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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


UMA FAMÍLIA PERFEITA / Penny Jordan
UMA FAMÍLIA PERFEITA / Penny Jordan

 

 

                                                                                                                                   

 

 

 

 

 

 

                                       1917

A Primavera tinha sido fria e húmida e já durante o Verão a chuva torrencial arruinara a colheita.

Josiah Crighton estava a limpar a janela completamente suja da carruagem em que viajava, de forma a conseguir contemplar a paisagem, mas fez uma pequena pausa para contemplar o rosto pálido e terno da jovem que se encontrava sentada ao seu lado.

A jovem era sua esposa e dentro de pouco tempo, seria também a mãe do seu filho. Cerrou os dentes ao recordar a fúria do seu pai quando descobriu o que acontecera.

- Por amor de Deus, se querias fazer uma estupidez tão grande, porque raios não o fizeste longe de casa? Em Oxford. Em Londres, no escritório. Certamente que lá tiveste imensas oportunidades para. - o seu pai deixou a frase em suspenso e começou a tocar ritmadamente com os dedos na mesa, enquanto o olhava de uma forma fulminante. - Bem, a verdade é que já não há remédio. Temos de encontrar um marido adequado para esta jovem. Em relação a ti.

- Ela já tem um marido - contrapôs Josiah, calmamente.

O alívio afastou a impaciência e a raiva do seu pai, que suspirou:

- Ela já é casada? Porque é que não me disseste isto antes?

 

 

 

 

Mas voltou a enrugar a testa quando Josiah continuou a olhá-lo, imperturbável, e lhe explicou:

- Nós casámo-nos, pai. Bethany e eu.

Josiah não ficou surpreendido com o alvoroço com que a notícia foi acolhida nem com o consequente exílio para ambos e para as respectivas famílias. A família de Bethany também não tinha ficado propriamente feliz com a novidade. Bethany era filha de um fazendeiro que trabalhara na mansão de lorde Haver. Josiah conheceu-a num dia em que o seu pai a encarregou de levar alguns papéis ao seu cliente. Reconheceram-se de imediato já que tinham passado algumas férias de Verão juntos quando eram crianças e imediatamente recordaram-se também dos jogos proibidos que partilharam nas margens do rio Dee.

Uma coisa levou à outra e, finalmente, o inevitável aconteceu. Quando Bethany Lhe deu a notícia, pálida e assustada, Josiah fez a única coisa que lhe parecia ser honrada, sem se preocupar com o facto de a sua família esperar que ele consolidasse os laços familiares, casando-se com uma prima. Bethany também já tinha um casamento previsto com um parente afastado, um viúvo dono de ricas terras de cultivo e com dois filhos de tenra idade, que precisavam dos mimos de uma mãe.

Sem puderem contar com o apoio familiar e sem o cargo que lhe estava destinado no escritório de advogados da familia, Josiah não teve outra hipótese senão encontrar outra forma de sustentar a sua mulher e o filho que estava a caminho. Assim, alugou uma casa modesta na pequena cidade mercantil de Haslewich, com esperança de que os negócios dos habitantes e da comunidade rural fossem suficientes para sustentar a sua recém-criada familia.

- Tens a certeza de que me amas, Josiah? - perguntou Bethany, chorosa e angustiada, no dia do seu repentino casamento secreto.

Josiah abraçou-a com força, sem ser capaz de responder-Lhe com sinceridade e com receio de mentir-lhe. O passado, repleto de comodidade e estabilidade, ficara para trás. O futuro apresentava-se tão obscuro e tão pouco animador como a paisagem devorada pela chuva. Enquanto voltava a olhar pela janela da carruagem, tentou comparar a vida que deixara com aquela que iria agora começar.

Naquela altura, em Chester, a secretária do seu pai devia estar a servir o chá do meio da tarde. O fogo estaria a arder na lareira do escritório, revestido a madeira, propagando o seu calor. Como sócio mais antigo do escritório de advogados mais prestigiado de Chester, o pai de Josiah era um homem muito estimado pelos empregados e, em particular, pela menina Berry, que protegia a sua intimidade como se fosse um cão de guarda, ao ponto de nunca perder de vista os irmãos mais velhos de Josiah, que também eram sócios da empresa familiar.

A magnífica chaleira de prata em que o seu pai tomava o chá era um presente de um cliente rico, enquanto o belíssimo e original serviço de porcelana de Sèvres tinha sido concebido justamente para ele.

Nos quartos vazios que Josiah conseguira alugar, e que seriam simultaneamente a sua casa e escritório, teria sorte se conseguisse alguma vez desfrutar de um chá a meio da tarde, apesar de não ter nenhuma chaleira de prata para servi-lo nem um serviço de porcelana para bebê-lo.

Enquanto contemplava a paisagem, o seu semblante foi ficando mais carregado. Como o mais jovem dos seus três irmãos, sabia que o seu pai o tinha renegado porque ele era o seu bem menos precioso. Com dois filhos mais velhos, Edwards e Williams, já integrados no negócio familiar, um irmão, uma irmã e uma infinidade de outros familiares, o seu pai podia prescindir facilmente de um filho desobediente. que desonrara a família.

Josiah jamais trataria o seu filho como o seu pai o tinha tratado a ele, decidiu naquele momento, fervorosamente. Queria assegurar que o seu filho tivesse uma herança familiar tão valorizada e respeitada como aquela da qual ele tinha sido expulso. aliás, até queria mais. Enquanto observava o rosto adormecido da sua mulher, Josiah propôs-se a fundar uma dinastia que algum dia iria rivalizar com a do seu pai e com a dos seus irmãos.

Iria rivalizar e superá-la.

 

                                       1969

David Crighton viajava rumo ao norte no descapotável encarnado que o seu pai lhe oferecera, como recompensa por ter concluído a sua licenciatura. Apesar de não ter sido o melhor aluno da turma, pelo menos tinha conseguido terminar os estudos. Girou 6

a cabeça para contemplar a jovem que estava sentada ao seu lado e experimentou uma sensação de imensa alegria.

Tinha-a tirado; quase raptado, a um dos seus amigos, outro membro do grupo de música pop que ele e outros três companheiros tinham formado durante o último ano do curso. Durante vários meses desfrutaram de um sucesso impressionante: um homem gordo e baixo, com uma lustrosa careca e um fato ainda mais lustroso, dirigiu-se aos bastidores depois de uma actuação e ofereceu-se para os ajudar a conseguir um contrato com um dos principais estúdios de música.

Era a época em que jovens desconhecidos se tornavam milionários da noite para o dia, enquanto milhares de jovens admiradoras sussurravam os seus nomes e lançavam gritos histéricos, por isso David e os amigos pensaram que lhes podia acontecer o mesmo. Só que o homem gordo e baixo acabou por ser mais esperto do que parecia e, enquanto eles tentavam coordenar o grupo, ele metia ao bolso grande parte dos lucros.

A única coisa que lhes deixou foi as cópias que sobraram de um disco que não tinha conseguido chegar à lista dos cinquenta mais vendidos e uma factura quase infinita de impostos para pagar.

O seu avô, Josiah, saldou a sua parte da dívida e disse-lhe, furioso, que apenas o fazia para que a família não ficasse desonrada. David não queria saber qual era a razão. Sorrindo de orelha a orelha para o velho senhor, e com uma boa disposição dada pela marijuana, limitou-se a prestar atenção ao sermão do seu avô e depressa voltou para Londres, para perto dos seus amigos e do estilo de vida de que tanto gostava.

Isto acontecera há já mais de dois anos. Naquela altura, gozou com o seu irmão gémeo por este não desejar mais nada além de criar raízes em Cheshire e ocupar um lugar nos negócios da família. mas as coisas tinham mudado.

Voltou a olhar para a jovem que dormia suavemente ao seu lado. Tinham-se casado em Londres há três dias. Na cerimónia, ela vestira o vestido mais curto que alguma vez existiu, deixando visível uma imensidão de pernas bem torneadas, enquanto sorria com os seus olhos de Bambi emoldurados por um cabelo loiro, liso e brilhante. Tinha dezoito anos, feitos recentemente, e era modelo, a mais conhecida, desejada e famosa de Londres. E, finalmente, era só sua. Também estava grávida.

- Mas, como é possível? - questionou quando o médico lhe comunicou o resultado. - Eu estou a tomar a pílula.

- É evidente que a pílula não faz efeito quando fazes amor com um homem tão sensual como eu - disse- lhe David, sorrindo.

Ela recusava-se a partilhar da sua alegria e recordou-lhe que tinha imensos compromissos como mo delo.

Desta forma, eles casaram- se e começaram uma nova vida em Cheshire, mas não apenas porque Tiggy estava grávida. David franziu a testa, mas não fazia sentido continuar a pensar no outro infeliz acontecimento. Cometera um erro e descobriram, mas, como ele próprio dissera ao seu pai em jeito de justificação, outros advogados faziam o mesmo e não

lhes acontecia nada. Não tinha culpa de que o sócio mais antigo do seu escritório fosse tão rígido. Afinal de contas, não fizera nada de ilegal.

 

                                       1996

- Fala-me novamente da tua família e do aniversário que vamos celebrar - pediu Caspar Johnson.

Mesmo depois de estarem juntos há seis meses, o seu sotaque ritmado do outro lado do Atlântico tinha quase o mesmo poder para transtornar os seus sentidos tal como a sua figura corpulenta e máscula de um metro e oitenta e cinco centímetros de altura, pensou Olivia enquanto lhe devolvia o sorriso.

- Continua atenta à estrada - advertiu Caspar. - E não me olhes dessa forma - acrescentou suavemente.

- Ou já sabes que.

A forma como expressava o seu desejo sexual por ela, de uma forma aberta e frequente, era uma das coisas que o distinguia dos outros homens que Olivia conhecera, pensou, enquanto voltava a centrar a sua atenção no intenso tráfego que se fazia sentir na auto-estrada e respondia à primeira pergunta.

- O aniversário - recordou. - Já te contei mil vezes.

- Eu sei - reconheceu Caspar. - Mas gosto de ouvir-te contá-lo, e gosto ainda mais de ver a tua cara quando falas da tua familia. Ainda bem que abandonaste a ideia de te dedicares à magistratura - brincou.

- Os teus olhos iriam trair-te em todas as sentenças. Eles podem ser muito eloquentes.

Olivia Crighton fez uma careta, apesar de reconhecer que Caspar tinha razão. Tinham-se conhecido enquanto ela fazia uma pós-graduação sobre Direito dos Estados Unidos da América. Caspar tinha sido seu professor e, como ela, era filho de advogados e optara por não se juntar ao escritório familiar e seguir o seu próprio caminho. Optara. Talvez Caspar ti vesse tido escolha, mas ela.

Existiam outras razões para que fossem um casal perfeito, apressou a tranquilizar-se, enquanto abandonava aquela perigosa linha de pensamento: iam visitar a família, não desenterrar velhos problemas. E o que os unia não era uma tradição familiar ligada à advocacia, mas sim algo muito mais íntimo. Automati camente, apertou os dedos dos pés, contraiu os músculos da barriga e corou um pouco. a paixão que partilharam na noite anterior tinha sido fantástica.

Já tinham passado dois meses desde que Caspar e ela decidiram ir viver juntos e nenhum dos dois lamentava essa decisão, bem pelo contrário. Mas Olivia não tinha contado à família os seus planos para o futuro com Caspar nem a sua decisão de ir viver para os Estados Unidos com ele. Claro que não esperava que colocassem alguma objecção; como mulher que era, não havia grande problema em prescindirem dela, já que não precisavam dela no escritório da familia, tal como acontecia com os filhos varões.

Caspar passou da alegria à surpresa quando ouviu pela primeira vez a história da familia de Olivia, incapaz de acreditar que eles continuassem a ser regidos por tradições tão antigas. Ele recebera uma educação muito diferente da dela. Os seus pais divorciaram-se quando Caspar tinha apenas seis anos e Olivia acreditava que ele tinha alguns traumas a nível sentimental e, por isso, valorizava tanto o facto de ele expressar o desejo sexual que sentia por ela sem tabus.

Sabia que ele a amava tanto como ela a ele, mas os dois estavam marcados pelas experiências ocorridas na sua infância e, por isso mesmo, ambos se mostravam cautelosos quanto à intensidade das suas emoções. Olivia suspeitava que os dois temiam apaixonar-se mas, apesar de ser ainda muito jovem, já tinha aprendido que era uma tolice reprimir aquilo que sentia. As recordações dolorosas, como os estalos e os pontapés, curavam-se melhor na solidão.

Não tinham feito planos a longo prazo, além de que ela o acompanharia até Filadélfia quando Caspar regressasse ao seu país natal. No que dizia respeito à sua profissão, teria de dar um passo atrás já que teria de voltar a revalidar o seu título, mas Caspar e ela concordavam que o que sentiam um pelo outro era demasiado importante para que não Lhe dessem uma oportunidade. Mas uma oportunidade para quê? Para que o seu amor se consolidasse ou para que se extinguisse?

Olivia não sabia qual das duas possibilidades preferia e acreditava que Caspar também não. Naquele momento, a maior promessa que podiam fazer um ao outro era o desejo de estarem juntos e o facto de que a sua relação era muito importante para ambos.

- Fala-me da tua familia - pediu Caspar, sentado no lugar do pendura do pequeno e robusto Ford de Olivia, que fora um presente do seu avô quando fizera vinte e um anos. Lembrou-se que quando Max, o seu primo mais próximo em relação à idade, atingira a maioridade, o avô tinha-lhe oferecido um luxuoso carro desportivo.

A família. Por onde poderia começar? Pelos seus pais? Pelos seus avós? Ou pelo princípio, pelo seu bisavô Josiah que fundara o escritório da família e se desligara da sua própria família, que vivia em Chester, tendo começado uma nova vida ao lado da mulher que a sua familia tinha desprezado?

- Quantas pessoas vão estar na festa? - a pergunta de Caspar interrompeu os seus pensamentos.

- Não sei dizer-te. Vai depender de quantos primos direitos e primos mais afastados foram convidados. Oh, a família mais directa estará lá: o avô, os meus pais, o tio Jon e a tia Jenny, Max, o meu primo, e a minha tia-avó Ruth. E talvez alguns da parte de Chester - olhou para o sinal da auto-estrada. - Já só faltam duas saídas - disse. - Daqui a pouco estaremos em casa.

Enquanto se concentrava no trânsito, Olivia não se apercebeu da ligeira careta que Caspar fez ao ouvi-la dizer casa. Para ele, a sua casa era onde vivia em cada momento, mas para ela.

Olivia, aquela bonita e inteligente mulher inglesa, começava a significar muito para ele. Em muitos aspectos, parecia muito mais jovem que as suas conterrâneas americanas e, noutros aspectos, muito mais madura. Ao contrário das outras mulheres, Olivia colocava a sua relação com ele acima de tudo e isso era muito importante para Caspar, que passara toda a sua infância a sentir-se como uma batata quente que os seus pais atiravam de um para o outro.

As famílias. sentia um receio instintivo mas, por sorte, seria uma visita breve e logo em seguida Olivia e ele viajariam para os Estados Unidos e começariam uma nova vida juntos. os dois sozinhos.

- Achas que se vai manter o bom tempo? Seria terrível se chovesse, já que vamos montar uma tenda no jardim.

Jenny Crighton tirou os olhos da lista de convidados que estava a rever para sorrir para a sua cunhada.

- Se tivermos sorte, o bom tempo vai manter-se, Tiggy - tranquilizou- a. - E mesmo que assim não seja, teremos aquecimento na tenda e.

- Sim, mas os convidados têm de atravessar o jardim e se não estiver coberto.

- Quando montarem a tenda, vamos pedir para incluírem um corredor até à porta de casa. Assim estará coberto e ninguém ficará molhado - prometeu-lhe pacientemente, como se ainda não tivessem falado daquele assunto milhares de vezes.

Não tinha sido nenhuma surpresa descobrir que, apesar de Tiggy ter passado bastante tempo ao telefone a falar sobre o quão complicado estava a ser organizar a festa conjunta do quinquagésimo aniversário dos seus maridos, era ela, Jenny, quem fizera todo o trabalho. Mas, claro, era assim a sua relação, pensou ironicamente. Tiggy sempre fora a mulher atraente e ela, a trabalhadora.

Todas as pessoas desculpavam as fraquezas de

Tiggy; a mulher de David deslumbrava todos os homens, inclusivamente naquela altura em que ambas já tinham passado dos quarenta, e Tiggy, porque era Tiggy, nunca conseguia resistir à tentação de aproveitar toda aquela admiração. Mas fazia-o sem qualquer malícia, claro. Adorava David, todos sabiam disso, e era óbvio que o sentimento era mútuo.

Jenny ainda se recordava do olhar de orgulho e admiração de David no Verão em que levou Tiggy à casa da sua família e a apresentou como sendo a sua mulher. Todos adoravam David: a sua mãe, os clientes, os amigos, as crianças, toda a gente, mas ninguém o adorava com tanta força nem de forma tão incondicional como o seu marido, Jonathon, o irmão gémeo de David.

Tinha sido ideia de Jonathon celebrarem juntos o aniversário e organizar uma imensa reunião familiar.

- O pai vai adorar a ideia. Já sabes o quanto a família significa para ele - disse a Jenny, ao contar-lhe a sua ideia.

- Pode ser que ele goste, mas irá refilar por causa do dinheiro que gastará - preveniu-o Jenny, com uma certa ironia. - Vai ser caro, se quisermos fazer uma coisa como deve ser.

- É claro que o faremos como deve ser e o pai não se vai importar. como é para David, não faz mal.

- Não - admitiu Jenny, mas teve de virar o rosto para que Jonathon não visse a sua expressão.

Jenny sabia, sem dúvida, porque é que todos tinham tanta consideração por David e porque é que o seu sogro se empenhava tanto para que os gémeos permanecessem unidos e se apoiassem um ao outro ou, melhor dizendo, para que Jonathon apoiasse o seu irmão.

Ben também tinha um irmão gémeo, mas este morrera à nascença e esse facto marcara-o para toda a vida. Jonathon cresceu sabendo que, aos olhos do seu pai, devia considerar-se bastante sortudo por ter o seu irmão gémeo junto a ele.

Só numa ocasião Jenny presenciara o orgulho visível de Ben a transformar-se em decepção, e tal aconteceu quando David abandonou o escritório de advogados, abandonando assim a trajectória que estava traçada para ele desde que nasceu.

- Bem, espero que estejas certa em relação ao tempo - disse Tiggy, consternada. - Os meus sapatos ainda não chegaram, mas eles prometeram- me que os receberia a tempo da reunião. Já é muito tarde para encomendar outros e.

- Vão chegar a tempo. Ainda faltam alguns dias - tranquilizou-a Jenny.

Tiggy tinha sido modelo nos anos sessenta e ainda exibia a mesma beleza de outrora, apesar da mania pelas dietas e a obsessão pela magreza a terem deixado demasiado esquelética, na opinião de Jenny. O seu ar de mulher abandonada, que numa jovem se tornava bastante atraente, quase que se tornava chocante tendo em conta que ela já era uma mulher de quarenta e cinco anos.

Claro que Jenny jamais diria a sua opinião. Tinha consciência do que os outros pensavam acerca da sua relação com Tiggy e sabia que, da mesma forma que achavam que Jonathon tinha inveja do seu irmão, diriam que ela também invejava a sua cunhada.

Os olhos castanhos de Jenny, normalmente doces, reflectiram a dor que sentia, antes que pudesse voltar a concentrar a sua atenção no enorme jardim que se encontrava diante delas. Tinham sido necessárias verdadeiras negociações diplomáticas para convencer o seu sogro, Ben, a permitir que a reunião familiar se realizasse ali.

Ele tinha refilado, tal como Jenny previra, acerca das despesas e do transtorno, mas, certamente, quando chegasse o grande dia, ele iria comportar-se como um anfitrião alegre e paternal e aceitaria os elogios e a admiração dos seus convidados sem qualquer remorso.

Tinham travado autênticas batalhas em absolutamente todas as etapas dos preparativos para o fim- de-semana, mas o mais irónico naquilo tudo é que Ben seria o primeiro a protestar caso o mais ínfimo pormenor não correspondesse às suas expectativas. algo sobre o qual o velho senhor era tão consciente como ela. Mesmo assim, em algumas ocasiões, Jenny viu-se obrigada a jogar sujo, relembrando-o de que tinha de impressionar os parentes de Chester, que ele próprio insistira em convidar.

Claro que Jenny não se importava; pelo contrário, até gostava de enfrentar o seu extraordinário sogro. Apesar de tudo sabia que, apesar de todos pensarem que Ben gostava mais de Tiggy pela sua beleza, no fundo era ela quem tinha ganho o seu respeito.

Sim, os homens respeitavam-na, confiavam nela, recorriam a Jenny em busca de conselhos e mimos, mas não a namoriscavam nem a consideravam uma mulher desejável. Esta situação fazia-a sorrir naquela altura, mas na sua juventude não tinha sido bem assim.

Jenny ainda se recordava do que sentira ao conhecer Tiggy. Jon e ela estavam casados há quatro ou cinco anos e já há dois que tentavam ter um filho, mas sem êxito. Ao ver Tiggy radiante de felicidade; orgulhosa do amor de David e da sua visível gravidez, Jenny sentiu simultaneamente dor e pena de si mesma. Custara-lhe imenso olhar para os olhos de Jon e, quando o fez, viu a expressão distante que ele tinha ao observar a barriga saliente de Tiggy. Nesse instante, Jenny mordeu os lábios, sentindo uma mistura de culpa e desespero.

A alma de Jenny tinha-lhe caído aos pés quando Ben lhes telefonou a convidá-los para irem até Queensmead, para conhecerem oficialmente a mu lher de David. Tal aconteceu num quente e pegajoso dia de Verão, naqueles em que parece que o ar já não tem oxigénio.

O escritório estava a passar por uma fase menos boa e Jon aceitara, sem ripostar, a decisão do seu pai de reduzir-Lhe o salário. O abandono de David diminuíra consideravelmente os lucros do negócio, mas Jenny sabia que Jon não se importava muito com isso. Por sorte, Jenny era uma dona de casa organizada, que poupava dinheiro sempre que podia, não comprando roupa para ela. Por isso sabia que não tinha nenhum vestido minimamente apropriado para a festa nem fora ao copo-de-água tardios que Ben insistira em organizar para os recém-casados. Contudo, depois de rejeitar obstinadamente a sugestão algo hesitante de Jon para utilizar parte das suas poupanças para comprár um vestido novo, Jenny acabou por decidir costurar ela o seu próprio vestido.

- Compra um vestido muito bonito - tentou convencê-la Jon, mas ela fez um gesto negativo com a cabeça e contraiu os lábios, gesto que ele interpretou como sendo de contrariedade mas, na verdade, era a forma que Jenny encontrara para reprimir as suas lá grimas, suscitadas pela mensagem escondida nas palavras de Jon: que ela era tão pouco atraente que precisava de vestir algo muito bonito para chamar a atenção e, pior ainda, que Jon se envergonhava pela sua falta de beleza.

Sentia que o decepcionava não apenas pelo seu aspecto pouco agradável mas também por não ter sido capaz de Lhe dar outro filho. E, pelo contrário, David conseguira logo ter um filho. mas isso era algo que ela não queria reconhecer, nem sequer no seu foro mais íntimo e muito menos diante de Jon. Como poderia fazê-lo? Iria parecer que estava a comparar os dois irmãos e que Jon saía sempre a perder. Não era preciso ser muito inteligente para saber que, aos olhos da familia e de quase todo o mundo, David e Tiggy eram o casal perfeito e Jon e ela, o casal fracassado.

O próprio Ben já dissera maravilhas acerca da excepcional beleza de Tiggy, por isso o nervosismo e uma dor de cabeça provocada pela tensão e pelo horrível vestido, que ela fizera com um pedaço de vestido que comprara no mercado, conspiraram contra ela naquele dia em que fez um sorriso pouco convincente e tentou simular indiferença quando finalmente teve de enfrentar a beleza arrebatadora, elegante e esbelta de Tiggy.

Até mesmo Tiggy não pôde deixar de reparar, como Jenny previra, na humilhante reacção de todas as pessoas quando se apercebessem do quão diferentes elas eram e abriu os olhos de surpresa um instante antes de os baixar, sentindo-se incómoda e incapaz de encarar Jenny enquanto David as apresentava.

David também evitou olhá-la nos olhos. Era evidente que se sentia inchado de orgulho pela admiração que Tiggy despertava nos homens. Todos giravam entusiasmados à volta dela, de forma que David apenas teve tempo de a cumprimentar, porque Tiggy agarrou-o depressa pelo braço e exigiu ser apresentada a todos aqueles homens que se mostravam tão ansiosos por falar com ela.

Ao voltar-se para David, Tiggy elevou o rosto até ele, sorrindo. As suas madeixas loiras reflectiam com a luz do sol e os seus ombros, realçados pelo decote aberto do vestido curto de algodão, pareciam tão frágeis e delicados como os de um passarinho: Jenny contemplou-a, inundada de tristeza, enquanto comparava o seu rosto corado e sem graça com as maçãs do rosto salientes e a exótica beleza de Tiggy.

Todos os detalhes sobre a mulher de David, desde as suas unhas pintadas até às pestanas postiças que, ao contrário dela, Tiggy nem sequer necessitava, mostravam que ela era uma mulher consciente do facto de ser amada e desejada. E porque não o deveria ser? David estava enfeitiçado, loucamente apaixonado; nem sequer conseguia soltar-lhe a mão e, muito menos, afastar-se dela.

Jenny sentiu os seus olhos a inundarem-se de lágrimas, ao sentir pena de si mesma. Até mesmo Jon, geralmente tímido e calado, contemplava Tiggy com um sorriso de admiração, ele que quase sempre ostentava uma expressão séria.

- Jenny, queres ajudar-me com a comida?

Jenny desviou o olhar do grupo de entusiastas que rodeavam Tiggy e voltou-se para a tia de Jon, Ruth.

- Sim, claro - respondeu imediatamente. - A Tiggy é muito bonita, não é? - comentou com um tom de voz baixo, enquanto atravessavam juntas o jardim. Jon nem sequer se apercebera que ela já não estava perto dele. Estava em pé, junto a David, apesar de um pouco mais atrás, como se fosse literalmente a sombra de David. Estaria ele a desejar ter-se casado com uma mulher bonita e alegre, como fizera David, e ser motivo de inveja de todos os outros homens? - David e ela são. o casal perfeito - acrescentou, com a garganta quase fechada. - E nota-se que estão muito apaixonados.

- Sim, estão - afirmou Ruth, mas com um tom mais de ironia do que propriamente de afecto, para grande surpresa de Jenny. - David e Tiggy estão enamorados - explicou a Jenny, ao ver a confusão estampada no seu rosto. - Mas mais por si mesmos do que por qualquer outra pessoa. Pode ser que esteja enganada. Espero sinceramente estar.

Jenny e Jon não demoraram muito a ir embora de Queensmead, a mansão da família, e voltar para casa. Ela ficou ligeiramente indisposta por causa do calor e sentiu-se terrivelmente mal por privar Jon da festa, principalmente quando viu o olhar de pena que Tiggy lhes dirigiu ao despedir-se.

Enquanto se afastavam, ouviu o comentário que Tiggy proferiu a David:

- Não consigo acreditar que Jon e tu sejam gémeos. Ele parece muito mais velho do que tu. Deve ser por culpa da mulher dele, que é um horror.

Um horror. Tiggy não tinha tido intenção de ser grosseira, claro; nem sequer se tinha apercebido de que Jenny a tinha ouvido.

- Penso que é melhor voltar a ligar-lhes, só para certificar-me de que me enviarão os sapatos. Seria terrível que não chegassem a tempo.

- O quê? - murmurou Jenny, enquanto voltava à realidade.

- Os meus sapatos, Jenny - repetiu Tiggy, irritada. Céus, Jenny conseguia por vezes ser tão lenta e enfadonha. Ainda nem sequer falara sobre o que iria vestir na festa. Tiggy oferecera-se para ir às compras com ela, de forma a ajudá-la a escolher algo apropriado mas, como era de esperar, Jenny tinha negado com a cabeça e dito que estava demasiado atarefada. e que encontraria alguma coisa.

Tiggy tinha esperança de que esse alguma coisa, fosse o que fosse, não chegasse a ser demasiado feio. Ela ia usar um vestido de sonho, desenhado por um dos seus estilistas favoritos. David ficara um pouco zangado ao ouvir o preço, mas ela convenceu-o rapidamente. Afinal, tinham convidado a fina-flor da sociedade de Cheshire. Os familiares de Chester tinham excelentes contactos, para não falar de alguns antigos clientes.

Era uma pena que a casa não tivesse um salão de baile. A ideia da tenda era boa, mas. Ficara um pouco chateada quando Jenny se opôs à sua ideia de que todos vestissem branco e preto, pois a Tiggy parecia- lhe que seria muito elegante. Além de realçar o seu tom de pele, o preto favorecia sempre as loiras.

- É muito limitado, muito restrito, Tiggy - protestou Jenny, com a sua voz suave e serena. - Nem todas as pessoas vão querer vestir branco ou preto. Temos de ser práticas.

Era mesmo próprio de Jenny uma afirmação daquele género. Aliás, prática, deveria ser o seu segundo nome. Era um anjo, claro, muito cumpridora e afável e, por estranho que pudesse parecer, estava mais atraente agora que já era uma mulher madura do que quando era jovem. Conseguira manter a figura, apesar de vestir mais dois tamanhos do que ela, e continuava a ter o cabelo castanho, brilhante e encaracolado, se bem que não lhe fazia nada mal ter um corte mais moderno.

Tiggy apercebia-se como Jonathon olhava para elas algumas vezes, sem dúvida a comparar a sua elegância com a falta de gosto de Jenny. Jenny deveria ter mais cuidado com o seu aspecto. Jonathon era um homem bastante atraente, apesar de não ser tão deslumbrante e ofuscante como David. O cabelo loiro de David era mais bonito do que o de Jonathon, cujo cabelo era de um tom mais acastanhado. Apesar disso, os gémeos tinham a mesma corpulência e estatura imponente. Curiosamente, era o físico um pouco menos forte de Jonathon que aguentava mais o peso da idade; David começara a ganhar um pouco de barriga, apesar de o negar e de se recusar a ouvir qualquer comentário acerca da sua condição física.

- Ah, estás aqui.

Jenny sorriu ao ver o seu sogro aproximar-se. Tinha mais de setenta anos, era viúvo e coxeava ligeiramente, uma sequela de uma queda ocorrida há cerca de três anos, quando deslocou a bacia e partiu a perna.

- Queria falar com as duas - anunciou, ao chegar junto a elas.

- Pai, está com um aspecto magnífico - disse Tiggy, que se apressou a levantar-se para lhe dár um rápido abraço e dar-lhe um leve beijo no rosto. Nem sequer podia resistir ao impulso de namoriscar com o seu sogro, pensou Jenny.

Não, não era namoriscar, corrigiu. O que Tiggy fazia, o que queria, era garantir que continuava a ser uma mulher desejável. Coitada. Jenny tentou imaginar como se sentiria se colocasse toda a sua auto estima na instável qualidade que era a beleza. Não era portanto de estranhar que Tiggy estivesse por vezes tão tensa, tão insegura.

- Tania, queria.

- Meu querido, tenho de ir. Tenho tantas coisas para fazer.

O seu sogro era uma das poucas pessoas que chamava Tiggy pelo seu verdadeiro nome e Jenny disfarçou outro sorriso irónico quando viu Tiggy a afastar-se. Sabia porque Tiggy queria evitar a qualquer preço que Ben a interrogasse.

- Ela trabalha muito - comentou Ben, enquanto observava Tiggy a dar a volta à casa, em direcção ao seu automóvel. - Nunca foi muito forte. Ellie disse-me que vêm instalar a tenda amanhã.

- Sim - confirmou Jenny. Ellie era a governanta de Ben. - Vêm por volta da hora de almoço e vão deixar tudo pronto antes que anoiteça.

- Sim. Tudo bem, vamos acreditar que eles não vão destruir a relva. Ruth disse-me que vai ser ela a encarregar-se das flores - acrescentou, referindo-se à sua irmã solteira. - Não deverias ter deixado esse assunto nas mãos de um profissional?

- A tia Ruth é melhor do que qualquer profissional - disse Jenny, calmamente. - Quando faz os arranjos para a igreja.

- Os arranjos para a igreja - disse, com desprezo. mas acabou por abanar a cabeça ao verificar que Jenny não iria permitir qualquer alteração e que estava a limitar-se a ouvi-lo.

Era esse o problema de Jenny: por vezes era demasiado serena e desagradavelmente despreocupada.

- Disseram-me que Olivia virá, acompanhada de um americano.

- É claro que virá - confirmou Jenny. - Afinal de contas, é filha de David. e de Tiggy - mas tinha sido Jenny, a sua tia, a quem tinha telefonado para confirmar que decidira ir viver com Caspar, e a Jenny quem tinha pedido conselhos quando pensou em casar com ele.

- E quem é exactamente esse americano? - perguntou Ben, mudando de estratégia, ao ver que Jenny não picara o anzol e sairia sempre em defesa de Olivia. O Verão estava a ser muito quente e, desde o acidente, o calor fazia-lhe mal. Penetrava nos seus ossos partidos e doloridos e deixava-o mais irritado.

- É o namorado de Livvy - respondeu Jenny.

- Namorado - Ben arqueou as suas sobrancelhas grisalhas. Como os seus filhos, ele também tinha muito cabelo, apesar de, no seu caso, já o ter completamente branco. - Segundo David, ele já tem mais de trinta anos. não é nenhum rapaz. É alguma coisa séria? - perguntou, lançando ao mesmo tempo um olhar penetrante em direcção a Jenny.

- Isso tem de perguntar a Livvy - respondeu Jenny.

Sem dúvida, era um relacionamento bastante sério, já que Olivia confessara à sua mãe que iam partilhar a mesma casa, apesar de David se ter recusado a aceitar.

- David tem razão, claro - tinha dito Tiggy a Jenny, enquanto lhe contava a conversa que tinha tido com a sua filha. - De certeza que Ben não aprovará e irá chatear-nos por termos consentido que ele venha, mas como serão apenas alguns dias.

- Pois. mas naquela idade, alguns dias podem ser uma eternidade. Que disse Livvy?

- Não lhe contámos nada. David achou melhor não o fazermos até cá chegarem. Já sabes como ela é. Às vezes é tão obstinada. - Tiggy fez uma expressão de desagrado. - Lembras-te quando ela decidiu que queria estudar Direito? Todos sabemos que ela apenas o fez porque David e o avô queriam que ela tirasse essa ideia da cabeça até porque, afinal de con tas, ela é.

- Uma mulher - concluiu Jenny, ironicamente.

Pessoalmente, as ideias dos homens da família Crighton pareciam-lhe muito antiquadas e já era hora de alguém as mudar. Talvez Olivia fosse a primeira mulher a fazê-lo, mas não era a única.

Jenny sabia que a sua própria Katie, com a tenra idade de dezasseis anos, já tinha ideias bastante claras em relação ao seu futuro. Era a advocacia ou nada, disse aos seus pais com veemência. Louise, a sua gémea, era menos decidida; apesar disso, não tinha renunciado completamente ao sonho de ser estrela de cinema. Por não ser possível, lá tinha de se contentar com o Direito, dissera sensatamente.

- Mas não gostaria de ficar aqui - disse aos seus pais.

- Nem eu - concordou Katie. Costumava ser sempre ela a tomar a iniciativa e Louise, como o seu pai diante do seu irmão, era feliz ao satisfazê-la.

No entanto, quando nasceram, Jenny propôs-se a não favorecer nenhuma das duas e por isso ambas cresceram a saber que receberiam o mesmo amor e consideração.

- Já sei - disse a sua irmã Louise. - Vamos para Estrasburgo. É lá que se tomam tódas as decisões legais mais importantes sobre os Direitos do Homem.

- O teu pai já sabe disso? - murmurou Jenny ao seu marido. - Por vezes penso que ele tem dificuldades em reconhecer que até Chester tem mais peso no mundo do Direito do que Haslewich.

- Sim. O pai tem muito orgulho na sua terra - reconheceu Jonathon. - Herdou-a do seu próprio pai. A tia Ruth conta que o avô Josiah nunca superou o facto de ter sido repudiado pela familia e que nunca deixou de sentir rancor por eles.

- O teu pai gosta muito de manter as antigas rivalidades. - disse Jenny. - Até fiquei surpreendida por ter convidado os familiares de Chester para o teu aniversário.

- Ah, só fez isso para os impressionar e.

- Da mesma forma que Max quer impressionar o avô e o tio David - interrompeu Katie, mordaz; atirando a cabeça para trás, como sinal de desprezo para com o seu irmão mais velho.

Jenny olhou cautelosamente para o seu marido. Não era segredo para ninguém que Max era o braço direito do avô e do seu tio David.

- Esse rapaz devia ser filho de David e não teu - comentou Ben de forma hostil numa ocasião, durante outra reunião familiar.

Jenny nunca esquecera aquele comentário. Infelizmente, ao que parecia, Max também não o conseguira esquecer.

Apesar de Lhe custar reconhecer, a verdade é que o seu filho era muito vaidoso e essa era uma fraqueza que tinha sido exacerbada por sempre ter sido o preferido do seu avô.

- Max nunca entrará na faculdade de Direito - disse Katie, com um toque mordaz, no dia em que Max cumpriu vinte e um anos e Ben anunciou as as pirações profissionais do seu neto, enquanto lhe dava as chaves do Porsche Carrera que tanto Jonathon como Jenny tinham pedido para que ele não oferecesse.

Mas tinha acabado o curso na faculdade de Direito no ano anterior, com vinte e três anos de idade, porém não quis ser sócio de nenhum dos escritórios londrinos.

Sem qualquer dúvida, recairia no seu filho mais novo a responsabilidade de ocupar o lugar do seu pai no negócio familiar, tal como o seu primo Jack ocuparia o lugar de David, mas ainda faltava muito para que tal acontecesse. Jack tinha apenas dez anos e Joss, oito anos.

Enquanto caminhava pelo relvado na companhia do seu sogro, Jenny admirou a fachada da casa.

Como quinta que fora nas suas origens, tinha a estrutura tradicional de um corpo central e duas alas, uma de cada lado. A fachada traseira, aquela que contemplavam naquele momento, era a mais antiga e contava com enormes vigas de carvalho; a principal, mais moderna, tinha sido feita com pedra de cor clara, extraída da pedreira local.

Alguns não encararam com agrado quando o pai de Ben se mudou para a espaçosa quinta, perguntando- se como seria ele capaz de pagar uma propriedade tão valiosa. Valiosa não tanto pela casa, mas mais pelas terras férteis que a rodeavam. E tudo aquilo pertencera a uma viúva solitária.

Um dia, obedecendo às normas de sucessão que Ben pretendia cumprir literalmente, David, pelo simples facto de ter nascido dez minutos antes de Jon, iria herdar Queensmead, mas Jenny não o invejava. Estava muito feliz com a sua casa, muito mais pequena, localizada no outro lado da cidade. De origem georgiana, tinha anteriormente pertencido à Igreja e Jenny adorava o seu jardim delimitado com muralhas e a sua proximidade com o rio, que fluía para as pradarias vizinhas.

Talvez não invejasse David e Tiggy por Queensmead estar destinada a eles, mas não havia dúvida de que era o cenário perfeito para uma reunião familiar.

No total, estariam presentes mais de duzentas e cinquenta pessoas e mais de cem estavam, de uma forma ou de outra, ligados a eles por laços familiares. Os restantes eram amigos, colegas, clientes ou, em alguns casos, as três coisas. Jenny demorara mais de duas semanas a decidir qual o lugar que cada um ocuparia nas muitas mesas.

Por sorte, Guy Cooke, o seu sócio, tinha sido bastante compreensivo e flexível.

O seu trabalho continuava a ser um motivo de discórdia entre Jenny e o seu sogro. Ela ficou furiosa quando, em vez de falar com ela, Ben tenha ido falar com Jonathon, dizendo-Lhe que não considerava próprio para a família que a sua mulher gerisse um negócio na cidade.

Era verdade que, em termos económicos, não precisava de ganhar dinheiro para sobreviver, mas o trabalho dera-Lhe algo primordial: auto estima. Precisava de ser algo mais do que a esposa de Jonathon, a horrorosa.

A horrorosa. Como aquelas palavras a tinham magoado. E continuariam a magoar?

Não, já não. Na verdade, estava agradecida por ter ouvido aquela frase, já que a obrigaram a superar-se, a olhar para dentro de si, a encontrar algo a que se pudesse agarrar e que a fizesse ficar mais valorizada.

Olhou para o relógio. Jon estava no escritório e Joss ia lanchar a casa de um amigo depois de sair do colégio. Katie e Louise tinham aula de ténis depois das aulas. Tinha algumas horas livres e já há alguns dias que sentia remorsos em relação ao seu negócio.

Ser sócia de uma loja de antiguidades e restauro não era suficiente para ter a aprovação de Ben, mas ela adorava. O que mais a encantava era a parte de restauro, já que até mesmo Guy reconhecera o seu talento para aquela arte.

Ao sair para a rua principal, virou para a direita em vez de virar para a esquerda, ou seja, seguiu em direcção a Haslewich em lugar de ir para a sua casa. Guy dissera-lhe que tinha comprado uma peça em prata e queria que ela desse uma vista de olhos.

Tiggy suspirou aliviada ao verificar que o pátio frontal de Dower House estava vazio. No entanto, David ainda não tinha voltado a casa. Estava a passar mais tempo em Chester do que estava planeado. Cheia de remorsos, abriu o porta-bagagens do carro para tirar as brilhantes malas de plástico e fez uma careta ao pisar a relva, já que sujou com terra os seus sapatos de salto alto de cor pálida e delicada.

Tinha preferido asfaltar o pátio, mas como Dower House era propriedade de Sir Richard Furness e o velho senhor se opunha veementemente a qualquer tipo de mudança, Tiggy sabia que tinha pouquíssimas hipóteses de conseguir fazer desaparecer a maldita relva.

Ao princípio, quando tinham acabado de casar e David anunciou que iriam viver em Dower House, Tiggy pensou que ele estava a brincar.

- Mas, porquê, se vamos voltar a Londres? - protestou.

David, sentindo-se incomodado e ofendido, disse-lhe que já não tinha condições para viver em Londres e que teriam de ficar em Chester, onde ele poderia trabalhar no escritório da família. O ordenado generoso que passaria a receber seria suficiente para conseguir pagar o arrendamento de Dower House.

Naquele dia, Tiggy não tinha dado grande importância ao assunto. Era uma recém-casada, jovem e bonita, e todas as pessoas se desfaziam em atenções para com ela. Passou algum tempo até que começou a sentir-se asfixiada, aborrecida com a vida de mulher de um advogado local, até que esse aborrecimento se transformou em raiva.

Abriu rapidamente a porta principal e foi refugiar-se na sua casa de banho do segundo piso. Estre meceu e os dedos tremiam ligeiramente enquanto desapertava a saia de seda, que enfiou no cesto da roupa suja juntamente com as cuequinhas e o sutiã de seda que também trazia vestido.

A saia tinha de ser lavada a seco e fez uma expressão de desagrado ao ver a pequena mancha no tecido de cor creme. O creme era uma das suas cores favoritas; costumava usá-lo muito. Favorecia-a, pois realçava tanto o seu físico frágil como o seu cabelo claro.

Entrou no duche. Preferia desfrutar de um banho de espuma, mas naquele dia não tinha tempo. David e ela iam sair para jantar e tinha de lavar o cabelo e pintar as unhas. Para além do mais, tinha partido uma. Não conseguia perceber como é que Jenny conseguia viver sem pintar as suas unhas.

Quando saiu do duche e agarrou numa toalha, Tiggy observou o seu reflexo nos espelhos de corpo inteiro que tinha na casa de banho. Era verdade que os seus seios continuavam tão firmes como sempre, o ventre liso, a pele sedosa, mas até quando? Já tinha quarenta e cinco anos e começava a notar uma certa flacidez traiçoeira no rosto e algumas rugas à volta dos olhos. Já fizera um pequeno e discreto lifiing na zona dos olhos ao chegar aos quarenta, mas o resultado não iria durar eternamente.

Tiggy temia ficar velha e deixar de ser bonita e desejável. David costumava gozar com ela mas, claro, ele não a entendia. Como poderia entendê-la? Embrulhada numa toalha, entrou no quarto. Sobre a cama estava o último número da revista vogue. Agarrou-a e observou a modelo da capa.

Tinha sido uma idiota por ter abandonado a sua carreira, mas David parecera-lhe tão interessante, tão divertido, tão sensual. tão diferente dos homens barrigudos de meia-idade que a agência lhe apresen tava. Homens que a olhavam com um olhar ardente e malicioso e queriam tocá-la com mãos ainda mais ardentes e maliciosas.

Saber o quanto David a desejava, o muito que a amava, tinha-a iludido, mas a ilusão não durou muito. Nunca mais.

Questionou a si mesma a que horas chegaria Olivia e como seria o seu namorado. Tinha esperança de que não fosse muito americano ou então Ben não iria gostar dele. Dada a pouca diferença de idades entre elas, era estranho que não fossem mais unidas. As pessoas costumavam comentar que pareciam irmãs em vez de mãe e filha. Tiggy ficara espantadíssima quando Olivia lhe disse que queria estudar Direito. Esperava que ela seguisse os seus passos e se tornasse modelo ou alguma coisa parecida mas, em muitos aspectos, Olivia era uma jovem diferente das outras. Tiggy sempre achara que Olivia passava de masiado tempo com Jenny.

Jack também chegaria a casa no dia seguinte. Tiggy sabia que Ben não aprovara a ideia de o terem enviado para um colégio interno. Jack, como o seu pai e todos os varões da familia Crighton, estudava em King's School, em Chester. Mas, ao contrário dos outros, Jack ficava lá a dormir durante a semana.

Jenny não se importou de levar primeiro Max ao colégio e depois Joss, e inclusivamente oferecera- se para trazer Jack e levá-lo a casa, mas Tiggy tinha as suas próprias razões para preferir não ter o seu filho por perto durante a semana.

Olhou para as unhas, impacientemente. No dia seguinte, tinha marcado hora na manicura no exclusivo salão de beleza do clube de campo próximo de Chester, do qual ela e David se tinham tornado sócios logo após a inauguração. David não costumava usufruir frequentemente das instalações; preferia jogar golfe no mesmo clube do seu pai e irmão.

Bem, que podia vestir naquela noite? Os Bucketon pertenciam a uma antiga familia de Cheshire e tinham excelentes contactos; viviam nos arredores de Chester, numa enorme casa vitoriana com aborrecidas correntes de ar. Além de ser cliente de David, Ann Bucketon era juíza na cidade. Tiggy suspeitava que Ann não gostava muito dela, que teria preferido a companhia de Jenny, mas David era o sócio mais importante do escritório e, como tal, era ele quem tinha a obrigação de fazer o convite.

Jenny deixou o carro no enorme estacionamento municipal dos arredores da cidade. A cidade era bastante antiga; os romanos tinham extraído sal da zona, o mesmo que fizeram outros povos antes e depois deles.

A própria cidade estava construída sobre sal e temia-se que esse facto pudesse produzir aluimentos em algumas zonas, por causa das inúmeras minas abandonadas existentes um pouco por todo o lado.

Para Jenny, Haslewich era tudo o que uma pequena cidade inglesa devia ser: uma mistura harmoniosa e ordenada de edifícios construídos, em algumas ocasiões, por cima de outros; estranhas construções georgianas e bonitas casas de pedra, que competiam naquele espaço com outras já feitas com tijolo.

A loja de antiguidades localizava-se numa rua estreita que saía de uma praça, num bonito edifício da época georgiana com fachada dupla. Quando entrou, Guy Cooke estava a organizar algumas delicadas estátuas Staffordshire. Levantou os olhos e, ao vê-la, deixou o que estava a fazer para se aproximar e saudá-la com um sorriso afectuoso.

Era pelo menos quinze anos mais novo do que Jonathon e era dono de um físico completamente diferente. Enquanto Jon era alto e loiro, com pernas e braços largos, Guy era mais baixo, mais largo, tinha o cabelo negro e a pele morena.

Numa ocasião, contou a Jenny que, segundo se dizia, a sua familia tinha sangue cigano e bastava olhar para ele para que Jenny acreditasse nessa suspeita. Há sete anos que eram sócios, mas já eram amigos há muito mais tempo.

Guy sempre tivera gosto artístico", como ele próprio se descrevia, ironicamente. No entanto, os seus pais sempre fizeram o possível para reprimir aquele gosto indesejado, que já tinha sido uma desgraça com outra filha, mas sendo com um filho homem era totalmente inaceitável. Os Cooke como clã eram completamente machistas; os seus varões fortes de cabelo negro e aspecto viril conheciam a posição que ocupavam na sociedade e o que significava ser homem e, mais importante ainda, ser um Cooke.

Mas, no caso de Guy, não era bem assim. Ele queria algo diferente da vida; ele era diferente.

- Lamento não ter aparecido muitas vezes ultimamente - desculpou-se Jenny, movendo a cabeça com um sinal negativo quando Guy lhe ofereceu uma chávena de chá.

- Como vão as coisas? - perguntou.

- Bem. acho - disse Jenny, rindo. - Tiggy e eu estivemos esta manhã em Queensmead, para acertarmos os últimos detalhes.

- Queres dizer que tu estiveste a acertar os últimos pormenores - corrigiu Guy.

Jenny arqueou as sobrancelhas. Não era segredo para ninguém que Guy não gostava da sua cunhada, apesar de ser um pouco estranho, já que Guy era facilmente impressionável por tudo o que era belo, e Tiggy certamente que o era.

Tiggy também não gostava dele. Na verdade, algumas vezes fizeram comentários pouco agradáveis devido ao facto de ele ser solteiro.

Jenny ria às gargalhadas quando ouvia essas insinuações. Havia alguns homens mais masculinos que Guy e, apesar da sua preferência sexual não ter a mínima importância, a única razão pela qual não se casara foi por nunca ter tido vontade de ficar limitado a uma só mulher. Ao menos em relação à sua sexualidade era muito parecido com o clã Cooke e não Lhe faltavam mulheres à sua volta.

- Onde está a peça de prata que me querias mostrar? - perguntou.

- Ah, é verdade. Creio que é da época da rainha Ana, mas tu é que és especialista em prata. Tenho-a no cofre.

Já tinha passado mais de uma hora quando Jenny saiu da loja. Tal como Guy, estava convencida de que a peça era genuína apesar de, como tinha referido, a ausência de marcas identificadoras pudesse significar que fora roubada em algum momento da História.

Depois de sair da loja, atravessou a praça. Restava-lhe tempo suficiente para visitar Ruth. A tia do seu marido vivia numa pequena e elegante casa georgiana, próxima da igreja. Para lá chegar, Jenny passou pelo cemitério e parou diante das campas dos Crighton. Inclinou-se até uma pequena campa, com anjos sorridentes, com ar traquina. O epitáfio dizia: Harry Crighton, 19 de Junho de 1965 - 20 de Junho de 1965".

O seu primeiro filho apenas vivera um dia, mas ela sempre chorara a sua morte e iria continuar a fazê-lo. O tempo suavizara a dor, mas jamais conseguiria esquecer o seu bebé nem queria fazê-lo. Antes de ir embora, tocou na lápide, quase como se estivesse a acariciá-la, e pronunciou o seu nome.

Ruth já estava à sua espera à porta, quando ela se aproximou.

- Vi-te no cemitério - disse a Jenny. - Teria completado trinta e um anos se estivesse vivo.

- Eu sei - durante um instante, as duas mulheres ficaram caladas. Se ter Ben como sogro era muitas vezes um inconveniente, contar com Ruth na familia era, sem dúvida, a maior e melhor compensação.

- Tens tempo para um chá? - perguntou Ruth.

- Não - respondeu Jenny, com ar pesado. - Mas adorava tomar uma chávena.

- Então, entra - convidou Ruth e, enquanto Jenny a seguia pelo bonito salão da parte frontal da casa, aproveitou para observar as flores que enfeitavam a lareira vazia.

Ruth tinha um dom especial não apenas para fazer arranjos de flores, mas também para cultivá-las.

- Pieter irá trazer as flores no próprio dia da festa - disse a Jenny, ao aperceber-se da direcção do seu olhar. - Vai chegar no primeiro barco da manhã. As flores serão frescas e ele já sabe aquilo que queremos.

Ruth comprava as flores a um comerciante dinamarquês cujo filho atravessava o Mar do Norte até Hull uma vez por semana para entregar as encomendas de flores aos seus clientes mas, para a festa daquele fim-de- semana, Pieter tinha concordado em fazer uma viagem excepcional para levar a Ruth as flores que ela pedira justamente para a ocasião.

- Ben está a deixar-te louca, não está? - perguntou a Jenny.

- Só um bocadinho - admitiu Jenny. - Tem dores na bacia, apesar de não o admitir.

Meia hora depois, quando Jenny se foi embora, Ruth observou como ela voltava a atravessar o cemitério e parava novamente em frente à campa do seu primeiro filho.

Sabia o que Jenny sentia. Havia feridas que não se curavam nunca, coisas que era impossível esquecer e nem sempre era verdade que o tempo curava tudo.

 

- Jon, tens um minuto?

Jonathon levantou os olhos da mesa quando o seu irmão gémeo entrou no seu escritório, e franziu a testa ao ver que David esfregava o ombro.

- Aconteceu-te alguma coisa? - perguntou.

- Não, dói-me um pouco, nada mais. Fiz um estiramento no domingo a jogar golfe. Escuta, hoje vou sair mais cedo. Temos de jantar com os Buckletone. não há nada urgente aqui.

Não, seguramente não havia nada urgente, além dos dois testamentos que tinha de voltar a escrever, a transmissão de propriedade da quinta Hawkins e um sem-número de complicados e trabalhosos problemas que ultimamente acabavam sempre na mesa de Jon porque o seu irmão nunca tinha tempo para eles.

Nunca esteve previsto que os dois acabassem por trabalhar no escritório da família. David sempre estivera destinado a alcançar um cargo muito mais elevado na sua profissão, como ser advogado de um tribunal superior e, muito antes dos dois terminarem a faculdade, o seu pai já começara a falar do dia em que David seria conselheiro da rainha.

Tudo isso mudou, porém, no Verão em que David regressou a Haslewich com Tiggy para anunciar que os dois se tinham casado e que Tiggy estava à espera de um filho seu. Ninguém comentou que David tinha defraudado as esperanças do seu pai ao não continuar na faculdade de Direito, da mesma forma que ninguém falou das dívidas que David acumulou em Londres durante a sua estada na cidade nem do revelador odor que encheu o quarto onde David e Tiggy ficaram em Queensmead até encontrarem uma casa.

Imediatamente tudo foi preparado para que David se juntasse ao escritório, apesar de não o fazer como advogado em exercício, já que não o era. Jon pensava que já ninguém se lembrava disto, depois de tanto tempo. Como filho preferido, logo em seguida se deu como certo que David seria o sócio mais importante do escritório e Jonathon, porque era Jonathon, nunca fizera nada para destronar o seu irmão. O mesmo aconteceu com David, porque era David, já que ele nunca fez nada para fazer justiça ao trabalho de Jon.

Enquanto olhava para o seu irmão gémeo, naquele momento apercebeu-se dos sinais que o peso dos anos estava a deixar no seu aspecto físico, a pele áspera do seu rosto, que antes era bronzeada e lisa, a sua incapacidade de fixar o olhar, a flacidez de um corpo que costumava ser tão musculado como aquele que Jon ainda ostentava. Mas todas aquelas fraquezas apenas serviam para que Jon gostasse ainda mais do seu irmão. Era um amor intenso e protector que, por vezes, até lhe doía. Jamais sonharia em dizer ao seu irmão gémeo ou a qualquer outra pessoa aquilo que sentia, e instintivamente sabia que David não Lhe correspondia com uma emoção igualmente intensa e profunda.

- Parece que o bom tempo vai manter-se até ao fim-de-semana - comentou David, enquanto se dirigia para a porta. - As raparigas vão ficar contentes. Ah, é verdade, Max ligou-me outro dia. Disse-me que amanhã virá de carro desde Londres.

- Sim - concordou Jon. Max era seu filho, mas era a David quem tratava como pai. Segundo as suspeitas de Jon, David também gostaria de o ter como filho. Max herdara a mesma personalidade extrovertida e quase escandalosa de David, as suas necessidades, a mesma vontade de possuir e alcançar a fama, os mesmos dotes. e as mesmas fraquezas. Jon começou a franzir a testa.

- Livvy vai chegar esta noite - continuou David e, nesse momento, também ele estava a franzir a testa. Vem com um americano. Não sei se. Bem, é melhor ir-me embora - apressou-se a dizer a Jon quando o telefone começou a tocar. - Prometi a Tiggy que não chegaria tarde e ela já está um pouco nervosa por causa de uns sapatos que comprou para sábado e que ainda não chegaram. Já sabes que isso é o suficiente para ela ficar alterada.

Desde a janela do seu escritório, Jon podia ver a pequena praça da cidade, com o seu jardim bem tratado. Podia ver Jenny, a sua mulher, a atravessar a praça de regresso ao seu carro. Parou para falar com David. Era evidente que David também a tinha visto, porque apressou o passo para alcançá-la. Jon viu como ela sorriu ao saudar o seu irmão, enquanto o sol da tarde fazia reflectir o seu cabelo. Há muitos anos atrás, tantos que quase todos já se tinham esquecido, Jenny tinha sido namorada de David.

O telefone estava a tocar outra vez. Jon desviou o olhar da janela e esticou o braço para o atender.

- O que há para o jantar?

Jenny sorriu para o seu filho mais novo. Aos quarenta anos, pensava que já estava demasiado velha e precavida para ter outro filho, mas a natureza encarregou-se de demonstrar-lhe o contrário.

Jon ficara estupefacto ao ouvir a notícia e ela sentiu-se desconfortável e nervosa ao contar-lhe.

- Estás grávida? Como é que é possível?

- Foi no nosso aniversário de casamento - recordou Jenny. - Íamos sair para jantar mas acabaste por ficar mais tempo no tribunal e jantámos em casa. Abrimos uma das garrafas que o tio Hugh te ofereceu.

- Ah, sim - recordou-se Jon. - Esse vinho era fantástico.

- Era um vinho já antigo - interrompeu Jenny, de forma severa. - E não devíamos ter aberto mais do que uma garrafa. Foi culpa minha. Não me passou pela cabeça tomar precauções.

O que não disse é que o sexo entre eles se tinha transformado em algo tão raro que o seu diafragma estava guardado e esquecido no fundo da gaveta da sua cómoda. Tinham um casamento confortável e estável e, ao contrário de David e Tiggy, não costumavam dar sináis de carinho em público e, provavelmente devido ao rumo das suas vidas, deixaram também de demonstrar afecto em privado.

No entanto, enquanto Jenny olhava para o resultado das garrafas de vinho e do seu descuido, reconheceu que não se arrependia absolutamente nada daquele deslize.

- Cordeiro com batatas - disse a Joss, a quem tinham dado o nome do seu bisavô paterno. - Mas lembra-te - acrescentou em sinal de aviso. - Os trabalhos de casa primeiro.

- Quando é que Livvy volta? - perguntou, sem se preocupar com o aviso da sua mãe. - Prometeu voltar para casa.

