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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


UMA ESCOLHA POR AMOR / Nicholas Sparks
UMA ESCOLHA POR AMOR / Nicholas Sparks

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

           Fevereiro de 2007

As histórias são tão singulares quanto as pessoas que as contam, sendo certo que as melhores são aquelas em que o fim constitui uma surpresa. Pelo menos era isso que Travis Parker recordava de, em criança, ter ouvido o pai dizer-lhe. Travis lembrava-se do pai sentado a seu lado na cama, recebendo de lábios arreganhados num sorriso o pedido do filho para que lhe contasse uma história.

O pai indagava: - Que tipo de história é que queres?

- A melhor de todas - respondia Travis.

Habitualmente, o pai deixava-se ficar sentado uns momentos, em silêncio, até lhe aparecer um brilho nos olhos. Punha o braço à volta de Travis e, num tom de voz bem modulada, iniciava uma história que muitas vezes mantinha o miúdo acordado bastante tempo, mesmo depois de o pai ter apagado a luz. Havia sempre aventuras, perigos, excitação e jornadas que tinham lugar no interior e nos arredores da pequena cidade costeira de Beaufort, Carolina do Norte, o lugar onde Travis crescera e que continuava a considerar o seu lar. Estranho, muitas das histórias incluíam ursos. Ursos-pardos, ursos-castanhos, ursos kodiak... o pai não era pessoa que se cingisse demasiado à realidade quando falava do habitat natural dos ursos. Contava cenas de caça de pôr os cabelos em pé, passadas nas planícies baixas e arenosas, deixando Travis com pesadelos em que via ursos enfurecidos nos Shackleford Banks, que o perseguiriam durante boa parte da escola primária. Contudo, por mais que as histórias o assustassem, nunca deixava de perguntar: - O que é que aconteceu a seguir?

Para Travis, aqueles dias ficaram como uma espécie de vestígios de outra era. Tinha agora 43 anos e, ao arrumar o carro no parque de estacionamento do Carteret General Hospital, onde a mulher trabalhava desde há dez anos, voltara a pensar nas palavras que dizia sempre ao pai.

Depois de sair do carro, pegou nas flores que comprara. Da última vez em que ele e a mulher tinham falado, houvera uma discussão e, mais do que tudo, ele queria corrigir o que fora dito. Não tinha a certeza de que as flores viessem a melhorar a situação entre ambos, mas também não lhe ocorrera mais nada para fazer. Não é preciso dizer que se sentia culpado pelo que acontecera, mas amigos casados tinham-lhe assegurado que o sentimento de culpa era a pedra angular de qualquer bom casamento. Significava que a consciência funcionava, que os valores eram tidos em alta estima e que devíamos, sempre que possível, evitar actos que nos levassem a sentir remorsos. Os amigos admitiam muitas vezes os seus fracassos nesta área e Travis achava que o- mesmo podia dizer-se acerca de qualquer casal seu conhecido. Supunha que os amigos lhe tinham dito aquilo para que se sentisse melhor, para lhe assegurar que ninguém era perfeito, que não devia ser tão duro para consigo mesmo. - Toda a gente comete erros - diziam; e, embora ele acenasse que compreendia, tinha consciência de que os amigos não sabiam o que ele estava a passar. Não podiam saber. Afinal, as suas mulheres continuavam a dormir ao lado deles noite após noite; nenhum deles alguma vez estivera separado durante três meses, nenhum deles precisara de magicar se o seu casamento voltaria a ser o que fora.

Enquanto atravessava o parque de estacionamento ia pensando nas duas filhas, no trabalho, na mulher. De momento, nada o deixava muito descansado. Sentia estar a falhar em praticamente todos os aspectos da sua vida. Ultimamente, a felicidade parecia-lhe tão distante e inatingível quanto uma viagem pelo espaço. Nem sempre se sentira assim. Lembrava-se de que houvera um período prolongado em que se sentira muito feliz. Mas as coisas mudam. As pessoas também. A mudança era uma das leis inevitáveis da natureza, que cobrava o seu preço sobre as vidas das pessoas. Cometia-se o erro, surgia o arrependimento e tudo o que restava eram as repercussões capazes de transformar um gesto tão simples como o acto de erguer-se da cama em algo de laborioso.

Aproximou-se da entrada do hospital a abanar a cabeça, a tentar imaginar-se a criança que fora, a ouvir as histórias do pai. Reflectia que a sua história pessoal fora a melhor de todas, o género de história que devia ter um final feliz. Ao estender a mão para o puxador, sentiu o habitual tumulto da memória e do arrependimento.

Só mais tarde, depois de as memórias o terem submergido uma vez mais, poderia permitir-se pensar no que aconteceria em seguida.

 

 

 

 

               Maio de 1996

- Conta-me lá outra vez como é que concordei com isto - gemeu Matt, de rosto afogueado, continuando a empurrar o tanque de hidromassagem em direcção ao espaço que lhe fora destinado na extremidade da varanda. Os pés escorregavam e sentia o suor escorrer da testa para os cantos dos olhos, provocando ardor. Estava calor, bastante calor para o início de Maio. Quente como um raio para aquele trabalho, sem dúvida. Até Moby, o cão de Travis, de língua de fora e a arquejar, se resguardara à sombra.

Travis Parker, que empurrava a maciça caixa de lado, limitou-se a encolher os ombros. - Porque pensaste que teria a sua graça - observou. Baixou o ombro e empurrou; o tanque, que devia pesar quase duzentos quilos, avançou mais alguns centímetros. Aquele ritmo, talvez o tanque estivesse colocado numa qualquer altura da semana seguinte.

- Isto é ridículo - protestou Matt, aplicando o peso do corpo contra o caixote, mas a pensar que aquilo de que precisavam era de uma parelha de mulas. Por momentos, imaginou que o esforço lhe fazia sair grandes orelhas da cabeça, estendendo-se para ambos os lados, como os foguetões de garrafas que ele e Travis costumavam lançar quando eram miúdos.

- Também disseste isso.

- E não vai ser fácil de instalar.

- É claro que vai ser fácil - replicou Travis. Ergueu-se e apontou a inscrição no caixote. - Estás a ver? Aqui diz: "Fácil de instalar." - Do seu lugar à sombra da árvore, Moby ladrou, como se quisesse mostrar concordância, provocando em Travis um sorriso de contentamento consigo próprio.

Ainda a tentar recuperar o fôlego, Matt mostrou-lhe má cara. Detestava aquele olhar. Na maioria das ocasiões, apreciava o entusiasmo sem limites do amigo. Mas hoje não. De maneira nenhuma.

Estendeu a mão para o lenço que tinha no bolso de trás. Estava ensopado de suor, o que, está bem de ver, tinha feito maravilhas aos fundilhos das calças. Enxugou a cara e deu uma torção rápida no lenço. O suor escorreu, como água de uma torneira avariada, e caiu-lhe em cima da sapatilha. A mancha deixou-o quase hipnotizado, antes de sentir o líquido escorrer através do tecido fino, deixando-lhe nos dedos uma agradável sensação pegajosa. Oh, que coisa mais bonita, não era?

- Se bem me lembro, disseste que o Joe e o Laird viriam ajudar-nos no teu "pequeno projecto", que a Megan e a Allison viriam cozinhar, que haveria cerveja e que, ah pois, a instalação desta coisa levaria, no máximo, um par de horas.

- Vêm a caminho - respondeu Travis.

- Disseste o mesmo há quatro horas.

- Devem ter-se atrasado um pouco.

- Se calhar nem chegaste a telefonar-lhes.

- É claro que lhes telefonei. E também vão trazer os filhos. Prometo.

- Quando?

- Não tardam.

- Pois, pois - ripostou Matt. Voltou a pôr o lenço no bolso.

- E, a propósito, partindo do princípio de que eles não chegam dentro de pouco tempo, como diabo pensas que só nós os dois seremos capazes de colocar esta coisa no sítio?

Travis voltou-se de novo para o caixote, acenando como quem não via ali qualquer problema. - Arranjaremos uma maneira. Pensa só como temos andado bem até agora. Já estamos a meio do caminho.

Matt voltou a enrugar a testa. Era sábado. Sábado! O seu dia de divertimento e descanso, a hipótese de sair da mó de baixo, a pausa que ganhava depois de passar cinco dias no banco, o dia de que precisava. Era funcionário da secção de crédito, por amor de Deus! Podia ter assistido ao jogo dos Braves contra os Dodgers! Podia ter ido jogar golfe! Ou dado uma saltada à praia! Podia ter ficado na cama com Liz, antes de seguirem para casa dos pais dela, como faziam quase todas as semanas, em vez de se levantar ao romper da alvorada para se sujeitar a oito horas seguidas de trabalho braçal, debaixo daquele escaldante sol sulista...

Fez uma pausa. Quem é que estava a querer enganar? Se não estivesse ali, teria decididamente passado o dia com os pais da Liz e essa era, com toda a franqueza, a primeira razão para ter acedido ao pedido de Travis. Mas a questão não era essa. A questão era ele não precisar daquilo. Na realidade, não precisava.

- Não preciso disto! - exclamou. - Não preciso, de verdade. Travis não pareceu ouvi-lo. Já tinha as mãos no caixote, estava a colocar-se em posição. - Estás pronto?

Matt baixou o ombro, a sentir-se mais desgostoso. Sentia as pernas a tremer. Tremuras! Já sabia que se sentina em apertos, que precisaria de uma dose dupla do analgésico Advil pela manhã. Ao contrário de Travis, não frequentava o ginásio quatro dias por semana, não jogava à bola, não corria, não fazia mergulho em Aruba nem surfava em Bali, não esquiava em Vail, não fazia nada do que o tipo fazia.

- Isto não é brincadeira, sabias?

Travis sorriu. -Já disseste isso, lembras-te?

- Caramba! - exclamou Joe, de sobrancelha erguida ao andar à volta do tanque. O Sol já começara a descer no horizonte, deixando manchas douradas a reflectir-se na baía. Lá longe, uma garça voou de entre as árvores e rasou a superfície, dispersando o brilho do Sol. Joe e Megan, juntamente com Laird e Allison, tinham chegado uns minutos antes com os filhos a reboque, e Travis andava a mostrar-lhes a obra. - Fantástico! Foi tudo feito pelos dois, só hoje?

De cerveja na mão, Travis assentiu. - Não foi difícil - explicou.

- Julgo que o Matt até se divertiu.

Joe olhou de relance para Matt, estendido numa cadeira de jardim, com um trapo húmido na cabeça. Até a barriga dele, Matt sempre fora um pouco gorducho, parecia derreada.

- Isso vê-se.

- Era pesado?

- Como um sarcófago egípcio! - resmungou Matt. - Um daqueles dourados que só os guindastes conseguem deslocar!

Joe riu-se. - Os miúdos podem entrar?

- Ainda não. Acabei de o encher e a água leva algum tempo a aquecer. Embora o sol dê uma ajuda.

- O sol aquece-a em poucos minutos - gemeu Matt. - Em poucos segundos!

Joe sorriu. Laird e eles os três tinham feito a escola juntos, desde o jardim-de-infância.

- Um dia duro, Matt?

O outro retirou o trapo e olhou Joe com maus modos. - Não fazes ideia. E obrigado por teres chegado a tempo.

- Travis disse-me para estar cá às cinco da tarde. Se soubesse que precisavam de ajuda, teria vindo mais cedo.

Matt desviou lentamente o olhar para Travis. Por vezes, detestava mesmo o amigo.

- Como é que está a Tina? - indagou Travis, a mudar de assunto. - A Megan já consegue dormir?

Megan conversava com Allison; estavam ambas sentadas à mesa colocada no extremo da varanda e Joe olhou de relance na direcção delas. - Um pouco. A tosse da Tina desapareceu e voltou a dormir a noite inteira, mas às vezes chego a pensar que a Megan não está programada para dormir. Pelo menos desde que é mãe. Levanta-se mesmo que a Tina não se tenha mexido. É como se o silêncio a acordasse.

- É uma boa mãe - comentou Travis. - Sempre o foi.

Joe virou-se para Matt. - Aonde é que está a Liz? - perguntou. - Deve chegar a qualquer momento - respondeu Matt, de voz hesitante. - Passou o dia com os pais.

- Encantador - comentou Joe.

- Sê simpático. São boas pessoas.

- Recordo que me disseste que se tivesses de ouvir mais uma das histórias acerca do cancro da próstata do teu sogro, ou de ouvir a tua sogra contar como o Henry voltou a ser despedido mesmo sem ter culpa, preferias meter a cabeça dentro do forno.

Matt lutou para se pôr de pé. - Nunca disse isso!

- Disseste, sim - sorriu Joe quando viu Liz, a mulher de Matt, a virar a esquina da casa, com Ben a caminhar mesmo à frente dela.

- Mas não te preocupes. Fico de bico calado.

Nervoso, Matt desviou os olhos de Liz para o amigo e voltou a olhar para a mulher, a querer assegurar-se de que ela não ouvira.

- Olá, a todos! - saudou Liz, acompanhando as palavras com um aceno amigável e dando a outra mão ao pequeno Ben. O menino soltou-se da mão da mãe e cambaleou em direcção aos outros miúdos.

Joe viu Matt suspirar de alívio. Sorriu e baixou a voz. - Ora bem... os sogros do Matt. Foi assim que o convenceste a vir ajudar-te?

- Talvez tenha falado nisso - respondeu Travis, a forçar um sorriso.

Joe soltou uma gargalhada.

Matt olhou-os com suspeição. - O que é que estão para aí a dizer?

- Nada - responderam em uníssono.

Mais tarde, posto o Sol e comido o jantar, Moby enroscou-se aos pés de Travis. Este sentiu-se percorrido por uma onda de prazer ao ouvir o chapinhar dos miúdos no tanque. Era o género de serão que preferia, com o tempo a passar, as risadas contagiantes e os sons familiares. Num instante, Allison estava a falar com Joe; no minuto seguinte conversava com Liz, antes de se voltar para Laird e Matt; e o mesmo sucedia com todas as pessoas sentadas à mesa colocada fora de casa. Sem pretensões, sem tentar impressionar, sem ninguém querer destacar-se. Por vezes, a sua vida parecia-lhe um anúncio de qualquer marca de cerveja e, durante a maior parte do tempo, contentava-se em seguir na onda das sensações agradáveis.

De vez em quando, uma das mulheres levantava-se para ver como estavam as crianças. Laird, Joe e Matt, pelo seu lado, em alturas como aquelas, limitavam os cuidados com a criação dos filhos a chamadas de atenção em voz alta, esperando evitar que eles implicassem uns com os outros ou se ferissem acidentalmente. Como não podia deixar de ser, uma vez por outra havia um miúdo que desatava a berrar, mas a maioria dos problemas resolvia-se com um beijo rápido num joelho esfolado ou com um abraço, tão terno visto de longe como seria para a criança que o recebia.

Travis olhava à volta da mesa, satisfeito porque os seus amigos de infância não só se tinham tornado maridos e pais, mas continuavam também a fazer parte da vida dele. Nem sempre acontece. Aos 32 anos, sabia que muitas vezes a vida não passava de um jogo, que tinha sofrido a sua quota de acidentes e quedas, alguns dos quais podiam ter sido fisicamente mais gravosos do que foram. E não era apenas isso. A vida era imprevisível. Da sua memória já começava a desaparecer a lembrança de alguns dos que vira crescer: uns já tinham morrido em acidentes de viação, outros tinham-se casado e divorciado, havendo ainda os que se tornaram dependentes de drogas ou do álcool ou deixaram pura e simplesmente a pequena cidade. Quais seriam as hipóteses de quatro deles, que se conheciam desde o jardim-de-infância, todos no início da casa dos trinta, continuarem a passar tempo juntos? Bastante reduzidas, pensou. Contudo, fosse como fosse, depois de terem sofrido juntos o acne juvenil, os problemas com as raparigas e a pressão dos pais, depois de terem seguido para quatro universidades diferentes com objectivos de carreira divergentes, todos tinham, um por um, regressado a Beaufort. Eram mais familiares do que amigos, usavam expressões codificadas e partilhavam experiências que um estranho dificilmente entenderia.

E, milagrosamente, as mulheres que escolheram também alinharam. Vinham de ambientes diversos e de distintas regiões do estado, mas o casamento, a maternidade e os infindáveis mexericos de uma pequena cidade foram mais do que suficientes para que continuassem a conversar com regularidade pelo telefone, levando-as a relacionar-se como se fossem irmãs de há muito separadas. Laird fora o primeiro a casar-se; ele e Allison deram o nó no Verão seguinte à licenciatura em Wake Forrest; Joe t Megan percorreram o caminho para o altar um ano mais tarde, depois de se apaixonarem durante o último ano passado na Universidade de Carolina do Norte. Matt, que fora para a Universidade de Duke, conheceu Liz em Beaufort, casando-se um ano mais tarde. Travis apadrinhara todos os três casamentos.

É evidente que os anos recentes tinham provocado diversas mudanças, em grande parte devidas ao aumento das famílias. Laird já não estava sempre pronto para ir fazer ciclismo pelos montes, Joe não podia decidir-se à última hora, como era costume, a acompanhar Travis ao centro de esqui no Colorado, enquanto Matt desistira de lhe fazer companhia na maioria dos casos. Mas nada disso tinha importância. Continuavam suficientemente disponíveis e, entre os três, desde que tudo fosse planeado, conseguiam aproveitar bem os seus fins-de-semana.

Perdido em meditações, Travis apercebeu-se de que a conversa esmorecera.

- Perdi alguma coisa?

- Perguntei se ultimamente tens falado com a Monica - indagou Megan, num tom de voz a anunciar que Travis estava em apuros. Pensou que todas aquelas seis pessoas revelavam um interesse um pouco excessivo pela vida amorosa dele. O problema com as pessoas casadas é parecerem achar que todos os seus conhecidos devem ser casados.

Portanto, qualquer namorada de Travis era sujeita a uma avaliação subtil, mas persistente, especialmente por parte de Megan. Em momentos como aquele, era habitualmente a chefe do grupo, sempre pronta a analisar o que poderia fazer correr Travis quando se tratava de mulheres. E ele adorava pô-la em funcionamento pleno.

- Recentemente não falei.

- Porquê? Ela é simpática.

"E também é um pouco mais do que uma pequena neurótica", pensou Travis. Mas não era isso que estava em causa.

- Ela deixou-me, recordas-te?

- E então? Não significa que não queira que lhe telefones.

- Pensei que significava isso mesmo.

Megan, juntamente com Allison e Liz, ficou a olhá-lo como se ele fosse irremediavelmente estúpido. Os homens, como era habitual, pareciam apreciar a cena. Era uma situação normal naquelas reuniões.

- Mas tinham discutido, certo?

- E depois?

- Alguma vez te ocorreu que ela pode ter rompido contigo por estar zangada?

- Eu também estava zangado.

- Porquê?

- Ela queria que eu fosse consultar um psicanalista.

- E, deixa-me adivinhar, respondeste que não precisavas.

- No dia em que sentir necessidade de consultar um psicanalista é porque chegou a altura de me sentar, levantar a bainha da saia e tricotar umas luvas de lã.

Joe e Laird riram-se, mas Megan ergueu as sobrancelhas. Todos sabiam que ela não perdia um programa da Oprah.

- Não achas que os homens precisem da psicanálise?

- Como não sou general, não tenho a certeza.

Megan recostou-se na cadeira. - Penso que a Mónica tinha qualquer coisa na manga. Se me perguntas, penso que tens problemas com a manutenção de compromissos.

- Nesse caso, tenho a certeza de que não te perguntarei. Inclinando-se para diante, Megan perguntou: - Quanto tempo

durou o teu namoro mais prolongado? Dois meses? Quatro meses? Travis ponderou a questão. - Namorei a Olívia durante quase um ano.

- Não julgo que ela esteja a incluir o liceu - casquinou Laird. Uma vez por outra, os amigos gostavam de o ver atirado para debaixo do autocarro, em sentido figurado, é evidente.

- Obrigado, Laird - agradeceu Travis.

- Para que servem os amigos?

- Estás a querer mudar de assunto - recordou-lhe Megan. Travis tamborilou com os dedos na coxa. - Acho que tenho de responder... que não me lembro.

- Por outras palavras, não durou o suficiente para ser recordado?

- O que é que hei-de dizer? Ainda não encontrei a mulher que se possa comparar com qualquer de vocês.

Apesar de a escuridão estar a aumentar, conseguiu notar que a resposta lhe agradou. Aprendera, há muito, que a lisonja era a sua melhor defesa em momentos como aquele, em especial por ele se mostrar geralmente sincero. Megan, Lis e Allison eram fantásticas. Todas dotadas de carácter, de lealdade e de um generoso bom senso.

- Pois bem, como sabes, eu gosto dela - replicou Megan.

- Claro, gostas de todas as minhas namoradas.

- Não, não gosto. Não gosto da Leslie.

Nenhuma delas tinha gostado de Leslie. Por sua vez, Matt, Laird e Joe, não se tinham incomodado com a presença dela, especialmente em biquini. Era, sem sombra de dúvida, uma beldade e, embora não fosse mulher com quem algum deles casasse, acharam-na bastante agradável enquanto o namoro durou.

- Só estou a dizer que devias ligar-lhe - insistiu Megan.

- Vou pensar nisso - respondeu Travis, sabendo que não o faria. Levantou-se da mesa, à procura de um escape. - Alguém quer mais uma cerveja?

Joe e Laird levantaram as suas garrafas simultaneamente; os outros negaram com acenos das cabeças. Travis começou a andar na direcção da arca frigorífica, mas hesitou junto da porta de correr da casa. Entrou e mudou o CD, ficando a ouvir a nova melodia que pairava sobre o jardim enquanto regressava à mesa com as cervejas. Por essa altura, Megan, Allison e Liz já estavam a conversar sobre Gwen, a cabeleireira de todas elas. Gwen tinha sempre boas histórias, muitas das quais se referiam às predilecções ilícitas dos cidadãos da terra.

Travis abriu a cerveja em silêncio, a olhar para o rio.

- Em que é que estás a pensar? - indagou Laird.

- Nada de importante.

- O que é?

Voltou-se para o amigo. - Alguma vez reparaste como certas cores se adaptam a certos indivíduos e outras não?

- De que é que estás a falar?

- White e Black (Branco e Preto). Como Mr. White, o tipo que é dono da loja de pneus. E Mr. Black, o nosso professor do terceiro ano. Ou até Mr. Green (Verde) do jogo Clue. Mas nunca conheceste ninguém chamado Mr. Orange (Alaranjado) ou Mr. Yellow (Amarelo). Segundo parece, algumas cores dão bons nomes mas outras soam a pura estupidez. Sabes o que quero dizer?

- Não julgo que alguma vez tivesse pensado nisso.

- Nem eu. Até há um minuto, quero dizer. Mas é estranho, não é?

Laird acabou por concordar: - Pois é.

Os dois homens calaram-se por momentos. - Disse-te que não era importante.

- Pois disseste.

- E tinha razão?

- Tinhas.

Quando a pequena Josie teve a sua segunda birra num espaço de quinze minutos, eram quase 21 horas, Allison aninhou-a no colo e lançou a Laird o olhar, aquele que indicava serem horas de ir para casa e porem os miúdos na cama. Laird nem se deu ao trabalho de protestar e quando ele se levantou Megan olhou para Joe, Liz acenou para Matt; Travis soube que o serão tinha terminado. Os pais podem crer que são quem manda mas, no fim de contas, os filhos é que ditam as regras.

Supunha que poderia ter tentado que um dos amigos ficasse, e talvez algum concordasse, mas desde há muito aceitara o facto de os amigos ordenarem as suas vidas segundo horários diferentes do dele. Além disso, tinha a sensação de que Stephanie, a sua irmã mais nova, poderia aparecer mais tarde. Vinha de Chapell Hill, onde estudava para conseguir o mestrado em Bioquímica. Embora ficasse em casa dos pais, era normal que quisesse conversar depois da viagem, mas os pais já estariam deitados. Megan, Joe e Liz puseram-se de pé e começaram a limpar a mesa, mas Travis acenou que deixassem tudo

como estava.

- Faço isso num instante. Não tem importância.

Minutos depois, os miúdos estavam acomodados em dois SUV e num monovolume. Travis deixou-se ficar no alpendre e despediu-se enquanto os amigos saíam do caminho de acesso à casa.

Depois de eles saírem, Travis voltou para junto do estéreo, procedeu a nova busca entre os CD, escolheu Tattoo You, dos Rolling Stones, e aumentou o volume de som. Foi buscar outra cerveja, regressou à sua cadeira, colocou os pés em cima da mesa e recostou-se. Moby sentou-se ao lado dele.

- Por agora ficámos sozinhos - comentou Travis. - A que horas pensas que a Stephanie chega?

Moby voltou-se para o outro lado. A menos que Travis pronunciasse as palavras anda ou bola, corre ou vem buscar um osso, Moby não se mostrava muito interessado em qualquer coisa que ele estivesse a dizer.

- Achas que devia ligar-lhe para saber se já vem a caminho? O cão continuou a olhar em frente.

- Pois, foi o que pensei. Chega quando chegar.

Sentou-se a beber a cerveja e a olhar para a água. Por detrás dele, Moby lamentou-se. - Queres a tua bola? - acabou Travis por perguntar.

Moby levantou-se com tal rapidez que ele quase caiu da cadeira.

Foi a música, pensou ela, que provou ser o elemento decisivo na que já era uma das mais desgraçadas semanas da sua vida. Música alta. Pois bem, 21 horas numa noite de sábado não era assim tão mau, especialmente por ser óbvio que ele estava acompanhado, sendo certo que as 22 também não eram muito despropositadas. Mas, 23 horas? Quando ele se encontrava sozinho, a brincar com o cão?

Da sua varanda das traseiras, conseguia vê-lo lá sentado, com os mesmos calções que trouxera vestidos durante todo o dia, pés em cima da mesa, a atirar a bola e a olhar para o rio. Que diabo poderia ele estar a pensar?

Talvez não devesse ser tão dura com ele; poderia limitar-se a ignorá-lo. Estava em casa dele, não era verdade? Era rei do seu castelo e tudo isso. Podia fazer o que lhe apetecesse. Esse, contudo, era o problema. O problema era que ele tinha vizinhos, incluindo ela, que também tinha o seu castelo e achava que os vizinhos lhe deviam consideração. E, verdade seja dita, ele pisara o risco. Não só por causa da música. Com toda a franqueza, gostava da música que ele estava a ouvir e habitualmente não se importava com o volume do som ou com o tempo em que ele a tocava. O problema era o cão, Nobby, ou lá como ele lhe chamava. Mais especificamente, aquilo que o cão dele tinha feito ao dela.

Tinha a certeza de que Molly estava prenha.

Molly, a sua bonita e meiga coolie de raça pura, vencedora de concursos, a sua primeira compra depois de terminar os internatos de técnica assistente na Faculdade de Medicina da Virgínia Oriental, o género de cadela que sempre desejara, tinha engordado notoriamente durante as duas últimas semanas. Ainda mais alarmante, notara que as tetas da Molly pareciam estar a crescer. Senti-as sempre que a cadela rolava sobre o dorso para que ela lhe coçasse a barriga. Além disso, estava a mover-se mais devagar. Juntando tudo, era evidente que Molly estava a caminho de dar à luz uma ninhada de cachorrinhos que ninguém estaria disposto a aceitar. Um cruzamento de boxer e coolie? Sem se dar conta, enrugou a cara na tentativa de imaginar qual seria o aspecto dos cachorrinhos, até que finalmente se forçou a pensar noutra coisa.

Tinha de ser o cão daquele homem. Quando a Molly estivera com o cio, aquele cão montara vigilância à casa como se fora um detective particular, além de ser o único cão que vira pelas redondezas durante as últimas semanas. Mas estaria o vizinho na disposição de colocar uma sebe à volta do jardim? Ou de manter o cão fechado em casa? Ou de passear o cão? Não. A sua divisa parecia ser: "O meu cão é livre!" Nada que a surpreendesse. O homem parecia viver de acordo com a mesma divisa irresponsável. No caminho para o emprego via-o a correr e, quando regressava, encontrava-o a fazer ciclismo, a remar no caiaque, a andar de skate ou a lançar bolas para o cesto de basquetebol instalado na frente da casa, na companhia de um grupo de garotos da vizinhança. Há um mês, pusera o barco na água e agora também praticava esqui aquático. Como se o homem não fosse já suficientemente activo. Deus não permitiria que o homem fizesse um minuto de trabalho extraordinário e ela já descobrira que não trabalhava às sextas-feiras. E que emprego seria aquele, em que o deixavam ir trabalhar todos os dias vestindo calças de ganga e T-shirt? Não fazia ideia, mas suspeitava, com uma espécie de satisfação maldosa, que o mais certo era que o trabalho dele exigisse avental e um cartão com o nome na camisa.

Bom, talvez não estivesse a ser inteiramente justa. Provavelmente era um homem às direitas. Os amigos, que pareciam bastante normais e tinham filhos para educar, pareciam apreciar a companhia dele e visitavam-no com frequência. Apercebeu-se de que já vira um par deles no emprego, quando os miúdos se constipavam ou tinham infecções dos ouvidos. E, quanto a Molly? Molly estava sentada junto à porta das traseiras, a agitar a cauda e Gabby não conseguia deixar de encarar o futuro com angústia. Não haveria problemas com a cadela, mas os cachorros? O que iria acontecer-lhes? Não conseguia imaginar-se a levá-los para o lago ou para a Protectora dos Animais, ou para qualquer outra instituição da terra, para que fossem postos a dormir. Não podia fazer tal coisa. Não ia deixar que fossem assassinados.

Mas, então, o que é que havia de fazer com os cachorrinhos?

A culpa era toda dele; e estava para li sentado na varanda, de pés em cima da mesa, agindo como se não tivesse preocupações de qualquer espécie.

Não fora aquilo que sonhara quando, no início do ano, vira a casa pela primeira vez. Mesmo não estando situada em Morehead City, onde vivia o seu namorado, Kevin, ficava a poucos minutos da ponte. Era uma casa pequena, com quase um século e, pelos padrões de Beaufort, uma propriedade digna de uma nova decoração, mas a vista para a baía era espectacular, o jardim era suficientemente grande para a Molly poder correr e, o melhor de tudo, estava ao alcance da bolsa dela. Mesmo à justa, depois dos empréstimos que tivera de contrair para pagar os estudos, mas os funcionários dos créditos mostravam-se bastante compreensivos nos empréstimos a pessoas como ela. Profissionais qualificados, pessoas educadas.

Nada de semelhante ao "Sr. o Meu Cão É Livre e não Trabalho às Sextas-Feiras".

Respirou fundo, recordando uma vez mais a si mesma que o vizinho podia ser um homem excelente. Saudava-a sempre com um aceno quando a via chegar do emprego; também se lembrava vagamente de que, quando se mudara, uns meses antes, ele deixara um cesto com queijo e vinho para lhe dar as boas-vindas à vizinhança. Não estava em casa, mas ele deixara o cesto no alpendre e prometera a si mesma enviar-lhe um cartão de agradecimento, um bilhete que nunca se dispusera a escrever.

Inconscientemente, voltou a contrair o rosto. Lá se fora a superioridade moral. Pois bem, também ela não era perfeita, mas agora não se tratava de um simples bilhete de agradecimento. Tratava-se de Molly, do cão vadio daquele homem e de cachorrinhos indesejados; aquela era uma altura tão boa como qualquer outra para discutirem a questão. Era óbvio que ele estava acordado.

Desceu do alpendre das traseiras e começou a caminhar em direcção à cerca alta que separava as duas propriedades. De certa maneira, gostaria que Kevin estivesse junto dela, mas tal não iria acontecer. Não podia, depois da discussão daquela manhã, que começara depois de ela ter mencionado por acaso que o seu primo ia casar-se. Kevin, mergulhado da secção de desporto do jornal, não lhe dera resposta, preferindo agir como se não tivesse ouvido. Tudo o que se relacionasse com casamento fazia o homem ficar tão calado como uma pedra, especialmente nos tempos mais recentes. Admitia que não devia ser surpresa para ela; namoravam há quase quatro anos (um ano menos que o primo que se sentira tentada a mencionar) e aprendera um pormenor acerca dele: se Kevin sentia desconforto em relação a qualquer tema, o mais provável era não se manifestar acerca dele.

Mas o problema não estava em Kevin. Nem no facto de ultimamente ela sentir que a sua vida não era aquela que imaginara. E também não tinha a ver com a semana terrível que tivera no emprego, uma semana em que fora atingida três vezes por vómitos - três! só na sexta-feira, um recorde absoluto, pelo menos na opinião das enfermeiras, que não se preocupavam em esconder os sorrisos e repetiam a história com regozijo. Também não estava zangada com Adrian Melton, o médico casado do consultório que gostava de a tocar sempre que falavam, deixando ficar a mão tempo demasiado para uma simples manifestação de simpatia. E não estava certamente zangada pelo facto de nunca se ter rebelado contra isso.

Não, aquilo tinha a ver com o facto de o "Sr. das Festas" ser um vizinho responsável, alguém capaz de admitir que, juntamente com ela, tinha o dever de procurar uma solução para o problema. E, enquanto estivesse a chamá-lo à razão, talvez mencionasse o pormenor de ser um pouco tarde para ter o som tão alto (embora gostasse da música que ele tocava), só para lhe demonstrar que falava a sério.

Enquanto caminhava pelo relvado, Gabby sentia o orvalho a entrar pela biqueira das sandálias, molhando-lhe os dedos, e o luar era reflectido pelo relvado, onde parecia abrir veredas prateadas. A tentar imaginar as palavras exactas com que devia começar, mal reparava nos pormenores do caminho. As boas maneiras impunham que se dirigisse à porta da frente e batesse mas, com a música tão alta, duvidava que ele conseguisse ouvi-la bater. Além disso, queria resolver a questão enquanto se sentia estimulada e disposta a enfrentá-lo.

Mais Adiante, detectou uma abertura na sebe e dirigiu-se para lá. Era provavelmente a mesma que aquele Nobby usara para se impor à pobre e meiga Molly. Sentiu um novo aperto no coração e desta vez não tentou afastar a sensação. Aquilo era importante. Muito importante.

Concentrada como estava na missão, não reparou na bola de ténis que voava na sua direcção quando se preparava para transpor a abertura da sebe. Contudo, não deixou de reparar no galopar distante do cão que se dirigia para ela, um som distante, um segundo antes de ser atacada e de se estatelar no chão.

Deitada de costas, Gabby começou lentamente a reparar que havia estrelas a mais num céu demasiado brilhante, embora desfocado. Por momentos não percebeu por que não conseguia respirar, mas depressa se preocupou mais com a dor que lhe percorria o corpo. Só conseguia estar deitada na relva e piscar os olhos a cada pulsação.

Vinda de longe, ouviu uma confusão de sons e o mundo que a rodeava começou a tornar-se mais nítido. Tentou concentrar-se e notou que não havia confusão; estava a ouvir vozes. Ou, melhor, uma única voz. Parecia perguntar se ela se sentia bem.

Ao mesmo tempo, estava a tornar-se mais consciente de uma sucessão de movimentos rápidos, quentes e cheirosos na face. Pestanejou uma vez mais e viu-se confrontada com uma enorme cabeça quadrada e peluda que pairava sobre o seu rosto. Noby, concluiu confusamente.

Ai... lamuriou, enquanto tentava sentar-se. Ao vê-la mexer-se, o cão lambeu-lhe as faces.

Moby Deita-te! - ordenou a voz, soando agora mais próxima.

Está bem? Talvez fosse melhor não tentar levantar-se por enquanto.

Estou bem - respondeu Gabby, que conseguira finalmente

sentar-se. Respirou fundo por duas vezes, ainda a sentir-se tonta. Bolas, aquilo doeu. Na escuridão, notou um vulto agachado a seu lado, embora mal conseguisse adivinhar-lhe a forma.

PeÇo mil perdões - disse a voz.

O que é que aconteceu?

O Moby derrubou-a acidentalmente. Ia a correr atrás de uma

bola.

- Quem é Moby?

- É o meu cão.

- Então, Nobby o que é?

- Como?

Gabby levou a mão à têmpora. - Não tem importância.

- Sente-se mesmo bem?

Sinto - respondeu, ainda tonta mas sentindo a dor diminuir, a tornar-se um simples latejar. Quando começou a levantar-se sentiu que o vizinho a agarrava por um braço, ajudando-a a pôr-se em pé. Lembrou-se dos bebés que via no consultório, tentando equilibrar-se para se manterem de pé. Quando finalmente sentiu o chão debaixo dos pés, sentiu que ele lhe libertara o braço.

- Que grande recepção, não foi? - perguntou ele.

A voz parecia vir de longe, mas ela sabia que não era verdade e, quando se virou para ele, deu consigo a olhar para alguém pelo menos 15 centímetros mais alto do que ela, que media 1,70 m. Não estava habituada àquilo, inclinou a cabeça para olhar para cima e notou os malares angulosos dele e a pele clara. Tinha cabelos castanhos ondulados, curvando-se naturalmente nas pontas, e os dentes brilhavam de brancura. Assim de perto era bem-parecido, pronto, era realmente bonito, mas suspeitou que ele também tivesse consciência disso. Perdida em reflexões, abriu a boca para falar mas voltou a fechá-la, apercebendo-se de que esquecera a pergunta que queria fazer.

- Ora bem, veio fazer-me uma visita e acabou por ser atacada pelo meu cão - prosseguiu ele. - Volto a pedir-lhe perdão. O cão costuma ser um pouco mais cauteloso. Moby, cumprimenta a vizinha.

O cão estava sentado sobre os quartos traseiros, muito contente, e ao olhar para ele Gabby recordou-se subitamente do motivo da visita. Ao lado dela, Moby levantou a pata num cumprimento. Era bonito, tanto quanto pode ser um boxer, mas não estava preparada para gostar dele. Fora aquele vadio que, para além de a atirar ao chão, ainda arruinara a Molly. Talvez lhe devessem ter posto o nome de Mugger (Assaltante). Ou, ainda melhor, Pervert (Pervertido).

- Tem a certeza de que está bem?

A maneira como ele perguntara levou-a a aperceber-se de que não era aquele o género de confrontação que trazia em mente, pelo que tentou recuperar a sensação de desagrado anterior.

Respondeu num tom ríspido: - Estou óptima.

Durante um embaraçoso momento, olharam um para o outro em silêncio. Finalmente, ele fez um sinal por cima do ombro com o polegar.

- Não gostaria de ir sentar-se na varanda? Estava apenas a ouvir música.

- Por que é que pensa que quero sentar-me na varanda? - retorquiu, já a sentir-se mais confiante.

Ele hesitou. - Por que é que veio até aqui? "Oh, pois", pensou ela. "É isso."

- Quer dizer, suponho que, se preferir assim, podemos conversar aqui, junto da sebe - acrescentou Travis.

Impaciente por pôr termo à situação, ela ergueu as mãos, a pedir-lhe que parasse. - Vim até aqui porque queria falar consigo...

Não conseguiu continuar ao vê-lo dar uma palmada no próprio braço. - Também eu - exclamou, antes que ela pudesse prosseguir.

- Tenho andado para passar por sua casa, para lhe dar oficialmente as boas-vindas ao bairro. Encontrou o meu cesto?

Gabby ouviu um zumbido junto a uma orelha e afastou o insecto.

- Encontrei. Muito obrigada - respondeu, momentaneamente distraída. - Mas quero falar de...

Interrompeu-se quando viu que ele não estava a prestar atenção. Em vez disso estava a agitar o ar entre os dois. - Tem a certeza de que não quer ir para a varanda? Os mosquitos que voam à volta destes arbustos são ferozes.

- O que estava a tentar dizer-lhe era...

- Tem um na orelha - avisou, a apontar com o dedo. Instintivamente, bateu na orelha direita.

- Na outra.

Bateu na outra e quando olhou para a mão viu os dedos sujos de sangue. "Este era dos grandes", pensou.

- Tem um outro na face.

Ela voltou a agitar a mão para tentar afastar o enxame cada vez mais numeroso. - O que é que se passa?

- Como lhe disse, o problema são os arbustos. Os mosquitos procriam na água e há sempre humidade por baixo dos arbustos...

Gabby desistiu. - Muito bem, podemos conversar na varanda.

Momentos depois estavam em terreno livre, caminhando calmamente. - Odeio mosquitos, motivo por que coloco algumas velas em cima da mesa, a queimar erva-cidreira. Costuma ser suficiente para os manter afastados. Com o aproximar do fim do Verão tornam-se piores - explicou Travis, deixando espaço suficiente entre eles, de modo a não haver toques ocasionais. - Não creio que tivéssemos sido apresentados formalmente. A propósito, chamo-me Travis Parker.

Hesitou. Afinal, não viera até ali para ser amiga dele, mas a expectativa e as boas maneiras prevaleceram e ela respondeu, quase sem querer: - Eu sou a Gabby Holland.

- Prazer em conhecê-la.

- Igualmente - respondeu. Fez questão de cruzar os braços ao responder, mas inconscientemente levou a mão às costelas, onde continuava a sentir uma dor funda. Dali, a mão viajou até à orelha, onde já começava a sentir comichão.

Olhando-a de perfil, Travis reparou que estava zangada. Os lábios apertados formavam uma linha fina, dura, que ele já vira em várias das suas namoradas. Sentia que a fúria lhe era dirigida, embora não fizesse ideia do motivo. Para além, claro, do facto de ter sido derrubada pelo cão. Mas decidiu que a razão não poderia ser essa. Recordou-se das expressões pelas quais a sua irmã mais nova, Stephanie, era famosa, expressões que significavam um lento crescendo de ressentimento à medida que o tempo passava; era assim que Gabby parecia estar a comportar-se naquele momento. Como se tivesse treinado para agir assim. Porém, aí terminavam as semelhanças com a irmã dele. Enquanto Stephanie tinha crescido até se tornar uma beldade sem contestação, Gabby era atraente mas sem atingir a mesma perfeição. Os olhos eram um pouco afastados de mais, o nariz um pouquinho grande e o cabelo ruivo era sempre difícil de dominar, mas, de certo modo, aquelas imperfeições conferiam um ar de vulnerabilidade à sua beleza natural, um ar que muitos homens considerariam irresistível.

Em silêncio, Gabby tentava pôr as ideias em ordem. - Vinha para cá, a fim de...

- Um momento - interrompeu Travis. - Antes de começar, por que não se senta? Vou até ali - acrescentou, a dirigir-se para a arca frigorífica; parou a meio do caminho, rodou sobre os calcanhares e perguntou: - Não lhe apetece uma cerveja?

- Não, obrigada - agradeceu, desejosa de começar a expor as suas razões. Recusando sentar-se, virou-se com a intenção de o confrontar quando ele fosse a passar. Contudo, antes que ela o conseguisse, Travis deixou-se cair na cadeira e colocou os pés em cima da mesa. Perturbada, Gabby continuou de pé. Nada estava a correr de acordo com o plano.

Ele abriu a cerveja e tomou um pequeno gole. - Não vai mesmo sentar-se? - perguntou por cima do ombro.

- Obrigada, prefiro ficar de pé.

Travis semicerrou os olhos e defendeu-os formando uma pala com as mãos. - Mas mal consigo vê-la. As luzes do alpendre estão por detrás de si.

- Vim aqui para o informar de que...

- Não pode desviar-se um pouco para o lado? - pediu ele. Gabby soltou um resmungo de impaciência e deu uns passos para

o lado.

- É melhor assim?

- Não é suficiente.

Na altura, ela já se encontrava quase encostada à mesa e ergueu as mãos em sinal de desespero.

- Talvez fosse melhor sentar-se - sugeriu ele.

- Muito bem! - assentiu. Puxou uma cadeira e sentou-se. Ele estava a destruir-lhe todo o plano. - Vim cá por querer falar consigo - começou, hesitante entre começar pela situação da Molly ou por uma lição sobre regras de boa vizinhança.

Ele ergueu as sobrancelhas. -Já disse isso.

- Eu sei! - ripostou Gabby. - Tenho estado a tentar dizer-lhe, mas não me deixa acabar!

Notou que ela lhe lançava aquele olhar a que a irmã costumava recorrer ao falar com ele, mas continuava a não descortinar o motivo da tensão que ela demonstrava. Segundos depois, Gabby começou a falar, um pouco hesitante de início, como se receasse que ele a interrompesse uma vez mais. Como isso não aconteceu, as palavras começaram a fluir com velocidade crescente. Antes de falar da Molly e das tetas cada vez maiores da cadela, falou da maneira como encontrara a casa e como se sentira entusiasmada com ela, de como ter uma casa representava um seu sonho antigo. De início, Travis não fazia ideia de quem seria a Molly, o que conferia àquela parte do monólogo um ar surrealista, mas, com a continuação do discurso, percebeu que Molly era a coolie de Gabby, que ele já observara uma vez por outra. Depois, ela começou a falar de cachorros feios, de assassínio e, estranhamente, foi informando que o que andava a sentir não tinha a ver com um tal "Dr. Mãos Atrevidas" ou com vómitos mas, sinceramente, a conversa fazia pouco sentido até ela começar a apontar para Moby. Foi o que ajudou a resolver o enigma e a perceber que Gabby entendia que Moby era o responsável pela gravidez de Molly.

Queria dizer-lhe que a culpa não era da Moby, mas ela seguia de tal forma embalada que achou melhor deixá-la acabar, para depois protestar. Chegada àquele ponto, a história dela enrolava-se sobre si própria. Voltou a falar de pormenores soltos da sua vida, de pequenos retalhos que não pareciam ter sido ensaiados ou ter ligação entre si, tudo acompanhado de olhares furibundos atirados na direcção dele. Parecia ter falado durante uns bons vinte minutos, mas Travis sabia que não passara tanto tempo. No entanto, ser alvo de acusações violentas vindas de uma estranha, que punham em causa a sua qualidade de bom vizinho não era uma posição fácil, nem apreciava a maneira como ela se referia a Moby, um animal que, na opinião dele, era o cão mais perfeito do mundo.

Gabby parava de vez em quando, momentos que Travis tentava aproveitar para responder. Mas nem isso resultou, porque ela retomava de imediato a iniciativa. Portanto, ia ouvindo e, nos momentos em que Gabby não estava a proferir insultos, contra ele ou contra o cão, notava nela um sentimento de desespero, até uma certa confusão, perante o que estava a acontecer-lhe. O cão, quer ela se apercebesse disso ou não, era apenas um pequeno pormenor do que estava a perturbá-la. Sentiu uma onda de simpatia por ela e deu consigo a acenar com a cabeça, só para demonstrar que estava a prestar-lhe atenção. De quando em vez ela fazia uma pergunta, a que dava resposta sem lhe dar tempo de abrir a boca. - Não é de presumir que os vizinhos procurem agir com decência? - perguntou. - É evidente que sim começou ele a dizer, para logo ter de se calar. - É claro que é! exclamou Gabby; e Travis teve de contentar-se com gestos de assentimento.

Quando se lhe acabou o fôlego, fixou os olhos no chão, completamente esgotada. Embora a boca mostrasse a mesma linha dura, Travis julgou ver lágrimas e hesitou se deveria oferecer-lhe um lenço de papel. Apercebeu-se de que os lenços estavam no interior da casa, demasiado longe, mas lembrou-se dos guardanapos de papel que havia junto do grelhador. Levantou-se de um salto, pegou nuns quantos e ofereceu-lhos. Gabby começou por recusar mas acabou por aceitá-los e limpou os cantos dos olhos. Agora que estava mais calma, Travis reparou que era ainda mais bonita do que lhe parecera a princípio.

Gabby tentou respirar fundo, mas acabou por perguntar: - A questão é a seguinte: o que é que pensa fazer?

Ele hesitou, tentando descobrir qual seria a melhor resposta. - Acerca de quê?

- Dos cachorrinhos!

Viu a fúria prestes a explodir de novo e ergueu as mãos numa tentativa de a acalmar. - Vamos começar pelo princípio. Tem a certeza de que a cadela está prenha?

- É claro que tenho a certeza! Não ouviu o que eu disse?

- Já a levou ao veterinário?

- Sou assistente de um médico. Passei dois anos e meio numa escola de técnicos de saúde e mais um ano em estágios. Sei avaliar uma gravidez.

- Em seres humanos, tenho a certeza que sabe. Mas com os cães é diferente.

- Como é que sabe?

- Tenho muita experiência com cães. Na realidade, eu... "Pois, aposto que sim", pensou Gabby, interrompendo-o com um gesto. - A cadela está mais lenta, tem as tetas inchadas e comportamentos estranhos. Que mais pode ser? - indagou. Sinceramente, qualquer homem que tivesse tido um cão em criança pensava que isso o tornava um especialista em tudo o que diz respeito aos canídeos.

- E se a cadela tiver uma infecção? O inchaço pode ser provocado por isso. E se a infecção for suficientemente grave, ela pode ter dores, o que explicaria os comportamentos estranhos.

Gabby ia abrir a boca para lhe responder, mas apercebeu-se de que a possibilidade não lhe tinha ocorrido. Uma infecção podia provocar o inchaço das tetas, uma mastite ou inflamação semelhante, e, por momentos, sentiu-se percorrida por uma sensação de alívio. Contudo, pensando melhor, deixou-se submergir novamente pela realidade. O inchaço não afectava uma ou duas das tetas, afectava-as todas. Torceu o guardanapo de papel, a desejar que ele a ouvisse.

- Está prenha e vai ter cachorrinhos. E você vai ter de me ajudar a arranjar quem os queira, pois não vou afogá-los no lago.

- Tenho a certeza de que não foi o Moby.

- Sabia que me ia dizer isso.

- Mas devia saber que...

Gabby abanou furiosamente a cabeça. Uma situação típica. A gravidez era sempre um problema feminino. Pôs-se de pé. - Vai ter de assumir alguma responsabilidade neste caso. E espero que tenha compreendido que não vai ser fácil arranjar quem queira ficar com eles.

- Mas...

- Que diabo foi aquilo? - perguntou Stephanie.

Gabby tinha desaparecido para lá da sebe; uns segundos depois viu-a entrar em casa através da porta de correr. Continuava sentado à mesa, a sentir-se ligeiramente chocado, quando viu a irmã aproximar-se.

- Há quanto tempo é que estás aí?

- O suficiente - respondeu. Viu a arca frigorífica junto da porta e foi buscar uma cerveja. - Por momentos pensei que ias levar um soco. A seguir julguei que ela estava prestes a chorar. E depois pareceu-me novamente que ias levar um soco.

- Pensaste bem - admitiu Travis. Esfregou a testa, ainda a tentar perceber a cena.

- Pelo que vejo, continuas a agradar às namoradas.

- Não é minha namorada. É minha vizinha.

Stephanie sentou-se. - Ainda melhor. Há quanto tempo são namorados?

- Não somos. Na verdade, foi a primeira vez que falei com ela.

- Impressionante - observou Stephanie. - Não te conhecia essa faceta.

- Qual faceta?

- Bom, conseguires que alguém te deteste tão rapidamente. É um dom raro. Habitualmente, temos de começar por conhecer melhor a pessoa.

- Muito espirituosa.

- Penso o mesmo. E Moby... - começou, ao virar-se para o cão e a apontar-lhe um dedo acusador. - Tu é que deves saber.

Moby agitou a cauda e levantou-se. Caminhou para Stephanie e lambeu-lhe o regaço. Ela empurrou-lhe a cabeça, o que fez o cão redobrar de carícias.

- Acalma-te, velho sabujo.

- A culpa não é do Moby.

- Foi o que lhe disseste. Não que ela gostasse de te ouvir. O que é que se passa com ela?

- Estava perturbada.

- Isso vi eu. Levei algum tempo a perceber aquilo de que ela estava a falar. Mas devo admitir que foi divertido.

- Não sejas má.

- Não sou má - conclui Stephanie, reclinando-se na cadeira para examinar o irmão. - Não a achaste bonitinha?

- Não reparei.

- Pois, é claro que não. Apostaria que foi o primeiro pormenor em que reparaste. Bem vi que a analisavas com olhos gulosos.

- Meu Deus! Esta noite estás muito divertida.

- Tenho de estar. O exame que acabei de fazer foi um espanto.

- O que é que pretendes dizer com isso? Achas que falhaste alguma resposta?

- Não. Mas algumas deram-me muito trabalho.

- Deve ser interessante ser como tu.

- Oh, é mesmo. E ainda tenho mais três exames, na próxima semana.

- Coitadinha. A vida de eterna estudante é realmente mais dura que a das pessoas que têm de ganhar o sustento.

- Olha quem fala. Estudaste durante mais tempo do que eu. O que me faz lembrar... como é que pensas que a mamã e o papá reagiriam se lhes dissesse que quero ficar na faculdade mais uns dois anos, até conseguir o doutoramento?

Em casa de Gabby acendeu-se a luz da cozinha. Distraído, precisou de algum tempo para responder.

- É provável que concordem. Sabes como são a mamã e o papá.

- Pois sei. Contudo, ultimamente tenho a sensação de que querem que eu conheça uma certa pessoa e que assente.

- Junta-te ao clube. Há anos que sinto o mesmo.

- Pois, mas comigo é diferente. Sou mulher. O meu relógio biológico está a funcionar.

A luz da cozinha foi apagada; uns segundos depois acendeu-se a do quarto. Preguiçosamente, tentou imaginar se Gabby estaria a preparar-se para ir para a cama.

- Não te esqueças de que a mamã se casou com 21 anos - prosseguiu Stephanie. - Nasceste quando ela tinha 23 - acrescentou. Esperou por uma resposta que não veio. - Contudo, veja-se como te tens dado bem. Talvez possa usar-te como exemplo.

As palavras da irmã pareciam chegar até ele lentamente e enrugou a testa quando as percebeu.

- Estás a querer insultar-me?

- Tentei - respondeu a irmã com um sorriso. - Queria apenas verificar se estavas a prestar-me atenção ou se estavas a pensar na tua nova amiga daquela casa.

- Não é minha amiga - protestou. Sabia que parecia estar a defender-se mas não conseguiu evitá-lo.

- Ainda não é - admitiu a irmã. - Mas tenho a estranha sensação de que vai ser.

 

Depois de sair da casa do vizinho, Gabby não se julgava em condições de avaliar o que sentia e, depois de entrar em sua casa e fechar a porta, só conseguiu deixar-se ficar encostada à ombreira, a tentar readquirir o equilíbrio.

Pensou que talvez não devesse ter lá ido. De certeza que não alterara a situação para melhor. Quanto ao vizinho, não só não pedira desculpa como ainda tentara negar que o cão dele fosse o responsável. No entanto, quando finalmente se afastou da porta, sorriu. Ao menos, fizera o que devia. Mantivera-se firme e afirmara-lhe como as coisas iriam realmente passar-se. Disse para si mesma que fora necessária coragem para tomar aquela atitude. Não costumava ser muito eficiente a expressar as ideias que tinha na cabeça. Não o conseguia com Kevin, quando se tratava dos planos de futuro deles que não fossem além da semana seguinte. Nem com o Dr. Melton, quando se tratava do que sentia quando ele a tocava. Nem sequer com a mãe, que parecia ter sempre opiniões definidas sobre a evolução pessoal de Gabby.

Deixou de sorrir quando reparou na Molly adormecida a um canto. Uma rápida observação bastou para lhe lembrar que o resultado final não se alterara e que talvez, apenas talvez, ela pudesse ter sido mais eficiente a convencer o vizinho de que ele tinha o dever de a ajudar. Ao recordar o serão, não pôde evitar uma sensação de embaraço. Sabia que não errara, mas após ter sido derrubada perdera concentração e, depois, a frustração tornara-a completamente incapaz de parar de falar. A mãe teria ali uma excelente oportunidade para a criticar. Adorava a mãe, uma daquelas senhoras que nunca perdem o autodomínio. O que punha Gabby maluca; uma vez, ainda adolescente, tivera vontade de pegar na mãe pelos braços e de a sacudir, quanto mais não fosse para lhe arrancar uma resposta espontânea. É óbvio que o esquema não teria funcionado. A mãe ter-se-ia limitado a ser abanada até Gabby se fartar, a seguir ajeitaria o cabelo e faria um comentário irritante, do género: "Bem, Gabrielle, agora que deste largas aos teus maus instintos, podemos discutir a questão como duas senhoras?"

Senhoras. Uma palavra que Gabby não suportava. Em muitas das ocasiões em que a mãe a utilizava sentia uma profunda sensação de fracasso, uma sensação que a levava a pensar que tinha um longo caminho a percorrer, mas sem dispor de um mapa que lhe indicasse o destino.

Era evidente que a mãe não podia modificar aquela sua maneira de ser, o que também sucedia com Gabby. A mãe era um vivo cliché da feminilidade sulista, tendo crescido a sonhar com vestidos bordados para ser apresentada à nata da sociedade no Savannah Christmas Cotillion, um dos mais exclusivos bailes de debutantes do país. Também tinha desempenhado o cargo de tesoureira das Tri Delts da Universidade da Jórgia, outra das tradições da família, e, enquanto universitária, fora aparentemente de opinião de que os títulos académicos eram menos importantes do que trabalhar para conseguir um grau de "Mrs.", que julgava a única profissão digna de ser escolhida por uma verdadeira senhora do Sul. Não vale a pena dizer que a outra parte da equação, o "Mr.", teria de ser digno do nome da família. O que, no essencial, significava ser rico.

Entra o pai. O papá, um bem-sucedido empresário do ramo imobiliário e da construção, era doze anos mais velho que a mulher quando se casaram e, embora não fosse dos homens mais ricos, estava certamente bem na vida. Contudo, Gabby recordava-se de ficar a observar as fotografias do casamento dos pais ao saírem da igreja e a pensar como é que duas pessoas tão diferentes poderiam ter-se apaixonado uma pela outra. Enquanto a mãe adorava o faisão do clube de campo, o pai preferia o pão e a carne da cozinha local; se a mãe não admitiria ir à caixa de correio sem se maquilhar, o pai vestia calças de ganga e andava sempre um pouco despenteado. Mas a verdade é que se amavam; Gabby não tinha dúvidas quanto a isso. Pela manhã, era frequente encontrá-los ternamente abraçados e nunca ouvira altercações entre eles. Também não dormiam em camas separadas, como sucedia com os pais de muitos dos amigos de Gabby, que muitas vezes lhe pareciam mais sócios de uma firma do que amantes. Ainda agora, nas suas visitas, encontrava-os aninhados no mesmo sofá; e quando ela se mostrava encantada, a mãe limitava-se a acenar com a cabeça e a admitir que, por qualquer razão, cada um se adaptava perfeitamente ao outro.

Para eterno desapontamento da mãe, e ao contrário das suas três irmãs com cabelos cor de mel, Gabby sempre se mostrara mais parecida com o pai. Mesmo em criança, preferia jardineiras a vestidos, adorava trepar às árvores e passava horas a brincar no chão poeirento. De vez em quando, cirandava calmamente pelos locais de construção, seguindo o pai, imitando-lhe os movimentos enquanto ele inspeccionava os apoios de janelas acabadas de instalar e metia o nariz em caixotes recebidos recentemente do armazém de materiais do Mitchell. O pai ensinou-a a preparar o anzol e a pescar; e ela adorava acompanhá-lo no velho camião ronceiro, com o rádio avariado, um camião que nunca se dispusera a trocar. Acabado o dia de trabalho, podiam entreter-se a atirar e a apanhar bolas ou em lançamentos ao cesto de basquetebol, enquanto a mãe os observava da janela da cozinha, sempre com um olhar em que Gabby via não só desaprovação, mas também incompreensão. Na maioria das vezes, as irmãs dela ficavam ao lado da mãe, boquiabertas.

Embora Gabby gostasse de contar às pessoas que vivera a infância num espírito de liberdade, a verdade é que acabara por adoptar as visões do mundo de ambos os progenitores, principalmente porque a mãe era uma especialista quando se tratava de exercer os poderes de manipulação próprios da maternidade. À medida que foi crescendo Gabby passou a aceitar melhor as opiniões da mãe quanto à forma como devia vestir-se e a adoptar comportamentos próprios de senhoras, simplesmente para evitar complexos de culpa. De todas as armas do arsenal da mãe, a culpa era de longe a mais eficaz e a senhora sempre soubera usá-la como uma verdadeira especialista. Um erguer de sobrancelhas aqui, um pequeno comentário acolá acabaram por levar Gabby a frequentar obedientemente lições de danças de salão; o mesmo sentido de dever obrigou-a a aprender a tocar piano e, como antes acontecera com a mãe, teve a sua apresentação formal no Baile de Natal de Savannah. Se a mãe se sentia orgulhosa nessa noite, e o seu rosto mostrava-o, Gabby julgava-se finalmente apta a tomar as suas próprias decisões, embora soubesse que algumas delas não seriam aprovadas pela mãe. Era evidente que queria casar e ter filhos, como a mãe, mas na altura já descobrira que também pretendia ter uma profissão, como o pai. Mais especificamente, queria ser médica.

Oh, quando soube, a mamã disse todas as coisas certas. De início, pelo menos. Porém, depois começou uma subtil ofensiva para criar o sentimento de culpa. À medida que Gabby passava com distinção exame atrás de exame na faculdade, a mãe exprimia dúvidas em voz alta sobre a possibilidade de ela poder ser simultaneamente médica, mãe e esposa a tempo inteiro.

- Porém, se consideras o trabalho mais importante do que a família - insinuou a mãe - não te inibas, estuda para seres médica.

Gabby tentou resistir à campanha da mãe mas, afinal, os velhos costumes são difíceis de ultrapassar e ela acabou por contentar-se em seguir para a escola de Técnicos de Saúde, desistindo do curso de Medicina. As razões eram lógicas. Continuaria a lidar com doentes, mas teria horários relativamente estáveis e não estaria sempre disponível, uma opção francamente mais favorável a uma vida em família. Contudo, por vezes desconfiava que fora a mãe quem começara por lhe meter a ideia na cabeça.

