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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


UMA FILHA DO REGENTE / Alexandre Dumas
UMA FILHA DO REGENTE / Alexandre Dumas

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

           Uma Abadessa No Século XVIII

A 8 de Fevereiro de 1719, quando davam dez horas, passava o pórtico romano da abadia de Chelles, precedida por dois picadores e um pagem, uma cadeirinha brazonada com as três flores de liz e a corôa de Orleans. Chegando ao peristilo a cadeirinha parou; o pagem apressou-se a abrir a portinhola e apearam-se dois viajantes. O que desceu primeiro era um homem de quarenta e cinco a quarenta e seis anos, baixo, bastante gordo e corado, ágil nos movimentos, emanando de toda a sua pessoa um ar de superioridade e comando. O outro, que desceu mais vagarosamente, era também baixo, mas magro e envelhecido; o seu rosto sem ser precisamente feio, oferecia, não obstante a vivacidade que lhe cintilava nos olhos e a expressão de malícia que se notava nos cantos dos lábios, qualquer coisa de desagradável; parecia muito sensível ao frio, que era efectivamente muito forte, e seguia o seu companheiro ao mesmo tempo que tiritava debaixo do grande capote que o cobria.

O primeiro dos dois homens correu rapidamente para a escada que subiu como conhecedor do local, passou a uma vasta antecâmara, cumprimentando algumas religiosas que se inclinaram quase até ao chão e dirigindo-se apressado para uma sala de recepção, onde, urge dizê-lo, não se notavam vestígios dessa austeridade que é de ordinário a primeira condição do interior de um claustro.

O segundo, que subira vagarosamente a escada, passou pelas mesmas divisões, cumprimentou as mesmas religiosas, que se inclinaram quase tanto como tinham feito à passagem do seu companheiro, e acabou por se reunir ao outro na sala, sem todavia se apressar demasiado.

 

 

 

 

- Oh! Agora - disse o que entrara primeiro -, espera-me aqui enquanto te aqueces; vou ter com ela e em dez minutos acabo com todos os abusos de que me informaste; se ela negar e eu precisar de provas, chamar-te-ei.

- Dez minutos, monsenhor! - retrucou o homem do capote. - Hão-de passar duas horas antes que Vossa Alteza tenha sequer principiado o assunto que o trás aqui. Oh! a sr.a abadessa de Chelles é muito fina, ignora-o, por acaso?

E ao mesmo tempo que proferia estas palavras, instalou-se sem cerimónia numa poltrona que aproximara do fogão e estendeu as pernas.

- Meu Deus, não - replicou com impaciência aquele a quem qualificavam com o título de alteza -, e se pudesse esquecê-lo, tu te encarregarias de me recordar, graças a Deus! Que diabo de homem, porque me fizeste vir hoje aqui com este vento e esta neve?

- Porque não quis vir ontem, monsenhor.

- Ontem, era impossível, tinha que me encontrar justamente às cinco horas com milord Staer.

- Num pequeno prédio na rua dos Bons- Enfants. Então milord já não mora no palace da embaixada de Inglaterra?

- Sr. abade, proibi-lhe que me mandasse seguir.

- Monsenhor, o meu dever é desobedecer-lhe.

- Pois bem, desobedeça-me, mas deixe-me mentir à minha vontade, sem ter a impertinência, para me provar, que a sua polícia é bem feita, de me fazer notar que percebe que minto!

- Monsenhor, pode estar tranquilo, de hoje em diante acreditarei em tudo que me disser.

- Não lhe prometo fazer outro tanto, sr. abade, porque aqui, justamente, me parece que cometeu um erro.

- Monsenhor, sei o que disse, e não só o repito, mas mais ainda, o afirmo.

- Mas olha bem, nem ruído, nem luzes, um sossego de claustro; as informações foram erradas, meu caro, vê-se que estamos em atraso com os nossos agentes.

- Ontem, monsenhor, havia aqui uma orquestra de cinquenta músicos; um pouco distante, onde se ajoelha devotamente aquela jovem freira, havia um bufete e naquela galeria à esquerda, onde está preparada uma modesta ceia de lentilhas e de queijo para as santas filhas do senhor, dançava-se, bebia-se e.

- Que mais?

- Amava-se, monsenhor.

- Diabo, diabo! Estás certo do que afirmas?

- Um pouco mais certo do que se tivesse visto com os meus próprios olhos, eis porque fez bem em ter vindo hoje e melhor teria feito vindo ontem. Este género de vida não convém realmente a abadessas, monsenhor.

- Não, não é verdade, é bom para abades.

- Eu sou um homem político, monsenhor.

- Pois bem, minha filha é uma abadessa política, eis tudo!

- Oh! monsenhor, se o deseja pode continuar tudo na mesma; melhor do que ninguém sabe que não sou muito meticuloso em moral. Amanhã fazer-me-ão versos, mas já mos fizeram ontem e hão-de mos fazer depois de amanhã; o que faz uma canção a mais ou a menos? "Linda abadessa, de onde vens"? Irá deliciosamente com "Senhor abade, onde vai"?

- Vamos, vamos, está bem; espera-me aqui, vou ralhar.

- Creia-me, monsenhor, se quer ter bom êxito, ralhe aqui, ralhe diante de mim, se lhe faltarem argumentos ou memória, faça-me sinal e correrei em seu auxílio, tenha a certeza.

- Sim, tens razão - disse a personagem que se tinha encarregado do papel de defensor das injustiças e agravos cometidos, e no qual, segundo esperamos, o leitor reconheceu o regente Filípe de Orleans. Sim, urge que o escândalo cesse. Pelo menos um pouco; que a abadessa de Chelles só receba daqui em diante duas vezes por semana, que não se admitam mais essa multidão e essas danças e que se restabeleça a clausura, a fim de que não entre qualquer um neste convenco como um picador numa floresta. A menina de Orleans passou da dissipação às ideias religiosas; abandonou o Palais Royal para entrar em Chelles, não obstante todos os esforços que envidei para o impedir. Pois bem, que proceda como abadessa durante cinco dias, restar-lhe-ão ainda dois para fazer de grande dama; parece-me bastante.

- Muito bem, monsenhor, muito bem, começa a encarar o facto sob o verdadeiro ponto de vista.

- Não é o que queres?

- É o que é preciso; parece-me que uma abadessa que tem trinta escudeiros, quinze lacaios, dez cozinheiros, oito picadores, que joga as armas, que toca violoncelo, que atira sem errar o alvo, parece-me, monsenhor que uma abadessa assim não deve se aborrecer muito de ser religiosa.

- Ah, mas - disse o duque a uma velha religiosa que atravessava a sala com um molho de chaves na mão - não preveniram minha filha da minha visita? Desejo saber se devo ir aos seus aposentos ou esperá-la aqui?

- A senhora abadessa vem já, monsenhor - respondeu respeitosamente a religiosa se inclinando.

- Ora ainda bem - murmurou o regente que começava a pensar que a digna abadessa procedia bem pouco respeitosamente para com ele, quer como filha, quer como súbdito.

- Vamos monsenhor, lembre-se da famosa parábola de Jesus expulsando os mercadores do templo; sabe-a, ou devia sabê-la porque lhe ensinei com muitas outras coisas no tempo em que era seu preceptor; expulse esses músicos, esses fariseus, esses actores e esses anatomistas: deixe apenas três de cada profissão e ainda teremos uma bela escolta, asseguro-lhe, para nos acompanhar no regresso.

- Não tenhas medo, sinto-me inspirado para pregar.

- Nesse caso - retorquiu Dubois -, tudo corre o melhor possível, porque chega a a sr.a abadessa.

De facto, neste momento abriu-se uma porta que dava para o interior do convento e a tão impacientemente esperada aparecia no limiar.

Digamos em duas palavras quem era esta digna personagem que conseguira, à força de loucuras, despertar a cólera de Filipe d'Orleans, isto é, o homem mais fraco e o pai mais indulgente de França e de Navarra.

A menina de Chartres, Luísa-Adelaide d'Orleans, era a segunda e a mais bonita das três filhas do regente; tinha uma linda pele, uma tez soberba, belos olhos, esbelto porte e mãos delicadas; os dentes principalmente eram magníficos, e a princesa palatina, sua avó, comparava-os a um colar de pérolas num estojo de coral.

Além disso, dançava bem, cantava ainda melhor, decifrava a música à primeira vista e acompanhava admiravelmente; fora seu professor de música Cauchereau, um dos primeiros artistas da Ópera com o qual fizera rápidos progressos, o que é raro nas mulheres e principalmente nas princesas; é verdade que a menina d'Orleans punha uma grande assiduidade nas suas lições. Talvez breve o segredo dessa assiduidade seja revelado ao leitor como foi a duquesa sua mãe.

De resto, parecera ter mudado de sexo e de carácter com seu irmão Luís: gostava de cães, de cavalos e de cavalgadas durante o dia inteiro manejava os floretes, atirava de pistola ou de carabina, fazia fogo de artifício, não lhe agradando nada do que agrada às mulheres, e ocupando-se pouco do seu rosto, que, como já dissemos, valia bem a pena que lhe dessem atenção.

Contudo, no meio de tudo isso, a paixão da menina de Chartres era a música; levava ao fanatismo a sua predileção por esta arte; raras vezes faltava a uma representação da Ópera onde cantasse o seu mestre Cauchereau, dando ao artista provas da sua simpatia, aplaudindo-o como qualquer simples mortal e numa noite que esse artista fora assombroso numa grande ária, chegou a exclamar: Ah! bravo, bravo, meu querido Cauchereau! "

A duquesa d'Orleans achou não só o incitamento muito ardente, mas ainda a exclamação muito arriscada para uma princesa de sangue. Decidiu que a menina de Chartres já sabia bastante música, e Cauchereau, bem pago das suas lições recebeu aviso de que a educação musical da sua discípula estava terminada e não tinha necessidade de tornar a apresentar-se no Palais-Royal.

Além disso, a duquesa ordenou à filha que fosse passar uns quinze dias no convento de Chelles, de que era abadessa a irmã do marechal de Villars, uma das suas amigas. Foi, sem dúvida, nessa ocasião que a menina de Chartres, que seguia sempre o primeiro impulso, tomou a resolução de renunciar ao mundo: fosse como fosse, na Semana Santa de 1718, pedira a seu pai, que a atendera, para ir passar a Páscoa no convento de Chelles; mas passada a Páscoa, em vez de voltar a tomar o seu lugar de princesa no palácio, pediu para permanecer em Chelles como simples religiosa.

O duque, que já achava bastante um frade na família, era assim que denominava seu filho legítimo Luís, sem contar um dos seus filhos naturais que era abade de Saint-Albin, envidou os maiores esforços para se opor a essa estranha ideia; mas certamente porque encontrava essa oposição, a menina de Chartres teimou e ele teve que ceder: no dia 23 de Abril de 1718, pronunciou os votos.

Então o duque de Orleans, pensando que a sua filha pelo facto de ser religiosa, não deixava de ser uma princesa, tratou com a menina de Villars a respeito da sua abadia; doze mil libras de rendimento que asseguraram à irmã do marechal resolveram o caso; a menina de Chartres foi nomeada, portanto, abadessa de Chelles, e ocupava há um ano esse elevado posto de um modo tão singular, que tinha, como se viu, despertado a susceptibilidade do regente e do seu primeiro ministro.

Era portanto essa abadessa de Chelles, tão esperada, que acudia a receber as ordens de seu pai, rodeada não por essa corte elegante e profana que desaparecera com os primeiros alvores da madrugada, mas seguida pelo contrário por um cortejo de seis religiosas vestidas de preto e segurando velas acesas, e que fez pensar ao regente que sua Filha se submetia de antemão aos seus desejos. Acabara-se o ar de festa, de frivolidade, de dissipação, só se viam rostos austeros no meio do aparato mais sombrio.

Entretanto o regente pensava que enquanto o tinham feito esperar, podiam bem ter preparado aquela lúgubre cerimónia.

- Não gosto de hipocrisia - disse ele num tom decidido -, e perdoo facilmente os vícios quando não tentam ocultá-los sob o manto de virtudes. Estas velas de hoje parecem- me, minha senhora, restos de ontem. Vejamos, as suas flores murcharam todas a tal ponto e fatigou de tal modo os seus convidados, que não pode mostrar-me hoje nem um ramo nem um bailarino?

- Senhor - retorquiu a abadessa num tom grave -, dirigiu-se mal, se veio aqui procurar distracções e festas.

- Sim, bem vejo - tornou o regente lançando um olhar para os espectros que acompanhavam sua filha -, e vejo também que se ontem teve festa, hoje faz penitência.

- Veio aqui para me sujeitar a um interrogatório? Em todo o caso, o que vê deve responder às acusações que Lhe apresentaram contra mim.

- Vinha dizer-lhe, minha senhora -, retrucou o regente, que começava a impacientar-se com a ideia de que queriam mistificá-lo -, vinha dizer-Lhe que me desagrada o género de vida que leva; as suas extravagâncias de ontem não são próprias de uma religiosa, as suas aus teridades de hoje são exageradas para uma princesa de sangue. Escolha, uma vez por todas, ser abadessa ou princesa real. Começaram a falar muito mal de si na sociedade e já tenho bastante que haver com os meus inimigos, sem que do fundo do seu convento me surjam também os seus.

- Infelizmente, senhor - volveu a abadessa num tom resignado -, quando dava festas, bailes e concertos que citavam como os mais belos de Paris, não consegui agradar a esses inimigos, nem a si, nem a mim mesma, muito menos o conseguirei agora que vivo enclausurada e retirada. Ontem despedi-me definitivamente do mundo; e hoje, ignorando a sua visita, tomei uma resolução de que não me demoverei.

- E qual é? - perguntou o regente, pensando que se tratava de alguma nova loucura.

- Aproxime-se da janela e olhe - retrucou a abadessa.

O regente aproximando-se de facto da janela, viu um pátio no meio do qual ardia uma enorme fogueira; ao mesmo tempo, Dubois, curioso como um verdadeiro abade, acercava-se dele.

Por diante da fogueira passavam e tornavam a passar diferentes pessoas que atiravam nela objectos de forma singular.

- Que é isto? - perguntou o regente a Dubois, que parecia tão surpreendido como ele.

- O que se queima neste momento? - perguntou o abade.

- Sim - tornou o regente.

- Parece-me um violoncelo, monsenhor.

- Assim é com efeito - disse a abadessa -, é o meu, um excelente violoncelo de Vulery.

- E queima-o? - exclamou o regente.

- Todos esses instrumentos são origens de perdição - disse a abadessa num tom compungido que indicava o arrependimento mais profundo.

- Ah, mas agora temos um cravo! - interrompeu o duque.

- O meu cravo, senhor, era tão perfeito que me arrastava a ideias mundanas; desde esta manhã condenei-o.

- E que cadernos de papel são aqueles que alimentam o fogo? - perguntou Dubois, a quem este espectáculo parecia interessar extraordinariamente.

- As minhas músicas que mandei queimar.

- As suas músicas? - perguntou o regente.

- Sim, e mesmo as suas - tornou a abadessa. - Olhe bem e verá passar por sua vez toda a sua ópera de Ponthée; deve compreender que do momento que me resolvi a isto a execução devia ser geral.

- Mas, senhora, está louca, acender uma fogueira com músicas, com instrumentos, é verdadeiramente luxo de mais.

- Faço penitência, senhor.

- Ah, diga antes que renova a sua casa e que achou assim um meio de comprar novos móveis, aborrecida como já está, sem dúvida, dos antigos!

- Não, monsenhor, não é nada disso.

- E então, que é? Fale-me francamente.

- É que me aborreci de me divertir e que realmente penso em fazer outra coisa.

- E o que vai fazer?

- Vou visitar, com as minhas religiosas, o jazigo que deve receber o meu corpo e o lugar que aqui ocuparei.

- Diabos me levem - disse o abade, mas desta vez, monsenhor perdeu o juízo.

- Deve ser muito edificante, não lhe parece? - continuou gravemente a abadessa.

- Com certeza - retrucou o duque e quando o souberem hão-de rir ainda mais do que das suas ceias.

- Acompanham-me, senhores? - prosseguiu a abadessa. - Vou entrar por alguns instantes no meu túmulo, é uma fantasia que tenho há muito.

- E tem tempo para lá ficar - disse o regente. - De resto, esse divertimento não foi inventado por si, e Carlos V, que se fez frade como a senhora se fez religiosa, sem saber bem porquê, pensou nisso no seu tempo.

- Não quer acompanhar-me, monsenhor? - tornou a abadessa dirigindo-se a seu pai.

- Eu? - respondeu o duque, que não professava a minima simpatia pelas ideias sombrias.

- Eu, ir ver túmulos, ouvir um "De Profundis"! Não, com a breca! E a única coisa que me consola de não poder escapar um dia ao "De Profundis" e ao túmulo, é que ao menos nesse dia não verei um nem ouvirei outro.

- Ah, senhor - disse a abadessa escandalizada -, não acredita então na imortalidade da alma?

- Creio que está doida varrida, minha filha. Diabo de abade, que me promete uma orgia e me faz assistir a um enterro.

- Com efeito, monsenhor - tornou o abade -, parece-me que preferia as extravagâncias de ontem, era mais alegre.

A abadessa cumprimentou e dirigiu-se para a porta. O duque e o abade entreolharam-se, não sabendo se deviam rir ou chorar.

- Ainda uma palavra - disse o duque à filha. - Está bem decidida por esta vez, ou foi alguma febre que Lhe transmitiu o seu confessor? Se está bem resolvida, nada tenho a dizer; mas se é febre, quero que a curem, com a breca! Tenho Moreau e Chirac a quem pago para me tratar e aos meus.

- Monsenhor - retorquiu a abadessa -, esquece que sei o suficiente de medicina para me curar se me julgasse doente; posso portanto assegurar-lhe que não estou doente, sou jansenista, eis o que é.

- Ah! - exclamou o duque -, temos aqui mais uma obra padre Le Doux; esse execrável beneditino! Ao menos para esse conheço uma dieta que há-de curá-lo.

- Qual é? - perguntou a abadessa.

- A Bastilha! - retorquiu o duque.

E saiu furioso, seguido por Dubois que ria às gargalhadas.

- Vês tu - disse ele após um demorado silêncio e quando se aproximavam de Parisque as tuas informações eram absurdas. Preparava-me para pregar e fui eu quem apanhou o sermão.

- Afinal é um pai feliz. Dou-lhe os meus cumprimentos pela regeneração de sua filha mais nova, a menina de Chartres; infelizmente, sua filha mais velha a sr. a duquesa de Berri.

- Oh - nem me fales nela, Dubois; é o meu pesadelo! Por isso, enquanto estou de mau humor.

- Então.

- Tenho boa vontade de o aproveitar para acabar com ela de uma vez.

- Está no Luxemburgo?

- Assim o creio.

- Vamos pois ao Luxemburgo, monsenhor.

- Vens comigo?

- Não o deixarei em toda a noite.

- Tenho projectos a seu respeito.

- A meu respeito!

- Vou levá-lo a uma ceia.

- Com mulheres?

- Sim.

- Quantas serão?

- Duas.

- E quantos homens?

- Dois.

- à conta. E divertir-me-ei?

- Penso que sim.

- Toma cuidado. Depois, olha que incorres numa grande responsabilidade.

- Monsenhor gosta de novidades?

- Gosto.

- Do imprevisto?

- Sim.

- Pois bem, há-de ter tudo isso: é tudo quanto Lhe posso dizer.

- Seja! - volveu o regente. - Primeiro ao Luxemburgo. depois.

- E depois, ao bairro Santo António.

E devido a essa nova determinação, o cocheiro recebeu ordem para se dirigir ao Luxemburgo em vez de ir ao Palais Royal.

 

         DECIDIDAMENTE A FAMÍLIA TOMA JUÍZO

A sr. duquesa de Berri, à casa de quem se dirigia o regente, era, embora ele não confessasse, a sua filha predilecta. Vítima aos sete anos de uma doença que os médicos consideraram mortal e abandonada por eles, o pai, que entendia de medicina, como ninguém o ignora tratou-a a seu modo e conseguiu salvá-la. Desde então, esse amor paternal do regente tornara-se fraqueza. Deixava essa criança teimosa e altiva Fazer tudo quanto queria; a sua educação, muito descurada, ressentira-se desse facto, o que não impediu que Luís XIV a escolhesse para mulher de seu neto, o duque de Berri.

Todos sabem como em poucos anos morreu toda a posteridade real, o delfim, o duque e a duquesa de Borgonha, e o duque de Berri.

Viúva aos vinte anos, amando o pai com uma ternura quase igual à que ele lhe votava, tendo que escolher entre a sociedade de Versailles e a do Palais-Royal, a duquesa de Berri, bela, jovem, amando o prazer, não hesitara: partilhara as festas, os prazeres e até algumas das orgias do duque; e de súbito, estranhas calúnias, saindo ao mesmo tempo de Saint-Cyr e de Seceaux, proferidas pela senhora de Maintenon e pela senhora de Maine, espalharam-se sobre as relações do pai e da filha. O duque d'Orleans, com a sua habitual indiferença, deixou correr esses boatos que se tornaram e permaneceram como fortes acusações de incesto que, apesar de não terem nenhum carácter histórico aos olhos dos homens que conhecem a fundo essa época, não deixam de ser uma arma nas mãos dos que têm interesse em rebaixar o procedimento do homem particular para diminuir a grandeza do homem político.

Mas há mais: com a sua fraqueza cada vez maior, o duque d'Orleans colaborara nesses boatos; tinha dado à filha, que já possuía seiscentas mil libras de rendimento, quatrocentos mil francos da sua fortuna pessoal, o que lhe elevava o rendimento a um milhão; abandonara-Lhe ainda o Luxemburgo, e cedera-lhe uma companhia de guardas para fazer serviço no seu palácio. Por último, o que desesperava os respeitadores da velha etiqueta, apenas encolhera os ombros quando a duqueza de Berri atravessara Paris precedida de símbolos e de trombetas, o que escandalizara toda a gente de bem e apenas rira quando ela recebeu o embaixador veneziano num trono com três degraus, o que estivera prestes a causar desinteligência entre os franceses e a república de Veneza.

Estava para Lhe conceder um outro pedido não menos exorbitante, que com certeza ia erguer protestos entre a nobreza: era nem mais nem menos do que um dossel na Ópera, quando, felizmente, para a tranquilidade pública e desgraçadamente para a felicidade do regente, a duquesa de Berri se apaixonou pelo cavaleiro de Rion.

O cavaleiro de Rion era um cadete de Auvergne, sobrinho do duque de Lauzun, que fora em 1715 para Paris em busca de fortuna, e que a encontrara no Luxembourg. Apresentado à princesa pela senhora de Monchy, de quem era amante, não tardara a exercer sobre ela essa influência de família que seu tio, o duque de Lauzun, tinha, cinquenta anos antes, exercido na filha do irmão do rei, e pouco depois era declarado amante da duquesa, não obstante a oposição do seu predecessor Labaie, que foi então enviado como adido à embaixada de Dinamarca.

A duquesa de Berri não tivera portanto senão dois amantes, o que, deve-se convir, era quase virtude para uma princesa daquela época: Labaie, que nunca se declarara como tal, e Rion que o proclamava em voz alta. Não era portanto agravo suficiente para o encarniçamento com que perseguiam a pobre princesa. Urge, todavia, não esquecer que esse encarniçamento tinha outra causa que achamos consignada não só em Saint-Simon, mas em todos os historiadores da época: é esse fatal passeio por Paris com símbolos e trombetas, esse desgraçado trono com três degraus onde recebera o embaixador de Veneza e, por último, a exorbitante pretensão de querer ter um dossel na Ópera.

Não era, porém, essa geral indignação, suscitada contra a princesa, que encolerizara o duque contra sua filha, mas o império que sobre ela tomara o amante: Rion discípulo desse mesmo duque de Lauzun que esmagava de manhã a mão da princesa de Mónaco com o salto das botas que a filha de Gastão d'Orleans Lhe descalçava à noite, e que tinha dado a seu sobrinho terríveis instruções a respeito das princesas e que este seguia à letra: Ás princesas de França - dissera ele a Rion -, devem ser levadas com "severidade"; Rion, cheio de confiança na experiência do tio, soubera tão bem governar a duquesa de Berri, que esta não ousava dar uma festa sem ouvir a sua opinião, não ia à Ópera sem sua licença e não punha um vestido sem o seu conselho.

Resultara deste estado de coisas que o duque, que amava muito sua filha, sentia por Rion, que a afastava dele, um ódio tão forte quanto o seu carácter indiferente lhe permitia experimentar. Sob pretexto de realizar os desígnios da duquesa, dera um rendimento a Rion, depois o governo da cidade de Cognac, e por último, ordem para se dirigir para o seu posto; o que começava, para toda a gente que percebia bem as coisas, a mudar em desvalimento o favor que Rion gozara até ali.

A duquesa também não se tinha enganado; correra ao Palais Royal, apesar de se ter levantado pouco antes de parto, e suplicara a seu pai, mas inutilmente; depois zangara- se ameaçara mas ainda inutilmente. Por fim, retirara-se, ameaçando o duque com toda a sua cólera, e afirmando-lhe que, a despeito da sua ordem, Rion não partiria. O duque, na manhã seguinte, retirou a Rion a ordem de partir e o favorito mandara- lhe respeitosamente dizer que obedeceria sem demora.

Com efeito, nesse mesmo dia, que era a véspera daquele a que chegamos, Rion sabia ostensivamente do Luxemburgo, e o duque de Orleans foi prevenido pelo próprio Dubois que o novo governador, seguido pelas suas equipagens, partira às nove horas da manhã para Cognac.

Tudo isso se passara, sem que o duque tivesse tornado a ver a filha; portanto, quando falou em aproveitar a sua cólera para se entender com ela, era mais um perdão que ia pedir-Lhe, do que uma discussão que se preparava para travar.

Dubois, que o conhecia, não se deixara iludir por aquela suposta resolução; mas Rion tinha partido para Cognac e era tudo quanto Dubois desejava. Esperava, durante a ausência, apresentar algum novo secretário ou qualquer outro capitão da guarda, que apagasse a recordação de Rion no coração da princesa. Depois, Rion receberia ordem para se reunir, em Espanha, ao exército do marechal de Berwiek, e pensar-se-ia tanto nele como se pensava em Labaie que se encontrava na Dinamarca.

Tudo isto estava longe de constituir um projecto muito moral, mas pelo menos era um plano muito lógico. Não sabemos se o ministro dera parte deste plano ao seu senhor.

A carruagem parou em frente do Luxemburgo que se encontrava iluminado como de costume. O duque apeou-se e subiu a escada com o seu habitual desembaraço. Quanto a Dubois a quem a duquesa detestava, ficou bem recostado a um canto da carruagem. Passado um momento o duque reaparecia, mostrando no rosto grande desapontamento.

- Ah! ah! Monsenhor - disse Dubois -, Vossa Alteza por acaso foi posta na rua?

- Não, mas a duquesa não está no Luxemburgo.

- Onde está então? Nas Carmelitas?

- Acha-se em Meudon.

- Em Meudon! No mês de Fevereiro e com semelhante tempo! Monsenhor, esse amor pelo campo parece-me demasiado suspeito.

- E a mim também, confesso; que diabo estará ela fazendo em Meudon?

- É fácil de saber.

- Como assim?

- Vamos a Meudon.

- Cocheiro, a Meudon! - disse o regente pulando para a carruagem. - Tem vinte e cinco minutos para chegar lá.

- Observarei a monsenhor - tornou humildemente o cocheiro -, que os cavalos já andaram dez léguas.

- Rebente-os, mas esteja em Meudon daqui a vinte e cinco minutos. Não havia que retrucar a uma ordem tão explícita.

O cocheiro deu uma violenta chicotada nos cavalos, e os nobres animais, atónitos por terem de os obrigar a semelhante extremo tornaram a partir num trote tão rápido como se tivessem saído pela primeira vez naquele momento.

Durante todo o trajecto, Dubois esteve mudo e o regente preocupado. De vez em quando, um ou outro lançava um olhar investigador para a estrada, mas esta nada oferecia que fosse digno de atrair a atenção do regente ou do seu ministro e chegaram a Meudon sem que coisa alguma tivesse podido guiar o duque no dédalo de pensamentos contraditórios em que estava mergulhado.

Desta vez, desceram ambos; a explicação entre o pai e a filha podia ser demorada, e Dubois desejava esperar que ela terminasse num lugar mais cómodo do que uma carruagem.

À entrada, encontraram o guarda-portão de grande uniforme. Como o duque estava embuçado no seu capote assim como Dubois, o guarda-portão fê-los parar. O duque deu-se a conhecer.

- Perdão - disse o porteiro -, mas ignorava que monsenhor fosse esperado.

- Está bem - retrucou o duque -, esperado ou não, estou aqui, mande prevenir a princesa por um criado.

- Monsenhor vem assistir à cerimónia? - perguntou o guarda-portão que parecia visivelmente embaraçado, porque, sem dúvida, recebera ordens severas.

- Logicamente que monsenhor vem assistir à cerimónia - replicou Dubois interrompendo o duque d'Orleans, que ia perguntar de que cerimónia se tratava; e eu também.

- Nesse caso, conduzirei monsenhor directamente à capela.

Dubois e o duque se entreolharam como quem não compreende coisa alguma. - capela? - repetiu o duque.

- Sim, monsenhor, porque a cerimónia começou há mais de vinte minutos.

- Ora esta! - tornou o regente inclinando-se para o ouvido de Dubois. - Também esta irá tornar-se religiosa?

- Monsenhor - disse Dubois -, apostemos antes que se casa.

- Com mil diabos! - exclamou o regente, não faltava mais nada.

E correu para a escada seguido por Dubois.

- Monsenhor não quer que o mande conduzir? - tornou o guarda-portão.

- É inútil - gritou o regente, já no alto da escada -, sei o caminho. Efectivamente, com essa agilidade tão surpreendente num homem daquela corpulência, o regente atravessava quartos e corredores, seguido de Dubois que desta vez tomava pela aventura esse diabólico interesse de curiosidade, que fazia dele o Mefistófeles desse outro pesquisador do desconhecido a quem chamavam, não Fausto mas Filípe d'Orleans.

Assim chegaram à porta da capela, que parecia fechada, mas que se abriu ao primeiro esforço que fizeram para a empurrar.

Dubois não se havia enganado nas suas conjecturas.

Rion, que regressara sem que ninguém o soubesse, depois de ter partido com toda a ostentação, estava de joelhos ao lado da princesa em frente do capelão da duquesa de Berri; enquanto o sr. de Pons, parente de Rion, e o marquês de la Rochefoucault, capitão da guarda da princesa, seguravam o véu imperial sobre as suas cabeças; os senhores de Mouchy e de Lauzun achavam-se um à esquerda da duquesa e o outro à direita de Rion.

- Decididamente, a sorte nos é adversa, monsenhor - disse Dubois -, chegamos dois minutos tarde demais.

- Espera! - exclamou o duque desesperado, dando um passo para o coro. - É o que vamos ver.

- Silêncio! Monsenhor - tornou Dubois -, como abade, devo impedir que cometa um sacrilégio. Ah! Se fosse útil, não me oporia, mas este não serviria para coisa alguma.

- Mas já estão casados? - perguntou o duque, recuando, impedido por Dubois, para trás de uma coluna.

- O que há de mais casados, monsenhor, e agora nem o diabo os desuniria sem o auxílio do Papa.

- Pois bem, escreverei para Roma - disse o duque.

- Não faça tal, monsenhor! - exclamou Dubois; não gaste o seu crédito para um caso destes, há-de precisar dele quando se tratar de me fazer cardeal.

- Mas um casamento tão desigual é intolerável! - disse o regente.

- Os casamentos desiguais estão muito em moda - disse Dubois -, e hoje não se ouve falar de outra coisa. Sua Majestade Luís XIV fez um casamento desigual desposando a senhora de Maintenon, a quem Vossa Alteza dá ainda uma pensão como sua viúva; a sobrinha do rei fez outro tanto casando com o sr. de Lauzun; o seu casamento com a menina de Blois foi desigual, tanto que quando o anunciou à princesa palatina sua mãe, ela respondeu-Lhe dando uma bofetada; enfim, eu mesmo, monsenhor, não fiz um casamento desigual unindo-me à filha do mestre escola da minha aldeia? Bem vê, monsenhor, que depois de tantos augustos exemplos, a princesa sua filha pode proceder como fez.

- Cala-te, demónio - retorquiu o regente.

- Demais - continuou Dubois -, como sabe, monsenhor, os amores da senhora marquesa de Berri começavam a causar, devido à gritaria do abade de S. Sulpício, mais ruído do que convinha; era um escândalo público que este casamento secreto, que amanhã será conhecido em todo Paris, fará cessar; ninguém pode dizer nada, nem tão pouco Vossa Alteza; decididamente, monsenhor, a sua família toma juízo.

O duque d'Orleans soltou uma terrível imprecação, à qual Dubois respondeu com uma risada que Mefistófeles teria invejado.

- Silêncio! - gritou o suíço que ignorava quem fazia aquele barulho e que não queria que os esposos perdessem uma palavra da piedosa prédica do capelão.

- Silêncio, monsenhor - repetiu Dubois - bem vê que está perturbando a cerimónia!

- Vais ver - replicou o duque -, que se não nos calarmos, minha filha mandar-nos-á pôr na rua.

- Silêncio! - tornou ainda o suíço batendo nas lages do coro com o seu bastão, enquanto a duquesa de Berri enviava o sr. de Monchy saber qual era a causa daquele escândalo.

O sr. de Monchy obedeceu às ordens da princesa, e, distinguindo na penumbra duas pessoas que pareciam ocultar-se, aproximou-se de cabeça erguida e ar altivo.

- Quem está fazendo este barulho? - disse ele. - E quem lhes permitiu, senhores, entrarem na capela?

- Aquele que teria boa vontade de fazê-los sair todos pela janela - redarguiu o regente -, mas que se contenta por enquanto de o encarregar de dar ordem ao sr. de Rion para partir imediatamente para Cognac, e intimar a duquesa de Berri da proibição de se tornar a apresentar no Palais-Royal.

E, dizendo estas palavras, o regente saiu fazendo sinal a Dubois para que o seguisse, e deixando o duque de Monchy deveras aterrado com a sua presença.

- Para o Palais-Royal! - disse o príncipe subindo para a carruagem.

- Para o Palais-Royal? - tornou prontamente Dubois. - Não monsenhor, esqueceu as nossas combinações; segui-o com a condição que me seguiria por sua vez. Cocheiro, vamos ao bairro Santo António.

- Vai para o diabo, não tenho fome.

- Seja, Vossa Alteza não precisa comer.

- Não estou com disposições para me divertir.

- Seja, também não se divertirá.

- E que farei então, não comendo nem me divertindo?

- Vossa Alteza verá os outros comer e divertirem-se.

- Que queres dizer?

- Quero dizer que Deus está para realizar milagres em seu proveito, monsenhor, e que, como este facto não se dá todos os dias, não se deve abandonar a partida em tão bom caminho; já vimos dois esta noite, vamos assistir a um terceiro.

- A um terceiro?

- Sim, "numero Deus impare gaudet"; o número ímpar agrada a Deus. Espero que não tenha esquecido o seu latim, monsenhor?

- Explica-te - disse o regente, que estava pouco disposto para gracejos. - És bastante feio, certamente, para te apresentares como esFinge, mas já não tenho idade para representar o papel de Édipo.

- Pois bem, monsenhor, digo-lhe que depois de ter visto as suas duas filhas que eram muito loucas, darem um passo para a sensatez, vai ver seu filho, que era muito sensato, dar o seu primeiro passo para a loucura.

- Meu filho Luís?

- Seu filho Luís em carne e osso: vai esta noite perder a timidez, monsenhor, e é a esse espectáculo tão lisonjeador para o orgulho de um pai que o convidei a assistir.

O duque abanou a cabeça em ar de dúvida.

- Ah, abane a cabeça tanto quanto quiser, monsenhor, é como Lhe digo!

- E de que modo perde ele a timidez? - tornou o regente.

- De todos os modos, monsenhor, e é ao cavaleiro de M. que encarreguei de industriá-lo nos primeiros passos; ceia esta noite com ele e duas mulheres.

- E quem são essas mulheres? - perguntou o regente.

- Só conheço uma, o cavaleiro de M. encarregou-se de levar a outra.

- E ele acedeu?

- Da melhor vontade.

- Tenho a certeza, Dubois - disse o duque -, que se tivesses vivido no tempo do rei S. Luís, tê-lo-ias levado à casa da Fillon dessa época.

Um sorriso de triunfo acudiu ao rosto de macaco de Dubois.

- Monsenhor queria - continuou ele -, que seu filho desembaínhasse a espada como Vossa Alteza fazia outrora e como ainda hoje deseja fazer. Pois tomei as minhas precauções para que assim suceda.

- Realmente!

- Sim, o cavaleiro de M. durante a ceia há-de encontrar pretexto para uma briga. Vossa Alteza desejava que seu Filho se metesse numa aventura amorosa; se resistir à sereia que lhe preparei, é um Santo António.

- Foste tu que a escolheste?

- Pois quem havia de ser, monsenhor? Quando se trata da honra da família de Vossa Alteza, bem sabe que pode confiar em mim. Esta noite portanto a orgia, amanhã de manhã o duelo. E amanhã à noite, ao menos, o nosso neófito poderá se assinar Luís d'Orleans sem comprometer a reputação de uma ilustre mãe, porque há-de ver-se que o rapaz tem o seu sangue, o que, diabos me levem, ter-se-ia a tentação de duvidar vendo o modo singular como procede.

- Dubois, tu és um miserável! - disse o duque rindo pela primeira vez desde que saíra de Chelles. - E vais perder o filho como perdeste o pai.

- Como quiser, monsenhor - retrucou Dubois -, é ou não preciso que ele seja príncipe, que seja homem ou frade, que se decida por um ou outro partido, é tempo ainda: monsenhor só tem um filho, um filho que vai fazer dezasseis anos, um filho que não manda para a guerra sob pretexto que é o único que tem, mas na realidade porque não sabe como ele procederia.

- Dubois! - disse o regente.

- Pois bem, amanhã, sabê-lo-emos.

- Para mim não oferece dúvida.

- Ah, tem então a certeza que se sairá bem?

- Sabes que acabas por me insultar? Parece-te que seja uma coisa verdadeiramente impossível tornar apaixonado um homem que tem nas veias o meu sangue, e um extraordinário milagre fazer um príncipe do meu nome manejar a espada. Dubois, meu amigo, nasceste abade e abade hás-de morrer.

- Isso não, monsenhor - exclamou Dubois -, pretendo melhor do que isso. O regente riu.

- Ao menos tu tens uma ambição, não és como esse imbecil do Luís que nada deseja; e essa ambição diverte-me bem mais do que calculas.

- Realmente - tornou Dubois -, não julgava ser tão doido!

- Pois é modéstia, porque és a criatura mais divertida que existe no mundo, quando não és a mais perversa; por isso te juro que no dia em que fores arcebispo.

- Cardeal, monsenhor!

- Ah, é cardeal que queres ser?

- Enquanto espero ser papa.

- Pois nesse dia, juro-te!

- No dia em que eu for papa?

- Não, no dia em que fores cardeal, hão-de rir muito no Palais-Royal, juro- te.

- Também hão-de rir em Paris, monsenhor; mas, como Vossa Alteza disse, sou por vezes tonto e quero fazer rir, eis aí porque desejo ser cardeal.

E quando Dubois manifestava esta pretensão, a carruagem parou.

 

                 O RATO E A RATA

A carruagem parou no bairro Santo António, em frente de um prédio oculto por um elevado muro por detrás do qual se viam alguns álamos como que para esconderem essa casa aos próprios muros.

- Parece-me - disse o regente - que é neste local que se encontra a casa de Nocé.

- Justamente, monsenhor, tem boa memória.

- E fizeste bem as coisas, Dubois? A ceia é digna de um príncipe de sangue?

- Fui eu mesmo encomendá-la. Ah! Nada faltacá ao príncipe Luís; é servido pelos criados de seu pai, a ceia foi feita pelo cozinheiro de seu pai, declara o seu amor à.

- A quem?

- Vossa Alteza vai ver; quero fazer-Lhe uma surpresa, que diabo!

- E os vinhos?

- São da sua adega, monsenhor; espero que esses licores de família impedirão o sangue de mentir, porque já há muito que vem mentindo.

- Não tiveste tanto trabalho a fazer falar o meu, não é assim, corruptor!

- Sou eloquente, monsenhor, mas concordo que foi bom ouvinte. Entremos.

- Tens chave?

- Ora essa!

E Dubois tirou da algibeira uma chave que meteu discretamente na fechadura. A porta abriu-se sem ruído e tornou a fechar-se sobre o duque e o seu ministro; era uma verdadeira porta de casa que conhece os seus deveres para com os grandes senhores que Lhe fazem a honra de transpor o seu limiar.

Viram nas persianas fechadas alguns reflexos de luz, e os lacaios, de sentinela, no vestíbulo, informaram os ilustres visitantes de que a festa já tinha começado.

- Triunfas, abade! - disse o regente.

- Coloquemo-nos sem demora nos nossos lugares, monsenhor - retrucou Dubois. Tenho pressa de ver como procede o príncipe.

- Também eu - volveu o regente.

- Então siga-me, e nem uma palavra.

O regente seguiu em silêncio Dubois a um gabinete que comunicava com a sala de jantar por meio de uma abertura em arco que se achava cheia de flores, através das quais se podiam ver e ouvir distintamente os convivas.

- Ah! Ah! - disse o regente reconhecendo o gabinete. - Estou em país conhecido.

- Mais do que julga, monsenhor; mas não esqueça que seja o que for que veja ou ouça, tem que se calar, ou pelo menos falar baixo.

- Fica tranquilo.

Ambos se aproximaram das aberturas que davam para a sala de jantar, ajoelharam sobre um sofá e afastaram as flores para não perderem nada do que se ia passar.

O fillho do regente, mancebo de quinze anos e meio, estava sentado numa poltrona justamente defronte de seu pai, do lado oposto da mesa; e voltando as costas aos dois curiosos, achava-se o cavalheiro de M. duas mulheres, luxuosamente arranjadas completavam o grupo de que Dubois falara ao regente: uma sentava-se ao lado do jovem príncipe, a outra junto do cavalheiro. O anfitrião, que não bebia, discursava; a mulher que se encontrava ao lado mostrava-se aborrecida e, de vez em quando, bocejava.

- Ora esta - disse o duque, que era míope, tentando reconhecer a mulher que estava defronte dele -, parece-me que conheço aquela cara.

E fixou a mulher com mais atenção.

- Mas vejamos - continuou o regente -, uma mulher morena com olhos azuis!

- Uma mulher morena com olhos azuis - repetiu Dubois. - Continue, monsenhor.

- Aquela figura encantadora, aquelas mãos Finas e delgadas.

- Que mais?

- Aquele focinhosinho rosado.

- Vamos, vamos.

- Mas, caramba, não me engano, é a Rata!

- Até que enfim!

- Como, celerado, foste justamente escolher esta!

- Uma pequena das mais encantadoras, monsenhor, uma nínfa da Ópera; parece-me que não podia encontrar melhor para distrair um rapaz.

- Era esta a surpresa que me preparavas, quando me disseste que era servido pelos criados de seu Pai, que bebia os vinhos de seu pai e que declarava o seu amor à.

- A amante de seu pai, sim, monsenhor, é isso mesmo.

- Mas, desgraçado - exclamou o duque -, é quase um incesto que fazes cometer!

- Ora! - tornou Dubois. - O caso é conseguir que ele ame.

- E ela aceita essas combinações?

- É o seu ofício, monsenhor.

- E com quem pensa estar?

- Com um fidalgo da província que vem gastar a legitíma em Paris.

- Quem é a sua companheira?

- Ah, a esse respeito nada sei. O cavalheiro de M. foi quem se encarregou do cesto. Neste momento, a mulher que estava sentada junto do cavalheiro, julgando ouvir murmúrio de vozes por detrás de si, virou-se.

- Mas - exclamou Dubois deveras estupefacto -, não me engano. A outra mulher.

- E então, a outra mulher? - perguntou o duque.

- É Júlia! - exclamou Dubois. - Desgraçada!

- Ah! com mil demónios! - disse o duque. - Isto é que torna o caso deveras completo, a tua amante e a minha! Palavra de honra, dava alguma coisa para poder rir à minha von tade.

- Espere, monsenhor, espere.

- E então! Estás doido? Que diabo vais fazer, Dubois? Ordeno-te que fiques aqui. Estou curioso de ver como tudo isto acaba.

- Obedeço-lhe, monsenhor - retorquiu Dubois -, mas declaro-lhe uma coisa.

- Qual é?

- É que já não acredito na virtude das mulheres!

- Dubois - tornou o regente reclinando-se no sofá, enquanto o abade fazia outro tanto -, és adorável, palavra de honra! Deixa-me rir, ou sufoco.

- Pois sim, monsenhor, podemos rir ambos, mas baixinho; tem razão, é preciso ver como isto acaba.

E ambos riram o mais de mansinho que puderam, voltando em seguida ao lugar de observação que haviam abandonado por um instante.

A pobre Rata bocejava horrorosamente.

- Sabe monsenhor - disse Dubois -, que o príncipe não parece nada animado?

- Acreditar-se-ia que não bebeu.

- E as garrafas vazias que se vêem ali, quem deu conta delas?

- Tens razão; contudo o fidalgo está bem sério!

- Tenha paciência; olhe, parece que se anima; escute, vai falar.

De facto, o rapaz, erguendo-se da poltrona, repeliu com a mão a garrafa que a Rata Lhe oferecia.

- Quis ver - disse ele sentenciosamente - o que é uma orgia, vi, e declaro-me pouco satisfeito. Um sábio disse: "Ebrietas omne vitium deliquit".

- Que diabo diz ele agora? - disse o duque.

- Isso vai mal - tornou Dubois.

- Como! Senhor - exclamou a vizinha do jovem duque mostrando uns dentes mais lindos do que pérolas -, não gosta de cear?

- Não gosto de comer nem de beber - volveu o rapaz -, quando já não tenho fome nem sede.

- Tolo! - murmurou o regente.

E voltou-se para Dubois que mordia os beiços.

O companheiro do príncipe riu e disse-lhe:

- Há-de exceptuar, espero, dessa sociedade as nossas encantadoras companheiras.

- Que quer dizer, senhor?

- Ah! ah! Zanga-se - disse o regente. - A coisa vai bem!

- Quero dizer - respondeu o cavaleiro - que não há-de fazer a estas senhoras a injúria de Lhes testemunhar a sua falta de entusiasmo em gozar da sua companhia retirando-se assim.

- É tarde, senhor - disse Luís d'Orleans.

- Ora - tornou o cavalheiro -, ainda não é meia-noite!

- E demais - tornou o duque, procurando uma desculpa -, e demais. tenho uma noiva. As mulheres desataram a rir.

- Que animal! - murmurou Dubois.

- Então! - disse o regente.

- Ah, é verdade, esqueci-me! Perdão, monsenhor.

- Meu caro - disse o cavalheiro -, não pode negar que é provínciano.

- Ora esta - exclamou o regente -, como se atreve aquele rapaz a falar deste modo a um príncipe de sangue!

- Finge não saber quem é e que o julga um simples fidalgo; de resto fui eu que Lhe disse para o provocar.

- Perdão, senhor - tornou o príncipe -, falou comigo, creio eu, e como esta senhora se dirigia a mim ao mesmo tempo não ouvi o que me disse.

- E quer que repita? - tornou o mancebo com ar de troça.

- Dar-me-á grande prazer.

- Disse que não pode negar que é da província.

- E congratulo-me, senhor, se por esse facto me posso distinguir de certos modos parisienses que tenho visto - retrucou o príncipe.

- Vamos, vamos, não respondeu mal - disse o duque.

- Ora! replicou Dubois.

- Se é com referência à minha pessoa que diz isso - voltou o mancebo -, responder- Lhe-ei que não é delicado, o que para comigo nada é, porque pode dar explicação da sua incivilidade, mas não tem desculpa perante estas senhoras.

- O teu provocador vai muito longe, abade - disse o regente inquieto -, e são capazes de se matarem em duelo.

- Não os deixaremos ir tão longe - replicou Dubois.

O jovem príncipe nem pestanejou; erguendo- se e dando volta à mesa, aproximou-se do seu companheiro de deboche e falou-Lhe em voz baixa.

- Vês tu! - disse a Dubois o regente inquieto -, tomemos cuidado, abade; que demónio! Não quero que me matem o pequeno.

Mas o príncipe contentou-se em dizer ao cavalheiro:

- Com a mão na consciência, diga-me senhor, se se diverte aqui. Quanto a mim, declaro-lhe que me aborreço horrivelmente. Se estivessemos sós falar-Lhe-ia de um assunto muito importante de que me ocupo neste momento, acerca do sexto capítulo das "Confissões" de Santo Agostinho.

- Como, senhor! - tornou o cavalheiro com um assombro que desta vez não era fingido.

- Ocupa-se da religião? É cedo, parece-me.

- Senhor - replicou sentenciosamente o príncipe - nunca é cedo demais para pensar na salvação das nossas almas.

O regente soltou um profundo suspiro; Dubois coçou a ponta do nariz.

- Palavra de fidalgo - disse o duque - é desonroso para a raça, as mulheres vão adormecer.

- Esperemos - volveu Dubois -, talvez, se elas adormecerem, ele se torne ousado.

- Se tivesse de se tornar ousado, já o teria feito; ela lançou-lhe uns olhares capazes de ressuscitar um morto. E olha, como está encantadora, recostada na poltrona.

- Vejamos - tornou o príncipe -, preciso consultá-lo a este respeito. S. Jerónimo pretende que a graça só é eficaz quando é o resultado da contricção.

- Diabos o levem! - exclamou o cavalheiro; se tivesse bebido, diria que fora mau vinho.

- Agora, senhor - disse o jovem príncipe -, toca-me a vez de Lhe observar que é pouco correcto, e responder- lhe-ia no mesmo tom, se não fosse pecado prestar ouvidos às injúrias; mas graças a Deus sou melhor cristão do que o senhor.

- Quando se ceia num local destes - tornou o cavalheiro -, não se trata de ser bom cristão, mas bom conviva. Que companhia a sua, preferir-lhe-ia o próprio Santo Agostinho, mesmo depois da conversão!

O príncipe tocou a campainha e logo apareceu um criado.

- Acompanhe este senhor - disse ele com a altivez de um príncipe -, quanto a mim, partirei daqui a um quarto de hora. Cavalheiro, tem a sua carruagem?

- Não tenho.

- Disponha então da minha - tornou o jovem duque. - Sinto-me desesperado por não poder cultivar o nosso conhecimento; mas os nossos gostos são muito diversos, de resto regresso à minha província.

- Com a breca! - disse Dubois -, seria curioso que ele fizesse retirar o seu companheiro a fim de ficar só com as duas mulheres.

De facto, enquanto o duque e Dubois trocavam algumas palavras, o cavalheiro retirara-se, e Luís d'Orleans, tendo ficado só com as duas mulheres, realmente adormecidas, tirou da algibeira da casaca um rolo de papéis e um lápis e começou a tomar notas com um ardor puramente teológico, no meio dos pratos ainda fumegantes e das garrafas meio vazias.

- Se este príncipe causar alguma vez inquietação ao ramo primogénito, será grande a minha desgraça. Que digam agora que educo os meus filhos na esperança do trono?

- Monsenhor - disse Dubois -, juro-Lhe que isto até me põe doente.

- Ah, Dubois, a minha filha mais nova jansenita, a mais velha filósofa, o meu filho único teólogo. Sinto-me endoidecer. Palavra de honra, que a minha vontade era mandar queimar estes entes malfazejos.

- Tome cuidado, monsenhor; se os mandar queimar dirão que continua a obra do grande rei e da Maintenon.

- Então que vivam! Mas compreendes, Dubois, este imbecil a escrever já in-fólios, é para perder a cabeça; verás quando eu morrer, há-de mandar queimar as minhas gravuras de Daphnis e de Chloé.

Durante dez minutos, Luís Orleans continuou a escrever. Quando terminou guardou preciosamente o manuscrito na algibeira, encheu um copo de água, molhou dentro um bocado de pão, fez devotamente uma curta oração e saboreou com uma espécie de voluptuosidade aquela ceia de anacoreta.

- Macerações! - murmurou o regente com desespero. - Mas pergunto eu, Dubois, quem diabo Lhe ensinou isto?

- Eu não fui, monsenhor, isso posso afirmar-lhe.

O príncipe ergueu-se e tocou de novo.

- A carruagem já voltou? - perguntou ao lacaio.

- Sim, monsenhor.

- Está bem, retiro-me; quando estas senhoras despertarem recebam as suas ordens.

O lacaio inclinou-se e o príncipe saiu com passo de arcebispo que distribui bênçãos.

- A peste te mate por me teres feito assistir a semelhante espectáculo! - disse o regente com desespero.

- Feliz pai! - retrucou Dubois. - Três vezes feliz, monsenhor: os seus filhos fazem-se canonizar por instinto, e caluniam esta santa família! Pelo meu chapéu de cardeal, queria que os príncipes legítimos se encontrassem aqui!

- Pois bem - tornou o regente -, hei-de mostrar-Lhes como um pai repara os erros de um filho. Vem Dubois.

- Não o compreendo, monsenhor.

- Dubois, o contágio ganha-te.

- A mim?

- Sim, a ti! Está uma ceia servida naquela mesa. as garrafas desarrolhadas. duas muLheres para despertar. e tu não compreendes! Dubois, tenho fome! Tenho sede! Entremos e tomemos o lugar daquele imbecil. Compreendes agora?

- Realmente, é uma boa ideia - replicou Dubois esFregando as mãos -, e é o único homem, monsenhor, que está sempre à altura da sua reputação.

As duas mulheres continuavam a dormir. Dubois e o regente abandonaram o seu esconderijo e entraram na sala de jantar. O príncipe sentou-se no lugar do Filho, e Dubois no do cavalheiro.

O regente abriu uma garrafa de champanhe, e o ruído que fez a rolha saltando despertou as mulheres.

- Ah, decide-se por Fim a beber? - perguntou a Rata.

- E tu, a acordar? - retrucou o duque.

Aquela voz produziu na pobre mulher o efeito de uma pilha eléctrica, esfregou os olhos como que incerta se estava bem acordada, procurou erguer-se, e, reconhecendo o regente, caiu de novo para trás pronunciando duas vezes o nome de Júlia.

Quanto a esta, achava-se como fascinada pelo olhar zombeteiro de Dubois.

- Vamos, vamos, Ratinha - disse o duque -, vejo que és boa pequena, deste-me a preferência: mandei-te convidar por Dubois para uma ceia, tinhas bastantes compromissos e contudo aceitaste.

A companheira da Rata, mais assustada do que ela, olhava para Dubois, para o príncipe e para a amiga, corando e verdadeiramente embaraçada.

- Que tem, Júlia? - perguntou Dubois. - Enganar-se-ia, monsenhor, e viria aqui, sem ser por nossa causa?

- Não disse tal - respondeu ela.

A companheira disse rindo:

- Se foi monsenhor que nos mandou aqui vir, deve sabê-lo e não tem perguntas a fazer; se não foi ele, é indiscreto, e nesse caso, não lhe responderei.

- E então eu não te dizia, abade - exclamou o duque rindo contrafeito -, que esta pequena tem espírito a valer!

- E eu monsenhor - retrucou Dubois enchendo os copos para aquelas pequenas, e tocando com os lábios no seu copo -, não Lhe assegurei que o vinho era excelente?

- Vejamos, Rata - disse o regente, não reconheces este vinho?

- Mas, monsenhor - retrucou a dançarina -, dá-se com o vinho o mesmo que com os amantes.

- Sim, compreendo, não podes ter uma memória tão prodigiosa. Decididamente, és não só a mais corajosa, mas também a pequena mais honesta que conheço. Ah, não és hipócrita, não! - continuou o duque soltando um suspiro.

- Pois bem, monsenhor, visto que leva as coisas desta maneira.

- O que temos?

- Sou eu que o vou interrogar.

- Responderei.

- Sabe alguma coisa da significação dos sonhos?

- Sou adivinho.

- Poderá nesse caso explicar o meu?

- Melhor do que ninguém. De resto, se a minha explicação não for completa, aqui está o abade que me custa dois milhões por ano para certos casos particulares que têm por Fim conhecer os sonhos bons e maus que se fazem no meu reino.

- Monsenhor sabe que, cansadas de os esperarmos, Júlia e eu adormecemos?

- Sim, sei, dormiam a sono solto quando aqui entrámos.

- Pois, monsenhor, não só dormia, como também sonhava.

- Verdade?

- Sim, monsenhor; julgava ver.

- Escuta, Dubois: isto parece-me que se torna interessante.

- No lugar onde está o senhor abade, achava-se um oficial de que não me ocupava: parecia-me que estava aqui por causa de Júlia.

- Ouve, pequena - disse Dubois; é uma terrível acusação que Lhe fazem. Júlia, menos forte do que a sua companheira, cujas excursões amorosas geralmente partilhava, em vez de responder, corou.

- E no meu lugar - perguntou o duque -, quem estava?

- Ah! Eis aí justamente onde eu queria chegar - tornou a Rata -, no lugar onde monsenhor se encontra, estava, no meu sonho, um bonito rapaz de quinze para dezasseis anos, que antes parecia uma menina, mas que falava latim.

- Ah! minha pobre Rata - exclamou o duque -, o que me diz?

- Enfim, depois de uma hora de conversa teológica, de dissertação interessantíssima sobre S. Jerónimo e Santo Agostinho, de explicações extremamente duras acerca do jansenismo, confesso, monsenhor, que me pareceu, sempre no meu sonho, que adormecia.

- De sorte que neste momento - tornou o duque -, sonhas que estás sonhando?

- Sim, e isto parece-me tão complicado, que, curiosa de ter uma explicação, não podendo eu própria dá-la, julgando inútil pedi-la a Júlia, dirijo-me, a si, monsenhor, que é um grande feiticeiro, como confessou, a fim de obter a explicação.

- Prova bem este vinho - replicou o duque depois de encher novamente o copo da sua vizinha -, parece-me que caluniaste o teu paladar.

- De facto, monsenhor, tornou a bailarina depois de esvasiar o copo, este vinho lembra-me um outro que nunca tinha bebido senão.

- No Palais-Royal?

- É isso mesmo.

- Pois bem, se nunca bebeste esse vinho senão no Palais-Royal é porque só existe lá, não é assim? Tens corrido bastante mundo para prestares essa justiça à minha adega.

- Oh, presto-lha em voz alta e da melhor vontade!

- Ora, sendo assim, é porque fui eu que. o mandei para aqui.

- Vossa Alteza?

- Eu ou Dubois. bem sabes que além da chave do cofre tem igualmente a da adega.

- A da adega, pode ser - disse a menina Júlia, que se decidia enfim a proferir umas palavras -, mas a do cofre, ninguém o dirá.

- Ouves, Dubois - exclamou o regente.

- Monsenhor - retrucou o abade -, como Vossa Alteza já deve ter notado, esta criança poucas vezes fala, mas quando o faz diz verdadeiras sentenças.

- E se enviei este vinho para aqui, não podia ser senão para um duque de Orleans.

- Mas há dois? - respondeu a Rata.

- Sim - tornou o regente.

- O filho e o pai: Luis d'Orleans, Filípe d'Orleans.

- Estás quase a descobrir tudo.

- Como? - exclamou a dançarina reclinando-se na poltrona e desatando a rir. - Esse mancebo, esse jovem, esse teólogo, esse jansenista?

- Continua.

- Que vi em sonho?

- Sim.

- Aí, nesse lugar.

- Sim.

- Era monsenhor Luís d'Orleans?

- Em pessoa.

- Ah, monsenhor, o seu filho não se parece nada consigo, absolutamente nada, e como estou contente por ter acordado!

- Não me sucede outro tanto - tornou Júlia.

- Nesse caso - disse o regente -, continuas a amar-me?

- O facto é que tenho um fraco por si.

- A despeito dos teus sonhos?

- Sim, monsenhor, e mesmo por causa deles.

- Não é muito lisonjeador, se todos os teus sonhos se assemelham ao desta noite.

- Ah, peço a Vossa Alteza que acredite que não tenho pesadelos todas as noites! Após esta resposta que provou ainda melhor a Sua Alteza Real que a Rata era decididamente uma pequena de espírito, a ceia interrompida recomeçou e durou até às três horas da manhã.

A essa hora, o regente levou a Rata para o Palais-Royal, na carruagem de seu filho, enquanto Dubois acompanhava Júlia a casa na carruagem de monsenhor.

Antes porém de se deitar, o regente, que só diFicilmente conseguira vencer a tristeza que tentara combater toda a noite, escreveu uma carta e chamou o seu criado de quarto.

- Faça com que esta carta parta esta manhã por um correio extraordinário, e só seja entregue em mão própria.

Essa carta era dirigida à senhora "Úrsula, superiora das Ursulinas de Clisson".

 

O QUE SE PASSAVA TRÊS NOITES DEPOIS A CEM LÉGUAS DO PALAIS-ROYAL

Três noites depois daquela, em que, para apenas encontrar sucessivos desapontamentos, vimos o regente dirigir-se de Paris a Chelles, de Chelles a Meudon e de Meudon ao bairro Santo António passava-se nos arredores de Nantes, uma cena de que não podemos omitir o minímo detalhe sem prejudicar a compreensão desta história; vamos, pois, em virtude do nosso previlégio de romancista transportar o leitor connosco ao local onde se deu.

Na estrada de Clisson, a duas ou três léguas de Nantes, perto desse convento célebre pela presença de Abelardo, erguia-se um prédio comprido e escuro rodeado por essas árvores copadas e sombrias de que a Bretanha está coberta; sebes na estrada, sebes em volta do recinto, além dos muros, sebes por toda a parte, sebes espessas, impenetráveis, e interrompidas apenas por uma alta grade de madeira, encimada apenas por uma cruz e que servia de porta. Tal era o aspecto exterior que apresentava essa casa tão bem guardada; esta porta dava entrada para um jardim, ao fundo do qual se via um muro também com uma porta pequena, maciça e sempre fechada. De longe, essa moradia grave e triste, parecia uma prisão escondendo sombrias dores; de perto, era um convento povoado de jovens agostinhas, sujeitas a uma regra pouco severa, comparada com os usos da província, rígida, porém, comparada com os de Versailles e de Paris.

A casa era portanto inacessível dos três lados; mas o quarto, e era a fachada oposta à estrada, de que, de resto, por cima dos muros e das árvores, só se podiam distinguir os telhados, dava para um grande lago que banhava a extremidade do muro; a dez pés da superfície líquida e agitada, estavam as janelas do refeitório.

Esse pequeno lago, como todo o resto do convento parecia cuidadosamente protegido; era cercado por altas estacadas de madeira que desapareciam debaixo de água dominando largas folhas de nenúfares flutuando à flor da água. À noite, bandos de pássaros abrigavam-se entre os caniços, chilreando alegremente até ao pôr-do-sol. Com as primeiras sombras da noite, o silêncio espalhava-se por todo aquele recinto; um ténue vapor erguia-se do pequeno lago, e subia como um fantasma branco na escuridão. Apenas uma grade de ferro se abria sobre o lago, dando ao mesmo tempo passagem às águas de um riacho que alimentava o lago, e que, do lado oposto, saía por uma grade idêntica, mas sólida e que não se abria. No Verão via-se entre as plantas e as flores um pequeno barco de pescador, seguro a um dos varões de ferro. Pertencia ao jardineiro, que se servia dele de tempos em tempos para deitar a linha nos pontos do lago mais abundantes de peixe, e que oferecia então às pobres e aborrecidas reclusas o es pectáculo da pesca. Algumas vezes também, no verão, mas só nas noites mais escuras, a grade do rio abria-se misteriosamente; um homem silencioso e envolto numa capa descia para o barco que parecia desprender-se por si do varão onde estava seguro, e deslizando sem ruído, sem oscilar, como que impelido por um sopro invisível, ia parar junto do muro do convento, justamente por baixo de uma das janelas gradeadas do refeitório. Ouvia-se então um sinal imitando o coaxar das rãs ou o piar dos mochos, e aparecia uma jovem a essa janela, de grades bastante largas para deixar passar a sua cabeça encantadora e loura, mas muito alta para que o mancebo Lhe pudesse alcançar a mão, por maiores esforços que empregasse para esse fim. Era portanto necessário contentar-se com uma conversa bem tímida e bem terna, de que o ruído da água ou o frémito da brisa não deixava ainda ouvir metade. Depois, passada uma hora, começavam as despedidas, que duravam outro tanto; por último, depois dos jovens terem combinado outra noite para se falarem e um sinal diferente, o barco retirava-se, tomava o mesmo caminho por onde fora, a grade tornava a fechar-se com o mesmo silêncio com que se abrira, e o mancebo afastava-se atirando um beijo para a janela que a jovem cerrava soltando um suspiro. Mas não se trata agora do Verão, estamos, como já dissemos, no princípio do mês de Fevereiro, do terrível inverno de 1719. As belas e copadas árvores acham-se cobertas de neve; os caniços já não abrigavam os seus alegres hóspedes, que foram uns em busca de clima mais temperado outros de abrigo mais quente. As flores e os arbustos pendem negros e murchos. Quanto ao escuro prédio parece mais fúnebre ainda, envolto num manto branco que o cobre como um sudário desde cima até em baixo. Não se poderia atravessar o lago em barco, porque a superfície está coberta de neve.

E contudo, não obstante a escuridão da noite, não obstante o penetrante frio, não obstante a completa ausência de estrelas no céu, um cavaleiro só, sem lacaio, saía pela grande porta de Nantes e aventurava-se no campo, não pela estrada que conduz de Nantes a Clisson, mas por um atalho que ia ter a essa mesma estrada a uns cem passos dos fossos; logo que se encontrou no mesmo caminho, soltou as rédeas no pescoço da sua montaria, excelente cavalo de raça, que, em vez de correr doidamente como teria feito qualquer outro menos ensinado, con tentou-se em tomar um trote bastante moderado para poder seguir com precaução e segurança esse caminho que parecia liso como o pano de um bilhar, mas que apresentava a cada passo buracos e pedregulhos que a neve cobria traiçoeiramente. Durante um quarto de hora tudo correu bem, o vento sem se opor ao andamento do cavalo, fazia flutuar o capote do cavaleiro; as árvores, negros esqueletos, fugiam à direita e à esquerda como fantasmas, enquanto que a reverberação da neve, única luz que guiava a marcha aventurosa do cavaleiro, dava apenas a claridade precisa para que pudesse seguir o seu caminho. Bem depressa, porém, a despeito das instintivas precauções tomadas pelo cavalo, o pobre animal tropeçou num pedregulho e esteve prestes a cair; mas este movimento teve a duração do relâmpago, logo que sentiu as rédeas, o cavalo ergueu-se; o seu cavaleiro contudo, não obstante a sua preocupação, notou que ele coxeava. Primeiro não se inquietou e seguiu para a frente; mas a claudicação depressa se tornou mais acentuada, e o mancebo pensando que algum fragmento da pedra ficara no pé do animal e o feria, apeou-se e examinou-o, vendo-o não só desferrado, mas em sangue; não Lhe restava dúvida, o seu cavalo estava ferido. O jovem parecia vivamente contrariado com este facto e reflectia evidentemente nos meios de Lhe dar remédio, quando julgou ouvir o tropel de uma cavalgada. Escutou atento e viu que não se enganara; depois, convencido sem dúvida que alguns homens a cavalo seguiam o mesmo caminho que ele, e pensando que, se esses homens, por acaso o perseguiam, não deixariam de alcançá-lo, tomou uma resolução pronta: montou rapidamente, fez com que o cavalo desse alguns passos, escondeu- se por detrás de umas árvores, desembainhou a espada, tirou uma pistola do cinto e esperou.

De facto, os cavaleiros aproximavam-se a toda a pressa e distinguia-se não obstante a escuridão, os seus capotes escuros e o cavalo branco de um deles. Eram quatro e seguiam em silêncio, o desconhecido continha a respiração e o cavalo, como se percebesse o perigo que corria o dono, conservava-se imóvel e silencioso como ele. Não ouvindo ruído algum, os cavaleiros passaram o grupo de árvores que ocultava o desconhecido, e este já se julgava livre dos importunos, fossem quem fossem, quando eles de súbito pararam.

O que parecia o chefe, apeou-se, tirou uma lanterna de uma algibeira e acendendo-a, iluminou a estrada. Ora, como terminavam naquele ponto os vestígios que tinham seguido até ali, julgaram que os haviam perdido, voltaram para trás e reconheceram o local onde o cavalo e o cavaleiro se tinham desviado. Dando alguns passos para a frente, aquele que levava a lanterna dirigiu-a para o grupo de árvores no meio do qual lhe foi fácil distinguir, não obstante o seu silêncio e a sua imobilidade, um cavaleiro e um cavalo. Ouviu-se em seguida o ruído que faziam armando várias pistolas.

- Olá, senhores - disse então o cavaleiro do animal ferido -, quem são e que desejam?

- É ele - murmuraram duas ou três vozes -, não nos tínhamos enganado. O homem da lanterna avançou em seguida para o cavaleiro desconhecido.

- Mais um passo e mato-o, senhor - disse o cavaleiro. - Diga-me imediatamente o seu nome, quero saber com quem estou tratando.

- Não mate ninguém, senhor de Chanlay - retrucou o homem da lanterna com uma voz serena -, e meta de novo a pistola no cinto.

- Ah, é o senhor marquês de Pontealec? - replicou aquele a quem davam o nome de Chanlay.

- Sim, senhor, sou eu.

- O que vem fazer aqui?

- Pedir-lhe algumas explicações acerca do seu procedimento. Aproxime-se portanto e responda, se faz favor.

- O convite é feito de um modo estranho, marquês; não podia, se deseja que Lhe responda, fazê-lo noutros termos e dar-lhe outra forma?

- Aproxime-se, Gastão - disse uma outra voz -, temos realmente que lhe falar, meu caro.

- Ora ainda bem - disse Chanlay -, consigo entendo-me, Montlouis; mas confesso que não me posso habituar aos modos do senhor de Pontcalec.

- Os meus modos são os de um rude e franco bretão que nada tem de ocultar aos seus amigos - retorquiu o marquês - e que não se opõe a que o interroguem tão francamente como ele interroga os outros.

- Junto-me a Montlouis - tornou uma outra voz - para pedir a Gastão que se explique voluntariamente; o nosso principal interesse parece-me que é não nos guerrearmos uns aos outros.

- Obrigado, de Couedic - replicou o cavaleiro -, também penso assim: portanto, aqui estou.

E pronunciando estas palavras mais pacíficas, o jovem, metendo a pistola no cinto e a espada na bainha, aproximou-se do grupo que se conservava no meio da estrada esperando a sua decisão.

- Senhor de Talhouet - disse o marquês de Pontcalec com o tom de quem adquiriu ou a quem concederam o direito de dar ordens -, vigie a estrada; que ninguém se aproxime sem sermos prevenidos.

O sr. de Talhouet obedeceu imediatamente afastando-se do grupo e vigiando a estrada conforme lhe havia sido ordenado.

- E agora - disse o marquês de Pontcalec montando de novo -, apaguemos a lanterna, visto que encontrámos o nosso homem.

- Senhores - disse então o cavaleiro de Chanlay -, permitam-me que Lhes diga que o que está se passando me parece singular. É a mim que seguem realmente, segundo parece; é a mim que procuram, segundo dizem; encontraram-me e podem apagar a lanterna; vejamos, o que significa tudo isto? Se é uma brincadeira, confesso que a hora e o local, me parecem mal escolhidos.

- Não, senhor - retrucou o marquês de Pontcalec no mesmo tom autoritário -, não é uma brincadeira, é um interrogatório.

- Um interrogatório? - repetiu o cavaleiro de Chanlay franzindo as sobrancelhas.

- Isto é, uma explicação - disse Montlouis.

- Interrogatório ou explicação - tornou Pontcalec -, pouco importa, a circunstância é muito grave para perdermos tempo com a escolha dos termos. Responda portanto às nossas perguntas, senhor de Chanlay!

- Ordena severamente, marquês - tornou o cavaleiro.

- Se ordeno, é porque me assiste esse direito; sou ou não sou o seu chefe?

- Efectivamente; mas não é uma razão para esquecer as considerações que os fidalgos devem entre si.

- Senhor de Chanlay! Senhor de Chanlay! Todas essas dificuldades se assemelham muito a evasivas; Fez juramento de obedecer, obedeça.

- Fiz juramento de obedecer, mas não como um lacaio.

- Fez juramento de obedecer como um escravo, obedeça portanto, ou sofra o resultado da sua desobediência.

- Senhor marquês!

- Vamos, meu caro Gastão, fala, peço-te - disse Montlouis -, quanto mais depressa melhor. com uma palavra podes tirar-nos todas as suspeitas do espírito.

- Todas as suspeitas! - exclamou Gastão, pálido e fremente de cólera. - Suspeitam de mim?

- Mas certamente que suspeitamos de si - tornou Pontcalec com a sua rude franqueza. Julga que se não fosse esse facto, nos divertiríamos a segui-lo com um tempo destes?

- Oh, então é diferente, marquês - respondeu friamente Gastão -, diga-me as suas suspeitas; escuto-o.

- Cavaleiro, recorde-se dos factos: conspirávamos todos quatro, não reclamávamos o seu auxílio, veio oferecê-lo, dizendo que além do bem geral queria ajudar-nos a fazer, tinha uma ofensa particular a vingar; não foi assim?

- É verdade.

- Recebêmo-lo e acolhêmo-lo como um amigo, como irmão; dissemos- Lhe as nossas esperanças, confiámos-Lhe os nossos projectos; ainda mais, foi eleito pela sorte para vibrar o golpe mais útil e mais glorioso. Cada um de nós se ofereceu para Lhe tomar o lugar e recusou; é verdade?

- Tudo quanto disse é exacto, marquês.

- Foi esta manhã que tirámos a sorte. esta noite devia encontrar-se na estrada de Paris. Onde é que o encontramos? Na de Clisson, onde residem os inimigos mais encarniçados da independência bretã, onde reside o marechal de Montesquieu, nosso inimigo mortal.

- Ah, senhor! - retrucou desdenhosamente Gastão.

- Responda com palavras francas e não com sorrisos de desprezo; responda, senhor de Chanlay, ordeno-Lhe. Responda!

- Por piedade, Gastão - acrescentaram ao mesmo tempo Couedic e Montlouis -, por piedade, responde.

- Mas o que querem que responda?

- Que expliques as tuas frequentes ausências nestes últimos dois meses, o mistério de que te cercas, recusando uma ou duas vezes por semana tomar parte nas nossas reuniões nocturnas. Pois bem, Gastão, confessamo-lo francamente, todas essas ausências, todos esses mistérios nos têm inquietado. Com uma palavra, Gastão, poderás tranquilizar-nos.

- Bem vê que é culpado, senhor, visto que se escondia, em vez de continuar o seu caminho.

- Não o fIz porque o meu cavalo está ferido; podem ver o sangue que mancha a neve!

- Mas porque se escondia?

- Porque queria saber antes de tudo quem me perseguia. Não devo temer que me prendam tanto como os senhores?

- Mas afinal, onde ia?

- Se tivessem continuado a seguir-me, veriam que não me dirigia a Clisson.

- Mas também não ia a Paris?

- Senhores, peço-Lhes, tenham confiança em mim e poupem o meu segredo. É um segredo de rapaz; um segredo em que se trata não só da minha honra como também da de uma outra pessoa; talvez não saibam como a minha delicadeza é extrema, exagerada talvez sobre esse ponto.

- É então um segredo de amor? - disse Montlouis.

- Exactamente, e até de um primeiro amor - respondeu Gastão.

- Tudo isso são desculpas! - exclamou Pontcalec.

- Marquês - repetiu Gastão altivamente.

- É muito pouco o que dizes - tornou de Couedic. - Como se pode crer que vais a uma entrevista com este abominável tempo e que essa entrevista não é em Clisson quando, exceptuando o convento das agostinhas, não há uma só casa burguesa nestas duas léguas mais próximas.

- Senhor de Chanlay - tornou o marquês Pontcalec muito agitado -, jurou obedecer- me como ao seu chefe e dedicar-se de corpo e alma à nossa santa causa; senhor de Chanlay, a partida que jogamos é grave e arriscamos nela os nossos bens, a nossa liberdade, a nossa cabeça, e, mais do que tudo isso, a nossa honra. Quer responder categoricamente e claramente às perguntas que lhe vou dirigir em nome de todos e de modo a não nos deixar dúvida alguma? Se recusar, senhor de Chanlay, palavra de fidalgo, em virtude do direito de vida e de morte que me concedeu livremente, mato- o com um tiro.

Um pesado e profundo silêncio acolheu estas palavras e nem uma voz se elevou para defender Gastão. Fixou um por um os seus amigos, e todos desviaram dele os olhos.

- Marquês - tornou então o cavaleiro com uma voz comovida -, não só me insulta suspeitando de mim, mas dilacera-me o coração aFirmando-me que não posso destruir as suas suspeitas senão iniciando-o no meu segredo. Aqui tem, acrescentou tirando do bolso uma carteira onde escreveu algumas palavras à pressa com um lápis, rasgando em seguida a folha; aqui está o segredo que quer saber, tenho-o numa das mãos e na outra seguro a pistola que armo; quer fazer reparação do ultraje com que acaba de me cobrir ou, pela minha vez, dou-Lhe a minha palavra de honra que me mato. Depois, abrirá a minha mão e lerá este bilhete, há- de então ver que não merecia semelhante suspeita!

E Gastão aproximou a pistola da fronte com essa fria resolução que indica que os factos seguir-se-ão às palavras.

- Gastão, Gastão - exclamou Montlouis, enquanto de Couedic Lhe segurava o braço

-, suspende, em nome do céu! Marquês, faria o que disse; perdoe- lhe e dir-Lhe-á tudo; não é assim, Gastão, não terás segredo para os teus irmãos, que, em nome das esposas e dos filhos te suplicam que Lhes digas tudo?

- Mas certamente - retorquiu o marquês -, certamente que lhe perdoo, e, ainda mais, que o estimo; ele sabe-o bem! Que nos prove a sua inocência e logo Lhe dirigirei todas as desculpas que lhe forem devidas; mas antes, não: é novo, é só no mundo, não tem como nós, esposas, mães e filhos de quem exponha a felicidade e a fortuna, não arrisca senão a sua vida, e faz dela o caso que se costuma fazer dos anos; mas com a sua vida arrisca as nossas, e contudo que diga uma palavra, uma só palavra, que nos apresente uma justificação possível e serei eu o primeiro a abrir-lhe os braços.

- Pois bem, marquês - disse Gastão passados alguns momentos de silêncio -, siga-me e ficará satisfeito!

- E nós? - perguntaram Montlouis e de Couedic.

- Venham também, senhores, são todos fidalgos, arrisco tanto confiando o meu segredo a um como aos quatro.

O marquês chamou Talhouet, que durante este tempo fizera boa sentinela e foi reunir-se ao grupo, seguindo o cavaleiro sem fazer uma só pergunta sobre o que se passara.

Os cinco homens puseram-se então a caminho, mas mais vagarosamente, porque o cavalo montado por Gastão coxeava bastante; o cavaleiro que lhes servia de guia, conduziu-os até ao convento que já conhecemos. Passada meia hora chegavam às margens do pequeno rio, a dez passos da grade, Gastão parou e disse:

- É aqui.

- Aqui?

