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Como já nos havia mostrado os homens do Alto Douro e do Ribatejo, Alves Redol põe agora diante de nós, neste livro, os homens da Nazaré, "derrancados pelo trabalho, pela fome e pelo medo", tragicamente ao sabor da natureza, vivos no sofrimento mudo ou no mal pronunciado protesto.
Toda a acção deste extraordinário romance se encontra admiravelmente construída e o leitor terá muitas vezes a sensação de estar a assistir a uma sequência cinematográfica. As personagens vivem diante de nós, nervosas e ansiosas, num misto de poesia e realismo, que projectam em planos de insuspeitada grandeza o drama das situações vividas.
Um livro profundamente humano, que se inscreve entre os melhores de Alves Redol.
UM BARCO PRÓ MAR
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ZÉ DIABO NEGRO, José da Pala Zarro por nome de baptismo e de cédula na Capitania, vem lá do sul, pelo paredão fora, a regalar-se com os elogios ao seu bote, já pintadinho, que é um luxo, com as cores tradicionais da família. Sim, senhor, das famílias mais antigas da Praia, quase todos pescadores do alto, ainda os ílhavos não haviam chegado com as artes da xávega, essas de arrastar para terra, que são pescas de gente mais de lavoira que do Mar.
Tarraco de corpo, mais pela largura dos ombros e bojo do ventre do que pela estatura, aloirado e de olho muito azul, alvora alegria de grande festa, que se apalpa a distância pela maneira pimpona como caminha, de cabeça levantada e dando aos braços. Traz a borla do barrete caída para as costas, arrasta os tamancos para que o ouçam passar e pára a olhar o seu bote de vez em quando, ou a desafiar conversa com quem aparece, coisa que não cabe muito no seu hábito.
Vai com destino, prometeu aparecer na taberna do Tóino Aleluia a meio da tarde, mas não há sol que o aqueça mais do que mirar-se no seu bote. Pensa que a vida dele vai mudar, já resolveu largar o luto, também o
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traz há cinco anos, e guarda só para si um grande sonho que o desvaira, embora não saiba bem como pode resolver aquilo. Mas há-de resolver o caso, tudo se resolve, a questão é de um homem como ele trazer a ideia na cabeça.
Na cabeça e no sangue, mal dorme de noite a pensar na rapariga. Uma terra cheia de mulheres e logo lhe havia de dar para aquela, que é quase da sua família. E nova. Não será um sinal de que começa a estar velho?!... Velhos são os trapos e ele pede meças no Mar a qualquer rapaz. Até aos filhos. Mesmo ao Tó, sim, ao António dos Safios, como lhe chamam agora na Praia. E mais esse do que a nenhum, porque a mulher lhe pregou a partida e ele nem foi capaz de lhe pôr a cara de negro, havia de ser comigo, nunca mais lhe deixava a sombra, e sempre que a visse, já sabia: três ou quatro murros no meio dos olhos, bem ensejados, para lhos deixar pretos.
Não, velho não está, ainda hesita na maneira de concretizar aquela obsessão. Qualquer dia arranja uma zaragata lá em casa, põe tudo no olho da rua, à porrada, se for preciso, e fica só com ela. Quer lá saber de ditos! Talvez já não falte muito... É uma questão de meter uns copos a mais; sempre que bebe ganha fúrias de bicho.
Pensa nisto para se animar, mas no fundo sabe que não poderá resolver as coisas daquele modo. São quase trinta anos de diferença, não é brincadeira nenhuma, sobeja-lhe idade para ser pai dela. E a verdade diga-se: nunca adiantou conversa com a rapariga, ainda ignora o que ela pensa, embora pressinta que talvez não vá fora das suas ideias. Já a apanhou muitas vezes a olhá-lo, à socapa, e a fingir depois que nada havia de mal naquele namoro escondido.
Zé Diabo sabe de mulheres e de peixes...
O pior é que tem a mãe com ele, moram os dois filhos mais novos debaixo da mesma telha, e lembra-se de que
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os ameaçou quando viu a afilhada crescer e ganhar formas de mulher. E que rapariga!... Hesita agora em se interrogar: não gostaria já dela quando chamou os dois rapazes à pedra? Acha que não, mas confrange-se, receia ir até ao fundo das suas lembranças. Dissera aos filhos que mataria o primeiro que faltasse ao respeito à Maria Estrela, e percebe agora que foi longe, que será agora mais complicado falar com os rapazes se a Maria Estrela quiser. Sim, com eles pode arranjar uma zaragata e pô-los na rua, é fácil; então com o Manel, que já saiu de casa por duas vezes, não tem obrigações. Mas com a velha, com a mãe...
Se a afilhada quiser... Quiser o quê?
Uma rapariga solteira, que gosta de ter a sua casa, e que pode tê-la, para isso não lhe falta boniteza, será capaz de aceitar um homem da sua idade como amante?... Se casassem, era outra coisa, uma coisa mais direita e mais limpa, ficava tudo arrumado e ainda lhe podia dar filhos para a amarrar a si, quando a diferença de idades se notasse mais. Trinta anos de diferença pesa muito. Aquela terra é danada de má-língua, não faltariam paródias no Carnaval a falarem deles, e lá paródias comigo, não, antes atirar-me lá de cima do Sítio para o Mar... Ou meter uma navalha nas tripas do primeiro que se atreva a brincar com a minha vida...
Se calhar, estava a complicar o caso. Às vezes tudo se resolve sem as pessoas darem por isso. O tempo arranja muita coisa. E escangalha outras. Ele sabe o que quer. Também não se esquece de que um homem quando quer pode pregar grandes partidas ao destino. O pior, isso é que lhe dá volta aos fígados, o pior é que não pode esperar muito tempo, está com mais de 5O anos, e a vida nessas idades foge num sopro. As pessoas nunca percebem que um homem, se não nasce morno, tem sempre alvores
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dentro de si, mesmo já velho, ainda mais às vezes quando parece velho, porque a alma de um homem se apura com a idade, como a aguardente, pensa o Zarro. Quero lá saber do que os outros pensam!... Só eu sei o que posso...
Atravessa a rua quase a correr e encosta-se à parede da taberna antes de entrar.
Procura o seu bote no areal, entre muitas proas e cores, imagina por um momento que será capaz de ir até junto dele se lhe fecharem os olhos, conhece-o pelo cheiro da tinta, e logo o descobre entre os demais, parados, à espera que o Mar os deixe voltar à lida.
Traz consigo a fé de que o bote novo lhe vai dar sorte com a rapariga. Coisas da ideia acesa... Gosta de vê-lo, e então! Sonhou-o antes de nascer, foi ao pinhal com o Carlos escolher a madeira, discutiu-lhe o risco. Sabe tudo do seu barco, mais do que da afilhada, mas gosta de olhá-lo para ter a certeza de que ninguém lho levou. Como se a visse a ela... O nome que lhe pôs é segredo seu. E não foi fácil. A família bem quis contrariá-lo; a mãe e os filhos atiraram-se todos para a mesma banda, a teimarem com ele, mais isto e mais aquilo, amuaram, meteram o Abel Peixe-Aranha na contenda, porque não fazes a vontade aos rapazes?, e ele acabou por se calar, mas no dia em que lhe mandou pintar o nome nem almoçou... Sentou-se no armazém do estaleiro a fumar e a beber, discutiu o feitio das letras, e agora lá tem o nome inteirinho, quem gostar doutro ao seu jeito espere que eu morra e faça depois as coisas à sua vontade.
Zé Diabo Negro sabe o que quer.
Uma sombra projecta-se sobre o seu ombro direito e as-susta-o, como se lhe espreitasse para dentro do pensamento.
- Isso parece um namoro, ah Zé!...
- Vamos casar um dia destes. (Fala do bote e lembra-se da rapariga.)
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Maria Tocha vira-o passar e seguira-o até ali, sorrateira. Dizem-na bruxa, ela não nega, ao menos por isso falam-lhe no nome, mas só ela sabe que não tem poderes para pôr o destino da sua banda. Anda no trabalho dos cabazes, uma canseira suja, e Zé Diabo recorda-lhe a carne branca e rija quando a teve por amiga; ninguém dirá agora, poucos lhe mexeram, como eram os seus seios rosados e pontudos, pareciam lanças a querer traspassar um homem, pensa o arrais, quando olha para a blusa rota e manchada de salmoira. Nunca os seus dedos buliram noutros mais bonitos, duas cabaças pequenas e duras, tão dadas e tão fugidias que nunca mais as esqueci em toda a vida; sempre que peguei noutros me lembrei deles...
- Arranjaste agora menos dez anos, ah Zé Marau! - sussurra a velha. - Parece que viste pássaro novo...
- E tu mais de trinta...
- É da fomezinha que passo - insinua a Tocha.
- Bebes o que ganhas...
- Não bebo tanto quanto preciso. Ainda me recordo...
- Acaba lá com essas coisas! Já tens idade para ter juízo!...
Ainda lhe guarda respeito e a Maria Tocha cala-se. Cala-se, mas fica mirrada à sua beira, a receber um migalho de sol. Chama-lhe bruxa, e só ela sabe que nunca pôs o destino da sua banda. Para aquele Zé Marau (mais ninguém lhe dá essa alcunha) não serviram as salgas que lhe deitou à porta para que ele as pisasse e fosse procurá-la a casa. Arranjara um barraco isolado, no caminho para o Sítio, na suspeita de que ele lhe abalara por morar em rua de muitos olhos. Quantos medos passara nesse fojo, Santo Deus!... E Zé Marau nem assim lhe cruzou o rebate da porta, por muito recado que lhe mandasse, nem por mais encontros provocados que imaginasse para lhe pedir,
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quase de joelhos, que aparecesse mais uma vez, só mais uma vez... Nem essa vontade lhe fizera, aquele cão! Como se a uma mulher poeta no seu corpo e na sua cama se desse um desprezo de sarnenta.
- Queres alguma coisa? - pergunta-lhe o Zarro.
- Não, não preciso de dinheiro... Gosto de sol... Ele pensa entrar na taberna, espreita ainda lá para
dentro, mas receia agora magoar a velha. Receia neste dia discutir com ela. Recorda-se...
Também Mari'Tocha agarra na raiz do pensamento e se vê a amarrar o retrato dos dois, bem voltados um para o outro, para que Zé Marau nunca mais a deixasse em toda a vida; metera-os depois bem atados com linha dentro de uma garrafa com água, rezara tudo o que competia a um amor para sempre, ao fim do tempo os retratos não estavam desvanecidos, e nessa noite não dormiu à espera que ele lhe batesse à porta. Adormeceu cansada de manhã. E nunca mais!... Nunca mais o guardou na sua cama, uma hora ao menos...
Faz amarrações de retratos para as outras mulheres e poucas vezes falham. Só para ela as coisas não calharam, talvez por rezar depressa ou porque o Zarro tem pacto com o Mafarrico - alcunha bem posta, Zé Diabo Negro.
- Olha, Zé Diabo Negro! - diz-lhe num grito. - Nossa Senhora da Nazaré dê ao teu barco tantas alegrias...
O arrais abala para dentro da taberna numa corrida. Ouve-lhe a voz, mas não percebe o que ela diz. Mari'Tocha chega-se à porta, espreita lá para o fundo e cospe no rebate de pedra, pisando depois o seu cuspo com o pé descalço. Ele surge-lhe da escuridão, estabanado, e sacode-a pelo lenço.
- Enforco-te, grande coiro! Corto-te a língua com esta navalha...
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E mostra-lha na palma da mão. Mari'Tocha abala a chorar pela rua abaixo, sem alarido. O xaile tomba-lhe dos ombros. A correr, a velha assemelha-se a um corvo relho de cauda esfiampada.
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MARI'TOCHA manqueja quando corre. Quase salta ao apoiar-se no pé esquerdo, mas com o outro dá passadas curtas, como se lhe doesse pisar o chão. O arrais fica-se ali a segui-la com o olhar, gostava de sorrir e não consegue; a boca arrepanha-se, amarga-lhe, há qualquer coisa que o magoa também no fundo das lembranças. O tempo gasta as pessoas; e as pessoas ficam às vezes fora do tempo, a fingirem que por elas nada passou...
Tira uma bucha do bolso das calças; morde-a com raiva, pensa nos seios da velha, que só agora ele sabe como foram. Ainda estão vivos dentro de si, sim, vivos, são os mesmos, e nem Mari'Tocha se recorda de que os tinha bonitos e pontudos como a ponta de duas lanças. A velha não suspeita que ele nunca mais os esqueceu.
Esconde a navalha, põe-se a olhar a concha das mãos e fecha-as à medida que ele conhece de cor.
Num rompão, volta para dentro da taberna a ordenar que lhe encham uma garrafa de vinho, do vinho cartaxeiro que o Tóino Aleluia ainda não baptizou. Tem pressa, não percebe de quê, cada bafo do tempo o ameaça. Pega na garrafa, bebe e bebe, volta a metê-la à boca, e só então repara no Ova, sentado a um canto, a fazer rede com linha
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branca. João Ova passa ali os dias, agora, que as pernas não o deixam ir ao Mar.
O Zarro oferece-lhe bebida e ele mostra cerimónia, até que o outro o instiga num aceno de cabeça para que beba à vontade.
- Toda a gente diz que tens um barco novo bem arqueado - resmungou o Ova. - Tem feitio de pássaro, não enterra de proa...
- Não sou arrais de terra. Sei o que preciso...
- O Carlos fazia fortuna num estaleiro grande. Tem mãos d'oiro, sabe o que faz.
- E eu sei o que quero, ah, João. Não o larguei...
- Ele é um calafate de primeira. Preparou duas traineiras para Sesimbra que eram dois navios prà vaga...
Uma matula de homens chega-se para os ouvir.
O João Ova não gosta do Zé Diabo, mói-se com o feitio pamparreta do outro, sempre a presumir de mais sabido que toda a gente; no fundo também se ressente com aquela meia imobilidade que o atira para o esterco, como diz, enquanto ao outro não há mal que chegue. Arreganha-se com a má sorte, parece um água-mansa, mas sabe irritar o arrais com palavras cheias de equívocos. Agora elogia o calafate, para que todos percebam na taberna que a bazófia do Zé Diabo é odre vazio.
- Lá traineiras, sim, disso é ele que sabe; mas do meu bote fui eu que o ajudei no risco... Era cá uma ideia minha... Também já vou ao alto há mais de trinta e cinco anos; sei bem o que precisam os mares de longe.
- O Mar não conhece dono...
- Mas conhece os pescadores; não é um qualquer que lá vai...
- Quem ele conhece bem é o Joaquim.
Zé Diabo Negro irrita-se com aquele nome, todos lhe falam no Joaquim da Bôta, o único que discute com ele
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o lugar de campeão das pescas. A matula troca olhares; os que têm o arrais de costas fazem sinais a incitar o João Ova.
- O Joaquim tem sorte...
- E olhos.
- E cobiça. Nem aos domingos fica em terra. Só lhe falta varar o Mar na quinta-feira de espiga e no dia de São José.
- Ah hó! o Joaquim não é homem pra isso!... E um homem respeitador e santanário...
- Se não souber que vai um corso de peixe na Cana. Eu é que ando por lá com ele...
-E dá graças por isso... Tomara eu dizer o mesmo; era sinal de saúde, que não tenho.
- Inda estás vivo...
- Vivo? Chamas a isto andar vivo?...
Abel Peixe-Aranha entra com a roncadeira da bronquite danada, que o assinala de longe, bate no ombro do parente e encosta-se à mesa, mesmo à ponta do banco onde o Broa está deitado com a garrafa de tinto à mão. "Já não há respeito", diz para si, quando vê que o Broa nem se mexe. "Esta gente d'agora nem mede as idades."
Zé Diabo Negro bate no tampo do balcão, e vai depois farejar nas outras duas divisões da taberna, também cheias de homens que andam a entreter as horas de espera para os lances da xávega, onde o mar está um cão, a dar um peixe de nada. Falam no tempo dos lances ao candil. Diz o Alfredo:
- Se agarrar dois lances como na outra safra, quatro barcos cheios, tenho o ano ganho.
Os que o ouvem encolhem os ombros. O Tóino Aleluia pegou-se a discutir com um pescador que traz um peixe-espada na mão, por causa do
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campeonato da bola, e não ouve os fregueses. Zé Diabo interrompe-o:
- Enche mais vinho pra este pessoal todo. Assenta lá na minha conta...
Agarra o taberneiro pelo braço e arrasta-o consigo, à má cara, para a casa da venda.
Tira uma azeitona da algibeira, brinca com ela nos dentes e na língua; depois vai cuspir o caroço à porta.
- O teu compadre anda aí num namoro que até parece mal - repete o João Ova, a piscar o olho para o Peixe-Aranha.
- E tem razão... Nunca ele namorou coisa tão boa; vai ser uma espada.
O arrais volta-se para dentro da taberna e riposta-lhes:
- Em bote, não, lá isso não... Embaraçam-se os outros com a prontidão da resposta do
Diabo Negro, tão certos estavam de que ele não os ouviria.
- A conversa não é da tua conta, ah Zé! Eu falava aqui com o Ova; não metas o bedelho aonde não te chamam.
- Boa resposta -- chalaceia o João.
- Vocês já sabem que tenho ouvidos de tuberculoso. E quando alguém mete trunfo prò meu lado, gosto logo de atirar carta pra cima da mesa. Nunca me fico...
Regressa para junto dos outros a arrastar os tamancos, dando aos ombros.
Abel Peixe-Aranha acomoda-se no banco para lhe deixar mais assento; apetece-lhe pegar com o amigo e já engenhou rodeio para o estomagar.
- Ah Zé!...
Bate-lhe no ombro, agarra-o com a mão, puxa-o um pouco para si em confidência:
- Que querias tu dizer há bocado com essa do namoro?... Sim, do barco...
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Diabo Negro não pressente o enleio do compadre e joga-se para dentro da armadilha.
- Que nunca tive namoro de barco mais à minha feição.
- Lá vens tu a meter vento na vela; és capaz ainda de namorar outra coisa?
- Essa agora! - encrespa-se Zé Diabo.
Por momentos lembra-se da conversa com a Mari'Tocha, mas arremete para o outro:
- Então não me achas com ganas de namorar uma mulher?
João Ova passa um encontrão sorrateiro ao Abel, sorriem-lhe os olhos malandros e atira também o seu remoque :
- Davas um lance de quinze em quinze dias... Arrebata-se o arrais com a ofensa; incendeia-se-lhe o
rosto tisnado, esfrega os dedos nas sobrancelhas e pensa correr o Ova a palavrões e insultos. Detém-se, não quer estragar aquele dia, acabando por dar o outro ao desdém com um encolher de ombros.
- Fala lá por ti; já vais com sorte e deixa os outros...
- Ah Zé, tu tens mais de cinquenta! - recorda-lhe o Peixe-Aranha.
- Mais de cinquenta?!... Ainda me faltam dois... (E reforça a diferença com dois dedos bem espetados para o meio do Ova e do compadre, como se pudesse tirar-lhes os olhos de um golpe.)
"Já chegou ao monte do São Brás em menos dum forte", pensam os outros, querendo dizer na sua que afinara depressa.
- Dois?!... Ah Zé, tu fazes batota. Então, ouve lá... - Ah parente, não diga semelhante coisa - vacila
o arrais. - Então eu não faço quarenta e nove no mês da festa da Senhora da Nazaré?... Querem lá ver!
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- Quarenta e nove?... Peixe-Aranha repisa:
- Quarenta e nove?... Metes dois prò saco, ah Zé!
- Qual saco, nem meio saco. Então eu não sei quando nasci?
- Se calhar, a tu'mãe enganou-te...
Com os sorrisos da gentalha que os ouve, Diabo Negro aferventa-se:
- Gaita prà conversa! Enganou o quê?... Faz lá as contas.
- São boas de fazer... Tens a idade da minha irmã Alzira: cinquenta e um.
- E depois?...
- Meteste dois prò saco, aí à linda. Dizes que tens quarenta e nove...
- Ah hó! Tanto faz... Se calhar, a tua irmã conta com mais o par de cornos qu'o marido lhe pôs...
Riem-se todos da raiva com que o arrais larga o gracejo, pegando de seguida na garrafa, que baldeia em três goladas. Depois estende-a para o Aleluia e manda-o encher aquela e a outra que o Ova tem à frente.
-O meu avô, com setenta e três anos ainda fez um filho - remata o Zé Diabo.
- Isso é verdade - concorda o João. - Nunca vi homem mais mulherengo...
- A idade das pessoas está no sangue...
- E há outros que a põem só na ideia - insiste o Peixe-Aranha. - Não há nada mais triste do que um homem não aceitar a idade que tem...
O arrais cai em silêncio, saiu-lhe dali a ideia, todos o percebem, tira o barrete da cabeça e põe-se de esguelha para a companhia. Trocando sinais entre si, o Ova e o Abel confessam que não entendem a reacção do Zarro. Veem-no tirar uma bucha da cinta, esmagá-la nos dedos,
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parecendo distraído, e acabar por jogá-la de encontro à parede com ímpetos de destruir o que o cerca.
- Ah Zé! -cicia-lhe o compadre em tréguas.
- Não me seques - responde o arrais sem virar a cabeça.
Vidraram-se-lhe os olhos, as mãos doem-lhe, aperta-as, como se nelas esmagasse qualquer coisa que lhe desagrada. Peixe-Aranha sabe agora que o amigo está decidido a desforrar-se no primeiro, seja quem for, conhece-lhe bem o feitio brigão. Finge conversar em voz baixa com o Ova:
- Nunca nesta praia houve um bote como aquele, sou eu que to digo. Vai ser um cavalo prò Mar... O meu compadre sabe o que quer... Daqui por vinte anos ainda não há olhos como os dele para a pesca do alto. Sou eu que to digo, ah João!
- Talvez o filho, o Tóino...
- Esse precisa de nascer três vezes pra chegar aos rastos dos pés do meu compadre. Sim senhor, pode ser um grande bacalhoeiro, mas neste Mar daqui ainda o Sol não ouviu outro como o Zé.
Volta-se lentamente; precisa de perceber se o amigo continua a atravessar com ele ou se fala a sério. Se lhe vir um sorriso de troça na cara, esbandalha-o de encontro à parede. Paga-as todas, pensa o Zarro.
- O botezinho ficou-te caro...
Finge não ouvir o que diz o Ova. O outro insiste.
- Não interessa o dinheiro... O dinheiro só se fez pra pagar as coisas que são precisas - responde de mau modo. - Dou mais importância ao vento do que ao dinheiro...
- Falas como um livro aberto, ah'migo!
- E não sei ler...
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- Não há cartilha pior do que a do Mar, e dessa ninguém te dá lições.
Zé Diabo Negro esquece o desgosto que o outro lhe dera com a lembrança da idade. Ficara ressentido, sim, a rapariga é mais nova quase trinta e três anos, não é brincadeira nenhuma, mas as últimas palavras do parente enternecem-no. Põe-se a mastigar o vinho, gosta de o saborear, o Tóino Aleluia vende agora uma boa pinga cartaxeira, e saboreia também a alegria de ter a família toda junta, ao menos para calar a boca a essas enleadeiras; as malditas andavam a dizer que os filhos não gostavam dele.
- Agora os rapazes estão comigo, e vamos lá a ver quem é o campeão.
- Tens ali três leões - diz o Peixe-Aranha.
- O mestre Zé devia pagar mais uma rodada - chalaceia um dos que se chegaram para a conversa.
Zé Diabo faz ouvidos de mercador, não gosta que o comam por parvo, e finge-se mais entretido do que está.
- Mas nenhum se mede com o Tó - depenica o João Ova, sem tirar os olhos da rede.
- Esse é o campeão dos campeões cá da Praia, acrescenta outra voz do grupo.
- Um grande rapaz, sim senhor - confirma o Peixe--Aranha depois de virar o copo numa golada. - Pescadores daqueles há poucos agora...
O arrais volta a ficar com a asa ferida; não lhe gruda bem aquela fama do rapaz.
- Coisas da sorte!... O Zé sai mais à minha banda. Tem uns grandes olhos para a pesca do alto...
- Ah Ti Zé! Mas olhe que o Tó...
- Quem anda lá com eles sou eu; eu é que os vejo. Ninguém diz menos do Tó. Mas como o Zé. (Lá vai para
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os exageros.) O Zé vai ser o melhor arrais da Praia. É o meu retrato pintado.
- Parecem três leões, ali quem os vê - diz o Verdugo, que acabara de entrar.
- Só o Manel saiu mais macio...
- Mas é um grande motorista, ah parente! -anima o Peixe-Aranha.
- Tem mãos de relojoeiro.
- Onde põe as mãos é um milagrezinho.
- Mas olha: eu antes queria o Tó na companha que o melhor motor do mundo no bote - atravessa o Ova, que já sabe onde dói ao Diabo Negro. (Pronto! Não gosta daquela vaidade, que querem que faça?)
- Compra um bote e mete-o como arrais.
- Se tivesse posses... Até queimava os rastos ao da Bota.
- Quando arranjares o dinheiro, podes levá-lo.
- Isso é da boca, ah Zé! Tiveste sorte em apanhá-lo...
- Apanhá-lo? Ah hó!... Aquilo é prós três. Valia-lhe a pena andar numa lanchinha ao safio?
- Tirava melhor dinheiro - insiste o João, de novo virado para voltar o arrais do avesso.
- Tu sabes o que o meu bote pode ganhar? - reage Zé Diabo com arreganho.
- Não, lá isso não! Mas o rapaz sozinho...
- Aquilo dos cinco contos foi uma sorte! - desdenha o arrais.-Julgas que pescava sempre assim?
- Na Capitania já não o deixam ir sem camarada - acrescenta o Broa para agradar ao Diabo Negro, que lhe mandara encher outro copo.
Mas o arrais vira logo de rumo, todo encrespado com o calaceiro do Broa. O que ele diz - sempre é o pai - nada tem que ver com as palavras dos outros. Que ninguém
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lhe bula nos rapazes para fazer pouco... Isso, chiça, lá pra trás! Não faltava mais nada!
- A Capitania... Na Capitania sabem alguma coisa do Mar?
As palavras do Zé Diabo caem no silêncio. Agora a conversa fia mais fino, pode estar ali alguém que vá contar ao capitão. E na primeira altura um homem paga-as sem saber de quê.
Diabo Negro pensa no mesmo, mas o vinho empurra-o, já tem a sua conta, e nunca gosta de deixar as conversas em meio, não sou neto do João Zarro, que uma noite quis deitar o fogo às barbas de um capitão do porto?
- Então ele andou nos mares da Griolanda, sozinho, e é aqui que os marinheiros de água doce lhe vêm ensinar a arte? Ah hó!... Um primeira-linha como ele...
- Só num ano fez quase vinte contos - acrescenta o Ova.
-O que o desgraçou foi o ouvido...
-Ah rapaz! O meu filho é algum desgraçado?
Todos se calam.
A voz de Zé Diabo torna-se agreste.
Ferve-lhe o sangue, o sangue judio, como todos dizem do arrais. Depois fica a falar sozinho junto do balcão, quero lá saber de quem está, apetece-lhe obrigar os outros a discutir até ao fim. Mas receia-se do que dissera da Capitania, já falou de mais, e volta para o rebate da porta. Arrepanha-se-lhe a boca e o bigode do lado esquerdo da cara tisnada, tira uma buchinha da cinta que lhe aperta as calças, enrola-a nos dedos e deita-a para a rua.
A telefonia da taberna começa a tocar.
Ele espreita o areal, dá-lhe ganas de voltar costas àquela súcia, mas quer fazer-lhes ver que a festa do seu
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bote não é lá qualquer coisa. Então, volta-se para o Peixe--Aranha:
- Ah parente! Apareça logo na cabana. Vou fazer um gueste à moda -antiga... Não falte, faz favor. Quero juntar a família e gostava de o ver. E leve a comadre...
- A comadre está queixosa - responde o Abel. - Anda carregada de dores.
- Veja se a leva...
O pessoal saúda-o com gestos de mão; lá vai, paredão arriba, a dar aos braços, de cabeça erguida.
Os outros conhecem-lhe os sinais do feitio alevantado. Sabem da alcunha que lhe puseram há vinte anos, vêem-no de carão mais avermelhado, pisco nos olhos azuis e travessos, todo em bamboleios de jogador de rasteira, que nisso ninguém o batia quando rapaz.
Alguns vão espreitá-lo à porta.
O João Ova maneja a agulha da rede, assobia-lhe um acompanhamento e sorri amalandrado.
Os outros voltam-se bem para o sul, para a foz do Alcoa, onde uma cáfila de mulheres e homens envolve o saco da rede xávega que acaba de chegar a terra.
- Nem o Brasil agora dá pêxe... - diz uma voz quando vê desfazer-se a mancha de gente que rodeara a rede.
Sim, nem o Brasil, que é o melhor lance dos barcos que arrastam para terra. De vez em quando uma pranchada de carapau para atiçar as esperanças, e depois, quando muito, uma caldeirada para as companhas, um enxalavar ou dois, coisa de nada para quem sai do Inverno.
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---VAMOS com o arrais.
-Deixa-o ir sozinho. Ou és sócio do bote?
- Eu, sócio?!... Sou sócio do Tomé da casa de penhores. Só me falta lá ir pôr os filhos.
- Ele não dá dinheiro por isso...
Há quatro meses que nenhum deles ganha mais do que uns peixitos de vez em quando, como recompensa de ajudarem a alar as redes da xávega. Mas o carapau anda arredio da costa, as águas estão frias e os barcos daquela arte só entram ao mar para não perderem a vez nos lances. A sorte pode dar uma pranchada de peixe de um dia para o outro. Em terra já começou a Primavera. Só ao Mar é que o Inverno continua agarrado. Nem as traineiras nem os botes do alto largaram ainda o paredão.
Deitados na areia, os dois homens esperam que chegue o fim da tarde. o padre vai benzer a lancha e a companha; bem precisam que os abençoem, aquilo assim não é vida.
- Corna de vida... A minha mulher não tem ido à venda. Anda inchada... O doutor disse-lhe que nunca mais podia andar muito.
- Só não ensina a ganhar o dinheiro...
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- Isso não é da conta dele...
- Só a gente tem de dar volta a tudo.
O Cardeal e o Barrasquinho resmungam aquele diálogo, ambos virados para o Mar, que não deixa de bater na areia.
- Sem o dinheiro da mulher não m'aguento - diz o Cardeal.
- Inda tens a casa para alugar aos banhistas. Agora eu...
- Ao menos tens todos de saúde.
-Pior!... Traz tudo mais vontade de comer...
-Pedi um dinheirito ao Diabo Negro por conta da pesca. Quase me bateu, o malandro. Que fazia muita despesa com o bote...
- Ah hó! E que lhe disseste tu?...
- E o que dizias tu?
- Eu?!... A gente acaba por perder a fala. Também a vontade de trabalhar não é nenhuma. Pra quê?!...
- Quatro meses sem ir ao mar...
- Ainda fizemos seis viagens no bote velho. --Não se tirou prà isca...
- o arrais diz que com este as coisas vão mudar.
- É uma fé que ele tem... Por causa dos filhos...
- Se calhar, os filhos chamam o peixe à borda do bote como as mulheres fazem às galinhas... Pi-pi, pi-pi, pi-pi.
O Cardeal sorri, baixando a pala do boné para os olhos. o Barrasquinho puxa de um cigarro, à socapa, não vá o outro perceber que comprou um maço, e acende-o com o isqueiro de pederneira.
À volta do bote do Diabo Negro a conversa anima-se.
Já apareceu o Corrucho, outro homem da companha. Vem de camisa nova de escocês e ceroulas do mesmo pano, pretas e brancas, que mais incendeiam o amarelo predominante da outra peça de roupa. É um arganaz, todo pernas e braços mal ajeitados, mas cioso do barco - nem que fosse dele lhe queria tanto!
- Tem um grande lançamento, lá isso tem.
- Nem o Mar Santo do Zé Broa lhe ganha...
- Mesmo em Peniche não há outro assim - arremete o Corrucho com voz de pífaro.
- E os de lá pescam quatro dobros - responde-lhe um velho.
- Quer comparar? Olha que fala essa!... O nosso Mar é mesmo um Mar Amarelo.
- Já sei o que vais dizer: é por causa do porto. Mas o porto desculpa muita coisa. No meu tempo também não havia porto e a gente atirava-se mais.
- Atirava-se mais, ah hó! Lá vai vossemecê à mesma conversa. A gente somos feitos de barro, querem lá ver!
- De barro ou de bosta de boi...
- O porto não faz falta? - Não foi isso que eu disse.
- O porto há-de vir quando o pinhal der vinho em lugar de pinhões...
Quatro rapazes, já espigadões, armam ratoeiras às gaivotas que rasam a praia e a franja das ondas. A gaivota dá bom comer; é carne e peixe ao mesmo tempo.
Lá em cima começam as companhas a levantar as redes que estavam a secar ao sol. Fazem-no em silêncio. A praia fica mais desolada sem elas. Só um grito humano, desgarrado, galga a voz soturna do mar.
As mulheres da seca do peixe lá andam na faina. Vão transportando à cabeça os tendais de madeira e rede metálica para os armazéns. Andam agora naquela lida sem fim. E ainda bem. Muitas delas foram de noite, ao pinhal, larapiar a lenha que já venderam pelas portas, às escondidas da polícia, que anda agora a persegui-las; outras
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mulheres passaram horas sem conta, ali aos portais da Frente do Mar, à espera que chegasse alguma traineira de Peniche com sardinha para transportar à lota e depois aos armazéns. São as cabazeiras. As mulheres que conhecem melhor a chuva e o frio das noites do litoral.
Maltrapidas e lentas, as velhas vão à procura da réstia de um sol enfermiço e olham o mar que vascoleja, ora brincão, ora arrebatado. Devem desfiar orações e lembranças de uma vida inteira passada ali, entre mexericos e canseiras, alegrias exaltadas e dores terríveis de sustos, que as suas vestes negras arrastam agora sem esperança. Manquejam, abanam os braços como pássaros feridos, e sentem-se de costas apoiadas às paredes brancas, onde a dor fica mais desenhada.
Saltarinas, a peneirar as ancas, passam as raparigas. Vêm procurar ali os olhos que as mordam. Vão nos bicos das suas saias os olhares gulosos dos rapazes sem mulher, os ditos das enleadeiras que sabem todas as histórias de escândalos da Praia. Cruzam-nas as últimas companhas que vão para o norte com as redes, o rapazio que joga a bola, os guardas fiscais e os cabos do mar. E os velhos de gabinardo.
E os homens taciturnos, alguns já zarros pelo vinho, a pensarem que não poderão ficar ali por muito tempo. Já partiram os do bacalhau, as notícias não são boas, parece que o peixe fugiu dos lugres; foram outros para Peniche e Matosinhos, alguns abalam para África, outros falam do Canadá...
- A nossa terra parece um barco encalhado à borda do Mar...
- E o Mar a bater-lhe e a desfazê-la... --E a gente nisto.
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- Se ao menos pusessem ali um quebra-mar...
- Ninguém se aguenta aqui por mais uns anos.
- E uma teima nossa.
- Quando vier o porto d'abrigo, só cá encontram velhos e cães...
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AQUELES quatro não pensam agora em lamentações. Ri-se-lhes o corpo todo à vista do seu bote, varado ali no areal com as cabaças muito bem pintadinhas de branco e vermelho, presas, em molhada, ao pau "polóino" e à verga, cabaças que hão-de distinguir no mar os sinais das linhas iscadas. O vermelho e o branco são as cores da família, desde há muitos anos, antes de virem os ílhavos para ali, e foram elas que assinalaram as descobertas de mares novos por essas águas além, quando os arrais se afoitavam a remos e à vela até à Cana do Noroeste.
Sabem o bote todo de cor, têm-no ali bem nos olhos e já são capazes de o desenhar com eles fechados, tábua a tábua, todas em madeira boa do Pinhal do Rei, sequinha e ainda cheirosa a resina que é mesmo um regalo.
- A Virgem da Nazaré o acompanhe por esse mar traidor... - pede a Mari'Cristina, a Mari'Zarro, sentada na areia com o filho e os dois netos, já que o outro, o António dos Safios, nem ao mando dela se aproximou.
Entretêm-se para ali os quatro e nem falam agora. Falar para quê?!...
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As conversas que deram a tabica e a tábua do embornal! Teimas do Carlos Calafate... Queria-as ainda mais finas, como se não fosse a elas que se agarrasse a cinta da borda, o mesmo é dizer a boca ou o feitio do bote. Ali se lhe vê a graça toda; são como o peito e o desenho da anca na mulher, refilara o Zé Diabo, dono e arrais, pois então!
No fim, entre a cinta e o embornal lá lhe meteram o alcache, onde estão pintados agora o nome do barco e o número da Capitania.
"É mesmo uma lindeza que ali está. Uma flor", pensa a Mari'Zarro! "Uma estrela das mais bonitas de todo o céu", diz o filho para si.
O costado, abaixo da tábua de boca, de um vermelho que queimava, ficara todo branco até à linha de água, e daí para baixo muito negrinho, da cor do verdugo, enquanto a borda era toda vermelha, só assinalada de branco nos dois castanhos, que hão-de servir na proa para trilho das cordas de amarração das poitas, quando fundearem no Mar para as pescas do safio ou do anequim.
Depois de metido o convés, prontos os três porões, bem fechados com as escotilhas, nova arruaça com os dois filhos mais novos por causa da cor de dentro. Aí fez a vontade aos rapazes: pois seja azul, cum raio!
E ficou bonito, sim senhor, os rapazes tinham razão, embora fosse dele a ideia de lhe porem um azul mais claro. Agora ninguém se lembrava de tricas por causa disto e mais aquilo. O Carlos era um grande calafate, dá cá um abraço, não sei pra quhavemos de estar com reservas. O outro dissera: "Foi a melhor coisa que ainda me saiu das mãos. Eu punha-lhe o nome de um pássaro... Alcatraz, como o outro. Isto vai ser um pássaro!"
Zé Diabo Negro nem lhe respondera. O nome pertencia-lhe.
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Assim se fizera, como também o bote não era só de poço, embora se tornasse mais pesado; mas só ele sabia o que o Mar pede quando se encrespa, pois já não é a primeira vez que um bote do alto se alaga com uma volta do Mar. E ele queria um barquinho capaz de se meter por esse inferno dentro, um bote que fizesse morder de inveja o Jaquim da Bota, e mais ainda a mulher, toda andarilha e azevieira com as vaidades das pescarias.
Como se o Mar não fosse uma roleta ou um baralho de cartas, onde a sabedoria manda menos do que a sorte. E então o da Bôta, que andara no candil e na xávega, artes de qualquer, e se queria agora medir com ele, a quem os dentes tinham nascido a ouvir falar o avô e o pai de todas essas poitadas, que são as pedras do fundo do Mar e onde os peixes arranjam os casulos para se meterem. Casulos, pois então! Que nome se lhes há-de chamar?
E a mulher, a corna da mulher, a dizer para quem a quisesse ouvir: "O meu marido não tem pai na Nazaré..."
Assim a querer fazer pouco dos outros, como se nenhum pescador soubesse mais do que ele. Ah! gente da Praia!... Ainda havia de nascer dez vezes, respondera a Mari'Cristina, dez vezes, ou mais ainda, outro arrais a quem pudessem chamar o rei do Mar da Nazaré, pois na sua família três homens, três homens, à linda, tinham descoberto mares novos para esses gulosos pescarem hoje! Dois mares acamados de safios e outro de pescadas gradas. Lá tinham o nome dos Zarros para quem não soubesse da vida do Mar. Sempre a gente ouve coisas!...
- Ah 'nha mãe! Não foi o seu avô que descobriu aquele pesqueiro no Mar Donzela?
- Foi, sim, rico filho!
Zé Diabo Negro não dá seguimento à conversa, mas a velha percebe que ele está a pensar no mesmo.
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Mari'Zarro sabe que o filho irá tirar desforra ao Jaquim da Bôta e aos outros, agora, que já meteu os três filhos na companha, os seus ricos netos, sim senhor, a trabalharem todos para o mesmo monte, pois o Tó deixara a mulher, e ainda bem, que uma égua assim frescal não é para homem do mar. Desavergonhada! Desavergonhada aqui na Praia, no Sítio e na Pederneira! A fingida - ah! mulheres, isto há cada uma! - a vestir-se com roupa velha e escura, a dormir na esteira, ao pé da cama onde o homem dela a fizera mulher, como as outras que têm vergonha na cara, e enquanto o Tó andava lá no banco a matar-se por ela, aquela desgraçada a gastar-lhe o dinheiro com o filho da Jazevina e sabia-se lá com quantos mais... E então ela não havia de pagar? Olha, pois não! Pagou, à linda, que aquilo não eram desfeitas que se fizessem a um homem tão andorinha prà sua casa. A vida cuspira-lhe na cara com tanta lambada que o outro lhe dera. Que nunca as mãos lhe doessem! Se não tinham jeito pra mais nada, ao menos que servissem pra enxugar no corpo da Deolinda a peçonha daquele sangue de cadela aluada.
Mari'Cristina sente alvoroçar-se-lhe o feitio atiçado.
Sabe que o neto não acamarada ali com a sua gente por causa da desfeita dessa porca calheira, mas também acha que ele deve esquecer certas coisas.
Perto, pode tocar-lhe quando quiser, está o rico barquinho do seu filho, e isso compensa-a agora de muito desgosto que a vida lhe tem trazido.
O que lhe vale, pensa Mari'Zarro, é que na sua família só há gente de vergonha!...
Mas logo lhe ocorre a alcunha de Diabo Negro que puseram ao filho, e olha-o de revés. Sim, de sangue judio é ele, ninguém o aguenta quando enxuga uma pinga a mais; se as venetas lhe puxassem para aí, era capaz de
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agarrar na areia toda da praia e entulhar as ruas. Nem que levasse nisso o resto da vida. Opinioso da sua palavra não conhecia outro; era vê-lo ainda de luto pela mulher, que Deus tem, e já lá vão... o quê?... mais de cinco anos que a Preciosa morreu. Só não anda de gabão e embuçado na dor da morte dela. Mas nunca mais lhe conheci outra mulher das suas portas pra dentro, lá isso não, É um favor que lhe devo.
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AINDA o corpo da Preciosa não arrefecera na cova, o seu Zé estendera-se no chão da cozinha, de garrafa ao lado, já os dois filhos mais novos e a afilhada dormiam, e Mari'Zarro puxara a conversa que pensara ter com ele, mal vira a doença da nora a levá-la prà morte.
- Ah! Zé! Quero dar-te uma palavra... Começara assim com voz de mel. Ele nem levantara
a cabeça, parecia até que a não ouvira. Ela arrependera-se depois daquelas pressas, era um defeito do sangue da sua gente, querer tudo sem demoras.
Pusera-se a beber uma pinga de café frio, nem mais uma palavra entre os dois, e daí a pouco diz-lhe o filho:
- Então, ah mãe! Perdeu a fala?
- Não, não perdi, rico filho. Mas fica pra outro dia... - Todos os dias são dias. Quer falar da Preciosa?
- Quero, sim.
- Então, fale...
Vira-lhe aquele jeito de franzir a cara do lado esquerdo e uma tristeza funda nos olhos muito azuis, como se o mar lhos tivesse dado.
- Fale lá, mas não diga que lhe dei má vida... Isso sei eu...
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- Não sabes tudo.
- Ela perdoou-me tudo à hora de morrer. Chamou-me e disse-me que não levava escândulas minhas.
- A Preciosa era uma santa!
- Também tinha as suas coisas...
- Para aquilo que lhe fizeste...
- Nunca lhe faltei com o pão... Nem pra ela nem prós filhos.
- O pão não chega a tudo, Zé.
- Mas é o que custa mais.
- O amor é como a água nas flores... E lá nisso... O filho voltara-se agressivo e ela encarara-o para lhe
lembrar que não receava os seus arremessos.
- É como te digo, Zé. Tu nunca foste um bom marido.
-- Ela perdoou-me tudo. É melhor acabar.
- Já me calo.
Tinha a tigela vazia, mas metera-lhe a boca para esconder a ira que lhe nascera no coração. O filho levantara-se, pusera-se a puxar a cinta e depois acabara por desatá-la, enrolando-a melhor. E não tirara os olhos dela, à espera. A velha sabia que ele não tardaria a pedir-lhe que continuasse; não era homem para deixar as coisas em meio.
- Diga lá, então, o que quer.
- O quê?!... (Havia de moê-lo.)
- O que me queria dizer...
- É pouco. Pode ficar para outro dia.
- Lá está vossemecê!... Ah mãe!
- Se calhar, parece-te mal.
- Vossemecê pode dizer tudo. - Achas que posso?
- Pode.
- Então, senta-te aqui à minha beira.
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Obrigara-o a chegar-se mais, coçando-lhe a orelha, e o filho sorriu, a lembrarem-se os dois daquele gosto que sempre guardara desde menino. Era assim que o adormecia.
- Olha, Zé! Tu és homem... E os homens são piores
do que as mulheres...
- Do que algumas...
- Essas que não têm vergonha não são mulheres pra mim. Mulher é a que anda de rastos, se for preciso, para o homem dela se pôr limpo ao pé dos outros. O homem é a nossa casa cheia, é o sol da vida da mulher. Deve--se-lhe o respeito na vida e na morte, e mais ainda na morte, porque eles não podem defender-se das bocas do mundo...
- É isso que tem pra me dizer?
- Mais ou menos. Se quiseres trazer uma mulher aqui para casa, se pensas em dar madrasta aos teus filhos, só te peço que me digas.
- Quer escolhê-la?
- Não. Não, porque nem eu nem tu encontrávamos outra mais poeta do que a Preciosa. Mais poeta no asseio e no amor que te tinha...
- Não diz nada que eu não saiba.
- Ainda bem.
- Então, salte lá com o resto.
Maria Zarro encarara-o bem nos olhos para ele não ficar com dúvidas:
- Quando outra aqui entrar, saio eu.
- Ainda sou novo...
- Não faltam aí mulheres que te deixem pisar o rebate da porta delas. Aqui dentro é que não.
- Sou homem de poucas mulheres...
- Eu só disse uma mulher aqui dentro.
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- Então fique com a minha palavra. Acredita na minha palavra?
- Acreditei sempre.
- Então oiça lá; e oiça bem: nesta casa não entra outra mulher para dormir naquela cama. Por muitos nomes que me chamem, sou um homem de vergonhas...
Sim, a verdade deve alumiar-se, mesmo com o coração pisado. O seu Zé fora sempre um homem de vergonhas. Torto e ruim, mas a sua palavra valia uma escritura e nunca se negava. Ainda não tivera razões para pensar outra coisa.
Fora das suas telhas, o que sabia ela? Há agora por essa Praia tanta mulher descarada!... A precisão não dá bons conselhos e as banhistas também não deixam bons exemplos. Algumas mulheres da Praia mais parecem agora barcos da ardentia, rua abaixo, rua acima, à espreita sabe-se lá do quê. Agora anda tudo trocado: as mulheres procuram os homens; por isso já não são as mesmas rainhas do seu tempo de rapariga. Mas o filho soubera cumprir a palavra. E já lá iam cinco anos.
Uma ponta de vento agreste corre da banda do Mar inquieto. Mari'Zarro puxa a capa negra para o rosto, olhando o filho de revés.
Zé Diabo Negro nem se lembra do jantar. Os dois filhos mais novos estão estendidos na areia, a conversarem, por certo, em coisas de rapazes. Em que haviam eles de falar? Só o Tó não chegava, parecia não dar importância ao bote. E isso magoava o arrais, embora soubesse, de certezinha certa, que na Nazaré não se encontrava outro mais leão para o Mar. Só não gostava que passassem a vida a lembrar-lho, a ele, seu pai e pescador com dois olhos na cara.
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Não lhe perdoava (lá isso não, e já lho dissera) o desprezo com que o ouvia falar das coisas da lancha. De uma vez trouxera-o à conversa:
- Ah filho! Com'é que havemos de pintar o nosso bote?
E o Tó não lhe dera resposta direita:
- Ponha lá no barco as cores que vossemecê quiser. Ponha as mesmas do outro. Qualquer cor serve... A nossa gana prò Mar é que faz o bote ser afoito.
Falas de um homem melindroso com as chapadas da vida. Também só por isso não lhe dera troco. A desfeita da mulher, a saída do lugre onde chegara a primeira--linha... E porquê?! Porque se afastava muito e não ouvia bem a sereia de bordo. O ouvido esquerdo começara a pôr-se-lhe um bocado rijo, e pronto! Até o vira chorar... Rico filho!
Com o nome do bote também ele se pusera do lado dos irmãos. Todos queriam que se chamasse Preciosa, o nome da mãe. Uma ideia bonita, sim senhor, lá isso era. Mas ele ficara na sua...
- Estrela do Mar é que há-de ser... Faço um gosto que tenho desde pequeno.
Só ele sabia o significado daquele nome.
Zé Diabo Negro olha para os dois filhos e para a mãe, toda embuçada na capa e nos desgostos, e sorri à socapa, fingindo-se entretido com uma mãozada de areia que deixa escorrer por entre os dedos.
O bote lá está. Parece mesmo uma noiva já virada para o seu destino. Com um ramo de flores no bico da proa e mais dois, lá atrás, nos bordos da ré. O nome a preto; e pintadas de cada lado, mesmo à frente, duas estrelas amarelas, que dá gosto vê-las. E mais algarvias, o branco e o vermelho, que são as cores das cabaças e dos arrais da sua família.
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LÁ em baixo, no topo, as ondas crescem, grulhas e soturnas. "O Mar bate, é sinal de Mar ruim", pensam todos. Os que andam pela areia e os que o ouvem em casa ou nas tabernas. É um rolar de tambor, um som cavo...
A noite avança do Mar, como se as ondas a trouxessem.
E tornam-se de um azul mais negro, de um azul que logo se esfanica na ondulação esborralhada a galgar para terra.
As vozes ganham relevo.
Ficam marcadas no silêncio, que se ouve para além do rugido das vagas. Marcadas no silêncio, como os pés na areia quando o Maratola na borda.
A grimpa das ondas alveja ainda, a espenujar-se.
E o rolo, cavo, cavo, a bater.
A bater ameaças.
E a praia sozinha, já sem vozes de gente, com os barcos chegados ao paredão, e em cima do paredão, e alguns nas ruas, numa súcia de cores a esmo, formas brandas e mastros curtos apontados ao céu, fustigadas as sombras por um vento sudoeste vindo da banda do Mar. De um Mar
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a quebrar longe, agora mais longe, e a galgar a direito numa ira danosa, que põe as velhas a rezar em casa, mesmo sem barcos dali no meio do malvadio.
"O Mar é só um, e há gente da Nazaré nos mares da Griolanda, e há gente doutras praias nesses mares todos..."
E o rolo cavo, cavo, a crescer.
Os homens atormentam-se nas tabernas, vai mais um copo e outro; depois de bem bebido um homem já não arrasta mágoas. É como se morresse por algum tempo, mesmo com mar ruim, mesmo com ventos ásperos; enquanto dura o balancear do vinho, um homem julga-se rei ou julga-se nos braços da mãe, ainda menino, sem ameaças de malvadio.
E o rolo cavo, cavo, a bater.
E de repente, de chapuz, uma onda de trevas a tapar a praia.
Vem lá mais outro fogacho. Deve ser o Cardeal; se calhar, deitou fora o archote e foi pedir mais um fogacho à traineira do primo.
Acendeu-se o farol na ponta do promontório.
O Guilhim mal se adivinha. O Mar baba-se-lhe em cima. Uma baba branca, pastosa.
Quando o Mar se põe naquele jeito de ruindade, os pescadores dizem que o cavalo está baboso.
- Cavalo baboso, ou mar ou ventoso.
Está certo o adágio dos velhos, porque o vento acomete como um poldro assomadiço e genioso.
Manel Zarro sente frio, deixa o irmão sozinho e chega-se para junto do pai.
- Se calhar, o padre não vem - diz o rapaz.
O velho, como os filhos o tratam, puxa a orla do barrete para os olhos e acena a cabeça. Ele sabe o que combinou com o padre.
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O Sr. Prior chegara no automóvel novo com grande escândalo de Mari'Zarro, ah mulher! se já se viu uma coisa destas!... E andou Nosso Senhor descalço, coitadinho, com a cruz às costas..., engrolara uma bênção apressada, como se a ventania o ajudasse a moer o latinório, e lá se fora pela avenida acima com o carro em tal roncadeira que ninguém adivinharia ir ali, por Deus e na sua graça, quem naquela terra guardava as chaves da bem-aventurança.
O Tó aparecera na altura própria, surgindo, em jeito de mágico, detrás de uma barca velha que o Olhinha entregara ao calafate, e para ali ficara de gorra na mão, afastado dos companheiros, a farejar para a borda-d'água (sabia-se lá o quê!), embora a avó lhe tivesse pedido de voz melada: "Ah neto! Ah Tó! Faz o gosto ao teu pai, rico neto! Vai ali mais prò pé do botezinho, anda!..."
O rapaz dera dois passos à má fé para junto do irmão mais novo, mas logo os desfizera, sorrateiro, quando a avó se foi ajoelhar à proa do bote com as mãos postas a rezar. Ele sentia que o bater das ondas já era outro, que o seu espraiar na areia se fizera mais brando, embora o vento mareiro viesse frio e ainda brincasse com as vestes
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do padre e o lumaréu do fogacho. Da banda do Mar os céus continuavam grossos. E Tó Zarro pensou: "É vento rijo que anda por lá... Coitados deles se apanham isto."
Lá era a Terra Nova e a Gronelândia, onde as amizades e os ódios se vivem até à raiz, onde tudo é grande, mesmo o homem, ou ainda mais o homem, sempre monteado entre a coragem e o medo.
Chegara lá com 18 anos, feitos na viagem, e entrara logo para o Mar; gostava que lhe chamassem "verde", passou a gostar mais da cor só por isso, e calhou-lhe um "maduro" da Figueira para o ensinar, o Ti Garçoa, bom mestre e melhor camarada. Estava a vê-lo, alto e seco, já viera visitá-lo à Nazaré depois que recebera ordem de desembarque; acabaram os dois a chorar com lembranças desse tempo, e não podiam queixar-se só do vinho, não, embora ambos tivessem carregado o odre mais do que a conta. Se no Mar um homem matasse peixe como as palavras puxam lembranças, o Mar ficaria vazio em poucos meses.
Ah amigos, que saudades lá do banco!... Um homem descarna-se, bebe Mar e come sustos, mas as coisas de terra parecem outras a bordo de um lugre entre camaradas. Sim, pois, os bacalhoeiros, e mais ainda os da Figueira e da Fuseta que os da Nazaré. Grandes camaradas os da Fuseta e da Figueira! Gente de verdade, feita de uma peça, capaz de olhar a direito para outro homem qualquer. Com eles, os capitães e os armadores não fazem falseta. Medo daquele Mar não há homem que o não sinta. Que vão lá os valentes e contem depois o que viram e passaram. Mas os bacalhoeiros sabem bem o que vale um pescador.
"Se não fosse o sangue da gente, ninguém comia bacalhau. O bacalhau é peixe com sangue nosso desde a cabeça ao rabo", dizia muita vez o Ti Garçoa e repetia-o o Tó
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Zarro quando se falava de pescas e de brisas nos mares da morte. Lembrava-se dos amigos e o corpo bulia-se-lhe com a mágoa de ter desembarcado: só porque se pusera duro de ouvido e se esquecia com o dóri pelo Mar dentro. Diziam que se queria matar por causa da desfeita que a mulher lhe fizera... Essa desgraçada!
Vivia agora para mostrar a todos que não ia ao bacalhau por birra de capitães; e que se a mulher o trocara por um vadio é porque a sina dela não dava coisa boa. Isso sabia-o todo o povo. Nem barriga tinha para gerar filhos. Por isso se dizia na Praia, quando o Mar não dava peixe, que ficava como a barriga da Deolinda.
