aos vinte e poucos, quando se manifestam seus poderes mágicos. Devido a que os meus não se manifestaram aos vinte e poucos, tinha sido NicEssus até os trinta e tantos. Mas as cortes sabiam que, por fim, tinha aparecido. Sabiam que possuía um título novo. Esqueceu-se disso de propósito.
Tudo bem. Afinal, eu tinha sido mal educada em primeiro lugar.
— Sempre serei a filha de meu pai, mas já não sou NicEssus. — Pus uma expressão pensativa. — É que meu tio, o rei, não te contou que se manifestou minha mão de poder?
— É obvio que me disse — respondeu com um tom defensivo e pesaroso ao mesmo tempo.
— Ah, bom, me desculpe. É que como não utilizaste meu novo título, pensei que não sabia.
Não se incomodou em esconder seu aborrecimento nessa encantadora e cuidada cara durante um instante; logo sorriu, com um sorriso como seu amor por mim.
— Já sei que agora é a princesa da Carne. Felicidades.
— Bom, pois obrigado, mãe.
Revolveu-se na pequena cadeira, como se a tivesse pego outra vez despreparada.
— Bom, filha, não deveríamos deixar que passasse tanto tempo entre bate-papo e bate-papo.
— Claro que não — disse, e mantive uma expressão agradável e ilegível.
— Ouvi que foste convidada ao baile do Yule deste ano.
— Sim.
— Então, ali nos veremos e poderemos pôr o papo em dia.
— Surpreende-me que não tenha ouvido também que tive que rechaçar o convite.
— Ouvi-o, mas não podia acreditar. — Permanecia com as mãos apoiadas com graça sobre os braços da cadeira, mas inclinou o corpo um pouco para frente danificando essa perfeita postura —. Há muitos que fariam o que fosse por ter a honra de receber um convite.
— Sim, mas sabe que agora sou herdeira da Corte da Escuridão, sabe, não é, mãe?
Sentou-se erguida de novo e negou com a cabeça. Perguntei-me se todas essas folhas douradas de seu cabelo lhe pesavam. — É a co-herdeira, não a herdeira verdadeira. Sua primo segue sendo o herdeiro verdadeiro a esse trono.
Suspirei e deixei de tentar parecer agradável, agora ia ser neutra.
— Estou surpreendida, mãe. Em geral, está melhor informada.
— Não sei a que te refere.
— A rainha Andais nos equiparou o príncipe Cel e a mim. Só fica por ver quem é o primeiro que tem um filho. Se me parecer contigo, mãe, seguro que serei eu.
— O rei está desejoso de que venha a nosso baile.
— Está me escutando, mãe? Sou herdeira do trono Escuro. Se voltar para casa para alguma celebração do Yule, deverei assistir ao baile da Corte Escura.
Realizou um pequeno movimento com as mãos; logo pareceu recordar seu porte sereno e as voltou a colocar com delicadeza sobre os braços da cadeira.
— Poderia voltar a gozar do favor do rei se assistisse a nosso baile, Meredith. Voltaria a ser bem-vinda na corte.
— Já sou bem-vinda na corte, mãe. Além disso, como é possível voltar a gozar do favor do rei quando, que eu saiba, para começar alguma vez gozei de seu favor?
Voltou a fazer um movimento, como se espantasse algum inseto, mas desta vez se esqueceu de apoiar de novo as mãos sobre a cadeira. Estava mais alterada do que parecia, para chegar ao ponto de esquecer-se e falar com as mãos, coisa que sempre tinha odiado; considerava-o algo vulgar.
— Poderia voltar para a Corte da Luz, Meredith. Pensa, uma princesa da Luz por fim.
— Sou herdeira a um trono, mãe. Por que quereria voltar a me unir a uma corte em que sou quinta na linha de sucessão, quando posso governar em outra?
Gesticulou outra vez.
— Não pode comparar ser parte da Corte da Luz com nada que tenha que ver com a Corte da Escuridão, Meredith.
Olhei-a, com essa beleza tão cuidada, e tão cabeça dura ao mesmo tempo.
— Está dizendo que seria melhor ser a última da realeza na Corte da Luz em lugar de governante da Corte da Escuridão?
— Está falando de que é melhor governar no inferno que estar no céu? — perguntou quase rindo.
— Passei tempo em ambas as cortes, mãe. Não é muito difícil escolher entre as duas.
— Como pode me dizer isto, Meredith? Eu também passei um tempo na Corte Escura, e sei quão horrível é.
— E eu passei um tempo na Corte Luminosa, e sei que meu sangue é tão vermelho sobre mármore dourado brilhante que sobre o negro.
Franziu o cenho, parecia confundida.
— Não sei a que te refere.
— Se vovó não tivesse intercedido por mim, teria permitido realmente que Taranis me espancasse até a morte? Que matasse de uma surra a sua própria filha diante de seu nariz?
— Está dizendo coisas realmente odiosas, Meredith.
— Te limite a responder à pergunta, mãe.
— Tinha perguntado algo muito impertinente ao rei, o que não é nada sensato.
Já tinha a resposta, a resposta que sempre tinha sabido. Passei ao tema seguinte.
— Por que é tão importante para ti que eu vá ao baile?
— Porque é o desejo do rei — respondeu. E ela, ao igual a mim, esqueceu as perguntas anteriores, bastante mais dolorosas.
— Não insultarei à rainha Andais e a todo meu povo desonrando sua celebração do Yule. Se voltar para casa, será para assistir a seu baile do Yule. Acredito que compreenderá que assim é como tem que ser.
— A única coisa que compreendo é que não mudasse nada. Segue tão obcecada e tão empenhada em ser difícil como sempre.
— E você tampouco mudou nenhum pingo, mãe. O que te ofereceu o rei para que me convencesse para ir ao baile?
— Não sei a que te refere.
— Sim, claro que sabe. O título de princesa não te basta. Quer o que vai com o título:
poder. O que te ofereceu o rei?
— Isso é um assunto entre ele e eu, a não ser que venha ao baile. Vêem e lhe contarei isso.
— Não vou morder o anzol, mãe, não vou cair nisso.
— O que se supõe que significa isso?
Estava muito zangada e não tentou ocultá-lo, o que, para uma escaladora social de sua estatura, constituía o insulto mais grave. Eu não valia o suficiente para esconder seu aborrecimento. Possivelmente era um dos poucos sidhe aos que teria insultado. Sua própria irmã era alguém a quem tratava com pés de chumbo.
— Significa, querida mãe, que não penso assistir ao baile do Yule luminoso.
Movi-me para o Doyle, e ele acabou a transmissão de forma abrupta deixando a minha mãe com a palavra na boca enquanto ia desaparecendo.
O espelho voltou a soar imediatamente depois, com esse som de sinos, de trompetistas. Entretanto, sabíamos perfeitamente quem era e não estávamos em casa para ela.
Capítulo 33
Dama Rosmerta chamou a primeira hora da manhã do dia seguinte, tão cedo que ainda estávamos na cama. Despertei com o som de campainhas estendendo-se pela habitação ainda às escuras. O aroma de rosas era entristecedor; esse era o cartão de apresentação da Rosmerta. Ao que parece levava um momento tentando despertar e finalmente, tinha decidido recorrer às campainhas e ao aroma de rosas.
Quis me sentar, mas me encontrava apanhada entre a larga juba de Nicca e os braços do Rhys, e não pude. Rhys abriu o olho são e piscou repetidas vezes.
— Que horas são?
— Cedo — respondi.
— Cedo quanto?
— Se movesse o braço, poderia ver o relógio e te dizer a hora exata.
— Ah, desculpe. — Resmungou algo entre os lençóis vinho e apartou o braço.
— Oito — eu disse ao me sentar e olhar o relógio.
— Doce Consorte, o que pode ser tão importante?
Nicca se apoiou sobre o cotovelo e tentou tornar o cabelo para trás, embora não o obteve porque Rhys e eu estávamos sobre ele. Eu adorava a sensação de todo esse cabelo me rodeando o corpo, mas começava a recordar por que nunca deixava crescer tanto o meu.
Rhys e eu nos movemos o suficiente para que Nicca pudesse recolher sua larga juba. Em lugar de tornar o cabelo para trás, limitou-se a depositá-lo ao lado de seu corpo, como se fosse uma capa um pouco emaranhada. Rhys deu meia volta, não para se exibir, embora sem dúvida podia fazê-lo, mas sim porque desejava poder ver o espelho com o olho são.
Nicca permaneceu apoiado sobre o braço detrás de mim. Sentei no meio dos dois. Consegui tirar lençol suficiente de debaixo de todos para me cobrir um pouco. A nudez era algo casual na Corte Escura, mas nem sempre na Corte Luminosa. A vaidade humana tinha sido mais contagiosa na segunda. Nós três nos encontrávamos preparados para receber à visita, quando Rhys e eu nos demos conta de uma vez de que alguém tinha que tocar o espelho.
— Merda — disse, e a seguir saltou da cama, tocou o espelho e voltou muito depressa como se estivéssemos posando para uma foto e tivesse que colocar-se com urgência antes de que a câmara disparasse.
Entretanto, quando voltou, o peso de seu corpo arrancou os lençóis de minha mão e fiquei com o lençol pela cintura. Rhys se deu conta de que ele também se encontrava em cima dos lençóis, em lugar de debaixo. Ambos dispusemos de um segundo para decidir se íamos brigar com os lençóis enquanto o espelho cobrava vida ou se preferíamos aparecer tranquilos e descansados. Os dois escolhemos parecer cômodos, não nervosos. Rhys estava convexo diante de mim, com um braço por detrás da cabeça e os músculos em repouso. Eu me apoiei sobre Nicca, como se ele fosse o respaldo de uma cadeira. Acomodou-se e me rodeou com seu corpo. As tinha arrumado para tampar justo a pélvis com um pedaço de colcha.
Dama Rosmerta apareceu no espelho. Luzia um vestido de seda com bordados, de um tom rosa ligeiramente mais escuro que o de sua visita anterior, quase fúcsia. Levava o cabelo loiro escuro recolhido em tranças sujeitas com laços rosas, da mesma cor que o vestido. A via toda rosa e ouro, perfeita como uma boneca. Os olhos dourados tricolores eram brilhantes e claros, como se levasse horas acordada.
Seu sorriso desapareceu durante uma fração de segundo quando nos viu. Abriu a boca mas não disse nada.
Decidi ajudá-la.
— Desejava algo dama Rosmerta?
— Ah, sim, sim. — Recuperou a compostura, já que recordou qual era seu dever. Pareceu acalmar-se um pouco —. O rei Taranis gostaria de te convidar a uma festa em sua honra que se celebrará uns dias antes do Yule. Sentimos muito o mal-entendido sobre o baile. Compreendemos perfeitamente que, é obvio, deve assistir às festividades de seu própria corte. — Sorriu; o sorriso justo para expressar: «Que parvo por nossa parte, mas agora o arrumamos». Inclusive poderia ter sido sincera.
Estava cansada. Nicca e Rhys tinham adquirido o costume de compartilhar suas noites comigo. Acredito que era simplesmente para conseguir dois turnos seguidos, não porque gostassem de estar juntos, mas isso significava que a noite tinha sido bastante movimentada. Além disso, como não tínhamos que ir trabalhar, não nos preocupamos com a hora. Agora, aí estava Rosmerta, fresca como uma margarida às oito da manhã. Era deprimente.
Por que insistia tanto o rei em me ver antes do Yule? Tratava-se de Maeve? Havia algo mais? Por que queria me ver agora? Ele nunca deu a mínima sobre me ver ou não.
— Dama Rosmerta — disse, e tentei que minha voz não delatasse o grande cansaço que sentia —, preciso ser um pouco brusca, embora saiba que não é de boa educação. Preciso conhecer a resposta a algumas pergunta antes de aceitar ou rechaçar o convite à festa.
— É obvio, princesa — concedeu efetuando uma pequena reverência quando pronunciou meu título.
— Por que minha presença é tão importante para o rei, que está disposto a celebrar uma festa em minha honra uns dias antes do Yule? Toda a corte leva meses trabalhando e planejando o baile. Os serventes e os funcionários terão perdido os nervos ante a idéia de uma festa só uns dias antes do grande acontecimento. Por que o rei tem tanta vontade de me ver antes do Yule?
Seu sorriso permaneceu inalterável.
— Temo que teria que perguntar ao próprio rei.
— Eu adoraria — eu disse —, se fosse tão amável de me passar com ele.
Estas palavras a desconcertaram; a confusão atravessou sua bonita cara. Acredito que a maioria das pessoas teriam se limitado a aceitar que não é possível falar diretamente com o rei, mas havia muitas coisas importantes em jogo para ser tão educada. Rosmerta se recuperou. Não tão depressa como teria imaginado, mas por fim disse:
— Perguntarei a sua majestade se seria possível falar contigo. Entretanto, tem a agenda muito ocupada, assim não posso te prometer nada.
— Nunca te pediria que me fizesse uma promessa da parte do Taranis, dama Rosmerta. E estou segura de que sua agenda está muito cheia; de qualquer forma, preciso obter a resposta a minha pergunta. Não posso de maneira nenhuma acessar assistir à festa sem uma resposta, e acredito que se o rei me responder diretamente, as coisas poderiam ir muito mais de pressa. — Sorri enquanto falava me convertendo no reflexo de seu sorriso agradável e profissional.
— Comunicarei-lhe a mensagem. Possivelmente entre em contato contigo em breve, assim que eu gostaria de te sugerir com humildade que te vestisse e te apresentasse ante ele de acordo com sua posição. — Sorriu enquanto me dizia isso, mas detectei uma tensão ao redor de seus olhos que significava que não estava segura se devia ter dito. Ou possivelmente era que minha cara refletia o que pensava enquanto ela falava.
— Parece-me que me apresentarei ante o rei como eu ache adequado, Rosmerta. — Tinha omitido o «Dama» de propósito. Era uma nobre menor, assim que minha fila era superior ao dela. Que lhe concedesse a cortesia de chamá-la por seu título era só isso, uma cortesia. Não estava obrigada a fazê-lo.
— Não pretendia ser desrespeitosa, princesa Meredith. — Agora não sorria. Sua cara tinha adquirido essa beleza gelada que só são capazes de mostrar as sidhe.
Fiz-lhe caso omisso, porque dizer algo teria sido como acusá-la de mentirosa.
Possivelmente não tinha pretendido ser desrespeitosa; possivelmente era que não podia evitá-lo.
— Claro que não, dama Rosmerta, claro que não. Espero a resposta do rei. Acha que me chamará antes de que tenhamos tido tempo de nos preparar para começar o dia?
— Não sabia que os tinha despertado, princesa. Sinto-o de todo coração. — Parecia sincera —. Me assegurarei de que tenha tempo de te levantar e realizar vocês... as tarefas matinais. — ruborizou-se ligeiramente, e me perguntei que palavra lhe tinha ocorrido antes de «tarefas» ou quais acreditava que eram exatamente essas tarefas matinais.
De repente me dei conta de que Rosmerta tinha pensado que, quando chamou, estávamos tendo relações sexuais, não despertando. Andais respondia aos luminosos em plena ação com bastante frequência. Possivelmente eles esperavam o mesmo de mim.
— Obrigado por me dar um pouco de tempo, dama Rosmerta. Não é muito próprio falar com um rei recém levantada.
Sorriu e efetuou uma reverência com muita graça enquanto sua imagem começava a esfumar-se no espelho. Rosmerta era a pura imagem da cortesia. Uma reverência por sua parte era algo muito bom, porque significava que sabia que eu me encontrava a só um passado do trono. Era bonito saber que alguém da Corte Luminosa o entendia.
Não se voltou a erguer, e me dei conta, um pouco tarde, da razão.
— Pode te elevar, dama Rosmerta, e obrigado.
Ergueu-se um pouco desequilibrada porque tinha passado muito tempo inclinada. Não tinha sido minha intenção, o que passava é que tinha me esquecido que a Corte Luminosa era muito parecida com a corte inglesa; quando efetuava uma reverência, devia esperar a que o membro da realeza te desse permissão para te elevar antes de te mover. Fazia muito tempo que não vivia entre os luminosos, e me parece que estava um pouco oxidada em questões de protocolo. A Corte Escura era muito menos formal.
— Falarei com sua majestade em seu nome, princesa Meredith. Tenha um bom dia.
— Tenha um bom dia você também, dama Rosmerta.
O espelho ficou em branco. Notei como nos relaxávamos os três e deixávamos escapar um suspiro.
Rhys colocou ambas as mãos atrás da cabeça, cruzou os tornozelos e perguntou:
— O que pensam? Acham que com umas quantas jóias pareceremos mais elegantes?
Percorri seu corpo com o olhar recordando a sensação de minha língua lambendo seu firme estômago e outras partes mais baixas de seu corpo. Tive que fechar os olhos e esquecer o que estava pensando antes de poder responder.
— Não, Rhys, acredito que é melhor que primeiro nos vistamos. Já nos preocuparemos com os adornos depois.
— Mas, Merry — me disse sorrindo —, não me diga que não está tentada que apareçamos os três nus na cama quando chamar o rei. Você envolta entre nossos corpos.
Estive a ponto de dizer que não, mas me dei conta de que era uma mentira.
— Ok, um pouco tentada sim, mas vamos nos comportar como é devido, Rhys.
— Bom, se insiste — respondeu com um sorriso mais amplo.
— Você é o que sempre exclama: «minha deusa, o rei da Luz e da Ilusão». A que vem esta mudança agora?
— Continua me dando medo, Merry, mas também é um estirado. Nem sempre foi assim, mas ao longo dos séculos foi se fazendo cada vez mais... humano, no pior sentido da palavra. — Desapareceu o sorriso de sua cara.
— O que acontece? — perguntei.
— Estava pensando no que pode ter passado. Taranis estava acostumado a ser alguém divertido com o que passar o momento, e com o que ir-se de farra.
— Taranis? De festa com os meninos pela cidade? — perguntei arqueando as sobrancelhas —. Não imagino.
