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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


UMA DAMA DE ALUGUEL / Amanda Quick
UMA DAMA DE ALUGUEL / Amanda Quick

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

UMA DAMA DE ALUGUEL

 

Arthur, conde de St. Merryn precisa contratar uma mulher. A jovem terá que simular ser sua noiva durante algumas semanas nos círculos da alta sociedade, pois ele tem assuntos que resolver e sua companhia evitará o habitual assédio das casamenteiras. Encontrar a candidata torna-se mais difícil do que ele pensava até que finalmente conhece Elenora Lodge. O aspecto simplório da moça não oculta sua beleza nem o fogo dos seus olhos. Dadas suas circunstâncias pessoais, Elenora aceita a generosa oferta do conde.

Entretanto, alguma coisa não vai bem na tenebrosa mansão de Arthur, e Elenora está convencida de que ele esconde um segredo...

 

Arthur Lancaster, conde de St. Merryn estava sentado perto do fogo crepitante de uma das lareiras do seu clube lendo o jornal, com uma taça de um excelente vinho do Porto na mão, quando lhe comunicaram que sua noiva acabara de fugir com outro homem.

— Dizem que o jovem Burnley utilizou uma escada para subir até o dormitório da senhorita Juliana e ajudou-a a descer até a carruagem — disse Bennett Fleming, um homem baixo e de constituição robusta, enquanto se sentava na poltrona, bem em frente de Arthur. Pegou a garrafa de vinho do Porto e prosseguiu — Segundo me contaram, dirigem-se para o norte, sem dúvida para Gretna Green. O pai de Juliana saiu atrás deles, mas sua carruagem é velha e lenta.

Fez-se o silêncio na sala. Todas as conversas se interromperam, deixou-se de ouvir o ranger dos periódicos e o tilintar das taças. Era quase meia-noite e o clube estava cheio. Todos ficaram paralisados nos seus assentos e aguçaram o ouvido tentando escutar a conversa que acontecia em frente à lareira.

Arthur deixou escapar um suspiro, dobrou o jornal, deixou-o de lado e bebeu um sorvo do vinho do Porto. Em seguida, levantou o olhar para a janela: a chuva, empurrada pelo vento, golpeava com fúria os cristais.

—Terão sorte se conseguirem percorrer dez milhas com esta tempestade — comentou Arthur.

Como tudo o que disse naquela noite, aquele comentário entrou a fazer parte da lenda de St. Merryn... “É tão frio que quando lhe informaram que sua noiva tinha fugido com outro homem, a única coisa que fez foi comentar que fazia muito mau tempo”.

Bennett bebeu um bom gole do vinho do Porto e, depois de seguir o olhar de Arthur, com os olhos fixos na janela, disse:

— O jovem Burnley e a senhorita Juliana dispõem de uma excelente carruagem e de cavalos fortes e descansados. — A seguir pigarreou e acrescentou —: É pouco provável que o pai de Juliana os alcance, mas um homem sozinho e com um bom cavalo poderia fazê-lo.

A espera se propagou a través do silêncio transparente. St. Merryn era, sem dúvida alguma, um homem sozinho e todo mundo sabia que tinha no seu estábulo vários cavalos de primeira classe. Todos estavam na expectativa, pendentes de se o conde se decidiria a perseguir o casal.

Arthur ficou em pé com toda a tranquilidade e agarrou a garrafa meio vazia de vinho do Porto.

— Sabe de uma coisa, Bennett? Esta noite padeço de um ataque de aborrecimento extremo. Acredito que irei verificar se tem algo de bom na sala de jogos.

Bennett arqueou as sobrancelhas.

— Mas se você nunca joga. Não sei quantas vezes ouvi você dizer que é totalmente ilógico apostar dinheiro em uma mão de cartas ou no jogo de dados.

— Sinto-me com sorte esta noite — disse. E se dirigiu a sala de jogos.

— Não há quem o entenda... — resmungou Bennett e, com o rosto contraído, ficou de pé, agarrou sua taça de vinho do Porto já meio vazia e correu para alcançar ao conde.

— Sabe de uma coisa? — perguntou-lhe Arthur quando estavam no meio da sala, preenchida por um silêncio antinatural —. Acho que me enganei quando pedi a Graham à mão da sua filha.

— Isso acredita?

Bennett lançou a Arthur um olhar de preocupação esperando encontrar no rosto do seu companheiro algum sintoma de febre.

—Assim é. Acredito que na próxima vez que decida procurar esposa enfocarei o projeto de uma forma muito mais lógica, como faria com um de meus investimentos.

Bennett, consciente de que todos os pressente estavam pendentes de tudo o que Arthur dizia, fez uma careta.

— Como você pode pensar em aplicar a lógica na hora de procurar esposa?

— Penso que as qualidades esperadas em uma esposa não são muito distintas das que seriam exigidas a uma dama de companhia.

Ao ouvi-lo, Bennett se engasgou com vinho do Porto.

— Uma dama de companhia? — perguntou a Arthur.

— Pensa bem. —A taça de Arthur tilintou quando apoiou nela a garrafa para servir-se de mais vinho do Porto —. A dama de companhia ideal seria uma mulher de boa família, com uma boa educação e uma reputação excelente. Seria uma mulher equilibrada, modesta e discreta tanto em suas ações como na forma de se vestir. Acaso não seriam estes os requisitos que alguém estabeleceria se tivesse que definir a esposa perfeita?

— Uma dama de companhia é, por definição, uma mulher sozinha que perdeu sua fortuna — particularizou Bennett.

— Pois claro que é pobre e não tem recursos, por que se não, estaria disposta a aceitar um emprego tão humilde? — replicou Arthur encolhendo os ombros.

— Entretanto, a maior parte dos cavalheiros preferiria uma esposa que pudesse lhes contribuir com riquezas e propriedades — assinalou Bennett.

— Claro, mas é nesta questão onde eu disponho de uma grande vantagem, não crê? —Arthur se deteve na entrada da sala de jogos e examinou as mesas concorridas —. Para ser claro, eu tenho muito dinheiro e cada dia sou mais rico, não necessito de uma mulher enriquecida.

Bennett se deteve junto a ele e expressou sua conformidade, embora sem entusiasmo:

— É verdade.

— Uma das vantagens das damas de companhia é sua condição de extrema pobreza —continuou Arthur —. Desta forma agradecem qualquer emprego que lhes ofereçam, entende?

— Não tinha considerado este aspecto. — Bennett bebeu outro gole de vinho do Porto e baixou o braço pausadamente —. Acho que começo a entender o seu ponto de vista.

— A diferença das jovens românticas e com recursos cuja visão do amor está deformada por causa de Byron e das novelas da editora Minerva, as damas de companhia, por uma questão de necessidade, têm que ser muito mais práticas. A vida lhes ensinou que o mundo pode ser muito duro.

— Certamente.

— Consequentemente, a dama de companhia ideal não faria nada que pusesse em perigo seu emprego. Por exemplo, um homem poderia estar quase seguro de que ela não fugiria com outro homem pouco antes das bodas.

— Possivelmente se deva ao vinho do Porto, mas acho que o que diz tem muito sentido — disse Bennett franzindo o cenho —. Entretanto, como se encontra uma esposa com as qualidades de uma dama de companhia?

— Fleming, decepciona-me. A resposta a esta pergunta é evidente. Se alguém desejasse encontrar uma esposa com estas características, naturalmente, se dirigiria a uma agência que subministrasse damas de companhia, entrevistaria a várias solicitantes e finalmente faria sua eleição.

Bennett piscou.

— Uma agência?

— Assim não se encontraria com surpresas. — Arthur sacudiu a cabeça—. Deveria ter pensado nisso há alguns meses. Pensa em todos os problemas que teria evitado.

— Isto... bom...

— Se me desculpar, acredito que há um lugar livre naquela mesa do canto.

— Aqui se joga a sério — advertiu Bennett —. Tem certeza que...?

Mas Arthur já não lhe dava atenção e, depois de atravessar a sala, sentou-se à mesa.

Quando se levantou algumas horas depois, Arthur era alguns milhares de libras mais rico. O fato de que o conde tivesse quebrado sua norma inquebrável contra as apostas e tivesse ganhado, além disso, uma considerável soma de dinheiro acrescentou mais outra faceta à lenda de St. Merryn essa noite.

As primeiras luzes de um amanhecer cinza e chuvoso começavam a aparecer por cima dos telhados das casas quando Arthur saiu do clube. Em seguida, meteu-se na carruagem que o esperava na porta e se afundou no assento enquanto o levavam de retorno a enorme e sombria mansão da Rain Street. Uma vez ali, foi diretamente à cama.

Às nove e meia da manhã, foi despertado pelo mordomo quem lhe informou que o pai da sua noiva tinha encontrado filha dele numa estalagem, compartilhando o quarto com seu jovem herói.

Naturalmente, só havia uma solução para salvar a reputação da jovem, de modo que o indignado pai tinha ordenado que o casal se casasse imediatamente por meio de uma licença especial.

Arthur agradeceu amavelmente ao mordomo por ter lhe informado, virou-se na cama e voltou a dormir imediatamente.

 

Elenora

Elenora recebeu a notícia da morte de seu padrasto da boca dos dois homens aos que se viu obrigado a entregar todas suas posses por culpa de um desafortunado investimento. Aqueles homens chegaram a sua casa às três da tarde.

— Samuel Jones faleceu devido a um ataque de apoplexia quando descobriu que o projeto da mina tinha fracassado — lhe informou, sem nenhum tipo de compaixão, um daqueles homens recém-chegados de Londres.

— Esta casa, o que há nela e o terreno que se estende daqui até o riacho nos pertencem — anunciou o segundo credor enquanto agitava um montão de papéis assinados, folha por folha, por Samuel Jones.

O primeiro homem observou, com os olhos entreabertos, o anel de ouro que Elenora usava no seu dedo mindinho.

— O defunto incluiu suas joias e todos seus objetos pessoais, salvo sua roupa, na lista de bens que detalhou como garantia do empréstimo.

O segundo credor assinalou a um indivíduo enorme que estava uns passos por detrás deles.

— Apresento-lhe ao senhor Hitchins. O contratamos na Bow Street e sua missão é assegurar-se de que você não leve nada de valor desta casa.

O homem que acompanhava aos credores de Samuel Jones, um gigante de cabelos grisalhos, tinha um olhar duro e penetrante. Além disso, levava o distintivo profissional dos detetives da Bow Street: um porrete.

Elenora contemplou aos três homens com aspecto agressivo, consciente da inquietação que experimentavam sua governanta e sua criada, que andavam de um lado pra outro no vestíbulo principal da casa. Seus pensamentos estavam com os peões e os homens que cuidavam das plantações e da granja. Sabia muito bem que era pouco o que podia fazer para protegê-los. Sua única esperança era dar a entender que seria uma insensatez despedir os empregados.

— Suponho que são conscientes de que esta propriedade produz ganhos consideráveis — comentou Elenora.

— Assim é, senhorita Lodge — respondeu o primeiro credor enquanto se balançava sobre os calcanhares com satisfação —. Samuel Jones nos informou devidamente disso.

O segundo credor examinou atentamente os campos impecáveis do imóvel com ar observador.

— Sem dúvida se trata de uma granja muito bonita.

— Então, também serão conscientes de que o verdadeiro valor da propriedade consiste no fato de que os empregados que trabalham no imóvel e os que mantêm a casa são pessoas muito qualificadas. Resultaria impossível substituí-los. Se permitirem que tão somente um deles abandone seu posto de trabalho, asseguro-lhes que as colheitas serão arruinadas e a casa perderá seu valor em apenas alguns meses.

Os dois credores se olharam com o cenho franzido. Era evidente que nenhum deles tinha tido em conta a questão dos peões e os criados.

As sobrancelhas grisalhas do detetive se arquearam ao ouvir a explicação de Elenora e um estranho brilho iluminou seus olhos. Mas não disse nada. Por que deveria fazê-lo? — pensou Elenora. Ao final, não era da sua conta como aquele negócio acabaria.

Os dois credores chegaram a um acordo sem trocar palavras. O primeiro pigarreou e disse:

— Os empregados ficarão na granja — manifestou —. Já contratamos a venda do imóvel e o novo proprietário deixou claro que deseja que tudo continue como até agora.

— Salvo você, claro, senhorita Lodge — disse o segundo credor sacudindo a cabeça com afetação —. O novo proprietário não a necessitará.

Parte da tensão da Elenora se desvaneceu. Seus empregados estavam a salvo, agora podia concentrar sua atenção no seu próprio futuro.

— Suponho que me permitirão recolher minha roupa — repôs com frieza.

Nenhum dos credores pareceu perceber o profundo desdém refletido nas suas palavras. Um deles tirou um relógio do bolso.

— Você tem trinta minutos, senhorita Lodge. — A seguir assinalou ao homem corpulento da Bow Street com a cabeça e acrescentou —: O senhor Hitchins a acompanhará enquanto recolhe suas coisas e se assegurará de que não leva nenhum objeto de valor. Quando estiver pronta para partir, um dos peões a conduzirá até a estalagem do povo. O que faça a partir desse momento é assunto seu.

Elenora virou-se tão dignamente como pôde e se encontrou de frente com o rosto soluçante da governanta e a expressão de angústia da criada. A cabeça dava voltas por causa do desastre que acabava de acontecer, mas tinha que manter a compostura diante daquelas duas mulheres, de modo que lhes sorriu com a esperança de lhes reconfortar.

— Tranquilizem-se — disse com determinação —. Como ouviram, conservarão seus postos de trabalho, e os homens também.

A governanta e a criada deixaram de chorar e afastaram os lenços de seus rostos. Ambas se sentiram aliviadas e relaxaram.

— Obrigado, senhorita Elenora — murmurou a governanta.

Elenora lhe deu uns tapinhas no ombro e se dirigiu, com passo ligeiro, para as escadas tentando ignorar ao detetive de aspecto perverso que lhe seguia os passos.

Hitchins ficou de pé do lado da porta do dormitório com as mãos cruzadas nas costas e os pés cravados no chão observando-a atentamente enquanto ela tirava um enorme baú debaixo da cama.

Elenora se perguntou o que diria o agente se lhe anunciasse que era o primeiro homem que tinha posto os pés no seu dormitório, mas em vez disso, enquanto levantava a tampa e expunha o interior vazio do baú, disse:

— Este era o baú de viagem da minha avó. Ela foi uma atriz. Seu nome artístico era Agatha Knight. Quando se casou com meu avô provocou uma grande comoção na família. Foi um autêntico escândalo. Meus bisavôs ameaçaram com deserdar meu avô, mas, ao final, não tiveram mais remédio que aceitar a situação. Você sabe como são as famílias.

Hitchins deixou escapar um grunhido. Ou tinha pouca experiência familiar ou sua história pessoal lhe pareceu extremamente chata. Algo lhe dizia que a opção correta era a segunda.

Apesar da escassa conversação por parte de Hitchins, Elenora continuou falando sem cessar enquanto ia tirando seus vestidos do armário. Seu objetivo era distraí-lo, conseguir que não se fixasse no velho baú.

— Minha pobre mãe se sentia muito envergonhada pelo fato de que minha avó tivesse atuado nos cenários. Passou a vida tentando esquecer a desprestigiada carreira de sua mãe.

Hitchins consultou seu relógio.

— Restam dez minutos.

— Obrigado, senhor Hitchins. — Elenora sorriu com frieza—. O senhor é de grande ajuda.

O detetive demonstrou ser imune ao sarcasmo. Sem dúvida, devia encontrar-se frequentemente com esse tipo de comentários na sua profissão.

Elenora abriu uma gaveta com ímpeto e tirou uma pilha de camisolas perfeitamente dobradas.

— Possivelmente o senhor deseje olhar pra outro lado.

Hitchins teve a amabilidade de não olhar a roupa íntima de Elenora. Entretanto, quando ela se dispôs a agarrar o pequeno relógio que havia sobre a mesinha de cabeceira, ele apertou os lábios.

— Só pode levar sua roupa, senhorita Lodge — ele recordou enquanto negava com a cabeça.

— Sim, claro. Como pude me esquecer deste detalhe?

Adeus ao relógio. Lástima. Um prestamista poderia ter dado algumas libras por ele.

Elenora baixou a tampa do baú com força e o fechou com chave enquanto a sensação de alívio subia pela sua espinha dorsal. O detetive não tinha mostrado o menor interesse pelo velho baú de teatro da sua avó.

— Segundo me disseram, pareço-me muito a ela quando ela tinha minha idade —comentou Elenora em um tom casual.

— A quem se refere, senhorita Lodge?

— A minha avó, a atriz.

— De verdade? — Hitchins se encolheu de ombros com indiferença —. A senhorita está pronta?

— Sim. O senhor faria a gentileza de descer o baú?

— Sim, senhorita.

Hitchins levantou o baú e o levou até o vestíbulo principal. A seguir o acomodou na carreta que a esperava no exterior.

Um dos credores se interpôs no caminho de Elenora quando ela se dispunha a seguir a Hitchins.

— O anel de ouro que leva no dedo, por favor, senhorita Lodge — espetou.

— Certamente.

Elenora tirou o anel e calculadamente o deixou cair justo quando o credor estendeu o braço para agarrá-lo. O aro de ouro ricocheteou no chão.

— Merda! — gritou o irritante homenzinho inclinando-se para recuperá-lo.

Enquanto estava dobrado no que parecia ser uma ridícula reverência, Elenora passou do lado dele e desceu os degraus da entrada. Agatha Knight sempre tinha insistido na importância de uma saída bem encenada.

Hitchins, de maneira inesperada, mudou de atitude e ajudou Elenora a subir no duro banco de madeira da carreta agrícola.

— Obrigado, senhor — murmurou ela.  

Sentou-se no banco com a mesma graça e o mesmo aprumo que teria empregado caso se tratasse de uma carruagem de luxo.

Um brilho de admiração iluminou os olhos do detetive.

— Boa sorte, senhorita Lodge. — Então lançou um olhar à parte traseira da carreta que era ocupada quase totalmente pelo baú —. A propósito, mencionei que meu tio viajou com uma companhia de atores quando era jovem?

Elenora ficou gelada.

— Não, não comentou isso.

— Tinha um baú muito parecido a este. Explicou-me que lhe resultava muito útil. Segundo me disse, sempre guardava nele alguns artigos indispensáveis se por acaso tinha que sair da cidade a toda pressa.

Elenora tragou saliva e admitiu:

— Minha avó me aconselhou a mesma coisa.

— Confio que você tenha feito caso a sua avó, senhorita Lodge.

— Assim é, senhor Hitchins.

— Tenho certeza que se sairá bem. A senhorita tem caráter.

Hitchins lhe piscou um olho, puxou a aba do seu chapéu com a mão e retornou ao lado dos credores.

Elenora respirou fundo e com um estalo abriu sua sombrinha e a sustentou no alto como se tratasse do resplandecente estandarte de uma batalha.

A carreta começou a mover-se.

Elenora não virou a cabeça para olhar a casa que a viu nascer e em que tinha vivido até então.

A morte do seu padrasto não tinha sido uma surpresa e não lhe causou tristeza. Quando Samuel Jones se casou com sua mãe, Elenora tinha dezesseis anos. Ele tinha passado muito pouco tempo ali, no campo. Preferia a vida em Londres e seus incontáveis projetos de investimentos e, desde o falecimento de sua mãe, fazia já três anos desde a última vez que tinha aparecido por ali.

Elenora adorava essa situação: não sentia nenhuma estima por Jones e era um grande alívio não o ter por ali controlando seus passos. Claro que tudo mudou quando soube que o advogado do seu padrasto tinha conseguido transferir a herança da sua avó, que incluía a casa e os terrenos adjacentes, ao legado de Jones.

E agora tudo estava perdido.

Bom, não tudo, pensou enquanto sentia uma triste satisfação. Os credores de Samuel Jones nada sabiam do broche de ouro e pérolas de sua avó, junto com o par de brincos combinando, que Elenora tinha escondido no fundo falso de seu velho baú.

Agatha Knight lhe deu aquelas joias logo depois do casamento de sua mãe com Samuel Jones. Agatha manteve em segredo aquele presente e deu instruções a Elenora para que guardasse o broche e os brincos no baú e não contasse a ninguém, nem sequer a sua mãe.

Era evidente que a intuição de Agatha com relação a Jones tinha sido completamente correta.

Os dois credores tampouco sabiam da existência das vinte libras que Elenora guardava no baú. Depois da venda das colheitas, Elenora separou aquele dinheiro e o escondeu com as joias quando se deu conta de que Jones pretendia investir até o último cêntimo que obtivera da coleta naquele projeto mineiro.

“O que está feito, está feito”, pensou Elenora. Agora tinha que concentrar-se no seu futuro. Seu destino tinha dado um giro inesperado, mas, felizmente, não se encontrava sozinha no mundo: estava noiva de um elegante cavalheiro. Estava convencida que Jeremy Clyde correria a seu lado quando soubesse do terrível apuro no qual se encontrava, e, sem dúvida, insistiria em adiantar a data das bodas.

Com certeza depois de apenas um mês aquele pomposo incidente teria ficado para trás e ela seria uma mulher casada com uma nova casa para organizar e dirigir, pensou Elenora, e essa perspectiva a animou.

Se ela se destacava em alguma habilidade, era em organizar e fiscalizar as múltiplas tarefas que se requeriam para manter uma casa e uma granja em perfeito estado e rendimento. Ela podia encarregar-se de tudo, desde vender de maneira vantajosa as colheitas até levar as contas, fiscalizar o bom estado dos abrigos, contratar aos criados e aos peões e inclusive elaborar remédios na destilaria.

Modéstia à parte, seria uma excelente esposa para Jeremy.

 

Jeremy Clyde entrou no pátio da estalagem galopando seu cavalo naquela mesma tarde, justo quando Elenora dava instruções a uma criada da estalagem sobre a importância de que os lençóis de sua cama estivessem bem limpos.

Quando Elenora olhou através da janela e viu quem tinha chegado, interrompeu seu sermão, desceu as escadas a toda pressa e se lançou nos braços de Jeremy.

— Querida. — Jeremy a abraçou sem vacilar e, em seguida, separou-se dela com doçura. Seu bonito rosto estava sulcado de rugas de preocupação —. Vim assim que soube. Que horrível experiência. Os credores de seu padrasto ficaram com tudo? Com a casa? Com todos os terrenos?

Elenora suspirou.

— Temo que assim seja.

— Sem dúvida, isto constitui um golpe terrível para você, querida. Não sei o que dizer.

Entretanto, era evidente que Jeremy tinha algo muito importante para lhe dizer. Levou um pouco de tempo reconhecê-lo e, como preâmbulo, assegurou a Elenora que lhe rompia o coração ter que dizer isso, mas que não tinha escolha.

Tudo se reduzia a uma questão muito simples: posto que ela se visse privada da sua herança, ele se via obrigado a terminar com sua relação imediatamente.

Pouco depois partiu com a mesma rapidez com que tinha chegado.

Elenora se dirigiu a seu diminuto quarto e ordenou que lhe subissem uma garrafa do vinho mais barato da estalagem. Quando o entregaram, fechou a porta com chave, acendeu uma vela e se serviu uma taça até a borda.

Elenora permaneceu sentada durante muito tempo contemplando a noite através da janela, bebia aquele vinho imundo e refletia a respeito do seu futuro.

Agora estava completamente só no mundo e aquele pensamento lhe resultava estranho e inquietante. Sua vida, ordenada e bem planejada, tinha dado uma virada.

Apenas umas horas antes, seu futuro parecia claro e luminoso. Jeremy planejava mudar-se à granja justo depois das bodas. Ela se sentia cômoda com a ideia de ser sua esposa e sua companheira para o resto das suas vidas: dirigiria o lar, criaria a seus filhos e continuaria com a supervisão dos assuntos da granja. Entretanto, a bolha luminosa daquele sonho tinha estourado.

Mais tarde, quando já era de madrugada e a garrafa de vinho estava quase vazia, a Elenora lhe ocorreu pensar que agora era livre como não o tinha sido nunca. Pela primeira vez na sua vida, não tinha responsabilidades com mais ninguém. Nenhum criado ou peão dependiam dela. Ninguém a necessitava. Não tinha raízes, ataduras, nem lar.

Embora adquirisse uma má reputação ou arrastasse o sobrenome Lodge pelo barro como tinha feito sua avó, não tinha que preocupar-se com ninguém.

Agora tinha a oportunidade de traçar um novo curso para a sua vida.

Sob a pálida luz do amanhecer, Elenora vislumbrou o novo e resplandecente futuro que ia forjar para si mesma.

Seria um futuro no qual se veria livre das estruturas, rígidas e estreitas que oprimem a vida da gente quando se vive em um povoado. Um futuro no qual controlaria seus próprios bens e sua própria economia.

Naquele futuro novo e estupendo, faria coisas que teriam estado fora de seu alcance na sua vida antiga. Inclusive, poderia permitir-se experimentar os prazeres únicos e estimulantes que, segundo sua avó, podiam encontrar-se nos braços do homem adequado.

Além disso, prometeu a si mesma que não pagaria o preço que a maioria das mulheres da sua idade não tinham mais remédio que pagar em troca daqueles prazeres. Não tinha por que casar-se. Depois de tudo, a ninguém preocuparia se arruinava seu bom nome.

Sim, sem dúvida, seu novo futuro seria glorioso.

A única coisa que tinha que fazer era encontrar o modo de costear-lhe.

 

Aquele rosto fantasmagórico e pálido como a morte apareceu de repente. Surgiu das profundidades da inescrutável escuridão como se tratasse de um guardião demoníaco encarregado de proteger segredos proibidos. A luz do farol refletiu um reflexo infernal nesse rosto duro e de olhar fixo.

O homem do bote gritou ao ver o monstro. Mas estava sozinho, ninguém podia ouvi-lo.

Seu grito de terror retumbou, uma e outra vez, nas velhas paredes de pedra daquele passadiço de noite sem fim. Com o sobressalto perdeu o equilíbrio e se cambaleou enquanto o pequeno bote em que navegava se sacudia perigosamente sobre a corrente de águas negras. O coração lhe disparou e um suor frio lhe empapou o corpo enquanto continha o fôlego.

Em um reflexo, segurou a longa vara que tinha estava usando para fazer avançar a pequena embarcação pelas águas mansas do rio e tentou recuperar o equilíbrio.

Felizmente, o extremo da vara se afundou com força no leito do rio e o bote se estabilizou quando as últimas reverberações de seu grito assustador se desvaneciam na distância.

Um inquietante silêncio reinou novamente naquele lugar. O homem tentou recuperar o fôlego e ficou olhando a cabeça, algo maior que uma cabeça humana. Suas mãos ainda tremiam.

Não era mais que outra das antigas e desmembradas estátuas clássicas encontradas ocasionalmente nas bordas do rio subterrâneo. Neste caso, o casco a identificava como uma representação da deusa Minerva.

Aquela não era a primeira estátua com a que se cruzava ao longo daquela estranha viagem, mas sem dúvida era a mais perturbadora. Na realidade, parecia uma cabeça separada do corpo que alguém tivesse jogado descuidadamente no barro da borda do rio.

O homem segurou a vara com mais força e empurrou com ímpeto. Estava chateado pela sua reação ante a visão da imagem. O que lhe ocorria? Não podia se permitir o luxo de que seus nervos se desestabilizassem com tanta facilidade. Tinha um destino que cumprir.

O pequeno bote avançou e passou junto à cabeça de mármore. A seguir virou em outra curva do rio. A luz da lanterna iluminou uma das pontes arqueadas e baixas que atravessavam o rio em diversos pontos do seu percurso. Na realidade, constituíam conexões a parte alguma, pois terminavam nas paredes do túnel que as cobriam. O homem se agachou para não bater a cabeça contra a ponte.

À medida que foi superando seu terror, a excitação voltou pouco a pouco a apoderar-se dele. Tudo era como seu predecessor o havia descrito no seu diário. O rio perdido existia de verdade e serpenteava por debaixo da cidade. Constituía uma via de água secreta, coberta séculos atrás e caída no esquecimento.

O autor do diário tinha chegado à conclusão de que os romanos, um povo que nunca deixaria passar um projeto potencial de engenharia, foram os primeiros que cobriram o rio com a intenção de conter suas águas e poder construir em cima. Aqui e lá, podiam ver-se sob a luz da lanterna as provas dos seus trabalhos de engenharia. Em outros pontos, a construção do túnel subterrâneo pelo qual o rio transcorria era claramente medieval.

Sem dúvida, as águas confinadas funcionavam como um sistema de rede de esgoto desconhecido para a cidade e transportavam as águas das chuvas e dos deságues até o Tâmisa. O aroma era nauseabundo e o silêncio tão profundo que naquele lugar de noite eterna se podiam ouvir os passos precipitados dos ratos e de outros pequenos animais que corriam ao longo das estreitas bordas.

“Não falta muito”, pensou ele. Se as indicações do diário eram corretas, logo se encontraria com a cripta de pedra que indicava a entrada do laboratório subterrâneo secreto de seu predecessor. Uma vez ali, esperava encontrar a estranha máquina que tinha permanecido naquele lugar durante todos esses anos.

O homem que tinha lhe precedido se viu obrigado a abandonar o glorioso projeto porque não foi capaz de desentranhar a última grande adivinhação do antigo tratado. Entretanto ele tinha tido êxito onde seu predecessor tinha falhado. Tinha conseguido decifrar as instruções do velho alquimista e estava convencido de que poderia completar a tarefa.

Entretanto, embora tivesse sorte e encontrasse o aparelho, ainda tinha que fazer muitas coisas antes de poder fazê-lo funcionar. Para começar, tinha que localizar as pedras que faltavam e eliminar aos dois anciões que conheciam os segredos do passado, embora estivesse convencido de que não ia supor grandes dificuldades conseguir esse objetivo.

A informação era a chave do êxito, e ele sabia como consegui-la. Movia-se nos círculos da alta sociedade e tinha certos contatos úteis naquele mundo. Além disso, também tinha passado muito tempo nos antros e bordéis de má reputação aos que acudiam os cavalheiros da alta sociedade em busca de prazeres mundanos, e tinha descoberto que aqueles lugares eram uma fonte contínua de rumores e fofocas.

Só uma pessoa sabia o suficiente para precaver-se de suas intenções, mas não constituiria nenhum problema: sua grande debilidade era o amor que sentia por ele e ele sempre tinha sabido utilizar seu afeto e sua confiança para manipulá-la.

Se encontrasse o aparelho naquela noite nada poderia impedir que cumprisse seu destino.

Todos trataram seu predecessor como se ele fosse louco e se negaram a reconhecer sua genialidade. Mas esta vez as coisas se desenvolveriam de uma forma muito distinta.

Quando terminasse de construir o mortífero aparelho e demonstrasse seu imenso poder destrutivo, toda a Inglaterra, ou melhor, toda a Europa, veria-se obrigada a reconhecer nele um segundo Newton.

 

— Não se ajusta a minhas necessidades. Muito tímida, muito submissa — disse Arthur enquanto fechava a porta detrás da mulher que acabava de entrevistar —. Acreditei que tinha sido claro. Necessito uma mulher com caráter e certa presença. Não procuro a típica dama de companhia. Tragam-me outra.

A senhora Goodhew intercambiou um olhar com sua sócia, a senhora Willis. Arthur suspeitou que ambas estivessem chegando ao limite da sua paciência. Durante a última hora e meia, tinha entrevistado a sete aspirantes. Entretanto nenhuma das mulheres submissas e sem estilo que oferecia a agência Goodhew & Willis reunia as condições para ser considerada candidata potencial ao posto que ele oferecesse.

Arthur não culpava as senhoras Goodhew e Willis por sua impaciência crescente, mas ele havia já superado o limite da impaciência. Estava desesperado.

A senhora Goodhew pigarreou, juntou suas grandes e eficientes mãos em cima da mesa e contemplou a Arthur com severidade.

— Milord, lamento informar de que esgotamos a lista de aspirantes adequadas.

— Impossível. Tem que haver alguém mais.

Tinham que dispor de alguma outra candidata. Todo seu plano dependia de encontrar a mulher adequada.

A senhora Goodhew e a senhora Willis o olharam com o cenho franzido desde atrás das suas respectivas mesas. Ambas eram mulheres imponentes. A senhora Goodhew era alta e de grandes proporções e seu rosto poderia ter sido cunhado em uma moeda antiga. Sua sócia era magra e fina como o fio de uma tesoura.

As duas vestiam sobriamente, mas com roupas caras. O tom grisalho dos seus cabelos lhes conferia um aspecto judicioso e em seus olhos refletiam o peso da considerável experiência.

O letreiro da entrada indicava que a agência Goodhew & Willis levava mais de quinze anos oferecendo damas de companhia e governantas a pessoas de boa posição. O fato de que aquelas duas mulheres tivessem fundado aquela agência e que a tivessem dirigido durante tanto tempo com lucros evidentes constituía uma prova da sua inteligência e de sua competência no mundo dos negócios.

Arthur estudou seus rostos decididos e considerou suas opções. Antes de ir até elas, tinha visitado outras duas agências que ofereciam uma ampla seleção de senhoritas que procuravam trabalho como damas de companhia. Ambas as agências lhe ofereceram um montão de aspirantes insossas. Arthur sentiu uma pontada de lástima por todas aquelas mulheres: só uma condição de autêntica pobreza podia as haver levado a aspirar a um emprego daquele tipo. Entretanto, ele não procurava uma mulher que despertasse lástima nos outros.

Arthur cruzou as mãos nas costas, endireitou-se e encarou as senhoras Goodhew e Willis desde o outro extremo da sala.

— Se acabaram as candidatas adequadas — declarou —, então a solução resulta evidente: encontrem-me uma candidata inadequada.

As duas mulheres o olharam como se tivesse perdido a razão.

A senhora Willis foi à primeira em recuperar-se.

— Esta é uma agência respeitável, senhor. Não dispomos de candidatas inadequadas em nossos arquivos — replicou com sua voz afiada —. A agência garante que todas as aspirantes gozem de uma reputação mais que impecável. Suas referências são imaculadas.

— Possivelmente faria bem em tentá-lo em outra agência — sugeriu a senhora Goodhew com determinação.

— Não disponho de tempo para ir a outra agência. — Arthur não podia acreditar que seu plano, em cuja elaboração tinha cuidado até o mínimo detalhe, viesse-se abaixo só porque não podia encontrar à mulher adequada. Tinha assumido que essa seria precisamente a parte singela do plano. Entretanto, para sua surpresa, estava resultando ser muito complicada —. Já disse que devo encontrar a alguém para este posto imediatamente...

A porta se abriu de repente e com firmeza a suas costas pondo ponto final a sua frase.

Assim como às senhoras Goodhew e Willis, Arthur virou-se para olhar a mulher que acabava de entrar rapidamente no despacho com a energia de uma tempestade marinha.

Percebeu imediatamente que aquela mulher, possivelmente por acaso, embora ele tivesse jurado que com toda a intenção, fazia o possível para dissimular suas facções atraentes. Óculos com armação de cor parda ocultavam, parcialmente, seus vivazes olhos dourados. Tinha o cabelo negro e brilhante presos em um coque extremamente austero, mais apropriado para um ama de chaves ou uma criada.

Seu vestido era de corte prático, confeccionado com um tecido tosco e áspero de um tom cinza muito pouco favorecedor. Parecia que o tivessem elaborado a propósito para que a pessoa parecesse mais baixa e mais gorda do que era na realidade.

Os entendidos da alta sociedade, e os janotas que rondavam pela Bond Street comendo-se as damas com os olhos, sem dúvida teriam desprezado a essa mulher imediatamente. “Mas esses não são mais que uns loucos que não sabem ver o que há debaixo da superfície”, pensou Arthur.

Em seguida, observou a forma decidida, mas graciosa, como se movia. Não havia nada tímido ou vacilante nela. Uma inteligência vivaz brilhava nos seus olhos exóticos e sua pessoa irradiava caráter e determinação.

Arthur tentou conservar a objetividade e chegou à conclusão de que aquela mulher carecia da perfeição suave e formal que teria feito com que os homens da alta sociedade a considerassem um diamante de primeira categoria. Mas havia algo nela que atraía o olhar: sua energia, sua vitalidade criavam um aura invisível. Com o traje adequado, não passaria inadvertida em um salão de baile.

— Senhorita Lodge, por favor, não pode entrar aí. — A mulher que ocupava a escrivaninha que estava na entrada apareceu na soleira da porta com ar hesitante e aspecto acalorado —. Já o hei dito, a senhora Goodhew e a senhora Willis estão tratando uma questão de suma importância com um cliente.

— Dá no mesmo para mim! Como se estivessem redigindo seus testamentos ou decidindo os detalhes de seus funerais, senhorita McNab. Tenho que falar com elas imediatamente. Já me fartei que tanta tolice.

A senhorita Lodge se deteve diante das duas mesas. Arthur sabia que não percebeu a sua presença: estava atrás dela, entre as sombras. Em parte, a culpa era da espessa neblina do exterior, que não permitia que entrasse pelas janelas do escritório mais que uma luz tênue e cinza. Além disso, a escassa iluminação da sala não chegava a todos os cantos.

A senhora Willis deixou escapar um suspiro lastimoso e, conforme se pôde ler na expressão do seu rosto, resignou-se ao inevitável.

A senhora Goodhew, que sem dúvida era mais dura, levantou-se do seu assento.

— Como se atreve a nos interromper desta forma tão inconveniente, senhorita Lodge?

— Minha intenção é corrigir a errônea impressão de que procuro um emprego na casa de uma bêbada ou de um libertino — respondeu à senhorita Lodge com olhos entreabertos —. Deixemos clara uma coisa. Necessito um emprego imediatamente e não posso perder mais tempo entrevistando a possíveis patrões que resultam inaceitáveis.

— Discutiremos esta questão mais tarde, senhorita Lodge — espetou, com brutalidade, a senhora Goodhew.

— Discutiremos neste mesmo instante. Venho agora da entrevista que vocês me arranjaram para esta tarde e posso lhes assegurar que não aceitaria esse emprego embora fora o último que tivessem.

A senhora Goodhew esboçou um sorriso que só poderia definir-se como o de um frio triunfo.

— Pois dá a casualidade, senhorita Lodge, que esse é o último posto que esta agência tem a intenção de lhe oferecer.

A senhorita Lodge franziu o cenho.

— Não seja absurda. Embora o processo seja muito aborrecido para todos os implicados, sobre tudo para mim, temo que devemos seguir insistindo.

A senhora Goodhew e a senhora Willis trocaram um olhar. A senhora Goodhew se dirigiu então à senhorita Lodge e respondeu com frieza:

— Justamente o contrário, não tem sentido que arranjemos para você nem sequer outra entrevista.

— Acaso não me ouviu, senhora Goodhew? — a senhorita Lodge perguntou com brutalidade —. Já disse que necessito de um emprego novo imediatamente. Minha patroa atual vai embora da cidade depois de amanhã para ir morar com uma amiga no campo. Muito amavelmente, permitiu-me ficar com ela até sua partida, mas quando se for terei que encontrar um novo alojamento e, como durante os últimos meses cobrei um salário muito escasso, não poderei permitir-me isso.

A senhora Willis sacudiu a cabeça de uma forma que pareceu indicar verdadeiro pesar.

— Fizemos todo o possível para encontrar um novo emprego para você, senhorita Lodge. Arranjamos-lhe cinco entrevistas com cinco clientes diferentes durante os três últimos dias, mas você não passou em nenhuma.

— Não fui eu quem não passou nas entrevistas, a não ser os possíveis patrões — respondeu à senhorita Lodge levantando sua mão enluvada e estirando os dedos um a um —. A senhora Tibbett estava bêbada quando cheguei, e não deixou de dar sorvos na genebra até que perdeu o equilíbrio e caiu dormida no sofá. Na verdade, não entendo por que busca uma dama de companhia: é completamente incapaz de manter uma conversa coerente.

— Já é suficiente, senhorita Lodge — manifestou a senhora Goodhew com os dentes apertados.

— A senhora Oxby não disse uma palavra durante toda a entrevista. Deixou que seu filho se encarregasse de tudo. — A senhorita Lodge se encolheu de ombros e prosseguiu—: É evidente que se trata de um desses homens horríveis que abusam das pobres mulheres desamparadas na sua própria casa. A situação era insuportável. Não tenho nenhuma intenção de viver sob o mesmo teto que esse calhorda.

— Senhorita Lodge, por favor — espetou a senhora Goodhew golpeando sua mesa com um peso de papel.

A senhorita Lodge a ignorou:

— E depois temos à senhora Stanbridge, que está tão doente que teve que realizar a entrevista da cama. Em minha opinião, resulta evidente que não viverá mais de duas semanas. Seus familiares tomaram conta de seus assuntos e não veem a hora de que ela passe dessa para melhor para lançar-se sobre o seu dinheiro. Dei-me conta imediatamente que seria muito difícil cobrar meu salário.

A senhora Goodhew, furiosa, ficou em pé e disse severamente:

— Seus possíveis patrões não são os culpados dos seus apuros, senhorita Lodge. A senhorita é a única responsável por não encontrar um novo emprego.

— Tolices. Faz seis meses, quando vim pela primeira vez a sua agência e não tive nenhum problema em encontrar um emprego adequado para mim.

— A senhora Willis e eu chegamos a conclusão de que aquele golpe de sorte só é explicado pelo fato de que sua patroa é uma excêntrica reconhecida a quem, por alguma razão incompreensível, você lhe pareceu divertida — declarou a senhora Goodhew.

— Para a sua desgraça, senhorita Lodge — acrescentou a senhora Willis com uma boa dose de sarcasmo —, estamos escassas de clientes excêntricos neste momento. Em geral, não estamos acostumadas a tratar com este tipo de clientes.

Arthur se deu conta de que a tensão que reinava no local tinha aumentado até tal ponto que as duas mulheres se esqueceram por completo da sua presença.

A senhorita Lodge ficou vermelha de raiva e respondeu:

— A senhora Egan não é uma excêntrica. É uma mulher inteligente e de mundo que tem ideias muito progressistas sobre uma ampla variedade de questões.

— Vinte anos atrás tinha uma ampla variedade de amantes que, conforme se dizia, incluía a metade dos membros da alta sociedade, tanto masculinos como femininos — apontou a senhora Goodhew —. Também se comenta que é uma seguidora fervorosa das extravagantes ideias de Wollstonecraft com relação ao comportamento das mulheres. Além disso, não come carne, é uma estudiosa da metafísica e é do domínio público que, em uma ocasião, viajou ao Egito com a única companhia de duas criadas.

— E, para cúmulo, é conhecido por todos que se veste unicamente com a cor púrpura — anunciou a senhora Willis—. Posso assegurar, senhorita Lodge, que o qualificativo de “excêntrica” é o mais suave que podemos aplicar a sua atual patroa.

— Vocês estão sendo muito injustas — disse a senhorita Lodge com um brilho de raiva nos olhos —. A senhora Egan é uma patroa digna de estima. Não permitirei que a caluniem.

Arthur se divertiu e se emocionou pela sua lealdade com uma patroa que estava a ponto de deixar de sê-lo.

A senhora Goodhew bufou e particularizou:

— Não estamos aqui para discutir as qualidades pessoais da senhora Egan por muito dignas de estima que pareçam a você. O fato é que, sem dúvida alguma, não podemos fazer mais nada por você, senhorita Lodge.

— Não acredito absolutamente — respondeu a senhorita Lodge.

A senhora Willis levantou as sobrancelhas.

— Como espera que encontremos um emprego para você, senhorita Lodge, quando, de forma categórica, se recusa a adotar o comportamento adequado requerido a uma boa dama de companhia? Já lhe explicamos até não poder mais que a submissão, a humildade e a conversação tranquila e moderada são imperativos para esta profissão.

— Ora! Fui submissa e humilde ao extremo! — exclamou a senhorita Lodge. Parecia realmente ofendida por aquela crítica, mas prosseguiu. — E, quanto à conversação comedida, desafio a qualquer de vocês que demonstrem que minha conversação não foi, em todo momento, tranquila e moderada.

A senhora Willis levantou a vista para o teto como se pedisse ajuda a um poder superior.

A senhora Goodhew bufou e apontou:

— Sua ideia a respeito do que é um comportamento adequado difere grandemente da sustentada por esta agência. Não podemos fazer mais nada pela senhorita.

Arthur se deu conta de que a senhorita Lodge começava a se preocupar. Sua mandíbula, firme e elegante, começou a esticar-se visivelmente: era evidente que estava a ponto de mudar de tática.

— Não nos precipitemos — comentou ela com suavidade —. Estou convencida de que tem que haver mais patrões potenciais nos seus arquivos. — A seguir observou às duas mulheres com um sorriso repentino e brilhante que poderia ter iluminado todo um salão de baile —. Se me permitem consultá-los, sem dúvida economizaremos um montão de tempo.

— Que lhe permitamos consultar nossos arquivos? — A senhora Willis se estremeceu como se tivesse tocado um gerador elétrico —. Nem pensar. Estes arquivos são confidenciais.

— Tranquilize-se — A senhorita Lodge respondeu —. Não tenho nenhuma intenção de fofocar a respeito dos seus clientes. A única coisa que desejo é examinar seus arquivos para poder tomar uma decisão com fundamento sobre meu futuro emprego.

A senhora Willis levantou o queixo e a olhou apontando-a com seu nariz afiado.

— Ao parecer você não entendeu a essência da questão, senhorita Lodge. É o cliente quem decide qual das aspirantes é a adequada para o posto, não o contrário.

— Absolutamente. — A senhorita Lodge se aproximou da mesa da senhora Willis, inclinou-se e apoiou suas mãos enluvadas sobre a superfície polida da mesa —. É você quem não entende. Não posso me permitir o luxo de desperdiçar mais tempo neste projeto. Uma forma sensata de enfrentar este problema é que me permitam examinar os arquivos.

— Não enfrentamos problema nenhum, senhorita Lodge — a senhora Goodhew replicou arqueando as sobrancelhas—. É você quem o faz e temo que, de agora em diante, deverá fazê-lo em algum outro lugar.

— Isto é impossível — A senhorita Lodge respondeu lhe cravando os olhos —. Já lhes expliquei que não disponho de tempo para ir a outra agência. Devo encontrar um emprego antes que a senhora Egan se mude ao campo.

Arthur tomou uma decisão.

— Possivelmente poderia considerar outra oferta de emprego desta agência, senhorita Lodge — disse.

 

Ao ouvir aquela voz fria, tenebrosa e dominante que surgiu da penumbra que havia as suas costas, Elenora ficou tão nervosa que esteve a ponto de deixar cair sua bolsinha.

Virou-se rapidamente enquanto soltava um gritinho afogado. Demorou uns segundos para vislumbrar com claridade ao homem que tinha falado, mas soube imediatamente que, fosse quem fosse, podia ser perigoso. Um estimulante calafrio premonitório percorreu suas costas.

Imediatamente tentou livra-se daquela sensação. Nunca tinha reagido assim ante a presença de nenhum homem. Sem dúvida, se devia em parte a escassa iluminação. A névoa se aproximou das janelas e as duas lamparinas que havia sobre as mesas das senhoras Goodhew e Willis projetavam mais sombras das que dissipavam.

Então se deu conta de que ainda usava os óculos que a senhora Egan tinha lhe emprestado a fim de potencializar seu aspecto de dama de companhia correta durante as entrevistas daquela tarde. Os tirou com um gesto fugaz e piscou um par de vezes para enfocar sua visão.

Então viu com bastante claridade ao homem que estava na penumbra, mas sua impressão inicial sobre ele não mudou. Ao contrário, intensificou seus sentimentos de nervosismo e receio.

— Santo céu! — exclamou a senhora Willis —. Esqueci que o senhor estava aqui. Peço que me desculpe. Permita-me apresentar a senhorita Elenora Lodge. Senhorita Lodge, apresento ao conde de St. Merryn.

St. Merryn inclinou levemente a cabeça.

— É um prazer, senhorita Lodge.

Não era um homem bonito, pensou Elenora. A força, o autodomínio e a inteligência aguda refletidas nas suas facções não deixavam lugar para a elegância, o refinamento ou a beleza masculina tradicional.

Tinha o cabelo castanho escuro e seus olhos, de um verde cinzento, olhavam-na desde sua guarida, oculta no mais profundo de seu ser. Tinha o nariz aquilino, as maçãs do rosto altas e a mandíbula proeminente que alguém associaria com as criaturas que sobreviviam graças a seus instintos de caça.

Elenora se sobressaltou ao descobrir que a imaginação a estava dominando. Tinha sido um longo dia.

Obrigou-se a recuperar a compostura e fez uma reverência.

— Milord.

—Tenho a impressão de que podemos nos ajudar mutuamente, senhorita Lodge — ele declarou sem desviar nem por um momento o olhar do seu rosto —. Você necessita um emprego. Tenho uma parenta distante, a viúva do meu primo por parte de pai, que passará a temporada de bailes comigo. Necessito de uma dama de companhia para ela e estou disposto a lhe pagar o triplo dos seus honorários habituais.

O triplo dos seus honorários habituais! Elenora quase ficou sem fôlego. “Tranquilize-se”, pensou. Fizesse o que fizesse, devia manter uma atitude digna e calma. Tinha a impressão de que se St. Merryn percebia algum indício de que ficava nervosa ou se alterava com facilidade, retiraria sua oferta.

Elenora levantou o queixo e lhe sorriu de forma amável, mas distante.

— Estou disposta a considerar sua oferta, senhor.

Então ouviu que a senhora Goodhew e a senhora Willis murmuravam entre elas, mas não lhes prestou atenção. Estava muito ocupada observando a satisfação que, durante uns breves instantes, apareceu nos olhos enigmáticos do conde.

— O cargo requer algo mais que as típicas tarefas de uma dama de companhia — explicou St. Merryn muito devagar.

Elenora recordou o velho ditado a respeito das coisas que eram muito boas para ser verdade e se encheu de coragem.

— Por alguma razão, não me surpreende que diga isto — respondeu secamente —. Poderia explicar-se?

— Certamente. — St. Merryn desviou sua atenção para a senhora Goodhew e a senhora Willis —. Preferiria ter essa conversa em privado com a senhorita Lodge, se não se importam. — A seguir realizou uma breve pausa e, depois de esboçar um leve sorriso, acrescentou —: A situação está relacionada a uma questão familiar. Tenho certeza de que o compreenderão.

— Certamente — respondeu a senhora Goodhew. Em realidade, parecia aliviada de ter uma desculpa para abandonar a sala —. Senhora Willis?

A senhora Willis já tinha se posto de pé.

— Depois de você, senhora Goodhew.

As duas mulheres contornaram com elegância suas mesas e atravessaram a sala. Ao sair, fecharam a porta com firmeza.

Um silêncio pesado impregnou o recinto. Elenora não gostou da sensação de terror iminente que a invadiu.

Parte de sua excitação inicial se apagou sendo substituída por uma sensação de desconfiança. Uma cócega estranha lhe percorria as palmas das mãos e, de repente, percebeu o peso da névoa nas janelas: era tão espessa que impedia ver os edifícios do outro lado da rua. Era só fruto da sua imaginação ou a sala parecia menor e o ambiente ainda mais íntimo?

St. Merryn atravessou a sala lentamente e se deteve diante de uma das janelas. Durante uns instantes, meditou enquanto contemplava a neblina disforme que cobria a rua estreita. Elenora sabia que estava refletindo a respeito de qual parte da informação ia contar e qual parte ia guardar para si mesmo.

— Será melhor que vá direto ao ponto, senhorita Lodge — declarou ele depois de uns instantes—. O que expliquei à senhora Goodhew e à senhora Willis não é totalmente verdadeiro. Na realidade, não necessito de uma dama de companhia para uma parenta, embora seja certo que ela esteja passando uma temporada na minha casa.

— Compreendo. E o que é o que o senhor necessita então?

— Uma noiva.

Elenora fechou os olhos com desespero. Justo quando começava a acreditar que os patrões potenciais dos arquivos da Goodhew & Willis não podiam ser piores, encontrava-se frente a frente com um louco.

— Senhorita Lodge? — A voz do St. Merryn estalou como um chicote —. A senhorita está bem?

Elenora abriu os olhos sobressaltada e esboçou um sorriso tranquilizador.

— Certamente, milord. Estou muito bem. Isto... possivelmente seria conveniente que avisássemos a alguém.

— Desculpe?

— A algum familiar ou possivelmente a um criado. — Elenora hesitou e acrescentou com delicadeza —: Ou um enfermeiro.

Os pobres enviavam a seus familiares loucos a um hospital espantoso que se chamava Bedlam. Mas a gente rica estava acostumada a internar seus familiares dementes manicômios privados. Elenora se perguntou quando St. Merryn teria escapado do dele e se alguém teria percebido que já não estava no seu quarto.

— Um enfermeiro? — perguntou St. Merryn, endurecendo suas facções —. De que demônios está falando?

— O dia está cinza e sombrio, não crê? — ela comentou com suavidade —. A gente poderia perder-se com facilidade em uma névoa como esta. — “Sobretudo se a própria mente está sumida em uma neblina estranha e cheia de visões”, acrescentou para si mesma —. Mas tenho certeza que alguém virá e o conduzirá a seu domicílio. Se pudesse comunicar a senhora Goodhew e a senhora Willis a quem podem avisar...

O olhar de St. Merryn mostrou primeiro entendimento e em seguida certa diversão.

— A senhorita pensa que eu estou louco, não é?

— De maneira alguma, milord. Só tentava ajudá-lo. — Elenora, com prudência, deu um passo em direção a porta —. Entretanto, se houver algum problema, por menor que seja, estou convencida de que a senhora Goodhew e a senhora Willis saberão resolvê-lo.

Elenora decidiu que não seria sensato dar as costas a um lunático, de modo que esticou o braço para trás e procurou, com estupidez, a maçaneta da porta.

— Certamente — disse St. Merryn esboçando um sorriso breve e irônico —. Apostaria o que fosse a que essas duas mulheres são capazes de dominar qualquer assunto, inclusive a um cliente que perdeu o juízo. Entretanto, dá a casualidade de que eu não estou louco, senhorita Lodge. — encolheu os ombros —. Pelo menos, acredito que não. Se tirar a mão da maçaneta, tentarei me explicar.

Elenora não se moveu.

Ele arqueou um pouco as sobrancelhas e acrescentou:

— Prometo que compensarei o tempo que me dedique.

— Em um sentido financeiro?

Ele torceu ligeiramente a boca para um lado e perguntou:

— Existe algum outro sentido?

“Não no que a mim se refere”, pensou ela. Dada a situação complicada na qual se encontrava, não podia permitir-se deixar de lado nenhuma oferta de emprego. O luminoso sonho de um novo futuro que forjou a partir de um nada naquela noite solitária e longínqua, uns seis meses atrás, estava resultando ser mais difícil de alcançar do que ela tinha imaginado. O dinheiro era o elemento chave. Necessitava aquele emprego.

St. Merryn podia estar louco, mas não parecia um libertino pervertido ou um bêbado, como sem dúvida alguma eram os dois patrões potenciais que tinha conhecido naquela tarde.

Na realidade, pensou ela, St. Merryn começava a falar como um homem que sabia realizar um negócio e ela admirava essa qualidade em um cavalheiro.

Além disso, tampouco estava no leito de morte, como ocorria a sua terceira patroa potencial daquela tarde. Ao contrário, emitia uma vitalidade masculina desconcertante e enigmática que a emocionava de um modo que não podia explicar. Na realidade não era bonito, pelo menos não como Jeremy Clyde, mas as sensações que lhe produzia e que lhe arrepiavam os pelos da nuca eram muito estimulantes.

Não sem certo receio, Elenora soltou a maçaneta, mas ficou onde estava, a poucos centímetros da saída. Uma dama de companhia sagaz estava sempre preparada para o imprevisível.

— Muito bem, sou toda ouvidos.

St. Merryn ficou de costas para na mesa da senhora Goodhew, apoiou-se nela e esticou os braços a ambos os lados: naquela posição, o casaco de excelente corte que usava se ajustou a seus ombros musculosos, e Elenora notou que tinha o tórax amplo, o estômago plano e os quadris estreitos. Nada nele era magro, brando ou débil.

— Vim a Londres para passar umas semanas com o único propósito de realizar um negócio um pouco complicado. Não a chatearei com os detalhes, mas, em resumo, direi que intento formar um consórcio de investidores. O projeto requer confidencialidade e discrição. Se conhecer um pouco a alta sociedade, saberá que ambos os requisitos são muito difíceis de conseguir. A boa sociedade vive graças a uma dieta regular de fofocas e rumores.

Elenora se relaxou um pouco. Depois de tudo, possivelmente não estava tão louco.

— Por favor, continue.

— Por desgraça, devido a minha situação atual e a determinado incidente que aconteceu há um ano, será bastante difícil realizar meu negócio sem um bom número de interferências desagradáveis a menos que fique muito claro que estou fora do mercado matrimonial.

Elenora limpou a garganta.

— Sua situação atual? — perguntou da forma mais delicada possível.

Ele arqueou uma sobrancelha e esclareceu:

— Disponho de um título, de várias propriedades importantes e de uma substanciosa fortuna. Além disso, não estou casado.

— Me alegro por você — murmurou ela.

A julgar pelo seu olhar, se divertiu com o comentário dela, mas em seguida particularizou:

—Não se considera o sarcasmo como uma qualidade apropriada numa dama de companhia. Entretanto, como eu estou tão desesperado como a senhorita, deixarei passar nesta ocasião.

Elenora se ruborizou.

— Desculpe-me, senhor. Tive um dia muito duro.

— Garanto que o meu tampouco foi agradável.

Elenora decidiu que tinha chegado o momento de retornar ao assunto que tratavam.

— Bem, compreendo que sua situação o converte em um bem muito prezado em certos círculos sociais.

— E em um bem muito desagradável em outros círculos — acrescentou ele.

Elenora se esforçou para não sorrir. Seu irônico e autocrítico senso de humor a tinham pego de surpresa.

St. Merryn pareceu não ter percebido quão inesperadamente engraçado Elenora tinha achado aquele comentário. Simplesmente tamborilou os dedos durante alguns instantes sobre a mesa num ritmo staccato e disse:

— Estamos nos desviando do tema principal. Como dizia, minha situação se complicou ainda mais pelo fato de que no inverno passado estava noivo de uma jovem que, ao final, fugiu com outro homem.

Aquela informação pegou Elenora completamente de surpresa.

— Nunca teria imaginado.

Ele a olhou com impaciência.

— Várias pessoas diriam, com satisfação, que a jovem se livrou de mim por um fio.

— Hummm.

— Que demônios significa isto? — perguntou ele.

— Na realidade nada, mas me acaba de ocorrer que possivelmente foi o senhor quem se livrou por um fio. Eu também me livrei de uma situação parecida faz seis meses.

Uma curiosidade desapaixonada brilhou nos olhos de St. Merryn.

— De verdade? E esta é a razão pela qual esteja atualmente procurando um emprego como dama de companhia?

— Em parte — respondeu Elenora sacudindo uma mão —. Entretanto, com o que agora sei sobre o meu ex-noivo, garanto que prefiro estar procurando emprego que ser a esposa de um mentiroso impostor.

— Compreendo.

— Bom, já falamos bastante sobre a minha vida pessoal. A verdade é que compreendo seu dilema. Quando os círculos da boa sociedade se inteirem de que está na cidade suporão que retornou para provar sorte no mercado matrimonial. As ferozes casamenteiras desses círculos o considerarão carne fresca e bem disposta.

— Eu mesmo não poderia ter explicado melhor. Esta é a razão, senhorita Lodge, porque que necessito uma dama para que figure, de forma convincente, como minha noiva. Na realidade é muito simples.

— De verdade? — ela perguntou com inquietação.

— Sem dúvida. Como eu já disse, embora esteja na cidade para realizar um negócio extremamente privado, os membros da alta sociedade suporão que retornei para procurar outra noiva. E não quero estar continuamente tropeçando com todas as pirralhas cujos pais trouxeram para a cidade para encontrar marido. Se as pessoas acreditarem que já estou noivo, as casamenteiras da alta sociedade se verão forçadas a centrar sua atenção em outros partidos.

Para Elenora não estava tão claro que o plano de St. Merryn fosse tão simples. Entretanto, quem era ela para discutir com ele?

— Parece um plano muito ardiloso, milord — comentou com amabilidade —. Espero que tenha sorte.

— Tenho a impressão de que não pensa que eu terei êxito.

Ela suspirou e disse:

— Devo recordar que muitos homens na sua situação subestimaram a inteligência e a determinação de uma mãe que tem a intenção de encontrar um bom partido para sua filha.

— Garanto, senhorita, que não desprezo, absolutamente, às mulheres dessa espécie. Precisamente por isso planejei apresentar a uma noiva falsa a sociedade nas próximas semanas. Bom, o que me diz? Você aceita o emprego?

— Não me interprete mal, milord. Não é minha intenção recusar a sua oferta. Inclusive acho que desfrutaria muito com este emprego.

Aquele comentário intrigou a St. Merryn.

— Por que diz isto?

— Minha avó era uma atriz muito boa que abandonou os cenários para casar-se com meu avô — explicou ela —. Dizem que me pareço muito a ela e sempre me perguntei se, além de seu aspecto, também herdei parte do seu talento. Representar o papel de sua noiva seria, sem dúvida, interessante e inclusive constituiria um desafio para mim.

— Compreendo. Então... — ele começou a dizer.

Ela levantou uma mão e seguiu explicando-se:

— De todos os modos, devemos ser realistas, senhor. A verdade é que, por muita vontade que tenha de interpretar este papel e por muito desesperada que esteja por cobrar os excelentes honorários que me ofereceu, seria muito para mim difícil simular que sou sua noiva.

Ele apertou as mandíbulas com impaciência.

— Por que você diz isto?

“Por onde poderia começar?”, perguntou-se ela.

Elenora indicou com uma mão seu tosco vestido cinza.

— Para começar, careço do vestuário adequado.

Ele a observou durante um longo momento dos pés à cabeça. Elenora se sentiu como uma égua premiada em um leilão de Tattersall.

— Não se preocupe com o vestuário — respondeu St. Merryn—. Não esperava que uma mulher que aspirasse a este tipo de trabalho dispusesse dos vestidos adequados para esta farsa.

— Bem, além da roupa, está a questão da idade.

Aquela entrevista estava resultando muito embaraçosa, pensou ela. A maior parte dos outros patrões a consideraram jovem para os empregos que ofereciam. Mas neste caso ela era, sem dúvida, muito mais velha do que deveria.

— Qual o problema com a sua idade? — pele pergunto franzindo o cenho —. Supus que tivesse quase trinta anos. Espero que não me diga que é muito mais jovem do que aparenta. O que está claro é que não procuro uma menina recém-saída do colégio.

Elenora apertou os dentes e lembrou a si mesma que naquela manhã, enquanto se preparava para as entrevistas, arrumou-se para dar a imagem de uma dama de companhia típica. Entretanto, em certo modo lhe incomodou que ele pensasse que era mais velha do que realmente era.

— Tenho vinte e seis anos — ela repôs esforçando-se para dar um tom neutro as suas palavras.

Ele assentiu com a cabeça como amostra de satisfação.

— Excelente. A senhorita tem idade suficiente para ter adquirido sentido comum e conhecimento do mundo. Servirá.

— Obrigado — ela respondeu ironicamente —. Nós dois sabemos que os cavalheiros da sua categoria e fortuna buscam casar-se com damas muito jovens e extremamente enriquecidas que virtualmente acabam de sair do colégio.

— Maldição, senhorita, estamos falando de um emprego remunerado, não de um compromisso matrimonial — espetou ele com cara de poucos amigos —. Você sabe muito bem que seria impossível contratar a uma jovenzinha de dezessete anos para este cargo. Não só seria muito pouco provável que gozasse da habilidade e a autoconfiança necessárias, mas, além disso, ao final esperaria que eu me casasse com ela.

Por alguma razão, ao ouvir este comentário, Elenora, sem saber por que, estremeceu-se. A lógica lhe dizia que, sem dúvida, o conde de St. Merryn nem sequer levaria em consideração a possibilidade de casar-se com uma mulher que tivesse representado o papel de sua noiva durante umas semanas. Por que essa mulher seria melhor que uma atriz? Os cavalheiros ricos e capitalistas da alta sociedade tinham aventuras com as atrizes, mas certamente não se casavam com elas.

— Agora que o menciona — continuou Elenora —, como pretende terminar este compromisso fictício quando o senhor tiver concluído seus negócios?

— Isto não será problema — respondeu ele e, encolhendo os ombros, explicou —: Quando eu finalizar meus negócios, a senhorita simplesmente desaparecerá da alta sociedade. Espalharemos o rumor de que a senhorita rompeu o compromisso e voltou com a sua família em algum lugar distante ao norte.

“A senhorita, simplesmente, desaparecerá”.

Uma sensação de alarme a percorreu de acima a abaixo. Aquela frase não pressagiava nada bom. Por outro lado, ele tinha razão: desaparecer dos círculos seletos não seria muito difícil. Depois de tudo, as pessoas ricas e poderosas viviam em um mundo reduzido e exclusivo, e em raras ocasiões transpassavam os limites daquela bolha resplandecente. Além disso, tampouco eram conscientes das pessoas que viviam além daqueles limites.

— Sim, suponho que funcionará — ela respondeu enquanto refletia atentamente sobre aquela questão —. É muito pouco provável que algum dos meus futuros patrões frequente os mesmos círculos ilustres que você ou seus conhecidos. Embora algum deles formasse parte da alta sociedade e eu conhecesse algum dos seus amigos distinguidos, duvido muito que me prestarão atenção. Quando voltar a representar meu papel de dama de companhia ninguém se fixará em mim.

— As pessoas veem o que esperam ver — ele confirmou.

Uma ideia cruzou a mente de Elenora.

— Possivelmente poderia utilizar outro nome enquanto represento o papel de sua noiva. Assim nos asseguraríamos de que ninguém me reconhecesse.

Ele se pôs a rir.

— Vejo que a ideia de adotar um nome artístico a atrai, mas não acredito que seja necessário, pois só complicaria as coisas no caso de que alguém de seu passado a reconhecesse.

— Sim, entendo o que quer dizer. — Elenora se sentiu um pouco decepcionada, mas teve que admitir que ele tinha razão —. É pouco provável, mas se me encontrasse com algum conhecido aqui, em Londres, seria difícil explicar minha mudança de nome.

— A verdade é que não me preocupa que encontre a algum conhecido enquanto representa seu papel. Isto não teria por que afetar o nosso plano. Enquanto eu afirme que a senhorita é minha noiva todos a aceitarão como tal. Além disso, tenho fama de ser algo excêntrico, de modo que ninguém se surpreenderá se decido me casar com uma dama que não dispõe de contatos sociais.

— Compreendo.

Ele sorriu com frieza.

— Ninguém se atreverá a me contradizer — assegurou.

— Sim, certamente — ela confirmou um pouco intimidada pela arrogância inquebrável do conde.

Entretanto, ele tinha razão. Quem se atreveria a duvidar do que ele dissesse? E, quanto ao futuro, bom, já se preocuparia com ele quando não tivesse mais remédio. Na verdade, não podia deixar passar aquele trato tão conveniente pelo vago temor de que, seis meses depois, alguém a reconhecesse como a antiga noiva do conde.

— Enfim — declarou ela, finalmente satisfeita —, acredito que podemos afirmar que ninguém reconhecerá a antiga noiva do conde de St. Merryn quando vir a uma dama de companhia, de modo que não acredito que tenha problemas para conseguir um emprego no futuro. — A seguir titubeou —: E onde vou morar enquanto trabalhe para você? Não disponho de alojamento próprio e a hospedagem, na cidade, resulta muito cara, já sabe.

— Se alojará na minha casa, certamente. Diremos que veio do campo para fazer compras e para desfrutar dos prazeres que oferece a temporada social em Londres.

— O senhor espera que moremos sob o mesmo teto? — perguntou Elenora arqueando as sobrancelhas. — Isso despertaria o tipo de rumores que estou convencida que o senhor não deseja.

— Não há por que preocupar-se com a sua reputação, senhorita Lodge. Prometo que terá uma acompanhante adequada. A história que contei a senhora Goodhew e a senhora Willis a respeito de uma parenta viúva que está passando umas semanas na minha residência é verdadeira.

— Compreendo. Bem, então, milord, acho que seu plano pode funcionar.

— Para sua informação, senhorita Lodge, meus planos sempre funcionam. E isto se deve a que sou muito bom tanto elaborando planos como executando-os.

Elenora se deu conta de que sua explicação carecia por completo de arrogância. Para ele se tratava de uma simples constatação de um fato.

— De todos os modos, este plano em concreto parece um pouco complicado — murmurou ela.

— Creia-me, senhorita Lodge. Funcionará. E, ao final, não só lhe pagarei o triplo de seus honorários, mas também uma bonificação.

Elenora ficou imóvel e apenas se atreveu a respirar.

— Sério?

— Necessito-a, senhorita Lodge. Algo me diz a senhorita é perfeita para o papel que quero que represente e estou disposto a lhe pagar generosamente por suas habilidades.

Elenora pigarreou.

— A verdade é que estive economizando tudo o que pude para investir em certo negócio — confessou.

— Verdade? Que tipo de negócio?

Elenora refletiu uns instantes e, finalmente, decidiu que não havia razão alguma para não lhe contar a verdade.

— Espero que o senhor não se escandalize muito, mas meu objetivo é entrar no mundo do comércio.

— A senhorita pretende abrir uma loja? — ele perguntou em um tom surpreendentemente neutro.

Ela esperava um completo desdém e se sentiu muito aliviada quando ele não desaprovou rotundamente seu projeto. Do ponto de vista das pessoas que gozavam de uma boa posição social, entrar no comércio era algo desprezível que devia evitar-se a qualquer custo. Aos olhos da alta sociedade, era preferível viver de uma forma modesta, mas digna, a ser proprietário de um negócio.

— Sou consciente de que achará meu projeto inaceitável — explicou ela —. Entretanto, assim que conseguir o dinheiro necessário, me estabelecerei com uma livraria e uma biblioteca.

— Na realidade, seu plano não me surpreende, senhorita Lodge. De fato, eu consegui minha fortuna graças aos investimentos. O certo é que disponho de certa habilidade nos negócios.

— Não duvido.

Elenora voltou a lhe sorrir com amabilidade.

Ele estava sendo muito cortês, mas ambos sabiam que o abismo que existia entre os investimentos de um cavalheiro e a ideia de abrir um comércio era vasto e profundo aos olhos da sociedade. Considerava-se adequado que uma pessoa de categoria adquirisse ações em um negócio de ultramar ou em um projeto de construção. Mas que dita pessoa se convertesse na proprietária de uma loja era algo totalmente distinto.

Em qualquer caso, o importante era que St. Merryn não parecia nada desconcertado por causa de seus planos. Claro que, por outro lado, ele tinha deixado claro que não estava em posição de escolher, pensou Elenora.

St. Merryn inclinou a cabeça com sobriedade demonstrando, assim, que apoiava suas intenções.

— Muito bem. Então, senhorita Lodge, chegamos a um acordo?

A generosidade de sua oferta, como, é obvio, tinha pretendido St. Merryn, tinha-a deslumbrado por completo. Elenora ainda tinha uma dúvida em relação ao emprego que estava a ponto de aceitar, mas a desprezou com brutalidade. Aquele era o primeiro golpe de sorte que tinha desde o espantoso dia em que os credores de seu padrasto bateram na sua porta e não pensava arriscar-se a perder aquela oportunidade dourada por uma simples e leve duvida.

Sem poder conter sua satisfação, Elenora voltou a sorrir e respondeu:

— Sem dúvida, milord.

St. Merryn contemplou, fascinado, a boca de Elenora durante vários segundos. A seguir sacudiu um pouco a cabeça e franziu o cenho. Ela teve a impressão de que estava zangado, mas não com ela, a não ser consigo mesmo.

— Se queremos alcançar nosso objetivo e dar certo ar de intimidade a nossa relação — ele comentou com secura —, acredito que a senhorita deveria chamar-me Arthur.

Não ia ser fácil, pensou ela. Havia algo nele que a intimidava e que impedia que pudesse tratá-lo facilmente com familiaridade.

 

Enquanto retornava, a toda pressa, à casa da senhora Egan para comunicar-lhe a boa nova, a dúvida que tinha conseguido sufocar fazia só uns minutos voltou a surgir no seu interior.

Não era o imponente temperamento de St. Merryn nem seu estranho plano de apresentá-la nos círculos da alta sociedade como sua noiva o que a preocupava. Podia enfrentar-se a estes fatos.

O que realmente a intranquilizava naquele emprego “muito bom para ser verdade” era que estava quase convencida de que St. Merryn não tinha contado toda a verdade.

Ele guardava algum segredo, pensou Elenora. Sua intuição dizia que o plano de St. Merryn consistia em algo muito mais perigoso que criar um consórcio de investidores.

Entretanto, os assuntos privados do conde não lhe diziam respeito, ela decidiu enquanto se sentia invadida por uma crescente excitação. A única coisa que importava era que, se realizasse bem o papel que St. Merryn lhe tinha atribuído, quando terminasse sua representação estaria muito perto de poder realizar seu sonho.

 

— É bastante provável que a minha maré de azar esteja a ponto de acabar.

Elenora se deixou cair com alivio na poltrona de orelhas e sorriu as duas mulheres que estavam sentadas no sofá que tinha em frente.

Tinha conhecido a Lucinda Colyer e a Charlotte Atwater fazia seis meses, na agência Goodhew & Willis. As três chegaram no mesmo dia em busca de um emprego como damas de companhia. Depois de uma tarde exaustiva de entrevistas, Elenora lhes sugeriu ir a um salão de chá que ficava logo depois da esquina para trocar opiniões.

As três tinham temperamentos muito distintos, mas isto não era mais que um detalhe em comparação a tudo o que possuíam em comum: as três tinham, mais ou menos, vinte e cinco anos, e, portanto, tinham superado com acréscimo a idade em que um bom matrimônio constituía uma opção viável. Além disso, as três procediam de um entorno respeitável, eram distinguidas e eram bem educadas. Entretanto, devido a uma série de circunstâncias desafortunadas, as três estavam sozinhas no mundo e careciam de recursos.

Em poucas palavras, as três tinham passado pelo tipo de situações que forçava às mulheres como elas a aspirar a um posto de dama de companhia.

Aquela primeira reunião se converteu em um compromisso periódico as quartas-feiras. Uma vez que conseguiram empregos, a quarta-feira passou a ser o dia de folga das três.

Durante os últimos meses se reuniram no salão da senhora Blancheflower, a anciã patroa de Lucinda. Na opinião de Elenora, aquele lugar não estava pensado para elevar o ânimo de ninguém, e sabia que suas amigas tampouco o encontravam especialmente alegre.

Ali se respirava uma atmosfera de intensa melancolia, dado que a senhora Blancheflower jazia, moribunda, em um quarto do andar de acima. Lucinda tinha sido contratada para fazer companhia a dama durante os dias que lhe restavam de vida. Para sorte dela, sua patroa estava tomando seu tempo para realizar a transição a um plano superior.

Como a senhora Blancheflower dormia a maior parte do dia, o emprego de Lucinda era bastante cômodo. O principal inconveniente consistia em que os familiares da sua patroa, que a visitavam poucas vezes, tinham ordenado a governanta que mantivesse na casa um ambiente funerário de acordo com a situação. Isto significava que havia um grande número de tecidos pretos pendurados por todos os lados. Além disso, as cortinas deviam estar sempre fechadas para evitar que o mínimo raio de luz solar entrasse nos cômodos sombrios.

Embora aquela penumbra pudesse afetar o ânimo de qualquer pessoa, Elenora e suas amigas a suportavam todas as quartas-feiras, porque reunir-se ali supunha uma vantagem significativa: o chá e os bolos eram uma cortesia ignorada da senhora Blancheflower. Isto lhes permitia economizar uns peniques.

Elenora tinha perguntado a St. Merryn se podia contar a suas amigas a verdade sobre o seu novo emprego e tinha lhe assegurado que nenhuma delas frequentava os círculos da alta sociedade. A patroa de Lucinda estava no leito de morte, e a de Charlotte era uma viúva anciã que vivia confinada na sua casa devido ao seu débil coração. “Além disso, nenhuma delas diria uma só palavra a respeito da minha representação, embora fossem apresentadas a um conhecido seu”, tinha acrescentado Elenora com toda certeza.