Desgraçada! Quem a visse agora maltrapida e maltratada, nem podia adivinhar quantas galas de rainha pequena já granjeara. Só o mordia que ainda usasse o nome dele... Casara-se na igreja, ficara agarrado para toda a vida àquela dor que lhe punha o coração mais negro do que a noite... Ao menos, lá no lugre, podia esquecê-la por seis ou sete meses. Agora, se o não deixavam embarcar, também não ia sair dali. Não voltava a cara à vergonha. Mas não o obrigassem a entrar em festas ou a chegar-se muito para o padre que os casara. A sua vida era o Mar. O Mar da sua terra. Que lhe importavam, pois, as rezas do prior e a festa na cabana?...
O pai quisera um gueste a preceito, como nos bons tempos. Ceia de bacalhau e pão, vinho em barda, e até música para bailarem. Não, não lhe puxava o corpo para dançar. Tinha o pé pesado. Nunca dera para homem de danças. Acompanhara-os até à porta da cabana, fingindo ir verter águas a um canto da ruela, e aí voltara para o pé do Mar, a roer aquela solidão que o matava. Àquela hora os outros estavam a escalar e a salgar o peixe. Dormiriam cinco horas, quando muito, e às quatro da manhã, ala! E ele na pasmaceira!
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Zé Diabo Negro dá por falta do Tó, pisca os olhos e atravessa-os, em sinal de que o sangue lhe ferve, mas tem ali o resto da companha, as mulheres e os filhos dos camaradas, e jurou a si mesmo que a festa do bote novo há-de dar brado.
Já veio o João Polaco, o melhor bandolim da Praia, um alma danada com música na ponta dos dedos. Está quase cego, mas tira das cordas todas as modas da telefonia. Só quem o viu no último Carnaval pode saber o que vale o Polaco como tocador. Andou na banda infernal da taberna do Coelho, fez o baile de domingo num barracão da Quinta da Bufa, lá estava com a cegada dos Cações na segunda e terça-feira, e ainda tivera unhas para tocar no enterro do Entrudo, quando a malta queima na praia o boneco malandro e as carpideiras choram a morte daqueles quatro dias de esquecimento. O Polaco deve-lhe obrigações e não faltou, embora deixasse de ir pescar com a sua cana de rolete lá para o areal da Foz, onde tem a fé. Já não pode ir <ao Mar, mas não descansa, porque nunca um peixe o enganou quando lhe morde a isca, e os filhos nascem-lhe ano sim, ano não, e todos comem, os malandros, diz ele num sorriso amargo, a encolher os ombros.
- Ah João! Conta lá aquela com a tua cunhada...
- Ah! Deixem-se de graças...
O Polaco encolhe os ombros e logo todos riem com o seu ar ingénuo, de olhos azuis, parados, a tentar descobrir a voz que lhe fala. Já sabe quem é.
- Ah és tu, Cardeal, meu langão? Disseram-me que andas agora amigado coa Taneta...
- Ah hó! Uma rede que tem apanhado todo o charro que há na Praia...
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- E se fosse só charro... - diz a mulher do Barrasquinho, uma língua de prata. - O meu, agora, deu-lhe também pra ter pena da neta dela, da Irene...
- Cala a Boca aí, rapariga! Sabes lá o que estás a dizer...
Vê-se que o Barrasquinho não gostou daquela bisca e todos lhe pegam, no meio de gargalhadas, sentindo-o a jeito para se vingarem dos seus remoques. Mari'Zarro está sentada ao pé do filho e manda a MarfEstrela trazer mais bacalhau para o pessoal. O vinho some-se.
Zé Diabo Negro dá o exemplo. Mete o garrafão à boca, depois de comer uma buchinha de pão que tira da cinta preta. Prefere aquelas buchinhas ao pão inteiro que está em cima da mesa baixa, armada com panais e gigos. Bebe, bebe de um fôlego, e os filhos repreendem-no com o olhar triste. Quando o pai bebe, eles lembram-se da mãe. O Manel, o motorista do bote, recorda-se ainda melhor do que o Zé Diabinho. Não admira. E apetece-lhe dizer ao pai, mais uma vez, que o nome do barco devia ser Preciosa. Gosta de pegar com o velho.
Zé Diabo Negro não sabe o que os filhos pensam, entrega o garrafão ao Polaco, mas põe-lhe uma condição:
- Tens de contar como foi isso com a tua cunhada...
- Também o arrais? - responde o cego.
- Vá, conta - insiste o Comicho.
Todos se chegam para o tocador, que tem o bandolim entre pernas e levanta os olhos, como para encontrar o fio à história. Talvez procure o lumaréu do fogacho a arder por cima da sua cabeça.
Encolhe os ombros, sorri, e começa na sua voz roufenha, como se o corpo franzino fosse cana rachada.
-Eu já via pouco... Já via pouco e era de noite...
- E sabias que a tua mulher estava na Frente do Mar a ver se vinha sardinha.
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- Não sabia, ah Barrasquinho! Digo-te que não sabia...
Mas o rosto do cego sorri e os outros riem às escâncaras, percebendo-lhe a travessura do sangue alvoroçado.
- E vou eu oiço os passos da mulher na outra casa da barraquinha. Andava assim com uma coisa pesada dentro de mim...
- Era alguma porta - interrompe Mari'Zarro.
- Ah Ti Maria! Um homem que não vai ao Mar e anda sem canseira no corpo, que há-de fazer?...
- Vai pescar ao linguado - responde a velha.
- Quando há... O linguado da Praia só é bom quando é fêmea...
Já não ouvem o resto. Abafam-lhe as palavras numa algazarra de palmas e dichotes que atarantam o tocador. Ele encolhe os ombros, virando os olhos parados para a luz amarela do fogacho.
Quando passa a foguetada, o arrais insiste. Insiste e olha para a afilhada, ali mesmo à sua frente, ao pé do Zé, e a rir em cima do ombro da Alzira Barrasquinho. O Polaco recomeça:
- E vou eu levanto-me, com a ideia de não fazer bulha, com a proa bem virada prò peixe...
- Devia ser um corso de sardinha...
- Ah Barrasquinho, não me seques!...
- Deixa lá o home, ah hó!
- Começa-me a cheirar a maresia e atiro-me de chapuz prà mulher... Ia com uma alma! Quando lhe deitei a mão aos peitos, vi logo que o peixe era outro.
Agora todos choram e riem, as mulheres batem palmas e dão à cabeça, os homens espreitam a Mari'Estrela a esconder a cara nas saias vivaças de escocês, enquanto o Polaco passa os dedos magros pelas cordas do bandolim e toca as primeiras notas de uma música brejeira. O Cardeal, que tem esse
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nome por causa de uma mancha vermelha no pescoço, pega no garrafão, salta-lhe um acesso de riso com a boca cheia e borrifa a caraça pachorrenta do Álvaro Pequeno, a acalentar o filho mais novo, franzino e pálido como uma flor a desfolhar-se.
- E depois, ah João! Calem-se aí! Conta, João, conta! - insiste o arrais.
João Polaco fica embaraçado, dá aos ombros magrizelas e parece encolher ainda o corpo cartaxinho, mais de rapazeco que de homem já pai de sete filhos.
- E então oiço uma grande restolhada, e ralhos, e praguedo, e só então percebi que a minha entrara. E vou eu, digo assim: "Ah faineira! Então como é isto?!... Eu a julgar que estava agarrado a ti, e tu andavas na rua?..." E zás! Atiro-lhe uma remada com este braço e aí vai ela...
-E a tua cunhada?
- A minha cunhada?... Deixou-me uma dureza aqui nas mãos que ainda hoje não as posso fechar bem... Ah rapazes!
Riem mais, riem num disparate, parece que a galhofa não acaba, talvez mais ainda pelo rosto parado do cego, como se nada fora com ele, do que por tudo o que dissera.
Depois só fica o Cardeal em cacarejes de franga, enquanto os demais se vão virando para o garrafão, que passa de boca em boca. O Manel Zarro está atravessado como um vento do sudoeste; mal abrira um sorriso com a história do Polaco, de tal modo cresce nele a indignação com a exuberância do pai. Mari'Zarro julga-o amolado com a ausência do irmão mais velho e recomenda-lhe ao ouvido que o vá procurar. Manel finge não ouvi-la; quando a velha insiste, dá de ombros num arremesso moinante que o Diabo Negro percebe.
- Que modos são esses, ah Manel?!
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- Não foi nada, Zé - corta a velha para pôr água na fervura.
- Estamos a falar do bote - responde o rapaz encarando o pai,
-Do bote?!-pergunta a Mari'Zarro sem perceber o neto.
- Sim, senhora. Estava aqui a dizer à avó que se lhe devia ter posto o nome da minha mãe.
- Deixa lá a tua mãe em sossego...
- Era sinal que a gente todos se lembrava dela... - responde o Manel com os olhos aguados de lágrimas.
Zé Diabo Negro passa por detrás da velha (só ela dera conta daquela conversa entre os dois) e chega-se ao rapaz em passos lentos, como se naquela modorra quisesse pensar bem o que lhe deve dizer. O filho percebe-o e levanta-se de um salto. Herdou a figura seca e morena da mãe; não 'lhe coube do pai uma feição, ao menos. É um caniço de nervos.
- O dono do bote sou eu, Manel. O nome da tua mãe é um nome sagrado de mais para servir a um barco... Quando um dia fores arrais... Mas não me parece que deites até aí; falta-te fibra, disto...
E fecha o punho com desespero; treme-lhe o braço e levanta-o até à cara do filho, que deixa descer o olhar.
- Disto... Agora todos estão com os olhos neles.
- Eu bem te vejo a cara lá no Mar... Percebes o que quero dizer? Hã?!... Ainda bem que me percebes. Agora desanda e vai dormir... E nada de olhar pra mim; já tenho visto os olhos a muita gente... E nunca fugi com os meus...
- Deixa o rapazinho, ah Zé! - pede-lhe a mãe com súplica na cara martirizada.
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- Ele que vá com Deus... Não vê que o rapazinho está enjoado?
Manel agatanha as unhas no boné, todos percebem que a raiva o afoga, mas volta-se para a porta, atarantado, acabando por desaparecer numa corrida. Maria Estrela parece arrastada pelo impulso do rapaz e vai atrás dele. Mas não chega a sair. Um grito do padrinho agarra-a no caminho.
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O sangue ruim ferve no corpo do Zarro e volta a lembrar-se do encontro com a Mari'Tocha. O Peixe--Aranha começou a contar uma história com um anequim que apanhara uma vez, no tempo em que os botes iam a remos e à vela por esse Mar além. Zé Diabo Negro lasquinha um naco de bacalhau em cima do pão, parece alheio à narrativa do compadre, mas sente ganas de agarrar o velho em charola e de bailar com ele no meio da cabana, pondo-o a saltar nos braços, como fizera uma vez ao Tóino Negrão, armado em vivaço, lá porque andara nas traineiras de Matosinhos durante uma safra. Não gosta da gente presumida; chegam-lhe as suas bazófias. Naquelas festas, falar de outros barcos e de pescas assinaladas faz parte da missa, pensa Zé Diabo. Também ele andara a compor a sua história com o albafar que o marcara numa perna, mas o Peixe-Aranha irritara-o com aquela dos motores, e sente-se agora incapaz de contar o que pensara. Todos estavam cansados de lha ouvir, mas andara a encarreirá-la melhor durante duas tardes, cá e lá, no passeio, entre a lota e a Foz, acrescentando-lhe pormenores, desfiando lembranças, metendo-lhe outros contos que ouvira ao pai e ao avô.
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A filha do Barrasquinho choraminga nos braços da mãe. E o velho fala, fala, agora ninguém o escuta, porque o Peixe-Aranha cansa-se, abafa a voz e depois só conversa consigo; as palavras mal lhe babujam os beiços, mas dá aos ombros, sorri, espadana com as mãos, que mais parecem raízes, e os olhos azuis escondidos nas pálpebras iluminam-se no ardor da descrição.
"Deve ir agora na altura em que voltavam pra terra", pensa o arrais.
Mari'Zarro dormita, depois acorda e sorri, finge que ouve tudo, enquanto a Maria Estrela abre os favos da saia nova, atirando com uma ponta para cima das pernas do Zé Diabinho.
O velho sanfona sozinho, puxa o barrete para os olhos e depois remata em voz alta:
- Pois foi assim como contei... Nunca na Praia se viu um anequim daquele tamanho. Pesava alguns seiscentos quilos. Parecia um porco grande... E era azul, como nunca vi outro com aquela cor tão azul.
Todos acenam a cabeça, menos o Polaco, que anda lá por fora com o pensamento, a magicar sabe-se lá em quê. Nunca se pode adivinhar em que magica um cego.
O Peixe-Aranha convida o arrais para contar também qualquer coisa. Este pensa no baile, precisa de dançar naquela noite, mas também acha que deve dizer a sua história com o albafar.
Diz não senhor, não senhor, tomara ele nem se lembrar daquilo, mas quando os outros julgam que ficam livres da história, Zé Diabo Negro começa:
- Entrámos ao Mar numa noite tapada. A Lua tinha um cerco com estrelas dentro, que é sinal de mar ou vento e de chuva nenhuma. íamos para o Mar da Gamela, a cinco milhas e meia. Começámos a pescar. Eu ia a bombordo com uma linha presa no pé e outra na mão. Nesse
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tempo eu era capaz de dizer, quando um peixe me picava a linha do pé, que peixe era e quanto pesava. Uma vez, isto já lá vão, Zé... o quê?... mais de trinta anos. Apostei com o meu pai que uma pescada que pegara tinha cinco quilos e trezentos. O velho riu-se, foi com a mão à linha e quis apostar comigo. "Qual cinco quilos! Nem quatro!..." E vou eu digo-lhe outra vez: "Ah meu pai! eu disse cinco quilos e trezentos!" Pesava menos cinco gramas quando a pusemos na balança.
A filha do Barrasquinho adormece e o arrais fica incomodado. Então alteia a voz ainda mais, quer desforrar-se da história sorna do Peixe-Aranha; a fingir que brinca com a moça, dá-lhe um beliscão no joelho. A miúda acorda espantada e choraminga. O Barrasquinho manda a mulher para a porta.
- O peixe andava mais amarado - continua o arrais - e fomos então para a Poitada do Zé Louro, no recanto da Cana do Noroeste. Eu peguei numa linha de aço, já nascera o dia, e mal a botei n'água, zás. Sinto um peso a sacudir-se lá em baixo e começo a largar-lhe linha, a folgá-lo no garrote que o malandro dava. "É um albafar", disse para os camaradas. "Um albafar com mais de dez arrobas." Tirei o barrete "vá de Cristo!" e pu-lo ali à minha beira, no banco. Levantei-me, aguentei a linha sempre tesa, porque se a folgasse o malandro deitava-lhe a boca e cortava-a, tive de lha dar não sei quantas vezes para que ele não a arrebentasse com a gana, senti-o sacudir, sacudir, aquilo era a força do rabo, no rabo é que eles têm a força toda, mas de repente senti-o amuar... Não conheço peixe mais langão do que o albafar. E aquele tinha a escola toda. Já era velho. Eu ainda não tirara sortes e tinha muito que aprender. O Joaquim da Bota é que já sabe tudo!...
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O pessoal ri. Mari'Zarro arregala os olhos, mas continua a dormir para dentro. Sabe de cor o que o filho conta e o seu coração abalou com o neto que foi posto na rua, embora adormecesse a pensar no Tó, no outro, no bacalhoeiro.
- "Se vier pra cima, é mais grande que o Suberco!", disse eu para o Sinoné, que viera prà minha beira com o bicheiro a jeito. Aí a doze braças fora do fundo, o malandro põe-se-me a direito e amua de vez. Quem é que o arrancava dali? Pesava mais de dez arrobas. Comecei a alá-lo, os braços descaíam-me de vez em quando com o peso daquele bruto. Eu achava que ele se devia estar a rir de mim, lá em baixo, e a pensar que eu era algum menino que ia enganar à primeira volta. Tinha de ter a linha sempre tesa para não ma cortar, e tinha também de lha largar quando ele desse algum garrote. E deu-me dois, de repente, que, se não tivesse as pernas bem abertas, era uma vez um pescador do alto. Parece que me queria arrancar os braços dos ombros. O albafar é langão, mas gosta de viver, está claro. Ah'migos! O segundo puxão que me deu até me deixou agoniado. Então pus-me a falar pra ele. E o malandro a ouvir-me e a fazer-me manguitos lá no fundo. "Ah peixe bonito! Adoça agora..."
Zé Diabo Negro entusiasma-se e lembra-se de tudo o que pensara para aquela história. Talvez porque a afilhada não tire os olhos dele e lhe siga as mãos inquietas.
- "Adoça e vem depressa, anda, que se as tintureiras e os anequins dão contigo, se percebem que estás cravado, comem-te a barriga toda e depois o resto, e é pena... Ofereço uma vela do meu tamanho à Senhora da Nazaré se vieres inteiro... Sim, uma vela! E pena que a gente da Praia não veja um peixe como tu... Vais ver a festa que te fazem!... E a mim também, peixe bonito!" E ele... ele a fingir que não me ouvia, a fazer manguitos lá do fundo.
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O meu pai diz-me da ré: "Ah filho! Anda lá com isso!..." E os braços a queixarem-se-me, aquilo já nem eram braços, mas duas poitas que eu tinha presas ao corpo, duas poitas pesadas que me derrancavam. Alo mais um bocado, faço das tripas coração, o Sinoné quis-me ajudar, e eu tiro-lhe as mãos da linha de aço, antes queria que me cuspissem todo... E aí o trago, mais um bocadinho, e outro, e outro, e o malandro amuado, a fazer peso com o corpo todo, que a mim já me parecia que era o Mar inteiro que vinha agarrado a ele... Ah 'migos! Ah Ti Abel!...
O arrais já não consegue contar o resto sentado. O filho olha-o de esguelha. Mas ele não dá pelo sorriso que o filho tem nos olhos. Só vê a afilhada. Está sozinho com ela na cabana e conta-lhe a história do albafar, desse peixe danado que o moeu lá na Peitada do Zé Louro, no recanto da Cana do Noroeste, rumo de oeste-noroeste, à ponta do Mar da Berlenga e a tocar no Farilhão' do Nordeste, pelos sinais no mar, e no enfiamento da Serra ao Suberco, pelos sinais de terra.
- Abro bem as pernas, arranco dos rins mais uma guinada e aí o trago... Ah peixe malandro! "Cá em cima mordo-te a cabeça, se a agarro... Vamos lutar à dentada!", dizia-lhe eu, já sem fôlego, já sem força... Um bafo do Mar atirava comigo a terra, mas aquela batalha havia de ser minha!... A linha tesa, pesada, cada vez mais pesada, e começo a vê-lo por detrás da água negra do mar, começo a ver a água a pôr-se vermelha, e dou mais um arranco... Vejo a boca dele... E grito para o Sinoné: "Mete-lhe o remo na caldeira!" A caldeira era a boca daquele maldito que me queria arrancar os ossos todos dos ombros. O meu pai vem com o bicheiro, enfia-lho também e ajuda-o a trazer para a borda. "Bate-lhe no toitiço!" O Carlos pega num pau e dá-lhe com ele. O sangue rebenta na cabeça do albafar e eu vejo-o de olhos abertos, olhos
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azuis, grandes, a encararem comigo, como se me reconhecesse, como se dissesse que fora eu que o matara. Nem sei como foi aquilo!... Um peixe tão langão!... Sacode o rabo, eu chego-me, pensando que ele estava no fim, e agarra-me a perna e corta-me, por aqui, salvo seja!, ainda cá tenho o sinal... Ah 'migos! Tiro o pau das mãos do Carlos e vou-me a ele, zás, zás, zás, que o pus a cuspir sangue; num instante tanto sangue tinha ele como eu... Parecia que o Mar também se punha de sangue... Até o mordia! Vinha inteiro, graças a Deus! Era negro, com a barriga mais clara, assim a puxar para cinzento. Uma barriga que nem um fole e uma boca com duas serras de dentes, que ainda hoje me põem frio na espinha. E o malandro a torcer-se, a esganiçar-se, a querer ainda fugir... Digam-me a mim que o albafar tem pouca força! Quando o metemos dentro das cavernas, pôs-se a vomitar carne... e sangue... Eu olhei prà minha perna cortada e dei-lhe com o pé no toitiço. Só então é que o vi fechar os olhos, como se achasse que aquilo era sinal de desprezo da minha parte... E não era, Ti Abel!... Nunca tive tanto respeito por um peixe... A cabeça dava para fazer a proa de um bote, ah hó! Dava de comer a uma família!... Apanhei na minha vida mais albafares, mas nunca agarrei outro mais farol, mais danado do que aquele... Parecia atravessado de tintureira... E quem sabe? Não seria filho de albafar e de tintureira? A gente sabe lá o que se passa com os animais!...
Belisca a rapariga com o olhar espantado e senta-se, a arfar.
- Pois foi assim como contei... E fiz ao peixe o que lhe tinha prometido. Arrastei-o até à lota com uma junta de bois, pela areia. Houve festa na Praia... Aqui o Ti Abel lembra-se.
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O velho diz que ouviu falar, mas não viu. Que estava no Mar.
Zé Diabo Negro arrepela o barrete nas mãos e tem ganas de bater com ele na cara do outro. Talvez alguém lho pague ainda.
Dá-lhe uma veneta, dirige-se ao Polaco, pega-o em charola e vai largá-lo em cima de uma pilha de caixas vazias. O tocador agarra-se ao bandolim, parece ficar atordoado, mas depois sorri para a luz que lhe inunda a cara. Ainda experimenta se está seguro no poleiro onde o arrais o pôs e já o outro lhe grita:
- Venha a música! Aqui toda a gente dança... Quem não dança vai prà rua!
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As mulheres arrumam as caixas e os panais que ser-viram de mesa, puxam tudo para junto da porta e para os cantos, e sentam-se no chão, deixando um terreiro no centro da cabana.
- Vai a marcha do "quem sabe, sabe", explica o Polaco.
- E não temos pares certos! - grita o arrais, tirando mais uma buchinha da cinta. - Só paras quando eu disser...
Chega-se junto da mãe, estende-lhe o braço e ajuda a velha a erguer-se. Percebe que o filho mais novo está amuado - um trombudo! - e manda a Alzira Barrasquinho pô-lo a bailar.
- Deita-lhe bem o gadanho, Alzira!
O Barrasquinho gosta da troca e agarra-se à Maria Estrela, que trouxe a blusa com manga de renda e o cachené novo.
Quando o Polaco enceta a música, já estão todos acasalados. Ti Abel Peixe-Aranha vai-se escapando até à porta. Finge estar a ver as estrelas, olha para dentro duas vezes, e abala depois embuçado no gabão preto.
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- Quem aguentar mais tempo, ganha um garrafão! -propõe o Cardeal, muito vermelhusco na mancha do pescoço.
Agora é dançar para diante! Música não falta, e da boa. O Polaco dá à cabeça, a marcar o compasso. As mulheres cantam a marcha em esganiçados, enquanto os homens as acompanham a trautear.
As crianças já dormem dentro das caixas vazias de transportar o isco. Zé Diabo Negro poupa-se, traz a sua fisgada; não quis o baile para outra coisa.
A mãe arrasta-se nos seus braços, ainda quer mostrar-se saltarina, mas as varizes prendem-lhe o freio das pernas. Também a vontade para a brincadeira não é muita. Mari'Zarro está ressentida com o filho. Não, não acha bem o que ele fez ao Manel, um rapazinho que é uma cara direita. Quem andou bem foi o Tó, o único capaz de se virar de frente para aquele diabo que há-de morrer a pegar com todo o mundo, o alma danada! Alcunha mesmo certa, bem pintada como os quadros que estiveram no Verão, na montra do Turismo.
À porta, que mandaram fechar por causa de ajuntamentos, o rapazio acotovela-se para espreitar pelo buraco da fechadura. O Polaco tem fama, todos se lembram do papel que fez, vestido de senhora, na cegada do Afonso Cação. Foi uma barrigada de riso com eles e a maltesia quer reviver a paródia. Começam aos encontrões uns aos outros e acabam às punhadas na porta. O Comicho pega num cântaro de água malcheirosa que descobre a um canto, combina com o Álvaro Pequeno a maneira de o despejar no rapazio mais atiradiço, mas os vigias lá de fora estão atentos; quando o Álvaro abre a porta, o camarada molha o vazio e recebe uma surriada de apupos e assobios. O Álvaro acaba por ficar sentado no rebate, a ameaçar a rapaziada com o punho. Já tem uma barrigada de vinho,
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a que se mistura o seu feitio molengão; ali dormita, a cabecear, enquanto do escuro chovem pedras na parede.
O Polaco muda de música, mas não pára.
Começa a perceber-se que goza com os trinados do bandolim. A filha mais velha do Corrucho puxa-lhe um dedo do pé, sempre que lhe passa perto, o cego acha graça e depois embesoira.
- Está quieto, Barrasquinho!
Julga que é o cómico da companha; o outro responde--lhe lá de longe e o cego fica meio tonto, a ver se conhece aquela mão que lhe belisca o dedo grande.
- Não vês qu'é a tua cunhada? - brinca o outro.
- A cunhada dele deve ser mais meiguinha...
- Que sabes tu disso, ah hó? - responde ao Barrasquinho, que lhe atirara o anzol da cunhada à espera de mais risota. O cego nunca gosta de se ficar:
- Ela mete-te debaixo do braço, desgraçado! O cego ri. Os outros riem com ele.
- Dizem que a tua cunhada te vai lavar à bor-da-d'água - acrescenta a Mari'Estrela.
- Isso é no Inverno-----esclarece o Corrucho. - De
Verão são as francesas. Ele sabe francês...
- E tu falas com a cabeça - responde o cego.
O pescador amua com a resposta; dança com a filha e os outros começam a atirar-lhe cotoveladas quando passam perto.
O arrais parece não gostar do jeito da conversa e lá vai com a velha a rojar - se ela o conhece! Trouxe-o nove meses na barriga e nunca nenhum filho deu tanto coice lá dentro, conta ela quando está de maré. "Sai ao bisavô, ao João Zarro. Esse, uma noite à borda do Mar, por causa de uns lances da xávega no Seprum, deitou mão a um archote aceso, subiu as escadas da Capitania e ameaçou o comandante de lhe queimar as barbas. Se vossemecês vissem as barbas que o homem tinha!... Andava a pegar com os
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pescadores e mandara os cabos do mar apreender as redes dos que fossem ao Seprum de noite. Foi uma doideira nesta Praia, santo nome de Jesus! A verdade é que o barbas se torceu; nunca ninguém soube que conversa houve entre os dois, o João Zarro nunca o contou. Mas nem pena de cadeia sofreu... O meu avô estava cheio de razão!"
Mari'Zarro sentia-se cansada, já avisara o filho de que era melhor largá-la, e ele, moita!, nada de lhe fazer a vontade. Toda a atenção do seu Zé se virava para as conversas da afilhada, pensa a velha. Nem que fosse filha a guardava mais... Se soubesse que ela abala de casa logo que o vê meter-se no bote... Não é que a rapariguinha seja maluca, lá isso não! Ninguém lhe conhece namoro. Mas o seu Zé não gostaria, por força, se soubesse. Não sou eu que lho digo, não!
E de repente, parecia mesmo um diabo negro, larga-a de mão a um canto, pondo-se a gritar no meio da cabana:
- Vamos mudar!... Muda tudo! Agora muda tudo! Num salto, deita o gadanho à MariEstrela e aí abala,
o maldito, como se fosse levá-la para a areia; arrima-lhe a mão na almofada das dez saias, atracando-a ao peito. Quem não o conhecesse, julgava-o capaz de espalmar a rapariguinha contra ele.
- Ah padrinho! Olhe que me atabafa...
- Já cá cantas, rabiosa - sussurra-lhe Zé Diabo ao ouvido, numa voz que ela desconhece. - Agora danças comigo- até ao fim...
E aí se põe a rodopiar, a rodopiar, encontrão a um, encontrão a outro, com a rapariga cada vez mais presa ao gadanho que a enlaça. Ela quer empurrá-lo, ainda se mexe para o afastar, mas começa a ter receio.
O cego toca a marcha com frenesi.
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As mulheres cantam, esganiçam-se, os homens acompanham-nas, e só ela se cala, inquieta, sem atinar naquele desaforo do padrinho.
- Eh meu pai! - grita um vozeirão da porta.
Zé Diabo reconhece a fala do Tó, não se volta, só se lembra agora que o filho não veio à festa.
- Dá aí vinho ao tocador, ah Cardeal! Se ele não quiser beber, vou lá eu despejar-lhe o garrafão plas trombas abaixo.
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Tó ZARRO fica entre portas, especado, vem à procura de gente, cansou-se de estar só, mas à vista daquele motim de bailação e pândega sente um pincho na alma. Apetece-lhe contrariar o velho, já que não pode desafiá-lo; remenda um sorriso de desdém, à pressa, quando Maria Estrela o interroga com o olhar, a quem evita dar o seu, alteando a cabeça, e pára-o no cego, que dedilha as cordas com frenesi, como se todo o corpo procurasse esvair-se pela ponta dos dedos.
Adivinha Zé Diabo a amofinação do filho e reponta--lhe com novo incitamento ao Cardeal, para que obrigue o tocador a beber mais sem interromper a música.
- Se paras o toque, vou lá eu dar-te de mamar...
Nem acaba o aviso. Larga a rapariga numa volta, parece embalado pelos rodopios da dança, e aí vai direito ao trono do cego com o garrafão, que arrancou das unhas do Cardeal. O Polaco pressente-o, encolhe-se, começa a pedir-lhe por alminhas e santos que não lhe faça das dele, toca tudo o que ele quiser, uma semana inteira, se o arrais se aguentar.
Aguentam-se mal as caixas quando Zé Diabo amarinha.
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Mari'Zarro aconselha o filho, não vá aleijar o cego com alguma brutalidade, mas acha-lhe graça, mais ainda do que o Barrasquinho, escangalhado a um canto da cabana, a derramar-se em gargalhadas que se devem ouvir no areal. Incita-se o arrais com o alarido, sabendo que amanhã a Praia toda vai falar de si em acrescentos de soalheiro. Já nem o Tó o preocupa. Precisa de fazer qualquer coisa que deixe marca, imagina-a enquanto sobe, excita-se ainda com a caramunha do Polaco e obriga-o a levantar a cabeça.
Replica o cego com justificações do seu jeito de tocar:
- Ah arrais, preciso de ver as cordas...
- Tu não vês...
- As cordas vejo; quando as ponho a tocar, vejo-as. Deitam um farfalhinho de luz e eu vejo.
Diabo Negro levanta o garrafão sobre a cabeça do Polaco, acerta o gargalo pela trunfa ruiva que se emaranha na testa do outro e faz o vinho sair num fio, pouco a pouco, logo depois em gorgolões que se espalham no rosto dócil e atormentado do cego, a dar-se à brinca para não apanhar um banho inteiro de tinto cartaxano. Parece que se lhe abriu uma ferida no frontal a esvair-se em sangue negro, taninizado, que ele próprio procura sorver com a boca muito aberta, enquanto os outros riem da farsa e aplaudem em rufos de palmas arritmadas.
- Deixe lá o homem! - larga o Tó dos Safios, só para não responder à Maria Estrela, que o puxa para a dança.
- Há alguma novidade por isso? - replica o arrais com o feitio endemoninhado a ferver-lhe a tineta. - Ou queres tu agarrar um banho?...
Como o filho não lhe reponta, Zé Diabo volta-se, pressentido, repara que a afilhada segreda qualquer coisa ao Tó, o que será que ela lhe diz?, e joga-se da pilha de caixas
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para o chão, onde as pernas lhe fraquejam com o salto e a bebida. Alguém ri do cambaleio, encrespa-se, olhando à volta, e corre pela rapariga. O Tó insiste:
- A gente precisa de falar...
Pega a afilhada pelo braço e puxa-a com violência. Só depois responde:
- Hoje é baile, não há conversa.
E para que o Tó o veja bem, a mocidade de um homem não tem nada com a carga dos anos, o arrais larga-se a rodopiar. Não sabe onde põe os pés, vai incerto nos passos, arregala os olhos para ver o que faz, mas a cabana entorta-se, parece um barco no Mar. Ri para esconder a vertigem dos rodopios, sua e arfa, arfa e ri, enquanto a rapariga procura fugir às mãos babosas que a prendem. Zé Diabo tem os dedos incendiados e a vertigem vai-lhe dos olhos para o sangue; percebe que a rapariga tenta escapar-se, só a vê a ela com aqueles olhos negros e ladinos, a boca a sangrar num golpe de navalha esbeiçada, os peitos rijos a apontarem-lhe para o sangue fervente, capaz agora de pôr toda a gente na rua e ficar com ela, sozinhos os dois...
Pensa nisso, afrouxa a ânsia de bailar, e a afilhada, num puxão, escapa-se-lhe e vai esconder-se atrás do António.
- Ah rabiosa! -é só o que consegue dizer.
- Não percebendo bem o movimento que ela fez, julga que fugiu para a rua. Atarantado com o vinho e os rodopios, acaba por se sentar no chão; respira fundo, como se o peito lhe quisesse estalar, e pede mais vinho. Leva o garrafão à boca com a mão esquerda, e bebe, bebe, com uma sede danada que não é só de bebida. Tem anzóis na pele; fincou-se-lhe uma dor no ventre e custa-lhe a fechar as pernas.
- Ah meu pai! - insiste o Tó.
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- O que foi ?
- O vento quebrou mais... - E que tens tu com isso ?
- O Jaquim da Bota vai ao Mar... Encontrei-o a falar com o boieiro...
- O arrais aqui sou eu! - lembra o velho a limpar o suor com as costas da mão.
- A gente tem um bote novo - insiste o Tó. - E com um bote novo a gente pode fazer-lhe ver...
- Com o vento que está, ele não vai - diz o Cardeal.
- E depois vossemecê arrenega-se de a mulher dele se gabar. Se o melhor bote da Praia é o nosso, pra que é que serve, então?
O Polaco continua a dedilhar no bandolim, não percebe o que se passa. No seu rosto miúdo e cavado as veias roxas do vinho dão-lhe o ar de uma máscara. O Tó faz concha com a mão no ouvido direito, de maneira a não perder pitada do que lhe dizem. Quando alguém lhe fala sem ser o velho, volta-se para a voz. Por detrás dele, a Maria Estrela espreita o pessoal que começa a rodear os dois homens, enquanto Mari'Zarro se mete em recordações que a põem ausente.
- Pra que é que o bote serve? - insiste o Tó.
- Já te pedi contas?
- O quê?...
- Já te pedi contas, não ouves? - grita o Zé Diabo, já irritado com a teimosia do filho.
-Não, senhor, nem eu lhas peço....
Depois olha à volta com mau modo e começa a bater as palavras, como se as atirasse à cara do pai e da companha.
- Mas se vossemecê mandou fazer o bote prò pôr na montra do café das senhoras, eu vou sozinho prò safio...
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- Que estás tu a dizer, rapaz? - grita o velho já fora de si.
- Que não preciso de camaradas... que não me servem companhas de bailadores...
E volta-se a dar aos ombros, demorando os passos, num jeito rufio que não é de nazaréu. Espera a resposta do pai, quer desafiá-lo para o Mar, a terra queima-lhe os pés. Não se dá com aquilo. Vê coisas que lhe põem o coração negro. O velho finge que não percebe a provocação; encolhe os ombros para o pessoal e sorri.
- Vai dormir, anda! - acrescenta ainda quando o rapaz vai a chegar à porta.
- Dormir?... Amanhã vou prò Mar...
- O Mar não deixa, Tó! - diz o Barrasquinho. - A lua nova vai cair dentro de dois dias e amanhã começa a morrer peixe. O pão a mim não me cai do céu...
- E eu não mandei fazer o botezinho pra caixão de ninguém - responde o arrais mais estabanado, na intenção de pôr a companha e o mulherio da sua banda.
- Mas eu é que estive ao pé do Mar, pai. Eu é que sei o que o Mar diz, ah hó!...
Volta-se de repente para a saída, empurra a Maria Estrela com um braço e desaparece, puxando a porta com estrondo.O arrais muda de cor, a raiva já não lhe cabe nas mãos, mas ainda quer fingir que não entende o sentido das palavras do filho. Zé Diabinho sorri à socapa. O velho afaga as faces barbadas, quer depois arranhá--las com os calos, como se precisassem de uma sangria, e fica com o olhar preso ao chão.
O tocador percebe o silêncio e assusta-se; acha que estão a preparar-lhe alguma partida.
- Ah arrais! Não me faça mal, que eu toco...
E desata a escarafunchar no bandolim com toda a alma.
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Zé Diabinho acha que chegou a altura de tirar uma desforra; fura num encontrão por entre um grupo de homens. Lembrara-se da noite do Carnaval no Casino e pede para o Polaco:
- Toca um corridinho, ah desgraçado!
Pega a rapariga pela mão, puxa-a para si com força, mas ela sacode-o, atirando-lhe com as mãos para a frente da cara.
- Que é isto, ah Zé?!... Julgas que todo o peixe é sardinha?
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"NEM todo o peixe é sardinha", repete para si o filho mais novo do arrais, naquele caminhar apressado com o Tó, alta madrugada, carregados de três gigos com sardinha fresca, que irá servir de isca para a estreia do bote. O Tó assobia, só assobia quando vai para o Mar, e nem cuida do irmão, trupe-zupe, atrás dele, embora as carnes lhe não pesem.
Zé Diabinho vai a pensar nas palavras da afilhada do pai. Tem jeito de poeta, o Zé, já fez versos para o enterro do Judas, e toda a noite, desde que a festa acabara, só roera naquela ideia de arranjar uma rima para acertar bem com a fala da Mari'Estrela. Passam vultos embuçados, movem-se outros nos portais, a procurarem aconchego para o vento frio que golpeia o paredão. Zé nem acode ao aviso que dois homens 'lhes atiram da esquina de uma ruela.
- Ah! vocês vão prò Mar?
- Olhem que está levadio na pedra do Guilhim... A aguagem vem a terra, 'tá mar!
- Se não houvesse Mar, não havia peixe - responde o Zé.
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Balanceiam com os braços, no acompanhamento da passada curta e rápida dos pés descalços; apressam-se com os ombros derreados pelo peso da carga.
- Ah mano! Aguenta aí um bocadinho!-pede o mais novo.
Os gritos do boieiro, a incitar o gado, apagam-se no bramir das ondas que vascolejam a quebrarem-se na areia. O Mar voltou a cair no pino da noite; a Lua esteve chorosa com um grande círculo, à volta, enrolado em nuvens.
-"Ontem uma rapariga disse-me...
- Hã?!
Tó Diabo Branco está distraído a olhar a sombra do barco que vem pela areia, a caminho do norte, onde se pode entrar com mais segurança.
- Uma rapariga disse-me que nem todo o peixe é sardinha...
- E depois?!
- Então arranjei agora mesmo uma resposta para quando a encontrar...
- Se a queres para ti, não lhe fales muito. Mais caldeira e menos bandeira... Deita-lhe o gadanho. Com as mulheres, pouco conversa e mais desembaraço.
Zé Diabinho não dá troco ao irmão, só precisa de lhe dizer a rima que encontrara para a fala da Estrela.
- Ela disse que nem todo o peixe é sardinha e eu já sei a resposta... Ah'pariga! Nem todo o peixe é sardinha, mas toda a mulher é rainha...
- Rainha de quê, Zé?
- Não é bonito?
- Diz lá, Zé: rainha de quê?
- Ah hó!
A pergunta do irmão ataranta-o, sabe onde quer chegar, são lá coisas da Deolinda, ofensas que ela lhe fez. Mas serão todas assim? Tem a certeza que não. Toda a
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mulher pode ser rainha na casa de um homem que lhe queira para bem.
- Vamos embora! - ordena o Tó.
E retoma o assobio, como se levasse medo das sombras dos barcos que apodrecem em riba do paredão e nas ruas por causa do mau tempo.
A maresia está agora menos buliçosa, mas as ondas ainda batem cavas. Cavas e ariscas, açoitadas pela ventania.
- O tempo deu uma sota - diz o Corrucho à borda--d'água, para significar que se pôs mais calmo.
- Não gosto nada disto quando os arrais teimam como os burros de Famalicão... A gente é que se lixa - responde o Cardeal.
- Eles também vão lá dentro...O nosso vai com os filhos e o pessoal precisa de ganhar...
- Mas eles ganham com o bote. E a gente?...
- Diz que não vais, ah hó! Quem tem medo compra um cão...
A pequena nave lá vai pelo areal fora, a correr por riba dos panais ensebados e atrelada a duas juntas de bois.
Irado, só em pensar que o seu rico barquinho vai entrar na lida com tão mau ensejo, o arrais dá à cabeça, mas não se sente capaz de contrariar o filho mais velho. Se não parecesse mal, se o outro não se fosse gabar, iria ter uma fala com o Joaquim da Bota. Ainda se fizera encontrado, mas ele dera-lhe a salvação sem uma palavra sobre o Mar.
Estavam os dois a pensar no mesmo.
Não lhe cabia a ele, Zé Diabo Negro, filho e neto de arrais antigos, que descobriram três mares novos, sim, não lhe cabia a ele puxar a conversa com um pescador vindo da xávega. Se o outro viesse carregado de peixe,
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com que cara iria aparecer em cima do paredão? Ná, lá isso...
Fingindo que o Tó nada lhe dissera na festa, mandara os rapazes levantarem-se às três da manhã, como se a ideia fosse sua. Mostrara-se mais arisco do que nunca, gritara num destempero que "quem tivesse medo ao mar procurasse outra companha", mas oTó e o Zé sorriram-se, os dois malandros, percebendo que o velho começava a mudar. Também ele pensara o mesmo. E, para não cismar muito nisso, fora à garrafa da aguardente, emborcando uma boa golada. Estava agora capaz de tudo.
Não conseguira pregar olho, metera-se-lhe uma febre danada no sangue, uma sede de morte, sonhos e pesadelos de espantar o sono a um arcanjo. A afilhada não saíra do quarto, tinha uma dor nas cruzes, dissera-lhe a mãe. E fora a velha quem lhes dera o café e lhes pusera os foquins com o comer ao pé da porta.
- Vá, cangaros, depressa! - gritou do areal para o marralhão do Álvaro, que trazia mais umas celhas com anzóis.
Zé Diabinho chega com a isca fresca à borda do Mar e pensa: "Sim, nem todo o peixe é sardinha, mas toda a mulher é rainha."
- Está aí um desafio de mar, Tó! - diz o Corrucho.
- E depois?!... Porque não vais tu com os galrichos prà Foz?
- Se o vento continua, vamos ter rabiosa - insiste o outro.
- O peixe está da banda de lá - responde o Tó apontando para o negrume da noite sobre as águas. - Não se apanha peixe na taberna...
Na ponta do promontório o farol lucila.
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Um grupo de mulheres parece cacho de trevas esborralhado na negrura da noite. São as velhas. Uma delas, pela voz parece a Mari'Zarro, diz num sussurro:
- O Mar quer homens e eles vão fazer-lhe a vontade. Responde outra voz queixosa:
- Quando iam a remos, a gente roubava-lhos. E, às vezes, eles ficavam.
- A gente também sabe de mar - acrescenta a sogra do Joaquim da Bota. - Mais do que eles...
Os "óis" dos boieiros incitam o gado, que também já conhece o Mar, talvez pelo cheiro da grimpa das ondas. A humidade salina penetra nos corpos. As mulheres com maridos nas duas companhas mantêm-se de pé, andam inquietas, trazem as mãos agarradas junto ao peito e olham as águas para além do que as trevas consentem.
O bote do Joaquim da Bota começa a ser virado de proa para o Mar. Vão cumiá-lo, fazendo-o girar em cima dos panais. A areia parece lavrada.
- Ah Jaquim! Só voceses dois - diz a mulher, que
se esquece agora das suas farroncas de pescas graúdas.
- Não vês que o Diabo Negro também vai ?
- Fala-lhe...
- Hei-de chegar aonde ele chega...
- Ele não tem filhos pequenos, Jaquim...
Enerva-se o da Bôta com aquela moideira e começa a empurrar a mulher pelo areal acima. Perde poucas vezes a cabeça, mas ela conhece-o bem quando isso acontece. E nem muge. Os homens das companhas enxotam também as companheiras, só para não lhes ouvirem a lamúria.
- Temos de nos pôr nus, mulheres. Vão-se daqui! Elas obedecem-lhes, sentam-se nos barcos arrumados
em cima do paredão; ficam ali a escutar a voz grave das vagas.
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Zé Diabo Negro manda as velhas saírem da areia. Nenhuma se move. Grita, pragueja depois e começa a despir-se. Tira primeiro a camisola.
- Saiam daí! Não ouvem?... Ah, que mulheres estas!...
- A gente viu-os em coiro, quando vocês eram meninos - responde uma das velhas.
- Vamos embora! - diz o arrais para a companha. Já virados de proa para o Mar, os dois botes parecem
medi-lo bem, a ganhar coragem.
Como se fossem acometer as ondas com os cornos em riste, os bois, resignados, baixam a cabeça. Um deles muge. Parece uma trompa a uivar na praia.
A uma voz, os boieiros incitam o gado, acometem-no com os aguilhões, gritam todos os homens da companha, ajudam, gemem, praguejam, desafiam o Mar, que se atira, de rompão, com dois castelos de ondas, para os avisar. Os bois atolam-se na areia, querem alegrar-se com a algazarra e os bicos que lhes mordem a carne, mas a penugem branca e bravia das ondas desfaz-se-lhes em cima dos dorsos amarelos, e erguem as cabeças, jogando com elas, como se pudessem despedaçar o jugo que os prende ao barco.O Estrela do Mar mal se move na areia.
Tó Zarro, nu em pêlo, agarra na sogra, deixa espancar-se pela maresia e mete-se à frente dos animais, a encorajá-los.
- Vai fora! Vai fora! - grita uma voz, a que todas as outras se juntam.
Só o Manel, todo de ganga, está dentro do bote, pronto a fazer trabalhar o motor. A salsugem das águas não o anima. O cheiro do mar desagrada-lhe. Agora já ninguém vai ter mão nisto.
Os bois atiram-se para a frente, rojam com os focinhos na areia, enquanto os homens, a tremer de frio, e
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sabe-se lá do que mais, amparam o costado da ré, ajudando com as mãos e os ombros.
- Vá! Vá força! Vá, vá!
Vigiando a proa, o arrais dirige a colocação dos panais; já não pensa que o Mar pode crescer ainda, sabe que ninguém voltará agora para trás, e a voz anima-se-lhe, ganhando firmeza.
- Já anda, já anda! - grita para a companha.
O Tó desengata os bois, arranca-os ao choque do mar e vai entregá-los ao boieiro.
-Está aí um malvadio! Vão com Deus!
Os animais sacodem as cabeças, pondo a chocalhada a tilintar. Agora os homens sozinhos farão o resto.
Em cima do paredão as mulheres parecem receosas e chegam-se umas às outras. O cacho das velhas mirra-se também.
- Vá abaixo! Vá abaixo!-cravam-se as vozes na pancada do Mar.
- Vá, vá, força! Vá! Vá agora!... - respondem outras mais vivas.
O da Bota já flutua, tem o fogacho aceso, e vêem-se os homens nus a olhar as águas. Vêm lá duas ondas grandes, encarreiradas.
No bote do Diabo Negro a companha continua a gemer, a gritar, a dar de ombros ao costado da nave, que ainda leva na proa o ramo de flores e alcachofras do seu noivado. Afoito, o Corrucho mete-se com água pelo peito, mas logo uma onda cresce nas trevas - apavora-se, quer fugir ainda, mas a vaga agarra-o e atira-o de cambolhada pela areia. As velhas abalam agora, excomungando o Mar.
- Tudo dentro!- grita o Diabo Negro, enquanto deita o gadanho ao filho mais novo. O motor rompe no matraqueio dos pistões, o Manel desembraia e o bote parte a caminho de outra vaga que cresce para os deter.
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- Estamos todos!- diz o Tó para o pai, que já se
agarrou à cana do leme.
Alguém acende os dois bicos do fogacho e o pendura a meio do mastro. Os homens esfregam o corpo com as mãos para se aquecerem. E fazem-no com desespero.
Nas trevas, a praia começa a perder-se. A companha só adivinha as manchas negras dos homens de gabão e das mulheres junto dos candeeiros; depois o emaranhado sombrio dos barcos da xávega e do candil, de outros botes e de barcas, acaçapados na areia ou em riba do paredão, como se ficassem envergonhados de vê-los partir.
- Vamos com Deus! - murmura o arrais. E tira o barrete em sinal de respeito.
Os homens esfregam-se ainda. Agarrado à proa, o Tó deixa que o vento lhe seque o corpo; está a farejar o rumo do bote do Joaquim da Bota.
O vento agreste da madrugada bate-lhe no corpo, golpeia-o de navalhadas. Tó Zarro sente-o mais fundo do que os companheiros. Sempre que um frio lhe traspassa a carne, vem-lhe dos segredos do sangue a lembrança de uma noite...
Os dóris voltaram carregados de bacalhau ao fim da tarde, todos tinham agarrado muito:, o lugre parecia uma festa, e a companha toda não parava de escalar, lavar e salgar peixe, e vai daí o Fainó por uma coisa de nada atira-me às ventas que os da Nazaré deviam ser metidos em tinta amarela quando saíssem da barriga das mães. Ah 'migos!...O coração deu-me uma pancada, parecia um golpe de mar, sabia bem o que a maldade dele queria dizer... Que os da Nazaré se tinham matriculado quando eles pediram aumento e por isso mesmo eram amarelos.
"Amarelo é o teu pai e a tua família toda; vai lá meter-te com quem nasceu do teu sangue", disse-lhe eu. "Há homens da Nazaré na cadeia de Lisboa e de Peniche.
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O Zé foi um grande homem, como os maiores de todos. E pequeno mas tem alma de leão..." E o gajo a olhar pra mim e a pôr-se engraçado... Ah 'migos!... Atiro-lhe um soco bem no meio dos olhos pequeninos e ele fica-me que nem um coelho atordoado, a jogar as pernas, e zás, corpo em terra. Não me fui a ele e fiz mal...O Fainó alevanta-se, procura qualquer coisa, e corre pra mim com a faca de escalar peixe; eu deito mão à minha, safo-me ao primeiro golpe e passo-lhe um risco no canto da cara. Parecíamos dois bichos feros. A companha toda mete-se entre a gente, puxa de um lado, puxa do outro, esfanicaram-me a camisa, e aí chega o capitão. A gente chamava-lhe o Cardo, tinha um feitio sempre agreste como o cardo, e picava, o malandro! Quando viu os dois bem agarrados, tirou ele as facas da nossa mão e mandou os camaradas amarrarem a gente ao mastro do meio; de costas com costas e de mãos viradas e juntas às do outro... Antes queria que o gajo me cuspisse a cara toda! Hoje, está claro, porque naquela noite de frio, a noite mais fria da minha vida, nunca mais me largou os ossos, eu só era capaz de matar o Fainó.
De costas um para o outro e de mãos agarradas, nuinhos em coiro, e o frio do banco a meter-se todo pela nossa carne dentro; parecia que me descascavam a pele com fio de um canivete pequeno para que me doesse mais. Pusemo-nos a chamar nomes um ao outro, todos os nomes mais danados que a gente sabia, primeiro quase aos gritos, nomes grandes, e depois a boca já doía, nem a língua dava volta às palavras; saíam assim plos cantos dos beiços todos feridos, até que só podíamos dizer uma palavra de vez em quando. Eu já não percebia as dele e ele não devia ouvir as minhas... Depois só ficaram os dedos a quererem ainda bulhar, muito tesos, pareciam de pau, e vai daí deixo de sentir a maldade dele na minha pele, e as costas
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dele a fugirem das minhas, quis levantar a cabeça para ver o céu, e rebenta-me nos olhos, mesmo lá dentro, uma grande luz amarela que se partiu toda e começou a chover em bocados de ferro muito encarnado, e depois tudo a fugir de mim e a fugir dele... E fiquei só com a cabeça, com o resto da cabeça, numa bolinha pequena que pensava a um canto e se sumia também...
Os camaradas contaram que eu dei um grito que me estalou todo. E eles correram e desamarraram a gente, contra a ordem do Cardo. Estávamos quase na hora dos louvados, às quatro da manhã... O Fainó ficou dois dias e duas noites sem dar cor de si... Todos o viram morto e eu também estive morto quase o mesmo tempo; perguntámos um pelo outro quando demos a primeira palavra e ficámos amigos...
Mas o frio nunca mais me saiu de dentro; e o grito que me estalou o corpo também não.
Tó Zarro larga a proa do bote e veste-se à pressa. Ganhou medo a qualquer coisa que lhe veio à lembrança, esquecido do outro barco que perseguem.
Galopando na crista das ondas largas que vêm do Guilhim, o Estrela do Mar avança pela noite mareira.
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"Rabiosa" chama-se ao Mar quando pincha e cresce na borda, É um Mar bonito, vaidoso talvez do seu poder, aqui vou eu, vejam isto, verde no canto das Pedras, muito verde, de cristas brancas mas grulha e caprichoso, e que se torna em Mar matador se os homens teimam em passar-lhe o contrabanco, cheio de águas traidoras.
ZÉ DIABO NEGRO viu crescer a rapariga à sua beira, mimalha, mimalha às vezes, mas sempre inconstante, um mar tredo, a saltar da brandura para os arrebatamentos, do riso aberto e azevieiro para o arrenego dos gestos e das palavras, como se a mandassem ir buscar a baba das ondas.
Toda salsugem no sangue, bebia o mundo com os olhos negros e metediços, parecia que a vida a deslumbrava com qualquer coisa que os outros não viam; mas ninguém lhe bulisse à mansa ou passasse certa baliza que só ela sabia onde pusera, porque, então, ardia o Mar todo.
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Nuns dias salpicava as conversas, gostava de carregá--las com pimenta às bagas, só usando palavras com dois gumes, e noutros fazia-se de cristal, tudo a magoava, se lhe davam alguma fala menos acomodada.
"É mesmo o Mar quando está rabiosa", comparara o padrinho, certo dia em que começara a vê-la com outros olhos. "Nunca se sabe o que dá..." E gostava agora de a tratar assim; aquilo era uma carícia para o seu jeito abrutalhado, de poucas falas.
A rapariga espigara em pouco tempo, saía à banda da mãe, uma vivaça. Nisso como no enxuto das carnes, pois o feitio não as deixava achamboar. E tinha um cabelo negro, negro com reflexos azuis, que parecia uma pintura quando o usava em tranças enroladas atrás. Ela sabia-o.
Durante muito tempo a Maria Zarro não conseguira pôr-lhe um lenço na cabeça, porque ela o derribava logo para cima dos ombros, lá numa maneira muito sua, quase desleixada, mas que sublinhava melhor a doçura do peito e o busto firme. Usava sempre lenços muito claros, de ramagens grandes, para marcar contraste com o sombrio profundo das tranças e o moreno da pele.
Mari'Estrela está agora mais bonita, ao que dizem todos. Foi-se-lhe um pouco a cor aciganada do rosto e a boca refrescou; o lábio de baixo parece uma flor. Mas os olhos negralhões são menos profundos, riem mais, e tanto que todos sorriem quando a encontram e lhe falam. Ela responde e desanda. É como se bailasse na ponta dos pés.
Lá parar com rapazes, não; agora não gosta de parar em conversas, responde e desanda, desanda e baila, e nisso é que o padrinho não tem mão, porque aquele jeito do seu pisar descalço até ao Zé Diabo aquebranta.
Noutro tempo vinha para a Frente do Mar e dava conversa, trazia sempre uma corda de rapazes atrás dela, agradava-lhe vê-los parvos, como dizia para as amigas. Mas
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o padrinho ralhou-lhe, só os dois sabem que coisas lhe disse o arrais, e agora passa por cima do paredão, ao fim da tarde, como se viesse esperar os botes, não consentindo que nenhum rapaz se lhe ponha à ilharga.O Tó Soisa, que é uma língua danosa, já quis adivinhar a rebeldia da rapariga, atirando-lhe com maldade: "Aquilo já é guitarra tocada... Percebe-se-lhe nas cordas..."