- Neste convento de agostinhas?

- Aqui mesmo, senhores; acha-se neste convento uma jovem que amo há um ano desde que a vi na procissão do Corpo de Deus, em Nantes; ela também me notou, segui-a, espiei-a e consegui enviar- Lhe uma carta.

- Mas como a vê? - perguntou o marquês.

- Com cem luízes fiz com que o jardineiro me prestasse o seu auxílio, e deu-me uma chave desta grade; no verão, vou no barco até junto dos muros do convento; a dez pés da superfície da água há uma janela onde ela me espera; se houvesse mais claridade, poderiam distingui-la daqui e não obstante a escuridão, vejo-a.

- Sim, compreendo bem como procede no Verão - retorquiu o marquês -, mas agora o barco não pode navegar.

- É certo, mas à falta de barco, há esta noite uma camada de gelo; irei sobre ela, talvez se derreta sob os meus pés e me engula; tanto melhor, porque, nesse caso, as suas suspeitas seguir-me-ão e desaparecerão comigo.

- Tenho um peso de menos sobre o peito - disse Montlouis. - Ah! meu pobre Gastão! como me tornas feliz, porque não te deves esquecer que fui eu e de Couedic que respondemos por ti.

- Ah, cavaleiro - exclamou o marquês -, perdoe-me, dê-me um abraço!

- Da melhor vontade, marquês, ainda que destruísse parte da minha felicidade.

- Como assim?

- Queria guardar o meu segredo, que mais ninguém soubesse que a amava, tenho tanta necessidade de ilusão e de coragem! Não vou deixá-la esta noite para nunca mais tornar a vê-la?

- Quem sabe, cavaleiro? Parece-me que encara o futuro bem tristemente.

- Sei o que digo, Montlouis.

- Se lograr bom êxito, o que é quase certo com a sua coragem e o seu sangue frio, a França será livre; dever-Lhe-á a sua liberdade, e será senhor de tudo que desejar.

- Ah, marquês, se for bem sucedido, o resultado será para os senhores! Quanto a mim, o meu destino está firmado.

- Vamos, cavaleiro, tenha coragem! Mas entretanto, permita-nos que o vejamos proceder um pouco nas suas aventuras amorosas.

- Ainda desconfia, marquês?

- Sempre, meu caro Gastão; desconfio até de mim próprio e é muito natural depois da honra que me conferiram nomeando-o seu chefe; é sobre mim que pesa toda a responsabilidade; devo portanto vigiá-lo mesmo que não queira.

- Veja pois, marquês, tenho tanta pressa de chegar junto daquele muro como o senhor de me ver chegar lá, não o farei portanto esperar muito.

Gastão prendeu o cavalo a uma árvore; devido a uma tábua lançada sobre o riozinho e formando uma ponte, abriu a grade, e tendo seguido durante algum tempo junto das escadas a fim de se afastar do local onde o curso do rio impedia a água de gelar, pôs o pé sobre a parte consistente que fez ouvir um estalido prolongado.

- Em nome do céu! - bradou Montlouis. - Gastão, nada de imprudências.

- À graça de Deus! Veja, marquês.

- Gastão - tornou Pontcalec -, acredito- o, acredito-o.

- Eis aí o que redobra a minha coragem - disse o cavaleiro.

- E agora, Gastão, uma palavra apenas: Quando parte?

- Amanhã a esta hora, marquês, terei, segundo todas as probabilidades, feito vinte e cinco ou trinta léguas na direcção de Paris.

- Então volte aqui para o podermos abraçar e fazer as nossas despedidas. Venha, Gastão.

- Com o maior prazer.

E o cavaleiro voltou para trás recebendo cordiais abraços dos quatro companheiros que esperaram, antes de se afastar, que ele chegasse ao termo da sua arrojada travessia, prontos a prestar-Lhe socorro, se lhe sucedesse algum desastre durante o trajecto.

 

COMO O ACASO ALGUMAS VEZES PREPARA AS COISAS DE MANEIRA A ENVERGONHAR A PROVIDÊNCIA

Apesar dos estalidos do gelo, Gastão prosseguiu ousadamente o seu caminho porque, à medida que se aproximava, notava uma coisa que lhe fazia pulsar o coração: é que as chuvas do inverno tinham feito subir a água do lago e que chegando junto do muro ia forçosamente poder atingir a janela.

Não se enganava; chegando ao termo do seu caminho, juntou as mãos, imitou o piar do mocho, e a janela abriu-se.

Logo depois, como doce recompensa do perigo que correra, viu surgir, quase à altura da sua, a encantadora cabeça da adorada, enquanto que uma fina e tépida mão procurava e encontrava a sua; era a primeira vez. Gastão agarrou com transporte aquela mãosinha e cobriu-a de beijos.

- Gastão, ei-lo enFim, apesar do frio e sem barco, sobre o gelo, não é verdade? E contudo proibi-lho na minha carta.

- Com a sua carta sobre o coração, Helena, parecia-me não correr perigo algum. Mas o que tem de tão triste e sério a me dizer? Chorou?

- InFelizmente, meu amigo, ainda hoje não fiz outra coisa.

- Hoje - murmurou Gastão sorrindo tristemente -, é singular! Também eu teria chorado hoje se não fosse um homem.

- Que diz, Gastão?

- Nada, minha amiga. Vamos então a saber, quais são os seus pezares, Helena? Confie-mos.

- Como sabe, não me pertenço, sou uma pobre orfã educada aqui, não tendo outra pátria, outro mundo, outro universo senão este convento; nunca vi ninguém a quem pudesse dar o nome de pai ou de mãe; creio que minha mãe morreu e sempre me disseram que meu pai estava ausente; dependo pois de uma potência invisível que só se revelou à nossa superiora; esta manhã a nossa boa mãe mandou-me chamar e, com lágrimas nos olhos, anunciou-me a minha partida.

- A sua partida, Helena? Deixa o convento?

- Sim, minha Família reclama-me, Gastão.

- Sua família, Deus meu! O que nos reserva ainda esta nova desgraça?

- Oh, sim, uma grande desgraça apesar da nossa boa mãe me ter felicitado como se fosse uma ventura. Mas eu era feliz neste convento, não pedia outra coisa a Deus senão para aqui ficar até ao momento de ser sua esposa. Deus dispõe de mim de outro modo, o que me sucederá?

- E essa ordem que a faz sair do convento.

- Não admite discussão nem demora. Parece que pertenço a uma poderosa família, que sou Filha de um grande senhor; quando a nossa boa superiora me anunciou que era preciso deixá-la desatei a chorar, lancei-me a seus pés, disse-lhe que só desejava uma coisa, não a deixar nunca; ela então suspeitou que havia outra razão além da que Lhe expunha, interrogou-me com muita insistência; perdoe-me, Gastão, precisava conFiar o meu segredo a alguém, tinha necessidade que me lastimassem e consolassem; disse-Lhe tudo, Gastão; que nos amávamos, só não lhe conFiei o modo como nos víamos porque temi que me impedissem de o ver uma última vez, e queria bem despedir-me de si.

- Mas não disse, Helena, quais eram os meus projectos a seu respeito? Que, eu mesmo, ligado a uma associação que dispõe de mim por seis meses, por um ano talvez, decorrido esse tempo, no dia enfim em que me considerasse livre, o meu nome, a minha mão, a minha fortuna, toda a minha vida lhe pertenceria?

- Disse, Gastão, e eis o que me fez pensar que sou filha de algum grande senhor; porque a boa mãe Úrsula me respondeu: "É preciso esquecer o cavaleiro, minha filha, porque quem sabe se a sua nova família consentiria nessa união? "

- Mas não pertenço eu a uma das mais antigas famílias da Bretanha, e, sem ser rico, não possuo uma fortuna que me torna independente? Fez-Lhe esta observação, Helena?

- Oh! disse-Lhe: "Gastão queria-me órfâ, sem nome nem fortuna; podem separar-nos, minha mãe, seria, porém, uma cruel ingratidão da minha parte esquecê-lo e nunca o esquecerei. "

- Helena é um anjo! E não suspeita quem possam ser esses parentes que a reclamam, esse destino desconhecido a que a votam?

- Não, parece que é um segredo profundo, inviolável, donde depende toda a minha felicidade futura; só lhe digo, Gastão, que receio bem que esses parentes sejam grandes senhores, porque me pareceu ver que até a nossa superiora me falava, não sei como dizer-Lhe Gastão, me falava com respeito.

- A si, Helena?

- Sim.

- Então, tanto melhor! - retrucou Gastão suspirando.

- Como, tanto melhor! Gastão, alegra-o a nossa separação?

- Não, Helena, mas alegro-me por ter encontrado uma família, no momento em que vai talvez perder um amigo.

- Que quer dizer, Gastão? Mas não tenho outro amigo, senão o senhor, vou então perdê-lo?

- Vou pelo menos ser obrigado a deixá-la por algum tempo, Helena.

- Por que motivo?

- Porque o destino quis tornar-nos semelhantes em tudo, e não é a única a ignorar o que Lhe reserva o dia de amanhã.

- Gastão, Gastão, que significa essa estranha linguagem?

- Que também eu, Helena, levado por uma fatalidade a que tenho de obedecer, sou obrigado a submeter-me a um poder superior e irresistível.

- Meu Deus! É possível?

- A um poder que me condenará talvez a abandoná-la daqui a oito dias, a quinze, a um mês; não só a abandoná-la, mas ainda a sair de França.

- Ah! O que me diz, Gastão!

- O que o meu amor, ou antes o meu egoísmo, não me tinha deixado ainda dizer-Lhe; ia esperando de olhos fechados a hora a que chegamos; esta manhã abriram-se: é preciso que a deixe, Helena.

- Mas para quê! O que foi que empreendeu!

- Infelizmente, cada um de nós tem o seu segredo, Helena - retorquiu o cavaleiro abanando tristemente a cabeça. - Que o seu não seja tão terrível como o meu, é tudo quanto peço a Deus.

- Gastão!

- Não foi a primeira a dizer que tínhamos que nos separar, Helena? A primeira a ter a coragem de renunciar a mim! Pois seja abençoada por essa coragem que me dá exemplo, porque eu, oh, eu não a teria.

E dizendo estas palavras, o jovem levou de novo aos lábios a linda mão que não tinha pensado em retirar das suas: e, mau grado os esforços que envidava, Helena notou que ele chorava amargamente.

- Oh! meu Deus, meu Deus! - murmurou ela. - Que mal Fizemos para sermos tão infelizes.

Ouvindo esta exclamação, Gastão ergueu a cabeça.

- Vamos - disse ele como se falasse consigo mesmo -, coragem, há na vida destas adversidades contra as quais toda a resistência é inútil; obedeçamos ambos, Helena, obedeçamos sem luta, sem múrmurio, e talvez vençamos o destino à força de resignação. Poderia vê-la ainda antes da sua partida?

- Não creio, parto amanhã.

- E que caminho segue?

- O de Paris.

- Como! Vai então?

- Vou para Paris.

- Meu Deus! - exclamou Gastão, e eu também! - Já vê, Helena, que nos enganamos, não nos separamos.

- Oh Meu Deus, meu Deus, o que me diz, Gastão?

- Que fazíamos mal acusando a Providência e que ela se vinga concedendo-nos mais do que ousávamos pedir-Lhe. Não só nos poderemos ver durante o caminho, mas ainda em Paris. Como vai?

- Na carruagem do convento, creio eu, mas com algumas paragens, para não me fatigar muito.

- E com quem?

- Com uma religiosa que me deve acompanhar, e que regressará ao convento depois de me entregar às pessoas que me esperam.

- Tudo vai o melhor possível, Helena; eu vou a cavalo como um viajante estranho, desconhecido; todas as noites lhe falarei, e quando não o conseguir, vê-la-ei, pelo menos, já a separação não é completa.

E os dois jovens com essa imperecível confiança no futuro, própria da sua idade, depois de se terem aproximado com lágrimas nos olhos e angústia na alma, separaram-se com um sorriso nos lábios e a esperança no coração. Gastão atravessou pela segunda vez e com igual felicidade o lago gelado, e encaminhou-se para a árvore onde prendera o cavalo: mas, em lugar do seu cavalo ferido, encontrou o de Montlouis, e graças a essa atenção do amigo, regressou a Nantes em menos de três quartos de hora, sem ter tido nenhum mau encontro.

 

               A VIAGEM

Durante o resto da noite, Gastão escreveu o seu testamento, que depôs nas mãos de um notário de Nantes.

Legava todos os seus bens a Helena do Chaverny, suplicando-lhe que, se ele morresse, não renunciasse ao mundo por esse motivo, mas que deixasse a sua jovem e bela existência seguir o destino que Lhe estava reservado; somente, como era o último representante da sua família, pedia-lhe, como recordação dele, que desse o nome de Gastão, ao seu primeiro Filho.

Foi ver uma última vez os seus amigos, e principalmente Montlouis, com quem estava mais ligado, e que na véspera, fora o que mais o defendera, exprimir-Lhes toda a confiança que tinha no sucesso do seu empreendimento; recebeu de Pontcalec a metade de uma moeda de ouro e uma carta que devia entregar a um certo capitão Lajonquiére, correspondente dos con jurados em Paris, o qual devia apresentar Gastão aos personagens importantes que ia procurar na capital; meteu na mala todo o dinheiro que pudera obter, e acompanhado apenas por um criado, chamado Oven, que tinha ao seu serviço havia três anos e no qual julgava poder contìar, partiu de Nantes. Os seus quatro companheiros não o acompanharam com receio de despertar suspeitas.

Era meio dia, a estrada estava linda, um sol magníFico iluminava os campos brilhantes de neve, as gotas da água gelada pendendo dos ramos reflectiam os raios do sol como estalactites de diamantes, e contudo a estrada achava-se quase deserta: coisa alguma que se semelhasse a essa carruagem do convento, verde e preta e tão conhecida dele, em que as boas agostinhas de Clisson mandavam buscar ou levar as pensionistas às suas famílias. Gastão, seguido pelo criado, continuava o seu caminho, manifestando no rosto essa alegria misturada de angústia que sente o homem em presença das belezas da natureza que um acontecimento fatal e inevitável pode bem depressa fazer-lhe perder para sempre. A ordem das paragens tinha sido combinada até Mans, antes de partir de Nantes, entre Gastão e os seus amigos; mas muitas razões levavam o rapaz a alterá-la: primeiro a geada, que tornara a estrada polida como espelho, obstáculo insuperável, e que Gastão teria considerado como tal, ainda mesmo que pudesse vencê-lo, porque necessitava como bem devem estar lembrados, de caminhar devagar, apenas para com o criado fingia apressar-se muito; mas o cavalo escorregara duas vezes, o de Oven caíra e isto foi para ele uma ocasião muito natural para continuar o caminho a passo.

Quanto ao lacaio, desde o momento da partida, pareceu muito mais apressado do que o patrão; é verdade que pertencia a essa classe de gente que deseja sempre chegar depressa, visto que não tendo na viagem senão os trabalhos e as sensaborias, desejam abreviá-las o mais possível. De resto adorava Paris em perspectiva, nunca aí estivera, é certo, mas tinham-Lhe dado informações preciosas, dizia ele, e se Lhe fosse possível pôr umas asas nos pés dos dois cavalos, embora fosse mau cavaleiro, a distância seria transposta em poucas horas. Gastão seguiu contudo muito vagarosamente até Oudon; mas mesmo assim, a carruagem das agostinhas de Clisson ainda caminhara mais devagar. O cavaleiro parou em Oudon. Escolheu aí a hospedaria do "Carro Coroado", que tinha para a estrada duas janelas donde se abrangia uma grande distância; de resto, tinha tomado informações e soubera que era nessa hospedaria, ilustre entre todas, que quase todas as carruagens paravam. Enquanto Lhe preparavam o jantar (seriam duas horas da tarde), Gastão, não obstante o frio, de sentinela à janela, não perdeu um só momento a estrada de vista, mas não Lhe foi dado ver senão pesadas carroças e carros cheios de gente; a carruagem verde e preta tão desejada não apareceu.

Gastão pensou que Helena o havia precedido e já se encontrava na hospedaria. Animado por esta ideia, passou bruscamente das janelas da frente para uma das traseiras, donde podia facilmente fazer inspecção dos carros que ali se encontravam. A carruagem do convento não estava; Ficou contudo algum tempo no seu observatório; porque viu o seu criado falando animadamente com um homem de roupa cinzenta e envolto num capote talhado como o dos militares. Este homem, tendo terminado a conversa com Oven, montou num bom cavalo, e, a despeito da neve e do frio, partiu como quem tem pressa de chegar ao seu destino, ainda que correndo o risco de quebrar os ossos. Contudo não escorregou nem caiu, e, pelo ruido que fez o cavalo afastando-se, Gastão adivinhou que ele se dirigia para Paris.

Neste momento, o criado ergueu os olhos e viu o patrão olhando-o; ficou muito vermelho como se tivesse sido surpreendido em alguma falta, e disfarçou sacudindo a roupa e limpando as botas cobertas de neve. Gastão fez-lhe sinal para que se aproximasse, e apesar da ordem lhe ser evidentemente desagradável, obedeceu.

- Com quem estavas falando, Oven - perguntou Gastão.

- A um homem - replicou este com aquele ar de estupidez misturado de malícia tão peculiar aos camponeses.

- Bem vi! mas quem era esse homem?

- Um viajante, um soldado que me perguntava o caminho que devia seguir, senhor cavaleiro.

- O caminho para onde?

- Para Rennes.

- Mas tu não o sabes, visto que não és de Oudon.

- Por isso fui perguntar ao dono da hospedaria.

- Porque não foi ele?

- Porque teve uma discussão com ele por causa do preço do jantar, e não queria dirigir-lhe a palavra.

- Está bem! - tornou Gastão.

Tudo aquilo era o mais natural possível. Contudo, Gastão entrou no seu quarto muito pensativo; aquele homem, que na verdade o servira sempre fielmente, era sobrinho do criado de quarto do senhor de Monturau, antigo governador da Bretanha, que devido às queixas que se levantaram contra ele, fora substituído pelo senhor de Montesquieu; tinha sido esse tio que fizera a Oven a brilhante descrição de Paris, que lhe despertara um tão grande desejo de ver a capital, desejo, que, segundo todas as probabilidades, ia realizar-se.

Reflectindo melhor, as dúvidas que Gastão concebera acerca de Oven dissiparam-se, e perguntou a si mesmo se avançando num caminho, onde precisava de toda a sua coragem, não se ia tornando cada vez mais tímido. Contudo, a nuvem que lhe toldara subitamente a fronte vendo Oven conversar com o tal homem do capote não se dissipou por completo; de resto, por mais que olhasse, a carruagem verde e preta não aparecia.

Pensou por um momento e até as mais puras almas têm por vezes estes pensamentos vergonhosos, que Helena escolhera um outro caminho para se separar dele sem barulho e sem discussão; mas depressa reflectiu que em viagem tudo se torna acidente e portanto atraso. Voltou para a mesa, ainda que já tivesse acabado havia muito a refeição; e como Oven, que entrava naquele momento para tirar a mesa o fitasse surpreendido, Gastão disse-lhe:

- Traz-me vinho - sentindo que precisava de um pretexto para permanecer ali. Oven tinha tido o cuidado de levar a garrafa apenas começada, que lhe pertencia de direito. Olhou portanto para o patrão que era usualmente muito sóbrio, e repetiu deveras atónito:

- Vinho?

- Sim - tornou Gastão impaciente -, vinho! Quero beber. o que há nisso para admirar?

- Nada, senhor - respondeu Oven.

E foi até à porta transmitir a ordem do patrão a um criado que trouxe outra garrafa.

Gastão encheu o copo que esvaziou e encheu- o segunda vez. Oven abria os olhos muito espantados.

Por fim, pensando que era do seu dever e interesse ao mesmo tempo, visto que essa segunda garrafa lhe pertencia como a primeira, deter seu patrão naquele funesto caminho, tornou: g - Senhor, tenho ouvido dizer que beber quando está frio faz muito mal; esquece que temos um grande trajecto a percorrer, e quanto mais esperarmos mais o tempo piora sem contar que corremos o risco de não encontrarmos cavalos.

Gastão estava mergulhado nos seus pensamentos e não respondeu à observação de Oven.

- Dir-lhe-ei ainda - continuou o criado -, que são quase três horas e que anoitece às quatro e meia.

Esta persistência surpreendeu Gastão.

- Tens muita pressa - disse ele. - Terás por acaso marcado encontro com esse viajante que te perguntou o caminho?

- O senhor bem sabe que isso é impossível - tornou Oven sem se embaraçar -, visto que esse viajante ia para Rennes e que nós vamos para Paris.

Contudo, sob o olhar penetrante do patrão, Oven não pôde deixar de corar, e Gastão ia dirigir-lhe outra pergunta, quando se ouviu o ruído de uma carruagem que chegava de Nantes. Gastão correu à janela, era aquela que esperava.

Esquecendo tudo, deu tempo a Oven de recuperar o sangue frio e saiu correndo do quarto. Foi a vez, então, de Oven se dirigir à janela a fim de ver qual era o importante objecto que assim distraía o espírito de seu patrão; deparou com uma carruagem verde e preta que parava naquele momento. Um homem metido numa ampla capa desceu do seu lugar e abriu a portinhola; em seguida viu apear-se uma jovem coberta com capa preta, depois uma religiosa. As duas senhoras, anunciando que partiriam depois de tomarem uma refeição, pediram um quarto. Mas, para chegarem a esse quarto, tinham que atravessar a sala onde estava o cavaleiro que, indiferente na aparência, se encostava ao fogão. Um olhar rápido, trocado entre Helena e Gastão e, com grande satisfação deste último, no homem que descera primeiro, reconheceu o jardineiro do convento, aquele mesmo que lhe dera a chave da grade. Era nas circunstâncias em que se encontravam, um feliz e poderoso auxiliar.

Entretanto, Gastão com uma serenidade que fazia honra ao poder que tinha sobre si, deixou passar o jardineiro sem se lhe dirigir; mas quando ele atravessava o pátio e entrava na cavalariça, seguiu-o, porque tinha pressa de o interrogar. Tinha receio de que o jardineiro tivesse ido apenas até Oudon e voltasse imediatamente para o convento.

Mas às primeiras palavras, Gastão tranquilizou-se; o jardineiro acompanhava as duas senhoras até Rambouillet, termo momentâneo da viagem de Helena; depois seguiria para o convento de Clisson com a irmã Teresa, era o nome da religiosa, que a superiora não quisera expor só aos perigos de um tão longo trajecto. Terminada esta conversa que se travara à entrada da cavalariça, Gastão ergueu os olhos e viu Oven que o espreitava. Esta curiosidade do criado desagradou-lhe.

- Que faz aí? - perguntou o cavaleiro.

- Espero as suas ordens - replicou Oven.

Nada havia de extraordinário em que um criado desocupado estivesse à janela; Gastão contentou-se em franzir as sobrancelhas.

- Conhece aquele rapaz? - perguntou Gastão ao jardineiro.

- O senhor Oven, seu criado? - respondeu este admirado da pergunta. - Sem dúvida que o conheço, visto que somos da mesma terra.

- Tanto pior! - murmurou Gastão.

- Oh, é um excelente rapaz - tornou o jardineiro.

- Não importa - disse ainda Gastão -, nem uma palavra a respeito de Helena, peço-Lhe. O jardineiro prometeu, tanto mais que era a pessoa mais interessada em guardar segredo sobre as suas relações com o cavaleiro. A descoberta do empréstimo da chave seria imediatamente seguida pela perda do lugar que era excelente para quem o sabia fazer render.

Gastão voltou para a sala, onde encontrou Oven que o esperava; como era necessário afastá-lo dali, mandou-o aprontar os cavalos. Entretanto o jardineiro tinha apressado os postilhões e a carruagem achava-se pronta para partir, esperando apenas os viajantes que, após uma curta e frugal refeição, atravessaram de novo a sala. À porta, as duas senhoras encontraram Gastão pronto a ajudá-las a subir para a carruagem.

Esta delicadeza da parte dos moços para com as jovens estava então muito em moda; de resto mesmo para a religiosa, Chanlay não era totalmente desconhecido. Recebeu portanto as suas atenções sem má vontade e agradeceu-Lhe com um gracioso sorriso.

É quase inútil dizer que depois de ter oferecido a mão à irmã Teresa, Gastão teve o direito de fazer outro tanto a Helena. Era aí, como se compreende bem, que ele queria chegar.

- Senhor - disse Oven por detrás do cavaleiro -, os cavalos estão prontos.

- Está bem - retrucou Gastão -, vou tomar um copo de vinho e partiremos em seguida. Gastão cumprimentou ainda as duas senhoras e enquanto a carruagem partia subiu ao seu quarto, e, com enorme espanto do criado, pedia uma terceira garrafa, porque a segunda desaparecera como a primeira. É verdade que do conteúdo das três garrafas, Gastão não bebera nem copo e meio.

Sentando-se à mesa para beber o vinho, Gastão ganhou ainda um quarto de hora; depois não tendo já motivo algum para se demorar em Oudon, e quase tão apressado como Oven por se meter a caminho, montou a cavalo e partiu. Ainda não tinham percorrido um quarto de légua, quando a cinquenta passos de distância, divisaram a carruagem verde e preta que se enterrara num barranco tão profundamente que, a despeito dos esforços do jardineiro que procurava levantar a roda, e das exortações acompanhadas de chicotadas que o postilhão dirigia aos cavalos, não havia meio de sair do lugar.

Era uma verdadeira intervenção do céu aquela desgraça. Gastão não podia deixar duas senhoras em semelhante embaraço, principalmente depois do jardineiro, que reconhecera Oven, apelar para a sua boa vontade. Os dois cavaleiros desmontaram e como a boa irmã agostinha tinha muito medo, abriram a portinhola, as duas senhoras apearam-se e com o poderoso auxílio de Gastão e de Oven, a carruagem saiu do barranco e prosseguiram a viagem.

O conhecimento porém estava feito e começara devido a um serviço prestado pelo cavaleiro, o que o colocava em excelente posição; a noite avançava e a irmã Teresa perguntara timidamente ao cavaleiro se julgava a estrada segura. A pobrezinha que nunca tinha saído do seu convento acreditava que as estradas estavam infestadas de bandidos. Gastão reanimara-a por completo porque lhe declarou que, como seguia o mesmo caminho, ele e o seu criado escoltariam a carruagem. Este oferecimento que considerara extremamente obsequiador e que aceitara sem a mínima hesitação, tranquilizara por completo a boa religiosa.

Enquanto durou esta comediazinha, Helena representara a primor o seu papel, o que prova que toda a jovem, por muito simples e ingénua que seja, tem em si o instinto da dissimulação que apenas espera um momento favorável para se desenvolver. Seguiram o caminho de Ancenis: ora, como a estrada era estreita, desigual e escorregadia, e como anoitecera rapidamente, Gastão seguia junto da portinhola, o que dera ensejo a irmã Teresa para lhe dirigir algumas perguntas. Soubera então que o rapaz era o cavaleiro de Livry, irmão de uma antiga e das mais queridas discípulas das agostinhas, que desposara três anos antes Montlouis, e, tranquila com aquele conhecimento, a irmã Teresa não viu inconveniente em aceitar a companhia de Gastão, o que muito agradava a Helena. Pararam em Ancenis, como tinham de antemão combinado. Gastão, sempre com a mesma deferência e delicadeza ofereceu a mão às duas senhoras para ajudá-las a descer. O jardineiro confirmara tudo o que Gastão tinha dito acerca do seu parentesco com a menina de Livry, de sorte que a irmã Teresa não tinha a mínima suspeita; achava até o cavaleiro muito conveniente e delicado, porque só se afastava e aproximava fazendo profundos cumprimentos.

Ficou portanto deveras satisfeita quando na manhã seguinte, no momento em que ia subir para a carruagem o encontrou já a cavalo, com o criado, no pátio da hospedaria. Como de costume, o cavaleiro desmontou acto contínuo, e ajudou as duas senhoras a subir para a carruagem. Quando deu a mão a Helena entregou-Lhe um bilhetinho; um olhar da jovem anunciou- lhe que teria nessa mesma noite a resposta.

O caminho era pior ainda do que o da véspera; portanto como a necessidade de auxílio se tornara cada vez mais instante, Gastão não se afastou um instante da carruagem; a cada momento as rodas enterravam-se nas covas; tornava-se necessário prestar auxílio ao postilhão ou ao jardineiro; quando a subida era muito íngreme as senhoras tinham que se apear e a pobre religiosa não sabia como agradecer a Gastão.

- Meu Deus! - dizia ela a cada momento a Helena. - O que seria de nós se Deus não tivesse enviado em nosso auxílio este bom e excelente fidalgo?

À tarde, um pouco antes de chegarem a Angers, Gastão perguntou-Lhes em que hospedaria tencionavam passar a noite. A religiosa consultou um caderno onde estavam escritas as diferentes paragens que deviam fazer, e respondeu que desceriam no "Galo de Ouro". Era por acaso aí também que Gastão se costumava alojar. Recebeu a resposta ao seu bilhetinho, que Helena tinha escrito durante o jantar e que lhe entregou ao apear-se da carruagem. As pobres crianças tinham já esquecido tudo que haviam dito na noite da sua última entrevista à janela; falavam do seu amor como se devesse durar eternamente, e da sua felicidade como se não tivesse por termo o próprio termo da viagem.

Gastão porém leu o bilhete com profunda tristeza; não conservava ilusões; via o futuro como realmente era, desesperador. Ligado como estava por juramento a uma conjuração; enviado a Paris para aí cumprir uma difícil missão, considerava aquela felicidade apenas como um alívio na sua desgraça que se conservava sempre ameaçadora e terrível.

Contudo havia momentos durante o dia em que tudo esquecia, era quando galopava ao lado da carruagem ou dava o braço a Helena para a ajudar a subir alguma ladeira. Trocavam nesses momentos olhares tão ternos que o coração fundia- se-lhes de felicidade; as palavras que proferiam e só eles compreendiam, eram protestos do amor eterno, os sorrisos da jovem abriam por um momento o céu ao pobre cavaleiro. A cada momento, Helena punha a cabeça fora da portinhola como que para admirar a montanha ou o vale, mas Gastão sabia que era só a ele que se dirigiam aqueles olhares, e que as montanhas e os vales, por muito pitorescos que fossem, não dariam aos seus olhos aquela adorável languidez. Tendo o conhecimento chegado àquele ponto, Gastão tinha mil motivos para não abandonar a carruagem e aproveitou-os amplamente; eram para aquele desgraçado as primeiras e as últimas horas felizes da sua vida. Admirava com um sentimento de amarga revolta contra o seu destino, o facto de gozar pela primeira vez da felicidade para ir ser privado dela para sempre; esquecia que fora ele mesmo quem se lançara nessa conspiração que agora o envolvia, o prendia de todos os lados, o obrigava a seguir um caminho que devia conduzi-lo ao exílio ou ao cadafalso, enquanto descobria um outro risonho e alegre que o levaria direito à felicidade; é verdade que quando se lançara nessa fatal conspiração, não conhecia Helena e julgava-se só e isolado no mundo. O pobre insensato, aos vinte e dois anos, julgara que este mundo Lhe tinha recusado para sempre as suas alegrias e o deserdara implacavelmente dos seus prazeres. Um dia encontrara Helena, e desde então o mundo aparecera-lhe como verdadeiramente era, isto é, cheio de promessas para quem sabe esperá-las, cheio de recompensas para quem sabe merecê-las; era porém demasiado tarde, Gastão tinha entrado já numa senda donde não se podia retirar; urgia caminhar para a frente e atingir, fosse ele qual fosse, o fim feliz ou fatal, mas com certeza sangrento, para o qual caminhava.

Portanto, naqueles últimos momentos que Lhe eram dados, o pobre cavaleiro nada perdia, nem um aperto de mão, nem uma palavra, nem um suspiro, nem o contacto dos pés debaixo da mesa da hospedaria, nem o roçar do vestido de Helena pelo seu rosto quando ela subia para a carruagem, nem a doce pressão do seu corpo quando se apeava. Em tudo isto, como se pode avaliar, Oven era esquecido, e as suspeitas que tinham acudido ao espírito de Gastão num momento de mau humor haviam desaparecido, como essas sombrias aves nocturnas que se ocultam ao romper do sol. Gastão não vira portanto que, de Oudon a Mans, Oven tinha falado com outros dois cavaleiros semelhantes àquele que vira partir na primeira noite, e que, como este, seguiam o caminho de Paris.

Mas Oven que não estava apaixonado não perdia nada do que se passava entre Gastão e Helena.

Contudo, à medida que avançavam, Gastão tornava-se mais triste, porque já não contava os dias mas as horas; havia uma semana que viajavam, e por muito vagarosamente que seguissem, teria inevitavelmente um fim. Por isso, quando chegaram a Chartres e o hospedeiro, interrogado pela irmã Teresa, respondeu com uma voz forte e indiferente. - Amanhã, se se apressarem um pouco, poderão chegar a Rambouillet" - pareceu a Gastão que Lhe tinham dito: amanhã separar-se-ão para sempre. Helena notou a profunda impressão que estas palavras causaram ao cavaleiro; tornou-se tão pálido, que ela aproximou-se-lhe e perguntando se estava indisposto; mas Gastão tranquilizou-a com um sorriso.

Entretanto Helena tinha as suas dúvidas no íntimo do coração. A pobre criança amava como amam as mulheres quando amam, isto é, com a força ou antes com a fraqueza de sacrificar tudo ao seu amor; não compreendia como o cavaleiro não encontrava algum meio de combater essa injusta vontade do destino que os separava. Apesar de estarem bem fechadas as portas do convento a esses livros pervertedores da mocidade que se chamam romances, tinham- lhe chegado às mãos alguns volumes da "Clélie" ou do "Grand Cyrus" e vira como os moços e as jovens dos tempos antigos procediam em semelhantes casos, isto é, fugindo aos seus perseguidores e procurando algum venerável eremita que os casasse em frente de uma cruz de madeira e um altar de pedras; e às vezes ainda era preciso, para arrancar as jovens aos seus perseguidores, subornar guardas, derrubar muros, liquidar feiticeiros e gigantes, o que era coisa fácil e que todavia se realizava sempre para maior glória do amante querido. Ora, não havia nada disso a fazer, nem guardas a subornar além da pobre religiosa, nem muros a derrubar visto que só se tinha que abrir uma portinhola, nenhum feiticeiro nem gigante a matar, excepto o jardineiro que não parecia muito temível, e que, avaliando pela entrega da chave da grade, estava ganho de antemão aos interesses do cavaleiro.

Helena não compreendia essa submissão passiva aos decretos da Providência, e confessava a si mesma que desejaria ver o cavaleiro fazer alguma coisa para lutar contra eles. Mas era injusta para com Gastão, também no seu cérebro perpassavam as mesmas ideias, e, urge confessá-lo, atormentavam- no cruelmente. Adivinhava nos olhares da jovem, que lhe bastaria proferir uma palavra para que ela o seguisse ao fim do mundo: tinha a mala cheia de ouro; uma noite, em vez de se deitar, ser- Lhe-ia fácil descer com Helena; podiam então meter-se numa carruagem puxada por bons cavalos e caminhar, como se caminhou sempre, pagando bem; em dois dias teriam passado a fronteira, estariam livres de qualquer perseguição, livres e felizes, não por uma hora, por um mês, por um ano, mas para sempre.

Sim, mas havia uma palavra que se opunha a tudo isso, uma simples reunião de letras representando um sentido aos olhos de certos homens, não tendo valor algum aos olhos de outros, essa palavra era "honra".

Gastão tinha dado a sua palavra a quatro homens honrados como ele; esses homens chamavam-se de Pontcalec, de Montlouis, de Couedic e Talhouet; ficaria desonrado se a não cumprisse.

Estava, portanto, bem decidido a sofrer toda a sua desgraça, mas manter a sua palavra; é verdade que cada vez que ganhava essa vitória sobre si mesmo, uma dor aguda lhe rasgava o coração.

Foi durante uma dessas lutas que Helena olhara para ele, e foi no momento em que acabava de ganhar uma dessas vitórias que ele se tornou tão pálido que dir-se-ia morrer. A jovem esperava portanto que Gastão nessa noite procedesse, ou pelo menos falasse, porque era a última; deitou-se pois com o coração oprimido e as lágrimas nos olhos, convencida de que não era amada como amava. Enganava-se bem porque nessa noite Gastão não se deitou, e o dia encontrou-o ainda mais pálido e desesperado. De Chartres, onde a noite, como dissemos, passara lugubre e cheia de lágrimas para os dois amantes, partiram de manhã para Rambouillet, o termo da viagem de Helena. Em Chartres, Oven falou ainda com um desses cavaleiros vestidos de roupa cinzenta que pareciam sentinelas postadas na estrada, e, cada vez mais alegre por se achar perto de Paris, apressava a marcha do cortejo. Almoçaram numa aldeia, a refeição correu no meio do silêncio. A religiosa pensava que nessa noite tomaria o caminho para o seu querido convento; Helena pensava que Gastão embora se decidisse, não poderia agir por ser tarde de mais; Gastão pensava que nessa noite ia abandonar a meiga companhia daquela mulher amada pela terrível sociedade de homens misteriosos e desconhecidos a quem uma obra fatal devia ligá-lo para sempre.

Às três horas da tarde chegaram a uma ladeira tão íngreme que se tornou necessário apearem-se. Gastão ofereceu o braço a Helena, a religiosa tomou o do jardineiro e assim a subiram. Os dois apaixonados, caminhando ao lado um do outro, sentiam transbordar o coração: Helena, silenciosa, deixava que as lágrimas lhe caíssem pelas faces, Gastão sentia no peito um peso esmagador, porque não ousava chorar.

Foram os primeiros a chegar ao alto da ladeira, muito antes da velha religiosa, e aí, de súbito, na distância, viram erguer-se um campanário e em volta um grande número de casas. Era Rambouillet, ninguém Lhes disse, e contudo, ambos o adivinharam ao mesmo tempo. Gastão foi o primeiro a romper o silêncio.

- Ali - disse ele estendendo a mão para esse campanário -, os nossos destinos vão se separar talvez para sempre. - Oh, suplico-lhe, Helena, conserve a minha recordação, e, suceda o que suceder, não me amaldiçoe!

- Nunca me fala senão de actos de desespero, meu amigo - tornou Helena. - Necessito de coragem, e em vez de ma incutir, dilacera- me o coração. Não tem nada a dizer-me que me cause alguma alegria? O presente é terrível, bem sei, mas o futuro constitue para nós muitos anos, e, portanto, muita esperança. Somos novos, amamo-nos; não haverá meio de lutar contra o destino que nos persegue agora? Oh! Gastão, sinto em mim uma força imensa, e se me dissesse. Mas não, sou insensata; sou eu que sofro e procuro consolá-lo.

- Compreendo-a, Helena - respondeu Gastão abanando a cabeça -, pede-me uma promessa, não é verdade? Pois veja, sou tão infeliz que nada posso prometer! Pede-me que espere e eu desespero. Se eu tivesse apenas, não direi vinte anos, dez anos, mas um ano de meu, oferecer-lho-ia, e considerar-me-ia feliz mas não é assim, quando a deixar perde-me e eu perco-a; de amanhã em diante não me pertenço.

- Como sou infeliz! - exclamou Helena tomando as palavras noutro sentido. - Ter-me-ia enganado dizendo-me que me amava? Será noivo de outra mulher?

- Pobre amiga - replicou Gastão -, nesse ponto ao menos posso tranquilizá-la: não amo senão a si nem tenho outra noiva.

- Nesse caso poderemos ainda ser felizes, Gastão, se obtiver da minha nova família que o considere como meu marido.

- Helena, não vê que cada uma das suas palavras me dilacera o coração?

- Mas ao menos, diga-me alguma coisa!

- Helena, há deveres a que não podemos subtrair-nos, elos que não se podem quebrar.

- Não os conheço! - bradou a jovem. - Prometem-me uma família, riqueza, um nome; pois bem, diga uma palavra, Gastão, e preferi- lo-ei a tudo. Porque não fará outro tanto?

Gastão curvou a cabeça e não respondeu.

Neste momento a religiosa reuniu-se a eles. Começava a anoitecer, por isso não notou o rosto alterado dos jovens.

As senhoras voltaram para a carruagem, o jardineiro subiu para o seu lugar, e Gastão e Oven montaram nos seus cavalos. Continuaram o caminho para Rambouillet.

A uma légua da cidade, a religiosa chamou Gastão que se acercou da portinhola. Era para Lhe dizer que iria certamente alguém ao encontro de Helena e que seria inconveniente apresentarem-se estranhos a essa entrevista. Também ele pensara nessa circunstância mas faltou-lhe a coragem para a isso se referir. Acercou-se ainda mais. Helena esperava, nem saberia dizer o quê.

A dor levaria Gastão a algum extremo; mas o jovem inclinou-se respeitosamente, agradeceu às duas senhoras terem-lhe permitido que as acompanhasse e ia afastar-se.

Helena não era uma mulher banal; viu no rosto do amado que se despedia com a morte no coração.

- Diz-me adeus ou até à vista? - perguntou ela afoitamente.

O mancebo acercou-se de novo com o coração palpitante.

- Até à vista, se me dá essa honra. E afastou-se ao trote do seu cavalo.

 

UM QUARTO NO HOTEL DO "TIGRE REAL" EM RAMBOUILLET

Gastão tinha-se afastado sem dizer uma única palavra acerca do local onde se tornariam a ver; mas Helena pensou que pertencia ao cavaleiro tratar desse assunto, seguiu-o com o olhar enquanto pôde avistá-lo; passado um quarto de hora entrava em Rambouillet.

A religiosa tirou então um papel da sua grande algibeira, e leu à luz da lanterna da carruagem a seguinte direcção:

"Senhora Desroches, hotel do "Tigre- Real".

Transmitiu em seguida os esclarecimentos ao postilhão, e dez minutos depois a carruagem parava no local designado.

Saiu imediatamente uma mulher que esperava num quarto do hotel e avançou com precipitação para a carruagem.

Fazendo uma reverência respeitosa ajudou as damas a apearem-se; guiou-as em seguida por uma álea sombria, precedida por um criado com duas lanternas.

Abriu-se uma porta que dava para um vestíbulo de bela aparência e a senhora Desroches desviou-se para deixar subir na frente Helena e a irmã Tereza. Passados cinco minutos as duas viajantes achavam-se sentadas num cómodo sofá perto de um lume claro e vivo.

A sala onde se encontravam era bonita, grande e mobilada com luxo; gosto da época, severo, porque ainda não chegara o tempo caprichoso que baptizamos como o nome de Rococó. As paredes ostentavam altos espelhos em molduras douradas e defronte do fogão, pendia do tecto, um lustre dourado.

Nessa sala havia quatro portas: a primeira era aquela por onde tinham entrado; a segunda dava acesso à sala de jantar, que estava iluminada e onde se via a mesa posta; a terceira dava para um quarto de dormir, confortavelmente mobilado; a quarta estava fechada.

Helena admirava tais magnificências sem grande espanto, como também o silêncio dos criados, a sua atitude respeitosa tão diferente dos rostos prazenteiros dos donos das hospedarias que tinha visto no caminho; quanto à religiosa, murmurava o seu "benedicite" cobiçando a ceia fumegante sobre a mesa e intimamente felicitando-se por não ser dia de jejum. Passado um instante, a senhora Desroches, que acompanhara as viajantes à sala e se retirara, voltou e aproximando-se da religiosa entregou-lhe uma carta que esta abriu com vivo interesse.

O conteúdo era o seguinte:

A irmã Teresa poderá passar a noite em Rambouillet ou partir logo conforme Lhe aprouver. há-de receber duzentos luízes, gratificação oferecida por Helena ao seu querido convento, e entregará a sua disciplina aos cuidados da senhora Desroches, que possui toda a confiança dos parentes de Helena. "

No fim da carta em lugar de assinatura, havia umas iniciais que a irmã confrontou com as de uma carta que levara de Clisson. Estabelecida a identidade, disse dirigindo-se a Helena:

- Vamos, minha querida, depois da ceia, teremos que nos separar.

- Como, já? - exclamou Helena.

- Sim, minha filha; oferecem-me para aqui passar a noite, mas prefiro partir hoje ainda, porque tenho muita pressa de voltar para o nosso convento, onde estou habituada e onde nada faltará para a minha alegria, senão a sua ausência, minha querida filha.

Chorando Helena abraçou a boa irmã; recordava-se da sua mocidade passada tão tranquilamente no meio dessas companheiras tão dedicadas; por um desses milagres do pensamento que a ciência nunca poderá explicar, as ruas arborizadas do jardim, o lindo lago, os sinos da capela, acudiram-lhe à memória, e toda essa existência, que considerava já como um sonho perdido, passou-lhe alegre e risonha diante dos olhos fechados.

A boa irmã Teresa chorava sem consolação, e aquele inesperado acontecimento tirara-Lhe a tal ponto o apetite que ia levantar-se para partir sem ter comido, quando a senhora Desroches lembrou às duas senhoras que a ceia estava na mesa e observou à irmã Teresa que, se viajasse como tencionava durante toda a noite, não encontraria nenhuma hospedaria aberta, e portanto nada que comer até ao dia seguinte. Convencida, a religiosa decidiu-se a ir para a mesa e tanto pediu a Helena que lhe fizesse companhia que a jovem sentou-se na sua frente mas sem tomar coisa alguma. A boa religiosa comeu à pressa umas frutas e bebeu meio copo de vinho de Espanha, em seguida ergueu-se e beijou ainda uma vez Helena que queria acompanhá-la pelo menos até à carruagem, mas a quem a senhora Desroches observou que o hotel do Tigre-Real" estava cheio de estrangeiros e que seria inconveniente deixar os seus aposentos e expor-se a que a vissem. Helena pediu então para ver o jardineiro que as havia acompanhado; o pobre homem já tinha solicitado o favor de se despedir da jovem, mas ninguém se tinha preocupado com as suas sentimentais reclamações. Entretanto, logo que a senhora Desroches ouviu Helena exprimir esse desejo mandou- o subir e foi-Lhe permitido ver ainda uma vez aquela de quem julgava separar-se para sempre.

Nos momentos supremos, e Helena atingira um deles, todos os objectos ou todas as pessoas que se deixam, ligam-se mais ao coração; aquela velha religiosa e aquele pobre jardineiro, tinham-se tornado os seus amigos; teve portanto o maior desgosto em se separar deles, tornou a chamá-los quando se afastavam recomendando a uma as suas amigas, ao outro as suas flores e no meio de tudo isto, lançando-lhe alguns olhares de agradecimento pelo empréstimo da chave da grade.

Como a senhora Desroches visse que Helena procurava, inutilmente, na algibeira qualquer coisa, perguntou-lhe:

- Deseja alguma coisa?

- Sim - disse Helena -, queria dar uma lembrança a este bom homem. A senhora Desroches entregou vinte e cinco luízes a Helena, que, sem os contar, os meteu na mão do jardineiro, cujas lágrimas redobraram perante aquela prova de generosidade.

Por fim, foi preciso separarem-se; a porta fechou-se sobre eles, Helena correu à janela, que estava fechada, não podendo ver para a rua; a jovem escutou e passado um instante ouviu o rodar da carruagem que se afastou pouco a pouco; quando deixou de a ouvir, sentou-se triste numa poltrona.

A senhora Desroches aproximou-se dela e observou-Lhe que apesar de se ter sentado à mesa não tocara em coisa alguma. Helena foi então cear, não porque tivesse fome, mas esperando ter ainda nessa noite notícias de Gastão, procurava ganhar tempo.

Foi para a mesa convidando a senhora Desroches a acompanhá-la, mas esta só depois de muito instada é que acedeu ao convite. Contudo não quis comer e contentou-se em servi-la.

Terminada a ceia, a senhora Desroches foi mostrar a Helena o seu quarto de dormir e disse-Lhe:

- Quando precisar de alguma coisa tenha a bondade de tocar a campainha e logo acudirá uma criada de quarto que aqui se acha às suas ordens. Creio que esta noite ainda receberá uma visita.

- Uma visita! - exclamou Helena, interrompendo a senhora Desroches.

- Sim, a visita de um dos seus parentes.

- E é esse parente que tem velado por mim?

- Desde o seu nascimento.

- Oh, meu Deus! - exclamou Helena levando a mão ao peito. - E diz que vou recebê- lo?

- Creio que sim, porque está ansioso por conhecê-la.

- Oh! - murmurou Helena -, oh, não me sinto bem.

A senhora Desroches correu para ela e amparou-a.

- É tão grande o susto que sente por se encontrar com alguém que a estima?

- Não é susto - tornou Helena -, é uma grande comoção; não estava prevenida que seria esta noite e essa notícia tão importante e que contudo me deu à queima-roupa, perturbou-me.

- E tenho ainda a dizer-Lhe - continuou a senhora Desroches -, que essa pessoa é obrigada a cercar-se do maior mistério.

- E porquê?

- É-me proibido responder a semelhante pergunta.

- Meu Deus! Que significam semelhantes precauções para com uma órfã como eu?

- Acredite que são necessárias.

- Mas enfim, em que consistem?

- Em primeiro lugar não poderá ver o rosto dessa pessoa, porque, se por acaso a encontrar mais tarde, não deve reconhecê-la.

- Virá aqui mascarada?

- Não, menina, mas apagar-se-ão as luzes.

- E ficaremos às escuras?

- Exactamente.

- Mas a senhora Desroches ficará aqui comigo?

- Não, menina, isso é-me expressamente proibido.

- Por quem?

- Pela pessoa que deve aqui vir.

- Deve-lhe então a mais absoluta obediência?

- Devo-lhe mais do que isso, menina, deve-lhe o mais profundo respeito.

- É nesse caso uma pessoa muito importante?

- É um dos maiores senhores de França.

- E é meu parente?

- O mais próximo.

- Em nome do céu, senhora Desroches, não me deixe nesta cruel incerteza!

- Já tive a honra de Lhe dizer, que há certas perguntas a que estou expressamente proibida de responder.

A senhora Desroches deu um passo para se retirar.

- Deixa-me? - exclamou Helena.

- Tem que proceder à sua toilette.

- Mas, minha senhora.

A senhora Desroches fez uma profunda reverência, cheia de cerimónia e de respeito e sem se voltar saiu fechando a porta do quarto.

 

UM PICADOR COM A LIBRÉ DE S. A. MONSENHOR DUQUE D'ORLEANS

Enquanto no pavilhão do hotel do "Tigre-Real", se passavam os factos que acabámos de contar, num quarto desse mesmo hotel um homem sentado junto do fogão onde ardia um bom fogo sacudia as botas cobertas de neve e desatava os cordões de uma carteira.

Esse homem, estava vestido como um picador, com a libré de caça da casa d'Orleans: casaca encarnada com galões prateados, calções de pele, botas altas, chapéu de três bicos galoados de prata; o olhar vivo, o nariz comprido, ponteado e borbulhento, a fronte arqueada e denotando uma franqueza que os lábios delgados desmentiam. Folheava com cuidado, sobre uma mesa que tinha diante de si, os papéis que tirara da carteira. Esse homem, por um hábito que Lhe era peculiar, falava só, ou antes murmuráva entre dentes frases que interrompia com exclamações e pragas que pareciam ter mais relação com os pensamentos que lhe atravessavam ins tantaneamente o cérebro do que com as palavras que pronunciava.

- Vamos, vamos - dizia ele -, o sr. de Montaran não me enganou e aqui estão os meus bretões em acção: mas porque diabo veio ele tão devagar? Partiu no dia 11 ao meio dia e apenas chegou a 21, às seis horas da tarde? Isto esconde provavelmente algum novo mistério que me vai ser desvendado pelo rapaz que o sr. de Montaran me recomendou e com o qual a minha gente falou durante a viagem. Preciso falar a algum deles.

Ao mesmo tempo o homem de casaca encarnada tocou a campainha, atendendo imediatamente um desses homens com roupa cinzenta que notámos na estrada de Nantes!

- Ah, é o senhor, Tapin - disse o homem de casaca encarnada.

- Sim, monsenhor; como o caso é importante, vim eu mesmo.

- Interrogou os homens que postou na estrada?

- Sim, monsenhor; eles porém nada sabem, a não ser as diferentes paragens que teve o nosso conspirador; foi também o que os encarreguei de saber.

- Vou tentar saber mais alguma coisa pelo criado. Que especie de criatura é?

- Um desses velhacos, meio normando; meio bretão; nada bom, em todo o caso.

- Que faz ele neste momento?

- Serve a ceia ao patrão.

- A quem deram, como recomendei, um quarto no rés-do-chão.

- Sim, monsenhor.

- Um quarto sem cortinas?

- Sim, monsenhor.

- E fez um buraco na porta?

- Sim, monsenhor.

- Bem, mande-me esse criado e conserve-se aqui perto.

O homem de casaca encarnada tirou do bolso um relógio que consultou.

- Oito horas e meia - disse ele. - A esta hora, monsenhor voltou a Saint-Germain

e mandou chamar Dubois. Ora, como Lhe dizem que Dubois não está, esfrega as mãos e prepara-se para fazer alguma loucura. Esfregue as mãos, monsenhor, e faça a sua extravagância

à-vontade. Não é em Paris que está o perigo, mas aqui. Ah, havemos de ver se ainda desta vez

escarnece da minha polícia secreta! Ah! Ah! Vem o nosso homem.

Com efeito, o sr. Tapin introduziu Oven.

- Aqui está a pessoa que espera - disse ele. - E, fechando a porta, retirou-se.

Oven permaneceu de pé e trémulo, à porta, enquanto Dubois, envolto num grande capote que só lhe deixava a descoberto a parte superior do rosto, fixava nele os seus olhos de tigre.

- Aproxima-te, meu amigo - disse Dubois.

Não obstante a cordialidade do convite, foi com uma voz tão estridente, que Oven desejou estar a cem léguas desse homem que o fitava de um modo tão singular.

- Então! - tornou Dubois vendo que o homem não se mexia. - Não me ouviste, homem?

- Sim, monsenhor - respondeu Oven.

- Então porque não obedeces?

- Não julguei que era a mim que fazia a honra de dizer para me aproximar.

E Oven deu alguns passos para a mesa.

- Recebeste cinquenta luízes para me dizer a verdade? - continuou Dubois.

- Perdão, monsenhor - replicou Oven, a quem essa interrogação quase afirmativa restituiu parte da sua ousadia -, não os recebi... prometeram apenas.

Dubois tirou um punhado do ouro de uma bolsa, contou cinquenta luízes, colocou-os sobre a mesa.

Oven olhava para o dinheiro com uma expressão que se julgaria impossível naqueles olhos claros e velados.

- Bom - disse Dubois -, é avarento!

Realmente aqueles cinquenta luízes tinham sempre parecido a Oven feéricos e inverosímeis; traíra o patrão sem o esperar, desejando-os apenas; e todavia os cinquenta luízes prometidos ali estavam, na sua frente.

- Posso guardá-los? - perguntou Oven, estendendo a mão para as moedas de ouro.

- Espera um momento - retorquiu Dubois, que se divertia a excitar aquela cupidez que um homem da cidade teria sem dúvida dissimulado, mas que o camponês mostrava com toda a franqueza. - Vamos fazer um contrato.

- Qual? - disse Oven.

- Aqui estão os cinquenta luízes prometidos.

- Bem os vejo - tornou Oven passando a língua pelos beiços.

- A cada resposta que deres às minhas perguntas, se for importante, acrescento deZ luízes; se for ridícula e estúpida, tiro dez.

Oven abriu muito os olhos; considerou o contrato evidentemente arbitrário.

- Agora, conversemos - tornou Dubois -, donde vens?

- De Nantes.

- Com quem?

- Com o cavaleiro Gastão Chanlay.

Este interrogatório compondo-se evidentemente de perguntas preparatórias, não influía

nas moedas de ouro que continuavam no mesmo lugar.

- Atenção! - disse Dubois estendendo a mão magra e comprida para o dinheiro.

- Escuto-o com toda a atenção - retrucou Oven.

- Teu senhor viaja com o seu próprio nome?

- Partiu dando o seu nome, mas durante a viagem mudou.

- Por qual?

- Pelo de Livry.

Dubois juntou dez luízes; mas como não podia já conservá-los todos num monte, já muito alto, formou segundo que colocou junto do primeiro. Oven soltou uma exclamação de alegria.

- Oh, oh! - disse Dubois. - Não te regozijes antes de tempo, ainda não acabámos. Atenção! Existe algum sr. de Livry?

- Não, monsenhor; há porém uma senhora de Livry.

- Quem é essa senhora?

- A esposa do sr. de Montlouis, íntimo amigo de meu patrão.

- Bom! - disse Dubois juntando dez luízes. - E que fazia teu patrão em Nantes?

- O que fazem todos os fidalgos: caçava, jogava as armas, ia aos bailes. Dubois retirou dez luízes. Oven sentiu um arrepio percorrer-lhe todo o corpo.

- Espere, espere! - tornou ele. - Fazia ainda outra coisa.

- Ah, vejamos - disse Dubois. - Que fazia então?

- Saía à noite uma ou duas vezes por semana, pelas oito horas e não voltava senão às três ou quatro horas da manhã.

- E onde ia?

- Isso é que não sei - respondeu Oven.

Dubois conservou os dez luízes na mão.

- E desde a sua partida - prosseguiu Dubois -, que fez ele?

- Passou por Oudon, por Ancenis, pelo Mans, por Nogent, e por Chartres. Dubois estendeu a mão, e, com os dedos pontudos, tirou outros dez luízes. Oven soltou um grito de dor.

- E durante o caminho - perguntou Dubois -, não travou qualquer conhecimento?

- Sim, com uma jovem pensionista das agostinhas de Clisson, que viajava com uma religiosa do convento, chamada irmã Teresa.

- E a jovem como se chamava?

- A menina Helena de Chaverny.

- Helena, o nome promete E, sem dúvida, essa bela Helena é amante de teu senhor.

- A esse respeito nada sei - retorquiu Oven. - Bem deve compreender que ele não me disse.

- Tem espírito! - disse Dubois tirando novamente dez luízes.

Um suor frio cobriu a fronte de Oven. Mais quatro respostas como aquela, e tinha traído o patrão sem proveito algum.

- E essas senhoras vão para Paris com ele? - perguntou Dubois.

- Não, senhor, ficam em Rambouillet.

- Ah! - disse Dubois.

A exclamação pareceu de bom agouro a Oven que continuou:

- E até a religiosa já tornou a partir.

- Vamos - disse Dubois -, tudo isto tem pouca importância, mas não se deve desanimar os que começam.

E juntou dez luízes ao monte.

- De modo - tornou Dubois - que a jovem ficou só?

- Não - disse Oven.

- Como assim?

- Esperava-a uma senhora de Paris.

- Sabes-Lhe o nome?

- Ouvi a irmã Teresa chamar-Lhe senhora Desroches.

- Senhora Desroches! - exclamou Dubois, e começou a fazer novo monte de moedas de ouro.

- Sim, monsenhor - retrucou Oven radiante.

- Tens a certeza?

- Ora essa! É uma senhora alta, magra, amarela.

Dubois pôs mais dez luízes. Oven arrependeu-se de não ter deixado um intervalo entre cada epíteto; era evidente que perdera vinte luízes com a sua precipitação.

- Alta magra, amarela - repetiu Dubois -, é isso mesmo.

- Tendo uns quarenta a quarenta e cinco anos - juntou Oven, esperando desta vez.

- É exactamente! - repetiu Dubois pondo sobre o monte dez luízes.

- Com um vestido de seda com grandes flores - continuou Oven que queria tirar partido de tudo.

- Está bem - disse Dubois -, está bem.

Oven viu que o seu interlocutor já sabia bastante acerca da mulher, e esperou.

- E dizes que teu patrão travou conhecimento com essa menina durante a viagem?

- Isto é, senhor, pensando melhor, creio que o conhecimento era uma comédia.

- Que queres dizer?

- Parece-me que já se conheciam. E quase que tenho a certeza que foi ela que ele esperou três horas em Oudon.

- Bem - retrucou Dubois pondo mais dez luízes -, vamos, vamos, há-de se fazer alguma coisa de ti.

- Não deseja saber mais nada? - disse Oven estendendo a mão para o dinheiro.

- Um momento - tornou Dubois -, a jovem é bonita?

- Como um anjo.

- E sem dúvida combinaram algum encontro em Paris, teu patrão e ela?

- Não, senhor, creio até que se despediram para sempre.

- Nova comédia.

- Não creio; o sr. de Chanlay estava muito triste quando se separaram.

- E não se tornarão a ver?

- Parece-me que será a última.

- Toma o teu dinheiro, e lembra-te que se disseres uma palavra a este respeito, dez minutos depois estarás morto.

Oven deu um salto para os oitenta luízes que desapareceram na algibeira dos seus calções.

- E agora - disse ele -, posso ir-me embora, não é verdade?

- Idiota! Desde este momento, me pertences, porque te comprei, e é em Paris principalmente que me podes ser útil.

- Nesse caso, ficarei, senhor, prometo-lhe - disse Oven soltando um prolongado suspiro.

- Não tens necessid ade de prometer, retira- te. Neste momento, abriu-se a porta e o sr. Tapin reapareceu deveras aflito.

- Que há de novo? - perguntou Dubois que sabia ler nas fisionomias.

- Um caso muito importante, monsenhor; mas mande retirar este homem.

- Volta para junto de teu patrão - disse Dubois -, e se ele escrever seja a quem for, lembra-te que estou curiosíssimo por lhe conhecer a letra.

Oven encantado de se ver livre por algum tempo, cumprimentou e saiu.

- Então, senhor Tapin - disse Dubois -, que temos?

- Temos que, depois da caçada de Saint- Germain, Sua Alteza Real, em vez de regressar a Paris, mandou para aqui as suas equipagens e deu ordem de partir para Rambouillet.

- Para Rambouillet? O regente vem a Rambouillet?

- Estará aqui dentro de meia hora; e já aqui estaria, se por felicidade, aguilhoado pela fome, não tivesse entrado no castelo para comer alguma coisa.

- O que vem ele fazer a Rambouillet?

- Não sei, monsenhor, a não ser que seja por causa daquela jovem que acaba de chegar com uma religiosa e que se instalou no pavilhão.

- Tem razão, Tapin, é por causa dela, é isso mesmo; senhora Desroches. não há dúvida. Sabia que a senhora Desroches está aqui?

- Não, monsenhor, ignorava-o.

- E tem a certeza que ele está a chegar? Tem a certeza que não o enganaram, Tapin?

- Oh, monsenhor, foi o Experto que eu mandei espiar Sua Alteza, e o que o Experto diz, é o Evangelho.

- Tem razão - retrucou Dubois -, que parecia conhecer a fundo as qualidades daquele a quem elogiavam. - Tem razão, se foi o Experto não pode haver dúvida.

- O pobre rapaz até rebentou o cavalo, que caiu à entrada de Rambouillet para não tornar a erguer-se.

- Trinta luízes pelo cavalo, o homem ganhará o que for a mais.

Tapin pegou no dinheiro.

- Meu caro - prosseguiu Dubois -, conhece a topografia do pavilhão, não é verdade?

- Muito bem.

- Qual é?

- De um lado dá para o segundo pátio, do outro para uma viela deserta.

- Coloque homens nesse pátio e nessa viela disfarçados de cocheiros, de empregados de cavalariça, como quiser; que só monsenhor e eu possamos entrar nesse pavilhão, senhor Tapin: depende disso a vida de Sua Alteza Real.

- Pode ficar descansado, monsenhor.

- Ah! Conhece o nosso bretão?

- Vio-o descer do cavalo.

- Os seus homens conhecem-no?

- Todos o viram na estrada.

- Bem, recomendo-lho.

- Devo prendê-lo?

- Deus o livre, senhor Tapin; é preciso deixá-lo andar e proceder livremente; se o prendêssemos agora, ele nada diria e a nossa conspiração abortava. Nada disso, urge que tenhamos um magnífico resultado.

- E qual é, monsenhor? - perguntou Tapin, que parecia ter uma certa confiança com Dubois.

- A minha mitra de arcebispo, senhor Tapin - retorquiu Dubois -, e agora vá tratar da sua vida que eu vou tratar da minha.

E ambos saíram do quarto e desceram apressadamente a escada ao fundo da qual se separaram; Tapin voltou para a cidade, e Dubois seguiu junto do muro, para ir aplicar o seu olhar de lince ao buraco da porta.

 

               A UTILIDADE DOS SINETES

Gastão acabava de cear; porque, na sua idade, embora se esteja apaixonado, desesperado mesmo, a natureza nunca perde os seus direitos, e só quem tiver mau estômago é que aos vinte e cinco anos não ceia, mais ou menos bem.

Estava encostado à mesa e pensava. A luz do candeeiro reflectia no seu rosto, e servia maravilhosamente a curiosidade de Dubois.

O abade fitava-o com uma atenção singular e assustadora; o seu olhar inteligente iluminava-o, a boca irónica crispava-se sob um sorriso fatal, e qualquer que surpreendesse esse sorriso ou esse olhar, teria certamente julgado ver o demónio que, nas trevas, vê uma das vítimas que Lhe são votadas caminharem para a perdição.

E enquanto olhava para o moço, murmurava segundo o seu costume:

- Novo, belo, olhos negros, boca orgulhosa; é um bretão; esse ainda não se corrompeu como os meus conspiradores de Cellamare, com os meigos olhares das damas da corte. E como ele vai depressa, o demónio! Os outros só falavam em raptar, destronar. Diacho! E contudo - prosseguiu Dubois depois de uma pausa -, procuro em vão a velhacaria naquela fronte pura, o maquiavelismo nos cantos daquela boca cheia de lealdade e de confiança. E portanto não posso ter dúvidas, está tudo preparado para surpreender o regente na sua entrevista com a virgem de Clisson; e digam que esses bretões têm a cabeça obtusa. Decididamente - prosseguiu Dubois, após outro momento de exame -, é impossível que este moço de olhar triste, mas sereno, se prepare para matar um outro homem dentro de um quarto de hora; e que homem? O regente da França, o primeiro príncipe de sangue! Não, é impossível, e não se compreenderia semelhante sangue frio. E contudo, não pode ser de outro modo, o regente guarda segredo sobre esses novos amores para mim a quem diz tudo: vai caçar a Saint-Germain, declara alto e bom som que vai dormir no Palais- Royal, e de repente dá nova ordem, e indica ao cocheiro o caminho de Rambouillet. É aí que a jovem espera; é recebida pela senhora Desroches; quem espera ela senão o regente? Essa jovem é a amante do cavaleiro. Mas sê-lo-á realmente? Ah, vamos sabê- lo: aqui temos o nosso amigo Oven que, depois de ter ido pôr em segurança os seus oitenta luízes, leva papel e tinta para o seu amo. Vai escrever; ora ainda bem, assim saberemos alguma coisa de positivo. E agora - tornou Dubois -, vejamos até que ponto podemos contar com o patife do criado.

E abandonou o seu observatório, tiritando, porque, como se devem lembrar, não fazia calor.

Dubois parou na escada e esperou: do degrau onde se encontrava inteiramente escondido na sombra, descobria a janela de Gastão toda iluminada.

Passado um momento a porta abriu-se dando passagem a Oven. Ficou um momento à porta, virando a carta nas mãos, depois tomou o seu partido e subiu a escada.

- Bom! - disse Dubois. - Comeu o fruto proibido, e agora pertence-me. Em seguida, fazendo parar Oven na escada, disse-Lhe:

- Está bem, dá-me a carta que ias levar- me e espera aqui.

- Como sabe que ia levar-Lhe uma carta? - disse Oven muito admirado. Dubois sacudiu os ombros, tirou-lhe a carta das mãos e desapareceu. Voltando ao seu quarto, examinou o sinete: o cavaleiro que não tinha lacre nem carimbo, servira-se do lacre da garrafa, e pusera-Lhe em cima a pedra de um anel. Dubois colocou a carta por cima da chama da vela e o lacre derreteu-se.

Abriu então a carta e leu o seguinte:

"Querida Helena, a sua coragem dobrou a minha; faça com que eu possa entrar nos seus aposentos, e saberá quais são os meus projectos. "

- Ah! ah! - exclamou Dubois. - Parece que ela ainda não os sabe: nesse caso, as coisas não estão tão adiantadas como eu julguei.

Tornou a lacrar a carta cuidadosamente e indo ter com Oven disse-Lhe:

- Aqui tens a carta de teu patrão, vai entregá-la fielmente; traz-me a resposta e receberás dez luízes.

- Ora esta! - disse Oven para consigo. - Este homem tem uma mina de ouro. E afastou-se correndo.

Dez minutos depois estava de volta com a resposta esperada. Era escrita num lindo papel perfumado e lacrado com o sinete tendo apenas a inicial H.

Dubois abriu uma caixa donde tirou uma espécie de massa com que ia imitar o sinete; mas quando se entregava a esta ocupação, viu que a carta estava dobrada de modo que se podia perfeitamente, sem quebrar o lacre, ler o que continha.

Leu em seguida:

A pessoa que me mandou vir da Bretanha vem encontrar-se comigo aqui, em vez de me esperar em Paris, tal é a sua impaciência, diz ela, de me ver; creio que tornará a partir ainda esta noite. Venha amanhã de manhã, antes das nove horas, dir-Lhe-ei tudo que se tiver passado, e veremos então de que modo devemos proceder. "

- Isto - disse Dubois, seguindo sempre a sua ideia que fazia de Helena cúmplice do cavaleiro - parece-me mais claro. Que pequena esperta! Se é assim que educam as moças nas agostinhas de Clisson, hei-de fazer os meus cumprimentos às superioras. É monsenhor que a vai tomar por uma ingénua. Oh, há- de arrepender-se; eu procuro melhor.

- Aqui tens - disse ele a Oven - os dez luízes e a tua carta: bem vês que é tudo ganho, Oven guardou os dez luízes e pegou na carta; o excelente criado não compreendia absolu tamente nada, e perguntava a si mesmo que lhe reservaria Paris, quando em tal quantidade o dinheiro corria já pelos arredores. Neste momento davam dez horas e ao ruído monótono e vagaroso de um relógio misturava-se o rodar de uma carruagem que se aproximava; Dubois chegou à janela e viu-a parar à porta do hotel. Nessa carruagem instalava-se um gentil-homem muito discreto, no qual ao primeiro relance Dubois reconheceu La Fare, o capitão das guardas de Sua Alteza Real.

- Vamos, vamos, é mais prudente do que eu julgava; mas onde está ele? Ah! Ah! Esta exclamação era-Lhe arrancada pela vista de um picador ostentando a mesma libré que ele próprio ocultava debaixo do seu grande capote e que seguia a carruagem montando um bonito cavalo.

A carruagem tinha parado à porta do hotel e todos corriam solícitos para La Fare que pedia um quarto e ceia. Entretanto o picador desmontava, dava as rédeas a um pagem e encaminhava-se para o pavilhão.

- Bem, bem! - disse Dubois. - Tudo isto é claro como a água; mas como é que ainda não se viu a figura do cavaleiro. Estaria tão preocupado que não ouvisse a carruagem? Vejamos.

Quanto a si, monsenhor, esteja descansado que não lhe perturbarei a entrevista. Pode saborear à-vontade esse começo de ingenuidade que promete tão feliz continuação. Ah, monsenhor, bem se nota que vê pouco.

Enquanto monologava, Dubois voltara e tomou lugar no seu observatório.

No momento em que espreitava, Gastão depois de ter guardado o bilhete de Helena na carteira que meteu cuidadosamente no bolso, ergueu-se.

- Ah, com o demónio! - disse Dubois estendendo instintivamente para o cavaleiro as garras que só encontraram a parede. - Com o demónio, dessa carteira é que eu precisava e pagaria caro por ela. Ah! ah! Prepara-se para sair o nosso fidalgo; põe a espada, procura o capote. onde irá ele? Vamos a ver! esperar Sua Alteza à saída Não, com certeza, não apresenta a fisionomia de um homem que vai matar um seu semelhante; e quero antes crer que, por esta noite, se contentará em permanecer debaixo das janelas da sua amada. Ah, se tivesse essa boa ideia, talvez houvesse meio. - Seria difícil traduzir a expressão do sorriso que passou naquele momento pelo rosto de Dubois. - Sim, mas - disse ele como que respondendo a si próprio - se eu fosse apanhar uma boa espadeirada, como monsenhor havia de rir! Ora, não há perigo, os nossos homens devem estar no seu posto e de resto, quem não se arriscou, não perdeu nem ganhou!

E animado por este ousado provérbio, Dubois deu rapidamente volta ao hotel, a fim de se apresentar num extremo da viela, enquanto o cavaleiro se apresentaria no outro, supondo que Gastão saísse para passear puramente e simplesmente debaixo das janelas da sua amada, o que parecia indicar a expressão triste, mas serena do seu rosto. Dubois não se tinha enganado: à entrada da viela encontrou Tapin que, depois de ter encarregado o Experto de vigiar o interior do pátio, se conservara de sentinela na parte exterior; em duas palavras pô-lo ao par do seu projecto. Tapin designou-lhe um dos seus homens deitado sobre os degraus de uma porta, enquanto que um terceiro, sentado sobre um marco, trauteava uma canção. Um quarto devia achar-se ainda em qualquer outro ponto, mas estava tão bem oculto que nem o viam.

Dubois, certo de que o protegeriam, embrulhou-se até ao nariz no seu capote, e aventurou-se a entrar na viela.

Dera apenas alguns passos, quando viu uma sombra que avançava do lado oposto; parecia realmente a pessoa que Dubois esperava.

De facto, quando os dois homens passaram ao lado um do outro, Dubois reconheceu o cavaleiro, mas este, preocupado com os seus pensamentos, nem procurou saber quem passava junto dele, nem talvez o notasse.

e Não era isso o que Dubois queria; precisava de uma questão, e vendo que não a procuravam, rosolveu tomar a iniciativa.

Voltou portanto para trás, e parando em frente do cavaleiro que também parara procuranedo distinguir qual das quatro janelas que davam para a viela era a do quarto onde se encontrava Helena:

- Olá, amigo - disse ele com uma voz rouca -, que faz a esta hora diante desta casa?

Gastão baixou os olhos do céu para a terra, e da poesia dos seus pensamentos recaiu no materialismo da vida.

- O que disse, senhor - retorquiu ele -, pareceu-me que falou comigo?

- Sim, senhor - tornou Dubois - perguntei-lhe o que fazia aqui?

- Siga o seu caminho - retrucou o cavaleiro -, não me meto consigo, faça o mesmo a meu respeito.

- Poderia fazê-lo - disse Dubois -, se a sua presença não me incomodasse.

- Esta viela, apesar de estreita, chega para ambos, senhor: passeie de um lado e eu passearei do outro.

- Mas agrada-me mais passear só - volveu Dubois. - Intimo-o portanto a tomar outro rumo; não faltam ruas e janelas em Rambouillet, escolha outras.

- E por que motivo não poderia olhar para estas janelas se isso me agrada? – respondeu Chanlay.

- Porque são as do quarto de minha mulher - retorquiu Dubois.

- De sua mulher?

- Sim, de minha mulher que chegou de Paris, e de quem tenho muitos ciúmes, previno-o.

- Diacho! - murmurou Gastão. - É provavelmente o marido da pessoa encarregada de acompanhar Helena.

E pensando que devia poupar esse importante personagem que talvez mais tarde lhe fosse

útil, disse cumprimentando muito delicadamente Dubois:

- Se assim é, senhor, estou pronto a ceder-Lhe o meu lugar, porque passeava aqui sem fim algum.

- Diabo! - disse consigo Dubois. - Aqui está um conspirador bem delicado! Mas não é isto que me convém, preciso de uma questão.

Gastão afastava-se.

- O senhor engana-me - tornou Dubois.

O cavaleiro voltou-se tão prontamente como se uma serpente o tivesse mordido, contudo prudente por causa de Helena e devido à missão que lhe havia sido confiada, conteve-se.

- Senhor - disse ele -, será porque Lhe respondi correctamente que duvida da minha palavra?

- Respondeu desse modo, porque tem medo; mas não é menos verdade que o vi olhar para aquela janela.

- Medo! Eu, medo! - bradou Chanlay voltando-se de um salto para o antagonista. Não disse que eu tinha medo?

- Disse - respondeu Dubois.

- Mas nesse caso é uma briga que procura?

- Com mil raios! É visível. Mas que diabo, donde vem o senhor!

- Vamos - exclamou Gastão, desembainhando a espada -, em guarda, senhor!

- E o capote fora, e o casaco, se faz favor - disse Dubois tirando o seu.

- E para quê? - perguntou o cavaleiro.

- Porque não o conheço, senhor, e os aventureiros que se encontram de noite pelas estradas, usam por vezes os casacos prudentemente forrados por uma cota de malha.

Mal Dubois pronunciara estas palavras, já o capote e o casaco do cavaleiro estavam longe mas no momento em que Gastão, de espada desembainhada, se atirava ao seu adversário, o homem embriagado foi-lhe rolar aos pés, o que cantava agarrou- lhe o braço direito, o outro o braço esquerdo, e o quarto, que ninguém tinha visto, segurou-o pela cintura.

- Um duelo, senhor - gritavam esses homens -, um duelo, a despeito da proibição do rei.

E arrastavam-no para a porta sobre cujos degraus estava deitado o ébrio.

- Um assassínio! - murmurou Gastão, não ousando gritar com receio de comprometer Helena. - Miseráveis!

- Senhor, traíram-nos - disse Dubois enrolando o casaco e o capote do cavaleiro e metendo-os debaixo do braço -, mas havemos de nos encontrar de novo, esteja descansado.

E correu apressado para o hotel, enquanto fechavam Gastão na sala do primeiro pavimento. Dubois subiu a escada de quatro em quatro, e, encerrando-se no seu quarto, tirou a preciosa carteira do bolso do cavaleiro. Numa algibeira interior encontrou uma moeda de ouro partida ao meio e um papel com um nome.

A moeda era evidentemente um sinal.

O nome era sem dúvida da pessoa a quem Gastão se dirigia e que era o capitão La Jonquiére.

O papel era cortado de um modo especial.

- La Jonquiére! - murmurou Dubois. - É isso mesmo; já não o perdíamos de vista. Muito bem!

Revistou rapidamente a carteira mas não encontrou mais nada.

- É pouco - disse ele -, mas chega.

Talhou um papel pela forma do outro, escreveu o nome, depois tocou a campainha.

Bateram discretamente à porta que estava fechada por dentro.

- É verdade - disse Dubois -, tinha-me esquecido.

E foi abrir. Era Tapin.

- O que fez dele? - perguntou Dubois.

- Está fechado na sala do primeiro pavimento, com sentinela à vista.

- Leve este capote e este casaco para o lugar onde ele os deixou, a fim de que os encontre no mesmo lugar; apresente-lhe as suas desculpas e dê-lhe liberdade. Tome cuidado que não falte coisa alguma nas algibeiras do casaco, nem a carteira, nem a bolsa nem o lenço; é urgente que não tenha a mínima suspeita. Ao mesmo tempo, trar-me-á o meu casaco e o meu capote, que ficaram no campo de batalha.

Tapin inclinou-se até ao chão e retirou-se para cumprir as ordens que recebera.

 

                   A VISITA

Toda esta cena, como dissemos, passou-se na viela para onde davam as janelas de Helena; ouvira portanto o barulho da disputa e, como no meio de todas aquelas vozes Lhe parecera distinguir a do cavaleiro, aproximara-se com inquietação das janelas, quando nesse momento se abriu a porta do seu quarto e entrou a senhora Desroches. Ia prevenir Helena para se dirigir à sala, porque chegara a pessoa que ia visitá-la.