St. Merryn se mostrou satisfeito e inclusive desinteressado a respeito da capacidade de suas amigas de manter silêncio. A verdade era que não lhe preocupava absolutamente que espalhassem aquele rumor pela simples razão de que ninguém na alta sociedade prestaria atenção a um falatório absurdo posto em circulação por um par de damas de companhia caídas em desgraça. Quem acreditaria na palavra de Lucinda e Charlotte em lugar de acreditar na de um conde rico e poderoso?

Ao princípio, Lucinda e Charlotte se mostraram muito surpreendidas pela notícia de que Elenora não só representaria o papel da noiva de St. Merryn mas também moraria na sua casa. Entretanto, quando souberam que uma parenta do conde faria o papel de acompanhante, decidiram que o emprego podia acabar sendo muito emocionante.

— Pensa que poderá assistir aos bailes e as festas mais exclusivas — Charlotte comentou deslumbrada —. E vestirá roupa muito elegante.

Lucinda, que era a mais pessimista, adotou um ar de escuro presságio.

— Eu, se fosse você, teria muito cuidado com St. Merryn, Elenora.

Elenora e Charlotte a olharam ao mesmo tempo.

— Por que diz isso? — perguntou Elenora.

— Poucos meses antes que nos conhecêssemos, trabalhei como dama de companhia para uma viúva que tinha contatos na alta sociedade. Ela não podia mover-se da cama, mas durante os meses que trabalhei para ela fui testemunha de que seu maior prazer consistia em estar em dia com as fofocas da alta sociedade. Lembro-me um dos rumores que circulavam a respeito de St. Merryn.

— Continua — Charlotte a apressou.

— Naquela época, St. Merryn estava noivo de uma jovem que se chamava Juliana Graham — prosseguiu Lucinda—. Diziam que se sentia aterrorizada por ele.

Elenora franziu o cenho e, achando estranho, perguntou:

— Aterrorizada? Esta é uma palavra muito grave.

— Em qualquer caso, tinha-lhe muito medo. Como é lógico, seu pai aceitou a oferta de St. Merryn sem consultá-la. Depois de tudo, o conde é extremamente rico.

— Além de dispor de um título... — Charlotte acrescentou—. Qualquer pai desejaria uma aliança assim para sua família.

— Exato — Lucinda assentiu servindo-se outra xícara de chá —. Enfim, o que aconteceu é que a jovem estava tão assustada ante a ideia de ter que casar-se com St. Merryn que uma noite saiu pela janela do seu quarto por uma escada e fugiu no meio de uma terrível tempestade com um homem chamado Roland Burnley. Ao amanhecer, o pai de Juliana os encontrou enquanto compartilhavam o mesmo quarto em uma estalagem. Como é lógico, casaram-se imediatamente.

Charlotte inclinou um pouco a cabeça e perguntou:

— E diz que foi o pai da jovem quem os perseguiu? Não foi St. Merryn?

Lucinda assentiu com a cabeça enquanto seu rosto refletia uma expressão sombria.

— Conforme dizem — começou a explicar —, St. Merryn estava em um clube quando recebeu a notícia de que sua futura esposa fugiu com outro homem. Então, com toda tranquilidade, anunciou que a próxima vez que procurasse uma noiva iria a uma agência das que subministram damas de companhia e escolheria uma. Em seguida, entrou na sala de jogo e passou ali toda a noite.

— Santo céu! — Charlotte exclamou com um suspiro —. Deve ser tão frio como o gelo.

— Pelo que dizem, o é — confirmou Lucinda.

Elenora a observou, estupefata. Mas em seguida percebeu a ironia da situação e começou a rir com tanta intensidade que teve que deixar a xícara de chá sobre a mesa para não derramá-la sobre o tapete.

Lucinda e Charlotte a olharam fixamente.

— O que é o que você acha tão divertido? — Charlotte perguntou com brutalidade.

Elenora se segurou as costelas e respondeu entre risadas:

—Têm que admitir que St. Merryn cumpriu sua promessa de conseguir sua próxima noiva em uma agência. Quem teria imaginado que ele tivesse uma inteligência tão irônica? Vai pregar uma boa peça na alta sociedade!

— Não se ofenda, Elenora — resmungou Lucinda —, mas seu novo patrão parece ser inclusive mais excêntrico que a senhora Egan. Não me surpreenderia que tentasse te ultrajar.

Charlotte se estremeceu, mas seus olhos brilharam com intensidade.

Elenora sorriu.

—Tolices. Entrevistei a vários patrões libidinosos e sei reconhecer a um quando o tenho em frente. St. Merryn não é o tipo de homem que forçaria a uma dama. Tem muito autodomínio.

— Além disso, não parece ser um cavalheiro apaixonado ou romântico — Charlotte declarou, sem dúvida decepcionada.

— Por que o diz? — perguntou Elenora surpreendida pelo comentário.

Refletiu a respeito do que tinha percebido no verde cinzento dos olhos do conde. Algo lhe dizia que a razão de que St. Merryn mostrasse tanto autodomínio era, precisamente, que dispunha de uma natureza muito apaixonada.

— Se um cavalheiro for minimamente romântico, quando lhe informam que sua noiva fugiu com outro homem sai atrás deles sem perder um instante — declarou Charlotte—. Logo arranca a sua dama dos braços do homem que a arrebatou e o desafia para um duelo.

Lucinda se estremeceu e disse:

— Pelo que dizem, St. Merryn tem o sangue bem frio.

 

Possivelmente foi a incessante garoa a causa de que a mansão da Rain Street parecesse imprecisa, como se estivesse em um plano metafísico e escuro. Entretanto, fosse qual fosse a razão, aquele lugar não só parecia lúgubre, mas também se via abandonado, pensou Elenora. Recordava-lhe a casa na qual Lucinda cuidava da sua patroa moribunda, mas em uma escala maior. Era como se no interior da mansão de St. Merryn algo tivesse morrido fazia já muito tempo e o edifício tivesse começado a deteriorar-se.

Elenora examinou o cartão que St. Merryn tinha lhe entregue para assegurar-se de que o chofer a tinha conduzido a direção correta: número doze da Rain Street. Não havia nenhum engano.

A portinhola da carruagem se abriu e o chofer, depois de ajudar Elenora a descer, descarregou o baú que continha seus objetos pessoais.

Antes de deixá-la ali, na rua, o chofer olhou a porta principal da mansão com ar duvidoso.

— A senhorita tem certeza de que este é o lugar correto? — perguntou ele.

— Sim, obrigado — respondeu Elenora sorrindo em sinal de agradecimento pela sua evidente preocupação —. Virá alguém em seguida para recolher minha bagagem. Não é necessário que espere.

Ele encolheu os ombros.

— Como quiser. — Em seguida, voltou a subir na boleia e sacudiu as rédeas.

Elenora sufocou seus consideráveis receios enquanto contemplava como a carruagem se afastava pela rua.

Quando a carruagem desapareceu, se deu conta de que estava completamente só em uma rua invadida pela névoa.

Melhor, disse a si mesma enquanto subia os degraus da entrada com determinação. Melhor que ninguém tivesse visto que a noiva de St. Merryn chegava num carro de aluguel. Deste modo, sua repentina aparição na alta sociedade despertaria a curiosidade e o interesse de todos. E quando aquele negócio estivesse concluído, desapareceria da mesma forma misteriosa.

Um ligeiro calafrio lhe percorreu as costas. Estava a ponto de converter-se em uma mulher misteriosa, em uma atriz. Tinha a estranha sensação de que passou a vida entre bastidores preparando-se para sair em cena e agora tinha chegado seu momento.

Elenora usava seu vestido favorito para aquela ocasião: era um vestido de passeio de cor granada intensa que a senhora Egan tinha encarregado que sua própria costureira pessoal confeccionasse. Além disso, levava preso no corpinho do vestido o pequeno e elegante relógio que sua patroa lhe deu como presente de despedida.

“Fará-o estupendamente bem, querida — lhe havia dito a senhora Egan com um orgulho maternal quando lhe entregou o relógio —. Tem ímpeto, personalidade e um coração bondoso. Nada poderá te abater durante muito tempo”.

Elenora subiu o último degrau e bateu a porta com a pesada aldrava de latão. O som retumbou, interminavelmente, no interior da enorme casa.

Durante uns instantes, Elenora não percebeu nenhum outro som. Enquanto começava a perguntar-se se, depois de tudo, não teria se equivocado de endereço, ouviu o leve tamborilar de passos sobre um piso de cerâmica.

A porta principal se abriu e uma criada jovem com aspecto ansioso a contemplou desde a soleira.

— Sim, senhora?

Elenora refletiu sobre o modo em que devia atuar. St. Merryn lhe havia dito que tinha a intenção de manter aquela farsa diante dos empregados. Entretanto, Elenora era consciente de que os criados estavam acostumados a prestar atenção aos assuntos dos seus patrões mais do que estes acreditavam. E tinha o pressentimento de que, embora os criados de St. Merryn não soubessem ainda que este não tinha uma autêntica noiva, no mínimo teriam deduzido que algo estranho havia naquela situação.

Em qualquer caso, Elenora decidiu que não podia representar seu papel pela metade. Pagavam-lhe por atuar e devia fazê-lo da forma mais convincente possível. A criada, assim como os membros da alta sociedade a que seria apresentada em breve, formava parte da sua plateia.

— Informe seu patrão de que a senhorita Elenora Lodge chegou — ordenou à criada com um tom de voz amável, mas autoritário —. O conde me espera. Ah! E envia a um dos criados para que recolha meu baú na rua antes que alguém o roube.

A criada fez uma reverência leve e rápida.

— Sim, senhora.

Em seguida se pôs de lado para deixar Elenora entrar.

Elenora esperou até que a jovem desaparecesse através de uma porta para soltar um pequeno suspiro de alívio.

Girou então lentamente sobre os calcanhares e examinou o vestíbulo principal. Era tão lúgubre e imponente como o exterior da casa. Entrava muito pouca luz através dos vitrais localizados em cima da porta e os painéis de madeira esculpida obscureciam ainda mais o interior. Estátuas clássicas e vasos de estilo etrusco ocupavam os escuros nichos espalhados por todo o recinto. A sala tinha o ar velho e empoeirado de um museu.

Levada pela curiosidade, Elenora se aproximou do pedestal de mármore mais próximo e deslizou um de seus dedos enluvados pela superfície do suporte. Quando viu a linha definida que deixou seu dedo, Elenora franziu o cenho e se esfregou as mãos para eliminar o pó que lhe tinha ficado acumulado na ponta da luva. Não limpavam aquela sala a fundo fazia bastante tempo.

O som de uns passos mais pesados que os da criada se aproximou pelo corredor.

Elenora virou-se e deu de cara com o homem mais bonito que jamais tivesse visto. Desde sua alta e nobre testa a suas facções delicadas, passando por olhos ardentes e esse cabelo encaracolado, que lhe conferia um ar de inocência, tudo nele constituía a imagem da perfeição masculina.

Se não fosse porque vestia uniforme de mordomo, poderia ter posado para qualquer artista que quisesse pintar a imagem de um poeta romântico ao estilo de Byron.

— Meu nome é Ibbitts, senhorita — declarou ele com voz grave —. Peço-lhe desculpas por qualquer incômodo que tenha padecido. O senhor conde a espera na biblioteca. Se puder por gentileza me seguir, anunciarei sua chegada.

Um leve sinal de advertência soou em algum lugar da mente de Elenora. Não havia nada questionável nas palavras do mordomo, pensou ela, mas estava convencida de que carregavam um ligeiro tom depreciativo. Possivelmente se tratava da sua imaginação.

— Obrigado, Ibbitts.

Elenora lhe entendeu seu chapéu e ele se virou para deixá-lo sobre uma mesa de mármore coberta de pó.

— Não importa — exclamou ela com rapidez enquanto lhe arrebatava o chapéu antes que o deixasse sobre a mesa suja —. O levarei comigo. Quanto a meu baú, não quero que fique na rua muito tempo.

— Duvido muito que alguém queira roubá-lo, senhorita.

Mesmo que tivesse tentado, Ibbitts não poderia ter deixado mais claro que estava convencido de que o baú não continha nada de valor. Elenora já tinha tido suficiente do seu sarcasmo educado.

— Envie um criado a recolher meu baú imediatamente, Ibbitts.

Ibbitts piscou de maneira pedante, como se estivesse confuso por aquela reprimenda tão pouco sutil.

— Nenhum ladrão com sentido comum se atreveria a roubar nesta casa.

— Isto só me tranquiliza pela metade, Ibbitts. Temo que há muitos ladrões que carecem de sentido comum.

As facções de Ibbitts se endureceram e, sem uma nenhuma palavra a mais, puxou com força uma aldrava de veludo.

Um moço alto e desajeitado de uns dezoito ou dezenove anos apareceu no vestíbulo. Era ruivo e tinha os olhos azuis. Sua pele era pálida e estava coberta de sardas. Parecia um jovem nervoso e assustadiço.

— Ned, vá procurar o baú da senhorita Lodge e sobe-o ao dormitório que Sally preparou esta manhã.

— Sim, senhor Ibbitts.

Ned saiu com ligeireza pela porta principal. Ibbitts virou-se para Elenora. Na realidade, não disse “e então, já está satisfeita?”, mas ela tinha certeza que o pensava.

— Se puder por gentileza me seguir — disse Ibbitts —. O senhor não gosta que lhe façam esperar.

Sem esperar uma resposta, Ibbitts a precedeu ao longo de um corredor de luz tênue até a parte traseira da enorme casa. Quando chegaram ao final do corredor fez com que ela entrasse em uma sala alongada cujas paredes estavam forradas com uns painéis de madeira escura e densa. Elenora se sentiu aliviada ao comprovar que as janelas da biblioteca não estavam cobertas com cortinas pesadas, como ocorria na parte dianteira da casa. Naquela sala as cortinas pesadas de veludo marrom estavam recolhidas nas laterais e emolduravam a vista de um jardim com vegetação selvagem e caótica, empapado pela chuva.

O chão da biblioteca estava coberto com um tapete de cor parda que necessitava com urgência de uma profunda limpeza e na sala havia vários móveis de aspecto sólido e de um estilo que tinha passado de moda fazia já vários anos. O teto, alto e escuro, fazia muito tempo que não se pintava e mostrava a imagem de um céu sombrio na hora do crepúsculo. A maior parte das paredes estava coberta de livros encadernados em pele, velhos e cheios de pó.

Uma estreita escada de caracol com um corrimão de ferro forjado subia até uma galeria que percorria as paredes forradas de estantes.

— A senhorita Lodge, milord.

Ibbitts anunciou seu nome como se o lesse em um bilhete.

— Obrigado, Ibbitts.

No outro extremo da sala, perto de uma janela que dava ao jardim abandonado, Arthur se levantou de detrás de uma mesa profusamente esculpida.

De costas a tênue luz exterior, suas duras facções resultavam inescrutáveis. Arthur atravessou a sala em direção a Elenora.

— Bem-vinda ao seu futuro lar, querida! — exclamou. Elenora se deu conta de que estava representando seu papel diante do mordomo. Ela devia fazer o mesmo.

— Obrigado. É um prazer vê-lo novamente.

Elenora fez sua melhor reverencia. Ibbitts saiu da sala de costas e fechou a porta. Assim que desapareceu, Arthur, quem estava na metade do caminho para a porta, deteve-se e olhou seu relógio. “Por que demônios chegou tão tarde? Faz uma hora que a esperava”.

“Bom papel de prometido galante!”, pensou Elenora. Sem dúvida, seu novo patrão não pretendia manter a farsa quando estivessem sozinhos.

— Desculpe o atraso — respondeu Elenora com calma —. O tráfico estava impossível por causa da chuva.

Antes que ele pudesse responder, uma mulher falou desde a galeria superior.

— Arthur, por favor, me apresente — ela pediu com voz cálida e suave.

Elenora levantou a vista e viu uma mulher diminuta que devia ter uns trinta e cinco anos. Tinha as facções delicadas e seus olhos eram brilhantes e de cor avelã. Seu cabelo, recolhido em um singelo coque, era de cor mel escuro. Usava um vestido que parecia bastante novo e que provavelmente estava confeccionado com um tecido caro, embora não se ajustasse a última moda.

— Permita-me que apresente a Margaret Lancaster — Arthur manifestou—. É a parenta da que lhe falei, a que viverá aqui enquanto realizo meus negócios. Ela irá com a senhorita a todos os lugares e lhe servirá de acompanhante para que sua reputação não seja afetada enquanto esteja nesta casa.

— Senhora Lancaster — disse Elenora fazendo outra reverência.

— Por favor, me chame Margaret. No final das contas, todo mundo deve acreditar que logo formará parte da família — comentou Margaret descendo a escada de caracol —. Querida, isto vai ser muito emocionante. Tenho muita vontade de que comece a aventura.

Arthur retornou a sua mesa, sentou-se e olhou, primeiro a Elenora e depois a Margaret.

— Como já lhes expliquei, quero que façam todo o possível para atrair a atenção da aristocracia a fim de que eu possa realizar meus negócios com a maior reserva possível.

— Sim, certamente — murmurou Elenora.

— Devem organizar tudo imediatamente e assistir aos bailes e as festas mais importantes para que os membros da alta sociedade possam comprovar que tenho uma noiva.

— Compreendo — respondeu Elenora. Arthur olhou a Margaret e acrescentou:

— Como acompanhante e conselheira feminina de Elenora, te encarregará de todos os detalhes necessários para que cause um efeito rápido e convincente nos círculos da aristocracia.

— Sim, Arthur — respondeu Margaret com uma expressão algo tensa no rosto.

— Precisará de vestidos, chapéus e luvas adequadas, além de todas as miudezas que os acompanham — continuou Arthur —. Como é lógico, tudo tem que ser muito atual e devem comprá-lo nas lojas adequadas. Já sabe quão importante é a moda para os membros da alta sociedade.

A seguir se produziu uma breve pausa durante a qual Margaret pareceu recuperar o domínio de si mesma.

— Sim, Arthur — voltou a responder nesta ocasião esboçando um sorriso claramente trêmulo.

Elenora a observou com surpresa e se perguntou o que era o que lhe ocorria. Arthur, entretanto, atuava como se tudo estivesse bem.

— Bom, acredito que isto é tudo por agora — ele declarou enquanto esticava o braço para agarrar um diário com capa de pele e uma pena —. Podem ir. Estou seguro de que têm que preparar muitas coisas. Se lhes surgir alguma dúvida, façam-me saber.

Elenora se perguntou se ele se dava conta de que as estava despachando como se fossem duas empregadas. Claro que, no seu caso, essa era exatamente sua categoria, recordou a si mesma.

Entretanto, a relação entre ele e Margaret era completamente diferente e lhe surpreendeu que ela não se ofendesse. Na realidade, lhe pareceu que, de repente, Margaret ansiava sair da biblioteca.

Elenora pensou na reação que Margaret tinha tido só há alguns momentos, quando Arthur tinha declarado que a fazia responsável pelas questões relacionadas com a moda e o estilo.

Elenora estava convencida de que o que tinha visto nos olhos da Margaret era verdadeiro pavor.

 

Arthur esperou até que a porta se fechasse atrás das duas mulheres. Deixou o diário de lado, ficou de pé e se aproximou da janela que dava vista para o jardim.

Era consciente de que Elenora suspeitava que ele escondia algo, e estava certa. Entretanto, ele considerava que era melhor que não soubesse toda a verdade. E tampouco era necessário contar-lhe a Margaret. Seria mais fácil para elas representar seus papéis se não soubessem o que o tinha impelido a escrever a obra em que elas atuavam.

Arthur permaneceu frente à janela durante um bom tempo contemplando o nebuloso jardim e pensando em quanto o desagradava aquela casa.

Seu avô o levou para morar ali pouco depois de que seus pais morressem no incêndio de uma estalagem. Naquela época, ele tinha seis anos e era a primeira vez que via seu avô: o velho conde se zangou com seu filho por ter fugido para casar-se. A mãe de Arthur era uma jovem carente de fortuna e de contatos sociais, e o ancião recusou-se a aceitar a ela e a seu neto.

Sem dúvida, seu avô sabia como manter vivo o ressentimento, pensou Arthur.

Mas depois da perda de seu filho naquele incêndio, o ancião conde se deu conta de que Arthur ia ser seu único herdeiro. Decidiu então levar seu neto a enorme e lúgubre casa da Rain Street e pôr todo seu empenho em que Arthur não seguisse os passos de seu filho, segundo ele irresponsável e dominado pelo romantismo.

E ele tinha aprendido bem a lição, pensou Arthur. Seu avô lhe comunicou quais eram suas obrigações e responsabilidades desde aquele primeiro dia. Dez anos mais tarde, no seu leito de morte, o ancião seguia realizando a tarefa que ele mesmo se atribuiu. Suas últimas palavras para Arthur foram: “Recorde que é o chefe da família. É sua a responsabilidade cuidar de todos os outros”.

Os únicos momentos agradáveis que Arthur experimentou durante a década que viveu com seu avô ocorreram durante as frequentes e prolongadas visitas que fazia George Lancaster, o excêntrico tio avô de Arthur.

Foi tio George quem proporcionou o apoio e a influência positiva que lhe permitiram lidar com o temperamento sério e rígido de seu avô. A diferença dos outros membros da sua vasta e estendida família, a única coisa que George Lancaster esperava dele era que fosse o que na realidade era: um menino em crescimento, com os sonhos, as inquietações e as esperanças de um jovem.

Foi de George, e não de seu avô, quem Arthur chegou a gostar como tinha gostado de seu pai. Entretanto, George Lancaster morreu, assassinado, há menos de dois meses.

“Te vingarei — prometeu Arthur em voz baixa —. Juro que o assassino pagará pelo seu crime”.

 

Logo depois que Sally, a donzela, acabou de desfazer a bagagem de Elenora, alguém bateu na porta do dormitório. Sally abriu e, no corredor, apareceu Margaret com ar angustiado.

— Posso falar contigo, Elenora? — perguntou Margaret olhando a ambos os lados, sem dúvida para assegurar-se de que não havia ninguém no corredor —. É bastante urgente.

— Sim, claro, entre — respondeu Elenora. A seguir sorriu para Sally e lhe disse —: Isto é tudo por agora, obrigado.

— Sim, senhora.

Sally saiu apressadamente do quarto e fechou a porta detrás de si. Elenora olhou a Margaret.

— O que houve? — perguntou —. Me dei conta na biblioteca que você estava angustiada por algo.

— Angustiada é pouco — disse deixando-se cair numa poltrona —. Presa do pânico seria uma forma mais adequada de definir meu estado.

— E qual é a causa?

Margaret olhou para o teto e confessou:

— Porque estou representando uma farsa.

Elenora achou aquilo muito engraçado.

— Bom, e eu também.

— Sim, mas no seu caso isto não é problema algum. Arthur te contratou em uma agência — disse Margaret gesticulando com as mãos —. Ele te entrevistou, sabe com exatidão o que você pode oferecer e escreveu seu papel a partir desta informação. Entretanto minha situação é muito distinta e, quando descobrir que eu não sou quem pensa que eu sou, ficará furioso.

Presa da curiosidade, Elenora se sentou devagar no bordo da cama e observou a Margaret.

— Você poderia se explicar?

— Suponho que deveria começar pelo princípio — admitiu Margaret—. Quinze dias atrás, Arthur veio ver-me. Contou-me seu plano de apresentar uma noiva falsa a sociedade e me perguntou se poderia atuar como acompanhante. Eu lhe respondi que estaria encantada de ajudá-lo em seu projeto.

— Você é muito amável.

— Amável? Ora! Aproveitei a ocasião. Esta foi a primeira oportunidade que tive para vir a Londres desde a minha apresentação em sociedade faz quatorze anos.

— Compreendo.

Margaret realizou uma careta e continuou:

— Meu marido era de meia idade quando me casei com ele. Padecia de gota e odiava viajar. Durante o tempo que vivemos juntos, as únicas saídas que pude realizar foram as visitas ocasionais a casa da minha mãe e da minha tia. Tem ideia do que significa estar apanhada em um povoado durante quatorze anos?

— Bom, na realidade, sim.

— Oh! — Margaret exclamou. Fez uma careta e acrescentou —: Sinto muito. Não queria te incomodar. A questão é... que sou escritora.

— De verdade? Que emocionante! — Elenora estava encantada—. Publicaram algum dos seus escritos?

Margaret sorriu.

— A verdade é que sim. Escrevo para a editora Minerva. Utilizo o pseudônimo de Margaret Mallory porque estou convencida de que meus suscetíveis parentes do ramo Lancaster não aprovariam que houvesse uma escritora de novelas na família.

— Isto é fantástico. Li duas de suas obras, “As bodas secretas” e “A proposição”, e adorei a ambas.

— Obrigada — disse Margaret um pouco ruborizada —. É muito gentil.

— É verdade. Sou uma grande fã da sua obra, senhorita Mallory. Quero dizer... senhora Lancaster.

— Por favor, me chame Margaret.

Elenora hesitou e finalmente perguntou:

— Diz que sua identidade constitui um segredo para todos os membros de sua família? Incluindo o conde?

— Arthur é a última pessoa que eu desejaria que soubesse a verdade — assegurou Margaret com o rosto contraído —. É um homem com muitas qualidades excepcionais no que se relaciona a investimentos e este tipo de assuntos, mas leva muito a sério seu papel de chefe de família. Sem dúvida, por causa da influência do seu avô.

Elenora se lembrou do profundo autodomínio que tinha percebido nos olhos enigmáticos do conde.

— Sim, já me dei conta de que emite certa severidade.

— Sem querer exagerar, digo que Arthur pode ser inflexível, autocrático e absolutamente ditatorial. Além disso, não aprova as tendências literárias atuais e tremo ao pensar em como reagiria se descobrisse que escrevo este tipo de livros. Para começar não me teria me pedido que viesse a Londres para atuar como sua acompanhante. Prometa-me que não lhe revelará meu segredo.

— Prometo.

— Obrigada. Como estava dizendo, tive dificuldades para escrever algumas partes da minha última novela. Em concreto, as que se desenvolvem nos bailes e nas festas da alta sociedade. A verdade é que não posso escrever essas cenas com convicção porque conheço muito pouco sobre a vida nestes círculos.

— Pensei que tinha dito que veio a Londres para sua própria apresentação social...

— Durou menos de quinze dias, porque Harold pediu minha mão logo depois de me conhecer. De qualquer jeito, isto ocorreu faz quatorze anos, de modo que já não estou a par de como funcionam estes ambientes.

— Acredito que começo a entender qual é seu problema.

Margaret se sentou na beira da poltrona e prosseguiu:

— Quando Arthur me pediu que o ajudasse com seu plano, acreditei que constituiria a oportunidade perfeita para vir a Londres e observar de perto os detalhes da vida em sociedade. Como é lógico, anunciei-lhe que estaria encantada de representar esse papel. —Margaret levantou as mãos em um gesto de desespero —. Entretanto, isto foi antes de saber que ele esperava que eu me encarregasse dos vestidos e os complementos que se necessitam para frequentar os círculos da alta sociedade.

— Compreendo.

— Sinto muito, Elenora, mas não tenho nem ideia sobre como localizar a costureira, o chapeleiro ou o fabricante de luvas mais na moda. Acredito que deveria confessar a verdade a Arthur, mas se o faço estou convencida de que me enviará de volta a casa e encontrará a alguma outra pessoa para que represente meu papel.

— Hummm.

Margaret olhou a Elenora expectante.

— Que pensa? — perguntou. Elenora sorriu.

— Penso que não há nenhuma razão para que incomodemos a Arthur com esses detalhes. Estou convencida de que poderemos resolver esse problema sem grandes dificuldades. — lembrou-se do montão de cartões que tinha visto na bandeja deslustrada da entrada —. O título e a posição de Arthur nos assegurarão um bom número de convites. Na realidade, a única coisa que precisamos é o nome de uma boa costureira. Ela nos indicará as lojas que estão mais a moda.

— E como propõe que encontremos a costureira adequada?

Elenora riu entre dentes.

— Minha anterior patroa era um pouco incomum quanto a seus gostos em relação à roupa. Só levava trajes confeccionados com tecidos de cor púrpura.

— Que estranho!

— Pode ser, mas a senhora Egan era uma grande seguidora da moda. Asseguro-te que todos seus vestidos púrpuros tinham sido confeccionados pelas costureiras mais exclusivas. Eu conheço bem a uma delas porque acompanhei a minha patroa a sua loja em várias ocasiões.

— Mas ela te reconhecerá — advertiu Margaret.

— Não acredito que isto deva nos preocupar — comentou Elenora —. Durante o tempo que passei com a senhora Egan aprendi que as boas costureiras chegam a cúpula da sua profissão não só graças a suas habilidades com a costura, mas também porque são discretas quanto aos assuntos das suas clientes mais importantes.

A Margaret lhe brilharam os olhos.

— E, como futura esposa do conde de St. Merryn, sem dúvida você é uma cliente muito importante.

 

Ibbitts permaneceu uns instantes na escuridão do amplo armário da roupa branca e refletiu a respeito do diálogo que acabava de ouvir.

Na realidade, tinha encontrado esse pequeno buraco por acaso. Estava oculto na parede do fundo do armário e permitia escutar as conversas mantidas na biblioteca. Ibbitts suspeitava que tivesse sido feito muitos anos atrás por um criado inteligente que teve o bom senso de manter-se informado sobre os negócios de seus patrões.

Uma coisa era certa, pensou Ibbitts: tinha razão em relação à senhorita Lodge. Desde o primeiro momento em que a viu, examinando o pedestal poeirento do vestíbulo, soube que havia algo estranho nela. Embora lhe tivesse sorrido, como o faziam todas as mulheres, não percebeu nenhum brilho de luxúria no seu olhar. Nem sequer um brilho de interesse sensual.

Tinha-o admirado como se admira um quadro bonito ou uma obra de arte: com apreciação, e nada mais.

Sua reação era incomum e, de algum modo, preocupante. Tal como sua mãe havia predito, seu rosto constituía sua fortuna e a pessoas, principalmente as mulheres, sempre reagiam ante sua beleza.

Em seguida se deu conta de que suas formosas facções constituíam um grande valor: sendo ainda um menino percebeu que as olhadas que lhe dedicavam não tinham nada a ver com o modo como olhavam a seus irmãos e irmãs, e a outros meninos do povoado.

Seu rosto lhe permitiu conseguir aquele primeiro e decisivo emprego na casa do barão, um homem velho e obeso que morava na periferia do povoado. O barão tinham se casado recentemente com uma dama várias décadas mais jovem que ele. A esposa era muito bonita e era evidente que estava mortalmente entediada. Logo se mostrou encantada com Ibbitts, vestiu-o com formosos trajes e insistiu em que permanecesse na sala de jantar enquanto ela comia.

A primeira noite que o convidou a compartilhar a cama com ela, Ibbitts compreendeu imediatamente que seu rosto não era o único grande valor que possuía. Quando se ajoelhou por detrás do suave e pleno traseiro da baronesa e penetrou em seu quente e confortável interior, teve uma visão do futuro brilhante e bem-sucedido que lhe esperava.

Naquela noite decisiva, pensou que o mundo provavelmente estava abarrotado de esposas jovens, ricas e atraentes que, por razões de dinheiro e de contatos sociais, tiveram que casar-se com homens velhos e gordos. E chegou a conclusão de que em Londres conseguiria suas melhores oportunidades profissionais.

E tinha razão. Quando, alguns meses depois, o ancião barão faleceu enquanto dormia, sua viúva se mudou imediatamente a cidade com todos seus pertences. Além disso, levou a Ibbitts com ela e o promoveu ao cargo de mordomo. Ele trabalhou para ela durante mais um ano, até que se cansou de suas contínuas exigências.

Ibbitts finalmente pediu demissão e procurou outro emprego. E não demorou a conseguir um emprego ainda mais lucrativo em outra casa enriquecida. Mais uma vez, teve que satisfazer uma jovem esposa cujo marido, calvo e de meia idade, passava a maior parte das noites com a amante.

Como sua primeira patroa, aquela dama mostrou-se muito generosa, não só com seus favores e um salário regular, mas também, e o que era mais importante, com seus esplêndidos e caros presentes.

Durante alguns anos, Ibbitts exerceu sua profissão com grande diligencia. Além de uma série de empregos nos que se viu obrigado a satisfazer as exigências de damas luxuriosas até um ponto surpreendente, também trabalhou, em uma ou duas ocasiões, ao serviço de cavalheiros enriquecidos que apreciaram seus dois grandes valores tanto como as mulheres.

Entretanto, fazia apenas um ano, a desgraça caiu sobre ele. O certo é que cada vez lhe chateavam mais as tediosas exigências dos seus patrões. Seu trabalho, que por lei natural se supunha que tinha que ser agradável, converteu-se precisamente nisso, em trabalho. Entretanto, ele repetia a si mesmo que o pagamento e os presentes mereciam esses sacrifícios.

Mas então, uma noite, para horror de Ibbitts, surgiu um problema. Ou, para ser mais preciso, seu segundo grande valor não surgiu.

Seu rosto podia constituir sua fortuna, mas, por si só, não era grande coisa. Sua venturosa profissão dependia da sua fiabilidade e da sua resistência na cama tanto ou mais que do seu rosto.

Ibbitts ficou consternado quando o despediram com desonra. Entretanto, mais uma vez, a sorte o acompanhou: fazia sete meses que tinha conseguido seu emprego atual na mansão da Rain Street. O ancião homem de negócios que o tinha contratado lhe deu instruções simples e concisas. Ibbitts tinha que fiscalizar a um número reduzido, mas suficiente, de pessoal doméstico que devia se encarregar da manutenção da enorme casa, e assegurar-se de que estivesse preparada para as raras ocasiões em que o conde de St. Merryn decidisse alojar-se ali durante suas breves estadias em Londres.

 

Para Ibbitts, seu novo emprego era ideal em todos os aspectos. Não só não havia nenhum patrão ao que tivesse que satisfazer na cama, mas também St. Merryn nem sequer se incomodava em aparecer por ali.

Até então, Ibbitts tinha podido fazer o que bem entendesse e utilizado aquela oportunidade para manipular a situação com o objetivo de desfrutar de uma aposentadoria antecipada e confortável.

As coisas tinham funcionado bem até há alguns dias atrás, quando, sem prévio aviso, St. Merryn apareceu assumindo que a casa estaria pronta para ele. Durante as primeiras vinte e quatro horas, Ibbitts se sentiu aterrorizado. A longa ausência de seu patrão o tinha encorajado e Ibbitts tinha introduzido várias mudanças no serviço. Como resultado, a mansão não estava em muito bom estado.

As mudanças de Ibbitts respondiam a uma excelente razão: a economia. Não tinha sentido conservar a cozinheira, a governanta, a segunda donzela ou aos jardineiros se o proprietário da mansão não precisava de seus serviços.

Sua única esperança era que St. Merryn não ficasse muito tempo, pensou Ibbitts. Enquanto isso, averiguaria tudo o que fosse possível sobre os assuntos privados do conde.

Durante sua trajetória profissional tinha descoberto que, em muitos casos, existia um amplo mercado onde vender os segredos dos seus patrões.

 

Bennett se deixou cair na poltrona que estava diante de Arthur e deu outra olhada ao jovem enxuto e zangado que, naquele momento, abandonava o clube.

— Pelo que vejo, Burnley esteve aqui esta tarde — comentou Bennett.

— Assim é — assentiu Arthur sem sequer levantar a vista do jornal.

— Faz uns minutos, vi como te olhava. Asseguro-te que, se olhar matasse, a essa hora você já estaria morto e enterrado.

Arthur virou a página.

— Felizmente, olhares não produzem esse efeito em mim. Pelo menos não os de Burnley.

— Acho que te odeia profundamente — Bennett lhe advertiu em voz baixa.

— Não sei por que. Foi ele quem ficou com a dama, não eu.

Bennett suspirou e se afundou ainda mais na poltrona. Inquietava-lhe que Arthur não mostrasse sinais de preocupação pela firme e evidente aversão que Burnley sentia por ele. Claro que, naquele momento, seu amigo centrava toda sua atenção no plano que tinha elaborado para apanhar ao assassino de seu tio avô. E quando Arthur se concentrava em um projeto, não dava atenção a mais nada até que o considerasse concluído.

Uma obstinação tão acentuada podia constituir rasgo fastidioso algumas vezes, Bennett pensou. Entretanto, teve que admitir que, provavelmente, era essa a razão pela qual Arthur tivesse levado só alguns anos para restaurar a fortuna de St. Merryn a sua estado de bonança atual.

Embora soubesse que Arthur não estava interessado em escutar suas advertências sobre Roland Burnley, Bennett se sentiu obrigado a insistir.

— Dizem que a situação financeira de Burnley deteriorou-se terrivelmente — Bennett comentou tratando de enfocar a questão desde outro ângulo —. Pelo visto, tenta recuperar suas perdas nas casas de jogo clandestino.

— Se pretende conseguir capital por meio do jogo, sua situação financeira se deteriorará ainda mais.

— Certamente — Bennett concordou. Acomodou-se então no assento e, juntando as gemas dos dedos, acrescentou —: Eu não gosto do que vejo no rosto dele quando vocês dois estão no mesmo recinto.

— Pois não o olhe.

Bennett suspirou.

— De acordo, mas te aconselho a que vigie suas costas — advertiu a Arthur.

— Obrigado pelo conselho.

— Não sei por que me preocupo — Bennett disse sacudindo a cabeça.

— Sinto não ter agradecido da forma adequada. Acontece que nestes momentos tenho outros assuntos na cabeça. Estou a ponto de dar o seguinte passo do meu plano.

Quando Arthur punha em marcha uma de suas labirínticas estratégias não havia força conhecida que pudesse detê-lo, Bennett recordou. Normalmente, as intrincadas maquinações de seu amigo estavam relacionadas com investimentos financeiros, mas de vez em quando aplicava suas habilidades a outras questões e sempre, invariavelmente, era bem sucedido. Um homem inteligente nunca se interporia entre Arthur e seu objetivo, fosse esse qual fosse.

— Espalhou-se o rumor de que sua nova e misteriosa noiva está na cidade para desfrutar dos prazeres da vida social durante umas semanas — Bennett explicou—. Como é lógico, especula-se muito a respeito dela. De acordo com suas instruções, fiz correr a voz, em determinados círculos, de que provém de uma família rica de latifundiários do Norte.

— Circula algum rumor a respeito de que a encontrei por meio de uma agência?

— Claro que não! — Bennett soltou —. Como é lógico, todos recordam a promessa que fez no ano passado, mas deduziram que se tratava de uma brincadeira. Ninguém acreditou, e ninguém crê que um homem da sua posição pretendesse levar a prática uma ideia tão descabelada.

— Excelente. Então tudo se está desenvolvendo conforme o planejado.

— Ainda não posso acreditar que pretenda utilizar a uma dama de companhia para que te ajude neste insólito plano — Bennett confessou franzindo o cenho —. Como ela é?

— Conhecerá a senhorita Lodge muito em breve. — Arthur baixou o jornal e, depois de sorrir com satisfação, acrescentou —: É bastante inteligente e viveu o suficiente para dispor de certa experiência.

— Compreendo — Bennett murmurou. Em outras palavras, a senhorita Lodge não era uma virgem inocente.

— É bastante atraente — continuou Arthur, que começava a entusiasmar-se com a descrição —. Tem grande autodomínio e certo ar de autoridade que fará que as pessoas pensem duas vezes antes de lhe formular perguntas impertinentes. Além disso, sua avó era uma atriz. Espero que este talento seja hereditário. Ou seja, em geral, é a mulher adequada.

“Por todos os demônios”, Bennett pensou surpreso pela longa lista de qualidades da senhorita Lodge e a fluidez com a que Arthur as tinha enumerado. Tinha algo acontecendo ali. Fazia anos que não ouvia seu amigo falar com tanto entusiasmo de uma mulher. Anos? Nada disso! Na realidade, nunca tinha ouvido Arthur falando tão bem de uma dama.

Arthur, devido a seu singular ponto de vista sobre determinados assuntos, era o único homem que podia considerar que a experiência mundana e o talento para atuar eram atributos desejáveis em uma dama distinguida. Qualquer outro homem os consideraria mais apropriados em uma cortesã ou uma amante.

— Justo a mulher que procurava — Bennett murmurou.

— Sem dúvida.

Bennett juntou as mãos e declarou:

— Sigo opinando que deveria lhe contar a verdade sobre o que planeja.

— Absolutamente. Quanto menos saiba, menos probabilidades tem que lhe escape a verdade no momento equivocado.

— Compreendo sua preocupação, mas não acredito que seja justo mantê-la na ignorância — Bennett insistiu. Permaneceu então uns instantes em silêncio e expôs seu último e mais convincente argumento —: Além disso, pensou que se lhe contar toda a historia ela poderia te ajudar nas suas investigações?

Arthur entreabriu os olhos.

— Isto é a última coisa que eu quero — assegurou —. Meus assuntos não são da conta dela.

— Já vejo que é inútil discutir esta questão contigo — Bennett disse, e depois de um profundo suspiro, perguntou —: a acompanhante dela chegou?

— Sim. — Arthur esticou as pernas e apoiou os antebraços na poltrona —. Para ser sincero, tive algumas de dúvidas sobre Margaret esta tarde.

— Acreditei que me você me tivesse dito que ela era a única parenta feminina que suportaria ter sob o mesmo teto durante um período de tempo prolongado.

— Assim é. Entretanto, quando lhe contei que esperava que se encarregasse de todas essas questões misteriosas que estão relacionadas com a apresentação da minha noiva em sociedade, vi claramente que não sabia nada a respeito: estou quase seguro de que havia autêntico pânico nos seus olhos.

— Não me surpreende. Se bem me lembro, disse-me que a senhora Lancaster não viveu nunca na cidade, salvo por uma temporada curta faz muitos anos.

— É certo — Arthur reconheceu com uma careta —. Suponho que tinha assumido que uma dama que esteve casada durante quatorze anos saberia resolver esse tipo de questões. Entretanto, hoje me dei conta de que é Margaret e não a senhorita Lodge a mulher inocente que vem do campo.

Bennett franziu o cenho enquanto recordava os intrincados preparativos que sua esposa, falecida muitos anos atrás, realizava antes de cada baile e cada festa.

— Necessitará a alguém que se encarregue de todos os detalhes — Bennett advertiu a seu amigo —. Uma dama moderna deve levar os trajes, as luvas e os sapatos de baile adequados. Além disso, tem que dispor de uma cabeleireira ou de uma donzela que se encarregue de penteá-la. Sem esquecer que deve realizar suas compras nas lojas mais na moda.

— Sou consciente de tudo isto.

— Em minha opinião, Arthur, se a senhora Lancaster não for capaz de resolver todas estas questões, você deve encontrar a outra parenta que o faça. Caso contrario, enfrentará a um desastre social. Acredite, lembre-se que tenho certa experiência nestes assuntos.

— Não é necessário procurar a ninguém mais — Arthur assegurou com ar satisfeito —. Margaret ficará, porque necessito a outra mulher na casa por questões de decoro. Por outro lado, graças a meus negócios, sei quem é quem nos círculos da alta sociedade e isto me permitirá escolher os convites que me convém que a senhorita Lodge aceite. Você acompanhará as duas mulheres durante as primeiras festas e apresentará minha noiva às pessoas adequadas. Não quero que fique toda a noite sem dançar.

— Sim, certamente, estarei encantado de realizar as apresentações, mas e a roupa? Asseguro-te que este aspecto é crucial.

Arthur encolheu de ombros e disse:

— Estou convencido que a senhorita Lodge se sairá muito bem com os vestidos.

Aquela confiança inquebrável em outra pessoa, por não falar do fato de que se tratava de uma mulher, era pouco comum em Arthur, pensou Bennett presa da curiosidade. Quando punha em prática seus labirínticos planos, Arthur não estava acostumado a confiar tanto em ninguém, fosse homem ou mulher.

Bennett sabia que ele era uma das poucas pessoas nas que Arthur confiava, embora, pelo visto, a senhorita Lodge havia ingressado a esse reduzido grupo. Tudo aquilo era extremamente interessante.

— E o aspecto social? — Bennett insistiu —. Já sabe quão traidoras podem ser as águas em um baile da sociedade. Se a senhorita Lodge falar com a pessoa errada, arruinará a impressão que tanto te esforça em causar. E ainda seria pior se dançasse ou saísse ao jardim com o homem equivocado. As damas jovens estão protegidas por suas mães ou por uma acompanhante experiente. Entretanto, pelo que me contou, a senhorita Lodge não terá a ninguém que vele por ela.

— Sua afirmação não é completamente correta, Bennett. — Arthur esboçou um leve sorriso e confessou —: Minha intenção é que você vele por ela.

Bennett soltou um sentido gemido, fechou os olhos e murmurou:

— Temia que dissesse isso.

 

Na manhã seguinte, Elenora examinava com atenção seu dormitório com as mãos apoiadas nos quadris, sem deixar de dar pequenas batidas no chão com a ponta do pé.

A decoração, escura e sombria, consistia em um armário de madeira esculpido muito ornamentado, uma cama maciça e coberta com pesados tecidos e um tapete opaco. O papel da parede era de uma época anterior, quando os desenhos exóticos e exuberantes estavam de moda. Desgraçadamente, as cores se desvaneceram com o tempo e agora era impossível distinguir as flores e os caules retorcidos das videiras.

O grau de limpeza do lugar estava de acordo ao que Elenora tinha visto no resto da mansão. Só haviam tirado o pó, varrido o chão e lustrado os móveis superficialmente. A moldura do espelho octogonal e a cabeceira estavam cobertos por uma grossa camada de sujeira. Além disso, a vista embaçada que se apreciava através da janela era uma prova de que ninguém tinha limpado os cristais recentemente.

Se iria viver ali durante as próximas semanas, tinha que fazer algo sobre o deplorável estado da casa, decidiu Elenora.

A seguir abriu a porta e saiu ao lúgubre corredor. Não tinha muita vontade de descer e tomar o café da manhã. O jantar da noite anterior tinha consistido em um insípido frango ensopado, algumas bolas de massa de farinha que podiam ter servido como lastro para um navio, um prato de verdura que tinham cozido até adquirir um desagradável tom cinza e, de sobremesa, um pudim gorduroso.

Margaret e ela tinham jantado sozinhas na sombria sala de jantar. Arthur, sabiamente, havia optado por ir jantar no clube. Elenora não o culpava por sua decisão. Ela também teria preferido jantar em qualquer outro lugar.

Elenora desceu as escadas com o olhar fixo sobre pó que foi se acumulando entre os balaústres do corrimão. Uma vez no andar de baixo, tentou localizar a salinha do café da manhã. Depois de entrar em dois cômodos que tinham as cortinas fechadas e os móveis cobertos com tecidos, tropeçou-se com Ned.

— Bom dia — ela saudou —. Poderia me indicar onde se encontra a salinha do café da manhã?

Ned pareceu desconcertado.

— Acredito que está no final do corredor, senhorita...

Ela arqueou as sobrancelhas.

— Não sabe onde se encontra com exatidão? — perguntou ao rapaz.

Ned se ruborizou e começou a gaguejar.

— Sinto muito, senhorita, mas desde que trabalho aqui não foi utilizada.

— Compreendo. — Elenora se armou de paciência e lhe perguntou —: Então, onde se serve o café da manhã?

— Na sala de jantar, senhora.

— Muito bem, obrigado, Ned.

Elenora percorreu outro corredor e entrou na sala de jantar. De certa maneira, surpreendeu-se ao encontrar ali a Arthur, quem estava sentado em um dos extremos da longa mesa.

Ele levantou a vista do jornal que estava lendo e franziu um pouco o cenho, como se não tivesse certeza do que fazer com ela àquela hora do dia.

— Elenora — disse Arthur e, depois de levantar-se, acrescentou —: bom dia.

— Bom dia.

A porta que comunicava com a copa se abriu de repente e apareceu Sally. Percebeu que ela estava ainda mais nervosa e angustiada do que no dia anterior. Tinha a testa banhada em suor e algumas mechas longas de cabelo escapavam da sua touca, de um branco amarelado. Sally olhou, surpreendida, a Elenora e se secou as mãos no avental sujo.

— Senhorita! — exclamou enquanto fazia uma estranha reverência —. Não sabia que desceria para tomar o café da manhã.

— Já me dei conta — respondeu Elenora assinalando significativamente a mesa com a cabeça.

A donzela se dirigiu, a toda pressa, ao aparador e abriu uma gaveta de um puxão. Enquanto Sally colocava os talheres, Elenora atravessou a sala para examinar o que havia para comer no café da manhã.

Ao parecer, a situação na cozinha não tinha melhorado desde a noite anterior. Os ovos estavam frios, as salsichas tinham uma cor insalubre e as batatas cheiravam a gordura rançosa. Ante o desespero, Elenora agarrou um par de torradas moles e se serviu uma xícara de café morno.

Quando retornou à mesa, viu que Sally tinha posto os talheres no extremo oposto ao que estava Arthur. Elenora esperou a que a donzela saísse da sala, agarrou os talheres e o guardanapo e os transladou à direita de Arthur, onde se sentou com suas torradas moles e sua xícara de café morno.

Um silêncio incômodo reinou uns instantes na sala.

— Espero que tenha dormido bem esta noite — Arthur comentou finalmente.

— Muito bem, milord — respondeu Elenora antes de lhe dar um sorvo ao café. Não só estava frio, mas também, além disso, tinha um sabor espantoso. Elenora deixou a xícara sobre a mesa —. Importa-lhe que pergunte se os membros do serviço levam muito tempo na casa?

Ele pareceu surpreender-se pela pergunta.

— Não tinha visto nenhum deles em minha vida até que cheguei faz uns dias.

— Não conhece nenhum deles?

Arthur virou a página do jornal e explicou:

— Passo nesta casa o menor tempo possível. De fato, não tinha estado aqui desde faz um ano. Prefiro ficar no clube nas raras ocasiões em que venho a Londres.

— Compreendo. —Sua falta de interesse pela casa explicava alguns costumes, pensou ela —. Quem fiscaliza aos criados?

— O ancião administrador do meu avô se encarrega de tudo o que se relaciona com a casa. De fato, herdei-o junto com a mansão, e ocupar-se da casa é a única tarefa que realiza neste momento. Não utilizo seus serviços para nenhuma outra coisa. — Arthur levantou sua xícara e perguntou —. Por que você quer saber isso?

— Há uns quantos detalhes domésticos que requerem alguma atenção.

Ele bebeu um sorvo de café e fez uma careta.

— Sim, já me dei conta. Mas não tenho tempo de me encarregar desses assuntos.

— Certamente — respondeu ela —. Entretanto, eu sim disponho de tempo. Lhe incomodaria se eu introduzisse uma ou duas mudanças na administração do seu lar?

— Eu não o considero meu lar — respondeu Arthur encolhendo os ombros. Deixou a xícara sobre a mesa e continuou —: De fato, estou pensando em vender a casa. Mas, por favor, realize todas as mudanças que considere oportunas enquanto estiver aqui.

Ela mordiscou uma das torradas moles.

— Entendo perfeitamente que você queira vender esta propriedade. Sem dúvida, trata-se de uma residência enorme e cara de manter.

— O custo não tem nada que ver com minha decisão. — O olhar de Arthur se endureceu —. O que acontece é que eu não gosto deste lugar. Quando me casar, necessitarei uma moradia na cidade para uso ocasional, mas prefiro comprar outra casa para tal fim.

Por alguma razão, ao ouvir esse comentário, Elenora perdeu o pouco interesse que tinha pela torrada. Como era lógico, ele estava pensando em um matrimônio real, pensou ela. Por que a deprimia que ele falasse daquela questão? Ele tinha certas obrigações com respeito a seu título e sua família. Além disso, quando procurasse a sua condessa faria da mesma maneira que todos os homens da sua posição: escolheria a uma dama jovem e de boa família que acabasse de terminar os estudos. O tipo de mulher que tinha considerado muito delicada e inocente para empregá-la como sua falsa noiva.

A noiva de St. Merryn, sua verdadeira noiva, seria uma dama de reputação imaculada, cuja família não estaria salpicada pelo escândalo nem tampouco relacionada com o comércio. Além disso, lhe contribuiria com terras e uma fortuna, embora ele não necessitasse de nenhum destes bens, porque assim era como funcionavam as coisas na sociedade.

Elenora decidiu que tinha chegado o momento de mudar de tema de conversação:

— Os jornais trazem alguma notícia interessante?

— As mesmas intrigas e fofocas de sempre — respondeu ele com certo desdém —. Nada importante. O que tem programado para hoje?

— Margaret e eu tínhamos pensado ir às compras.

Ele assentiu com a cabeça.

— Excelente. Quero que você faça sua aparição em sociedade o antes possível.

— Acredito que estaremos preparadas para assistir à primeira festa amanhã pela tarde — ela o tranquilizou.

Ibbitts entrou na sala com a deslustrada bandeja do vestíbulo. Nela havia um montão de notas e cartões.

Arthur levantou a vista.

— O que traz?

— Outro montão de cartões de visita e convites de todo tipo, milord — respondeu Ibbitts—. Que deseja que faça com eles?

— Os revisarei na biblioteca.

— Sim, milord.

Arthur deixou o guardanapo sobre a mesa sem dobrar e ficou em pé.

— Desculpe-me, querida — declarou —. Devo ir. Enviarei-lhe mais tarde a lista de acontecimentos sociais aos que deverá comparecer esta semana.

— Muito bem, Arthur — murmurou ela em um tom formal.

Elenora disse a si mesma que não levaria a palavra “querida” a sério. Aquela expressão de carinho se devia, única e exclusivamente, à presença de Ibbitts.

Quando Arthur se inclinou e a beijou, não na bochecha, a não ser diretamente na boca, Elenora ficou gelada. Foi um beijo breve e possessivo: o tipo de beijo que um homem daria a sua autêntica noiva.

Quem diria que Arthur era tão bom ator? Perguntou-se ela um pouco atordoada.

Elenora se sentiu tão desconcertada pela inesperada amostra de falso afeto que, durante uns instantes, não pôde articular palavra. Quando se recuperou, Arthur já tinha saído da sala de jantar. Elenora ouviu o amortecido tamborilar dos saltos das suas lustrosas e elegantes botas Hessians afastando-se pelo corredor.

— Algo mais, senhorita? — perguntou Ibbitts em um tom que assumia que não ela ia desejar nada mais.

— Na realidade, sim — respondeu Elenora deixando o guardanapo em cima da mesa —. Traga-me a contabilidade doméstica dos dois últimos trimestres.

Ibbitts ficou olhando-a, sem compreender, durante uns segundos. Suas bochechas ficaram vermelhas e abriu e fechou a boca várias vezes antes de conseguir falar de novo:

— Como diz, senhorita?

— Acredito que fui bastante clara, Ibbitts.

— O administrador do antigo conde é quem leva as contas da propriedade, senhorita. Eu não as tenho. Eu só anoto os gastos e entrego minhas anotações ao senhor Ormesby.

— Compreendo. Neste caso, possivelmente possa me responder algumas perguntas.

— Que perguntas, senhorita? — perguntou Ibbitts com receio.

— Onde está a cozinheira?

— Deixou o emprego faz uns meses, senhora. Ainda não encontrei uma substituta, embora Sally pareça desempenhar-se bem na cozinha.

— Sally trabalha muito, mas não tem talento para a cozinha.

— Espero poder contratar logo a uma cozinheira nova através de uma agência — murmurou Ibbitts.

— Sério?

Elenora ficou em pé e se dirigiu à porta da cozinha.

— Aonde vai, senhorita? — perguntou Ibbitts.

— Ver com Sally certas questões culinárias. Enquanto isso, sugiro que você se esforce em conseguir uma cozinheira nova e outra donzela. Ah, sim! E também necessitaremos de dois jardineiros.

O olhar de Ibbitts se obscureceu de raiva, mas não disse nada.

Elenora sentiu que um calafrio lhe percorria a espinha dorsal quando lhe deu as costas para entrar na cozinha.

 

O assassino fez outro ajuste na pesada máquina de ferro e bronze e se afastou para examinar seu trabalho. Estava muito perto do seu objetivo. Havia resolvido o grande mistério do velho tratado, o último mistério, que seu predecessor não tinha conseguido decifrar. Um ou dois ajustes finais e a máquina estaria terminada. Muito em breve a poderosa energia do Raio de Júpiter estaria a seu serviço.

Uma euforia febril, e tão renovadora como o fogo de um alquimista, apoderou-se dele. Todo seu ser vibrava ante a perspectiva do êxito.

O assassino olhou seu relógio. Já era quase de manhã. Atravessou o laboratório e foi apagando as luzes a seu passo. Depois agarrou a lanterna e entrou na cripta.

Tinha descoberto que o laboratório tinha duas entradas secretas. A jaula de ferro que descendia da antiga abadia resultava muito útil, mas não gostava de usá-la com frequência porque, como seu predecessor, temia despertar a curiosidade dos que viviam perto dali.

A verdade era que a maior parte das pessoas dos arredores tinha medo da abadia, acreditava que estava enfeitiçada. Entretanto, se alguém especialmente audaz via um cavalheiro vestido com elegância entrando e saindo da capela todas as noites, provavelmente podia chegar a superar seu temor. Portanto, o assassino reservava aquela entrada para as ocasiões nas que tivesse muita pressa.

O rio perdido constituía uma rota mais segura, embora também mais pesada, para suas visitas noturnas regulares ao laboratório.

A água lambia o cais subterrâneo secreto localizado na parte traseira da cripta. O assassino subiu em um dos botes de fundo plano que guardava ali e, movendo-se com cautela para não perder o equilíbrio, colocou a lanterna na proa e agarrou a vara.

Com um empurrão firme afastou a pequena embarcação ao centro da corrente desse rio perdido no esquecimento desde fazia séculos. O bote flutuava com suavidade pela superfície escura da água pestilenta e o assassino tinha que agachar-se de vez em quando para esquivar as velhas pontes de pedra que cruzavam o rio.

Essa viagem lhe resultava estranha e inquietante. Tinha-a realizado já em múltiplas ocasiões, mas duvidava de que chegasse alguma vez a acostumar-se a escuridão opressiva e ao aroma nauseabundo da água. Pensar que seu predecessor tinha ido e vindo do laboratório incontáveis vezes seguindo essa mesma rota, entretanto, reconfortava-o. Acreditava que tudo formava parte do seu grandioso destino.

Uma das antigas relíquias que povoavam as margens do rio apareceu ante seus olhos. A luz da lanterna realizou um movimento de vaivém pela superfície do relevo de mármore que estava parcialmente submerso no barro. O relevo representava uma cena em que um deus estranho coberto com um gorro peculiar matava a um touro enorme. Segundo as notas do diário de seu predecessor, tratava-se de Mitra, o misterioso deus de um culto romano que tinha florescido antigamente naquela zona.

O assassino afastou os olhos, como tinha aprendido a fazer cada vez que se cruzava com uma daquelas velhas estátuas. O olhar acusador dos seus olhos sem vida o intranquilizavam. Era como se os antigos deuses pudessem ver o esconderijo no seu interior onde fervia e se agitava a estranha energia que alimentava seu intelecto. Como se compreendessem que, em certo sentido, aquela energia escapava a seu controle.

 

Na noite seguinte, pouco depois das dez, Elenora, Margaret e Bennett Fleming se encontravam perto de um grupo de palmeiras plantadas em vasos.

— O primeiro baile é fundamental — explicou Bennett enquanto examinava a multidão com atitude de entendido —. Devemos nos assegurar que você dance com o cavalheiro adequado.

Elenora observava com atenção aos pressente através das folhas das palmeiras. A sala resplandecia graças à iluminação dos candelabros pendurados do teto. Uma das paredes estava forrada com espelhos que refletiam o brilho da deslumbrante cena.

As damas, embelezadas com vestidos esplendorosos, e os cavalheiros, que vestiam à última moda, riam e conversavam animadamente. Vários casais de aspecto muito elegante se deslizavam pela pista de baile. A música se propagava desde um balcão onde estavam instalados os músicos. Um pequeno esquadrão de criados vestidos com uniformes azuis abria caminho entre a multidão passeando pela sala bandejas com taças de champanha e de limonada.

— Não sei por que não posso dançar com você primeiro — Elenora perguntou a Bennett.

Tão logo conheceu a Bennett Fleming, Elenora decidiu que gostava muito dele. Só um olhar a sua constituição robusta e à seriedade de seu olhar lhe bastaram para compreender por que Arthur confiava nele. Bennett Fleming dava a impressão de ser uma dessas poucas pessoas de bom coração e caráter firme nas quais se podia confiar em situações de crise.

— De maneira nenhuma, não funcionaria — Bennett lhe assegurou —. O primeiro estabelecerá certo patrão, compreende? Se escolhermos bem, ele a colocará no centro da atenção de forma imediata.

Margaret o observou com sincera admiração.

— Como sabe você todas estas coisas?

Bennett se ruborizou um pouco.

— Minha defunta esposa desfrutava com os prazeres da boa sociedade. E, quando se está casado com uma perita, algo se aprende.

— Sim, claro — murmurou Margaret.

A seguir introduziu a mão na sua bolsinha e tirou uma caderneta e um lápis pequeno.

Bennett franziu o cenho e lhe perguntou:

— O que faz?

— Tomo notas — esclareceu Margaret sem dar importância.

— Para que?

— Para meu diário.

Elenora conteve uma gargalhada. Perguntou-se o que diria Bennett se soubesse que Margaret estava realizando uma investigação para sua nova novela.

— Compreendo — respondeu Bennett olhando-a com os olhos entreabertos. Em seguida bebeu um sorvo de champanha e adotou a atitude de quem se prepara para entrar em batalha —. Como dizia, decidir qual cavalheiro terá o privilégio de compartilhar com você o primeiro baile é de suma importância.

— Hummm — murmurou Elenora —. Este processo de seleção parece similar ao de escolher o primeiro amante.

Bennett engasgou com o champanha.

— O processo de escolher o primeiro amante — repetiu Margaret em voz baixa escrevendo apressadamente em sua caderneta —. Sim, eu gosto da construção desta frase. Tem algo de misterioso, não crê?

Bennett a olhou e disse:

— Não posso acreditar que tenha escrito esta frase para seu diário.

— Assim será mais interessante quando o releia mais adiante, não crê? — perguntou-lhe Margaret, obsequiando-o com um brilhante sorriso enquanto deixava cair sua caderneta no interior do bolsito.

Bennett decidiu não responder aquela pergunta e voltou a concentrar sua atenção na pista de baile. De repente, uma expressão de alívio iluminou visivelmente seu rosto.

— Aí está — anunciou Bennett em voz baixa.

— Quem? —perguntou Elenora.

— O primeiro que a acompanhará à pista de baile.

Bennett virou a cabeça. Elenora seguiu seu olhar e viu um cavalheiro alto e distinguido vestido com um fraque azul, que estava junto às portas que conduziam ao jardim. Parecia ter perto de sessenta anos e estava conversando com outro homem. Sua atitude e sua expressão deixavam bem claro que a colorida cena que se desenvolvia a seu redor o entediava profundamente.

— Quem é? — perguntou Margaret —. E por que você diz que é o companheiro adequado para o primeiro baile de Elenora?

— Trata-se de lorde Hathersage — explicou Bennett—. É um homem endinheirado com contatos em toda a sociedade. Sua mulher morreu faz dois anos sem lhe deixar um herdeiro e é do domínio público que está procurando uma nova esposa.

— Neste caso, por que quereria dançar comigo? — perguntou-lhe Elenora com curiosidade —. Supõe-se que eu já estou comprometida.

— Todo mundo sabe que Hathersage é muito especial com o que se refere a damas —respondeu Bennett com paciência —. Ele se considera um perito. Dançar com ele sem dúvida atrairá a atenção de todos. Outros cavalheiros desejarão descobrir o que ele viu em você. Em poucas palavras: Hathersage a converterá em alguém popular.

— E o que acontece se ele não quiser dançar comigo? — perguntou Elenora.

Pela primeira vez, um brilho de secreta diversão iluminou os amáveis olhos de Bennett.

— Não haverá nenhum problema neste sentido.

Margaret lhe lançou um olhar rápido e inquisitivo.

— Por que você acha que ele vai querer dançar com Elenora? Inclusive daqui se nota que é um desses homens que padece de excesso de tédio.

— Hathersage e Arthur tiveram negócios em comum em várias ocasiões — explicou Bennett —. Além disso, Hathersage deve a Arthur um grande favor.

Elenora, presa da curiosidade, abriu seu leque com um gesto parcimonioso.

— Possivelmente não deveria perguntá-lo, mas não posso resistir. Que tipo de favor?

— Arthur é um gênio em tudo o que se relaciona com investimentos. Faz seis meses, um projeto de mineração em Yorkshire despertou um grande interesse. Arthur intuía que aquela operação constituía uma fraude e o mais provável era que terminasse mal. Inteirou-se que Hathersage se dispunha a comprar uma participação no projeto e lhe enviou uma nota na qual lhe advertia que não se tratava de um investimento aconselhável. Pouco depois, aquela operação se veio abaixo e todos os que participaram dela perderam seu dinheiro. Hathersage, graças ao conselho de Arthur, livrou-se do desastre.

Sem dúvida, o projeto mineiro ao que se referia Bennett era o mesmo que tinha acabado com seu padrasto, o mesmo que a tinha privado da sua herança, pensou Elenora. Que lástima que Samuel Jones não tivesse sido amigo de Arthur. Claro que Jones nunca escutava os bons conselhos.

Bennett a olhou e disse:

— Eu posso intermediar essa primeira dança, mas o que vai acontecer depois dependerá exclusivamente de você. Quando estiver na pista de baile com Hathersage, deverá manter com ele uma conversação engenhosa. Se puder diverti-lo, embora seja só durante uns instantes, ele estará encantado.

Elenora enrugou o nariz.

— Mais que uma dama de companhia, o senhor faz sentir-me como uma cortesã.

Bennett fez uma careta e sussurrou:

— Desculpe-me.

— Mais que uma dama de companhia, o senhor faz sentir-me como uma cortesã — Margaret repetiu em voz baixa —. Excelente.

A seguir voltou a pegar sua caderneta.

— Não tem importância — Elenora lhe respondeu com um sorriso —. Farei o possível para proporcionar um pouco de divertimento a lorde Hathersage.

Bennett chamou um criado e enviou uma nota a Hathersage.

Cinco minutos depois Elenora estava na pista de baile sorrindo a seu alto companheiro de cabelos grisalhos. Hathersage se mostrava muito amável, mas era evidente que não estava mais que devolvendo um favor. A aquela distância, o tédio na sua expressão era inegável. Elenora pensou que devia fazer muito tempo que se sentia entediado.

— O senhor foi muito gentil em aceitar o pedido do senhor Fleming — comentou Elenora.

— Tolice. Estou encantado em lhe ser útil — respondeu Hathersage sem nenhuma amostra de sinceridade na voz —. A verdade é que não supõe um grande esforço dançar com uma mulher atraente.

— Obrigada — respondeu ela.

Como podia manter uma conversação interessante com um homem que, sem dúvida alguma, desejava estar em qualquer outro lugar?

— Devo lhe dizer que invejo a St. Merryn — continuou Hathersage secamente —. Conseguiu uma noiva sem ter que submeter-se às exigências da sociedade. Eu, por outro lado, terei que suportar o ritual de ser apresentado a uma lista interminável de jovenzinhas bobas que acabam de sair do colégio.

Sua atitude começava a irritar a Elenora.

— Suspeito que o processo para conseguir um bom partido deve resultar tão árduo para as jovens damas como para os cavalheiros como você.

— Nem pensar — ele respondeu, parecendo realmente angustiado —. Não pode imaginar o difícil que é para um homem da minha idade e experiência conversar com uma moça de dezessete anos. Essas meninas só desejam falar sobre as últimas tolices de Byron ou da moda mais recente em Paris.

— O senhor deveria contemplar a situação do ponto de vista das jovens damas. Garanto que deve ser muito difícil pra uma moça manter uma conversa com um homem que tem idade para ser seu pai quando, na realidade, desejaria estar dançando com um poeta jovem e atraente.

Hathersage pareceu um pouco desconcertado. A seguir franziu o cenho e perguntou:

— Como diz?

— Um homem a quem, além disso, só lhe interessa o aspecto, a reputação e a herança da jovem em questão — disse Elenora em tom de desaprovação —. E, quando esse cavalheiro, extremamente entediado, demonstra não ter nenhum conhecimento sobre os temas que a interessam, não é nada estranho que ela não seja capaz de manter com ele nenhum tipo de conversa, não crê? Resulta difícil imaginar-se a essa jovem dama correndo de retorno a seu lar para anotar as lembranças românticas que lhe deixou um companheiro de baile assim, concorda?

Produziu-se então uma pausa incômoda durante a qual Hathersage assimilou o comentário de Elenora.

Um interesse autêntico brilhou nos olhos de Hathersage, embora reticente.

— Onde demônios a encontrou St. Merryn, senhorita Lodge?

Ela o deslumbrou com seu sorriso mais refinado e lhe respondeu:

— Como o senhor já conhece meu noivo, sem dúvida deve saber que dispõe de uma mente extremamente lógica. Simplesmente utilizou seu talento para a análise e o raciocínio lógico para encontrar uma noiva adequada.

— Lógica e raciocínio? — Hathersage perguntou, fascinado —. E aonde lhe conduziram essas habilidades em sua busca de tal modelo de virtudes?

— A uma agência especializada em subministrar damas de companhia do tipo mais exclusivo, naturalmente.

Hathersage riu e decidiu continuar com a brincadeira.

— Ah, sim, claro. Ele mesmo assegurou que o faria.

— É uma forma muito sensata de atuar. Se analisar a fundo a questão, os maridos e as esposas são, em essência, companheiros. O senhor não acha?

— Nunca tinha considerado a instituição do matrimônio desse ponto de vista, mas reconheço que tem um pouco de razão.

— Pense por um momento no brilhantismo da tática de St. Merryn. Na agência lhe proporcionaram uma extensa seleção de damas bem educadas com referências impecáveis e uma reputação irrepreensível. Em vez de se ver obrigado a dançar com todas elas e esforçar-se em ter conversas que provavelmente lhe entediariam mortalmente, ele se dedicou a realizar entrevistas minuciosas.

— Entrevistas... — Hathersage disse com um sorriso — Que inteligente!

— O melhor desta estratégia é que funciona em ambos os sentidos. Por sua parte, as candidatas também puderam lhe fazer perguntas. Portanto elas evitaram ter que divertir e entreter a uma série de cavalheiros de idade que não sabem nada das últimas obras de Byron e que a única coisa que procuram é uma herdeira atraente que lhes proporcione um filho.

Hathersage se deteve no meio da pista de baile e, durante uns angustiantes instantes, Elenora temeu ter metido os pés pelas mãos e provocado um completo desastre.

Então Hathersage jogou a cabeça para trás e soltou uma gargalhada.

Todas as cabeças no salão se viraram na direção deles. Todas as olhadas se cravaram em Elenora e Hathersage.

Quando ele acompanhou Elenora para perto de Bennett e Margaret, a fila de cavalheiros que esperavam para solicitar uma dança se estendia desde os vasos de barro com palmeiras até a entrada da sala de jogos.

— Considere o favor totalmente devolvido — disse Bennett a Hathersage.

— Ao contrário — Hathersage respondeu, ainda rindo —. Esta foi a noite mais divertida que tive em muito tempo.

 

Arthur apoiou as duas mãos no corrimão do balcão e esquadrinhou o abarrotado salão de baile em busca de Elenora. Era mais de meia-noite e não estava de bom humor. Tinha concluído outra noite com investigações que tinham lhe proporcionado escassos resultados. A verdade era que tinha conseguido certa informação em relação a uma das misteriosas caixas de rapé que procurava, mas ainda ficavam muitas perguntas sem resposta. Além disso, tinha a inexplicável sensação de que o tempo estava se esgotando.

Demorou alguns minutos em localizar a Elenora. Quando identificou seu cabelo negro e brilhante no outro extremo da sala, entendeu por que tinha sido tão difícil encontra-la: estava rodeada por uma multidão de homens que ansiavam atrair sua atenção.

Conversava muito a vontade com um grupo de cavalheiros que sem dúvida tinha conhecido naquela mesma noite. Além disso, o decote do seu vestido esmeralda de cintura alta era muito pronunciado e mostrava uma boa parte dos seus suaves seios e de seus ombros de contorno delicado. Elenora resplandecia como uma joia exótica e Arthur estava convencido de que todos os homens das proximidades a desejavam.

Arthur se perguntou onde estavam Bennett e Margaret. Supunha-se que tinham que estar fiscalizando a situação.

Enquanto Arthur observava a Elenora, um dos cavalheiros que estavam do lado dela realizou uma reverência e a conduziu até a pista de baile. O que Elenora lhe contava devia ser muito divertido, porque aquele homem ria como um louco.

A noite tinha ido de mal a pior durante as últimas horas, pensou Arthur, mas a visão de sua falsa noiva divertindo-se com um completo desconhecido era a gota que transbordava o copo. Sem dúvida, a situação no salão de baile estava totalmente fora de controle.

Arthur se afastou do corrimão e começou a descer as escadas.

— Permita que lhe felicite por sua encantadora noiva, St. Merryn — uma voz que lhe resultava familiar declarou a suas costas.

Arthur se deteve e observou ao homem que se aproximava pelo balcão.

— Hathersage.

— Faz um momento tive o enorme prazer de dançar com a senhorita Lodge. Sem dúvida, é uma dama fora do comum. — Hathersage se deteve, observou por uns instantes aos bailarinos e riu entre dentes—. A verdade é que estou considerando seriamente a possibilidade de empregar sua estratégia para encontrar uma esposa.

— O que quer dizer? — Arthur perguntou.

— Refiro a sua brilhante ideia de entrevistar a uma série de senhoritas em uma agência especializada em subministrar damas de companhia.

A Arthur lhe gelou o sangue. Era possível que Elenora tivesse contado a Hathersage toda a verdade a respeito de sua farsa? Impossível.

— Mencionou-lhe a agência? — Arthur perguntou com cautela.

— Garanto que foi a história mais divertida que ouvi em muito tempo — Hathersage repôs —. Amanhã estará na boca de todo mundo. Uma inteligência como a da senhorita Lodge constitui um atributo valioso em uma esposa, como em qualquer outro tipo de companheira...

Arthur se relaxou um pouco ao dar-se conta de que, embora Elenora tivesse contado a verdade a Hathersage, resultava tão descabelada que ele não tinha acreditado.

Outros membros da sociedade acreditariam em Hathersage, refletiu Arthur. Tudo estava bem.

— Sim, é única — Arthur comentou.

— Certamente — Hathersage assentiu e, entreabrindo um pouco os olhos, acrescentou —: Não deveria se descuidar, St. Merryn. Não me surpreenderia que alguns dos homens que, neste preciso momento, rondam ao redor dela estejam maquinando a forma de tira-la do senhor.

Maldição, seria possível que o próprio Hathersage estivesse considerando aquela opção? Segundo diziam, procurava uma nova esposa e, sem dúvida, era rico o bastante para não preocupar-se com a situação financeira da dama.

Uma onda de raiva o invadiu, mas sua força de vontade e uma boa dose de lógica o ajudaram a contê-la. Hathersage só estava se divertindo.

— Se me desculpar, seguirei seu conselho e irei proteger meus interesses — declarou com calma.

— Prepare-se para entrar na fila.

Arthur esperou que o acompanhante de Elenora a conduzisse para fora da pista de baile e então desceu as escadas. Não tinha nenhuma intenção de entrar na fila. Entretanto, irritou-se ao ter que utilizar a força física e certo grau de intimidação para chegar até Elenora.

Quando, por fim, chegou até ela, Elenora não se mostrou muito entusiasmada: depois de um ligeiro sobressalto inicial, limitou-se a lhe dedicar um sorriso de uma forma cortês e maliciosa.