— Faz só trinta anos que o conhece. Antes era completamente diferente. — sentou-se, e logo ficou em pé —. Peço a ducha.
— Se pedir isso você primeiro hoje, amanhã peço isso eu — disse Nicca.
— Só se chegar antes que eu — respondeu Rhys, dirigindo-se para o banheiro. Os braços de Nicca se aferraram a minha cintura e me girou para ele.
— Deixemos que tome banho.
Levantou uma esbelta mão moréia com a que desenhou ondas por minha cara. Tombou-se de barriga para cima e me pôs em cima dele me sujeitando com as mãos o pescoço e a cintura. Ao se mover se descobriu, e pude ver que voltava a estar ereto e preparado.
Me escapou uma risadinha.
— Alguma vez te cansa?
— Disto, nunca. — Pôs a cara um pouco mais séria, um pouco menos tenra —. É a primeira mulher com a que estive e não tive medo.
— A que te refere?
— A rainha é alguém temível, Meredith, e ela gosta que seus homens sejam submissos. Eu não sou dominante, mas não desfruto com sua idéia do sexo.
Inclinei-me e lhe dei um delicado beijo.
— Nós fizemos alguma coisa muito pesada pra você? De repente me abraçou com força.
— Não, Meredith, você não. Você nunca me assustou.
Sustentou-me entre seus braços, e eu relaxei e deixei que me sujeitasse. Quase muito forte, quase doía. Acariciei-lhe pelos lados e pelo que podia das costas, até que começou a relaxar-se. Seus braços não eram tão fortes. Fazia só uns dias tinha estado pensando em enviar Nicca de volta a casa, porque não queria que fosse rei. Não ia ser capaz de ser rei e não tinha nada que ver com sua capacidade para procriar.
Abracei-o e o acariciei com doçura até que desapareceu esse pânico de seu olhar. Quando estava acalmado, voltou a me buscar e entreguei a ele, a seus braços, a sua boca, a seu corpo. Esperava que ao rei Taranis não lhe ocorresse chamar nesse momento, mas é que fazer o amor com ele conseguia eliminar esse olhar ferido de seus olhos. Precisava ver esses olhos marrons me olhando com um sorriso.
Quando Rhys saiu do banho com uma toalha na cintura, estávamos acabando.
Amaldiçoou em voz baixa.
— É muito tarde para me unir?
— Sim — respondi, e dava a Nicca um último beijo —. Além disso, eu sou a seguinte na ducha.
Saltei da cama e me dirigi ao lavabo antes de que Nicca tivesse tempo de protestar. Deixei-os rindo enquanto eu ria também. Havia uma forma melhor de começar o dia?
Capítulo 34
Essa mesma tarde, Maeve e Gordon Reed vieram ao apartamento. Tinham passado só uns dias, mas para o Gordon parecia que tinham sido anos. A pele tinha trocado de pálida a cinza. Tinha o aspecto de ter perdido peso, de forma que os potentes ossos que em seu dia lhe converteram em um homem forte e com presença, faziam-lhe parecer agora um esqueleto de ossos grandes recoberto de papel de fumar cinza. Os olhos pareciam maiores, e a dor neles devia ser constante. Era como se o câncer lhe estivesse chupando a vida, estivesse lhe consumindo de dentro pra fora.
Maeve já me havia dito por telefone que estava muito pior, mas não nos tinha preparado para o que vimos. Não havia palavras que pudessem te preparar para ver um homem morrer.
Frost e Rhys se aproximaram de seu carro para ajudar seu marido a subir os poucos degraus que teria que superar para chegar ao apartamento. Maeve lhes seguiu com uns enormes óculos de sol que lhe tampavam grande parte da cara, e com um lenço de seda que lhe cobria a loira juba. Sujeitava o pescoço de um casaco de pele comprido até os tornozelos como se fizesse frio. Parecia uma imitação de Hollywood de uma grande estrela de cinema. É obvio, quem tinha mais direito a essa imagem?
Os homens ajudaram o Gordon a entrar no dormitório, de forma que pudesse descansar enquanto realizávamos a primeira parte do ritual de fertilização. Maeve esperaria na sala de estar. Estava a ponto de acender um cigarro quando lhe disse que não fumasse na casa.
— Meredith, por favor, necessito.
— Então, pode fumar fora.
Baixou os óculos o suficiente para que pudesse ver esses famosos olhos azuis. Levava de novo o encanto humano, tentando parecer o menos sidhe possível. Manteve esse olhar azul sobre mim enquanto abria o casaco para me mostrar seu corpo dourado. Exceto pelo par de botas estava nua.
— Acha que estou apresentável para que seus vizinhos me vejam?
— Seu encanto te bastaria para esconder a nudez inclusive em meio de uma auto- estrada, assim abotoe o casaco e leve os nervos e os cigarros pra fora — lhe respondi negando com a cabeça.
Fechou o casaco deixando ao descoberto entre o pêlo do animal uma fina linha de corpo.
— Como pode ser tão cruel?
— Não sou cruel, Maeve, e você sabe bem. Passaste muitos anos nas cortes para pensar que sou cruel só porque não quero que o apartamento empeste a tabaco.
Olhou-me com cara de pena. Até aí podíamos chegar.
— Quando voltar aqui pra dentro e você me seguir, quero ver Conchenn, a deusa da beleza e da primavera, e não a uma estrela mimada. Nada de encanto tampouco. Quero ver esses olhos resplandecentes como poucos.
Abriu a boca para protestar, acredito. Detive-a com um sinal com a mão.
— Não diga nada, Maeve, e faz o que tem que fazer para nos ajudar.
Voltou a colocar os óculos em seu lugar e disse com uma voz muito mais suave:
— Você mudou, Meredith. Há uma dureza em ti que não havia antes.
— Não se trata de dureza — interveio Doyle —, é autoridade. Será rainha e agora entende isso.
Maeve olhou a ele e logo a mim.
— De acordo, o que é o biquini? Pensei que iam foder, não a tomar banho na praia.
— Sei que está zangada e assustada por seu marido, e por isso passas de coisas como a educação, mas tudo tem um limite, Maeve. Não o transpasse.
Abaixou cabeça, com o cigarro sem acender e o isqueiro sem usar ainda nas mãos.
— Não pretendo ser uma puta estrela insuportável, mas estou muito preocupada com o Gordon. Me entende?
— Entendo, mas se não estivesse aqui sentada discutindo contigo, já poderia ter começado a me preparar para o ritual.
Lhe dei as costas de propósito esperando que entendesse a indireta.
— Doyle, ampliaste as defesas para incluir o pequeno jardim situado na parte posterior da casa, tal como te pedi?
— Sim, princesa.
Respirei fundo. Tinha chegado o momento que temia. Tinha que escolher a um dos homens para que atuasse como meu consorte durante o ritual, mas a quem? Não sei a quem teria escolhido porque, nesse momento, Galen disse com voz clara embora insegura:
— Volto a ser um homem, Merry.
Todos exceto Maeve se voltaram para olhá-lo. Parecia um pouco incômodo sendo o centro da atenção, mas também havia em sua cara um sorriso de satisfação e um olhar em seus olhos que não via desde fazia tempo.
— Não pretendo danificar o momento — interrompeu Rhys —, mas como sabemos que está curado? Maeve e Gordon possivelmente não tenham uma segunda oportunidade.
— Se Galen afirma que está curado e pode realizar o ritual, eu acredito — interveio Doyle.
A expressão de sua cara voltava a ser a de sempre, uma máscara escura, ilegível. Quase nunca falava a não ser que estivesse seguro de algo.
— Como pode estar tão seguro? — perguntou Frost.
— Meredith necessita um consorte para sua deusa. Quem melhor que o homem verde cuja vida lhe acaba de ser devolvida?
Sabia que o homem verde era às vezes um apelido para o consorte da Deusa, e às vezes um nome genérico para o deus do bosque. Olhei ao Galen. Definitivamente, era o homem verde.
— Se Doyle acredita que está bem, então que seja Galen.
Não acredito que Frost estivesse contente com a escolha, mas todos os outros aplaudiram a decisão, com o que Frost teve que manter a boca fechada. Em ocasiões, é o único que pode lhe pedir a um homem, ou a qualquer um.
Capítulo 35
Precisava estar a sós com o fim de me preparar para o ritual. Doyle não tinha gostado nada que ficasse sozinha, embora não fosse mais que uns instantes, mas tínhamos ampliado as defesas da casa até o jardim abandonado situado na parte traseira do edifício. Nesta ocasião, convinha-nos que o jardim estivesse abandonado, porque isso significava que não usaram herbicidas nem pesticidas em muito tempo. Tínhamos construído um círculo ritual. Abri uma porta em dito círculo, entrei nele, e a fechei. Agora me encontrava não só dentro dos amparos da casa, mas também em um círculo de amparo. Não havia nada mágico que pudesse atravessar o círculo à exceção de uma divindade ou o Inominável. Os fantasmas dos ancestrais que se dedicavam a assassinar pessoas não poderiam ter transpassado, já que ainda não eram divindades.
No jardim original tinham plantado menos de uma décima parte da vida que havia na atualidade nele, como acontece à maioria dos jardins do sul da Califórnia. Havia um pequeno limoeiro abandonado. As arvorezinhas estavam cheias de folhas verde escuro. Era muito tarde para que houvesse flores. Que pena. Entretanto, assim que caminhei entre as árvores apinhadas e a erva seca, infestada de folhas por toda parte, soube que esse era o lugar. As árvores sussurravam, como se fossem anciãs que falam em voz baixa sobre o passado com as cabeças muito perto umas das outras, sob um quente sol. Os eucaliptos, que se alinhavam na rua justo ao lado da cerca do jardim, emitiam um forte aroma picante que impregnava o ar e se mesclava com o aroma dos limoeiros.
Tínhamos colocado no chão uma grande manta de algodão. Maeve tinha se oferecido pra trazer uns lençóis de seda, mas a única coisa que precisávamos era algo da terra, animal ou vegetal. Algo o suficientemente grosso para cobrir o chão, mas não muito para nos separar dele. Precisávamos poder sentir a terra sob nossos corpos.
Tombei-me sobre a manta como se fosse me bronzear. Fiz força contra o chão, com os braços e as pernas pegos à manta, me afundando na suave malha, logo sobre a erva, as folhas, os paus, uma capa de pequenas coisas bicudas, e mais à frente até chegar à terra em si. Tinha que haver água nesse lugar, porque se não, os limoeiros teriam secado e teriam morrido, embora parecia seco como se nunca tivesse conhecido a chuva.
O vento me acariciava o corpo, empurrava-me de novo para cima. O vento jogava com minha pele, fazia dançar as folhas secas e as ervas daninhas que me rodeavam. As folhas sussurravam e chocavam entre elas. O aroma dos eucaliptos alagava o lugar com esse aroma quente a madeira.
Situei-me de barriga para cima para poder observar como o vento balançava as árvores, para sentir o calor do sol na parte dianteira do corpo. Não sei se ouvi algum ruído ou se o senti perto. Girei a cabeça, com a bochecha descansando sobre uma cama formada por meu cabelo, e aí estava ele.
Galen se encontrava de pé camuflado entre o verde das folhas e o pequeno sussurro das árvores. O cabelo lhe flutuava formando um halo de cachos verdes ao redor da cara. A fina trança, que era o que ficava da larga juba que em seu dia tinha brilhante, caía-lhe sobre o peito nu.
À medida que atravessava o arvoredo, pude ver que não levava nada de roupa. A pele era de um branco impoluto com um tom verde nacarado, como a parte interior de um búzio de mar. O corpo parecia mais comprido sem roupa, um tronco esbelto e forte que subia até os ombros, e baixava até os perfeitos quadris. Seu membro era maior do que pensava, mais longo, mais grosso, e crescia enquanto o olhava, como se sentisse que meus olhos lhe percorriam o corpo. Tinha as pernas fortes e torneadas, e lhe marcavam os músculos à medida que caminhava para mim.
Parece-me que deixei de respirar durante um segundo ou dois. Realmente não acreditava que viesse. Tinha cansado de esperar. E agora aí estava ele.
Levantei o olhar e me topei com seu sorriso. O sorriso do Galen, que tinha posto meu coração a mil desde que começaram a me importar estas coisas. Sentei-me sobre a manta e alarguei a mão para ele. Desejava correr a seu encontro, mas temia sair do círculo de árvores, vento e terra. Tinha medo inclusive de deixar de lhe olhar porque acreditava que, se piscava, desapareceria entre as árvores como um sonho do verão. Deteve-se justo ao bordo da manta onde ainda não alcançava tocá-lo, e estendeu sua mão para mim até que nossos dedos se tocaram. Esse pequeno roce me produziu a sensação de que havia centenas de mariposas percorrendo meu corpo. Fez-me suspirar. Galen ficou de joelhos sobre a manta, com as mãos aos lados, sem fazer nada para voltar a me tocar.
Fiquei de joelhos frente a ele. Permanecemos nessa posição, um frente ao outro, nos olhando, tão perto que quase não necessitávamos as mãos para nos tocar. Pouco a pouco, levantou as mãos e me acariciou a pele nua do ombro. Podia sentir sua aura, seu poder, como um fôlego quente procedente de seu corpo. Acariciou com a mão a energia tremente de minha aura, e esses dois calores individuais se atraíram, buscaram-se. Temi que fosse difícil despertar a magia, porque tinha esquecido. Tinha esquecido o que significava realmente ser um duende, ser sidhe. Fomos mágicos, igual à terra e as árvores eram mágicas. Queimávamos com a mesma chama invisível que mantém o mundo unido. Essa chama cálida se expandiu e encheu o ar que nos rodeava com uma energia latente, como o som dos ventos.
Nos beijamos através dessa energia crescente. Fluía entre nossas bocas quando ele se agachou e eu levantei a cara para beijá-lo. Sua boca era suave e cálida como o veludo; notei como seu poder entrava na minha, como descendia por minha garganta e alagava meu corpo. Quando compartilhamos o poder de Niceven foi algo agudo, abrasador, quase doloroso. Agora era um calor muito mais agradável, como o primeiro sopro da primavera depois de um comprido inverno.
Suas mãos encontraram meu corpo e tirou a parte de acima do biquini, com que deixou meus seios nus a mercê do vento. Separou seus lábios dos meus e tomou entre eles primeiro um seio e logo o outro. Rodeou meus mamilos com esse poder quente. Pegou meus seios com as mãos, e apertou os dedos até que gritei de prazer. Descendeu as mãos por meu corpo até chegar aos quadris e, com delicadeza, começou a baixar a parte inferior do biquini. Deslizou-a pelas coxas, mas se deteve nos joelhos ao não poder continuar. Tombou-me de barriga para baixo e terminou de tirar a tanga. Fiquei tombada, nua frente a ele pela primeira vez, com o vento me percorrendo o corpo, percorrendo seu corpo. Estava apoiado sobre um braço, seu comprido corpo nu se encontrava muito perto do meu. Percorri com a mão seu peito, seu estômago, sua cintura, e finalmente cheguei a seu quente membro. Tomei entre as mãos, sustentei-o com firmeza e ele se estremeceu e fechou os olhos. Quando os abriu, esses olhos verdes estavam repletos de uma luz escura, um conhecimento escuro que me cortou a respiração e esticou a parte inferior de meu corpo. Apertei seu membro com suavidade, acariciei-o e Galen se arqueou para trás, de forma que já não podia ver se tinha os olhos abertos ou fechados.
Deslizei-me para baixo enquanto ele olhava ao céu, enquanto o acariciava com a mão. Introduzi seu pênis na boca em um movimento decidido, que lhe fez emitir um profundo som de prazer. Olhei para cima para poder ver seu rosto quando baixasse a vista e me olhasse. Tinha a boca entre aberta e uma expressão quase selvagem. Sua respiração era entrecortada, os ofegos se originavam no estômago, subiam por seu peito e saíam em forma de palavras. Respirava meu nome como se fosse uma oração e acariciava meus ombros.
— Não vou aguentar muito — disse negando com a cabeça.
Separei a boca de seu corpo e lhe convidei com as mãos a tombar-se de barriga para cima. Ajoelhei-me sobre suas pernas e lhe olhei. Fazia tanto tempo que desejava isto. Acariciei-o só com o olhar, recordando como a cor de sua pele passava de ser branco a verde primavera pálido, a escuridão de seus mamilos, tensos contra meu peito. Esfreguei-lhe o peito com a mão, senti a pele parecida com o veludo ou ao ante, embora seguia sem encontrar palavras para definir a suavidade dessa pele e a firmeza da carne. Entretanto, não era só a carne o que tinha estado esperando todos estes anos. Era sua magia.
Invoquei meu poder como um calor latente procedente de minha pele, e sua aura se elevou como um mar quente e se derramou sobre meu poder. Nossa magia fluiu unida como duas correntes de um oceano, mesclando-se, fundindo-se.
Movi-me um pouco e comecei a introduzir seu membro dentro de mim, centímetro a centímetro, até que esteve totalmente dentro. Murmurou meu nome e me inclinei sobre ele para beijá-lo, para beijá-lo enquanto o sentia em meu interior, com os corpos pressionados um contra o outro no abraço mais íntimo possível.
O vento soprava sobre as minhas costas como uma mão fria. Ergui-me até ficar sentada olhando-o. Podia voltar a sentir as árvores. Ouvia como se sussurravam entre elas, como me sussurravam escuros segredos ocultos em um lugar muito profundo, e podia sentir o chão debaixo de nós. Podia sentir como girava o mundo em um poderoso baile sob o corpo do Galen.