Helena estremeceu e sentiu-se desfalecer. Quis interrogar mas não pôde proferir uma palavra. Seguiu a senhora Desroches, muda e trémula.

A sala onde a conduziram não tinha luz alguma, todas as velas tinham sido apagadas, e só o lume da lareira lançava sobre o tapete uma claridade fraca que não chegava ao rosto. A senhora Desroches pegou numa garrafa e lançou sobre essa chama um pouco de água, o que mergulhou o quarto numa completa escuridão; em seguida retirou-se, depois de ter recomen dado a Helena que não tivesse o mínimo receio. Um instante depois, a jovem ouviu uma voz por detrás dessa quarta porta que ainda não tinham aberto.

Estremeceu; deu alguns passos na direcção dessa porta e escutou avidamente:

- Está pronta? - dizia a voz.

- Sim, monsenhor - respondeu a senhora Desroches.

- Monsenhor! - murmurou Helena - Quem será que vem aqui?

- Está só?

- Sim, monsenhor.

- Prevenida de minha chegada?

- Sim, monsenhor.

- Ninguém nos incomodará?

- Monsenhor pode contar comigo.

- E não há luz?

- A escuridão é completa.

Ouviram-se passos que se aproximaram e pararam.

- Vejamos francamente, senhora Desroches - disse a voz -, achou-a tão bonita como dizem?

- Mais linda do que Vossa Alteza decerto imagina.

- Vossa Alteza! Meu Deus! Que diz ela! - murmurou a jovem prestes a desmaiar.

Ao mesmo tempo, a porta abriu-se; um passo pesado, ainda que abafado pelo espesso tapete, fez estalar o soalho. Helena sentiu que todo o seu sangue lhe afluía ao coração.

- Menina - disse a mesma voz -, queira, peço-lhe, receber-me e ouvir-me.

- Aqui estou - murmurou Helena quase desfalecida.

- Está assustada?

- Confesso que. como devo dizer, senhor ou monsenhor?

- Diga meu amigo.

Neste momento, a sua mão tocou na do recém-chegado.

- Senhora Desroches, está aí? - exclamou Helena recuando mau grado seu.

- Senhora Desroches - tornou a voz -, diga a esta menina que está em tão grande segurança aqui, como num templo, diante de Deus.

- Oh! Monsenhor, estou a seus pés, queira perdoar-me.

- Minha filha, levante-se e sente-se aqui. Senhora Desroches, feche todas as portas; e agora, prosseguiu o desconhecido, voltando-se para Helena, dê-me a sua mão, peço-Lhe.

Helena estendeu a mão, que encontrou pela segunda vez a do desconhecido, mas não se afastou.

- Dir-se-ia que também treme - murmurou ela.

- Vejamos, o que tem? - tornou o recém-chegado. - Causo-Lhe medo, querida menina?

- Não - respondeu Helena -, mas quando a sua mão aperta a minha, sinto uma sensação estranha... um frémito incompreensível...

- Fale-me, Helena - disse o desconhecido com uma expressão de ternura infinita. Já sei que é linda; mas é a primeira vez que ouço o som da sua voz. Fale, escuto-a.

- Nesse caso já me viu? - perguntou Helena graciosamente.

- Não se lembra que há dois anos a abadessa das agostinhas mandou fazer o seu retrato?

- Sim, lembro-me, por um pintor que foi expressamente de Paris para esse fim, segundo me disseram.

- Fui eu que o enviei a Clisson.

- E esse retrato era-Lhe destinado?

- Esse retrato, ei-lo, tornou o desconhecido tirando da algibeira uma miniatura que não

podiam ver, mas que colocou na mão de Helena.

- Mas que interesse podia ter no retrato de uma pobre órfã?

- Helena - retrucou o desconhecido depois de um momento de silêncio -, sou o melhor amigo de seu pai.

- De meu pai! - exclamou a jovem. - Ainda vive?

- Sim.

- E hei-de vê-lo um dia?

- Juro-Lhe.

- Oh! Deus o abençoe - tornou Helena apertando as mãos do desconhecido. - Deus

o abençoe pela boa notícia que me trás.

- Querida filha! - murmurou o desconhecido.

- Mas se vive - prosseguiu Helena, com um leve tom de dúvida - como se demorou

tanto em se informar de mim?

- Tinha notícias suas todos os meses, e ainda que de longe, velava por si, Helena.

- E contudo - tornou Helena com um acento de respeitosa censura -, há-de confessar,

que há dezasseis anos que não me vê.

- Creia, que foram precisas considerações da mais alta importância para ele se privar dessa felicidade.

- Acredito-o, senhor; não devo acusar meu pai.

- Não, mas deve perdoar-lhe se ele próprio se acusar.

- Perdoar-Lhe! - exclamou Helena atónita.

- Sim; e esse perdão, que ele não lhe pode pedir, querida menina, sou eu que venho pedir-lho em seu nome.

- Senhor - disse Helena -, não o compreendo.

- Escute-me então.

- Escuto-o.

- Sim, mas primeiro dê-me outra vez a sua mão.

- Ei-la.

Houve um momento de silêncio, como se o desconhecido quisesse coordenar todas as suas reminiscências, depois continuou:

- Seu pai tinha um posto nos exércitos do defunto rei; na batalha de Nerwinde, um dos seus escudeiros, chamado o sr. de Chaverny, caiu junto dele, varado por uma bala; seu pai quis socorrê-lo, mas a ferida era mortal, e o ferido, que conheceu a sua situação, disse-Lhe abanando a cabeça: "Não é em mim que se deve pensar, mas em minha filha. " Seu pai apertou-Lhe a mão em sinal de promessa, e o ferido que se erguera, recaiu e morreu, como se apenas esperasse aquela certeza para fechar os olhos. Escuta-me, não é verdade, Helena? - interrompeu o desconhecido.

- Oh, ainda pergunta! - exclamou a jovem.

- De facto - continuou o narrador -, terminada a campanha, o primeiro cuidado de seu pai foi ocupar-se da pequena órfã; era uma encantadora menina de doze anos, que prometia tornar-se formosa como a menina é hoje. A morte do sr. de Chaverny, privava-a de todo o apoio, de toda a fortuna; seu pai fê-la entrar no convento da Visitação das damas do bairro de Santo-António, e declarou logo que, quando ela casasse se encarregaria do dote.

- Obrigado, meu Deus! - exclamou Helena. - Eu Vos agradeço terdes-me dado por pai um homem que cumpria tão fielmente a sua promessa.

- Espere, Helena - tornou o desconhecido -, porque chegou o momento em que seu pai vai deixar de merecer elogios.

Helena calou-se e o desconhecido continuou:

- Seu pai, conforme prometera, velou pela órfã que chegara aos dezoito anos; era então uma moça adorável; por isso seu pai sentiu que as suas visitas ao convento se tornavam mais frequentes e demoradas do que convinha. Começava a amar a sua pupila; e seu primeiro movimento foi assustar-se desse amor, porque pensava na promessa que fizera ao sr. de Chaverny ferido e moribundo, e compreendia que a cumpria mal seduzindo-lhe a filha; então encarregou a superiora de se informar de algum partido conveniente para a menina de Chaverny e soube que um sobrinho da superiora, jovem fidalgo da Bretanha, tendo visto essa pensionista numa vez que visitara a tia se apaixonara por ela e lhe confessara o ardente desejo que tinha de obter a sua mão.

- E então, senhor? - perguntou Helena, vendo que o desconhecido hesitava em continuar.

- E então! O assombro de seu pai foi imenso, quando a própria superiora o informou que a menina de Chaverny respondera que não queria casar e que o seu maior desejo seria permanecer no convento onde tinha sido educada, e o dia mais feliz da sua vida aquele em que pronunciasse os votos.

- Amava alguém? - disse Helena.

- Sim, minha filha - prosseguiu o desconhecido -, adivinhou, infelizmente, não pode fugir ao destino. A menina de Chaverny amava seu pai; por muito tempo escondeu o segredo no fundo do coração, mas um dia que seu pai instava com ela para que renunciasse a esse estranho projecto de tomar o véu, a pobre criança não podendo dominar-se por mais tempo, confessou-lhe tudo. Forte contra o seu amor enquanto não o julgara partilhado, fraquejou quando viu que Lhe bastava desejar para obter; eram ambos tão novos, seu pai tinha apenas vinte e cinco anos, a menina de Chaverny ainda não completara os dezoito, que esqueceram o mundo inteiro para se recordarem de uma só coisa, é que podiam ser felizes.

- Mas visto amarem-se a esse ponto - perguntou Helena -, porque não se casavam?

- Porque - retrucou o desconhecido -, era impossível uma união entre eles por causa da distância que os separava; não lhe disseram, Helena, que seu pai era um grande senhor?

- Sim, bem sei.

- Durante um ano - continuou o desconhecido -, a sua felicidade foi completa e excedeu as suas próprias esperanças; mas passado ele, Helena veio ao mundo, e...

- Oh! murmurou timidamente a jovem.

- O seu nascimento custou a vida de sua mãe.

e Helena rompeu em soluços.

- Sim - continuou o desconhecido com a voz alterada pela tristeza das suas recordações -, sim, Helena, chore por sua mãe, era uma santa e digna mulher, de quem seu pai, juro-lhe, conserva uma nobre recordação, não obstante os seus desgostos, os seus prazeres e mesmo as suas loucuras; por isso Lhe consagra todo o amor que tinha por ela.

- E todavia - disse Helena num leve tom de censura -, meu pai afastou-me de si; e desde que eu nasci nunca mais me viu.

- Helena - tornou o desconhecido -, nesse ponto perdoe a seu pai, porque não teve culpa: nasceu em 1703, isto é no período mais austero do reinado de Luís XIV Seu pai tinha caído no desagrado do rei ou antes no da senhora de Maintenon, e por si mais do que por ele, decidiu-se a afastá-la; enviou-a para a Bretanha, confiou-a à boa mãe Úrsula, superiora do convento onde foi educada. Enfim, tendo morrido Luís XIV e havendo grandes mudanças em França, decidiu-se a chamá-la para junto de si; durante todo o caminho deve ter reparado na solicitude com que velava por si, e hoje mesmo, quando soube que devia chegar a Rambouillet, não teve coragem para esperar até amanhã e veio ao seu encontro, Helena.

- Oh! meu Deus! - exclamou Helena. - Será verdade?

- E tornando a vê-la ou antes escutando-a, julgou ouvir sua mãe. É o mesmo rosto, a mesma pureza de expressão, o mesmo acento na voz. Helena! Helena! Que seja mais feliz de que ela, é o que do fundo do coração peço ao céu.

- Oh! Meu Deus! - exclamou Helena. - Esta comoção, a sua mão tremendo... Senhor, senhor, disse que meu pai veio ao meu encontro?

- Sim.

- Aqui, a Rambouillet?

- Sim.

- Que sentiu felicidade em me tornar a ver?

Sim, uma imensa felicidade.

- Mas isso porém não Lhe bastou, não é verdade? Quis falar- me, quis ele próprio contare -me a história do meu nascimento, quis que eu pudesse agradecer- Lhe o seu amor, ajoelhar-me

a seus pés, pedir-Lhe a sua benção? Oh - exclamou Helena ajoelhando-se -, oh! Estou a seus

pés, abençoe-me, meu pai.

- Helena, minha filha! - exclamou o desconhecido. - Oh, de joelhos, não, nos meus braços!

- Oh, meu pai, meu pai! - murmurou Helena.

- E contudo - prosseguiu o desconhecido -, vim aqui com a intenção de negar tudo, e de permanecer um estranho para ti; mas sentindo-te aqui, junto de mim, apertando a tua mão, escutando a tua meiga voz, não tive forças para isso; mas, não me faças arrepender da

minha franqueza, e que um eterno segredo...

- Pela memória de minha mãe, Lhe juro! - exclamou Helena.

- É quanto me basta. E agora, escute- me, porque é preciso que a deixe.

- Oh! Já, meu pai?

- É forçoso.

- Ordene, meu pai, obedecer-Lhe-ei.

- Amanhã, partirá para Paris; a casa que lhe está destinada, espera-a. A senhora Des Roches, que recebeu as minhas instrucções, conduzi-la-á e quando os meus deveres me deixarem um momento livre, irei vê-la.

- Muito depressa, sim, meu pai? Porque, não esqueça que estou só no mundo.

- Logo que me for possível.

E aproximando pela última vez os lábios da fronte de Helena, o desconhecido depôs aí um desses beijos castos e suaves que são tão doces para o coração de um pai como é um beijo de amor para o coração de um amante.

Dez minutos depois a senhora Desroches voltou com um castiçal na mão. Helena estava ajoelhada e rezava com a cabeça encostada a uma poltrona; ergueu os olhos, e, sem interromper a sua oração, fez sinal à senhora Desroches para que colocasse a luz sobre o fogão; ela obedeceu e retirou-se.

Helena rezou ainda durante alguns minutos, depois ergueu-se, olhou em volta de si. Aquela vela levada pela senhora Desroches e que tão bem iluminava a sala, aquela porta sempre fechada até ali e que a senhora Desroches ao sair deixara entreaberta, e, mais do que isso ainda, a comoção profunda que experimentara, faziam-lhe compreender que não saía de um sonho, mas que acabava de se dar na sua vida um grande acontecimento. No meio de tudo isso a recordação de Gastão acudia-Lhe ao espírito. Aquele pai a quem tanto receava ver, aquele pai tão bom e tão afectuoso, que também tinha amado e sofrido tanto, não contrariava por certo a sua vontade; de resto, Gastão, sem pertencer a uma raça histórica ou ilustre, era o último representante de uma das mais antigas famílias da Bretanha; mas acima de tudo, amava Gastão a ponto de morrer se a separassem dele, e se o pai a amava verdadeiramente, não havia de querer a sua morte.

Havia também da parte de Gastão algum impedimento, mas esses obstáculos só podiam ser pequenos em comparação com o que podia erguer-se pelo seu lado; esse obstáculo desapareceria como os outros. Helena adormeceu com estes risonhos pensamentos a que se seguiram os mais felizes sonhos.

Gastão, restituído à liberdade com muitas desculpas da parte daqueles que o tinham prendido e que pretendiam tê-lo tomado por outro, tinha ido em procura do casaco e do capote, que com grande alegria encontrou no mesmo lugar. Correndo em seguida ao hotel do Tigre-Real" fechara-se cuidadosamente no seu quarto e abrira acto contínuo a carteira. Estava tudo como tinha deixado, perfeitamente intacto, e na algibeira interior achou metade da moeda de ouro e a direcção do capitão La Jonquiére que, para maior segurança, queimou imediatamente.

Depois, senão alegre pelo menos tranquilo, atribuindo aquele caso a um desses mil acidentes que podem assaltar um passeante de noite, retirou-se para o seu quarto e, depois de ter dado a Oven as ordens para o dia seguinte, deitou-se, murmurando o nome de Helena como Helena murmurou o seu.

Entretanto partiam duas carruagens do hotel do "Tigre-Real": a primeira onde se achavam dois gentis-homens com traje de caça, era bem iluminada e precedida e seguida por picadores a cavalo.

A segunda, sem lanternas e onde se via um viajante envolvido num capote seguia a primeira a duzentos passos de distância sem a perder de vista um instante sequer; na barreira da Estrela separaram-se, e enquanto a carruagem iluminada parava junto da grande escadaria do Palais-Royal, a que não tinha luz ficava junto da porta da rua do Palais.

Ambos, de resto, haviam chegado sem nenhum acidente.

 

DUBOIS PROVA QUE A SUA POLÍCIA PARTICULAR É MAIS BEM FEITA POR 500. 000 LIBRAS DO QUE A POLÍCIA GERAL POR TRÊS MILHÕES

Quaisquer que fossem as fadigas das suas noites, e embora as passasse em passeio ou em orgias, o duque de Orleans em nada alterava a disposição dos seus dias. Todas as manhãs eram consagradas aos negócios. Ordinariamente começava a trabalhar só ou com Dubois, antes mesmo de proceder à sua toilete. Depois dava audiência até às onze horas ou meio dia; seguiam-se os chefes dos conselhos: La Vrillére, Leblanc, que Lhe prestavam contas das suas espionagens; depois Tarcy, que lhe entregava as cartas importantes que pudera subtrair; e por último o marechal de Villeroy. Às duas horas e meia levavam-lhe chocolate, a única coisa que comia de manhã, rindo e conversando ao mesmo tempo. Este repouso durava meia hora, seguindo-se-Lhe a audiência das mulheres; terminada, ia ordinariamente à casa da duquesa de Orleans, donde saía para cumprimentar o jovem rei, que via todos os dias, a uma hora qual quer, mas de quem se aproximava ou se afastava com uma atitude de respeito e com reverên cias que ensinavam a todos de que modo se devia falar a um rei. Este programa era aumentado uma vez por semana com a recepção dos ministros estrangeiros, e, aos domingos e dias de festa, com uma missa dita na capela particular.

Às seis horas da tarde terminavam os negócios. O regente ia então à ópera ou à casa da duquesa de Berri; a última distracção, porém, tinha de ser substituída por outra, porque, conforme vimos no princípio desta história, zangara-se com a sua filha muito querida por causa do seu casamento com Rion. Seguia-se a hora dessas ceias famosas, que causaram tanto ruído e tinham lugar, no Verão em Saint-Cloud ou em Saint-Germain, e no Inverno no Palais-Roial.

Estas ceias compunham-se de dez a quinze convivas e havia de tudo. Os homens eram geralmente o duque de Broglie, Noél, Brancas, Biron, Canillac e alguns jovens brilhantes pelo espírito e pelos deboches. As senhoras eram de Parabére, de Phalaris, de Sabran e d'Aver. alguma cantora ou bailarina célebre da Ópera e algumas vezes a duquesa de Berri. Inútil acrescentar que a presença de Sua Alteza Real longe de influir respeito, tornava ainda mais livre a assistência.

Era nessas ceias, em que reinava a igualdade mais absoluta, que reis, ministros, conselheiros, damas da corte tudo era passado em revista o mais minuciosamente possível. Ali, a língua francesa atingia a liberdade da língua latina; ali, tudo se dizia e fazia, contanto que fosse feito com espírito. E era tal o encanto dessas ceias para o regente, que quando chegava o último convidado, as portas fechavam-se e trancavam-se de modo tal que fosse qual fosse o negócio que aparecesse do interesse do rei da França ou do próprio regente, era inútil chegar junto dele, e este estado de coisas durava até a manhã seguinte.

Dubois poucas vezes tomava parte nessas ceias, porque a sua má saúde o proibia. Era portanto o momento escolhido pelos seus inimigos para o prejudicar: o duque de Orleans ria às gargalhadas das investidas contra o seu ministro, e, como os restantes, também dava a sua unhada ou dentada no seu ex-preceptor. Dubois sabia perfeitamente que era à sua custa que se divertiam a maior parte do tempo durante essas ceias, mas como não ignorava que de manhã o regente tinha sempre esquecido o que se dissera de noite, pouco se inquietava com esses assaltos dados ao seu crédito, destruído todas as noites e aumentado todas as manhãs.

É que o regente, que se sentia cada vez menos activo, sabia que podia contar com a vigilância de Dubois. Este velava enquanto o regente dormia, ceava ou se divertia.

Dubois que parecia não poder aguentar-se nas pernas, era incansável. Estava ao mesmo tempo no Palais-Royal, em Saint-Cloud, no Luxemburgo e na Ópera; achava-se em toda a parte onde se encontrava o regente, passando por detrás dele como uma sombra, mostrando a sua cara de fuinha num corredor, à porta de um salão, na penumbra de um camarote.

Dubois, em resumo, dir-se-ia ter o dom da ubiquidade.

Voltando de Rambouillet, onde o vimos velar em volta do regente com tanta solicitude e assiduidade, mandara chamar Tapin, que, montado num excelente cavalo inglês e vestido de picador, se misturara ao séquito do príncipe e voltara com ele sem ser reconhecido devido à escuridão da noite; falara com ele durante uma hora, dera-Lhe as suas ordens para o dia seguinte, dormira quatro ou cinco horas, levantara-se e às sete horas, encantado com as vantagens que conquistara sobre o regente e de que esperava tirar bom partido, apresentou-se à porta do quarto de dormir, que o criado de Sua Alteza Real abria sempre à sua primeira requisição, embora o duque não estivesse só.

O regente dormia ainda.

Dubois aproximou-se do leito e fitou-o durante algum tempo com esse sorriso que parecia ao mesmo tempo de macaco e de diabo.

Por fim, decidiu-se a acordá-lo.

- Olá, monsenhor, olá, acorde - gritou ele.

O duque de Orleans abriu os olhos, viu Dubois e esperando desembaraçar-se dele dirigiu-lhe algumas dessas grosserias a que o ministro estava tão habituado que nem já sequer fazia caso delas.

- Ah! és tu, abade? - disse ele. - Vai para o diabo!

E voltou-Lhe as costas.

- Monsenhor, venho de lá, mas ele estava muito ocupado, não pôde receber-me e mandou-me para si.

- Deixa-me em paz, estou cansado.

- Acredito, a noite foi tempestuosa, não é verdade?

- Que queres dizer? - perguntou o duque, virando-se.

- Digo que o trabalho a que se entregou a noite passada não vale nada para quem tem entrevista às sete horas da manhã.

- Eu marquei-te entrevista às sete horas da manhã, abade?

- Sim, monsenhor, ontem, antes de partir para Saint-Germain.

- É verdade! - disse o regente.

- Monsenhor ignorava que a noite seria tão fatigante?

- Fatigante? Acabei de jantar às sete horas.

- Sim, mas depois?

- Depois, o quê?

- Está satisfeito, ao menos, monsenhor, e a moça valeu a caminhada?

- Que caminhada?

- A que monsenhor fez ontem à noite, quando acabou de jantar às sete horas.

- Quem te ouvir, há-de dizer que é difícil o trajecto de Saint-Germain até aqui.

- Monsenhor tem razão, de Saint-Germain aqui são dois passos; mas há um meio de prolongar o caminho.

- Qual é?

- É passar por Rambouillet.

- Sonhas, abade.

- Seja assim, monsenhor; vou pois contar- Lhe o meu sonho que provará a vossa Alteza que mesmo sonhando me ocupo dos seus negócios.

- Temos nova asneira.

- Vai ver que se engana; sonhei que monsenhor caçava veados na encruzilhada de Traillaye, e que o animal, civilizado como um veado de casa rica, fizera com que corressem atrás dele quatro léguas, e fora deixar-se apanhar em Chambourcy.

- Até aí o teu sonho parece-se muito com a verdade, continua, abade, continua.

- Em seguida, monsenhor voltou para Saint-Germain, foi para a mesa às cinco horas e meia e ordenou que lhe arranjassem uma carruagem sem brazões pronta para as sete e meia, Às sete horas e meia, monsenhor despediu todo o seu séquito, excepto La Fare, com quem subiu para a carruagem. Não foi assim, monsenhor?

- Vai dizendo.

- A carruagem tomou a estrada de Rambouillet, onde chegou às nove e três quartos; mas, à vista das primeiras casas da cidade, parou. Monsenhor apeou-se, apresentaram-Lhe um cavalo que o esperava e enquanto La Fare continuava o seu caminho para o hotel do "Tigre-Real", monsenhor seguia-o como picador.

- O teu sonho complica-se, abade.

- Não, monsenhor, ouça o resto.

- Continua.

- Ora, enquanto esse pateta de La Fare Fingia comer uma má ceia que lhe serviam cha mando-lhe Excelência, monsenhor confiava o cavalo a um pagem, e dirigia-se para um pavilhão.

- Demónio que és! Mas onde estavas oculto?

- Eu, monsenhor, não saí do Palais-Royal, onde dormi como um bem-aventurado, e a prova é que Lhe estou contando o sonho que tive.

- E quem estava nesse pavilhão?

- À porta, uma horrível velha, alta, amarela e magra.

- Dubois, hei-de recomendar-te à Desroches, e, podes ter a certeza que a primeira vez que te encontrar, há-de arrancar-te os olhos.

- Mas lá dentro, ah, céus! Lá dentro.

- Ah! Aí não pudeste ver, meu pobre abade, nem mesmo em sonho.

- Ora, vamos, Monsenhor, suprimir-me-ia, estou bem certo, as quinhentas mil libras para a minha polícia secreta, se, graças a ela, eu não pudesse ver o que se passa no interior das casas.

- Dize-me então o que viste aí.

- Uma encantadora bretâsinha de dezasseis para dezassete anos, linda como os amores, que deixara as agostinhas de Clisson, acompanhada até Rambouillet por uma boa e religiosa cuja presença um tanto importuna foi suprimida acto contínuo, não é assim?

- Dubois, muitas vezes tenho pensado que eras o diabo, e que tomaste a forma de abade para me perder.

- Para o salvar, monsenhor, para o salvar, garanto-Lhe.

- Para me salvar! Bem me fio no que dizes.

- Vejamos - prosseguiu Dubois com o seu sorriso de demónio - está contente com a pequena, monsenhor?

- Encantado, Dubois, é deliciosa!

- Fê-la vir de bem longe e realmente, se assim não fosse, teria sido roubado.

O regente franziu as sobrancelhas; reflectindo, porém, que Dubois ignorava o resto, acabou por sorrir.

- Vamos, Dubois - disse ele -, verdadeiramente és um grande homem.

- Ah, só Vossa Alteza o duvida, e contudo não confia em mim!

- Que dizes?

- A verdade, oculta-me os seus amores.

- Vamos, não te zangues, Dubois.

- Tenho motivos para isso, Vossa Alteza há-de convir.

- Porquê?

- Porque, palavra de honra, teria encontrado tão bom ou melhor ainda. Porque diabo não me disse que queria uma bretã. Tê-la-ia, monsenhor.

- Realmente!

- Oh, meu Deus, sim; encontraria bretãs para dar e vender!

- Iguais àquela?

- E até melhores.

- Pode gabar-se de ter encontrado uma grande coisa.

- Senhor!

- Julga que descobriu um tesouro, talvez?

- Olá! Olá!

- Quando souber quem é a sua bretã e ao que se expõe!

- Não gracejes, abade, peço-te.

- Oh! Decididamente, monsenhor, inquieta-me.

Que queres dizer?

- Uma aparência persuade-o, uma noite embriaga-o como a um estudante, e no dia seguinte não há nada que se possa comparar com a recém-chegada; é então muito linda, essa menina, monsenhor?

- Encantadora!

- E honesta! A virtude personificada?

- É como dizes, meu caro.

- Pois eu, monsenhor, declaro que está enganado.

- Eu?

- A sua bretã é uma espertalhona.

- Silêncio, abade.

- Como assim?

- Nem mais uma palavra, proíbo-te - disse o regente muito gravemente.

- Monsenhor também teve um mau sonho; deixe-me explicar-Lho.

- Senhor José, mandá-lo-ei para a Bastilha.

- Como quiser, monsenhor, mas não deixará de saber que essa figurona.

- É minha filha, senhor abade!

Dubois recuou um passo e o seu sorriso zombeteiro deu lugar ao mais profundo assombro.

- Sua filha, monsenhor! E quem foi a mãe?

- Uma mulher honesta, abade, que teve a honra de morrer sem te ter conhecido.

- E a criança?

- A criança ocultei-a de todos os olhares, para que não fosse manchada pelos dos entes venenosos como tu.

Dubois inclinou-se profundamente e retirou-se mostrando na sua atitude o mais completo desapontamento; o regente seguiu-o com um olhar vitorioso até que ele desapareceu. Mas, Dubois, como se sabe, não se desapontava facilmente, e mal fechara a porta que o separava do regente, descobriu logo nessas trevas, que por um momento Lhe haviam toldado a vista, uma luz que, para ele, representava um brilhante farol.

- E eu que dizia - murmurou enquanto descia a escada -, que esta conspiração valer-me-ia a mitra de arcebispo; fui imbecil! Aproveitando-a bem, valer-me-á o chapéu de cardeal.

 

             AINDA RAMBOUILLET

À hora aprasada, Gastão, deveras impaciente, dirigiu-se a casa de Helena, mas teve que esperar algum tempo na antecâmara, porque a senhora Desroches apresentava diFiculdades para autorizar essa visita. Helena explicou-se porém tão clara como firmemente, e declarou que se considerando apta para apreciar o que era ou não conveniente, estava decidida a receber o seu compatriota senhor de Livry, que ia apresentar-Lhe as suas despedidas. Os leitores devem estar lembrados que de Livry era o nome que Gastão apresentara durante a viagem, e que contava conservar, excepto para aqueles com quem o negócio que o levava a Paris ia pô-lo em contacto.

A senhora Desroches retirou-se portanto bastante contrariada para o seu quarto, tentando mesmo ouvir a conversa entre os dois jovens, mas Helena receando qualquer surpresa, fechou a porta do corredor, correndo o ferrolho.

- Até que enfim veio, meu amigo. Esperava-o impaciente, nem dormi esta noite.

- Nem eu, Helena, mas deixe-me admirar as suas magnificências. A si primeiro, depois este vestido de seda, esse penteado. Como está linda, assim!

Helena sorriu.

- Não parece contudo muito satisfeito.

Gastão não respondeu e prosseguiu as suas investigações.

- Estes estofos são caros, os quadros de preço, as paredes com dourados; os seus protectores são opulentos, pelo que vejo, Helena?

- Creio que sim - retorquiu a jovem sorrindo. - Disseram-me porém que estes estofos e estes dourados que admira como eu, estão fora de moda, e que hão-de ser substituídos por outros mais belos.

- Vejo que Helena vai ser uma alta e poderosa dama - disse Gastão tentando sorrir. Já me fez esperar na antecâmara.

- Querido amigo, e não esperava também, no nosso lago, quando o seu barco ali estacionava horas inteiras?

- Estava então no convento; achavamo-nos à mercê da madre abadessa.

- E é um título bem sagrado, não é assim?

- Oh, decerto!

- Anima-o, impõe-lhe respeito, obediência.

- Sem dúvida.

- Pois bem, avalie a minha alegria; encontre aqui a mesma protecção, o mesmo amor, ainda mais poderoso, mais sólido e mais duradouro.

- É possível! - disse Gastão.

- Encontro.

- Fale, em nome do céu!

- Meu pai!

- Seu pai! Ah, minha querida Helena, sou feliz, partilho a sua alegria. Que felicidade! Seu pai que vai velar pela minha mulher!

- Velar. de longe.

- O quê, separa-se de si?

- Infelizmente, segundo me parece, o mundo separa-nos.

- É um segredo?

- Até para mim; porque, como bem devo supor, se assim não fosse, já o meu amigo saberia tudo. Para si não tenho segredos, Gastão.

- É talvez algum obstáculo passageiro?

- Ignoro-o.

- Decididamente trata-se de um segredo, mas - tornou ele sorrindo -, conto consigo, e permito-Lhe mesmo que seja discreta comigo se seu pai lho ordenou. Contudo, continuarei a interrogá-la, não se zanga?

- Oh, não!

- Está contente? É um pai de que possa ser orgulhosa?

- Creio que sim; o seu coração parece-me nobre e bom, a sua voz é terna e harmoniosa.

- A sua voz. mas. parece-se consigo?

- Não sei. não o vi.

- Não o viu?

- Não, sem dúvida. era noite.

- Seu pai não procurou ver a filha! Tão linda! Oh, que indiferença!

- Mas, meu amigo, ele não é indiferente; conhece-me bem, tem o meu retrato, sabe, aquele que o tornou tão ciumento, a primavera passada.

- Não a compreendo.

- Era noite, repito.

- Nesse caso, mandava acender as luzes - disse Gastão sorrindo friamente.

- Faz-se assim quando se quer ser visto, mas quando se têm razões para querer ficar desconhecido.

- O que está dizendo? - tornou Gastão pensativo. - Que razões pode ter um pai para se ocultar de sua filha?

- Excelentes, creio eu; e o senhor, sério como é, devia compreendê-lo melhor do que eu, todavia não me surpreende.

- Oh, minha querida Helena, que terrores que me acaba de lançar na alma!

- Assusta-me, com os seus terrores.

- Diga-me, de que lhe falou seu pai?

- Da ternura que sempre me consagrou.

Gastão fez um movimento.

- Jurou-me que daqui em diante viveria feliz, que acabaria com todas as incertezas do passado, que desprezaria as considerações que o fizeram até agora renegar-me por sua filha.

- Palavras. palavras. mas. que prova Lhe deu dessa ternura? Perdoe as minhas perguntas insensatas, Helena; entrevejo um abismo de pesares, queria que, por um momento, a sua candura de anjo, de que sou tão orgulhoso, fosse substituída pela infernal sagacidade de demónio; compreender- me-ia e eu não teria vergonha de a manchar com este interrogatório tão vil e todavia tão necessário à nossa futura felicidade.

- Não compreendo a sua pergunta, senão responder-lhe-ia, Gastão.

- Testemunhou-lhe grande afecto?

- Muito grande, certamente.

- Mas enFim, numa tal escuridão, para Lhe falar, para se aproximar?

- Pegou-me na mão, e as suas tremiam mais do que a minha.

Gastão crispou os pulsos com raiva.

- Beijou-a paternalmente, não é verdade?

- Deu-me um beijo na fronte. um só que recebi de joelhos.

- Helena! - exclamou Chanlay, Helena! - Acredite nos meus pressentimentos; enganaram-na, é vítima de uma cilada infernal! Esse homem que se esconde, que teme a luz, que lhe chama filha, não é seu pai!

- Meu amigo, despedaça-me o coração.

- Helena, a sua inocência causaria inveja às criaturas mais celestiais, mas de tudo se abusa na terra; os anjos foram profanados e insultados pelos homens. Esse homem que hei-de conhecer, que hei-de agarrar, que obrigarei a ter conFiança no amor e na honra de uma jovem leal como é, há-de me dizer se não é o mais vil dos homens, e se posso chamar-Lhe meu pai ou matá-lo como um infame!

- Gastão, o que está dizendo? O que é que Lhe faz suspeitar uma tão infame traição? E visto que desperta as minhas suspeitas, que me descobre os ignóbeis dédalos do coração humano que me recusava a contemplar, falar-Lhe-ei com a mesma franqueza. Esse homem, não me teve em seu poder? A casa onde estou não Lhe pertence? Os criados não lhe são dedicados? Gastão, formou de meu pai um mau pensamento de que me pedirá perdão se é verdade que me ama.

Gastão lançou-se desesperado sobre uma poltrona.

- Meu amigo, não destrua a única alegria pura que tive - prosseguiu Helena -, não envenene a felicidade de uma existência que sempre temi passar solitária, abandonada, sem afectos. Que o amor filial me sirva de compensação aos remorsos que muitas vezes experimenmtei de o amar com uma idolatria condenável.

- Helena, perdoe-me - exclamou Gastão. - Sim, tem razão; destruo com as minhas suspeitas as suas tão puras alegrias, a afeição talvez tão nobre de seu pai; mas, minha amiga, em nome de Deus cuja imagem está nesta tela, escute os receios da minha experiência e do amor. Não é a primeira vez que as criminosas paixões do mundo especulam com a credibilidade inocente; o argumento que apresenta é fraco; apressar-se a testemunhar-lhe um amor culpado seria um erro que esses hábeis corruptores são incapazes de cometer; desenraizarpouco a pouco a virtude do coração, seduzi-la com um luxo novo para si; habituar-lhe o espírito ao prazer, os sentidos a impressões novas, enganá-la enfim pela persuasão, é uma vitória mais suave do que a que resulta da violência. Oh, querida Helena, atenda um pouco à minha prudência de vinte e cinco anos! Digo a minha prudência, porque é apenas o meu amor que fala, o meu amor que seria tão humilde, tão dedicado ao menor sinal de um pai que eu soubesse ser um verdadeiro pai para si.

Helena curvou a cabeça e não respondeu.

- Suplico-lhe - continuou Gastão -, não tome nenhuma resolução extrema, mas duvide de tudo que a rodeia, desconfie dos perfumes que lhe derem, do vinho que lhe oferecerem, do que Lhe for permitido. Vele pela sua pessoa, Helena, é a minha honra, a minha felicidade, a minha vida!

- Obedecer-lhe-ei, meu amigo: mas pode crer que isso não me impedirá de amar o meu pai.

- E de adorá-lo, se me engano, minha querida Helena!

- É um nobre amigo, meu Gastão. Estamos portanto bem combinados.

- À mínima desconfiança, escreva-me.

- Escrever-lhe! Nesse caso vai partir?

- Vou a Paris por causa de uns negócios de família de que já lhe falei. Alojar-me-ei no hotel da rua Bourdonnais; escreva essa direcção, e não a mostre a pessoa alguma.

- Para quê tantas precauções?

Gastão hesitou.

- Porque se conhecessem o seu dedicado protector, poderiam, no caso de haverem más intenções, impedi-lo de a socorrer.

- Vamos, vamos! Também é um tanto misterioso, meu Gastão; tenho um pai que se oculta e um noivo que vai fazer outro tanto.

- Mas do noivo conhece as intenções - retrucou Gastão, tentando rir afim de esconder a sua perturbação.

- Ah! A senhora Desroches procura abrir a porta. parece-Lhe demorada a visita. estou sob tutela, meu amigo. é como no convento.

Gastão, despedido, deu um beijo na mão que ela lhe estendeu. Ao mesmo tempo entrava a senhora Desroches. Helena fez uma reverência muito respeitosa a Gastão que correspondeu com igual majestade. Entretanto a senhora Desroches fixava no moço uns olhares de que devia resultar uma informação mais exacta do que fez jamais um espião sobre um indivíduo suspeito.

Gastão seguiu imediatamente para Paris. Oven esperava-o com impaciência. Para que os luízes não tinissem na sua bolsa de couro, cosera-os no forro dos calções; talvez quisesse assim aproximá-los o mais possível do corpo. Daí a três horas Gastão chehegava a Paris. Desta vez, Oven não teve que censurá-lo pela demora, homens e cavalos estavam cobertos de espuma quando entraram pela barreira da Conferência.

 

               O CAPITÃO LA JONQUIÉRE

Havia, como o nosso leitor soube pela direcção dada a Helena por Gastão, na rua de Bourdonnais, uma hospedaria onde se dava alojamento, onde se comia mas especialmente onde se podia beber. Na sua entrevista nocturna com Dubois, Tapin soubera o famoso nome de La Jonquiére, e transmitira-o ao Experto, o qual o indicava a todos os chefes de brigada que começaram imediatamente em busca do oficial suspeito e para esse fim revistaram, com a actividade que é a virtude principal dos auxiliares da polícia, todas as casas equívocas de Paris A conspiração de Cellamare que narramos na nossa história do "Cavaleiro de Harmental e que é para o começo da Regência o que esta narrativa é para o fim, ensinara a todos os que procuravam descobrir conspirações, que era nesses locais que se encontravam os conspiradores, e esse caso da Bretanha não era mais que a continuação da conjuração espanhola: "in cauda venenum", dizia Dubois que nunca esquecia o seu latim.

Todos se puseram portanto em busca, mas ou por felicidade. ou por perícia, foi ainda Tapin que, após duas horas de uma desesperada corrida pelas ruas da capital descobriu na rua de Bourdonnais a célebre hospedaria a que nos referimos no princípio deste capítulo e onde se alojava esse Famoso La Jonquiére que era naquele momento o pesadelo de Dubois. O dono da hospedaria tomou Tapin por um escrevente de notário, e às suas perguntas respondeu muito afavelmente que era na sua hospedaria que se encontrava o capitão La Jonquiere, mas que tendo recolhido depois da meia noite, o excelente oficial ainda dormia: o caso era desculpável tanto mais que eram apenas seis horas da manhã.

Tapin nada mais perguntou; era um homem recto e quase algébrico, que ia de dedução em dedução. O capitão La Jonquiére dormia, portanto estava deitado e se estava deitado é que morava na hospedaria.

Tapin voltou ao Palais-Royal, encontrou Dubois que saía dos aposentos do regente, e a quem a perspectiva do seu chapéu vermelho punha de bom humor. Se não fosse essa feliz posição de espírito teria retirado a conFiança a todos os seus comissários que já tinham metido sob ferros em Fort I'Evéque uma série de falsos La Jonquiére.

Um era um capitão de contrabando chamado La Jonciére que fora descoberto e preso por Experto; era ainda assim aquele cujo nome mais se aproximava do original. O segundo era um tal La Jonquiére, sargento da guarda francesa; tinham recomendado aos polícias as casas mal afamadas: ora, haviam encontrado o sargento numa delas, e, vítima de um momento de fraqueza da sua parte e do erro dos espiões do abade Dubois, tinha sido preso. Um terceiro, chamado La Juquiére, era criado de uma grande casa: desgraçadamente, o porteiro dessa casa era estrangeiro e o espião que estava cheio de boa vontade entendera La Jonquiére em vez de La Juquiere.

Achavam-se já dez pessoas presas, e não havia ainda voltado metade dos agentes: era portanto provável que as prisões continuassem e que fossem passar em revista todas as analogias nominais. Quando Dubois, que, não obstante o seu bom humor, murmurava e praguejava para não perder o costume, ouviu as informações de Tapin, esfregou raivosamente o nariz, o que era bom sinal.

- Nesse caso - disse Dubois -, encontraste realmente o capitão La Jonquiére?

- Sim, monsenhor.

- Chama-se efectivamente La Jonquiére?

- Sim, monsenhor.

- É capitão?

- Sim, monsenhor.

- Um verdadeiro capitão?

- Vi o seu boné.

- Bem, e que faz ele?

- Espera, aborrece-se e bebe.

- E paga? - tornou Dubois, ligando evidentemente grande importância a esta pergunta.

- Muito bem, monsenhor.

- Ora ainda bem, Tapin, é um homem de espírito.

- Monsenhor - retrucou Tapin com modéstia -, lisonjeia-me, se não pagasse não podia ser um ente perigoso.

Já dissemos que Tapin era cheio de lógica. Dubois entregou-Lhe dez luízes a título de gratificação, deu-lhe novas ordens, deixou o seu secretário encarregado de dizer aos espiões que não deixariam de aparecer sucessivamente, que já tinha bastantes La Jonquiére, vestiu-se à pressa, e encaminhou-se a pé para a rua de Bourdonnais.

Desde as seis horas da manhã messire Voier d'Argenson tinha posto a disposição de Dubois uma meia dúzia de guardas munidos de instruções; uns seguiam- no, outros haviam-no precedido.

Digamos agora uma palavra acerca do interior da hospedaria onde vamos introduzir o leitor.

Era parte hospedaria, parte taverna, aí comia-se, bebia-se, e dormia-se. Os quartos eram no primeiro andar, as salas no rés-do-chão.

A sala principal tinha como mobília quatro mesas de pinho, uma quantidade de bancos e de cortinas encarnadas e brancas, antiga tradição das tavernas. Alguns bancos encostados às paredes, copos muito limpos sobre um aparador, imagens pintadas com molduras douradas, tudo enegrecido pelo fumo e com um cheiro nauseabundo a cachimbo, completava o conjunto da respeitável sala, por onde se rebolava um homem gordo, de rosto vermelho, de trinta e cinco a quarenta anos, e saltitava uma pequena pálida, de doze a quatorze anos. Eram o dono da " Mind-de-Amor" e sua filha única, que devia herdar a casa e o comércio, que, sob a direcção paterna, se propunha continuar.

Um cozinheiro junto do fogão fazia um guisado que espalhava um cheiro a rim temperado com vinho.

A sala achava-se vazia; mas no momento em que no relógio soava uma hora da tarde, um francês entrou, e parou no limiar, murmurando:

- Rua de Bourdonnais, no "Mind-de-Amor ", sala comum, uma mesa à esquerda, sentar e esperar.

Depois, para executar essa ordem, o digno defensor da pátria, assobiando e cofiando o bigode com uma pacholice puramente militar, foi sentar-se no local indicado. Apenas aí se instalara e erguia a mão para bater na mesa - o que na língua de todas as tavernas do mundo quer dizer: Vinho! - apareceu à porta, um outro guarda, vestindo exactamente como o primeiro e que, depois de ter murmurado algumas palavras foi sentar-se junto do camarada. Os dois soldados fitaram-se e soltaram esta dupla exclamação: Ah! ah! Que, também, em todos os países do mundo, indica a surpresa.

- És tu, Gripart! - disse um.

- És tu, Enlevant! - disse o outro.

- Que vens fazer aqui?

-E tu?

- Não sei.

- Nem eu.

- Vieste portanto.

- Por ordem superior.

- Tal qual como eu.

- E esperas?

- Alguém que há-de vir aqui.

- Com uma palavra de sinal.

- E a essa palavra?

- Terei de obedecer como ao próprio senhor Tapin.

- É isso mesmo, e entretanto deram-me uma pistola para gastar em vinho.

- Também me deram outro tanto, mas não me disseram que bebesse.

- E na dúvida?

- Não me abstenho.

- Nesse caso, bebamos!

E desta vez a mão erguida caiu sobre a mesa para chamar o dono da taverna; mas era inútil, o homenzinho já se achava entre os dois fregueses em quem, pelo uniforme, reconhecera amadores, e conservava-se de pé muito aprumado, esperando ordens.

- Vinho! - disseram os dois guardas.

- D'Orleans - ajuntou um deles, que parecia mais apreciador do que o outro, - é fora e agrada-me.

Apresentou-lhes uma garrafa já aberta. Os dois fregueses encheram os copos e beberam; em seguida colocaram- nos sobre a mesa fazendo uma careta que indicava a mesma opinião.

- Que diabo fazes tu ao vinho, dá cabo da garganta!

- Ah, é um excelente vinho, senhores! - disse o dono da hospedaria.

- Sim - tornou o guarda -, só lhe falta amargosa. O homenzinho sorriu como quem entendia o gracejo.

- Desejam outra?

- Se quisermos, pedi-la-emos.

O homem retirou-se.

- Mas, disse um dos soldados ao outro, sabes alguma coisa mais do que me disseste, não é verdade?

- Oh, sei que se trata de um certo capitão, espero que nos darão reforço.

- Sem dúvida, dois contra um, não é bastante.

- Esqueces aquele que aqui deve vir e que decerto nos há-de auxiliar.

- Antes sejam dois, e bem robustos. Mas parece-me que ouço qualquer coisa.

- De facto, descem a escada.

- Silêncio!

E os dois guardas encheram outra vez os copos que esvaziaram, olhando ambos disfarçadamente para o lado onde ouviam passos.

Os dois observadores não se tinham enganado; realmente, os degraus de uma escada, que nos esquecemos de mencionar, e que se achava de encontro à parede, estalavam naquele momento sob um peso bastante respeitável e os fregueses da taverna puderam ver, primeiro as pernas depois o torso, depois uma cabeça que desciam; as pernas apresentavam meias de seda muito bem puxadas e calções de casimira branca, o torso tinha um gibão azul, cobria, por fim aquela cabeça, um chapéu de três bicos inclinado para a orelha. Uns olhos menos exercitados que os dos guardas teriam podido reconhecer neste conjunto um capitão, porque as dragonas e a espada não deixavam a menor dúvida sobre o posto que ocupava. Este capitão, que era realmente La Jonquiére, tinha cinco pés e duas polegadas, era bastante gordo, vivo e o seu penetrante olhar fixava-se em tudo com uma sagacidade maravilhosa; dir-se-ia que farejava os espiões sob o uniforme dos guardas franceses, porque lhes voltou as costas quando entrou e dirigiu a palavra ao dono da hospedaria.

- Na verdade - disse ele -, teria aqui jantado, o excelente cheiro a rim guisado convida, mas esperam-me uns amigos no "Galoubet de Paphos". Talvez aqui venha um moço da província a quem Fiquei de dar cem pistolas, mas não posso esperar mais tempo; se vier e disser o seu nome, diga-Lhe que estarei aqui dentro de uma hora, que tenha a bondade de esperar.

- Muito bem, capitão - retorquiu o hospedeiro.

- Por favor, vinho! - disseram os guardas.

- Ah! Ah! - murmurou o capitão lançando um olhar na aparência indiferente aos dois guardas. - Aqui estão uns soldados com pouco respeito pelas dragonas.

E voltando-se para o hospedeiro.

- Sirva aqueles senhores, bem vê que têm pressa.

- Ah - disse um deles erguendo-se -, se o senhor o permite.

- Sem dúvida que o permito - replicou La Jonquiére sorrindo, ao mesmo tempo que tinha boa vontade de dar uma sova naqueles sujeitos cujas caras lhe desagradavam; mas vencido pela prudência deu alguns passos para a porta.

- Mas, capitão - disse o hospedeiro -, não me disse o nome do fidalgo que deve vir procurá-lo.

La Jonquiére hesitou. um movimento bastante militar de um dos guardas que se voltou cruzando uma perna sobre a outra e cofiando o bigode, incutiu-lhe alguma confiança. Ao mesmo tempo o segundo fez saltar a rolha e imitou com a boca o ruído de uma garrafa de champanhe. La Jonquiére tranquilizou-se por completo.

- É o sr. cavaleiro Gastão de Chanlay - tornou ele, respondendo ao hospedeiro.

- Chanlay - repetiu o homenzinho -, permita Deus que não me esqueça. O capitão saiu depois de ter olhado em volta de si, como que para interrogar o tempo, mas na realidade para observar as entradas das portas e os ângulos dos prédios.

Ainda não tinha dado cem passos na rua Saint-Honoré, para a qual se dirigia, quando Dubois se apresentou à porta da hospedaria. Passara junto do capitão, mas como nunca tinha

visto aquela importante personagem, não pudera reconhecê-lo. Foi com verdadeira ousadia que se apresentou no limiar da porta, com a mão no chapéu usado, vestindo um casaco cinzento, calções escuros, meias de algodão, enfim o modo de trajar completo de um negociante da província.

 

O SR. MONTONNET, NEGOCIANTE DE PANOS EM SAINT GERMAIN-EN-LAYE

Logo que entrou, Dubois, depois de ter lançado um rápido olhar aos dois guardas franceses que continuavam a beber no seu canto, viu o hospedeiro que passeava na sala de um lado para o outro.

- Senhor - disse ele timidamente -, não é aqui que se acha hospedado o sr. capitão La Jonquiére? Desejava falar-lhe.

- Desejava falar ao capitão La Jonquiére? - disse o hospedeiro examinando o recem- chegado atentamente.

- Se fosse possível - tornou Dubois -, confesso que teria nisso muito prazer.

- Está certo que se trata realmente daquele que está hospedado aqui? - disse o hospedeiro, que não reconhecia de modo algum no que chegava os sinais daquele que era esperado.

- Creio que sim - tornou Dubois modestamente.

- Gordo e baixo?

- É isso mesmo.

- Bebendo bem?

- Exactamente.

- E sempre pronto a manejar a bengala quando não se faz imediatamente o que ele pede?

- É assim mesmo esse excelente capitão La Jonquiére.

- Conhece-o? - perguntou o hospedeiro.

- Não.

- Ah, é verdade; senão tê-lo-ia visto à porta!

- Diabo, saiu! - disse Dubois com um movimento de mau humor que não pôde doninar. - Obrigado.

Mas compreendendo, acto contínuo, a imprudência que cometera, mostrou no rosto o mais amável dos seus sorrisos.

- Saiu há pouco então?

- Oh, não há cinco minutos - disse o hospedeiro.

- Mas vai voltar, certamente? - perguntou Dubois.

- Daqui a uma hora.

- Dá-me licença que o espere?

- Certamente!

- Dê-me ginjas em aguardente - disse Dubois -, nunca bebo vinho senão às refeições. Os dois guardas trocaram um sorriso de desdém.

O hospedeiro apressou-se a levar-Lhe um copo com as ginjas pedidas.

- Ah! - disse Dubois. - São só cinco. Em Saint-Germain-en-Laye dão seis.

- É possível, senhor, mas em Saint-Germain não pagam direitos.

- É justo - tornou Dubois -, é perfeitamente justo! Esquecia-me dos direitos; queira desculpar-me, senhor.

E começou a comer ginjas sem poder inibir-se, apesar do grande poder que tinha sobre si, de fazer uma careta das mais significativas. O hospedeiro, que não desviara os olhos dele, viu essa careta com um sorriso de satisfação.

- E onde está alojado, esse capitão? - disse Dubois para continuar a conversa.

- É esta a porta do seu quarto; preferiu instalar-se no rés-do- chão.

- Compreende-se - tornou Dubois -, as janelas dão para a rua.

- Sem contar que tem uma porta que dá para a rua das Deux-Boules.

- Ah, é realmente cómodo! E o barulho que fazem aqui não o incomoda?

- Oh, tem um outro quarto no segundo andar; ora dorme num, ora noutro.

- Como Dionisio, o Tirano - tornou Dubois, que não podia deixar de apresentar as suas citações latinas ou históricas.

- O que disse? - perguntou o hospedeiro.

 

Dubois percebeu que cometera uma nova imprudência e mordeu os lábios; neste momento, por Felicidade, um dos guardas pediu vinho, e o hospedeiro afastou-se. Dubois seguiu-o com o olhar e voltando-se para os dois guardas, disse:

- França e Regente".

- O sinal! - exclamaram ao mesmo tempo os dois falsos soldados, levantando-se.

- Entrem naquele quarto - ordenou Dubois designando o quarto de La Jonquiére -, abram a porta que dá para a rua das Deux-Boules, e escondam-se por detrás de uma cortina, - debaixo de uma mesa, dentro de um armário, onde puderem; se se descobrir uma orelha de algum dos dois quando entrar suspender-Lhe-ei o ordenado durante seis meses.

Os dois guardas esvaziaram os copos e entraram no aposento indicado, enquanto Dubois, reparando que eles se haviam esquecido de pagar, jogava uma moeda de doze soldos em cima da mesa. Depois correu a abrir a janela e dirigiu-se ao cocheiro de um carro que estacionava em frente da casa.

- Olá, Experto - disse ele -, aproxime a carruagem da porta, que dá para a rua das Deuxe-Boules e diga a Tapin que suba quando eu Lhe fizer sinal batendo com os dedos nos vidros.

Já lhe dei instruções.

Fechou a janela e ao mesmo tempo ouviu-se o ruído da carruagem afastando-se. Era tempo, o hospedeiro voltava e deu imediatamente pela ausência dos dois guardas.

- Ora esta! - disse ele. - Onde se meteram os camaradas?

- Veio um sargento chamá-los.

- Mas foram sem pagar? - bradou o hospedeiro.

- Não, como vê deixaram uma moeda de doze soldos sobre a mesa.

- Diabo, doze soldos! Vendo o meu vinho d'Orleans a oito soldos a garrafa.

- Ah! - retrucou Dubois. - Pensaram certamente que, na sua qualidade de militares tinham direito a um pequeno desconto.

- Enfim! - tornou o taverneiro, que, achando sem dúvida o ganho razoável, facilmente se consolara. - Enfim, não se perdeu tudo, e na nossa profissão, temos que contar com estas coisas.

- Não tem felizmente que contar com casos idênticos com o capitão La Jonquiére?

- Oh, não, é a nata dos hóspedes; paga tudo e sem regatear. É verdade porém que nunca acha nada bom.

- Talvez seja mania.

- É o termo; sim, deve ser uma mania.

- O que me diz a respeito das boas contas do capitão, causa-me prazer - disse Dubois.

- Vem pedir-Lhe dinheiro? - perguntou o hospedeiro. - De facto disse-me que esperava alguém a quem devia cem pistolas.

- Pelo contrário - retorquiu Dubois -, trago-Lhe cinquenta luízes.

- Cinquenta luízes! Não é nada mau - replicou o dono da hospedaria. - Entendi então mal, em vez de o ter que pagar, tinha sem dúvida que o receber. Será por acaso o cavaleiro Gastão de Chanlay?

- O cavaleiro Gastão de Chanlay! - exclamou Dubois com uma alegria que não pôde dissimular. - Espera o cavaleiro de Chanlay?

- Foi o que ele me disse - tornou o homenzinho um pouco admirado do entusiasmo com que o recém- chegado Lhe fazia aquela pergunta. - Mas afinal o senhor é que é o cavaleiro Gastão de Chanlay?

- Não tenho a honra de ser tão nobre; chamo-me apenas Moutonnet.

- A nobreza nada tem que ver com isso - tornou o hospedeiro num tom sentencioso.

- Pode-se ter o nome de Moutonnet e ser um homem honrado.

- Sim, Moutonnet - respondeu Dubois aprovando com um gesto a teoria do seu interlocutor. - Moutonnet, negociante de panos em Saint-Germain-en-Laye.

- E disse que tem cinquenta luízes para entregar ao capitão?

- Sim, senhor - tornou Dubois bebendo conscienciosamente a aguardente depois de ter comido as ginjas. - Imagine, senhor, que folheando os velhos registos de meu pai, descobri ao passivo que ele devia cinquenta luízes ao pai do capitão La Jonquiére. Pus-me então em campo e não consegui ter sossego enquanto não descobri o filho, à falta do pai, que morreu.

- Mas sabe, senhor Moutonnet - respondeu o hospedeiro assombrado com tão grande honestidade -, que não há muitos devedores como o senhor?

- Pois nós somos assim, de pai para filho e de Moutonnet para Moutonnet, mas também quando nos devem, oh! somos implacáveis! Havia um figurão que devia à casa Moutonnet e filho cento e sessenta libras. Pois bem, o meu avô fê-lo meter na prisão, e aí se conservou durante as três gerações e lá morreu. Há uns quinze dias fiz as contas: esse figurão, durante trinta anos que esteve preso, custou-nos doze mil libras. Não importa, o princípio foi mantido. Mas peço-Lhe perdão, meu caro senhor - juntou Dubois que não perdia de vista a porta da rua diante da qual havia um instante se conservava uma sombra que se semelhava à do capitão - peço-Lhe perdão de o entreter com estas histórias que não Lhe podem merecer interesse algum, de resto chega-Lhe um novo freguês.

- Ah, é justamente a pessoa que espera!

- O excelente capitão La Jonquiére? - exclamou Dubois.

- Ele mesmo. Entre, capitão - disse o hospedeiro -, esperam-no. O capitão ainda não afugentara as suspeitas que tivera de manhã; na rua vira uma quantidade de caras desconhecidas que Lhe pareceram sinistras; entrava cheio de desconfiança. Lançou portanto um olhar dos mais investigadores ao local onde tinha deixado os dois guardas, cuja ausência o tranquilizou um pouco; e em seguida, ao recém-chegado, que não deixava de o inquietar. Mas aqueles que não têm a consciência tranquila acabam por encontrar no próprio excesso das suas inquietações coragem para afrontar os pressentimentos; ou, para melhor dizer, familiarizaram-se com o medo e nem sequer o ouvem. La jonquiére, tranquilizado pela fisionomia honesta do suposto negociante de Saint-Germain-en-Laye, cumprimentou amavelmente. Dubois correspondeu com uma reverência das mais corteses.

Então La Jonquiére voltando-se para o hospedeiro, perguntou-Lhe se o amigo que esperava aparecera.

- Veio apenas este senhor - informou o dono da hospedaria -, mas nada perde com a troca: um vinha reclamar-lhe cem pistolas, o outro vem-Lhe trazer cinquenta luízes.

La Jonquiére, atónito, voltou-se para Dubois, que suportou aquele olhar sem a mínima perturbação. Sem se deixar enganar precisamente, o capitão ficou como que atordoado com a história que Dubois Lhe repetiu com uma admirável serenidade, sorriu mesmo pela restituição inesperada, devido a esse amor imoderado que os homens têm geralmente pelo imprevisto em assuntos de finanças; depois, tocado pela generosa acção daquele homem que o procurava por todo o mundo para, lhe pagar um dinheiro tão pouco esperado, pediu ao hospedeiro uma garrafa de vinho de Espanha, e convidou Dubois a segui-lo ao seu quarto. Dubois aproximou-se da janela para pegar no chapéu que estava sobre uma cadeira, e enquanto La Jonquiére conversava com o dono da hospedaria, tamborilou levemente nos vidros. Neste momento o capitão voltou-se.

- Mas talvez o incomode no seu quarto? - disse Dubois dando ao rosto a expressão mais risonha que era capaz de tomar.

- Absolutamente nada - respondeu o capitão -, tem bonita vista, veremos passar os transeuntes enquanto bebemos, e há lindas mulheres na rua de Bourdonnais. Ah, ri-se, meu amigo!

- Ah! Ah! - tornou Dubois coçando o nariz por distracção.

Esse gesto imprudente tê-lo-ia perdido num local menos afastado do Palais-Royal, mas na rua de Bourdonnais passou despercebido. La Jonquiére entrou primeiro, depois o hospedeiro com as garraFas. Dubois que ia atrás teve tempo de fazer um sinal a Tapin, que entrava na sala, seguido por dois homens; Dubois fechou a porta atrás de si.

Os dois espiões que acompanhavam Tapin foram direitos à janela e puxaram as cortinas, enquanto o seu chefe se colocava por detrás da porta do quarto de La Jonquiére de modo a ficar oculto quando a abrissem. O hospedeiro entrou pouco depois; tinha servido o capitão e Moutonnet, e recebera do primeiro um escudo de três libras. Ia portanto assentar essa receita no seu livro e guardar o dinheiro na gaveta; mas logo que ele abriu e tornou a fechar a porta, Tapin, que estava à espreita passou-lhe o lenço na boca, baixou- lhe o boné de pano branco até à gravata, e levou-o como uma pena para um segundo carro que estacionava precisamente à porta. Ao mesmo tempo um dos espiões apoderou-se da pequena que estava batendo ovos, o outro levou o cozinheiro envolto numa toalha, e num abrir e fechar de olhos o hospedeiro, a filha e o criado, escoltados pelos dois espiões rodaram para S. Lázaro, conduzidos muito rapidamente por dois cavalos muito bons e um cocheiro muito impaciente, para que a equipagem que os levava fosse apenas um carro vulgar.

Acto contínuo, Tapin, com o instinto de polícia, revolveu o armário por cima da porta da cozinha, pegou num boné de pano branco, um casaco também branco e um avental, depois fez sinal a um passeante que olhava para a janela e que entrou rapidamente transformando-se muito bem num empregado de taverna. Neste momento, ouviu-se um grande barulho no quarto do capitão. Dir-se-ia uma mesa derrubada, garrafas e copos quebrados, em seguida como que um bater de pés, pragas, o ruído de uma espada de encontro aos vidros da janela, e mais nada.

Passado um minuto, o rodar de uma carruagem que se afastava fez tremer a casa. Tapin que, deveras inquieto, estivera de ouvido à escuta, pronto a correr para o quarto com a faca de cozinha na mão, mostrou logo o maior contentamento.

- Bem! - disse ele. - A partida está feita.

- Era tempo, patrão - retorquiu o rapaz -, vem aí uma freguesa.

 

NINGUÉM SE DEVE FIAR EM SINAIS COMBINADOS

Tapin pensou primeiro que fosse o cavaleiro Gastão de Chanlay mas enganava-se, era uma mulher que ia comprar meio litro de vinho.

- O que foi que aconteceu com o pobre sr. Bourguignon? - disse a mulher. - Levaram-no num trem, com o boné branco na cabeça.

- Infelizmente, minha boa senhora - tornou Tapin -, uma desgraça que estávamos longe de esperar. Esse pobre Bourguignon quando menos se esperava, estando aqui conversando comigo, foi acometido de uma apoplexia fulminante.

- Meu Deus!

- É verdade - disse ainda Tapin erguendo os olhos para o céu -, isto prova, minha querida senhora que todos somos mortais.

- Mas também levaram a pequena? - continuou a mulherzinha.

- Para tratar do pai, é o seu dever.

- E o cozinheiro? - tornou a mulher que tudo queria saber.

- É para lhe fazer a comida, é o seu ofício.

- Vi tudo isso da minha porta e não compreendi nada; por isso, apesar de não me ser muito preciso, vim comprar meio litro de vinho para saber o que se passava.

- Pois bem, minha senhora, agora já está informada.

- Mas quem é o senhor?

- Sou Champagne, o primo de Bourguignon, cheguei esta manhã da terra por acaso; trouxe-Lhe notícias da família; de súbito, a alegria, a comoção. teve um ataque e zás! Olhe; pergunte a Grabigeon - continuou Tapin, designando o seu ajudante de cozinha, que acabava a omelete começada pela filha do hospedeiro e pelo cozinheiro.

- Ah, passou-se tudo exactamente como o sr. Champagne contou - respondeu Grabigeo limpando uma lágrima com a manga do casaco.

- Pobre senhor Bourguignon! Acha que se deve pedir a Deus por ele?

- É sempre bom rezar - disse sentenciosamente Tapin.

- Ah, veja se me mede bem o vinho!

Tapin fez um sinal afirmativo e serviu realmente bem a vizinha; não era caso difícil, tratava-se simplesmente de prodigalizar os bens alheios; Bourgignon teria soltado gritos de desespero se tivesse visto a medida que Tapin encheu de bom vinho de Mâcon por dois soldos.

- Vou tranquilizar os vizinhos - disse a mulherzinha -, que começam a inquietar-se, e prometo continuar sua freguesa, senhor Champagne; se o sr. Bourgignon não fosse seu primo, dir-lhe-ia até o que penso.

- Oh! Diga, vizinha, não faça cerimónia.

- Pois acabo de descobrir que me roubava como um patife. A mesma caneca que acaba de encher até a borda por dois soldos, ele fazia-me pagar quatro.

- Ora vejam! - retrucou Tapin.

- Oh, senhor Champagne, por mais que digam, creia que se não há justiça na terra, há no céu, porque foi uma felicidade o senhor encontrar-se aqui para continuar o negócio.

- Creio - disse baixinho Tapin -, uma felicidade para os fregueses. E despediu a mulher, porque temia que chegasse aquele que esperavam, e semelhantes explicações podiam parecer suspeitas ao recém-chegado. De facto nesse momento, e quando o relógio dava duas horas e meia, abriu-se a porta da rua e entrou um moço de porte distinto, coberto com um capote azul cheio de neve.

- É aqui a hospedaria do "Mind-de-Amor"? - perguntou a Tapin.

- Sim, senhor.

- E acha-se aqui alojado o capitão La Jonquiére?

- Acha-se sim.

- Está em casa?

- Entrou há um instante.

- Previna-o, se faz favor, que está aqui o cavaleiro Gastão de Chanlay. - Tapin inclinou-se, ofereceu ao cavaleiro uma cadeira que ele recusou, e entrou no quarto do capitão La Jonquiére.

Gastão sacudiu a neve que Lhe cobria as botas e o capote, e observou com a ociosa curiosidade de quem espera as imagens que ornavam as paredes da sala, sem sequer suspeitar que havia ali em volta, três ou quatro lâminas que a um olhar desse hospedeiro tão humilde e tão obsequiador se enterrariam no seu peito.

Passados cinco minutos, Tapin voltou, e deixando a porta aberta para indicar o caminho disse:

- O sr. capitão La Jonquiére está às ordens do sr. cavaleiro de Chanlay. Gastão avançou para o quarto, perfeitamente arrumado: achava-se aí aquele que o hospedeiro lhe apresentava como o capitão La Jonquiére, e sem ser grande fisionomista, notou que esse homem ou ocultava habilmente o seu jogo, ou não era um mata- mouros muito temível.

Baixo, magro, com o nariz cheio de borbulhas, os olhos pardos, vestia um uniforme muito usado que parecia Ficar-Lhe muito largo e a espada que Lhe pendia ao lado era quase do seu tamanho; foi assim que apareceu a Gastão esse importante oficial para com quem o marquês de Pontcalec e os outros conjurados Lhe recomendavam que tivesse as maiores considerações.

- Este homem é feio e tem ar de sacristão - pensou o cavaleiro.

E como ele se adiantasse para o receber, disse-Lhe:

- É ao capitão La Jonquiére que tenho a honra de falar?

- A ele mesmo - retorquiu Dubois metamorfoseado em capitão. - É o senhor cavaleiro Gastão de Chanlay que me visita neste momento?

- Sim, senhor - respondeu Gastão.

- Tem os sinais combinados? - perguntou o falso La Jonquiére.

- Aqui está a metade da moeda de ouro.

Uniram os dois fragmentos que se adaptaram perfeitamente.

- E agora - tornou Gastão -, vejamos os dois papéis.

Gastão tirou do bolso o papel cortado de um modo estranho, onde estava escrito o nome do capitão La Jonquiére. Dubois apresentou acto contínuo um papel semelhante com o nome de Gastão de Chanlay; puseram um sobre o outro. Estavam cortados do mesmo modo e ajustavam-se perfeitamente.

- Muito bem! - disse Gastão. - E agora a carteira.

 

As carteiras de Gastão e do falso La Jonquiére foram comparadas; eram extremamente parecidas, e ambas, apesar de novas, continham um calendário do ano de 1700, isto é, dezanove anos anterior à época em que se estava. Era uma dupla precaução que havia sido tomada com receio de alguma imitação. Mas Dubois não precisara de imitar, tirara tudo ao capitão La Jonquiére, e com a sua sagacidade diabólica e o seu infernal instinto tudo adivinhara e de tudo tirara partido.

- E agora, senhor? - disse Gastão.

- Agora - replicou Dubois -, podemos falar dos nossos negócios; não é o que quer dizer, cavaleiro?

- Justamente. e estamos aqui em segurança?

- Como se nos achássemos num deserto.

- Sentemo-nos, pois, e conversemos.

- Da melhor vontade, cavaleiro.

Os dois tomaram lugar numa mesa sobre a qual estavam uma garrafa de vinho de Xerez e dois copos.

Dubois encheu um; mas no momento em que ia encher o outro, o cavaleiro pôs a mão em cima para indicar que não bebia.

- Peste! - disse de si para si Dubois. - É magro e sóbrio, mau sinal; Cesar desconfiava dessa gente magra que nunca bebia vinho e assim eram Brutus e Cassius.

Gastão parecia reflectir, e de vez em quando lançava a Dubois um olhar profundamente investigador.

Dubois bebia aos goles o vinho de Espanha, e suportava perfeitamente o olhar do cavaleiro.

- Capitão - disse por fim o moço, passado um momento de silêncio -, quando se empreende, como nós fazemos, uma coisa em que se arrisca a cabeça, parece-me útil conhecer-se, a fIm de que o passado responda pelo futuro. Montlouis, Talhouet, de Couédic e Pontcalec apresentaram-me, sobre o meu nome e a minha posição: fui educado por um irmão que tinha motivos de ódio pessoal contra o regente. Esse ódio, herdei-o; daí resultou que quando há três anos, se formou a liga da nobreza na Bretanha, entrei na conjuração: agora fui escolhido pelos conjurados bretões para me entender com os de Paris e receber as instruções do barão de Valef, que chegou de Espanha, transmití-las ao duque de Olivares, agente de Sua Majestade católica em Paris, e assegurar-me do seu assentimento.

- E que deve fazer em tudo isso o capitão La Jonquiére? - perguntou Dubois, como se fosse ele que duvidasse da identidade do cavaleiro.

- Apresentar-me ao duque. Cheguei há duas horas, vi o sr. de Valef e vim-me apresentara si; agora, senhor, conhece tão bem a minha vida como eu próprio.

Dubois tinha escutado, exprimindo por mímica cada uma das impressões que recebia, como teria feito o melhor actor, depois, quando Gastão terminou, recostando-se na cadeira numa atitude de nobre indolência replicou:

- Quanto a mim, cavaleiro, devo confessar-Lhe que a minha história é mais longa e um pouco mais acidentada do que a sua. Contudo, se deseja que a conte, considerarei como dever obedecer-Lhe.

- Disse-Lhe, capitão - tornou o cavaleiro inclinando-se -, que quando se chega ao ponto em que estamos, uma das primeiras necessidades da situação é conhecermo-nos.

- Nesse caso - tornou Dubois - dir- lhe-ei que me chamo, como sabe, capitão La Jonquiere; meu pai era oficial como eu; é um ofício em que se ganha muita glória, mas em geral muito pouco dinheiro. Meu glorioso pai morreu portanto deixando-me como única herança a sua espada e o seu uniforme. Cingi a espada que era um tanto comprida e vesti o uniforme que me estava um pouco largo. Foi desde esse tempo - continuou Dubois fazendo notar ao cavaleiro a largura do seu casaco, o que o cavaleiro já havia notado -, que contraí o hábito de não poder sentir-me embaraçado nos meus movimentos.

Gastão inclinou-se em sinal de que não havia nada a dizer contra esse hábito.

- Devido à minha boa figura - prosseguiu Dubois -, fui recebido no Royal-Italien, que, primeiro por economia, em seguida porque a Itália já não nos pertencia, se recrutava então em França. Tinha aí um lugar muito distinto, quando, na véspera da batalha de Malplaquet, tive uma leve altercação com o meu sargento a propósito de uma ordem que me dava, com a ponta da bengala virada para cima, em vez de ma dar com ela virada para baixo, como seria conveniente.

- Perdão - disse o cavaleiro -, mas não compreendo bem a diferença que isso podia fazer à ordem que ele Lhe dava.

- Fez o seguinte: deixando cair a bengala tocou-me no chapéu que caiu. Resultou daí um duelo em que Lhe trespassei o corpo com o meu sabre. Ora, como me teriam sem dúvida passado pelas armas se tivesse esperado que me prendessem dei meia volta à esquerda e acordei na manhã seguinte, - os diabos me levem se sei como isso se deu! - no corpo do exército do princípe de Marlborough.

- Quer dizer que desertou? - tornou o cavaleiro sorrindo.

- Tinha o exemplo de Coriolano e do grande Condé - continuou Dubois -, o que me pareceu uma desculpa suficiente aos olhos da posteridade. Assisti pois como actor, devo dizer-lhe, visto termos prometido não guardar segredos um para o outro, à batalha, de Malplaquet; somente, em vez de me encontrar de um lado do rio, encontrava-me do outro; em vez de volrar as costas à aldeia, tinha-a na minha frente. Creio que esta mudança de lugar foi muito feliz para este seu criado. o Royal-Italien deixou oitocentos homens no campo da batalha, a minha companhia foi derrotada. A glória de que se cobriu o meu extinto regimento encantou a tal ponto o ilustre Marlborough, que me fez alferes no campo da batalha. Com um tal protector devia ir longe, mas sua mulher, lady Marlborough - que o céu confunda! - tendo tido, como sabe, a imperícia de deixar cair uma bacia d'água sobre o vestido da rainha Ana, esse grande acontecimento mudou a face das coisas na Europa, e na convulsão que causou, achei-me sem outro protector a não ser o meu mérito pessoal e os inimigos que ele me acarretara.

- E que Lhe sucedeu então? - perguntou o cavaleiro, que tomava um certo interesse pela vida cheia de aventuras do suposto capitão.

- Que quer! Esse isolamento conduziu-me, bem contra minha vontade a oferecer os meus serviços a Sua Majestade Católica, que acedeu graciosamente ao meu pedido. No fim de três anos estava capitão; mas de um soldo de trinta "reales" por dia, tiravam-nos vinte, fazendo-nos ver a inFinita honra que nos fazia o rei de Espanha levando-nos o nosso dinheiro. Como o caso não me parecia de necessária segurança, pedi ao meu coronel licença para abandonar o serviço de Sua Majestade Católica e voltar à minha boa pátria, acompanhado de uma recomendação qualquer, a fim de que não me inquietassem devido ao caso de Malplaquet. O coronel mandou-me apresentar a Sua Excelência o príncipe de Cellamare, o qual reconhecendo em mim uma certa disposição natural para obedecer às ordens que me dão sem as discutir nunca, quando me são dadas de um modo conveniente e acompanhadas por uma certa música, empregou-me activamente na famosa conspiração a que deu o seu nome, quando de súbito tudo se malogrou, como sabe, pela dupla denuncia de Fillo e de um miserável escritor chamado Buvat.

Mas como Sua Alteza pensou muito judiciosamente que o que se diferia não estava perdido, recomendou-me ao seu sucessor, ao qual espero que serão úteis os meus insignificantes serviços, e a quem agradeço muito reconhecido oferecer-me ocasião para travar conhecimento com um cavaleiro tão ilustre. Considere-me portanto como seu criado muito humilde e obediente.

- Os meus pedidos limitar-se-ão - tornou o cavaleiro -, a que me apresente ao duque, o único a quem tenho ordem de me declarar, e a quem devo entregar os documentos do barão de Vale. Seguirei portanto à risca as instruções que recebi, e pedir-Lhe-ei, capitão, para me apresentar ao duque.

- Hoje mesmo, senhor - retrucou Dubois parecendo tomar uma resolução -, daqui a uma hora, se quiser, daqui a dez minutos, se for necessário.

- O mais depressa possível.

- Escute - disse Dubois -, adiantei-me um pouco quando disse que podia ver Sua Excelência daqui a uma hora; em Paris não se pode ter a certeza de coisa alguma, talvez não esteja prevenida da sua chegada, talvez não o espere, talvez não esteja em casa.

- Compreendo-o e terei paciência.

- Talvez mesmo - continuou Dubois -, não me seja possível voltar aqui a buscá-lo.

- Por que motivo?

- Bem se vê que é esta a sua primeira viagem a Paris.

- O que quer dizer?

- Quero dizer, senhor, que há em Paris três espécies de polícia todas distintas, todas diferentes, e que entretanto se cruzam e se reúnem quando se trata de atormentar a gente honrada que não pede outra coisa senão para substituir o que há: 1. " a polícia do regente que não é muito para temer; 2. " a de messire Voyer d'Argenson: esse tem os seus dias de mau humor que são verdadeiramente para recear; 3. temos a de Dubois. Ah! Essa é outra coisa: o sr. Dubois é um grande.

- Um grande miserável! - concluiu Gastão. - Não me conta novidade, já o sabia. Dubois inclinou-se com o seu fatal sorriso de macaco.

- Pois bem, para escapar a essas três polícias? - perguntou Gastão.

- Urge ter muita prudência, cavaleiro.

- Instrua-me nesse caso porque, como já Lhe disse, não passo de um provinciano.

- Em primeiro lugar seria importante que nos não alojássemos na mesma hospedaria.

- Diabo! - retrucou Gastão, que se lembrava da direcção que dera a Helena. - Isso contraria-me deveras; tenho razões para desejar conservar-me aqui.

- Não se inquiete por esse facto, cavaleiro, serei eu que sairei. Fique com um dos meus quartos, este ou o do primeiro andar.

- PreFiro este.

- Tem razão, é baixo, tem janela para uma rua, porta secreta para outra. Vamos, vamos, há-de fazer-se alguma coisa de si.

- Voltemos ao que nos interessa - disse o cavaleiro.

- Sim, é justo; o que dizia eu?

- Que talvez não Lhe fosse possível vir- me buscar.

- Exactamente, mas nesse caso não siga senão aquele que lhe der todos os sinais em como vem da minha parte.

- E quais são?

- Em primeiro lugar deve trazer uma carta minha.

- Não conheço a sua letra.

- Vou mostrar.

Dubois escreveu as linhas seguintes:

"Sr. Cavaleiro

"Siga com confiança a pessoa que Lhe entregar este bilhete, está encarregado por mim de conduzi-lo à casa onde o esperam o duque de Olivares e o capitão La Jonquiére. "

- Aqui tem - continuou entregando-lhe o bilhete - se vier alguém em meu nome, remeter-lhe-ei um autógrafo semelhante a este.

- Parece-lhe suficiente?

- Não me parece; além do autógrafo, mostrar-Lhe-á a metade da moeda de ouro, e à porta da casa onde deverá conduzi-lo, pedir- lhe-á ainda o terceiro sinal.

- Que será?

- O papel.

- Está bem - volveu Gastão; com tantas precauções nem o diabo nos apanharia. E agora que devo fazer?

- Esperar; não tenciona sair hoje?

- Não.

- Conserve-se portanto calado e tranquilo nesta hospedaria onde não lhe faltará coisa alguma; vou recomendá-lo ao hospedeiro.