— O que o senhor está fazendo aqui? — perguntou em voz baixa para que ninguém mais pudesse ouvir —. Achei que tivesse outros planos para esta noite.

Comportava-se como se ele fosse a última pessoa que ela queria ver naquela noite, Arthur pensou. Consciente da presença dos cavalheiros contrariados que rondavam ao seu redor, Arthur sorriu como faria um cavalheiro à dama que lhe pertencia e, inclinando-se sobre a mão de Elenora, perguntou:

— Que planos poderiam ser mais importantes que dançar com a minha encantadora noiva? — Puxou-a pelo braço e a guiou com firmeza em direção a pista de baile —. Onde estão Bennett e Margaret? — grunhiu.

— Desapareceram na sala de jogo faz mais ou menos uma hora — Elenora explicou examinando-o com certa preocupação —. O que aconteceu? Você parece um pouco perturbado.

— Não estou perturbado, estou zangado.

— Compreendo. Enfim, você não pode me culpar por não saber distinguir entre os dois estados. No seu caso, são bastante similares.

Arthur não permitiu que seu comentário eliminasse seu mau humor.

— Supunha-se que Bennett e Margaret tinham que vigiá-la.

— Ah, então este é o problema! Estava preocupado por mim? Não tem por que preocupar-se. Asseguro que sou capaz de me cuidar sozinha.

Ele se lembrou do grupo de homens que a estavam rodeando minutos antes.

— Eu não gosto da ideia de que esteja sozinha em um salão de baile no meio de uma multidão de desconhecidos.

— Posso lhe assegurar que não estava sozinha. Além disso, estou fazendo amigos a um ritmo acelerado.

— Esta não é a questão. Você é uma mulher muito competente, Elenora, mas certamente não tem experiência para desenvolver-se nos círculos aristocráticos. — lembrou-se da advertência de Bennett e acrescentou —: Estas águas podem ser muito traiçoeiras.

— Asseguro que não tem por que preocupar-se comigo. Lembre-se que esta foi uma das razões pelas quais o senhor procurou uma agência de damas de companhia. Entre outros requisitos, desejava contratar a uma mulher de mundo, a alguém que dispusesse de sentido comum.

— Isto nos leva a outra questão — disse Arthur segurando-a com mais firmeza —. No que estava pensando quando contou a Hathersage que a contratei em uma agência?

— Bennett me advertiu que tinha que lhe contar algo que chamasse a atenção dele, e assim o fiz. Eu tinha ouvido falar da promessa que você fez no ano passado assegurando que procuraria a sua futura espora numa agência e decidi que, se me referia a aquela pequena brincadeira, Hathersage se divertiria. E foi exatamente assim.

— Está bem. — Arthur teve que admitir que ela tinha razão. A Hathersage achou a história muito divertida —. Quem lhe falou da promessa que realizei um ano atrás?

— Todo mundo ouviu falar daquele comentário. Sem dúvida faz parte da sua lenda pessoal.

Arthur fez uma careta.

— Naquele momento pretendia que fosse um comentário engenhoso, uma dessas coisas que a gente diz para evitar a compaixão ou as perguntas não desejadas — ele explicou.

— Compreendo. Entretanto, quando depois se deu conta de que necessitava uma mulher que simulasse ser sua noiva, lhe ocorreu pensar que a ideia, em realidade, era muito boa. Não é?

— Ou contratava uma dama de companhia ou uma atriz — ele explicou —. E estava reticente a contratar a uma atriz porque temia que a reconhecesse alguém que... — Arthur hesitou enquanto procurava uma forma diplomática de expressar o que pensava —, a tivesse visto atuar nos palcos.

Elenora percebeu sua breve pausa e, arqueando as sobrancelhas, particularizou:

— Ou alguém que tivesse desfrutado de seus favores fora dos palcos.

— Não queria ofender sua avó — ele comentou com secura.

— Não a ofendeu. Ela teria sido a primeira em reconhecer que as atrizes e as bailarinas de opereta gozam de certa reputação entre os cavalheiros da alta sociedade.

Ele se sentiu aliviado de que aquele comentário não a tivesse ofendido ou incomodado. Então se deu conta de que era um alivio poder falar sem disfarces com uma mulher, e seu estado de ânimo melhorou pela primeira vez naquela noite. Com Elenora não tinha que preocupar-se se por acaso feria acidentalmente sua sensibilidade feminina. Sem dúvida era uma mulher de mundo.

— De qualquer jeito — ele continuou enquanto retomava a questão que queria tratar com ela —, teria sido melhor que não tivesse recordado a Hathersage minha promessa de escolher uma dama de companhia para fazê-la minha esposa. Agora todos sentirão verdadeira curiosidade sobre você.

— Desculpe, mas não era este o propósito da farsa? Seu objetivo era me utilizar para distrair a atenção dos membros da alta sociedade enquanto realizava seus negócios privados, não é verdade?

Ele fez uma careta e admitiu:

— Assim é.

— Parece lógico que quanto maior for o número de pessoas que sintam curiosidade sobre mim, menos serão as que prestem atenção no que o senhor faz.

— Está bem — grunhiu ele —. Tem razão e admito minha derrota. Não sei por que me incomodei em iniciar esta discussão. Devo ter sofrido uma perda momentânea de memória.

Entretanto este raciocínio era falso, ele reconheceu para seus botões. Tinha começado aquela pequena rixa porque a possibilidade de que Hathersage tivesse de olho em Elenora o tinha alterado bastante. Além disso, ver que outros homens se fixavam tanto nela o tinha perturbado e não queria analisar em profundidade o porquê deste fato.

Elenora se pôs a rir.

— Por todos os Santos, ninguém em seu juízo perfeito acreditaria que o senhor foi a uma agência para encontrar uma esposa!

— É provável que não.

Ela o olhou com reprovação.

— A verdade é que o senhor deveria tranquilizar-se e concentrar-se nos seus negócios — Elenora aconselhou —. Eu me encarregarei dos assuntos pelos que me paga. Espero que seus planos estejam se desenvolvendo bem.

Arthur pensou que ela era a única parte do seu intrincado plano que estava funcionando. De repente pensou que gostaria muito de comentar com ela os outros aspectos da sua estratégia. Precisava falar com alguém e Elenora era uma mulher de mundo e inteligente que não se impressionava com facilidade. Além disso, agora estava convencido de que ela sabia guardar um segredo.

Por outro lado, necessitava desesperadamente de ideias novas. Sua falta de progressos durante os últimos dias era preocupante.

Bennett lhe tinha aconselhado que contasse a verdade a Elenora e, no final das contas, possivelmente sua ideia não era tão má.

Arthur se deteve em um dos extremos da pista de baile e, sem fazer caso ao olhar inquisitivo de Elenora, guiou-a para as portas que davam para o terraço.

— Necessito de ar — declarou —. Venha, há algo que quero te contar.

Elenora se deixou guiar por ele.

O frescor da noite resultava agradável depois do ambiente caloroso no salão de baile abarrotado. Arthur pegou Elenora pelo braço e a conduziu ao outro extremo do terraço, longe das luzes. Desceram os degraus de pedra que conduziam ao jardim, iluminado por lanternas.

Arthur e Elenora caminharam durante um momento e se detiveram finalmente perto de uma grande fonte. Arthur escolheu suas palavras com cuidado antes de iniciar seu relato.

— Não vim à cidade para estabelecer um consórcio de investidores — ele explicou com lentidão —. Esta é a desculpa que inventei para encobrir meu verdadeiro propósito.

Elenora assentiu com a cabeça sem mostrar nenhum sinal de surpresa.

—Tinha a sensação de que havia algo mais em todo este assunto — disse a Arthur —. Um homem com a sua inteligência e determinação não contrataria a uma noiva falsa só para evitar os inconvenientes de ter que enfrentar-se a todas as jovens casadoiras da sociedade.

Ele esboçou um sorriso.

— Este comentário demonstra o pouco que você sabe a respeito destes inconvenientes. Entretanto, tem razão. Contratei-a para encobrir meu verdadeiro objetivo.

Elenora se tocou o queixo na expectativa e perguntou:

— E qual é o seu verdadeiro objetivo?

Ele hesitou alguns segundos enquanto observava fixamente os olhos claros de Elenora e, finalmente, desprezou seus últimos receios. Todos seus instintos lhe diziam que podia confiar nela.

— Tento encontrar ao homem que assassinou a George Lancaster, meu tio avô — declarou.

Ao ouvir aquela notícia, Elenora ficou paralisada olhando Arthur com atenção. Entretanto, tendo em conta o que acabava de ouvir, conseguiu manter bastante a compostura.

— Compreendo — disse com um tom de voz neutro.

Ele recordou a ocasião em que Elenora tinha pensado que estava louco e se escapou do manicômio.

— Suponho que agora acredita que estou louco de verdade.

— Não — respondeu ela pensativa —. Não. O certo é que este objetivo tão peculiar explica sua curiosa decisão de me contratar. Tinha certeza de que seu objetivo não consistia em um mero negócio.

— Seja o que for — ele continuou com um tom de voz cansado —, o certo é que não se trata de um mero negócio.

— Me conte como morreu seu tio avô — Elenora lhe pediu.

Ele apoiou uma das suas botas na borda da fonte e o antebraço em sua coxa. Durante uns instantes esquadrinhou as águas escuras do reservatório de água enquanto organizava seus pensamentos.

— A história é longa e complicada. Começou faz muitos anos, quando meu tio avô tinha dezoito. Naquela época realizou uma viagem a Europa. Para esse então, já estava obcecado com a ciência, de modo que passou a maior parte da viagem nas bibliotecas mais antigas dos países que visitou.

— Continue.

— Em Roma tropeçou com os livros e os diários de um alquimista misterioso que tinha morrido duzentos anos antes. Meu tio avô ficou fascinado pelo que descobriu.

— Segundo dizem, a linha que separou a alquimia da ciência ao longo da história foi em muitas ocasiões difusa e difícil de distinguir — Elenora comentou com voz suave.

— É verdade. Seja como for, entre os livros do alquimista, meu tio avô encontrou um antigo tratado intitulado “O livro das pedras”.

Elenora arqueou as sobrancelhas.

— Os velhos tratados falam a respeito das propriedades mágicas e ocultas das pedras preciosas, não é certo?

— Exato — respondeu Arthur —. Em concreto, este tratado tinha sido escrito pelo alquimista em pessoa. O livro estava encadernado em couro e tinha três pedras preciosas vermelhas incrustadas na capa. No interior se achava a fórmula e as instruções para a construção de um aparelho denominado “Raio de Júpiter”. O texto estava escrito em um complicado código alquímico.

— Que curioso! Qual era o propósito do aparelho?

— Pelo visto, era capaz de criar um feixe de luz parecido a um raio de grande potencia que poderia ser utilizado como uma arma. — Arthur balançou a cabeça e acrescentou —: Tolices ocultistas, é obvio. Claro que, no fundo, a alquimia não é mais que isso.

— Certamente.

— Como lhe dizia, naquela época meu tio avô era jovem e sem experiência. Contou-me que lhe emocionou muito o achado do tratado. Segundo as notas do alquimista, as três pedras vermelhas constituíam a chave para produzir a poderosa energia que emitia o aparelho.

— O que fez seu tio avô com o tratado?

— Trouxe-o para a Inglaterra e o mostrou a seus dois melhores amigos daquela época. Os três se sentiram cativados pela ideia de construir aquela máquina.

— Suponho que não tiveram êxito.

— Meu tio avô me contou que, embora tivessem conseguido construir um aparelho que se parecia muito ao desenho que havia no tratado, não conseguiram extrair a estranha energia que, supostamente, estava oculta nas pedras.

Elenora sorriu levemente.

— Não me surpreende — confessou —. Estou convencida de que as instruções do alquimista não eram mais que fantasias descabeladas.

Arthur contemplou o rosto de Elenora. Na penumbra, seus olhos pareciam lagos escuros e arrebatadores, muito mais misteriosos que as fórmulas de um alquimista. A saia de seu vestido brilhava como uma joia a luz da lua. Arthur teve que esforçar-se para conter o impulso imperioso de tocar a pele suave e delicada da sua nuca, e se obrigou a concentrar-se na sua história.

— Meu tio avô me contou que, no final, tanto ele como seus dois companheiros chegaram a essa mesma conclusão: o Raio de Júpiter era uma fantasia. Depois de aprender a lição sobre a inutilidade da alquimia, deixaram de lado os experimentos e o aparelho e se dedicaram a estudos mais sérios, como a química e as ciências naturais.

— O que fizeram com as pedras e o aparelho que tinham construído?

— Um dos três ficou com a máquina, supostamente como lembrança de seu flerte com a alquimia. Quanto às pedras, decidiram as incrustar em caixas de rapé como emblema de sua amizade e de seu compromisso com o caminho verdadeiro da ciência moderna.

— Uma caixa de rapé para cada um deles?

— Exato. As caixas foram ornamentadas com cenas de um alquimista realizando seu trabalho. O tio George me contou que ele e seus amigos formaram um pequeno clube denominado “Sociedade das Pedras”. Eles eram os únicos membros e cada um adotou um nome em clave tirado da astrologia e o gravou na caixa.

— Parece lógico — comentou Elenora —. A alquimia sempre esteve muito vinculada à astrologia. Que nomes escolheram?

— Meu tio avô se chamava Marte. O segundo homem, Saturno, e o terceiro, Mercúrio. Mas nunca me disse os nomes autênticos de seus companheiros. Não havia razão alguma para que me mencionasse isso: eu não era mais que um menino quando me contou a história.

— É um relato fascinante — sussurrou Elenora —. O que ocorreu com a Sociedade das Pedras?

— Durante algum tempo, os três homens mantiveram uma estreita relação compartilhando informações a respeito das suas investigações e experimentos. Entretanto, depois de certo tempo se separaram. Tio George me explicou que um dos membros da sociedade faleceu quando tinha vinte e poucos anos. Morreu por causa de uma explosão que aconteceu no seu laboratório. O terceiro homem, até onde sei, continua vivo.

— E seu tio avô está morto — ela comentou.

— Assim é. Morreu assassinado no seu laboratório faz só umas semanas.

Elenora franziu um pouco o cenho e perguntou:

—Está seguro de que foi assassinado? Não pôde tratar-se de um acidente?

Arthur a olhou.

— Dispararam-lhe duas vezes no peito.

— Santo céu! — Elenora exclamou contendo o fôlego —. Compreendo.

Arthur contemplou a água que caía na fonte e confessou:

— Eu gostava muito do meu tio avô.

— Ofereço as minhas condolências.

A sinceridade da sua voz era genuína e Arthur se sentiu estranhamente comovido pelas suas palavras.

 

Despertou de seu sonho melancólico e retomou o relato da sua história.

— O detetive que contratei para que investigasse o assassinato se revelou um fracasso. Segundo suas conclusões, meu tio avô foi assassinado por um ladrão a quem surpreendeu em seu laboratório ou, com maior probabilidade, pelo jovem que o ajudava nos seus experimentos.

— O senhor falou com o ajudante?

Arthur apertou a mandíbula.

— Por desgraça, John Watt fugiu na noite do assassinato e não pude encontrá-lo.

— Desculpe-me, mas o senhor deve admitir que seu desaparecimento reforça a teoria do detetive.

— Conheço bem a Watt e estou convencido de que nunca teria cometido um assassinato.

— E a outra teoria? — ela perguntou —. A que se refere ao ladrão.

— Sem dúvida houve um ladrão, mas este não atuou por azar. Depois da morte do meu tio, registrei sua casa com atenção e não encontrei O Livro das Pedras em lugar algum. — Arthur apertou o punho que tinha sobre a coxa —. E a caixa de rapé com a pedra vermelha incrustada também tinha desaparecido. Não senti falta de mais nada.

Elenora refletiu sobre suas palavras e finalmente perguntou:

— Tem certeza?

— Completamente. Em minha opinião, meu tio avô foi assassinado por alguém que procurava o tratado e a caixa de rapé. Além disso, estou convencido de que as três caixas constituem pistas importantes. Se pudesse encontrar as que pertenciam aos antigos amigos de meu tio avô, possivelmente descubra algo útil. Ultimamente centrei todos meus esforços nesta direção.

— Teve sorte?

— Um pouco — ele respondeu —. Esta noite enfim averiguei o endereço de um cavalheiro ancião que possivelmente possa me proporcionar informação a respeito de uma das caixas. Ainda não pude falar com ele, mas espero fazê-lo muito em breve.

Produziu-se um breve silêncio. Arthur ouviu a música e as risadas que procediam do salão de baile, mas que pareciam vir de muito longe. Ali, perto da fonte, experimentava uma sensação de confidencialidade quase íntima. A essência floral do perfume de Elenora atraía seus sentidos e deixava tensos os músculos de seu estômago. Se deu conta então de que se estava excitando.

“Controle-se, a última coisa que você precisa agora é uma complicação deste tipo”.

— Você diz que desprezou as conclusões do detetive — Elenora prosseguiu depois de uns instantes —, mas tem alguma ideia a respeito de quem poderia ser o assassino do seu tio avô?

— Não exatamente. — Arthur hesitou —. Pelo menos nenhuma que tenha sentido.

— Você é um homem de lógica e raciocínio. Se estiver considerando alguma teoria, por estranha que pareça, estou convencida de que tem uma base sólida.

— Neste caso não. Mas admito que estou dando voltas a um comentário que meu tio avô fez sobre seus dois amigos e a sociedade que tinham fundando.

— Qual comentário? — ela perguntou.

— Meu tio mencionou que um deles, que se apelidava Mercúrio, nunca superou sua fascinação pela alquimia, embora quisesse aparentar o contrário. Conforme me contou, Mercúrio era o mais brilhante dos três. Houve uma época em que acreditavam que algum dia seria proclamado o segundo Newton da Inglaterra.

— O que foi dele?

Arthur a olhou.

— Mercúrio foi o membro da sociedade que faleceu na explosão de seu laboratório — admitiu.

— Entendo. Bom, então seria difícil chegar à conclusão de que ele tenha sido o assassino, não crê?

— Seria impossível. — Arthur suspirou —. Entretanto não deixo de pensar nesta possibilidade.

— Embora estivesse vivo, por que teria esperado todos esses anos para assassinar a seu tio avô e roubar o tratado e a pedra?

— Não sei — Arthur respondeu —. Possivelmente demorou todo este tempo para decifrar o segredo que permite extrair a energia das pedras vermelhas.

— Entretanto, tal secreto não existe — disse Elenora estendendo as mãos —. Seu tio avô reconheceu que o projeto do alquimista não era mais que uma fantasia.

— Assim é, mas meu tio também me disse algo mais — Arthur continuou com lentidão —. Algo que me preocupa. Conforme me contou, embora Mercúrio fosse, sem dúvida alguma, muito inteligente, no final da sua vida mostrou sinais de desequilíbrio mental e inclusive de autêntica loucura.

— Ah!! — Elenora exclamou dando uns golpezinhos na palma da mão com o leque —. Então é possível que o tal Mercúrio acreditasse no poder das pedras vermelhas.

— Assim é. Mas, embora fosse certo, tudo aconteceu faz um montão de anos. Mercúrio, fosse quem fosse, está há muito tempo na tumba.

— Possivelmente alguém encontrou suas notas ou seus diários e decidiu continuar seu experimento.

Arthur sentiu uma onda de admiração.

— Esta teoria é muito interessante, senhorita Lodge...

A risada, ligeira e zombadora, de uma mulher o interrompeu na metade da frase. O som procedia do outro lado de uma alta cerca viva que estava perto deles. A voz de um homem sussurrou uma resposta.

— Sim, vi-a com Hathersage — declarou a mulher —. A senhorita Lodge é uma peça única, não crê? Entretanto, se perguntar minha opinião, direi que há algo muito estranho nela. — A mulher inspirou delicadamente e prosseguiu —: Mais ainda, acredito que há algo muito estranho em toda a situação.

— Por que diz isso, Constance? — perguntou o homem com um tom de voz divertido e curioso ao mesmo tempo —. Parece que St. Merryn encontrou uma noiva muito misteriosa.

Arthur reconheceu a voz. Pertencia a um homem chamado Dunmere, sócio de um de seus clubes.

— Ora! — exclamou Constance esta vez bufando com indignação —. Duvido que St. Merryn pretenda realmente casar-se com ela. Isso é óbvio. Quando um homem da sua categoria e posição procura uma esposa, escolhe a uma jovem herdeira de boa família. Isto é de domínio público. Por outro lado, ninguém sabe nada a respeito da procedência da senhorita Lodge e, a julgar por seu comportamento e pelo que ouvi da sua conversa, me atreveria afirmar que não se trata de uma jovem inocente.

Arthur viu que Elenora escutava com atenção a conversa que acontecia do outro lado da cerca viva. Quando ela levantou a vista e o olhou nos olhos, ele colocou um dedo nos lábios para lhe indicar que permanecesse em silêncio. Elenora assentiu com a cabeça franzindo o cenho.

“Com sorte — Arthur pensou —, aquele par de fofoqueiros se afastariam dali”.

— Não estou de acordo — Dunmere replicou —. St. Merryn é um excêntrico e não é estranho que escolha uma esposa que se saia do padrão.

— Escreva o que eu digo — Constance respondeu —: há algo muito estranho no seu compromisso com a senhorita Lodge.

Arthur ouviu o ruído de passos sobre o cascalho e o frufru de saias. Seria impossível evitar o encontro com Constance e Dunmere: dirigiam-se em direção a fonte.

— Possivelmente se trate de um compromisso por amor — Dunmere sugeriu —. St. Merryn é muito rico e pode permitir-se este luxo.

— Um matrimônio por amor? — Constance perguntou soltando uma risada falsa e estremecida —. Está louco? Estamos falando de St. Merryn, ele é mais frio que o gelo. Todo mundo sabe que seus investimentos são a única coisa que lhe despertam paixões.

— Admito que ele parece não possuir uma grande sensibilidade romântica — Dunmere concordou —. Eu estava no clube na noite que lhe disseram que sua noiva tinha fugido. Nunca esquecerei sua reação: foi de total despreocupação.

— Exato. Qualquer homem que possuísse embora fosse só um mínimo de sensibilidade romântica teria saído atrás dela.

— Não quero te contradizer querida, mas não vale a apena arriscar o pescoço em um duelo por uma noiva que trai a seu futuro marido com outro homem.

— E o que há da honra de St. Merryn? — Constance perguntou.

— Não era sua honra que estava em jogo — Dunmere respondeu secamente —, a não ser a da dama. Asseguro-te que nenhum membro da alta sociedade questionaria a honra de St. Merryn.

— Entretanto, desde qualquer ponto de vista, St. Merryn se comportou como se aquele assunto não fosse mais que uma das tediosas representações teatrais tão próprias do teatro Drury Lane.

— Possivelmente é assim como ele o considerava — Dunmere respondeu em um tom meditativo.

— Tolices! Estou dizendo que St. Merryn é tão frio como uma tumba. Esta é a razão pela qual não saiu atrás de sua noiva aquela noite. E esta é a razão de que eu esteja tão convencida de que, seja o que for, este compromisso não tem nada que ver com amor.

Arthur observou a Elenora: ainda escutava a conversa com interesse, mas não conseguiu deduzir o que pensava e, por alguma razão, isto o preocupou.

— Querida Constance — Dunmere manifestou com malícia—, se poderia dizer que averiguou que St. Merryn é de natureza fria de uma forma pessoal. O que aconteceu, tentou convertê-lo em alvo da sua encantadora arte de sedução e ele recusou a oferta da sua tentadora cama?

— Não seja absurdo — respondeu Constance com prontidão —. Não tenho nenhum interesse pessoal em St. Merryn, só repito o que todo mundo sabe que é verdade. Qualquer homem que fique jogando cartas em seu clube enquanto sua noiva foge com seu amante carece de sentimentos e, em consequência, é incapaz de apaixonar-se.

Constance e Dunmere quase tinham chegado ao extremo da cerca viva. Em breves momentos dobrariam a esquina. Arthur se perguntou se daria tempo de alcançar o outro extremo da cerca viva para esconder Elenora detrás.

Antes que pudesse indicar suas intenções, ela ficou nas pontas dos pés. O primeiro pensamento de Arthur foi que pensava sair correndo do iminente encontro com esse casal de fofoqueiros.

Entretanto, ficou estagnado quando ela, em vez de fugir, rodeou-lhe o pescoço com os braços e se apertou contra ele.

Elenora colocou uma mão atrás da cabeça de Arthur para aproximá-lo dela.

— Beije-me — ordenou com fôlego entrecortado.

Claro, pensou Arthur, que inteligente: a melhor maneira de sossegar aquela fofoca era que os vissem enlaçados em um abraço apaixonado. Elenora era uma mulher de reações rápidas.

Arthur se aproximou dela e juntou seus lábios aos dela.

Em seguida se esqueceu da pequena obra que se supunha estavam representando e um calor ardente e embriagador percorreu seu corpo.

Percebeu muito vagamente o gritinho espantado de Constance e a risada afogada de Dunmere, mas os ignorou e beijou a Elenora com mais paixão.

Elenora apertou de repente os ombros de Arthur com os dedos. Ele sabia que sua reação súbita e apaixonada a tinha sobressaltado. Arthur deslizou então uma mão pelas costas de Elenora até onde começava a curva dos seus quadris e a empurrou contra a intimidade do espaço entre suas pernas, uma das quais ainda estava apoiada na borda da fonte.

Aquela posição lhe permitiu sentir a suavidade do estômago de Elenora contra sua ereção, e uma dor quente e agradável se apoderou da parte baixa do seu corpo.

— Olha, olha, olha! — Dunmere murmurou —. Pelo visto, St. Merryn não é tão frio como você acreditava, minha querida Constance. E, além disso, a senhorita Lodge não parece estar assustada pelo terrível destino que a espera.

 

Margaret se acomodou no assento acolchoado da carruagem e sorriu a Arthur com ar esperançado.

— Acredito que tudo saiu bem, não crê?

Arthur estava sentado frente a ela. A luz fraca dos abajures no interior da carruagem cobria seu rosto de sombras e de mistério.

— Sim — respondeu ele em voz baixa e grave com os olhos postos em Elenora —. Em minha opinião, todos nós realizamos uma atuação excelente esta noite.

Um calafrio leve de inquietação, ou possivelmente de incerteza, percorreu o corpo de Elenora, que decidiu concentrar-se em observar as abarrotadas ruas para evitar, assim, o olhar atento de Arthur.

Quando o beijou no jardim, sua única intenção era realizar uma atuação convincente para sossegar as fofocas. Entretanto, quase imediatamente perdeu o controle da situação.

Ainda não entendia o que tinha acontecido. Primeiro impeliu a Arthur para que a abraçasse diante de sua escassa audiência e, ao minuto seguinte, sentiu-se comovida e impressionada dos pés à cabeça.

O beijo a tinha deixado acalorada e desorientada. Estava convencida de que se Arthur não a estivesse segurando com tanta força quando Constance e Dunmere apareceram pelo extremo da cerca viva teria perdido o equilíbrio. Ainda sentia na nuca umas cosegas que lhe resultavam desconcertante.

— A verdade é que conseguiste a distração que queria — Margaret continuou, alheia ao desassossego que reinava na penumbra da carruagem —. Todos no baile estavam mortos de curiosidade. E lhes asseguro que os rumores se acentuaram ainda mais quando vocês voltaram do seu passeio no terraço.

— De verdade? — perguntou Elenora com despreocupação.

— Sem dúvida alguma — Margaret confirmou —. Não sei como fizeram, mas o senhor Fleming e eu estivemos de acordo em que parecia que tivessem protagonizado uma cena de amor ardente nos jardins. Devo dizer que se tratou de uma atuação impressionante.

Elenora não se atreveu a afastar os olhos das ruas envoltas em sombras e se limitou a murmurar:

— Mmmm.

— Eu também me sinto satisfeito com os resultados da representação no jardim — Arthur comentou como se tratasse de um crítico teatral difícil de agradar.

Elenora, desesperada por mudar de assunto, esboçou um sorriso cálido e leve e, olhando Margaret, perguntou:

— Desfrutaste da noite?

— Oh, sim, muitíssimo! — Margaret exclamou com uma atitude sonhadora —. O senhor Fleming e eu passamos a maior parte do tempo falando das últimas novidades literárias. Pelo visto, é um grande admirador do trabalho da senhora Mallory.

Elenora quase não conseguiu ocultar a risada atrás de um lenço.

— Sem dúvida, o senhor Fleming possui um gosto excelente — declarou.

— Eu também opino o mesmo — Margaret confirmou.

Arthur franziu o cenho e disse:

— Já adverti a Bennett, vária vezes, que provavelmente seu costume de ler novelas seja a causa de que tenha uma percepção do mundo tão pouco realista e tão ridiculamente romântica.

 

Vinte minutos depois a carruagem se deteve, com um estrondo, diante da entrada principal da mansão de St. Merryn. Ned, com aspecto sonolento, abriu a porta.

Margaret ocultou um leve bocejo com o dorso da sua mão enluvada.

— Santo céu! — exclamou —, esta festa tão longa me esgotou. Se me desculparem, irei diretamente à cama.

Em seguida, subiu as escadas como se tivesse molas nos pés. Na realidade, pensou Elenora, Margaret não parecia estar nada cansada. De fato, aquela noite não só se movia com especial ligeireza, mas também seus olhos brilhavam com mais intensidade.

Elenora ainda estava analisando o resplendor sutil e novo dos olhos de Margaret quando se deu conta de que Arthur sustentava em alto o candelabro e examinava a estadia com o cenho franzido.

— A senhorita não acha que vestíbulo está diferente? — ele perguntou.

Ela examinou a sala.

— Não, acredito que não.

— Pois a mim, sim. As cores parecem mais vivas, o espelho não está tão escuro e as estátuas e os vasos parecem mais novos.

Surpreendida, Elenora examinou mais de perto a figura de mármore que estava perto dela, e se pôs a rir:

— Tranquilize-se, não há nada estranho no aspecto novo dos objetos. Esta tarde dei instruções para que limpassem a fundo o vestíbulo enquanto estivéssemos fora. A julgar pela capa de pó que havia antes, isso não tinha sido feito em muito tempo.

Ele a observou com um olhar escrutinador.

— Compreendo.

Por alguma estranha razão, Elenora se sentiu incômoda.

— Enfim, é bastante tarde, não crê? — perguntou ela enquanto tentava adotar uma atitude educada e profissional —. Será melhor que eu também vá à cama. Estou tão pouco acostumada a tresnoitar como o está Margaret.

— Eu gostaria de falar consigo antes que suba a dormir — Arthur declarou.

Suas palavras soaram como uma ordem, não como uma petição. Elenora teve de repente um pressentimento: ia a despedir pelo que tinha ocorrido no jardim?

— Muito bem — ela murmurou.

Arthur olhou a Ned e disse:

— Pode ir à cama. Obrigado por nos esperar acordado, mas era desnecessário. Podemos nos arranjar sozinhos quando voltamos tão tarde. De agora em diante, não nos espere levantado. Você também tem que descansar.

Ned pareceu surpreso pelo gesto amável de seu patrão.

— Sim, senhor. Obrigado, senhor — respondeu, e partiu a toda pressa.

Um segundo mais tarde, depois que Ned desaparecesse pelas escadas que conduziam às dependências da criadagem, Elenora ouviu fechar-se com um ruído surdo a porta que conduzia ao andar inferior da casa.

De repente, o vestíbulo lhe pareceu menor e, sobretudo, muito íntimo.

— Siga-me, senhorita Lodge, teremos nossa conversa na biblioteca.

Arthur agarrou um candelabro e avançou pelo corredor. Elenora o seguiu com certa reserva. Estaria zangado pela atitude de entusiasmo excessivo que ela tinha mostrado durante o beijo? Possivelmente podia lhe explicar que ela tinha sido a primeira surpreendida: não sabia que tivesse esse talento interpretativo.

Arthur a conduziu ao interior da biblioteca e fechou a porta com firmeza.

Um sentimento de fatalidade se apoderou de Elenora.

Sem pronunciar uma palavra, Arthur deixou o candelabro e se dirigiu à lareira. Uma vez ali, apoiou um joelho no chão e avivou as brasas. Em seguida se ergueu, tirou a gravata de seda e, depois de jogá-la sobre uma cadeira próxima, desabotoou a camisa branca de linho e deixou ao descoberto alguns dos pelos escuros e encaracolados, que cobriam seu peito.

Elenora afastou a vista do seu pescoço nu. Tinha que concentrar-se, disse a si mesma, seu emprego estava em jogo. Não podia permitir que a despedisse só porque o tinha beijado com certa euforia. De acordo, com muita euforia, retificou para si mesma. Em qualquer caso, não era culpa dela.

Elenora pigarreou.

— Se desaprova minha sugestão para que nos beijássemos antes no jardim, desculpo-me. Entretanto, devo lhe recordar que, em grande parte, contratou-me por minhas qualidades interpretativas.

Arthur pegou a licoreira e começou a dizer:

— Senhorita Lodge...

— Também desejaria lhe recordar que minha avó foi uma atriz profissional — ela interrompeu.

Ele serviu duas taças de brandy e concordou com solenidade:

— Sim, já mencionou sua avó em várias ocasiões.

— A questão é que possivelmente herdei dela mais habilidades interpretativas das que acreditava, entende? — Elenora explicou abandando-se com força. — Isso explicaria a intensidade da minha, bom... representação. Garanto que me surpreendeu tanto como a você.

— De verdade?

Arthur lhe deu uma taça de brandy e se apoiou em uma das esquinas da mesa de escritório. Em seguida, moveu ligeiramente sua taça descrevendo pequenos círculos e contemplou a Elenora com uma expressão inquietante.

— Assim é — respondeu Elenora tentando esboçar um sorriso tranquilizador —. No futuro, procurarei conter minhas habilidades nesta área.

— Voltaremos a questão do seu talento interpretativo em uns segundos. Antes, quero terminar a conversa que estávamos mantendo quando nos interrompeu esse par de fofoqueiros.

— Ah!

Elenora olhou a taça que lhe tinha dado e decidiu que precisava tomar algo que a fortalecesse. Em seguida bebeu um bom gole do forte licor e, quando este chegou ao fundo da sua garganta, quase ficou sem respiração. Foi como se tragasse brasa ardente.

Sem dúvida Arthur notou que algo não ia bem, porque arqueou as sobrancelhas.

— Possivelmente a senhorita devesse sentar-se — lhe aconselhou.

Ela deixou-se cair como uma pedra no sofá e respirou profundamente.

— Este brandy é muito forte — declarou, quase sem fôlego.

— Assim o é — ele corroborou enquanto levava a taça aos lábios —. E também é muito caro. Em minha opinião, é melhor bebê-lo a sorvos que de um gole só.

— Recordarei no futuro — Elenora assegurou.

Ele assentiu com um movimento da cabeça.

— Bem, como lhe comentava, averiguei o nome de um cavalheiro que possivelmente saiba algo a respeito das caixas de rapé. Tenho a intenção de falar com ele. Entretanto, agradeceria que me comunicasse qualquer ideia que lhe ocorra sobre como localizar a John Watt, o ajudante de meu tio avô.

— O homem que desapareceu na noite do assassinato? — perguntou ela.

— Sim. Passei os três últimos dias percorrendo os lugares que ele estava acostumado a frequentar, os botequins e os bares que mais gostava, o bairro no qual cresceu e este tipo de lugares. Mas não encontrei nem rastro dele, pelo menos até agora. É como se tivesse evaporado.

Elenora refletiu uns instantes sobre o que Arthur acabava de dizer.

— Falou com os membros da sua família? — perguntou-lhe.

— Watt é órfão. Não tem família.

— E tem certeza de que ele não é o assassino?

Arthur começou a negar com a cabeça e, quando se deteve, abriu uma de suas grandes mãos e, com a palma para o teto, declarou:

— Quando se trata da natureza humana tudo é possível, mas não acredito que Watt seja o vilão desta obra. Conheço-o há anos e é um homem honesto e trabalhador. Além disso, sentia verdadeira devoção por meu tio avô, que confiava plenamente nele e lhe pagava com generosidade. Não entra na minha cabeça que Watt pudesse lhe haver agredido.

— Aquela noite Watt não roubou nada? O senhor não sentiu falta de nenhum objeto de valor? — Elenora perguntou.

— Não.

— Então, possivelmente não é em bares e botequins onde o senhor devesse estar procurando — declarou Elenora com lentidão.

— Onde a senhorita teria procurado — ele perguntou.

— Não sou nenhuma perita e sabe Deus que não tenho experiência alguma na resolução de crimes — Elenora declarou com prudência —. Entretanto, acredito que um homem honesto e trabalhador que tivesse fugido por temor a perder a vida e que não tivesse roubado nenhum objeto de valor para pagar despesas e alojamento, só teria uma ideia na cabeça.

— Qual? — perguntou Arthur intrigado.

— Encontrar um trabalho o mais rápido possível.

Arthur permaneceu imóvel com um brilho de entendimento nos olhos.

— Claro! — exclamou em voz baixa —. Não percebi o evidente. Mesmo assim, ainda fica um território muito amplo para investigar. Como encontrar a um homem sozinho nesta cidade?

— Está seguro de que estava sozinho?

— O que quer dizer?

— Diz que se trata de um homem jovem e sem família, mas não havia nenhuma mulher em sua vida?

Arthur levantou a taça de brandy meio vazia em sinal de brinde.

— Uma ideia excelente, senhorita Lodge. Agora que o menciona, lembro que uma jovem criada da casa de meu tio avô parecia gostar muito de Watt. A primeira coisa que farei amanhã pela manhã será entrevistá-la.

Elenora se relaxou um pouco: agora Arthur parecia satisfeito. Assim, depois de tudo, possivelmente não a despediria.

Ele se afastou da mesa e ficou diante da lareira. Sob a luz resplandecente das chamas, o brandy em sua taça de vidro esculpido brilhava como uma joia líquida.

— Tinha o pressentimento de que falar com a senhorita ajudaria a esclarecer meus pensamentos — declarou ele depois de uns instantes —. Agradeço-lhe seus comentários e suas observações.

Esse elogio deu a Elenora mais calor que o fogo da lareira.

— Espero que lhe resultem úteis — disse ela consciente de que tinha ficado vermelha —. Desejo-lhe muita sorte, senhor.

— Obrigado, sem dúvida a precisarei — respondeu examinando as chamas como se procurasse respostas ou, possivelmente, inspiração —. Agora chegamos à segunda questão que queria tratar com a senhorita esta noite.

Elenora se preparou para o pior.

— Sim, milord?

— Refiro-me ao beijo do jardim.

Ela segurou a taça de brandy com força e disse:

— A julgar pelos comentários a respeito da nossa relação, essa dama não acreditava que estivéssemos comprometidos de verdade. Assim, me ocorreu que, ao espalhar-se o rumor de que nossa relação estava apoiada no amor, os membros da aristocracia se sentiriam mais inclinados a aceitar nossa pequena farsa.

— Foi um movimento muito inteligente da sua parte — respondeu ele —. A felicito por sua rapidez de reação.

Elenora se sentiu muito aliviada e, com um gesto rápido, bebeu um sorvinho de brandy.

— Obrigado, senhor — respondeu tentando lhe dar a sua voz um tom de profissionalidade e competência —. Fiz o possível para que minha representação resultasse convincente.

Ele se virou e a olhou: seus olhos refletiam o calor do fogo. Mais uma vez, como lhe tinha ocorrido antes nos jardins, quando lhe devolveu o beijo, algo em seu interior ficou em tensão.

Uma excitação perigosa e sedutora estalou, invisível, no ar que os separava. Elenora notou que a intensa paixão que flutuava no ambiente afetou a Arthur tanto como a estava afetando a ela, e a taça de brandy tremeu na sua mão.

— Sem dúvida, a senhorita alcançou seu objetivo — assegurou Arthur enquanto deixava sua taça no suporte da lareira. Aproximou-se então de Elenora com passos lentos e deliberados, sem deixar de lhe olhar nos olhos —. De fato, me deixei levar tanto pela situação que me perguntei se a senhorita estava realmente atuando.

Ela tentou pensar em algo inteligente para dizer depois desse comentário, mas não lhe ocorreu nada. Permaneceu sentada e sem poder mover-se na borda do sofá enquanto ele ia se aproximando.

Arthur se deteve diante dela e, delicadamente, tirou-lhe a taça de brandy das mãos e a deixou sobre a mesinha sem afastar nem por um momento os olhos de Elenora.

Arthur a pegou pelos ombros e a ajudou a levantar-se.

— De verdade não foi mais que uma farsa? — perguntou Arthur acariciando os lábios entreabertos de Elenora com o polegar —. É tão boa atriz assim, senhorita Lodge?

O roce aveludado do dedo de Arthur tirou o fôlego de Elenora. Aquela leve carícia lhe pareceu extremamente íntima e deliciosa e despertou nela o intenso desejo de voltar a senti-la de novo.

Elenora ficou sem fala. Uma boa atriz sabia mentir com descaramento quando a situação o requeria, recordou a si mesma. Entretanto, por alguma estranha razão, ela não pôde negar o que sabia que devia negar.

Em vez de negar o evidente, roçou com sua língua o dedo de Arthur, e o tato de sua pele lhe fez sentir um leve estremecimento.

Arthur sorriu com lentidão e ela se ruborizou. Não podia acreditar no que tinha feito com a língua. De onde lhe tinha surgido aquela necessidade de saboreá-lo? Perguntou-se com certa sensação de pânico.

— Acredito que isto responde a minha pergunta — murmurou Arthur agarrando-a pela nuca e inclinando-se até colocar seus lábios sobre os dela —. Devo confessar que esta noite nos jardins, eu tampouco atuava.

— Arthur...

Ele a beijou como se saboreasse um elixir proibido. Entretanto, pensou Elenora, era ela quem provava o desconhecido naquela noite. Calafrios ardentes percorreram seu corpo lhe produzindo, ao mesmo tempo, uma sensação de frio e calor, e sumindo-a em um estado de euforia. Elenora cravou os dedos nos ombros de Arthur como se sua vida dependesse disso.

Ele interpretou a pressão de seus dedos como um convite e intensificou seu beijo. Quando Elenora sentiu a língua de Arthur deslizando-se por seu lábio inferior se sobressaltou, mas mesmo assim não se afastou.

Aquele era o prazer estimulante que sua avó lhe tinha contado que podia experimentar-se nos braços do homem adequado. O que Elenora havia sentido quando Jeremy Clyde a beijava não era mais que um riacho pouco profundo em comparação com a cascata de sensações que experimentava naquele momento.

Elenora sentiu desejos de lançar-se e inundar-se até o fundo nesse poço misterioso.

Arthur lhe tirou os grampos do cabelo com tal delicadeza e aprimoramento que Elenora tremeu. Nenhum homem até então tinha lhe soltado o cabelo.

Arthur a beijou então no pescoço, e ela sentiu a borda de seus dentes.

O comentário que Lucinda fez sobre a noiva de Arthur que tinha fugido passou pela sua mente atordoada: “ela se sentia aterrorizada por ele”.

Arthur lhe segurou um dos seios com a mão e ela sentiu seu calor através da seda verde e fina do sutiã.

Elenora gemeu com suavidade e deslizou os braços ao redor de seu pescoço.

Ele, em vez de apertá-la contra seu corpo com mais força, murmurou algo parecido a uma queixa, algo que podia ter sido um impropério. Arthur levantou a cabeça contra a sua vontade e se separou um pouco de Elenora. Em seguida, tomou o rosto dela nas mãos e sorriu com ironia.

— Este não é o momento nem o lugar — declarou. A paixão e o arrependimento tinham lhe conferido um tom grave a sua voz —.A senhorita ocupa uma posição única nesta casa, mas isto não muda o fato de que seja uma de minhas empregadas. Nunca me aproveitei de nenhuma mulher que estivesse a meu serviço e não penso fazer uma exceção consigo.

Durante uns segundos, Elenora acreditou que não tinha escutado bem o que Arthur tinha dito. Ainda a considerava apenas mais uma das suas empregadas? Depois daquele abraço tão apaixonado? Depois de ter acreditado nela e de lhe haver pedido conselho sobre o modo de realizar a sua investigação?

A realidade estalou na cara de Elenora e rompeu a delicada membrana de sensualidade e desejo que ela tinha tecido a seu redor. Na realidade, não sabia se sentir-se furiosa ou ferida, mas a mescla de raiva, frustração e vergonha que a invadiu a deixou quase sem fala.

Quase, mas não completamente.

— Desculpe-me, senhor — respondeu pronunciando cada palavra como se estivesse coberta por uma capa grosa de gelo —. Não sabia que me considerasse apenas mais uma de seus empregados...

— Elenora.

Ela deu um passo atrás e ele não teve mais remedeio que separar as mãos de seu rosto.

— ... e em nenhum caso lhe permitiria que o senhor quebrasse as regras estritas que regem seu comportamento em relação às mulheres que tem a seu serviço...

— Por todos os demônios, Elenora...

Ela esboçou seu melhor sorriso e acrescentou:

— Tranquilize-se, comprometo-me a não esquecer, nunca mais, qual é meu lugar. Eu não gostaria de ser a responsável por pôr a um patrão tão altruísta em uma situação tão insuportável, senhor.

Ele apertou a mandíbula e espetou:

— Interpreta mal minhas palavras.

— Para mim, estão muito claras. — Elenora fingiu olhar a hora no relógio de parede e disse —: Céus, já é muito tarde, não é verdade? — A continuação, realizou uma de suas reverências mais elegantes —. Se não necessitar mais de meus serviços esta noite, boa noite, senhor.

Ele entreabriu os olhos.

— Droga! Elenora...

Ela girou sobre seus calcanhares, deu-lhe as costas e caminhou com rapidez para a porta.

Os passos de Arthur eram mais longos que os de Elenora, de modo que chegou à porta antes que ela. Durante um momento de desespero, ela tentou decidir o que faria se lhe obstruísse a passagem.

Entretanto, Arthur não lhe impediu que realizasse sua solene saída: abriu-lhe a porta com um gesto elegante e inclinou a cabeça com ar zombador.

Enquanto cruzava a soleira com o queixo erguido, Elenora percebeu o sorriso malicioso de Arthur pela extremidade do olho.

— Quando este assunto terminar, senhorita Lodge, como é lógico me verei obrigado a dar por encerrados seus serviços nesta casa — declarou ele com calma —. Então, asseguro-lhe que retomaremos esta conversa e analisaremos com atenção o curso que nossa associação seguirá no futuro.

— Não conte com que tenhamos essa conversa tão racional que o senhor propõe, milord. Não vejo nenhuma razão para voltar a oferecer algo que já foi rejeitado.

Elenora não se incomodou em olhar para trás para averiguar como tinha reagido Arthur a seu comentário. Concentrou-se em não apertar o passo e caminhou com determinação em direção às escadas.

 

Uma hora mais tarde, Elenora ouviu o tamborilar surdo e regular dos passos de Arthur no corredor: pareciam ir ao uníssono com os batimentos de seu coração.

Arthur se deteve na porta do dormitório de Elenora. A tensão era insuportável. Bateria na porta com suavidade?

Claro que não o faria, nem com suavidade nem de nenhuma outra maneira, refletiu Elenora. Antes, na biblioteca, tinha-o deixado muito claro.

Entretanto ela percebeu sua presença do outro lado da porta e soube, com tanta clareza como se tivesse podido lê-lo em sua mente, que ele estava considerando essa possibilidade, e muito seriamente.

Depois de uns instantes, Elenora lhe ouviu percorrer o corredor em direção a seu dormitório.

 

Elenora abriu os olhos com muita cautela e sentiu um grande alívio quando viu que um raio de luz se filtrava entre as cortinas: a manhã tinha chegado enfim! O relógio da mesinha de cabeceira marcava as nove e meia e Elenora se surpreendeu de que, finalmente, tivesse conseguido dormir um pouco.

Tinha a sensação de que passou a noite alternando pesadelos com prolongados períodos de insônia quando revivia o beijo da biblioteca uma e outra vez.

Elenora afastou os edredons, calçou as sapatilhas e vestiu o roupão. Continuando, lavou-se com rapidez na bacia estremecendo-se com o contato agudo da água fria. Quando terminou, prendeu o cabelo em um coque alto e o cobriu com uma toca de um branco imaculado que prendeu com grampos. Depois se dirigiu ao armário para examinar a coleção de vestidos pendurados nos seu interior.

Poder contar com a roupa nova que tinha encarregado à antiga costureira da senhora Egan constituía um aspecto positivo de seu emprego, pensou. Embora, a verdade era que não lhe serviria de nada no seu próximo emprego, pois era muito pouco provável que seus futuros patrões quisessem uma dama de companhia que vestisse com tanta elegância.

Como tinha previsto, a costureira estava mais que disposta a guardar em segredo o antigo emprego de Elenora a serviço da senhora Egan. Claro que qualquer costureira ambiciosa e minimamente inteligente não fofocaria sobre uma coisa assim, pensou Elenora.

Quanto a sua situação pessoal, não queria preocupar-se com seus futuros problemas de figurino. Com sorte, não teria muitos mais patrões, pensou Elenora enquanto escolhia um alegre vestido matutino amarelo enfeitado com fitas de um tom verde claro. Graças aos honorários triplos e à bonificação que St. Merryn lhe pagaria, quando deixasse aquele emprego quase teria reunido dinheiro o suficiente para pagar o aluguel de uma livraria pequena. E, se tinha sorte no seu próximo emprego, com outros seis meses de trabalho poderia economizar o dinheiro necessário para equipar a loja com as últimas novidades literárias.

Então, por fim seria livre e independente.

Enquanto se vestia, obrigou-se a concentrar-se em seu novo e brilhante futuro em vez de pensar nos beijos ardentes de Arthur.

Quando minutos mais tarde abriu a porta do seu dormitório não encontrou a ninguém no corredor. Perguntou-se se Arthur teria descido para tomar o café da manhã. Apesar do que tinha ocorrido na noite anterior, queria vê-lo novamente. Elenora se dirigiu às escadas sem fazer ruído para não despertar a Margaret.

Uma vez no andar de baixo, percorreu o corredor que conduzia à parte posterior da casa.

Quando chegou a frente da porta da sala de jantar respirou fundo, levantou o queixo, adotou uma atitude solene e entrou como se na noite anterior não tivesse ocorrido absolutamente nada.

Sua atuação foi em vão, pois a sala estava vazia. Lástima, porque teria gostado de demonstrar a Arthur que seus beijos não eram dignos de ser recordados. Elenora suspirou, cruzou a porta que comunicava com a copa e desceu as estreitas escadas que conduziam ao andar inferior, onde estavam as dependências do serviço. Seus sapatos não produziram nenhum ruído nos degraus.

Elenora decidiu que, naquela manhã, bastaria-lhe com uma taça de chá e uma torrada quente. Quando chegou ao final da escada ouviu umas vozes apagadas. Procediam do outro lado de uma porta fechada. Elenora as reconheceu imediatamente, tratava-se de Ibbitts e Sally, a donzela.

— Deixa de choramingar, criatura estúpida — grunhiu Ibbitts em voz baixa —. Fará o que te ordeno ou estará outra vez na rua.

— Por favor, não faça isto, senhor Ibbitts — soluçou Sally —. Uma coisa foi registrar os objetos pessoais da senhorita Lodge enquanto desempacotava seu baú... Não gostei disso, mas, ao menos, não lhe causei nenhum dano. Entretanto, isto é distinto. Se me obrigar a lhe roubar seu bonito relógio poderiam me prender e me pendurar.

— Ora! Mesmo que St. Merryn te pegasse com as mãos na massa, não te entregaria às autoridades. Servi em muitas casas e sei muito bem qual é o tipo de patrão que faria uma coisa assim: ele não é desses, é muito coração mole.

Elenora se deu conta de que Ibbitts não aprovava o caráter amável de Arthur.

— No mínimo, me despedirá sem referências — disse Sally chorando mais forte —. Você já sabe que necessito este emprego com desespero, não me obrigue a me arriscar a perdê-lo.

— Pode ter certeza de que o perderá se não fizer o que te digo, moça. Eu me encarregarei de que assim o seja. Lembra o que aconteceu com Paul quando recusou a entregar a minha parte. Acabou na rua, e sem referências. Não acharia nada estranho que, nestes momentos, ganhara a vida como salteador de caminhos. O mais provável é que, para o Natal, já o tenham enforcado.

Elenora ouviu com claridade os profundos soluços entrecortados de Sally através dos painéis da porta.

— Não posso fazê-lo, senhor. Sou uma boa garota. Nunca faria nada tão mau. Não posso.

— Que é uma boa garota? — perguntou Ibbitts rindo com rudeza —. Sua anterior patroa não opina o mesmo. Despediu você por seduzir a seu filho, não é certo? Te encontrou na adega deitada no chão e com seu querido filho entre as pernas, não é assim?

— Não foi assim como aconteceu — se defendeu Sally com voz rouca —. Ele me atacou, foi ele.

— Porque você o provocou. Poderia apostar que você acreditava que ele te daria um pouco de dinheiro por seus esforços.

— Isto não é verdade.

— Não importa — respondeu Ibbitts —. O que você deve lembrar é que te despediram sem referências e nós dois sabemos que estaria entregando seus favores em algum beco se eu não a tivesse contratado. Tem sorte de ter um emprego.

— Por favor, senhor, até agora tenho feito tudo o que me mandou, inclusive lhe entrego parte de meu salário. Mas não posso fazer o que me pede. Não posso. Não está bem.

Elenora já tinha escutado suficiente. Agarrou a maçaneta da porta e a girou sem dificuldade. Empurrou-a com tanta força que ao abrir-se golpeou contra a parede e ricocheteou algumas vezes. Ibbitts e Sally a olharam sobressaltados, com a boca aberta. As facções perfeitas de Ibbitts se transformaram em uma máscara de raiva.

O olhar de Sally expressava um pânico crescente: levou-se uma das mãos à garganta e soltou um chiado afogado de desespero parecido ao de um passarinho que acaba de cair do ninho. Elenora se virou para Ibbitts e disse:

— Seu vil comportamento resulta inaceitável. Recolha suas coisas imediatamente e saia em seguida desta casa.

Ibbitts se recuperou com rapidez e fez uma careta desdenhosa.

— Quem demônios você crê que é para se meter desta maneira em meus assuntos privados?

Elenora decidiu que aquele era um momento excelente para respaldar-se na autoridade que lhe conferia seu papel fictício de noiva de Arthur.

— Sou a futura senhora desta casa — anunciou com frieza —. E não tolerarei seus atos desprezíveis.

— Assim que é a futura senhora, né? — Um brilho malicioso brilhou nos olhos de Ibbitts. Entretanto, em lugar de proferir um impropério, sacudiu o dedo em direção à desafortunada Sally e disse—: Sai daqui moça e vá para o seu quarto. Terminarei contigo mais tarde.

Sally empalideceu.

— Sim, senhor Ibbitts — murmurou.

Dirigiu-se a toda pressa para a porta, mas Elenora obstaculizava a saída.

— Desculpe-me, senhorita Lodge — suplicou com lábios trêmulos —. Por favor, me deixe sair.

Elenora lhe estendeu um lenço e se afastou.

— Pode ir, Sally, e seca as suas lágrimas. Tudo sairá bem.

Sally não mostrou nenhum indício de acreditar nela. Simplesmente agarrou o lenço de linho bordado, tapou o rosto com ele e saiu rapidamente do local. Elenora ficou a sós com Ibbitts. Ele a olhou de cima a abaixo com tanto desprezo que teria feito justiça a um cavalheiro arrogante da alta sociedade.

— Bem, senhorita Lodge, acredito que chegou o momento de que ponhamos as coisas em claro. Nós dois sabemos que nunca será a senhora desta casa, não é assim?

A Elenora lhe revolveu o estômago, mas se mostrou impassível.

— Não tenho nem ideia ao que se refere, Ibbitts.

— Embora o senhor conde tenha conseguido fazê-la passar por uma dama elegante nos círculos da sociedade, não me enganou. A senhorita não é mais que uma dama de companhia e está nesta casa só temporalmente. St. Merryn a despedirá quando deixe de necessitá-la, como a qualquer outro membro do serviço.

Elenora sentiu um formigamento nas palmas das mãos. Tinha razão quando advertiu a Arthur que seria difícil enganar aos criados. Sua única esperança consistia em sair graciosa daquele enfrentamento.

— É evidente que esteve escutando a seu patrão às escondidas, Ibbitts — declarou sem se alterar —. Um costume detestável, sem dúvidas alguma. E, como normalmente acontece quando alguém escuta as conversas que não deve, entendeu os fatos de forma equivocada.

— Ora! Entendi os fatos corretamente e você sabe muito bem. St. Merryn a contratou na agência Goodhew & Willis, não é certo? Ouvi-lhe contar seu plano à senhora Lancaster. Paga-lhe por representar o papel de sua noiva. Sabe no que a converte isto, senhorita Lodge? Em uma atriz.

— Já é suficiente, Ibbitts — ela espetou.

— E todos sabemos o que acontece com as atrizes, não é assim? — Ibbitts soltou um bufo de desagrado —. Goste ou não, antes de abandonar este posto, a senhorita terá esquentado a cama do senhor conde.

Ibbitts soube qual era a verdade desde o princípio, pensou Elenora. Isto explicava o desprezo sutil que tinha lhe destinado desde sua chegada. Entretanto, a julgar pela forma em que acabava de expulsar a Sally, era evidente que tinha guardado o segredo para si mesmo. Sem dúvida, até que pudesse utilizá-lo em proveito próprio.

O desastre se aproximava, pensou Elenora. Arthur ficaria furioso quando soubesse que seu mordomo conhecia seu plano. O mais provável era que decidisse abandonar sua tática de fazê-la passar por sua noiva. E, se já não a necessitava, antes que acabasse o dia, ela estaria novamente nos escritórios da Goodhew & Willis.

Enfim, não podia fazer outra coisa mais que seguir adiante. Ibbitts era um calhorda e, de uma forma ou outra, tinha que abandonar aquela casa.

— Dispõe de meia hora para recolher suas coisas, Ibbitts — declarou ela rotundamente.

— Não penso ir a parte alguma — respondeu ele com aspereza —. E, se souber o que lhe convém, não dará nenhuma outra ordem nesta casa. De agora em diante dançará a meu ritmo, senhorita Lodge.

Ela o olhou fixamente.

— Está louco?

— Não estou louco, senhorita Lodge: sou muito mais preparado do que a senhorita crê. Se tentar me botar desta casa, me assegurarei de que o senhor conde saiba que conheço seus planos. — Ibbitts soltou um risinho e acrescentou —: É mais, direi que os conheço porque você gosta de falar na cama.

— Esta forma de atuar é muito perigosa, Ibbitts — declarou Elenora com lentidão —. E, em qualquer caso, St. Merryn não acreditará em você.

Ibbitts esboçou um sorriso furtivo e declarou:

— Quando lhe descrever as elegantes fitas azuis que enfeitam sua bonita camisola de linho branca, estou convencido de que acreditará em tudo o que eu disser.

— Você sabe como é a minha camisola porque obrigou Sally a descrevê-la.

— Assim é, mas o senhor conde deduzirá que se a conheço tão bem é porque a vi vestida com ela, não lhe parece? E, ainda que ele não acredite na minha história, no que diz respeito a você, o dano já estará feito. Se o senhor conde averiguar que seus planos já não são um segredo, os abandonará. E isto significa que já não a necessitará mais, senhorita Lodge. Você estará na rua apenas dez minutos depois de mim.

— Você é um insensato, Ibbitts.

— A insensata é a senhorita se acredita que pode livrar-se de mim com tanta facilidade. — Ibbitts soltou uma risada tosca e continuou—: Entretanto, está com sorte, porque estou disposto a fazer um trato. Mantenha a boca fechada a respeito do que ouviu nesta sala faz uns minutos e eu não contarei ao conde que vi sua camisola ou que conheço seu segredo.

— De verdade acredita que me submeterei a sua chantagem, Ibbitts?

— Sim, senhorita Lodge, fará o que eu digo, como Sally e Ned, e, além disso, se mostrará agradecida. — A seguir riu com ironia —. De fato, se sentirá tão agradecida que me pagará a comissão habitual, como os outros.

Elenora cruzou os braços e perguntou:

— E qual é sua comissão habitual?

— Sally e Ned me entregam a metade de seu salário trimestral.

— E o que conseguem em troca?

— O que conseguem? Conservar seus postos de trabalho, isto é o que conseguem! Você também aceitará meu trato porque ambos sabemos que tem muito mais a perder que eu.

— Ah, sim?

— Assim é, sua cadela velha. — disse Ibbitts torcendo o gesto —. Graças ao meu rosto, eu sempre poderei encontrar um novo emprego. Entretanto, quando o conde a despeça, o mais provável é que não volte a encontrar outro trabalho respeitável. Estou seguro de que, antes que termine o ano, estará levantando as saias para algum cavalheiro ébrio pelos portais dos arredores do Covent Garden.

Elenora não se incomodou em lhe responder: virou-se e saiu ao pequeno corredor. A risada rouca e cruel de Ibbitts a seguiu.

Elenora passou por Ned, quem a esperava, trêmulo, no alto das escadas da cozinha.

— O que aconteceu, senhorita Lodge? Sally diz que vão nos despedir.

— Você e Sally conservarão seus empregos, Ned. É Ibbitts quem logo estará fora desta casa.

— Não acredito — Ned disse sacudindo a cabeça com tristeza e resignação —. Os que são como ele ao final sempre ganham. Ele se encarregará de que nos despeçam sem referências por lhe haver causado todos estes incômodos.

— Tranquilize-se. O conde é um homem justo. Compreenderá a situação quando eu lhe explique tudo. Você e Sally estarão bem.

“Sou eu quem logo estará procurando outro emprego”, pensou ela. Resolvesse como resolvesse o problema com Ibbitts, do que não tinha dúvida era que quando St. Merryn soubesse que seu segredo estava nas mãos de um ser tão desprezível e indigno de toda confiança como Ibbitts, se veria obrigado a dar por finalizada sua estratégia.

Enfim, soube desde o começo que aquele trabalho era bom demais para ser verdade.

 

Arthur se deteve na porta do estábulo e ficou contemplando a John Watt, que estava amontoando a palha em um compartimento com a ajuda de um ancinho. O jovem não parecia o mesmo rapaz que Arthur recordava.

Quando trabalhava na casa de George Lancaster, Watt estava sempre limpo e arrumado. A camisa e as calças que vestia naquele momento eram, muito provavelmente, as mesmas que usava quando fugiu. Aquela roupa não tinha resistido às exigências da nova profissão de Watt. Depois de seis semanas naquelas cavalariças, seu traje de qualidade se converteu em pouco mais que uns farrapos sujos e desfiados.

Watt tinha prendido o cabelo em um rabo de cavalo com um pedaço de tecido e o suor lhe escorria pela testa. Entretanto, fiel a sua natureza, trabalhava duro, embora fosse pouco provável que seu novo patrão lhe pagasse um salário remotamente parecido ao que recebia de George Lancaster.

— Olá, Watt — Arthur saudou em voz baixa. Watt se sobressaltou bruscamente e se virou com o ancinho levantado e uma expressão de alarme no rosto. Quando viu Arthur, soltou um bufo e exclamou:

— Ah, é o senhor! — Tragou saliva e abaixou devagar o ancinho, como um sinal de rendição —. Sabia que cedo ou tarde você me encontraria.

Arthur caminhou para ele e lhe perguntou:

— Por que fugiu, Watt?

— Já deve saber a resposta, senhor. — Watt apoiou o ancinho na parede do estábulo, secou a testa com uma mão imunda e exalou um profundo suspiro —. Tinha medo que acreditasse que eu tinha assassinado ao senhor Lancaster.

— Por que teria que acreditar nisso?

Watt, confundido, franziu o cenho e declarou:

— Porque eu era a única pessoa que estava na casa com o senhor Lancaster aquela noite.

— Meu tio avô confiava em você. Eu também confio em você, e o mesmo pode dizer-se de Bess.

— Falou com Bess? — Watt perguntou sobressaltado.

— Foi ela quem me contou que tinha mudado de nome e aceito um emprego aqui, nas cavalariças.

Watt entreabriu os olhos e fez uma careta de dor.

— Não devia ter lhe contado onde estava. Entretanto, sentia-se tão angustiada que me senti obrigado a lhe dizer que estava a salvo. Pedi-lhe que não o contasse a ninguém, mas é uma moça honesta e suponho que era lhe pedir muito que mentisse por mim, sobre tudo ao senhor.

— Não deve culpar a Bess. Faz um momento tive um longo bate-papo com ela. Ama-te com todo o coração e teria guardado seu segredo se acreditasse que eu ia te prejudicar. Além disso, não o contou a ninguém mais, nem sequer ao detetive que a interrogou.

— Um detetive a interrogou? — Watt estava horrorizado —. Minha pobre Bess! Deve sentir-se muito assustada.

— Tenho certeza de que foi assim. Embora não lhe contou ao detetive que sabia onde estava. Só confiou em mim porque a convenci de que acredito na sua inocência.

Watt se mordeu o lábio inferior com nervosismo e explicou.

— Bess me contou que o detetive opina que eu sou o assassino do pobre senhor Lancaster.

— Quando o detetive me disse que tinha chegado a esta conclusão, despedi-o, porque eu sabia que estava equivocado.

Watt arqueou as sobrancelhas em sinal de surpresa.

— Por que tem tanta certeza de que eu não matei o senhor Lancaster? — perguntou.

— Conheço você há anos, Watt. Estou convencido de que não é violento. É um homem que não se enfurece facilmente. Tem um caráter tranquilo e paciente.

Watt piscou um par de vezes.

— Não sei como agradecer-lhe, senhor — murmurou.

— A melhor forma de agradecer-me é me contar tudo o que possa recordar dos dias anteriores ao assassinato de meu tio avô e tudo o que aconteceu na noite da sua morte.

 

Uma hora depois, satisfeito de que Watt tivesse lhe contado tudo o que sabia, Arthur lhe aconselhou que retornasse com sua amada e lhe prometeu que Bess e ele disporiam de novos empregos em um dos imóveis dos Lancaster.

Sua parada seguinte antes de retornar à mansão da Rain Street foi a casa do ancião administrador que tinha recebido parte da herança de seu avô.

Na casa reinava o silêncio e a penumbra, e os criados perambulavam de um lado para o outro com o rosto sombrio.

— O doutor diz que ao senhor Ormesby não lhe resta mais que uma semana —a governanta disse secando as mãos no avental enquanto conduzia Arthur ao dormitório onde seu patrão jazia no leito de morte —. O senhor é muito amável em vir despedir-se.

— É o mínimo que podia fazer — respondeu Arthur. Ao olhar a governanta mais de perto, deu-se conta de que já estava avançada em idade. O mais provável era que aquele fosse o ultimo emprego que pudesse obter —. Ormesby dispôs uma pensão para a senhora?

Ela abriu os olhos com surpresa e respondeu:

— O senhor é muito amável ao me perguntar isso senhor, mas estou convencida de que o senhor Ormesby terá tido a amabilidade de lembrar-se de mim nos seus últimos desejos. Trabalhei para ele durante vinte e sete anos, sem interrupção.

Arthur anotou mentalmente que devia assegurar-se de que Ormesby tivesse deixado suficiente dinheiro a sua governanta que lhe permitisse subsistir durante o resto dos seus dias. Ormesby e seu avô, o velho conde, tinham muitas coisas em comum e nenhum dos dois tinha se destacado pela generosidade.

 

Elenora estava guardando seus últimos objetos pessoais no baú quando Margaret entrou com ar angustiado e a toda pressa no dormitório.

— Por todos os Santos! O que está acontecendo aqui? — Margaret perguntou detendo-se no meio do quarto. Olhou então o baú como se tratasse de um inimigo e declarou —: Sally me interrompeu enquanto escrevia uma cena em que estive trabalhando durante os últimos dois dias e me disse que você esta se preparando para partir.

— Lamento dizer que o grande plano de St. Merryn se veio abaixo — Elenora explicou.

— Não te entendo.

— Ibbitts sabe por que estou aqui e me confessou que não duvidará em utilizar esta informação em proveito próprio. Quando Arthur souber que seus planos se arruinaram já não necessitará meus serviços. Assim pensei que o melhor que eu tenho a fazer é recolher minhas coisas e me preparar para ir embora.

— Isto é absurdo.

— Nem tanto — Elenora disse suspirando —. Confesso que sempre tive a sensação de que a intrincada farsa de St. Merryn estava condenada ao fracasso.

Elenora se endireitou e examinou o dormitório enquanto experimentava uma estranha sensação de perda que nada tinha que ver com questões econômicas. Então se deu conta de que não queria partir, e não só porque ao fazê-lo se veria obrigada a passar de novo pelo pesado processo de encontrar outro emprego.

Não era da casa do que sentiria falta, a não ser do ligeiro calafrio de prazer que percorria suas costas cada vez que entrava em um cômodo e se encontrava com Arthur.

“Para imediatamente com esta atitude muito sensível. Não tem tempo para pensamentos melancólicos. Deve se concentrar no futuro”.

— Querida Elenora, isto é terrível — declarou Margaret —. Tenho certeza de que tem que haver um engano. Não pode ir. Por favor, não tome decisões precipitadas sem falar antes com Arthur. Estou convencida de que ele solucionará tudo.

Elenora sacudiu a cabeça.

— Não vejo de que modo poderá seguir me utilizando em sua estratégia como era sua intenção — explicou a Margaret —. Ibbitts pôs em perigo todo o projeto.

— Arthur dispõe de muitos recursos. Tenho certeza de que encontrará a maneira de continuar com seu plano.

Elenora se dirigiu para a janela atraída pelo chiado das rodas de uma carruagem, olhou para baixo e viu que Arthur chegava. Levava um pacote de grande tamanho embaixo do braço e estava muito sério.

— O conde retornou — disse a Margaret —. É melhor eu descer e acabar com este assunto.

— Irei contigo — disse Margaret seguindo-a com ligeireza —. Estou convencida de que tudo terminará bem.

— Não sei como — declarou Elenora tentando ocultar a tristeza que se estava gerando no seu interior —, porque o conde já não necessita meus serviços.

— Permita-me dizer, querida — continuou Margaret enquanto desciam as escadas —, que quando se trata de Arthur é melhor não tentar predizer suas ações. A única coisa que se pode dizer dele com certeza é que quando traça um rumo é quase impossível conseguir que o mude. Pergunte a qualquer membro da família.

Sally e Ned estavam no vestíbulo. Pareciam nervosos e falavam em voz baixa. Quando viram a Elenora e a Margaret, interromperam sua conversa.

— O que foi? — perguntou Elenora —. Aconteceu algo mais?

— Trata-se de Ibbitts, senhora — respondeu Ned —. Agora mesmo está na biblioteca com o senhor conde. Não quero nem pensar em todas as mentiras que estará contando ao senhor.

Margaret franziu o cenho e perguntou em voz alta:

— O que lhe faz pensar que St. Merryn acreditará antes na palavra dele que na da Elenora?

— Não sei, senhora — sussurrou Sally —, mas Ibbitts sorria quando entrou na biblioteca. — A donzela ficou trêmula e acrescentou—: E não é a primeira vez que vejo esse sorriso.

 

Arthur se reclinou na cadeira e observou Ibbitts com atenção enquanto este lhe contava sua versão.

— Garanto que não se produziu nenhum dano, senhor — terminou Ibbitts com expressão solene e um tom de sinceridade na voz —. Não direi nenhuma palavra a respeito dos seus planos secretos.

— Sério?

— Certamente que não, senhor. — Ibbitts levantou seu majestoso queixo e, endireitando os ombros, acrescentou —: Acima de tudo, sou-lhe fiel.

— Diz que a senhorita Lodge lhe confessou meu segredo enquanto tentava convencê-lo para que entrasse no dormitório dela?

— Como é lógico, senhor, não aceitei seu convite. Embora ela só usasse uma camisola de linho branca enfeitada com fitas azuis. Encaro as responsabilidades do meu trabalho com muita seriedade.

— Já vejo.

Ibbitts suspirou e disse:

— Se formos justos, o senhor não deveria carregar toda a culpa nos frágeis ombros da senhorita Lodge.

— Por que o diz?

Ibbitts soltou um bufo de lástima.

— Uma mulher da idade e da condição dela tem poucas possibilidades de conseguir um matrimônio respeitável, não crê? As mulheres como ela não têm mais remédio que procurar em qualquer lado quando se sentem necessitadas, compreende?

A porta se abriu com brutalidade e Elenora entrou na biblioteca como uma exalação. Margaret a seguia de perto.

— Não escute nenhuma palavra do que diga Ibbitts — Elenora disse enquanto atravessava a sala com passos largos e firmes. Estava vermelha de ira —. É um mentiroso e um chantagista e se aproveita dos outros criados. Comuniquei-lhe que deve abandonar esta casa imediatamente.

Arthur se levantou com educação.

— Bom dia, Elenora. — A seguir inclinou a cabeça em direção a Margaret —. Por favor, sentem-se.

Margaret sentou-se imediatamente com o rosto aceso pela expectativa e murmurou para si:

— Isto promete ser interessante.

Apesar da indicação de Arthur, Elenora se deteve frente a sua mesa com os olhos brilhantes de raiva e anunciou com indignação:

— Ibbitts obriga aos criados a que lhe entreguem a metade dos seus salários. Isto é o que lhes cobra para lhes permitir conservar seus empregos. É desprezível. Sally e Ned me contaram que esta é a razão pela qual e a governanta, a cozinheira e os jardineiros deixaram seus empregos faz alguns meses, e é por isso que a casa ficou desatendida.

Ibbitts a olhou com uma expressão de lástima no rosto e, sacudindo a cabeça, e disse:

—Temo que a senhorita Lodge sofre de uma síncope nervosa, senhor. Sem dúvida se trata de histeria feminina. Vi este tipo de ataques em mulheres solteiras de certa idade. Às vezes, um pouco de vinagre funciona.

Elenora lhe lançou um olhar de desprezo absoluto e perguntou:

— Nega-o?

— Certamente. — Ibbitts se endireitou com orgulho—. Se milord deseja verificar minha inocência com respeito a esta questão, só tem que perguntar aos criados. Estou convencido de que tanto Sally como Ned dirão que não lhes exijo tal coisa.

— Você aterroriza a Sally e a Ned, Ibbitts — replicou Elenora —, e dirão o que você lhes ordene.

Era interessante observar a Elenora em um estado de total indignação, pensou Arthur. Por desgraça, não tinha tempo de desfrutar da cena naqueles momentos.

— Poderia sentar-se, Elenora? — perguntou Arthur com calma.

— Além de tratar a Sally e a Ned desta forma tão infame, Ibbitts esteve te espionando — continuou ela.

— Isto é mentira. — Ibbitts virou-se para olhar a Arthur —. Nunca pensaria em escutar as conversas privadas do meu patrão. Foi Sally quem o ouviu por acaso e veio me contar que a senhorita Lodge não era mais que uma empregada. Como é lógico, ordenei-lhes, tanto a ela como ao Ned, que mantivessem seus assuntos privados em segredo, senhor conde. Eles obedecerão e eu estou disposto a lhe ajudar em seus planos em tudo o que possa.

— Vigarista! — exclamou Elenora entre dentes —. Tenta culpar a Sally...

— Sente-se, Elenora — disse Arthur de novo, nesta ocasião com mais dureza, como se tratasse de uma ordem.

Ela o obedeceu contrariada.

Ibbitts lhe dedicou um olhar mordaz e disse:

— Desculpe-me, milord, mas o senhor examinou as referências da senhorita Lodge antes de selecioná-la para este posto?

— Foram as suas referências que não examinei — replicou Arthur —. E, sem dúvida, Ormesby tampouco o fez devido a sua má saúde.

— Asseguro-lhe que minhas referências são excelentes — respondeu Ibbitts com rapidez.

— Porque as escreveu você mesmo. Apostaria nisso — resmungou Elenora.

— Isto é mentira — repôs Ibbitts entre dentes, e, voltando-se para o Arthur, acrescentou —: Estarei encantado de lhe subministrar cartas de meus patrões anteriores, senhor. Acredito que encontrará todas muito satisfatórias.