Todos lhe levam a conversa a mal. Sim, nunca ninguém viu por onde a Estrela perdesse. Só namoriscara o neto do Pilo, o bacalhoeiro, mas até com esse cortara antes de o rapaz partir. Lá tino não lhe faltava, apesar daqueles olhos deslumbrados que nunca estavam quedos.
E todos diziam na Praia: "O Zé quer a rapariga para algum dos filhos. Baptizou-a, quer casá-la. Está no seu direito. E ela não vai mal. Mas qual deles será?... Talvez o Manel. Olha que o mais novo tem pinta!..."
Pinta não faltava a quem estivesse à sua beira.
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VIRADO para terra, não quer agora que os filhos o vejam nu, o arrais enfia as calças apoiando-se na cana do leme. Acha que fora das contingências do trabalho aquilo é falta de respeito; sente um pudor súbito, talvez por causa do Manel, que o olha ali de perto. Mal se enxuga.
O bote empinou-se ao galgar as ondas largas do contrabanco, vindas com rompantes lá de longe, é uma espada, como disse o Peixe-Aranha, uma espada e um cavalo, e o da Bota vai começar a ver hoje o que é um barco para o Mar, hesitou por três vezes com a força da água avaga-lhoada, quase se atravessou numa delas, mas agora está a ser balouçado no meio do Lago, perto das bóias onde as traineiras amarram.
Mais adiante, o bote do Joaquim paira também sobre as águas, como uma gaivota, que é o seu nome de baptismo e de registo na Capitania.
- Se estivesse aqui a filha da Taneta -diz o Cardeal para o Barrasquinho, reparando que toda a companha está em pêlo, cada homem a esfregar-se por causa do frio; sim, faz um taró de respeito.
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- Era aqui uma festa prò Álvaro - acrescenta o Corrucho.
Álvaro Pequeno quer responder-lhes a preceito, vão lá brincar com as irmãs deles, ainda pensou numa graça para entrar com o Cardeal, por causa da cunhada, mas a voz prende-se-lhe. Vinga-se num gesto de mãos, os outros percebem-no e o Barrasquinho começa a cantar, dando a entender ao gago que só assim poderá dizer alguma coisa que se entenda.
- Canta o "encosta a cabecinha e chora"... A gente ajuda-te.
O gago embesoira, vai logo à serra, por mais que os camaradas repitam a brincadeira. Fica-se em gestos e palavrões de duas sílabas, embora ache que há outros mais próprios para lhes responder. Para além delas, porém, a voz tropeça-lhe, os companheiros riem-se, e ele não gosta de resolver as disputas a murro.
Zé-ninguém, embora as mãos tenham fisga, não é homem de brigas. Nunca foi parar à cadeia de Alcobaça, e nem lá quer ir, pois entende que as piores fraquezas se agarram na prisão; transtorna-se quando pensa na tuberculose. "É ver aí o Chico da Marcolina, coitado, noutros tempos era capaz de ir a Espanha, a pé, se o mandassem lá levar uma rede, e agora, que não pode, ninguém o quer, deitaram-no fora, como se fosse isca podre." Sempre que se sente cansado, o Álvaro lembra-se do Chico; também por isso não é muito esforçado na faina, mas a cadeia perturba-o ainda mais.
O fogacho de dois bicos lambe de luz pálida a cabeça dos homens.
Agora vestem-se à pressa, o arrais já ralhou por causa da risota, e o Tó começa a arrastar um dos gigos de sardinha para a proa.O Manel espreita de dentro da casota do motor, não se percebe se para adivinhar o rumo que o pai
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vai escolher, pelos sinais de terra, se para atentar nas vozes desgarradas que o vento traz.
Distinguem melhor as vozes do que as luzes, embora estas marquem a avenida da borda do mar, o amarinhado do casario da vila e a ladeira para o Sítio.
O Sítio não é boa recordação para o Tó, que lá morou, enquanto não soube quem era a Deolinda. Agora vive sozinho, no bairro Norte; em casa do pai não há lugar para ele, nem lá poderia morar, pois o velho não dá boa telha. Julga sempre que os filhos são meninos de gatinhar, quere-os lá ao seu modo, e o Tó já não se submete. Ficou farto do pai, vai ali porque o velho lhe pediu.
Mas agora não pensa na conversa que tiveram por causa disso, ficou tudo tratado entre os dois, de homem para homem, nem na desfeita da Deolinda, essa desgraçada !
Tó Zarro lembra-se do tempo em que esteve no banco, àquela hora já ia no dóri por aquele Mar dentro, aí é que era Mar, e frio, e canseira, sozinho como andei aqui dois dias e duas noites, quando fui aos safios. Talvez andasse com algum verde da Fuseta, algum rapaz para ensinar na pesca, aquilo é que é gente, falam todos de cabeça levantada. Duma vez com o Barbas de Chibo, nunca vi um capitão assim, era bom para tratar pretos, vai o Chiné diz-lhe ali na cara, para quem o quis ouvir: "Olhe, meu capitão, a escravatura já acabou, os homens são de carne e osso, são todos de carne e osso, é o que lhe digo." Ninguém pensa, desgraçado de quem lá vai, mas mais desgraçado ainda quem fica por lhe dizerem que não ouve bem a sereia de bordo, como se o bacalhau cantasse ou falasse, e fosse preciso aprender o que o bacalhau diz. São vinte horas de trabalho, sim, vinte horas, quando se faz a vigia são mesmo vinte horas, e um homem volta escalado como o peixe. Mas são seis meses certos de trabalho, seis meses, à linda,
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em que um homem ganha o pão, um pão danado, é verdade, mas se é primeira-linha traz-se um dinheiro que se pode ver...
O motor do bote continua a trabalhar, as vagas embalam a lancha, às vezes sacodem-na com mais ira, mas ainda estão parados no meio do Lago. Não reparando que ainda continuam no mesmo sítio, o Tó começa a iscar e fala para dentro, a dizer que duma vez pesquei trezentos e dezassete quintais, não é brincadeira, não, já depois de descontados os 40 por cento que abatem no pescado, por causa das caras, das línguas e do óleo, que isso é tudo para o armador; pagavam a trinta e dois escudos cada quintal, a quem pescasse para cima de duzentos quintais, e nessa campanha arrebanhei com o fixo mais de dez contos, foi a melhor safra que fiz; ainda tenho o blusão que comprei em Saint John's quando lá passei. Boa terra, Saint Johns, não faltam raparigas, para quem anda seis meses, e mais, a namorar sozinho.
- Ah Cardeal! Vai aí prò pé do meu António!-diz
o arrais.
Começam a tirar as saias de oleado de dentro do armário da proa, põem-nas à frente, mas todos olham para o fogacho parado do Gaivota. Olham e pensam que o Joaquim da Bota está a temer-se com o -mar que anda lá fora e pode ainda crescer pelo dia adiante.
O Corrucho conversa com o Álvaro. Puseram-se os dois a fumar, o Corrucho fala, fala, e o companheiro responde-lhe por acenos e meias palavras.
- Se adivinhasse isto, não era eu que estava aqui, não. Vai pôr-se um malvadio que há muito tempo não agarramos outro assim. Querem fazer ver um ao outro, mas a gente é que se lixa...
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- O arrais sabe. (O Álvaro não tem confiança no Corrucho, ele pode contar à cunhada, e dela para o Manel nunca se sabe as conversas que fazem na cama.)
- Sabe, uma gaita!O que eles querem é dinheiro, a gente só vê uma migalha, e não se metem pais de filhos num mar destes.
O Álvaro desconhece que o Manel já não procura a cunhada do outro há mais 'de um mês, nem este sabe as razões; a rapariga anda chorosa lá por casa e não é capaz de perguntar ao Manel Zarro. Por isso vai ali a resmungar, estes tipos, depois de servidos, põem-se na alheta, e então este, que tem a mania das saias; mas um dia a coisa sai-lhe do avesso, se encontra o filho dalguma mãe que lhe deite uma asa abaixo.
- Pede aí ao Tó... Ele que fale ao pai...
- Ao Tó?!...
- Foi ele que disse no gueste que o da Bota vinha. Tenho a certeza que foi ele quem desafiou o outro. Julga que anda no bacalhau.
-O Gaivota ainda não saiu do mesmo sítio. Voltado para terra, o Barrasquinho cantarola e fita
as luzes da rua onde mora, já as conhece, embora saiba que a mulher está na praia com a filhita ao colo. Junto dele, estendido no convés, o filho mais novo do arrais pensa na rapariga, na Maria Estrela, e não tem dúvidas que, depois de lhe dizer o verso, vai namorar com ela, às escondidas do pai; precisa é de sair da companha, o velho anda a fazer-se todo com a "rabiosa", mas talvez se engane, já não tem dentes para aquilo; será a minha vingança por tudo o que fez sofrer à minha mãe. Vai pôr-se bonito quando souber.
Zé Diabinho olha para as estrelas, não se importa com o Mar, não é o arrais.
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- Ah meu pai! - resolve-se o Manel a dizer, apesar das ofensas que o velho lhe fez naquela noite. - Olhe que o da Bota está a arrecear-se... Fale com ele; voltamos os dois para trás.
- Cala-me essa boca, rapaz! Ele que venha cá...
O Tó enche um bartidouro de sardinha, puxa outra cedha de aparelho para o meio das pernas e continua a prender o isco aos anzóis.
Quem pescasse até cem quintais ganhava vinte escudos por cada um, e um quintal vale quinhentos ou seiscentos mal-réis para o armador. Mas nessa safra agarrei trezentos e dezassete quintais, vim com mais de dez contos, e comprei à Deolinda o cordão de oiro, o cordão que essa filha da mãe pôs na casa de penhores, no porto de abrigo, como se diz de brincadeira, por causa desse gajo com quem andou metida...
O Cardeal bate-lhe no ombro.
-O que foi? - responde arrenegado, já nem sabe enfiar as sardinhas frescas na ponta dos anzóis. O outro aponta-lhe o bote do Joaquim; põe-se em pé de um salto e repara que o Estrela do Mar está parado.
- Viemos passear ao Guilhim? - pergunta para o pai, entretido a puxar o barrete para os olhos, sinal de que alguma coisa o preocupa.
- O Gaivota está parado, ah Tó!
- Ele vai pescar prà nossa companha?
- Pode ser que volte pra trás...
- E se voltar?O Mar chega bem prà gente... Ele não traz o Mar dentro do barco...
- E se vier rabiosa, Tó? - interroga o Corrucho, lamentoso,
- Sabes lá de mar!... Isto parece marzinho, ah meu pai!
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-O arrais é que manda - insiste o Manel, agarrado aos lados do casinhoto de abrigar o motor.
- Foi ele que mandou a gente varar ao Mar... Agora, que entrámos, vamos sair? Isso era aí uma troça nessa Praia...
-Troça o quê?! Nunca se viu um bote voltar com malvadio?...
Tó Zarro, o António dos Safios, senta-se, continua a iscar, já não pensa no cordão que comprou para a Deolinda. Faz aquilo para obrigar o velho a dar ordem de marcha. Puxa de um cigarro, acende-o e leva-o com a língua para o canto da bota. Sem levantar os olhos, pergunta :
-O pai quer que eu diga ao Jaquim se quer voltar com a gente?
Responde-lhe o silêncio. Não pode ver o olhar dos camaradas; está de cabeça baixa, as mãos trabalham agora mais depressa, deixando o isco de fora da gamela redonda.
- Mande lá chegar o bote ao pé dele... eu falo.
-Ah rapaz! Tu és capaz de falar ao Jaquim?
- Então a gente traz uma barcada de senhoras, o que é que havemos de fazer?
O Manel fita-o com raiva, até os olhos se lhe põem raiados de sangue, e pensa dizer ao irmão: "Vai lá com os cornos! chegas lá num pulo, ah desgraçado!"
Ouvem-se melhor as vozes de terra, trazidas por uma golfada de vento, vento terra de sul, que é o vento das maçãs, como lhe chamam. O clarão dos fogachos parece incendiar os rostos.
- A serra está escalvada, arrais! Querem dizer que está negra - é sinal de ventos do sul.
- E a Lua chorosa - diz o Corrucho.
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- E a gente todos a chorar aqui - intervém o Tó com um sorriso de desdém na cara magra e nos olhos acesos de quem dorme mal. - Mande lá o bote prò pé do Gaivota, ah hó! Atiro-me já a nadar pra terra! Lá de barco é que não vou... Antes queria que me cuspissem a cara toda...
- Cala-te aí, desgraçado! -- grita o arrais fora de si. Repuxa mais uma vez o barrete para os olhos, sacode
o filho que vai ao motor e, com um aceno de mão, manda-o acelerar.
Depois ainda hesita, fazendo rumo para junto do Gaivota, que está aos balouços no meio do Lago com o arquejar da vaga miúda. A madrugada ainda vem longe, mas do bote do Diabo Negro percebem que os outros estão todos de pé a olhar para o que vão fazer. O arrais gosta de descobrir aquela expectativa; talvez um sinal de que esperam a aproximação do Estrela do Mar para lhe pedirem que regresse a terra.
Agora o António não atazana o pai, mas também não olha para ninguém. Pensa que se houvesse algum azar todos os acusariam, e acobarda-se. Finge não reparar no rumo do bote. O pai desvia o leme, de maneira a passar rente ao outro: agora o Jaquim vai dizer-me que é melhor voltar e eu finjo que não o oiço, e só depois meto para terra. A companha começa a ficar inquieta; o Cardeal e o Corrucho levantam-se.O velho manda-os baixar, não quer que o da Bota desconfie das suas intenções. Cantarola o Barrasquinho acompanhado pelo filho mais novo do arrais, enquanto o Álvaro se entretém a olhar para as luzes da ladeira do Sítio.
Soprando na proa do bote, a vaga rumoreja pesada e agressiva em cima da Pedra do Guilhim.
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- Calem-se aí - ordena o velho para os que cantam Vão passar pela ré do Gaivota, as sombras dos homens
voltam-se para eles e adivinha-se que esperam alguma coisa. Percebem-se os vultos a volverem a cabeça de bombordo para estibordo, num movimento contido.
Zé Diabo manda o filho cortar a força ao motor, precisa de ouvir bem se o outro lhe fala, e a lancha fica a pairar ao sabor das ondas, atordoada por instantes. Dentro do bote só o Tó assobia, para não dizer ao pai tudo o que pensa dele e dos camaradas.O velho manda-o calar.
- Estamos na missa?
- Cala-te aí...
Do lado do Gaivota cresce uma voz; o Cardeal diz ao arrais que eles falaram. Ansioso, Zé Diabo leva a mão ao ouvido e grita:
- Queres alguma coisa?!...
- O quê?! -responde-lhe o outro arrais.
- Se queres alguma coisa!...
Por instantes só se ouve o marulho do Mar.
A esperança agarra-se ao rosto de Manel Zarro, que parece exprimir a ansiedade da companha. A proa do outro bote guina para eles.
-O Ti Zé disse alguma coisa? - pergunta o da Bota, por fim.
- Tu é que falaste, ah hó!...
- Não era consigo...
O Tó Zarro volta-se para o velho:
- Precisava de ouvir isto?...
O arrais finge que não repara no filho; começa a alargar a curva do rumo do Estrela do Mar, de maneira que o da Bota não perceba a razão que o fez aproximar-se. Os vultos da outra companha não se movem, põem-se todos atentos para o que faz, o velho bem o percebe, e agora tem a certeza de que alguém lhe gritou de
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lá. Mas o Jaquim deve querer que seja ele a dar o sinal de regresso à praia. Nisso engana-se.
O seu bote é novo e aguenta bem com aquela vaga. Pode até crescer mais, já viu muitas vezes a baba da morte e ainda está ali para discutir no Mar com todos os arrais que há na Nazaré.
- Vamos lá embora! - sussurra para o motorista.
O bote começa a marcha devagar, devagarzinho, o arrais já segura a lâmpada de bolso para ver a bússola, e aquela olha de luz branca fica a boiar na luz amarela do fogacho, ante a resignação da companha que vai ao trabalho, mais lenta do que nunca, "dá cá esse gigo, Barrasquinho, isca aqui comigo, vamos hoje todos baldeados por causa das teimas", enquanto o Manel espera qualquer coisa que faça o pai dar-lhe a ordem de varar em terra; talvez o da Bota ganhe mais juízo do que o irmão, esse desgraçado quer desgraçar os outros, mas mate-se sozinho...
Enchendo também um bartidouro, o Zé pega numa gamela quadrada, com os anzóis agarrados à cortiça que lhe envolve a borda, e chama o Barrasquinho para a sua beira. Vai falar-lhe do verso que fez, pode arranjar maneira de falar nisso, por causa da sardinha do isco. "Nem todo o peixe é sardinha, mas toda a mulher é rainha."
O Manel espreita o pai. Zé Diabo Negro percebe-lhe a interrogação, recorda-se da cena que o filho fizera na festa e riem-se-lhe os olhos.
- Vamos lá com Deus!
- Pra terra, pai?
- Não, prò Mar!... Vamos trazer uma pranchada de pescadas, pra esse guloso não se ficar a rir...
E olha para a proa, levando a mão ao barrete, em sinal de humildade.
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Nas ondas acameiradas, o bote vai rompendo com rumo ao Mar.
O farol atira uma chapada de luz macia sobre a água.
Da praia vem uma lufada de gritos.
- Vá com força, Manel!O motor é novo, ah hó!... Quem não quer vir ao Mar fica boieiro em terra. Ou arranja pra trabalhar nos tractores...
Do lado da praia há uma névoa.
O bote salta de rompão e aí vai. Espaneja-se, galga, as ondas sobem-lhe à proa e vêm-lhe lamber a borda toda. O Barrasquinho cantarola; aquilo é piada para o Álvaro, que lhe responde em duas sílabas, e puxa um foquim, onde se senta a meter a isca.
Como se tivesse o rosto de cobre, de cobre usado com o lumaréu do fogacho a iluminá-lo, o arrais olha terra, busca o sinal, fita a bússola com o olho da lanterna e puxa o leme ao peito.
- Vamos prà Cana da Banda do Mar... Vamos lá com Deus!
"Que o Estrela seja o barco que sonhei", pensa Zé Diabo. E só ele sabe porque lhe deu aquele nome.
Impelidos pelo vento, os bicos acesos do fogacho parecem arrepiar-se, deitam franjas de uma luz lazarenta.
A grimpar no capelo das ondas, o barco deixa de ser um berço.
Estão fora do Lago; saíram da Cala.
A direita, lá por esse Mar além, pisea-lhes o farol de São Pedro.
Já não se ouve cantarolar a voz do Barrasquinho; o ruído do motor matraqueia, matraqueia, e não pára, parece alardear com raiva a ira que o motorista cala dentro de si.
O olhar é que vai pousado no pai e este não o vê. Ainda é noite.
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NOITE é como quem diz. A madrugada já avança sorrateira, desprende-se do céu sobre o Mar, lá longe no horizonte, e vem de rojo, rente à vaga, como se quisesse apanhá-los de improviso. Traz consigo um bafo frio, danado, que penetra fundo nos corpos, furando as camisolas e as samarras.
Também não dá manta o calor da aguardente bebida em casa.
O palor daquela claridade cinzenta entranha-se nas sombras que os envolvem e começa a moldar as montanhas distantes, as ribas e os promontórios cortados a pique pelas águas, as enseadas caprichosas onde a voz nfarulhosa das ondas ecoa e se escoa, e se repete, numa confusão de clamores e de ecos, que vai pelos vales estreitos, onde se perde, como se perdem dali, àquela hora antes do alvor, as manchas ocres e vermelhas das falésias e o debrum das praias adormecidas.
Tudo é cinzento e frio, e magoado.
Os olhares regressam a terra, carregados de lembranças, a terra mal se define ainda naquela sombra quase pastosa, como se a noite ficasse agarrada aos montes.
Manel Zarro põe-se a calçar as botas altas e olha o pai, de soslaio, tem a mania que mete medo a toda a gente;
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eu é que nunca devia ter vindo trabalhar com ele outra vez, a minha avó é que tem a culpa disto: pôs-se a dizer que era uma vergonha andarem os filhos a um lado e o pai ao outro, e lá vim eu e o Tó para aqui. Ele e o Tó estão bem um para o outro, são dois garganeiros; o Tó desafiou a gente para o Mar, e agora quero ver como isto acaba. O corpo já me está a adivinhar porrada grossa... Esta brisa por riba da vaga já a conheço...
O Gaivota vem agora atrás deles, a fazer o mesmo rumo. Deve querer jogar a batalha no pesqueiro para onde se encaminham com o motor a meia força. A ondulação não deixa ir mais depressa, está a crescer, atira-se sobre a proa, como se quisesse parti-la, o bote ginga, parece tonto, detém-se, às vezes, a galgar uma vaga mais grossa; depois lá continua apressado, como se pudesse descansar na outra onda que já rompe a distância, e farfalha, e se cinde em duas quando o Estrela a consegue cortar.
Pelos movimentos do outro bote percebem melhor a ondulação.
-Aí estão eles! - grita o arrais, todo voltado para trás.
- Só esperavam que a gente fizesse rumo - responde o Corrucho.
- Não há vida mais traidora - reponta o velho, virando-se outra vez para a luz que o persegue.
- Como se o Mar não fosse maior quò mundo...
Zé Diabinho sente o estômago a dar-lhe volta; quando está muito tempo sem vir ao Mar fica assim, embora depois seja dos mais rijos a aguentar a ondulação. Vai abrir o foquim, tira uma bucha lá de dentro e começa a roê-la.
- Já levas fome? - diz o Cardeal.
- Fico adiantado. Com esta aguagem não vamos ter muito tempo para almoçar...
- Isto quebra!
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- Quebra em riba da gente...
- Vamos agarrar aí um bailarico que até anda tudo parvo, ah hó!
Ausente no trabalho da isca, o Tó não os ouve. Lembra-se do mar da Gronelândia, já o capitão disse o "arriando com Deus" para saírem do lugre, e lá vai dentro do seu dóri com a vela azul armada por aquele mar dentro, e ali perto o "verde" da Fuseta, o Martelinho, era assim ruço, esperto que nem um pássaro, e sardento, todos lhe chamavam o Sardento... Quando quiseram passá-lo a maduro não quis, só para andar perto de mim, éramos como dois irmãos, nem o Zé nem o Manel são assim meus amigos como ele era. Um dia enchemos os dois dóris por três vezes, três vezes carregados a mais não poder ser, foi uma festa para os dois. E no dia seguinte passou logo a maduro; parece que estou ainda a ouvi-lo, tinha uma voz de menino: esta pesca d'hoje é à sua sorte, ah Ti Tóino da Nazaré! Era do meu tamanho, mas tinha ainda aquela voz menineira, e alguns brincavam com ele por causa disso. E foi mesmo naquele dia em que passou a maduro, ah dia desgraçado!, vem uma brisa de morte, daquelas brisas que só conheço àquele mar matador, e os dóris voltam, começam a, vir para o navio, eu fui dos últimos a chegar e perguntei logo por ele. "Ainda não veio", disse-me o Zé Figueira. "Ainda não veio?" O coração deu-me uma pancada, parecia um malho, e aí me ponho eu a chamar, ainda quis arriar o meu dóri para ir à procura dele, e o capitão, esse filho da mãe, não me deixou, ameaçou-me de me levar preso se eu teimasse, e aí se põe a sereia a chamar por ele. a chamar, a chamar...
- Ah Tó! Tó...
- Que foi?
- Onde é que vais, hó?...
- Porquê?!...
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- Já te disse para veres aí o trabalho do teu irmão...
- Já vejo...
O bote aproxima-se de duas traineiras de Peniche, cujas luzes ora surgem no céu, ora se somem tragadas pelas ondas.
Foge na madrugada o fumo do fogacho do Estrela do Mar. E uma pancada mais forte da ondulação bate de vez em quando no costado da lancha inquieta.
E aí se põe a sereia a chamar, nunca a sereia, sempre triste, esteve tão triste como nessa tarde... Ah 'migos da Nazaré e da Fuseta!O Mar dá cada tristeza a um homem!... Não, ele não voltou, nunca mais o vimos... Nem ao dóri...
Lembra-se dele muitas vezes, foi com o Manelinho que desabafou dessa vez em que lhe disseram que os da Nazaré eram amarelos, e lembra-se mais ainda quando a vaga cresce; foi nele que mais pensou naqueles dois dias em que andou no safio e todos o julgaram perdido.
Procuram o rumo oeste-noroeste, a Lua fica lá atrás, por riba do promontório do Sítio cintila a estrela do alvor, e o farol de São Pedro faísca, faísca, está a avisar os barcos, enquanto a madrugada os abraça na palidez da sua luz frouxa e ainda indecisa.
Onde estarão agora os seus camaradas? Talvez ainda na Terra Nova. Mas o Mar anda tão fugidio de peixe que, se calhar, já os lugres abalaram para o banco da Griolanda, para esse inferno onde o Manelinho ficou... Coisa mais branca e mais negra não há no mundo!... Mas tomara lá estar ainda mesmo assim, só arranjo sarilhos em terra... Agora estou metido noutro. Quero lá saber disso... É melhor não pensar; quando souberem, acabou-se. Pronto, e depois?!... Até os pássaros gostam...
O velho pôs o leme virado para a Cana da Banda do Mar, mas ainda falta mais de uma hora antes que lá
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cheguem. Vão agora no Mar Martinho e depois hão-de passar pela Cana da Banda de Terra e pelos Pocinhos. "Lá na Cana, onde o arrais marcou a pescaria", pensa o Comicho, "têm de fugir ao Pedregulho, de fundo rochoso e baixo, onde podem encalhar, já não é o primeiro que encalha com olhos tão bons como os do Diabo Negro. Se lá encalham e o malvadio aperta, só alguma traineira de Peniche os poderá salvar, mas o bote perde-se. "Também não era mal feito", indigna-se o Corrucho. Mereciam castigo por entrarem ao Mar num dia tão incerto." Não há botes que vêm só cinquenta dias por ano ao Mar? Para que se atiram aqueles dois?... Nenhum bote consegue vir mais de cem dias... Vale a pena arriscar daquela maneira? Enquanto não houver um portozinho, que podem eles contra um mar assim?
A lancha do Joaquim da Bota aperta, quer ganhar o atraso, aí vem nas horas de estalar com uma vaga de espuma a saltar-lhe por cima da proa; o arrais está alerta, manda o Manel dar tudo quanto o motor puder, não vá a mulher do outro gabar-se, como é costume. Agora hão-de saber como elas lhe mordem, os Diabos têm um bote novo, uma espada, e só ainda agora o Mar colheu o resto do ramo de flores que a Maria Estrela lhe pendurou no bico da proa. Um ramo com jarros brancos, alcachofras e uma rosa. Só uma rosa vermelha no meio.
Zé Diabinho esqueceu-se, por instantes, do verso que arranjou para responder à Maria Estrela e está a lem-brar-se da mãe para avivar a raiva que sente contra o velho. É assim que os filhos lhe chamam, embora o pai mal passe dos cinquenta e o vinho o conserve, como diz a avó.
Vai agora enfrascado de ódio contra o pai. Já não bastava a desfeita que lhe fez no baile da cabana, e ainda agora, à frente de todos, a mandar o Tó ver o trabalho
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dele. Mas talvez a coisa lhe saia torta com a rapariga; o baboso do velho há-de aprender que já não tem idade para namoros. Odeia-o sempre que o ouve gritar e pôr-se de queixos duros. Volta-se então para dentro das recordações dessa noite que viveu no ventro da mãe e ela lhe contou uma vez. Embora a mãe nunca mais quisesse falar-lhe nisso, o rapaz pensa nessa noite em que o velho pôs todos na rua, os cães bebiam de pé a água da chuva, água se Deus a dava, um temporal desfeito, e ela corrida a murros para fora de casa, vergonhosa, sem dar ralhos como as outras mulheres que gritam, gritam por uma coisa de nada, e ela vergonhosa, sem um ai, lá fora esconder-se numa porta da Frente do Mar com o Tó e o Manel, e ele ainda dentro da barriga da mãe, que lhe contara tudo uma vez... Tu mexias dentro de mim, parece que estavas a sentir o mal que ele fazia à gente.O velho estava bêbedo; quando bebia de mais, gritava sempre que nenhuma mulher da Nazaré mandava nele, não era como os outros que se sujeitavam, mas na sua casa era ele quem mandava, porque era ele quem ganhava para a família. E ameaçava-a: se um dia vais à taberna à minha procura, como muitas fazem, racho-te a pontapés. Há-de ser a pontapés para não sujar as mãos na cara duma mulher. Mas nessa noite pusera-a fora de casa a murro...O Manel é que sabe coutar bem o que se passou, por isso já saiu de casa duas vezes e ainda ontem me disse na cama que na próxima vez sai e não volta mais...
A partir dessa noite passaram a chamar-lhe Diabo Negro. Alcunha mesmo ao pintar.
Tarde ou cedo, diz o Manel muitas vezes, cedo ou tarde o velho há-de pagar tudo bem pago e repago.
Nunca os filhos esqueceram aquele portal onde a mãe se acolheu com eles, mesmo ali defronte daquele mar a
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que chamam o Lago das Viúvas, por causa dos naufrágios com os barcos da xávega.
Enquanto limpa o motor com o rodo de desperdício, o Manel põe-se a pensar no mesmo, como se o irmão mais novo lhe pedisse que contasse o que se passara.
"Foi mesmo uma coisa de malvado, se tu visses Zé, saíam-lhe os olhos para fora da cara e deitava espuma pela boca; já agarrara o costume de trazer buchinhas dentro da cinta e azeitonas no bolso, e só parava de beber quando deitava fora, e depois bebia leite, e logo a seguir voltava a beber, nunca ninguém percebeu porquê, diz a nossa avó, pois os Zarros sempre gostaram de vinho, mas não era nada daquilo. E nessa noite, uma noite de temporal, chovia água se Deus a dava, vai ele e põe-nos na rua, a nossa mãe tirou a capa de cima dela e tapou-me a mim e ao Tó. Nunca mais me esqueci disso. Sempre que passo àquela porta, posso 'levar a alegria maior deste mundo, que o coração põe-se-me logo negro, negrinho de todo... É por isso que tenho aqui esta marca na cabeça. Dessa vez meti-me no meio dos dois, ele começou a bater na mãe e deu-me um empurrão; fui bater com a cabeça na esquina da porta, e eu cheio de sangue, a nossa mãe dessa vez é que gritou, e ele só me ameaçava. Depois foi ele que agarrou em mim e me levou à farmácia do Pereira. E lá contou que eu caíra, os rapazes nunca estão quietos, disse o aldrabão."
Parece que os dois irmãos falam sem palavras um para o outro.
- Anda lá depressa, Zé!-grita o arrais da popa.
- Ainda não estive parado. Não tenho quatro mãos...
- Que estás tu a dizer?
- Que não tenho quatro mãos!
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O velho acena a cabeça e poe-se a esfregar a boca com a mão canha. Depois volta-se para medir a distância que o Gaivota traz.
Dá vontade de rir o Barrasquinho a imitar o Patolas, que toca cântaro na música do rancho e arremelga um olho quando dá ao abano, sacudindo um ombro ao mesmo tempo. Diz que aquele instrumento ninguém o toca assim e que em França, em La Rochelle, as francesas o levaram em triunfo até à saída do recinto onde se exibiram.
- Diz que lhe compraram a bilha por mais de cem mil réis...
- Ah hó! - abre-se o Corrucho de espanto.
- Eu agora vou pra França montar uma olaria; venho de lá com dinheiro acamado...
- Cem mil réis só a bilha ou a bilha e o abano? - pergunta o Cardeal, a fazer boquinhas quando fala.
- O abano é de graça - responde o Barrasquinho, a piscar o olho para o Tó, que está a dar-lhe atenção.
- Mas o Patolas fala umas poucas de línguas - diz o Corrucho, muito crédulo das bazófias do tocador.
- Ah isso sabe! Língua de vaca... Todos riem.
E língua de porco? - interroga o Cardeal, a querer botar figura.
- Essa não admira: é a língua dele.
Voltam as gargalhadas a correr o grupo que vai a proa, enquanto o arrais sorri do banco da ré, sempre atento ao Mar, que não dá bons sinais. "Pode ser que passe, na borda parecia pior", pensa Zé Diabo Negro.
Ele sabe francês e inglês-insiste o Corrucho. - Ouvi-lhe eu na taberna do Botas...
- Isso também tu sabes... Merci, messiú, yes, oh yes... E espanhol.,.
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--Não brinques, ah Barrasquinho! Ouvi o homem falar com um estrangeiro ao pé da Capitania; ninguém percebia uma...
- Nem eles percebiam nada... O Patolas falava com as mãos e o outro com a cabeça. É assim que falam as línguas todas...
- Mas o Parracá sabe; esse esteve na outra guerra...
- Isso não admira. Também eu falava e tu... Deixou lá dois filhos.
- Algum é capaz de ser ministro lá em França.
Os homens iscam o aparelho. Tiram as sardinhas dos gigos, cortam-nas ao meio e cravam-nas nos anzóis. Levam vinte e duas celhas, cada celha duzentos e cinquenta anzóis, e tudo há-de ficar pronto até chegarem ao Mar que o arrais escolheu, "se o Mar deixar", pensam todos os homens da companha, menos o Tó, que não cuida do tempo, apanhou muito temporal lá na Gronelândia e na Terra Nova. E depois quer que se saiba na Praia que não voltou do banco por não ser bom pescador. Era primeira-linha, num ano fez quinze contos, ninguém fez mais do que ele, contaram os camaradas.
Já todos sabem que o António dos Safios, como lhe chamam agora, é o maior pescador da Nazaré, mesmo que isso custe a engolir aos outros, e até ao pai, que encolhe os ombros quando lhe falam nisso e muda a conversa para outra banda. Andou perdido no Mar, sozinho, a pescar à chumbada, e voltou com cinco contos de peixe ali vendidos na lota; até os compradores lhe pagaram mais com a festança que houve na Praia quando o viram chegar.
O capitão chamou-o e repreendeu-o, aquilo não se fazia, andara toda a gente em gritaria por sua causa e nunca mais o deixava sair sozinho; se teimasse, mandava-o para a prisão. E o Tó respondera logo: "Sim senhor, meu
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capitão, mas enquanto os outros estão aqui com fome, eu trago no bote mais de cinco contos de peixe."
Tomaram muitos botes com oito e nove homens pescar metade. Nem sempre se pesca metade; e a outra metade fica na isca, no gasóleo e nos descontos dos impostos.
O Tó trabalha mais depressa do que nenhum outro camarada; ainda vai a recordar-se do "verde", o Manelinho que era ruço e não voltou ao lugre num dia em que foi ao Mar. Já lá vão, o quê? Três anos?... Sim, quase três anos, como o tempo passa depressa!
Por instantes, o bote fica tonto com as vagas saltarinas que o acometem.
- As sereias do Mar estão a cuspir - chalaceia o Barrasquinho.
- Estão a pedir-te namoro - diz o Zé Diabinho.
--A ele?-intervém o Tó. - Só se trabalharem pra ele...
Acham graça ao dito, o Tó vai quase sempre calado, mas sabe dizer das boas. E todos vêem que anda agora menos triste; já assobia no trabalho, ri muitas vezes com os camaradas. Não há desgosto que não passe! Também é o que vale...
O Barrasquinho não se fica:
- E então era mau? No Mar há falta de homens... Os peixes não acasalam com as sereias...
- O Mar é fêmea...
- Fêmea?
- Se não fosse fêmea, pra que queria o Mar tanto pescador?
Os fogachos das duas traineiras são agora fogueiras inquietas no meio das águas; duas fogueiras lá ao longe, enquanto a noite se afunda no Mar e a luz da manhã anda
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com navalhas a rasgar o resto das trevas que ainda os cobre.
O prateado das sardinhas vai dós bartidouros para as mãos dos homens e depois para os anzóis, pendendo das celhas do aparelho como pedaços de prata nova.
- Com o rumor da Lua deve morrer peixe.
- Também eu ando com ela - diz o Cardeal.
- Vais lá num foguete desses que agora atiram - corta o Corrucho com a voz de pífaro e a dar aos ombros mal prontos.
- Tu nunca mais lá chegavas...
- Porquê? Sou menos qu'a ti?
-Não, és mais. Bates com os pés no chão se te põem na Lua...
- Ah hó!...
Embaraçado com o gracejo, o Corrucho anda com a ponta do cigarro de um canto para o outro da boca quase desdentada.
O arrais levanta-se à ré, espreita o Mar com os olhos azuis, quase escondidos na penugem crespa das sobrancelhas, que anda sempre a iriçar com as mãos. Gosta de ver as sobrancelhas ramalhudas junto da carapinha do barrete.
Todo de ganga, o Manel segue o olhar do pai e não vê boa cara ao Mar.
Os outros lá continuam na faina da isca. A assobiar, o Tó parece um melro.O pai sente-se feliz por ver o filho satisfeito. "Ainda bem..."
Faltam três celhas, cada celha duzentos e cinquenta anzóis, e ninguém pensa o peixe que podem agarrar com um mar assim, a menos que tenham a sorte de encontrar um corso de peixe-espada. Nem isso talvez.O Corrucho viu um rolim a nadar, e o rolim é peixe que traz azar, um
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peixe sem feitio que se entenda, quase redondo, de pele feia, e todos sabem que anuncia vento.
Mais vento?! Onde se veio a gente meter?... Ah arrais, abra bem esses olhos!
No seu matraquejo, o motor assemelha-se a muitos martelos a bater lá por baixo, e o Manel vigia-o, espreita o Mar de vez em quando, limpa as mãos com desperdício e não fala, não fala para ninguém.O Barrasquinho cantarola; agora está entretido com o trabalho. A sua beira, o Zé Diabinho vai também a iscar e conta-lhe o que ouviu à rapariga. Só não conta quem ela é; o outro começa a atirar nomes à sorte.
- O nome não adivinhas, Barrasquinho... Eu depois te digo se ela pegar no anzol.
- É loira?
- É sim, é loira... (A Mari'Estrela tem o cabelo negro como as penas de um corvo.)
- Então é a Ruça... Mas agarra-a bem, senão ela escapa-se. A Ruça tem pinta. Parece uma âncora a dançar... E o que te disse ela?...
- Disse que nem todo o peixe era sardinha... E eu agora, quando a encontrar, vou-lhe dizer que toda a mulher é rainha...
- Com'à rainha que passou aí na Praia?... E se a rapariga quer um automóvel como o dela? Não lhe digas isso, Zé!
- Porquê?
- Podes estragá-la... Rainha na Praia é mulher de bacalhoeiro. Todas querem arranjar um bacalhoeiro. Dão menos trabalho e trazem mais dinheiro... Olha, também fiz um verso - diz o Barrasquinho em voz alta.
- Diz lá - pede o Álvaro, que vai à sonda.
- Todas as mulheres querem um bacalhoeiro... Dão menos trabalho e trazem mais dinheiro...
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o Álvaro ri e acena a cabeça; a borla do barrete preto salta-lhe nas costas. Riem com ele o Zé e o Barrasquinho.O Tó, se ouvisse, não havia de gostar daquela graça; mas começou a enrolar as linhas nas cabaças e vai a pensar em qualquer coisa que o alegra.
As cabaças parecem pássaros. E aqueles têm as cores da família dos Zarros, descobridora de três mares, naquele Mar sem fim por onde o bote galga a caminho da Cana da Banda do Mar.
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"UM bote é como uma pessoa", são palavras do Zé Diabo Negro, que sabe alinhar duas coisas certas quando não carrega nos copos.
"Uma pessoa nasce com o seu destino marcado", pensa o arrais, "e com um botezinho dá-se o mesmo. No risco do calafate está a barriga da mãe, salvo seja. Um calafate, se é homem de opinião, entra num pinhal e desenha com os olhos, ali mesmo nas árvores, o feitio todo de um bote que há-de ir ao Mar. Há árvores que estão no pinhal por engano."
Zé Diabo Negro gosta desta ideia, que lhe veio à cabeça estava ele a ver o calafate esboçar o bote novo, que leva agora ali, sabe lá para quê?
Há árvores que estão no pinhal por engano, sim senhor. Sou eu que o digo. Parecem barcos já feitos, à espera que os ponham a boiar.
Este, o Estrela do Mar, nasceu assim. É uma espada, é um cavalo, só tem pena que o povo da Praia não o possa ver ali no meio das ondas. Agora o destino dele. Quem sabe o destino de uma pessoa? Quem sabe o destino de um bote?
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Os rolins andam a boiar, é sinal de vento. Se cair mais vento, ainda mais vento, quem sabe o destino do seu bote? Deus. Pois, Deus. Mas Deus não manda aviso. Um homem mete-se num sarilho no Mar e depois? Deus salva ou mata. Às vezes mata; outras vezes salva.
Os rolins andam a boiar, é sinal de vento. Talvez seja Deus quem os mande. Pode ser um aviso. Mas que vento?!... Se é do norte, um bote anda num mar de cruzes, um bote anda na mão da morte quando procura o rumo de terra. E preciso virar sempre a proa bem à vaga, não há olhos que cheguem, porque as ondas não são todas irmãs, e muitas vêm à falseta experimentar o arrais que vai ao leme. Sim, se é norte, se é vento norte, a saída do mar é mais fácil. Entra-se no Lago, na Cala, o promontório abriga, a rebentação vê-se melhor, escolhem-se bem os rasos para varar na areia. Mas a travessia, até chegar ao enfiamento do Guilhim?
Lá vão os rolins a boiar... Que vento anunciam?
Se trazem vento sul, vento terra do sul, o vento das maçãs, por vir das bandas da Cela, o varar não custa, se o tempo não estiver ensarriado, quer dizer, chuvoso. Então pode bater vento da banda das costas do Mar e a vaga cresce na borda... A maresia na borda é que mata quase sempre. Se houvesse um porto de abrigo... la-se ao Mar quase todo o ano, ganhava-se quatro ou cinco vezes mais, e o perigo queimava menos.
o Mar é genioso, já se vê, e nunca se sabe bem a pancada que atira. Mas com um portozinho, um quebra-mar, ao menos...
Os rolins andam a boiar, dão sinal de vento.
Mas que vento?
E se for o vento que ronde do sudoeste para o noroeste, vento que vem da banda do Mar? Daqueles ventos mareiros que levantam a vaga mesmo na borda e não deixam
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escolher raso, pondo a costa negada. Para onde vai um bote?...
o Mar levanta-se. É um mar que traz cruzes, padre e sacristão.
Um bote é como uma pessoa. Quem sabe o destino de uma pessoa? Quem sabe o destino de um bote?
Não, ele não sabe. Ele, que é o Diabo Negro, não sabe.
Vê os rolins a boiar e reza. Não sabe bem o que reza, o que é preciso é falar para o Céu, se de lá nos ouvem.
Vê os rolins a boiar e sabe, isso sabe bem, que dão sinal de mais vento.
Mas que vento?
Agora já o Inverno acabou e não há que recear os oestes, esses ventos malditos e bravos que vêm encarrilhados, que fazem o mar partir e galgar a direito, um leão, e galgam a Frente do Mar e entram nas ruas, partem as portas e matam homens às esquinas. De repente, uma vaga maior sai do corpo gigante das outras e atira-se de roldão, a bater, a bater, a arrastar tudo o que encontra pela frente.
Se um dia cair a vara estandarte que vai na procissão dos Passos, dizem as velhas que o Mar romperá tudo, levará as casas consigo para os abismos e a Praia desaparecerá como noutros tempos. A Pederneira e o Sítio é que serão os portos para os barcos que regressarem àquele Mar. Será um vento do oeste, esse que levará a Praia se a vara cair das mãos do pescador que a leva na procissão.
Os rolins vão a boiar, mas não anunciam oeste, o vento do Inverno.
Vão a boiar, são feios os rolins, e anunciam mau tempo. Vento.
Mas que vento?!
Zé Diabo Negro leva ali o seu bote novo, pintado que nem uma flor, vai para a Cana da Banda do Mar, mas desconhece para que destino lhe faz o rumo. Gostaria só
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de voltar depressa; pressente agora, e não percebe porquê, que precisa de resolver aquilo da afilhada mal chegue a terra.
A bússola vai aos seus pés, agora já não se serve da lanterna de bolso, a manhã já apareceu e está bonita, de céus azuis mas escamentos, e tem de virar mais a proa a noroeste.O Gaivota segue-o; persegue o seu botezinho, como se ambos 'tivessem combinado em terra o local para uma rixa.
Mais ninguém veio ao Mar.
Os outros barcos estão varados na areia, em cima do paredão ou ainda nas embocaduras das ruelas perto da Praia. Já as traineiras apagaram os fogachos e vão lá longe com as lanchinhas arrastadas, são de Peniche.
Só os dois vieram combater.
A sorte também manda; e no Mar ainda mais do que em terra.
Agora ninguém fala na sua companha. Os homens vão a enrolar as linhas nas cabaças pintadas com as duas cores da família dos Zarros. O branco e o vermelho. Os rapazes mais novos, que só pensam na bola, dizem que o seu bote é o Benfica e vai ganhar o campeonato ao da Bota.
Mas os rolins andam a boiar.
É sinal de vento.
Mas que vento?!...
Cada um dos camaradas vai a pensar no mesmo, tem a certeza, o vento diz coisas diferentes a cada pescador, mas o silêncio da companha já ele o conhece bem. Basta correr os olhos pelo bote para sentir que o receio os tomou, sim, percebe que o pessoal vai a temer-se, e o seu Manel mais do que ninguém. Adivinha-o no jeito com que se encafua dentro do casinhoto, como se levasse todo o
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cuidado posto no motor, e depois nos movimentos bruscos da cabeça, mal rebenta na proa alguma onda mais saltarina.
Que sinal de vento haverá no sangue do filho?!...
Nem os rolins o anunciam melhor. Também esses não faltam à estreia do seu bote.
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UM bote pode ter o nome de um santo, de uma mulher ou de uma esperança.
Ou de um pássaro.
Ou de um mar.
Podem pintar-lhe um nome entendido logo por todos ou um nome que queira dizer muito mais do que as letras desenhadas e cheias depois.
Mas as palavras enchem-se também de outras coisas mais profundas e duradouras do que a tinta.
As palavras nem sempre dizem o mesmo para toda a gente; é bom que assim seja. Há nelas uma margem para o sonho.
Para um barco que vive no Mar e se guia pelas estrelas, Estrela do Mar é um nome bonito, mesmo que nada mais signifique. Dá um bonito nome só por si.
Toda a gente gosta de estrelas, seria absurdo odiá-las; mas poucos compreendem as estrelas como os homens do mar.
Elas são, muitas vezes, as únicas companhias que a solidão das vagas não mata. Entre as estrelas e esses homens usa-se uma linguagem cifrada que nem todos entendem. Vai delas para os braços que esperam os pescadores um caminho sem abismos.
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Uma estrela-do-mar torna-se, então, uma luz no temporal; aquela luz que nunca se apaga.
Uma estrela-do-mar, porém, é uma flor das águas.
Uma flor estranha que parece ter nascido na terra e que depois foi arrastada para o Mar - talvez para lhe sentir os arrebatamentos ou ouvir as queixas.
E não pode uma estrela-do-mar querer dizer uma estrela da terra?
Sempre, e só, uma estrela da terra, sem mais nada?
Uma mulher, por exemplo...
Uma mulher que se chame Maria Estrela pode invocar-se no nome de um bote que se chame Estrela do Mar.
E ninguém sabe, nem mesmo o pintor que enche as palavras com tinta, o sonho que fica pintado para sempre no coração de quem as escolheu.
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ZÉ DIABO NEGRO não quis para o seu bote novo o mesmo nome do outro que está agora no cemitério dos barcos velhos.
Alcatraz é um pássaro adivinho para o peixe e foi com ele que os arrais da sua família descobriram mares novos, nesse mar sem fim por onde agora singra. A mãe ficou triste por ter enjeitado essa tradição dos Zarros, mas nunca gostou de ouvir conselhos de mulheres. Não é como os outros.
Os filhos, esses, achavam que o bote devia chamar-se Preciosa.
Mas para Zé Diabo Negro o bote novo só podia levar aquele nome.
Um nome que quer dizer tanta coisa e só abriga um sentido, um único sentido para si.
Tem uma estrela-do mar, uma estrela-flor, em cima da mesa da casa de jantar, onde nunca se janta. E fica bem onde está, ninguém repara nisso. Mas uma estrela de terra fica bem noutro sítio...
Não sabe bem como aquela ideia se lhe meteu no sangue. Ela vinha pedir-lhe a bênção, beijava-lhe a mão e ele fazia-lhe uma carícia na face ou nos cabelos. E um dia
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sentiu vontade de lhe dizer: "Não, não é a mão que me deves beijar."
Foi uma coisa sorrateira, assim como uma doença que se enrosca... Não, uma doença, não.
As noites custam-lhe agora a passar sozinho.
Só dorme na areia quando o bote regressa e os homens preparam o peixe nos gigos para o levarem à lota. Então, aí dorme uns bocados, dois ou três bocados de uns minutos escassos.
Depois do jantar vai beber um copo à taberna do Tóino Aleluia, dá dois dedos de conversa aos amigos que por ali aparecem e volta para casa. Deita-se, daí a pouco vem ao corredor para ver se a encontra, anda dali para a cozinha, volta ao quarto, e depois faz o mesmo caminho umas poucas de vezes. Ouve todos os ruídos da casa e da rua, sabe quando a mãe está acordada e os filhos dormem.
(O Tó não fica debaixo das suas telhas. Tem as dele, embora viva sozinho também. É um homem esquisito, o seu António.)
Deita-se na cama, fecha os olhos, mas eles vêm para o corredor.
Aquilo sucedeu-lhe uma vez que teve sede.
Não, a dizer a verdade, já começara a pensar nela. Ouviu uns passos no corredor, uns passos leves, uma respiração branda. Então, levantou-se também, foi ao corredor, viu luz acesa na cozinha e fingiu-se admirado por encontrá-la. A afilhada ficou espantada, assim com cara de quem o não esperava.
- Ah, és tu? - perguntou-lhe.
- Vim beber água...
- Também eu. Estou com sede.
- Faz calor no quarto...
- É. Faz muito calor.
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Prolongava a conversa, a rapariga queria voltar para a cama e ele a procurar sustê-la junto de si. Ela estava em camisa, via-lhe as formas. Adivinhava-as. Sabia que estava nua por debaixo da camisa branca e comprida.
- E. Faz muito calor. Está bom para ir até à areia. - Quem lá pudesse estar! -disse a rapariga.
E sorriu-se com uns dentes brancos, fez um trejeito com o corpo.
Pensou dizer-lhe que podiam ir os dois até à areia. Depois percebeu que não era bonito falar-lhe nisso. Sorriu também e deu aos ombros.
- Estou cheio de sede... Dá-me mais um púcaro d'água.
- A água não está fresca.
Mas devia estar aquela que lhe ficara a gotejar na boca.
Ela entregara-lhe o púcaro e desaparecera. Ele apertara as mãos até lhe doerem, trouxera-as ao peito e depois encostara-as com força, como se gostasse de meter as mãos lá dentro. A figura da rapariga ficara à sua volta. Virava-se, ela fugia à roda, do canto da chaminé para o lado da mesa baixa, onde comiam todos sentados ou deitados no chão.
Fora até a janela, abrira-a, deixara que a brisa viesse abrandar-lhe aquela ânsia; o rolo do mar, lá em baixo, excitara-o mais. Depois a voz da velha:
- Ah, és tu? Sentira-se envergonhado.
- Sou. Vim beber água. Estava com sede...
A mãe saíra, e ele ficara ainda a beber mais um púcaro.
A partir dessa noite metera-se-lhe aquela espertina no corpo.
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Uma cobra que se lhe enfiara no sangue, pondo-o alerta para todos os ruídos.
Enganava-se muitas vezes, julgava ouvir os mesmos passos da outra vez e vinha para o corredor. Mas nunca mais a encontrara, a não ser a sua imagem junto da bilha, a sorrir-lhe e a estender-lhe o púcaro, como naquela noite em que se viram na intimidade das roupas de dormir.
O mar golpeia-ilhe o bote, atira-lhe com chicotadas, e aquilo pode significar alguma coisa mais do que vento.
Alguém lhe estende a rabana de oleado, que enfia por hábito.
- Vai todo molhado, ah hó!
Também a companha já vestiu as rabanas. São umas verdes e outras amarelas. E brilham agora com a luz branda da manhã.
Os homens começam a abrir os foquins. Tiram pão e peixe frito lá de dentro, metem a garrafa à boca para uma primeira golada, põem-se a comer. Todos percebem que não haverá tempo para fazer comida quente.
O Mar não deixa.
Quando regressarem pode estar rafoiosa.
Os rolins andam a boiar.
É sinal de vento. Mas que vento?!...
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LEVAM a boca seca. A comida começa a ficar dura e a enrolar-se; não têm apetite. Olham uns para os outros, bebem para molhar o pão e o peixe frito, talvez assim escorregue melhor.
O Barrasquinho tira uma laranja de dentro do foquim e começa a chupá-la. Não come mais, o que tem é sede, uma sede danada que lhe vem das tripas. Deve ser por causa do Mar. Quando o malvadio aperta já sabe que lhe sucede aquilo. E com os outros dá-se o mesmo.
A ansiedade seca o corpo. E o medo também. Seca-se o corpo; menos as mãos, que ficam húmidas e frias.
De um salto, o Cardeal levanta-se. Viu um rolim, pega num bicheiro e atira uma pancada à vaga; esta responde--lhe com um sacão mais forte e o homem desequilibra-se, vai de costas a dar aos braços; Zé Diabinho segura-o na queda. Quando o vêem agarrado, os camaradas riem. São gargalhadas sem gosto, como se o fizessem por obrigação.
- O que foi, ah Cardeal? - pergunta o Corrucho.
- Era um rolim grande...
- Dá azar - acrescenta o Álvaro com dificuldade.
- Isto hoje vai ser pesca mal ensejada - prossegue o Cardeal. - Vi um gato preto na areia quando a gente vinha...
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- A mim, um gato preto dá-me sorte... Não gosto dos amarelos - diz o Barrasquinho, batendo com os nós dos dedos na tampa do seu foquim vermelho e azul, aos triângulos.
- Não há nada pior que o rolim... No Mar o rolim chama a desgraça - lembra ainda o Cardeal.
- Azar é a vida da gente.
- Lá isso - concorda o Álvaro Pequeno a remoer uma côdea.
- Mas pior ainda é ficar em terra...
- Acabem lá com o trabalho! - ordena o Tó, que também não gosta dos rolins.-Vamos lá ao resto!
- Da última vez que a gente veio ao Mar e os rolins apareceram - diz o Cardeal - tivemos aí uma festa no bote velho; toda a gente se viu parva.
Começam a meter os foquins no porão da proa. Quase ninguém comeu.
Uma volta de mar salta por cima deles e desfaz-se no albói do motor, deixando-os atordoados.
- Se vem sudoeste, temos rabiosa na borda - lembra o Zé Diabinho.
- Rabiosa o quê?!...-responde o Corrucho para afastar a má sorte. - Era preciso que a gente andasse fora da graça de Deus. Quase quatro meses sem trabalho e logo no primeiro dia...
- Prà gente não se esquecer da primeira viagem da Estrela... fica assinalada - diz o Cardeal, já sentado de costas para a proa por causa das ondas que amarinham.
- Calem-se lá com isso! - pede o Barrasquinho assustado.
- Rabiosa é rabiosa, não se lhe dá outro nome - insiste o outro para desafiar a ira.
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TAMBÉM rabiosa pode ser outra coisa muito diferente de mar encapelado na borda.
Com rabiosa a Capitania iça a bandeira amarela e acabam-se os lances da xávega e do candil no tempo do carapau. Todas as fainas do Mar acabam.
Rabiosa é malvadio.
Mas rabiosa também pode ser uma rapariga que anuncie bom tempo à vida de um homem. Ou temporal, sabe-se lá!