- Obrigado.

- Meu caro senhor Champanhe, disse, abrindo a porta - a Tapin -, aqui está o cavaleiro de Chanlay que fica no meu quarto, recomendo-Lho como se fosse eu mesmo.

E acrescentou em voz baixa, fechando a porta:

- Este rapaz vale o seu peso em ouro, senhor Tapin; não o perca de vista um momento sequer, a sua cabeça responde-me por ele!

 

   SUA EXCELÊNCIA O DUQUE DE OLIVARES

Entretanto, Dubois afastando-se do cavaleiro admirava, como tivera já tantas ocasiões de o fazer, o acaso providencial que Lhe punha mais uma vez nas mãos todo o futuro do regente e da França. Quando atravessava a sala da hospedaria, reconheceu o Experto que conversava com Tapin e fez- lhe sinal para que o seguisse; fora o Experto, como devem lembrar-se, o encarregado de fazer desaparecer o capitão La Jonquiére. Chegando à rua, Dubois informou-se com interesse do que era feito do excelente capitão: devidamente ligado e amordaçado, tinha sido conduzido à prisão de Vincennes para não atrapalhar nenhuma das manobras do governo.

Havia nessa época um sistema preventivo admiravelmente cómodo para os ministros. Esclarecido sobre esse ponto importante, Dubois seguiu o seu caminho deveras pensativo; só metade da tarefa estava feita e a mais fácil: tinha ainda que decidir o regente a entregar-se violentamente a um género de negócios a que tinha horror, a política de cilada.

Dubois começou por se informar do local onde se encontrava o regente e do que fazia. O príncipe estava no seu gabinete, não de negócios mas de trabalho, não de regente mas de artista, terminando uma gravura a água forte, preparada por Humberto, seu químico, o qual, numa mesa próxima, embalsamava um íbis pelo processo dos Egípcios, que ele pretendia ter encontrado. Ao mesmo tempo, um secretário lia ao príncipe uma correspondência cuja cifra só o regente conhecia. De repente, a porta abriu-se, com grande espanto do príncipe, que tinha aquele gabinete como um refúgio, e com voz sonora um criado anunciou o sr. capitão La Jonquiére. O regente voltou-se:

- La Jonquiére! - disse ele. - Quem é?

Humberto e o secretário entreolharam-se, admirados por introduzirem um estranho no seu santuário.

Ao mesmo tempo, uma cabeça comprida e pontiaguda, muito parecida com a de uma fuinha, apareceu à porta.

O regente por um momento não reconheceu Dubois, tão bem disfarçado estava; mas aquele nariz agudo como não havia outro no reino, traiu-o.

A expressão de uma grande hilaridade substituiu no rosto do duque a do assombro que aí primeiro se manifestara.

- Como, és tu, abade? - disse Sua Alteza dando uma gargalhada. - O que significa esse novo disfarce?

- Significa, monsenhor, que mudo de pele; de raposa torno-me leão. E agora, senhor químico, senhor secretário, dêem-me o prazer de irem fazer esses seus serviços em outra part.

- Para quê? - perguntou o regente.

- Porque tenho que falar com Vossa Alteza de importantes negócios.

- Vai para o inferno com os teus negócios! Já passou a hora, voltarás amanhã.

- Monsenhor - tornou Dubois -, não há-de querer expor-me a ficar até amanhã sob este feio invólucro, podia morrer subitamente. E na verdade nunca me consolaria.

- Arranja-te como quiseres, decidi que o resto do dia seria consagrado ao prazer.

- Nesse caso vai às mil maravilhas, venho também propor-Lhe um disfarce.

- Um disfarce a mim? Que queres dizer, Dubois? - continuou o regente pensando que se tratava de uma das suas usuais mascaradas.

- Vamos, já que está ficando com a boca cheia d'água.

- Fala, o que arranjaste?

- Mande sair primeiro o seu químico e o seu secretário.

- Queres isso absolutamente?

- Assim é.

- Nesse caso.

O regente despediu Humberto com um gesto amigável e o secretário com um sinal autoritário. Ambos se retiraram.

- E agora - disse o regente -, vejamos o que queres?

- Quero apresentar-Lhe, monsenhor, um moço que chegou da Bretanha, e que me foi particularmente recomendado; é um moço encantador.

- E o seu nome?

- O cavaleiro Gastão de Chanlay.

- De Chanlay. - repetiu o regente procurando recordar-se. - Esse nome não me é inteiramente desconhecido.

- Realmente?

- Parece-me já tê-lo ouvido pronunciar, mas não me lembro em que circunstância. E que vem fazer a Paris o teu protegido?

- Monsenhor, não quero privá-lo da surpresa da descoberta, ele mesmo lhe dirá logo o que vem fazer a Paris.

- A mim?

- Sim; isto é, a Sua Excelência o duque de Olivares, de quem vai, por favor, tomar o lugar. Ah, é um conspirador muito discreto o meu protegido e felizmente fui informado do que se passava, pela minha polícia que seguiu Vossa Majestade a Rambouillet. Devia dirigir-se em Paris a um certo La Jonquiére que o apresentaria ao duque de Olivares. Compreende agora, não é verdade?

- De modo nenhum, confesso.

- Pois bem! Eu fui o capitão La Jonquiére, mas não posso ser ao mesmo tempo o capitão e Sua Excelência.

- E reservaste esse papel.

- Para monsenhor.

- Obrigado! Queres então que sob um nome falso surpreenda os segredos.

- Dos seus inimigos - interrompeu Dubois. - Caramba, que grande crime.

como lhe custa muito mudar de nome e de roupa, como se não tivesse já, graças a esses meios, surpreendido muitas coisas além dos segredos! Mas lembre-se, monsenhor, que graças ao carácter aventuroso que o céu lhe concedeu, a nossa vida é uma espécie de mascarada contínua. Que diabo, monsenhor, depois de se ter chamado sr. Alaim e mestre João, pode sem grande sacrifício, parece-me, chamar-se o duque de Olivares.

- Meu caro, não desejo outra coisa senão disfarçar-me quando isso me proporciona uma distração qualquer, mas.

- Mas disfarçar-se - prosseguiu Dubois -, para conservar o sossego à França, para impedir intrigantes de derrubar o trono, para impedir assassinos de o apunhalar! Ora vamos! O facto é indigno de si; compreendo-o! Ah, se fosse para seduzir a caixeirinha da Ponte Nova, ou então a viúva da rua Santo Agostinho, não dizia que não, aí valeria a pena!

- Mas afinal - tornou o regente -, vejamos: se como sempre ceder ao que me pedes, o que resultará daí?

- Resultará que se há de convencer que não sou um visionário, e há-de permitir que velem sobre si visto que não o quer fazer.

- Mas uma vez por todas, se o caso não valer a pena, ficarei livre das tuas obsessões?

- Pela minha honra, prometo-o!

- Abade, se não te importasses, preferia outro juramento.

- Oh, que diabo! Monsenhor, é muito difícil; jura-se pelo que se pode!

- Está escrito que este figurão tem resposta para tudo.

- Monsenhor acede ao meu pedido?

- Ainda essa maçada?

- Há-de ver que não o é.

- Acredito, Deus me perdoe, que preparas conspirações para me assustar.

- Nesse caso são bem feitas; vai ver esta.

- Estás contente com ela?

- Acho-a muito interessante.

- Se não me causar medo, coitado de ti!

- Monsenhor exige muito.

- Lisonjeias-me, não estás seguro da tua conspiração, Dubois.

- Pois juro-Lhe, monsenhor, que há-de gozar uma certa comoção, e que se considerará feliz por falar pela boca de Sua Excelência.

E Dubois, temendo que o regente voltasse atrás sobre a sua decisão, inclinou-se e saiu. Não havia cinco minutos que se afastara, quando um correio entrou precipitadamente na antecâmara e entregou uma carta a um pagem que foi acto contínuo ao gabinete do regente, que, ao ver a letra, fez um movimento de surpresa.

- Senhora Desroches - disse ele. - Vamos, há novidade e quebrando o sinete, leu o seguinte:

"Monsenhor:

A jovem que me confiou não me parece em segurança aqui. "

- Ora! - exclamou o regente.

E continuou:

"A vida na cidade, que Vossa Alteza temia para ela, vale cem vezes mais do que o isolamento,

e não me sinto com forças para defender como eu queria, ou antes como devia, a pessoa que

Vossa Alteza me fez a honra de me confiar. "

- Com mil bombas! - tornou o regente. - As coisas complicam- se, segundo me parece.

- "Um moço que já ontem tinha escrito à menina Helena, um instante antes da sua chegada, apresentou-se esta manhã no pavilhão; quis mandá-lo retirar, mas a menina ordenou-me

peremptoriamente que obedecesse e me retirasse, que naquele olhar inflamado, naquele

gesto de rainha, reconheci o sangue que comanda. "

- Sim, sim - disse o regente sorrindo mau grado seu. - É bem minha filha!

E acrescentou:

- Quem será esse moço? Algum bobo alegre que a viu na sala do convento; se ao menos me dissesse o nome, aquela louca senhora Desroches!

"Creio, monsenhor, que esse moço e a menina já se têm visto; tomei a liberdade de escutar, para serviço de Vossa Alteza, e não obstante a porta fechada, num momento em que ele falava mais alto, pude distinguir estas palavras "Vê-la como dantes. Queira Vossa Alteza Real ter a bondade de me salvar do perigo iminente que corre a minha vigilância, e suplico-lhe que me transmita uma ordem positiva, por escrito, ao abrigo da qual possa colocar-me durante os momentos de cólera da menina.

- Diabo, continuou o regente - eis o que complica a situação. - Já o amor! Mas não, não é possível, educada tão severamente, tão isoladamente, no único convento de França, talvez onde os homens nunca passam da sala, numa província onde dizem que os costumes são tão puros! Não, é alguma aventura que não compreende essa Desroches, habituada às manhas da corte e sobreexcitada tantas vezes pelos caprichos das minhas outras filhas. Mas vejamos que mais diz ela?

"P S. Acabo de receber informações do hotel do "Tigre-Real"; O moço chegou ontem às sete horas da noite, isto é, três quartos de hora antes da menina; veio da Bretanha, pelo caminho que ela seguiu. Viaja sob o nome de sr. de Livry. "

- Oh! oh! - tornou o regente. - O caso torna-se perigoso; é um plano combinado de antemão. Com a breca! Dubois riria com gosto se lhe falasse nessa circunstância; como ele zombaria das minhas dissertações acerca da pureza das jovens longe de Versailles ou de Paris! Espero que apesar da sua polícia o figurão não saberá nada disto. Pajem!

O pajem que levara a carta reapareceu.

O duque escreveu algumas linhas à pressa.

- O mensageiro que chegou de Rambouillet? - perguntou ele.

- Espera a resposta, monsenhor.

- Dá-Lhe esta carta, e que parta imediatamente.

O correio, um momento depois, fazia ressoar no pátio as ferraduras do seu cavalo.

Entretanto Dubois, enquanto preparava a entrevista de Gastão com a falsa excelência, fazia "in petto" este pequeno cálculo:

- Tenho o regente em meu poder por si e pela filha. Esta intriga da jovem é sem consequência ou séria. Se é sem consequência, destruo-a exagerando-a; se é séria, tenho junto do duque o verdadeiro merecimento de a haver descoberto. Mas não posso dar os dois golpes ao mesmo tempo. Salvemos primeiro o duque, a Filha em seguida e haverá duas recompensas. Vejamos, é bem assim? O duque primeiro; sim: se a jovem sucumbir, ninguém sofre com isso; se o duque morrer, está um reino perdido. comecemos por ele.

E tomada esta resolução, Dubois expediu um correio a toda a pressa ao sr. de Montaran, em Nantes.

Já dissémos que o sr. de Montaran era o antigo governador da Bretanha. Quanto a Gastão, tomara ele o seu partido; envergonhado de ter de lidar com um homem da têmpera de La Jonquiére, e de ser colocado para com esse patife numa posição subalterna, felicitava-se por ter de comunicar dali em diante com o chefe mais digno da conjuração, resolvido, se encontrasse nele a mesma baixeza e venalidade, a voltar a Nantes a contar aos seus amigos o que vira e perguntar-lhes o que devia fazer.

No que dizia respeito a Helena, Gastão já não hesitava, conhecia a coragem indomável dessa criança, o seu amor, a sua lealdade. Tinha a certeza de que ela preferia morrer a ter que corar, ainda que involuntariamente, perante o seu amigo mais querido.

Vira com prazer que a felicidade de ter encontrado seu pai, não alterara a sua afeição dedicada, e que a fortuna presente não a tinha feito esquecer o passado. Mas, por outro lado, os seus receios sobre essa misteriosa paternidade não o abandonavam desde que se separara de Helena. Qual seria o rei, na verdade, que não se orgulharia de uma tal filha, a não ser que alguma coisa vergonhosa pusesse nisso obstáculo?

Gastão vestiu-se com esmero. Há a garridice do prazer e a garridice do perigo. Tornou mais bela a sua juventude, já tão fresca e tão graciosa, com tudo quanto o traje da época podia fazer realçar um rosto varonil emoldurado por um bonito cabelo preto: as suas pernas finas e bem feitas desenhavam-se debaixo da seda: os ombros e o peito estavam à-vontade sob o veludo; a pluma branca do chapéu caía-Lhe sobre o ombro, e, vendo-se ao espelho, Gastão sorriu a si mesmo e julgou-se um conspirador de boa aparência.

O regente, seguindo o conselho de Dubois, vestira uma roupa de veludo preto e ocultou numa grande gravata de renda metade do rosto, que o moço poderia reconhecer, pelos múltiplos retratos da época. Quanto à entrevista, devia ter lugar numa pequena casa do bairro Saint-Germain, onde residia uma amante do regente que este convidou a deixar a casa vazia. Tinha perto um pavilhão isolado, fechado por completo à luz e guarnecido de espessas tapeçarias. Foi aí que o regente, transportado numa berlinda fechada que saiu pelas traseiras do Palais-Royal, chegou pelas cinco horas da tarde, isto é, quando começava a anoitecer.

 

             MONSENHOR, SOMOS BRETÕES

O cavaleiro tinha Ficado no aposento do rés-do-chão e procedia à sua toilette como dissemos, enquanto Tapin continuava a sua aprendizagem e tão bem se saiu que quando chegou à noite sabia medir o vinho tão bem como o seu predecessor, e melhor ainda, porque tinha compreendido que nas indemnizações que se pagariam a Bourguignou, o desperdício figuraria na conta; compreendia portanto que, quanto menos desperdiçasse, mais ele Tapin, tiraria resultado. Por isso a freguesia da manhã foi mal servida à noite e retirou-se muito descontente.

Terminada a toilette, Gastão, para acabar de se fixar sobre o carácter do capitão La Jouquiére, fez o inventário da biblioteca: compunha-se de três espécies de livros: livros obscenos, livros de aritmética e de teoria. Entre estes últimos o "Parfait Sergent-Major" era encadernado de um modo muito particular e parecia ter sido muito lido; seguiam-se as memórias do capitão, contas, bem entendido, feitas com toda a ordem de furriel de regimento.

Enquanto Gastão se entregava conscienciosamente a esse inventário, entrou um homem introduzido por Tapin que o anunciou e o deixou em seguida discretamente só com o cavaleiro. Logo que se fechou a porta, o homem aproximou-se de Gastão e anunciou-lhe que o capitão La Jonquiére não pudera ir buscá-lo, e o mandar em seu lugar. Gastão pediu-Lhe o sinal combinado. O desconhecido mostrou-lhe uma carta do capitão exactamente nos mesmos termos e na mesma letra da que ele tinha em seu poder, depois a metade da moeda de ouro; Gastão reconheceu que era realmente o enviado que esperava e não apresentou dificuldade em segui-lo. Ambos subiram para uma carruagem fechada, o que nada tinha para admirar, em vista do que iam fazer. Chanlay viu que atravessava a Pont-Neufe que descia os cais; mas entrando na rua de Bac, nada mais viu, porque passado um instante a carruagem parou num pátio, defronte de um pavilhão. Então, sem que o cavaleiro Lhe pedisse, o seu companheiro tirou da algibeira o papel onde se achava o nome de Gastão, de sorte que ainda que este conservasse dúvidas, ter-se-iam dissipado por completo.

A porta abriu-se. Gastão e o seu companheiro desceram, subiram os quatro degraus de uma escada e encontraram-se num vasto corredor circular que rodeava o único aposento de que o pavilhão se compunha.

Antes de erguer o reposteiro que ocultava uma das entradas, Gastão voltou-se à procura do seu guia, mas este desaparecera.

O cavaleiro tinha ficado só.

O coração pulsava-Lhe com violência; não era a um homem vulgar que se ia dirigir. Não se tratava já do instrumento grosseiro posto em movimento: era o próprio pensamento da conspiração que ia ter em sua frente; era a ideia da rebelião feita homem; era o representante de um rei ante o qual ia achar-se, ele o representante da França; ia falar de viva voz com a Espanha, e levar ao estrangeiro os oferecimentos de uma guerra comum contra a sua pátria; jogava um reino por outro.

Ressoou uma campainha. Aquele som fez estremecer Gastão. Olhou para um espelho, estava pálido; mil pensamentos que nunca Lhe haviam ocorrido assaltaram-no naquele momento; o pobre rapaz não chegara ao Fim dos seus sofrimentos. A porta abriu-se, e Gastão viu diante de si um homem em quem reconheceu La Jonquiére.

- Ainda! - murmurou com despeito.

Mas o capitão, não obstante o seu olhar vivo e penetrante, não pareceu notar a nuvem que obscurecia a fronte do cavaleiro.

- Venha, cavaleiro - disse ele -, esperam-nos.

Gastão, reanimado pela própria importância da acção que empreendia, avançou com passo firme sobre o tapete que lhe abafava o ruído dos passos. Fez a si próprio o efeito de uma sombra comparecendo ante outra sombra.

De facto, mudo e imóvel, com as costas viradas para a porta, estava um homem sentado ou antes enterrado numa vasta poltrona; só se lhe viam as pernas. À luz da única vela, colocada sobre uma mesa num castiçal de prata só lhe iluminava a parte inferior do corpo; a cabeça e os ombros, ficavam na penumbra. Gastão achou- lhe um rosto nobre. Era um fidalgo que conhecia bem os seus semelhantes, e compreendeu imediatamente que aquele não era um capitão La Jonquiére. A boca era benévola, o olhar ousado e fixo como o dos reis e o das aves de rapina: leu grandes pensamentos naquela fronte, uma grande prudência e alguma firmeza nos finos contornos da parte inferior do rosto; tudo isso contudo no meio da escuridão e não obstante a gravata de renda.

- Ao menos este é a águia - disse ele com os seus botões -, o outro era apenas o corvo, ou o abutre.

O capitão La Jonquiére conservava-se respeitosamente de pé, tentando apresentar uma atitude marcial. O desconhecido, depois de ter olhado durante algum tempo para Gastão, que o cumprimentava em silêncio, e tão atentamente como Gastão o olhara, ergueu-se, cumprimentou e foi encostar-se à lareira.

- Este senhor é a pessoa de quem tive a honra de falar a Vossa Excelência, disse La Jonquiére; o sr. cavaleiro Gastão de Chanlay.

O desconhecido inclinoú-se novamente, mas não respondeu.

- Raio! - soprou-Lhe Dubois ao ouvido. - Se não o interroga, ele não dirá coisa alguma.

- O cavaleiro chegou da Bretanha, creio eu, disse friamente o duque.

- Sim, monsenhor; mas digne-se Vossa Excelência perdoar-me: o sr. capitão La Jonquiére disse-lhe o meu nome, mas eu não tive ainda a honra de ouvir o seu; peço desculpa, monsenhor, a da minha descortesia, mas não sou eu que falo, é o país que me envia.

- Tem razão, senhor - retrucou La Jonquiére tirando de uma pasta colocada sobre a mesa um papel onde se via uma assinatura e o selo do rei de Espanha. - Aqui está o nome. - disse ele.

- Duque de Olivares - leu Gastão.

Depois, voltando-se para aquele que Lhe apresentavam, sem notar a vermelhidão que lhe

coloriu as faces, inclinou-se respeitosamente.

- E agora, senhor - disse o desconhecido -, não hesitará em falar, presumo eu.

- Julgava ter de escutar primeiro - retorquiu Gastão -, conservando-se ainda na defensiva.

- É verdade, senhor; todavia, é um diálogo que começamos, não esqueça: cada um fala por sua vez numa conversação.

- Monsenhor, Vossa Excelência concede-me demasiada honra, e vou dar-lhe o exemplo da confiança.

- Escuto-o, senhor.

- Monsenhor, os estados da Bretanha.

- Os descontentes da Bretanha - interrompeu sorrindo o regente, a despeito de um terrível sinal do Dubois.

- Os descontentes são tão numerosos - tornou Gastão -, que devem ser considerados como os representantes da província; contudo empregarei a locução que Vossa Excelência me indica; os descontentes da Bretanha enviaram- me a si, monsenhor, para saber as intenções da Espanha neste caso.

- Saibamos primeiro quais são as da Bretanha - tornou o regente.

- Monsenhor, a Espanha pode contar connosco; tem a nossa palavra, e a lealdade bretã é proverbial!

- Mas a que se comprometem com respeito à Espanha?

- A auxiliar o melhor que pudermos os esforços da nobreza francesa.

- E não são os senhores também franceses?

- Monsenhor, nós somos bretões. A Bretanha, unida à França por um tratado, deve considerar-se separada dela do momento que a França não respeita o direito que esse tratado lhe reserva.

- Sim, conheço a velha história do contrato de Ana de Bretanha; há muito tempo que esse contrato foi assinado, senhor.

O falso La Jonquiére deu com o cotovelo no do regente com toda a força.

- Que importa! - disse Gastão. - Se cada um de nós o sabe de cor!

 

               SENHOR ANDRÉ

- Dizia então que a nobreza bretã estava pronta a auxiliar a nobreza francesa: e que quer a nobreza francesa?

- Substituir no caso da morte de Sua Majestade, o rei de Espanha no trono da França como único herdeiro de Luís XIV

- Bem! Muito bem! - disse La Jonquiére metendo os dedos numa caixa de rapé e tomando uma pitada com evidente satisfação.

- Mas aFinal - tornou o regente -, falam de todas essas coisas como se o rei tivesse morrido e o rei está vivo.

- O sr. Delfim, o sr. duque de Borgonha, a senhora duquesa de Borgonha e seus filhos, desapareceram de um modo bem deplorável.

O regente tornou-se pálido de cólera; Dubois tossiu.

- Conta-se portanto com a morte do rei? - perguntou o duque.

- Geralmente, monsenhor - retrucou o cavaleiro

- Isso explica porque o rei de Espanha espera, não obstante a renúncia dos seus direitos, subir ao trono de França. Mas entre aqueles que são dedicados à regência, decerto pensa encontrar alguma oposição aos seus projectos?

O falso espanhol sublinhou involuntariamente estas palavras.

- Previu-se esse caso, monsenhor.

- Ah, exclamou Dubois - previram esse caso: muito bem! Eu não Lhe dizia, monsenhor, que os nossos bretões são homens preciosos. Continue, senhor, continue.

Não obstante o convite animador de Dubois, Gastão conservou-se silencioso.

- Então, senhor - disse o duque, cuja curiosidade se excitava mau grado seu. - Como vê, escuto-o.

- Esse segredo não me pertence, monsenhor - replicou o cavaleiro.

- Não possuo, nesse caso, a confiança dos seus chefes?

- Pelo contrário, monsenhor, mas é o único que a possui.

- Compreendo-o, mas o capitão é um dos meus amigos, e respondo por ele como por mim.

- As instruções que recebi, monsenhor, levam-me a confiar somente em vossa Excelência.

- Mas, senhor, já Lhe disse que respondia pelo capitão.

- Nesse caso - tornou o cavaleiro inclinando-se -, já disse a monsenhor tudo quanto tinha para lhe dizer.

- Ouça, capitão - volveu o regente -, tenha a bondade de nos deixar sós.

- Sim, monsenhor - retrucou Dubois -, mas antes de o deixar, desejo também dizer-lhe duas palavras.

Gastão recuou uns passos.

- Monsenhor - disse Dubois em voz baixa -, faça-o falar, arranque-Lhe tudo, nunca se lhe deparará ocasião como esta. E o que me diz do nosso bretão? É gentil, não lhe parece?

- Um rapaz encantador! Uma atitude de fidalgo, os olhos expressivos e inteligentes, uma cabeça delicada.

- Melhor se cortará - murmurou Dubois coçando o nariz.

- Que dizes?

- Nada, monsenhor; sou exactamente da sua opinião. Senhor de Chanlay, seu criado e até à vista; qualquer outro zangar-se-ia por não ter querido falar na minha presença, eu porém, não sou orgulhoso, e contanto que as coisas tomem o caminho que entendo, pouco me importam os meios.

Chanlay curvou-se.

- Vamos, vamos - disse Dubois consigo -, parece que não tenho grande estampa para militar.

- Senhor - disse o regente depois de Dubois ter fechado a porta -, estamos sós e escuto-o. Compreende a minha impaciência, não é verdade?

- Sim, monsenhor, porque deve estar admirado de não ter recebido ainda de Espanha um documento que devia endereçar-Lhe o cardeal Olocroni.

- É verdade, senhor - retorquiu o regente esforçando-se por mentir, mas obrigado pelas circunstâncias.

- Vou dar-Lhe a explicação dessa demora, monsenhor. O mensageiro que devia trazer esse documento adoeceu e não saiu de Madrid; o barão de Valef, meu amigo, que nessa ocasião se encontrava em Espanha, ofereceu-se; hesitaram alguns dias, por Fim, considerando que já estava experimentado pela conspiração de Cellamare confiaram-lho.

- De facto, o barão de Valef escapou com dificuldade dos emissários de Dubois; sabe, senhor, que houve grande coragem em tentar renovar uma obra que malogrou. Pela minha parte, sei que quando o regente viu a senhora du Maine e o príncipe de Cellamare presos, os senhores de Richelieu, de Polignac, de Malezieux, a menina de Launay e Brigaud na Bastilha, e esse miserável de Grange-Chancel nas ilhas Santa Margarida, julgou tudo acabado.

- Bem vê que se enganou, monsenhor.

- Mas os seus conspiradores da Bretanha não receiam, sublevando-se neste momento, fazerem com que cortem a cabeça dos conspiradores de Paris que o regente tem ao seu alcance?

- Pelo contrário, monsenhor; esperam salvá-los ou terão a glória de morrer com eles.

- Como contam salvá-los?

- Voltemos ao documento, monsenhor, devo remetê-lo a Vossa Excelência e ei-lo.

- Está bem.

O regente pegou na carta, mas quando ia abri-la, vendo que era dirigida a Sua Excelência o duque de Olivares, colocou-a sobre a mesa sem abri-la.

Coisa singular! E esse mesmo homem abria às vezes duzentas cartas por dia, levadas pelos seus espiões. É verdade que se achava então na presença de Thorey ou Dubois e não na do cavaleiro de Chanlay.

- Então, monsenhor! - disse Chanlay, não compreendendo a hesitação do duque.

- Sabe sem dúvida o que contém este documento? - perguntou o regente.

- Talvez não o possa repetir palavra por palavra, mas sei pelo menos o que se combinou.

- Tenha a bondade de o repetir; desejo saber até que ponto está iniciado nos segredos do governo Espanhol.

- Quando se tiverem desembaraçado do regente - disse Gastão sem notar o leve estremecimento que, a estas palavras, agitou o seu interlocutor -, far-se-á provisoriamente proclamar o sr. duque du Maine em seu lugar. O duque destruirá acto contínuo o tratado da quádrupla aliança, assinado por esse miserável Dubois.

- Ah, sinto sinceramente - interrompeu o regente -, que o capitão La Jonquiére não esteja presente; teria grande prazer em ouvi-lo falar assim; continue, senhor, continue.

- Mandar-se-á o pretendente com uma frota para as costas de Inglaterra; suscitar-se-á a Prússia contra a Holanda. O Império aproveitará a luta para se reapoderar de Nápoles e da Sicília, a que tem direitos pela casa de Suábia. Assegurar-se-á o grão- ducado da Toscana, prestes a ficar sem dono pela extinção dos Médicis, ao segundo filho do rei de Espanha; reunir-se-ão os Países-Baixos católicos à França; dar-se-á a Sardenha ao duque de Sabóia, Commachio ao I'apa. Far-se-á da França a alma da grande linha do Sul contra o Norte, e se Sua Majestade Luís XV morrer, coroar-se-á Filípe rei da metade do mundo.

- Sim, senhor, sei tudo isso - tornou o regente -, é o plano da conspiração de Cellamare renovado; mas há em tudo que acaba de me dizer uma frase que não compreendo bem.

- Qual é, monsenhor?

- A seguinte: "Quando se tiverem desembaraçado do regente". E como o conseguirão, senhor?

- O antigo plano, como sabe, monsenhor, consistia em transportá- lo para a prisão de Saragoça, ou para a fortaleza de Toledo.

- Sim, e o plano gorou devido a vigilância de que se rodeava o duque.

- Esse plano era impraticável; mil obstáculos opunham-se a que o duque chegasse a Toledo ou a Saragoça; como é que se havia de fazer semelhante prisioneiro atravessar a França em toda a sua extensão?

- Era difícil - retrucou o duque -, e nunca compreendi porque tivessem adoptado semelhante plano. Vejo com prazer que Lhe fizeram uma leve modificação.

- Monsenhor, pode-se comprar os guardas, fugir de uma prisão, ou evadir-se de uma fortaleza; depois volta-se à França, torna-se a obter o poder perdido, e manda-se executar aqueles que efectuaram a prisão. Filípe e Alberonia nada têm que recear; Sua Excelência Monsenhor duque de Olivares alcança a fronteira e está salvo; e enquanto metade dos conjurados escapa ao poder do regente, outra metade paga por todos.

- Contudo.

- Monsenhor, temos debaixo dos olhos o exemplo da última conspiração, e, como ainda há pouco disse, os senhores de Richelieu, de Polignac. de Malezieux, de Laval, Brigaud, e a menina de Launay ainda estão na Bastilha.

- O que diz, senhor, é cheio de lógica.

- Enquanto que nos desfazendo do regente.

- Sim, evita-se a sua volta. Foge-se de uma prisão, de uma fortaleza, mas não se sai de um túmulo; é o que quer dizer, não é verdade?

- Sim, monsenhor - respondeu Gastão com a voz um pouco trémula.

- Compreendo agora o Fim da sua missão; veio a Paris para se desfazer do regente!

- Sim, monsenhor.

- Matando-o.

- Sim, monsenhor.

- E foi o senhor - continuou o regente fixando o seu olhar profundo no moço -, que se ofereceu para essa sangrenta missão?

- Não, monsenhor, nunca de motu-proprio teria escolhido o papel de assassino.

- Quem o obrigou então?

- A fatalidade.

- Explique-se.

- Formávamos um "comité" de cinco gentis-homens associados à liga bretã, liga parcial no meio da grande associação, e foi combinado que tudo que Fizéssemos seria decidido pela maioria.

- Compreendo - volveu o duque -, e a maioria decidiu que assassinassem o regente?

- Exactamente, Monsenhor, quatro votaram pelo assassínio e um só foi contra.

- Quem foi este? - perguntou o duque.

- Ainda que tenha de perder a confiança de Vossa Excelência, monsenhor, confesso que fui eu.

- Mas nesse caso, como se encarregou de cumprir um desígnio que desaprova?

- Foi decidido que a sorte indicaria aquele que devia dar o golpe.

- E a sorte?

- Recaiu sobre mim, monsenhor.

- Porque não recusou a missão?

- O escrutínio era secreto, ninguém conhecia o meu voto, ter-me-iam tomado por um covarde.

- E veio a Paris?

- Com o fim que me impuseram.

- Contando comigo?

- Como sobre um inimigo do regente, para me ajudar a cumprir uma missão que, não só toca tão profundamente os interesses da Espanha, mas salva os nossos amigos da Bastilha.

- E correm eles tão grandes perigos como supõe?

- A morte paira sobre eles; o regente possui provas, e disse a respeito do sr. de Richelieu, que se ele tivesse quatro cabeças, tinha nas mãos com que fazer cortá-las todas.

- Disse isso num momento de cólera.

- Como? É monsenhor quem defende o duque? Quem treme quando um homem se dedica pela salvação não só dos seus cúmplices mas ainda de dois reinos? É monsenhor quem hesita a aceitar esta dedicação?

- E se fracassar esse empreendimento?

- Tudo tem um lado bom e outro mau, monsenhor; quando não se tem a felicidade de ser o salvador do seu país, resta a honra de ser o mártir da sua causa.

- Mas, atenda uma coisa, facilitando-lhe os meios de chegar junto do regente, torno-me seu cúmplice.

- E isso assusta-o, monsenhor?

- Sem dúvida, porque se o prenderem.

- Então?

- Podem à força de torturas, arrancar- lhe os nomes daqueles.

Gastão interrompeu o príncipe com um gesto e um sorriso de supremo desdém.

- É estrangeiro, monsenhor - disse ele -, e é espanhol, não pode portanto saber o que é um fidalgo francês; perdoo-lhe pois a injúria.

- Pode-se então contar com o seu silêncio?

- Pontcalec, de Couedri, Talhouet e Montlouis, duvidaram de mim um momento, e depois apresentaram-me as suas desculpas.

- Está bem, senhor - tornou o regente -, reflectirei gravemente, prometo-Lhe, no que acaba de me dizer; mas no seu lugar?

- No meu lugar?

- Renunciaria a essa missão.

- Confesso que o meu maior desejo seria não a ter aceito; porque depois de se ter dado esse facto, operou-se uma grande mudança na minha vida. Mas aceitei-a, tenho de cumpri-la.

- Ainda que eu recusasse auxiliá-lo? - disse o regente.

- O "comité" bretão previu esse caso - tornou Gastão sorrindo.

- E decidiu?

- Que se passaria sem o auxílio de monsenhor.

- De sorte que a sua resolução.

- É irrevogável.

- Disse-Lhe o que devia dizer-Lhe, agora, visto que assim o quer, prossiga no seu empreendimento.

- Monsenhor - retrucou Gastão -, parece querer retirar-se?

- Tem mais alguma coisa a dizer-me?

- Hoje, não; mas amanhã, depois de amanhã?

- Não tem o capitão para intermediário? Mandando-me prevenir por ele, recebê-lo-ei quando quiser.

- Monsenhor - retrucou Gastão com um acento de firmeza que se adequava maravilhosamente com a sua figura nobre e digna -, falemos com franqueza, nada de intermediários como aquele. Vossa Excelência e eu, por muito separados que nos encontremos pela posição e pelo mérito, somos pelo menos iguais ante o cadafalso que nos ameaça. A vantagem nesse ponto é minha, porque é evidente que corro mais perigos; contudo Vossa Excelência é agora um conspirador como o sr. de Chanlay, com a diferença que tem o direito, sendo chefe, de ver a minha cabeça antes da sua; que me seja pois permitido tratar com Vossa Excelência de igual para igual e falar-lhe quando me for necessário.

O regente reflectiu durante um momento.

- Muito bem - disse ele -, esta casa não é a minha residência; como deve compreender recebo pouco em minha casa desde que a guerra está iminente; a minha posição é precária e delicada em França. Cellamare acha-se preso em Blois; eu não passo de uma espécie de cônsul, apto para proteger os meus concidadãos e também para servir de reFém; tenho portanto que empregar as maiores precauções.

O regente mentia a custo; procurava o fim de cada uma das suas frases.

- Escreva para a posta-restante, com a seguinte direcção: Sr. André. Dirá a hora em que desejar falar-me, e encontrar-me-á aqui.

- Para a posta-restante? - repetiu Gastão.

- Sim; é uma demora de três horas. A cada tiragem, alguém enviado por mim esperará a carta e entregar-ma-á, se lá estiver; três horas depois apresentar-se-á aqui e encontrar-me-á.

- Vossa Excelência fala com conhecimento de causa - disse Gastão rindo -, mas eu nem sequer sei onde estou, não conheço a rua, não sei o número da casa, vim aqui de noite, como hei-de poder voltar aqui? Olhe, monsenhor, procedamos de outra maneira; pediu-me algumas horas para reflectir, deve ter tempo até amanhã de manhã, e às onze horas, mande-me buscar. É necessário que combinemos bem o nosso plano para que não se malogre como o desses conspiradores de encruzilhada cujos punhais se desviam ou cuja pólvora se apaga devido a uma carruagem que passa ou à chuva que cai.

- Pois bem, está decidido; estará aqui amanhã às onze horas, senhor de Chanlay; mandarei alguém buscá-lo, e não teremos mais segredos um para o outro.

- Digne-se Vossa Excelência aceitar as minhas homenagens - disse Gastão inclinando-se.

- Adeus, senhor - retrucou o regente, cumprimentando também. Gastão retirou-se, encontrando na antecâmara o guia que o acompanhara.

O cavaleiro notou apenas que à saída teve de atravessar um jardim que não tinha visto quando entrou, e que saía por outra porta.

Aí esperava-o a mesma carruagem; subiu e logo que se instalou os cavalos partiram a trote em direcção à rua de Bourdonnais.

 

             A CASA DA RUA DE BAC

Já não era uma ilusão para Chanlay Um dia ainda; dois talvez, e teria que pôr mãos à obra, e a que obra!

O enviado espanhol tinha-Lhe produzido uma profunda impressão; apresentava o ar de grandeza que ele admirava. Aquele era um verdadeiro fidalgo, Gastão tinha disso a certeza.

Depois acudia-Lhe ao espírito uma estranha reminiscência; havia entre aquela fronte severa e aqueles olhos brilhantes e a fronte pura e doce e os ternos olhos de Helena, uma dessas parecenças vagas e remotas que dão ao pensamento que se Lhe entrega a incoerência de um sonho. Gastão, sem dar por isso, reunia aqueles dois rostos nas suas recordações, e mau grado seu, não podia separá-los. No momento em que ia se deitar, fatigado pelas comoções do dia, ouviu-se na rua o passo de um cavalo; a porta do hotel do "Mind-de-Amor" abriu-se, e Gastão, do seu quarto, ouviu um animado colóquio; mas a porta depressa se fechou, o ruído emudeceu e Gastão adormeceu como se adormece aos vinte e cinco anos, embora se esteja apaixonado e seja conspirador.

Contudo, Gastão não se havia enganado: o cavalo tinha realmente parado ali, houvera o colóquio, a porta tinha-se aberto e fechado. Aquele que chegava a tal hora era um bom camponês de Rambouillet, a quem uma jovem e linda mulher tinha dado dois luízes para levar a toda a pressa uma carta ao sr. Gastão de Chanlay, rua de Bourdonnais, na hospedaria do "Mind-de-Amor".

A jovem e linda mulher, nós conhecemos.

Tapin pegou na carta, virou-a, cheirou-a; depois desatando o avental branco, entregou a guarda da hospedaria ao seu primeiro cozinheiro que era um sujeito muito inteligente, correu a toda a pressa à casa de Dubois, que voltava naquele momento da rua de Bac.

- Oh! Oh! - exclamou Dubois. - Uma carta! Vejamos isto.

Abriu-a como um hábil escamoteador, pondo-a sobre um bule de água a ferver, e vendo a assinatura e o conteúdo, o seu rosto exprimiu uma intensa alegria.

- Bom! Excelente! - disse ele. - Isto caminha às mil maravilhas. Deixemos proceder as crianças, vão depressa, mas nós seguraMos as rédeas, quando quisermos, fá-los-emos parar.

Depois, voltando-se para o mensageiro, tendo previamente fechado a carta como um verdadeiro artista, disse-Lhe:

- Aqui tens, entrega a carta.

- Quando? - perguntou Tapin.

- Imediatamente.

Tapin deu um passo para a porta.

- Reflecti. - tornou Dubois. - É melhor entregÁ-la amanhã de manhã.

- Agora - disse Tapin cumprimentando uma segunda vez quando ia se retirar -, monsenhor, permite-me que lhe faça uma observação muito pessoal?

- Fala, tratante.

- Como agente de monsenhor, ganho três escudos por dia.

- Não achas bastante, homem?

- É bastante como agente, e não me queixo; mas, na verdade, é pouco como negociante de vinhos. Oh, que estúpida profissão!

- Bebe para te distraires, animal.

- Desde que o vendo, detesto o vinho.

- Porque vês como ele é feito; mas bebe champanhe, bebe moscatel, se lá houver, é Bourguignon quem paga. A propósito, teve uma verdadeira apoplexia, portanto a tua mentira é uma questão de cronologia.

- Realmente, monsenhor?

- Sim, foi devido ao medo que Lhe causaste; querias herdar-Lhe a loja, sem-vergonha?

- Juro-Lhe que não, monsenhor; a profIssão é pouco divertida.

- Pois bem! Junto três escudos por dia ao teu soldo enquanto venderes vinho, e depois dar-te-ei o estabelecimento para dotares a tua filha mais velha. Retira-te e traz-me muitas vezes cartas como estas que serás bem recebido.

Tapin voltou para a hospedaria de "Mind- de-Amor", tão apressadamente como se dirigira ao Palais-Royal, e, conforme Lhe tinha sido recomendado, esperou pelo dia seguinte para entregar a carta.

Ààs seis horas, Gastão estava de pé. Deve- se prestar justiça a Tapin, logo que ouviu ruído no quarto, entrou e entregou a carta a quem era dirigida. Reconhecendo a letra, Gastão corou e empalideceu; mas à medida que ia lendo, foi a palidez que aumentou. Tapin fingia arrumar o quarto e observava-o de soslaio. Com efeito, a notícia era séria, eis o que continha a carta:

"Meu amigo, pensando nos seus receios acho que talvez tenha razão; em todo o caso tenho medo: acaba de chegar uma carruagem, a senhora Desroches trata da partida; quis resistir, fecharam-me no quarto; por felicidade passou um camponês e entreguei-lhe dois luízes, pro metendo-me ele levar a carta ao seu destino. Ouço fazer os últimos preparativos, daqui a duas horas partiremos para Paris. Logo que chegue, informá-lo-ei da minha nova direcção, ainda que tenha, se por acaso me proibirem, de pular pela janela. Esteja descansado, amo-o e conservar-me-ei sempre digna de mim e de si. "

- Oh! - exclamou Gastão terminando a leitura da carta. - Não me tinha enganado! Oito horas da noite, meu Deus! mas já partiu, deve mesmo ter chegado. Senhor Bourguignon, porque não me entregaram esta carta logo que chegou?

- Sua Excelência dormia, e esperei que acordasse - respondeu Tapin com toda a delicadeza.

Não havia coisa alguma a retrucar. De resto Gastão reflectiu que se zangando podia trair o seu segredo e conteve a sua cólera; ocorreu-lhe contudo uma ideia, ir fora de portas esperar Helena, que talvez ainda não tivesse chegado a Paris. Vestiu-se rapidamente, cingiu a espada e saiu depois de ter dito a Tapin:

- No caso de vir aqui o capitão La Jonquiére, diga-lhe que estarei de volta às nove horas. Gastão chegou às portas suando fortemente; não encontrara a carruagem e tinha ido a pé. Enquanto o moço espera debalde Helena, que entrara em Paris às duas horas da manhã, lancemos um golpe de vista para o que se passara. Vimos o regente receber a carta da senhora Desroches e mandar a resposta pelo mesmo mensageiro; de facto era urgente tomar prontas medidas e subtrair Helena ao sr. de Livry.

Mas quem podia ser esse moço? Só Dubois o poderia dizer; portanto quando o abade voltou para acompanhar Sua Alteza Real à rua de Bac, o regente perguntou-lhe à queima- roupa:

- Dubois, quem é o sr. de Livry, de Nantes? - Dubois coçou o nariz percebendo onde o regente queria chegar.

- Livry? - respondeu Dubois. - Queira esperar um pouco. É certamente da província.

- Isso não é uma explicação, abade, é apenas uma hipótese.

- E quem é que conhece esse tal Livry? Nem é nome. Interrogue o sr. d'Hozier.

- Idiota.

- Mas, monsenhor; eu não me ocupo de genealogia; sou um indigno plebeu.

- Basta de idiotices.

- Diabo, monsenhor, não admite gracejos com respeito aos Livry segundo parece; tratar-se-á por acaso de fazer entrar algum na ordem? Nesse caso, é sério, e hei-de encontrar-Lhe uma bela origem.

- Vai para o diabo, e de caminho manda- me Nocé!

Dubois esboçou o seu mais agradável sorriso e retirou-se. Dez minutos depois, abriu-se a porta e entrava Nocé. Era um homem de quarenta anos, extremamente distinto, alto, bem parecido, espirituoso e escarnecedor; um dos companheiros mais Fiéis e estimados do regente.

- Monsenhor mandou-me chamar? - disse ele.

- Ah! és tu, Nocé? Bom dia.

- Receba as minhas homenagens, monsenhor - tornou Nocé curvando-se. - Em que posso ser útil a Sua Alteza Real?

- Empresta-me a tua casa do bairro Santo António, mas vazia e limpa; mandarei para lá gente minha; e quero-a pouco enfeitada, compreendes?

- É para coisa honesta, monsenhor?

- Exactamente.

- Nesse caso porque não aluga casa na cidade, monsenhor? As do bairro Santo António têm uma reputação atroz, já o previno.

- A pessoa que vai para lá nem sequer conhece essas reputações.

- Receba os meus sinceros cumprimentos, monsenhor.

- Mas silêncio, não é assim, Nocé.

- Absoluto.

- Nada de flores nem de emblemas; manda tirar todos os quadros agradáveis de mais. As paredes que tais são?

- Bem decentes, monsenhor.

- Respondes por tudo?

- Monsenhor, eu não tomo tal responsabilidade; não tenho lá grande virtude e será talvez mais prudente raspar tudo.

- Por um dia, não vale a pena; tratam de assuntos mitológicos, não é assim?

- Pouco mais ou menos.

- Além disso, íamos perder tempo e só me restam algumas horas. Dá-me as chaves imediatamente.

- Tomarei apenas o tempo de ir a casa e daqui a um quarto de hora estarão em poder de Vossa Alteza Real.

- Adeus, Nocé; a tua mão. Nada de espias, nada de curiosidade, recomendo-te.

- Monsenhor, parto para a caça e só regressarei quando Vossa Alteza me chamar.

- És bom camarada. Adeus, até amanhã! Certo de ter uma casa conveniente onde pudesse alojar a filha, o regente escreveu, acto contínuo, uma segunda carta à senhora Desroches, e enviou-lhe uma berlinda com ordem de levar Helena para Paris, depois de Lhe ter lido, sem lha mostrar, a carta que acabava de escrever. Eis o seu conteúdo:

"Minha filha, depois de reflectir, resolvi tê-la junto de mim. Tenha a bondade de seguir a senhora Desroches sem perder um segundo; quando chegar a Paris receberá notícias minhas. Seu afectuoso pai. "

Helena, ouvindo a leitura desta carta, resistiu, implorou, chorou. Foi em seguida que aproveitou um momento em que ficou só para escrever a Gastão a carta que vimos e para a enviar por um camponês que passava a cavalo.

Depois partiu, deixando com pesar essa habitação que lhe era cara, porque julgara ter aí encontrado um pai, e porque nela recebera Gastão.

Quanto ao cavaleiro, logo que recebera a carta, correra à barreira; chegou aí de madrugada. Passaram várias carruagens, mas Helena não vinha em nenhuma delas.

Pouco a pouco, o frio tornava-se mais intenso e a esperança desaparecia do coração do moço; tomou novamente o caminho da hospedaria, esperando encontrar outra carta quando chegasse.

Quando atravessava o jardim das Tulherias davam oito horas. Nesse mesmo momento, Dubois entrava no quarto de dormir do regente, com uma pasta debaixo do braço, e uma atitude triunfante.

 

            O ARTISTA E O POLÍTICO

- Ah! és tu, Dubois! - exclamou o regente vendo o seu ministro.

- Sim, monsenhor - retorquiu Dubois tirando alguns papéis da pasta. - E então, os nossos bretões continuam sempre galantes!

- Que papéis são esses? - perguntou o regente, que não obstante a sua conversa da véspera e talvez mesmo por causa dela, sentia uma íntima simpatia por Chanlay.

- Oh, pouca coisa - tornou Dubois. - Em primeiro lugar, um pequeno processo verbal do que ontem se passou entre o sr. de Chanlay e Sua Excelência monsenhor o duque de Olivares.

- Escutaste? - perguntou o regente.

- E que queria monsenhor que eu fizesse?

- E que ouviste?

- Tudo. Monsenhor, que pensa das pretensões de Sua Majestade Católica?

- Penso que dispõem dela talvez sem a sua participação.

- E o cardeal Alberoni? Com mil raios! Como esse sujeito divide a Europa: o pretendente em Inglaterra; a Prússia, a Rússia e a Suécia dando cabo da Holanda; o Império reapoderando-se de Nápoles e da Sicília; o grão-ducado da Toscânia para o filho de Filípe V; a Sardenha para o duque de Sabóia; Commachio para o papa; a França para a Espanha. Afinal o plano não deixa de ser grandioso, atendendo ao cérebro que o concebeu.

- Não passam de fantasias todos esses projectos e todos esses planos.

- E o nosso "comité" bretão - perguntou Dubois -, também é fantasia?

- Sou obrigado a confessar que esse realmente existe.

- E o punhal do nosso conspirador é também fantasia?

- Não; devo mesmo dizer que me pareceu pronto a entrar em acção.

- Deve estar alegre, monsenhor! Queixava-se, na outra conspiração que só encontrava conspiradores da água doce; pois bem! Parece-me que desta vez vai ser bem servido; estes não estão com cerimónia.

- Sabes - tornou o regente muito pensativo -, que esse cavaleiro de Chanlay tem um grande carácter?

- Ah, bem, não faltava mais nada senão vê-lo cheio de admiração por esse moço!

- Porque será que só se encontram algumas criaturas desta têmpera entre os inimigos e nunca entre os nossos servidores?

- Ah, monsenhor, porque o ódio é uma paixão, e a dedicação não passa muitas vezes de

uma baixeza; mas se monsenhor quisesse descer das alturas da Filosofia para se entregar ao simples trabalho material que consiste em me dar duas assinaturas.

- Para quê? - perguntou o regente.

- Uma para fazer de um capitão um major.

- O capitão La Jonquiére?

- Oh, não; esse é um tratante que enforcaremos em efígie logo que deixarmos de precisar dele; mas por enquanto, monsenhor, devemos poupá-lo.

- E quem é esse capitão?

- Um bravo oficial que monsenhor encontrou há oito noites numa casa da rua Saint-Honoré.

- Que queres dizer?

- Já vejo que tenho que ajudar a memória do monsenhor.

- Vamos, fala, celerado; que dificuldade tens para te explicar!

- Vou dizer-Lhe em duas palavras: Monsenhor saiu há oito noites, como dizíamos, disfarçado em mosqueteiro, pela porta traseira da rua de Richelieu, acompanhado por Nocé e Simiano.

- Sim, é verdade; e que se passou na rua Saint-Honoré?

- Quer sabê-lo, monsenhor?

- Sim, teria muito gosto nisso.

- Não posso recusar coisa alguma a Vossa Alteza.

- Fala, então.

- Monsenhor o regente ceava nessa casa da rua Saint-Honoré.

- Com Nocé e Simiane?

- Não, monsenhor, com uma mulher. Nocé e Simiane ceavam noutra casa.

- Continua.

- O senhor regente ceava portanto e chegava à sobremesa, quando um oficial, que provavelmente se enganara na porta, bateu com tanta teimosia na do aposento onde Vossa Alteza se achava, que monsenhor, impaciente, saiu e tratou com certa severidade o importuno que ia tão intempestivamente incomodá-lo. O oficial que era pouco condescendente, levou a mão à espada; ao que, monsenhor, que nunca reflecte antes de fazer uma loucura, desembainhou - galantemente a espada e respondeu ao oFicial.

- E o resultado desse duelo? - perguntou o regente.

- Foi que monsenhor apanhou um arranhão no ombro, em troca do qual deu ao adversário uma espadeirada que lhe atravessou o peito.

- Mas não foi perigosa, espero-o? - perguntou com interesse o regente.

- Não, felizmente o ferro deslizou pelas costelas.

- Oh, tanto melhor!

- Mas temos mais.

- Como?

- Parece que monsenhor embirra particularmente com esse oficial.

- Eu? Nunca o tinha visto. Que queres dizer? Acaba.

- Informei-me e soube que esse militar era capitão há oito anos quando Vossa Alteza foi proclamado regente e que o destituíram.

- Foi porque o mereceu.

- Ah, monsenhor, ocorre-me uma ideia, é fazer-nos reconhecer infalíveis pelo papa. - Talvez tivesse cometido alguma covardia.

- Era um dos mais bravos soldados do exército.

- Alguma acção indigna.

- Era o homem mais honrado do mundo.

- Nesse caso é uma injustiça a reparar.

- Muito bem! E eis porque preparei a sua nomeação de major.

- Dá cá, Dubois, às vezes procedes bem.

Um sorriso diabólico contraiu o rosto do abade que, justamente nesse momento, tirava da pasta um segundo papel.

O regente seguia-o com os olhos, inquieto.

- Que outro papel é esse? - perguntou.

- Monsenhor, depois de uma injustiça reparada, é uma justiça a fazer.

- Ordem para prender o cavaleiro Gastão de Chanlay e conduzi-lo à Bastilha! - exclamou o regente. - Ah! bandido! Compreendo agora porque me engodavas com uma boa obra Mas um momento, isto pede reflexão.

- Monsenhor, julga que Lhe proponho um abuso de poder? - perguntava rindo Dubois.

- Não, contudo.

- Monsenhor - continuou Dubois animando- se -, quando se tem nas mãos o governo de um reino, urge antes de tudo governar.

- Mas parece-me, senhor pedante, que é a mim que compete.

- Recompensar, sim, mas com a condição de castigar; o equilíbrio da justiça é falseado, quando uma misericórdia eterna e cega pesa num dos pratos da balança. Prender como sempre deseja e como muitas vezes tem feito, não é ser bom, é ser fraco. Vejamos, monsenhor, como há-de recompensar aqueles que o merecem, se não castiga aqueles que foram culpados?

- Então - tornou o regente tanto mais impaciente porquanto sentia que estava defendendo uma causa nobre mas má -, se querias que fosse severo não devias ter provocado o meu encontro com esse moço e fazer-me apreciar o seu valor, mas deixar-me crer que se tratava de um conspirador vulgar.

 

- Sim, e agora, porque se apresentou a Vossa Alteza sob uma forma romanesca, deixa trabalhar a sua imaginação de artista. Que diabo! Monsenhor, há tempo para tudo: entregue-se à química com Humberto, à gravura com Audram, à música com La Fare, ao amor com o mun do inteiro, mas comigo trate de política.

- Ora - exclamou o regente -, a minha vida torturada, espiada, caluniada como é vale a pena que a defenda?

- Mas não é a sua vida que defende, monsenhor: no meio de todas as calúnias que o perseguem, e contra as quais, louvado Deus, já devia estar couraçado, a acusação de covardii é a única que nem os seus mais cruéis inimigos lhe puderam lançar em rosto. A sua vida! Em Steinkerque, em Nerwinde e em Lérida, provou o pouco caso que fazia dela; se fosse um simples fidalgo, um ministro ou mesmo um príncipe de sangue, e que um assassino lha tirasse, seria o coração de um homem que cessava de bater e nada mais; mas com ou sem isso, semprquis ocupar o seu lugar entre os poderosos da terra. Para esse fim, destruiu o testamento de Luís XIV, expulsou os bastardos do trono, onde já tinham posto o pé, fez-se enfim regente da França; monsenhor, morto, não é um homem que cai, é o pilar que sustentava o edifício europeu que se desmorona; então a laboriosa obra dos nossos quatro anos de lutas é destruída. Tudo oscila em torno de nós. Lance os olhos sobre a Inglaterra: o cavaleiro de S. Jorge vai renovar os loucos empreendimentos do pretendente; lance os olhos sobre a Holanda. A grécia, a Suécia e a Rússia tornam-na num campo de carnificina; veja a Áustria: a sua águia procura apoderar-se de Veneza e de Milão para se indemnizar da perda da Espanha; por último veja a França, que já não é a França mas o vassalo de Filipe.e Lance os olhos sobre Luís XV, isto é sobre o último rebento ou o último vestígio do maior reinado que ilumina o mundo, e a criança que à força de vigilância e de cuidados arrancamos à sorte do pai, da mãe e dos tios para a fazer sentar sã e salva no trono dos seus antepassados, essa criança agore nas mãos daqueles que uma lei adúltera chama impudentemente a suceder-Lhe; assim de todos os lados, o assassínio, a dissolução, a ruína e o incêndio, a guerra civil e a guerra estrangeira, e porquê? Porque apraz a monsenhor Filípe d'Orleans julgar-se sempre maior da casa do rei ou comandante do exército de Espanha, e esquece que deixou de ser tudo isso no dia em que foi proclamado regente da França.

- Queres então que assine essa ordem? - exclamou o regente pegando numa pena.

- Um momento, monsenhor - tornou Dubois -, não quero que se diga que num assunto desta importância cedeu às minhas observações: disse o que tinha para dizer; agora deixo-o só, faça o que quiser, guarde este papel; tenho algumas voltas a dar e daqui a um quarto de hora virei buscá-lo.

E Dubois, com grande dignidade, saudou o regente e retirou-se.

Ficando só, o duque entregou-se aos seus pensamentos; todo aquele caso tão sombrio e tão tenaz, seguimento da precedente conspiração que tinham conseguido fazer abortar, erguia-se no espírito do duque no meio de negras visões; afrontara o fogo das batalhas, rira dos projectos dos espanhóis e das bastardas de Luís XIV; mas desta vez, angustiava- o um íntimo horror que não podia definir. Sentia uma involuntária admiração por aquele moço, cujo punhal o ameaçava; odiava-o em certos momentos, desculpava-o, quase que lhe dedicava afeição em outros. Dubois, vigiando aquela conspiração como um macaco infernal ante uma presa agonizante, perscrutando-a em todos os sentidos, parecia-lhe armado de uma vontade e de uma inteligência sublimes. Ele, de ordinário tão corajoso, notava que naquela circunstância defenderia mal a sua vida, conservava a pena na mão, a ordem estava diante dos seus olhos e fascinava-o. - Sim - murmurou -, Dubois tem razão, falou verdade e a minha vida em perigo cessou de me pertencer. Ainda ontem minha mãe me dizia o que ele acaba de dizer hoje. Quem sabe o que sucederia ao mundo inteiro se eu morresse? O que sucedeu quando morreu meu avô Henrique IV? Depois de haver reconquistado palmo a palmo o seu reino, ia, graças a dez anos de paz, de economia e de popularidade, juntar à França a Alsácia, a Lorena e talvez a Flandres, enquanto que, descendo os Alpes, o duque de Sabóia ia formar mais um reino e com ele enriquecer a república de Veneza e fortificar os ducados de Florença e Mântua; então a França encontrar-se-ia à frente do movimento europeu, tudo estava pronto para esse imenso resultado, preparado durante toda a vida de um rei legislador e soldado. Mas chegou o dia 13 de Maio, passou uma carruagem da casa Real pela rua da Féronnerie, soavam três horas da tarde... Num segundo, tudo foi destruído, a prosperidade passada, a esperança futura; foi necessário um século inteiro, um ministro chamado Richelieu e um rei como Luís XIV, para cicatrizar no flanco da França a ferida que aí fez o punhal de Ravaillac. Sim, sim, tem razão - exclamou o duque animando-se -, devo abandonar esse moço à justiça humana; de resto, não sou eu que o condeno, lá estão os peritos que o hão-de decidir; e demais, juntou sorrindo, não tenho o direito de perdoar? E, tranquilizado intimamente por essa real prerrogativa que exercia em nome de Luís XV, assinou rapidamente, e chamando o seu criado particular passou ao quarto contíguo a fim de terminarem a sua toilette. Dez minutos depois de se ter retirado do quarto onde esta cena se passara, a porta abriu-se de mansinho. Dubois entrou com precaução, viu que o aposento estava deserto, aproximou-se da mesa diante da qual o príncipe estivera sentado, lançou um olhar para a ordem, teve um sorriso de triunfo vendo que o regente tinha assinado, dobrou-a cuidadosamente, meteu-a na algibeira e retirou-se mostrando no rosto uma profunda satisfação.

 

                     O SANGUE REVELA-SE

Quando Gastão, de regresso da barreira voltou ao seu quarto da rua de Bourdonnais, viu La Jonquiére instalado junto do fogão, e saboreando um bom vinho de Alicante.

- E então cavaleiro - disse ele avistando Gastão -, que tal Lhe parece o meu quarto? É cómodo, não é assim? Sente-se e prove este vinho, vale os melhores de Rousseau. Conheceu Rousseau? Mas decerto é da província e na Bretanha não se bebe vinho; bebe-se cidra e cerveja, segundo me consta. Lá só pude beber aguardente, não achei coisa melhor.

Gastão nada Lhe respondeu, porque nem uma só palavra ouvira, tal era o estado de preocupação em que se encontrava. E deixando-se cair sobre uma cadeira, tirou da algibeira a primeira carta que Helena Lhe dirigira.

- Onde está ela? - perguntou ele contemplando-a. - Este Paris imenso para sempre ma roubará! Oh! Como está cheio de dificuldades o caminho seguido por um homem sem poder e sem experiência do mundo.

- A propósito - disse Jonquiére -, que tinha seguido as ideias que tumultuavam no cérebro do jovem bretão, como se este fosse de vidro -, a propósito, cavaleiro, trouxeram há pouco uma carta.

- Da Bretanha? - perguntou Gastão tremendo.

- Não, de Paris; com uma letra encantadora que parece de mulher, seu finório.

- Onde está? - exclamou Gastão.

- Pergunte ao nosso hospedeiro. Quando entrei há pouco, tinha-a na mão.

- Dê-me a carta - bradou Gastão correndo para a sala.

- Que deseja o senhor cavaleiro? - perguntou Tapin com a sua proverbial delicadeza.

- A carta que tem para mim.

- Ah, perdão, senhor, é verdade e eu que me tinha esquecido!

E tirou do bolso uma carta que entregou a Gastão.

- Pobre cretino! - dizia entretanto o falso La Jonquiére. - E são estes palermas que sam peritos em conspirar! É como d'Harmental. Querem entregar-se ao mesmo tempo à política e ao amor. Loucos!

Gastão voltou muito alegre, lendo, relendo, soletrando a carta de Helena. "Estou na Rua do bairro Santo António, um prédio branco, por trás de umas árvores, álamos quanto ao número não pude vê-lo, mas é o trigésimo-primeiro ou o trigésimo-segundo à esquerda, entrando, depois de se deixar à direita um castelo flanqueado de torres que parece uma prisão.

- Oh! - exclamou Gastão. - Encontrarei facilmente esse castelo, é a Bastilha.

Pronunciou estas últimas palavras de modo que Dubois as ouviu.

- Com o demo! Creio bem que hás-de encontrá-lo - disse para consigo Dubois -, ainda que eu próprio tenha de te levar lá.

Gastão consultou o relógio, tinha ainda duas horas antes da entrevista naquela casa; pegou no chapéu e preparou-se para sair.

- Ah! Vai sair? - perguntou Dubois.

- Um negócio a tratar.

- E a nossa entrevista às onze horas?

- Ainda não são nove; tranquilize-se, estarei de volta a tempo.

- Não precisa de mim?

- Não, obrigado.

- porque, se preparasse algum rapto, entendo muito bem disso, e poderia auxiliá-lo.

- Agradeço-Lhe - tornou Gastão corando mau grado seu -, não se trata de coisa alguma desse género.

Dubois assobiou entre dentes, como quem toma as respostas pelo que elas valem.

- Encontrá-lo-ei aqui? - perguntou Gastão.

- Não sei, talvez que também tenha de ir tranquilizar uma linda dama que se interessa

pela minha pessoa; mas, em todo o caso, à hora marcada, encontrará aqui o mesmo guia de

ontem, a mesma carruagem e o mesmo cocheiro.

Gastão despediu-se apressadamente do seu companheiro. Junto ao cemitério dos inocentes, encontrou uma carruagem, subiu e mandou seguir para a rua Santo António.

Na vigésima casa desceu, ordenando ao cocheiro que o seguisse e avançou, explorando todo o lado esquerdo da rua. Depressa se encontrou defronte de um muro alto por cima do qual se viam os ramos de copados álamos.

Casa e prédio correspondiam tão bem aos sinais que Lhe dera Helena, que não duvidou por um instante que era ali que a jovem se encontrava.

Mas a dificuldade nem por isso era menor; os muros não tinham janela alguma, na porta não se viam nem martelo nem campainha. Era coisa inútil para a gente rica que levava batedores à frente, que faziam abrir as portas batendo-Lhes com o castão de prata das suas bengalas.

Gastão teria prescindido de bater, e daria sinal com um pé, ou com uma pedra, mas temia que houvesse ordens para o pôrem dali para fora; ordenou portanto ao cocheiro que parasse, e querendo prevenir Helena, com um sinal bem conhecido, que estava ali, seguiu por uma travessa para onde dava um dos lados da casa, e aproximando-se o mais possível de uma janela

aberta que dava para o jardim, levou as mãos à boca e imitou o mais fortemente que pôde, o grito do mocho. Helena estremeceu, reconheceu aquele grito que ressoava a uma ou duas léguas de distância nas grutas da Bretanha; pareceu-lhe que estava ainda no convento das agostinhas descalças, e que o barco onde seguia o cavaleiro, deslizando sob o esforço silencioso dos remos, ia aparecer junto da janela entre os caniçados e os nenúfares. Esse grito, que transpunha os muros e Lhe chegava aos ouvidos, anunciava-lhe a presença esperada de Gastão. Correu

portanto à janela e viu-o. Trocaram um sinal que queria dizer de uma parte: Esperava-o, e da outra: Estou aqui! Depois, voltando ao seu quarto, tocou uma campainha que devia à munificência da senhora Desroches, que certamente dera-lhe para um uso muito diferente, com tanta força que não só essa dama, mas ainda a criada e o criado acudiram precipitadamente.

- Vão abrir a porta da rua - disse Helena imperiosamente - está aí alguém que espero.

- Fique - disse a senhora Desroches ao criado que ia obedecer -, quero eu mesma ver quem é essa pessoa.

- É inútil, minha senhora, sei quem é, e já lhe disse que a esperava.

- Mas contudo, se é alguém que não deve receber?

- Já não estou no convento, e ainda não me encontro na prisão; hei-de receber quem eu quiser.

- Mas posso ao menos saber de quem se trata?

- Não vejo nisso inconveniente, é a mesma pessoa que recebi em Rambouillet.

- O sr. de Livry?

- O sr. de Livry.

- Recebi ordem expressa para não deixar esse moço entrar aqui.

- E eu ordeno-Lhe que o receba imediatamente.

- Desobedece a seu pai - tornou a senhora Desroches -, meio colérica meio respeitosa.

- Meu pai nada tem que ver com isto.

- Contudo, quem é que a governa?

- Eu, eu só! - bradou Helena revoltando-se perante esse domínio que queriam exercer sobre ela.

- Menina, juro-Lhe que seu pai...

- Meu pai há-de aprovar, se é meu pai.

Estas palavras pronunciadas com todo o orgulho de uma imperatriz, fizeram com que a senhora Desroches se curvasse; conservou em seguida um silêncio e uma imobilidade em que a imitaram os criados que haviam presenciado aquela cena.

- Então? - perguntou Helena. - Mandei abrir a porta; não obedecem às minhas ordens?

Ninguém se mexeu: esperavam as ordens da governanta.

Helena sorriu desdenhosamente, e, não querendo discutir diante dos criados, fez um gesto tão imperioso, que a senhora Desroches afastou-se da porta onde se encontrava, e deixou-a passar. Helena desceu vagarosamente a escada, seguida pela governanta, assombrada por encontrar uma tal força de vontade numa jovem que saíra há doze dias do seu convento.

- Mas é uma rainha - disse a criada seguindo a senhora Desroches.

- São todos assim nesta família - retrucou a velha governanta.

- Conhece a família? - perguntou a criada atónita.

- Sim - tornou a senhora Desroches, vendo que se adiantara um pouco -, sim, conheci noutro tempo o marquês seu pai.

Entretanto, Helena tinha descido os degraus, atravessara o pátio e mandara abrir a porta junto da qual se achava Gastão.

- Venha, meu amigo - disse-lhe ela.

O cavaleiro seguiu-a. A porta fechou-se e entraram nos aposentos do rés-do-chão.

- Chamou-me, Helena, e vim imediatamente - disse ele. - Teme alguma coisa? Que perigo a ameaça?

- Olhe em volta de si - disse Helena e avalie.

Os dois jovens encontravam-se no aposento onde introduzimos o leitor, atrás do regentt e de Dubois, quando este quis torná-lo testemunha da orgia a que seu filho assistia. Era um boudoir" encantador, contíguo à sala de jantar, com a qual comunicava não só por duas portas, como também por uma outra entrada, oculta com flores das mais raras, magníficas e perfumadas; o "boudoir" era forrado de cetim azul com rosas e folhagem prateada; a parte superior das portas pintadas por Claudio Audran representavam a história de Vénus, dividida em quatro quadros: o seu nascimento, onde surge nua sobre uma onda; os seus amores com Adónis, a sua rivalidade com Psyché; e, por último, o seu despertar nos braços de Marte.

Viam-se ainda nas paredes outros episódios da mesma história, mas todos de contornos tão suaves e de expressão tão voluptuosa, que não havia engano possível sobre o destino do pequeno "boudoir".

As pinturas que Nocé, na inocência da sua alma, garantira ao regente serem puro Maintenon, tinham bastado para assustar a jovem.

- Gastão - disse ela - não se enganava aconselhando-me que desconFiasse desse homem que se apresentou como meu pai. Na verdade, ainda tenho mais medo aqui, do que em Rambouillet.

Gascão examinava todas aquelas pinturas uma após outra, corando ou empalidecendo sucessivamente com a ideia que havia um homem que acreditara na possibilidade de surpreender os sentidos de Helena por semelhantes meios, passou em seguida à sala de jantar, examinou-a minuciosamente como examinara o "boudoir"; era a continuação das mesmas pinturas eróticas e das mesmas intenções voluptuosas.

Desceram depois ao jardim, todo povoado de estátuas e de grupos que pareciam episódios de mármore esquecidos de pintar nos quadros. Quando entraram em casa, passaram em frente da senhora Desroches, que não os tinha perdido de vista e que ergueu as mãos para o céu numa atitude de desespero, exclamando:

- Oh, meu Deus! O que irá monsenhor pensar?

Estas palavras fizeram rugir a tempestade por muito tempo contida no peito de Gastão.

- Monsenhor! - exclamou ele. - Ouviu, Helena; monsenhor? Tinha razão para ter medo, e o seu instinto casto avisava-a do perigo. Estamos em casa de algum desses grandes personagens pervertidos que compram o prazer à custa da honra. Nunca vi esses lugares de perdição, mas adivinho-os. Estes quadros, estas estátuas, esta meia claridade que mal penetra nos quartos; todos estes mistérios provam a evidência do que se trata. Em nome do céu, não se deixe enganar por mais tempo, Helena. Tive razão em prever o perigo em Rambouillet; aqui deve temê-lo.

- Meu Deus - exclamou a jovem -, se esse homem aparece aqui e, com o auxílio dos criados, nos faz permanecer contra vontade nesta casa?

- Sossegue - retrucou Gastão. - Eu não estou aqui?

- Oh! Meu Deus, meu Deus! Ter de renunciar à suave ideia de ter um pai, um protector, um amigo!

- E em que momento! Quando vai ficar só no mundo - disse Gastão, entregando, sem dar por isso, parte do seu segredo.

- Que diz, Gastão? E que significam essas sinistras palavras?

- Nada. nada; palavras sem nexo que me escaparam e a que não se deve dar sentido algum.

- Gastão, esconde-me certamente alguma coisa terrível, visto que no momento em que perco meu pai, fala em abandonar-me.

- Oh, Helena, não a abandonarei quando morrer!

- Oh, é isso mesmo - tornou a jovem. - A sua vida corre perigo, e receia morrer por me abandonar. Gastão, traiu-se; já não é o mesmo de outros tempos. Quando me encontrou hoje a sua alegria foi contrafeita; quando ontem me julgou perdida para si, a sua dor não foi tão grande; tem no espírito projectos mais importantes do que no coração. Há alguma coisa em si, orgulho ou ambição, que suplanta o amor. Olhe, tornou-se pálido. Despedaça-me o coraÇão com o seu silêncio.

- Não, Helena, juro-lhe. Não acha bastante para me perturbar tudo o que nos sucede, encontrá-la só, sem defesa nesta pérFida casa, e não saber como protegê-la! Porque sem dúvida esse homem é muito poderoso. Na Bretanha, tinha amigos e duzentos camponeses para me defender; aqui, não tenho ninguém.

- É apenas isso, Gastão? - É de mais, parece-me.

- Não, meu amigo, porque vamos imediatamente sair desta casa.

Gastão fez-se pálido; Helena baixou os olhos e deixando cair a sua mão entre as mãos Frias e húmidas do moço, disse:

- Diante destas criadas que nos fitam sob o olhar desta mulher que se vendeu, e que só pode trair-me, Gastão, vamos sair ambos desta casa.

Os olhos de Gastão despediram um lampejo de alegria; depois um súbito e sombrio pensamento velou-os como uma nuvem.

Helena seguiu no rosto do amado a dupla expressão.

- Não sou sua mulher, meu amigo - disse ela -, a minha honra não é a sua? Partamos!

- Mas que hei-de fazer? Onde poderei alojá-la?

- Gastão - retrucou Helena -, nada sei, nada posso; não conheço Paris, não conheço o mundo. Pois bem, abriu-me os olhos, desconFio de tudo e de todos, excepto da sua lealdade e do seu amor.

O coração de Gastão esfacelava-se: seis meses antes teria pago com a vida a generosa dedicação da corajosa menina.

- Helena, reflicta - tornou Gastão. - Se nos enganássemos, se esse homem fosse verdadeiramente seu pai...

- Gastão, foi o meu amigo mesmo que me ensinou a desconfiar desse pai, não o esqueça.

- Oh! sim, Helena, sim! - exclamou ele. - Seja como for, partamos!

- Para onde havemos de ir? - disse Helena. - Nem precisa responder-me, Gastão; que o saiba, é quanto basta. Um último pedido, contudo. Aqui está uma imagem de Cristo e outra da Virgem, colocados entre estes quadros impuros. Jure sobre estas imagens que há-de respeitar sempre a honra de sua mulher.

- Helena - retrucou Gastão. - Não lhe farei a injúria de proferir semelhante juramento.

Hesitei durante muito tempo a propor-lhe o que hoje me propõe. Rico, feliz, seguro do presente, tudo poria a seus pés, fortuna, riqueza, felicidade; entregando a Deus o cuidado do futuro; mas, neste momento supremo, devo dizer-lhe não, não se enganou. Há entre hoje e amanhã a probabilidade de um acontecimento terrível. O que Lhe posso oferecer, Helena, vou dizer-Lhe, francamente. Se lograr bom êxito, uma alta e poderosa situação; se o meu plano falhar, a fuga, o exílio, a miséria talvez. Ama-me bastante, Helena, ou ama bastante a sua honra para afrontar tudo isso?

- Estou pronta, Gastão; diga-me que o siga, segui-lo-ei.

- Pois bem, Helena, não enganarei a sua confiança, esteja tranquila; não irá para minha casa, mas para a de uma pessoa que há-de protegê-la, se for necessário, e que, na minha ausência, substituirá o pai que acreditou ter encontrado e que, pelo contrário, perdeu pela segunda vez.

- Quem é essa pessoa, Gastão? Não é desconfiança - acrescentou a jovem com um encantador sorriso -, é curiosidade.

- Alguém que nada me pode recusar, cujos dias estão ligados aos meus, cuja vida depende da minha, e que há-de julgar que me faço pagar bem pouco exigindo o seu sossego e a sua segurança.

- Mais mistérios, Gastão, na verdade faz-me ter medo do futuro.

- Este segredo é o último. A partir deste momento, sabe toda a minha vida.

- Obrigada, Gastão.

- E agora estou às suas ordens, Helena.

- Vamos!

Helena deu o braço ao cavaleiro e atravessou a sala onde se encontrava a senhora Des roches.

no auge da indignação e escrevendo uma carta cujo destino podemos adivinhar.

- Meu Deus! Menina - exclamou a governanta. - Onde vai? O que faz?

- Onde vou? Saio desta casa onde a minha honra está ameaçada.

- Como? - exclamou a idosa governanta levantando-se como que impelida por uma mola. - Sai com o seu amante!

- Engana-se, minha senhora - retrucou Helena com a maior dignidade. - É meu marido.

A senhora Desroches aterrorizada deixou-se cair numa cadeira.

- E agora - prosseguiu Helena -, se a pessoa que conhece pedir para ter uma entrevista comigo, dir-Lhe-á que apesar de provinciana e colegial, adivinhei a cilada; que fujo a ela, e que se me encontrarem, terei ao menos um defensor a meu lado.

- Não há-de sair, menina! - exclamou a senhora Desroches, ainda que eu tenha de empregar a violência.

- Tente-o - retrucou a jovem nesse tom de majestade que lhe parecia habitual.

- Picard, Couturier, Blanchot!

Os criados acudiram.

- O primeiro que me impedir a passagem mato-o - disse friamente Gastão desembaianhando a espada.

- Que infernal teimosia! - exclamou a governanta. - Ah, meninas de Chartres e de Valois, como se parecem!

Os jovens ouviram esta exclamação sem lhe alcançarem o sentido.

- Partamos - disse Helena -, e não se esqueça, minha senhora, de repetir palavra por palavra o que Lhe disse.

E, suspensa ao braço de Gastão, vermelha de prazer e de orgulho, corajosa como uma amazona antiga, a jovem ordenou que lhe abrissem a porta. O porteiro não ousou resistir. Gastão pegou na mão de Helena, fechou a porta, mandou aproximar a carruagem que o levara ali, e como viu que se Preparavam para o seguir, deu alguns passos para os assaltantes, dizendo em voz alta:

- Dois passos mais, e conto esta história a quem quiser ouvir, e coloco-me, eu e esta moça sob a salvaguarda da honra pública.

A senhora Desroches julgou que o moço conhecia o mistério, e temeu que dissesse nomes; e assaltada de repentino receio entrou precipitadamente, seguida pela criadagem.

A carruagem partiu a galope.

 

O QUE SE PASSAVA NA RUA DE BAC ENQUANTO ESPERAVAM GASTÃO

- Como, monsenhor aqui? - exclamou Dubois entrando na sala da casa da rua de Bac, e encontrando o regente no mesmo lugar que ocupara na véspera.

- Sim, sou eu - disse o regente. - Que vês nisto para admirar? não tenho uma entrevista com o cavaleiro às onze horas?

- Mas parecia-me que a ordem que assinou punha termo às conferências.

- Enganas-te, Dubois! Quero ter ainda uma derradeira conversa com esse moço; tentar ainda uma vez fazê-lo renunciar ao seu projecto.

- E se o conseguir?

- Ficará tudo terminado: não terá havido conspiração; não haverá conspirador: não castiga a intenção.

- Com um outro, não o deixaria pôr em prática o seu plano; mas com este, dir- Lhe-ei, fale-Lhe, à vontade.

- Acreditas que não o demoverei do seu propósito?