- Hoje ao final da tarde - respondeu Jenny. - Mas lembra-te, Joss, ela vem com um amigo e não terá tempo para passear pelo campo contigo.

- Os filhotes dos texugos aparecem ao anoitecer. Ela deve querer vê-los.

Jenny sorriu para si mesma ao ouvir a convicção na voz do seu pequeno filho. Certamente será um quebra corações quando se tornar mais velho. Por artes mágicas, herdou o melhor dos genes do seu pai e do seu tio". A confiança e a extroversão de David estavam suavizadas e sustentadas pela personalidade precavida de Jon, e o pequeno também exibia um óptimo humor e espontaneidade. além de um imenso amor pela vida e por todos os que o rodeavam.

- Max volta amanhã - recordou. - Como sei que ainda não tiraste as tuas coisas do quarto dele, sugiro que o faças hoje à noite e, já que tocámos no assunto, quero dizer-te que o quarto do teu irmão não é o lugar mais indicado para desmontares a bicicleta - advertiu-o severamente.

Joss lançou-lhe um olhar inocente.

- Não podia fazê-lo noutro sítio - respondeu de forma encantadora. - Não há espaço livre na garagem...

E a verdade é que nada lhe dava mais prazer do que pôr à prova a paciência de Max, mas Max não era como Olivia, tolerante para com o seu primo mais novo e sempre disposta a passar um bocado a brincar com ele.

Max mostrou-se horrorizado quando Jenny Lhe disse que estava grávida e tinha transferido esse desagrado e essa repugnância pela gravidez para o seu irmão mais novo.

- Era muito melhor se Max ficasse na casa do tio David e Olivia dormisse aqui - refilou Joss.

Jenny lançou-lhe outro olhar de aviso e falou novamente com um tom de voz severo:

- Os trabalhos de casa - mas sabia que havia uma certa verdade nas suas palavras.

Max preferia a companhia dos seus tios, enquanto que Olivia. Livvy era um anjo e Jenny gostava tanto dela que esperava que o jovem americano, quem quer que fosse, tivesse noção da sorte que tinha.

Max fez uma careta quando a porta do escritório se fechou atrás das costas de um dos empregados. Eram seis da tarde de sexta-feira e ainda tinha à sua frente algumas horas de trabalho. Contemplou com contrariedade os papéis que Bob Ford acabara de pousar sobre a sua mesa.

Não era nenhum segredo que ele não era um dos favoritos do tal empregado, um facto que remontava aos seus primeiros dias de formação no escritório, quando Bob o ouviu a imitar a forma como ele gagueja quando está sujeito a muita pressão.

Max encolheu os ombros.

Tinha herdado a estatura e a constituição forte do pai e do tio e o rugby praticado primeiro em King's School e depois em Oxford tinham desenvolvido o físico poderoso que tanto o orgulhava.

Gostava de ver como as mulheres voltavam a cabeça, às vezes de forma discreta, outras nem tanto, para admirá-lo. Também gostava de ver a inveja nos olhos dos outros homens quando ficava nu nos balneários, depois de uma partida de squash ou de rugby. O seu aspecto conferia-lhe vantagem sobre os outros e, como Max bem sabia, as vantagens eram necessárias para ganhar o jogo da vida. E Max pretendia ser um vencedor. Não queria, como o seu pai, conformar-se com um segundo lugar. Não, Max apenas tinha de observar o seu tio David para saber o que deveria fazer.

Não se recordava quando se tinha apercebido pela primeira vez da forma diferente como as pessoas tratavam o seu pai e o seu tio, mas lembrava-se de ter pensado que queria ser recebido e tratado como o seu tio.

O desejo de ter tido David como pai chegou mais tarde. Ficou feliz quando David começou a tratá-lo mais como um filho do que como um sobrinho e aproveitou, relegando Olivia para um segundo lugar no que diz respeito ao amor da sua mãe. Foram David e o seu avô quem o animaram e incentivaram quando decidiu querer formar-se como advogado de tribunais superiores.

- Terás de acabar a tua licenciatura com uma boa média - advertiu o seu pai. - E nem mesmo assim terás uma vida fácil.

- Não o desanimes - interrompeu o seu avô. - Já é altura de termos um conselheiro da rainha na nossa parte da familia.

- Bem, sem dúvida, é com isso que sonho - garantiu Max, com a intenção de tirar partido do bom humor do seu avô. - Mas não vai ser assim tão simples. Quando estiver em Oxford, não poderei trabalhar, nem sequer em tempo parcial, se quiser tirar boas notas, e a minha bolsa de estudos. Além disso, terei de trocar o meu velho carro por outro.

Como imaginara, o seu avô não o decepcionou.

- Bem, tenho a certeza de que poderemos resolver isso. Tens direito a algum dinheiro que a tua avó te deixou e quanto ao carro. Não vais atingir a maioridade daqui a pouco tempo?

Mais tarde, ouviu os seus pais comentarem o sucedido.

- Está a acontecer o mesmo que aconteceu ao David - ouviu a sua mãe dizer, furiosa. - E Max manipula-o.

- Eu sei, mas o que é que podemos fazer? - disse o seu pai em voz baixa. - Já sabes como é o meu pai.

O problema da sua mãe é que ela era demasiado moralista, concluiu Max mas, claro, tinha de haver mais qualquer coisa. Afinal, não era tão atraente como a mulher de David, Tiggy, o género de mulher que fazia com que todos os homens parassem no meio da estrada para admirá-la, o género de mulher pela qual um homem invejava outro. Na verdade, ainda se lembrava do ano em que David e Tiggy assistiram a um evento desportivo no seu colégio, no lugar dos seus pais.

O velho Harris, o treinador de desporto, ficou corado como um tomate e comportou-se como um imbecil quando Max lhe apresentou Tiggy. Max divertiu-se, imaginando Harris a masturbar-se na intimidade do seu apartamento alugado enquanto relembrava o encontro. Era um tipo patético. Max apostava qualquer coisa em como ele nunca tinha estado com uma mulher. Ao contrário de Max, que perdera a vir gindade aos catorze anos com a ajuda providencial, muito providencial, de uma jovem que trabalhava atrás de um balcão num bar onde se reuniam todos os jogadores da equipa depois dos jogos de sábado de manhã.

Escondido numa ruela de Chester, o local tinha um aspecto abandonado e era isso que o atraía e afastava simultaneamente. Para começar, era o género de local que o seu respeitável pai jamais frequentaria, e em relação à sua mãe. Mas Max gostava de estar ali. Também desfrutou do cheiro a suor e a terra da jovem, que o levou até ao seu quarto e deixou que a beijasse e tocasse durante vários minutos antes de empurrá-lo e ordenar-lhe que esperasse enquanto ela se despia.

Foi a primeira vez que viu uma mulher nua ao vivo e ela não mostrou qualquer tipo de inibição, inclusivamente riu-se ao inclinar-se sobre a almofada e abrir as pernas para convidá-lo a ver o que havia entre elas.

- Aposto que é a primeira vez que observas, não é? - perguntou, sorrindo, ao mesmo tempo que tocava nos pêlos negros e ásperos e afastava os lábios grossos e carnudos que estavam por baixo. - Sabes o que é isto? - perguntou, enquanto Lhe ordenava que a observasse e descobrisse o pequeno buraco.

- É claro que sei - respondeu Max, com ar sabedor.

- Fantástico - anunciou a jovem. - Então sabes o que tens de fazer, certo?

Max sem qualquer dúvida sabia o que tinha de fazer, mas ela rapidamente o desiludiu.

- Meu Deus, és um bocado bruto - queixou-se. Não é como os cavalos. Além disso - acrescentou, com malícia. - Funciona muito melhor se o chupares

- desatou a rir, ao ver a sua expressão. - Nunca tinhas estado com uma rapariga, não é? Pois chegou a tua oportunidade.

Não deixou que ele a penetrasse até ter tido o seu primeiro orgasmo e para isso. Ela riu-se novamente quando Max não foi capaz de reprimir-se nem de controlar a excitação quando um enorme jacto de sémen saiu disparado da sua erecção. Mas. não se riu depois quando ele a penetrou e continuou a penetrá-la, cada vez com mais força, e ela começou a gemer e a cravar as unhas nas suas costas. Gemeu como as gatas durante o orgasmo, enquanto ele continuava a penetrá-la, e Max recusou- se a parar enquanto ela não teve outro e logo outro de seguida. Nunca mais a tinha voltado a ver desde esse dia. Não tinha feito falta.

Recordava o desagrado e a surpresa com que recebeu a notícia de que a sua mãe estava grávida, por saber que os seus pais faziam amor.

Também se recordava de como ficara furioso um dia em que os seus pais assistiram a uma festa da escola e todos viram a sua mãe com uma grande barriga de grávida. Não tinha direito, naquela idade. Era uma aberração.

Max apertou os lábios ao pensar nos seus pais; às vezes, quando a sua mãe o observava, via nos seus olhos.

A sua mãe estava louca se pensava que ele ia acabar como o seu pai, um escravo que trabalhava num escritório com pouca visibilidade numa pequena cidade perdida no mapa. Se não fosse pelo seu tio David e pelo seu carisma, o negócio já teria fechado há muitos anos. Só porque o seu tio tinha cometido um erro tolo...

Max não pensava cometer o mesmo erro. Sim, pretendia desfrutar da vida, mas também planeava não cair na mesma armadilha do seu tio.

Max garantira a saída de Oxford com uma boa nota para ingressar num bom escritório de advogados e passar nos exames de entrada na Ordem dos Advogados. Em seguida, não apenas teria chamado a atenção daqueles que podiam ajudá-lo no seu futuro profissional, como também teria procurado que a sua vida não fosse apenas ligada ao trabalho. Porém, ao contrário do seu tio, ele era discreto e precavido.

- Ainda por aqui, rapaz? Pensava que querias sair cedo.

Max ficou tenso quando Roderick Hamilton entrou no seu escritório. Roderick era apenas um ano mais velho do que ele. Tinham estado ao mesmo tempo em Oxford mas não se movimentaram pelos mesmos círculos. Os pais de Roderick eram imensamente ricos e frequentavam a alta sociedade. O seu tio era o director do escritório, razão pela qual Roderick fora eleito para substituir um dos sócios depois da sua formação como estagiário, enquanto Max tivera de sofrer e ficar como mero aspirante a advogado. Tal significava que o único trabalho remunerado que Max podia fazer era aquele que os sócios do escritório Lhe cediam, incluindo Roderick.

Max nunca sentira a necessidade de travar amizade com nenhum homem. Na sua opinião, os colegas eram rivais, obstáculos a derrubar mas, no caso de Roderick, Max sentia uma imensa aversão contra ele.

- Pois. O caso Wilson. Que pouca sorte - lamentou Roderick, enquanto pegava nas folhas que estavam em cima da mesa de Max, dava-Lhes uma vista de olhos e voltava a pousá-las. - É uma pena que não estejas livre este fim-de-semana - acrescentou. - A minha mãe organizou uma festa para a minha irmã. Vai ser a sua apresentação à sociedade e a minha mãe pediu-me para reunir alguns homens.

Max não tirou os olhos dos papéis que fingia estar a estudar naquele momento. Sabia perfeitamente que Roderick tentava divertir-se às suas custas. À sua mãe jamais lhe passaria pela cabeça receber algum convidado adicional e indesejado no prestigiado baile que estava a organizar para apresentar a sua filha à sociedade.

- Temo que isso seja impossível - respondeu, sem olhar para Roderick. - Este fim-de-semana é o aniversário do meu pai.

- Ah, já sabes do caso do velho Benson, suponho

- comentou Roderick, mostrando aquele que era, sem dúvida, o motivo da sua visita.

Apesar de não olhar para ele directamente, Max notou como o seu corpo lutava para reprimir a raiva que sentia.

- Sim, já ouvi falar.

- Quando me for embora, vai ficar um lugar vago no escritório - disse Roderick, desnecessariamente.

- Sim - respondeu Max com indiferença, mas consciente de que tinha de dizer alguma coisa.

- Vais candidatar-te?

Max notou que ele começava a perder o controlo.

- Ainda não me decidi - mentiu.

- Bem, eu, no teu lugar, candidatar-me-ia, velho amigo - comentou Roderick. - Até porque hoje em dia não é assim tão fácil ser sócio de um escritório e

já percebi que este lugar te suscita bastante interesse. Além disso, formaste-te aqui e já estás no escritório

como estagiário. deixa- me pensar, já passou mais de um ano, não já? Meu Deus, como o tempo passa

depressa! Bom, é melhor ir-me embora. Prometi à minha mãe que hoje voltaria cedo. Boa sorte com o caso Wilson - disse com um tom de voz calmo, enquanto saía para o corredor.

Max esperou ter a certeza de que Roderick já se tinha ido embora para fazer uma bola de papel com a folha que estava a ler e atirá-la para a outra extremidade da sala, com a força desenvolvida nos seus treinos de rugby. Maldito seja Roderick e maldito seja também o seu tio!

Já tinham passado oito meses desde que Max ouviu pela primeira vez o rumor de que Clive Benson ia aceder à magistratura. Fez uma visita a Chester para manter uma boa relação com a parte da família que vivia lá, afinal, naquele ramo, fazia falta toda a ajuda que pudesse reunir. E, desde esse dia, estava a fazer todos os possíveis para conseguir a vaga quando ele saísse.

Na quarta-feira anterior, logo pela manhã, quando o secretário lhe disse que o sócio mais velho queria vê-lo, Max esperara ouvir o anúncio oficial de que a vaga seria sua. Pelo contrário, depois de muita conversa, ouviu que, além de muitas outras deliberações, os sócios decidiram acatar as normas contra a discriminação sexual e considerar a possibilidade de aceitar uma advogada. Não significava que fossem fazê-lo, garantiram a Max. Iriam avaliar todos os candidatos pelos seus próprios méritos, claro.

- Claro - respondeu Max, com os dentes apertados, mas sabia o que lhe estavam a dizer e, sem dúvida alguma, Roderick também o sabia. Por acaso não era um dos sócios?

Era demasiado tarde para lamentar o facto de ter dito ao seu avô que o lugar já era seu. O velho senhor mal conseguia esperar pelo dia em que o neto deixaria de ser um mero estagiário. No seu tempo aquela situação era inconcebível, pois aprendia-se a trabaLhar num escritório, faziam-se os exames para entrar na Ordem e depois passava a ser-se membro com plenos direitos. Mas as coisas mudaram; não era nada fácil tornar-se sócio de um escritório de advogados.

E quem seria aquela mulher? Não tinham mencionado nenhum nome e Max tinha feito uma lista na sua cabeça de todas as advogadas que conhecia e que podiam ocupar o lugar. Que se lixassem as leis contra a discriminação sexual. Que se passava com ele? Estavam era a discriminá-lo!

Na quarta-feira à noite saiu do escritório com um péssimo humor, para ir buscar a rapariga com quem andava a sair naquela altura, uma ruiva apaixonada, com longas pernas, que não ficou zangada quando Max acabou com o jantar e decidiu levá-la para casa. Porém, e sem deixar-Lhe qualquer tempo para reclamar, acordou-a cinco vezes durante a noite, para descarregar a sua fúria e amargura acumuladas, penetrando-a sem se preocupar em excitá-la antes. Utilizou-a fria mente e sem piedade e negou-se a deixá-la ir- se embora sem que antes o seu corpo ficasse num estado de esgotamento físico total.

Ela disse-lhe frontalmente que nunca mais o queria ver, mas Max não se importava com isso. Tinha coisas mais importantes com que se preocupar. Apesar de toda a energia sexual que gastara, ainda estava dominado pela raiva e pela amargura. Eles tinham obrigação de lhe dar aquele lugar.

Queria-o, ansiava-o, morria por tê-lo e nenhuma mulher nem nenhuma lei contra a discriminação sexual iam colocar-se no seu caminho. Só lhe restava uma forma de enfrentar a situação e Max sabia exactamente qual era, mas primeiro tinha de descobrir a identidade da promissora candidata à vaga.

No entanto, Max estava já a pensar na melhor forma de proceder em relação àquele assunto, en quanto entrava no seu carro e seguia em direcção ao norte.

- Já chegámos a casa.

- Estou impressionado - murmurou Caspar, en quanto Olivia travava e se voltava para observá-lo.

- Tiggy está ali - revelou, ao ver que a porta principal se abria e a sua mãe avançava até eles.

Caspar permaneceu em silêncio quando se voltou para olhar pela primeira vez para a mãe de Olivia.

Que Olivia tratasse a sua mãe pelo nome próprio não o chocava, já que era bastante frequente no meio onde tinha sido criado, mas o tom comedido que ela usava sempre que falava da mãe fê-lo observar a senhora com atenção.

Em relação ao aspecto físico, eram muito parecidas. Olivia herdara a beleza da mãe, incluindo as feições e as maçãs do rosto salientes. Porém, ao contrário de Tiggy, a beleza de Olivia nascia de dentro, de tal forma que quase parecia desnecessário que ela tivesse um exterior atraente. Comparada com a sua fiLha, Tiggy era uma mulher bonita mas vazia.

A primeira coisa que Caspar sentiu ao observá-la foi decepção. Porquê?, perguntou-se enquanto saía do carro e esperava que Olivia os apresentasse. Que esperara ver nela? Talvez, apesar do tom de indiferença que notava na voz de Olivia, tivesse acreditado que a sua mãe fosse mais parecida com ela, como pessoa.

- Livvy, minha querida. Finalmente. Meu Deus, olha para as tuas unhas. E o cabelo. E essas calças de ganga. Querida.

- Tiggy, este é Caspar - interrompeu Olivia, calmamente. - Caspar, esta é a minha mãe.

- Tiggy, trate-me por Tiggy - pediu Tiggy em voz baixa, com um tom sussurrante que, há uns anos atrás, os seus admiradores teriam classificado de incrivelmente sensual. - Entrem, entrem. Lamento, mas eu e o teu pai estamos quase a sair de casa - disse a Olivia enquanto os seguia para dentro de casa. - Vamos jantar a casa dos Buckleton.

A porta de entrada já estava aberta, o chão de madeira encontrava-se encerado e brilhante e, mal entrou, a primeira impressão de Caspar foi que aquela se tratava de uma casa cheia de flores e cores suaves. Havia enormes jarrões com arranjos de flores por toda a parte: na lareira, em cima de uma mesa redonda no centro da sala e sobre umas pequenas mesas situadas debaixo de uns deslumbrantes espelhos georgianos com molduras de prata que ocupavam as paredes da sala.

- Para mim as flores são muito importantes - ouviu Tiggy dizer, quando se apercebeu que ele con templava a decoração. - Animam uma casa, transformam-na num lar - acrescentou, com voz baixa. - Ah, não, Jack - disse repentinamente. - Não entres aqui com esse animal. Usa a porta das traseiras. Já conheces as normas.

Caspar arqueou uma sobrancelha quando viu uma criança e um golden retriever um pouco gordo entrarem pela porta.

- Bom, se vais sair, é melhor não te atrasarmos disse Olivia. - Suponho que iremos dormir no meu quarto.

- Ah, querida. Meu Deus, lamento, mas há uma coisa que o teu pai queria falar contigo. Não é que nos importemos, claro. mas conheces o teu avô. É muito antiquado e dá muita importância àquilo que os outros possam comentar. O teu pai não gostaria que tu e Caspar. Bom, sobretudo porque os familiares de Chester virão à fésta, por isso.

- Estás a tentar dizer- me que esperas que Caspar e eu fiquemos em quartos separados? - interrompeu Olivia, incrédula. - Mas isso é. - começou a mover a cabeça, com os olhos escurecidos pela revolta e a voz com um tom furioso, enquanto ralhava com a sua mãe. - Não penso...

Caspar tocou-lhe no braço suavemente.

- Não há problema, eu percebo. Dormiremos em quartos separados - disse a Tiggy, rapidamente.

Olivia abanou a cabeça e olhou-o com pesar. A intensidade do amor que sentia por ele algumas vezes assustava-a. O amor era uma palavra que se pronunciava livremente e sem restrições na sua casa mas, como sentimento, não tinha a certeza se conseguia compreendê-lo totalmente. porque a fazia sentir-se vulnerável e cautelosa.

Praticamente, desmaiou de desejo quando viu Caspar pela primeira vez. E quem teria tido uma reacção diferente? Com um metro e oitenta e cinco de altura, ombros largos e um físico a condizer, herdara de alguma parte da família a estrutura óssea de um chefe índio, juntamente com a fisionomia celta, que resultava numa imagem com impacto total: cabelo negro e olhos azuis-escuros.

Ao entrar na sua turma, Olivia não conseguiu tirar os olhos de cima dele. e, ao que parecia, ele também não conseguia tirar os olhos dela. Ficou surpreendida quando Caspar a convidou para sair, mas não perdeu o bom senso e insistiu para que o encontro acontecesse num lugar público e movimentado e levou o seu carro, de forma a poder regressar sozinha para casa. Assim não poderia ceder à tentação, caso Caspar a aliciasse, de fazer amor com ele logo no primeiro encontro.

Olivia não cedeu à tentação nem ele a aliciou mas, como ambos confessaram algum tempo depois, os dois desejaram ardentemente que tal acontecesse logo naquela noite.

Sim, tinha-o desejado e continuava a desejá-lomas, sobretudo, amava-o, mental, sentimental e fisicamente. Era o seu amante, o seu mentor, o seu melhor amigo. o seu tudo, e não conseguia compreender como é que a vida lhe poderia ter parecido completa sem ele, como não se tinha dado conta do enorme vazio que existia dentro dela até ele chegar para preenchê-lo.

Caspar era o seu mundo. Fazia com que se sentisse completa e, mesmo assim, tinha dificuldade em exprimir-lhe o quanto significava para ela. Custava-Lhe muito mais do que contar-lhe o efeito que produzia nela em termos físicos, mas Olivia reprimia as emoções, tanto a senti-las como a exibi-las. A sua mãe era muito sentimental, todas as pessoas o diziam; era por isso que também diziam que a sua mãe precisava tanto de receber atenções especiais de todos.

Quando ainda era uma criança, Olivia compreendeu que essas atenções especiais que a sua mãe tanto precisava existiam em detrimento dos sentimentos dos outros, como se as outras pessoas tivessem de ser menos sentimentais para compensarem os excessos de Tigy.

- És incrível - disse-Lhe Caspar, depois de ela lhe ter oferecido com indiferença um livro que lhe tinha custado imenso a encontrar. - És capaz de fazer isto por mim, mas eu preferia ouvir-te dizer o que sentes por mim.

- Já sabes o que sinto por ti - respondeu Olivia, cautelosamente.

- Sim - reconheceu Caspar. - Mas adoraria ouvir-te dizer.

- Eu sei - admitiu Olivia, mas foi incapaz de pronunciar aquelas palavras tão simples. e continuava sem conseguir dizê-las, nem mesmo nos momentos quentes da paixão.

- Não posso acreditar - disse-lhe Olivia, quinze minutos depois, quando os seus pais já tinham saído e Jack decidira ir a casa de um amigo. Tinha subido desde o seu quarto de sempre até ao pequeno quarto de hóspedes, onde Caspar estava a desfazer a mala. Pelo menos, podiam ter-te dado o quarto ao lado do meu.

- É apenas por alguns dias - recordou Caspar. Não me importo - brincou. - Para dizer a verdade, assim poderei descansar. Fazes ideia de como te mexes enquanto dormes? - perguntou-lhe, fingindo estar ofendido. - Há meses que não durmo à-vontade.

- Dois meses, seis dias e. oito horas - disse Olivia carinhosamente, contando as horas pelos dedos enquanto Caspar lhe sorria. - É absurdo os meus pais quererem que fiquemos em quartos separados - continuou, enquanto se sentava na ponta da pequena cama de solteiro.

Ao ver a cama, Caspar concluíra de imediato que era demasiado pequena para ele e, apesar do que dissera a Olivia, sabia que não conseguiria dormir sem ela e não estava a pensar apenas em sexo. De facto, o sexo era o menos importante.

Tinha trinta e dois anos e já aproveitara muitas noites de sexo, mas a diferença é que nunca estivera apaixonado, nunca acreditara que o amor, o tipo de amor que sentia por Olivia, pudesse existir. Depois de ver como os seus pais passavam de uma relação para outra sem parar, conseguiu evitar cair na armadilha de se casar muito jovem, pois seria um casamento condenado ao fracasso. Por fim, acabou por decidir que se casaria depois dos trinta e que, com alguma sorte, o seu casamento duraria o suficiente até criar os seus filhos, pelo menos até serem adolescentes. Isso era o máximo que um adulto maduro e sensato poderia esperar.

- É a hipocrisia que faz com que eu me zangue - protestou Olivia, enquanto mordiscava o lábio inferior. - Acontece sempre a mesma coisa. Temos sempre de respeitar os desejos do avô.

- Moralmente. - começou a dizer Caspar, mas Olivia interrompeu-o.

- Não há moralidade que resista. A única coisa que o avô quer é controlar os outros. Não está minimamente preocupado com o meu bem-estar moral nem com qualquer outro aspecto da minha felicidade

- afirmou friamente. - Nunca esteve. Claro que se eu fosse um rapaz, se fosse o seu neto. - deixou a frase suspensa e moveu a cabeça com um sorriso triste. - Olha para mim. Nem sequer estou cá há um dia e já estou chateada com as recordações.

- Tu mesma disseste que não quiseste juntar-te ao negócio da familia - recordou-lhe.

- Sim, eu sei - reconheceu Olivia. - Mas deveriam ter-me dado essa oportunidade. O meu pai e o avô fizeram todos os possíveis para me dissuadirem de estudar Direito. Só a tia Jenny me apoiou. Ah, e a tia Ruth. Vais ver como vais gostar delas. E também o tio Jon.

- O irmão gémeo do teu pai?

- Sim. apesar de não serem nada parecidos.

Bom, são parecidos em relação ao aspecto físico, porque são gémeos verdadeiros, mas o tio Jon. parou a meio da frase.

- O tio Jon. ? - pressionou Caspar.

- Não consigo explicar-te. Vais ver quando o conheceres. É como se sempre tivesse ficado em segundo lugar, deixando que o meu pai lhe faça constantemente sombra e uma vez. - voltou a parar e olhou em frente. - É como se abdicasse dos seus méritos deliberadamente e os desse ao meu pai. Todas as pessoas, mas sobretudo o avô, concentram-se no pai e em Tiggy, porque é sua mulher, mas a mim os dois parecem-me irreais, como se fossem recortes de papel sem nenhuma substância... - estremeceu. Quando era pequena ficava muito assustada sempre que percebia que eles não eram nada parecidos comigo.

Voltou a fazer uma careta.

- E, para cúmulo, o avô nunca me perdoou o facto de, por minha culpa, o meu pai ter sido obrigado a deixar Londres e o seu brilhante futuro como advogado dos tribunais superiores. Sempre quiseram que existisse um conselheiro da rainha na familia.

- Mas pensava que já existia um, o teu tio-avô Hugh.

- Sim, Hugh era conselheiro da rainha - reconheceu Olivia. - Nomearam-no juiz no ano passado, mas Hugh não é família de verdade, pelo menos da forma como o avô a define. O Hugh não é mais do que seu meio- irmão. O seu pai, Josiah, casou-se pela segunda vez depois da morte da bisavó Bethany e Hugh é filho da sua segunda mulher, Ellen. Embora o avô nunca o tenha reconhecido, acredito que no fundo ele tenha ciúmes de Hugh. A família de Ellen era rica e o pai do avô era, segundo a tia Ruth, um pouco mais tolerante com Hugh do que com eles os dois. Foi a familia de Ellen quem pagou a formação de Hugh como advogado de tribunais superiores. O avô, claro, tinha de manter o negócio da familia. não podia fazer mais nada. Mas acredito que ainda hoje se sente decepcionado por o meu pai não ter entrado na Ordem dos Advogados e por isso decidiu que Max tem de fazer tudo o que o meu pai não fez.

- Ah, Max.

- Não gostas muito dele, não é verdade? - perguntou Olivia.

- E tu? - replicou Caspar, ironicamente.

- Nunca nos demos bem, nem sequer quando éramos pequenos. Já sei que todos pensam que tenho in veja porque Max é o preferido do meu pai, mas não é isso. É apenas porque ele não é uma pessoa agradável. Mas mais ninguém concorda comigo. Tiggy acha que ele é maravilhoso. Anda sempre a namoriscar com ele e é incapaz de ver que, no fundo, ele está a gozar com ela. De certeza que também vai tentar namoriscar contigo. Ela não procura nada, no fundo, é só uma maneira de. Não pode evitá-lo, precisa de.

Olivia fez uma pausa para tentar encontrar as palavras que pudessem explicar a vulnerabilidade da sua mãe, mas desistiu e disse em voz baixa:

- Às vezes, quando vejo a tia Jenny a olhar para Max, tenho a impressão que nem ela gosta muito dele, mas é claro que isto não pode ser verdade. É sua mãe e as mães sempre adoram os seus filhos.

- Ah, sim? - perguntou Caspar, com uma ponta de ironia. - Eu não estaria tão certo. O que é verdade é que nem sempre os filhos gostam dos seus pais. Há muitos estudos sobre filhos que matam pais.

- Sim, é verdade. Estava a ler um caso. Depressa os dois ficaram absorvidos pelos detalhes do caso legal ao qual Olivia se estava a referir.

Quando falava apaixonadamente ficava realmente bela. apesar de não tão bela como quando estava nos seus braços e abria os olhos, quando lhe abria o corpo e a alma.

- Caspar - protestou ao aperceber-se que ele não lhe estava a prestar atenção. - O que estás a fazer?

- Estou a experimentar o colchão - explicou.

- Porquê? - perguntou com curiosidade.

- O que te parece? - respondeu suavemente, enquanto se voltava para beijá-la. - Quanto tempo é que os teus pais ainda vão demorar a chegar?

- A minha cama é maior - sussurrou Olivia, entre dois beijos.

- Hum. - murmurou Caspar distraidamente, enquanto acariciava com os lábios a suave pele do seu pescoço. - Podes mostrar-me a tua cama depois. Agora, agora.

Suspiroú de prazer enquanto desabotoava a camisa de Olivia e deixava a descoberto as curvas firmes dos seus seios. Brincou com a língua primeiro com um e depois com o outro mamilo erecto, e notou que ela estremecia.

Ainda conseguia lembrar-se da primeira vez que tinham feito amor, dos intensos tremores de prazer que Olivia não conseguira esconder. Só de pensar nisso, a sua excitação cresceu.

- Ainda não jantámos - recordou Olivia, entre gemidos e pequenos estremecimentos de prazer.

- Hum. Tu vais ser o meu jantar. Vou devorar- te

- afirmou Caspar, carinhosamente.

Olivia fechou os olhos; adorava a forma como Caspar expressava o que sentia quando faziam amor. Não era poético, como um admirador de Olivia na faculdade, nem vulgar, como preferiam alguns homens e mulheres. A sua maneira de expressar-se era exclusiva dele e era incrivelmente erótica e bonita. Muitas vezes, enquanto Olivia se ria, a excitação assaltava-a sem avisar. E Caspar percebia sempre isso. Percebia o momento exacto, o segundo preciso em que o riso se transformava em desejo e a necessidade de o ter superava tudo o resto. Tal como estava a acontecer naquele momento.

- Caspar - sussurrou, enquanto segurava no seu cabelo e sentia o calor dele no seu pescoço.

- O quê. - murmurou, feliz, consciente do que significava o facto de ela estar a segurar no seu cabelo com tanta força.

- Disseste que Olivia chegava esta noite - protestou Joss, após a terceira tentativa falhada de falar ao telefone com a sua prima.

- Pensava que sim - disse Jenny, mantendo-se de costas para Joss e Jon.

- Pois não chegou, já que não atende o telefone, por isso deves ter percebido mal. E agora não vou ter tempo para lhe mostrar as crias dos texugos - revelou Joss, visivelmente chateado.

- Livvy não vai querer ver as crias. Veio com o seu namorado - disse Louise ao seu irmão, com a superioridade própria das irmãs mais velhas.

- Louise - advertiu Jenny, com a testa franzida.

- E o que é que isso tem a ver com o facto de ela não querer ver os texugos? - perguntou Joss.

Nas suas costas, Jenny podia escutar os risinhos contidos das gémeas.

- Raparigas. - exclamou Joss, com desespero e raiva. - Não vais comer esse pedaço de tarte, Lou? É que se não. - olhou, esperançado, para o prato da sua irmã.

- Estás com cara de cansado - comentou Jenny em voz baixa para o seu marido quando finalmente ficaram sozinhos.

- Não, não estou. É que. Bom, acho que esta festa me fez pensar que estamos a ficar velhos.

Jenny não disse nada; sabia perfeitamente quem suportava todo o trabalho no escritório. Também sabia que qualquer tentativa de protesto acabaria na mesma atitude distante e educada que Jon adoptava sempre que alguém tentava criticar o seu irmão gémeo.

Nos primeiros anos de casamento sofria ao pensar que havia sempre alguém antes dela, que a lealdade e o amor que Jon sentia pelo seu irmão seria sempre mais importante do que os seus sentimentos por ela. Mas depois foi obrigada a reconhecer que essa mesma lealdade fazia com que Jon fosse o homem que era, o marido que era. o pai que era. e convenceu-se de que não devia cair no mesmo erro que outras mulheres e tentar moldar o seu marido a seu gosto, mas, sim, aceitá-lo tal como ele era. Com ela, pelo menos, Jon tinha a possibilidade de ser autêntico, de ser uma pessoa. Devia-lhe isso. Devia-lhe isso e muito, muito mais. Tanto.

 

- Obrigado, senhor Thompson. Está tudo perfeito. Então, virá amanhã de manhã para preparar os últimos detalhes? - perguntou Jenny ao homem que dirigia a equipa que acabara de montar a tenda.

Os homens montaram a tenda com destreza e rapidez, debaixo do olhar atento do seu capataz. Também tinham montado os toldos interiores, as luzes e incluíram dois corredores que ligavam a casa à tenda, um para os convidados e outro para os empregados.

- Estaremos aqui às oito em ponto - garantiu o capataz a Jenny.

- E as mesas estarão montadas antes do meio- dia?

- Antes do meio-dia.

- Tem um aspecto fantástico - disse Olivia, quando o capataz se afastava para se juntar aos seus empregados.

Caspar e ela tinham curiosidade em ver a tenda, e como Jenny tinha de ir a Queensmead para supervisionar os últimos preparativos, eles decidiram acompanhá-la. Max, que chegara no dia anterior à noite, também decidiu acompanhar a mãe. Jenny não sabia porque é que ele o tinha feito. Estava de pé, sozinho, franzindo a testa, com um semblante aborrecido e irritado.

- Espero que a cor creme não torne a festa demasiado monótona - preocupou-se Jenny enquanto voltava a observar o interior da tenda.

- Não, está perfeito - tranquilizou-a Olivia. Muito elegante. Qualquer outra cor teria ficado demasiado pesada. como se fosse um banquete de casamento.

Os homens e o capataz estavam a entrar para os vários carros nos quais chegaram e, tal como Jenny comprovou aliviada, tinham estacionado longe do adorado relvado de Ben. Pelos comentários que o ancião fizera desde que Jenny chegara à sua propriedade, Ben tinha passado todo o dia a seguir atentamente todos os passos dos trabalhadores. Jenny não sabia se ele estava aliviado ou decepcionado por não terem causado nenhum estrago, mas suspeitava que a segunda hipótese fosse a mais provável.

- Quanta vaidade - resmungou Ben. - No meu tempo, completar cinquenta anos não era nada do outro mundo. Dizem que vai chover, sabias?

- Pelo menos até segunda-feira, não vai chover - respondeu Jenny serenamente.

- Não sei se devo oferecer-me para ajudar a tia Ruth com as flores - disse Olivia. - Tenho medo de ser mais um estorvo do que uma ajuda.

- Tenho a certeza de que ela irá agradecer que alguém a ajude, nem que seja apenas para mover as flores de um lado para o outro - garantiu Jenny.

- Podem contar comigo também - anunciou Caspar. Jenny sorriu.

Tirando as apresentações, nem Jon nem ela tinham tido oportunidade para falar com ele tranquilamente, mas Jenny gostou dele logo à primeira vista. Por detrás da incrível sexualidade da sua imponente figura masculina, escondia-se uma tenacidade que tranquilizava o seu instinto maternal, assim como uma firmeza de opiniões que mostrava que não era um homem susceptível de desviar-se do caminho que elegera, ou da pessoa que escolhera, e era evidente que a pessoa que escolhera e que amava era Olivia.

Jenny olhou para a sua sobrinha com afecto. Não havia dúvida de que Olivia também o amava.

No fundo do seu coração, Jenny sabia com toda a certeza e não valia a pena negar que, de todos os seus filhos, tanto os dela como os de David e Tiggy, Olivia era a sua favorita, pois era uma rapariga muito, muito especial. Não podia ser por ser filha de David. O seu coração começou a bater mais depressa. Para resolver a situação, decidiu olhar para a lista de tarefas que ainda faltavam fazer.

- Disseram-me, rapaz, que é professor. Caspar girou a cabeça e viu Ben a dirigir-se para ele. Ben era um homem alto e irritava-o admitir que aquele americano que Olivia encontrara o superava nesse aspecto. Desde o acidente, tinha começado a curvar-se um pouco e fez uma careta de raiva quando se apercebeu que tinha de dar um pequeno passo atrás e levantar os olhos para conseguir olhar para Caspar.

Americano! Ben nunca tinha gostado daquela gente, nunca. Durante a guerra, houve tropas sedeadas na localidade, indivíduos ruidosos que mascavam pastilha elástica e tinham mais dinheiro do que bom senso, fanfarrões que se pavoneavam pela cidade para chamar a atenção das jovens raparigas e causavam todo o género de distúrbios.

- Sou professor catedrático - afirmou ironicamente.

- E só está aqui temporariamente, segundo percebi.

- É verdade - confirmou Caspar.

- Hum. Bom, neste país temos um ditado - disse Ben, maliciosamente. - Os que podem, fazem, os que não podem, ensinam.

- Avô! - protestou Olivia, mas Caspar moveu a cabeça suavemente e sorriu. Se quisesse, havia um lugar de sócio à sua espera num dos escritórios de advogados mais prestigiados de Filadélfia. Sem dúvida, ganharia muito mais dinheiro do que ganhava com a sua profissão actual, mas gostava de ensinar e, para ele, isso era mais importante do que ganhar dinheiro.

Mas, claro, como ele próprio reconhecia, para ele era fácil dizer isso porque beneficiava de um fundo monetário criado pelo seu avô materno.

- Isso depende de quem ensina - limitou-se a dizer, com expressão e tom serenos, mas Jenny, que ouvira a conversa e estava a olhar para Ben enquanto Caspar respondia, sabia que a atitude de Caspar de não se dei xar intimidar pelo ancião tinha aumentado ainda mais a raiva que o velho senhor já sentia por ele.

- Não, a única forma de chegar a conhecer o Direito na sua plenitude é exercendo-o - respondeu Ben, obstinado. - Sei-o por experiência própria. E não me estou a referir aos casos fáceis e insípidos que vão parar aos departamentos jurídicos de algumas empresas, como a de Olivia - acrescentou.

- Olivia é uma profissional altamente qualificada - protestou Caspar.

- Sim, passou nos exames - reconheceu Ben. Mas é preciso mais do que boas notas para se ser um bom advogado. A advocacia não consiste em mexer em papelada dentro de um escritório, é preciso entrar em pleno na profissão, fazer o tipo de trabalho que Max está a fazer. Isso é a advocacia.

Jenny viu que Caspar começava a ficar tenso e constrangido. Sabia o motivo, claro. Olivia, apesar da sua modéstia e da hipocrisia do seu avô, tinha muito mais qualificações do que Max e o seu curriculum era bastante mais atraente para qualquer escritório. Para começar, Olivia possuía muito mais experiência e, além disso. Bom, Jenny sabia a qual dos dois recorreria se tivesse algum caso para resolver, e não seria ao seu próprio filho.

- Lamento - ouviu Caspar dizer rapidamente, arqueando levemente uma sobrancelha. - Peço desculpas. Não estou familiarizado com o sistema jurídico britânico, mas segundo entendi, Max é apenas um estagiário no seu escritório e, como tal, não pode ter clientes. Olivia, pelo contrário, tem a seu cargo um departamento jurídico especializado e eu sei.

- Caspar! - protestou Olivia, com a voz embargada. - O avô não.

Mas já era demasiado tarde. Ben voltara-se para ela com a testa franzida, sentindo que ela era uma vítima bastante mais débil do que Caspar, que era inesperadamente inflexível. Ben não estava habituado a encontrar qualquer tipo de resistência e tal não lhe agradava minimamente.

- O que estou a ouvir? Tens o teu próprio departamento?

- Não é mais do que uma pequena promoção, avô. Nada do outro mundo - apressou-se a explicar Olivia.

- Um simples lugar de coordenação, claro que.

- Claro que esse lugar te deu um chorudo aumento de salário - interrompeu Max, que se aproximara para se juntar à conversa. - Saiu-te a lotaria, rapariga. Eu.

- Olivia não ganhou a lotaria - corrigiu Caspar, calmamente. - Acontece que ela é uma advogada muito qualificada e trabalhadora.

- É normal que diga isso - respondeu Max. - Afinal, era uma das suas alunas. tanto na escola como na cama.

Jenny sentiu o seu próprio rosto a arder de vergonha mas, como sempre, Max não estava consciente da sua maldade e mesquinhez.

- Ouvi dizer que em breve irá abrir uma vaga no seu escritório. Está a pensar candidatar-se? - perguntou Caspar a Max.

Max fez uma expressão de desagrado. Como é que Caspar soubera daquilo?

- Não precisa de candidatar-se - interpôs-se Ben, respondendo à questão no lugár do neto. - Já lhe disseram que a vaga é dele e assim será. Já foi obrigado a abdicar em favor de outra pessoa noutra ocasião.

Max lutou por esconder a irritação que o comentário do seu avô produzia nele. Em geral, sabia-lhe bem que o seu avô o defendesse mas, naquele caso, que saberia exactamente o americano sobre a vaga? Noutras circunstâncias, teria começado a tentar descobrir alguma informação, nomeadamente o nome da sua rival feminina, se por acaso ele a conhecia, mas não o podia fazer à frente do seu avô, pois este não podia perceber que a sua promoção não era um dado adquirido.

Max começou a suar um pouco. O seu avô era tolerante com ele. mas apenas até um certo ponto. Max sabia como era importante para o ancião alcançar as suas ambições. David já o decepcionara ou trora e, afinal, acabara por ser perdoado, mas Max

estremecia só de pensar em ter uma vida como a do seu tio.

Já tinha sido terrível viver debaixo do olhar severo do seu avô durante anos, mas voltar a fazê- lo. O seu avô, afinal de contas, era o responsável pelas fi nanças da familia e Max assistira à forma como ele sempre controlara a vida dos seus filhos, do mesmo

modo que controlava o dinheiro. Max não tinha qual quer ilusão sobre o peso que carregava por ser o neto

favorito de Ben.

Mas o sucesso significava tanto para ele como para o seu avô; talvez até mais. Max gostava de di nheiro e do que podia comprar com ele. Queria alcançar o sucesso e, se possível, também a fama, e nenhuma mulher se iria colocar no seu caminho.

- Chegaram finalmente os sapatos da tua mãe? perguntou Jenny a Olivia, enquanto regressavam para o carro.

- Não. Foi a Chester esta manhã para ver se encontra outros.

Olivia hesitou um momento ao recordar a cena que presenciara naquela manhã, quando entrou no quarto dos seus pais.

- Tia Jenny - começou por dizer. - Sei que a minha mãe e a tia não são muito unidas mas. já.

Interrompeu a sua frase bruscamente quando se lembrou que, a caminho de Queensmead, depois de conhecer os seus tios, Caspar comentara como todos dependiam de Jenny. Ao ver como não apenas o filho mais novo de Jenny mas também o irmão de Olivia, Jack, a tinham encarregue de limpar os seus equipamentos de desporto, Caspar tinha comentado com uma certa ironia como os membros mais velhos da família a carregavam com os seus problemas, da mesma forma que os mais novos a carregavam com a roupa suja. Sim, todos tinham tendência a confiar em Jenny quando alguma coisa corria mal na sua vida, reconheceu Olivia, mas já era adulta e.

- Passa-se alguma coisa com a tua mãe, Livvy?estava a perguntar-Lhe Jenny, mas Olivia negou com a cabeça e dominou a tentação de desabafar com ela.

- Não - respondeu despreocupadamente. - Mas já conhece a mãe. Está a ficar estupidamente nervosa por causa destes sapatos.

Olivia ficou horrorizada com a falsidade da sua própria voz. Que teria dito Jenny se tivesse contado aquilo que realmente a preocupava?

Caspar e ela estavam quase a sair de casa naquela manhã quando Olivia se lembrou que se tinha esquecido do casaco. Ao subir as escadas a correr para o ir buscar viu que a porta do quarto dos seus pais estava aberta e ouviu a sua mãe a falar, aparentemente sozinha.

Olivia entrou de rompante no quarto. Jamais esqueceria a cena que os seus olhos presenciaram, muito menos a mistura de vergonha, pesar, desafio e medo que o olhar da sua mãe reflectia.

- Não vais contar nada, pois não? - suplicou Tiggy, sentada sobre a cama, rodeada de dezenas e dezenas de sacos, ainda por abrir, resultado de uma, ou melhor, de muitas visitas às lojas. - Não contes ao teu pai. Ele não. Ele não compreenderia.

Olivia saiu sem responder. Misturado com o familiar perfume da sua mãe, tinha sentido no ar um odor desagradável e penetrante, que lhe era também familiar. Olivia sentiu o seu estômago a revoltar-se e teve de sair do quarto sem chegar a prometer à sua mãe que guardaria segredo.

- Que aconteceu? - perguntou Caspar em voz baixa, enquanto se afastavam da casa do avô. - Não estás a remoer aquilo que eu disse, pois não?

- O quê? - perguntou Olivia, com o semblante carregado.

- O teu avô - recordou Caspar. - Deve chatear-te o facto de ele menosprezar completamente o teu valor profissional.

Olivia ficou mais relaxada. Caspar pensava que ela estava zangada porque o seu avô colocara Max acima dela. Talvez, há alguns anos atrás, tivesse ficado zangada, mas não agora, quando.

- Não. O meu avô é demasiado antiquado e machista para mudar nesta altura da vida e Max será sempre o seu preferido.

- Tudo bem. Bom, tudo será diferente nos Estados Unidos - prometeu Caspar. Ao ver que ela não respondia de imediato, lançou-lhe um olhar penetrante. - Não estás a voltar atrás na tua decisão, pois não? - perguntou-lhe. - Ainda não contaste à tua família?

- Como é que poderia voltar atrás? - disse-lhe com afecto. - Sabes o quanto significas para mim. o muito que o nosso futuro significa para mim - corrigiu, e sorriu quando ele lhe disse em voz baixa.

- Agora vais ver. Eu sei que a lei daqui diz que não se pode parar numa auto-estrada para.

- Isto não é uma auto-estrada - interrompeu Olivia, num tom brincalhão. - É uma tranquila estrada municipal e se quiseres parar. - olhou-o de forma provocante e riu-se novamente quando Caspar moveu a cabeça.

Os meses que tinham passado juntos foram os mais felizes da sua vida e quando Caspar Lhe disse que tinha de regressar aos Estados Unidos no final do Verão, num primeiro instante Olivia pensou que ele estava a tentar dizer-Lhe que não via aquela relação como algo permanente.

Tentou não demonstrar a sua enorme decepção, mas algum gesto a atraiçoou, já que Caspar a tomou rapidamente nos seus braços e abraçou-a de forma protectora.

- Não, não - disse-lhe baixinho. - Não estou a pensar acabar com a nossa relação. Como pudeste pensar isso? Amo-te, Olivia, quero ter-te sempre ao meu lado. Quero que venhas comigo. Mas sei que. sei que te esforçaste tanto para conseguír esta promoção. - É apenas um trabalho - respondeu Olivia com voz trémula, mas com a maior sinceridade possível. - Tú és muito, muito mais importante - e também nisso estava a ser completamente sincera.

E realmente era, apesar de por vezes sentir-se desiludida ao pensar que teria de formar-se novamente nos Estados Unidos se quisesse alcançar a mesma categoria profissional que estava em vias de obter em Inglaterra.

Caspar nunca pediria nem esperaria que ela renunciasse ao seu futuro profissional por ele. Olivia sabia isso. Mas também tinha deixado muito claro que exerceria a profissão no país dele.

A decisão estava tomada. Já tinha entregue o pré-aviso na sua empresa e pensava contar à família em algum momento durante o fim-de-semana. Não tinha previsto nenhum problema. O que poderia acontecer de mal?

Adorava os seus pais e a sua família, claro, mas cada um tinha a sua vida. A inveja que sentira por Max durante a sua infância e adolescência já se tinha dissipado há muito tempo.

Mas, o que pensar da situação que presenciara de manhã no quarto dos seus pais? Mordeu o lábio inferior. Desde quando existia esse problema? Será que mais alguém sabia? O seu pai? Ele devia suspeitar de alguma coisa. E ela? Não podia esquecer o que vira apesar do olhar suplicante da sua mãe.

Caspar sabia que Olivia estava preocupada com alguma coisa. Ainda bem que só iam passar ali um fim-de-semana, pensou, enquanto conduzia de regresso a casa dos pais de Olivia. Sentia sempre uma certa claustrofobia nas reuniões familiares porque faziam reaparecer recordações e medos dos quais ele não se orgulhava muito.

Não tinha nada contra as famílias, no entanto, nunca conhecera um exemplo de vida familiar que pudesse tomar como modelo. Que sentido fazia mentir publicamente e fazer promessas que raramente se chegavam a cumprir? Além disso, não queria partilhar Olivia com a sua família; queria-a toda para ele e admitia-o abertamente. Não tinha ficado com grande impressão acerca do pai de Olivia e do seu avô ainda antes de os conhecer, e agora que finalmente os conhecia.

Como podiam valorizar mais uma pessoa tão medíocre e pouco digna como Max em vez de Olivia? A natureza devia estar a gozar com eles, por causa da sua hipocrisia e machismo, ao fazer com que Olivia tivesse muito mais talento do que o seu primo.

Não tinham planos de casar-se, mas Caspar sabia que iriam acabar por fazê-lo. Nunca pensou que iria apaixonar-se tão perdidamente por uma mulher nem que iria querer esse tipo de compromisso, mas as coisas tinham mudado. Não queria perdê-la e por um lado tinha tido alguma resistência em conhecer a família dela porque temia que eles se opusessem à ida de Olivia para os Estados Unidos. Ficaria muito mais aliviado quando aquele fim-de-semana terminasse e ficassem livres para começar a próxima etapa das suas vidas. Ao tomar o sentido da entrada da casa, observou o perfil de Olivia. Não restava qualquer dúvida de que alguma coisa a preocupava, apesar de ela não o reconhecer. Perguntou-se o que seria e, mais importante ainda, porque é que não lhe contava.

- As mulheres são mentirosas e fingidas - disse-lhe o seu pai numa ocasião. Acabava de separar-se e, apesar de ter uma nova mulher, queixava-se da pensão que era obrigado a pagar à sua segunda esposa. Não acredites nelas, Caspar. Não cometas o mesmo erro que eu. Tão depressa te dizem que te amam como.

Olivia ficou tensa quando Caspar parou o carro. A sua mãe estaria em casa? Não via o carro dela em lugar nenhum e sentiu ódio de si mesma por se sentir aliviada.

Porque é que foi ela a descobrir?, perguntou a si mesma com um misto de rancor e de vergonha. Porque não foi o seu pai, por exemplo? Devia confiar em Caspar e contar- lhe o que vira, mas como poderia atraiçoar a sua mãe quando nem sequer ela mesma tinha a certeza, quando mais ninguém parecia saber...

É claro que tens a certeza, disse-lhe uma voz dentro dela. O que acontece é que não queres admiti-lo. Não queres enfrentar a verdade".

Qual verdade? Bastava-lhe fechar os olhos para imaginar novamente o quarto dos seus pais e ver aquela desarrumação, os sacos espalhados por toda a parte. e aquele cheiro. Começou a sentir novamente o estômago a revolver-se.

- Que se passa? - perguntou Caspar consternado quando ela se voltou depressa para sair do carro.

- Nada - negou Olivia.

Quando David ouviu que o seu irmão se aproximava do escritório, pegou no processo que estava a estudar e escondeu-o debaixo da sua secretária.

Enquanto Jon entrava, pelo canto do olho David viu o extracto da sua conta bancária junto ao telefone. De propósito, tapou o extracto com o braço. O seu coração batia com força e irregularidade.

- Não encontro o arquivo da conta fiduciária dos Siddington - disse Jonathon, sorrindo. - Os contabilistas têm uma dúvida e.

- Ah, penso que deixei isso em minha casa. Estive a trabalhar nesse assunto na outra noite. Na segunda-feira trago-te.

- Levaste os papéis para casa, mas.

- Pelo que parece, Max vai ascender à posição de sócio, finalmente - interrompeu David firmemente.

- Sim. Sim, é o que parece - concordou Jonathon. - Apesar de ser sempre melhor não darmos as coisas por adquiridas.

- Aposto que o pai está cheio de vontade de contar isto a Hugh - disse David, sem prestar atenção à sugestão de Jonathon. - Sempre existiu uma certa rivalidade entre eles nestes assuntos, pelo menos do lado do pai.

- Tenho a certeza de que o tio Hugh não vê as coisas dessa forma - respondeu Jonathon. O seu tio fora muito amável com ele desde pequeno e suspeitava que a rivalidade entre os dois meios-irmãos só existia por parte do seu pai.

- Como poderia fazê-lo? - indagou David. - Ele é...

- Vai ser agradável ter toda a familia reunida - comentou Jonathon, que não estava com vontade de aprofundar aquele tema.

David esperou um pouco para ter a certeza de que Jonathon já se tinha ido embora, antes de voltar a tirar o arquivo que escondera debaixo da secretária e metê-lo dentro da sua pasta. Os seus dedos tremiam enquanto o fazia. Sentia-se até um pouco enjoado. Devia ser do calor abrasador que se fazia sentir.

Pegou no extracto da sua conta e estudou-a com renovada incredulidade. Como podiam ter gasto tanto dinheiro? No mês passado David avisara Tiggy de que

não podiam derreter o dinheiro e inclusivamente ameaçara-a de cancelar os seus cartões de crédito mas, como sempre, ela tinha chorado e suplicado e ele acabara por desistir.

Para Jonathon era tudo muito fácil, pensou com alguma amargura. O seu irmão nunca sentira nenhum

apego pelo luxo e sempre fora muito precavido em relação às questões financeiras. Além disso, Jenny devia estar a ganhar um bom salário com a sua loja.

Claro que nunca pudera imaginar, há alguns anos atrás, quando a conheceu, que Jenny se tornaria numa próspera mulher de negócios. Era uma jovem tímida e insegura, tão diferente da sua mulher em muitos sentidos...

A primeira vez que viu Tiggy, ela estava sentada no banco de um exclusivo clube londrino, rodeada de um grupo de admiradores, aos quais incitava a competir entre eles para ver qual é que conseguiria levá-la a jantar.

Naquela época David estava a tocar com o grupo e tinham acabado de sair de uma das inúmeras revistas de moda que proliferavam naqueles tempos. Alguém o reconheceu, uma das modelos que estava no clube com Tiggy, agarrou-o pelo braço.

Ainda podia recordar o enorme gozo que sentiu quando voltou a cabeça para a outra extremidade da pequena sala e viu Tiggy a observá-lo, sem ligar nenhuma aos muitos homens que tentavam disputar a sua atenção.

Era impossível, nem antigamente nem agora, imaginar Jenny a posar com indiferença em cima de um banco, com uma das mini-saias mais curtas que alguém já usou, deixando à vista umas pernas jovens e intermináveis, a mordiscar uns lábios sensuais pintados de cor- de-rosa pálido e um rosto branco como a neve, com olhos enormes rodeados de pestanas negras e de uma linha feita com lápis para olhos ainda mais escura.

Jenny nunca mordiscava os lábios e, se tivesse pintado os olhos, o seu pai obrigá-la-ia a lavar a cara. Tinha as pernas fortes, desenhadas para atravessar os campos da fazenda do seu pai, nada delicadas nem magras como as de um corso. Enquanto Jenny era uma mulher saudável e robusta, Tiggy era frágil, delicada e vulnerável; enquanto que Jenny reprimia e controlava as suas emoções estoicamente, Tiggy conseguia passar das gargalhadas ao pranto em poucos segundos; enquanto que Jenny tinha um rosto vulgar e insípido, Tiggy era deliciosamente diferente e perigosa.

E nada tinha mudado, pensou David. Continuava a ver a inveja estampada nos olhos dos outros homens quando olhavam para Tiggy e a comparavam com as suas esposas maduras, aborrecidas e acomodadas. Tiggy era o tipo de mulher que namoriscava por instinto, que incendiava a sexualidade de qualquer homem: afinal, isso também acontecera com ele. Tiggy tinha-o encantado, enfeitiçado e capturado.

Deixaram aquele clube para irem para outro e Tiggy deu uma risada enquanto comprava alguns estimulantes e insistia para que David tomasse um.

Não era nada do outro mundo, pois todas as pessoas consumiam drogas nos anos sessenta. Era parte da vida nocturna londrina. claro que, por azar, os sócios do escritório em que era estagiário não viam as drogas como algo assim tão normal. Havia dias em que chegava tarde e saía cedo e outros em que nem sequer se apresentava ao trabalho, pois acordava tarde no pequeno apartamento de Tiggy e na sua cama ainda mais minúscula e acabava por passar o dia inteiro nos seus braços. O seu comportamento daquela altura tinha, em última análise, comprometido o seu futuro.

Tinha de escolher, disse- lhe o sócio mais importante do escritório quando chamou David à sua sala para lhe pedir explicações. Ou escolhia a Ordem dos Advogados ou Tiggy e o estilo de vida que tinha junto a ela.

Na verdade, não tivera hipótese de escolha. Já sabia o que esperavam dele, o que o seu pai esperava dele. Deram-Lhe vinte e quatro horas para meditar e

David regressou ao apartamento de Tiggy para lhe contar o que acontecéra e recolher as suas coisas. No entanto, quando entrou em casa, encontrou Tiggy a chorar desesperadamente e. grávida.

Ao ver o seu rosto vulnerável banhado em lágrimas e o seu corpo de menina, os discursos que preparara evaporaram-se da sua cabeça. Ele amava-a, não podia viver sem ela. Ia ter um filho seu. O seu pai iria compreendê-lo; tinha de compreendê-lo.

Casaram-se três dias depois em Caxton Hall. Para grande alívio de David, o seu pai gostou imediata mente de Tiggy e aprovou a sua decisão de casar-se tão depressa, quando lhe explicou o motivo. Ben teve mais relutância em aceitar que ele interrompesse a sua preparação para ingressar na Ordem dos Advogados, mas David sempre soube a melhor forma de dar-lhe a volta.

Por estranho que pareça, foi a sua mãe, Sarah, a mulher calada, modesta e submissa, quem pareceu ter uma certa antipatia por Tiggy. Mas claro, como o próprio David já se tinha apercebido, Tiggy não era o género de mulher facilmente aceite pelas outras mulheres. Jenny, felizmente, foi a excepção e acolheu Tiggy no seio da família com sincero afecto.