Mas não podia negar que a família era importante para ela. Era a consequência de ter sido gerada por um casal feliz com o matrimónio. Cresce-se com a ideia de que o conto de fadas é real e, mais do que isso, pensa-se ter direito a vivê-lo. Todavia, até ao momento a vida não lhe corria como fora planeada. Ela e Kevin já namoravam há tempo suficiente para se amarem, para sobreviverem aos altos e baixos que separam tantos casais e até para fazerem planos de futuro. Gabby já decidira que aquele era o homem com quem queria passar a vida mas, ao pensar na mais recente altercação entre ambos, ficou de má catadura.

Como se sentisse a perturbação de Gabby, Molly lutou para se pôr em pé e dirigiu-se a ela para lhe lamber a mão. Gabby acariciou-a e deixou que os dedos corressem sobre o pêlo da cadela.

- Será apenas a tensão - disse, a desejar que a sua vida fosse mais parecida com a da Molly. Simples, sem cuidados ou responsabilidades... bem, excepto a parte da gravidez.

Molly não respondeu, nem tinha de o fazer. Gabby sabia que andava sob tensão. Sentia-a nos ombros sempre que pagava as facturas, ou quando o Dr. Melton lhe lançava olhares lascivos, ou quando Kevin se armava em parvo e fingia não entender o que ela pretendia quando se chegava perto dele. Também não a ajudava o facto de reconhecer que, para além de Kevin, não tinha outros amigos naquela terra. Praticamente, não tinha pessoas conhecidas fora do consultório e, na verdade, o vizinho fora a primeira pessoa com quem falara desde a mudança para aquela casa. Olhando para trás, achava que poderia ter sido bem mais simpática a tratar do caso. Sentia uma ponta de remorso por ter saído daquela forma, especialmente por ele lhe parecer um homem sociável. Quando a ajudara a levantar-se quase lhe parecera um amigo. E depois que ela começou a tagarelar nunca a interrompeu, o que de certo modo era também animador.

Parecia-lhe notável, agora que pensava no assunto. Tendo em conta que ela devia parecer uma tonta, não se mostrara agastado nem lhe replicara, algo que Kevin não deixaria de fazer. Só de pensar na maneira gentil como ele a ajudara a pôr-se em pé sentiu o sangue afluir-lhe às faces. E houvera aquele momento, depois de ele lhe ter passado os guardanapos de papel, em que reparara que ele a olhava de uma maneira que sugeria que a achava atraente. Há muito que não lhe acontecia ver-se envolvida numa situação como aquela e, embora não o quisesse admitir, o momento fê-la sentir-se bem consigo própria. Sentia a falta daquele sentimento. É espantoso o bem que uma confrontação pequena, mas genuína, pode fazer à alma.

Foi para o quarto e vestiu umas calças de treino confortáveis e uma blusa macia, uma velha blusa muito usada que tinha desde o primeiro ano da faculdade. Molly seguiu-a e, quando Gabby se apercebeu do que a cadela queria, dirigiu-se para a porta.

- Tens necessidade de ir lá fora? - perguntou.

A cauda da cadela começou a agitar-se logo que ela caminhou em direcção à porta. Gabby analisou-a cuidadosamente. Continuava a parecer-lhe prenha, mas talvez o vizinho tivesse alguma razão. Para ficar descansada tinha de a levar ao veterinário. Além disso, não fazia a mínima ideia dos cuidados a ter com uma cadela prenha. Gostaria de saber se a Molly precisaria de tratamento com vitaminas, o que a fez lembrar de que estava atrasada no seu plano de iniciar um estilo de vida mais sadio. Comer melhor, fazer exercício, dormir regularmente, estirar-se. Tinha planeado começar logo que se mudasse para a casa nova. Casa nova, vida nova, mas realmente a ideia não vingou. No dia seguinte, iria mesmo fazer uma corrida, comer uma salada ao almoço e outra ao jantar. E como estava pronta a proceder a alterações sérias na sua vida, chegara também a altura de exigir que Kevin falasse sem rodeios dos seus planos para o futuro de ambos.

Uma vez mais, talvez aquela não fosse uma boa ideia. Enfrentar o vizinho era diferente; estaria preparada para aceitar as consequências se a resposta de Kevin não fosse satisfatória? E se ele não tivesse quaisquer planos? Quereria ela deixar o primeiro emprego um par de meses depois de o ter conseguido? Vendia a casa? Mudava de terra? Até onde estaria ela disposta a ir?

Para além do facto de não querer perdê-lo, não tinha certezas. Mas tentar ser mais saudável, pois bem, era algo perfeitamente ao seu alcance. Um passo de cada vez, certo? Tomada a decisão, entrou na varanda das traseiras e ficou a ver a cadela descer os degraus e dirigir-se para a ponta mais afastada do quintal. O ar ainda estava morno, mas levantara-se uma ligeira brisa. As estrelas dispersavam-se pelo céu formando figuras aleatórias, intrincadas que, para além da Ursa Maior, nunca conseguira destrinçar, decidindo que no dia seguinte, logo a seguir ao almoço, iria comprar um livro de Astronomia. Passaria uns dias a aprender os princípios fundamentais, para depois convidar Kevin a passar uma noite romântica na praia, onde ela apontaria para o céu e mencionaria, como por acaso, qualquer pormenor astronomicamente impressionante. Fechou os olhos, imaginou a cena e endireitou-se. A partir do dia seguinte, passaria a ser outra pessoa. Uma pessoa melhor. E decidiria também o que fazer acerca da Molly. Mesmo que tivesse de mendigar, encontraria lares para cada um daqueles cachorrinhos.

Porém, antes de tudo, teria de a levar ao veterinário.

 

Parecia que aquele ia ser um dos dias em que Gabby questionava a sua decisão de trabalhar numa clínica pediátrica. Afinal, tivera possibilidade de trabalhar numa unidade de cardiologia do hospital, uma ideia que alimentara durante toda a permanência na faculdade. Tinha adorado ajudar em cirurgias complicadas, um trabalho em que se sentia adaptada até chegar ao último estágio, quando lhe calhou trabalhar com um especialista de pediatria que lhe encheu a cabeça de ideias acerca da nobreza e da alegria de tratar de crianças. O Dr. Bender, um veterano grisalho e sempre sorridente, que conhecia praticamente cada uma das crianças de Sumter, Carolina do Sul, convenceu-a de que, embora a cardiologia pudesse pagar melhor e parecesse mais atractiva, não havia nada de mais compensador do que pegar nos recém-nascidos e vê-los crescer nos primeiros anos críticos de vida. Costumava assentir educadamente mas, no último dia, ele tinha forçado a decisão ao colocar-lhe uma criança nos braços. Enquanto o bebé arrulhava, fazia-se ouvir a voz do Dr. Bender: - Em cardiologia, qualquer situação é uma emergência e os seus pacientes parecem sempre piorar, por mais esforços que faça. Uma situação que se torna esgotante ao fim de algum tempo. Se não tiver cuidado pode queimar-se rapidamente. Porém, tratar de uma criança como esta... - fez uma pausa e apontou para o bebé. - É a função mais gratificante do mundo.

Apesar de ter uma oferta para a unidade de cardiologia do hospital da sua cidade natal, aceitou o emprego com os dois médicos de Beaufort, Carolina do Norte, o Dr. Furman e o Dr. Melton. O primeiro impressionou-a por ser distraído, o segundo por ser namorador, mas era uma oportunidade de estar mais perto de Kevin. E, até certo ponto, o Dr. Bender poderia ter razão. Tivera razão quanto às crianças. Na maioria dos casos, adorava trabalhar com elas, mesmo quando tinha de lhes dar injecções e os gritos delas a faziam hesitar. Os bebés também não punham problemas. Na sua maioria, tinham personalidades amorosas, e ela adorava vê-los aconchegados nos cobertores, a agarrar os ursinhos de peluche e a observá-la com olhares puros. Os pais é que a punham doida. O Dr. Bender não mencionara um ponto fundamental: em cardiologia, lida-se com pacientes que vão à consulta por necessidade; em pediatria é vulgar o paciente estar à guarda de pais neuróticos e sabichões. Eva Bronson era um caso típico.

Eva, que entrara no gabinete de consulta com George ao colo, parecia olhar lá do alto para Gabby. O facto de ela não ser tecnicamente médica e, além disso, relativamente jovem fazia com que muitos pais a considerassem pouco mais do que uma enfermeira com um salário exagerado.

- Tem a certeza de que o Dr. Furman não nos pode arranjar uma vaga? - perguntou, dando ênfase especial à palavra doutor.

- Está no hospital - replicou Gabby. - Só vem mais tarde. Além disso, estou bem ciente de que ele concordará comigo. O seu filho parece-me óptimo.

- Mas ainda tem tosse.

- Como já lhe disse, depois de uma constipação os bebés podem ter tosse durante seis semanas. Os pulmões deles levam mais tempo a sarar, mas isso é perfeitamente normal nesta idade.

- Nesse caso, não vai receitar-lhe um antibiótico?

- Não. Não precisa. Tem os ouvidos limpos, os seios nasais estão desimpedidos e não encontro quaisquer sinais de bronquite nos pulmões. A temperatura está normal e ele parece de boa saúde.

George, que acabava de fazer dois anos, contorcia-se no colo da mãe, a tentar libertar-se, uma trouxa de energia feliz. Eva apertou-o ainda mais.

- Como o Dr. Furman não está cá, talvez o Dr. Melton possa atendê-lo. Tenho a certeza de que ele precisa de um antibiótico. De momento, metade das crianças que frequentam esta consulta está a tomar antibióticos. Anda qualquer coisa por aí.

Gabby fingiu que estava a tomar notas no processo. Eva Bronson queria sempre um antibiótico para o filho. Eva Bronson era viciada em antibióticos, se é que tal coisa existe.

- Se ele tiver febre, pode voltar cá e voltaremos a examiná-lo.

- Não quero trazê-lo cá novamente. Por isso é que vim cá hoje. Penso que ele deveria ser examinado por um médico.

Gabby fez o que pôde para se manter calma. - Muito bem, vou ver se o Dr. Melton lhe pode dispensar uns minutos.

Saiu do gabinete e parou no corredor, sabendo que tinha de se preparar. Não queria voltar a falar com o Dr. Melton naquele dia; tinha feito os maiores esforços para o evitar durante toda a manhã. Logo que o Dr. Furman saíra por ter sido chamado para uma emergência na Secção C do Hospital Geral de Morehead City, o Dr. Melton viera colocar-se ao lado dela, suficientemente perto para Gabby notar que ele enxaguara a boca havia pouco tempo.

- Acho que nesta manhã vamos ficar sozinhos - observara o médico.

- Talvez não haja muito que fazer - respondera Gabby, num tom neutro. Não se sentia capaz de o enfrentar sem que o Dr. Furman estivesse por perto.

- As segundas-feiras são sempre muito movimentadas. Oxalá que não tenhamos de trabalhar durante a hora do almoço.

- Oxalá - repetiu ela.

O Dr. Melton estendera a mão para o ficheiro colocado junto da porta do gabinete de consultas, do outro lado do vestíbulo. Dera-lhe uma rápida vista de olhos e quando Gabby se preparava para sair, voltara a ouvir a voz dele. - Por falar em almoço, alguma vez provou um taco de peixe?

Gabby pestanejou. - O quê?

- Conheço um restaurante fantástico em Morehead, perto da praia. Talvez pudéssemos passar por lá. Podíamos também trazer qualquer coisa para o pessoal.

Embora mantivesse um ar profissional, pois teria falado da mesma maneira se estivesse a dirigir-se ao Dr. Furman, Gabby sentira vontade de sair dali.

- Não posso - contrapôs. - Combinei levar a Molly ao veterinário. Marquei a consulta esta manhã.

- E eles conseguem atendê-la e despachá-la a tempo?

- Prometeram que sim.

Ele hesitara. - Pois bem. Talvez numa outra altura. Gabby recuou e agarrou num processo. - Sente-se bem? - perguntou o Dr. Melton.

- Apenas sinto o corpo dorido por causa do treino - respondera, antes de desaparecer no interior do gabinete.

Na realidade, sentia-se mesmo dorida. Ridiculamente dorida. Doía-lhe tudo, desde o pescoço até aos tornozelos, e a situação parecia piorar. Julgou que se tivesse feito apenas corrida no domingo, agora estaria a sentir-se bem. Mas só a corrida não seria suficiente para a nova Gabby, a Gabby melhorada. Depois da corrida, orgulhosa pelo facto de que, embora a passada fosse lenta, não tivera de parar uma única vez, tinha seguido para o ginásio, em Morehead City, e inscrevera-se como sócia. Preenchera os papéis, enquanto o treinador explicava as diversas classes com nomes complicados que funcionavam praticamente a todas as horas. Quando se preparava para sair, ele mencionou uma nova modalidade chamada Body Pump, cuja aula começaria dentro de poucos minutos.

- É uma modalidade fantástica - afirmara o treinador. - Faz trabalhar o corpo todo. Junta num só treino a musculação e a resistência cardiovascular. Devia tentar.

E ela tentou. E que Deus perdoasse ao treinador por ela se sentir tão mal.

Não se sentira mal de imediato, é claro. Não, durante a aula sentira-se optimamente. Embora, no fundo, soubesse que devia poupar-se, deu consigo a tentar igualar o ritmo da pessoa a seu lado, uma mulher com pouca roupa, cirurgicamente melhorada e maquilhada. Levantara e empurrara alteres, correra sem sair do mesmo lugar, voltara a pegar em pesos e a correr sem sair do lugar, uma e outra vez. Na altura em que saiu, de músculos trementes, sentiu-se como se tivesse entrado numa nova fase da sua evolução. Mandou que lhe servissem um batido de proteínas, apenas para completar a transformação.

A caminho de casa, passara pela livraria para comprar um livro sobre Astronomia e, mais tarde, já preparada para dormir, sentiu que encarava o futuro com uma esperança não sentida havia muito tempo, isto se esquecesse o facto de os músculos lhe parecerem mais contraídos a cada minuto que passava.

Infelizmente, a Gabby renovada, melhorada, sentiu que saltar da cama na manhã seguinte era uma manobra excepcionalmente dolorosa. Tudo lhe doía. Não, pior ainda, o que sentia estava para além da dor. Parecia-lhe que cada músculo tinha passado através de um batedor de sumos. As costas, o peito, a barriga, as pernas, o traseiro, os braços, o pescoço... até os dedos, tudo lhe doía. Conseguiu sentar-se na cama à terceira tentativa e, depois de se dirigir aos tropeções para a casa de banho, concluiu que escovar os dentes sem gritar exigia um esforço hercúleo de autodomínio. Aberto o armário dos medicamentos, verificou os remédios que tinha; Tylenol, Aspirina, A/eve, acabando por decidir toma-los todos. Engoliu os comprimidos com a ajuda de um copo de água e viu que estremecia ao fazê-lo.

Bem, admitia que talvez tivesse exagerado.

Mas era demasiado tarde e, pior ainda, os analgésicos não tinham actuado. Ou talvez tivessem. Afinal, conseguia trabalhar, desde que se movesse lentamente. Mas as dores continuavam lá. O Dr. Furman saíra e a última coisa que queria era ter de falar com o Dr. Melton.

Sem ter escolha, perguntou a uma enfermeira em que gabinete é que ele estava, bateu à porta e enfiou a cabeça. O Dr. Melton ergueu os olhos do doente e ficou radiante ao vê-la.

- Desculpe a interrupção. Posso roubar-lhe uns segundos? pediu.

- Claro - respondeu o médico. Levantou-se da banqueta, pousou o processo e foi fechar a porta. - Mudou de ideias quanto ao almoço?

Gabby abanou a cabeça e contou-lhe o que se passava com Eva Bronson e George; prometeu que os receberia logo que pudesse. Depois de sair e seguir a coxear pelo corredor, continuou a sentir os olhos do médico cravados nela.

Eram 12.30 quando Gabby acabou de atender o último doente da manhã. Agarrou na mala e mancou para o carro, sabendo que não dispunha de muito tempo. O seu compromisso seguinte era dali a três quartos de hora, mas desde que não se atrasasse no veterinário conseguiria voltar a tempo. Era um dos pormenores agradáveis da vida numa pequena cidade com menos de quatro mil habitantes. Tudo estava à distância de minutos. Enquanto Morehead City, quatro vezes maior que Beaufort, ficava mesmo do outro lado da ponte por cima do canal e era o lugar onde a maioria das pessoas fazia as compras do fim-de-semana, a distância, embora curta, era suficiente para que Beaufort se sentisse uma cidade distinta e separada, como a maioria das cidades do down east, como os habitantes locais chamavam àquela parte do estado.

Era um lugar bonito, em especial o bairro histórico. Num dia como aquele, com temperaturas perfeitas para andar a pé, Beaufort parecia Savannah como ela a imaginava no seu primeiro século de existência.

Ruas largas, com sombras proporcionadas pelo arvoredo, e mais de uma centena de casas restauradas acabaram por dar origem à Front Street e a um passeio ao longo da marina. Às estacas estavam amarradas embarcações de recreio e de trabalho, de todos os tamanhos e feitios; um magnífico iate de milhões de dólares podia ter um pequeno jcamaroeiro de um lado, enquanto do outro podia ver-se um barquiInho à vela conservado com desvelo. Havia dois restaurantes com vistas grandiosas: lugares antigos, com carácter local, onde se juntavam pátios cobertos e mesas de piquenique que faziam os clientes sentir-se de férias numa terra onde o tempo parara. Em certas tardes de fím-de-semana, os restaurantes tinham bandas a tocar e no último feriado do 4 de Julho, quando ela estivera de visita a Kevin, viera tanta gente para ouvir a música e ver o fogo-de-artifício que a marina ficou literalmente pejada de barcos. Sem lugares de amarração para os acomodar a todos, os barcos acostaram uns aos outros e os donos iam caminhando de um barco para outro até atingirem o cais, oferecendo ou aceitando cervejas durante o caminho. No lado oposto da rua havia escritórios de venda de propriedades misturados com galerias de arte e chamarizes para turistas. Gabby gostava de passear durante a tarde e de entrar nas galerias para admirar as obras expostas. Em criança, sonhara vir a ganhar a vida a pintar ou a desenhar; levou uns anos a aperceber-se de que a ambição excedia o talento. O que não significava incapacidade para apreciar um trabalho de qualidade; uma vez por outra, encontrava uma fotografia ou uma pintura que a obrigava a parar. Em duas dessas ocasiões acabara por comprar e ambos os quadros se encontravam pendurados em sua casa. Pensara comprar mais alguns que os complementassem, mas o orçamento mensal não lhe permitia tais gastos, pelo menos nos tempos mais próximos.

Uns minutos mais tarde, Gabby parou no caminho de acesso à casa e gemeu ao sair do carro e ao caminhar alegremente para a porta. Molly veio esperá-la ao alpendre, levou o seu tempo a cheirar o canteiro de flores até se decidir; a seguir saltou para o lugar da frente. Gabby voltou a soltar uns gemidos ao regressar ao carro e baixou a janela para que a cadela pudesse pôr a cabeça de fora, o que adorava fazer.

Poucos minutos de caminho separavam a casa de Gabby da Clínica Veterinária Down East; arrumou o carro no parque de estacionamento, a ouvir o ruído da gravilha a ser esmagada pelos pneus. Instalada numa vivenda vitoriana degradada, a clínica mais parecia uma casa de habitação.

Prendeu a cadela com a coleira e deu uma olhadela ao relógio. Rezou para que o veterinário fosse rápido.

A porta de rede abriu-se com um rangido sonoro e sentiu a Molly a resistir na outra ponta da trela, agora que lhe chegavam às narinas os odores típicos de uma clínica para animais. Gabby aproximou-se do balcão mas, antes que pudesse abrir a boca, a recepcionista levantou-se da secretária.

- Esta é a Molly? - indagou.

Gabby nem procurou ocultar a surpresa. Viver numa cidade pequena exigia muito treino. - E. Sou a Gabby Holland.

- Prazer em conhecê-la. A propósito, o meu nome é Terri. Que bonita cadela.

- Obrigada.

- Estávamos a desejar que chegasse depressa. Tem de voltar para o trabalho, não é? - perguntou, ao agarrar numa pasta. - Deixe-me ir à frente para a instalar num gabinete, onde poderá preencher a papelada. Dessa forma o veterinário pode atendê-la em seguida. Não demorará. Está quase despachado.

- Esplêndido. Fico-lhe muito agradecida.

A recepcionista conduziu-as a um gabinete próximo; lá dentro havia uma balança e ela mesma ajudou a Molly a ajeitar-se nela. - Não tem de quê. Além disso, estou sempre a levar os meus filhos ao seu consultório. Como é que tem corrido?

- Estou a gostar - respondeu Gabby. - Mais movimentado do que eu esperava.

Terri registou o peso e a seguir continuou pelo corredor fora. - Adoro o Dr. Melton. Tem sido maravilhoso para o meu filho.

- Eu digo-lhe - prometeu Gabby.

Terri apontou para um pequeno gabinete mobilado com uma mesa metálica e uma cadeira de plástico e entregou o processo a Gabby. - Faça o favor de preencher isso enquanto vou avisar o doutor de que já chegou.

A recepcionista deixou-as e Gabby sentou-se com cuidado, estremecendo de dor ao sentir a agonia dos músculos das pernas. Fez duas profundas inspirações, esperando até a dor passar e dispôs-se a preencher os formulários enquanto a cadela vagueava pelo gabinete.

Menos de um minuto depois a porta abriu-se e a primeira coisa que Gabby viu foi a bata branca, antes de ver o nome bordado em letras azuis. Gabby ia para falar, mas o reconhecimento súbito impossibilitou-a de prosseguir.

- Olá, Gabby - saudou Travis. - Como está?

Gabby continuou de olhos abertos, a tentar perceber o que estaria ele a fazer ali. Ia para dizer qualquer coisa quando reparou que os olhos dele eram azuis, quando pensara que eram castanhos. Estranho. No entanto...

- Presumo que esta seja a Molly - comentou Travis, interrompendo-lhe as reflexões. - Olá, rapariga - saudou, a dar palmadinhas no pescoço da cadela e a passar-lhe os dedos pelo pêlo. - Gostas? Oh, és meiguinha, não és? Como é que te sentes, rapariga? O som da voz fê-la regressar ao presente e à altercação da noite anterior. - Você é... você é o veterinário? - tartamudeou. Travis assentiu e continuou a esfregar o pescoço da cadela. - Tal como o meu pai. Foi ele que fundou a clínica. Juntei-me a ele depois de sair da faculdade.

Aquilo não podia estar a acontecer. Entre todos os habitantes da cidade, tinha de ser ele. Por que diabo não poderia ela ter um dia normal, sem complicações? - Por que é que não disse isso na outra noite?

- Mas disse. Disse para a levar a um veterinário, recorda-se?

Gabby semicerrou os olhos. O homem parecia gostar de a ver furiosa. - Sabe o que eu quero dizer.

Ele encarou-a. - Está a falar de eu ser veterinário? Tentei dizer-lhe, mas não me deixou.

- De qualquer das maneiras, devia ter dito alguma coisa.

- Não julgo que estivesse em condições de ouvir. Mas isso são águas passadas. Nada de ressentimentos - sugeriu, a sorrir. - Deixe-me observar esta rapariga, está bem? Sei que tem de regressar ao trabalho, por isso vou ser rápido.

Ela sentia a fúria crescer perante aquele ar despreocupado. - Nada de ressentimentos? - inquiriu. Em parte, gostaria de sair dali imediatamente. Porém, ele já tinha começado a dar toques na barriga da cadela. Além disso, estava-lhe vedada uma saída rápida, pois, mesmo que tentasse, as pernas pareciam recusar-se. Desgostosa, cruzou os braços e sentiu algo parecido com uma faca a mergulhar-lhe nas costas e nos ombros, enquanto Travis se munia do estetoscópio. Gabby mordeu o lábio, orgulhosa de não ter gemido de novo. Travis olhou-a de relance. - Sente-se bem?

- Óptima - respondeu.

- De certeza? Parece estar a sentir dores.

- Estou óptima - repetiu.

Ignorando o tom de voz dela, Travis voltou a dar atenção à cadela. Mudou o estetoscópio, voltou a escutar e examinou-lhe uma das tetas. Finalmente, calçou uma luva de borracha e procedeu a um rápido exame interno.

- Bom, está mesmo prenha - concluiu, tirando a luva e deitando-a para o balde. - E pelo aspecto já tem sete semanas.

- Eu disse-lhe - acusou Gabby, furiosa. E calou-se antes de afirmar que o culpado era o cão dele.

Travis endireitou-se e colocou o estetoscópio no bolso. Pegou no processo e mudou de página.

- Só para que saiba, tenho a certeza de que o responsável não é o Moby.

- Ai, não?

- Não. O mais provável é que seja o labrador que vi na vizinhança. Penso que é do velho Cason, mas não tenho a certeza. O cão pode ser do filho dele. Sei que regressou à cidade.

- O que é que lhe dá tantas garantias de não ser o Moby

Ele começou a tomar notas e, por momentos, Gabby não teve a certeza de ele estar a ouvi-la.

Travis encolheu os ombros. - Bem, para começar, o cão é castrado.

Há momentos em que a sobrecarga do cérebro impossibilita a fala. De repente, Gabby viu uma mortificante montagem em que ela balbuciava e gritava e, finalmente, espumava de raiva. Na verdade, tinha uma vaga memória dele a tentar dizer-lhe qualquer coisa, o que teve o condão de a fazer sentir-se nauseada.

- Castrado? - murmurou.

- Pois - anuiu Travis, ao desviar os olhos do processo. - Há dois anos. O meu pai fê-lo, neste mesmo consultório.

- Oh!...

- Também tentei explicar-lhe isso. Mas você saiu antes de eu ter oportunidade. Não me senti bem com tudo aquilo. Passei por sua casa no domingo; queria contar-lhe, mas você não estava.

Deu-lhe a única resposta que lhe ocorreu. - Fui ao ginásio.

- Ah sim? Faz-lhe bem.

Foi difícil, mas descruzou os braços. - Acho que tenho de pedir-lhe desculpa.

- Nada de ressentimentos - repetiu ele, o que desta vez a deixou ainda pior. - Mas, ouça, sei que está com pressa, por isso é melhor que lhe fale um pouco da Molly, está bem?

Gabby assentiu, com a sensação de ser a menina que o professor colocou de castigo no canto da sala, ainda a pensar na diatribe da noite de sábado. O facto de ele estar a ser generoso fazia com que, de certo modo, ela se sentisse pior.

- O período de gestação é de nove semanas, por isso dispõe de mais duas semanas. Como a bacia dela é suficientemente larga não tem de se preocupar. Foi por isso que sugeri a vinda dela cá. Por vezes, as collies são estreitas de quadris. Ora, em condições normais não precisará de fazer o que quer que seja, mas não se esqueça de que o mais provável é a cadela procurar um sítio fresco e escuro para ter os filhotes; por isso, talvez seja boa ideia colocar umas mantas velhas na garagem. Tem uma porta de comunicação com a cozinha, não tem?

Ela assentiu uma vez mais, com a sensação de estar a afundar-se.

- Deixe-a aberta e é provável que ela comece a vaguear por lá. É a construção do ninho, como nós dizemos, um processo completamente normal. É possível que os cachorros nasçam quando estiver tudo calmo. À noite, ou enquanto você estiver a trabalhar, mas lembre-se de que o processo é completamente natural; por isso, não se impressione. Os cachorros saberão desde logo procurar as tetas, pelo que também não tem de se preocupar com isso. E como é provável que tenha de deitar tudo para o lixo, não utilize mantas de luxo, percebe?

Assentiu pela terceira vez, a sentir-se cada vez mais pequena.

- Para além disto, não precisa de saber muito mais. Se houver problemas, pode trazê-la ao consultório. Se for fora de horas, sabe onde eu moro.

Gabby clareou a voz. - Muito bem.

Como ela não dissesse mais nada, ele sorriu e caminhou para a porta. - É tudo. Pode levá-la de volta para casa quando quiser. Mas foi bom que a trouxesse cá. Não pensei que fosse uma infecção, mas é sempre bom ter a certeza.

- Obrigada - murmurou Gabby. - Mais uma vez peço desculpa...

Travis ergueu as mãos a pedir-lhe que parasse. - Não há problema. Na verdade, não há. Estava preocupada e Moby costuma vaguear pelo bairro. Foi um erro sem maldade. Vemo-nos por aí, certo? - concluiu. Na altura em que ele deu uma última palmadinha na cadela, Gabby sentiu-se crescer.

Quando Travis, o Dr. Parker, saiu do gabinete de consulta, Gabby deixou-se ficar o tempo bastante para ter a certeza de que ele se fora embora. Depois, lentamente, muito dorida, levantou-se da cadeira. Espreitou para o corredor e, depois de se certificar de que o caminho estava livre, dirigiu-se ao balcão de recepção, onde pagou a conta sem proferir palavra.

Na altura em que voltou ao trabalho, a única certeza de Gabby era que, por mais generoso que Travis se mostrasse, ela não esqueceria a maneira como se comportara; e como não havia uma pedra suficientemente grande debaixo da qual se pudesse esconder, era do seu interesse arranjar formas de evitar encontros com ele.

Nada de definitivo, claro. Talvez durante os próximos cinquenta anos.

 

Travis Parker ficou de pé junto à janela, a observar Gabby enquanto ela levava a Molly para o carro. Sorria para dentro, divertido com as expressões da mulher. Embora mal a conhecesse, tinha visto o suficiente para saber que era uma daquelas pessoas cujas expressões são a montra de todos os seus sentimentos. Uma qualidade rara naqueles dias. Era frequente reparar em pessoas que passavam a vida a fazer teatro e a fingir, recorrendo a máscaras e perdendo-se durante o processo. Gabby, tinha a certeza, nunca agiria assim.

Metendo as chaves no bolso, dirigiu-se para a carrinha, com a promessa de regressar do almoço meia hora depois. Pegou na geleira, onde guardava todos os dias o almoço, e conduziu até ao lugar habitual. Tinha comprado, um ano antes, um lote de terreno sobranceiro a Shackleford Banks, no final de Front Street, onde, um dia, poderia construir a casa dos seus sonhos. O único problema era não saber muito bem como concretizar o sonho. Na maior parte do tempo levava uma vida simples e sonhava com a construção de uma pequena moradia rústica, do género das que vira nas Florida Keys, uma construção cheia de personalidade, que por fora parecesse ter cem anos, mas cujo interior surpreendesse pela amplitude e pela clareza. Não precisava de muito espaço: um quarto e talvez um escritório, para além da sala de estar mas, logo que pensara no esquema, achara que o terreno merecia ser aproveitado para uma habitação familiar. O sonho tornara-se mais indistinto, pois exigia sem dúvida a existência de mulher e filhos, de uma família que ele ainda não conseguia imaginar.

Por vezes, surpreendia-se com as maneiras de ser dele e da irmã, pois, também ela, não mostrava ter muita pressa em casar. Os pais estavam casados há quase 35 anos e para Travis era tão fácil imaginá-los solteiros como imaginar-se a bater as asas e a voar em direcção às nuvens. Ouvira, claro, as histórias de como se tinham conhecido num acampamento patrocinado pela igreja, quando frequentavam a escola secundária, de como a mãe ferira um dedo ao cortar uma torta para a sobremesa, e de como o pai lhe tinha ligado o dedo, aplicando uma espécie de penso cirúrgico que fez estancar o sangue. Um toque e "Bingue, bangue, bum, sem mais", como diria o pai. "Soube imediatamente que era aquela."

Até agora, não acontecera nada de semelhante com Travis, nem mais nem menos. Houvera, claro, aquela namorada do liceu, Olivia; na escola toda a gente pensava que tinham sido feitos um para o outro. Vivia actualmente do outro lado da ponte, em Morehead City, e uma vez por outra encontrava-a no Wal-Mart ou no Target. Conversavam uns minutos sobre coisas sem importância e seguiam os seus caminhos separados, como amigos.

Existiram, claro, inúmeras namoradas depois de Olívia. Afinal, não era inocente quando se tratava de mulheres. Achava-as atraentes e interessantes mas, mais do que isso, gostava genuinamente delas. Sentia orgulho pelo facto de que nunca participara em algo que remotamente pudesse ser considerado um desenlace doloroso, para ele ou para qualquer das ex-namoradas. Os desenlaces haviam sido sempre consensuais, os namoros deixavam de funcionar como acontece com um rastilho molhado, não com o estrondo do foguete ao explodir lá em cima. Considerava-se amigo de todas as ex-namoradas, incluindo a última, Mónica, e julgava que elas diziam o mesmo acerca dele. Não era apropriado para elas, elas não eram apropriadas para ele. Tinha visto três ex-namoradas casarem-se e fora convidado para as três cerimónias. Raramente pensava em encontrar uma situação permanente ou em achar a sua alma gémea mas, nas raras ocasiões em que isso acontecia, acabava sempre por imaginar que descobria alguém com a mesma paixão pela vida activa, ao ar livre. A vida era para ser vivida, não era verdade? Era evidente que todos tinham obrigações e ele não as evitava. Gostava do seu trabalho, ganhava o suficiente para viver bem, tinha uma casa e pagava as facturas a tempo, mas não pretendia uma vida em que aqueles pormenores fossem os únicos a ter em conta. Pretendia experimentar a vida. Não, nada disso, ele necessitava de experimentar a vida.

Tanto quanto se recordava, sempre fora assim. Ao crescer, Travis fora organizado e competente em tudo o que dizia respeito à escola, obtivera boas notas com um mínimo de trabalho e de ansiedade, mas, na maioria dos casos, ficava tão contente com um "A" como com um "B". O que fazia a mãe entrar em órbita: - Imagina o que poderias conseguir se te aplicasses - repetia sempre que recebia um relatório com as classificações. Mas a escola não o excitava tanto quanto andar de bicicleta a velocidades estonteantes ou surfar nos Outer Banks. Enquanto os outros rapazes viam o desporto em termos de basebol ou futebol, ele pensava em flutuar no ar com a motocicleta quando saía de uma rampa de terra e na explosão de energia que se seguia a uma aterragem bem-sucedida. Fora adepto dos desportos radicais quando tal coisa nem existia e agora, aos 32 anos, já fizera praticamente tudo.

Lá longe, via os cavalos selvagens a juntarem-se perto das dunas de Shackleford Banks e ficou a observá-los enquanto pegava na sanduíche. Pão com pato e mostarda, uma maçã e uma garrafa de água; o mesmo almoço de todos os dias, depois de um pequeno-almoço exactamente igual, com papas de aveia, claras de ovos mexidas e uma banana. Embora adorasse sentir ocasionais explosões de adrenalina, a sua dieta não poderia ser mais monótona. Os amigos maravilhavam-se com a rigidez do seu autodomínio, mas ele não lhes contava que aquilo tinha mais a ver com limitações do paladar do que com disciplina. Quando tinha dez anos, fora forçado a comer um prato tailandês de massa ensopada em gengibre e passara a maior parte da noite a vomitar. A partir de então o mais ligeiro odor a gengibre era suficiente para o fazer correr para a casa de banho, de mãos na garganta, e o seu paladar nunca mais fora o mesmo. Tornara-se tímido em relação à generalidade das comidas, preferindo os pratos simples e previsíveis a qualquer sabor exótico; depois, pouco a pouco, ao crescer eliminou o desnecessário. Agora, passados mais de vinte anos, receava qualquer mudança.

Enquanto saboreava a sanduíche, simples e previsível, admirava-se com a direcção que estava a dar aos pensamentos. Não parecia dele. Não costumava entregar-se a reflexões profundas. (Outra das causas do rastilho molhado, segundo Maria, a namorada de há seis anos.) Costumava seguir a sua vida, fazer o que tinha de ser feito e procurar formas de desfrutar do resto do tempo. Era um dos privilégios fantásticos da vida de solteiro: a pessoa podia fazer o que lhe desse na gana, sempre que o quisesse, e a introspecção não passava de mera opção.

Pensou que a tal pessoa pudesse ser Gabby, embora não percebesse porquê. Mal a conhecia e duvidava se já tivera a possibilidade de conhecer a verdadeira Gabby Holland. Conhecera a Gabby furiosa da outra noite e a Gabby culpada de há pouco, mas não fazia ideia de como se comportava em circunstâncias normais. Suspeitava de que teria bom sentido de humor, embora, pensando melhor, não conseguisse encontrar qualquer fundamento para a ideia. E era sem dúvida inteligente, mas talvez estivesse a deduzir isso com base na profissão dela. Mas, para além disso... tentou e não conseguiu imaginá-la numa saída à noite. Contudo, ficara satisfeito por ela ter vindo, quando mais não fosse para começarem a estabelecer relações de boa vizinhança. Uma coisa aprendera: um mau vizinho pode tornar-nos a vida miserável. O vizinho do Joe era o género de homem que escolhia o primeiro dia bonito de Primavera para queimar as folhas secas e começava a aparar a relva logo que despontava a manhã de sábado; os dois quase se tinham pegado durante uma longa noite de vigília por causa do bebé. Por vezes, parecia-lhe que a simples cortesia estava prestes a ter o destino dos dinossauros e a última coisa que desejaria da vida era que Gabby tivesse motivos para o evitar. Talvez a convidasse na próxima reunião com os amigos...

Pois, pensou que era isso que devia fazer. Tomada a decisão, pegou na geleira e dirigiu-se para a carrinha. Naquela tarde, teria à sua espera o normal sortido de cães e gatos, mas, às 15 horas, estava combinado que alguém traria um lagarto à consulta. Gostava de tratar répteis e outros animais exóticos de estimação; a ideia de que ele sabia daquilo que estava a falar, o que era verdade, deixava sempre os donos impressionados. Apreciava as expressões deles: "Gostaria de saber se ele conhece a anatomia completa e a fisiologia de todas as criaturas da Terra." E ele dava a entender que conhecia. Na realidade, a situação era bem mais prosaica. Não, era óbvio que ele não conhecia o exterior e o interior de cada criatura existente na Terra (quem poderia conhecê-los?), mas infecções eram infecções e tinham de ser tratadas de forma bastante semelhante, qualquer que fosse a espécie; o que variava era a dose do medicamento e isso tinha ele de verificar no livro de referência que mantinha em cima da secretária.

Entrou no carro e deu consigo a pensar em Gabby e a imaginar se ela alguma vez teria feito surfe ou deslizado numa prancha sobre a neve. Parecia-lhe improvável mas, ao mesmo tempo, tinha a estranha sensação de que, ao contrário de muitas das suas ex-namoradas, ela estaria pronta a experimentar qualquer das coisas, desde que se lhe proporcionasse a oportunidade. Não sabia porquê e ao pôr o carro a trabalhar tentou afastar a ideia, fazendo o que podia para se convencer de que o assunto não tinha importância. Contudo, não se sabe muito bem como, tinha importância.

 

Durante as duas semanas seguintes, Gabby tornou-se especialista em entrar e sair sem ser vista, pelo menos quando se tratava da sua casa.

Não tinha por onde escolher. Que diabo teria ela para dizer a Travis? Fizera figura de parva e ele agravara a situação ao mostrar-se tão generoso, o que, como era óbvio, exigia um conjunto de normas novas, em que evitar ser vista era a Regra n° 1. O único pormenor a seu favor, a única coisa positiva que resultara de toda a experiência, fora o facto de ter pedido desculpa no gabinete dele.

No entanto, as normas tornavam-se mais difíceis de cumprir a cada dia que passava. De início, bastava-lhe guardar o carro na garagem mas, agora que a data de Molly se aproximava, tinha de arrumar o carro no desvio de acesso à casa para que a cadela pudesse descansar. O que significava que Gabby tinha de procurar entrar e sair quando tivesse a certeza de que Travis não andava por ali.

No entanto, descartara o limite dos 50 anos; tinha sido reduzido, talvez um par de meses ou meio ano fossem suficientes. Qualquer espaço de tempo suficiente para que ele conseguisse esquecer o incidente, ou pelo menos parte dele, a recordação da maneira como ela se comportara. Sabia que o tempo tem uma forma engraçada de amaciar as asperezas da realidade até que permaneçam apenas uns leves vestígios do que se passou e, quando o tempo tivesse feito o seu trabalho, retomaria um comportamento mais normal. Começariam por pouco: um aceno de vez em quando. Com o tempo, acabariam por dar-se bem, talvez chegassem ao ponto de partilhar uma gargalhada sobre a forma como se tinham conhecido, mas, até essa altura, preferia viver como uma espia.

Como era evidente, tivera de se inteirar dos horários de Travis. Não fora difícil; de manhã, fora suficiente uma olhadela ao relógio quando ele estava para arrancar e ela o espreitava através da janela da cozinha. O regresso a casa era ainda mais fácil; quando ela chegava, ele costumava andar por fora, no barco ou a praticar esqui aquático mas, por outro lado, os serões tornaram-se a parte mais difícil. Como ele andava lá por fora, ela tinha de se manter do lado de dentro, por mais bonito que fosse o pôr do Sol; a menos que fosse encontrar-se com Kevin, entretinha-se a estudar o livro de Astronomia, aquele que tinha comprado com a esperança de impressionar o namorado quando estivessem entretidos a observar as estrelas. O que, infelizmente, ainda não acontecera.

Julgava que poderia ter-se mostrado mais adulta em toda aquela situação, mas tinha a estranha sensação de que, se ficasse cara a cara com Travis, daria consigo a recordar em vez de ouvir, dando-lhe uma ideia ainda pior de si própria. Além disso, tinha outros problemas para resolver.

Kevin era um deles. Na maioria dos serões, passava por lá e demorava-se um pouco e até ficara lá durante o fim-de-semana, depois de ter jogado a sua partida de golfe, como seria de esperar. Kevin adorava o golfe. Também tinham jantado fora três vezes, viram dois filmes e passaram parte da tarde de domingo na praia; além disso, uns dias antes, quando estavam sentados no sofá a beber vinho, ele descalçara-lhe os sapatos.

- O que é que estás a fazer?

- Achei que gostarias que te massajasse os pés. Devem estar doridos depois de passares o dia todo de pé.

- Não será bom que comece por os lavar?

- Não me interessa saber se estão limpos. E além do mais, gosto de olhar para os teus dedos. São bonitos.

- Não tens um fetiche secreto por pés, pois não?

- Não, nada disso. Bom, sou maluco pelos teus pés - prosseguira, começando a fazer-lhe cócegas, o que a levou a retirar o pé, soltando uma gargalhada. Momentos depois, estavam a beijar-se apaixonadamente e mais tarde, quando estava deitado ao lado dela, Kevin confessou-lhe quanto a amava. Pela maneira como ele falava, Gabby teve a impressão de que deveria encarar a hipótese de ir viver com ele.

O que era bom. Era o mais perto que tinham chegado de uma conversa acerca do futuro, mas...

Mas, o quê? Era assim que acabavam sempre, não era? Viverem juntos seria um passo em direcção ao futuro ou apenas uma maneira de continuarem o presente? Teria ela necessidade que ele lhe propusesse casamento? Ponderou a questão. Bem... um. Mas só quando ele estivesse preparado. O que a levara, como seria de esperar, a fazer as mesmas perguntas que lhe ocorriam sempre que estavam juntos: Quando é que ele estaria preparado? Alguma vez estaria preparado? E, claro, por que motivo é que ele não estava pronto a casar com ela?

Seria errado querer casar-se em vez de se limitar a viver com ele? Deus sabia que ela já não tinha certezas acerca disso. Passava-se o mesmo com aquelas pessoas que cresceram a pensar que casariam numa determinada idade e tudo aconteceu como fora planeado; outras, sabiam que não casariam dentro de pouco tempo e iam morar com quem amavam, também com resultados excelentes. Por vezes, tinha a sensação de ser a única pessoa a que faltava um plano nítido; para ela, o casamento tinha sido sempre uma ideia vaga, algo que deveria... acontecer. E aconteceria. Certo?

Ficou com dor de cabeça por ter pensado naqueles assuntos. Só desejava sentar-se lá fora, na varanda, com um copo de vinho, e esquecer tudo durante algum tempo. Mas Travis Parker estava na varanda das traseiras da casa dele, a folhear uma revista, inviabilizando a ideia. Por isso, Gabby tinha de permanecer fechada dentro de casa, numa noite de quinta-feira.

Gostaria que Kevin não estivesse a trabalhar até tarde para poderem fazer qualquer coisa juntos. Tinha uma entrevista com um dentista prestes a abrir um consultório e a precisar de seguros de todo o género. Não era problema, ela sabia quanto Kevin era dedicado ao progresso da empresa, mas sabia que ele acompanharia o pai a uma convenção em Myrtle Beach, pelo que partiria logo pela manhã; só poderia vê-lo na quarta-feira seguinte, o que significava que teria de passar muito mais tempo aninhada como uma galinha. O pai dele tinha fundado uma das mais importantes agências de seguros da zona leste da Carolina do Norte, pelo que Kevin estava a assumir maiores responsabilidades no escritório de Morehead City a cada ano que passava, enquanto o pai se aproximava da idade da reforma. Gabby punha-se por vezes a pensar como seria ter uma carreira planeada desde o dia em que começara a andar, mas haveria coisas piores, especialmente por se tratar de uma empresa de sucesso. Apesar de haver ali uma parcela de nepotismo, tal não queria dizer que Kevin não merecera o lugar; o pai passava menos de 20 horas por semana no escritório, o que obrigava o filho a trabalhar até perto das 18 horas. Com mais de 30 empregados, os problemas de gestão eram inúmeros, mas Kevin tinha jeito para lidar com o pessoal. Pelo menos foi o que lhe disseram alguns empregados na Festa de Natal da empresa, nas duas vezes em que lá fora.

Sim, tinha orgulho nele, mas deixá-la fechada em casa em noites como aquela provocava-lhe uma dor interior, era um desperdício. Talvez devesse ir até Atlantic Beach, onde poderia beber um copo de vinho e observar o pôr do Sol. Por momentos, pensou ir fazer isso mesmo. Depois decidiu que não. Não fazia mal ficar sozinha em casa, mas beber sozinha na praia faria com que se sentisse derrotada. As pessoas pensariam que ela não tinha um único amigo, o que não era verdade. Tinha montes de amigos. Acontecia apenas que nenhum deles vivia num raio de 160 quilómetros a partir daquele ponto, uma constatação que não a fez sentir-se melhor.

Bem, se levasse a cadela... seria diferente. Era a coisa mais normal que se podia fazer, até era saudável. Tinham sido precisos alguns dias e todos os analgésicos que havia em casa, mas as dores provocadas pelo primeiro treino tinham finalmente desaparecido. Não voltara à aula de Body Pump, as pessoas que a frequentavam eram obviamente masof quistas, mas iniciara um programa regular de exercícios no ginásio. Pelo menos nos últimos dias. Fora ao ginásio na segunda e na quarta-feira e estava determinada a fazer o possível para ir lá no dia seguinte. Levantou-se do sofá e desligou o televisor. Molly não andava por ', ali e, julgando-a na garagem, caminhou para lá. A porta da garagem encontrava-se escancarada e, ao ligar a luz, viu-se logo rodeada de uma ninhada de bolas de pêlo que rebolavam. Gabby chamou a cadela; contudo, um segundo depois desatou a gritar.

Travis ouviu o bater de punhos, súbito e angustiado, na porta quando acabara de entrar na cozinha para ir buscar um peito de frango ao frigorífico.

- Dr. Parker!... Travis! Está aí?

Precisou de um breve instante para reconhecer a voz de Gabby. Ao abrir a porta viu um rosto pálido e aterrorizado.

- Tem de vir comigo - ofegou. - A Molly está em apuros. Travis reagiu por instinto; enquanto Gabby corria para casa, foi buscar uma maleta que tinha na carrinha, a que utilizava nas ocasiões em que era chamado para tratar animais das quintas. O pai sempre acentuara a ideia de que a mala devia estar provida de tudo o que fosse julgado necessário e Travis seguira o conselho à letra. Gabby já estava perto da porta da casa dela, que deixara aberta, e entretanto desapareceu no interior da casa. Travis seguia-a de perto e notou que ela estava na cozinha, perto da porta que abria para a garagem.

- Ela está arquejante e vomita - foi informando enquanto corria para o pé da cadela. - E... há qualquer coisa a sair de dentro dela - acrescentou.

Travis avaliou o caso num instante, viu o útero descaído e esperou que não fosse demasiado tarde.

- Deixe-me lavar as mãos - pediu sem rodeios. Esfregou as mãos energicamente no lava-louças da cozinha, e foi perguntando:

- Tem alguma maneira de levar uma luz para aí? Um candeeiro ou coisa do género:

- Não vai levá-la para a clínica?

- É provável - admitiu, esforçando-se por falar calmamente.

- Mas não neste momento. Primeiro, quero tentar outra coisa. E preciso de luz, percebe? Pode arranjar-me isso.

- Sim, pois... claro - gaguejou ao desaparecer da cozinha, voltando momentos depois com um candeeiro. - Ela vai ficar boa?

- Dentro de minutos estarei ciente da gravidade da situação informou, com as mãos erguidas como um cirurgião e apontando para a mala que estava no chão. - Pode trazer-me isso, por favor? Ponha a mala ali e procure a tomada para ligar o candeeiro. O mais perto possível da Molly, está bem?

- Percebi - respondeu, tentando não entrar em pânico.

Enquanto Gabby procurava onde ligar o candeeiro, Travis aproximou-se cautelosamente da cadela, notando com alívio que o animal estava consciente. Ouvia-a ganir, o que era normal numa situação daquelas. A seguir concentrou-se na massa tubular que saía da vulva e deu uma olhadela aos cachorrinhos, quase com a certeza de que tinham nascido durante a última meia hora, o que, pensou, era um bom sintoma. Menor possibilidade de necrose...

- E agora? - perguntou Gabby.

- Segure o candeeiro e fale-lhe baixinho. Preciso de si para a manter calma.

Quando ela tomou posição, Travis agachou-se junto da cadela; ouviu Gabby murmurar baixinho junto à orelha do animal, com a cara quase a tocar a do veterinário. Molly deitou a língua de fora, outro bom sinal. Analisou o útero com cuidado e a cadela debateu-se ligeiramente.

- O que é que ela tem?

- Um prolapso do útero. Quer dizer que parte do útero se virou de dentro para fora; por isso, ficou fora do lugar - informou, a apalpar o útero e a virá-lo com cuidado para ver se havia rupturas ou áreas gangrenadas. - Quando é que começaram os problemas?

- Não faço ideia. Nem sabia que isto estava a acontecer. Vai pôr-se boa, não vai?

Concentrado na observação do útero, ele não respondeu. - Procure na mala - pediu. - Deve haver soro. Também vou precisar do gel.

- O que é que vai fazer?

- Preciso de limpar o útero, para depois o manipular um pouco. Vou procurar reduzir manualmente o prolapso e, se tivermos sorte, o órgão contrai-se por si próprio. Se não acontecer, tenho de a levar para a mesa de operações. Prefiro fazer tudo para evitar isso.

Gabby achou o soro e o gel e entregou-lhe ambas as coisas. Travis lavou o útero da cadela, enxaguou-o mais duas vezes e aplicou o gel lubrificante, na esperança de que os seus esforços resultassem.

Como Gabby não conseguia suportar a visão, concentrou-se no apoio a Molly, com a boca quase colada ao ouvido da cadela, repetindo-lhe uma e outra vez que ela era fantástica. Travis permaneceu calado enquanto massajava o útero da cadela com movimentos ritmados.

Gabby não saberia dizer quanto tempo permaneceram na garagem, poderiam ter sido dez minutos ou cerca de uma hora, mas, finalmente, viu Travis inclinar-se para trás, como se tentasse aliviar a tensão que sentia nos ombros. Só então notou que as mãos dele estavam livres.

Arriscou uma pergunta: - Acabou? Ela vai ficar bem?

- Sim e não - respondeu Travis. - O útero voltou ao lugar e pareceu contrair-se sem quaisquer problemas, mas a cadela tem de ir para a clínica. Necessita de ajuda durante os próximos dois dias, de readquirir força, precisa de soros e antibióticos. Terei de lhe fazer uma radiografia. No entanto, se não houver novas complicações, ficará como nova. Vou buscar a carrinha e trago-a para a garagem. Disponho de algumas mantas velhas onde ela pode deitar-se.

- E aquilo não... voltará a cair novamente?

- Não deveria. Como lhe disse, contraiu-se normalmente.

- E quanto aos cachorrinhos?

- Levamo-los. Precisam de estar com a mãe.

- E isso não vai magoá-la?

- Não deverá acontecer. Mas é por isso que ela precisa de soros. Para os cachorrinhos poderem servir-se.

Gabby sentiu o relaxamento dos ombros; não se apercebera de quanto tinham estado tensos. Sorriu pela primeira vez. - Não sei como agradecer-lhe.

- Acabou de o fazer.

Depois de a limpar, com todas as cautelas, Travis acomodou a cadela na carrinha, enquanto Gabby começou a trazer os cachorrinhos. Depois de instalados os seis, Travis arrumou a mala e atirou-a para o banco da frente. Deu a volta à carrinha e abriu a porta do lado do condutor.

- Depois informo-a de como correram as coisas - prometeu.

- Também vou.

- Será melhor que a cadela descanse um bocado, o que poderá não acontecer se você estiver presente. Ela precisa de recuperar. Não se preocupe, eu tomo conta dela. Ficarei com ela toda a noite. Dou-lhe a minha palavra.

Gabby hesitou. - Tem a certeza?

- A cadela ficará bem. Prometo.

Ela reflectiu sobre o que Travis dissera e contemplou-o com um ténue sorriso. - Como sabe, na minha profissão somos ensinados a nunca prometer seja o que for. Somos aconselhados a dizer que daremos o nosso melhor.

- Sentir-se-ia melhor se eu não prometesse?

- Não. Mas continuo a pensar que deveria ir consigo.

- Não tem de ir trabalhar amanhã?

- Tenho, mas o mesmo acontece consigo.

- Isso é verdade, mas este é o meu trabalho. É o que eu faço. E, além disso, tenho lá um catre. Se viesse, teria de dormir no chão.

- Quer dizer que não me cedia o catre?

Ele subiu para a carrinha. - Suponho que o cedia se tivesse de ser - respondeu, a sorrir. - Mas estou preocupado com o que o seu namorado pensaria quando soubesse que você e eu tínhamos passado a noite juntos.

- Como é que soube que tenho um namorado?

Travis estendeu a mão para a porta. - Não sabia - respondeu, parecendo um tanto desapontado. Depois recuperou e sorriu. - Deixe a cadela comigo, está bem?

Gabby teve de ceder. - Pois. Está bem.

A porta foi fechada e ela sentiu o motor chocalhar antes de pegar. Ele debruçou-se da janela. - Não se preocupe - repetiu. - A cadela vai pôr-se boa.

Desceu para a rua e virou à esquerda. Já longe, acenou-lhe pela janela. Gabby também acenou, embora soubesse que ele já não conseguia vê-la, e ficou a ver as luzes vermelhas desaparecerem na curva.

Depois de ele sair, Gabby vagueou pelo quarto, até que parou em frente da cómoda. Sempre soubera que não era do tipo de fazer parar o trânsito mas, pela primeira vez e em muito tempo, deu consigo a olhar para o espelho e a tentar imaginar o que um homem, para além de Kevin, pensaria ao observá-la.

Apesar da exaustão e do penteado desfeito, não parecia tão mal quanto receara. O pensamento agradou-lhe, embora não soubesse muito bem porquê. Inexplicavelmente, recordou o desapontamento que viu no rosto de Travis quando lhe falou no namorado e corou. Não se tratava de notar qualquer diferença nos seus sentimentos em relação a Kevin...

Estava certamente errada quanto a Travis Parker, errada acerca de tudo, desde o princípio. Tinha-se mostrado tão sólido durante aquela emergência. Ainda estava espantada, embora não devesse ter ficado surpreendida. Recordou a si mesma que, afinal, aquela era a profissão dele.

Posto isto, decidiu telefonar a Kevin. Este demonstrou-lhe imediata simpatia e prometeu estar em casa dela dentro de poucos minutos.

- Como é que te sentes com esta expectativa? - perguntou Kevin.

Gabby aconchegou-se ao namorado, era bom sentir o braço dele à volta da cintura. - Acho que estou ansiosa.

Ele puxou-a mais para si e Gabby sentiu-lhe o cheiro, fresco e lavado, como se tivesse tomado banho antes de ir para lá. O cabelo, despenteado e revolto pelo vento, fazia com que parecesse um estudante universitário.

- Ainda bem que o teu vizinho estava em casa - comentou Kevin. - Chama-se Travis, não é?

- É. Conhece-lo?

- De facto, não. Fazemos os seguros da clínica, mas é uma das carteiras que o meu pai continua a gerir.

- Pensei que vivia numa cidade pequena e que conhecias toda a gente.

- É pequena, na verdade. Mas eu cresci em Morehead City e quando era miúdo não me dava com ninguém de Beaufort. Julgo que deve ser uns anos mais velho do que eu. Provavelmente já andava na universidade quando eu entrei para a escola secundária.

Ela assentiu. No silêncio que se seguiu, voltou a pensar em Travis, na sua expressão séria enquanto tratava da Molly, na calma segurança com que explicara qual era o problema. No silêncio sentiu um vago sentimento de culpa e encostou-se mais para acariciar o pescoço de Kevin com o nariz. Ele deu-lhe uma palmadinha no ombro, um toque reconfortante pela familiaridade. - Estou contente por teres vindo - sussurrou Gabby. - Nesta noite precisava verdadeiramente de ti aqui.

Ele beijou-lhe o cabelo. - Em que outro sítio poderia eu estar?

- Eu sei, mas tiveste aquela reunião e tens de partir logo pela manhã.

- Nada de importante. É apenas uma convenção e não precisarei de mais de dez minutos para fazer a mala. Só desejaria ter chegado cá mais cedo.

- O mais provável é que achasses tudo repelente.

- E possível. Mas continuo a sentir-me mal.

- Não sintas. Não há motivo para isso.

Kevin acariciou-lhe o cabelo. - Queres que adie a viagem? Tenho a certeza de que o meu pai compreenderia se eu ficasse por cá durante o dia de amanhã.

- Não, não é preciso. De qualquer das maneiras, tenho de ir trabalhar.

- Tens a certeza?

- Tenho. Mas agradeço a oferta. Significou muito para mim.

Depois de encontrar o filho deitado no catre e uma cadela na sala de recobro, Max Parker dispôs-se a ouvir de Travis a explicação do que acontecera. Encheu duas chávenas de café e levou-as para a mesa.

- Nada mau para uma primeira vez - elogiou Max. Com o cabelo branco e as fartas sobrancelhas brancas, era o vivo retrato de um simpático veterinário de uma cidade de província.

- Alguma vez trataste uma cadela neste estado?

- Nunca - admitiu o pai. - Mas tratei uma égua. Sabes que é um caso raro. De momento, a Molly parece óptima. De manhã, quando entrei, sentou-se e agitou a cauda. Até que horas estiveste com ela?

Travis engoliu o café com agrado. - Durante a maior parte da noite. Queria ter a certeza de que não havia recaída.

- Não é habitual. Foi bom que tivesses lá ido. Já telefonaste à dona?

- Não, mas vou ligar - decidiu. Limpou a cara. - Meu Deus, estou exausto.

- Por que não vais dormir um pouco? Posso encarregar-me disto e vou deitando um olho à Molly.

- Não quero pôr-te na rua.

- Pois não - anuiu Max com um sorriso. - Não te lembras? Não devias estar aqui. Hoje é sexta-feira.

Uns minutos mais tarde, depois de ter ido ver como estava Molly, Travis parou no seu desvio de acesso e saltou do carro. Esticou os braços por cima da cabeça e seguiu para casa de Gabby. Ao passar pelo caminho de acesso à casa dela viu o jornal meio enfiado na caixa do correio e, após uma breve hesitação, pegou nele. Chegado ao alpendre estava para tocar à porta quando ouviu passos e a porta foi aberta. Gabby inteiriçou-se, surpreendida por vê-lo ali.

- Oh, olá... - gaguejou, soltando a porta. - Estava agora mesmo a pensar telefonar-lhe.

Embora descalça, vestia calças confortáveis e uma blusa de cor creme, e prendera o cabelo com um gancho de marfim. Travis voltou a reparar quanto ela era atraente, mas hoje o que o surpreendeu foi notar que ela se distinguia mais por uma genuína simpatia do que pela beleza tradicional.

Parecia tão... verdadeira. - Como vinha para casa, pensei que seria melhor dar-lhe as notícias pessoalmente. A Molly está óptima.

- De certeza?

Travis acenou que sim. - Fiz-lhe uma radiografia e não encontrei vestígios de qualquer hemorragia interna. Pareceu recuperar forças logo que começou a receber os soros. Poderia talvez vir para casa hoje, mais tarde, mas gostaria que ficasse lá mais uma noite, por uma questão de segurança. Na verdade, durante algumas horas será o meu pai a tratar dela. Estive a pé durante a maior parte da noite; por isso, preciso de me deitar, mas eu próprio irei observá-la mais tarde.

- Posso vê-la?

- É claro que sim. Poderá vê-la sempre que quiser. Mas não se esqueça que ela poderá estar ainda um pouco drogada, pois tive de lhe administrar sedativos para se manter quieta para a radiografia e para lhe aliviar as dores - esclareceu. Depois de uma pausa, acrescentou: - A propósito, os cachorrinhos também estão bem. São bonitos como besouros.

Gabby sorriu, a gostar do sotaque ligeiramente cantado dele, surpreendida por ainda não ter reparado nisso. - Tenho de lhe agradecer uma vez mais. Não sei como alguma vez poderei pagar-lhe.

Travis minimizou a questão com um gesto da mão. - Gostei de poder ajudar. O que me fez lembrar de que apanhei isto para si rematou, entregando-lhe o jornal.

- Obrigada.

Por momentos, olharam-se em silêncio, com um certo desconforto.

- Não aceita um café? - ofereceu Gabby. - Acabei de o fazer. Sentiu uma mistura de alívio e desapontamento quando ele abanou a cabeça.

- Não, obrigado. Prefiro não estar desperto quando quiser tentar dormir.

Ela riu-se. - Espirituoso.