— Não será necessário — respondeu Arthur tomando um dos livros que havia trazido da casa do moribundo Ormesby —. Esta manhã, enquanto vinha pra casa, examinei os livros. Os registros do último ano me dizem tudo o que preciso saber a respeito de você, Ibbitts.

Ibbitts olhou os volumes com aspecto confuso.

— O que são, senhor?

— As contas da casa. — Arthur abriu o jornal e deslizou o dedo até chegar a um registro que tinha selecionado antes —. Sem ir mais longe, no mês passado você requereu o pagamento dos salários de uma série de empregados que já não trabalham aqui. — Arthur olhou a Ibbitts e prosseguiu —: entre eles estão a governanta, a cozinheira e os jardineiros, que deixaram seus empregos no outono passado.

Ibbitts deu um passo atrás: não havia dúvida de que lhe tinham pegado de surpresa.

— Tem que haver um engano, senhor.

Arthur fechou o volume encadernado em couro.

— O engano foi não havê-lo despedido faz meses, Ibbitts. Entretanto, vou retifica-lo agora mesmo. Recolha suas coisas e saia desta casa imediatamente.

— Senhor, o senhor mesmo disse que seu administrador está doente — disse Ibbitts, presa da raiva e do desespero —. Deve ter anotado mal as quantidades.

— Meu administrador estava muito doente para sair de casa e fiscalizar os fatos por si mesmo, mas lhe asseguro que está completamente lúcido. Estas quantidades foram entregues a você para que pagasse aos criados. É evidente que, quando estes se demitiram, em vez de informar a Ormesby, você continuou cobrando seus salários. Suspeito que embolsou todo esse dinheiro. Quero que esteja fora desta casa antes de uma hora.

Elenora ficou de um salto e exclamou:

— Sabia que faria o correto.

Arthur suspirou.

— Por favor, sente-se, Elenora — lhe rogou de novo.

Ela apertou os dentes, mas se sentou.

Ibbitts estava aturdido.

— Despede-me?

— Claro que o demito. — Arthur esticou a mão para trás e puxou uma aldrava de veludo —. Você é um mentiroso e um chantagista. Considere-se afortunado de que não o mande para a cadeia.

A porta da biblioteca se abriu e apareceu Ned com aspecto assustado, mas decidido.

— Sim, milord? — perguntou.

— Ibbitts já não trabalha nesta casa. Acompanhe-o a seu quarto para que recolha seus pertences. Assegure-se de que não leva nenhum objeto de valor consigo. Está claro?

Ned olhou a Arthur, depois a Ibbitts, quem tinha o cenho franzido, e de novo a Arthur. A ansiedade desapareceu de seu olhar.

— Sim, senhor — respondeu com tom um pouco mais firme —. O acompanharei até a porta traseira em seu nome.

O rosto de Ibbitts se congestionou com raiva e desdém.

— Sugiro-lhe que peça a Sally e a Ned suas referências, milord. Logo descobrirá que não as têm. Sally perdeu seu último emprego porque seduziu ao filho do patrão e Ned perdeu o seu porque ficou do seu lado quando ela negou havê-lo feito.

Ned fechou os punhos com força.

Elenora ficou de pé e declarou:

— Eu não duvido, nem por um momento, da versão de Sally e Ned. É Ibbitts quem demonstrou ser indigno de confiança.

Arthur se esfregou a ponte do nariz.

— Agradeceria se permanecesse sentada, Elenora. Está me enjoando com tanto senta e levanta.

— Sinto muito.

Elenora deixou-se cair em seu assento com evidente falta de vontade. Arthur a viu dando golpezinhos de impaciência no tapete com a ponta de um de seus sapatos e pensou que sua curta carreira como dama de companhia não tinha afetado em nada sua inclinação natural para dar ordens.

Apesar de todos os problemas que enfrentava naquele momento, Arthur sorriu para dentro. Sem dúvida, ter que ceder perante ele tirava a Elenora do sério.

Arthur fixou sua atenção em Ned.

— Você e Sally conservarão os empregos. Além disso, me encarregarei de que vocês recebam as quantidades que Ibbitts lhes obrigou a lhe entregar.

— Obrigado, senhor — gaguejou Ned surpreso.

Arthur assinalou a porta e disse:

— Parta, Ibbitts, já perdi bastante tempo com esse assunto.

Ibbitts apertou as mandíbulas com fúria e, ao passar junto à Elenora, lançou-lhe um olhar vingativo.

Arthur esperou até que Ibbitts tivesse chegado à porta para voltar a falar.

— Uma coisa mais, Ibbitts — declarou enquanto unia as gemas dos dedos de ambas as mãos —. Acredito que há certa confusão em relação à posição da senhorita Lodge nesta casa.

— Sei muito bem qual é sua posição — murmurou Ibbitts —. Não é mais que uma dama de companhia.

— Esta dedução é errônea — respondeu Arthur com serenidade —. Tenho a intenção de me casar com a senhorita Lodge. Pode estar seguro de que é a futura senhora desta casa. Se cometer o engano de lançar rumores em sentido contrário, o lamentará. Está claro?

Arthur olhou a Elenora de rabo de olho e viu que abria muito os olhos.

Ibbitts mostrou os dentes e soprou:

— É assunto seu como queira chamá-la, milord.

— Assim é — assentiu Arthur —. É assunto meu. Você pode partir agora.

Ibbitts atravessou a soleira da porta com passo enérgico. Ned o seguiu e fechou a porta atrás dele.

Arthur ficou a sós com Margaret e Elenora.

— Bem! — exclamou Margaret —. A verdade é que foi muito emocionante — declarou sorrindo com satisfação a Elenora —. Disse que Arthur solucionaria tudo. Agora você pode ordenar a Sally que desfaça sua bagagem.

Arthur ficou gelado e olhou a Elenora tentando que sua reação não se refletisse no seu rosto.

— Você fez a bagagem? — perguntou-lhe.

— Sim, claro. — Elenora pigarreou —. Não pensei que o senhor fosse necessitar dos meus serviços quando averiguasse que Ibbitts tinha descoberto que não sou mais que uma empregada e não sua noiva de verdade.

Margaret olhou a Arthur e explicou:

— Quando Elenora se enfrentou a Ibbitts, ele lhe disse que conhecia seus planos. De fato, tentou chantageá-la. Pode acreditá-lo?

Arthur se acomodou no seu assento enquanto refletia no que acabava de escutar.

— Ibbitts tentou extorqui-la em troca de manter silêncio a respeito da sua situação nesta casa? — perguntou.

— Assim é — assegurou Elenora sacudindo a mão —. Mas isto não é nada comparado com a baixeza com que tratou a Sally e a Ned. Eu posso cuidar de mim mesma, mas eles são muito mais vulneráveis.

Arthur perguntou-se se Elenora era consciente do pouco comum que era seu sentido da responsabilidade entre os membros da alta sociedade. Naquele meio, botar na rua as donzelas quando um membro masculino da família as deixava grávidas era a coisa mais normal do mundo e as governantas já idosas eram despedias, sem pensão alguma, quando já não podiam realizar seu trabalho.

— Senhor, o adverti que seria extremamente difícil, se não impossível, esconder isso da criadagem — Elenora disse sacudindo a cabeça.

— Ficaria muito agradecido se deixasse de comentar meus enganos — ele manifestou com suavidade.

Elenora se ruborizou e murmurou:

— Desculpe-me, senhor.

Ele suspirou.

— Não importa. Na realidade, a senhorita tinha razão — reconheceu.

Elenora franziu o cenho e, com uma expressão de preocupação no rosto, confessou:

— A verdade é que não vejo como posso continuar nesse emprego agora que alguém tão pouco confiável como Ibbitts conhece a verdade.

— Não vejo nenhuma razão para modificar minha estratégia — ele respondeu—. O plano parece funcionar conforme tinha previsto. Os membros da alta sociedade estão fascinados com você e me deixam livre para... — Arthur fez uma pausa e se recordou a si mesmo que Margaret estava no quarto — realizar meus negócios.

— Entretanto, se Ibbitts lançar o rumor a respeito da minha verdadeira posição nesta casa, seu plano já não será viável.

Sua insistência para livrar-se do papel para o qual ele a tinha contratado cambaleou o resistente autodomínio de Arthur.

— O que eu vejo — ele declarou pronunciando cada uma de suas palavras com uma ênfase deliberada — é que você é a única esperança que tenho para realizar o meu plano. Além disso, se tivermos em conta o substancioso salário que lhe pago, acredito que tenho direito a esperar uma atuação realmente convincente por sua parte, está de acordo?

Margaret piscou surpreendida pela dureza das suas palavras.

Elenora se limitou a inclinar a cabeça com suma formalidade pretendendo expressar que se sentia zangada, mas não intimidada.

— Certamente, milord — respondeu secamente —. Esforçarei-me em satisfazê-lo.

— Obrigado.

Que demônios o tinha levado a lhe falar desse modo? Perguntou-se Arthur. Ele nunca se permitia perder a estribeira.

Margaret se apressou em suavizar aquela situação tão desagradável.

— Na realidade, Elenora, não deve preocupar-se pelo que Ibbitts possa contar. Que membro da alta sociedade aceitaria a palavra de um mordomo despedido sem referências antes que a do conde de St. Merryn?

— Já sei, — Elenora respondeu — mas ele sabe que o que eu contei como uma brincadeira é na realidade a verdade.

— Embora Ibbitts fofoque sobre você, não poderá fazer-nos nenhum dano, pois as pessoas acreditarão que é simplesmente a brincadeira que, por outro lado, já é conhecida por todos — Margaret a tranquilizou.

— Margaret tem razão — Arthur disse —. Tranquilize-se, Elenora, não temos por que nos preocupar com Ibbitts.

— Suponho que o senhor tem razão — respondeu Elenora não muito satisfeita.

Margaret suspirou aliviada e disse:

— Então esta questão está resolvida. Elenora, você fica.

Elenora franziu o cenho.

— Isto me recorda que estamos um pouco escassos de criados.

Outro problema que tinha que resolver antes de poder continuar com sua investigação, pensou Arthur com cansaço. Pegou uma pena e uma folha de papel e disse:

— Enviarei uma mensagem a uma agência.

— Não é necessário que perca o tempo entrevistando a todos os candidatos que lhe envie uma agência — repôs Elenora com resolução —. Sally tem duas irmãs que necessitam trabalho. Pelo visto, uma delas é uma cozinheira excelente e a outra estará encantada em trabalhar como donzela. Acredito que Sally será uma boa governanta. Além disso, Ned tem um tio e um primo que são exímios jardineiros. Dá a casualidade de que seu patrão acaba de vender sua casa e despediu todos os criados, de modo que procuram um novo emprego. Sugiro-lhe que os contrate.

Margaret aplaudiu.

— Santo céu, Elenora, é surpreendente! Parece que tem a questão dos criados totalmente resolvida.

Arthur se sentiu tão aliviado ao ver-se livre da carga de encontrar novos criados que pouco lhe faltou para levantar a Elenora, girar com ela nos braços e beijá-la.

— Deixo este assunto em suas mãos — comentou Arthur com formalidade em vez de deixar-se levar por seus impulsos.

Ela concordou com um movimento de cabeça involuntário, mas lhe pareceu que se sentia muito satisfeita.

Aquele era um assunto urgente do qual já não tinha que se preocupar, pensou Arthur com melhor ânimo.

— Se me desculparem, devo subir para trocar de roupa — disse Margaret ficando em pé. Dirigiu-se então para a porta e, uma vez ali, explicou —. O senhor Fleming chegará logo. Esta tarde visitaremos algumas livrarias.

Arthur levantou-se e atravessou a sala para lhe abrir a porta. Ela saiu com presteza ao corredor e desapareceu. Quando Arthur virou a cabeça e viu que Elenora se dispunha a seguir a Margaret, levantou uma mão.

— Se não lhe importar — declarou com voz suave—, eu gostaria de lhe explicar o que John Watt me contou.

Ela se deteve na metade do caminho com o rosto iluminado pela emoção.

— Encontrou-o?

— Sim, graças a sua sugestão de que falasse com sua noiva — admitiu Arthur olhando seu relógio —. São quatro horas. Ordenarei que tragam a carruagem e daremos uma volta pelo parque. A ideia de que estamos prometidos tomará mais força se nos vê juntos. Além disso, assim disporemos de intimidade para manter nossa conversa.

 

Eram quase cinco horas quando Arthur conduziu a elegante carruagem para a entrada do enorme parque. A seu lado, vestida com seu novo traje de passeio azul e um chapéu combinando, Elenora lembrava a si mesma, por milésima vez, que não era mais que uma dama de companhia contratada para representar um papel. Entretanto, bem no fundo do seu coração, não podia resistir a tentação de imaginar, embora fosse só por uns instantes, que a obra se converteu em realidade e que Arthur a tinha convidado a sair simplesmente porque queria estar com ela.

Uma cena alegre e cheia de cor se estendia diante dos seus olhos. A tarde primaveril era cálida e ensolarada e, como era costume na cidade, grande parte da boa sociedade tinha ido ao parque para contemplar e ser contemplada.

As capotas de muitos dos veículos estavam arriadas para deixar os passageiros ao descoberto, todos eles vestidos com elegância. Vários cavalheiros cavalgavam em montarias preciosamente adornadas por um caminho próximo e se detinham frequentemente para saudar os passageiros das carruagens, intercambiar fofocas e flertar com as damas. Os casais que passeavam pelo parque estavam na realidade anunciando à sociedade que tinham planos de matrimônio ou que estavam considerando seriamente esta possibilidade.

Elenora não se surpreendeu ao descobrir que Arthur levava as rédeas como tudo o que fazia: quer dizer, com uma suave, mas eficiente, autoridade serena. Seus cavalos, bem emparelhados e perfeitamente domados, respondiam imediatamente a seus gestos.

— Encontrei a Watt em umas cavalariças — explicou Arthur.

— Contou-lhe algum detalhe em relação a morte de seu tio avô?

— Watt me explicou que no dia do assassinato, ele e tio George passaram virtualmente toda a tarde trabalhando em certos experimentos no laboratório. Depois do jantar, George se retirou a seu dormitório, no andar de cima. Watt também foi dormir. Seu dormitório estava no andar de baixo, perto do laboratório.

— Ouviu algo naquela noite? — perguntou Elenora.

Arthur balançou a cabeça com gravidade e respondeu:

— Watt me contou que dormia profundamente, mas despertou ao ouvir uns ruídos estranhos e um grito afogado que procediam do laboratório.

— Foi investigar do que se tratava?

— Sim. Não era estranho que tio George fosse ao laboratório tarde da noite para comprovar os resultados de algum experimento ou fazer anotações no seu diário. Watt temeu que tivesse sofrido algum percalço. Mas, a porta do laboratório estava trancada com chave. Watt teve que ir procurar a sua, que estava na sua mesinha de cabeceira. Enquanto fazia isso, ouviu dois disparos.

— Santo céu! E viu o assassino?

— Não. Quando retornou ao laboratório já tinha fugido pela janela.

— Como estava seu tio avô?

— Watt o encontrou no chão, agonizando sobre uma poça de sangue.

Elenora se estremeceu ao pensar naquela cena.

— Que horror! —exclamou.

— Tio George ainda estava consciente e murmurou umas palavras antes de morrer. Watt me contou que não viu sentido ao que dizia, e supôs que George experimentava algum tipo de alucinação causada pelas feridas mortais que sofria.

—Watt recorda o que seu tio disse?

— Sim — respondeu Arthur com calma —. As últimas palavras de meu tio avô foram dirigidas a mim. George disse: “diga a Arthur que Mercúrio ainda está com vida”.

Elenora conteve o fôlego um instante e disse:

— Então, o senhor tinha razão. A morte de seu tio está relacionada com seus antigos companheiros e as pedras vermelhas.

— Assim é. Entretanto, eu atuei a partir do suposto de que Mercúrio estava morto. —Arthur torceu a boca e adicionou —: Não deveria ter chegado a nenhuma conclusão sem dispor de provas.

Elenora estudou as tensas rugas que se juntavam as comissuras dos lábios de Arthur e toda a irritação que havia sentido na noite anterior se evaporou.

— Diga-me, milord. O senhor sempre assume toda a responsabilidade quando as coisas não vão bem?

Lançou-lhe um olhar rápido e carrancudo.

— Que tipo de pergunta é esta? Eu assumo a responsabilidade que me corresponde.

— E algumas a mais, acredito eu — Elenora disse. Justo nesse momento se deu conta de que duas damas elegantemente vestidas que passeavam em outra carruagem os estavam olhando com a mesma expressão ávida que mostram os gatos ao ver uma presa em potencial. Elenora inclinou então sua primorosa sombrinha para lhes tampar a vista —. Embora não faça muito tempo que lhe conheço, dei-me conta de que o senhor está muito acostumado a seguir às exigências do dever. Aceita todas as obrigações que caem sobre seus ombros como se formassem parte de sua vida.

— Isto possivelmente se deva a que a responsabilidade seja minha vida — respondeu ele secamente —. Controlo uma fortuna considerável e sou o responsável por uma família muito extensa. Além de todos meus familiares, um bom número de capatazes, granjeiros, criados e diaristas dependem de mim de uma forma ou outra. Dada esta situação, não vejo como poderia escapar às exigências do dever.

— Não queria insinuar que o senhor deva evitar suas obrigações — repôs ela com rapidez.

Arthur parecia estar divertindo-se.

— Agrada-me saber que você não tentava me criticar, porque a intuição me diz que nós dois temos muito em comum em relação a como aguentamos nossas responsabilidades.

— Oh, não acredito... — repôs ela.

— Lembre-se, por exemplo, da forma em que defendeu a Sally hoje mesmo. Não tinha nenhuma necessidade de implicar-se em seus assuntos.

— Tolices. Você sabe muito bem que a gente não pode escutar ameaças tão vis e permanecer impassível.

— Algumas pessoas o teriam feito sem o menor escrúpulo e teriam dito a si mesmos que não tinham nenhuma responsabilidade naquele assunto — Arthur assegurou enquanto puxava um pouco as rédeas —. Também acredito que somos parecidos em outros aspectos, senhorita Lodge.

— O que quer dizer? — ela perguntou com precaução.

Ele encolheu os ombros e explicou:

— Depois de interromper a cena entre Ibbitts e Sally, você poderia ter se submetido a sua chantagem para proteger seu emprego na minha casa.

— Tolices.

— Depois de tudo, havia uma quantidade importante de dinheiro em jogo: o triplo de seus honorários mais uma bonificação. Inclusive repartida com um chantagista, esta quantidade é muito maior que a que poderia conseguir durante um ano de trabalho como dama de companhia em qualquer outra casa.

— A gente não pode ceder ante as extorsões. — Elenora ajustou a sombrinha e prosseguiu —: Sabe muito bem que, se o senhor estivesse no meu lugar, faria o mesmo.

Arthur simplesmente sorriu: com suas palavras Elenora acabava de demonstrar justo o que ele defendia.

Elenora franziu o cenho e exclamou:

— Ah, já vejo o que quer dizer! Possivelmente compartilhemos certas tendências de caráter, mas isto não é ao que eu me referia.

— E a que se referia você, senhorita Lodge?

— O que eu estou tentando dizer está mais relacionado com seu excessivo sentido do autodomínio, com sua ideia do que considera que é correto e adequado que o senhor faça. Acredito que exige de si mesmo mais do que é estritamente necessário, compreende?

— Não, não o compreendo, senhorita Lodge.

Elenora moveu a sombrinha com exasperação e insistiu:

— Deixe-me que o expresse desta maneira, milord. O que você faz para sentir-se feliz?

Produziu-se então um silêncio breve e cortante.

Elenora conteve o fôlego e perguntou-se se teria ultrapassado, outra vez, os limites de uma empregada. Quando já estava se preparando para receber uma dura reprimenda, percebeu um tremor na comissura dos lábios de Arthur.

— Esta é uma forma amável de me informar que não sou especialmente encantador, engenhoso, preparado ou divertido? — perguntou ele —. Se for assim, poderia ter economizado seus comentários, porque já me fizeram essa observação antes.

— Em uma ocasião amei a um homem que era encantador, engenhoso, preparado e divertido — explicou ela—. Ele também dizia que me amava, mas ao final demonstrou ser um mentiroso desleal e um caça-fortunas desumano. Assim, já não me sinto muito atraída pelo tipo de homem encantador, engenhoso, preparado e divertido.

Ela lhe lançou um olhar de esguelha, enigmática.

— Verdade?

— Assim é — ela confirmou.

— E diz que era um caça-fortunas?

— Certamente. Na realidade, eu não dispunha de uma grande fortuna como é a sua, milord. — Elenora não pôde reprimir um leve suspiro nostálgico —. Entretanto, tinha uma casa formosa e terras excelentes que, quando bem administradas, produziam lucros consideráveis.

— Quem as administrava, seu pai? — perguntou ele.

— Não, meu pai faleceu quando eu era ainda uma menina. Não o conheci. Minha mãe e minha avó administraram as terras e a casa, e eu aprendi com elas. O imóvel ia ser minha herança, mas minha mãe voltou a casar-se e a meu padrasto só lhe interessava a renda que se obtinha das terras.

— O que fez com o dinheiro?

— Vangloriava-se de ser um hábil investidor, mas normalmente perdia mais do que ganhava. Sua última aventura financeira estava relacionada com certa mina no Yorkshire.

Arthur apertou as mandíbulas.

— Lembro-me desse projeto. Se for o mesmo que eu estou pensando, foi uma fraude desde o começo.

— Sim. Enfim, por desgraça meu padrasto perdeu tudo naquele negócio e, por causa da emoção, sofreu um ataque fatal de apoplexia. Eu tive que responder ante os credores. Ficaram com tudo. — Elenora realizou uma pausa —. Ou quase tudo.

Arthur ajustou um pouco as rédeas e perguntou:

— E o caça-fortunas? O que foi dele? Desapareceu sem mais nem menos?

— Oh, não. Veio ver-me em seguida, assim que soube que eu não ia herdar nada, e anulou nosso compromisso imediatamente. Dois meses depois me inteirei de que fugiu com uma jovem de Bath cujo pai lhe tinha deixado em herança uma grande soma de dinheiro e algumas joias de grande valor.

— Compreendo.

Estiveram uns instantes em silêncio, e Elenora percebeu com claridade o som amortecido das ferraduras dos cavalos, o estalo continuado das rodas da carruagem e o som das vozes que flutuavam pelo parque.

De repente, deu-se conta de que tinha contado muito mais do que pretendia a respeito dos seus assuntos pessoais. Tinham começado falando de um assassinato. O que a tinha levado a falar dela?

— Desculpe-me, senhor — murmurou Elenora —. Não era minha intenção aborrecê-lo com minha história pessoal. A verdade é que é um tema muito deprimente.

— A senhorita disse que os credores do seu padrasto ficaram com quase tudo? — perguntou Arthur com curiosidade.

— Como o senhor pode imaginar, tudo foi bastante caótico no dia que estive cara a cara com os credores. Tive que recolher meus objetos pessoais sob a vigilância de um detetive que eles mesmos tinham contratado para fiscalizar o despejo. Eu utilizei o baú da minha avó: tinha-o adquirido quando ainda era atriz, e tem um fundo falso.

— Ah! — Arthur esboçou um leve sorriso —. Começo a ver aonde quer chegar. O que conseguiu levar da casa às escondidas, senhorita Lodge?

— Só os objetos que ocultava no baú: um broche de ouro e pérolas da minha avó, um par de brincos e vinte libras.

— Muito esperta.

Ela enrugou o nariz.

— Não tanto como teria desejado. O senhor tem ideia do pouco que os prestamistas pagam por um broche precioso e um par de brincos? Só umas libras. De qualquer jeito, consegui me mudar a Londres e encontrei um emprego graças a Goodhew & Willis, embora possa te garantir que, depois disso tudo, foi muito pouco o dinheiro que ficou.

— Compreendo.

Elenora se endireitou e voltou a ajustar a sombrinha.

— Já falamos bastante deste tema tão depressivo — disse com decisão —. Voltemos para o tema da investigação. Qual vai ser sua linha de ação?

Ele não respondeu imediatamente. Elenora teve a impressão de que queria continuar falando de sua deplorável situação financeira.

Entretanto, ele apertou suas mãos enluvadas sobre as rédeas, enviou um sinal leve aos cavalos e retomou a questão do assassinato do seu tio avô.

— Estive refletindo sobre esta decisão — ele declarou —, e acredito que meu seguinte passo consistirá em tentar localizar ao terceiro membro da Sociedade das Pedras, o que se chamava Saturno. Além disso, acredito que seria uma boa ideia vigiar a Ibbitts de perto.

— A Ibbitts? — perguntou Elenora sobressaltada —. Por quê? Assegurou-me que não poderia nos prejudicar.

— Não me preocupam os rumores que possa espalhar a respeito da sua posição — explicou Arthur —. O que me interessa é saber se alguém tenta entrar em contato com ele agora que já não trabalha na minha casa.

— Por que alguém poderia querer entrar em contato com ele?

Arthur a olhou.

— Se eu fosse um assassino que pretendesse permanecer oculto, estaria muito interessado em saber se algum familiar da vítima está realizando averiguações e, de ser assim, se estou ou não entre os suspeitos. E o que seria melhor do que interrogar a um ex-criado descontente?

Elenora estava impressionada.

— É uma ideia brilhante, milord.

Ele fez uma careta.

— Não estou seguro de que possa qualificar-se de brilhante, mas acredito que não deveria ignorá-la. Pode ser que Ibbitts tenha ouvido algo mais que a conversa sobre a sua condição de dama de companhia.

De repente, o rosto Elenora se iluminou.

— Ontem de noite conversamos na biblioteca sobre John Watt e da investigação que você realiza. Claro! É muito provável que Ibbitts saiba que você procura um assassino.

Arthur assentiu com um movimento de cabeça.

— Se alguém entrar em contato com Ibbitts, poderia deduzir-se que é o assassino e que sente ânsia ou curiosidade por saber o que ocorre na Rain Street.

— Parece lógico pensar que ninguém, salvo o assassino, se preocuparia em interrogar a um mordomo despedido — ela corroborou —. Entretanto, como o senhor vigiará Ibbitts dia e noite?

— Estive pensando nisso. Poderia utilizar a algum menino de rua, mas nem sempre são de fiar. A alternativa é contratar a um detetive. Entretanto, muitos deles são tão desleais quanto os meninos de rua. Além disso, é de domínio público que é fácil suborná-los.

Elenora hesitou enquanto recordava sua única experiência com um detetive.

— Se você decidir ir a Bow Street — começou a dizer —, há ali um homem em quem poderia confiar. Chama-se Hitchins.

Antes que Arthur pudesse pedir informação sobre Hitchins, um homem montado em um brioso cavalo pardo se aproximou da carruagem. Elenora o olhou sem prestar atenção e percebeu a excelência do animal e o brilho das botas lustrosas do cavaleiro.

Quando começava a desviar o olhar, uma impressão de reconhecimento a sacudiu.

Impossível, pensou. Não podia ser ele. Com um sentimento terrível e assustador, levantou a vista para as formosas facções do cavalheiro.

Ele também a olhava, surpreso.

— Elenora! — exclamou Jeremy Clyde. Seus olhos brilhavam com um calor sedutor que, em outra época, acelerava o pulso de Elenora —. É você! Acreditei que tinha me enganado quando percebi uma figura familiar nesta carruagem. Que prazer voltar a vê-la, querida!

— Bom dia, senhor Clyde. Soube que o senhor se casou faz alguns meses. — Elenora esboçou o mais frio dos seus sorrisos —. Por favor, aceite minhas felicitações. Sua esposa está na cidade com você?

Jeremy pareceu sentir-se desconcertado pelo rumo que a conversa tinha tomado. Elenora teve a impressão de que ele esqueceu-se de que tinha uma esposa e agradeceu ao destino que não tivesse se casado com esse homem. Se o tivesse feito, sem dúvida agora seria a esposa inconveniente a quem Jeremy lhe custaria recordar.

— Sim, claro, está aqui! — respondeu Jeremy ao recuperar a memória —. Alugamos uma casa para passar a temporada de bailes na cidade. Não tinha nem ideia de que estivesse na cidade, Elenora. Quanto tempo passará aqui?

Arthur lhe lançou um olhar rápido e, em seguida, olhou a Elenora.

— É seu conhecido, querida?

— Desculpe — ela respondeu rapidamente.

Elenora ficou muito nervosa ao dar-se conta de que tinha se esquecido das boas maneiras, mas em seguida recuperou o domínio de si mesma e realizou as apresentações.

Jeremy inclinou a cabeça com educação, mas Elenora percebeu a expressão atônita de seus olhos quando se deu conta de quem era o cavalheiro ao que lhe estavam apresentando. Embora não tenha reconhecido a Arthur de vista, o qual pensou Elenora não era surpreendente porque frequentavam meios diferentes, sim reconheceu o nome e o título de St. Merryn.

A consternação inicial de Elenora se transformou em júbilo.

Era evidente que Jeremy se sentia desconcertado ao ver sua noiva rejeitada sentada do lado de um dos homens mais misteriosos e capitalistas da aristocracia.

Mas enquanto o observava, Elenora se deu conta de que sua surpresa e sua confusão se foram transformando em uma especulação maliciosa. Jeremy estava começando a procurar o modo de utilizar a relação de Elenora com Arthur em benefício próprio.

Como ela pôde não perceber este aspecto dele quando a tinha cortejado? Agora que a venda tinha caído dos seus olhos, Elenora não podia evitar perguntar-se o que a tinha atraído nele.

— De onde você conhece a minha noiva, Clyde? — perguntou Arthur dessa forma despreocupada e perigosa que Elenora começava a reconhecer.

O rosto de Jeremy ficou branco como cera.

— Noiva? — repetiu dando a impressão de que se engasgava com a palavra —. Você está noivo de Elenora, senhor? Mas... isto é impossível. Não entendo. Não pode ser...

— Você não respondeu a minha pergunta — interrompeu Arthur enquanto se esquivava de um veículo —. De onde conhece a minha noiva?

— Somos... isto... velhos amigos.

Jeremy teve que esporear sua montaria para acelerar o passo e poder seguir o ritmo da carruagem.

— Já vejo. — Arthur assentiu com a cabeça, como se a resposta de Jeremy explicasse tudo —. O senhor deve ser o caça-fortunas que cancelou o compromisso com Elenora quando descobriu que ela tinha perdido sua herança. Tenho entendido que depois você fugiu com uma jovem herdeira. Sem dúvida tratou-se de um ato muito ardiloso da sua parte.

Jeremy se crispou. Sua raiva deve ter se transmitido pelas rédeas, porque seu excitável cavalo reagiu com uma nervosa sacudida de cabeça e começou a cabriolar pelo atalho.

— É evidente que Elenora lhe contou uma versão distorcida dos fatos — replicou Jeremy enquanto puxava as rédeas com violência —. Asseguro que nossa relação não terminou devido ao estado desastroso de suas finanças. — Fez uma pausa significativa e acrescentou —: Por desgraça, havia outras razões relacionadas com a “vida privada” da senhorita Lodge que me obrigaram a cancelar nosso compromisso.

As insinuações veladas de que Elenora tinha mantido relações com outro homem, provocaram nela tal fúria que mal podia respirar.

— Quais são essas razões? — perguntou Arthur como se não tivesse captado as sutis implicações das palavras de Jeremy.

— Sugiro-lhe que pergunte à senhorita Lodge. — Jeremy lutava com as rédeas de seu cavalo, que agitava a cabeça e dava passos laterais —. Depois de tudo, um cavalheiro não fala dos assuntos íntimos de uma dama, não é assim?

— Não, se deseja evitar uma entrevista ao amanhecer — replicou Arthur.

Ao ouvir aquelas palavras nada ambíguas, várias cabeças próximas se viraram imediatamente para a carruagem. Elenora deu-se conta de que, de repente, Arthur, Jeremy e ela eram o centro das atenções de todos os membros da sociedade que estavam pelos arredores. Foi como se os tivessem colocado no foco de uma lente de aumento.

Jeremy ficou com a boca aberta e Elenora não estranhou nem um pouco ao vê-lo, porque estava segura que a sua também o estava.

Não podia acreditar no que acaba de ouvir: Arthur tinha ameaçado a Jeremy com um duelo.

— Bom... verá, não sei o que... — Jeremy se interrompeu e puxou com violência as rédeas de sua montaria inquieta.

Aquela provocação adicional foi muito para o animal, que se levantou sobre as patas traseiras com fúria enquanto agitava as dianteiras no ar.

Jeremy perdeu o equilíbrio e começou a escorregar inevitavelmente por um dos flancos do animal. Enquanto lutava com desespero para recuperar a posição vertical, o cavalo saiu disparado a pleno galope e Jeremy caiu violentamente no chão sobre seu traseiro.

Risinhos femininos e masculinos surgiram das carruagens próximas e dos cavaleiros que tinham presenciado a derrota.

Arthur ignorou a cena, sacudiu as rédeas e os cavalos avançaram a um trote vigoroso.

Elenora olhou para trás por cima do ombro e viu como Jeremy ficava de pé, sacudia o pó do traseiro e se afastava indignado. A visão fugaz do seu rosto ruborizado foi suficiente para que um estremecimento lhe percorresse todo o corpo. Jeremy estava furioso.

Elenora virou-se com rapidez e olhou fixamente pra frente enquanto agarrava a sombrinha com força.

— Desculpo-me por esta lamentável cena — declarou com voz tensa —. Pegou-me de surpresa. Nunca tinha imaginado que me encontraria cara a cara com Jeremy aqui, em Londres.

Arthur conduziu os cavalos para a saída do parque.

— Retornaremos agora para casa. Graças a Clyde, conseguimos nosso propósito. Nossa presença no parque não passou inadvertida e sem dúvida será objeto de extensos comentários esta noite em todos os salões de baile da cidade.

— Sem dúvida. — Elenora engoliu em seco e lançou um olhar rápido a Arthur. Não estava certa de qual era seu estado de ânimo —. É muita generosidade da sua parte contemplar a situação desde um ponto de vista tão positivo.

— Mas minha natureza amável tem certos limites — ele manifestou —. Espero que se mantenha longe de Clyde.

— Certamente — ela respondeu, consternada pelo fato de que ele acreditasse que ela queria ter algo que ver com Jeremy —. Asseguro que não sinto nenhum desejo de voltar a falar com ele.

— Acredito. Entretanto, é possível que ele tente reiniciar sua antiga relação.

Ela franziu o cenho e declarou:

— Não vejo por que.

— Como já sabe, Clyde é um oportunista e possivelmente pretenda utilizar sua antiga relação com você em seu proveito próprio.

A Elenora lhe doeu que, embora fosse só por um instante, ele acreditasse que era necessário avisa-la nesse sentido.

— Prometo-lhe que tomarei cuidado — lhe assegurou.

— O agradeço. A situação já está bastante complicada, não a compliquemos mais.

A Elenora lhe encolheu o coração. Arthur não estava muito contente, pensou ela. Embora, por que deveria está-lo? O incidente com Jeremy era a segunda complicação no dia na qual ela estava implicada.

Se se metesse em mais confusões, Arthur podia decidir que lhe causava mais problemas que benefícios e, a julgar por sua expressão reflexiva e inquietante, devia estar tendo pensamentos similares.

Elenora decidiu então que seria uma boa ideia mudar de assunto e escolheu o primeiro que lhe veio à cabeça.

— Devo felicitá-lo por suas excelentes habilidades interpretativas, milord — ela comentou admirada —. A ameaça implícita de desafiar Jeremy a um duelo em caso de que espalhasse rumores desagradáveis sobre mim resultou muito convincente.

— Isso crê?

— Certamente. Foi só uma frase, mas a pronunciou com muita força, milord. Diria que com o grau exato de frieza e contenção. Até senti um calafrio ao ouvi-lo.

— Resta saber se causou o mesmo efeito em Clyde — comentou Arthur com ar pensativo.

— Estou convencida — assegurou Elenora rindo entre dentes —. Durante um momento, até tive a impressão de que você falava a sério. Asseguro que se não tivesse sabido que estava representando seu papel nesta obra, teria jurado que falava de coração.

Arthur lançou-lhe um olhar de estranheza.

— O que a faz pensar que não falava a sério?

— O senhor está brincando comigo — ela respondeu.

Os dois sabiam que a ameaça não tinha sido real, ela pensou. Depois de tudo, se Arthur não se preocupou em perseguir a sua noiva verdadeira quando esta fugiu com outro homem, era pouco provável que incitasse um duelo pela honra de uma noiva falsa.

 

Só mais tarde, quando subia as escadas em direção ao seu dormitório, Elenora recordou que Arthur não tinha respondido a sua pergunta. Não tinha lhe contado o que fazia para sentir-se feliz.

 

A criada tentou captar novamente a atenção dele quando o viu dirigir-se à porta do botequim esfumaçado. Ibbitts a olhou de cima abaixo com desdém para lhe dar a entender que os enormes peitos que se sobressaíam do sutiã manchado do seu vestido não lhe inspiravam desejo, a não ser repugnância. Ela se ruborizou, e a raiva e a humilhação se refletiram em seu rosto. A seguir se virou e dirigindo-se com rapidez à mesa de uns clientes escandalosos.

Ibbitts soltou um impropério e abriu a porta. Desde que St. Merryn o tinha despedido, dois dias atrás, estava com um humor de cães. Além disso, haver passado grande parte da noite bebendo cerveja barata e jogando dados com uma péssima sorte não tinha ajudado a melhorar seu estado de ânimo.

Ibbitts desceu os degraus da entrada arrastando os pés e se dirigiu ao seu novo alojamento. Era quase meia-noite e havia lua cheia: um cenário ideal para os assaltantes. Algumas carruagens estalavam pela rua. Sabia que estavam ocupadas por cavalheiros bêbados que, entediados com os clubes e os salões de baile, iam àquela vizinhança em busca de prazeres mais mundanos.

Ibbitts introduziu a mão num dos bolsos de seu casaco e fechou os dedos ao redor do punho da navalha que levava para proteger-se.

Essa estúpida garçonete estava louca se acreditava que ele consideraria sequer a possibilidade de lhe levantar as saias. Além disso, por que quereria compartilhar os sujos lençóis de uma moça de botequim que provavelmente só se banhava uma vez por semana, se é que chegava a tanto? Durante os últimos anos, ele tinha se acostumado as damas limpas e perfumadas da aristocracia. Damas que se vestiam de seda e cetim. Damas que se sentiam agradecidas pelos cuidados de um homem forte e bem formado que as satisfaziam na cama.

Uma figura se moveu entre as sombras de um beco que havia mais adiante. Ibbitts ficou tenso e agarrou nervosamente o punho da navalha com mais força. Ouviu o barulho de passos no pavimento e virou-se para olhar a porta do botequim perguntando-se se o mais prudente seria correr até ali.

Naquele momento, uma prostituta bêbada saiu torpemente da escuridão enquanto cantava, em voz baixa e desafinada, uma balada. Quando viu Ibbitts, a mulher se deteve cambaleando.

— Olhem só, um bonitão! — exclamou —. O que você acha de um pouco de exercício? Pra você, faço um bom preço. A metade da tarifa dos cavalheiros. O que você acha?

— Saia do meu caminho, mulher estúpida!

— Não precisa ser grosso. — Em seguida, encurvou as costas e se afastou em direção as luzes do botequim —. É sempre a mesma coisa com os bonitos. Acham-se muito bons para as garotas trabalhadoras como eu.

Ibbitts se relaxou um pouco, mas apertou o passo. Estava ansioso para retornar à segurança do seu novo alojamento. Tinha chegado o momento de pensar no futuro. Tinha planos que elaborar.

Ainda dispunha de seu aspecto, recordou a si mesmo. Com sorte se conservaria bem durante mais alguns anos. Logo encontraria outro emprego. Entretanto, a triste verdade era que provavelmente não voltaria a desfrutar de uma situação tão confortável e proveitosa como a que acabara de perder.

Aquela perspectiva desanimadora avivou sua raiva. O que desejava era vingar-se, pensou. Faria qualquer coisa para que St. Merryn e a senhorita Lodge pagassem por lhe haver arruinado a cômoda condição que desfrutava na mansão da Rain Street.

A única maneira de consegui-lo era utilizar a informação que tinha obtido escutando às escondidas, embora, até o momento, não tinha pensado em nenhuma estratégia prometedora.

O maior obstáculo era que não sabia a quem procurar. Que membro da aristocracia pagaria por saber que St. Merryn tentava encontrar ao assassino do seu tio avô ou que a divertida brincadeira a respeito de que a senhorita Lodge provinha de uma agência era verdadeira?

Mas ainda havia outro obstáculo: quem aceitaria a palavra de um mordomo desempregado antes que a do poderoso conde que o tinha despedido?

Não, o mais provável era que tivesse que voltar para sua anterior profissão, decidiu ao chegar a sua nova direção, e toda a culpa a tinham St. Merryn e a senhorita Lodge.

 

Ibbitts entrou no lúgubre vestíbulo e subiu as escadas. A única boa noticia no horizonte era que não tinha que procurar um novo emprego imediatamente. Durante os últimos meses se apoderou, às escondidas, de vários objetos de prata e de dois tapetes de excelente qualidade na mansão da Rain Street e os tinha levado aos prestamistas de Shoe Lane que negociavam com objetos roubados. Graças a isso, dispunha de certo dinheiro que lhe permitiria tomar seu tempo para escolher o próximo emprego.

Ibbitts se deteve diante da porta de seu quarto alugado, tirou a chave e a introduziu na fechadura. Quando a abriu, percebeu o tênue brilho da chama de uma vela.

Seu primeiro pensamento foi que se enganou de porta: não podia ter sido tão estúpido para ir-se e deixar uma vela acesa.

Mas da escuridão surgiu então uma voz que lhe gelou até a medula dos ossos:

— Entre, Ibbitts. — O intruso se moveu um pouco em um dos cantos do quarto. As pregas da sua capa, negra e longa, flutuavam a seu redor. Suas facções estavam ocultas sob um capuz amplo —. Acredito que o senhor e eu temos um negócio em comum.

A visão das legiões de maridos que tinha enganado ao longo dos anos passou pela mente de Ibbitts. Acaso um deles tinha descoberto a verdade e se deu ao trabalho de buscá-lo?

— Eu... Eu... — Ibbitts engoliu em seco e tentou falar outra vez —. Eu, não o compreendo. Quem é o senhor?

— Não precisa saber meu nome para me vender a informação que possui. — O homem riu com suavidade —. De fato, será imensamente mais seguro para o senhor que desconheça minha identidade.

Um brilho de esperança brotou no interior de Ibbitts.

— Informação?

— Tenho entendido que, recentemente, deixou seu emprego na casa do conde de St. Merryn — o homem explicou —. Pagarei bem se me contar um pouco sobre os interesses relacionados com o seu entorno.

O acento culto e bem educado do intruso deixava claro que se tratava de um cavalheiro. O último resquício de ansiedade de Ibbitts se transformou em euforia. Ao longo dos anos, e por experiência própria, tinha aprendido que os homens que se moviam nos círculos seletos da sociedade não eram mais confiáveis do que os que viviam nos subúrbios, mas entre os dois grupos existia uma diferença significativa: os homens da aristocracia tinham dinheiro e estavam dispostos a pagar pelo que queriam.

Sua sorte havia mudado novamente, pensou Ibbitts enquanto entrava com ar despreocupado no quarto exibindo no seu rosto um desses sorrisos que todo mundo se virava para olhar. Assegurou-se de estar próximo o suficiente à luz da vela para que o homem da capa visse suas formosas facções.

— O senhor está com sorte — disse Ibbitts —. De fato, disponho de certa informação interessante que está à venda. Discutimos os términos do trato?

— Se a informação me resultar útil, o senhor mesmo pode por o preço.

Aquelas palavras soaram como música aos ouvidos de Ibbitts.

— Segundo minha experiência, um cavalheiro só faz este tipo de oferta quando quer a uma mulher ou quando procura vingança. — Ibbitts riu entre dentes —. Neste caso, suponho que se trata do segundo, não é? Nenhum homem em seu juízo perfeito chegaria tão longe para pôr as mãos em cima de uma mulher tão irritante como a senhorita Elenora Lodge. Enfim, senhor, se o que busca é vingar-se de St. Merryn, estarei mais que feliz em ajudá-lo.

O intruso não respondeu e sua extrema quietude renovou em certo grau o nervosismo do Ibbitts.

Não lhe surpreendia que St. Merryn tivesse um inimigo tão decidido e implacável. Os homens tão ricos e poderosos como o conde sempre conseguiam incomodar a umas quantas pessoas. Entretanto, fossem quais fossem as motivações do intruso, Ibbitts não tinha nenhuma intenção de questiona-lo. Se tinha sobrevivido nas mansões da aristocracia todos esses anos era porque tinha aprendido a delicada arte da discrição, como demonstrava o fato de que não tinha contado a St. Merryn que sabia da investigação que este estava realizando sobre o assassinato de seu tio.

— Mil libras — declarou Ibbitts enquanto continha o fôlego. Aquele preço era muito elevado. Teria se contentado com cem libras e inclusive com cinquenta. Embora ele soubesse que a aristocracia não respeitava nada a menos que custasse uma quantidade considerável de dinheiro.

— Fechado — respondeu o intruso imediatamente.

Ibbitts voltou a respirar.

A seguir contou ao desconhecido o que tinha ouvido no armário da roupa branca na mansão da Rain Street.

Quando terminou, houve uma breve pausa.

— De modo que tudo é como eu esperava — murmurou o intruso como se falasse consigo mesmo —. Sem dúvida, tenho um oponente neste assunto, igual a meu predecessor. Meu destino se torna mais claro a cada dia.

Esse homem falava em um tom estranho e Ibbitts se intranquilizou novamente. Perguntou-se se não teria revelado muita informação antes de ter o dinheiro nas mãos. Os membros da aristocracia nem sempre se sentiam obrigados a manter sua palavra com os que não eram da sua classe. As dívidas de jogo eram liquidadas com urgência, porque eram consideradas questão de honra. Mas na hora de pagar suas faturas, não se inquietavam nem um pouco em fazer esperar indefinidamente a lojistas e comerciantes.

Ibbitts deixou escapar um profundo suspiro e se preparou para aceitar, em caso necessário, uma tarifa muito menor. Não estava em posição de exigir, recordou-se a si mesmo.

— Obrigado — declarou o outro homem—. O senhor foi muito útil.

Em seguida se moveu de novo nas sombras e introduziu uma mão entre as dobras da capa.

Ibbitts compreendeu, muito tarde, que o desconhecido não estava procurando o dinheiro. Quando sua mão reapareceu, a luz da lua realizou um baile diabólico na superfície metálica da pistola que sustentava.

— Não!

Ibbitts deu um tropeção enquanto tentava agarrar a navalha dentro do seu bolso.

A pistola rugiu e encheu o pequeno local de fumaça e claridade. O disparo alcançou ao Ibbitts no peito e o lançou com força contra a parede. Um frio agudo se apropriou com rapidez de seus órgãos vitais. Ibbitts sabia que ia morrer, mas conseguiu agarrar a navalha.

A maldita aristocracia sempre ganhava, pensou enquanto começava a escorregar pela parede. A sensação de frio se estendeu pelo seu interior e a visão começou a ficar escura.

O intruso se aproximou e tirou outra pistola do seu bolso. Através da crescente neblina que dificultava sua visão, Ibbitts percebeu o bordo inferior da capa, que flutuava ao redor das botas lustrosas do intruso. “Como um demônio alado”, pensou Ibbitts.

A raiva lhe proporcionou um último arranque de energia. Apoiando-se na parede, Ibbitts se impulsionou para frente e, com a navalha na mão, lançou-se contra o assassino.

Sobressaltado, o intruso se desviou, mas tropeçou com a perna de uma cadeira. Então se cambaleou e tentou recuperar o equilíbrio enquanto fazia ondear a capa grosseiramente a seu redor. A cadeira caiu no chão.

Ibbitts empunhou a navalhada às cegas e sentiu que a folha da navalha atravessava e rasgava um tecido. Durante um segundo, rogou para que a navalha se cravasse na carne daquele demônio, mas se enganchou nas grossas dobras da capa e lhe escapou da mão.

Ibbitts, esgotado, derrubou-se. Vagamente, ouviu repicar a navalha contra o chão, a seu lado.

— Há ainda outra razão para que um cavalheiro pudesse lhe dizer para o senhor pôr um preço — sussurrou o intruso na escuridão —: que ele não tivesse intenção de pagá-lo.

Ibbitts não ouviu o segundo disparo: explodiu no seu cérebro e destruiu uma boa parte do rosto que tinha constituído sua fortuna.

 

O assassino saiu a toda pressa do quarto, mas antes apagou a vela e fechou a porta. Precipitou-se escada abaixo ofegando intensamente. Quando chegou ao andar de baixo, lembrou-se da máscara. Tirou-a do bolso da capa e colocou-a na cabeça.

As coisas não tinham saído exatamente como ele tinha planejado.

Não esperava esse ataque desesperado da sua vítima. Os dois anciões tinham morrido com facilidade e ele tinha suposto que o maldito mordomo o faria do mesmo modo.

Quando Ibbitts se laçou sobre ele, com a navalha na mão e a camisa coberta de sangue, pareceu-lhe como um morto que tivesse sido revivido por uma descarga elétrica.

A sensação de terror que experimentou nesse momento ainda o embargava, excitava seus nervos e turvava sua mente, que normalmente estava perfeitamente lúcida.

Uma carruagem de aluguel o esperava na escuridão da rua. O chofer se abrigou dentro do sobretudo e apertou a garrafa de genebra contra seu corpo. O assassino perguntou-se se teria ouvido os disparos. Não, pensou. Era muito pouco provável. O quarto de Ibbitts estava do outro lado do edifício, uma construção velha, de pedra e com muros muito grossos. Além disso, várias carruagens estalavam ruidosamente pela rua.

Se o som dos disparos tivesse chegado aos ouvidos do chofer, devia ter ser virtualmente imperceptível.

Durante um ou dois segundos titubeou, mas então decidiu que naquele bairro nada devia lhe preocupar. O chofer estava bastante bêbado e tinha pouco interesse nas atividades do seu passageiro. A única coisa que lhe preocupava era sua tarifa. E embora tivesse curiosidade ou decidisse falar sobre ele com seus amigos no botequim, não havia nenhum perigo, pensou o assassino enquanto entrava na cabine do veículo. Na realidade, o chofer não tinha visto o seu rosto em nenhum momento: levava-o oculto atrás da máscara.

O assassino deixou-se cair sobre os desgastados almofadões e o carro entrou em movimento. Sua respiração foi serenando-se aos poucos. Em seguida, relembrou os acontecimentos recentes e sua mente lógica e aguda repassou todos os detalhes. Procurou metodicamente na sua memória os possíveis enganos ou as pistas que podia ter deixado inadvertidamente.

Ao final se sentiu satisfeito e decidiu que a questão estava sobre controle.

Ainda respirava muito rápido e estava um pouco atontado, mas sentiu-se satisfeito ao notar que seus nervos se tranquilizavam. Então, ergueu as mãos diante do seu rosto. O interior da cabine não estava iluminado, pelo que não pôde ver seus dedos com claridade, mas estava quase seguro de que já não tremiam.

A sensação de pânico que tinha experimentado logo depois do ataque inesperado de Ibbitts se evaporou, e agora sentia ondas de excitação invadindo seu corpo.

Queria, não... precisava celebrar seu grande êxito. Esta vez não recorreria ao bordel exclusivo ao que tinha ido depois de assassinar a George Lancaster e ao outro ancião. Nessa ocasião necessitava uma celebração muito mais pessoal, uma que se ajustasse ao destino que se desenrolava a sua frente.

O assassino sorriu na escuridão. Já tinha previsto a necessidade de saborear aquela vitória emocionante e tinha planejado tudo minuciosamente, tal como tinha feito com outros aspectos daquele assunto.

Sabia exatamente como celebraria seu triunfo absoluto sobre seu oponente.

 

O ancião contemplava fixamente o fogo crepitante com o pé afetado pela gota em cima de um tamborete e uma taça de vinho do Porto na sua mão nodosa. Arthur esperou com os braços apoiados nos braços dourados de seu assento. A conversa não estava se desenvolvendo com fluidez. Era evidente que para lorde Dalling o tempo tinha deixado de ser um rio que fluía em um único sentido para converter-se em um poço profundo no qual as correntes do passado e o presente se misturavam.

— Como o senhor se inteirou dos meus interesses pelas caixas de rapé antigas? —perguntou Dalling franzindo o cenho desconcertado —. O senhor também as coleciona?

— Não, senhor — respondeu Arthur —. Visitei várias lojas especializadas na venda de caixas de rapé de qualidade e perguntei aos proprietários os nomes dos clientes que consideravam mais entendidos neste tipo de caixas. O seu se repetiu em vários dos melhores estabelecimentos.

Arthur não viu a necessidade de acrescentar que tinha sido muito mais complicado obter sua direção atual. Fazia anos que Dalling não adquiria caixas de rapé e os lojistas tinham lhe perdido a pista.

Além disso, o ancião cavalheiro se mudou dois anos atrás. A maior parte dos seus contemporâneos tinham morrido ou tinham tantas lacunas em suas memórias que lhes resultava impossível recordar a localização da nova moradia de seu amigo. Por sorte, um barão de idade que ainda jogava cartas todas as noites no clube de Arthur recordou o endereço de Dalling.

Arthur estava sentado com Dalling na biblioteca do lorde ancião. Os móveis e os livros nas estantes eram de outra era, como seu proprietário. Era como se os últimos trinta anos não tivessem transcorrido, como se Byron não tivesse escrito ainda uma palavra, como se Napoleão não tivesse sido derrotado, como se os cientistas não tivessem realizado grandes avanços na pesquisa dos mistérios da eletricidade e da química. Inclusive as ajustadas calças de seu anfitrião procediam de outra época e outro lugar.

O tic-tac do relógio de parede soava, pesado, no silêncio da estadia. Arthur temia que sua última pergunta tivesse enviado irremediavelmente a seu anfitrião às tenebrosas profundidades do poço do tempo.

Entretanto, ao final, Dalling se moveu.

— Uma caixa de rapé com uma grande pedra vermelha incrustada, diz? —perguntou.

— Assim é. E com o nome de Saturno lavrado na tampa.

— Sim, lembro-me de uma caixa como a que o senhor descreve. Um conhecido meu a teve durante muitos anos. Era uma caixa preciosa. Lembro que em uma ocasião lhe perguntei onde a tinha comprado.

Arthur não se moveu por temor a distrair ao ancião, mas perguntou:

— Indicou-lhe o lugar?

— Acredito que me contou que ele e seus companheiros tinham encomendado a um joalheiro que fabricasse três caixas parecidas, uma para cada um deles — explicou o ancião.

— Quem era esse cavalheiro? Recorda seu nome?

— Claro que o recordo — disse Dalling com expressão tensa —. Não estou senil.

— Desculpe-me. Não pretendia dar a entender que o estivesse.

Dalling pareceu acalmar-se.

— Glentworth. Assim se chamava o cavalheiro que possuía a caixa de rapé com o nome de Saturno.

— Glentworth — repetiu Arthur. Ficou de pé e adicionou —: Obrigado, senhor. Estou muito agradecido por sua ajuda.

— Conforme ouvi, há falecido recentemente. Não faz muito, na semana passada, acredito.

Por todos os demônios! Glentworth tinha morrido? Depois de todos os esforços para encontrá-lo?

— Não fui a seu funeral — continuou Dalling —. Estava acostumado a ir a todos, mas ao final eram muitos, de modo que deixei de fazê-lo.

Arthur tentou pensar em como proceder. Fosse onde fosse naquele labirinto, sempre se encontrava com uma parede.

O fogo estalou. Dalling tirou do bolso uma caixa de rapé adornada com pedras preciosas, abriu a tampa e agarrou um punhado de tabaco pulverizado. Inalou-o com uma aspiração rápida e eficaz, fechou a caixa e se ajeitou em seu assento soltando um suspiro de satisfação. Suas pálpebras se fecharam, pesadas.

Arthur se dirigiu à porta.

— Obrigado pelo seu tempo.

— De nada — repôs o ancião.

Sem sequer abrir os olhos, Dalling ficou a acariciar a preciosa caixa de rapé enquanto lhe dava voltas e mais voltas na mão.

Arthur abriu a porta e, quando já estava a ponto de sair da sala, seu anfitrião falou de novo:

— Possivelmente poderia falar com a viúva — declarou.

 

O baile a fantasia era um sucesso. Lady Fambridge tinha exibido todo seu reconhecido talento na decoração que tinha escolhido para o evento. O salão, enorme e elegante, não estava sendo iluminado pelos habituais candelabros deslumbrantes, e sim por lanternas vermelhas e douradas. A tênue iluminação projetava no salão sombras alongadas e misteriosas.

Ao longo das paredes foram agrupando estrategicamente vários vasos de barro com palmeiras procedentes da estufa de lady Fambridge para proporcionar espaços isolados destinados aos casais.

Elenora tinha descoberto imediatamente que os bailes a fantasia eram lugares de paqueras e devaneios. Eram a oportunidade para que os entediados membros da alta sociedade participassem dos jogos de sedução e intriga, seus favoritos, de forma mais aberta que a habitual.

Naquela manhã, durante o café da manhã, Arthur tinha admitido que quando aceitou o convite não era consciente de que o evento requereria levar uma túnica e uma máscara.

Isto era o que acontecia quando as decisões sociais eram deixadas nas mãos dos homens, Elenora pensou. Nem sempre prestavam atenção aos detalhes.

Em qualquer caso, Margaret e Bennett pareciam estar divertindo-se muito. Fazia meia hora que tinham desaparecido. Elenora tinha a suspeita de que estavam aproveitando algum dos rincões íntimos que as palmeiras criavam estrategicamente ao redor do salão.

Quanto a ela, nesse momento estava abrindo caminho entre a multidão até a porta mais próxima. Necessitava um descanso.

Durante a última hora, tinha dançado diligentemente com um bom número de cavalheiros mascarados sem preocupar-se em ocultar suas facções atrás da pequena máscara de plumas que segurava com uma mão. Depois de tudo, como lhe tinha recordado Margaret, o objetivo era que a reconhecessem.

Tinha cumprido com as suas obrigações o melhor que podia, mas agora não só estava entediada, mas também apesar das confortáveis sapatilhas de baile que calçava, os pés começavam a lhe doer. O ritmo regular de bailes e festas começava a cobrar seu preço, pensou Elenora.

Quase tinha alcançado a porta quando se deu conta de que um homem vestido com uma túnica negra se dirigia com determinação na sua direção. Usava o capuz da capa, de modo que tinha o rosto coberto nas sombras. Quando se aproximou, Elenora se deu conta de que ocultava suas facções atrás de uma máscara de seda negra.

O homem se deslizava entre as pessoas como um lobo que procura no meio da manada pela ovelha mais débil. A Elenora lhe alegrou o coração e se esqueceu por um momento de seus pés doloridos. Quando Arthur saiu de casa essa tarde, levando consigo uma túnica e uma máscara negras, disse-lhe que se encontrariam no baile dos Fambridge e que a acompanharia de volta para casa.

Embora ela não o esperasse tão logo. Possivelmente tinha tido êxito nas suas indagações e queria comentar seus novos descobrimentos com ela. Elenora se reconfortou ao pensar que Arthur, embora parecesse querer ignorar, pelo menos no momento, a atração que havia entre eles, tratava-a como uma espécie de conselheira naquele projeto.

Mas quando Elenora teve ao desconhecido da túnica negra diante dela, sua excitação se evaporou imediatamente: aquele homem não era Arthur. Elenora não sabia como podia estar tão certa disso, mas estava, inclusive antes que a tocasse.

Não foi a voz o que o delatou, pois não pronunciou nenhuma palavra. Entretanto, Elenora não achou estranho que não falasse, não era o primeiro cavalheiro que, naquela noite, convidava-a a dançar por meio de gestos. As vozes eram fáceis de identificar e vários convidados preferiam realizar seus jogos anonimamente. De qualquer jeito, ela tinha reconhecido à maioria dos seus parceiros de dança, sobre tudo aqueles com os que tinha dançado alguma valsa em outras ocasiões.

A valsa era um tipo de dança surpreendentemente íntimo. Não havia dois homens que a dançassem da mesma maneira. Alguns o faziam com uma precisão quase militar, outros arrastavam a sua parceira pela pista de dança com um entusiasmo tão enérgico que parecia que estivessem participando de uma carreira de cavalos. Inclusive havia homens que se aproveitavam do contato íntimo para apoiar as mãos em lugares que o sentido da propriedade indicava que não eram adequados.

Elenora hesitou quando o homem da túnica negra lhe ofereceu o braço com um elegante floreio. Aquele homem não era Arthur e os pés lhe doíam de verdade. Fosse quem fosse, tinha realizado um esforço considerável para chegar até ela através da multidão. O mínimo que podia fazer era dançar com ele, pensou Elenora. Depois de tudo, pagavam-lhe por representar um papel.

O homem da túnica negra a puxou pelo braço. No segundo seguinte ela se arrependeu da sua decisão. O roce de seus dedos, compridos e finos, produziu-lhe um calafrio inexplicável.

Elenora inspirou profundamente e disse a si mesma que tudo o que sentia não era mais que produto da sua imaginação. Havia um halo ao redor daquele desconhecido que lhe alterava os nervos de uma forma muito desagradável.

Quando ele a guiou pela pista de baile ao ritmo da valsa, Elenora não pôde evitar enrugar o nariz ante o desagradável aroma que esse homem emanava. Era evidente que tinha suado muito recentemente, mas o aroma que despedia não era o do suor derivado de um esforço físico, mas sim estava impregnado de uma essência que Elenora não conseguia identificar. Tratava-se de um aroma que a repugnava.

Elenora examinou a pequena parte do seu rosto que não estava coberta pela máscara. Seus olhos, iluminados pelas lanternas, brilharam através dos orifícios da máscara negra.

O primeiro pensamento da Elenora foi que estava bêbado, mas desprezou esta ideia quando se deu conta de que seu equilíbrio e sua coordenação eram perfeitos. Possivelmente se tratasse apenas de que tivesse ganhado ou perdido uma fortuna nas cartas, ou em algum outro jogo de azar. Isto podia explicar sua incomum excitação.

A tensão se apoderou dos músculos de Elenora e ela desejou, de todo coração, não ter aceitado a oferta do homem encapuzado. Mas já era muito tarde. A menos que quisesse provocar uma cena, estava apanhada até que a música cessasse.

Elenora não tinha dúvida alguma de que era a primeira vez que dançava uma valsa com aquele homem, mas se perguntou se já não o tinha conhecido em algum outro lugar.

— Está aproveitando a noite? — perguntou-lhe Elenora com a esperança de que ele falasse.

Entretanto, o homem se limitou a inclinar a cabeça em um gesto afirmativo, mas silencioso.

Seus longos dedos a prendiam com tanta força que ela sentia o contorno do anel que ele usava.

A mão enluvada daquele homem lhe apertou com força a cintura e Elenora quase tropeçou. Se deslizasse a mão mais abaixo ela daria por terminado o baile imediatamente, disse a si mesma. Não podia permitir que aquele homem a tocasse de um modo mais íntimo.

Elenora tirou a mão do ombro de seu parceiro de dança e a colocou em seu braço com o intuito de separar-se um pouco dele. Ao realizar aquele movimento, roçou com a mão um rasgo comprido e irregular nas dobras volumosas do grosso tecido da sua túnica. Possivelmente tinha agarrado na porta da carruagem. Elenora se perguntou se deveria comentar-lhe.

Não, quanto menos falassem, melhor. Não queria manter uma conversa amigável com aquele homem, ainda que ele mostrasse desejos de falar.

Então, quando estavam em um dos extremos da pista de dança, o homem da máscara, sem dizer uma única palavra, interrompeu a dança, fez uma reverência pronunciada, virou sobre si mesmo e se dirigiu, a grandes passos, para a porta mais próxima.

Elenora o observou enquanto ele se afastava, um pouco atordoada pelo estranho episódio, mas muito aliviada pelo fato de que tivesse terminado.

De repente, sentiu que sua própria túnica lhe dava muito calor: precisava respirar ar fresco, ainda mais que antes.

Elenora cobriu o rosto com a máscara e conseguiu sair da sala entre as sombras e, sem atrair mais a atenção, percorreu um silencioso corredor e procurou refúgio na estufa dos Fambridge, que estava iluminada pela luz da lua.

A enorme estufa emanava um aroma intenso e tranquilizador de terra fértil e plantas vigorosas. Elenora se deteve na entrada para dar tempo a que seus olhos se acostumassem às sombras.

Depois de uns instantes, a pálida luz da lua que atravessava os painéis de cristal e iluminava o recinto lhe permitiu distinguir o contorno das mesas de trabalho e das folhagens volumosa das plantas.

Elenora avançou por um corredor flanqueado por plantas de folhas largas enquanto desfrutava do silêncio e da solidão. Tinha dançado com um bom número de desconhecidos misteriosos e mascarados aquela noite, mas Arthur não estava entre eles. Mesmo que tivesse se aproximado dela oculto por uma túnica e uma máscara, e mesmo que não tivesse pronunciado nenhuma palavra, ela o teria reconhecido pela sua forma de tocá-la, pensou Elenora. Algo no seu interior reagia à cercania de Arthur, como se lhes unisse uma espécie de conexão metafísica. Sem dúvida, ele também experimentava algo parecido quando estava perto dela. Ou acaso ela se estava enganando?

Elenora alcançou o final do corredor flanqueado por plantas que cresciam em vasos de barro e, quando estava a ponto de retornar, algo, o barulho de sapatos na cerâmica do chão e o sussurro do tecido de uma túnica, indicou-lhe que já não estava sozinha na estufa.

Seu pulso se acelerou e Elenora se ocultou instintivamente na sombra de uma palmeira de grande tamanho. E se seu companheiro de dança a tinha seguido até ali?

A estufa tinha lhe parecido um refúgio seguro, mas agora se dava conta de que se ficou apanhada no fundo daquela construção. O único caminho de volta ao salão de baile exigia que se cruzasse com a pessoa que a tinha seguido.

— Senhorita Lodge? — perguntou uma voz baixa e trêmula de mulher.

Elenora se sentiu muito aliviada. Não reconheceu a voz da recém-chegada, mas ao saber que se tratava de uma mulher se relaxou. Decidiu então sair das sombras da enorme palmeira e deixar-se ver.

— Sim, estou aqui — respondeu.

— Pareceu-me vê-la vir para este lugar.

A mulher avançou ao longo do corredor até chegar a Elenora. Levava uma túnica clara na qual se refletia a luz da lua. Devia ser azul-celeste ou verde. Usava o capuz, de modo que seu rosto ficava oculto.

— Como me reconheceu? — perguntou Elenora com curiosidade e um pouco surpreendida ao descobrir que ainda se sentia algo receosa.

A dança com o mascarado desconhecido tinha alterado seus nervos, habitualmente tranquilos, mais do que ela tinha acreditado.

—Vi-a chegar na carruagem de St. Merryn. — Era uma mulher miúda, e a cor pálida de seu disfarce lhe proporcionava um aspecto algo etéreo. Caminhava na direção de Elenora como se seus pés não tocassem o chão —. Além disso, sua máscara e túnica são muito característicos.

— Apresentaram-nos? — perguntou Elenora.

— Não, desculpe-me. — A dama levantou delicadamente sua mão enluvada e abaixou o capuz. Seu penteado era muito elegante e seu cabelo devia ser loiro, embora à misteriosa luz da lua parecesse ser de prata —. Chamo-me Juliana Burnley.

A ex-noiva de Arthur! Elenora conseguiu, com muita dificuldade, reprimir um grunhido. A noite ia de mal a pior. Onde se encontrava Margaret quando a necessitava?

— Senhora Burnley... — murmurou Elenora.

— Por favor, me chame Juliana — respondeu ela enquanto tirava a máscara.

Elenora tinha ouvido suficientes rumores para deduzir que Juliana era muito bonita. Entretanto, a realidade resultava um pouco intimidante. Inclusive à pálida luz da lua era evidente que Juliana era uma autêntica beleza. Tinha facções elegantes e delicadas.

Tudo nela era tão primoroso e encantador que, em certo modo, parecia irreal. Ali, entre a vegetação iluminada pela luz da lua, Juliana bem poderia ter sido a rainha das fadas recebendo a corte no jardim.

— Como quiser. — Elenora tirou a máscara e acrescentou —: Sem dúvida, você sabe quem sou.

— A nova noiva de St. Merryn. — Juliana se deteve, de forma primorosa, a pouca distância da Elenora —. Suponho que deveria felicitá-la.

Terminou a frase com uma entonação crescente, como se formulasse uma pergunta.

— Obrigado — respondeu Elenora com frieza —. Você deseja algo?

Juliana se estremeceu.

— Sinto muito, não estou lidando muito bem com esta situação. A verdade é que não sei como fazê-lo.

Nada resultava tão irritante como uma pessoa que hesitasse e divagasse sem ir direto ao ponto, pensou Elenora.

— O que é, com exatidão, que deseja? — perguntou-lhe.

— Isto me parece tão difícil... Possivelmente me resultaria mais fácil se me permitisse começar pelo princípio.

— Se acreditar que servirá de ajuda...

Juliana virou um pouco a cabeça e examinou uma planta próxima, como se não tivesse visto nada parecido em toda sua vida.

— Estou segura de que ouviu os rumores — disse por fim.

— Já sei que você esteve noiva de St. Merryn e que fugiu com Roland Burnley, se for isto ao que se refere.

Elenora não se incomodou em ocultar sua impaciência.

Juliana apertou um punho e explicou:

— Não tive escolha. Meus pais estavam decididos a que eu me casasse com St. Merryn. Nunca teriam permitido que cancelasse o compromisso. Estou convencida de que, se tivesse confessado ao meu pai que não teria forças para casar-me com St. Merryn, ele teria me trancando no meu quarto. Me teria a pão e água até que eu concordasse com o casamento.

— Compreendo — respondeu Elenora com voz indiferente.

— Você não acredita? Asseguro que meu pai é muito severo. Não tolera nenhuma discrepância. Tudo deve fazer-se conforme as suas ordens. E minha mãe nunca o contradiz. Eu teria feito qualquer coisa para verme livre do que tinham arranjado para mim, e meu querido Roland me salvou.

— Compreendo.

Juliana sorriu com nostalgia e acrescentou:

— É bonito, nobre e muito, muito valente. Não conheço nenhum outro homem que tivesse sido capaz de enfrentar-se a meu pai e ao dele, sem falar de St. Merryn, para me salvar de um matrimônio horrível.

— Tem certeza de que seu matrimônio com St. Merryn teria sido tão horrível?

— Teria sido intolerável para mim — Juliana respondeu estremecendo-se —. Durante as semanas em que estivemos noivos, chorava de noite na cama até o amanhecer. Roguei a meu pai que procurasse outro marido para mim, mas ele se negou a fazê-lo.

— Por que exatamente você está tão convencida de que não teria suportado estar casada com St. Merryn?

As finas sobrancelhas da Juliana se uniram em uma expressão delicada de confusão.

— Por quê? Porque ele é exatamente igual ao meu pai. Como eu poderia querer me casar com um homem que me trataria como sempre o fez meu pai? Um homem que não prestaria atenção as minhas opiniões? Um homem que não me permitiria tomar minhas próprias decisões? Um homem que atuaria como um tirano em seu próprio lar? Teria preferido entrar em um convento.

Elenora começou a compreender tudo. De repente, resultava muito claro por que Juliana tinha escapado com seu Roland.

— Bom, suponho que isto explica muita coisa — respondeu Elenora.

Juliana examinou seu rosto e perguntou:

— Você não tem medo nenhum de St. Merryn, não é?

Aquela pergunta pegou Elenora de surpresa. Pensou na resposta durante uns instantes. Sentia um grande respeito por Arthur e, sem dúvida, não desejava fazê-lo ficar de mau humor desnecessariamente. Tampouco se atreveria a contrariá-lo. Mas, ter medo dele?

— Não — respondeu.

Juliana hesitou e assentiu com a cabeça.

— Já vejo que para você é diferente. Devo admitir que a invejo. Como consegue?

— Como consigo o que?

— Como consegue que St. Merryn preste atenção as suas opiniões? Como consegue que não dirija sua vida? Como consegue que ele não faça valer a vontade dele em todas as situações?

— Esta é uma pergunta muito pessoal, Juliana — respondeu Elenora —. Preferiria que você me explicasse qual é a razão de que tenha me seguido até aqui.

— Sinto muito, não pretendia ser indiscreta. Mas não posso evitar sentir curiosidade pela mulher que...

— Ocupou seu lugar? — sugeriu Elenora.

— Sim, suponho que poderia expressar-se desta forma. Só me perguntava como se relaciona com ele.

— Digamos que minha relação com St. Merryn é muito distinta da que você teve com ele.

— Compreendo. — Juliana assentiu de novo com a cabeça, mas esta vez com ar de entendimento —. Possivelmente você não tem medo dele porque é bem mais velha do que eu e tem muito mais experiência de mundo e com os homens.

Elenora se deu conta de que estava apertando os dentes.

— Sem dúvida. Agora, se importaria em me dizer o que deseja?

— Ah, sim, claro. — Juliana se endireitou e levantou o queixo —. Isto é muito difícil para mim, senhorita Lodge, mas vim fazer um pedido.

— Como diz?

Juliana estendeu a mão em um gesto sutil de súplica.

— Devo pedir um grande favor. A senhora é a minha última esperança. Não sei a quem mais me dirigir.

Durante uns instantes, Elenora se perguntou se Juliana não estava realizando um jogo estranho. Mas o desespero daquela mulher era evidente. Fosse o que fosse o que lhe ocorria, não se tratava de nenhuma brincadeira.

— Sinto muito — Elenora respondeu suavizando o tom de sua voz apesar da irritação que experimentava. O certo era que Juliana parecia bastante angustiada —, mas não sei como poderia ajudá-la.

— Você está noiva de St. Merryn.

— E o que isso tem a ver com este assunto? — Elenora perguntou com receio.

Juliana pigarreou.

— Dizem que, embora não estejam casados, parecem ter uma relação muito íntima.

Elenora ficou gelada. Aquela expressão não era mais que um eufemismo amável cujo significado todo mundo conhecia muito bem. Elenora disse a si mesma que era de se esperar que nos círculos sociais se especulasse a respeito de se Arthur e ela mantinham relações íntimas. Deveria ter previsto aqueles rumores. A diferença de Juliana, ela não era uma moça inocente de dezoito anos que vivia sob o amparo estrito de seus pais.

Para a alta sociedade, lembrou-se Elenora, ela não só era uma mulher amadurecida, mas também estava envolvida em um ar de mistério e, além disso, vivia sob o mesmo teto que seu noivo, quem era ainda mais misterioso do que ela. A presença de Margaret na casa proporcionava à situação uma fachada aceitável do ponto de vista social, mas não evitava as fofocas da gente.

Não deveria ter se surpreendido ao saber que os propagadores de fofocas estavam convencidos de que mantinha relações íntimas com Arthur.

— A gente deveria recordar que as fofocas nem sempre se ajustam à verdade — respondeu Elenora tentando dar suas palavras um tom dissuasivo.

— Não pretendia ofendê-la — respondeu Juliana —. Só queria que soubesse que, conforme tenho entendido, você mantém uma relação estreita com St. Merryn. Dizem que outra noite, nos jardins de certo salão de baile, ele a beijou apaixonadamente. — Juliana se interrompeu —. Nunca me beijou assim.

— Sim, bom...

— Além disso, também dizem que ameaçou a um cavalheiro que falou com a senhora no parque.

— Asseguro que aquele incidente foi tratado de uma forma desproporcionada — se apressou a responder Elenora.

— A questão é que St. Merryn, sem dúvida alguma, ameaçou a aquele homem. —Juliana suspirou —. Várias pessoas o ouviram. Esta é a questão, compreende? Ele nem sequer se incomodou em me seguir na noite que fugi com Roland.

— Você queria que ele a seguisse? — perguntou Elenora suavemente, de repente muito interessada por conhecer a verdade.