Naquela época, Jon e Jenny já estavam casados há vários anos e David suspeitava que Jenny tinha sido amável com Tiggy porque ela também estava grávida quando se casou com Jon, mas como não era de muitas conversas, nunca tinham falado muito acerca desse assunto. Estava grato por o seu pai ter pago todas as suas dívidas e por Tiggy e ele poderem iniciar uma nova vida, na sua tranquila cidade natal.

David fez novamente uma careta quando observou outra vez o extracto bancário. Tinha de voltar a falar com Tiggy, fazê-la compreender. Estava a suar imenso e doía-Lhe o maxilar. Apalpou a zona da boca e pensou que tinha de marcar uma consulta urgentemente com o seu dentista, Paul Knighton.

Ao contrário de Jon, não esperava com expectativa a festa do fim-de- semana. Cinquenta anos! Como é que os anos tinham passado tão depressa? Meteu o extracto da sua conta numa gaveta e fechou-a à chave. Doía-lhe a cabeça e estava um pouco enjoado. Devia ser por causa da hipertensão, como o tinha avisado Travers na última vez que fizera um check-up.

Não seria fácil falar com Tiggy. fazê-la escutar o que ele tinha para dizer. Estava muito abalada na noite anterior quando se queixou que Olivia gostava mais de Jenny do que dela e acabou por perguntar a David se ela continuava tão atraente como antes, comparando-se com Olivia.

- Olivia tem pouco mais de vinte anos - respondeu David sem pensar, e amaldiçoou-se ao aperceber- se do seu erro. Mas já era demasiado tarde para retirar as suas palavras. O estrago estava feito e as consequências eram tão previsíveis que podia descrever cada uma das suas frases. Sabia exactamente o que encontraria naquela tarde quando voltasse para casa e como reagiria Tiggy se tentasse consciencia lizá-la do que estava a fazer a si própria, a ele e ao casamento de ambos.

Se no dia do seu casamento alguém lhe tivesse dito o que o aguardava, teria desatado a rir com in credulidade. Com o espírito cansado, passou uma mão pelos olhos, como se quisesse apagar as recordações dolorosas da sua memória.

 

- Tiggy.

Olivia hesitou antes de atravessar a porta da pequena e soalheira sala de estar. A sua mãe estava sentada por trás da bonita secretária que David Lhe tinha oferecido num Natal. Quando se voltou para sorrir para a sua filha, não mostrou nem uma ponta do nervosismo e do choque daquela manhã. Na verdade, parecia quase serena, pensou Olivia, enquanto observava Tiggy a guardar um cheque que estava a passar num envelope e o fechava.

- Estava a pagar algumas facturas - disse a Olivia.

- O teu pai ainda não voltou. Pensei que podíamos jantar em Knutsford, no Est Est Est. Sempre foi um dos teus restaurantes favoritos. É verdade, onde está Caspar?

- Aqui - respondeu Caspar, que entrou atrás de Olivia na sala de estar.

- Não há dúvida nenhuma de que é um homem incrível, tão cavalheiro. - disse Tiggy a Olivia, enquanto dirigia a Caspar um sorriso sedutor e brincalhão.

Aquela era a sua mãe nos seus melhores momentos, a irresistível Tiggy, reconheceu Olivia, enquanto a observava. Era impossível enojar-se ou sentir inveja pela sua habilidade em cativar os outros, nem sequer questionar a sua necessidade de fazê-lo.

- É tão alto. - continuava a comentar Tiggy, enquanto se aproximava dele de forma provocante e o olhava com olhos de cordeiro. - Quanto é que mede?

- Um metro e oitenta e cinco, mais centímetro, menos centímetro - respondeu Caspar, afável.

- E é todo musculado - sussurrou Tiggy com uma careta sedutora enquanto deslizava uma unha pintada pelo antebraço despido de Caspar. - Céus...

Sem que a sua mãe a visse, Olivia lançou a Caspar um olhar suplicante, ao ver que ele evitava o contacto físico. Sabia como era volúvel o estado de espírito da sua mãe e como era sensível em relação à opinião que os outros tinham acerca dela. Para Tiggy, era crucial que os outros a achassem bonita. Em criança, Olivia sempre acreditara que as necessidades da sua mãe eram uma parte intrínseca do seu carácter, mas em adulta... Começou a enrugar a testa; preocupada.

- Esta noite quero ir para a cama cedo - disse Olivia à sua mãe. - Prometi ir logo de manhã a Queensmead para ajudar a tia Ruth com as flores. Ah, e a tia Jenny pediu-me para te recordar que os familiares de Chester vão chegar à hora do almoço. Pediu-me para te perguntar se precisas de roupa de cama. Queria assegurar-se de que o avô tem jogos suficientes para a família de Hugh, Nicholas, Saul, Hillary e para as

crianças, e disse que encontrou roupa de cama suficiente para um hotel inteiro. Que se passa? - perguntou, ao ver a expressão do rosto da sua mãe a mudar, ao mesmo tempo que ela batia com o punho na blusa de seda.

- Não sei porque é que temos de ser nós a alojar Laurence, Henry e as suas familias - queixou-se. Porque não dormem em casa de Jenny e Jon?

- Certamente porque não têm espaço suficiente - respondeu Olivia, suavemente.

- Há muito espaço em Queensmead - insistiu a sua mãe.

- Sim - reconheceu Olivia. - Mas lá vão ficar o tio Hugh e a sua familia - recordou. Apesar de não ter dito, suspeitava que Jenny não queria colocar tanto peso nos ombros de Ben, aliviando um pouco o número de convidados que ficariam na mansão. - Vá lá, Tiggy - animou-a, com um tom persuasivo. Sempre gostaste de ter convidados.

- Sim, mas isso era antes. Já sabes que eu gosto de fazer as coisas como Deus manda, mas o teu pai não faz mais nada senão queixar-se e falar do que não podemos permitir-nos. - interrompeu a sua frase e mordeu a bochecha, enquanto os seus olhos se enchiam de lágrimas. Olivia sentiu um arrepio de inquietação que lhe percorria a espinha. Que ela soubesse, os seus pais gozavam de um considerável desafogo económico.

A sua mãe era pródiga em exageros, tranquilizou-se Olivia, e os seus protestos deviam-se certamente aos protestos do seu pai, pela conhecida fraqueza de Tiggy em relação a vestidos exclusivos de conhecidos estilistas e por maquilhagem cara.

Olivia sabia que a sua mãe desconhecia o que era limitar-se a um orçamento ou apertar o cinto. Não era nada fora do comum que encomendasse ingredientes especiais em Chester para os jantares ou que encomendasse as suas flores naturais preferidas numa luxuosa florista londrina, porque não encontrava nenhumas como aquelas mais perto de casa.

- O avô prefere que sejas tu a acolher a família de Chester porque quer impressioná-los - disse Olivia, tentando tranquilizar a sua mãe, mas mordeu o lábio

inferior quando viu o olhar sarcástico de Caspar perante aquela manobra. Sem dúvida, ele iria repreendê-la pela sua atitude. Se Caspar tinha um defeito esse era, certamente, o facto de não acreditar em pilulas milagrosas nem em bajulações de nenhum tipo.

- Bom, sim, penso que tens razão - aceitou a sua mãe, que ficou um pouco mais animada. - Jenny é um anjo e uma cozinheira fantástica mas. Bem, ela não tem grandes ideias acerca de design de interiores, não é verdade? E a sua casa está sempre cheia de crianças e de animais.

Olivia pensou para com os seus botões que a casa dos seus tios, com os seus reluzentes móveis antigos, as taças cheias de flores secas e as flores naturais acabadas de cortar, era o que mais se aproximava da sua ideia de lar. Mas não disse nada. Sabia que a sua mãe sentia um imenso orgulho por manter a casa tão dentro da moda como a sua roupa. Desde criança que se habituara aos seus ataques de insatisfação sempre

que comprava uma das biblias do design e via o que estava fora de moda. Tiggy voltava a decorar quartos e salas na totalidade, só para estarem na moda, preocupando-se de forma obsessiva até ao último detalhe e não ficava satisfeita até encontrar o abatjour perfeito para um candeeiro ou um novo objecto favorito.

- Sempre dependeu tanto da opinião dos outros? - perguntou Caspar um pouco depois, naquela mesma noite, quando estavam na cama. Olivia subira às escondidas até ao quarto do sótão, sentindo-se como uma adolescente traquinas. Era ridículo que a sua mãe se sentisse obrigada a respeitar as ideias antiquadas do avô quando ele nem sequer estava ali para vê-los.

- Sim - respondeu. - Apesar.

- Apesar do quê? - pressionou Caspar, ao ver que ela suspendera a frase.

- Não sei. Não me recordava que ela fosse tão. Imagino que seja muito difícil para ela. Sempre baseou a sua auto estima na beleza e ainda está fantástica, mas.

- Mas sente-se velha. e começa a estar desesperada - concluiu Caspar no seu lugar.

No escuro do quarto, Olivia concordou. Já se sentia bastante desconfortável com a situação e sentia-se mais culpada ao estar a falar dos defeitos da sua mãe, mesmo sendo com Caspar. Percebera que ele não tinha gostado nada dos elogios de Tiggy e sentia-se dividida entre o desejo de proteger a sua mãe e a vontade de concordar com ele.

Levantou-se da pequena cama e disse:

- Tenho sede. Vou descer até à cozinha e preparar um chá. Apetece- te?

- Sim, obrigado. Queres que vá contigo? Olivia negou com a cabeça.

- Não vou demorar - prometeu e inclinou-se para beijá-lo nos lábios antes de vestir o roupão e caminhar descálça até à porta.

Conhecia a casa bastante bem e por isso não precisava de acender nenhuma luz; para além disso, a lua estava quase cheia e a sua luz clara e definida entrava pelas janelas. Apenas o ranger de algumas velhas tábuas denunciou a sua presença enquanto descia as escadas. No corredor sentiu a fragrância das açucenas, a flor preferida da sua mãe.

A porta da cozinha estava entreaberta e ela hesitou antes de entrar. Ficou tensa ao ouvir que alguém rasgava uma embalagem de comida. Deviam ser biscoitos, deduziu, enquanto ouvia como alguém as engolia

com uma rapidez tal que iria pôr em causa o bem-estar do seu aparelho digestivo.

Devia ser Jack. O mais provável era ter descido às escondidas para comer alguma coisa, deduziu Olivia ao ouvir a porta do frigorífico a abrir. Os rapazes tinham fama de terem um apetite feroz e, a julgar pelos protestos do seu pai durante o jantar, Jack não era uma excepção.

Sem mais demoras, Olivia entrou na cozinha e acendeu o interruptor. A luz inundou a divisão e iluminou a figura encolhida, quase como se sentisse cobardia, em frente à porta entreaberta do frigorífico. À

volta dela, no chão, amontoavam-se embalagens e recipientes vazios de comida, inclusivamente latas, e Olivia elevou os olhos com perplexidade e incredulidade ao contemplar o rosto pálido da sua mãe.

- Tiggy... - sussurrou. - O que é... O que é isto?

- mas enquanto formulava a pergunta, Olivia já conhecia a resposta, como soubera naquela mesma manhã, ao entrar no quarto da sua mãe e descobrir os sacos brilhantes de roupas caras e novas espalhadas por toda a parte e perceber o odor nauseabundo a vómito, que o perfume penetrante da sua mãe era incapaz de esconder. No entanto, ainda tentou negar o que vira, assim como os seus próprios sentimentos vergonhosos de raiva e ressentimento por ter presenciado a desgraça e o desespero da sua mãe. Qual seria a causa do que Tiggy, sem dúvida nenhuma, estava a fazer? Olivia suspeitava que ela já o devia fazer há muitos, muitos anos.

Anorexia, bulimia. Eram as palavras que geralmente associava a adolescentes vulneráveis e quase auto destrutivas, nunca com mulheres maduras com mais de quarenta anos, mas Olivia não podia negar o que os seus olhos viam.

- Mãe. - sussurrou com a voz embargada, à espera que estivesse errada, que a sua mão se levantasse, sorrisse e que o caos que as rodeava desaparecesse; porém, era evidente pelos restos de comida que a sua mãe, talvez por ódio de si mesma, ou por ânsia e necessidade, tinha devorado aquela enorme quantidade de comida e deixara a cozinha num es tado que mais parecia ter sido saqueada por uma dúzia de homens esfomeados.

Pacotes rasgados, latas vazias, embalagens de comida preparada abertas, bocados esfareládos de um pedaço de pão e muito mais coisas cobriam o chão da cozinha como se alguém tivesse acabado de derrubar um balde do lixo.

Olivia olhou para os restos com repugnância. Como é que uma pessoa podia comer tanto? Observou a sua mãe, que estava pálida e com um olhar apagado e cansado. Estava a esforçar-se por respirar com normalidade e massajava lentamente o estômago por debaixo do roupão.

- Porquê? - sussurrou Olivia, desconsolada. Porquê.

- Não sei... Não sei...

Tiggy começara a tremer e a chorar e passou os braços à volta dos joelhos flectidos para atirar-se para a frente e para trás enquanto suplicava a Olivia:

- Não contes a ninguém. Não contes ao teu pai. Não tinha intenção de gastar tanto. Não pude evitá- lo. Percebes, não é verdade?

Mas Olivia, que recordava a sensação que tinha experimentado ao ver os sacos de roupa ainda intac tos pelo quarto, não conseguia encontrar palavras para tranquilizar a sua mãe.

- Não digas nada ao teu pai - repetia Tiggy. - Prometi-lhe que não o voltaria a fazer. Ele não me quer quando estou doente - ouviu a sua mãe dizer, enquanto a olhava com uma expressão patética e com os olhos cheios de lágrimas. - Ele tenta fingir, mas eu percebo. Ele nem se aproxima de mim. Desatou a soluçar, como uma criança ferida. Parecia de facto uma criança, com o corpo encolhido e os braços magros. Olivia queria aproximar-se dela e abraçá-la, mas o cheiro da comida que tinha ingerido, a recordação do cheiro a vómito que dominava o seu quarto revolveu-lhe o estômago e foi incapaz de fazê-lo. foi incapaz de se aproximar dela.

Enquanto engolia em seco para controlar as náuseas, Olivia perguntou-se porque tinham demorado tanto tempo a compreender o que se passava, porque é que não tinham percebido, imaginado.

- Olivia?

Ficou direita ao ouvir Caspar a entrar na cozinha. Esquecera-se por completo do chá e, quando os seus olhares se cruzaram, viu que Caspar compreendera o que se estava a passar com a mesma rapidez que ela.

- Não sabia - sussurrou, como se tivesse de justificar o seu próprio desconhecimento do problema.

Por detrás dela, Tiggy tentava levantar-se com dificuldade.

- Vou para a cama. Estou cansada - disse a Olivia. Falava e movia-se como uma pessoa que estivesse sob o efeito de comprimidos ou de drogas, mas acabava por estar tal foi a quantidade de comida que ingeriu.

- Deixa-a ir embora - disse Caspar, quando Olivia começou a protestar.

Seria aquela a sua mãe?, perguntou-se com horror enquanto contemplava como Tiggy saía a cambalear da cozinha e se dirigia, não ao quarto, mas à casa de banho do andar de baixo.

- Meu Deus - gemeu Olivia. - Meu Deus, Caspar, não...

Automaticamente, começou a apanhar do chão os vestígios deixados pela sua mãe. Parou bruscamente, deu meia volta e os seus olhos encheram-se de lágrimas. Sem dizer uma palavra, Caspar abriu os braços.

Apesar de ainda estar demasiado surpreendida para expressar o que sentia, correu para os braços de Caspar e fechou os olhos para apagar as imagens da sua mãe, que não paravam de torturá-la.

Num mundo que, de repente, se tornara terrível e irreal, o calor do corpo de Caspar enquanto a abraçava parecia-lhe tão familiar como a solidez do seu corpo. Ouvia os batimentos regulares do seu coração, muito mais serenos e lentos do que os dela, sentia o seu cheiro, ouvia a sua respiração, sensações familiares que lhe proporcionavam a segurança desejada. Como era possível que a sua mãe, a sua bonita mãe, esbelta, delicada e frágil, fosse a mesma pessoa irreconhecível que engolia comida como, como.

Começou a tremer violentamente, tão aflita com os seus próprios pensamentos como pela cena que acabava de presenciar.

- Caspar. - enquanto sussurrava o seu nome abriu os olhos e contemplou o seu rosto com aflição; abraçou-o com força e começou a beijá-lo com força e paixão.

Caspar hesitou durante um segundo, mas, como se entendesse o seu anseio, devolveu-lhe os beijos com a mesma ânsia e, como homem que era, apesar de saber que o que a movia era a necessidade emocional e não o desejo físico, começou a excitar-se e elevou as mãos para rodear-lhe os seios.

- Meu Deus, Livvy - disse- lhe com voracidade. Estás tão boa que podia comer-te.

Comê-la!

Olivia ficou rígida, arrancou os lábios dos dele e sentiu náuseas no estômago.

A palavra comer" fazia-a lembrar das imagens horríveis que tentava apagar da sua mente, imagens essas em que a sua mãe se entregava a uma verdadeira orgia alimentar, uma paródia de prazer sexual que lhe proporcionava uma libertação física, uma libertação de qualquer forma de controlo emocional.

- Livvy, que aconteceu? - perguntou Caspar. Continuou a abraçá-la, acariciando-lhe os seios e deslizando com suavidade os polegares sobre os mamilos. Olivia estremeceu com desagrado e empurrou-o. Era o amor de Caspar que queria, o seu apoio, o seu consolo, não sexo.

- Vamos voltar para a cama - sussurrou Caspar.

- Voltar para a cama! - Olivia abriu os olhos e o sentimento de alívio que experimentara ao estar nos seus braços foi substituído por ressentimento e decepção. - Caspar, como é que podes dizer isso?perguntou. - A última coisa que me apetece agora é sexo. a última. Viste a minha mãe, viste-a. - voltou-lhe as costas e começou a dar voltas pela cozinha, enquanto Caspar arqueava as sobrancelhas.

Deveria ter adivinhado, pensou Caspar, deveria estar preparado, mas acreditou que Olivia era diferente. Porém, ali estava ela, deixando evidente que, apesar de tudo o que dissera acerca da relação de ambos, na hora da verdade, a sua família, os seus pais e as outras pessoas eram muito mais importantes para ela do que ele.

Olivia não tinha consciência do que Caspar estava a pensar nem do efeito que produzira nele ao empurrá-lo. Muito menos imaginava os velhos sentimentos de infância de não ser suficientemente bom, suficientemente querido; que tinham voltado a surgir no seu íntimo. Pelo contrário, absorvida como estava no seu próprio sentimento de surpresa, desagrado, medo e culpa, disse-lhe:

- Esta manhã, quando entrei no seu quarto, estava rodeada de sacos de lojas, todos eles repletos de roupa envolta em papel de seda, tudo intacto. Não eram apenas dois ou três sacos, eram dezenas, por toda a parte, e o cheiro. - estremeceu ao recordar o odor fedorento, nauseabundo, que impregnava o quarto dos seus pais. - Devia ter-Lhe dito algo, devia ter feito alguma coisa.

- Como por exemplo? - desafiou Caspar. - É evidente que a tua mãe tem um problema de dependência, Olivia: Fartar-se de comer, de comprar ou de fazer amor são diferentes formas do mesmo problema. Trata-se de uma necessidade compulsiva, uma ânsia insaciável de preencher um vazio que nunca pode ser colmatado com o objecto que gera a dependência.

- Mas devia ter imaginado. Devia ter feito alguma coisa - protestou Olivia, com a voz embargada pelas lágrimas de pena e compaixão pela sua mãe.

Como um adulto que acaba de perceber que falta uma criança, ela sentia-se culpada, indefesa, triste e zangada com a necessidade de resolver o problema.

- O quê? - perguntou Caspar novamente uns instantes depois, já com as emoções mais estabilizadas, pelo menos assim parecia.

Ao contrário dela, Caspar não parecia muito afectado com o problema da sua mãe, pensou Olivia. Claro que Caspar, como já tinha percebido, era um tanto imperturbável, quase insensível e podia refugiar-se por detrás de um muro sempre que queria.

- O instinto de protecção - foi o nome que lhe deu, numa ocasião em que ele e Olivia falaram sobre isso. - Todas as pessoas precisam disso.

- Não sei, alguma coisa - respondeu Olivia, enquanto o observava. - Deve haver algo que eu possa fazer para. para ajudá-la - balbuciou ao ver o cinismo reflectido no rosto de Caspar.

- Que poderias fazer? - gozou. - Eu diria que a tua mãe está há muitos, muitos anos a sofrer desta dependência. Claro que precisa de ajuda, mas de ajuda profissional. O que estás a fazer agora - acrescentou com ênfase, enquanto apontava para o chão repleto de desperdícios que Olivia estava a recolher.

- Apenas ajuda a que ela continue a fazer o que faz. Na verdade, estás a animá- la para que continue.

- Não, isso não é verdade - contrapôs Olivia, ma goada. - Só estou a limpar para se, por acaso.

- Se por acaso o quê? - desafiou Caspar. - Se por acaso alguém se aperceber do que está a acontecer? Não achas que o teu pai já deve saber? Talvez tenha fechado os olhos, mas a cena que presenciámos não é mais do que uma entre muitas - quando Olivia mordeu o lábio, ele insistiu na sua ideia, enquanto continuava a apontar para o chão. - A melhor maneira de ajudar a tua mãe não é encobri-la nem protegê-la, mas sim obrigá-la a enfrentar a realidade e a procurar ajuda profissional.

- Mas Caspar, tu viste-a, era. é.

- Uma dependente - repetiu Caspar, implacável. Pára para pensar numa coisa, Olivia. Se tivesses descido até à cozinha e tivesses visto o teu pai rodeado de garrafas vazias de álcool, estarias disposta a recolher tudo e a ajudá-lo a esconder o que faz? Não percebes? - perguntou. - A natureza da dependência é a mesma. O que distingue é apenas a substância, -o padrão de comportamento ao qual a tua mãe se escravizou para esquecer-se da realidade, da vida.

- Não quero continuar a falar disto esta noite - interrompeu Olivia. - Não posso. Amanhã é a festa e não. - fechou os olhos e tentou reprimir a onda de pânico que a ameaçava. Era ridículo saber que a descoberta a superava, que não queria enfrentá-la. Mas alguém teria de fazê-lo. Desde quando se comportava assim? Será que mais ninguém tinha visto, percebido. ouvido que era sem dúvida um grito de um pedido de ajuda, um gemido silencioso de uma alma torturada? E Caspar não estava a ajudá-la. Porque é que não se mostrava mais tolerante, mais compreen sivo? Como é que não conseguia compreender que ela se sentia culpada por ter seguido em frente com a sua vida sem estar consciente do que acontecia na sua própria casa?

Quando chegaram ao cimo das escadas, quase que foi um alívio voltar-se e revelar:

- É melhor que eu durma no meu quarto, por. Se por acaso.

- Se por acaso o quê? - desafiou Caspar, com azedume. - Se por acaso a tua mãe precisar de ti? – moveu a cabeça. - Estás a entrar num beco sem saída, Olivia - avisou-a. Mas Olivia girou a cabeça com rebeldia e limitou-se a oferecer-Lhe a face para que ele a beijasse, mantendo assim a distância entre os seus corpos.

Não se apercebia do quanto estava triste, de como estava surpreendida, do quanto precisava que ele estivesse do seu lado que lhe demonstrasse que a compreendia, que se preocupava? Por acaso não podia deixar de lado os seus princípios e aproximar-se dela, em vez de esperar que Olivia desse o primeiro passo?

- Para ti é muito fácil julgares a minha mãe e dizeres o que é que ela deve fazer - disse-lhe, com um tom cansado. - Mas estamos a falar da minha mãe... Deixa, é inútil - moveu a cabeça, demasiado exausta emocionalmente para continuar a discutir com ele, apesar de esperar que, enquanto ele subia as escadas, desse meia volta e voltasse a aproximar-se

dela. Mas, claro, não o faria... não o fez.

Ah, não, os seus princípios eram demasiado importantes. Mais importantes, de facto, do que o que ela sentia... do que ela própria.

 

Ruth abriu os olhos cuidadosamente e inspirou o ar com um suspiro de alívio. O meteorologista tinha acertado; ia estar um dia bom.

Tinha deixado as cortinas abertas e conseguia ver o claro e límpido azul do céu ao amanhecer, que já começava a ser dourado devido à força do sol nascente de Verão.

Sentou-se na cama e começou a trautear uma das suas canções religiosas favoritas, não que fosse uma pessoa especialmente católica, mas porque, por viver tão perto de uma igreja em que cantava um dos melhores coros do estado, tinha-se acostumado a ouvi-los cantarem e aquela canção alegre parecia-lhe apropriada para começar um novo dia.

Claro que o tempo não a preocupava especialmente, para além do efeito que poderia ter nos seus arranjos florais. Mas era importante para Jenny e Jenny era importante para Ruth, muito mais do que o que a própria Jenny imaginava. Na realidade, no fundo do seu coração, tinha por ela o mesmo afecto e carinho que a uma filha, se a tivesse tido.

O seu rosto ensombrou-se ligeiramente enquanto caminhava descalça pelas tábuas enceradas do quarto, cuja intensa cor escura era interrompida aqui e ali por tapetes macios.

Ruth sabia que o seu irmão, Ben, iria ficar zangado com ela por andar com os pés descalços e com o corpo nu, um corpo que talvez já não fosse a visão mais bonita do mundo, reconhecia com ironia. Afinal, já estava quase nos setenta mas, graças a Deus, nos seus últimos anos de vida não tinha de estar limitada pelos preconceitos e pelos desejos dos homens da sua família. Sim, preferia dormir como Deus a trouxera ao mundo em vez de usar uma camisa larga que a sociedade considerava apropriada para uma mulher de sua idade, e por isso iria continuar a fazê-lo.

Nem sempre tinha desfrutado daquele género de liberdade, nem de perto, e talvez por isso a valorizasse ainda mais.

Enquanto jovem, os seus pais vigiaram de perto o seu comportamento, em particular, o seu pai; ele tinha ideias muito antiquadas acerca do modo como uma jovem devia ser educada e da forma como devia comportar-se. Ruth parou a caminho da casa de banho, com o claro e brilhante azul dos seus olhos ensombrado pela tristeza. Enquanto jovem, muitos homens tinham ficado cativados pelo brilho e vivacidade dos seus olhos. Mais do que um tinha chegado a declarar-se a ela, mas foram tempos trágicos, em que os jovens que estavam a chegar à maturidade estavam também quase a alcançar a morte, pois iam para a guerra sem saber se sobreviviam, e por isso.

Tinha coisas melhores para pensar naquela manhã do que no passado, pensou Ruth energicamente, enquanto entrava dentro da banheira. Iria ocupar quase toda a manhã a fazer os arranjos de flores para a festa, se tudo corresse conforme tinha sido planeado.

Pieter chegaria em menos de uma hora. Ruth tinha combinado encontrar-se com ele em Queensmead, o que o pouparia de transportar as flores até à mansão e correr o risco de as estragar. E, sem dúvida, quando chegassem, Ben estaria preparado para se queixar e para protestar. Ruth e o seu irmão mais velho nunca tinham concordado em muitas coisas. Ele lembrava-lhe muito o seu pai. Por outro lado, Hugh agradava-lhe mais.

Os filhos de Ben eram seus sobrinhos, mas gostava de Jenny, a mulher de Jon, mais do que de qualquer outra pessoa. E, em relação à outra geração, nunca escondera a sua aversão para com Max, apesar de ele ser o preferido de Ben... apesar ou por isso mesmo. Nem mesmo o facto de ele ser filho de Jenny fazia com que ganhasse a sua simpatia, mas tanto Olivia como as gémeas tinham todo o seu afecto. Em relação a Joss, o nome era a única coisa que tinha em comum com o seu bisavô. Uma mãe não podia ter um favorito, mas uma tia-avó não tinha esse género de restrições.

Esperava com ansiedade as visitas inesperadas de Joss, que quase sempre aparecia à porta da sua casa com um pequeno e estranho presente. Estranho para as outras pessoas, claro. Ela não via nada de estranho nas pedras lisas que encontrava no rio neni nos fósseis que uma vez encontrou numa das suas viagens pelo campo; nem o porco-espinho que salvou uma vez nem a ninhada de gatinhos, que encontrou abandonados e quase afogados dentro de um saco na lagoa. O porco-espinho recuperou e ficou a viver no jardim das traseiras; os gatinhos sobreviveram e acabaram por viver em casas diferentes; e as pedras lisas e os fósseis ocupavam um lugar de honra numa das estantes do velho escritório. Ruth recusou-se a recolher a cria de raposa, pois acreditava que ela teria melhores cuidados num refúgio de animais, mas foi visitar o lugar com Joss e acompanhou-o quando fi nalmente soltaram a cria, já recuperada.

Ruth acompanhava-o nos seus longos passeios pelo campo e ela partilhava o seu conhecimento sobre aquela zona e a sua história. Joss era o seu elo com o futuro, da mesma forma que ela era o elo do pequeno com o passado. Sem saber como, entre os dois existia um laço que os unia, como Ruth nunca se tinha sentido unida a nenhum membro da familia.

A Ben não lhe agradava aquela amizade e Ruth sabia que, por Joss ser um primogénito, não poderia se guir as suas próprias vontades e desejos. Não sabia se havia de rir ou de chorar por saber que, de todos eles, Joss seria o que mais facilmente satisfaria os desejos e as ambições do seu pai.

O Direito não era para o rapaz uma profissão im posta, mas sim uma vocação. Durante um dos passeios pela cidade, Joss tinha-lhe ensinado imensas coisas sobre a importância que os romanos tiveram na sua civilização e centrara-se não, como teria feito qualquer outra criança na sua destreza combativa nos seus feitos ou nos seus progressos técnicos, mas sim nas suas leis.

Ah, sim, Joss era um Crighton e, embora ainda em potência, era já o melhor de todos eles.

Olivia também era uma Crighton, claro, mas no mundo de Ben, as mulheres Crighton não contavam para nada.

Ela também sonhou um dia em exercer a profissão. Sem dúvida, tinham sido tempos muito mais difíceis, mas já naquela altura era uma jovem inteligente que se propôs a ter um lugar na universidade. Infelizmente, a guerra mudou tudo. Quando Ben ingressou na aviação, ela teve de limitar-se a ajudar o seu pai, tanto no escritório como em casa.

Sim, o seu pai precisou dela durante esses anos turbulentos. Mas, quando a guerra terminou, tudo mudou para Ruth porque...

Moveu a cabeça com energia. Que se passava? Não servia de nada pensar no passado, não podia alterá-lo. Não havia meio de voltar atrás, mas ao ver Jenny no cemitério no dia anterior, ajoelhando-se em frente à campa do seu primeiro filho...

Lembrou-se da sua expressão ao abandonar o cemitério. No Outono, Ruth e Joss tinham plantado lírios brancos à volta da campa.

- O branco é bom para os bebés - comentou Joss com firmeza enquanto fazia os buracos.

Também plantaram outras flores ao redor do jazigo familiar e debaixo do monumento em honra dos homens mortos na guerra. O noivo de Ruth era um deles. Conheceu-o através de Ben, porque ambos se tinham formado como pilotos de combate. Charles foi morto em França; primeiro foi dado como desaparecido e depois como morto. Era fillho único e os seus pais nunca conseguiram recuperar a sua perda.

Charles... Já apenas se lembrava do seu rosto e, mesmo assim...

Os sinos da igreja anunciaram a hora e Ruth apressou-se a terminar o duche. Não seria correcto deixar Pieter à mercê de um dos ataques de mau humor de Ben.

Jenny também acordou cedo e, como Ruth, suspirou com alívio e deu graças aos poderes celestiais pelo céu azul e pelos raios dourados do sol da manhã.

Ao seu lado, Jonathon ainda dormia, embora não muito suavemente. Ele acordara-a duas vezes durante a noite por sonhar alto, coisa que fazia sempre que algo o preocupava. Jenny só tinha entendido o nome do seu irmão intercalado nos seus murmúrios tristes. Não era estranho, mesmo nada, que a sua preocupação para com David fosse o que perturbava o seu sono.

Enquanto contemplava o rosto adormecido de Jo nathon, sentiu uma onda arrebatadora de afecto e amor. Com muita suavidade, inclinou-se sobre ele e beijou-o, sem saber se devia sentir-se aliviada ou triste por ele continuar a dormir.

Em momentos diferentes do seu casamento, tinha-se enfurecido e indignado ao ver como o seu marido colocava sempre David à frente de tudo, apesar de saber que era uma reacção involuntária que o pai dele lhe tinha incutido desde que nasceu. Afinal, ela mesma tinha testemunhado a relação que existia entre David e Jonathon, não só como mulher de Jon mas, ao princípio, como namorada de David.

Namorada de David. Como estava iludida e apaixonada aos dezasseis anos quando David a convidou para sair pela primeira vez.

Algum tempo depois, descobriu que ele apenas o tinha feito por engano, já que ele pretendia convidar uma das suas colegas de turma. Mas, depois de ouvir o rumor que ela pretendia rejeitá-lo, desviou a sua atenção para Jenny, só porque ela se sentava ao lado da outra rapariga. Quando David lhe contou isto riram-se juntos, embora o riso de Jenny estivesse recheado de dor.

Sempre soubera que, em relação ao aspecto físico, não estava à altura de David, como também acreditara, quando ele Lhe contou a verdade, que ele estava realmente apaixonado por ela. Ela acreditou nele, pelo menos durante um breve espaço de tempo, o suficiente para...

David e ela começaram a sair juntos oficialmente quando Jenny completou dezassete anos e, embora aparentemente a sua familia ter aceite a relação dos dois, ela sabia que aos olhos do pai de David, e não da sua mãe, ela não era suficientemente boa para ele.

Ainda se lembrava das tardes húmidas de Inverno em que assistia aos jogos de rugby de David, com o pai dele junto a ela, apoiando ostensivamente o seu filho enquanto aproveitava a oportunidade para falar com Jenny acerca dos planos e esperanças que tinha para ele. Durante essas conversas, Jenny descobriu o brilhante futuro que o esperava e que acabaria por o afastar dela.

Não fazia sentido que ela, a filha de um fazendeiro de Cheshire, tivesse esperanças em acompanhar David até à universidade. Os seus pais já tinham planeado o seu futuro tal como Ben planeara o de David. Assim que terminasse a escola secundária, iria formar-se como recepcionista num dos grandes hotéis de Chester. Os seus padrinhos tinham bons contactos e Jenny tinha praticamente o emprego assegurado. Entretanto, continuaria a ajudar na fazenda, onde as mãos eram sempre insuficientes e não havia lugar para preguiças.

Sim, sempre soubera qual seria o desfecho daquela história, pensou Jenny, e por isso mesmo recusou que David Lhe oferecesse um anel de compromisso para comemorar a sua passagem nos temidos exames de admissão de Oxford. Para Jenny, foi um alívio. Sabia perfeitamente quem é que os pais de David teriam culpado, principalmente o seu pai, caso ele não tivesse passado.

A noite em que lhe disse, a noite em que fez aquilo que o pai de David esperava que ela fizesse, o que a estava a avisar há meses, ficaria para sempre guardada na sua memória. No princípio, David não podia acreditar que tudo tinha terminado, que chegara o momento de se separarem. Depois ficou furioso e, segundo pensava Jenny, também um pouco aliviado.

David nunca gostara de ser objecto de críticas, pois desejava que o vissem como um modelo de perfeição. Entre o seu círculo de amigos, absteve-se de contar que tinha sido ela quem acabara com a relação, e apenas Jonathon parecia suspeitar da verdade e adivinhar que ela o fizera para o bem de David, porque sabia que ele precisava de liberdade e que, enquanto estivesse na universidade, ela apenas seria um estorvo e, talvez, até mesmo motivo de vergonha.

Ao contrário de David, Jonathon não ia estudar em Oxford, embora tivesse boas notas, inclusivamente melhores do que as do seu irmão. Mas não estava previsto que Jonathon subisse às esferas mais altas da advocacia. Ele estudaria Direito, sim, mas a um nível mais modesto do que David.

Ninguém ficou surpreendido quando Jonathon e Jenny anunciaram que se iam casar, mas o nascimento de Harry, que aconteceu sete meses depois do casamento, teria dado lugar para muitos mais rumores do que na realidade aconteceram se ele não tivesse tido morte quase imediata.

Nessa altura, ela propôs a Jonathon o divórcio. Afinal, o motivo pelo qual se tinham casado já não existia, mas Jonathon recusou e disse- lhe firmemente que, para ele, o casamento era para toda a vida, e Jenny estava demasiado afectada pela morte de Harry para discutir.

E eles tinham acabado por ter um bom casamento, pensou firmemente, apesar de...

Moveu a cabeça e lembrou-se que tinha muitas coisas para fazer e que não podia ficar na cama a remoer o passado. Tinha de ir o mais cedo possível para Queensmead para resolver qualquer problema que pudesse surgir.

Jonathon esperou ter a certeza de que Jenny estava a tomar banho para abrir os olhos. Tinha sentido o beijo e pensou se devia acordar ou não, mas preferiu conter-se e fingir estar a dormir, temendo ter que responder à hesitante iniciativa da sua mulher.

Não tinha dormido bem, o seu descanso fora quebrado por alguns pesadelos. Num deles, voltara a ser novamente um menino e procurava um livro da escola que tinha perdido, consciente de que não o encontraria e que teria de assumir a responsabilidade pelo seu desaparecimento apesar de, na realidade, o livro ser de David.

Como um menino, fechou as pálpebras com força para apagar a memória. Mas não podia continuar a ignorar certos detalhes que era necessário clarificar e que o atormentavam no começo daquele novo dia. O dia do seu aniversário. Não só dele, nunca só dele, sempre de ambos, de David e de Jon. De David...

Quando o barulho da água parou, manteve os olhos fechados, embora soubesse que Jenny iria descer as escadas directamente, sem voltar ao quarto. A sua mulher tinha trabalhado imenso para organizar a festa, mas, em vez de a esperar impacientemente, temia-a. Tinha um mau pressentimento, sentia uma nuvem escura, quase física.

Do passado chegou o eco furioso da voz do seu pai durante outra manhã de aniversário, o sétimo, quando Jon foi encontrado com os olhos cheios de lágrimas e de raiva.

- Mas eu não queria uma bicicleta nova... Queria outra coisa, algo diferente, algo que o David não tenha

- desabafou com o seu pai, com um tom de dor. Ainda

se conseguia lembrar de como o seu pai ficara furioso.

- Tu tens ciúmes do teu irmão, é isso que se passa - acusou Ben. - Meu Deus, eu não posso acreditar nisto.

Tu não percebes como tens sorte por ter um irmão.

Jonathon, às vezes, não se sentia assim tão afortunado e, quando tinha apenas sete anos, tinha sido suficientemente ingénuo para revelá-lo, embora de uma forma indirecta, ao protestar por causa do seu presente de aniversário, a bicicleta nova escolhida por

David. Ele teria preferido uma pista de comboios.

Cinquenta... Como é que os anos tinham passado?

Que tinha feito com eles? O que guardava de bom de todo esse tempo? Ultimamente, fazia a si mesmo essas perguntas com uma frequência crescente, consciente de que não tinha nenhuma resposta satisfatória ou tranquilizadora.

Sim, tinha sido um filho obediente, um bom irmão, marido e pai, mas e ele? Sentia como se apenas se conhecesse, como se não tivesse uma identidade própria, como se estivesse condenado a ser apenas o irmão de David... o gémeo de David, a sua sombra. Mas porque é que, naquela altura, aquela ideia o transtornava tanto, quando levou tantos anos a conformar-se que iria sempre estar em segundo plano? Porque sentia uma necessidade crescente de ser algo mais, de fazer algo mais? Seria uma simples crise provocada pela idade?

Não era o dia apropriado para responder a essas perguntas, pensou Jonathon, cansado, quando ainda restavam outras questões ainda mais perturbadoras para resolver. Perguntas que não se limitavam a si próprio, mas também à vida de outras pessoas, ao seu futuro. Perguntas que teriam de ser esclarecidas o mais cedo possível.

Mas não naquele dia...

Em Pembrokeshire, Hugh Crighton também acordou cedo. A impossibilidade de continuar a dormir quando os primeiros raios começaram a entrar pelas janelas da sólida casa de pedra deveu-se, não à ansiedade pela festa que se realizava naquele dia, mas devido ao choro persistente da sua neta mais pequena, Meg.

Saul, o seu filho mais velho, e a sua mulher, Hillary, tinham chegado no dia anterior, ao final da tarde, acompanhados pelas três crianças, várias horas depois da hora prevista para a sua chegada. Os dois adultos estavam de péssimo humor e as três crianças não paravam de reclamar.

Hillary, a mulher americana de Saul, e a sua própria esposa, Ann, tinham feito a cama para as crianças enquanto ele, Saul e o seu filho mais novo, Nicholas, abriam uma garrafa de vinho.

Como Nicholas comentara com os seus pais depois do jantar, Saul e Hillary estavam a atravessar uma séria crise matrimonial.

- Todos os casais têm dificuldades em alguns mo mentos do casamento - disseram ambos, com um tom protector.

- Sim... Mas há problemas e problemas - respondeu Nicholas, recusando-se depois a clarificar melhor a sua afirmação.

Hugh sabia que o casamento de Saul e Hillary atravessara momentos turbulentos, mas era a primeira vez que via as crianças claramente afectadas pelas discussões dos seus pais.

Saul tinha tendência a recolher-se dentro de si mesmo, com uma atitude altiva e desdenhosa quando se zangava, um hábito que irritava profundamente Hillary, que era muito mais sentimental e mais in constante. Saul conseguia ser exasperante, Hugh sabia-o, mas Hillary parecia gostar de avivar o fogo daquela faceta da sua personalidade, em vez de usar a sua diplomacia e o tacto de mulher para o mudar.

- Será melhor que Hillary não te oiça dizer isto - avisou Ann quando Hugh expressou a sua opinião. É uma mulher moderna e as mulheres modernas não acreditam em mudar os homens.

- É verdade - afirmou Hugh com pesar. No decurso da sua trajectória profissional, tinha sido testemunha de consideráveis provas desse defeito das mulheres não conseguirem utilizar us atributos que a natureza Lhes tinha oferecido, o que ele lamentava profundamente.

Talvez tivesse uma visão antiquada, mas tinha a sensação de que as relações entre os homens e as mulheres tinham perdido alguma coisa com a chegada do feminismo. Graças a Deus, Ann, tal como a sua mãe, era uma mulher afectuosa, calada e amável, das que não queriam nada mais além de ter muitos filhos e mimá-los.

Tinham tido um casamento sólido e feliz e, se de vez em quando, as hormonas o tinham levado a virar a cabeça ao avistar uma perna de uma mulher esbelta ou a curva de alguns peitos bonitos, Hugh sempre tivera o bom senso de se lembrar de que poderia deitar tudo a perder se obedecesse ao seu instinto natural.

A pequena Meg tinha parado de chorar mas já era muito tarde para voltar a adormecer.

Ben esperava-os para o almoço.

Saul também ouvira o choro de Meg e levantara-se para acalmá-la. Também estava a pensar naquilo que o dia lhe reservava. Ele gostava de reuniões familiares, mas iria manter-se o mais longe possível de David. A Saul irritavam-lhe solenemente os homens que caminhavam pela vida com tanta despreocupação, tão satisfeitos e orgulhosos de si mesmos que esperavam que os outros tivessem automaticamente a mesma auto estima e respeito que, no seu caso, tinha recebido do seu pai e do seu avô e que, obviamente, não merecia.

Sim, David tinha o carisma, a confiança em si mesmo que podiam enganar um novo conhecido mas, na opinião de Saul, a personalidade dele não tinha uma base profunda e real. Mais ainda, ficava triste com o egoísmo de David e a sua falta de consideração pelos outros. Detestava que as pessoas se deixassem enganar tão facilmente pelo charme superficial de David e detestava ainda mais sentir-se ele mesmo ferido por causa daquele atributo e, às vezes, reconhecia que também sentia ciúmes dele.

Até naqueles momentos, já adulto, ainda se sentia incomodado porque a reacção que David despertava nele fazia-o pensar nos aspectos contraditórios da sua própria personalidade, que ele preferia passar por cima. No geral, era um profissional sério e rendido ao seu trabalho, mas também possuía uma faceta menos aceitável, pelo menos para ele, uma tendência para desejar a popularidade, querer ser o centro das atenções e, sim, causar admiração nos outros, uma fraqueza que ele repugnava e da qual sentia receio.

Não era tanto as diferenças entre David e ele que o faziam odiar David e, até certo ponto, Max, que era o mesmo tipo de homem, mas sim as semelhanças. Temia que as fraquezas que encontrava neles fossem uma característica genética que ele também tivesse herdado e que, embora estivesse controlada, algum dia poderia aparecer à superfície e.

E o que o fazia sofrer era que Hillary não se apercebera de nada, não quisera nem era capaz de o amar o suficiente para tentar compreender os motivos da sua aversão por David.

David acordou tarde, principalmente, porque tinha acordado durante a noite ao ouvir Tiggy na casa de banho. Sabia o que isso significava, claro, e tinha dado meia volta na cama e tapado os ouvidos, para tentar não ouvir o barulho dos seus vómitos.

No princípio do seu casamento, quando acreditou ingenuamente que as constantes náuseas se deviam à gravidez e, depois, ao seu delicado estômago, invadia-o uma mistura de impotência e preocupação, mas aproximava-se de Tiggy com o desejo de a ajudar a reduzir o seu mal- estar, embora o barulho e o odor dos vómitos Lhe revolvessem o estômago. Naquela altura, ele amava-a, estava enfeitiçado pela sua beleza frágil e pelo sentimento de alívio e triunfo que sentia após ter-se casado com ela. Triunfo por ter conquistado aquela bela mulher e tê-la arrancado de todos os homens que a cortejavam em Londres, e alívio porque a gravidez e o casamento deles tinha desviado a atenção geral da verdadeira razão pela qual tinha abandonado o escritório e os seus planos de entrar na Ordem dos Advogados.

Por conveniência e devido a um grande jogo mental, tornou-se parte do folclore da história da familia. David tinha voltado para casa por causa da sua mulher, do seu desejo de fazer a coisa mais honrada e permanecer próximo de Tiggy. Pelo menos publicamente, a sua decisão de abandonar a preparação para entrar na Ordem foi vista não como um acaso, mas como um tributo ao seu sentido de honra e de nobreza.

Só a familia mais chegada sabia qual tinha sido a verdadeira razão, e até mesmo eles...

Aos clientes tinha dado a entender com delicadeza que Jon não conseguia dar conta do recado no escritório da familia e, quando alguém lançava o tema para a conversa, David encolhia os ombros com modéstia e assegurava que não estava muito desapontado por ter abandonado um futuro profissional brilhante, e todos os que o ouviam fazer tal afirmação concluíam que um homem que colocava o dever e a responsabilidade para com a família antes de tudo era, certamente, um homem correcto, honesto e imaculado, no qual podiam confiar os assuntos legais mais confidenciais.

O negócio prosperou, e se Jon alguma vez tinha lamentado que o consideravam o menos capaz de ambos, nunca o tinha referido. Mas, claro, Jon não era o tipo de homem que costumasse expressar os seus pensamentos e emoções. Quando pensava na rapidez com que se tinha casado com Jenny depois da ruptura deles, sem nunca Lhe ter dito nem uma única palavra sobre o amor que sentia pela antiga namorada dele.

Ficou tenso ao notar que Tiggy se movia na cama. Fingiu estar a dormir, mas ela já estava a esticar o braço para acariciá-lo, e deslizava as pontas dos dedos com voracidade sobre o seu peito. David ficou espantado, embora soubesse que aquela onda de energia sexual significava que aquele seria um dos seus dias bons.

Já conhecia as suas mudanças de humor na perfeição. Obedeciam a um padrão fixo e por isso sabia-as de cor. Ficava nervosa durante toda a semana, sentimental, carente, exigente, tão depressa como furiosa e amargurada, e com tanto ardor em cada uma das situações que parecia impossível que o seu corpo frágil pudesse resistir a emoções tão intensas.

David sabia exactamente o que acontecera: frenéticas idas às lojas, compra de roupas, sapatos, maquilhagem, qualquer coisa que enchesse os bonitos sacos das lojas que nunca chegavam a ser abertos, pois ela escondia-os como sinal de agonia, de culpa e de ódio para consigo própria. Ao mesmo tempo, iria humilhar-se diante dele, cheia de remorsos, implorando para que ele a perdoasse, enquanto prometia que nunca mais faria aquilo, pedindo-lhe com um tom melodramático que lhe tirasse o livro de cheques, os cartões de crédito, tudo. Mas porquê?

No passado, tinha jogado o seu jogo, acreditara nela, pensara que ela estava a falar a sério, mas para quê aborrecer-se a destruir um livro de cheques quando sabia que ela tinha outros escondidos, e outros cartões de crédito? Claro que tinha de jogar o jogo de acordo com as normas, e não podia dizer essas coisas. Tiggy deveria fazer o papel de suplicante envergonhada até ao fim, e não parava de pedir desculpas até ele lhe conceder o perdão que ela exigia.

Depois chegava a calma... às vezes durava vários dias, outras vezes algumas horas, e logo começava tudo novamente: ela levantava-se às escondidas da cama a meio da noite, desapareciam inexplicavelmente montanhas de comida da cozinha e depois...

A primeira vez que percebeu que os acessos de náuseas não eram causados por nenhuma fraqueza do estômago nem pelo facto de, como sempre pensara, ela apenas comer o suficiente para viver, mas sim devido ao consumo indiscriminado de alimentos, ficou estupefacto.

Depois, claro, ela provocava os vómitos e só ficava satisfeita quando tinha esvaziado completamente o estômago. Quando o corpo dela deixava de estar inchado e recuperava o seu aspecto esbelto, frágil e delicado, então, só naquela altura, ficava totalmente aliviada e essas eram horas maravilhosas, em que se sentia relaxada e em paz, como um toxicodependente depois de ter injectado uma dose de droga. Ficava satisfeita e serena, até que o ciclo começava novamente devido à sua necessidade insaciável de se sentir amada. O não deixar que ele lhe tocasse porque pensava que tinha um corpo horrível vinha sempre após uma necessidade quase doente de sexo.

Ultimamente, o desejo sexual de Tiggy, durante o que ele considerava os seus momentos de loucura, era cada vez mais intenso.

O sexo. Meu Deus, que ironia. E pensar que quando a conheceu, quando se casaram, a tinha desejado tanto.

Agora, apenas a ideia de tocar-lhe, de ser tocado por ela, incomodava-o, como naquele preciso mo mento, e provocava-lhe suores frios de impotência e de rejeição física não apenas por ela mas por tudo o que estava relacionado com sexo.

Mesmo tendo consciência de que rejeitá-la só iria acelerar o horrível ciclo do seu comportamento incontrolado, ele era incapaz de reagir de outra forma. Não era apenas por não a desejar, era por... o quê? Ela chateava-o, ele odiava-a, culpava-a pela sua infelicidade.

No princípio, antes de entender que aquilo não fazia sentido, que a situação... que não tinha solução, tentara persuadi-la a procurar ajuda profissional. A reacção de Tiggy foi uma tentativa de suicídio. Telefonou-lhe para o trabalho para lhe dizer que depressa estaria livre dela e David foi a correr para casa e encontrou-a deitada na cama, nua e bêbada, com um frasco vazio de comprimidos ao seu lado. Por sorte, o médico mostrou-se muito compreensivo, mas isso tinha acontecido há quinze anos atrás e David sabia que uma situação idêntica não seria tratada com a mesma discrição se acontecesse naquela altura.

Tiggy continuou a acariciá-lo até à barriga. David ficou rígido, consciente de que o seu sexo estava e continuaria num estado relaxado.

Debaixo dos lençóis, Tiggy movia-se na direcção dele, esfregando os seus peitos nus contra o braço de David. Ele fez uma careta. O cheiro a vómito continuava impregnado na sua pele, ou talvez fosse o seu suor, pensou enquanto engolia em seco para tentar controlar as suas próprias náuseas. Quando Tiggy se inclinou sobre ele para o beijar, o seu hálito cheirava a hortelã, mas o que ela ingerira não conseguia esconder totalmente o cheiro azedo das suas actividades nocturnas. A casa de banho também tinha um cheiro horrível e, como Olivia estava em casa, não podia usar a outra casa de banho sem correr o risco de levantar suspeitas.

Olivia... sem dúvida, fora a sua chegada que precipitara o último ataque de Tiggy. É verdade que ultimamente nem sequer precisava de grandes desculpas, pois qualquer coisa lhe servia. Também estava cada vez mais preocupada porque estava a envelhecer, e namoriscava descaradamente com homens jovens, comportando-se de um modo completamente inadequado para a mulher de um homem com a posição dele. Até àquele momento, David acreditava que ela ainda não chegara ao ponto de ter uma aventura, mas suspeitava que, se tivesse oportunidade...

Uma aventura. Meu Deus, era bom que tal acontecesse. Tiggy encontraria outro homem disposto a aguentar a carga indesejada das suas necessidades físicas e emocionais, a sua necessidade constante de se sentir querida, as suas acusações em prantos a acusá-lo de que não a amava, que havia outra mulher, que já não a desejava.

- Feliz aniversário, querido...

Em silêncio, aguentou a intimidade não desejada do beijo, sem ousar contrariá-la ou afastar-se dela e, ao mesmo tempo, ansiando poder fazê-lo. Tiggy estava a tocar-lhe no pénis naquele instante. Ele fez uma expressão de insatisfação.

- Coitadinho, está tão triste - sussurrou-lhe ao ouvido. - Não queres brincar um bocadinho?

David cerrou os dentes.

- Está doente ou zangado? - gozou Tiggy. - Queres que a mamã o acaricie e lhe dê um beijo para lhe aliviar o sofrimento?

David tremeu com violência, devido ao sentimento de rejeição e de aversão.

- Precisamos de levantar-nos - lembrou. - O aniversário...

- Pensava que era isso que estava a fazer - respondeu Tiggy, fazendo beicinho, mas David já se ti nha afastado dela e mandado o edredão para o chão.

- Ontem à noite disseste que ias ajudar Jenny - recordou-Lhe, enquanto vestia o roupão.

David começava a estar velho e cansado, pensou Tiggy. Acabara de acariciar o seu flácido e pequeno pénis e isso não era nada erótico. Ao contrário dela, não estava preocupado em cuidar do seu aspecto físico, para continuar magro e em forma. Tiggy acariciou o seu estômago. Graças a Deus, estava firme e liso. Suspirou com alívio e examinou as suas unhas pintadas. Tinha um arranhão numa delas. Fez uma careta. Devia tê-lo feito na noite anterior, quando... Imediatamente afastou aquele pensamento.

O que tinha acontecido na noite anterior? Não queria nem precisava de pensar naquilo durante o dia. Já passara e agora o melhor era esquecer... Tratava-se de um hábito tolo e mau, que adquirira desde jovem mas que podia largar assim que quisesse. David sabia disso e ela também. Sabia que não tinha sido muito sensata ultimamente, gastando mais do que era necessário, mas David não percebia como por vézes ela se sentia aborrecida. Ele passava todo o dia no escritório, mas ela ficava em casa, sozinha.

Sim, tinha amigas... mas ela não era como Jenny, o género de mulher que se entregava às obras de caridade, às crianças e à cozinha. Precisava de algo mais. David deveria levá-la a jantar fora mais vezes, devia dar-lhe mais atenção, demonstrar que ainda a desejava. Tinha quarenta e cinco anos, mas continuava a ser bonita e desejável. Sim, Olivia era mais jovem que ela, mas nunca seria tão atraente. Com a idade de Livvy ela podia ter quantos homens quisesse, mas já se tinha casado com David e já era mãe.

O vestido para a festa estava pendurado na porta do quarto. Era um vestido justo, em tom prateado, que parecia ter milhares de pérolas quando ela se movia. Era mesmo o seu número e assentava-lhe como uma luva. Voltou a tocar no seu estômago. Ouviu o barulho da água. David ainda estava a tomar banho. Talvez fosse melhor experimentá-lo novamente, para ficar tranquila.

 

- Posso ajudar em mais alguma coisa?

- Não. Parece-me que já terminámos - disse Ruth a Olivia, enquanto dava um passo atrás para contemplar o arranjo da mesa principal e compunha algumas flores com ar pensativo.

- As flores são muito bonitas.

Ruth dirigiu um olhar carinhoso a Olivia, deixando a sua sobrinha feliz. Notava na voz dela uma admiração genuína e sabia qual era o motivo.

- E o que esperavas? - brincou. - Algo espalhafatoso e pomposo, flores tão tesas que iriam parecer mais artificiais do que naturais, coitadinhas? - moveu a cabeça, em sinal de repreensão.

- Algo desse género - Olivia desatou a rir. - Certamente, não esperava nada como isto.

Apontou para a espectacular cascata de flores naturais, feita numa base de argila rodeada com musgo... um tema que Ruth tinha utilizado para enfeitar toda a tenda, mas de diferentes modos. Usara musgo, frutas e até mesmo legumes, além de flores para criar as cascatas de cores maravilhosas que Olivia estava a admirar.

- Não é de estranhar que a tia Jenny tenha insistido na cor creme para a tenda - disse a Ruth, enquanto tocava com suavidade numa pétala de uma das papoilas que Ruth utilizara para criar harmoniosos arranjos de vermelho, laranja e amarelo.

No extremo oposto da tenda, Jenny estava a confirmar todas as mésas, de forma a ter a certeza de que tudo estava em ordem. Os empregados de mesa já tinham chegado e estavam a organizar-se.

Ben, que passou a tarde inteira a refilar, tinha consentido finalmente que Ann, a mulher de Hugh, o convencesse a entrar em casa.

- Parece que Caspar está a dar-se bem com Hillary - comentou Ruth, e olhou para o lugar da tenda onde os dois estavam a conversar alegremente.

- Bom, ambos são americanos - respondeu Olivia, com neutralidade. Nunca gostara muito de Hillary, apesar de não saber exactamente porquê.

Era Saul quem estava a tomar conta das crianças naquela tarde, incluindo da pequena Meg mas, para falar a verdade, não sabia exactamente quanto tempo Saul normalmente dedicava aos seus filhos. Talvez não muito, e daí a vontade de Hillary descansar um pouco naquela ocasião.

Saul levara os pequenos para casa, para dar-lhes banho e prepará-los para a festa.

O irmão de Olivia, Jack, e o seu primo, Joss, estavam a ajudar, um pouco contrariados, a levar e a trazer as flores e os outros materiais. Estaria Jack consciente do problema da sua mãe?

Olivia tentou durante o dia inteiro apagar da sua mente o que acontecera na noite anterior, mas não podia ignorar o problema eternamente. Mais cedo ou mais tarde, teria que... teria que... Ficou tensa ao ouvir o riso de Caspar. Hillary estava de pé ao seu lado, com a mão apoiada no seu braço forte, e enquanto Olivia os observava, ela inclinou- se para lhe colocar uma rosa no bolso do casaco. Era um gesto íntimo, o que incomodou Olivia. Ela estava tensa ao ver como Caspar estava tão entretido com Hillary que nem, aparentemente, notava a presença de Olivia.

- Por que motivo não vais com Caspar para dentro de casa? - sugeriu Ruth. - Aqui já só falta apanhar os restos de flores, e as crianças podem ajudar-me.