- Tento - anuiu Travis. Por instantes, ela imaginou-o encostado ao balcão de um bar e a dar a mesma resposta a uma mulher atraente, o que lhe deixou a vaga sensação de que ele estava querer namorar com ela. - Bom, escute - começou Travis. - Sei que deve estar a preparar-se para ir trabalhar e eu estou exausto; por isso, vou para casa estender-me um bocado - acrescentou ao virar-se para descer a escada do alpendre.

Sem pensar, Gabby saiu de casa e chamou-o quando ele já ia no jardim. - Antes de ir, pode dizer-me a que horas vai estar na clínica? Quer dizer, a que horas é que vai ver a Molly?

- Não tenho a certeza. Julgo que vai depender do tempo que passar a dormir.

- Ah, claro... - disse, sentindo-se parva e desejando não ter feito a pergunta.

- Mas, veja se concorda - acrescentou Travis. - Diga-me qual é a sua hora de almoço e encontramo-nos na clínica.

- Não queria...

- A que horas?

Gabby engoliu em seco. - Um quarto para a uma.

- Estarei lá - prometeu Travis. Deu uns passos para trás. - E, a propósito, fica fantástica dentro dessa roupa - acrescentou.

"Que diabo tinha acontecido ali?"

Este bem poderia ser o resumo do estado de espírito de Gabby durante o resto da manhã. Não importava se eram consultas de rotina a bebés saudáveis (dois casos), diagnóstico de otites (quatro casos), administração de vacinas (um caso), recomendação de uma radiografia (um caso); sentia-se a agir em piloto automático, só ali estava metade de si, pois a outra metade continuava no alpendre a tentar perceber se Travis estivera realmente a catrapiscá-la, ou se era possível, apenas possível, que ela gostasse que Travis tivesse feito isso mesmo.

Pela milésima vez desejou ter uma amiga na cidade com quem pudesse falar de tudo aquilo. Nada melhor que uma amiga a quem pudesse fazer confidências, pois, embora houvesse enfermeiras no consultório, o seu estatuto de técnica assistente colocava-a num lugar à parte. Era frequente ouvir as enfermeiras e conversar e a rirem-se, mas tendiam a calar-se logo que a viam aproximar-se. O que a fazia sentir-se tão isolada como quando viera viver para a cidade.

Depois de atendido o seu último paciente (a criança necessitava de ser encaminhada para um especialista de ouvidos, nariz e garganta, para uma possível cirurgia de remoção das amígdalas), Gabby guardou o estetoscópio no bolso da bata do consultório e retirou-se para o seu gabinete. Não era nada de especial; suspeitava de que antes da sua chegada teria sido usado como arrumação. Não havia janela e a secretária ocupava a maior parte do espaço; contudo, desde que mantivesse a papelada sob controlo, era agradável ter um espaço só para ela. Num canto, estava colocado um pequeno ficheiro quase vazio, mas a mala estava na última gaveta da secretária. Consultando o relógio, viu que dispunha de uns minutos até ter de sair. Levantou-se da cadeira e alisou as madeixas indisciplinadas com a mão.

Decidiu que estava a dar demasiada importância ao episódio. As pessoas passavam o tempo a namoriscar. Era próprio da natureza humana. Além disso, era provável que não tivesse qualquer significado. Afinal, depois de tudo por que tinham passado na noite anterior, Travis tornara-se um amigo...

O seu amigo. O primeiro amigo, numa cidade nova, no início de uma nova vida. Gostou da forma como soava. Que mal havia em ter um amigo? Nenhum. A ideia fê-la sorrir, mas o sorriso deu lugar a um ar carrancudo.

Voltando ao princípio, talvez não fosse uma grande ideia. Ser simpática com um vizinho era uma coisa, tornar-se amiga de um pinga-amor era algo de completamente diferente. Especialmente de um pinga-amor bonito. Em condições normais, Kevin não era do tipo ciumento, mas não era suficientemente tonta para julgar que ele aceitasse com agrado a ideia de que a sua namorada e Travis se encontrassem uma ou duas vezes por semana para tomar café no alpendre das traseiras da casa do vizinho, um género de convívio normal entre vizinhos que se dão bem. Por mais inocentes que as visitas ao veterinário pudessem ser, e seriam inocentes, é bom que se diga, teriam sempre um vago odor a infidelidade.

Hesitou. Pensou que estava a ficar maluca. Que estava a ficar realmente maluca.

Não fizera nada de mal. Nem ele. E o pequeno devaneio de ambos não teria quaisquer consequências, mesmo sendo vizinhos. Ela e Kevin andavam juntos desde o último ano que passara na Universidade de Carolina do Norte; conheceram-se numa noite fria, horrível, em que o chapéu dela voara para longe depois de ter saído do Spanky com uns amigos. Kevin correra para a Franklin Street e tivera de abrir caminho por entre os carros para o recuperar e, se as faíscas não tivessem saltado naquela ocasião, poderia ter passado muito tempo até haver outra oportunidade, embora ela não tivesse perfeita consciência disso.

Na altura, o que menos desejaria seriam as complicações de uma relação, pois a sua vida já tinha complicações suficientes. Os exames finais aproximavam-se, havia a renda para pagar e não sabia se iria fazer a especialidade de técnica assistente. E se agora via o absurdo da situação, na altura aquela parecera-lhe ser a decisão mais importante que alguma vez teria de tomar. A sua candidatura fora aceite tanto pela MUSC (Medicai University South Caroline), em Charleston, como pela Eastern Virgínia, em Norfolk, e a mãe exercia toda a pressão que podia para a escolha recair em Charleston: "A tua decisão é simples, Gabrielle. Ficarás a poucas horas de casa e Charleston é bem mais cosmopolita, minha querida." Gabby também se sentia atraída por Charleston, embora soubesse que a cidade era atraente por todas as razões erradas: a vida nocturna, a excitação de viver numa bela cidade, a cultura, o animado circuito da vida social. Recordava a si mesma que não teria tempo para desfrutar de qualquer daqueles prazeres. Com excepção de algumas cadeiras básicas, o currículo dos alunos da Escola de Assistentes Médicos era igual ao dos que frequentavam a Faculdade de Medicina, mas dispunham apenas de dois anos e meio, em vez de quatro, para o completar. Ouvira histórias horrendas sobre o que a esperava; as aulas eram dadas e a informação fornecida com a delicadeza própria de uma mangueira dos bombeiros regulada para o caudal máximo. Na verdade, depois de visitar ambas as instituições, achou que preferia o programa da East Virgínia; por qualquer motivo, parecera-lhe mais confortável, um lugar onde poderia concentrar-se no que tinha de fazer.

Então, qual escolheria?

Passara aquele serão de Inverno em que o chapéu lhe fugira das mãos e Kevin correra a recuperá-lo às voltas com a escolha. Depois de lhe agradecer não tardou a esquecer-se do incidente, até que ele a topou do quarto do hotel, umas semanas mais tarde. Embora o tivesse esquecido, ele recordava-se dela. A descontracção dele contrastava nitidamente com a arrogância de muitos dos tipos da comunidade estudantil que ela tinha conhecido até então, que, na sua maioria, tendiam a beber desordenadamente e a pintar letras nos peitos nus sempre que os Tarheels defrontavam os Duke. A conversa levou a um café, o café a um jantar e apercebeu-se de que estava apaixonada quando chegou a altura de atirar o chapéu ao ar, no dia da graduação. Já então decidira a escola que ia frequentar; com Kevin a planear viver em Morehead City, apenas a umas horas de viagem para sul do lugar onde ela iria passar os anos mais próximos, a escolha parecera quase predefinida.

Kevin ia a Norfolk vê-la; ela metia-se no carro e ia visitá-lo a Morehead City. Cada um foi apresentado à família do outro. Brigaram e reconciliaram-se, separaram-se e reuniram-se e Gabby até fez uns percursos de golfe com ele, embora não apreciasse o jogo; e durante todo o tempo ele continuou a ser o mesmo rapaz descontraído, calmo, que sempre fora. A sua maneira de ser parecia reflectir o facto de ter crescido numa pequena cidade, onde, sejamos francos, as coisas eram tremendamente lentas durante a maior parte do tempo. A lentidão parecia impregnar todas as fibras da sua personalidade. Se a via preocupada, encolhia os ombros; nos momentos em que ela se sentia mais pessimista, Kevin mantinha-se indiferente. Gabby julgava que era por ele ser assim que se davam tão bem. Serviam de contrapeso um ao outro. Eram bons um para o outro. Não haveria competição se a escolha tivesse de recair num dos dois, se fosse apenas entre Kevin e Travis.

Agora que a questão estava clarificada, decidiu que não fazia diferença que Travis a catrapiscasse. Podia namoriscar quanto lhe apetecesse; afinal, ela sabia exactamente o que queria da vida. Tinha a certeza.

Como Travis prometera, Molly estava melhor do que Gabby esperava. Agitou a cauda com entusiasmo e, a despeito da presença dos filhotes, que na sua maioria estavam a dormir e pareciam pequenas bolas de pêlo, levantou-se sem esforço quando Gabby entrou e trotou para ela depois de lhes aplicar umas lambidelas despreocupadas. A cadela tinha o nariz frio, bamboleou-se e ganiu ao rodear as pernas dela, não com a impulsividade habitual, mas a suficiente para demonstrar que estava óptima; a seguir sentou-se ao lado de Gabby.

- Estou tão contente por estares melhor - sussurrou-lhe Gabby, a dar-lhe palmadinhas no pêlo.

- Também eu - anunciou Travis, parado à porta da sala. - A Molly é uma valentona, e revela uma magnífica disposição.

Gabby voltou a cabeça e viu-o encostado à ombreira da porta.

- Acho que estava enganado - acrescentou Travis, caminhando na direcção dela, trazendo na mão uma maçã Fuji. - Provavelmente, poderia ir hoje para casa, se quisesse vir buscá-la depois de sair do emprego. Não estou a dizer que tem de vir. Se não lhe der jeito, não me importo nada de a ter cá. Mas a Molly está a evoluir ainda melhor do que eu esperava - explicou. Agachou-se e estalou os dedos ligeiramente, desviando a atenção da cadela de Gabby para ele. - Não és uma bonita menina? - indagou, usando um tom de voz que pode ser descrito como: "Adoro cães e tu não me ligas nenhuma?" Para surpresa de Gabby, a cadela afastou-se dela e foi para junto do veterinário; e ele continuou a amimá-la, deixando a Gabby a sensação de estar ali a mais. - E estes pequenotes também estão óptimos - continuou Travis. - Se os levar para casa, tenha o cuidado de os meter numa espécie de cerca, de onde não possam sair. De outro modo, a situação pode tornar-se complicada. Nada de especial: apenas umas tábuas escoradas em caixas. E forre o chão com papéis de jornal.

Mal o ouvia e, mesmo sem querer, estava a reparar quanto ele era bonito. Irritava-se por não conseguir ultrapassar a situação de cada vez que o via. Era como se a aparência de Travis estivesse constantemente a fazer soar alarmes na cabeça dela, sem saber o motivo por que isso acontecia, por mais que se esforçasse. Era alto e seco, mas já vira muitos homens como ele. Sorria com facilidade, o que não tinha nada de especial. Os dentes podiam considerar-se demasiado brancos, não havia dúvida de que os branqueava, mas, mesmo sabendo que a cor não era natural, faziam efeito. Também se via que estava em forma, mas tipos como ele encontravam-se em qualquer ginásio da América, homens que treinavam com fervor religioso, que só comiam peitos de galinha e papas de aveia, que corriam 15 quilómetros por dia; mas nenhum deles, alguma vez, exercera nela aquele efeito.

Então, o que é que ele tinha?

Teria sido mais fácil se fosse feio. Tudo, desde o confronto inicial ao desconforto presente, teria sido diferente, simplesmente por que ela não se teria sentido tão desorientada. Agora, porém, acabara-se. Não voltaria a ser apanhada em falso. Não, senhor, aquela rapariga, não. O caso acabava ali, de futuro cumprimentá-lo-ia de longe, um gesto de boa vizinha, e voltaria a viver a sua vida, sem confusões.

- Sente-se bem? - perguntou Travis, a analisá-la. - Parece distraída.

- Apenas cansada - mentiu. Acenou para Molly. - Parece que gosta de si.

Travis concordou. - Pois gosta. Temo-nos dado muito bem. Julgo que é por causa das guloseimas de carne seca que lhe dei esta manhã. As guloseimas de carne seca são a maneira de conquistar o coração dos cães. É o que digo a todos os distribuidores da FedEx e da UPS quando me perguntam o que fazer com os cães que não gostam deles.

- Vou lembrar-me disso - prometeu Gabby, a readquirir rapidamente a compostura.

Quando um dos cachorrinhos ganiu, Molly levantou-se e voltou a colocá-lo no interior da jaula aberca; de repente, a presença de Travis e Gabby tornara-se irrelevante. Travis pôs-se de pé e poliu a maçã nas calças. - Então, o que é que resolve?

- Acerca de quê?

- Acerca da Molly.

- O que é que tem a Molly?

Ele enrugou a testa. Quando falou, as palavras saíram lentamente.

- Quer levá-la para casa esta noite, ou não?

- Ah, isso - respondeu, perturbada como uma caloira perante o capitão da equipa da escola. Teve vontade de aplicar um pontapé na própria canela, mas, em vez disso, pigarreou. -Julgo que a levo para casa. Se tem a certeza de que não lhe fará mal.

- Não haverá problemas - garantiu Travis. - ´É um animal jovem e saudável. Por muito assustador que parecesse, podia ter sido bem pior. A Molly foi uma cadela com sorte.

Gabby cruzou os braços. - Pois foi.

Notou, pela primeira vez, que a T-shirt dele fazia publicidade a um lugar de Key West, qualquer coisa relacionada com um Salão para Cães. Travis deu uma dentada na maçã e apontou com ela na direcção de Gabby. - Sabe, pensei que ficasse mais excitada quanto ao facto de a cadela estar bem.

- Eu estou excitada.

- Mas não parece.

- O que é que isso quererá dizer?

- Não sei - respondeu. Deu mais uma dentada na maçã. - Com base na forma como apareceu à minha porta, seria de calcular que mostrasse mais emoção. Não só quanto à Molly, mas também ao facto de eu ter lá estado para ajudar.

- Mas eu já lhe disse que estou agradecida - replicou Gabby.

- Quantas vezes terei de lhe agradecer?

- Não sei. Quantas é que julga suficientes?

- A pergunta não foi minha.

Ele ergueu uma sobrancelha. - Na realidade, foi.

"Ah, pois", pensou Gabby. - Muito bem! - exclamou, erguendo as mãos. - Obrigada, uma vez mais. Por tudo o que fez - acrescentou, a falar com todas as cautelas, como se ele fosse duro de ouvido.

Ele soltou uma gargalhada. - Também é assim com os seus pacientes?

- Assim como?

- Tão séria.

- Por acaso, nem sou.

- E com os amigos?

Abanou a cabeça, confusa. - Não... O que é que isso tem a ver com o resto?

Nova dentada na maçã, deixando a pergunta no ar. - Foi pura curiosidade - acabou por dizer. - Sobre o quê?

- Para saber se isso é próprio da sua personalidade, ou se é apenas séria quando está perto de mim. Se for pelo segundo motivo, sinto-me lisonjeado.

Gabby sentiu o rubor inundar-lhe as faces. - Não sei do que é que está a falar.

Travis fez um sorriso forçado. - Muito bem. Ela abriu a boca com a intenção de encontrar um dito inteligente e inesperado, uma frase que o pusesse no seu lugar mas, primeiro que lhe ocorresse alguma coisa, Travis atirou os restos da maçã para o lixo e voltou-se para lavar as mãos.

- Escute. Estou contente por ter vindo por outro motivo observou, a falar por cima do ombro. - Amanhã tenho uma pequena reunião com amigos e esperava que pudesse passar por lá. Gabby vacilou, sem ter a certeza de ter ouvido bem. - Em sua casa?

- A ideia é essa.

- Uma espécie de encontro de namorados?

- Não, uma espécie de reunião informal de amigos - esclareceu, a afastar-se do lavatório e a enxugar as mãos. - Pela primeira, neste ano, vou pôr o parasail a funcionar. Vai ser um espanto.

- Na sua maioria, as pessoas que vão lá estar são casadas?

- Excluindo a minha irmã e eu, todos os outros são casados. Gabby abanou a cabeça. - Não penso que deva ir. Tenho namorado.

- Óptimo. Leve-o consigo.

- Andamos juntos há quase quatro anos.

- Como lhe disse, será sempre bem-vindo.

Hesitou, sem saber se tinha percebido bem e encarou-o, a tentar descobrir se ele falava a sério. - De verdade?

- Pois, claro. Por que não?

- Ah, bom... de qualquer maneira, ele não poderá ir. Vai estar fora durante alguns dias.

- Então, se não tiver mais nada para fazer, apareça.

- Não sei bem se será uma boa ideia.

- Porquê?

- Estou apaixonada por ele.

- E?

- E o quê?

- E... por estar em minha casa pode continuar apaixonada por ele. Como disse, vai ser divertido. Prevê-se que a temperatura se aproxime de 21 graus. Alguma vez fez para sair.

- Não. Mas a questão não é essa.

- Está a pensar que não se sentiria bem se fosse?

- Exactamente.

- Portanto, ele é o género de homem que gosta de a ver fechada enquanto está ausente.

- Não, de maneira alguma.

- Então não gosta que se divirta?

- Nada disso!

- Não quer que conheça outras pessoas?

- É claro que quer.

- Nesse caso, está tudo resolvido - concluiu Travis. Preparou-se para sair mas parou junto à porta. - As pessoas começarão a juntar-se por volta das 10 ou das 11 horas. Só precisa de levar um fato-de-banho. Haverá vinho, cerveja e refrigerantes, mas se tiver outras preferências quanto a bebidas, poderá levar as suas.

- Não me parece que...

Ele ergueu as mãos. - Para finalizar, será bem-vinda se decidir aparecer. Nada de pressões, está bem? - propôs, encolhendo os ombros. - Pensei apenas que seria uma oportunidade para nos conhecermos mutuamente.

Sabia que deveria ter recusado. Mas, em vez disso, sentiu uma súbita secura da garganta e tentou engolir. - Talvez vá - prometeu.

 

A manhã começara bem; logo que a luz do dia começara a infiltrar-se pelas persianas, Gabby calçara os chinelos cor-de-rosa, forrados de pêlo, e arrastara os pés até à cozinha para beber uma chávena de café e preparar-se para uma manhã de lazer. Os azares só viriam um pouco mais tarde. Ainda antes de beber a primeira golada de café, lembrou-se de que precisava de ver como estava a Molly e ficou contente ao verificar que quase tinha voltado ao normal. Os cachorrinhos também pareciam saudáveis, embora ela não fizesse a mínima ideia do que devia observar neles, se é que havia alguma coisa a observar. Para além de se agarrarem à mãe como lapas peludas, rebolavam, caíam e ganiam, dando a ideia de que tudo aquilo era a forma encontrada pela natureza para os tornar suficientemente adoráveis para a mãe e para evitar que ela os comesse. Não que Gabby tivesse passado a gostar deles. Mesmo sem serem tão feios como receara que fossem, nem de longe conseguiam igualar a mãe em beleza, pelo que continuava preocupada com a hipótese de não arranjar quem os quisesse. E havia necessidade de encontrar lares para eles; essa era uma certeza. O fedor na garagem era suficiente para a convencer disso.

Não era apenas o cheiro, o fedor assaltou-a como a "Força" num filme da Star Wars. Ao sentir os vómitos recordou-se vagamente de Travis lhe haver sugerido que construísse uma cerca, que limitasse um espaço de onde eles não pudessem sair. Por amor de Deus, quem é que poderia saber que os cachorros defecavam tanto? Para onde olhasse, só via montinhos. O fedor parecia ter penetrado nas paredes; manter a garagem aberta também não parecia resultar. Passou a meia hora seguinte a tentar limpar a garagem, contendo a respiração e tentando não vomitar.

Terminada a tarefa, Gabby tinha-se convencido de que os cachorros faziam parte de um plano diabólico destinado a estragar-lhe o fim-de-semana. Com toda a certeza. Era a única explicação razoável para o pormenor de os cachorros preferirem a longa racha irregular aberta no pavimento da garagem, dando provas de uma estranha pontaria que a forçara a usar uma escova de dentes para a limpar. Um nojo.

E Travis... nada de o deixar fora do esquema. A culpa fora tanto dele como dos cachorros. Era um facto que ele a avisara para construir uma cerca onde eles se mantivessem juntos, mas não insistira muito, não era verdade? Não explicara o que aconteceria se ela não lhe desse ouvidos, pois não?

Mas ele sabia o que iria acontecer. Estava convencida disso. Velhaco.

E, pensando melhor, aquele não fora o único pormenor em que ele se mostrara trapaceiro. Que dizer da forma como a forçara a esclarecer toda a artimanha de "Ir andar de barco com o meu vizinho que é um pinga-amor"? Decidiu que não queria ir, por ele se ter mostrado tão manipulador para a levar a aceitar, se não houvesse outra razão. Todas aquelas ridículas perguntas a insinuar que Kevin a mantinha fechada a sete chaves. Como se Kevin fosse o dono dela, ou algo do género! Como se ela não tivesse vontade própria! E ali estava ela agora, a ter de limpar um milhão de montículos de dejectos...

Que maneira de começar um fim-de-semana. Para piorar as coisas encontrou o café já frio, o jornal ficara ensopado com o jorro de uma mangueira de rega mal apontada e a água ficara fria antes de ela ter acabado de se lavar.

Excelente. Fantástico.

Enfiou as roupas, sempre a resmungar: "Onde é que está a graça?" Era fim-de-semana e não fazia ideia onde estava o namorado. Mesmo quando ele andava por ali, os seus fins-de-semana não tinham nada a ver com aqueles que passavam juntos quando ela o visitava durante as férias escolares. Nesse tempo, qualquer visita era divertida, havia sempre novas experiências e novas pessoas. Agora, ele passava pelo menos parte do fim-de-semana no campo de golfe.

Serviu-se de outra chávena de café. A verdade é que Kevin fora sempre do tipo calado e ela sabia que ele precisava de arejar depois de uma semana de intenso trabalho. Mas não conseguia deixar de pensar que a relação se modificara depois de ela ter vindo viver para ali. Não que a culpa fosse toda dele, como era evidente. Ela também tivera o seu papel. Quisera vir morar para aquela cidade, instalar-se, se assim se podia dizer. O que é que acontecera exactamente? Qual fora o problema?

Ouviu uma suave voz interior que lhe sussurrava: "O problema era parecer que deveria haver... mais." Não sabia exactamente o que aquilo queria dizer, embora julgasse que espontaneidade parecia ser parte integrante da ideia.

Abanou a cabeça, a pensar que estava a dar demasiada importância ao caso. A relação deles estava apenas a sofrer de um maior desconforto. Passando à varanda das traseiras, reparou que estava uma manhã incrivelmente bela. Temperatura perfeita, ligeira brisa, sem uma nuvem no céu. Lá longe, viu uma garça levantar voo de entre as ervas do pântano e planar acima da água resplandente de luz. Ao olhar naquela direcção, reparou que Travis se dirigia para o ancoradouro, vestindo apenas umas bermudas de tecido colorido que lhe desciam quase até aos joelhos. Do seu útil ponto de observação conseguia ver as estrias formadas pelos músculos dos braços e das costas quando ele caminhava; recuou um passo, na direcção da porta de correr, esperando que ele não a tivesse visto. Porém, passado um instante, ouviu a voz dele a chamá-la.

- Eh, Gabby! - cumprimentou Travis, fazendo-lhe lembrar um miúdo no primeiro dia das férias de Verão. - Não parece inacreditável que possa haver dias tão bonitos?

Começou a correr na direcção da casa e ela caminhou para a zona ensolarada da varanda quando o viu passar pela sebe.

- Olá, Travis - saudou, depois de respirar fundo.

Ele abriu os braços, como se quisesse abraçar o céu e as árvores.

- é a parte do ano de que mais gosto. Nem muito quente, nem demasiado frio, mais o céu azul que se estende até ao infinito.

Gabby sorriu, a tentar não olhar os sensuais músculos das coxas dele, de longe os músculos mais sensuais dos homens.

- Como é que está a MolLy? - perguntou com ar divertido.

- Espero que tenha passado bem a noite. Ela pigarreou. - Está bem. Obrigada. •- E os filhotes?

- Também me parecem bem. Mas sujaram tudo.

- é o costume. Por isso, é uma boa ideia mantÊ-los numa área restrita.

Fez brilhar aqueles dentes branqueados num sorriso já conhecido, ou demasiado conhecido, como a querer recordar-lhe que era o matulão que lhe salvara a cadela.

Ao lembrar-se de como ele se revelara escorregadio no dia anterior, Gabby cruzou os braços. - Pois, ontem não percebi isso muito bem.

- Por que não?

"Porque me distraíste", pensou. - Acho que me esqueci.

- A sua garagem deve ter um cheiro celestial.

Ela encolheu os ombros, sem responder, sem querer dar-lhe satisfações.

Travis não pareceu reparar na cuidadosamente coreografada resposta dela. - Escute, não precisa de uma instalação complicada. Mas defecar é tudo o que os cachorrinhos sabem fazer nos primeiros dois dias. Parece que o leite lhes atravessa o corpo sem se deter. Mas já instalou a cerca, não é verdade?

Gabby tentou como pôde manter um rosto alegre, mas falhou, obviamente.

- Não instalou? - insistiu Travis.

- De certo modo, não - admitiu, a mudar o peso do corpo de um pé para o outro.

- Por que não?

"Porque continuas a distrair-me", pensou Gabby. - Não tenho a certeza de que seja necessária.

Travis coçou a cabeça. - Gosta de andar atrás deles a limpar a trampa?

- Não é assim tão difícil - resmungou.

- Quer dizer que vai deixá-los à solta por toda a garagem?

- O que é que tem? - perguntou, ciente de que a primeira coisa que faria depois daquela conversa seria construir a cerca mais pequena que lhe fosse possível.

Ele olhou-a, nitidamente confuso. - Para que saiba, como veterinário, estou de saída e tenho de dizer-lhe que não tomou uma decisão acertada.

- Agradeço-lhe a opinião - retorquiu Gabby.

Travis continuou a olhar para ela. - Muito bem, então. Que lhe faça bom proveito. Vai até minha casa por volta das 10 horas, não vai?

Penso que não.

- Porquê?

- Não acho que seja uma boa ideia.

- Porquê?

- Por nada.

- Estou a ver - observou Travis, parecendo exactamente a mãe dela.

- Óptimo.

- Tem alguma coisa que a preocupe?

- Não.

- Fiz alguma coisa que a desgostasse?

"Fizeste", disse a vozinha interior. "Tu e esses músculos danados das tuas coxas". - Não.

- Nesse caso, qual é o problema?

- Não há qualquer problema.

- Então, o que significa essa sua representação?

- Não estou a representar.

O riso que mostrava os dentes desaparecera, bem como toda a cordialidade anterior. - É óbvio que está. Deixei-lhe um cesto a dar-lhe as boas-vindas ao bairro, salvei-lhe a cadela e fiquei a pé toda a noite para ter a certeza de que o animal estava bem, convidei-a para hoje se divertir um pouco no meu barco, tudo isto depois de me ter gritado sem qualquer motivo, para agora estar a tratar-me como se eu tivesse peste. Desde que se mudou para aqui que tento ser simpático, mas sempre que nos encontramos parece estar furiosa comigo. Só pretendo saber o motivo.

- Porquê? - papagueou ela.

- Exacto - corroborou Travis, sem que a voz lhe tremesse.

- Porquê?

- Por nada - repetiu Gabby, sabendo que devia parecer uma quintanista de mau humor. Não conseguiria pensar em nada mais naquele momento.

Ele analisou-lhe a expressão cuidadosamente. - Nada, é o quê?

- Não tem nada com isso.

Travis deixou que a resposta assentasse. Girou sobre os calcanhares, a abanar a cabeça enquanto se dirigia para a escada. Já estava quase no relvado, quando Gabby deu um passo em frente.

- Espere! - pediu.

Travis abrandou, deu mais dois passos e parou. Voltou a cabeça na direcção dela. - O que é?

- Peço desculpa - balbuciou Gabby.

- O que é? - repetiu ele. - Pede desculpa de quê? Gabby hesitou. - Não percebo o que quer dizer.

- Não esperava que percebesse - resmungou ele. Quando o viu preparado para se voltar de novo para a frente, um movimento que

ela pressentiu ir pôr um ponto final nas relações cordiais entre ambos, - deu um passo em frente, quase contra vontade.

Ao prosseguir, ela própria achou que falava numa voz tensa e fraca.

- Peço desculpa por tudo. Pela maneira como o tenho tratado. Pela forma como o levei a pensar que não lhe estou grata pelo que fez.

E?

Gabby sentiu-se encolher, uma sensação que só acontecia na presença dele.

- E cometi muitos erros - acrescentou, num tom mais suave.

Ele ficou à espera, de mãos na cintura. - Acerca de quê? "Credo, por onde devo começar", ouviu novamente da vozinha interior. "Talvez não tenha cometido nenhum. Talvez a intuição tenha querido alertar-me sobre qualquer coisa que não sei bem o que seja, mas que não deveria subestimar...»

- Acerca de si - respondeu, ignorando a vozinha. - Tem razão. Não deveria tê-lo tratado desta maneira mas, para lhe ser franca, preferia não entrar em mais pormenores sobre as minhas razões - acrescentou, a forçar um sorriso que não foi correspondido. - Seria possível começarmos de novo?

Ele pareceu reflectir. - Não sei.

- O quê?

- Você ouviu - respondeu Travis. - A última coisa que desejo na vida é uma vizinha desmiolada. Nunca quis ferir-lhe os sentimentos, mas há muito aprendi a dizer o que penso.

- Isso não é justo.

- Não? - indagou, sem se esforçar para esconder o cepticismo.

- Na verdade, acho que estou a ser mais do que justo. Todavia, deixe

que lhe diga que aceito recomeçar. Mas só se tiver a certeza de que é isso que quer.

- Tenho a certeza.

Travis regressou à varanda. - Muito bem, então. Viva - saudou, estendendo a mão. - Chamo-me Travis Parker e desejo dar-lhe as boas-vindas ao bairro.

Gabby ficou a olhar para a mão. Passado um instante, apertou-a e apresentou-se: - Eu sou a Gabby Holland, muito gosto em conhecê-lo.

- O que é que faz?

- Sou assistente técnica de medicina - informou, a sentir-se um tanto ridícula. - E você?

- Sou veterinário. De onde é que é?

- De Savannah, Jórgia. E você?

- Sou daqui. Nascido e criado.

- Gosta de viver cá?

- O que é que há para não se gostar? Tempo magnífico, trânsito inexistente - explicou, para a seguir fazer uma pausa. - E, na maioria dos casos, também há boa vizinhança.

- Já ouvi dizer - retorquiu Gabby. - Na realidade, contaram-me que o veterinário da terra atende chamadas de emergência. Não se encontra disso nas grandes cidades.

- Não, não penso que encontre - anuiu. Fez um sinal com os ombros. - A propósito, os meus amigos e eu vamos hoje dar um passeio de barco. Não quer vir connosco?

Semicerrando os olhos, Gabby observou-o. - Iria, mas tenho de construir uma cerca para os cachorros que a minha cadela, a Molly, teve há duas noites. Não quero que espere por mim.

- Precisa de ajuda? Tenho umas tábuas a mais e uns caixotes na garagem. Não demora nada.

Ela hesitou, depois olhou-o, sorridente. - Nesse caso, adoraria acompanhá-los.

Travis cumpriu a palavra. Chegou, ainda meio despido, para desassossego dela, com quatro compridas tábuas debaixo dos braços. Depois de as pousar, largou em corrida de volta à garagem. Voltou com os caixotes, um martelo e uma mão-cheia de pregos.

Embora fingisse não notar o cheiro, Gabby reparou que ele construiu a cerca em muito menos tempo do que ela julgara possível.

- Acho que devia forrar este chão com jornais. Tem jornais suficientes?

Depois de Gabby acenar que sim, apontou para a casa dele. - Ainda tenho umas coisas a tratar; por isso, vemo-nos mais logo, está bem?

Gabby assentiu novamente; teve uma sensação esquisita no estômago, algo parecido com nervosismo. Motivo por que, depois de o ter visto entrar em casa e de forrar o chão da cerca com jornais, deu consigo no meio do quarto, a avaliar os méritos relativos dos diversos fatos-de-banho que possuía. Mais especificamente, tratava-se de resolver se devia levar biquini ou fato-de-banho inteiro.

Cada um tinha vantagens e desvantagens. Em condições normais, teria optado pelo biquini. Afinal, tinha 26 anos e era solteira, e mesmo sem ser uma supermodelo, era suficientemente honesta para admitir que gostava do seu aspecto em biquini. Kevin gostava, de certeza. Se sugerisse que ia vestir um fato-de-banho inteiro, faria beicinho até ela mudar de ideias. Por outro lado, Kevin não se encontraria presente e ela estaria a confraternizar com o vizinho (um homem!); e, considerando as dimensões do biquini, não faria diferença se fosse de sutiã e cuecas, nada que a fizesse sentir-se muito confortável e tudo a apontar para o fato-de-banho de uma peça.

No entanto, o fato-de-banho inteiro já não era novo e estava um tanto desbotado pelo cloro e pelo sol. Fora comprado pela mãe dela uns anos antes, para vestir nas tardes passadas no clube de campo (Deus proibia que se expusesse como uma rameira!). No sector dos fatos-de-banho inteiros, o dela não se distinguia por um corte especialmente feliz. Em vez de um corte alto nas coxas, tinha um pouco de perna, fazendo com que as pernas de quem o vestia parecessem curtas e grossas.

Não desejava que as suas pernas parecessem curtas e grossas. Por outro lado, o pormenor teria alguma importância? Pensou que não teria, embora, simultaneamente, também pensasse que tinha.

Decidiu-se pelo fato de corpo inteiro. Pelo menos, não daria a qualquer deles impressões erradas a seu respeito. E também haveria crianças dentro do barco. Era melhor exagerar no conservadorismo do que parecer um pouco... exposta. Pegou no fato inteiro, mas logo ouviu a voz da mãe a dizer-lhe que tomara a decisão certa.

Atirando com ele para cima da cama, pegou no biquini.

 

- Ah, convidaste a nova vizinha? - perguntou Stephanie. - Diz-me outra vez como se chama ela?

- Gabby. Deve estar a chegar - informou Travis, a levar a embarcação para mais perto do ancoradouro. O cabo esticou-se, para depois afrouxar quando o barco ficou colocado em posição. Tinham acabado de o pôr na água e estavam a amarrá-lo ao ancoradouro para embarcarem as geleiras.

- É solteira, não é?

- Tecnicamente, mas tem namorado.

- De verdade? - sorriu Stephanie. - Desde quando é que um pormenor desses te faz recuar?

- Não te apresses a tirar conclusões. O namorado não está na cidade e ela não tinha nada para fazer; portanto, como bom vizinho, convidei-a.

A irmã anuiu. - Pois, pois. Até te faz parecer capaz de gestos honestos como esse.

- Eu sou honesto - protestou Travis.

- Foi o que acabei de dizer.

Travis acabou de amarrar o barco. - Mas disseste-o de forma a parecer o contrário.

- Ah, fiz? Que estranho!

- Pois, pois. Continua assim.

Travis pegou na geleira e saltou para dentro do barco.

- Hum!... Acha-la atraente, não achas?

- Julgo que sim - respondeu o irmão, colocando a geleira no seu lugar.

- Julgas que sim?

- Que é que queres que eu diga?

- Nada.

- De onde virá esta sensação de que vou ter um dia difícil? indagou Travis ao observar a irmã.

- Não faço ideia.

- Faz-me um favor, está bem? Não apertes com ela.

- O que é que pretendes dizer?

- Sabes o que eu pretendo dizer... Só peço que a deixes habituar-se a todos, antes de começares a azucriná-la.

Stephanie soltou uma gargalhada. - Sabes com quem estás a falar, não sabes?

- Estou apenas a dizer que ela pode não apreciar o teu humor.

- Prometo portar-me impecavelmente.

- Então... está preparada para ir mergulhar em pêlo? - inquiriu Stephanie.

Gabby vacilou, sem saber se teria ouvido bem. - Perdão?

Um minuto antes, Stephanie tinha chegado junto dela, vestindo uma T-shirt comprida e trazendo duas cervejas. Entregando uma a Gabby, apresentou-se como irmã de Travis e conduziu-a para umas cadeiras colocadas no convés da popa, enquanto o irmão procedia aos últimos preparativos.

- Oh, não é para já - emendou Stephanie. - Segundo o hábito, são precisas umas cervejas para toda a gente se soltar até ao ponto de deixar cair o enxoval.

- Mergulho em pêlo?

- Sabia que o Travis pratica nudismo, não sabia? - perguntou, a apontar para o escorrega que o irmão instalara momentos antes. - Depois disso, costumamos ir para o escorrega.

Embora lhe parecesse ter a cabeça a andar à roda, Gabby fez um quase imperceptível movimento de cabeça, pensando que tudo começava a ajustar-se: o facto de Travis aparecer quase sempre meio vestido, a sua completa ausência de desconforto ao conversar de peito ao léu, uma explicação para o facto de ele trabalhar tanto.

Estes pensamentos foram interrompidos pelo som das gargalhadas de Stephanie.

- Estava a brincar! - exclamou. - Pensou mesmo que eu era capaz de mergulhar nua tendo o meu irmão por perto? Eia! Essa é forte!

Gabby sentiu um fluxo de sangue quente a viajar entre o pescoço e as faces. - Sabia que estava a brincar.

Stephanie olhou-a por cima do copo de cerveja. - Pensou que era a sério! Oh, essa é forte! Mas peço perdão. O meu irmão avisou-me para não a maçar. Por qualquer motivo, julga que as pessoas levam algum tempo a adaptar-se ao meu sentido de humor.

"Céus, imagino o motivo." Mas preferiu dizer apenas: - A sério?

- Pois é. Mas, se me pergunta, dir-lhe-ei que somos duas baleias no mesmo tanque. Onde é que pensa que aprendi a ser assim? - perguntou Stephanie, a recostar-se e a ajeitar os óculos escuros. - O Travis disse-me que era assistente médica.

- Sou. Trabalho na clínica de pediatria.

- Como é?

- Eu gosto - limitou-se a responder, não mencionando o pervertido do chefe e um ocasional pai mais autoritário. - E você?

- Sou estudante - respondeu. Bebeu um gole de cerveja, antes de acrescentar: - Estou a pensar fazer disso profissão.

Agora mais descontraída, Gabby riu-se pela primeira vez. - Conhece os outros que estão para chegar?

- Oh, deve ser a velha turma. Travis tem estes três amigos, conhecem-se desde sempre, e tenho a certeza de que trarão as mulheres e os filhos. Travis já não costuma usar o parasail com frequência; é por isso que o mantém ancorado na marina. Habitualmente utiliza o barco de esqui, pois o wakeboarding e o esqui aquático são bem mais fáceis. É só entrar no barco, baixar o reboque e seguir. Podem praticar-se em quase todos os sítios. Mas o parasail é fantástico. Por que é que pensa que estou aqui? Devia estar a estudar e, na verdade, abandonei um trabalho de laboratório que devia fazer durante este fim-de-semana. Já fez parasail'?

- Não.

- Vai adorar. E Travis sabe o que faz. Foi por isso que ganhou mais dinheiro para extras quando esteve na universidade. Ou, pelo menos, é isso que ele diz. Na verdade, penso que tudo quanto ganhou foi aplicado na compra do barco; são feitos pela WCS exclusivamente para a prática de parasail e são muito caros. E mesmo que Joe, Matt e Laird sejam amigos dele, durante os seus tempos de estudantes insistiam sempre em se fazer pagar pelos serviços que o barco prestava aos turistas. Tenho a certeza de que Travis não obteve um cêntimo de lucro.

- É, portanto, um empresário esperto?

Stephanie riu-se. - Oh, certamente. O meu irmão é um futuro Donald Trump, concorda? Na realidade, não liga muita importância ao dinheiro, nunca ligou. Quer dizer, ganha a vida à sua maneira, mas tudo o que sobra é para comprar barcos novos ou esquis, ou em viagens aqui e ali. Parece já ter estado em todo o lado. Europa, América Central, América do Sul, Austrália, África, Bali, China, Nepal...

- Verdade?

- Parece surpreendida.

- Confesso que estou.

- Porquê?

- Não sei ao certo. Acho que é por...

- Por ele parecer tão irresponsável? Como se toda a vida fosse uma festa?

- Não!

- Tem a certeza disso?

- Bom... - Gabby engoliu em seco e Stephanie voltou a rir-se.

- É irresponsável e um homem mundano... mas, no fundo, não passa de um rapaz de uma cidade de província, tal como os outros. Se assim não fosse, não conseguiria viver aqui, não acha?

- Acho - respondeu Gabby, sem ter a certeza de que era necessário dar resposta.

- De qualquer das formas, vai adorar. Não tem medo das alturas, pois não?

- Não. Isto é, não me entusiasmo com as alturas, mas tenho a certeza de que consigo aguentar.

- Não é nada de especial. É preciso lembrar-se que está presa a um pára-quedas.

- Não vou esquecer-me.

Lá longe, ouviu-se o bater da porta de um carro e Stephanie endireitou-se na cadeira.

- Aí vêm os *Clampetts* - anunciou Stephanie. - Ou, se preferir, os Brady Bunch. Prepare-se. A nossa manhã de relaxamento chegou ao fim.

Gabby voltou-se e viu um grupo barulhento a dar a volta à esquina da casa. Soavam conversas, gritarias, e as crianças corriam à frente dos

 

*Personagens de uma série televisiva.

 

adultos, com aquele andar vacilante que as faz parecer constantemente prestes a cair.

Stephanie inclinou-se mais para Gabby. - É fácil distingui-los, acredite ou não. Megan e Joe são os de cabelo louro. Laird e Allison são os altos. Quanto a Matt e Liz... são menos magros que os outros.

Os cantos dos lábios de Gabby curvaram-se ligeiramente para cima. - Menos magros?

- Não quis dizer que eram gorduchos. Estava apenas a tentar facilitar-lhe a vida. Em teoria, detesto ser apresentada a um magote de pessoas e não me lembrar dos nomes delas um minuto depois.

- Em teoria?

- Não me esqueço de nomes. É um pouco estranho, mas nunca esqueço.

- O que é que a leva a pensar que eu os esqueço?

Stephanie encolheu os ombros. - Eu e você não somos a mesma pessoa.

Gabby voltou a rir-se, a gostar mais dela a cada minuto que passava. - E quanto aos miúdos?

- Tina, Josie e Ben. Ben é fácil de distinguir. Basta recordar-se de que Josie é que tem rabo-de-cavalo.

- E se ela não vier de rabo-de-cavalo da próxima vez que eu a vir? Stephanie sorriu. - Porquê? Está a pensar vir regularmente? E o seu namorado?

Gabby abanou a cabeça. - Não, não percebeu o que eu quis dizer...

- Estava a provocá-la. Credo, é tão sensível!

- Não tenho a certeza de conseguir lembrar-me de todos.

- Pois bem, tente uns truques de memória. Para Tina, pense em Tina Louise, a de Gilligan's Island. Ginger? A estrela de cinema? Também tem cabelo ruivo.

Gabby anuiu.

- Muito bem, para Josie, pense em Josie e os Gatos de Botas. Quanto a Ben... que é do género grande e quadrado para a idade, pense no Big Ben, aquele gigantesco relógio inglês.

- Bom...

- Falo a sério. É uma verdadeira ajuda. Ora, Joe e Megan... os louros, imagine o boneco GI Joe a combater um megaloãon, um daqueles gigantescos tubarões pré-históricos. Gravou bem a imagem?

Gabby voltou a acenar que sim.

- Para Laird* e Allison, imagine um allosaurus altíssimo metido na toca. E, finalmente, para Matt e Liz... - pausa. - Oh, já sei... imagine a Elizabeth Taylor deitada numa esteira**, a comer couratos

fritos. Está mesmo a perceber?

Foi necessário um minuto para Gabby digerir a informação; Stephanie teve de repetir a descrição e quando acabou interrogou Gabby sobre os nomes, que espantosamente tinha decorado, surpreendendo-se a si mesma.

- Andou perto, hum?

- Muito - admitiu Gabby.

- É uma das minhas áreas de estudo na universidade.

- Faz isto com todas as pessoas que conhece?

- Especificamente, não. Ou melhor, não o faço conscientemente. Para mim, é quase natural. Mas, agora, vai conseguir deixá-los impressionados.

- Preciso de os impressionar?

- Não, mas de qualquer das formas é divertido impressioná-los sugeriu Stephanie dando de ombros. - Pense no que acabo de lhe propor. Mas tenho mais uma pergunta para si.

- Avance.

- Como é que eu me chamo?

- Sei como se chama.

- Então diga, qual é o meu nome?

- É... - A boca de Gabby abriu-se mas não saiu qualquer som, a cabeça não funcionou.

- Stephanie. Apenas Stephanie.

- O quê? Sem truques de memória?

- Não. Desse terá de se recordar - sugeriu ao pôr-se de pé.

- Vamos lá, agora que conhece os nomes deles, deixe que vá à frente para os apresentar. E finja que ainda não sabe quem eles são, para mais tarde os poder impressionar.

As apresentações foram feitas a Megan, Allison e Liz, enquanto elas observavam os filhos a correr uns atrás dos outros; Joe, Laird e Matt tinham entretanto descido para o ancoradouro, carregados de toalhas e geleiras, ao encontro de Travis.

 

* Laird significa toca.

** Mace lê-se como Mate (esteira).

 

Stephanie abraçou cada um deles e a conversa derivou para os progressos escolares dela. O mais espantoso é que os truques de memória continuavam a funcionar. Gabby pôs a hipótese de usar o sistema com alguns dos pacientes, até se recordar de que os nomes deles constavam do processo que tinha na mão quando os atendia.

No entanto, com alguns dos colegas de trabalho de Kevin...

- Eh! Todos prontos? - bradou Travis. - Nós estamos prontos.

Gabby seguia um passo atrás do grupo, ajustando a T-shirt que vestira por cima do biquini. No fim de contas, decidira que agiria conforme o que as outras mulheres levassem vestido: podia despir a T-shirt ou os calções, ou nenhuma das peças, e convencer-se de que não tivera em conta as recomendações da mãe.

Os homens já estavam dentro do barco quando o grupo chegou ao embarcadouro. As crianças vestiam coletes de salvação e foram passadas a Joe; Laird estendeu a mão para ajudar cada uma das mulheres a subir a bordo. Gabby entrou, preocupando-se em manter o equilíbrio, surpreendida com as dimensões do barco. O comprimento excedia, num bom metro e meio, o do barco que Travis usava para fazer esqui, tinha bancos corridos de ambos os lados, onde se concentrava a maioria dos adultos e das crianças. "À... proa? Seria... à popa?" Gabby gostaria de saber, mas acabou por sacudir a ideia. Fosse o que fosse. Na pane posterior do barco havia uma cadeira larga, uma manivela e um guindaste, junto dos quais seguia Travis, que conduzia. (GI Louro) Joe estava a desatar o cabo que mantinha o barco ancorado, enquanto Laird (toca) o enrolava. Instantes depois, Joe foi sentar-se num lugar perto de Travis, enquanto Laird se aproximava de Josie (Gato de Botas).

Gabby abanou a cabeça, a pensar que a identificação era espantosa.

- Sente-se ao pé de mim - comandou Stephanie, dando uma palmada num assento ao lado dela.

Sentou-se e pelo canto do olho viu Travis enfiar um boné de basebol que tinha guardado numa gaveta. O boné, que ela sempre considerara ridículo em adultos, adequava-se de certa maneira ao comportamento descuidado dele.

- Toda a gente pronta? - indagou.

Não esperou pela resposta e o barco rugiu para a frente, abrindo caminho por entre a ondulação fraca. Atingiram a entrada da pequena baía e viraram para sul, entrando nas águas de Back Sound. Aproximavam-se de Shackleford Banks e das suas dunas bordadas de erva.

Gabby inclinou-se para Stephanie. - Para onde é que vamos?

- O mais provável é irmos para Cape Lookout. A menos que o braço de mar esteja relativamente desimpedido, o mais certo é apontarmos para a baía interior, e depois para Onslow Bay. Depois, fazemos o piquenique dentro do barco, em Shackleford Banks ou em Cape Lookout. De certo modo, o programa depende do sítio até onde chegarmos e da disposição de todos. Uma grande parte depende das crianças. Espere um pouco... - pediu, voltando-se para Travis. - Eh, Trav! Posso ir para o leme?

Ele ergueu os olhos do volante. - Desde quando é que gostas de conduzir o barco?

- Desde agora. Desde há bocado.

- Mais tarde.

- Penso que devia conduzir.

- Porquê?

Stephanie abanou a cabeça, como se a estupidez dos homens a maravilhasse. Ergueu-se do seu lugar e despiu a T-shirt sem saber o que fazia.

- Volto já, está bem? Tenho de falar com o idiota do meu irmão.

Enquanto Stephanie se dirigia para a popa da embarcação, Allison fez um aceno na direcção dela.

- Não deixe que ela a assuste. É assim que ela e o Travis falam um com o outro.

- Penso que são amigos.

- São os melhores amigos, embora ambos o neguem. Se lhe perguntassem, é provável que Travis dissesse que Laird é o seu melhor amigo. Ou o Joe ou o Matt. Qualquer um, menos a Stephanie. Mas eu sei o que digo.

- Laird é o seu marido, não é? O que tem a Josie ao colo? Allison não conseguiu esconder a surpresa. - Lembrou-se? Só falámos durante um segundo.

- Tenho boa memória para nomes.

- Tem de ter. Já conhece toda a gente?

A mostrar-se satisfeita consigo própria, Gabby recitou o nome de cada um dos passageiros.

- Caramba! É mesmo como a Stephanie. Não admira que se dêem tão bem.

- Ela é fantástica.

- Sem dúvida, uma vez que a conheçamos. Mas é preciso algum tempo para nos habituarmos a ela - acrescentou Allison, enquanto observava Stephanie a dar uma descompostura ao irmão, a segurar-se ao barco com uma das mãos e gesticulando com a outra.

- Como é que conheceu o Travis? Stephanie deu a entender que mora por perto.

- Na verdade, moramos um ao lado do outro.

- E?

- E... bom, digamos que é uma longa história. Resumindo, a minha cadela, a Molly, teve umas dificuldades com as crias e Travis foi muito simpático, foi lá a casa e tratou dela. Depois disso, convidou-me para vir.

- Tem muito jeito para os animais. E também para os miúdos.

- Há quanto tempo se conhecem?

- Há muito. Laird e eu conhecemo-nos na faculdade e Laird apresentou-me a Travis. São amigos desde crianças. Na verdade, ele foi padrinho no nosso casamento. E falando do diabo... Olá, Travis.

Travis retribuiu o cumprimento. - Olá. Vamos ter um lindo dia, não é?

Atrás dele, Stephanie ia inclinada sobre o volante, a fingir que não estava a observá-los.

- Esperemos que não haja vento a mais. - Allison olhou à volta. - Não me parece.

- Porquê? - inquiriu Gabby. - O que é que acontece se o vento for demasiado.

- Nada de bom para fazerparasail-explicou Travis. - Basicamente, o pára-quedas pode fechar-se bruscamente e os cabos podem emaranhar-se, as últimas coisas que desejamos possam acontecer a um pára-quedas.

Gabby imaginou-se no ar, a rodar sem controlo e com a água a aproximar-se.

Travis tratou de a acalmar. - Não se preocupe. Se suspeitar de que poderá haver algum problema, ninguém sobe.

Allison interrompeu-o: - Espero que não haja. Mas gostava de propor que o primeiro fosse o Laird.

- Porquê?

- Porque devia ter pintado o quarto da Josie durante a semana, prometeu repetidamente que o faria, mas cumpriu? É claro que não. Seria bem feito.

- Terá de ocupar o lugar dele na fila. A Megan já propôs que Joe seja o primeiro. Uma espécie de castigo por não passar tempo suficiente com a família, depois de sair do emprego.

Ouvi-los falar com aquela familiaridade, fez Gabby sentir-se uma mera observadora. Gostaria que Stephanie não a tivesse deixado só; por estranho que lhe parecesse, já sentia que Stephanie era a única pessoa de Beaufort a quem talvez pudesse tratar como amiga.

- Segurem-se! - gritou Stephanie, ao fazer rodar o volante do leme.

Travis agarrou-se instintivamente à amurada quando o barco bateu numa grande onda, empinando a proa que depois mergulhou com estrondo. A atenção de Allison desviou-se para os miúdos e correu para Josie, que caíra e já começara a chorar. Laird apanhou-a com uma das mãos e pô-la de pé.

- Devias estar a segurar na menina! - protestou Allison, estendendo os braços para a filha. - Vem cá, meu amor. A mamã já cá está...

- Estava a segurá-la! - protestou Laird. - Talvez se a nossa campeã estivesse a ver o que fazia...

- Não me metas nisso - replicou Stephanie, abanando a cabeça.

- Avisei para que se segurassem, mas talvez não tenhas ouvido. Não me parece que esteja na minha mão controlar a ondulação.

- Mas podias ir um pouco mais devagar...

Travis abanou a cabeça e sentou-se ao lado de Gabby.

- Isto é sempre assim? - perguntou ela.

- Mais conversa menos conversa. Pelo menos desde que os miúdos começaram a vir connosco. Convença-se de que cada um deles vai ter o seu momento de choro ao longo do dia. É o que torna isto interessante - comentou. Afastou os pés e reclinou-se no banco. - Como é que se deu com a minha irmã?

Com o Sol por detrás dele, era difícil avaliar-lhe a expressão. - Gosto dela. Ela é... única.

- Também parece gostar de si. Se não tivesse gostado de si, posso garantir-lhe que não deixaria de me dizer. Inteligente como é, nem sempre sabe quando deve guardar as suas opiniões só para ela. Se me perguntasse, responderia que penso que foi adoptada pelos meus pais.

- Não me parece. Se você deixasse crescer um pouco mais o cabelo, poderiam passar por duas irmãs.

Ele soltou uma gargalhada. - Parece que já fala como ela.

- Acho que ela me passou o jeito.

- Já teve ocasião de conhecer todos os outros?

- Por breves instantes. Conversei um pouco com a Allison, mas foi tudo.

- São o mais simpático grupo de pessoas que alguma vez conheceu - fez notar Travís. - São mais familiares do que amigos.

Gabby viu Travis tirar o boné de basebol, percebendo subitamente o que tinha acontecido. - A Stephanie mandou-o para aqui para falar comigo, não foi?

- Pois foi - admitiu Travis. - Recordou-me que você era minha convidada e que estava a ser malcriado ao não procurar saber se estava a sentir-se bem.

Ela fez um gesto com a mão. - Estou óptima. Se quiser voltar a conduzir o barco, esteja à vontade. Para me sentir contente basta-me observar a paisagem.

- Já alguma vez foi a Cape Lookout? - perguntou Travis.

- Não.

- É um parque natural e há uma laguna fantástica para as crianças, pois não é batida pelas ondas. E do outro lado, do lado do Atlântico, há uma praia de areia branca, ainda pura, que agora é quase impossível de atingir.

Quando Travis se calou, Gabby reparou que ele desviara a atenção para Beaufort. O perfil da cidade era visível; para lá da muralha da marina, onde os barcos apontavam para o alto como se fossem dedos erguidos, viam-se os restaurantes que se alinhavam na margem. Para onde olhasse, via barcos ejet skis a passar, deixando esteiras de espuma atrás deles. Mesmo sem querer, tomou consciência da maneira suave como o corpo de Travis se encostava ao dela, acompanhando o deslizar do barco sobre a água.

- É uma bonita cidade - acabou por dizer.

- Sempre a adorei - anuiu Travis. - Enquanto estava a crescer, costumava sonhar ir viver numa grande cidade, mas, no fim de contas, esta é a minha casa.

Viraram-se para a baía interior. Para trás deles, a cidade de Beaufort foi-se tornando mais pequena; em frente, as águas da Onslow Bay abraçavam o Atlântico. Uma nuvem solitária deslizava nas alturas, gorda e cheia de água, como se fosse formada por neve. O céu de um azul pálido estendia-se por sobre a água que formava prismas dourados pelo sol. A seu tempo, a actividade frenética de Back Sound deu lugar a uma espécie de isolamento, apenas quebrado por uma embarcação ocasional, vista a entrar nas águas baixas de Shackleford Banks. Os três casais que seguiam mais à proa do barco pareciam enfeitiçados pela paisagem e até as crianças pareciam ter sossegado. Sentadas confortavelmente ao colo dos pais, de corpos relaxados, pareciam preparar-se para dormir. Gabby sentia o vento a soltar-lhe os cabelos e o afago morno do sol.

- Eh, Trav! - chamou Stephanie. - Isto serve.

Travis acordou sobressaltado dos seus sonhos e olhou à volta.

- Avançamos um pouco mais. Quero ter a certeza de que dispomos de espaço suficiente. Temos uma principiante a bordo.

Stephanie assentiu e o barco voltou a ganhar velocidade.

Gabby inclinou-se para ele. - A propósito, como é que isto funciona?

- É fácil. Começo por encher o pára-quedas, utilizo aquela barra e preparo-o para o prender aos arneses - começou, apontando para o canto formado pela amurada e pela popa. - A seguir, o par que vai voar põe os arneses, eu prendo-os à barra e o par senta-se na cadeira. Começo a rodar a manivela e o par levanta voo. São precisos uns minutos para que atinjam a altitude ideal e depois... bem, flutuam à volta do barco. Conseguem uma panorâmica fantástica de Beaufort e do farol e, como o ar está tão límpido, poderão avistar várias espécies de golfinhos, raias, tubarões e até tartarugas. Até já avistei baleias. Podemos diminuir a velocidade, fazê-la molhar os pés e mandá-la outra vez lá para cima. É um espanto.

- Falou em tubarões?

- Claro. Estamos no oceano.

- Eles mordem?

- Alguns. O tubarão-touro pode ser bastante perigoso.

- Nesse caso, prefiro não molhar os pés, muito obrigada.

- Não há que ter qualquer receio. Não vão atormentá-la.

- Para si é fácil de dizer.

- Nunca, nos muitos anos que levo a fazer isto, ouvi dizer que alguém tivesse sido mordido por um tubarão enquanto fazia parasail. O mergulho dos pés durará, no máximo, dois ou três segundos. E os tubarões costumam alimentar-se ao crepúsculo.

- Não sei...

- E se eu for consigo? Nesse caso, tentará? Não devia perder uma experiência dessas.

Gabby hesitou e a seguir anuiu com um aceno ligeiro. - Vou pensar nisso. Não prometo nada.

- É justo.

- É claro que está a partir do princípio de que vamos voar juntos. Travis piscou-lhe um olho e brindou-a com um dos seus sorrisos

radiantes. - É evidente.

Ela tentou evitar a sensação de ter o estômago aos pulos. Para disfarçar, pegou na mala e tirou de lá uma loção. Depois de pôr um pouco na mão, começou a aplicar a loção nas faces, muito nervosa e a tentar mudar de assunto.

- A Stephanie disse-me que tem andado por todo o mundo.

- Já viajei um bocado.

- Ela deu-me a entender que terá sido um grande bocado. Que andou praticamente por todos os lados.

Travis abanou a cabeça. - Bem gostaria. Acredite que há muitos lugares que não vi.

- Qual é o seu lugar preferido?

Ele precisou de tempo para responder, ficou a sorrir com ar melancólico. - Não sei.

- Ora bem... aonde é que sugeriria que eu fosse?

- As coisas não acontecem assim - respondeu Travis.

- O que é que quer dizer?

- Viajar não é propriamente ver coisas, o mais importante é experimentá-las... - reflectiu, a observar as ondas, a ordenar as ideias. - Deixe que ponha a questão nestes termos. Quando saí da faculdade não tinha a certeza do que queria fazer; por isso, tirei um ano para ir conhecer o mundo. Tinha poupado algum dinheiro, não tanto quanto pensei que necessitava, mas peguei nas minhas coisas e na bicicleta e apanhei um avião para a Europa. Passei lá os primeiros três meses... a fazer justamente o que me apeteceu e que raramente tinha algo a ver com o que poderia ter pensado fazer. Nem sequer organizara um itinerário. Não me interprete mal, vi muitas coisas. Contudo, quando me lembro daqueles meses, o que mais recordo são os amigos que fui fazendo pelo caminho e os bons momentos que passámos juntos. Como aconteceu em Itália, visitei o Coliseu de Roma e andei ao longo dos canais de Veneza, mas aquilo de que me lembro verdadeiramente é de um fim-de-semana passado em Bari, uma cidade da parte meridional do país, que não consta dos roteiros e de que provavelmente não terá ouvido falar, com uns estudantes que conhecera. Levaram-me para um pequeno bar, onde tocava uma banda da terra, e embora a maioria deles não soubesse uma palavra de inglês, e de o meu italiano se limitar às palavras da ementa, divertimo-nos durante toda a noite. Depois, levaram-me a visitar Lecce e Matera, e pouco a pouco tornámo-nos amigos. E passei por situações semelhantes em França, na Noruega e na Alemanha. Ficava em pensões sempre que necessário mas, na maioria dos casos, chegava a uma cidade e conhecia alguém que me oferecia alojamento durante algum tempo. Procurava empregos estranhos para conseguir mais algum dinheiro e, logo que estava preparado para uma nova experiência, punha-me a mexer. De início, pensei que era fácil por que a Europa e a América têm muito em comum. Mas aconteceu-me o mesmo quando fui à Síria, à Etiópia, à África do Sul, ao Japão e à China. Por vezes, quase me parecia que fora predestinado para fazer aquela viagem, que todas as pessoas estavam de certa forma à minha espera. Mas... Fez uma pausa, olhando directamente para Gabby.