— Não, certamente não. — Juliana deu vários golpezinhos numa mesa com a ponta da sua máscara —. Na realidade, senti-me muito agradecida de que não nos seguisse. Sentia terror ao pensar que pudesse ferir ou inclusive matar a Roland em um duelo. Entretanto, conforme me contaram, St. Merryn esteve jogando cartas naquela noite. — No rosto de Juliana se desenhou uma expressão de pesar —. O qual confirmou o que sempre tinha pensado.

— E o que é o que sempre tinha pensado?

— Que, embora St. Merryn estava comprometido comigo, seus sentimentos não o estavam.

— Me alegro de que pudesse casar-se com o homem que ama — Elenora comentou com gentileza —. Embora ainda não saiba o que é o que quer de mim.

— Meu querido Roland assumiu um grande risco quando me salvou de St. Merryn e pagou um preço terrível por isso.

— De que preço fala? Acaba de me dizer que St. Merryn não o prejudicou.

— Naquela noite não me dava conta de tudo o que Roland arriscava por mim — disse Juliana esforçando-se por não desatar-se em pranto —. Meu maior temor era que St. Merryn nos seguisse, mas o verdadeiro perigo residia em outro lugar, no seio das nossas próprias famílias.

— O que quer dizer?

— Sabíamos que o meu pai se enfureceria e que me deixaria sem um penique, e isto é exatamente o que ocorreu. Entretanto, o que não tínhamos previsto é que o pai de Roland se zangasse tanto como para privar-lhe sua atribuição.

— Santo céu!

— Encontramo-nos em uma situação financeira desesperada, senhorita Lodge. Entretanto, Roland é muito orgulhoso e não irá rogar a seu pai para lhe restitua sua atribuição.

— E como sobrevivem?

— Minha mãe, bendita seja! Mesmo em risco de ser o alvo da cólera de meu pai, entrega-nos, em segredo, parte do dinheiro que ele lhe subministra para a manutenção da casa. Além disso, vendi algumas das joias que levei comigo quando Roland e eu fugimos. —Juliana se mordeu o lábio —. Por desgraça, não obtive muito dinheiro por elas. Resulta surpreendente o pouco que se valoram as boas joias quando uma se vê obrigada a empenhá-las.

Elenora sentiu uma onda de autêntica empatia.

— Sei. Eu também tive ocasião de descobri-lo.

Juliana não parecia interessada em comparar os preços dos prestamistas. Estava muito concentrada em seu relato.

— Roland, por sua parte, provou sorte nas mesas de jogo. Recentemente, conheceu um homem que parecia saber desenvolver-se bem neste mundo.

— O que quer dizer?

— Este homem conduziu Roland a um clube no que, conforme lhe prometeu, jogava-se limpo. Ao princípio, Roland ganhava com frequência e, durante um tempo, acreditou que sua boa sorte nos ajudaria a sair airosos da situação. Mas ultimamente suas cartas foram muito más. Perdeu muito dinheiro na noite passada e, como tinha apostado até meu último colar, agora não fica quase nada.

Elenora suspirou.

— Compreendo muito bem o que deve sentir.

— Não há muito mais o que possamos fazer — confessou Juliana sacudindo a cabeça —. Suponho que era muita inocência da minha parte, mas devo dizer que não tinha nem ideia do que custava um simples traje de baile e um par de sapatos combinando até que Roland e eu ficamos sem ganhos. — A seguir tocou as dobras da túnica que usava —. Só pude vir aqui esta noite porque uma amiga me emprestou seu disfarce. Roland não sabe que estou aqui. Ele foi, mais uma vez, às salas de jogo.

— Lamento muito suas dificuldades — declarou Elenora.

— Temo que Roland se sinta cada vez mais desesperado — lhe confiou Juliana em um sussurro —. Não sei o que fará se sua sorte não muda. Esta é a razão de que tenha vindo em busca de ajuda, senhorita Lodge. Dará-nos uma mão?

 

Vinte minutos depois, Elenora retornou à sala de baile iluminada pela tênue luz das lanternas. A multidão de bailarinos disfarçados com túnicas e máscaras era ainda mais numerosa. Elenora descobriu um canto vazio ao amparo de duas palmeiras e se sentou no pequeno banco dourado que havia ali.

Abstraidamente, observou aos múltiplos bailarinos tentando localizar Margaret e Bennett com o olhar enquanto refletia a respeito da conversa que acabara de ter com Juliana.

Seus pensamentos se detiveram de repente quando vislumbrou um homem com túnica e máscara negras que se dirigia até ela. “Outra vez não”, pensou sentindo um calafrio. Não permitiria que aquele homem a tocasse de novo. Não podia esquecer a sensação que sua mão na sua cintura lhe tinha produzido e o aroma de sua estranha excitação.

Entretanto, segundos depois, deu-se conta de que não se tratava do mesmo homem e uma sensação de alívio a invadiu. Embora aquele homem também avançasse entre a multidão com os movimentos decididos de um predador, não havia em seus passos uma energia antinatural, a não ser de poder e controle. O capuz da sua túnica estava pendurado nas suas costas e, embora seus olhos estivessem ocultos atrás da máscara de seda negra, seu perfil orgulhoso e seu espesso cabelo negro, penteado para trás deixando ao descoberto sua larga testa, resultavam inconfundíveis.

Um comichão de antecipação incontrolável percorreu as veias de Elenora. Então retirou a máscara de seu rosto e sorriu.

— Boa noite, senhor — manifestou —. Chega cedo, não?

Arthur se deteve frente a ela e a saudou com uma reverência.

— Um viva a meu engenhoso disfarce! Cheguei faz uns minutos. Em seguida encontrei Margaret e Bennett, mas me disseram que a tinham perdido entre a multidão.

— Fui à estufa tomar um pouco de ar fresco.

— Está pronta para partir? — perguntou Arthur.

— Sim, a verdade é que sim. — Elenora ficou de pé —. Embora seja provável que Margaret não queira retornar a casa tão cedo. Acredito que esta se divertindo muito com o senhor Fleming.

— Isto é óbvio — disse Arthur pegando-a pelo braço. A seguir a guiou para a porta e lhe explicou —: Acaba de me informar de que ela e Bennett vão à festa dos Morgan. Bennett a acompanhará a casa mais tarde.

Elenora sorriu e confessou:

— Acho que estão se apaixonando.

— Não trouxe Margaret a Londres para que vivesse um romance — resmungou Arthur —. Seu papel consistia em ser sua guia e contribuir com uma presença feminina na minha casa para que sua reputação não sofresse danos enquanto você exerce este emprego.

Elenora refletiu em silencio sobre se lhe contar ou não sobre o rumor que, segundo Juliana, circulava entre a aristocracia. Ao final, decidiu que contar a Arthur que a boa sociedade supunha que tinham uma relação íntima só complicaria ainda mais a situação. Se lhe informava disso, Arthur provavelmente se preocuparia em excesso pelas responsabilidades que acreditava ter com ela e isto era a última cois que Elenora queria.

— Deixe disso, senhor! É maravilhoso que Margaret tenha encontrado um cavalheiro agradável que a faça feliz. Admita-o.

— Sim, sim — assentiu ele.

— E o melhor de tudo é que você merece todo o mérito por ter permitido que seu romance florescesse — acrescentou Elenora sem poder resistir —. Depois de tudo, se não tivesse convidado Margaret a Londres, ela nunca teria conhecido Bennett.

— Isto não fazia parte da minha estratégia — murmurou ele de uma forma misteriosa —. Eu não gosto que as coisas não se desenvolvam segundo meus planos.

Não estava molesto na realidade, concluiu Elenora, e então pôs-se a rir.

— Às vezes é bom que os planos não saiam como a gente quer.

— Quando viu que algo assim tenha tido um resultado que não fosse desastroso?

“Quando o conheci nos escritórios da Goodhew e Willis”, pensou Elenora com nostalgia. Ela foi à agência em busca de um posto de dama de companhia, um emprego tranquilo para trabalhar para alguém como a senhora Egan e, em vez disso, encontrou-se com Arthur. E, agora, acontecesse o que acontecesse entre eles, sabia que sua vida nunca voltaria a ser a mesma.

Mas não podia dizer isto a Arthur, de modo que se limitou a sorrir com a esperança de transmitir a sua expressão um ar misterioso.

Quando chegaram à entrada principal da mansão Fambridge, Arthur pediu que lhe trouxessem a sua carruagem. Minutos mais tarde, uma das carruagens que permaneciam na longa fila de veículos que esperavam na rua se separou dos outros. Quando a carruagem chegou ao pé das escadas, Arthur ajudou a Elenora a subir no seu interior.

Ele entrou atrás dela com agilidade e as dobras da sua túnica flutuaram a suas costas como as asas negras de um pássaro caçador noturno.

Arthur fechou a portinhola e se sentou em frente a Elenora. Aquela era a primeira vez que estavam sozinhos no veículo, pensou ela.

— Já tive suficiente deste estúpido baile! — exclamou Arthur desamarrando a máscara e jogando-a para um lado —. Não vejo graça em esconder a própria identidade, a menos que a gente tente cometer algum ato indevido.

— Não tenho nenhuma dúvida de que esta noite se cometeram vários no salão de baile dos Fambridge.

— Sim, certamente. — Arthur se acomodou em um dos extremos do assento e, depois de torcer a boca em um gesto de diversão, adicionou —: E suspeito que a maioria têm algo que ver com relações ilícitas de algum tipo.

— Exatamente.

Ele a contemplou com seu olhar perigoso.

— Espero que não tenha estado submetida a nenhuma humilhação. O trabalho de Margaret consiste em assegurar-se de que você não é objeto de nenhum tipo de cuidados inapropriados, mas é óbvio que não está concentrada no papel dela. Se algum homem tiver feito alguma insinuação inadequada...

— Não, milord — ela se apressou a responder —. Não tive nenhum problema deste tipo. Entretanto, estive falando com uma velha conhecida sua.

— Com quem?

— Com Juliana. Na atualidade, a senhora Burnley.

Ele fez uma careta e perguntou:

— Estava aqui esta noite?

— Assim é.

— Apresentou-se a você?

— Sim.

Ele não parecia muito contente.

— Espero que o encontro não tenha sido desagradável e que ela não tenha feito uma cena.

— Ela não fez nenhuma cena, mas poderia dizer-se que o encontro, como você o chama, foi interessante.

Ele tamborilou os dedos na portinhola.

— Por que tenho a impressão de que não vou gostar do que você está a ponto de me contar? — perguntou a Elenora.

— Na realidade não é tão horroroso — ela o tranquilizou —, embora suspeite que a sua reação inicial possa ser algo... negativa.

— E eu suspeito que você tenha toda razão. — Arthur sorriu com uma antecipação quase feroz —. Entretanto, tentará me fazer mudar de opinião, não é?

— Desde o meu ponto de vista, se você conseguisse ter uma reação positiva redundaria no benefício de todos.

— Vamos, solte-o já! — grunhiu ele.

— Seria melhor que, primeiro, explicasse qual é a situação.

— Agora já não tenho dúvida nenhuma de que minha reação será negativa.

Ela simulou não tê-lo ouvido e perguntou:

— Sabia você que tanto a família da Juliana como a do Roland lhes suspenderam suas atribuições?

Ele arqueou as sobrancelhas.

— Sim, ouvi alguns rumores a respeito. Entretanto, estou convencido de que só se trata de uma situação temporária. Mais cedo ou mais tarde, o velho Burnley ou Graham cederão.

— Juliana também acreditava, mas já não confia nesta possibilidade, e Roland tampouco. Ambos estão convencidos de que suas famílias lhes deram as costas para sempre. Juliana está muito transtornada.

— Sério? — perguntou Arthur sem mostrar nenhuma preocupação pelos sentimentos de Juliana.

— Sua mãe lhe entregou um pouco de dinheiro, mas não é suficiente para que ambos subsistam. A ameaça de um desastre financeiro arrastou Roland as casas de jogo clandestino.

— Sim, sei. Eu diria que logo aprenderá que as salas de jogo constituem uma forma estupenda de perder o pouco dinheiro que lhes resta.

— Você sabia que Roland tenta refazer sua fortuna nas mesas de jogo?

— Isso não é nenhum secreto.

Claro que conhecia a situação, pensou Elenora com ironia, da mesma forma que sabia que Ibbitts roubava dinheiro das contas da casa. Era típico de Arthur estar bem informado do que ocorria a seu redor.

Elenora decidiu utilizar outra estratégia.

— Juliana está muito assustada — declarou.

Arthur virou a cabeça e mostrou seu feroz perfil. Em seguida olhou pelo guichê como se aquela conversa o chateasse e tivesse encontrado algo extraordinariamente interessante na rua. A luz de uma lanterna desenhou o contorno de suas maçãs do rosto e de sua mandíbula, mas sua expressão permaneceu oculta nas sombras.

— Não me surpreende — ele comentou.

Elenora voltou a recordar o rumor relacionado com os sentimentos de Juliana em relação a Arthur: “Dizem que se sentia aterrorizada por ele”. Observou o rosto esquivo de Arthur e, de repente, soube com certeza que ele sempre tinha sido consciente de que sua noiva lhe tinha medo.

Elenora não se surpreendeu de que Arthur soubesse o que Juliana sentia. Entretanto, a ideia de que encarou como algo pessoal as muito sensíveis imaginações de uma jovenzinha ou que inclusive tivesse permitido que o deprimissem, deixou-a sem palavras.

— Em minha opinião, Juliana cresceu muito sobreprotegida — manifestou Elenora com determinação —. Sua juventude e sua falta de experiência mundana foram sem dúvida a causa de que caísse vítima dos fantasmas que costumam ser produto da imaginação das jovens.

Ele se virou para ela.

— Mas não da sua, verdade, senhorita Lodge? — perguntou Arthur com ironia.

Ela desprezou aquela ideia movendo a máscara que segurava na mão.

— Uma mulher que tem a intenção de entrar no comércio não pode se permitir o luxo de possuir uma sensibilidade muito refinada.

Um sorriso se esboçou quase imperceptivelmente na comissura dos lábios do Arthur e, imediatamente, desvaneceu-se. Ele inclinou então a cabeça com ar solene.

— Sem dúvida, é certo que uma sensibilidade delicada pode interferir na obtenção de benefícios — ele admitiu observando-a com atenção —. Eu aprendi isso faz já vários anos, de modo que nunca permito que os sentimentos influam nas decisões que devo tomar em relação a estas questões.

Aquilo não prometia muito, pensou Elenora. Dada sua legendária e prodigiosa intuição em relação às finanças e os investimentos, sem dúvida ele já tinha adivinhado que ela ia pedir-lhe algum favor relacionado com dinheiro e lhe estava advertindo que podia economizar o esforço.

Elenora decidiu insistir e empregou as armas que melhor podiam convencê-lo: a lógica e a responsabilidade.

— Senhor, irei direto ao ponto — declarou Elenora —. Juliana se aproximou de mim esta noite para me pedir um favor.

Ele entreabriu um pouco os olhos e disse:

— Não me diga que teve a coragem de lhe pedir dinheiro.

— Não — se apressou a responder ela satisfeita de poder deixar de lado aquela questão de uma vez.

A expressão de Arthur se iluminou levemente.

— Alegra-me ouvi-lo — declarou —. Por um momento, pensei que a tinha tentado convencer de que lhe fizesse um empréstimo, embora não conseguia entender por que ela acreditasse que você estaria disposta a fazê-lo.

— Não me pediu um empréstimo — explicou Elenora com grande cautela —. Ao menos, não de uma forma direta. Entretanto, você recordará que espalhou o rumor de que estava na cidade para formar um consórcio de investidores.

— E o que ocorre com este rumor?

Elenora endireitou os ombros.

— Juliana me rogou que pedisse ao senhor que oferecesse a Roland uma participação no seu novo consórcio.

Arthur ficou uns instantes olhando-a como se Elenora lhe tivesse falado em um idioma desconhecido. Inclinou-se para diante e apoiou os cotovelos nos joelhos.

— Cheguei à conclusão de que tem um senso de humor realmente estranho, senhorita Lodge.

Ela o olhou nos olhos e percebeu irritação, mas não raiva. Existia uma diferença entre estes dois sentimentos e, em relação com o Arthur, estava convencida de que só a segunda era realmente perigosa. A primeira podia dominar-se se utilizava a razão.

— Por favor, não tente me intimidar, senhor — ela manifestou com calma —. A única coisa que lhe peço é que me escute.

— Ainda há mais?

— Compreendo que é lhe pedir muito, dadas as circunstâncias, mas acredito que faria bem se concedesse este favor a Juliana.

O sorriso de Arthur era tão frio como o aço.

— Entretanto, a senhorita deve recordar que, neste momento, não estou criando nenhum consórcio — ele disse secamente.

— Não, mas os cria com frequência e ambos sabemos que, mais cedo ou mais tarde, empreenderá outra aventura financeira. Poderia oferecer uma participação a Roland no seu próximo projeto.

— Não vejo nenhuma razão lógica pela qual devesse convidar a Roland Burnley para participar num consórcio, mesmo que ele dispusesse dos recursos necessários para comprar uma participação, e, conforme a senhorita indicou antes, este não é o caso.

— O fato de que disponha ou não dos recursos necessários para comprar uma participação constitui outra questão. Falaremos dela em breve.

— Seriamente?

— O senhor está tentando me intimidar? Se for assim, deve saber que a sua estratégia não está funcionando — ela afirmou.

— Possivelmente devesse tentá-lo com mais intensidade.

Elenora realizou um esforço para armar-se de paciência.

— Intento lhe explicar por que deveria considerar a possibilidade de que Roland seja um membro de sua próxima associação de investidores.

— Ardo de impaciência por ouvi-la.

— A questão — continuou Elenora decidida a terminar seu argumento — é que, de alguma maneira, se poderia dizer que você constitui a razão de que Juliana e Roland se encontrem na sua atual e desafortunada situação financeira.

— Maldição! A senhorita está dizendo que sou o culpado de que esses dois fugissem?

Elenora se endireitou e declarou:

— De certa maneira, sim.

Ele amaldiçoou em voz baixa outra vez e se reclinou no assento.

— Diga-me, senhorita Lodge, você crê que foi minha culpa que Juliana se horrorizasse até tal ponto de ter que sofrer um destino pior que a morte em minha companhia que decidisse fugir na metade da noite com outro homem?

— Certamente não. — Elenora se sentia muito consternada pelas conclusões de Arthur —. O que eu digo é que o senhor é, em parte, responsável pelos resultados daquela fuga, porque poderia ter ido atrás deles e havê-los detido. Além disso, se os tivesse seguido, poderia havê-los apanhado antes que a reputação de Juliana sofresse algum dano.

— Se por acaso não ouviu a história toda, direi que, naquela noite, houve uma tempestade horrorosa — Arthur lhe recordou —. Só um louco teria se aventurado a sair.

— Ou alguém louco de amor — ela retificou sorrindo levemente —. Ouvi várias versões da história, milord, e cheguei à conclusão de que o senhor não encaixa com esta última definição. Se tivesse estado apaixonado por Juliana teria saído atrás dela.

Ele estendeu os braços e os apoiou no respaldo de seu assento. Seu sorriso era fino e afiado como a folha de uma espada.

— Sem dúvida, alguém já terá se incomodado em lhe explicar que a única coisa que me motiva é o dinheiro. Já me adjudicaram muitos atributos, senhorita Lodge, mas lhe asseguro que ser apaixonado não é um deles.

— Sim, bom, eu diria que poucas pessoas o conhecem o suficiente para emitir um julgamento deste tipo, e isto também é culpa sua.

— Como demônios a senhorita pode me considerar culpado disto?

— Não pretendo ofendê-lo, senhor, mas não favorece a... — Elenora se interrompeu de repente e se deu conta de que “intimidade”, que era a palavra que tinha estado a ponto de utilizar, não era uma boa palavra para descrever a natureza distante e de autodomínio de Arthur —. Digamos que não favorece as relações pessoais estreitas.

— E por uma boa razão. Esse tipo de relações com frequência interferem nas decisões econômicas adequadas.

— Não acredito, nem por um instante, que este seja o motivo de que mantenha a maioria das pessoas a certa distância de você. Suspeito que a verdade é que seu exagerado sentido da responsabilidade o impede de baixar a guarda. Você não se atreve a correr o risco de confiar em outra pessoa e deixar que esta assuma o controle durante um tempo.

— A senhorita tem uma forma muito peculiar de perceber meu temperamento — murmurou ele.

— E, desde minha forma peculiar de percebê-lo, estou convencida de que você é um homem de paixões intensas, embora submetidas a um controle estrito.

Ele a olhou de forma estranha, como se acabasse de lhe proporcionar uma boa razão para duvidar da sua prudência.

— Diga-me, senhorita Lodge, de verdade acredita que eu, sob alguma circunstância, perseguiria uma noiva que foge de mim?

— Oh, sim, milord! Se sua natureza passional estivesse implicada, perseguiria-a até as mesmas portas do inferno.

Ele fez uma careta e disse com ironia:

— Uma imagem muito poética.

— Entretanto, você não perseguiu a Juliana naquela noite do ano passado. Portanto, devemos nos enfrentar às consequências de sua decisão.

— Explique-me outra vez por que deveria resolver os problemas financeiros dos Burnley — solicitou ele em tom grave —. Não consigo perceber qual é a base dos seus argumentos.

— É muito simples, senhor. Se naquela noite tivesse perseguido aos amantes, o mais provável é que Juliana fosse atualmente sua condessa e, portanto, não padeceria nenhuma dificuldade econômica. Por outra parte, Roland ainda gozaria do apoio de seu pai e estaria gastando, alegremente, sua avultada atribuição em trajes e botas.

Arthur sacudiu a cabeça, maravilhado, e declarou:

— Sua lógica me deixa sem palavras, senhorita Lodge.

— Porque não encontra nenhuma falha, não é?

— Sabe no que acredito, senhorita Lodge? Acredito que não chegou a sua conclusão graças a um processo lógico e razoável.

— Ah, não?

— Acredito que defende o caso de Juliana devido a uma dessas malditas sensibilidades que proclama não possuir.

— Tolices!

— Admita-o. As lágrimas de Juliana emocionaram o seu coração mole. — Arthur parecia divertir-se —. Conforme acredito recordar, ela tem a habilidade de começar a chorar no momento exato.

— Ela não chorou — Elenora particularizou.

Arthur arqueou as sobrancelhas.

— Bom, possivelmente soltou algumas lágrimas — ela admitiu —. Mas lhe asseguro que era muito sincera. Sem dúvida, nada, salvo o mais absoluto desespero, poderia havê-la induzido a aproximar-se de mim. — Elenora tomou fôlego —. Milord, dou-me conta de que seus assuntos privados não são da minha incumbência...

— Esta é uma observação muito inspirada, senhorita Lodge. Não poderia estar mais de acordo.

— Entretanto...

— Entretanto a senhorita está interferindo nos meus assuntos — terminou ele —. Sem dúvida porque não pode evitá-lo. Estou convencido de que forma parte da sua natureza intrometer-se nos meus assuntos privados, do mesmo modo que forma parte da natureza de um gato atacar a um camundongo desventurado ao que encurralou.

Elenora se ruborizou e se sentiu muito consternada pela opinião que Arthur tinha dela.

— O senhor não é um camundongo — conseguiu dizer com voz débil.

E não acrescentou que, se havia um gato de caça naquele veículo, estava sentado justo diante dela.

Arthur não pareceu convencido pela sua afirmação.

— Tem certeza de que não sou o camundongo e a senhorita o gato?

— Milord! — Elenora engoliu em seco, entrelaçou suas mãos com tensão sobre seu regaço e se ruborizou —. O senhor está se burlando de mim.

— Hum!

Ele estava se burlando dela, Elenora disse a si mesma com convicção. Entretanto, a única coisa que podia fazer era ignorar aquela provocação deliberada e terminar a defesa da petição de Juliana. Tinha-lhe prometido a jovem que se encarregaria de expor seu pedido.

— O que intento lhe explicar — continuou Elenora — é que, goste ou não goste, o senhor está envolto nesta desafortunada confusão. Além disso, dispõe dos meios para solucioná-lo.

— Mmm — murmurou ele. A perspectiva de solucionar a situação dos Burnley não lhe atraía especialmente. Arthur lançou a Elenora um olhar rápido e declarou —: Dado seu interesse na questão das finanças, estou convencido de que compreenderá que, se lhe oferecer ao jovem Roland uma participação em um consórcio, estarei obrigado a lhe emprestar o dinheiro para comprar a referida participação.

— Bom, sim, sou consciente deste fato, mas ele poderia lhe devolver o empréstimo com o que ganhasse no investimento.

— E se o investimento fracassar? O que ocorrerá então, gatinha? Terei que assumir a perda de Roland além da minha?

— Pelo que todo mundo diz, seus investimentos falharam em raras ocasiões, por não dizer em nenhuma. Margaret e o senhor Fleming me asseguraram que o senhor é um gênio em tudo o que se relaciona com as finanças. Estou convencida de que, embora não se sinta muito satisfeito pelo giro dos acontecimentos, refletirá com interesse a respeito da petição de Juliana e decidirá atuar em sua ajuda.

— A senhorita está muito certa disso, não é mesmo? — perguntou ele com amabilidade.

— Assim é.

Arthur voltou a se concentrar no que acontecia na rua e não se moveu durante um bom momento.

Elenora começou a inquietar-se e se perguntou se não o teria pressionado muito.

— Suponho que deveria fazer alguma coisa em relação a confusão na qual Roland e Juliana se encontram — declarou ele depois de um momento.

Elenora deixou escapar um leve suspiro de alívio e esboçou um sorriso de aprovação.

— Sabia que seu caráter compassivo lhe impediria de dar as costas a Juliana e a Roland.

— Não se trata de uma questão de compaixão, mas sim de culpabilidade — ele respondeu resignado.

— Culpabilidade? — Elenora, com os lábios apertados, refletiu sobre esta ideia e, em seguida, sacudiu a cabeça—. Isto já é ir longe demais, senhor. O que aconteceu não foi mais que um desafortunado engano que você pode retificar. Entretanto, não acredito que você deva culpar-se pelo que ocorreu.

— Pedir a mão da Juliana foi, sem dúvida, um engano de cálculo desastroso da minha parte. E é certo que decidi não sair em sua busca na noite que escapou. Entretanto, estes dois fatores não constituem a origem de meu sentimento de culpa.

Elenora começou a intranquilizar-se pelo rumo que a conversa estava tomando. Preocupava-lhe que ele assumisse mais culpa que a estritamente necessária e, inconscientemente, apoiou a mão no joelho de Arthur.

— O senhor não deve ser muito duro consigo mesmo — declarou de todo coração —. Juliana era muito jovem, estava sobreprotegida e suspeito que lhe faltava um pouco de sentido comum. Sem dúvida, não se deu conta de que você seria um marido excelente.

A seguir produziu-se um breve silêncio.

Arthur dirigiu o olhar para a mão enluvada que Elenora tinha levemente apoiada sobre sua perna.

Ela seguiu seu olhar e, ao dar-se conta da intimidade de seu gesto, ficou paralisada. Elenora percebia o calor do corpo de Arthur através da sua luva.

Os dois ficaram contemplando a mão de Elenora sobre a perna de Arthur durante um período de tempo que lhes pareceu uma eternidade. Elenora não podia mover-se. Sentia-se como se tivesse entrado em transe e de repente uma estranha sensação de pânico percorreu seu corpo.

Ao cabo de uns instantes Elenora se recuperou. Consternada, apressou-se a retirar a mão e a apoiou em seu regaço. Tinha a sensação de que as gemas dos dedos ainda lhe ardiam.

Pigarreou.

— Como dizia, não acredito que deva sentir-se culpado pelo que aconteceu. Depois de tudo, você não fez nada de errado.

Ele a olhou e Elenora se sobressaltou ao descobrir nos seus olhos o brilho de um humor irônico.

— Isto não é mais que uma questão de opinião — declarou ele —. Quem a senhorita pensa que calculou até o último condenado detalhe do plano da fuga?

— Como diz? — Elenora compreendeu de repente —. O senhor arranjou tudo para que o casal fugisse naquela noite?

— Eu me encarreguei de tudo — admitiu Arthur sacudindo a cabeça —. Desde a escolha da data até a compra da escada com o comprimento adequado para chegar à janela do dormitório de Juliana e as gestões para a entrega da carruagem e os cavalos.

 

Elenora olhou Arthur, atordoada. Ele, por sua parte, desfrutou da sua expressão. Não era frequente que a conseguisse desconcertar daquela maneira.

Entretanto, por mais divertido que fosse vê-la surpreendida e afetada, aquela sensação não tinha sido absolutamente tão satisfatória como o contato de seus dedos na sua coxa. Ainda sentia o calor da sua mão através do tecido das suas calças.

A comoção de Elenora se transformou em admiração.

— Claro! — Seus lábios tremeram e, em seguida, ela esboçou um amplo sorriso —. Foi o senhor quem elaborou aquele plano de fuga, não Roland.

— Alguém tinha que fazê-lo por ele. Era óbvio que o jovem Burnley ardia em desejos de resgatar a sua dama do terrível destino que a aguardava. Além disso, uma fuga era a única forma de eu pudesse me liberar daquela confusão sem humilhar a Juliana e a sua família.

— Como convenceu a Roland para que aceitasse um plano elaborado pelo senhor? Naquela época, devia considerá-lo seu pior inimigo.

— Assim é. Acredito que para ele eu era a encarnação do mal. Na realidade, ainda o sou. Bennett Fleming me ajudou naquele projeto.

— Claro.

Os olhos de Elenora faiscaram de prazer.

— Foi ele quem convenceu a Roland de que a única maneira de resgatar a Juliana era fugir com ela — Arthur prosseguiu —. Quando Roland se mostrou entusiasmado, embora afligido pela forma de realizar a fuga, Bennett lhe contou a estratégia que eu tinha planejado. — Arthur se lembrou do dia e meio que tinha dedicado à elaboração do plano —. Anotei todos os detalhes. Sabe o complicado que resulta preparar uma fuga com êxito?

Elenora pôs-se a rir. O som de sua risada despertou algo no interior de Arthur, quem sentiu uma necessidade, quase irresistível, de cruzar o estreito espaço que os separava, agarrá-la em seus braços e beijá-la até que sua alegria se transformasse em desejo.

As palavras que Elenora tinha pronunciado fazia só uns momentos se repetiam, uma e outra vez, em sua mente: “Juliana era muito jovem, estava sobreprotegida e suspeito que lhe faltava um pouco de sentido comum. Sem dúvida, não se deu conta de que você seria um marido excelente”.

— Devo admitir que nunca tive que pensar no que se necessita para uma fuga —respondeu ela com satisfação —. Entretanto, agora que o penso, compreendo que pode resultar muito complicado.

— Creia-me, não é uma tarefa fácil. Roland não sabia como pô-la em prática e eu tinha a desagradável sensação de que se a deixava em suas mãos o faria tão mal que o pai da Juliana os apanharia antes que... isto... o dano parecesse.

— Quer dizer antes que a reputação da Juliana estivesse tão comprometida que a única alternativa fosse o matrimônio.

— Sim. Ao final, apesar do meu plano detalhado, tudo deu certo por um fio.

— Por causa da tempestade — Elenora particularizou soltando uma leve risada —. Apesar dos seus cálculos, o senhor não podia prever uma mudança no clima tão drástica.

— Supus que Roland teria o bom senso de pospor a fuga até que as estradas estivessem transitáveis. — Arthur suspirou —. Mas não, o jovem amalucado insistiu em ajustar-se ao plano até o mínimo detalhe, incluindo a data e a hora. Você não pode imaginar o que sofri quando me disseram que o casal tinha fugido em pleno temporal. Estava convencido de que o pai de Juliana os encontraria e a levaria de retorno a sua casa antes que ela e Roland se comprometessem irremediavelmente.

— Esta preocupação explica porque o senhor jogou cartas até o amanhecer.

— Foi uma das noites mais longas da minha vida — ele lhe assegurou —. Tinha que manter minha mente afastada da possibilidade de que meu plano fracassasse.

De repente, a carruagem se deteve. Não podiam já estar em casa, pensou Arthur, não tão logo. Queria passar mais tempo nos estreitos limites da carruagem. Queria estar mais tempo a sós com Elenora.

Arthur olhou através da janela e sentiu um calafrio de intranquilidade quando se deu conta de que não estavam na Rain Street: detiveram-se perto de um parque e outro veículo estacionou ao lado do dele.

Arthur levantou um dos almofadões do seu assento e tirou uma pistola do compartimento secreto que havia debaixo. Elenora franziu o cenho com preocupação e Arthur percebeu sua tensão. Ela, entretanto, não formulou perguntas embaraçosas.

O alçapão do teto se abriu e Jenks olhou a Arthur desde o banquinho de cima.

— Um chofer fez sinais para que eu me detivesse, senhor. Diz que seu passageiro quer falar com o senhor. O que o senhor deseja que eu faça?

Arthur viu que a porta do outro carro se abriu de repente. Hitchins saltou ao pavimento e se aproximou deles.

— Tudo bem, Jenks — disse Arthur colocando de novo a pistola no compartimento secreto. Fechou a tampa acolchoada e acrescentou —: Este homem trabalha para mim.

— Ok, senhor.

O alçapão do teto se fechou e Hitchins abriu a portinhola da carruagem de Arthur.

— Milord. — Viu a Elenora em seguida e um amplo sorriso iluminou suas duras facções —. É um prazer voltar a vê-la, madame. A senhorita tem muito bom aspecto.

Ela sorriu.

— Boa noite, senhor Hitchins.

— Ontem, quando milord veio a Bow Street para me contratar, disse-lhe que recordava claramente da senhorita. No dia que a escoltei até a saída de sua casa soube que sairia adiante. Tem muito caráter, senhorita. E, agora, olhe-se, viaja em uma carruagem elegante e se converteu na noiva de um conde.

Elenora pôs-se a rir.

— Nem sequer eu acredito, senhor Hitchins.

Arthur lembrou-se de tudo o que Hitchins tinha lhe contado na tarde anterior, quando lhe falou do dia que o contrataram para o despejo. “Foi algo surpreendente, senhor. Surpreendente. Aí estava ela, a ponto de perder tudo o que possuía, mas sua principal preocupação eram os criados e o resto dos trabalhadores do imóvel. Poucas pessoas em sua situação se teriam interessado por alguém, menos ainda em um momento como aquele...”

Arthur olhou a Hitchins.

— O que veio me dizer? — perguntou-lhe.

O detetive dirigiu o olhar a Arthur com uma expressão grave no rosto.

— Fui ao seu clube, como tinha me indicado, senhor, mas o porteiro me disse que já tinha partido. Comunicou-me que o senhor foi a um baile a fantasia e me proporcionou o endereço. Dirigia-me para ali quando nos cruzamos com sua carruagem.

— O que quer me contar tem algo a ver com Ibbitts?

— Sim, senhor. O senhor me deu instruções de que eu avisasse se alguém fosse vê-lo. Pois bem, alguém o fez. Faz menos de duas horas, um cavalheiro entrou no seu alojamento e o esperou ali até que Ibbitts retornou do botequim. Estiveram a sós durante um tempo e, depois, o visitante se foi. Um coche o esperava na rua.

Uma fria neblina percorreu as veias de Arthur.

— Você pôde ver o visitante de Ibbitts? — perguntou com uma voz que surpreendeu a Hitchins.

— Não, senhor. Eu estava a certa distância e não pude ver seu rosto. Ele tampouco me viu. O senhor me disse que não devia permitir que ninguém soubesse que eu estava vigiando a Ibbitts.

— O que o senhor pode me dizer sobre o visitante?

Hitchins enrugou o rosto com uma profunda concentração.

— Como disse, chegou num coche. A luz era escassa, mas vi que usava uma capa e que cobria a cabeça com um capuz. Quando partiu, tinha muita pressa.

Arthur viu que Elenora seguia a conversação com muito interesse.

— Tem certeza que o visitante era um homem, senhor Hitchins? — perguntou ela.

— Sim — respondeu Hitchins —. O afirmo pela forma como se movia.

— E Ibbitts? — perguntou Arthur —. Voltou a sair de seu quarto?

— Não, senhor. Pelo o que eu sei, ainda continua ali. Dirigi-me à parte traseira do edifício e observei sua janela. No interior não havia nenhuma luz acesa. Suponho que dormia.

Arthur olhou a Elenora.

— A acompanharei a casa e, depois, irei ver a Ibbitts. Quero averiguar tudo o que possa a respeito da visita desta noite.

— E o que fará se não ele quiser lhe contar o aconteceu? — perguntou ela.

— Não acredito que seja difícil para mim fazer com que ele fale — ele respondeu com tranquilamente —. Conheço os da classe dele. A única coisa que preciso fazer é lhe oferecer dinheiro.

— Não é necessário que me acompanhe a Rain Street antes de ir falar com Ibbitts — respondeu Elenora sem demora —. Seria uma grande perda de tempo. As ruas estão entupidas devido ao tráfico e me acompanhar lhe ocasionaria um grande atraso.

— Não acredito... — começou ele.

Não lhe permitiu terminar a frase.

— Dadas as circunstâncias, esta constitui a melhor linha de ação. Sou consciente de que se sente ansioso por entrevistar a Ibbitts e não existe nenhuma razão para que eu não possa lhe acompanhar.

— Ela tem razão, senhor — manifestou Hitchins desejoso de ajudar.

Arthur sabia. Entretanto, se Elenora tivesse sido qualquer outra dama ele nem sequer teria contemplado a possibilidade de levá-la a aquela parte da cidade. Mas ela não era qualquer mulher. Elenora não se intimidaria ao ver um cliente de um botequim bêbado pela rua ou a uma prostituta exercendo seu ofício em algum beco. Além disso, graças a Jenks, Hitchins e a ele mesmo, estaria segura.

— Está bem — Arthur concordou finalmente —. Desde que me dê sua palavra de que permanecerá na carruagem enquanto eu falo com Ibbitts.

— Acredito que poderia ser de ajuda durante a entrevista.

— Você não entrará no alojamento de Ibbitts, e isto está decidido.

Elenora não pareceu muito satisfeita, mas não discutiu sua decisão.

— Estamos perdendo tempo, senhor — se limitou a dizer.

— Certamente. —Arthur mudou de assento—. Venha conosco, Hitchins.

— Sim, senhor.

Hitchins entrou na carruagem e se sentou.

Arthur indicou o endereço a Jenks. Em seguida apagou os abajures do interior da carruagem e fechou as cortinas para que ninguém visse a Elenora.

— Foi uma ideia brilhante que o senhor tenha contratado ao senhor Hitchins para vigiar a Ibbitts — ela comentou.

Arthur quase sorriu. A admiração refletida na voz de Elenora produziu-lhe uma satisfação absurda.

 

Meia hora depois a carruagem se deteve, com um chiado, na rua escura onde se encontrava o alojamento de Ibbitts. Elenora tinha acertado quanto ao tráfico, pensou Arthur enquanto descia do veículo logo depois de Hitchins. Se a tivesse acompanhado a Rain Street teria perdido mais de uma hora.

Antes de fechar a porta da carruagem, Arthur olhou a Elenora com a intenção de lhe recordar sua promessa de permanecer no interior do veículo.

— Tome cuidado, Arthur — ela pediu antes que ele pudesse falar. A palidez do seu rosto contrastava com as sombras projetadas nele pelo capuz da túnica —. Eu não gosto desta situação.

A inquietação refletida na sua voz pegou a Arthur de surpresa. Ele a esquadrinhou na escuridão. Até aquele momento, tinha-lhe parecido que estava tranquila e muito segura de si mesma. Estranhou aquele ataque de ansiedade.

— Não se preocupe — respondeu ele em voz baixa —, Jenks e Hitchins ficarão com a senhorita.

— Não é minha segurança o que me preocupa. — Elenora se inclinou para ele e baixou a voz —. O que acontece é que, seja qual for a razão, este assunto me causa uma sensação muito desagradável. Rogo-lhe que não entre aí sozinho. Eu não necessito o amparo de dois homens. Por favor, leve a um deles com o senhor.

— Eu tenho a pistola — ele repôs.

— As pistolas são conhecidas por falhar no momento mais inoportuno.

Aquela amostra de intranquilidade não era comum nela, Arthur pensou. Entretanto não tinha tempo para tranquiliza-la, de modo que seria mais fácil aceitar sua proposta.

— De acordo, se isto a tranquiliza, levarei a Hitchins comigo e deixarei a Jenks para que a vigie junto com a carruagem.

— Obrigada — respondeu ela.

O alívio e a gratidão da Elenora preocuparam a Arthur mais do que tudo o que havia dito até então.

Arthur fechou a porta da carruagem e olhou a Jenks.

— Dê-me uma laterna. Hitchins e eu entraremos naquele edifício. Você vigia a senhorita Lodge.

— Sim, milord.

Jenks lhe tendeu uma das lanternas. Hitchins a acendeu e, em seguida, tirou uma navalha de aspecto temível de um de seus bolsos.

Arthur contemplou a folha brilhante da arma.

— Por favor, esconda a arma até que seja imprescindível utilizá-la.

— O que disser, senhor. — Hitchins, de maneira serviçal, ocultou a navalha na sua capa —: O quarto de Ibbitts está no andar de cima, na parte traseira do edifício.

Arthur foi o primeiro em entrar no lúgubre vestíbulo do edifício. Não se percebia nenhum reflexo de luz por debaixo da porta da única moradia do andar de baixo.

— Aqui moram duas garçonetes — explicou Hitchins —. As vi sair faz umas horas. O mais provável é que não retornem até o amanhecer.

Arthur assentiu com a cabeça e subiu com ligeireza as escadas. Hitchins o seguiu de perto com o farol.

O corredor do andar de cima estava imerso na mais profunda escuridão. Hitchins levantou a lanterna e sua tênue luz amarelada iluminou uma porta fechada.

Arthur cruzou o corredor e golpeou a porta com o punho.

Não houve resposta.

Pegou então a maçaneta da porta, que girou com facilidade. Com muita facilidade.

A apreensão de Elenora estava justificada, pensou Arthur. Algo ia mal naquele lugar.

Abriu a porta.

O aroma de sangue derramado, a pólvora queimada e a morte flutuava na escuridão.

— Maldição! —sussurrou Hitchins.

Arthur lhe arrebatou a lanterna e a sustentou no alto. A luz iluminou o corpo que jazia no chão. Embora o rosto de Ibbitts estivesse parcialmente destroçado, a parte intacta era suficiente para confirmar sua identidade. O sangue que manchava a zona frontal da sua camisa indicava que tinham lhe disparado duas vezes.

— Seja quem for o assassino, queria assegurar-se do êxito da sua ação — comentou Arthur em voz baixa.

— E o teve. — Hitchins jogou uma olhada ao pequeno recinto —. Parece que houve uma briga.

Arthur viu a cadeira que jazia tombada no chão.

— Assim é. — aproximou-se do corpo de Ibbitts. A luz da lanterna se refletiu na folha de uma navalha que se encontrava perto do braço estendido de Ibbitts —. Pelo visto, tentou defender-se.

— Não há sangre na navalha. — Hitchins soltou um som de desaprovação —. Pobre diabo, não deu no alvo! Não lhe fez nem um arranhão.

Arthur ficou de cócoras para observar a navalha de perto. Como Hitchins disse, não se via nenhum sinal de sangue. Entretanto, havia vários fios negros e longos enganchados na junção da folha com o punho.

— Ao parecer, rasgou a capa do assassino — comentou.

Arthur se endireitou e uma sensação de angústia lhe invadiu as vísceras: Elenora esperava na carruagem. Virou-se com rapidez para a porta e exclamou:

— Vamos, Hitchins! Temos que ir. Encarregarei-me de avisar anonimamente às autoridades a respeito desta morte. Aconteça o que acontecer, não quero que o nome da senhorita Lodge se veja comprometida neste assunto, fica claro?

— Sim, milord. — Hitchins o seguiu até o corredor —. Não se preocupe, senhor, sinto um grande respeito pela senhorita Lodge e não gostaria que se visse afetada de modo algum. Já sofreu o bastante.

A admiração refletida na voz de Hitchins era genuína. Arthur estava convencido de que podia confiar nele com respeito a aquele assunto.

Descenderam as escadas com rapidez. Arthur amaldiçoava a si mesmo a cada passo que dava. Tinha sido um estúpido ao permitir que Elenora o convencesse de que o acompanhasse. Uma coisa era correr o risco de que a vissem com ele em uma zona da cidade como aquela. Neste caso, a pior coisa que poderia acontecer era que os membros da alta sociedade murmurassem escandalizados sobre eles. Mas isso não lhes prejudicaria muito.

Entretanto, se alguém a via sentada em uma carruagem diante da cena de um crime a situação seria totalmente diferente.

Quando chegaram ao vestíbulo principal, Arthur apagou a lanterna antes de sair ao exterior.

— Não corra — advertiu ao Hitchins —, mas, pelo amor de Deus, tampouco se demore mais do que o necessário.

— Não tenho nenhuma intenção de encarar essa situação com calma, senhor.

Ambos saíram à rua e se dirigiram com ligeireza para a carruagem. Hitchins subiu à parte superior e se sentou junto a Jenks. Arthur ouviu como lhe explicava o ocorrido em voz baixa e, antes que Arthur tivesse fechado a portinhola do veículo, Jenks já o tinha posto em movimento.

— O que aconteceu? — Elenora perguntou.

— Ibbitts morreu. — Arthur se deixou cair no assento diante de Elenora —. Assassinado.

— Santo céu! — Elenora hesitou durante uns segundos —. Foi o homem que Hitchins viu antes? O que esperou até que Ibbitts chegasse e depois partiu com pressa?

— O mais provável é que tenha sido ele.

— Mas quem quereria matar Ibbitts e por quê?

— Suponho que o assassino conseguiu a informação que queria e depois decidiu que a morte era a única forma de manter calado a Ibbitts.

Com a pistola na mão, Arthur contemplou a rua esquadrinhando os portais que estavam às escuras, tentando identificar as formas das sombras. Estaria o assassino ainda por ali? Estaria rondando por algum beco? Teria visto a Elenora?

— Enfim, isto parece demonstrar que alguém sabe que o senhor está investigando o assassinato do seu tio avô — ela comentou.

— Assim é — Arthur assentiu segurando com força o punho da pistola —. Este assunto se converteu num jogo de esconde-esconde. Tomara Hitchins tivesse visto mais de perto ao indivíduo que entrou no quarto de Ibbitts.

— O senhor descobriu alguma pista na cena do crime?

— Não me entretive em efetuar um registro exaustivo. A única coisa que parecia evidente era que Ibbitts tentou defender-se com sua navalha.

— O senhor acha que ele feriu seu atacante? — Elenora perguntou com evidente interesse —. Se o conseguiu, possivelmente tenhamos mais possibilidades de identificá-lo.

— Por desgraça, acredito que só conseguiu rasgar a capa de seu assassino. Na folha da navalha havia uns quantos fios negros, mas nenhum rastro de sangue.

Um estranho silêncio se produziu na zona que Elenora ocupava.

— Uns fios negros? — repetiu ela com voz grave —. Como de uma capa longa?

— Exato. Suponho que houve uma briga e a arma de Ibbitts se enganchou no tecido da capa de seu assassino. Embora não sei como poderia nos ajudar esta informação. Se dispuséssemos de alguma outra testemunha...

Elenora inspirou profundamente.

— Acredito que é possível que haja outra testemunha, senhor.

— Quem? Quem?

— Eu — ela sussurrou um pouco atordoada —. É possível que eu tenha dançado com o assassino pouco depois de que esse cometesse o crime.

 

Elenora se sentou no assento mais próximo ao fogo com a intenção de esquentar-se enquanto Arthur andava de um lado para outro na biblioteca. Ela percebeu a energia carregada de impaciência e intranquilidade emitida pelo seu corpo.

— Tem certeza de que a capa estava rasgada? — ele perguntou.

— Sim, tenho certeza. — Elenora estendeu as mãos para as chamas, pois, por alguma razão desconhecida, o calor do fogo não se estendia pelo lugar —. Toquei o rasgo com os dedos.

A mansão estava em silêncio, salvo pelo fogo que ardia na biblioteca, completamente às escuras. Arthur não tinha despertado a nenhum dos criados e Margaret ainda não tinha retornado.

Arthur tinha falado muito pouco depois de ouvir a inquietante noticia que Elenora lhe comunicou. A viagem de volta se produziu quase absolutamente em silencio. Elenora sabia que Arthur tinha dedicado aquele tempo a avaliar a informação que tinha lhe proporcionado, a elaborar teorias e a estabelecer possíveis conclusões. E ela tinha respeitado sua profunda concentração.

Quando chegaram ao vestíbulo, ele em seguida a conduziu à biblioteca e acendeu o fogo.

— Temos que falar — ele declarou enquanto deixava sua túnica negra sobre o respaldo de uma cadeira.

— De acordo — ela concordou.

Arthur desfez o laço do lenço que tinha atado ao pescoço e deixou que se pendurasse descuidadamente sobre a parte frontal da sua jaqueta. A seguir começou a caminhar de um lado para outro na sala.

— Lhe comentou que ele tinha a capa rota? — ele perguntou.

— Não. Não lhe disse nada a respeito. A verdade é que não desejava falar com ele. —Elenora encolheu os ombros —. Naquele momento, meu principal desejo era que o baile terminasse o mais rápido possível.

— Ele tampouco disse nada?

— Nenhuma palavra. — Elenora se mordeu o lábio enquanto recordava a cena do baile —. Suponho que não queria me proporcionar uma pista tão significativa a respeito de sua identidade.

Arthur tirou a jaqueta e o colete e deixou ambas as peças sobre uma mesa redonda de um só pé.

Elenora respirou profundamente e se obrigou a concentrar sua atenção nas chamas. Arthur não parecia dar-se conta de que virtualmente se estava despindo diante dela.

“Tranquilize-se”, pensou. Na realidade, só se estava se pondo cômodo. Um cavalheiro tinha o direito de fazê-lo na intimidade de seu próprio lar. Sem dúvida, sua mente estava concentrada no assassinato, não na paixão, e não se dava conta do efeito que estava causando nos nervos dela.

— Isto poderia significar que a senhorita o conhece de alguma outra ocasião — continuou Arthur —. Possivelmente temia que, se falava, o reconheceria.

— Sim, é possível. A única coisa que posso dizer com certeza é que nunca tinha dançado com ele.

— Como pode ter tanta certeza?

Elenora se aventurou a olhá-lo outra vez. Seguia ainda caminhando pela sala com a energia contida de um leão enjaulado.

— É difícil de explicar — respondeu ela —. Quando se dirigiu para mim entre a multidão, achei que se tratava do senhor.

Ao ouvir aquilo, Arthur se deteve.

— Que demônios a fez pensar tal coisa?

— Levava o mesmo tipo de túnica que o senhor e uma máscara virtualmente idêntica à sua.

— Maldição! Tentava confundi-la. A similaridade dos disfarces não pode ter sido uma coincidência.

Ela repensou sobre aquela questão e sacudiu a cabeça.

— Não estou de acordo. Claro que poderia ter sido uma coincidência! Havia no baile muitos cavalheiros que levavam capas e máscaras similares.

— Confundiu a algum outro homem comigo esta noite?

Elenora, atordoada, sorriu ante aquela pergunta tão perspicaz.

—Não. Na realidade, não. Só confundi o homem da túnica rasgada com o senhor e só durante alguns instantes.

— Como chegou à conclusão de que não era eu?

Elenora acreditou perceber uma estranha mescla de curiosidade e receio nas suas palavras, como se, em realidade, estivesse formulando outra pergunta: “Me reconheceria em um recinto escuro e cheio de gente? Ninguém me conhece tanto...”

“Eu sim”, pensou ela. Entretanto, não podia expressar aquele pensamento em voz alta.

Elenora refletiu em busca de uma resposta que resultasse lógica. Não podia lhe explicar que o aroma que emanava do assassino não se parecia em nada ao dele. Este comentário seria muito pessoal, muito íntimo, e revelaria até que ponto ela era consciente de Arthur.

— Não era exatamente da sua estatura — respondeu ela —. Dancei com o senhor e seus ombros ficam, em relação aos meus, mais acima que os dele. — Ela podia apoiar a cabeça no ombro de Arthur, pensou Elenora com melancolia —. E o senhor é mais corpulento. — Os ombros de Arthur eram elegantemente musculosos e resultavam muito sedutores —. Além disso, os dedos daquele homem eram mais compridos que os seus.

A expressão do Arthur se voltou sombria.

— Você se fixou em seus dedos?

— Sem dúvida, senhor. Em geral, nós mulheres somos muito conscientes das mãos de um homem quando este nos toca. Não lhes ocorre o mesmo aos homens?

Lhe deu uma resposta evasiva. Como se dissesse: “Sim, sim.”

— Ah, e também me fixei em outras duas coisas! — continuou ela —. Levava um anel na mão esquerda e calçava umas Hessians.

— Como outros milhares de homens na cidade — murmurou ele. Então a olhou com uma sobrancelha arqueada —. Ou seja, também se fixou em suas botas?

— Assim que me dei conta de que não se tratava do senhor, senti curiosidade a respeito da sua identidade. — Elenora contemplou o fogo —. Fosse quem fosse, sem dúvida não era um homem de idade. Dançava com grande desenvoltura. Seus movimentos não eram rígidos nem vacilantes. Posso lhe assegurar que não era da geração do seu tio avô.

— Esta informação é muito útil — ele comentou lentamente —. Refletirei sobre ela com atenção. Você se fixou em mais alguma coisa?

— É difícil de explicar, mas naquele momento senti que havia algo estranho na sua atitude. Parecia estar com uma excitação insalubre.

— Acabava de matar a um homem. — Arthur se deteve diante da janela e contemplou o jardim, que estava iluminado pela luz da lua —. Sem dúvida ainda lhe dominava a espantosa emoção do assassinato, de modo buscou e dançou com a senhorita.

— Parece bastante estranho, não crê? — Elenora se estremeceu—. Se diria que, depois de cometer um assassinato, a gente quereria ir diretamente a sua casa e tomar um banho quente em lugar de ir dançar.

— Não foi ao baile dos Fambridge para dançar com qualquer mulher — declarou Arthur sem alterar-se —. Foi ali para dançar com a senhorita.

Elenora se estremeceu e reconheceu:

— Devo admitir que parecia me buscar de forma deliberada, mas não compreendo por que teria que fazer algo assim.

— Eu sim o compreendo.

Elenora virou a cabeça com rapidez pela surpresa que lhe causou sua tétrica afirmação.

— Compreende seus motivos? — perguntou.

— Sem dúvida, esta noite averiguou, graças a Ibbitts, que o estou procurando. Sua arrogância o levou a querer celebrar o que considerou um triunfo sobre mim.

Elenora apertou os lábios.

— Possivelmente tenha razão, mas isto não explica que quisesse dançar comigo.

Arthur se virou para ela e Elenora quase ficou sem fôlego ao ver a raiva selvagem que brilhava em seus olhos.

— Não compreende? Existe uma tradição muito antiga e muito desprezível entre os homens que lutam entre eles. Com frequência, os vencedores, para proclamar sua vitória, possuem às mulheres de seus oponentes.

— Possuem? O senhor está falando de estupro! — Elenora ficou de pé de repente —. E eu lhe asseguro que só se tratou de um baile.

— E eu lhe asseguro, senhorita Lodge, que na mente do assassino aquele baile constituiu um ato simbólico que representava outro ato totalmente distinto.

— Isto é ridículo — começou a afirmar ela rotundamente. Então se lembrou do muito que se incomodou ao sentir a mão daquele desconhecido sobre sua cintura, e respirou fundo —. Deixando a um lado como ele viu a situação, desde meu ponto de vista não foi mais que uma breve valsa com um par muito desagradável.

— Sei, mas sua opinião não vem ao caso.

— Não estou de acordo — ela replicou com ferocidade.

Ele atuou como se não a tivesse ouvido e sussurrou:

— Devo elaborar outro plano.

Elenora se deu conta de que ele já estava pensando em sua nova estratégia.

— Muito bem. O que vamos fazer? — perguntou ela.

— Você não fará nada, Elenora, salvo subir a seu dormitório e recolher suas coisas. Seu emprego nesta casa termina esta noite. Farei com que seus honorários cheguem as suas mãos.

— Como? — Elenora o olhou enfurecida —. Despede-me?

— Assim é. A enviarei a um de meus imóveis até que este assunto tenha terminado.

Uma sensação de pânico se apoderou dela. Não pensava voltar para o campo. Sua nova vida estava ali, em Londres. Acontecesse o que acontecesse, não permitiria que Arthur a enviasse a um imóvel de um povoado remoto e a obrigasse a ficar ali, esperando Deus sabia por quanto tempo.

Entretanto, ficar histérica só pioraria as coisas, disse a si mesma. O homem que tinha diante era Arthur e a lógica era o que funcionava melhor com ele.

Elenora se esforçou para que sua voz soasse tranquila e serena.

— Tenta me enviar longe daqui só porque o assassino dançou comigo?

— Já disse, para ele aquilo foi mais que um baile.

Elenora se ruborizou e disse:

— Por todos os Santos, senhor, não se pode dizer que me forçou.

— O que fez — explicou Arthur com um tom de voz grave e inquietante — foi demonstrar que a considera um peão no jogo que está realizando comigo. Não permitirei que a utilize de maneira alguma.

Devia ter paciência com sua inflexibilidade, disse Elenora a si mesma. Depois de tudo, tentava protegê-la.

— Valoro o que tenta fazer — manifestou ela enquanto se esforçava por manter a calma —, mas já é muito tarde. Goste ou não, estou envolvida neste assunto. Temo, milord, que o senhor não pensa com a sua habitual clareza.

Ele a olhou fixamente.

— De verdade? — perguntou.

Ao menos agora tinha captado sua atenção, pensou ela.

— É evidente que o senhor se preocupa muito com a minha segurança, o que é muito galante por sua parte. Entretanto, o que lhe faz pensar que o assassino se esquecerá de mim se me enviar ao campo?

— Quando compreender que troquei minha estratégia perderá seu interesse por você.

— O senhor crê que pode confiar em que ele terá esta reação? Considerou a possibilidade de que provavelmente o assassino pense que eu disponho de uma informação, a respeito do senhor e de seus planos, mais valiosa que a que dispunha Ibbitts?

Produziu-se um silêncio demolidor. Elenora viu a compreensão refletida no rosto de Arthur e se deu conta de que ele não tinha mais remédio que aceitar sua lógica.

— Lhe proporcionarei uma escolta armada — replicou ele.

— Poderia fazê-lo, mas isto não deteria, necessariamente, ao assassino. Ele se move pela sociedade com total liberdade. O que poderia fazer eu? Evitar a todos os cavalheiros? E durante quanto tempo? Semanas, meses...? O senhor não pode me manter vigiada indefinidamente. Não, estarei muito melhor aqui, ajudando-o a encontrar ao assassino.

— Maldição, Elenora...!

— E o que acontece com Margaret? Se eu não estiver à mão, o assassino poderia tentar utilizar a ela. Depois de tudo, ela não só é um membro desta casa, mas também parte da sua família. Se me eliminar do jogo o assassino poderia considerá-la seu próximo objetivo.

— Maldição — repetiu Arthur esta vez com suavidade —. Você tem razão, não pensava com clareza.

— Isto se deve a que esteve submetido a uma grande tensão esta noite — ela o tranquilizou —. O senhor não deve ser tão duro consigo mesmo. Presenciar a cena de um crime teria um efeito depressivo na capacidade lógica de qualquer pessoa.

Ele sorriu de forma estranha.

— Sim, claro. Devi ter me dado conta de que esta era a origem da minha falta de raciocínio esta noite.

— Não se preocupe — respondeu ela com a intenção de animá-lo —. Estou convencida de que sua capacidade de raciocínio habitual retornará logo.

— Espero que assim seja.

Entretanto, o tom de sua voz não resultava nada convincente, pensou ela.

— Permita-me lhe recordar que lhe fui muito útil nesta investigação — continuou ela, ansiosa por retomar a questão prioritária —. Se me permite continuar ajudando-o, é muito provável que resolvamos este quebra-cabeça muito mais depressa que se o senhor o fizer sozinho.

— Não estou nada convencido do diz — ele murmurou.

— Além disso, se me mantiver a seu lado no papel de sua noiva não só poderá me proteger, mas também o assassino suporá que sabemos o mesmo agora que antes da morte de Ibbitts.

Ele esticou a mandíbula.

— Por desgraça, ele teria razão.

— Não, não a teria. — Agora foi Elenora quem começou a passear pela sala —. Enquanto dançava comigo, fixei-me muito nas suas características. É muito provável que o reconheça se voltar a ter algum contato próximo com ele. No mínimo, posso excluir a um bom número de cavalheiros devido a idade, altura, constituição física e o modo em que se movem. Por não mencionar a forma das suas mãos.

Ele entreabriu os olhos e Elenora soube que tinha dado no alvo.

— Vê, senhor? — Elenora esboçou um sorriso reconfortante —. Se continuarmos com seu plano original disporemos de certa vantagem, porque o assassino não saberá que realizamos uma conexão entre meu companheiro de baile e o assassino de Ibbitts. Ele não saberá que somos conscientes de alguns detalhes físicos importantes a respeito dele.

— A senhorita tem toda razão — Arthur admitiu. A seguir fechou um punho em sinal de raiva e frustração —. Se a envio longe ele suspeitará imediatamente que sabemos que dançou consigo. E se acreditar que conhecemos este detalhe, possivelmente pense que sabemos mais do que em realidade sabemos.

— Além disso, provavelmente se tornaria mais cauteloso. E o fato de que se sinta seguro e atue com certa temeridade pode ser vantajoso.

Arthur a contemplou durante um bom momento, refletindo.

— Muito bem — disse por fim —. A senhorita me convenceu você de que não estará mais segura no campo que aqui, baixo este teto.

Elenora se deteve diante da escada de caracol e sorriu aliviada.

— Exato.

— Entretanto, de agora em diante, nem você nem Margaret sairão de casa sozinhas. Cada vez que desejem sair, terão que deixar que eu, ou algum dos criados masculinos, acompanhe-as.

— E Bennett Fleming? Considera-o um acompanhante aceitável? Sabemos que ele não é o assassino. Entre outras coisas, porque é muito baixo.

Arthur hesitou e em seguida assentiu com a cabeça.

— Acredito que podemos afirmar com segurança que Bennett não é um louco alquimista dedicado a realizar um experimento desatinado. Eu lhe confiaria minha vida. Sem dúvida, podemos considerá-lo um acompanhante adequado. Falarei com ele o antes possível. É preciso que lhe explique que Margaret e você correm perigo para que as possa vigiar de perto quando estiverem com ele.

— Sim, e também deveríamos lhe falar a Margaret sobre sua investigação secreta.

Um silêncio denso e pesado se estendeu então pela biblioteca. Elenora percebeu com claridade os rangidos e os estalos do fogo. A conversa tinha terminado. Tinham chegado a um acordo, um que lhe permitiria seguir na casa e ajudar a Arthur a encontrar ao assassino.

O mais sensato era subir e meter-se na cama.

Elenora olhou para a porta, mas não pôde reunir a força de vontade necessária para levantar-se e dirigir-se para ela.

Arthur, por sua parte, tampouco mostrava sinais de querer sair dali e continuava contemplando a Elenora com seus olhos fascinantes.

— Hitchins tinha razão com respeito a senhorita — declarou ele quando o silêncio alcançou o ponto de máxima tensão —. É uma mulher resolvida e decidida, senhorita Elenora Lodge. Tem caráter. Não acredito que, em toda minha vida, tenha discutido tanto como o tenho feito consigo nos últimos dias.

O coração de Elenora se encolheu. Ele a considerava uma mulher difícil. Todo mundo sabia que os homens não consideravam atraentes as mulheres complicadas.

Elenora pigarreou.

— Reconheço que mantivemos umas quantas conversas acaloradas, senhor, mas não acredito que seja justo afirmar que discutimos.

— Conversações acaloradas? É assim como as chama? Enfim, suspeito que estamos destinados a manter ainda um bom número de conversas deste tipo enquanto viver nesta casa. Esta é uma ideia aterradora, não crê?

— Se burla de mim, milord. Duvido que esta perspectiva nos faça tremer de medo a nenhum dos dois.

Ele sorriu meio de lado.

— Há algo que a faça tremer de medo, senhorita Lodge?

Ela fez um gesto com a mão tentando aparentar despreocupação. O certo era que naquele mesmo instante estava tremendo um pouco, embora não de medo. Elenora rogou para que ele não notasse.

— Muitas coisas — afirmou ela.

— Claro. — Arthur se dirigiu para ela com passo decidido enquanto sua voz ia adquirindo um tom grave e sensual —. O que opina da possibilidade de que mantenhamos algo mais que uma série de conversas acaloradas se seguimos trabalhando juntos de uma forma tão íntima? Seria esta uma das coisas que a faria tremer e estremecer-se, senhorita Lodge?

Ela o olhou nos olhos, e ao perceber a paixão crescente que havia neles, esteve a ponto de derreter-se sobre o tapete.

— Nós dois dispomos de uma força de vontade excepcional — ela respondeu sentindo de repente que lhe faltava o fôlego —. Estou convencida de que somos capazes de manter nossa relação em um âmbito estritamente profissional.

Ele se deteve diante dela. As pontas das suas botas estavam só a uns centímetros dos sapatos dela. Se Elenora dava um passo para trás se chocaria com os balaústres da escada de ferro forjado.

— Claro que ambos seríamos capazes de manter uma relação profissional — ele declarou com suavidade —. Entretanto, o que aconteceria se decidíssemos não fazê-lo? O que aconteceria então, senhorita Lodge? Tremeria nesse caso?

A boca da Elenora se secou e uma sensação de excitação a percorreu, de repente, de cima a baixo. A seguir sentiu que um calor se apoderava da parte baixa de seu corpo e os joelhos começaram a tremer. Elenora não conseguia retirar o olhar dos olhos ardentes de Arthur.

— Esta perspectiva tampouco me faz tremer, senhor — sussurrou.

— Ah, não? — Arthur levantou as mãos e agarrou os barrotes da escada que havia a ambos os lados da cabeça de Elenora —. A invejo, senhorita Lodge, porque lhe asseguro que eu tremo cada vez que penso na possibilidade de ter uma relação íntima com a senhorita.

Arthur não a tocava, mas a tinha aprisionada, e estava tão perto dela que Elenora percebia o aroma, único e misterioso, que emanava do corpo dele. A cabeça começou a lhe dar voltas e teve que umedecer os lábios para poder falar.

— Tolices — ela conseguiu dizer. Embora sua afirmação soasse débil, pensou. Não pôde resistir a proximidade de Arthur e lhe tocou a mandíbula com a ponta dos dedos —. O senhor nem sequer se estremece.

— Esta afirmação demonstra o pouco que me conhece.

Sem retirar as mãos dos barrotes da escada, Arthur se inclinou até que sua boca ficou a centímetros da dela.

Sua intenção era beijá-la, ela pensou, mas lhe estava dando tempo para que protestasse ou partisse.

Uma emoção selvagem e temerária percorreu o corpo de Elenora. A última coisa que queria fazer aquela noite era fugir de Arthur. Na realidade, desejava exatamente o contrário. Tudo nela ansiava afundar-se no seu abraço e experimentar os mistérios da paixão que sabia que encontraria em seus braços.

Elenora colocou as palmas das mãos sobre a parte frontal da camisa de linho branco de Arthur. Quando o tocou, ouviu um gemido rouco de desejo em seu peito. Ao saber que produzia um efeito tão intenso nele, Elenora se sentiu como uma feiticeira.

Notou então que Arthur apertava as mãos ao redor dos barrotes de ferro e em seguida sua boca se uniu a dela.

Uma onda de paixão maravilhosa, embriagadora e vertiginosa percorreu o corpo de Elenora. E soube que se arrependeria pelo o resto de sua vida se não explorasse aquelas emoções estremecedoras com ele.

Elenora rodeou o pescoço de Arthur com os braços. Ele reagiu imediatamente e aproximou seu corpo ao dela até que Elenora ficou apanhada entre seu corpo excitado e o corrimão da escada. Ele se agarrou aos barrotes como se fossem a única coisa que o mantinha em contato com a terra.

— Elenora. — Arthur suspirou fundo —. A mente me diz que isto não é uma boa ideia, mas esta noite não me sinto capaz de escutar minha lógica.

— Existem outras coisas no mundo além da lógica. — Elenora lhe sorriu —. Coisas que são igualmente importantes.

— Até esta noite não acreditava nisso.

Beijou-a outra vez. Nesta ocasião com mais intensidade.

Ela respondeu com avidez, entreabriu os lábios e deslizou os dedos pelo cabelo escuro de Arthur.

Ele separou a mão direita do barrote que estava junto à orelha esquerda dela e começou a desabotoar o sutiã do seu vestido, que se deslizou para baixo com uma facilidade incrível. Quando Elenora sentiu a mão de Arthur sobre seu seio esquerdo, uma sensação de surpresa e prazer percorreu seu corpo. Em seguida, uma tensão, estranha e deliciosa cresceu em seu interior e Elenora soltou um gritinho rouco e suave.

Ele retirou ligeiramente os lábios dos dela e olhou o seio que tinha coberto com a mão.

— É preciosa.

A seguir lhe acariciou o mamilo com o polegar.

Elenora queria tocá-lo com a mesma intimidade, de modo que foi baixando as mãos à medida que ia desabotoando a camisa. Ele sussurrou algo e, embora ela não conseguisse distinguir suas palavras, a excitante promessa que implicavam lhe pareceu muito clara.

Enquanto lhe desabotoava a camisa, o pulso de Elenora se acelerou e ondas consecutivas de excitação percorreram seu corpo. Acariciou o peito nu de Arthur com as gemas dos dedos, encantada pelo tato sensual da sua pele firme e da textura do pelo que a cobria.

E, incapaz de resistir, beijou-o no pescoço e no ombro. Arthur se estremeceu. Sua resposta animou a Elenora a seguir deslizando a mão pelo torso musculoso e nu até chegar a cintura da calça.

Ele exalou um som, metade gemido e metade risada contida, e agarrou a mão exploradora de Elenora.

— Estamos brincando com fogo — ele sussurrou junto à curva do pescoço de Elenora —. Não é um jogo que costume permitir-me, mas esta noite estou convencido de que por algumas chamas vale a pena arriscar-se.

Ela não estava certa do que Arthur queria dizer, mas antes que pudesse interrogá-lo sobre suas palavras, ele soltou o outro barrote, pegou-a nos braços e a acomodou gentilmente contra seu peito. As saias do vestido meio desabotoado de Elenora caíram sobre os braços de Arthur e roçaram o respaldo de uma cadeira.

Ele a transportou com ligeireza e a depositou sobre o tapete, diante da lareira. Antes que Elenora pudesse reorientar-se em sua nova posição, ele se tombou com ela.

Arthur colocou o braço esquerdo debaixo da cabeça de Elenora e, com a outra mão, agarrou o bordo inferior da sua saia e foi levantando o tecido suave até deixar as coxas dela descobertas. Quando se deu conta de que estava nua ante ele à luz do fogo, Elenora conteve o fôlego.

Sem dúvida, uma mulher de mundo consideraria que isto era normal, disse a si mesma. Além disso, resultava-lhe muito excitante sentir o calor das chamas sobre sua pele nua.

Elenora apertou os olhos com força enquanto tentava dominar os vivos estremecimentos que sentia. Arthur deixou de acariciar as coxas de Elenora enquanto tentava desabotoar a calça.

Uns segundos depois Elenora sentiu o pulso firme da sua ereção contra seu quadril e abriu os olhos com curiosidade para dar uma olhada rápida. Já tinha visto alguns animais de granja com uma ereção, mas nunca a um homem.

A visão quase a deixou sem fala.

— Santo céu! — exclamou antes de poder deter-se.

O membro do Arthur era grande, muito maior do que ela esperava.

— O que foi? — perguntou ele enquanto inclinava a cabeça para beijá-la no pescoço —. Está bem?

— Sim, sim, certamente.

Elenora voltou a fechar os olhos rapidamente. Queria lhe perguntar se esse era o tamanho normal, mas temia que a pergunta o perturbasse. Além disso, não queria que ele acreditasse que era outra Juliana e que lhe aterrorizava fazer amor com ele. Tinha que abordar com sutileza aquela questão, pensou Elenora.

Antes que conseguisse encontrar as palavras adequadas para uma pergunta tão delicada, surpreendeu-se de novo ao ver que ele tirava um lenço de linho de seu bolso e o deixava a um lado. Elenora se perguntou se Arthur pensava espirrar no meio do ato.

Entretanto, antes que pudesse lhe perguntar sobre o lenço ou sobre o tamanho, os dedos de Arthur se deslizaram pelo arbusto de pelos que ocultava as partes mais privadas de Elenora.

Acariciou-a então de uma forma muito íntima e Elenora se sentiu embargada por uma sensação de deliciosa ansiedade. Ela se retorceu contra ele enquanto procurava algo mais, algo que não podia descrever.

— Está preparada, não? — perguntou ele junto à boca de Elenora —. Está úmida, branda e inchada.

— Sim, sim.

Ela não tinha nem ideia do que se referia ele com aquelas palavras, mas aquela noite só podia lhe responder que sim.

Arthur se colocou em cima dela lhe separando as coxas com a pressão das suas. Elenora notou a ereção de Arthur procurando a entrada úmida e palpitante de seu corpo e se perguntou se não seria muito tarde para discutir a questão do tamanho.

Mas já era muito tarde. Muito tarde. Ele já a tinha penetrado e empurrava uma e outra vez, até que a encheu e ela acreditou que ia explodir.

Uma dor aguda e inesperada se apoderou de Elenora. Surpreendida, soltou um gritinho e afundou as unhas nas costas de Arthur.

— Santo céu!

Elenora abriu os olhos de repente e se encontrou com o olhar selvagem de Arthur.

— Elenora...! — Seu rosto refletia uma emoção que bem podia ter sido irritação —. Por que não me disse?

— Dizer o que?

Elenora se retorceu um pouco, consciente de que seu corpo ia se acoplando ao dele. Ajustava-se com dificuldade, ela concluiu, mas se ajustava. E isso era o importante.

— Por que não me disse que era virgem? — ele perguntou entre dentes.

— Porque não era importante.

— Eu sim considero que era importante — repôs ele.

— Eu não.

— Maldição, achei que era uma mulher com experiência neste tipo de coisas.

Elenora lhe sorriu.

— Tenho boas notícias para você: a partir deste exato momento, sou uma mulher experiente.

— Não tire o sarro — ele advertiu —. Estou muito zangado contigo.

— Isto significa que não vai terminar o que começamos?

O rosto de Arthur resultava temível à luz do fogo.

— Nestes momentos não posso pensar com claridade.

Ela deslizou os dedos entre os cabelos de Arthur.

— Então me permita que tome a decisão pelos dois. Eu preferiria terminar, se sentir-se capaz de fazê-lo.

— Capaz? Sou incapaz de fazer outra coisa.

Arthur apoiou os cotovelos no tapete, agarrou a cabeça de Elenora entre as mãos e a beijou com determinação. Ela notou que ele começava a mover-se devagar e com cuidado em seu interior. Percebeu que Arthur estava no limite do seu profundo controle habitual e se sentiu feliz por ter sido ela quem o tinha levado até aquele ponto.

Ele se apertou contra ela penetrando-a mais profundamente e acelerando o movimento. Elenora sentia a rigidez dos músculos das suas costas debaixo de suas mãos. Uma tensão doce cresceu no interior dela e o abraçou contra seu corpo, desejosa de explorar aquele território novo e desconhecido.

— Elenora, Elenora! Não posso aguentar mais. Desculpe-me.

Sem outra advertência, Arthur se separou dela, ajoelhou-se e pegou o lenço que tinha deixado no chão uns minutos antes. Em seguida, envolveu o extremo de seu membro com o tecido de linho, soltou um grunhido e entrecerrou os olhos enquanto se deixava ir.

Quando terminou, desabou-se parcialmente sobre o corpo dela, colocando uma perna por cima de suas coxas e lhe rodeando possessivamente a cintura com o braço.