- Tia Ruth... - Olivia fez uma pausa. Queria poder confiar em alguém e contar a sua preocupação com Tiggy e a surpresa pelo que tinha descoberto, mas, apesar dessa necessidade ser bastante intensa, a lealdade para com a mãe era mais forte. Tiggy nunca tinha tido a aprovação de Ruth, e se Olivia Lhe con tasse o que acontecera...

- Que aconteceu, querida?

- Nada... - mentiu Olivia. - Vou buscar Caspar.

- As flores já estão prontas? - perguntou Caspar quando Olivia se aproximou.

- Sim - confirmou, enquanto o agarrava pelo braço e dirigia a Hillary um sorriso frio.

A mulher de Saul tinha ido até à tenda para ajudar, pelo menos foi isso que disse, mas pelo que Olivia vira ela tinha dedicado a maior parte do tempo a falar com Caspar.

- Temos de ir - avisou Caspar, enquanto confirmava as horas no relógio de pulso. - Os parentes de Chester vão chegar daqui a pouco e eu prometi à minha mãe que nós estaríamos em casa para ajudá-la.

- Coitadinho - disse Hillary com um tom de compaixão, enquanto se aproximava de Caspar com um ar de cumplicidade que excluía Olivia. - Deve sentir-se um pouco intimidado, no meio de tantas caras novas. Foi o que me aconteceu na primeira vez que conheci a familia. Senti-me afastada e sozinha... era a única americana, uma espécie de intrusa.

- Está a referir-se ao dia do seu casamento com Saul, não é verdade, Hillary? - interrompeu Olivia com indiferença. - Pelo que sei, não quis conhecer antes a família, não foi? Caspar, temos de ir - repetiu, sem esperar a resposta de Hillary.

- Foste um bocado bruta, não te parece? - criticou Caspar mal entraram no carro e Hillary já não os podia ouvir.

Estava um pouco tenso e irritado e ainda bastante magoado pela rejeição sexual de Olivia na noite anterior, apesar de odiar reconhecer isso.

- Quando? - perguntou Olivia, embora soubesse exactamente ao que ele se referia.

O dia já tinha sido bastante cansativo pelo facto de ter de deixar tudo pronto para o jantar, para já não falar da preocupação e angústia que estava a suportar por causa da sua mãe. A última coisa que precisava era de quebrar a harmonia entre Caspar e ela. Mas estava furiosa por ele não se ter apercebido do tipo de mulher que era Hillary e, sinceramente, também estava magoada por Caspar ter passado grande parte da tarde na companhia dela. Além disso, ainda guardava uma certa amargura por ele não ter sido mais compreensivo com ela na noite passada.

- Tu sabes quando - respondeu Caspar, enquanto ela arrancava com o carro. - Mesmo antes de deixarmos Hillary.

- Pareceu-te que fui bruta? - desafiou Olivia, que aumentou a velocidade como forma de descarregar a sua crescente irritação. - A mim não me pareceu, Caspar. E, se queres que te diga a verdade, até acho estranho que Hillary tenha feito aquele comentário mas, claro, é o tipo de mulher que nunca desperdiça a menor oportunidade para captar a atenção de um homem que ela julga estar disponível.

- Ah! - exclamou Caspar, enquanto o seu rosto ficava mais relaxado e logo surgiu um sorriso brincalhão. - Já percebi. Estás com ciúmes e.

- Não, não estou com ciúmes - negou Olivia, mal-humorada. - É que eu não gosto nem um pouco de Hillary, é só isso. É uma mulher fria e calculista e demasiado.

- Demasiado americana - terminou Caspar por ela, com a voz mais dura e o semblante repentina mente sério. - Não me admiro que se sinta só e excluída se é deste modo que a tua familia a trata - continuou Caspar, com a voz carregada de desprezo.

- Ela disse-te isso, que se sente excluída? - perguntou Olivia, já perto de perder a cabeça. Sabia que estava a lidar mal com a situação, dando-lhe mais importância do que merecia, mas ainda tinha os nervos à flor da pele pelas descobertas da última noite.

- Bom, é verdade que falámos do quanto está a custar-lhe adaptar-se ao modo de vida deste país - confirrmou Caspar, num tom de voz que indicava que ela não era a única que estava a perder a paciência. Mas Olivia estava muito tensa, sentia necessidade da compreensão que Caspar tinha sido incapaz de lhe transmitir no dia anterior, mas, aparentemente, Hillary tinha recebido toda a sua compreensão naquela tarde, a julgar pelas suas palavras.

- Ah, sim? - perguntou Olivia, com raiva. - Pois deves ter-te mostrado muito compreensivo, tendo em conta a forma como te tocava - atirou. - Certamente, muito mais compreensivo do que comigo ontem à noite. Claro que, por serem do mesmo país, são muito mais compatíveis - concluiu com sarcasmo.

- Não há dúvida de que é um laço - afirmou Caspar calmamente. - E devo dizer-te, Livvy, que Hillary está a ser muito mais responsável em relação à ruptura iminente do seu casamento do que tu com.

- Ruptura iminente do casamento dela? - interrompeu Olivia, surpreendida. - Do que estás a falar? Não há problemas no casamento de Saul e Hillary. Na realidade.

- Ah, não? - respondeu Caspar, em tom de desafio. - Como é que sabes? De acordo com Hillary, nenhum de vocês fez o menor esforço para a acolher na família nem para descobrir por que é tão infeliz. Nem mesmo para ajudá-la a adaptar-se a um estilo de vida diferente.

Olivia notou que estava a tremer ligeiramente enquanto seguia o caminho da casa dos seus pais. Parou o veículo já perto da entrada.

- Eu não posso acreditar no que estou a ouvir! Sim, Hillary pensa que nós não lhe prestamos qualquer atenção, mas a mim parece-me que é mais culpa dela do que nossa. Que mais te disse ela? - perguntou.

- Não muito mais, além de que há outros antecedentes na família de antagonismo e aversão para com os americanos.

- O quê? - Olivia olhou-o com incredulidade. - Já percebi que passou a tarde a mentir-te. Pode-se saber em que é que ela se baseia para dizer isso? Não é verdade. Ela foi a primeira pessoa do teu país que se casou com alguém da minha familia...

- Que se tenha casado, talvez. Mas não a primeira que manteve uma relação com um membro da família - interrompeu Caspar, com um tom grave. - Ruth teve uma aventura com um comandante americano durante a guerra e...

- Ruth teve o quê? - Olivia não conseguiu esconder a surpresa e viu que Caspar se apercebeu disso.

- É melhor entrarmos - murmurou, enquanto se voltava para abrir a porta do carro.

Olivia deteve-o, agarrando-o pela manga, com os olhos brilhantes de fúria e dor enquanto lhe gritava:

- Ah, não, não podes ir- te embora depois de me dizeres uma coisa dessas. Eu não sei nada de ne nhuma aventura da minha tia Ruth com um americano. Durante a guerra, ela estava comprometida com um piloto britânico, que morreu em serviço.

- Bom, de acordo com Hillary, que ouviu a história da boca de Hugh, Ruth saiu com um comandante americano que estava destacado aqui, até que o seu pai descobriu, denunciou-o ao superior e não descansou até acabar com a relação. Ao que parece, um americano, pelo menos naquela altura, não era suficientemente bom para se casar com um membro da familia. E Hillary diz que esse tipo de preconceito tem passado de uma geração para a outra.

Horrorizada e confusa, Olivia não conseguiu pensar em nada inteligente para dizer. Já era terrível ter de reconhecer que não sabia nada sobre a relação da sua tia- avó com um americano, mas o pior era sentir a barreira de dúvida e de desconfiança que se tinha erguido entre eles. Caspar parecia acreditar que a sua familia desprezava os americanos. Também era preocupante que ela não pudesse negar esse facto, de forma a desfazer os danos que Hillary já tinha provocado.

- Mas já sabes o que sinto por ti, Caspar - disse baixinho. Foi a única coisa que Lhe ocorreu dizer enquanto tocava no seu braço de forma suplicante.

- Será que sei? - respondeu, implacável. - Eu pergunto-me se não estarás a namorar comigo por eu ser americano e assim podes vingar-te do teu avô.

Sem dar-lhe oportunidade para responder, Caspar abandonou o carro e dirigiu-se rapidamente para casa. Olivia não teve outra hipótese senão segui-lo. Sabia que, uma vez lá dentro, não teriam oportunidade para falar em privado, porque em breve a casa estaria repleta de convidados e a festa começaria dentro de algumas horas. No entanto, desejava resolver a situação e fazer as pazes com ele. Queria convencê-lo a esquecer aquela acusação injustificada sobre a origem dos seus sentimentos por ele.

Era injusto e ilógico que Lhe lançasse uma acusação daquela natureza e que se fosse embora sem lhe dar a oportunidade de se defender. Quase parecia que queria discutir com ela. Mas porquê? Aquilo não tinha nada a ver com ele, estava tão longe da maturidade e da moderação que tanto admirava nele.

Desanimada, Olivia seguiu-o até ao interior da casa. Nas suas costas, na entrada, ouviu o barulho de vários carros a aproximarem-se... era a familia de Chester, sem dúvidas! Encolheu os ombros e deixou de lado os seus próprios medos e preocupações.

 

Com um certo nervosismo, Jenny alisou o vestido. Jon ainda não o vira. Na realidade, a única pessoa que o tinha visto era Guy Cooke.

No princípio, brincou com o assunto, mas ficou comovida quando Guy anunciou, há vários meses atrás, que a levaria a Manchester comprar um vestido para o baile de aniversário.

- A Manchester? - perguntou Jenny, meio inclinada a dizer que não, sem saber se ele estava a falar a sério ou se ela estava a ser objecto do seu sentido de humor, às vezes irónico e malicioso. - Porquê? Chester é muito mais perto e...

- Pode ser que Chester seja muito mais perto, mas não tem uma loja Emporio Armani - respondeu, e es clareceu a sua evidente confusão, explicando-Lhe, como se tentasse que uma criança percebesse algo complicado. - Armani, minha querida Jenny, se por acaso fores a única pessoa neste planeta que não o conhece, é um designer de moda... o designer de moda por excelência para a maioria das mulheres elegantes e ricas. Desenha roupas para mulheres, não para rapariguinhas, ou modelos, ou viciadas na moda, mas sim para mulheres com maiúscula, e em Manchester há uma loja da sua cadeia.

- Obrigada, Guy - respondeu Jenny, grata. - Sim, eu já ouvi falar dele, mas a tua ideia de comprar um dos vestidos ou até mesmo de olhar para um deles...

- moveu a cabeça e riu-se. - O meu orçamento não me permite cometer uma loucura dessas.

- Um Armani nunca é uma loucura - corrigiu Guy. - Além disso, é uma loja para o grande público e por isso tem preços bastante acessíveis. Se não vieres comigo, irei sozinho - acrescentou com determinação. - E vou escolher alguma coisa ao acaso. Estou a falar a sério, Jen - insistiu com severidade. - Tu não vais para aquele baile com uma pechincha sem graça que encontraste no último minuto porque não tiveste tempo de comprar mais nada e porque ambos sabemos que, mesmo que o tivesses, não gastarias o dinheiro que Jon ganha numa coisa para ti. Por uma vez na tua vida vais usar uma coisa que realmente te faça jus e por uma vez na tua vida, apesar de tu nunca colocares as tuas necessidades à frente das dos outros, eu farei com que isso aconteça.

Jenny teve que se sentar.

- Mas porquê? - perguntou, sinceramente desconcertada pela intensidade da decisão dele.

- Porque é que tem de haver um porquê? Se eu disser que é porque mereces, vais encontrar uma forma de me desencorajar - disse-lhe com sinceridade. - Por isso vou dizer-te que, embora nem tu mesma o reconheças, deves isso não apenas a ti, mas também a Jon e à nossa loja e, antes que respondas, digo-te já que o vestido entrará nas despesas da loja.

Não, Jenny, estou a falar a sério - repetiu. - Ou vens comigo ou irei sozinho e.

- E o quê? - brincou carinhosamente. - Vais obrigar-me a vestir o que escolheres ou vais castigar-me, mandando-me para a cama sem jantar?

Era apenas uma piada, mas Guy falou-lhe com suavidade e delicadeza:

- Se em algum momento eu tiver a oportunidade de te mandar para a cama, não será como castigo e, quanto a obrigar-te a vestir o que eu escolher... Bom, digamos que estou disposto a falar com Jon para ter certeza de que ele te obriga a vesti- lo.

Jenny olhou-o nos olhos com coragem.

Existiram vários momentos em que o seu instinto de mulher lhe dizia que Guy queria algo mais dela do que uma simples amizade, mas essa era uma ideia que sempre tinha descartado imediatamente, pensando que era fruto da imaginação fértil de uma mulher de meia-idade. Nesse instante, soube que tinha cometido um erro ou, melhor, que estava certa em relação ao seu instinto.

E, finalmente, eles foram até Manchester, principalmente porque Guy se adiantou e contou a sua ideia a Jon, para obter a sua ajuda.

Jenny acreditava que Jon não fazia grande ideia sobre quem ou o que era um Armani, mas os comen tários de Guy tocaram-lhe num ponto sensível e recordaram-no como se sentira na reunião familiar de Natal, quando Jenny vestiu o mesmo vestido de sempre e Jon sofreu a humilhação de ver como ela estava diferente não só de Tiggy mas de todas as outras mulheres presentes, mulheres que não eram mais atraentes do que ela nem mais jovem, mas que se moviam com uma segurança e um orgulho que a ela sempre tinha faltado. Até Ruth estava melhor vestida do que Jenny, um detalhe do qual até Joss se apercebeu.

Ao princípio, sentiu-se desconfortável ao entrar no grande edifício de King Street, em que se situava a loja de Armani. As empregadas, todas elas impecavelmente vestidas e maquilhadas, partilhavam a mesma beleza italiana. Embora se tivesse sentido intimidada pela sua presença, a sua atitude simpática logo a fez esquecer de todas as dúvidas. Acabou por experimentar roupas que, dez minutos antes, jamais lhe tinha passado pela cabeça vestir.

Finalmente, decidiu-se pelo vestido que ia usar no baile, um vestido de cor creme e de estilo simples, com um corpete alto de estilo clássico e uma saia que lhe chegava até os tornozelos. Era, como tinha realçado a empregada, um vestido desenhado para realçar a beleza feminina. Sem um único adorno e sem se ajustar ao seu corpo, realçava realmente os seus pontos fortes, de forma subtil. Jenny entendeu isso enquanto contemplava o seu reflexo, surpreendida com o seu próprio aspecto.

Era um vestido que a fazia parecer e sentir mulher, um vestido que reavivava os seus anseios e sonhos de adolescente de ser atraente... anseios e sonhos que tinha tido o bom senso de enterrar juntamente com outras recordações desses anos... Anseios e sonhos que não eram apropriados para uma mulher da idade dela. E, mesmo assim, comprara o vestido e o tailleur para o almoço familiar que aconteceria no dia seguinte.

O vestido combinava maravilhosamente com as pérolas que Jon lhe tinha oferecido nas suas bodas de prata, que reflectiam a cor creme do vestido e sua textura sedosa. Tentou ganhar coragem enquanto acabava de colocar as pérolas.

O telefone estava a tocar quando Olivia cruzou o corredor em direcção à sala de estar, onde os familiares de Chester e os seus pais se tinham reunido para tomar uma bebida antes de partirem todos juntos para Queensmead. Ela atendeu e pediu para a pessoa esperar um pouco, enquanto ela fosse chamar o seu pai.

- Tens uma chamada - disse- lhe. - Do lar Os Cedros.

David sentiu que começava a suar e o seu coração batia muito depressa. Estava consciente da tensão que lhe arrebatava o peito e o resto do corpo, e por causa disso, sentiu náuseas de medo.

Tinha a palma da mão tão suada que foi obrigado a secá-la antes de pegar no auscultador e clarear a garganta.

- Sim, fala David Crighton - a garganta doía-lhe novamente. Acariciou-a com a mão que tinha livre e virou-se de costas para a porta entreaberta da sala de estar, enquanto atendia a chamada.

Em cima, no quarto do sótão, Caspar fez uma expressão de desagrado enquanto dava o nó da gravata e vestia o casaco. Não lhe apetecia ir à festa, não só pela discussão com Olivia que, na opinião dele, tinha agido mal ao culpar Hillary, apesar de terem sido as suas revelações a causa da briga.

Caspar notara uma mudança em Olivia nos últimos dias; de repente, a familia que, antes, quase desprezava, passou a ser de importância vital para ela.

De repente, nem ele nem os seus pontos de vista tinham qualquer valor. Se não, por que razão tinha rejeitado o conselho de procurar a ajuda de um profissional para o problema da sua mãe?

- Não importa o quanto possam discutir entre eles porque, no final, defendem-se sempre uns aos outros

- disse-lhe Hillary naquela tarde. - Eles defendem-se e afastam-no - acrescentou com ênfase, enquanto lançava um olhar amargurado para onde o seu marido estava. - Eu devia ter imaginado isto quando Hugh me contou a história de Ruth - continuou. Mas naquele momento eu não entendi o que ele me queria dizer, nem percebi que Ben tinha pensado em casar Olivia com Saul.

Casar Olivia com Saul! Caspar fez uma careta, sem conseguir entender. Olivia nunca Lhe falara de nenhuma expectativa familiar daquela natureza. Claro que também não lhe tinha contado que a sua tia- avó mantivera um romance apaixonado com um comandante americano a quem, segundo Hillary, tinham pago para que ele a deixasse.

Que outros aspectos da sua familia, dela própria, não lhe tinha contado?

- Estás como eu sempre achei que poderias estar, que devias estar: maravilhosa, perfeita. Estás. justamente como és.

Como era estranho que aquelas palavras e emoções, pronunciadas por um homem, o homem errado, conseguissem significar tão pouco e causar mais aborrecimento do que prazer e, por outro lado, se tivessem sido ditas pelo homem certo...

Era lógico pensar que seria Guy quem a lisonjearia e elogiaria o seu aspecto, quem a olharia fixamente enquanto ela o cumprimentava e que seria ele a procurar a primeira oportunidade para lhe segurar a mão, abraçá-la e dizer-Lhe o que sentia. Mas, por alguma razão, Jenny esperava de forma tola que...

O jantar terminara e a banda tinha começado a tocar. Vários casais já estavam a dançar.

- Jenny! Meu Deus, estás...

Jenny ficou tensa ao ver o olhar de Tiggy e o tom critico da sua voz, mas antes que a cunhada pudesse acrescentar alguma coisa, Ruth interrompeu-a com firmeza.

- Estás magnífica, Jenny. Adoro o teu vestido. Era indesmentível a sinceridade que a voz de Ruth

transmitia e a aprovação que estava reflectida no seu olhar. Até mesmo David, que estava um pouco afastado, olhava para ela intensamente.

- É um Armani, não é verdade? - perguntou Tiggy enquanto Jenny quebrava repentinamente o contacto visual que mantinha com David. Era absurdo estar a corar daquela forma. David era seu cunhado, nada mais, embora no passado...

- Sim, é... - respondeu Jenny apressadamente.

- Como é que te lembraste de comprar um vestido destes? - insistiu Tiggy. Com os olhos semicerrados, a voz um tanto tremida e o rosto pálido, quase como se estivesse doente, ela ainda comentou. - Não tem nada a ver contigo.

- Mãe... - advertiu Olivia e dirigiu a Jenny um olhar de desculpas, enquanto afastava Tiggy para outro lado.

Jenny arqueou uma sobrancelha enquanto as via afastarem-se. Não era característico de Tiggy ser maliciosa nem mal- educada, e os comentários dela começavam a fazer com que Jenny duvidasse da conveniência de ter vestido o vestido novo. Talvez Jon não lhe tivesse dito nada, não porque nem sequer tinha notado que ela estava diferente, mas para não criticar o seu aspecto.

- Tiggy está enganada, sabias? - Jenny levantou a cabeça ao ouvir a voz de David, que lhe sorria carinhosamente. - O vestido favorece-te e muito.

Muda de surpresa como se fosse uma menina pequena, Jenny limitou-se a permanecer imóvel e a mover a cabeça.

- Tem ciúmes de ti, é só isso.

- Ciúmes de mim? - Jenny olhou para ele, estupefacta. - Impossível - protestou. - Tiggy é...

- É o quê? - perguntou David, enquanto a agarrou pelo braço e a levou até à pista de dança. Jenny moveu a cabeça novamente.

- Eu não posso dançar agora contigo, David - disse com voz rouca. - Os empregados...

- Claro que podes - respondeu - Os empregados podem esperar, mas eu não. É tão bom abraçar-te. murmurou, enquanto a rodeava com os braços e começava a dançar.

Jenny percebeu, sentindo-se impotente, que David não tencionava soltá- la e que chamaria menos a atenção dançando com ele do que protestando.

Ao contrário de Jon, David sempre tivera queda para a dança, um dom natural, e ele corou na escuridão da pista quando a atraiu para os braços dele.

- O que se passa? - sussurrou-lhe ao ouvido. Antes gostavas de dançar comigo.

Jon estava em pé do outro lado da pista, a falar com Ruth. Não parecia tê-los visto.

- Esta noite estás maravilhosa - disse David suavemente, enquanto acariciou as costas de Jenny. - Estás maravilhosa e és maravilhosa. Jenny, gostava de não ter sido tão estúpido ao ponto de te ter permitido ir.

- David... - protestou Jenny, quando finalmente recuperou a voz.

- David o quê? - perguntou- lhe com aspereza. O hálito dele cheirava ligeiramente a álcool, e essa deveria ser a razão pela qual ele estava a falar com ela daquela forma, concluiu Jenny. - Há quantos anos que não dançávamos assim, que não nos abraçávamos assim? - perguntou.

Jon acabara de os ver e, pelo canto do olho, Jenny viu que ele tinha a testa ligeiramente franzida. Max também os vira e a sua expressão de desagrado era evidente.

- Sabes o que eu gostava de fazer agora mesmo?murmurou David. - Eu gostava...

- David, temos de voltar para a mesa - balbuciou Jenny, esforçando-se por restabelecer a normalidade.

- Ainda faltam os discursos e os brindes.

- E os parabéns e os beijos - referiu David, enquanto voltava a cabeça para olhá-la nos olhos. - Tu ainda não me beijaste, Jenny.

- Mentira - corrigiu. - Dei- te um beijo, quando chegaste.

- Não - negou David. - Deste-me um beijo inocente na bochecha, sim, mas ainda não me beijaste. Ainda me recordo da primeira vez em que me beijaste, Jenny. Sabias a morangos e a ar fresco...

- David... - protestou Jenny, novamente. - Já chega.

- Sabias a morangos e a ar fresco - repetiu, sem dar-lhe atenção. - E foi o beijo mais delicioso que alguma vez me deram. Tu eras a mais deliciosa...

Para grande alívio de Jenny, a banda parou de tocar.

- Temos de voltar para a mesa - disse a David, firmemente. O seu coração batia muito depressa e estava corada. Sentia-se... Sentia-se...

A última coisa que precisava naquela noite era de lembrar-se como se sentira há algum tempo atrás quando estava com David, não como... Quando finalmente David a soltou com evidente aborrecimento,

Jenny voltou depressa à mesa, mas sabia que o estrago já estava feito.

- Ainda recordo a primeira vez que me beijaste dissera-lhe David. Ela também se recordava, embora suspeitasse que as recordações dela fossem diferentes das dele.

Era verdade que tinha estado a apanhar morangos e sem dúvida tinha as mãos e a boca manchadas do seu suco, mas tinha sido David e não ela quem tinha provocado o beijo, David quem a tinha desafiado, dizendo que ela nunca tinha beijado de verdade, exigindo que o fizesse. Ela negou e disse que tinha muita experiência no assunto.

Jenny tinha deixado a cesta de morangos no chão e caminhou lentamente até ele, com a cabeça erguida, porque o seu orgulho a impedia de voltar atrás, embora por dentro estivesse apavorada.

Desde o último Natal, as outras meninas da turma exibiam a sua mais recente habilidade e descoberta na arte de brincar e, embora ela apenas tenha sorrido e fingido indiferença perante aquele novo jogo da qual a tinham excluído, Jenny tinha estudado cada beijo que via nos filmes, desejando ardentemente saber como se prepararia quando um rapaz a beijasse pela primeira vez. E quando finalmente tinha chegado o dia, o rapaz não era qualquer menino, mas sim. David Crighton.

Inspirando a maior quantidade de ar possível enquanto fechava os olhos com força, enrugou os lábios e esticou o pescoço desesperadamente, para beijar David, mas corou de humilhação quando os seus lábios tocaram o ar.

Ao abrir os olhos, viu que David se tinha afastado e estava a olhar para ela com uma expressão divertida, sorrindo de orelha a orelha.

- Não tens nenhuma ideia sobre o assunto, não é verdade? - perguntou enquanto movia a cabeça.

- Claro que tenho - mentiu ela.

- Mentirosa - advertiu-a suavemente. - Mas não faz mal - acrescentou com um sorriso. - A verdade é que eu gosto da ideia de te ensinar.

- Não preciso que me ensines nada - atirou Jenny.

- Ah, não?

Jenny voltou-se com a intenção de apanhar a cesta e ir-se embora, mas David estava à sua frente e colocou-se entre ela e os morangos. Jenny retrocedeu, até que já não podia dar mais nenhum passo. David encurralara-a entre o corpo dele e a parede de pedra que tinha atrás de si.

O que aconteceu então foi, claro, inevitável. David beijou-a fugazmente nos seus lábios apertados, voltou a beijá-la desta vez menos fugazmente e depois... Depois ele inclinou-se para apanhar um punhado de morangos da cesta, pôs um na boca e ofereceu- lhe.

Jenny abriu a boca ingenuamente para aceitar. tanto a fruta como o beijo. O destino do resto dos morangos que David deixara na cesta deixou-a a tremer durante semanas, de cada vez que pensava naquele momento, embora a sensualidade daquele instante se tenha perdido quando, dias depois, ouviu outra rapariga descrever o truque favorito de David: passar doces da sua boca para a de uma rapariga.

Jenny acabou com a boca manchada de morangos, circunstância que mereceu um raspanete da sua mãe por ter comido a fruta que queria usar para uma torta mas que, felizmente, ao mesmo tempo, a ajudou a esconder os lábios inchados pelos beijos.

Que estranho, nunca mais comera morangos. Passara a ter aversão àquela fruta.

Pelo canto do olho, Jenny via Jon a mexer-se, desconfortavelmente, na cadeira; os brindes estavam prestes a começar. Apesar do pequeno contratempo quando David insistira em dançar com ela, tudo tinha corrido como planeado. Até Ben elogiara a comida e Jenny tinha perdido a conta do número de convidados que se aproximaram para louvar a decoração da tenda e as cores dos arranjos florais de Ruth, enquanto abriram os olhos com agradável admiração ao repararem na sua nova imagem. Até os mais jovens da familia se tinham comportado de forma exemplar. Então, porque é que sentia aquele pesar, como um vazio... porque sentia tanta decepção?

David estava a levantar-se enquanto o empregado garantia que todos tinham o copo cheio de champa nhe. Jenny viu a expressão de amor e de orgulho nos olhos de Ben enquanto contemplava o seu herdeiro, o seu filho mais querido, e sabia sem precisar de voltar a cabeça que a mesma expressão estaria também reflectida nos olhos de Jon. Os sentimentos estavam cada vez mais intensos.

David clareou a garganta. Tinha o discurso na memória e, na realidade, não precisava das notas que deixara em cima da mesa, em frente a ele. Sempre fora um dos seus pontos fortes, a capacidade para memorizar textos escritos.

Olhou à sua volta. Tinha o pescoço apertado pela camisa e sentia imenso calor; o jantar tinha-lhe caído como uma pedra no estômago. Aquele maldito telefonema. Sentiu um espasmo de dor que o deixou paralisado. Surgiu do nada e espalhou-se pelo seu corpo como um raio, com a velocidade letal de uma cobra ao morder. Primeiro sentiu a dor aguda da mordida e depois uma onda ardente; era uma sensação desconhecida para ele. À sua volta ouvia barulho, mas já nada parecia afectá-lo, só a dor.

Alguém estava a gritar. Era Tiggy, reconheceu Jenny vagamente enquanto Jon e ela tentavam colocar David em postura de reanimação; o corpo dele era como um fardo nos seus braços. Não queria pensar na palavra morto. ainda não... por favor, Meu Deus, ainda não".

- O que está a acontecer?

Era Ben, com a voz trémula de um velho homem amedrontado, que permanecia em pé, impotente, observando como o caos explodia ao seu redor.

Alguém, um dos filhos de Hugh, Jenny não conseguia ver quem era, estava a tentar tranquilizar todas as pessoas, aliviar o pânico que se instalara na tenda no momento em que David caíra em cima da mesa.

- A ambulância está a caminho.

Jenny olhou com gratidão para Neil Travers.

- Graças a Deus que estava aqui - disse ao médico da familia. - Como é que ele está? - perguntou com nervosismo. - Pensa que...

- Não sei - respondeu, enquanto moveu a cabeça.

- É muito cedo para saber isso. Neste momento está vivo. Mas não poderemos dizer nada mais até chegarmos ao hospital. É evidente que sofreu um ataque de coração, mas não conheceremos a gravidade até...

- suspendeu a frase ao ouvir a sirene da ambulância.

- Fique aqui com ele - pediu a Jenny. - Eu vou explicar-lhes o que aconteceu.

Enquanto esperavam os maqueiros, Jenny voltou a olhar para o seu marido. Estava branco como a cal, ainda mais do que David. Foi o primeiro a reagir depois do ataque de coração, agarrando-o nos seus braços enquanto gritava para Jenny:

- Pelo amor de Deus, faz alguma coisa. Ele sofreu um ataque de coração.

Apenas com uma mão tinha erguido o seu irmão da mesa e deitara-o cuidadosamente no chão. Não dissera uma única palavra desde esse momento porque, como Jenny sabia, estava a usar toda a sua energia para rezar, pedindo que o seu irmão não morresse, enquanto lhe segurava na mão como se lhe pudesse transmitir a força dele, o sangue dele. Era como se nada mais existisse para ele.

- David... David... - começou a gritar Tiggy, que tentava segurar o corpo imóvel do seu marido enquanto a equipa de bombeiros o colocava na maca, e Olivia e Caspar tiveram de agarrá-la.

Jenny fez uma careta quando Olivia deu uma leve bofetada à sua mãe na bochecha, não por causa da dor que Tiggy sofrera mas por compaixão para com Olivia.

Ao seu redor, via a perplexidade e a incredulidade reflectida nas faces de todos, que pareciam incapazes de assimilar o que acontecera.

- O que aconteceu ao tio David? - ouviu uma criança perguntar. - Está morto?

Fora uma das filhas de Saul quem fizera a pergunta, e Hillary tentou calá-la imediatamente. Coitadinha. Afinal, não tinha feito nada de mal. Jenny simpatizou com ela, embora Ben estivesse a olhá-la como se a quisesse matar.

- David... David... Onde está? Eu quero ir com ele. Onde está? - gemeu Tiggy.

- Vão levá-lo para o hospital, Tiggy - disse Jenny, tentando consolá-la. - Agora está em mãos boas e...

- Eles não podem levá-lo sem mim. Ele não pode morrer sem mim. Devia estar com ele...

- O tio Jon está com ele, mãe - disse Olivia em voz baixa, enquanto olhava para Jenny com uma expressão suplicante, como se estivesse a pedir-lhe ajuda em silêncio. Tal como os outros, reparou Jenny, ao olhar para as faces de todos os que a rodeavam. Inspirou profundamente e disse com a serenidade possível:

- Caspar, pode levar Olivia, a sua mãe e Ben ao hospital? Pode usar o meu carro...

- Eu levo-os - disse Saul bruscamente. – Será mais rápido - acrescentou quando Caspar olhou para ele como se fosse responder. - Eu conheço a estrada. Vamos - concluiu, e agarrou Tiggy pelo braço, de forma a que Olivia pudesse aproximar-se de Ben e dirigi- lo calmamente para a saída.

- Eu ficarei a tranquilizar os convidados - disse Ann, a esposa de Hugh. - Você deve querer ir para o hospital - deu-lhe uma palmadinha no braço. - Não fique preocupada, David e Jon são gémeos, mas isso não significa que Jon... - Jenny apressou-se a negá-lo com a cabeça.

- Não, eu sei - interrompeu-a, adiantando-se ao que Ann Lhe ia dizer. Quantas pessoas estariam a perguntar-se a mesma coisa? David tinha sofrido um ataque de coração... Sofreria Jon algo semelhante?

Viu Ruth um pouco afastada do grupo, com Joss ao seu lado.

- Vou para o hospital - disse. - Ann ofereceu-se para ficar aqui a tomar conta de tudo, por isso se me quiseres acompanhar... Max - disse ao seu filho mais velho, que ainda não se movera desde que David se tinha desmoronado em cima da mesa e a sua expressão era ainda de incredulidade. - Max - repetiu, para ter certeza de que ele a estava a ouvir. - Laurence e Henry querem saber o que se passa. Não podemos ir todos para o hospital. Eu quero que fiques em casa com eles. Assim que nós soubermos o que está a acontecer, ligar-te-ei.

Enquanto saía do carro, no estacionamento da nova unidade de cardiologia do hospital, Jenny pensou que, ironicamente, ela própria contribuíra para juntar fundos para as novas instalações. Restava saber se a unidade e a sua equipa especializada poderiam salvar a vida de David.

Com as mãos trémulas, desapertou o cinto de segurança e voltou-se para sorrir a Ruth e Joss.

A saudação do recepcionista foi uma mistura de profissionalismo e compreensão.

- O especialista está a examinar o seu cunhado - disse a Jenny assim que ela se identif icou. - Se quiser, pode encontrar o resto dos familiares na sala de espera.

Ao entrar na sala de espera, Jenny procurou automaticamente Jon com o olhar. Estava do outro lado da sala com Olivia e Tiggy e não a tinha visto entrar. Tiggy estava a chorar e Jon tinha-Lhe passado o braço pela cintura. Jenny observou-os com o semblante carregado.

- De quem tenho mais pena é de Livvy - sussurrou Ruth, de forma inesperada. - Se não tiver cui dado, acabará por ser o único sustento de Tiggy.

- Fica aqui com a tia Ruth enquanto eu vou falar com o teu pai - pediu Jenny a Joss antes de se ir embora.

Jon ainda estava chocado, pensou Jenny ao aproximar-se e verificar que ele nem a via.

- Alguma notícia? - perguntou, angustiada. Foi Olivia quem respondeu.

- Não, nada de concreto. Eles confirmaram que sofreu um ataque de coração mas nós ainda não sabemos... - levou a mão à boca enquanto os olhos começaram a encher-se de lágrimas.

- Vá lá, fica calma. Pelo menos, continua vivo, e está nas mãos de especialistas...

Olivia olhou para Saul com gratidão, pois ele ouvira a pergunta de Jenny e tinha-se aproximado delas.

Ele comportara-se maravilhosamente durante o caminho para o hospital, mantendo a calma e a tranquilidade. Até tinha conseguido acalmar a histeria da sua mãe, sem se preocupar com o desprezo ou a desaprovação que Caspar tinha demonstrado e, já no hospital, tomara todas as providências com eficiência. Tinha até falado discretamente com uma enfermeira para que observassem Ben que, por surpreendente que pudesse parecer, dava a impressão de ter envelhecido dez anos em dez minutos, como se o patriarca dominante e poderoso tivesse ficado reduzido a um homem velho, frágil e vulnerável.

O tio Jon também estava completamente perturbado, embora de um modo diferente. Permanecera próximo do seu irmão até o momento em que o especialista entrara no quarto para o examinar e, logo em seguida, Tiggy correra para os seus braços para lhe perguntar:

- Não está morto, pois não? Diz-me que ele não está morto. Eu não posso viver sem ele. Eu não sou capaz...

- Não, não está morto, Tiggy - tranquilizou-a Jon. Não, David não estava morto, graças a Deus. Graças a Deus. Não havia dúvida de que o choque de ver o seu irmão cair diante dos seus olhos e o medo e o amor que sentia por ele era o que sentia naqueles momentos. Jon teve a estranha sensação de não fazer parte do mundo em que estava a viver, de ter deixado o seu corpo e estar a viver de fora. Movia-se e falava como um robô. Estava a comportar-se como o irmão leal e responsável que sempre tinha sido.

Tentou colocar-se na pele de David, imaginar como seria se fosse ele a estar naquela posição, numa cama de hospital. Estaria Jenny a chorar por ele, de coração partido, inconsolável, face à ideia de perdê-lo? Ou estaria a olhar para David a pensar, a desejar...

Tinha-os visto a dançarem juntos, colados, Jenny com a cabeça apoiada no ombro de David enquanto ele Lhe sussurrava algo ao ouvido. Que lhe teria dito?

Jon nunca se tinha enganado sobre a razão pela qual Jenny se tinha casado com ele. Se não fosse pelo bebé... E tinha sido ele, afinal de contas, quem insistira para se casar com ela. Não podia acusar Jenny; sempre soubera o que ela sentia por David. Para Ben foi um alívio saber que Jenny e ele se iam casar e quais os seus motivos. Uma vez casada, Jenny já não constituiria nenhuma ameaça para o futuro que o seu pai sonhara para David. Jon teve de ouvir um enorme sermão do pai, claro, mas aguentou com estoicismo e só falou no final, para lembrar o seu pai de que eram necessárias duas pessoas para criar uma nova vida, e não apenas uma.

Sabia que Jenny se tinha esforçado para que o seu casamento resultasse, tanto quanto ele; tinha sido uma boa esposa e era uma mãe excelente, não havia nenhuma dúvida, mas Jon tinha visto o brilho do seu olhar algumas horas antes, enquanto ela se contemplava ao espelho, sem notar a presença dele.

Estava corada, tinha os lábios entreabertos, os olhos cintilantes de... De quê? De expectativa, de ansiedade? Porque ainda antes soubera que David...

Ficara surpreendido e transtornado ao vê-la tão diferente, tão... tão desejável e... feminina. Não parecia

a Jenny que ele conhecia e sentira uma dor no peito ao ver o cuidado com que se tinha arranjado e ele sabia que ela não o fizera para ele. Nunca, em todos os anos que estavam casados, Jenny vestira um vestido como aquele.

E não havia dúvidas de que David ficara impressionado. E não apenas ele. Jon não era cego; ele tinha visto como os homens olhavam para Jenny na festa, com uma expressão de surpresa, seguida por um mais intenso estudo e por uma avaliação sexual dos atributos femininos dela.

Talvez David estivesse a morrer naquele instante, mas a única imagem que surgia na mente de Jon não era o rosto contraído do seu irmão, mas a memória de David a dançar com Jenny. É claro que desejava que David sobrevivesse. Claro que sim. Então, porque é que sentia aquele vazio, aquela ausência quase completa de emoção?

Tiggy continuava a chorar e a tremer. Apertou o braço automaticamente em torno da sua cintura, com um instinto protector. Pelo menos, havia alguém com sentimentos puros, unicamente preocupada com Da vid. Jon não tinha coragem para olhar para Jenny, para ver reflectido nos seus olhos o que sentia, porque sabia.

Jon continuava a apertar Tiggy com o braço, enquanto a sua mãe se agarrava chorosa a ele, observou Olivia. Ela teria gostado de ter o apoio e o conforto dos braços de Caspar, mas ele ficara em Queensmead, certamente para procurar a companhia e o apoio de Hillary.

- Não estejas preocupada. Tenho a certeza de que eles estão a fazer tudo aquilo que podem - Saul apertou-lhe carinhosamente a mão ao perceber a angústia dela.

A porta da sala de espera abriu-se e o especialista entrou. Parecia cansado e solene, e começou a falar num tom ainda mais solene.

- David está fora de perigo, por enquanto. Mas... - fez uma pausa e olhou para os presentes, escolhendo as palavras cuidadosamente, ao ver o rosto manchado de lágrimas de Tiggy e o semblante rígido e tenso de Jon. Ben estava apoiado no braço de Hugh enquanto Ruth se mantinha um pouco afastada, de mão dada com Joss. Sem se aperceber, Olivia foi para perto de Saul, agradecendo o conforto masculino que o braço e o corpo dele lhe ofereciam. Apenas Jenny permanecia só, muito perto do especialista e, talvez por isso, o médico olhou mais para ela do que para os outros. Um desconhecido teria pensado que Jenny era a esposa do doente e que Jon e Tiggy eram casados. - Ele teve um ataque de coração muito grave - continuou, e fez novamente uma pausa quando Tiggy chorou mais ruidosamente e se abraçou com mais força a Jon. - Na realidade, ele tem muita sorte por estar vivo. A questão é que está vivo, mas... - parou novamente e foi Jenny quem o pressionou.

- O que é que está a tentar dizer mais concretamente? - perguntou, em voz baixa.

- David está bastante mal. As próximas vinte e quatro horas serão cruciais. Até lá, não podemos sa ber.

- Quer dizer que existe o perigo de ele sofrer outro ataque de coração? É o que está a tentar dizer?perguntou novamente Jenny.

- Às vezes, acontece - avisou o especialista, com semblante sério. - Mas com sorte...

- Podemos... podemos vê-lo? - perguntou Jon com voz rouca.

O especialista negou com a cabeça.

- Não, receio que não seja possível. Neste momento, não. É necessário mantê-lo calmo e sob o efeito de medicamentos. Na realidade, a melhor coisa que podem fazer agora é voltar para casa e tentarem dormir um pouco porque... - ao ver o sinal de advertência de Jenny, que apontou para Ben com a cabeça, o especialista chamou uma enfermeira e falou com Jenny em particular. - Vou receitar um medicamento para o seu sogro. Sei que o coração dele não é tão forte quanto parece.

- Tiggy está muito transtornada, Jenny - disse Jon, dez minutos depois, quando Saul começou a dirigi-los para o corredor. - Não pode ficar sozinha. Penso que o melhor será que eu fique com ela esta noite, para o caso de ela precisar de mim.

- Sim, claro - concordou Jenny, que teve de controlar-se ao recordar que Tiggy tinha a casa cheia de familiares, além da sua filha e do namorado dela, nos quais poderia procurar apoio caso precisasse de um ombro onde chorar durante a noite.

Mas, de que adiantaria? Jon não iria entender. Esperava que ela aceitasse, como sempre fizera, que as necessidades e os desejos de David e, consequentemente, as necessidades e os desejos da família de David eram prioritários em relação a tudo.

Enquanto voltava ao carro, lembrou-se que Jon não fizera nenhum comentário acerca do seu vestido. Era uma tolice estar a lamentar uma situação tão insignificante quando tinha coisas mais importantes com que se preocupar. Também era terrivelmente egoísta pensar na sua própria dor pelo silêncio de Jon e não no ataque de coração de David. Estava preocupada com o seu cunhado, claro. Era, afinal de contas, o irmão gémeo de Jon e como tal... Jon e ela nem sequer dançaram juntos naquela noite. Na realidade, não se conseguia lembrar de quando tinham dançado juntos pela última vez. Aquilo era terrível. Não devia estar a pensar nas suas próprias necessidades, mas sim em David, que estava à beira da morte... Porque é que Jon não lhe dissera nada sobre o vestido? Será que não tinha gostado? Ou? Chega", gritou a si mesma. Já não és nenhuma adolescente mas sim uma mulher adulta.

- Bom, pelo menos, o médico está optimista. Ele

diz que David já passou o pior.

Olivia voltou-se para Saul.

- Sim, já passou o pior - afirmou. - Mas também

nos avisou de que o pai levará um bom tempo até estar completamente fora de perigo. Vão mantê-lo nos

cuidados intensivos durante a semana inteira. O doutor Hayes diz que não poderá voltar a trabalhar durante, pelo menos, três meses, e ainda...

- É verdade - respondeu Saul com gravidade. Será bastante duro. O que pensas que Jon vai fazer?

Procurar um substituto?

- Não sei. Ninguém fez nenhum comentário sobre o futuro do escritório - reconheceu Olivia. – Temos estado muito preocupados com o pai, mas é preciso fazer algo.

- Hum... Gostava de poder oferecer-me para ajudar... - estendeu as mãos com carinho. - Mas não vai ser possível. A minha empresa está a negociar alguns contratos novos com o Japão. Não posso contar-te detalhes, mas do ponto de vista jurídico está a ser bastante complexo. Hillary está sempre a reclamar, diz que quase não me vê ou, pelo menos, costumava dizer isso. Ultimamente tenho a sensação de que quanto menos me vê, melhor.

Olivia fez uma careta ao perceber a amargura na voz dele. Durante os últimos três dias, em que Saul tinha preferido ficar em Haslewich com a sua família até que David saísse de perigo, tinha ficado mais evidente que Hillary e ele não eram felizes juntos. Olivia sentia pena por ele. Era óbvio que adorava os seus três filhos e suspeitava que ele se esforçava para não acabar com o casamento, principalmente, para o bem das crianças.

Estavam na sala de estar de Queensmead, juntamente com o resto da família mais próxima, que se concentrara lá para ouvir o último relatório do hospital em relação ao estado de David.

Naquele dia, tinha sido Olivia a ir vê-lo. Jon e ela estavam a fazer turnos para acompanhar Tiggy ao hospital. David estava consciente e podia falar, mas continuava sob o efeito de comprimidos e nos cuidados intensivos. A família inteira concordara que Tiggy estava muito chocada e angustiada com o ataque de coração do marido para suportar o trauma de o ver sem apoio familiar.

Hugh e Ann tinham ficado em Queensmead nos primeiros dias, mas foram obrigados a voltar para Pembrokeshire porque Hugh tinha um julgamento. Saul decidira ficar no lugar do seu pai, e contara a Olivia que não se importava em usar os poucos dias de férias que ainda lhe restavam.

- Pensava que iríamos fazer uma viagem com as crianças, mas Hillary diz que a última coisa que lhe apetece é estar confinada a um lugar comigo e com as crianças. Ela prefere ir para os Estados Unidos rever a sua famíllia.

Tinha dito aquela última frase com uma expressão triste, mas Olivia não fez nenhum comentário. Também, já tinha bastantes problemas com que se preocupar.

Caspar tinha transferido as suas coisas para o quarto de Olivia depois do ataque de coração de David, e na noite anterior... Olivia fechou os olhos porque não quis pensar nos problemas que estavam a surgir na sua relação com Caspar, nem nos sentimentos turbulentos e amargos, plenos de angústia, que esses problemas lhe estavam a causar. Como era possível que a relação deles tivesse mudado tanto? Sim sabia das sequelas que a rejeição sofrida por Caspar durante a infância tinham deixado. Ele falara abertamente delas, da mesma maneira que Olivia lhe tinha revelado os seus problemas. Ela acreditava que Caspar a entendia e que sabia que o medo que ela tinha em dizer amo-te, não diminuía em nada o seu compromisso para com ele. Claro que também sabia que Caspar necessitava de reescrever a história emocional da sua infância, não sendo colocado antes de ninguém no coração de Olivia. Isso significaria que ele se tinha reconciliado com o seu passado.

Mas já não tinha tanta certeza. Tinha descoberto que Caspar, em vez de ser o homem maduro que respeitava e admirava de uma forma como nunca tinha conseguido respeitar e admirar o seu pai, era também capaz de se comportar de um modo irresponsável e irracional, embora de um modo muito diferente. Conseguia ser tão egoísta e exigente, e conseguia mesmo pressioná-la para obter o que queria sem pensar no que ela podia querer ou precisar. Tal como tinha feito na noite anterior.

Ficou tensa. Ela própria sugerira que Caspar se mudasse para o seu quarto. Precisava do conforto dos braços dele, do seu calor... precisava simplesmente de saber que ele estava lá. Na realidade, estava mais transtornada e angustiada pela descoberta de que a sua mãe sofria de um distúrbio alimentar do que com o ataque de coração do seu pai e, no fundo, sabia porquê. Um ataque de coração podia ser explicado, ser comentado, ser entendido. Mas a bulimia da sua mãe.

Sentia-se tão confusa, tão impotente... O que mais precisava era da compreensão de Caspar, e tempo. Mas Caspar não estava disposto a dar-lhe nem uma coisa nem a outra.

Quando se voltou para ele na cama com a intenção de falar... Fechou os olhos e sentiu-se como se estivessem novamente no quarto deles, com a luz delicada da lua que entrava pela janela.

- Caspar - sussurrou. - Estás acordado?

- Que te parece? - ouviu- o dizer, e os lençóis moveram-se quando ele esticou o braço para a abraçar. Imediatamente, começou a acariciar com os lábios a pele macia e suave do pescoço dela. - Hum... Há quanto tempo.

Pelo que parecia, estava demasiado absorvido com o sabor da pele dela para notar a rigidez do seu corpo.

- Caspar - começou a protestar, mas ele não Lhe prestou atenção, passou-lhe uma perna por cima e beijou-a ferozmente.

Olivia hesitou um segundo antes de começar a responder. Não era que não quisesse fazer amor, mas naquele momento para ela era mais importante falar. Ela precisava de expressar o que sentia e Caspar era a única pessoa com quem podia desabafar. Parecia desleal não sentir amor pela sua mãe e sentia-se culpada porque a única coisa que sentia por ela era piedade e compaixão. Mas Caspar já estava a mover as suas mãos até aos seus seios. Já estava excitado.

Acariciou-lhe o mamilo na escuridão e ela tentou reter o prazer sexual da carícia. A primeira vez que fizeram amor, desejara-o tanto, ansiara tanto para estar com ele que teve um orgasmo enquanto ele lhe beijava os seios, excitando os dois mamilos erectos com a ponta da língua. Olivia estava muito envergonhada, mas Caspar limitava-se a rir e dizer que se aquela era a sua reacção à estimulação erótica dos seus seios, não conseguia esperar para ver como é que ela reagiria quando ele estimulasse com a boca uma área mais íntima de seu corpo.

Afinal, tinha sido mesmo assim. Caspar não pôde esperar e ela também não, mas depois eles compensaram a sua impetuosidade e, pela primeira vez na sua vida, Olivia descobriu que não era apenas o homem que tinha prazer com as carícias de uns lábios quentes no seu sexo.

Ao princípio, hesitou um pouco antes de lhe dar prazer daquele modo, por isso as suas carícias eram cautelosas e inseguras. Mas Caspar não a apressou, nem tentou marcar o ritmo de uma intimidade para a qual ela não estava preparada. Para falar a verdade, desfrutou da sensação de poder que experimentava, principalmente quando começou a notar que ele ficava excitado e endurecido com as carícias da sua boca.

Absorvida com a reacção de Caspar, passaram vários minutos até que ele notou não só que ela estava a tremer na cama, como também percebeu o motivo pelo qual o fazia.

Quando percebeu finalmente que o desejo que estava recarregando as suas baterias sexuais não tinha nada a ver com o que Caspar tinha feito para a excitar mas, por mais surpreendente que fosse, com a forma como ela o acariciou, ficou tão perplexo que a soltou e lhe perguntou rudemente.

- Que está a acontecer? - perguntou Caspar, que a abraçou com força. - Se não gostas...

Olivia negou com a cabeça.

- Não, não é isso - disse.

- Então? - pressionou Caspar.

- Eu... Eu desejo-te - admitiu com voz rouca enquanto elevou a visão e levou os dedos aos seus lábios. - Ao acariciar-te - acrescentou, corada. - Fiquei tão... eu não pensei... não sabia...

Então, Caspar mostrou-lhe que ela também era vulnerável a esse tipo de carícia íntima, ao deitá-la na cama suavemente e, ainda com mais suavidade, separou as suas pernas e ajoelhou-se entre elas para tocá-las, para acariciá-la calmamente. Sem deixar de olhá-la nos olhos, baixou lentamente a cabeça até à sua suave e húmida púbis.

Olivia fechou os olhos e tentou reprimir o gemido de prazer que submergia da garganta dela, quando ele começou a explorar a sua terna e doce intimidade. Encontrou de forma certeira o ponto onde ela era mais sensível e acariciou-o até que ela já não conseguiu conter mais a excitação.

Mas isso tinha sido há meses. Naquele momento, Caspar estava a estimulá-la com a língua e os seus mamilos começavam a contrair; o corpo dela respondia, embora ela não quisesse.

Olivia estava a acariciar-lhe o cabelo com os dedos, mas em vez de enterrar as mãos nele, para o trazer até mais perto do seu corpo, o que na realidade queria fazer era afastá-lo. Como era possível que ele não percebesse que ela não tinha vontade? Estaria assim tão cego, tão absorvido nas próprias emoções? Ou talvez fosse mais importante ele satisfazer a sua própria necessidade do que a dela?

Caspar estava a aumentar a pressão dos seus lábios nos seus seios. Olivia sentiu a erecção dele e, pela primeira vez desde que tinham iniciado o seu namoro, quis que aquilo terminasse o mais rapidamente possível. Naquela noite, as carícias de que ela tanto gostava não estavam a ser mais do que uma obrigação. Como a necessidade que Caspar tinha em fazer sexo era tão arrebatadora, tão crucial, e muito mais importante do que os desejos ou necessidades dela, porque não terminava de uma vez por todas?

Moveu-se impacientemente contra ele e apertou os dentes quando Caspar interpretou mal o seu convite e começou a acariciar as suas mãos, enquanto as deslizava para as suas ancas e massajava-lhe o estômago e depois as coxas, colocando uma mão entre as suas pernas como ela tanto gostava.

Olivia ficou rígida e Caspar também.

- Que se passa? - perguntou. - Passa-se alguma coisa?

Ele finalmente percebera que alguma coisa não estava bem.

- Nada - respondeu Olivia, com aspereza.

Ouve, porque é que nós não terminamos de uma vez por todas? Eu estou cansada e se tu queres sexo, como parece que queres...

Olivia sabia como as suas palavras soavam mal, mas não conseguiu controlar-se. Era culpa sua que Caspar não tivesse percebido que o que ela queria era que ele a abraçasse, a consolasse e a escutasse, e não que a utilizasse como um meio para aliviar a sua tensão sexual?

Ela sabia que ele a estava a observar na escuridão e ficou surpreendida quando ele se afastou. Caspar não era o tipo de homem capaz de forçar uma mulher a fazer amor. Uma vez, dissera-lhe que, para poder desfrutar, o prazer tinha de ser mútuo. Mas justamente quando ela se preparava para se voltar, Caspar foi para cima dela e imobilizou-a com o peso do seu corpo antes de lhe dizer, com raiva:

- Muito bem, se é isto que queres...

- Caspar - protestou Olivia, mas já era demasiado tarde. Enquanto a mantinha deitada na cama, começou a penetrá-la.

Olivia estava mais excitada do que pensava, porque o seu corpo estava a aceitá-lo com bastante faci lidade, apesar dos seus esforços por contrair os músculos e rejeitá-lo.

- Parece-me que querias que eu terminasse de uma vez por todas - lembrou Caspar, ao notar os seus esforços para resistir.

Começou a mover-se depressa, com mais impulso e, para surpresa de Olivia, em parte ela estava a ter prazer por tê-lo deixado furioso. Era como se, ao tê-lo castigado, pudesse reconhecer as suas próprias necessidades sexuais.

Ficou rígida ao notar que o corpo dela estava a reagir às investidas rítmicas de Caspar.

Quis empurrá-lo, parar com aquilo, esticar os braços e arranhá-lo, mordê-lo, revoltar-se contra aquela posse sexual, e ao mesmo tempo... ao mesmo tempo...

Proferiu uma exclamação áspera quando a primeira palpitação do orgasmo a apanhou de surpresa e, nessa altura, já era muito tarde para fazer outra coisa que não embrulhar o corpo dele com as suas pernas e gritar o seu nome, enquanto mergulhava no seu próprio prazer.

Nunca tinham usado o sexo para se magoarem um ao outro, nem física nem emocionalmente, mas tinham-no feito naquela noite. Quando terminaram, Olivia virou-lhe as costas e fingiu que estava a dormir enquanto ele a acariciou com hesitação e sussurrou o nome dela. Passados alguns minutos, sentiu que Caspar se voltava, enquanto ela permanecia imóvel, embora desejando voltar-se e abraçá-lo, ao mesmo tempo que estava demasiado furiosa para o fazer.

Quando acordou de manhã, Caspar já estava na casa de banho. Passaram o dia inteiro a tratar-se friamente e Olivia conseguia sentir o crescimento da distância que estava a surgir entre eles.

Naquele instante, sorriu quando Jon se aproximou até ao local onde ela estava sentada com Saul. De todos, Jon era o que pior estava a lidar com a doença do seu pai, pensou. Afinal, não era somente o gémeo de David. Estava afectado psicologicamente com o ataque de coração do irmão mas também sofria com o pânico e o medo da família, principalmente de Tiggy e de Ben. No caso de Tiggy, o medo mostrava-se através de um choro histérico e na necessidade de o agarrar física e emocionalmente, o que já era bastante duro, no caso do avô... Olivia olhou para o outro lado da sala de estar, onde estava sentado o seu avô.

Talvez não quisesse dar a impressão de que preferira que tivesse sido Jon a sofrer o ataque de coração e não David, ou que se tivesse de perder um dos fiLhos preferia que fosse Jon e não David, mas não era isso que transmitia. Além disso, para Jon também deveria ser complicado perceber que o seu pai não acreditava nas suas capacidades para seguir com o negócio da familia.

- Livvy e eu perguntamo- nos como é que o tio se vai aguentar sozinho no escritório - comentou Saul.

- Parece-me que a melhor solução seria procurar um substituto...

- Não - a velocidade com que Jon rejeitou a sugestão de Saul apanhou Olivia de surpresa. A voz dele, geralmente suave e controlada, tinha soado quase áspera. - Não... eu ainda não tive tempo para decidir nada acerca do escritório - disse Jon firmemente, enquanto Olivia e Saul olhavam para ele, estupefactos.

- Mas terás de procurar uma solução o mais cedo possível - interveio Jenny calmamente, do local onde estava sentada. - É impossível gerir es o escritório sozinho. Há muito trabalho e também...

- Também o quê? - interrompeu Jon, esquecendo-se da presença de Saul e de Olivia na sala enquanto se voltava para a sua esposa com um tom de voz repentinamente amargo. - O problema é que eu não sou David e não posso gerir o escritório sozinho, não é?

- Jon. Sabes perfeitamente que eles não quiseram dizer isso - advertiu Jenny. Tinha mudado tanto nos últimos dias que já mal o reconhecia. Sabia que ele estava sujeito a muita pressão e que estava muito triste e preocupado com David... e muito magoado pela convicção evidente de Ben, que não acreditava que ele conseguisse substituir o irmão. Mas era impossível continuar a fazer o trabalho dos dois indefinidamente e era isso que os seus sobrinhos tinham realçado.

- Eu poderia ajudar durante um tempo... Mal acabou de dizer a frase, Olivia desejou saber que bicho lhe tinha mordido. Ela já tinha prometido ir para os Estados Unidos com Caspar. Tinham tudo planeado.

- Livvy! Achas que poderias? Mas e o teu trabaLho? - perguntou Jenny, com evidente alívio.

Olivia sabia que Caspar estava a ouvi-la e a observá-la do outro lado da sala de estar. Tinha Hillary a seu lado, como se tornara frequente, pensou com tristeza. Quando Hillary se levantou e Lhe sussurrou algo ao ouvido, Olivia elevou o queixo com obstinação. Já era muito tarde para retirar o que dissera e, além disso...