- Mas agora sou uma pessoa diferente. Tal como era diferente no início e no final da viagem. E amanhã serei diferente do que sou hoje. Significa isto que aquela viagem nunca poderá ser repetida. Mesmo que fosse aos mesmos lugares, que me encontrasse com as mesmas pessoas, não seria a mesma viagem. A minha experiência não seria a mesma. Para mim, viajar deveria significar isso. Conhecer pessoas, aprender não só a apreciar uma cultura diferente mas também a apreciá-la como um habitante local, seguindo todos os impulsos que se imponham. Então, se nem eu próprio sei aquilo com que poderia contar, como poderia eu recomendar uma viagem a alguém? O meu conselho seria inscrever nomes de lugares em cartões, misturar os cartões e escolher cinco deles ao acaso. Depois... bem é partir e ver o que acontece. Se tivermos um propósito coerente, não interessa aonde vamos parar e a quantia que levamos no bolso. Será qualquer coisa para recordar durante toda a vida.

Gabby manteve-se em silêncio, a interiorizar tudo aquilo. - Caramba! - acabou por exclamar.

- O que é?

- Contada por si, a viagem pareceu-me tão... romântica.

No silêncio que se seguiu, Stephanie começou a diminuir a velocidade do barco e Travis endireitou-se na cadeira. Quando a irmã o interrogou com o olhar, acenou com a cabeça e pôs-se de pé. Stephanie baixou a rotação do motor, diminuindo ainda mais a velocidade do barco.

- Estamos prontos - anunciou Travis e dirigiu-se para a caixa dos apetrechos. Tirando o pára-quedas, perguntou: - Está preparada para uma nova experiência?

Gabby engoliu em seco. - Estou ansiosa por começar.

 

Uma vez enchido o pára-quedas e postos os arneses, Joe e Megan foram os primeiros a subir, seguidos de Allison e Laird, depois por Matt e Liz. Um a um, os casais subiam e o cabo de reboque era desenrolado até atingirem a altitude de 30 metros. Do ponto do barco onde Gabby estava, pareciam pequenos e irrelevantes ao serem levados à deriva pelo ar. Travis, que substituíra Stephanie no leme, mantinha a embarcação em velocidade constante, fazendo curvas largas, e gradualmente diminuía a velocidade, permitindo que os rebocados deslizassem em direcção ao mar. Logo que os pés deles roçavam a água, aumentava subitamente a rotação do motor e o pára-quedas voltava a elevar-se rapidamente, como se fosse um papagaio puxado por um rapazinho a correr pelo parque.

Toda a gente pairava quando eles se dirigiram para a cadeira, todos falavam dos peixes ou golfinhos que tinham visto, mas a conversa não evitou que Gabby sentisse um crescente nervosismo ao ver que estava a chegar a sua vez. Deitada à proa, de biquini e untada, empunhando uma cerveja, Stephanie estava a trabalhar para o bronze. Ergueu a cerveja numa saudação.

- Prazer em conhecer-te, miúda.

Travis atirou o boné de basebol para longe. - Vamos - sugeriu a Gabby. - Vou ajudá-la a amarrar o arnês.

Ao descer da cadeira, Liz entregou-lhe o colete salva-vidas.

- É tão divertido! - exclamou. - Vai adorar.

Travis conduziu Gabby para a cadeira. Depois de ter subido, dobrou-se e estendeu-lhe a mão. Ela reparou no calor daquela mão. O arnês jazia amarrotado e ele apontou para duas aberturas.

- Enfie os pés nas aberturas e puxe para cima. Eu aperto as correias.

Gabby ajustou os cintos de tela ao corpo rígido. -Já está?

- Quase. Quando se sentar na cadeira mantenha o cinto mais largo por baixo das coxas. Não deve querê-lo por baixo... do rabo, pois dessa forma não suportará tão bem o seu peso. E talvez seja melhor despir a blusa, a menos que não se importe de a molhar.

Despiu a blusa, tentando manter-se calma.

Se Travis notou algum sinal de perturbação, não se manifestou. Em vez disso, prendeu o cabo do arnês dela à barra, depois fez o mesmo

com o dele, fazendo-lhe sinal para se sentar.

- Está por debaixo das coxas, certo? - perguntou Travis. Quando Gabby acenou que sim, ele sorriu. - Agora descontraia-se e divirta-se, está bem?

Um segundo depois, Joe acelerou, o pára-quedas enfunou-se, Gabby e Travis foram arrancados do convés. Gabby sentiu que no barco todos tinham os olhos postos nela enquanto subiam em diagonal em direcção ao céu. Agarrou-se aos cintos de tela com tanta força que os nós dos dedos ficaram brancos, enquanto o barco parecia encolher. Reparou no cabo de reboque que os prendia ao barco como uma armadilha hipnótica. Depressa lhe pareceu que subira mais do que qualquer um dos casais que os precederam e ia dizer qualquer coisa quando sentiu Travis tocar-lhe no ombro.

- Olhe para ali! - exclamou, a apontar para o mar. - É uma raia! Está a vê-la?

Gabby viu-a, negra e lustrosa, movendo-se abaixo da superfície como uma borboleta filmada em câmara lenta.

- E um grupo de golfinhos! Acolá! Perto da margem!

O nervosismo começou a desaparecer com a observação daquelas maravilhas. Passou a interessar-se por tudo o que se passava lá em baixo: a cidade, as famílias estendidas nas praias, as embarcações, a água. Ao descontrair-se, pensou que talvez conseguisse aguentar-se ali em cima durante uma hora sem se sentir cansada. Era uma sensação extraordinária, a de sentir-se planar àquela altura, deslizando sem esforço com as correntes de ar, como se fosse uma ave. Apesar do calor, sentia o corpo refrescado pela brisa e ao mexer os pés para diante e para trás sentia o arnês balouçar.

- Quer mergulhar? - perguntou Travis. - Prometo que vai ser divertido.

- Vamos a isso - concordou. A voz pareceu-lhe estranhamente confiante.

Travis envolveu-se numa rápida troca de sinais de mãos com Joe e, lá em baixo, o roncar do motor diminuiu subitamente. O pára-quedas começou a descer. De olhos postos na água para onde descia velozmente, examinou a superfície do mar para se certificar de que não andava qualquer animal por ali.

O pára-quedas mergulhou mais e mais e, mesmo tendo erguido as pernas, Gabby sentiu a água fria atingir-lhe o corpo abaixo da cintura. No preciso momento em que esperava começar a sulcar a água, o barco acelerou e foram atirados novamente para o ar. Sentiu a adrenalina percorrer-lhe as veias e nem tentou conter um largo sorriso.

Travis deu-lhe uma leve cotovelada. - Viu? Não foi assim tão mau.

- Podemos repetir? - perguntou.

Travis e Gabby continuaram durante mais um quarto de hora, mergulhando mais duas ou três vezes; depois de eles regressarem ao barco, cada um dos outros casais subiu mais uma vez. Por essa altura, o Sol já ia alto e os garotos começavam a ficar desassossegados. Travis dirigiu o barco para a angra de Cape Lookout. A profundidade diminuiu e a embarcação parou; Joe lançou a âncora borda fora, tirou a camisa e saltou para a água, seguindo a âncora. A água dava-lhe pelo peito e, com uma facilidade resultante da prática, Matt passou-lhe uma geleira. Matt despiu a camisa e também saltou para a água; Laird entregou-lhe outra geleira e em seguida saltou também, tendo sido substituído por Travis. Quando chegou a sua vez de entrar na água, Travis levou consigo um pequeno grelhador portátil e um saco de briquetes. Em simultâneo, as mães saltaram para a água e tomaram conta dos filhos. Dentro de minutos, só Gabby e Stephanie continuavam no barco. Gabby ficou na popa, a pensar se deveria ir ajudar, enquanto Stephanie, que parecia alheada da azáfama, permanecia esparramada nos bancos da proa, sempre exposta ao sol.

- Estou de férias, por isso não vejo necessidade de oferecer os meus serviços - anunciou, mantendo o corpo tão imóvel quanto a embarcação. - E eles são muito bons naquilo, não sinto remorsos por ser uma mandriona.

- Você não é mandriona.

- É evidente que sou. Cada pessoa, uma vez por outra, devia ser mandriona. Como disse Confúcio: "O que não faz nada é o que faz coisa nenhuma."

Gabby reflectiu sobre as palavras e ergueu as sobrancelhas. - Confúcio disse mesmo isso?

Abrigada por detrás dos óculos de sol, Stephanie respondeu-lhe com um ligeiro encolher de ombros. - Não, mas quem é que se preocupa com isso? A questão é esta: eles manobraram bem, e o mais certo é que a sua destreza lhes tenha proporcionado uma espécie de auto-satisfação. Quem sou eu para os privar desse prazer?

Gabby pôs as mãos nas ancas. - Ou talvez lhe apetecesse apenas preguiçar.

Stephanie sorriu. - Como Jesus disse: "Abençoados os madraços que ficam deitados nos barcos, pois herdarão um bronzeado."

- Jesus não disse nada disso.

- Pois não - concordou Stephanie ao sentar-se. Tirou os óculos, observou as lentes e limpou-as com a toalha. - Mas, uma vez mais, quem é que se preocupa com isso? - perguntou, de olhos semicerrados. - Está mesmo interessada em carregar geleiras e tendas daqui até à praia? Acredite no que lhe digo, a experiência está sobrevalorizada comentou. Depois de ajustar o top, pôs-se de pé. - Ora bem, temos caminho livre. É melhor irmos andando - acrescentou ao pôr o saco de praia a tiracolo. - Temos de saber quando se pode recorrer à preguiça. Correctamente interpretada, é uma forma de arte que só traz benefícios.

Gabby hesitou. - Não sei bem porquê, mas julgo gostar da maneira como pensa.

Stephanie soltou uma gargalhada. - É claro que gosta. Ser preguiçoso faz parte da natureza humana. Mas é bom saber que não sou a única pessoa a compreender essa verdade essencial.

Quando Gabby se aprestava para negar, Stephanie saltou para a água, salpicando tudo até à amurada do barco. - Vamos! - exclamou sem deixar que Gabby falasse. - Estava a brincar. E, a propósito, não pense duas vezes sobre o que fez ou não fez. Como lhe disse, estas pessoas tiram prazer da execução destas pequenas tarefas que lhes despertam sentimentos paternais e maternais; e era assim que o mundo deveria funcionar. Como mulheres solteiras, tudo o que temos a fazer é desfrutar do que eles fazem.

Montar o acampamento assim como sair do barco e descarregar as coisas eram tarefas que decorriam de forma informalmente ritualizada, com cada pessoa a saber exactamente o que tinha de fazer. Foi instalada uma tenda, as mantas estendidas, e o carvão do grelhador aceso. Continuando a inactividade que a caracterizara no barco, Stephanie limitou-se a pegar numa cerveja e numa toalha, a escolher um lugar e a retomar o banho de sol. Gabby, sem saber o que se esperava dela, fez exactamente o mesmo. Sentiu os efeitos do sol quase de imediato e deixou-se ficar deitada, tentando ignorar o facto de que toda a gente, com excepção de Stephanie, parecia estar a fazer fosse o que fosse.

- Precisa de aplicar protector solar - avisou Stephanie. Sem erguer a cabeça, apontou para o saco que trouxera consigo. - Use o tubo de índice de protecção 50. Se não o aplicar, com essa pele tão branca dentro de meia hora parecerá uma lagosta. Esse protector contém zinco.

Gabby pegou no saco de Stephanie. Gastou uns minutos a aplicar o creme; realmente o sol encontraria uma maneira terrível de a castigar se deixasse qualquer ponto exposto. Não era como as irmãs ou a mãe, tinha herdado o tom de pele do pai irlandês. Era uma das pequenas maldições da sua vida.

Quando acabou, deitou-se sobre a toalha, continuando a sentir remorsos por não estar a ajudar em qualquer coisa para pôr a mesa ou preparar o almoço.

- Como é que foi o voo com o Travis?

- Fantástico! - resumiu Gabby.

- Só para lhe lembrar, ele é meu irmão, como sabe. Gabby fez girar a cabeça para lhe lançar um olhar inquisitivo.

- Eh! - defendeu-se Stephanie. - Só estava a lembrar-lhe isso, para que perceba até que ponto eu o conheço bem.

- O que é que isso interessa?

- Penso que ele gosta de si.

- E eu penso que você julga estarmos ainda no sétimo ano.

- O quê? Não lhe interessa?

- Não.

- Por ter namorado?

- Entre outros motivos.

Stephanie riu-se. - Oh, essa é boa. Se não a conhecesse, era capaz de acreditar.

- Mas não me conhece!

- Ah... isso é que conheço. Acredite ou não, sei exactamente quem você é.

- Ah, sim? De onde é que sou?

- Não sei.

- Fale-me da minha família.

- Não posso.

- Sendo assim, não me conhece, pois não?

Passados instantes, Stephanie rolou de forma a ficar de frente para ela. - A verdade é que conheço - replicou, sem esconder o tom de desafio. - Ora bem, que me diz a isto? É uma boa rapariga e sempre o foi, mas, lá no fundo, pensa que a vida não devia resumir-se a cumprir as normas, havendo uma parte de si que anseia pelo desconhecido. Se for honesta consigo, verá que Travis faz parte desse mundo. É selectiva no que diz respeito ao sexo mas, quando se liga a alguém, os padrões que normalmente a refreariam são atirados janela fora. Pensa que vai casar com o seu namorado, mas não consegue deixar de questionar os motivos de não usar um anel de noivado. Adora a sua família, mas quer tomar as suas próprias decisões sobre o futuro, sendo esse um dos motivos de estar a viver aqui. No entanto, preocupa-se com a possibilidade de as suas escolhas desagradarem à família. Como é que vou, até agora?

Ao ouvi-la, Gabby fora empalidecendo. Interpretando a palidez como um tiro em cheio, Stephanie apoiou-se num cotovelo. - Quer que continue?

- Não.

- Tenho razão, não tenho?

Gabby expirou ruidosamente. - Não em tudo.

- Não?

- Não.

- Onde é que me enganei?

Em vez de responder, Gabby abanou a cabeça e rolou sobre a toalha. - Não quero falar desse assunto.

Esperou que a outra insistisse mas, em vez disso, Stephanie limitou-se a encolher os ombros e a deitar-se de costas na toalha, como se tivesse decidido calar-se de uma vez.

Gabby conseguia ouvir os sons das crianças que brincavam na praia e pedaços, indistintos, de conversas distantes. As conclusões de Stephanie tinham-lhe posto a cabeça a andar à roda; era como se a mulher a tivesse conhecido durante toda a vida e estivesse a par dos seus mais recônditos segredos.

- A propósito, no caso de ser propensa a emocionar-se, talvez devesse informá-la de que sou vidente - observou Stephanie. - Esquisito, mas é verdade. Herdei o dom da minha avó, tanto quanto sei. A mulher ficou famosa por prever o tempo.

Ao sentir-se percorrida por uma grande sensação de alívio, sentou-se e perguntou, mesmo sabendo que a ideia não tinha pés nem cabeça:

- De verdade?

Stephanie riu-se de novo. - Não, claro que não! A minha avó viu o Let's Make a Deal durante anos e nem uma vez se antecipou aos concorrentes. Mas seja franca. Tive razão quanto ao essencial, não tive?

As palavras dela voltaram a pôr a cabeça de Gabby às voltas, deixando-a tonta. - Mas como...?

- Calma - pediu Stephanie, voltando a deitar-se de costas. - Limitei-me a inserir as suas "espantosas experiências pessoais" no padrão referente a quase todas as mulheres que alguma vez viveram. Mas é bastante estranho, não é? Para que saiba, também estudo isso. Tomei parte em meia dúzia de estudos e sempre me espantou que, se conseguirmos ver por entre a confusão, as pessoas são muito semelhantes. Especialmente durante a adolescência e nas primeira fases da idade adulta. Na maioria dos casos, as pessoas vivem as mesmas experiências e pensam as mesmas coisas mas, quaisquer que sejam os motivos, ninguém escapa à crença de que a sua experiência é única em todos os sentidos.

Gabby deixou-se ficar deitada em cima da toalha, decidindo que talvez fosse conveniente ignorar Stephanie durante algum tempo. Por mais que gostasse dela, a mulher punha-lhe a cabeça a andar à roda com demasiada frequência.

- Ah, para o caso de ter sentido curiosidade - observou Stephanie. - Travis não tem namorada. Não é apenas solteiro, está livre.

- Não senti curiosidade.

- Por ter namorado, certo?

- Certo. Mas mesmo que não tivesse, não teria sentido curiosidade.

Stephanie riu-se. - Pois, é claro. Como pude enganar-me a esse ponto? Talvez tenha sido enganada pela maneira como fica parada a olhar para ele.

- Eu não paro a olhar para ele.

- Credo, não seja tão susceptível. Afinal, ele também pára a olhar para si.

 

No lugar onde se encontrava, em cima da toalha, Gabby inalava os odores trazidos por uma ligeira brisa: de carvão a arder, de cachorros quentes, de hambúrgueres e de frango. Apesar da brisa e do protector solar parecia-lhe que a pele começava a ferver. Por vezes, considerava que fora uma ironia os seus antepassados da Escócia e da Irlanda terem passado ao lado de regiões com climas semelhantes, optando por um lugar onde a prolongada exposição ao sol garantia praticamente um melanoma a pessoas como eles, ou, na melhor das hipóteses, rugas; motivo por que a mãe dela usava chapéu, mesmo que a sua permanência ao ar livre se limitasse ao tempo necessário para entrar e sair do automóvel. O facto de estar a sujeitar-se aos malefícios do sol, era um assunto em que Gabby não queria pensar, pois a verdade é que gostava de se ver bronzeada e conseguir o bronzeado fazia-a sentir-se bem. Além disso, não tardaria a vestir a blusa e a forçar-se a arranjar um lugar à sombra.

Depois do último comentário, Stephanie mantinha um silêncio anormal. Com outras pessoas, Gabby teria pensado que seria por desconforto ou timidez; mas Stephanie parecia possuir o tipo de autoconfiança que ela sempre invejara secretamente. Por Stephanie mostrar tanta autoconfiança, Gabby sentia-se confortável ao pé dela, um sentimento que, tinha de admiti-lo, lhe andava a faltar nos últimos tempos. Durante muito tempo, não se sentira bem em casa dos pais; ainda não se sentia à-vontade no emprego; e não sentia nada de parecido com confiança quando se tratava de saber como ia evoluir a relação com Kevin.

Quanto a Travis, era evidente que o homem não a fazia sentir-se à-vontade. Pelo menos quando não tinha a camisa vestida. Ao dar uma espreitadela, viu-o sentado na areia, perto da água, a construir castelos de areia com as três crianças. Quando a atenção delas parecia diminuir, levantava-se e perseguia-as até à laguna de águas baixas, provocando gritos de alegria que enchiam o ar. Travis parecia estar a divertir-se como qualquer dos miúdos e a visão fê-la ter vontade de sorrir. Forçou-se a não o fazer por recear que ele a visse e tirasse conclusões erradas.

O aroma acabou por forçar Gabby a levantar-se. Não conseguia afastar de si a ideia de que se encontrava de férias numa ilha exótica e não a escassa distância de Beaufort. As ondas suaves espraiavam-se ritmicamente e, por detrás deles, umas poucas casas de praia vazias pareciam ter sido deixadas cair do céu. Por cima do ombro, viu um carreiro que cortava através das dunas, seguindo na direcção da casa preta e branca do farol, que suportara milhares de temporais.

Por estranho que parecesse, ninguém os seguira para a lagoa, o que só concorria para tornar o lugar mais apetecível. Para o lado de terra, viu Laird, de pé, empunhando uma tenaz, a cuidar do grelhador portátil. Megan estava a alinhar saquinhos de batatas fritas e bolos de passas, e a abrir caixas Tupperware em cima de uma pequena mesa desmontável, enquanto Liz distribuía os condimentos, usando pratos de papel e talheres de plástico. Por detrás delas, Joe e Matt entretinham-se a lançar uma bola para lá e para cá. Da sua infância, não lhe ficaram quaisquer recordações de fins-de-semana em que várias famílias se juntassem para desfrutar da companhia umas das outras num local maravilhoso, só por que era... sábado. Interrogava-se se aquela seria a maneira de viver da maioria das pessoas, ou se teria mais a ver com a vida numa cidade pequena, ou se era apenas um hábito adquirido desde há muito tempo por aquele grupo de amigos. Fosse o que fosse, suspeitava que conseguiria habituar-se a ele.

- O almoço está pronto! - gritou Laird.

Gabby enfiou a blusa e foi caminhando em direcção à comida, surpreendida por sentir tanta fome, até se recordar de que não tomara o pequeno-almoço. Por cima do ombro reparou que Travis não se poupava a esforços para trazer os miúdos, correndo à volta deles como um cão de pastor. As três crianças correram para o grelhador, onde Megan se encontrava de guarda.

- Alinhados nas mantas - ordenou; e os miúdos, obviamente bem treinados naquelas situações, obedeceram.

- A Megan tem poderes mágicos com as crianças - comentou Travis, a falar junto do ombro de Gabby. Estava a ofegar, de mãos na cintura. - Gostaria que me obedecessem assim. Tenho de correr atrás deles até me sentir prestes a desmaiar.

- Mas parece fazer tudo com naturalidade.

- Adoro brincar com eles, não gosto de os conduzir - observou, a inclinar-se para ela com ar de conspirador. - Mas, isto fica entre nós? Com os pais aprendi que, quanto mais brincamos com os seus filhos, mais eles nos adoram. Quando encontram alguém que adore os filhos deles, que aprecie verdadeiramente a companhia deles, digamos que essa pessoa se torna assim uma espécie de gatinho de estimação.

- Gatinho de estimação?

- Sou veterinário. Uso metáforas com animais.

Gabby não pôde deixar de sorrir. - Acho que tem razão quanto às brincadeiras com crianças. A minha tia preferida era a que trepava às árvores comigo e com as minhas irmãs, enquanto todas as outras pessoas crescidas se deixavam ficar sentadas na sala, a conversar.

- E no entanto... - observou Travis, fazendo um sinal na direcção de Stephanie. - Deixou-se ficar deitada na toalha, perto da minha irmã, em vez de aproveitar a oportunidade de demonstrar a estas pessoas que acha os filhos delas irresistíveis.

- Eu...

Travis calou-a com uma piscadela de olho. - Estava a brincar. A verdade é que eu queria estar com eles. É que, passado algum tempo, eles começam a ficar irritantes. Nesse momento, deixo-me cair numa cadeira de praia, limpo o suor da testa e deixo que os pais me substituam.

- Por outras palavras, quando a situação se torna mais dura, o duro retira-se.

- Penso que... quando chegar a altura, eu possa aproveitar os seus serviços como voluntária.

- Pois, obrigada.

- Não tem de quê. Eh, tem fome?

- Estou faminta.

Quando chegaram junto da comida, as crianças encontravam-se sentadas nas mantas com cachorros-quentes, salada de batata e fruta cortada em fatias. Liz, Megan e Allison sentavam-se por perto, suficientemente perto para conseguirem controlar a situação, mas bastante afastadas para poderem conversar. Gabby notou que todas as três estavam a comer frango, com acompanhamentos diversos. Joe, Matt e Laird tinham aproveitado as geleiras para se sentarem com os pratos em cima dos joelhos; as garrafas de cerveja estavam pousadas na areia.

- Hambúrgueres ou frango? - inquiriu Gabby.

- Gosto de frango. Mas os hambúrgueres devem estar estupendos. Acontece apenas que nunca adquiri o hábito de comer carnes vermelhas.

- Pensava que todos os homens comiam hambúrgueres.

Ele endireitou-se. - Então, talvez eu não seja um homem. O que, devo acrescentar, vai ser uma verdadeira surpresa para os meus pais. Que até escolheram para mim um nome masculino e tudo isso.

Ela riu-se. - Bem... - fez um sinal na direcção do grelhador.

- É evidente que guardaram o último pedaço de frango para si.

- Só por termos conseguido chegar aqui antes da Stephanie. Embora preferisse um hambúrguer, teria agarrado no frango, só por saber que eu acabaria por não almoçar.

- Sabia que haveria certamente uma razão para eu gostar dela.

Pegaram em pratos e foram observando a variedade de acompanhamentos espalhados pela mesa: feijões, legumes, batatas, pepinos e saladas de frutas, que exalavam odores deliciosos. Gabby escolheu um bolo de passas, acrescentou um pouco de molho de tomate, mostarda e pickles, e pegou no prato. Ele pôs o pedaço de frango no prato e depois tirou um hambúrguer do grelhador e acrescentou-o ao bolo de passas de Gabby.

Travis despejou umas colheradas de salada no prato; Gabby escolheu um pouco de tudo o que havia. Quando acabou, olhou para os pratos de ambos com uma expressão quase de culpa, que Travis, felizmente, pareceu não notar.

- Quer uma cerveja? - perguntou ele.

- Excelente ideia.

Ele abriu a geleira e pescou uma Coors Light e uma garrafa de água para si próprio.

- Tenho de conduzir o barco - explicou. Ergueu o prato na direcção das dunas. - E se fôssemos para ali?

- Não quer almoçar ao pé dos seus amigos?

- Eles não se incomodam.

- Indique o caminho.

Caminharam com dificuldade pela duna baixa, um local com sombra proporcionada por uma árvore doente, envenenada pelo sal, com todos os ramos apontados na mesma direcção, dobrados por anos de ventos oceânicos. Gabby sentia a areia escorregar-lhe debaixo dos pés. Travis sentou-se perto da duna, baixando-se num único movimento, à maneira dos índios. Gabby sentou-se ao lado dele mas com muito menos graça, procurando deixar entre eles uma distância que evitasse toques acidentais. Mesmo vistas da sombra, as areias e as ondas tinham um tal brilho que a obrigaram a semicerrar os olhos.

Travis começou a partir o pedaço de frango, fazendo dobrar os talheres de plástico.

- Vir para este sítio faz-me recordar a escola secundária - observou. - Nem saberia dizer-lhe quantos fins-de-semana passámos aqui - acrescentou, com um encolher de ombros. - Com raparigas diferentes e sem filhos, está claro.

- Devia ser uma pândega.

- Era. Lembro-me de certa noite em que Joe, Matt e eu estávamos aqui com umas raparigas a quem procurávamos impressionar. Sentados à volta de uma fogueira, a beber cerveja, a contar anedotas e a rir... e recordo-me de ter pensado que a vida não poderia ser melhor.

- Parece um anúncio da cerveja Budwetser. Sem esquecer que eram menores e que tudo aquilo era ilegal.

- E você nunca entrou em nada do género, não é verdade?

- Na verdade, não. Não fiz nada disso.

- De verdade? Nunca?

- Por que é que parece surpreendido?

- Não sei. Julgo... que não consigo vê-la como uma pessoa que cresceu a obedecer a todas as normas - respondeu, embora tentasse emendar a mão ao ver o efeito da resposta. - Não me interprete mal. Não estava a pensar em maus caminhos. Só queria dizer que me parece ser uma pessoa independente, e alguém sempre pronto a entrar em novas aventuras.

- Não sabe seja o que for a meu respeito.

Logo que o disse, recordou-se de ter dado a mesma resposta a Stephanie. Preparou-se para o que podia vir em seguida.

Com ar ausente, Travis remexeu a fruta com o garfo. - Sei que saiu de casa dos seus pais, que comprou casa própria, que está a viver à sua custa. Para mim, a independência é isso. E quanto às aventuras, veio para aqui com um grupo de estranhos, não veio? Fez parasail e, para molhar os pés, até deixou de pensar nos tubarões. Achei-a admirável.

Gabby corou, achando a resposta muito melhor que a da irmã dele.

- Talvez - admitiu. - Mas não é o mesmo que empreender uma viagem à volta do mundo sem ter preparado um itinerário.

- Não se deixe enganar por isso. Julga que não estava nervoso ao aproximar-se a hora da partida? Estava aterrorizado. Uma coisa é alguém gabar-se perante os amigos do que vai fazer e outra, inteiramente diferente, é entrar efectivamente no avião e aterrar num país em que quase ninguém fala inglês. Já viajou?

- Não muito. Para além de umas férias da Páscoa passadas nas Bahamas, nunca saí do país. Como fui directamente para lá, e como nunca me afastei do hotel, estive sempre rodeada por universitários americanos, pelo que o local poderia perfeitamente confundir-se com a Florida - esclareceu. Fez uma pausa. - Aonde é que vai da próxima vez? Qual é a próxima grande aventura?

- Desta vez, não me afastarei muito. Irei a Grand Tetons. Acampar, caminhar a pé, fazer canoagem, o costume. Ouvi dizer que a paisagem é de cortar a respiração e nunca lá fui.

- Vai sozinho?

- Não. Vou com o meu pai. Estou ansioso por partir.

Gabby fez uma careta. - Não consigo imaginar-me numa viagem dessas com qualquer dos meus progenitores.

- Por que não?

- Os meus pais? Para perceber, teria de os conhecer.

Travis aguardou. Em silêncio, ela pôs o prato de lado e esfregou as mãos uma na outra.

- Ora bem - começou, respirando fundo. - Para começar, a minha mãe pertence àquele género de senhoras para quem ficar num hotel de menos de cinco estrelas é o mesmo que viver numa barraca. E quanto ao meu pai? Julgo que consigo imaginá-lo em actividades mais excitantes, tirando o facto de nunca ter manifestado interesse em qualquer coisa, com excepção da pesca. Além disso, nunca vai a sítio algum sem ser acompanhado pela minha mãe; e como ela se mantém fiel aos seus padrões, a única maneira de passarem algum tempo no exterior é jantar num terraço. Com uma lista de vinhos adequada e criados vestidos de preto e branco, é evidente.

- Parece que eles se adoram.

- Deduziu isso do que eu lhe disse?

- Disso e da ideia de que a sua mãe não gosta de grandes espaços ao ar livre - respondeu, soltando uma gargalhada. - Devem ter muito orgulho em si - acrescentou.

- O que é que o leva a dizer isso?

- Por que não haviam de ter?

"Boa pergunta", reflectiu Gabby. "Vamos lá enumerar as razões."

- Digamos que tenho a certeza de que a minha mãe prefere as outras filhas. E, acredite, as minhas irmãs não têm nada a ver com a Stephanie.

- Isso significa que dizem sempre o que é apropriado?

- Não. Significa que são igualzinhas à mamã.

- De onde se conclui que a mamã não pode orgulhar-se de si? Gabby deu uma pequena dentada no hambúrguer, a ganhar tempo

antes de responder. - É complicado - objectou.

- Complicado, como?

- Para começar, sou ruiva. As minhas irmãs são louras, como a mamã.

- E depois?

- Tenho 26 anos e estou solteira.

- Mais?

- Quero ter uma profissão.

- Mais?

- Nada disto se enquadra na imagem da filha que a mamã pretende. Tem ideias definidas sobre o papel das mulheres, nomeadamente das mulheres sulistas com um certo estatuto social.

- Estou ficar com a impressão de que você e a sua mãe não se entendem.

- Ai, está?

Por cima do ombro, reparou que Allison e Laird caminhavam de mãos dadas pelo carreiro que conduzia ao farol.

- Talvez ela tenha ciúmes - sugeriu Travis. - Repare em si, construindo a sua vida, com os seus próprios objectivos e sonhos, independentes dos do mundo em que cresceu, o mundo onde a sua mãe supunha que a filha ia viver, simplesmente por que ela fizera o mesmo. É preciso coragem para construir algo de diferente; daí ser provável que aquilo que você considera desapontamento seja, na realidade, a um nível mais profundo, desapontamento em relação a ela mesma.

Deu uma dentada no frango e aguardou a reacção. Gabby sentia-se confusa. Ali estava uma ideia que nunca lhe passara pela cabeça.

- Não se trata disso - forçou-se a responder.

- Talvez não. Alguma vez lhe perguntou?

- Se ela estava desapontada consigo própria? Julgo que não. E não me diga que seria capaz de confrontar os seus pais dessa forma. Porque...

- É claro que não - admitiu Travis. - De forma alguma. Contudo, tenho a sensação de que provavelmente os seus pais sentem muito orgulho em si, mesmo que não saibam a maneira de expressarem os seus sentimentos.

O comentário dele foi inesperado e afectou-a de um modo estranho. Inclinou-se ligeiramente para ele. - Não sei se tem razão mas, de qualquer modo, fico-lhe agradecida. E não quero que fique com ideias erradas. Falamos pelo telefone todas as semanas e tratamo-nos com cortesia. No entanto, uma vez por outra, desejaria que as coisas fossem diferentes. Adoraria que tivéssemos um relacionamento que nos permitisse gostar realmente de estarmos juntos.

Travis não lhe deu resposta e Gabby sentiu-se aliviada por ele não ter tentado oferecer soluções ou dar-lhe conselhos. Quando manifestara sentimentos semelhantes perante Kevin, o primeiro impulso dele fora propor-lhe um plano para alterar a situação. Encolhendo as pernas, pôs os braços à volta dos joelhos. - Diga-me uma coisa, o que é que mais aprecia na sua profissão?

- Os animais - respondeu Travis. - E as pessoas. Mas o mais provável é que estivesse à espera de uma resposta destas, certo?

Gabby pensou em Eva Bronson. - Quanto aos animais posso compreender...

Travis ergueu as mãos. - Não me interprete mal. Tenho a certeza de que muitas das pessoas com quem lido são muito semelhantes às pessoas que você atura.

- Está a falar de pessoas dominadoras? Neuróticas? Com tendências para a hipocondria? Por outras palavras, malucas?

- É claro. As pessoas são como são e, na sua maioria, consideram os animais domésticos como membros da família. O que, como é óbvio, as leva a exigir um exame completo sempre que desconfiam que o seu animal de estimação não está bem, o que significa trazê-los à consulta pelo menos uma vez por semana, às vezes mais. Sem motivo, na maioria dos casos; mas o meu pai e eu instalámos um sistema para lidar com essas situações.

- Como é que fazem?

- Colocamos um autocolante amarelo na contracapa do processo do animal. Portanto, se Madame Preocupada nos aparece com o Pokie ou o Whiskers, reparamos na etiqueta e, após um exame superficial, dizemos que gostaríamos de ver o cão ou o gato dentro de uma semana, só para ficarmos descansados. Como, de qualquer das maneiras a senhora traria o animal, o sistema facilita o movimento de entradas e saídas do consultório. E toda a gente se sente feliz. Somos veterinários cautelosos e os donos ficam com a certeza de que os seus animais de estimação estão bem, mas que havia motivo para os levar à consulta, pois nós dissemos que gostaríamos de os observar novamente.

- Gostaria de saber como reagiriam os médicos do consultório se eu começasse a colar etiquetas amarelas nuns quantos processos.

- É assim tão mau?

- Por vezes é. Por cada novo artigo saído na Reader's Digest, ou qualquer notícia que identifica uma doença rara com sintomas específicos, a sala de espera enche-se de crianças que, como é natural, apresentam todos esses sintomas.

- É provável que eu agisse assim com um filho meu.

Ela abanou a cabeça. - Duvido. Parece-me ser mais do género de passar adiante, ou de esperar para ver. Como pai, não penso que agisse de forma muito diferente.

- Talvez tenha razão - admitiu Travis.

- Tenho a certeza,

- Por me conhecer?

- Eh, quem começou foi você, mais a sua irmã.

Durante a meia hora seguinte, mantiveram-se sentados, a conversar de uma forma rotineira. Ela falou um pouco mais da mãe e do pai e das personalidades opostas de ambos; contou-lhe umas coisas sobre as irmãs e de como fora crescer enquanto era pressionada para aceitar todas as normas. Descreveu-lhe a vida na universidade e na Escola de Técnicas de Saúde e partilhou algumas das suas recordações das tardes passadas em Beaufort, antes de vir morar para a cidade. Só mencionou Kevin de passagem, o que a surpreendeu até se aperceber de que ele, embora agora fosse um elemento importante da sua vida, nem sempre o fora. De certa maneira, falar com Travis fez-lhe recordar a mulher que ela ia ser, muito antes de conhecer Kevin.

À medida que a conversa se ia tornando mais descontraída, deu consigo a confessar outras frustrações ocasionais no emprego. Embora não tivesse mencionado o Dr. Melton, referiu outras histórias sobre pais que tinha conhecido no decorrer das consultas. Não forneceu nomes, mas, uma vez por outra, Travis sorria de forma a sugerir que sabia de quem ela estava a falar.

Por essa altura, Megan e Liz já tinham guardado a comida nas geleiras. Laird e Allison haviam ido dar uma volta. Matt, por sua vez, tinha metade do corpo sepultado na areia pelos miúdos, que ainda não controlavam devidamente os movimentos das pás e não evitavam que parte da areia atingisse os olhos, o nariz, a boca e as orelhas do enterrado.

Foi então que um frisbee veio aterrar junto dos pés de Gabby e ela viu Joe a aproximar-se.

- Penso que chegou o momento de libertarmos o Matt! - exclamou Joe. Apontou para o frisbee. - Estás disposto a começar?

- Estás a dizer que eles precisam de uma atracção? Travis olhou para ela. - Dá-me licença?

- Com certeza, avance.

- Devo dizer que isto não vai ser bonito - avisou. Pôs-se de pé e gritou para as crianças. - Eh, miúdos? Estão prontos para ver em acção o campeão mundial de lançamento àe frisbee

- Siiim!!! - responderam em coro. Largaram as pás e correram em direcção à água.

- Tenho de ir - decidiu Travis. - Os espectadores estão à espera.

Ao vê-lo correr em direcção à água, Gabby deu consigo a seguir-lhe os movimentos e a sentir algo de estranho, como afecto.

Passar tempo junto de Travis não era o que imaginara. Não havia presunção, notou poucas tentativas de a impressionar, além de ele parecer senhor de uma intuição que lhe dizia quando devia ficar calado ou quando tinha de responder. Percebeu que fora aquela sensação de que existia um vínculo entre ambos que, antes de mais, a levara a iniciar a relação com Kevin. Não fora apenas a excitação física que sentia nas noites que passavam juntos; mais do que isso, ela desejava o conforto experimentado naqueles momentos tranquilos de conversa, ou aqueles em que ele lhe pegava na mão com carinho e percorriam um parque de estacionamento para irem jantar. Eram os momentos em que lhe era fácil pensar nele como o homem com quem queria passar o resto da vida, momentos que ultimamente se haviam tornado mais raros e mais espaçados entre si.

Gabby reflectia em tudo isto ao observar o mergulho de Travis para apanhar o frisbee. Não conseguiu a recepção e o disco atingiu-o nopeito e mergulhou nas ondas, provocando um espectacular esparrinhar de água. Os miúdos gritaram de alegria, como se tivessem visto a coisa mais engraçada do mundo. Quando eles gritaram, "Mais uma vez, tio Travis!", ele saltou com igual deleite. Deu três passadas, lentas e compridas e fez o disco voar para Joe. Afivelando a máscara do jogador, agachou-se de forma exagerada na posição do jogador de basebol pronto a receber a bola. Com um piscar de olhos na direcção dos garotos, prometeu: - Da próxima vez, nem sequer fico molhado! - e finalizou o comentário com um mergulho de chapa, falhando novamente a recepção e arrancando mais gritos de alegria. Parecia gostar verdadeiramente de agradar às crianças, o que só fez aumentar o sentimento de afecto que Gabby sentia por ele. Estava ainda a tentar encontrar o sentido da sua reacção à conversa com Travis quando este emergiu finalmente do oceano e começou a caminhar em direcção a ela, a sacudir a água do cabelo. Instantes depois, deixou-se cair na areia ao lado de Gabby e, quando se tocaram acidentalmente, ela teve uma brevíssima visão de ambos, sentados como naquele momento, numa centena de futuros fins-de-semana.

 

O resto da tarde pareceu uma repetição dos eventos da manhã, mas em ordem inversa. Antes de voltarem a carregar o barco, passaram mais uma hora na praia; depois, de regresso, cada casal fez uma nova passagem de parasail, embora na sua segunda vez Gabby tenha ido na companhia de Stephanie. Para o final da tarde, quando o barco navegava na laguna, Travis parou para comprar camarão a um pescador local que obviamente conhecia bem. Quando encostaram ao embarcadouro da casa, as três crianças dormiam profundamente. Os adultos sentiam-se contentes, leves como o vento, e tinham os rostos escurecidos pelas horas passadas ao sol.

Uma vez descarregado o barco, os casais partiram, um a um, até ficarem apenas Gabby, Stephanie e Travis. Este estava no ancoradouro com Moby, já tinha estendido o pára-quedas no ancoradouro para que secasse e de momento estava a lavar a embarcação com a agulheta de regar o jardim.

Stephanie esticou os braços acima da cabeça. - Acho que também tenho de ir andando. Esta noite janto com os velhotes. Ficam magoados se souberem que vim cá e não os fui visitar. Sabe como é. Vou só despedir-me do Travis.

Apática, Gabby assentiu e ficou a ver Stephanie debruçar-se do corrimão do alpendre.

- Eh, Trav! - gritou Stephanie. - Vou-me embora. Obrigada por hoje!

- Ainda bem que vieste - gritou o irmão, a despedir-se dela com aceno da mão.

- Deves pôr qualquer coisa no grelhador. A Gabby acaba de confessar que está faminta!

A apatia de Gabby desvaneceu-se como por encanto mas, antes que pudesse protestar, viu Travis fazer o gesto do polegar para cima, em concordância.

- Vou já acender o grelhador! - gritou Travis. - É só acabar isto.

Obviamente feliz com o seu gesto de engenharia social, Stephanie passou lentamente pela frente de Gabby.

- Por que é que disse aquilo?

- Porque vou visitar os meus pais. E não quero que o meu pobre irmão passe o resto do serão sozinho. Ele gosta de ter pessoas à sua volta.

- Pois bem, e se eu quisesse ir para casa?

- Nesse caso, quando ele aqui chegar só tem de o informar de que mudou de ideias. Ele não se importará. Tudo o que fiz foi proporcionar-lhe uns minutos para pensar no assunto, pois garanto-lhe que ele não deixaria de lhe propor isso; e então, se lhe dissesse que não, ele não deixaria de lhe repetir a proposta - sugeriu. - Bem, tive muito prazer em conhecê-la. Estou contente por termos tido a oportunidade de nos conhecermos. Nunca vai para os lados de Raleigh?

- Às vezes acontece - respondeu Gabby, ainda abalada pelo que acabava de acontecer e sem saber se devia estar contente ou zangada com Stephanie.

- Óptimo. Poderemos ir almoçar. Gostaria de propor que nos juntássemos amanhã, mas tenho realmente de regressar - esclareceu, tirando os óculos escuros para os limpar com a blusa. - Voltaremos a ver-nos?

- Claro - respondeu Gabby.

Stephanie dirigiu-se à porta da varanda, abriu-a e desapareceu no interior, atravessando a casa para chegar à porta principal. Travis já deixara o embarcadouro e subia, com Moby a trotar feliz a seu lado. Pela primeira vez, naquele dia, vestira uma camisa de meia manga, embora a deixasse desabotoada.

- Dê-me só uns minutos para acender o carvão. Espetada de camarão, está bem?

Por breves instantes, ela pensou que seria aquilo ou um jantar aquecido no microondas, em sua casa mas sozinha, a ver algum horroroso programa de televisão; e não conseguiu evitar lembrar-se do que sentira ao observar as brincadeiras de Travis com as crianças.

- Dá-me uns minutos para ir mudar de roupa?

Enquanto Travis punha o grelhador a funcionar, Gabby foi ver como estava a Molly, e encontrou-a a dormir profundamente, rodeada pelos filhotes também adormecidos.

Tomou um duche rápido e vestiu uma saia e uma blusa de tecidos leves, de algodão. Depois de secar o cabelo, hesitou se devia maquiIhar-se um pouco, acabando por decidir-se por uma máscara ligeira. Ficara com cor nas faces devido ao sol; ao dar um passo atrás para se observar ao espelho, ocorreu-lhe que, se excluísse Kevin, há anos que não jantava com um homem.

Poderia argumentar que o jantar era apenas a continuação do dia, ou que fora apanhada na ratoeira armada por Stephanie, mas sabia que nenhuma das explicações era totalmente verdadeira.

No entanto, seria a decisão de ir jantar com Travis um gesto de que devesse sentir remorsos? Chegaria ao ponto de não contar nada a Kevin? O seu primeiro impulso fora reiterar a ideia de que não havia motivos para não pôr Kevin ao corrente do que se passara. O dia fora inofensivo, em termos relativos passara mais tempo com Stephanie do que com Travis. Então, qual era o problema?

"E ires jantar com ele esta noite, claro", insistiu a voz. "Vais pôr Kevin ao corrente do teu jantarinho a dois?"

- Com certeza. Contar-lhe-ei tudo, de certeza - resmungou, tentando calar a vozinha interior. Havia alturas em que detestava em absoluto aquela vozinha. A vozinha era parecida com a da mãe dela.

Tudo decidido, deitou uma última olhadela ao espelho e, agradada com o que viu, abriu a porta da varanda e começou a atravessar o relvado.

Quando Gabby se contorceu para passar pela sebe e apareceu na extremidade do relvado, Travis captou o movimento com o canto do olho e deu consigo a encará-la abertamente quando ela se aproximou. E logo que ela pôs um pé na varanda, ele sentiu uma subtil alteração na atmosfera da casa, uma mudança que o apanhou desprevenido.

- Olá - cumprimentou Gabby. - O jantar ainda está demorado?

- Um par de minutos - respondeu Travis. - Chega mesmo na altura.

Ela foi dar uma vista de olhos aos camarões descascados, aos pimentos de cores vivas e às cebolas. Pareceu ser o sinal para o estômago dela se manifestar. - Caramba! - murmurou, esperando que ele não a ouvisse. - Que aspecto excelente!

Travis apontou para a outra ponta da varanda. - Quer alguma coisa para beber? - perguntou. - Julgo que há cervejas e refrigerantes na arca frigorífica.

Enquanto Gabby atravessava a varanda, Travis tentava não reparar no ondear suave das ancas dela, sem saber bem o que estava a acontecer-lhe. Viu-a abrir a tampa da geleira, remexer o interior e tirar duas garrafas. Quando regressou entregou-lhe uma e ele sentiu o roçar dos dedos dela nos seus. Abriu a cerveja e bebeu um longo trago, olhando para Gabby por cima do bordo da garrafa. Ela olhava a água, em silêncio. O Sol, acima da linha formada pela copa do arvoredo, ainda brilhava, mas a temperatura diminuíra e a sombra estendia-se lentamente pelo relvado.

Gabby quebrou finalmente o silêncio. - Foi por isto que comprei a casa. Por causa de vistas como esta.

- Bela, não é? - anuiu, apercebendo-se de que estava a observá-la ao responder e tentando afastar qualquer conotação subconsciente. Pigarreou. - Como é que está a Molly?

- Pareceu-me óptima. Encontrei-a a dormir - respondeu, olhando à volta. - Aonde é que está o Moby?

- Julgo que anda a vaguear pelo jardim da frente. Quando se apercebeu de que não havia nada para ele, fartou-se dos meus cozinhados.

- Ele come camarões?

- Come tudo.

- Esquisito - comentou Gabby com uma piscadela de olhos.

- Posso ajudar nalguma coisa?

- Na verdade, não. A menos que queira ir buscar uns pratos à cozinha.

Ela acenou com a cabeça. - Com todo o gosto. Onde é que estão, exactamente?

- No armário, à esquerda do lava-louça. Oh, e traga também o ananás. Está em cima da bancada. Mais a faca. Também deve lá estar.

- Vou num pé e venho noutro.

- E importa-se de trazer uns talheres? Estão na gaveta, ao pé do lava-louça.

Logo que ela se virou para entrar na casa, Travis deu consigo a analisá-la. Havia, sem dúvida, qualquer coisa em Gabby que o interessava. Não era por ser atraente; havia mulheres bonitas por todo o lado. Era qualquer coisa relacionada com a sua inteligência natural e humor espontâneo, que pressupunham ideias assentes sobre certo e errado.

Beleza e bom senso natural eram uma combinação rara, embora Travis duvidasse que ela tivesse consciência de possuir ambos.

Quando Gabby emergiu da cozinha, as espetadas estavam prontas. Despejou duas em cada prato, juntamente com fatias de ananás, e sentaram-se à mesa. Por detrás deles, o riacho de águas calmas reflectia o céu como se fora um espelho e a tranquilidade só era quebrada por um bando de estorninhos que voavam acima da cabeça deles.

- Está delicioso - comentou Gabby.

- Obrigado. Ela bebeu um gole de cerveja e apontou o barco com um movimento de cabeça. - Também vai sair amanhã?

- Julgo que não. Amanhã é provável que vá montar.

- A cavalo?

Travis abanou a cabeça. - Moto. Quando andava na universidade comprei uma Honda Sbadou de 1983, muito maltratada, com a ideia de a recuperar rapidamente e de a revender com lucro. Digamos que não foi rápido e duvido que alguma vez consiga qualquer lucro. Mas devo acentuar que fiz todo o trabalho de recuperação, sem qualquer ajuda.

- Isso deve ser gratificante.

- Fútil talvez seja um termo mais apropriado. Não é prática, pois tem a tendência para se avariar e os sobressalentes de origem são quase impossíveis de encontrar. Todavia, é esse o custo de possuir um clássico.

A cerveja estava a escorregar com facilidade e Gabby bebeu mais uma. - Não faço ideia. Nem mudo o óleo do carro.

- Alguma vez andou de moto?

- Não, é demasiado perigoso.

- O perigo deve-se mais ao condutor e às condições do que à motocicleta.

- Mas a sua avaria-se.

- Certo. Mas eu gosto de viver nos limites.

- Já reparei que esse é um dos traços da sua personalidade.

- Isso é bom ou mau?

- Nem bom nem mau. É, contudo, totalmente imprevisível. Em especial quando tento reconciliar isso com o facto de ser veterinário. É uma profissão que parece exigir tanta estabilidade. Quando penso num veterinário, a imagem que encontro é a de um homem de família, de uma esposa de avental e de filhos na consulta do ortodontista.

- Por outras palavras, um chato. Como se a coisa mais excitante para mim devesse ser o golfe.

Ela pensou em Kevin. - Existem coisas piores.

- Só para que saiba, sou um homem de família - contrapôs Travis com um encolher de ombros. - Excluindo o facto de não ter família.

- É uma espécie de condição essencial, não acha?

- Julgo que para ser um homem de família é mais importante ter a noção do que a própria família.

- Boa tentativa - comentou, de olhos semicerrados e a sentir os efeitos da cerveja. - Nem sei se conseguiria imaginá-lo casado. Por qualquer razão, não consigo enquadrá-lo. Parece-me mais do género de ter muitas namoradas, do perpétuo solteirão.

- Não é a primeira pessoa a dizer-me isso. De facto, se não a conhecesse diria que hoje passou demasiado a conversar com os meus amigos.- Foram muito lisonjeiros.

- É por isso que os levo no barco. - E Stephanie?

- É um enigma. Mas o que é que hei-de fazer, se é também minha . irmã? Como lhe disse, sou um homem virado para a família.

- Por que será que tenho esta sensação de estar a querer impressionar-me?

- É provável que esteja. Fale-me do seu namorado. Também é um homem de família?

- Não tem nada com isso.

- Pronto, não fale. Ao menos por enquanto. Em vez disso, diga-me como é ser criado em Savannah.

- Já lhe falei da minha família. Que mais há para dizer?

- Diga-me tudo.

Gabby hesitou. - Era quente no Verão, muito quente. E também húmida.

- É sempre assim tão vaga?

- Julgo que um certo mistério mantém o interesse sobre os pormenores.

- O seu namorado também pensa assim?

- O meu namorado conhece-me.

- É alto?

- O que é que isso interessa?

- Nada. Estou apenas a conversar.

- Então, falemos de outra coisa qualquer.

- Muito bem. Alguma vez fez surfe?

- Não.

- Mergulho?

- Não.

- Mandriona.

- Porquê? Por não saber o que perco?

- Não. Como os meus amigos estão casados e têm filhos, preciso de encontrar alguém capaz de fazer essas coisas regularmente.

- Tanto quanto sei, parece arranjar maneiras de se manter ocupado. Mal chega do trabalho, vai fazer wakeboarding e esqui aquático.

- Há mais coisas a fazer na vida do que essas duas. Como fazer parasail.

Ela soltou uma gargalhada e Travis imitou-a; Gabby apercebeu-se de que gostava do som do riso dele.

- Tenho uma dúvida acerca do Curso de Veterinária - observou, a propósito de nada, mas já deixara de se preocupar com o rumo da conversa. A descontracção sabia-lhe bem, a companhia de Travis agradava-lhe. Ele fazia-a sentir-se à-vontade. - Sei que é uma patetice, mas sempre me intrigou o volume de anatomia que têm de estudar. Quantas espécies de animais diferentes é que estudam?

- Só os maiores: boi, cavalo, porco, cão, gato e galinha.

- E têm de saber praticamente tudo acerca de cada um?

- Quanto à anatomia, temos.

Gabby ficou a reflectir na resposta. - Caramba! Pensei que estudar as pessoas já era suficientemente difícil.

- Pois, mas lembre-se de que a maioria das pessoas não ia processar-me por morrer uma galinha. A sua responsabilidade é muito maior, especialmente por tratar de crianças - comentou. Depois de uma pausa, acrescentou: - E julgo que deve ser fantástica com elas.

- O que é que o leva a pensar assim?

- Você tem uma aura de carinho e paciência.

- Pois! Julgo que hoje apanhou sol em demasia.

- É provável - admitiu. Acenou para a garrafa de cerveja ao levantar-se. - Quer mais uma?

Ainda nem se apercebera de que acabara a cerveja. - Acho que não.

- Não conto a ninguém.

- A questão não é essa. Não quero que faça juízos errados a meu respeito.

- Duvido que seja possível.

- Julgo que o meu namorado não gostaria disto.

- Então, é bom que esteja ausente, não é verdade? Além disso, estamos apenas a conhecer-nos. Que mal é que tem?

- Óptimo - suspirou. - Mas que seja a última.

Travis trouxe mais duas cervejas e abriu a dela. Logo que tomou um gole e sentiu o líquido escorregar para o estômago, ouviu a voz interior. "Não devias estar a fazer isto."

- Você havia de gostar dele - sugeriu ela, a tentar reerguer as barreiras entre eles. - um excelente rapaz.

- Tenho a certeza de que é.

- E a resposta a uma pergunta anterior é sim, ele é alto.

- Pensei que não queria falar dele.

- Não quero. Só quero que saiba que o amo.

- O amor é uma coisa maravilhosa. É o que se aproveita da vida. Adoro estar apaixonado.

- Fala como um homem de grande experiência. Mas não se esqueça de que o verdadeiro amor é eterno.

- Os poetas diriam que o verdadeiro amor acaba sempre em tragédia.

- É poeta?

- Não. Só estou a referir-me ao que eles dizem. Não significa que concorde. Como você, sou o produto de um romance com final feliz. Os meus pais estão casados desde que me lembro e, um dia, quero o mesmo para mim.

Gabby não pôde deixar de pensar que ele era bom naquela troca de galhardetes, mas lembrou-se de que o homem tinha uma longa experiência. No entanto, tinha de reconhecer que as atenções dele eram lisonjeiras, mesmo sabendo que Kevin não as aprovaria.

- Sabia que estive para comprar a sua casa? - perguntou Travis. Surpreendida, acenou que não.

- Estava à venda ao mesmo tempo que esta. Gostei mais da divisão dos espaços da sua, mas esta já tinha o alpendre, a casa dos barcos e o guindaste.

- E agora até dispõe de um tanque de hidromassagem.

- Gosta? - indagou, de sobrancelha erguida. - Podemos ir para lá, logo que o Sol se ponha.

- Não trouxe o fato-de-banho.

- É claro que os fatos-de-banho são opcionais.

Gabby fez rolar as pupilas, ignorando subtilmente o arrepio que a percorreu. - Acho que não.

Travis espreguiçou-se, parecendo satisfeito consigo. - E se mergulhássemos apenas os pés?

- É provável que aceitasse uma proposta dessas.

- É um ponto de partida.

- E de chegada.

- Sem comentários.

Do outro lado do ribeiro, o pôr do Sol estava a transformar o céu numa paleta dourada de cores que se estendia até ao horizonte. Travis arrastou outra cadeira para perto de si e pôs os pés em cima do tampo. Gabby olhava a água, com uma sensação de bem-estar que não experimentava havia muito tempo.

- Fale-me de África - pediu. - É um mundo tão fantástico quanto parece?

- Para mim, foi. Fiquei a desejar lá voltar. Como se uma parte dos meus genes a reconhecesse como o seu lar, mesmo havendo lá tão pouco que me recordasse o mundo de onde eu viera.

- Viu leões e elefantes?

- Muitos.

- O que é que sentiu?

- Nunca esquecerei a sensação.

Gabby ficou uns instantes em silêncio. - Sinto inveja.

- Então vá lá. E se for, não deixe de fazer uma visita às Cataratas de Vitória. É o lugar mais extraordinário que alguma vez vi. O arco-íris, a névoa, o rugido incrível; é como estar perante o verdadeiro fim do mundo.

- Quando tempo passou lá? - perguntou Gabby, mostrando um sorriso sonhador.

- Em qual das visitas?

- Quantas vezes é que lá foi?

- Três.

Ela tentou imaginar como seria uma vida de tal liberdade, mas não o conseguiu inteiramente. - Fale-me das três.

Conversaram tranquilamente durante muito tempo, enquanto o crepúsculo dava lugar à escuridão da noite. As coloridas descrições que fazia de pessoas e lugares eram brilhantes e pormenorizadas, fazendo-a sonhar que tinha lá estado, ao lado dele; e deu consigo a imaginar a quantas mulheres ele já teria contado aquelas histórias. A meio da narrativa, ele levantou-se da mesa e voltou com duas garrafas de água, por respeito a um comentário anterior dela, fazendo-a sentir um apreço que foi acrescentar-se ao seu crescente afecto por Travis. Mesmo sabendo que estava a agir mal, sentia-se de certo modo incapaz de parar.

Na altura em que se levantaram para levar os pratos para a cozinha, as estrelas já cintilavam no céu. Enquanto Travis lavava os pratos, Gabby deu uma volta pela sala, pensando que se parecia menos do que seria de esperar com a toca de um homem solteiro. A mobília era confortável e elegante, com sofás de couro castanho, mesas folheadas a nogueira e candeeiros de latão; e embora a sala estivesse limpa, via-se que a limpeza não era uma obsessão. Havia revistas empilhadas ao acaso em cima do televisor e reparou na ténue película de pó que cobria a alta-fidelidade, que, sem que soubesse por quê, lhe pareceu bem. Em vez de paredes forradas a papel, havia cartazes de filmes, que reflectiam o gosto ecléctico de Travis: Casablanca, numa parede, Assalto ao Arranha-Céus, noutra, e ao lado, Sozinho em Casa. Por detrás dela, ouviu-se que a torneira do lava-louça fora fechada e, instantes depois, Travis entrou na sala.

Gabby sorriu-lhe. - Está pronto para ir pôr os pés de molho?

- Desde que não me mostre pele em demasia.

Voltaram a sair de casa e dirigiram-se para onde estava o tanque de hidromassagem. Travis removeu a capa e pô-la de lado enquanto Gabby descalçava as sandálias; momentos depois, estavam sentados lado a lado, com os pés a chapinharem ao sabor das correntes de água. Gabby olhou para o alto, tentando reconhecer imagens no céu.

- Em que é que está a pensar? - perguntou Travis.

- Nas estrelas. Comprei um livro de Astronomia e estou a ver se reconheço alguns elementos.

- E consegue?

- Só os mais importantes. Os óbvios - disse, a apontar a casa.

- Se traçar uma linha de dois palmos a partir da chaminé, encontra o cinto de Orion. A Betelgeuse encontra-se no ombro esquerdo de Orion e a Rigel forma o seu pé. Tem dois cães de caça. Aquela estrela brilhante, acolá, é a Sirius, que faz parte da constelação do Cão Maior, e Prócion faz parte do Cão Menor.

Travis identificou o cinto de Orion, mas embora tentasse seguir a orientação dela não conseguiu distinguir as outras. - Não tenho a certeza de estar a ver as outras duas.

- Nem eu. Só sei que estão lá.

Ele apontou por cima do ombro de Gabby. - Consigo ver o Mergulhão Grande. Ali, à direita. É a única que consigo encontrar sempre.

- Também é chamada Grande Ursa, ou Ursa Maior. Sabia que desde a Idade dos Gelos, se associa a figura de uma ursa com esta constelação?

- Tenho de confessar que não.

- Adoro os nomes em si, mesmo que ainda não consiga identificar as constelações. Cães de Guarda, Cabeleira de Berenice, Plêiades, Antínuo, Cassiopeia... os nomes soam como música.

- Percebo que esse é o seu novo passatempo.

- Nada mais que boas intenções escondidas pelos detritos da vida quotidiana. Quando comprei o livro, passei dois dias bem mergulhada na leitura.

Travis riu-se. - Pelo menos, é honesta.

- Conheço as minhas limitações. Todavia, gostava de saber mais. No sétimo ano tive um professor que adorava a Astronomia. Tinha uma maneira de falar das estrelas que nos obrigava a recordá-las para sempre.

- O que é que ele dizia?

- Que olhar as estrelas é como recuar no tempo, pois algumas delas estão tão afastadas que a luz que emitem leva milhões de anos a chegar até nós. Que não vemos as estrelas como são agora, mas como eram no tempo em que os dinossauros vagueavam pela Terra. Todo o conceito me parece... algo de grandioso.

- Parece ter sido um grande professor.

- Era. Aprendemos muito, embora tenha esquecido a maior parte do que ele ensinou, como é evidente. Mas a sensação de deslumbramento continua cá dentro. Quando olho para o céu, sei que alguém fez exactamente o mesmo há milhares de anos.

Travis observou-a, extasiado pela maneira como a voz dela ecoava no escuro.