Convertemo-nos em parte desse baile. Nossos corpos unidos, meus quadris movendo- se para frente e para trás, e os seus levantando-se e baixando para criar um duplo ritmo que se alimentava com cada movimento, até que senti como seu corpo se esticava e lhe apertei com força dentro de mim, sujeitando-o, sujeitando-o com as mãos, com a boca, com cada parte de mim, como se fosse evaporar-se se não o agarrava com força. O calor me percorreu as pernas levantando uma onda de fogo que se derramou por meu corpo até que senti como se minha pele se soltasse, e eu estivesse flutuando com o vento para as árvores susurrantes. O único que me mantinha ancorada à terra era o membro duro e quente do Galen. Senti como ele abandonava também sua pele, senti seu poder derramar-se sobre mim e durante um deslumbrante momento, não fomos nem carne, nem sangue, nada real. Fomos o vento, as árvores com suas raízes ancoradas na terra, relacionando-se ao mesmo tempo com as profundidades da terra e com a luz do sol. Fomos o sempre verde aroma do eucalipto, e o forte aroma da erva queimada pelo sol. Quando já não notava meu corpo e quase não podia recordar quem tinha sido antes, comecei a retornar. Meu corpo tomou forma de novo e Galen seguia dentro de mim. Seu corpo voltou a formar-se em meu interior e ficamos quase sem ar, rindo um nos braços do outro.
Separei-me dele para me deitar a seu lado rodeada par seus braços apertada contra seu peito e escutando os batimentos rápidos e seguros de seu cora ao.
Quando fomos capazes de caminhar, pusemo-nos em pé e nos dirigimos para o apartamento, onde nos esperavam Maeve Reed e seu marido para que lhes entregássemos a magia que tínhamos encontrado.
Capítulo 36
Quando cheguei ao dormitório para lhes entregar o beijo mágico, encontrei-me com a Conchenn em toda sua glória. Gordon Reed parecia ainda mais um esqueleto cinza ante sua brilhante presença. Era horrível contemplar a dor de sua cara enquanto a olhava. Inclusive através do brilho da magia que possuíamos em nosso interior, a dor do Gordon era visível. Não podia curar sua enfermidade, mas esperava poder mitigar sua dor.
— Cheiram a bosque — disse Conchenn —. O coração da terra pulsa através de ti Meredith. Posso vê-lo como um brilho verde atrás de minhas pálpebras. — Começou a chorar lágrimas de cristal, como se pudessem converter-se em ouro e prata —. Seu homem verde cheira a céu e a vento e à luz do sol. Ele brilha amarelo em minha cabeça. — sentou-se no bordo da cama como se as pernas não pudessem sustentá-la mais —. Terra e céu nos trazem, mãe e pai nos trazem, deusa e deus nos trazem.
Queria lhe dizer: «Não nos agradeça ainda; ainda não lhe demos um filho». Mas me calei porque podia sentir a magia dentro de meu corpo, podia senti-la no Galen enquanto me segurava pela mão. Era o poder primitivo da vida em si, o baile antigo da terra plantada com sementes que darão frutos. O ciclo não podia deter-se, porque se se detinha, a própria vida se deteria.
Maeve se moveu para sentar-se ao lado do Gordon e agarrou uma de suas débeis mãos com as suas brilhantes. Galen e eu permanecemos de pé ante eles. Eu me adiantei e me ajoelhei diante do Gordon, enquanto Galen se aproximava de Maeve. Beijamos eles ao mesmo tempo, nossos lábios em contato com os seus como o último movimento de um baile perfeito. O poder saltou de nós a eles como um furacão que nos pôs os cabelos em pé e encheu a habitação com um pouco parecido a um relâmpago cegador a ponto de cair. O dormitório se encheu de repente de tanta magia que custava respirar.
Galen e eu nos retiramos para trás, e então pude ver com meus próprios olhos como ambos brilhavam, cheios de terra, fogo e o ouro do sol. Maeve se moveu para beijar os finos lábios de seu marido e decidimos que era o momento de abandonar a habitação. Fechamos a porta com cuidado ao sair. Sentimos o momento do orgasmo como um vento que saía por debaixo da porta e tocava a todos.
Doyle rompeu o silêncio que se criou.
— Conseguiste, Meredith.
— Ainda não pode estar seguro — respondi.
Olhou-me, olhou-me com um olhar como se o que acabava de dizer fosse algo realmente ridículo.
— Doyle tem razão — disse Frost —. Esse poder não pode falhar.
— Pois se tenho esse poder de fertilidade, por que ainda não estou grávida? Fez-se um segundo silêncio, que foi quebrado de novo pelo Doyle.
— Não sei.
— Teremos que tentá-lo com mais afinco — sugeriu Rhys. Galen assentiu com solenidade.
— Mais sexo, necessitamos mais sexo.
Franzi o cenho e olhei a ambos, mas não pude me manter seria. No final, estalei em risadas.
-Se tivermos mais relações sexuais, não poderei nem caminhar.
-Pois lhe levaremos nos braços — disse Rhys.
-Sim -confirmou Frost.
Olhei pra todos, um par um. Estava bastante segura de que brincavam, bastante segura.
Capítulo 37
No dia seguinte, estávamos acabando de comer quando Taranis chamou. Terminei o que ficava da salada de frutas e do pão fresco enquanto Doyle falava com ele. Maeve estava grávida; a magia tinha sortido efeito em seu interior. Taranis não sabia ainda, mas me preocupava o que fizesse quando se inteirasse. Acrescentava um pouco mais de estresse a minha relação com o rei.
Nesse dia tinha colocado um vestido de verão violeta com decote redondo e laço à costas. Era muito feminino, nada ameaçador, e de um estilo que levava muito tempo na moda. A única coisa que tinha mudado tinha sido o comprimento. Às vezes, na hora de tratar com a Corte Luminosa, terei que tomar cuidado aparecendo muito moderna. Sentei-me na cama recém feita. O violeta do vestido combinava com a cor da colcha e era igual ao violeta das almofadas. É obvio, não era algo acidental. Tinha os tornozelos cruzados, embora o rei não podia vê-los, e as mãos cruzadas sobre o colo. Não era muito formal, embora era o máximo que podia fazer ao não dispor de uma habitação especial para recepções.
Doyle permanecia de pé a um lado e Frost ao outro. O primeiro se embainhou as calças jeans que estava acostumado a levar e uma camiseta negra. Havia calçado umas botas negras que chegavam às coxas, embora tinha dobrado o cano para que ficassem justo por cima do joelho. Inclusive tinha tirado o colar de aranha pra fora para que cintilasse em meio da camiseta negra. A aranha era parte de sua uniforme, de seu traje, e uma vez vi como dividia em mil pedaços a pele do corpo de um mago humano, enquanto as aranhas desenhadas na jóia saíam a fervuras do homem até que este acabou convertendo-se em uma simples massa de aranhas. A desafortunada vítima era o homem de cuja morte me acusava o tenente Peterson.
Frost tinha se vestido de forma mais tradicional. Levava uma túnica branca, larga até as coxas, com cós brancos, chapeados e dourados. As diminutas flores e as trepadeiras estavam bordadas com tanta precisão que podia distinguir que eram hera e rosas, com algumas campainhas e violetas ao redor. Um largo cinto de pele branca, com uma fivela de prata, sujeitava-lhe a túnica à cintura. Levava sua espada, Beijo de Inverno, Geamhradh Póg, pendurada a um lado. Estava acostumado a deixar a espada encantada em casa porque era incapaz de deter as balas modernas; não possuía essa classe de magia. Mas para uma audiência com o rei, a espada era perfeita. O punho era de osso lavrado, com incrustações de prata. O osso estava talhado por uma pátina que lhe conferia o aspecto de marfim velho, delicioso e quente, como se fosse uma madeira de cor clara polida devido a todos os séculos de manejo.
Ambos fizeram todo o possível para manter-se a um lado e não me fazer sombra fisicamente, embora era algo difícil de conseguir. Inclusive embora eu tivesse permanecido de pé, teria sido algo difícil; sentada era virtualmente impossível, mas estávamos tentando que eu aparecesse amável. Eles se encarregariam da parte desagradável, chegado o caso. Tratava-se de uma espécie de representação do lado bom e do lado mau, mas em questões políticas.
Taranis, rei da Luz e da Ilusão, sentava-se em um trono de ouro. Estava vestido com luz. A túnica de baixo era o movimento da luz do sol através de folhas, uma luz salpicada suave, com pontinhas de sol amarelo brilhante, como pequenos estalos de estrelas que aparecem através da luz e das sombras. A túnica de cima era do amarelo brilhante, quase cegador, da luz do sol em pleno verão quando ilumina as folhas. Era verde e ouro ao mesmo tempo. Tratava-se de luz, não de algum tecido, e a cor trocava e se movia com seus movimentos. Inclusive sua respiração a fazia dançar e flutuar.
O cabelo caía em ondas de luz dourada ao redor da cara, que brilhava com tanta intensidade que só podia distinguir os olhos. Estes estavam formados por três círculos de azul brilhante e muito claro, como três círculos de três oceanos diferentes, cada um alagado de luz, cada um de um tom diferente; mas, igual à água que os tinha emprestado, trocavam como se houvesse correntes em seu interior.
Muitas partes dele se moviam, mas não de forma complementar. Era como ver diferentes tipos de luz de diferentes forma e em diferentes partes do mundo, mas em um mesmo lugar e ao mesmo tempo. Taranis era um colagem de iluminação que resplandecia e fluía e vibrava, mas nunca na mesma direção. Tive que fechar os olhos porque começava a me enjoar. Estava segura de que se o olhava durante muito tempo, acabaria vomitando. Perguntei-me se Doyle ou Frost se sentiam um pouco como eu ou se era a única.
De todas as formas, isso era algo que não podia perguntar em voz alta diante do rei.
— Rei Taranis — disse —, meus olhos em parte humanos não podem suportar todo seu esplendor sem sentir-se um pouco aturdidos. Peço-te por favor que reduza um pouco toda sua glória para poder te olhar sem desmaiar.
Sua voz chegou acompanhada de música, como se estivesse cantando uma canção maravilhosa, embora só falava. Em meu interior, sabia que não se tratava do som mais maravilhoso que tinha escutado, mas meus ouvidos escutavam algo além da sedução.
— Se posso fazer algo para que esta conversa seja mais agradável, não duvide que o farei. Olhe, já sou mais fácil para os olhos mortais.
Abri os olhos lentamente. Seguia sendo igualmente brilhante, mas a luz não se movia nem fluía com tanta rapidez. Era como se tivesse freado o jogo de luzes, e a cara tampouco deslumbrava tanto. Podia distinguir o perfil da mandíbula, embora não via nenhum resquício da barba que sabia que tinha. Os cachos dourados eram mais sólidos, menos radiantes. Conhecia a cor de cabelo, e não era o que me estava mostrando. Mas ao menos não me produzia enjôos como antes.
Bom, exceto os olhos. Os olhos seguiam sendo um jogo de luz e águas azuis. Sorri e lhe perguntei:
— O que passou com esses preciosos olhos verdes que lembro da minha infância?
Tinha muita vontade de voltar a vê-los. Ou é que me trai a memória e se trata dos olhos de outro sidhe e eu pensava que eram os teus? Esses olhos eram verdes como as esmeraldas, verdes como as folhas das árvores no verão, verdes como a água profunda e tranquila de um reservatório à sombra.
Os homens tinham me ensinado uns truquezinhos para tratar com Taranis, devido às centenas de anos que levavam de prática e graças a ter presenciado seus bate-papos com a rainha. O truque número um era o seguinte: nunca é demais adular Taranis; se lhe era agradável ao ouvido, tendia a acreditar. Especialmente se quem pronunciava o galanteio, era uma mulher.
Afogou um risinho muito musical e seus olhos voltaram a ser de repente tão encantados como os recordava de minha infância. Era como se a enorme íris do olho fosse uma flor com multidão de pétalas, todos eles verdes, mas de diferentes tons, alguns rodeados por branco, outros por negro. Até que vi os olhos verdadeiros de Maeve Reed, pensava que os olhos do Taranis eram os olhos de sidhe mais preciosos que tinha visto em minha vida.
Brindei-lhe um sorriso verdadeiro.
— Sim, seus olhos são tão preciosos como as lembrança.
Por fim apareceu como um ser formado por luz dourada com o cabelo de ouro flutuando sobre os ombros. Os olhos verdes pareciam quase levitar na parte superior dessa luz dourada, como flores flutuando sobre a água. Os olhos eram reais, tão extraordinários como se viam, mas o resto não. Se alguém tivesse tentado lhe tirar uma foto nesse momento, só teriam saído os olhos e uma mancha. As câmaras modernas não estão preparadas para captar tanta magia.
— Saudações, princesa Meredith, princesa da Carne, ao menos isso ouvi. Felicidades. É um poder realmente horripilante. Fará que os sidhe da Corte Luminosa pensem duas vezes antes de te desafiar a um duelo. — Sua voz se acalmou e soava agora quase normal, embora era encantadora.
— É bom estar protegida por fim.
Acredito que franziu o cenho, embora era difícil saber devido ao cegador de sua cara.
— Sinto que sua estadia na Corte Escura tenha sido tão perigosa. Asseguro-te que na Corte Luminosa sua existência não seria tão difícil.
Olhei-lhe com surpresa e fiz um esforço por manter uma expressão agradável. Lembrava-me do que tinha sido a vida na Corte Luminosa para mim, e «difícil» não servia nem para começar a descrevê-la. Passei muito tempo em silêncio porque o rei disse:.
— Se viesse à festa que vamos celebrar em sua honra, garanto-te que se sentiria cômoda e bem acolhida.
Respirei fundo e sorri.
— Sinto-me muito honrada por seu convite, rei Taranis. Uma festa em minha honra na Corte Luminosa é uma surpresa inesperada.
— E agradável, espero. — E ficou a rir, e a risada voltou a ser esse som alegre de antes. Tive que sorrir ao ouvi-la. O som inclusive arrancou uma pequena risada de meus lábios.
— Claro, muito agradável, sua alteza. — Disse a sério.
Claro que era agradável que te convidasse este homem resplandecente com olhos extraordinários a uma festa em sua honra na corte brilhante. Não havia nada melhor que isso.
Fechei os olhos e tomei ar com força, logo mantive a respiração durante uns segundos enquanto Taranis seguia falando com uma voz cada vez mais preciosa. Concentrei-me na respiração, não em sua voz. Senti como respirava, o fluxo de ar percorrendo meu corpo. Concentrei-me só em aspirar ar e em deixá-lo escapar, em controlá-lo, sentia como meu corpo se enchia, logo aguentava o ar até me doer quase e, finalmente, deixava-o escapar lentamente.
Ouvi como a voz do Doyle rompia com delicadeza o silêncio que tinha criado eu. Ouvi alguns fragmentos do que dizia enquanto realizava os exercícios de respiração e começava a ser consciente de novo do que acontecia fora de meu corpo.
— A princesa se sente intimidada por sua presença, rei Taranis. No final das contas, não é mais que uma menina. É difícil encontrar-se frente a tanto poder sem que se afete. Doyle tinha sido quem tinha me advertido de que Taranis era tão bom com o encanto pessoal que estava acostumado a usá-lo normalmente contra outros sidhe. E ninguém lhe havia dito que era ilegal, porque era o rei e a maioria o temiam. Temiam-no muito para lhe indicar que estava fazendo armadilha. Doyle também tinha me recomendado que realizasse os exercícios de respiração em lugar de tentar me fazer valente e lhe plantar cara. Tinha passado a maior parte da vida ao redor de seres com um encanto de persuasão melhor que o meu, assim tinha aprendido a me liberar deles. Às vezes, para conseguir me via obrigada a fazer algo que se notava, como os exercícios de respiração. A maioria dos sidhe preferem que adorem antes de demonstrar que o poder de outro sidhe os afeta em demasia. Eu nunca tinha podido me permitir esse tipo de orgulho.
Abri os olhos pouco a pouco, piscando até sentir que voltava para o lugar e ao tempo reais. Sorri.
— Me desculpe, rei Taranis, mas Doyle tem razão. Sinto-me afligida por sua esplendorosa presença.
— Minhas mais sinceras desculpas, Meredith — repôs sorrindo —. Não pretendia te causar nenhum desconforto. – Certamente era verdade, mas queria que fosse a sua pequena festa. Desejava-o com tanta vontade para tentar me convencer com magia.
O que eu desejava com todas as minhas forças era lhe perguntar por que era tão importante para ele que assistisse a sua festa. Mas Taranis sabia exatamente quem tinha me criado, e ninguém nunca tinha acusado meu pai de comportar-se sem educação. Tinha sido direto às vezes, mas sempre educado. Não podia simular ser uma humana ignorante, tal como tinha feito com Maeve Reed. Ele me conhecia melhor. O problema era que sem perguntas diretas, não sabia como averiguar o que queria saber.
Mas não importava. O rei estava muito concentrado em me encantar para preocupar-
se com nada mais.
Não tentei enfrentar à magia de um dos maiores ilusionistas que as cortes tinham conhecido. Tentei primeiro com a verdade.
— Recordo seu cabelo como um entardecer flutuando nas ondas. Há muitos sidhe com o cabelo amarelo ouro, mas só você tem as cores do sol poente. — Franzi ligeiramente o cenho, uma expressão que as mulheres levam séculos utilizando, com bons resultados — Ou o recordo mau? A maioria das lembranças que tenho de ti quando não te vestia com encanto, procedem de minha infância. Possivelmente só sonhava com essa cor, com essa beleza.
Eu nunca teria caído na armadilha; nenhum de meus guardas teria engolido isso; Andais teria me dado uma bofetada por uma manipulação tão clara. Mas nenhum de nós se criou entre algodões como Taranis. Levava séculos escutando às pessoas lhe falar assim, e inclusive com mais doçura. Se a única coisa que ouve durante toda a vida é quão maravilhoso é, o encantado, o bonito e o perfeito, é sua culpa se começar a acreditar que é verdade? Se acredita nisso, deixa de te parecer algo parvo ou manipulador. Pensa que é certo. O verdadeiro secredo era que eu acreditava realmente que sua forma natural era muito mais atrativa que o espetáculo de luzes. Era honesta, e aduladora, o que podia ser uma combinação poderosa.