- Neste momento estou... estou livre - admitiu. Eu não tive oportunidade para falar disto convosco, mas eu entreguei um pré-aviso de despedimento no meu escritório, por isso nada me impede de substituir o pai e ajudar no escritório durante um tempo.

- A sério? Isso seria maravilhoso, não era, Jon?perguntou Jenny enquanto se voltava para o seu marido.

- Seria.

- O que está a acontecer, o que é? - perguntou Ben, alertado por Max.

- Livvy acabou de se oferecer para ajudar no escritório até que David recupere o suficiente para voltar ao trabalho - explicou Jenny ao seu sogro.

- Como? Impossível! Livvy não passa de uma rapariguinha e isto.

- Posso ser apenas uma rapariguinha, avô, mas sou também uma advogada totalmente qualificada e experiente - lembrou Olivia, com voz fria e forte. Mas, apesar da sua aparência, por dentro, sentia o coração apertado. - Eu sei que é o que o pai quereria que eu fizesse - acrescentou, enquanto olhava para o seu avô nos olhos. - A não ser, claro, que Max queira.

- Isso é impossível - disse Ben, mal-humorado. Sabes isso perfeitamente. Max está a preparar-se para os tribunais superiores.

- Livvy - ouviu Jon começar com hesitação, mas Olivia reforçou a sua resolução e aumentou o tom de voz.

- Já estou decidida, tio Jon - disse com coragem.

- E não mudarei de ideias. Estarei amanhã logo pela manhã no escritório.

Conteve o encorajamento, enquanto esperava que mais algum dos presentes se opusesse à sua ideia, mas suspirou de alívio ao ver que todos se mantiveram em silêncio. Eles precisavam dela, reconheceu com tristeza, embora nenhum deles, além de Jenny, estivesse disposto a admiti-lo. Pois bem, iria mostrar-lhes que era igual em termos profissionais a qualquer membro masculino da familia, até mesmo melhor do que alguns deles, decidiu com amargura ao ver que Max estava a olhar para ela com o seu habitual ar de desprezo.

Perguntou-se se devia ter dito a Ben que a sua ascensão a sócio no escritório em que trabalhava não estava assim tão decidida como ele tinha insinuado e pensou que, se ele não tinha dito nada, era problema dele. Embora ela não gostasse de estar na pele dele caso acabassem por escolher outro sócio, como Caspar estava convencido que aconteceria.

- Porquê? - perguntou a Caspar quando falaram no assunto. - Qual o motivo?

- Por muitas razões - respondeu Caspar. - Para começar, por ser homem e, além disso, porque eu duvido que ele seja suficientemente competente para a posição.

- Passou nos exames.

- Sim, mas por uma unha negra - esclareceu Caspar. - E ele não goza de muita popularidade entre os seus colegas. Sim, eu já sei o que vais dizer - continuou, erguendo uma mão para detê-la. - Sim, eu sei que não ter a admiração dos colegas de profissão é até mesmo benéfico para um advogado que quer exercer nos tribunais superiores, mas, neste caso, não diria que os colegas não o admiram, mas sim que o rejeitam.

Olivia olhou para Caspar. Ele não estava a contar-lhe nada que ela já não tivesse ouvido. O mundo do Direito era, afinal de contas, relativamente pequeno e fechado, e os rumores espalhavam-se bastante depressa.

Naquele momento, ao olhar para Caspar, o seu coração deu um salto. Como reagiria ele à decisão impetuosa de substituir o seu pai no escritório? Iria entender o motivo pelo qual tinha sido forçada a oferecer a sua ajuda, ou não?

- Estupendo. Sentiste que devias fazê-lo pelo teu pai. Muito generosa. Mas o que vai acontecer connosco, Livvy? O que vai acontecer comigo? Não te parece que tinha o direito de saber o que planeavas fazer?

Olivia fez uma careta quando Caspar deixou de andar às voltas pelo quarto e olhou para ela, furioso.

- Eu não parei para pensar - admitiu. - Só... Pensei que irias compreender...

- Sim, compreendo perfeitamente - respondeu Caspar com um tom sombrio. - Compreendo que não resististe à tentação de te exibires perante o teu avô, de obteres a aprovação dele, de ouvires ele dizer que tem orgulho em ti, dizer o quanto te ama. Mas isso não acontecerá, Livvy, porque o teu avô nunca reconhecerá que cometeu um erro ao dizer que uma mulher não pode ser tão boa advogada como um homem. Iria contra todos os seus princípios, e é muito velho e antiquado para mudá-los.

Caspar fez uma pausa antes de continuar com a mesma veemência.

- Eu valorizo-te, admiro- te e amo-te, mas tu não te preocupas com os meus sentimentos. E nem com os nossos planos. Pelo menos, apercebi-me disso antes que fosse demasiado tarde. Eu não planeio construir a minha vida ao lado de uma mulher que deixa tudo para ajudar a família sempre que eles precisam, ou que depende da aprovação deles para tudo, da mesma forma que a tua mãe depende...

- Isso não é verdade - interrompeu-o Olivia, furiosa. - Não te estou a abandonar pela minha família, Caspar. E em relação aos nossos planos, só estou a retardá-los um pouco até que o meu pai recupere o suficiente para voltar ao trabalho. Tu sabes qual é o teu, problema? - perguntou, tão furiosa quanto ele, recusando-se a escutar a voz que a aconselhava a falar com precaução. - És muito bom a acusar-me de estar agarrada aos meus padrões de comportamento da infância, por oferecer ajuda só para obter um elogio do meu avô, mas que me dizes de ti? Comportas-te como um menino que não suporta não ser o centro das atenções. Não tenho culpa que os teus pais se tenham divorciado, Caspar, nem que o teu pai tenha tido outros filhos. Meu Deus, assim nós não chegaremos a lado nenhum! exclamou, ao ver a expressão dos olhos dele. A última coisa que queria era discutir com ele, muito menos quando tanto precisava do seu apoio e da sua compreensão.

- É verdade - confirmou Caspar, com indiferença e o semblante carregado. - Quem sabe não temos nenhum sítio onde chegar. Já tomaste a tua decisão, Olivia... foi a tua" decisão, e tomaste-a sem pensar em como isso me poderia afectar. Parece-me que esta foi a prova final do quanto valorizas a nossa relação, não é?

- Caspar, onde vais? - perguntou Olivia, angustiada, ao ver que ele caminhava para a porta. Quando a abriu, parou e olhou para ela friamente antes de dizer:

- Acho que já sabes a resposta. É muito tarde para ir hoje à noite para Londres, mas eu irei amanhã bem cedo. Depois de tudo, não faz sentido que eu fique mais tempo, pois não?

- Caspar - protestou Olivia, mas já era demasiado tarde. Caspar tinha partido e, juntamente com o desespero, Olivia sentia um ressentimento que ainda não se dissipara por completo.

- Bom, pelo menos a oferta de Livvy de ajudar no escritório vai tirar-te um peso de cima - comentou Jenny com Jon, no regresso de Queensmead.

- Sim - reconheceu. Eles estavam na cozinha e Jenny começava a preparar o jantar.

Jenny olhou para ele, de forma pensativa. A rispidez dele confirmava o que já tinha sentido, que por alguma razão ele estava relutante em aceitar a ajuda de Olivia. Mas ela tinha a certeza de que essa relutância não se devia ao facto de ela ser mulher. Jon, afinal, sugerira que Olivia fosse estagiária no escritório. Tinham sido David, claro, e Ben quem se tinham colocado contra essa ideia.

- Não pareces muito feliz - pressionou-o, ao ver que ele não desabafava. - Não podes estar sozinho no escritório. Precisas...

- Eu sei, Jenny - interrompeu Jon, bruscamente. Mas a minha vida seria muito mais fácil se certos membros desta família parassem para me perguntar o que é melhor para mim e me permitissem tomar as minhas próprias decisões.

Jenny olhou-o de alto a baixo. Sabia, claro, que ao dizer certos membros da familia" se referia a ela, mas a crítica era tão injusta e tão pouco própria dele que ela nem queria acreditar no que ouvira.

- Jon... - protestou.

- Tenho de ir ver Tiggy - disse secamente. - Está muito preocupada com uma situação com o banco e eu prometi que ia ver o que se passa.

- Olivia está com ela - recordou Jenny, tentando manter o tom de voz neutro. - Tenho a certeza de que, se souber que Tiggy está preocupada com alguma coisa, não hesitará em ajudá-la.

- Eu não duvido disso - corroborou Jon. - Mas talvez Tiggy se sinta mais confortável ao pedir-me ajuda a mim. Ela pensa que Olivia não aprova o comportamento dela... que a julga uma irresponsável. E é verdade que têm personalidades completamente diferentes. Tu mesma já o disseste - lembrou, ao notar o silêncio de Jenny.

- Não me lembro de ter dito que têm personalidades completamente diferentes - corrigiu Jenny, suavemente. - Diferentes, sim. Mas estás a cometer um erro ao acusares Olivia de não aprovar o comportamento da mãe dela.

- Não estou a acusar Olivia de nada, só estou a repetir o que Tiggy me contou... a confidência que me fez - sublinhou. - Podias tentar ser um pouco mais compreensiva e tolerante, Jenny. Eu sei que Tiggy e tu nunca foram muito unidas e que, no princípio, ela não te dava muita atenção, mas isso não significa que ela não sinta.

Interrompeu a frase, incomodado e nervoso, ao aperceber-se que tinha falado demais, que tinha revelado demasiado. Mas desde quando é que ele precisava de justificar o comportamento de Tiggy?, questionou-se Jenny, com o espírito sombrio.

Antigamente teriam ficado sentados a falar calmamente sobre a questão mas, ultimamente, Jon estava sempre sensível e mal-humorado, e ofendia-se com qualquer coisa.

- Bom, podia ser pior - comentou Jenny com humor, fazendo um esforço para dissipar a tensão existente entre eles. - Poderia ter sido Max a oferecer-se para substituir David.

- Max! - a nuvem de ódio que escureceu os olhos de Jon apanhou Jenny de surpresa. - Ele nunca! Max é muito egoísta, muito egocêntrico e só pensa nas próprias necessidades, sem parar para pensar...

- Jon, estás a falar do teu filho - foi obrigada a lembrar, transtornada por aquela explosão de aversão vinda da parte de um homem normalmente sereno e generoso.

A ela também não lhe agradava o comportamento do seu filho mas, como qualquer mãe, sentiu-se na obrigação de o defender. Queria que Jon percebesse que os defeitos que encontrava no seu filho mais velho eram os mesmos que o seu irmão gémeo tinha, o que, segundo parecia a Jenny, tinha sido elevado por Jon e pelo seu pai a um nível próximo da santidade.

- Sim, Max é meu filho - repetiu Jon com raiva e nojo. - Mas ambos sabemos que ele preferia ter David como pai... mesmo quando era criança adorava que as pessoas pensassem que ele era seu filho e se calhar... - interrompeu a frase e moveu a cabeça. Então, sem dar oportunidade para Jenny responder, levantou-se e caminhou para a porta. - Não te preocupes com o jantar. Eu comerei com Tiggy.

 

Jon parou com nervosismo ao sair do carro. A janela do segundo andar, a que pertencia ao espaçoso quarto de David e de Tiggy, estava iluminada... Se, como o especialista os tinha avisado, David tivesse de permanecer hospitalizado, logo o quarto seria apenas de Tiggy durante bastante tempo.

- Pensava que hoje em dia a tendência era para que o paciente voltasse para casa o mais cedo possível depois de um ataque de coração - comentara Jon com o médico.

- Há ataques de coração e ataques de coração - foi o comentário enigmático do doutor Hayes. - E há pacientes e pacientes.

O carro de Olivia estava estacionado em frente à casa e Jon sentiu o coração mais depressa quando ela lhe abriu a porta.

- Tiggy está lá em cima - disse-lhe, enquanto o dirigia até à pequena sala que Jon sempre relacionara com a esposa de David. Como ela, era delicada e feminina e cheirava sempre ao perfume dela. David tinha o seu próprio escritório do outro lado do corredor. - A propósito... eu gostaria de falar um momento contigo antes da tua mãe descer - Olivia concordou, enquanto lhe estendia um cálice que acabara de servir.

O coração de Jon voltou a bater mais depressa. Faltava-lhe coragem para falar daquilo que queria.

- Eu sei que nunca poderia convencer o avô e, nem o pai, porque ambos acreditam que uma mulher jamais pode ser uma advogada competente, mas eu pensei que o tio fosse diferente, tio Jon. Eu sou qualificada e...

- Olivia, eu sei que tu és muito qualificada - interrompeu Jon. - E que és muito competente, mas...

- Mas não quer que trabalhe consigo no escritório.

- Não está em causa o que eu quero ou deixo de querer - disse Jon, tentando ignorar a pergunta. - Tu já sabes...

- O quê? Que o avô não aprova esta situação? O tio não pode continuar sozinho no escritório. Pelo que o doutor Hayes me contou, não há dúvidas de que uma das coisas que originou o ataque de coração do meu pai foi o excesso de trabalho. O tio não tem tempo para se reunir com os clientes...

- Há agências que são especializadas em substitutos temporários - começou por dizer Jon, mas Olivia interrompeu-o e elevou o queixo com obstinação.

- Sim, eu sei, mas... - hesitou um pouco e caminhou impacientemente até à lareira, onde se voltou com determinação. - Se eu fosse homem... - perguntou. - Se fosse Max, por exemplo, o tio não hesitaria em aceitar a oferta.

- Olivia, eu asseguro-te que qualquer reticência que possa existir não tem nada a ver com o facto de seres mulher.

- É mesmo? Então, prove-o - desafiou Olivia. Jon fechou os olhos, cansado. Não fazia sentido continuar a enfrentar a situação. Não conseguia aguentar sozinho o trabalho do escritório. Não tinha tido oportunidade para rever a mesa e os arquivos de David, mas se o trabalho acumulado fosse tão considerável como ele temia... Mas como explicar a Olivia que as suas reticências se deviam a... Se pelo menos tivesse mais tempo. Se tivesse recebido algum aviso, poderia talvez.

- Não é que não agradeça a tua ajuda, Oliviadisse em baixa voz.

- Perfeito - respondeu a sobrinha, com determinação. - Então, assunto arrumado. Eu começarei amanhã de manhã.

- Que assunto arrumaste? - perguntou Tiggy, que acabara de entrar nesse momento na sala. Vestia um roupão, um artigo de vestuário vaporoso de cor pastel que realçava a pureza delicada da sua pele. Ela nunca tinha tido muita força, mas desde o ataque de coração de David que parecia ainda mais vulnerável e frágil.

- Que eu substituirei o pai até que ele fique restabelecido e possa voltar ao escritório - respondeu Olivia à sua mãe. Fez uma expressão de insatisfação. Pensei que tinhas subido para trocar de roupa.

- Sim, era para tê-lo feito - reconheceu Tiggy. Jon notou que Tiggy baixou a cabeça como se ela fosse a filha e Olivia a mãe. - Mas... - voltou-se para Jon, com um olhar suplicante. - Comecei a pensar em David e. - os seus lábios tremiam e tinha os olhos cheios de lágrimas. - Tu não ficas chateado por eu não estar convenientemente vestida, pois não, Jon?

Afinal, és da familia. Eu estou tão contente por teres vindo... - acrescentou, sem esperar a resposta. - Esses senhores do banco não fazem mais nada do que ligar-me e...

- Eu não me teria importado em falar com eles, Tiggy - interrompeu Olivia. A sua mãe olhou para ela com uma expressão chorosa.

- Eu sei, mas é melhor que seja Jon a falar com eles. Ele é homem e... - mordeu o lábio enquanto Olivia pousou o copo vazio em cima da bandeja prateada com força excessiva. - Ah, Saul ligou-te - disse Tiggy. - Ele quer que lhe telefones - esperou que Olivia saísse da sala para se voltar para Jon com uma expressão de desculpa. - Temo que Olivia não esteja de muito bom humor. Penso que ela e Caspar tiveram uma discussão. Oh, Jon... - interrompeu a frase, com a garganta fechada pelas lágrimas. - Não te devia maçar com os meus problemas, mas eu sei que David...

- Fica quieta, não vai acontecer nada - tranquilizou Jon. - E tu nunca me maças. Eu quero ajudar-te.

- Jon... - o olhar nublado que lhe dirigiu estava cheio de gratidão e confiança. - Não sei o que teria feito sem ti. Não sou como Jenny nem como Olivia. Aconteça o que acontecer, elas permanecem sempre fortes. Eu não.

Era verdade, reconheceu Jon. Não se lembrava da última vez que Jenny tinha precisado da sua ajuda ou o tinha desejado... O seu coração deu um pequeno salto. Tinha- se esforçado por não pensar na discussão durante o caminho até à casa de David.

- Eu sou um estorvo, Jon? Tenho a certeza de que Jenny.

- Não, é claro que não és nenhum estorvo. Depois, não soube exactamente como é que aquilo aconteceu. Tinha esticado a mão para Lhe dar umas palmadinhas tranquilizantes no braço quando, de repente, Tiggy estava a chorar nos seus braços, frágil, cheirosa e feminina. A descoberta de que não trazia nada vestido debaixo do roupão vaporoso e que tinha os seios firmes e empinados chegou antes de puder fazer alguma coisa para evitar a reacção inesperada do seu corpo. Sentia a pressão macia dos seios dela, sentia o seu cheiro... e experimentou um impulso de...

- Nós não podemos. Olivia pode regressar - sussurrou Tiggy, nervosa, devolvendo Jon abruptamente à realidade. Ele corou, envergonhado, enquanto se afastava dela, incapaz de a olhar nos olhos enquanto começava a desculpar-se.

- Não, não é culpa tua - interrompeu Tiggy com voz trémula. - Oh, Jon, tu não sabes o quanto eu preciso de alguém como tu. David não... O nosso casamento... - não completou a frase e moveu a cabeça. Não devia estar a contar-te isto. Tu és o irmão dele... o gémeo dele - esboçou um sorriso triste. - Mas em quem posso confiar além de ti? - levou a mão até à testa. - Já me dói a cabeça, não posso pensar tanto. Tenho tantos assuntos pendentes... assuntos que Jenny conseguiria resolver, mas eu...

Jon sentia-se magoado por Tiggy sentir a necessidade constante de ser comparada com Jenny. Ele conhecia bem esse sentimento de inveja, de vergonha e de desprezo.

- Tu e Jenny são pessoas tão diferentes - disse-lhe suavemente.

- Eu sei - reconheceu, dedicando-lhe um sorriso trémulo.

- Mas eu não posso parar de pensar que, se Jenny fosse a mulher de David, ela teria percebido o que estava a acontecer e teria reagido antecipadamente. Eu sei que todos me culpam pelo ataque de coração de David - confessou, com a voz hesitante.

- Não, não devias pensar assim - disse Jon. Claro que não foi culpa tua. Como poderias ter adi vinhado? Escuta, eu tenho de ir-me embora, mas não te preocupes. Amanhã de manhã ligarei para o banco.

Havia algo mais que devia perguntar, algo mais que devia fazer. Parou e inspirou profundamente.

- Tiggy, queria perguntar-te... O escritório que David tem aqui... Sabes onde ele guarda as chaves?

- Lá em cima - respondeu Tiggy imediatamente.

- Queres as chaves? Eu vou procurá-las.

Era tão confiante, tão inocente... Jon sentiu a culpa a invadir o seu corpo.

- Sim... Sim, pode ser? Há alguns documentos, alguns arquivos que eu tenho de ver.

- Espera só um momento.

Jon fechou os olhos enquanto a via sair; tinha a testa a suar desenfreadamente e o coração apertado. Pediu a Deus em silêncio para dissipar as suspeitas que lhe assolavam a mente, como nuvens negras.

Tiggy regressou com um sorriso triunfante e deu as chaves a Jon.

- Não sei bem quais é que são do escritório dele - admitiu, e franziu a testa.

- Não te preocupes, eu descubro já - tranquilizou-a.

O telefone tinha começado a tocar e Jon sentiu-se aliviado quando Tiggy saiu para ir atender.

Sentindo-se como um ladrão, entrou rapidamente no escritório de David e começou a experimentar as chaves que Tiggy Lhe tinha dado, até que encontrou as da secretária. As gavetas estavam repletas de correspondência desordenada, sobre um monte de papéis também desordenados. Jon encontrou o dossier amarelo do arquivo, que se encontrava debaixo de um monte de extractos do banco. O seu coração começou a bater mais depressa.

Tinha acabado de tirar o dossier quando a porta do escritório se abriu. Ficou imóvel quando ouviu Olivia dizer:

- Tiggy... Ah, é o tio Jon.

- Sim. Vim ver alguns documentos. A tua mãe...

Olivia enrugou a testa ao ver o tio a tentar esconder pateticamente os documentos e o arquivo amarelo que tirara da secretária do seu pai.

- Eu... Eu prometi à tua mãe ligar amanhã de manhã para o banco.

- Então, precisa de levar os extractos da conta não é? - sugeriu Olivia calmamente.

- Como? Ah, sim... - pegou neles, quase contrariado como se nem quisesse tocar-lhes", pensou Olivia. O seu instinto preveniu-a de que estava a acontecer algo estranho. Jon estava pálido, com um aspecto quase doente, mas é claro que ninguém parecia muito normal ultimamente. Saul, por exemplo. Ligara-lhe para lhe pedir um conselho.

- Hillary e eu decidimos separar-nos - contou com voz tensa. - Ela quer voltar para os Estados Unidos.

Nós ainda não pensámos em divorciar-nos, mas eu sei que é apenas uma questão de tempo. Vou precisar de um bom advogado especializado em divórcios, Livvy. Quero ficar com a custódia total das crianças. Eu não pretendo deixar que eles se sintam como uma batata quente e não quero ser um pai à distância. Tu sabes mais destas coisas que eu. Podes recomendar-me alguém?

- Eu sou advogada laboral, tal como tu - lembrou Olivia. - Max deve conhecer alguém.

- Max! - exclamou Saul com desprezo. - As únicas ideias que tem são como tirar mais dinheiro a Ben. Vem ver-me, se puderes, Livvy, por favor. Eu preciso de falar com alguém. Ou o Caspar e tu...

- Caspar saiu - limitou- se a dizer Olivia, porque não queria reconhecer que eles tinham discutido.

- Então, podes vir? - perguntou, depois de uma pequena pausa.

Tinha ido até ao escritório pensando que iria encontrar lá a sua mãe. Não esperava encontrar ali Jon.

Tiggy apareceu à porta.

- Encontraste o que procuravas? - perguntou a Jon.

- Sim, sim - respondeu. - Escuta, Tiggy, tenho de ir.

- Sim, eu sei - reconheceu debilmente. - Jenny ficará furiosa por teres estado comigo tanto tempo. Mas irás comigo amanhã ver David, certo?

- Sim, claro - assegurou Jon suavemente.

- Vou a Queensmead ter com Saul - disse Olivia à mãe e, depois, voltou-se para Jon. - A que horas tenho de estar amanhã no escritório?

O rosto de Jon ficou sombrio. Acabou por dizer:

- Gosto de começar por volta das oito e trinta.

- Tudo bem. Lá estarei.

- Tens a certeza do que estás a fazer? - perguntou Olivia a Saul, com o semblante consternado. Ele abrira a porta e de imediato fizera um sinal negativo com a cabeça, quando ela ia entrar em casa.

- Importas-te se falarmos lá fora? - perguntou. Para mim é mais fácil. Podemos dar um passeio perto do rio. Lembras-te do quanto gostavas de nadar quando eras pequena?

- Sim, eu lembro-me como ficavas furioso quando eu estragava as tuas expedições de pescaria - riu Olivia. - Lembras-te quando eu caí...

- Como poderia esquecer? Apanhei um susto de morte. Apesar da tua mãe ter pensado que eu te empurrei de propósito.

- Aposto que muitas vezes quiseste fazê-lo - brincou Olivia.

- Reconheço que tive algumas tentações - reconheceu. - E não só de meter-te a cabeça debaixo de água.

- Ah, não? - Olivia franziu a testa, sem compreender.

- Não - respondeu Saul carinhosamente. - Não era isso que tinha em mente na noite em que te surpreendi a tomares banho nua.

Naquela ocasião, a exclamação de Olivia estava repleta de vergonha adolescente.

- Era a noite do solstício de Verão e...

- Estavas de pé sobre uma pedra no meio do rio, totalmente nua, fazendo reverências à lua - interrompeu Saul, com voz rouca. - E parecias...

- Uma perfeita idiota - terminou Olivia. - Não... uma nudista idiota - corrigiu com ar de gozo.

- Parecias uma jovem Afrodite, uma donzela que se oferecia em sacrifício à lua, virginal e pura; tão inocente como uma menina e tão experiente como Eva. Tive vontade de tocar-te, de abraçar-te. Tinhas estado a nadar e via a água que escorria pela tua pele, pelos teus seios, pelo teu ventre, o... A luz da lua fazia com que o teu corpo parecesse de marfim, pálido e quase translúcido. Queria enterrar o rosto entre as tuas pernas e lamber as gotas de água da tua pele. Queria unir-me a ti na tua nudez pagã, no teu abandono sensual à noite e para a lua e, então, voltaste a cabeça, vestiste-te e...

- E caí à água - terminou Olivia com voz trémula. Estava contente pela escuridão que os envolvia, e não por Saul ter evocado a vergonha de adolescente que viveu naquela noite, mas por causa das sensações e das emoções que sentia nas palavras dele. Não sabia que podias ser tão poético - conseguiu finalmente dizer, enquanto tentava reprimir a onda de calor que a invadia. Admitir que se naquela noite, há tantos anos atrás, Saul tivesse feito algumas das coisas que há pouco descrevera, o que teria completado a magia da noite, só serviria para reavivar um fogo muito perigoso.

Afinal de contas, ela descera até ao rio para cumprir uma velha tradição local, que dizia que se uma rapariga dirigir o seu pedido à lua no solstício de Verão, a lua concede-lhe o amor do homem dos seus sonhos.

E, naquela altura, Saul... tinha sido o seu amor platónico da adolescência.

Naquele momento, Saul estava vulnerável, pensou Olivia. O seu casamento acabara e estava a procurar nela, como parente que era, o apoio e o conselho que precisava.

- Ainda bem que foste tu quem me surpreendeu e não o avô - comentou despreocupadamente. - Embora não tivesse sido um grande alívio naquele momento, agora penso na bronca de que me livraste. - estavam a atravessar o caminho que cruzava os jardins mais bonitos de Queensmead, até ao relvado que seguia até ao rio. - Não há nenhuma possibilidade de Hillary e tu darem uma segunda oportunidade ao vosso casamento? - perguntou, mudando de tema.

- Uma segunda oportúnidade? - riu Saul. - O nosso casamento já teve mais segundas oportunidades do que jantares quentes. Não, Meg é o resultado da nossa última tentativa de darmos uma segunda oportunidade - reconheceu com franqueza. - E oxalá não tivesse sido assim. Nenhuma criança deveria ser concebida como uma cura para um casamento doente.

- Saul... - hesitou Olivia, e automaticamente estendeu a mão para lhe tocar no braço com compaixão.

A diferença de idades já não era o imenso abismo que lhe tinha parecido aos quinze anos, quando Olivia estava loucamente apaixonada por ele. Nem Saul lhe parecia a criatura angelical e divina que naquela altura ela pensara que ele era. Preferia vê-lo como o ser humano imperfeito que era, reconheceu, e embora a admiração que sentia por ele quando era uma rapariguinha tivesse desaparecido, a atracção física, não.

Imediatamente, soltou-Lhe o braço, e Saul parou para observar o seu rosto inundado pela luz da lua antes de agarrar-lhe a mão com força.

- Caspar não teria nada a opor - disse. - Se é isso o que te preocupa. Nós somos primos.

- Não é isso que me preocupa, e nós não somos... primos - referiu. - Pelo menos, não somos primos direitos, nem talvez afastados... Céus, começo a ficar parecida com o avô. Ele dá sempre tanto ênfase ao facto do teu pai ser apenas meio-irmão dele... Onde está Hillary? - perguntou. Estavam a chegar ao rio e podiam ver a superfície a brilhar intensamente com a luz da lua.

- Saiu para jantar, acreditas? Não faço ideia com quem - riu com amargura. - Sabes que não foi muito longe daqui que te vi naquela noite? - recordou.

- Ah, sim? - respondeu Olivia, que se virou de costas para o rio. - É melhor voltarmos, eu tenho...

- Livvy...

- Sim.

Adivinhava o que ia acontecer, claro. Já não tinha quinze anos e sabia o que significava aquele tom na voz de um homem. Poderia ter fingido que não o tinha ouvido, poderia não ter respondido a Saul, mas em vez disso... Em vez disso, voltou-se para ele, e Saul deu um passo até ela e elevou as mãos para Lhe acariciar o rosto com os seus dedos longos e esguios, com erotismo delicado e deliberado.

- Saul! - cobriu-lhe as mãos para as tirar do seu rosto, mas já era muito tarde para parar o movimento descendente da cabeça dele, a pressão quente dos seus lábios, o beijo dele.

Olivia pôs um fim ao beijo assim que conseguiu, ordenando aos seus próprios lábios que não cedessem à tentação de responder; voltou-se depressa e começou a caminhar com determinação pelo caminho que tinham acabado de percorrer, sem esperar por ele.

- Livvy, desculpa - Saul tentou desculpar-se quando a alcançou. - Eu não devia ter feito aquilo.

- Não, não devias - afirmou ela, com naturalidade.

- Continuamos a ser amigos?

- Continuamos a ser amigos - repetiu Olivia, dando ênfase à última palavra.

Saul sorriu enquanto lhe segurava na mão, mas ela afastou-se.

- Está bem, está bem, já percebi a mensagem - tranquilizou-a. - Caspar é um tipo com sorte - acrescentou. - Embora eu tivesse tido a impressão de que ele não gostou muito da ideia de ficares aqui para ajudar Jon.

- Ele disse-te isso? - perguntou Olivia rudemente.

- Não com tantas palavras.

- Não será durante muito tempo. Só dúrante algumas semanas, até o pai estar completamente recuperado - nem sequer perante Saul poderia reconhecer que não era só pelo seu pai que tinha sido forçada a ficar. Era também pela sua mãe. Até ao momento, não se tinha repetido a horrível cena que Olivia tinha visto, mas a mãe dela era terrivelmente vulnerável; o modo como se agarrava ao tio Jon era prova disso. Precisava de alguém ao seu lado.

Mas Olivia sabia que não fazia sentido tentar contar a Caspar como se sentia. Ele deixara muito claro qual a sua opinião sobre o distúrbio da sua mãe. No entanto... Caspar significava tanto para ela... Não suportava a ideia de perdê-lo e, na realidade, não havia qualquer razão para que tal acontecesse, disse para si mesma, enquanto acelerava o passo em direcção a casa, ao seu carro, repentinamente desesperada e ansiosa por ver Caspar, por estar com ele.

Sim, talvez tivessem ideias opostas sobre o que estava a acontecer em Haslewich. Afinal, eram pessoas inteligentes e com carácter forte, que nem sempre tinham de coincidir em tudo. Na realidade, estariam sempre condenados a pensar e a sentir de formas distintas, e quanto mais importante era o problema, mais marcadas eram as diferenças, embora isso não significasse que eles não conseguissem entender-se e chegar a um acordo. Simplesmente, iria ter com Caspar a Filadélfia em vez de viajar logo com ele para os Estados Unidos e, até essa altura, ficaria a ajudar o tio Jon, enquanto Caspar retomava a sua vida na América do Norte. Seriam apenas algumas semanas. Eles poderiam manter-se em contacto pelo telefone, apesar de não puderem...

As suas mãos tremiam ligeiramente enquanto se despedia de Saul e abria a porta do carro.

- Quer falar comigo, avô? - Max parou, irritado, à porta do escritório de Ben.

Tinha estado a ponto de partir para Chester com a desculpa de pôr aquele lado da familia ao corrente da evolução de David, mas, depois de cumprir o seu dever, planeara passar o resto da tarde a divertir-se num hotel, longe da atmosfera de claustrofobia que se fazia sentir em Haslewich. Conhecia um clube no qual a norma de admissão de sócios era flexível, sempre que alguém podia permitir-se ao luxo de rompê-la, e as mulheres... Então, quando a sua mãe lhe disse que o avô queria vê-lo, Max tentou adiar o encontro com Ben até o dia seguinte pela manhã, mas sabia perfeitamente que a mãe iria recusar mentir ao sogro.

Que diabos quereria o velho? Por acaso o namorado intrometido de Olivia teria feito alguma insinuação acerca da vaga do escritório? Max começou a suar ligeiramente. Já devia estar em Londres, a tentar descobrir quem era a sua rival feminina e fazendo todos os possíveis para sabotar as oportunidades dela em alcançar o que era dele. No entanto, Max não ousara partir até ter notícias mais concretas acerca do estado de David. Sabia muito bem o que Ben pensaria caso ele se fosse embora.

Nunca tinha visto o velho tão transtornado. Mentalmente, Max pensou no seu discurso. O avô concordaria com ele que era injusto que a vaga pudesse ficar com uma mulher. A opinião de Ben acerca do lugar das mulheres no Direito não era segredo para ninguém. Max divertira-se ao ver Olivia tentar ganhar a aprovação de Ben. Para que é que ela se esforçara? Nem Ben nem Jon a queriam no escritório.

Por sorte, como se tinha formado para os tribunais superiores e não para exercer o cargo de advogado numa cidade pequena, não fazia sentido que se oferecesse para fazer um tal sacrifício. A perspectiva de terminar como David, afundado em Haslewich, fê-lo ter suores frios.

Ben tinha alguns documentos sobre a mesa. O coração de Max começou a bater com mais força quando o velho lhe pediu para se aproximar e ele viu que papéis eram.

- Tenho estado a rever o meu testamento - disse Ben, com a voz cansada. - Na minha idade, é uma precaução necessária, embora... - fez uma pausa e desviou o olhar para o fogo da lareira, enquanto Max tentava esconder a sua impaciência. Que raios queria o avô? Caspar teria comentado alguma coisa ou não?

- Tal como as coisas estão, David, o meu primogénito, herdará Queensmead e a maioria dos meus bens pessoais - começou Ben a dizer com solenidade. Claro que especifiquei alguns objectos pessoais... existem algumas coisas para ti. Pelo menos até...

Max cerrou os dentes. Já todas as pessoas sabiam aquilo, porque é que tinha de repetir tudo nova mente? Estaria a ficar senil? O seu cérebro teria ficado afectado por causa do ataque de coração de David?

- Porém, o ataque de coração do teu tio muda tudo

- Ben falava lentamente, como se as palavras lhe doessem fisicamente. - Eu não posso ficar parado e esperar a possibilidade de David... - hesitou, e Max contemplou friamente o modo como Ben tentava controlar o tremor da mão, enquanto erguia o testamento. O velho estava cada dia mais frágil. Que idade tinha ele exactamente?

Max começou a sentir-se relaxado. Ben não o tinha chamado por causa das dificuldades que ele es tava a ter em conseguir ocupar o lugar de sócio do escritório. Relaxou a postura, enterrou as mãos nos bolsos e apoiou-se na parede com indiferença e indolência.

- Eu não posso ignorar a possibilidade de David morrer antes de mim. Em circunstâncias normais, se isso acontecesse, Queensmead passaria para as mãos de Jack, mas o menino só tem dez anos e a mãe dele... Bom, na minha opinião, as mulheres e os negócios não ligam. Poderia aparecer um canalha eloquente e sem escrúpulos e Queensmead ficaria para sempre fora da nossa família. Eu não posso correr esse risco.

- David ainda não morreu, avô - referiu Max.

- Não - confirmou Ben. De repente, os olhos dele estavam cheios de lágrimas. - Meu Deus, o que se passa nesta família? Por que motivo temos que perder os que... Porque é que perdemos sempre os melhores? Quando o meu pai morreu, eu prometi-lhe que um dos meus filhos chegaria aos tribunais superiores e alcançaria o sonho que tinha sido negado a ele.

Max mexeu-se, impacientemente. Já tinha ouvido mil vezes qual era a promessa que Ben fizera ao pai dele; o velho devia estar senil.

- David deveria ter tornado a minha promessa realidade. As circunstâncias não o permitiram e ele não foi capaz, mas tu és. Vou modificar o meu testamento - contou a Max, rudemente. - E deixar Queensmead para ti e a maioria dos meus bens, com a condição que tu estejas a exercer nos tribunais superiores no momento da minha morte.

Max teve dificuldades em controlar o choque... e a alegria. Meu Deus, e pensar que quando tinha ido ter com o velho tinha acreditado... Recompôs-se rapidamente. Tálvez Ben estivesse a sofrer as consequências do ataque de coração de David, mas continuava a ser um homem inteligente; lançaria tudo a perder se o velho adivinhasse o que ele estava a pensar naquele instante, principalmente, os planos dele para Queensmead se algum dia tivesse a propriedade nas suas mãos.

Talvez o seu avô visse a casa e as terras como algo sagrado, mas ele não. Haslewich estava a crescer e, mais dia, menos dia, as terras de Queensmead despertariam o interesse dos construtores.

Meu Deus. Max sentia a alegria a correr pelas suas veias. Ganharia milhões de libras. Poderia esquecer os miseráveis honorários de um advogado. Mas, logo depois, recuperou a calma. Queensmead poderia ser dele, mas primeiro tinha de cumprir uma condição vital. Conhecia bastante bem o seu avô e sabia que ele iria explicar tudo no testamento, como cláusula irrevogável. Estava outra vez a suar.

Se assegurar a posição de sócio no escritório era há uns minutos atrás importante, agora era totalmente crucial. Iria derrubar a outra mulher, e não se importava de usar qualquer estratégia para o conseguir. Tinha de assegurar a vaga, não podia dar-se ao luxo de perder mais tempo. David poderia sofrer um segundo ataque de coração no dia seguinte. O seu avô poderia morrer com a mesma facilidade.

Em seguida, baixou a cabeça, porque não queria que a sua expressão o denunciasse.

- O avô é muito generoso - disse em voz baixa, e adoptou um semblante sereno antes de erguer a ca beça e olhar Ben nos olhos. - Eu prometo que farei o possível para ser merecedor da... da confiança que está a depositar em mim.

- És um bom rapaz, Max - disse Ben, sinceramente. - És outro David.

Ah, não. Nunca seria outro David, pensou Max, decidido, triunfante. Nunca se deixaria agarrar, como David fizera, nunca deixaria que alguém destruísse o seu futuro.

- Agora mesmo, daria qualquer coisa para estar no lugar de Olivia e ficar aqui... para ajudar - mentiu a Ben. - Mas eu não tenho tanta liberdade como ela. - astutamente, sabia que ao insinuar que Olivia tinha tanta liberdade era porque não se entregava tanto à profissão como ele, que era um irresponsável por não se preocupar em voltar para o seu trabalho.

Era uma habilidade que tinha aperfeiçoado ao longo dos anos, e usava-a impiedosamente sempre que precisava. Por vezes era sincero, mas só quando isso lhe dava algum prazer. como naquele momento. Nunca gostara de Olivia. Ela era a boa menina. Pois se pensava que iria impressionar o velho ao ficar no escritório...

- Tenho de voltar para Londres - continuou. Quanto mais cedo descobrisse a identidade da mulher que competia com ele para a posição no escritório, melhor. - Queensmead estará segura comigo, avô - mentiu novamente, enquanto apertava a mão do velho. - Prometo.

 

A luz do quarto estava acesa quando Olivia parou o carro em frente à casa. Abriu a porta com as suas chaves e subiu as escadas rapidamente, ansiosa por estar com Caspar, por contar-lhe o que tinha estado a pensar. Abriu a porta do quarto e ficou parada.

Era evidente que Caspar não tinha notado a sua chegada. Estava parado, de costas para ela, olhando pela janela. Ainda tinha a pele húmida do duche e pequenas gotas de água deslizavam pelo seu tronco nu.

Olivia continuava com a garganta seca, as pernas trémulas e o coração aos saltos. Pela emoção que sentia, qualquer um diria que era a primeira vez que o via nu. Conteve o impulso de se aproximar e abraçá-lo e pronunciou o seu nome, sabendo que mesmo antes de ele se virar e olhá-la nos olhos poderia adivinhar o que ela estava a sentir. Nunca tinha conseguido esconder o quanto o desejava, pensou.

- Caspar... - sussurrou com voz trémula e fingiu que não percebeu quando Caspar a tentou afastar do seu corpo húmido quando ela cedeu à tentação de o abraçar com força. - O que estamos a fazer connosco? Porque é que discutimos e lutámos quando...

- Quando o quê? - perguntou Caspar rudemente. Olivia sentia a pressão das mãos dela nos antebraços de Caspar, mas não se preocupou com o efeito que a pele húmida de Caspar poderia produzir nas roupas dela; a única coisa que lamentou foi o facto de estar vestida.

- Quando podíamos estar a fazer isto - disse com voz rouca; elevou o rosto até ele e colocou a sua mão na nuca dele, para guiar os seus lábios até aos dela.

Durante um momento, Caspar hesitou, e olhou fixamente para ela, enquanto Olivia sustinha o seu olhar com as pupilas dilatadas pelo desejo. Todo o seu corpo, todo o seu ser, estava inundado de um amor ardente que lhe deu uma certeza: o que sentiam um pelo outro, o que havia entre eles, era muito importante e forte para ficar em perigo com uma simples discussão. Juntos encontrariam uma forma de chegarem a um acordo.

Os lábios de Caspar estavam estranhamente imóveis, frios e quase indiferentes, mas justamente quando ela começou a franzir a testa e a afastar-se dele, Caspar segurou-a nos seus braços e beijou-a com força. Olivia juntou-se a ele, ansiosa.

- Tens demasiada roupa - sussurrou Caspar com voz grossa entre beijos.

- Sim... Eu sei - disse Olivia, mas a necessidade de sentir os lábios de Caspar sobre os dela, de segurar aquela proximidade e intimidade, fazia-lhe recear afastar-se dele, ainda que fosse só para despir-se.

Por fim, o que ultimamente se tinha reduzido a um ritual necessário antes de fazerem amor, tornou-se numa deliciosa agonia, num excitante jogo erótico de beijos roubados, carícias trocadas com dedos trémulos

e puxões rápidos. Finalmente, atiraram para o chão as roupas húmidas de Olivia e caíram sobre a cama, num emaranhado de mãos e pernas húmidas mas alegremente nuas.

- Hum... como és suave, como sabes bem - maravilhou-se Olivia enquanto lambia o peito de Caspar como se fosse uma gata.

- Como é bom ouvir-te dizer isso - gemeu Caspar, enquanto ela deslizava a língua com erotismo ao longo das suas costas e depois fazia um círculo ardente em volta do seu umbigo. - Agora mesmo, o que me estás a fazer é mais do que... Ah - gemeu com os dentes cerrados quando ela deslizou a língua até mais a baixo.

Olivia tentou atormentá- lo, perguntando-lhe com voz rouca:

- E agora, que te estou a fazer? - apesar de na realidade estar tão excitada com aquele jogo como ele.

Caspar voltou-se e, apanhando-a de surpresa, derrubou-a na cama para lhe perguntar:

- E que tal se eu te fizer uma demonstração, para ver se gostas dessa tortura?

Só que tortura não era a palavra que Olivia usaria para descrever o movimento sensual dos lábios de Caspar no corpo dela, acariciando de forma amorosa cada centímetro da sua pele.

- Caspar, não continues - sussurrou. - Não posso esperar mais. Desejo-te. Quero ter-te dentro de mim... até ao fundo... agora.

Olivia estava a tremer dos pés à cabeça quando Caspar parou para contemplá-la.

Desde o princípio, o sexo entre eles sempre fora maravilhoso, perfeito... Olivia sentia-se inacreditavelmente bem ao acariciá-lo intimamente, conseguindo ser directa e aberta com ele. Era aquela sinceridade, aquela concentração no que estava a fazer que fazia com que a relação deles fosse tão especial, e por isso detestava os desentendimentos dos últimos dias.

A sensação de proximidade, de plenitude que sentia naquele momento, depois do culminar da união sexual, fez com que os seus olhos se enchessem de lágrimas. Enquanto descansava nos braços dele, o seu coração estava a rebentar de tanto amor e felicidade que desejou conseguir transmitir a Caspar o quanto a relação deles significava para ela. Havia uma frase, um compromisso verbal que, embora para outros pudesse parecer insignificante, para Caspar mostrar-lhe-ia o quanto ela o amava.

Esticou a mão para viajar com o seu dedo pelo contorno das costas dele, pela sua boca, e disse suavemente:

- Caspar... Eu amo-te...

Durante um momento, Caspar ficou perplexo... quase chocado. Mas imediatamente abraçou-a, com tanta força que Olivia teve de protestar, entre risos, que não estava a conseguir respirar.

- Finalmente... finalmente - disse ele, triunfante.

- Diz-me outra vez, Livvy. Diz-me outra vez.

- O quê? - brincou Olivia, mas imediatamente voltou a sussurrar-lhe a palavra, primeiro ao ouvido e depois junto à boca. Quando viu o movimento dos lábios de Caspar ao responder com a mesma palavra, o desejo que acreditara já ter saciado completamente foi reavivado e eles começaram novamente a beijar-se e a acariciar-se novamente.

- Hum... Isto foi estupendo - sussurrou Olivia, enquanto se enrolava em Caspar.

- Isto?! - protestou Caspar com falsa indignação.

- Está bem, tu és fantástico - revelou Olivia, com voz sonhadora. - Estou tão contente por já não estarmos a discutir... - a expressão dela ensombrou-se. Falei hoje com Saul. Ele disse-me que o seu casamento com Hillary acabou.

- Eu sei - afirmou Caspar, enquanto bocejava.

- Sabes? - perguntou Olivia, repentinamente alerta. Apoiou-se sobre o cotovelo e olhou para ele com a testa franzida. - Como?

Ver que ele hesitava antes de responder e que desviou o olhar fez com que os músculos do seu estômago contraíssem e o observasse com desconfiança.

- Sei porque... Hillary contou-me, enquanto jantávamos.

- Jantaste com Hillary! Convidaste outra mulher para jantar sem me dizeres nada? - perguntou Olivia lentamente, ao mesmo tempo que a felicidade que sentira há momentos começava a desaparecer. - Porque é que não me disseste nada? Porquê?

- Foi um impulso - respondeu Caspar, com raiva.

- Pelo amor de Deus, Livvy - disse ele, passando os dedos pelo cabelo com irritação. - Já passa das duas da manhã e, agora mesmo, a última coisa que eu quero é ser interrogado. Ainda agora disseste que não gostas quando discutimos e isto é...

- Eu não estou a discutir - interrompeu rudemente.

- Não? Mas parece - replicou Caspar, de mau humor.

- Caspar, nós somos namorados, nós planeámos um futuro em comum. Eu não sairia para jantar com outro homem sem te dizer.

- Não, mas não te preocupaste em alterar os nossos planos e pores-me em xeque quando anunciaste que planeias ficar aqui mais tempo, para desempenhares o papel de filha e de sobrinha abnegada. Para ti isso é muito mais importante do que estar comigo, embora eles tenham mostrado que não querem nem precisam que faças esse sacrifício - contra-atacou Caspar com ferocidade.

Olivia sentou-se na cama e olhou para ele, na escuridão.

- Caspar, já te expliquei - referiu. - Só serão algumas semanas. Pensei que irias entender e... e hoje à noite - mordeu o lábio antes de continuar. - Hoje à noite, ao dizer-te que te amo, pensei...

- O que é que pensaste? - interrompeu com fúria.

- Que, ao fazeres o tremendo sacrifício de te comprometeres verbalmente comigo, tudo ficaria bem. Que sou suficientemente estúpido, suficientemente apaixonado por ti para ir embora e esperar pacientemente por ti até que estejas preparada. Isso explica o que aconteceu esta noite, Livvy? - perguntou com amargura. - Isso explica a paixão, o desejo, o sexo? Foi a tua maneira de me fazeres ficar calado? Bem lamento, mas não funcionou.

- Caspar - protestou Olivia, mas ele já se tinha voltado e deitado o mais próximo possível da ponta da cama.

Podia chatear-se se quisesse, pensou Olivia, furiosa. Daquela vez, tinha deitado tudo a perder. Porque não lhe dissera que tinha jantado com Hillary? E pior ainda, alguma vez lhe teria contado caso não lhe tivesse escapado?

Será que ele a amava realmente? Sem fazer barulho, ela também se deitou e virou-se de costas para ele.

- Olivia, posso falar contigo um instante? Olivia olhou para o outro lado da cozinha com hesitação. Quando tinha acordado para ir para o escritório naquela manhã, Caspar já se tinha levantado. Apesar de ser ainda muito cedo, já se tinha vestido e descido antes de Olivia, negando-lhe a oportunidade de falarem em privado na intimidade do quarto.

- Decidi telefonar para a companhia aérea esta manhã - contou-lhe com aspereza.

Uma intensa má premonição invadiu Olivia.

- Podes ligar, mas pensava que não o faríamos até regressarmos a Londres.

- É verdade - confirmou Caspar. - Mas nós não tínhamos pensado em ficar aqui mais do que um dia ou dois, para despedirmo-nos da tua família.

Olivia olhou para ele com desolação.

- Mas, Caspar, isso foi antes do meu pai ter o ataque de coração. Não és capaz de... - mordeu o lábio inferior para manter a calma. - Caspar, por favor, não me faças isto... Não nos faças isto... Caspar... - a sua voz tremeu tanto que teve de parar de falar.

- Livvy... Escuta, ainda temos uma oportunidade

- revelou Caspar, enquanto se aproximava dela e pegava nas suas mãos. - Conta ao teu tio que mudaste de ideias e que não podes ficar. Eu reservarei lugares no primeiro voo que sair e...

- Não... Sabes que não posso fazer isso - protestou Olivia, afastando-se. - Caspar, porque é que não queres entender isso? - implorou, levando as mãos à cabeça para aliviar uma enxaqueca súbita. - Eu tenho de ficar.

- Não é verdade - respondeu Caspar com crueldade. - Tu queres ficar. Tu, Olivia, mais ninguém. Nem o teu tio nem o teu avô precisam de ti. Tu queres ficar porque...

- Porque é o que devo fazer. O meu pai...

- O que deves fazer? - Caspar riu com amargura.

- Já sabes o que eu penso sobre isso - disse com raiva.

- Nunca te tinha visto deste modo - protestou Olivia.

Os seus dentes batiam, apesar de não ter frio. Desde criança, nunca gostara nem de zangas nem de discussões. Uma das coisas que mais admirava em Caspar era a sua calma, a forma racional como resolvia os problemas, a capacidade de se abstrair das reacções emocionais e dos contratempos que tanto tinham marcado a infância de Olivia.

- O que estás a tentar dizer - desafiou Caspar. - É que cometeste um erro... que te enganaste em relação ao homem que tens à tua frente. Bom, parece-me que o sentimento é mútuo. Para mim também não tem muita graça descobrir que tu não és como eu pensava que fosses - foram as suas duras palavras.

Olivia olhou-o de cima a baixo, incapaz de absorver completamente o que ele Lhe estava a dizer.

- Caspar - sussurrou, mas quando deu um passo até ele, Caspar retrocedeu.

- Talvez tenha sido para o bem de ambos que tenhamos entendido a verdade antes de chegarmos mais longe.

A verdade. Que verdade? Olivia amava-o... e ele amava-a a ela. Não era isso a única coisa que importava? Ou não? Se Lhe dissesse que tinha mudado de ideias, que quebraria a promessa feita ao seu tio e viajaria com ele para os Estados Unidos, era sobre essa base que ela queria construir o seu futuro, a sua relação? Não estaria abrindo um precedente e, todas as vezes que tivesse de tomar uma decisão com a qual Caspar não concordasse ele esperaria que ela voltasse atrás? Como advogada, sabia melhor do que qualquer pessoa que nada era mais perigoso do que abrir qualquer tipo de precedente. Engoliu em seco.

Nunca tinha imaginado que Caspar, o seu Caspar, pudesse ser capaz de tanta maldade, de tanto egoísmo... Nem que conseguisse sacrificar o amor que proclamava. A ideia doía-lhe fisicamente e, de repente, percebeu o que era sentir o coração partido. A dor era insuportável mas, pelo menos, poderia apoiar-se no seu orgulho, o mesmo orgulho que a tinha aguentado durante os anos de preparação para a sua profissão, em que não tivera o apoio da sua família. Se tinha sobrevivido a isso, também sobreviveria ao fim da relação com Caspar. Embora não soubesse como...

- Se é o que queres... - disse em voz baixa, de forma a que ele não reparasse que ela estava prestes a desatar a chorar.

Sem esperar que Caspar dissesse mais alguma coisa, passou ao seu lado e subiu as escadas a correr. Embora tivesse lutado durante vários segundos com o trinco, Caspar não tinha qualquer intenção de aproximar-se dela, abraçá-la ou de lhe dizer que estava enganado, que não suportava a ideia de se separar dela, que ainda a amava e a desejava.

Talvez tudo tivesse sido um erro, pensou. Talvez tivesse pensado que um sentimento superficial e efémero fosse amor verdadeiro. Mas, se fosse realmente um amor verdadeiro, um amor duradouro, o que acreditava partilhar com Caspar, então não podia ser destruído tão facilmente.

Caspar viu Olivia a afastar-se, com as costas direitas. Quis chamá-la, mas o seu orgulho não o permitiu. Ouvir Hillary falar de todas as suas reclamações durante o jantar, não só de Saul mas da família inteira, tinha feito com que aumentassem as dúvidas que Caspar tinha sobre a viabilidade da sua relação com Olivia, desde que tinham chegado à sua cidade natal... e, para ser honesto consigo mesmo, também tinha ressuscitado os fantasmas da sua infância.

Ali estava Olivia a dizer que ele não era tão importante para merecer a preocupação dela e que não o colocaria à frente da sua familia.

Caspar rejeitou instintivamente a proximidade emocional que unia os diversos membros da família de Olivia, ao ponto de fingir nem sequer ver os seus problemas e defeitos. Não só rejeitou essa aproximação, como ela passou a ser uma ameaça para a sua relação com Olivia. Ao mesmo tempo, confirmou a sua crença de que a proximidade não era mais do que um engano e uma arma para controlar alguém.

Não era que tivesse ciúmes do compromisso de Olivia para com a sua família; simplesmente, não via sentido nenhum em desperdiçar as suas emoções com uma mulher que não estava disposta a comprometer-se assim tanto com ele. Embora, ao regressar aos Estados Unidos voltasse à sua cidade natal e à sua família, a vida que Caspar tinha planeado com Olivia limitava-se aos dois e às crianças que teriam. Iria relacionar-se com a sua família, claro, mas teriam vidas separadas e ninguém teria permissão para interferir na vida privada deles. Da mesma forma que ele não pudera interferir na vida dos seus pais.

Na noite anterior, ao falar do seu marido e da familia dele, Hillary reclamara que sempre sentira que não fazia parte das suas vidas e que eles tinham feito tudo para que ela se sentisse diferente... uma intrusa.

- Saul devia ter-se casado com uma rapariga inglesa, preferencialmente de Cheshire e, melhor ainda, da própria família - contou a Caspar, com amargura. - Olivia teria sido a mulher perfeita para ele, claro - acrescentou com sarcasmo.

Claro. E a Caspar não lhe tinha passado despercebido o olhar de avaliação sexual de Saul ao contemplar Olivia.

Subiu as escadas e passou pela porta de Olivia, sem parar.

Em Londres, Max também acordou cedo, com inúmeros planos a fervilharem no seu cérebro. Tinha uma série de coisas para fazer e o tempo não estava do seu lado.

Enquanto tomava um banho no seu moderno apartamento, pensou nos diversos planos que concebera na noit anterior, durante o caminho de volta para Londres. O importante era descobrir a identidade da sua rival. Rejeitou vários planos, por não serem suficientemente práticos.

Enquanto fazia a barba, estudou o seu reflexo. Tinha herdado o nariz romano do avô e a estatura e a corpulência do pai e rlo tio. Tinha o cabelo escuro, quase preto, e os olhos de uma cor cinza pálida, fora do comum. Em resumo, era muito bonito. Sorriu e deixou a descoberto os seus dentes brancos, fortes e regulares; então, franziu a testa ao voltar a pensar no problema da identidade da sua rival.

Não fazia sentido tentar sacar a informação do empregado do escritório, que o desprezava. A maioria dos outros sócios também não Lhe dispensava grande simpatia. Max sempre achara absurdo perder o seu tempo a ser amável com uma pessoa que não lhe podia ser de grande utilidade. Além disso, na opinião dele, sempre era mais fácil convencer uma mulher do que um homem, e Max tinha algumas vantagens adicionais que já explorava há anos.

As únicas mulheres que trabalhavam no escritório eram as secretárias, duas delas já com idade para serem suas avós e com um temperamento azedo, o que as tornava imunes ao charme de Max. Visualizou mentalmente as outras três.

Não valia a pena tentar descobrir nada através de Laura, a secretária do assistente. Estava loucamente apaixonada por um dos sócios mais velhos e iria logo contar-lhe assim que Max fizesse a primeira pergunta. Desta forma, só lhe restavam as outras duas: Wendy, a loira anémica e apática, com dentes de coelho e hálito fedorento, e Charlotte, a sensual morena que já Lhe tinha mostrado que a sua ambição era tornar-se mulher de um advogado. Max não podia cometer o erro de subestimar a determinação de Charlotte.

Com as suas aspirações sociais, ela seria uma boa esposa para um advogado, mas Max tinha os seus próprios planos e as suas próprias ambições matrimoniais.

Havia advogados e advogados, e ele sabia em que círculo se devia mover. Uma ajuda de um familiar influente não seria de rejeitar, nem uma esposa de uma familia rica que lhe permitisse introduzir-se na elite social. Mas ainda não estava preparado para se casar, de forma nenhuma.

Max, que conhecia a história da família dele até ao último e entediante detalhe, pensara frequentemente que, se estivesse na situação de Josiah, o seu bisavô, teria cedido às pressões familiares e deixaria que lhe escolhessem uma esposa.

Mal deixou a casa de banho, não perdeu o tempo e foi para a cozinha. Nunca se preocupava em tomar o pequeno-almoço. A despensa da sua casa raramente tinha alguma comida. Ou almoçava e jantava fora ou comprava comida para microondas. Até ao momento, nem o seu estilo de vida nem os maus hábitos alimentares lhe tinham prejudicado o físico.

Olhou para o relógio enquanto vestia o casaco. Sempre Lhe parecera absurdo ter de ser pontual quando não havia ninguém para apontar essa virtude, mas naquela manhã tinha razões para querer chegar ao escritório antes de todos. Não se importava de folhear ele mesmo os arquivos do ajudante, mas para isso tinha de levar as chaves emprestadas, uma façanha que iria pôr à prova as suas habilidades.

Não. Tinha de ser Charlotte.

Fez uma expressão de agrado ao sentir a fragrância do perfume novo que tinha posto com deliberada generosidade. Fora um presente da sua última namorada e acreditava que Charlotte iria gostar.

Olivia estava nervosa como uma aluna antes de um teste. Devia ser por estar parada na rua, à frente do escritório, à espera da chegada do tio Jon, pensou enquanto olhava para o relógio. Em seguida, olhou para o relógio da igreja para confirmar que não chegara demasiado cedo.