Os homens enrolam agora as linhas às cabaças para fazerem as cadouras e metem o bico da cabaça entre as. pernas. Com a mão esquerda amparam a parte redonda da baliza e com a outra enrolam, enrolam, como se estivessem a dar à manivela. Só o branco da cabeça da baliza fica à mostra.
O vento martela o Mar e o palor da manhã dá-lhe tons de mercúrio. As águas já são fundas.
Não, um homem não sabe dizer quando repara numa rapariga que nasceu perto de si, a quem viu crescer... Ah não, eu não sei. Andei com ela ao colo, levava-a ao passeio, foi sempre faineira desde menina, a mãe vestia-a como se fosse uma mulher, era uma graça!, e ela
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tratava-me por padrinho; eu sou o padrinho, um segundo pai, como mandam as obrigações que um homem toma quando baptiza uma criança, nem sabia que devia chamá-la para casa quando foi do naufrágio da "Redinha", em Novembro de quarenta e seis, tinha ela ainda oito anos. Morreram os catorze homens, e um deles era o meu compadre, o Tó Gordo, uma boa alma, amigo do seu amigo, devia-lhe favores, e não eram poucos.
Zé Diabo Negro manda sondar, é o Álvaro Pequeno quem sonda.O Manel atrasa o andamento do bote e o gago grita:
- Seis linhas!
- Vamos embora!-responde o arrais.
A viagem prossegue.O Gaivota do Joaquim da Bota vai-lhes no encalço, quase a cheirar com a proa a esteira de espuma que o Estrela deixa atrás de si, como se atirasse mãozadas de flores brancas, brancas e miúdas, por riba da vaga grossa.
Galga, a vaga atira-se de chapuz sobre a lancha, e os homens deitam o corpo para trás, abrigados nas rabanas de oleado. Sabe-lhes a boca a salmoura.
Agora também o Tó ajuda a puxar a linha da sonda; o arrais grita "vai avante, vai avante", tem o seu palpite na fundura em que hão-de atirar as cadouras, onde as linhas vão enleadas, como na sua cabeça as ideias se enleiam, por causa da rabiosa, que é uma rapariga, fui eu que lhe pus a alcunha e ela gostou, porque rabiosa é sinal de faineira, vivaça, e também de mulher com salsugem no sangue, que os olhos dela não enganam.
Ah, sim, foram os olhos dela que me levaram a reparar no resto. No cabelo negro, negrinho como um corvo, tão negro que também parece azul, assim um azul como o do mar de muita fundura, e no narizito, um nadinha levantado como a proa de um bote, e a boca sempre viva, parece
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que nela cresce água, como naquela noite, sempre a sorrir, malandra...
- Dez linhas!
- Avante! - responde Zé Diabo Negro.
Faz um gesto para o filho do meio, o motorista, o bote faz uma curva no mar, baixa de estibordo, e os pescadores ajudam a curva. Uma volta de mar varre tudo.
- Eh mar! - grita o Zé Diabinho.
--Já aumentou? - pergunta o arrais para o sondador.
Responde-lhe o gago com uma nega de cabeça. O bote balouça, balouça, mas vai devassando as águas cada vez mais negras. Já não se vê terra. Só lá muito ao longe, tão longe que pode ser uma nuvem, assoma a ponta do pico de São Bartolomeu.
Um cerro de água surge a cruzar a vante e o arrais vira-lhe o leme, de maneira a galgá-lo de caras. A espuma alastra no convés. Irritados, os homens, que ainda comem, metem tudo nos foquins e ficam a remanchar côdeas de pão.
- Ala! Falta uma linha! - diz o Tó.
No sítio que Zé Diabo Negro traz no sentido o bote busca e rebusca.
A vomitar bílis, o Corrucho atira-se para a proa; o Barrasquinho diz uma graça, sabe que tem o encargo de divertir a companha:
- Ah Corrucho! Estás a vomitar a rabana? A rabana do outro é amarela.
Mas o cómico fica satisfeito, porque ninguém riu daquela vez. Ainda bem. Escusa de arpoar as piadas que não sente dentro de si.
Irritado, o arrais puxa a carapinha do barrete para os olhos.
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O Álvaro atira-lhe a marca da sonda e faz sinal para o Zé, que tem o pião agarrado.O pião é a cabaça mais pequena, leva o nome escrito a preto, para se saber onde começaram a pescar.
Faz sinal para o Zé, leva a mão ao barrete e diz a meia voz:
- Vai com Deus!
No pião não fazem cadoura, não leva linhas enroladas.
Abranda a marcha do motor.
- Vão com Deus, vão!-grita alto, incitando os homens a atirarem o aparelho mais depressa. Precisam de trabalhar sem morrinha, o mar cresce e é preciso regressar a terra.O Tó amarra uma pedra, o chumbéu, à linha, e atira-as para a vaga. De cinco em cinco linhas vai sempre um chumbéu, precisa fazer tudo depressa, o sítio da pesca é ali mesmo, a terra não se vê agora.
Dois rolins bóiam perto. Vai crescer o vento.O mar irá crescer também. Só o bote fica do mesmo tamanho. E os homens têm de acrescentar à coragem o que o Mar e o vento crescerem a mais.
Entraram no Mar há duas horas, há duas horas e doze minutos pelo relógio do arrais, e a primeira celha de aparelho já lá vai. São dez linhas, duzentos e cinquenta anzóis, duzentas e cinquenta iscas de sardinha fresca, ao menos que a pescada, um peixe melindroso, lhe pegue bem e valha a pena vir até ali com um mar daqueles.
O Mar vem, num golpe, espreitar dentro do bote o que lá se passa.
Ninguém fala.O Barrasquinho faz caretas, a cara dele dá vontade de rir, mas só o Zé Diabinho sorri agora, porque o outro lhe disse que não perdesse tempo com a rapariga. "Deita-lhe o gadanho, deixa-te de conversas..."
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O Manel não pode fazer outra coisa, não tira os olhos do pai por causa dos sinais da marcha do bote, pois começa a perceber que a vontade lhe desfalece.
Não, o Manel não gosta do Mar. Já agarrou dois sustos, de uma vez ia lá ficando, há dois anos, desde aí sen-te-se aturdido com as vagas, com as pancadas que dão no costado e parecem parti-lo.
Olha o Mar por cima da tampa do casinhoto, adivinha terra, percebendo que ninguém se salva se houver uma viradela. Suspira às escondidas, enfiando a cabeça para o lado do motor.
- Cinco e seis! - diz o Álvaro, que voltara a sondar.
Atiram outra cadoura às ondas.
E a cabaça fica a boiar, deitada, até que o chumbéu faz peso lá do fundo, as linhas com isca fixam-se na altura que o arrais escolheu, e começam a puxar lá de baixo, obrigando a cabaça a pôr-se direita. Depois parece um pássaro de cabeça branca, um pássaro irrequieto, com o corpo vermelho e espantado naquele mar de madria, cor de chumbo.
No bote, o Barrasquinho pega numa celha e vai girando com ela, enquanto o filho mais novo do arrais arremessa as linhas com os anzóis. Sente-se atordoado com o balouçar constante da lancha, mas não fica inquieto. Herdou o temperamento rijo dos Zarros, nunca apanhou um susto no Mar, não teve ainda a má sorte do Manel, a quem o malvadio já prometeu por duas vezes.
Esse pensa agora na desfeita que o velho lhe fez ontem à frente de toda a gente, parque o mandara embora? Não foi só por causa do bote, isso não; também eu não me ralo que lhe chamem "Estrela do Mar", quero lá saber disso, embora ficasse bem o nome de "Preciosa", que era o nome da minha mãe.
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Também o arrais vai agora a lembrar-se dela, da má vida que lhe deu por causa da pinga. Às vezes, muitas vezes, o vinho era só uma maneira de entrar tarde em casa; fingia-se bêbedo para não lhe perguntar donde vinha. Percebeu que a mulher se temia quando o via tocado; então começara a servir-se de manhas, punha-se a cantar, mal chegava à porta, e ela nem uma palavra.
De uma vez pusera-se a beber com um amigo. Nunca lhe recordava o nome, como se a lembrança pudesse denunciá-lo. Fizera aquilo já de má fé, gostava da mulher do outro, ainda hoje era uma bonita mulher. E séria, sim senhor, séria como as que o são. Pego-me a beber, mais um capo e outro, morde-me a maldade no corpo e desato a deitar o vinho fora enquanto ele bebia sempre; era e é um homem direito. Não, o nome não digo, sou amigo dele. Entrámos no Botas, tinha lá um vinhão, e começo a velar de proa em terra. "Vou levar-te a casa", digo-lhe eu cheio de maldade. Fingi-me tão bêbedo como ele, entrámos os dois, e então fui deitado na cama. A mulher ria-se da gente, eu começo a querer bailar com ela, o marido já ressonava, nem podia abrir os olhos, mesmo que quisesse. Ela deu-se ainda à paródia, mas quando me viu a amarinhar quis correr comigo. E então é que me viu bem. Deitei-lhe as mãos, estava são que nem um pargo acabado de se cravar, e encosto-a à parede. Ela teve medo de fazer barulho, até chorou, mas eu andava com aquilo na cabeça...
Leva o barco emproado à vaga e sorri agora com as lembranças das bebedeiras fingidas. Mas também apanhava muita carraspana. Tinha dias em que começava a beber e nunca mais tinha mão nele. Uma bucha, uma azeitona, um copo e outro, e daí a bocado só ficava bem quando o sangue se lhe atravessava.
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O Mar cresce sempre. Está mais avagalhoado, emproa--lhe bem o bote, mas nem sempre consegue medi-lo. Lá galga para eles outra onda que parece uma montanha. É uma avalancha raivosa, a proa rasga-a pelo meio, a água espadana e brama, a varrer a lancha de ponta a ponta.
Uma chapada de mar agarra o Manel pela cabeça e fá-lo cambalear, atirando-o por terra, de encontro às pernas do pai.
- Eh mar! -grita o velho.
- Eh arrais! -clamam vozes.
Atordoado com a pancada, o rapaz conseguiu ainda agarrar na garganta um grito de terror que lhe veio do sangue, mas recorda-se de outro empurrão que lhe deram. Não sabe porquê, mas não pensa que o Mar já lhe prometeu por duas vezes.
Vai-te daqui, Manel!
Também dessa vez caíra, a rapariga tem fisga, lá isso tem.
Ela estava sentada na cozinha, devia estar a remendar qualquer coisa, e ele veio lá do quarto com a ideia na cabeça, pé aqui, pé ali, para ela não o ouvir, e zás. Deita--lhe a mão, puxa-a para si, bem agarrada, e rouba-lhe um beijo mesmo na boca. Nunca dera um beijo tão prolongado.
Aceitara-lho, sim, sentira que ela também gostara, mas depois conseguira voltar-se e atirar-lhe um empurrão. Desprevenido, fora a cambalear, caindo ao pé da cantareira. ,
Vai-te daqui, Manel!
Nunca mais conseguira apanhá-la.
A boca agora sabe-lhe a sal.
Dessa vez soube-lhe a um gosto novo, que nunca conseguiu comparar a outra coisa qualquer.
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COM 19 anos carregados de salsugem da brisa marinha, que não há outra, no dizer dos velhos, mais capaz de meter sóis e trovoadas no sangue de uma mulher, a rapariga é toda frescal, azevieira e casquilha. Gosta que lhe bulam com os olhos.
Se pudesse, cegava os homens para que não vissem as demais, pondo-os a todos, aguados, à volta da roda, bem rodada, das dez saias que veste a preceito. Marcha nas pontas dos pés e balouça as ancas, ergue o busto e a cabeça bonita quando vai à fonte, de cântaro solto, num equilíbrio que parece instável, obrigando os homens a segui-la com ansiedade, não vá o cântaro quebrar-se...
Ou a cintura...
Dá vontade de ajudá-la, de lhe pegar pela cinta e fugir com ela.
Mas até aí não consentem os seus melindres, capazes de deitarem abaixo as pedras do Suberco se alguém se adianta.
Mari'Estrela guarda um segredo de que deu partilha.
Quando beija, morde de mansinho; nem ela percebe porque beija assim. Quem saberá que ela morde quando beija?...
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A pescada vai a morder o anzol de isca fresca, lá em baixo no seio das águas negras, e fica logo cravada. Luta pouco. E peixe macio. Macio e melindroso.
Quem a come, às vezes, é a tintureira ou o anequim, dois pexorros agressivos, parentes do tubarão. Quando se ala o aparelho, muitas pescadas chegam à borda do barco quase devoradas. O anequim gosta de carne fresca; quanto mais velho, mais a gula o desvaira.
A Mari'Estrela morde quando beija. Mas também um anequim pode levá-la consigo. Um anequim nunca larga a presa.
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O da Bota começa a atirar a caçada do seu barco, já lá vai o primeiro pião, agora cruza-se com as linhas deles, não se sabendo se já trazia a mesma fé, se quer desafiar o Estrela do Mar num pesqueiro preferido pelo adversário.
Andam naquele despique há quase dois anos, nunca tiveram razões verdadeiras um do outro, a não ser as da pesca, e essas mesmo mais atiçadas pelas mulheres do que por eles. Zé Diabo não é bom de assoar, todos o sabem, era o campeão antes de o outro vir ao alto, mas agora parece conformar-se, embora diga que o da Bota é um burro de sorte, e nisto do Mar a sorte manda mais do que o saber.
Só não lhe leva a bem que tenha comprado um pescador dele, o malandro do Raiado, que lhe andou a dizer todos os mares em que pescava e a quantas linhas apanhava peixe. Não é novidade as companhas terem espiões, também fez o mesmo com o Carlos Formiga, mas com o mal dos outros está bem o Diabo Negro. Metia-lhe espécie que o da Bota pescasse sempre no dia seguinte nos mesmos pesqueiros escolhidos por ele, e pusera-se a desconfiar da companha toda, até do Corrucho, que lhe obedecia como um cão rafeiro.
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E foi este que fez polícia por sua conta, entrando uma noite na taberna para lhe contar o que descobrira.
- Arrais! Ah Ti Zé!... Vi o Raiado entrar pra casa do Jaquim...
- Que estás tu a dizer?
- Venha daí comigo, se não me acredita. Lá olhos não me faltam, graças a Deus.
Esperara o outro na escuridão da travessa, metido num portal mais de duas horas; e viu, então, o Raiado sair da casa do Joaquim, como se pedisse às sombras para o sumirem. Ainda se quis aguentar, pensou em pregar-lhe um susto dentro do bote, mas naquela hora desabou-lhe a ira, e aí se deitou na cola dele, ruela acima, até que o agarrou a jeito. A primeira foi sua e chegou.O Raiado nem conseguiu conhecê-lo, com tanta gana lhe atirou uma punhada. E quando o viu no chão arrastou-o para o escuro do areal e fez-lhe a cara numa borra de alcatrão, pô-la negra de todo. Primeiro ao pé do olho esquerdo, depois no direito, depois no queixo, e por aí fora.
Amassou-o todo.
Naquela madrugada veio a mãe do Raiado dizer à borda-d'água que o filho passara a noite malzinho, nem sabia o que lhe dera. "Se calhar, apanhou algum ar", respondeu-lhe o Zé Diabo, manhoso e gozão. E foi vê-lo quando voltou da pesca, teimou em lhe entrar no quarto, por muito que a mãe do rapaz lhe dissesse que o médico proibira visitas. E ali mesmo, os dois sozinhos, lhe passou a receita: "Olha, rapaz! Se calhar, tens de fazer alguma operação à vista... Mas não te rales, eu trato disso."
O Raiado mal podia mexer os lábios, quanto mais falar.
- Só te digo, e já sabes como eu sou, nunca penses em te meter na companha do Jaquim... Na minha não pões tu o pé. E na dele também não. Ouviste?!... Senão,
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faço-te eu a operação que precisas. Com esta navalhinha tiro-te os olhos. Sabes onde são os olhos?... Pois é aí mesmo, para que nunca mais digas o que vês no trabalho de quem te dá o pão. Queres mais alguma coisa?!... Vê lá! Sim, vê lá bem...
A verdade é que o outro deixou de pescar no alto. Andou por ali na xávega e um dia abalou para Peniche.
Com o da Bota nunca fez conversa. Nada de confianças.
Mas o Gaivota cruza-se em riba das linhas das suas cadouras, parece que anda parvo ou quer conversa no Mar, e o Comicho repara nisso, é o primeiro a ver, e desata a dar aos braços e a gritar.
- Ah malandros! Estão a empachar tudo, malandros! Todos gritam com ele.
- O Mar é muito grande!
- Invejoso!
- Ah invejoso dum corno!
- Tens esse mar todo, ah hó!...
- Uma camada de cangaros te assalte...
- Tantos como ovos são precisos para partir o Guilhim!
-Ah desgraçado! Desgraçado!
--Ah Jaquim! Estás maluco?...
Os botes parecem esporeados em riba dos capelos do Mar.
Espinoteiam, quase desaparecem, erguem-se de proas em riste, como se quisessem tocar no Sol, que já rasteja no nascente e vem pálido naquele céu de escamas brancas.
"Céus escamentos, ou chuvas ou ventos."
Não, não era sinal de chuva. Os rolins assinalaram bem o vento que ia cair.
No Gaivota todos se chegam à horda, esquecidos do perigo, e esbracejam também, de mãos iradas, a espadanar.
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Agora é o Zé Diabo que numa volta do leme se vai cruzar em riba do pião deles; os outros julgam que lhes cortou o aparelho, pois ganhou tanta fama no Mar como de jogador de rasteira quando era rapaz.
Do outro bote tiram os carapuços e amaldiçoam-no, enquanto o Tó e o Barrasquinho lançam nova cabaça com aparelho de sete linhas; foi assim que ordenou da ré.
- Desgraçados! - grita ainda o Comicho.
- A tua mãe não devia ter nascido, ah hó!
- Um mar tão grande!...
- O Mar te sorveta!...
Parece agora uma luta de dois poldros selvagens, ambos enfurecidos pelas esporas das vagas.
Começam a perseguir-se, algumas vezes quase se abalroam, ambos de proa em riste a toda a força do motor, e logo a darem de ré sobre as linhas, como se fossem escoicinhar-se ou morder-se. A raiva das companhas compete com a raiva das ondas encapeladas.
Se o mar ficasse mais brandinho, talvez um deles abordasse o outro para os homens lutarem ali mesmo, longe da vista dos cabos do mar. O Cardeal ainda pega num remo, o Zé Diabinho imita-o, e os dois começam a ameaçar para o Gaivota.
- Ponham lá isso! - larga o arrais na sua voz arrastada e áspera. - Não se façam mais brutos do que eu.
A companha vinga-se em gritos.O Tó vira-se para o pai e sorri.
- Isto é mesmo a provocar - reclama o Comicho, esgalgado, lá da proa.
- Deitem o aparelho; foi pra isso que cá viemos! - recomenda o velho.
- A gente assim nunca mais chega a terra! - intervém o Manel, atormentado. - Parece que estamos a fazer
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uma toirada... Ah meu pai!... já cá andamos há quatro horas...
- Se tens pressa, vai pra terra. Chegas lá a nado... O motorista amua com a resposta do velho, atira um
palavrão para o ruído do motor, este gajo um dia paga-me tudo, tão certo como eu me chamar Manel...
E aí vão outra vez, depois de galgarem uma vaga maia grossa com a proa bem direita para a proa do Gaivota. De lá os homens gritam, gritam, mas agora encolhem--se - o malandro do Diabo Negro vai metê-los no fundo. Joaquim da Bota ergue-se pela primeira vez do banco da ré e ameaça com o punho fechado:
- Faço queixa na Capitania!
- Vamos lá os dois! - responde o Barrasquinho. Naquela luta de perícia, o Estrela do Mar está a bater
o outro, parece mesmo um cavalo, bem dizia o Peixe--Aranha.
O outro faz marcha à ré para não ser abalroado, o Tó vai atando os chumbéus às linhas das cabaças e estas endireitam-se no Mar quando as pedras fazem força debaixo. Numa furteta, o hote do Diabo Negro é colhido por uma vaga de travessia, aí vai ele a lamber as ondas, que parecem atirá-lo de mão em mão para o desfazerem depois.O arrais joga-se todo para cima da cana do leme, vem aí outra muralha de água, e consegue emproá-la; o bote quase se vira lá em cima, depois vai solto, sem vagas, como se fosse um pássaro gigante a voar.
A socapa, Zé Diabo sorri com a boca e o bigode torcidos. Puxa a rabana para a cara, vou acabar com isto, para lhe pregar um susto já chega. Não me lixe ainda com a paródia.
Não incita os homens na luta de palavrões com os da outra companha, porque o da Bota é que veio meter-se no mar que escolheu. Há-de 'levar coisas bonitas para
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contar à mulher, a ver se ela diz depois que na Nazaré não há pai para o seu homem.
Áspero, o vento começa a rondar do sudoeste.
Os camaradas não se aperceberam disso, tão engalfinhados vão na disputa com os do Gaivota.
Só ele o sente bem. Vai adiantado algumas dez cadouras, ainda talvez lhe ganhe mais duas até ao fim, mas há ainda outro motivo para sorrir, embora se receie do Mar, que não deixa de crescer.O que é bom, no meio disto tudo, é ter aqui outro bote ao pé de mim, sempre a gente se acompanha, pode ser preciso uma ajuda... Está um mar de cruzes e nunca se sabe quando a morte atira a navalha.
- Um mar te afervente!-clama o Barrasquinho. Imita depois a Taneta velha quando está na praia a fazer alarido, o Cardeal ainda se larga a rir, mas nenhum outro pescador se alegra com ele. Começam todos a recear mais o pinchar da vaga.
Abalaram de terra há muitas horas, falta-lhes atirar cinco cadouras e o outro pião; o Mar continua a crescer, o vento empurra-o e fá-lo cada vez mais falso.
O arrais aproxima o seu bote do outro, ferve-lhe o sangue malandro, mas faz aquilo para depois o arreliar na taberna onde entra. Há muito tempo que não sente a mão tão firme no leme. O bote novo é melhor que o Alcatraz, e desse dizia-se que não andava outro irmão dele no Mar da Nazaré.
O Manel vai com o malvadio no sangue, só agora o pai repara nas suas mãos. E inquieta-se.
Antes de os olhos se espantarem e ficar pálido, o Manel conhece-lhe pelas mãos agarradas aos bordos do albói do motor. Quase nunca o enganam esses sinais que vê do banco onde está sentado. O Mar entra-lhe no sangue, atordoa-o e derranca-o.
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- Vamos lá depressa! - grita para o pessoal, que atira o resto do aparelho.
Parece-lhe que o Joaquim se atrasou em dez cadouras, sempre serve companhia, agora são os dois contra o Mar, e o Tó vai na faina, só é pena que lhe lembre o irmão, o Carlos, aquele a quem o pai entregou o governo do bote quando deixou de ir ao Mar.
Não, nunca gostei do meu irmão. Desde pequeno que todos me arreliavam por causa dele. Era um grande homem para o Mar, assim como o Tó, que é o seu retrato pintado, mas o Mar levou-o. Só depois da sua morte passei a ser o arrais.
Vai contente de ter ali um companheiro, mas sabe que o abandonará quando recolher a sua caçada.O atraso do outro é bem de uma hora ou mais - que se vá gabar a seguir. Ao tomar rumo de terra irá sozinho. E se na borda houver rabiosa? O vento prepara-se para pôr a costa negada.
Então, lembra-se da afilhada e daquela noite em que ficara de mãos trémulas, como o Manel vai ali à sua frente. Também o sangue lhe bulira. Mas o mar era outro.
Sente pressa de regressar, não sabe dizer porquê, mas acha que anda a perder tempo.
Num mar daqueles não se pode escolher caminho.
E aguentar o leme, procurar as ondas de maneira a não lhes dar a popa da lancha; se um mar perdido desaba na ré, é barco no fundo e ali ninguém se salva, a não ser com a ajuda do outro. Não, tudo menos isso; se o bote acaçapa, mesmo que ele me queira agarrar, deixo-me morrer...
A ideia transtorna-o por instantes. Agora está outra vez perto do Gaivota, foi uma onda que o levou, precisa de sair dali mais depressa; as mãos
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do Manel sabem do Mar e do vento tanto como os rolins. E não anunciam uma sota.
O Cardeal perdeu a coragem, continua sentado no banco do mastro. Percebe-se-lhe a cara pálida, murcharam-lhe os olhos remelgos e a cabeça pende-lhe.
Agarrado ao bico da proa, o Corrucho parece espalmado e continua a provocar os outros com gritaria e gestos. Tem a certeza de que vão demorar mais tempo por causa deles, nem viriam se o da Bota não andasse sempre com gabarolices. Há-de contar na areia o que viu o arrais fazer-lhe; pareciam o gato e o rato.
Nunca gostou do Joaquim. São contos antigos quando o outro andava no candil.
Zé Diabo Negro começa a ficar inquieto.
O vento traz-lhe os gritos do outro barco. Só agora os ouve.
- Ah Ti Zé!... Deixe a gente trabalhar!...
Uma vaga grossa rompe do seio das outras vagas, pega no bote e leva-o pelos ares. "Santíssimo Sacramento!" A lancha cai de chaipuz na água negra, afocinha, fica por instantes a hesitar, como se estivesse ferida. Manel Diabo atira-se para cima do motor, a querer tapá-lo com o corpo apavorado. Se o motor parar, estão perdidos, ninguém o sabe melhor do que ele.
Quem pode aguentar o barco de frente às ondas?
Uma nuvem tapa-lhe os olhos, mas o corpo desenfreia-se, ansioso.
Depois o Estrela do Mar solta-se dos braços possantes da vaga e volta acima.
Zé Diabo Negro repuxa o barrete para a cara, quer tapar bem os ouvidos. O filho mais novo encara-o. Todos se voltam para ele. Agora agarra-os a todos na sua mão. Ainda bem que percebem quem é o arrais.
- Vamos lá ao resto! - grita para a companha.
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Atordoado, o barco range às vezes com o arremesso das ondas, mas (lá segue.
O Gaivota afasta-se.
- Atira uma com oito linhas! - ordena agora para o Corrucho.
Os rolins deram sinais certos.O vento vai crescer ainda. Sentem-no mugir.
Nas mãos do Tó a celha gira; as linhas caem na água, deixam as pequenas manchas prateadas das sardinhas do isco a boiar por instantes; depois afundam-se, arrastadas pelos chumbéus.
Já não vale a pena sondar.
O Álvaro Pequeno atirou-se para junto do armário da proa, pensa nos filhos e arrenega quem o trouxe ao Mar num dia daqueles. Eles teimam, teimam, e o pobre é que se lixa... Pra ganhar o quê? Pouco mais de cem mil réis numa quinzena.
Zé Diabinho senta-se ao seu dado; o Barrasquinho nada mais tem para lhe dizer e nem lhe interessa agora. É melhor não ver o Mar. Lança então as culpas para o Tó, um foção, como se os outros tivessem culpa dos azares da sua vida. Raios o sumissem! Vai todo encharcado, as rabanas pingam, o sol brilha nelas, na tinta do oleado e no sal que a água traz. Já não limpa a cara. Se a Mari'Estrela quiser, posso fugir com ela...O pior ê que as mulheres não gostam de sair da Praia. Nem os homens. Nem eu... Já não sei bem o que quero... Já estou a pensar de mais... Ela pode dizer-me que não ou contar ao velho; sei lá das coisas que há entre os dois? Julgava que já não tinha medo dele, mas agora aqui, no Mar, percebo que sim. Só o Tó tem força para lhe dar nas ventas para trás.
Gosta de pensar isto do irmão, mas também se lembra de que é por causa dele que estão ali, e olha-o com rancor.
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O velho pensa o mesmo. Quando o outro parara no meio do Lago, podia-se ter chegado mais e o da Bota seria capaz de lhe falar no tempo. Não teriam vindo. Já admitira-se alguém o sonhasse, seria uma vergonha!-, sim, admitira mandar cortar o aparelho e fugir para terra.O pior é que fizera as contas: perdia mais de cinco contos. E depois a vergonha?!...
O outro faria o mesmo, tem a certeza disso; mal são capazes de se aguentar ali.O Mar torna-se cada vez mais traiçoeiro.
As cabaças do Joaquim são azuis e amarelas, lá estão semeadas pelo Mar, e as suas vermelhas e brancas, veem-se melhor as pontas brancas das suas, mas há-de valer-lhe de muito a cor das cabaças no meio da ondulação. O Mar é um leão, dizem às vezes. Agora ali está nas suas garras, não vê terra, não pode cortar o aparelho e fugir, vai demorar cinco ou seis horas para aliar tudo e regressar à praia.
Se vêm mais ondas como aquela que lhe pegou no botezinho e foi pô-lo não sei a quantos metros, Zé Diabo Negro percebe que pode viver ali o último dia da sua vida. Só lhe custa pensar... Sim, tenho os filhos comigo, acaba-se a raça; a minha mãe não pode durar muito tempo... E a rapariga?!...
Dói-lhe pensar nisso. Ataranta-se e grita destemperado:
- Vamos lá com essa merda, depressa!
Grita e pôe-se de pé, mas logo repara na inquietação da companha. Todos sabem o que dá o receio, e talvez julguem, pensa o Diabo Negro, que também ele não adianta mais do que os outros: não passa de um arrais acobardado com as mãos no leme.
Não se enganam. Vai receoso, e então?... Só quem não conhece um mar daqueles pode presumir tesuras. Mas
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nunca o dirá a ninguém. Há coisas que se não confessam seja a quem for... Lembra-se da conversa com a Mari'Tocha, o pensamento enegrece. Uma noite faz-lhe uma espera e deixa-lhe o corpo moído de porrada.
A companha não pode suspeitar do que ele sente agora, porque nunca mais terá mão na sua gente. Nem hoje nem nunca.
- Deixem ficar essas celhas! Não vale a pena... Quer falar com naturalidade, dá à voz uma brandura
que nem ele ouviu, mas o Tó volta-se a interrogá-lo. Não o deixa falar.
- O que foi? Atira lá o pião... Não ouves?
- Estou a ouvir...
- Como és surdo...
O filho encara-o num rompante. Surdo era a tua prima, meu pescador da borra!
Tó Zarro torna-se lento, finge que procura; ou talvez nem saiba o que quer, pensa o velho, para não se sentir desfeiteado.
- Atira o pião! - grita de novo.
Volta-se o filho para ele, afronta-o bem a procurar--lhe os olhos. Zé Diabo Negro percebe que o Tó tenta adivinhar o que guarda dentro de si.
- Nunca me viste? - pergunta-lhe com raiva. Responde-lhe o filho num encolher de ombros, desdenhoso, sorrindo para o camarada que vai a ajudá-lo.
O arrais puxa a carapinha do barrete para os olhos, a mastigar uma praga.
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É sempre assim... Quando o Mar cresce e cospe, ataranto-me como todos, abala qualquer coisa de dentro de mim, qualquer coisa que me apetece agarrar, e seria capaz de lhe ir na cola, atirar-me até pela borda do barco. O Mar puxa, é como o Suberco quando se olha lá de cima para a Praia. Umas tonturas, uma coisa doce que puxa um homem, dá vontade de abrir os braços e voar lá de cima como os milhafres e ir espreitar quem vai dentro das lanchinhas que andam longe.
Também no Mar, quando enrija, e um homem olha e percebe que se houver uma viradela, ali tão longe, ninguém escapa, também a vaga puxa um homem. Apetece a gente jogar-se para cima dela, atrás da tal coisa que fugiu, deixar-se ir com as ondas que correm, danadas, direitas a terra...
O pior é que com as ondas nenhum homem vivo chega a terra...
Gritam os braços, gritam os olhos e o sangue, só a boca não grita, porque um homem é arrais. Mas logo a seguir, sem perceber porquê, conserta-se tudo o que ainda ficou dentro de mim e vem uma grande calma, a calma do Lago quando o Mar está de rojo, e vejo tudo melhor,
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percebo tudo melhor, e fico sem pressa de voltar. O medo apaga-se... Apaga-se o medo, talvez por ser tão grande, tão grande, que um homem percebe que só assim se pode ainda salvar.
Há ainda outra coisa. Sinto mais o corpo e o corpo dói-me. É uma dor espalhada, em vez da pele sobre o corpo, a dor, como se a pele ficasse toda cheia de olhos, toda a pele cheia de dedos que agarram a água do Mar e o vento, e até as coisas mais fundas que os camaradas pensam.
Ninguém fala dentro do bote agora, que vão à procura do primeiro pião. A proa galga, empina, o Mar abre-se em grandes flores brancas quando o acomete; depois deixa um rasto, um caminho claro na água negra das profundezas. Vão a galope, tocados pela ventania ou pela ânsia de regressar a terra.
O Tó e o Álvaro continuam de pé, de pernas abertas para se aguentarem. Despiram as rabanas, puseram os casacos e as saias de oleado, pois são eles que vão alar o peixe. A vaga parece enfurecer-se e atira-se sobre os vultos.
Começa a chegar a altura de o Barrasquinho cantar e dizer graçolas, palavras tontas que só ali fazem rir.O arrais pensa que o companheiro perde a tineta quando o malvadio aperta; sim, não é outra coisa. O Barrasquinho está tonto, mexe a cabeça como uma enguia, anda com a pirisca de um canto para o outro da boca, muitas vezes queima-se sem perceber que o cigarro está aceso e já chegou à pele dos beiços. É uma das coisas que põe a companha a rir, eu também me rio, mas percebo que ele faz aquilo porque já não sabe o que faz. É um morto vivo. Sou o arrais, preciso de ser aqui dentro mais do que os outros. Mais do que o Tó...
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- Abre-me bem esses olhos, Tó - grita para o filho.
Cego, o bote pesquisa por entre as ondas, mas não pode ir por onde quer. Se se atravessa, o Mar pega-lhe e vira-o.
Mais do que os outros, menos no medo para fora, porque para dentro todos os homens, quase todos os homens, são iguais. Quando digo "vamos à vante!" apetece-me dizer "vamos pra terra!", se o Mar está traidor assim como agora, um malvadio de espantar; ainda são pouco mais de onze horas, o que fará lá para a tarde. Ser arrais é bom, mas tem esta coisa danada de não poder chamar um camarada para junto de mim e dizer-lhe também o que sinto.
As ondas vêm de arremesso, acasteladas, brancas na grimpa e negras no resto do corpo. Uma negrura que cresce lá do fundo, onde o peixe se engana com a isca de sardinha fresca, que os chumbéus obrigam a pairar para engodo dos que têm fome. Há sempre um engodo para os que têm fome.
As vagas não ameaçam a direito; trazem sempre segredos novos, fintas inesperadas, solavancos e até calmas súbitas. Mas todas caminham, aos olhos dos pescadores aturdidos, ao assalto das duas lanchas que não se vêem de terra.
Que ninguém vê do céu. Não há asas a voar agora por ali.
Ali só estão os dois botes, sozinhos, camaradas e inimigos. Querem vencer-se e só podem contar um com o outro.
No Mar até um alcatraz serve de companhia. Traz esperança porque assinala peixe, mas arrasta nas asas alguma coisa mais. Uma presença diferente. Quando o alcatraz abala, os homens julgam-se ainda mais pequenos e
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impotentes. Sentem-se presos ao Mar, como as rochas que nem as tempestades conseguem arrancar.
- Vês o São Brás? - pergunta Zé Diabo Negro. Todos os homens se voltam. Só o Barrasquinho nega
com a cabeça, ficando a repetir o mesmo gesto até que o Comicho ri. Ao Corrucho amarga-lhe a boca com a bílis, mas dá-lhe vontade de rir a cabeça do camarada.
- Pareces mesmo uma enguia, ah hó! Breves e ásperas, as gargalhadas chocalham.
No Gaivota, o Joaquim da Bota, franzino e altarrão, lá vai ao leme com as rugas mais engoivadas na testa. Não se fez arrais para aquelas teimas, gosta até do Zé Diabo, deve-lhe um grande favor quando trabalhava na xávega. O pior é a mulher, que o atiça com as suas bazófias, obri-gando-o a atirar-se. Gosta dela, não a pode ver moída com despeito pelos outros botes. Ninguém se mede em ralhos com a Isabel, ou não fosse do Sítio, quanto mais ele, que é calado.
A companha vai recolhida, a pensar. Sabe-se lá em que pensa cada homem quando o Mar ameaça!...
Vão todos como os do Estrela do Mar - recolhidos e ansiosos.
De um anseio taciturno e Contido. Reparem-lhes nas mãos tanadas e grossas, meio fechadas. Tensas e suadas como as do Manei, o motorista, que as esconde nos trapos do desperdício, fingindo limpá-las. "Nunca vi tanto asseio", pensa o pai.
Mas nem este se pode gabar de que as suas vão quietas. Vale-lhe o leme. E ele é o arrais, para quem todos os camaradas olharam naquela volta de mar perdido que lhe pegou no bote e o foi pousar, lá longe, noutro capelo de outra onda mais maneira.
É bom um homem sentir que todos os camaradas põem os olhos nele, se o receio agarra numa companha, mesmo
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que entre eles haja um homem parecido com o meu irmão, o Carlos, que morreu no mar e deixou fama, ou parecido com o meu avô, cuja lembrança nunca mais se perderá.
Zé Diabo é vaidoso; achamboado de corpo, mas tamanhão nas prosápias.
Gosta que falem dele na Praia e sabe que o filho mais velho já lhe "passou a prancha. Aqueles dois dias no Mar, sem mais ninguém, cinco contos de peixe, à linda, alvoroçaram a Nazaré inteira. Dois dias no Mar, toda a gente em alarido, o capitão do porto telefonara para a Figueira e Peniche. E nada. Perto da costa não havia sinal de barco. Com um mar daqueles, mais nenhum homem se aventurara.
E ao segundo dia começam os pescadores e as mulheres do Sítio a gritar, a apontar do Suberco e do Picaró. A lanehinha aparecera num ponto negro, parecia um albatroz que procurava terra por causa do temporal.
Cinco contos de peixe! Para muita gente ele passou a ser o António dos Safios. E no bacalhau, em pouco tempo, primeira-linha do lugre. Ah' migos! Qual é o pai que não gosta de ver um filho assim falado?!...
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TÓ DIABO, o António dos Safios, passa a mão pela cara magra e anegralhada. Enxuga-a da água, que lhe deixa uma película de salsugem na pele, pondo-a a arder; vai molhado até aos ossos, mais ainda do que o Álvaro Pequeno, seu companheiro na alagem do peixe, a quem defende com o corpo, embora as vagas corram o bote todo. Mas da banda da proa, onde se pôs, atento, para descobrir o pião com a ponta do aparelho, o Mar acomete mais. Volta a pensar nos camaradas que estão no banco, gostaria agora que eles vissem também aquele mar. Está de respeito.
O Estrela do Mar corre agora com desespero, um pouco entontecido, como se procurasse sair daquele cerco de vagas traiçoeiras que brincam com ele e o empurram, num jogo que pode ser trágico.
Os homens pressentem o perigo; ali nunca se sabe quando vem, qual a onda que o traz.
Pela posição das cadouras, a balouçarem com frenesi, Tó Zarro percebe que os aparelhos do bote do pai estão embrulhados com os do Bota.
-O Jaquim é um empachador! - grita para o velho.
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- Vai ser o cabo dos trabalhos, ah hó! - diz o Álvaro, a tiritar com o frio que lhe traspassa o corpo encharcado.
- Isto é que é um mar!...
Os cerros de água crescem ainda, o vento golpeia-os, e eles abrem-se como fogos de artifício numa fantasia branca que afocinha no barco.
Zé Diabinho e os outros vão espalhados no convés, deitados uns, sentados outros, e só a resignação lhes vale. O Manel aceita o mando das ordens do pai, agora não as sabe discutir; faz com o corpo uma concha sobre o motor, não vá ele parar. Se o motor pára, o que vale é ser a gasóleo, o barco não pode aguentar rumo naquele malvadio. Terão adi mesmo de esperar o fim.
- A cana aqui é estreita! - diz o arrais. - Já vês o São Brás? - pergunta para o Comicho.
-"Não, senhor... Nem sombras...
O sol escorre das alturas. Uma luz doente, queixosa.
Tó Diabo vai agora com o bicheiro já pronto a agarrar o pião que descobriu a uns metros dali.
- A bombordo - grita para o pai.
O bote guina, um leme de água verde tapa-lhe a marcha apressada, e o arrais vara o olhar no Manel. Não percebe onde o rapaz quer ir com aquela velocidade.
- Isto aqui não é corrida, rapaz! Ou vais maluco ?
Manel não entende a voz do arrais, nem sente as chicotadas do azorrague das ondas que lhe flagelam a cara. Apetece-lhe bramar, fugir para terra, chorar talvez. Se pudesse, sozinho, dominaria o pai para lhe tomar o lugar do leme, cortaria a caçada e regressaria depressa. Já percebeu que o vento está a rodar, a virar-se lentamente para o quadrante mais traidor.
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O pai pensa: "São cinco contos de despesa e o Jaquim também anda ali; não, não posso dar ordem para voltar a terra. Que diria todo o povo?"
Um rolim vem à superfície. E vento, mais vento, ainda mais vento.
Não precisam agora do aviso; sentem-no na pele, está a fustigá-los sem piedade, e as vagas mugem, espadanam, arremessam-se de encontro à barriga bojuda dos dois barcos, tontos e dominados.O Estrela do Mar galga os cerros de água, aperta a velocidade, foge à luta ou procura o fim.O Manel pensa que é preciso acabar depressa com aquilo e não ouve o que o pai lhe grita de novo:
- Vais maluco, Manel?
No rosto encharcado do motorista escorre a água fria do Mar e a água em fogo dos seus olhos negros. Tó Diabo Branco, o António dos Safios, já prendeu o pião com o bicheiro, mas passa-o ao Corrucho, dá um salto para junto do casinhoto do motor e estende os braços para o irmão. Uma vaga agarra-o no caminho e baldeia-o, atirando-o de ombro sobre a caixa de madeira. Toda a companha grita.
- Onde vais?...
Ele levanta-se, pálido, deita a mão esquerda ao ombro tocado e encara com o pai, que o vigia da ré.
- Vossemecê que está aí a fazer, homem ? Vão aqui oito vidas!
Zé Diabo Negro ataranta-se com o insulto do filho.
- Ah Manel! Põe o bote mais devagarzinho, homem! E voltando-se para o Tó:
- Quando a gente chegar a terra, entrego a tua cédula na Capitania. Não gosto de camaradas que se metam no meu trabalho...
Mas o motorista não os ouve. Quer esconder as lágrimas, despe a rabana para tapar melhor o motor - receia
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que a água o cale e sabe melhor do que ninguém o que isso quer dizer num malvadio daqueles. Tem pressa de chegar a terra, sim, tem pressa. Já não há forças capazes de lhe prenderem a ânsia de abalar dali. Perdeu o brio, não se lembra do que possam dizer dele.
Quero lá saber da Mari'Estrela!... Se ela não quiser um homem que não volte ao Mar, mulheres não faltam na Praia.
O irmão agarra-o, sacode-o nos braços nervosos e puxa-o para si para lhe ver os olhos.
- Desgraçado! Queres matar a gente?
- Tu é que tens a culpa!
- Eu?!...
- Foste tu, sim! - grita-lhe Zé Diabinho da proa.
- E depois?
Corre o olhar por toda a companha, sente que ninguém está consigo e empurra o irmão. Mas fá-lo com brandura. Agacha-se sobre o motor para lhe diminuir a velocidade.
- Leva-o assim, Manel! A gente há-de salvar-se... Tem fé...
- Volta lá prà alagem! -grita o velho. Depois ordena:
- Vamos! Tudo a vante!
Zé Diabo Negro puxa mais a carapinha do barrete para a testa, quase cobre os olhos pequeninos e travessos, agora inquietos com a voz do Mar, sempre redobrada na fúria de lhe fazer uma desfeita.
Na borda, lá em terra, devem estar as mulheres a juntar-se na praia. Elas conhecem a vaga ainda melhor do que os homens, quando anuncia mau fim, pensa o arrais. O pavor do filho contaminara-o. Também ele olhara o Mar, sentindo-se atraído para a cavalgada das ondas que corriam e correm, desembestadas e possessas.
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Mari'Estrela, a Rabiosa, já chegou também ao areal com a velha. A sua volta devem estar as mulheres e os filhos da gente da sua companha, e também os da Bota com a Isabel. Como há-de fazer aquilo?!... Falar à rapariga quando chegarem? Sim, hão-de chegar. O vento pode ainda voltar para o norte, a travessia com nortada rija é falsa e perigosa, mas na borda pode escolher-se raso e varar em terra. Tenho fé que seja assim. A sorte nunca me desamparou. Prometo uma vela do meu tamanho à Senhora da Nazaré!... Sim, do meu tamanho. E vou levá-la com os meus filhos e com a companha. E o Tó?!... Serei capaz de pô-lo fora da companha?
Uma paz estranha regressa ao seu coração atormentado.
Lá volta a dor ao seu corpo, a tal dor esparranhada, suave como uma pequena bebedeira e, ao mesmo tempo, a torná-lo mais lúcido para as arremetidas das águas.
O Tó pôs as nepas nas mãos, as defesas de borracha para a linha as não ferir, e veio para a popa iniciar a alagem; trouxe logo uma pescada no primeiro anzol, gritou "vá de Cristo", como é costume, um peixe bonito aí com mais de cinco quilos.O Jaquim só agora vai saber quem a faineira da mulher desafiou. Vamos ver com este temporal quem sabe calcular o número de linhas onde o peixe vive. E nesta mesma noite, sim, não passa desta, hei-de falar com a rapariga. Casar não, não posso. Que inferno não haveria com a velha e os filhos por causa disso!...
O coração derranca-se-lhe quando pensa na recusa da rapariga em se tornar sua amante. Os vultos do Tó e do Álvaro confundem-se; parecem envolvidos numa cerração que a espuma desfeita lança sobre os dois.
O melhor será espreitar uma altura em que ela fique sozinha em casa. "Ah MariEstrela, cata-me aqui!..."
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E porei a cabeça no seu regaço... Nem uma palavra da boca, só as mãos...
- Ah meu pai! Aguente o leme!...-grita-lhe o mais novo.
Passa as mãos pelos olhos, quer arrancar dali a delícia do sonho da sua carne ansiosa. Muda o leme, pondo a outra cana mais curta, de maneira que os homens da alagem trabalhem à vontade.
Com lentidão, o motor matraqueia.O bote está quase parado, e a linha madre vem a correr do fundo negro do Mar com as linhas dos anzóis. O Barrasquinho chega-se a balouçar com um gigo na mão e larga-o perto da borda.O Álvaro acomoda nele os peixes-espadas; agarraram já alguns cinco; a pesca promete, apesar da vaga que esporeia o costado da nave. Brutas e sonoras, as topadas na proa sucedem-se, fazendo ressoar o cavername como um bombo de forma estranha.
Um vagalhão esparranha-se à frente da proa, desmancha-se em espuma e logo depois se adensa, refeito, para galgar mais adiante em cima do bote do Joaquim da Bota, que ainda lança as últimas cadouras. Confundem-se os gritos das duas companhas.
O Mar ignora-os.
Geme, cospe, espuma, alteia-se, invade os botes e foge deles pelas saídas que o calafate abriu. A água salgada encharca todos.
Com rapidez, o Tó faz a alagem, pensa no Manelinho, no "verde" desaparecido na Gronelândia, e traz a linha tensa sobre o rolete, passando o peixe cravado para as mãos do Álvaro, que o desprende e atira para o convés. As pescadas vêm desanimadas, lutam pouco, conformam-se com a sorte, mal se sentem presas; os peixes--espadas precisam de ser batidos com a cabeça na borda para os atordoar e meter no gigo, bem enrolados.
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Com as celhas entre as coxas, o Corrucho e o Zé Diabinho limpam os anzóis, já recolhidos, do resto dos iscos que ainda ficaram; começam a metê-los nas talas de cana. Estão ambos com os ombros derrancados, não conversam, mal se fitam.
Agora ninguém gosta de encontrar os olhos dos camaradas. Acham dentro deles qualquer coisa que precisam de esconder.
Agora o Tó só traz anzóis e anzóis vazios, a maior parte sem a sardinha do isco; os anequins e as tintureiras arranjaram comida farta e arrancaram-na sem se deixarem agarrar.
- Está a linha cortada! - diz o Álvaro. Precisam de procurar a outra cabaça para lhe encontrarem a ponta e alarem desse lado.
- Já vês o São Brás? - pergunta Zé Diabo Negro. Espantado, o Manel tenta perceber o que se passa, mas
no seu olhar já não se encontram as miragens de terra. Está cansado daquela batalha; apagou-se-lhe no rosto a ansiedade. Já por duas vezes que o Mar lhe promete. O Mar quando promete não falta.
E o fatalismo de todo o pescador.
Agora não se lembra da rapariga, já não se recorda do gosto que lhe deixou na boca daquela vez que a beijou. Pressente que Mari'Estrela não o quer. E se arranjar um ofício? Porque não hei-de ir para calafate ou serralheiro? Os outros aprendem... Já mexo em motores vai para três anos... Sempre é melhor do que isto, estou farto de andar aqui...
O pai espreita-o; espreita-o e adivinha o temor que as suas mãos são incapazes de esconder.
Sente uma ternura súbita por aquele filho, gostaria de chamá-lo para a sua beira e acariciar-lhe a cabeça, como tantas vezes lhe fizera em menino.
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ALGUÉM terá de ser o arrais quando ele não puder vir ao Mar...
Também pode acontecer (o malvadio está hoje para isso!) que nenhum dos Zarros volte a pegar na cana de um leme. Acabarão todos juntos... E por uma vez, num só golpe. Ali mesmo, naquele Mar Amarelo para onde se deixou atirar, consentindo a um filho a resolução do destino dele e da companha.
Agora não enjeita a responsabilidade, seria bem pior fazê-lo, mas morde-lhe a raiva de se deixar conduzir para o fojo da morte, e logo pela mão do Tó, um desgraçado que não dá apreço à vida. Devia tê-lo percebido...
Sim, o Tó, o mais valente dos filhos, o que não volta a cara; mas um bote e os seus homens não podem ficar à mercê de um arrais daqueles. Não estará o medo maior, o sinal do medo sem remédio, no homem que o esconde tanto dos outros, e tanto, que se joga ao perigo para decidir depressa e de qualquer maneira?!... Sim, apressando o fim antes que o medo alastre, e se veja, e pese tanto, que só fique o vinho para esquecer?!...
Por instantes pensa nisto, acha nas bravatas do filho a marca do desespero de quem procura acabar, não vão os
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outros descobrir-lhe a podridão da raiz. já encontrara homens assim, lembra-se de alguns, mas parece-lhe depois que se tornara injusto para o Tó, embora também se envaideça quando lhe contam as proezas dele.
Que queixas tem, afinal, do rapaz?!... Vendo bem... Sim, vendo bem, nada arranja que o convença. Só é parecido com o irmão, o Carlos, aquele irmão a quem o pai entregara o governo do bote quando deixou de ir ao Mar.
Zé Diabo Negro nunca se conformara com isso.
Um dia, por uma coisa de nada, provocara-o. O irmão passara por ele em cima do paredão e batera-lhe nas costas, uma palmada, mais barulho do que força. Agarrara a oportunidade para chegar ao que desejava há muito tempo; ali mesmo enchera o Carlos com nomes ofensivos, à frente da própria companha. O irmão só lhe dissera "vai-te embora, rapaz, vai-te embora!". E ele na mesma: ferrum-fum-fum, ferrum-fum-fum, tinha de ir até ao fim, nunca era capaz de ficar a meio de qualquer coisa que começasse.
Ah sim, sabia, sabia até de mais da bondade do Carlos, mas também não gostava que o provocassem.O pior é que ele já não o largava, tinha precisão de se vingar da ofensa do pai. E de repente, sem mais uma palavra, o irmão atirara-lhe um sopapo com o punho fechado, apanhando-o no meio do peito... Parecia o coice de um cavalo, salvo seja! Ah hó!...
- Ah hó!-grita-lhe agora o filho, sem perceber o rumo que vai a fazer para agarrar a outra cabaça.
- Ah hó, o quê? Que tens tu a ver com isto, ah desgraçado?
- Não vê o Mar?... - Vejo, e depois?!...
- Então meta ao norte!
- Vai dizer dessas aos bacalhoeiros...
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Tó Zarro arranca as nepas da mão, apetece-lhe jogá--las à cara do pai, mas suspira com rancor e entrega-as ao Cardeal, indo a cambalear até à proa, para onde se atira com gana de parti-la. Depois agarra-a bem com as mãos e mostra o rosto à vaga, que o espanca e encharca com fúria. Não pode fazer o que lhe apetece. Se aquele desgraçado soubesse o que é andar no banco da Terra Nova, não falava assim dos bacalhoeiros... Pescador da gaita! Só conversa, só barulho, só porrada... Mas agora há-de nascer duas vezes para me meter medo ou tocar-me na cara.
Precisa, porém, que o Mar o chicoteie com força. Aceita esse castigo.
O pai vê-lhe as costas dobradas sobre a proa, todas debaixo da camisola encharcada, num pingo. Assim magro, parece mais alto ainda de que o tio, o Carlos. Só ele saíra achamboado, era como a mãe, a Mari'Zarro.
Não, arrais do meu bote nunca será. Preciso dele agora, hei-de mostrar ao da Bota que não é um arrais da xávega o campeão da pesca do alto. Até os velhos arrais da nossa família se levantavam do cemitério se uma coisa dessas acontecesse. Agora o mando do meu bote, do "Estrela do Mar", isso não, nunca hei-de entregá-lo ao Tó.
Fita o Manel, à socapa, sabe que o filho vai ali acanalhado ; um bafo do Mar atira-o a terra. Mexe no motor, tem jeito para as máquinas, mas assim que o Mar levanta perde o gosto. Parece outro. Emagrece num instante, cavam-se--lhe os olhos azuis pela cara dentro, a boca encrespa-se, como pontas de anzóis, e as mãos...Conheço-o logo pelas mãos. Este não virá ao Mar por muito tempo. Logo que possa, escapa-se daqui. Só se for o mais novo, o Zé...O meu Zé tem um ar malandro, refilão como nenhum, não é de boa madeira, não. Mas depois de ir à tropa há-de voltar outro. Na tropa serram-lhe a proa...
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O Cardeal prende a outra cadoura com o bicheiro, puxa-a para a borda do barco e começa a alar. Naquela altura o Álvaro muda com ele.
Muda e tem sorte. Puxa um cherne enorme, a sufocar-se, de boca aberta.
- Eh peixe! - diz o Zé Diabinho.
A cabeçorra fica de olhos salientes, bugalhudos, como duas caracoletas que se lhe tivessem agarrado. Só a boca se abre, irritante, parecendo capaz de gritar. Barrasquinho imita o cherne, mas ninguém lhe acha graça, ninguém repara nele.
Todos estão à espera que o vento mude.
O vento ronda agora de sudoeste e encontra-se com o que sopra de noroeste.
- Estamos outra vez empachados!... - anuncia a voz apifarada do Corrucho.
Tó vai agarrado à proa; o vento morde-lhe a boca, traz-lhe lembranças de terra.
Do lado da vante surge o barco do Jaquim da Bota. Voltam a amaldiçoar-se, inprecam com os braços, er-guem-se todos para desafiarem a companha do Gaivota, que lhes paga na mesma moeda.
- Ah empachador!
- Um mar tão grande!...
- O Mar te beba, ah hó!
- Essa pescada é nossa, ah ladrão!
- Pescador da borra!
- Lãzudo!
- Ah grande corno!
Os outros alam duas pescadas médias que pertencem ao aparelho deles, e o arrais persegue-os, manda o Manel dar velocidade ao bote, "toda a força, vá!". Galga os cabeços de água e deita-se à cata do outro por entre o alqueive grosso das ondas.O Cardeal ergue-se no convés,
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deixa de meter os anzóis nas talas de cana e desfia um rosário de pragas que nem uma mulher da Praia as diz mais danosas e bravias. Espuma da boca, desamarra no praguedo a ansiedade de ali estar, talvez perdido, nunca se sabe como o Mar ficará na borda, lá para a tarde...