- Oh, tenho a certeza! Mas quando ele tiver recusado plenamente, quando Vossa Alteza estiver bem convencida que ele persiste no projecto de o assassinar, entregar-mo-á, não é assim?

- Mas não aqui.

- Por que motivo?

- Vale mais mandá-lo prender na hospedaria.

- Na "Mind-de-Amor", por Tapin e a sua gente? É impossível, monsenhor; o escândalo de Bourguignon está ainda na memória de todos, em todo o bairro não se fala hoje noutro assunto. Não tenho grande certeza, desde que Tapin mede bem o vinho, que acreditem na apú plexia do seu predecessor. É melhor sair daqui, monsenhor; a casa é isolada e tem boa reputação; quatro homens domá- lo-ão facilmente e já estão postados naquele quarto. Vou mandá-los para outro, visto Vossa Alteza querer mesmo vê-lo. Em vez de o prenderem à entrada prendê-lo-ão à saída. Àporta está outra carruagem pronta para levá-lo para a Bastilha; deste modo o cocheiro que o trouxe não saberá o que foi feito dele. Apenas o sr. de Launay estará a par da ocorrência, e esse é discreto, respondo por ele.

- Faz como entenderes.

- O que, como monsenhor sabe, é o que faço geralmente.

- Impostor!

- Mas parece-me que monsenhor se tenha dado mal com essa impostura?

- Bem sei que tens sempre razão!

- E os outros?

- Quais?

- Pontcalec, de Couédie, Talhouet e Montlouis?

- Oh, os desgraçados! Sabes os seus nomes?

- Em que pensa que passei o tempo na hospedaria de Bourguignon?

- Hão-de saber a prisão do seu cúmplice.

- Por quem?

- Vendo que Lhes falta o correspondente em Paris, hão-de pensar que sucedeu qualquer coisa.

- Não têm o capitão La Jonquiére para os tranquilizar?

- É, justo, mas hão-de conhecer-lhe a letra.

- Ora vamos, monsenhor começa a tornar-se perspicaz - continuou Dubois. - Mas são inúteis todos os seus cuidados, porque a esta hora esses senhores da Bretanha já devem estar presos.

- E quem expediu a ordem?

- Eu, que diabo! Para alguma coisa hei-de ser ministro; de resto, Vossa Alteza assinou-a.

- Eu! Estás doido?

- Os que estão longe não são nem mais nem menos culpados do que o cavaleiro, e autorizando-me a mandar prender um, autorizou-me a prender todos.

- E quando partiu o portador dessa ordem?

Dubois consultou o relógio.

- Há justamente três horas; de sorte que exagerei dizendo a Vossa Alteza que já deviam estar presos; isso há-de dar-se amanhã de manhã.

- A Bretanha zangar-se-á, Dubois. - Ora, tomei as minhas medidas.

- Os tribunais bretões não hão-de querer julgar os seus compatriotas.

- O caso está previsto.

- E se forem condenados à morte não se encontracá carrasco que os execute e teremos uma segunda edição do caso de Chalois. Foi em Nantes, recorda-te, que isso se deu, Dubois; digo-te que os bretões são difíceis de domar.

- E difíceis de morrer, monsenhor; mas isso é um ponto a regularizar com os comissários de que tenho aqui a lista, enviarei três ou quatro carrascos de Paris, gente habituada a nobres serviços, e que conservaram as boas tradições do cardeal de Richelieu.

- Diabo, diabo! - disse o regente. - Sangue no meu reinado! Não me agrada; sou sensívél, Dubois.

- Não, monsenhor é hesitante e fraco; já lhe disse quando era meu discípulo, e repito-lhe hoje que é meu senhor: quando o baptizaram, as fadas, suas madrinhas, concederam-Lhe todos os dons da natureza, força, beleza, coragem e espírito; uma só que não tinha sido convidada, porque era velha, e adivinhou provavelmente que teria horror às velhas, chegou por fim e deu-lhe a fraqueza; essa estragou tudo.

- E quem te contou essa linda história? Perrault ou Saint-Simon?

- A princesa palatina, sua mãe.

O regente riu.

- E quem encarregaremos dessa comissão? - perguntou ele.

- Oh, esteja tranquilo, monsenhor! Gente de espírito e de resolução, homens pouco provincianos, pouco sensíveis às cenas de família, envelhecidos entre o pó dos tribunais, bem ceveros, a quem os bretões não causarão medo com os seus grandes olhos maus, e que as bretãs seduzirão com os seus lindos olhos húmidos.

O regente não respondeu, contentando-se em menear a cabeça e bater com o pé no chão.

- Afinal - continuou Dubois vendo aqueles sinais de muda oposição -, essa gente não é talvez tão culpada como supomos. O que resolveram? Recapitulemos os factos.

insignificâncias! Fazer voltar os espanhóis à França: isso que é? Chamar "meu rei" a Filípe que renunciou à sua pátria, destruir todas as leis do Estado. Esses bons bretões!

- Está bem - retrucou o regente com altivez -, conheço a lei nacional.

- Então, monsenhor, se fala verdade, só Lhe resta aprovar a nomeação dos comissários que escolhi.

- Quantos são?

- Doze.

- Os seus nomes?

- Mabroul, Bertin, Barillon, Parissot, Brunet-d'Arcy, Pagon, Feydeau de Brou, Mado Héber de Buc, Saint-Aubin, de Beaussan, e Aubry de Valton.

- Muito bem, tens razão, a escolha é feliz. E quem darás como presidente a essa amável assembleia?

- Adivinhe, monsenhor.

- Toma cuidado! É preciso um nome honesto para pôr à frente de tais carrascos.

- Tenho um e dos mais decentes.

- Quem é?

- É um embaixador.

- Cellamare, talvez?

- Creio que se o mandasse sair de Blois, nada lhe recusaria, nem mesmo as cabeças dos seus cúmplices.

- Está bem em Blois, que se deixe ficar por lá. Vejamos quem é o teu presidente.

- Chateauneu.

- O embaixador da Holanda, o homem do grande rei! Com os demónios! Dubois, ordinário, não costumo prodigalizar-te cumprimentos, mas desta vez fizeste uma verdadeira obra-prima.

- É fácil de compreender, não é verdade, monsenhor? Ele sabe que essa gente quer formar uma república e como foi habituado a conhecer só sultões, e voltou a Holanda horrorizado pelo horror que Luís XIV tinha às repúblicas, aceitou da melhor vontade; teremos Arguilene para procurador-geral, é determinado; Cayet será o nosso secretário; procedamos com rapidez porque o caso é urgente.

- Mas ao menos, Dubois, ficaremos depois tranquilos?

- Creio que sim; poderemos dormir de noite até de manhã, e de manhã até à noite, é, quando tivermos acabado a guerra com a Espanha, e operado a redução dos bilhetes do tesouro, mas, para este último trabalho, o seu amigo, sr. Law, ajudá-lo-á. A redução é completa.

- Quantos inimigos, meu Deus! E onde tinha eu a cabeça quando ambicionava a coroa! Rir-me-ia hoje bastante se visse o sr. de Maine entender-se com os jesuítas e os espanhóis e a senhora de Maintenon tratando de política com Villeroy e Villars, divertir-me-ia imensamente; e Humberto diz que é muito bom rir uma vez por dia.

- A propósito da senhora de Maintenon - tornou Dubois -, sabe, monsenhor, que a boa mulher está muito doente e não durará quinze dias.

- Ora!

- Desde a prisão da senhora de Maine e o exílio do marido, diz que decididamente Luís XiV está bem morto, e vai reunir-se a ele.

- O que não te causa grande pena, mau coração, não é assim?

- Com efeito, detesto-a cordialmente; foi ela que fez com que o defunto rei me recebesse tão mal quando lhe pedi o chapéu de cardeal a propósito do seu casamento; e com a força não era coisa fácil de arranjar. Monsenhor bem o sabe; de sorte que se Vossa Alteza não tratasse de reparar as injustiças do rei para comigo, ela tinha-me feito perder a minha carreira; também, se pudesse tinha metido o sr. de Maine no caso da Bretanha... mas era impossível, palavra de honra! O pobre homem está meio doido e diz a todos que encontra: A propósito, sabem que quiseram conspirar contra o governo do rei e a pessoa do regente? É vergonhoso para a França. Ah! se todos fossem como eu!

- Não se conspiraria - replicou o regente -, o facto é certo.

- Renegou a mulher - acrescentou Dubois rindo.

- E ela renegou o marido - retrucou o regente rindo também.

- Deus me livre de o aconselhar que os encarcerasse juntos, bater- se- iam.

- Por esse motivo, mandei um para Doulens e o outro para Dijon.

- Sim, donde se mordem por meio de cartas.

- Ponhamos todos em liberdade, Dubois.

- Para que dêem cabo uns dos outros? Ah! Monsenhor, é um verdadeiro carrasco, e vê-se bem que jurou a perda do sangue de Luís XIV!

Este audacioso gracejo provava como Dubois estava seguro do seu ascendente sobre o príncipe; porque de qualquer outro, teria provocado uma nuvem mais sombria do que aquela que escureceu por um momento a fisionomia do regente.

Dubois apresentou a nomeação do tribunal à assinatura de Filípe d'Orleans que desta vez, assinou sem hesitar; e Dubois, intimamente alegre, ainda que muito calmo na aparência foi fazer todos os preparativos para a prisão do cavaleiro. Quando saiu da casa da rua Santo António, Gastão fez-se conduzir à hospedaria do "Mind-de-Amor", onde devia esperá-lo uma carruagem para o conduzir à rua de Bac; não só o esperava a carruagem, mas também o guia da véspera. Gastão que não desejava que Helena se apeasse, perguntou se Lhe seria permitido de continuar o caminho na mesma carruagem que aí o levara; o homem misterioso respondeu- Lhe que não havia nisso inconveniente e subiu para junto do cocheiro, a quem deu a direcção do prédio onde deviam parar.

Durante todo o trajecto, Gastão, entregue ao temor e à tristeza, em vez de incutir a Helena a coragem que ela esperava encontrar no seu amado, apenas lhe patenteou um profundo desânimo de que não quis dar-Lhe a explicação. No momento em que entravam na rua do Bac, Helena, desesperada por encontrar tão pouco apoio do rapaz, disse- lhe:

- Já me causa medo ter confiança em si!

- Dentro em pouco - retrucou Gastão -, há-de ver, Helena, que procedo em seu interesse.

Chegaram e a carruagem parou.

- Helena - disse ele -, acha-se nesta casa a pessoa que vai servir-Lhe de pai; deixe-me subir primeiro para Lhe anunciar a sua visita.

- Ah, meu Deus! - exclamou a jovem estremecendo mau grado seu e sem saber porquê. -Vai deixar-me só aqui.

- Nada tem que temer; de resto, daqui a um momento voltarei a buscá- la.

Helena estendeu-Lhe a mão, que Gastão levou aos lábios, sentindo igualmente uma involuntária perturbação; dir-se-ia que lhe custava deixá-la só.

Neste momento, porém, a porta abriu-se, o homem que acompanhara Gastão ordenou ao cocheiro que entrasse, a porta fechou-se sobre eles, e Gastão compreendeu que naquele pátio cercado de muros, Helena não corria o mínimo perigo. De resto, já não lhe era possível recuar. O homem que tinha ido buscá-lo à hospedaria abriu a portinhola. O rapaz apertou uma última vez a mão da sua amada, saltou da carruagem, subiu a escada, seguindo o seu guia que, como na véspera, o introduziu no corredor; chegado aí, mostrou-lhe a porta da sala, e retirou-se depois de lhe ter dito que podia bater.

Gastão que sabia que Helena esperava, e que portanto não tinha tempo a perder, bateu imediatamente.

- Entre - disse a voz do falso príncipe espanhol.

O rapaz conheceu aquela voz que se lhe enraizara profundamente na memória; obedeceu, abriu a porta, e encontrou-se na presença do chefe da conspiração; mas já não sentia o mesmo receio que o invadira a primeira vez, estava bem decidido e foi com a fronte altiva e serena que se aproximou do falso duque de Olivares.

- É exacto, senhor - disse este -, estão dando onze horas.

- E porque tenho pressa, monsenhor - replicou Gastão -, a missão de que estou encarregado pesa-me; tenho medo que me assaltem os remorsos. Admira-se e inquieta-se, não é verdade, monsenhor? Mas tranquilize-se, os remorsos de um homem como eu só a ele mesmo podem atormentar.

- Na verdade, senhor - exclamou o regente com uma expressão de alegria que não pôde ocultar por completo -, parece que quer recuar.

- Engana-se, monsenhor; desde que a sorte me designou para ferir o príncipe, caminharei sempre para a frente e só me deterei quando a minha missão estiver cumprida.

- Pareceu-me ver uma certa hesitação nas suas palavras, e estas têm um grande valor em certos lábios e em certas circunstâncias.

- Monsenhor na Bretanha é costume dizer o que se sente e também fazer o que se diz.

- Está então decidido?

- Mais do que nunca, Excelência.

- É que - tornou o regente -, ainda seria tempo; o mal não está feito, é...

- Chama a isso mal, monsenhor - volveu Gastão sorrindo tristemente -, como Lhe chamarei eu então?

- É também assim que o entendo; o mal é para si, visto que tem remorsos.

- Não é generoso acabrunhar-me com essa confidência, monsenhor, porque a outro qualquer que tivesse menos merecimento do que Vossa Excelência, não a faria certamente.

- E eu, senhor, é porque Lhe aprecio o valor que Lhe digo que é tempo ainda para recuar e que lhe pergunto se fez todas as suas reflexões, se se arrepende de se haver prestado a esses...

- o duque hesitou um momento e continuou - a esses audaciosos empreendimentos;

nada receie de mim, protegê-lo-ei até no abandono em que nos deixar. Só o vi uma vez, acredito que o julgo como merece: os homens de coração são tão raros que todo o pezar será nosso.

- Tanta bondade conFunde-me, senhor - disse o cavaleiro sentindo uma certa indecisão;

não obstante toda a sua coragem. - Meu príncipe, não hesito, mas as minhas reflexões são de um duelista que vai para o lugar do combate, bem decidido a matar o inimigo, ao mesmo tempo que deplora a necessidade que o obriga a suprimir um homem.

Gastão fez uma pausa, durante a qual o olhar ardente do seu interlocutor mergulhou até ao mais íntimo da sua alma, a fim de descobrir o traço de fraqueza que aí procurava; depois continuou:

- Mas neste caso o interesse é tão grande, tão superior a todas as fraquezas da nossa natureza, que vou obedecer às minhas convicções e às minhas amizades, senão às minhas simpatias e procederei de tal forma, monsenhor, que apreciará em mim até o próprio sentimento de fraqueza momentânea que me reteve o braço durante um segundo.

- Muito bem - retrucou o regente -, mas como vai proceder?

- Esperarei até que o encontre face a face, e então não me servirei do arcabuz, como Poltrão, nem da pistola, como biltry; dir-lhe-ei: "Monsenhor, faz a desgraça da França, sacrifico-o à salvação da França! ", e apunhalá-lo-ei.

- Como fez Ravaillac - tornou o regente sem pestanejar -, e com uma serenidade que fez correr um frémito pelas veias do rapaz. - Muito bem!

Gastão curvou a cabeça sem responder.

- Como projecto parece-me o mais seguro - tornou o duque -, aprovo-o. Urge contudo que Lhe faça uma última pergunta. Se o prenderem e interrogarem?

- Vossa Excelência sabe o que sucede em semelhantes casos; morre-se, mas não se responde; e visto ter-me citado há pouco Ravaillac, foi, se tenho boa memória, o que também fez Ravaillac, e contudo não era gentil-homem.

A altivez de Gastão não desagradou ao duque, que tinha muita mocidade no coração e um grande espírito cavalheiresco; de resto habituado aos carácteres vis e indignos com quem vivia, aquele carácter simples e vigoroso de Gastão era uma novidade para ele. Ora é notório como o regente procurava tudo quanto era novo. Reflectiu ainda e como que para ganhar tempo, disse:

- Posso, portanto, contar que será inflexível?

Gastão pareceu admirado do seu interlocutor voltar ao assunto; esse sentimento traduzia-se-Lhe no olhar e o regente notou-o.

- Sim - volveu no mesmo tom -, bem vejo que está decidido.

- Absolutamente - retrucou o cavaleiro -, e espero as últimas instruções de Vossa Excelência.

- Como assim, as minhas últimas instruções?

- Sem dúvida; Vossa Excelência ainda não se comprometeu comigo, que me coloquei à sua disposição; pertenço-Lhe já de corpo e alma.

O duque ergueu-se.

- Bem! - retrucou ele. - Visto que esta entrevista precisa em absoluto de um desenlace,

vai sair por aquela porta e atravessar o jardinzinho que cerca o prédio. Numa carruagem que o espera na porta traseira, encontrará o meu secretário que há-de dar-lhe um bilhete de audiência para o regente; demais será garantido pela minha palavra.

- Eis tudo quanto pedia a este respeito, monsenhor.

- Tem mais alguma coisa a dizer-me?

- Tenho. Antes de fazer as minhas despedidas a Vossa Excelência, que talvez tenha ocasião de tornar a ver neste mundo, tenho um favor a pedir-Lhe.

- Qual é? Diga, escuto-o.

- Monsenhor - tornou Gastão -, não se admire se hesito um instante, porque não se trata de um serviço vulgar ou de um favor pessoal: Gastão de Chanlay não precisa senão de

um punhal e esse ei-lo! Mas sacrificando o corpo, não queria sacrificar a alma; a minha, monsenhor, pertence primeiro a Deus, depois a uma jovem que amo com idolatria. Triste amor, não Lhe parece, que se desenvolveu junto de um túmulo? Não importa, abandonar aquela criança tão pura e tão terna, seria tentar Deus de uma maneira insensata; porque vejo que às vezes nos experimenta cruelmente e deixa sofrer até os seus anjos. Amei, portanto, neste mundo uma adorável mulher que o meu afecto protegia contra ciladas infames. Morrendo eu, ou desaparecendo, que será dela? As nossas cabeças cairão, monsenhor, são as de simples fidalgos; - mas Vossa Excelência é um forte lutador auxiliado por um poderoso rei; há-de vencer a morte. Pois bem, entrego-Lhe esse tesouro da minha alma. Fará recair sobre a minha adorada toda a protecção que me deve, como associado, como cúmplice.

- Sim, senhor, prometo-Lhe - tornou o regente profundamente comovido.

- Não é tudo, monsenhor; pode suceder-me qualquer desgraça, e, não podendo conservar-Lhe a minha pessoa, queria deixar-Lhe o meu nome. É órfã, não tem fortuna. Antes de sair de Nantes, Fizum testamento deixando-lhe tudo que possuo. Monsenhor, quando morrer, queria deixá-la viúva, é possível?

- Quem se opõe?

- Ninguém; mas posso ser preso amanhã, esta noite, quando sair desta casa.

O regente estremeceu a este estranho pressentimento.

- Suponha que seja conduzido à Bastilha, julga que obterei a graça de desposá-la antes da minha execução?

- Tenho a certeza.

- Empregará todo o seu poder para que me seja concedido esse favor? Jure-me que assim

fará, monsenhor, para que eu abençoe o seu nome e no meio das torturas só tenha que entoar uma acção de graças pensando em si.

- Pela minha honra, senhor, prometo-lhe - disse o regente enternecido. - Essa jovem

será para mim sagrada. há-de herdar todo o afecto que involuntariamente sinto por si.

- Agora, monsenhor, ainda uma palavra.

- Diga e creia que o escuto com a mais funda simpatia.

- Essa jovem ignora por completo o meu projecto e as causas que me trouxeram a Paris.

Não tive coragem para lhe dizer a catástrofe que nos ameaça. Diga-Lhe, monsenhor, o que se passa e queira prepará-la para esse acontecimento. Só tornarei a vê-la quando soar a hora de desposá-la. Se a visse antes de vibrar o golpe que me separará dela a minha mão talvez tremesse.

- Pela minha honra de fidalgo, senhor - retrucou o regente extremamente comovido - repito-Lhe, não só essa jovem será sagrada para mim, mas farei por ela tudo quanto desejar que eu faça.

- Agora, monsenhor - disse Gastão -, levantando-se, sinto-me mais forte.

- E esta moça - tornou o regente -, onde está?

- Lá em baixo, na carruagem que me trouxe. Deixe-me retirar, monsenhor, e diga-me onde a alojará?

- Aqui mesmo. Esta casa que não está habitada, e que é convenientíssima para uma jovem nessas condições, será dela.

- Monsenhor, a sua mão.

O regente estendeu a mão ao cavaleiro, e talvez fosse renovar a tentativa para o demover do seu propósito, quando uma tossesinha seca que se ouviu debaixo das janelas Lhe fez compreender que Dubois se impacientava. Deu um passo para a frente a fim de indicar a Gastão que a audiência estava terminada.

- Monsenhor, mais uma vez Lhe peço, vele por essa criança. É meiga, bela e altiva; um desses carácteres dignos e nobres como poucas vezes deve ter encontrado... Adeus, senhor, vou ter com o seu secretário.

- E será obrigado a dizer-Lhe que vai matar um homem? - retrucou o regente fazendo um último esforço para reter Gastão.

- Sim, monsenhor, mas acrescentarei que o faço para salvar a França.

- Parta, pois - disse o duque abrindo uma porta que dava para o jardim -, e siga o caminho que Lhe indiquei.

- Faça votos para que tenha bom êxito, monsenhor.

- Ah, o furioso! - disse consigo o regente. - Quererá ele que eu vá pedir a Deus que não erre a punhalada? Ah! isso é que não!

Gastão afastou-se.

O regente seguiu-o por algum tempo com o olhar e quando o perdeu de vista, disse:

- Vamos, cada um tem de seguir o seu destino... Pobre rapaz!

E voltou para a sala, onde encontrou Dubois que tinha entrado por outra porta e o esperava.

Dubois exprimia no rosto uma malícia e uma satisfação que não escaparam ao regente, que o fitou durante algum tempo sem falar e como que para descobrir o que se passava no espírito daquele outro Mefistófeles.

Foi Dubois quem rompeu o silêncio.

- Afinal, monsenhor, ei-lo desembaraçado do cavaleiro, pelo menos assim o espero.

- Assim - retorquiu o duque -, mas de uma maneira que muito me desagrada. Não gosto de representar os papéis das tuas comédias, bem o sabes.

- É possível; mas talvez não procedesse mal, dando-me também um papel, nas suas.

- Não percebo o que queres dizer, explica-te. fala, espera-me alguém que tenho forçosamente de receber.

- Oh, monsenhor, não se prenda comigo, reataremos a conversa depois. Agora o desenlace da comédia está feito, não o poderíamos tornar melhor nem pior.

E ao mesmo tempo que proferia estas palavras, Dubois curvou-se com esse respeito zombeteiro que o regente estava habituado a ver-Lhe quando, na eterna partida que jogavam um contra o outro, Dubois tinha as melhores cartas. Portanto não havia nada que tanto inquietasse o regente como esse simulado respeito.

- Vejamos, que há de novo, e que mais descobriste? - perguntou o duque.

- Que Vossa Alteza dissimula muito bem.

- E admiras-te?

- Não, causa-me pena. Mais alguns passes nesta arte, e fará milagres. Não fora necessidade dos meus serviços, e mandar-me-á tratar da educação do seu filho, que bem necessita de um mestre como eu.

- Vamos, fala depressa.

- É justo, monsenhor; porque não se trata de seu filho, mas de sua filha.

- Qual delas?

- Ah! É verdade, são tantas. Temos primeiro, a abadessa de Chelles; depois a senhora de Berri; a menina de Valois; seguem-se as outras que são muito novas para que se fale nelas; e por último essa encantadora flor da Bretanha; esse arbusto selvagem que queriam afastar do sopro envenenado de Dubois, com medo que o murchasse.

- Ousas dizer que não tive razão?

- Como assim, Monsenhor, fez maravilhas! Não querendo nada com esse infame Dubois, no que o aprovo, e como o arcebispo de Cambrai morreu, foi procurar o bom, o digno, o puro, o candido Nocé, e pediu-lhe a casa emprestada.

- Ah, sabes isso?

- E que casa! Virginal como o dono. Sim, monsenhor, que prudência e que reflexão. Ocultemos bem a essa criança o mundo corruptor; afastemos dela tudo que possa Lhe alterar a primitiva ingenuidade. E por isso Lhe damos uma residência onde só se vêem Ledas, Origones ou Danaes praticando o culto da abominação sob o símbolo de cisnes, cachos de uvas e chuva de ouro. Santuário moral, onde as sacerdotizas da virtude, e sempre sob o pretexto da sua ingenuidade sem dúvida, tomam as mais engenhosas mas as menos permitidas das atitudes.

- E esse diabo do Nocé que jurou-me não haver ali mais do que Mignard!

- Não conhece a casa, monsenhor?

- Olho por acaso para essas torpezas?

- E, além disso, é míope.

- Dubois!

- Como móveis, sua Filha terá toucadores estranhos, sofás incríveis; leitos magníficos, como livros. oh! São os do irmão Nocé conhecidos principalmente pela instrução que dão à mocidade, e que formam um feliz contraste com o breviário de sr. do Bussuy-Rabutin, de que lhe dei um exemplar, monsenhor, no dia em que completou doze anos!

- Serpente!

- Em resumo, é um asilo da mais austera virtude. Tê-lo-ia escolhido para desmoralisar seu filho; mas monsenhor e eu vemos tudo por um prisma diferente: escolheu-o para purificar sua filha.

- AFinal, Dubois, cansas-me.

- Chego ao fim, monsenhor. De resto, sua filha devia achar-se bem nessa casa; porque, como todas as pessoas do seu sangue é muito inteligente.

O príncipe estremeceu; adivinhava alguma triste notícia sob o preâmbulo tortuoso e o sorriso mau e zombeteiro de Dubois.

- E contudo, prosseguiu o abade, veja Vossa Alteza o que é o espírito de contradição; não gostou do alojamento que monsenhor tão paternalmente Lhe escolheu e mudou- se.

- Que queres dizer?

- Mudou-se, repito.

- Minha filha fugiu? - exclamou o regente.

- Assim é.

- Como?

- Pela porta, já se sabe. Oh, não é uma dessas meninas que se evadem de noite pela janela! o nosso sangue, monsenhor; e se o tivesse duvidado por um momento, estaria agoca convencido.

- E a senhora Desroches?

- Está no Palais-Royal. Acabo de deixá-la. Ia

dar essa notícia a Vossa Alteza.

- Mas não a pôde deter?

- A menina ordenava.

- Mandasse fechar as portas pelos criados, que ignoravam que se tratava de minha filha, e não tinham razão alguma para obedecer.

- A Desroches teve medo da cólera da menina e a criadagem temeu a espada.

- Espada! Que dizes tu? Estás embriagado, Dubois.

- Ah, sim, com a dieta que tenho não era fácil; só bebo água de chicória; não, monsenhor, se estou embriagado, é de admiração pela perspicácia de Vossa Alteza quando quer tratar de algum negócio sem o auxílio de ninguém.

- Mas porque falaste de espada? O que queres dizer?

- A espada de que dispõe a menina Helena e que pertence a um rapaz encantador.

- Dubois!

- Que a ama muito.

- Dubois, tu pões-me doido.

- E que a seguiu de Nantes a Rambouillet com infinita galanteria.

- O sr. de Livry?

- Sabe-Lhe o nome! Então não lhe dou novidade.

- Dubois, sinto-me aniquilado!

- E há motivo para isso, monsenhor; é o resultado de querer tratar sozinho dos seus negócios, quando tem ao mesmo tempo que se ocupar com os da França.

- Mas afinal onde está minha filha?

- Onde está, e sei-o eu por acaso?

- Dubois, foste tu que me informaste da sua fuga, compete-te também saber onde ela se encontra. Dubois, meu querido Dubois, urge que encontres minha filha.

- Ah, monsenhor, que furiosa semelhança que tem com os pais de Moliére e eu com Scapin!

Ah, meu bom Scapin, meu querido Scapin, encontra-me a minha filha. Monsenhor, sinto-o deveras, mas Géronte não diria melhor. Pois bem, seja, procurarei sua filha, hei-de encontrá-la e vingá-lo do seu raptor.

- Encontra-a, Dubois, e pede-me o que quiseres.

- Ora bem, assim é que é falar!

O regente deixara-se cair numa poltrona, com a cabeça apoiada nas mãos; Dubois deixara-o entregue à sua dor, aplaudindo-se pelo facto que duplicava o poder que já exercia sobre o duque. De repente, e enquanto o fitava com esse sorriso malicioso que Lhe era habitual, bateram levemente à porta.

- Quem está ai? - perguntou Dubois.

- Monsenhor - disse uma voz por detrás da porta, está lá em baixo -, na mesma carruagem que trouxe o cavaleiro, uma senhora que manda perguntar se ele ainda se demora muito e se deve esperá- lo.

Dubois correu para a porta, mas era tarde; o regente a quem aquelas palavras tinham recordado a promessa solene que fizera a Gastão, levantara-se e correra igualmente para a porta.

- Onde vai, monsenhor? - perguntou Dubois.

- Receber essa jovem.

- Isso compete-me; esquece-se de que me entregou a conspiração?

- Abandonei-te o cavaleiro, é verdade; mas prometi-Lhe servir de pai àquela que ama; dei a minha palavra, cumpri-la-ei. Visto matar-lhe o noivo, é justo que a console.

- Eu encarrego-me disso - respondeu Dubois, tentando esconder a sua palidez e agitação sob um desses sorrisos diabólicos que sóa ele pertenciam.

- Cala-te e não te mexas daqui - exclamou o regente. - Vais praticar mais alguma indignidade.

- Que diabo, monsenhor, deixe-me ao menos falar- lhe.

- Quero eu mesmo fazê-lo; não é nada contigo, comprometi-me pessoalmente, dei a minha palavra de fidalgo... Vamos, cala-te e conserva-te quieto aqui.

Dubois estava furioso; mas quando o regente falava naquele tom, era forçoso obedecer; encostou-se ao fogão e esperou. Depressa se ouviu o ruge-ruge de um vestido de seda por trás da porta.

- Sim, minha senhora - dizia o porteiro -, é por aqui.

- Ei-la - disse o duque -, pensa numa coisa, Dubois, é que esta jovem não é responsável

pelas culpas do noivo; portanto, quero que seja tratada com todos os respeitos, compreendes.

E voltando-se para o lado donde se ouvira a voz, acrescentou:

- Entre.

A porta abriu-se e a jovem aproximou-se do regente, que recuou como se visse cair um raio aos pés.

- Minha filha! - murmurou tentando recuperar o sangue frio, enquanto que Helena, depois de ter procurado Gastão por toda a sala, parava e fazia uma reverência.

Quanto a Dubois, é fácil adivinhar a careta que fez.

- Perdão, senhor - disse Helena -, mas talvez me enganasse. Procurava um amigo que me deixou lá em baixo, e que devia voltar; vendo que se demorava, perguntei por ele. Conduziram-me aqui, e talvez fosse engano do porteiro.

- Não, menina - explicou o duque -, o sr. cavaleiro de Chanlay deixou-me agora mesmo, e eu esperava- a.

Enquanto o regente a olhava, a jovem, preocupada a ponto de esquecer Gastão por um momento, parecia fazer um esforço para coordenar as suas ideias e de súbito exclamou:

- Oh, meu Deus, como é esquisito!

- Que tem? - perguntou o regente.

- Oh, sim, é isso mesmo!

- Explique-se - tornou o duque -, porque não compreendo o que quer dizer.

- Ah, senhor - retrucou Helena muito trémula -, é extraordinária a semelhança da sua voz com a de uma pessoa...

Helena interrompeu-se hesitando:

- Do seu conhecimento? - perguntou o regente.

- De uma pessoa com quem só Falei uma vez e me ficou gravada no coração.

- E quem é essa pessoa? - perguntou ainda o regente, enquanto Dubois encolhia os ombros.

- Dizia-se meu pai - retorquiu Helena.

- Felicito-me por esse acaso, menina - tornou o regente - porque essa semelhança da minha voz com a de alguém que Lhe deve ser querido dará talvez mais peso às minhas palavras:

sabe que o sr. de Chanlay me deu a honra de me escolher para seu protector.

- Pelo menos deu-me a entender que me conduzia à casa de alguém que podia defender-me do perigo que me ameaça.

- E que perigo é esse?

Helena olhou em volta e fitou Dubois com inquietação. A expressão do seu olhar não apresentava dúvida, tanto o rosto do regente lhe era visivelmente simpático, como o de Dubois parecia inspirar-Lhe desconfiança.

- Monsenhor - disse Dubois em voz baixa percebendo o que se passava no espírito de Helena -, creio que sou de mais aqui e retiro-me; não precisa de mim, não é verdade?

- Por enquanto não, mas logo precisarei dos teus serviços; não te afastes.

- Ficarei às ordens de Vossa Alteza.

Todo esse diálogo foi trocado em voz tão baixa que Helena nada ouviu; de resto, recuara uns passos por discrição, e continuava a olhar para todas as portas, esperando ver Gastão entrar por alguma delas. Quando Dubois se retirou, o duque e Helena respiraram mais livremente.

- Sente-se - disse o duque -, temos que conversar demoradamente, tenho muitas coisas a dizer-lhe.

- Primeiro do que tudo, senhor, diga-me, o cavaleiro Gastão de Chanlay não corre perigo algum, não é verdade?

- Falaremos depois a seu respeito. Primeiro tratamos de si; trouxe-a a minha casa como à de um protector. Vejamos, diga-me, contra quem devo protegê-la?

- O que me sucede há alguns dias é tão estranho, que nem sei quem há-de merecer confiança. Se Gastão aqui estivesse...

- Sim, compreendo, e se ele a autorizasse a dizer-me tudo, não teria segredos para mim.

Mas, vejamos; se eu lhe provar que sei quase tudo quanto Lhe diz respeito?

- O senhor?

- Sim, eu! Não se chama Helena de Chaverny? Não foi educada no convento das agostinhas em Clisson? Um dia, não recebeu de um protector misterioso a ordem de sair do convento? Não seguiu viagem com uma religiosa, a quem deu cem luízes para a recompensar do seu trabalho? Em Rambouillet esperava-a uma senhora chamada Desroches que Lhe anunciou a visita do seu pai, não é verdade? essa noite não recebeu uma pessoa que muito lhe queria?

- Sim, é isso mesmo - disse Helena admirada de que um estranho conservasse tão presentes todos os detalhes daquela história.

- No dia seguinte - continuou o regente -, o sr. de Chanlay, que a seguira com o nome suposto de sr. de Livry foi fazer-Lhe uma visita a que debalde se quis opor a senhora Desroches.

- Tudo isso é verdade e vejo que Gastão Lhe contou tudo.

- Depois foi ordem de Paris para partir. Quis desobedecer a essa ordem, contudo teve que a seguir. Conduziram-na a uma casa no bairro Santo António; mas aí a permanência tornou-se-Lhe insuportável.

- Era uma verdadeira prisão, senhor.

- Não a compreendo.

- Gastão não Lhe disse os seus receios que eu repeli, mas que acabei por partilhar?

- Não, mas diga-me que receios eram esses?

- Mas se ele não os disse como hei-de eu fazê-lo?

- Há alguma coisa que não se possa dizer a um amigo?

- Não lhe confiou que esse homem, que primeiro julguei ser um pai...

- Que julgou...

- Oh! sim, juro-lhe, senhor! Ouvindo-Lhe o som da voz, sentindo a sua mão apertar a minha, não me assaltou nenhuma dúvida, e foi quase preciso a evidência para que o terror substituísse o amor Filial que já me enchia o coração.

- Não a compreendo, menina, acabe; como pode temer um homem que, segundo disse, parecia ter por si uma ternura tão grande?

- Não compreende que, pouco depois, sob um frívolo pretexto, fizeram-me vir de Rambouillet para Paris, meteram-me nessa casa do bairro Santo António que me mostrou claramente que os receios de Gastão eram bem fundados. Vi-me então perdida. Toda essa ternura fingida de um pai ocultava o manejo de um sedutor. Não tinha outro amigo senão Gastão.

escrevi-Lhe e ele foi procurar-me.

- De sorte que - exclamou o regente no auge da alegria -, quando saiu dessa casa, foi para fugir a um sedutor e não para seguir um amante?

- Sim, se tivesse acreditado realmente na existência desse pai, que apenas vira uma vez, e que para me visitar se cercara de tantos mistérios, juro- Lhe, senhor, que coisa alguma me teria feito desviar dos meus deveres.

- Oh! Querida filha! - exclamou o duque num tom que fez estremecer Helena.

- Então Gastão falou-me de uma pessoa que nada podia recusar- Lhe, que devia velar por mim, substituindo meu pai. Trouxe-me aqui, dizendo-me que me iria buscar à carruagem.

Esperei-o em vão durante mais de uma hora. Por fim, temendo que Lhe tivesse sucedido qualquer acidente, perguntei por ele.

A fronte do regente sombreou-se.

- Assim - replicou ele mudando de assunto -, foi a influência de Gastão que a desviou do seu dever, foram os seus receios que despertaram as suas suspeitas.

- Sim, assustou-o o mistério em que me envolvem, e pretendeu que esse mistério escondia algum projecto que me devia ser fatal.

- E para a persuadir, apresentou-Lhe alguma prova?

- Era preciso outra além dessa casa infame? Um pai conduziria uma filha a uma casa semelhante?

- Sim, sim - murmurou o regente -, é verdade, procedeu mal. Mas concorde que sem as sugestões do cavaleiro a menina, na inocência da sua alma, de nada teria suspeitado.

- Não - tornou Helena. - Mas, felizmente, Gastão velava por mim.

- Acredita em tudo que Gastão lhe diz?

- Toma-se facilmente a opinião das pessoas que se amam.

- E ama o cavaleiro?

- Há perto de dois anos.

- Mas como o via no convento?

- À noite, com o auxílio de um barco.

- E ele via-a muitas vezes?

- Todas as semanas.

- Ama-o portanto?

- Sim, monsenhor, amo-o.

- Mas como pôde dispor do seu coração, sabendo que não era independente?

- Havia dezasseis anos que não ouvia falar de minha família. Podia pensar que se revelaria de repente, ou antes que uma odiosa manobra me tiraria do meu retiro onde vivia tão tranquila, para tentar perder-me?

- Acredita então que esse homem lhe mentiu? Crê ainda que não é seu pai?

- Infelizmente, nem sei em que hei-de acreditar, e o meu espírito perde- se nessa realidade febril que a cada instante sou tentada a tomar por um sonho.

- Mas não era o seu espírito, Helena, que devia consultar, era o seu coração. Junto desse homem, não se sentiu comovida?

- Oh, sim - tornou a jovem -, enquanto esteve junto de mim, senti uma perturbação como nunca me fora dado experimentar.

- Sim - volveu o regente com amargura -, mas, depois de se ter retirado, esse sentimento desapareceu, expulso por influências mais fortes. É simples, esse homem era seu pai,

Gastão seu amante.

- Senhor - replicou a jovem recuando -, fala-me de um modo estranho.

- Perdão! Sinto que me deixo arrastar pelo interesse que me desperta; mas o que me admira, prosseguiu o regente com o coração oprimido, é que sendo amada pelo sr. de Chanlay como parece ser, não tenha tido sobre ele a influência precisa para o fazer renunciar aos seus projectos.

- Aos seus projectos, senhor! Que quer dizer

- Pois ignora o fim que o trouxe a Paris?

- Ignoro. No dia em que, com as lágrimas nos olhos, lhe disse que era obrigada a deixar Clisson, confessou-me que também saía de Nantes, e quando Lhe anunciei que ia para Paris foi com uma exclamação de alegria que me respondeu que ia seguir o mesmo caminho.

- Nesse caso - exclamou o regente com o coração aliviado de um enorme peso -, não é sua cúmplice?

- Sua cúmplice? - repetiu Helena asssustada. - Meu Deus! Que quer dizer?

- Nada - volveu o regente -, nada.

- Oh, sim - disse-me uma palavra que tudo revela. - Sim - perguntava a mim mesma donde provinha essa mudança no carácter de Gastão; porque, há um ano, cada vez que Lhe Falava do nosso futuro, a sua Fisionomia sombreava-se subitamente; e era com um sorriso muito triste que me dizia: "Pensemos no presente, Helena, ninguém está certo do futuro; e entregava-se de repente a uma meditação profunda e silenciosa, como se o ameaçasse uma grande desgraça; acaba de a revelar com uma palavra, senhor; Gastão, em Nantes, não se dava senão com descontentes, Montlouis, Pontcalec, Thalouen. Ah! Gastão vem a Paris para conspirar!

- Então, não sabia nada a esse respeito?

- Sou apenas uma mulher, e certamente Gastão não me julgou digna de partilhar um tal segredo.

- Oh, tanto melhor, tanto melhor - exclamou o regente - e agora, minha filha, escute, escute a voz de um amigo, os conselhos de um homem que podia ser seu pai. Deixe o seu companheiro perder-se no caminho que escolheu, visto que é ainda tempo para ficar onde está e não ir mais para diante.

- Quem? Eu, senhor! - bradou Helena. - Eu, abandoná-lo no momento em que me diz que o ameaça um perigo que não conheço! Oh, não, não, senhor! Estamos ambos sós no mundo: Gastão não tem parentes, eu também não; ou se os tenho, separados de mim há dezasseis anos, estão habituados à minha ausência. Podemos portanto perder-nos ambos sem que corra uma lágrima. Oh, enganei-o, monsenhor, e seja qual for o crime que Gastão cometesse ou possa cometer, sou sua cúmplice.

- Ah! - murmurou o regente com tristeza. - Desaparece a minha última esperança: ela ama-o.

Helena voltou-se com grande espanto para esse desconhecido que tomava uma parte tão grande no seu pesar.

- Mas - tornou o regente procurando serenar -, não renunciou já quase por completo ao cavaleiro? Não lhe disse, no dia em que se separaram, que tudo devia acabar entre ambos e que não podia dispor do seu coração nem da sua pessoa.

- Disse, monsenhor - exclamou a jovem com exaltação -, porque nessa época julgava-o feliz, porque ignorava que a sua liberdade, a sua vida talvez estivessem comprometidas, sendo assim só o meu coração sofreria e a minha consciência ficaria tranquila. Era uma dor a afrontar e não um remorso a combater. Mas desde que o vejo ameaçado e infeliz, sinto-o, a sua vida é a minha.

- Exagera sem dúvida o seu amor - tornou o regente insistindo, para que não Lhe restassem dúvidas acerca dos sentimentos da filha. - Esse amor não resistiria à ausência?

- A tudo, monsenhor! - exclamou Helena. - No isolamento em que meus parentes me

deixaram, este amor tornou-se a minha única esperança, a minha felicidade, a minha existência. Ah, monsenhor, em nome do céu, se tem alguma influência sobre ele, faça com que renuncie a esses projectos de que me falou, diga-Lhe o que eu mesma não ouso dizer-lhe, isto é, que o amo acima de tudo; que a sua sorte será a minha; que se sofrer o exílio, sofrê-lo-ei igualmente; se morrer, morrerei. Diga-lhe isto, monsenhor, e acrescente... acrescente que pelas minhas lágrimas e pelo meu desespero compreendeu que lhe disse a verdade.

- Oh, infeliz criança! - murmurou o regente.

De facto, a situação de Helena era digna de piedade. Pela palidez que se espalhara pelo seu rosto notava-se que sofria cruelmente; enquanto falava, as lágrimas corriam-lhe pelo rosto sem violência, sem soluços, como o acompanhamento natural das suas palavras.

- Seja, menina - disse o regente -, prometo-Lhe fazer tudo quanto puder para salvar o cavaleiro. Mas vamos primeiro ao que mais importa. Sim, como Lhe disse, Gastão corre um perigo, mas não é imediato; portanto pensemos primeiro em si, cuja posição isolada é falsa

e precária. Confiaram-na à minha guarda, e devo, antes de tudo, cumprir esse dever como bom pai de família. Tem conFiança em mim?

- Oh, sim, visto que foi Gastão que me conduziu junto de si!

- Sempre Gastão! - murmurou o regente em voz baixa, e voltando-se para Helena:

- Residirá - disse ele - nesta casa que não é conhecida e onde terá toda a liberdade e por companhia bons livros e a minha presença se lhe puder ser agradável.

Helena fez um movimento.

- De resto - continuou o duque -, será uma ocasião para falar do cavaleiro.

Helena corou; o regente prosseguiu:

- A igreja do convento vizinho estará aberta para si a toda a hora, e ao menor receio que tenha, o próprio convento lhe servirá de asilo; a superiora é-me muito dedicada.

- Oh, senhor! - retorquiu Helena. - Tranquiliza-me por completo; aceito esta casa que me oferece; e a bondade que tem para Gastão e para comigo tornar-me-ão infinitamente agradável a sua presença.

O regente inclinou-se e retrucou.

- Considere-se aqui como em sua casa. Há um quarto de dormir, creio eu, contíguo a esta sala. A divisão do andar inferior é cómoda, e, hoje mesmo Lhe enviarei duas religiosas do convento; convir-lhe-ão melhor do que criados, certamente.

- Oh, sim!

- E - continuou o regente com hesitação - quase que renunciou... a seu pai? - senhor, não compreende que é pelo receio que não seja meu pai?

- Todavia, nada o prova; a questão da casa... sei que é uma prevenção forte contra ele, mas talvez não a conhecesse!

- Oh! - retrucou Helena. - É quase impossível.

- Enfim, se descobrir o seu retiro; se a reclamasse, ou pelo menos pedisse para a ver?

- Preveniremos Gastão, e segundo o seu parecer...

- Está bem - tornou o regente com um melancólico sorriso.

- E estendeu a mão à jovem, dando em seguida alguns passos para a porta.

- Senhor - disse Helena com a voz tão trémula que mal se podia ouvir.

- Deseja alguma coisa? - perguntou o duque voltando-se.

- o, - E ele... poderia vê-lo?

Estas palavras mal se ouviram.

- Sim - respondeu o duque -, mas pelo que Lhe diz respeito, não é conveniente que isso se dê o menos possível? e Helena baixou os olhos.

- Aliás - prosseguiu o duque -, partiu para uma viagem, e talvez só regresse daqui a alguns dias.

- E quando voltar, vê-lo-ei? - perguntou Helena.

- Juro-o - volveu o regente.

Dez minutos depois, duas jovens religiosas seguidas por uma leiga entravam em casa de Helena onde se instalavam.

Deixando sua filha, o regente mandou chamar Dubois; mas responderam-Lhe que depois de ter esperado Sua Alteza durante meia hora, Dubois voltara ao Palais-Royal. De facto, entrando nos aposentos do abade, o duque encontrou-o trabalhando com os seus secretários; sobre a mesa achava-se uma pasta cheia de papéis.

- Peço mil perdões a Vossa Alteza - disse Dubois vendo o duque -, mas como tardava e a conferência podia demorar-se, permiti-me transgredir as suas ordens e voltar ao trabalho.

- Fizeste bem, mas quero falar-te.

- A mim?

- Sim, a ti.

- A mim só?

- Sim.

- Nesse caso, monsenhor, quer esperar-me nos seus aposentos ou passar ao meu gabinete?

- Iremos para o teu gabinete.

O abade designou com um sinal muito respeitoso a porta ao regente que passou primeiro e a quem Dubois seguiu sobraçando uma pasta, preparada provavelmente na expectativa da visita que recebia. Quando se acharam no gabinete, o duque olhou em volta e perguntou:

- Este gabinete é seguro?

- Com a breca! As portas são dobradas e as paredes têm dois pés de espessura.

O regente deixou-se cair numa poltrona, e entregou-se a uma profunda meditação.

- Escuto-o, monsenhor - disse Dubois passado um momento.

- Abade - tornou o regente num tom decidido, como quem não tolera observação alguma -, o cavaleiro está na Bastilha?

- Monsenhor - respondeu Dubois -, deve ter lá entrado há meia hora.

- Escreva então ao sr. de Launay. Desejo que seja posto em liberdade imediatamente.

Dubois dir-se-ia que esperava essa ordem. Não Lhe escapou a menor exclamação, não deu resposta; apenas colocou a pasta sobre a mesa, abriu-a, e tirou um processo que começou a folhear vagarosamente.

- Ouviu? - disse o regente passado um momento de silêncio.

- Perfeitamente, monsenhor.

- Obedeça, então.

- Escreva Vossa Alteza.

- E porque hei-de ser eu?

- Porque ninguém me obrigará a assinar a perda de Vossa Alteza.

- Mais frases! - disse impaciente o duque.

- Não são frases, mas factos, monsenhor. O sr. de Chanlay é ou não um conspirador.

- É certamente, mas minha filha ama-o.

- Bonita razão para lhe dar a liberdade.

- Não será para si, abade, mas para mim torna-a sagrada. Sairá portanto da Bastilha imediatamente.

- Vá Vossa Alteza buscá-lo, não o impedirei.

- E sabia esse segredo?

- Qual?

- Que o sr. de Livry e o cavaleiro eram a mesma pessoa.

- Sim, sabia e depois?

- Quis enganar-me?

- Quis salvá-lo da sensibilidade que o perde neste momento. O regente de França, já muito ocupado com os seus prazeres e os seus caprichos, não podia cair pior do que numa paixão, e que paixão: o amor paterno, uma paixão terrível! Um amor ordinário satisfaz-se, e acaba-se por isso mesmo; uma ternura de que é insaciável, e principalmente intolerável, há-de fazercom que Vossa Alteza cometa faltas que eu hei-de impedir, pela razão infinitamente simples que tenho a felicidade de não ser pai, do que me felicito todos os dias, vendo a desgraça ou a tolice daqueles que o são.

- E o que é que me faz uma cabeça a mais ou a menos! - exclamou o regente. – Esse Chanlay não me matará quando souber que fui eu que Lhe perdoei.

- Não, mas também ele não morrerá por passar alguns dias na Bastilha, e é preciso que fique lá.

- E eu digo que há-de sair hoje.

- E para sua honra - continuou Dubois como se o regente não tivesse pronunciado uma palavra -, porque, saindo de lá hoje como deseja, seria considerado pelos seus cúmplices, que se encontram na prisão de Nantes, como um espião e um traidor a quem perdoaram o crime em vista da denúncia.

O regente reflectiu.

- E veja como são os reis e os príncipes regentes - continuou Dubois. - Uma razão estúpida como todas as razões de honra, como a que acabo de lhe apresentar, persuade-a e tapa-Lhes a boca; mas não querem compreender as grandes, as verdadeiras, as boas razões do Estado. Que me importa a mim, que importa à França, tenha a bondade de dizer-me, que a menina Helena de Chaverny, filha natural do sr. regente, chore pelo sr. Gastão de Chanlay; seu amante! Dez mil mães, dez mil mulheres, dez mil filhas, chorarão daqui a um ano pelos filhos, pelos esposos, pelos pais, mortos ao serviço de Vossa Alteza pelo espanhol que ameaça, que toma a sua bondade por impotência, e que a impunidade anima. Descobrimos a conspiração: urge que façamos justiça. O sr. de Chanlay, chefe ou agente dessa conspiração, que veio a Paris para o assassinar, é o amante de sua filha. Tanto pior! uma desgraça que recai sobre a cabeça de Vossa Alteza. Mas já recaíram muitas outras, sem contar com as que estão para suceder. Sim, sabia tudo isso. Sabia que ele era amado, sabia que o seu nome era Chanlay e não Livry. Sim, dissimulei, mas era para o fazer castigar exemplarmente, a ele e aos seus cúmplices, porque é preciso que se saiba de uma vez por todas que a cabeça do regente não é uma dessas bonecas que servem de alvo e que se procura botar abaixo por fanfarronada ou por desfastio, retirando-se tranquilos e impunes quando não lhes acertam.

- Dubois, Dubois! Nunca matarei minha filha para salvar a minha vida! E fazendo cair a cabeça do cavaleiro matá-la-ei com certeza. Portanto, nada de prisão, nada de cárcere, poupemos até a sombra de uma tortura àquele de quem não podemos tirar justiça completa, perdoemos, perdoemos inteiramente; nada de meio perdão nem de meia justiça. - Ah, sim, perdoemos, perdoemos! Aí está a grande palavra! Mas não se cansa, monsenhor, de cantar eternamente essa palavra em todos os tons?

- Ah, com a fortuna, desta vez, o tom pelo menos deve variar, porque não se trata de generosidade. Apelo para o céu, que desejava castigar esse homem que é mais amado como noivo do que eu como pai, e me rouba a minha última e única Filha; mas a meu pesar, detenho-me, não irei mais longe; Chanlay será posto em liberdade.

- Pois sim, monsenhor, quem é que se opõe? Mas, que seja mais tarde, daqui a alguns dias. Que mal Lhe fazemos nós, pergunto eu? Que diabo, não morrerá por passar uma semana na Bastilha. Havemos de lhe restituir o seu genro, esteja descansado. Mas seja paciente, e faça com que não zombem demasiado do nosso governo. Pense que a esta hora está se tratando e rapidamente do processo dos da Bretanha. Pois eles também têm amantes, mulheres, mães. Importa-se por acaso com elas? Ah, isso sim. não é tão tolo! Mas reflicta no ridículo, se chega a saber-se que a sua filha ama aquele que devia assassiná-lo. Os bastardos ririam durante um mês. Era caso para ressuscitar a Maintenon e fazê-la viver mais um ano. Que diabo! Esteja quieto, deixe o cavaleiro comer as galinhas e beber o vinho do sr. de Launay. Também Richelieu está na Bastilha e esse é amado igualmente por uma das suas filhas, o que o não impediu de o encarcerar com raiva. Porquê? Porque foi seu rival junto da senhora de Parabére, da senhora de Salerane e sabe Deus de quem mais.

- Mas enfim - volveu o regente interrompendo Dubois -, o que queres fazer dele!

- Mais que não seja, deixá-lo realizar esse pequeno noviciado para se tornar mais digno de vir a ser vosso genro! A propósito, seriamente, Vossa Alteza pensa em dar-Lhe semelhante honra?

- Penso eu neste momento em qualquer coisa, Dubois! Não queria tornar a minha Helena infeliz, eis o que é; e, todavia, creio que é descer muito dar-Lhe Chanlay por marido, embora seja de boa família.

- Conhece-os, monsenhor? Ora viva! Era só o que nos faltava.

- Ouvi pronunciar esse nome há muito tempo, mas não posso recordar-me em que ocasião. Entretanto veremos e o teu raciocínio decide-me; não quero que esse homem passe por um covarde. Mas lembra-te igualmente que não quero que seja maltratado.

- Nesse caso, está bem com o sr. de Launay; monsenhor não conhece a Bastilha. Se assim fosse, nem queria outra casa de campo. No reinado do defunto rei era uma prisão, sim, concordo, mas com Filípe d'Orleans tornou-se uma agradável moradia. De resto, é aí que se encontra neste momento a melhor sociedade. Todos os dias há festins, baile, concerto. Bebe-se vinho de Champanhe à saúde do sr. duque de Maine e do rei de Espanha. Vossa Alteza é quem paga. Por esse motivo fazem votos pela sua morte e pela extinção da sua raça. O sr. De Chanlay achar-se-á aí em país conquistado e tão à-vontade como o peixe na água. Ah! lamente-o, monsenhor, porque é bem digno de lástima o pobre rapaz!

- Sim, é isso - tornou o duque encantado por encontrar um meio termo -, e demais veremos mais tarde, segundo as revelações da Bretanha.

Dubois deu uma gargalhada.

- As revelações da Bretanha! Ah, na verdade gostava de saber que mais Lhe diriam elas do que soube da própria boca do cavaleiro. Pois ainda não sabe bastante, monsenhor? Se fosse eu, já saberia de mais.

- Mas não foi contigo, abade.

- Infelizmente não, monsenhor; porque se eu fosse o duque de Orleans, regente, já me teria nomeado cardeal. Mas não falemos nisso; há-de ser a seu tempo e devido lugar, espero-o. De resto, creio que encontrei um meio de destrinçar o caso que o inquieta. - Já te aviso, abade, que desconfio dos teus meios.

- Espere, monsenhor, interessa-se pelo cavaleiro por causa de sua filha, não é assim?

- É, e depois?

- Se o cavaleiro pagasse com ingratidão à sua fiel noiva, que lhe parece? A jovem é altiva, renunciaria de moto próprio ao seu bretão; era bem arranjado, segundo me parece.

- O cavaleiro deixar de amar Helena, ela? Isso é impossível.

- Há muitos anjos que têm passado por isso, monsenhor. Demais a Bastilha faz e desfaz tanta coisa, e é tão fácil corromper-se na sociedade.

- Veremos isso tudo; mas nem um passo sem o meu consentimento.

- Nada receie, monsenhor, contanto que a minha política siga o seu caminho, prometo-lhe deixar amar toda a sua família.

- Danado! - retrucou o regente rindo. - Palavra de honra, que tornarias ridículo o próprio Satanás.

- Ora vamos! Até que enFim me revela justiça. Quer aproveitar a ocasião para rever comigo os documentos que me enviaram de Nantes? Fá-lo-á perseverar nas suas boas disposições.

- Sim, mas primeiro manda chamar a sr. Desroches.

- Ah, é justo!

Dubois tocou a campainha e transmitiu a ordem do regente.

Passados dez minutos a senhora Desroches entrou humilde e receosa; mas em vez da tempestade que esperava, recebeu cem luízes e um sorriso.

- Não compreendo absolutamente nada - disse ela -, afinal parece que a jovem não era sua filha.

 

                   NA BRETANHA

Torna-se necessário que os nossos leitores nos permitam lançar um olhar retrospectivo, porque a fim de nos ocuparmos dos principais heróis desta história, deixámos na Bretanha personagens que merecem uma certa atenção. Aliás, embora não se recomendem como tendo tomado uma parte muito activa no romance que escrevemos, a história lá está que os evoca com a sua voz inflexível; urge portanto que nos conformemos com as exigências da história.

A Bretanha tinha tomado desde a primeira conspiração, uma parte activa no movimento a favor dos bastardos legitimados.

Essa provincia, que dera provas da sua fidelidade aos príncipes monárquicos, levava-a naquele momento não só ao exagero, mas ainda à demência, visto que preferia o sangue adulterino do seu rei aos interesses do reino, e visto que levava o seu amor até ao crime, não temendo chamar em auxílio das pretensões daqueles que considerava como os seus príncipes os inimigos contra os quais Luís XIV, durante sessenta anos, e a França durante dois séculos, tinham feito uma guerra de extermínio.

Uma noite, hão-de se lembrar, vimos surgir os nomes principais que se inscrevem para personificar essa revolta; o regente caracterizara-a muito espirituosamente dizendo que tinha nas mãos a cabeça e a cauda mas enganava-se, só possuía a cabeça e o corpo. "

A cabeça era o conselho dos legitimados, o rei de Espanha e o seu imbecil agente, o príncipe de Celamare; o corpo, eram esses homens, bravos e espirituosos, que povoavam então a Bastilha. Mas o que não possuía ainda era a cauda que se agitava no rude país da Bretanha, então como hoje pouco habituado às aventuras da corte e difícil de domar; a cauda armada de ferrões como a dos escorpiões, e que era a única a temer.

Os chefes bretões renovavam nesse momento o cavaleiro de Rohan no reinado de Luís XIV; quando se diz cavaleiro de Rohan, é porque a toda a conspiração tem que se dar o nome.

Ao lado do príncipe vaidoso e medíocre, e mesmo antes dele, achavam-se dois homens mais fortes do que ele, um como excepção, outro como pensamento. Estes dois homens eram: Latréaumont, simples fidalgo da Normandia, e o outro, Vanden-Enden, filósofo holandês. Latréaumont queria dinheiro, por isso era o braço; o holandês queria uma república, por isso era a alma.

E queria obtê-la no reinado de Luís XIV para causar grande desprazer ao grande rei que odiava os republicanos, mesmo a trezentas léguas; que perseguira e fizera perecer o grande holandês João de Witt, mostrando-se assim mais cruel que o príncipe de Orange, que declarando-se inimigo de Witt, vingava injúrias pessoais, enquanto Luís XIV só recebera provas de amizade e de dedicação desse grande homem.

O holandês queria uma república na Normandia, fazendo nomear o cavaleiro de Rohan presidente; os conjurados bretões queriam vingar a sua província de algumas injúrias recebidas durante a regência e decretavam-na primeiro república, salvo o escolher um protector, embora fosse espanhol. Todavia o sr. du Maine teria muitas probabilidades. Eis o que se passara na Bretanha.

Às primeiras propostas dos espanhóis, os bretões prestaram ouvido atento. Não tinham mais motivos de descontentamento do que as outras províncias, mas nessa época os bretões não estavam ainda inteiramente reunidos à nacionalidade francesa. Era para eles uma boa guerra a fazer; não viam outro fim. Richelieu domara-os severamente, já não Lhe sentiam a mão rude e pensavam emancipar-se de Dubois. Começaram por odiar os administradores que Lhes enviou o regente: uma revolução começou sempre pela discórdia.

"Montesquieu era encarregado de administrar os estados; correspondia ao cargo de vice-rei.

Ouviam-se as queixas do povo e recebia-se o dinheiro. Os estados queixavam-se muito mas não deram o dinheiro, porque, diziam eles, o intendente desagradava- Lhes. Esta razão não foi do agrado de Montesquieu, pertencente ao antigo regime, habituado aos usos de Luís XÍV."

- Não podem apresentar essas queixas a Sua Majestade - disse ele -, sem tomarem uma atitude de rebelião. Paguem primeiro, queixem-se depois, o rei escutá-los-á, mas não ocultará as suas antipatias por um homem que honra com a sua escolha.

O caso é que o sr. de Montaran, de quem a Bretanha julgava ter que se queixar, não tinha outra culpa além de ser nessa época intendente da província.

Qualquer outro desagradaria como ele. Montesquieu não aceitou as condições e persistiu na percepção do dinheiro.

Os estados teimaram na sua recusa.

- Senhor marechal - disse um dos deputados dos estados - esquece certamente que a sua linguagem pode convir a um general que trata um país conquistado, mas não pode ser aceite por homens livres e investidos de privilégios. Não somos inimigos nem soldados; somos cidadãos e senhores em nossa casa. Em compensação de um serviço que pedimos ao rei, que é livrar-nos do sr. de Montaran, que o povo deste país detesta, pagaremos com prazer o imposto que nos pedem: mas se virmos que a corte não atende às nossas exigências, Ficaremos com o nosso dinheiro e suportaremos enquanto pudermos o tesoureiro que nos desagrada.

O sr. de Montesquieu fez uma cara desdenhosa, voltou as costas aos deputados que fizeram outro tanto e cada um retirou-se com toda a dignidade.

O marechal quis ter paciência; julgava-se com disposições para a diplomacia; esperava que algumas reuniões particulares poriam em ordem toda aquela embrulhada. Mas a nobreza bretã é altiva. Humilhada por ser tratada daquele modo pelo marechal, ficou em casa, e não compareceu às recepções desse senhor, que permaneceu só, muito desapontado, passando do desprezo à cólera, e da cólera às loucas resoluções. Era isso o que os espanhóis esperavam.

Montesquieu, correspondendo-se com as autoridades de Nantes, de Quimper, de Van de Rennes, escreveu-Lhes que via bem que tratava com rebeldes, mas que venceria e que doze mil homens do seu exército, ensinariam aos bretões a verdadeira delicadeza e grandeza de alma.

Reuniram-se os estados; da nobreza ao povo, vai só um passo, nessa província; a nobreza incendiou a pólvora, os cidadãos associaram-se. Declararam categoricamente ao sr. De Montesquieu que se ele tinha doze mil homens, a Bretanha possuía cem mil que ensinariam os seus soldados com pedras, com forcados e até mesmo com mosquetes a não se meterem no que não eram chamados.

O marechal adquiriu de facto a certeza que havia cem mil associados na província, e que todos tinham uma pedra ou uma arma. Reflectiu, e as coisas ficaram por ali, felizmente para o governo da regência. Então a nobreza vendo-se respeitada, acalmou-se, e formulou muito convenientemente a sua queixa.

Mas por outro lado, Dubois e o conselho da regência não quiseram desdizer-se; declararam aquela súplica como manifestação hostil. Depois da generalidade, chega o detalhe. Montaran, Montesquiou, Pontcalec, Palhouet foram os campeões que se bateram realmente. Pontcalec, homem de coração e enérgico, unira-se aos descontentes da província, e desses elementos ainda uniformes fecundaram o gérmen do combate que examinamos.

Não se podia recuar, a colisão era iminente, mas a corte só suspeitava a revolta por causa do imposto, nada sabia do caso de Espanha. Os bretões que animavam silenciosamente a regência, gritavam bem alto: ao imposto! A Montaran, para que não se ouvisse o seu trabalho subterrâneo e as suas conspirações antipatrióticas. O acontecimento porém voltou-se contra eles; o regente, que pode passar por um dos políticos mais hábeis do seu século, adivinhou a cilada sem a ter visto. Percebeu que por detrás desse fantasma, sob esse grande véu local, se escondia alguma coisa e deixou cair o véu. Retirou Montaran e deu a vitória à província.

Logo os conspiradores foram desmascarados, toda a gente estava satisfeita, só eles se salientaram. Então Pontcalec e os seus amigos formaram o projecto que conhecemos; usaram de meios violentos para conseguirem o seu fim.

A revolta já não tinha motivos mas ainda existiam vestígios fumegantes. Não se podia nessa cinza ainda morna, procurar a faísca que atearia de novo o incêndio?

A Espanha velava. Alberoni, vencido por Dubois no famoso caso de Cellamare, esperava a sua desforra; e não hesitava em mandar para a Bretanha todos os tesouros preparados para favorecer a conspiração de Paris, contanto que fossem habilmente empregados. Mas era tarde. Não o acreditou, e os seus agentes enganaram-no. Pontcalec imaginou que era possível

recomeçar a guerra; mas quando a França fazia guerra à Espanha. Julgou que era possível matar o regente; mas ele mesmo e não Chanlay devia fazer o que ninguém aconselharia ao mais cruel inimigo dos franceses nessa época.

Contou com a chegada de um navio espanhol carregado de armas e de dinheiro: o navio não chegou.

Esperava notícias de Chanlay; foi La Jonquiére quem escreveu, e que La Jonquiére! Uma noite, Pontcalec e os seus amigos estavam reunidos numa pequena casa de Nantes, perto do castelo. A sua atitude era triste e irresoluta. De Couédic anunciou que recebera um bilhete em que o aconselhavam que fugisse.

- Tenho um igual para lhe mostrar! - disse Montlouis. - Puseram-no debaixo do meu guardanapo à mesa, e minha mulher, que não esperava semelhante coisa, ficou deveras assustada. - Eu - disse Talhouet -, espero e nada receio. A província está tranquila, as notícias de Paris são boas. Todos os dias o regente manda sair da Bastilha alguns dos implicados no caso de Espanha.

- E eu, senhores - disse Pontcalec -, devo informá-los, visto que se referem ao assunto, de um estranho aviso que recebi hoje. Mostre-me o seu bilhete, de Couédic; e o seu, Montlouis. Talvez seja a mesma letra, é uma armadilha que nos preparam.

- Não creio, porque se nos querem longe, é para que escapemos a um perigo qualquer; nada temos que recear pela nossa reputação; não corre risco. Os casos da Bretanha estão terminados para toda a gente; seu irmão, Talhouet, e seu primo fugiram para Espanha; Solduc, in aos han, Cerantec, Sambilly, o conselheiro do parlamento desapareceram; contudo acharam que a sua apreensão; é um simples motivo de descontentamento que os expulsa. Confesso que se o aviso se repetisse, partiria.

- Não temos coisa alguma a temer - meu amigo -, disse Pontcalec; urge até dizer que nunca os nossos negócios estiveram mais prósperos. Vejam: a corte de nada desconfia e a prova é que não nos inquietam. La Jonquiére escreveu ontem, informando-nos de que Chanley vai partir para a Muette, onde o regente vive como um simples particular, sem guardas, sem desconfiança.

- Contudo está inquieto - replicou de Couédic.

- Confesso que sim, mas não é pela razão que julgam.

- O que é então?

- Um motivo muito pessoal. E realmente não podia dizê-lo a amigos mais dedicados e que melhor me conhecem: se algum dia fosse persseguido, se me visse na alternativa de ficar ou de fugir para escapar a um perigo. pois bem, ficaria, sabem por quê?

- Não; fale.

- Tenho medo.

- O senhor! Pontcalec ter medo! Que querem dizer essas duas palavras ao lado uma da outra?

- Meu Deus, sim, meus amigos; o oceano é a nossa salvaguarda, todos nós encontraríamos a salvação num desses mil barcos que cruzam o Loire, de Paimboeufa Saint-Nazair mas o que para os meus amigos seria a salvação, para mim era a morte certa.

- Não o compreendo - retrucou Talhouet.

- Assusta-me - disse Montlouis.

- Escutem pois, meus amigos - respondeu Pontcalec.

E começou, no meio da mais religiosa atenção, a seguinte narrativa, porque se sabia que para Pontcalec ter medo, era preciso um caso de grande importância.

 

             A FEITICEIRA DE SAVENAY

- Tinha eu dez anos, e vivia em Pontcalec no meio dos bosques, quando um dia em que resolvemos, meu tio Crysogon, meu pai e eu, fazer uma caçada numa mata a cinco ou seis léguas de distância, encontramos uma mulher sentada no bosque, lendo. Tão poucos dos nossos camponeses sabem ler, que essa circunstância nos admirou deveras. Parámos em Frente dela. Parece-me ainda vê-la como se tivesse sido ontem, embora já decorram vinte anos. Usava o traje preto das bretãs, a touca branca, e estava sentada sobre um grande molho de giestas que tinha acabado de cortar.

Meu pai montava um belo cavalo baio de crina dourada, meu tio um cavalo cinzento, novo, vivo e ardente, e eu um desses póneis brancos que juntam a uma grande solidez de pernas a meiguice da pomba branca como eles.

A mulher ergueu os olhos do livro e viu-nos em frente dela olhando-a com curiosidade.

Vendo-me firme nos estribos, junto de meu pai que parecia ter orgulho da minha pessoa, a mulher levantou-se de repente e aproximando-se de mim, disse:

- Que pena!

- O que significa essa palavra? - perguntou meu pai.

- Signi fica que não gosto desse cavalinho branco - replicou a mulher.

- E porquê?

- Porque causará desgraça a seu filho, sire de Pontcalec. Como sabem, nós, os bretões somos supersticiosos. De sorte que meu pai, que contudo era um espírito forte e esclarecido, parou, não obstante as instâncias de meu tio Crysogon, que o convidava a continuar o caminho; e, tremendo à ideia que me podia suceder alguma desgraça, acrescentou:

- Mas este cavalo é manso, boa mulher, e Clemente dirige-o muito bem para a sua idade. Eu mesmo tenho montado esse bom animalzinho para passear pelo parque e o seu passo é de muito perfeita igualdade.

- Nada compreendo do assunto - marquês de Guer -, retorquiu a boa mulher; só sei que o bom cavalinho branco há-de fazer mal ao seu Clemente: asseguro-Lho.

- E como pode sabê- lo?

- Vejo- o - tornou a velha num tom singular.

- Mas quand o? - pergu ntou meu pai.

- Hoje mesmo. - Meu pai fez- se pálid o, eu mesmo tive medo. Mas meu tio Cryso gon, que tinha feito todas as guerras da Holanda, e que se tornara espírito forte batendo-se com os huguenotes, ria às gargalhadas.

- Que diabo! - disse ele. - Eis aí uma boa mulher que certamente se entende com os coelhos de Savenay. Que dizes a isto, Clemente, queres voltar para casa e privares-te da caçada?

- Meu tio - retorqui eu -, prefiro continuar o caminho consigo.

- Mas é que estás pálido e tens uma estranha atitude. Terás medo?

- Não tenho medo - respondi.

Mentia, porque não deixava de sentir um Frémito que se parecia muito com o sentimento que tentava ocultar.

Meu pai confessou-me mais tarde que se não fossem as palavras do irmão que lhe causara uma falsa vergonha, e as minhas que Lhe lisonjearam o amor próprio, ter- me-ia mandado para casa, ou Fazer-me- ia montar num cavalo dos criados. Mas que mau exemplo para una criança da minha idade, e principalmente que motivo de escárnio para o visconde meu tio!

Conservei-me pois no pónei branco: duas horas depois estávamos na floresta e a caçada começou.

Todo o tempo que ela durou, o prazer fez-nos esquecer a proFecia: mas quando terminou tornamo-nos a encontrar, meu pai, meu tio e eu.

- Então, Clemente - disse-me meu tio -, eis-te ainda no pónei! Diabo! És um rapaz destemido.

Ri-me, assim como meu pai. Nesse momento atravessávamos uma charneca tão plana e tão lisa como o chão deste quarto. Não havia obstáculos a transpor, nenhum objecto capaz de assustar os cavalos. Contudo, nesse instante, o meu pónei deu um salto, empinou-se e arremessou-me a uma distância de quatro passos. Meu tio riu-se; meu pai tornou-se pálido como um defunto; eu nem me movia. Meu pai saltou do seu cavalo e ergueu-me: tinha uma perna quebrada.

Exprimir a dor de meu pai e a angústia dos criados, seria impossível; mas o desespero do meu tio também não poderia descrevê-lo: ajoelhado junto de mim, despindo-me com as mãos trémulas, enchendo-me de carícias e de lágrimas, não proferia uma palavra que não fosse uma ardente súplica, e durante o trajecto meu pai foi obrigado a consolá-lo e a incutir-lhe coragem.

Chamou-se o melhor cirurgião de Nantes que me declarou em grande perigo. Meu tio pedia incessantemente perdão a minha mãe e durante todo o tempo que estive doente mudou completamente de vida: em vez de beber e caçar com os oficiais e fazer no seu lugre, ancorado em Saint-Nazaire, boas pescarias de que era amador, não me abandonava a cabeceira. A febre durou seis semanas, e a doença perto de quatro meses; afinal salvei-me; não conservei mesmo vestígios do acidente. Quando saí pela primeira vez, meu tio acompanhou-me dando-me o braço; mas terminado o passeio, despediu-se de nós, com as lágrimas nos olhos.

- Onde vais, Crysogon? - perguntou-lhe meu pai muito admirado.

- Fiz a promessa - respondeu o excelente homem -, de me fazer frade cartucho se o nosso pequeno escapasse à morte, vou cumpri-la.

Foi então novo desespero; meu pai e minha mãe suplicaram-Lhe que não nos deixasse; eu lancei-me ao pescoço de meu tio fazendo-lhe igual pedido. O visconde porém era desses homenms que nunca recuam ante a palavra dada e as resoluções enérgicas; os rogos de meu pai e de minha mãe foram inuteis, permaneceu inabalável.

- Meu irmão - disse ele -, não sabia que Deus se dignava revelar-se algumas vezes aos homens por meio de actos misteriosos. Duvidei, devo ser castigado. De resto, não quero que os gozos desta vida me privem da salvação eterna.

Proferindo estas palavras, o visconde abraçou-nos, e desapareceu a galope do seu cavalo.

Encerrou-se no convento de Morlaix. Dois anos depois, os jejuns, as mortificações e os pesares tinham feito desse homem alegre, desse jovial companheiro, desse amigo dedicado, um cadáver antecipado e quase insensível. No fim de três anos de retiro, morreu legando-me todos os seus bens.

- Diabo! Que medonha história - disse de Couédic sorrindo, mas tem um lado bom

e outro mau, e a velha esqueceu-se de dizer que a tua perna quebrada te duplicaria a fortuna.

- Escutem! - tornou Pontcalec, ainda mais grave e sério.

- Ah, ainda não acabou? - disse Talhouet.

- Estamos ainda na terça parte.

- Continua; escutamos-te.

- Todos ouviram falar da estranha morte do barão de Caradec, não é verdade?

- Sim, o nosso antigo camarada do colégio do Rennes - tornou Montlouis -, que encontraram assassinado há dez anos na floresta de Chateaubriant?

- Isso mesmo. Ouçam; mas notem que isto é um segredo que, até agora, só eu soube, e que daqui em diante os senhores também saberão e hão-de guardar.

Os três bretões, que tomavam um grande interesse pela narrativa de Pontcalec, prometeram-Lhe que o segredo que iria confiar-lhes ser-Lhes-ia sagrado.

- Essa grande amizade de colégio que me ligava a Caradec sofrera alguma alteração por

causa de uma rivalidade. Amávamos a mesma mulher e eu era o preferido. Um dia decidi ir caçar gamos na floresta de Chateaubriant. Na véspera mandara partir os cães e o meu picador que deviam desviar o animal, e encaminhava-me a cavalo para o ponto marcado, quando vi na minha frente alguém que levava às costas um enorme feixe de lenha. De repente parou e vi uma velha que se voltava para mim. À medida que me aproximava, os meus olhos não podiam desviar-se da mulher; enfim, muito antes de chegar junto dela, tinha reconhecido a feiticeira que, na estrada de Savenay, me predissera que o meu pequeno cavalo branco me causaria desgraça. O meu primeiro movimento, confesso, foi tomar outro caminho a Fim de evitar a profetiza da desgraça, mas ela avistara-me, e pareceu- me que me esperava com o seu mau sorriso. Tinha mais dez anos do que quando a sua primeira ameaça me fizera estremecer.

Tive vergonha de recuar e segui o meu caminho. "Bons dias, visconde de Pontcalec, disse-me ela, como está o marquês de Guer? "

- Bem, boa mulher - respondi-Lhe -, e ficaria bastante tranquilo acerca da sua saúde até ao momento em que tornarei a vê-lo, se me garante que não lhe sucederá nada de desagradável durante a minha ausência.

- ah! - disse ela rindo. - Não esqueceu a charneca de Savenay! Tem boa memória, visconde; mas isso não o impede que se eu lhe desse hoje um bom conselho, também não o seguiria. O homem é cego. - E que conselho é, vejamos? - É que não vá hoje à caça, visconde. - E por quê? - Que volte a Pontcalec, sem dar mais um passo. - Não posso, tenho gente à minha espera em Chateaubriant. - Tanto pior, visconde, tanto pior! Porque haverá sangue derramado nessa caçada. - O meu? - O seu e o de mais alguém. - Ora, está louca!

- É o que dizia o seu tio Crysogon. E como está ele? - Não sabe que morreu, há quase sette anos, no convento de Morlaix?

- Pobre homem! - tornou a boa velha. - Era como o senhor, esteve muito tempo sem querer acreditar; mas afinal, acreditou; contudo era tarde de mais.

Estremeci mau grado meu; mas uma falsa vergonha dizia-me intimamente que era covardia ceder a semelhantes temores, e que sem dúvida fora por mero acaso que se realizara a primeira predição da suposta feiticeira.

- Ah! Bem vejo que a primeira experiência não o tornou mais sensato, meu bonito rapaz

- disse ela. - Pois bem! Vá a Chateaubriant, visto que o quer; mas ao menos mande para Pontcalec, essa brilhante faca de caça.

- E com que o meu senhor há-de cortar o pé do gamo? - perguntou o criado que me seguia. - Com a sua - retrucou a velha. - O gamo é um animal real, retorquiu o criado e deve ser cortado com uma faca de caça. - Demais - tornei eu -, não disse que o meu sangue correria? Isso quer dizer que serei atacado e sendo assim, tenho que me defender. Não sei o que isso quer dizer - volveu a velha - mas o que sei, é que no seu lugar, meu gentil fidalgo, escutaria a pobre velha, não indo a Chateaubriant, e se fosse devolveria a minha faca para Pontcalec.

- O senhor visconde vai dar ouvidos a esta velha bruxa? - disse-me o criado, que sem dúvida receava ter de levar a Pontcalec a arma fatal.