Tinha visto Caspar alguns instantes antes de sair de casa. Com uma atitude distante e fria, ele disse-lhe a que horas o seu voo saía para Londres, donde viajaria, alguns dias depois, para os Estados Unidos. Olivia queria chegar a um acordo com ele, mas o semblante dele desencorajou-a a tentar alguma coisa. Caspar não queria chegar a um acordo.

Assim, saíra de casa sem sequer lhe desejar boa sorte e acabou por fazê-lo meia hora mais cedo do que devia. Por isso estava há tanto tempo a dar voltas no passeio. Suspirou de alívio quando viu aparecer Jon de uma das muitas ruas que iam dar à praça. Eram oito e vinte e cinco.

- Olivia.

Ele não sorriu ao cumprimentá-la. Parecia que não tinha dormido a noite inteira, pensou Olivia. A doença do seu pai envelhecera-oligeiramente e a sua face estava quase desfigurada.

Enquanto esperava que Jon abrisse a porta, Olivia desejou saber como Saul se estava a sentir naquela manhã. Seria um capricho do destino que os dois estivessem a passar por dificuldades nas suas relações ao mesmo tempo?

A loja onde Josiah Crighton abrira o seu escritório já não existia; agora a familia era dona do edifício inteiro. Mas, devido a um desejo de Ben, o escritório continuava a ocupar o primeiro piso, como no tempo de Josiah, e os quartos de baixo tinham sido restaurados para darem lugar à recepção e à sala de espera.

Enquanto subia as escadas estreitas atrás de Jon, Olivia lembrou-se com nostalgia como gostava de ir ao escritório quando era criança e como ficava fascinada com os volumosos livros jurídicos que cobriram as paredes do corredor.

Dos dois escritórios, o do seu pai sempre fora o maior, e Olivia parou com algum desconforto atrás da porta. Então, virou-se para Jon.

- Se preferir o escritório do pai... - sugeriu. Jon negou com a cabeça.

- Não, não te preocupes. Na realidade, eu prefiro o meu - acrescentou ao ver que ela continuava a hesitar. - É mais silencioso e tem mais luz.

Olivia abriu a porta do escritório do seu pai com uma certa indecisão. Franziu a testa ao inspeccionar o interior; parecia muito mais espaçoso do que se lembrava. Então, percebeu que o armário arquivador de metal pesado que ocupava uma parede inteira tinha desaparecido.

- Onde... - perguntou, apontando para o espaço vazio.

- Mudámos o arquivo para o meu escritório - explicou calmamente Jon, mas Olivia sentiu que, por alguma razão, a pergunta o tinha incomodado. - Nós estamos a informatizar tudo e, como fui eu que frequentei o curso, David pensou que seria melhor ter o arquivo mais à mão.

Uma explicação lógica e simples, mas Olivia sentia-se estranhamente intranquila. Algo do que o seu tio acabara de dizer não era completamente verdadeiro.

- Vou demorar alguns dias a habituar-me à rotina

- disse a Jon. - Terei de me familiarizar com os casos e com os clientes do pai e ler os arquivos. Sei que o tio se encarrega da parte notarial e das escrituras e trespasses e o meu pai dos fundos fiduciários e dos testamentos.

- Em termos gerais, sim - confirmou Jon, mas não estava a olhar para ela e, uma vez mais, Olivia sentiu uma tensão estranha na voz dele que, como suspeitou, se devia ao facto de ele não querer aceitar a ajuda dela.

Não podia ser demasiado sensível, pensou Olivia. Estava ali para ajuda, não para causar mais problemas.

- Bom, eu farei o que puder - disse, sorrindo. Vou precisar de uma lista dos clientes do pai e...

- Pois... Temo que nós não tenhamos feito as coisas com tantas formalidades - interrompeu Jon. Não era necessário e, muitas vezes, os casos acabavam por se sobrepor.

Olivia franziu a testa. Não era assim que ela pensava que o escritório funcionava. Sempre pensara que o trabalho estava distribuído claramente pelos dois irmãos.

- Bom, se me der as chaves da secretária do meu pai, eu dou uma vista de olhos à agenda dele - sugeriu Olivia:

Vários segundos passaram até que Jon lhe desse as chaves, e Olivia teve a sensação de que, na realidade, ele não as queria dar. Angustiada, entrou no escritório e fechou a porta com força atrás de si.

Minúsculas partículas de pó agitavam-se através da luz solar que passava pelas janelas do escritório. Olivia abriu uma delas de forma a deixar entrar o ar fresco. O quarto cheirava a cera com aroma de lavanda e madeira velha.

O tio Jon mencionara que eles estavam a informatizar os arquivos mas, julgando pela antiguidade do computador do seu pai, Olivia duvidou que ele o usasse muito.

Aproximou-se da mesa. Tinha mais de cem anos; era uma escrivaninha de madeira pesada com revestimento de couro. Ali trabalhara o seu avô e, antes dele, o seu bisavô. Acariciou suavemente o couro velho. O escritório inteiro estava cheio de tradição, ela até conseguia respirá-la. Talvez, se Caspar tivesse visto aquele escritório, tivesse percebido.

Caspar... Olhou para o telefone. Ele só iria partir ao meio-dia. Ainda podia telefonar, ainda podia voltar para casa.

Com determinação, voltou as costas para o telefone e abriu as gavetas da escrivaninha. Imediatamente encontrou a agenda do seu pai e as gavetas estavam surpreendentemente limpas e ordenadas, como se alguém já as tivesse inspeccionado, como se...

Sentou-se e abriu a agenda. Não tinha compromissos durante aquele dia, graças a Deus. Assim poderia colocar-se ao corrente dos seus assuntos: Também não havia nenhum compromisso marcado para o dia seguinte, nem para o outro. Olivia franziu a testa ao ver que não havia compromissos nenhuns, além de alguns encontros para jogar golfe.

Com intranquilidade, folheou a agenda para trás e ficou tensa ao ver as páginas em branco. O pai devia ter outra agenda e talvez só usasse aquela para marcar as partidas de golfe. Sim, devia ser isso, pensou com preocupação enquanto pousava a agenda na mesa e começava a ver o resto das gavetas. Nada! Não encontrou nada!

Abriu a agenda novamente e voltou a observá-la. Os compromissos eram abundantes no começo de ano, mas tinham começado a diminuir, passando a ser apenas dois ou três por semana e, depois, até mesmo menos, o que significava...

- Olivia - ficou rígida quando a porta se abriu e Jon entrou no escritório. - O correio chegou - disse.

- Se quiseres vir ao meu escritório, podemos ver o que chegou... Ah, encontraste a agenda do teu paicomentou.

- Sim - confirmou Olivia. Inspirou profundamente e forçou um sorriso. - Por sorte, não há nenhum compromisso esta semana, além de uma festa de golfe.

- Ah, sim, é uma sorte - afirmou Jon também com um sorriso forçado, embora parecesse estar mais relaxado quando ela subiu para o acompanhar até ao seu escritório. Porque é que ele estava a querer mostrar-Lhe que ela ia trabalhar no escritório, ou porque não tinha dado importância ao facto da agenda do seu pai estar vazia?

Ao contrário do escritório do seu pai, o de Jon parecia menor do que antigamente e, claro, lá estava o velho e grande arquivo. A sua sala tinha mobílias e material informático mais moderno. Enquanto a mesa de David estava quase vazia, a de Jon estava repleta de arquivos e documentos, e a sua agenda, que estava aberta perto do teclado, estava a abarrotar de anotações.

- Afinal o escritório não se transformou num navio fantasma do oceano jurídico - gracejou Olivia.

- Que disseste?

- Que, por sorte, ainda temos alguns clientes, tio Jon - explicou Olivia, com alguma ironia. - Ao ver a mesa e a agenda do meu pai vazias, comecei a pensar que nós estávamos sem clientes.

- Ah, já... Percebo. Bom, já sabes como é. Às vezes, uma parte do negócio dá mais trabalho do que a outra.

- Sim... Deve ser. Quer portanto dizer-me que ninguém morreu em Haslewich este Verão?

Estava a ser injusta, reconheceu Olivia com remorsos ao ver o olhar atormentado do tio Jon.

- Peço desculpa- disse ela. - É que, pelo que Tiggy me tinha contado, eu ficara com a impressão de que o meu pai estava muito ocupado.

- Sim, sim... Ele estava. É que... Bom, vou ser sincero, Olivia. No outro dia eu vim cá e...

- E limpou a mesa do meu pai - terminou no lugar dele, mas sabia que o seu tom tinha sido mais de acusação do que de aceitação por um gesto amável.

- Só quis ter a certeza de que não havia nada urgente - disse Jon com rigidez.

Talvez, depois de tantos anos a ser relegado para um segundo plano, tanto na família como no escritório, o tio Jon se tivesse rebelado e. e encontrado a oportunidade para se afirmar e superar o seu irmão. Olivia tentou afastar aquele perturbante pensamento: O Jon que ela conhecia sempre apoiara o seu pai em tudo. Mas, sem dúvida, em algumas ocasiões, deveria ter sentido um certo ressentimento, ciúmes ou até mesmo raiva por ser sempre o menos importante.

Lançou um olhar ao seu tio, enquanto ele começava a verificar com ela o correio e lhe passava uma a uma todas as cartas, explicando a sua origem.

Uma hora depois, Olivia decidiu que não tinha motivos para suspeitar de qualquer coisa. As cartas pareciam bastante claras e ao escritório não chegaram nem litígios complicados nem casos de direito comercial internacional, em que era especializada.

- Vou ter de sair. Tenho um compromisso com lorde Burrows às onze horas - informou Jon. - Ele quer rever alguns dos contratos de arrendamento dos seus fazendeiros.

Sim, era um trabalho totalmente diferente, reconheceu Olivia.

- E depois prometi à tua mãe que a acompanharia ao hospital

Pelo que parecia, o dia de Olivia consistiria em editar um testamento, consultar nos livros alguns dados para uma transferência, clarificar os limites de uma propriedade e folhear a meia dúzia de arquivos que Jon tinha deixado nas suas mãos. Nada que fosse suficientemente complicado para ela conseguir manter-se absorvida no trabalho e deixar de pensar em Caspar... infelizmente.

 

O primeiro contratempo que Max experimentou naquele dia aconteceu ao entrar no pequeno escritório no qual os dois secretários trabalhavam e ver que Charlotte não tinha chegado.

- Ela foi ao dentista - disse-lhe Wendy, como se fosse uma criança a sussurrar nervosamente. Max aproveitava sempre para atormentá-la, fingindo não a ouvir. Ele sabia que ela ficava nervosa com a proximidade dele e que não sentia grande simpatia pelo advogado. Da mesma forma, Max sabia que ela era demasiado tímida para protestar quando ele chegava à sua sala com documentos enormes para passar à máquina apenas cinco ou dez minutos antes da hora de saída.

Charlotte nunca se deixava enganar por ele e Max percebia a habilidade com que ela sempre deixava a maioria do trabalho para Wendy e, ao mesmo tempo, dava a impressão de que era a mais eficiente e trabalhadora das duas.

Charlotte e ele eram parecidos em muitos aspectos, muito mesmo, e por isso tratavam-se com um respeito considerável.

- Bom, quando ela voltar, diga-Lhe que eu quero falar com ela, está bem? - pediu a Wendy.

Ao entrar no escritório de Wendy, a face e o pescoço da jovem coraram violentamente, de forma desagradável. Seguramente, ainda era virgem, pensou Max, e continuaria a ser.

Já dentro do seu escritório, Max contemplou a escrivaninha repleta de casos, apesar de nenhum Lhe proporcionar mais do que umas míseras cem libras. Assim que ocupasse a vaga, tudo iria mudar, claro. Assim que a ocupasse. Olhou para o relógio. Quanto tempo iria demorar no dentista? Pelo amor de Deus, onde estava Charlotte?

Sentou-se e começou a ler o primeiro processo impacientemente. Outro caso impossível. Deus, porque é que aqueles desgraçados se davam ao trabalho? Contemplou com desprezo a carta do conselheiro jurídico, na qual requeria a opinião do advogado sobre a viabilidade do pedido do cliente. Até um menino poderia ver que aquele processo não tinha uma base sólida. E, sem base sólida, não haveria nenhum pedido e, sem pedido, não haveria nenhum honorário.

Passou ao processo seguinte.

Já era quase hora do almoço quando Charlotte entrou no seu escritório a bambolear-se, com o penteado e a maquilhagem tão imaculados como sempre, a saia um pouco mais curta do que seria aconselhável e o casaco mais apertado do que usaria uma mulher que encarasse a profissão dela seriamente.

- Pediu para falar comigo?

Enrugou de forma provocativa os lábios pintados de vermelho, enquanto se aproximava dele e tinha a certeza de que ele poderia admirar as suas formas e a curva generosa dos seus seios. Max recostou-se na poltrona, entrelaçou as mãos na nuca e olhou-a lentamente, de cima a baixo.

- Eu gosto sempre de a ver, Charlotte - assegurou, em tom de gozo. O olhar que ela lhe dirigiu sugeriu que não havia tempo a perder. - Você sabe que dentro de dois meses se celebra o baile anual - comentou, enquanto viu o receio com que ela o observava.

O baile anual era um evento extremamente badalado, com entradas limitadas que só eram vendidas a convidados previamente seleccionados. Pela primeira vez, Max tinha conseguido duas entradas... de um modo ilegítimo, claro. A mulher de um certo juiz, que fazia parte da comissão de organização e que tinha seduzido Max, incluíra o seu nome na lista para o baile.

Charlotte, a menos que alguém com entrada a convidasse, não teria oportunidade de assistir a um evento daqueles, e ambos sabiam disso. Ela também sabia que um evento daqueles era perfeito para a sua procura do marido ideal. Era inimaginável o número de contactos e oportunidades que uma rapariga como Charlotte poderia obter num baile daqueles.

- Ah, sim? - respondeu Charlotte, com uma incerteza deliberada. Max esboçou um sorriso tolerante.

- Tenho duas entradas, mas não tenho par - fez uma pausa. Charlotte estava ainda mais receosa. - Eu preciso de ajuda... de uma certa informação - continuou Max em voz baixa. Aquela era a parte arriscada. O salto de uma posição de força e segurança para outra mais vulnerável. Não havia garantias de que Charlotte aceitasse a recompensa. Poderia deixá-lo agarrado e então...

- Que informação? - perguntou com precaução. Max começou a sentir-se relaxado.

- Uma informação razoável - tranquilizou-a. - Só um nome...

- Um nome... Que nome? - perguntou Charlotte, com as sobrancelhas arqueadas.

- Não sei bem qual nome - corrigiu Max, com arrogância.

Aquele era o segundo risco; embora Charlotte tivesse acesso à informação, ela poderia decidir não lha dar. Fez uma pausa, recordando-se do que estava em jogo e decidiu falar sem rodeios:

- Há outro candidato para a vaga do escritório, uma mulher. Eu quero saber como é que ela se chama.

- Só os sócios têm acesso a essa informação - lembrou Charlotte.

- Os sócios e o assistente do escritório - afirmou Max, com fluência. - Mas, em algum momento, será necessário marcar uma reunião, escrever uma carta...

- É Laura quem toma conta desse género de correspondência - informou-o. Max elevou as sobrancelhas. - Está bem, eu farei o que puder - consentiu Charlotte. - Mas não lhe prometo nada.

- Nem eu - frisou Max. Ele olhou nos olhos dela.

- Terei de esperar até que Laura saia.

- Excelente. Então, pode passar-me à máquina esses documentos?

Charlotte dirigiu-lhe um olhar de curiosidade e perguntou-Lhe com voz jovial:

- Essas entradas incluem o jantar ou só o baile?

- Incluem tudo - assegurou Max. - O baile, o jantar e o cocktail de boas-vindas que é servido primeiro. Eu espero que você tenha um vestido apropriado.

Charlotte sorriu para ele.

Num certo sentido, era uma pena, pensou Max quando Charlotte se foi embora. Tinha tido muito trabalho para conseguir aquelas entradas e, em circunstâncias normais, não as teria desperdiçado com alguém como Charlotte. Mas claro que, devido a tudo aquilo que estava em jogo, algum sacrifício teria de fazer.

Os casos do escritório não moviam as enormes somas de dinheiro com as quais Olivia estava habituada a trabalhar, mas eram sem dúvida muito mais interessantes, concluiu depois de ler os antecedentes complicados de um deles. Era um litígio entre dois irmãos que reivindicavam um pedaço de terra herdado pelo tio deles. Ambos eram dois fazendeiros prósperos da zona, mas o pedaço de terra que disputavam com tanta ferocidade tinha um rio, e era o acesso a este a verdadeira causa da disputa. O problema era até mesmo mais sério porque, em algum momento, um deles tinha perdido a paciência, ou pelo menos assim assegurava um dos irmãos, e o fluxo passou para as terras do outro irmão como que por artes mágicas.

Olivia tinha ocupado grande parte da manhã a estudar mapas velhos e escrituras, uma tarefa com a qual não estava familiarizada e que exigiu toda a sua atenção. Os olhos começaram a doer-lhe, pelo esforço de ler aquela letra velha e sinuosa. Foi nessa altura que se lembrou de ter visto uma lente de aumento na escrivaninha do tio.

Jon já saíra para ir para o seu primeiro compromisso, mas deixara aberta a pona do escritório e Olivia poderia encontrar a lente perto de alguns documentos. Entrou e dirigiu-se para a mesa. Justamente quando esticou o braço para pegar na lente, chamou-lhe a atenção a pasta dos extractos de conta que estava em cima da mesa. Eles pertenciam ao seu pai, reparou Olivia, e era evidente que Jon os tinha estado a examinar porque começavam no mês de Fevereiro. Havia uma linha do extracto marcada com um círculo vermelho e Olivia olhou instintivamente. Ficou perplexa ao descobrir que a linha marcada correspondia a uma entrada de quase duzentas e cinquenta mil libras.

O seu pai não era o tipo de homem capaz de guardar grandes somas de dinheiro. Como família viviam bem, muito bem, mas tanto o seu pai como a sua mãe eram um pouco esbanjadores; eles nunca se preocuparam nem com poupanças nem com investimentos, por isso, ou eles tinham recebido o dinheiro ou...

O seu coração começou a bater com força. Olivia sentou-se na poltrona do tio e examinou os extractos. O dinheiro tinha entrado através de uma transferência. Da conta do avô, talvez? Olivia sabia que, em alguma ocasião no passado, o seu pai tinha tido de pedir um empréstimo a Ben mas, sinceramente, ela pensava que a quantia que o seu pai pedira era muito menor. Sem pensar duas vezes, começou a rever todos os extractos.

Quando terminou, estava com frio e as suas mãos tremiam tanto que mal conseguia passar as folhas dos extractos. Nos últimos cinco anos, o seu pai tinha recebido perto de dois milhões de libras. A última dessas rendas acontecera poucos dias antes de sofrer o ataque de coração, e tinha sido para cima de cem mil libras. Como tinha conseguido tanto dinheiro? Onde o teria gasto? Seguramente, devia tê-lo desperdiçado de um modo catastrófico. Sim, era fácil de imaginar como é que o dinheiro se tinha gasto, mas de onde tinha vindo?

Teve a sensação perturbante de que já sabia a resposta. Podia não saber a fonte exacta, mas já desconfiava da sua origem. Fechou os olhos e inspirou pro fundamente, para se tentar acalmar.

- Pai, como é que foste capaz? - sussurrou com voz trémula.

O olhar dela recaiu sobre um arquivo que tinha sido colocado debaixo dos extractos. Era parecido com um que Olivia tinha visto o seu tio a mexer no escritório da casa do seu pai. Um pouco hesitante, pegou e leu o nome. Jemima Harding. Conta fiduciária".

Os seus dedos tremiam tanto que teve dificuldade em abrir o arquivo. Conhecia a família Harding, vivia em Haslewich. No princípio eles tinham sido os proprietários das terras; durante a guerra arrendaram parte das terras para o exército americano se instalar e, há muito tempo atrás, venderam aquela mesma terra, em conjunto com o resto das propriedades da família Harding, a uma empresa farmacêutica internacional que tinha a sede britânica a poucos quilómetros da cidade. A venda tinha transformado Jemima Harding em milionária. Também Lhe tinha permitido comprar para o seu único filho o carro desportivo que acabara por lhe roubar a vida e, de acordo com os rumores, esse acontecimento trágico fez com que ela se divorciasse do seu marido.

Era já uma velha senhora, na casa dos noventa anos e vivia num lar para idosos. Também era uma das clientes do pai, que era o seu único testamenteiro e procurador. Será que tinha sido através dela que o seu pai obtivera o dinheiro?, desejava saber Olivia, cujo coração estava mais apertado do que nunca. Teria ele tirado proveito da sua condição de procurador para transferir dinheiro da conta de Jemima para a sua? Não teria sido difícil nem fazer nem esconder isto... até porque Jemima continuava viva e ninguém questionava o que estava a acontecer aos seus bens.

O seu pai tinha roubado dinheiro, tinha traído a confiança de uma pessoa. Era igual aos ladrões que arrombavam uma casa no meio da noite e que roubavam as poupanças e as pensões dos homens velhos. Era.

Engoliu a saliva com dificuldade. E o tio Jon? Saberia daquilo? Teria adivinhado? Seria por isso que... A sua cabeça estava a ponto de explodir.

De repente, Olivia desejou estar com Caspar. Se não tivesse visto aqueles extractos, se não tivesse aberto o arquivo... Se estivesse com ele naquele momento a viajar para Londres...

Estava surpreendida com ela mesma, que sempre tinha sido considerada uma mulher forte e independente mas, na hora da verdade, revelava ser uma autêntica covarde que, em vez de divulgar o que tinha descoberto, preferia escapar-se e esconder-se, preferivelmente na segurança dos braços de Caspar.

Caspar! Olhou para o relógio. Ainda não era muito tarde para alcançá-lo antes de partir, pensou de forma alucinada. Se fosse directamente para o aeroporto, poderia chegar a tempo.

Já tinha vestido o casaco e apanhado a mala enquanto pensava. Cruzou a sala de entrada do piso de baixo tão depressa quanto possível e apenas parou um momento para dizer à recepcionista:

- Eu vou... Vou ao aeroporto ter com um amigo. Volto depressa.

Céus, porque é que tinha olhado para aqueles extractos? O que estava a acontecer à vida dela? Porque tivera de descobrir aquelas coisas sobre os seus pais que preferia não saber? Nem sequer a ameaça silenciosa das máquinas fotográficas dos radares da polícia a fizeram respeitar o limite de velocidade e avançar à frente dos outros veículos, com um descuido nada próprio dela. Estava apavorada por não conseguir chegar a tempo de ver Caspar. Tinha de vê-lo... Tinha de...

O aeroporto tinha crescido desde a sua última visita, e Olivia cerrou os dentes enquanto procurava freneticamente um lugar no estacionamento; depois, deixou o carro de qualquer forma no primeiro buraco que encontrou e começou a correr em direcção à zona de partidas, enquanto rezava para que Caspar ainda não tivesse ido para a porta de embarque.

O elevador que a conduziu para a zona de chegadas e partidas estava cheio de pessoas e Olivia mexia nervosamente os dedos, durante a interminável viagem. De repente, viu Caspar, que estava de costas, e ficou gelada.

Teve um forte impulso de chamá-lo e teve de morder a bochecha para não o fazer. Apercebeu-se de que ele estava a falar com alguém. Caspar deu um passo para o lado e Olivia pôde ver quem era.

Hillary.

O choque fê-la tremer dos pés à cabeça. Sentiu-se enjoada, nauseada, fraca...

Hillary. O que estava ela a fazer com Caspar? Enquanto olhava para ele, Hillary pôs-se em bicos de pé e sussurrou algo ao ouvido de Caspar. Ele voltou a sorrir e Olivia sentiu o seu coração a dar um salto. Hillary moveu a cabeça e começou a beijar Caspar, enquanto se aproximava subtilmente dele. Caspar tinha uma mão no ombro de Hillary.

Olivia pensou por um momento que ia desfalecer. A incredulidade, a angústia e a fúria ardente e cega uniram-se para produzir nela uma dor sem precedentes.

Hillary seria a razão pela qual Caspar tinha posto fim à relação? Não, como a tinha acusado, porque duvidava da força dos sentimentos dela, mas porque os sentimentos dele tinham mudado. Porque já não a amava nem a desejava. Por Hillary. Hillary que, como ele, era americana. Hillary que, como ele, não valorizava os laços e as responsabilidades que implicavam fazer parte de uma familia. Hillary que conseguia deixar para trás os filhos e o marido, da mesma forma que Caspar a tinha deixado para ir com ela. Mas se ele pensava que encontrara em Hillary uma pessoa que o colocaria à frente de tudo o resto, estava mesmo, mas mesmo muito, enganado, pensou com o coração a doer. Era o tipo de mulher que só se preocupa consigo própria.

Já estava na zona de chegadas e partidas, mas não perdeu tempo a falar com Caspar. Pelo contrário, caminhou em linha recta até à saída.

Caspar. O seu amor, o seu refúgio... Começou a rir com amargura.

- Já não precisas de te preocupar com o trabalho, David, porque Olivia vai ficar e ajudar no escritório e...

- Não.

Tiggy olhou para Jon com nervosismo, como se estivesse a implorar-lhe em silêncio que a ajudasse. Jon tinha-se oferecido para esperar lá fora enquanto ela conversava com o seu marido a sós, mas Tiggy pediu-lhe que a acompanhasse.

Jon já a tinha avisado que se sentia incomodado e nervoso quando ia ver David, mas ela acreditava que muito poucas pessoas conseguiam manter a calma perante aquele cenário de aparelhos médicos. Tinham-lhes avisado que David não se poderia irritar, e era evidente que ele estava irritado naquele momento.

- Não estejas preocupado, David - tranquilizou o seu irmão. Apertou discretamente o alarme para chamar uma enfermeira e amaldiçoou-se por não ter dito a Tiggy que não mencionasse a ajuda que Olivia estava a dar no escritório.

Dez minutos depois, quando a enfermeira os obrigou a deixar o quarto, assegurando-lhes que David não estava a ponto de sofrer um segundo ataque de coração mas que precisava de descansar, Tiggy en roscou-se nos braços de Jon.

- Jon... eu tenho tanto medo... - soluçou. – Eles dizem que já não falta muito para David voltar para casa, mas tenho medo que quando isso acontecer...

- Não te preocupes - consolou-a Jon. - Tenho a certeza de que os médicos não permitirão que David deixe o hospital até que tenham a certeza de que ele está recuperado.

- É que ele já não parece o mesmo - insistiu Tiggy, ainda a chorar. - Porque é que ficou tão zangado por causa de Olivia?

- Seguramente, está preocupado por isso poder afectar o trabalho dela em Londres - mentiu Jon. Não te preocupes com isso. Não te faz bem nem a ti nem a David.

- Jon, és tão compreensivo... Jenny tem tanta sorte... - suspirou Tiggy enquanto se aconchegava junto dele. - Passava a vida a dizer a David para ele ter cuidado com o peso. Tu estás muito mais magro...

- ergueu a cabeça e esticou o braço para tocar-lhe no cabelo. - Porque não experimentas outro corte de cabelo, algo mais moderno? - sugeriu timidamente. Iria favorecer-te.

- Não me parece - respondeu Jon, rindo, ao imaginar os penteados do seu filho mais novo e dos seus colegas da escola. Mesmo assim, sentiu-se lisonjeado por Tiggy se ter mostrado interessada nele e Lhe ter feito um elogio. Jenny nunca lhe teria dito qualquer

coisa semelhante; sem dúvida que, a Jenny, nunca Lhe tinha passado pela cabeça elogiar um homem.

- Oh, Jon... - Tiggy sorriu, com os lábios trémulos. - Vais pensar que eu sou uma pessoa horrível se te disser que, ultimamente, tenho pensado que me enganei no irmão?

Jon teve de engolir em seco enquanto a abraçava.

Tiggy despertava nele as mesmas emoções que experimentara ao segurar pela primeira vez nos seus filhos recém-nascidos. Só que havia um ingrediente adicional, uma carga de sensualidade e sexualidade que fazia com que ele se sentisse ao mesmo tempo extasiado e envergonhado.

A mulher dele era Jenny e Tiggy era a mulher de David. Que pior traição podia cometer do que desejar a esposa do seu irmão gémeo?

- Não quero ir já para casa - sussurrou Tiggy. Não podemos ir para algum outro lado?

- Tenho de voltar ao escritório - começou a dizer Jon, mas Tiggy agarrou-o com força.

- Podíamos almoçar juntos. Todas as pessoas precisam de uma hora para o almoço. Por favor, Jon - implorou. - Eu não quero estar sozinha.

À medida que o avião começava a subir pelo céu surpreendentemente azul de Manchester, Caspar olhou com semblante sombrio pela janela. Só naquele momento reconheceu que, por irracional que parecesse, no fundo ele esperara até ao último minuto que Olivia aparecesse.

Porém, o poder do menino furioso era tão forte e ciumento que, mesmo reconhecendo que queria falar com ela, não tinha tido coragem de lhe ligar do aeroporto.

Se Olivia realmente o amasse, teria colocado as necessidades e os desejos dele antes de tudo o resto; aquela era a reivindicação obstinada do menino que havia dentro dele.

Só que a voz interior do homem maduro dizia-lhe:

Pensa como te sentirias se estivesses no lugar dela, em como reagirias àquele tipo de ultimato. Irias ceder à chantagem emocional? Quererias manter uma relação com uma pessoa tão manipuladora?"

Com o espírito cansado, passou a mão pelo cabelo. De qualquer forma, nunca teria corrido bem. Olivia teria de estudar novamente para poder trabalhar como advogada nos Estados Unidos. O sistema era diferente, mais político, mais implacável, e Olivia, apesar da sua inteligência e destreza, irradiava uma suavidade feminina que para ele e, como suspeitava ele, para outros homens, era atraente. Porque é que os homens gostavam de mulheres vulneráveis? Caspar moveu-se com irritação no seu assento. Talvez tivesse um bom coração, mas não havia dúvidas de que era obstinada. Porém, no seu lugar, não quereria ele mostrar-se perante os membros da sua familia e provar que podia trabalhar tão bem ou melhor que eles? Um desafio irresistível, não lhe parecia? Então, porque esperara que Olivia recusasse?

Ele nunca tinha tido intenção de jantar com Hillary. Desde o primeiro momento, Caspar percebera que a mulher de Saul estava à procura de uma forma para justificar a ruptura do seu casamento e de alguém que a apoiasse naquela decisão. Como americano e, principalmente, como pessoa desligada da família, era natural que ela se apoiasse nele, mas ao ouvi-la, não havia dúvida de que ele próprio se tinha colocado numa situação terrível. Ao encontrar-se com Hillary na noite anterior, impulsivamente, tinha-se aproveitado da oportunidade para aumentar o fosso que se tinha aberto entre Olivia e ele. Mas não gostara muito de encontrar-se com ela por casualidade no aeroporto.

Graças a Deus, a familia de Hillary vivia no outro lado do país, na costa oeste, por isso não era provável que eles tivessem qualquer contacto no futuro. Ainda dispunha de alguns dias até abandonar Inglaterra definitivamente, pensou, enquanto o avião começava a dar voltas em Heathrow. Ainda tinha tempo para que Olivia o contactasse... ou para ele a contactar.

Jon estava em pé, no seu escritório, quando Olivia entrou.

- Preciso de falar consigo - disse sem preâmbulos.

- Que se passa? - perguntou, depois de pedir-lhe para se sentar numa poltrona. - Mudaste de ideias e decidiste ir para os Estados Unidos com Caspar? Se assim foi, não te preocupes...

- Não, eu não mudei de ideias - interrompeu Olivia calmamente. - Quis fazê-lo, mas percebi que já era muito tarde.

Ao ver que não lhe dava mais explicações, Jon mudou de postura, desconfortável.

- Não se preocupe, tio Jon - disse Olivia suavemente. - Agora sei porque é que não queria que eu trabalhasse aqui.

Olivia viu como ele ficou rígido e como desviou o olhar para o lugar da mesa onde deixara os extractos incriminadores. Nenhum dos extractos nem o arquivo continuava na mesa.

- Eu sei o que o meu pai tem feito - continuou Olivia, calmamente. - Eu sei que ele roubou dinheiro da conta fiduciária da Jemima Harding. Desde quando é que o tio sabe o que está a acontecer?

Durante um momento, Olivia pensou que ele tentaria negar tudo. Jon inspirou profundamente, fez uma pausa e aproximou-se da janela antes de responder com voz cansada:

- Já suspeitava disso há algum tempo mas, ingénuo, não queria... Pensei que... Não deves julgar o teu pai com tanta dureza, Olivia - disse. - Deus sabe a quanta pressão ele foi sujeito. Apenas desejo... deixou a frase a meio e moveu a cabeça.

- Mas, tio Jon, como é que ele pôde fazer isto?perguntou Olivia, deixando perceber as suas emoções. Estava tão agitada que era incapaz de estar quieta, e começou a deambular pelo escritório. Como é que ele pôde fazer algo assim?

- Não acredito que ele tivesse planeado chegar tão longe - tentou consolá-la Jon. - Imagino que, ao princípio, ele só tenha querido tirar algum dinheiro emprestado e devolvê-lo logo que fosse possível, mas tal como as coisas se começaram a desenvolver.

- Não conseguiu devolver o dinheiro e foi pedindo mais emprestado - interrompeu Olivia com amargura. - Só que ele não estava a pedir nada emprestado, não é verdade, tio Jon? Ele estava a roubar - respondeu com aspereza. - Continuo sem conseguir acreditar nisso.

Jon fez uma careta quando ouviu a frase de Olivia. Sentia-se tão culpado... era tão culpado quanto David. Nunca deveria ter permitido que ele tivesse tanto controlo sobre um cliente tão vulnerável, principalmente quando soube... Mas isso pertencia ao passado e, como irmão de David, jurara ao seu pai sobre a Bíblia que o único erro infeliz de David, a estupidez que cometeu quando estava em Londres, nunca mais fosse mencionado. David escapou na altura de uma acusação formal porque ninguém, e muito menos o cliente importante que tinha, quis que o assunto se tornasse público, que um estagiário, um advogado ainda nem sequer inscrito na Ordem, tenha estado quase a roubar-lhe uma soma considerável de dinheiro.

Pelo contrário, deitaram uma pedra sobre o assunto. David não tinha chegado a usar o dinheiro e devolveu-o. Começou a trabalhar no escritório e David jurou, entre lágrimas, tanto ao seu pai como a Jon, que nunca mais faria uma estupidez semelhante. Tinha sido unicamente a pressão do estilo de vida que levava, as pessoas com quem se relacionava, o facto de Tiggy estar grávida, que o tinham levado a ceder à tentação. Nunca tivera a intenção de roubar o dinheiro, só de o usar, pedi-lo emprestado até receber os seus honorários, nada mais.

Ben, claro, foi forçado a acreditar nisso, a aceitar as desculpas e os remorsos dele porque, caso contrário, teria tido que reconhecer que David não era a pessoa de quem ele tanto se orgulhava. E Jon tinha aceite o voto de silêncio que Ben lhe tinha imposto porque... enfim, porque David era o irmão dele e tinha sido educado de uma forma protectora, semp com a certeza de que era o favorito do seu pai. Quem tinha culpa se David tinha dificuldades em suportar o peso daquela decepção? David ou Ben? E quem era ele para julgar o irmão que tinha aprendido a venerar?

Ao longo dos anos, tinham feito o possível por não expor David àquele tipo de tentação, mas um dia voltaram a confiar nele, a ficar mais relaxados e permissivos. Ele não evitara o que estava a acontecer porque não quisera ver, por culpa daquele relaxamento...

- Tio Jon, o que vamos fazer? - perguntou Olivia com a voz rouca. - Nós não podemos devolver o dinheiro, mesmo se o tivéssemos... - abriu as mãos com impotência. - O meu pai é culpado de roubo... de fraude... e de falta de ética profissional.

Enquanto ele escutava a sobrinha e percebia a angústia na sua voz, Jon absteve-se de a recordar que o seu pai não chegara a conseguir o diploma de advogado, nem mesmo de assessor juridico e, por isso, a questão da falta de ética profissional não era a mais importante, pelo menos, como ela estava a pensar.

- O avô vai ficar arrasado - sussurrou. - E isto...

ergueu a mão para apontar para o escritório. - Ninguém confiará... Vai destruir-nos a todos... à familia inteira.

Jon não podia negá-lo. Quem iria querer contratar os serviços de uma firma de advogados na qual um dos sócios tinha sido acusado de fraude? O apelido Crighton, do qual o seu pai se orgulhava tanto, ficaria desacreditado. Não havia um lugar tão confortável e seguro para viver como numa cidade pequena, mas nenhum lugar era tão cruel quando alguém quebrava as normas morais. E o mundo do Direito era, em muitos sentidos, bastante parecido com uma cidade pequena; os rumores espalhavam-se com uma velocidade enorme e de um modo letal. Só o facto da única pessoa, além do cliente, que tinha tido conhecimento da primeira transgressão de David ter morrido de apoplexia poucos dias depois de ter acusado o seu irmão, faziam com que Jon se tivesse sentido mais seguro.

Mas, naquela ocasião, eles não podiam esconder a verdade. Jemima Harding tinha oitenta e nove anos e uma saúde muito débil; ela não poderia viver eternamente. Mais cedo ou mais tarde, alguém começaria a querer saber mais sobre o desaparecimento de dois milhões de libras da conta dela.

- Nós não podemos fazer nada - disse Jon com um suspiro e, pela primeira vez, ao olhá-lo nos olhos, Olivia viu a carga enorme que o seu pai deixara em cima do irmão gémeo.

- Alguém terá de contar a Jemima Harding, e ao banco, e...

- Sim - confirmou Jon. - Eu já tenho uma reunião marcada com os contabilistas - disse em voz baixa. Eu conheço bastante bem o sócio mais velho.

Olharam um para o outro, num silêncio tenso. Olivia entendeu que Jon não tinha outra saída. Se escondesse a fraude de David e não a denunciasse, na prática seria tão culpado quanto ele, quanto ela.

- Quer que eu o acompanhe... quando tiver a reunião com o contabilista? - ofereceu. Jon dedicou-lhe um sorriso terno.

- Não é preciso - respondeu suavemente. - É melhor que ninguém, além de nós, tenha conhecimento desta conversa. Na realidade, teria sido melhor se não a tivéssemos tido - acrescentou.

- Tio Jon... - Olivia moveu a cabeça, enquanto corria para o abraçar. - O tio está sempre mais preocupado com os outros do que consigo... Está sempre a tentar proteger-nos.

Enquanto Lhe devolvia o abraço, Jon pensou com remorsos que o que Olivia dissera não era verdade. Ele não pensara em proteger Jenny na noite passada, quando abraçou Tiggy. Porque é que o tinha feito? Não sabia o que se estava a passar. Nos últimos meses, descobrira aspectos da personalidade dele que o deixaram desconcertado e até mesmo alarmado. Era como olhar-se a um espelho e ver um reflexo desconhecido, ou dobrar a esquina de uma rua familiar e ver uma paisagem totalmente nova, uma experiência ao mesmo tempo inquietante e preocupante.

Deitado na cama, à noite, junto a Jenny, incapaz de dormir, às vezes surpreendia-se a questionar para onde é que a vida os levava e, mais importante ainda, porque tinham cue continuar juntos, sem serem felizes.

Em breve, as crianças já não precisariam deles. O casamento deles, a vida em comum, tornara-se numa simples rotina. Mas, enquanto antes a estabilidade e a monotonia da vida Lhe ofereciam conforto e segurança, ultimamente sufocavam-no. Tinha cinquenta anos e era como se, de repente, tivesse acordado para a realidade da vida e reparado que perdera tudo. O caos e a agitação dos seus próprios pensamentos confundiam-no e transtornavam-no; a intensidade das suas emoções, na maioria novas e desconhecidas, desconcertavam-no.

Em vez da lealdade e do amor que aprendera a sentir por David, experimentou uma raiva inexprimível e incompreenssível, não só contra David e contra o seu pai, mas contra quase todo o mundo, incluindo ele mesmo.

Apenas Tiggy, com a sua vulnerabilidade, com as suas faltas de defesas, conseguiu reacender nele as velhas emoções de afecto e compaixão que antes caracterizavam a sua personalidade. Em parte, desejava poder contar a Jenny como se sentia, poder partilhar com ela a confusão, a raiva, a dor e a desorientação, mas tinha medo de o fazer, não porque temesse as criticas de Jenny mas, sim, as suas críticas para consigo próprio.

Olhou para o relógio e disse calmamente a Olivia:

- Já passa das seis horas. É melhor ires embora. A tua mãe não gosta de estar sozinha.

- Ela deve ter ido fazer compras - disse Olivia, fazendo um esforço para sorrir, mas ao lembrar-se da origem do dinheiro que satisfazia o consumismo e as necessidades da sua mãe, franziu a testa.

Enquanto contemplava Olivia a deixar o escritório, Jon pensou com espírito sombrio que, embora não tivesse uma ideia clara do que queria fazer durante o resto da sua vida, sabia que não podia continuar a viver daquela forma. Mais que qualquer coisa no mundo, precisava de tempo e de espaço para pensar. Tempo longe do olhar triste e recriminatório de Jenny e da verdade que se interpôs entre eles. Talvez tivesse sido melhor que eles não se tivessem casado. O que era mais covarde? Manter um casamento porque já estava consumado ou reconhecer a verdade e confrontar a realidade, como ele se tinha visto forçado a fazer em relação a David?

Havia uma imobiliária do outro lado da praça.

Ao passar por lá, tinha visto que eles alugavam casas...

 

- Olá... não esperava ver-te hoje - sorriu Guy com afecto para Jenny, quando ela entrou na loja.

- É que eu fui ao hospital - contou.

Guy observou-a com atenção. Tinha perdido peso durante os últimos dias o que Lhe ficava bem, pois realçava a elegante estrutura óssea da sua cara e exaltava a sua cintura. Sempre tivera umas pernas e uns tornozelos bem definidos; Guy, que dava importância a essas coisas; reparou logo nisso no dia em que se conheceram.

Para ele, Jenny tinha uma elegância natural que superava amplamente as poses teatrais de Tiggy.

Na sua imaginação, Guy podia transformá-la na mulher que poderia chegar a ser, na mulher que deveria ter sido: com o cabelo escuro um pouco mais comprido e penteado de outra forma, de modo a que a ondulação natural realçasse a forma da sua face; com roupas de tons pastel que salientassem a sua pele morena.

Embora não fosse comum num homem viril, Guy tinha gosto pelas cores e pelo design, uma sensibilidade para o estilo que fazia revoltar-se quase fisicamente quando testemunhava a cegueira de outras pessoas para a harmonia visual.

Surpreendia-o que Jenny, capaz de escolher o móvel, o quadro e os acessórios ideais para decorar um lugar, falhava redondamente na escolha do seu guarda-roupa. Confiara que a sua viagem triunfante até à loja Armani mudasse as coisas, mas ainda não a tinha visto usar outra vez o vestido que comprara.

- Como está David? - perguntou por educação. Nunca tinha sentido especial simpatia pelo cunhado de Jenny, que considerava um homem fraco e convencido.

- Teve uma ligeira recaída, mas já está estável outra vez - respondeu Jenny. Enrugou a testa ao pensar no que a enfermeira lhe tinha contado. David ficara furioso durante a visita de Tiggy e eles tiveram de pedir-Lhe para se ir embora.

- O que se passa? - perguntou Guy suavemente. Ela lançou-lhe um olhar cauteloso e, depois, moveu a cabeça.

- Nada.

Expressar por palavras os seus medos e a confusão que sentia face à mudança de atitude de Jon só serviria para dar-lhes ainda mais força. Tinha havido muitos momentos durante o seu casamento em que se sentira isolada, só e vulnerável, mas nunca como naquele momento, em que sabia instintivamente que o casamento deles estava em vias de acabar por culpa de outra mulher.

De propósito não, claro. Tiggy nunca poderia

ter tanto sangue frio, mas... Era assim tão estranho que Jon se sentisse atraído por ela? Ela era tudo aquilo que Jenny nunca poderia ser. Além disso, sempre soubera que ele não se casara com ela por amor ou, pelo menos, não por amor a ela, corrigiu mentalmente; nunca tinha existido entre eles a chama da paixão nem atracção sexual. Por outro lado, eles partilhavam uma harmonia que, pelo menos no caso de Jenny, tinha compensado as outras coisas que faltavam na relação deles.

- Tenho de voltar - disse a Guy. - Jon irá para casa daqui a pouco e...

- Eu vi-o à hora de almoço. Estava no restaurante italiano com a esposa de David.

- Sim - afirmou Jenny, com uma atitude distante.

- Não me surpreende.

Guy olhou para ela com atenção e perguntou-se se ela saberia o que ele queria insinuar ao dizer aquelas palavras. Tinha visto com os seus próprios olhos a intimidade que Jon e Tiggy partilhavam, com Tiggy a pousar o garfo no prato para pôr a mão no braço de Jon, talvez não como uma amante mas, de certo modo, aquele gesto denunciara o que ela sentia por ele. E se Jon não tinha correspondido com um gesto íntimo semelhante, também não fizera nada para se afastar dela.

Com uma expressão solene, observou Jenny a afastar-se da loja. Ainda era muito cedo para fazer ou dizer qualquer coisa. Já esperava há muitos anos, podia esperar um pouco mais.

Jenny chegou a casa; estava cansada. O seu coração deu um pulo ao ver o carro de Jon estacionado em frente à casa. Não era frequente que regressasse tão cedo a casa e o seu instinto preveniu-a de que a sua presença não iria trazer nada de bom.

Ele estava à espera dela na cozinha.

- Tenho uma coisa para te dizer - anunciou, com uma expressão sombria.

- É muito importante ou pode esperar até depois do jantar? - perguntou Jenny, com uma expressão de felicidade forçada.

- Eu... eu não vou jantar cá. Tenho uma reunião em Chester.

Não era verdade, mas Jon sabia que não podia sentar-se à mesa e suportar a mesma rotina sufocante sem quebrar a promessa que tinha feito a si mesmo de não fazer nem dizer qualquer coisa que pudesse ferir os sentimentos de Jenny.

- As crianças. - começou a dizer Jenny, mas Jon negou com a cabeça.

- As meninas estão lá em cima, a fazer os trabalhos de casa, e o Joss foi visitar a Ruth.

- Ah, bom. Então, vou pôr ágúa a aquecer...

- Jenny... - a impaciência contida que a sua voz reflectia fê-lo parar. - Não... eu já não consigo continuar aqui. Preciso de estar só. Esta casa, a nossa vida.

Tu, poderia ter dito, pensou Jenny enquanto o escutava em silêncio.

- O que é que estás a tentar dizer-me, Jon? - perguntou com toda a tranquilidade que conseguiu. Que o nosso casamento acabou, que queres o divór cio? - apesar das boas intenções dela, a sua voz fa Lhou ao pronunciar as últimas palavras e Jon fez uma careta ao sentir a dor dela.

- Não... isso não. O divórcio, não... a separação.

- E o que vai acontecer com as crianças? - protestou Jenny.

- Eles vão aguentar. Já não vão precisar de nós durante muito mais tempo - disse Jon, a quem a culpa estava a conduzir à raiva. - E, de qualquer forma, eles sempre foram mais apegados a ti do que a mim.

Jenny mordeu o lábio.

- Que queres dizer? Que os tenho monopolizado, que...

- Não - negou Jon, cansado. - Jenny, eu não quero discutir. Se nós formos sinceros um com o outro, ambos sabemos que... - fez uma pausa. - Eu sei que nos casámos pela mais nobre das razões, mas...

- Mas? - interrogou Jenny com determinação. Preferia que ele o dissesse. Que lhe dissesse o que ela sempre soubera, sempre temeu... Mas era evidente que ele não era capaz de o fazer. Jon baixou o olhar e encaminhou-se para a porta... para a saída, para a sua fuga.

- Para onde vais? - perguntou, mas lamentou imediatamente tê-lo feito. Já sabia, claro. Iria ter com Tiggy. Porém, a resposta de Jon surpreendeu-a.

- Não... Não sei. Vou procurar algum apartamento para alugar. Será o melhor, Jenny - disse num tom quase melancólico. Jenny ouviu a súplica na sua voz e não teve pena apenas de si própria mas, por absurdo que parecesse, também teve pena dele. Quis abraçá-lo, como teria abraçado um dos seus filhos, consolá-lo e assegurar-Lhe que o entendia e perdoava.

Mas como poderia fazê-lo quando não era isso que sentia, de forma alguma?

- Quando... - humedeceu os lábios - Quando é que irás embora? - perguntou em voz baixa.

- Não sei. Logo que encontre alguma coisa. Não faz sentido prolongar esta situação. Entretanto, vou dormir no quarto de hóspedes - viu a forma como Jenny o observava e fez uma careta pela segunda vez.

- As crianças - sussurrou. - Que vamos dizer-lhes?

Jon moveu a cabeça.

- Não sei...

- Posso dizer-lhes que... que é só uma situação temporária - sugeriu com voz rouca. - Talvez assim seja mais fácil de aceitar.

- Diz-lhes o que achares melhor - respondeu Jon. Estava a observá-la quase com piedade, pensou Jenny, e o seu orgulho veio à tona.

Tu é que te vais embora", sentiu-se tentada a dizer-lhe. Explica-lhes tu". Mas o instinto e o hábito impediram-na de o dizer e mantiveram-na em silêncio. Sentia-se estranhamente fraca e doente, sem forças para lutar ou discutir com ele.

- Será melhor que eu comece a preparar o jantar - disse, como se não tivesse acontecido nada fora da comum. - Joss disse a que horas volta?

Estava a comportar-se como uma personagem de uma péssima peça de teatro, pensou, enquanto reprimia o desejo quase histérico de desatar a rir. A esposa estúpida, insípida, aborrecida, que estava prestes a ser deixada pelo marido, uma mulher demasiado absorvida na monotonia da vida para perceber o que acontecera.

- Não, não disse nada - respondeu Jon.

Jenny não olhou para ele enquanto ele abria a porta e saía para o corredor. Não conseguia.

Max tocou com os dedos na sua escrivaninha. Eram quase sete horas, muito depois da hora habitual de sair do escritório. Horas antes, às cinco e meia, ao ver que Laura não dava sinais de estar prestes a sair, ele cerrou os dentes, amaldiçoou o seu pai e lançou um olhar de advertência a Charlotte, quando esta começou a ficar com um ar mal-humorado.

- Ainda aqui, Charlotte? - comentou Laura com um olhar gélido. - Não é costume.

- Charlotte aceitou ficar mais um bocado para terminar de passar-me alguns textos à máquina - referiu Max.

- A sério? - respondeu Laura, num tom ainda mais frio. - Estás a surpreender-me.

Só por se recordar do que estava em jogo tinha feito com que Max não respondesse. Finalmente, já passava das seis e trinta quando ela resolveu ir-se embora, apesar de contrariada.

- Espera - advertiu Max a Charlotte, agarrando-a pelo braço ao ver que ela queria aproximar-se da secretária mal Laura saíra do escritório - Espere uns dez minutos - disse ele. - Para o caso de ela decidir voltar.

Laura não voltou, mas Max tinha-se retirado até ao seu escritório enquanto Charlotte tirava as chaves e abria a escrivaninha de Laura.

Já eram quase sete horas e ainda... Max ficou rígido ao ver a porta do escritório a abrir-se.

- Penso que achei o que deseja - anunciou Charlotte. - O sócio mais velho almoçou com uma tal Madeleine Browne três vezes nos últimos dois meses, e ele também escreveu as iniciais dela na agenda antes da hora da reunião de direcção.

Madeleine Browne... Rapidamente, Max puxou da memória para ver se o nome lhe lembrava alguma coisa. Não era o caso.

- Ah, e a propósito - disse Charlotte, com gozo evidente. - Há algo mais que deveria saber. A tal Madeleine Browne... - fez uma pausa. - Por acaso ela é afilhada do chefe. Agora - acrescentou com ênfase. Em relação ao baile...

A afilhada do chefe, devia ter imaginado. Max voltou furioso ao seu apartamento. Bom, pelo menos, já sabia quem era a sua rival. O que deveria fazer a seguir era pô-la fora da corrida e a forma mais fácil seria desacreditá-la aos olhos da direcção. Ainda não sabia como conseguir isso, mas já tinha encontrado uma solução. Havia sempre uma.

Afilhada do chefe ou não, igualdade de direitos para a mulher ou não, estava escrito que seria ele a ocupar a vaga no escritório, e não a menina Madeleine Browne.

- Tia Ruth.

Ruth baixou a visão para contemplar o seu sobrinho-neto. Estavam a passear na pradaria, perto do rio, na mesma pradaria em que ela, quando era pequena, tinha caçado coelhos. Agora já não havia coelhos na pradaria, embora Joss e ela tivessem organizado uma campanha secreta para reintroduzi-los no habitat natural.

- Porque é que a tia acha que uma pessoa que parece normal... sim, normal, de repente parece: bom, diferente?

Ruth franziu a testa ao notar a preocupação contida na voz de Joss.

- A que pessoa te referes, Joss?- perguntou suavemente. - A ti?

- Não, não a mim - respondeu, movendo a cabeça vigorosamente. Ruth suspirou de alívio. Continuava a estar actualizada, lia revistas e jornais, via os programas de notícias e coisas do género, mas não se sentia preparada para responder às perguntas de crianças em relação a sexo ou a drogas.

- Não? Então, de quem falas?

- Do pai - reconheceu Joss, arrastando a sola do sapato pelo chão.

- Do teu pai? - Ruth franziu a testa. - Bom, eu suponho que ele está muito preocupado com David.

- Ele passa muito tempo na casa do tio David - informou Joss, com naturalidade. - Com a tia Tiggy.

Ruth ficou estupefacta.

- Ah, sim? Bom, eu imagino que Tiggy precisa de ajuda para resolver muitos assuntos.

- Sim, isso é o que a mãe diz - confirmou Joss. Ruth hesitou, sem saber o que dizer, o que perguntar. Por fim, decidiu que, dado que fora Joss quem tinha puxado o assunto, devia dar-lhe a oportunidade de expressar a sua preocupação evidente. Assim, em vez de lhe mostrar como algumas plantas estavam bonitas, perguntou:

- E tu não achas que seja por isso?

- O pai está diferente - admitiu Joss, com a voz embargada. - Está diferente de... Bom, desde muito antes do tio David ter tido o ataque de coração.

- Diferente em que sentido, Joss? - indagou Ruth.

- Não sei, diferente. Não parece o pai. Eu não sei, é como se... Penso que ele possa estar a ter problemas com a mãe - declarou. - Muitas crianças da escola têm pais divorciados - comentou naturalmente.

Ruth notou como a preocupação se transformava em alarme e confusão.

- Os teus pais não se vão divorciar, Joss - disse. Posso saber de onde tiraste essa ideia?

Joss encolheu de ombros e olhou de repente para a tia, com os olhos sombrios e tristes.

- Não sei. Pensei nisso.

- E falaste com eles? - perguntou.

- Não, porque... - hesitou, com dor na voz. - Eu não acredito que a mãe se queira divorciar, mas... a tia Tiggy é muito bonita, não é?

Ruth não tentou mentir-lhe.

- É verdade - respondeu calmamente. - Mas a tua mãe... as pessoas nem sempre se apaixonam pelo aspecto físico de uma pessoa, Joss - lembrou.

- Eu sei. Mas a tia Tiggy precisa de alguém que cuide dela, agora que o tio David não está em casa. o pai gosta que as pessoas precisem dele - acrescen tou com a perspicácia de uma pessoa madura que a deixou perplexa, embora já soubesse o quanto inteligente e astuto o seu sobrinho era.

- A tua tia Tiggy é casada com David e o teu pai casado com a tua mãe - conseguiu dizer finalmente enquanto digeria o que Joss lhe tinha contado.

Seria aquele medo fruto da imaginação fértil de um menino ou teria raízes mais profundas? Estariam Jenny e Jon a ter problemas no casamento deles? Jenny não lhe tinha contado nada a esse respeito, e pensar que Jon poderia estar a pensar em divorciar-se, tal como sugerira Joss, era uma ideia confusa para ela. David, por outro lado...

- Tia Ruth, posso ficar cá esta noite em vez de voltar para casa? Podíamos ir ver os texugos - tentou persuadi-la com o seu charme de menino.

- Joss, não me parece que seja uma boa ideia - começou a dizer mas, ao olhar a sua face, mudou de opinião. - Já veremos o que a tua mãe diz, de acordo?

- Eu sei que a mãe não se vai importar. Vou ligar-Lhe quando chegarmos a casa, está bem?

Ruth contemplou-o de forma pensativa. Esperava que Joss estivesse enganado e que as suas suspeitas fossem infundadas.

Tinha pensado em visitar Ben no dia seguinte: Saul e a sua mãe partiriam para Pembrokeshire pela manhã e, embora soubesse que Ben não o iria reconhecer, sabia que ele sentiria a falta da companhia deles. Não se atrevia a pensar, porém, em como reagiria Ben face à possibilidade de uma relação, uma aventura, entre Jon e Tiggy. Jon deveria saber com quanta fúria e ferocidade se oporia Ben a qualquer intenção por parte de Jon de substituir David na vida de Tiggy, e o mero facto de contemplar a ideia levou-a a ver como aquela história poderia ser verdadeira.

Os sentimentos de Tiggy não a preocupavam muito, aliás, não a preocupavam nada. Tiggy gostava de ser uma bonita planta trepadora que precisava de apoio constante, sem se preocupar com quem lhe dava esse apoio. As suas emoções eram como as raízes jovens, superficiais e fáceis de mudar.

Mas Jon... Jon era totalmente diferente e o facto de ele, que sempre colocara as necessidades de David antes das suas, querer conquistar a sua esposa não lhe parecia de todo credível.

Olivia ouviu o telefone a tocar enquanto estava a tirar a roupa que vestira para ir trabalhar. Era como se a descoberta a tivesse sujado, apesar de saber que aquela sensação se devia unicamente ao pó do escri tório.

Quando a sua mãe lhe disse que a chamada era para ela, o seu coração começou a bater mais depressa. Caspar! Tinha de ser ele! Quando desceu as escadas em roupa interior, já estava a ensaiar o que lhe ia dizer.

Só que não era Caspar, mas, sim, Saul.

- Saul - repetiu mecanicamente, com a voz monótona e um entusiasmo fingido.

- Pareces abatida - disse Saul. - Tiveste um mau dia no escritório? - brincou. - Queres contar como foi o teu dia enquanto jantamos?

- Saul, estás a ser muito amável, mas não me

parece...

- Escuta, se o que te preocupa é o que aconteceu

ontem à noite, esquece - declarou suavemente. Estou a falar a sério. Não vou...

O que tinha acontecido na noite anterior? De que é que ele estava a falar?, desejou saber Olivia.

- Não te preocupes, não te vou pressionar - continuou Saul. - Entretanto, já encontrei duas amas. A Louise ofereceu-se para cuidar das crianças e a minha mãe ainda não se foi embora.

Saul pensou que ela estava a hesitar com medo que ele tentasse cortejá-la. Olivia não sabia se havia de rir ou de chorar. Mas não podia ferir os seus sentimentos ao dizer-lhe que praticamente se tinha esquecido do que acontecera junto ao rio.

- Por favor.

Olivia hesitou. Que sentido fazia ficar em casa à espera que Caspar lhe ligasse? E se ele não o fizesse? Nada poderia alterar o que ela tinha visto.