Foi como se os cachos dourados começassem a retorcer-se, começaram a formar-se mechas separadas de cabelo, de maneira que seu cabelo real não apareceu de repente de uma vez, mas sim foi revelando-se pouco a pouco, como se estivesse se despindo. A cor real era o do entardecer, quando todo o céu parece alagado de sangue. Entretanto, tinha mechas dessa cor vermelha alaranjada que, em ocasiões, aparece justo quando o sol fica no horizonte, como se o próprio astro tivesse estalado no céu. Uns quantos eram amarelos como o sol e se misturavam com outros formando uma juba frisada de várias cores.
Deixei escapar o ar que não sabia que tinha estado contendo. Não tinha mentido ao dizer que sua cor natural era muito mais espetacular que a do encanto.
— Você gosta mais assim, Meredith? — perguntou com uma voz tão densa que quase podia apalpar-se; parecia que podia havê-la recolhido em punhados e pulverizá-la por meu corpo. Não era capaz de imaginar como seria tê-la entre os braços, mas acredito que resultaria grosa e doce. Seria como cobrir-se com algodão de açúcar, todo açúcar e ar, algo que se desfaz e cada vez é mais pegajoso.
Voltei para a realidade quando Doyle tocou meu ombro. Taranis tinha utilizado algo mais que simples encanto. O encanto muda o aspecto de algo, mas segue tendo a opção de aceitá-lo ou não. O encanto poderia fazer que uma folha seca parecesse uma suculenta parte de bolo e de fato, é mais fácil que te coma a ilusão do bolo que a folha seca, mas tem que escolher comê-lo igualmente. O encanto troca só a experiência. Não te obriga a aceitar nada.
O que acabava de fazer Taranis era escolher por mim.
— Perguntaste-me algo, sua alteza?
— Sim, perguntou — respondeu Doyle com uma voz que recordou a coisas doces, escuras e densas, como agua e mel quase negra.
Me dei conta de que um toque de encanto me fez pensar isso. Mas Doyle não estava tentando me controlar; estava tentando me ajudar a lutar contra o poder do rei.
— Perguntei-te se me faria a honra de assistir à festa que se celebrará em seu nome — disse o rei.
— Sinto-me adulada de que tome tantas moléstias por mim, sua alteza. Eu adoraria assistir à festa dentro de um mês mais ou menos. As coisas estão um pouco complicadas agora, com as preparações para o Yule e tudo. Não disponho de uma equipe de serventes que me ajudem com minha agenda, a diferença de ti.
Sorri, mas em meu interior estava gritando. Como se atrevia a me manipular como se fosse um simples humano ou um duende menor. Essas não eram formas de tratar a um igual, embora não devia me surpreender. Em todo o tempo que fazia que nos conhecíamos tinha me tratado de maneira desprezível, no mínimo. Não me via como a um igual. Por que ia tratar me agora como tal?
Podia variar a cor de meu cabelo, obscurecer a pele, realizar pequenas mudanças em meu aspecto. Era uma professora nesse tipo de encanto. Mas não tinha nada que me mantivesse a salvo do imenso poder que Taranis estava lançando de forma casual.
Que fazia eu melhor que Taranis? Possuía a mão de carne e osso, e ele não, mas isso era algo que só podia matar e sem mais que tocar. Não desejava matá-lo, queria mantê-lo a raia. Seguiu falando com essa voz doce.
— Eu adoraria desfrutar de sua companhia antes do Yule.
A mão do Doyle efetuou mais pressão sobre meu ombro. Levantei a minha para tocar a sua, e a sensação de sua pele me ajudou a me manter de pé. Que fazia eu melhor que Taranis?
Entrelacei os dedos com os do Doyle. Sua mão era muito real, muito sólida. Era como se seu contato me ajudasse a manter afastada essa poderosa voz e essa fascinante beleza.
— Odiaria dizer que não, sua alteza, mas certamente a visita poderia esperar até depois do Yule.
Empurrou-me com seu poder como se fosse uma onda selvagem. Se tivesse sido fogo, teria estalado em chamas; se tivesse sido água, teria me afogado. Mas era persuasão, quase uma espécie de sedução, e já não podia recordar por que não queria ir a Corte Luminosa. É obvio que iria.
Um movimento repentino me deteve antes de dizer que sim. Doyle tinha se sentado detrás de mim e colocou as pernas para frente, de forma que me rodeava o corpo. Seguia me apertando a mão. A pressão de sua pele contra a minha era ainda mais valiosa para mim que o resto de seu corpo.
Movi a mão às cegas e me encontrei com a do Frost, que me colheu com força, o que também me ajudou.
Voltei a olhar para o espelho. Taranis seguia sendo algo resplandecente, precioso como uma obra de arte, mas não era o tipo de beleza que me acelerava o pulso. Era quase como se estivesse se esforçando muito para que tomasse a sério. Parecia um pouco ridículo com essa máscara brilhante e essa roupa fabricada com luz solar.
Seu poder voltou a emergir, golpeou-me como uma cálida bofetada na cara.
— Vêem a mim, Meredith. Vêem a mim dentro de três dias e assistirá a uma festa que nunca esquecerá.
Alguém abriu a porta, coisa que voltou a me salvar. Era Galen. Ficou olhando ao Doyle, sentado sobre a cama, e ao Frost, que me sujeitava a mão.
— Chamaste-me, Doyle?
Não tinha ouvido que Doyle dissesse nada. Acredito que durante uns segundos não pude ouvir nada que não fosse ao rei.
Recuperei a voz, entrecortada e débil.
— Traz o Kitto. Tal como esteja, por favor.
Galen levantou as sobrancelhas surpreso, mas realizou uma pequena reverência, invisível do espelho, e foi procurar o trasgo. Tinha solicitado que viesse tal como estivesse de propósito. Kitto usava muito pouca roupa quando se encolhia em seu caminha. Desejava que alguma pele tocasse a minha e não queria pedir aos guardas que se despissem.
Kitto entrou no quarto usando somente os shorts; do ponto de vista do Taranis, provavelmente pareceria que estava nu. Que pensasse o que quisesse.
Kitto nos dirigiu um olhar inquisitor ao Doyle e a mim. Evitou olhar para o espelho. Coloquei a mão do Doyle sobre meu pescoço e alarguei a que ficava livre para o Kitto. Ele se aproximou de mim sem perguntar nada. Sua pequena mãozinha rodeou a minha, e lhe atraí para que se sentasse no chão a meus pés. Empurrei-lhe contra minhas pernas nuas. Não levava meias, só umas sandálias violetas combinando com o vestido.
Kitto se enrolou ao redor das minhas pernas, e o quente roce de sua pele contra a minha, a sensação de suas mãos e os braços ao redor de minhas pernas nuas sob a saia me estabilizaram.
Comecei a tomar consciência do método que utilizava Andais quando falava com a Corte Luminosa só coberta com corpos nus. Sempre tinha pensado que o fazia como um insulto para Taranis, mas agora já não estava tão segura. Possivelmente o primeiro que insultava era o rei, e não a rainha.
— Agradeço-te a honra que me faz, Taranis, mas não posso assistir à festa antes do Yule. Sentiria-me muito honrada de ir depois de que acabe a estação do Yule. — Minha voz soou muito clara, e firme, quase seca.
Doyle se deu conta por fim de que eu necessitava pele, porque seguiu me tocando o pescoço, acariciava-me os ombros e os braços por onde não estavam cobertas pelo vestido. Em qualquer outro momento, a sensação de suas mãos me percorrendo a pele teria sido algo erótico, mas agora era simplesmente um instrumento para me manter ancorada à realidade.
O rei me lançou mais poder, que me golpeou como uma chicotada embora a sensação foi muito boa. Arrancou-me um gemido e me deu vontade de me lançar contra o espelho, de gritar sim, no caso de poder falar, no caso de poder me mover. Nesse momento desesperado, passaram três coisas: Doyle me deu um delicado beijo sobre o pescoço, Kitto lambeu a parte posterior do meu joelho e Frost se sentou sobre a cama e levou minha mão à boca.
O contato com as bocas me conferiu três ancoragens que evitaram que perdesse o norte de novo. Frost se deslizou até o chão, colocou-se ao lado do Kitto e introduziu meu dedo dentro de sua boca, possivelmente para esconder essa ação ante o Taranis. Não estava segura, mas não me importava. A sensação de sua boca era como uma luva de veludo ao redor de minha carne.
Me escapou uma exalação trêmula, e pude voltar a pensar, um pouco. Doyle percorreu com os dedos a nuca e foi subindo até a parte superior da cabeça enquanto me fazia uma massagem com os dedos. O que em outra situação teria sido algo que me teria distraído muito, era o que agora me ajudava a me centrar.
— Tentei ser amável, Taranis, mas foste tão direto com sua magia como vou ser eu agora com as palavras. Por que é tão importante que me veja, e especialmente antes do Yule?
— É minha parente. Desejo reatar nossa relação. Yule é uma época para reunir-se.
— Quase não te deste conta de que eu existia durante todos estes anos. Por que agora se preocupa reatar nossa relação?
Seu poder pareceu encher a habitação. Tive a sensação de que respirava algo mais sólido que o ar. Custava-me inspirar. Não podia ver. O mundo se estreitava e se convertia em luz; a luz estava em todas partes.
Uma dor aguda me devolveu à realidade tão bruscamente que gritei. Kitto tinha mordido minha perna como um cão que tenta chamar a atenção, e tinha funcionado. Baixei a mão e lhe acariciei a cara.
— Esta conversa acabou, Taranis. É muito mal educado. Nenhum sidhe trata assim a outro sidhe, só a duendes menores.
Frost ficou em pé para acabar a transmissão, mas Taranis disse:
— Ouvi muitos rumores sobre ti, Meredith. Desejo ver com meus próprios olhos no que te converteste.
— O que vê, Taranis? — perguntei.
— Vejo uma mulher onde antes havia uma garota. Vejo uma sidhe onde antes havia uma fada menor. Vejo muitas coisas, mas muitas perguntas não terão resposta até que te veja em pessoa. Vêem a mim, Meredith, vêem e nos conheçamos.
— A verdade, Taranis, é que quase não posso reagir frente a seu poder. Agora nos separa uma distância. Seria uma parva se te deixasse tentá-lo em pessoa.
— Dou-te minha palavra de que não te vexarei assim se vier a minha corte antes do Yule.
— Por que antes do Yule?
— Por que depois do Yule? — perguntou.
— Porque insiste tanto em que seja antes, que me obriga a suspeitar de que esconde algum motivo.
— Assim devido a que estou realmente interessado em algo, negaria-me isso só porque o quero.
— Não. É porque quer algo com muito afã e parece capaz de fazer algo para obtê-lo assim que me aterroriza pensar para que quererá consegui-lo.
Inclusive através da máscara dourada, pude ver que franzia o cenho. Não seguia minha lógica, embora me parecia bastante clara.
— Assustaste-me, Taranis. É tão simples como isso. Não vou me colocar na boca do lobo, não até que me prometa umas quantas coisas... que te comportará ante mim e os meus.
— Se vier antes do Yule, prometerei-te o que queira.
— Não irei antes do Yule, e me prometerá o que queira igualmente. Se não, não irei nem antes nem depois.
Começou a resplandecer, com o cabelo vermelho ardendo como sangue.
— Está me desafiando?
— Não posso te desafiar porque não tem poder sobre mim.
— Sou o Ard — RI, o rei supremo.
— Não, Taranis, é o rei supremo da Corte da Luz, igual a Andais é a rainha suprema da Corte da Escuridão. Mas você não é meu Ard — RI. Não pertenço a sua corte. Deixou isso bem claro quando era mais jovem.
— Segue obstinada a velhos rancores, Meredith, e eu estou te oferecendo minha mão em sinal de paz.
— Não vou me deixar enrolar por seu palavrório, Taranis, nem por seu aspecto. Quando era uma menina quase me matou com uma surra. Não pode me culpar por ter medo de ti agora, não quando tomou tantas moléstias para que aprendesse a te temer.
— Isso não é o que quis que aprendesse — disse sem negar que tinha me dado uma soberana surra. Ao menos nessa parte foi honesto.
— Então, o que pretendia que aprendesse?
— A não fazer perguntas a seu rei.
Afundei-me nas sensações que me produziam as mãos do Doyle e sua boca na parte posterior de meu pescoço, a língua do Frost me lambendo a mão e os dentes do Kitto mordendo com delicadeza ao longo de minha perna.
— Você não é meu rei, Taranis. Andais é minha rainha e não tenho nenhum rei.
— Mas está procurando um, Meredith, ou ao menos isso é o que dizem os rumores.
— Estou procurando um pai para meus filhos, que será rei da Corte da Escuridão.
— Faz muito tempo que levo dizendo a Andais que sua desgraça é a falta de rei, de um rei verdadeiro.
— E você é esse rei, Taranis?
— Sim — respondeu, e acredito que falava a sério. Não soube o que dizer ante isso.
— É que eu procuro um tipo de rei diferente — repus ao fim —, um que entenda que uma rainha verdadeira vale o que qualquer quantidade de reis.
— Insulta-me — disse, e a luz que tinha sido antes agradável se fez dura. Nesse momento, teria gostado de ter uns óculos de sol para me proteger dessa luminosidade que fazia mal.
— Não, Taranis, é você o que me insulta, e a minha rainha, e a minha corte. Se estas forem as palavras mais agradáveis que pode me dedicar, não temos nada mais que falar. — Fiz um gesto pra Frost e pôs o espelho em branco antes de que pudesse fazê-lo Taranis.
Permanecemos em silêncio durante um segundo ou dois, e logo Doyle disse:
— Sempre pensou que era irresistível para as mulheres.
— Quer dizer que se tratava de uma espécie de sedução?
Notei como Doyle se encolhia de ombros; logo me abraçou com força.
— Para o Taranis, qualquer um que não fique impresionado por ele, é como um pé no saco. Se acha obrigado a lhe ensinar as unhas a qualquer que não lhe adore. Tem que tirar-lhe de cima, como se fosse um cisco que entrou no olho, e permanece aí, aporrinhando e fazendo mal.
— Por esta razão Andais sempre fala com ele nua e coberta de homens?
— Sim — respondeu Frost.
Olhei-lhe. Seguia de pé ao lado do espelho.
— Mas não é um insulto fazer algo assim a outro governante?
— Levam séculos tentando seduzir-se e matar-se mutuamente — repôs encolhendo-se de ombros.
— Assassinato ou sedução. Não há uma terceira opção?
— Eles a encontraram — me sussurrou Doyle à orelha —. Uma paz difícil. Acredito que Taranis tenta te controlar e através de ti, chegar a controlar a Corte Escura.
— E por que insiste tanto no Yule? — perguntei.
— Antes se realizavam sacrifícios para o Yule — disse Kitto com suavidade —. Com o fim de assegurar o retorno da luz, matavam ao rei Acebo para ceder lugar ao renascer do rei Carvalho, o renascer da luz.
Olhamo-nos entre todos.
— Acham que os nobres de sua corte estão começando a suspeitar da falta de descendência? — perguntou Frost.
— Nem sequer ouvi um suspiro em forma desse rumor — respondeu Doyle, o que significava que dispunha de seus próprios espiões na corte.
— Sempre se sacrificava um rei por outro rei — disse Kitto —. Nunca uma rainha.
— Possivelmente Taranis queira trocar o costume — sugeriu Doyle me sujeitando muito perto de si —. Não irá a Corte Luminosa antes do Yule. Não há nenhuma boa razão para que o faça.
Apoiei-me sobre seu corpo, deixando que seu poderoso abraço me reconfortasse.
— Estou de acordo contigo — respondi em voz baixa —. Seja qual for o plano do Taranis, não estou disposta a fazer parte dele.
— Então, estamos todos de acordo — disse Frost.
— Sim — confirmou Kitto.
Foi uma decisão unânime, embora não muito reconfortante.
Capítulo 38
Passamos à sala de estar e nos encontramos com a inspetora Lucy Tate sentada na poltrona de asas rosa, sorvendo um chá e com uma cara nada alegre.
Galen estava sentado no sofá e tentava ser encantador, para o que era muito bom. Lucy não parecia lhe fazer nenhum caso. Tudo, da posição de seus ombros até a maneira em que cruzava as largas pernas e a forma em que movia o pé, dizia que estava zangada, ou nervosa, ou ambas as coisas.
— Já era hora, — disse quando saí do dormitório. Observou aos três de cima abaixo com um olhar crítico —. Não vão muito vestidos para uma tarde de jogos eróticos?
Olhei ao Galen, e logo ao Rhys e a Nicca, que passeavam pela habitação. Kitto voltou para sua caminha de mascote sem dizer uma palavra. Não vi o Sage, e me perguntei se estaria fora, nos vasos de barro de flores situadas ao lado da porta. Galen tinha comprado umas quantas para que o pequeno duendezinho estivesse contente. Não tinha funcionado, embora Sage passava muito tempo de flor em flor pelos vasos de barro. Os três homens me olharam com cara de não ter quebrado um prato, com caras muito inocentes.
— O que disseram a ela?
Rhys se encolheu de ombros, logo se separou da parede em que se apoiou.
— A única forma de impedir que irrompesse no dormitório antes de que acabasse a pequena reunião de negócios era lhe dizer que estava tendo relações sexuais com o Doyle e com o Frost.
Lucy Tate ficou em pé e alargou a xícara de chá para o Galen, que a agarrou, embora não pôde evitar que derramasse parte do conteúdo. Sua cara tinha adquirido um tom muito pouco saudável.
— Estão me dizendo que estou aqui esperando quase uma hora enquanto ela estava falando de negócios? — Sua voz era perigosamente baixa e tinha pronunciado cada palavra com muita calma, com muita claridade.
Galen se levantou e levou a xícara de chá à cozinha, com uma mão debaixo dela para evitar que fosse deixando um caminho de chá por todo o caminho.
— Uma chamada de negócios da corte dos duendes — expliquei —. Acredite se te disser que preferiria que tivesse entrado e nos tivesse pego com as mãos na massa fazendo um mérnage Á trois.
Foi como se me visse com claridade pela primeira vez.
— Parece alterada.