- O mais estranho é que embora conheçamos muito melhor o Universo, as pessoas comuns dos nossos dias sabem muito menos sobre o céu que nos cobre todos os dias do que os nossos antepassados sabiam. Mesmo sem telescópios ou conhecimentos matemáticos, ou até sem saberem que a Terra era redonda, usaram as estrelas para navegar, rastrearam o céu à procura de constelações específicas para saberem quando deviam fazer as sementeiras, recorreram à ajuda das estrelas na construção de edifícios, aprenderam a prever eclipses... bem gostaria de saber como seria viver numa tal dependência das estrelas acrescentou. Calou-se por largos momentos. - Desculpe, se calhar estou a aborrecê-lo.

- Nada disso. Na verdade, nunca mais encararei as estrelas da mesma maneira.

- Está a gozar comigo.

- De maneira nenhuma - contrapôs, com ar grave.

Os olhares de ambos encontraram-se. Gabby teve a súbita sensação de que ele iria beijá-la e olhou para o lado. Naquele momento ouvia perfeitamente os sons das rãs que coaxavam entre as ervas do pântano e das cigarras que cantavam nas árvores. A Lua atingira o ponto mais alto no céu, derramando uma luz cintilante à volta deles. Gabby mexeu os pés nervosamente dentro de água, a saber que chegara a altura de ir-se embora.

- Julgo que estou a ficar com rugas nos pés - comentou.

- Quer que vá buscar-lhe uma toalha?

- Não, não faz mal. Mas acho que é melhor eu ir andando. Está a fazer-se tarde.

Travis pôs-se de pé e ofereceu-lhe a mão. Ao pegar na mão, Gabby sentiu-lhe o calor e a força. - Vou acompanhá-la.

- Penso que consigo encontrar o caminho.

- Então, só até à sebe.

Gabby parou junto à mesa para calçar as sandálias e viu Moby a aproximar-se deles. Alcançou-os no momento em que puseram os pés no relvado, trotando alegre, de língua de fora. Circulou à volta deles e arrancou em direcção à água, como se quisesse assegurar-se de que não havia coisas ocultas. Parou, ergueu as patas dianteiras e arrancou noutra direcção.

- O Noby é um cão de curiosidade e entusiasmo sem limites comentou Travis.

- Parece gostar de si.

- Parece. Desde que eu não mexa em tripas de peixe.

Ela sorriu, sentindo a relva fofa por debaixo dos pés e chegaram à sebe instantes depois. - Hoje passei um dia maravilhoso - concluiu Gabby. - E a noite também.

- Também eu. E obrigado pela lição de Astronomia.

- Da próxima vez, farei melhor. Vou impressioná-lo com o brilho estelar dos meus conhecimentos.

Ele riu-se. - Bem dito. Foi uma frase espontânea?

- Não, foi uma vez mais o meu professor. Era assim que ele terminava as aulas.

Travis mexeu os pés e voltou a olhar para Gabby. - O que é que vai fazer amanhã?

- Nada, realmente. Só sei que tenho de ir ao supermercado. Porquê?

- Não quer ir comigo?

- Na motocicleta?

- Há uma coisa que quero mostrar-lhe. Será divertido, prometo. Até levarei almoço.

Gabby hesitou. Era uma pergunta simples e sabia qual deveria ser a resposta, especialmente se queria manter a sua vida livre de complicações. "Não julgo que seja uma boa ideia" era tudo o que havia a dizer e o assunto morria ali mesmo.

Pensou em Kevin e no remorso que sentira momentos antes e, além do mais, na escolha que fizera ao vir morar para ali. No entanto, a despeito de tudo isso, ou talvez por causa de tudo isso, deu consigo a ensaiar um sorriso.

- É claro que vou. A que horas?

Se ficou surpreendido com a resposta, não o demonstrou. - Por volta das 11 horas, acha bem? Quero dar-lhe uma oportunidade de dormir até mais tarde.

Ela ergueu a mão. - Bom, obrigada, mais uma vez...

- Eu é que agradeço. Até amanhã.

Por instantes, Gabby pensou que ele ia rodar sobre os calcanhares e voltar para casa. Mas os olhares de ambos cruzaram-se uma vez mais e, antes que ela percebesse o que estava a acontecer, Travis agarrou-a pela cintura e puxou-a para si. Beijou-a, pressionando-lhe os lábios nem com força nem com leveza. Passado o instante de que o cérebro precisou para registar o que estava a suceder, Gabby empurrou-o.

- O que é que está fazer? - ofegou.

- Não consegui resistir - disse Travis, sem que ela vislumbrasse o mínimo sinal de pedido de desculpa. - Pareceu-me apenas que era o que devia fazer.

- Sabe que eu tenho namorado - repetiu Gabby, sabendo que, no fundo, não se importara mesmo nada com o beijo e detestando-se por isso.

- Desculpe se a coloquei numa posição desconfortável.

- Não faz mal - replicou Gabby, de mãos erguidas, a obrigá-lo a manter-se afastado. - Esqueça. Mas não volta a acontecer, estamos entendidos?

- Perfeitamente.

- Perfeitamente - repetiu ela, sentindo uma súbita vontade de ir para casa. Não deveria ter-se colocado numa posição daquelas. Sabia o que ia acontecer, até se avisara intimamente e, como se viu, tivera razão.

Com a respiração acelerada, voltou-se e atravessou a sebe. Ele beijara-a! Continuava a não querer acreditar. Embora a ideia fosse ir directamente para a porta, para que ele tivesse a certeza da afirmação de que a situação não poderia repetir-se, deu uma olhadela rápida por cima do ombro e sentiu-se mortificada ao ver que ele reparara. Travis ergueu a mão num cumprimento descontraído.

- Até amanhã - despediu-se, em voz alta.

Não se dignou responder-lhe, pois não viu razão para o fazer. Pensar no que poderia suceder no dia seguinte deixava-lhe uma sensação de temor. Por que é que ele tivera de estragar tudo? Por que não poderiam ser apenas vizinhos e amigos? Por que é que tudo tinha de acabar assim?

Fechou a porta de correr e marchou para o quarto, fazendo o que podia para manter acesa a chama da fúria que achava que a situação exigia. Poderia ter resultado, não fosse a tremura das pernas, o coração a bater apressado e a sensação latente de que Travis Parker a achara suficientemente desejável para querer beijá-la.

 

Travis esvaziou a geleira depois de Gabby ter saído. Para passar algum tempo com Moby, pegou numa bola de ténis, mas mesmo depois de terem iniciado o habitual jogo de lançamento da bola para o cão a ir buscar, o pensamento regressava sempre a Gabby. Enquanto Moby corria pelo jardim, Travis não conseguia esquecer a forma como os olhos dela se semicerravam quando sorria ou o respeito com que dizia o nome das estrelas. Deu consigo a pensar como seria a relação dela com o namorado. Curiosamente, não dissera grande coisa acerca dele; quaisquer que fossem as razões, parecera-lhe uma forma eficaz de o entreter a tentar adivinhar.

Sem dúvida, sentia-se definitivamente atraído por ela. Mas era estranho. Se a história ensinasse alguma coisa, Gabby não era realmente o tipo de mulher para ele. Não lhe parecia especialmente delicada ou sensível, uma flor de estufa, os tipos de mulheres que ele parecia atrair em bandos. Quando a provocava, ela ripostava; quando forçara os limites, não tivera dúvidas em pô-lo no seu lugar. Gostava do carácter brioso dela, do seu autodomínio e confiança, em especial do facto de ela não parecer consciente destas qualidades. Todo aquele dia lhe parecera uma dança de sedução, em que cada um deles tomara a liderança, por turnos, um avançava o outro puxava, e vice-versa. Gostaria de saber se uma dança daquelas poderia continuar para sempre.

Esse fora um dos fiascos das suas relações anteriores. A partir das primeiras fases, o relacionamento parecia ter sentido único. O costume era ele ter de acabar por tomar a maioria das decisões sobre o que fazer, onde comer, para qual das casas ir ou o filme a ver. Esses pormenores não o ralavam; o que, com o tempo, o deixava preocupado era o facto de que uma parte passava a ter de definir tudo acerca da relação, o que, inevitavelmente, o levava a pensar que andava acompanhado por uma empregada, quando queria uma companheira. Uma situação francamente incómoda.

Estranho, nunca olhara as suas relações anteriores segundo esta perspectiva. O normal era não voltar a recordar-se delas. Ter estado com Gabby fizera-o de certa forma pensar naquilo que andava a perder. Reproduziu mentalmente a conversa entre ambos, percebeu que queria mais, que queria mais dela. Não devia tê-la beijado e, com um brusco assomo de ansiedade nada característico, reconheceu que fora demasiado longe. Mas, de momento, não podia fazer mais do que esperar para ver, alimentando a esperança de que ela o acompanhasse no dia seguinte. Que poderia fazer? Nada, concluiu. Nada de nada.

- Como é que correu? - perguntou Stephanie.

Na manhã seguinte, com a cabeça enevoada, Travis mal conseguia abrir os olhos. - Que horas são?

- Não faço ideia. Mas é cedo.

- Por que é que ligaste?

- Porque desejo saber como correu o jantar com a Gabby.

- O Sol já se levantou?

- Não mudes de assunto. Deita tudo cá para fora.

- Estás a ser tremendamente bisbilhoteira.

- Sou uma rapariga amiga de bisbilhotices. Já me tinhas dito isso.

- Nunca disse tal coisa.

- Exactamente. Parto do princípio de que também vais vê-la hoje.

Travis afastou o telefone e ficou a olhar para o aparelho, a imaginar como é que a irmã parecia sempre a par de tudo.

- Steph...

- Dá-lhe cumprimentos meus. Mas, escuta, tenho de desligar. Obrigada por me manteres informada.

Desligou, antes de ele conseguir responder-lhe.

O primeiro pensamento que assaltou Gabby na manhã seguinte foi que gostava de se considerar boa pessoa. Ao crescer, sempre tentara cumprir as normas. Mantinha o quarto arrumado, preparava-se para os exames, fazia o melhor que podia para ter boas maneiras quando os pais estavam por perto.

Não fora o beijo da noite anterior que a levara a duvidar da sua integridade. Não tivera nada a ver com aquilo, era tudo obra de Travis. E o dia fora suficientemente inocente, teria o maior prazer em relatar tudo a Kevin. Não, o complexo de culpa tinha mais a ver com a decisão voluntária de voltar a casa de Travis para jantar. Se tivesse sido honesta consigo mesma, teria previsto qual era o programa dele e evitado a situação. Especialmente o final. O que é que ela tinha na cabeça?

Quanto a Kevin... falar com ele não fora muito útil para apagar as memórias.

Telefonara-lhe na noite anterior, logo que chegara a casa. Ao ouvir o toque do telemóvel dele, rezou para que Kevin não lhe notasse o remorso na voz Não precisou de muito tempo para perceber que não havia problemas quanto a isso; mal conseguiam ouvir-se, pois ele atendera a chamada quando se encontrava num clube nocturno.

- Olá, amor. Apeteceu-me falar contigo...

- Olá, Gabby! - interrompeu Kevin. - Há aqui muito barulho, tens de falar alto.

Gritara tão alto que ela teve de afastar o auscultador do ouvido.

- Já percebi.

- O quê?

- Disse que parece muito barulhento! - respondeu, também aos gritos. - Espero que estejas bem!

Em fundo, ouviu uma voz de mulher, a perguntar se ele queria outra vodca com água tónica; a resposta de Kevin perdeu-se na cacofonia.

- Aonde é que estás?

- Não sei bem o nome. É um clube!

- Que género de clube?

- Apenas um sítio aonde os outros tipos queriam ir! Nada de importante!

- Fico contente por saber que estás a divertir-te.

- Fala mais alto!

Gabby levou os dedos à ponta do nariz e espirrou. - Só queria falar contigo. Sinto a tua falta.

- Eu também sinto a tua. Estarei de regresso dentro de dias. Escuta, embora...

- Já sei, já sei, tens de desligar.

- Amanhã telefono-te, está bem?

- Está bem.

- Adoro-te.

- Também te adoro.

Aborrecida, Gabby desligou. Só queria falar com ele, mas devia saber como eram aquelas reuniões. As convenções tinham o condão de fazer com que homens maduros voltassem a sentir-se adolescentes, como tivera oportunidade de saber, em primeira mão, quando assistira a uma convenção médica em Birmingham, uns meses antes. Durante o dia, as salas de reuniões enchiam-se de médicos sóbrios, com ideias assentes; à noite, do quarto do hotel vira que andavam em bandos, bebiam demasiado e, em termos gerais, faziam figura de parvos. Nada de mal. Nem por um momento acreditara que Kevin se tivesse metido em sarilhos ou feito algo de que viesse a arrepender-se.

Como beijar outra mulher.

Afastou os lençóis, desejando de verdade deixar de pensar na situação. Não queria pensar no peso da mão de Travis, que sentira na cintura ao ser puxada para ele, tal como não queria, em definitivo, pensar mais no que sentira nos lábios colados aos dele, nem no choque eléctrico que sentira por causa do beijo. Contudo, ao dirigir-se para o banho, havia outro pormenor a atormentá-la, algo que não conseguia identificar muito bem. Depois de ligar a torneira, deu consigo a pensar se, naquele breve instante em que tudo acontecera, ela tinha retribuído o beijo.

Incapaz de voltar a adormecer depois da chamada de Stephanie, Travis foi dar uma corrida. A seguir, atirou a prancha de surfe para a caixa de carga da carrinha, atravessou a ponte e seguiu até Bogue Banks. Depois de arrumar a carrinha no parque de estacionamento do Hotel Sheraton, pegou na prancha e encaminhou-se para o mar. Não estava só; houvera mais uma dúzia de pessoas a quem ocorrera a mesma ideia e Travis cumprimentou uns quantos que reconheceu. Tal como ele, a maioria não se demorou; as melhores ondas apareciam cedo e Desapareceriam com a mudança da maré. Porém, aquele continuava a ser o modo perfeito de começar o dia.

As ondas eram rápidas e dentro de um mês seriam quase perfeitas, remou por cima das ondas, a tentar apanhar o ritmo. Não era um

grande surfer; em Bali, analisara algumas ondas gigantes e abanara a cabeça, sabendo que se tentasse cavalgá-las o mais provável era ser morto, mas era suficientemente bom para se divertir um bocado.

Estava acostumado a ir só. Laird era o outro praticante do seu grupo de amigos, mas havia anos que não acompanhava Travis. No passado, Ashley e Melinda, duas ex-namoradas, tinham-no acompanhado algumas vezes, mas nenhuma delas se mostrara capaz de o seguir regularmente; quando finalmente chegavam, estava ele a acabar, o que lhe estragava por completo a manhã. E, como sempre, continuava a ser ele quem tinha de decidir o que iam fazer.

Apercebeu-se de que estava um tanto desapontado consigo mesmo por escolher sempre o mesmo género de mulheres, uma e outra vez. Não admirava que Allison e Megan estivessem sempre prontas a atacá-lo. Aquilo devia ser como ver a mesma peça interpretada por outros actores, pois o final era sempre o mesmo. Deitado em cima da prancha, a aguardar a aproximação das ondas, percebeu que o traço comum que tornava todas as mulheres inicialmente interessantes para ele, a necessidade que elas sentiam de amparo, era o mesmo que acabava por assinalar o fim da relação. Como é que dizia o velho adágio? Se és divorciado uma vez, deves ter motivos para pensar que a culpa foi dela. E se fores divorciado três vezes? Pois bem, amigos, restarão poucas dúvidas de que o problema és tu. É certo que nunca se divorciara, mas o conceito era adequado.

Espantava-se por toda aquela introspecção parecer desencadeada pelo dia passado com Gabby. Gabby, a mulher que o acusara injustamente e que nunca perdia a oportunidade de lhe recordar que estava apaixonada por outro homem. Vai-te curar!

Vinda de trás dele, uma onda parecia prometedora e Travis começou a remar com força, de forma a colocar-se na posição mais favorável. A despeito da beleza do dia e dos prazeres proporcionados pelo oceano, não conseguia escamotear a verdade: o que queria era passar todo o tempo possível com Gabby, enquanto tivesse oportunidade para o fazer.

- Bom dia - saudou Kevin pelo telefone, no momento em que Gabby se preparava para sair.

- Olá, viva! Como é que estás?

- Óptimo. Escuta, em primeiro lugar quero pedir-te desculpa por causa da chamada de ontem à noite. Tencionava ligar-te, a pedir desculpa, logo que chegasse ao quarto, mas entretanto fizera-se tarde.

- Não faz mal. Pareceu-me que estavas a divertir-te.

- Era menos emocionante do que poderás pensar. A música estava tão alta que ainda sinto campainhas nos ouvidos. Para começar, nem sei o que me levou a acompanhar aqueles tipos. Devia saber o sarilho em que estava a meter-me quando eles começaram a emborcar copos logo a seguir ao jantar, mas era necessário que alguém tivesse mão neles.

- E estou certa de que te mostraste um modelo de sobriedade.

- É claro que sim. Sabes que não bebo muito. O que significa que serei capaz de os esmagar durante o torneio de golfe de hoje. Com a ressaca de que estarão a sofrer, nem devem conseguir acertar na bola. - Quem eram eles?

- Outros agentes de Charlotte e de Columbia. Pela maneira como se comportavam, poderia pensar que há muitos anos não andavam à solta.

- Talvez não andassem.

Gabby ouvia um restolhar, parecendo que ele estava a vestir-se. - Pois, bem... E tu? O que é que fizeste em todo o dia? Hesitou. - Nada de importante.

- Gostaria que tivesses vindo. Isto seria muito mais interessante se cá estivesses.

- Sabes que não podia faltar ao emprego.

- Pois sei. Mas não podia deixar de te dizer isso. Vou tentar telefonar-te mais tarde, de acordo?

- É claro. Poderei não estar em casa.

- Oh, como é que está a Molly?

- Está bem.

- Julgo que vou ficar com um dos cachorrinhos. Achei-os bonitos.

- Estás apenas a tocar na minha corda sensível.

- É a única que me interessa. Mas, tenho estado a pensar. Neste Outono, talvez pudéssemos dar uma saltada a Miami, um fim-de-semana prolongado. Estive a falar com um tipo que acaba de regressar de South Beach, disse-me que há uns campos de golfe fantásticos.

Gabby ficou uns instantes calada. - Alguma vez pensaste em ir a África?

- África?

- Sim. Para te afastares um pouco, juntares-te a um safari, veres as Cataratas de Vitória? Ou, se não gostares de África, por que não vais a um país da Europa? À Grécia, por exemplo?

- Não estou a ver. E mesmo que quisesse ir, não me parece que arranjasse tempo. O que é que te fez pensar nisso?

- Nada.

Enquanto Gabby estava ao telefone, Travis chegou ao alpendre da casa dela e tocou. Instantes depois, Gabby apareceu à porta, a segurar o telefone junto ao ouvido. Apontando para o aparelho, fez-lhe sinal para entrar. Travis entrou na sala, esperando que ela desse uma desculpa a quem estava do outro lado da linha; em vez disso, apontou-lhe o sofá e esgueirou-se para a cozinha, deixando a porta a girar atrás de si.

Sentou-se e esperou. E esperou. E esperou. Sentia-se ridículo, parecia-lhe que estava a ser tratado como se fosse uma criança. Ouvia-a falar em tom baixo mas não fazia ideia de quem seria o interlocutor; pensou em levantar-se e sair. Contudo, permaneceu sentado no sofá, a tentar descobrir como é que ela conseguia dispor assim dele.

Finalmente, deixando uma vez mais a porta giratória a bater atrás de si, Gabby regressou à sala.

- Perdão. Sei que estou um pouco atrasada, mas o telefone não parou de tocar durante toda a manhã.

Travis pôs-se de pé, a pensar que Gabby se tornara mais bonita durante a noite, o que não fazia qualquer sentido. - Não tem importância - respondeu.

A conversa com Kevin tinha-a deixado uma vez mais com dúvidas sobre o que andava a fazer, obrigando-a a esforçar-se para deixar de pensar no assunto. - Deixe que vá apenas buscar as minhas coisas e estaremos prontos para partir - pediu ao dar um passo na direcção da porta. - Ah, e quero ver como está a Molly, de manhã estava óptima, mas quero certificar-me de que tem água suficiente.

Momentos depois, com Gabby já de mala a tiracolo, foram à garagem e atestaram a tigela da água.

- A propósito, aonde é que vamos? - perguntou ela quando iam a sair. - Espero que não seja um bar de motoqueiros perdido algures nos campos.

- Qual é o problema com os bares de motoqueiros?

- Não tenho tatuagens suficientes.

- Não acha que está a generalizar?

- É provável. Mas ainda não respondeu à minha pergunta.

- É apenas um passeio. Atravessaremos a ponte, iremos por Bogue Banks até Emerald Isle, voltaremos pela ponte e no regresso há um sítio que quero mostrar-lhe.

- Onde?

- É uma surpresa.

- Um lugar elegante?

- Pouco.

- Podemos almoçar lá?

Travis reflectiu sobre o assunto. - Talvez.

- É dentro ou fora da cidade?

- É segredo. Não quero estragar-lhe a surpresa.

- Parece excitante.

- Não crie grandes expectativas. É apenas um sítio onde gosto de ir, nada aparatoso.

Quando chegaram ao desvio de acesso à casa, Travis apontou a moto. - Aí a tem.

Os cromados da motocicleta obrigaram Gabby a semicerrar os olhos e a pôr os óculos escuros.

- O seu orgulho e a sua alegria.

- A minha frustração e a minha angústia.

- Não vai recomeçar a lamentar-se por causa da dificuldade de encontrar sobressalentes, pois não?

Ele fez uma careta, mas acabou por se rir. - Vou tentar guardar as lamentações para mim.

Gabby apontou para a maleta presa à traseira da moto com cabos elásticos. - O que é o almoço?

- O costume.

- Filet mignon, bolo de sorvete, carneiro assado, linguado?

- Não exactamente.

- Pop-Tarts?

Travis ignorou o sarcasmo. - Partimos quando estiver pronta. Tenho quase a certeza de que o capacete lhe serve; mas se não servir, tenho outros na garagem.

Gabby presenteou-o com um sorriso sardónico, erguendo uma sobrancelha. - O que há nesse lugar especial? Já levou lá muitas mulheres?

- Não. Na verdade, será a primeira.

Ela esperou para ver se Travis acrescentaria mais alguma coisa mas, por aquela vez, ele mostrou-lhe um ar grave. Gabby fez um ligeiro aceno e caminhou para a moto. Pôs o capacete, prendeu-o por debaixo do queixo e passou uma perna por cima do banco traseiro. - Aonde é que ponho os pés?

Travis fez descer os descansos traseiros. - Há um de cada lado. E tente não encostar a perna ao tubo de escape. Aquece muito e pode provocar-lhe uma queimadura feia.

- Ainda bem que me avisou. E quanto às mãos?

- É claro que tem de se agarrar a mim.

- Tão querido! - zombou Gabby. - Se fosse mais levezinho, talvez até conseguisse levá-lo ao colo, não é verdade?

Ele colocou o capacete e montou com um único movimento, ligou o motor e manteve-o em ponto morto. A moto era mais silenciosa do que muitas outras, embora Gabby sentisse uma ligeira trepidação por baixo do assento. Ficou na expectativa, como se estivesse sentada no carro de uma montanha-russa, desta vez sem cinto de segurança.

Travis fez a moto avançar devagar pelo caminho de acesso e entrou na rua. Gabby agarrou-se aos quadris dele; contudo, mal lhe tocou pensou nos músculos flexores das coxas do homem, o que lhe provocou uma volta no estômago. Mas ou fazia aquilo ou punha os braços à volta da cintura dele e ainda não se sentia preparada para isso. Logo que a motocicleta começou a acelerar, disse a si mesma que não apertasse, nem mexesse as mãos por pouco que fosse, que as mantivesse firmes, como se fosse uma estátua.

- O que foi isso? - indagou Travis, enquanto esticava o pescoço.

- O quê?

- Não falou em mãos e em estátua?

Sem se aperceber de que falara alto, apertara os quadris dele, dizendo a si mesma que o fazia para se proteger. - Disse mantém as mãos firmes, como uma estátua. Não quero estampar-me.

- Não vamos estampar-nos. Não gosto de me estampar.

- Já teve algum acidente?

Travis assentiu, continuando de pescoço esticado, o que punha Gabby ainda mais nervosa. - Um par de vezes. Numa delas passei duas noites no hospital.

- E não julgou importante mencionar isso antes de me convidar?

- Não quis assustá-la.

- Mantenha os olhos na estrada, está bem? E não se ponha com habilidades.

- Deseja que eu faça alguma habilidade?

- Não!

- Bom, é que prefiro apreciar o passeio - esclareceu, voltando a esticar o pescoço; apesar do capacete, ela juraria tê-lo visto sorrir.

- Para se manter segura, o mais importante é manter as suas mãos firmes como as de uma estátua, é isso?

No banco de trás, Gabby sentiu-se encolher, como sucedera no consultório dele, agastada por ter dito aquelas palavras de forma audível. E por Travis as ter ouvido, apesar do vento que lhes batia na cara e do rugir do motor. Francamente, parecia haver momentos em que o mundo conspirava contra ela.

O facto de ele não ter voltado a tocar no assunto nos minutos seguintes fê-la sentir-se um pouco melhor. Deixaram os limites do seu bairro sossegado, levados a grande velocidade pela motocicleta. Gabby depressa adquiriu o jeito de se inclinar quando Travis se inclinava e, feitas mais umas curvas, estavam a deixar Beaufort para trás e a atravessar a pequena ponte que a separava da entrada de Morehead City. A estrada alargou-se para duas vias, mas o avanço tornou-se difícil devido ao tráfego para as praias. Gabby tentou esquecer a sua sensação de vulnerabilidade na altura em que ultrapassaram um gigantesco camião de recolha de lixo.

Viraram para a ponte que passava por cima do Intracoastal Waterway, onde o trânsito se deslocava à velocidade do caracol. Quando alcançaram a estrada que atravessa Bogue Banks, o tráfego destinado a Atlantic Beach desapareceu e Travis começou a acelerar gradualmente. Emparedada entre duas carrinhas, uma à frente e outra atrás, Gabby pareceu descontrair-se. Sentia o calor do Sol a penetrar-lhe a roupa, enquanto passavam por condomínios e moradias escondidas entre as árvores de Maritime Forest.

Ia agarrada a Travis para se manter em equilíbrio, a sentir perfeitamente os contornos dos músculos das costas dele contra a blusa de tecido leve. Por melhores que fossem os seus intuitos, começava a aceitar a realidade da atracção que sentia por Travis. Eram tão diferentes e, no entanto, na presença dele Gabby antevia a possibilidade de uma nova vida, de uma vida que nunca imaginara poder vir a ser a sua. Uma vida isenta das rígidas limitações que outras pessoas sempre lhe tinham imposto.

Deslizaram num silêncio quase irreal através de uma vila, depois outra: Atlantic Beach, Pine Knoll Shores e Salter Path. À esquerda, em grande parte escondida por carvalhos torcidos pelo vento constante, havia algumas das casas com fachadas para o oceano mais desejadas de todo o estado. Uns minutos antes tinham passado pelo Iron Steamer Pier. Embora batido por anos de tempestades, ainda abrigava inúmeros pescadores.

Em Emerald Isle, a vila mais ocidental da ilha, aplicou os travões para evitar um carro em curva e Gabby sentiu que se encostava a ele.

As mãos deslizaram inadvertidamente dos quadris para a cintura dele, deixando-a a tentar adivinhar até que ponto Travis se aperceberia que iam comprimidos um contra o outro. Embora desejasse afastar o corpo do dele, não o fez.

Estava a acontecer ali qualquer coisa, algo que Gabby não compreendia completamente. Amava Kevin e queria casar com ele; nos últimos dois dias, esse sentimento não se alterara. E, contudo... não podia negar que estar junto de Travis parecia... de certa forma correcto. Natural e fácil, como devia ser. Parecia-lhe uma contradição impossível; depois de atravessarem a ponte do extremo da ilha, iniciando o regresso, desistiu de tentar resolvê-la.

Para surpresa dela, Travis abrandou antes de virar para uma estrada perpendicular, estreita e parcialmente escondida, que percorria a mata. Quando ele parou a moto, Gabby ficou a olhar de um lado para o outro, sem perceber.

- Por que é que parámos? - perguntou. - É este o sítio que quer mostrar-me?

Travis desceu da moto e tirou o capacete. Abanou a cabeça.

- Não, esse é lá, em Beaufort. Quis saber se gostaria de guiar a moto durante um bocado.

- Nunca guiei uma motocicleta! - exclamou Gabby, cruzando os braços.

- Eu sei. Daí a minha proposta.

- Penso que não - comentou Gabby, a levantar o visor do capacete.

- Vá lá, vai ser giro. Vou sentado logo atrás de si e não a deixarei cair. Ponho as minhas mãos mesmo ao lado das suas e serei eu a meter as mudanças. Até se habituar, tudo o que tem a fazer é guiar.

- Mas isso é ilegal.

- Um pormenor técnico. Além disso, estamos numa estrada particular. Conduz a casa do meu tio, que fica um pouco mais adiante, desemboca numa estrada de terra e o meu tio é o único habitante da zona. Foi aqui que aprendi a guiar.

Oscilando entre a excitação e o terror, espantada pelo simples facto de ter a ideia em conta, Gabby hesitava.

Travis ergueu as duas mãos. - Creia no que lhe digo, não passam carros nesta estrada, ninguém nos vai fazer parar e estarei sempre junto de si.

- É difícil?

- Não, mas exige alguma prática.

- É como andar de bicicleta?

- Quanto ao equilíbrio. Mas não se preocupe. Estarei mesmo junto de si, nada poderá correr mal. Está pronta? - perguntou, a sorrir.

- Na verdade não estou. Mas...

- Esplêndido. Vamos começar pelo princípio. Deslize para diante, percebe? Do lado direito do guiador é o acelerador e o travão da frente. No esquerdo é a embraiagem. O acelerador é que comanda a velocidade. Percebido?

Ela assentiu.

- O pé direito comanda o travão traseiro. Usa o pé esquerdo para mudar de velocidade.

- Fácil.

- Realmente?

- Não. É só para que fique satisfeito com os seus dotes de professor.

Travis pensou que ela estava a começar a parecer-se com Stephanie. - Depois disso, a mudança de velocidades é quase como conduzir um automóvel de caixa manual. Solta o acelerador, agarra a embraiagem, faz a mudança, volta a acelerar. Mas vou mostrar-lhe, está bem? Contudo, para isso temos de ir apertados um contra o outro. Os meus braços e pernas são suficientemente compridos para manobrar a moto a partir da parte de trás do banco.

- Uma desculpa conveniente - comentou Gabby.

- Que acontece ser verdadeira. Está pronta para começar?

- Não podia estar mais assustada.

- Tomo a resposta como um sim. Ora bem, deixe-se escorregar um bocadinho.

Ela deslizou para diante e Travis sentou-se. Depois de colocar o capacete, encostou-se a ela, de forma a chegar ao guiador e, apesar de avisada, Gabby sentiu qualquer coisa saltar dentro dela, um choque eléctrico que começou no estômago e irradiou para fora.

- Agora ponha as suas mãos em cima das minhas - mandou Travis. - Faça o mesmo com os pés. Só pretendo que sinta o que vai acontecendo. É uma questão de ritmo, uma vez apanhado o jeito nunca mais se esquecerá.

- Foi assim que aprendeu?

- Não. O meu amigo ficou de lado, a berrar instruções. Na minha primeira tentativa, apertei a embraiagem em vez do travão e acabei estampado contra uma árvore. É por isso que quero estar aqui na sua primeira tentativa - explicou. Fez subir o descanso, accionou a embraiagem e ligou o motor; logo que o motor começou a trabalhar, Gabby sentiu-se agitada por um nervoso semelhante ao que sentira antes de o parasail a arrancar do barco. Colocou as mãos em cima das dele, saboreando o aperto do corpo dele contra o seu.

- Está pronta?

- Que remédio.

- Não faça força com as mãos, entendido?

Travis rodou o acelerador e soltou lentamente a embraiagem; no preciso momento em que a moto começou a rodar, tirou o pé do chão. Gabby pousou o pé em cima do dele, sem pressão.

Começaram por rodar devagar; Travis acelerava um pouco, depois desacelerava, voltava a acelerar para, finalmente, meter uma mudança, abrandar de novo e parar. A seguir, recomeçaram, com Travis a explicar minuciosamente tudo o que ia fazendo, a usar o travão ou a preparar a entrada de outra mudança, recordando-lhe que nunca devia accionar o travão da frente numa emergência, a não ser que quisesse voar por cima do guiador. Com a continuação do processo, pouco a pouco, Gabby apanhou o jeito. A coreografia dos movimentos das mãos e dos pés pareceu-lhe semelhante à movimentação para tocar piano e, passados alguns minutos, quase podia antever o que ele iria fazer. Mesmo assim, Travis continuou a guiar-lhe os movimentos até eles se tornarem naturais.

Conseguido isso, trocaram de lugares; as mãos e os pés dela passaram a controlar a moto, com as mãos dele sobrepostas, repetindo-se o processo desde o início. Não era tão fácil como ele fizera parecer. Por vezes, a moto dançava ou ela accionava o travão com demasiada força, mas Travis mostrou-se paciente e encorajador. Nunca levantou a voz, o que a fez recordar-se da maneira como ele conduzira as crianças na praia, no dia anterior. Tinha de reconhecer que Travis tinha qualidades para além das que ela lhe vira a princípio.

Durante o quarto de hora seguinte, enquanto ela ia praticando a condução, a pressão dele foi-se tornando mais ligeira, até que finalmente a deixou à vontade. Embora não se sentisse inteiramente segura, Gabby começou a rodar mais depressa e com mais suavidade, além de a travagem acabar por ser um gesto natural. Sentiu, pela primeira vez, a sensação de força e de liberdade que a motocicleta oferecia.

- Está a mostrar-se excelente - elogiou Travis.

- Isto é fantástico! - gritou ela, sentindo a vertigem.

- Está preparada para guiar sozinha?

- Está a brincar!

- Nada disso.

Debateu-se por poucos instantes. - Estou. Acho que sim! exclamou.

Parou a moto e Travis desceu. Depois de o ver com os pés no chão, Gabby respirou fundo, ignorou o bater acelerado do coração e pôs a moto em movimento. Um segundo depois começou a acelerar. Por decisão sua, parou e recomeçou uma dezena de vezes, reduzindo gradualmente as distâncias. Surpreendendo Travis, fez a moto descrever uma curva lenta e larga, acelerando na direcção dele. Por momentos, julgou que ela tinha perdido o controlo, mas Gabby parou de forma irrepreensível, a poucos passos dele. Incapaz de conter o riso, deixou sair as palavras e libertou-se de toda a energia contida.

- Não consigo acreditar no que acabei de fazer.

- Uma grande manobra!

- Viu a minha curva? Percebi que vinha muito devagar, mas consegui.

- Eu vi.

- Isto é fantástico! Agora percebo por que adora andar de moto. É um espanto!

- Fico contente por ter gostado.

- Posso tentar uma vez mais?

Ele apontou para a estrada. - Esteja à vontade.

Gabby continuou durante muito tempo a percorrer a estrada nos dois sentidos; Travis reparava que a confiança dela aumentava de cada vez que parava e recomeçava. Também executava as curvas com grande facilidade, até começou a guiar em círculos, e quando parou em frente dele tinha as faces coradas. Quando ela tirou o capacete, Travis reconheceu que nunca tinha conhecido alguma pessoa mais viva e bonita.

- Chega - anunciou Gabby. - Pode guiar novamente.

- Tem a certeza?

- Há muito tempo, aprendi a parar enquanto vou à frente. Detestaria cair e perder esta sensação.

Gabby chegou-se para trás e Travis sentou-se na moto, mas agora a sentir os braços dela à sua volta. Ao percorrer o caminho de regresso à estrada, Travis sentia-se arrebatado, como se todos os seus sentidos tivessem sido estimulados ao máximo e notava perfeitamente as curvas do corpo dela a ajustarem-se às do corpo dele. Chegaram à estrada, viraram, e atravessaram Morehead City, passando pela ponte de Atlantic Beach e completando a volta de regresso a Beaufort.

Uns minutos mais tarde estavam a atravessar o centro histórico, passando por restaurantes e pela marina, a caminho de Front Street. Finalmente, Travis abrandou e entrou num vasto terreno com erva alta, no final da rua. O lote vago era contíguo a uma casa de estilo jorgiano, bastante degradada, velha de pelo menos cem anos, e por uma outra vivenda vitoriana mais ou menos da mesma idade. Desligou o motor e tirou o capacete.

- Cá estamos - observou, a sugerir que ela descesse da moto.

- Era isto que queria mostrar-lhe.

A voz dele soou de maneira a não permitir que Gabby fizesse qualquer comentário a propósito do que lhe parecia apenas um terreno vazio e, por momentos, limitou-se a observar Travis, que dera alguns passos em silêncio. Ficou a olhar Front Street, voltado para Shackleford Banks, de mãos nas algibeiras. Gabby tirou o capacete e passou a mão pelo cabelo emaranhado, indo colocar-se ao lado dele, sentindo que Travis lhe explicaria o significado daquilo logo que estivesse preparado para o fazer.

- Na minha opinião, esta é uma das mais belas vistas de qualquer ponto da costa - acabou por dizer. - Não é apenas uma vista do oceano, em que só vemos ondas e água até onde a vista alcança. Isso é fantástico mas torna-se monótono passado algum tempo, pois a paisagem mantém-se praticamente imutável. Aqui, porém, há sempre mais qualquer coisa para ver. Há sempre barcos à vela e iates a navegar rumo à marina; se vier aqui à noite, pode ver as multidões que passeiam pelo cais e ouvir a música. Já vi golfinhos e raias a passar pelo canal e adoro especialmente observar os cavalos selvagens, lá longe, na ilha. Não me interessa quantas vezes já os vi, sinto-me sempre maravilhado.

- Vem aqui muitas vezes?

- Talvez duas vezes por semana. É para aqui que venho quando quero pensar.

- Tenho a certeza de que isso deixa os vizinhos excitados.

- Não podem fazer seja o que for. O terreno é meu.

- De verdade? -,

- Por que razão parece tão surpreendida ao dizer isso?

- Nem sei bem. Acho que parece tão... doméstico.

- Eu já possuo uma casa...

- E ouvi dizer que tem uma óptima vizinha.

- Pois, pois...

- Só quis dizer que comprar um terreno parece indicar que você...

É o tipo de pessoa que faz planos a longo prazo. - E não me vê assim?

- Bem...

- Se está a tentar lisonjear-me, não está a conseguir resultados muito brilhantes.

Gabby riu-se. - Então, que tal se eu disser que está constantemente a surpreender-me?

- De maneira positiva?

- Sempre.

- Como naquele dia que levou a cadela à clínica e percebeu que eu era veterinário?

- Preferia não falar nisso.

Travis riu-se. - Sendo assim, vamos almoçar. Acompanhou-o de volta à motocicleta, de onde ele retirou um cesto e uma manta. Depois de a conduzir por uma encosta curta que dava para a traseira da propriedade, Travis estendeu a manta e fez-lhe sinal para que se sentasse. Ambos instalados, começou a tirar caixas tupperware do cesto. - Caixas Tupperware

Ele sorriu. - Os meus amigos chamam-me o Sr. Doméstico. Pegou em duas latas de chá gelado, com sabor a morango. Passou-lhe uma, depois de a abrir. - Qual é a ementa?

Enquanto respondia, Travis ia apontando as diversas caixas. - Trouxe três tipos diferentes de queijo, bolachas d'água e sal, azeitonas e uvas; é mais um lanche do que um almoço.

- Parece perfeito - observou Gabby ao estender a mão para uma bolacha, onde colocou uma fatia de queijo. - Havia aqui uma casa, não havia? - indagou. Ao reparar na surpresa dele, apontou para as casas de ambos os lados do terreno. - Não consigo imaginar que este terreno tenha estado vago durante 150 anos.

- Tem razão. Ardeu quando eu era miúdo. Sei que considera Beaufort uma pequena cidade, mas quando eu estava a crescer não era mais do que um ponto minúsculo no mapa. Na sua maioria, estas casas históricas deixaram de ser reparadas e a que havia aqui esteve abandonada durante anos. Era uma casa extensa, com grandes buracos no telhado e dizia-se que estava assombrada, o que a tornava muito mais atraente quando éramos miúdos. Costumávamos esgueirar-nos para aqui à noite. Era uma espécie de forte para nós e passávamos horas a brincar às escondidas pelas salas. Havia montes de esconderijos contou, enquanto arrepanhava um tufo de erva, como se ele fizesse parte das suas recordações. - Fosse como fosse, numa noite de Inverno, julgo que uns vagabundos acenderam uma fogueira para se aquecerem. A casa ardeu em poucos minutos e no dia seguinte restava um monte de entulho ardente. Houve um problema, pois ninguém parecia saber como contactar o proprietário. O primeiro dono deixara-a a um filho, que por sua vez a deixara a outra pessoa, e assim sucessivamente; por isso, o monte de destroços ficou aqui durante cerca de um ano, até que a Câmara Municipal os mandou retirar. Depois disso, o terreno ficou praticamente esquecido, até que consegui encontrar o dono no Novo México e fiz-lhe uma oferta de compra por um preço baixo. Aceitou-a de imediato. Duvido que alguma vez tivesse aqui estado, não sabendo, por isso, o que estava a vender.

- E tenciona construir aqui uma casa?

- De qualquer forma, sendo eu um homem caseiro e tudo o resto, a construção está incluída no meu plano a longo prazo - esclareceu Travis ao pegar numa azeitona e ao mastigá-la. - Já se sente preparada para me falar do seu namorado?

Gabby reviu mentalmente a conversa que tivera com Kevin.

- Qual é o seu interesse?

- Estou apenas a conversar.

Ela pegou também numa azeitona. - Nesse caso, falemos antes de uma das suas antigas namoradas.

- De qual?

- De uma qualquer.

- Muito bem. Uma delas deu-me uns cartazes de filmes.

- Era bonita?

Reflectiu antes de responder. - A maioria das pessoas diria que sim.

- E você, diria o quê?

- Diria... que tem razão. Talvez não devamos falar disto. Gabby riu-se e apontou para as azeitonas. - A propósito, as azeitonas são excelentes. Tudo o que trouxe é perfeito.

Travis pôs queijo noutra bolacha. - Quando é que o seu namorado regressa?

- Vamos voltar a isso?

- Estou apenas a pensar em si. Não quero causar-lhe problemas.

- Obrigada pelo seu cuidado, mas já sou crescida. E, embora isso não tenha importância, informo-o de que regressa na quarta-feira. Porquê?

- Porque gostei da sua companhia durante estes últimos dois dias.

- Também gostei da sua companhia.

- Mas já pensou que isto vai acabar?

- Não tem de acabar. Continuaremos a ser vizinhos.

- E julgo que o seu namorado não se importará que me acompanhe noutro passeio de moto, ou que faça um piquenique comigo, ou que se sente no tanque de hidromassagem comigo, certo?

A resposta era óbvia e a expressão dela tornou-se mais grave. - Provavelmente, não ficaria muito contente com a ideia.

- Portanto, continua a ser o fim.

- Podemos continuar a ser amigos.

Travis encarou-a durante uns momentos, mas subitamente agarrou-se ao peito como se tivesse sido atingido por um tiro. - Você sabe mesmo bater aonde dói.

- De que é que está a falar?

Ele abanou a cabeça. - Essa ideia de sermos amigos não funciona. Não com homens e mulheres solteiros da nossa idade. Não é assim que as coisas funcionam, a menos que estejamos a falar de uma pessoa que conhecemos desde há muito. Certamente não acontece entre estranhos.

Gabby abriu a boca para responder, mas realmente não havia nada a dizer.

Travis continuou: - E além disso, não tenho a certeza de querer que sejamos amigos.

- Por que não?

- Porque o mais provável era dar comigo a pretender mais do que isso. Mais uma vez ficou sem resposta, a olhá-la, incapaz de perceber o que ela estava a pensar. Acabou por encolher os ombros.

- Penso que também não quererá ser minha amiga. Não seria bom para a sua relação, pois não restam dúvidas de que acabaria por se apaixonar por mim e, no final, teria de fazer algo de que viesse a arrepender-se. A seguir, culpar-me-ia pelo sucedido e, passado algum tempo, talvez decidisse mudar-se, pois toda a situação acabaria por se tornar demasiado desagradável para si.

- E tem de ser assim?

- Ser assim atraente é uma das maldições da minha vida.

- Dá a ideia de que já pensou em tudo.

- Exactamente.

- Excepto a parte em que me apaixono por si.

- Não vê que já está a acontecer?

- Tenho namorado. -,

- E vai casar com ele?

- Logo que ele queira. Foi por isso que me mudei para cá.

- E por que é que ele ainda não lhe pediu? - Não tem nada com isso.

- Eu conheço-o?

- A que se deve toda essa curiosidade?

Travis cravou os olhos nela. - É que, se eu fosse ele e você se tivesse mudado para cá para estar junto de mim, já a teria pedido em casamento.

Gabby achou que qualquer coisa no tom de voz dele mostrava que Travis falava verdade. Quando respondeu, fê-lo em voz suave. - Não me estrague isto, está bem?

- Não estrago o quê?

- Isto. Hoje. Ontem. A noite passada. Tudo. Não estrague tudo.

- Não sei o que quer dizer.

Gabby respirou fundo. - O fim-de-semana significou muito para mim, quanto mais não fosse por ter finalmente feito um amigo. Dois, na realidade. Ainda não me apercebera da falta que os amigos me faziam. Estar consigo e com a sua irmã fez-me recordar quanto perdi ao mudar-me para esta cidade. Isto é, eu sabia o que estava a fazer e não me arrependo da decisão que tomei. Acredite ou não, amo o Kevin - fez uma pausa, a tentar pôr ordem nas ideias. - Mas por vezes é difícil. O mais certo é não voltar a existir um fim-de-semana como este e sinto que, em parte, estou disposta a aceitar isso por causa de Kevin. Contudo, uma parte de mim não quer aceitar que esta fosse uma situação sem continuidade, embora ambos saibamos que foi acrescentou, hesitante. - Quando diz coisas como as que acabou de dizer, e eu sei que não lhes atribui qualquer significado, que não passam de trivialidades, passo ao lado.

Travis ouvia-a com toda a atenção, notando-lhe uma intensidade na voz que ela não revelara até àquele momento. E embora soubesse que devia limitar-se a concordar e a pedir desculpa, não conseguiu evitar outra resposta.

- O que é que a leva a pensar que não atribuo significado ao que disse? - contrapôs. - Quis dizer exactamente o que disse, mas percebo que não queira ouvir. Deixe apenas que lhe diga que espero que o seu namorado se aperceba da sorte que tem por alguém como você fazer parte da vida dele. Se não conseguir perceber isso é parvo. Desculpe se lhe provoquei algum desconforto; não voltarei a fazê-lo prometeu. - Mas tinha de o dizer, pelo menos uma vez.

Gabby olhou para o lado, gostando do que ouvira, apesar de tudo. Travis voltou-se e ficou de frente para o mar, concedendo-lhe o silêncio de que ela necessitava; ao contrário de Kevin, ele parecia conhecer sempre a resposta a dar.

Travis apontou para a motocicleta. - Talvez seja chegada a hora de regressarmos, não lhe parece? Se calhar, tem de ir ver como está a Molly.

- Pois é - anuiu Gabby. - Talvez seja uma boa ideia. Guardaram os restos de comida e meteram as caixas no cesto, a seguir dobraram a manta e voltaram para junto da moto. Por cima do ombro, Gabby reparou que as pessoas estavam a encher os restaurantes para um almoço tardio e deu consigo a invejar a simplicidade das escolhas daquela gente.

Travis voltou a prender o cesto e a manta e colocou o capacete. Gabby fez o mesmo e abandonaram o terreno momentos depois. Ela agarrada aos quadris de Travis, tentando, sem o conseguir, convencer-se de que no passado ele dissera coisas semelhantes a dezenas de mulheres.

Entraram no desvio para casa dela e Travis parou a motocicleta. Gabby soltou-o, desceu da moto e tirou o capacete. Ali, diante dele, sentia uma timidez que não experimentava desde o tempo da escola secundária, uma noção que lhe parecia ridícula e teve a sensação de que ele ia novamente beijá-la.

- Obrigada por este dia - agradeceu, tentando manter uma pequena distância entre eles. - E também tenho de lhe agradecer a lição de condução.

- O prazer foi meu. É uma motociclista natural. Devia encarar a compra de uma moto para si.

- Talvez, um dia.

No silêncio que se seguiu, Gabby só ouvia o motor a trabalhar. Tirou o capacete e entregou-o a Travis, ficando a observar a forma como ele o colocava no assento.

- Muito bem, então. Julgo que nos veremos por aí - concluiu Travis.

- É difícil que não aconteça, até somos vizinhos.

- Quer que vá ver como está a Molly?

- Não, não é preciso. Tenho a certeza de que a cadela está bem. Ele assentiu. - Escute, peço desculpa pelo que disse. Não devia

ter sido tão bisbilhoteiro, ou causar-lhe desconforto.

- Não tem importância. Não fiquei nada aborrecida.

- De certeza?

Gabby encolheu os ombros. - Bem, como você estava a mentir, decidi que tinha de mentir também.

Apesar da tensão, Travis riu-se. - É capaz de me fazer um favor? Se todo esse caso do namorado não resultar, telefone-me.

- É muito provável que o faça.

- E com essa promessa, acho que vou andando - decidiu, pegando no guiador e fazendo a moto recuar, a fim de ficar em posição de sair do caminho de acesso a casa dela. Estava prestes a ligar o motor, mas decidiu olhar mais uma vez para ela. - Quer jantar comigo amanhã?

Gabby cruzou os braços. - Nem quero crer que acabou de me fazer uma proposta dessas.

- Um homem tem de aproveitar a ocasião. ´É uma espécie de divisa para mim.

- Já reparei.

- Isso quer dizer sim ou não?

Gabby deu um passo atrás mas, a despeito das suas reservas, não deixou de sorrir ante a persistência dele. - E se, em vez disso, for eu a preparar-lhe o jantar? Em minha casa. Sete da tarde.

- Parece-me uma ideia fantástica! - exclamou Travis. Momentos depois, Gabby viu-se no meio do desvio de acesso à casa, a pensar se teria temporariamente perdido o juízo.

 

Com o Sol impiedoso a irradiar calor cá para baixo, mais a água que saía gelada da agulheta de rega, Travis estava a ter muito trabalho para manter o cão no mesmo sítio. A coleira curta parecia não ajudar muito; Moby odiava o banho, o que para Travis era uma ironia, tendo em conta o gozo que o cão sentia ao ir buscar a bola de ténis atirada para o mar. Nessa alturas, Moby saltava por cima das ondas, nadando furiosamente à cão, e não hesitava em meter a cabeça debaixo de água para agarrar melhor uma bola que parecia querer fugir-lhe. Contudo, se reparava que Travis abria a gaveta da cómoda onde guardava a trela, Moby aproveitava a oportunidade para ir em exploração pelas redondezas e só costumava regressar depois de escurecer.

Travis habituara-se aos truques do cão, motivo que o levara a manter a trela escondida até ao último momento, para depois a prender à coleira do Moby antes de ele conseguir reagir. Moby encarava-o sempre com aquele olhar que parecia dizer "como podes fazer-me isto?", enquanto era obrigado a regressar ao sítio habitual, mas Travis limitava-se a abanar a cabeça.

- Não atires as culpas para mim. Não te mandei rebolar em cima de peixes mortos, pois não?

Moby adorava rebolar-se em cima de peixes mortos, quanto mais fedorentos melhor, e enquanto Travis estava a guardar a moto na garagem o cão trotara alegremente para ele, de língua de fora, como se sentisse orgulho em si próprio. Travis esboçara um breve sorriso, até que o fedor o atingiu e reparou nos pedaços nojentos de peixe que tinham ficado presos no pêlo do cão. Depois de o ter cumprimentado com uma palmadinha na cabeça, Travis entrara em casa para vestir uns calções, escondendo a trela na algibeira de trás.

Agora, ao ar livre, preso pela trela ao corrimão da varanda, Moby dançava de um lado para o outro, a tentar, sem o conseguir, que não lhe descarregassem mais água em cima.

- É apenas água, valentão - zombava Travis, embora, na realidade, estivesse a deitar água sobre o cão há mais de cinco minutos. Por mais que gostasse de animais, não queria aplicar o champô até que todos os resíduos tivessem sido levados pela água. Restos de peixes mortos eram um nojo.

Moby gania e continuava a dançar, a esticar a trela para trás. Quando o achou em condições, Travis pôs a agulheta de lado e despejou no dorso do cão cerca de um terço do frasco de champô. Esfregou durante uns minutos e enxaguou; a seguir, cheirou o cão e enrugou a testa. Repetiram a operação mais duas vezes e, chegado a esse ponto, Moby sentia-se deprimido. Fixou os olhos em Travis, com uma expressão de mágoa que parecia dizer: "Não percebes que rebolar em cima das tripas dos peixes foi uma prenda pessoal para ti?"

Uma vez satisfeito, Travis levou o cão para outra parte da varanda e voltou a prendê-lo. Aprendera que se o soltasse depois de um banho, o Moby regressaria ao local do crime logo que pudesse. A sua única esperança era mantê-lo preso até o incidente estar esquecido. Moby sacudiu o excesso de água e, apercebendo-se de que estava preso, resolveu deitar-se depois de soltar uma rosnadela.

A seguir, Travis aparou a relva. Ao contrário da maioria dos vizinhos, que tinham cortadores mecanizados, ele continuava a usar um de empurrar. Levava um pouco mais de tempo, mas não se tratava apenas de um excelente exercício, pois o seu carácter repetitivo, para lá e para cá, tornava-o uma actividade relaxante. Enquanto aparava a relva, com um gesto reflexo ia olhando de lado para a casa de Gabby.

Uns minutos antes vira-a dirigir-se à garagem e meter-se no carro. Se reparara nele, não o demonstrara. Em vez disso, limitara-se a fazer marcha atrás e a entrar na estrada que conduz à cidade. Nunca conhecera uma pessoa como Gabby. E ela tinha-o convidado para jantar.

Não sabia como avaliar a situação e tinha tentado decifrá-la desde o momento em que a deixara à porta de casa. O mais provável era que a perseverança dele a tivesse vencido. Deus sabia como ele lubrificara aquela roda desde o momento em que se conheceram; porém, enquanto continuava a cortar a relva, desejou ter mostrado um pouco mais de subtileza no decorrer de todo o episódio. Isso tê-lo-ia feito sentir-se melhor ao aceitar o convite de Gabby, pois teria a certeza de que o convite não resultara de qualquer tipo de coacção.

Reflectir sobre tudo aquilo era algo de novo para ele. Porém, uma vez mais, não conseguia recordar-se da última vez que se sentira tão bem na companhia de uma mulher. Rira-se mais com Gabby do que com Monica, Jocelyn, Sarah ou qualquer outra das namoradas do passado. Encontrar uma mulher com sentido de humor fora o principal conselho que o pai lhe dera quando começara a namorar a sério e agora percebia o motivo que levava o pai a considerar o pormenor tão importante. Se a conversa constituía a letra, o riso era a música, transformando o tempo que passavam juntos numa melodia que poderia ser ouvida repetidamente, sem cansar.

Depois de aparar o relvado, levou o corta-relva de volta para a garagem, notando que Gabby ainda não regressara. Deixara a porta da garagem entreaberta e a Molly vagueou pelo jardim, antes de se voltar e regressar à garagem.

De regresso à cozinha, Travis engoliu um copo de chá frio num único gole. Sabendo que era um erro mas sem que isso o preocupasse, deixou que os pensamentos derivassem para o namorado de Gabby. Gostaria de saber se Kevin seria seu conhecido. Achava esquisito que ela falasse tão pouco acerca de Kevin e que tivesse precisado de tanto tempo só para lhe dizer o nome dele. Agora, seria fácil atribuir isso a um certo sentimento de culpa, mas ela evitara o assunto desde o início. Não sabia o que pensar e apenas podia deitar-se a adivinhar como ele era e o que teria feito para levar Gabby a apaixonar-se por ele. Mentalmente, passou em revista todos os tipos de homens: os atléticos, os estudiosos, algo entre estes dois, mas nenhum lhe parecia ajustar-se exactamente.

Consultado o relógio, verificou que dispunha de tempo para levar o barco de parasail de volta à marina, para depois tomar um duche e aprontar-se. Pegou nas chaves do barco e dirigiu-se à rampa de lançamento, soltou o cão e viu-o ultrapassá-lo na descida da escada. Parou junto à água e Travis indicou-lhe o barco.

- Pois, avança. Entra.

Moby saltou para o barco, sempre a agitar a cauda. Travis seguiu-o. Minutos depois, estavam a descer o rio, com o barco a deixar uma esteira indicativa de que seguiam no rumo certo. Ao passar defronte da casa de Gabby, olhou as janelas de relance, pensando uma vez mais no jantar e tentando imaginar o que poderia acontecer. Pela primeira vez na sua vida de namorador, apercebeu-se de que se encontrava nervoso por recear cometer um erro qualquer.

Gabby percorreu a pequena distância que a separava do supermercado e entrou no parque de estacionamento superlotado. Era sempre assim aos domingos, pelo que teve de arrumar no canto mais afastado do parque, a perguntar a si mesma qual o motivo que a fizera trazer o carro.

Posta a bolsa a tiracolo, saiu do automóvel, localizou um carrinho para as compras e entrou na loja.

Antes, vira Travis a aparar a relva, mas ignorara-o, pois, de certo modo, precisava de exibir um maior autodomínio do que aquele que sentia. O mundo agradável e ordenado que criara para si fora despedaçado, precisava de algum tempo para readquirir a compostura.

Dentro do supermercado, Gabby dirigiu-se ao sector de vegetais, onde escolheu ervilhas e as verduras necessárias para uma salada. Movendo-se com rapidez, localizou uma caixa de massa e quadradinhos de pão para a sopa; a seguir, caminhou para a parte de trás da loja.

Sabendo quanto Travis apreciava galinha, meteu num pacote de peitos de frango no carrinho e pensou que um Chardonnay seria apropriado. Não sabia se Travis gostava de vinho, achava que não, sem saber porquê, mas pareceu-lhe bem; procurou encontrar um dos vinhos da pequena lista de marcas que conhecia. Havia duas ofertas de vinhos de Napa Valley, mas escolheu uma da Austrália, que soou um pouco mais exótica.

Teve de esperar numa fila comprida e lenta para a caixa, mas finalmente conseguiu chegar ao carro. Ao olhar pelo retrovisor, viu a imagem de si própria e deixou-se ficar uns momentos parada, a tentar ver-se através dos olhos de outra pessoa.

Quanto tempo passara desde que Kevin a beijara? Por mais que tentasse esquecer aquele pequeno incidente, sentia-o reaparecer uma e outra vez, como se fora um segredo proibido.

Sentia-se atraída por Travis, não conseguia negá-lo. Não era apenas por ele ser bonito e por fazê-la sentir-se desejada. Tinha a ver com a exuberância natural dele e com a forma como a levava a querer fazer participar dela; havia ainda o facto de ele ter vivido uma vida tão diferente da dela, embora ambos usassem a mesma linguagem, uma coincidência que mascarava o pormenor de se conhecerem há tão pouco tempo. Nunca conhecera alguém como ele. Na sua maioria, as pessoas com quem se relacionara, e certamente todas as do seu curso de assistentes médicos, pareciam ter as vidas programadas, como que inscritas numa tabela de resultados. Estudar muito, encontrar emprego, casar, comprar casa, ter filhos; e apercebia-se de que até àquele fim-de-semana ela própria não fora diferente. De certa maneira, quando comparada com as escolhas que Travis fizera e com os lugares que ele tinha visitado, a vida dela parecia tão... banal.

No entanto, teria agido de outra forma no caso de haver oportunidade? Duvidava. As experiências vividas durante o crescimento tinham-na formatado para se tornar a mulher que viria a ser, tal como as experiências dele o tinham formatado para ser o homem que era, e não se sentia arrependida. E, no entanto, ao rodar a chave para ligar o motor, sabia que não era aquela a questão que importava. Com o carro a trabalhar ao ralenti, compreendeu que a escolha que enfrentava era: "O que vou fazer a partir daqui?"

"Nunca é tarde para proceder a mudanças." Um pensamento que a atemorizava tanto quanto a excitava. Minutos depois, estava a caminho de Morehead City, a sentir que, de qualquer forma, lhe fora dada uma oportunidade de começar de novo.

O Sol já tinha cruzado o céu por completo quando Gabby regressou a casa e viu Molly deitada na erva húmida, de orelhas arrebitadas e cauda a abanar. Trotou na direcção de Gabby quando ela estava a abrir a porta das traseiras e saudou-a com um par de lambidelas molhadas.

- Pareces quase normal - elogiou Gabby. - Os teus bebés estão bem?

Como se percebesse, a cadela começou a andar na direcção deles.

Gabby pegou nos sacos e levou-os para dentro de casa, colocando as mercearias na bancada da cozinha. Gastara mais tempo do que previra, mas ainda dispunha de margem suficiente para preparar tudo. Tinha uma panela no fogão e pôs a chama no máximo para cozer a massa. Enquanto esperava que a água fervesse, cortou tomates e pepinos para a salada. Partiu a alface e juntou todos os ingredientes, acrescentando um pouco de queijo e as azeitonas que Travis lhe tinha revelado no dia anterior.

Meteu a massa na panela, juntamente com um pouco de sal, abriu a embalagem dos peitos de frango e começou a salteá-los em azeite, desejando ter revelado um pouco mais de imaginação na escolha da ementa. Juntou um pouco de pimenta mas, no final, o prato pareceu-lhe quase tão corriqueiro quanto parecia antes de ter começado a prepará-lo. Paciência, tinha de servir. Ligou o forno, acrescentou um pouco de caldo de carne na travessa do frango e pôs tudo no forno, esperando que não secasse muito. Escorreu a massa e despejou-a numa tigela, que colocou no frigorífico, pensando adicionar-lhe alguns condimentos, mas mais tarde.