O vento gira do sudoeste para noroeste, vai sorrateiro, mas ruge que nem um leão.
Ó mar, sagrado leão, quantas almas tens em ti?...
É o Barrasquinho cantador que recorda os versos. Recorda-os, mas não os canta.
Por causa das duas pescadas, o arrais perdeu a tineta, menos de seis quilos de peixe, a aí se cruza na frente do outro, guina depois a cana do leme e volta-se logo. Os homens estão espantados a olhar Zé Diabo Negro.
Será por causa das duas pescadas?!...
Não, não posso contar com o Manel, todos o sabem e eu mais do que ninguém; não se pode entregar o governo dum botezinho a um arrais que muda de cor e fica de mãos a tremer... E o Zé é ainda novo... Quando voltar da tropa, como virá?
Aquele parece :o seu retrato pintado. Os mesmos olhos travessos e pequenos, a queixada saliente e dura, a barba crespa. E chambão de corpo, sem falar daquele jeito pimpão de querer passar de galicho.
O Tó é que é... Mas o Tó perdeu-me o respeito. Nunca se viu um pescador deixar a alagem no dia que lhe calha. Não é aqui mais do que os outros, lá porque se fala dele na Praia. Não, não preciso de gente desta. Na próxima viagem fica em terra. Pedi-lhe para vir, mas não preciso de camaradas assim...
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Põe o bote de feição e grita do lado do vento, para que o arrais do Gaivota o ouça bem.
- Eh Jaquim! Essas pescadas!... Vai aí um homem dos meus!
- É saltar - responde o da Bota.
- Aguenta aí, ah hó!
O Cardeal recebe ordem para saltar ao outro bote.
- Eu, arrais?
- Sim, tu. Não és tu que deves alar...
Tó Zarro.'larga a proa, não encara o pai, vem logo para junto dele. Abre as pernas por causa dos balanços e começa a puxar a linha madre pelo rolete de ferro, depois de meter as nepas de borracha nas mãos.
Puxa e. colhe um peixe-espada, que passa para o Álvaro. Este bate-lhe com a cabeça na borda e acomoda-o noutro gigo. A pesca não vai mal. Já têm cinco gigos de peixe-espada, mais de vinte pescadas, o cherne e uns tantos gorazes.
Os dois botes aproximam-se; ambos esperam que o Mar os chegue mais, enquanto o Cardeal, de pé na borda, agarrado ao Zé e ao Corrucho, faz o corpo ao salto que não pode falhar. Ninguém na companha se gaba de pé mais leve, é sempre ele que galga do bote para tomar conta do peixe do aparelho do Diabo Negro quando se empacham com outro. Desta feita o Cardeal não presume, como das outras vezes.
Está repeso de vir ali, bem melhor seria se tivesse ficado em Peniche com o Teodoro. Mas o coração cortava--se-lhe em viver longe da mulher e dos filhos. é da Praia, ah 'migos! Mesmo com fome, não há praia como à nossa! Parece que estou ainda a ouvir o Teodoro, quando viu a gente tristes e percebeu que alguns queriam chorar na partida, já dentro do bote. "A nossa praia não tem culpa que a ponham desgraçada, sem um portozinho... Chorem
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para aí, que não é vergonha... Vergonha é roubar. A gente vamos ganhar o pão da família..."
Pois sim. Na segunda semana abalara, pusera a fingir-se de doente, que lhe doíam as cruzes, talvez fosse fraqueza. E era fraqueza de não comer, o apetite fugira-lhe. Lembrara-se também do Chico da Marcolina, enjeitado da companha, onde fora sempre um pau para todo o serviço.
Agora estou aqui, agora lixo-me, com vento noroeste, sudoeste-noroeste, nunca se sabe onde um barco pode encalhar. Quem me manda gostar da minha terra?
Todos gostam da sua Praia, nem por Lisboa a trocariam. Nem há outra areia como aquela para um homem se deitar quando está lasso, derrancado pelo trabalho, pelos sustos e pela fome. Aos filhos e à mulher levava-os, se fosse preciso. Não há casas em Peniche, mas um canto, uma barraca, sempre se colhe com o tempo. Mas a Praia?!...
Agora a mulher deve estar no areal com os filhos na companhia da filharada e das mulheres dos outros camaradas dos dois botes. Devem estar todos ansiosos e ele vai' saltar. Se um pé me falha, uma vez é a primeira, acaba-se tudo.O Mar deve estar cheio de tintureiras, de anequins e albafares.
Os barcos chegam-se mais, quase se tocam, o Cardeal salta.
Lembra-se da sua Praia e salta, tudo bem medido, não lhe vá falhar o pé. De arremesso, um vagalhão faz chocar os dois botes, ameaçando parti-los. Varre-os da proa à ré, arrasta os gigos do peixe-espada e leva consigo, naquele golpe, o cherne que ficara sobre o convés. Os motores arrancam e partem.
Tó Zarro ala um peixe-cardeal, cabeçudo e vermelho de lombo.
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- Viste o peixe do barco dele? - pergunta-lhe o pai.
- A gente tem mais...
- Só faltam oito cadouras...
- Há muito ainda que lhe dar...
Os braços derrancados, as costas a abrirem-se, parece que lhe meteram no meio uma faca de escalar peixe como as do bacalhau. Sente uma sede danada; pede ao irmão que lhe chegue o garrafãozito de vinho.
Manel Diabo entrega-lhe o seu, mas não levanta a cabeça.
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LEVANTAR a cabeça pode ser um gesto inútil. Parece um pequeno gesto, mas agora é qualquer coisa de terrível que não consegue fazer. Está tolhido, julga-se observado pelos camaradas, precisa de ficar sozinho, meter-se cada vez mais dentro de si, bem no fundo de si, enrolando-se no seu casulo, como os aladores fazem aos peixes-espadas dentro dos gigos.
Enrolar-se ainda mais do que os peixes-espadas.
Ficar do tamanho de um dos olhos do cherne que o Mar entregou e voltou a levar já morto.
Lembra-se do cherne morto e pensa que já vão todos mortos, ele e os camaradas; só lhes falta cair ao Mar e apodrecer, já têm todos a cor pálida dos que morrem, embora os ouça gritar de vez em quando. Ele não grita, não vale a pena, a morte já os agarrou nos seus anzóis e agora deve resignar-se. Só precisa de fechar os olhos. Aquela ideia alarma-o, de repente, agarra-se às paredes da casa do motor, numa concretização do seu instinto de defesa. Volta a pensar que o pai e o irmão mais velho têm culpa daquele medo medonho que o acomete. Receia, não sabe porquê, mas receia que todos morram e só os dois consigam escapar.
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Precisa de levantar a cabeça para ver onde estão e não consegue fazer esse pequeno gesto. Verga-se-lhe a cabeça, dói-lhe, sente-a pesada como uma âncora de ferro que o prende à angústia de estar ali, e o enrola, e o amarra, a essa tendência instintiva que o acanalha, e à outra força, quase ausente, ainda a acreditar na vida.
Sabe que também os camaradas sentem o mesmo peso e indecisão; eles porém conseguem segurar essa ânsia. Ainda fumam, ainda conversam e se olham, movem-se dentro do bote, embora mais lentamente; são capazes de encarar as vagas, sem sentirem - pode lá perceber o que sentem?- aquela atracção de galgar para o vento e para o Mar, para que tudo acabe depressa.
Todos pensam em voltar para terra, depressa, tão depressa como os alcatrazes que mergulham e depois abalam, deixando-os ali na impotência de ficarem amarrados ao bote, que já não é um bote, mas um esquife onde os levam por esse Mar sem fundo, pensa o Manel.
Andam por ali há mais de seis horas, repara no relógio de pulso, sim, é mais de meio-dia. Noutro dia qualquer estariam todos à volta do comer, a rirem com o Barrasquinho e a desconfiança do Álvaro, sempre peludo com as graças dos camaradas. E agora só falam para se sentirem vivos. Julgam eles que vão< vivos...
Ainda terão de aguentar aquilo pelo menos quatro horas, se a costa não estiver negada. Quatro ou cinco horas. E se houver rabiosa na borda poderão aportar a Peniche? A vaga continua a crescer, ouve-a bem dentro de si, lá nas profundezas do sangue, onde gostaria de se enrolar para que ninguém o visse; nem a morte. Talvez assim escapasse.
Se fosse em terra firme, fugia, mas ali não pode fugir, a não ser que conseguisse derrubar o Tó, atirando-o primeiro à água, porque talvez a braveza do Mar venha de
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ele andar ali. É a primeira viagem que o bote faz, e o irmão não esteve na festa, mal assitiu à bênção da companha e da lancha; ficou sempre de lado, talvez a bênção do padre não conseguisse chegar-lhe.
O bote pode ir amaldiçoado e a culpa pertence-lhe. Dele e do velho. Mas para esse já conhece uma vingança que há-de pôr-lhe o sangue negro.
Pensa que ainda pode chegar a terra, mesmo morto como vai, e só lamenta que a mãe não esteja à sua espera. Só ela sabia perceber os filhos, e a ele mais do que nenhum outro. Meu Manelinho, meu rico menino, deixa lá que esse sinal na testa há-de abençoar-te para o resto da vida.O velho quando o empurrara fizera-lhe aquele sinal, mas agora só lhe dói o medo de não poder fugir.
Quatro horas, pelo menos, ainda dentro daquele inferno, água por todos os lados, e o medo que o motor pare ou o bote se alague. Medo de levantar a cabeça e olhar. Só céu e mar, e outro bote, e os alcatrazes que chegam e logo abalam, e as linhas empachadas com as do outro, tudo são demoras, e o regresso na ansiedade de ver terra e não poder lá chegar. Isso é pior ainda do que andar ali só com mar e céu; a vaga a correr, tocada pelo vento, parece que vai doida, a fugir de qualquer coisa que a ameaça e espanta.
Olhar terra e não poder varar na praia custa mais ainda. Vêem-se as pessoas, adivinham-se os gritos, percebem-se os braços e descobre-se a cor de uma blusa que se procura.
Mais quatro horas custa a aguentar.
As água chamam, puxam um homem, tudo pode acabar depressa. Basta pôr um pé na borda, chegar ali numa passada e saltar para fora. Ninguém conseguirá agarrá-lo. Mas se o agarram?
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Por isso será melhor não olhar para a água negra que acomete o barco tapando o horizonte, e vai por aí além, até às praias onde as mulheres rezam e se espojam na areia. Sem levantar sequer a cabeça para os camaradas, porque esses observam um homem e atiram-lhe olhares de mágoa. Ou lançar-se sobre o Tó, empurrando-o lá para fora, porque a maldição mora com ele, que não foi benzido.
Levantar a cabeça será um pequeno gesto; dentro do bote, torna-se qualquer coisa de terrível.
Um dia, se chegar a terra, talvez consiga chegar, e era bom!, há-de perguntar ao Tó o que quis dizer quando o agarrou pelos braços e o sacudiu. Sim, há-de perguntar--lhe, cara a cara. Entre os dois só há uma diferença de quatro anos. Lutaram muitas vezes quando eram pequenos e lembra-se de que o irmão nunca levou a melhor. Sabe que é mais forte do que o Tó, sim, mais forte de corpo; não lhe vai voltar a cara, disso pode ter a certeza.
Ter receio ao Mar não quer dizer que outro homem lhe meta medo.
E se os braços não puderem, as navalhas só se fizeram para cortar as tripas aos valentaços. Morrem todos nas mãos dos mais fracos, esses, os valentes.
Sabe, tem a certeza de que não usará dessa arma para o irmão, mas faz-lhe bem pensar nisso. A ideia reconforta-o, arranca-o ao desespero de se sentir amarrado ao pavor de estar ali, sem ter uma saída rápida para a vida.
Percebe que o temor continua a rastejar dentro dele.
Veio de repente ao coração e às tripas, ficou aí em duas bolas duras, cravadas, depois começou a espalhar-se pelo corpo todo, de mansinho, como uma chaga a alastrar, mais e mais; primeiro à cabeça, talvez aos "olhos, depois às pernas e aos braços. E um tremor nos dedos, um tremor que todos vêem e não consegue esconder, mesmo que limpe
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as mãos ao desperdício ou as deixe ficar dentro do casinhoto do motor, como dois cancros escondidos dos outros, mas cuja existência todos conhecem.
Que todos podem apontar.
Só as mãos vibram, só a cabeça responde com duas vozes lá dentro. Uma a dizer: atira-te, acaba com isso depressa, que estás à espera? - e a outra que lembra a blusa na praia, o gosto de um beijo na boca, o que ficou por falar, o sol na areia. Como é bom um homem deitar-se na areia com os camaradas, ainda ontem lá estive com o Zé.
O medo torna-se em caruncho na madeira do corpo de um homem; avança porém mais depressa do que o caruncho nos barcos velhos. E o seu não nasceu naquela viagem, pois o Mar já lhe prometeu duas vezes e só por milagre não ficou com ele.
O Mar quando promete não falta. Tarde ou cedo, nunca falta. A hora de um homem chega de repente, um dia tem de ser.
Foi o que sucedeu ao seu maior amigo, ao Abel, quando andavam na traineira do Domingos Peixe. Havia um corso de sardinha na costa, todos estavam a pescar bem; só o João da Nascimenta vendera na lota para mais de trezentos cabazes, todos agarrados no lance do alvor.
Ele zangara-se com o pai, saíra de casa; estava o Tó no bacalhau e só o Zé era companheiro no bote velho, no Alcatraz, um botezinho bem safo no Mar, assim este fosse irmão dele. E vai o Abel encontra-o na taberna do Botas e diz-lhe assim, parece que ainda está a ouvi-lo: "Ah! Manel! Vem prà traineira comigo, eu arranjo-te, falo ao mestre..."
Aí pelas cinco horas, entra a barca com a companha ao Mar, as ondas quebravam longe. Não fazia mar ruim, mas o contrabanco não era de passar. Ali estiveram, sia,
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sia, à espera de uma onda espraiada, e depois lá foram, rema, rema com força, já havia banhistas na praia. Um dia soalheiro, bonito, com o mar muito verde no canto das Pedras e o Guilhim recortado no Mar e no céu.
E de repente - ah Mar!-vem um vagalhão, todos gritam da praia e da barca, o bico atira-se ao céu, a água faz uma razia por cima dos bancos e pega no Abel. Parecia que o Mar, aquele Mar matador, tinha mãos para agarrar um homem e levá-lo.
O Abel nadava bem, ninguém se assustou, e eu menos do que os camaradas, tínhamos aprendido os dois, o Abel era um peixe, e aí vem o Abel, de braçada, braços bem puxados, cabeça à tona d'água, a barca dá uma volta para o agarrar e, quando ele estava perto, atira-se-lhe um cabo, ele pega-lhe bem, vai a amarinhar, e antes de chegar à borda da barca a corda parte-se, e aí vai o Abel outra vez ao Mar; mas ninguém gritou, a não ser as mulheres na praia, que gritam por tudo, as malvadas, e às vezes, ainda o medo vem longe, já estão a chamá-lo para o coração dum homem.O Abel deu umas braçadas pra longe, não fosse a barca bater-lhe na cabeça, e depois veio outra vez a nadar certo, braços bem puxados à frente, atiram-lhe a corda, ele deita-lhe a mão, pegou-lhe bem, era um rapaz de fisga, a gente viu-o rir, era um bom rapaz, e aí se põe a vir atrás da corda que a gente puxava de bordo, quando se levanta outro vagalhão e o enrola; lá se foi a corda outra vez.O Abel deixou-se ir na onda, nadava que nem um peixe, e aí vem, agora à pressa, direito à barca; eu assustei-me quando o vi, percebi-lhe que trazia a cara branca, e então atiro-me à água para lhe dar coragem, ah Abel! Ah 'migo! Chego-me à sua beira e ele pede-me pra não o agarrar, que não era preciso; fico-me amuado, volto prò pé da barca, agarro-me à corda e subo; atiram-lhe outra corda e ele começa a subir, e a corda, zás, parte-se outra
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vez. Começámos todos a ficar tontos.O que era aquilo, ah hó?!...O Abel gritou e eu ouvi-o bem, ainda tenho as palavras agarradas aqui aos ouvidos: "Chegou a minha hora, ah Manei!" "Não chegou, não, ah Abel! Ah' migo, tem alma!", digo-lhe eu. Foi a coisa mais desgraçada da minha vida!...
Manel dobra-se sobre o motor para deixar as lágrimas correr na cara áspera do sal da água. Transtorna-se, parece que o amigo começa também a chamá-lo.
O outro pusera-se a nadar para longe, certo, braçada calma, e de repente voltara-se, levantando os braços ao céu; atirara-se para o fundo, por duas vezes viera acima, a barca ainda conseguira chegar-se. Ele ainda se deitara à água para animar o camarada, mas nunca mais o viram. Ah Abel! Ah' migo!O que é que se te meteu no coração?
É a mesma fatalidade dos homens do Mar que o obriga a pensar agora: "o Mar prometeu-me já por duas vezes e nunca falta."
A grimpa das ondas atira-lhe espuma salgada, a água fria da vaga confunde-se com as lágrimas quentes que ninguém vê. Não quer olhar para além da borda do bote, agora sente receio de ver oTóe de se atirar sobre o irmão. O pai vai ao 'leme, ouve-o respirar atrás de si e falar sozinho; tanto pode ir a rezar como a rogar pragas ao temporal. A ele só lhe pedem que dê força ao motor ou o ponha mais devagar; para tão pouco não precisa de mostrar a cara às vagas.
Crespas e negras naqueles alqueives fundos.
A outra força da vida cicia-lhe de longe. Talvez, sim, talvez. Se chegar a terra, com Deus, nunca mais cá volto... Nunca mais estes mares me hão-de ver a cara... Aqui nunca mais. Fala em voz baixa para se ouvir e se convencer, tão baixo que o Mar não consiga escutá-lo.
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Há-de falar à Maria. Ela há-de lembrar-se do beijo roubado que depois também quis, embora acabasse por empurrá-lo e fugir. Quer lembrar-se do gosto da boca dela. Não é capaz de arranjar outra coisa que se lhe compare. Era doce. Sim, doce. Mas também áspera. Mas doce e áspera como quê?!...
Só conhece uma coisa melhor do que a boca dela. A terra firme e o sol na areia. Só a terra, mesmo sem o sol. É isso mesmo.
Uma noite, mesmo que seja uma noite de Inverno, irá com a Maria pelo areal, lá para o sul. Com a mão sobre o ombro dela, bem puxada para o seu peito. Numa noite com Lua, para que o Mar os veja.
Há-de mostrá-la ao Mar, àquele leão sagrado, para que o reconheça e se morda de ciúmes.
E fique a saber que não o agarra. Não, nunca mais, é a última vez que venho até aqui. Vou para calafate ou outra coisa!...
Neto dos Zarros, sim, senhor, e depois?... Neto do João Zarro, que quis deitar o fogo às barbas do capitão do porto. E depois ?!... Os tempos agora são outros.
Começa, de repente, a sentir-se mais calmo. A ideia da vingança acalma-o Quase se esquece do To e do velho, tallvez porque já escolhesse o que fará a cada um deles.
Respira fundo, aperta as mãos uma na outra e depois pousa a esquerda no rebordo do casinhoto do motor.
- Eh Mar! - grita o pai.
O bote sacode-se, o Mar golpeia-lhe o fundo, como se fosse a rasgá-lo da proa à ré. Aos ouvidos de Manel Zarro a voz do pai vibra num eco sem fim.
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CONTINUA a meter os anzóis nas talas de cana, faz os movimentos de cor, tantas vezes os repetiu, mas só ele sabe o que significa o formigueiro que sente nos dedos e as dores agudas nas articulações; mais aquela que lhe sobe pelo braço até ao ombro e dali reflui sobre o lado esquerdo, do coração para a garganta, dura e concentrada, a mexer-se lentamente como um nó grande; às vezes, rebentando em estilhas quando um susto maior o alarma (ainda há pouco o agarrou em cheio ao julgar que o bote do Jaquim fora tragado pela ondulação, deixou de o ver, é amigo da companha toda, andam todos ali pra ganhar a vida, puta de vida!), o nó duro partiu-se-lhe no peito sobre o lado esquerdo e espalhou-se pelo corpo, queiman-do-lhe o sexo mirrado, os olhos, os dedos dos pés, mas logo voltou a juntar-se no mesmo sítio quando o perigo maior se esvaiu, e então as dores mansas regressaram pelos mesmos caminhos, pouco a pouco, até se reunirem em pequenos grupos, como se tivessem medo de continuar sozinhas até ao mesmo lugar do lado esquerdo, entre o coração e a garganta, abertas em espinhos ou adoçadas numa queixa indefinida, inquieta e indefinida.
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Vai sentado entre dois camaradas, prende os anzóis entre as duas talas de cana, e passa-os nos dedos, mais pelo hábito do que pela vivacidade dos olhos. Tem-nos turvados por aquele balancear sem fim, lembra-se quando a avó tonta o embalava dentro da canastra, a balouçá-lo sem tempero; pensa que bebeu o Mar na barriga da mãe, já na barriga da mãe ouvira o Mar a queixar-se, trá-lo na pele, por dentro e por fora da pele, sem nunca se habituar à ideia de num dia qualquer regressar ao sangue inquieto do Mar. Um dia acontece, pode ser hoje, talvez esteja escrito no livro do seu destino... Quando nasceu, tudo ficou escrito no livro do seu destino, não vale a pena um homem contrariar as coisas já certas na sua vida.O pior é que nunca se adivinha o que lá escreveram...
As mãos parecem serenas a mexer nos anzóis. Lentas e minuciosas, repetem os gestos com o formigueiro dentro deles, recordam o balancear da canastra impulsionada pela avó tonta, sabe-as cheias de outros sustos agarrados no Mar quando o vento, o cheiro da maresia, a cor das águas, se bebem com nojo, mas acabam por embebedá-lo e tudo fica indefinido, inquieto e indefinido, numa grande bebedeira de medo, coalhada de resignação.
Dói-lhe a fome no estômago. Não vale a pena comer. Sempre que o Mar se espanta não consegue comer, embora vá exausto de repensar e se alarme com a fraqueza que agarrou no Inverno passado. O Dr. Zé Carvalho deu-lhe a receita e os remédios, mandou a Alzira lá ir muitos dias pelo comer da sua menina, mas assim mesmo foi um correr andarilho para a casa de penhores, nem se salvou a camisa nova de castorina, aquela azul e cinzenta que ele trouxera na vontade mais de seis meses e acabara por comprar em pagamentos.
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Quando uma onda maior se levanta à proa, turva, quase negra, dá-lhe vontade de gritar. Já aprendeu também que o Mar não se assusta.
Começa às vezes a contar histórias para fazer rir os outros. O arrais trá-lo por via disso, percebe que no dia em que deixar de dizer graças o Diabo Negro deixa-o ficar em terra, e então vai ser o elas sem trabalho no alto; as companhas não precisam de homens, sobejam homens, e um pai de família não pode ficar à espera que apareça um cor-de-rosa que lhe dê dinheiro para fingir de marido de vez em quando.
Hoje secaram-se-lhe as histórias de rir; não acha graça a nada que possa contar.O Mar parece um toiro, um bicho fero metade toiro, metade leão. Ruge ao medo do Barrasquinho e mete os cornos por debaixo do bote e aí vai ele, aí vai ele outra vez...
- Ah arrais!- destempera-se num grito.
O outro olha-o de relance e cospe para o seu lado. Envolve-os outro torvelinho de águas doidas, desaparecem e surdem, limpam a salmoira da cara e regressam à pena de silêncio. O Barrasquinho nestas alturas gostaria de se esconder no albói do motor e ficar ali muito quieto, com a cabeça tapada e os dedos nos ouvidos, longe daquela zoeira infernal que o allquebra mais. Fora sempre frouxo para o Mar e o maldito continua a gastar-lhe o resto das energias que consegue juntar para vir ali.O Mar gasta tudo, até as pedras...
Sabe quem vai à ré, é sempre o Diabo Negro que pega no leme, mas não vê mais do que uma mancha amarela e escura lá atrás. Parece cego.O medo mete-se-lhe nos olhos. Talvez por isso mesmo a cabeça lhe fique inquieta, sempre a mover-se de um lado para o outro.
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- Pareces o farol de São Pedro com a luz a mexer - diz o Corrucho, que foi ao foquim tirar um naco de pão.
- E tu ficas como os dois... Estás sempre a mastigar.
- Mas és tu que te babas...
Babar não será bem. Mas quando a vaga aperta, o Barrasquinho começa a cuspir, nunca mais pára. Amarga--lhe a boca, quer ver também se o cuspo traz alguns fios de sangue, como lhe sucedeu no Inverno, é a desculpa que dá agora, mas sucedeu-lhe sempre o mesmo. Uma grande vontade de cuspir, já que evita urinar à borda, não vá algum vagalhão agarrá-lo. E faz caretas para que os outros riam e não reparem nele.
Lembra-se outra vez que o arrais o traz só para lhe ouvir as graçolas. Gosta de uma bebedeira que viu ao Carlos Palminho, ri sempre com aquilo, embora já conheça a história toda de ponta a ponta. Melhor do que ele, com certeza. Hoje o Diabo Negro não lhe vai pedir que fale nisso com certeza. Ainda bem...
Fareja as ondas que continuam a galgar a borda e a proa, batendo-lhes nas costas, como se ele e os camaradas cumprissem castigo de chicote. Fareja-as e o temor alarma-se. Serão capazes de chegar?!... Que lhes irá suceder quando começarem a viagem de regresso, pondo-os de caras para o Mar atravessado? Na borda deve estar rabiosa...
Não, ele tem de chegar; suceda o que suceder, precisa de chegar. A filha, a sua menina, não vai ficar sem ele, não vai permitir semelhante coisa.
Não, não pode ser... É um homem fraco, mas a família mesmo assim precisa do seu trabalho. A mulher só vai ao pinhal roubar lenha, não dispõem de casa para alugar aos banhistas, mal têm agora com que se cobrir. Nunca ganhou um cordão para a Alzira, embora talvez lho
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pudesse já ter dado, se não gostasse tanto de jogar nas caixas dos bonecos de futebol... É a única distracção que a vida lhe dá. Mas agora, se chegar, terá de morder no dinheiro para tirar da casa de penhores a roupa nova. Está a aproximar-se a procissão dos Passos. Ah, sim, o Senhor dos Passos vai fazer um milagre!... Por causa da sua menina, ao menos.
Não, não será por ele, já todos sabem que não presta para nada, é um fraco de corpo e de cabeça. Quando ela estiver criada, não se importa, pronto, não se importa. Podem levá-lo quando quiserem. Mas agora não...
- Esse malandro vai cego! - grita o Corrucho. - Eu abro-te os olhos lá em terra!
Agarrado ao mastro com o braço esquerdo, agita a mão livre e rasga com ela os cutelos do vento frio, desejando-a imensa para vencer a distância que vai até ao barco do Joaquim da Bota. E aí (ah, se a sua mão lá chegasse!...) agarrá-lo bem pelo gorgomilo e desfazer-lhe à porrada a cara de fuinha.
- Ah fuinha, grande cão!...
- Cala-te lá - diz o Zé Diabinho num sussurro.
- Aquele grande cão empachou tudo, fez de propósito... A gente vai ficar mais tempo por conta dele...
Imagina-se com força para lhe esbandalhar o focinho, parti-lo aos bocados, a cada murro um osso, ou coisa que lhe valha, esfanicá-lo na tromba de malandrim, deixar-lhe os olhos e mordê-los depois.
- Mordia-te os olhos, grande cão! - grita com raiva. Depois senta-se ao lado do Barrasquinho, cansado pela
ira, ainda fecha o punho numa ameaça, e sacode-o com frenesi na impotência da distância. As pernas quase atingem o albói do motor. É um arganaz, grande que nem o
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mastro, dizem os camaradas, seco e rijo como madeira de cinta, mas todo de vidro na voz melíflua.
Trata o Mar por tu desde os 9 anos, falta-lhe só um dedo das duas mãos para contar as vezes que ia morrendo na lida, está farto de ver o malvadio a jogar-se com ele, mas nesta viagem sente o vento mais frio e bravo do que nunca. Há vinte anos que não agarra um mar assim, tão traidor e falsário.
Uma pancada pode virar o bote, já apanharam muitas das rijas, o pior virá ainda se o arrais se cansa e distrai. Só um desvio no leme, um medo maior, qualquer coisa, nunca se sabe em que um homem pensa naquelas alturas, e será a morte de todos sem a achega de alguém para fechar os olhos a uma alma cristã.
Vento frio danado e danoso... Parece ter o entendimento de uma pessoa para jogar à rasteira, de falseta, com o bote do Zé Diabo. Julga que será assim o frio da morte, e imagina-o num poalho misturado nas ondas, uma espécie de pó negro que anda no ar e a água lambe, à espera de os acaçapar numa virada.
Espreita para o bote do Jaquim, quase de relance, como se visse o Estrela do Mar num espelho de neblina. Reza sem mexer os lábios, talvez porque leve a boca seca pelo medo. Reza todas as orações aprendidas com a mãe, no tempo em que o velho ia para o bacalhau e ela juntava a criançalha, três meninas e ele, à roda do oratório. Esqueceu-se de uma oração à Virgem, está farto de puxar pela cabeça, mas não há maneira de encarreirar, e receia que essa lhe faça falta nesta altura.
O Mar joga o bote do Jaquim de onda para onda, parece que o quebra pelo meio, pronto a esmagá-lo nas muralhas, para onde o atira como a um alcatraz morto. Abre a boca dos abismos, puxa-o lá para os fundos, tapa-o com penedos de água, e depois volta a vomitá-lo mais
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adiante, como se brincasse ao gato e ao rato, gaita prà brincadeira! pra um homem morrer não é preciso que se faça pouco dele.
Anda por ali desde os 9 anos; nunca apanhou uma vaga tão falsária e malvada. Não grama o Jaquim por causa do Raiado, que lhe ia contar o que se passava na pesca do bote. O arrais também não é grande coisa, não, chegara a desconfiar dele, a quem chamam lá por terra o cão do Diabo Negro. E cão porquê?!...
Sim, porquê?!... Ah hó!... Gosta da pinga, sim senhor, quem não gosta, é parvo, perde dinheiro à batota, na pedida e no trinta-e-um, e então, e depois?!... Mas há um defeito que nunca se lhe pegou ao rasto dos pés, espera morrer assim, Deus o permita. Não esquece os favores que recebe, nunca foi ingrato. Antes ficar gago como o Álvaro ou lázaro de um braço para acabar à pedincha na porta da igreja.
O arrais, aquele mesmo que vai ali à ré e a quem tratam por Diabo Negro, sim, o Zarro, um malvado ruim para a mulher e para os filhos, e não deixa o mais pintado pisar-lhe a sombra, fez-lhe um dia um. favor. Nunca mais o esquece, por muitos anos que viva, e se hoje ficar aqui mesmo neste esquife de mar, que Deus o saiba mais uma vez.
Numa noite antes do Carnaval bebera bem, misturas de vinho e aguardente, abafado e tudo o que queimasse o sangue de um homem, e para que lhe havia de dar, a ele, Chico Corrucho, e a mais dois companheiros de noitada? Coisas que a gente guarda dentro de si e um dia acabam por sair com o vinho.
Partirem os vidros das portas da Capitania. Enfiaram-se no beco e dali zumba, zumba, vá de pedrada. Valeu--lhes não verem bem; eram mais as pedras na madeira do que nos vidros. O Sr. Capitão chegou à janela, os outros
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fugiram e ele ficou. Não atirou mais pedras, mas ficou. Não se assustava assim às primeiras. Daí a pouco, ia pelo paredão acima a gritar pelos outros, vem o cabo do mar e agarra-o. "Agarra, uma gaita! Largue lá a roupa, que me custou muito suor. É minha! E está paga!..."
Um golpe de mar pega no bote e atira-o de bombordo para estibordo, onde outra onda o cobre todo.
- Eh Mar! - gritam todos.
- Ah arrais! - clama o Barrasquinho, atordoado. O Estrela aderna por instantes, os três homens levantam-se, correndo para o 'lado em que a borda se levantou. Já lá estavam o Tó e o Álvaro na alagem, mas só o peso deles fez o milagre.
É nisso que pensa o Comicho quando volta a sentar-se, depois de perguntar ao arrais se quer que vá um bocadinho ao leme para descansar.
Pois, como ia dizendo, isto é que está um mar!, agarrou quinze dias de cadeia, e mesmo assim porque se lembrou de contar que estava com uma pinga, o que não era mentira, e começara a atirar pedras para um dos outros; por fatalidade, duas delas tinham partido os vidros. Lá o acreditaram, mas deram-lhe quinze dias. Chegaram a dizer-lhe que a brincadeira podia ser levada para o lado da política e que então seria o bom e o bonito, ninguém lhe tirava uma carga do lombo. Não se lembrava do Zé?!... Pois não, que não se lembrava: dezoito meses de cadeia. Ah 'migos!...
Pois aquele que ali está, o seu arrais, o Diabo Negro, subiu sem medo as escadas da Capitania, pôs-se do seu lado à má cara com o capitão e pagou a multa toda de uma vez. Sim, senhor, eu seja cego! E para que eles tivessem alguma coisa que fazer - é mesmo um homem atravessado! -, pagou a multa em moedas de cinco tostões. Foi um riso na Praia.
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Devia-lhe esses dias de sol. E um favor desses nunca mais se paga. Ou paga?!... Tinham alguma coisa para lhe apontar quando defendia o seu arrais? Pagou-lhe o dinheiro, está visto, mas ninguém mais apareceu para o ajudar. Nem a gente da sua família, onde alguns, como o Augusto da loja, tinham dinheiro de sobra para lhe valer. E nem um passo. Ainda ontem no gueste lembrara essa bonita coisa do Zé. Ainda ontem parecia um rapaz a bailar com a afilhada e já hoje vai ali com o peso da idade a marcar-lhe a cara e o corpo. Envelheceu vinte anos.
Medo, não, isso não, o seu arrais não sabe a cor do medo. Podem senti-lo os outros todos, mesmo eu, que já por nove vezes vi a morte à minha beira, eu, Zé Corrucho, que escapei do naufrágio do "Redinha" e de cinco vira-delas no Lago das Viúvas, e dum golpe de mar em Peniche, que me arrancou do bote e me fez nadar sozinho duas horas, ia morrendo de frio, mas nunca senti tanto frio como hoje aqui dentro...
Gostara ontem de ver o seu arrais a dançar e a beber, valia os filhos em mocidade, parecia que a alegria dele chegava para toda a gente, e em poucas horas ficou velho, mal se lhe vêem os olhos, é o peso da responsabilidade, leva aqui não sei quantas vidas à sua conta, a dele e a dos filhos, e a nossa, e a da criançalha e das mulheres, coitadas delas que já devem andar de rojo pela areia a pedir à Virgem que se amerceie da gente.
Se a mão 'lhe treme, lá vai tudo para a boca deste leão matador.
Fecha os olhos, reza sempre, mistura as orações com as lembranças; não há maneira de lhe vir à ideia a reza que esqueceu e talvez lhe faça falta. O Mar balouça dentro dele, levou-lhe as forças. Para que precisa um homem de forças em horas destas?...
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Mete as talas com os anzóis dentro da celha, vai a pegar com o Barrasquinho por causa da cara que lhe vê, mas também o coração se lhe prantou em desassossego. Leva-o pequenino, mirrado, do tamanho de um grão-de--bico, talvez menos ainda, e nunca teve dentro dele coisa mais pesada. Dá vontade de abrir o peito e tirar aquilo; partir o grão com um martelo, deitá-lo ao Mar para se esquecer onde está. Aquebranta-se-lhe todo o lado esquerdo, como se alguém o tivesse cortado a meio e no lado do coração houvesse uma gangrena que o consumisse aos bocadinhos.
Brinca com o Barrasquinho, o outro não lhe responde. Evita virar-se para o lado do irmão, do Tó, desse cabrão desgraçado que anda com a mania das valentias e veio metê-los naquele Mar de Cruzes. Quantas cruzes deitará o Mar em cima deles?...
Ainda bem que o Jaquim os perseguiu para pescar no mesmo sítio. Podem assim ajudar-se uns aos outros. Se um deles se vira, sempre haverá alguém para içar os camaradas. De outra maneira nenhum homem chegará a terra, por mais nadador que seja.
Porque sentirei menos o lado esquerdo?!... Talvez do vento frio...O baguinho pesado lá vai no mesmo sítio; e dói. Dói pouco, mas aleija.
Todos dizem que é mesmo a cara do pai. No feitio, Deus o livre de sair igual. Não gosta do velho.
O velho vai ao leme, ele espreita-o, talvez para descobrir quando lhe chega o medo. Ainda não lhe percebeu um sinal de susto. Está mais branco e mais velho, deve ser o receio a entrar-lhe na pele. Repara-lhe na pele e vê-a estremecer lá debaixo, como a água quando o vento lhe bole e faz refegos; depois aperta os queixos e os refegos desaparecem.
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Tem vontade de 'lhe gritar: "Diga que sente medo, seu homem!"
"Deve andar com ele muito escondido", pensa depois Zé Diabinho.
Estão cobertos pelo Mar. Embriagados de mar. Cansados e ansiosos de mar. Espantam-se com Ele no meio da tormenta e não conhecem outro caminho. Se escaparem desta vez, regressam novamente. Amanhã mesmo. Amanhã que venha ele e mais o Tó, a mim não me apanham.
Não gosta da alcunha que lhe veio do pai, não tem culpa do seu feitio. Os dois irmãos continuam a ser Zarros.O Tó, esse garganeiro, é também o António dos Safios. Alcunha feia. Mas a dele não lhe fica atrás. Zé Diabinho só por ser parecido com o velho. Velho com manias de rapaz; talvez se lixe... O barrete que lhe atirou à cara há-de ser um dia explicado quando o velho precisar dele.
Só o Mar interessa agora. E disso também as culpas cabem ao pai. Não desse ouvidos ao Tó, que tem galas de pescador de fama. Andou com sorte naqueles dois dias, fez uma pranchada de dinheiro, ele bem o ouviu lá em casa: "Nenhum filho da mãe há-de dizer de mim que vim do bacalhau com medo... Ou por não saber pescar..." Os outros que se amolem agora. Que continuasse no safio! O pai, afinal, era um bocado de lama. Se fosse comigo, dava-lhe logo a resposta, pois então. Ah, queres ir ao mar? Pois vai sozinho! E que tenhas sorte...
Não, senhor, nada disso. Ficara atrapalhado, a fingir que não ouvia o Tó; logo de noite, aí pelas três horas, vamos embora, rapazes! Chama-se a isto ser arrais?!... Ah hó! Arrais!...
Está velho, velho e relho, pois então! Mas ainda lhe puxa o sangue para as saias novas. Deixem-me rir. Seja cego se quando chegar não lhe lixo a vida! Ah MariEstrela,
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ouve lá. Para que há-de servir a boca de um homem, senão para falar no que tem a dizer?
E se ninguém chega a terra?... Está aqui armada uma grande paródia, não há dúvida. E o Tó e o velho são os únicos culpadas disto. Mais o velho do que o Tó, sim senhor. Quem deu o nome de arrais na Capitania?...
Agora nem se quer lembrar daquela noite de temporal quando ainda andava na barriga da mãe. Isso fica para um dia!...
As nepas de borracha queimam-lhe as feridas abertas nas mãos, estão a moê-lo para ali.O Tó arranca-as e mete-as nos bolsos das calças, levantando a ponta do avental de oleado verde.
Em ritmo certo puxa as linhas, vai a mão esquerda, vai a mão direita, bem trazidas até aos ombros, e agora o sangue começa a verter, ainda num borbulhar miúdo. A água do Mar enche-as de ardor, mas os olhos não se queixam menos. Está farto de apanhar porrada naquele sítio, ele e o Álvaro não se podem defender. São os dois aladores daquela viagem. Mas ainda bem que assim é, vai mais entretido, escusa de pensar em muita coisa que será melhor não recordar ali. Tem tempo. Na rapariga e no filho... Sabe lá se o filho é dele! Não, dele deve ser. Ela ainda estava donzela. Mas lá casar, isso não. Já lhe chegou a Deolinda. Essa cabra!
Os camaradas do bacalhau deviam estar ali, para saberem que o Mar da Nazaré não é menos, às vezes, do que o Mar do bacalhau. Quando andara sozinho naqueles dois dias - dois dias e duas noites - não se sentira tão triste, lá isso não. Estava sozinho, se morresse ainda não fazia falta a ninguém. Nunca se conformara com a morte, isso nunca! Um homem está sempre vivo. Mas dessa vez não tinha que dar contas a ninguém. E agora iam ali mais sete homens, fora o Cardeal, que saltara para o bote do
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Joaquim, e mais o Joaquim e a sua companha toda. Eram quase vinte homens à sua conta. E a vida dos outros não lhe pertencia, não. E as mulheres... e os filhos... E outros com mães e pais velhos... Em que raio de coisa se metera! Aquela mania de não querer que os outros pensassem mal dele... Fosse sozinho para onde quisesse, mas não andasse a meter os camaradas em mares assim. Verdade, verdadinha, nunca pensara que a vaga crescesse e viesse mais vento.
Se algum morrer, fica-me este dia para o resto da vida,O pior é que podem rnorrer todos. Não, isso não. Mesmo que consiga agarrar-me ao bote, mesmo que pudesse salvar-me, lá a terra é que eu não chegava sozinho. Deixava-me morrer aqui... Afinal para que vem a gente ao Mar, senão para desafiar a morte?...
Desafiou-a o Manelinho no dia em que passou a "maduro" e ela não lhe perdoou.
Pusera-se um dia assim, mar de vaga batida e vento, frio e vento, chegaram todos os dóris, menos o dele. Fora o seu mestre, ensinara-o, dissera-lhe muitas vezes que um homem não deve deixar que o medo se aposse dele, que o medo é pior que uma mulher viciosa, agarra-se a um homem e dá-lhe o vício de amor, vício bom mas que mata a gente pra outras coisas, não se sabe para quê...
Toda a companha passava por ele sem falar, mal o olhavam. Ainda perguntou ao Henrique Vá-Lá-Um: "Vocês não me dizem nada, porquê?!..."O outro dera de ombros, chegando-se à amurada para ver se o dóri do Manelinho aparecia no meio da bruma.O coração deu-me uma pancada, parecia um malho: Começo a arriar o meu barco pra ir à cata dele, vem a capitão, pergunta-me o que estava eu a fazer, e eu, nem palavra, chorava por dentro, se desse uma palavra abria-me todo a chorar. Ah 'migos!...
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Será sina minha matar homens no Mar?... Tiraram-me do dóri à pancada, o capitão ameaçou-me com cadeia e eu fiquei-me. Sou um merda!... Um bocado de merda rala. Os cabelos brancos que tenho fi-los nessa noite. Não arranquei dali, mas devia ter saltado para o Mar, desse lá por onde desse. E morrer também... Tenho raiva de mim por gostar tanto de viver! Não percebi ainda que a morte pior é a de um homem que por medo de morrer troca a vida em miúdos.
Pensa agora, pensa às vezes, que o Manelinho morreu por culpa sua. Então fica desgraçado, chora por dentro e deixa que as lágrimas lhe cheguem aos olhos como agora, porque se alguém lhe perguntar tem a desculpa de que o Mar lhe molhou a cara.O Mar devia cuspir em cima de mim. Porque não me deixei andar no safio?,.. Um homem que gosta de estar sozinho nunca deve procurar a companhia dos outros. Amola-se, aguenta' se tiver madeira, ou então mata-se. Um dia deixava o barco ir por esse Mar dentro e pronto! Acabava-se a Deolinda, o Manelinho...
Experimenta um receio súbito quando recorda que alguém ficou à sua espera. Assusta-se com a onda que se lhe desfaz nas costas e atira-se para cima das pernas do Corrucho..O camarada bate-lhe no ombro e diz:
- Já passou...
- Julgas que tenho medo ?
- Não, não tens medo. Foste tu que meteste a gente aqui dentro. O teu pai é que nos vale.
- Hás-de dizer isso outra vez lá em terra...
- Onde quiseres.
Aperta o braço do Corrucho e acena-lhe a cabeça numa ameaça. O outro não desvia os olhos. Tó Zarro regressa ao trabalho.
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Sim, também ele se teme; não há quem se não receie com um mar daqueles. Ainda não deu uma calma.
Um fio de sangue começa a tingir a linha, que volta a puxar com gana. Queixa-se ainda mais do desafio que fez ao outro bote; jogou com vidas que não lhe pertenciam. E agora?!...
Ah Jaquim! Vais ao Mar? O da Bota nem palavra. E ele logo a seguir: A gente vai... Vamos casar o bote novo...
Estava visto que os casamentos não se davam consigo. Nem os do Mar.
A vida e a morte rodopiam agora à volta dos botes, numa promessa e numa ameaça.
Já não é a primeira vez que a morte baila com eles.
Ali está agora a tocar-lhes com as asas abertas no rolar das vagas, querendo apagar a luz que ainda os alenta.
- Ah Tó! -é tudo quanto o Álvaro consegue dizer para o companheiro da alagem.
Quase se esqueceu do frio metido nas mãos. Agora volta a pensar nos que ficaram em terra, nos filhos e na mulher... E mais ainda naquele menino enfermiço, o mais pequeno, que só dorme no seu colo. Pode a mãe dar-lhe o peito, faça-lhe a avó os mimos que quiser, mas só nos seus braços o menino consegue adormecer. Parece um bafo-zinho de vida, um fumo... Ele é assim pequeno, mas rijo, graças a Deus. E a mulher pertence aos Bogas, está tudo dito. Gente bem arqueada como navios. E logo aquele menino assim!...
Até o tinham levado à bruxa por duas vezes. Que estava com uma camada de mau olhado em cima do corpo. E mau olhado porquê?!... Coisas de mulheres não eram, nunca fora assim muito dado às mulheres. Não deixara
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namorada com desonra, não fizera pouco da filha de ninguém... Lá da riqueza também não. Tinha uma barraquita deixada pelo pai, a mulher vendia na praça... Essa é que fazia o seu dinheirito. Era o que valia em casa. Só se o mau olhado vinha daí, de alguma companheira da venda que a invejava. Ah 'migos!... Não saber ele quem atirara assim com a inveja para riba do seu menino!... Mordia-a toda, ah isso mordia-a! A criança tinha alguma culpa?... Deus devia olhar para coisas daquelas e cegar logo quem atirasse pra cima de uma criança com uma carga de doença daquelas. Antes nele ou na mulher, assim é que estava certo.
A vaga não acalma, cresce sempre. Ou será que a vê assim?
Aquilo são mais três horas, não pode faltar tanto, nem sabe como o bote ainda não afundou, mas naquelas três horas pode suceder o pior. Fica a família sem nada. Pronto! É assim que acabam as vidas do Mar. São quase todos, afinal, como o Chico da Marcolina, que anda agora a pedir esmola. Fraquinho como o seu Raul... E esse foi do trabalho e da fome. E do muito mar que apanhou... Quando não prestava, deitaram-no fora, como fazem à isca podre.
Ele ainda dissera ao Corrucho: "Se não fosse cá por coisas... não ia..."
E tinha muito para dizer, mas o que o tramava era aquele defeito na fala. Até as coisas mais desgraçadas faziam rir toda a gente. Ca...ca...ca...ca, gaita; Não, parvo não era; sabia bem quando o enganavam, sabia bem que não lhe davam o que ele e os seus camaradas mereciam. Mas discutir com os outros?... Podia discutir assim? Era capaz de ler um livro todo, de ponta a ponta, fazia contas como poucos, e de que lhe servia isso, se não era capaz de dizer o que pensava?
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"Raios partam a pesca, que nunca mais acaba!", vocifera para si.
- Ah Tó!... - volta a dizer.
É só o que articula quando vê outra onda galgar a proa e vir a crescer sobre os dois. Acaçapa-se mais, o corpo miúdo quase desaparece naquele movimento, e agarra-se à borda com as duas mãos. Grita para dentro das veias todo o pavor que lhe estala na boca.
O Mar é mulher, dizem. Se não fosse mulher, para que queria ele tantos homens?...
O velho vai seguro ao leme, leva-o bem agarrado como a um braço do seu corpo. Um braço de que depende a vida de todos. Seria bom descansar agora por momentos, acender um cigarro e pensar no que deve fazer quando chegar a terra. Se chegarem a terra...
Não, têm de chegar e todos vivos.
O Diabo Negro benze-se.
O Mar encara com ele.O velho não desvia os olhos. Conhecem-se há muitos anos; já não é a primeira vez que o Mar o espera com a morte, e sempre conseguiu enganá-lo. Aprendeu-lhe as manhas todas. Só precisa que a mão não lhe trema no leme, que ele e o leme sejam um corpo só, e não pense em mais nada senão no seu bote e no Mar.
Sempre de frente à vaga mais grossa.
Os olhos vão cansados; de vez em quando precisa de esfregá-los bem para lhe arrancar uma névoa que os quer tapar. Não pode consentir que a fadiga lhos feche. Precisa de descobrir todas as ondas que se acastelam à sua volta, fechando-o num círculo de traições e de morte. E quando perceber a que quer esmagá-los, não lhe fugir. Ir ao
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encontro dela, desafiando-a no seu campo, sem uma hesitação, de proa bem firme e bem de frente.
Não, ainda não será desta vez que o leão matador o agarra. Pode mais do que ele, sim, pode. Ao Mar sobejam a força e a manha, mas a ele, Zé Diabo Negro, também as duas coisas não faltam. Nenhum deles consegue agora fugir da batalha. Se escapar dali, até lhe dá jeito.
A Mari'Estrela espera-o na areia, há-de estar aflita; a altura é boa para lhe falar. Dirá tudo sem receio.
Lembra-se mais uma vez da praga rogada pela Mari'Tocha - já resolveu a surra que lhe vai pregar numa noite qualquer. Promete-lhe aparecer na barraca e depois as contas ficam feitas para o resto da vida. Deixa--lhe o corpo pisado por quinze dias, seja cego!
- Vamos 'lá depressa!-grita para os homens da alagem.- Temos de voltar com Deus...O Mar não quebra.
O filho mais velho parece desafiá-lo. A companha vai toda acaçapada com receio.
Avança uma onda grande para riba deles, um penedo de água turva, fechada e turva, esfrangalha-se no ar, doma-se em cabana.
- Dá força ao motor, Manel!
Mede-a bem com os olhos, agarra-se ao leme com a alma toda e corre ao seu encontro, precisa de lá chegar, antes que a onda se abra em concha para os tragar de uma vez.
- Segurem-se!
O bote emproa, o golpe de mar corre-o de ponta a ponta, envolve-os a todos e despedaça-se por detrás dele num rugido. Zé Diabo sacode-se de pavor. Receia que os seus dois olhos não bastem para vencer os milhentos olhos com que o malvadio o espreita e persegue.
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Precisa de estar mais atento. Apesar da fadiga que lhe rompe o corpo. Atento apesar do medo que lhe mina a pele e ele julgou matar com a calma aparente de arrais afeito ao jogo da morte. Debaixo da pele o medo desliza. Sente a pele cheia de pequenos foles; nasce-lhe um tique ao canto da boca, o bigode arrepanha-se.
Num arremesso, grita para o filho:
- Corta o resto do aparelho! Vamos embora!... Arrepende-se, de súbito, quando o Tó o encara.
- Ala o resto... Estava a brincar contigo. Ninguém lhe ouve a voz.
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MANEL ZARRO sabe que vão todos mortos, apesar de c velho gritar. Talvez ainda mais por isso. Antes de chegar às portas do Inferno aquele gajo há-de gritar até a voz se lhe sumir. Deus irá pedir-lhe contas do que fez aos filhos e à mãe deles.
Espreita para fora do casinhoto do motor, vê o Álvaro e o irmão mais velho na alagem, mas não consegue distinguir-lhes os movimentos. Para ele já ninguém se move dentro do barco. Prolongam gestos para além da morte, nada mais do que isso. Parece que os ouve gemer de fadiga, praguejar e repetir o que fizeram até há pouco, quando o Mar os acaçapou na sepultura.
Já não pensa vingar-se do Mar, mostrando-lhe a Maria Estrela nos areais do Sul. Imaginara fazê-lo numa noite de luar, os dois nus, depois de se amarem. Sabia o sítio; se estivesse em terra, seria capaz de lá chegar com os olhos tapados. Para além do rio, aí a uma hora de marcha, no meio de penedos cheios de musgo, num requebro da costa. Conhecia a areia nos seus dedos. Uma areia quase pó, quentinha, fina e quente, como se o Sol se tivesse escondido dentro da furna e aquecesse o caminho para o Mar.
Mas nem ele nem os outros voltarão a ver a Lua,
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Não, nenhum deles a verá. O Tó desta vez também se lixa; fica aqui numa voltareta do malvadio. E o velho...
O bafo do Mar beija-o na boca e Manel Zarro estremece de frio. Já o frio os amortalhou, por mais que o velho abra os olhos para fugir aos golpes da vaga desencontrada.
Viajam todos num bote estranho, cheio de mortos. Navegam no fundo do Mar, à procura de uma cama de algas negras para dormirem o último sono.
O Mar já lhe prometeu e desta vez não falta, tem a certeza.
- Dá força ao motor, Manel!
Sente que o pai quer acordá-lo com o pé, mas acha que não vale a pena prestar atenção ao velho.O arrais agora é a morte. Leva o leme nas suas mãos para arribar com o bote a um sítio que já escolheu. Ao menos que chegue lá depressa.
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EMAGRECERAM todos naquelas nove horas, como se passassem fome de dois dias.
Vararam ao Mar ainda de noite, andam por ali aos caprichos da sorte, e não sabem como poderão regressar.
Agora todos pensam no mesmo, embora ninguém fale no que pensa.
As palavras raras que trocam entre si não exprimem o que na realidade os preocupa. O silêncio pesa e adensa-se. Não há ruga que se lhes não afunde no rosto, como se a angústia fosse uma navalha.
O vento continua a rodar para sudoeste, é capaz de se firmar nesse quadrante, desandou para lá de mansinho, querendo apanhá-los na ratoeira. Já ameaçou passar-se para noroeste, bravio e rijo, e aí colheu-os numa volta de mar, como se a vaga tivesse machados para abrir a proa e desfolhá-la.
Sim, agora todos sabem a verdade, nenhum deles se pode enganar.
Estão ali encarcerados, as amarras não se soltam, terão de romper um cercado de abismos para irem ao encontro da vida. "A menos que o vento ainda torne a mudar", pensa o Corrucho,
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Na praia deles o vento faz-se galdério; muda duas e três vezes no mesmo dia - em certos dias. Em horas amargas fica-lhes só essa esperança, um poalho de esperança. E dela que os homens se alimentam agora, atentos ao Mar e à faina. Testo à manobra do leme, o arrais vai sempre a emproar o bote às vagas mais grossas, de maneira que não o agarrem pela popa. Num mar daqueles não há lancha que se aguente com um esticão na ré. Zé Diabo leva os olhos esgotados pela atenção, tem confiança no seu ofício de navegar, mas já viu o barco prestes a virar-se por três vezes.
Sucedem-se as ondas, galgam umas atrás das outras, e o vento empurra-as em dois sentidos, querendo colhê-lo de surpresa. Tenho trinta anos de mar, nunca agarrei um malvadio tão traidor, mas não posso mostrar que estou com receio, o medo pega-se, é pior do que fogo na palha seca, e o medo que um arrais sente acaba por dar morte.
As mãos dos dois camaradas que vão na alagem engadanham-se com o frio. Sentem-nas doridas, quase mortas.O Álvaro Pequeno torna a reparar que as pontas dos seus dedos se puseram brancas; procura reanimá-los, bate com os da mão esquerda na borda do bote e o som assemelha-se a duas tábuas que se ferem.
O frio começa a entrar-lhe no sangue, pensa o Álvaro. Está a recordar-se de histórias que ouviu contar de pescadores que enregelam no mar de Gronelândia e a quem acabam por cortar os braços ou as pernas.
Apavora-se com a ideia. Olha as mãos e esfrega-as, leva-as à boca e sopra-as.