 

Elenora ficou quieta durante um tempo saboreando as sensações do momento: o peso do corpo de Arthur, o calor do fogo e o ardor persistente do interior das suas coxas.

Pouco depois, Arthur se moveu, apoiou-se nos cotovelos e olhou a Elenora.

— Não era com exatidão o que esperava, não é? — perguntou.

— Foi... interessante — ela respondeu.

Ele fez uma careta e declarou:

— A sobriedade dos elogios é uma crítica em si mesma.

Elenora se deu conta de que tinha ferido seus sentimentos.

— Algumas partes da experiência foram muito... estimulantes — lhe assegurou.

Ele se inclinou, apoiou a testa na dela e lhe beijou a ponta do nariz.

— Desculpe-me, querida.

Elenora se sentiu horrorizada, conseguiu sair debaixo do corpo de Arthur e se sentou com rapidez enquanto sustentava o sutiã de seu vestido contra seus seios. A seguir lhe lançou um olhar fulminante.

— Não deve se culpar, Arthur.

Ele se tombou de costas, cruzou os braços por debaixo de sua cabeça e a examinou com uma expressão indecifrável no rosto.

— Ah, não?

— Claro que não. Recorda que fui eu quem te animou a fazê-lo. Minha avó me falou, em uma ocasião, de certas sensações estimulantes que só podem experimentar-se nos braços de um homem. Fazia tempo que sentia curiosidade por estas sensações e te asseguro que estava ansiosa por descobrir se era verdade.

— De modo que me utilizaste para satisfazer sua curiosidade? — Arthur arqueou as sobrancelhas —. E a mim me parecia que, simplesmente, sentia-se atraída por mim.

— Pois claro que me sentia atraída por ti. — Elenora se horrorizou ao pensar que ele pudesse acreditar o contrário —. Na realidade me sentia muito, muito atraída por ti. Nunca antes me havia sentido tão atraída por um homem.

— É muito amável, mas não posso evitar pensar que só tenta me fazer sentir melhor pelo que acaba de ocorrer.

— Não há nenhuma razão para que sentir-se mau, garanto isso. Na realidade, a ideia foi minha.

— Suponho que é consciente de que, se em algum momento tivesse mencionado que carecia de experiência, as coisas teriam se desenvolvido de um modo distinto.

Estava claro que não pensava deixar aquela questão de lado. Ainda estava zangado. Elenora se ruborizou e começou a sentir as pontadas de um sentimento que bem podia ser culpa. Suspirou.

— Sim, sou consciente de que, se tivesse sabido que não tinha experiência, seu sentido da responsabilidade, que é muito estrito, teria te impedido de fazer amor comigo.

Um sorriso cruzou os olhos de Arthur.

— Eu não disse isso.

— Não é necessário que pronuncie as palavras exatas — ela murmurou —. Sei muito bem que não tinha nenhum direito de te pôr nesta situação. — Se sentiu irritada —. Entretanto, devo dizer-te que é muito irritante experimentar uma sensação tão excitante em determinado momento e ver-me obrigada a sentir culpa e responsabilidade por este ato no momento seguinte.

Ele a surpreendeu com um sorriso malvado e inesperado.

— Nisto estamos totalmente de acordo.

Ela o olhou com desafio.

— Recordo-te, uma vez mais, que não estou na mesma categoria que as jovens casadoiras da alta sociedade. Não sou outra Juliana: doce, inocente e sobreprotegida.

Ele se levantou com lentidão.

— Seja você quem for, Elenora, sem dúvida não é outra Juliana.

— Sim, bom, só queria me assegurar de que compreendia, de uma forma clara, que o que ocorreu aqui esta noite não foi absolutamente culpa sua. Você não é responsável por nada.

Ele esteve refletindo sobre suas palavras durante o que lhe pareceu uma eternidade. Pouco depois assentiu com a cabeça e se levantou com flexibilidade.

— Sabe de uma coisa, querida? Acredito que coincido contigo nesta questão. — Arthur ficou diante da lareira e meteu a camisa nas calças —. Muito bem, me convenceu. Aceito carregar todo o peso da responsabilidade nos seus preciosos ombros. Inclusive estou disposto a afirmar que me sinto utilizado.

— Não! — Elenora, surpreendida, ficou de pé —. Não, absolutamente, nunca pretendi te utilizar!

— De qualquer maneira, é isso que parece, não acha? — Quando Arthur terminou de introduzir a camisa pela cintura das calças, virou-se para Elenora —. Você se aproveitou da minha enorme debilidade para explorar uma experiência nova e estimulante, não é?

Elenora se sentiu acalorada.

— Sem dúvidas alguma, você não é débil.

— Conforme parece, quando se trata de você, o sou.

— Tolices.

Ele levantou uma mão e acrescentou:

— Entretanto, você sabia com certeza que eu não resistiria a tentação de te beijar. Admite-o.

Elenora acreditou perceber um brilho suspeito nos olhos de Arthur. Por acaso ria dela? Não, se o fizesse não teria sentido. Aquela questão era muito séria.

— Isto não é verdade — ela respondeu de uma forma inflexível —. Não pensei nem por um momento que não pudesse resistir a mim. É mais, tampouco acredito agora.

— Asseguro que é verdade. — Arthur acabou de ajustar as calças —. Temo que não sou mais que uma vítima desventurada dos seus encantos.

Estava-lhe tirando o sarro, pensou Elenora. Ou não?

Olhou-o diretamente nos olhos, mas não conseguiu esclarecer nada. Sua confusão aumentava.

— A palavra “desventurado” é a última que usaria para te definir — respondeu ela.

— Agora tenta esquivar a responsabilidade e dá a entender que eu deveria ter me mostrado mais forte e decidido. — Arthur sacudiu a cabeça enquanto se dirigia para ela —. Decepciona-me, senhorita Lodge, acreditava que era muito mais honesta e que, em nenhum caso, utilizaria este truque.

“Maldição”, ela pensou. Não conseguia entender quais eram suas intenções.

— Não se trata de nenhum truque — ela replicou —. Além disso, devo dizer que...

O som amortecido da porta principal a interrompeu. Ouviram-se vozes no vestíbulo e uma onda de pânico invadiu Elenora. Margaret e Bennett tinham chegado.

Elenora olhou a seu redor com nervosismo enquanto procurava uma saída. Possivelmente podia sair ao jardim pela janela. Mas então, como entraria de novo na casa?

— O que ocorre, Elenora? — perguntou Arthur com suavidade enquanto se abotoava a camisa —. Não tinha calculado que sua noite de sedução podia ver-se interrompida em um momento inoportuno?

— Não se burle de mim — ela manifestou em um sussurro rouco —. Poderiam entrar aqui a qualquer momento. O que vamos fazer?

Arthur lhe dedicou uma reverência galante.

— Não tema. Embora não estou convencido de que você mereça isso, te salvarei da vergonha de ser descoberta em uma situação tão comprometedora.

— Como? — perguntou ela sem rodeios.

— Deixe-me a mim os detalhes.

Arthur pegou sua túnica, levou-a ao extremo do recinto e a depositou perto da janela que dava ao jardim. Em seguida, escondeu o lenço entre as dobras.

Depois ajudou Elenora a colocar o vestido, pegou-a pelo braço e a conduziu até a escada de caracol. Ela contemplou a galeria que percorria as paredes da biblioteca com o cenho franzido.

— Esperas que me esconda aí em cima?

— Um dos painéis na realidade é uma porta oculta que se comunica com o armário da roupa branca. — Arthur a apressou para que subisse os estreitos degraus —. Ninguém utilizou esta porta em anos. Quase tinha esquecido que existia até que deduzi que Ibbitts deveu esconder-se aí para escutar nossas conversas.

— Um painel secreto? De verdade?

— De verdade.

— Que emocionante! — Elenora inspirou enquanto subia com ligeireza os degraus diante do Arthur —. Igual a uma novela de mistério.

— Já vejo que considera mais estimulante a porta secreta que ter feito amor comigo.

— Oh, não! De verdade. É só que nunca tinha tido a oportunidade de utilizar uma porta secreta.

— Não busque desculpas. Já maltrataste bastante minha delicada sensibilidade por esta noite.

— Se espera que eu considere esse comentário como uma brincadeira — ela repôs —, devo dizer que seu senso de humor deixa muito a desejar.

— O que te faz supor que estou brincando?

Uma vez na galeria, Arthur girou para a esquerda, agarrou a borda de um dos painéis e o puxou. Elenora o observou, fascinada, enquanto uma seção da biblioteca se deslizava a um lado e deixava ao descoberto um armário às escuras.

— Entra. — Arthur a apressou para que entrasse —. A porta do armário comunica com o corredor, muito perto do seu dormitório. Sugiro que se apresse e chegue ali antes que Margaret termine de despedir-se de Bennett.

Elenora se introduziu nas sombras e se virou.

— E você?

O brilho malicioso do olhar de Arthur desapareceu e sua expressão se voltou fria e reflexiva.

— Acredito que esta é uma oportunidade excelente para ter um bate-papo com Bennett. Pedirei que me ajude a vigiar a ti e a Margaret.

— Sim, certamente!

— Boa noite, minha doce sedutora. Da próxima vez, te asseguro que farei o possível para te proporcionar uma experiência mais estimulante.

Arthur fechou o painel diante de Elenora, antes que ela pudesse recuperar-se da ideia de que haveria uma próxima vez.

 

Arthur desceu a escada de caracol cantarolando uma melodia. A combinação de culpa, pânico e o brilho que seu amor tinha produzido nos maravilhosos olhos castanhos de Elenora não tinha preço.

Era surpreendente que ela tivesse aceitado a responsabilidade de brincar com suas emoções, pensou Arthur com alívio.

A situação deles ficou muito mais complexa depois do que aconteceu naquela noite. Entretanto, apesar de tudo, ele se sentia melhor do que havia se sentido em muito tempo.

Por outro lado, tinha que resolver não apenas um, mas dois assassinatos.

Quando chegou aos pés da escada, alisou o cabelo para trás e se deu uma rápida olhada no espelho octogonal que havia do lado da porta: queria assegurar-se de ter o aspecto de um homem que estava na intimidade de sua biblioteca tentando relaxar-se depois de uma ocupada noite na cidade.

Arthur examinou então o recinto. Pelo que pôde comprovar, não havia nenhum indício de que acabasse de experimentar um ataque de paixão imprudente e selvagem com sua falsa noiva.

Arthur abriu a porta da biblioteca e percorreu com lentidão o corredor procurando marcar bem os passos para assegurar-se de que Margaret e Bennett se dessem conta da sua chegada.

O murmúrio de suas vozes se deteve quando ele entrou no vestíbulo. Margaret e Bennett estavam muito juntos e o ambiente de intimidade que os rodeava era inconfundível.

Os dois o olharam, Margaret com as bochechas coradas e Bennett com uma expressão de surpresa.

— Boa noite, Arthur — saudou Margaret com voz alegre —. Não sabia que estava acordado.

Arthur inclinou a cabeça e afirmou:

— Estou seguro de que está exausta e desejando ir para o seu dormitório.

— Bom, na realidade, não... — começou Margaret.

Arthur a ignorou e olhou a Bennett.

— Estava tomando um brandy na biblioteca. Deseja me acompanhar?

Bennett apertou o punho da sua bengala.

— Sim, claro.

Margaret franziu o cenho com uma expressão evidente de intranquilidade.

— Por que quer falar a sós com Bennett, Arthur? Suponho que não me porá em evidência e lhe perguntará a respeito das suas intenções, não? Se for isso o que pretende, recordo-te que sou uma viúva, não uma jovenzinha sem experiência, e que minha vida pessoal é assunto meu.

Arthur suspirou.

— Outra mulher que acredita que lhe deveriam permitir tomar suas próprias decisões. Em que demônios está se convertendo o mundo, Fleming? Nesse ritmo, as mulheres acabarão muito em breve não necessitando dos pobres homens.

— Falo sério, Arthur — respondeu Margaret com firmeza.

— Está bem, querida — disse Bennett lhe beijando a mão —. St. Merryn e eu somos velhos amigos. Não tenho nenhum inconveniente em tomar um brandy com ele na biblioteca.

A Margaret não lhe agradava muito essa decisão, mas seu olhar se suavizou.

— Muito bem, mas me prometa que você não permitirá que ele o coaja e o obrigue a fazer afirmações ou promessas contrárias a seus desejos.

Bennett lhe deu uns tapinhas tranquilizadores na mão.

— Não se preocupe comigo, querida. Sou perfeitamente capaz de dirigir esta situação.

— Sim, claro.

Margaret lançou a Arthur um último olhar de advertência, levantou um pouco as saias e subiu com ligeireza as escadas.

Arthur precedeu a Bennett e avançaram pelo corredor em direção à biblioteca.

— Estou convencido de que você adorará meu novo brandy.

Bennett riu.

— Não tenho nenhuma dúvida. Você só compra o melhor.

Arthur entrou na biblioteca detrás de Bennett, fechou a porta e se dirigiu ao móvel onde estavam as taças e a licoreira.

— Sente-se, por favor — pediu a seu amigo —. Pedi que viesse porque tenho um assunto muito importante que discutir contigo.

— Compreendo. — Bennett se sentou em uma das poltronas que estavam em frente à lareira e estirou as pernas —. Suponho que deseja me perguntar a respeito das minhas intenções com Margaret. Asseguro-te que são completamente honestas.

— Claro que são. Santo céu, Bennett, esta é a última de minhas preocupações. É um dos homens mais honestos que conheci em toda a minha vida.

Bennett se sentiu algo inquieto e, ao mesmo tempo, satisfeito pelo comentário.

— Bom, obrigado. O sentimento é recíproco, como sem dúvida já sabe.

Arthur assentiu com brutalidade, pegou as duas taças que acabava de encher e estendeu uma a Bennett.

— Me alegro em ver a Margaret tão feliz e sei que você é a razão de que se sinta assim.

Bennett se relaxou e bebeu um sorvo de brandy.

— Considero-me um homem muito afortunado. Não acreditei que pudesse amar a outra mulher depois de perder a Elizabeth. Não é frequente que a vida nos ofereça uma segunda oportunidade, não crê?

— Não. — Arthur refletiu uns instantes —. Os dois formam um casal excelente. Você lê novelas e Margaret as escreve. Resulta ideal, não crê?

Bennett se engasgou e se apressou a perguntar:

— Conhecia sua profissão de escritora?

— Certamente.

Arthur se sentou em frente a Bennett.

— Ela acredita que você não sabe que escreve para a editorial Minerva com o pseudônimo de senhora Margaret Mallory — informou Bennett.

— Por que todo mundo supõe que não sei o que ocorre na minha própria família? —perguntou Arthur. Viu então uma fita azul-celeste sobre o tapete, perto do sofá, e se interrompeu.

Tratava-se de uma das ligas de cetim que Elenora usava para prender as meias.

Arthur ficou em pé de repente.

Bennett franziu o cenho.

— Ocorre algo?

— Não, nada. De repente, pensei em atiçar um pouco o fogo.

Arthur pegou o atiçador, sacudiu as brasas sem vontade algumas vezes e retornou com calma a seu assento de tal modo que, durante o percurso, deteve-se muito perto da liga.

— Não te pedi que viesse para falar de Margaret, mas sim do estado das minhas investigações. Houve outro assassinato.

— Não me diga! — Bennett se interrompeu quando estava a ponto de tomar um gole de brandy e suas sobrancelhas se uniram formando uma espessa linha por cima do seu nariz —. A que assassinato se refere?

Arthur aproveitou o momento de distração e, com a ponta da bota, empurrou a liga debaixo do sofá. Ainda era visível, se soubesse onde estava, mas era pouco provável que Bennett ficasse de joelhos para examinar o tapete em busca de indícios de um ato de libertinagem.

Arthur, satisfeito por ter feito tudo o que podia para esconder a prova, retornou por fim a seu assento.

— Descobri esta noite o cadáver de Ibbitts.

— Santo céu!

Arthur se sentou.

— A situação se tornou muito perigosa. Necessitarei sua ajuda, Fleming.

 

Elenora ouviu que batiam na porta do seu dormitório, justo quando estava tirando a túnica e o vestido. Era Margaret.

— Um momento — respondeu.

Elenora apertou o vestido e o disfarce no interior do armário, pegou o roupão e o vestiu por cima dos ombros. Tirou os brincos e os grampos do cabelo e colocou um gorro branco.

Um olhar rápido no espelho a convenceu de que parecia uma mulher a quem acabavam de tirar da cama.

Elenora abriu a porta com a esperança de que Margaret não se desse conta de que respirava com agitação demais para alguém que acabava de despertar. Entretanto, Margaret não parecia estar de humor para fixar-se em detalhes supérfluos. Parecia muito ansiosa.

— Está bem? — perguntou Elenora alarmada.

— Sim, sim, estou bem, mas tenho que falar contigo.

— Claro. — Elenora ficou de lado para que Margaret pudesse entrar no dormitório —. O que aconteceu?

— Trata-se de Arthur. Levou Bennett à biblioteca para manter uma conversa privada com ele. — Margaret caminhava com nervosismo de um lado para outro na frente da penteadeira —. Aterroriza-me pensar que possa lhe exigir a Bennett que confesse quais são suas intenções comigo.

— Compreendo.

— Recordei a Arthur que sou viúva e que, portanto, tenho direito a desfrutar de uma vida privada com um cavalheiro, sejam quais forem suas intenções.

— Certamente.

— Mas você conhece a Arthur há algum tempo e sabe que está acostumado a tomar as rédeas da vida dos outros embora estes não o desejem.

— Sim, bom, se por acaso isso te faz sentir melhor, acredito que posso te assegurar que o assunto que tratamos agora mesmo na biblioteca não tem a ver com as intenções de Bennett.

Margaret deixou de caminhar e se virou para olhar a Elenora com uma expressão inquisitiva no rosto.

— Está segura? — perguntou.

— Bastante. Possivelmente seja melhor que se sente. Trata-se de uma longa história que começa com o assassinato de George Lancaster.

— Santo céu! — exclamou Margaret enquanto se sentava de repente na cadeira que estava perto da cômoda.

 

Depois de meia hora, Bennett, comprometido com uma causa nobre, saiu da casa. Arthur o acompanhou até a porta principal e a fechou com chave depois de Bennett ter saído. Em seguida apagou os abajures do vestíbulo e retornou à biblioteca.

Uma vez no interior do enorme recinto, dirigiu-se ao sofá, colocou um joelho no tapete e procurou a liga azul.

Depois de pegar o pedaço de fita condenatório, ficou de pé. Durante uns instantes examinou a liga que sustentava na palma da mão. Era delicada e tão feminina que resultava excitante. Arthur sentiu que se excitava só olhando-a: recordou como a tinha tirado da perna de Elenora para poder lhe baixar a meia.

Cada vez que entrasse naquele recinto recordaria o que tinha acontecido ali naquela noite, pensou Arthur. Fazer amor com Elenora o tinha mudado de uma maneira que, embora ainda não pudesse descrever, sabia que o tinha afetado de uma forma muito profunda.

Acontecesse o que acontecesse no futuro, nunca voltaria a ser o mesmo homem.

 

Pela manhã, Elenora não desceu ao andar de baixo até que já não pôde mais aguentar a fome. Inclusive então, duvidou e considerou a possibilidade de pedir que lhe subissem o café da manhã ao dormitório.

Finalmente abriu a porta e saiu com determinação ao corredor. Tomar o café da manhã no quarto para evitar o encontro com Arthur teria constituído um ato de extrema covardia.

Surpreendeu-se ao dar-se conta de que se sentia bem. Ao deitar-se acreditou que passaria uma noite agitada, mas a verdade era que tinha dormido profundamente. Melhor assim, disse a si mesma quando chegou ao final das escadas: ao menos não teria os olhos vermelhos e inchados nem a pele opaca pela falta de sonho.

Para seu reencontro com Arthur, tinha escolhido um vestido de musselina verde com uma gola branca. Tinha a impressão de que com aquela cor viva parecia mais segura de si mesma.

Aquela manhã necessitava de toda a autoconfiança que pudesse reunir. O que se dizia a um homem no dia seguinte de ter feito amor com ele de uma forma louca e apaixonada na sua biblioteca?

— Bom dia, senhora. — Ned apareceu no vestíbulo com aspecto preocupado —. Agora mesmo ia enviar a nova donzela ao seu quarto para que lhe perguntasse se queria tomar o café da manhã lá.

— Muito considerado da sua parte, Ned, mas só tomo o café da manhã na cama quando estou doente. E quase nunca o estou.

— Sim, senhora. O café da manhã está servido no refeitório pequeno, como ordenou, senhorita. Sally e sua irmã o arrumaram ontem pela tarde.

— Excelente.

Elenora lhe ofereceu um sorriso resplandecente, inspirou para tomar forças e percorreu o corredor até chegar ao refeitório pequeno.

Apesar de sua inquietação por ter que ver a Arthur novamente, dedicou uns instantes a desfrutar das mudanças que se produziram naquela estadia.

O refeitório estava tão limpo que quase brilhava e das bandejas de prata que havia no aparador emanavam aromas muito apetecíveis. A luz do sol quente primaveril entrava em abundantemente pelas janelas. A vista do jardim ficava um pouco desmerecida porque a vegetação era muito exuberante e estava um pouco descuidada. Entretanto isto mudaria muito em breve, pois os jardineiros novos começariam a trabalhar no jardim naquele mesmo dia.

Elenora se surpreendeu ao comprovar que Arthur não estava sozinho na mesa. Margaret lhe acompanhava.

— Ah, já está aqui! — exclamou Margaret —. Começava a me preocupar com ti. Estava a ponto de enviar a alguém para averiguar se estava bem.

Elenora, consciente de que Arthur a observava com uma atitude divertida, tentou não ruborizar-se.

— Como acabo de lhe explicar a Ned, desfruto de uma excelente saúde — respondeu ela.

Arthur se levantou com amabilidade e lhe ofereceu uma cadeira.

— Perguntávamo-nos se não teria feito muito exercício ontem de noite... — Elenora lhe lançou um olhar recriminatório —, na pista de baile — Arthur terminou com total inocência.

Elenora observou fixamente seu rosto durante uns segundos e, sob a sua ironia, percebeu uma preocupação genuína. Por todos os santos, acreditava realmente que ela precisaria permanecer de cama durante todo um dia para recuperar-se da impressão de ter feito amor com ele? Ela não era uma frágil florzinha.

— Não seja absurdo.

Elenora ignorou a cadeira que ele sustentava para ela, agarrou seu prato e se dirigiu ao aparador para inspecionar as bandejas repletas de comida.

— Arthur está te tirando o sarro — Margaret respondeu imediatamente —. Claro que não estava preocupada de que tivesse dançado muito ontem de noite. Só acreditei que os horríveis acontecimentos posteriores podiam ter te afetado, isto é tudo. Arthur e eu estávamos falando do que aconteceu. Foi uma coisa espantosa.

— Não estou afetada, asseguro-lhe isso.

Elenora examinou com atenção o conteúdo das fontes fumegantes.

— Sugiro-lhe o peixe — comentou Arthur —. Está muito bom.

— E prova os ovos — apontou Margaret —. Te asseguro que a irmã da Sally é uma cozinheira excelente.

Elenora se serviu um pouco de tudo e retornou à mesa, onde Arthur ainda lhe oferecia a cadeira.

Elenora se sentou.

— Obrigada.

Arthur ficou olhando a comida que estava amontoada no prato de Elenora.

— É óbvio que seu apetite não foi afetado pelos acontecimentos recentes.

— Nem um pouco, senhor.

Ele se sentou diante dela e comentou:

— Eu também estava bastante faminto esta manhã.

Elenora decidiu que já tinha suportado suficiente das suas insinuações. Pegou uma faca e, enquanto passava manteiga numa torrada, perguntou:

— Que passos pensa dar hoje nas suas investigações, senhor?

A expressão de Arthur ficou grave.

— Com toda a excitação de ontem de noite, esqueci-me de lhe mencionar que, antes de ir à cena do crime, descobri uma pista interessante.

Elenora baixou a torrada.

— Do que se trata?

— Do nome do cavalheiro que podia ser Saturno. Pelo visto, faleceu faz alguns dias. Tenho a intenção de fazer uma visita a sua viúva esta manhã.

— Esta notícia é muito emocionante — respondeu Elenora, muito entusiasmada pela notícia para repreendê-lo por não haver comentado antes —. Deve me levar com o senhor.

Ele arqueou uma sobrancelha.

— Por que razão?

— Uma mulher que acaba de enviuvar pode sentir-se pouco estimulada a falar de questões privadas com um cavalheiro a quem não conhece. Se houver outra mulher presente, é provável que se sinta mais cômoda.

Arthur refletiu sobre aquilo durante uns instantes e finalmente admitiu:

— Possivelmente tenha razão. Muito bem, sairemos às onze e meia.

Elenora se relaxou um pouco. Embora todo o resto tivesse mudado entre os dois, uma coisa permanecia inalterável: Arthur ainda a tratava como a uma sócia em relação a aquele assunto, uma sócia cujo conselho valorizava. Elenora decidiu aferrar-se a aquele fato.

Margaret sorriu.

— Falando de outra questão — começou a dizer —, Arthur acaba de me confessar que sabe que escrevo novelas. Não te parece surpreendente? E pensar que temia que me enviasse de volta ao campo se descobrisse a verdade.

Elenora olhou ao Arthur aos olhos e sorriu. Poucas das coisas sobre aqueles com quem se sentia responsável escapavam ao conhecimento desse homem.

— De certa maneira, não me surpreende descobrir que ele soubesse sobre sua profissão durante todo este tempo, Margaret — declarou Elenora.

 

Meia hora depois, Elenora abriu a porta do seu dormitório e, antes de sair, inspecionou o corredor. Estava vazio. Fazia uns minutos tinha ouvido Arthur dirigir-se a seu quarto: devia vestir-se para ir visitar a viúva Glentworth. Margaret estava trabalhando em seu manuscrito, como era habitual àquela hora.

Isto significava que não haveria ninguém na biblioteca.

Elenora saiu ao corredor e se dirigiu com rapidez ao armário da roupa branca. As sapatilhas que calçava não faziam nenhum ruído ao caminhar sobre o tapete.

Quando chegou ao armário, voltou a inspecionar o corredor para assegurar-se de que ninguém a observava. Em seguida entrou no recinto, pequeno e escuro, e fechou a porta.

A cegas, encontrou a alavanca que abria o painel secreto e a puxou com precaução.

O painel se deslizou para o lado. Elenora saiu à galeria e olhou para baixo para assegurar-se de que nenhum dos criados tinha decidido limpar a biblioteca naquele momento. Não viu ninguém. Como esperava, dispunha de toda a sala para ela sozinha.

Elenora se arregaçou as saias, baixou com ligeireza a escada de caracol e cruzou o cômodo até o lugar onde Arthur e ela fizeram amor.

Examinou a zona com ansiedade, mas não havia nenhum rastro da sua liga azul. Tinha que estar por ali, pensou ela.

Na noite anterior não tinha se dado conta de que não a tinha até que Margaret saiu de seu dormitório. Quando notou que a meia da perna esquerda estava enrugada sobre seu tornozelo, supôs que a liga tinha se desatado quando tirou o vestido a toda pressa para vestir o roupão. Então decidiu que a buscaria pela manhã, à luz do dia.

Entretanto, embora tivesse examinado o cômodo a fundo, não a tinha encontrado. Então se deu conta de que o mais provável era que a tivesse perdido na biblioteca. Quase sofreu um ataque de histeria, quando pensou que Bennett Fleming podia tê-la visto e chegado a conclusão óbvia,

Uma coisa era ser uma mulher de mundo, uma dama misteriosa e com experiência, e outra muito distinta que um cavalheiro amável e correto como Bennett Fleming encontrasse sua liga em um lugar onde não tinha por que estar.

Elenora soltou um suspiro de alívio quando viu que a liga não estava à vista. O mais provável era, portanto, que Bennett não a tivesse visto na noite anterior, embora, por desgraça, algum dos criados podia havê-la encontrado naquela manhã.

Elenora ficou engatinhando para procurar debaixo do sofá.

— Busca isto? — perguntou Arthur desde cima.

O som de sua voz sobressaltou a Elenora, que levantou a cabeça com tal precipitação que esteve a ponto de golpear-se contra a borda da mesa.

Elenora se tranquilizou e levantou a vista para a galeria, onde Arthur, com ar despreocupado, observava-a apoiado no corrimão. A liga azul pendia dos dedos da sua mão direita. Elenora pensou que provavelmente a viu quando ela entrou no armário e a tinha seguido.

Elenora, irritada, ficou de pé.

— De fato — explicou enquanto procurava não levantar a voz —, a estava procurando. Poderia ter suposto que estaria preocupada ao não saber onde a tinha perdido. Se me houvesse dito que a tinha encontrado, teria me economizado muitas preocupações.

— Não se inquiete. Encontrei-a ontem de noite antes que Fleming a visse. — Arthur lançou a liga ao ar com negligência e voltou a agarrá-la com uma atitude impassível —. Em nenhum momento imaginou que você me seduziu momentos antes que ele chegasse.

Elenora enrugou o cenho, levantou um pouco as saias com ambas as mãos e começou a subir as escadas.

— Permita-me dizer que, em determinadas ocasiões, seu senso de humor é sem dúvida alguma retorcido.

— Algumas pessoas te diriam que em realidade não tenho senso de humor, nem retorcido nem de nenhum outro tipo.

— É compreensível que algumas pessoas tenham chegado a esta conclusão. — Elenora se deteve na parte superior das escadas e esticou a mão para pegar a liga —. Queira me devolver isso.

— Acredito que não — disse Arthur introduzindo a liga em um de seus bolsos —. Decidi começar uma coleção.

Ela o olhou, incrédula.

— Não pode estar falando sério.

— Compra outro jogo de ligas e faça com que me enviem a fatura — respondeu ele.

A seguir a beijou na boca antes que ela pudesse repreendê-lo. Elenora estava sem fôlego quando enfim separou seus lábios dos dela.

— Agora que o penso, será melhor que compre vários jogos de ligas — acrescentou Arthur sorrindo com grande satisfação —. Tenho a intenção de que seja uma coleção muito extensa.

 

— Enterramos meu marido faz alguns dias — disse a senhora Glentworth contemplando o retrato pendurado em cima da lareira —. Foi tudo muito repentino. Morreu vítima de um acidente no seu laboratório. O gerador de eletricidade, sabem? Deveu sofrer uma terrível comoção e lhe parou o coração.

— Por favor, aceite nossas condolências por sua perda, senhora Glentworth — Elenora manifestou com doçura.

A senhora Glentworth assentiu mecanicamente com a cabeça. Tratava-se de uma mulher frágil e ossuda. Tinha o cabelo cinza e ralo recolhido sob um gorro velho. Um ar de digna pobreza e estoica resignação pesava sobre seus ombros magros.

— Adverti-lhe a respeito daquela máquina. — A senhora Glentworth apertou o lenço que sustentava nas mãos e esticou a mandíbula como se lhe chiassem os dentes —. Mas ele nunca me escutou. Sempre realizava experimentos com ela.

Elenora contemplou a Arthur, que estava de pé junto à janela sustentando uma xícara intacta de chá em uma mão. Seu rosto constituía uma máscara impassível que, entretanto, não ocultava sua expressão atenta. Elenora estava convencida de que estava pensando, precisamente, na mesma coisa que ela. À luz dos últimos acontecimentos, o acidente fatal do laboratório do Glentworth parecia algo mais que uma mera coincidência.

Entretanto, se a senhora Glentworth suspeitava que seu marido tivesse sido assassinado, não dava nenhuma amostra disso. Possivelmente não lhe importava muito, pensou Elenora. A opaca sala estava envolta em uma penumbra apropriada para uma situação de luto, mas a viúva não parecia sentir-se triste, a não ser tensa e desesperada. Elenora teria jurado que, por trás das palavras corretas e das maneiras civilizadas da sua anfitriã, ardia uma raiva irrefreável.

A senhora Glentworth os tinha recebido de bom grado, sem dúvida intimidada pelo nome e título de Arthur. Entretanto, era óbvio que estava um pouco desconcertada.

— A senhora sabia que George Lancaster, meu tio avô, foi assassinado no seu laboratório por um ladrão faz umas semanas? — perguntou Arthur.

A senhora Glentworth franziu o cenho.

— Não, não sabia — respondeu.

— E a senhora sabia que seu marido e Lancaster tinham sido muito bons amigos quando eram jovens? — acrescentou Elenora com voz suave.

— Certamente. — A senhora Glentworth apertou o lenço —. Sou consciente de que os três eram amigos muito íntimos.

Elenora notou que Arthur ficava muito quieto e não se atreveu a olhá-lo.

— A senhora disse os três, senhora Glentworth? — perguntou Elenora com a esperança de que sua voz refletisse uma curiosidade desinteressada.

— Durante uma época, eram como unha e carne. Conheceram-se em Cambridge, sabem? A única coisa que lhes preocupava era a ciência, não o dinheiro, de modo que se debruçavam sobre seus laboratórios e seus experimentos ridículos.

— Senhora Glentworth — começou Elenora com cautela —, pergunto-me se...

— Asseguro-lhes que, em ocasiões, desejei que meu marido fosse um assaltante ou um salteador de caminhos — confessou a senhora Glentworth. De repente se estremeceu e, como o muro de uma represa se derrubasse no seu interior, a ansiedade e a raiva reprimidas brotaram ao exterior —. Possivelmente então teria ficado algum dinheiro para mim. Mas não, ele estava obcecado com as ciências naturais. Gastou virtualmente até o último penique em aparelhos para o laboratório.

— Que tipo de experimentos realizava o seu marido? — perguntou Arthur.

A senhora Glentworth pareceu não ter ouvido a pergunta. Sua raiva fluía sem freio.

— Glentworth tinha uns ganhos respeitáveis quando nos casamos — prosseguiu —. Se não tivesse sido assim, meus pais não teriam permitido que me casasse com ele. Entretanto, atuou de forma irresponsável e nunca investiu nem um penique. Gastou todo o dinheiro sem ter consideração nem por mim nem por suas filhas. Era pior que um viciado no jogo. Sempre alegava que necessitava um microscópio mais moderno ou uma lente nova.

Arthur interveio para reconduzir a conversação.

— Senhora Glentworth, a senhora mencionou que seu marido tinha um segundo amigo...

— Olhem ao seu redor. — A senhora Glentworth agitou a mão com a que sustentava o lenço —. Veem algum objeto de valor? Nada. Nada absolutamente. Ao longo dos anos, meu marido vendeu a prataria e as pinturas para obter dinheiro e comprar artigos para o seu laboratório. Ao final, inclusive vendeu sua querida caixa de rapé. Acreditei que nunca se separaria dela. Inclusive me havia dito que queria que o enterrassem com ela.

Elenora olhou com mais atenção o retrato que estava em cima do suporte da lareira. Representava a um cavalheiro corpulento e de cabelo ralo vestido com umas calças e um casaco passados de moda. Em uma mão sustentava uma caixa de rapé em cuja tampa estava incrustada uma pedra vermelha esculpida de grande tamanho.

Elenora olhou a Arthur e viu que ele também examinava o retrato.

— Vendeu a caixa de rapé que aparece neste retrato? — perguntou Arthur.

A senhora Glentworth inspirou levemente pelo nariz enquanto o tampava com o lenço.

— Sim — respondeu.

— Sabe quem a comprou? — ele voltou a perguntar.

— Não. Suponho que a levou a uma casa de empenho. E o mais provável é que conseguisse muito pouco dinheiro em troca. — A mandíbula da senhora Glentworth tremeu de raiva —. Embora eu não tenha visto nem um penique desse dinheiro. De fato, nem sequer se incomodou em me contar que a tinha vendido.

Arthur a olhou fixamente.

— Tem alguma ideia de quando a empenhou?

— Não — ela respondeu —. Deve ter sido um pouco antes que se matasse com o gerador de eletricidade. — A senhora Glentworth utilizou o lenço enrugado para secar uma ou outra lágrima —. Possivelmente a vendeu aquele mesmo dia. Acredito recordar que a tinha durante o café da manhã. Saiu de casa para praticar um pouco de exercício e demorou um pouco em voltar. Sem dúvida, foi então quando foi ver o prestamista.

— Quando se deu conta de que a caixa não estava? — perguntou Elenora.

— Não me dei conta até que descobri seu cadáver, naquela noite. Naquela tarde eu tinha ido visitar uma amiga que estava doente. Quando retornei meu marido já estava em casa e se trancou no laboratório, como estava acostumado a fazer sempre. Nem sequer se incomodou em sair para jantar.

— Isto era incomum? — perguntou Arthur.

— Absolutamente. Quando se abstraia com algum de seus experimentos, podia passar horas no laboratório. Entretanto, antes de ir à cama bati na porta para lhe recordar que apagasse as luzes quando subisse ao dormitório. Como não obtive nenhuma resposta, preocupei-me. Como já disse, a porta estava fechada com chave, de modo que tive que ir procurar uma cópia. Então foi quando... quando eu...

A senhora Glentworth pôs-se a chorar e soou o nariz.

— ... quando descobriu seu cadáver — Elenora terminou com amabilidade.

— Assim é. Demorei um tempo em me tranquilizar e dar-me conta de que a caixa de rapé não estava. Então cheguei à conclusão de que deveu tê-la vendido naquele mesmo dia. Só Deus sabe o que fez com o dinheiro, pois não estava nos seus bolsos. Possivelmente decidiu pagar a algum de seus credores mais insistentes.

A seguir se produziu um breve silêncio. Elenora intercambiou outro olhar de cumplicidade com Arthur, mas nenhum dos dois disse nada.

— De qualquer maneira, nunca acreditei que se separaria daquela caixa — manifestou a senhora Glentworth depois de um momento —. Sentia-se muito unido a ela.

— Seu marido esteve sozinho em casa naquela tarde, enquanto você visitava sua amiga? — perguntou Arthur.

— Assim é. Temos uma criada, mas naquele dia não estava em casa. Na realidade, já não tem estado muito por aqui. Faz tempo que não lhe pagamos e suspeito que está procurando outro emprego.

— Compreendo — declarou Arthur.

A senhora Glentworth olhou a seu redor com ar resignado.

— Suponho que terei que vender a casa. É a única propriedade que possuo. Só espero que obtenha por ela dinheiro suficiente para pagar os credores do meu marido.

— O que fará depois de vender a casa? — perguntou Elenora.

— Estarei obrigada a me mudar à casa da minha irmã e de seu marido. Detesto-os e eles sentem o mesmo por mim. Além disso, não lhes sobra dinheiro. Terei uma vida miserável, mas que outra coisa posso fazer?

— Eu lhe direi o que a senhora pode fazer — declarou Elenora de uma forma resolvida —. Pode você vender a casa a St. Merryn. Ele lhe dará mais do que conseguiria se a vendesse a qualquer outra pessoa. Além disso, lhe permitirá utilizá-la durante o resto da sua vida.

A senhora Glentworth a olhou com a boca aberta.

— Como diz? — Lançou um olhar rápido e incrédulo a Arthur —. Por que quereria o senhor conde comprar esta casa por mais dinheiro do que vale?

— Porque hoje a senhora nos ajudou muitíssimo e ele se sentirá feliz ao poder lhe mostrar seu agradecimento. — Elenora olhou a Arthur e acrescentou —: Não é assim, Arthur?

Arthur arqueou as sobrancelhas, mas só disse:

— Certamente.

A senhora Glentworth olhou a Arthur com ar inseguro.

— O senhor comprará a minha casa só porque respondi a suas perguntas?

Ele sorriu levemente.

— A verdade é que me sinto muito agradecido, senhora. Mas desejaria lhe fazer uma última pergunta.

— Sim, claro.

A esperança e o alívio começaram a iluminar a expressão gasta da senhora Glentworth.

— Recorda o nome do outro amigo do seu marido?

— Lorde Treyford — respondeu a senhora Glentworth franzindo um pouco o cenho —. Nunca o conheci, embora, ao princípio, meu marido o mencionava com frequência. Mas Treyford está morto. Morreu faz muitos anos, quando ainda era jovem.

— Sabe alguma outra coisa dele? — insistiu Arthur —. Estava casado? Deixou alguma viúva a quem possa entrevistar? Algum filho, possivelmente?

A senhora Glentworth refletiu uns instantes e sacudiu a cabeça.

— Não acredito. Faz muito tempo, meu marido mencionou em diversas ocasiões que Treyford estava dedicado a suas investigações de corpo e alma e que não tinha tempo para as exigências que implicavam uma esposa e uma família. — A senhora Glentworth suspirou —. Na realidade, acredito que sentia inveja de Treyford porque este não estava submetido a este tipo de obrigações.

— Seu marido fez algum outro comentário a respeito de Treyford? — perguntou Arthur.

— Estava acostumado a dizer que lorde Treyford era, de longe, o mais brilhante dos três. Em uma ocasião me comentou que, se Treyford tivesse vivido mais anos, o teriam considerado o segundo Newton da Inglaterra.

— Compreendo — respondeu Arthur.

— Acreditavam-se muito inteligentes, sabe? — disse a senhora Glentworth apertando as mãos com força sobre o seu regaço. Parte da sua raiva refletiu-se novamente no seu rosto —. Estavam convencidos de que mudariam o mundo com seus experimentos e suas elevadas conversas sobre as ciências. Entretanto, qual foi a contribuição dos seus estudos sobre a filosofia natural? Nenhuma. E, agora, todos estão mortos, não é assim?

— Isso parece — respondeu Elenora em voz baixa.

Arthur deixou sobre a mesa sua xícara de chá sem terminar.

— Foi de grande ajuda, senhora Glentworth. Agora, se nos desculpar, devemos ir. Me encarregarei de que meu administrador a visite imediatamente para resolver a questão da casa e de seus credores.

— Salvo ela, claro — terminou a senhora Glentworth amargamente —. Ela ainda está viva. Sobreviveu a todos eles, não é assim?

Elenora não olhou a Arthur, mas era consciente de que, como ela, ficou gelado.

— Ela? — Arthur repetiu com um tom inexpressivo.

— Sempre a considerei uma espécie de feiticeira — acrescentou a senhora Glentworth com voz grave e lúgubre —. Possivelmente lhes lançou uma maldição. Não estranharia.

— Não a compreendo — respondeu Elenora —. Havia uma mulher no estreito círculo de amizades que seu marido tinha antigamente?

Outra onda de raiva cruzou o rosto da senhora Glentworth.

— Chamavam-na sua Deusa da Inspiração. Meu marido e seus amigos nunca perderam suas reuniões das quartas-feiras pela tarde. Quando ela os chamava, iam imediatamente para sua casa da cidade. Então bebiam vinho do Porto e brandy e conversavam sobre filosofia natural como se fossem homens sábios e importantes. Suponho que tentavam impressioná-la.

— Quem é ela? — perguntou Arthur.

A senhora Glentworth estava tão imersa nas suas lembranças desagradáveis que a pergunta a aturdiu.

— Quem é? Lady Wilmington, é claro. Eles eram seus escravos devotos, mas agora todos morreram e ela é a única sobrevivente. Um giro estranho do destino, não acham?

 

Pouco tempo depois Arthur ajudou Elenora a subir à carruagem. Sua mente estava ocupada com a informação que a senhora Glentworth acabava de lhes proporcionar. Entretanto, isto não lhe impediu de apreciar a elegante curva das costas de Elenora quando ela se inclinou para arregaçar as saias antes de entrar na cabine do veículo.

— Conseguiu que esta visita me custasse uma boa quantidade de dinheiro — ele comentou com suavidade enquanto fechava a porta e se sentava em frente a Elenora.

— Vamos, sabe muito bem que, embora eu não tivesse estado ali, teria oferecido ajuda à senhora Glentworth. Admita-o.

— Não admito nada. — Arthur se apoiou no respaldo e centrou sua atenção na conversa que acabavam de manter na antiquada sala da viúva Glentworth —. O fato de que Glentworth falecesse por um acidente no seu laboratório só umas semanas depois de que meu tio avô fora assassinado poderia significar que o assassino não golpeou dois, a não ser três vezes.

— Glentworth, seu tio avô e Ibbitts — disse Elenora, e cruzou os braços por debaixo de seu peito como se houvesse sentido um calafrio repentino —. Possivelmente a misteriosa lady Wilmington possa nos contar algo importante. Conhece-a?

— Não, mas espero solucionar este detalhe nesta mesma tarde, se for possível.

— Sim, claro, como o fez com a senhora Glentworth.

— Assim é.

— Seu título e sua fortuna sem dúvida lhe proporcionam alguma ou outra vantagem — comentou Elenora.

— Abrem-me portas e me permitem formular perguntas. — Arthur encolheu os ombros e acrescentou —: Entretanto, por desgraça não garantem que as respostas sejam sinceras.

E tampouco bastavam para conseguir a uma mulher que estava decidida a entrar no mundo do comércio, manter sua independência e viver a vida segundo suas próprias condições, pensou Arthur.

 

— Oh, sim, claro, lembro-me daquelas reuniões das quartas-feiras pela tarde como se tivesse celebrado a última na semana passada! — Uma expressão distante e quase melancólica escureceu os olhos azuis de lady Wilmington —. Éramos todos tão jovens e apaixonados naquele tempo! A ciência era nossa nova alquimia e os que nos dedicávamos a desvelar seus segredos nos considerávamos os inventores da era moderna.

Elenora bebeu um sorvo de chá da xícara de porcelana fina e, muito discretamente, examinou a elegante sala enquanto escutava a Clare, ou seja lady Wilmington, falando do passado. A situação ali era quase oposta a da salita insuficientemente mobiliada da senhora Glentworth, pensou Elenora. Resultava evidente que lady Wilmington não tinha problemas financeiros.

A sala estava decorada ao estilo oriental que se pôs de moda fazia alguns anos e conservava o luxo e a sensualidade do desenho original. O exótico estampado floral de cor azul escuro e dourado das paredes, o tapete de desenho intrincado e o mobiliário, de um estilo pomposo e recarregado, estavam complementados por vários espelhos de formosas molduras. Era um cômodo desenhado para atrair os sentidos.

A Elenora não lhe custava imaginar a sua enriquecida anfitriã rodeada de seus admiradores naquele entorno. Lady Wilmington devia ter perto de setenta anos, mas vestia na moda e com roupa cara. Seu vestido, de cor bronze e de cintura alta, parecia desenhado para ser usado naquele esplendoroso recinto. O fino perfil das maçãs do rosto e dos ossos de seus ombros delatava que tinha sido uma grande beleza antigamente. Na atualidade tinha o cabelo prateado, mas o penteado que usava, embora possivelmente com algum aplique, não estava absolutamente passado de moda e era muito elaborado.

Elenora sabia, por experiência, que quanto mais velha uma mulher fosse mais joias tinha e lady Wilmington não constituía uma exceção a esta regra. Brincos de pérolas se penduravam de suas orelhas e um sortido de diamantes, rubis e esmeraldas brilhavam em suas munhecas. 

Entretanto, o que realmente chamou a atenção de Elenora foi o medalhão de ouro pendurado no seu pescoço. Diferentemente dos anéis, era muito singelo. Parecia uma lembrança muito pessoal. Possivelmente continha um retrato em miniatura de um de seus filhos ou de seu marido falecido.

Arthur se dirigiu à janela mais próxima e ficou contemplando os jardins perfeitamente cuidados como se estivesse fascinado pelo que via.

— Então, a senhora se lembra do meu tio avô, Glentworth e Treyford? — perguntou Arthur.

— Certamente. — Lady Wilmington roçou com os dedos de uma mão o medalhão de ouro —. Os três se dedicavam as ciências. Viviam para seus experimentos da mesma forma que os pintores ou os escultores vivem para sua arte. — Lady Wilmington baixou a mão e sorriu com tristeza —. Mas agora todos faleceram. O último foi Glentworth e soube que seu tio avô foi assassinado por um ladrão faz umas semanas. Receba minhas condolências, senhor.

— Eu não acredito que tenha sido assassinado por um ladrão comum a quem surpreendeu roubando em seu domicílio — explicou Arthur sinceramente —. Estou convencido de que o matou alguém que está relacionado com os velhos tempos em que os cavalheiros da Sociedade das Pedras frequentavam suas reuniões das quartas-feiras.

Arthur ainda parecia estar concentrado na vista do exterior. Elenora, por outro lado, não tinha deixado de observar a sua anfitriã com atenção e percebeu o ligeiro tremor que sacudiu os ombros de lady Wilmington quando Arthur lhe deu a conhecer sua conclusão. Mais uma vez, os dedos de lady Wilmington acariciaram o medalhão.

— Impossível — respondeu lady Wilmington —. Como pode ser?

— Ainda não tenho a resposta a esta pergunta, mas estou decidido a encontrá-la. — Arthur se virou lentamente para olhá-la —. Meu tio avô não é a única vítima deste criminoso. Acredito que a morte de Glentworth tampouco foi um acidente e estou convencido de que o mesmo homem que assassinou aos dois também matou a meu antigo mordomo.

— Santo céu! — exclamou lady Wilmington com voz trêmula. Sua xícara de chá tremeu quando a deixou sobre o pires —. Não sei o que dizer. Tudo isto é tão... incrível. E diz que seu mordomo também foi assassinado? Mas por que quereria alguém fazer algo assim?

— Para fazê-lo calar depois de lhe haver surrupiado informação.

Lady Wilmington sacudiu a cabeça uma vez como se quisesse esclarecer suas ideias.

— Informação sobre o que? — perguntou.

— Sobre minhas investigações sobre o assassinato de George Lancaster, é obvio. O assassino sabe que o busco e queria averiguar o que tinha descoberto. — Arthur apertou a mandíbula e acrescentou —: O que não é muito e, certamente, não vale a vida de um homem.

— Certamente.

Lady Wilmington se estremeceu.

— Entretanto, o assassino não pensa de uma forma muito racional — Arthur continuou —. Acredito que matou a meu tio avô e a Glentworth para conseguir as pedras vermelhas que estavam incrustadas nas suas caixas de rapé.

Lady Wilmington franziu o cenho.

— Recordo com exatidão aquelas pedras tão extraordinárias. Eram fascinantes. Treyford acreditava que eram rubis inusualmente escuros, mas Glentworth e Lancaster sustentavam que tinham sido esculpidas na antiguidade a partir de um tipo de cristal único.

— Você viu em alguma ocasião o tratado do meu tio avô? — perguntou Arthur —. O que trouxe da Itália junto com as pedras.

— Sim, claro. — Lady Wilmington suspirou com nostalgia —. O que ocorre com ele?

— Estou convencido de que o assassino que estamos perseguindo está louco e acredita que pode construir o aparelho infernal descrito no Livro das Pedras — explicou Arthur.

Lady Wilmington o olhou fixamente: estava tão surpreendida que ficou, por alguns instantes, com a boca aberta.

— Não pode ser — afirmou ela finalmente com grande convicção —. Esta ideia é totalmente absurda. Em minha opinião, nem um louco a sério as instruções do velho livro.

Arthur lhe devolveu o olhar por cima do ombro.

— Os três homens falaram da máquina em alguma ocasião?

— Sim, claro. — Lady Wilmington recuperou o domínio de si mesma e sua voz se tranquilizou —. O tratado a denominava “O Raio de Júpiter”. Falamos do aparelho em várias ocasiões. De fato, Treyford e os outros tentaram construí-lo, mas ao final chegaram à conclusão de que nunca poderia funcionar.

— Como chegaram ter tanta certeza disso? — perguntou-lhe Elenora.

Lady Wilmington se massageou as têmporas com os dedos de uma mão.

— Não recordo todos os detalhes. Tem algo que ver com a dificuldade de aplicar a energia de um fogo intenso no núcleo das pedras para despertar sua energia latente. Ao final, todos estiveram de acordo em que isto não era possível.

— Sei com certeza que meu tio avô chegou a esta conclusão — comentou Arthur —. Mas a senhora está convencida de que Glentworth e Treyford também o fizeram?

— Sim. — Uma expressão ausente brilhou nos olhos de lady Wilmington. Uma vez mais, acariciou o medalhão fugazmente, como se procurasse consolo nele enquanto contemplava o passado —. Verá, naqueles dias era habitual que algumas das pessoas que se dedicavam ao estudo da ciência e a matemática paquerassem com o oculto. Na atualidade, as ciências ocultas continuam fascinando as mentes mais educadas de alguns círculos. E, sem dúvida, também será assim no futuro.

Elenora a observou com atenção e comentou:

— Dizem que o mesmo Newton se sentia fascinado pelas ciências ocultas e que dedicou muitos anos a estudar em profundidade a alquimia.

— Assim é — afirmou lady Wilmington com firmeza —. E se uma mente tão brilhante se viu seduzida pelo oculto, quem poderia culpar a um mero mortal por cair presa de mistérios tão intrigantes?

— A senhora acha que Glentworth ou possivelmente Treyford continuaram secretamente com aqueles experimentos depois de que os três decidissem abandonar a alquimia? — Arthur perguntou.

Lady Wilmington piscou e endireitou os ombros. Quando se virou para olhar a Arthur, era evidente que acabava de retornar do passado.

— Não posso imaginar algo assim nem por um instante. Depois de tudo, eram homens modernos, educados e de grande inteligência. Santo céu, não eram uns alquimistas!

— Se a senhora me permitir, tenho uma última pergunta — declarou Arthur.

— Do que se trata?

— A senhora tem certeza de que lorde Treyford faleceu na explosão que aconteceu faz alguns anos no seu laboratório?

Lady Wilmington fechou os olhos e acariciou o medalhão.

— Sim — sussurrou —. Sem dúvida, Treyford está morto. Eu mesma vi o cadáver. Seu tio avô também o viu. Suponho que não acreditarão que o assassino que procuram é um ancião...

— Não, absolutamente — respondeu Elenora —. Temos certeza de que procuramos um homem jovem, um homem que está, de fato, na flor da vida.

— Como sabem? — perguntou lady Wilmington.

— Porque o assassino teve a coragem de dançar comigo depois de matar a Ibbitts — respondeu Elenora.

Lady Wilmington pareceu atordoada.

— A senhora dançou com o assassino? Como sabe que se tratava dele? Pode descrevê-lo?

— Por desgraça, não — admitiu Elenora —. Dançamos em uma festa de disfarces e não cheguei a lhe ver o rosto. Mas sua túnica estava rasgada e achamos que esse rasgão se produziu durante a briga que manteve com o mordomo.

— Compreendo. — Lady Wilmington parecia preocupada —. Devo dizer que isso tudo é muito estranho.

— Assim é — respondeu Arthur. Olhou o relógio —. Devemos ir. Obrigado por nos receber, senhora.

— Foi um prazer. — Lady Wilmington inclinou a cabeça majestosamente —. Agradeceria-lhes que me mantiveram informada dos seus progressos em relação a este assunto.

— De acordo. — Arthur tirou um cartão de seu bolso e o deixou sobre uma mesa —. Se lembrar de algo que pudesse ser útil para a minha investigação, lhe agradeceria que me notificasse isso imediatamente seja a hora que for, não importa se é de dia ou de noite, senhora.

Lady Wilmington pegou o cartão.

— Certamente.

 

Arthur não disse nada a Elenora até que estiveram no interior da carruagem. Ele se acomodou no assento e apoiou o braço no respaldo do mesmo.

— E então? — perguntou —. O que opina de lady Wilmington?

Elenora recordou a forma em que lady Wilmington acariciava de vez em quando o medalhão ao longo da conversa.

— Acredito que estava muito apaixonada por um dos membros da Sociedade das Pedras — respondeu ela.

A expressão do Arthur ficou tensa devido à surpresa.

— Isto não é, exatamente, o que esperava ouvir, mas resulta muito interessante. Por qual dos três crê que se apaixonou?

— De lorde Treyford, que faleceu na flor da vida. Quem, tanto ela como os outros, consideravam o mais brilhante dos três. Suspeito que leva seu retrato no interior do medalhão de ouro.

Arthur se esfregou o queixo.

— Não me fixei no medalhão, mas sim me dei conta de que me ocultou informação. Fiz negócios com pessoas muito ardilosas e sei reconhecer quando alguém mente para mim.

Elenora hesitou.

— Se mentiu, suspeito que o fez porque está convencida de que era necessário.

— Possivelmente tenta proteger a alguém — comentou Arthur —. Seja o que for, agora estou convencido de que devemos conseguir mais informação a respeito de Treyford.

 

O assassino tinha dançado com a senhorita Lodge. Devia estar louco para tomar-se aquela liberdade tão ousada.

“Louco”.

Lady Wilmington se estremeceu depois de ter aquele pensamento. Permaneceu sentada durante longo tempo enquanto, ao mesmo tempo em que acariciava o medalhão com os dedos, contemplava o cartão do conde. As lembranças brotaram em seu interior e nublaram sua visão. Santo céu, aquilo era muito pior do que tinha pensado!

Depois do que lhe pareceu uma eternidade, lady Wilmington endireitou os ombros e se secou os olhos. Seu coração se rompia em pedaços, mas já não tinha outra escolha. No fundo, sempre soube que aquele momento chegaria e que teria que fazer o que devia ser feito.

Sem vontade, abriu a gaveta da mesa e tirou uma folha de papel. Enviaria a mensagem imediatamente. Se o planejava bem, a situação logo estaria sob controle.

Quando terminou de escrever a breve nota, algumas das palavras estavam borradas por suas lágrimas.

 

St. Merryn tinha visitado lady Wilmington.

O assassino quase não podia acreditar no que acabava de ver. Transtornado, permaneceu nas sombras da entrada, na metade do caminho que levava até a rua, e observou como a resplandecente carruagem desaparecia depois da esquina.

Impossível. Como tinha conseguido realizar aquela conexão? E tão depressa?

Quando o garoto a quem pagava para que fosse seu espião lhe informou que St. Merryn e a senhorita Lodge tinham ido à casa de Glentworth, não se surpreendeu absolutamente. Era inevitável que, cedo ou tarde, o conde falasse com a viúva de Saturno. O que lhe contou aquela velha estúpida para que ele fosse direto à casa dos Wilmington?

De forma desesperada, o assassino repassou seus planos enquanto tentava determinar se tinha cometido algum equívoco. Entretanto não encontrou nenhum engano na sua elaborada estratégia.

Então notou que começava a suar copiosamente. A visão da carruagem de St. Merryn estacionada na frente da casa de lady Wilmington constituiu o primeiro indício de que o divertido jogo mental que estava praticando com seu oponente tinha dado um giro um tanto desagradável e inesperado.

Já era suficiente. Não queria arriscar-se a receber mais surpresas. Agora tinha tudo o que necessitava para completar o aparelho. Tinha chegado o momento de terminar aquele experimento.

O assassino se afastou da entrada da casa e avançou pela rua flanqueada por árvores enquanto sua mente lúcida trabalhava em sua nova estratégia.

 

Jeremy Clyde saiu do bordel arrastando os pés e não fez nenhum caso do montão de carruagens e choferes que esperavam para ser alugados. Necessitava ar fresco. A cabeça lhe dava voltas devido a grande quantidade de vinho que tinha consumido.

Clyde tentou pensar aonde iria a seguir. A seu clube? A uma casa de jogo? A outra opção era retornar a sua casa com a bruxa com quem não deveria ter se casado. Mas isso era a última cosia que desejava fazer. Ela o estaria esperando com uma interminável lista de perguntas e exigências.

Ele acreditou que casando-se com uma mulher rica todos seus problemas se resolveriam, mas suas bodas não tinha feito mais que alimentar sua infelicidade. Nada tinha funcionado bem desde que Elenora perdeu suas terras e sua herança. Se seu padrasto não tivesse sido tão estúpido...

“Se ao menos...” A Jeremy lhe parecia que usava essas palavras centenas de vezes todos os dias.

Não era justo. Aí estava ele, preso em um matrimônio horrível no qual era vítima dos caprichos do mesquinho pai de sua esposa enquanto que Elenora, em troca, tinha caído de pé, como um gato. Além disso, ela ia se casar com um dos homens mais ricos e capitalistas da cidade. Como podia ser? Não era justo.

Um homem surgiu da escuridão e se aproximou de Jeremy. Ele se deteve indeciso, mas quando a luz dos lampiões de gás iluminou o casaco fino e elegante e as botas brilhantes do desconhecido, tranquilizou-se. Fosse quem fosse, sem dúvida se tratava de um cavalheiro, não de um assaltante.

— Boa noite, Clyde — saudou o homem com naturalidade.

— Desculpe-me — murmurou Jeremy —, nos conhecemos?

— Ainda não. — O desconhecido fez uma reverência zombadora —. Permita-me que me apresente. Meu nome é Stone.

Só existia uma explicação que justificasse o ar de irônica familiaridade de Stone, pensou Jeremy amargamente.

— Suponho que a razão de que conheça meu nome é que presenciou minha queda no parque na outra tarde ou que lhe falaram dela. Por favor, economize os comentários.

Stone riu entre dentes e apoiou um braço em um dos ombros de Jeremy amigavelmente.

— Admito que estive presente naquela desafortunada ocasião, mas seu apuro não me divertiu. Na realidade, senti uma grande empatia por você. E também sei que, se tivesse estado no seu lugar, estaria ansioso por vingar-me do cavalheiro que me causou aquela humilhação.

— Ora! Tenho poucas possibilidades de consegui-lo.

— Não tenha tanta certeza. Possivelmente eu possa ajudá-lo. Verá, investiguei a St. Merryn. Encarreguei a alguns meninos que o vigiassem de vez em quando e, recentemente, entrevistei a seu mordomo, e lhe asseguro que era uma verdadeira fonte de informação. Sei muitas coisas sobre o conde e de sua incomum noiva, coisas que, conforme acredito, o senhor encontrará extremamente interessantes.

 

Dois dias mais tarde, Elenora estava com Margaret em um canto de outro salão de baile abarrotado e abafado. Era quase meia-noite e tinha suportado vários bailes intermináveis com diligência. Os pés lhe doíam e se sentia intranquila e ansiosa.

Claro que nada disso teria tido importância se estivesse com o Arthur durante os bailes. Entretanto, a realidade era distinta. Arthur tinha estado fora toda a noite. Como a noite anterior, enquanto realizava suas indagações. Elenora desejou havê-lo convencido de que a levasse com ele, mas ele tinha lhe explicado que não podia introduzi-la as escondidas nos clubes onde pensava ir para entrevistar aos cavalheiros idosos.

Os pensamentos de Elenora voltavam, uma e outra vez, à conversa que tinham mantido com lady Wilmington. Pela tarde, lhe ocorreu que tinham esquecido de lhe formular uma pergunta muito importante.

Uma jovem bonita com um educado sorriso congelado no rosto passou junto a elas enquanto dançava com um cavalheiro de meia idade que parecia não poder tirar a vista dos formosos seios da moça.

— Devo dizer que, quanto mais tempo levo representando meu papel — disse Elenora a Margaret discretamente —, maior é o respeito que sinto pela resistência e a integridade das jovens que são postas em circulação no mercado matrimonial. Não sei como o suportam.

— Foram treinadas durante anos — respondeu Margaret secamente —. Depois de tudo, é muito que está em jogo. Elas são conscientes de que seu futuro, e em muitos casos o de suas famílias, depende desta breve temporada social.

Elenora sentiu uma onda de compreensão e empatia.

— Isto é o que aconteceu contigo, né? — perguntou a Margaret.

— Quando fiz dezoito anos, minha família estava em uma situação desesperada. Eu tinha que pensar em minhas três irmãs, meus dois irmãos, minha mãe e minha avó. Meu pai tinha falecido e nos deixou muito pouco dinheiro. Nossa única esperança era conseguir um matrimônio com alguém que dispusesse de uma situação econômica folgada. Minha avó economizou o dinheiro necessário para que eu pudesse vir a cidade durante uma temporada social. Conheci Harold Lancaster logo no primeiro baile e, como é lógico, minha família aceitou sua oferta imediatamente.

— Então fez o que tinha que fazer por sua família.

— Ele era um bom homem — continuou Margaret suavemente —. E, com o tempo, aprendi a gostar dele. O pior era a diferença de idade. Harold era vinte e cinco anos mais velho que eu. Como pode imaginar, tínhamos muito pouco em comum. Eu esperava encontrar consolo em nossos filhos, mas não fomos abençoados com descendência.

— Que história tão triste!

— Mas muito comum. — Margaret assinalou, com a cabeça, os casais da pista de baile e acrescentou —: Suponho que muitas histórias similares se repetirão nesta temporada.

— Sem dúvida.

E o resultado seria um montão de matrimônios frios e sem amor, pensou Elenora. Perguntou-se, finalmente, se Arthur se veria obrigado a celebrar um matrimônio desse tipo. Na realidade, embora não encontrasse uma mulher a que pudesse amar com toda a paixão que albergava em seu interior, não teria mais remedeio que casar-se. Ao final cumpriria com as obrigações que lhe impunham seu título e sua família sem ter em conta seus sentimentos.

— Devo dizer que tem razão em relação a este lugar — comentou Margaret abanando-se com frenesi —. Esta noite é um autêntico caldeirão. Bennett demorará séculos em retornar com a limonada. É provável que morramos de sede antes que ele volte.

A multidão se separou um pouco e Elenora vislumbrou a peruca recarregada, empoeirada e passada de moda que formava parte do uniforme que vestiam os criados de seus anfitriões.

— Ali há um criado, perto da porta — ela comentou enquanto ficava nas pontas dos pés para ver melhor —. Possivelmente possamos chamar sua atenção.

— De que vai nos servir! — murmurou Margaret —. Lhe terão esvaziado a bandeja antes que consiga aproximar-se.

— Fique aqui para que Bennett te encontre quando retornar. — Elenora se virou para seguir ao servente, ao que já quase tinha perdido de vista, e acrescentou —: vou ver se posso alcançá-lo antes que lhe acabe a limonada.

— Tente não ser pisoteada.

— Não se preocupe. Volto em seguida.

Elenora murmurou algumas desculpas amáveis enquanto passava no meio de um grupo de damas de meia idade e abriu caminho tão depressa como pôde para o lugar onde tinha visto o criado pela última vez.

Quando não tinha avançado mais do que uns passos, sentiu o roce de uns dedos enluvados sobre a pele nua das suas costas, justo debaixo da zona mais sensível da nuca.

Um calafrio percorreu sua espinha dorsal e, de repente, ficou sem fôlego.

“Com certeza foi um roce acidental”, tranquilizou a si mesma, o tipo de roce que podia produzir-se com facilidade quando havia tantas pessoas juntas. Ou possivelmente um dos cavalheiros tinha aproveitado a oportunidade que lhe oferecia aquela aglomeração para tomar algumas liberdades.

Em qualquer caso, não se tratava de nada pessoal.

Elenora teve que esforçar-se para não gritar: o que a sua intuição lhe dizia era que o roce íntimo daqueles dedos enluvados sobre sua pele nua tinha sido, em realidade, muito pessoal.

“Não pode ser”, pensou ela. Não ali. Não se atreveria. A pesar do calor, uma sensação fria de terror lhe percorreu todo o corpo. Com certeza estava equivocada.

Mas o certo era que, da última vez, o assassino se aproximou dela no meio de uma festa abarrotada de gente, recordou Elenora.

A única coisa que sabia era que não devia mostrar nenhum indício de que sabia que ele estava perto.

Elenora se esforçou para manter a calma e se virou lentamente sobre seus calcanhares tentando que seu movimento parecesse casual. Abriu o leque com um golpe da munheca e o utilizou para arejar-se enquanto esquadrinhava a multidão.

Havia vários cavalheiros perto, mas nenhum tão perto como para tocá-la.

Então viu o criado, mas não ao que estava seguindo, a não ser a outro. Estava de costas a ela e se afastava com rapidez entre a multidão de convidados que conversavam e riam com animação. A única coisa que Elenora conseguiu ver foi o colarinho da sua jaqueta verde e prata e a parte traseira da peruca encaracolada e empoeirada que se vislumbrava debaixo do chapéu. Entretanto, havia algo inquietante e familiar na sua forma de mover-se.

Elenora mergulhou na multidão tentando não o perder de vista.

— Desculpe... Perdão... Sinto muito por sua limonada, senhora... Não pretendia pisá-lo, senhor... — resmungava para as pessoas a medida que abria caminho entre a multidão.

Ao final, chegou a periferia da aglomeração e se deteve. Não havia nenhum sinal do criado. Então se deu conta de que as portas que davam ao jardim, que permaneciam abertas, eram a única saída naquele extremo da sala.

Elenora se introduziu nas sombras do exterior. Não estava sozinha no terraço. Ali havia uns quantos casais que falavam em voz baixa, embora ninguém lhe prestasse atenção.

O criado não estava à vista.

Elenora cruzou a terraço e desceu os cinco degraus que conduziam aos jardins, envoltos na escuridão da noite, tentando parecer uma convidada acalorada a mais que tinha decidido tomar ar na noite.

Um círculo amplo de estátuas de mármore apareceu diante dela. Nada se movia nas sombras escuras que havia entre as figuras.

— Elenora.

Estava tão tensa que quase gritou ao ouvir que alguém dizia seu nome daquela forma tão inesperada.

Então se virou e, a pouca distância dela, viu Jeremy Clyde.

— Olá, Jeremy. — Elenora fechou o leque —. Viu um criado faz uns segundos?

— Por que demônios teria eu que me fixar em um criado? — Jeremy franziu o cenho e se aproximou dela rapidamente —.  Vi você saindo e te segui. Estava te procurando. Temos que falar.

— Não tenho tempo para bate-papos. — Elenora arregaçou um pouco as saias e se dirigiu para o círculo de estátuas procurando algum sinal do criado desaparecido —. Tem certeza de que não viu a nenhum criado? Usava uniforme e estou convencida de que veio nesta direção.

— Maldição, quer deixar de tagarelar sobre o criado?

Jeremy correu atrás de Elenora e a agarrou pelo braço.

Ela tentou liberar-se com impaciência, mas ele não a soltou.

— Quer me soltar? — Estavam fora do alcance da vista dos casais que se encontravam no terraço, mas Elenora sabia que durante a noite as vozes se ouviam a grande distancia, de modo que falou em um sussurro —. Não quero que me toque.

— Elenora, deve me escutar.

— Acabo de lhe dizer que não tenho tempo para bate-papos.

— Esta noite vim aqui para te ver. — Jeremy a sacudiu um pouco —. Querida, sei de tudo!

Sobressaltada, Elenora se esqueceu da mão de Jeremy e o olhou nos olhos.

— Do que você está falando?

Ele olhou com inquietação para o terraço e imediatamente baixou a voz até que, em um sussurro grave, disse-lhe:

— Sei que St. Merryn te contratou para que seja sua amante.

Elenora, surpreendida, olhou-o fixamente.

— Não tenho nem ideia do que me você está falando.

— Está te utilizando, querida. Não tem nenhuma intenção de se casar contigo — grunhiu Jeremy indignado —. É evidente que você é a única que ignora a verdade.

— Tolices. Não sei ao que se refere e nem desejo averiguá-lo. Solte-me. Tenho que retornar ao baile.

— Elenora, me escute. Esta noite, seu nome figura em todos os livros de apostas de todos os clubes de St. James.

Elenora sentiu uma pontada no estômago.

— Como diz?

— Todos os cavalheiros da cidade estão apostando a respeito do que acontecerá quando St. Merryn se canse de ti.

— É de domínio público que os cavalheiros apostam sobre qualquer coisa para se divertirem — respondeu ela com tensão.

— Estamos falando da sua reputação. Logo estará pelo chão.

— Quando começou a preocupar-se tanto pelo meu bom nome?

— Maldição, Elenora, fala baixo. — Jeremy voltou a olhar ao seu redor inquieto, assegurando-se de que ninguém os ouvia. Em seguida se inclinou para ela e prosseguiu —: Lembre-se de que sou um cavalheiro, Elenora. A diferença de St. Merryn, eu tive a decência de proteger sua reputação enquanto estávamos comprometidos.

— Sim, sua galanteria já me deixou sem palavras em uma ocasião.

Jeremy pareceu não perceber o tom sarcástico de suas palavras.

— Além disso, St. Merryn está te utilizando. Tem a intenção de te abandonar depois de te haver exibido por toda a cidade como sua noiva durante umas semanas ou uns meses: você vai ser vítima da pior das humilhações. Quando tiver terminado contigo, estará acabada.

— Pelo que diz, já é muito tarde para mim, então desfrutarei do processo.

— Oh, minha querida Elenora, não é próprio de ti falar desta forma! Eu posso te ajudar.

— Verdade? — Elenora quase se divertia —. E como pretende fazê-lo?

— Te tomarei sob meu amparo. Agora tenho dinheiro suficiente. A diferença de St. Merryn, eu atuarei com discrição. Comigo não se verá obrigada a enfrentar-se ao desdém da sociedade. Te manterei separada da vista dos outros de uma forma segura. Enfim poderemos ser felizes juntos, minha amada, justo como tinha que ser.

A raiva percorreu o corpo de Elenora e, durante uns instantes, considerou a possibilidade de enfiar o leque na orelha de Jeremy.

— Permita-me dizer — manifestou ela entre dentes — que a perspectiva de ver-me arruinada por causa de St. Merryn resulta muito mais atraente que converter-me em sua amante.

— Está muito nervosa — ele a tranquilizou —. E o compreendo. É óbvio que seus pobres nervos estiveram submetidos a uma tensão extrema ultimamente. Entretanto, quando repensar sobre o que te propus compreenderá que minha oferta é a melhor solução, pois te liberará da grande humilhação que te espera nas mãos de St. Merryn.

— Solte-me!

— Só tento te proteger — ele insistiu.

Elenora sorriu com frieza.

— A última coisa que desejo é estar sob seu amparo.

— Prefere este mesmo acordo com St. Merryn porque ele é mais rico do que eu? Que bem te produzirá seu dinheiro quando tiver terminado contigo e se enfrente ao mais absoluto e completo desastre? Nunca mais poderá se mostrar na boa sociedade. Seu futuro estará destruído.

— Você não sabe nada a respeito dos meus planos para o futuro.

— Elenora, deve me escutar. Possivelmente assim compreenda quão desesperada é a sua situação. Acabo de chegar de um de meus clubes e vi as anotações no livro com meus próprios olhos. Esta mesma noite, o jovem Geddings apostou duas mil libras a que St. Merryn te despedirá ao final da temporada. Sua aposta é só uma entre muitas. E algumas das cifras são bastante avultadas.

— Nunca deixa de me surpreender que tantos homens com educação atuem como uns estúpidos.

— Todos apostam a favor de que seu compromisso constitui uma farsa. A única variação nas apostas está relacionada com a data exata em que te abandonará. A maioria aposta pelo final da temporada enquanto que alguns acreditam que te manterá em sua cama ao longo de todo o verão porque lhe convém.

Em certo sentido, Arthur a deixaria de lado quando aquele assunto terminasse, pensou ela com desânimo. Pra dizer a verdade, era extremamente irritante saber que muitos cavalheiros da alta sociedade se beneficiariam graças às apostas sobre seu futuro. Não era justo.

Naquele momento, uma ideia excepcional caiu sobre ela com a mesma intensidade de um raio.

“Eu sei, com exatidão, quando terminará este assunto”.

Ela podia vislumbrar seu futuro de solidão com muita mais clareza que nenhum dos cavalheiros dos clubes. Além disso, quando Arthur apanhasse ao assassino, ela poderia determinar com exatidão a data em que terminaria sua relação.

Aquele pensamento era muito depressivo, mas Elenora não podia ignorar as implicações econômicas. Ela era a única pessoa, além de Arthur, claro, que podia apostar com certeza sobre quando terminaria sua relação.

Não seria uma questão singela, refletiu Elenora. Deu uns golpezinhos na palma da sua mão com o leque fechado enquanto pensava com rapidez. Existiam um ou dois obstáculos que teria que resolver. Depois de tudo, uma dama não podia entrar num clube de cavalheiros e realizar uma aposta. Necessitava da ajuda de alguém em quem pudesse confiar para que apresentasse a aposta em seu nome.

— Elenora? — Jeremy a sacudiu ligeiramente —. Você está escutando? Enquanto falamos, as apostas estão sendo realizadas pela cidade toda. Onde está seu orgulho? Não pode permitir que St. Merryn te trate de uma forma tão desprezível.

“Domine-se”, pensou Elenora.