No quarto, dispôs as roupas em cima da cama e dirigiu-se para a casa de banho. Apreciou a voluptuosidade da água quente. Depilou as pernas, forçando-se a não o fazer com demasiada rapidez, para não se ferir, lavou e tratou o cabelo e finalmente secou-o.

Em cima da cama tinha um par de calças novas, de ganga, e uma blusa decotada, com bordados. Escolhera a roupa cautelosamente, não querendo vestir-se formalmente nem casualmente, e aquele parecera-lhe o conjunto adequado. Vestiu-se e calçou umas sandálias novas. Parando em frente do espelho, virou-se para um lado, depois para o outro, agradada do seu aspecto.

Com a hora a aproximar-se, dispôs algumas velas na mesa e estava a colocar a última quando ouviu Travis bater à porta. Endireitou-se, tentando mostrar compostura e caminhou para a porta.

Molly fora receber Travis e ele estava a coçar-lhe o pêlo de detrás das orelhas quando a porta se abriu. Não conseguia deixar de olhar e parecia ter perdido a voz. Encarava Gabby em silêncio", a tentar avaliar a mescla de emoções que começava a fazer-lhe bater o coração.

Gabby sorriu ante o evidente embaraço dele. - Entre - convidou. - Estava mesmo a acabar os preparativos.

Travis seguiu-a para dentro de casa, tentando não olhar enquanto ela caminhava à frente dele.

- Estava para abrir uma garrafa de vinho. Não quer um copo?

- Se faz favor.

Chegada à cozinha, Gabby pegou na garrafa e no saca-rolhas, enquanto Travis se aproximava.

- Posso fazer isso.

- Ainda bem que o diz. Tenho tendência para desfazer a rolha e detesto ver pedaços de cortiça a flutuar no copo.

Ao mesmo tempo que abria a garrafa, Travis viu-a tirar dois copos do armário e pô-los em cima da bancada. Travis estudou o rótulo, a fingir mais interesse do que sentia, a tentar controlar os nervos.

- Nunca bebi desta marca. É bom?

- Não faço ideia.

- Então, parece que vai ser uma novidade para ambos - comentou Travis. Encheu um copo para ela, enquanto tentava ler-lhe a expressão.

- Não sabia o que gostaria de comer ao jantar - prosseguiu Gabby. - Mas sabia que gostava de galinha. No entanto, tenho de o avisar de que nunca fui a cozinheira da família.

- Tenho a certeza de que, feito por si, estará excelente.

- Desde que não seja complicado, certo?

- Sem comentários.

- Tem fome? - perguntou Gabby, a sorrir. - Só preciso de uns minutos para aquecer isto...

Travis reflectiu um pouco e acabou por se encostar à bancada.

- Não poderíamos realmente aguardar um pouco? Gostaria de saborear o meu copo de vinho.

Gabby assentiu e, no silêncio que se instalou entre eles, ficou a pensar no que deveria fazer a seguir.

- Não gostaria de ir lá para fora?

- Excelente ideia.

Sentaram-se nas cadeiras de balouço que ela instalara junto da porta. Gabby bebeu um golinho de vinho, desejosa de encontrar um qualquer alívio para os nervos.

- Gosto da sua vista - observou Travis para animar o ambiente, enquanto fazia balouçar a cadeira. - Faz-me lembrar a minha.

A sentir um certo alívio, Gabby riu-se. - Infelizmente ainda não me dispus a desfrutar dela como você sabe fazer.

- Poucas pessoas o conseguem. É uma espécie de arte pouco comum hoje em dia, mesmo no Sul. Observar o fluir do rio é um pouco como cheirar as rosas.

- Talvez seja uma característica das cidades de província - sugeriu Gabby.

Travis olhou-a com curiosidade. - Diga-me, está mesmo a gostar de viver em Beaufort? - perguntou.

- Tem os seus pontos positivos.

- Ouvi dizer que os vizinhos são fantásticos.

- Ainda só conheci um.

- E?

- Mostra propensão para fazer perguntas difíceis. Travis sorriu. Apreciava aquele espírito desportivo.

- Contudo, e para responder à sua pergunta - prosseguiu Gabby -, sim, gosto disto aqui. Aprecio o pormenor de precisar apenas de uns minutos para chegar a qualquer sítio, a região é bonita e, na maioria dos casos, julgo que estou a aprender a adorar o ritmo menos intenso da vida.

- Quem a ouvir pensará que Savannah é tão cosmopolita como Nova Iorque ou Paris.

Ela olhou-o por cima do bordo do copo. - Não é. Mas diria que Savannah está decididamente mais perto de Nova Iorque do que Beaufort. Esteve lá alguma vez?

- Passei lá uma semana de uma noite.

- Ah, ah! Sabe, se pretende fazer espírito, podia tentar arranjar algo de original.

- Isso dá muito trabalho.

- E você é avesso ao trabalho, não é verdade?

Travis recostou-se na cadeira de balouço, uma verdadeira imagem da descontracção. - Não é óbvio? Mas, diga-me uma coisa; alguma vez pensou em regressar?

Gabby bebeu um gole antes de responder. -Julgo que não. Não me interprete mal. Penso que é um sítio fantástico e uma das mais belas cidades do Sul. Adoro a forma como a cidade foi projectada. Tem as praças mais bonitas, todos esses parques separados por uns quarteirões, e algumas das casas que os delimitam são espantosas. Quando era criança, costumava imaginar-me a viver dentro de uma delas. Foi o meu sonho, durante muito tempo.

Travis manteve-se calado, à espera que ela continuasse. Gabby encolheu os ombros. - Contudo, ao crescer, comecei a aperceber-me de que o sonho era mais da minha mãe do que meu. Ela sempre desejara morar numa daquelas casas e recordo-me da maneira como atormentava o meu pai para que ele fizesse uma oferta sempre que uma estava à venda. O meu pai estava bem na vida, não me interprete mal, mas eu via que ficava sempre incomodado por saber que não dispunha de meios para poder ter uma casa realmente grande, o que acabava por me irritar - explicou. - De qualquer das formas, eu queria qualquer coisa diferente. O que me conduziu, é claro, à universidade, ao curso e a Kevin. E aqui estou.

Lá longe, ouviram Moby começar a ladrar freneticamente, seguindo-se o som de arranhar de garras num tronco de árvore. Um olhar rápido ao grande carvalho que estava perto da sebe, permitiu a Travis ver um esquilo que trepava tronco acima o mais depressa que podia. Embora não o visse, sabia que o cão continuava a andar à volta do carvalho, a pensar que, por quaisquer artes mágicas, a criatura perderia as forças e acabaria por cair. Notando que Gabby se voltara para o lado de onde viera o som, Travis ergueu o copo na mesma direcção.

- O meu cão é louco por uma correria atrás dos esquilos. Parece ver naquilo a finalidade da sua vida.

- Sucede com a maioria dos cães.

- A Molly também o faz?

- Não. A dona dela controla-a um pouco melhor e conseguiu eliminar esse pequeno problema, antes que fosse tarde.

- Estou a ver - observou Travis com fingida seriedade. Acima da água, estava a começar o primeiro acto do pôr do Sol.

Passada mais uma hora, o rio ficaria com reflexos dourados, mas para já havia algo de escuro e misterioso na cor pouco agradável das suas águas. Para lá dos ciprestes que delimitavam a margem, Travis via uma águia-marinha flutuar nas correntes de ar ascendentes e ficou a observar um pequeno barco a motor conduzido por alguém com idade para ser seu avô, e o senhor acenou uma saudação. Travis retribuiu o cumprimento e bebeu mais um gole.

- Com tudo o que disse, gostaria de saber se consegue imaginar-se a ficar em Beaufort.

Gabby pensou na resposta, julgando a pergunta mais complexa do que parecia.

- Suponho que depende - acabou por responder. - Não é particularmente excitante mas, por outro lado, não é um mau lugar para criar uma família.

- E isso é importante?

- Há alguma coisa mais importante? - inquiriu Gabby, voltando-se para ele com um certo ar de desafio.

- Não, não há. Sou a prova dessa crença porque a vivi. Beaufort é o género de lugar onde a Segunda Divisão gera mais conversas do que a Final da Taça e agrada-me pensar que posso criar os meus filhos onde o pequeno mundo em que vivem é tudo o que eles conhecem. Quando estava a crescer, entendia que este era o lugar mais enfadonho do mundo, mas, olhando para trás, compreendi que o corolário dessa premissa era que qualquer episódio excitante significava muito mais para mim. - Nunca senti o género de tédio que afecta muitos miúdos da cidade - prosseguiu. - Recordo-me de acompanhar o meu pai à pesca todas as manhãs de domingo e, embora pensasse que o meu pai era o pior pescador que alguma vez preparou um anzol, achava aquilo interessante. Compreendo agora que, pelo menos para o meu pai, era uma maneira de passar tempo comigo e não consigo demonstrar quanto lhe estou grato por isso. Gosto de pensar que um dia poderei proporcionar aos meus filhos experiências do mesmo género.

- É agradável ouvi-lo falar assim - comentou Gabby. - Há muita gente que não pensa dessa maneira.

- Adoro esta cidade.

- Não é isso - observou ela, a sorrir. - Estava a referir-me à maneira como diz que quer criar os seus filhos. Dá a entender que já pensou muito no assunto.

- Pois pensei - admitiu Travis.

- Consegue sempre arranjar uma forma de me surpreender, não é?

- Não sei. Consigo?

- Um pouco. Quanto melhor o conheço, mais me surpreende como uma pessoa bem ajustada à vida, de uma forma que parece impossível.

- Poderia dizer o mesmo a seu respeito - contrapôs Travis. - Talvez seja essa a razão de nos entendermos tão bem.

Gabby encarou-o, a sentir o crepitar da tensão entre eles. -Já está pronto para jantar?

Ele engoliu em seco, esperando que Gabby notasse os seus sentimentos em relação a ela. - Parece-me uma excelente ideia - forçou-se a dizer.

Regressaram à cozinha, cada um com o seu copo de vinho. Gabby acenou para que Travis se sentasse à mesa, enquanto ela preparava tudo; ao vê-la movimentar-se pela cozinha, Travis sentiu-se invadir por uma sensação de contentamento.

Ao jantar, comeu duas peças de frango, apreciou as ervilhas e a massa, e teceu elogios extravagantes à arte culinária dela, até que Gabby, a sorrir, lhe pediu que parasse. Travis interrogou-a repetidamente sobre a infância dela em Savannah e ela finalmente cedeu, regalando-o com histórias de raparigas que provocaram sorrisos em ambos. Com o passar das horas, o céu tornou-se cinzento e azul e finalmente negro. Com as velas quase queimadas, deitaram o vinho que restava nos copos, ambos conscientes de estarem sentados em frente da pessoa que, se não se precavessem, poderia mudar para sempre o curso das suas vidas.

Terminado o jantar, e depois de Travis ter ajudado Gabby a arrumar a cozinha, foram sentar-se no sofá, apreciando o vinho que lhes restava e recordando episódios do passado. Gabby tentava imaginar Travis em jovem, tentando perceber se teria reparado nele caso se tivessem conhecido na escola secundária ou na universidade.

Com o decorrer do serão, Travis aproximou-se mais, colocando casualmente um braço à volta dos ombros dela. Gabby encostou-se, sentiu-se bem ao acomodar-se a ele, a observar, contente, o jogo dos raios de luar a serem filtrados pelas nuvens.

- Em que é que estás a pensar? - indagou Travis, quebrando um período de silêncio especialmente longo mas confortável.

- Estava a pensar quanto todo este fim-de-semana me pareceu natural - respondeu Gabby, a olhar para ele. - Como se nos conhecêssemos desde sempre.

- Julgo que isso significa que uma ou duas das minhas histórias foram maçadoras, é isso?

- Não te subestimes - desafiou Gabby. - Muitas das tuas histórias foram uma maçada.

Ele riu-se, apertando-a mais contra si. - Quanto melhor te conheço, mais me surpreendes. Gosto disso.

- Para que servem os vizinhos?

- É isso que continuo a ser para ti? Apenas um vizinho? Gabby olhou para longe, sem responder, e Travis prosseguiu.

- Sei que isso te faz sentir desconfortável, mas esta noite não poderei ir-me embora sem te dizer que sermos vizinhos não é suficiente para mim.

- Travis...

- Deixa-me acabar, está bem? Hoje, mais cedo, quando conversámos, disseste-me que sentias a falta de amigos à tua volta e não mais deixei de pensar nisso, mas talvez não seja da forma que imaginas. O que disseste obrigou-me a perceber que, embora tenha amigos, estou a sentir-me privado de qualquer coisa, uma carência que os meus amigos não sentem. Laird e Allison, Joe e Megan, Matt e Liz, cada um tem o outro. Não tenho nada de semelhante na minha vida e, até apareceres, não tinha a certeza de que o queria. Mas agora...

Gabby apertou o bordado da blusa, a querer resistir às palavras dele mas também a apreciá-las.

- Não quero perder-te, Gabby. Não consigo imaginar-me a ver-te entrar no carro todas as manhãs e a fingir que nada disto aconteceu.

Não consigo imaginar que não possa estar sentado contigo neste sofá, como estamos agora - parou e engoliu em seco. - E neste momento nem consigo imaginar que possa vir a amar outra mulher.

Gabby não tinha a certeza de o ter entendido bem, mas quando viu a forma como ele a olhava, soube que ele falava com sinceridade. E com isso sentiu que as suas últimas defesas se desmoronavam e soube que também se apaixonara por ele.

Lá atrás, o relógio do avô bateu as horas. A luz da vela tremeluziu na parede, lançando sombras à volta da sala. Travis sentia o suave arfar do peito dela e continuaram a olhar um para o outro, sem que nenhum deles conseguisse falar.

O telefone tocou, interrompendo o fluxo de pensamentos de Gabby, forçando Travis a desviar os olhos. Ela inclinou-se para diante e agarrou o telefone portátil. Respondeu, sem que a voz a traísse.

- Oh, olá, como é que estás?... Não muito... Pois... Entretive-me com pequenos afazeres... Como é que vão as coisas por aí?

Ao ouvir a voz de Kevin, sentiu-se invadida por uma onda de remorso. No entanto, deu consigo a estender a mão e a pousá-la na perna de Travis. Este não se mexera nem proferira qualquer som, ela sentia-lhe os músculos tensos ao fazer a mão correr pela coxa dele.

- Oh, isso é fantástico. Parabéns. Fico contente por teres ganho... parece que te divertiste... Oh, quanto a mim? Nada de excitante.

Ouvir a voz de Kevin e estar tão próxima de Travis era como se estivesse a ser empurrada em duas direcções opostas. Tentou concentrar-se e ouvir Kevin, enquanto tentava perceber o que acabara de acontecer com Travis. A situação era demasiado surrealista para poder ser compreendida.

- Lamento ouvir isso... Oh, eu sei, eu também sou sujeita a escaldões de sol... Pois... pois... Sim, pensei na viagem a Miami, mas não consigo quaisquer dias de férias antes do final do ano. Talvez, não sei...

Largou a perna de Travis e recostou-se no sofá, tentando manter a voz firme, a desejar não ter atendido o telefone, a desejar que ele não tivesse ligado. A única certeza era sentir-se cada vez mais confusa. - Veremos, está bem? Falaremos disso depois de regressares... Não, não há qualquer problema. Estou apenas cansada, acho eu... Não, nada de grave. O fim-de-semana tem sido comprido...

Não era mentira, mas também não era verdade; e ela sabia-o, o que a fazia sentir-se ainda pior. Travis mantinha-se a olhar para os pés, a fingir que não estava a ouvir.

- Farei isso - prosseguiu Gabby. - Sim, tu também. Pois... sim, estarei por aqui... Muito bem... Também eu. E diverte-te, amanhã. Adeusinho.

Depois de desligar o telefone, pareceu hesitar por momentos e pousou a mão em cima da mesa. Travis sabia que o melhor era não se manifestar.

- Era o Kevin - acabou Gabby por informar.

- Calculei - respondeu Travis, incapaz de lhe decifrar a expressão.

- Hoje, ganhou o concurso para a melhor bola.

- Bom para ele.

E o silêncio desceu de novo sobre eles.

- Acho que preciso de um pouco de ar puro - disse Gabby, ao erguer-se do sofá. Caminhou para a porta de correr e passou para o exterior.

Travis viu-a sair, sem saber se deveria segui-la ou se ela necessitaria de estar só. Do seu lugar no sofá, só via uma imagem difusa de Gabby. Podia imaginar uma cena em que fosse até junto dela, apenas para a ouvir sugerir que o melhor era ele ir-se embora; embora a ideia o enchesse de medo, achou que naquele, mais do que em qualquer outro momento, tinha de estar ao lado dela.

Caminhou para a porta, foi colocar-se ao lado dela e encostou-se ao corrimão. Ao luar, a pele dela ficava cor de pérola, os olhos escuros brilhavam.

- Peço desculpa.

- Não peças. Não tens qualquer motivo para pedir desculpa respondeu Gabby, a forçar um sorriso. - A culpa foi minha, não foi tua. Eu sabia onde estava a meter-me.

Gabby sentia que ele queria tocá-la, mas dilacerava-a a ideia de que talvez quisesse o mesmo. Sabia que tinha de pôr termo àquela situação, que não devia deixar que o serão continuasse, mas não conseguia quebrar o encantamento em que a declaração de Travis a deixara. Apaixonar-se leva tempo, mais tempo do que um simples fim-de-semana mas, fosse como fosse, apesar dos seus sentimentos em relação a Kevin, acontecera. Sentia o nervosismo de Travis, de pé, ali a seu lado e notou que tentava recompor-se com um último gole de vinho.

- Estavas a falar a sério quando disseste aquilo? - perguntou. - Quando falaste em ter uma família?

- Sim, estava.

- Ainda bem, porque penso que poderás ser um pai fantástico. Ainda não te tinha dito isto, mas foi o que pensei ao ver-te com as crianças, ontem. Pareceste-me tão à-vontade com elas.

- Tenho muita experiência com animais recém-nascidos. Apesar da tensão, ela riu-se. Deu um pequeno passo na direcção

dele e pôs-lhe os braços à volta do pescoço quando Travis se virou para ela. Ouvia a vozinha interna a avisá-la que parasse, a dizer-lhe que ainda não era demasiado tarde para acabar com aquilo. Mas sentia-se presa de uma nova compulsão e sabia que não valia a pena resistir-lhe.

- Talvez seja verdade, mas achei que te tornava atraente - sussurrou Gabby.

Travis apertou-a contra si, notando como o corpo dela parecia adaptar-se ao dele. Apercebeu-se de que o corpo dela exalava um ligeiro odor a jasmim e, ao manterem-se colados um ao outro, os sentidos dele pareceram despertar. Sentiu que chegara ao fim de uma longa viagem, sem saber, até àquele preciso momento, que Gabby sempre fora o seu ponto de chegada. - Amo-te, Gabby Holland sussurrou-lhe ao ouvido, consciente de que nunca tivera uma tal certeza a respeito do que quer que fosse.

Gabby afundou-se nele.

- Também te amo, Travis Parker - murmurou Gabby que, abraçada a ele e postos de lado todos os seus remorsos e reservas, não conseguia imaginar que pudesse desejar uma situação diferente da que vivia naquele momento.

Travis beijou-a, uma e outra vez, explorou-lhe demoradamente o pescoço e os ombros, antes de lhe procurar uma vez mais os lábios. Ela afagou-lhe o peito e os ombros com as mãos, a sentir a força dos braços que a apertavam; e estremeceu quando ele lhe mergulhou os dedos nos cabelos, sabendo que todos os acontecimentos daquele fim-de-semana só podiam ter aquele resultado.

Beijaram-se na varanda durante muito tempo. Finalmente, Gabby afastou-se, pegou-lhe na mão e conduziu-o para dentro de casa; passaram pela sala e chegaram ao quarto. Apontou para o leito e, enquanto Travis ficava deitado, Gabby tirou um isqueiro da gaveta da mesa-de-cabeceira e acendeu uma a uma as velas que já estavam dispostas nos seus lugares. O quarto, escuro de início, foi iluminado por uma luz trémula que pareceu envolvê-la em ouro líquido.

Com as sombras a acentuarem cada movimento dela, Travis viu Gabby cruzar os braços, pegar na bainha da blusa e tirá-la por cima da cabeça com um só movimento. Os seios pressionavam o cetim do sutiã e as mãos dela desciam até à abertura das calças de ganga. Num instante, saltou de dentro da pilha de roupa amarrotada a seus pés.

Travis olhava-a, hipnotizado, ao vê-la caminhar para a cama e a empurrá-lo para trás num movimento brincalhão. Gabby começou a desabotoar-lhe a camisa e a empurrá-la para cima dos ombros dele. Enquanto ele torcia o tronco para libertar os braços, ela abriu-lhe a braguilha e logo a seguir Travis sentiu o calor da barriga dela que escorregava pela sua.

Procurou a boca dela com paixão controlada. O corpo dela adaptava-se ao dele, ajustava-se mais perfeitamente do que alguma vez sentira, como duas peças perdidas de um quebra-cabeças que finalmente fossem colocadas nos lugares que lhes pertenciam.

Mais tarde, deitado ao lado dela na cama, Travis proferiu as palavras que lhe tinham andado a girar na cabeça durante todo o serão.

- Amo-te, Gabby - sussurrou. - És a melhor coisa que alguma vez me aconteceu.

Sentiu a carícia da mão dela.

- Também te amo, Travis - murmurou Gabby; após ouvir as palavras dela, Travis compreendeu que a sua viagem solitária de muitos anos tinha chegado ao fim.

Com a Lua ainda alta no céu e o luar prateado a iluminar o quarto, Travis fez rolar o corpo, percebendo imediatamente que Gabby já não estava a seu lado. Eram quatro quase quatro horas da manhã e, depois de notar que ela já não estava ali, levantou-se e enfiou as calças. Percorreu o corredor e espreitou para o quarto de hóspedes, antes de enfiar a cabeça pela fresta da porta da cozinha. Todas as luzes estavam apagadas e ele hesitou por momentos ao reparar que a porta de correr se encontrava ligeiramente aberta.

Entrou na pequena varanda, apercebendo-se da presença de um vulto debruçado sobre o corrimão que percorria a varanda de um lado ao outro da casa. Deu um passo cauteloso na direcção de Gabby, sem saber se ela preferiria estar só.

- Olá - ouviu uma voz vinda da escuridão. Travis notou que ela vestira o roupão que vira pendurado na casa de banho.

- Olá - respondeu calmamente. - Sentes-te bem?

- Estou óptima. Acordei e deixei-me ficar às voltas durante algum tempo, mas não quis acordar-te.

Parando a curta distância dela, Travis encostou-se também ao corrimão, mas nenhum deles falou. Em vez disso, limitaram-se a observar o céu. Tudo parecia tranquilo; até as cigarras e as rãs estavam silenciosas.

Foi Gabby quem quebrou o silêncio: - Visto daqui, é tão bonito.

- Pois é - anuiu Travis.

- Adoro noites como esta.

Como Gabby se calasse, ele aproximou-se mais e pegou-lhe na mão.

- Estás preocupada por causa do que aconteceu?

- De forma alguma - respondeu Gabby, numa voz clara. - Não lamento o que quer que seja.

Ele sorriu. - Em que é que estás a pensar?

Gabby também sorriu e encostou-se a ele. - Estava a pensar no meu pai. Em muitos aspectos, fazes com que me lembre dele. Havias de gostar do meu pai.

- Tenho a certeza de que gostaria - anuiu Travis, duvidoso quanto ao rumo da conversa.

- Estava a pensar como ele se teria sentido quando conheceu a minha mãe. O que lhe passou pela cabeça quando a viu, se ficou nervoso, o que disse ao aproximar-se dela.

Travis limitou-se a olhar para ela. - E?

- Não faço ideia.

Quando ele desatou a rir, Gabby apertou-o nos braços. - A água do teu tanque de hidromassagem ainda estará quente?

- Deve estar. Não verifiquei, mas acho que deve estar boa.

- Queres pôr-te de molho?

- Terei de ir buscar os calções, mas a ideia parece-me excelente. Gabby apertou-o ainda mais e inclinou a cabeça, de forma a falar-lhe ao ouvido. - Quem disse que precisavas dos calções?

Travis não falou enquanto percorriam o relvado a caminho do tanque de hidromassagem. Ao retirar a cobertura do tanque, notou que o roupão de banho de Gabby lhe escorregava dos ombros e viu-lhe de relance o corpo nu; naquele momento percebeu que a amava e que os dois últimos dias iriam, de uma forma ou de outra, marcar a sua vida

para sempre.

 

Embora tivessem regressado ao trabalho na segunda-feira, durante os dois dias seguintes Travis e Gabby passaram juntos todos os momentos livres. Fizeram amor na segunda-feira, antes de irem trabalhar, almoçaram juntos num pequeno café, dirigido por uma família, em Morehead City, e pela tarde, com Molly a sentir-se melhor, levaram os dois cães a passear numa praia perto de Fort Macon. Enquanto eles caminhavam de mãos dadas, Moby e Molly vagueavam pela praia como dois velhos amigos que se tinham habituado a ser diferentes. Enquanto Moby caçava os cagarros e investia contra bandos de gaivotas, Molly continuava o seu caminho, como se o caso não lhe dissesse respeito. Passado algum tempo, ao reparar que Molly já não o acompanhava, Moby voava para junto dela; os dois trotavam contentes até Moby voltar a perder a cabeça e repetia-se toda a cena.

- Parecem-se um pouco connosco, não achas? - comentou Gabby a apertar mais a mão de Travis. - Um sempre à procura de excitação, o outro a retrair-se?

- Qual deles sou eu?

Ela riu-se, encostou-se e reclinou a cabeça no ombro dele. Travis parou e tomou-a nos braços, espantado e temeroso com a força dos seus sentimentos. Mas quando ela ergueu o rosto para o beijar, os receios dele começaram a desvanecer-se, substituídos por uma crescente sensação de plenitude. Ficou a pensar se o amor afectaria todas as pessoas com a mesma intensidade.

Mais tarde, pararam no supermercado. Nenhum deles sentia muita fome e por isso Travis comprou apenas o suficiente para fazer uma salada de galinha. Na cozinha, ele encarregou-se de grelhar a galinha e ficou a ver Gabby lavar a alface no lava-louça. Depois do jantar, enroscada no sofá, Gabby contou a Travis mais pormenores sobre a família, o que provocou nele uma mistura de sentimentos: de simpatia em relação a Gabby e de cólera contra a mãe, que não conseguia reconhecer que a filha se tinha tornado uma mulher incrível. Mantiveram-se abraçados até depois da meia-noite.

Na manhã de terça-feira, Travis encontrava-se deitado na cama quando ela começou a espreguiçar-se. Gabby entreabriu um olho.

- Já são horas de me levantar?

- Julgo que sim - resmungou ele.

Continuaram deitados a olhar-se sem se mexerem, até que Travis prosseguiu: - Sabes o que me apetece? Café e bolo de canela.

- Hum, pouca sorte, não há tempo. Tenho de estar no consultório às oito horas. Não devias ter-me obrigado a ficar acordada até tão tarde.

- Fecha os olhos e deseja isso com muita força e talvez o teu desejo se realize.

Demasiado cansada para o contrariar, fez o que ele sugerira, a suspirar por mais uns minutos de cama.

- E aqui está! - ouviu-o exclamar.

- O quê? - resmungou.

- O teu café. E um bolo de canela.

- Não me provoques. Estou faminta.

- Mas está aqui. Volta-te e vê com os teus próprios olhos. Gabby lutou para se sentar e viu que em cima da mesa-de-cabeceira havia duas canecas de café fumegante e um prato de bolos de canela de fazerem crescer água na boca.

- Quando é que... quero dizer, por que é que tu...?

Ele sorriu. - Há poucos minutos. Como já estava acordado, dei um saltinho à baixa.

Sorridente, Gabby estendeu a mão para as canecas de café e entregou uma a Travis. - Apetecia-me dar-te um beijo, mas isto tem um odor excelente e sinto-me faminta. Beijo-te mais tarde.

- Talvez no duche?

- Tens sempre de cobrar qualquer coisa, não é verdade?

- Sê simpática. Até te trouxe o pequeno-almoço à cama.

- Eu sei - concordou ela a sorrir e a pegar no bolo. - E vou apreciá-lo devidamente.

Na tarde de terça-feira, Travis levou Gabby a passear de barco e a assistir ao pôr do Sol no mar, em frente de Beaufort. Gabby mantivera-se calada desde que regressara do emprego, motivo que o levara a sugerir o passeio; foi a sua maneira de tentar o início da conversa que tinha de acontecer.

Uma hora depois, sentado na sua varanda com Molly e Moby deitados a seus pés, Travis cedeu ao inevitável.

- O que é que vai acontecer em seguida? - perguntou. Gabby fez rodar o copo de água nas mãos. - Não sei ao certo - respondeu em voz baixa.

- Queres que fale com ele?

Ela abanou a cabeça. - Não é tão simples quanto isso. Tenho estado durante todo o dia a debater a questão e ainda não tenho a certeza do que vou fazer, ou até daquilo que lhe vou dizer.

- Vais contar-lhe o que se passa connosco, não vais?

- Não sei. Na verdade, não sei - murmurou, voltando-se para Travis, com os olhos marejados de lágrimas. - Não te zangues comigo. Não, por favor. Acredita quando te digo que sei como isto te faz sentir, pois eu sinto o mesmo. Nos últimos dias, fizeste-me sentir... que estava viva. Fizeste-me sentir bonita, inteligente e desejada; e por mais que tente, nunca serei capaz de te dizer quanto isso significou para mim. Contudo, por mais intenso que tudo tenha sido, por muito que goste de ti, não somos pessoas iguais e tu não tens de resolver o tipo de situação que eu tenho de enfrentar. Para ti, é fácil; se nos amamos, devemos estar juntos. Mas Kevin também é importante para mim.

- E quanto a todas aquelas coisas que disseste? - inquiriu Travis, a tentar não revelar o receio que sentia.

- Travis, ele não é perfeito. Sei isso. E é verdade que, neste momento, as coisas não correm lá muito bem entre nós. Mas não consigo deixar de pensar que também tenho culpa do estado da relação. Não consegues perceber isso? Com Kevin, tenho todas aquelas expectativas, mas contigo... elas não existem. E se a situação fosse a inversa, alguma destas situações teria acontecido? E se eu esperasse que casasses comigo, enquanto com ele me limitasse a desfrutar de cada momento que passa? Não me proporcionarias um dia como este e muito provavelmente eu não o teria pretendido.

- Não fales assim.

- Mas esta é a verdade, não é? - indagou com um sorriso doloroso. - Passei o dia a pensar nisso, embora me magoe ter de o dizer.

Amo-te, Travis, amo-te verdadeiramente. Se encarasse a situação como um devaneio de fim-de-semana, punha tudo para trás das costas e pensava no meu futuro com Kevin. Contudo, não vai ser assim tão fácil. Tenho de escolher entre ti e ele. Com Kevin, sei o que posso esperar. Ou, pelo menos, até teres aparecido, pensava que sabia. Mas agora...

Fez uma pausa, Travis via o cabelo dela agitar-se ligeiramente com a brisa. Gabby apertou os braços fortemente contra o peito.

- Só nos conhecemos há uns dias e, enquanto estávamos no barco, dei comigo a tentar imaginar a quantas mulheres proporcionaste aquele passeio. Não por sentir ciúmes, mas por não deixar de perguntar a mim mesma o que teria provocado a ruptura dessas relações. Não nos conhecemos, por mais que pensemos o contrário. Eu, pelo menos, não te conheço. Só sei que me apaixonei por ti e que isso me deixou mais assustada do que qualquer outra coisa que me sucedeu na vida.

Parou. Travis permaneceu calado, a deixar que as palavras dela assentassem antes de lhe responder.

- Tens razão - admitiu. - A tua escolha é diferente da minha. Contudo, estás a lavrar num erro quando pensas que tudo foi apenas mais um devaneio para mim. Talvez tenha começado por pensar algo de semelhante, mas... - hesitou, procurou a mão dela. - Não foi assim que terminou. Passar tempo junto de ti veio demonstrar-me o que tenho estado a perder com a vida que levo. Quantos mais minutos passávamos juntos, mais eu conseguia imaginar que eles se prolongariam para sempre. Nunca me acontecera algo de semelhante e tenho a certeza de que não voltará a acontecer. Nunca estivera apaixonado até tu teres aparecido ou, pelo menos, ainda não sentira o verdadeiro amor. Nada de semelhante a isto e eu seria um parvo se te deixasse sair da minha vida sem luta.

Esgotado, Travis passou a mão pelos cabelos.

- Não sei o que mais poderei dizer-te, para além de que consigo imaginar o resto da minha vida na tua companhia. Sei que parece uma ideia maluca. Sei que ainda estamos a tentar conhecer-nos mutuamente e, mesmo admitindo que isto te possa levar a pensar que sou parvo, nunca tive tantas certezas acerca do que quer que fosse. E se me deres oportunidade, se deres uma oportunidade a ambos, passarei o resto da minha vida a provar-te que tomaste a decisão acertada. Amo-te, Gabby. E não te amo apenas pela pessoa que és, é também pela maneira como me fazes pensar aquilo que nós podemos ser.

Ambos se mantiveram calados durante bastante tempo. Lá fora, no escuro, ouvia-se o cantar das cigarras escondidas entre a folhagem. Gabby sentia a cabeça num rodopio, queria fugir e queria ficar para sempre, os seus instintos em confronto reflectiam a impossível teia em que se deixara enredar.

- Gosto de ti, Travis - admitiu francamente. Então, ao aperceber-se de como a frase soava, lutou para prosseguir. - E também te amo, é claro, mas espero que já tenhas percebido isso. Estava apenas a tentar explicar-te que gosto da maneira como falas comigo. Gosto de admitir que, quando me dizes qualquer coisa, estás a querer dizer isso mesmo; aprecio o facto de conseguir adivinhar quando estás a provocar-me ou de saber se estás, ou não estás, a dizer a verdade. É uma das tuas qualidades mais estimáveis - acrescentou. Assentou-lhe uma palmada no joelho. - Ora bem, és capaz de me fazer um favor?

- É claro.

- Seja o que for que eu pedir? Travis hesitou. - Sim... acho que sim.

- És capaz de fazer amor comigo? Sem pensar que poderá ser uma das últimas situações que vivamos juntos?

- Isso são dois favores.

Gabby não se dignou responder. Em vez disso, estendeu-lhe a mão. Enquanto se dirigiam para o quarto, ela esboçou o mais ténue dos sorrisos, sabendo finalmente o que tinha de fazer.

 

                   Fevereiro de 2007

Travis procurou libertar-se daquelas memórias com quase onze anos, a tentar perceber como elas tinham ressurgido com uma tal nitidez. Seria por ele agora ter idade suficiente para se aperceber de quanto era anómala uma paixão tão súbita? Ou simplesmente por sentir a falta da intimidade daqueles dias? Não sabia.

Ultimamente, tinha a sensação de que não sabia inúmeras coisas. Havia pessoas que se declaravam na posse de todas as respostas, ou pelo menos das respostas acerca das grandes questões da vida, mas Travis nunca acreditara nessa gente. Na convicção com que falavam ou escreviam parecia haver uma boa parte de autojustificação. Porém, a existir uma pessoa capaz de responder a qualquer questão, a pergunta de Travis seria a seguinte: Até onde poderá uma pessoa ir em nome do verdadeiro amor?

Poderia fazer a pergunta a uma centena de pessoas e obteria uma centena de respostas diferentes. Óbvias, na sua maioria. A pessoa devia sacrificar, aceitar, perdoar, lutar se fosse necessário... a lista nunca mais acabava. No entanto, embora soubesse que todas aquelas respostas eram válidas, nenhuma poderia ajudá-lo naquele momento. Alguns factores estavam para além do conhecimento. Em retrospectiva, relembrou episódios que gostaria de modificar, lágrimas que gostaria nunca tivessem sido derramadas, tempo que poderia ter sido mais bem aproveitado, frustrações que poderiam ter sido evitadas. A vida, segundo lhe parecia, era um mar de remorsos e gostaria de poder fazer o relógio do tempo recuar e voltar a viver parte da sua vida. Tinha uma certeza: devia ter sido melhor marido. E ao reflectir sobre a questão de saber até onde se pode ir em nome do amor, sabia qual deveria ser a resposta. Há situações em que se justifica a mentira.

E não tardaria a ter de escolher qual o caminho a tomar.

As luzes fluorescentes e os azulejos brancos faziam ressaltar a esterilização própria do hospital. Travis percorria lentamente o corredor, convencido de que, embora tivesse visto Gabby de relance uma vez, ela não se apercebera da presença dele. Hesitou, tentando fortalecer a sua determinação de avançar e falar com ela. Afinal, era esse o motivo da visita, mas a parada de recordações deixara-o exausto. Deteve-se, sabendo que uns minutos mais para aclarar as ideias não fariam qualquer diferença.

Entrou numa pequena sala de espera e sentou-se. Ao observar o movimento constante e rítmico no corredor, compreendeu que, apesar das emergências que nunca acabavam, o pessoal mantinha uma rotina, tal como ele tinha as suas rotinas em casa. Num lugar onde nada era normal, as pessoas consideravam indispensável a criação de um sentimento de normalidade. Esse sentimento ajudava as pessoas a desempenharem as tarefas diárias, a conferir previsibilidade a uma vida definida pelo imprevisível. As manhãs dele eram um exemplo, pois cada uma era igual à anterior. Toque do despertador às 6.15, um minuto para saltar da cama e nove minutos para o banho, mais quatro minutos para se barbear e escovar os dentes, sete minutos para se vestir. Um estranho poderia acertar o relógio só por seguir o vulto dele através das janelas. Em seguida, descer a escada a correr e preparar o pequeno-almoço; verificar as mochilas para ver se levavam os trabalhos de casa e fazer as sanduíches de manteiga de amendoim e de geleia para o almoço, enquanto as filhas ensonadas engolem o pequeno-almoço. Às 7.15 exactas fazê-las sair de casa e esperar no início do desvio de acesso à casa a chegada do autocarro da escola, conduzido por um homem com um nome escocês que o fazia recordar Shrek. Depois de as filhas entrarem e se instalarem no autocarro, sorrir a acenar-lhes como deve ser. Lisa e Christine tinham seis e oito anos, um pouco novas de mais para o primeiro e o terceiro anos; quando as via sair para enfrentarem um novo dia, sentia o coração apertar-se com as preocupações. Talvez fosse um sentimento comum, as pessoas sempre lhe diziam que paternidade e preocupação eram sinónimos, mas as preocupações tinham-se acentuado recentemente. Tinha de enfrentar questões novas. Pequenas coisas, coisas ridículas. Lisa ria-se com os desenhos animados como era habitual? Christine mostrava-se mais submissa do que dantes? Por vezes, depois de o autocarro arrancar, começava a relembrar a manhã, uma e outra vez, procurando sinais indicadores do bem-estar das filhas. No dia anterior passara metade do dia a tentar saber se Lisa resolvera pô-lo à prova ao obrigá-lo a fazer-lhe os nós nos atacadores dos sapatos ou se estaria apenas com preguiça. Apesar de saber que se encontrava à beira da paranóia quando na noite anterior deslizara para dentro do quarto delas para lhes ajustar as mantas espalhadas ao acaso, não conseguia deixar de pensar se o desassossego delas era novo ou se era um pormenor em que nunca reparara.

Não deveria ser assim. Gabby devia estar com ele; ela é que deveria atar os sapatos e ajeitar as mantas das filhas. Era eficaz nesse género de coisas, como ele julgara que ela seria, desde que se conheceram. Recordou-se dos dias que se seguiram ao fim-de-semana em que se conheceram, em que tinha analisado Gabby, com a certeza, algures dentro dele próprio, de que nunca encontraria uma mãe mais capaz mesmo que a procurasse durante o resto da sua vida. Uma certeza que o atingia nos lugares mais estranhos, quer empurrando o carrinho de compras do sector dos géneros alimentares quer estando numa fila para comprar bilhetes; porém, sempre que acontecia, transformava qualquer gesto simples, como o de lhe comprimir os dedos da mão, num esquisito prazer, em algo de muito significativo e gratificante.

O namoro deles não deixara de trazer complicações a Gabby, que se sentira dividida entre dois homens que competiam pelo amor dela.

- Uma complicação menor - como ele a descrevia nas festas, embora por vezes tentasse saber qual fora o momento decisivo em que os sentimentos de Gabby se tinham inclinado para ele, em detrimento de Kevin. Fora quando estavam sentados lado a lado a observar o céu nocturno, no dia em que ela começara calmamente a citar as constelações que conhecia? Ou seria no dia seguinte, quando ela o agarrara com firmeza quando se dirigiam de motocicleta para o piquenique? Ou seria mais tarde, ao serão, quando ele a tomara nos braços?

Não tinha a certeza; localizar um instante daqueles não era mais fácil do que identificar uma determinada gota de água no oceano. Mas não podia esquecer o facto de ter deixado a Gabby a tarefa de explicar a situação a Kevin. Travis ainda recordava a expressão de dor que ela lhe mostrara no dia em que sabia que Kevin estaria de regresso a casa. Afastada estava a convicção que os havia guiado durante os últimos dias; em vez dela, havia a realidade da situação que a esperava. Gabby mal tocara no pequeno-almoço e quando ele lhe dera um beijo de despedida só conseguira um sorriso fugidio. As horas tinham-se arrastado sem uma palavra, enquanto Travis se afadigava na clínica e fazia telefonemas para encontrar lares para os cachorrinhos, sabendo como aquilo era importante para ela. Depois do trabalho, acabara por ir verificar como estava Molly. Como se sentisse que poderia ser necessária mais tarde, a cadela não regressara à garagem, mesmo tendo ele deixado a porta aberta. Em vez disso, deitara-se entre a erva alta do pântano fronteiro à casa de Gabby, a observar a rua enquanto o Sol descia no firmamento.

Gabby entrara no caminho de acesso à casa bastante depois do pôr do Sol. Travis recordava-se do olhar firme com que ela o enfrentara ao sair do carro. Sem uma palavra, sentara-se na escada, ao lado dele. A cadela aproximara-se e começara a esfregar o nariz contra ela, enquanto Gabby lhe acariciava o pêlo com gestos ritmados.

- Olá! - saudara Travis, só para quebrar o silêncio.

- Olá - respondera-lhe uma voz despida de emoção.

- Julgo que achei lares para todos os cachorros - sugeriu ele.

- Ah, sim? Travis assentira e os dois continuaram sentados sem mais palavras,

como duas pessoas a quem se esgotara o assunto de conversa.

- Nunca deixarei de te amar - dissera Travis, a tentar, mas falhando, encontrar para ela as palavras de conforto adequadas.

- Acredito - murmurara Gabby. Dera-lhe o braço e encostara-lhe a cabeça ao ombro. - É por isso que estou aqui.

Travis nunca gostara de hospitais. Ao contrário da clínica veterinária que fechava as portas por altura do jantar, o Carteret General Hospital parecia-lhe uma roda gigantesca sempre em movimento, com doentes e funcionários que entravam e saíam em cada minuto de qualquer dia. De onde estava sentado, via enfermeiros numa agitação permanente, a entrar e a sair dos quartos, ou juntos à volta de um balcão próximo do final do corredor. Alguns pareciam esgotados, outros não escondiam o tédio; os médicos não pareciam diferentes. Travis sabia que, em outros andares, havia mulheres a dar à luz e idosos a morrer, um microcosmo do mundo. Por muito opressivo que ele achasse o ambiente, estimulada pelo zumbir constante da actividade, Gabby gostara de ali trabalhar.

Uns meses antes, encontraram uma carta na caixa do correio, um ofício da administração a anunciar que o hospital resolvera homenagear Gabby pelos seus dez anos de trabalho no hospital. A carta não aludia a qualquer feito específico dela; era apenas uma comunicação formal, que certamente fora enviada a uma dezena de outras pessoas que tivessem começado a trabalhar naquela casa ao mesmo tempo que Gabby. A carta prometia que uma placa em honra dela seria descerrada num dos corredores, juntamente com as de outros homenageados, embora a promessa estivesse por concretizar,

Duvidava que Gabby se interessasse. Gabby não aceitara o emprego no hospital com a finalidade de um dia ter o nome numa placa, mas por sentir que não tinha muito por onde escolher. Embora no primeiro fim-de-semana que passaram juntos tivesse aludido a alguns problemas na clínica pediátrica, não fornecera dados específicos. Travis não fizera qualquer comentário para não a pressionar, mas ficara a saber que o problema não teria solução fácil.

Gabby acabou por lhe contar. Foi no final de um longo dia. Na noite anterior, fora chamado a um centro equestre, onde deu com uma égua árabe a suar e a escarvar o chão, além de ter a barriga sensível ao toque. Sinais clássicos de colite equina, embora ele pensasse que, com um pouco de sorte, a cirurgia pudesse ser evitada. No entanto, com os proprietários do animal na casa dos setenta anos, Travis não se sentira à-vontade para lhes pedir que, no caso de a égua se mostrar agitada ou se mostrasse pior, a levassem a dar uma volta de quinze minutos em cada hora. Em vez disso, decidiu ficar junto da égua e, embora o animal fosse melhorando enquanto a noite se preparava para dar lugar à manhã, sentira-se exausto ao sair de lá.

Chegara a casa, suado e sujo, e encontrara Gabby sentada à mesa da cozinha, a chorar. Foram precisos alguns minutos para ela poder contar-lhe a história: como fora necessário ficar até mais tarde junto de um doente que aguardava a chegada da ambulância, pois tinha quase a certeza de estar perante um caso de apendicite; na altura em que pôde sair, a maior parte do pessoal já fora para casa. O que não sucedera com Adrian Melton, o médico de serviço. Saíram juntos e Gabby só demasiado tarde se apercebera de que ele viera acompanhá-la ao carro. Ali, Melton pusera-lhe a mão no ombro, dizendo que ia ao hospital e que lhe daria informações sobre a evolução do paciente. Vendo que ela forçara um sorriso, ele inclinara-se para a beijar.

Fora uma tentativa desajeitada, uma reminiscência da escola secundária e Gabby conseguira encolher-se antes de ele consumar a intenção. O médico ficara a olhar para ela, parecera admirado. - Pensei que era isso que queria - observara.

Sentada à mesa, Gabby estremecera. - Deu a entender que a culpa fora minha.

- Já tinha acontecido antes.

- Não, assim não. Mas...

Quando ela se retraiu, Travis pegou-lhe na mão. - Vá lá. Sou eu. Conta-me.

O olhar dela continuara fixo no tampo da mesa, mas contara a história do comportamento de Melton com voz firme.

- Eu resolvo isso - concluiu Travis, sem lhe dar tempo a responder.

Precisou de dois telefonemas para saber onde morava Adrian Melton. Minutos depois, o carro de Travis parava com um guinchar de pneus em frente da casa do médico. O toque insistente da campainha obrigara Melton a dirigir-se à porta da frente mas, sem que tivesse tempo para se mostrar espantado, sentira o punho de Travis aterrar-lhe no queixo. Uma mulher, que Travis calculou fosse a mulher do pediatra, aparecera no preciso momento em que Melton estava a chegar ao chão; os gritos dela ecoaram pelo corredor.

Logo que a polícia chegara, Travis fora detido pela primeira e única vez na sua vida. Levaram-no para a esquadra, onde a maioria dos agentes o tratou com divertido respeito. Qualquer deles já levara animais à clínica veterinária e recebera com cepticismo a afirmação de Mrs. Melton, de que "um maluco agrediu o meu marido".

Depois de chamada pelo irmão, Stephanie aparecera, mostrando-se menos preocupada do que divertida. Encontrara Travis numa cela individual, embrenhado em profunda conversa com o xerife; apercebera-se de que o assunto da conversa era o gato do xerife, que parecia sofrer de uma erupção qualquer e que não parava de se coçar.

- Vagabundo! - exclamara a irmã.

- O quê?

- E eu a pensar que vinha encontrar-te vestido com o fato-macaco cor de laranja.

- Desculpa se te decepcionei.

- É possível que ainda vamos a tempo. O que é que pensa, xerife? O xerife não sabia o que pensar e momentos depois deixou-os sozinhos.

- Obrigado - agradeceu Travis, logo que o xerife saiu. - É provável que vá reflectir sobre a tua sugestão.

- Não me atribuas as culpas. Não sou eu que ando a bater às portas dos médicos para os atacar.

- Ele mereceu.

- Certamente que sim.

Travis sorriu. - Obrigado por teres vindo.

- Rocky, eu poderia lá perder isto? Ou preferes que te chame Apollo Creed?

- E se falasses em me tirar daqui em vez de estares para aí a pôr-me alcunhas?

- Achar alcunhas é mais divertido.

- Talvez devesse ter chamado o papá.

- Mas não chamaste. Tens-me a mim. E, acredita, fizeste a escolha certa. Agora deixa-me ir falar com o xerife, está bem?

Um pouco mais tarde, enquanto Stephanie falava com o xerife, Travis recebera a visita de Adrian Melton. Não conhecia o veterinário da terra e exigira saber o motivo do ataque. Embora Travis nunca tivesse contado a Gabby o que foi dito, Adrian Melton apressara-se a retirar a queixa, apesar dos protestos de Mrs. Melton. Poucos dias depois, através do ""jornal da caserna", soube-se que o Dr. e Mrs. Melton tinham contratado advogados. No entanto, o local de trabalho mantivera-se tenso para Gabby e, poucas semanas depois, o Dr. Furman chamou-a ao gabinete dele e sugeriu que ela tentasse arranjar um novo local para trabalhar.

- Sei que não é justo - começara. - No entanto, se ficar, arranjaremos maneira de fazer funcionar isto. Mas tenho 64 anos e tenciono reformar-me no próximo ano. O Dr. Melton aceitou pagar-me um trespasse; de qualquer das maneiras, duvido que ele queira mantê-la aqui ou que você queira trabalhar com ele. Pensei que seria mais fácil e melhor para si se aproveitasse a altura para encontrar um lugar onde se sinta confortável e onde possa pôr este lamentável incidente para trás das costas - acrescentara, encolhendo os ombros. - Não estou a afirmar que o comportamento dele não fosse repreensível; foi. Contudo, mesmo sendo um parvalhão, foi o melhor pediatra de todos os que entrevistei e o único que queria trabalhar numa cidade pequena como esta. Se sair de livre vontade, passo-lhe a mais fantástica das cartas de recomendação que possa imaginar. Conseguirá encontrar trabalho onde quiser. Farei o necessário para isso.

Gabby reconhecera perfeitamente a manipulação e embora as emoções exigissem a reparação da ofensa, para bem dela e de todas as mulheres vítimas de assédio sexual, em qualquer parte, o seu sentido prático fizera-se ouvir. Acabara por aceitar um emprego na urgência do hospital.

Houvera apenas um problema: Gabby ficara furiosa ao saber o que ele tinha feito. Fora a sua primeira discussão como casal e Travis recordava-se perfeitamente de como ela se revelara ofendida ao perguntar se ele a achava "suficientemente crescida para resolver os seus próprios problemas" e o motivo que o levara a agir "como se ela fosse uma virgem em perigo". Travis não se dera ao trabalho de tentar defender-se. No fundo, sabia que faria o mesmo se achasse necessário, mas achara mais prudente manter a boca fechada.

Apesar de se mostrar escandalizada, Travis suspeitara que, em parte, Gabby admirava o que ele fizera. Apreciara a lógica simples do acto: "Ele incomodou-te? Vai levar", por mais zangada que se mostrasse, pois, naquela noite, revelara-se uma amante particularmente apaixonada.

Ou, pelo menos, era assim que Travis recordava os acontecimentos. A noite teria evoluído exactamente assim? Não tinha a certeza. Nestes dias, parecia-lhe que a sua única certeza era reconhecer que não trocaria os anos passados com Gabby fosse pelo que fosse. Sem ela, a sua vida tinha pouco significado. Era um marido de cidade de província, com uma ocupação provinciana e os seus cuidados não eram diferentes dos de qualquer outra pessoa. Nunca fora líder nem seguidor, nem fora alguém que pudesse ser recordado muito tempo depois de morrer. Era o mais vulgar dos homens, excepto num pormenor: tinha-se apaixonado por uma mulher chamada Gabby e a paixão não deixara de aumentar nos anos que levavam de casados. Mas o destino conspirara para destruir tudo aquilo e, de momento, ele passava grande parte dos dias a imaginar se seria humanamente possível resolver as questões que os dividiam.

- Olá Travis - disse uma voz, vinda da porta. - Pensei que te encontraria aqui.

O Dr. Stallings andava na casa dos trinta e fazia a ronda todas as manhãs. Ao longo dos anos, ele e a mulher tinham-se tornado bons amigos de Gabby e de Travis: no Verão anterior tinham ido todos para Orlando, levando os filhos a reboque. - Mais flores?

Travis assentiu, a sentir as costas rígidas.

Stallings hesitou à entrada da sala. - Presumo que ainda não a viste.

- Praticamente, não. Vi-a antes, mas...

Ao reparar na hesitação, o médico acabou a frase por ele. - Precisavam de algum tempo a sós - concluiu, ao entrar na sala para se sentar ao lado de Travis. - Acho que isso faz de ti uma pessoa normal.

- Não me sinto normal. Nada disto me parece normal.

- Não, também julgo que não.

Travis voltou a pegar nas flores, a tentar manter afastados aqueles pensamentos, a saber que havia pormenores de que não deveria falar.

- Não sei o que fazer - acabou por admitir.

Stallings pôs-lhe uma mão no ombro. - Gostaria de saber o que devia dizer-te.

Travis virou-se para ele. - O que é que tu farias?

O outro ficou calado durante algum tempo. - Se estivesse na tua posição? - indagou a encolher os lábios, a reflectir na pergunta.

- Com toda a franqueza, não sei.

Travis assentiu. Não esperava que Stallings tivesse a resposta. - Só pretendo fazer o que for correcto.

Stallings juntou as mãos. - Não é isso que todos pretendemos?

Depois de Stallings o deixar, Travis remexeu-se na cadeira, consciente dos papéis que tinha no bolso. Embora os tivesse guardado na secretária, agora não conseguia fazer a vida normal sem os ter por perto, mesmo que eles significassem o fim de tudo o que estimava na vida.

O advogado idoso que os redigira não parecera achar nada de anormal no pedido dele. O seu consultório provinciano localizava-se em Morehead City, suficientemente perto do hospital onde Gabby trabalhava para ele o ver perfeitamente da janela da sala de reuniões com paredes revestidas de painéis de madeira. A reunião não fora longa; o advogado explicara as disposições mais importantes e referira algumas experiências anedóticas. Mais tarde, Travis apenas se recordava do aperto de mão frouxo, quase sem força, que ele lhe dera quando se dirigia para a porta.

Parecia estranho que aqueles papéis pudessem assinalar o fim oficial do seu casamento. Simples palavras codificadas, mas o poder que lhes era conferido parecia quase diabólico. Onde estaria, reflectia, a humanidade naquelas palavras? Onde estavam as emoções governadas por tais leis? Onde estava o reconhecimento da vida que tinham passado juntos, até tudo dar para o torto? E por que razão, em nome de Deus, quisera Gabby que elas fossem escritas?

O casamento não devia acabar assim, não era seguramente aquele o seu propósito quando propusera casamento a Gabby. Recordava-se da viagem que fizeram a Nova Iorque, no Outono; enquanto Gabby se deixara ficar pelo balneário do hotel, entregue aos cuidados da massagista e da pedicura, ele correra à West 47th Stteet, onde comprara o anel de noivado. Depois de jantarem na Tavern, em Greenwich Village, tinham alugado um coche e passeado por Central Park. E, por baixo de um céu nublado, era lua cheia, Travis pedira Gabby em casamento e sentira-se esmagado pela forma apaixonada como ela o abraçara e murmurara o seu consentimento, uma e outra vez.

E depois? A vida. Entre os turnos no hospital, Gabby planeou o casamento. Apesar dos avisos dos amigos, que o aconselhavam a seguir na onda, Travis adorou fazer parte do processo. Ajudou-a a preparar os convites, a escolher as flores e o bolo; sentava-se ao lado dela enquanto Gabby folheava álbuns de fotógrafos da baixa, a fim de encontrar o melhor profissional para imortalizar o dia. Finalmente, na Primavera de 1997, convidaram oitenta pessoas para uma pequena capela degradada, em Cumberland Island; passaram a lua-de-mel em Cancún, uma escolha idílica para ambos. Gabby pretendia um sítio para descansar; passaram horas deitados ao sol e comeram bem; como Travis pretendesse um pouco mais de acção, ela aprendeu mergulho e acompanhou-o numa viagem de um dia para visitarem ruínas astecas das proximidades.

O bom entendimento da lua-de-mel deu o tom ao casamento. A casa de sonho do casal foi construída sem grandes perturbações e inaugurada no dia do primeiro aniversário do casamento; quando Gabby, a passar o dedo pelo bordo da taça de champanhe, perguntou em voz alta se não seria chegada a altura de aumentarem a família, Travis considerou que a ideia era não só razoável mas também um desejo que ele acalentava desesperadamente. Gabby engravidara poucos meses depois, uma gravidez isenta de complicações e sem muito desconforto. Depois do nascimento de Christine, Gabby diminuiu o número de horas passadas no hospital, adoptando um horário que permitia que houvesse sempre um deles a tratar da bebé. Quando Lisa se seguiu, dois anos depois, para além do aumento da alegria e da excitação em casa, nenhum deles notou grandes alterações.

Os natais e os aniversários chegavam e iam, as filhas cresciam até não caberem nas peças de roupa, que tinham de ir sendo substituídas. Passavam férias em família, embora Travis e Gabby também tivessem os seus períodos a sós, mantendo acesa a chama do romance entre eles. Chegou o dia da reforma de Max e Travis tomou conta da clínica; Gabby limitou ainda mais as horas de trabalho no hospital e até passou a dispor de tempo suficiente para fazer trabalho voluntário na escola. No quarto aniversário visitaram a Itália e a Grécia; no sexto acompanharam um safari de uma semana, em África. No sétimo, Travis construiu um pavilhão no quintal das traseiras e ofereceu-o a Gabby, um local onde ela podia sentar-se a ler e a observar os reflexos da luz sobre a água. Quando as filhas fizeram cinco anos, Travis ensinou-lhes a fazer wakeboard e esqui aquático; e no Outono treinou as equipas de futebol onde elas jogavam. Nas raras ocasiões em que parava para reflectir sobre a sua vida, imaginava se existiria alguém que pudesse sentir-se tão feliz quanto ele.

Não que tudo resultasse sempre perfeito. Uns anos antes, ele e Gabby tinham atravessado um período difícil. Os motivos eram agora vagos, haviam-se perdido nos escaninhos do tempo, mas, mesmo então, não houvera um momento em que ele julgasse o casamento em perigo. E, supunha Travis, com Gabby acontecera o mesmo. Ambos tinham compreendido instintivamente que o casamento exigia compreensão e capacidade de perdoar. Exigia equilíbrio, com cada um dos cônjuges a complementar o outro. Ele e Gabby viveram esse equilíbrio durante anos e ele esperava que pudessem voltar a vivê-lo. Contudo, de momento, a harmonia desaparecera, uma constatação que o levava a procurar qualquer coisa, fosse o que fosse, que permitisse restabelecer esse delicado equilíbrio entre ambos.

Travis sabia que não podia adiar mais a visita e levantou-se. Sem largar as flores, seguiu corredor fora, a sentir-se como que desligado do corpo. Notou que algumas enfermeiras o olhavam e, embora por vezes gostasse de saber o que elas pensavam, nunca parou para perguntar. Em vez disso, apelou a toda a força de vontade. Sentia tremuras nas pernas e o início de uma dor de cabeça, uma moinha na parte posterior da cabeça. Se permitisse que os olhos se lhe fechassem, dormiria seguramente várias horas. Sentia-se à beira do colapso, uma ideia que fazia tanto sentido quanto uma bola de golfe quadrada. Tinha 43 anos, não 72, continuava a forçar a frequência do ginásio.

- Tens de continuar a fazer exercício. Quanto mais não seja para manteres a sanidade mental - pressionara o pai. Perdera quase nove quilos nas últimas doze semanas e ao olhar-se ao espelho bem via que tinha as faces encovadas. Estendeu a mão para o puxador e abriu a porta, forçando um sorriso quando a viu.

- Viva, amor.

Esperou um movimento dela, qualquer resposta que lhe desse a saber que a situação estaria de algum modo a regressar à normalidade. Mas tudo continuou na mesma no longo silêncio que se seguiu; Travis sentiu um baque, quase uma dor física no coração. Era sempre assim. Entrou no quarto e continuou a olhar Gabby, como se tentasse guardar cada um dos traços fisionómicos dela, embora reconhecesse que era um exercício sem sentido. Conhecia o rosto dela melhor do que o seu.

Foi até à janela e abriu as gelosias, deixando que o sol entrasse. Não havia muito para ver, pois a janela dava para a curta estrada que dividia a cidade ao meio. Carros em marcha lenta passavam em frente de restaurantes de comida rápida; imaginava os condutores a ouvirem música no rádio do carro, a falar pelos telemóveis, a fazer distribuição, a negociar ou a visitar amigos. Pessoas entregues à vida de todos os dias, perdidas nos seus próprios pensamentos, completamente abstraídas do que estava a passar-se no hospital. Já fora uma delas, sentia a falta da sua vida anterior.

Colocou as flores no peitoril, só agora reconhecendo que devia ter trazido uma jarra. Escolhera flores de Inverno e o cor-de-laranja-escuro e o violeta pareceram-lhe obscuros, quase um luto. O florista considerava-se uma espécie de artista; há vários anos que era cliente dele e nunca se sentira desapontado. O florista era um bom homem, um homem simpático, e muitas vezes Travis pensava se ele saberia pormenores acerca do seu casamento. Ao longo dos anos, comprara-lhe flores para aniversários; comprara-as devido a impulsos do momento, usara-as como pedidos de perdão e como surpresas românticas. Conforme a ocasião, ditava ao florista o que ele devia escrever no cartão. Por vezes, recitava um poema tirado de um livro ou de sua autoria; noutras ocasiões, ia direito ao assunto e dizia pura e simplesmente o que lhe passava pela cabeça. Gabby guardara todos os cartões num pequeno maço preso por um elástico. Era uma espécie de história da vida a dois de Travis e Gabby, narrada em pequenos retalhos.