- Sim... Bom, está bem - consentiu.

- Pelo menos, podias mostrar um pouco mais de entusiasmo - disse Saul, com uma gargalhada. - Vou buscar-te daqui a meia hora.

- O jovem Saul foi jantar esta noite com Olivia - anunciou Ben rudemente.

Ruth olhou para o seu irmão. Só mesmo Ben poderia referir-se a Saul como jovem", como se ele não fosse mais do que um adolescente.

Ele já a tinha informado do fim do casamento de Saul e Hillary e, como adivinhou o que o seu irmão estava a pensar, foi forçada a dizer:

- Olivia está comprometida com Caspar, Ben.

- Tolices, ela depressa recuperará o bom senso. Americanos. Não há nenhum que seja de confiança, e tu sabes disso.

Ruth começòu a sentir-se tensa. Embora já tivesse prometido mil vezes que não voltaria a discutir com Ben, o seu irmão conseguia sempre provocá-la até ao ponto de a fazer esquecer da sua promessa. Aquela vez não era uma excepção.

- És o homem com os preconceitos mais tolos que eu conheço - disse-lhe sem rodeios. - As pessoas são indivíduos, Ben, sejam de onde forem. Há cem anos atrás, não terias deixado que a tua filha se casasse com alguém que não fosse deste estado, quanto mais do país. Olivia está apaixonada por Caspar e a relação deles é muito diferente da que eu tive... eu... eu cometi um erro - respondeu com voz tensa. - Mas isso não significa que todos os americanos sejam...

- Uns aldrabões e mentirosos - terminou Ben com raiva. - E que me dizes da mulher de Saul, que deixou os seus três filhos aqui? Que mãe é capaz de abandonar os seus filhos?

Ruth fez uma careta.

- Às vezes, não resta mais nenhuma saída - respondeu calmamente. - E o facto de Hillary ser americana não tem nada a ver com a sua decisão de deixar Saul. E foi ele que quis ficar com as crianças, como sabes. Os três nasceram em Inglaterra, este é o seu país, e, ao deixá-los aqui com Saul, Hillary está a pensar no que é melhor para eles.

- Tolices - atirou Ben. - São todos iguais. E Olivia descobrirá a verdade... como aconteceu contigo.

- Espero que não - respondeu Ruth. Não desejava a ninguém o que ela tinha passado, muito menos a al guém como Olivia. - O facto de Grant me ter dito que não era casado, que era livre de... - hesitou e engoliu a saliva com ferocidade antes de continuar. - O facto de ele me ter mentido não tem nada a ver com a nacionalidade dele. Qualquer homem, seja inglês, escocês, galês, francês, polaco ou dinamarquês, qualquer homem, poderia ter feito a mesma coisa. Por acaso calhou Grant ser americano.

- São todos iguais - protestou Ben, mal-humorado. - Eles vieram para cá, divertiram-se a mentir e a fazer armadilhas, seduzir jovens inocentes, fazerem-se de inocentes... Não penses que não sei.

- Não sabes não, Ben - contradisse Ruth suavemente. - Por exemplo, no princípio, fui eu que procurei Grant, e não ao contrário - sorriu com tristeza ao ver a sua mudança de expressão. - Sim, é verdade. Já sei que para o teu orgulho de Crighton te custa ouvir isto, mas eu desejava Grant, e muito. Era como uma corrente de ar fresco, um íman irresistível, tão diferente dos outros homens que eu conhecera...

- Não sabes o que dizes - respondeu Ben com dureza. - Ainda estavas a chorar a morte de Charles.

- Não - disse Ruth firmemente. - Chorei a morte de Charles, é verdade, mas como amiga, não como mulher. Sim, eu sei que nós estávamos comprometidos, mas era só isso. Só o estávamos porque já tinha sido acordado. Eu era jovem e bastante tola. Fui vítima das pressas provocadas pela guerra. Charles ia para o campo de batalha e queria ter alguém à sua espera, para ter a certeza de que voltaria. Para ele eu era uma garantia, nada mais. Fiquei triste quando morreu, claro, mas nunca chorei por ele como amante. Nunca chorei por ele como chorei pelo Grant - acrescentou baixinho.

- O americano seduziu-te - insistiu Ben com ferocidade.

- Não - corrigiu Ruth, com determinação. - Se queres saber a verdade, Ben, fui eu que o seduzi - um sorriso carinhoso apareceu nos seus lábios ao recordá-lo. - Grant é que teve reservas, que foi responsável...

E também era ele que era casado e tinha um filho. Mas nunca o confessou a Ruth, pelo menos, não lhe disse nada quando ela o derrubou no campo e o atormentou com a curva macia dos seus seios, uns seios que, como ambos sabiam, estavam nus debaixo do vestido leve que trazia. Também nunca lho contou depois, quando fez amor com ele e gritou de pura alegria ao senti-lo dentro do seu corpo. Não, nunca chegou a dizer-lhe.

Foram o seu pai e o seu irmão que lhe contaram a verdade. Durante muito tempo, Ruth pensou que a dor por o ter perdido nunca a abandonaria, mas a intensa agonia inicial foi reduzida a uma dor surda e monótona que, com os anos, acabou por ser apenas uma pontada. Uma pontada que a trespassava sempre que pensava nele. Grant. Nem sequer sabia se continuava vivo, e nem sequer queria saber, pensou.

 

Madeleine Browne. Um sorriso triunfante e cínico surgiu nos lábios de Max ao contemplar o nome que assinalara com um círculo. Durante as três semanas relativamente curtas que tinham passado desde que descobrira o seu nome, Max tinha descoberto muitas

coisas sobre ela.

A primeira coisa, e o maior obstáculo para expulsá-la do seu caminho em relação à vaga no escritório, era que o seu avô materno era um dos juízes do Tribunal da Câmara dos Lordes e, portanto, também era lorde; o seu pai era juiz do Tribunal Superior de Justiça; e, para cúmulo, não era apenas Madeleine Browne, mas sim Madeleine Francomb-Browne em bora, aparentemente, durante os anos da universidade, ela tivesse decidido prescindir da primeira parte do seu apelido.

Vivia, como era de esperar, numa pequena casa do elegante bairro de Chelsea, junto ao rio. A casa pertencia ao seu pai e Madeleine partilhava-a com uma amiga, provavelmente, uma antiga colega da universidade. Em resumo, era o típico resultado de uma familia da classe média-alta, o tipo de rapariga que há trinta ou até mesmo há vinte e cinco anos atrás nunca teria sonhado com qualquer outra coisa senão arranjar um bom marido, e Max desejava de todo o coração que assim fosse.

Porém, no meio de toda aquela informação previsível e desanimadóra que tinha reunido à custa de diversas fontes, havia um facto que brilhava de forma resplendorosa, como um refinado e esculpido diamante. E esse facto era que, sabe Deus por que razão, durante umas férias da universidade tinha trabalhado a tempo parcial, de certeza como secretária, no escritório de Luke Crighton, em Chester. Max não conseguia entender por que razão ela decidira trabalhar lá quando, graças à influência da família, poderia tê-lo feito em qualquer outro lado, se por acaso precisasse de trabalhar; mas o que entendia era que encontrara um filão de boa sorte e esperava tirar a maior vantagem possível disso.

Já fizera todos os deveres, tinha verificado todos os seus dados, planeado uma estratégia com meticulosidade e, finalmente, chegara o momento de levar a cabo o seu plano.

Saiu do escritório à hora do costume, foi até ao seu apartamento, tomou um duche, mudou de roupa e pôs-se a caminho de Chelsea. Madeleine não demorou muito a responder ao seu telefonema. Talvez tivesse pensado nas vantagens sociais, pensou Max, enquanto a observava e via que ela não era nada do outro mundo.

Tinha o cabelo curto e liso, de cor castanha, olhos castanhos, um rosto pequeno e redondo, a condizer com o seu corpo, também pequeno e suavemente arredondado. Ao ver que ele a observava, Madeleine corou e ficou nervosa.

- Desculpe - desculpou-se, e dirigiu-lhe o seu sorriso mais cativante, o que mostrava a covinha deliciosa do seu queixo e que o fazia parecer ainda mais atraente e jovem do que era, como Lhe tinha dito numa ocasião uma das suas namoradas. - Luke disse-me que você era baixa, mas eu não pensei...

- Luke? - perguntou, de forma abalada e curiosa enquanto mordia o anzol.

- Sim, Luke Crighton, o meu primo - explicou, não referindo que, na realidade, Luke era seu primo em quarto ou quinto grau, e não um primo directo.

- Luke Crighton? - Madeleine estava a franzir a testa ligeiramente, e parecia envergonhada e confusa.

Max deu dois passos até ela, o que fez com que Madeleine retrocedesse e lhe permitisse entrar na sua casa. Era uma manobra simples que tinha sido de grande utilidade para Max em inúmeras ocasiões.

- O que eu imaginava - explicou com suposto pesar. - Eu disse a Luke que, seguramente, você já não se lembraria dele. Você trabalhou há algum tempo atrás no escritório dele, em Chester. O pai dele, o meu tio, era...

- Ah, sim... - a confusão dela desapareceu. Claro, Luke...

Ela estava cada vez mais corada e parecia lisonjeada e transtornada ao mesmo tempo, e Max sabia perfeitamente porquê. Resistiu à tentação de rir. Aquela rapariga insípida e enfadonha acreditava mesmo que Luke se teria lembrado dela?

- Então você é primo de Luke... Entre, por favor. Com algum desconforto, conduziu-o para uma sala de estar decorada com elegância e cuja mobilia deveria valer mais do que Max ganhava num ano inteiro de trabalho. Quanto dinheiro estava desperdiçado naquela decoração. Ali respirava-se riqueza familiar e posição social, e o ressentimento que sentia por ela intensificou-se. Por que raios não se tinha conformado com o que as mulheres da sua classe sabiam fazer? Viver no campo e dar descendentes à familia, foi para isso que foi educada. Só tinha de fixar-se naquelas coxas suavemente arredondadas...

- Quer... Quer beber alguma coisa?

- Obrigado - acedeu Max rapidamente: - Um xerez seco, se tiver.

Claro que tinha, e Max gostou de ver como a sua mão tremia consideravelmente ao dar-Lhe o copo.

- Bom, como é que Luke está?

- Bem. Ainda vive em Chester, claro. Estive com ele há algumas semanas atrás, quando fui a casa para uma celebração familiar. Os dois recordámos a nossa juventude perdida e foi aí que mencionou o seu nome e sugeriu que eu passasse por aqui para a cumprimentar.

- Ah, compreendo... Que amável. Estou surpreendida por ele se ter lembrado de mim, na realidade - disse com franqueza. - Só estive no escritório dele durante um Verão e não nos mantivemos em contacto. Não sabia que... E você, trabalha em que área?

- perguntou educadamente.

- Neste momento estou a estagiar num escritório - disse. - Bom, para dizer a verdade, estou à espera de uma vaga - fez uma expressão irónica. - Podia trabalhar no escritório de Chester, claro, mas eu prefiro ser independente, abrir caminho pelos meus próprios meios em vez de me apoiar na família - dedicouum sorriso falso e esperou.

- Sim, claro - confirmou, gaguejando um pouco.

- Não... Não podia estar mais de acordo.

- Hum... este xerez é muito bom - comentou, enquanto olhava descaradamente para as pernas dela. Madeleine reagiu à insinuação tomando mais um pouco da bebida para se acalmar.

Tinha os tornozelos delicados, próprios das jovens rechonchudas, e eles pareciam estar bronzeados, por debaixo das calças de seda.

- E o que me conta de si? - perguntou, enquanto aceitava mais uma bebida e a poltrona confortável que ela lhe indicou. Enquanto ele se sentou com indiferença, ela fê-lo com nervosismo, apoiando-se no braço da poltrona. - Luke disse-me que você planeava entrar para a Ordem dos Advogados quando terminasse a faculdade.

- Ah, sim? Não sabia que ele estava a par de... Não pensava que... - Max conteve o alento ao reparar na incerteza no seu tom de voz. O seu plano viria abaixo se Madeleine anunciasse que só tomara aquela decisão depois de ter estado a trabalhar em Chester. Max sempre preferira correr riscos do que jogar com precaução, e acreditava que, com a origem que ela tinha, a sua escolha profissional seria automática e inquestionável, tal como as mentiras dele em relação à suposta conversa com Luke.

- Bom, sim... eu passei nos exames e agora estou a trabalhar como estagiária - reconheceu, pelo que Max começou a relaxar. - Mas eu não tenho a certeza... Quero dizer, ainda não sei se é mesmo isso que quero... Os meus pais pensam que eu poderia tirar um ano para descansar antes... - mordeu o lábio com intenso nervosismo. - A minha mãe pertence à direcção de uma organização beneficente a nível mundial, que ajuda as crianças sem casa, e ela quer que eu a acompanhe na próxima viagem. Eu gostava, mas... Enfim, sou filha única e penso que devo ao meu pai... continuar a tradição familiar. Nem ele nem o meu avô me forçariam a fazer algo que eu não quisesse, claro, mas sinto que é o meu dever.

- A mesma coisa acontece na minha família, principalmente com o meu avô - respondeu Max com outro sorriso falso. - Deve ter alguma coisa a ver com a educação que receberam.

- Ah... O que faz o seu avô?

- Bom, agora está reformado - respondeu Max com fluência. Não era necessário mencionar naquele momento que o velho apenas fora um advogado de cidade. - Mas eu entendo o que você quer dizer em continuar a tradição familiar. Como Crighton que sou, todos esperam que encaminhe a minha vida para o Direito. Como você diz, a pessoa sente um certo dever, uma certa responsabilidade - dirigiu-lhe um olhar de orgulho que foi recompensado com um sorriso tímido.

- É agradável falar com alguém que percebe isso, que entende... - começou a confiar nele, mas continuava hesitante. - Nem sempre é fácil, não é verdade? Às vezes, não consegue controlar a situação, fica dividido entre a familia e...

- E as pessoas que pensam que, graças à sua família, à sua origem e aos seus contactos, tudo é muito mais fácil - afirmou Max, com ar entendido. Ela dirigiu-lhe outro sorriso.

- Sim, sim, exacto. E, no entanto, em muitos sen tidos é muito mais difícil, porque sente... – desdobrou as mãos. - Eu às vezes sinto-me culpada - admitiu. - Principalmente quando vejo quantas pessoas têm de fazer um esforço para conseguirem um emprego. Até me sinto culpada por... Enfim, não é fácil encontrar um lugar num escritório e há pessoas com muitas qualificações que não...

Voltou a interromper a frase e olhou para ele. Tinha o hábito de deixar as frases a meio, à espera que oútra pessoa as terminasse no lugar dela, algo que mostrava que ela sempre tivera alguém ao seu lado para completar as tarefas mundanas por ela, concluiu Max com amargura. Mas escondeu o ressentimento e manteve a postura de compreensão.

- A minha... A minha amiga Claudine, que vive comigo, tem notas excelentes, mas como não tem familiares no mundo do Direito está a ser muito difícil conseguir um lugar num escritório, embora eu saiba que ela seria uma excelente advogada.

- Quem sabe o seu pai possa ajudá-la - sugeriu Max, com facilidade. Não tinha o menor interesse na sua amiga, fosse quem fosse, e muito menos nos seus problemas em ascender naquela complicada profissão. Por que diabos iria interessar-se por ela? Ele próprio já tinha bastantes problemas.

- Bom, sim... - afirmou Madeleine, um pouco desconfortável. - O meu pai poderia fazer algo, mas...

Mas ele não queria usar as suas influências para beneficiar alguém que não era da família. Afinal de contas, era assim que funcionava o sistema, a própria vida, reconheceu Max com cinismo, mas não deixou reflectir os seus pensamentos e contemplou com aparente pesar o copo vazio de xerez antes de se levantar e dizer à sua inocente anfitriã:

- Tenho de ir. Já ocupei muito do seu tempo. Espero não tê-la interrompido. Não estava quase a sair?

- Não... Não estava. Não pensava sair e... e foi uma conversa muito agradável - disse Madeleine com timidez. - Dê... Dê cumprimentos meus a Luke da próxima vez que o encontrar.

- Ah, não - disse Max suavemente, disposto a entrar a matar. - Acho que não poderei fazê-lo - ela olhou para ele com perplexidade. - Eu também gostei muito da nossa conversa - continuou no mesmo tom macio e insinuante. - Na realidade, gostei tanto que... Gostaria de sair comigo para jantar? -Ah... Sim, claro... adoraria.

Já a tenho, rejubilou Max em silêncio, triunfante. Claro que nunca duvidara disso. Madeleine não era o seu tipo de mulher: muito insípida, muito sem graça, demasiado agradável. Se conseguia fazer com que ela corasse e tremesse só ao olhar para ela, a sua experiência sexual devia ser inexistente. E as virgens tímidas e recatadas não exerciam nenhuma atracção em Max. Mas, claro, não era a sua virgindade que lhe queria tirar.

- Sim... eu também gostaria muito - afirmou sua vemente. Enquanto ela corava e o observava de forma confusa, ele rematou a jogada. - Na

quinta-feira estou livre, se estiver bem para si. Era dentro de dois dias, mas ele não queria dar-lhe

tempo para ter dúvidas ou questões e, certamente; não queria que ela lhe arruinasse o fim-de-semana.

- Na quinta-feira? Sim... Sim, na quinta- feira pa rece-me bem.

Max sorriu.

- Então, até quinta-feira - franziu a testa ao ouvir que alguém abria a porta.

- Maddy... Ah... Desculpa. Não sabia que tinhas visitas.

A mulher que entrou pela porta era tudo aquilo que Madeleine nunca seria: esbelta, elegante e alta. Tinha o cabelo castanho dourado, longo, forte e ondulado; a face, de pele lisa e perfeita; os olhos azuis; e uma boca que o fazia pensar automaticamente em sexo.

- Ah, Claudine... Este é Max... Max Crighton... Max, esta é Claudine, a minha amiga.

- Max Crighton - os olhos da rapariga reflectiram um escrutínio passageiro, um distanciamento frio e uma certa hesitação, ao que Max reagiu olhando para ela com prazer mas sem mostrar qualquer interesse.

Era o tipo de mulher que dava por adquirido o facto de a sua beleza a transformar sempre no centro das atenções de qualquer homem, e aquele ar de frio distanciamento não era mais do que um truque para aumentar o desejo masculino. Bom, naquele caso, estava a perder tempo. Max não lhe prestou atenção e virou-se para Madeleine.

- Virei buscá-la - disse-lhe carinhosamente. Pode ser às sete e trinta?

- Sim, sim, às sete e trinta parece-me bem - afirmou Madeleine com a voz rouca.

Claudine esperou que Max saísse para conversar com a sua amiga.

- Max Crighton... Sabes quem é, não sabes? - perguntou sem rodeios.

- Sim... Sim, sei - afirmou Madeleine em voz baixa. - Mas, Claudine...

- O que estava a fazer aqui?

- Max... Eu conheço o primo dele.

- Não me tinhas dito nada.

- Não... Não pensei que...

- Tens a certeza de que queres vê-lo novamente?

- Sim... Sim, tenho a certeza.

- Tem cuidado, Maddy - avisou Claudine. - Já sabes que...

- Eu gosto dele, Claudine - interrompeu Madeleine com a voz rouca, e voltou-se para que Claudine não visse a sua expressão.

Para Claudine era tudo muito fácil; os homens rendiam-se aos seus pés e ela nunca se sentia tímida nem nervosa na presença deles. Nunca teve de sentar-se num canto e sentir-se excluída, indesejada, nada atraente. Não tinha de suportar o peso de saber que os seus pais estavam desapontados com ela, pela sua falta de sensualidade. Mas Max fizera-a sentir-se especial, diferente... e nem sequer olhara para Claudine. Madeleine estava a observá-lo, esperando ver a familiar reacção masculina à beleza da sua amiga" mas Max nem reparara em como Claudine era bonita. Por outro lado, tinha estado a conversar com ela e era com ela que queria jantar.

Claudine franziu a testa enquanto contemplava as costas rígidas da sua amiga, dividida entre o desejo de expressar as suas suspeitas e preveni-la e a certeza de que iria ferir os seus sentimentos se insinuasse que Max Crighton deveria ter uma razão oculta para a convidar para sair.

Madeleine sempre fora uma boa amiga e Claudine sentia-se na obrigação de a proteger; apesar de todas as vantagens sociais e materiais que tinha, era uma rapariga tímida e solitária que se deixava intimidar e dominar por todos.

- Foi muito amável comigo, Claudine, simpático... - continuou Madeleine com a voz afogada, sem se voltar.

Claudine reprimiu as suas dúvidas.

- Isso é bom - encorajou-a, mas conseguiu reprimir a sua curiosidade. - Quem é exactamente o primo dele? E porque é que nunca me falaste dele?

Era deprimente a facilidade e a velocidade com que uma pessoa se adaptava novamente à rotina, pensou Guy com espírito escuro, enquanto se dirigia para a loja logo pela manhã, no seu regresso de férias. Três semanas a navegar pelas ilhas gregas tinham-lhe escurecido ainda mais a pele e tinham também fortalecido os músculos que não precisava de usar no trabalho.

Bom, tinha estado três semanas fora, mas em Haslewich continuava tudo igual. Mesmo assim, estava contente por naquele dia Jenny estar na loja. Tinha pensado muito nela durante as férias mas, claro, isso nem sequer era uma novidade.

Sabia que muitas pessoas ficariam surpreendidas ao conhecerem a intensidade do seu amor por ela. Às vezes, ele mesmo ficava surpreendido. Afinal, era uma mulher vários anos mais velha do que ele, serena e alegremente casada, e não o tipo de mulher que ele associava com sentimentos não correspondidos de paixão e de luxúria.

Dentro de alguns dias iria acontecer uma feira de comércio numa cidade próxima e Guy desejava saber, como em muitas ocasiões passadas, que possibilidades teria de convencê-la a ir com ele. Uma estada de um dia em algum hotel romântico e apertado poderia... Quem é que ele estava a tentar enganar?, pensou enquanto chegava à loja e procurava as chaves no bolso.

Franziu a testa quando colocou a chave na fechadura e viu que já estava aberta. Girou o trinco, entrou e a sua testa ficou ainda mais franzida ao ver Jenny a surgir na porta das traseiras. Estava diferente, mais magra, mais frágil, e o seu habitual sorriso quente e generoso não resplandecia. Por outro lado, parecia cansada, tensa e irritada.

- Jenny - exclamou carinhosamente. - Não esperava encontrar-te aqui tão cedo. Pensei que gostarias de ter algumas horas livres depois das três semanas em que estive fora.

- É que eu vim deixar Joss na paragem do autocarro da escola - disse rudemente.

Guy observou-a, pensativo. Quando Jenny não podia levar Joss directamente à escola era Jon quem trazia a criança até à paragem, não Jenny.

Jenny tinha-se voltado e estava a limpar o pó a uma figura de porcelana pequena e delicada.

- As férias foram boas, Guy? - perguntou a si mesmo com amabilidade, e com os olhos postos em Jenny. - Sim, Jenny, foram óptimas, obrigado.

Só queria espevitá-la um bocadinho. Não era muito característico dela não fazer a pergunta, não ter mostrado genuinamente interessada nele mas, em vez de vê-la rir e desculpar-se, como esperara, os seus dedos começaram a tremer e a figura caiu no chão e partiu-se em vários pedaços.

Guy ajoelhou-se imediatamente para os apanhar, mas parou ao olhár para Jenny e ver que ela estava imóvel junto a ele, com uma expressão de perplexidade e desespero e os olhos cheios de lágrimas. Arrependido, levantou-se e pôs-lhe a mão no braço para a consolar.

- Jenny, não é mais do que uma figura de porcelana - lembrou suavemente. - E nem sequer era muito valiosa - sorriu para a tranquilizar.

Estava a chorar, e as lágrimas deslizavam em abundância pela sua face. Enquanto a contemplava, triste, ela cobriu o rosto com as mãos e começou a tremer enquanto as lágrimas passavam entre os dedos dela. Tanta dor não podia estar relacionada com a perda de uma peça de decoração.

- Jenny, o que se passa? O que aconteceu? - perguntou.

Durante um momento, pensou que ela não lhe ia dizer nada. O seu estômago estava encolhido de impotência e fúria ao ver aquela angústia silenciosa, muito mais enervante por causa do silêncio dela, como se a dor fosse tão grande que não conseguia expressá-la por palavras. Automaticamente, aproximou-se dela e abraçou-a.

Tinha razão; tinha perdido peso e os ossos já se conseguiam sentir. Parecia minúscula e frágil, muito frágil.

- Jenny - pressionou-a, desejoso de a abraçar com mais força, embora tivesse medo de a perturbar.

- Estábem - consentiu, interpretando mal o motivo da súplica. - Para tua informação, Jon deixou-me.

Guy ficou rígido de incredulidade e de surpresa.

- Jenny - murmurou com a voz rouca, incapaz de expressar a sua perplexidade.

- Jenny o quê? - perguntou, chorosa.

- Jenny, não pode ser verdade.

- Mas é. Não tardará vais começar a ouvir os rumores - Guy não conseguia ver a sua face, mas parecia-lhe que tinha parado de chorar. Mesmo assim, os seus braços tremiam, como se o seu corpo não conseguisse aguentar tanta dor e indignação. - É o tema de conversa da cidade inteira... Mas, se eles agora já falam tanto, espera só até saberem porque é que ele se foi embora - voltou a chorar novamente, soluços amargos e horríveis. Guy abraçou-a com força.

- Porque é que ele se foi embora, Jen? - perguntou suavemente, como se estivesse a falar com uma criança, como se soubesse que, pela primeira vez na vida dela, Jenny precisava de poder comportar-se instintiva e não racionalmente.

- Apaixonou-se pela Tiggy... pela Tania - revelou com dor. Ela afastou-se um pouco e olhou para o rosto dele, com os olhos cheios de tristeza e desolação. - E quem o pode acusar? Basta olhar para ela para.

- Aquela mulher não te chega aos pés, Jen - disse Guy com aspereza. - Meu Deus, se ele te deixou por causa dela, é um idiota.

- Não, não é idiota. Ele não está a fazer mais do que o que sempre lhe ensinaram a fazer. Passou a vida a assumir as responsabilidades de David e agora que David está tão doente, o que mais poderia ele fazer senão assumir a responsabilidade de tomar conta da mulher de David? - soltou uma risada estridente e perigosa, uma risada quase histérica. Guy sentiu o seu coração apertado. Ele queria consolá-la, mas suspeitava que ela não aceitaria o conforto dele. Sempre soubera o quanto ela amava Jon e sempre Lhe parecera que Jon lhe correspondia. Ainda assim, não podia desperdiçar a oportunidade que o destino lhe estava a oferecer.

- Escuta, porque não fechamos a loja durante uma hora? Normalmente não temos clientes às segundas-feiras de manhã. Vamos tomar um chá enquanto me contas tudo.

- Guy... - novas lágrimas deslizaram pelas suas bochechas. - Eu ainda não consigo acreditar que o Jon partiu. Ele diz que é só uma separação temporária, que precisa de tempo para pensar. As crianças, todas as pessoas, pensam que... - mordeu o lábio. Todos pensam que é pelo David, pelo choque que sofreu com o ataque de coração do irmão e que está...

- Que está a atravessar uma crise de maturidade provocada pela doença de David - disse Guy. - Talvez seja mesmo assim.

Jenny negou com a cabeça.

- Já não sei... já não sei nada.

- Talvez seja só algo temporário - sentiu-se forçado a dizer. - Vocês estão casados há muitos anos e...

- Jon casou-se comigo porque foi forçado a fazê-lo, não porque me amava - interrompeu Jenny com voz tensa.

Guy olhou para ela de cima a baixo. Foi a primeira vez desde que se conheciam que Jenny mencionou a gravidez que tinha precipitado o seu casamento. Na época correram alguns rumores, claro. Ele nunca prestou muita atenção ao assunto e depois, devido ao facto de o bebé ter morrido logo após a nascença, ele pensou que a recordação era tão dolorosa que ela não queria falar no assunto. Nunca pusera em causa a felicidade do casamento.

- Talvez se tenham casado porque estavas à espera de um filho de Jon - afirmou. - Mas...

- Não - Jenny moveu a cabeça, com os olhos distantes enquanto contemplava não Guy mas, sim, o passado. - Não - continuou. - Não esperava um filho de Jon, mas de David.

Guy fez um esforço para não reflectir a sua perplexidade e para não fazer mais perguntas. Pegou na mão de Jenny, acariciou-a suavemente e disse calmamente:

- Vamos... Vamos tomar a tal chávena de chá. Seguiu-o com a docilidade de uma menina, observando como ele fechava a loja e a guiava pela rua abaixo.

Guy sabia perfeitamente onde pensava levá- la... ao único lugar onde poderiam desfrutar da privaci dade de que Jenny precisava, mas resolveu dar uma

volta. Gerações inteiras de Cookes tinham aprendido a valorizar o sigilo e a precaução para salvarem a pele. Naquele momento, não era sua a pele que estava em jogo, mas sim a reputação de Jenny. Haslewich continuava a ser uma cidade pequena e Jenny, ao estar separada do seu marido, encontrava-se numa situação vulnerável.

Notou como ela estava tensa enquanto percorriam o labirinto de ruas que os conduzia até à sua casa; mas Jenny permaneceu em silêncio.

- Nunca tinha estado na tua casa - comentou en quanto entrava.

- Não - reconheceu Guy.

Ele desejou saber como Jenny reagiria se lhe dissesse com que frequência a tinha imaginado ali, e não apenas na sala de estar do piso de baixo, mas também em cima, na velha e enorme cama antiga que praticamente ocupava todo o piso de cima. Quando a comprou, teve de partir as paredes dos pequenos quartos que existiam para não apenas acomodar a cama como também ter espaço para construir uma casa de banho.

Desde a sua pequena e arrumada cozinha, conseguia ver Jenny em pé, no centro da sala de estar, contemplando lentamente a decoração. Será que ela se apercebera do que lhe tinha revelado? Tinha tido intenção de dizê-lo ou...

A água estava a ferver. Féz o chá, serviu duas chávenas, colocou-as numa bandeja e levou tudo para a sala de estar.

- Agora - disse. - Senta-te e conta-me tudo.

- Já te contei - suspirou Jenny. - Jon deixou-me, está apaixonado por Tiggy.

- Onde vive ele agora? Com ela? - Guy franziu a testa ao tentar imaginar a reacção do velho Ben ao saber que Jon tinha usurpado o lugar do seu irmão na sua própria cama matrimonial.

- Não, não... Alugou uma casa... Ele continua a fingir e a dizer que não é por causa de Tiggy, mas eu sei - afirmou com ferocidade. - Sei que é apenas uma questão de tempo, que...

- E David? Ele sabe?

Jenny negou com a cabeça.

- Não, não acredito que ele saiba. A menos que Tiggy lhe tenha contado. Deixou o hospital, mas ainda não voltou para casa. Está numa clínica. O especialista era da opinião que ele precisava de descansar e evitar tensões e, claro, Tiggy concordou. Era de esperar, não? - acrescentou com amargura.

- Então não é só Jon que... Tiggy também sente o mesmo? - Guy odiou-se por ter formulado aquela pergunta ao ver a careta que Jenny fez e como ela mordia o lábio inferior.

- Sim - afirmou baixinho. - Sim... Parece estar tão apaixonada por Jon como ele por ela.

- Jen... - Guy fez uma pausa com delicadeza. Na loja disseste que... pelo menos, insinuaste que...

- Que quando Jon se casou comigo eu estava grávida de um filho de David - terminou com voz cansada. - Sim, é verdade. Foi isso que aconteceu - elevou a visão para o tecto, de forma a controlar as lágrimas que ameaçavam cair. Naquela manhã, a última coisa que tinha tido em mente quando saíra de casa era contar aquele segredo a Guy. Na realidade, estava com medo do seu regresso e desejara ardentemente que ele não voltasse. Ultimamente, adquirira uma habilidade especial para evitar as pessoas, para impedir que elas se aproximassem o suficiente para lhe fazerem perguntas ou oferecer consolo. Até tinha repudiado Olivia e Ruth.

Ela não queria consolo, apenas queria recuperar o seu marido e a vida de sempre. E, claro, não tinha tido intenção de falar com Guy sobre o filho de David. Começou a tremer ligeiramente. Ainda não sabia porque é que lhe tinha contado a verdade apesar de, depois da partida de Jon, já não fazer sentido manter o segredo. Era como se a culpa e a vergonha que tinha sofrido, tanto no dia do seu casamento como ao longo de todo o matrimónio, não por ter concebido um filho de David, mas por ter consentido que Jon sacrificasse a sua vida para a proteger a ela, ao bebé e, claro, a David, lhe tivesse surgido na cabeça naquela manhã como uma ferida infectada que estava a espalhar o seu veneno.

- O que foi? - perguntou ferozmente ao ver o modo como Guy a observava. - Surpreendi-te?

- Não, não é isso - negou Guy calmamente. - É que nunca pensei... Não és...

- Não sou o quê? Esse tipo de mulher? - sorriu Jenny com amargura. - Não, penso que não, mas isso não muda as coisas. David e eu já namorávamos há bastante tempo quando eu entendi que o que tinha pensado que era amor não era mais do que uma paixão estúpida de adolescente da minha parte e uma forma de passar o tempo antes de ir para a universidade por parte de David. Separámo-nos de uma forma civilizada, quando David foi para Oxford e eu voltei à escola - encolheu os ombros. - A minha mãe precisava de mim em casa para tomar conta dela, porque tínhamos descoberto que a doença dela era terminal. Jon e eu éramos... amigos, nada mais. Sim plesmente amigos. Quando eu descobri que estava grávida... - fez uma pausa e mordeu novamente o lábio.

- Contaste-Lhe porque era irmão de David?

- Sim, por causa disso - afirmou Jenny. - Apesar de ser estranho, acabou por ser Jon a dizer-me. Um dia desmaiei quando ele estava na minha fazenda. Nunca me passou pela cabeça que estava grávida, mas Jon adivinhou imediatamente. Quando sugeriu que nos casássemos, senti-me tão aliviada que concordei - olhou para Guy. - Eu sei que estás a pensar que eu sou uma pessoa egoísta, que usei Jon, que mereço perdê-lo agora...

- Não, não estou a pensar nada disso - garantiu Guy com determinação.

Quantos anos teria Jenny naquele tempo? Dezassete ou dezoito, no máximo; era uma jovem amedrontada cuja mãe estava a morrer e não tinha ninguém a quem recorrer.

- Sabia que Jon não me amava... Como poderia amar? Mas ele convenceu-me que era a coisa mais correcta, que a criança, o filho de David, tinha direito a ser educado entre os seus familiares. Disse aos pais que ele era o pai da criança, quando Ben tentou dissuadi-lo. Penso que... Sempre pensei que a mãe dele sabia a verdade, mas mesmo que assim fosse, ela nunca disse absolutamente nada. Sarah foi muito amável comigo desde o princípio e... - Jenny engoliu a saliva e reprimiu as lágrimas novamente. - A gravidez decorreu com tanta normalidade que eu não podia acreditar que o menino... - inspirou profundamente, com a garganta quase fechada por causa das lágrimas. - Disseram que o coração dele falhou, que...

Jenny teve de calar-se ao reviver aquela dor.

- Tudo foi em vão, entendes? - disse a Guy, triste.

- Em vão. Jon não tinha nenhum motivo para continuar casado comigo porque, afinal, não havia nenhum bebé.

- Jen, por favor, querida, não... - implorou Guy, incapaz de continuar a assistir ao seu sofrimento.

- Depois... Depois do funeral, ofereci a Jon a sua liberdade de volta, mas ele não quis e eu... - elevou a cabeça e olhou-o nos olhos. - Nessa altura, já me tinha apaixonado por ele. Ele era e é tudo aquilo que David nunca será e amava-o profundamente, mas ele nunca me correspondeu. Nunca me disse nada, mas eu sempre soube.

Guy não sabia o que dizer, não encontrava palavras para a consolar.

Jenny tinha terminado o chá. Contemplou a chávena vazia e disse em voz baixa:

- Temos de voltar para a loja. Já é quase hora de almoço.

Estava completamente marcada, percebeu enquanto caminhava para a porta sem parar para conferir se Guy a seguia. Sentia-se vazia, quase purificada, e estranhamente separada de si mesma, como se tivesse alcançado a habilidade de sair do seu corpo temporariamente... O seu coração deu um pequeno salto. Temporariamente... Que apropriado. Tudo na vida era, afinal, temporário. A vida era mesmo instável, passageira e nada segura.

 

David pegou no comando da televisão e sentou-se melhor no sofá. Devia estar a fazer mais exercício. O especialista tinha-o avisado no dia anterior quando foi até à clínica para conferir a evolução dele. Segundo ele, era aconselhável que os pacientes vítimas de ataques de coração não passassem muito tempo na cama, mesmo tendo sido um ataque tão grave como o de David.

O doutor Hayes hesitara um pouco quando David lhe pediu que o transferisse para uma clínica em vez de voltar para a sua casa directamente mas, finalmente, David acabou por convencê-lo.

- Conseguiu escapar por uma unha negra disse-lhe o especialista.

Conseguido escapar... Oxalá fosse assim. Ele dera-lhe tempo para respirar, nada mais. Cedo ou tarde, começariam a pedir-lhe explicações. Naquela altura, Jon já deveria ter descoberto as suas manobras. Quase teria sido melhor não ter sobrevivido, pensou. Levantou-se do sofá e caminhou até à janela. A clínica estava rodeada por jardins imaculados e caminhos suficientemente largos para uma cadeira de rodas.

Tiggy fora vê-lo naquela manhã mas David fingiu estar a dormir. Não tinha demorado muito tempo a ir-se embora, graças a Deus. A desvantagem principal da sua vida actual é que tinha demasiado tempo para pensar, e tomara uma decisão implacável: fosse qual fosse o resultado da confusão financeira na qual se tinha metido, não podia continuar a viver com Tiggy. Por acaso ninguém se apercebia das cargas que ele suportava, do modo como tinham controlado a vida dele? O seu pai, o seu irmão, Tiggy... com as suas expectativas e exigências.

Ben sufocara-o com uma mistura intolerável de ressentimento e culpa, silenciara-o com o peso implacável do amor dele, da determinação em que ele fosse tudo aquilo que ele não pudera ser. Meu Deus", tremeu ao pensar no que eles se tinham sacrificado para lhe conceder todo o tipo de prémios e recompensas sempre que ele ficara a desempenhar o papel que seu pai criara para ele.

Mas ele não era o gémeo do seu pai, que morrera. Não era o seu avô. Se tivesse tido oportunidade de escolher, a última profissão que escolheria seria a de advogado. No fundo, no fundo da sua alma, se tal existisse, sentia um desejo, um intenso anseio por desafios e mudanças, por horizontes ilimitados, por aventuras e até mesmo por perigo.

Durante os dias que passara na cama sob o efeito de medicamentos, tinha sonhado com rios grandes a atravessarem a selva tropical, tinha-se imaginado a descer rios perigosos e raivosos quase até ao limiar da morte... a aventura definitiva. Então, compreen deu que não podia continuar a viver assim.

E Jon... Jon, com o seu olhar atento e sereno, com a sua lealdade. Deveria ter sido ele o eleito. Devia ter sido assim... Jon que, desde criança, o protegera e su portara os castigos por muitas das suas asneiras. Jon,

a quem por vezes odiava por tanta generosidade para com ele e por quem sentia inveja por ele não ser o filho favorito do pai. Jon também era um peso, uma recordação viva das suas próprias fraquezas e debilidades, de tudo o que ele jamais poderia chegar a ser.

E por último Tiggy, a sua mulher. Ela era a carga mais pesada. Não poderia viver novamente com ela. Não podia voltar à sua vida de sempre. Nem pensar.

- Ainda não houve mais notícias dos contabilistas da Jemima Harding? - perguntou Olivia a Jon, semanas depois de ter descoberto as acções desonrosas de seu pai.

- Ainda não. Cancelaram a primeira reunião e, aparentemente, o sócio que trata dos assuntos de Je mima está de férias. Ontem fui até ao lar vê-la. Não

se encontra nada bem - contou Jon com um tom sombrio.

- Que se vai passar se... quando ela morrer? - perguntou Olivia com preocupação. Mas já sabia a resposta à sua própria pergunta. - O meu pai... O meu pai já lhe contou alguma coisa sobre...

Novamente, Jon negou com a cabeça. Para Olivia era incompreensível que o seu pai continuasse a manter-se de boca fechada. Sem dúvida, ele deveria imaginar que as acções fraudulentasì e o roubo já tinham sido descobertos.

Olivia contemplou o seu tio enquanto este revia o correio. Quando descobriu que Jenny e ele tinham decidido separar-se, ficou estupefacta. Eles sempre tinham parecido tão felizes... Ela estava incomodamente atenta ao facto de a sua mãe começar a apoiar-se em Jon e a depender dele desde o ataque de coração do seu pai e esperou que...

Até ao momento, que ela soubesse, não se voltara a repetir nenhuma das orgias alimentares da sua mãe. Talvez tivesse sido apenas um caso pontual e ela não tivesse realmente motivos para se preocupar.

Jon tinha um julgamento em Chester com um dos seus clientes e Olivia ficara inquieta ao ouvir a sua mãe dizer que planeava ir com Jon, para fazer algumas compras.

Saul tinha voltado para Pembrokeshire, mas manteve-se em contacto e telefonava-lhe quase diariamente. Eram chamadas alegres e divertidas, em que falavam acerca do problema que ele estava a ter para encontrar uma ama adequada para as crianças.

- Parece-me que não eras capaz de ter pena de mim e vir salvar-me - brincou numa ocasião.

- Claro que não - recusou Olivia.

- Ah, então também já ouviste essas histórias, verdade?

- Que histórias? - perguntou Olivia com curiosidade.

- Já sabes, essas em que o pai sempre se apaixona pela ama - respondeu, com um tom malandro.

Cuidado", pensou Olivia quando terminaram a conversa. Seria muito perigoso ressuscitar a sua fantasia de adolescente com Saul, usá-lo para curar as feridas e preencher o vazio que sentia.

Não tinha tido notícias de Caspar e, embora não as esperasse, por absurdo que parecesse, o seu coração

batia mais depressa sempre que o telefone tocava. Mas, mesmo que ele a contactasse, de que serviria? Ela tinha poucas possibilidades de obter uma permissão de trabalho nos Estados Unidos, ou até mesmo um visto, ainda para mais agora que o seu pai estava em vias de se tornar num criminoso.

Num mundo em que a intervenção humana era um factor decisivo, era surpreendente descobrir que o destino, a natureza, a sorte ou o azar ainda tinham um efeito devastador e inesperado nas vidas das pessoas.

- Que tal sentires um bocadinho de pena de mim e jantares comigo hoje à noite?

- Saul... Como é que eu posso jantar contigo?perguntou Olívia, que riu ao atender o telefone e ouvir a voz do seu primo. - Tu estás...

- Não - interrompeu-a suavemente. - Estou aqui, em Haslewich. Bom, quase...

Olivia sentiu o afecto na voz dele e foi apanhada por uma intensa desolação e solidão.

- Que... Que fazes aqui? - perguntou com a voz rouca. - Pensava que...

- Negócios. Tenho uma reunião em Chester amanhã de manhã. Vou passar a noite no Grosvenor. Podia passar para te apanhar e...

- Não, não... Eu vou ter contigo a Chester - respondeu Olivia. Apetecia-lhe sair um bocado. Há já muitas noites que pensava nos seus mil problemas que não tinham solução.

- Boa menina - disse Saul em voz baixa. Quando virás?

O Grosvenor ficava mesmo no centro de Chester. O porteiro recebeu-a com um sorriso e um olhar passageiro de admiração. Olivia entrou no salão de entrada e viu Saul em pé, à sua espera.

Estava perigosamente atraente com o seu elegante fato escuro, e Olivia notou que ele a olhava como que a avaliá-la enquanto a cumprimentava. O seu batimento cardíaco acelerou de um modo traiçoeiro, enquanto o seu próprio corpo notava o interesse de Saul e respondia a ele.

- Hum... Dá vontade de comer-te - disse Saul, que não prestou atenção à intenção de Olivia de manter-se a uma certa distância e inclinou a cabeça para a beijar nos lábios. - Tenho tanta vontade - murmurou enquanto elevava a cabeça. - Que...

- Saul - repreendeu-o Olivia.

- Está bem - disse, a rir-se. - Mas não me podes culpar por tentar. Gosto do teu vestido, a propósito - comentou. - O preto fica-te bem. Tiveste notícias de

Caspar?

Olivia negou com a cabeça.

- E tu? Soubeste alguma coisa de Hillary?

- Fui contactado pelos advogados dela - respondeu com ironia. - Eu diria que está muito ansiosa por se divorciar. Gostava de saber porquê. Provavelmente já encontrou a próxima vítima.

O coração de Olivia começou a bater com força. Saberia Saul alguma coisa sobre Hillary e Caspar? - Saul... - começou a dizer, mas antes que conseguisse terminar, Saul já estava inclinado para ela a sussurrar:

- Tens os lábios um pouco borrados.

- E de quem é a culpa? - perguntou Olivia com indignação. - Agora vou ter de ir à casa de banho para me retocar.

- Tenho uma ideia melhor... - enquanto lhe apertava o lábio inferior suavemente com o polegar e olhava directamente nos seus olhos, Olivia viu neles a mensagem inequívoca do desejo; inspirou profundamente e deu um passo atrás, decidida.

Sentia-se como se tivesse bebido um copo de champanhe de um único gole e, como resultado, estava um pouco tonta. A expectativa, juntamente com a atracção sensual e sexual, espalhava-se suavemente por todo o seu corpo, e teve a tentação de deixar de lado as preocupações e comportar- se de um modo irracional, até mesmo irresponsável. Imaginou a sensação do calor dos braços de Saul em volta dela, o contacto íntimo dos lábios dele nos seus, a pressão forte e masculina do corpo dele...

Tem cuidado, tentou prevenir-se. Saul é da família, é um parente, um amigo... não um possível amante". Tinha ido a Chester com a única intenção de jantar com ele e de conversar. Nada mais, recordou com determinação. Nada mais.

- Quase não tocaste na comida. Queres que peça outra coisa?

Jenny negou com a cabeça e olhou com uma expressão de desculpa o empregado que se aproximou para recolher os pratos, o dela quase intacto e o de Guy completamente vazio.

- É que eu não tenho muita fome - reconheceu. Eu jantei com as crianças antes de vir - mentiu.

Ainda não sabia o que estava a fazer com Guy no restaurante de luxo de Knutsford, quando podia estar em casa a passar a ferro e quando, afinal de contas, eles passavam o dia quase todo juntos. Apenas sabia que, quando Guy lhe tinha telefonado e convidado para jantar, por alguma razão e sem ter tempo para pensar, tinha aceite.

Por alguma razão... ela estava a tentar evitar a verdade. Sabia o que a tinha levado a aceitar o convite de Guy. Tinha sido Olivia que a tinha informado, de modo inocente, que Jon tinha ido para Chester com a sua mãe. Lágrimas ardentes inundaram-lhe os olhos. Muitas vezes ao longo dos anos tinha sofrido sabendo que, apesar de leal, atento e compassivo, Jon não conseguia amá-la. No entanto, era a primeira vez que todo o seu corpo reflectia a agonia emocional por tê-lo perdido e os ciúmes amargos que sentia de Tiggy. Conhecendo Jon como conhecia, sabia que devia ser muito doloroso para ele ter-se apaixonado pela mulher do seu irmão.

Sim, tinha visto os olhares de piedade pouco sincera que as pessoas lhe lançavam na rua, mas o mais irritante e humilhante de tudo era ver como algumas mulheres, que antes considerava amigas, faziam tudo

para evitá-la, como se o abandono do seu marido fosse uma doença contagiosa que ela pudesse transmitir aos outros. E nem mesmo a Ruth pudera confiar o seu sentimento de fracasso e de desespero. Era como se sempre tivesse sabido que aquilo aconteceria algunì dia, que Jon acabaria por perceber que perdera a sua vida a protegê-la a ela. Não, a ela não, corrigiu, mas sim para proteger David.

Jon contemplou o jardim na escuridão desde o largo alpendre da casa que tinha alugado. A casa estava em silêncio, num silêncio quase sufocante, sem o alvoroço e o barulho a que estava habituado. Tinha graça! Se Lhe tìvessem perguntado antes, ele teria dito que o barulho era o que menos falta lhe faria. E ali estava ele, a desejar ouvir as crianças a baterem palmas enquanto desciam e subiam as escadas ruidosamente, fazendo barulho, gritando, pondo música em altos berros e discutindo a plenos pulmões. E, por cima de toda aquela confusão, a voz macia, quente e reconfortante de Jenny.

Jenny... Fechou os olhos e apoiou a testa no copo. Ainda se lembrava do olhar de perplexidade e incredulidade dela na noite em que lhe contara que ia sair de casa; ainda ouvia a dor na voz dela. Mas, mesmo sabendo que a tinha ferido profundamente, Jon tinha encontrado uma solução para satisfazer as suas próprias necessidades pela primeira vez na vida.

Tinha visto Louise algumas horas antes, naquela mesma tarde, em Haslewich, mas, ao vê-lo, a sua filha atravessou para o outro lado da rua e recusou-se até a olhar para ele. Isso acontecera depois de voltar de Chester.

Chester. Soltou um pequeno gemido quando pensou no que aconteceu naquele mesmo dia.

Tinha sido ideia sua convidar Tiggy para almoçar no restaurante do Grosvenor e, naquele momento, sentiu vergonha ao reconhecer que tinha gostado de ver os olhares de inveja dos outros homens ao entrar com ela pelo braço. Estar com Tiggy fazia-o sentir-se diferente, como se fosse a pessoa que sempre acreditara poder ser mas que nunca Lhe tinham permitido ser; um Jon diferente, não o Jon bom, humilde e merecedor de confiança, mas o Jon que sempre estaria acompanhado por uma mulher como Tiggy, o Jon que almoçaria em locais como o restaurante do Grosvenor em vez de comer uma sandes no seu escritório.

Que tolo tinha sido ao criar uma imagem fantasiosa de si mesmo que, afinal, não seria capaz de manter... de modo nenhum.

Tiggy apenas comeu um bocado porque, segundo dissera, não tinha fome, mas bebeu vários copos de vinho e, sem dúvida, essa tinha sido a razão pela qual depois do almoço ela lhe tinha proposto que, em vez de ela ficar nas compras e ele ir para o tribunal, o melhor era passarem o resto do dia juntos.

No princípio, Jon não suspeitou das suas intenções. Só quando Tiggy brincou, afirmando que eles nem precisavam de um nome falso-porque eram o senhor e a senhora Crighton, é que percebeu o que Tiggy queria fazer. E que faria agora depois de ter estado semanas a comportar-se como um adolescente apaixonado, insistindo em que a sua decisão de deixar Jenny não tinha nada a ver com Tiggy? Por acaso aproveitaria a oportunidade que Tiggy lhe estava a dar de consumar o seu amor por ela?

Não, de forma nenhuma. Gemeu novamente. Ainda não conseguia acreditar em como tinha sido covarde e patético.

O seu corpo, em vez de ficar inflamado de paixão, sucumbiu a um terror incontrolável e, pior ainda, até mesmo aquela parte que deveria estar cheia de excitação sexual sucumbiu. Para tornar a situação pior, ele começou a dizer tolices sobre a impossibilidade de fazer algo assim, e inventou desculpas atrás de desculpas enquanto Tiggy se limitava a escutá-lo e a observá-lo com incredulidade. E em relação às suas emoções?!

Jon abriu os olhos e afastou-se da janela. Aquele tinha sido o golpe mais duro porque, em vez de sentir uma onda de prazer e excitação, de amor e de encantamento, ao ouvir a sugestão de Tiggy, apenas sentiu uma onda de nojo e choque, e percebeu com clareza total que a última coisa que queria era fazer amor com Tiggy e que o único corpo que desejava era o da sua mulher.

Nos lúcidos seis ou sete segundos que tinha demorado a assimilar aquelas revelações, ficara tão chocado e distraído que nem se preocupara em como Tiggy se estava a sentir.

Na realidade, não podia culpá-la pela cena que fizera ou pelas acusações que lhe tinha lançado, e nem mesmo por se ter recusado voltar a Haslewich com ele. Jon fez uma careta. Não percebia por que raios se tinha sentido pelo menos remotamente atraído por ela.

Que diabos tinha feito, e porquê? Finalmente, soube a resposta.

Durante anos tinha tido ciúmes de David por ser sempre o segundo. Ele tinha sido um idiota, um perfeito idiota, e naquele momento daria qualquer coisa para poder apagar as últimas semanas, pegar no carro e voltar para casa. Voltar a viver com Jenny e com as crianças... viver com Jenny. Fixou o olhar no telefone e franziu a testa ao ver que estava a começar a tocar.

- Tio Jon?

- Sim, Jack? - cumprimentou o filho de David e Tiggy.

- É a mãe. Pode vir cá a casa? Não... não está muito bem.

- Jack, o que aconteceu? O que se passa? - perguntou, mas o seu sobrinho já tinha desligado.

Imediatamente, pegou nas chaves do carro e saiu pela porta.

Guy estava a ponto de perguntar a Jenny se ela queria um licor, quando ela levantou-se com rudeza e disse-Lhe:

- Guy, lamento, mas... Quero ir para casa. Ao princípio, pensou que Jenny não se estava a sentir bem e chamou imediatamente o empregado, levantando-se. Enquanto saíam, Jenny não conseguia olhar para os olhos dele, ao caminharem a passos largos para o carro. Sentia-se muito culpada, mas não tanto como se teria sentido se tivesse passado mais tempo com ele.

- Jenny, o que se passa? Estás bem? - perguntou Guy com preocupação, enquanto lhe abria a porta.

- Estou bem, a sério - disse. - É que... é que isto não está bem. Para mim, não. Lamento, Guy - desculpou-se. - Eu sei que estás a tentar ajudar, mas...

Como poderia explicar-lhe que tudo aquilo era estranho para ela, o vazio e a esterilidade que sentia perto dele e não de Jon? Por muito solitária que se tornasse nos próximos anos, a solidão era muito mais preferível do que tentar preencher o vazio que sentia com outro homem, apesar de ser um homem tão amável e bondoso como Guy.

- Acho que... que sou mulher de um único homem - disse, e tentou forçar um sorriso, mas deduziu pela expressão de Guy que não o conseguira enganar. Lamento - repetiu, girou a cabeça à procura da janela.

Guy gemeu para dentro e desejou poder responder: Mais lamento eu", mas fez um esforço para reprimir a amargura e a frustração. Não era assim que imaginara que aquela noite terminaria.

Em Chester, Olivia e Saul tinham terminado de jantar. O restaurante estava quase vazio; só estavam

eles e outro casal que saboreava um licor, sem vontade de pôr fim àquela noite.

- Não, não acredito - disse Olivia, e moveu a cabeça em sinal negativo, enquanto Saul terminava de contar uma história divertida sobre uns clientes estrangeiros da empresa dele.

- É verdade - respondeu, ainda a rir. - Ah, quase me esquecia. Tenho algumas fotografias para Ruth no meu quarto. Tinha-lhe prometido. Algumas são das crianças e outras dos arranjos florais da festa. Podes entregá-las?

- Sim, claro que sim - consentiu Olivia. - Parece-me que os empregados estão à espera que nos vamos embora, Saul - disse, em sinal de advertência.

- Já não está mais ninguém a jantar.

- O quê... - Saul olhou à sua volta e moveu a cabeça com incredulidade. - Não pensei que fosse tão tarde - reconheceu enquanto ambos se levantavam.

Uma vez fora do restaurante, dirigiram-se para os elevadores.

- Nunca me senti bem dentro destes caixotes - admitiu Olivia quando as portas se fecharam e o elevador começou a subir.

- Sim... Percebo-te - disse Saul. - Mas claro que não me importaria de ficar aqui preso contigo, Livvy - brincou.

Ambos desataram a rir, enquanto o elevador parou suavemente no piso do quarto de Saul.

- É por aqui - indicou quando saíram e ele tirou a chave do bolso quando chegaram à porta do quarto. Depois de abri-la, deixou Olivia passar. O quarto era espaçoso e estava decorado com elegância, mas claro, Olivia não teria esperado menos do Grosvenor.

As cores e os motivos tinham sido cuidadosamente escolhidos para o tornar quente e acolhedor; a cama de casal já estava desfeita; observou. Ao vê-la, teve de reprimir um bocejo.

- Cansada? - perguntou Saul. - Estas últimas semanas devem ter sido muito duras para ti.

O seu afecto e compreensão eram tão diferentes da atitude de Caspar... Porque é que Caspar não podia ter sido igualmente compreensivo?

- Livvy... - ouviu Saul perguntar. Olivia moveu a cabeça e disse-Lhe:

- Está a ficar tarde, tenho de ir. Se me deres as fotografias...

- As fotografias? Sim, claro. Deixa ver... Onde é que as pus? - murmurou Saul, enquanto foi até à cómoda e abriu a primeira gaveta.

Tinha tirado o casaco ao entrar no quarto e, enquanto o observava, Olivia pensou perigosamente no homem que ele era, no quanto as suas costas eram musculadas por debaixo da fina camisa branca.

- Onde é que as terei deixado? - murmurou novamente Saúl, ao fechar a gaveta. - Já sei - anunciou com uma atitude triunfante, e estalou os dedos antes de dar uma volta.

Esquecendo que a cama estava exactamente atrás, Olivia retrocedeu, tropeçou nas franjas do tapete e caiu.

- Cuidado - advertiu Saul, mas quando os dedos dele agarraram de forma protectora o antebraço de Olivia, a expressão dele mudou, e a alegria desapareceu do seu olhar ao ser substituída por um intenso desejo, que a fez tremer.

- Saul... - preveniu-o, com voz trémula.

Olivia ouvia as batidas fortes do seu próprio coração. As suas pernas estavam quase a fraquejar quando viu como Saul olhava para os seus lábios.

- Saul, não - protestou com a voz rouca.

- Não resistas, Livvy - disse-lhe suavemente. – É o que ambos desejamos, o que ambos necessitamos.

- Não - respondeu Olivia. - Só dizes isso porque... pelo que aconteceu, porque eu estou aqui.

E Saul continuou a agarrá-la, aproximando-se cada vez mais, e ela não se opôs.

- Livvy, tu sabes que... - então, interrompeu a frase e nos seus olhos surgiu um desejo feroz; tomou a face dela entre as suas mãos. - Devia ter feito isto há anos - murmurou, enquanto afundava os dedos no cabelo de Olivia e ela sentia o seu hálito quente próximo da boca. - Aquela noite, quando eu te vi no rio.

Nessa altura, não terias dito que não, verdade, Livvy?

- Não, por favor - protestou novamente, mas já era muito tarde. Os lábios de Saul já se estavam a mover contra os seus e Olivia estava a responder ao beijo. Desejava tanto aquele tipo de proximidade, de intimidade física, agradava-lhe tanto... Era agradável

ser abraçada, acariciada, beijada... e desejada.

Fechou os olhos e abraçou-o com força, enquanto saboreava o seu calor. Começou a tirar-lhe a camisa com mãos impacientes. O corpo dele era forte e quente. Ouviu-o gemer, sentia a vibração do gemido no seu peito, enquanto lhe tocava. A pele do seu corpo era sedosa, suave e...