Nada diz para o companheiro que puxa as linhas, mas, quando o outro lhe passa um peixe-espada para despescar, arranca-o do anzol num sacão e dá-lhe com tal gana na borda que a cabeça do peixe quase se despega. O Tó olha-o de soslaio, este gajo está maluco, ó quê?,
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e continua a alar o aparelho nas mãos feridas e cansadas. Voltara com elas em sangue, nos dois dias em que andara aos safios, e os rasgões abriram-se outra vez, a água salgada queima-os; pensa que o ardor lhas sara, sim, o que arde cura. O pior é que lhe dói o ombro, por causa da queda que deu há bocado, e os braços derrancam-se, parecem abertos pelos ossos, enquanto uma fadiga funda lhe sobe até às costas.
O Álvaro Pequeno pisa a cabeça de um pargo que se sacode no convés, sei lá porque faço isto, o peixe não me morde, mas não sou capaz de o ver morrer aos poucos. Quem me mandou vir com estes gajos, estes Diabos Negros que andavam com fome de mar? Agora lixo-me! Lixo-me e é bem feito. Volta a esfregar as mãos, ainda bem que os anzóis agora não trazem peixe, sempre tem uma folga. Está preocupado e sussurra para si: "Se calhar, este branco começa a amarinhar-me pelo braço acima e estou perdido. Estou lixado!" E diz para o Tó:
- Ah Tó! Olha os meus dedos... Não os vês? -"Não vês os meus? Isso é frio.
- Pode-me o sangue parar.
- Dá aí um golpe de navalha; vais ver que ainda tens sangue.
- Não é isso que eu digo. No bacalhau cortam as mãos dos que ficam encarngados com o frio.
- Isto não é frio, não é nada.
- Mas é mar...
- Lá isso é. E mar valente.
O Álvaro arregaça a manga para ver se já tem o braço desmaiado como os dedos. O Tó percebe-lhe o movimento e sorri. As mãos vão queimadas com o roçar das linhas, mais o ardor da água salgada, mas a faina está prestes a acabar para ele.
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Lá para a proa, o irmão mais novo, o Corrucho e o Barrasquinho continuam a meter os anzóis nas talas de cana, enchendo as celhas.
O seu parceiro estende agora as duas mãos para o Sol, como se quisesse agarrá-lo para lhe aquecer as mãos. O Sol surge doente, vem brandinho. É Abril, em terra está tudo cheio de flores, pensa o camarada. Ali no Mar continua aquele inferno.
Pensam todos no mesmo.
Com as rabanas vestidas, de costas para a proa, por onde as vagas arremetem e galgam, varrendo tudo, os outros três não falam. Só cruzam os olhares para verem as caras uns dos outros, mas não se fixam quando apanham qualquer dos camaradas a fitá-los. Algumas ondas desfazem-se em cima deles, ficam encolhidos por instantes, depois relanceiam o olhar para além da borda.
A meia força, o motor rasga o silêncio dos homens e a voz do Mar.
Manel Diabo vai a limpá-lo com desperdício, se aquilo pára ninguém se salva; apesar de lhe ter feito uma cobertura com a sua rabana, a água espreita todas as abertas e chega à casa do motor. Conversa com a máquina e reza; só ele sabe o que vai a dizer e a orar. Voltou-lhe a ânsia de chegar a terra e de levar a Maria Estrela à praia do Sul, onde a areia parece pó e está sempre quente.
As vagas crescem ainda; vêm desvairadas correr o bote de ponta a ponta.
O Tó mal se aguenta agora nas pernas; e leva-as bem firmes, faz força para isso, mas o Mar teima em baldeá-lo, não quer vê-lo de pé, de casaco aberto, o corpo desenhado debaixo da camisola e as mãos ligeiras a alarem as últimas linhas. Agarrou naquela cadoura quatro pescadas grandes, o dobro de pargos, uns tantos peixes-espadas,
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como se o Mar quisesse desafiá-los a voltar. Lembra-se de um vento ciclónico que apanhara no banco.
Na ponta de outro anzol surge agora uma cabeça enorme, prateada, de dentes abertos. Tó Zarro sente a linha a sacudir-se nas mãos e acha-a pesada, não percebe que a pescada é peixe de pouca coragem e não pode lutar daquela maneira. Parece que uma corrente eléctrica vem do fundo da água negra, passa pela linha e pela cabeça do peixe que está pegado, subindo-lhe ainda pelas mãos e pelos braços. Os ombros parecem despegar-se do tronco; esvai-se-lhe a força. As chicotadas das ondas não deixam de lhe ferir a cara e de lhe cegar os olhos. Só as mãos vêem; deve ser o maior peixe da sua vida naquele mar. O Álvaro chega-se mais à sua beira, pálido e cheio de frio - será só frio?
Fica inquieto na borda do bote, com os joelhos apoiados para que o Mar o não leve, e vigia o rolete onde a linha passa.
Tó experimenta com a mão esquerda, trá-la acima, deita-lhe a outra, respira fundo, dobra-se mais. De repente grita:
- Dá aqui uma mão! Não vês?!...
O parceiro ataranta-se, aproxima-se ainda e ajuda-o no impulso. Arrancam do corpo novas forças e uma cabeça gigantesca de pescada levanta-se do Mar.
- Ih que peixe bonito! - grita o arrais. No espaço, por cima da cabeça dos dois pescadores e por riba do albói do motor, desenha-se numa curva o último momento de uma luta que o Tó não soubera adivinhar.
- Fujam!-avisa o Zé Diabo. Por instinto, o Barrasquinho e o Corrucho rolam para o lado da escotilha da proa, gritando para o Zé Diabinho:
- É uma tintureira!
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Sôfrega, ansiosa de matar a fome, uma tintureira de dorso azulado viera à babugem da pescada presa, começando a devorá-la pelo rabo, com as duas serras de dentes da boca rasgada por baixo. Era ela que sacudia, furiosa e carniceira, a linha que o Tó alava. Cega de todo, não dera que a presa subia; cevava o gosto da carne branca e fresca, tragando o corpo da pescada que um impulso dos dois homens trouxera para fora do Mar.
Ali vinham ambos, carrasco e vítima, a descrever sobre o convés do bote a imagem terrível de um peixe estranho e gigante com uma cabeça de prata velha, larga de palmo, de guelras vermelhas a vibrar, talvez de pavor, meio metro ainda de barriga opada e fosforescente, depois outra boca, nascida ali mesmo, donde se desenvolvia um peixorro feio com duas espécies de asas firmes e curtas, mal postas aos lados, lombos de um azul sinistro e grossalhão, em contraste com a barriga enfartada, de um cinzento quase branco; lá no extremo de tudo uma cauda agressiva, mais negra do que a lombeira, acenava com frenesi no espaço denso de chuva salina, espenujada pelo mar agressivo de vagas.
Espantavam-se os olhos dos dois peixes, mais da pescada, que é vivaça, do que da tintureira, toda ouvidos, suprindo com eles o olhar quase apagado e submerso na pelanga dura da cabeça bicuda.
Entram novas vagas por cima da proa; o próprio balanço que imprimem ao bote ajuda a água a sair.
A algazarra vai toda para a tintureira. O Mar emudece os homens.
- Foge, ah filho! - clama Zé Diabo Negro, enquanto o Tó cai de joelhos com o impulso do puxão dado à linha, atrás da qual vêm umas tantas agarradas à madre, todas vazias de isco. Confundem-se as duas rabanas verdes e a outra amarela do Zé, lá na proa; agitam-se os três para
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se levantarem, gracejando por momentos uns com os outros.
- Temos tourada! - diz o Barrasquinho, atordoado. -O bicheiro, Álvaro! Chega aí o bicheiro!
- Dá-lhe no toitiço!-recomenda o arrais.
- Mete-lhe o pau na caldeira!
A pescada cai a sangrar no outro bordo, deixando manchas vermelhas na água que acabava de entrar e corria o barco. Um grito cobre a voz soturna do Mar. E logo o Zé Diabinho se dobra sobre o pé ensanguentado, que a tintureira agarrara quando sentira a falta da presa arrastada nos dentes.
O Tó salta da proa, de bicheiro em punho, acode ao grito do irmão, vai cego. A tintureira retorce-se; agoniada, vomita pedaços do outro peixe e parece procurar nova vítima com a boca glutona. Está irada. As duas barbatanas firmes e duras tornam-se em navalhas abertas para o combate.O Barrasquinho e o Corrucho arrastam o ferido para a ré; o outro grita, lamenta-se e chora. Saltam-lhe lágrimas grossas, talvez as que conseguira reprimir quando o malvadio apertara, como aperta agora, senhor de tudo, a varrer o bote. Tremem-lhe os dedos, por entre os quais escorre o sangue vivo, e não há meio de os abrir; ficou da cor de um limão maduro, vibram-lhe os lábios grossos, gretados pela maresia e pelo vento. Receia olhar a ferida; espreita, vê mais sangue e grita mais.
Grita mais do que o Tó, que de bicheiro em punho procura a boca da tintureira para lha fender. Uma pancada do Mar faz oscilar o pescador.O bicho sacode-se, salta na barriga leitosa, parece procurar o adversário. Foge no convés -os pescadores dizem-na a fugir, mas só luta com a morte que já lhe percorre o corpo. Tó Zarro recua quando a vê voltada para ele, lembrando-se dos tubarões e das lendas que se contam de anequins e tintureiras.
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Com a algazarra do filho mais novo e a luta do outro com o bicho, Zé Diabo Negro esquece-se do malvadio, adoça o leme. Um vagalhão surge-lhe à proa, arrasta-os pelo Mar além, e larga-os depois, antes de se desfazer no espaço vazio, porque a onda quebrara, fugindo para longe. Ficam suspensos por instantes, ah arrais!, gritam todos quando se apercebem de que o Mar está lá em baixo, negro e medonho, como se abrisse uma cratera para os receber e tapar. Desamparado, o bote cai de chapuz na ravina aberta pelo vagalhão, aderna levemente, estrebucha ou sacode-se, e outra onda mais maneira cobre-os a todos com um lençol de água, raivas, gritos e vozes terríveis que não sabem donde chegam.
Rolam corpos na proa. Todos ficam cegos pelas paredes e pelo tecto de água que os envolve, Ah! Ti Zé, que estamos desgraçados!, rezam e gritam, amaldiçoam e humilham-se. Manel cai sobre o motor e agarra-o, tapa-o com o corpo, como se a rabana não bastasse. Lembra-se daquela vez que foram buscá-lo ao Mar, acima do casco virado de um barco da xávega; quase tiveram de lhe partir os dedos para o tirar de lá e trazer para terra.
O motor não deixa de trabalhar, martela, martela sempre, e ele incita-o, encosta-lhe o peito, como se o seu coração pudesse animar o coração do barco.
- Ah motorzinho valente! Leva-nos em bem, não pares...
O perigo maior passara. Olham-se os homens lá em cima, o arrais benze-se, mas nos seus olhos azuis vidrados há ódio ao Mar.
Já de pé, Tó Zarro encara a tintureira metida no canto da proa, mede-lhe bem o corpo e atira-se de bicheiro apontado para a boca do animal. Uma golfada de sangue abre-se no rasgão, manchando a madeira da escotilha.O peixe geme. Os homens dizem que o ouviram gemer.
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Geme, mas sacode-se ainda; saracoteia com o rabo no bote, dá galões, agora mais curtos, estonteado com o golpe que lhe esbeiça a cabeça; recebe outro e outro, agora já sem cálculo nem medida.
Virando o bicheiro, o Tó agarra-lhe depois, como se fosse um cajado, derrancando a cabeça da tintureira, teimosa em dar sinais de vida. Aproxima-se, pisa-lhe o rabo, atira-lhe outro golpe à cabeça.
O irmão, entretanto, deixa os dois camaradas lavarem--lhe o rasgão com água salgada. E geme, geme de mansinho, a Mari'Estrela há-de tratar-me da ferida. Se chegarmos a terra, é ela que me vai tratar... E hei-de contar-lhe tudo, e mais o que penso dela, mesmo que seja preciso fugir de casa por causa do velho.O velho quer respeito lá em casa, mas bem o percebo agora; já o devia ter percebido há mais tempo.
Com o suor a escorrer-lhe no corpo, Tó Zarro senta-se no banco da proa; agarrado ao mastro, encosta-lhe a cabeça. Também ele pensa agora em alguém que deve estar na praia.O Álvaro continua a alar o resto das linhas; fá-lo com ansiedade, espreita a água mais azulada e des-pesca um peixe-espada que chegou à borda.
- Falta a última! - diz Zé Diabo.
- Seja com Deus!-responde o Álvaro Pequeno, mais gago do que nunca.
O Barrasquinho ouve-o, mas não ri. Dá à cabeça, parece mesmo um cágado; todo o rosto se põe numa careta onde as rugas ficam mais marcadas.
O Manel continua a animar o motor, embora leve o corpo lasso pelo pânico.
Inquieto, no banco da popa, o velho estende as pernas e recomenda:
- Amarrem a tintureira, senão o mar leva-a É um bicho bonito! Deve pesar mais de cem quilos.
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A pescada andava lá por baixo, viu o aceno da isca de sardinha quase viva, atirou-se desvairada à cata de comer.
Vai comer e fica agarrada, puxa três ou quatro vezes, luta um instante, sacode ainda, sacode outra vez, e como é um peixe macio, macio e melindroso, deixa-se ficar à espera que a larguem; julga que se batalhar pouco a podem largar. Mas a linha é rija, o anzol é de aço, a poita está no fundo do Mar e a cabaça pintada de vermelho e branco parece um pássaro irrequieto.
Um pássaro que anda cá em cima ao sabor das vagas, como se saltasse, de ramo em ramo, de uma árvore negra e azul, às vezes verde e também doirada, mas sempre inquieta.
A pescada sente que a puxam para cima, vai resignada, gosta de isca fresca, já a comeu e julga que é melhor não lutar muito. Talvez assim possa escapar àquele bico que se lhe cravou na boca.
Mas veio a tintureira, atirou-se-lhe ao rabo e começou a devorá-la.
Também a MariEstrela morde quando beija. Beija, gosta de amor; morde, gosta de amor. Também qualquer anequim ou tintureira de terra a podem levar.
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A pescada gosta de isca fresca, deixou-se prender, a tintureira devorou-a.
Uma tintureira velhorra a que vinham agarrados uns peixes pequenos, os romeiros, que se acolhem à sombra do seu corpo cinzento e azul-negro, às vezes de um castanho sujo com manchas.
Tó Zarro descobre dois romeiros agarrados à barriga da tintureira, arranca-os de lá e atira-os ao Mar. São peixes demasiado pequenos para mancharem o corpo de um animal daqueles.
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EMAGRECERAM todos naquelas horas. Os rostos afilaram, vincaram-se as rugas, mesmo as duas que o Zé Diabinho, com 19 anos, já tem na testa. E a fome, ou outra coisa, dói-lhes no estômago. Os foquins ainda levam de comer, mas ninguém se lembra de os abrir. O Corrucho rói ainda outro naco de pão.
Não, mais nenhum sente fome. Aquele punho metido ali na barriga é outra coisa.
Todos sabem o que dá o Mar, mas nunca estiveram nas suas mãos com um vento tão rijo a empolar os vagalhões que os acometem sem descanso.
Como a morte, o medo devora a carne dos homens. Todos vão atormentados com esse peso terrível que os derranca, e todos estão firmes nos seus lugares. Até o Manel continua agora debruçado sobre o motor, ninguém lhe vê o rosto, esse está a pensar, novamente, que talvez consigam arribar à Praia. Não será por muito tempo. Agora, porém, repete em voz baixa, para ter a certeza de que não voltará ali: não, nunca mais meto o pé dentro disto. O velho que se lixe! Pode dar o bote ao Tó e ao Zé...
O velho continua inquieto a olhar as vagas, procurando descobrir as que trazem mais perigos, de maneira
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a correr para elas com a proa bem direita. Está agora excitado, só ele sabe a força que faz no punho do leme. Volta-se para o filho mais novo, que geme ali perto, e parece-lhe que toda a companha geme com ele. De repente, não sabe porquê, é uma ideia parva, pensa que o Mar lhe perderá o respeito se não ouvir a sua voz. E ergue-se do assento da ré para gritar. É um grito que sobressalta os camaradas.
- Ah empachador!
Do outro bote respondem-lhe, mas só lhe chegam os gestos absurdos, desvairados, como se a lancha fosse carregada de loucos. Alguns, por momentos, esquecem-se do Mar, cuja voz lhes arrebata os gritos. O da Bota é o único que não gesticula. Também vai entontecido com os golpes constantes da vaga; mas os seus homens amparam-se com os joelhos na borda do bote, clamando sempre, de mãos a espadanar.
- Ah empachador!--grita Zé Diabo Negro no seu vozeirão rouco.
O temor, antes de dar lassidão, empolga. Arranca violências do fundo dos homens, como as pás das hélices quando tocam o lodo. Parece, por instantes, que tudo fica de lodo. Também os camaradas parecem desvairados, todos gritam e gesticulam, arrepanham-se, mordem as mãos, como a significar que fariam o mesmo aos homens do Estrela do Mar se os apanhassem a jeito. Amaldiçoam os outros, uivam de ódio, e gostariam todos de se deitar no convés do bote, a fumar um cigarro, esquecidos do temporal que os açoita. Ah arrais! Conte lá aquela que se passou com a gente no Peito Cavalo do Mar...
Não foi nada daquilo, diria o Joaquim se pudesse falar. Nunca na sua vida agarrara um.malvadio tão traiçoeiro com vento do sudoeste e uma corrente forte a galgar
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do noroeste, e o meu rico barquinho metido neste inferno, se Deus não olha pela gente estamos baldeados.
Sentado na escotilha do porão do meio, onde meteram os gigos com o peixe, o Corrucho vai de cabeça entre as mãos. Não se conforma com a ideia de que não haja mais nada para beber. Se ali houvesse vinho, bebia, bebia até cair, e bêbedo um homem morre por algumas horas. Seria bom uma bebedeira que desse para chegar a terra, de maneira a acordar quando o arrais resolvesse o que deviam fazer para varar na praia. Tinha tempo depois para pensar no sarilho em que se meteram.
Talvez por isso se erga, arrebatado, a bramar de braços abertos. Grita contra o Joaquim da Bota; no fundo, clama pelos filhos.
-Desgraçado! Ah desgraçado!... Um tifo negral te salte!...
- Empachador!-brama o Tó.
- Essas linhas são da gente! Ah Cardeal! - Não te deixes enganar, ah hó!
- Vão aí três pescadas que são nossas! São nossas!...
Faltam ainda duas- celhas, cada celha duzentos e cinquenta anzóis; o Álvaro passa a despescar, é agora o parceiro, enquanto o Tó volta a alar o aparelho, esta gaita nunca mais acaba, já estou farto de puxar linhas pra uma pescaria de caca.
As últimas celhas só deram prejuízo. Em mil anzóis uns 'dez peixes, no resto toda a isca comida, fora as linhas partidas e enroladas por mor daquele malandro do Joaquim da Bota - com um mar tão grande fora mesmo meter-se em cima deles.
O outro arrais julga que fez bem. Sempre recompensa andar acompanhado num malvadio daqueles, nunca se sabe o que o Mar guarda para um bote. Vai atrasado em quatro cadouras, o Diabo Negro parece no fim da
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caçada, e é capaz de abalar sozinho. Já lhe conhece o feitio arrenegado; não ignora que só espreita uma altura para se vingar. Se pudesse segurá-lo aqui, era bom... Mas o filho é safo de mãos, tomara eu ter aqui na minha companha um homem como o Tó, capaz de pegar no leme e alegre para o Mar...
Também viu os rolins, encontrou-os à tona de água e percebe bem o que anunciam. Apetece-lhe cortar os aparelhos, também o que pescam é pouco; mas quem poderá ouvir a mulher lá em terra?
Por momentos, o da Bota pensa nos filhos e na mulher, que devem estar na areia à espera. À espera que o Mar acalme e o bote volte.
Os ventos agarraram-se aos dois botes; não os largam. Onde iremos procurar abrigo?
Dá um golpe ao leme, avança com a proa sobre as linhas do Estrela do Mar, precisa de empachar tudo ainda mais, de maneira que o outro se demore também e possam regressar juntos para terra.O que diriam na Frente do Mar, nos soalheiros das mulheres e nas tabernas se adivinhassem que pensara em cortar o aparelho e abalar com o outro bote? Há duas quinzenas que ninguém pesca mais do que ele, atira-se ao Mar quando as demais companhas se ficam, e não pode mostrar que se receia ao Diabo Negro. Quem há-de ouvir a Isabel? Sorri-se com aquela lembrança. Gosta da mulher, sim, é um braço de trabalho, não há outra mais poeta com a casa e os filhos.
Se der sinal de fraqueza, a companha afrouxa logo de seguida e começa a dizer-se em terra que não admira, porque veio da xávega e no mar alto é outra coisa.
A companha do Zé arrenega-o, amaldiçoa-o, ele ri-se para dentro, sabe bem o que pensou fazer.
Precisa de demorar o outro, enervá-lo. Com nervos o trabalho arrasta-se e talvez acabem ao mesmo tempo. Se
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não fosse a mulher, já teria pedido ao Zé Diabo que esperasse um bocadinho; falta uma coisa de nada.
Mas quem está ali é ele e os seus homens. Se naufraga, virão as mulheres dos camaradas pedir-lhe contas, lá volta a conversa da xávega, como se não fosse à borda que o Mar matasse mais. Nesse tempo trabalhava o ano inteiro em cima da sepultura. Todos se esquecem depressa; só não pode dar desgostos à mulher. A Isabel tinha bons casamentos e enjeitou os outros para casar com ele; não aguenta a ideia de lhe dar esse desgosto.
O Tó volta a alar e o Álvaro Pequeno despesca. Ambos sentem as mãos enregeladas; o parceiro não deixa de olhar as pontas dos dedos e de esfregá-las ou levá-las à boca, quando a faina consente; já deve faltar pouco.
"Sim, falta pouco, mais uma cadoura e estamos safos. O da Bota que se trame", pensa o arrais José da Pala Zarro.
- Vamos embora com isso! O bote está enjoado de mar!...
- E eu também - diz o Barrasquinho com a cabeça inquieta; parece um cágado, mas hoje ninguém se ri, nem ele tem graças para dizer. Quer experimentar uma e atira-a: - Estou enjoado como um cação, ah arrais!
- Cala a boca - responde-lhe o Corrucho. - Já viste bem o Mar?
As ondas descarregam-se sobre os dois, encolhem-se, mal se olham, está ali uma dança que ninguém sabe quem pode sair da roda.O Mar fez uma espera e agora nunca mais deixa de cair em cima da gente.
Zé Diabinho finge que o pé o incomoda, ninguém adivinha se tem muitas dores, e lá vai de cabeça tapada, a gemer, enquanto gemer eles julgam que a febre já está comigo e ninguém me manda meter talas nos anzóis. Escuso de ver o Mar...
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O outro arrais continua atento.
Percebe que os do Estrela vão na última cadoura e volta a cruzar-se por cima do pião.
Faz rumo norte para atravessar a carreira do Estrela do Mar, o motor acelera, aí vem à carga, parece que o Mar tredo o engole entre o clamor das ondas e a algazarra da outra companha, ansiosa de regressar, embora todos se interroguem quanto à chegada à praia.
- Mar te alimpe, desgraçado!
- Ah Jaquim, estás bêbedo?
- Mar te afervente!
O Gaivota chega-se, obriga o outro a fazer marcha à ré para não ser abalroado, gritam todos, mas o vento limpa os gritos e leva-os. Só agarram pedaços de palavras; percebem-nas porque os gestos dizem o resto.
- Esses gorazes são meus, ah Ti Zé!
- Teus, desgraçado? Vem cá buscá-los!
- Inda vamos todos ao fundo com este malandro!
- Ah Jaquim!
O Álvaro passa a alar o resto, enquanto o Barrasquinho e o Corrucho acomodam melhor o Zé junto ao albói do motor, depois de lhe amarrarem o pé com dois lenços.
Tó Zarro voltou para o lugar de parceiro, já está a despescar as linhas que o Álvaro lhe passa; diz para o pai:
- Os três gorazes são do homem...
O arrais faz de conta que não o ouve, vira-se para o lado de terra, como se quisesse descobrir por si o cume do monte de São Bartolomeu. Está névoa. O mar tremeluz com o sol macilento, atira punhados de escamas e de pedrarias sobre as águas encrespadas; o arrais fica cego, doem-lhe os olhos cansados do hálito salgado do Mar e das noites perdidas.
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Uma vaga alteia mais, açoutada pela proa do Gaivota, alteia e afila, ganha coloridos mais brandos, talvez violeta quando a luz a atravessa.
- O que quer este desgraçado? Ah hó! Se já se viu uma coisa assim...
- Com um mar desfeito... Parece que anda a balhar!
- Ele quer é companhia-diz o Tó num sussurro.
- Que a peça! Não tem boca?...
O Mar volta a pôr-se de travessia. Corre do sudoeste batido pelo vento, galga do noroeste tocado pela corrente.
Está um mar de andaço. E levanta-se ainda, são quase quatro horas, pode crescer mais-como estará a borda?
"Rabiosa", pensa o velho.
Os homens da companha voltam a gritar para o Gaivota.O Tó está de bicheiro em punho; procura o pião da ponta que parece perdido no meio da vaga; o outro bote volta a atravessar-se.
- Ah meu pai! Deixa-se o pião?
- Não se deixa nada! Não dou glórias a esse pescador de trampa!
As proas quase se tocam; o Joaquim grita, ergue o braço livre; o rumorejar das ondas e do vento esbandalham-lhe a voz. Ali só fala a voz do Mar, a voz irada do vento mareiro.
Uma onda desaba, desfaz-se com fragor; é uma voz coalhada de ameaças, já lá vêm outra voz, e outra, de longe, dos fundões com centos de metros onde a luz não chega; vozes roucas, áfonas, de tanto clamarem. Logo depois o assobio do vento nas palhetas das vagas abertas em espuma, nessas cordas brancas onde o sudoeste e o noroeste passam os dedos para mugir.
O pião lá está, descobrem-no agora - ali, ali, aponta o Álvaro, saturado de tanta água amarga.
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Amarga-lhe a vida. Que será dos seus meninos se o bote não chegar a terra?
O arrais ordena que abrandem a velocidade do motor; o Manel só o ouve por hábito; a pele adivinha a voz do pai, agressiva, a esfarpar o mugido das vagas. Leva as costas desenhadas pela água, debaixo da camisa de escocês de lã, uma camisola de quatro cores, que estreou na última procissão dos Passos; agora nem se lembra da vaidade com que levou a lanterna atrás do andor, no último passo, que é o mais bonito de todos.
Tirou agora o boné, julga que é por causa dele que a cabeça lhe está a doer. Quer que o Mar lhe bata, não sabe explicar porquê, mas prefere que as ondas o apanhem e sacudam. Precisa de ir bem acordado, quer um resto de alento, mas a lassidão derranca-lhe o corpo e a vontade; sente as pernas dobrarem-se, multiplicam-se-lhe no cérebro os ruídos do motor, ouve-os a toda a volta de si, vêm no rugido das ondas, ecoam-lhe na barriga, e, de repente, tem a impressão que o motor parou. Deita-lhe as mãos à carcaça, que escalda, a remos, a gente morre todos, bate-lhe com o punho; pensa que talvez seja melhor assim, acaba-se aquele tormento por uma vez. Está farto de mar.
Vale a pena acabar aqui? Não, isso não pode ser. Tenho de chegar a terra... Com este gajo nunca mais volto. Hei-de aprender a serralheiro ou a calafate, estou ainda a tempo...
A Maria Estrela, faineirinha, sempre a bailar com as ancas, anda agora lá longe. Manel Diabo mal a pressente dentro de si; só pensa no motor e na conversa que precisa de ter com o velho. Já não é a primeira vez que sai de casa. Um homem daqueles não consegue segurar os filhos à sua beira.
Mas será do velho a culpa de tudo?!... Desta vez, não... Estão aqui todos por culpa do Tó, este desgraçado!
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Volta a ouvir o matraquear do motor e limpa-o bem com o desperdício; não sabe porquê, não é isso que quer, pega no martelo e pensa que se lhe der uma pancada no distribuidor, ali mesmo, onde tem os dedos, a viagem de regresso acaba num instante. Acaba-se tudo.
Debruçado na borda, o irmão mais velho empunha o bicheiro, colhendo a ponta da madre, que começa a puxar com alma. O pião inquieto, aos tropeções na vaga, lá vem como um pássaro vermelho de cabeça branca, um pouco torcida.
Vão voltar para terra.
Chegarão a terra?, pensam todos.
Por momentos, ninguém fala nem encara o Mar, a não ser o arrais, que vai sempre alerta. O rumo anda ao sabor das vagas, são elas que impõem as manobras do leme. Leva ali sete vidas mais o seu rico bote.
O bote arremessa-se de proa cansada pelo alqueive dentro, estremece lá em baixo, numa bocarra aberta - parece que vai dormir; mas logo acorda espantado e inquieta-se. Depois regressa do abismo, voltando de proa erguida, como um bicho assustado a amarinhar pelas paredes da jaula.
Insiste o da Bota, singrando alucinado, sem escolher caminho, e põe-se-lhes à volta.O que quer este gajo?!... Parece que perdeu a tineta.
Cruzam-se as proas outra vez ainda. Agora ouve-se a balela da tripulação do Gaivota, toda a gritar na borda. Ficam roucos de gritar.
- Ah Ti Zé!... Fique com a gente, homem! Fi...que!...
- Pela sua saúde, Ti Zé!
- Faça companhia à gente!
- Ah hó!...
- Vamos os dois!
- A gente ala depressa!...
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- Ah Ti Zééé!...
Zé Diabo arreia mais o barrete sobre os olhos, vai depois à cinta e torce-a; sabe lá para quê, muda a cana de leme pela mais comprida que serve para navegar, cospe nas mãos e vira a proa em direcção de terra.
O Gaivota guina também, perseguindo-o com o motor a toda a força; parece, por vezes, que o abismo da vaga o vai sorver. Os homens do Estrela do Mar espreitam para o lado donde o outro bote surge; estão agora indecisos entre a ansiedade de chegarem a terra depressa e a lei do Mar, a lembrar-lhes que devem fazer companhia aos outros.
- Pela sua saúde, Ti Zé!
- Vamos juntos!
- Pelas chagas de Cristo, ah hó!
Tó Diabo rasteja da proa, passa junto do albói do motor e senta-se perto do pai, que finge não dar pela sua presença.
Os dois botes vão quase lado a lado, estão mais perto agora, vêem-se as caras espantadas e lívidas dos homens da companha do Joaquim da Bota. O Cardeal salienta-se na gritaria:
- Deixe-me passar para aí, arrais! Eu sou daí!... Rumo a terra, a galgar as ondas, Zé Diabo Negro prossegue a viagem.
- Eles estão a pedir, meu pai!
- Já ouviste o Jaquim?
- Vão lá mais homens... E esses pedem...
Gritam ao ouvido um do outro. O Tó virou-se para o lado que ouve melhor e o velho aperta-o de encontro à borda, embora não seja capaz de dizer que não precisa ali de companheiro.
Os homens do Gaivota esbracejam.
- Ah Ti Zéééé!...
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- Vão lá mais homens, pai.
- E depois? Não quiseram guerra? Não vieram pedi-la?...
- Eu é que os desato?!...
- Faça companhia à gente! - clamam do outro bote. - O arrais sou eu... Ou não sou? Se eu não quisesse
vir, tinhas ficado na areia...
- Ia aos safios...
- Espere aí, Ti Zé! - apela uma voz desesperada.
- Ias com um mar desfeito?
- E depois? - responde-lhe o filho.
- Não faça isso à gente! - gritam os outros.
- Queres morrer no Mar? - pergunta o velho sem se voltar para o Gaivota.
- Não senhor... Nunca quis morrer. E agora ainda menos; tenho mulher à espera...
- A Deolinda outra vez?
Zé Diabo faz aquela pergunta, nem sabe porquê, nunca mais falara ao filho na mulher. Num rompante, Tó Zarro, o António dos Safios, puxa o braço do velho.
- Que quer dizer com isso, ah meu pai?!...
O arrais não responde. Arrepanha a cara com a mão e grita para o motor:
- Dá-lhe com força! Com força!...
A galgar a vaga, proa à vaga, o bote deles deixa o outro na esteira branca da hélice. A balela da companha do Gaivota começa a esvair-se.
- Vamos lá com Deus! -diz o velho em voz baixa. E benze-se.
Mas pensa para si: "Estamos lixados!"
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Só quando mandou arrancar com mais força a voz do Joaquim da Bota rasgou a voz irada do Mar.
- Faça-me companhia, Ti Zé!... Lembre-se dos meus filhos!...
- Os teus estão em terra - respondeu o Diabo Negro entre dentes, sem desviar os olhos para o outro bote, que viera ainda passar-lhe à frente para que o visse bem.
Os teus estão em terra e os meus vão aqui. Se morremos todos, acaba-se a família...
O To ainda pensa arrancar o leme das mãos do pai. "Este gajo é mesmo torcido de todo... Nunca vi..."
O motor prossegue a meia força, por causa da vaga. Zé Diabo percebe na cara dos homens da companha que todos se sentem mais aliviados com a ideia de abalar para terra. A proa já está virada para lá, o vento parece outro, embora sejo o mesmo, e o Barrasquinho põe-se a cantarolar. Talvez se lembre de que o arrais só o traz no bote para animar o pessoal; até agora, naquela viagem, mal foi capaz de fazê-los rir.
Canta depois qualquer coisa que irrita o Álvaro Pequeno. Isso percebe-se nos gestos desabridos que este faz para o Comicho, estendido no convés com a rabana bem
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cingida. O resto pertence ao arrais e ao bote, .seria melhor que fosse o Tó ao leme, esse tem sorte, andou dois dias e duas noites no Mar, lembra o Barrasquinho.
O Tó pensa nessa viagem, que alarmou toda a Praia, mas só se recorda do que se passou na noite do regresso. Não, não quero mais mulheres, em casa nunca mais, das minhas portas para dentro nunca mais.
Ela disse-lhe que tinha um filho na barriga, disse-lhe ontem, sei lá se o filho é meu ou de quem é. Sim, ela não tinha conhecido outro homem, isso podia dizer; mas depois? Depois, quando andava no Mar...
Sente que está a ser injusto, a Deolinda pô-lo desconfiado, talvez fique assim até ao resto da vida.
O pai encara com ele, percebe que o Tó não vai satisfeito. Três rapazes que nem três flores, graças a Deus nenhum tem defeito que se veja, o pior é o resto; estou bem servido com eles. Daqui por uns anos já não posso vir ao Mar e só o Zé, o mais novo, só o Zé se parece comigo, e esse também só é o meu retrato na cara; lá no resto saiu loiça fraca, parte-se depressa. Vejam-no deitado com a rabana por cima, só por causa da tintureira que se lhe agarrou ao pé. Estou servido...
Zé Diabinho lembra-se de que na Praia se conta a história de uma tintureira que chegou a terra e vomitou o pé de um homem. A coincidência do seu ferimento perturba-o, finge-se ainda mais doente, e talvez o esteja. Agora sabe-lhe bem ir deitado, não precisa de encarar a vaga, mas receia que lhe sobrevenha a febre. Os velhos dizem que os rasgões das tintureiras e dos anequins trazem febre e infecções.
Lá o vão levar para o hospital. Se calhar, chamam os bombeiros com a maca, será um alarido na Nazaré, o povo todo a falar dele e a espreitar para dentro do carro.
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A ideia agrada-lhe. Nunca andou de automóvel, terá de contar a história muitas vezes e a Mari'Estrela há-de tratá-lo. A alcunha que o velho pôs à rapariga é engraçada. Só agora o rapaz acha que lhe cai mesmo ao pintar; bem mexida e arrenegada, como o Mar deve estar lá na areia. Olha, rabiosa! Chega-te aqui... Naquela noite do gueste disseste-me que nem todo o peixe é sardinha... Mas sabes uma coisa? Toda a mulher pode ser rainha e tu mais do que nenhuma. Vamos fugir os dois?!... Fugimos pra Peniche ou pra onde tu quiseres...
O Manel vai de costas voltadas para o pai, não há quem lhe veja a cabeça nem as mãos. O Diabo Negro comove-se com o carinho do filho pelo motor, até lhe pôs a rabana por cima, ah' migos! Há-de contar essa passagem na Praia... Se lá chegarem... O pior é que o Manel vai ali que nem pode com a espuma do Mar, quanto mais tomar conta do bote... Os olhos escuros são da mãe. Mas as mãos...
Lá as mãos são de Zarro, têm fisga, onde agarram fica tudo bem pegado, mas a força de dentro o que é feito dela? Fica-lhe o Tó pra mandar no bote...
O Tó não lhe fala agora, parece longe dali. Pensam ambos no mesmo, mas evitam que os olhares se encontrem.
Não, aquilo não é coisa que se faça. Se estivesse no Mar aquele desgraçado com quem a Deolinda se enrolara primeiro, nem a esse deixaria sozinho. Há coisas de terra que no Mar se quebram. Não, a lei do Mar é outra.
Nada diz ao pai, porque já sabe que o velho vai a pensar no mesmo; se lhe diz alguma coisa, o Joaquim da Bota fica desamparado, o velho é torto que nem um pinheiro das areias. Também eles irão sem companhia para terra, a viagem vai ser longa - e não se sabe como acabará.
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O Mar pôs-se desencontrado, duas ondulações rijas com direcções diferentes; a proa vai a bailar entre uma e outra, sempre a escolherem-se os vagalhões maiores para os pôr de caras, porque se um deles agarra o bote de esquina, ih Jesus, que estamos baldeados!
- Ih Jesus, que estamos baldeados!-gritam todos. Um vagalhão cresce a estibordo, parece que o vento
está a enchê-lo de demónios; incha, alteia sempre, é uma montanha azul que acomete com ira para depois se abrir em fendas, desfazendo-se em torvelinhos e a desabar sobre o bote como um ciclone. Pega-lhes pela proa, o barco aderna e vai levado depois num corropio de águas doidas, como se deslizasse num voo raso por riba da ondulação. O costado range quando o bote afocinha no alqueive do Mar. A água chia dentro do barco à procura de saída; os homens disponíveis pegam nos vertedouros e clamam para a ré, onde Zé Diabo Negro se dobra todo para que o Mar o não arraste. Por instantes, como se ficassem cansadas daquele esforço maior para os derreter, as ondas amansam, numa maresia mais calma, para o mar cavado que aguentam há horas.
- Vês o Gaivota? - pergunta o arrais para o Tó, mal se refaz do susto.
- Não senhor...
- Nunca vi homem tão teimoso!...
- É como vossemecê...
- Pensei que cortava o aparelho e vinha atrás da gente...
- O pai fazia isso?
- Eu sou o Zé Diabo...
- Fazia? Diga lá, pai?!...
- Já disse que não sou pescador da borda...
O filho percebe que o velho hesita. Começa a olhar para trás, mede as ondas que lhes barram o caminho para
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terra, volta-se para o céu. Não percebe que sinais o pai procura nas nuvens enroladas e brancas.
O bote parece um pandeiro onde o Mar se recreia.
Agarrados ao mastro, o Álvaro e o Barrasquinho vão de olhos cerrados; puseram-se brancos que nem dois mortos, devem rezar ou falam para dentro. Vê-lhes o mover apressado dos lábios, querem dizer depressa qualquer coisa que os arrebata.
- E tu cortavas? - pergunta o velho para o filho. - Eu?!... Cortar o aparelho?... Era melhor caparem-me...
O velho ri agora com a ideia do rapaz; bem respondido, sim senhor.
Respira fundo, um sorriso brando fica-lhe agarrado ao rosto afogueado e duro.
Este filho é a cara do Carlos, do meu. irmão que morreu no Mar e com quem me peguei. Quando ele morreu a gente não se falava. Mas o Tó é o que de dentro mais se parece comigo. Ainda podemos ser dois bons companheiros, tenho fé que ele não se vai importar com aquilo da MariEstrela.
- Ele vem lá, Tó? - pergunta.
- Não senhor. A gente é que não o devia deixar... - Queres ensinar-me?
- Não, pai. Vossemecê já não aprende...
Este é que se parece comigo. As parecenças devem ser da banda de dentro.
Pensa naquilo pela primeira vez, mas acha que a ideia é bonita. E repete-a com gozo.
As parecenças devem ser de dentro. Os homens conhecem-se por dentro. Só aí se lhes vê a madeira...
Zé Diabo espreita as ondas de bombordo e de estibordo, espera que lhe dêem uma saída e puxa o leme para o peito com toda a gana. A proa começa a cruzar, traça
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uma curva na galeira das vagas e vira-se com franqueza para o mar donde tinha vindo.
- Eh pai! - grita o Tó alvoroçado.
Encaram um com o outro e riem-se.O filho, que voltara para a proa, acena-lhe o braço.
- Dá-lhe força! - recomenda o arrais para o Manel, que vai ainda de guarda ao motor.
O Estrela do Mar regressa a desfolhar as ondas, em demanda da Cana da Banda do Mar, onde o bote do Joaquim da Bôta ficou sozinho.
Aquele gajo é rijo de boca, assim é que se conhecem os homens do mar. Digam agora ao pé de mim que é arrais da xávega. Têm de me ouvir...
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O Manel espreita por cima do albói, vira-se para terra, não vê ainda o monte de São Brás, e fica atarantado. Interroga o irmão com o olhar, o Tó responde-lhe num sorriso.
- Ah pai! Onde vai a gente?!...
- Prò Panamá!
- Lá está vossemecê... Onde vamos?
- Vamos fazer companhia ao Jaquim...
- Com um mar destes?
- Por isso mesmo... Queres mais algumas contas?
- Vossemecê quer morrer aqui?
- A morte anda por toda a banda... Os donos das traineiras metem-se na cama e Ela vai lá ter...
O Mar torna-se cada vez mais tredo e clamoroso.
Na névoa que começara a cair a meio da tarde o sol esparranha-se. Zé Diabo espreita o relógio. Quase cinco horas. Vão chegar perto da noite. Para onde vão?!
Depois baixa o olhar para a bússola, os pingos da água tapam-lhe o vidro e limpa-os. Há-de combinar com o da Bôta. A batalha do peixe acabou; agora serão dois bons companheiros até que a terra se aviste.
-'A'h Tó! Pega aqui no leme!
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Nunca fez aquilo a ninguém, a não ser por momentos quando vai urinar à borda. Mas agora põe-se a fazer um cigarro, de costas viradas para a vaga, e enrola-o com os dedos calmos. Os olhos tão azuis parecem brancos. Gastaram-se com as veredas do Mar e as noites. E sorriem para a ré, onde o Tó aconchega o casaco amarelo e a saia verde.
- Vá com força! - grita para o casinhoto do motor. O velho volta-se para a tintureira - ih, que bicho! --,
relanceia o olhar para o filho mais novo, que o espreita pela abertura da rabana e do sueste, e encaminha-se para a proa.
Lá está o Gaivota.
Acena um braço, depois os dois. A outra companha responde-lhe; o vento arrasta a balela alegre que faz a outra companha quando o vê aproximar.
O coração fica-lhe mais sossegado. A lei do Mar é outra.
O Joaquim da Bôta agarra num avental amarelo e acena-lhe com frenesi. Quer lá saber que a vaga o cuspa todo!
- Já temos companhia! - diz para os seus homens. Mas não consegue que a voz lhe cresça; a voz embaraça--se-lhe na garganta comovida. Parece um soluço.
Só o Mar ruge nos búzios do vento.
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APERTA bem a rabana amarela, como se pudesse colá-la ao corpo e secar a água, o suor, o frio, a raiva, o medo, a ansiedade, que sente molharem-no até ao tutano dos ossos; puxa o barrete para as orelhas, talvez para não ouvir tanto a voz do Mar, e vai agarrar-se ao bico da proa, estirando o corpo sobre o porão onde guardam as cabaças. Sim, sente-se encharcado até ao tutano dos ossos; e não só de água, carago,. que água salgada anda ele a vida inteira a bebê-la sem a pedir. Água salgada dos olhos é que bebeu pouca, embora naquele momento lhe apeteça deixá-la correr. A voz do Mar atemoriza-o.
Que voz vem no som das ondas que não é a voz do Mar?
Mina-o uma tristeza estranha, confusa, cheia de ponta.-que se cravam dentro de si, e logo se escapam para regressar, sem que ele as adivinhe. As lembranças varrem-lhe a cabeça, uma após outra, e outra, como a ondulação que lhe assalta o bote, não cessando de jogá-lo de abismo para abismo.
Já pensouque vão. todos na mão da morte. Será capaz de evitar que a mão se feche?
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A dúvida perfura-lhe as recordações, monta-as, dei-xa-as vazias. Volta a recordar a conversa com a Mari'Tocha - aquela cabra deu-lhe mau olhado! -, aperta o bico da proa como se ali tivesse o gasganete da velha, mas cerra os olhos por momentos, e os seios dela crescem-lhe na concha das mãos doridas. Rijos e pontudos, de um branco rosado - os da rapariga devem ser morenos, raios partam as mulheres, que um homem não passa sem elas! Ergue mais o tronco para que o rosto lhe fique encostado à borda, de maneira que o Mar o veja bem e lhe bata com força. Julga-se assim mais sossegado, quase esquecido do que está para vir ainda.
As ondas acordam-lhe o corpo, mas adormecem-lhe a imaginação. Puxa de um cigarro, consegue acendê-lo; um golpe de mar desfá-lo e Zé Diabo mete o tabaco na boca para esquecer o gosto de água salgada, que o agonia. Um gosto amargo ao princípio e que o tempo adocica; pega noutro cigarro, quebra-o em dois e volta a trincar os fios de tabaco, mastigando-os devagar.
Mas não esquece a dúvida. Mete-se-lhe sempre no mesmo sítio, nas pernas, no jogo dos joelhos, e depois vomita para baixo e para cima a fraqueza que o mina. Ali se lhe juntam todos os medos vividos no Mar durante a vida inteira. Conhece-os. Tenta compreender se lhe cabe alguma culpa das três vezes que o seu bote andou prestes a enfiar-se pelas veredas do fundo do Mar. Tem a certeza de que na segunda lhe faltou rapidez na decisão.
Estará velho para arrais?...
A onda levantou-se maneira, mas atravessada, noutras alturas ele teria visto logo que iria crescer num repente, ainda pensou nisso, pensou e ficou na mesma, tolhido, uma coisa morta, sem a faísca pronta de outros tempos, e a onda pegou-lhe, levou-o quase à roleta pelo vagadio fora, fez do bote um bombo de porrada e foi enfiá-lo de
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chapuz na goela aberta de um vale quebrado entre duas serras de água maluca que os envolveu num turbilhão de vozes. Pensou que o malvadio levara algum homem, esteve prestes a largar o leme para desaparecer também; quando o rasgão de mar passou, como se fugisse a caminho de terra, percebeu que a mão lhe tremia.
Estará velho para arrais?...
Talvez a velhice principie nas tinetas do sangue para gente mais nova. Cospe o tabaco, como se cuspisse a dúvida que o desbanca da condição de homem violento, cospe com raiva, mete os dedos à boca para lhe tirar os fios que se agarraram às gengivas e à língua.
Repensa o momento em que a mão hesitou. Pormenor por pormenor, tenta compreender o que lhe poderá amodorrar a vivacidade de outros tempos. A mesma tristeza, agora mais funda ainda, começa a subir até aos olhos, queima-os. Ásperas, as ondas esbofeteiam-no.
O Mar torna-se mais cinzento, borrascoso e cinzento. Mais perto dele agora, atormenta-lhe as pernas, no jogo dos joelhos, onde o medo se acoita. Que lhe diz a voz do Mar?...
Fecha os olhos, deixa-se embalar na recordação daquela noite em que encontrou a afilhada, cheio de sede, a beber água fresca, de mansinho, quero lá saber do que o povo diz, a mocidade dum homem está dentro dele e eu sinto-me novo, ainda peço meças a um qualquer. Diz aquilo em voz sumida; as palavras morrem, não ficam a vibrar dentro de si por mais tempo do que leva a ciciá-las. A dúvida cobre-as.
Lá atrás, na ré, o Tó deve ir atento.
O bote não estranha na mão dele, sim, é dos três rapazes o que mais se parece comigo; as parecenças devem rir de dentro, é uma grande verdade.O resto da companha caiu na modorra do receio e do espanto.
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Olha para os homens. Ninguém fala. Seria bom que pudesse arranjar qualquer tarefa para se entreterem; assim teriam menos vagar para temer o malvadio. Mas os anzóis já foram entalados nas canas, os gigos de peixe e as cadouras estão metidos no porão, e agora precisam de esperar que o da Bôta acabe para regressarem juntos.
- Eh Jaquim! Jaquim! Acaba lá com isso!-grita
para se ouvir.
Voltam-se para ele o Corrucho e o Álvaro; os outros nem movem a cabeça. Conhece-os a todos. E a mim? Conheço-me a mim?... Espreita para o lado do motor e não vê o Manel. "O mais novo vai abarrotado de cagufa", pensa com desgosto.
O Mar parece que não gostou de vê-lo dar companhia ao outro e acomete mais irado, o ladrão! Galga em serras de água, galopa, muge. Acomoda-se por instantes, mas logo recomeça no mesmo frenesi.
Sacode os barcos, imobiliza-os depois, surra-os, de novo, como se preparasse o último golpe para os abater. Precisamos todos de voltar a terra; eu preciso. Ganha um alento súbito.
No Gaivota o trabalho faz-se com maior alegria. Devem faltar ainda as duas últimas celhas, lá os vê a acenar. As leis dali são outras, embora continuem pela vida fora a tentar vencer-se na quantidade de peixe que levam à lota. A gente da Praia sabe escolher o campeão do alto e a consagração agrada a todos os arrais. A coisa há-de decidir-se entre os dois, mas agora ali ficaram a fazer companhia ao da Bôta. Noutra vez qualquer caberá ao Gaivota esperar por ele.
Faz pala com a mão sobre os olhos, precisa de ver o Mar; dali pode percebê-lo melhor. Precisará no regresso de lhe conhecer as armadilhas, de entender o ritmo das ondas para escolher os caminhos por onde deve passar
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com menos perigo. Terá de ziguezaguear pelo capelo das vagas mais traidoras, nunca se sabe que força e que remoinhos trazem dentro celas, as malditas! Apanhei muito mar, quase nasci aqui dentro, mas nunca agarrei um malvadio tão áspero. Senti-o logo na brisa que correu o bote quando saí do Lago. Não devia ter vindo, o Tó é que me atirou. Mas agora estamos cá dentro, meti-me na boca do Mar e só eu posso sair daqui. Agora é sair ou ficar cá.
Esta ideia amarga-lhe, percorre-lhe a cara tisnada em contracções violentas. Dói-lhe nas mãos fatigadas pela cana do leme. E volta a sentir atracção pela galopada das ondas; parece-lhe que poderia voar sobre elas, voar não sabe bem para onde, pois a terra fica longe e ninguém lá conseguirá chegar sozinho. Recorda-se da rapariga; chorou poucas vezes em toda a sua vida, mas agora fazia-lhe bem chorar; talvez descarregasse aquele peso que lhe atormenta o peito. Só o Mar é que o vê.
Mas vai o Mar ver-lhe as lágrimas?...
Não, não pode ser.O Mar será o último a saber que gostaria de chorar agora. O Tó entende-se bem com o leme, é um grande pescador; há-de ser um arrais de fazer inveja a quantos se queiram medir com ele. Consola ter um filho assim. Estava parvo quando embirrava com o Tó por causa do nome que ganhara no bacalhau e naquela ida aos safios, sozinho, dois dias e duas noites não é brincadeira nenhuma, tomara eu nunca me ver metido numa viagem dessas.
Descobre um vagalhão lá longe, a formar-se e a crescer, vai gritar para o filho, mas percebe que a proa corre para a leva de mar, de maneira a apanhá-la bem de frente Baixa um pouco a cabeça, começa uma oração, ouve depois a vaga rugir, galgar-lhe por cima e desfazer-se com estrondo no meio do convés. Percebe um alarido, volta-se e dá com o Corrucho esparranhado de encontro ao albói
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do motor com a verga caída sobre ele.O Barrasquinho agarra-o, o outro segura a cara com as mãos e vê o sangue escorrer-lhe por entre os dedos que tremem, que arrepanham a carne e depois se firmam, inquietos, como se a concha das mãos lhe guardasse o rosto.
- Mostra cá!-pede o Barrasquinho com a cabeça inquieta.
Zé Diabo rasteja para junto dos dois.
- Não é nada de cuidado, Corrucho. É só um traço ao pé do olho.
- A gente não devia ter vindo - sussurra o pescador desanimado.
- Mas agora estamos cá dentro e temos de sair.
- Com este mar? - pergunta o Barrasquinho.
- Conheces outro ?
Puxa o Corrucho para a borda, lava-lhe a ferida com água salgada e o sangue vai estancando; é só uma fenda a gotejar. Pega na navalha, corta a fralda da camisa preta em duas tiras, junta-as com um nó e depois envolve com a ligadura a cabeça do pescador.
- Contigo já são dois - cicia o Barrasquinho.
O Álvaro vai a esfregar as mãos por causa do frio; olha de soslaio para o Zé Diabinho, enrolado na rabana. Bem o viu espreitar quando o Corrucho gritou, mas agora escondeu outra vez a cabeça, fez bem, pudesse eu fazer o mesmo, escusava de ver o Mar; estou farto de vê-lo...
- Diz ao Tó para dar a agurdente que está debaixo do assento da ré... - recomenda o arrais.
- É pra mim, Ti Zé? - pergunta o Corrucho ansioso. - É prà gente todos. Ou só tu é que precisas? - responde a querer animá-los com a graça.
O Álvaro volta de gatas; a cara de fuinha fareja o ar impregnado de salsugem e de receio, parece que fez mal a alguém e podem castigá-lo por isso. Os olhos piscam-lhe
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e falam, já que não quer falar por causa da gaguez. Entrega a garrafa ao arrais, fica-se a olhá-lo com hostilidade. Que tenhas uma lepra se eu morrer e tu te salvares, malandro!
Percebendo-lhe a expressão, o Diabo Negro faz de conta que não o entende e volta a entregar-lhe a garrafa.
- Bebe tu primeiro!
- O Corrucho - responde o gago com esforço.
- Quem manda sou eu. Bebe tu!
O pescador dá uma golada funda e fica com uma careta.
- O Manel já bebeu?
- Já.
- E o Tó?
- Agora o pescador responde num aceno. Está a arrepanhar a boca com a mão, como se a aguardente lha tivesse queimado.
O Corrucho agarra na garrafa, empina-a e começa a beber sem conta. Zé Diabo vai distraído com qualquer coisa, não está ali, talvez se sinta no areal, lá longe; sabe bem, às vezes, nestas viagens, pensar nos que ficaram em terra.
- Ah Corrucho!- grita o Barrasquinho.
O arrais desperta e arranca a garrafa das mãos do camarada.
- Queres ficar dentro do bote?
- Dê-me mais uma pinga, arrais. Pla sua saúde!
- Ah hó!
- E logo quando for preciso saltares?
- Dê-me mais uma pinga...
A mão do Corrucho vem sorrateira, mas Zé Diabo percebe-lhe o movimento e afasta-se. Chama o Álvaro Pequeno; manda-o levar a aguardente para a ré.
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- A gente não sai daqui, arrais! - insiste o Barrasquinho.
- Se te pões a desafiar a morte, derreto-te a cabeça. Avança para o outro de punho erguido, sacode-o com
a outra mão e chega-lhe bem a cara para que o camarada lhe veja os olhos. O Barrasquinho baixa os seus.
- Se armas em bruxa, nunca mais pões um pé aqui dentro! Quero lá saber depois dos teus!
- E agora quer? Então pra que trouxe a gente?... Volta-se Zé Diabo para o Mar, que ainda agora os
cuspiu a todos. Sei lá o que me apetece fazer a este gajo! Se fosse em terra, até o mordia...