— Minha família... o que posso fazer.
Olhou-me durante bastante tempo, quase durante um minuto, como se estivesse decidindo algo. No final, sacudiu a cabeça.
— Rhys tem razão. Só a ameaça de te encontra em pleno ato sexual teria impedido que entrasse. Mas os assuntos familiares não são assuntos policiais, assim dane-se!
— Vieste por algum assunto policial? — perguntou Doyle enquanto me adiantava e entrava na sala de estar.
— Sim — respondeu, e deu a volta ao sofá para situar-se frente a ele.
Doyle se afastou um pouco para não ter que enfrentar-se com ela cara a cara, mas Lucy queria lhe olhar aos olhos. Plantou-se diante dele, com os braços cruzados diante do peito e com um olhar ameaçador como se quisesse brigar com alguém.
— O que acontece, Lucy? — perguntei enquanto cruzava a habitação para me sentar no extremo mais afastado do sofá.
Se queria me olhar aos olhos, teria que dar a volta ao sofá e situar-se frente a mim. Assim o fez e se sentou de novo com desconforto na poltrona de asas rosa. Tornou-se para frente com os dedos entrelaçados como se lutasse contra si mesma.
— O que acontece, Lucy? — voltei a perguntar.
— Ontem de noite se produziu outro assassinato em massa. — Lucy estava acostumada a olhar diretamente nos olhos, mas esse dia não o estava fazendo. Esse dia percorria com os olhos o apartamento, incansável, sem olhar nada em concreto durante muito momento.
— Foi como o outro que vimos? — perguntei.
Assentiu me olhando durante um segundo e logo girou a cabeça para a televisão, e para a fila de vasos de barro que Galen cultivava na janela.
— Exatamente igual, mas em outro lugar.
Doyle se aproximou do sofá e se ajoelhou no chão com os braços ligeiramente apoiados sobre meus ombros. Acredito que ficou de joelhos para não se destacar muito.
— Jeremy nos informou que todos os da agência estão proibidos de intervir neste caso.
Seu tenente Peterson não parece nada contente conosco.
— Não sei que mosca picou ao Peterson e agora estou me perguntando se me importa saber ou não, mas sei que falar contigo poderia me custar o trabalho.
Ficou em pé e começou a passear-se pelo pequeno espaço da sala de estar; da janela panorâmica à poltrona de asas rosa, zona limitada pelo sofá e o móvel de madeira pintado de branco para a televisão e demais aparelhos eletrônicos.
— A única coisa que desejei toda a minha vida foi ser policial. — Sacudiu a cabeça e penteou o cabelo moreno com os dedos —. Mas prefiro perder o emprego a ter que presenciar outra dessas cenas.
Deixou-se cair sobre a poltrona de asas e me olhou com os olhos abertos como pratos e a cara séria. Tinha tomado uma decisão. Podia vê-lo em sua cara.
— Estiveste seguindo o caso nos jornais ou nos noticiários?
— As notícias disseram que o incidente da discoteca tinha sido um misterioso vazamento de gás. — Doyle apoiava o queixo sobre meus ombros enquanto falava. Sua voz profunda vibrava debaixo de minha pele e me percorria a coluna vertebral.
Custou-me dissimular todas as sensações que estava sentindo, embora acredite que o obtive.
— O segundo foi em uma dessas festas itinerantes, em uma rave, acredito que por causa de drogas adulteradas — eu disse.
— Uma má remessa de êxtase, certo. Ao menos essa é a história que propagamos. Asseguramo-nos de que a imprensa tivesse algo do que falar para evitar que atassem cabos e se desatasse o pânico em toda a cidade. Mas a cena da rave era exatamente igual às duas anteriores.
— As duas? — perguntei.
— A primeira de todas possivelmente nunca teria chamado a atenção de ninguém se não tivesse acontecido em uma zona luxuosa da cidade. Só seis adultos nessa ocasião, um pequeno jantar de amigos com final dramático. Ainda seguiria amontoada na pilha de trabalho de alguém como caso não resolvido. Mas os mortos eram peixes grandes, assim quando se produziu o massacre na discoteca e lhe tocou o prêmio ao centro da cidade, de repente nos encontramos com a criação de uma equipe de trabalho especial. Necessitávamos um, embora nunca o teríamos conseguido com tanta rapidez se uma das primeiras vítimas, não tivesse sido amigo de diferentes prefeitos e de um ou dois chefes de polícia. — Parecia amargurada e cansada.
— Os primeiros assassinatos ocorreram em uma residência particular? — perguntei.
Lucy assentiu, com as mãos enlaçadas mas já sem fazer força. Estava cansada e deprimida, embora mais tranquila.
— Sim, e se trata do primeiro crime da série, ao menos que nós saibamos. Não deixo de sonhar que há alguma casa ou alguma loja por aí que foi em realidade o primeiro cenário, e que com o calor de dezembro encontraremos dúzias de corpos mortos em estado de decomposição. A única coisa pior que presenciar uma destas cenas, é encontrar-se com uma em que os assassinatos se cometeram faz tempo. — Voltou a sacudir a cabeça e se penteou de novo com as mãos. Logo agitou a cabeça uma vez mais, com o que despenteou o cabelo que acabava de arrumar —. É igual, o primeiro foi em uma residência particular, sim. Encontramos o casal que vivia na casa, dois convidados e dois criados.
— A que distância estava a casa da discoteca que visitamos? — perguntei.
— Hombly Hills está a mais ou menos uma hora.
Senti como Doyle ficava muito quieto. O silêncio pareceu nos invadir a todos como se fosse uma onda expansiva. Ficamos olhando-a, acredito que para não cruzar olhadas entre nós.
— Disse Hombly Hills? — perguntei.
— Sim. Por que tenho a impressão de que significa algo para todos vocês?
Doyle e eu nos olhamos. Rhys se apoiou contra a parede como se a coisa não fosse com ele, embora sua cara quase não podia esconder um resquício de emoção. Tudo era agora mais misterioso ou possivelmente começavam a esclarecer coisas. Rhys não podia evitar desfrutar com o tema.
Galen foi esconder-se na cozinha, e começou a secar a xícara com um pano. Frost se aproximou e se sentou no sofá a meu lado, deixando espaço suficiente para que Doyle estivesse cômodo. O olhar do Frost não delatava nada. Nicca parecia verdadeiramente confundido, e me dei conta de que não sabia onde estava a casa de Maeve Reed. Tinha nos ajudado com o rito de fertilização, mas em nenhum momento soube sua direção.
— Não — disse Lucy —. Não, não vão se limitar a ficar aí sentados e pôr cara de inocentes. Quando mencionei o nome de Hombly Hills, vi em suas expressões que ligaram alguma coisa. Agora, não podem pôr cara de ingênuos e não me contar o que está passando.
— Podemos fazer o que quisermos, inspetora — respondeu Doyle.
— Vão deixa as coisas mais difíceis ainda pra mim? Coloquei em perigo minha carreira para vir até aqui e falar com vocês.
— Temos uma pequena curiosidade — disse Doyle —. Por que está disposta a arriscar sua carreira para falar conosco? Dispõe da informação da Teresa, e Jeremy te assegurou que se tratava de um feitiço. Que mais podemos te contar?
— Não sou tola, Doyle. Neste caso aparecem duendes olhe onde olhe. Peterson não quer vê-los. O primeiro incidente em Hombly Hills aconteceu quase na casa ao lado da de Maeve Reed. É uma sidhe da realeza. Exilada ou não, segue sendo uma fada. Pusemo-nos em contato com todos os hospitais da zona para comprovar se tinha chegado alguém com sintomas parecidos com os das vítimas. Encontramos a uma pessoa viva. Nenhum morto novo.
— Há um sobrevivente? — perguntou Rhys.
Desviou o olhar para ele, logo voltou a nos olhar ao Doyle e a mim.
— Não estamos seguros. Segue vivo, e parece que cada dia se recupera mais. Compartilharia alguma informação comigo se lhes dissesse que nosso possível sobrevivente é um duende?
Não sei o que fizeram outros, mas eu não tentei ocultar o desconcerto que experimentava.
Lucy nos sorriu, era um sorriso quase cruel, como se soubesse que nos tinha pego desprevenidos.
— O duende não quer entrar em contato com o Escritório de Assuntos de Humanos e Duendes. Parece que quer evitá-lo a todo custo. O tenente Peterson diz que os duendes não têm nada que ver com o caso, diz que é uma coincidência que Maeve Reed viva perto do lugar onde aconteceu o primeiro assassinato. Interrogou ao duende, mas insiste em que nunca pode saber o que acontece com os duendes; diz que se se tivesse tratado do mesmo tipo de sucesso, o duende estaria morto. — Percorreu com a vista a todos os que se encontrávamos na habitação —. Eu não acredito. Vi os duendes curar feridas que teriam matado a qualquer ser humano. Vi a um de vocês cair de um arranha-céu e partir caminhando. — Voltou a sacudir a cabeça —. Não, isto tem algo que ver com seu mundo, verdade?
Fiz um esforço supino para não olhar a ninguém.
— Vais falar comigo? Vais me contar toda a verdade se lhes permito interrogar ao duende ferido? O tenente Peterson declarou que o duende não está comprometido. Assim, tecnicamente, inclusive embora se inteire de que lhe interrogastes, não poderá me despedir. Nem sequer abrir um processo. De fato, o duende ferido está sobre minha proteção. Já que se nega a falar com as autoridades dos duendes, estou procurando a outros duendes que tentem falar com ele, que o ajudem a adaptar-se a grande cidade.
— Acha que não é da cidade? — perguntei.
— Sim, claro, leva a frase: «Nunca estive na grande cidade» escrita na frente. Deu um grito quando o monitor do ritmo cardíaco apitou pela primeira vez. — revolveu o cabelo que lhe rodeava a cara —. É de algum lugar no que nunca viram equipes modernas. As enfermeiras dizem que tiveram que tirar a televisão da habitação porque teve uma espécie de ataque quando a viu acesa.
Olhou a todos, um por um, e finalmente cravou os olhos em mim, no Doyle e no Frost.
— Fala comigo, Merry, por favor. Fala comigo. Não direi ao tenente. Não posso dizer- lhe. Por favor, me ajude a deter isto, seja o que for.
Observei ao Doyle, ao Frost e ao Rhys. Galen saiu da cozinha, levantou as mãos com as palmas para cima e se encolheu de ombros.
— Eu não estive trabalhando como detetive ultimamente, assim acredito que não deveria votar.
— À rainha não gostará disso — disse Nicca, o que surpreendeu a todos. Sua voz era clara, encheu a habitação, mas ao mesmo tempo estava suave, como se um menino sussurrasse na escuridão com medo a que o ouvissem.
— Não nos disse que não possamos dizer-lhe à polícia humana — comentou Doyle.
— Ah não? — A voz de Nicca parecia a de um menino, muito mais jovem que alguém com um corpo como o seu.
Girei-me no sofá para poder vê-lo.
— Não, Nicca, a rainha não nos disse que não falássemos com a polícia. Deixou escapar um comprido suspiro.
— Tudo bem. — De novo foi como se tivesse respondido um menino. Os mais velhos tinham lhe dito que não se meteria em problemas, e ele tinha acreditado. Trocamos olhadas uma vez mais, logo eu disse:
— Rhys, conte do feitiço.
Assim o fez. Deixamos claro que não estávamos seguros de que alguém que seguisse nas cortes pudesse ainda realizar o feitiço, e que possivelmente tinha sido um mago humano ou um bruxo. Pelo que estávamos seguros era de que não tinha sido ninguém da Corte Escura.
— Como podem estar tão seguros disso? — perguntou Lucy. Trocamos outra série de olhares.
— Confia em mim, Lucy, a rainha não está obrigada a contemplar nenhum direito civil nem nada disso. Além disso, é muito insistente.
Estudou nossas expressões.
— O quanto insistentes podem ser vocês?
— A que te refere? — perguntei-lhe.
— Ouvi rumores sobre o que faz sua rainha às pessoas. Vocês podem ser tão eficazes sem deixar marcas?
— Está nos pedindo que façamos o que acredito que nos está pedindo? — perguntei elevando as sobrancelhas.
— Estou lhes pedindo que evitem que isto volte a acontecer. O duende do hospital se nega a falar com a polícia; tampouco quis falar com o assistente social que enviou o Escritório de Assuntos de Humanos e Duendes. Ficou feito uma fera quando lhe sugeri que podia me pôr em contato pessoalmente com o embaixador se não se encontrava cômodo com um assistente social humano. Quando vi quanto lhe aterrorizava falar com o embaixador, pensei que possivelmente vocês o assustariam mais.
— Por quê? — perguntei.
— O embaixador não é um sidhe.
— O que quer que façamos com o duende? — perguntou Doyle.
— Espero que façam o que esteja em suas mãos para conseguir que fale. Temos mais de quinhentos mortos, Doyle, quase seiscentos. Além disso, segundo o que diz Rhys, se não determos a essas coisas, se seguimos permitindo que se alimentem, se regenerarão ou algo assim. Não quero a um grupo de antigas divindades recém elevadas com uma afeição especial por matar rondando livres por minha cidade. Terá que pará-lo agora, antes que seja muito tarde.
Concordamos em ir com ela, mas primeiro realizamos uma chamada de telefone.
Falamos com Maeve Reed para avisar de que tinham ressuscitado os fantasmas dos deuses ancestrais para matá-la, o que significava que tinha sido alguém da Corte da Luz e que tinha a permissão do rei para fazê-lo.
Capítulo 39
Lucy se viu obrigada a mostrar sem cessar o distintivo para poder passar com as pistolas e as espadas todos os controles com detectores de metal. Os homens tiveram inclusive que mostrar as credenciais que lhes identificavam como guardas da rainha antes que a enfermeira chefe nos deixasse acessar à ala. Entretanto, por fim tínhamos chegado e nos encontrávamos frente a uma cama em que havia um homem... bom, alguém de sexo masculino. Era uma coisa diminuta e disforme. Sage também era diminuto, mas estava perfeitamente proporcionado. Tinha que ser do tamanho que era; mas o homem que descansava na cama com os lençóis até as axilas, inclusive a primeira vista, era um pouco equivocado.
Pertenço a Corte Escura e há muitas formas corretas para mim, agradáveis, mas havia algo nesta que me punha os cabelos em pé. Empurrava-me a apartar a vista, como se fosse algo horrível, embora fosse assim.
Não era a única que tinha problemas com a situação. Rhys e Frost tinham desviado os olhos e se viraram de costas. Sua reação dizia que ou lhe conheciam ou sabiam o que tinha passado. Deram a volta como se tentassem fugir. Tinha quebrado algum tabu da época antiga? Doyle não afastou a vista, mas bom, ele quase nunca o fazia. Galen trocou comigo um olhar que dizia que estava tão perdido e desconcertado como eu. Kitto permaneceu a meu lado, onde tinha insistido em ficar, me dando a mão como quando um menino procura consolo.
Me obriguei a não afastar os olhos, para tentar adivinhar o que havia nesse pequeno homem que me fazia estremecer. Media pouco mais do meio metro, os diminutos pés destacavam como dois pezinhos nos lençóis. Havia algo nesse corpo que parecia reduzido, embora não lhe faltava nada. A cabeça era um pouco grande para o pequeno torso. Os olhos eram grandes e cristalinos, muito grandes para essa cara. Era como se fosse o que ficava de outro rosto. O nariz combinava com os olhos e devido a que o resto da cara se reduziu, esta também parecia muito grande. Isso é o que parecia, que os olhos e o nariz tinham permanecido intactos enquanto o resto se reduziu, comprimido, contraído e quebrado.
Nicca se situou diante de todos nós e alargou a mão.
— Mas Bucca, o que te passou?
O diminuto corpo convexo na cama permaneceu imóvel ao princípio. Logo, pouco a pouco, levantou uma das mãozinhas situadas no final dos bracinhos tão finos como uma corda. Apoiou a pequena mão pálida sobre a forte e moréia de Nicca.
Kitto olhou para cima com lágrimas nos olhos.
— Bucca — Dhu, Bucca — Dhu, o que é você aqui?
Ao princípio pensei que Kitto se esqueceu uma ou duas palavra, mas logo me dei conta de que não. Tinha perguntado exatamente o que queria saber.
— Os dois o conhecem — disse Doyle, mais como uma afirmação que como uma pergunta.
Nicca assentiu enquanto dava uns delicados tapinhas sobre a diminuta mão. Falou depressa com um dos acentos musicais de uma das antigas línguas celtas. Era rápido para poder segui-lo, mas não era galês, nem escocês, nem gaélico, nem irlandês, o que ainda deixava alguns dialetos, por não mencionar países.
Kitto se uniu a eles, falando um pouco parecido à língua que utilizava Nicca, embora não era exatamente a mesma. Possivelmente fosse um dialeto diferente, ou possivelmente de um século distinto, como a diferença que há entre o inglês da Idade Média e o inglês moderno.
Observei a cara do Kitto, o anseio, a dor. Sabia que lhe entristecia muito ver esse homem em semelhante estado, mas isso era a única coisa que pude entender.
Doyle falou por fim em inglês moderno. Possivelmente o resto das pessoas tinha podido seguir a conversação sem problemas, mas eu não.
— Nicca lhe conhecia com uma forma não muito diferente a atual, mas Kitto o recorda como nós somos agora, um sidhe. Bucca foi em seu dia adorado como deus.
Olhei esse corpo murchado e soube o que era o que me tinha posto os cabelos em pé. Esses enormes olhos marrons e esse forte e reto nariz eram muito parecidos com as feições da Nicca. Sempre tinha acreditado que a pele e os olhos marrons de Nicca procediam dos semiduendes que havia em seus ascendentes; mas agora, enquanto observava esse corpo diminuto, soube que me equivocara.
Olhei ao homem com um novo acesso de horror, porque agora podia vê-lo com claridade. Era como se alguém tivesse pego ao sidhe e o tivesse comprimido até chegar a ser do tamanho de um coelho. Não tinha palavras para descrever o horror que descansava quase perdido nessa cama de hospital. E não me ocorria como tinha podido acabar assim.