Franziu a testa, porque um pensamento errante estava a tentar intrometer-se entre o tremor de prazer sensual que estava a experimentar. Sentia as mãos de Saul no seu corpo, tocando-a com firmeza e, ao mesmo tempo, com hesitação, como se precisasse de obter uma confirmação física de que as suas carícias estavam a ser bem recebidas.

Olivia deu-lhe essa confirmação. Suspirou suavemente e voltou-se ligeiramente, de forma a que a mão de Saul descansasse nos seus seios. Foi tudo o que Saul precisou para começar a beijar-lhe o pescoço e o ombro, enquanto lhe tirava o vestido, deixava os seus seios visíveis e começava a acariciá-los com as mãos. Saul não lhe estava a exigir nada, não a estava a obrigar a nada, estava a dar, sem esperar receber.

- Livvy. - ouviu-o dizer próximo dos seus seios.

- Não sabes o quanto eu quis fazer isto... o quanto te desejei.

Olivia estava a tremer com força, tanto pela emoção como pelo desejo. Flutuava numa nuvem de prazer; sentia-se desejada. Saul acariciou-lhe o mamilo com o polegar e ela tremeu ostensivamente.

- Olivia...

Ao olhar para ele, viu como o desejo Lhe tinha dilatado as pupilas dos olhos. A sua expressão habitual desaparecera e tinha a pele ligeiramente corada e quente. Saul enterrou o rosto entre os seus seios e começou a beijar o macio vale que existia entre eles.

Não parava de beijá-la, de saboreá-la, de falar com ela, de dizer-lhe com a voz embargada pelo desejo o quão bonita ela era. Para Olivia era impossível permanecer imune àquele desejo... Saul sentia a sua excitação, viu a forma como os mamilos dela ficaram duros e se enchiam de um modo provocante, convidando as carícias dos lábios e da língua de Saul.

Saul tinha desabotoado a camisa e com a outra mão estava a lutar contra o cinto.

- Ajuda-me - implorou a Olivia com voz rouca. Despe-me, Olivia...

Olivia deixou que Saul lhe pegasse na mão e pegou no seu cinto, com os dedos a tremer ao ouvir como ele inspirava e tremia, ao sentir o contacto dos dedos dela na pele nua sobre a fivela.

Olivia tirou-lhe o cinto com destreza. Saul tinha o ventre firme e liso, e o tacto dos seus pêlos excitaram-na enquanto o acariciava. Fechou os olhos e elevou a face até ele. Ultimamente, sentia-se tão cercada

pelos problemas... era agradável sentir-se daquela forma, desejada, e a hostilidade e a raiva foram substituídas por risos e afecto.

Deixou os seus pensamentos viajarem enquanto ele continuava a beijá-la, e tentou esquecer-se de tudo além do prazer que partilhavam mas, no fundo do seu ser, uma vozinha melancólica não se silenciava.

Algo não estava bem. Sim, a sua pele, o seu corpo, os seus sentidos respondiam a Saul, agradeciam a sensualidade das suas carícias. Em parte, desfrutava do calor e do desejo que viu nos olhos dele, mas algo não estava completamente bem. Faltava alguma coisa e, enquanto tentava responder com paixão ao beijo dele, Olivia entendeu o que era.

- Caspar.

Ela não percebeu que tinha pronunciado o nome dele até que viu que Saul se afastava suavemente, mas com determinação, e não a olhava com paixão, mas sim com tristeza.

- Eu... Lamento - balbuciou Olivia. - Eu não pensei... Não queria...

- Não faz mal, Olivia - tranquilizou-a Saul suavemente. - Eu percebo - olhou ainda fugazmente para os seus seios nus, antes de soltá-la e cobri-la novamente com muito afecto. Quando terminou, olhou directamente para os seus olhos e sorriu. - Não faz mal - repetiu com ênfase. - Eu entendo.

- Não queria... É que...

- Eu sei, eu sei - consolou-a. - Mas isto não fez com que eu perdesse as ilusões - acrescentou com tristeza. Tocou-lhe ligeiramente na face com as pontas dos dedos e começou a vestir a camisa.

- Não devia... - começou a dizer Olivia, que se sentia cada vez mais culpada. Saul estava a ser muito querido e amável. Se tivesse algum bom senso, esqueceria Caspar e...

Pelo que parecia, não possuía aquela qualidade admirável, porque a pessoa que mais desejava no mundo era. Caspar.

- Não, eu é que não devia - ouviu Saul dizer enquanto Lhe pegava nas mãos. - Digamos que isto - passeou o olhar pelo quarto. - Foi o resultado de um vinho muito bom e de um pouco de ilusões... pelo menos, para mim - em seguida, inclinou-se para ela e deu-lhe um beijo na bochecha. - E agora, deixa ver... Onde é que eu pus as fotografias?

- Oh, Max...

Max fez uma careta de impaciência ao ouvir a voz entusiasmada de Madeleine e sentir o calor das lágrimas dela na sua pele. Se havia algo que odiava imensamente era que as mulheres chorassem depois do orgasmo. Devia ter imaginado que Madeleine era uma dessas, da mesma forma que tinha imaginado que ela seria inexperiente, por sorte, demasiado inexperiente para não se aperceber de como o seu desejo por ela era artificial. Ao contrário da sua companheira de casa, Claudine... Ela sim teria percebido e, sem dúvida, não teria chorado.

Reprimiu o pensamento com irritação. Nunca se tinha sentido atraído pelas morenas e, certamente, não por morenas como Claudine. Estava demasiado segura de si mesma, muito...

- Oh, Max... Oxalá pudéssemos estar sempre juntos...

Max ficou tenso; aquela era a deixa que precisava, a oportunidade pela qual tinha estado à espera e para a qual tinha trabalhado.

- Oxalá - mentiu com destreza, e estendeu a mão para secar-lhe as lágrimas, num gesto de ternura fingida, enquanto lhe dedicou o seu sorriso de crocodilo. - Mas já sabes a situação. Não sou... Quase que não consigo manter-me sozinho, quanto mais com outra pessoa.

Notou como o coração de Madeleine batia mais forte, de um modo traiçoeiro, e sentia como o seu próprio corpo começava a relaxar-se com a sensação de vitória. Tinha sido tão simples... Muito mais simples do que tinha previsto. Quase aborrecido. Madeleine tinha engolido cada uma das mentiras que tinha tido o cinismo de inventar e olhava para ele com os olhos muito abertos, como que a adòrá-lo, enquanto ele abria caminho de modo implacável na sua vida e no seu coração.

Antes de conhecê-la, não tivera nenhuma ideia clara de como alcançar o seu objectivo, mas assim que a viu... era muito influenciável e maleável, e o desprezo que sentia por ela tinha-se expandido aos seus pais, principalmente ao senhor Browne. Eles realmente acreditavam que a filha podia ser advogada? Sim, tivera a formação necessária, mas não era possível imaginá-la a falar num tribunal; nem mesmo a defender um caso, nem que fosse de direito fiscal... E mesmo assim, só por ser quem era, ou melhor, por o seu pai ser quem era, ela tinha poder para ficar com a vaga, se assim quisesse.

Astutamente, Max tinha fingido ignorar a identidade do seu rival em relação à vaga, ao mesmo tempo que reconheceu abertamente e com charme que a vaga era realmente importante para ele. Como era de esperar, Madeleine tinha ficado nervosa e vermelha como um tomate, e perguntara-lhe mesmo se não podia ascender a sócio noutro escritório. Max sentira-se tentado a falar-lhe com rudeza, mas conseguira controlar-se. Teria a oportunidade de dizer-lhe tudo o que queria quando a vaga fosse dele.

- Bom, haverá sempre uma vaga para mim em Chester - mentiu com facilidade.

Na realidade, o orgulho de Ben nunca lhe permitiria aceitar qualquer favor do outro lado da família, que vivia em Chester, nem mesmo para o seu neto favorito. Ah, não! Para Max nunca seria suficiente poder ser comparado com os primos de Chester, pois deveria superá-los. Mas Maddy, claro, não sabia nada disto nem de muitos outros aspectos da vida dele... e nunca saberia.

- Chester? - perguntou Maddy com preocupação.

- Mas isso significaria que terias de viver lá e...

- E o quê? - brincou Max, antes de começar a beijá-la continuamente, até que os protestos dela o detiveram.

Sim, tinha lançado o anzol com muito cuidado e aquela noite tinha caçado a presa. Não deixara nada ao acaso, nem o champanhe que tinha posto no frigorífico antes de partir para ir buscá-la para o jantar, nem os lençóis limpos e passados que pedira à empregada para colocar nem as flores que comprara para o quarto.

- Hum... - murmurou Max, enquanto lhe mordis cava a orelha suavemente. - Eu não estou muito ansioso por conhecer o teu pai. Não terá grande impressão de mim como futuro genro, não achas? Pelo menos agora, que nem tenho um emprego decente...

Notou como ela estava imóvel nos seus braços e, quando elevou a cabeça para a olhar nos olhos, a mistura de esperança, incredulidade e adoração que viu neles fê-lo sorrir com alegria.

- Oh, Max... - sussurrou Madeleine. - Não sabia... Não pensava... Oh, Max, amo-te tanto... - abraçou-o com força. - O pai ficará encantado contigo - sussurrou novamente, com voz trémula. - Da mesma forma que eu. E quanto a não teres um trabalho decente...

- Sim... - disse Max, entre beijos. - Podemos viver de amor, é o que queres dizer?

Madeleine sorriu.

- Bom... Eu tenho... Eu tenho algum dinheiro - disse com timidez. - E...

- Não - respondeu Max com ferocidade, mas amoleceu a voz e a pressão das mãos ao ver o choque dela. - Não, amor, eu não sou o tipo de homem capaz de viver às custas de uma mulher. Eu sei que é um bocado machista e antiquado da minha parte mas, enfim, é assim que eu sou.

- Oh, Max... não sabes o quanto eu te amo - suspirou Madeleine. - Não te preocupes em relação à vaga - tranquilizou-o, e dedicou-lhe um sorriso feliz e misterioso. - Eu sei que tudo correrá bem... - os olhos dela brilharam de felicidade enquanto elevou a face para ele. - Por isso, por favor, pára de te preocupar e beija-me.

- Jack, que aconteceu? Onde está a tua mãe?perguntou Jon com preocupação quando o seu sobrinho abriu a porta. Tinha ido para a casa de David e Tiggy, assim que recebeu a chamada de Jack, com o estômago revolvido pela preocupação e pelos remorsos.

- Está... Está na cozinha - respondeu Jack com tristeza, mas, enquanto Jon avançava para a porta fechada da cozinha, notou que o seu sobrinho estava parado, como se estivesse relutante em acompanhá-lo.

Não imaginava o que o esperava atrás da porta mas, certamente, aquela não era a cena que ele esperava encontrar.

Tiggy estava sentada no meio da cozinha, cercada pelo que parecia ser o conteúdo de um caixote de lixo. Vestia uma camisa de dormir justa e transparente, através da qual poderia olhar brevemente para o corpo dela, mas era impossível fazê-lo porque a camisa estava manchada de comida. Era evidente que em algum momento da noite ela tinha vomitado; conseguia cheirar o odor nauseabundo do vómito, o que fez com que ele próprio sentisse náuseas.

- Tigy.

Quando pronunciou o nome dela, Tiggy fixou a visão nele, mas não deu sinais de o reconhecer. Tinha o olhar perdido, como se fosse um animal. Enquanto Jon a observava com mais atenção, reparou que ela não tinha apenas a roupa manchada de comida mas também o cabelo e a face. De comida e também de restos de vómito.

Tinha o estômago às voltas e teve de cerrar os dentes para reprimir as próprias náuseas. Enquanto olhava para aquele cenário, incapaz de compreender o que estava a ver, ela começou a afastar-se e a encolher-se... como um animal amedrontado. Não parou de olhar para ele enquanto esticou uma mão, como se fosse uma garra, para pegar num pedaço de bolo já trincado:

Para grande surpresa de Jon, meteu o bolo dentro da boca sem sequer olhar, como uma criatura selvagem.

Meu Deus... O que estava a acontecer? O que estava ela a fazer a si mesma? Instintivamente, soube que não era um incidente isolado, uma única situação às pressões externas ou aos nervos originados pelo ataque de coração de David. Pela segunda vez na vida, soube o que era sentir piedade pelo seu irmão.

A primeira vez acontecera na noite em que Harry nasceu, quando ele teve o privilégio de testemunhar o milagre do nascimento e todo o seu ser se encheu de amor e carinho perante aquela criatura indefesa e minúscula que nascera há pouco. Apesar de naquele momento ter sentido piedade pelo irmão, não sentira tanto como naquele dia.

- Tiggy!

- Não serve de nada. Ela não consegue ouvi-lo... Nunca consegue quando fica deste modo.

Ao ouvir o sobrinho, deu meia volta. Meu Deus, nenhum menino deveria testemunhar aquele horror e, porém, Jack parecia sereno, maduro.

- Tiggy... - tentou outra vez, mas ela já estava a comer outra coisa e recusava-se a olhar para ele.

- Daqui a pouco terá comido tudo - disse Jack com indiferença. - E... E então ficará bem. A menos que... - fez uma pausa e olhou para Jon. - Às vezes, não é o suficiente e tem de comer mais, e então...

Jon viu como a face do menino começava a enrugar. Automaticamente, abraçou-o e embalou-o. Meu Deus, estava tão magro... Muito mais magro do que Joss.

Havia mais de cem perguntas que queria formular, mais de cem detalhes que precisava de saber. Não fazia ideia de como abordar aquela situação. Pelo canto do olho, viu Tiggy a rastejar pelo chão. Naquele momento, tinha uma faca na mão. O seu coração começou a bater mais depressa.

Quanto daquilo era culpa sua, obra sua? Quanto tinha contribuído para precipitar Tiggy para o abismo escuro no qual ela habitava? Não podia aguentar aquilo sozinho. Precisava de ajuda... Precisava...

Com o braço à volta dos ombros de Jack, levou-o para fora da cozinha. No corredor, pegou no telefone e marcou um número.

- Para quem está a ligar? - perguntou Jack com preocupação. Jon abraçou-o enquanto ouviu a voz familiar do outro lado da linha.

- Jenny - disse com voz rouca antes de fazer uma pausa para clarear a garganta. - Jenny, sou eu, Jon.

Ao ouvir a voz do seu marido, Jenny fechou os olhos e apoiou-se na parede. Teve de fazer um esforço para não chorar.

- Jon, sim - respondeu. - O que aconteceu? - Eu estou em casa de David e de Tiggy - disse Jon. Ouviu como ela susteve a respiração e apressou-se a tranquilizá- la. - Não, Jen. Por favor, não desligues. Não é... não é aquilo que pensas, Jenny.

Por favor, escuta-me - implorou.

Jenny segurou no telefone com força. Meu Deus, que queria ele dizer? Porque estava a ligar-lhe? Para

lhe dizer que ia viver com Tiggy?

- Jen... Eu preciso da tua ajuda. Podes vir? Imediatamente, por favor - Jon olhou para Jack, que estava em pé ao seu lado. - É Tiggy - continuou. Está... Está... Há um pequeno problema - disse. Vem, por favor, Jen. Imediatamente.

- Sim, sim... vou agora mesmo - prometeu Jenny.

Olivia cruzou-se com a ambulância na estrada principal, enquanto voltava para casa. Depois de se despedir de Saul, entrou no carro como um robô e conduziu pelas estradas escuras no meio do campo, com a face repleta de lágrimas suscitadas pela dor e pelo desespero.

Deveria ter adivinhado. Ela já sabia, mas tinha tentado não pensar nele, convencer-se de que, se Caspar podia substituí-la tão facilmente, então ela também poderia fazer a mesma coisa.

Mas não. Ainda o amava... Ainda o desejava com toda a sua alma, embora a sua cabeça reconhecesse a impossibilidade de resolver as suas diferenças ou de ele a aceitar tal e qual como ela era.

Ao seguir o caminho da entrada, viu que a casa estava inundada de luz. Havia quatro carros estacionados com descuido, cinco, se incluísse o da sua mãe. Reconhecia dois deles. O seu estômago encolheu-se enquanto saía do carro com as pernas trémulas e começou a correr para casa.

Jenny tinha-a visto chegar e estava à porta, à sua espera. Olivia soube o que se passara ao ver o rosto da tia.

- É Tiggy, não é verdade? - indagou e, embora cinco minutos antes tivesse jurado que não tinha mais lágrimas para derramar, rebentou em soluços.

Jenny abraçou-a e embalou-a da mesma forma que Jon tinha abraçado e embalado Jack.

- Não se passa nada, Livvy. Não se passa nada - tranquilizou-a. - Entra e senta-te. Jon, põe água a aquecer, pode ser? - pediu ao marido ao vê-lo aparecer à porta, mas Olivia moveu a cabeça.

- Eu estou bem - sussurrou. - Eu acho que sei o que aconteceu.

Atrás de Jon viu outros dois homens. Um deles reconheceu vagamente. Era o médico da cidade.

- Foi Tiggy, não foi? Teve outro... - engoliu saliva e mordeu o lábio. - Está...

- A tua mãe sofre de um distúrbio alimentar, Livvy - disse Jénny suavemente. - O doutor Travers diz...

- A sua mãe precisa de receber um tratamento especializado - contou o médico a Olivia. – Preparei tudo para que seja hospitalizada hoje. Com este tipo de distúrbio, existe sempre o perigo de ela se engasgar com a comida ou com o próprio vómito.

- Eu sabia... Sabia que ela o tinha feito, mas quis acreditar que era um incidente isolado. Não... - Olivia olhou para Jenny com impotência. - Queria contar-lhe, mas...

- Livvy, não é culpa tua - assegurou Jenny.

- Eu vi-a - continuou Olivia com desespero. Logo depois de voltar para casa, encontrei-a uma noite na cozinha. Caspar disse-me que ela precisava de ajuda, de tratamento, mas... mas acabámos por discutir. Eu não podia acreditar, não queria acreditar.

Devia tê-lo ouvido, devia ter feito algo. Devia ter sabido...

- As pessoas como a sua mãe são muito habilidosas a esconder o seu vício - disse o médico, com um tom compreensivo.

- Olivia, por favor, acredita, não é culpa tua - repetiu Jenny.

- Que... Que vai acontecer com ela? – perguntou Olivia ao médico com hesitação. Ele trocou um olhar com Jenny e com Jon.

- Nós concordámos em internar a tua mãe numa clínica privada especializada neste tipo de distúrbio - respondeu Jenny calmamente.

- Ainda é muito cedo para saber como irá responder ao tratamento. A bulimia não é um problema fácil de tratar, nem para o paciente nem para a famíllia - explicou o médico.

- Será necessário contar ao teu pai, claro - acrescentou Jenny, e olhou para Jon.

- Sim. Mas eu falarei primeiro com o especialista - disse Jon.

Quando o médico partiu, Olivia começou a agradecer a Jenny e a Jon o que tinham feito, mas Jenny interrompeu-a.

- Sinto-me muito culpada porque nós não nos apercebemos do que estava a acontecer - reconheceu.

- Não poderia saber, tia - consolou Olivia. Jenny moveu a cabeça.

- Só relacionamos os distúrbios alimentares com os adolescentes. Mesmo assim, ela deve ter dado indicações, mas todos nós estávamos muito absorvidos pelas nossas vidas para percebermos. Livvy, tens a certeza de que ficas bem aqui sozinha? - perguntou antes de partir.

Eles já tinham concordado que Jack iria para a casa de Jenny, a pedido do menino.

- Sim, eu fico bem - assegurou Olivia.

 

Jenny percebeu que Jon a tinha seguido até casa quando já estava a estacionar o carro em frente a casa. Disse a Jack para ir entrando e ficou à espera do seu marido lá fora, enquanto desejava saber o que quereria ele.

As últimas semanas tinham-lhe conferido um ar de autoridade; parecia um pouco mais alto, e quando tinha falado com o médico, fizera-o num tom mais determinado do que era habitual. Talvez, pela primeira vez na vida, tivesse deixado a sombra de David e, por conseguinte, estivesse a ser julgado pelos próprios méritos em vez de estar simplesmente rotulado como o gémeo de David. A mudança ficava-lhe bem, dava-lhe um ar másculo, de confiança em si mesmo.

Jenny baixou os olhos enquanto ele deixava o carro e caminhava para ela.

- Jenny - começou. - Podemos falar?

Ela ficou surpreendida.

- Depende do assunto - disse finalmente, fazendo um esforço para o olhar nos olhos. - Se desejas chorar no meu ombro por causa de Tiggy... - fez uma pausa e baixou os olhos antes de continuar novamente. - Eu percebo o que sentes por ela, Jon. Eu sei... Eu sei que pensas que a amas...

- Não, estás errada. Eu não a amo. Não sei de que me devo envergonhar mais - disse com um tom sombrio, enquanto ela olhava para ele de cima a baixo. Se de ter caído na armadilha que apanha os homens maduros tão facilmente, se por ter acreditado que a vida estava a dar-me uma oportunidade para me apaixonar pela ideia de estar apaixonado por mim, ou por ter percebido com tanta velocidade que não queria nada disto.

- Deve ter sido um choque encontrá-la daquela forma - disse Jenny simpaticamente. Estava a fazer o possível para não pensar nas próprias emoções e por se colocar no lugar de Jon, mas não era fácil, porque ainda tinha o coração destruído.

- Se esse é um modo diplomático para dizeres que pelo menos voltei a ter bom senso então, graças a Deus, já tenho algo para alegar em minha defesa. Não - moveu a cabeça com resolução. - Já me tinha apercebido antes... esta tarde, na realidade. Tinha de ir ao tribunal e levei Tiggy comigo até Chester. Almoçámos juntos. Então... Bom, digamos que quando a oportunidade surgiu de... de consumar a nossa relação, eu descobri que não era aquilo que eu queria. Sem rodeios, vou dizer-te, Jen, que o meu corpo me disse com clareza com quem queria estar, e não era com Tiggy. Não, não era sobre ela que queria falar contigo - olhou-a nos olhos. - Eu sei que não te mereço e vou perceber se me recusares, mas se há alguma possibilidade de nós podermos... de podermos... eu quero voltar, Jen. Sofri muito e as crianças também. E... eu tenho feito muitas tolices nestas últimas semanas e, embora não tenha sido fácil, eu finalmente aceitei que, no fundo, inconscientemente, sempre invejei David. Agora eu vejo os ciúmes que tinha dele, quanto sofria por as necessidades dele estarem sempre à frente de tudo.

- Mas foste tu que sempre insististe para que ele fosse a primeira coisa - respondeu Jenny. - Sempre deixaste evidente a tua lealdade para com ele, o teu amor por ele, era a coisa mais importante.

- Porque sabia que era isso que esperavam de mim, mas no fundo... O meu filho, a minha mulher, o meu pai, os meus amigos, todos gostam mais de David do que de mim, por isso quando alguém, a própria esposa de David, parecia preferir-me a mim... Não estou a tentar procurar desculpas - disse. - Não o posso fazer. Eu odeio-me pelo que fiz. Acho que acabei por pensar: Bom, pode ser que Jenny te prefira a ti, mas Tiggy, a tua esposa, prefere-me a mim...

- Ah, não, isso não te serve de desculpa - interrompeu Jenny rudemente. - Eu não preferia... Não prefiro David.

- Casaste-te comigo porque esperavas um filho dele - lembrou Jon, em voz baixa.

- Eu casei-me pela mesma razão que tu te casaste

- voltou a dizer Jenny. - Para o bem do filho de David, para poder dar-lhe uma família, um pai e a protecção de que ele precisava, da mesma forma que te casaste comigo para dares a David a protecção que acreditavas que ele merecia. Eu não interessava para nada. Poderia ter sido qualquer mulher.

Jon franziu a testa ao ouvir a desolação na sua voz.

- Isso não é verdade - assegurou.

- Não me amavas - acusou Jenny.

Jon afastou o olhar. Ele fechou os olhos.

- Não, é um facto que não - reconheceu finalmente. Deu um passo até ela e pegou-lhe nas mãos, enquanto ela o observava com surpresa. - Nessa altura, não, mas... Lembras-te da noite em que Harry nasceu? - perguntou com voz rouca.

Jenny disse que sim. Claro que se lembrava. Como poderia esquecer? O seu primeiro filho, a longa luta para o dar à luz, a felicidade quando o puseram no seu colo.

- Foi nesse dia que me apaixonei por ti - disse suavemente. - Quando eu me apaixonei por ambos. Sim, até então, o nosso casamento tinha sido apenas uma responsabilidade, um dever para com David, para com o filho que esperavas, mas, quando o vi nascer, de repente, senti que ele era meu filho. Eu não posso explicar muito bem isto, mas foi assim que me senti.

- Nunca... Nunca me disseste nada - referiu Jenny com a voz fraca e carregada de lágrimas, e não só pelas recordações que Jon tinha evocado.

- Nunca houve oportunidade - disse com simplicidade. - Harry viveu tão pouco tempo e então... Bom, então, quando me disseste que não tínhamos de continuar - juntos, eu pensei... Pensei que era uma parvoíce contar-te o que sentia.

- Só queria fazer a coisa correcta, dar-te a tua liberdade - explicou Jenny.

- Dar-me a minha liberdade - sorriu Jon, com tristeza. - Já era muito tarde. O que realmente eu queria era que me desses o teu amor.

- Jon...

- Não é culpa tua - tranquilizou-a. - Ninguém pode amar por imposição, e a última coisa que queria era que fingisses...

- Mas, Jon. Eu amava-te. Eu amo-te - afirmou Jenny. - No começo do casamento, não. Penso que não conseguia amar ninguém naqueles momentos de tanto sofrimento, entretanto, quando Harry... Sofreste tanto... E eu amei-te desde esse momento - reconheceu. - Mas sentia que já tinha posto muita carga nos teus ombros e não queria continuar a sobrecarregar-te.

- Quantos anos temos? - perguntou Jon. - Há quanto tempo estamos casados? E foi necessário tudo isto para dizermos um ao outro o que sentimos.

- Pensei que não me podias amar, principalmente quando me comparava com Tiggy. Ela é tão...

- Tu és linda - interrompeu-a Jon com rudeza, e acariciou a sua face com os dedos. - Eu sempre achei isto. Senti-me terrivelmente ciumento na noite da festa. Estavas tão bonita. Aquele vestido...

- Eu pensei que não tinhas gostado - admitiu Jenny. - Não me disseste absolutamente nada.

- Eu não fui capaz - reconheceu Jon. - Eu queria fazê-lo, mas não fui capaz.

- Jon...

- Eu fiquei doente ao ver-te dançar com David... Preferia ser eu a dançar contigo. Até Guy parecia não estar a achar muita graça.

- Guy é apenas meu sócio - afirmou Jenny com convicção. Em silêncio, deu graças a Deus por ele não ser nada mais, embora há algumas horas atrás...

- Sinto-me quase culpada do que sentimos... De tudo aquilo que temos - sussurrou depois a Jon com voz rouca, quando ele terminou de a beijar. - Pobre David, pobre Tiggy... O que achas que vai acontecer?

- Não sei... Jen, há algo que eu ainda não te contei.

Jenny esperou em silêncio.

- É David. Tem tirado dinheiro da conta de um cliente - explicou brevemente a Jenny o que aconteceu.

- Jon - sussurrou, chocada, quando ele terminou.

- Como é que ele pôde fazer uma coisa dessas? O que acontecerá? Não podemos devolver o dinheiro se vendermos tudo e...

- Eu sei, eu sei - afirmou Jon, enquanto a apertava nos seus braços. - Quando eu voltei de Chester, tinha uma mensagem no escritório. Jemima Harding morreu esta manhã. Agora, será necessário contar aos contabilistas e ao banco.

- Jon... - Jenny levou os dedos aos lábios. - Contaste alguma coisa a David?

Jon negou com a cabeça.

- Nós ainda não falámos disso. Não posso, pelo menos por enquanto.

- E ao teu pai?

Novamente, Jon negou com a cabeça.

- Jon... - repetiu Jenny com tristeza enquanto apoiou a cabeça no seu peito.

Era um padrão que se repetia ao longo dos anos: David sempre ensombrou os seus momentos de felicidade e de intimidade. Embora, naquela ocasião, não só estivesse a ensombrar a vida deles, como também ameaçasse destruí-los. Embora Jon não tivesse dito isso, Jenny já sabia. Talvez fosse David quem roubara o dinheiro e traíra a confiança de uma pessoa, mas seria Jon quem pagaria por isso. Era sempre assim...

Olivia partilhou de boa vontade a sua sandes com o pássaro que a observava. De qualquer forma, nem sequer tinha fome, reconheceu com espírito taciturno enquanto espalhava as migalhas no relvado. Estava um dia quente e ensolarado e tinha descido até à praça para almoçar, mas não tinha apetite.

O médico tinha-lhe ligado naquela manhã, para informá-la que a sua mãe estava estável e que a transfeririam para a clínica naquela mesma tarde. Também lhe disse que ela não podia receber visitas durante alguns dias, até estar em condições para os receber.

Jon tinha-a informado de que Jemima Harding tinha morrido. Uma lágrima deslizou pelo seu rosto, seguida de outra. Inclinou a cabeça enquanto procurava na mala um lenço de papel.

- Olivia?

Ficou rígida ao ouvir a voz de Ruth, mas já era muito tarde. A sua tia já tinha visto as lágrimas.

- Livvy, querida, soube o que aconteceu com a tua mãe. Não imaginas o quanto lamento - começou a dizer em tom compassivo, enquanto se sentava perto dela no banco de madeira e lhe passava o braço pelos ombros.

- Não, não é isso... Não estou a chorar pela Tiggy, mas para mim - disse Olivia com tristeza. - Eu sinto tanto a falta de Caspar... Odeio dizê-lo, mas estou arrependida por me ter oferecido para ficar e não ter ido com ele.

- Livvy... Ainda não é demasiado tarde - consolou-a Ruth. - Podias...

- Não, ele já não me ama. Caspar acredita que amar alguém supõe antepor aquela pessoa a tudo o resto, por isso pensa que eu já não o amo. Pelo menos, não o suficiente, porque, de acordo com ele, eu não demonstrei o meu amor por ele. E, embora eu o deseje muito, não sei se podia viver deste modo, com essa ideia a martelar na minha cabeça. E também... começou a chorar outra vez; tentou engolir o nó que tinha na garganta e fez um esforço para refrear as lágrimas. - De qualquer forma, eu não podia partir agora. Agora que o meu pai.

- O teu pai já passou a fase pior e, como afirmam os médicos, ele está a recuperar-se muito bem. Deve estar novamente a trabalhar em menos de um mês... Olivia, querida, o que se passa? - perguntou Ruth com desolação quando Olivia enterrou a cabéça entre as mãos e começou a chorar compulsivamente.

- Oh, tia Ruth...

- Olivia, o que está a acontecer? Posso saber o que se passa? Disse alguma coisa de mal?

- Eu não posso falar disto consigo - respondeu Olivia, ainda a chorar. - Nem o deveria ter mencionado.

- Claro que podes falar comigo - afirmou Ruth, determinada. - Podes e deves, e eu não vou sair deste banco enquanto não o fizeres.

Olivia dedicou-lhe um sorriso choroso.

- Assim está melhor - encorajou-a Ruth. - Agora, diz-me o que se passa.

Detestando-se por ser tão fraca e ceder à tentação de abrir o seu coração, Olivia contou tudo sobre o roubo do seu pai. Ruth deixou-a falar sem a interromper, e quando a jovem terminou, ela olhou em silêncio para o outro lado da bonita praça.

- Não... Não devia ter contado nada. Está horrorizada e...

- Não, não estou horrorizada - respondeu Ruth com naturalidade. - Nem mesmo demasiado surpreendida. Agora fui eu que te apanhei de surpresa, verdade? Lamento, Olivia, mas acho que conheço o teu pai um pouco melhor que tu. Achas difícil acreditar que ele possa ter feito algo assim tão. condenável. Uma menina precisa de poder confiar nos pais e respeitá-los, é normal.

- Mas eu já não sou nenhuma menina.

- Claro que não, mas nem sempre é fácil desprendermo-nos da educação e dos padrões de comportamento que adquirimos. Para veres, para mim, o teu pai sempre foi e sempre será o menino obstinado e egoísta que evitou as responsabilidades conscientemente. Deixou Jon fora da Ordem e usou o seu charme e a tendência infeliz do seu pai de educá-lo mal para seu próprio benefício - manteve-se silenciosa durante um momento, absorvida nos seus pensamentos. - Jon já falou com os contabilistas?

- Não, ainda não - disse Olivia com voz cansada.

- Bem - Ruth voltou-se e olhou na direcção da outra zona da praça, para a janela do escritório de Jon. - Então, é melhor eu ir falar com ele - disse com determinação e com um sorriso na face.

- Porque é que quer vê-lo? - Olivia franziu a testa. - Mas.

- Sabes o que eu acho que devias fazer, Livvy?interrompeu Ruth. - Devias ligar para o teu homem.

O homem que tu queres - lembrou-lhe. - Sim, é capaz de não ser perfeito, claro que ainda tens problemas para resolver, mas diz-me, o que é pior? Viver com ele e com os problemas, ou viver sem problemas e sem ele? Não desperdices a vida com lamentações absurdas, Olivia, querida. Não faças como... Liga-lhe. Eu insisto.

- Ruth? - Jon levantou-se quando o seu secretário levou Ruth até ao escritório. A tia morava do outro lado da praça, mas ele não se lembrava da última vez que ela tinha ido ali.

- Senta-te, Jon - falou num tom enérgico. - Temos de falar. Olivia contou-me a história de David - anunciou sem rodeios. - Eu deduzo que, por enquanto, mais ninguém da familia sabe disto.

- Não, ainda não - reconheceu Jon com um suspiro. - Muito bem. Agora diz-me, quanto dinheiro pediu David emprestado à Jemima Harding? - Pediu emprestado? - Jon olhou para ela com ironia. - David não pediu nada emprestado. Ele roubou... - Não, não roubou - corrigiu Ruth com autoridade. - David, com uma falta total de profissionalismo, não há nenhuma dúvida, pediu um empréstimo a Jemima. Ou melhor, uma série de empréstimos. Eles tinham acordado verbalmente que ele devolveria o dinheiro quando ela quisesse. Agora que ela morreu, parece que chegou o momento de devolver os empréstimos, embora eles não tenham definido nenhuma data.

Jon moveu a cabeça.

- Oxalá... David pudesse devolver aquele dinheiro. Os dois sabemos isso.

- David não - afirmou Ruth. - Mas eu sim. Jon olhou para ela, espantado.

- Ruth - explicou-lhe com paciência. - É muito generoso da sua parte fazer essa sugestão, mas David tirou dois milhões de libras a Jemima.

- Eu sei disso - declarou Ruth com serenidade.

Jon olhou para ela sem entender.

- Ruth não tem dois milhões de libras.

- Não - reconheceu. - Penso que da última vez que contei eram quase cinco milhões.

- Cinco milhões! Ruth tem cinco milhões de libras?

- Jon, por favor, não te ofendas, mas no teu lugar eu não estaria boquiaberta. Não te favorece nada, pelo menos na tua idade - brincou com o sobrinho. E, não, eu não estou senil - dedicou-lhe um sorriso alegre. - Eu tenho o dinheiro, embora reconheça que me aborrece ter que usá- lo para salvar a pele de David, mas não é só a pele dele que está em jogo, certo?

- perguntou suavemente a Jon. - Jenny e tu e, principalmente, Joss são muito especiais para mim... em particular, Joss. Na minha idade já tenho direito de ter preferências e eu não quero que o futuro dele fique arruinado por causa da estupidez e fraqueza do David.

Fez uma pausa e sorriu.

- A irmã da minha tia deixou-me uma herança abundante - revelou com um sorriso. - Não cinco milhões de libras, de forma alguma. Mas há muitos anos atrás eu descobri com surpresa que tenho talento

para jogar na Bolsa. Terás de falar com o banco e com os contabilistas, claro. Nós não podemos deixar isso nas mãos de David. Podes explicar-Lhes o acordo privado que David e Jemima tinham.

- Eles nunca vão acreditar que Jemima quis emprestar o dinheiro a David.

- No fundo, não - admitiu Ruth. - Mas eles estarão ansiosos por resolver o problema com a máxima discrição. Não melhorará a imagem profissional deles se descobrirem que David tirava dinheiro da conta da Jemima debaixo dos narizes deles, não achas? - perguntou a Jon num tom prático.

- Não se esqueceu de uma coisa? - perguntou Jon à sua tia depois de um silêncio breve.

- De quê?

- Que eu tenho um dever para com a minha família e também para com a minha profissão. A minha honra diz-me para denunciar David e...

- Não - interrompeu Ruth com determinação. Claro que a tua honra te força a denunciar as tuas suspeitas, mas é apenas isso que elas são, Jon. Afinal de contas, não tens prova nenhuma de que David não fez um acordo privado com Jemima, pois não?

- Ruth... - protestou Jon.

- Tens as provas? - insistiu.

- Não. Mas ambos sabemos...

- Ambos sabemos que David pediu o dinheiro emprestado a Jemima e nada mais. Eu percebo-te, Jon - continuou, com mais suavidade. - Mas, embora aplauda a força moral que faz com que sacrifiques a tua profissão e a tua vida, eu não posso pôr no mesmo saco as consequências que esta acusação teria para a nova geração. Vai marcá-los a todos.

- Ruth, não me faça isto - implorou Jon com um tom cansado. - A Ruth sabe...

- Eu sei que és um homem honesto, Jon, e isso é tudo aquilo que eu preciso saber. Agora vou para casa para falar com meus corretores da Bolsa, e eu quero que contactes com o banco e com os contabilistas para lhes explicares a situação. Também lhes vais dizer, claro, que ele vai devolver os empréstimos, embora não exista nenhum recurso legal, nenhuma real obrigação de os devolver. Acredito que ficarás surpreendido por os senhores do banco e os contabilistas respirarem de alívio. Como David... Bom, é evidente que ele não poderá trabalhar novamente, nem aqui nem em qualquer outro escritório. Eu acredito que será melhor que ele decida reformar-se já, devido ao ataque de coração.

Jon olhou para ela com um semblante triste.

- Ruth, não sei o que dizer.

- Então, não digas nada. Normalmente é a reacção mais sensata - disse Ruth com um sorriso.

Olivia fechou os olhos e agarrou no telefone com força. Tinha acabado de ligar para o número que tinha de Caspar e pedira para falar com ele. O que diria quando ouvisse a sua voz? O que fariam? Será que ele falaria com ela ou desligaria? Já teria banido totalmente o passado, quereria esquecer a relação deles?

Ouviu uma voz do outro lado da linha, mas não a de Caspar.

- Lamento - disseram-lhe. - Mas agora ele não está.

O coração de Olivia caiu aos seus pés.

- Poderia... Quando é que eu poderia falar com ele? - perguntou com desespero.

- Não sei dizer-lhe. Saiu para resolver um assunto pessoal e não sei quando voltará.

- Entendo... Por acaso não tem nenhum número no qual o possa localizar? - perguntou Olivia.

- Não, temo que não.

Olivia desligou sem fazer barulho. Bom, pelo menos tinha tentado isto. Caspar, onde estás?" A dor cresceu no seu interior como uma agonia lenta. Quem disse que o tempo e a distância curavam todas as feridas estava enganado. Não era verdade. Só as aumentavam.

- Max... Não pensava encontrá-lo aqui. O assistente disse-me que esta manhã você ia para o tribunal.

- Sim, mas anularam o caso - contou Max ao sócio mais velho do escritório, que estava parado, no limiar da pequena sala dele, nervoso e irritado. Havia alguém atrás dele e, quando ele se mexeu, Max viu quem era. Franziu a testa. Que diabos estava a fazer ali a amiga de Madeleine?

- Bom, já que está aqui - começou o sócio por dizer. - Será melhor que os apresente. Claudine, este é Max Crighton. Max é estagiário e está à espera de ocupar uma vaga no escritório.

- Sim... Isso já sabia.

Estava a sorrir quando lhe apertou a mão. Max cumprimentou-a, contrariado. Não tinha gostado dela na primeira vez que a vira e continuava sem conseguir

gostar. Ele suspeitava que ela tinha tentado pôr Madeleine contra ele, o que lhe agradava ainda menos.

- Max... - a voz do sócio mais velho tinha um som muito vivo e o seu sorriso era sempre muito forçado. - Claudine Chatterton será a nova sócia do escritório. Ocupará o lugar que Clive Benson deixará quando passar à judicatura - voltou a sorrir a Claudine, mas ela não olhou para ele; estava a observar Max com um sorriso sagaz.

Por uma vez em toda a sua vida, Max soube que estava numa situação em que não tinha nem controlo nem poder. Não era Madeleine a sua rival, percebeu furioso, mas sim aquela mulher... aquela mulher que sorriu para ele de um modo brincalhão... provocante. penetrante.

E Madeleine devia saber disso. Aquela raposa estúpida... por que diabos não lhe tinha contado qualquer coisa? Levantou-se, fingiu que não percebia o olhar de antipatia que o sócio mais velho Lhe estava a dirigir, e saiu porta fora.

- Céus! - ouviu Claudine dizer com alegria enquanto ele deixava o escritório. - Fizemos algo para o aborrecer assim tanto?

Algo para o aborrecer assim tanto? A outra raposa sabia disso perfeitamente. Charlotte enganara-se ao descobrir a informação e alguém teria de pagar porque ele tinha sido exposto ao ridículo, porque tinha tirado aquilo que legalmente lhe pertencia. E sabia quem ia pagar por isso.

Madeleine ficou surpreendida ao vê-lo e a sua surpresa tornou-se em desolação ao perceber a sua expressão.

- Max, que aconteceu? Que aconteceu?

- Sabes muito bem o que aconteceu! - gritou, enquanto lhe lançava cada palavra como se fosse um estalo. - Por que diabos não me disseste que a Claudine tinha sido escolhida para a vaga?

- Pensei... Pensei que sabias... - respondeu Madeleine com nervosismo. - Max, por favor, não fiques chateado - implorou. - Sei que te sentes desapontado, sei o quanto querias mostrar o que vales, mas até mesmo o meu pai reconhece que para chegar aos escritórios mais conhecidos não basta talento... Bom, é necessário ter os contactos apropriados, e por isso...

- Os contactos apropriados! E quais são os contactos apropriados de Claudine? Deixa-me adivinhar. O teu pai intercedeu a seu favor? Porquê? É ele que a está a patrocinar, não é verdade?

- Max... - Madeleine estava branca com o choque. - Por favor, eu sei como te sentes.

- Sabes? Será que sabes mesmo?

Max agarrou-a pela cabeça e começou a abaná-la como se fosse uma boneca de pano, sem prestar atenção às suas súplicas frenéticas para que a soltasse. Meu Deus, quando ele pensava no tempo que tinha perdido para nada.

- Para vocês foi muito divertido, certo? - perguntou enquanto soltou Madeleine com tanta força que ela quase bateu contra a parede.

Enquanto Madeleine tentava manter o equilíbrio, esfregou a cabeça dolorida.

- Max, não foi assim... Sei que estás chateado, mas escuta-me, por favor...

- Queres que te escute? Queres que te escute?

- Falei com o meu pai - disse Madeleine com desespero, enquanto tentava não pensar no intenso desprezo que descobriu na voz dele. Ele não a olhava nos olhos e ela queria acreditar que aquele não era o seu Max... Talvez, assim que se tranquilizasse, tudo mudaria e ela esqueceria o quanto ele a tinha assustado. - Ele quer... Quer que nós jantemos com ele e com a mãe esta noite. Disse que em breve pode surgir uma vaga noutro escritório.

Quando ela lhe disse o nome, Max ficou incrédulo. Era um dos escritórios mais exclusivos de Londres e ele tinha tantas hipóteses de obter uma vaga lá como de voar até à lua.

- O pai conhece o sócio mais velho... ele falou com ele e, bem... O pai diz que, já que não tem um filho, seria agradável ter um genro que seguisse os seus passos... - Madeleine engoliu saliva. - Lamento por não te ter contado sobre Claudine, mas... para dizer a verdade, ela implorou-me para não o fazer. Max... - os olhos dela encheram-se de lágrimas. Foi horrível ouvir-te falar da tua promoção, saber o quanto significava para ti e não poder dizer nada, mas eu prometi isto a ela e... por favor, não te zangues comigo. Eu sei que não querias que eu falasse com o meu pai, mas...

Max sentiu a sua cabeça a dar voltas. Uma posição num dos escritórios mais notáveis de Londres... A protecção de um dos juízes mais importantes do país... olhou para Madeleine, com a cabeça feita em água. Tinha tudo ao seu alcance... com uma condição.

Genro... Isso significava que teria de se casar com Madeleine. A noite anterior tinha estado a imaginar o momento em que lhe contaria exactamente o que pensava dela, o momento em que iria partir e, de repente...

- Pára de chorar, Maddy, meu amor, minha maravilhosa e travessa Maddy - tranquilizou-a enquanto a abraçava. - Claro que não estou furioso contigo: Bom, não estou muito - corrigiu com naturalidade. Foste muito ruim por teres falado com o teu pai.

- Eu fiz isso para ti... para nós - sussurrou Madeleine, com os lábios trémulos. - De forma a que nós pudéssemos estar juntos.

- Sim, eu sei - confirmou Max, amolecendo o tom de voz. - Mas queria ganhar por mim mesmo o direito de contar ao teu pai que me quero casar, e não sentir que.

- Max, não - implorou Madeleine. - Ele só está a tentar ajudar. Ele só quer...

- Eu sei o que quiseste fazer - murmurou Max com voz sedosa e sugestiva. - E eu sei o que eu quero fazer.

- Max, nós não podemos - Madeleine quase sussurrou. - Agora não. Nem sequer é hora de almoço e... Max...

- A que horas vamos jantar com os teus pais?perguntou enquanto deslizava as mãos por debaixo do top dela, para lhe acariciar os seios.

Mil pensamentos ferviam na cabeça dele. Conseguiria ser membro de um escritório e herdaria a fortuna do avô, porém o preço que tinha de pagar eram uns quantos anos de casamento com Madeleine. Mas que mais podia fazer? Dentro de três ou quatro anos ainda nem sequer tinha completado trinta anos. Tinha de assegurar a situação económica dele, claro, para não sair a perder quando se divorciassem. Também teria a certeza de que não teria filhos. Não estava disposto a manter filhos que, no fundo, não queria ter.

- Tenho de levar-te a casa para que conheças a minha familia - prometeu a Madeleine enquanto o conduzia para o andar de cima. - Eles vão adorar-te - mas enquanto a levava nos braços e começava a beijá-la, não era a face pequena e redonda de Madeleine que via, mas a expressão de gozo e alegria de Claudine minutos antes de sair do escritório.

Não, aquilo não ficaria assim... de modo nenhum.

Caspar fez uma pausa antes de tomar o caminho que o conduzia até à casa dos pais de Olivia.

Não sabia como Olivia reagiria à chegada dele. No princípio, quando a deixou, com o espírito nublado, o orgulho ferido e sentindo-se injustiçado, pensou que ao acabar com a relação e afastar-se dela o sofrimento acabaria por desaparecer, mas afinal aconteceu o oposto.

Tinha sido preciso uma semana, em que estivera à espera de uma chamada de Olivia, para compreender o que tinha feito e, mais difícil ainda, aceitar o que fizera.

Nunca tinha conseguido despertar o efeito de menino, quando tentava capturar a atenção dos seus pais nem despertar o amor deles, por isso porque é que acreditara que o podia fazer com alguém adulto como Olivia, sobretudo, com alguém com a personalidade de Olivia?

Finalmente entendera como ela se devia ter sentido... desapontada porque ele não a tinha entendido, porque não percebera a necessidade dela de substituir o pai no escritório.

A verdade é que tinha sido ciumento, ciumento de que alguém fosse mais importante para Olivia do que ele. Tinha visitado alguns velhos amigos há alguns dias atrás e escutara a mulher de um deles, que se queixava pacientemente dos ciúmes que o seu marido tinha dos dois filhos deles.

- É absurdo - tinha contado a Caspar com um suspiro. - Ricky é filho dele, e por isso em parte gosta dele. No entanto, também pensa que Ricky é outro homem que monopoliza a minha atenção. Eu não consigo fazê-lo entender a razão pela qual Ricky precisa mais de mim. Ricky precisa do afecto do pai e da mãe dele.

No princípio, Caspar pensou que ela estava a exagerar, mas só depois, ao reproduzir a conversa na sua cabeça, começou a desejar saber se também não seria o tipo de pai que sente ciúmes do seu filho, o tipo de homem que tenta castigar uma mãe por amar o filho, o tipo de homem que tinha sido o seu pai...

Estava escurecendo, quando estacionou à frente da casa. Saiu do carro e parou, absorvido nos seus pensamentos, antes de ir para a entrada. Tinha sido excessivamente duro com Olivia, principalmente em relação ao problema da mãe dela. Continuava a pensar que não servia de nada recusar que Tiggy tinha um problema e que requeria ajuda profissional, mas poderia ter explicado melhor a situação; com mais precaução, com mais tacto, como em relação aos seus comentários. Moveu a cabeça, tocou à campainha e esperou.

Olivia estava no andar de cima quando tocaram à campainha. Esteve quase para não abrir; não sentia vontade de ver ninguém. Jon já tinha telefonado antes para lhe contar sobre a visita de Ruth e do resultado feliz da sua reunião com os contabilistas, que se tinham limitado a aceitar o dinheiro que fora pedido emprestado. Sabia que quem tocava não podia ser ele nem Jenny, porque o seu tio tinha-lhe dito que iam jantar fora.

- Sozinhos - acrescentou. - Ruth fará de ama. Por outro lado, Olivia não estava com um espírito festivo, mas exausto. Trabalhou avidamente no escritório, ajudou o seu tio e, como ele tinha comentado naquela tarde, já quase tinha conseguido pôr em dia os assuntos pendentes deixados pelo pai dela. Era sempre bom ter a mesa vazia, pensou Olivia, e o que mais a surpreendeu foi não ter perdido o ritmo de trabalho ao qual estava habituada.

Mas tinha perdido Caspar.

Cansada, desceu as escadas e abriu a porta.

- Caspar! - exclamou com incredulidade, en quanto olhava para ele como se não acreditasse no que estava a ver.

- É muito tarde para reconhecer que fui um idiota e que mudei de ideias? - perguntou Caspar sem rodeios. - Pensava que era um homem maduro, já feito e completo, mas nestas últimas semanas desiludi-me comigo mesmo. Eu não posso ser um homem se ainda me comporto como um menino. E quanto a estar completo... Nunca me voltei a sentir completo sem ti.

- Eu tentei ligar-te hoje - foi a única coisa que se lembrou de dizer, enquanto entravam em casa. - Mas não estavas...

- Não, claro, estava a vir para cá - afirmou Caspar.

- Rezando a cada quilómetro para que não me tratasses como eu na realidade merecia e que não me mandasses embora. É demasiado tarde, Livvy? - perguntou.

Olivia negou com a cabeça e disse-lhe:

- Sim, é muito tarde para deixar de te amar. Caspar... - gemeu enquanto caía nos braços dele. - Senti tanto a tua falta... Desejei-te tanto. Pensei que não ia deixar que me manipulasses emocionalmente, exigindo-me que fosses a pessoa mais importante na minha vida, mas é o que na realidade és.

- Então pára de falar e beija-me - ordenou Caspar com carinho enquanto a abraçava com mais força. Começou a baixar a cabeça ao mesmo tempo que ela elevava a face até ele, mas parou e olhou para o corredor.

- Onde estão os teus pais? - perguntou num sussurro.

- Não quero ter testemunhas em relação ao tipo de comportamento que eu quero ter neste momento.

- O pai está numa clínica - explicou Olivia. - E Tiggy.

Quando Caspar viu a tristeza que escureceu o seu olhar, abraçou-a ainda com mais força.

- Tinhas razão, Caspar. Ela... Precisava de ajuda. Agora, com sorte, receberá a ajuda de que necessita - contou calmamente. - O tio Jon e eu fomos à clínica esta tarde falar com o especialista responsável. Ele foi muito sincero. Diz que não há estatísticas em relação à percentagem de doentes com bulimia que recuperam porque ainda não há nenhum que tenha superado o hábito tempo suficiente para se considerar que esteja curado. No caso de Tiggy... Enfim, suspeita-se que a sua dependência já tenha muitos anos, por isso assim será muito mais difícil de ajudá-la a reconhecer o problema e superá-lo. Esperava poder falar com o meu pai, mas...

- David sabe o que se passou com a tua mãe?perguntou Caspar, preocupado com a dor que via nos seus olhos.

- Sim, ele sabe - respondeu Olivia em voz baixa.

- O doutor Hayes contou-lhe esta tarde, mas segundo

parece, para o pai não... não...

- Não o quê? - Caspar esperou porque não queria pressioná-la. - Ele não está preocupado com Tiggy?

Apesar do quanto doía a Olivia reconhecer isso, Caspar não estava muito surpreso.

Tinha percebido uma atitude forçada no casal, algo que indicava que, apesar da compreensão aparente, eles não eram mais do que duas pessoas que vivem debaixo do mesmo tecto.

- Ele ainda está a recuperar do ataque de coração, claro, mas o médico disse-nos que o cho que de ter um enfarte faz com que as pessoas se comportem de um modo irracional e... e egoísta.

Por outras palavras, David Crighton estava encantado por deixar o seu irmão e a sua filha assumirem a responsabilidade de tomarem conta da sua mulher e livrar-se desse peso.

- Isso é tudo, não é? - perguntou Caspar suavemente. - Há mais alguma coisa que te preocupa?

Olivia olhou nos olhos dele.

- Eu fui ter contigo ao aeroporto e... e vi-te a beijar...

Caspar sorriu. Ainda assim ela tentara apanhá-lo.

- Na realidade - explicou. - Era ela quem me estava a beijar e, certamente, não eram os carinhos de Hillary que eu queria. Também, só consenti que ela me beijasse uma vez. Só sei que não vou consentir que durmas sozinha esta noite, e não planeio partilhar aquela cama ridícula contigo, por muito mal que o teu avô se sinta.

Olivia riu-se.

- O avô não descobrirá - brincou. - Está de cama. Tem muitas dores nas ancas.

- Na cama... Que excelente ideia - comentou Caspar enquanto a dirigia lentamente para as escadas: A propósito, quase me esquecia. Eu perguntei na universidade de Manchester e há uma turma à qual eu posso dar aulas. Só teríamos de procurar uma casa a meio do caminho, parece-me, mas...

Olivia olhou-o de cima a baixo.

- Quer dizer que estás disposto... A viveres e trabalhares aqui?

- Por que não? Tu estás aqui, não é? - respondeu Caspar com afecto.

- Caspar... - suspirou. - Eu amo-te, eu amo-te, eu amo-te.

- Obrigado - limitou-se a responder. - Mas eu não quero ouvir apenas Caspar, mas sim Aaah... aaah... aaah... Caspar. "

Olivia riu-se novamente.

- A sério? E eu que esperava que não me deixasses com força nem sequer para isso - conseguiu dizer entre beijos. Riu novamente quando ele a soltou e começaram a correr pela escada acima, embora ela soubesse que Caspar a alcançaria muito antes de chegar ao quarto de hóspedes, com a sua cama de casal confortável.

David sorriu à recepcionista.

- Vai deixar-nos? - perguntou a rapariga, franzindo a testa. - Mas...

- Eu tenho de ir - assegurou-lhe David. - A minha esposa não está muito bem e eles precisam de mim em casa.

- Ah, bom. Nesse caso, suponho que...

David dirigiu-lhe um segundo sorriso. Passara o dia inteiro a planear aquilo. Ele já não precisava de preocupar-se com Tiggy, graças a Deus. Outras pessoas tinham assumido essa pesada responsabilidade. Jack estava seguro com Jon e Jenny. Ainda estava pendente o outro assunto, claro, mas sabia que Jon encontraria uma solução. O bom Jon.

Já estava na hora que ele pudesse escolher o que queria fazer com a sua vida. E já era mesmo hora. Ben teria um desgosto, mas entenderia; ele sempre acabara por entendér. Ainda a sorrir, David entrou pela noite.

- Foi-se embora? Mas como... para onde? - perguntou Jon à recepcionista com exasperação. Ele tinha ido falar com o especialista quando descobriu que David abandonara a clínica.

- Eu não sei - respondeu. - Ele não disse. Só mencionou que a esposa precisava dele.

Jon olhou para o especialista, que moveu a cabeça.

- Eu já conferi a situação. Temo que ninguém o tenha visto nem ninguém saiba nada sobre ele.

- Mas para onde foi ele? - voltou a perguntar Jon.

- E porquê?

O doutor Hayes franziu a testa enquanto olhava para ele.

- Eu não sei - reconheceu. - O que sei é que diariamente, todos os anos, há pessoas que desaparecem por sua própria vontade. Alguns, porque acham que é o único modo para deixarem uma situação impossível, e outros porque... Bem, quem sabe?

- Pensa que David fez isso? Desaparecer?

- Eu acredito que ele optou por desaparecer - corrigiu o especialista.

Jon fechou os olhos.

- Tente não se preocupar - aconselhou o médico.

- Claro que pode ter ido apenas visitar alguns amigos ou... - ao ver o olhar que Jon lhe dirigia, suspendeu a frase. - Às vezes acontece - disse, encolhendo os ombros. - Às vezes acontece.

David estava a assobiar enquanto entrava no barco com o seu carro. Meu Deus, como se sentia bem. Era assim que se devia viver, como a vida deveria ser vivida. Livremente, sem planos, sem pressões e sem preocupações para com as outras pessoas. Era finalmente livre!

- O que contaremos nós a Ben? - perguntou Jon a Jenny depois de lhe contar o que aconteceu.

- Qualquer coisa - respondeu em tom enérgico. Deixa que seja o médico a contar-lhe. David não é da tua responsabilidade, Jon - lembrou. - É teu irmão, és o gémeo dele, sim, mas não é da tua responsabilidade. Além disso, temos um casamento para planear - recordou.

- E outro para assistir - disse Jon.

Max tinha-lhes telefonado a anunciar o compromisso dele, e em seguida receberam a visita de Olivia e Caspar. Olivia tinha perguntado timidamente a Jenny se ela podia ajudá-la a preparar o casamento.

- Eu não quero nada rebuscado, apenas uma celebração simples e tradicional.

- Não lhe preste atenção - Caspar advertira Jenny. Eu quero um casamento com tudo o que tenho direito.

Para poder contar aos meus netos quando for velho.

- David já decidiu como quer viver a sua vida - contou Jenny a Jon enquanto se apoiava para o beijar.

- É um direito dele... da mesma forma que nós temos o direito de decidir como queremos viver a nossa vida.

Jon sorriu com afecto e murmurou:

- Acreditas que, os casais velhos como nós, ainda podem dizer que estão muito cansados e querem ir cedo para a cama?

- Joss não vai deixar - respondeu Jenny, rindo. Prometeste a ele e ao Jack que ias pescar com eles, lembras-te?

Jon gemeu e reclamou:

- O que tem de fazer um homem para ficar em casa sozinho com a mulher?

- Pôr comprimidos no copo de leite das crianças?

- sugeriu Jenny, com bom humor.

- Oxalá pudesse fazer isso - foi a resposta sentida de Jon quando Joss entrou a correr para saber se o seu pai já estava pronto para ir pescar. - Oxalá pudesse!

 

                                                                                Penny Jordan 

 

 

                      

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