- Lá em terra a gente fala. - Diz aquilo numa ameaça. Depois arrepende-se do tom e emenda: - Não estás bom de cabeça. Falamos depois...
O Barrasquinho passa um avental por cima das costas de ambos, puxando o Corrucho para si. Outra vaga galgara o barco, correndo-o da proa à ré. Zé Diabinho assusta-se. O Álvaro pôs-se à sua beira, de costas voltadas para o arrais; está entretido com os movimentos do leme e com a cara atenta do António dos Safios, aquilo é que é conhecer mar.
O motorista vem espreitar, vê o irmão a manobrar o bote e pergunta-lhe:
- O pai?
- Está a descansar... Foi à proa...
- Mal empregado...
Um golpe de mar cobriu-os.
Tó Zarro puxa o sueste para os olhos, sussurra uma praga para o irmão e grita-lhe:
- Não quero conversas aqui! Íamos sendo baldeados por tua culpa!
O bote parece ainda tonto com aquela leva, rompe a meia força, mas hesita.
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Zé Diabo não repara na marcha do Estrela do Mar. O barco emproa agora outro vagalhão, galgando-o com frenesi, como se acordasse da tonteira que o outro golpe lhe provocara.
As duas lanchas parecem desconjuntar-se. Rangem e gingam, chicoteadas pelas vagas que crescem mais e sacolejam sempre, agora, que o vento se agarrou da banda do noroeste. As proas hesitam entre a onda que surge, e têm de defrontar, e a que passou & se esborralha lá atrás, deixando um coalho branco que se enovela no leme a querer quebrá-lo.
Mais vagalhões escondem o céu de vez em quando.
Galgam as proas, varrendo os convés, deixam os homens atordoados, escapam-se pelos embornais e pelas boeiras.
A espuma raivosa morde os flancos dos botes.
E o vento geme mais e ameaça.
Mete o focinho na grimpa das ondas, atira chapadas grossas que vão acometer os homens. As rabanas de oleado já não bastam.
E um inferno de água que cerca os botes. Uma fronteira estreita, cada vez mais apertada, para além da qual se abrem sempre novos cárceres para os prender.
Ninguém fala.
Só a voz do Mar ruge e ameaça.
Agarrado à proa, Zé Diabo Negro abre o rosto às pancadas e ao cuspir da água. Precisa de escolher o caminho para o regresso. Ele tem de regressar.O Gaivota já vai em busca do pião, esteve prestes a ser afundado com duas vagas seguidas que o prenderam entre elas, e agora devem escolher o caminho.
Não, agora não pensa em deixar-se ir na vaga, o Mar só larga os homens em terra depois de os matar. Não sabe
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bem o que diz, mas fala. A companha não o ouve. O leme está bem entregue nas mãos do Tó.
Mas pensa: "Ainda não é desta vez que o Mar me agarra. Posso mais do que ele, sim. O Mar tem força e manha, mas a mim não me faltam as duas coisas."
Sabe agora porque quer chegar... Já conhece o Mar e este também sabe quem ele é... Viu-lhe a cara muitas vezes. O Mar gosta de fazer medo aos homens, brinca quando quer, parece brincar com o medo deles. Mas ainda não será desta vez que o agarra. Há-de morrer de velho... Sim, de velho. Ainda há-de dar mais dois filhos para o Mar lhes ver a cara. E esses hão-de ser parecidos consigo por fora e por dentro. Não, agora não tem medo do Mar. Vou eu prò leme, sim. Veremos quem pode mais...
Deixa-se descair da proa, indo de rojo até à borda do barco.
Desafiei o Mar e agora só se não puder é que não me agarra. Mas eu sei que preciso de chegar e isso tem muita força.
Passa junto do filho mais novo, tira-lhe a rabana da cara e percebe que o rapaz fecha os olhos, a fingir-se doente.
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O da Bôta ordenou o corte das duas últimas cadouras. -Deixem lá o pião... Deixem lá isso!...
Agora, de repente, todos sentem pressa de chegar a terra. Parece que só então percebem onde vieram me-ter-se.
- O homem está à nossa espera... Vamos lá com isso, depressa!
- Depressa!
- Vamos depressa!...
O Joaquim pensa: "É um favor que lhe devo para o resto da vida... Se a gente chegar a terra em bem..."
Quer imaginar qualquer coisa de importante que há-de fazer pelo outro, mas o Mar não lhe dá sossego.
A vaga não alteia mais, mas aos olhos das duas companhas cresce como nunca. São massas de água cinzenta e negra que os cercam de uma muralha onde se deixaram encarcerar.
E rugem.
Que vozes são estas que traz o Mar?
Empurrados pelo vento, em sacudidelas bruscas, os vagalhões separam-se e juntam-se de novo, adoçam e enraivecem-se, quebram em espuma e em lâminas mais altas,
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como se fossem de vidro, para logo se reunirem em pilões que matraqueiam as tábuas dos dois botes.
Só mar e céu.
E eles. Eles que são desespero e Mar. - Ah Ti Zé! Ti Zééé...
As rabanas reluzem com o brilho do oleado e das palhetas de sal que a água deixa.
-O Jaquim está a falar prà gente!-grita o Corrucho.
- Já ouvi - responde o arrais, sentado agora ao pé do filho, que continua ao leme. - Chega-te a ele, Tó. Vai devagarinho...
A proa começa a esboçar uma curva ligeira para a banda do Gaivota.
- Está aí um mar excomungado - diz o velho.
- Um leão!
Esboça uma curva, mas volta a pôr-se de frente para outra carreira de ondas que já caminha para eles. O outro bote aproxima-se também.
- Está um mar de andaço - sussurra o Tó.
- Vamos a ver se não traz padre e cruzes - responde Zé Diabo Negro.
- Talvez não, pai.
Tem fé que assim seja. Precisa de pensar nisso para não se atormentar. O Manel continua dobrado à sua frente; só vê a rabana deitada sobre ele e o motor, como se um e outro fossem o mesmo corpo metido naquela caixa de madeira, donde vem o som batido dos cilindros.
- Ah Ti Zé! Pra onde vamos?!...
- Ah hó!...
Para onde vamos!... Sei lá para onde vamos? Com um mar destes, quem sabe para onde o levam?
Ficam agora perto um do outro; vêem-se bem todos os homens e saúdam-se. Os acenos começam frenéticos e
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depois ficam lentos, despegados e lentos, como se o temporal lhes lembrasse que nenhum deles é a terra onde querem chegar. Depressa.
- Na borda está rabiosa, ah Jaquim!
- Com este vento está, com certeza, Ti Zé.
As vozes uivam, lamentosas. O vento afunila-as e parte-as.
Ficam à espera um do outro, que um deles decida o que devem fazer. Esquecem-se agora das suas bravatas.
- É melhor ir a Peniche - cicia o Tó ao pai.
- A Peniche? Achas que se chega lá?
- O nosso bote é bom...
- Não é isso que estou a dizer, rapaz. Se a gente chega...
- E à Praia? - interroga o Tó.
Encaram-se os dois, viram-se para o Mar e buscam sinais no céu. Parece que farejam, inquietos, a salsugem que o vento traz. O velho põe-se de pé, agarrado ao pau polóino, e passa o olhar fugidio pela companha. Os homens que vão à proa, unidos num cacho, fitam-no com ansiedade e pedem-lhe o que lhes não pode dar agora. Mas tem de lhes dar. É o arrais.
O Joaquim da Bôta está também à sua espera, a lembrar-lhe com silêncio que ele sabe mais do Mar e que deve dizer a voz do rumo. Mas o vento não lhe diz boa coisa, lá isso não.
Sacudidos, a chegarem-se cada vez mais um ao outro, os botes singram lado a lado. O Cardeal pensa que gostaria de voltar para junto dos camaradas, ainda se aproxima da borda, mas receia saltar agora. Acaba por chamar os outros, um por um, como se precisasse de lhes repetir o nome para se animar. Os outros respondem-lhe com um mover de braços.
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Aturdido, a passar a mão pela testa, Zé Diabo Negro acaba por decidir. Não podem ficar ali, precisam de fazer qualquer corsa. Agora, que acabaram a faina, têm de regressar, e depressa.
- Vamos pra Peniche!...
Fala tão baixo, talvez só para si, que ninguém o ouve. Continua indeciso.
- Aqui não podemos ficar, Ti Zé! - lembra-lhe o Cardeal do outro bote.
- Vamos pra Peniche, já disse! Desgraçados!
E grita com o braço esquerdo no ar; grita agora com o ódio agarrado às palavras.
- Onde têm vocês os ouvidos?!... Eu falo bem! Vamos pra Peniche! Vamos pra Peniche, ah hó...
Nas duas companhas repetem-lhe o eco da ordem, que vai de boca em boca, e volta a recordar-lhes agora que talvez não cheguem a terra.
Desvairado, o velho insiste, como se avisasse cada onda do que vai fazer, olhando à volta e ficando mais tempo a buscar no horizonte a posição de terra, da sua terra, onde não podem arribar. Desgraçada terra a deles, que nem braços tem para acolher os filhos! Nem um que-bra-mar para os que andam na lavoira das ondas.
O filho mais velho move o leme para fazer rumo sudoeste, quarta de sul, embora a vaga de travessia seja mais perigosa por aí. Mas em Peniche não haverá dificuldades para sair. Vara-se melhor em Peniche, sempre encontram um porto.
- A Peniche não, arrais! - suplica o Barrasquinho, lembrando-se de que a Alzira está na praia com a filha, e ele quer vê-las depressa, quer agarrá-las depressa para se sentir vivo.
- Vamos lá com Deus! - clama o velho, levando a mão ao barrete.
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- A Peniche, não, arrais! -insiste o pescador.
- Cala-te aí - pede o Álvaro, arruinado de todo desespero do camarada. - Cala-te aí, o arrais sabe o que faz.
- Se soubesse, não metia a gente aqui dentro... Num mar assim...
- Mas não fales, Barrasquinho, não fales ao menos...
- Cala-te aí - pede o Álvaro, arruinado de todo. - A gente não precisa que tu fales.
O gago diz aquela frase toda num arranco, sem hesitar numa sílaba. Esboça um sorriso na cara pálida e escaveirada, mas quer dizer mais qualquer coisa e receia gaguejar.
- Ninguém manda em mim... Não são vossemecês que mandam em mim - prossegue o Barrasquinho, a quem se soltou a angústia contida naquelas horas.
Pelos gestos e pelos olhares, Zé Diabo Negro percebe que os três homens vão a falar dele e ferve-lhe o sangue judio. Começa ainda a caminhar para a proa, mas repara no filho mais novo enrolado na rabana e de cabeça tapada. Espreita-o, vê que vai amodorrado; põe-lhe a mão na testa, o rapaz nem abre os olhos. Lá febre não tem... E o medo...
E quem não tem medo, ah' migos? Com um mar destes todos se temem; anda-se para aqui à rola, a vaga é que manda.
Ao menos vão acompanhados, sempre dá ânimo. Aju-dam-se. Têm de ser uns para os outros.
Corta-lhes o caminho a vaga encrespada que o vento atravessa, galgando a borda, para correr o bote nos caprichos do balanceado, e se desfaz depois em espumas frágeis - nem essas deixam que os homens se esqueçam onde estão metidos.
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É um sobressalto permanente, uma ânsia que os morde sem tréguas.
O Mar não dá uma sota, não amaina. Anda cada vez mais empolado e marulhoso.
Os dois homens do leme espreitam-no, endireitam as proas para as ondas mais cavadas; e lá vão, parece que não saem agora do mesmo sítio, como se a vaga não quisesse que chegassem a Peniche.
"Se o Mar chiasse, era bom sinal. Mas só bate", pensa o Álvaro. Ainda é capaz de abrir o bote se alguma junta não estiver boa. Essa ideia transtorna-o quando vê água ao canto da proa, mesmo ao pé do porão onde meteram as celhas, e vai certificar-se do que pensa, enquanto o Cor-rucho e o Barrasquinho continuam a discutir. Já se ameaçam.
Zé Diabo Negro volta para o seu lugar de arrais, põe a mão no ombro do Tó e pede-lhe com os olhos que fique perto.
O escape do motor continua nas descargas; parece um martelo a bater. Manel Zarro leva os ouvidos cheios daquele som monótono e irritante, mas prefere-o à voz do Mar, que mal chega ao sítio onde vai. Vestiu a rabana, leva a cabeça quase encostada ao motor e esforça-se por não pensar no que se passa lá fora. A água arrefece-lhe no corpo; um frio danado vara-lhe as carnes, pondo-o de queixo a tremer. Finca os maxilares, agatinha o rosto com as mãos, depois agarra no desperdício, esfregando as faces com raiva.
Nem o calor da máquina o aquece.
O velho mandou-o afrouxar a marcha. A viagem vai demorar mais tempo.O barco dos mortos, sim, vão todos mortos, nunca mais chega ao fundo do Mar. Ouviu dizer que iam para Peniche, mas sabe que nenhum dos botes arribará tão longe.
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Ah! sim, era bom que chegassem vivos a terra...
Volta a pensar no Tó. Aquele ódio súbito pelo irmão é que ainda o anima.
Volta-se para trás: vê o Tó e o pai a acamaradarem no leme. Estão ali os dois com quem precisava de fazer contas se chegassem a terra. A ideia da vingança pertur-ba-o. Os pés do irmão chegam perto dele, apetece-lhe tocá--los, ainda os toca, e pensa que era fácil agora agarrá-los bem, baldeando com o Tó para fora do bote. Esse nunca mais pisaria a areia da praia. Acabava-se um valente...
- Eh Manel! - diz-lhe o irmão num sorriso.
- Queres alguma coisa? - responde num arremesso bravio.
- Que foi, Manel?O que é que tens?...
- Já tive.
- O quê?!...
O Mar levanta-se mais. Cresce a muralha que lhes barra o caminho.
- Já te esqueceste do que me fizeste?!... Não fales para mim. Não preciso das tuas falas...
- Estás maluco, rapaz? - grita o velho sem tirar os olhos de uma vaga que ainda vem longe, mas já os ameaça.
- Obriga-me a falar com ele? Era só o que faltava, ah hó!... Não lhe chega matar a gente todos?
- Contigo falo eu lá em terra - ameaça o velho, tentando atingi-lo com o pé.- Desgraçado!
- Deixe-o lá - intervém o Tó para amainar a disputa. - Ele tem razões de mim...
- O que é que lhe fizeste?
A vaga cresce mais, amarinha por detrás das outras, e Manel ouve-lhe a voz rancorosa. Vira-se para ela, assusta-se e esconde a cabeça dentro do albói do motor.
O velho não lhe perdoa a maneira como lhe falou. Estou servido com este gajo e com o Zé
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Mais aberta, a vaga avança agora sozinha.
- Dá força ao motor! - clama o arrais, percebendo que talvez não consiga ir ao seu encontro para dobrar o bote sobre ela.
Se rebentar em cima da gente, vamos ao fundo. Mede-lhe o peso. É uma montanha de água assanhada e negra.
- Dá força ao motor, Manel! A gente morre todos!... Sem perder um instante, Tó Zarro salta para junto
do irmão, afasta-o com violência e acelera a marcha do bote, que dá um salto direito à vaga, já a querer dobrar e a desfazer-se.O velho põe-se de pé, como se pudesse obrigá-la a tomar-lhe respeito; só então repara que os dois filhos estão a lutar de joelhos. Más nem que se matem o vagalhão lhe permite que se distraia agora. Cresce ainda, a voz soturna berra no ar e adensa-se, como a serra de ágtia donde sai alucinada.
Medem-se" o bote e a vaga. E atiram-se desvairados ao encontro um do outro para se esmagarem.
- Baixem-se todos e agarrem-se bem! - grita o velho. É um momento.
A proa amarinha, ainda não estão salvos, mas parece ter unhas para ultrapassar o vagalhão, que já ruge debaixo do bote e o acomete. A massa de água leva-os mais alto, como se quisesse pregá-los no céu; os gritos dos homens que vão lá em cima, agarrados ao mastro, confundem-se com a voz irada da vaga. Zé Diabinho tem um pressentimento, mostra a cara e atira-se para junto do pai, a quem se agarra.
O velho respira fundo a olhar o vagalhão, que prossegue na carreira, até se quebrar em muitas ondas desencontradas.
Ao lado deles o Gaivota desaparece aos seus olhos noutra volta de mar.
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Se a gente chegar a terra, eu seja cego se não te meter uma navalha nas tripas - ameaça o Manel, enquanto o Tó volta para a ré.
- Faz lá o teu trabalho como deve ser...
- Isso mesmo! -" intervém o velho. - Em terra quem te fala sou eu - acrescenta depois, ao recordar-se do que o filho lhe dissera há pedaço. - Corto-te a língua.
- Corte-a agora, se quiser. Senão já não vem a tempo... - E depois de fitar bem o pai: - Não vem a tempo porque morremos todos aqui... A culpa é sua... Sua e desse cabrão que está aí ao pé de si.
O velho levanta-se, mas o filho mais velho não segura o leme.
- Pega aí, Tó!
- Deixe-o lá... Repare no Mar...
Zé Diabo Negro antes queria que lhe cuspissem na cara, que um rapazola lhe cuspisse na cara, do que ouvir palavras daquelas a um filho seu. Acena-lhe a cabeça numa ameaça e depois encara o Mar.
Esgotado, Manel Zarro volta a enfiar a cabeça na casa do motor.
Já não aguenta aquilo por muito tempo. Se o chateiam, se lhe dizem mais alguma, pega no martelo que
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tem ali debaixo dos olhos e parte o dínamo. Acaba-se tudo de uma vez. Sem motor é uma vez um bote novo e uma companha. Que se lixe! Não aguenta por muito tempo aquele balanceado infernal, que lhe lembra as duas vezes em que o Mar lhe prometeu. E o Mar, quando promete, não falta, é um dito antigo; os antigos sabiam no que falavam. Se pudesse gritar, ou morder as mãos, ou fazer qualquer coisa danada...
Tem pressa de morrer ou de chegar, e o Mar levanta-se mais. Nunca viu um mar assim, a atalhar o caminho aos botes, a sacudi-los e a querer virá-los. De vez em quando um vagalhão de estarrecer, e outro, e outro; e a água dentro, como se o malvadio viesse espreitar se ainda estavam vivos.
Ele é um vivo-morto, como o Barrasquinho, que vai a pensar na filhita, uma migalha de gente, rolicinha e aloirada. Sai à mãe dele, à Maria do Mar, azevieira e palradora, que ninguém no Bairro da Galeana lhe comia as papas na cabeça.O Barrasquinho mal disse uma graçola em toda a viagem, sabe que continua na companha para entreter o pessoal, o arrais gosta dele porque faz rir, mas não há sol que o aqueça agora. Vão pra Peniche!... Que gritos não irão já naquela Praia? E a mulher, um pássaro, sempre um pássaro a cantar, está com as outras atirada para a areia, cansada de pedir ao Céu e de ameaçar o Mar, aquele Mar matador que os leva de qualquer maneira. A noite já não demora muito.
Onde estarão quando for noite?
Também leva pressa de varar em terra, ao menos a Peniche, que a filha ainda não percebe o que quer dizer aquele bramir das ondas na areia. Amua a cabeça, as vagas cobrem-no de vez em quando, querem arrancá-los dali, ele faz finca-pé como os camaradas, mas já não se importa que a água o molhe.
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O Mar matou-lhes a coragem. Vão há mais de doze horas naquilo, sempre ameaçados, a voz do Mar entrou--lhes no coração e deixou lá dentro uma vaga de amargura que os abate.
O arrais, até o arrais, o Diabo Negro, leva pressa de chegar.
Mas agora tem companhia, o rumo deve ser apalpado, com um malvadio daqueles não pode atirar-se às cegas, e todo ele são olhos. E vai devagar porque tem pressa, mais de cinquenta anos, e há coisas que não esperam. Ah! quando era novo, esperara, sabia esperar!
E lembra-se - sabe-se lá porquê! --dos seus amores com a Otília.
A Otília não era bonita, não, nada disso.
Os olhos verdoengos na cara de cigana eram uma perdição; e depois o peito, ih Jesus Senhor!, toda a rapaziada do seu tempo se pusera naquela teima por causa do peito da Otília. Era de trapos, diziam uns; trapo aquilo, ah hó!, protestavam outros. José da Pala Zarro ficara com os primeiros. Que sabia ele de mulheres? Mas lá na sua ideia aquilo não podia ser verdadeiro com 15 anos; eram duas colmeias cheiinhas de mais para a idade dela.
Nesse tempo podia esperar, ainda não fizera os 18, e aí se pusera a andar-lhe de volta com a paciência de um pescador de cana. Falara-lhe umas vezes na Frente do Mar, palavras de nada, ainda não tinha música para mulher da Praia. Espreitava-a quando ela vinha da Foz de lavar as esteiras, ou do Rio de Longe, carregada de roupa, e acompanhava-a de perto, jogava-lhe uma graça por outra, e logo a Otília se punha nas tamanquinhas, a espantá-lo: não precisava de cão atrás dela, não tinha nada para roubar. Era uma cigana!
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Um dia, de repente, fizera-se atrevido: lá que roubar tinha ela, e que fortuna! E a danada, zás, atira-lhe uma que o atordoou: "Se deres com ela, sou capaz de ta dar..."
Viera a festa da Senhora da Vitória, soube que ela ia até lá com um rancho de raparigas, e aí vai o Zé pelo areal fora da Praia do Norte, na cola dela. Na noite de sábado ninguém dormiu, vá de música para um lado, bai-larico para o outro, puxa daqui, aperta dacolá, espanta-se com um foguete o grupo onde os dois estavam, foge tudo, cada um que se salve, e quando olha para o lado só a tinha a ela. Sozinhos.
Nem falas. Falar era perder tempo naquela altura. Mais tarde riam por causa disso: "Ah Zé! A gente parecia que tinha caído com fome dentro duma pensão."
E foi sempre assim até cada um fazer a sua vida. Uma fome danada um do outro, tanta e tanta que agarraram uma fraqueza. Uma noite, tinha o bote do pai ficado nas bóias para não perderem tempo, estava um mar de senhoras, e acordou; lembrou-se que ela devia estar na areia com a mãe, que era cabazeira, e aí viera a nadar até terra. Coisas de rapaz!
O corpo inquieto sente um calorzinho bom. Parece que uma réstia de sol lhe entrou nas veias e anda lá por dentro a brincar. Uma coisa de nada, mas sabe-lhe bem.
Anda ali e tem tanto ainda que fazer em terra...
A vaga continua a engrossar. Está um mar de andaço que levanta muralhas densas sobre as proas dos botes e a ansiedade deles. Pelo da Bota é que o Diabo Negro percebe bem o inferno em que vai o seu. Não há agora uma trégua. As ondas galgam sempre, espinoteiam, varrem o convés por inteiro. Cobrem os barcos e destapam-nos.
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Hei-de fazer sentir ao Manel que ainda tenho mão nele. Sou homem para o levar à Foz, uma noite, e obrigá-lo a lembrar-se que nunca virei a cara a ninguém. Nem ao Mar... E que se tenho cinquenta anos...
A lembrança dói-lhe. Já não lhe aquece tanto as veias o sol que lá entrara. Percebe que o caso da afilhada não vai ser fácil, mas sem falar com ela nada pode saber.
Empertiga-se no banco da ré e a mão não lhe treme; esquece-se também da fraqueza das pernas.
Leva ali os filhos, os seus camaradas e também aquele gosto de viver mais uns anos.
A Maria Estrela deve estar moída lá em terra por causa da gente...
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MOÍDA, com o coração migadinho pela angústia, a ver aquele mar de levadio a pinchar cada vez mais, e sem ninguém lá poder entrar para os trazer a terra.
Não chora; pensa que eles não ficarão lá, não, não pode ser, sou ainda uma rapariga, a vida não é assim, com certeza. Só não consegue ficar quieta, não é capaz de se sentar como as outras. A ansiedade arrebata-a e morde-lhe o corpo.
As famílias dos homens das duas companhas estão na areia desde a hora do almoço, quando a vaga começou a crescer mais e a marulhar.
Junta-se gente, vem mulherio assustado de todos os becos; a praia ficou sem barcos, nem na areia conseguem manter-se, quanto mais naquele temporal onde se foram meter.
Chegarão até ali?!
Os grupos adensam-se naquela interrogação espantada de perfurar o horizonte, donde só as ondas respondem no seu bramir cavo e ameaçador.
Os vagalhões galgam de longe, o rolo avantaja-se em volume e som.
Embuçam-se os homens nos gabões negros e cor de barro, como se já estivessem de luto. Eles sabem o que
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o Mar diz. Espreitam-no com o olhar turvo por outras lembranças ruins, lembranças que as velhas, caídas para ali, já não podem acender nas mãos postas por hábito. As casadas envolvem as mulheres dos pescadores atirados para a tormenta, querem animá-las, dizer qualquer coisa que lhes valha na aflição; os lábios tremem-lhes de dor - coitadinhos dos que andam por lá! -, e os rostos voltam-se um pouco para esconderem as lágrimas que se escapam. Choram umas pelas outras, já sabem todas para que têm os filhos e os homens guardados.
No mastro dos sinais da Capitania abre-se, com o vento, a bandeira amarela. Nunca o símbolo da cor foi tão apropriado como naquele momento.
Há mulheres que não conseguem chorar. Estão em grupos para ali, envolvidas na sua angústia; parecem resignadas, como se o carpir das que lá não têm homens lhes manchasse o sofrimento.
De vez em quando, porém, uma mulher levanta-se de rompão e aí vai ela a correr para o Mar, de braços abertos. Põe-se a fitá-lo, esgazeada, na ponta dos pés, braços erguidos ou a segurar o peito, imprecando contra os que os levaram, que nem no Inferno achem sepultura! E depois cai, esgotada, a sussurrar, de cabeça encostada à areia, com a lembrança das últimas falas do seu homem.
"Ele ia com o coração negrinho, estava a adivinhar... Ele é o único sol da minha casa. Mas esses dois garganeiros deram ordem de leva... Que havia ele de fazer?... Desgraçado de quem precisa..."
Logo se lhe juntam outras, espojadas na areia, em convulsões de choro, sem um grito, ou num alarido que arrepela o coração e a pele de quem as escuta. E o coro da tragédia, o mesmo de sempre, como um ritual vindo do fundo dos tempos, desde que o homem se atirou à aventura do Mar.
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Da Capitania, com a Isabel da Bôta à frente, sai um grupo que foi saber notícias. Sim, já perguntaram para Peniche se lá chegaram, falaram ao telefone, foi mesmo o capitão, ele e a senhora são muito bons prà gente; mas de Peniche disseram que não, não havia lá nenhum bote da Nazaré, e as companhas de penicheiros não os viram.
A Isabel fica no centro do grupo, quer chorar e dizer o que sente; ela, sempre tão faineira, já não consegue articular palavra. Os homens embuçados nos gabões só espreitam agora às esquinas. "Está rabiosa..Com um mar daqueles só em Peniche. E se de Peniche dizem que não chegaram, sabem lá!..." O que pensam não é bom.
Mari'Zarro sentou-se na areia, de rosto empregueado, todo cosidinho de rugas fundas. Só olha para o Mar. Não responde a ninguém, nem chora, nem grita. Tem o resto das suas mãos, que foram bonitas, enganchadas sobre o peito exausto pelas dores.
Está para ali um trapo, já nada tem para dizer, tantas vezes ficou naquele areal maldito à espera dos seus. O avô e o pai, os irmãos e o marido, depois os filhos e os netos. O seu Carlos morrera ali mesmo, pois, ali onde as ondas se dobram mais. Ali mesmo à frente dos seus olhos, parecia que bastava estender-lhe a mão para o agarrar, e uma onda maldita, onde andaria agora?, levou-o consigo. Três dias sem o filho aparecer e ela a calcorrear o areal por aí fora, de dia e de noite, a chamar por ele, a pedir ao mar que lho desse. Ah Mar matador!
O Mar cospe quase sempre os homens. Cospe-os quando lá morrem, ou cospe-os quando estão velhos e já não prestam para a lida. Ah Mar!
Que pode a Mari'Zarro dizer à Senhora da Nazaré e ao Mar que os dois não lhe tenham escutado a vida inteira?
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E agora os três netos, que nem três flores, e o seu rico filho, o seu Zé, tão gabado com o bote novo. Só quem o visse a bailar naquela noite, parecia maluco de contente, e agora, em poucas horas, um malvadio daqueles a atirá-los a todos, sabia lá para onde?
Ah Mar!... Mar que tens mais lágrimas do que água!...
Chegam-se-lhe outras velhas, já valeu a muitas, são umas para as outras naquelas horas, mas gostaria de ficar só com a sua dor. Juntaram-se agora todas as dores dentro do seu coração velho, nem sei como isto aguenta tanto peso de dor.
A Mari'Estrela abalou, foi a correr pelo areal e já não a vê há pedaço. Anda moidinha de sofrer, nem parece a mesma, sempre zavaneira e pronta para brincar. Vão ficar as duas sem ninguém?!... A rapariga não aguentava a ânsia de ver as vagas, só azul, azul, queria olhar por esse Mar dentro, talvez os pudesse lá ir buscar com os olhos.
A areia na praia queimava-lhe os pés, precisava de fazer qualquer coisa; e deitara a correr, ia maluca, diziam os que a viam passar. Sim, ia maluca e não queria conselhos, não precisava de conselhos.
Dentro dela vivia uma fé indefinida, uma voz que lhe prometia e se fizera mais forte do que a do Mar.
Metera pela ladeira, era mesmo um calvário, mas valia o sacrifício ir assim tão depressa. À medida que subia, o oceano mostrava-se mais amplo; por duas vezes lhe pareceu ver um ponto negro, lá longe, deviam ser eles, pusera-se a apontar, ali, ali, mar mais ninguém os via. Só então reparou que no azul fosco das águas se cruzavam longas esteiras em curva, mais claras, como se no Mar houvesse caminhos.
Será por ali que ele vem?
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Chegou lá acima cansada, quase desfeita, mas ficavam os dois mais perto. O bote iria aparecer daquele lado. Um ponto negro no meio da amplidão que fazia medo, embora de tão alto o Mar parecesse mais brando.
Ninguém diz o que é lá em baixo.
Deixaram-na ir para a ponta do Picaró, quando a conheceram, ah! aqui vê-se o Mar até bem longe. Olhou para a esquerda, seguiu, por momentos, a curva sinuosa das montanhas, gostava sempre de se embeber naquele alarido de formas e de cores, sabia tudo de cor, e achava sempre qualquer coisa de novo para lhe aconchegar o coração.
Havemos de vir aqui os dois; quero lá saber que os outros falem!
A zoeira chega-lhe lá de baixo, do fundo do abismo, e desperta-a.
Procura outra vez por toda aquela mancha aberta até ao horizonte, quer perfurá-la, ir mais longe do que ninguém. Ela há-de descobri-los. Tem dentro de si uma força que já se move, está a senti-la, e essa vai ajudá-la a procurar o bote do padrinho.
O Mar é tão grande!...
Como é que os homens lá vão?!...
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AS proas mal rompem, sacudidas pelo mar avagalhoado. Agora não as deixam descansar, porque o noroeste agarrou-se bem e não há vento mais traidor para navegar naquelas paragens. A água ganha um cinzento negro, chumbo velho, ainda realçado com a penugem branca das vagas desencontradas, talvez entontecidas também com a ventaneira que as açoita e as empurra para cima dos botes.
Agarra-se a indecisão e o temor a todos os olhares. O velho e o Tó fitam-se de vez em quando, são os únicos que se encaram; só assim falam um para o outro. O velho quer lembrar-lhe, agora diz que só lá no banco da Griolanda é que se vê mar, e o filho acena-lhe a cabeça, sim, aquilo está feio, não agarrei um bailarico destes quando fui aos safios, senão bem ficava lá. Ia sozinho, é verdade, mas às vezes é melhor andar só.
Doem as mãos ao Zé Diabo, não só das muitas horas do leme, lá isso não, embora uma calma profunda o deixe ver bem a rota que vai a traçar com a ajuda da bússola. Já conhece aquela calma que acaba sempre por lhe entrar no corpo quando percebe que não há saída e precisa de encarar a morte de frente, espreitando uma só abertura para lhe sair dos braços.
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O bote singra devagar.
Rasga a vaga, a vaga atinge-o, golpe contra golpe, todo o tabuado range e oscila; nunca um barco teve um noivado daqueles. Cercado pelas ondas, bate-lhe o temporal de noroeste e de sudoeste; não encontra uma vereda mais branca por onde navegue com esperança. A companha vai esmagada, impotente naquela passividade a que a obriga o barco a motor, que nada mais exige agora do que resignação. Se fossem a remos, talvez sentissem menos o caminho para a morte, pensa o arrais.
Só ele e o Manel fazem qualquer coisa contra o Mar e o vento. O Manel não tira a cabeça de dentro do albói, ninguém lha vê, cobre-se com a rabana; talvez que nem lhe chegue aos ouvidos a vozearia do temporal, tão vivo deve ser dentro dele o matraquear do motor.
De vez em quando parece que navegam sozinhos. O Gaivota perde-se no refego alto da ondulação, afocinha no cavado mais baixo, ainda bem que nenhum deles é bote de poço, porque senão já a maresia os teria alagado e metido no fundo com o peso da água.
A água torna-se cada vez mais inquieta e curiosa.
Espreita dentro dos botes a todo o momento, lá se escapa novamente para fora, de novo galga e de novo ruge, impetuosa e persistente, como se quisesse experimentar o limite da resistência dos homens. O velho sabe por si que se dentro deles crescer ainda mais o pavor de não regressarem, se perceberem que estão derrotados, o medo deles chegará depressa aos seus olhos e às suas mãos, e o Estrela do Mar acabará desfeito em pouco tempo. O medo dos outros correrá também para junto do seu, virá despejar-se-lhe dentro do sangue; então, o primeiro golpe mais rijo apanhará o barco atravessado para o vencer, fechando-os nas mãos da morte.
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Agora fica com a impressão de que o medo da companha vem de rastos, lá da proa, é a água que o traz, se lhe tocar os pés o resto do corpo vai ser contaminado. Encolhe as pernas, num movimento instintivo, quase se sente capaz de gritar. Pensa que está a endoidecer com aquelas ideias, mas a sugestão é superior ao raciocínio.
Amontoados a estibordo, defendidos pelo casinhoto do motor, o Barrasquinho e o Comicho parecem um corpo com duas cabeças inquietas, a farejar o hálito salgado das águas. Do outro lado,'enrolado na rabana, vai o filho mais novo; e a seus pés, resignado, mais pequeno ainda do que na realidade, o Álvaro tem as mãos presas entre as pernas, os ombros descaídos e o olhar sem fulgor, preocupado com os dedos frios.
Só o Tó e o motor vão a animá-lo ali dentro.
Lá fora, por entre os cerros das ondas, acompanha-o o outro bote, mais descaído para a banda de terra, atordoado como o dele, em busca do porto de Peniche. Também no Gaivota só vê o corpo do Jaquim da Bota ao leme. Acenam o braço um para o outro. As rixas do Mar apagam-se no Mar. E só ali.
O filho mais velho aproxima-se; senta-se depois a seus pés, sem dizer uma palavra. Terá o Tó percebido que vou com receio? Ou será que também ele vai com medo?
O Mar envolve-os.
É um polvo negro, de muitos brados, que já os agarrou e agora as aperta. Barra-lhes o rumo, deixa-os singrar e depois repele-os; levanta-os e arrasa-os, entra sem cessar pelo bico da proa e pela borda, vasculha o convés, acomete o cavername, abalando outra vez numa negaça que finge dar esperança para melhor a matar. Cada vaga torna-se num braço, num braço irado que se solta do corpo tenebroso do polvo para depois se desfazer e alastrar, refervendo na ré do bote, à mistura com a espuma da hélice.
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Mais adiante, logo volta a crescer, a ameaçar a praia, onde as mulheres se rojam na areia.
Um vagalhão negro que se desfaz em azul dobra-se todo sobre a proa; é um lençol de traições a cobri-los. Zé Diabo ouve ainda gritos, vozes alucinadas, corpos que chocam contra a madeira do barco, sente-se arrastado, agora lá vou eu; larga o punho do leme e julga-se baldeado, tal a força da muralha que arrasara tudo num instante, tapando-lhe os olhos e a razão. Mas há duas mãos que o agarram e puxam; volta ao banco da ré, não sabe ainda bem o que faz, parece atarantado. Saboreia aquela ajuda, percebe agora porque veio o Tó sentar-se a seus pés; e deita-lhe a mão ao ombro para lho apertar.
Sente que o medo fica agora mais longe. Entre os dois está o filho; e o medo terá de passar pelo Tó antes que lhe toque nos pés.
- Ponha-os a despejar a água, pai. - Para quê?
- Serve pra eles... Pensam menos.
- Mas vêem o Mar.
- Não faz mal. Assim é pior ...
O Manel enjoa, deita restos de comer e de bílis; depois cerra os olhos, fica esvaído, vão-lhe vertigens à cabeça e encosta-a à madeira do albói. Está lívido, derranca-se-lhe o corpo.O Tó e que tem a culpa disto.... Foi ele quem desafiou o velho e o Jaquim...
Por instantes, o bote fica cego, rompe às apalpadelas, não pode parar - parar será o fim. As vagas galgam como bandos de abutres à espera que a lancha apodreça na viagem. Que pare por um momento e elas possam desfazê-la, levando-a para os abismos.
Lá à proa, embora amarrada, a tintureira brilha com a água que lhe cai em cima; parece viva. Move-se, às vezes, com o impulso das ondas, o corpo azulado e cinzento
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torna-se maior aos olhos do Diabo Negro; de repente, julga que a tintureira dá mau agoiro à companha. Quem sabe o que será aquele bicho que mordeu o seu Zé?!...
A superstição perturba-o; agora também fica transtornado, ainda bem que os homens estão voltados para dentro deles, não' me vêem a cara.
- Eh Barrasquinho! Eh vocês todos! - grita o Tó.
- Que estás tu a dar ordens?
- Peguem aí nos bartidoures e ajudem a deitar a
água fora! Vá, depressa! Vá lá com gana! Temos que ir todos pra terra!...
- Vamos embora! - acrescenta Zé Diabo, incapaz de contrariar as ordens do filho.
- Assim chegamos mais depressa! Vamos lá!...
De cabeça amarrada, o Corrucho é o primeiro a separar-se do Barrasquinho e a procurar o vertedouro.
- A gente não se aguenta em pé, ah Tó!
- Trabalhem de joelhos...
Uma maresia cobre o barco. Eles ouvem o rugido debaixo dos pés, um rugido medonho que dá vontade de se deixarem morrer para não o ouvirem outra vez. Não se sentem firmes, tudo é água. Uma voz grita, esfanicada:
- Estamos baldeados, arrais!
Julgam-se enrolados no vagalhão, agora chegou o fim; depois levantam a vista outra vez, aparece-lhes o céu e voltam a sentir o barco debaixo dos pés. Aturdido, o arrais olha ansioso para a companha, não lhe tenha o Mar arrastado algum homem.
Num repente, sem que ninguém os incite agora, os três camaradas começam a servir-se dos vertedouros de madeira e a despejar a água que entrara naquele golpe de mar. Ficam de joelhos, trabalham com frenesi e parecem cegos, porque se ouvem os golpes da madeira que se
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choca, ora a raspar no convés com desespero, ora em golpes dos vertedouros de encontro à borda.
São porém sinais de vida.
Zé Diabo Negro acena a cabeça para o filho, sim, tiveste uma boa ideia, parar é morrer. Sorriem um para o outro, mas o Tó repara que a expressão do velho se torna mais ansiosa e pergunta-lhe em voz baixa:
- O que foi agora?
- O Mar está a levantar-se ainda mais.
- E o Gaivota?
- Parece uma folha caída na água...
- Emproe o bote à vaga.
O velho quer reagir àquela ordem do filho, o rapaz está a falar de mais, mas não sabe porquê, sente-se incapaz de reagir como das outras vezes. A voz do filho domina-o.
- A gente não arriba a Peniche! O Mar não deixa...
- O bote é valente, pai! Nunca vi outro assim...
- Mas o Mar está a crescer ainda.
- A gente pode mais do que julga... Calam-se ambos.
O Corrucho e o Álvaro ganharam ânimo, incitam-se ambos, como se o regresso dependesse só do esforço dos dois, enquanto o Barrasquinho voltou a sentar-se; está esgotado, respira com fragor e em arquejos rápidos, de que vale tanto trabalho, se a gente não chega a terra? Quem vai tomar conta da minha menina?... Ah arrais! Se tivesse força... Se eu tivesse força, abria a minha navalha e cravava-o todo... Punha-o que nem um crivo...
-"Eh pessoal! A gente não pode chegar a Peniche! - clama o velho num grito que nem ele percebe depois de o ter soltado. A voz prende-se-lhe. - A gente não chega lá!
O Tó sacode-lhe as pernas com frenesi.
- Eu não gosto de os enganar...
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- Já viemos até aqui, pai! - E pensa: "Lá no banco estará um mar assim?"
- Quem conhece o Mar sou eu...
- A gente todos sabemos o que é Mar... - respinga o Tó.
Agora aparecem os rostos do Zé Diabinho e do Manel, ansiosos como os dos outros; estão todos voltados para eles, à espera do que adivinham na voz de ambos. O velho percebe o que os homens pensam, ainda continua a ser o arrais, não dá essa glória a mais ninguém, enquanto vier ao Mar.
O polvo negro volta a apertá-los mais. Por ali já não conseguem romper, são muralhas e abismos, o noroeste espinoteia, vai chocar-se com o vento sudoeste, embora mais brando, mas acossa também as vagas desencontradas que querem esmagá-los.
O velho quer ficar atento ao Mar; o receio dos camaradas entrou-lhe no sangue, que vou fazer agora?!... Sente ganas de arrancar o leme e desfazer aqueles rostos que o interrogam e a que não pode responder. Finge que os não vê, que nada tem com tal gente, mas são seis vidas à sua guarda, fora a dele, mas essa agora já não conta, que posso eu fazer aqui?!... Volta-lhe a ideia de os atordoar à pancada, para que não percebam o que vai suceder a todos. Doem-lhe as mãos no punho do leme, convulsiona-se-lhe o corpo no assento da ré, tem de fazer qualquer coisa, mas o quê?!... Digam o que querem que faça!...
Mais inquieto, com os dedos a agatanharem a boca e o queixo, o Barrasquinho acena a cabeça, olha para o céu, quer chorar, talvez, não, chorar não pode, e as vagas continuam mais violentas a espancá-lo, de vez em quando, pelas costas.
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- Arrais! Ah arrais!-grita o Barrasquinho desabrido, sem ter mão em si. - Ao menos leve a gente prà nossa terra!... Deixe a gente ir morrer à nossa terra!...
- Vamos morrer todos lá! - repete o Corrucho.
- Ah pai!- diz o filho mais novo. E volta a cobrir
a cabeça com a rabana.
Zé Diabo Negro hesita.
- Faça o que eles pedem - diz-lhe o Tó. - Vamos lá embora!
Alguns dos homens começam a rezar.
O velho não limpa agora uma chapada de água que lhe cobre o rosto de camarinhas; também dos olhos lhe cai água, e assim tudo se confunde.
Olha sempre para o Mar, agora levanta mais a cabeça, não, não consegue chegar a Peniche.
Muda levemente o rumo ao leme, acena o braço para o bote do Joaquim da Bôta, vê que o companheiro desaparece, grita também, e volta a achá-lo no meio da vaga.
Insiste no sinal.
Estão cercados. Quase nasceu no Mar e nunca o encontrou assim em toda a sua vida. Leva ali seis vidas à sua guarda. A dele, sabe lá agora para que serve a dele!... A "Rabiosa" deve estar na praia à espera, mas acha melhor não pensar nisso agora. Depois verá o que pode fazer; tem os filhos, o nome dos Zarros, mandou fazer um bote novo e sabe lá...
Repara na tintureira e volta-lhe a superstição. Não a devia ter deixado dentro do bote quando ela lhe feriu o rapazinho mais novo.
Insiste no sinal, vai virando de rumo, aos poucos, de maneira que o Mar o não agarre de lado. Tó Diabo cinge o pau polóino com um braço, tira o sueste da cabeça e acena-o para os outros.
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Do Gaivota percebem-nos e respondem ao sinal. E a proa volta-se também para o norte; dessa banda está a terra deles, a terra sem porto.
- E melhor assim, pai - diz-lhe o Tó em voz baixa.
O velho encolhe os ombros.
- Vamos prà vida ou prà morte - acrescenta ao gesto de desânimo.
- A morte está certa. Vamos ver se ainda agarramos a vida...
- Pode ser...
- Há-de ser, pai. A gente tem sorte com o Mar...
- Até um dia...
- Mas ainda não vai desta...
Açoitadas pelos verdugos da maresia, a cachoeira das ondas cobre-os e destapa-os.
A mesma voz agreste ruge e ameaça. É uma voz sinistra que cala a voz dos homens e lhes ecoa nas cabeças dobradas pelo terror.
O vento sudoeste ajuda-os agora a ir mais depressa. Talvez consigam chegar antes que a noite caia, pode ser que mesmo assim consigam escolher um raso para varar em terra.
Reacende-se-lhes a gana de navegar. O bote também parece entender o rumo que lhe dão e galga mais ligeiro as coroas brancas das ondas que vêm do noroeste.
- Vamos morrer à nossa terra, arrais! - insiste o Barrasquinho, sem perceber o que se passa.
Ridículo na sua dor, enchem-se-lhe agora os olhos de lágrimas grossas. Parece um menino atormentado pelo medo das bruxas.
- Vamos lá morrer, Ti Zé!...
- Já vamos! - responde o Tó.
O outro sorri, enxuga as lágrimas à pressa e depois fecha os olhos. O Álvaro não consegue falar, lembra-se do
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seu menino doente e o rosto turva-se-lhe. Apetece-lhe dizer ao arrais tudo o que pensa; e não é boa coisa, não.
Zé Diabo entrega a cana do leme ao filho mais velho e vai de rastos até junto do seu Zé; descobre-lhe a cara, toda alagada de lágrimas, puxa-o a si e tapa-lhe a boca para que o filho soluce sem que os outros o ouçam. Anima-o com as mãos inquietas.
Fala-lhe de mansinho, nunca falou assim na sua vida.
- Olha, Zé, rico filho! A gente vai agora prà nossa terra... Vamos pra lá!... O tempo está a dar uma sota, vai ficar melhor... Já não falta muito. Não espreites, mas eu já estou a ver a pedra do Guilhim. Tens de te pôr em pé quando lá chegarmos... Vamos saltar todos. Sim, não falta ninguém. O da Bôta vem ali atrás...O nosso bote é uma espada, não há outro melhor...
O filho acena-lhe a cabeça esvaída a cada palavra sua, parece que quer adormecer; "é capaz de ter febre", pensa o arrais.
Surge um negalho de sol a lamber as vagas.
Um golpe de mar salta num rompante por cima deles, abre-se num manto de espuma, e Zé Diabo deita-se sobre o filho para que não se assuste mais.
Começa a falar mais alto, julga que pode cobrir aquele bramir e rebramir sem fim, aquela voz toda desgraça e ecos, sempre a crescer.
- Podes, Zé?! Podes saltar?...
- Posso, sim, pai. Quem vai ao leme?
- É o Tó...
- Ele é que tem culpa da gente ir aqui... Agora o velho não responde. Vira-se para a ré e vê o
filho bem testo ao mar, olhos a sudoeste, olhos a noroeste, a escolher a vaga mais perigosa para defrontar. Parece sereno, surge uma montanha azul que os assalta e o Tó encolhe-se, sacode o tronco e aspira o hálito mareiro.
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A queixada parece mais saliente, rasgam-se-lhe fundos os dois vincos que lhe nascem do nariz e vêm morrer aos cantos da boca mal aberta. É o tio por uma pena; o Carlos que morreu no Mar.
-O Tó é que tem a culpa... Ele não quer viver, mas a gente, eu e o Manel, queremos...
- Fui eu que dei a leva à companha, Zé.
- Por causa dele... Se ele não aparecesse no gueste a dizer aquilo, a gente não vinha.
- Vinha o da Bôta...
Agora é o rapaz que não responde. Começa a erguer a cabeça do convés, cerra os olhitos para o sol doente e murmura:
- Pensei que era noite...
-O tempo vai dar uma sota e já poderemos arribar à Praia, sussurra-lhe o pai com ternura. .
Zé Diabinho nunca o ouvira falar assim; ele próprio estranha a quebreira que sente agora dentro de si. Se calhar, começo a ficar velho. Noutro tempo era capaz de obrigá-lo a pôr-se de pé e a encarar o malvadio, para que aprendesse de que morrem os homens no Mar.
As ondas chicoteiam o bote e a companha - zunem, pincham, mordem, encabritam-se, rugem, escabreiam, adoçam-se num momento e logo se juntam atiçadas e feras, golpeando-os numa sanha doida, como se esperassem vê-los por terra a pedir clemência.
"O que é isto?" perguntam todos. "Que mais vai agora acontecer?!..."
Num matraqueio incerto, o motor começa a falhar. A companha busca com ansiedade a cabeça do motorista, mas nenhum homem lha vê. De um salto, o arrais contorna a gaiúta que defende o motor e atira-se sobre o Manel. Põe-se a sacudi-lo com violência, mas o filho desmaiara.
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---ESTE cão, este cão...
Larga o filho sobre o convés, apetece-lhe bater com ele na borda mais grossa do bote, nos espigões de ferro onde se arma o rolete para puxar as linhas. Está desvairado. Já saltaram pela ré duas ondas grossas; se ficam ali muito tempo, o Mar submerge a lancha e ninguém se salva.
Aos gritos dos três camaradas que vão com os vertedouros a escoar a água, o Gaivota aproxima-se.
- Metam os remos! - ordena o Tó do leme. - Deixem lá isso, metam os remos!...
À volta do motor, Zé Diabo Negro enxuga-o, deita-lhe óleo e experimenta pô-lo a trabalhar.O dínamo zune por momentos, mas volta a parar, quando outra vaga galga por cima do Tó, indo desfazer-se sobre as costas do arrais.
De cabeça amarrada, o Corrucho é ainda o mais desenvolto na armação dos remos nos toletes.O Barrasquinho só diz ai Jesus! ai Jesus!, anda tonto, a balancear da proa ao banco do mastro, enquanto o Álvaro se senta já agarrado ao punho do seu remo e dali sacode o Zé Diabinho para que os venha ajudar. O rapazola finge ainda estar doente, mas quando percebe que o bote parou e as ondas o empurram, saltando pela popa, põe-se de pé.
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Gritam da companha do Joaquim da Bôta:
- Atirem um cabo que a gente reboca-os!
O Gaivota passa-lhes perto, avança ao sabor da vaga até mais longe e depois flecte numa curva larga para que o Mar não o apanhe de través. Tó Zarro espreita a rota do outro bote e ordena para a proa que dispam as rabanas e comecem a remar. O velho continua à volta do motor, sem dominar a ansiedade. É a primeira vez na vida que as mãos lhe tremem. Sabe bem que de um momento para o outro, se não resolve aquilo depressa, estarão todos baldeados.
- Vamos! Remem! Vamos! Remem! -canta o Corrucho a marcar a cadência.
Os quatro remadores põem-se de pé, mas o filho mais novo do arrais não pode encarar com a tintureira; acha que enquanto a vir dentro do bote o perigo não deixará de rondar o barco.
- Aquilo é que nos dá azar!-diz para o Álvaro. - Não é uma tintureira, é o Diabo que temos ao pé da gente...
- O Diabo?!...
- Sim, o Diabo. Quando me agarrou no pé, ela estava a rir... E os peixes não riem. É o Diabo!
- Vamos! Remem! Vamos! Remem! - prossegue o Corrucho na cantilena, a que se junta a voz frouxa do Barrasquinho.
O bote começa a mover-se, porque naquele rumo o vento já ajuda, embora traga o perigo de empurrar as ondas para cima deles e do lado pior. Mas o velho e o Tó armaram um telhado com as rabanas por cima do casinhoto do motor; diminuiu o risco de a água o inundar.
- Vá o pai prò leme. Eu arranjo isso...
Estendido no convés, Manel Zarro começa a despertar. Julga-se a viver o sonho de um homem morto, deitado
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no fundo do Mar, donde vê o céu, sem conseguir erguer a cabeça. Ouve muito ao longe a melopeia dos remadores, logo depois os gritos da companha do Gaivota, que voltou a aproximar-se e pede o cabo para os rebocar até perto de terra. O velho vigia-o; comove-se com o seu rosto lívido e desfeito - nem parece o Manel.
- Oh! Remem! Oh! Remem!
- Vamos! Sempre! Sempre! Sempre!
- Vamos! Oh! Vamos! Certo!
Zé Diabinho e o Álvaro deixam de remar; abrem as navalhas e começam a cortar a corda que amarra a tintureira. Uma leva de mar rompe da banda da popa, vem de roldão e toca-lhes os pés. Ambos saltam, assustados, como se a água lhos queimasse.
- Atirem um cabo prà Gaivota! - ordena o velho. Depois repara nos que se puseram à volta da tintureira e grita-lhes:-Que estão vocês a fazer?... Ah hó!...
Soam mais firmes as vozes do Corrucho e do Barrasquinho, porque ambos pensam que o bote se salvará com o seu sacrifício. As vagas continuam a embater nas costas do arrais, entrando para dentro da lancha, donde se escapam depois, apressadas e ruidosas, pelas boeiras abertas nos flancos.
Camaradas no empreendimento, Zé Diabinho e o Álvaro sorriem um para o outro no esforço de lançarem a tintureira pela borda fora. Agarraram-na pelo meio do dorso, tentam levantá-la em peso, ajudam-se, gemendo e barafustando, ambos suados, já sujos pelo sangue do bicho que verte da boca destroçada e do rasgão aberto pelo bicheiro que a arpoou quando a meteram no convés.
- Oh! Certo! Remem! Certo! Vá! Tuuudo!
- Parece que tem chumbo, esta danada! - diz o Zé, tentando resolver o caso de outro jeito.
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Põe um joelho no convés, agarrando o bicho pela cabeça, depois levanta-se e trá-la até à borda, enquanto o companheiro empurra da banda do dorso negro-azulado. Num sacão, atiram-na sobre a borda, depois param a limpar o suor, cansados do esforço.
O bote do Joaquim da Bôta lá vem outra vez. É um bom camarada, sim senhor, não se esquece que esperei por ele. E o velho acena-lhe o braço:
- Não te chegues muito, ah Jaquim! O Tó arranja o motor!
Diz aquilo porque já ouviu o dínamo arrancar por duas vezes; da última, pareceu-lhe que o trabalhar era outro - assim uma espécie de gargalhada de quem vai feliz.
- Vai andando! Ah Jaquim! Vai andando!
- A gente espera, arrais!
Não, nunca mais digo que o Jaquim é arrais da xávega. Hoje tirou a carta de arrais do alto...
Um grito de alegria vem da proa. A tintureira fica a boiar, por instantes, ali perto, e perde-se depois no alquei-vado das ondas. Zé Diabinho tira o boné, ficando a seguir--lhe a mancha negra, enquanto o Álvaro volta para o remo e espera que o camarada se aproxime para remarem certo.
- Remem! Certo! Certo! Sempre! E sempre! E certo! De dentro do albói da máquina rebenta o matraqueado
dos cilindros. E as descargas soltam-se pelo cano de ferro, acompanhadas por um fio de fumo que o vento esbandalha.
Só nessa altura o Manel consegue erguer a cabeça. Onde é que a gente vai?
- Remem sempre! - clama o velho da ré, percebendo que a tarefa afasta os homens dos fundões do medo onde se perdem.
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- Aquilo é que tirava a sorte à gente!-grita Zé Diabinho para o pai.
- Fizeste bem i
- Era o Diabo que ia aqui na companha!
- E vão cá mais dois ainda!-" responde o arrais. - Tu e eu!..,
O rapaz sorri para o velho. Esqueceu agora tudo o que pensara de vinganças e mais ainda o que os espera, se puderem chegar perto de terra.