Se estivesse só, voltaria; mas diante do criado - estranha fraqueza do homem - não quis retroceder. "Obrigado, boa mulher", disse eu, "mas não vejo realmente no que me diz, razão suficiente para não ir a Chateaubriant. Quanto à minha faca de caça guardo-a. Se for atacado, preciso de uma arma para me defender". - Vá e defenda-se - disse a velha meneando a cabeça -, ninguém pode fugir ao seu destino.

Não respondi e segui a galope; contudo, quando cheguei a um ângulo do caminho, voltei-me, e vi a mulher seguindo lentamente com o feixe de lenha às costas. Uma hora depois achava-me na floresta de Chateaubriant, e reunia-me aos meus amigos Montlouis e Talhouet, que me acompanharam nessa caçada.

- Sim, é verdade - disse Talhouet -, e começo a compreender.

- Também eu - repetiu Montlouis.

- Mas eu, nada sei - volveu de Couédic. - Continue pois, Pontcalec, continue. - Os nossos cães despistaram o gamo e nós lançámo-nos atrás deles; mas não éramos os únicos a caçar na floresta, e ouvia-se ao longe o ruído de uma outra matilha que se aproximava de nós. Bem depressa as duas caçadas cruzaram-se, e alguns dos meus cães enganando-se no caminho, lançaram-se sobre o gamo caçado pela matilha rival. Corri atrás dos cães para os separar, o que me afastava dos meus amigos, que seguiam a parte da matilha que não se enganara. Mas alguém me precedeu, ouvi os meus cães uivar sob as chicotadas que lhes davam. Redobrei de rapidez, e encontrei o barão de Caradec batendo-Lhes sem piedade. Disse-Lhes que havia entre nós motivos de ódio e esse sentimento só pedia uma ocasião para se manifestar. Perguntei-lhe com que direito se permitia bater nos meus cães. A sua resposta ainda Foi mais altiva do que a minha pergunta. Estávamos sós, tínhamos vinte anos, éramos rivais, odiávamo-nos; cada um de nós tinha uma arma à mão; pegámos nas nossas facas de caça, precipitámo-nos um sobre o outro e Caradec caiu do cavalo, trespassado de lado a lado. Dizer-lhes o que se passou em mim vendo-o cair e torcer-se sobre o solo que ensanguentava, nas dores da agonia, seria impossível. Esporeei o meu cavalo e corri como louco através da floresta. Ouvi ressoar os gritos dos caçadores e cheguei junto do gamo ferido por um dos primeiros. Lembra-se, Montlouis, de me ter perguntado donde vinha que estava tão pálido!

- É verdade - replicou o interpelado.

- Lembrei-me então do conselho da feiticeira, e censurei-me bem amargamente por não o ter seguido: esse duelo solitário e mortal parecia-me antes um assassínio. Nantes e os seus arredores tornaram-se insuportáveis para mim, porque todos os dias ouvia falar da morte de Caradec; é verdade que ninguém suspeitava de mim, mas o meu remorso falava bem alto. Foi então que saí de Nantes e fui até Paris, não sem ter procurado tornar a ver a feiticeira; mas não sabia o seu nome nem a sua morada, de sorte que não pude encontrá-la.

- É estranho - disse Talhouet. - E tornaste a vê-la mais tarde?

- Espera, espera! - volveu Pontcalec. - Pois vou narrar-Lhes o mais terrível. Este Inverno, ou antes no Outono passado, voltava de Guer, e tinha mandado parar em Pontcalec-des-Aulnes, depois de ter caçado durante todo o dia com dois dos meus rendeiros. Chegámos ao local indicado transidos de frio, e encontrámos uma boa lareira e uma esplêndida ceia. Quando entrei, e enquanto recebia os cumprimentos dos meus servos, avistei a um canto da lareira uma velha que parecia dormir. Uma grande capa de lã cinzenta e preta envolvia o fantasma. "Quem está ai? " perguntei ao rendeiro com a voz alterada e tremendo sem querer. - Uma velha mendiga que não conheço e que tem um todo de feiticeira - disse-me ele -, mas estava extenuada de frio, e de fadiga, pediu-me esmola, disse-lhe que entrasse, e dei-Lhe um pedaço de pão que ela comeu enquanto se aquecia; depois adormeceu. - A velha fez um movimento.

- O que Lhe sucedeu, senhor marquês, perguntou a mulher do rendeiro, está todo molhado e tem a roupa suja de lama até aos ombros? - Minha boa Marina, sucedeu que esteve para cear sem mim, não obstante ter preparado a ceia na minha intenção. - Realmente! - exclamou a boa mulher assustada. - Oh! O senhor marquês esteve em perigo, disse o rendeiro.

- E como foi, meu Deus?

- Estive quase a ser enterrado vivo. Conhece os pântanos, aventurei-me até lá sem sondar o terreno, e de súbito, senti que me enterrava por ali a dentro; de sorte que se não fosse a minha espingarda que coloquei de lado a lado e que deu tempo a que seu marido me salvasse, afogava-me na lama, o que é não só uma morte cruel, mas tola, o que é ainda pior. - Oh, senhor marquês - tornou a rendeira -, em nome de sua família, não se exponha dessa maneira. - Deixem-no, deixem-no - disse com uma voz que parecia sair de um túmulo, a sombra acocorada junto da lareira. - não morrerá assim; predigo-Lhe. E puxando para trás o capuz da sua capa cinzenta, a velha mendiga mostrou-me o rosto dessa mulher que me aparecera já duas vezes para me fazer tão sinistras profecias. Conservei-me imóvel e como que petrificado. - Reconhece-me - disse ela sem se comover. - Curvei a cabeça em sinal de assentimento, mas sem ter coragem de responder. Todos os que estavam presentes faziam um círculo em volta de nós. - Não, não -, continuou a velha -, sossegue, marquês de Guer, não morrerá assim. - E como o sabe? - balbuciei com a íntima certeza de que ela o sabia.

- Não posso dizer-Lhe, porque o ignoro mas já deve ter a certeza que não me engano. E como morrerei? - perguntei reunindo todas as minhas forças para lhe dirigir esta pergunta, e todo o meu sangue frio para escutar a resposta.

- Morrerá no mar, marquês - respondeu a feiticeira. - Como assim? - perguntei, e que quer dizer? - Disse o que disse, e não posso me explicar mais: mas sou eu que Lhe digo marquês, desconFie do mar.

Todos os meus criados se entreolharam, com ar assustado; alguns disseram orações, outros fizeram o sinal da cruz. Quanto à velha, voltou para o seu canto, cobriu de novo a cabeça e não proferiu nenhuma outra palavra.

 

                   A PRISÃO

- Talvez que os pormenores desta cena se apaguem um dia da minha memória, mas a impressão que me produziu nunca a esquecerei. Não conservei a sombra de uma dúvida, e essa predição do futuro tomou para mim o aspecto quase palpável de uma realidade. Sim, continuou de Pontcalec -, ainda que riam como fez meu bom tio Crysogon, não me farão mudar de parecer, e não me tirarão do espírito que esta última predição há-de realizar-se como as outras duas, e que é no mar que encontrarei a morte; por isso lhes declaro, embora os avisos que recebemos sejam verdadeiros, e eu me veja perseguido pelos homens de Dubois, e houvesse um barco na margem do rio, e apenas tivesse que alcançar Belle-Isle para lhes escapar, estou tão convencido que o mar me deve ser fatal e que nenhum outro género de morte tem poder sobre mim, que me entregaria nas mãos daqueles que me perseguissem dizendo-Lhes: "Façam o seu dever, senhores. "

Os três bretões tinham escutado em silêncio aquela estranha declaração.

- Concebemos, meu caro amigo - disse de Couédic após um momento de silêncio -, a sua admirável coragem; o género de morte a que está reservado torna-o indiferente a qualquer outro perigo; mas tenha cuidado, se a história fosse conhecida, podia tirar-Lhe merecimento, não a nossos olhos, porque o conhecemos bem, mas os outros diriam que se meteu nesta conspiração, porque não pode ser nem decapitado, nem fuzilado, nem apunhalado, mas que não sucederia o mesmo se fosse uso afogarem os conspiradores.

- E talvez dissessem a verdade - tornou Pontcalec, sorrindo.

- Mas nós, meu caro marquês - replicou Montlouis -, nós que não temos as mesmas causas de segurança, não seria conveniente que déssemos atenção ao aviso que nos dá um desconhecido, e que saiamos de Nantes ou mesmo da França o mais depressa possível?

- Mas esse aviso pode ser falso - tornou Pontcalec -, e não creio que os nossos projectos sejam conhecidos em Nantes ou em qualquer outra parte.

- E segundo todas as probabilidades, nada se saberá sem que Gastão termine a sua tarefa - disse Talhouet -, e depois nada teremos a temer senão o entusiasmo e esse não ma assusta. Quanto a si, Pontcalec, nunca se aproxime de um porto de mar, nunca embarque, e terá a certeza de viver tanto como Matusalem.

A conversação teria continuado neste tom de brincadeira, não obstante a gravidade da situação, se Pontcalec se associasse à alegria dos amigos; mas tinha sempre diante dos olhos a feiticeira levantando o capuz da sua capa, e fazendo-lhe com voz sepulcral a terrível predição. De resto, começavam a entrar por portas secretas e com trajes diferentes, alguns gentis-homens que faziam parte da conspiração.

Não era porque tivessem que recear a polícia da província; a de Nantes, embora essa fosse uma das principais cidades de França, não se achava organizada de modo a inquietar muito os conspiradores, que demais tinham na localidade a influência do nome e da posição social; era preciso que o chefe de polícia da cidade de Paris o regente ou Dubois, enviassem espiões especiais que pela falta de conhecimentos do local, pela diferença do traje, e mesmo pelo modo de falar se tornavam facilmente suspeitos àqueles que iam vigiar e que, em geral, eram informados da sua presença na própria hora em que entravam na província, ou punham os pés nas cidades. Ainda que a associação bretã fosse numerosa, só trataremos dos quatro chefes que nomeámos, que ocuparam as principais páginas da história, sendo os mais considerados da província e dominando pelo nome, fortuna, coragem e inteligência, todos os seus outros companheiros.

Ocuparam-se muito nessa sessão de uma nova oposição a um édito de Montesquieu, e do armamento de todos os cidadãos bretões no caso de violência da parte do marechal. Era, como se vê, o começo da guerra civil. Tê-la-iam feito desfraldando um estandarte sagrado. A impiedade da corte do regente e os sacrilégios de Dubois eram pretexto para isso, e deviam suscitar todos os anátemas de uma província essencialmente religiosa contra um governo tão pouco digno de suceder, diziam os conspiradores, ao reinado tão fervoroso e tão severo de Luís XIV.

Essa demonstração de resistência era aliás fácil de executar, porque o povo odiava mortalmente os soldados que tinham entrado no país com uma insolente confiança. Os oficiais, consignados primeiro pelo marechal de Montesquieu e que não participavam da vida agradável dos gentis-homens da província, abstinham-se por orgulho e por disciplina de todas as relações com os descontentes, o que muito Lhes devia custar, visto que nessa época os oficiais eram irmãos pela nobreza, dos fidalgos que usavam espada como eles.

Pontcalec declarou então aos seus companheiros de revolta o plano combinado pelo "comité" superior, sem pensar sequer que no momento em que tomava todas aquelas medidas para derrubar o governo, a polícia de Dubois, que os julgava em suas casas, enviava ao domicílio de cada um, um destacamento com ordem de cercar a casa, e um guarda, para os prender. Daí resultou que todos aqueles que tomaram parte no conciliábulo viram de longe brilhar às suas portas as baionetas e as espingardas dos guardas e puderam, na maior parte, prevenidos pelo perigo que os ameaçava, escapar por meio de uma rápida fuga. Ora, não lhes era difícil encontrar abrigo; porque, como toda a província entrava na conspiração, tinham amigos por toda a parte, e como eram proprietários ricos, foram acolhidos pelos seus rendeiros; uma grande parte conseguiu passar por mar, à Holanda, à Espanha e à Inglaterra, não obstante a amizade que Dubois tentara estabelecer entre os dois governos.

Quanto a Pontcalec, a Couédic, Montlouis e Talhouet, tinham saído juntos, conforme o seu costume; mas quando Montlouis, cuja casa era perto do local donde sabiam, chegava ao fim da rua onde era situada, viu luzes nos aposentos, e uma sentinela à porta.

- Oh, oh! - disse ele, parando e detendo os seus companheiros. - O que é isto e o que se passa em minha casa?

- Com efeito - replicou Talhouet -, há novidade, e ainda agora me pareceu ver soldados em frente do palácio de Rouen.

- E não nos avisaste? - tornou de Couédic. - Parece-me contudo que era caso para isso.

- Ora - retrucou Talhouet - receei passar por medroso, e pensei que fosse uma patrulha.

- Mas estes são do regimento da Picardia - murmurou Montlouis -, que dera alguns passos para a frente e que, ouvindo esta observação, recuara outros tantos.

- É esquisito - notou Pontcalec -, mas façamos uma coisa: a minha casa dista apenas alguns passos daqui, tomemos por esta travessa e se estiver guardada como a de Montlouis, não nos restará dúvida e saberemos como devemos proceder.

Seguiram os quatro em silêncio e muito chegados uns aos outros para estarem mais fortes em caso de ataque, chegaram à esquina da rua onde residia Pontcalec, e viram a casa não só cercada mas ocupada. Um destacamento composto de vinte homens dispersava a multidão que aquele facto ali reunira.

- Desta vez - disse de Couédic -, a coisa é séria, e a não ser que o fogo se declarasse por acaso em todas as nossas casas ao mesmo tempo, não compreendo porque se metem estes soldados nos nossos negócios. Quanto a mim, meus senhores, sou um seu criado e mudo-me.

- Também eu - replicou Talhouet. - Passo para Saint-Nazaire e vou para Croisie. Venham comigo, meus amigos; sei que se encontra aí um brigue que vai partir para a Terra-Nova, e cujo capitão me é dedicado. Se o ar da terra se nos tornar prejudicial, vamos para bordo, e fazêmo-nos ao largo.

- Vamos, Pontccalec - disse Montlouis -, esqueça por um momento a sua feiticeira e venha connosco.

- Não, não! - volveu Pontcalec abanando a cabeça. - Conheço o meu futuro e não quero precipitá-lo; e depois, reflictam, senhores, que somos os chefes, e que damos um exemplo triste com esta fuga precipitada, sem sabermos ainda bem se nos ameaça um perigo real. Não existe a mínima prova contra nós: Jonquiére é incorruptível. Gastão é intrépido. As cartas que dele recebemos ontem ainda nos diziam que de um momento para o outro tudo ficaria acabado; talvez que a esta hora tivesse ferido o regente, e a França esteja livre. Que pensariam de nós, se no momento em que Gastão assim procede, fugíssemos? O mau exemplo da nossa deserção seria aqui deveras prejudicial; atendam-me, senhores, não lhes dou uma ordem como chefe, mas sim um conselho de gentil-homem, não são obrigados a obedecer-me, porque os desligo do seu juramento; mas no seu lugar, não partiria. Demos o exemplo da dedicação, o pior que nos pode suceder é oferecermos o do martírio; mas as coisas não hão-de chegar a esse ponto, assim o espero. Se nos prenderem, o parlamento da Bretanha julgar-nos-á. E de que se compõe ele? Dos nossos amigos ou cúmplices, achar-nos-emos mais em segurança na prisão cuja chave eles possuem do que num brigue cujo destino está numa lufada de vento. Demais, antes que o parlamento se reúna, toda a Bretanha se sublevará; julgados, seremos absolvidos, ficaremos triunFantes.

- Tem razão - disse Talhouet. - Meu tio, meus irmãos, toda a minha família, todos os meus amigos estão comprometidos comigo; salvar-me-ei ou morrerei com todos.

- Meu caro Talhouet - disse Montlouis -, tudo isso é muito bonito, mas, devo dizer-lhe, vejo o caso muito pior do que o pinta: se estamos nas mãos de alguém, é certamente nas de Dubois. Dubois não é gentil-homem e detesta aqueles que o são; não me agrada essa gente que não pertence a nenhuma classe definida, que não é nem fidalgo, nem soldado, nem frade; preferia um verdadeiro gentil- homem, um soldado ou um padre; pelo menos essa gente é sustentada pela autoridade da sua profissão, que é um princípio; mas Dubois há-de querer fazer razão de Estado. Apelo portanto para a maioria, como é de uso fazermos, e se ela for pela fuga, confesso-lhes que fugirei da melhor vontade.

- E eu serei teu companheiro - tornou de Couédic. - Montlouis pode ser que esteja mais informado do que julgamos, e se é Dubois que nos persegue, como ele pensa, teremos dificuldade em escapar às suas garras.

- E eu, senhores - insistiu Pontcalec -, repito que é preciso ficar; o dever dos chefes de um exército é fazerem-se matar à frente dos seus soldados; o dever dos chefes de uma conspiração é morrer à sua frente.

- Meu caro - volveu Montlouis -, permita-me que lhe diga que a sua feiticeira é cega Para fazer crer na verdade da sua profecia, está pronto, diabos me levem, a afogar-se sem que ninguém o leve a isso. Sou menos entusiasta pela pitonisa, confesso, e como ignoro o género de morte que me está destinado, tenho sobre o caso muitas inquietações.

- Engana-se, Montlouis - disse gravemente Pontcalec -, o que me retém principalmente, é o dever. Se eu não morrer em seguida ao processo, também os senhores não hão-de morrer, porque sou o chefe, e certamente, perante os juízes, reclamarei o título que aqui abdico. Nós não fujamos como um rebanho de carneiros que julga ouvir o lobo. Teríamos medo de fazer uma visita oficial ao parlamento? Porque afinal tudo se resume nisso: um bom processo e nada mais. Bancos guarnecidos de togas negras, sorrisos significativos do acusado para o juiz e do juiz para o acusado; é uma batalha que nos oferece o regente, aceitemo-la e quando o parlamento nos tiver absolvido, tê-lo-emos vencido melhor do que se puséssemos em fuga todas as tropas que há na Bretanha.

- Antes de tudo, senhores - disse de Couédic -, Montlouis fez uma proposta, apelando para a maioria. Apoio Montlouis.

- É justo - tornou Talhouet.

- O que eu disse - replicou Montlouis - não implica medo, mas não desejava meter-me na boca do lobo.

- Essas palavras são inúteis, Montlouis - tornou Pontcalec -, todos nós o conhecemos, aceitamos a sua proposta e pômo-la a votos.

E com a mesma serenidade com que formulava de ordinário as suas propostas, apresentou aquela de que dependia a sua vida e a dos seus amigos.

- Aqueles que forem de parecer que nos devemos subtrair ao equívoco destino que nos espera pela fuga tenham a bondade de erguer as mãos.

De Couédic e Montlouis ergueram as mãos.

- Somos dois contra dois, a prova é nula, sigamos portanto a nossa inspiração. Não sabem - retorquiu Pontcalec -, que na minha qualidade de presidente tenho dois votos?

- Assim é.

- Aqueles que forem de parecer que devemos ficar, ergam as mãos - disse Pontcalec. E ele e Talhouet fizeram o sinal combinado. Ora, como Pontcalec tinha duplo voto, aquelas duas mãos que contavam por três, fixaram a maioria.

Aquela deliberação em plena rua, e com aquela aparência de solenidade, poderia parecer grotesca se não contivesse no seu resultado a questão de vida ou de morte de quatro dos primeiros fidalgos da Bretanha.

- Vamos - disse Montlouis -, a razão não estava do nosso lado, segundo parece, meu caro de Couédic; e agora marquês, ordene, nós obedeceremos.

- Vejam o que vou fazer - respondeu Pontcalec -, e depois procederão como entenderem.

Em seguida, caminhou para casa, acompanhado pelos seus três amigos. Chegando à porta, guardada, como dissemos, por grande número de soldados, bateu no ombro de um deles.

- Meu amigo - disse-Lhe Pontcalec -, chame o seu oFicial, peço- lhe. O soldado transmitiu a ordem ao sargento, que chamou o capitão.

- Que deseja, senhor? - perguntou este.

- Quero entrar em minha casa.

- Quem é então?

- Sou o marquês de Pontcalec.

- Silêncio! - disse o oficial em voz baixa. - Silêncio, fuja sem perda de tempo, estou aqui para o prender.

E ajuntou em voz alta:

- Não se passa! - repelindo ao mesmo tempo o marquês, diante do qual se fechou a fila de soldados.

Pontcalec pegou na mão do oficial, apertou-a e disse:

- É um excelente moço, bem vejo, mas é urgente que entre em minha casa. Obrigado e que Deus o recompense!

O oficial deveras surpreendido, mandou afastar os soldados, e Pontcalec seguido dos seus

três amigos, atravessou o pátio que precedia a casa. Vendo-o, a família soltou gritos de terror.

- Que sucedeu? - perguntou o marquês com serenidade.

- Sucede, senhor marquês, que tenho ordem de o prender - disse um oficial inferior da polícia de Paris, a Pontcalec.

- Ora viva! Realizou um belo feito - disse Montlouis - e parece- me realmente muito hábil! É oFicial do prebostado de Paris, e é preciso que aqueles que estão encarregados de prender venham ter consigo!

O oficial, deveras embaraçado, cumprimentou esse gentil-homem que gracejava tão agradavelmente num momento em que tantos outros teriam perdido a palavra, e perguntou-Lhe o seu nome.

- Sou o sr. de Montlouis, meu caro - respondeu o fidalgo -, veja bem se tem alguma ordem de prisão para mim, e, se assim é, execute-a.

- Senhor - disse o oficial -, que quanto mais se admirava, mais se curvava, não sou eu, mas o meu companheiro Duchevron que está encarregado da sua prisão; deseja que o previna?

- Onde está ele? - perguntou Montlouis.

- Em sua casa, presumo eu, onde o espera.

- Sentiria ter de fazer esperar por mais tempo um cavalheiro tão interessante e vou ter com ele. Obrigado, meu amigo.

O oficial perdera a cabeça e curvava-se até ao chão.

Montlouis apertou a mão de Pontcalec, de Talhouet e de Couédic, disse-Lhes algumas palavras ao ouvido, e partiu para casa, para se fazer prender como sucedera com Pontcalec.

O mesmo fizeram Talhouet e de Couédic, de modo que às onze horas da noite a tarefa estava concluída.

A notícia dessas prisões propalou-se por toda a cidade nessa mesma noite. Todavia o susto não foi grande, porque, depois do primeiro movimento, que era dizer: "Prenderam o sr. De Pontcalec e os seus amigos", acrescentava-se acto contínuo: "Sim, mas o parlamento absolvê-los-á. "

Mas na manhã seguinte, os espíritos e os rostos mudaram muito, quando viram chegar de Nantes a comissão perfeitamente constituída e á qual nada faltava, conforme já dissemos, nem presidente, nem procurador do rei, nem secretário, nem sequer carrascos.

Dizemos carrascos, porque em vez de um eram três. As criaturas mais corajosas sentem-se algumas vezes mudas de espanto perante os grandes infortúnios; este caiu sobre a província com o poder e a rapidez de um raio; portanto a província não fez um movimento, não soltou um grito; ninguém se revolta contra um flagelo; em vez de se insurgir, a Bretanha expirou.

A comissão instalou-se logo que chegou; ficou surpreendida por não ter tido grande acolhimento do parlamento nem grandes visitas da nobreza. Forte com os poderes de que a haviam investido, devia esperar que tentariam enternecê-la antes do que ofendê-la; mas o terror era tão grande que cada um pensava em si e se contentava em deplorar a sorte dos outros. Era essa a situação em que se encontrava a Bretanha três ou quatro dias depois da prisão de Pontcalec e dos seus amigos. Deixemos essa metade dos conspiradores envolvidos em Nantes nas mallhas

da rede que lhes estendera Dubois, e vejamos o que Paris fazia aos seus, na mesma época.

 

                 A BASTILHA

E agora, com autorização do leitor, temos que penetrar na Bastilha, essa temível prisão que o simples passeante olhava tremendo e que, para os seus vizinhos era um incómodo e um espantalho: porque, muitas vezes, de noite, os gritos dos infelizes a quem torturavam, transpunham as espessas paredes, atravessavam o espaço e chegavam até eles, despertando-lhes som brios pensamentos; a tal ponto que a duquesa de Lesdiguiéres escreveu um dia acerca da real fortaleza, que se o governador não pusesse termo aos gritos das suas vítimas que a impediam de dormir, queixar-se-ia ao rei.

Mas na época da conspiração espanhola e no reinado complacente de Filípe de Orleans, já não se ouviam gritos na Bastilha; a sociedade que aí se achava era escolhida, e os prisioneiros que nela residiam eram pessoas de muito bom gosto para perturbarem o sono das damas.

Num quarto da torre do Canto, no primeiro andar, tinha sido encerrado só um prisioneiro. O aposento era espaçoso, e assemelhava-se a um enorme túmulo iluminado por duas espaçosas janelas ornadas com um luxo espantoso de grades pelas quais filtrava avaramente a claridade do dia; um leito, duas cadeiras de pau, uma mesa preta compunham todo o mobiliário; as paredes achavam-se cobertas de mil inscrições singulares que o prisio neiro consultava de tempos a tempos, quando o aborrecimento o esmagava sob as suas pesadas asas.

Havia contudo apenas um dia e uma noite que o prisioneiro tinha entrado para a Bastilha, e já passeava de um lado para o outro do vasto aposento, interrogando as portas forradas de ferro, olhando pelas grades, esperando, escutando, suspirando. Nesse dia, que era um domingo, um sol pálido prateava as nuvens, e o prisioneiro via com um sentimento de indefinível melancolia passar pela porta Santo António e pelo boulevardos parisienses com os seus trajes domingueiros. Não era difícil notar que cada transeunte olhava para a Bastilha com terror, felicitando-se intimamente por não estar lá. O ruído dos ferrolhos que corriam tirou o prisioneiro daquela sombria ocupação; viu entrar o mesmo homem perante o qual comparecera na véspera, e que lhe fizera assinar um processo-verbal. Esse homem que parecia ter pouco mais ou menos trinta anos, de rosto agradável, de maneiras afáveis, era o governador, sr. de Launay, que foi pai do de Launay que morreu no seu posto em 89; e que nesta época ainda não tinha nascido.

O prisioneiro, que o reconheceu, achou aquela visita muito natural; ignorava todavia quanto era rara para os prisioneiros comuns.

- Senhor de Chanlay - disse o governador cumprimentando -, venho saber se passou bem a noite e se está satisfeito com a comida da casa e as maneiras dos empregados.

Era assim que o sr. de Launay chamava aos guardas e aos carcereiros.

- Muito satisFeito, senhor - replicou Gastão -, e esses cuidados com um prisioneiro confesso que me causam admiração.

- O leito é velho e duro - tornou o governador -, mas tal qual é, o seu é ainda dos melhores, sendo o luxo formalmente proibido pelos nossos regulamentos. Aliás, o seu quarto é o melhor da Bastilha; foi habitado pelo duque de Angouléme, pelo marquês de Bassompierre e pelos marechais de Luxembourg e de Biron. É aqui que alojo os príncipes quando Sua Majestade me dá a honra de mos enviar.

- Têm um belo alojamento - tornou Gastão sorrindo -, ainda que bastante mal mobilado. Poderei obter livros, papel e penas?

- Livros, senhor, são proibidos aqui; mas se tem grande empenho em ler, como se relevam muitas coisas a um prisioneiro que se aborrece, far-me-á a honra de me ir visitar, meterá na algibeira um dos volumes que eu ou minha mulher deixarmos por cima das mesas, ocultá-lo-á com cuidado de todos os olhares; numa segunda visita, levará o volume seguinte, e com essa pequena subtracção, bem perdoável da parte de um prisioneiro, o regulamento nada tem que ver.

- E quanto ao papel, penas e tinta? - disse Gastão. - O que eu queria principalmente era escrever.

- Aqui não se escreve, senhor, ou antes, só se pode escrever ao rei, ao sr. regente ao ministro, ou a mim; mas desenha-se, e se quiser, mandar-Lhe-ei dar lápis e papel para desenho.

- Senhor - retrucou Gastão inclinando-se -, queira dizer-me como poderei pagar tanta bondade?

- Concedendo-me o pedido que venho fazer-lhe, porque a minha visita tem um fim; venho pedir-lhe para me dar a honra de jantar hoje comigo.

- Consigo, senhor! Mas na verdade, confunde-me. Não posso exprimir- Lhe quanto sou sensível à sua amabilidade, e pagá-la-ia com um eterno reconhecimento, se tivesse outra coisa de eterno diante de mim a não ser a morte.

- A morte... ora, não seja sinistro; pensa-se por acaso nessas coisas, quando se está bem vivo? Não pense isso e aceite.

- Está dito, senhor, e aceito.

- Ora ainda bem! Levo a sua palavra - disse o governador cumprimentando de novo Gastão.

E saiu, deixando o seu prisioneiro entregue a uma nova ordem de ideias, devido à sua visita.

De facto, aquela cortesia, que primeiro encantara o cavaleiro, pareceu-Lhe menos franca à medida que a escuridão do quarto o invadia como uma sombra, dissipada pela presença do seu interlocutor, e que de novo se apoderava do seu domínio. Essa cortesia não teria por fim inspirar-Lhe confiança e dar-Lhe ocasião para se trair e trair os seus companheiros? Recordava-se das lúgubres crónicas da Bastilha, das ciladas armadas aos prisioneiros, e essa famosa masmorra de que tanto se falava, principalmente nessa época em que se começava a permitir que se falasse de tudo, e onde nunca ninguém entrara senão para aí morrer. Gastão sentia-se só, abandonado; tinha o sentimento que o crime que quisera cometer merecia a morte, e prodigalizavam-Lhe amabilidades. E não eram elas muito lisonjeadoras e muito singulares para não esconderem uma cilada?

Enfim, a Bastilha fazia a sua obra habitual: a prisão actuava sobre o prisioneiro, que se tornara frio, desconfiado, inquieto.

- Tomam-me por um conspirador da província - dizia ele consigo -, e esperam que, apesar de prudente nos meus interrogatórios, serei imprudente no meu modo de proceder; não conhecem os meus cúmplices, não podem conhecê-los, e esperam que proporcionando-me os meios de comunicar com eles, de lhes escrever, ou pronunciar-Lhes os nomes por inadvertência, obterão de mim alguma coisa; Dubois e Argenson andam metidos nisto. As lúgubres reflexões de Gastão não ficaram por aqui, pensava nos seus amigos que esperavam que terminasse a sua missão para procederem, e que, privados de notícias, sem saber o que era Feito dele, ou talvez pior ainda, recebendo Falsas notícias, procedessem de modo a perderem-se.

Pensava também na pobre Helena, isolada como ele, que nem pudera apresentar ao duque de Olivares, seu único protector para o futuro, e que talvez a essa hora estivesse igualmente presa ou fosse obrigada a fugir.

O que seria nesse caso de Helena, sem apoio, sem protecção, e perseguida por esse desconhecido que Fora buscá-la ao fundo da Bretanha? Esta ideia atormentou de tal modo Gastão que, num acesso de desespero, atirou-se para cima do leito, revoltando-se contra a prisão, amaldiçoando as portas e as grades que o retinham e dando murros nas paredes.

Nesse momento ouviu grande barulho à porta do seu quarto; ergueu-se precipitadamente, correu ao encontro de quem ia entrar e deparou com o sr. d'Argenson e o seu escrivão; atrás dos dois personagens caminhava um número imponente de soldados. Gastão compreendeu que se tratava de um interrogatório.

D'Argenson, com a sua grande cabeleira preta os olhos negros e as sobrancelhas espessas, causou medíocre impressão no cavaleiro: entrando na conspiração, fizera o sacrifício da felicidade; entrando na Bastilha fizera o sacrifício de sua vida.

Quando alguém se sente nestas disposições, não se assusta facilmente. D'Argenson perguntou-Lhe mil coisas às quais Gastão se recusou a responder, retrucando com queixumes às perguntas que Lhe dirigiam, dizendo-se preso injustamente e perguntando pelas provas a fim de ver se as havia.

O sr. d'Argenson encolerizou-se, e Gastão riu-Lhe na cara como um garoto. Referiu-se depois à conjuração da Bretanha, único agravo que até ali apresentara; Gastão fingiu-se admirado; escutou os nomes dos cúmplices sem dar sinal de adesão nem de negação e quando o magistrado concluiu, agradeceu-lhe muito delicadamente tê-lo posto ao par de acontecimentos que Lhe eram totalmente desconhecidos.

D'Argenson começou pela segunda vez a perder a paciência e tossiu, como era seu costume quando se encolerizava. Depois, como fizera após o primeiro acesso, passou do interrogatório à acusação.

- Quis matar o regente! - disse ele de repente ao cavaleiro.

- Como o sabe? - perguntou Friamente Gastão.

- Não importa, visto que sei.

- Nesse caso responder-lhe-ei como Agaménon a Aquiles: Porque o pergunta, visto que o sabe?

- Senhor, não estou gracejando - disse d'Argenson.

- Nem eu tão pouco - respondeu Gastão. - Cito Racine, eis tudo.

- Tome cuidado, senhor; esse sistema de defesa pode acarretar-lhe dissabores.

- Acredita que me daria melhor conFessando o que deseja.

- É inútil negar um facto que conheço.

- Então permita-me que Lhe repita em vil prosa o que Lhe disse há pouco em bela poesia: Para que me interroga acerca de um projecto que parece conhecer melhor do que eu?

- Quero que me dê detalhes.

- Peça-os à sua polícia que é tão bem feita que até lê as intenções íntimas de cada um.

- Ah! ah! - tornou d'Argenson num tom zombeteiro e frio que apesar da coragem de Gas tão, o impressionou um tanto. O que dirá agora se lhe pedir notícias do seu amigo La Jonquiér?

- Direi - respondeu Gastão tornando-se pálido - que espero que não cometessem com ele o mesmo erro que comigo.

- Ah! ah! - disse d'Argenson a quem não escapara o movimento de terror do moço. Esse nome perturba-o, segundo vejo; conhece muito La Jonquiére?

- Conheço-o como um amigo, a quem os meus amigos me recomendaram a fim de mostrar Paris.

- Sim, Paris e os seus arredores; o Palais-Royal, a rua de Bac, a Mouete; não eram esses locais que ele estava encarregado de lhe mostrar?

- Sabem tudo - disse Gastão consigo.

- Então, senhor - tornou d'Argenson no mesmo tom de zombaria, não sabe mais alguns versos de Racine que possam servir de resposta a esta pergunta?

- Talvez os encontrasse se soubesse o que quer dizer; certamente que desejei ver o Palais-Royal porque é uma coisa curiosa e ouvira falar muito a seu respeito; quanto à rua de Bac, pouco a conheço; resta a Mouete, que não conheço em absoluto, porque nunca lá fui.

- Não digo que fosse lá, mas que o capitão La Jonquiére devia conduzi-lo aí: ousa negá-lo?

- Não, senhor, nem nego, nem confesso; dir-Lhe-ei simplesmente que o interrogue e ele Lhe responderá se julgar conveniente fazê- lo.

- É inútil, senhor, já lhe perguntaram e já respondeu.

Gastão sentiu um frémito percorrer-Lhe o corpo; evidentemente tinha sido traído, mas a sua honra ordenava-Lhe que nada dissesse: conservou-se portanto em silêncio.

D'Argenson esperou um momento a resposta de Gastão, vendo porém que ficava mudo, disse:

- Quer que o confronte com o capitão La Jonquiére?

- Estou nas suas mãos, faça de mim o que lhe convier.

Mas intimamente o moço prometia, caso o confrontassem com o capitão, esmagá-lo sob o peso do seu desprezo.

- Está bem - retorquiu d'Argenson -, o que me convém, visto que o tenho em meu poder, como disse, é aplicar-lhe a pergunta ordinária e extraordinária. Sabe o que é, senhor? juntou d'Argenson sublinhando cada sílaba. - Sabe o que é a pergunta ordinária e extraordinária?

Um suor frio inundou a fronte do cavaleiro; não porque temesse a morte, mas a tortura é bem pior do que a morte; raras vezes se saía das mãos do carrasco sem ficar desFigurado ou estropiado, e a melhor destas alternativas não deixava de ser muito cruel para um rapaz de vinte e cinco anos. D'Argenson viu como que através de um cristal o que se passava no coração do cavaleiro.

- Olá! - disse ele.

Entraram dois guardas.

- Aqui está este senhor que parece não ter repugnância pela tortura - disse d'Argenson.

- Conduzam-no portanto ao quarto onde isso se efectua.

- É a hora fatal - murmurou Gastão. - É a hora que esperava e que por fim soou; oh, meu Deus, dai-me coragem!

Sem dúvida, Deus ouviu-o: porque, depois de ter feito um sinal com a cabeça indicando que estava pronto, avançou com passo Firme para a porta e seguiu os guardas que iam à frente; atrás ia d'Argenson.

Desceram a escada de pedra e passaram pela primeira masmorra da torre do Canto; em seguida atravessaram dois pátios.

No momento em que passava no segundo, alguns prisioneiros, vendo através das grades um gentil-homem, trajando com elegância, gritaram-Lhe:

- Olá, senhor, deram-lhe a liberdade!

Uma voz de mulher juntou:

- Senhor, se o interrogarem a nosso respeito, quando sair daqui, responda que nada dissemos.

Um mancebo suspirou:

- É bem feliz, senhor, vai tornar a ver aquela a quem ama.

- Engana-se - retorquiu o cavaleiro -, vou sofrer a tortura.

Um silêncio terrível sucedeu-se a estas palavras, e o triste cortejo continuou o seu caminho; meteram-no numa cadeirinha com grades e fechada à chave que o transportou sob uma boa escolta ao Arsenal separado da Bastilha por uma estreita passagem. D'Argenson ia na frente e esperava já o seu prisioneiro no quarto das torturas. Gastão viu um quarto de tecto baixo com as paredes de pedra donde escorria a humidade; pendiam aí cadeias, cordas e outros instrumentos de formas singulares, ao fundo viam-se fogareiros e os ângulos eram guarnecidos por cruzes de Santo-André.

- Vê isso - disse d'Argenson mostrando ao cavaleiro duas argolas presas nas pedras -, a seis pés de distância uma da outra, e separadas por um banco de pau de três pés de altura; a estas argolas ligam-se os pés e a cabeça do paciente; depois passa-se-lhe este cavalete sob os rins, de modo que o ventre fique dois pés mais elevado do que a boca; em seguida deitam-se-Lhe por cima potes de água; o número fixado é oito para a pergunta ordinária e dez para a extraordinária. Quando o paciente se recusa a engolir aperta-se-Lhe o nariz de modo que não possa respirar; abre então a boca e engole. Esta tortura -, continuou d'Argenson no tom de um belo orador que se compraz na sua narrativa -, é muito desagradável e contudo não sei se prefere a das cunhas. Morre-se de ambas, mas as cunhas estragam e deformam mais o paciente; é verdade que a água destrói a saúde para o futuro, ainda que se seja absolvido, mas é um caso bastante raro, porque se fala sempre na pergunta ordinária, sendo-se culpado, e quase sempre na extraordinária, mesmo que se não seja.

Gastão, pálido e imóvel, olhava-o e escutava.

- Prefere as cunhas, cavaleiro? - disse d'Argenson. - Ouçam! As cunhas, mostrem- nas a este senhor.

E um carrasco apresentou cinco ou seis cunhas ainda tintas de sangue e achatadas nas extremidades superiores pelas numerosas marteladas que tinham levado.

- Veja - continuou d'Argenson -, como se pratica esta tortura; apertam-se os joelhos e os tornozelos entre duas tábuas o mais fortemente possível; depois um deSses homens coloca uma cunha entre os joelhos, e obriga-a a entrar; depois dessa, outra maior. São oito para a pergunta ordinária e dez para a extraordinária.

- Basta, senhor, basta! - disse Gastão. - A não ser que deseje dobrar o suplício pela descrição do próprio suplício. Mas se é apenas por amabilidade e para me guiar na escolha que me dá essa explicação, como deve estar mais conhecedor do assunto do que eu, escolha, peço-lhe, a tortura que me faça morrer mais depressa, e ficar-lhe- ei muito reconhecido. D'Argenson lançou ao cavaleiro um olhar em que não ocultava a admiração que Lhe causava a força de vontade do rapaz.

- Vamos, fale, que diabo, e não se tratará mais de tortura!

- Nada direi, senhor, porque nada tenho que dizer.

- Atenda o que digo; grita-se muito, mas entre os gritos sempre Se diz alguma coisa ao meio da tortura.

- Experimente - respondeu Gastão.

A atitude firme e resoluta do cavaleiro, não obstante a luta que se travava no seu íntimo e que se manifestava na sua palidez e num leve tremor nervoso que o agitava mostrou a D'Argenson a grande coragem do seu prisioneiro. Já tinha o hábito daquelas coisas e raras vezes se enganava: viu que nada tiraria de Gastão, e todavia insistiu ainda:

- Vejamos, senhor - disse ele -, ainda é tempo, não nos obrigue a torturá-lo.

- Senhor - replicou Gastão -, juro-Lhe perante Deus que me ouve, que nada direi, no meio do sofrimento; conterei a respiração e sufocar-me-ei se for possível; imagine se cederei às ameaças, resolvido como estou a não ceder à dor.

D'Argenson fez um sinal aos carrascos que se aproximaram de Gastão, mas em vez de desanimar, pareceu redobrar de coragem; com um sorriso calmo ajudou-os a despir o casaco e desabotoou os punhos.

- Começamos pela água? - perguntou o carrasco.

- Sim, primeiro a água - replicou d'Argenson.

Passaram a corda pelas argolas, aproximaram o cavaleiro, encheram os potes; Gastão não pestanejou.

D'Argenson reflectia.

Após dez minutos de reflexão que certamente pareceram um século ao rapaz, disse verdadeiramente despeitado:

- Reconduzam esse senhor à Bastilha.

 

A VIDA QUE SE LEVAVA NA BASTILHA ENQUANTO SE ESPERAVA A MORTE

Gastão ia agradecer ao chefe da polícia, mas conteve-se. Agradecendo, dir-se-ia que tivera medo. Vestiu o casaco e abotoou os punhos, pegou no chapéu, e voltou para a Bastilha pelo mesmo caminho.

- Não quiseram passar um processo verbal de tortura a um moço - disse Gastão consigo. - Contentar-se-ão em me julgar e condenar à morte.

Ao menos, a ameaça da tortura tivera uma vantagem: a ideia da morte parecia agora simples e suave ao cavaleiro, desembaraçado dos suplícios preliminares de que o intendente da polícia lhe fizera uma tão exacta descrição. Ainda mais, voltando ao seu quarto, encontrou com felicidade tudo o que lhe parecera horrível, uma hora antes. A prisão era alegre, a vista encantadora; as sentenças mais tristes escritas nas paredes eram madrigais, comparadas com as ameaças que ofereciam as paredes do quarto das torturas, até os carcereiros pareceram a Gastão cavalheiros de boa aparência em comparação com os carrascos. Havia apenas uma hora que se comprazia na contemplação daqueles objectos que agora Lhe pareciam alegres, quando o director da Bastilha o foi buscar, seguido por um carcereiro.

- Compreendo - disse Gastão -, o convite do governador é sem dúvida uma combinação que se põe em prática em casos semelhantes para tirar ao prisioneiro a angústia do suplício. Vou atravessar algumas masmorras, ficar numa delas e morrer; faça-se a vontade de Deus!

Gastão, ergueu-se, saudou com um sorriso triste o quarto que ia deixar, seguiu o director, e, chegando às últimas grades, admirou-se de não ter sido ainda precipitado em alguma masmorra. Mais de dez vezes pronunciara durante o trajecto o nome de Helena, para morrer com ele nos lábios; mas nenhum incidente seguira essa poética e misteriosa invocação, e o prisioneiro depois de ter transposto tranquilamente a ponte levadiça, entrou no pátio do governo, depois na própria residência do governador. O sr. de Launay correu ao seu encontro.

- Dá-me a sua palavra de honra, cavaleiro - disse ele a Gastão -, que não pensará em fugir todo o tempo que estiver em minha casa? Bem entendido, que do momento que seja reconduzido ao seu quarto, essa palavra deixa de existir, e que me compete tomar as devidas precauções para me assegurar da continuação da sua companhia.

- Dou-lhe a minha palavra, senhor - respondeu Gastão -, mas na medida que me pede.

- Está bem, tenha a bondade de entrar.

E o governador conduziu Gastão a uma sala muito bem mobilada, ainda que no estilo Luís XIV, que já pouco se usava. Gastão ficou atónito vendo a sociedade numerosa e perfumada que aí se encontrava.

- O sr. cavaleiro Gastão de Chanlay, que tenho a honra de lhes apresentar; meus senhores - disse o governador.

Depois, nomeou uma por uma as pessoas que ali se achavam:

- O sr. duque de Richelieu.

- O sr. conde de Laval.

- O sr. cavaleiro Dumesnil.

- O sr. de Malezieux.

- Oh! - disse Gastão, cumprimentando e sorrindo. - Toda a conspiração de Cellamare.

- Menos o sr. e a senhora du Maine e o príncipe de Cellamare - disse o abade Brigand, cumprimentando por sua vez.

- Ah, senhor - tornou Gastão, num tom de censura -, esquece o excelente cavaleiro d'Harmental e a sábia menina de Launay.

- D'Harmental está de cama devido ao seu ferimento - volveu Brigand.

- Quanto à menina de Launay - disse o cavaleiro Dumesnil -, corando de prazer por ver entrar a sua amante. - Ela, senhor, dá- nos a honra de jantar connosco.

- Tenha a bondade de me apresentar - disse Gastão. - Entre prisioneiros, não há grandes cerimónias. Conto portanto com a sua amabilidade.

O cavaleiro Dumesnil, pegando na mão de Gastão, apresentou-o à menina de Launay. Contudo, não obstante o poder que tinha sobre si, o moço não pôde deixar de exprimir no rosto um certo espanto.

- Ah, cavaleiro - disse o governador -, apanhei-o; julgou como a maior parte dos parisienses, que eu devorava os meus prisioneiros, não é assim?

- Não - retrucou Gastão sorrindo -, mas pensei por um momento, confesso, que a honra que vou ter jantando consigo era adiada.

- Como assim?

- É seu costume, para dar apetite aos prisioneiros, fazer-Lhes dar antes da refeição o passeio que dei.

- Ah, é justo! - exclamou a menina de Launay. - Foi ao senhor que conduziram ainda agora à tortura!

- Exactamente, menina - replicou o mancebo -, e creia que só um facto de tal ordem me poderia reter longe de tão graciosa companhia.

- Ah, cavaleiro - disse o governador -, não me queira mal por isso. Essas coisas não pertencem a minha jurisdição, graças a Deus! Sou um militar e não um juiz. Não confundamos as armas com a toga, como disse Cícero; o meu cargo é guardá-los, impedi-los de fugir, e tornar-lhes a permanência na Bastilha o mais agradável possível, para que aqui voltem para me distrairem com a sua companhia. O sr d'Argenson tem por mister torturar, decapitar, enforcar; entreguemo-nos cada um à nossa especialidade. Menina de Launay, anunciam-nos que está o jantar na mesa - disse o governador, vendo que abriam a porta de par em par. - Quer aceitar o meu braço? Perdão, cavaleiro Dumesnil, fita-me como um tirano, mas sou o dono da casa e não abdico dos meus privilégios. Para a mesa, senhores, para a mesa.

- Oh, que coisa horrível que é a prisão! - disse o duque de Richelieu, colocado entre a menina de Launay e o conde de Laval: escravidão, grades, ferrolhos, cadeias pesadas.

- Posso servir-lhe desta sopa de camarão? - disse o governador.

- Sim, senhor - retrucou o duque. - O seu cozinheiro fê-la maravilhosamente bem, e sinto deveras que o meu cozinheiro não tivesse conspirado também. Teria aproveitado a sua permanência na Bastilha para aprender com o seu.

- Senhor conde de Laval - continuou o governador -, tem vinho de Champanhe perto de si; não se esqueça da sua vizinha, peço-Lhe.

Laval com ar sombrio encheu o copo que esvaziou de um trago.

- Recebo-o directamente de Aii - tornou o governador.

- Há-de dar-me o nome do seu fornecedor, senhor de Launay - disse Richelieu. - Porque se o regente não me mandar cortar a cabeça, não quero beber outro... Que quer, habituei-me a ele, pois já por três vezes tenho estado em sua casa.

- De facto - tornou o governador -, tome o exemplo do duque de Richelieu, senhor; é um dos meus fiéis; por isso tem aqui o seu quarto que não se dá a ninguém na sua ausência, a não ser que esteja tudo cheio.

- Esse tirano do regente poderá bem obrigar-nos a conservar os nossos - disse Brigand.

- Senhor abade, tenha a bondade de trinchar essas perdizes - disse o governador. Sempre notei que os eclesiásticos são peritos neste mister.

- Dá-me muita honra - retrucou Brigand colocando na sua frente a travessa de prata onde estavam as aves indicadas, que trinchou imediatamente com uma perícia que provava que o sr. Launay era bom observador.

- Senhor governador - disse o conde Laval com uma voz colérica, pode dizer-me se foi por sua ordem que me acordaram ontem às duas horas da manhã, e explicar-me o que significa essa perseguição?

- A culpa não foi minha - senhor conde -, mas destes senhores e destas senhoras que não querem estar quietos, por mais que os aconselhe.

- Nós? - exclamaram todos os convivas.

- Mas sim, certamente! - replicou o governador. - Fazem nos seus quartos milhares de infracções aos regulamentos. Informam-me a todo o momento que se trocaram comunicações, correspondências, bilhetes.

Richelieu deu uma gargalhada. A menina de Launay e o cavaleiro Dumesnil coraram.

- Mas falaremos de tudo isso à sobremesa - continuou o governador. - Senhor conde de Laval, à sua saúde... Não bebe, senhor de Chanlay?

- Não, senhor, escuto.

- Diga antes que sonha. Não me engana facilmente.

- E em quê? - perguntou Melezieux.

- Em que quer que sonhe um rapaz de vinte e cinco anos? Bem se vê que envelhece, senhor poeta. Na sua amante, com a breca!

- Não lhe parece, senhor de Chanlay - continuou Richelieu -, que vale mais ter a cabeça separada do corpo que o corpo separado da alma?

- Ah, bravo, bravo! - exclamou Malezieux. - Lindo, encantador!

- A propósito - interrompeu Laval -, há noticias da corte, e sabe- se como está o rei?

- Senhores, senhores - exclamou o governador -, nada de política, peço-lhes. Falemos de belas artes, poesia, literatura, desenho, guerra, e mesmo da Bastilha, se quiserem; prefiro isso ainda assim.

- Ah, sim, falemos da Bastilha - tornou Richelieu. - O que fez de Pompadour, senhor governador?

- Senhor duque, tive o grande desgosto de me ver obrigado a metê- lo num cárcere.

- Num cárcere? perguntou Gastão. - Que fez o marquês?

- Bateu no seu carcereiro.

- Desde quando é proibido a um fidalgo bater nos seus criados? - perguntou Richelieu.

- Os carcereiros são servos do rei, senhor duque - respondeu sorrindo o governador.

- Diga do regente, senhor - respondeu Richelieu.

- A distinção é subtil.

- Mas não é menos justa.

- Deseja provar este vinho de Chamabertin, senhor de Laval - disse o governador.

- Sim, senhor, se quiser beber comigo à saúde do rei.

- Aceito, se me acompanhar bebendo à saúde do regente.

- Senhor governador - retrucou Laval - já não tenho sede.

- Acredito - tornou de Launay -, acaba de beber um copo cheio de vinho de Chambertin da adega de sua alteza.

- Como! De Sua Alteza! Este vinho é do regente?

- Fez-me a honra de enviá-lo ontem, sabendo que às vezes me dava o prazer da sua companhia.

- Nesse caso - exclamou o abade Brigand atirando para o chão o conteúdo do seu copo, é veneno este Chambertin! Passe-me o seu vinho de Aii, senhor de Launay!

- Leve a garrafa ao senhor abade - disse o governador.

- Oh! oh! - exclamou Malezieux. - O abade joga fora o vinho sem querer bebê-lo! Abade, não o julgava tão fanático pela boa causa.

- Aprovo-o, abade - volveu Richelieu -, se o vinho é contra os seus princípios; mas, fez mal em jogá-lo fora, porque conheço-o bem por tê-lo já bebido; vem efectivamente das adegas do regente e em nenhuma outra parte achará igual. Tem muito, senhor governador?

- Seis garrafas apenas.

- Veja, abade, que sacrilégio cometeu. Que diabo! Devia tê-lo passado ao seu vizinho, ou deitá-lo na garrafa. era o seu lugar, e não no solo; "vinum in amphoram", dizia o meu professor.

- Senhor duque - retorquiu Brigand -, permitir-me-ei dizer-lhe uma coisa: é que não sabe tão bem o latim como o espanhol.

- Diz bem, abade - disse Richelieu; mas há ainda uma língua que sei menos do que todas as outras e que bem desejaria aprender: é a francesa.

- Ora! - tornou Malezieux. - Seria demorado e aborrecido, senhor duque, e corria o risco de ser recebido na Academia.

- E o sr. cavaleiro - disse Richelieu a Chanlay - Fala também o espanhol?

- Corre o boato que estou aqui senhor duque - respondeu Gastão -, por ter abusado desse idioma.

- Senhores - tornou o governador -, previno-os, que se voltamos à politica, ver-me-ei obrigado a deixar a mesa; seria desagradável, porque são muito delicados, creio eu, para ficarem à mesa não estando eu.

- Então - retrucou Richelieu -, diga à menina de Launay que nos fale de matemática, isso não ofenderá ninguém.

A menina de Launay estremeceu como alguém que desperta em sobressalto; colocada em frente do cavaleiro Dumesnil, trocava com ele uns olhares que nada tinham de inquietador para de Launay, mas que, em compensação, tornavam muito desgraçado o tenente que fazia serviço na Bastilha, Maison-Rouge, que estava verdadeiramente apaixonado pela menina de Launay, e fazia quanto podia para agradar à sua prisioneira, o que, como já vimos, Dumesnil conseguira antes dele.

Graças à alocução do governador, o resto do jantar foi muito conveniente com respeito a Sua Alteza e ao seu ministro. Os prisioneiros, para quem estas reuniões, toleradas pelo regente, eram uma grande distracção, resolveram falar de outro assunto, e Gastão pôde dizer que um dos jantares mais encantadores e espirituosos a que assistira na sua vida, era o que Lhe tinham oferecido na Bastilha.

De resto a sua curiosidade achava-se vivamente excitada. Estava na presença de personagens cujos nomes eram duplamente célebres pelos antepassados ou pelos talentos e pela recente fama que acabava de Lhes dar a conspiração de Cellamare. E, coisa rara, todos esses personagens, homens da moda, grandes senhores, poetas ou gente de espírito, lhe pareceram à altura da sua reputação.

Quando terminou o jantar, o governador mandou reconduzir um por um cada prisio neiro, que Lhe agradeceu a sua gentileza, sem notar que não obstante a palavra dada, os dois aposentos contíguos à sala de jantar estavam cheios de guardas, e que durante a refeição os convivas eram tão vigiados que Lhes seria impossível entregar o mais insignificante bilhete. Mas Gastão não vira nada disso e permanecia deveras interdito. Esse regime de uma prisão de que só se falava com medo, esse contraste da cena que se passara duas horas antes na casa da tortura, onde o conduzira d'Argenson, com a que tivera lugar em casa do governador, tornava-Lhe confusas as ideias. Quando chegou a sua vez de retirar, cumprimentou o sr. de Launay, e, continuando a conversa no ponto em que a deixara de manhã, perguntou-lhe se Lhe seria possível obter navalhas de barba, instrumentos que Lhe pareciam de absoluta necessidade num local onde se encontrava tão boa e elegante companhia.

- Senhor de Chanlay - retorquiu o governador -, causa-me o maior desespero recusar-Lhe uma coisa de que compreendo a necessidade. Mas é contra todos os regulamentos da casa que os prisioneiros façam a barba, sem terem para isso licença do chefe da polícia. Passe ao meu gabinete, encontrará aí papel, penas e tinta. Escreva-Lhe, eu mandar-Lhe-ei a carta e não duvido que breve receberá a resposta que deseja.

- Mas - perguntou o cavaleiro -, esses senhores com quem jantei, tão bem vestidos e barbeados, têm privilégio?

- Não; foi-Lhes preciso pedir licença como o meu amigo vai fazer. O sr. de Richelieu, que viu tão bem penteado e barbeado, esteve durante um mês com uma barba que parecia um patriarca.

- Custa-me a conciliar essa severidade nos pequenos detalhes com a reunião cheia de liberdade a que acabo de assistir.

- Senhor - retrucou o governador -, também eu tenho os meus privilégios, que não vão a dar-lhe navalhas de barba, penas e livros, mas que me concedem a liberdade de convidar para a minha mesa os prisioneiros que desejo obsequiar; supondo todavia, acrescentou sorrindo o sr. de Launay, que esse convite seja um favor. É verdade que me é ordenado dar conta ao chefe da polícia das palavras que proferiam contra o governo; mas não Lhes permitindo falar em política, estou dispensado, como vê, de trair a hospitalidade da minha mesa. - E não receiam, senhor - perguntou Gastão -, que essa intimidade entre o senhor e os seus prisioneiros dê lugar da sua parte a uma indulgência que não esteja nas intenções do governo?

- Conheço os meus deveres e encerro-me nos seus mais estreitos limites. Tais como viu hoje os meus convidados e sem que um só pense em se queixar de mim, já passaram dos seus quartos para os cárceres, onde um deles jaz ainda. As ordens da corte, seguem-se e não se assemelham. Recebo-os, obsequeio-os, e os meus hóspedes, que sabem que isso não depende de mim, e que pelo contrário, lhes suavizo a existência o mais que posso, não me conservam rancor algum. Espero que fará outro tanto, senhor, se, o que não tenho razão para prever, me chegasse alguma ordem que não fosse segundo os seus desejos.

Gastão sorriu com melancolia.

- A precaução não é inutil, senhor, porque duvido que me deixem gozar por muito tempo do prazer que hoje experimentei. Em todo o caso prometo bani-lo por completo de todos os acontecimentos tristes que poderiam suceder-me.

- Tem certamente algum protector na corte? - perguntou o governador.

- Nenhum.

- Algum poder benéfico que vele sobre si?

- Não o conheço.

- Então, deve contar com o acaso.

- Nunca o achei bom.

- Mais uma razão para que se canse de Lhe ser adverso.

- E, além disso, sou bretão e na Bretanha só cremos em Deus.

- Imagine que foi o que eu quis dizer, quando falei no acaso.

Gastão fez o seu pedido e retirou-se perfeitamente encantado com as maneiras e o carácter do sr. de Launay.

 

COMO SE PASSAVA UMA NOITE NA BASTILHA ESPERANDO QUE AMANHECESSE

Na véspera, à noite, Gastão tinha-se informado se os prisioneiros podiam ter luz, e o carcereiro a quem interrogara tinha-Lhe respondido negativamente. Quando anoiteceu, e nessa época do ano isso acontece bem cedo, não perguntou mais nada e deitou-se. A sua visita de manhã à casa da tortura fora para ele uma grande lição de filosofia.

Portanto, ou fosse indiferença juvenil ou força de carácter, ou melhor ainda a necessidade imperiosa da natureza num organismo de vinte e cinco anos, adormeceu profundamente uns vinte minutos depois de ter se deitado.

Seria difícil ao cavaleiro dizer há quanto tempo dormia, quando foi subitamente acordado pelo timbre de uma campainha. Parecia achar-se no seu quarto, mas por mais que abrisse os olhos, não via a campainha nem quem a agitava; é verdade que estava muito escuro, mesmo de dia, no quarto do cavaleiro, e de noite, como é fácil presumir, o caso era bem pior ainda.

Contudo a campainha continuava a ouvir- se, tocando devagar e com precaução, como que temendo ser ouvida. Orientando-se, Gastão julgou notar que o som vinha da chaminé.

Levantou-se e aproximou-se do local onde a campainha deixava ouvir o seu som argentino. Não se havia enganado, era assim mesmo.

Quando estava ocupado a assegurar-se desse facto, ouviu bater no solo onde caminhava. Batiam com um instrumento contundente pancadas seguidas, interrompidas por intervalos regulares. Era evidente que a campainha e as pancadas no solo eram sinais e que lhe eram feitos pelos prisioneiros seus vizinhos. Para ver um pouco melhor, Gastão ergueu as cortinas de sarja verde que pendiam da janela e lhe interceptavam os raios da lua. Quando aFastou a cortina, viu um objecto pendente de um cordel que se agitava em frente das grades.

- Bem! - disse ele. - Parece que vou ter ocupação; mas cada um por sua vez. É preciso regularidade, principalmente na prisão. Vejamos primeiro o que me quer a campainha; compete-lhe a primazia.

E o moço voltou junto do fogão, e depressa viu um cordão donde estava segura a campainha. Puxou mas ela resistiu.

- Bem! - disse uma voz que lhe chegava pela chaminé. - Está aí?

- Sim - respondeu Gastão -, que quer de mim?

- Ora essa, o que quero! Quero conversar.

- Muito bem, nesse caso, conversemos.

- Estou falando com o sr. cavaleiro Gastão de Chanlay com quem tive a honra de jantar hoje em casa do sr. de Launay?

- Perfeitamente.

- Sou um seu criado.

-E eu o seu.

- Diga-me então, em que estado se acham os negócios da Bretanha?

- Como vê, senhor, estão na Bastilha.

- Bem! - retrucou a voz com um acento de que não pôde ocultar a alegria.

- Perdão - disse o cavaleiro -, mas que interesse tem no que se passa na Bretanha?

- É que - tornou a voz -, quando os negócios da Bretanha vão mal tratam-nos bem, e se prosperam, tratam-nos mal. Ainda um dia destes, a propósito de qualquer caso, que tinha, segundo pretendiam, ramificações com o nosso, fomos todos metidos nos cárceres.

- Ah! diabo! - disse de si para si Gastão. - Se não o sabe, sei-o eu. E acrescentou:

- Pois tranquilize-se, senhor. Vão mal e por isso tivemos a honra de jantar hoje juntos.

- Estará o senhor comprometido?

- Receio-o bem.

- Nesse caso, receba todas as minhas desculpas.

- Sou eu que lhe peço para aceitar as minhas. Mas tenho um vizinho aqui por baixo que se impacienta, e que bate de maneira a dar cabo do sobrado; permita-me que lhe responda.

- Não se detenha, senhor; tanto mais que se os meus cálculos topográficos forem exactos, deve ser o marquês de Pompadour.

- Não me deve ser fácil sabê-lo.

- Engana-se.

- Como assim?

- Bate de um modo singular, não é verdade?

- Sim, por acaso esse modo de bater oculta um sentido qualquer?

- Sem dúvida, é a nossa maneira de nos entendermos quando não temos a felicidade de comunicar directamente, como nos acontece neste momento.

- Tenha a bondade de me dar a chave do enigma.

- Não é difícil; cada letra tem o seu lugar no alfabeto, não é assim?

- É incontestável.

- Há vinte e quatro letras no alfabeto.

- Nunca as contei, mas confio no que me diz.

- Pois bem, uma pancada para o A, duas para o B, três para o c e assim sucessivamente.

- Compreendo; mas como essa maneira de corresponder deve ser muito demorada, e vejo em frente da minha janela um cordel que parece impacientar-se, vou bater uma ou duas pancadas para fazer compreender ao meu vizinho de baixo que o ouvi, e que vou ver o que contém o cordel.

- Vá, senhor, até Lho súplico; porque se não me engano esse cordel é muito importante para mim. Mas antes, bata três pancadas no solo; na linguagem da Bastilha significa paciência. O prisioneiro esperará então que lhe dê novo sinal.

Gastão bateu três pancadas com o pé da cadeira, e de facto não tornou a ouvir barulho algum.

Aproveitou esse momento para ir à janela. Não era coisa fácil atingir as grades metidas numa parede de cinco ou seis pés de espessura; chegando a mesa junto da janela, o rapaz conseguiu segurar uma mão na grade e com a outra agarrar o cordel. Pendia daí um embrulho que passou a custo pelas grades. Continha um boião de doce e um livro. Gastão viu que estava alguma coisa escrita num papel que envolvia o boião, mas não pôde ler por estar escuro. O cordel continuava a agitar-se, o que queria dizer que esperava uma resposta. Gastão lembrou-se do que Lhe ensinara o seu vizinho da campainha, pegou numa vassoura que vira num canto e que servia para matar as aranhas, e bateu três pancadas no chão. Devem lembrar-se que em linguagem da Bastilha, três pancadas queriam dizer paciência. O prisioneiro do embrulho compreendia esse sinal certamente, porque retirou o cordel.

Gastão voltou para a chaminé.

- Olá, senhor! - disse ele.

- Aqui estou.

- Acabo de receber por intermédio do cordel um livro e um boião de doce.

- Há alguma coisa escrita em qualquer desses objectos?

- No livro, não sei; no boião, tenho a certeza que sim. Infelizmente, não posso ler devido à escuridão.

- Espere - disse a voz -, vou mandar-lhe luz.

- Pensava que era proibido esse luxo aos prisioneiros.

- É, mas eu arranjei-a.

- Mande-ma então, senhor, porque estou impaciente por saber o que me escrevem. E como pensou que podia bem passar-se a noite em conversa com os vizinhos e não fazia calor naquele vasto aposento, Gastão começou a vestir-se às apalpadelas. Acabava de se arranjar, quando viu luz na chaminé. A campainha descia de novo, presa no cordão; mas transformara-se em lanterna. A transformação tinha-se operado da maneira mais simples: a campainha fora virada de modo a servir de recipiente e aí tinham posto azeite onde ardia uma pequena mecha. Gastão que não estava ainda habituado à vida da prisão e às descobertas que ela faz brotar do espírito, achou o meio tão engenhoso, que esqueceu momentaneamente o livro e o boião do doce.

- Senhor - disse ele ao seu vizinho -, poderei sem indiscrição perguntar-lhe como obteve os diferentes objectos com que fabricou essa lamparina?

- Nada mais simples, senhor: pedi uma campainha para chamar quando precisasse de alguém e concederam-ma sem diFiculdade; depois economizei o azeite do almoço e do jantar a ponto de ter uma garrafa cheia. Fiz mechas de um lenço; roubei um certo número de fósforos quando jantei com o governador e com uma faca que possuo Fiz este buraco por meio do qual nos correspondemos.

- Receba os meus cumprimentos, senhor - disse o cavaleiro -, tem excelentes ideias.

- Agradeço-Lhe o elogio; mas tem a bondade de ver que livro é que lhe enviam e se há alguma coisa escrita no boião de doce?

- O livro é um Virgílio.

- É isso mesmo; ela prometeu-mo! - exclamou a voz com uma expressão de felicidade que admirou o cavaleiro, que não podia compreender como um Virgílio podia ser esperado com tanta impaciência.

- Agora - disse o prisioneiro da campainha -, passe, se tem a bondade, ao boião de doce.

- Da melhor vontade - volveu Gastão que leu o seguinte:

"Senhor cavaleiro, soube pelo director da Bastilha que ocupa o quarto do primeiro andar, que tem uma janela perpendicular à minha; entre prisioneiros, devemo-nos auxílio e protecção; coma o doce, e faça passar pela chaminé o Virgílio que lhe remeto ao cavaleiro Dumesnil cuja janela dá para os pátios".

- É o que eu esperava - disse o prisioneiro da campainha -, e fui prevenido ao jantar que receberia esta mensagem.

- É então ao cavaleiro Dumesnil que falo? - perguntou Gastão.

- Sim, senhor, e um seu criado, rogo-lhe que acredite.

- Eu é que fico deveras obrigado pelo doce, creia que não o esquecerei.

- Nesse caso, tenha a bondade de desprender a campainha e colocar o Virgílio no seu lugar.

- Mas sem a campainha não poderá ler.

- Oh, não se inquiete, fabricarei outra lanterna!

Gastão que tinha confiança na habilidade do seu vizinho, não opôs dúvida alguma a prestar-se ao seu desejo; tirou a campainha, que meteu no gargalo de uma garrafa vazia, e prendeu no cordão o Virgílio, onde teve o cuidado de meter conscienciosamente uma carta que dele caíra. O cordão subiu imediatamente.

É incrível como na prisão todos os objectos parecem dotados de vida e de sentimento.

- Obrigado, senhor - disse o cavaleiro Dumesnil -, e agora se quer responder ao seu vizinho de baixo.

- Restitui-me a liberdade, não é assim?

- Sim, senhor, ainda que logo, já o previno, apelarei novamente para a sua bondade.

- Às ordens, senhor, mas diga-me com respeito às letras do alfabeto...

- Uma pancada para o A, vinte e quatro pancadas para o Z.

- Muito obrigado.

O cavaleiro bateu com o pau da vassoura uma pancada no solo, a fim de prevenir o vizinho de baixo que estava pronto a ouvi-lo.

Este que, sem dúvida esperava o sinal com impaciência, respondeu imediatamente com outra pancada. Passada meia hora de pancadas trocadas, os dois prisioneiros tinham conseguido dizer o seguinte:

- Boa noite, senhor, como se chama?

- Sou o cavaleiro Gastão de Chanlay.

- E eu o marquês de Pompadour.

Neste momento, Gastão voltou por acaso os olhos para a janela, e viu o cordel agitando-se de um modo convulsivo.

Bateu as três pancadas, sinal de convite para ter paciencia, e voltou ao seu prisioneiro do fogão.

- Senhor - disse a Dumesnil -, tenho a honra de Lhe observar que o cordel da janela parece aborrecer-se prodigiosamente.

- Diga-lhe para ter paciencia, já o atendo. Gastão renovou no tecto, o mesmo manejo que efectuara no solo e voltou ao fogão. Passado um momento, o Virgílio desceu.

- Senhor - disse Dumesnil -, tenha a bondade de prender o Virgílio no cordel: é o que ela espera.

Gastão teve a curiosidade de ver se o cavaleiro tinha respondido à menina de Launay. Abriu o Virgílio: não havia dentro carta alguma, mas algumas palavras estavam marcadas com um traço a lápis, e o rapaz pôde ler: "meos amores e carceris oblivia longa". Compreendeu esse modo de corresponder, que consistia em escolher o capítulo de um livro, e sublinhar as palavras que, seguindo-se, apresentavam um sentido. O cavaleiro Dumesnil e a menina de Launay tinham escolhido, como plenamente análogo à circunstância, e como aquele que podia fornecer-Lhes maior número de palavras em harmonia com o estado dos seus corações, o quarto livro da "Eneida", que trata, como todos sabem, dos amores de Dido e de Eneas.

- Bom - disse Gastão abrindo a janela e atando o Virgílio no cordel -, parece que me tornei a caixa do correio.

E soltou um profundo suspiro pensando que só ele não tinha meio algum de se corresponder com Helena, e que a pobre criança ignorava por completo o que era feito dele. Esse pensamento ainda o tornou mais interessado pelos amores da menina de Launay e do cavaleiro Dumesnil; voltou pois junto do fogão e disse:

- Senhor, pode Ficar sossegado; a sua resposta está entregue.

- Ah, mil vezes obrigado, cavaleiro, agora mais uma palavra e deixá-lo-ei dormir sossegado.

- Oh, sem cerimónia, senhor; já dormi um pouco; fale sem receio.

- Já falou com o seu vizinho de baixo?

- Já.

- Quem é?

- É o marquês de Pompadour.

- Bem me parecia. Que lhe disse ele?

- Deu-me as boas noites e perguntou-me o meu nome. Não teve tempo para mais. Este modo de corresponder é engenhoso, mas pouco rápido.

- Precisa abrir um buraco no solo e depois corresponder-se-ão directamente como nós fazemos.

- Abrir um buraco, e com quê?

- Vou emprestar-lhe a minha faca.

- Obrigado.

- Ainda que só sirva para o distrair, já é alguma coisa.

- Dê-ma.

- Ei-la.

E a faca caindo pela chaminé foi ter aos pés de Gastão.

- Agora, quer que lhe devolva a sua campainha? - perguntou o cavaleiro.

- Sim, porque amanhã de manhã os meus guardas, quando fizerem a sua visita, verão que me falta, e parece-me que não precisa de luz para conversar com Pompadour.

- Não, com certeza.

E a campainha, ainda transformada em lanterna, subiu pela chaminé.

- Deve ser-Lhe necessário - disse o cavaleiro -, alguma coisa para beber com o doce, e vou enviar-lhe uma garrafa de vinho de Champanhe.

- Obrigado - retrucou Gastão -, não se prive por minha causa, não sou grande apreciador.

- Passá-lo-á então quando o buraco estiver feito, a Pompadour, que, nesse assunto é a sua antítese. Olhe, aqui a tem.

- Obrigado, cavaleiro.

- Boa noite!

- Boa noite!

E o cordão subiu.

Gastão olhou ainda para a janela; o cordel já não estava lá.

- Ah! - disse ele suspirando. - A Bastilha seria um paraíso para mim, se eu estivesse no lugar do cavaleiro Dumesnil e a minha pobre Helena no da menina de Launay. Em seguida reatou com Pompadour uma conversa que durou até às três horas da manhã, e em que o informou que ia fazer um buraco no solo para terem uma comunicação mais directa.

 

           UM COMPANHEIRO DE BASTILHA

Ocupado desta maneira, de dia pelos interrogatórios e à noite pela correspondência com os vizinhos, fazendo, nos intervalos, um buraco a fim de comunicar com Pompadour, Gastão estava mais inquieto do que aborrecido. De resto, descobrira uma outra fonte de distrações. A menina de Launay, que obtinha tudo quanto desejava do capitão Maison-Rouge, contanto que pedisse as coisas com um meigo sorriso, tinha obtido papel e penas; enviara parte ao cavaleiro Dumesnil, o qual partilhara o seu tesouro com Gastão, com quem continuava a comunicar, e com Richelieu com quem conseguira igualmente corresponder-se. Ora, Gastão tivera a ideia (os bretões são mais ou menos poetas), de fazer versos a Helena. O cavaleiro Dumesnil fazia-os à menina de Launay, que os mandava também ao cavaleiro; de tal modo que a Bastilha tornara- se um verdadeiro Párnaso. Apenas Richelieu desonrava a sociedade escrevendo prosa que distribuía pelos amigos e pelos amorosos. O tempo passava portanto e aliás, o tempo passa sempre, mesmo na Bastilha.

Tinham perguntado a Gastão se lhe agradaria assistir à missa, e como, além da distração que devia procurar-lhe, o jovem era essencialmente religioso, aceitara da melhor vontade. A missa, na Bastilha, celebrava-se numa pequena igreja, tendo, em vez de altares, cubículos separados, que deixavam ver por uma clarabóia o coro, de sorte que o prisioneiro só via o sacerdote no momento da elevação e de costas e este nunca via os prisioneiros.

Tinham imaginado esse modo de assistir ao ofício divino no reinado do grande rei, porque um dia um dos presos havia interpelado o padre e fizera-lhe revelações públicas.

Gastão viu na missa o conde de Laval e o sr. de Richelieu, que tinham pedido para assistir ao ofício divino não como Gastão, por um sentimento religioso, mas, segundo parecia, para conversarem, porque ajoelhados perto um do outro, não paravam de falar em voz baixa. O sr. de Laval parecia ter notícias muito importantes a comunicar ao duque, e de vez em quando este olhava para Gastão, o que provava que ele não era estranho àquelas notícias.

Contudo, como nem um nem outro lhe dirigiram a palavra senão para lhe fazer os cumprimentos que ordena a delicadeza, Gastão não lhes dirigiu pergunta alguma.

Acabada a missa, os prisioneiros voltaram aos seus quartos; quando atravessava um corredor escuro, Gastão encontrou-se com um homem que parecia empregado da prisão e que Lhe entregou um bilhete. Gastão maquinalmente meteu-o no bolso do casaco. Mas logo que chegou ao quarto e viu a porta fechar-se, abriu-o sem demora. Era um papel ordinário escrito com a ponta de um carvão, e continha esta única linha:

"Finja-se doente de aborrecimento. "

Pareceu primeiro a Gastão que a letra não Lhe era desconhecida; mas estava tão mal traçada que era impossível que os caracteres que tinha sob os olhos pudessem servir de guia às suas " recordações.

Quando anoiteceu, fez o sinal combinado, o cavaleiro foi para o seu posto e Gastão narrou-lhe o que se tinha passado, perguntando a Dumesnil, que conhecia melhor a Bastilha, o que pensava do conselho que lhe tinham dado.

- Na verdade - retorquiu o cavaleiro -, embora não saiba onde o conselho possa levá-lo, siga-o sempre, porque não poderá prejudicá-lo. Dar-lhe-ão talvez menos alimento, mas é o pior que Lhe podem fazer.

- Mas se notarem que a doença é fingida?

- Oh, quanto a isso não oferece perigo, o cirurgião da Bastilha é perfeitamente ignorante em medicina e não dará por coisa alguma; talvez Lhe permitam o passeio no jardim e será feliz, porque é uma grande distração.

Gastão não se contentou com aqueles conselhos e consultou a menina de Launay, a qual, ou por lógica ou por simpatia, foi exactamente do mesmo parecer que o cavaleiro. Apenas acrescentou:

- Se o puserem a dieta, diga-me, e mandar-lhe-ei galinhas, doce e vinho de Bordéus. Quanto a Pompadour não respondeu coisa alguma; o buraco ainda não estava feito. Gastão fingiu-se portanto doente, não comendo nada do que lhe levavam, e vivendo das liberalidades da sua vizinha, cujos oferecimentos aceitara. No fim do segundo dia o sr. de Launay foi visitá-lo. Tinham-Lhe dito que há quarenta horas que Gastão não comia. Encontrou o prisioneiro na cama.

- Acabo de saber que está doente - disse ele -, e venho informar-me do que sofre.

- É demasiado bom - tornou Gastão. - É certo que me sinto doente. - Que tem? - perguntou o governador.

- Realmente, senhor, não me parece que tenha grande amor pelo seu castelo: aborreço-me na Bastilha.

- É possível! Há quatro ou cinco dias que aqui está.

- Aborreci-me logo que entrei.

- E que espécie de aborrecimento experimenta?

- Há diferentes?

- Sem dúvida; saudades da família.

- Não a tenho.

- Da amante?

Gastão soltou um suspiro. - Da terra onde nasceu?

- Sim, é isso - respondeu Gastão, sentindo que devia dizer alguma coisa. O governador pareceu reflectir durante um momento.

- Senhor - disse por fim -, desde que sou governador da Bastilha, declaro que os únicos momentos agradáveis que aqui tenho passado são aqueles em que tenho podido prestar algum serviço aos cavalheiros que o rei confia aos meus cuidados. Estou portanto pronto a ser-Lhe útil se me prometer tornar-se razoável.

- Prometo-Lhe, senhor.

- Posso pô-lo em relações com um compatriota seu, ou pelo menos com alguém que segundo depreendi conhece perfeitamente a Bretanha.

- E é prisioneiro como eu?

- Exactamente.

Acudiu ao espirito de Gastão uma vaga ideia de quem era esse compatriota, de quem o sr. de Launay lhe falava, que Lhe escrevera o bilhete recomendando-lhe que se fingisse doente.

- Se quer prestar-me esse favor - tornou Gastão -, ficar-Lhe-ei muito reconhecido.

- Pois bem, amanhã, irá vê-lo; mas como me foi recomendado empregar a maior vigilância a seu respeito, só poderá passar uma hora com ele; e como Lhe é absolutamente proibido sair do seu quarto irá o senhor visitá-lo.