— Como? — perguntei em voz baixa, e imediatamente desejei não havê-lo feito, porque o corpinho da cama me olhou com esses olhos e essa cara encolhida.
— Eu procurei isso, garota. Eu e só eu — explicou em um inglês claro, embora com muito sotaque.
— Não — disse Nicca —. Não é verdade, Bucca.
O homenzinho sacudiu a cabeça. Levava o cabelo curto e, ao mover a cabeça, o escuro cabelo que descansava sobre o travesseiro, despenteou-se.
— Aqui há caras que conheço, Nicca, além da tua e a do trasgo. Alguns foram adorados em uma época e logo perderam seus seguidores. Mas eles não se murcharam assim. Eu me neguei a me desfazer de meu poder, porque pensei que me diminuiria. — Estalou em risadas, embora o som era realmente amargo —. E agora me olhe, Nicca, o que têm feito o orgulho e o medo.
Estava confundida, por dizer de uma maneira suave, mas, como quase sempre acontece no mundo dos duendes, as perguntas que tinha que expor eram consideradas de má educação por ser muito diretas.
O homem convalescente girou a pesada e estranha cabeça para o Kitto.
— A última vez que nos vimos, pensei que era pequeno. — Esses estranhos e precisos olhos o observaram —. Mudaste, trasgo.
— É um sidhe — disse Nicca.
Bucca pareceu surpreso, logo ficou a rir.
— Vê? Lutei com todas minhas forças durante séculos para manter nosso sangue puro, para evitar mesclas. Houve um tempo em que te considerava imperfeito, Nicca.
Nicca seguiu dando tapinhas sobre a mão do homenzinho.
— Isso faz muito tempo, Bucca.
— Não permiti que ninguém de nossa estirpe Bucca — Dhu pura se mesclasse com outros sidhe. Agora o único que fica de minha estirpe são aqueles que, como você, não são puros. — Voltou a cabeça, o que pareceu lhe custar um grande esforço —. E tudo o que fica de todos os Bucca — Gwidden é você, trasgo.
— Há outros entre os trasgos, Bucca — Dhu. E vê a pele como a luz da lua destes sidhe? Ainda recordam aos Bucca — Gwidden.
— Possivelmente compartilhem a pele, mas não o cabelo nem os olhos. Não, trasgo, perderam-se, e foi minha culpa, por não deixar que ninguém de minha gente se mesclasse com outros. Fomos o povo escondido e mantivemos os velhos costumes. Agora não fica nenhum velho costume, trasgo.
— É um sidhe — corrigiu Doyle —, reconhecido pela Corte Escura como tal.
Bucca sorriu, mas não como se estivesse contente.
— E inclusive agora em quão único posso pensar é que não sabia que os sidhe escuros tinham chegado tão baixo para chegar a aceitar trasgos em suas filas. Inclusive agora que estou morrendo, depois de ter visto o último de meu povo morrer antes que eu sou incapaz de vê-lo como um sidhe. Não posso.
Separou a mão da de Nicca e fechou os olhos, mas não como se estivesse dormindo mas sim como se estivesse tentando não ver.
A inspetora Lucy tinha sido muito paciente durante toda a conversa.
— Poderia alguém me explicar o que está acontecendo? — perguntou.
Doyle trocou um olhar com o Frost e com o Rhys, mas nenhum deles falou. Eu me encolhi de ombros.
— Não me olhe. Eu estou tão perdida como você.
— Eu também — disse Galen —. Reconheci o idioma. É bretão ou córnico, mas o sotaque era muito arcaico para mim.
— Córnico — respondeu Doyle —. Estavam falando em córnico.
— Pensava que não havia trasgos em Cornwall — disse Galen. Kitto se deu meia volta e olhou ao alto cavalheiro.
— Os trasgos não eram um só povo; igual aos sidhe, estavam separados em duas cortes. Houve um tempo em que fomos algo mais. Eu era um trasgo córnico, porque minha mãe sidhe era Bucca — Gwidden, uma sidhe córnica, antes de unir-se a Corte da Luz. Quando viu o aspecto de seu bebê, soube onde desfazer do lastro e me abandonou com as serpentes de Cornwall.
— Existem serpentes por todas a ilhas — disse com voz profunda Bucca —. Inclusive na Irlanda, digam o que digam os seguidores de são Patrício.
— Na atualidade, a maioria dos trasgos estão nos Estados Unidos — comentou Kitto.
— Sim — confirmou Bucca —, porque nenhum outro país os aceitou.
— Sim — afirmou Kitto.
— De acordo — disse Lucy —, seja o que for o que está acontecendo, que se trate de brigas ou reuniões familiares, não me importa. Quero saber como acabou este tal Bucca, que assina como Nick Bottom, nome que procurei e resultou ser um personagem do sonho de uma noite do verão, muito engraçadinho, aqui quase sem vida.
— Bucca — chamou Nicca com suavidade.
O pequeno homem abriu os olhos. Havia tanto cansaço e tanta dor neles que tive que apartar a vista. Era como olhar dentro de um túnel e ver algo pior que o esquecimento, algo muito pior que a morte.
— Não posso morrer — disse com um tom mais forte devido à emoção —. Você entende, Nicca, não posso morrer. Fui o rei de meu povo e não posso nem sequer me desvanecer como fizeram alguns. Entretanto, estou me desvanecendo. — Levantou um de seus braços lastimosamente —. Estou me desvanecendo assim, como se a mão de um gigante fosse me apertando para baixo.
— Bucca, por favor, nos conte como lhe atacaram os fantasmas famintos — lhe pediu Nicca com voz tranquila.
— Quando esta carne a que ainda me aferro se desvaneça, me converterei em um deles. Serei um dos famintos.
— Não, Bucca.
Alargou o esfomeado braço.
— Não, Nicca, isso é o que aconteceu com a maioria de outros que eram fortes. Não podemos morrer, mas tampouco podemos viver, assim que ficamos no meio.
— Não o suficiente bons para o céu — disse Doyle —, mas tampouco o suficiente maus para o inferno.
— Exato — confirmou Bucca.
— Sempre me interessou aprender coisas sobre a cultura dos duendes, mas voltemos para os ataques — interveio Lucy —. Nos conte de seu ataque, senhor Bottom, ou senhor Bucca, ou o que seja.
Olhou-a com cara de surpresa, quase como uma coruja.
— Atacaram-me ao primeiro sinal de debilidade.
— Poderia explicá-lo um pouco melhor? — perguntou Lucy. Tinha aberto a caderneta para tomar apontamentos e tinha uma caneta na mão.
— Você os despertou — disse Rhys. Era a primeira vez que se voltava, a primeira vez que olhava realmente a Bucca desde que tínhamos entrado na habitação.
— Sim.
— Por quê? — perguntei.
— Era parte do preço que devia pagar para voltar para as cortes dos duendes.
Ficamos todos parados. Durante um segundo, tudo pareceu cobrar sentido. Andais tinha feito isso, ou tinha conseguido que alguém o fizesse por ela. Por essa razão ninguém podia seguir a pista até chegar a ela. Explicava também por que ninguém ao seu redor sabia. Não tinha utilizado a nenhum de sua corte.
— Pagar a quem? — perguntou Doyle.
Olhei-o, quase a ponto de dizer em voz alta: «Todos sabemos». Então Bucca respondeu:
— Ao Taranis, é obvio.
Capítulo 40
Voltamo-nos todos para a cama como em uma cena em câmara lenta.
— Você disse Taranis? — perguntei.
— Está surda, garota?
— Não, só surpreendida.
— Por quê? — inquiriu franzindo o cenho.
Olhei-o com surpresa e pensei sobre isso.
— Não pensava que Taranis estivesse tão louco.
— Então, é que não estiveste nada atenta.
— Ela não viu o Taranis desde que era uma menina, Bucca — disse Doyle.
— Então, peço-te desculpas. — Observou-me com olhos críticos —. Parece uma sidhe luminosa.
Não estava segura do que fazer com o elogio. Nem sequer estava segura de se, nessas circunstâncias, era realmente um elogio.
Lucy deu a volta para situar-se ao outro lado da cama.
— Está dizendo que o rei da Corte da Luz lhe obrigou a despertar aos fantasmas famintos?
— Sim.
— Por quê? — perguntou. Parecia que nesse dia perguntávamos todos a mesma coisa.
— Queria que matassem Maeve Reed.
— Ok, estou perdida — disse Lucy —. Por que quereria o rei ver morta à deusa dourada de Hollywood?
— Não sei o porquê — respondeu Bucca —, e não me importava o mínimo. Taranis prometeu me conceder suficiente poder para recuperar parte do que tinha perdido. Por fim tinha decidido me unir a Corte da Luz. E ele me prometeu que entraria com a condição de que matasse a Maeve e de que controlasse aos famintos. Muitos deles tinham sido meus amigos. Pensei que eram como eu e que estariam encantados de poder voltar, mas já não são bucca, nem sidhe, nem sequer duendes. São coisas mortas, monstros mortos. — Fechou os olhos e respirou lenta e profundamente. — Assim que atravessei um momento de vacilação, atacaram-me, e agora se alimentam, não para voltar para o que eram antes, mas sim porque estão famintos. Alimentam-se pela mesma razão que o faz um lobo. Porque tem fome. Se conseguirem suficientes vidas para voltar a ser um pouco parecido a um sidhe, será algo tão horrível que nem sequer a Corte Escura poderá aceitá-los entre sua gente.
— Não querendo me queixar — disse Lucy —, mas por que não contou tudo isto ao assistente social ou ao embaixador?
— Quando vi a Nicca, e inclusive ao trasgo, dei-me conta de que fui um idiota. Agora já é tarde para mim, mas meu povo segue vivo. Enquanto haja parte de meu sangue vivendo em alguém, os bucca não terão morrido. — Umas lágrimas lhe brotaram dos olhos —. Tentei me salvar, inclusive embora isso significasse destruir o que ficava de meu povo. Equivoquei-me, equivoquei-me totalmente.
Então foi ele quem adiantou a mão para encontrar-se com a de Nicca, e Nicca a tomou com um sorriso.
— Como podemos detê-los? — perguntou Doyle.
— Eu os invoquei, mas não posso devolvê-los a seu lugar. Não possuo a força.
— Pode nos dar o feitiço? – perguntou Doyle.
— Sim, mas isso não garante que possam consegui-lo.
— Deixa que nos nós preocupemos com disso. – disse Doyle.
Bucca nos contou como tinha planejado devolver a seu lugar os fantasmas. Lucy tomava apontamentos. Outros escutavam. Não era questão de utilizar nenhuma palavra mágica, era mais em saber o que fazer e como fazê-lo.
Quando terminou de nos explicar tudo o que sabia sobre os famintos, perguntei-lhe:
— Estiveste escondendo o Inominável da Corte Escura?
— Mas, garota, não escutaste nada do que eu disse? Taranis o invocou.
— Também o invocou para ele? — Não fui capaz de esconder a surpresa em minha voz.
— Invoquei aos famintos com um pouco de ajuda do Taranis e Taranis invocou ao Inominável com um pouco de minha ajuda.
— Ele possuía um dos principais poderes com os que o formaram — afirmou Doyle.
— Por que faria Taranis algo assim? — perguntei.
— Pensei que queria recuperar parte do poder que perdeu com essa coisa — respondeu Bucca —, e possivelmente o conseguiu, embora não funcionou tal como o tinha planejado.
— Assim Taranis controla ao Inominável — deduziu Galen.
— Não, rapaz, ainda não entende? Taranis o liberou, ordenou-lhe matar a Maeve, mas não o controla mais que eu aos famintos. Fez o que fez, mas é a própria coisa que se esconde agora. Taranis não tinha um pouco de medo quando se deu conta disso. Asseguro a vocês que ele estava aterrorizado, e é bom que esteja.
— O que quer dizer? — perguntei.
— Quando tentei enviar os famintos através dos amparos de Maeve, não foram capazes de chegar até ela. Voltaram-se contra mim, e logo encontraram outras presas. Vi a coisa a que chamam o Inominável. Ele pode romper os amparos e uma vez que a tenha matado, o que fará?
— Não sei — respondi com suavidade.
— Qualquer maldita coisa que goste — disse Bucca.
— O que quer dizer — interveio Rhys — é que quando o Inominável tenha matado Maeve Reed, deixará de ter uma missão. Será simplesmente um ser enormemente poderoso, e destroçará tudo o que lhe rodeie.
— Este sim que é um menino preparado — afirmou Bucca.
— Por que está seguro disso? — perguntei ao Rhys.
— Eu entreguei quase toda minha magia a essa coisa. Sei o que fará, Merry. Devemos evitar que mate Maeve. Enquanto ela esteja viva, não cessará em seu intento de matá- la, assim seguirá escondendo-se até que o consiga. Quando a tiver matado, descarregará seu poder sobre a cidade. A energia mais hostil que os duendes poderiam oferecer acampará a suas largas pelo sul de Califórnia. Essa coisa arrasará Los Angeles igual a Godzilla fez com Tóquio.
— E como se supõe que vou convencer ao Peterson de que um ser mágico está a ponto de arrasar a cidade? — perguntou Lucy.
— Não o vais fazer — eu disse —. De qualquer forma, não acreditaria em você.
— Então o que vamos fazer? — perguntou.
— Vamos manter Maeve Reed com vida. Possivelmente possamos convencê-la de que a Europa está bonita nesta época do ano. Possivelmente consigamos impedir que ele a apanhe até que encontremos uma solução.
— Não é má idéia — opinou Rhys.
— Estou de acordo contigo — me disse Bucca —. Você também é uma garota esperta.
— Me alegro de ouvi-lo. Alguém tem um celular?
Lucy tinha um, e me deu o número de Maeve Reed, que tinha anotado na pequena caderneta. Marie, a secretária pessoal eo Maeve, respondeu. Estava histérica e começou a gritar:
— É a princesa, é a princesa! Julian pegou o aparelho.
— Meredith, é você?
— Sim, Julian. O que está acontecendo?
— Há algo aqui, algo tão grande psicologicamente que não posso conseguir senti-lo inteiro. Está tentando atravessar os amparos e acredito que vai conseguir.
Dirigi-me para a porta.
— Já estamos indo, Julian. Avisaremos à polícia para nos ajude também.
— Não parece surpreendida, Meredith. Sabe o que é esta coisa?
— Sim.
E o contei enquanto corríamos através do hospital para os carros. Contei-lhe o que era, embora não sabia se algo do que dizia poderia ser de alguma ajuda.
Capítulo 41
Quando chegamos a casa do Maeve Reed estava rodeada de polícia por toda parte. Havia carros de rua, carros a paisana, veículos das forças especiais e ambulâncias esperando a uma distância que consideravam prudencial. Havia homens armados por toda parte. Inclusive tinham se colocado no muro situado frente à casa. O problema era que não havia nada ao que disparar.
Uma mulher com um colete a prova de balas do corpo especial de polícia com a inscrição SWAT se encontrava de pé detrás de uma barreira de carros dentro de um pentagrama com um círculo que tinha desenhado com giz sobre o asfalto. O Departamento de Polícia de Los Angeles tinha sido um dos primeiros a incluir bruxos ou magos nas unidades especiais.
Assim que se deteve o motor do carro, notei o feitiço. Fazia com que custasse respirar.
Doyle, Frost e eu tínhamos ido com a Lucy. Doyle especialmente não tinha desfrutado da condução temerária. Desceu do carro, aproximou-se de uma fila de arbustos e ficou de joelhos. Os humanos pensariam que estava rezando e, em parte, era o que fazia. Encontrava-se renovando seu contato com a terra. Doyle era bastante resistente a utilizar qualquer tipo de transporte de fabricação humana. Era capaz de viajar através de caminhos místicos que me teriam produzido pânico, mas cruzar Los Angeles com todo o tráfego e a toda potência quase acaba com ele. Frost estava bem.
Os outros guardas, incluído Sage, saíram da van. A pedido do Doyle tínhamos passado pelo apartamento para pegar mais espadas. Lucy tinha se negado a princípio, mas ele lhe explicou que até que não rompêssemos o encanto do Inominável, as balas não lhe fariam nada. Assegurou-lhe que dispúnhamos de coisas no apartamento que poderiam romper o encanto, se havia alguma coisa que podia obtê-lo.
Lucy decidiu que valia a pena desviar-se um pouco do caminho. Tinha avisado aos outros policiais de que sem um pouco de ajuda mágica, não seriam capazes de ver o atacante, e muito menos de lhe disparar.
Pelo visto, tinham acreditado em nós. A bruxa provavelmente teria provado algo simples e quando viu que não funcionava, teria começado a trabalhar com o desenho a giz, rematado com conjuros e as nove jardas completas. Inseria-se como uma investida de poder que fechava as gargantas e punha os cabelos em pé, igual a um vento insensível.
O feitiço saiu disparado e deu no objetivo. Formaram-se redemoinhos no ar, como quando o calor percorre o asfalto no verão. Exceto este calor não deixou de subir até alcançar uns seis metros.
Não estava segura se os policiais que careciam de talento psíquico seriam capazes de ver algo, mas ao ouvir os palavrões e exclamações de todos me dei conta de que estava equivocada.
Lucy levantou a vista para ver a luz trêmula.
— Nós apenas começamos a atirar? — perguntou.
— Sim — disse Frost.
Em realidade, não importava o que fizéssemos. Fosse quem fosse o chefe da operação, deu a ordem e de repente, o som dos disparos invadiu tudo abrindo-se passo como uma enorme explosão.
As balas atravessaram essa luz trêmula como se não se encontrasse ali. Comecei a me perguntar onde iriam parar todas essas balas, porque não se detêm até que não encontram algum objetivo. Então ouvi os gritos de uns homens passando ordens uns aos outros.
— Cessar fogo, deixem de disparar!
O repentino silêncio me cravou nos ouvidos. A forma de luz trêmula seguia empurrando o muro ou, melhor dizendo, os amparos do muro. Parecia que não se deu conta das balas.