Supunha-se que estava representando um papel.

— Tolices, Jeremy. — Em seguida levantou o queixo —. Não posso acreditar que St. Merryn seja tão cruel para me deixar de lado. Por que todo mundo acredita que ele faria uma coisa assim?

Aquela pergunta era, em realidade, muito pertinente, pensou Elenora. O que tinha provocado a explosão súbita de apostas naquela noite?

— Dizem que te contratou em uma agência — contou Jeremy.

Ao ouvi-lo, Elenora se relaxou.

— Por todos os Santos, Jeremy! Esta tolice a respeito de que me contratou em uma agência constitui uma brincadeira que se comenta desde o começo. Todo mundo sabe. Acaso não tem senso de humor?

Jeremy ficou um pouco vesgo.

— Até esta noite, eu e todo mundo acreditávamos que esta história era um reflexo do excêntrico senso de humor de St. Merryn. Mas agora se comenta que é verdade, que é certo que ele contratou seus serviços através de uma agência que subministra damas de companhia.

— Por que ele teria que fazer algo assim? Com seu dinheiro e seu título poderia escolher uma noiva entre as jovens da aristocracia.

— Você não entende? Conforme dizem, foi a uma agência para contratar a uma dama de companhia sem recursos precisamente porque não tem intenção de casar-se. St. Merryn só queria divertir-se com uma amante que pudesse ter a mão sob seu próprio teto e exibi-la em sociedade. Não é mais que outro dos seus infames estratagemas. St. Merryn é conhecido por seus ardilosos planos.

— Bom, se isto for verdade, sem dúvida este seria um dos seus planos mais brilhantes — ela comentou com ligeireza —, porque eu estou convencida de que tem a intenção de casar-se comigo.

Não estaria demais reafirmar a ideia de que ela acreditava que as intenções de St. Merryn eram honestas, pensou Elenora. Podia ajudar a elevar as apostas.

— Minha querida, não tem porque que dissimular na minha frente — disse Jeremy segurando-a com mais força —. Já te disse, agora sei de tudo. É certo que St. Merryn te contratou em uma agência. Não o negue.

— Tolices!

— Para ser exatos na Goodhew & Willis.

Santo céu! Jeremy conhecia o nome da agência! Que ela soubesse, aquela era a primeira vez que alguém relacionava a suposta brincadeira com a agência Goodhew & Willis.

Elenora engoliu em seco enquanto tentava fazer com que ele não notasse que aquela notícia a tinha transtornado. Tinha que averiguar como ele sabia o nome da agência.

— Não tenho nem ideia do que você está falando, Jeremy. — A Elenora custou um grande esforço manter a voz tranquila e despreocupada, mas o conseguiu —. Onde ouviu esse nome tão estranho?

— Ah, minha pobre criatura! Agora vejo que crê realmente que St. Merryn pretende casar-se contigo. — Jeremy lhe apertou o braço —. Conte-me, que promessas te fez? Que mentiras te contou?

— A diferença de ti, Jeremy, St. Merryn sempre foi honesto e sincero comigo.

Os dedos de Jeremy apertaram com força o braço de Elenora.

— Quer dizer que, de verdade, concordou com seu estratagema? Não posso acreditar que te tenha caído tão fundo em tal depravação. O que aconteceu com a minha doce e inocente Elenora?

— A doce e inocente Elenora está a ponto de converter-se em minha esposa. — Arthur surgiu das sombras de um arbusto e acrescentou —: E se não a soltar imediatamente, perderei a pouca paciência que me resta com o senhor, Clyde.

— St. Merryn! — Jeremy soltou o braço de Elenora a uma velocidade astronômica, e se separou dela com cautela enquanto Arthur ficava do lado dela —. Como se atreveu, senhor?

— Como me atrevi a pedir a senhorita Lodge que seja minha esposa? — Arthur pegou Elenora pelo braço —. Provavelmente porque acredito que é uma boa ideia. Embora isto não seja assunto seu.

Jeremy se estremeceu, mas permaneceu firme na sua postura.

— Não tem vergonha, senhor? — perguntou.

— Isto seria quase divertido se tivermos em conta que a pergunta procede de um homem que abandonou a Elenora para casar-se com outra mulher.

— Isto não é o que aconteceu — replicou Jeremy com tensão.

— Na verdade — respondeu Elenora —, isto é exatamente o que aconteceu.

— Interpretou-me mal, querida — insistiu Jeremy.

— Não acho.

— A verdade é que não te pedi que fizesse algo tão espantoso como simular ante o mundo que era minha noiva. — Jeremy olhou a Arthur com fúria —. Como justifica o fato de ter utilizado a senhorita Lodge desta maneira, senhor?

— Sabe de uma coisa, Clyde? — respondeu Arthur com uma voz suave e perigosa —. A verdade é que o encontro muito irritante.

Elenora, alarmada pelo tom da sua voz, colocou-se com presteza entre os dois homens.

— Já está bem, Arthur, temos assuntos mais importantes para tratar esta noite.

Ele a olhou.

— Tem certeza? — Arthur perguntou. Isso começava a ficar interessante.

— Jeremy sabe sobre a Goodhew & Willis — ela comentou intencionalmente.

Elenora notou então que a mão de Arthur lhe apertava mais o braço, o mesmo que Jeremy tinha segurado. Ao ritmo em que os homens apertavam nessa noite aquela parte de sua anatomia, pela manhã estaria roxa, pensou Elenora.

Arthur não afastou os olhos de Jeremy.

— De verdade?

— É de domínio público que você a contratou nesta agência — balbuciou Jeremy.

— Já sei que corre o rumor de que cumpri minha promessa de escolher uma esposa numa agência de damas de companhia — confirmou Arthur —. Entretanto, o nome da agência não é de domínio público. Onde o ouviu?

— A verdade, senhor, é que não tenho por que lhe dar explicações...

Jeremy se interrompeu de repente quando Arthur, sem prévia advertência, soltou a Elenora, agarrou as lapelas do caro casaco de Jeremy e o empurrou com força contra a parte traseira de um deus de mármore.

— Quem mencionou o nome de Goodhew & Willis, Clyde? — perguntou, de novo, Arthur com um tom de voz ainda mais suave que o que tinha utilizado antes.

Jeremy ofegou, mas conseguiu expressar um débil protesto:

— Solte-me, senhor.

— A verdade é que me inclino mais a desafiá-lo por estender rumores maliciosos a respeito de minha noiva, como já o adverti em certa ocasião.

A expressão de Jeremy à luz da lua refletia autêntico horror.

— Você não fala a sério, senhor. Todo mundo sabe que nem sequer se preocupou em desafiar ao homem que fugiu com sua autêntica noiva, de modo que é pouco provável que arrisque o pescoço em um duelo por uma mulher que para você só é uma conveniência.

— Clyde, o senhor e todo mundo sabem muito pouco a respeito de mim e do que posso fazer. Diga-me onde ouviu o nome da Goodhew & Willis agora mesmo ou meus padrinhos o intimarão em menos de uma hora.

O orgulho de Jeremy se derrubou.

— Está bem — respondeu enquanto tentava conservar um pouco de dignidade —. Suponho que não existe nenhuma razão para não dizer onde ouvi falar a respeito das suas verdadeiras intenções em relação a senhorita Lodge.

— Onde o ouviu? — Arthur voltou a perguntar.

— No Green Lyon.

Elenora franziu o cenho.

— O que é o Green Lyon?

— É uma casa de jogo clandestino que se encontra perto de St. James — Arthur respondeu sem deixar de olhar a Jeremy —. Por que decidiu ir naquele lugar, Clyde? Ou é que se trata de um de seus antros favoritos?

— Não me insulte. — Jeremy se endireitou e explicou —: Pensei em ir ali ontem de noite porque estava entediado e alguém me sugeriu que poderia ser divertido.

— Foi ali ontem de noite por acaso e, também por acaso, encontrou com alguém ali que lhe falou da agência Goodhew & Willis? Não acredito. Tente-o de novo.

— É a verdade, maldição! Não me sentia bem e um homem me sugeriu que fôssemos ao Green Lyon. Fomos pra lá juntos e jogamos durante aproximadamente uma hora. Em algum momento, ao longo da noite, ele mencionou os rumores a respeito da Goodhew & Willis.

— Este homem é um amigo seu? — Arthur perguntou sem alterar-se.

— Não é um amigo, é um conhecido. Não o tinha visto nunca antes de ontem a noite.

— Onde o conheceu?

Jeremy lançou um olhar rápido a Elenora e afastou os olhos dela com igual rapidez.

— No exterior de um estabelecimento que está na Orchid Street — sussurrou.

— Orchid Street... — Arthur fez uma careta zombadora —. Sim, claro, esse é o endereço de um bordel gerenciado por uma velha cafetina que se diz chamar senhora Flowers.

— Frequenta bordéis, Jeremy? Que notícia tão decepcionante! Sua esposa sabe disso? — perguntou Elenora com sarcasmo.

— Estava na Orchid Street a negócios — resmungou Jeremy—. Não tinha nem ideia de que houvesse um bordel ali.

— Não importa — replicou Arthur —. Conte-me algo mais sobre o homem que se apresentou a você ontem de noite e lhe sugeriu ir ao Green Lyon.

Jeremy tentou encolher-se de ombros, mas só o conseguiu de forma parcial porque Arthur ainda o segurava pelo casaco.

— Não há muito que contar. Acredito que me disse que seu nome era Stone ou Stoner ou algo parecido. Deu-me a impressão de que conhecia bem o Green Lyon.

— Que aspecto tinha? — perguntou Elenora.

As facções de Jeremy se contraíram devido à estranheza.

— Que demônios importa isto?

Arthur empurrou com mais força a Jeremy contra as costas da estátua.

— Responda sua pergunta, Clyde.

— Maldição, não recordo nada especial sobre seu aspecto. Para que saibam, quando o conheci já tinha bebido várias garrafas de vinho.

— Estava bêbado? — perguntou Elenora com surpresa. Durante o tempo em que a cortejou, não notou que gostasse de beber —. Não há nada pior que um bêbado. Sua pobre esposa tem toda a minha simpatia.

—Tenho uma boa razão para querer esquecer meus problemas — grunhiu Jeremy—. Meu matrimônio não poderia definir-se como um enlace de amor, mas sim como um verdadeiro inferno. Antes que nos casássemos, meu sogro deixou entrever que entregaria um bom dote a minha esposa, mas depois não cumpriu sua palavra. Atualmente, controla nossos ganhos e me obriga a dançar ao som da sua música. Estou apanhado, apanhado de verdade.

— Seus problemas matrimoniais não nos interessam — Arthur respondeu —. Descreva ao homem que conheceu na Orchid Street.

Jeremy fez uma careta.

— Era mais ou menos da minha estatura e tinha o cabelo castanho. — Jeremy coçou a testa e acrescentou —: Ao menos é o que eu acho.

— Era gordo? — apressou Arthur —. Magro?

— Não era gordo. — Jeremy titubeou —. Parecia estar em muito boa forma.

— Suas facções eram incomuns em algum aspecto? — perguntou Elenora —. Tinha alguma cicatriz?

Jeremy franziu o cenho.

— Não me lembro de nenhuma cicatriz. Quanto a seu aspecto, parecia o tipo de homem que as mulheres encontram atraente.

— Como estava vestido? — perguntou Arthur.

— Com roupa cara — respondeu Jeremy sem hesitar —. Lembro que lhe perguntei o nome do seu alfaiate, mas ele respondeu com uma brincadeira e trocou de tema.

— E as suas mãos? — perguntou Elenora —. Pode descrevê-las?

— Suas mãos? — Jeremy a olhou como se tivesse exposto um problema de matemática muito complexo —. Não recordo nada incomum sobre as suas mãos.

— Isto é inútil — disse Arthur soltando-lhe o casaco —. Se você se lembrar de algo que possa nos resultar útil, faça-me saber imediatamente.

Jeremy arrumou o casaco e o lenço de seda com ar furioso.

— Por que demônios eu deveria fazer algo assim?

O sorriso de Arthur parecia tão frio como os círculos exteriores do inferno.

— Porque estamos convencidos de que seu novo conhecido assassinou, ao menos, a três homens nas últimas semanas.

Jeremy soltou um som parecido ao de um gorgolejo, mas não pronunciou nenhuma palavra.

Em outras circunstâncias, pensou Elenora, seu estado teria lhe parecido muito divertido. Em qualquer caso, não pôde desfrutar por muito tempo da expressão de horror de Jeremy, porque Arthur a conduziu para fora do círculo de estátuas, de retorno à sala de baile.

— Em primeiro lugar, que demônios você estava fazendo aqui fora com Clyde? — grunhiu Arthur.

— Achei que tinha visto alguém que podia ser o assassino.

— Por todos os demônios! Estava aqui? — Arthur se deteve tão em seco que Elenora tropeçou na bota dele, e se ele não a tivesse estado segurando teria acabado no chão —. Tem certeza?

— Acho que sim, mas devo admitir que não tenho certeza. — Elenora hesitou —. Roçou-me as costas, justo debaixo da nuca. Juraria que se tratou de um roce deliberado. A sensação me deixou gelada.

— Bastardo!

Arthur a atraiu para ele e a rodeou com um braço em um gesto possessivo.

Resultava muito agradável sentir-se apertada contra seu peito daquela maneira, pensou Elenora. Transmitia-lhe calidez, segurança e conforto.

— Arthur, pode ser que simplesmente tenha sido imaginação minha — explicou ela com a cabeça enterrada no seu casaco —. O certo é que, ultimamente, tenho estado algo tensa. Devemos nos concentrar no que nos contou Jeremy.

— Sim.

Elenora levantou a cabeça sem vontade e adicionou:

— Poucas pessoas, além de você e eu, conhecem o nome da agência na qual me contratou. De todas elas, Ibbitts era a única disposta a dar voluntariamente esta informação.

— E o mais provável é que a pessoa a quem ele comunicou o nome da agência seja a pessoa que o matou. — Arthur soltou a Elenora e retomou o caminho de volta às escadas do terraço —. Vamos, temos que nos apressar.

— Aonde vamos?

— Você vai para casa. Eu vou vigiar o Green Lyon por um momento. Clyde disse que seu novo conhecido parecia estar familiarizado com o clube. Possivelmente esteja ali esta noite.

— Não, Arthur, isto não funcionará. Tenho que ir contigo.

— Elenora, não tenho tempo para discutir.

— De acordo, mas não está pensando de forma lógica. Devo ir contigo para vigiar o clube. Por muito pobre que seja meu testemunho, no momento sou a única pessoa que poderia identificar ao assassino.

 

Uma hora depois, Elenora acomodou o xale com o que se cobria os ombros e arrumou a manta que tinha sobre os joelhos. A noite não estava muito fria, mas a umidade se fazia sentir quando a gente permanecia durante longo tempo no interior de uma carruagem às escuras.

— Devo dizer que este assunto da vigilância não é tão emocionante como eu esperava — ela comentou.

Arthur, envolto nas sombras e sentado do outro lado do veículo, não afastava a vista da entrada de Green Lyon.

— Lembre-se que eu avisei.

Ela decidiu ignorar seu comentário. Aquela noite, Arthur não estava precisamente de bom humor. Claro que não podia culpá-lo por isso, Elenora pensou.

Os dois estavam sentados dentro de uma carruagem muito velha que Jenks, seguindo as ordens de Arthur, tinha alugado para aquela aventura. Elenora sabia perfeitamente qual tinha sido o raciocínio de Arthur: era muito provável que alguém reconhecesse sua verdadeira carruagem se permanecia estacionada durante muito tempo diante do Green Lyon. Por desgraça, só ficava um veículo velho nas cavalariças àquelas horas da noite.

Imediatamente lhes resultou óbvio por que ninguém mais o tinha alugado. Quando estava em movimento, saltava e estalava de tal forma que era muito incômoda. Além disso, embora a primeira vista parecesse estar limpa, logo descobriram que os aromas acumulados por anos de descuidada utilização tinham saturado os assentos acolchoados.

Elenora afogou um ligeiro suspiro e finalmente admitiu para si mesma que tinha esperado que o tempo que passaria com o Arthur no interior escuro e íntimo da carruagem ia ser prazeroso. Tinha imaginado que falariam em voz baixa durante uma ou duas horas enquanto contemplavam como os cavalheiros entravam e saíam do clube.

Entretanto, assim que ocuparam um lugar na longa fila de veículos que havia na rua, Arthur ficou em um dos seus profundos silêncios. Toda sua atenção estava concentrada na porta do Green Lyon. Elenora sabia que estava reorganizando seu plano mais uma vez.

Elenora esquadrinhou a entrada da casa de jogos clandestina e se perguntou o que aquele lugar tinha para atrair regularmente tantos homens. Em sua opinião, tratava-se de um estabelecimento muito pouco atraente. O único lampião de gás que havia na entrada emitia uma luz débil que mal iluminava os rostos dos clientes que entravam e saíam do local.

A maioria dos homens que desciam dos carros ou dos cavalos que se detinham em frente às escadas da entrada estavam, sem dúvida, bêbados. Riam as gargalhadas e contavam piadas indecentes a seus amigos. Alguns deles tinham, ao entrar, uma expressão expectante e febril.

A atitude da maioria dos que saíam do clube era, entretanto, muito distinta. Alguns pareciam realmente jubilosos, alardeavam de sua sorte e indicavam a seus choferes que os conduzissem a outro centro de diversão. Entretanto, um número muito mais numeroso desciam as escadas com ar de abatimento, irritação ou profunda melancolia. Alguns até pareciam ter recebido a notícia do falecimento de um familiar. Elenora intuiu que eram os que tinham perdido uma casa ou sua herança e se perguntou se algum deles daria um tiro na têmpora antes do amanhecer.

Elenora se estremeceu de novo e Arthur se moveu.

— Tem frio? — perguntou-lhe.

— Na realidade, não. O que fará se não o vemos esta noite?

— Voltarei a tentar amanhã de noite. — Arthur esticou um braço e o apoiou no respaldo do seu assento —. A não ser que receba alguma outra informação, no momento esta constitui a pista mais significativa que disponho.

— Não te intriga que, entre todas as pessoas da cidade, o assassino decidisse revelar minha relação com Goodhew & Willis precisamente a Jeremy? Não pode tratar-se de uma coincidência.

— Não. Estou convencido que tentava de nos prejudicar de algum modo ao contar a Clyde que era certo que você foi contratada em uma agência e que a história que corre por aí não é uma brincadeira.

— De que modo?

— Não sei. Lembre-se que o assassino ainda acredita que não podemos identificá-lo. Sem dúvida está convencido de que o segredo da sua identidade o mantém a salvo.

Elenora se acomodou no xale.

— Espero poder identificá-lo a esta distância.

Produziu-se outro silêncio.

— Arthur? —perguntou Elenora.

— Sim?

— Há algo que queria te perguntar.

Ele não virou a cabeça.

— Do que se trata?

— Como é que você conhece o bordel que Jeremy mencionou?

Durante um ou dois segundos, Arthur pareceu não ter ouvido a pergunta. A continuação, Elenora o viu sorrir na escuridão.

— Estes estabelecimentos têm modos de dar-se a conhecer — respondeu ele —. Os homens comentam a respeito deles, Elenora.

— Não me surpreende.

Ele a olhou sem deixar de sorrir.

— O que quer saber em realidade é se já visitei esse bordel.

Elenora levantou o queixo e fixou o olhar na entrada do Green Lyon.

— Não tenho nenhum interesse neste aspecto da sua vida pessoal.

— Certamente que o tem, e a resposta é não.

— Sei. — Durante uns instantes Elenora se animou, mas então se lembrou da outra questão da vida privada de Arthur que a tinha estado inquietando desde o começo daquela aventura e seu elevado estado de ânimo caiu um pouco —. Bom, suponho que você nunca precisou dos serviços de uma instituição deste tipo...

— Neste momento não há nenhuma outra mulher na minha vida, Elenora — Arthur comentou com voz suave —. Na realidade, faz tempo que não há uma mulher na minha vida. É isto o que queria saber?

— Não é assunto meu.

— Sim o é, querida — respondeu ele em voz baixa —. Depois de tudo, temos uma relação íntima. Você tem todo o direito do mundo de saber se estou unido a outra mulher do ponto de vista romântico. — Arthur se interrompeu uns instantes —. Do mesmo modo que eu espero que me conte imediatamente se decidir ter este tipo de relação com outro homem.

Algo, no tom de sua voz, fez com que Elenora se arrepiasse. Arthur acabava de deixar claro que não pensava em compartilhar o afeto dela.

— Sabe melhor que ninguém que não há nenhum outro homem na minha vida — declarou ela com calma.

— Espero que a situação siga assim enquanto você e eu estivermos juntos.

Elenora pigarreou.

— Eu espero a mesma lealdade da sua parte.

— A terá — ele respondeu simplesmente.

Em seguida, Arthur voltou a fixar sua atenção na porta do Green Lyon enquanto Elenora analisava em silêncio a mescla de satisfação e nostalgia que crescia no seu interior. Teria a Arthur para ela durante o tempo que estivessem envolvidos naquela estranha aventura, pensou Elenora. Entretanto, este pensamento não fez mais que aumentar sua consciência do doloroso que lhe resultaria separar-se dele.

Elenora realizava grandes esforços para manter seus pensamentos centrados no futuro e em todos seus maravilhosos planos, mas cada vez lhe resultava mais difícil imaginar sua vida sem Arthur.

“Santo céu, apaixonei-me por ele!”

Aquele convencimento a encheu de uma euforia que, quase imediatamente, transformou-se em terror. Como tinha permitido que isso acontecesse? Aquilo constituía um erro de proporções enormes.

— Por todos os demônios...! — de repente, Arthur endireitou as costas e se inclinou para o guichê da carruagem —. O que é isto?

O tom premente de sua voz arrancou a Elenora de seus taciturnos pensamentos e a empurrou a inclinar-se também para diante.

— O que aconteceu? — perguntou.

Arthur sacudiu a cabeça sem separar a vista da cena que acontecia nas escadas da entrada do clube.

— É estranho, mas não pode tratar-se de uma casualidade. Dá uma olhada. Poderia ser esse o homem que dançou contigo na noite que Ibbitts foi assassinado, o homem que te há tocado essa noite?

Elenora seguiu o olhar de Arthur e viu que um homem atraente de vinte e poucos anos se afastava com determinação da entrada do Green Lyon. À luz do lampião de gás, seu cabelo parecia ser castanho claro. Além disso, o desconhecido era magro e se movia com ligeireza.

O pulso de Elenora começou a palpitar com força nas suas munhecas e sentiu a boca seca. Acaso estava olhando ao assassino? Era aquele o homem que a havia tocado tão intimamente naquela mesma noite e na da morte de Ibbitts? A aquela distância, não podia ter certeza.

— Parece que tem a estatura correta — ela hesitou —. E, pelo que vejo, tem os dedos longos, mas daqui não vejo se usa um anel.

— Usa um par de Hessians.

— Sim, mas como você assinalou antes, muitos cavalheiros gostam deste tipo de botas — advertiu Elenora retorcendo-as mãos sobre o regaço —. Arthur, sinto muito, mas a esta distância não posso ter certeza. Tenho que me aproximar dele.

— Não subiu a nenhuma das carruagens!

Elenora viu que o homem das Hessians acendeu um lampião que levava em uma mão quando chegou ao final das escadas, e caminhou ao longo da escura rua. Estava sozinho.

— Fique aqui na carruagem, Jenks vai cuidar de você — disse Arthur antes de abrir a portinhola e saltar ao pavimento —. Seguirei a esse homem.

Elenora se inclinou para frente, ansiosa.

— Não, não deve ir sozinho! Arthur, por favor, possivelmente seja justamente isto o que o assassino quer que faça.

— Só quero ver aonde vai. Não permitirei que me veja.

— Arthur...

— Sinto uma grande curiosidade em descobrir que assunto o trouxe para esta vizinhança tão próxima ao Green Lyon.

— Eu não gosto disso. Por favor, leve a Jenks!

Arthur voltou a cabeça para a luz cada vez mais tênue que transportava sua presa.

— Já será bastante difícil evitar que me veja se for sozinho. Se o seguíssemos dois homens, com certeza se daria conta.

Arthur fez gesto de fechar a portinhola da carruagem.

— Espera — sussurrou ela —. Você reconheceu o homem do farol, não é certo?

— Trata-se de Roland Burnley, o homem que fugiu com Juliana.

Arthur fechou a portinhola antes que Elenora pudesse recuperar-se da surpresa.

 

A débil luz que emanava das lanternas das carruagens e do lampião de gás na porta do Green Lyon se desvaneceu rapidamente detrás de Arthur. Acelerou o passo para não perder de vista o lampião de Roland. Tinha que concentrar-se em apoiar-se unicamente nas pontas dos pés para que os saltos das suas botas não produzissem nenhum ruído nas lajes do pavimento.

Roland, por sua parte, não realizava nenhum esforço para caminhar com sigilo. Seus passos eram rápidos e seguros, os passos de um homem que sabia onde se dirigia.

A estreita e sinuosa rua estava flanqueada por pequenas lojas que estavam fechadas àquela hora e, além disso, nenhum dos cômodos que havia em cima daqueles negócios estavam iluminados. À luz do dia, não se tratava de uma vizinhança especialmente perigosa, mas só um louco passearia por aquele bairro sozinho àquela hora.

O que tinha levado Roland ali?

Uns minutos mais tarde, Roland se deteve diante de um portal que estava às escuras. Arthur se escondeu em outro portal, desde onde o viu entrando em um vestíbulo pequeno e estreito. A luz do lampião que transportava brilhou um momento e desapareceu por completo quando o jovem fechou a porta do edifício.

Arthur pensou que possivelmente Roland tinha indo ali visitar a uma mulher. Não seria nada estranho. Ter uma amante era algo habitual entre os cavalheiros, inclusive entre os que tinham se casado há pouco tempo. Entretanto, era um luxo caro e, pelo que todos sabiam, as finanças dos Burnley estavam pelos chãos.

Arthur examinou as janelas dos apartamentos que havia em cima do portal no qual Roland acabava de entrar, mas não percebeu nenhuma luz. Roland devia haver-se dirigido a uma moradia situada na parte traseira do edifício.

Arthur chegou a conclusão de que não averiguaria nada se seguia escondido naquele portal, assim acendeu seu próprio lampião, baixou a intensidade da luz ao mínimo e saiu das sombras. Depois atravessou a estreita rua e girou a maçaneta da porta pela qual Roland tinha desaparecido.

A porta se abriu com facilidade.

A tênue luz do seu lampião iluminou as escadas que conduziam ao andar superior. Arthur tirou a pistola que levava no bolso do casaco.

Subiu os degraus com cautela, esquadrinhando as sombras em busca de alguma forma suspeita, mas nada se moveu na escuridão.

Quando chegou ao final das escadas, descobriu um corredor as escuras. Havia duas portas e uma faixa estreita de luz aparecia por debaixo de uma delas.

Arthur deixou seu lampião no patamar para que seu débil resplendor iluminasse o chão e não mostrasse claramente sua figura. Não tinha nenhum sentido que se convertesse em um alvo perfeito, pensou.

Em seguida se dirigiu à porta com luz e tentou girar a maçaneta com a mão esquerda. Esta cedeu com facilidade. Fizesse o que fizesse naquele lugar, Roland não parecia muito preocupado se por acaso alguém o atacava. Claro que possivelmente não pretendia permanecer ali muito tempo e desejava poder sair com rapidez sem ter que procurar a chave.

Arthur escutou com atenção durante uns instantes. Não se ouvia nenhuma conversa, só os movimentos de uma pessoa, que devia ser Roland.

Alguém abriu e fechou uma gaveta. Uns segundos mais tarde ouviu um rangido. Eram as dobradiças enferrujadas de um armário?

Arthur ouviu um chiado comprido e aproveitou o som para abrir a porta. Do outro lado havia um o quarto pequeno mobiliado com uma cama, um armário e uma pia velha. Roland estava de joelhos no chão de madeira e procurava algo debaixo da cama. Era evidente que não tinha ouvido Arthur entrar.

— Boa noite, Burnley.

— Como? — Roland virou-se rapidamente e ficou de pé. Contemplou Arthur durante uns instantes e exclamou —: St. Merryn! Então é verdade? — Uma sensação de angústia se refletiu em seus olhos, mas não demorou para desvanecer transformar-se em raiva intensa —. A forçou a fazer amor com você, bastardo!

A continuação, presa de uma fúria incontida, lançou-se contra Arthur com os braços estendidos. Ou não tinha visto a pistola ou estava com muita raiva para preocupar-se com a ameaça que esta representava.

Arthur saiu com rapidez ao corredor, fez-se a um lado e esticou uma perna através da soleira da porta. Roland tinha se lançado sobre ele com tal ímpeto que não pôde deter-se. Tropeçou com a bota de Arthur e agitou os braços com desespero em um intento inútil para recuperar o equilíbrio. Não caiu ao chão, mas se cambaleou e se chocou contra a parede do outro lado do corredor.

Depois do golpe, estabilizou-se com ambas as mãos.

— Maldito seja, St. Merryn! — gritou.

— Sugiro que falemos como cavalheiros razoáveis e não como um par de loucos exaltados — replicou Arthur com calma.

— Como se atreve a chamar-se cavalheiro depois do que fez?

Arthur baixou a pistola com lentidão. Roland pareceu vê-la pela primeira vez e, com o cenho franzido, seguiu seu movimento com o olhar.

— O que se supõe que eu fiz que é tão horrível? — perguntou Arthur.

— Conhece a natureza do seu crime à perfeição. É monstruoso.

— Descreva-me.

— Obrigou minha doce Juliana a entregar-se a você em troca da sua promessa de pagar as minhas dívidas de jogo. Não o negue.

— Pois sim, nego-o rotundamente. — Arthur utilizou o canhão da pistola para lhe indicar a Roland que entrasse no local —. De fato, vou negar todas e cada uma das suas malditas palavras.  — Lançou um olhar à escuridão das escadas —. Entre. Não quero manter esta conversa no corredor.

— Acaso pretende me assassinar? É este o passo final do seu plano de vingança?

— Não, não lhe vou matar. Entre aí. Agora!

Roland observou com receio a pistola e, a contra gosto, separou-se da parede e entrou no quarto.

— Nunca a amou. Admita-o, St. Merryn. Entretanto, desejava-a, não é certo? Ficou fora de si quando ela fugiu comigo, de modo que tramou uma vingança a sangue frio. Esperou o momento oportuno: até que eu estava em terreno escorregadio e então lhe fez saber a Juliana que saldaria minhas dívidas se ela aceitasse se entregar a você.

— Quem lhe contou esta história tão absurda, Burnley?

— Um amigo.

— Já conhece o ditado: com amigos como estes, não precisa de inimigos. — Arthur introduziu, de novo, a pistola no seu bolso e examinou o quarto —. Suponho que veio aqui, esta noite, porque esperava encontrar a Juliana e a mim nesta cama.

Roland se estremeceu e apertou os lábios.

— Recebi uma mensagem enquanto estava em uma sala de jogo. A mensagem dizia que se viesse a esse quarto imediatamente, encontraria provas da sua culpa.

— Como recebeu a mensagem?

— Um garoto a entregou ao porteiro do clube.

— Interessante... — Arthur atravessou o quarto e foi até o armário e examinou o interior, mas estava vazio —. E encontrou alguma prova de que chantageei a sua esposa para me deitar com ela?

— Não tinha acabado de registrar o quarto quando você chegou. — Roland apertou os punhos e acrescentou —: Entretanto, o fato de que você esteja aqui demonstra que conhece este quarto.

— Eu tinha chegado a mesma conclusão sobre você — replicou Arthur.

A seguir se afastou do armário e se dirigiu a pia. Abriu e fechou metodicamente as gavetas.

— O que está fazendo? — perguntou Roland.

— Procuro o que se supunha que você devia encontrar neste lugar. — Arthur abriu a última gaveta e descobriu uma bolsa de veludo negro fechada com um cordão. Um estremecimento percorreu seu corpo —. Acredito que era eu quem tinha que encontrar algo aqui esta noite.

Arthur desatou o cordão da bolsa e a esvaziou. Dois objetos envoltos em linho caíram na palma da sua mão.

Arthur deixou os objetos sobre o móvel da pia e os desembrulhou.

Eram duas formosas caixas de rapé esmaltadas. Arthur e Roland as examinaram: cada uma delas estava decorada com uma cena em miniatura de um alquimista trabalhando e, na tampa, tinham uma enorme pedra vermelha incrustada esculpida.

Roland se aproximou com o cenho franzido e perguntou:

— O que fazem aqui essas caixas de rapé?

Arthur contemplou os detalhes que a luz do lampião mostrava na superfície das caixas que segurava na mão.

— Parece que nós dois devíamos representar o papel de loucos esta noite. E quase conseguimos.

— Do que você está falando?

Arthur introduziu com cuidado as caixas de rapé na bolsa de veludo.

— Acredito que alguém pretendia que eu o matasse esta noite, Burnley. Ou que o detivessem por haver me assassinado.

 

A carruagem começou a se mover antes mesmo que Arthur fechasse a portinhola. Elenora se conteve até que os dois homens se sentaram frente a ela. Então tentou ler seus rostos na escuridão.

— O que aconteceu? —perguntou procurando superar a ansiedade que a dominava.

— Permita-me que apresente a Roland Burnley. — Arthur fechou a portinhola e abaixou a janela do guichê —. Burnley, apresento a minha noiva, a senhorita Elenora Lodge.

Roland se moveu com intranquilidade no extremo do assento, lançou a Arthur um olhar de incerteza e observou a Elenora.

Ela percebeu curiosidade e desaprovação em seus olhos e deduziu que Roland tinha ouvido os rumores que circulavam nos clubes a respeito dela e que não sabia como reagir. Sem dúvida, perguntava-se se lhe estavam apresentando a uma dama respeitável ou a uma cortesã. Para um cavalheiro de bom berço, uma situação assim constituía um dilema.

Sorriu calidamente e estendeu a mão para ele.

— É um prazer conhecê-lo, senhor.

Roland titubeou, mas ante a mão enluvada de uma dama e uma apresentação formal, suas boas maneiras prevaleceram.

— Senhorita Lodge.

Roland inclinou a cabeça sobre a mão de Elenora em uma saudação mecânica e superficial e, embora lhe soltasse a mão quase em seguida, Elenora teve tempo de apreciar sua forma de pegá-la. Em seguida, olhou a Arthur.

—Não é o homem que está procurando — declarou em voz baixa.

— Eu cheguei à mesma conclusão faz um momento. — Arthur deixou com suavidade a bolsa de veludo negro no regaço de Elenora e acendeu um dos lampiões da carruagem —. Mas ao parecer alguém pretendia que eu acreditasse o contrário. Olhe isto.

Elenora apalpou a forma e o peso dos objetos que havia no interior da bolsa.

— Não diga que encontrou as caixas de rapé!

— Assim é.

— Santo céu! — Elenora afrouxou a corda com rapidez e tirou os pequenos objetos que estavam embrulhados em linho. Desembrulhou o primeiro e o segurou perto do lampião. A luz se refletiu nos adornos esmaltados e cintilou na pedra vermelha da tampa —. O que significa isto?

— Venho fazendo a mesma pergunta a St. Merryn há vários minutos — resmungou Roland —, e ainda não se dignou a me responder.

— A história é complicada, senhor — Elenora o tranquilizou —. Estou convencida de que St. Merryn explicará tudo agora que os dois estão a salvo.

Arthur trocou de posição e esticou uma perna.

— Em poucas palavras, Burnley: estou perseguindo ao criminoso que assassinou ao meu tio avô e, pelo menos, a mais dois homens.

Roland o olhou com determinação.

— Que demônios diz?

— Conforme consegui averiguar, o assassino é um cliente assíduo do Green Lyon, de modo que, esta noite, a senhorita Lodge e eu estivemos vigiando o estabelecimento. Imagine minha surpresa quando o vi sair do clube e caminhar sozinho por uma ruela escura.

— Já lhe disse, tinha razões para acreditar que... — Roland se deteve na metade da frase, olhou a Elenora e ficou vermelho.

Arthur também olhou a Elenora.

— Alguém lhe contou que sua esposa o estava traído comigo, e encontraria provas se fosse a um endereço determinado.

Elenora ficou estarrecida.

— Que ideia tão monstruosa! — exclamou.

Arthur encolheu os ombros. Elenora virou-se para Roland e disse de maneira decidida:

— Permita-me dizer, senhor, que St. Merryn é um cavalheiro com um elevado sentido da honra e da integridade. Se o conhecesse embora só fora um pouco, saberia que é completamente inconcebível que St. Merryn pudesse seduzir a sua esposa.

Roland lançou a Arthur um olhar feroz.

— Eu não tenho tanta certeza — afirmou.

Os olhos de Arthur brilharam com ironia, mas não disse nada.

— Pois eu sim tenho — reafirmou Elenora—. E se o senhor se empenha em acreditar em tal tolice, não terei mais remédio que pensar que perdeu o juízo. Além disso, devo lhe dizer que se crê, embora seja só por um instante, que sua esposa é capaz de traí-lo, também comete com ela um grande equívoco.

— Não sabe sobre isso — murmurou Roland, embora se notava que começava a sentir-se apanhado.

— Nisso também se equivoca — Elenora lhe informou —. Tive o privilégio de conhecer a senhora Burnley e para mim é evidente que o ama profundamente e que nunca faria nada que pudesse feri-lo.

As facções de Roland ficaram tensas devido à incerteza e a confusão.

— A senhorita conheceu Juliana? Não compreendo. Como aconteceu?

— Agora não é o lugar nem o momento de falar do nosso encontro. É suficiente que saiba que, embora você não tenha certeza, eu tenho fé absoluta na profundidade dos sentimentos de sua esposa em relação ao senhor e uma fé ainda maio no sentido da honra de St. Merryn. — em seguida virou-se para Arthur —. Por favor, continue com sua história.

Arthur inclinou a cabeça.

— É evidente que o criminoso organizou tudo para que eu visse a Burnley aqui esta noite. Deduziu que eu o seguiria, que o descobriria com as caixas de rapé e que chegaria à conclusão de que ele é o homem que estou procurando. Sem dúvida, com tudo isto pretendia desviar minha atenção da pista verdadeira.

— Sim, claro — respondeu Elenora lentamente —. É óbvio que o assassino sabe que você e o senhor Burnley não se dão muito bem. Sem dúvida, estava convencido de que cada um de vós acreditaria o pior do outro.

— É... —murmurou Roland, que parecia afundar-se ainda mais na esquina da carruagem.

Arthur exalou pesadamente.

Elenora lhes ofereceu um sorriso reconfortante.

— O assassino se equivocou muito com os dois, não é? Provavelmente não sabia que os senhores são muito inteligentes e intuitivos para interpretar de maneira tão errônea suas intenções mútuas. Sem dúvida, julgou-lhes por como ele teria reagido nesta situação.

— Mmm.

Arthur parecia incomodado com aquela conversa.

Roland grunhiu e contemplou a ponta das suas botas.

Elenora olhou o rosto de ambos e notou umas cócegas inquietantes nas palmas das mãos. E, naquele momento, soube que as predições do assassino tinham estado muito perto de se tornar realidade.

— Bom, este episódio terminou — continuou Elenora decidida a dissipar aquele ambiente tão lúgubre —. Temos muitas perguntas para fazer, senhor Burnley. Espero que não se incomode.

— Que perguntas? — ele inquiriu com receio.

Arthur examinou seu rosto e disse:

— Comece por nos contar tudo o que possa sobre o homem que sugeriu que fosse a aquele quarto esta noite.

Roland cruzou os braços.

— Não há muito que contar — começou a dizer —. O conheci faz uns dias durante uma partida de cartas. Naquela noite, ganhei várias centenas de libras. Por desgraça, durante os dias seguintes perdi uma cifra superior a aquela quantidade.

— Foi ele quem sugeriu que fosse ao Green Lyon? — perguntou Elenora.

Roland apertou os lábios.

— Sim.

— Como se chama esse homem? — continuou ela.

— Stone.

— Descreva-o — pediu Arthur.

Roland abriu as mãos.

— Magro. Olhos azuis. Cabelo castanho. Tem, mais ou menos, minha estatura e umas facções atraentes.

— O que pode nos dizer sobre sua idade? — perguntou Elenora.

— Parecida com a minha. Suponho que esta é uma das razões de que nos entendêssemos tão bem. Esta e o fato de que parecia compreender as dificuldades que supõem minha situação financeira.

Elenora fechou o punho sobre a bolsa de veludo que tinha no regaço.

— Contou-lhe alguma coisa a respeito de si mesmo? — perguntou ela.

— Muito pouco. — Roland fez uma pausa, como se tentasse reviver suas lembranças, e depois de uns instantes acrescentou —: Sobretudo falamos de que meus problemas financeiros atuais se deviam a...

Roland se interrompeu de repente e lançou a Arthur um olhar rápido e zangado.

— Animou-o a que me culpasse de seus problemas? — perguntou Arthur secamente.

Roland voltou a contemplar suas botas.

Elenora assentiu com a cabeça de um modo tranquilizador.

— Não se preocupe, senhor Burnley, seus problemas financeiros logo terminarão. St. Merryn tem a intenção de convidá-lo a participar de um de seus próximos projetos de investimento.

Roland se endireitou de repente.

— Como? De que fala?

Arthur olhou a Elenora com impaciência e ela simulou não dar-se conta.

— Você e St. Merryn podem falar sobre suas finanças mais tarde, senhor Burnley. No momento, devemos nos concentrar no homem que o levou ao Green Lyon. Por favor, tente recordar algo que dissesse sobre si mesmo e que lhe pareceu interessante ou incomum.

Roland titubeou, pois sem dúvida desejava continuar com o tema dos investimentos, mas ao final cedeu.

— Na realidade, não posso contar muito mais — explicou —. Compartilhamos umas quantas garrafas de vinho e jogamos cartas. — Roland fez uma pausa —. Bom, há uma coisa. Deu-me a impressão de que estava muito interessado na natureza e em outras questões relacionadas com a ciência.

Elenora conteve o fôlego.

— O que lhe contou a respeito de seu interesse pela ciência? — perguntou Arthur.

— Não lembro com exatidão. — Roland franziu o cenho —. O tema surgiu depois de um jogo de azar. Eu tinha perdido uma cifra bastante importante de dinheiro. Stone comprou uma garrafa de vinho para me consolar. Bebemos durante um momento enquanto conversávamos sobre várias questões. Então me perguntou se sabia que a Inglaterra tinha perdido a seu segundo Newton fazia já vários anos, antes que aquele homem pudesse demonstrar seu gênio ao mundo.

Elenora sentiu a boca seca, olhou a Arthur e percebeu nos seus olhos um olhar de cumplicidade.

— Isto me fez lembrar a pergunta que esquecemos lhe formular a lady Wilmington — comentou Elenora —. Embora fosse pouco provável que nos respondesse a verdade, claro.

 

— Não estou nada convencida de que este seja o passo que devamos dar neste momento — Elenora disse ajustando o xale. Levantou então o olhar para as janelas da casa sem luz e acrescentou —: São as duas da madrugada. Possivelmente deveríamos ter ido para casa e pensar melhor antes de vir.

— Não tenho nenhuma intenção de esperar a que seja uma hora correta para falar com lady Wilmington — replicou Arthur.

Em seguida, levantou a pesada aldrava de bronze pela terceira vez e a deixou cair. Elenora fez uma careta quando o intenso som metálico ressonou no silêncio.

Tinham acabado de deixar Roland em seu clube. Lhe deram instruções para que guardasse silêncio sobre o que tinha ocorrido naquela noite e, em seguida, Arthur ordenou ao chofer que se dirigisse à casa de lady Wilmington.

Finalmente, ouviram passos no vestíbulo e, segundos depois, a porta se abriu com cautela. Uma criada com olhos sonolentos vestida com um gorro e uma bata fina os observou enquanto segurava uma vela em uma mão.

— O que ocorre? Deve ter se equivocado de casa, senhor.

— Esta é a casa que procuramos. — Arthur entrou sem ser convidado —. Desperte a lady Wilmington imediatamente e diga-lhe que se trata de uma questão de vida ou morte.

— De vida ou morte?

A criada deu um passo atrás com o rosto congestionado pelo medo.

Elenora aproveitou seu estado de nervos para entrar e lhe ofereceu um sorriso tranquilizador.

— Comunique a lady Wilmington que St. Merryn e sua noiva estão aqui — lhe indicou com firmeza —. Estou convencida de que quererá nos receber.

— Sim, senhora.

As instruções claras de Elenora pareceram acalmar à alterada criada, que, depois de acender uma vela que estava sobre uma mesa no vestíbulo subiu rapidamente as escadas.

Pouco tempo depois as desceu aceleradamente.

— Minha senhora diz que se reunirá com vocês no estúdio em um momento.

 

—Sigo dizendo que deveríamos ter refletido mais sobre esta questão antes de vir aqui esta noite — declarou Elenora, sentada em uma delicada cadeira do elegante estúdio e com os músculos tensos.

A vela que a criada tinha acendido para eles estava sobre a mesa que estava perto da janela.

— A referência a um segundo Newton não pode ser uma coincidência, você sabe disso tão bem como eu. — Arthur passeava pelo pequeno recinto com as mãos nas costas —. Lady Wilmington é a chave deste enigma, sinto-o nos ossos.

Elenora estava completamente de acordo com as suas conclusões. Entretanto, o que a preocupava era a forma em que Arthur pensava interrogar a lady Wilmington. Aquela questão era muito delicada e devia tratar-se com sutileza.

— Esta tarde não podia deixar de pensar na visita que fizemos a lady Wilmington — declarou Elenora —. Uma e outra vez, recordava-a tocando seu medalhão sempre que falava de Treyford. Então pensei que, se tinham sido amantes, possivelmente tinham tido um filho...

— Um filho não — negou Arthur sacudindo a cabeça —. Já investiguei esta possibilidade. O único filho homem de lady Wilmington é um cavalheiro sério, responsável e muito robusto: é a viva imagem do marido de lady Wilmington, tanto no aspecto físico como quanto a seus interesses intelectuais. Este cavalheiro se dedica a suas propriedades e nunca se interessou pela ciência.

— St. Merryn — saudou lady Wilmington da porta com um tom de voz resignado —. Senhorita Lodge. De modo que descobriram a verdade. Já temia isso.

Arthur interrompeu seu caminhar e olhou para a porta.

— Boa noite, senhora. Já vejo que a senhora já sabe a razão de que tenhamos vindo a estas horas.

— Assim é.

Lady Wilmington entrou devagar no estúdio.

Naquele momento parecia muito mais velha, pensou Elenora sentindo uma profunda tristeza por aquela mulher orgulhosa que tinha sido muito formosa na juventude. Não tinha prendido seu cabelo grisalho em um coque elegante, mas sim o tinha coberto com um gorro branco, e tinha olheiras que indicavam que não havia dormido bem durante vários dias. Não usava anéis nos dedos nem pérolas nas suas orelhas.

Entretanto, Elenora viu que usava o medalhão.

Lady Wilmington se sentou na cadeira que Arthur lhe ofereceu.

— Vieram para me perguntar sobre meu neto, não é?

Arthur não podia afastar os olhos de lady Wilmington.

— Assim é — respondeu suavemente.

— É neto de Treyford, não é assim? — perguntou Elenora com delicadeza.

— Exatamente. — Lady Wilmington fixou o olhar na oscilante chama da vela —. Treyford e eu estávamos muito apaixonados. Entretanto, eu estava casada e tinha tido dois filhos com meu marido. Então descobri que estava grávida de Treyford e simulei que Wilmington era o pai. Ante a lei não havia nenhuma dúvida sobre sua paternidade. Ninguém suspeitou da verdade.

— Treyford soube que você deu a luz a uma filha dele? — perguntou Arthur.

— Sim, e estava encantado. Não deixava de dizer que fiscalizaria sua educação como se fosse um amigo íntimo da família. Inclusive jurou que elaboraria complicados planos a fim de que ela recebesse uma educação em matemática e filosofia natural desde sua mais tenra infância...

— Mas então Treyford morreu na explosão de seu laboratório — continuou Arthur.

— Quando me contaram que havia falecido, senti como se meu coração se rompesse. — Lady Wilmington acariciou o medalhão com a ponta dos dedos e prosseguiu —: Consolei-me com a ideia de que tinha tido um filho dele. Prometi educar a Helen como Treyford queria, mas, embora fosse muito inteligente, nunca mostrou o menor interesse pela ciência ou as matemáticas. A única coisa que a atraía era a música. Interpretava e compunha de forma brilhante, mas mesmo assim eu sei que Treyford teria se sentido decepcionado.

— Entretanto, quando ela se casou deu a luz um filho que possui tanto a inteligência aguda de Treyford como sua paixão pela ciência. — Arthur segurou com força o respaldo de uma cadeira enquanto observava a lady Wilmington com atenção —. É isto certo, senhora?

Lady Wilmington brincou com o medalhão.

— Parker é a viva imagem de Treyford na sua idade. A semelhança é surpreendente. Quando minha filha e seu marido faleceram por causa de uma febre, prometi educar a seu filho como Treyford teria desejado.

— Contou-lhe a verdade a respeito da identidade de seu avô? — perguntou Elenora com suavidade.

— Sim. Quando teve idade suficiente para compreendê-lo, falei-lhe de Treyford. Merecia saber que o sangue de um verdadeiro gênio corria por suas veias.

— Então lhe disse que era o descendente direto do homem que podia ter sido o segundo Newton da Inglaterra — comentou Arthur —. E Parker decidiu continuar o legado de seu avô.

— Estudou as mesmas matérias que tinham fascinado a Treyford — sussurrou ela.

Elenora a olhou e perguntou:

— Também a alquimia?

— Sim. — Lady Wilmington encolheu os ombros —. Devem acreditar em mim quando lhes digo que tentei afastar Parker desse caminho escuro. Entretanto, conforme foi crescendo, mostrou sinais de parecer-se com Treyford não só em sua capacidade intelectual, mas também em outros aspectos.

— O que quer dizer? — perguntou Arthur.

— À medida que foram transcorrendo os anos, o temperamento do Parker se foi voltando cada vez mais imprevisível. Às vezes se mostrava alegre e animado sem nenhuma razão e, depois de um momento, de forma repentina, se deprimia até tal ponto que eu cheguei a temer que se tirasse a vida. Quando estava neste estado, a única coisa que o distraía eram seus estudos alquímicos. Faz dois anos se transladou a Itália para continuar suas investigações.

— Quando retornou? — perguntou Arthur.

— Faz uns meses. — Lady Wilmington suspirou com pesar —. Estava tão contente de que tivesse voltado! Entretanto, logo me dei conta de que o que tinha aprendido na Itália não tinha feito mais que aumentar seu interesse pela alquimia. Então me pediu que lhe entregasse os documentos e os jornais de Treyford que eu guardava em um baú.

— E você os entregou? — perguntou Elenora.

— Esperava que deste modo se tranquilizasse, mas me temo que eu só piorei a situação. Eu suspeitava que Parker embarcado em determinado projeto secreto, mas não sabia o que era que queria realizar.

— O que imaginava você que tentava fazer? — perguntou Arthur com frieza —. Descobrir a pedra filosofal? Converter o chumbo em ouro?

— O senhor zomba de mim, mas o certo é que Parker está tão imerso em suas pesquisas sobre as ciências ocultas que tem o convencimento de que estes projetos são factíveis.

— Quando a senhora se deu conta de que Parker estava decidido a construir o aparelho que se descreve no Livro das pedras? — perguntou Arthur.

Lady Wilmington o observou com grande tristeza e resignação nos olhos.

— Dei-me conta quando vocês vieram me visitar no outro dia e me contaram que Glentworth e seu tio avô tinham sido assassinados e que suas caixas de rapé tinham desaparecido. Então soube o que Parker pretendia.

— E também se deu conta então de que tinha ultrapassado os limites de um gênio excêntrico e que se converteu em um assassino — declarou Arthur.

Lady Wilmington inclinou a cabeça e apertou o medalhão com os dedos, mas não pronunciou nenhuma palavra.

— Onde está Parker? — perguntou Arthur.

Lady Wilmington levantou a cabeça. Uma determinação serena parecia haver-se apoderado dela.

— Já não é necessário que o senhor se preocupe com meu neto. Eu me encarreguei da situação.

Arthur apertou a mandíbula.

— A senhora deve compreender que temos que detê-lo.

— Compreendo-o. E é isto justamente o que eu fiz.

— Como diz?

— Já não serão mais cometidos assassinatos. — Lady Wilmington separou a mão do medalhão e adicionou —: O senhor tem a minha palavra. Parker está em um lugar onde já não pode fazer mal a ninguém, nem sequer a si mesmo.

Elenora examinou o rosto de lady Wilmington.

— O que a senhora fez?

— Meu neto perdeu o juízo. — Os olhos de lady Wilmington se encheram de lágrimas —. Já não posso fazer de conta que não é assim. Entretanto, compreendam que não podia suportar a ideia de que encarcerassem em Bedlam.

Elenora se estremeceu e começou a dizer:

— Ninguém desejaria que um familiar querido padecesse um destino semelhante. Entretanto...

— No outro dia, depois que partiram, mandei chamar meu médico pessoal. Faz anos que o conheço e confio nele por completo. Ele organizou tudo para que transladassem a Parker a um manicômio privado que está no campo.

— Enviou-o a um psiquiátrico? — perguntou Arthur com brutalidade.

— Assim é. O doutor Mitchell e dois enfermeiros foram à casa de Parker esta tarde. Surpreenderam-no quando estava se vestindo para ir a seu clube e o prenderam.

Arthur franziu o cenho.

— A senhora tem certeza? — perguntou.

— Eu fui com eles e presenciei como prendiam Parker e lhe colocavam essa horrível camisa de força. Meu neto não deixou de me suplicar enquanto o introduziam em uma carruagem com barras e, finalmente, ataram um pano sobre a boca e o silenciaram. Não pude deixar de chorar durante horas.

— Santo céu! — sussurrou Elenora.

Lady Wilmington contemplou a vela com desânimo.

— Asseguro-lhes que esta noite foi a pior da minha vida. Inclusive pior que a que passei quando me disseram que tinha perdido a Treyford para sempre.

Elenora notou que seus próprios olhos se enchiam de lágrimas. Levantou-se do assento, aproximou-se de lady Wilmington, ajoelhou-se e lhe tomou as mãos.

— Lamento tanto que tenha tido que acontecer uma tragédia tão imensa! — sussurrou.

Lady Wilmington pareceu não ouvi-la e seguiu olhando fixamente a vela.

— Há algo que se não se importar eu gostaria de esclarecer, lady Wilmington — comentou Arthur suavemente —. Se levaram a Parker a um psiquiátrico esta tarde, quem se encarregou de que Burnley recebesse esta noite uma nota em que lhe indicava que devia ir a um endereço perto do Green Lyon? E quem preparou tudo para que eu o seguisse e descobrisse as caixas de rapé?

Lady Wilmington suspirou.

— Parker é extremamente cuidadoso na elaboração dos seus planos. Esta é outra das qualidades que herdou de Treyford. Deve ter organizado o plano relacionado a você e o senhor Burnley antes que os enfermeiros o levassem esta tarde. Sinto muito, não sabia nada a respeito deste plano. Se soubesse o que Parker estava tramando, teria mandado um aviso ao senhor. Ao menos, mais ninguém morreu desde que você me contou o que estava acontecendo.

— Assim é. — Arthur apertou um punho e logo em seguida relaxou os dedos —. Embora, esta noite, quando descobri a Burnley com as malditas caixas de rapé, durante uns instantes, a situação ficou um pouco incerta.

Lady Wilmington utilizou um lenço para secar as lágrimas.

— Sinto muito. Não sei mais o que posso dizer.

— Falando das caixas de rapé — continuou Arthur —, pergunto-me por que Parker organizou tudo para que eu as encontrasse. A senhora diz que estava obcecado com a ideia de construir o “Raio de Júpiter”? Se for assim, necessitava das pedras. Por que permitir que duas delas caíssem em minhas mãos?

Elenora ficou de pé.

— Possivelmente devêssemos examinar mais de perto as caixas de rapé. Só posso pensar em uma razão pela qual Parker permitiria que você as encontrasse.

Arthur compreendeu imediatamente o que Elenora queria dizer. Abriu a bolsa de veludo, tirou uma das caixas e acendeu o abajur que havia na pequena mesa.

Elenora o contemplou enquanto ele sustentava a tampa da caixa à luz do abajur e a examinava com atenção.

— Sim, claro — ele comentou enquanto baixava devagar a mão com a que segurava a caixa.

— O que ocorre? — perguntou lady Wilmington.

— Levarei as caixas a um joalheiro amanhã de manhã para ter certeza — explicou Arthur —. Entretanto, acredito que podemos assegurar que a pedra não é mais que um cristal colorido que foi esculpido para que se parecesse com a pedra original.

— Agora tudo tem sentido — comentou Elenora —. Parker extraiu as pedras das caixas e as substituiu por uma réplica de cristal. Pergunto-me o que fez com as pedras originais.

Lady Wilmington sacudiu a cabeça, perplexa.

— Suponho que é possível que estivessem com ele quando o levaram esta tarde. Ou possivelmente estejam escondidas na sua casa.

— Se a senhora tiver a gentileza de me indicar o endereço, amanhã de manhã registrarei sua casa — declarou Arthur.

Lady Wilmington o olhou com tal desespero que a Elenora lhe encolheu o coração.

— Dar ao senhor a chave da casa de Parker — aceitou ao final lady Wilmington —. Só espero que me perdoe por não ter sido mais franco com você desde o inicio.

— Compreendemos seus sentimentos — declarou Elenora acariciando as mãos trêmulas de lady Wilmington —. Ele é seu neto e é tudo o que resta de seu amor perdido.

 

Uns minutos mais tarde, Arthur entrou na carruagem detrás de Elenora. Em vez de sentar-se frente a ela, como era seu costume, sentou-se do seu lado. Em seguida deixou escapar um profundo suspiro e esticou as pernas. Sua coxa roçou a da Elenora.

Naquela noite sua proximidade física lhe resultava mais reconfortante que excitante, pensou Elenora. Gostou daquele sentimento e se deu conta de que esse seria outro dos aspectos da sua relação que sentiria falta nos anos vindouros.

— Parece lógico que Parker tramasse seus planos ontem ou inclusive anteontem — comentou Arthur depois de um momento —. Sem dúvida, utilizou a Jeremy Clyde. Este, sem sabê-lo, desempenhou seu papel e deixou cair a isca que me levou ao Green Lyon esta noite. Além disso, é provável que Parker tivesse pagado a alguns meninos para que vigiassem minha chegada e, quando um deles me viu no interior da carruagem de aluguel, entregou a mensagem a Burnley.

— E tudo com a esperança de te distrair e fazer você acreditar que tinha encontrado ao assassino.

— Assim é — assentiu Arthur.

— Certamente deduziu que estaria mais que disposto a acreditar que Burnley era o criminoso. Depois de tudo, Roland tinha fugido com a sua noiva. — Elenora sorriu com ironia —. Como o assassino podia saber que você não sentia nenhum rancor por Roland e que na realidade tinha organizado a fuga?

— Este foi seu único engano.

— Sim. E, falando de enganos, sem dúvida foi minha excitada imaginação a que me levou a acreditar que o criado que me tocou esta noite na sala de baile era o assassino. — Elenora se estremeceu e acrescentou —: Devo admitir que estou muito contente por haver-me equivocado quanto a sua identidade.

— Eu também. A ideia de que te houvesse tocado outra vez...

— Se por acaso te interessa, acredito que lady Wilmington tomou a decisão correta — comentou Elenora com rapidez para distrair os pensamentos de Arthur —. Parker está louco e não havia mais que duas opções: o psiquiátrico ou a forca.

— Estou de acordo.

— Agora tudo terminou — declarou ela com voz suave —. Você já cumpriu com sua responsabilidade e agora pode acalmar sua mente.

Ele não respondeu, mas, depois de um momento, esticou o braço, pegou a mão de Elenora e a apertou com força.

E permaneceram em silêncio, de mãos dadas, até que a carruagem chegou à porta principal da mansão de Rain Street.

 

O relógio em cima da mesa de cabeceira marcava três e quinze. Arthur o olhou desde onde estava, perto da janela. Já tinha se despido, mas não tinha ido ainda pra cama. Não teria tido sentido, pois dormir não era o que necessitava.

Era a Elenora a quem necessitava.

A casa parecia estar dormindo. Fazia tempo que os criados tinham ido à cama e, se seu comportamento anterior podia servir de referência, Bennett não acompanharia Margaret a casa até o amanhecer.

Arthur se perguntou se a Elenora estaria lhe custando conciliar o sonho tanto como a ele.

Aproximou-se da janela para contemplar o jardim envolvido na noite e imaginou a Elenora encolhida na cama. Teve então que recordar a si mesmo, mais uma vez, que um cavalheiro não devia bater na porta do dormitório de uma dama a menos que ela o tivesse convidado a fazê-lo.

E Elenora não tinha feito convite algum quando lhe desejou boa noite fazia só uns instantes. Na realidade, tinha-lhe indicado sucintamente que fosse descansar.

Mas ele não estava com humor para cumprir suas ordens.

Arthur ficou contemplando a escuridão exterior durante mais um instante. Seria completamente irresponsável ir ao quarto de Elenora. Embora tivesse saído ilesos do episódio da biblioteca, ele não tinha direito a pô-la de novo em uma situação potencialmente tão embaraçosa.

Os riscos eram muitos e diversos. Margaret e Bennett podiam retornar a casa logo e Margaret podia descobrir que ele não estava no quarto correto. Ou algum dos criados podia ouvir o rangido das taboas do chão e, temeroso de que se tratasse de um ladrão, subisse a investigar.

Entretanto Arthur sabia que o que o retinha não era o risco de ser descoberto, a não ser a possibilidade de que a única coisa que Elenora quisesse ou necessitasse dele fosse uma breve paixão.

Arthur se lembrou dos sonhos de independência pessoal e financeira de Elenora. Durante um momento breve e embriagador, imaginou como seria livrar-se dos grilhões de suas responsabilidades com a família Lancaster e fugir com Elenora.

A fantasia de viver uma vida livre com ela em algum país longínquo e fora do alcance de seus familiares e das exigências de quem dependia dele tintilou frente a seus olhos como se se tratasse de um reflexo efervescente no cristal da janela.

A imagem, entretanto, desvaneceu-se em seguida: ele tinha compromissos, e os cumpriria.

Mas naquela noite Elenora não estava mais que a uns passos dele.

Arthur apertou a faixa do roupão de seda negra que usava e se afastou da janela. Pegou então o candelabro e depois de atravessar o quarto, abriu a porta e saiu ao corredor.

Uma vez ali, ficou escutando durante uns segundos. Não se ouvia nenhuma carruagem na rua nem tampouco chegava nenhum ruído da planta baixa.

Arthur percorreu o corredor e se deteve diante do dormitório de Elenora. Não se filtrava luz alguma por debaixo da porta. Arthur se disse a si mesmo que devia considerar este detalhe como um sinal de que Elenora, a diferença dele, tinha podido conciliar o sonho.

Mas e se estava deitada na escuridão e completamente acordada? Arthur pensou que não faria mal a ninguém se chamava com suavidade à porta. Se estivesse dormindo, não lhe ouviria.

Arthur golpeou a porta, embora um pouco mais forte do que pretendia. Mas claro, que sentido tinha golpeá-la sem fazer ruído algum?

Durante uns instantes Arthur não ouviu nada, mas finalmente percebeu o rangido inconfundível da armação da cama seguido de uns passos apagados.

A porta se abriu. Elenora o olhou com uns olhos que, à luz da vela, refletiam incompreensão. Seu cabelo escuro estava recolhido sob uma touca de renda e usava um singelo roupão estampado com florzinhas.

— Aconteceu alguma coisa? — sussurrou ela.

— Me convide a entrar.

Elenora franziu o cenho e perguntou:

— Por quê?

— Porque sou um cavalheiro e não posso entrar no seu dormitório sem um convite.

— Ah!

Arthur conteve o fôlego enquanto se perguntava o que ela faria.

Elenora curvou a boca e lhe ofereceu um sorriso sensual. Separou-se da soleira mantendo a porta aberta.

— Entra, por favor.

Um desejo poderoso, tanto que ameaçava consumir qualquer sensação que pudesse experimentar, percorreu as veias de Arthur. Ele estava completamente excitado. Desejava a Elenora com desespero.

Teve que recorrer a todo seu autodomínio para não agarrá-la a e levá-la diretamente à cama. Entrou em silencio no quarto e deixou o candelabro sobre a mesa mais próxima.

Ela fechou a porta sem fazer ruído e se virou para ele.

— Arthur, eu...

— Chist! Ninguém deve nos ouvir falar.

Em seguida a tomou em seus braços e a beijou antes que ela pudesse dizer mais nada.

Elenora o abraçou com força e Arthur sentiu a pressão das suas unhas nas costas, através do roupão de seda. Então ela entreabriu os lábios.

Arthur prometeu a si mesmo que se controlaria. Esta vez se asseguraria de que Elenora não esquecesse nunca aquela experiência. Deslizou as mãos ao longo das costas de Elenora e desfrutou da sua elegante curva. Quando alcançou os quadris de Elenora, o tato das suas nádegas firmes e redondas quase lhe fez perder o controle. Arthur lhe apertou as nádegas com suavidade e aproximou Elenora a seu membro rígido.

Um delicioso estremecimento percorreu o corpo de Elenora, quem soltou um leve ofego e se abraçou a Arthur com mais força.

Arthur deslizou as mãos ao redor da cintura de Elenora e desatou o nó da faixa que mantinha o seu roupão fechado. Este se abriu e deixou ao descoberto uma singela camisola de cambraia branca com rendas e fitas azuis no pescoço. Arthur percebeu a suave ondulação dos seios de Elenora e a protuberância de seus mamilos, que pressionavam o fino tecido.

Então a beijou no pescoço e lhe mordeu o delicado lóbulo da orelha. Ela respondeu com mais estremecimentos e um ofego de prazer. Sua reação emocionou e excitou a Arthur como nenhuma droga poderia havê-lo feito.

Arthur tirou, um por um, os grampos que prendiam seu gorro. Depois de retirar o último, o cabelo de Elenora caiu sobre suas mãos. Arthur agarrou sua cabeleira suave e perfumada e a segurou com o punho fechado para beijá-la.

Ela deslizou as mãos pelo interior da lapela do roupão de Arthur e apoiou as palmas no seu peito nu. O calor liberado pelos dedos de Elenora era tão intenso que Arthur quase não pôde reprimir um grunhido de necessidade.

Ele olhou seu rosto. A luz da vela lhe permitiu ver que sua expressão refletia paixão e prazer. Elenora abriu a boca e Arthur soube que tinha mergulhado tanto no reino das sensações que tinha esquecido da necessidade de guardar silêncio.

Com rapidez, Arthur lhe cobriu a boca com a mão e sacudiu a cabeça enquanto sorria levemente. Uma compreensão compungida seguida de um brilho provocador e zombador iluminaram os olhos de Elenora. Com suavidade e intencionadamente, Elenora mordeu a Arthur na palma da mão.

Ele quase começou a rir em voz alta. Meio embriagado pela expectativa do que ia acontecer, Arthur pegou a Elenora nos braços e a levou até a cama.

Jogou-a sobre os lençóis enrugados e tirou o roupão e as sapatilhas. Agora estava totalmente nu: no seu quarto, ao preparar-se para meter-se na cama, não tinha vestido a camisa de dormir. De repente, Arthur se deu conta de que aquela era a primeira vez que Elenora o via sem roupa.

Então a observou e se perguntou se lhe resultaria agradável olhá-lo ou se pelo contrário a visão de seu corpo nu e excitado a incomodaria.

Entretanto, quando viu a expressão de Elenora, sua preocupação desapareceu. Brilhava nos seus olhos uma fascinação radiante e Arthur sorriu. Quando Elenora esticou os braços para rodear o membro de Arthur com seus dedos, ele quase não pôde se controlar.

Devagar, Arthur se tombou na cama. Durante uns minutos, desfrutou do ardente prazer de ser tocado de uma forma tão íntima por Elenora. Entretanto, depois de uns instantes de tortura deliciosa, não teve mais remédio que afastar suas mãos. Se não a detinha, pensou Arthur, não poderia terminar aquilo da forma que queria.

Arthur acomodou a Elenora sobre suas costas, inclinou-se sobre ela e deslizou a mão ao longo da sua perna. A borda inferior da camisola de Elenora ficou presa na munheca de Arthur, que a foi levantando enquanto deslizava a mão pela perna de Elenora.

Arthur não se deteve até que viu o triângulo de pelos escuros que ocultava seus segredos.

Em seguida, inclinou-se e beijou o formoso e suave joelho de Elenora. Acariciou-lhe a nuca com as mãos. Depois de uns instantes, Arthur separou com suavidade as pernas de Elenora e acariciou com a língua o interior de uma de suas coxas de seda. Os dedos de Elenora, enredados no cabelo de Arthur, ficaram tensos.

— Arthur?

Ele levantou um braço e lhe tampou os lábios com a mão para lhe recordar que deviam guardar silêncio. Quando notou que ela se acalmava, ele voltou para sua tarefa.

Arthur se colocou entre as pernas de Elenora e inalou o delicioso aroma feminino que descobriu naquele lugar. Elenora cheirava a mar e a umas especiarias tão estranhas que não tinham nome. Arthur pensou que poderia viver o resto de sua vida daquela fragrância embriagadora. Dobrou os joelhos de Elenora a ambos os lados de sua cabeça, descobriu o vulto pequeno e sensível que havia entre suas pernas e o acariciou com os dedos.

Elenora ficou tensa imediatamente, como se não estivesse segura de como devia responder. Entretanto, seu corpo sabia, com exatidão, o que tinha que fazer. Depois de uns instantes, ela estava tão úmida que os dedos de Arthur brilharam à luz da vela.

Elenora respirou com mais rapidez e elevou os quadris na direção do rosto do Arthur. Quando ele introduziu um dedo em seu interior, ela se apertou contra ele e ofegou.

Arthur abaixou a cabeça e beijou o núcleo de seu desejo enquanto introduzia outro dedo em seu interior e o movia com suavidade.

— Arthur — ofegou ela em um sussurro afogado. Tentou sentar-se —. O que faz?

Sem levantar a cabeça, ele utilizou uma mão para empurrá-la com suavidade e firmeza contra a cama.

Ao princípio pensou que ela resistiria. Entretanto, de uma forma gradual, Elenora se deixou cair de costas sem deixar de gemer. Arthur ouviu sua respiração rápida e entrecortada. Sabia muito bem que Elenora era presa de uma força que não acabava de compreender.

— OH, Deus! OH, oooh, Meu deus!

Até aí chegou sua promessa de silêncio, pensou Arthur divertido e ao mesmo tempo um pouco preocupado. De todos os modos, agora não podia deter-se, ela estava muito perto do final e ele estava decidido a terminar aquilo de uma forma adequada.

Arthur notou seu clímax iminente antes que ela. As mãos de Elenora se retorceram nos lençóis e todo seu corpo ficou em tensão.

Soltou-se por completo, pensou Arthur. Já não tinha nenhuma noção do que ocorria a seu redor.

Naquele momento, Arthur ouviu o ruído inconfundível da porta da entrada ao abrir-se e em seguida percebeu o murmúrio distante e amortecido de umas vozes no andar de abaixo.

Margaret e Bennett tinham retornado.

A liberação de Elenora se desatou como uma tormenta. Arthur levantou a cabeça com rapidez e viu que ela abria a boca e que fechava os olhos com força.

O desastre se abatia sobre eles.

Arthur se deslocou para diante até que cobriu o corpo de Elenora com o seu. Agarrou-lhe a cabeça entre as mãos e apertou sua boca contra a dela enquanto se tragava o grito desesperado de prazer e de assombro de Elenora.

Um instante depois ela se relaxou debaixo do corpo de Arthur. Com cuidado, ele levantou a cabeça e deixou livre sua boca. Continuando, colocou a gema de um de seus dedos sobre os lábios da Elenora e lhe falou diretamente ao ouvido. Ela o olhou surpreendida e perplexa.

— Margaret e Bennett chegaram — sussurrou ele.

A porta principal se fechou e ouviram os passos de Margaret na escada.

Arthur não moveu nem um músculo enquanto Elenora estava paralisada debaixo dele. Os dois escutaram com atenção.

Os passos de Margaret se ouviram com mais intensidade quando começou a percorrer o corredor até o seu quarto. Arthur olhou a Elenora nos olhos e, de forma conjunta, ambos olharam a vela que ainda ardia na mesa.

Arthur sabia que os dois se perguntavam o mesmo. Veria Margaret o tênue resplendor da vela por debaixo da porta?

Os passos de Margaret se detiveram frente à porta de seu dormitório e, quando Arthur tinha começado a pensar que ele e Elenora se salvariam, os passos seguiram avançando.

Margaret bateria na porta do dormitório de Elenora e esperaria que ela respondesse, pensou Arthur. Ele tinha a esperança de que a Elenora lhe ocorresse alguma desculpa convincente para não convidar a Margaret a entrar no dormitório com a ideia de manter um bate-papo de última hora.

Arthur se deu conta então de que Elenora tinha ambas as mãos apoiadas no seu peito e que o empurrava com todas as forças. Ele se afastou e ficou de pé do lado da cama em silêncio.

A chamada inevitável se produziu.

— Elenora? Vi a luz da vela. Se não estiver muito cansada eu gostaria de te contar uma notícia muito emocionante. Bennett pediu que me case com ele.

— Um momento, Margaret, espera que eu coloque o roupão e as sapatilhas. — Elenora se levantou da cama de um salto —. É uma notícia muito emocionante. Estou encantada por você.

Elenora continuou falando com um tom de voz alegre e entusiasta enquanto abria a porta do armário, afastava as saias volumosas de vários vestidos e realizava gestos frenéticos olhando para Arthur.

Ele se deu conta que Elenora pretendia que ele se escondesse no condenado armário. Arthur afogou um grunhido. Ela tinha razão, era o único lugar do quarto no qual podia se esconder.

Arthur agarrou seu roupão e suas sapatilhas e, contra a sua vontade, introduziu-se no armário. Elenora fechou a porta com rapidez e ele se viu coberto por finos tecidos de musselina, sedas perfumadas e uma escuridão absoluta.

Arthur ouviu que Elenora abria a porta do dormitório.

— Acredito que isto merece uma celebração — disse Elenora —. Por que não vamos à biblioteca e provamos o excelente brandy de Arthur? Quero ouvir todos os detalhes da proposição de Bennett. Além disso, eu também tenho uma notícia surpreendente que quero te comunicar.

Margaret riu com alegria, como uma jovem que acabava de se apaixonar pela primeira vez. Claro que possivelmente era exatamente isso o que acontecia, pensou Arthur.

— Você acha que fazemos bem em beber o brandy? — perguntou Margaret genuinamente preocupada —. Já sabe o que sente Arthur a respeito desta bebida. Trata-a como se fosse um raro elixir dourado dos deuses.

— Creia-me — respondeu Elenora com convicção —, neste caso Arthur não manifestaria a menor objeção que descêssemos à biblioteca e bebêssemos um pouco do seu prezado brandy.

A porta se fechou detrás das duas mulheres.

Arthur refletiu uns minutos entre as sombras e as saias e se perguntou o que tinha acontecido com sua vida ordenada e planejada. Não podia acreditar que estivesse escondido no interior de um armário no dormitório de uma dama.

Coisas como aquela não lhe tinham ocorrido nunca antes de conhecer a Elenora.

 

Era quarta-feira e os criados tiravam folga na parte da tarde. Elenora estava sozinha em casa com Sally, quem se enfiou no quarto dela para ler a última novela de Margaret Mallory.

Margaret tinha saído com Bennett meia hora antes e Arthur partiu pouco depois com a intenção de registrar a moradia de Parker. Elenora sabia que ele esperava que ela o acompanhasse, mas quando Arthur lhe explicou seu plano, ela simplesmente assentiu distraidamente e lhe desejou sorte para que encontrasse as três pedras vermelhas.