- Farei tudo quanto desejar - prometeu Gastão.

- Está portanto decidido; amanhã às cinco horas espere-me; se não puder vir mandar-lhe-ei o director da prisão; mas há-de prometer- me uma coisa.

-O que é?

- Que na expectativa dessa distração, comerá alguma coisa.

- Farei o que puder.

Gastão comeu um pouco de galinha e bebeu dois dedos de vinho para cumprir o que prometera ao sr. de Launay.

À noite deu parte ao cavaleiro Dumesnil do que se passara.

- Com efeito - disse este -, é bem feliz; ao conde de Laval ocorreu-Lhe essa mesma ideia, e a única coisa que obteve, foi ser transportado para um quarto da torre do Tesouro, onde se aborrecia mortalmente, não tendo outra distração senão a de conversar com um boticário da prisão.

- Diabo! Porque não me disse isso mais cedo?

- Tinha-o esquecido.

Esta lembrança tardia do cavaleiro perturbara um pouco Gastão. Colocado como se encontrava entre a menina de Launay, o cavaleiro Dumesnil e o marquês de Pompadour, com quem ia entrar incessantemente em relações, a sua posição seria tolerável, se não estivesse tão inquieto com respeito a Helena. Se o transportassem para outro local seria fatalmente atacado pela doença que fingira. À hora combinada, o director da Bastilha, seguido por um carcereiro, foi buscar Gastão, a quem fez atravessar diferentes pátios, e que por fim parou com os seus companheiros em frente da torre do Tesouro. Cada torre, como se sabe, tem um nome particular.

No quarto número um achava-se um prisioneiro junto do qual introduziram Gastão. Esse homem, com as costas viradas para a claridade, dormia vestido em cima da cama. Os restos do seu jantar estavam ainda sobre uma mesa de madeira carunchosa, e a roupa, rasgada em diferentes lugares, indicava um homem ordinário.

- Que tal - pensou Gastão -, julgaram que eu amava a tal ponto a Bretanha, que o primeiro grosseirão que aparecesse, por ser de Rennes ou de Penmark, podia ser elevado à categoria de meu amigo? Oh, não é tanto assim; este parece-me esfarrapado demais e comi lão; mas como afinal de contas não se pode ser muito exigente na Bastilha, tentemos travar conhecimento com ele. Contarei a aventura à menina de Launay que a rimará para o cavaleiro Dumesnil.

O director e o carcereiro retiraram-se e Gastão ficou só com o prisioneiro, que começou por se espreguiçar demoradamente, depois bocejou três ou quatro vezes, virou-se, procurou ver quem estava no quarto, e fez gemer o leito sob o seu peso.

- Que frio que faz nesta maldita Bastilha - murmurou ele coçando furiosamente o nariz.

- Esta voz, este gesto! - pensou Gastão. - Mas é ele realmente, não me engano.

E acercou-se do leito.

- Ora esta! - disse o prisioneiro sentando-se na cama e olhando atónito para Gastão.

- O senhor de Chanlay aqui?

- O capitão La Jonquiére! - exclamou o cavaleiro.

- Eu mesmo, isto é, não, já não uso esse nome.

- Então como se chama agora?

- "Primeiro Tesouro."

- O que disse?

- "Primeiro Tesouro", um seu criado. É uso na Bastilha, o prisioneiro tomar o nome do seu quarto; isso evita aos carcereiros o incómodo de se recordarem de nomes que não precisam saber e que seria perigoso para eles não esquecerem.

- Sim, compreendo - retrucou Gastão, que olhara fixamente para La Jonquiére durante toda aquela explicação -, ei-lo então prisioneiro?

- Como vê. Presumo que nem o senhor nem eu estamos aqui por gosto.

- Fomos então descobertos?

- Receio-o bem.

- Graças a si.

- Como, a mim! - exclamou La Jonquiére fingindo o maior espanto. - Não gracejemos, peço-lhe.

- Fez revelações, é um traidor!

- Eu? Ora vamos rapaz, está doido, e não era na Bastilha que o deviam ter metido mas no manicómio!

- Não negue, o sr. d'Argenson disse-me.

- O sr. d'Argenson! Ah, com a breca! E sabe o que ele me disse?

- Não.

- Que o senhor me havia denunciado.

- Senhor!

- E então! Não nos havemos de matar porque a polícia fez o seu mister mentindo desaforadamente!

- Mas enfim, o que a levou a descobrir.

- É o que lhe pergunto também. Mas há um facto, é que se eu tivesse dito alguma coisa, não estava aqui. Conhece-me pouco; mas todavia já deve ter adivinhado que não sou suficientemente tolo para fazer confissões grátis. As revelações vendem-se e bem nos tempos que correm, e sei algumas que Dubois comprou ou teria comprado por bom dinheiro.

- Talvez tenha razão - disse de Chanlay, depois de haver reflectido. - Entretanto aben çoemos o acaso que nos reúne.

- Assim farei.

- Todavia não parece muito contente.

- E confesso que não estou.

- Capitão.

- Ah, meu Deus! Que péssimo carácter que tem.

- Eu?

- Sim. Está sempre irado. Gosto da minha solidão; ao menos é uma coisa que não fala.

- Senhor!

- Ainda! Ora, escute-me. Acredita, como diz, que fosse o acaso que nos reuniu?

- E quem havia de o fazer?

- Ora! Alguma combinação ignorada pelos nossos carcereiros, de d'Argenson, de Dubois, talvez.

- Não foi o senhor que me escreveu um bilhete?

- Um bilhete? Eu?

- Em que me dizia que me Fingisse doente de tédio.

- E como havia de escrever isso? Com quê? - Gastão reflectiu um momento durante o qual La Jonquiére o examinou com o seu olhar vivo e perscrutador.

- Pois eu creio - tornou o capitão passado um momento -, que é a si que devemos o prazer de nos encontrarmos reunidos na Bastilha.

- A mim?

- Sim, cavaleiro, confia em todos muito facilmente. Faço-lhe esta observação para o caso em que saia daqui, e principalmente se tiver de aqui ficar.

- Obrigado.

- Notou se era seguido?

- Não.

- Quando se conspira, meu caro, nunca se deve olhar para a frente, mas para trás.

Gastão confessou que nunca pensara em semelhante coisa.

- E o duque - perguntou La Jonquiére -, foi preso?

- Nada sei. Ia fazer-Lhe essa pergunta.

- Seria deveras inquietador. Levou uma jovem para casa dele.

- Como sabe?

- Ora, meu caro, tudo se sabe. Tàlvez fosse ele que falasse. Ah, meu caro cavaleiro, as muLheres! As mulheres!

- Aquela a quem se refere tem um grande carácter. E respondo pela sua discrição, coragem e dedicação como por mim próprio.

- Sim, compreendo: ama-la, portanto, é mel e ouro. Diabo de conspirador que o senhor é, lembrar-se de levar mulheres para casa do chefe da conspiração!

- Em primeiro lugar não lhe confiei coisa alguma e não sabe nenhum dos meus segredos.

- As mulheres são muito espertas.

- E embora soubesse os meus projectos contra mim mesmo, estou convencido que nada diria a esse respeito.

- Ora, senhor, sem contar a disposição natural que as mulheres têm para falar, é fácil obrigá-las a isso. Ter-lhe-ão dito à queima roupa: O seu noivo, senhor de Chanlay, vai ser executado, o que, aliás, é muito possível, seja dito entre parêntesis, cavaleiro, se não der algumas explicações, e aposto que a esta hora ainda está falando.

- Não há perigo, ama-me muito.

- Será por isso mesmo que terá falado de mais, e nos achamos nesta gaiola. Enfim, não falemos mais nisso. O que faz aqui?

- Divirto-me.

- Diverte-se! Ah! isto é que é ter sorte! E em quê?

- A fazer versos, a comer doce e a furar o solo.

- Faz buracos na prisão do rei? - disse La Jonquiére coçando o nariz. - Oh, oh! É bom saber-se. E o sr. de Launay não se zanga?

- O sr. de Launay ignora-o; de resto, não sou só eu, todos aqui fazem algum dano, uns fazem buracos no chão, outros na chaminé, outros na parede. E o senhor aqui não se entrega a esse mister?

La Jonquiére fitou Gastão para ver se não caçoava com ele.

- Dir-lhe-ei mais tarde. Mas vamos, falemos seriamente, senhor Gastão, está condenado à morte?

- Eu?

- Sim, o senhor!

- Como diz isso.

- Mas é o costume da Bastilha; acham-se aqui vinte condenados à morte que não passam pior por esse motivo.

- Fui interrogado.

- Já se vê...

- Não creio porém que já esteja condenado.

- Sê-lo-á a seu tempo.

- Meu caro capitão, sabe que dá uma alegria louca conversar consigo?

- Acha?

- Sim.

- E admira-se?

- Não o sabia tão intrépido.

- Nesse caso, teria pena de morrer?

- Confesso-o, porque para ser feliz só precisava de uma coisa, que é viver.

- E fez-se conspirador tendo probabilidades de alcançar a felicidade? Já não o compreendo. Julguei que só se conspirava em pleno desespero, como se casa quando não se tem

outro recurso.

- Quando entrei nesta conspiração ainda não amava.

- E depois de ter entrado?

- Não quis abandoná-la.

- Bravo! Chama-se a isso ter carácter. Sujeitaram-no à tortura?

- Não; mas pouco faltou.

- Ainda há-de sofrê-la.

- Porquê?

- Porque eu sofri-a, e seria injustiça tratarem-nos de modo diferente. Veja em que estado os danados me puseram a roupa.

- Que tortura lhe deram? - perguntou Gastão estremecendo ainda com a ideia do que se passara entre ele e d'Argenson.

- A da água. Fizeram-me beber barril e meio. Nunca imaginei que se pudesse aguentar tanto líquido sem rebentar.

- E sofreu muito? - perguntou Gastão com interesse em que havia grande ansiedade pessoal.

- Sim, mas possuo um temperamento robusto; no dia seguinte, já nem pensava em tal.

É verdade que desde então tenho bebido muito vinho. Se lhe aplicarem a tortura e lhe derem a escolher, prefira a água, que limpa. Todas as bebidas que nos dão quando estamos doentes, são apenas um pretexto para que bebamos água. Fagon disse que o maior médico de que ouviu falar era o doutor Sangrado. Infelizmente nunca existiu senão no cérebro de Cervantes; se não fosse assim, teria operado milagres.

- Conhece Fagon? - perguntou Gastão atónito.

- Com o diabo! De reputação. Aliás, li as suas obras... E tenciona persistir em não dizer coisa alguma?

- Sem dúvida.

- Tem razão. Aconselhá-lo-ia, se tem tanta pena da vida como há pouco disse, a dizer algumas palavras em particular a d'Argenson; mas é um tagarela, que iria revelar a sua confissão a toda a gente.

- Calar-me-ei, senhor, fique tranquilo. Há casos em que não admito conselhos.

- Creio-o bem! Parece que leva uma vida de Sardanapalo na sua prisão. Nesta torre, só tenho o sr. conde de Laval, que faz três irrigações por dia. É um divertimento inventado por ele. São singulares os gostos na prisão. E demais, talvez o excelente homem se queira habituar á à tortura da água!

- Mas - tornou Gastão -, não me disse há pouco que eu seria certamente condenado?

- Quer saber toda a verdade?

- Sim.

- Pois bem; d'Argenson disse-me que já o estava.

Gastão empalideceu; por muito corajoso que se seja, uma notícia assim produz sempre alguma comoção. La Jonquiére notou esse sentimento, por muito ligeiro que fosse.

- Todavia - disse ele -, creio que salvaria a vida se fizesse algumas revelações.

- Porque quer que eu faça o que o senhor não fez?

- Os caracteres são diferentes e as posições: eu já não sou novo; não estou apaixonado; não deixo ninguém chorando por mim.

Gastão suspirou.

- Bem vê - continuou La Jonquiére -, que somos bem diferentes. Quando é que me ouviu suspirar como o meu amigo acaba de fazer?

- Se eu morrer - retrucou Gastão -, Sua Excelência olhará por Helena.

- E se for preso também?

- Tem razão, nesse caso Deus velará por ela.

La Jonquiére coçou o nariz.

- Decididamente, é muito moço - disse ele.

- Explique-se.

- Supunhamos que o duque não seja preso.

- E então?

- Que idade tem Sua Excelência?

- Quarenta e cinco ou quarenta e seis anos, presumo eu.

- Suponha que Sua Excelência se apaixona por Helena; não é assim que ela se chama?

- O duque apaixonado por Helena! Seria uma infâmia!

- O mundo está cheio delas!

- Oh! Nem quero pensar em semelhante coisa.

- Não Lhe digo que pense. - tornou La Jonquiére com um diabólico sorriso. - Apresento-Lhe a ideia, faça o que quiser.

- Silêncio, disse Gastão - vem gente!

- Pediu alguma coisa?

- Eu? Nada!

- Nesse caso é que já decorreu o tempo permitido para a sua visita.

E La Jonquiére atirou-se precipitadamente para cima da cama.

Correram-se os ferrolhos, abriu-se uma porta, depois outra e afinal o governador apareceu.

- Então, senhor - disse este dirigindo-se a Gastão - agrada-Lhe o companheiro?

- Sim - retrucou o cavaleiro -, tanto mais que já conhecia o capitão La Jonquiére.

- O que me diz - volveu o sr. de Launay, sorrindo -, torna-me a minha missão mais delicada.

Mas contudo, visto que Fiz um oferecimento, não voltarei com a palavra atrás. Permitirei uma visita por dia, à hora que Lhe convier. Fixe a hora; quer de manhã ou de tarde?

Gastão não sabendo o que responder, olhou para La Jonquiére.

- Diga às cinco horas da tarde - disse rapidamente e em voz baixa La Jonquiére a Gastão.

- De tarde, às cinco horas - disse Gastão.

- Como hoje?

- Exactamente.

- Está bem; será feito como deseja.

Gastão e La Jonquiére trocaram um olhar significativo, e o cavaleiro foi reconduzido ao seu quarto.

 

             A SENTENÇA

Eram seis horas e meia e portanto a escuridão era absoluta. O primeiro cuidado do moço quando se viu no seu quarto, foi correr ao fogão.

- Olá, cavaleiro! - disse ele.

Dumesnil respondeu.

- Fiz a minha visita.

- E daí?

- Encontrei, se não um amigo, pelo menos um conhecido.

- Um prisioneiro novo?

- Deve ter vindo ao mesmo tempo que eu.

- Como se chama?

- O capitão La Jonquiére.

- Parece-me que o conheço.

- Oh, nesse caso preste-me um grande serviço; quem é?

- Um inimigo encarniçado do regente.

- Tem a certeza?

- Ora essa! Fez parte da nossa conspiração e retirou-se porque se tratava de raptar e não de assassinar.

- Optava pelo assassínio?

- Justamente.

- É assim mesmo - murmurou Gastão. E ajuntou em voz alta: - É homem em quem qualquer um se pode fiar.

- Se é o mesmo de quem ouvi falar, e que morava na Rua de Bourdonnais na hospedaria do "Mind-de-Amor".

- É exactamente.

- Nesse caso é um homem de confiança.

- Tanto melhor - retorquiu Gastão -, porque tem nas mãos a vida de quatro valentes fidalgos.

- Sendo o senhor um deles? - disse Dumesnil.

- Engana-se - volveu Gastão -, pus-me de parte, porque segundo parece para mim está tudo acabado.

- Como! Tudo acabado?

- Sim, condenaram-me à morte.

Houve um momento de silêncio entre os dois prisioneiros.

- É impossível! - exclamou Dumesnil.

- E porquê?

- Porque, se bem compreendi, o seu caso liga-se ao nosso, não é verdade?

- É o seguimento.

- E então.

- Continue.

- O nosso caso ia em bom caminho, o seu não pode ir mal.

- E quem Lhe deu essa informação?

- Escute; porque para si, meu caro vizinho, para si que consentiu em ser nosso intermediário, já não temos segredos.

- Escuto-o - disse Gastão.

- Eis o que a menina de Launay me escreveu ontem. Passeava com Maison-Rouge, que, como sabe, está apaixonado por ela, e de quem ambos zombamos, mas que poupámos por nos ser de utilidade, e como, sob pretexto de doença, pedira um médico, ele preveniu-a que o da Bastilha estava às ordens dela. Ora, devo dizer-lhe, que conhecemos de um modo bastante íntimo, esse médico da Bastilha, que se chama Herment. Contudo não esperava obter dele grande coisa, porque é muito tímido e medroso. Quando entrou no jardim onde a menina de Launay passeava, e ao mesmo tempo que Lhe dava a consulta ao ar livre, disse-lhe: "Espere! " Na boca de qualquer outro, esta palavra nada era; na de Herment é muito. Ora, do momento que ele nos diz para esperar, nada temos que temer, visto que os nossos dois casos se ligam tão intimamente.

- Contudo - respondeu Gastão -, a quem a palavra parecia muito vaga, La Jonquiére parecia certo do que dizia.

Neste momento, Pompadour bateu com o pau da vassoura.

- Perdão - disse o cavaleiro a Dumesnil -, mas o marquês chama- me; talvez tenha alguma novidade a dar-me.

E dirigiu-se ao buraco que tinha feito no chão.

- Tenha a bondade, cavaleiro - disse Pompadour -, de perguntar a Dumesnil se sabe alguma coisa de novo por intermédio da menina do Launay.

- A respeito de quê?

- A respeito de um de nós. Surpreendi algumas palavras que o director e o governador trocaram junto da minha porta, ouvi as seguintes: "condenado à morte"!

Gastão estremeceu.

- Tranquilize-se, marquês - disse ele -, tudo me leva a crer que se trata de mim.

- Diabo, meu caro amigo, isso não me tranquilizaria absolutamente nada! Em primeiro lugar, porque travámos conhecimento, e na prisão a amizade vem depressa, o que quer dizer que ficaria desesperado se lhe sucedesse alguma coisa; depois, porque o que lhe acontecesse, podia acontecer-nos igualmente, dada a semelhança dos nossos dois casos.

- E acredita que a menina de Launay poderá tirar-nos desta incerteza? - perguntou Gastão.

- Sem dúvida; as suas janelas dão para o arsenal.

- E que tem isso?

- Deve ter visto se se passou hoje qualquer facto anormal.

- Não podia ser mais a propósito - tornou Gastão -, está batendo. De facto, a menina de Launay batia duas pancadas no tecto, o que queria dizer:

- Atenção!

O cavaleiro respondeu batendo uma pancada, o que significava:

- Escuto!

Depois foi abrir a janela. Passado um momento, o cordão desceu com uma carta. O cavaleiro puxou-o, pegou na carta, e foi novamente para junto do buraco onde falava Pompadour.

- Então? - disse o marquês.

- É uma carta - retrucou Gastão.

- O que diz?

- Não sei; mas vou passá-la ao cavaleiro Dumesnil que me dirá.

- Avie-se.

- É inutil a recomendação. Creia que tenho tanta pressa como o meu amigo. E correu ao fogão.

- O cordão! - gritou ele.

- Tem uma carta? - perguntou Dumesnil.

- Sim. Pode arranjar luz?

- Acabo de acendê-la.

- Desça então o cordão, depressa.

- Ei-lo.

Gastão atou a carta, que subiu imediatamente.

- A carta não é para mim, é para si - disse Dumesnil.

- Não importa. Tenha a bondade de a ler. Dir-me-á o que contem; não tenho luz e perderia muito tempo em a descer.

- Permite?

- Ora essa!

Houve um momento de silêncio.

- E então? - disse o cavaleiro.

- Diabo! - respondeu Dumesnil.

- Más notícias, não é verdade?

- Julgue por si mesmo.

E leu:

"Meu caro vizinho.

"Chegaram esta tarde juízes extraordinários ao Arsenal mandados por d'Argenson. Saberemos logo mais alguma coisa, porque vou receber a visita do médico. Dê da minha parte muitas recomendações a Dumesnil. "

- Foi o que me disse La Jonquiére - tornou Gastão. - Juízes extraordinários; foi a mim que julgaram.

- Ora, cavaleiro - tornou Dumesnil com uma voz que tentava inutilmente mostrar serenidade -, creio que se assusta sem motivo.

- Não, sei bem do que se trata; e veja!

- O quê?

- Vem gente. Silêncio.

E Gastão afastou-se vivamente.

Abriu-se a porta: o director e o capitão, escoltados por quatro soldados iam buscar o prisioneiro. Fizeram-no entrar para uma cadeirinha bem fechada.

O rosto de d'Argenson estava carrancudo como de costume. Os magistrados que o acompanhavam não tinham melhor aspecto.

- Estou perdido - murmurou Gastão. - Pobre Helena!

Depois ergueu a cabeça com a intrepidez de um homem corajoso que, sabendo que a morte se aproxima, a encara frente a frente.

- Senhor - disse d'Argenson -, o seu crime foi examinado pelo tribunal a que presido. Permitiram-Lhe nas sessões precedentes defender-se. Se não julgaram a propósito conceder-Lhe um advogado, não foi com o fim de prejudicar a sua defesa, mas pelo contrário, porque é inútil publicar a seu respeito a extrema indulgência de um tribunal encarregado de ser severo.

- Não o compreendo, senhor - volveu Gastão.

- Serei então mais claro - tornou o chefe de polícia. - Os debates mostrariam, mesmo

ao seu defensor, uma coisa incontestável, que é um conspirador e um assassino. Como queria

que, estabelecidos estes dois pontos, se usasse de indulgência para consigo? Mas está na nossa

presença; terá todas as facilidades para a sua justificação; se pedir um adiamento, tê-lo-á; se

desejar que se revejam as peças do processo, rever-se-ão; se quiser falar, ninguém Lhe retirará

a palavra.

- Compreendo a benevolência do tribunal - respondeu Gastão -, e agradeço. Demais,

a desculpa que me apresentam pela ausência de um defensor, de que careço, parece-me suficiente. Não tenho que me defender.

- Não quer portanto testemunhas, nem revisão do processo, nem adiamento?

- Quero a sentença e nada mais.

- Vamos - continuou Argenson para seu bem, cavaleiro, não teime dessa maneira, e faça algumas declarações.

- Não tenho nada a dizer; porque notem que em todos os meus interrogatórios, nem

sequer formularam uma acusação precisa.

- E queria uma?

- Confesso que não me desagradaria saber de que me acusam.

- Pois vou dizer-Lhe; veio a Paris, enviado pela comissão republicana de Nantes, a fim de

assassinar o regente. Mandaram-no procurar um tal La Jonquiére, seu cúmplice, que também foi condenado.

Gastão tornara-se pálido, porque eram verdadeiras todas aquelas acusações.

- Mesmo que fosse assim, como podia sabê-lo; quem quer cometer uma tal acção não a confessa senão depois de cometida.

- Sim, mas os seus cúmplices confessam-na.

- É o mesmo que dizer que La Jonquiére me denunciou.

- La Jonquiére! Não se trata dele, mas dos outros acusados.

- Dos outros acusados! - exclamou Gastão. - Há mais alguém preso além do capitão La Jonquiére e de mim?

- Há os senhores de Pontcalec, de Talhouet, de Couédic e de Montlouis.

- Não compreendo - retorquiu Gastão com um vago e profundo sentimento de terror, não por si, mas pelos seus amigos.

- Ora essa! Não compreende que esses senhores que nomeei foram presos e que são processados neste mesmo momento em Nantes?

- Presos, eles! - exclamou Gastão. - Impossível!

- Ah, parece-lhe - tornou d'Argenson. - Julgava que a província se revoltaria antes do que deixar prender os seus defensores, como os rebeldes dizem. Pois a província nada disse, continua a rir, a cantar, a dançar. Informam-se já da praça de Nantes em que serão decapitados, a fim de alugarem aí janelas.

- Não acredito, senhor - disse friamente Gastão.

- Dê-me essa pasta - disse d'Argenson a uma espécie de escrivão que se conservava de pé atrás dele.

- Aqui estão, senhor - continuou o chefe de polícia tirando sucessivamente da pasta diferentes papéis. - As ordens de prisão, seguidas dos processos verbais. Duvida ainda?

- Nada disso me prova que me tenham acusado.

- Disseram tudo que desejávamos saber, a sua culpabilidade resulta claramente dos seus interrogatórios.

- Nesse caso, se eles disseram tudo que desejavam saber, não precisam das minhas declarações.

- É a sua resposta deFinitiva, senhor?

- Escrivão, leia a sentença.

O escrivão desenrolou um papel e leu com uma voz fanhosa o que se segue: "Visto resultar do processo instaurado a 19 de Fevereiro, que o sr. Gastão de Chanlay veio de Nantes a Paris com a intenção de cometer, na pessoa de Sua Alteza Real monsenhor e regente de França, um crime de assassínio, que devia ser seguido da revolta contra a autoridade do rei, a comissão extraordinária instituída para conhecer esse crime, julgou o cavaleiro de Chanlay digno do castigo reservado aos culpados de alta traição e de lesa-majestade, sendo a pessoa do sr. regente inviolável, por ser pessoa real.

"Em consequencia:

"Ordenamos que o sr. cavaleiro Gastão de Chanlay seja primeiramente privado dos seus títulos e dignidades; declarado ignóbil assim como toda a sua posteridade, os seus bens conFiscados e ele próprio decapitado na praça de Grève ou em outro qualquer lugar que o sr. preboste queira indicar, salvo o perdão de Sua Majestade. "

Gastão escutou a leitura da sua condenação com a palidez, mas, também com a imobilidade de uma estátua de mármore.

- E quando terá lugar a execução? - perguntou ele.

- Logo que agradar a Sua Majestade - respondeu o chefe de polícia. Gastão sentiu como que uma nuvem sangrenta passar-Lhe por diante dos olhos. As ideias baralharam-se no cérebro, e ficou silencioso para não dizer alguma coisa que fosse indigna dele. Mas se a impressão foi viva foi também rápida; a pouco e pouco a serenidade voltou-lhe à fronte, o sangue afluiu-lhe às faces e acudiu-lhe aos lábios um sorriso desdenhoso.

- Está bem, senhor - tornou ele - a qualquer hora que chegue a ordem de Sua Majestade, encontrar-me-á pronto. Apenas queria saber se, antes de morrer, me seria permitido ver algumas pessoas que me são queridas, e pedir uma graça ao rei.

Os olhos de d'Argenson brilharam de pérfida alegria.

- Preveni-o - disse o chefe da polícia -, que o tratariam com indulgência. - Podia ter-me dito isso antes, e a bondade de Sua Majestade teria antecipado o seu pedido.

- Engana-se, senhor - replicou Gastão com dignidade. - Só peço a Sua Majestade um favor com que não terão que sofrer nem a minha glória nem a sua.

- Podia colocar a glória do rei antes da sua - disse um dos magistrados num tom de chicana.

- Senhor - retrucou Gastão -, vou morrer, a minha glória começará portanto antes da de Sua Majestade.

- O que deseja? - perguntou d'Argenson. - Fale e dir-Lhe-ei imediatamente se tem probabilidades de ser atendido.

- Em primeiro lugar peço para que os meus títulos e dignidades, que de resto são pouca coisa, não sejam nem extintos nem alterados, porque não tenho posteridade, e o meu nome é a única coisa que me pode sobreviver; mais ainda, como é apenas nobre e não ilustre pouco durará.

- Isso é um favor que só o rei pode conceder. Sua Majestade responder-lhe-á. É tudo quanto deseja, senhor?

- Ainda quero outra coisa, mas não sei a quem hei-de dirigir o meu pedido.

- A mim, primeiro; em seguida, como chefe de polícia, verei se posso tomar sob a minha responsabilidade conceder-Lho, ou se é necessário apelar para Sua Majestade.

- Desejo, senhor, tornou Gastão, que me concedam o favor de ver a menina Helena de Chaverny, pupila de Sua Excelência o sr. duque de Olivares, e também o sr. duque.

D'Argenson ouvindo este pedido fez um movimento que o cavaleiro interpretou como hesitação.

- Senhor - apressou-se a juntar Gastão -, vê-los-ei onde quiserem e durante o tempo que me permitirem.

- Está bem, senhor, ve-los-á - disse d'Argenson.

- Ah, senhor - exclamou Gastão dando um passo para a frente como que para lhe pegar na mão -, enche-me de alegria.

- Mas com uma condição.

- Qual? Diga! Não há condição compatível com a minha honra que eu não aceite em troca de um tão grande favor.

- Não falará a ninguém da sua condenação, sob a sua palavra de fidalgo.

- E fá-lo-ei tanto mais gostosamente - retrucou Gastão - que uma das duas pessoas morreria se soubesse.

- Está muito bem. Não tem mais nada a dizer-me?

- Não, senhor, a não ser que desejo que ateste que eu nada disse.

- As suas notações acham-se inscritas nos processos verbais. Escrivão, passe o processo a este senhor para que o leia e assine.

Gastão sentou-se diante de uma mesa, enquanto d'Argenson e os juízes conversavam, leu com atenção todas as peças do processo.

- Senhor - disse Gastão -, aqui estão os seus papéis em regra. Terei a honra de torná-lo a ver?

- Não creio - replicou d'Argenson com aquela brutalidade que o tornava o espantalho de todos os presos e de todos os condenados.

- Então, até mais ver no outro mundo, senhor.

D'Argenson inclinou-se e fez o sinal da cruz, segundo o uso dos juízes que se despedem de alguém que acabam de condenar à morte. O director da Bastilha aproximou-se em seguida do cavaleiro para o reconduzir ao seu quarto.

 

                 ÓDIO DE FAMÍLIA

Voltando para o seu quarto, Gastão foi obrigado a responder a Dumesnil e a Pompadour, que esperavam notícias.

Segundo a promessa que tinha feito ao sr. d'Argenson, não disse uma palavra da sentença que o condenava à morte e falou-lhes somente de um interrogatório mais grave do que os outros. Como queria, antes de morrer, escrever algumas cartas, pediu luz ao cavaleiro Dumesnil. Quanto ao papel e lápis, obtivera-o ele do governador para desenhar. Desta vez Dumesnil enviou-lhe uma vela já acesa; tudo ia progredindo, como se vê. Maison-Rouge não sabia recusar coisa alguma à menina de Launay, que partilhava tudo com o seu cavaleiro, e este, como bom camarada de prisão, dividia as suas riquezas com Gastão e Richelieu, seus vizinhos.

Gastão, não obstante a promessa que lhe fizera d'Argenson, duvidava que lhe permitissem tornar a ver Helena, mas sabia que não o deixariam morrer sem lhe dar um confessor. E este certamente, atenderia à súplica de um moribundo entregando as duas cartas a quem eram dirigidas. Quando ia começar a escrever, ouviu a menina de Launay dando-lhe sinal que tinha alguma coisa a entregar-Lhe. Era uma carta que Gastão pôde ler visto que tinha luz.

Dizia o seguinte:

"Meu amigo, como não temos segredos para si, dê parte a Dumesnil dessa famosa esperança que concebi devido à palavra que me disse d'Herment. "

O coração do cavaleiro palpitou; talvez também ele encontrasse motivos para ter esperança naquela carta: não Lhe tinham dito que a sua sorte não podia deixar de ser semelhante à dos conspiradores de Cellamare?

Continuou a leitura:

"Há meia hora, veio o médico, acompanhado por Maison-Rouge. Este último lançou-me uns olhares tão meigos que me pareceram o mais favorável presságio. Todavia, quando Lhe pedi para falar em particular, ou pelo menos em voz baixa ao médico, suscitou-me grandes dificuldades, que destrui com um sorriso. "Ao menos, disse ele, que ninguém saiba que me afastei; porque, sem dúvida alguma perderia o meu lugar, se alguém fosse informado da minha condescendência. " Este tom de amor e interesse combinados pareceu-me tão grotesco, que lhe prometi rindo quanto ele quis. "E vê como cumpro a minha promessa. " Afastou-se portanto, e o sr. Herment aproximou-se. Começou então um diálogo em que os gestos significavam uma coisa, enquanto que a voz dizia outra. "Tens bons amigos - disse Herment -, amigos altamente colocados e que se interessam particularmente pelo que lhe diz respeito.

Pensei naturalmente na senhora du Maine. "Ah! exclamei eu, encarregaram-no de alguma comissão para mim. " Pode avaliar como pulsava o meu coração.

Gastão viu que também o seu batia com violência.

- E que tem para me entregar? " "Oh! eu nada. Mas trar-lhe-ão o objecto combinado. " "Mas o que é, diga- me? " "Sabe-se que as camas na Bastilha são más e com pouco agasalho, e me encarregam de Lhe oferecer. " "Mas afinal, o quê? " "Um édredon para aquecer os pés. "

- Dei uma gargalhada. - A dedicação dos meus amigos limita-se a impedir que me constipe. "Meu caro senhor Herment - disse eu - na situação em que estou, parece-me que os meus amigos deviam ocupar-se da minha cabeça e não dos meus pés. " "É uma amiga. " "E quem é? " A menina de Charolais", disse Herment falando ainda mais baixo. E retirou-se. Eu, querido cavaleiro, aqui fico esperando o édredon da menina de Charolais. Conte o caso a Dumesnil; fá-lo-á rir. "

Gastão suspirou tristemente. A alegria daqueles que o rodeavam pesava-lhe no coração. Seria um novo suplício que tinham inventado proibindo-Lhe conFiar a sorte que o esperava a quem quer que fosse? Teria achado uma consolação nas lágrimas que os seus dois vizinhos chorassem por ele.

Gastão não teve coragem para ler a carta a Dumesnil; deu-lha pelo cordão, e um instante depois ouvia-lhe as gargalhadas. Naquele momento, despedia-se de Helena. Depois de passar parte da noite escrevendo, adormeceu. De manhã, levaram-Lhe o almoço à hora do costume; sorriu perante essa suprema atenção, e recordou-se dos cuidados que havia com os condenados à morte.

Estava no Fim do almoço, quando o governador entrou.

Gastão, num relance examinou-Lhe o rosto.

Era sempre o mesmo, afável e cheio de cortesia. Também ele ignoraria a condenação da véspera, ou traria uma máscara no rosto?

- Senhor - disse o sr. de Launay -, quer ter a bondade de descer à sala do conselho? O cavaleiro levantou-se. Sentiu como que zumbidos nos ouvidos.

Para um condenado à morte, toda a ordem que não compreende é um passo para o suplício.

- Posso saber para que é? - perguntou Gastão com uma voz bastante calma.

- Para receber uma visita. Ontem, depois do interrogatório, não pediu o favor de ver alguém?

Gastão estremeceu.

- E é essa pessoa?

- Sim.

O jovem ia continuar o interrogatório, porque se recordara que pedira para ver duas pessoas. Ora, anunciavam-Lhe uma: qual delas seria? Não teve coragem para perguntar, e seguiu silenciosamente o governador, que o conduziu à sala do conselho. Entrando ali, olhou ansiosamente para todos os lados, a sala porém achava-se completamente deserta.

- Espere aqui - disse o governador. - A pessoa que o visita não se deve demorar.

O sr. de Launay retirou-se. Gastão correu à janela que era de grades como todas as da Bastilha. Estava uma sentinela em frente. Quando se inclinava para olhar para o pátio, abriu-se a porta. Gastão virou-se e deparou com o duque de Olivares. Não era tudo que esperava, e todavia era já muito; porque se tinham mantido a palavra com respeito ao duque, não havia motivo para que não fizessem o mesmo com respeito a Helena.

- Oh! Monsenhor - exclamou Gastão -, que bondade a sua em aceder ao pedido de um pobre prisioneiro!

- Era um dever para mim, senhor - respondeu o duque. - Demais, tenho que lh agradecer.

- A mim? - volveu Gastão atónito. - E que fiz eu para merecer os agradecimentos de Vossa Excelência?

- Foi interrogado, foi conduzido à casa das torturas, deram-lhe a entender que Lhe perdoariam se nomeasse os seus cúmplices, e contudo nada disse.

- Foi um compromisso que tomei, e mantive-o; não vale um agradecimento, monsenhor.

- E agora, diga-me - tornou o duque. - Se posso ser-lhe útil em alguma coisa?

- Antes de tudo, tranquilize-me a seu respeito, monsenhor. Não o inquietaram?

- De modo nenhum.

- Tanto melhor.

- E se os conjurados da Bretanha forem tão discretos como o senhor, tenha a certeza que o meu nome nem será pronunciado durante estes desgraçados debates.

- Oh! - respondo por eles, monsenhor, como por mim próprio. - Mas, monsenhor, tem conFiança em La Jonquiére?

- La Jonquiére? - retrucou o duque embaraçado.

- Sim, não sabe que ele também está preso?

- Sim, já ouvi falar a esse respeito.

- E o que pensa desse homem?

- Só lhe posso dizer que deposito nele toda a confiança.

- Nesse caso é porque é digno dela, eis o que desejava saber, monsenhor.

- Diga-me agora qual é o pedido que queria fazer-me.

- Vossa Excelência viu a jovem que conduzi a sua casa?

- A menina Helena de Chaverny, sim, vi-a.

- Pois bem, monsenhor, o que não tive tempo de Lhe dizer quando Lhe falei, vou dizer-Lhe agora: amo essa menina há um ano! O meu sonho era consagrar a minha vida à sua felicidade. Digo sonho, porque quando estava acordado, bem sabia que toda a esperança de felicidade me era interdita; e contudo para dar um nome, uma posição, uma fortuna a essa menina, no momento em que fui preso, ia desposá-la.

- Sem o conhecimento de seus pais, sem a autorização de sua família? - perguntou o duque.

- Ela não tinha nem pais, nem família, monsenhor, e segundo todas as probabilidades ia ser vendida a algum grande senhor, quando julgou de seu dever deixar a pessoa que haviam colocado junto dela.

- Mas quem Lhe fez crer que a menina Helena de Chaverny ia ser vítima de um negócio vergonhoso?

- O que ela mesma me contou acerca de um suposto pai que se ocultava, de diamantes que lhe tinham oferecido. Demais, sabe onde a encontrei, monsenhor? Numa dessas infames casas destinadas aos prazeres dos devassos. ela, um anjo de candura e de pureza! Em resumo, monsenhor, essa menina fugiu comigo, a despeito dos gritos da governanta, em pleno dia, diante dos criados que a cercavam; esteve duas horas só comigo, e ainda que esteja tão pura como no dia em que recebeu o primeiro beijo de sua mãe, não está por isso menos comprometida. Pois eu desejava, monsenhor, que o casamento projectado se realizasse.

- Na situação em que se encontra?

- Mais uma razão, monsenhor.

- Mas talvez se iluda com respeito à pena que lhe está reservada.

- É provavelmente a mesma que, em idênticas circunstâncias, sofreram o conde de Chalais, o marquês de Cinq-Mars e o cavaleiro de Rohan.

- Está portanto preparado para tudo, mesmo para a morte?

- Preparei-me para ela desde o dia em que entrei na conspiração: a única desculpa do conspirador, está em que roubando a vida dos outros, arrisca a sua.

- E o que ganha essa jovem com esse casamento?

- Monsenhor, sem ser rico, possuo alguma fortuna; ela é pobre, eu tenho um nome e ela não tem, desejava deixar-Lhe o meu nome e a minha fortuna, e, por esse motivo, já pedi ao rei para que os meus bens não fossem confiscados, nem o meu nome declarado infame. quando se souber o motivo por que fiz estes dois pedidos, hão-de conceder-mos com certeza. Se morrer sem desposá-la, julgá-la-ão minha amante, e fica desonrada, perdida, sem futuro. Se, pelo contrário, graças à sua protecção ou à dos seus amigos, e imploro-o de mãos postas, nos casarmos, ninguém terá nada a censurar-lhe: o sangue que corre sobre um cadafalso político não mancha uma família; a vergonha não recairá sobre a minha viúva, e se não viver feliz viverá pelo menos independente e honrada. É este o pedido que tinha a fazer-lhe, monsenhor, está em seu poder realizá-lo?

O duque acercou-se da porta por onde tinha entrado, e bateu três pancadas: a porta abriu-se, e o capitão Maison- Rouge entrou.

- Senhor capitão - disse o duque -, queira perguntar da minha parte ao sr- de Launay, se a menina que está em baixo na minha carruagem pode entrar aqui? Ele sabe que, como a minha, a sua visita está autorizada. Terá a bondade de conduzi-la a esta sala.

- É possível monsenhor! Helena está aqui?

- Não Lhe prometeram que ela viria?

- Oh sim! Mas vendo-o só tinha perdido toda a esperança.

- Quis vê-lo primeiro, presumindo que tivesse mil coisas a dizer-me, coisas que ela não devia ouvir; porque sei tudo. Sabe tudo! O que quer dizer?

- Sei que foi ontem chamado ao Arsenal.

- Monsenhor!

- Que aí encontrou d'Argenson; que Lhe leram a sentença. Sei enfim, que foi condenado à morte, e que exigiram que não o dissesse a pessoa alguma.

- Oh! Monsenhor, silêncio! Uma palavra sobre isso e matará Helena.

- Tranquilize-se, senhor. Mas, vejamos, não haverá meio algum de escapar à morte?

- Seriam precisos muitos dias para preparar e executar um plano de evasão, e Vossa Excelência bem sabe que só me restam horas.

Não me refiro a isso. Pergunto-Lhe se não tem desculpa alguma a dar ao seu crime?

- Ao meu crime? - repetiu Gastão, admirado por um cúmplice se servir daquela expressão.

- Sim - tornou o duque procurando reparar o erro que cometera -, bem sabe que é assim que se chama assassinar alguém; somente a posteridade julga, e desse crime faz algumas vezes uma grande acção.

- Não tenho desculpa a apresentar, monsenhor, a não ser que julgo a morte do regente necessária à felicidade da França.

- Sim - replicou o duque sorrindo -, mas há-de compreender que essa desculpa não se pode apresentar a Filípe d'Orleans. Desejaria alguma coisa pessoal. Apesar de ser inimigo político do regente, devo dizer que não o considero mau homem. Dizem que ele é misericordioso e no seu reinado não houve ainda nenhuma execução capital.

- Esquece o conde de Horn, executado em Grève?

- Era um assassino.

- E eu que sou?

- Há a diferença que o conde de Horn matava para roubar.

- Não posso nem quero pedir nada ao regente - disse Gastão.

- Pessoalmente, não, bem sei, mas os seus amigos. Se eles tivessem uma desculpa plausível a apresentar, talvez o príncipe antecipasse os seus desejos, concedendo-Lhe o perdão.

- Não tenho nenhuma, monsenhor.

- É impossível, permita-me que Lhe diga. Uma resolução como a que tomou não nasce no coração de um homem sem um motivo qualquer, sem um sentimento de ódio, sem uma necessidade de vingança. E agora me lembro, o senhor falou ao capitão La Jonquiére de um ódio de família que herdou; ora diga-me a causa desse ódio.

- É inutil, monsenhor, aborrecê-lo com esses pormenores. O facto que deu origem a esse ódio não tem interesse para Vossa Excelência.

- Não importa, conte.

- Pois bem, o regente matou meu irmão.

- Matou seu irmão? Que diz? É impossível, senhor de Chanlay! - exclamou o duque de Olivares.

- Sim, matou-o, se do efeito tirarmos a causa.

- Explique-se. Fale. Como pôde o regente.

- Meu irmão, mais velho do que eu quinze anos e que substituiu junto de mim meu pai, que morreu três meses antes do meu nascimento e minha mãe alguns meses depois, estava apaixonado por uma jovem que, pelas ordens do príncipe, se achava num convento educando-se.

- Em que convento, sabe?

- Não; sei apenas que era em Paris.

O duque murmurou algumas palavras que Gastão não pôde ouvir.

- Meu irmão, parente da abadessa desse convento, tivera ocasião de ver essa jovem; apaixonou-se por ela e pediu-a em casamento. Tinham solicitado a autorização do príncipe que parecera consentir na união, quando a jovem seduzida pelo seu suposto protector, desapareceu subitamente. Durante três meses, meu irmão esperou tornar a encontrá-la, mas todos os seus esforços foram baldados; nunca mais teve notícias dela e cheio de desespero procurou a morte na batalha de Ramillies.

- E como se chamava essa jovem que seu irmão amava? - perguntou vivamente o duque.

- Nunca ninguém o soube, monsenhor; dizer esse nome era desonrá- lo.

- Não resta dúvida, era ela! - murmurou o duque. - Era a mãe de Helena. E como se chamava seu irmão? - acrescentou em voz alta.

- Olivier de Chanlay.

- Ulivier de Chanlay. - repetiu o duque em voz baixa. - Bem me parecia que este nome não me era estranho.

E em voz alta:

- Continue, senhor, escuto-o.

- Não sabe o que é um ódio de infância, monsenhor, e principalmente num país como o nosso. Amava meu irmão com todo o amor que teria dedicado a meus pais. Um dia, encontrei-me só no mundo. Cresci no isolamento do coração e na esperança de vingança. Cresci no meio de gente que me repetia: "Foi o duque d'Orleans que matou teu irmão. " Depois, esse duque tornou-se regente de França. Ao mesmo tempo organizou-se a Liga Bretã. Fui um dos primeiros a entrar nela. Sabe o resto, monsenhor; já vê que não há nisto nada que seja interessante para Vossa Excelência.

- Engana-se, senhor, interessa-me até muito - tornou o duque. - Desgraçadamente, o regente tem muitas faltas desse género a censurar a si próprio.

- Compreende portanto - continuou Gastão -, que o meu destino tem de se cumprir, e que não posso pedir coisa alguma a esse homem.

- Sim, tem razão, é preciso que as coisas se façam de outro modo.

Neste momento abriu-se a porta e o capitão Maison-Rouge reapareceu.

- Então? - perguntou o duque.

- O sr. governador recebeu efectivamente ordem para deixar o prisioneiro comunicar com a menina Helena de Chaverny. Mando-a subir?

- Monsenhor. - disse Gastão olhando para o duque com uma expresSão de súplica.

- Compreendo-o, senhor de Chanlay; o pesar e o amor têm o seu pudor que não quer testemunhas. Virei buscá-la.

- A licença é apenas de meia hora - disse Maison-Rouge.

- Deixo-o - tornou o duque -, voltarei daqui a meia hora.

E retirou-se depois de ter cumprimentado Gastão.

Maison-Rouge fez a sua ronda em volta do quarto, examinou as portas, certificou-se de que as sentinelas estavam no seu posto, e saiu.

Um instante depois tornou a abrir-se a porta, e Helena entrou pálida, trémula e balbuciando agradecimentos e perguntas ao capitão, que a cumprimentou com todo o respeito e se retirou sem Lhe responder. Foi só nesse momento que olhando em volta de si, Helena viu Gastão. Como haviam feito com o duque, e contrário ao uso sempre seguido, tinham deixado os jovens sós. Correram um para o outro, e, entregues apenas à ideia dos seus passados sofrimentos e do sombrio futuro que anteviam, abraçaram-se com ardor.

- Enfim! - exclamou a jovem com o rosto inundado de lágrimas.

- Sim, enFim! - repetiu Gastão.

- Ah, tornar a vê-lo aqui, nesta prisão - murmurou Helena olhando em volta com terror, não poder falar- lhe livremente; nos estão vigiando, escutando talvez.

- Não nos queixemos, Helena, porque houve uma excepção em nosso favor. Nunca um prisioneiro pôde apertar de encontro ao coração uma amiga, um parente. Geralmente, a visita fica junto daquela parede, e o prisioneiro na outra extremidade; um soldado no meio da sala, e o assunto da conversa é fixado de antemão.

- A quem devemos este favor?

- Ao regente, devo confessá-lo; porque quando pedi ao sr. d'Argenson autorização para vê-la, respondeu- me que isso excedia os seus poderes e tinha de se dirigir ao regente.

- Mas agora que o torno a ver, Gastão, depois de um século de lágrimas e sofrimentos, vai contar-me detalhadamente o que se passou. Ah, diga-me se os meus pressentimentos me enganaram! Conspirava! Oh, não negue! Sabia-o.

- Pois bem, Helena, é verdade: com certeza sabe que nós os bretões somos tão constantes no ódio como no amor; organizou-se uma liga na Bretanha e toda a nobreza nela entrou. Podia eu proceder diferentemente dos meus irmãos? Responda-me, Helena. Não me teria desprezado se visse toda a Bretanha pegando em armas, menos eu?

- Oh, tem razão, meu amigo! Mas porque não se conservou como os outros na Bretanha?

- Estão todos presos como eu.

- Foram portanto denunciados, traídos?

- Provavelmente. Mas sente-se, Helena; deixe-me olhá-la agora que estamos sós, deixe-me dizer-lhe que é linda e que a amo. E que tem feito durante a minha ausencia? O duque?

- Oh, se soubesse, Gastão, como tem sido bom para mim! Todas as noites vai ver-me; Quantos cuidados, quantas atenções!

- E - tornou Gastão, lembrando-se das palavras de La Jonquiére e sentindo-Lhes a mordedura no coração -, e, nesses cuidados, nessas atenções, nada de suspeito?

- Que quer dizer, Gastão?

- Que o duque é ainda moço, e que, como há pouco Lhe disse, é linda.

- Oh, não, não! Desta vez não me engano; e quando o via junto de mim, tão perto como

agora está, havia momentos em que julgava ter tornado a encontrar meu pai.

- Pobre criança!

- Sim, por um singular acaso, que não posso explicar, há entre a voz do duque e a desse homem que vi em Rambouillet uma semelhança verdadeiramente extraordinária.

- Julga isso? - disse Gastão distraído.

- Mas em que pensa, meu Deus! Dir-se-ia que nem me ouve.

- Eu, Helena, eu, quando cada uma das suas palavras ressoa no mais íntimo do meu coração?

- Não, acho-o inquieto. Oh! compreendo-o. Conspirar é arriscar a vida. Mas, esteja tranquilo, Gastão: já disse ao duque, se morrer, morrerei também.

Gastão estremeceu.

- É um anjo!

- Oh, meu Deus! Existe um suplício igual! Sentir que aquele que amamos corre um perigo tanto maior porque é desconhecido, sentir que nada podemos fazer em seu favor, senão derramar lágrimas inúteis, quando daríamos de bom grado a nossa vida em troca da sua.

O rosto de Gastão iluminou-se com um clarão de felicidade; era a primeira vez que ouvia dos lábios da sua amada palavras tão ternas, e sob a impressão de uma ideia que parecia dominá-lo há alguns momentos, retorquiu:

- Sim, minha Helena, enganas-te, podes fazer alguma coisa em meu favor.

- E o quê?

- Podes consentir em ser minha mulher - disse ele olhando fixamente para a jovem.

- Eu, sua mulher?

- Sim, Helena, esse projecto que formámos quando éramos livres, podes realizá-lo durante a minha prisão. Helena, minha mulher, minha mulher diante de Deus e dos homens! Minha mulher neste mundo e no outro. Eis o que com uma palavra podes ser para mim, Helena; julgas que isto não é nada?

- Gastão - disse a jovem olhando fixamente para o rapaz -, oculta-me alguma coisa.

O cavaleiro estremeceu e respondeu:

- Eu, e que quer que Lhe esconda?

- Disse-me que viu o sr. d'Argenson ontem.

- Sim, mas que mal há nisso?

- Gastão - disse Helena tornando-se pálida -, está condenado?

Ele tomou uma súbita resolução.

- É verdade, estou condenado ao exílio, e queria, egoísta como sou, ligá-la a mim por laços indissolúveis antes de deixar a França.

- Gastão - tornou Helena -, é bem verdade o que me diz?

- É! Terá a coragem de ser mulher de um proscrito? De se condenar ao exílio?

- Ainda o perguntas? - exclamou Helena radiante de entusiasmo. - O exílio! Oh! obrigado, meu Deus! Eu que aceitaria contigo uma prisão eterna e ainda me julgaria mais que feliz! Oh, vou pois acompanhar-te, seguir-te! Essa condenação é uma felicidade imensa comparada com a que temíamos. Todo o mundo é nosso, exceptuando a França. Oh! Gastão. Gastão, ainda podemos ser felizes.

- Sim, Helena, sim - murmurou ele com dificuldade.

- Sem dúvida - tornou a jovem -, mas calcula, a minha Felicidade! A França, para mim, será o país onde estiveres! A minha pátria, o teu amor. Bem sei que terei de te fazer esquecer a Bretanha, os teus amigos, os teus sonhos do futuro; mas hei-de amar-te tanto, vês tu, que te farei esquecer tudo!

Gastão só pôde pegar nas mãos de Helena que cobriu de beijos.

- Já fixaram o local do teu exílio? - disse Helena. - Já te disseram qual é? Quando partes? Iremos juntos? Mas responde!

- Minha Helena, é impossível; separam- nos, momentaneamente, pelo menos; tenho de ser conduzido à fronteira da França, ainda não sei qual; uma vez fora do reino, estarei livre, e irás então ter comigo.

- Oh, melhor do que isso, Gastão - exclamou a jovem. - Pelo duque, saberei para onde te conduzem e em vez de ir ter contigo, irei esperar-te. Quando desceres da carruagem encontrar-me-ás para te suavizar as tuas despedidas à França; depois, só a morte é que não tem remédio, mais tarde, o rei há-de perdoar-te. Voltaremos então e nada nos impedirá de regressar à Bretanha, esse berço do nosso amor, esse paraíso das nossas recordações. Oh! - continuou Helena com um acento de amor e de impaciência. - Diz-me que partilhas a minha esperança, diz- me que estás contente, que és feliz!

- Oh, sim, sim, Helena! - bradou Gastão. - Sou feliz, porque só agora vejo como me

amas. Oh, sim, Helena Uma hora de um amor semelhante ao teu e depois morrer, valeria mais do que longa vida sem ser amado.

- E agora vejamos - prosseguiu a jovem, entregando toda a sua alma ao novo futuro que se lhe apresentava. - O que vão eles fazer? Deixar-me-ão voltar aqui antes da tua partida? Quando e como nos tornaremos a ver? Poderás receber as minhas cartas? Permitirão que me respondas? Amanhã a que horas poderei apresentar-me na prisão.

- Quase que me prometeram que o nosso casamento se efectuaria esta noite ou amanhã.

- Aqui, numa prisão! - disse Helena estremecendo.

- Onde quer que seja, Helena, não me ligará a ti para toda a vida?

- Mas, se não cumprissem a palavra dada? Se te fizessem partir antes de te tornar a ver?

- Infelizmente - replicou Gastão sentindo uma terrível angústia -, isso é também possível, minha pobre Helena e é o que eu temo.

- Oh, meu Deus! Nesse caso julgas muito próxima a tua partida?

- Bem sabes, Helena, que os prisioneiros não são senhores da sua vontade; de um momento para o outro podem fazer deles o que quiserem!

- Ora, quanto mais depressa estiveres livre mais depressa nos reuniremos. Não tenho necessidade de ser tua mulher para te seguir. Conheço a lealdade do meu Gastão, e já te considero como meu esposo perante Deus. Oh, parte depressa, porque enquanto estiveres sob estes muros espessos e pesados, temerei pela tua vida; parte e dentro de oito dias estaremos reunidos, sem ausência que nos ameace, sem testemunhas que nos espiem, reunidos para sempre.

Neste momento abriram a porta.

- Oh, meu Deus, já! - exclamou Helena.

- Menina - disse o capitão -, o tempo que lhe concederam para a visita já terminou.

- Helena! - disse Gastão agarrando as mãos da jovem com um estremecimento nervoso que não pôde dominar.

- O que é, meu amigo? - respondeu Helena olhando-o com terror. - Que tem? Empalidece?

- Eu. não, não é nada - tornou ele, procurando tornar-se senhor de si, nada. E, sorrindo, beijou as mãos da jovem.

- Até amanhã - disse Helena.

- Sim, até amanhã.

Neste momento apareceu o duque no limiar da porta. O cavaleiro correu para ele e disse-lhe pegando-lhe nas mãos:

- Monsenhor, faça todo o possível para obter que ela seja minha mulher. Mas se não conseguir, jure-me ao menos que será sua filha.

O duque apertou as mãos de Gastão, estava tão comovido que não pôde responder. Helena aproximou-se; o cavaleiro calou-se receando que ela o ouvisse. Estendeu a mão à jovem que lhe ofereceu a fronte; pelas faces da jovem corriam abundantes lágrimas. Gastão fechava os olhos para não chorar. Enfim era forçoso separarem-se. Os jovens trocaram um demorado e derradeiro olhar. O duque estendeu a mão ao cavaleiro.

Era uma coisa estranha aquela simpatia entre dois homens vindo um de tão longe a fim de matar o outro.

A porta fechou-se, e Gastão deixou-se cair numa poltrona.

Tinham-se-Lhe esgotado as forças. Passados dez minutos o governador voltou, ia buscar o rapaz para o acompanhar ao seu quarto.

Gastão seguiu-o triste e pensativo, e quando o governador lhe perguntou se desejava alguma coisa, apenas respondeu meneando a cabeça.

Ao anoitecer, a menina de Launay fez o sinal que anunciava que tinha alguma coisa que comunicar ao seu vizinho.

Gastão abriu a janela, e puxou o cordel onde havia uma carta contendo uma outra.

Procurou luz pelo processo usual. A primeira carta era-lhe dirigida.

"Querido vizinho:

"O édredon não era tão inútil, como julguei; continha um papel onde estava escrita a palavra que me dissera Herment: Espere. Continha ainda esta carta para o sr. de Richelieu. Entregue-a a Dumesnil que a passará ao duque.

"Sua amiga - De Launay. "

- Ah! - disse Gastão com um triste sorriso. - Quando eu não estiver aqui, que falta Lhes farei.

E chamou Dumesnil a quem passou a carta.

 

OS NEGÓCIOS DO ESTADO E OS NEGÓCIOS DE FAMÍLIA

Saindo da Bastilha, o duque acompanhara Helena à casa prometendo-Lhe ir vê-la como de costume, das oito às dez horas da noite, promessa de que Helena ainda lhe ficaria mais reconhecida, se soubesse que nessa mesma noite Sua Alteza tinha grande baile de máscaras em Monceaux.

Quando entrou no Palais-Royal, o duque mandou chamar Dubois; responderam-lhe que estava no seu gabinete de trabalho.

O duque subiu rapidamente a escada, segundo o seu costume, e entrou nos aposentos de Dubois sem deixar que o anunciassem.

De facto, Dubois sentado junto de uma mesa, trabalhava com um tal ardor que nem ouviu o duque, que, depois de ter aberto e fechado a porta, avançou na ponta dos pés, e olhou por cima do ombro do ministro para o trabalho a que se entregava com tanta diligência. Escrevia sobre uma espécie de mapa nomes, tendo à frente de cada um informações detalhadas.

- Que diabo estás fazendo, abade? - perguntou o regente.

- Ah, é monsenhor, perdão! Não o ouvi aproximar. senão.

- Não te pergunto isso, mas sim o que estás fazendo.

- Assino os convites para o enterro dos nossos amigos da Bretanha.

- Mas não está ainda nada decidido a esse respeito; procedes como um louco, e a sentença da comissão.

- Já a conheço.

- Foi passada?

- Não, mas fui eu que a ditei.

- Sabes que é odioso o teu procedimento, abade?

- Realmente, monsenhor, é insuportável! Trate dos seus negócios de família, e deixe-me os do Estado.

- Os meus negócios de família?

- Ah, parece-me que por esses deve estar contente comigo a não ser que seja muito difícil de contentar! Recomendou-me o sr. Gastão de Chanley e eu torno-lhe a Bastilha um paraíso; refeições suculentas, missas encantadoras, um governador adorável, deixo-o fazer buracos nas tábuas que nos custam muito caro a consertar. Desde que entrou para ali, toda a gente vive em festa: Dumesnil conversa todo o dia pela chaminé, a menina de Launay pesca à linnha pela janela, Pompadour bebe vinho de Champanhe. Não há nada a dizer, são os seus negócios de família; mas com a Bretanha não tem nada que ver, monsenhor, e proíbo-Lhe que se meta nisso, a não ser que tenha semeado por lá algumas filhas incógnitas, o que é muito possível.

- Dubois, patife!

- Ah! Julga ter dito tudo chamando-me Dubois e acrescentando o epíteto de patife ao meu nome; pois sê-lo-ei tanto quanto lhe agradar; mas, entretanto, sem mim teria sido assassinado.

- E depois?

- Depois? Ah, homem de Estado! Depois talvez eu fosse enforcado; e já não é má consideração; em seguida, a senhora de Maintenon seria regente de França, que graça! Depois! E pensar que é um príncipe Filósofo que arrisca semelhantes ingenuidades.

E ao mesmo tempo que falava, Dubois continuava a escrever.

- Dubois - disse o regente -, tu não conheces aquele rapaz.

- Que rapaz?

- O cavaleiro.

- Realmente! Apresentar-mo-á quando for seu genro.

- Nesse caso será amanhã.

O abade voltou-se estupefacto, com as duas mãos encostadas aos braços da poltrona, e Fitou o regente com os olhos muito abertos.

- Vossa Alteza perdeu o juízo?

- Não, mas trata-se de um homem de bem e essa espécie torna-se rara; sabes isso melhor do que ninguém, abade.

- Homem de bem! Monsenhor, permita que Lhe diga que tem um modo original de apreciar os homens. E que mais fez esse excelente rapaz? Envenenou o punhal com que devia feri-lo? Nesse caso, seria mais do que um homem de bem, seria um santo. Depressa, monsenhor, não quer pedir ao papa o chapéu de cardeal para o seu ministro, peça-lhe a canonização para o seu assassino, e pela primeira vez na sua vida será lógico.

- Dubois, digo-te que há poucos homens capazes de fazer o que fez esse rapaz.

- Felizmente. Se houvesse dez como ele em França, declaro-lhe, monsenhor, que pediria a minha demissão.

- Não me refiro ao que ele queria fazer, mas ao que fez.

- Que fez então? Vejamos. Sou todo ouvidos.

- Em primeiro lugar, manteve a promessa que fez a d'Argenson.

- Oh, isso não duvido! É um rapaz fiel à sua palavra, e sem a minha intervenção também guardaria a que fez aos senhores de Pontcalec, Montlouis, etc. etc.

- Sim, mas uma era mais difícil do que a outra; jurou não falar na sua condenação a pessoa alguma e nem à própria noiva disse coisa alguma.

- Nem a Vossa Alteza?

- A mim falou-me nisso, porque lhe declarei que era inútil negar e que a conhecia. Proibiu-me de pedir qualquer coisa ao regente, desejando apenas obter um favor.

- Qual é?

- Licença para desposar Helena, a fim de lhe deixar a fortuna e o nome.

- Ora essa, quer deixar a fortuna e o nome a sua filha! Aí está um genro delicado!

- Esqueces que tudo isso é segredo para ele?

- Quem sabe?

- Dubois, ignoro em que te meteram as mãos no dia em que vieste ao mundo; mas o que sei é que manchas tudo em que tocas.

- Excepto nos conspiradores, monsenhor; porque me parece que nesta circunstância, pelo contrário, limpei tudo bem. Veja os Cellamare! Que lhe parece, foi uma limpeza! Dubois para aqui, Dubois para ali. Pois o mesmo sucederá com os nossos Olivares. E a Bretanha há-de ficar lavada por completo.

- Dubois, serias capaz de zombar do Evangelho.

- Ora diabo, foi por onde comecei!

O regente levantou-se.

- Vamos, vamos, monsenhor - disse Dubois -, desculpe-me, esquecia que está em jejum. Vejamos o fim da história.

- É o seguinte: prometi pedir essa licença ao regente que a concederá.

- O regente fará uma asneira.

- Não senhor, reparará uma falta.

- Só nos faltava descobrir que deve uma reparação ao sr. de Chanlay.

- Não a ele, mas a seu irmão.

- Melhor ainda; mas esse cavalheiro é o cordeiro de La Fontaine; e o que fez Vossa Alteza a esse irmão?

- Tirei-lhe a mulher que ele amava.

- Qual?

- A mãe de Helena.

- Pois realmente, fez bem mal, porque se lha tivesse deixado, não estaríamos hoje lutando com estes embaraços todos.

- Já não tem remédio, havemos de vencê- los o melhor que pudermos.

- É para o que trabalho. E quando é o casamento, monsenhor?

- Amanhã.

- Na capela do Palais-Royal? Comparecerá com o traje de cavaleiro da ordem, estenderá as duas mãos sobre a cabeça do seu genro; deve ser verdadeiramente tocante.

- Não, não será como dizes! Casarão na Bastilha, e ficarei numa capela onde não poderão ver-me.

- Está bem, monsenhor, deixe-me acompanhá-lo. É uma cerimónia que desejo ver. Esses actos são muito comovedores.

- Não. Incomodar-me-ias com a tua presença! O teu feio rosto denunciaria o meu incógnito.

- O seu belo rosto ainda é mais conhecido, monsenhor - tornou Dubois inclinando-se.

- Há retratos de Henrique IV e de Luís XIV na Bastilha.

- É muito lisonjeiro.

- Vossa Alteza retira-se?

- Sim, espero a visita de Launay.

- O governador da Bastilha?

- Sim. A propósito, ver-te-ei esta noite em Monceaux?

- Talvez.

- Tens o teu disfarce?

- Tenho a farda de La Jonquiére.

- Silêncio! Isso só serve na hospedaria do "Mind-de-Amor" e na rua de Bac.

- Monsenhor esquece a Bastilha, onde tem bastante sucesso. Sem contar - juntou Dubois com o seu sorriso de macaco - o que está ainda para ter.

- Está bem. Adeus, Abade.

- Adeus, monsenhor.

O regente saiu.

Ficando só, Dubois agitou-se na poltrona, depois ficou pensativo, coçou o nariz e sorriu, Era sinal que tomava uma grande resolução.

Em consequência, tocou a campainha.

Entrou um criado.

- O sr. de Launay, o governador da Bastilha, há-de vir procurar o sr. regente - disse ele,

- Espere-o e traga-o aqui.

O criado inclinou-se e retirou-se sem responder.

Dubois continuou o seu lúgubre trabalho.

Passada meia hora, a porta tornou a abrir-se e o criado anunciou o sr. de Launay. Dubois entregou-lhe uma nota muito detalhada, dizendo-lhe:

- Leia isto. Dou-lhe as instruções escritas para que não tenha pretexto algum para deixar de as pôr em prática.

De Launay leu a nota com todos os sinais de uma grande consternação.

- Ah! Senhor - disse quando concluiu a leitura -, quer liquidar a minha reputação?

- Como assim?

- Amanhã, quando se souber o que se passou.

- Será o senhor que o divulgará?

- Não, mas monsenhor!

- Ficará encantado. Respondo por ele.

- Um governador da Bastilha!

- Desejava conservar esse título?

- Sem dúvida.

- Então faça o que lhe ordeno.

- É contudo bem custoso, quando se tem que vigiar, ter de fechar os olhos e tapar os ouvidos.

- Meu caro governador, vá inspeccionar o Fogão do sr. Dumesnil, o tecto do quarto do sr. de Pompadour.

- Que diz, senhor, será possível? Mas fala-me de coisas que ignoro completamente!

- O que prova que sei melhor o que se passa na Bastilha do que o próprio governador; e se Lhe falasse das coisas que sabe ainda mais atónito ficaria.

- O que me poderia dizer? - perguntou o pobre governador muito interdito.

- Poderia dizer-Lhe que há oito dias um dos funcionários da Bastilha, e dos mais elevados, recebeu cinquenta mil libras para deixar passar duas mulheres que vendiam artigos de toilette.

- Senhor, eram.

- Sei o que eram, o que iam e o que fizeram; tratava-se das meninas de Valois e de Charolais. O que foram fazer? ver o duque de Richelieu; o que Fizeram? Comeram bombons até à meia noite, na torre do canto, onde tencionam voltar amanhã, com tanta certeza que hoje a menina de Charolais preveniu o duque da sua visita.

De Launay tornou-se pálido.

- E então! - prosseguiu Dubois. - Pensa que se eu contasse essas coisas ao regente, que é doido por escândalos como sabe, um certo sr. de Launay se conservaria por muito tempo governador da Bastilha? Mas não, não direi palavra; sei que devemos auxílio uns aos outros. Portanto auxiliá-lo-ei e o sr. governador fará outro tanto a meu respeito.

- Às suas ordens, senhor - disse de Launay.

- De sorte que está combinado, encontrarei tudo pronto.

- Prometo-Lhe, senhor; mas nem uma palavra a monsenhor!

- Esteja descansado! Adeus, senhor de Launay.

- Adeus, senhor Dubois.

E de Launay retirou-se fazendo grandes reverências.

- Bem! - disse Dubois. - E agora, monsenhor, vamos ver quem vence. Quando amanhã quiser casar sua filha, só lhe faltará o genro.

No instante em que Gastão acabava de passar a Dumesnil a carta da menina de Launay ouviu passos no corredor; recomendou imediatamente ao cavaleiro que não dissesse uma palavra bateu com o pé no chão para prevenir Pompadour que não desse sinal de si, apagou a luz e atirou com o casaco para cima de uma cadeira, como se começasse a despir-se.

Neste momento abriu-se a porta e entrou o governador. Como não era uso visitar os prisioneiros àquela hora, Gastão lançou-Lhe um olhar rápido e inquieto, e notou que estava perturbado; depois, o governador que parecia querer ficar só com Gastão, tirou a lâmpada das mãos daquele que a levava. O cavaleiro viu que a mão do governador tremia.

Os carcereiros retiraram-se, mas o prisioneiro observou que ficavam dois soldados à porta. Correu- Lhe um frémito por todo o corpo; aqueles preparativos silenciosos tinham alguma coisa de lúgubre.

- Cavaleiro - disse o governador -, é um homem e disse-me que o tratasse como tal; soube esta tarde que Lhe leram ontem a sentença.

- E vem dizer-me - tornou Gastão com aquela firmeza que sempre mantinha em face do perigo -, que soou a hora da execução?

- Não, mas que se aproxima.

- E quando será?

- Posso dizer-Lhe a verdade, cavaleiro!

- Ficar-lhe-ei até reconhecido.

- Amanhã de madrugada.

- E onde?

- Na praça da Bastilha.

- Obrigado, senhor, contudo conservava uma esperança.

- Qual?

- É que antes de morrer seria esposo da jovem que acompanhou hoje até junto de mim.

- O sr. d'Argenson prometeu-lhe esse favor?

- Não, senhor, apenas se encarregou de pedi-lo ao rei.

- Talvez o rei recusasse.

- Não costuma conceder esses favores?

- É raro; contudo o caso tem precedentes.

- Senhor - tornou o rapaz -, sou cristão; espero que não me hão-de recusar um confessor.

- Já está aqui.

- Posso vê-lo?

- Daqui a alguns instantes. Creio que neste momento está junto do seu cúmplice.

- O meu cúmplice?

- O capitão La Jonquiére.

- O capitão La Jonquiére! - exclamou Gastão.

- Foi também condenado e será executado consigo.

- Infeliz! - murmurou o cavaleiro. - E eu que o suspeitava!

- Cavaleiro - disse o governador -, é muito novo para morrer!

- A morte não tem que ver com os anos; Deus diz-lhe que Fira, e ela obedece.

- Mas quando se pode desviar o golpe, é quase um crime não Lhe fugir.

- Que quer dizer, senhor? Não o compreendo.

- Quero dizer que o sr. d'Argenson lhe deve ter deixado esperar.

- Basta, senhor, nada tenho que confessar e nada confessarei.

Neste momento bateram à porta e o governador foi abrir. Era o capitão; trocou algumas palavras com o sr. de Launay. O governador voltou para junto de Gastão, que, encostado às costas de uma cadeira, permanecia pálido, mas tranquilo.

- Senhor - disse ele -, o capitão La Jonquiére pede-me licença para o ver pela última vez.

- E recusa-o? - retrucou Gastão com um sorriso levemente irónico.

- Pelo contrário, concedo-a, na esperança que será mais razoável do que o senhor, e que o quer ver para se entender consigo acerca das revelações que deve fazer.

- Se é com esse fim que me deseja ver, senhor governador, responda-lhe que me recuso a procurá-lo.

- Disse-Lhe isto, senhor, porém nada sei; talvez o seu pedido seja apenas para ver um companheiro de infortúnio.

- Nesse caso, acedo.

- Vou eu mesmo conduzi-lo - tornou o governador inclinando-se.

- Estou pronto a segui-lo - replicou Gastão.

O sr. de Launay caminhou na frente, Gastão ia atrás seguido pelos dois soldados que estavam à porta. Atravessaram os mesmos corredores e os mesmos pátios que da primeira vez; por fim, pararam junto da torre do Tesouro. O sr. de Launay colocou duas sentinelas diante da porta e subiu doze degraus seguido por Gastão. Um carcereiro que encontrou na escada introduziu-os no quarto de La Jonquiére. O capitão tinha a mesma roupa rasgada e estava deitado. Ouvindo abrir a porta, voltou-se e como o sr. de Launay ia na frente, só o viu a ele e tomou a mesma posição em que se achava.

- Julgava encontrar o sr. Capelão da Bastilha junto de si, capitão! - disse o sr. de Launay.

- Esteve aqui, mas mandei-o embora.

- E porquê?

- Porque não gosto dos jesuítas. Pensa por acaso que preciso de um padre para bem morrer?

- Bem morrer, senhor, não é morrer corajosamente mas cristãmente.

- Se eu quisesse um sermão, teria conservado aqui o padre que o diria melhor do que o senhor; mas pedi para ver o sr. de Chanlay.

- E aqui o tem; tenho por princípio não recusar coisa alguma àqueles que nada têm a esperar.

- Ah, é o cavaleiro? - tornou La Jonquiére voltando-se. - Folgo muito em o ver.

- Senhor - disse o cavaleiro. - Vejo com pesar que recusa os socorros da religião.

- Também o senhor! Se me dizem mais uma palavra a esse respeito, declaro-Lhes que me faço huguenote.

- Desculpe, capitão, mas julguei meu dever dar-lhe o conselho de fazer o que eu também farei.

- Não Lhe quero mal por isso, cavaleiro; quando for ministro, proclamarei a liberdade dos cultos. Agora, senhor de Launay - continuou La Jonquiére coçando o nariz -, deve compreender que quando se está para empreender uma viagem tão longa como a que eu e o cavaleiro vamos fazer, não é mau conversar um pouco sem testemunhas.

- Compreendo-o, senhor, e retiro-me. Cavaleiro, tem uma hora para estar aqui.

- Obrigado, senhor - replicou Gastão inclinando-se em sinal de agradecimento. O governador retirou-se e o rapaz ouviu-o dar ordens que tinham certamente por fim redobrar de vigilância.

Gastão e La Jonquiére ficaram sós.

- Então? - disse este.

- É verdade o que me disse. Sei que também foi condenado e que devemos morrer juntos.

- O que o aborrece um pouco, não é verdade?

- Muito, porque tinha razões para ter apego à vida.

- Sempre se têm.

- Sim, mas eu mais do que qualquer outro.

- Então, meu caro amigo, só conheço um meio.

- Fazer revelações? Nunca!

- Não, mas fugir comigo.

- Como! Fugir consigo?

- Sim, evado-me.

- Sabe que a nossa execução está fixada para amanhã de manhã?

- Por isso fugirei esta noite.

- Foge?

- Sim.

- E por onde? Como?

- Abra essa janela.

- Já está aberta.

- Sacuda o varão de ferro do centro.

- Meu Deus!

- Resiste?

- Não, pelo contrário.

- Ora ainda bem. Deu-me grande trabalho, louvado seja Deus!

- Oh, parece-me um sonho!

- Lembra-se de me ter perguntado se eu também me entretinha a fazer algum dano?

- Sim, mas respondeu-me.

- Que Lhe diria mais tarde. Foi a minha resposta; julga-a de mais valor do que qualquer outra?

- Magnífica! Mas como se há-de descer?

- Ajude-me.

- Em quê?

- A procurar no meu enxergão.

- Uma escada de corda?

- Exactamente.

- Mas como conseguia obtê-la?

- Recebi-a juntamente com uma lima, num excelente pastelão de perdizes, no mesmo dia em que para aqui entrei.

- Capitão, decididamente é um grande homem.

- Bem sei. Sem contar ainda que sou um bom homem; porque podia fugir só.

- E pensou em mim?

- Pedi para vê-lo dizendo que queria entender-me consigo por causa das revelações. Bem sabia que com esta esperança os levaria a fazer alguma tolice.

- Depressa, capitão, depressa.

- Silêncio! Pelo contrário, façamos as coisas lenta e ajuizadamente; temos uma hora diante de nós, e ainda não há cinco minutos que o governador se afastou.

- A propósito, e as sentinelas?

- Ora, está muito escuro.

- Mas o fosso que está cheio d'água?

- Está gelada.

- E o muro?

- Quando chegarmos lá, pensaremos nele.

- Quer que segure a escada?

- Espere, quero certificar-me se é sólida. Tenho amor à pele, e não desejaria quebrar a cabeça, tentando impedir que a cortem.

- É o primeiro capitão da época, meu caro La Jonquiére.

- Ora! Já me tenho metido em aventuras piores - disse La Jonquiére fazendo o último nó na escada.

- Está terminado? - perguntou Gastão.

- Está.

- Quer que vá primeiro?

- Como quiser.

- É alto?

- Quinze ou dezoito pés.

- Uma bagatela!

- Sim, para si que é moço, mas para mim é difícil; sejamos pois prudentes, peço-lhe.

- Esteja descansado.

De facto, Gastão desceu primeiro, seguido de La Jonquiére, que ria disfarçadamente e praguejava cada vez que feria os dedos ou que o vento fazia balançar a escada.

- Que trabalho para o sucessor dos Richelieu e dos Mazarin! - murmurava Dubois.

- É verdade que não sou ainda cardeal, é o que me salva.

Gastão tocou na água ou antes no gelo do fosso. Passado um momento, La Jonquiére estava ao seu lado. A sentinela, quase gelada, achava-se na guarita e nada vira.

- Agora, siga-me - disse La Jonquiére.

Gastão obedeceu. Do outro lado do fosso esperava-os uma escada.

- Tem cúmplices? - perguntou Gastão.

- Com a breca! Pensa que o pastelão de perdizes veio sozinho?

- Digam que não se foge da Bastilha! - exclamou Gastão muito alegre.

- Meu jovem amigo - retrucou Dubois, parando no terceiro degrau -, acredite-me, não torne a vir meter-se aqui sem mim; podia não ter tanta felicidade da segunda vez como teve da primeira.

Continuaram a subir até ao alto do muro; na plataforma achava-se uma sentinela, mas em vez de se opor à passagem dos dois fugitivos, deu a mão a La Jonquiére para o ajudar a subir; depois, os três, em silêncio e rapidamente como quem conhece o valor dos minutos, puxaram a escada e colocaram-na do lado oposto do muro.

A descida operou-se com igual felicidade, e La Jonquiére e Gastão encontraram-se num outro fosso gelado como o primeiro.

- Agora - disse La Jonquiére -, levemos esta escada a fim de não comprometermos o pobre diabo que nos ajudou.

- Estamos pois livres? - perguntou Gastão.

- Quase - respondeu La Jonquiére.

Esta palavra redobrou a força do cavaleiro, que pôs a escada ao ombro e levou-a. Deram uns trinta passos e encontraram-se num beco do bairro Santo António. Embora fossem só nove horas e meia as ruas estavam desertas, porque o vento soprava com violência.

- Meu caro cavaleiro - disse La Jonquiére. - Tenha a bondade de me seguir até à esquina.

- Segui-lo-ia até ao inferno!

- Não é preciso ir tão longe; e para maior segurança cada um seguirá para o seu lado.

- Que carruagem é aquela? - perguntou Gastão.

- A minha.

- A sua?