— O que acaba de acontecer? — perguntou Lucy.
— Encontra-se em um tempo entre o atual e o futuro — afirmou Doyle. Tinha voltado para nosso lado enquanto estávamos observando como disparavam à coisa —. Se trata de um tipo de encanto que permite aos duendes esconder-se dos olhos mortais.
— Você pode fazer isso? — perguntou-me Lucy.
— Não.
— Nem nenhum dos outros sidhe — esclareceu Doyle —. Nos desprendemos dessa capacidade quando fabricamos ao Inominável.
— Eu nunca pude fazer nada parecido — eu disse.
— Você nasceu depois de que realizássemos duas carcaças como o Inominável — repôs Doyle —. Como ia alguém te culpar de ser menos que o que nós fomos em uma época?
— A bruxa tem quebrado parte do encanto — afirmou Frost.
— Mas não o suficiente — replicou Doyle. Os dois homens se olharam mutuamente.
— Não — eu disse —. Seja o que for o que estão pensando, a resposta é não.
— Meredith, devemos lhe deter aqui — disse Doyle.
— Não — respondi —. Não, devemos manter Maeve com vida. Isso é o que acordamos. Ninguém falou de matar ao Inominável. Além disso, não pode morrer, não é?
Voltaram a olhar o um ao outro. Rhys se uniu a nós.
— Não, não pode morrer.
— É real? — perguntou Lucy.
— O que quer dizer? — respondeu Rhys.
— É o suficiente sólido para que lhe afetem nossas armas?
— Sim, é suficiente real para isso. Uma vez que lhe tenhamos desprendido da magia que o protege.
— Devemos nos desfazer dessa magia — disse Doyle.
— Como? — perguntei, e os nervos me consumiam só de pensar na resposta.
— Terá que feri-lo — respondeu Frost.
Olhei essa cara arrogante e soube que estava me escondendo algo. Agarrei-lhe pelo braço.
— Como podemos lhe ferir?
Seu olhar se suavizou ao me olhar; o cinza passou a ser da cor das nuvens de tormenta em um céu justo depois de chover, quando o sol está a ponto de aparecer. Olhei como a cor mudava, igual às nuvens mudam no céu.
— Uma arma de poder poderia ser capaz de feri-lo se o guerreiro for um perito.
Sujeitei-lhe o braço com mais força.
— O que significa um perito?
— Um perito para que não o mate no intento — respondeu Rhys. Tanto Frost como Doyle lhe olharam com cara de poucos amigos.
— Olhe, não temos tempo para joguinhos. Um de nós com uma arma de poder e suficiente experiência tem que conseguir acabar com ele — disse Rhys.
Não soltei o braço do Frost, mas olhei ao Doyle.
— Quem está na lista de peritos?
— Isto é insultante — respondeu Rhys —. Doyle e Frost não são os únicos que há aqui. Olharam-lhe de novo com cara de aborrecimento.
— Nunca fui o guarda preferido da rainha, mas era muito bom no combate.
— Eu sou como Merry — interveio Galen. — Cheguei depois de ter acado os velhos tempos. Sou destro com a espada, mas não disponho de nenhuma arma de poder.
— Porque perdemos a capacidade para fazer essas coisas — repôs Frost.
— Convertemo-nos em mais carne e em menos espírito puro com cada carcaça. Permitiu-nos sobreviver, inclusive prosperar, mas nos custou um preço.
Aproximei-me do corpo do Frost e me topei com sua espada, Beijo de Inverno, entre nós dois. Que oportuno. Olhei aos outros homens. Frost era o único que usava a túnica. Todos outros foram vestidos com roupa de rua, camisetas, calças jeans, botas... exceto Kitto, que só levava uma camiseta e os shorts. A roupa não era a adequada, mas as armas sim.
Frost dispunha de uma segunda espada atada à costas, uma espada quase tão alta como eu. Sabia que a túnica escondia mais armas. Sempre levava alguma espada ou faca com ele, a não ser que o proibisse a rainha.
Doyle tinha posto a pistola na cartucheira e tinha também uma espada no quadril e duas capas de pulso em ambos os braços. As facas de prata reluziam na pele escura, mas a espada era tão negra como ele. A folha era de ferro, não de aço. Nunca soube do que era fabricado o punho; era de metal, mas desconhecia de que tipo. A espada se chamava Loucura Negra, Báinidhe Dub. Se alguém que não fosse Doyle tentava agarrá- la, voltava-se irremediavelmente louco. As adagas que levava nos pulsos eram iguais, fabricaram-se de uma vez. Acreditava-se que essas legendárias armas alcançavam qualquer objetivo uma vez lançadas. Seus apelidos na corte tinham sido Snick e Snack. Sabia que tinham nomes verdadeiros, mas sempre as tinha ouvido chamar por estes nomes.
Galen levava uma espada atada ao lado, e era uma boa espada, embora não mágica, não como as grandes arma. Possuía uma adaga no outro lado do cinto para equilibrar a espada. Carregava também uma cartucheira no ombro com uma pistola sobre a camisa desabotoada, e uma segunda pistola escondida nas costas.
Eu tinha posto um cinto no meio do vestido de verão e tinha colocado nele uma cartucheira para levar a pistola. Danificava o corte do vestido, mas se as coisas fossem realmente mal, preferia sobreviver com um aspecto um pouco parvo que morrer impecável. Tinha duas navalhas em duas capas sob o vestido, e uma pistola menor em uma cartucheira situada no tornozelo. Ambas as cortes não tinham me considerado apta para levar nem sequer uma espada não mágica.
Rhys contava com sua espada às costas, a que usava desde tempos antigos, Uamhas, Morte Terrível. Levava seu machado atado à cintura, porque com apenas um olho sua percepção tridimensional não estava à altura de uma espada. Tinha também adagas, mas não estava segura de querer me encontrar perto de onde pensasse as lançar. Quando te falta um olho, perde a capacidade da visão tridimensional.
Nicca possuía uma espada quase idêntica a padrão de cavalheiro do Galen, preciosa mortal, mas não poderosa. Nicca levava duas pistolas em cada lado de uma cartucheira sujeita ao ombro. Tinha razões para pensar que utilizava as duas mãos indistintamente. Escondia uma terceira pistola nas costas, e uma adaga no lado oposto à espada. Possivelmente também se tratasse de uma arma padrão, como a espada. Kitto não sabia o suficiente sobre pistolas para confiar-se em que não se dispararia em um pé, mas levava uma curta espada atada a um cinto na parte posterior de sua camiseta do Coiote.
Sage tinha uma diminuta espada de prata que resplandecia devido à luz do sol. Não quis nos dizer como se chamava.
— Conhecer o nome de algo é ter poder sobre ele — disse.
Produziu-se um som retumbante e pareceu levantar-se quando uma parte do muro de Maeve caiu. O Inominável tinha feito armadilha. Não tinha atravessado os amparos, mas sim tinha destruído aquilo ao que os tinham sido projetados.
A coisa atravessou o buraco seguida de uns quantos disparos. Os oficiais no comando gritaram:
— Não disparem, não disparem!
Doyle se dirigia a pernadas para o buraco.
— Vou utilizar as adagas. Darão no objetivo, é sua função.
— Pode te aproximar o suficiente e te manter fora de seu alcance? — perguntou Frost. Doyle se voltou um instante para olhá-lo.
— Isso acredito. — E seguiu caminhando.
Frost se separou de mim e pôs as mãos com cuidado sobre meus ombros.
— Devo ir com ele. Se falhar, devo estar ali.
— Primeiro me beije — lhe pedi.
— Se roçar seus lábios, nunca poderei me separar de seu lado. — Beijou-me na testa e correu para o Doyle.
Rhys me tomou entre seus braços enquanto seguia muito pasmada para pensar. Beijou-me, foi um apaixonado beijo de parafuso, e a maior parte de minha maquiagem acabou em seus lábios. Voltou a me depositar sobre o chão enquanto recuperava o fôlego.
— Não pode me roubar minha coragem com um beijo, Merry. Não me ama o suficiente. — Correu depois dos outros dois homens antes de que pudesse pensar em algo que dizer.
A polícia enviou um comando armado de homens das forças especiais SWAT para cobrir aos homens; logo, adiantaram-se e atravessaram o buraco da parede desaparecendo de nossa vista.
O Inominável se esfumou também, coisa estranha, como se uma vez cruzado o muro perdesse-se o ser, apesar de que deveria ter se sobressaído por cima dele.
— E se fôssemos à parte traseira e tirássemos a Maeve? — expôs Galen em meio de um silêncio sepulcral.
Todos lhe olhamos.
— Não podemos lutar contra o Inominável, mas poderíamos fazer isso. Lucy se deu um tapa na testa.
— Que tola, mas que parva fui, deveríamos ter evacuado a Maeve antes de qualquer ação.
— Seguirá ela — eu disse —. A não ser que consiga um helicóptero para tirá-la da casa, não o obteremos.
Lucy pareceu pensar uns instantes.
— Possivelmente possa conseguir um. Os Reed têm muito poder nesta cidade.
— Se puder, faz isso — disse.
— Enquanto isso, nos deixe uns quantos homens e iremos à parte traseira — pediu Galen.
— Vou contigo — eu disse.
Negou com a cabeça e pôs uma expressão séria.
— Não, Merry, você não vem.
— Sim, Galen, sim que vou. Criaram-me para saber que um líder nunca pede a sua gente algo que ele mesmo não está disposto a fazer.
— Seu pai era um bom homem..., mas você é mortal, Merry. Nós não somos.
— Todos os policiais são mortais, e olhe onde estão.
— Não — repetiu.
Discutimos, mas ao final venci porque todos os homens que teriam rebatido meus argumentos se encontravam mais à frente do muro quebrado enfrentando-se à coisa que tínhamos ido destruir.
Capítulo 42
Não tivemos nenhuma dificuldade para saltar o muro. Era alto, embora não muito, e desconectar o alarme silencioso tinha deixado de ser um problema. A polícia já estava ali. Ajudaram-me a superar um estreito espaço coberto de camélias verde escuro que formavam um segundo muro e quase escondiam a casa situada frente a nós. Não era a época do ano de floração, assim que se tratava só de arbustos com folhas grosas e cerosas. Sei exatamente o tato das folhas porque Lucy e Galen me obrigaram a permanecer nos malditos arbustos. Podia ir com eles, mas ambos se asseguraram de que não aconteceria nada.
Um policial uniformizado se adiantou um pouco e voltou com a notícia de que havia uma porta trilho de vidro pela que era fácil entrar. Estávamos a ponto de nos dirigir para ali para entrar e procurar a Maeve Reed, quando aconteceu algo terrível.
O Inominável se fez visível.
Seu encanto desapareceu produzindo uma ressaca que afetou a todos os duendes da zona. Ainda protegida pelas camélias, não podia ver nada, mas dois dos policiais abriram as bocas de par em par e começaram a gritar. Os outros policiais empalideceram, mas tentaram acalmar aos dois primeiros, até que um dos que gritavam caiu de joelhos e tentou arrancar os olhos. Um dos mais acalmados tentou com todas suas forças sujeitar as mãos do que gritava para evitar que se danificasse. Outro oficial de polícia deu uma série de bofetadas ao segundo, enquanto amaldiçoava com cada golpe.
— Filho da puta. — Bofetada —. Filho da puta. — Bofetada...
Até que o policial que gritava se sentou sobre a grama e escondeu a cabeça choramingando.
Os dois policiais restantes e Lucy, pálidos mas preparados, tiraram suas armas.
Galen tinha se separado do muro quando o encanto desapareceu e todos os duendes que havia conosco olharam fascinados o que se elevava frente a nós. Eu quase não olhei. Era em parte humana; possivelmente minha mente estalaria como a dos dois policiais. Entretanto, ao final, não pude evitar.
Como se descreve o indescritível? Havia tentáculos, e olhos, e braços, e bocas, e dente, e muito de tudo. Mas cada vez que acreditava que tinha entendido sua forma, esta mudava. Piscava, e já não era como o recordava. Possivelmente era que não podia ver a forma real do Inominável. Possivelmente não poderia suportar, assim que esta era a melhor maneira que tinha minha pobre mente para aguentá-lo. Quão único podia pensar era que essa montanha de horror que se arrastava era a versão censurada que meu cérebro me permitia ver. Não desejava ver nada pior.
Lucy olhou para o chão, o sofrimento se refletia em seu rosto como se lhe doesse só olhá-lo.
— Vamos matar a isso?
— Vamos conter isso — respondeu Galen —. Não pode matar a magia.
Sacudiu a cabeça, agarrou com mais força a pistola e se girou com valentia para olhar para o enorme objetivo.
Os rádios dos uniformize cobraram vida. A mensagem era que se podia vê-lo, podia matá-lo. Fogo.
Dispus de um segundo para pensar onde se encontrava Maeve antes que Galen se lançasse sobre mim e caíssemos os dois sobre o chão de barriga para baixo. Um milésimo de segundo depois, as balas sobrevoavam por cima de nossas cabeças. Um dos policiais que gritavam se liberou dos dois que tentavam sujeitá-lo e, quando ficou em pé, seu corpo começou a sacudir-se como se dançasse algum baile estranho, até que caiu morto a nosso lado. Nesse momento, as balas eram mais perigosas que o Inominável.
Lucy gritou por seu transmissor:
— Estão disparando em nós! Ainda não pusemos em lugar seguro aos civis! Detenham o fogo até que não estejam totalmente convencidos de que disparam, droga. — Os disparos continuaram. Lucy voltou a gritar — : Oficial abatido, oficial abatido, alcançado por fogo policial, repito, alcançado por fogo policial!
Os disparos foram diminuindo até que ao final cessaram. Ficamos todos pegos ao chão durante uns momentos, esperando. Parecia muito importante respirar, como se nunca o tivesse feito o bastante bem antes. Ou possivelmente era o corpo sangrado do policial morto o que convertia a respiração em uma provocação, como se todos tivéssemos que respirar para compensar que ele tinha deixado de fazê-lo.
Quando tudo ficou em calma, Lucy ficou de joelhos com muito cuidado. Outros policiais começaram também a ficar de joelhos, até que, por fim, um dos policiais uniformizados mais jovens se levantou. Não caiu morto, assim que outros nos levantamos com cuidado.
— Olhem! — exclamou um deles.
Olhamos. O Inominável estava sangrando. O sangue brotava como carmim de sua «cabeça».
— Merda — disse Lucy —. Vamos necessitar armas anti tanques para acabar com essa coisa.
Estive de acordo com ela.
— Quanto demorariam para trazer as armas do Exército aqui?
— Muito — respondeu. Seu rádio voltou a chamar. Escutou as palavras ininteligíveis e logo disse — : O helicóptero está a caminho. Temos que encontrar à senhora Reed e conseguir tirá-la fora da propriedade.
Não tivemos que lhe encontrar porque foi ela quem nos encontrou. Ela e Gordon Reed chegaram correndo a todo a pressa que ele podia. Julian ia atrás deles. O maior perigo nesse momento era que nos disparássemos uns aos outros devido ao grande nervosismo. Conseguimos nos controlar e não ser tão estúpidos, mas podia sentir o pulso no pescoço e todo mundo estava em tensão, como se se achassem preparados para voltar a saltar o muro.
Maeve Reed me agarrou a mão entre as suas.
— Foi Taranis? Ele Sabe?
— Não sabe do bebê.
— Então...
— Tem descoberto que nos reunimos contigo.
— Senhora Reed. — Um oficial de polícia alargou a mão para ela —. Temos que tirá-la daqui imediatamente.
Beijou-me na bochecha e permitiu que o amável policial a entregasse a outro amável policial que esperava na parte superior do muro.
Gordon Reed foi o seguinte. Não disse nada. Parecia lutar para respirar e manter-se de pé entre o Julian e o mesmo policial amável que acabava de ajudar Maeve a saltar o muro. Quando estiveram a salvo, perguntei ao Julian:
— Onde estão seus homens?
— Todos estão mortos menos Max. Ele está muito ferido para caminhar. Lhe disse que se escondesse na casa para poder tirar os Reed.
Não soube o que responder, mas um policial disse ao Julian:
— Você é o seguinte.
Assim não tive que dizer nada, e me limitei a observar como escalava para a segurança. A maioria dos policiais que ainda podiam caminhar se encontravam já ao outro lado, quando Lucy exclamou:
— OH, Meu deus!
E eu me girei para ver o Inominável.
O cabelo branco do Rhys brilhava em comparação com as cores mais escuras do monstro. Algo entre um braço e um tentáculo lhe tinha agarrado pelo peito. O fio de seu machado resplandecia ao sol no momento em que o cravou em um olho do tamanho de um Volkswagen. O olho sangrou, o monstro gritou e Rhys também.
— Tirem Merry daqui — disse Galen justo antes de pôr-se a correr para o monstro.
Capítulo 43
Não esperei que Nicca ou Lucy me segurassem, limitei-me a sair correndo atrás do Galen. As sandálias não eram um calçado adequado para correr, assim que as tirei e as lancei a um lado. Kitto me seguia, e Nicca, com o Sage sobre o ombro, não se encontrava muito longe tampouco. Lucy e o último policial uniformizado também nos seguiam.
Entretanto, o que nós vimos deixou a todos de pedra durante uns instantes. O Inominável não possuía pernas, mas sim, tratava-se de uma massa retorcida de algo, e não fui capaz de manter a vista sobre aquilo. Senti um grito apanhado na garganta desejoso de sair, mas soube que se permitia que saísse, não poderia parar nunca (como tinha acontecido ao policial que continuava gritando contra a parede). Em ocasiões, o único que te impede de te voltar louco é a força de vontade e a necessidade.
Rhys seguia apanhado entre essa massa de carne, mas tinha deixado de mover-se. Os braços penduravam a ambos os lados, pálidos e imóveis, e soube que tinha deixado cair todas suas armas, talvez estava inconsciente, ou pior...; neguei-me a concluir o pensamento. Já haveria tempo mais tarde para pensar o impensável.