Às duas e meia, Elenora colocou chapéu e luvas e saiu a dar um passeio.

O dia estava quente e ensolarado. Quando chegou no seu destino, Lucinda Colyer e Charlotte Atwater a esperavam na perpétua penumbra funerária do salão da senhora Blancheflower.

— Até que enfim você chegou, Elenora! — exclamou Lucinda enquanto agarrava o bule —. Estamos ansiosas para ouvir as novidades.

— Acredito que as encontrarão muito interessantes. — Elenora se sentou no sofá e contemplou a suas amigas —. Lamento lhes haver avisado com tão pouca antecedência.

— Não se preocupe — respondeu Charlotte —. Na sua nota nos comunicou que há uma questão de suma importância que devemos tratar imediatamente.

— Santo céu! Aconteceu, não? — Os olhos de Lucinda se iluminaram com horror e expectativa —. Tal como tinha previsto, seu novo patrão se aproveitou de você! Pobre, pobre Elenora! Te adverti sobre isso, lembra?

Elenora se lembrou do que Arthur tinha lhe feito na noite anterior e das sensações incríveis que tinha experimentado e, de repente, sentiu muito calor.

— Tranquilize-se, Lucinda — declarou antes de tomar um sorvo de chá —. Te asseguro que St. Merryn não me ofendeu de maneira alguma.

— Oh! — exclamou Lucinda com grande decepção. Mas se apressou a esboçar um leve sorriso e acrescentou —: Sinto-me tão feliz de te ouvir dizer isto!

Elenora deixou a taça de chá sobre o prato.

— Temo não poder lhes deleitar com histórias emocionantes a respeito da luxúria do meu patrão, mas acredito que encontrarão o que tenho a lhes dizer ainda mais interessante. Ao menos, poderia nos resultar muito mais proveitoso.

 

Arthur estava no centro do pequeno cômodo que Parker utilizava como sala de estar. Havia algo muito estranho naquele lugar.

Quando, uma hora antes, lady Wilmington lhe deu a chave, assegurou-lhe que encontraria a moradia de Parker no mesmo estado no qual se achava no dia anterior, quando o levaram ao manicômio. Explicou-lhe que não tinha tido tempo de retirar as pertences nem os móveis do seu neto.

Arthur registrou todos os cômodos com uma precisão metódica e não encontrou as pedras vermelhas. Mas não era isto que o preocupava, a não ser o aspecto das habitações.

A primeira vista, tudo parecia normal. Os móveis do dormitório, da sala de estar e da cozinha eram exatamente o que alguém esperaria encontrar na moradia de um jovem moderno. A biblioteca continha obras dos poetas mais populares, assim como um sortido de volumes dos clássicos, e a roupa do armário era da última moda.

Não havia nada incomum ou fora do comum naquela casa, pensou Arthur. E isso era precisamente o que não encaixava, pois Parker era um criminoso incomum e extraordinário.

 

Elenora se divertiu quando viu a reação de Lucinda e Charlotte ao ouvir o que lhes contou. As duas se olharam com uma expressão de surpresa e horror.

— Em poucas palavras — Elenora concluiu —, os cavalheiros dos clubes chegaram à conclusão de que St. Merryn se burlou da boa sociedade. Na opinião deles, St. Merryn me contratou para dispor de uma amante a sua conveniência.

— Eles acreditam que você é sua amante e que simula ser sua noiva e que ele arrumou tudo para que vivesse na casa dele de maneira que você estivesse sempre a mão? Que vergonha! — exclamou Lucinda.

Charlotte lhe lançou um olhar intimidador.

— Lembre-se que, na realidade, Elenora não é amante de St. Merryn, Lucinda. Isto é só o rumor que corre pelos clubes.

— Sim, claro! — respondeu Lucinda imediatamente. A seguir lançou a Elenora um sorriso de desculpa que, de certo modo, também refletia algum pesar —. Continua, por favor.

— Como lhes dizia — continuou Elenora —, as apostas estão relacionadas com a data em que St. Merryn terminará esta charada e me despedirá. — Elenora fez uma pausa para assegurar-se de que a escutavam com absoluta atenção —. Não vejo por que nós não deveríamos nos aproveitar e apostar também.

Os olhos da Lucinda e Charlotte refletiram primeiro compreensão depois esperança e ilusão.

— Nós conheceríamos a data com exatidão! — sussurrou Charlotte sobressaltada pelas possibilidades que lhes oferecia aquela situação —. Se Elenora pudesse convencer a St. Merryn para que terminasse sua relação em uma data determinada...

— Não acredito que isto seja problema — Elenora a tranquilizou —. Estou convencida de que St. Merryn cooperará na determinação da data exata.

— E nós seríamos as únicas que a conheceríamos — suspirou Lucinda —. Poderíamos ganhar uma fortuna!

— Resultaria tentador apostar vários milhares de libras — explicou Elenora —, mas não acredito que seja conveniente. Uma cifra enorme de dinheiro despertaria as suspeitas das pessoas. E não queremos que ninguém pergunte por nossas apostas.

— Então, quanto? — perguntou Lucinda.

Elenora hesitou enquanto refletia.

— Acredito que poderíamos apostar um total de setecentas ou oitocentas libras sem correr nenhum risco. Na minha opinião, qualquer cifra inferior a mil libras passaria despercebida nos livros de apostas. Dividiremos os lucros em três partes.

— Me parece uma fortuna — declarou Lucinda extasiada. Olhou para o céu e acrescentou —: É bastante mais do que espero receber de herança da senhora Blancheflower. Além disso, tenho mais probabilidades de conseguir o dinheiro das apostas que o da sua herança, porque começo a pensar que minha patroa se irá depois de mim.

— Mas como realizaremos a aposta? — perguntou Charlotte —. As mulheres não podem entrar nos clubes de St. James.

— Refleti sobre esta questão com atenção — explicou Elenora —, e acredito que tenho um plano que funcionará.

— Isto é muito emocionante! — exclamou Charlotte.

— Em minha opinião, esta aventura merece que a celebremos com algo mais que uma taça de chá — anunciou Lucinda.

A seguir se levantou do sofá, abriu um armário e tirou uma licoreira com xerez coberta de pó.

— Um momento — manifestou Charlotte com bastante menos entusiasmo —. O que ocorrerá se perdermos a aposta? Não poderíamos cobrir o pagamento.

— Santo céu, Charlotte, utiliza a cabeça! — Lucinda retirou o plugue de cristal esculpido da licoreira —. A única forma em que poderíamos perder seria se St. Merryn se casasse com Elenora. Que probabilidades tem que algo assim ocorra?

As facções de Charlotte se relaxaram.

— Probabilidades? Resulta impensável que um cavalheiro de sua posição e de sua fortuna se case com uma dama de companhia. Nem sequer sei como me ocorreu a ideia de que pudéssemos perder.

— Exato — respondeu Elenora esforçando-se para conter as lágrimas que ameaçavam brotando dos seus olhos. Ao final conseguiu esboçar um sorriso radiante e elevou seu cálice de xerez—. Por nossa aposta, senhoras!

 

Meia hora mais tarde, Elenora se dirigiu para a mansão da Rain Street com a sensação de que caminhava para sua própria perdição. Tinha resultado maravilhoso brindar por um futuro cor-de-rosa, livre de penúrias econômicas e ocupado com o desafio de dirigir sua pequena livraria, pensou Elenora. Além disso, algum dia, quando suas lágrimas se secassem, poderia desfrutar da vida que tinha planejado para si mesma. Mas antes tinha que enfrentar-se à dor que significava separar-se de Arthur.

Elenora saiu do parque e percorreu com lentidão a rua que a conduzia a seu lar.

“Não, não é meu lar. Esta rua conduz ao meu lugar de trabalho temporário. Eu não tenho um lar, mas terei um. O criarei para mim mesma”.

Quando chegou à entrada da enorme casa, lembrou-se de que a maioria dos empregados estava fora. Mas ala tinha uma chave e era perfeitamente capaz de abrir a porta por si mesma.

Elenora entrou no vestíbulo e tirou o casaco, as luvas e o gorro.

O que precisava era de uma xícara de chá, decidiu. Em seguida, percorreu o corredor que conduzia à parte posterior da casa e desceu os degraus de pedra que se comunicavam com as dependências da cozinha. Elenora ficou uns instantes olhando a porta do quarto no qual ouviu Ibbitts extorquir a pobre Sally. Dois dias depois, o mordomo tinha morrido.

Elenora tremeu ao recordá-lo e seguiu caminhando. A porta do dormitório de Sally estava aberta. Elenora olhou para o interior esperando ver Sally metida na leitura da novela.

O quarto estava vazio. Possivelmente, Sally finalmente tinha preferido sair.

Elenora preparou uma bandeja para si na enorme cozinha e a levou para a biblioteca. Uma vez ali, serviu-se uma taça de chá e se dirigiu para a janela.

A casa tinha mudado nos últimos dias. A tarefa ainda não estava terminada, mas aquele lugar já não era o mesmo do dia da sua chegada. Apesar da tristeza que a embargava, Elenora experimentou uma serena satisfação pelo que tinha conseguido até então.

Os chãos e a carpintaria foram recentemente polidos e estavam reluzentes. Os cômodos que levavam muito tempo fechados foram abertos e estavam limpos. Os lençóis sobre os móveis foram retirados. As janelas e os espelhos, antes opacos, agora resplandeciam e permitiam que os raios do sol chegassem a cantos que tinham permanecido por longo tempo na penumbra. Graças às ordens de Elenora, as pesadas cortinas estavam recolhidas nas laterais das janelas. Além disso, quase não se podia encontrar uma bolinha de pó que fosse na casa toda.

Os jardins também começavam a ficar muito mais acolhedores, Elenora refletiu, satisfeita pelos progressos que se estavam realizando. Os atalhos de cascalho estavam polidos e limpos. A exuberante vegetação estava sendo metodicamente podada e estavam preparando canteiros para novas plantas. Além disso, as obras na fonte já tinham começado.

Elenora pensou em quão formosa seria a vista da biblioteca depois de alguns meses. Então, as plantas teriam florescido e as ervas aromáticas estariam prontas para ser usadas na cozinha. Além disso, a água da fonte cintilaria à luz do sol.

Elenora se perguntou se Arthur se lembraria dela alguma vez quando olhasse por aquela janela.

Terminou o chá e, quando dispunha a virar-se, viu um homem vestido com roupas de trabalho e um avental de pele agachado sobre um canteiro. Então se lembrou dos azulejos novos que se necessitavam para a fonte. O melhor era assegurar-se de que os tinham encomendado.

Elenora saiu ao jardim.

— Um momento, por favor — disse Elenora enquanto se dirigia com rapidamente em direção do jardineiro —, eu gostaria de lhe fazer uma pergunta.

O jardineiro grunhiu e continuou tirando as ervas daninhas sem levantar a cabeça.

— Sabe se já encomendaram os azulejos para a fonte? — perguntou Elenora ao deter-se junto a ele.

O jardineiro voltou a grunhir.

Elenora se inclinou um pouco enquanto ele puxava outra erva daninha.

— Ouviu-me? —insistiu.

O coração de Elenora quase se deteve. Suas mãos! O jardineiro não levava luvas. Elenora observou seus dedos longos e elegantes. Um anel de selo confeccionado em ouro brilhava na sua mão esquerda. Elenora recordou a sensação que lhe produziu aquele anel através da magra luva que o assassino usava na noite que a convidou a dançar.

Imediatamente percebeu seu desagradável aroma e se endireitou rapidamente. Sentiu que o pulso se acelerava com tanto frenesi que se perguntou se ele o ouviria. Elenora retrocedeu um passo e juntou as mãos para evitar que lhe tremessem. Lançou um rápido olhar à porta traseira da casa: parecia estar a milhares de milhas.

O jardineiro ergueu-se e se virou.

O primeiro pensamento de Elenora foi que era muito bonito para ser um assassino sem piedade, mas então viu seus olhos e as dúvidas sobre sua identidade se desvaneceram.

— Eu mesma escolhi uma amostra dos azulejos que quero que coloquem na fonte — explicou Elenora com firmeza. Retrocedeu um passo mais e, com um tímido sorriso nos lábios, acrescentou —: E não queremos que se cometa nenhum engano, não é certo?

O jardineiro tirou uma pistola de debaixo do avental e olhou a Elenora.

— Não, senhorita Lodge — declarou —, sem dúvida não queremos que se cometa nenhum engano. A senhora já me causou suficientes problemas.

De repente, Elenora recordou que Sally não estava no quarto dela e o medo e a raiva a invadiram.

— O que o senhor fez com a criada? — perguntou tensa.

— Está a salvo. — O assassino assinalou a cabana do jardim com a pistola —. Comprove-o a senhora mesma.

Elenora atravessou a curta distância que a separava da cabana com o coração na boca e abriu a porta.

Sally estava no interior, jogada no chão, atada e amordaçada, mas se notava que não tinha sofrido dano algum. Quando viu Elenora, seus olhos se abriram devido ao desespero e o pânico. Uma carta selada estava sobre o chão do lado dela.

— Sua criada seguirá com vida desde que coopere comigo, senhorita Lodge — declarou Parker com frieza —. Mas se a senhorita me causar algum problema lhe cortarei o pescoço diante dos seus olhos.

— O senhor está louco? — Elenora perguntou sem pensar.

A pergunta pareceu divertir a Parker.

— Minha avó ao parecer acha que sim. Ontem fez que me levassem a um manicômio. E eu que acreditei que me adorava! É triste quando a gente não pode confiar nem na própria família, não crê?

— Ela tentava salvá-lo.

Ele encolheu os ombros.

— Fossem quais fossem suas intenções, eu consegui escapar depois de umas horas e estava de volta a Londres a tempo de pôr em prática meus planos para ontem de noite.

— Então foi o senhor quem eu vi no baile.

Ele fez uma reverência zombadora.

— Certamente, devo dizer que a senhorita tem um pescoço muito atraente.

Elenora prometeu a si mesma que não permitiria que ele a pusesse nervosa com aqueles comentários tão íntimos.

— Por que o senhor queria que St. Merryn acreditasse que Roland Burnley era o assassino?

— Para que relaxasse sua vigilância, é obvio. Acreditei que se St. Merryn baixasse a guarda seria mais fácil sequestrar a senhorita, e consequentemente, a ele. — Parker se pôs a rir—. Além disso, eu gosto de jogar com St. Merryn. Ele se orgulha da sua mente lógica, mas sua capacidade de raciocínio não é nada comparada com a minha.

— Do que o senhor está falando? — Elenora perguntou com voz autoritária.

Possivelmente, se o entretinha, alguém retornaria à casa, veria-a no jardim e sairia a investigar.

— Todas as suas perguntas serão respondidas no seu devido tempo, senhorita Lodge. Mas vamos por partes. Deixe que eu me apresente. — Parker inclinou a cabeça em uma elegante reverencia, mas a pistola não se moveu —. A senhorita tem a grande honra de conhecer o segundo Newton da Inglaterra.

 

Arthur apoiou um pé no degrau e o antebraço sobre a coxa.

— O que fez a senhora pensar que o cavalheiro que morava no número cinco era estranho?

A velha caseira inspirou pelo nariz.

— Não tinha nenhum criado nem donzela — começou a dizer —. E ninguém se cuidava da roupa dele nem da cozinha. Vivia sozinho. Não conheci a nenhum jovem que se virasse tão bem sozinho.

Arthur voltou o olhar para a porta do número cinco.

— A senhora estava aqui quando o levaram?

— Assim é. — A mulher seguiu o olhar de Arthur e sacudiu a cabeça —. Foi uma situação terrível. Tiraram-no com uma dessas camisas de força, como as que utilizam para os pobres desgraçados de Bedlam. A dama na carruagem chorava desconsoladamente. Me contaram depois que o levaram a um psiquiátrico privado em algum lugar do campo.

— O cavalheiro recebeu alguma visita enquanto vivia aqui?

— Não que eu saiba — respondeu a caseira —. Claro que só passava na casa umas poucas horas pelas tardes.

Arthur se endireitou e desceu o pé do degrau.

— Não dormia aqui? — perguntou.

— Nunca o vi chegar antes do meio-dia. Imagino que passava as noites no clube dele.

Arthur contemplou a porta.

— Ou em algum outro lugar...

 

Elenora percebeu um frio aroma de umidade que lhe permitiu saber que estava no subterrâneo antes mesmo que Parker lhe retirasse a venda dos olhos. Quando a tirou, ela descobriu que estava no interior de um quarto com muros de pedra sem janelas e iluminado por vários abajures fixados nas paredes.

Desceram até aquele lugar em uma espécie de jaula. Elenora não pode ver o artefato porque tinha os olhos vendados, mas notou o movimento e ouviu o ruído da corrente pesada que Parker utilizou para fazer descer a estrutura. Ele lhe explicou com orgulho que era o único que conhecia o manejo da jaula.

— Dispõe de um sistema de fechamento especial com um ferrolho encima e outro embaixo — contou Parker. É necessário conhecer a combinação para poder abri-lo.

O teto, baixo e abobadado, indicou-lhe que o quarto era muito antigo. Elenora deduziu que o desenho gótico era original e não ideado por algum decorador moderno. De longe se percebia o tênue som da água que gotejava ou que escorria por alguma superfície.

Uma série de bancadas de trabalho repletas de aparelhos e instrumentos estavam dispostas ao redor da sala. Elenora reconheceu alguns dos instrumentos, como as balanças, os microscópios e as lupas, mas os outros lhe eram desconhecidos.

— Bem-vinda ao laboratório do meu avô, senhorita Lodge — disse Parker realizando um gesto eloquente com uma mão —. Sua coleção de equipamentos e aparelhos era excelente. Entretanto, como é lógico, quando eu cheguei já estavam meio ultrapassados. Alguns ainda eram úteis, mas eu tomei a liberdade de substituir a maioria por outros mais modernos e avançados.

Elenora ainda tinha as mãos atadas na frente do corpo, mas Parker tinha tirado as correntes que lhe prendiam os tornozelos durante o percurso na carruagem.

Em determinado momento daquela viagem de pesadelo Elenora tentou saltar do veículo, mas a portinhola estava fechada com chave e havia barras nos guichês. Além disso, quando Parker deu instruções aos dois valentões que estavam na boleia, Elenora se deu conta de que seria inútil lhes pedir auxílio. Sem dúvida alguma, os dois vilãos estavam a serviço de Parker.

— O percurso não foi longo — Elenora comentou ignorando deliberadamente a explicação de Parker sobre o laboratório —. Ainda devemos estar em Londres. Onde estamos?

Elenora manteve a voz serena para que parecesse que dominava a situação. Acontecesse o que acontecesse, não permitiria que ele percebesse o terror que inundava seu coração. Não concederia a aquele louco essa satisfação.

— A senhora é muito ardilosa, senhorita Lodge. É certo que estamos em Londres. Esta sala está localizada numa zona remota debaixo das ruínas de uma velha abadia. Muito poucas pessoas vivem nos arredores e, além disso, estão convencidas de que este lugar está enfeitiçado.

— Compreendo. — Elenora deu uma olhada a seu redor e examinou os cantos do quarto que estavam na penumbra. Não seria difícil acreditar que os espectros e os fantasmas rondassem por aquele recinto.

Parker deixou a pistola em cima de uma bancada de trabalho e tirou o casaco. Debaixo daquela peça de roupa de primeira qualidade, vestia uma camisa de linho de um branco imaculado e um elegante colete xadrez azul e branco.

— Meu avô avivou as lendas locais relacionadas com a abadia e eu continuei a tradição — explicou ele —. É muito útil para manter as pessoas longe deste lugar.

— Por que me trouxe aqui?

— É uma história um pouco complicada, senhorita Lodge. — Parker consultou seu relógio —. Entretanto, tenho tempo para contar-lhe. Andou ao redor de umas das bancadas de trabalho e, com a mesma delicadeza com a que um homem acariciaria sua amante, deslizou a mão pela máquina de grande tamanho e aspecto malévolo que estava em cima da mesma. Uma veneração assustadora brilhou nos seus olhos —. É uma história sobre o destino.

— Tolices! Nenhum estudioso sério das ciências acredita no destino.

— Ah, mas eu sou mais que um estudioso sério das ciências, querida senhorita! Eu nasci para ser seu professor.

— Sua avó tem razão. Está você louco.

Ele soltou uma risada breve e zombadora.

— Ela está convencida da minha loucura.

— Porque você cometeu assassinatos.

— O assassinato só foi o começo, senhorita Lodge. — Parker deslizou devagar e carinhosamente a mão ao longo de uma das partes da máquina que parecia o canhão de um rifle —. Só o começo. Ainda resta muito que fazer.

Sua forma de acariciar a máquina incomodou a Elenora, que afastou os olhos de seus dedos longos.

— Fale-me sobre o que você chama de seu destino — Elenora pediu.

— Não tenho nenhuma dúvida sobre a sua veracidade. Já não. — Parker parecia estar extasiado pela máquina —. St. Merryn e eu compartilhamos um vínculo. E nenhum dos dois pode evitar seu destino.

— O que quer dizer?

Parker tirou uma bolsinha de veludo vermelho do bolso e desatou a fita que a fechava.

— Nós dois herdamos um legado de assassinato e frustração. Entretanto, nesta ocasião as coisas se resolverão de uma forma muito distinta de como se resolveram da última vez.

Parker tirou uma pedra vermelha da bolsa com supremo cuidado e a introduziu em uma abertura que havia em um dos lados da estranha máquina.

— A que se refere? — ela perguntou desesperada por conseguir que continuasse falando.

— Meu avô e o tio avô de St. Merryn foram amigos até que se converteram em rivais ferozes. Ao final, a competição que existia entre eles ficou encarniçada. George Lancaster não podia suportar que meu avô fosse tão genial como Newton, compreende? Considerava-o um louco e zombava dele.

— Mas você o vingou, não é? Você assassinou ao tio avô de Arthur.

— A morte de Lancaster foi um acidente, ou isso pensei eu naquele momento. Não pretendia matá-lo, ao menos não antes que ele tivesse presenciado o êxito do meu projeto. Eu queria que ele soubesse que estava equivocado quando zombava do meu avô e o chamava de louco alquimista. Entretanto, o velho me surpreendeu enquanto eu estava vasculhando seu laboratório.

— Você procurava a caixa de rapé, não é assim?

— Assim é. O raio requer as três pedras. — Parker introduziu a segunda pedra vermelha no interior da máquina —. Quando George Lancaster faleceu, acreditei que tinha interpretado mal meu destino, mas logo averiguei que St. Merryn me perseguia e tudo ficou claro para mim. Então compreendi que era ele, e não seu ancião tio avô, quem devia presenciar meu grande êxito. Tudo é perfeitamente lógico.

— O que quer dizer?

— George Lancaster e meu avô viveram em outra época. Os dois eram de uma geração anterior e pertenciam ao passado. Entretanto, St. Merryn e eu somos da época moderna. Resulta lógico que seja St. Merryn e não seu antepassado quem presencie meu triunfo. — Parker deu uns tapinhas na máquina —. Do mesmo modo que o correto era que fora eu, e não meu antepassado, quem decifrasse o mistério do Raio de Júpiter.

— De onde tirou a ideia do seu suposto destino?

— Tudo figurava nos jornais de meu avô. — Parker introduziu a última pedra na máquina, fechou o orifício da entrada e se virou para olhar a Elenora —. Entretanto, como todo bom alquimista, Treyford escrevia, com frequência, em uma linguagem codificada que não era fácil de resolver. Ao princípio, cometi alguns enganos.

— O que faz o senhor pensar que não cometeu um grande engano ao me trazer aqui?

— Admito que algumas partes dos escritos do meu avô eram bastante obscuras. Mas tudo ficou claro quando o conde de St. Merryn se assegurou de que nossos caminhos se cruzassem.

— Quer dizer quando começou a procurar o homem que assassinou a seu tio avô?

— Exato. Quando me dei conta de que me perseguia, enfim compreendi que estávamos destinados a ser os oponentes desta geração, tal como o foram Lancaster e meu avô faz anos.

Elenora compreendeu tudo.

— Então me trouxe aqui esta noite porque sabe que é a forma mais singela de atrair a St. Merryn e fazê-lo prisioneiro.

— A senhora é uma mulher muito inteligente, senhorita Lodge. St. Merryn escolheu bem quando foi aos escritórios da Goodhew & Willis. Compreendo que é uma lástima para você que ele a envolvesse neste assunto. Entretanto, assim é como funciona o destino algumas vezes. Frequentemente, os inocentes desempenham um papel muito importante como peões.

 

Arthur saltou da carruagem antes que esta se detivesse por completo diante da sua casa e subiu as escadas a toda pressa.

— Não guarde os cavalos — ordenou a Jenks por cima do ombro —. Temos que realizar outra visita esta tarde.

— Sim, senhor.

A porta da casa se abriu antes que Arthur a tocasse. Ned apareceu na soleira com o rosto obscurecido pelo terror.

— Recebeu a minha mensagem, senhor?

— Assim é. — Arthur entrou impacientemente no vestíbulo —. Ainda estava na casa de Parker quando o garoto de recados me comunicou que havia uma questão de extrema urgência. Do que se trata? Ainda tenho que fazer uma visita e não quero perder tempo.

Então Arthur viu a Sally de pé logo atrás de Ned e a expressão de angústia no seu rosto lhe encolheu o coração.

— Onde está a senhorita Lodge? — perguntou asperamente.

Sally lhe entregou a carta selada e pôs-se a chorar.

— Ele ameaçou cortar o meu pescoço se ela tentasse escapar ou pedir ajuda — explicou Sally entre soluços —. E o teria feito. Vi-o em seus olhos, senhor. Não eram humanos.

 

— É verdade que o meu avô não conseguiu completar o Raio de Júpiter. — Parker se apoiou na bancada de trabalho e cruzou os braços —. Entretanto a falha estava nos instrumentos, não nas instruções do velho alquimista.

— O que quer dizer? — perguntou Elenora com a intenção de lhe fazer acreditar que sentia autêntica curiosidade.

Elenora se aproximou da bancada de trabalho, como se a estranha máquina a intrigasse. Parker sentia verdadeiros desejos de falar sobre o aparelho e sua própria genialidade e tinha adotado a atitude de um conferencista.

— As instruções do velho tratado indicavam que devia utilizar um fogo frio para avivar a energia que se ocultava no coração das três pedras — Parker explicou. Isto constituiu o grande impedimento para realizar o projeto. Meu avô escreveu em seu diário que tentou esquentar as pedras de formas muito distintas, mas nenhuma funcionou. Além disso, não conseguiu decifrar a que se referia o alquimista com a expressão “fogo frio”. Estava investigando a criação de uma fonte de calor potente e adequada para este fim quando faleceu naquela explosão.

Elenora se deteve do outro lado da bancada de trabalho e simulou que examinava o aparelho.

— E você acredita que encontrou a resposta? — perguntou.

— Assim é. — O rosto de Parker se iluminou com paixão —. Quando li os diários do meu avô e analisei as instruções do tratado à luz da ciência moderna, compreendi o que devia utilizar-se para aplicar um fogo frio às pedras.

— E do que se trata?

Parker acariciou a máquina.

— De um gerador elétrico, naturalmente.

 

Arthur ignorou ao consternado mordomo que pretendia anunciar sua chegada e entrou apressadamente no estúdio.

— Parker sequestrou a Elenora — declarou.

— Não! — Lady Wilmington se levantou com rapidez da cadeira que havia atrás da mesa —. Não é possível.

— Escapou do manicômio privado ao que você o enviou.

— Santo céu! — Sobressaltada, lady Wilmington se deixou cair de novo na cadeira —. Ninguém me comunicou sua fuga, o prometo.

— Acredito —. Sem dúvida, ainda não o contaram porque esperam encontrar a Parker antes que a senhora saiba. Depois de tudo, a senhora é uma cliente rica. Os proprietários do psiquiátrico não quereriam que a senhora procurasse outro centro.

— Que desastre!

Arthur cruzou o quarto em três longos passos e se deteve diante da pequena mesa.

— Parker me deixou uma nota na qual indica devo ir sozinho a certo endereço hoje a meia-noite. Ali encontrarei a dois homens que me conduzirão a um lugar secreto. Suponho que, antes de ser levado até seu neto, serei primeiro desarmado, atado e vedado. Nestas condições, não serei de muita ajuda para Elenora.

— Sinto muito. Muitíssimo. — Lady Wilmington parecia atordoada e desesperada —. Não sei o que fazer ou o que dizer. Nunca quis que nada disso acontecesse. Acreditei que fazia o melhor para todos.

Arthur se inclinou e apoiou as mãos na refinada mesa.

— Onde está o laboratório de Parker?

Lady Wilmington se sentiu confusa pela pergunta.

— Como diz?

— Hoje estive na sua casa e a registrei a fundo. Os livros e a mobília não são mais que uma fachada para imitar a moradia de um cavalheiro moderno.

— O que quer dizer?

— Passei grande parte de minha juventude na casa de meu tio avô — explicou Arthur —, e sei quais são os equipamentos que seria lógico encontrar no lar de um homem a quem lhe consome a paixão pela ciência. Não encontrei nenhum deles na moradia de Parker.

— Não lhe compreendo.

— Na casa de um homem assim deveria haver um laboratório abarrotado de instrumentos, aparelhos, recipientes de cristal. Deveria haver livros sobre ótica e matemática em vez de moda e poesia. Além disso, os diários de Treyford tampouco estavam ali.

— Sim, claro, compreendo-o. Ontem estava muito alterada e nem sequer pensei nestas coisas.

— Parker possivelmente esteja louco, mas também está obcecado com seus planos para construir o Raio de Júpiter. Deve ter um laboratório secreto em algum lugar da cidade. Deve ser um lugar no qual se sinta seguro, um lugar no qual possa trabalhar a noite toda sem chamar a atenção. Ali é onde deve ter a Elenora.

— O velho laboratório de Treyford! — Lady Wilmington acariciou uma sobrancelha —. Sem dúvida, Parker encontrou a localização nos diários e deveu sentir-se fascinado pela ideia de realizar suas pesquisas no mesmo lugar no qual seu avô realizou seus experimentos.

— O que sabe sobre o laboratório?

— Treyford o construiu depois de romper relações com Glentworth e seu tio avô. Eles nunca souberam que este lugar existia e, mesmo que soubessem, não teriam se importado. Entretanto, Treyford me levou ali em muitas ocasiões — explicou lady Wilmington com nostalgia —. Precisava compartilhar o resultado de seus experimentos com alguém que valorizasse sua genialidade, mas naquela época já não falava nem com Lancaster nem com Glentworth.

— De modo que levou a senhora ao laboratório dele para que presenciasse os resultados de suas investigações?

— Assim é. A localização do laboratório era nosso segredo. Não havia outro lugar no qual pudéssemos estar a sós sem medo de ser descobertos.

 

O mais baixo dos dois homens que esperavam no beco foi o primeiro em ver a luz titilante da lanterna que se aproximava.

— Vê? No final das contas, veio, tal como o senhor Stone disse que faria. — O rufião se afastou da parede e, depois de levantar a pistola, acrescentou —: E você achava que ele era muito inteligente para arriscar o pescoço por uma mulher.

Uma figura coberta com um chapéu e um sobretudo apareceu na entrada do beco. Seu contorno se distinguia com claridade graças à luz da lanterna.

— De acordo, está louco — admitiu o segundo homem sopesando a faca que sustentava em uma mão enquanto agarrava a corda que pensava utilizar para amarrar a seu prisioneiro com a outra —. Mas isso é problema dele, não nosso. A única coisa que nós temos que fazer é levá-lo a velha abadia e deixá-lo na jaula que nos indicou o senhor Stone.

Os dois homens se dirigiram com cautela em direção a sua presa. A figura coberta com o chapéu e o sobretudo não realizou nenhum movimento suspeito, simplesmente permaneceu onde estava e esperou.

— Não se mova, senhor! — exclamou o homem baixinho sustentando a pistola de modo que sua vítima potencial a visse —. Não mova nem um só dedo. Meu companheiro atuará como seu camareiro e se encarregará de que vá vestido da forma adequada para visitar o senhor Stone.

A figura coberta com o sobretudo não pronunciou nenhuma palavra.

— Não está com humor para bate-papos, não é? — perguntou o homem mais alto avançando com a corda na mão —. Não o culpo. Garanto que eu não desejaria estar na sua pele nestes momentos. Reconheço que o senhor Stone é um inseto estranho.

— Mas é generoso na hora de pagar, de modo que tentamos ignorar suas estranhezas — continuou o homem baixo —. Acabemos com isto. Coloque as mãos nas costas para que meu companheiro possa atá-lo. Não temos a noite toda, sabe?

—Não — Jenks respondeu enquanto tirava o chapéu —. Não temos a noite toda.

Ned e Hitchins saíram com rapidez das sombras de um portal que ficava atrás dos dois vagabundos.

Quando ouviram os passos, os dois malfeitores quiseram virar-se, mas Ned e Hitchins já estavam em cima deles e afundaram os canos das suas pistolas nos rins dos vilões.

— Atirem as armas ou serão homens mortos! — exclamou Hitchins.

Os rufiões ficaram paralisados. A pistola, e a seguir a faca, repicaram no chão de pedra.

— Esperem! Meu amigo e eu fomos contratados para levar ao senhor até o nosso patrão — explicou nervosamente o homem baixinho —. Ele nos disse que tudo estava arrumado e que o senhor estava de acordo com o plano. Não fizemos nada de mau.

— Isto é questão de opinião — replicou Hitchins.

O rufião mais alto lançou a Hitchins um olhar inquieto e perguntou:

— O senhor é St. Merryn?

— Não, St. Merryn decidiu seguir outra rota para encontrar-se com o seu patrão.

 

Parker tirou o relógio de ouro do bolso e olhou a hora novamente.

— Ainda falta meia hora para que meus empregados deixem a St. Merryn, devidamente amarrado, na jaula que está na capela que fica encima deste quarto.

— Isso quer dizer que seus homens conhecem a localização deste laboratório? — perguntou Elenora surpreendida.

— A senhorita acha que eu sou idiota? — Parker a olhou desdenhosamente —. Acha que eu correria o risco de contar a um par de rufiões um segredo deste calibre? Eles receberam a ordem de imobilizar a St. Merryn, deixá-lo na jaula que está na parte detrás da capela e partir. Ninguém, salvo eu, conhece a existência deste lugar.

— Agora eu também o conheço — ela assinalou.

Ele inclinou a cabeça com ar divertido.

— Está bem, retifico. — A seguir levantou a cabeça para o teto abobadado —. Além disso, dentro de pouco tempo, depois de que eu faça a jaula descer pelo alçapão secreto que fica no chão da capela, St. Merryn também o conhecerá.

— Espero que vocês dois sejam conscientes da grande honra que lhes concedo.

— A honra de nos permitir ver o laboratório secreto do segundo Newton da Inglaterra?

— Seu comentário é muito mordaz, senhorita Lodge. Me fere. — Parker riu entre dentes e agarrou uma alavanca do Raio de Júpiter —. Entretanto, mudará de atitude quando vir o que este aparelho é capaz de fazer.

Parker começou a girar a alavanca repetidas vezes e com rapidez.

Elenora o observou, inquieta.

— O que faz? — perguntou.

— Armazenar uma grande quantidade de eletricidade. Quando o tiver feito a utilizarei para ativar a máquina.

Elenora examinou o aparelho com crescente ansiedade e, nessa ocasião, com muito interesse.

— Como funciona?

— Quando a carga elétrica é armazenada da forma correta, pode liberar-se girando o botão que há na parte superior da máquina. — Parker o assinalou e prosseguiu —: Este botão também se utiliza para desconectar o raio. Quando as faíscas elétricas entram em contato com as pedras que está na câmara, excitam a energia contida nelas, como havia predito o velho alquimista. Então, se gera um raio estreito de luz carmim. Um pouco antes que minha avó mandasse me deter, provei-o e funcionou à perfeição.

— O que o raio faz?

— Algo realmente surpreendente, senhorita Lodge! — exclamou Parker —. Destrói tudo o que encontra a seu passo.

Elenora não acreditava que fosse possível sentir mais terror do que tinha sentido até então. Entretanto, quando percebeu a loucura que brilhava nos olhos de Parker, a gélida sensação que experimentava na boca do estômago, tornou-se mil vezes mais intensa.

Então se deu conta de que, além de tudo o que Parker planejava fazer com o Raio de Júpiter, antes de qualquer coisa, pretendia lançá-lo sobre Arthur e ela.

 

Arthur pensava que a escuridão constituiria a pior parte do assunto, mas finalmente foi o aroma o que mais lhe incomodou. O fedor que emanava do rio subterrâneo era tão nauseabundo que se viu obrigado a tampar a boca e o nariz com o lenço de seda.

Claro que, ao menos, não tinha tido que caminhar ao longo das estreitas bordas infestadas de ratos, pensou Arthur voltando a mergulhar a vara nas águas escuras. No cais secreto localizado debaixo do velho armazém, Arthur encontrou um bote de fundo plano e uma vara.

— Treyford conservava botes e varas de reposto tanto na entrada do laboratório como aqui, no armazém — lhe explicou lady Wilmington quando o guiou até o porão escuro do edifício abandonado e lhe mostrou o cais subterrâneo secreto —. Conforme me contou, deste modo podia entrar ou sair do laboratório pelo rio ou pela abadia, segundo o que ele quisesse. Deste modo, podia escapar se acontecia algum desastre durante o transcurso de um experimento. Pelo visto, Parker continuou com o mesmo costume.

O rio turvo tinha águas mansas, de modo que era bastante fácil deslocar o bote rio acima com o auxilio da vara. A luz da lanterna que Arthur tinha colocado na proa da embarcação derramava sua luz sobre um cenário singular.

Em mais de uma ocasião, depois de virar em uma curva do rio, Arthur tinha tido que agachar-se com rapidez para não golpear-se com uma antiga ponte.

Além das pontes havia outros perigos. Em alguns lugares, grandes pedaços de pedra ou antigas vigas de madeira tinham caído no rio. Alguns sobressaíam da água como monumentos esquecidos de uma civilização perdida. Outros estavam inundados e não resultavam visíveis até que o pequeno bote se chocava contra eles.

Arthur examinava as pedras com atenção para identificar as estátuas e o relevo de mármore que lady Wilmington lhe havia descrito como pontos de referência.

— Quando os vi por última vez já tinham suportado o passar de muitos séculos — ela lhe explicou —, de modo que estou segura de que ainda continuam ali.

 

Parker consultou seu relógio de ouro mais uma vez e pareceu satisfeito. Se poderia dizer que entusiasmado até.

— Meia noite e meia. Meus empregados já devem ter trancado a St. Merryn na jaula e ido embora.

Elenora elevou o olhar em direção ao teto abobadado.

— Não ouvi nenhum ruído que procedesse das salas que estão encima desta câmara.

— Os chãos de pedra são muito grossos e não deixam passar nenhum ruído. Esta é uma das características mais admiráveis deste laboratório. Posso realizar experimentos que produzam muito ruído e muita luz e ninguém, mesmo que estivesse bem em cima, imaginaria o que está ocorrendo aqui embaixo.

— O que faz o senhor pensar que seus homens não esperarão para ver o que acontece? — ela perguntou.

— Ora! Estão tão assustados pela velha abadia como o resto das pessoas da vizinhança. Entretanto, embora a curiosidade lhes desse coragem, a única coisa que veriam seria a jaula desaparecendo detrás da parede de pedra no fundo do altar. Quando a entrada secreta se fecha se trona impossível encontrar a abertura. De modo que não veriam que a jaula desce até esta sala.

Parker levantou as mãos e girou a enorme roda de ferro que se sobressaía da parede.

Uma seção do teto se deslizou a um lado e revelou um oco escuro. Elenora ouviu o chiado de uma corrente pesada e o identificou como o ruído que ouviu quando Parker a levou a aquele lugar.

Seu coração bateu acelerado. A única oportunidade que teria para pegar a barra de ferro que estava sobre a bancada de trabalho seria quando Parker estivesse ocupado tirando Arthur da jaula.

O chiado das correntes se intensificou. Elenora viu aparecer a parte inferior da jaula de ferro, entre as sombras do oco que alojava o mecanismo.

As pontas de um par de botas lustrosas apareceram à vista. Parker parecia hipnotizado.

— Bem-vindo ao laboratório do segundo Newton da Inglaterra, St. Merryn — saudou sem afastar o olhar das botas.

O tom de sua voz transmitia júbilo e excitação.

Elenora se aproximou da mesa de trabalho e com as mãos atadas pegou a barra pesada de ferro. Só teria uma oportunidade, pensou.

— Elenora, agache-se!

A ordem decidida de Arthur ressonou por toda o quarto.

Ela obedeceu e se jogou ao chão sem soltar a barra de ferro.

— St. Merryn! — exclamou Parker deixando de olhar as botas vazias da jaula e virando-se enquanto levantava a pistola.

—Não! — gritou Elenora.

As duas explosões que se produziram a seguir retumbaram por todo o quarto. O aroma da pólvora queimada se estendeu pelo ar.

Elenora viu que os dois homens seguiam de pé. Ambas as pistolas tinham sido disparadas, mas a distância que os separava era considerável e não puderam apontar com precisão.

Agora as duas armas se tornaram inúteis, a menos que voltassem a ser carregadas. Mas Arthur tirou rapidamente outra pistola do seu bolso e avançou com rapidez sem deixar de observar a Parker. Sua voz estalou na atmosfera da sala:

— Elenora, está bem?

— Sim. — Ela ficou de pé —. E você?

— Estou ileso — ele respondeu enquanto apontava a Parker com a pistola.

— Bastardo! — bramou Parker olhando a Arthur com fúria.

Então se aproximou a toda pressa a bancada de trabalho.

— Tem outra pistola! — gritou Elenora —. Está na mesa que está atrás dele.

— Já a vejo.

Arthur avançou e pegou a pistola.

— Está louco! — Parker lhe gritou do outro lado da bancada de trabalho —. Não sabe com quem está lidando.

Sem outro sinal de advertência, Parker se lançou sobre a estranha máquina e fez girar o botão que havia na parte superior com ambas as mãos.

Arthur levantou a pistola.

— Não se mova!

— Cuidado! — advertiu Elenora —. Segundo ele, a máquina funciona.

— Duvido. Mas no caso de... — Arthur fez um sinal com a pistola —. Afaste-se do aparelho, Parker!

— Muito tarde, St. Merryn! — A risada de Parker retumbou nas paredes de pedra —. Muito tarde. Agora se dará conta da minha genialidade.

A máquina produziu um estalo e Elenora viu como a eletricidade saltava e formava arcos a seu redor.

Um raio fino vermelho rubi saiu disparado do comprido canhão. Parker apontou a Arthur com o canhão da arma.

Arthur se deixou cair ao chão. O raio cortou o ar justo onde ele se encontrava fazia só um segundo e incidiu na parede de pedra que havia detrás dele emitindo um ruído e soltando faíscas em todas as direções.

Arthur levantou a pistola e disparou desde o chão. Entretanto não teve tempo de apontar com precisão e a bala se incrustou na bancada de trabalho.

Parker deslocou o canhão do aparelho em direção ao chão para apontar a seu alvo. O raio infernal cortou o ar em direção a Arthur carbonizando tudo o que encontrava a seu passo.

Elenora avançou sem fazer ruído até ficar detrás de Parker. Não devia alertá-lo até que estivesse perto e pudesse golpeá-lo, disse a si mesma.

— De verdade acreditou que poderia me vencer? — Parker gritou a Arthur.

A seguir utilizou ambas as mãos para mover o canhão do Raio de Júpiter e seguir os movimentos do corpo de Arthur, quem dava voltas sobre si mesmo no chão. A pesada máquina se movia com lentidão e era evidente que Parker tinha que exercer uma força considerável para ir ajustando o visor.

“Só mais uns passos”, pensou Elenora. Segurou com força a barra de ferro e a levantou.

— Você é um louco, não um gênio — gritou Arthur —. Igual ao seu avô.

— Reconhecerá minha genialidade com seu último fôlego, St. Merryn — Parker lhe assegurou.

Elenora avançou outro passo em direção a Parker e tentou lhe acertar com a barra na cabeça, mas no último momento ele percebeu sua presença.

Parker se moveu com rapidez e esquivou o que poderia ter sido um golpe mortal. A barra de ferro golpeou pesadamente a bancada de trabalho e ricocheteou com tanto impulso que Elenora não teve mais remédio que soltá-la.

Elenora tinha falhado em acertar o alvo, mas aquela distração tinha obrigado Parker a soltar a máquina assassina. Parker, raivoso, empurrou Elenora.

Ela caiu ao chão e se golpeou contra o pavimento de pedra. Seus olhos se fecharam devido à dor.

Ao ouvir o ruído de algo em movimento voltou a abrir as pálpebras. Bem a tempo de ver Arthur lançar-se de cabeça sobre Parker.

Os dois homens caíram juntos ao chão produzindo um ruído surdo e estremecedor. Rodaram com estrépito de um lado a outro ficando consecutivamente de maneira alternada um em cima do outro.

Abandonado pelo seu operador, o Raio de Júpiter não se movia, mas o raio mortal seguia fluindo da boca do canhão.

Os dois homens lutaram com uma violência que Elenora não tinha presenciado em toda sua vida. Mas não podia fazer nada para intervir.

De repente, Parker se liberou dos braços de Arthur e ficou de pé. Agarrou a barra de ferro que Elenora tinha utilizado contra ele e tentou golpear a Arthur com ela na cabeça.

Elenora soltou um grito de advertência.

Arthur rodou para o lado justo quando a barra se precipitava sobre ele. O metal quase lhe roçou a cabeça. Arthur agarrou um dos tornozelos de Parker e o puxou com violência.

Parker gritou com raiva e se cambaleou tentando liberar sua perna e recuperar o equilíbrio. Então levantou de novo a barra e se preparou para dar outro golpe.

Arthur, quem ainda estava meio deitado no chão, soltou a perna de Parker de repente. Este ato pegou Parker desprevenido, quem agitou os braços e retrocedeu tentando recuperar o equilíbrio.

—Não! — gritou Elenora.

Já era muito tarde. Elenora levou as mãos à boca e contemplou com horror como a desesperada tentativa de recuperar o equilíbrio de Parker o levava a atravessar o caminho do mortífero raio de luz.

Parker gritou só uma vez enquanto o raio lhe queimava o peito, perto do coração. O horripilante grito ressonou nas paredes e terminou com uma brutalidade horripilante.

Parker se desabou como uma marionete a que acabavam de cortar os fios. O raio abrasador continuou incidindo na parede de pedra que estava logo atrás do lugar no qual Parker tinha estado fazia só um segundo.

Elenora virou-se, incapaz de contemplar a terrível cena. O estômago se lhe revolveu e teve medo de vomitar.

— Elenora, — disse Arthur dirigindo-se para ela — está ferida?

— Não. — Elenora tragou com dificuldade —. Está...? Sim, deve está-lo... — declarou, mas não se atreveu a virar-se para olhar.

Arthur passou pelo lado dela, evitando com precaução o raio de luz, e se ajoelhou para examinar o corpo de Parker. Levantou-se rapidamente.

— Sim — declarou —. Não há dúvida de que está morto. Agora devemos encontrar a forma de desligar o aparelho.

— Acredito que se desliga com o botão que está na parte superior.

Um ruído surdo e estranho a interrompeu. Ao princípio, Elenora acreditou que a jaula de ferro estava outra vez funcionando, mas então se deu conta, com horror, que o ruído procedia do Raio de Júpiter.

O ruído surdo se converteu em um rugido grave.

— Algo não vai bem — declarou Arthur.

— Gira o botão.

Arthur correu até a bancada de trabalho e tentou girar o botão, mas retirou os dedos imediatamente.

— Maldição! Queima como se fosse brasa.

O rugido grave se converteu em um assobio agudo completamente distinto a tudo o que Elenora tinha ouvido até então. O raio de luz vermelha ficou menos estável e começou a vibrar a um ritmo muito irregular.

— Vamos sair daqui — apressou Arthur enquanto se aproximava rapidamente de Elenora.

— Não podemos utilizar a jaula — ela advertiu —. Parker me disse que só funcionava se conhece o mecanismo que a desbloqueia.

— Não sairemos pela jaula, mas sim pelo rio perdido.

Arthur a agarrou pelo ombro e a empurrou para a cripta que havia atrás do laboratório.

Ela não sabia do que Arthur falava, mas não discutiu sua decisão. A máquina, em cima da bancada de trabalho, estava adquirindo uma cor vermelha, como se estivesse submetida às chamas ardentes de uma fogueira monstruosa. O estranho e agudo assobio ficou mais intenso.

Sem dúvida não era preciso ser um gênio da categoria de Newton para deduzir que aquela coisa ia explodir, pensou Elenora.

Entrou com Arthur na cripta. O fétido aroma do rio a golpeou com força. Arthur acendeu a lanterna e os dois subiram no bote de fundo plano.

— Agora entendo por que você veio sozinho — comentou Elenora enquanto procurava não perder o equilíbrio.

— Só cabem duas pessoas nesta embarcação — explicou Arthur. Agarrou a vara e a utilizou para afastar o bote do cais de pedra —. E sabia que poderia necessitá-la para tirar você deste lugar.

— É um rio! — sussurrou ela surpreendida —. E corre por debaixo do coração da cidade!

— Mantém a cabeça abaixada — advertiu Arthur—. Há pontes e outros obstáculos.

Ao cabo de uns minutos, ouviram o som amortecido de uma explosão que retumbou pelas velhas paredes de pedra. Elenora percebeu que o bote tremia, mas a pequena embarcação continuou seu percurso ao longo da corrente.

Em seguida ouviu-se o chiado e um estrépito terrível de pedras que se chocavam e se derrubavam sem cessar.

Uns instantes mais tarde fez-se um silêncio aterrador.

— Santo céu! — sussurrou Elenora —. Parece que todo o laboratório se desmoronou.

— Assim é.

Elenora olhou a escuridão atrás de si.

— Crê que Parker poderia ter sido o segundo Newton da Inglaterra?

— Como meu tio avô costumava dizer: só existiu um Newton.

 

Dois dias depois, Elenora se reuniu com Margaret e Bennett na biblioteca. Aquela tarde se sentia mais fortalecida, pensou Elenora. O trauma dos acontecimentos recentes ia desaparecendo com rapidez e lhe alegrou notar que recuperava suas forças e que seus nervos voltavam a estar equilibrados.

Tinha chegado a hora de iniciar sua nova vida.

Desde que saíram dos túneis do rio perdido, não tinha visto muito a Arthur. Tinha dedicado o dia anterior a estimar as consequências da grande explosão. Curiosamente, desde a superfície não se apreciava nenhum indício do desastre que tinha acontecido no subterrâneo. A abadia abandonada não sofreu danos.

Graças às indicações de Arthur, uns operários conseguiram localizar a entrada da câmara secreta que albergava a jaula de ferro. O oco, entretanto, estava selado com escombros e pedras fragmentadas.

Arthur e Bennett percorreram o rio perdido em botes para comprovar se a entrada à cripta era transitável, mas só encontraram uma parede impenetrável de pedras derrubadas. A câmara oculta tinha ficado totalmente destruída.

A única coisa que Elenora e Arthur fizeram juntos foi visitar lady Wilmington. Arthur lhe explicou, com a maior gentileza possível, que tentar encontrar o corpo de Parker resultaria extremamente caro e provavelmente inútil.

— Deixemos que o laboratório seja sua tumba — sentenciou lady Wilmington com os olhos cheios de lágrimas.

Naquela tarde Arthur tinha saído, mais uma vez, muito cedo. Sua intenção era reunir-se com várias pessoas que mereciam uma explicação sobre os acontecimentos, entre elas a senhora Glentworth e Roland Burnley.

Assim que saiu, Elenora enviou uma mensagem a Bennett na qual lhe pedia que fosse visitá-la o antes possível. Ele demorou menos de uma hora em chegar, mas não parecia nada entusiasmado com o favor que lhe estava pedindo.

— Está segura de que quer que eu faça isso, senhorita Lodge? — perguntou com tom sério.

— Sim — respondeu ela. Tinha que resolver aquela questão, pensou Elenora. Não podia voltar atrás —. Minhas amigas e eu lhe estaremos muito agradecidas se concorda em apresentar a aposta no nosso nome.

Margaret franziu o cenho em sinal de desaprovação.

— Não posso dizer que eu goste do seu plano, Elenora. Sinceramente, acredito que primeiro deveria discutir esta questão com Arthur.

— Não posso fazê-lo. Conheço-o muito bem e se preocupará com minha reputação. Se souber do meu plano, é provável que se mostre intransigente e não me permita realizá-lo.

Margaret ficou tensa.

— É possível que Arthur culpe a Bennett por apresentar a aposta no seu nome e de suas amigas.

Elenora franziu o cenho: não tinha pensado naquela possibilidade.

— Não gostaria de ser a causa de que o senhor e St. Merryn se distanciassem, sobretudo agora que você logo fará parte da família.

— Não se preocupe por isso, senhorita Lodge — respondeu Bennett galantemente —. Não temo a reação de St. Merryn, mas sim que esteja interpretado mal os sentimentos dele com relação à senhorita.

— Bennett tem razão — confirmou Margaret imediatamente —. Gosta muito de você, Elenora. Tenho certeza. Sou consciente de que possivelmente não tenha demonstrado seus sentimentos a você, mas é porque não está acostumado a mostrar suas emoções.

— Eu não duvido de ele sinta certo afeto por mim — respondeu Elenora escolhendo suas palavras com supremo cuidado —. Entretanto, nossa relação é, sem dúvida, a de um patrão e uma empregada e não a de um casal de noivos.

— Pode que a relação de vocês tenha começado desta forma, mas acho que mudou — insistiu Margaret.

Sem dúvida tinha mudado, pensou Elenora, mas não tinha a mínima intenção de lhe explicar os detalhes nem a Margaret nem a ninguém.

— A natureza da minha relação pessoal com Arthur não mudou de forma significativa — Elenora explicou com prudência.

— Eu não estou tão certa disso. —Margaret começava a mostrar-se obstinada —. Não me surpreenderia que Arthur estivesse considerando uma oferta de matrimônio.

Elenora teve usar toda sua capacidade de autodomínio para não começar a chorar. Ao final, conseguiu falar com serenidade.

— Não quero que Arthur sinta que tem a obrigação de me propor matrimônio simplesmente pelos acontecimentos que se produziram recentemente. Está claro?

Margaret e Bennett intercambiaram um olhar.

— Compreendo — declarou Margaret —, entretanto...

— Seria completamente injusto que ele se visse obrigado a me pedir em matrimônio por uma questão de honra — Elenora a interrompeu com calma —. Já sabe como ele é quando se trata de seu sentido da responsabilidade.

Margaret intercambiou outro olhar com Bennett, quem, como resposta, fez uma careta.

— Todo mundo sabe que, algumas vezes, o sentido do dever de Arthur é excessivo — admitiu Margaret.

— Exato — respondeu Elenora.

— Possivelmente você tenha razão a respeito da atitude de St. Merryn em relação as suas responsabilidades, senhorita Lodge — declarou Bennett —. Entretanto, neste caso, acredito que existam razões justificadas para que ele pense que uma oferta de matrimônio é a única coisa honorável a ser feita.

Elenora levantou o queixo e tentou não apertar os punhos.

— Neste caso, não aceitaria sua oferta — assegurou.

Bennett suspirou e repôs:

— Não queria ofendê-la, mas depois de ter representado o papel de noiva de St. Merryn e de ter sido surpreendida em uma atitude íntima com ele, não poderá voltar a frequentar os círculos da alta sociedade a menos que se case com ele.

— Bennett tem razão — confirmou Margaret.

— Meu futuro na sociedade não constitui nenhum problema para mim — explicou Elenora —. Esta questão ficou clara desde o começo. Arthur e eu conversamos muito sobre isso antes de chegar a um acordo.

— Mas, Elenora, quase a mataram por culpa deste emprego — declarou Margaret —. E Arthur nunca pretendeu que você estivesse em uma situação de perigo.

— Claro que não. — Elenora endireitou os ombros —. E é precisamente pelo fato de que estive em perigo que temo que ele se sinta obrigado a transpassar os termos originais do nosso acordo e me peça em matrimônio. Nego-me a lhe permitir que assuma um sentido do dever tão ridículo.

— Compreendo seu ponto de vista, senhorita Lodge — declarou Bennett com amabilidade —. Entretanto, não acha que seria melhor que primeiro lhe contasse a ele sobre o seu plano?

— Não — ela respondeu com firmeza —. Posso confiar em você para que resolva este assunto em meu nome?

Bennett deixou escapar outro suspiro.

— Farei o que possa para ajudá-la, senhorita Lodge.

 

Aquela tarde, as quatro, Arthur desceu os degraus da entrada do seu clube, passou ao lado da longa fila de carruagens que estavam estacionadas na rua e se deteve diante de um bonito carro vermelho-sangue.

— Recebi sua mensagem, Fleming — declarou Arthur através do guichê —. O que aconteceu? — Em seguida, viu a Margaret sentada ao lado do seu amigo —. Vão ao parque?

— Não — Margaret respondeu com uma expressão séria e resolvida no rosto —. Viemos tratar contigo uma questão de suma importância.

— Exato. — Bennett abriu a portinhola —. Quer entrar?

Sem dúvida algo não ia bem, pensou Arthur com resignação. Tinha planos para aquela tarde, planos que incluíam a Elenora. Entretanto, Bennett e Margaret estavam muito alterados. O melhor era averiguar o que ia mal o quanto antes. Segundo sua própria experiência, resultava mais fácil resolver os problemas nas etapas iniciais.

Resignado a sofrer um atraso, Arthur entrou na carruagem e se sentou no assento que ficava livre.

— Muito bem, qual é o problema?

— Trata-se de Elenora — respondeu Margaret sem rodeios —. Enquanto falamos está arrumando as malas. Temo que planeje ir embora antes que você retorne para casa esta tarde.

Arthur notou que lhe gelava o sangue. Elenora partia? De repente teve uma visão funesta da enorme casa da Rain Street privada da presença vital de Elenora. No preciso instante em que ela atravessasse a porta, as sombras lúgubres que tão milagrosamente tinham desaparecido durante os últimos dias voltariam a invadir a mansão.

— Elenora e eu temos um acordo comercial — respondeu ele esforçando-se para que o tom da sua voz soasse tranquilo e sereno —. Não partirá até que certas questões sejam resolvidas.

— Ela me comentou que o assunto do salário e de determinada bonificação podia ser resolvido através do seu administrador — explicou Margaret.

“Maldição!”, Arthur pensou enquanto o sangue lhe gelava ainda mais. Elenora não só terminava seu acordo comercial, mas, além disso, também fugia dele.

 

Elenora guardou o último vestido e o último par de sapatos no baú e fechou a tampa lentamente. Sentia como se estivesse fechando a tampa de um caixão.

A terrível sensação de perda que tinha começado a sentir durante toda a tarde cresceu no seu interior. Tinha que sair dali se não queria converter-se em numa poça de lágrimas, Elenora pensou.

Então ouviu o estalo surdo e continuo de uma carruagem que se detinha diante da porta. Sem dúvida, se tratava do carro que tinha pedido a Ned que chamasse. Elenora ouviu o som amortecido da porta principal, que se abriu e fechou com rapidez. Sem dúvida, Ned tinha saído para informar ao condutor que ela desceria em uns minutos.

Elenora girou com lentidão sobre os calcanhares para dar uma última olhada no seu quarto enquanto dizia a si mesma que não queria esquecer nenhum de seus pertences. Entretanto, seu olhar se deteve na formosa cama.

Elenora não podia deixar de pensar na última noite de paixão que passou ali com Arthur. Sabia que levaria aquela lembrança no coração durante o resto da sua vida.

Em seguida, percebeu vagamente os passos de um homem no corredor. Devia tratar-se de Ned, quem ia pegar o baú para levá-lo até o carro, Elenora deduziu.

As lágrimas umedeceram seus olhos. Elenora pegou um lenço. Não devia chorar. Ainda não. Se Ned, Sally e o resto dos empregados viam que partia banhada em lágrimas, se inquietariam.

Ouviu então uma única batida na porta.

— Entra — ela respondeu enquanto secava suas incipientes lágrimas.

A porta se abriu e, depois de enxugar os olhos, Elenora virou-se.

— Vai a alguma parte? — Arthur perguntou com calma.

Elenora ficou paralisada. A figura de Arthur se destacava, imponente, na soleira. Rugas sombrias e inflexíveis sulcavam suas duras facções e seu olhar lhe pareceu mais perigoso que nunca. Elenora ficou com a boca seca.

— O que faz aqui? — sussurrou ela.

— Eu moro aqui, lembra?

Elenora se ruborizou.

— Voltou cedo.

— Quando me avisaram que estava planejado fugir, vi-me obrigado a modificar meu programa de visitas para esta tarde.

Elenora suspirou.

— Margaret e Bennett te disseram isso?

— Informaram-me que estava fazendo as malas e que estava pensado em partir sem se despedir. — Arthur cruzou os braços —. Eu achava que tínhamos alguns assuntos pendentes para resolver.

— Pareceu-me que seria melhor que terminássemos nosso acordo por meio do seu administrador — respondeu ela com voz suave.

— Meu administrador é muito competente em vários aspectos, mas duvido que disponha de muita experiência nos oferecimentos de matrimônio.

Elenora ficou boquiaberta e só conseguiu fechar a boca depois de um grande esforço.

— Oh, meu Deus! — Elenora já não podia conter as lágrimas.

Enxugou-se os olhos freneticamente e exclamou —: Oh, meu Deus, temia algo assim!

— Resulta evidente que faço algo errado em tudo o que se relaciona aos meus assuntos pessoais — comentou Arthur com um tom de voz lento —. Todas as minhas noivas querem fugir de mim.

— Como diz? — Elenora afastou o lenço do rosto e ficou olhando a Arthur fixamente —. Como se atreve a insinuar que eu fujo de você? Eu não sou um coelhinho assustado como a Juliana, como você bem sabe.

— Sou muito consciente de que você não é como a Juliana. — Arthur entrou pouco a pouco no dormitório e fechou a porta a suas costas. Olhou de esguelha o baú —. Entretanto, sim que parece que quer fugir de mim.

Elenora inspirou pelo nariz, apertou o lenço na palma da mão e, depois de cruzar os braços, afirmou:

— Sabe perfeitamente que esta situação é totalmente distinta.

— Não parece que seja tão diferente desde o meu ponto de vista.

— Oh, por todos os Santos! Esta afirmação é ridícula!

— De verdade? — Arthur se deteve a pouca distância de Elenora —. Em uma ocasião me disse que acreditava que eu seria um bom marido. Falava a sério?

— Certamente — Elenora descruzou os braços e agitou o lenço enrugado —, mas para outra mulher, alguma a quem amasse de verdade.

— Você é a mulher que amo. Quer casar comigo?

Todo o oxigênio do local parecia ter evaporado e o mundo, e inclusive o tempo, parecia haver-se detido.

— Ama-me? — ela perguntou—. Arthur, fala a sério?

— Alguma vez me viu dizer algo que não fosse a sério?

— Bom, não, só que... — Elenora entreabriu os olhos —. Arthur, você tem certeza de que não me pede em matrimônio só porque crê que deva fazê-lo?

— Se recordar meus antecedentes nestas questões, saberá que a última vez que me vi apanhado em um compromisso do qual desejava fugir me mostrei muito capaz de me liberar do enredo.

— É certo, o fez. — Elenora franziu o cenho —. Entretanto esta situação é muito diferente. Não quero que você se sinta obrigado a se casar comigo só pelo que ocorreu aqui entre nós... — Elenora fez uma pausa —. E lá embaixo, na biblioteca.

— Vou te contar um pequeno secreto. — Arthur percorreu a distância que os separava —. Em ambas as ocasiões, fiz amor com você porque já tinha decidido que queria que fosse minha esposa.

Elenora estava muito emocionada para elaborar algo parecido a uma resposta coerente. Então engoliu em seco.

— De verdade?

— Quero você desde que a vi entrar daquela forma tão impetuosa no escritório da Goodhew & Willis. Então soube que era a mulher a quem tinha esperado a vida toda.

— Tem certeza?

— Querida, lembre-se sou famoso pela minha intuição em tudo ao que se relaciona com investimentos. Só precisei te olhar uma vez para me dar conta de que você era o melhor investimento que eu podia realizar na minha vida.

Elenora sorriu com acanhamento.

— Oh, Arthur, isto é a coisa mais romântica que alguém me disse!

— Obrigado. Também gostei. Pratiquei durante todo o caminho.

— Entretanto, já sabe que um cavalheiro da sua categoria e fortuna deveria casar-se com uma dama jovem que acabe de sair do colégio. Uma com excelentes contatos sociais e uma herança avultada.

— Lembre-se que as pessoas me consideram um excêntrico. A sociedade se sentiria muito defraudada se eu não me casasse com alguém tão incomum como eu.

— Não sei o que dizer.

Ele lhe levantou o queixo com a mão.

— Poderia me dizer se crê que seria possível me amar até o ponto de aceitar casar comigo.

Uma imensa alegria cresceu no interior de Elenora. Apressou-se em envolver o pescoço de Arthur com os braços e lhe confessou:

— Estou tão desesperadamente apaixonada por você que enquanto guardava minhas coisas no baú acreditei que o meu coração se romperia.

— Tem certeza?

— Completamente. — Elenora lhe acariciou a mandíbula com as gemas dos dedos —. E, como já sabe, sou uma mulher de caráter decidido.

Ele riu e a pegou no colo.

— Neste sentido, sem dúvida formamos um bom casal. Não é estranho que me apaixonasse perdidamente por você.

Elenora se deu conta de que a estava levando para a cama.

— Santo céu, Arthur, os criados! Ned não demorará em subir para recolher meu baú e o carro está esperando.

— Ninguém nos incomodará. — Arthur a colocou com suavidade em cima da cama e tirou o casaco —. Quando cheguei, ordenei ao chofer e a todos os empregados que se fossem. Deixei claro que não deviam retornar antes de duas horas.

Elenora sorriu devagar.

— De verdade fez isso? Tão seguro estava de você mesmo?

— Não estava seguro, estava desesperado. — Arthur se sentou na beira da cama e tirou as botas —. Sabia que se não conseguisse te convencer de que se casasse comigo por meio da lógica, minha única esperança era fazer amor contigo até que não pudesse pensar com claridade.

— Que ideia tão inteligente! Esta é uma das coisas que eu gosto de você, Arthur. Nunca conheci a nenhum homem que soubesse combinar a lógica e a paixão com tanta habilidade.

Ele soltou uma risada rouca e cheia de felicidade.

Quando, depois de uns segundos, aproximou-se de Elenora, ela o recebeu com os braços abertos. Ele a despiu quase com a mesma rapidez com a que se despiu ele mesmo e jogou descuidadamente seu vestido do lado da cama.

A seguir Arthur se deitou de costas e aproximou Elenora de seu peito. Ela lhe rodeou o rosto com as mãos e o beijou com tanta ansiedade que ele soltou um grunhido. Elenora percebia contra sua coxa a pressão do membro de Arthur, rígido pelo desejo.

Arthur deslizou sua mão pelo quadril de Elenora e deslizou os dedos ao longo da fenda que separava suas nádegas. Seus dedos desceram ainda mais e encontraram aquele lugar úmido e palpitante de desejo.

Ela o beijou no pescoço e logo no peito. Quando se deslizou mais para abaixo e o acariciou com a língua para lhe dar o mesmo prazer que ele tinha lhe proporcionado na última noite que estiveram juntos, ele conteve o fôlego. Elenora sentiu então o roce dos dedos de Arthur entre seu cabelo.

—Basta — ele sussurrou com voz áspera.

A puxou para cima, colocando-a escarranchada sobre suas coxas e a acariciou enquanto contemplava seu rosto.

Elenora notou que a parte inferior do seu corpo respondia às carícias de Arthur e se apertou e se retorceu contra a mão dele.

E justo quando ela acreditava que não poderia aguentar mais aquela maravilhosa estimulação, ele lhe segurou os quadris e a penetrou.

Elenora ofegou e exalou um grito afogado enquanto ondas de prazer percorriam o seu corpo.

E ambos se inundaram em um redemoinho cintilante.

 

A realidade voltou até eles bastante mais tarde e golpeou a Elenora com tanta força que a obrigou sentar-se na cama de repente.

“A aposta”, ela pensou em pânico.

— Desculpa, mas tenho que me levantar. Agora mesmo. — Elenora tentou livrar-se do braço e da perna de Arthur —. Por favor, deixe-me ir. Tenho que me vestir.

— Não é necessário. — Arthur apertou o braço contra a cintura de Elenora e a puxou preguiçosamente para que deitasse novamente do seu lado —. Ninguém retornará antes de uma hora.

— Não compreende. Não posso me casar a menos que encontre ao senhor Fleming antes que... Não importa, é algo muito complicado e não tenho tempo de te explicar.

— Você não será tão cruel a ponto de me deixar largado agora que conseguiu satisfazer novamente a sua luxúria.

— Não se trata disto. Escute-me, Arthur, algo realmente terrível está a ponto de acontecer. Pedi ao senhor Fleming que realizasse uma aposta no meu nome e de umas amigas minhas.

— Sim. — Arthur a olhou severamente —. Ouvi falar do seu plano. Já sabe o que penso a respeito deste tipo de coisas. Lembre-me que devo manter um longo bate-papo contigo a respeito dos perigos do jogo.

Elenora deixou de lutar.

— Sabe sobre a aposta?

— Sim. Nem sequer posso te explicar o susto que levei quando descobri que estava a ponto de me casar com uma jogadora empedernida.

Ela ignorou seu comentário e insistiu:

— Suponho que compreende por que devo deter ao senhor Fleming antes que realize a aposta.

— Tranquilize-se, querida. — Arthur utilizou uma mão para atraí-la com firmeza contra seu torso e pôs-se a rir —. É muito tarde para detê-lo.

— Oh, não! — Elenora apoiou a testa no peito de Arthur —. Minhas amigas e eu não poderemos cobrir as perdas.

— Se for necessário, eu te empresto o dinheiro. Considere-o um presente de casamento.

— Não terei mais remédio que me aproveitar da sua generosidade. — Elenora não levantou a cabeça —. Foi erro meu. Convenci a minhas amigas de que o resultado era seguro. Resulta tão humilhante! Sinto te envergonhar desta maneira, Arthur.

—Mmmm. Bom, como já te disse, Bennett realizou a aposta como você lhe indicou. Entretanto, seguiu meus conselhos e modificou um pouco os termos.

Elenora levantou a cabeça com receio.

— O que quer dizer?

— Também aceitou convidar a outras pessoas para que se unissem ao seu pequeno consórcio de jogadores intrépidos.

— Santo céu!

— Tal como estão as coisas agora — continuou Arthur —, você e suas amigas, além de Roland Burnley, Margaret e Bennett, irão conseguir uma bonita fortuna sempre que você aceitar se casar comigo até o final dessa semana.

Elenora se debatia entre riso e surpresa.

— Esta é a aposta que o senhor Fleming realizou?

— Assim é. — Arthur deslizou os dedos pelo cabelo de Elenora —. Qual crê que será o resultado?

O amor que Elenora sentia por Arthur cresceu no seu interior até encher todas as partes do seu ser.

— Acredito que o resultado da aposta é seguro.

— Alegra-me te ouvir dizendo isto — começou a dizer Arthur lhe oferecendo seu sorriso estranho e sensual —, porque eu também entrei no seu pequeno projeto de investimento.

— Participou da minha aposta? — Elenora riu com satisfação —. Não acredito. Tão seguro estava de você mesmo?

— Não. — O olhar de Arthur ficou mais sério e profundo —. Entretanto, decidi que se perdia a aposta nada mais teria importância para mim, e muito menos o dinheiro.

— Oh, Arthur, te amo tanto!

Ele lhe deu um beijo longo e intenso que constituiu o selo da sua promessa de amor.

 

Um ano depois...

— O que vocês devem levar em conta quando analisarem um investimento financeiro é que é de vital importância olhar por debaixo da superfície. — Arthur se reclinou na cadeira da mesa e esquadrinhou a sua pequena audiência —. Formulem as perguntas que outros não formulam. Façam anotações. Analisem o que pode sair mal assim como o que esperam que saia bem. Está claro?

Os gêmeos gorjearam do fundo dos seus berços. O pequeno David olhava a Arthur com atenção, sem dúvida fascinado pela conferência. Sua irmã, Agatha, parecia mais interessada no seu chocalho, embora Arthur soubesse que tinha absorvido até o mais mínimo detalhe. Como sua mãe, ela era capaz de realizar duas coisas ao mesmo tempo.

Arthur sorriu a ambos. Não tinha nenhuma dúvida: era o pai dos meninos mais inteligentes e formosos do mundo inteiro.

Do outro lado da janela, a primavera tinha invadido o imóvel. A luz cálida do sol entrava no local. Os campos estavam verdes e as plantas tinham florescido.

Pouco depois de casar-se com Elenora, se transladaram ao campo. Londres estava muito bem para as visitas ocasionais, Arthur pensou. Mas nem ele e nem ela estavam feitos para passar longos períodos de tempo em sociedade. Além disso, o ar do campo era muito mais saudável para os meninos.

— O dinheiro não é a coisa mais importante do mundo — continuou Arthur—, mas é um bem muito útil.

A porta da biblioteca se abriu e Elenora, embelezada com um vestido cor-de-rosa e com um aspecto fresco e vital, entrou como um suspiro no lugar. Na mão levava um diário que lhe resultou familiar a Arthur.

—... Sobretudo nesta casa — Arthur acrescentou secamente —, porque sua mãe é capaz de gastar uma quantidade enorme em obras de caridade.

Elenora arqueou as sobrancelhas enquanto se aproximava dele.

— Que tolices você está contando aos meninos?

— Estou lhes dando uns conselhos financeiros sensatos. — Quando Elenora se deteve diante de Arthur, este ficou de pé e a beijou. Depois de olhar com receio o diário, disse —: Não me diga nada, deixe-me adivinhar. Necessita mais recursos para o novo orfanato, não é certo?

Ela lhe ofereceu seu radiante e maravilhoso sorriso, aquele que sempre conseguia enternecer os lugares mais recônditos no seu interior, e se inclinou sobre os berços para acariciar os meninos.

— A construção está quase terminada — explicou por cima do ombro —. Só necessito de um pouco mais de dinheiro para cobrir o custo das mudanças no desenho dos jardins.

— Conforme acredito recordar, os jardins estavam incluídos no orçamento original.

— Sim, mas quero que os ampliem. Nós dois estávamos de acordo em que os meninos necessitam um lugar extenso e agradável para jogar. É importante que disponham de muito ar fresco e de uma zona para fazer exercício.

Arthur decidiu que se casou com uma mulher de muitos talentos. Graças a sua supervisão, todos os aspectos de seu mundo, incluídos os meninos, ele mesmo, as obras de caridade e as casas, prosperavam.

— Tem razão, querida — respondeu ele —. Os meninos do orfanato necessitarão de jardins excelentes.

— Sabia que o entenderia. — Elenora se endireitou, abriu o diário e escreveu algo com rapidez —. Esta tarde mesmo enviarei uma nota ao arquiteto para que comece a executar o projeto.

Arthur se pôs a rir. Com muita suavidade, tirou-lhe o diário das mãos e o deixou sobre a mesa.

— Em uma ocasião me perguntou o que eu fazia para me sentir feliz — ele declarou —. Aquele dia, no parque, não respondi a sua pergunta por que não podia fazê-lo. Não conhecia a resposta. Mas agora a conheço.

Elenora sorriu. O amor que sentia por Arthur era claro e brilhante como a luz do sol.

— E qual é a resposta?

Arthur a abraçou.

— Amar-te faz com que eu me sinta o homem mais feliz da terra.

— Querido Arthur! — sussurrou ela sentindo que a felicidade lhe enchia o coração. Laçou a Arthur pelo pescoço com os braços e declarou —: Em uma ocasião te disse que seria um marido excelente, lembra? Agora deve admitir que eu tinha razão.

Ele teria se posto a rir, mas preferiu beijá-la.

 

                                                                                            Amanda Quick

 

                      

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