Sentou-se junto da cama e pegou na mão de Gabby. Tinha a tez pálida, quase cor de cera, o corpo parecia ter encolhido e notou os pés de galinha que tinham começado a formar-se no canto dos olhos da mulher. Para ele, contudo, continuava tão extraordinária como no dia em que a vira pela primeira vez. Maravilhava-se por já a conhecer há quase 11 anos. Não que a extensão de tempo fosse considerável, mas por aqueles anos conterem mais... vida do que os primeiros 32 anos da sua existência sem ela. Fora por isso que viera ao hospital naquele dia; a razão era a mesma que o trazia ali todos os dias. Não tinha outro remédio. Não por que a sua vinda fosse esperada, e era, mas por não saber a que outro lugar poderia ir. Passavam horas juntos, mas dormiam as noites em quartos separados. A ironia é que o arranjo nem poderia ser diferente, pois não podia deixar as filhas sozinhas. Nos tempos que corriam, o destino tomava todas as decisões por ele.

Excepto uma.

Tinham decorrido 84 dias desde o acidente e agora tinha de optar. Continuava a não saber o que fazer. Ultimamente procurara respostas na Bíblia, nas obras de São Tomás de Aquino e de Santo Agostinho. Uma vez por outra, encontrava uma passagem notável, mas nada mais do que isso; fechava o livro e ficava a olhar pela janela, vazio de ideias, como se esperasse encontrar a resposta num ponto qualquer do firmamento.

Raramente vinha directo de casa para o hospital. Em vez disso, poderia atravessar a ponte e ir passear pelos areais de Atlantic Beach. Tirava os sapatos e ficava a ouvir as ondas a bater contra a praia. Sabia que as filhas estavam igualmente aflitas, pelo que, depois das visitas ao hospital, necessitava de tempo para se recompor. Não seria justo obrigá-las a partilhar da angústia dele. Precisava das filhas, constituíam a sua válvula de escape. Enquanto pensava nelas esquecia-se um pouco de si próprio e a alegria das crianças continuava a revelar uma pureza imaculada. Ainda tinham capacidade para brincar sem angústias; os risos delas faziam-no desejar rir e chorar ao mesmo tempo. Muitas vezes, ao vê-las a brincar, deixava-se impressionar pelas parecenças que tinham com a mãe.

Faziam perguntas constantes acerca dela, mas habitualmente não sabia o que havia de lhes responder. Eram suficientemente crescidas para saberem que a mamã não estava bem e que tinha de permanecer no hospital; percebiam isso quando a visitavam, parecia-lhes que a mamã estava sempre a dormir. Contudo, Travis não conseguia reunir a coragem suficiente para lhes contar a verdade acerca do estado da mãe. Em vez disso, aconchegava-se com elas no sofá e contava-lhes a excitação da mãe quando ficara grávida de cada uma delas, ou recordava-lhes o tempo em que a família brincava com os difusores de rega do jardim durante tardes inteiras. Contudo, elas passavam a maior parte do tempo a folhear os álbuns de fotografias que Gabby tinha reunido com amor. Era antiquada nessas questões e as fotografias nunca deixaram de lhes provocar sorrisos. Tavis contava histórias associadas a cada uma delas, olhava o rosto radiante de Gabby nas fotos e sentia um nó na garganta, sabendo que nunca conhecera mulher mais bonita.

Para se livrar da tristeza que o assaltava naqueles momentos, por vezes erguia os olhos do álbum e ficava a olhar a grande fotografia emoldurada que haviam tirado na praia, no último Verão. Todos os quatro vestiam calções de caqui e camisas brancas de algodão, e sentavam-se entre as ervas das dunas. Era o género de retrato de família comum em Beaufort, mas aos olhos dele parecia único. Não por ser a família dele, mas porque até um estranho se sentiria cheio de esperança e optimismo ao vê-lo, pois as pessoas retratadas mostravam expressões de felicidade, como todas as famílias felizes deviam mostrar.

Mais tarde, depois de as meninas terem ido para a cama, guardava os álbuns. Uma coisa era olhar as fotografias na companhia das filhas e contar-lhes histórias para tentar mantê-las optimistas, outra era ficar sozinho a olhar para elas. Não conseguia suportar a visão. Deixava-se ficar sozinho no sofá, derreado pela tristeza que sentia roe-lo por dentro. Stephanie telefonava às vezes. Nessas conversas abundavam as provocações habituais entre eles, embora atenuadas, pois sabia que a irmã queria que deixasse de se culpar. Apesar das suas frequentes impertinências e das ocasionais provocações, Travis sabia o que a irmã insistia em dizer-lhe: que ninguém lhe atribuía culpas, que a culpa não fora dele. Para evitar as tentativas da irmã para o animar, dizia-lhe sempre que estava óptimo, mesmo que não estivesse, pois sabia que ela não quereria ouvir a verdade: que ele duvidava que alguma vez pudesse voltar a estar óptimo e que nem sequer tinha a certeza de desejar tal coisa.

 

Faixas de luz quente continuavam a avançar na direcção deles. No silêncio do quarto, Travis apertou a mão de Gabby e o movimento do pulso provocou-lhe um esgar de dor. Estivera engessado até há um mês e os médicos tinham-lhe receitado analgésicos. Tinha fracturado os ossos dos braços e houvera rupturas de ligamentos; porém, após a primeira dose tinha renunciado aos analgésicos, pois detestara a sensação de adormecimento que lhe provocavam.

A mão dela era macia, como sempre. Muitos dias pegava nela durante horas, a tentar imaginar o que sentiria se o aperto fosse correspondido. Sentava-se e observava, com um enorme desejo de saber o que ela estaria a pensar, se é que pensava o que quer que fosse. O mundo interior dela era um mistério.

- As meninas estão bem - começou. - Christine comeu todo o pequeno-almoço e Lisa deixou pouco. Sei que te preocupas com a alimentação delas, pois são baixotas, mas têm-se portado bem e têm comido o lanche que lhes preparo depois de virem da escola.

Um pombo pousou no peitoril, do lado de fora da janela. Deu uns passos numa direcção e retrocedeu, para voltar a fazer o trajecto, até resolver acomodar-se, como fazia quase todos os dias. Parecia saber quando era a hora da visita de Travis. Houvera alturas em que pensara que o pombo seria um presságio, sem fazer ideia de quê.

- Fazemos os trabalhos de casa depois do jantar. Sei que preferes que sejam feitos logo depois da chegada da escola, mas este sistema parece funcionar bem. Gostarias de saber como a Christine vai bem em Matemática. Recordas-te do início do ano, em que ela parecia não perceber fosse o que fosse? Na verdade, conseguiu dar a volta por cima. Temos vindo a usar quase todas as noites aquelas fichas que compraste e não errou uma única pergunta no último teste. Até está a conseguir fazer os trabalhos de casa sem a minha ajuda. Havias de sentir orgulho nela. O arrulhar do pombo mal se ouvia através do vidro.

- E a Lisa vai bem. Todas as noites vemos Dora the Explorer ou Barbie. É espantoso o número de vezes que ela consegue ver os mesmos DVD, mas adora-os. E para o dia de anos quer um história de princesas. Estava a pensar em comprar um bolo com gelado, mas ela quer fazer a festa de aniversário no parque e não tenho a certeza de conseguir levar o bolo até lá sem se derreter; por isso, o mais provável é escolher outro bolo.

Pigarreou.

- Oh, já te disse que o Joe e a Megan estão a pensar noutro filho? Eu sei, sei que tendo em vista os problemas que tiveram com a última gravidez de Megan, e considerando que ela já está na casa dos quarenta, é uma loucura; mas, segundo Joe, ela quer mesmo tentar ter um rapaz. Quanto a mim, penso que quem deseja um rapaz é o Joe e que Megan só pretende fazer-lhe a vontade; mas, com aqueles dois, nunca se sabe, não é verdade?

Travis forçava-se a conversar normalmente. Desde que a mulher se encontrava ali, tentava agir o mais naturalmente possível na presença dela. Como antes do acidente estavam sempre a falar dos filhos, e por que discutiam o que estava a acontecer na vida dos amigos, tentava sempre falar deles durante as visitas. Não sabia se ela o ouvia; os especialistas pareciam divididos quanto a isso. Alguns afiançavam que os doentes ouviam as conversas e talvez viessem a recordar-se delas, enquanto outros pensavam justamente o contrário. Travis não sabia em quem acreditar, mas escolhera viver os seus dias do lado dos optimistas.

Pelas mesmas razões, depois de consultar o relógio, pegou no controlo remoto. Nos momentos que roubava ao descanso, o prazer de Gabby era ver a série televisiva Judge Judy e Travis nunca perdia a oportunidade de zombar do deleite quase perverso com que ela assistia às manobras daquelas pessoas suficientemente desafortunadas para se encontrarem na sala de audiências da juíza Judy.

- Vou ligar o televisor, está bem? Está a dar o teu programa. Talvez ainda consigamos apanhar os últimos minutos.

No momento seguinte, a juíza Judy estava a dirigir-se em simultâneo ao réu e ao queixoso, mandando que ambos se calassem, na que parecia ser uma situação previsível e recorrente da série.

- A juíza está em excelente forma.

Desligou o aparelho logo que o programa acabou. Pensou em trazer as flores para mais perto, na esperança de que ela conseguisse captar o cheiro. Queria manter os sentidos dela constantemente estimulados. No dia anterior gastara algum tempo a escovar-lhe o cabelo; dois dias antes, trouxera o frasco de perfume dela e pusera-lhe um pouco em cada pulso. Porém, de momento, qualquer daqueles gestos parecia exigir-lhe uma energia que ele não sentia.

- Para além disso, não há muitas novidades - relatou, com um encolher de ombros. Tais palavras pareceram-lhe sem sentido, como seguramente pareceriam a Gabby. - O meu pai continua a substituir-me na clínica. Tendo em atenção os anos que leva de reforma, ficarias encantada ao ver como ele se dá com os animais. É como se nunca tivesse deixado de o fazer. As pessoas continuam a adorá-lo e julgo que se sente feliz por lá estar. Se me perguntasses, dir-te-ia que o meu pai nunca deveria ter-se reformado.

Ouviu bater à porta e viu Gretchen entrar. No mês que passara, tinha-se tornado dependente dela. Ao contrário do que sucedia com as outras enfermeiras, Gretchen mantinha uma fé inabalável de que Gabby ia emergir do coma e por conseguinte tratava a doente como se ela se encontrasse consciente.

- Olá, Travis - chilreou. - Desculpe a interrupção, mas tenho de ligar um novo soro.

Quando Travis assentiu, a enfermeira aproximou-se de Gabby.

- Diria que está faminta, minha querida - começou. - É só um minuto, está bem? Não tardarei a deixá-los sozinhos. Sabem quanto me custa interromper dois companheiros apaixonados.

Trabalhou depressa, removeu o frasco de soro e substituiu-o por outro, sem nunca deixar morrer a conversa. - Sei que está dorida por causa do treino desta manhã. Fomos treinar, não fomos? Somos como aqueles tipos que se vêem nos anúncios. Trabalhando esta ou aquela parte do corpo. Senti verdadeiro orgulho em si.

De manhã, e também no final do dia, uma das enfermeiras vinha fazer flectir e alongar as pernas de Gabby. Dobrar o joelho e esticar; flectir o pé para cima e trazê-lo para baixo. Faziam o mesmo com cada articulação e com todos os músculos da doente.

Depois de ter colocado o soro, Gretchen regulou o fluxo e ajeitou os cobertores, acabando por se virar para Travis.

- Como é que se sente hoje?

- Não sei.

Gretchen pareceu lamentar ter feito a pergunta. - Ainda bem que trouxe flores - comentou, acenando com a cabeça na direcção do peitoril da janela. - Tenho a certeza de que ela as aprecia.

- Espero que sim.

- Vai trazer as meninas?

Travis engoliu em seco, a sentir o nó na garganta. - Hoje, não. Gretchen cerrou os lábios e assentiu. Saiu logo em seguida.

Doze semanas antes, Gabby fora trazida numa maca para a urgência; vinha inconsciente e sangrava abundantemente de um golpe no ombro. Por causa da perda de sangue, os médicos começaram por dar atenção ao golpe, embora, em retrospectiva, Travis pensasse que talvez pudessem ter tomado outra decisão que alteraria tudo.

Não sabia, nem nunca viria a saber. Também ele fora trazido de maca para a urgência; tal como Gabby, permanecera toda a noite inconsciente. Contudo, as semelhanças acabaram aí. Na manhã seguinte acordara com dores e o braço enfaixado, enquanto Gabby não voltara a acordar.

Os médicos foram simpáticos mas não tentaram esconder a preocupação. As lesões cerebrais eram sempre graves, afirmaram, mas acalentavam a esperança de que as feridas sarassem e que, com o tempo, a situação se resolvesse.

Com o tempo.

Por vezes duvidava que os médicos compreendessem a intensidade emocional do tempo, ou aquilo por que ele estava a passar, ou até que o tempo fosse algo de finito. Duvidava. Ninguém sabia quanto ele estava a sofrer ou compreendia verdadeiramente a escolha que Travis tinha diante de si. Na aparência, era fácil. Faria exactamente o que Gabby queria, como ela o obrigara a prometer que faria.

Mas, e se...

O problema era esse. Pensara longa e profundamente acerca da realidade da situação; passara noites em claro a reflectir sobre a questão. Voltara a debater o verdadeiro significado do amor. Na escuridão, dava voltas e mais voltas, desejando que outra pessoa chamasse a si a responsabilidade da escolha. Mas aquele era um debate solitário e na maioria das manhãs acordava com a almofada molhada de lágrimas, no lugar onde devia ter estado a cabeça de Gabby. E, em cada manhã, as suas primeiras palavras eram sempre as mesmas.

- Peço perdão, meu amor.

A escolha que Travis agora tinha de fazer tinha raízes em dois eventos distintos. O primeiro referia-se a um casal: Kenneth e Eleanor Baker. O segundo, o próprio acidente, ocorrera numa noite de chuva, havia doze semanas.

Um acidente fácil de explicar e semelhante a uma série de acidentes em que erros seguidos, aparentemente sem relação entre si, parecem agregar-se, não se sabe muito bem como, dando origem a uma terrível explosão. Em meados de Novembro, tinham-se dirigido ao RBC Center, em Raleigh, para assistir a uma actuação de David Copperfield ao vivo. Havia anos que assistiam a um ou dois espectáculos, quanto mais não fosse para poderem passar um serão sozinhos um com o outro. Costumavam jantar antes, mas naquela noite não o fizeram. Travis atrasara-se na clínica, partiram atrasados de Beaufort e quando conseguiram arrumar o carro faltavam poucos minutos para o espectáculo começar. Com a pressa, e embora se vissem nuvens de mau agouro e o vento estivesse a aumentar, Travis esqueceu-se do chapéu-de-chuva. Foi o erro número um.

Assistiram ao espectáculo e gostaram, mas à hora da saída do teatro o tempo tinha piorado. Chovia a potes e Travis recordava-se de reflectir com Gabby sobre a melhor maneira de chegarem ao carro. Encontraram amigos que também tinham assistido ao espectáculo e Jeff oferecera-se para levar Travis até ao carro, evitando que ele se molhasse. Mas Travis quis evitar-lhe a maçada de o levar ao parque de estacionamento e declinou a oferta de Jeff. Em vez disso, desatou a correr à chuva, a chapinhar em água que lhe chegava aos tornozelos. Ao chegar ao carro estava encharcado até aos ossos, especialmente os pés. Aquele foi o erro número dois.

Como era tarde, e por ambos terem de trabalhar no dia seguinte, Travis conduzia depressa apesar do vento e da chuva, tentando ganhar uns minutos numa viagem que em condições normais levaria duas horas e meia. Embora fosse difícil ver o que estava à frente do pára-brisas, conduzia pela faixa da esquerda, excedendo os limites de velocidade, ultrapassando carros de condutores mais cautelosos em relação aos perigos da estrada. Esse foi o erro número três. Gabby pediu-lhe repetidamente que abrandasse; atendeu o pedido por mais de uma vez, mas voltava a acelerar logo que podia. Quando passaram por Goldsboro, ainda à distância de uma hora e meia de casa, Gabby ia de tal forma furiosa que deixara de lhe falar. Inclinara a cabeça para trás e seguia de olhos fechados, recusando-se a falar, frustrada por ele não a ouvir. Foi o erro número quatro.

O acidente veio a seguir e poderia ter sido evitado se nenhuma das outras coisas tivesse acontecido. Se tivesse levado o chapéu-de-chuva, ou aproveitado a oferta do amigo, não teria de correr para o carro. Teria conservado os pés secos. Se tivesse diminuído a velocidade, teria conseguido controlar o carro. Se tivesse acatado as recomendações de Gabby, não se teriam zangado e ela teria visto o que ele estava a tentar fazer e ter-lhe-ia dito que parasse antes de ser demasiado tarde.

Perto de Newport, existe uma curva larga e fácil na estrada, que é cortada por um cruzamento. Nessa altura da viagem, a menos de vinte minutos de casa, a comichão nos pés estava a pô-lo maluco. Tentava descalçar um sapato fazendo pressão com a biqueira de um sobre o calcanhar do outro, mas não o conseguia por mais que se esforçasse, pois tanto os sapatos como os atacadores e os respectivos nós estavam mais apertados devido à humidade. Dobrou-se para a frente, com os olhos apenas ligeiramente acima do quadro de bordo e agarrou um dos sapatos. Olhando de relance para os pés, a lutar com o nó, não reparou que o semáforo mudara para amarelo.

Foi-lhe difícil desatar o nó. Quando finalmente o conseguiu, ergueu os olhos mas já era demasiado tarde. O semáforo mudara para vermelho e um camião cinzento prateado estava a entrar no cruzamento. Pressionou os travões por instinto e a traseira do carro começou a deslizar pelo piso molhado. O carro inclinou-se, descontrolado. No último instante, os pneus aderiram ao piso e evitaram chocar com o camião, mas não conseguiram fazer a curva e saíram da estrada, em direcção a um pinhal.

A lama era ainda mais escorregadia e não pôde fazer nada. Rodou o volante e nada aconteceu. Por instantes, o mundo pareceu mover-se em câmara lenta. A última impressão que lhe ficou, antes de perder a consciência, foi um som doentio de vidro a partir-se e de metal a torcer-se.

Gabby nem tivera tempo para gritar.

Travis ajeitou uma madeixa desgarrada de cabelo e prendeu-a na orelha de Gabby, enquanto ouvia o gorgolejar da barriga. Esfomeado como estava, não suportava a ideia de comer. Havia aquele nó constante no estômago e nos raros momentos em que parecia não estar lá, bastava-lhe pensar na mulher para ele voltar.

Era uma forma irónica de punição, pois durante o segundo ano de casados Gabby tinha chamado a si a tarefa de levar Travis a experimentar novos pratos e a não se limitar às comidas insípidas que consumia desde há muito. Supunha que a ideia surgira por ela se ter cansado dos hábitos alimentares limitativos do marido. Travis devia ter-se apercebido do que o esperava, pois Gabby começara a fazer comentários ocasionais sobre o gosto delicioso de uns bolos belgas para o pequeno-almoço de sábado, ou a afirmar que em dias de Inverno não havia nada melhor do que um guisado de carne preparado em casa.

Até então, Travis fora o cozinheiro da família, mas, pouco a pouco, ela fora conquistando o seu lugar na cozinha. Comprou dois ou três livros de culinária e, ao serão, Travis observava-a a folhear um deles, sentada no sofá. Uma vez por outra, perguntava-lhe se um determinado prato não lhe parecia particularmente apetitoso. Lia alto os ingredientes de diversas receitas e Travis dizia que pareciam excelentes, num tom de voz que parecia dar a entender que, mesmo no caso de serem preparadas por ela, não comeria aquelas coisas.

Mas uma das qualidades de Gabby era a persistência, pelo que, sem alardes, fora introduzindo pequenas alterações. Preparava molhos com manteiga, creme ou vinho e derramava-os sobre o pedaço de frango que era quase sempre o jantar dele. Só lhe pedia que, ao menos, cheirasse o molho; ele habitualmente admitia que o odor era apetitoso. A seguir, começou a deixar pequenas quantidades na molheira e, depois de se servir, acrescentava um pouco ao prato dele, quer ele quisesse ou não. Pouco a pouco, para sua surpresa, Travis provou.

No terceiro aniversário do casamento, Gabby preparou um bolo de carne à italiana, com queijo mozzarella; em vez de lhe dar um presente, convidou-o a comer o bolo com ela; quando chegou o quarto aniversário já cozinhavam juntos muitas vezes: embora o pequeno-almoço e o almoço dele continuassem a ser igualmente monótonos, e muitos dos jantares continuassem insípidos como sempre, Travis tinha de admitir que havia algo de romântico naqueles cozinhados feitos a dois; com o rodar dos anos, passaram a cozinhar juntos pelo menos duas vezes por semana. Era frequente que Gabby bebesse o seu copo de vinho e, enquanto eles cozinhavam, as filhas eram obrigadas a permanecer no solário, onde se destacava um tapete berbere cor de esmeralda. Chamavam-lhe o "tapete verde do tempo". Enquanto Gabby e Travis cortavam, mexiam os tachos e conversavam sobre o dia de cada um, ele deliciava-se com a felicidade que ela lhe trouxera.

Bem gostaria de saber se poderia voltar a cozinhar com ela. Vivera as primeiras semanas a seguir ao acidente em histeria quase permanente pois queria ter a certeza de que a enfermeira de serviço tivesse o número do telemóvel dele sempre à mão. Passado um mês, como estava a respirar sem ajuda externa, Gabby fora transferida da UCI para um quarto particular e ele alimentara a certeza de que a mudança a levaria a sair do coma. No entanto, como os dias passavam sem qualquer mudança, aquela energia maníaca fora substituída por um temor silencioso e arrasador, ainda mais grave. Uma vez, Gabby dissera-lhe que as seis semanas eram o ponto crítico, que passado esse tempo a hipótese de alguém sair de um coma diminuíam de forma trágica. Mesmo assim, a esperança ainda não o abandonara. Dizia a si mesmo que Gabby era uma mãe, que era uma lutadora, que era diferente de todas as outras pessoas. Chegou-se às seis semanas; depois passaram mais duas. Sabia que feitos os três meses, a maioria dos pacientes era transferida para uma unidade de cuidados continuados. Aquele era o dia em que se completavam três meses, o dia em que devia informar o administrador hospitalar do que pretendia fazer. Mas essa não era a escolha que teria de fazer. A sua escolha tinha a ver com Kenneth e Eleanor Baker e, embora não pudesse atribuir a Gabby a culpa de o ter trazido para as vidas deles, ainda não se sentia preparado para pensar naquele casal.

 

A casa que construíram era o tipo de lugar em que Travis conseguia imaginar-se a passar o resto da vida. Apesar de nova, adquirira qualidade como lar no momento em que se mudaram para lá. Atribuía aquela característica ao facto de Gabby ter trabalhado arduamente para criar um lar onde as pessoas se sentissem bem desde o momento em que entrassem.

Fora ela quem tratara dos pormenores que faziam a casa parecer viva. Enquanto Travis concebera a estrutura em termos de área coberta e escolhera os materiais de construção capazes de suportar os Verões húmidos e o ar salino, Gabby introduzira uma diversidade de elementos de que ele nunca se lembraria. Certo dia, quando a casa estava em construção, passaram junto uma casa de quinta há muito abandonada e a desmoronar-se; Gabby insistira que parassem. Por aquela altura, Travis já se habituara aos caprichos ocasionais da mulher. Fez-lhe a vontade e não tardou estavam a passar por uma abertura onde antes existira uma porta. Pisaram soalhos atapetados de poeira e tentaram ignorar as videiras que entravam pelas fendas das paredes e pelas janelas sem vidros. Contudo, na parede do fundo havia uma lareira coberta de imundícies e Travis lembrava-se de ter pensado que ela soubera de antemão o que iria encontrar. Gabby agachou-se perto da lareira, passando a mão pelos lados e por debaixo do mantel. - Estás a ver isto? Penso que são azulejos pintados à mão

- sugeriu. - Haverá aqui centenas de peças, talvez mais. Consegues imaginar como a lareira seria bonita quando foi feita? - perguntou, pegando na mão do marido. - Devíamos mandar construir

uma como esta.

Pouco a pouco, a casa foi adquirindo um aspecto que ele nunca julgara possível. Não se limitaram a copiar o estilo da lareira; Gabby encontrou os proprietários, bateu-lhes à porta e convenceu-os a venderem-lhe a lareira inteira por menos dinheiro do que custaria limpá-la. Queria grandes traves de carvalho e um tecto abobadado de pinho, que parecia adaptado à forma triangular do telhado. As paredes eram de estuque, de tijolo ou revestidas de painéis coloridos, alguns a imitarem couro e todos eles a parecerem, a seu modo, verdadeiras obras de arte. Gastou longos fíns-de-semana à procura de mobiliário antigo e de objectos de decoração; por vezes a própria casa parecia perceber o efeito que ela procurava obter. Quando descobriu que havia um ponto em que o soalho rangia, andou para trás e para diante, com um largo sorriso, para ter a certeza de que não se tratava de imaginação sua. Adorava tapetes, quanto mais coloridos melhor, que estavam espalhados pela casa com aparente negligência.

Também lhe não faltava espírito prático. A cozinha, as casas de banho, os quartos eram arejados, luminosos e brilhantes, com largas janelas de onde se desfrutavam vistas esplêndidas. A casa de banho principal tinha uma banheira com pés e um chuveiro amplo, com portas de vidro. Quis uma garagem grande, com bastante espaço para Travis. Calculando que iriam passar muito tempo no alpendre que rodeava a casa, insistiu em instalar uma rede e cadeiras de balouço a condizer, bem como um grelhador exterior e uma zona de estar protegida que, mesmo durante as tempestades, lhes permitisse permanecer fora de casa sem se molharem. O resultado era ser difícil escolher se era mais confortável estar no interior ou no exterior da casa; era o tipo de casa onde se podia entrar com as botas sujas sem arranjar sarilhos. Na primeira noite passada na casa nova, quando se encontravam estendidos na cama de dossel, Gabby rolou de forma a ficar de frente para Travis e declarou, numa voz de puro contentamento, quase a ronronar: - Contigo a meu lado, este é o lugar onde quero viver para sempre.

As filhas estavam a ter problemas, mesmo que ele não os mencionasse a Gabby.

Nada de surpreendente, é claro, mas na maioria dos casos Travis não sabia o que fazer. Christine perguntara-lhe em mais de uma ocasião se a mamã alguma vez voltaria para casa e, embora ele afirmasse que sim, a filha não parecera muito convencida, talvez por nem ele estar muito seguro de que tal viesse a acontecer. As crianças entendiam esse género de situações e Christine, agora com oito anos, tinha chegado a uma idade que lhe permitia compreender que o mundo não era tão simples quanto ela imaginara.

Era uma criança encantadora, com olhos azuis, que gostava de usar ganchos bonitos no cabelo. Queria que o seu quarto parecesse sempre seu e recusava-se a vestir roupas que não fossem compatíveis; por outro lado, era o género de criança que arrumava os brinquedos e queria escolher um novo par de sapatos. No entanto, após o acidente, descorçoava-se facilmente e as explosões de cólera tornaram-se banais. A família, Stephanie incluída, tinha recomendado ajuda psicológica, e tanto Christine como Lisa eram assistidas duas vezes por semana, mas as explosões pareciam estar a piorar. E na noite anterior, o quarto estava numa desordem quando Christine foi para a cama.

Lisa, que fora sempre pequena para a idade, tinha a mesma cor de cabelo da mãe e mostrava-se geralmente radiante. Tinha uma manta que levava para todo o lado e seguia a irmã pela casa como se fosse uma cachorrinha. Punha autocolantes em todos as pastas e os trabalhos que fazia na escola vinham geralmente salpicados de estrelas. No entanto, durante muito tempo chorara antes de adormecer. Do andar de baixo, ouvia-a chorar e tinha de apertar a ponta do nariz para não chorar também. Nessas noites subia a escada e ia ao quarto das filhas; depois do acidente dera-se uma mudança, quiseram dormir no mesmo quarto; Travis sentava-se ao lado de Lisa, alisava-lhe os cabelos e ficava a ouvi-la quando repetia, uma e outra vez: "Quero a mamã", as palavras mais tristes que Travis alguma vez ouvira. Sufocado, mal conseguia responder-lhe: "Eu sei, também sinto a falta dela."

Não podia começar a ocupar o lugar de Gabby e não tentou substituí-la; passara a existir um vazio onde ela costumava estar, um espaço desocupado que ele não sabia como preencher. Como acontece com a maioria dos casais, cada um deles dominava uma determinada área quando se tratava de cuidar dos filhos. Gabby, percebera há pouco tempo, chamara a si uma parcela muito maior de responsabilidades, uma situação que ele agora lamentava. Havia tantas situações que não sabia como resolver, coisas que Gabby parecia resolver com facilidade. Era capaz de escovar o cabelo das filhas, mas quando se tratava de tranças, compreendia o conceito mas não dominava a técnica para o pôr em prática. Não sabia a que género de iogurte Lisa se referia quando dizia querer "aquele com a banana azul". Quando chegaram as constipações, deu com ele no corredor do supermercado à procura de um xarope para a tosse, sem saber se devia comprar o que tinha gosto a uvas ou o que sabia a morango. Christine nunca vestia as roupas que ele escolhia. Não fazia ideia de que Lisa gostava de usar sapatos brilhantes às sextas-feiras. Apercebeu-se de que, antes do acidente, nem sequer sabia os nomes dos professores das filhas ou onde se localizavam exactamente as salas de aulas onde elas estavam.

O Natal fora o pior, pois aquela fora sempre a quadra festiva preferida de Gabby. Gostava de tudo o que se relacionasse com a quadra do Natal: instalar a árvore, decorar, fazer bolinhos e até ir às compras. Travis costumava ficar espantado por ela conseguir manter a boa disposição enquanto abria caminho por entre as multidões frenéticas que enchiam os centros comerciais para, à noite, depois de ter metido as filhas na cama, olhar as prendas com um brilho infantil de regozijo nos olhos; juntos, embrulhavam os presentes que ela comprara. Mais tarde, Travis escondia-os no sótão.

A última quadra natalícia não fora nada alegre. Travis fez o melhor que pôde, forçando uma expressão de contentamento que não sentia. Tentara fazer tudo como Gabby costumava fazer, mas a necessidade de manter uma fachada optimista era cansativa, pois nem Christine nem Lisa lhe facilitaram a tarefa. A culpa não era delas, mas Deus sabia que ele ignorava o que responder quando, mesmo no topo das listas de desejos, figurava o pedido de a mãe melhorar. Não era um pedido que pudesse ser substituído por uma nova consola de jogos ou por uma casa de bonecas.

A situação começara a melhorar nas duas últimas semanas. Christine continuara com as suas explosões de mau génio e Lisa continuara a chorar à noite, mas tinham-se adaptado à vida em casa na ausência da mãe. Quando entravam em casa, vindas da escola, já não a chamavam como era hábito; quando caíam e esmurravam os cotovelos vinham automaticamente ter com ele, para lhes ser aplicado um penso rápido. Travis descobriu que uma família que Lisa desenhara na escola tinha apenas três figuras; ficou sem fôlego, até se aperceber de que havia uma outra imagem horizontal no canto, um acrescento de algo que parecia ter ficado esquecido. As meninas já não perguntavam tanto pela mamã como costumavam e raramente a visitavam. Era-lhes difícil irem ao hospital, pois não sabiam o que dizer nem como deviam comportar-se. Travis compreendi-as e tentava facilitar as coisas.

- Falem com a mamã - sugeria-lhes; e elas tentavam, mas as palavras acabavam por não sair por saberem que não iam obter qualquer resposta.

Quando iam visitar a mãe, Travis sugeria que lhe levassem prendas, que podiam ser pedrinhas encontradas no jardim, folhas secas, cartões desenhados por elas e decorados com cores brilhantes. Mas até com as prendas iam carregadas de incertezas. Lisa colocava a dela em cima da barriga da mãe e recuava; instantes depois chegava-se para perto da mão dela. Acabava por mudar de lugar e ia para a ponta da mesa. Por sua vez, Christine não parava quieta. Sentava-se na cama e ia até à janela, analisava com cuidado o rosto da mãe e, durante todo aquele tempo, não proferia uma palavra.

- O que é que aconteceu hoje na escola? - perguntara-lhe Travis na última visita. - Tenho a certeza de que a mamã gostaria de saber.

Em vez de responder, Christine voltara-se para ele. - Porquê? perguntara num tom de desafio, embora triste. - Sabes que ela não consegue ouvir-me.

Havia uma cafetaria no piso térreo do hospital e na maioria dos dias Travis ia até lá, mais para ouvir outras vozes que não a sua. Normalmente chegava à hora do almoço; durante as duas últimas semanas tinha ficado a conhecer os frequentadores regulares. Eram, na sua maioria, empregados, mas havia também uma idosa que parecia lá estar sempre que ele chegava. Embora nunca tivesse falado com ela, soube através de Gretchen que o marido dela já se encontrava na sala de cuidados intensivos quando Gabby deu entrada. Algo relacionado com complicações da diabetes; sempre que via a senhora a comer uma tigela de sopa, pensava no marido dela, que estava uns andares mais acima. Era fácil imaginar o pior: o paciente ligado a uma dezena de máquinas, cirurgias intermináveis, uma possível amputação, um homem que mal conseguia manter-se vivo. Não tinha que fazer perguntas e nem tinha a certeza de querer saber a verdade, quanto mais não fosse por não poder compor o ar de desgosto que seria necessário mostrar. A sua capacidade de estabelecer contactos evaporara-se.

No entanto, observava-a, curioso em relação ao que poderia saber através dela. Enquanto o nó que sentia no estômago não lhe dava alívio suficiente para engolir mais que umas poucas dentadas de qualquer alimento, a senhora idosa comia uma refeição completa e, acima de tudo, parecia saboreá-la. Enquanto ele não conseguia pensar muito tempo a não ser nas necessidades da vida corrente das filhas, a senhora lia romances ao mesmo tempo que comia e mais de uma vez lhe parecera vê-la rir-se em surdina com alguma passagem que a tivesse divertido. E ao contrário dele, mantinha a capacidade de sorrir e distribuía sorrisos a quem passasse pela sua mesa.

Por vezes, parecia-lhe notar naquele sorriso um traço de solidão, mesmo que se questionasse por imaginar coisas que provavelmente não existiam. Não conseguia deixar de reflectir sobre o casamento da idosa. Devido à idade, achava provável que já tivessem celebrado as bodas de prata, talvez as de ouro. O mais provável era terem filhos, mesmo que nunca os tivesse visto. Porém, para além disso, não conseguia intuir fosse o que fosse. Reflectia se teriam sido felizes, pois ela parecia aceitar a doença do marido com facilidade, enquanto ele vagueava pelos corredores do hospital, a sentir que bastava um passo mal dado para o fazer estatelar-se no chão.

Gostaria de saber, por exemplo, se o marido alguma vez plantara roseiras para ela, como ele fizera para Gabby quando ela ficara grávida de Christine. Recordava-se do ar dela, sentada no alpendre com a mão na barriga, a sugerir que o jardim das traseiras precisava de flores. Sentira que seria tão difícil negar-lhe a satisfação daquele desejo como respirar debaixo de água; e embora tivesse as mãos arranhadas e as pontas dos dedos em sangue quando acabou de plantar o roseiral, o jardim estava florido no dia em que Christine nasceu. Levara-lhe um ramo de rosas para a maternidade.

Gostaria de saber se o marido dela a observava pelo canto do olho, como ele mirava Gabby quando as filhas brincavam nas áleas do parque. Gostava de presenciar como o rosto de Gabby se iluminava de orgulho. Muitas vezes, pegava-lhe na mão e desejava ficar assim para sempre.

Gostaria de saber se o marido dela a achava bonita quando acordava, dia após dia, com o cabelo caído para um lado, como sucedia com ele em relação a Gabby. Por vezes, apesar do caos estruturado que associava sempre às manhãs, poderiam ficar simplesmente deitados e abraçados durante mais alguns minutos, como se procurassem juntar forças para enfrentar o dia que chegava.

Travis não sabia se o seu casamento fora especialmente feliz ou se todos os casamentos eram como o dele. Tudo o que sabia era que, sem Gabby, se sentia completamente perdido, enquanto outras pessoas, incluindo a senhora da cafetaria, conseguiam encontrar, sem ele saber como, as energias que lhes permitiam continuar. Não sabia se devia admirar a senhora ou sentir pena dela. Desviava sempre os olhos antes de ela notar que ele estava a observá-la. Atrás dele, estava uma família em animada conversa e transportando balões; junto à caixa registadora viu um jovem a procurar moedas nos bolsos. Sentindo-se doente, Travis afastou a bandeja. A sanduíche estava apenas meio comida. Pensou se devia levá-la para o quarto, mas sabia que nem assim conseguiria comê-la. Virou-se para a janela.

A cafetaria dava para um pequeno espaço verde e Travis ficou a observar o mundo lá de fora. A Primavera não tardaria e imaginava que os pequenos bolbos já estariam a formar-se nos ramos dos arbustos. Nos últimos três meses, observara todos os tipos de condições meteorológicas através daquela janela. Vira chuva e sol e os pinheiros da mata distante vergarem, como se fossem partir-se, com rajadas de mais de 80 quilómetros por hora. Três semanas antes, vira cair granizo, que passados poucos minutos dera lugar a um espectacular arco-íris que parecia emoldurado pelas sebes de azáleas. As cores tão brilhantes que pareciam vivas, levaram-no a pensar que por vezes a Natureza nos envia sinais, que é importante não nos esquecermos de que ao desespero poderá sempre seguir-se a alegria. Porém, o arco-íris desaparecera instantes depois e seguira-se nova saraivada. Percebeu que muitas vezes a alegria não passa de uma ilusão.

 

A meio da tarde, o céu começou a ficar nublado; era a hora dos exercícios de Gabby. Embora tivesse completado o esquema de exercícios da manhã, e de uma enfermeira voltar no final da tarde para os repetir, Travis perguntara a Gretchen se ele próprio lhe podia fazer os exercícios durante a tarde.

- Julgo que ela gostará disso - respondera a enfermeira.

Acompanhara-o durante um esquema completo para ter a certeza de que ele compreendera que cada músculo e cada articulação tinha de receber a mesma atenção. Embora Gretchen e as outras enfermeiras começassem pelos dedos das mãos, Travis começava pelos dedos dos pés. Destapava-a e pegava-lhe num pé, flectindo cada dedo rosado para cima e para baixo, repetindo o processo, antes de começar com o dedo seguinte.

Acabara por adorar prestar-lhe aquele serviço. Sentia que a pele dela contra a sua era suficiente para reavivar uma dezena de recordações: a forma como lhe massajava os pés quando Gabby estava grávida, as lentas e inebriantes massagens nas costas à luz da vela que pareciam fazê-la ronronar, massagens no braço que ela tinha magoado ao pegar num saco de comida para cães com uma só mão. Por mais que sentisse a falta das conversas com Gabby, por vezes pensava que o que lhe fazia mais falta era o simples contacto com a pele dela. Passara mais de um mês antes de pedir que Gretchen o autorizasse a fazer os exercícios; antes disso, sempre que aplicava uma palmadinha na perna da mulher, parecia que, de certo modo, estava a aproveitar-se da situação. Pouco importava que fossem casados; o que interessava era tratar-se de um gesto unilateral da sua parte, de alguma forma menos respeitoso para com a mulher que adorava.

Mas aquilo...

Ela precisava daquilo. Exigia aquilo. Sem os exercícios, os músculos começariam a atrofiar-se; se ela acordasse, ou quando ela acordasse, como não tardou a corrigir, a atrofia muscular condená-la-ia a ficar sempre acamada. Pelo menos, era isso que ele repetia para si mesmo. Lá no fundo, sabia que também precisava daquilo, quanto mais não fosse para sentir o calor ou o latejar suave do sangue no pulso dela. Era naquelas alturas que se convencia de que Gabby recuperaria, que o corpo dela estava apenas a recompor-se.

Acabou a massagem dos dedos dos pés e passou para os tornozelos; quando aquela parte estava trabalhada flectiu-lhe os joelhos, dobrando-os até tocarem o peito, para a seguir os esticar de novo. Por vezes, enquanto estava sentado no sofá a ler uma revista, Gabby costumava esticar a perna exactamente assim. Era um movimento próprio de uma dançarina e ela fazia com que parecesse igualmente gracioso.

- Isto faz-te sentir bem, meu amor?

- Uma maravilha. Obrigada. Estava a sentir-me um pouco contraída. Sabia que a resposta era imaginária, que Gabby não se esticara. Mas

a voz dela parecia nascer do nada, sempre que ele a massajava daquela forma. Por vezes, duvidava da sua sanidade mental. - Como é que estás?

- Totalmente chateada, se queres saber a verdade. A propósito, obrigada pelas flores. São encantadoras. Compraste-as no Frick?

- Aonde é que havia de ser?

- Como é que estão as meninas Desta vez, quero que me digas a verdade.

Travis passou para o outro joelho. - Estão bem. Mas sentem a tua falta, estão a viver um momento difícil. Por vezes, não sei o que fazer.

- Fazes o que podes, não é verdade? Não é isso que costumamos recomendar um ao outro?

- Tens razão.

- Então, não esperava mau de ti. E elas acabarão por recuperar. São mais fortes do que parecem.

- Eu sei. Saíram à mãe.

Travis imaginou que ela o olhava da cabeça aos pés, com ar de dúvida.

- Estás magro. Demasiado magro.

- Não tenho andado a comer bem.

- Estou preocupada contigo. Tens de ter cuidado contigo. Pelas meninas. Por mim,

- Nunca deixarei de estar junto de ti.

- Eu sei. Também receio isso. Recordas-te do Kenneth e da Eleanor Baker?

Travis parou as flexões. - Recordo.

- Então, sabes do que estou a falar.

Ele respirou fundo e recomeçou. - Pois sei.

Na cabeça dele, o tom de voz de Gabby suavizou-se. - Lembras-te de quando nos levaste a todas a acampar nas montanhas, no ano passado? E de teres prometido que as miúdas e eu iríamos adorar?

Travis começou a exercitar-lhe os dedos das mãos e os braços.

- Por que é que te lembraste disso?

- Aqui penso em muitas coisas. Que mais posso fazer? Adiante, lembras-te da nossa chegada, de nem nos termos preocupado em armar o acampamento; foi só despejar a carrinha, mesmo que ouvíssemos trovões ao longe, pois querias mostrar-nos o lago? E de como tivemos de caminhar mais de 800 metros para chegar ao lago, para, quando acabávamos de lá chegar, o céu se abrir e... despejar? A água era tanta que parecíamos ter mangueiras por cima da cabeça. Quando regressámos ao acampamento, encontrámos tudo ensopado. Fiquei furiosa contigo e obriguei-te a levar-nos a todas para um hotel.

- Recordo-me.

- Desculpa. Não devia ter-me zangado assim contigo. Embora a culpa fosse tua.

- Por que é que sou sempre o culpado?

Enquanto lhe rodava suavemente o pescoço, primeiro para um lado e depois para o outro, imaginou-a a presenteá-lo com uma piscadela de olho.

- é por não protestares sempre que te acuso disso. Travis curvou-se para diante e beijou-lhe a testa.

- Sinto muito a tua falta.

- Eu também sinto a tua.

O nó da garganta dele apertou-se um pouco mais enquanto acabava o esquema de exercícios, sabendo que a voz de Gabby iria começar a desvanecer-se uma vez mais. - Sabes que tens de acordar, não sabes? As meninas precisam de ti. Eu preciso de ti.

- Eu sei. Estou a tentar.

- Mas tens de te apressar.

Ela não respondeu e Travis percebeu que pressionara demasiado.

- Amo-te, Gabby.

- Eu também te amo.

- Posso fazer alguma coisa? Fechar as gelosias? Trazer-te qualquer coisa de casa?

- Ficas comigo um pouco mais? Sinto-me muito cansada.

- É claro que fico.

- E pega-me na mão.

Ele anuiu, voltando a cobrir-lhe o corpo com o lençol. Sentou-se na cadeira colocada ao lado da cama e pegou-lhe na mão, que ficou a acariciar levemente com o polegar. Lá fora, o pombo regressara e, mais longe, viu nuvens pesadas a passar, desenhando no céu figuras de outro mundo. Amava a mulher e odiava o inferno em que a vida com ela se transformara, detestando-se só por ousar pensar assim. Beijou-lhe as pontas dos dedos, um a um, e acariciou o próprio rosto usando a mão de Gabby. Pressionou a face com ela, a tentar detectar o mais ligeiro movimento; mas quando nada aconteceu, passou adiante e nem reparou que o pombo parecia estar a observá-lo.

Eleanor Baker era uma dona de casa de 38 anos e tinha dois filhos que adorava. Entrara na urgência oito anos antes, a vomitar e a queixar-se de uma dor excruciante na nuca. Aconteceu que Gabby estava a trabalhar naquele dia, a fazer o serviço de uma colega, embora não assistisse Eleanor. Esta ficara internada e Gabby não deu pela existência dela até à segunda-feira seguinte, quando soube que a doente fora colocada na unidade de cuidados intensivos por não ter acordado na manhã de domingo. - Resumindo, adormeceu e não voltou a acordar - esclareceu uma das enfermeiras.

O coma fora provocado por um severo ataque de meningite virosa.

O marido dela, Kenneth, professor de História na Escola Secundária de East Carteret, que era sem sombra de dúvida um homem gregário, amistoso, passava os dias no hospital. Com o decorrer do tempo, Gabby veio a conhecê-lo; de início, os seus contactos não tinham ido além de simples amabilidades, mas com o prolongamento da situação passaram a ter conversas mais prolongadas. Kenneth adorava a mulher e os filhos e quando visitava o hospital vestia sempre uma camisola elegante e calças Dockers bem passadas a ferro; bebia um refrigerante, Mountain Dew, aos litros. Católico devoto, era frequente Gabby encontrá-lo de rosário na mão, a rezar ao lado da cama da mulher. Os filhos chamavam-se Matthew e Mark.

Travis sabia todos aqueles pormenores através das conversas que tinha com Gabby depois do trabalho. O tema das conversas deles era sempre o mesmo, o facto de Gabby se admirar de o homem conseguir ir ao hospital todos os dias e do que pensaria ao sentar-se em silêncio ao lado da cama da mulher.

- Parece sempre tão triste - comentava Gabby.

- É por estar triste. A mulher está em coma.

- Mas ele passa lá o tempo todo. Quem é que cuida dos filhos? As semanas tornaram-se meses e Eleanor Baker acabou por ser

transferida para uma casa de repouso. Passou um ano, depois outro. Eventualmente, teriam deixado de pensar em Eleanor Baker, se não sucedesse que Kenneth Baker e Gabby se abasteciam no mesmo supermercado. Encontravam-se uma vez por outra e a conversa derivava sempre para o estado de saúde de Eleanor. Não se registara qualquer alteração.

Contudo, passaram os anos, continuaram a ver-se e Gabby notou uma mudança em Kenneth. "Continua viva" era a fórmula que utilizava casualmente para descrever o estado de saúde da mulher. Num olhar onde antes houvera brilho quando falava da mulher, agora havia apenas o vazio; onde antes havia amor, agora parecia haver apenas apatia. O cabelo escuro de Kenneth embranquecera em apenas dois anos; tornara-se tão magro que a roupa parecia pendurada.

Gabby parecia não conseguir evitá-lo; se não o encontrava no sector dos cereais, era apanhada no dos produtos congelados e ele tornara-a uma espécie de confidente. Parecia necessitar dela, contar-lhe o que estava a acontecer e transformava aqueles encontros num desfiar de narrativas de eventos terríveis: que perdera o emprego, que ficara sem a casa, que queria ver os filhos de casa para fora, que o mais velho abandonara a escola secundária e que o mais novo fora uma vez mais preso por tráfico de drogas. Uma vez mais. Fora a expressão a que Gabby dera mais ênfase ao contar-lhe. Também disse que ele lhe parecera embriagado quando o encontrara.

- Tenho tanta pena dele - lastimara-se.

- Sei que tens - respondera Travis.

Gabby calou-se por momentos. - Por vezes, penso que teria sido mais fácil se a mulher dele tivesse morrido.

A olhar pela janela, Travis começou a pensar em Kenneth e Eleanor Baker. Não sabia se Eleanor continuava na casa de repouso, ou se ainda estaria viva. Depois do acidente, quase todos os dias revia mentalmente o que Gabby lhe contara. Gostaria de saber se haveria alguma razão para que Eleanor e Kenneth Baker tivessem entrado nas suas vidas. Afinal, quantas pessoas podiam afirmar conhecer alguém que tivesse estado em coma? Parecia tão... fantástico, não mais provável do que visitar uma ilha povoada de dinossauros ou ver uma nave extraterrestre a explodir contra o Empire State Building.

Mas Gabby trabalhava num hospital, o que, de certo modo, era razão suficiente para o casal ter entrado nas vidas deles, ou não? Para o avisar de que estava condenado? Que as suas filhas iriam perder-se? Eram pensamentos que o deixavam aterrorizado e explicavam a razão de querer estar sempre presente quando as filhas chegavam da escola. Era a razão por que iria levá-las para Busch Gardens logo que terminasse a escola e era também a razão para ter deixado Christine passar a noite em casa de uma amiga. Acordava todas as manhãs a pensar que embora elas estivessem a reagir, o que era normal, teria de lhes exigir bom comportamento em casa e na escola; quando não se portavam bem, eram castigadas e tinham de permanecer no quarto durante o serão. Porque eram medidas que Gabby não hesitaria em tomar.

Era frequente que os sogros pensassem que ele estava a ser demasiado duro com as meninas. Nada de surpreendente. A sogra, em especial, sempre gostara de se armar em juíza. Embora Gabby conseguisse estar ao telefone com o pai durante uma hora, as conversas com a mãe duravam muito pouco. De início, Travis e Gabby iam passar os dias das festas tradicionais a Savannah e Gabby vinha de lá sempre exausta; depois do nascimento das filhas, informou os pais de pretender criar a sua própria tradição familiar e que, embora adorasse a companhia dos pais, teriam de ser eles a deslocar-se a Beaufort. Nunca o fizeram.

Contudo, depois do acidente, os sogros instalaram-se num hotel de Morehead City para estarem perto da filha; no primeiro mês juntaram-se por várias vezes no quarto de Gabby. Embora nunca o declarassem culpado pelo acidente, Travis conseguia notar a acusação latente na maneira como mantinham as distâncias. Quando passavam algum tempo com Christine e Lisa, faziam-no sempre fora de casa, saíam para comer gelados ou pizas; nunca se demoravam mais de um ou dois minutos dentro da casa da filha.

Passado algum tempo tiveram de regressar a casa e passaram a aparecer num ou noutro fim-de-semana. Quando apareciam, Travis tentava manter-se afastado do hospital. Dizia a si mesmo que o fazia porque eles precisavam de mais tempo a sós com a filha, o que era parcialmente verdadeiro. O que não gostava de admitir é que procurava manter-se ao largo porque eles estavam continuamente a recordar-lhe que era o principal culpado por Gabby se encontrar naquele hospital, embora talvez não o fizessem com intenção de o magoar.

Os amigos reagiram como se esperava. Nas primeiras seis semanas, Allison, Megan e Liz estabeleceram entre si turnos para lhe prepararem o jantar. Com os anos haviam-se afeiçoado a Gabby e por vezes parecia que teria de ser o próprio Travis a confortá-las. Apareciam-lhe com os olhos vermelhos e sorrisos forçados, carregadas de caixas Tupperware cheias até aos bordos com lasanha ou cozido, acompanhamentos e sobremesas de todos os géneros. Tinham sempre o cuidado de mencionar o facto de as carnes vermelhas terem sido substituídas por galinha, pelo que Travis poderia comer à vontade.

Eram especialmente carinhosas com as meninas. No começo, abraçavam-nas sempre que choravam e Christine tornou-se muito amiga de Liz, que lhe fazia as tranças, ajudava-a a fazer braceletes de contas e habitualmente passava pelo menos meia hora com ela a chutar a bola de futebol no jardim das traseiras. Dentro de casa, começavam a cochichar logo que Travis saía da sala; e ele bem gostaria de saber o teor daquelas conversas. Conhecendo Liz, tinha a certeza de que se o problema fosse importante ela não deixaria de lhe dizer, mas habitualmente Liz dizia apenas que Christine sentira vontade de conversar. Com o tempo, acabou por sentir-se simultaneamente grato pela presença dela e ciumento devido à relação que Liz estabelecera com Christine.

Pelo seu lado, Lisa era mais chegada a Megan. Coloriam gravuras à mesa da cozinha ou sentavam-se juntas a ver televisão; por vezes, Travis reparava que a filha se enroscava encostada a Megan, tal como costumava fazer com Gabby. Em momentos como aqueles, pareciam mãe e filha; por brevíssimos instantes, Travis tinha a sensação de que a família estava de novo reunida.

Allison, por sua vez, queria ter a certeza de que as crianças compreendessem que mesmo estando tristes e preocupadas não deixavam de ter responsabilidades. Recordava-lhes que tinham de manter os quartos arrumados, ajudava-as nos trabalhos de casa e obrigava-as sempre a levarem os pratos para o lava-louça. Era gentil com elas, mas firme, e embora as filhas por vezes não cumprissem nas noites em que Allison não vinha, Travis reconhecia que tal acontecia com menos frequência do que seria de esperar. A nível do subconsciente pareciam perceber que tinham de organizar as suas vidas, pelo que a ajuda de Allison era exactamente aquela de que precisavam.

Juntamente com a avó paterna, que ia lá todas as tardes e em alguns fins-de-semana, as amigas faziam com que, depois do acidente, Travis raramente se visse obrigado a estar sozinho com as filhas; além de que funcionavam como mães, algo que não estava ao alcance dele. Precisava que elas o substituíssem nessa tarefa. Elas eram o suporte que lhe permitia saltar da cama em cada manhã, quando se sentia prestes a chorar. O sentimento de culpa pesava-lhe e não era devido apenas ao acidente. Não sabia o que fazer, nem onde deveria estar. Quando se encontrava no hospital desejava estar junto das filhas; quando estava em casa com elas, gostaria de estar no quarto de Gabby. Nada lhe corria bem.

Porém, depois de seis semanas a despejar comida no contentor do lixo, Travis acabou por dizer às amigas que as suas visitas seriam sempre bem-vindas, mas não era preciso que lhe preparassem o jantar. Nem queria que fossem lá todos os dias. Chegado àquele ponto, com a cabeça cheia de visões de Kenneth Baker, sabia que tinha de assumir o controlo do que restava da sua vida. Tinha de voltar a ser o pai que já fora, o pai que Gabby queria que ele fosse, e, pouco a pouco, foi conseguindo. Não era fácil e embora houvesse alturas em que Christine e Lisa pareciam sentir a falta das amigas, tal sentimento era mais do que compensado pela atenção que o pai recomeçara a dispensar-lhes. Não que as suas vidas tivessem regressado à normalidade, mas agora, atingida a marca dos três meses, as vidas delas eram tão normais quanto poderia esperar-se. Era frequente Travis pensar que, ao chamar a si a responsabilidade de cuidar das filhas, se salvara a si próprio.

O lado negativo era que, após o acidente, ficara com pouco tempo para dedicar aos amigos Joe, Matt e Laird. Mesmo que continuassem a passar por lá para beberem uma cerveja depois de as crianças terem ido para a cama, as conversas eram vazias. Em metade das ocasiões, tudo o que diziam parecia estar... um tanto... desfasado. Quando o interrogavam sobre Gabby, não sentia vontade de falar dela. Quando lhes apetecia falar de qualquer outro assunto, Travis ficava com a impressão de que os amigos procuravam não falar de Gabby. Reconhecia que não estava a ser justo, mas sempre que passava algum tempo junto deles, sentia-se invariavelmente chocado pelas diferenças entre as vidas dos amigos e a sua. Apesar da amizade e da paciência deles, a despeito da simpatia que demonstravam, Travis não conseguia deixar de pensar que, dentro em pouco, Joe iria para casa, para junto de Megan e ficariam ambos enroscados a conversar na cama; quando Matt lhe punha a mão no ombro, ficava a pensar se Liz ficara satisfeita por o marido ter ido visitá-lo ou se precisaria dele para fazer qualquer coisa em casa. A relação com Laird era exactamente a mesma e, mesmo contra sua vontade, era frequente irritar-se inexplicavelmente com a presença deles. Enquanto ele se via forçado a viver constantemente uma situação impensável, as preocupações deles eram de ligar e desligar; por Deus, não conseguia deixar de se enfurecer com a injustiça de tudo aquilo. Queria o que eles tinham e sabia que nunca compreenderiam a perda que ele sofrera, por muito que tentassem. Odiava-se por tais pensamentos e tentava esconder a fúria, mas acabou por pressentir que os amigos se tinham apercebido de que a situação mudara, mesmo sem terem a certeza do que estava realmente a acontecer. Pouco a pouco, as visitas deles tornaram-se mais curtas e menos frequentes. Também se odiou por isso, pela barreira que estava a erigir entre si e os amigos, mas não sabia como remediar a situação.

Nos momentos mais tranquilos, punha-se a pensar na sua cólera em relação aos amigos e na gratidão que sentia para com as mulheres deles. Sentava-se no alpendre a reflectir sobre tudo aquilo; na semana anterior dera consigo a olhar a Lua em quarto crescente e, finalmente, percebera toda a questão. Apercebeu-se de que a diferença residia no facto de Megan, Allison e Liz concentrarem os seus apoios nas filhas dele, enquanto Joe, Matt e Laird procuravam ajudá-lo. As filhas mereciam as atenções.

Ele, porém, merecia ser punido.

 

Sentado junto de Gabby, Travis olhou o relógio. Eram quase 14.30 e normalmente estaria a preparar-se para se despedir da mulher, de modo a poder estar em casa quando as filhas regressassem da escola. Mas naquele dia Christine ia visitar uma amiga e Lisa fora convidada para uma festa de aniversário, que se realizaria no aquário de Pine Knoll Shores. Portanto, nenhuma delas estaria em casa antes da hora de jantar. Era uma sorte que as filhas tivessem planos para aquela tarde, pois ele precisava de ficar um pouco mais. Mais tarde, teria de se encontrar com o neurologista e com o administrador do hospital.

Sabia o motivo da reunião e não tinha dúvidas de que seria tratado com toda a simpatia, expressa em tons moderados e tranquilizadores. O neurologista iria dizer que, como o hospital não podia fazer mais nada por Gabby, ela teria de ser transferida para uma casa de repouso. Dir-lhe-ia que o risco era mínimo, pois a situação da doente era estável, para além de ser vista por um médico todas as semanas. Talvez acrescentasse que o pessoal das casas de repouso detinha as habilitações suficientes para proporcionar os cuidados normais de todos os dias. Se Travis protestasse, era provável que o administrador interviesse para lhe dizer que, como a doente não se encontrava numa unidade de cuidados intensivos, a apólice de seguro dele cobria apenas uma estada de três meses no hospital. Podia ainda mencionar o facto de o hospital se destinar a servir a comunidade, não havendo, portanto, razões para a manter hospitalizada indefinidamente, mesmo tratando-se de uma ex-funcionária. Na realidade, não havia nada a fazer. No essencial, juntando esforços, quereriam ter a certeza de alcançar o objectivo.

O que não era percebido por qualquer deles era o facto de a decisão não ser assim tão simples. As aparências escondiam uma realidade: enquanto Gabby estivesse no hospital, assumia-se que ela iria acordar, por ser essa a condição necessária para que as vítimas de coma temporário ali permanecerem. Os pacientes em coma temporário precisavam de médicos e enfermeiros por perto, de técnicos que velassem pelo equipamento e estivessem atentos às alterações que pudessem indicar que estaria para ocorrer uma melhoria da situação. Numa casa de repouso partir-se-ia do pressuposto de que Gabby nunca mais acordaria. Travis não estava preparado para aceitar a ideia, mas parecia que não lhe dariam quaisquer hipóteses de escolha.

Mas Gabby escolhera e, no final, a decisão dele não se basearia no que o neurologista ou o administrador lhe pudessem dizer. Fundamentaria a sua decisão na que ele pensava ser a escolha da mulher.

O pombo desaparecera do peitoril da janela, deixando Travis a imaginar se ele teria ido visitar outros doentes, como um médico a fazer a ronda diária, e se assim fosse, gostaria de saber se os outros pacientes reparavam na ave.

- Desculpa o choro de há pouco - sussurrou Travis. Ficou a olhar para Gabby, a observar a subida e descida do peito a cada movimento respiratório da mulher. - Não o consegui evitar.

Não alimentava a ilusão de que a mulher o ouvisse desta vez. Isso só acontecia uma vez por dia.

- Sabes o que aprecio em ti? Para além de quase tudo o resto? perguntou, forçando um sorriso. - Gosto da maneira como tratas a Molly. A propósito, a cadela está bem. Não há problemas com os quadris e, sempre que pode, continua a gostar de se estender ao sol. Sempre que a vejo deitada, penso nos primeiros anos em que vivemos juntos. Recordas-te de quando costumávamos levar os cães a passear pela praia? Quando nos levantávamos tão cedo que os podíamos soltar e deixá-los correr à vontade? Essas manhãs eram sempre calmantes e gostava de te ouvir rir enquanto corrias atrás da Molly, em círculos, a tentar agarrar-lhe os quartos traseiros. A cadela ficava maluca quando a perseguias, os olhos pareciam brilhar e ficava de língua pendente, a aguardar a tua tentativa seguinte.