Remam de pé, em remadas certas; agora são quatro vozes unidas, todos têm de fazer alguma coisa, muito ou pouco, para romper a muralha que os cercou. O vento em-purra-os, faz-se mais perigoso, mas a sensação de que avançam depressa compensa-os dessa ansiedade.O motor trabalha certinho, é um relógio, e o telhado de rabanas defende-o da água que galga a popa e chuvisca por cima do albói, onde o Tó vai metido a ajudar a máquina.
Manel Zarro senta-se a olhar o pai. Baixa depois a cabeça, parece resignado, mas levanta-se num rompante. Faz um gesto para se aproximar do motor; o velho, porém, agarra-o pelo ombro e aponta-lhe a proa.
- Sim, pr'ali, vai pr'ali! Estás aqui a mais...
- A mais?...
- Sim, a mais... Já te disse que não gosto que me olhes assim... A gente fala lá em terra.
Agarrado ao casinhoto do motor, Manel Zarro caminha às apalpadelas como se fosse cego. Vai cego de ódio e de medo. Os mortos estão a remar... Há-de servir de muito!
O Estrela do Mar rompe a vaga que se lhe cruza.O mar torna-se mais claro, já se fez azul, e isso é sinal de que se aproximam. O arrais espreita o relógio. São cinco horas. Entraram há doze horas ali para dentro. E agora regressam. Regressam para quê? Para a vida ou para a morte?!...
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Os remadores prosseguem na cantilena, esqueceram talvez o que os espera, mas é o arrais, anda ali naquele mar há quase quarenta anos, bem lhe conhece as manhas. Sabe que com aquela ondulação a rabiosa cai sobre a borda, que as ondas rebentam de longe e esborralham-se em milhentas traições, em mares desencontrados e abismos. Mas não há agora outro caminho para a gente. Já que não pudemos chegar a Peniche, temos de jogar a única coisa que ainda é nossa. Temos de jogar a vida...
Olha para as águas e volta a reparar nos rolins.
Lá andam eles a boiar, é sinal de vento. Haverá ainda mais vento perto de terra?!...
E que vento?
Se for vento que ronde do sudoeste para o noroeste, vento que sopre da banda do Mar, e assim parece, pensa Tó Zarro, como irão eles chegar a terra?
Se for vento mareiro, que levanta a vaga mesmo na borda, não deixa escolher raso e põe a costa negada, para onde vai um bote?!... Sim, para onde aproa um bote que não aguentou o rumo até Peniche?!...
Caiu-lhe em cima um mar de cruzes.
E os rolins continuam a boiar, a vaga pega neles e lança-os na crista, como se quisesse aumentar a angústia dos homens que ali buscam uma saída para a vida.
Felizmente que os homens vão quase todos cegos de medo.
O Mar levanta-se mais.
E os rolins amarinham pela grimpa das ondas acasteladas em rolos.
Mas que vento, Senhor?!...
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VÊM quase há duas horas a procurar terra. Quem viu primeiro o pico de São Bartolomeu foi o arganaz do Corrucho; começou a fazer balela naquela voz apifarada, que de outras vezes serve de gracejo ao Barrasquinho; todos procuraram ansiosos o cume do monte por entre a bruma débil que brilha daquela banda.
Ali era o lado de terra, sim, não há dúvida. Mas podia ser uma miragem do camarada.
O Álvaro tem bons olhos e disse que não via.O arrais pôs-se de pé, fazendo pala com a mão, à procura da sombra no horizonte, mas, num repente, todos descobriram o cabeço do pico a furar lá ao longe, num aceno de coragem. Desfizera-se uma nuvem branca que pairava sobre as serranias e a incerteza desvaneceu-se.
Aquela esperança reanima-os.
Os remadores atiram-se logo à faina com novos ímpetos, como se fossem eles que dessem ao bote aquele andamento vivo.
- Vá, terra! E sempre! E certo! Vá, terra! Vá, terra!...
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Cresce a melopeia no marulhar das ondas agressivas. Em todos os rostos se espalha a ânsia de chegarem depressa.
- Depressa! Vamos! E alma! E certo! Vai, terra! Sozinho, à proa, Manel Zarro continua longe daquela
ansiedade de vencer a distância e o medo. O instinto de fuga concretiza-se nele noutra obsessão. Se puser o pé em terra, eu seja cego se não fizer uma espera ao Tó. Ou um ou outro... Até lhe mordo as orelhas. Se fosse camarada, não tomava conta do motor... Cada um tem o seu lugar. Nunca mais aqui entro, mas hoje ainda sou eu o chofer do bote. Só a ideia da vingança o compensa agora da angústia daquelas horas. Também o velho as há-de pagar. Vai ser um gozo com ele. Faço-lhe a cama e bem feita.
A água que galga a proa e se desfaz sobre a rabana, salpicando-lhe a cara, parecem aguilhões de ferro que a põem num crivo pelo qual passa o pânico. Os camaradas vão a remar. Sente-lhes na voz, na música da melopeia que entoam, a esperança de arribarem. Ele sabe, talvez só ele saiba, que entre os botes e o areal espreita a morte à espera de todos.
Uma muralha de morte a barrar o caminho.
"Já vamos todos entregues a ela e nem o Tó vai escapar. Ficam as contas feitas", pensa depois, quando outro vagalhão varre a lancha, entra pelo lado da ré e quase alaga tudo, num peso de água que faz o barco oscilar e pôr-se quedo, por momentos.
Os camaradas largam os remos, assarapantados, um deles parte-se, a maresia leva-o, e só um grito do velho os chama à razão. Adivinha-se em todos a vontade de saltar a borda do bote, em busca de uma saída para o perigo.
- Metam os remos dentro! Vá, depressa! Metam os remos dentro! Já não fazem falta.
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- Estão a atrasar - acrescenta o Tó. - Peguem nos bartidoures...
- Vá, depressa! Dêem aí um ao Manel...
O velho julga que o filho ainda pode ganhar coragem.
- Já vejo o Guilhim - clama outra Voz.
Há-de servir de muito ver o Guilhim. Se não puderem ficar nas bóias, estão arrumados.O Mar deve estar a partir muito amarado, com certeza, e não podem navegar para o tempo. De lá vêm eles e ninguém se aguenta mais...
Farto de mar, quebra-se ao velho, à vista de terra, o feitio agreste.
O Sol arma uma festa no poente. Alaranja, um pouco achatado, besunta as nuvens de laivos vermelhos e rosados, rebrilha na água, agora azul, mais transparente a bombordo, e aí verde, muito verde, daquele verdoengo que a Otília trazia nos olhos quando se namoraram.
A terra parece calma, aconchegada entre os montes de além.O braço alto e colorido do promontório estende-lhes a mão, pousando no mar, mas aí a água assanha-se, des-faz-se em espuma leitosa e assinala-lhes a muralha que precisam de vencer.
Quiseram vir depressa, precisavam de ver terra e molhar os olhos nela; agora o velho e o Tó percebem que a morte se acoita ali mesmo, na crista daquelas ondas que se levantam e os chamam para a arena da última luta.
Amainou o sudoeste, mas as vagas continuam a saltar dentro do bote e lá se escoam, para logo regressarem na mesma fúria. Abrem-se agora fendas profundas nas águas; o cachão referve à volta deles, molhando-os em pancadas rijas que os atordoam.
Agarrados aos vertedouros, os homens da proa manejam-nos com frenesi. O Corrucho já se pegou a discutir com o Manel, que lhe deu uma pancada numa perna e ainda por cima o ameaçou.
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O Gaivota aproxima-se também.
Zé Diabo Negro manda diminuir a marcha para combinar com o outro arrais o que devem fazer agora. Não quer resolver sozinho, é uma responsabilidade. São dezassete vidas que a gente leva aqui.
Surge-lhe de estibordo a coroa branca de uma onda desfeita, toda farfalho e ameaças; guina para terra num arremesso, a lancha estremece, vai com a borda a lamber a ondulação mais maneira, e o filho mais novo é atirado pelo ar.
- Ah Zé! Zé!...
O rapaz fica com metade do corpo suspenso sobre a vaga, dá às pernas, alucinado, e o Mar atira outro golpe. O velho não vê nada; e grita, só grita. Mas o Álvaro, de um salto, agarrou o Zé Diabinho pelos pés e puxou-o para dentro. Lá vai agora a arrastá-lo para o banco do meio.
- Estás ferido? Há aí alguém ferido?...
- Não, arrais! - O quê?!...
- Não, arrais - responde o Barrasquinho.
O Joaquim da Bôta vai pôr-se com o bote do lado do vento e pergunta:
- Vamos às bóias?
- Se lá pudermos ficar com Deus!... - Então vamos lá com Deus!...
O Tó volta-se para o pai e diz:
- Se chegar a terra, dê-me uma carga de porrada; é o que preciso.
- Porquê?!...
- Fui eu que arranjei este sarilho. Nunca posso ser arrais dum bote...
- Cala-te aí, rapaz. Agora não se fala nisso. Põe o motor a meia força!
Fazem rumo às bóias.
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Quase frenéticas, as pancadas das ondas voltam a rufar no costado dos botes. Exaltam-se os verdugos da água e caem em cima deles, como a tirar-lhes o gosto de estarem ali à vista da sua terra. Todos se viraram para ela, a meia nau, juntos num cacho. Cada um deles rememora as melhores lembranças que ficam do outro lado do abismo. Só o Manel vai sentado nas tábuas do convés, de cabeça encostada ao porão da proa. Fecha os olhos, não precisa de ver o que já sabe. Foi ali perto que o Abel morreu. Ah Abel! Ah 'migo!
Se puderem ficar nas bóias, passarão a noite amarrados; o salva-vidas, logo que consiga entrar, irá buscá-los. São mais umas horas. Agora que têm a terra à vista, que vêem vultos de gente a correr, e braços a acenar, que adivinham os gritos, as mulheres na areia a rezarem e a atirarem maldições sobre o Mar, agora percebem também que a espera será o melhor que lhes pode suceder. Mas o que se vai passar de noite?! Sim, de noite, se a vaga crescer ainda e partir mais longe?
O Gaivota teima em atingir a bóia que escolheu, a mais amarada de todas, mas a ondulação recusa-lhe a permanência naquele sítio. Zé Diabo Negro avança também para lá. Percebe que o Mar se quebra um pouco antes, tenta avançar e desiste, voltando outra vez de frente para o sudoeste. Antes lá fora, a navegar para o tempo, do que ficarem partidos ali, à vista de terra. Gabei-me e o Mar está a vingar-se. A gente nunca conhece o Mar...
Numa curva para insistir no rumo, o Gaivota quase acaçapa. "Se fosse bote de poço, ficava lá", pensa o Corrucho. E percebe que os outros vêm tontos, perdidos com o susto que agarraram. Percebe-os pelos gestos que levantam para a ermida do Sítio. Devem estar a fazer promessas.
De terra compreendem o perigo e o alarido cresce.
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Responde-lhes, sinistra e cava, a voz do Mar, enquanto o vento assobia ainda, carregando de longe na crista das ondas.
- Vamos lá outra vez! - diz o arrais para o filho mais velho.
- Ou vamos já pra terra?
Voltam-se os dois para o areal, de olhos semicerrados, como se a vista da sua praia lhos queimasse. O velho hesita. Se não me ficasse mal, entregava-lhe o leme. Começam a faltar-me os olhos... Não estou velho para arrais?
O bote faz-se bem ao correr da vaga, passa perto das bóias, carrega ainda em direcção de terra, à espera de momento para regressar lá fora; agora a companha vê os vultos na areia, percebe os braços das mulheres, os gritos adivinham-se. E todos acenam as mãos, não sabem se a dizer adeus, o último adeus, se a animá-los, anunciando-lhes que vão varar.O Estrela roja-se na vaga e depois endireita-se, firme.
- Essa foi de mestre! - diz o Tó para animar o pai e o pessoal: - Nem na Terra Nova vi uma manobra assim...
- Nunca viste o teu avô...
Não podem prolongar a conversa, e é pena, pensa Zé Diabo Negro.
Acelera um pouco o motor, a hélice começa a ouvir-se fora de água, porque trabalha uns instantes sem apoio, e rompem mais uma vez para o lado das bóias, enquanto o Gaivota paira ao largo, num jogo de escondidas com a vaga crescida, à espera que apalpem a maresia e digam se lá podem passar a noite.
A noite já não tarda.
Mergulha o Sol no horizonte, por detrás da vaga. Caem sombras nos pequenos vales de terra, atenuando as cores.
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No areal, as sombras agitam-se mais do que antes. Algumas deitam-se exaustas com tantas horas de dor, gemendo sobre a areia húmida, sem lágrimas para chorar. Mari'Zarro parece calma; conhece o rolo do Mar e a voz dele, enquanto a rapariga novamente à sua beira, de pé, se mostra cheia de esperança, talvez porque a vida que traz dentro dela se agite mais. Maria Estrela sabe que a rabiosa mata os homens, mas não acredita desta vez que algum deles possa morrer. Ninguém deve morrer, já fez a sua promessa à Senhora da Nazaré.
O bote vai jogado de onda em onda. Apaga-se e reaparece, descobre-se e afunda-se no meio daquele malvadio que a sombra do poente torna mais negro. Vê-se-lhe a grinalda branca que a popa rasga no Mar e lá vai noutra tentativa para amarrar. Mas a vaga não o deixa, fincou--se-lhe aos flancos, continuando a partir, talvez mais áspera; rompe incerta, torna-se num mar dobrado, sempre a dobrar, com o noroeste outra vez a avantajar-se ao sudoeste.
- A gente não pode ficar aqui - grita o velho num desabafo que todos ouvem.
E agora para onde vão?!...
Custa-lhes a aceitar a ideia e o Mar recorda-lha.
Estão cercados. Agora ficaram cercados.
O Mar envolve-os de ameaças, não há ali guarida para eles, ir varar em terra é aventura que não pode acabar em bem. Será porém uma maneira de romper depressa com aquele inferno de água que os atormenta.
Entre os botes e a terra firme levanta-se a muralha da morte. Atrás deles, por esse mar dentro, de novo, e sempre, a morte.
Para onde vão agora?!...
- Vamos para terra, pai! - sussurra-lhe o Tó.
- Deixa ver bem o Mar... Pode ser que haja raso.
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- O pai descobre-o, com certeza.
O Tó sabe que não é possível varar sem perigo. Zé Diabo Negro ainda o percebe melhor. Anda ali há quase quarenta anos, no seu tempo entrava-se mais cedo num barco; conhece de sobra todas as manhas daquele matador que não o quer poupar.
Os vagalhões crescem. Levantam-se agora em transparências, muito azuis, umas, verde-negras de gangrena, outras.
Rumorosas, as massas de água erguem-se de longe, caminhando em direcção a terra para varrerem tudo o que encontram. As cristas brancas engrossam; o vento baila com elas na atmosfera carregada de salsugem e tragédia, arrastando o que lhe aparece pela frente.
De joelhos, à proa, os camaradas rezam, voltados para a ermida.
- Diga que vai haver rasos, pai - pede o Tó ao velho. - Anime-os...
- Não, não gosto de enganar quem anda comigo aqui...
- Mas agora faz falta.
E o rolo a crescer, a crescer sempre, a forçá-lo a uma decisão.
As vagas passam em turbilhões. Conseguem galgá-las ainda, mas a noite vai chegar de um instante para o outro. Torna-se tudo cinzento, como se da labareda do poente o vento arrastasse os restos da fogueira, onde os homens se queimaram vivos.
Se a noite carrega, morrem ali sem tentarem a sorte.
Zé Diabo Negro precisa de resolver qualquer coisa; só tem, afinal, dois caminhos e só num deles conseguirá ainda encontrar a vida. A muralha da morte mantém-se firme, cada vez mais densa à frente dos seus olhos. É
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preciso descobrir uma fenda por onde passem. Uma frincha por entre as paredes altas e quase fechadas da morte.
Falta-lhe porém a coragem para decidir. Que raio de homem sou eu?!...
O Gaivota paira mais ao largo á sua espera, querem pôr-lhe dezassete vidas na mão. E a sua mão afrouxa, percebe-o com raiva, enquanto a morte se adivinha acaçapada nas ondas, à espreita, ali mesmo e mais adiante, espalhada à sua volta, numa emboscada. Avivam-se-lhe no corpo lembranças de outras horas como aquela.
- Diga qualquer coisa, pai! - insiste o Tó, ao perceber que os camaradas se esfarelam na indecisão.
Há bocado, enquanto remavam, voltara-lhes um aceno de energia, tinham voz e mãos, ardiam-lhes os olhos. Agora saltam da modorra do medo para o delírio de tocarem a terra com os pés, o Corrucho vai com os dele no ar, sobre a borda do bote, só ele sabe porquê. Pensa que a madeira da coberta se lhe agarra às plantas e não conseguirá galgar para a areia, cujo contacto julga sentir de vez em quando.
- Fale para eles, pai!
Finge que não ouve. Que vou dizer que valha a pena?... Que não sei como vamos acabar?... Eles sabem-no tão bem como eu. Eu é que nunca mais penso que tenho a força do Mar... Daqui a bocado vamos fazer as contas que tenho em atraso.
O brio arruína-se-lhe com a presença dos outros. Mais ainda do Manel e do Zé, que já mostraram bem que levam tanto medo como o desgraçado do Barrasquinho. Até ele sente as pernas cada vez mais frouxas. E sabe o que quer dizer aquela fraqueza; de outra maneira já teria decidido qualquer coisa. Hesita ainda.
Não conseguirá aguentar-se ali por muito tempo; a noite chegará de um momento para o outro, e logo depois
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a morte virá também para os envolver e levar consigo. Tem o bafo dela na boca, descobre-a nas emboscadas que as ondas abrem à sua volta.
Há um caminho, lá isso há, mas não arranja coragem para se meter por ele. É o único caminho para varar em terra, embora o deva abrir com a morte sempre agarrada à quilha do bote.
- Queres tu pegar no leme? - pergunta para o António.
Ainda bem que o filho não o escuta, por causa do marulho do Mar e do seu ouvido duro. Ainda bem... Que diriam em terra? Depois disso nunca mais seria o Diabo Negro nem arranjaria companha para vir comigo. Julga-se acanalhado na mesma; quer reagir depois e zanga-se com o filho porque o viu tirar a rabana. Tó Zarro não responde ao velho, percebe-o, se o percebe!, dentro de um dóri um homem aprende a escola toda do terror e da coragem.
Quando o pai o olha, Tó Zarro sorri-lhe para o alentar. O velho foge-lhe com a vista e ergue-se no banco apoiado à cana do leme. Mal distingue o resto da companha, mas adivinha-os amontoados na proa, partidos pela ansiedade, e finge encará-los, precisa que eles, ao menos, lhe vejam os olhos sem um sinal de receio, embora o dele se lhe meta nos jogos das pernas, mais no engate dos joelhos, e pudesse apalpá-lo com as mãos se as levasse até lá.
Abre mais os olhos azuis e fala:
- Eh pessoal! Oiçam lá agora!...
A voz embarga-se-lhe, toda estalada quando a alteia.
- Oiçam lá!-grita o Tó. - O arrais quer falar! Os camaradas erguem a cabeça. Tó Zarro vê-lhes a
névoa cinzenta no olhar", molhada e cinzenta, na palidez da pele quase amarela. Um deles descobre-se, os outros imitam-no; fazem-no com gravidade, lentamente, como se os gestos simples tivessem de ser bem divididos para não se
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tornarem outros (talvez um salto para o Mar e seria o fim). Que espera um homem em certa altura? Que o homem volte para dentro dele.
Cresce uma vaga, Zé Diabo fita-a, deixa de ver a sua gente, e logo que consegue vencê-la volta a falar com a vista atirada para longe. Basta adivinhá-los.
- Limpem-se de tudo que os embarace... Eh tu, Corrucho! Atira-me esses remos pla borda fora...
Os camaradas sobressaltam-se, como se os remos lhes fizessem falta. Percebe-os.
- Sim, os remos não precisamos deles. Atirem fora com tudo que os embarace...
Ajoelhados, não os arraste alguma traição do Mar, os homens escutam e rezam. Rezam e olham para terra, vêem a terra toda, os becos e os recantos, as pessoas, as coisas e as cores das coisas, os barcos nas ruas, as falas dos que gritam na areia, os charcos na areia, a cor da areia, as pegadas na areia, a areia que o Mar arrasta e a areia que o Mar leva consigo para o declive, o cheiro das coisas e o cheiro da areia, o rosto das pessoas e a voz, e a doçura do contacto da areia quente quando um homem regressa de longe ou volta do Mar, e vai pisá-la, calcá-la bem, porque só com os pés na areia um homem sabe que regressou à sua terra.
O Corrucho lá tinha as suas razões para não querer o contacto dos pés na madeira novinha da coberta. É ele que vê primeiro o Manel Zarro adiantar-se do grupo da proa, indo de rojo até perto do albói do motor; mas não pode adivinhar o que o Manel esconde nos olhos quando se arrasta de mão na algibeira, fitando o irmão mais velho.O pai é que lhe ouve a voz transtornada:
- Tu meteste a gente aqui dentro, real cabrão. Juro-te...
- Cala-te aí, rapaz!
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- Vossemecê já não manda no bote. O arrais é ele, esse gajo...
Zé Diabo Negro pensa atingir o filho com um pontapé na boca, precisa de lhe partir os dentes, agora ou em terra há-de partir-lhos, para que se lembre o resto da vida do que lhe está a dizer.
- Cala-te, Manel.
Tó Zarro espreita o irmão e aparece-lhe fora do albói; mas é o velho que percebe o gesto rápido do outro filho, o gajo vai puxar da navalha e espetar o Tó, e grita para a companha:
- Agarrem esse gajo, agarrem-no bem!...O Álvaro torce-lhe a mão com a navalha, que cai e fica aberta perto da borda, enquanto o Corrucho o leva de rojo até à proa, numa luta de dentada e murro, pragas e soluços. Sem a navalha, Manel Zarro estrebucha ainda a presumir, mas acaba por se aquietar, cobrindo a cabeça com a rabana.
Um golpe de mar varre o bote, como se procurasse levar alguém consigo, e desfaz-se quase em cima do leme.O velho fica atordoado com o golpe; toma-o como um aviso, vira-se para terra e fala novamente para acabar o que queria dizer há bocado:
- Vamos agora jogar a nossa sorte até ao fim... Puxa o barrete para os olhos, mastiga uma praga e
prossegue:
- Perdoemos uns aos outros as queixas que tivermos... Todos temos pecados... Que mais posso dizer que valha a pena? Eu vou ser o último a deixar o bote... Eu e o Tó...
Quebra-se-lhe a voz, parece um fio moído. Depois reage e pergunta com arrenego:
- Podemos ir agora?!...
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- Sim, arrais - responde o Corrucho numa estridência de pífaro.
- E tu, Zé?
- Já posso - diz o rapaz com firmeza.
Tudo dá coragem e tudo a faz perder. Zé Diabo Negro sente-a mais forte dentro de si com a resposta do filho.
- Agarrem-se bem agora e saltem quando encalharmos na areia. Ninguém salta antes de chegarmos à areia. Sei lá quem chega a terra? Quem saltar antes de tempo não volta comigo ao Mar.
Tangido pela ondulação, o bote aproximara-se do Gaivota, à procura de maresia mais branda. A outra companha faz balela quando se chegam.
A manta cinzenta do fim da tarde desce ainda sobre o Mar para enegrecê-lo mais.
Desgarrada, uma voz uiva dentro do Estrela do Mar:
- Arrais! Só uma coisa, arrais!...
O Barrasquinho faz menção de falar, mas abre os braços para voltar depois a apertar as mãos sobre o peito. O seu rosto tornou-se transparente.
- Queres alguma coisa? - pergunta o Tó.
- Quero fazer um pedido a todos...
Diz aquelas palavras como se a voz lhe amargasse, movendo a cabeça sempre a bulir.
- Se eu não chegar a terra... Sim, posso não chegar...
- Chegamos todos! - diz o velho.
- Mas eu posso não chegar, arrais. Quero pedir a todos que digam à minha Alzira... -Dobra-se-lhe a cabeça para o peito e fica com ela queda, sussurrando ainda: - Sim, digam-lhe que não dê um padrasto à minha filha... Faça tudo o que quiser... menos isso. E o arrais ajude a criar a minha menina... Como fez à Mari'Estrela...
Zé Diabo Negro não consegue fixar-se em ninguém. O olhar deambula pela companha e pelo Mar, não entende
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o que deve responder ao camarada; e depois as lembranças, o receio de não chegar... Quem é responsável?
O filho mais velho salta para o seu lado e manobra o leme, percebendo que o pai não presta atenção à maresia que os acomete. A lembrança da afilhada dói-lhe no corpo todo. Sente-se inquieto, vai esquecido do rumo, embora ainda não tenha percebido que o Tó tomou conta do governo. Precisam de atirar depressa com o bote para terra; já não aguenta mais aquela incerteza de não saber se chega, é o arrais, o Barrasquinho fez-lhe um pedido e pode ser que os outros homens também queiram falar.
- Digam depressa! Diga cada um o que quer!...
- Pra quê, pai? A gente vai pra terra!...
Acorda com a voz do filho à sua beira e tira-lhe a mão do leme:
- Já não preciso... -E voltando-se de novo para a companha: - Digam depressa!...
Os homens chegam-se uns aos outros, avançam para perto do seu arrais e olham-no ansiosos, como se no olhar lhe pudessem dizer o seu recado para terra. O velho vigia a vaga e o vento. Mas as mãos tremem-lhe.
O Álvaro Pequeno ainda quer dizer qualquer coisa, a voz agarra-se-lhe e acena a cabeça de fuinha, tapando o rosto com as mãos, enquanto o Corrucho o puxa para si.
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- E tu?!...
- Eu, pai?
- Sim, estou a falar pra ti.
Encaram-se por instantes. Gostam agora de olhar um para o outro.
- A gente chega a terra, com certeza...
- A certeza não está na nossa mão.
- Aqui não há outra senão a nossa... senão a sua que vai ao leme.
Falam num diálogo íntimo, enquanto o bote singra para fora, à procura de águas mais calmas.
- Pede lá o que queres.
Ela disse-me que já sentia o filho, tenho de falar ao velho, mas aqui não é sítio pra conversar nisso.
- Não tenho nada pra lhe pedir... A gente salva-se, depois falámos em terra. E o pai?!...
- Eu o quê?!...
- Tem alguma coisa pra pedir? Não, não peça, isso pode dar azar. Se vossemecê tiver olhos, a gente salva-se.
- E se me faltarem os olhos?
O motor começa a falhar, os dois espantam-se, e o Tó enfia pelo casinhoto do motor, sem poder continuar o
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diálogo com o velho. "Vamos varar ao Norte", pensa Zé Diabo Negro, que procura acalmar-se no meio do temporal das suas emoções. Hoje não estou bom para isto. Tenho a terra à vista e só me lembro da rabiosa, da rabiosa de terra, quando a rabiosa do Mar está à espera da gente todos para fazermos contas. Pra que estou eu a pensar nisto?
- E uma vela suja! Não há azar, pai.
À proa, os homens tiritam de frio com a falta das rábanas. Têm os músculos desenhados por baixo das camisolas e das ceroulas; vão todos num pingo. Deixaram de se limpar com as mãos, já nem se sacodem, e começam agora a tirar as botas altas de borracha para ficarem mais safos. A ondulação continua a arremessar-lhes com chapadas de água, contra a qual já não' praguejam. Parecem imóveis, duros de movimentos. A ansiedade transfigura-se nos rostos inquietos, entre o pânico e a esperança. A terra fica do outro lado da muralha das vagas. Eles continuam ali à espera.
O sudoeste amainou, mas o noroeste cresceu naquela batalha irada dos dois ventos com o Mar. Prestes a cair, a noite mal deixa uma mancha branda da luz do poente entre o céu e a vaga. É um corredor de claridade estranha que lambe a ondulação, indo até à areia onde precisam de varar.
- Tira as botas, Manel! - diz-lhe o Corrucho.
- Pra quê?!...
- Temos de saltar.
Manel Zarro sorri com amargura para o companheiro, pondo-lhe a mão sobre o braço.
- Já não vale a pena fazer mais nada, Corrucho.
- Não digas isso, Manel. Tu não deves dizer isso... - A gente vai morrer todos.
- Cala-te, Manel! Não digas isso, ah hó!
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- Nem um escapa daqui, nem um...
O Álvaro, o Barrasquinho e o filho mais novo do arrais agarraram-se ao mastro; olham agora para terra.
O Diabo Negro está lá para a ré, enquanto o Tó não se vê com o albói do motor a escondê-lo. Ligeiro, o Corrucho deita as mãos ao pescoço do Manel para sacudi-lo, com gana de o calar. Ainda bem que ninguém dá por eles.
Chegaram outra vez perto do Gaivota, que as vagas tapam e descobrem, atirando-o de uma para outra, como de mão para mão, num jogo de vida e de morte. Sacolejam as ondas, algumas parecem de vidro quando se erguem e dobram, mas dobram e redobram de fúria quando caminham para a areia, onde se desfazem à bambalhona, num retoiço de espuma.
José da Pala Zarro hesita entre a reza e a praga, não percebe que maldição caiu sobre o Mar neste dia, e confunde uma com a outra, implora e desafia ao mesmo tempo, está dorido, dorido mas raivoso. Precisam todos de chegar a terra - louvado seja Deus! - e não pode entender aquela perseguição danada e feroz que fazem aos dois botes há mais de doze horas. De quem é a culpa?!... Virgem da Nazaré, Virgem desgraçada, que já não tens olhos prós que acreditam em ti!...
Encara o Mar mais uma vez, batido e rebatido pelo malvadio que os encharca e parece com gana de rasgá-los, ergue o olhar para a capela, começa um padre-nosso, corta-o de maldições, mil cancros te roam!, e depois vira-se para terra. Tem o rosto salgado pela vaga e pelas lágrimas.
Nunca chorei, carago!... Nunca chorei!...
Apoiado na borda do bote, consegue levantar-se para ver terra. Sabe tudo, vê tudo e age como um cego. Mas será capaz de dizer quem está na areia, quem se roja pelo chão, quem reza e fala de mansinho, quem impreca e
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desafia o Mar e o céu, quem está nas esquinas a chorar com ele, os que conhecem o Mar a palmos e os que nunca lá entraram, todos confundidos, enrolados na mesma dor, que se lhes crava no coração como navalha de ponta e mola, ah navalha cigana e maldita!, que o pôs a sangrar e lhe tirou neste dia todos os anos de vida feliz ainda capaz de viver com a Mari'Estrela.
Não, não consigo pensar nisto!
Reage num grito que esfarpa o rugir das ondas:
- Vamos lá pra terra!...
Aguenta-se de pé encostado à cana do leme, jogando o braço livre sobre as ondas, como se lhe arremessasse o seu ódio vivo.
- Meta à vaga, meu pai! - impreca o filho mais velho.
Arrancando o barrete da cabeça aturdida e cheia do bramir do Mar, joga-o depois para o malvadio, num rompante de quem nunca fora desfeiteado. A seguir acena o braço para o outro bote:
- Vamos embora, Jaquim!
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" PRECISAMOS de navegar, ainda bem que o Tó vai a tomar conta do motor, não posso deixar que as vagas se desfaçam em riba da popa, isso seria o fim, e também não é bom fugir depressa à frente das ondas avagalhoadas que correm sempre aos galões, umas escondem as outras, e cada uma traz a sua manha, e nunca se sabe a que vem com a morte dentro; num mar assim a morte vem sempre dentro de cada onda;
é uma luta danada, de vida ou de morte, Deus NOS ACUDA!, um homem parece ter olhos à volta da cabeça e nas mãos e em todo o corpo, mas a morte tem mais olhos ainda, vê tudo, CORTA-LHE A FORÇA AGORA, Tó! Corta-lhe A FORÇA!, e está à espreita que eu abrande ou me distraia, um só instante, para atirar o golpe fatal, já a conheço, já não é a primeira vez que a morte me espera nas veredas do Mar, que o digam estas rugas e estes cabelos brancos; começo a estar velho, velho, triste coisa é ficar velho, embora os nervos sejam de aço, rijos como aço, mas até o aço estende, estende, e um dia quebra, talvez quebre duma vez por ser tão rijo;
as mãos parecem firmes no leme, bem as sinto agarradas com toda a alma, e começo a recear que assim seja, as
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coisas com a força toda não acabam bem, no Mar, pelo menos, não pode ser, porque só eu sei o que é preciso vencer e pisar dentro de mim para não desatar aqui aos gritos e levantar os braços para terra, a pedir paz ao Mar, e a dizer ao Mar: "Pronto! Acabou-se! Leva-me, foste tu que ganhaste, andaste atrás de mim a vida inteira e agora aqui me tens como queres, acanalhado e sem força, uma coisa qualquer para aqui. Mas acaba depressa com isto, pelo amor de Deus te peço, acaba depressa com a gente, senão atiro-me sozinho à água e deixo-me morrer... É melhor, ó Mar, sim, é melhor morrer agora que esperar que tu te canses de brincar com a gente."
- Agora não, Jaquim! Agora não!... É melhor voltar outra vez!
Vencer, pisar e esquecer o medo de raiz que um homem traz da barriga da mãe, e ainda conseguir juntar tamanho gosto pela vida, pelas coisas boas e ruins que a vida dá, de maneira que um homem parece mais seguro aqui, mais firme aqui do que quando está deitado na areia ou a falar com os camaradas em raparigas e em peixes; a vida é uma coisa tão arrenegada e tão prometida, que o Mar nem sempre pode com um homem, quando no mundo não há nada mais forte do que o Mar, nada mais forte a não ser um homem, um homem que parece menos do que um alcatraz; um alcatraz tem asots e abala, e um homem fica ali amarrado com o Mar nos olhos, na boca, no coração, no sangue, e mesmo assim, desgraçado de todo, um homem volta só com o seu gosto de viver, e com o que aprendeu com os mais velhos, e com o próprio Mar, que é a mulher mais safada, mais reles... e mais honrada, carago! e mais honrada que um homem do mar pode conhecer.
- Mais devagarzinho, Tó! Mais devagarzinho!
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Vai por aí fora, outra vez direito à ondulação donde veio. Precisa de voltar ainda atrás, duas e três vezes, para apalpar o Mar todo naquele sítio, o pior é que a luz do dia está mesmo a morrer, e a gente morre aqui mesmo, coisa desgraçada!, senti-lo bem, palmo a palmo, não deixando fugir um único sinal, de maneira a descobrir a traição das ondas que o não largam.
- Éia que grande vagalhão! - grita o Tó.
- Deixa-o ir. E que vá prò Inferno!
As ondas parecem a sombra do bote, sombras a toda a volta, e a pior é a que já tenho nos olhos, e a gente pequenos, tão pequenos, aqui esquecidos de tudo, e aqui lembrados de tudo, a espera de um milagre, embora o Tó diga que é na mão da gente que está a vida; uma vontade danada de fugir e voltar sempre, vir aqui ao mesmo sítio, e a morte ali mesmo, à espera; apalpar tudo bem, porque o milagre só se dará se eu souber meter o bote no meio deste inferno e enfiar pelo meio duma fenda que se pode abrir agora ou mais daqui a bocadinho.
As raivas babosas e desencontradas golpeiam-lhe os flancos da lancha como machados agudos.
- Meu rico botezinho!
E nem uma trégua, um momento de calmaria para a gente ganhar alma, não vejo o Manel, o Zé está mesmo entre o Corrucho e o Barrasquinho, o Álvaro agarrou-se ao bico da proa, e vai ali a levar porrada que nem eu sei como se aguenta.
- Mete agora o motor a meia força!
- Já está!
- Eu não oiço!
-Mas está! Importe-se lá com o leme. A gente já podia estar em terra.
- Vais com medo?
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- Vou, sim, e depois? Vossemecê não tem? Olha! pois não que não tem!...
Sim, é um medo danado, que ninguém o sonhe, o Tó é capaz de perceber tudo, se calhar já podíamos estar em terra, onde tenho agora os olhos, que já ia atravessando o bote? Mas saber que estou vivo, ainda vivo, e os outros também, é uma bazófia maior do que o Mar. Não sei porquê, apetecia-me agora beber uma litrada de vinho, bebia-o duma vez, e outra logo a seguir, e então acabava-se tudo; sei lá se não é melhor passar o leme ao Tó, que esse já eu sei que tem sorte para uma companha inteira.
- Ah Tó! Ajuda-me aqui!
O filho não o ouviu. Pôs-se a limpar as mãos ao desperdício e o velho já sabe o que esse movimento quer dizer quando o Mar aperta.
- Ah meu pai! Experimente agora! Se fosse a si, experimentava agora...
- Lá vou...
- A noite caiu já em cima da gente. - Ajuda-me aqui!
- Hã?...
- Ha, gaita!
Este gajo quer que eu diga em voz alta para me ajudar, e isso custa-me, não quero que mais ninguém oiça que me faltam os olhos. É sinal de que estou velho e que não estou velho só para o Mar. E isso é pior ainda. Pior, não, mas esta é uma coisa danada. Não, não posso ficar mais à espera, já perdi muito tempo, trago aqui sete vidas e o bote, que é o pão de todos e ainda o há-de ser doutros; um bote que é uma espada, e logo uma rabiosa assim no primeiro dia de Mar, nunca nenhum barco novo teve um noivado destes, é mesmo azar, é mesmo um filho da mãe dum azar que anda agora comigo. Lá à proa, eles vão cheios de medo; se pudesse, embebedava-os...
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- Ah Tó! Tó! Vê se ouves bem! Dá a essa gente o resto da garrafa de aguardente! -E acrescenta em voz baixa: "Morram todos bêbedos, ao menos. Não custa tanto..."
Apetece-lhe chorar mais, chorar nunca ninguém o viu, mas agora precisa de abrir a água dos olhos, senão as veias rebentam-lhe.
Hei-de também chorar em terra, sozinho, se a gente chegar a terra, hei-de esfregar os olhos na areia para que fique cego duma vez.
- Ah Mar!... - diz aquilo e levanta-se de mão erguida.
Uma onda enrola-o, não sabe bem se os pés estão firmes, ou se já baldeou, mas a mão continua agarrada ao leme, agora já vê a proa, estarão todos?, e depois põe-se a contar os camaradas.
- Eles não querem beber, pai!
- Então, bebe tu.
- Não preciso.
- Dá cá a garrafa.
- Pra si, não. Vossemecê vai ao leme...
O Tó joga a garrafa às ondas e aproxima-se do velho, oferecendo-lhe a cara para que lhe bata. Zé Diabo Negro sorri num esgar, quer fazer-lhe uma carícia, mas atira-lhe uma bofetada, que é o carinho maior de que se sente capaz.
- Vem para aqui e ajuda-me. Já não tenho olhos... - Nem eu, pai. Mas os dois juntos somos capazes.
- Já perdemos muito tempo. E lixámos o Jaquim. Fui eu que o lixei.
Acena a cabeça - sabe lá o que mais deve dizer.
Esperar mais um bocadinho, só mais um bocadinho, a morte está à espera ali mesmo, ah coisa danada!, e não me deixar vergar por outra vaga como aquela que me quis
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levar, por muita gana que traga, porque ao cabo de tudo sempre se acaba por encontrar uma fenda na muralha, basta agarrar bem o medo e atirá-lo com força para os pés, já que não se pode jogá-lo para o Mar.
- Isto é um inferno, não é Mar! - cicia para o Tó.
O Gaivota anda também a seguir-me a rota, da borda talvez saiba mais do que eu, sempre foi pescador da xávega muito tempo, e ninguém conhece melhor a borda do que os arrais dessa arte. Ele está a emproar a terra, talvez vá agora, sim, é agora, Deus me ajude! A Senhora da Nazaré me ajude!, vamos lá agora, que já não é sem tempo.
- Vamos lá com Deus! - clama o velho com a voz quebrada. Que a Virgem da Nazaré ajude e veja a gente todos!
A companha tem agora os olhos postos no areal. Adivinham o rumorejar da gente, o que estão a fazer para os salvar; aqueles instantes parecem não ter fim.
O Tó segura bem o leme, o velho percebe-o. Ainda deixa a sua mão, quase mal lhe toca, mas afrouxa-a; sentiu uma tontura.O que será isto?
- Vamos prà vida ou prà morte, rapazes! Agarrem-se bem!... - brama o filho.
Ele ouve-o, quer ainda reagir, mas depois quebra-se.
- Queres que vá tomar conta do motor?
- Não, fique aqui comigo.O pai é que é o arrais. Diga lá mais qualquer coisa aos homens.
Zé Diabo Negro empertiga-se no banco e grita:
- Vamos agora pra terra! E vamos chegar, rapazes! Eu cegue se não vamos chegar em bem!
A proa endireita, começando a romper o capelo das ondas que se agarram aos flancos do bote.
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Dê aí força ao motor!
O velho nem repara que recebeu uma ordem do filho. Foram-se-lhe os melindres, não faz caso do tom áspero com que o Tó lhe falou, chega-se ao motor, aumenta-lhe a velocidade, e o bote arranca às upas por riba da ondulação. Da proa, como se alguém os chamasse, os homens voltam-se, vêem o Tó e sorriem-lhe.
- Ele tem sorte - diz o Corrucho para o Álvaro, que se limita a encolher os ombros; não há nada que o distraia da vista da areia, donde a vida lhe acena.
- Há bocado estive mesmo pra pedir ao arrais que
pusesse o Tó ao leme - acrescenta o Barrasquinho num
fio de voz.
Agarrados aos restos do mastro, o Zé Diabinho e o Álvaro estendem a mão para o Manel, que começa a erguer-se no convés. Parece bêbedo. Babuja palavras, faz gestos tontos, custa-lhe a abrir os olhos.
- Vamos pra terra, Manel! - grita-lhe o Zé num alegrão.
A notícia toca-lhe a alma e o corpo, sacode-os, corre os esconsos onde o medo se acoitara, ferve-lhe no sangue adormecido e põe-no de pé, nem ele sabe como deu aquele
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salto. E rebenta numa grita que vai agarrar-se à vozearia da praia.
- Vamos pra terra! Vamos pra terra!... A terra!...
O Mar entra agora por todos os lados, começa a encher o barco, as boeiras não conseguem dar vazão a tanta água que os assalta. Encharca-os mais, quer derrubá-los numa sanha, abre fundões onde os aperta e repele, atirando com a nave ao ar, cerca-os em fervilhões.
- Vamos pra terra! Vamos pra terra!-brama o Manel quase rouco.
A terra avança para eles, mas antes disso a morte espera-os. A morte ainda não se cansou.
Como se as vozes fossem agarrar-se também às que bramam no areal, os outros quatro começam a gritar com o Manel, talvez as de lá sejam capazes de puxá-los para além daquela barreira onde o Tó procura uma fenda para meter a proa do bote. O cachão referve mais, azorraga o costado da lancha, espadana-lhe à volta para sorvê-la num descuido do arrais.
A proa não cede. Adivinha as armadilhas, furta-se às ondas de través, tocadas pelos ventos falsários, donde sopra o vento?, defronta as que se levantam quase em cima da proa para lhe meter o focinho no turbilhão das correntes fundas.
O Tó chama o pai para junto de si, sabe bem que o velho já ali não faz nada, mas entende que lhe compete chegar a terra com a mão no leme. São da mesma família e do mesmo sangue; o pai ainda virá muitas vezes ao Mar como arrais.
Mas já um vagalhão se dobra sobre si mesmo, é um mar de cabana, uma concha negra que se abre à frente deles para os acolher e despedaçar. A morte vem ali. O bote caminha rápido, vai sacudido pelos verdugos de outras vagas agarradas à borda; e o mar de cabana avança,
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avança rápido, eles precisam de lhe fugir com a popa e talvez já não consigam. O Tó vê o vagalhão crescer mais, abrir-se já em franjas brancas, está mesmo ali, traz um peso de água que os vai esmagar. No meio daquela infer-neira de ondulações desencontradas ninguém chegará a terra. O velho fita-o a pedir qualquer coisa que o Tó sabe o que é, mas que não lhe poderá dar.
Encolhem-se ambos, ouvem a voz terrível do Mar mesmo por cima da cabeça, apavoram-se, fecham os olhos, agora é o fim!
o resto da companha grita mais e são vozes roucas e graves que clamam para terra.
De repente abre-se um raso à proa. É por aquela fenda que temos de passar, se esta vaga grande não nos afundar.O Tó pensa naquilo, entrega o leme só ao velho para acelerar o motor. E acelera-o.
A onda desfaz-se, ainda se enrola à hélice, que espadana na água, envolve-os depois de uma baba pastosa, mas fica lá atrás a rojar-se noutras vagas mais pequenas que caminham para o areal.
- Vamos pra terra! Vamos pra terra!
Os homens só têm agora dentro deles a zoeira das ameaças do Mar, que pincha e os açoita. Vêm também agora as correntes de água que regressam mais lentas da praia, onde o vento as atiça em saltos de manada à solta, vindo encontrar-se num choque brutal com as ondas, que avançam em rolos, sempre a rolar de cambulhada.
A morte tenta um último cerco.
Geme, espenuja-se, golpeia, rodopia. Quer ferir. Vai ferir.
O bote range no cavername, já se desfez o mastro num golpe de há instantes, parece que vai todo a quebrar-se pelo tabuado com as cintas desconjuntadas e as bordas partidas de tanto lutar com a vaga. O rugido do Mar vive
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agora dentro do bote sacudido pelo golpear das ondas de cabana que se levantam em concha e procuram levá-los para o fundo dos abismos.
Desvairados, os homens que vão à proa pensam que o barco se abriu, tanta água lhe entrou para dentro e continua a assediá-lo de todos os lados. Tomados de pânico, o Comicho e o Manel correm para a borda, atropelam-se, quase lutam, para ver qual deles chega mais depressa.
O velho levanta a cabeça, repara no filho e no outro, faz ainda um gesto para os deter, mas dali só consegue gritar:
- Não saltem ainda! Não saltem!...
Vem uma onda negra, foi o que o arrais viu, vem uma onda grande e negra, não sabia de que fundões amalçoados, e o velho larga um uivo:
- Ah Manel, não saltes!
Bicho acutilado, fica de boca escancarada com aquela dor terrível a correr-lhe no corpo, como se a angústia do mundo se tivesse despejado inteira para dentro dele.
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ENROLADO a seus pés, é um bicho ferido que ali vai, o velho soluça e uiva de cabeça esmagada sobre o peito, no qual descarrega punhadas para se flagelar. Tó Zarro não pode ajudá-lo, toda a atenção está posta agora na manobra de chegar a terra. Precisa de abrir uma fenda na muralha da morte, espreitá-la sem se iludir, mantendo o bote refreado entre a carreira das ondas ou regressando mais ao largo para escolher o momento de insistir na rota de apanhar um raso.
Chamou o Álvaro para tomar conta do motor, mandou os outros homens para a proa, prontos a saltarem logo que a lancha encalhe. Lembra-se do irmão e não consegue reter as lágrimas. Deixa-as cair, pede que venham mais, quer chorar naquele momento tudo o que tiver para chorar a vida inteira.
Foi um instante, nem o grito do velho lhe deitou a mão.
O barco avançara a tentear, já se confundiam os brados da companha com a algazarra dorida dos que esperam na areia. O Manel correra à borda, vislumbrara a falsa miragem da terra ali mesmo a meter-se-lhe pelos olhos e atirara-se à vaga, na ânsia de viver.
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Todos viram, sim, todos viram o irmão saltar, incapaz de sofrer por mais tempo o frenesi daquele medo cheio de ameaças que lhe prometia há mais de doze horas.O Mar enrolara-o logo, parecia guloso do seu corpo, onde a morte ganhara raízes, e arrastara-o numa cavalgada brusca lá para longe. Ainda tentara perseguir as vagas que o tinham abraçado, mas elas corriam alucinadas para além do seu alcance, e bramiam, vascolejavam, indo escondê-lo e guardá-lo nas profundezas.
Estivera prestes a lançar-se também. Ainda não sabia como pudera conter-se. Talvez fosse melhor. Agora ficaria com aquela morte às costas. Mas o pai entregara-lhe o mando do bote, e incumbe ao arrais pô-lo a salvo na areia, aconteça o que acontecer. Sem alma que lhe doa, nem lágrimas que o perturbem.
Agora não pode ser um homem qualquer... Dentro do malvadio, o arrais deixa de ter sentimentos, todo ele é olhos e um braço, prontos a manejar o leme. Só duas coisas de um homem, e ambas sozinhas mais do que um homem.
Atira um pontapé ao velho e insiste, até que ele se mova.
- Vá prà proa! - ordena depois.
- Deixa-me ficar aqui, Tó!...
- O arrais sou eu. Não gosto de repetir ordens... Vá prà proa, já disse!
Deixou de ver o outro bote, nem agora lhe interessa. Chegou a hora do salve-se quem puder. Ali já não poderão ajudar-se.
- Vá! Vá da vante! - grita para o Álvaro.
Cruza as ondas que avançam ainda, acena ao Corrucho e ao irmão mais novo para levarem o velho e deita-se com todo o corpo para cima da cana do leme. Ligeira e pronta,
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a pequena nave roça a água com a borda. Tó Zarro levanta-se e olha o Mar.
- Ah Mar!,..
A sua frente, num instante, aparece-lhe de súbito a carreira aberta. Entre as muralhas densas das vagas que regressam, lá está ela.
- Vá agora, Álvaro! Vá a toda a força! Fremente, o motor arranca num impulso, abanando o
cavername do bote, que ora afocinha, prestes a alagar-se com as ondas, ora se empina e as galga, outra e ainda outra, lá vem o raso, é agora!, já não podem voltar atrás. Toda a companha grita, de braços erguidos, como a quererem agarrar-se aos braços e aos gritos que da praia lhe acenam, é mais um momento, vão a chegar ao contrabanco, ali está o último ninho da morte, ali mesmo, numa caverna verde e azul aberta às escâncaras, toda babada do amarelo da areia que a raiva da maresia agatanha e traz consigo.
- Mais força! Mais força! Vá da vante!...
Como surpreso, o bote queda-se. Vem já da ré uma onda negra que rola, rola e muge, chegará em pouco tempo, talvez o tempo para um soluço, e irá arrastar e sorver tudo o que encontrar na frente das patorras franjadas de branco que já lá vêm.
Cresce até ao céu, cobrindo o rugir do Mar, o alarido angustiado da gente que espera na praia.
- Santíssimo Sacramento do altar! Nenhum escapa! - esganiça-se uma velha, a mover-se de rojo.
Mais mansas, as águas que regressam da areia parecem querer suster a nave, ganhando tempo até que as vagas encarreiradas cheguem para a última batalha. De repente, as sombras do crepúsculo vestem-se de luto carregado.
Dentro do Estrela do Mar entrou o pânico.
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Tó Zarro increpa o motorista:
- Dá-me força ao motor, desgraçado! Ficamos todos baldeados aqui!...
A primeira onda está perto, ainda cresce aos olhos da companha, mas, num instante, quebra-se a pique, bate com fragor e pincha, atirando com o bote para o borbulhido das águas espraiadas. A quilha toca na areia do fundo, atira com o impulso do choque mais um salto ao rés da fímbria das ondas mansas, e o bote aderna, todo pendido sobre o lado esquerdo, por onde já saltam os homens da proa, enquanto as grandes vagas encarreiradas se desfazem perto e arrastam o que encontram na fúria de destruir.
Agarrado à cana do leme, Tó dos Safios fica sozinho dentro do Estrela do Mar.
Toda a praia é um único grito de ansiedade.
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RAIVOSA, a vaga morde ainda o areal queimado pelos pés das mulheres.
Agora coou-se, num doloroso silêncio humano, o alarido da praia.
Só a rabiosa continua, lá em baixo, agitada e grulha, no fragor da maresia batida pelo vento. Vê-se-lhe a baba pastosa e branca crescer nas trevas, galgar de longe e espraiar-se em raivas que não encontram agora onde cevar a violência.
A sereia da lota começa a mugir - é um espasmo de dor naquela calma embalada e enganosa.
Perto um do outro, quebrados, os dois botes ficaram para ali depois de conseguirem arrastá-los com o tractor.
A maca levou cinco homens para o hospital, nenhum deles está em perigo de vida, mas a notícia dói-lhe na mesma. Zé Diabinho é um deles. Lá foi também por causa do ferimento feito pela tintureira e do susto que agarrou. Parecia um gato a fugir na areia, mal pôs o pé em terra. É o seu primeiro naufrágio, pensa o Tó. Começa a ter coisas da vida para um dia contar e, então, há-de lembrar-se com certeza do peixe que o marcou. E como parece o velho por uma pena, vai torná-lo ainda maior.
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Mari'Zarro, a avó, continua sentada no mesmo sítio, onde se deixou ficar quando percebeu as iras do temporal. Já conhece aquela ameaça de cor. Chama pelo neto, num fio lamentoso que confrange o Tó, embuçado no gabão de luto, a olhar a noite saturada de tragédia. A velha sabe que o Mar acabará por lho entregar, mas chama por ele:
-Ah Manel!... Ah neto! Manel!...
Puxa a capa para a cabeça, sente um frio muito fundo, mal sussurra o apelo, mas insiste. Deve estar a lembrar-se do filho, do Carlos, e dos outros homens que o Mar levou.
E o Mar responde-lhe.
Continua a rugir, não há dor de gente que cale aquele leão sagrado. A sua voz anda agora, vagabunda, por todas as ruelas da Nazaré.
Junto do bote partido, parece a carcaça dum cavalo morto, Zé Diabo Negro sacode-lhe as balizas por entre as tábuas que restam. A quilha é boa, o cavername é valente... Mando tirar estas estrelas daqui e o nome...
Cerra os olhos, pragueja. É bem feito, na minha idade não se põe o nome de raparigas a botes novos. Velho e tonto. Mando tirar isto tudo e faço a vontade ao Manel. "Preciosa" é um nome bonito!...
Tacteia o bico da proa, corre-lhe o lado de bombordo com as mãos, como se quisesse lembrar ao barco que ainda ali está. A lembrança do filho torna-se mais viva.
Afasta-se, encaminha-se até à borda, arrastando os pés. Quer mostrar-se à maresia para que o veja bem, sim, estou aqui!, as ondas espraiam-se com fragor.
É um rolo cavo a bater.
Deixa que a água o molhe, recua um pouco, quando outra vaga quebra e corre para ele, avança também, levantando o pé para a pisar. Pisa-a com raiva, deixa os pés bem marcados na areia, sim, estou aqui, sou eu, depois fica
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aturdido pelas lembranças daquelas horas e corre direito ao Mar com o braço erguido.
- Mar matador! Pra que não levaste o outro?!...
Sabe que o Tó chegou com a afilhada, apetece-lhe espancá-los ali, gente daquela não devia tocar a areia da praia. Uma onda maior avança para ele, Zé Diabo pensa aguentá-la, mas no último instante, quando a ouve quebrar, deita a fugir pelo areal, vem tonto, não sabe bem o que deve fazer, atira-se de chapuz para junto da mãe.
A velha pega-lhe na cabeça e deita-a sobre o regaço. Passa os dedos pelo rosto do filho, queima-se com as lágrimas dele, acalenta-o.
- Se te faz bem, chora, Zé...
- Não estou a chorar; nunca ninguém me viu chorar...
- Fazia-te bem.
- Fazia-me melhor matar esse desgraçado que é meu filho...
- O Tó não teve culpa...
Que sabe a mãe das culpas do Tó?!... Que sabe a mãe do que morreu dentro de si por causa dele?!...
Mari'Zarro conforta-o. Fala-lhe numa carícia, mais branda do que as das suas mãos entorpecidas:
- Enquanto não derem um portozinho à gente, o pão que aqui se comer há-de ter sempre o gosto da morte. Não se lhe dá outro jeito...
- Até lá a gente precisa de se atirar por aí dentro pra não morrer de fome e de pasmo - diz Zé Diabo Negro quase num grito.
Lá em baixo, o Mar ouve-lhe o desafio e solta um rugido maior.
Alves Redol
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