Os policiais armados que tinham entrado com os guardas estavam pulverizados pelo chão ao redor da coisa como se fossem brinquedos quebrados. A piscina ficava justo atrás do Inominável e seu rastro de destruição tinha demolido o barraco.
O cabelo prateado do Frost flutuava como uma cortina brilhante. Um braço lhe pendurava inerte a um lado, mas tinha conseguido chegar até a base da criatura. Blandou Beijo de Inverno com a outra mão e conseguiu cravar-lhe embora um tentáculo da massa lhe golpeou lhe empurrando para trás até que a parede lhe deteve. Pareceu cair ao chão como um saco de ossos quebrados. Só a mão do Galen me impediu que saísse correndo para ele.
— Olhe — disse.
No lugar onde a coisa ainda tinha cravada a espada, havia uma mancha branca que crescia. Quando chegou a ser do tamanho de uma mesa de copa, dava-me conta de que se tratava de gelo e geada. Beijo de inverno conseguia exatamente isso. Mas o Inominável arrancou a espada e a lançou para trás. A mancha crescente de gelo deixou de aumentar, embora não desapareceu.
Procurei o Doyle e o encontrei como uma piscina de negrume ao lado do azul turquesa da água. O sangue se pulverizava formando um atoleiro debaixo dele. Apoiou-se sobre um braço para levantar-se, mas a coisa lhe golpeou casualmente e o lançou dentro da piscina. Desapareceu da vista, e o único que permaneceu fora da água foi uma de suas mãos. Caiu dentro da água azul e desapareceu.
Galen me agarrou pelo braço tão forte que quase me doía, e me obrigou a lhe olhar.
— Me prometa que não se porá a seu alcance.
— Galen...
— Prometa-me isso, prometa-me isso – gritou me sacudindo.
Nunca lhe tinha visto tão enfurecido, e soube que não me deixaria ir ajudar lhes, e que ele tampouco os ajudaria até que não o prometesse.
— Prometo-lhe isso.
Beijou-me nos lábios com força, tanto que quase me fez mal. Então me agarrou pela mão e a entregou ao Kitto.
— Fica com ela, a mantenha com vida.
Continuando, ele e Nicca trocaram um olhar e tiraram suas pistolas. Lucy e o oficial lhes imitaram. Colocaram-se todos em linha e começaram a disparar. Era fácil não atingir ao Rhys, havia uma grande quantidade de monstro para fazer alvo. Dispararam até ficar sem munição. A criatura se aproximou deles e Lucy as arrumou para esquivá- la e chegar à casa, mas o policial uniformizado era maior e o apanhou algo que parecia umas mãos gigantes em forma de garra, embora não eram isso exatamente. Rasgaram-lhe a pele e a carne, o sangue saiu disparado pelo ar como um brilhante arco carmesim. O grito do homem foi agudo, cheio de dor, cheio de horror; logo se produziu um silêncio, brutal e repentino, e prometo que pude ouvir o som de tecido rasgado, o som de carne rasgada, e o ruído de ossos quebrados quando a coisa partiu para homem em duas metades e o lançou para nós.
Kitto saltou em cima de mim e se apertou contra mim com seu corpozinho enquanto as partes do policial sobrevoavam nossas cabeças pulverizando sangue que caía sobre a roupa do Kitto como gotas de chuva.
Quando pude levantar a cabeça o suficiente para voltar a ver a luta, Nicca e Galen blandiam cada um uma espada e uma adaga. Começaram a rodear à coisa, cada um por um lado, mas como rodeia algo que possui múltiplos olhos e múltiplas extremidades?
Não sei se as demais espadas lhe tinham ferido já bastante para que não queria repetir a experiência, ou se estava simplesmente cansado de que lhe cravassem, mas não se defendeu com as extremidades, a não ser com magia. Nicca se cobriu de repente de uma névoa branca. Quando a névoa se limpou, apareceu convexo imóvel no chão. Não tive tempo de averiguar se seguia respirando porque o Inominável se equilibrou sobre o Galen, que lhe encarou. Ninguém tinha acusado nunca ao Galen de ser um covarde. Gritei seu nome, mas não se girou. Não pretendia distraí-lo, só queria avisá-lo do perigo.
Comecei a me revolver para poder me liberar do Kitto e me levantar do chão, e ao final deixou de me impedir isso e começou a me ajudar. Galen não possuía nenhuma arma mágica de nenhum tipo; tinha que fazer algo. Caminhei para frente e Kitto me agarrou para me deter. Tentei escapar dele, girei-me sobre os pés descalços para lhe ordenar que me soltasse, mas escorreguei no chão repleto de sangue e caí de bunda sobre a erva escorregadia. Me mancharam as mãos de sangue carmesim, fresca como a chuva sobre a erva que ainda não se secou. Começou a me picar a palma da mão esquerda, logo a me queimar. Era o sangue do Inominável e era tão venenoso como o resto dele. Levantei-me e tentei limpar a mão no vestido, embora não o obtive. A queimação se introduziu em minha mão, tinha atravessado a pele e fluía através de minhas veias, produzindo uma sensação como se o sangue de meu corpo se convertesse em um metal fundido, incandescente, como se meu próprio sangue estivesse fervendo e desejasse abandonar meu corpo.
Estremeci-me de dor e Kitto me tocou, tentou me ajudar. Gritou e se separou de mim cambaleando-se. A parte dianteira de sua camiseta estava manchada. Levantou a camiseta para me mostrar as marcas que lhe tinha feito eu com as unhas, e pude ver que sangravam soltando muito mais líquido que o que tinha perdido com a ferida original.
Meu primo Cel era príncipe do Sangue Antigo. Podia reabrir qualquer ferida sem importar quão velha fosse. Entretanto, nunca eram mais graves que as feridas originais. Isto era algo diferente. Doyle me disse uma vez que teria uma segunda mão de poder, mas não havia forma de saber quando se manifestaria nem qual seria. A dor de meu próprio corpo era menor à medida que Kitto sangrava. Mas não queria que Kitto sangrasse, queria que o fizesse o Inominável.
Se tinha que tocar ao Inominável para que funcionasse esta segunda mão de poder, morreria, assim ia tentar com magia como se faria com uma pistola. Um disparo de longe antes de ver-se forçado a disparar mais de perto. E, enquanto disponha de munição, nunca deixe de disparar.
Levantei a mão esquerda para a criatura, com a palma para ela, e pensei não na palavra sangre a não ser em sangue. Pensei em seu sabor salgado, metálico; a sensação de sangue fresco e quente em quantidades enormes, a forma em que se espessa ao esfriar-se. Pensei em seu aroma, esse aroma que põe os cabelos de pé, e em como se derramas uma quantidade suficiente de sangue fresco, sempre cheira a carne, como um hambúrguer cru.
Pensei em sangue e comecei a caminhar para o Inominável.
Tinha dado só uns passos quando a dor voltou. O sangue me fervia nas veias, e caí de joelhos, com a mão ainda adiantada para a criatura. Apostaria algo a que Kitto tinha deixado de sangrar. Gritei e vi como um enorme olho rodava para me olhar, para me olhar de verdade pela primeira vez. A dor me tampou a visão e, finalmente, roubou- me a voz e o ar. Estava-me asfixiando de dor. Então, a dor se aliviou, só um pouco, e logo um pouco mais. Quando me esclareceu a vista, o sangue brotava das feridas da montanha de carne, brotava não como deveria fluir, mas sim como água, mais depressa, mais líquida. A última fresta de dor se desvaneceu quando o sangue começou a sair por todas as feridas que tinham causado à criatura esse dia. Todos os buracos de bala e todas as marcas das espadas se tingiram de cor escarlate. O sangue começou a descender pelo corpo da coisa.
O Inominável começou a mover-se para mim, poderoso e desconcertante, era como observar uma montanha que se aproxima de ti. Sabia que se me alcançava, me mataria, assim tinha que impedir que chegasse até mim.
Então não só pensei em sangue, mas também em feridas, pensei não só em «sangre», mas também em «morre». Queria que morresse. Abriu-se uma ferida como uma nova boca, rachando a carne de um lado, logo depois de outro, e depois de outro. Era como se uma invisível espada gigante o estivesse cortando. O sangue fluía cada vez mais, até que o Inominável ficou coberto por uma capa de vermelho pegajoso da cabeça aos pés, coberto com um traje fabricado com seu próprio sangue. Então, saiu a fervuras como uma onda quase negra, como um lago esvaziado sobre a erva. Derramou-se e fluiu e chegou até mim. Caí de joelhos em uma piscina quente de sangue. E seguia sangrando.
Quanto mais sangrava, mais acalmada me encontrava. Uma tranquilidade me enchia o corpo, sentia-me cada vez mais em paz. Fiquei de joelhos sobre um enorme atoleiro, enquanto observava que a coisa se aproximava, embora não tinha medo. Não sentia nada, não era nada, só magia. Nesse preciso instante, vivi, respirei e me converti em um feitiço. A mão de sangue me dirigiu, utilizou-me, com tanta segurança como eu tinha tentado utilizá-la. Com a magia antiga, nunca fica claro quem é o amo e quem o escravo.
O Inominável se elevou por cima de mim como uma grande montanha de sangue, com uma parte de seu corpo estendida em minha direção, e a só uns metros de distância. Ouvi como uma respiração, um som agudo, quase um som de medo, e logo explodiu, não seu corpo, mas sim como se até o último mililitro de sangue dessa enorme figura arrebentasse ao mesmo tempo. O ar se converteu em sangue, era como tentar respirar debaixo da água. Durante um segundo, pensei que ia me afogar, logo me encontrei procurando ar para respirar e cuspindo sangue ao mesmo tempo.
Algo grande golpeou a um lado da cabeça e caí sobre o chão encharcado. Inclusive ao morrer, tinha tentado me arrastar com ele. A última coisa que vi antes que a escuridão total alagasse tudo foi a cara tinta de carmesim do Kitto, e o Sage coberto de vermelho sobre seu ombro.
Despertei flutuando. Estava flutuando no meio do ar e, ao princípio, pensei que se tratava de um sonho. Logo vi o Galen flutuar também fora de meu alcance. Despertei para comprovar que todos os duendes do jardim flutuavam. A magia estava por toda parte, atravessando o ar como uns foguetes multicoloridos, levitando a nosso redor como manadas de pássaros fantásticos que nunca conheceram um céu mortal. Bosques inteiros se levantaram e caíram ante nossos olhos. Os mortos se elevaram, caminharam e desapareceram. Era como ver discorrer os sonhos e os pesadelos de alguém sob o brilhante sol da Califórnia. Tratava-se do poder primitivo sem nenhuma mão que o contivesse ou lhe ordenasse nada, tratava-se simplesmente de magia, por toda parte.
A magia se vertia sobre o Rhys, Frost, Doyle, Kitto, Nicca, inclusive sobre o Sage.
Observei uma árvore fantasma voar até o corpo de Nicca e desaparecer dentro dele. Sage estava coberto por uma trepadeira florescida. Todos os homens mortos se dirigiram para o Rhys e entraram nele enquanto gritava. Frost estava escondido sob algo que parecia neve. Golpeou-o com o braço são, mas não pôde pará-lo. Vi pela extremidade do olho o Doyle meio escondido detrás de algo negro e sinuoso; por fim, a magia encontrou ao Galen e a mim, que flutuávamos a só uns metros um do outro. Golpearam-nos aromas e explosões de cor. Cheirei a rosas, e apareceu sangue em meu pulso como se tivesse parecido seus espinhos. Acredito que outros estavam recuperando o que tinham entregue ao Inominável, mas nem Galen nem eu tínhamos dado nada. Pensei que passaria de comprimento devido a isso, mas me equivoquei. A magia selvagem tinha sido liberada e queria voltar a estar em alguma parte de alguém de novo.
Algo parecido a um enorme pássaro branco levantou vôo da massa sanguinolenta e se aproximou para mim como se tivesse alguma intenção. Galen gritou:
— Merry!
E a figura brilhante me golpeou, entrou em mim, mas não saiu por nenhum lado. Durante um instante, vi o mundo através de vidro e névoa. Cheirei algo que se queimava. Logo voltou a escuridão.
Quando Galen e eu recuperamos a consciência, outros tinham conseguido enterrar ao Inominável no chão, na água, no próprio ar. Tinham-no contido como eu tinha o contido. Não podíamos matá-lo, mas podíamos evitar que se curasse e que voltasse a liberar-se.
Maeve Reed tinha sido tão amável de nos permitir utilizar parte de sua esplêndida propriedade para enterrar à coisa, embora não foi exatamente o que fizemos. Enterramo-lo em sua propriedade e em nenhuma parte. Encontrava-se apanhado em um lugar situado em meio de tudo e de nada.
Maeve nos ofereceu viver na casa de hóspedes, que era maior que muitas das casas que conhecíamos. Assim, solucionamos o problema de um apartamento maior, e nos mantínhamos perto dela em caso de que Taranis encontrasse uma nova forma de atacá-la.
Sempre tinha pensado que Andais era a que estava louca, mas agora tinha mudado de opinião. Taranis estava disposto a fazer algo para salvar-se. Essa não é a maneira de pensar de um bom rei. Bucca — Dhu se encontra sob amparo da Corte Escura. Tivemos que contar tudo a Andais. Temos uma testemunha que viu o que fez Taranis, mas não é suficiente para terminar com um reinado de mil anos. Será um pesadelo político, mas não podemos permitir que siga no poder.
Taranis segue insistindo em que vá visitar a sua corte. Parece-me que não vou.
Rhys não teve nenhum problema para devolver a seu lugar os fantasmas famintos. Recuperou os poderes que o Inominável lhe tinha tirado, igual aos outros. Mas o que significa isto?
Significa que Rhys fala com habitações vazias... mas se estão vazias, por que há vozes que respondem? Frost pode colocar um arabesco na janela de casa no verão, uma mancha de gelo que utiliza para me desenhar coisinhas. Doyle pode desaparecer a plena luz do dia, e nenhum de nós é capaz de encontrá-lo. Asseguraram-me que não é invisível, mas poderia ser. Nicca conseguiu que uma árvore florescesse meses antes da época de floração..., só apoiando-se nela. Kitto agora fala com as serpentes. Saem de todas as partes para saudá-lo, como se saúda um rei. É incrível a quantidade de serpentes que há e que não vemos a não ser que elas desejem ser vistas. Sage conseguiu que uma flor de jasmim permaneça viva e fragrante durante duas semanas sem regá-la. Leva a flor detrás da orelha e não mostra nenhum sinal de murchar-se. Quanto ao Galen e a mim (alcançados por tanta magia selvagem, mas sem que fosse nossa) não sabemos ainda o que acontecerá. Doyle acredita que os novos poderes sairão à luz pouco a pouco. Minha segunda mão de poder emergiu total e completamente. Quão único preciso é uma pequena ferida e posso chamar tudo o sangue do corpo de qualquer ser. Sou a princesa da Carne e do Sangue. A mão de sangue não tinha sido vista como poder na época do Balor do Olho Diabólico. Para os que não estejam a par da história pré céltica, significa milhares de anos antes do nascimento de Cristo.
A rainha está encantada comigo. Agarrei-a de tão bom humor que a convenci para que me desse de presente a seus homens. O príncipe Cel dispõe de sua própria guarda privada, e ela tem a sua. Não deveria ter eu uma própria? Andais esteve de acordo, assim que tudo o que queira é meu. Vou ficar com todos.
Prometi ao Frost que o manteria a salvo, que manteria a todos a salvo. Uma princesa deveria cumprir sempre suas promessas.
Andais vai me enviar mais guardas para garantir minha segurança. Pedi-lhe que me permitisse escolher os que eu quisesse, mas não estava tão contente comigo para aceitar. Pedi-lhe se podia escolher Doyle aos guardas, mas também se negou. Acredito que a rainha do Ar e da Escuridão tem seus próprios planos e enviará a quem goste. Quão único posso fazer a respeito é esperar e ver quem aparece em minha porta. Desfruto de noites muito agradáveis com meu cavalheiro verde, Galen, meu por fim. Minha Escuridão segue sendo tão perigoso como sempre foi, mas debaixo desse perigo descubro restos de dor e sua resolução para melhorar as coisas para todos. Rhys mudou e já não é meu amante risonho, e tampouco quer me compartilhar com Nicca.
É como se ao lhe devolver os poderes tivesse maturado, e agora é mais sério e mais formal. Há mais coisas nele agora, mais magia, mais desejo, mais força.
Nicca segue sendo Nicca. Carinhoso, doce, mas não o suficientemente forte.
Kitto também cresceu e mudou. Agora é mais. Observo quase com admiração como seu poder vai aumentando. Logo está Frost. O que pode se dizer do amor? Porque é amor, mas sigo sem ficar grávida.
Realizei um rito de fertilidade que conseguiu levar vida ao ventre de outra sidhe, mas o meu permanece vazio. Por quê? Se fosse estéril, o feitiço teria falhado, mas funcionou. Devo conceber um filho logo ou nada terá importância. O Yule aconteceu e só ficam dois meses antes que termine o encarceramento do Cel. Tornou-se louco durante seu fechamento? Deixará de lado qualquer precaução e tentará me matar? Mais vale que fique grávida antes que Cel seja posto em liberdade. Rhys sugeriu que contratemos a um assassino para que acabe com o Cel assim que saia da prisão. Se não fosse pelo aborrecimento e a dor da rainha, não teria nenhum inconveniente em dizer que sim. Acredito.
Ajoelho-me ante o altar e rezo. Rezo para que me guie, para ter sorte, boa sorte. Algumas pessoas desejam um pouco de sorte, mas não dizem que tipo de sorte. Sempre que se reze terá que ir com pés de chumbo, porque a divindade está escutando e normalmente te outorga o que lhe pede, não o que tinha pensado que pedia. Que a Deusa nos conceda boa sorte e um inverno fértil.
1 Seres que habitam o país das fadas, segundo o folclore Irlandês.
Laurell K. Hamilton
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