Fez uma pausa e surpreendeu-se ao reparar que o pombo regressara. Decidiu que a ave gostava de ouvir a conversa dele.

- Se queres saber, foi assim que percebi que serias fantástica para os teus filhos. Pela maneira como te comportavas com a Molly. Mesmo no nosso primeiro encontro... - começou mas abanou a cabeça, a rever mentalmente a cena. - Acredites ou não, sempre apreciei o facto de teres irrompido pela minha casa naquela noite; e não é por nos termos casado. Parecias uma ursa a proteger o filhote. Quem não for capaz de amar profundamente, também não será capaz de se encolerizar daquela forma; e depois de ver como tratavas a Molly, com muito amor, atenção e grande preocupação, percebi que serias exactamente assim com os teus filhos.

Passou-lhe a ponta do indicador pelo braço. - Sabes o que isso significou para mim? Saber quanto amas as nossas filhas? Não fazes ideia do conforto que isso me fez sentir ao longo dos anos.

Aproximou a cara da orelha dela. - Amo-te, Gabby, mais do que alguma vez julgarás possível. És tudo o que eu sempre desejei numa esposa. Conténs todas as esperanças e todos os meus sonhos, e fizeste de mim o homem mais feliz que eu poderia ser. Jamais quero desistir disso. Consegues entender isso?

Aguardou uma resposta, que não aconteceu. Nunca acontecia o que quer que fosse, como se Deus quisesse mostrar-lhe que o amor dele pela mulher não era suficiente. Subitamente, ao olhar para Gabby, sentiu-se muito velho e muito cansado. Ajustou os lençóis, sentiu-se só e apartado da mulher, a saber que era um marido que de certa forma a decepcionara.

- Por favor - sussurrou. - Tens de acordar, meu amor. Por favor! O nosso tempo está a acabar-se.

- Olá! - saudou Stephanie. De calças de ganga e T-sbirt, não parecia a profissional bem-sucedida que se tornara. Vivia em Chapei Hill e era directora sénior de projecto numa empresa de biotecnologia em rápida expansão; porém, nos últimos três meses passara três ou quatro dias de cada semana em Beaufort. Depois do acidente, tornara-se a única pessoa com quem Travis podia verdadeiramente conversar. Era a única pessoa que lhe conhecia todos os segredos.

- Olá - respondeu.

Stephanie atravessou o quarto e inclinou-se para a cama. - Olá, Gabby - saudou, dando-lhe um beijo na face da cunhada. - Como é que te sentes?

Travis adorava a maneira como a irmã tratava Gabby. Com excepção dele, era a única pessoa que parecia sempre à-vontade na presença de Gabby.

Stephanie puxou outra cadeira e deslizou para mais perto do irmão.

- E tu, irmão mais velho, como tens passado?

- Bem.

A irmã brindou-o com aquele olhar da cabeça aos pés. - Pareces mal como o diabo.

- Obrigado.

- Não andas a comer o suficiente - sentenciou. Abriu a mala e tirou de lá uma saqueta de amendoins. - Come isto.

- Não tenho fome. Acabei de almoçar.

- O quê?

- O suficiente.

- Não me faças rir, está bem? - Usou os dentes para abrir a embalagem. - Come estes amendoins que eu prometo calar-me e não te chatear mais.

- Dizes o mesmo sempre que cá vens.

- É por conservares esse ar - sugeriu. - Tenho a certeza de que ela te disse o mesmo - prosseguiu, apontando para Gabby com um aceno de cabeça. Nunca punha em dúvida as afirmações do irmão, quando ele contava que ouvia a voz de Gabby, ou se o fazia, o seu tom de voz não denotava qualquer preocupação quanto a isso.

- Pois disse.

Empurrou a saqueta na direcção dele. - Então, come os amendoins.

Travis recebeu a saqueta e deixou-a ficar em cima das coxas.

- Agora mete alguns na boca, mastiga e engole.

Parecia a mãe deles. - Já te disseram que por vezes consegues ser bastante mandona?

- Oiço isso todos os dias. E acredita no que te digo, precisas de alguém que mande em ti. Tens muita sorte por eu fazer parte da tua vida. Sou uma verdadeira bênção para ti.

Em todo o dia, foi aquela a primeira vez em que soltou uma verdadeira gargalhada. - É uma maneira de ver a situação - concedeu, pondo uma mão-cheia de amendoins na boca e começando a mastigar. - Como é que vão as coisas entre ti e o Brett?

- Vão indo.

- Sarilhos no paraíso?

Stephanie deu de ombros. -- Voltou a pedir-me em casamento.

- E respondeste o quê?

- O que lhe respondera da primeira vez.

- Como é que ele reagiu?

- Muito bem. Oh, não deixou de fazer o seu número: "Sinto-me magoado e furioso"; mas tudo voltou à normalidade num par de dias. Passámos o último fim-de-semana em Nova Iorque.

- Por que não te decides a casar com ele?

Novo encolher de ombros. - É provável que o faça.

- Nesse caso, dou-te uma sugestão. Deves dizer-lhe que sim quando ele te fizer a proposta.

- Porquê? Ele voltará a fazê-la.

- Pareces estar muito convencida disso.

- Pois estou. E dir-lhe-ei que sim quando tiver a certeza de que ele deseja casar comigo.

- Já te propôs casamento três vezes. Que mais é preciso para teres a certeza?

- Ele apenas julga que deseja casar comigo. Brett é o tipo de homem que aprecia desafios e, de momento, eu represento um desafio. Enquanto eu for um desafio, ele irá renovando a proposta. E quando eu souber que ele está efectivamente pronto, então, aceitarei.

- Não sei...

- Confia em mim. Conheço os homens e tenho os meus encantos - retorquiu Stephanie, com um brilho de malícia nos olhos. - Ele sabe que não preciso dele, o que o deixa praticamente de rastos.

Travis concordou. - Não, na realidade não precisas dele.

- Ora bem, mudando de assunto, quando é que regressas ao trabalho?

- Não tardo a regressar - murmurou.

A irmã pegou na saqueta e meteu uns quantos amendoins na boca.

- Tens consciência de que o papá já não é um rapazote.

- Eu sei.

- Portanto... será na próxima semana?

Como o irmão não respondesse, Stephanie cruzou as mãos à frente da barriga. - Muito bem, vamos fazer como eu digo, pois é óbvio que ainda não decidiste seja o que for. Vais começar por aparecer na clínica e ficas lá todos os dias, pelo menos até à uma da tarde. É o teu novo horário. Oh, e podes fechar a loja à sexta-feira, ao meio-dia. Dessa maneira, o papá só terá de lá estar quatro tardes em cada semana.

Travis olhou-a de olhos semicerrados. - Segundo vejo, pensaste maduramente no assunto.

- Alguém teria de o fazer. E, só para que saibas, a medida não se destina a beneficiar apenas o papá. Tu precisas de voltar ao trabalho.

- E se eu julgar que ainda não estou preparado?

- É uma pena. Mas faz o que te digo. Se não o fizeres por ti, fá-lo pela Christine e pela Lisa.

- De que é que estás a falar?

- Das tuas filhas. Ou já não te lembras delas?

- Sei quem são...

- E amas as tuas filhas, não é verdade?

- Que raio de pergunta é essa?

Stephanie resolveu ignorar a pergunta, e prosseguiu: - Então, se as amas, vais voltar a agir como um pai. E isso significa que tens de regressar ao trabalho.

- Porquê?

- Por que tens de lhes demonstrar que, aconteça o que acontecer, a vida continua. é uma das tuas responsabilidades. Quem mais poderá ensinar-lhes isso?

- Steph...

- Não estou a afirmar que é fácil, mas digo-te que não tens por onde escolher. Afinal, não deixaste que elas desistissem, pois não? Continuam a ir à escola, não é verdade? Ainda as obrigas a fazer os trabalhos de casa, certo?

Não obteve resposta.

- Portanto, se esperas que elas assumam as suas responsabilidades, e as miúdas têm apenas oito e seis anos, terás de assumir as tuas. Elas precisam de sentir que estás a regressar à normalidade e o trabalho faz parte disso. Lamento, mas é a vida.

Travis abanou a cabeça, a sentir a cólera a aumentar. - Tu não compreendes.

- Compreendo perfeitamente.

Ele levou os dedos à ponta do nariz e espirrou. - A Gabby é...

Como o irmão não continuasse, Stephanie pôs-lhe a mão num joelho. - Entusiasta? Inteligente? Carinhosa? Tem bons princípios? É divertida? Paciente? Tudo o que alguma vez imaginaste que uma esposa e mãe deveria ser? Por outras palavras, uma mulher quase perfeita?

Surpreendido, encarou a irmã.

- Eu sei. Também a adoro. Sempre a adorei. Não é apenas a irmã que nunca tive, é também a minha melhor amiga. Por vezes, sentia que era a minha única amiga verdadeira. E tens razão, ela tem sido maravilhosa para ti e para as meninas. Não poderias ter escolhido melhor. Por que é que pensas que continuo a vir aqui? Não é apenas por ela, ou por ti. E por mim. Também sinto a falta dela.

Sem saber o que responder, Travis manteve-se calado. No silêncio que se seguiu, ouviu-se Stepanhie respirar fundo.

- Já decidiste o que vais fazer?

Travis engoliu em seco. - Não - admitiu. - Ainda não.

- Já passaram três meses.

- Eu sei.

- Quando é a reunião?

- Devo reunir-me com eles dentro de meia hora.

Ao olhar para o irmão, aceitou a indecisão. - Muito bem. Vamos esperar. Vou deixar-te pensar um pouco mais no assunto. Agora vou direita a tua casa para ver as miúdas.

- Não estão lá, chegarão mais tarde.

- Importas-te que espere lá por elas?

- Avança. Há uma chave...

Ela não o deixou acabar. - Por debaixo da rã de plástico que está na varanda? É claro que sei. E se queres saber, tenho quase a certeza de que a maioria dos gatunos seria capaz de descobrir o esconderijo.

Travis sorriu. - Adoro-te. Steph.

- Também te adoro, Travis. E sabes que estou do teu lado, certo?

- Eu sei.

- Sempre. Em qualquer altura.

- Eu sei.

A olhá-lo de frente, Stephanie acenou, finalmente satisfeita. - Espero lá por ti, está bem? Quero saber o que ficou decidido.

- Muito bem.

Stephanie pôs-se de pé, apanhou a bolsa, pô-la a tiracolo e beijou o irmão no alto da cabeça.

- Vemo-nos mais tarde, está bem, Gabby? - indagou, sabendo que não teria resposta. Estava a meio caminho da saída, quando ouviu de novo a voz de Travis.

- Até onde é que devemos ir em nome do amor?

A irmã rodou e ficou a olhá-lo de lado. - Já me fizeste essa pergunta.

Travis hesitou. - Eu sei. Mas estou a perguntar-te o que achas que devo fazer.

- Então, dou-te a resposta habitual. Tu é que tens de decidir como queres resolver o assunto.

- Para mim, isso significa o quê?

Stephanie olhou-o com uma expressão quase desesperada. - Não sei, Trav. O que é que julgas que significa?

 

Tinha passado pouco de dois anos e meio desde o dia em que Gabby vira Kenneth Baker pela última vez, num daqueles serões que tinham dado fama a Beaufort. Uma noite de Verão, com música ao vivo a tocar e dezenas de barcos atracados no cais, parecera-lhe ideal para levar a mulher e as filhas à baixa, também um pretexto para comerem uns gelados. Enquanto estavam na fila com as filhas, Gabby mencionara casualmente ter visto uma bonita gravura numa das lojas por onde acabavam de passar. Travis sorriu, já habituado às sugestões da mulher.

- Por que não vais observá-la melhor? Eu fico com as meninas. Vai!

Demorara-se mais do que ele esperara e voltara de expressão alterada. Mais tarde, depois de regressarem a casa e terem posto as filhas na cama, Gabby sentara-se no sofá, visivelmente preocupada.

- Sentes-te bem? - indagou Travis.

Gabby mexeu-se, pouco à-vontade. - Encontrei Kenneth Baker esclareceu. - Quando estavas na fila para comprar os gelados.

- Ah, sim? Como é que ele está?

Ela deu de ombros. -Já pensaste que a mulher dele está há seis anos em coma? Seis anos. Consegues imaginar o que isso significa para ele?

- Não, não consigo.

- Parece um velho.

- Julgo que também envelheceria. Ele está a viver uma situação terrível.

Gabby anuiu, mas ficou com o mesmo ar incomodado. - Também está zangado. E parece ressentido com a mulher. Disse que só a visita de vez em quando. E os filhos... - perdeu-se em reflexões, parecendo ter perdido o fio à meada.

Travis estava a observá-la. - A que propósito vem esta conversa?

- Tu irias visitar-me? Se me acontecesse uma desgraça semelhante?

Pela primeira vez, sentiu um assomo de medo, sem saber bem por quê. - É claro que iria.

A expressão dela era quase triste. - Mas, passado algum tempo, passarias a visitar-me menos vezes.

- Continuaria a visitar-te sempre.

-- E, com o tempo, ficarias ressentido comigo. -- Nunca me sentiria ressentido contigo.

- Kenneth está ressentido com Eleanor.

Travis abanou a cabeça. - Não sou o Kenneth. Por que diabo foste buscar uma conversa destas?

- Porque te amo.

Ele abriu a boca para lhe responder, mas Gabby interrompeu-o com um gesto. - Por favor, deixa-me acabar - pediu. Fez uma pausa, a pôr as ideias em ordem. - Quando Eleanor foi internada no hospital, o amor de Kenneth era evidente. Notava isso sempre que falávamos e, com o tempo, julgo que me contou a totalidade da história deles: como se conheceram na praia, no Verão do ano em que terminaram os cursos; o pormenor de Eleanor ter recusado a primeira proposta de casamento e a forma como ele conseguira dar a volta a isso; numa festa de aniversário do casamento dos pais dela é que lhe dissera, pela primeira vez, que a amava. Mas não se limitava a narrar os pormenores, era como se estivesse a revivê-los uma vez mais. Em certos aspectos, fazia-me recordar de ti.

Gabby procurou a mão dele. - Farias o mesmo, como sabes. Fazes ideia de quantas vezes te ouvi contar o nosso primeiro encontro? Não me interpretes mal, pois adoro-te sempre que o fazes. Adoro o facto de manteres tais memórias bem vivas no teu coração e saber que elas significam tanto para ti quanto significam para mim. O facto é que... quando o fazes, sinto que estás uma vez mais a apaixonar-te por mim. De certo modo, é essa a tua atitude mais comovente a meu respeito - acrescentou, fazendo nova pausa. - Bem, é isso e arrumares a cozinha quando me sinto demasiado cansada para o fazer.

Apesar de tudo, Travis riu-se, mas Gabby pareceu não reparar.

- Hoje, pelo contrário, Kenneth mostrou-se tão amargo que quando lhe perguntei por Eleanor tive a sensação de que ele preferia que a mulher tivesse morrido. E quando comparo este estado de espírito à maneira como ele costumava sentir-se em relação à mulher, mais o que sucedeu aos filhos deles... é terrível.

Travis apertou-lhe a mão entre as suas, quando Gabby se calou.

- Isso nunca acontecerá connosco...

- A questão não é essa. A questão está em saber que não poderei viver sabendo que não fiz o que deveria ter feito.

- De que é que estás a falar?

Gabby percorreu-lhe a mão com a ponta de um dedo. - Amo-te tanto, Travis. És o melhor marido, uma pessoa superior a todas as que conheci. E desejo que me faças uma promessa.

- O que quiseres.

Ela olhou-o de frente. - Desejo que me prometas que, no caso de me acontecer qualquer acidente, me deixas morrer.

- Já registámos as nossas últimas vontades - replicou Travis. -- Foi na mesma altura em que fomos ao tabelião fazer os testamentos regulares.

- Eu sei. Mas o nosso advogado reformou-se e foi viver para a Florida e, tanto quanto sei, só nós os três sabemos que não pretendo que a minha vida seja prolongada desde que não me encontre em estado de tomar as minhas próprias decisões. Não seria justo interromper a tua vida normal e a das nossas filhas, pois, com o tempo, o ressentimento apareceria necessariamente. O encontro de hoje com Kenneth convenceu-me disso, mas não quero que alguma vez sintam amargura por causa de algo que partilhámos. Amo-vos demasiado para permitir tal desenlace. A morte é sempre triste, mas é também inevitável e foi por isso que, antes de mais, fiz o testamento. Porque vos adoro e vos amo demasiado, a todos - acrescentou, antes de prosseguir, agora em voz mais baixa mas num tom mais determinado.

- E a questão é que... não me sinto com vontade de comunicar aos meus pais ou às minhas irmãs a decisão que tomei. A decisão que tomámos. Não quero procurar outro advogado para redigir de novo os documentos. Quero ter a certeza de que farás o que eu quero. É por isso que quero que me prometas que agirás de acordo com os meus desejos.

Travis estava a achar a conversa irreal. - Pois... com certeza gaguejou.

- Não, assim não vale. Quero que me prometas. Que pronuncies um juramento.

Ele engoliu em seco. - Prometo agir exactamente como desejas. Juro.

- Por mais difícil que seja?

- Por mais difícil que seja.

- Por me amares?

- Por te amar.

- Sim, porque eu também te amo - concluiu Gabby.

O testamento que Gabby assinara no gabinete do notário era o documento que Travis trouxera consigo para o hospital. Entre outras disposições, especificava que os tubos de alimentação deveriam ser retirados ao fim de 12 semanas. Hoje era o dia em que teria de fazer a escolha.

Sentado ao lado de Gabby no quarto do hospital, Travis recordou a conversa que tivera com a mulher naquela noite; recordou o juramento que lhe fizera. Nas últimas semanas repetira aquelas palavras mais de uma centena de vezes e, com o aproximar da marca dos três meses, sentia-se cada vez mais desesperado por Gabby não dar sinais de acordar. E o mesmo sucedera com Stephanie e era por isso que ela o esperava em casa. Há seis semanas, falara-lhe na promessa que fizera a Gabby; a necessidade de partilhar o segredo tornara-se insuportável.

As seis semanas seguintes passaram sem qualquer sinal de alívio. Gabby não se mexeu, nem mostrou qualquer melhoria das funções cerebrais. Embora tentasse ignorar o óbvio, o relógio não deixara de avançar e agora era chegada a hora de tomar a decisão.

Por vezes, durante as suas conversas imaginárias com a mulher, tentara que ela mudasse de ideias. Argumentava que a promessa não fora correcta; que só jurara por considerá-la tão irrealista que nunca pensara defrontar-se com a obrigação de a cumprir. Confessava que, se tivesse previsto o que ia acontecer, teria rasgado os documentos que tinha assinado no notário, pois se Gabby continuava a não responder ao tratamento, ele continuava a não conseguir imaginar a vida sem ela.

Nunca seria um Kenneth Baker. Não sentia amargura em relação a Gabby, nunca viria a senti-la. Necessitava dela, precisava da esperança que sentia sempre que estavam juntos. Conseguiu ter força graças às conversas com ela. Ainda naquele dia, começara por se sentir exausto e letárgico; à medida que o dia fora avançando, o seu sentimento do dever apenas se tornara mais forte, dando-lhe a certeza de que iria conseguir rir-se juntamente com as filhas, ser o pai que Gabby desejaria que ele fosse. A solução funcionara durante três meses e ele sabia que poderia funcionar para sempre. O que não sabia era como continuar uma vez desaparecida Gabby. Por estranho que parecesse, existia uma reconfortante previsibilidade na nova rotina da sua vida.

Fora da janela, o pombo andava de um lado para o outro, fazendo-o pensar que estava a ponderar a decisão juntamente com ele. Havia alturas em que sentia uma estranha afinidade com a ave, como se esta estivesse a tentar ensinar-lhe qualquer coisa, mas não fazia ideia do que poderia ser. Uma vez tinha trazido um pouco de pão, sem se ter apercebido de que a persiana não lhe permitia atirar as migalhas para o peitoril. Defronte da vidraça, o pombo reparara no pão e arrulhara ligeiramente. Instantes depois, voou para longe, mas regressou e permaneceu ali durante o resto da tarde. Depois desse dia deixara de mostrar medo de Travis, que podia bater no vidro sem que o pombo arredasse dali. Uma situação curiosa que lhe dava algo mais em que pensar quando ficava sentado no quarto silencioso. O que gostaria de perguntar ao pombo seria: Achas que vou tornar-me um assassino?

Era onde os pensamentos o conduziam sistematicamente, o que o diferenciava de outras pessoas encarregadas de cumprir o disposto nos testamentos. Faziam o que deviam, as suas escolhas tinham por fundamento a compaixão. Contudo, para ele a escolha era diferente, mesmo se fundamentada em razões puramente lógicas. A, B e C. Porém, se não tivesse cometido um erro após outro, não teria havido acidente de viação; e sem acidente de viação, não haveria coma. Ele era a causa próxima da lesão, mas ela não morrera. E agora, com a simples exibição de uns documentos legais que trazia no bolso, poderia terminar o trabalho. Conseguiria ser responsável pela morte dela, de uma vez por todas. A diferença punha-lhe o estômago às voltas; a cada dia que passava, à medida que a decisão se aproximava, comia cada vez menos. Por vezes, parecia-lhe que Deus não queria apenas que Gabby morresse, queria simultaneamente que Travis se considerasse inteiramente culpado pela morte dela.

Tinha a certeza de que Gabby negaria. O acidente não passara disso mesmo, de um acidente. E ela, não ele, tomara a decisão quanto ao tempo que pretendia ser alimentada artificialmente. Apesar de tudo, Travis não conseguia libertar-se do peso esmagador da sua responsabilidade, pois ninguém, para além de Stephanie conhecia a vontade de Gabby. No fim de contas, a escolha seria apenas dele.

A luz acinzentada do final da tarde dava às paredes um tom melancólico. Sentia-se paralisado. Para ganhar tempo tirou as flores do peitoril da janela e trouxe-as para a cama. Enquanto estava a sentar-se, depois de colocar as flores sobre o peito de Gabby, Gretchen apareceu à porta. Entrou no quarto com passos lentos; não disse uma palavra enquanto analisava os sinais vitais da doente. Anotou qualquer coisa na papeleta e sorriu ligeiramente. Um mês antes, quando ele estava a fazer o esquema de exercícios de Gabby, esta afirmara estar plenamente convencida de que a enfermeira tinha um fraco por ele.

- Ela vai deixar-nos? - perguntou a enfermeira.

Travis sabia que ela estava a referir-se à transferência para uma casa de saúde; pelos corredores, Travis ouvira cochichar que a transferência estava para breve. Mas a pergunta era mais profunda do que Gretchen poderia talvez perceber e ele não conseguiu reunir forças para lhe responder.

- Vou sentir a falta dela - admitiu Gretchen. - E também vou sentir a sua falta.

A expressão transbordava compaixão.

- Estou a dizer o que sinto. Já aqui trabalhava quando Gabby foi admitida e devia ouvir a forma como ela costumava falar de si. E também das filhas, como é óbvio. Até poderia dizer-se que, embora gostasse do seu trabalho, a parte do dia mais feliz era quando podia ir para casa por ter terminado o turno. Não era como nós, sempre excitadas por termos acabado mais um dia aqui. Ela excitava-se por ir para casa, por ir reunir-se com a família. Era o que mais admirava nela, era o facto de ela ter uma vida assim.

Travis não sabia o que dizer.

Gretchen suspirou e Travis julgou ver o brilho de lágrimas. - Parte-se-me o coração por vê-la assim. E também a si. Sabe que todo o hospital está a par de que, em cada aniversário de Gabby, o marido mandava entregar-lhe um ramo de rosas? Cada uma das mulheres daqui gostaria que o marido ou o namorado lhe desse esse género de prenda. E depois, a seguir ao acidente, a forma como fica junto dela... sei que está triste e zangado, mas eu vi-o fazer os exercícios com ela. Ouvi o que lhe diz e... parece que entre vós existe uma ligação que não poderá ser quebrada. É de partir o coração mas também é belo. E sinto-me tão mal por ambos terem sofrido tanto. Todas as noites rezo por ambos.

Travis sentiu um aperto na garganta.

- Acho que estou a pretender dizer que os dois me fazem acreditar que o verdadeiro amor existe realmente. E que nem as horas mais negras nos conseguem privar dele - concluiu, com uma expressão de quem acha que falou demais, e rodou sobre os calcanhares. Instantes depois, quando ela se preparava para deixar o quarto, Travis sentiu uma mão no ombro. Uma mão quente e leve que pousou por um breve momento. Gretchen saiu e Travis ficou uma vez mais sozinho com a sua escolha.

Chegara a hora. Ao olhar o relógio, sabia que não podia esperar mais, que os outros estavam à espera dele. Atravessou o quarto para fechar as gelosias. O hábito levou-o a ligar o televisor. Mesmo sabendo que mais tarde as enfermeiras o desligariam, não quis deixar Gabby sozinha naquele quarto mais silencioso que uma tumba.

Muitas vezes imaginara-se a explicar como acontecera. Via-se sentado à mesa da cozinha com os pais. "Não sei por que razão ela acordou", ouvia-se a dizer. "Tanto quanto sei, não existe uma explicação mágica. Tudo se passou como nas visitas anteriores... só que ela abriu os olhos". Imaginara a mãe a chorar lágrimas de alegria, vira-se a telefonar aos pais de Gabby. Por vezes, era tudo tão real que parecia ter acontecido de verdade; e ele sustinha a respiração, vivendo, experimentando, a sensação de espanto daquele milagre.

Porém, agora duvidava que tal alguma vez fosse possível e ficou a olhar Gabby, do outro lado do quarto. Quem eram, ele e Gabby? Qual a razão de tudo ter acontecido daquela maneira? Houvera um tempo em que teria encontrado respostas razoáveis para aquelas perguntas, mas esse tempo pertencia a um passado longínquo. Actualmente, não compreendia o que quer que fosse. Por cima da cabeça dele, as lâmpadas fluorescentes zuniam e ele magicava sobre o que deveria fazer. Continuava a não fazer ideia. Uma coisa sabia: Gabby continuava viva e onde há vida há esperança. Olhou-a em silêncio, a tentar perceber como alguém podia estar tão perto, tão presente, e simultaneamente tão longe.

Aquele era o dia da escolha. O que, falando sinceramente, significava a morte de Gabby; dizer uma mentira queria dizer que a vontade de Gabby seria ignorada. Desejava que ela lhe dissesse como deveria proceder e, vinda de algures, de muito longe, poderia imaginar qual seria a resposta.

Já morri, meu amor. Sabes o que tens de fazer.

Mas ele queria argumentar que a escolha se baseara em pressupostos incertos. Pudesse ele recuar no tempo, nunca teria feito tal promessa e até duvidava que ela lhe tivesse pedido aquele juramento. Teria Gabby tomado a mesma decisão se soubesse que ele seria o culpado pelo acidente que a faria entrar em coma? Ou teria ela concluído que ver retirar-lhe o tubo de alimentação artificial e vê-la morrer de inanição significaria a morte de uma parte do marido? E se ele lhe tivesse dito que poderia ser um pai melhor se ela se mantivesse viva, mesmo que nunca viesse a recuperar?

Era mais do que ele conseguia suportar, sentiu-se a gritar mentalmente: "Por favor, acorda!" O eco pareceu fazer vibrar o mais recôndito átomo do seu corpo. "Por favor, amor. Faz isso por mim. Pelas nossas filhas. Elas precisam de ti. Eu preciso de ti. Abre os olhos antes de eu sair, enquanto ainda há tempo...»

Por um instante pareceu-lhe ver um espasmo, juraria que o tinha visto. Estava demasiado sufocado para poder falar, mas, como sempre, a realidade impôs-se e soube que aquilo não passara de uma ilusão. No seu leito, Gabby não mexera um único músculo e, ao olhá-la por entre as lágrimas, Travis sentiu que a alma lhe começara a morrer.

Tinha de ir, mas antes ainda havia mais qualquer coisa a fazer. Conhecia, como toda a gente, a história de Branca de Neve, em que o beijo do Príncipe quebra o feitiço maléfico. Era nisso que pensava todos os dias ao deixar Gabby, mas agora a ideia tornara-se um imperativo. Era a sua última oportunidade. Mesmo sem querer, sentiu uma ténue esperança de que naquele dia seria diferente. Se bem que o seu amor por ela tivesse estado sempre presente, a finalidade não estivera; e talvez a combinação constituísse a fórmula mágica que lhe tinha vindo a escapar. Acalmou-se e caminhou para a cama, a tentar convencer-se de que, daquela vez, o gesto resultaria. Aquele beijo, ao contrário dos antecedentes, levaria a vida aos pulmões de Gabby, que soltaria um gemido, momentaneamente confusa, até se certificar do que Travis estava a fazer. Sentiria a vida percorrer-lhe o corpo. Sentiria a dimensão do amor dele e, com uma paixão que o surpreenderia, começaria a beijá-lo.

Inclinou-se mais para ela, os rostos de ambos quase se colaram, Travis sentiu que o ar expirado por ambos se misturava. Fechou os olhos, recordou-se de um milhar de outros beijos e tocou-lhe os lábios com os seus. Sentiu uma espécie de faísca e sentiu que a mulher voltava lentamente para ele. Ela era o braço que o amparava em períodos difíceis, era o sussurro vindo da almofada ao lado dele, noite após noite. Estava a resultar, pensou, estava realmente a resultar... e enquanto o coração acelerava o batimento dentro do peito dele, começou a aperceber-se de que não se registara qualquer alteração.

Erguendo-se, mais não pôde fazer do que acariciar a face da mulher com a. ponta de indicador. A voz saiu-lhe rouca, pouco mais do que

um sussurro.

- Adeus, meu amor.

 

Até onde se pode ir em nome do amor?

Embora a decisão tivesse sido tomada, Travis continuava mentalmente a debater a questão no momento em que entrou no desvio de acesso à casa. Viu o carro de Stephanie parado em frente à casa que, com excepção das luzes da sala, se encontrava às escuras. Uma casa totalmente vazia seria uma provação insuportável.

O ar frio picou-lhe a pele quando saiu do carro, teve de apertar o casaco. A Lua ainda não se erguera e as estrelas cintilavam no firmamento; se conseguisse concentrar-se ainda poderia recordar os nomes das constelações que Gabby lhe indicara. Sorriu fugazmente ao recordar-se dessa noite. A recordação mostrava-se tão límpida como o céu acima da cabeça dele, mas afastou-a, sabendo que não dispunha de forças para a deixar demorar-se. Naquela noite, não.

O relvado brilhava com a humidade, prometendo uma espessa camada de geada durante a noite. Lembrou-se que tinha de preparar as luvas e os barretes de lã das filhas, para não ter de os procurar à pressa pela manhã. Não tardariam a chegar a casa e, a despeito da fadiga, sentia a falta delas. Abrigando as mãos nos bolsos, correu para a escada da frente.

Stephanie voltou-se ao ouvi-lo entrar. Sentiu que a irmã tentava decifrar-lhe a expressão quando ela começou a caminhar para ele.

- Travis.

- Olá, Steph - saudou. Despiu o casaco, apercebendo-se de que não se lembrava da viagem até casa.

- Sentes-te bem?

Precisou de algum tempo para responder. - Nem sei.

A irmã deu-lhe o braço e falou-lhe com voz amável. - Queres que te prepare uma bebida?

- Um copo de água seria excelente.

Stephanie pareceu sentir-se aliviada por poder fazer qualquer coisa. - Já vem a caminho!

Travis sentou-se no sofá e inclinou a cabeça para trás, sentindo-se tão cansado como se tivesse passado o dia no oceano, a lutar com as ondas. Stephanie voltou e entregou-lhe o copo.

- A Christine telefonou, está um pouco atrasada. Lisa já vem a caminho.

- Está bem - foi a única resposta. Acenou com a cabeça e ficou a olhar para a fotografia da família.

- Queres falar do assunto?

Bebeu um gole de água, só então se apercebendo quanto a garganta estava seca. - Pensaste na pergunta que te fiz? Sobre até onde podemos ir em nome do amor?

Por momentos, Stephanie ficou a ponderar a questão. - Penso que já te dei a resposta.

- Deste. Mais ou menos.

- O quê? Estás a dizer-me que a resposta não foi suficientemente boa?

Travis sorriu, agradecido por a irmã continuar a ser capaz de falar com ele como sempre fizera. - O que eu pretendia realmente saber era o que farias se estivesses na minha posição.

- Entendi o que tu pretendias - respondeu Stephinie, embora de modo hesitante. - Mas, Trav... não sei. Na verdade, não sei. Não consigo imaginar-me a ter de tomar uma decisão dessas e, francamente, duvido que alguém consiga - acrescentou, respirando fundo.

- Por vezes, desejaria que não me tivesses dito.

- Provavelmente não deveria ter-te contado. Não tinha o direito de te impor esse fardo.

A irmã abanou a cabeça. - Não foi isso que quis dizer. Sei que tinhas de falar nisso a alguém e agradou-me que me achasses digna de confiança. O problema foi a revelação ter-me feito sentir terrivelmente mal ao saber o que estavas a sofrer. O acidente, os teus próprios ferimentos, as preocupações quanto às filhas, o coma da tua mulher... e, depois de tudo, seres obrigado a escolher se devias respeitar, ou não, a vontade de Gabby? É demasiado, seja para quem for.

Travis manteve-se calado.

- Ando preocupada contigo - acrescentou Stephanie. - Mal tenho dormido desde que me contaste.

- Desculpa.

- Não tens de pedir desculpa. Eu é que devia pedir-te perdão. Devia ter-me mudado para cá logo que o acidente aconteceu. Devia ter visitado a Gabby com maior frequência. Devia estar por perto sempre que precisasses de desabafar com alguém.

- Não tem importância. Estou contente por não teres desistido do teu emprego. Trabalhaste muito para o conseguir e Gabby também reconheceria isso. Além disso, passaste aqui mais tempo do que eu julgaria possível.

- Mas sinto-me tão triste por tudo aquilo que tens sofrido. Ele pôs-lhe um braço à volta da cintura. - Eu sei. Deixaram-se ficar sentados, em silêncio. Travis ouviu o clique do

sistema de aquecimento e o suspiro de Stephanie. - Qualquer que tenha sido a tua decisão estou do teu lado, quero que saibas que estou do teu lado, entendido? Sei mais do que quase todas as outras pessoas, sei quanto amas a tua mulher.

Travis voltou-se para a janela. Através dela viam-se as luzes das casas da vizinhança a brilharem na escuridão. - Não consegui fazer aquilo - acabou por dizer.

Tentou pôr as ideias em ordem. - Pensei ser capaz, cheguei a ensaiar as palavras que usaria para pedir aos médicos que removessem o tubo de alimentação artificial. Sei que Gabby pretendia que eu o fizesse, mas... no final, não consegui. Mesmo que tenha de continuar a visitá-la na casa de repouso durante o resto da vida, a minha vida continuará a ser melhor do que poderia ser junto de qualquer outra mulher. Amo-a demasiado para a deixar morrer.

Stephanie brindou-o com um sorriso cansado. - Eu sei. Vi tudo na tua cara no momento em que entraste aquela porta.

- Achas que fiz o que devia?

A irmã deu-lhe a resposta sem qualquer hesitação. - Acho.

- Para mim ou para a Gabby?

- Para ambos.

Travis engoliu em seco. - Pensas que ela acordará?

Stephanie olhou-o nos olhos. - Sim, penso que sim. Sempre acreditei nessa possibilidade. Os dois... há algo de misterioso na maneira como se relacionam um com o outro. Tudo, a forma como se olham, a forma como ela se descontrai ao sentir que lhe pões a mão na anca, a maneira como parecem sempre saber aquilo que o outro está a pensar... sempre me pareceu que havia nisso um certo mistério. É uma das razões que me levam a manter-me afastada do casamento. Sei que pretendo uma vida como a que é partilhada por ambos e ainda não tive a certeza de a ter encontrado. Nem sei se alguma vez a encontrarei. E com um amor desses... diz-se que tudo é possível, certo? Amas a Gabby e a Gabby ama-te; quanto a mim, é-me difícil imaginar um mundo em que vocês não vivam juntos. Juntos na verdadeira acepção do termo.

O irmão deixou que as palavras assentassem.

- Ora bem, o que é que se segue? Precisas de ajuda para a queima das últimas vontades dela?

Apesar da tensão, Travis riu-se. - Talvez mais tarde.

- E quanto ao advogado? Não virá importunar-te, pois não?

- Há anos que não sei dele.

- Estás a ver, outro sinal de que fizeste a escolha certa.

- Julgo que sim.

- E quanto a casas de repouso?

- Será transferida na próxima semana. Tenho de tomar as medidas necessárias.

- Precisas de ajuda?

Travis massajou as têmporas, sentia-se insuportavelmente cansado.

- Sim. Seria bem-vinda.

- Eh! - exclamou Stepanhie a abaná-lo um pouco. - Fizeste a escolha certa. Não tens a mínima razão para alimentar sentimentos de culpa. Fizeste a única escolha que podias fazer. Ela quer viver. Ela quer ter a oportunidade de voltar para ti e para as filhas.

- Eu sei. Mas...

Não conseguiu acabar a frase. O passado já não existia, o futuro estava para vir e ele sabia que tinha de se concentrar no presente, embora, subitamente, a vida corrente lhe parecesse sem finalidade e insuportável.

- Tenho medo - acabou por confessar.

- Eu sei - respondeu a irmã, apertando-o mais contra si. - Eu também tenho medo.

 

             Junho de 2007

O cenário tristonho do Inverno dera lugar às cores luxuriantes da Primavera; sentado no alpendre, Travis entretinha-se a escutar os pássaros. Dezenas, talvez centenas, chamavam e chilreavam; de vez em quando, um bando de estorninhos saía da copa de uma árvore e voava em formação, no que parecia ser uma dança estudada.

Era uma manhã de sábado, Christine e Lisa continuavam a brincar no pneu de balouço que, na semana anterior, Travis suspendera de uma árvore. Como pretendia um balouço de curso longo e lento para as miúdas, algo de diferente dos balouços normais, cortara alguns dos ramos inferiores da árvore, de modo a conseguir suspender o balouço o mais alto possível. Naquela manhã, já passara uma hora a empurrar o balouço e a ouvir as filhas soltarem guinchos de prazer; quando decidira parar tinha a camisa colada às costas pela transpiração. E as filhas continuavam a pedir mais.

- Deixem o pai descansar uns minutos. O pai está cansado. Por que não se empurram uma à outra durante algum tempo?

O desapontamento das miúdas, bem patente nos rostos e nos ombros derreados com que receberam a sugestão, só durara alguns minutos. Os guinchos de prazer não tardaram. Travis ficou a vê-las balouçar, de lábios arreganhados num ligeiro sorriso. Adorava o som musical do riso delas e sentia o coração leve ao ver que brincavam tão bem em conjunto. Esperava que conseguissem manter-se tão amigas quanto eram naquele momento. Gostava de crer que, se Stephanie e ele pudessem servir de exemplo, as filhas tornar-se-iam ainda mais ligadas quando crescessem. Pelo menos, alimentava essa esperança.

Aprendera que muitas vezes a esperança é tudo o que resta a uma pessoa e nos últimos quatro meses aprendera a cultivá-la.

Desde que fizera a sua escolha, a vida tinha pouco a pouco regressado a uma certa normalidade. Ou a uma situação parecida. Sempre acompanhado por Stephanie, visitara meia dúzia de casas de repouso. Antes dessas visitas, julgava que todas as casas de repouso eram instalações escassamente iluminadas, lugares imundos, onde os residentes, confusos e queixosos, vagueavam pelos corredores em plena noite, observados por vigilantes que andavam perto da insanidade. Nenhuma das ideias se revelara verdadeira. Pelo menos, nos lugares que visitou na companhia de Stephanie.

Muitas, pelo contrário, eram bem iluminadas, arejadas e dirigidas por mulheres e homens judiciosos, de meia-idade e bem vestidos, que não se poupavam a esforços para demonstrar que dispunham de instalações mais higiénicas do que a maioria das casas particulares e de pessoal educado, carinhoso e profissional. Enquanto Travis passara o tempo da visita a tentar saber se Gabby seria feliz num lugar daqueles ou se seria a residente mais jovem da casa de repouso, Stephanie guardara para si as perguntas difíceis. Queria saber o que havia sobre meios humanos e materiais, bem como sobre os procedimentos de emergência, perguntava directamente quando tempo levavam a satisfazer reclamações; enquanto percorria as instalações ia demonstrando conhecer bem as normas e os regulamentos impostos por lei. Mencionava situações hipotéticas, mas que poderiam acontecer, e procurava saber como é que seriam enfrentadas pelo pessoal e pelo director; perguntava quantas vezes Gabby seria mudada de posição no decorrer do dia, para prevenção de escaras. Por vezes surpreendia o irmão, parecia um procurador a tentar incriminar alguém de um crime, e embora tivesse deixado alguns directores de casas de repouso abespinhados, Travis ficava-lhe grato pelo cuidado que ela punha na selecção. No estado de espírito em que se encontrava, ele mal conseguia pensar, mas percebia vagamente que ela fazia todas as perguntas indispensáveis.

No final, Gabby foi transferida de ambulância para uma casa de repouso dirigida por um homem chamado Elliot Harris, a uns dois quarteirões do hospital. Tanto Travis como Stephanie haviam ficado bem impressionados com Harris e foi ela quem assinou a maioria dos papéis no gabinete da direcção. Insinuou, verdade ou mentira, que conhecia deputados no Parlamento estadual e assegurou-se de que Gabby seria instalada num agradável quarto particular, que dava para um pequeno jardim. Durante as visitas, Travis arrastava a cama para junto da janela e levantava-lhe as almofadas. Imaginava que a mulher apreciava os sons vindos do jardim, onde se reuniam residentes e famílias que marcavam encontro com a luz do Sol. Uma vez, Gabby disse-lhe que tinha estado a flectir as pernas. Também lhe disse que compreendia a escolha e que estava satisfeita por ele a ter feito. Ou, para ser mais preciso, ele imaginara que Gabby o tinha dito.

Depois de ter levado a mulher para a casa de repouso e de ter passado com ela a maior parte da semana seguinte, e de ambos estarem aclimatados ao novo ambiente, regressou ao trabalho. Aceitou a sugestão de Stephanie e começou a trabalhar até ao princípio da tarde, quatro vezes por semana; o pai assegurava o resto do horário. Não se apercebera de quanta falta lhe fazia o contacto com outras pessoas e quando almoçava com o pai conseguia comer quase tudo. Como era óbvio, trabalhar com regularidade obrigava-o a fazer malabarismos de forma a ter tempo para passar junto de Gabby. Depois de as filhas terem saído para a escola, ia à casa de repouso e ficava lá uma hora; depois do trabalho passava outra hora com Gabby, antes de ir para casa esperar a chegada das filhas. A maior parte de cada sexta-feira era passada na casa de repouso e nos fins-de-semana permanecia lá umas horas. Tinha de ajustar-se aos programas das filhas, um pormenor em que Gabby não deixaria de insistir. Em alguns dos fins-de-semana desejavam ir com ele, mas, na maioria dos casos, não queriam ou não dispunham de tempo, pois tinham jogos de futebol, festas ou patinagem. De certa forma, sem a dúvida de saber se Gabby ia morrer ou viver a pairar sobre ele, o maior afastamento das filhas já não o preocupava tanto. As filhas faziam o que tinham de fazer para esquecer o problema e seguiam em frente, tal como ele. Já vivera o tempo suficiente para saber que cada pessoa enfrentava os desgostos de maneira diferente e, pouco a pouco, todos pareciam aceitar as suas novas vidas. E um dia, nove semanas depois de Gabby ter dado entrada na casa de repouso, o pombo apareceu de novo à janela do quarto dela.

A princípio, Travis recusava-se a acreditar, A verdade é que não poderia dizer que se tratava da mesma ave. Quem poderia afiançar tal coisa? Cinzento, branco e preto, com olhos escuros, pequenos e brilhantes; pois bem, sendo por vezes uma peste, os pombos parecem todos bastante semelhantes. No entanto, ao olhar para aquele... sabia que era a mesma ave. Tinha de ser. Passeava para trás e para diante, não mostrando medo de Travis quando este se aproximava da vidraça, além de ter um arrulhar que lhe parecia de certa forma... conhecido. Haveria um milhão de pessoas a dizer-lhe que estava maluco e, em parte, estava pronto a concordar com elas, mas...

Tratava-se do mesmo pombo, por mais louca que a ideia parecesse.

Ficou a olhar a ave, fascinado e espantado; no dia seguinte, levou pão e espalhou migalhas no peitoril. Depois disso, passou a olhar a janela com frequência, à espera que o pombo reaparecesse, mas ele não voltou. Nos dias que se seguiram à visita da ave sentiu-se deprimido pela ausência. Por vezes, nos momentos em que dava largas à fantasia, gostava de pensar que o pombo tinha vindo apenas verificar se Travis continuava a visitar Gabby. Fora isso, mas também poderia ter sido para lhe dizer que não desistisse de ter esperança; e que, afinal, a sua fora a escolha correcta.

Sentado no alpendre das traseiras, a recordar aquele momento, maravilhou-se por ser capaz de observar as filhas nas suas brincadeiras felizes e por ele próprio sentir muita daquela felicidade. Mal reconhecia aquela sensação de bem-estar, o sentimento de que tudo corria bem neste mundo. Teria a aparição do pombo anunciado as mudanças que tinham ocorrido nas suas vidas? Supunha que divagar sobre aquele género de coisas era próprio de um ser humano e via-se a contar o resto da história enquanto vivesse.

Acontecera o seguinte: a meio da manhã, seis dias depois da reaparição do pombo, Travis encontrava-se a trabalhar na clínica. Num gabinete estava um cão doente; noutro, um cachorrinho ãobermann a precisar de injecções. Num terceiro gabinete, Travis estava a suturar um vira-latas, meio labrador, meio golden retriever, que tinha feito um golpe ao saltar sobre arame farpado. Deu o último ponto na sutura, fez o nó e estava prestes a ensinar ao dono a maneira de evitar que o golpe infectasse, quando, sem bater, a assistente irrompeu pelo gabinete. Voltou a cabeça, surpreendido pela interrupção.

- Elliot Harris está ao telefone. Precisa de falar consigo.

- Não pode receber o recado? - perguntou Travis, olhando para o cão e para o dono.

- Diz que não pode esperar. Que é urgente.

Travis pediu desculpa ao cliente e mandou a assistente acabar o trabalho. Dirigiu-se ao seu gabinete e fechou a porta. Viu uma luz vermelha a faiscar no telefone, sinal de que Harris continuava à espera.

Em retrospectiva, não tinha consciência do que esperava ouvir. Contudo, ao levantar o auscultador tivera o pressentimento de tratar-se de qualquer notícia funesta. Era a primeira, e a única, vez que Harris lhe telefonava para a clínica. Tentou acalmar-se e premiu o botão para aceitar a chamada.

-- Fala Travis Parker - anunciou.

- Dr. Parker, fala o Elliot Harris - respondeu o director. Falava com voz calma e indecifrável. -Julgo que devia vir à casa de repouso o mais depressa que lhe fosse possível.

No curto silêncio que se seguiu, um milhão de pensamentos passaram pela cabeça de Travis: que Gabby deixara de respirar, que tinha piorado, que de alguma maneira se havia perdido a esperança. Naquele instante, Travis apertou o auscultador como quem queria afastar o que pudesse vir a seguir.

- A Gabby não está bem? - conseguiu finalmente perguntar, como se estivesse sufocado.

Deu-se outra pausa, provavelmente não durou mais de um segundo ou dois. Um abrir e fechar de olhos, foi a maneira como mais tarde passou a descrever o momento, mas as duas palavras que se seguiram fizeram-no deixar cair o auscultador.

Sentia-se assustadoramente calmo ao sair do gabinete. Pelo menos, foi assim que as assistentes o descreveram mais tarde: não dera a quem olhara para ele qualquer indicação do que acontecera. Disseram que ele passara pelo balcão da recepção completamente alheio às pessoas que o observavam. Toda a gente, desde o pessoal aos clientes que haviam trazido os animais à clínica, sabia que a mulher de Travis estava na casa de repouso. Madeline, que tinha 18 anos e trabalhava na recepção, encarou-o de olhos esbugalhados quando o viu aproximar-se. Naquela altura, praticamente todo o pessoal tinha conhecimento do telefonema da casa de repouso. Nas cidades pequenas, as notícias são conhecidas quase instantaneamente.

- Pode ligar ao meu pai a pedir-lhe que venha para cá? - pediu Travis. - Tenho de ir à casa de repouso.

- É claro que sim - respondeu Madeline, que hesitou: - Está a sentir-se bem?

- É capaz de fazer o favor de me levar lá? De momento, não me julgo em condições de pegar no volante.

- Com certeza - respondeu a jovem, parecendo assustada. - Deixe que faça a chamada primeiro, está bem?

Travis manteve-se de pé, como que paralisado, enquanto ela fazia a ligação. A sala de espera estava silenciosa; até os animais pareciam saber que acontecera qualquer coisa. Ouviu Madeline a falar com o pai dele, como se estivesse muito longe; na verdade, mal tinha consciência do lugar onde se encontrava. Só depois de Madeline ter desligado e dado a informação de que o pai dele já vinha a caminho é que pareceu reconhecer o que o rodeava. Notou o medo no rosto de Madeline. Talvez por ser jovem e mais sincera, fez a pergunta que todos queriam fazer.

- O que é que aconteceu?

Travis reconheceu simpatia e preocupação nos rostos que o rodeavam. A maioria daquelas pessoas conhecia-o há muitos anos, algumas desde quando ele era uma criança. Algumas, principalmente entre o pessoal, conheciam bem Gabby e após o acidente tinham entrado num período que mais parecia de luto. Era e não era problema delas, porque as raízes de Travis estavam ali. Beaufort era a sua casa e, olhando à sua volta, viu na curiosidade geral algo de muito parecido com amor familiar. Contudo, não sabia o que dizer-lhes. Imaginara aquele dia uma centena de vezes, mas agora, subitamente, sentia um vazio. Ouvia a sua própria respiração. Concentrando-se o suficiente, acreditava que até conseguiria ouvir o coração a bater; mas as ideias pareciam demasiado distantes para as poder perceber e principalmente para as expressar por palavras. Não sabia o que pensar. Duvidava que tivesse ouvido Harris correctamente ou se tudo não passara de uma alucinação. Teria percebido mal? Repetiu a conversa mentalmente, procurando significados ocultos, tentando descobrir a realidade por detrás das palavras, mas, por mais que tentasse, parecia não conseguir a concentração suficiente, nem sequer para sentir a emoção que seria natural. O terror não o deixava sentir o que quer que fosse. Mais tarde, diria que se sentira como que sentado numa prancha de balouço, em que a felicidade total estava numa ponta e a perda irreparável na outra, com ele paralisado a meio, com uma perna de cada lado da tábua, a pensar que bastava um simples movimento em qualquer das direcções para o fazer cair.

Apoiou a mão no balcão da clínica para se acalmar e viu Madeline sair de detrás do balcão com as chaves do carro. Olhou à volta da sala, depois para a jovem e finalmente fixou o olhar no chão. Quando ergueu a cabeça, apenas conseguiu repetir as palavras exactas que, momentos antes, ouvira pelo telefone.

- Está acordada.

Doze minutos depois, após trinta mudanças de faixa e a passagem de três semáforos definitivamente amarelos mas talvez vermelhos, Madeline deixou Travis em frente da casa de repouso. Ele não dissera uma palavra desde que entrara no carro, mas sorriu ao agradecer-lhe e ao abrir a porta para sair.

A corrida não fora suficiente para lhe limpar a cabeça. As esperanças dele não tinham fronteiras e sentia-se excitado para lá de todos os limites; ao mesmo tempo não conseguia afastar a ideia de que, por qualquer motivo, teria percebido mal a informação. Talvez Gabby tivesse acordado por um instante e voltasse a entrar em coma; antes de mais, era provável que alguém se tivesse equivocado. Talvez Harris estivesse a referir-se a algum obscuro sintoma clínico que melhorasse as funções cerebrais, em vez do que ele percebera. Ao caminhar para a entrada principal, sentia a cabeça à roda com aqueles cenários alternados de esperança e desespero.

Elliot Harris esperava-o e parecia muito mais confiante do que Travis imaginava que alguma vez pudesse voltar a sentir-se.

- Já chamei o médico assistente e o neurologista, que estarão aqui dentro de poucos minutos - informou. - Por que não sobe ao quarto para a ver?

- Ela está bem, não está?

Harris, um homem que ele mal conhecia, pôs-lhe a mão no ombro, convidando-o a avançar. - Vá vê-la - recomendou. - Ela tem estado a perguntar por si.

Alguém abriu a porta para ele passar; entrou e, por mais que tentasse, nem se recordava se fora homem ou mulher. Umas passadas para a direita conduziram-no à escada; galgou os degraus, a sentir uma crescente incerteza à medida que subia. Chegado ao segundo andar, abriu a porta e viu uma enfermeira e uma auxiliar, que pareciam aguardá-lo. Pelas expressões excitadas delas, partiu do princípio de que o tinham visto aproximar-se e queriam contar-lhe o que estava a acontecer, mas não se deteve e elas deixaram-no passar. Mais um passo e sentiu as pernas prestes a ceder. Encostou-se à parede e tentou recompor-se durante uns instantes; depois continuou a caminhar em direcção ao quarto de Gabby.

Era o segundo, à esquerda, e a porta encontrava-se aberta. Ao aproximar-se ouviu o murmúrio de pessoas que conversavam. À porta, hesitou, desejando pelo menos ter-se penteado, mesmo sabendo que aquilo não tinha qualquer importância. Entrou e o rosto de Gretchen iluminou-se.

- Estava no hospital, junto do médico, quando ele recebeu a mensagem; tive de correr para cá para a ver...

Travis mal a ouviu. Tudo aquilo que conseguiu focar foi a visão de Gabby, a sua mulher, recostada na sua cama de hospital. Parecia desorientada, mas o sorriso com que o presenteou ao vê-lo disse-lhe tudo o que necessitava de saber.

- Sei que os dois têm muito que conversar... - rematou Gretchen ao recuar.

- Gabby - conseguiu Travis murmurar.

- Travis - regougou Gabby. O som da voz era diferente, arranhado e rouco por falta de uso, mas fosse como fosse, não deixava de ser a voz dela. Travis caminhou lentamente para a cama, sem nunca tirar os olhos dos dela, sem perceber que Gretchen já saíra e fechara a porta atrás de si.

- Gabby! - repetiu Travis, quase sem querer acreditar. No seu sonho, ou no que pensava ser um sonho, viu-a levar ao estômago a mão que tinha pousada em cima da cama, como se o gesto tivesse consumido toda a energia que lhe restava.

Sentou-se na cama, ao lado dela.

- Aonde é que estavas? - perguntou Gabby, com palavras que saíam arrastadas mas cheias de amor, claramente cheias de vida. Acordada. - Não sabia onde estavas?

- Agora estou aqui - respondeu Travis, desatando a chorar, com soluços que saíam em arrancos. Debruçou-se para Gabby, sequioso de ser abraçado por ela; quando sentiu a mão de Gabby pousada nas costas, os soluços tornaram-se ainda mais intensos. Não estava a sonhar; Gabby estava a abraçá-lo; sabia quem ele era e o que representava para ele. Aquela era uma cena da vida real, era tudo o que conseguia pensar, desta vez era verdadeira...

Com Travis a não mostrar vontade de sair de junto de Gabby, o pai tivera de o substituir na clínica nos dias seguintes. Travis só recentemente regressara a algo semelhante a um horário completo e em fins-de-semana como aquele, com as filhas a correr e a rir no jardim, e com Gabby na cozinha, por vezes dava consigo a rever pormenores do ano que passara. As memórias dos dias que permanecera no hospital apareciam desfocadas, envoltas numa névoa, como se ele estivesse apenas um pouco mais consciente do que Gabby.

É evidente que Gabby não saíra do coma sem sequelas. Perdera muito peso, os músculos estavam atrofiados e continuava a sentir um certo entorpecimento no lado esquerdo do corpo. Passaram vários dias antes que pudesse aguentar-se de pé sem apoio. A terapia era irritantemente lenta; mesmo agora, tinha de passar várias horas por dia com a fisioterapeuta e, de início, era frequente sentir a frustração de já não lhe ser possível desempenhar tarefas simples, coisas que antes fazia de olhos fechados. Detestava o aspecto ossudo que o espelho lhe mostrava e muitas vezes comentava que parecia ter envelhecido 15 anos. Era nessas alturas que Travis nunca deixava de lhe afirmar que ela era bonita e que nunca afirmara nada com tanta convicção.

Christine e Lisa precisaram de algum tempo para se habituarem. Na tarde em que Gabby acordou, Travis pediu a Elliot Harris que telefonasse à mãe dele e lhe pedisse que fosse buscar as netas à escola. A família reuniu-se uma hora mais tarde mas, quando entraram no quarto, nem Christine nem Lisa mostraram vontade de se aproximar da cama da mãe. Christine só se abriu no dia seguinte, e mesmo assim sem revelar o que sentia, como se estivesse a ver a mãe pela primeira vez. Nessa noite, depois de Gabby ter sido transferida novamente para o hospital e de Travis ter levado as filhas para casa, Christine perguntara se "a mamã tinha mesmo regressado, se não iria voltar a adormecer". Embora os médicos afirmassem ter quase a certeza de que a recaída não iria acontecer, também não negaram por completo a possibilidade, pelo menos durante algum tempo. Os receios de Christine reflectiam os seus, pelo que, sempre que encontrava Gabby adormecida, ou apenas a descansar depois de uma extenuante sessão de fisioterapia, sentia um nó no estômago. A respiração dele tornava-se mais curta e abanava-a gentilmente, sentindo o pânico a aumentar, receando que ela não voltasse a abrir os olhos. E quando, finalmente, ela se espreguiçava, ele não conseguia disfarçar a sensação de alívio e de gratidão. Embora, de início, Gabby aceitasse aquelas manifestações de ansiedade, pois admitia que a possibilidade também a atemorizava, começou a achar que elas estavam a pô-la maluca. Na semana anterior, com a Lua alta no firmamento e as cigarras a cantar, Travis começara a dar-lhe palmadinhas no braço quando estavam deitados lado a lado. Abriu os olhos e consultou o relógio, verificando que passava um pouco das três horas da manhã. Um instante depois, estava sentada na cama, de olhos cravados nele.

- Tens de acabar com isto! Preciso de dormir. Preciso de um sono seguido e regular, como qualquer ser deste mundo! Não consegues perceber que estou exausta? Recuso-me a viver o resto da vida contigo a dar-me palmadas a toda a hora para me manteres acordada!

Os comentários dela não passaram dali; nem poderia dizer-se que se tratara de uma discussão, pois nem teve tempo para responder, antes de ela rolar na cama e virar-lhe as costas, a resmungar; mas tratara-se de uma atitude tão própria de Gabby... que o fez suspirar de alívio. Se ela não se preocupava com a possibilidade de voltar a entrar em coma, e ela jurava que não, então também ele tinha de pensar o mesmo. Ou, pelo menos, deixá-la dormir. Se quisesse ser honesto consigo, diria que o medo nunca desapareceria por completo. Agora, a meio da noite, limitava-se a ouvir a maneira como ela respirava; se notava diferenças no padrão, diferenças que não ocorriam quando ela estava em coma, conseguia rolar para um lado e adormecer.

Todos estavam a ajustar-se e sabia que o processo levaria o seu tempo. Muito tempo. Ainda teriam de falar do facto de ele não ter respeitado a vontade dela e não sabia se alguma vez a questão viria à baila. Ainda não falara a Gabby das longas conversas entre ambos enquanto ela estava em coma no hospital, mas ela também tinha muito pouco a dizer acerca do coma. Não recordava fosse o que fosse: aromas, sons do televisor, as carícias dele. - Foi como se o tempo simplesmente... se apagasse.

Mas tudo corria bem. Tudo corria como devia. Por detrás dele, ouviu abrir-se a porta de correr e voltou a cabeça. Lá longe, via Molly deitada entre a erva alta, ao lado da casa; Moby, velho como era, dormia a um canto. Travis sorriu ao ver a mulher espiar as filhas, reparando no ar de contentamento dela. Christine empurrava o balouço a Lisa e ambas soltavam gargalhadas ruidosas. Gabby sentou-se na cadeira de balouço, ao lado da de Travis.

- O almoço está pronto, mas acho que vou deixá-las brincar mais uns minutos. Estão tão divertidas.

- Pois estão. Antes disso, deixaram-me nas lonas.

- Pensas que mais tarde, depois de Stephanie chegar, podemos ir todos ao aquário? E a seguir, não poderíamos comer uma piza? Morro por uma piza.

Ele sorriu, a pensar que aquele momento podia durar eternamente.

- Excelente ideia. Oh, isso faz-me lembrar que a tua mãe telefonou enquanto estavas no banho. Já estava a esquecer-me de te dizer.

- Telefono-lhe um pouco mais tarde. E tenho também de telefonar por causa da bomba do aquecimento. Na noite passada, o quarto das meninas estava frio.

- Talvez eu consiga repará-lo.

- Julgo que não. Da última vez que tentaste a reparação, tivemos de substituir todo o sistema. Não te recordas?

- Recordo-me de não me teres dado o tempo necessário.

- Pois, pois - zombou Gabby, a sorrir-lhe. - Queres almoçar cá fora ou lá dentro?

Fingiu que queria discutir a questão, sabendo que não tinha a mínima importância. Aqui ou ali, estariam todos juntos. Estava com a mulher e as filhas que adorava; quem necessitaria, alguma vez, mais do que isso? O Sol brilhava intensamente, as flores estavam a desabrochar, o dia passaria com uma facilidade descuidada que seria impossível de imaginar no Inverno que passara. Apenas um dia normal, em que tudo era exactamente como devia ser. 

 

                                                                  Nicholas Sparks

 

 

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