- Sim.

- Felicito-o. Numa carruagem com duas parelhas? Viaja como um príncipe!

- Um dos cavalos é para si.

- Como! Consente?

- E ainda não é tudo.

- Que quer dizer?

- Não tem dinheiro.

- Tiraram-me tudo que possuía.

- Aqui tem uma bolsa com cinquenta luízes.

- Mas capitão.

- Ora vamos, é dinheiro de Espanha, aceite!

Gastão pegou na bolsa, enquanto um postilhão desatrelava o cavalo e Lho apresentava.

- Agora - disse Dubois. - Onde vai?

- Para a Bretanha, reunir-me aos meus companheiros.

- Está doido! Os seus companheiros estão condenados como nós, e daqui a dois ou três dias serão executados.

- Tem razão.

- Vá para a Flandres, é um lindo país. Em quinze ou dezoito horas terá alcançado a fronteira.

- Sim - tornou Gastão com ar sombrio. - Obrigado, sei onde devo ir.

- Nesse caso, boa viagem - retrucou Dubois subindo para a carruagem. - Está um vento medonho.

- Boa viagem - respondeu Gastão.

E depois de um último aperto de mão; separaram-se.

 

NÃO SE DEVE JULGAR OS OUTROS POR SI PRÓPRIO, PRINCIPALMENTE QUANDO SE TEM DUBOIS COMO NOME

O regente, segundo o seu costume, passava a noite em casa de Helena. Havia quatro ou cinco dias que não faltava e as horas que consagrava a sua filha eram as mais felizes da sua vida. A pobre Helena contudo, voltara mortalmente triste da Bastilha.

- Tranquilize-se, Helena - dizia o regente -, é amanhã que o desposará.

- Ainda está longe - respondia a jovem.

- Helena, acredite na minha palavra. Respondo-lhe que o dia de amanhã há-de surgir com muita felicidade para si e para ele.

E ela soltou um profundo suspiro.

Neste momento entrou um criado e falou em voz baixa ao regente.

- O que é? - perguntou Helena a quem o mínimo incidente assustava.

- Nada, minha filha; é o meu secretário que pede para me falar acerca de negócios urgentes.

- Quer que eu saia?

- Sim; por um momento.

Helena retirou-se para o seu quarto.

Ao mesmo tempo abriu-se a porta e Dubois entrou esbaforido.

- Donde vens ainda? - perguntou o regente -, e nessa figura.

- Donde venho? Ora de onde! Da Bastilha.

- E o nosso prisioneiro? Está tudo preparado para o casamento?

- Sim, monsenhor, tudo, tudo, excepto a hora, que ainda não determinou.

- Seja às oito horas da manhã.

- Às oito horas da manhã. - repetiu Dubois calculando.

- Sim. Que calculas?

- Onde estará ele.

- Quem?

- O prisioneiro.

- Como, o prisioneiro?

- Sim, amanhã a essa hora, deve estar a quarenta léguas de Paris.

- O que dizes?

- Pelo menos, se correu sempre da maneira que o vi partir.

- Explica-te.

- Saiba Vossa Alteza que só falta uma coisa para o casamento, é o marido.

- Gastão!

- Fugiu da Bastilha há meia hora.

- Mentes, abade; não se foge da Bastilha.

- Peço-Lhe perdão, monsenhor, a vida é uma bela coisa e todos lhe têm apego; demais seu genro possui uma cabeça muito interessante e deseja conservá-la. É muito natural.

- E onde está ele?

- Talvez lho possa revelar amanhã à noite; mas agora, ora, tudo quanto posso lhe dizer é que está muito longe e não voltará.

O regente entregou-se então a uma profunda meditação.

- Mas, monsenhor - tornou Dubois -, realmente a sua ingenuidade causa o meu eterno assombro; era preciso não conhecer o coração humano para supor que um homem condenado à morte permanecesse na prisão podendo evadir-se.

- Oh, o sr. de Chanlay! - exclamou o regente.

- Ora, esse cavaleiro, esse herói, procedeu como qualquer miserável, e na verdade, fez bem.

- Dubois, e minha filha? Morrerá!

- Não, monsenhor. Aprendendo a conhecer a personagem, consolar-se-á, e casá-la-á com algum príncipe da Alemanha ou da Itália com o duque de Modena por exemplo, que a menina de Valois não quer.

- Dubois, e eu que queria perdoar-lhe.

- Perdoou-se a si mesmo, achou o caso mais seguro, e eu, confesso, teria feito outro tanto.

- Oh, tu não és fidalgo, não mantens juramentos!

- Engana-se, monsenhor, jurei que o havia de impedir de fazer uma tolice, e consegui-o.

- Está bem, não falemos mais nisso; nem uma palavra diante de Helena. Encarrego-me de Lhe dar a notícia.

- E eu de apanhar o seu genro.

- Não! Está salvo, que aproveite!

No momento em que o regente pronunciava estas palavras, ouviu-se barulho no aposento contíguo e um criado entrou precipitadamente, anunciando:

- O sr. Gastão de Chanlay.

Este nome produziu um bem diferente efeito sobre as duas pessoas que o ouviram. Dubois fez-se mais pálido do que um defunto e o seu rosto crispou-se sob uma expressão de ameaçadora cólera. O regente levantou-se num transporte de alegria que lhe fez subir ao rosto uma viva cor. Havia tanta alegria naquele rosto que a confiança tornara sublime como furor comprimido no rosto astucioso de Dubois.

- Mande entrar - disse o regente.

- Espere ao menos que eu saia - tornou Dubois.

- Ah, sim, é justo, reconhecer-te-ia!

Dubois saiu com passo vagaroso, com um grunhido semelhante ao da hiena que perturbam no festim ou nos seus amores. Entrou no quarto contíguo. Deixou-se cair numa poltrona em frente de uma mesa iluminada por duas velas onde se achava tudo quanto era preciso para escrever. Ocorreu-lhe certamente uma ideia nova e terrível, porque a sua fisionomia iluminou-se e sorriu.

Tocou a campainha e apareceu um criado.

- Vá buscar a pasta que está na minha carruagem - disse ele.

A ordem foi prontamente executada. Dubois pegou apressadamente nuns papéis, encheu-os precipitadamente com uma expressão de alegria sinistra, tornou a colocá-los na pasta, depois, mandando aproximar a carruagem, ordenou para seguir para o Palais-Royal.

Entretanto, executava-se a ordem dada pelo regente, e abriam-se as portas ao cavaleiro. Gastão foi ao encontro do duque que lhe estendeu a mão.

- Como, o senhor aqui? - disse o duque tentando dar ao rosto a expressão de assombro.

- Sim, monsenhor, operou-se um milagre em meu favor por intermédio do excelente capitão La Jonquiére: tinha preparado tudo para a nossa fuga; pediu para me ver a pretexto de nos entendermos com respeito às nossas revelações; depois quando nos achámos sós, disse-me tudo e evadimo-nos juntos, com a maior facilidade.

- E em vez de fugir, de alcançar a fronteira, voltou aqui, expondo a sua vida.

- Monsenhor - retrucou Gastão corando -, devo confessar que primeiro a liberdade me pareceu a coisa mais bela e preciosa do mundo. As primeiras baforadas de ar que respirei embriagaram-me; mas pouco depois, reflecti.

- Numa coisa, não é verdade?

- Em duas, monsenhor.

- Em Helena, que abandonava?

- E nos meus companheiros condenados à morte.

- E decidiu.

- Que estava ligado à sua causa até que os nossos projectos se realizassem.

- Os nossos projectos!

- Sim! Não são também os de Vossa Excelência?

- Escute, senhor - retrucou o regente -, creio que o homem deve proceder na medida da sua força. Há coisas que Deus parece proibir-lhe que execute, avisos que lhe dizem para renunciar a certos projectos. Pois bem, considero como sacrilégio não atender esses avisos, permanecer surdo a essa voz. Os nossos projectos abortaram, não pensemos mais neles.

- Pelo contrário, monsenhor; pensemos ainda mais do que antes.

- Mas chega a ser furioso! - tornou o regente sorrindo. - O que é que o leva a querer persistir numa empresa que se tornou tão difícil, direi até insensata?

- Penso nos nossos amigos presos, julgados, condenados! Disse-mo o sr. d'Argenson; nos nossos amigos a quem o cadafalso espera e que só a morte do regente pode salvar; nos nossos amigos que diriam, se eu deixasse a França, que comprei a minha salvação pelo preço da sua perda, e que me abriram as portas da Bastilha devido às minhas revelações.

- Desse modo, senhor, sacrifica tudo a esse ponto de honra, tudo, até mesmo Helena?

- Monsenhor, se eles ainda vivem, devo salvá-los.

- Mas se morreram? - tornou o regente.

- Nesse caso - respondeu Gastão -, é forçoso que os vingue.

- Mas que diabo - disse o duque -, leva o heroísmo até ao exagero. Parece-me que já sofreu bastante. Acredite-me e olhe que passo por excelente juiz em pontos de honra: está absolvido aos olhos do mundo inteiro, meu querido Brutus.

- Não estou aos meus, monsenhor.

- Então persiste?

- Mais do que nunca. É forçoso que o regente morra, e - acrescentou com força -, há-de morrer!

- Mas, antes, não quer ver a menina de Chaverny? - perguntou o duque com a voz levemente alterada.

- Sim, monsenhor. Mas dê-me primeiro a sua palavra de que me auxiliará no meu projecto. Reflicta Vossa Excelência, que não há um momento a perder; que os meus companheiros estão julgados e condenados como eu fui. Monsenhor, diga-me imediatamente antes que eu veja Helena, que não me abandonará. Deixe-me tomar de algum modo um novo compromisso consigo. Sou homem, amo e portanto sou fraco; vou ter que lutar contra as lágrimas e contra a minha fraqueza. Só verei Helena com a condição de me prometer que me colocará em face do regente.

- E se eu recusar tomar esse compromisso?

- Não tornaria a ver Helena. Morri para ela; é inutil que ela volva à esperança para a tornar a perder; basta que chore uma vez.

- E persiste na sua resolução?

- Sim, apenas com menos probabilidades de bom êxito.

- Mas nesse caso o que faria?

- Iria esperar o regente em toda a parte onde ele fosse, e feri- lo-ia onde quer que o encontrasse.

- Ainda uma vez, reflicta - disse o duque.

- Sobre a honra do meu nome, intimo-o a que me preste o seu auxílio, ou declaro-lhe que saberei passar sem ele.

- Está bem, senhor; vá ver Helena e encontrará a minha resposta quando voltar.

- Onde?

- Nesta mesma sala.

- E essa resposta será conforme os meus desejos?

- Sim.

Gastão passou aos aposentos de Helena; a jovem estava ajoelhada em frente de um crucifixo, pedindo a Deus que Lhe restituisse o noivo. Ao ruído que fez Gastão abrindo a porta, voltou-se.

Acreditou que Deus fizera um milagre, e soltou um grande grito estendendo os braços para o cavaleiro sem ter forças para se erguer.

- Oh, meu Deus! - exclamou a jovem. - É ele? É a sua sombra?

- Sou eu, Helena, sou eu! - respondeu Gastão, correndo para a jovem e agarrando-lhe nas mãos.

- Mas como, tu. tu, prisioneiro esta manhã. e livre neste momento.

- Evadi-me, Helena.

- E depois pensaste em mim, correste para mim, não quiseste fugir sem a tua Helena. Oh, como te reconheço bem! Pois, meu amigo, estou pronta; leva-me para onde quiseres, sou tua. sigo-te.

- Helena - tornou o jovem -, não és a noiva de um homem banal. Se eu fosse como todos, não me terias amado.

- Oh, não, com certeza.

- Pois bem, Helena, às almas de elite cabem maiores provas. Antes de ser teu, tenho de cumprir a missão que me trouxe a Paris. Temos ambos um destino fatal. Que queres, Helena, mas tem de ser assim: a nossa vida ou a nossa morte dependem de um único acontecimento que há-de realizar-se hoje mesmo.

- Que diz? - exclamou a jovem.

- Escute, Helena, se dentro de quatro horas, isto é, até madrugada, não receber notícias minhas, não me espere mais. Pense que o que se passou entre nós foi um sonho. E se obtiver licença, vá ver-me à Bastilha.

Helena fez-se pálida, os braços penderam-Lhe inertes ao longo do corpo. Gastão conduziu-a até junto do genuflexório, onde ela se ajoelhou de novo.

Depois, beijando-a na fronte como teria feito um irmão, disse:

- Continue a rezar, Helena, porque rezando por mim, reza ainda pela Bretanha e pela França.

E saiu do quarto.

- Meu Deus! - murmurou Helena. - Salve-o, salve-o! Que me importa o resto do mundo?

Voltando à sala, o moço encontrou um criado que lhe disse ter o duque partido, e entregou-Lhe um bilhete da sua parte.

Dizia o seguinte:

"Há esta noite um baile de máscaras em Monceaux a que o regente há-de assistir. Tem por hábito retirar- se só, pela uma hora da manhã para uma estufa que está situada na extremidade da galeria dourada. Ali, ninguém entra senão ele, porque lhe conhecem o costume e o respeitam. O regente usará um dominó de veludo preto, tendo no braço esquerdo uma abelha bordada a ouro.

"Esconde esse sinal numa prega quando deseja permanecer desconhecido. O convite que junto Lhe envio é de embaixador; com ele será admitido, não só no baile, mas ainda na estufa, onde deve fingir ir em busca de uma entrevista secreta. Use-o para se encontrar com o regente. A minha carruagem está à porta; encontrará aí o meu dominó; o cocheiro está às suas ordens. "

Lendo este bilhete, que lhe abria todas as portas e que o conduzia por assim dizer frente a frente daquele que queria assassinar, um suor frio passou pela fronte de Gastão que se encostou a uma cadeira; em seguida tomando uma súbita resolução, correu para fora da sala, desceu rapidamente a escada, e pulou para a carruagem gritando ao cocheiro:

- Para Monceaux!

Logo que ele saiu da sala, abriu-se uma porta secreta e o duque entrou: aproximou-se lentamente da porta que ia ter aos aposentos de Helena, que soltou um grito de alegria vendo-o.

- Está contente, Helena? - perguntou-Lhe o regente com um sorriso triste.

- Oh, está aqui, monsenhor?

- Como vê, minha Filha, as minhas predicções realizaram-se. Acredite na minha palavra, espere!

- Ah, monsenhor, é um anjo enviado à terra para tomar o lugar do pai que perdi!

- Infelizmente - respondeu o regente -, não sou um anjo, minha querida Helena; mas tal como sou, servir- Lhe-ei de pai, e de muito amigo.

E o duque pegou na mão da jovem e quis beijá-la respeitosamente; ela porém ergueu a fronte onde os lábios do regente se pousaram de leve.

- Vê-se bem que o ama muito.

- Monsenhor, Deus o abençoe.

- Possa o seu voto dar-me felicidade! - disse o regente.

E, sempre sorrindo, deixou-a e subiu para a carruagem.

- Passa pelo Palais-Royal - disse ao cocheiro -, mas toma sentido que só tens um quarto de hora para ir a Monceaux.

O cocheiro fustigou os cavalos que partiram a galope. No momento em que a carruagem entrava no peristilo, partia um correio a cavalo com a maior velocidade. Dubois, vendo-o partir, fechou a janela e entrou nos seus aposentos.

 

             MONCEAUX

Entretanto, Gastão seguia para Monceaux.

Como Lhe escrevera o duque, tinha encontrado uma máscara e um dominó na carruagem: a máscara era de veludo preto e o dominó de cetim roxo. Vestiu-o, cobriu o rosto com a máscara e pensou de repente numa coisa: é que não tinha armas.

De facto, saindo da Bastilha, tinha corrido à rua de Bac, e não ousava voltar à hospedaria do "Mind-de-amor", com receio de ser reconhecido e preso.

Pensou que talvez em Monceaux Lhe fosse fácil procurar uma arma qualquer. Mas à medida que se aproximava, o que Lhe fazia mais falta, não era a arma, mas a coragem. Travava-se no seu íntimo um terrível combate: o orgulho e a humanidade debatiam-se, e era- Lhe necessário lembrar-se de vez em quando dos seus amigos na prisão, condenados, ameaçados de uma morte cruel e infame, para que, voltando à sua primeira resolução, continuasse com firmeza o seu caminho. Por isso, quando a carruagem entrou em Monceaux e parou em frente do pavilhão brilhantemente iluminado, apesar do frio glacial que fazia, apesar da neve que cobria os lilázes poeirentos, tão tristes no inverno, tão lindos e perfumados na primavera, Gastão sentiu um suor frio correr-Lhe pela fronte e murmurou a palavra:

- Já!

Entretanto a carruagem tinha parado, a portinhola estava aberta. Demais tinham reconhecido o cocheiro particular do príncipe, a carruagem de que se servia para os seus passeios nocturnos, e todos tinham acudido silenciosos e prontos a obedecer à primeira ordem.

Gastão notou esse facto. Desceu e apresentou o seu convite.

Mas os lacaios afastaram-se respeitosamente como que para lhe mostrar que essa formalidade do convite de admissão era bem inútil.

Era uso então mascararem-se os homens e as mulheres, e, ao contrário do que hoje sucede, eram geralmente as mulheres que iam a essas reuniões de rosto descoberto. As mulheres dessa época não só falavam livremente, mas sabiam falar. A máscara não servia para lhes ocultar a nulidade; no século XVIII, todas as mulheres tinham espírito. Também não servia para Lhes ocultar a inferioridade da situação; quando se era bonita, depressa se adquiria um título, exemplo a duquesa de Chateauraux, a condessa Dubarry.

Gastão não conhecia ninguém, e contudo, por instinto, adivinhava que se encontrava no meio da mais delicada flor da sociedade daquela época. Estava ali representada toda a nobreza, reunida em volta do príncipe mais popular da família real. Só faltavam a essa representação do grande século passado, os bastardos de Luís XIV e um rei.

De facto, ninguém no mundo, e os seus próprios inimigos Lhe prestavam essa justiça, sabia organizar uma festa como o regente.

Aquele luxo de bom gosto, aquela admirável profusão de flores que perfumavam os salões, aqueles milhares de luzes que os espelhos multiplicavam; aqueles príncipes, aqueles embaixadores, aquelas mulheres adoravelmente lindas, tudo isso produzia o seu efeito no jovem provinciano, que, de longe, só vira no regente um homem, e que, depois, o reconhecia por um rei, e um rei poderoso, espirituoso, alegre, amável, amado, e principalmente popular e nacional.

Gastão sentiu que o perfume de todo aquele luxo Lhe subia à cabeça e o embriagava. Muitos olhos brilhantes, sob as máscaras, o trespassaram como rubros punhais. O coração batia-Lhe apressado quando ao procurar entre todas aquelas cabeças uma a que destinava os seus golpes, notava um dominó preto. Seguia acotovelando e empurrando, deixando-se levar como um barco sem remos e sem velas por essas ondas que tumultuavam em volta dele, inclinando-se e erguendo-se sob aqueles sopros de poesia sombria ou alegre que o envolviam, e passando num segundo do paraíso ao inferno. Sem a máscara que lhe ocultava o rosto e não deixava ver a alteração da sua fisionomia não daria quatro passos por essas salas sem que o apontassem e dissessem:

- Vai ali um assassino!

É porque havia alguma coisa de covarde e vergonhoso, e Gastão bem o sentia, em entrar na casa de um príncipe que o recebia, para transformar esses lustres brilhantes em tochas fúnebres, para manchar de sangue essas deslumbrantes tapeçarias, para despertar o terror no meio da alegria da festa: aquele pensamento fez-lhe perder a coragem e deu alguns passos para a porta.

- Matá-lo-ei lá fora - disse ele. - Aqui não.

Lembrou-se de súbito da indicação que Lhe dera o duque, o convite que devia abrir-Lhe a estufa e murmurou entre dentes:

- Previu que a sociedade me assustaria; adivinhou que sou um covarde! A porta para que tinha avançado conduziu-o a uma espécie de galeria onde se achava o bufete. Todos ali iam comer ou beber.

Gastão aproximou-se como os outros convidados; não porque tivesse fome ou sede, mas como já frisámos, não tinha arma alguma.

Escolheu uma faca comprida e delgada, e depois de lançar um olhar em torno de si para ver se alguém o observava, pô-la sob o dominó com um fúnebre sorriso.

- Uma faca - murmurou -, uma faca! Vamos, a semelhança com Ravaillac será completa. É verdade que é um neto de Henrique IV.

Mal formulara este pensamento no espírito, viu aproximar-se um mascarado de dominó de veludo azul. Um pouco atrás caminhavam um homem e uma dama também mascarados. O dominó azul notou que o seguiam e deu dois passos ao encontro dos mascarados, disse algumas palavras ao homem num tom autoritário que Lhe fez curvar a cabeça numa atitude respeitosa e voltou para junto de Chanlay.

- Hesita - disse ele a Gastão com uma voz bem conhecida.

Gastão entreabriu o dominó com uma das mãos e mostrou ao duque a faca que segurava na outra.

- Vejo a lâmina que brilha, mas também a mão que treme.

- É verdade, monsenhor, hesitava, tremia, sentia-me disposto a fugir, mas ei-lo junto de mim, graças a Deus!

- E onde está essa coragem feroz? - perguntou o duque com a sua voz zombeteira.

- Não a perdi, monsenhor.

- Mas o que é feito dela?

- Monsenhor, estou em casa dele!

- Sim, mas não está na estufa.

- Poderia mostrar-mo primeiro, para que me habitue à sua presença, para que me exalte com o ódio que Lhe voto; porque não sei como hei-de reconhecê-lo entre a multidão.

Ainda agora, esteve junto de si.

Gastão estremeceu.

- Junto de mim? - disse o rapaz.

- Como eu estou agora - tornou o duque solenemente.

- Dirigir-me-ei à estufa.

- É melhor.

- Um momento ainda, monsenhor, para serenar.

- Muito bem; como sabe, a estufa fica na extremidade desta galeria; as portas estão fechadas.

- Não me disse, monsenhor, que com este convite, os criados a abririam?

- Sim, mas vale mais não os chamar; os criados que o introduzissem podiam esperá-lo à saída. Se está tão agitado antes de vibrar o golpe, o que não será depois; e o regente não cairá sem se defender, sem soltar um grito; eles acudirão, será preso, e adeus esperanças do futuro! Pense em Helena, que o espera!

É impossível exprimir o que se passava no coração do rapaz, ouvindo as palavras do duque, que parecia seguir-Lhes o efeito no rosto do cavaleiro.

- E então - perguntou este -, o que devo fazer! O que me aconselha?

- Quando estiver à porta da estufa, a que fica em frente desta galeria, procure debaixo da fechadura um botão ciselado; empurre- o, e a porta abrir-se-á, a não ser que esteja fechada por dentro; mas o regente, que de nada desconfia, não tomou por certo essa precaução; tenho ali entrado assim vinte vezes em audiência particular. Se não estiver lá, espere-o; se estiver, reconhecê- lo-á pelo dominó preto com a abelha dourada.

- Sim, sim, bem sei - retrucou Gastão sem saber sequer o que dizia.

- Não conto muito consigo hoje - tornou o duque.

- Ah, monsenhor, é porque o momento se aproxima, e num minuto vou mudar toda a minha vida passada num futuro bem duvidoso, num futuro de vergonha talvez, de remorso, pelo menos.

- Remorso! - volveu o duque. - Quando se realiza um acto que a consciência ordena, não se tem remorsos. Duvida da santidade da sua causa?

- Não, monsenhor; mas a si é lhe fácil falar desse modo. Vossa Excelência pensa, eu executo. Acredite-me. Monsenhor, é uma coisa terrível matar um homem que se nos entrega sem defesa e que sorri ao seu assassino. Julgava-me corajoso e forte, mas deve suceder outro tanto a todo o conspirador que tomou o compromisso que eu tomei. Num momento de efervescência, de altivez, de entusiasmo ou de ódio, faz-se o juramento fatal. Depois de feito, a febre acalma-se a efervescência decresce, o entusiasmo apaga-se, o ódio diminui. Vê-se aparecer do outro lado do horizonte aquele a quem devemos procurar e que vem ter connosco; cada dia mais se nos aproxima, e então treme-se, porque só nesse momento se avalia o crime que se deve perpetrar. Então, monsenhor, creia-me, os mais corajosos tremem; porque um assassino é sempre um assassino! Descobre-se que não se é o ministro da sua consciência, mas o escravo do seu juramento. Partiu-se de fronte erguida, dizendo: "Sou o eleito! " chega-se de fronte curvada bradando: "Sou maldito! "

- É tempo ainda - tornou vivamente o duque.

- Não, não, monsenhor, bem sabe que há uma fatalidade que me impele para a frente. Cumprirei a minha missão, por muito terrível que seja; o meu coração há-de tremer, mas a minha mão há-de ferir com firmeza. Sim, deixe-me dizer-Lhe, se os meus amigos não esperassem a vida do golpe que vou vibrar, se não fosse Helena que cobrirei de luto e talvez de sangue, preferia o cadafalso com toda a sua vergonha: porque esse não castiga, absolve.

- Vamos! - volveu o duque. - Está bem, vejo que tremerá, mas que não deixará de proceder.

- Não duvide, monsenhor; reze por mim, porque daqui a meia hora estará tudo acabado. O duque fez um movimento involuntário, aprovando todavia com um gesto e perdeu-se no meio da multidão.

Gastão encontrou uma janela entreaberta que dava para um terraço. Passeou aí um instante para apagar, com o frio, a febre que o devorava, mas não o conseguiu. Voltou à galeria, deu alguns passos, encaminhou-se para a estufa, aproximou-se da porta e colocou a mão sobre o botão cinzelado; pareceu-lhe porém que algumas pessoas reunidas a alguma distância o observavam; voltou para trás, refugiou-se no terraço, e ouviu soar uma hora na igreja próxima.

- Desta vez - murmurou -, chegou o momento e não posso recuar. Meu Deus, recomendo-vos a minha alma! Adeus, Helena, adeus!

Com passo vagaroso mas Firme, foi direito à porta, empurrou o botão e a porta abriu- se silenciosamente na sua frente. Passou- lhe uma nuvem pelos olhos, julgou-se num mundo novo.

A música só Lhe chegava aos ouvidos como uma melodia muito cheia de encantos; aos perfumes fictícios das essências sucedera o perfume suave das flores; a claridade deslumbrante de mil velas, o delicioso crepúsculo de algumas lâmpadas de alabastro ocultas entre a folhagem.

Tudo mudara, até a temperatura. Gastão sentiu um frémito percorrer-Lhe as veias. Deu alguns passos e Ficou imóvel. O contraste daquela verdura com os salões dourados consternara-o.

Parecia-Lhe mais difícil ainda aliar os seus pensamentos criminosos com aquela suavidade que o rodeava.

Todavia continuou a avançar, seguindo uma espécie de álea. Gastão via tudo confusamente, porque o seu olhar perturbado receava ver. Interrogava os maciços, temendo distinguir entre eles uma forma humana. Por vezes, ouvindo o ruído de uma folha que se soltava do tronco e caía, voltava-se tomado de terror para a porta, e julgava ver entrar a majestosa figura negra de que aquele sonho lhe prometia a fatal visita. Nada. Avançava sempre.

Enfim, debaixo de um catalpo de grandes folhas, cercado de rododendros luxuriantes de flores, avistou o fantasma negro sentado num banco de verdura e com as costas voltadas para ele.

O sangue afluiu-lhe violentamente ao coração, subiu-lhe às faces, tremeram-Lhe os lábios, as mãos humedeceram-se de suor frio e procurou maquinalmente um apoio que não encontrou. O dominó permanecia imóvel.

Gastão recuou mau grado seu. De súbito fez um esforço supremo, obrigou as pernas rebeldes a caminhar. Segurou com os dedos crispados o cabo da faca e deu alguns passos para o regente sufocando um gemido prestes a escapar-lhe.

Neste instante, a pessoa que tinha na sua frente, fez um leve movimento, e no braço esquerdo Gastão viu brilhar a abelha de ouro, que Lhe pareceu um sol em chamas.

Depois, à medida que o dominó se voltava para o moço, os seus braços retezavam- se, subia-lhe a espuma aos lábios, batiam-Lhe os dentes, porque lhe começava a oprimir o coração uma vaga suspeita. De súbito, soltou um grito estridente.

O dominó erguera-se, não tinha máscara no rosto, e esse rosto era o do duque de Olivares.

Gastão, como que fulminado, permaneceu lívido e mudo. O regente, porque não havia dúvida possível, o duque e o regente eram a mesma pessoa, conservou a sua atitude majestosa e calma. Olhava fixamente para a mão que segurava a faca e esta caiu. Olhou então para o moço com um sorriso meigo e triste ao mesmo tempo, e Gastão deixou-se cair de joelhos como uma árvore derrubada pelo machado.

Nem um nem outro haviam proferido uma palavra. Apenas se ouvia um angustiado gemido que dilacerava o peito de Gastão, e o ruído da água caindo uniformemente ali perto.

 

               O PERDÃO

- Levante-se, senhor - disse o regente.

- Não, monsenhor! - exclamou Gastão batendo com a fronte na terra. - Oh, não, é a seus pés que devo morrer!

- Morrer! Gastão; bem vê que está perdoado!

- Oh! Monsenhor, por piedade, castigue- me; porque é preciso que me despreze muito para me perdoar!

- Mas não adivinhou? - perguntou o duque.

- O quê?

- O motivo por que Lhe perdoo?

Gastão, num momento, recordou-se de toda a sua vida passada: a sua mocidade triste e isolada, a morte desesperada de seu irmão, o seu amor por Helena, aqueles dias tão longos separados dela, aquelas noites tão curtas passadas debaixo da janela do convento, a viagem a Paris, a bondade do duque para com essa jovem, enfim aquela inesperada clemência; mas em tudo isso, nada via, nada adivinhava.

- Agradeça a Helena - disse o duque -, que percebeu que o rapaz procurava inutilmente a razão do que lhe sucedia; agradeça a Helena, é ela que lhe salva a vida.

- Helena, Monsenhor! - murmurou Gastão.

- Não posso castigar o noivo de minha filha.

- Helena é sua filha, monsenhor, e eu quis matá-lo!

- Sim, pense no que disse há pouco: parte-se eleito, volta-se assassino, e algumas vezes até mais do que isso, volta-se parricida, porque eu sou quase seu pai - disse o duque estendendo-lhe a mão.

- Monsenhor, tenha piedade de mim!

- Tem um nobre coração, meu amigo.

- E Vossa Alteza é um nobre príncipe, monsenhor! De hoje em diante pertenço-Lhe de corpo e alma: todo o meu sangue por uma lágrima de Helena, por um desejo de Vossa Alteza.

- Obrigado, Gastão - tornou o duque sorrindo. - Restituir-lhe-ei essa dedicação em felicidade.

- Vossa Alteza quer tornar-me feliz! Ah! Monsenhor, Deus vinga-se permitindo que me faça tanto bem em troca do mal que lhe quis fazer.

O regente sorria perante aquela efusão de reconhecimento, quando a porta se abriu e entrou um dominó verde. A máscara avançou vagarosamente, e Gastão como se adivinhasse que ela Lhe levava o fim da sua felicidade, recuou diante dela; pela expressão do rosto do rapaz, o duque adivinhou que se passava alguma coisa de novo e virou-se.

- O capitão La Jonquiére! - exclamou Gastão.

- Dubois? - murmurou o duque franzindo as sobrancelhas.

- Monsenhor? - tornou Gastão deixando pender nas mãos a fronte pálida de susto.

- Monsenhor, estou perdido! Não é a mim que urge salvar; esquecia aqui a minha honra, a salvação dos meus amigos!

- Dos seus amigos? - tornou o duque com frieza -; pensava que já nada tinha de comum com esses homens.

- Monsenhor, disse-me que eu tinha um nobre coração; pois bem, acredite na minha palavra: Pontcalet, Montlouis, Talhouet e de Couédic têm corações tão nobres como o meu.

- Corações nobres! - repetiu o duque com ar de desprezo.

- Sim, monsenhor - repito o que disse.

- E sabe o que eles quiseram fazer, pobre criança, que foi o mandatário cego, que foi o braço com que tencionavam executar o seu pensamento? Pois bem, esses nobres corações quiseram entregar a pátria ao estrangeiro, quiseram cortar a França do número das nações soberanas. Fidalgos, deviam dar o exemplo da coragem e da lealdade; deram o da covardia e da traição. Então, não responde, baixa os olhos? Se é a faca que procura, está a seus pés; apanhe- a, ainda está a tempo.

- Monsenhor - retrucou Gastão -, juntando as mãos, renuncio às minhas ideias de assassínio, e renuncio a elas detestando-as; peço-lhe perdão de joelhos por tê-las tido; mas se não salvar os meus amigos, peço-Lhe, monsenhor, que me deixe morrer com os meus cúmplices. Se vivo, e eles morrem, a minha honra extingue-se com eles; reflicta, monsenhor, a honra do nome que sua filha ia usar.

O regente baixou a cabeça e respondeu:

- É impossível, senhor, traíram a França, hão-de morrer.

- Morrerei pois com eles, porque também eu traí a França, e mais ainda, quis assassinar Vossa Alteza.

O regente olhou para Dubois que sorria; o rapaz compreendeu que lidara com um falso La Jonquiére como com um falso duque de Olivares.

- Não - disse Dubois, dirigindo-se a Gastão -, não morrerá por isso, e há-de compreender que há crimes que o regente tem o poder, mas não o direito de perdoar.

- Mas a mim perdoava! - exclamou Gastão.

- Porque é o esposo de Helena - respondeu o duque.

- Engana-se, monsenhor, não o sou, nem nunca o serei; e como um sacrifício desta ordem impele a morte àquele que o faz, morrerei, monsenhor.

- Ora! - disse Dubois. - Não se morre de amor; isso era bom no tempo do sr. de Urfé e da menina de Scudéri.

- Talvez tenha razão, mas em todo o tempo se morreu de uma punhalada. E ao mesmo tempo que proferia estas palavras, Gastão abaixou-se e apanhou a faca que estava a seus pés com uma expressão que não enganava.

Dubois não se moveu, o regente deu um passo.

- Largue essa arma, senhor - disse ele com altivez.

- A vida dos meus amigos, monsenhor! - disse Gastão.

O regente voltou-se para Dubois, que tinha ainda nos lábios o seu sorriso zombeteiro.

- Está bem - tornou o duque -, viverão.

- Ah! Monsenhor! - exclamou o cavaleiro agarrando a mão do regente e tentando levá-la aos lábios; é o igual de Deus sobre a terra.

- Monsenhor, comete uma falta irreparável - disse friamente Dubois.

- Pois quê? - exclamou Gastão atónito. - O senhor é.

- O abade Dubois, um seu criado - respondeu o falso La Jonquiére inclinando-se.

- Ah, Monsenhor, escute apenas a voz do seu coração, suplico-lhe!

- Monsenhor, não assine coisa alguma - tornou Dubois.

- Assine, monsenhor, assine! - repetiu Gastão. - Prometeu-Lhes o perdão, e sei que a sua promessa é sagrada.

- Dubois, assinarei - disse o duque.

- Vossa Alteza está decidido!

- Dei a minha palavra.

- Está bem; faça-se a vontade de Vossa Alteza.

- Imediatamente, não é assim, monsenhor? - exclamou Gastão. - Não sei porquê, tenho medo, monsenhor; o perdão dos meus amigos, suplico-Lhe.

- Oh, senhor - disse o abade. - Visto que Sua Alteza prometeu, que importa cinco minutos a mais ou a menos?

O regente olhou para Dubois inquieto.

- Sim, tem razão, há-de ser já. A sua pasta, abade, apressemo-nos, este moço está impaciente. Dubois inclinou-se em sinal de acquiescência, dirigiu-se para a porta da estufa, chamou um criado, pegou na pasta, e apresentou ao regente uma folha de papel em branco onde este escreveu uma ordem que assinou.

- E agora um correio - disse o duque.

- Um correio? - repetiu Gastão. - Monsenhor, é inútil!

- Porquê?

- Um correio não iria bastante depressa; irei eu mesmo, se Vossa Allteza o permite; cada instante que ganharei salvará um século de angústias àqueles infelizes.

Dubois franziu o sobrolho.

- Sim, com efeito, tem razão, pode partir - disse o regente.

E juntou em voz baixa:

- E não se separe por um segundo desta ordem.

- Mas, monsenhor - volveu Dubois -, parece que está mais interessado que o próprio sr. de Chanlay; esquece que se ele parte assim há alguém em Paris que o julgará morto.

Estas palavras perturbaram Gastão que pensou em Helena que deixara inquieta com o receio de um grave acontecimento, que o esperava a todos os instantes e que nunca Lhe perdoaria ter saído de Paris sem a ver. Portanto, num momento tomou uma resolução, beijou a mão do regente, pegou na ordem de perdão, cumprimentou Dubois, e ia sair quando o regente Lhe disse:

- Nem uma palavra a Helena do segredo que Lhe desvendei, não é assim, senhor? Deixe-me o prazer de a informar eu mesmo que sou seu pai, é a única recompensa que peço.

- Obedecerei a Vossa Alteza - disse Gastão verdadeiramente comovido. E cumprimentando mais uma vez, saiu da estufa.

- Por aqui - disse Dubois. - Está tão transtornado, que qualquer julgaria que realmente assassinou alguém e prendê-lo-iam. Atravesse este bosquezinho; no fim há-de encontrar uma rua que o conduzirá à porta.

- Oh, obrigado! Bem deve compreender que qualquer demora.

- Pode ser fatal. É por isso - acrescentou em voz baixa - que lhe indico o caminho mais longo.

Gastão afastou-se. Dubois seguiu-o por algum tempo com o olhar e quando o rapaz desapareceu, virou-se para o duque.

- Que tem, monsenhor? - perguntou. - Parece inquieto.

- E assim é, Dubois.

- E por que motivo?

- Empregaste pouca resistência para essa boa acção. Isso atormenta-me. Dubois sorriu.

- Abade - exclamou o duque -, tu tramas alguma coisa!

- Não, monsenhor, já está tramado.

- Vejamos, que mais fizeste?

- Monsenhor, conheço Vossa Alteza.

- E então?

- Sabia o que ia passar-se.

- Depois?

- Que não sossegaria sem assinar o perdão de todos esses cavalheiros.

- Acaba.

- Também eu mandei um correio.

- Tu?

- Sim, eu. Não me assiste esse direito?

- Sim, meu Deus! Mas de que ordem era o teu correio portador?

- De execução.

- E partiu?

Dubois consultou o relógio.

- Há duas horas.

- Miserável!

- Ah, monsenhor, sempre insultos! Cada um trata dos seus negócios, que diabo! Salve o sr. de Chanlay, se faz favor, é seu genro; eu, salvo Vossa Alteza.

- Conheço Chanlay; há-de chegar antes do teu correio.

- Não, monsenhor.

- Duas horas não são coisa alguma para um homem enérgico que há- de devorar o espaço, e depressa as há-de ganhar.

- Se o meu correio só tivesse duas horas de avanço, o sr. de Chanlay talvez passar-lhe-ia adiante; mas terá três.

- Como assim?

- Porque o excelente moço está apaixonado, e dando-lhe uma hora para se despedir de sua Filha, não é de mais.

- Serpente! Compreendo agora o sentido das palavras que proferiste há pouco.

- Achava-se num momento de entusiasmo; poderia esquecer o seu amor. Conhece o meu princípio, monsenhor: deve-se sempre desconfiar dos primeiros movimentos, são os bons.

- É um princípio infame!

- Monsenhor, ou bem que se é diplomata ou que se não é!

- Está bem - volveu o regente dirigindo-se para a porta -, preveni-lo-ei.

- Monsenhor - disse Dubois fazendo parar o duque perante a firmeza do tom em que falava, e tirando um papel da pasta -, se faz o que disse, tenha antes a bondade de aceitar a minha demissão. Gracejemos, bem o desejo; mas disse Horácio: "Est modus in rebus". E Horácio era um grande homem. Vamos, monsenhor, basta de política por hoje. Volte para o baile, e amanhã à noite estará tudo perfeitamente em ordem. A França ver-se-á desembaraçada de quatro dos seus inimigos mais encarniçados, e restar-Lhe-á um genro muito gentil que prefiro ao sr. de Rion, palavra de abade!

E voltaram ambos para o baile: Dubois alegre e triunfante, o duque triste e pensativo, mas convencido que era o seu ministro que tinha razão.

 

                   ÚLTIMA ENTREVISTA

Entretanto Gastão tinha saído da estufa com a alegria no coração: aquele imenso peso que o oprimia desde que se fìzera conspirador e que o amor de Helena suavizava de vez em quando acabava de desaparecer como se um anjo Lho tivesse tirado de cima do peito.

Aos sonhos de vingança, sonhos terríveis e sangrentos, sucediam-se sonhos de amor e de glória. Helena não era só a mulher encantadora, adorável e apaixonada, era uma princesa de sangue real, uma dessas divindades por cuja ternura os homens dariam a vida, se, fracos, como mortais, não dessem a sua ternura sem pedirem nada em troca.

E além disso, mesmo sem querer, sentia despertar num canto do seu coração, que julgava todo possuído pelo amor, os instintos adormecidos da ambição. Que brilhante sorte a sua, e que inveja ia provocar aos Lauzun e aos Richelieu! Ter um amigo todo poderoso, ávido de ternura, sedento de amar uma filha tão pura e tão nobre; e depois uma santa emulação entre a Filha e o genro para se tornarem dignos de pertencerem a um tão grande príncipe, a um vencedor tão clemente.

Parecia ao rapaz que o seu coração não podia conter tanta alegria: os seus amigos salvos, o seu futuro certo, Helena Filha do regente. Apressou de tal maneira cavalos e cocheiro, que em menos de um quarto de hora estava na rua de Bac.

A porta abriu-se e ouviu um grito. Helena esperava o seu regresso, à janela do pavilhão; reconhecera a carruagem e correra, alegre, ao encontro do seu noivo.

- Salvo! - exclamou Gastão logo que a viu. - Todos salvos, os amigos, eu, eu!

- Oh! meu Deus! - disse Helena empalidecendo. - Mataste-o?

- Não, não, graças a Deus! Oh, Helena, que coração o daquele homem, e que homem que é esse regente! Oh, ama- o bem, Helena. Amá-lo-ás, não é verdade?

- Explica-te, Gastão.

- Vem, vem, e falemos de nós. Tenho só alguns instantes para te consagrar, Helena; o duque dir-te-á o que se passou.

- Uma coisa antes de tudo - tornou Helena. - Qual é o teu destino, Gastão?

- O melhor possível: teu esposo, rico, considerado, Helena, estou louco de felicidade.

- E não nos separaremos mais?

- Não, Helena, vou partir.

- Meu Deus!

- Mas para voltar.

- Mais uma vez separados?

- Por três dias, o máximo. Parto para fazer com que bendigam o teu nome, o meu, o do nosso protector, do nosso amigo.

- Mas onde vais?

- A Nantes.

- A Nantes?

- Sim. esta ordem contém o perdão dos meus amigos. Estão condenados à morte, compreendes? E dever-me-ão a vida. Oh, não me detenhas, Helena e pensa no que sofreste há pouco enquanto me esperavas.

- E portanto o que tenho ainda que sofrer.

- Não, minha Helena, porque, desta vez, não há obstáculos, nem receios; tens a certeza que voltarei.

- Gastão, não hei-de ver-te senão de longe em longe e por alguns minutos apenas? Ah! e contudo, tenho tanta necessidade de ser feliz!

- Hás-de ter toda a ventura que mereces.

- Sinto o coração oprimido.

- Oh, quando souberes tudo!

- Dize-me já o que devo saber mais tarde.

- Helena, a única coisa que falta à minha felicidade é cair a teus pés e dizer-te tudo. Mas prometi. Fiz mais, jurei.

- Sempre segredos!

- Este, pelo menos, é cheio de felicidade.

- Oh! Gastão! como eu tremo!

- Mas olha para mim, Helena; e vendo-me tanta alegria nos olhos, ousas ainda dizer que tens medo.

- Porque não me levas contigo, Gastão?

- Helena!

- Peço-te, partamos juntos.

- É impossível.

- Porquê?

- Em primeiro lugar, porque urge que esteja em Nantes daqui a vinte horas.

- Seguir-te-ei, ainda que morra de fadiga.

- Depois porque já não dependes de ti só. Tens aqui um protector a quem deves respeito e obediência.

- O duque?

- Sim, o duque. Oh, quando souberes como procedeu comigo. connosco!

- Deixemos-Lhe uma carta e há-de perdoar-nos.

- Não, não, diria que somos ingratos e teria razão; não, Helena, enquanto eu vou à Bretanha, ficarás aqui; e logo que eu chegue, chamar-te-ei minha mulher, e a teus pés agradecer-te-ei a felicidade que me dás e a honra que me fazes.

- Deixas-me, Gastão! - exclamou a jovem com angústia.

- Oh, deste modo, não, Helena, porque não poderia deixar-te! Oh! mas, sê alegre, sorri, e dize-me, estendendo-me a tua mão tão pura e tão leal: "Parte, Gastão, é o teu dever.

- Sim meu amigo - disse Helena. - Talvez devesse dizer-te isso; mas, na verdade, não tenho essa força, perdoa-me.

- Oh, Helena, fazes mal, quando eu estou tão contente.

- Que queres, Gastão? É mais forte que a minha vontade. Gastão, levas metade de minha vida contigo, pensa bem.

Ele ouviu bater três horas e estremeceu.

- Adeus. - disse ele. - Adeus!

- Adeus! - murmurou Helena.

E apertou-Lhe mais uma vez a mão que beijou; e correndo para fora do quarto, dirigiu-se para a escada, no fundo da qual relinchavam os cavalos gelados pelo frio da madrugada.

Quando porém descia, ouviu os soluços de Helena.

Tornou a subir apressadamente e correu para ela; estava à porta do quarto donde ele saíra. Gastão apertou-a nos braços, e a jovem suspendeu-se-Lhe ao pescoço desfalecida.

- Oh! meu Deus! - exclamou. - É certo que me deixas? Gastão, escuta bem o que te digo; não nos tornaremos a ver!

- Pobre amiga! Pobre louca! - exclamou ele comprimindo-se-Lhe o coração mau grado seu.

- Sim, louca. mas de desespero - respondeu Helena.

E as suas lágrimas inundaram o rosto de Gastão.

De súbito, depois de um íntimo combate, uniu os seus lábios aos do noivo apertando-o com ardor. Em seguida, repelindo-o brandamente, disse:

- Vai, vai, Gastão; agora, posso morrer.

O moço correspondeu àquele beijo com apaixonadas carícias. Neste momento soavam três horas e meia.

- Mais meia hora que é preciso recuperar - disse ele.

- Adeus, adeus, Gastão! Assim é, já devias ter partido.

- Adeus, até muito breve.

- Adeus, Gastão!

E a jovem entrou silenciosa em casa, como uma sombra para o seu túmulo. Quanto a Gastão, fez-se conduzir à posta, pediu o melhor cavalo, mandou-Lhe pôr o selim, montou-o, e saiu de Paris, transpondo essa mesma barreira por onde entrara alguns dias antes.

 

               NANTES

A comissão nomeada por Dubois tinha-se constituído em permanência. Investida de poderes ilimitados, o que, em certos casos, quer dizer, fixados de antemão, reuniu-se no castelo, guardada por grandes destacamentos de tropas que esperavam a cada momento serem atacadas pelos descontentes.

Desde a prisão dos quatro Fidalgos, Nantes, primeiro aterrorizada, comovera-se com a sua sorte. Toda a Bretanha esperava uma sublevação, que todavia não se dava. Entretanto os debates aproximavam-se. Na espera da audiência pública, Pontcalec teve uma conversa muito séria com os seus amigos.

- Vejamos - disse ele -, fizemos por acaso alguma imprudência por palavras ou por acções?

- Não! - responderam os três fidalgos.

- Algum dos senhores contou os nossos projectos à esposa, a um irmão, a um amigo?

- Não, sobre a nossa honra o juramos - disseram os três.

- Nesse caso, não têm contra nós nem provas nem acusações. Ninguém nos surpreendeu, ninguém nos quer mal.

- Mas - disse Montlouis -, apesar disso, julgam-nos.

- Sobre que base? - perguntou Pontcalec.

- Alguns esclarecimentos secretos, certamente - tornou Talhouet sorrindo.

- E bem secretos - juntou de Couédic -, visto que não articulam uma única palavra a esse respeito.

- É uma vergonha para eles - tornou Pontcalec. - E uma bela noite, obrigar-nos-ão a evadir-nos para não se verem obrigados a restituir-nos a liberdade em pleno dia.

- Não me parece - volveu Montlouis que sempre vira o caso muito sério, talvez porque era dos quatro o que mais tinha a perder tendo uma jovem esposa e dois filhinhos que o adoravam. - Vi Dubois em Inglaterra e falei com ele. Tem uma cara de fuinha que lambe o focinho quando tem sede. Dubois só a mitigará com o nosso sangue, acreditem-me. - Mas - replicou de Couédic -, não temos o parlamento da Bretanha?

- Sim, para nos ver as cabeças - retrucou Montlouis.

Mas a tudo isto um dos quatro amigos sorria sempre; era Pontcalec.

- Senhores - dizia ele -, tranquilizem-se. Se Dubois tem sede, tanto pior para ele, mas não provará o nosso sangue.

E, de facto, no princípio, o trabalho da comissão pareceu dificil: nem revelações, nem provas, nem testemunhas; a Bretanha ria nas bochechas dos comissionários, e quando não ria, fazia pior, ameaçava.

O presidente mandou um correio a Paris para expor a situação e pedir novas instruções.

- Julguem sobre os projectos - respondeu Dubois. - Podem não ter feito coisa alguma, porque os impediram, mas projectaram muito; em casos de rebelião a incenção é reputada como um facto.

Com esta terrível alavanca, a comissão destruiu prontamente toda a esperança da província. Houve uma sessão terrível em que os réus passaram da ironia à acusação. Mas uns comissários escolhidos por Dubois como aqueles eram, achavam- se couraçados contra os trocistas e os descontentes.

Voltando para a prisão, Pontcalec congratulava-se pelas verdades que ele mais do que os seus amigos dissera aos juízes.

- Não importa - replicou Montlouis -, estamos numa péssima situação. A Bretanha não se revolta.

- Espera a nossa condenação - disse Talhouet.

- Nesse caso, revoltar-se-á tarde de mais - tornou Montlouis.

- A nossa condenação é impossível - retorquiu Pontcalec. - Francamente, aqui para nós, somos culpados; sim, mas sem provas; quem ousará condenar-nos? A comissão?

- Não, mas Dubois.

- Tenho uma vontade enorme de fazer uma coisa - disse de Couédic.

- O que é?

- Na primeira sessão, gritar: A nós, Bretões! " Tenho visto sempre na sala grande número de rostos amigos. Pois bem, ficaremos livres ou mortos, mas ao menos acabar-se-á tudo por uma vez. Prefiro a morte a semelhante expectativa.

- Para que serve arriscarmo-nos a ser feridos por algum guarda? - disse Pontcalec.

- Porque de um ferimento feito por um guarda poder-nos-emos curar, tornou de Couédic, mas daquele que nos fizer o carrasco, não há cura possível.

- Bem pensado, de Couédic! - bradou Montlouis. - E sou da sua opinião.

- Tranquilize-se, Montlouis - disse Pontcalec -, há-de ver tanto o carrasco como eu.

- Ah, sim, sempre a predicção - tornou Montlouis. - Sabe que não acredito, Pontcalec?

- Pois faz mal. Mas o que é certo é que nos condenarão ao exílio; seremos obrigados a embarcar, e eu hei- de ter um naufrágio na viagem. É esse o meu destino; mas o dos meus amigos pode ser diverso: peçam para fazer a travessia noutro navio onde eu não vá; ou ainda têm outra probabilidade em seu favor, posso cair da ponte, ou escorregar quando subir uma escada. Em resumo, morrerei no mar. Já o sabem, é positivo; e ainda que fosse condenado à morte, conduzir-me-iam ao cadafalso e se este fosse erguido em terra firme, ver-me-iam junto dele tão tranquilo como estou aqui.

A firmeza com que Pontcalec se exprimia dava que pensar aos três amigos; quando se espera, todos são supersticiosos. Chegaram a rir da medonha rapidez com que se seguiram os debates. Não sabiam que Dubois expedia incessantemente correios, a fim de apressar o andamento do processo. Afinal chegou o dia em que o tribunal se declarou amplamente esclarecido. Esta declaração redobrou o bom humor dos amigos, que nesse dia foram ainda mais mordazes, irónicos e espirituosos do que de costume.

A comissão retirou-se para deliberar.

Nunca houve um debate mais tempestuoso; a história penetrou os segredos dessa deliberação; alguns dos conselheiros, menos endurecidos ou menos ambiciosos, revoltaram- se perante a ideia de condenar sobre meras presunções, porque além das revelações transmitidas por Dubois e de cuja veracidade se podia duvidar, nenhuma outra fora feita; esses exprimiram em voz alta o seu parecer, mas a maioria era dedicada a Dubois, e seguiram-se contendas, injúrias, e quase que houve um combate entre os membros do "comité". Os debates duraram onze horas, no Fim das quais a maioria se pronunciou. Na véspera do julgamento, uma comissão composta das pessoas mais notórias, oficiais bretões, membros do parlamento, foi procurar a comissão ministerial, e desenvolveu perante ela conclusões tendentes a provar que os bretões não se tinham revoltado de facto, que a escolha do rei de Espanha em prejuízo do duque de Orleans era um direito da própria constituição do Estado, que prefere o neto de um rei ao parente colateral, e que a província, em matéria de regência, tinha mais direito de se pronunciar do que um simples parlamento. A comissão ministerial, que sentia que não tinha boa resposta a dar, não respondeu, e os deputados retiraram-se animados de esperança. O julgamento contudo foi pronunciado, não sobre a instrução feita em Nantes, mas segundo as ordens recebidas de Paris. Os comissários juntaram aos quatro chefes já presos dezasseis fidalgos contumazes e declararam:

"Que os acusados, reconhecidos culpados de crimes de lesa- majestade e de rebelião, seriam decapitados, os presentes, de facto, os ausentes, em efígie. Que os muros e fortificações dos seus castelos seriam demolidos, as marcas de fidalguia destruídas, e os seus bosques e avenidas cortados à altura de nove pés. "

Uma hora depois da sentença ser pronunciada, deram ordem ao escrivão para lê-la aos condenados.

A sentença foi dada após a sessão deveras tumultuosa de que falámos, e em que os acusados tinham encontrado no público tão grandes provas de simpatia. Tendo pois derrotado os juízes em todos os pontos da acusação, sentiam-se animados de grande esperança. Estavam sentados na sala comum ceando e recordando-se de todos os pormenores da sessão, quando de súbito a porta abriu- se e desenhou-se na penumbra o rosto pálido e severo do escrivão. A aparição solene transformou imediatamente as frases zombeteiras em pulsações do coração.

O escrivão chegou-se lentamente para eles, enquanto o carcereiro se conservava à porta, e se viam brilhar no corredor os canos dos mosquetes.

- Que quer de nós, senhor - perguntou Pontcalec -, e que significa este sinistro aparato?

- Senhores - replicou o escrivão -, sou portador da sentença do tribunal; ajoelhem-se para ouvi-la!

- Mas são só as sentenças de morte que se ouvem de joelhos - disse Montlouis.

- Ajoelhem-se, senhores - tornou o escrivão.

- Isso é bom para os culpados ou para gente ordinária - disse de Couédic. - Somos fidalgos e estamos inocentes, ouviremos a sentença de pé.

- Como quiserem, senhores; mas ao menos, tirem os chapéus, porque lhes falo em nome do rei.

Talhouet, que era o único que estava de chapéu, descobriu-se. Conservaram-se de pé, todos quatro encostados uns aos outros, de fronte pálida mas com o sorriso nos lábios. O escrivão leu toda a sentença sem que um só murmúrio, um único gesto de assombro o interrompesse. Quando concluiu, Pontcalec perguntou:

- Porque me disseram que declarasse os desígnios da Espanha contra a França e que me dariam a liberdade? A Espanha era país inimigo, declarei o que sabia dos seus projectos e agora nos condenam. Por que motivo? A comissão será composta de covardes que estendem armadilhas aos acusados?

O escrivão não respondeu.

- Mas - acrescentou Montlouis -, o regente poupou Paris inteiro, cúmplice da conspiração de Cellamare; nem uma gota de sangue correu; contudo aqueles que queriam raptar o regente, matá-lo talvez, eram tão culpados, pelo menos, como nós, contra quem não puderam apresentar uma única acusação séria; ter-nos-ão escolhido para expiar essa indulgência para com a capital?

O escrivão conservou o mesmo silêncio.

- Compreende uma coisa, Montlouis -, disse de Couédic. - Existe um velho ódio de família contra a Bretanha, e o regente, para fazer crer que é da família, quer dar a prova de que nos odeia. Não é a nós pessoalmente que ferem, mas sim uma província que reclama inutilmente, há trezentos anos, os seus direitos e os seus privilégios, e que querem mostrar culpada para se livrarem dela de vez.

- Vamos, acabemos com isto! - disse Talhouet. - Estamos condenados, está bem. Há ou não há apelação?

- Não há - replicou o escrivão.

- Nesse caso pode retirar-se - tornou de Couédic.

O escrivão cumprimentou e saiu, seguido pelos guardas que o escoltavam e a porta da prisão caiu pesada e ruidosamente sobre os quatro fidalgos.

- E então! - disse Montlouis quando se encontraram sós.

- Estamos condenados - replicou Pontcalec. - Nunca disse que não haveria sentença, mas sim que não se efectuaria a execução.

- Sou do parecer de Pontcalec - disse Talhouet. - O que eles fizeram foi para assustar a província e medir-Lhe a paciência.

- De resto - tornou de Couédic -, não hão-de executar-nos sem que o regente ratifique a condenação. Ora, a não haver um correio extraordinário, são precisos dois dias para ir a Paris, um para examinar o caso, e dois para voltar, o que perfaz cinco dias. Temos portanto cinco dias diante de nós e nesse período de tempo pode suceder muita coisa: a província informada da nossa condenação, sublevar-se-á.

Montlouis abanou a cabeça.

- Há ainda Gastão de quem sempre se esquecem - continuou Pontcalec.

- Receio que o prendessem - disse Montlouis. - Conheço-o bem, se estivesse livre já teríamos ouvido falar dele.

- Não negarás, pelo menos, profeta da desgraça - retorquiu Talhouet -, que temos alguns dias diante de nós.

- Quem sabe?

- E o mar - tornou Pontcalec -, o mar, que diabo! Esquecem-se sempre que só poderei morrer no mar.

- Pois, senhores, voltemos para a mesa - disse de Couédic -, e bebamos uma última vez à nossa saúde.

- Já não temos vinho, é mau sinal - disse Montlouis.

- Ora! Há muito na adega - respondeu Pontcalec.

E chamou o carcereiro. Quando ele entrou e viu os quatro amigos à mesa, Fitou-os com espanto.

- Que há de novo, tio Cristóvão? - perguntou Pontcalec.

O tio Cristóvão era de Guer e tinha uma particular veneração por Pontcalec, cujo tio, Crysogon, tinha sido seu patrão.

- Nada mais além do que sabem - disse ele.

- Vai buscar vinho.

- Querem atordoar-se - disse o carcereiro saindo. - Pobres senhores! Apenas Montlouis ouviu as palavras de carcereiro e sorriu tristemente. Um momento depois ouviram passos que se aproximavam rapidamente. Cristóvão reapareceu sem levar o vinho pedido.

- Então - disse Pontcalec -, que é do vinho que te pedimos?

- Boas novas! - exclamou Cristóvão sem responder a Pontcalec. - Boas novas, senhores.

- Qual é? - perguntou Montlouis estremecendo.

- Morreu o regente?

- A Bretanha revoltou-se?

- Não, senhores, não; porque não ousaria chamar a esses factos boas novas.

- Mas o que é?

- O senhor de Chateauneufdeu ordem para que os cento e cinquenta homens que estacionavam armados na praça do Mercado voltassem para o quartel.

- Vamos - disse Montlouis - começo a crer que não será esta noite. Neste momento davam seis horas.

- Mas - tornou Pontcalec -, uma boa notícia não é razão para que fiquemos com sede. Vai buscar vinho.

O carcereiro saiu e voltou, dez minutos depois, com uma garrafa na mão. Todos encheram os copos.

- À saúde de Gastão - disse Pontcalec trocando um olhar significativo com os seus. E esvaziaram os copos, excepto Montlouis, que, no momento em que levava o seu aos lábios, parou.

- Mas que é? - perguntou Pontcalec.

- O tambor! - respondeu Montlouis pondo o ouvido à escuta.

- Não ouviste o que disse Cristóvão? - tornou Talhouet. - São as tropas que recolhem.

- Não, pelo contrário, saem! Este não é o toque de retirada.

- O que quererá dizer?

- Nada de bom - retrucou Montlouis abanando a cabeça.

- Cristóvão! - disse Pontcalec virando-se para o carcereiro.

- Vou já saber o que é. Daqui a um momento estarei de volta - respondeu o carcereiro. E correu para a porta, saindo e fechando- a cuidadosamente. Os quatro amigos permaneceram silenciosos de ansiedade. Passados dez minutos a porta abriu-se, e o tio Cristóvão reapareceu pálido de terror.

- Acaba de entrar um correio no pátio do castelo - disse ele. - Chegou de Paris, entregou os despachos, e em seguida as sentinelas foram dobradas e tocou a reunir em todos os quartéis.

- Oh, oh! - disse Montlouis - isto é connosco.

- Sobem a escada! - disse o carcereiro mais trémulo e assustado do que aqueles a quem se dirigia.

De facto, ouviam-se os mosquetes ressoar sobre as pedras do corredor e ao mesmo tempo diferentes vozes.

Abriu-se a porta e entrou o escrivão.

- Senhores - disse ele -, quanto tempo desejam para pôr em ordem os seus negócios neste mundo e sofrerem a condenação?

Um terror profundo gelou os assistentes.

- Quero - disse Montlouis -, o tempo que a sentença leva a ir a Paris e voltar com aprovação do regente.

- Eu - tornou Talhouet -, quero apenas o tempo necessário para a comissão se arrepender da sua iniquidade.

- Quanto a mim - disse de Couédic -, desejaria que deixassem ao ministro de Paris o tempo de comutar esta pena na de oito dias de detenção, que merecemos por ter procedido um pouco levianamente.

- E o senhor - disse gravemente o escrivão a Pontcalec que se conservava silencioso -, o que pede?

- Eu - respondeu Pontcalec perfeitamente calmo -, não peço coisa alguma.

- Aqui está, senhores - tornou o escrivão -, a resposta da comissão: "Têm duas horas para pensarem nos seus negócios espirituais e temporais; são seis horas e meia, daqui a duas e meia terão que estar na praça de Boufay, onde se efectuará a execução. "

Seguiu-se um grande silêncio, os mais corajosos sentiam o terror invadi-los. O escrivão saiu sem que ninguém tivesse qualquer resposta para lhe dar; os condenados apenas se entreolharam e apertaram as mãos. Tinham duas horas. Duas horas, no decurso usual da vida, parecem por vezes séculos; em outros momentos, dir-se-iam um segundo. Os padres chegaram, depois os soldados e por último os carrascos. A situação tornava- se horrível. Só Pontcalec continuava sereno, não porque faltasse coragem aos seus amigos, mas faltava-lhes esperança; entretanto Pontcalec tranquilizava-os pela serenidade com que respondia não só aos padres, mas ainda aos executores que se haviam apoderado da sua presa.

Regularizaram os preparativos dessa coisa horrorosa que se chama a toilette dos condenados. Os quatro Fidalgos deviam subir ao cadafalso em capas pretas, para que aos olhos do povo, cuja rebelião continuavam a recear, permanecessem confundidos entre os padres encarregados de os exortar.

Seguiu-se uma discussão a respeito de lhe amarrarem as mãos: questão suprema! Pontcalec respondeu com o seu sorriso de sublime confiança:

- Ora, com mil diabos! Deixem-nos as mãos livres e iremos sem nos revoltarmos.

- Isso não é connosco - respondeu o carrasco encarregado de Pontcalec -, não havendo uma ordem particular, todas as disposições são as mesmas para todos os condenados.

- E quem dá essas ordens? - perguntou Pontcalec rindo. - É o rei?

- Não, senhor marquês - respondeu o carrasco admirado daquele sangue frio que nunca vira em condenado nenhum -, não é o rei, é o nosso chefe.

- E onde está o seu chefe?

- É quem está falando com o carcereiro Cristóvão.

- Tenha a bondade de chamá-lo - tornou Pontcalec.

- Olá, senhor Omar - gritou o carrasco -, faça favor de vir aqui. Um desses senhores deseja falar-Lhe.

Se caísse um raio aos pés dos condenados não produziria um efeito mais terrível do que aquele nome.

- O que disse? - exclamou Pontcalec palpitando de terror. - Que nome pronunciou?

- Omar, senhor; é o nosso chefe.

Pontcalec, pálido e gelado, deixou-se cair sobre uma cadeira, lançando um olhar angustiado aos seus companheiros aterrorizados; ninguém em volta deles compreendia porque sucedera de súbito aquela prostração a uma tão grande confiança.

- Que lhe parece? - disse Montlouis dirigindo-se a Pontcalec com um tom de censura.

- Sim, meus senhores, tinham razão - redarguiu Pontcalec -, mas também eu devia crer nessa predição, porque há-de se cumprir como as outras. Somente, desta vez, curvo-me e confesso que estamos perdidos.

E num movimento espontâneo, os quatro condenados abraçaram-se e rezaram.

- Que ordena? - perguntou o carrasco.

- É inútil amarrar as mãos a estes senhores se quiserem dar a sua palavra; são soldados e Fidalgos.

 

               O DRAMA DE NANTES

Entretanto o cavaleiro de Chanlay corria pela estrada de Nantes, deixando atrás de si o postilhão, encarregado nessa época, como hoje, de segurar os cavalos em vez de os fazer avançar. Não obstante essas duas forças contrárias, fazia três léguas por hora. Assim atravessara Sévres e Versailles.

Chegando a Rambouillet, quando começava a amanhecer, viu o dono da posta e os postilhões em volta de um cavalo que acabavam de sangrar.

O animal estava estendido no meio da rua e respirando a custo.

Gastão não notara aquele facto. Mas quando montava o seu cavalo, ouviu alguém dizer:

- Da maneira como corre, há-de matar mais de um daqui a Nantes. Gastão ia partir, mas ocorreu-Lhe uma reflexão súbita e terrível e parou fazendo sinal ao dono da posta para que Lhe fosse falar.

Este aproximou-se-lhe.

- Quem foi que aqui passou - perguntou de Chanlay, com tanta pressa que pôs este pobre animal em tão mau estado.

- Um correio do ministério.

- Um correio do ministério? - exclamou Gastão. - E vinha de Paris?

- Sim.

- Há quanto tempo passou?

- Há talvez duas horas.

Gastão soltou um grito que parecia um gemido. Conhecia Dubois. Dubois, que o tinha mistificado com a farda de La Jonquiére. A boa vontade do ministro acudiu-Lhe nesse momento ao espírito e assustou-o. Para que era esse correio expedido a toda a pressa duas horas antes dele?

- Oh, era feliz demais - pensou -, e Helena tinha razão pressentindo uma grande desgraça. Oh, hei-de apanhar esse correio, e saberei do que é portador ou perderei nisso a vida.

E seguiu como uma flecha.

Mas em todas estas dúvidas e estes interrogatórios tinha perdido ainda dez minutos, de sorte que quando chegou à primeira posta, ainda tinha duas horas de atraso.

Desta vez, o animal montado pelo correio tinha resistido, mas o de Gastão estava prestes a cair. O dono da posta quis fazer algumas observações, mas Gastão deixou-Lhe cair nas mãos dois ou três luízes e partiu a galope.

Na seguinte posta ganhara alguns minutos apenas; o correio que o precedia não diminuíra de velocidade.

Aquela medonha rapidez aumentava a desconfiança e a febre do moço.

- Oh, sim - disse ele -, hei-de chegar ao mesmo tempo, se não conseguir passar-Lhe adiante.

E redobrava de velocidade, e esporeava o cavalo que, a cada posta, parava escorrendo em suor e em sangue, quando não caía de vez.

A cada posta sabia que o correio tinha passado tão rápido como ele mas ganhava sempre alguns minutos, o que Lhe dava coragem.

Os postilhões, que deixava para trás, lastimavam ainda assim aquele belo moço de fronte pálida e olhar angustiado que corria sem tomar repouso nem alimento, suando apesar do frio, e tendo apenas estas palavras nos lábios:

- Um cavalo! Um cavalo, depressa, um cavalo!

E, de facto, esgotado, sem ter outra força além da que Lhe brotava do coração, cada vez mais embriagado pela rapidez da corrida e o sentimento do perigo, Gastão sentia a cabeça atordoada e ao suor que Lhe caía dos membros misturava-se sangue.

Morto de sede e sentindo a garganta seca, bebeu um copo de água fria em Ancenis. Em dezasseis horas era a primeira vez que perdia um segundo.

E todavia aquele maldito correio tinha ainda hora e meia de avanço sobre ele. Em oitenta léguas, Gastão apenas ganhara quarenta ou cinquenta minutos. Anoitecia rapidamente, e o cavaleiro, acreditando sempre ver surgir qualquer coisa no horizonte, tentava perscrutar a escuridão; avançava como num sonho, julgando ouvir o som dos sinos, o ruído dos canhões e o rufar dos tambores. Tinha a cabeça cheia de cantos lúgubres e ruídos sinistros; já nem vivia; sustentava-o a febre, voava pelos ares.

Entretanto avançava sempre. Pelas oito horas da noite avistou enfim Nantes, como uma massa no meio da qual algumas luzes brilhavam como estrelas.

Tentou respirar, e pensando que era a gravata que o sufocava, desatou-a e arremessou-a ao solo.

Montado em cavalo preto, envolto num capote também negro, com a cabeça descoberta, porque havia muito que lhe caíra o chapéu, Gastão assemelhava-se a um cavaleiro fantástico dirigindo-se a alguma assembleia de bruxas.

Chegando à porta de Nantes o cavalo caiu, mas Gastão com o auxílio da rédea com que Lhe deu um violento puxão e enterrando-lhe as esporas na barriga fê-lo erguer.

A noite estava escura, não se via ninguém, as próprias sentinelas desapareciam nas trevas; dir-se-ia uma cidade deserta.

Não se ouvia o menor ruído. Dissemos que Nantes parecia uma cidade deserta; enganámo-nos; Nantes dir-se-ia uma cidade morta.

Contudo, quando transpôs as portas, uma sentinela disse-lhe algumas palavras que Gastão nem sequer ouviu.

Prosseguiu o seu caminho.

Na rua do Castelo, o cavalo caiu segunda vez, mas para não tornar a levantar-se. Que Lhe importava, tinha chegado!

Continuou a caminhar a pé; tinha os membros despedaçados, e contudo não sentia cansaço; conservava na mão o papel que amarrotava.

Admirava-o o facto de não encontrar pessoa alguma, naquele bairro tão povoado. À medida porém que avançava, ouvia um grande rumor na praça de Boufay. Brilhavam luzes iluminando milhares de cabeças; mas Gastão passou adiante. Era no castelo que tinha que fazer, e a visão dissipou-se.

Afinal, avistou o local onde tinha de ir; viu o portão aberto. A sentinela colocada na ponte levadiça quis detê-lo, mas o cavaleiro com a ordem na mão, afastou-o com violência e entrou.

Viu uns homens que falavam tristemente, e ao mesmo tempo um deles enxugava os olhos. Gastão compreendeu tudo.

- Ordem para suspender! - gritou ele. - Ordem para.

A palavra não pôde sair-Lhe da garganta; mas os homens tinham visto o gesto de desespero de Gastão.

- Apresse-se, apresse-se! - gritaram-Lhe, mostrando-lhe o caminho. E talvez chegue a tempo.

Em seguida, dispersaram em todas as direcções. Gastão seguiu o seu caminho. Atravessou um corredor, depois uns quartos desocupados, em seguida uma sala e outro corredor. De longe, através das grades, à luz dos archotes, descobria essa grande multidão que já entrevira. Acabava de atravessar todo o castelo; chegara a um terraço; dali descobria a esplanada, um cadafalso, homens, em volta uma enorme multidão. Gastão quer gritar, não o ouvem; agita o lenço, não o vêem. Um homem sobe ao cadafalso; de Chanlay solta um grito e corre para ele. Saltou o muro; uma sentinela quer detê-lo e ele derruba-a; vê uma escada que conduz à praça, e que ele desce.

Em baixo encontra uma espécie de barricada formada de carros; abaixa-se e mete-se por entre as rodas. Do lado oposto encontram- se todos os granadeiros de Saint-Simon.

Gastão fazendo um esforço desesperado, consegue meter-se por meio deles e entra no recinto. Os soldados, vendo um homem pálido, arquejante, com um papel na mão deixaram-no passar.

De repente, pára, como que fulminado por um raio. Talhouet, reconheceu-o. Talhouet acaba de se ajoelhar no cadafalso.

- Suspenda! suspenda! - gritou Gastão com a energia do desespero. Mas, ao mesmo tempo, a espada do carrasco brilha como um relâmpago, ouve-se um ruído lúgubre, e um grande frémito percorre toda a multidão. O grito de Gastão perdeu-se num grito uníssono que saiu de vinte mil peitos. Gastão chegou um segundo tarde demais. Talhouet está morto, e, quando ergue os olhos, vê a cabeça do seu amigo na mão do carrasco. Com o seu nobre coração, compreendeu que, visto que um só morrera, todos devem morrer; que nenhum aceitará um perdão que chegou tarde demais.

Olhou em volta de si; de Couédic subiu por sua vez; cobre-o uma capa negra, tem a cabeça e o pescoço nus. Gastão pensa que também a sua capa é negra, que também ele tem a cabeça e o pescoço nus e ri convulsivamente. Vê o que lhe resta fazer, como se vê uma paisagem sinistra à claridade de um relâmpago. É terrível, mas é grandioso.

De Couédic inclina-se; mas antes grita:

- Aqui está como se recompensam os serviços dos soldados fiéis; como cumprem as suas promessas os covardes bretões!

Dois ajudantes do carrasco fazem-no ajoelhar. A espada do algoz torneja e brilha uma segunda vez, e de Couédic vai rolar até junto de Talhouet. O carrasco apanha a cabeça, mostra-a ao povo, coloca-a num dos ângulos do cadafalso em frente da de Talhouet.

- Quem se segue? - perguntou Omar.

- Pouco importa! - respondeu uma voz. - Contanto que o sr. de Pontcalec seja o último. Está escrito na sentença.

- Sou eu, então - disse Montlouis -, sou eu!

E Montlouis corre para o cadafalso; mas, chegando aí, parou, puseram-se-lhe os cabelos em pé; na sua frente, numa janela, viu a mulher e os filhos.

- Montlouis! Montlouis! - gritou a pobre senhora no tom angustiador de um coração que se despedaça - Montlouis, eis-nos aqui, olha para nós!

Todos os olhares convergiram para aquela janela.

Soldados, burgueses, padres, carrascos, olharam para o mesmo lado. Gastão aproveitou essa liberdade da morte que reinava em volta dele, correu para o cadafalso e agarrou-se à escada de que subiu os primeiros degraus.

- Minha mulher, meus filhos! - gritou Montlouis torcendo os braços de desespero. Por favor, retirem-se, tenham compaixão de mim!

- Montlouis - gritou-lhe a esposa apresentando-Lhe de longe o mais novo dos filhos

-, Montlouis, abençoa os teus Filhos, e talvez que um deles te vingue um dia!

- Adeus, meus filhos, eu os abençoo! - gritou Montlouis estendendo as mãos para a janela.

Aquelas fúnebres despedidas ressoaram com um eco fúnebre nos corações dos assistentes.

- Basta! - disse Omar ao condenado. - Basta!

E voltando-se para os seus ajudantes.

- Aviem-se - disse ele -, ou o povo não nos deixará acabar.

- Tranquilize-se - tornou Montlouis. - Embora o povo me salvasse, não sobreviveria aos meus amigos!

E designou as cabeças dos seus companheiros.

- Ah, julguei-os bem! - exclamou Gastão ouvindo aquelas palavras. - Montlouis, mártir, reza por mim!

Montlouis voltou-se; parecia-Lhe ter ouvido uma voz conhecida; mas naquele momento, os carrascos apoderaram-se dele, e imediatamente um grande grito fez Gastão saber que Montlouis acabara como os outros e que chegara a sua vez. O cavaleiro chegou num momento ao cimo da escada, abrangendo com o olhar, do alto da infame plataforma, toda aquela multidão. No povo começava a manifestar-se uma estranha comoção. A morte de Montlouis acompanhada pelas circunstâncias que vimos de relatar, agitava a multidão. Toda aquela massa que se movia e donde saíam murmúrios e imprecações pareceu a Gastão um vasto mar de que cada vaga tinha vida. Nesse momento, ocorreu-lhe a ideia de que podia ser reconhecido, e que o seu nome, passando de boca em boca, podia impedi-lo de executar o seu desígnio. Ajoelhou-se portanto e ofereceu a cabeça à espada do carrasco.

- Adeus - murmurou -, adeus, minha pobre amiga! Adeus, minha amiga e querida Helena!

O meu beijo nupcial vai custar-me a vida, mas não me custará a honra. Aquele quarto de hora perdido nos teus braços fez cair cinco cabeças. Adeus, Helena, adeus!

A espada fulgiu.

- E os meus amigos que me perdoem! - acrescentou o rapaz.

O carrasco vibrou o golpe; a cabeça rolou para um lado e o corpo para outro. Então Omar pegou na cabeça e mostrou-a à multidão, Mas logo se ouviu um grande murmúrio; ninguém tinha reconhecido Pontcalec. O carrasco não percebeu o sentido daquele ruído; pousou a cabeça de Gastão no ângulo que se achava vazio e, atirando com o corpo para junto dos outros, encostou-se à sua comprida espada gritando:

- A justiça será feita!

- E eu? - exclamou uma voz atroadora. - E eu? Esqueceram-se de mim? E Pontcalec precipitou-se para o cadafalso.

- Quem é o senhor? - exclamou Omar recuando como se visse um fantasma.

- Sou Pontcalec; vamos, estou pronto.

- Mas - tornou o carrasco tremendo e olhando para os ângulos do cadafalso. - Já aqui estão as quatro cabeças.

- Sou o marquês de Pontcalec, ouves? Sou o último que devo morrer e aqui estou.

- Conte - retrucou Omar tão pálido como o marquês designando-Lhe com a ponta da espada os quatro ângulos do cadafalso.

- Quatro cabeças! - exclamou Pontcalec. - Impossível!

Neste momento, numa delas reconheceu o nobre e pálido rosto de Gastão que parecia sorrir; e, por sua vez, recuou de susto.

- Oh, mate-me bem depressa - exclamou impaciente. - Quer-me fazer morrer mil vezes?

Entretanto um dos comissários tinha subido a escada chamado pelo carrasco. Lançou um olhar ao condenado e disse:

- É realmente o marquês de Pontcalec; faça o seu dever.

- Mas - exclamou o carrasco -, bem vê que estão aqui as quatro cabeças!

- Pois bem! Serão cinco; antes de mais que de menos.

E o comissário desceu os degraus fazendo sinal para que rufassem os tambores. Omar cambaleava sobre as tábuas do cadafalso; o ruído entre a multidão aumentava. Já não podia suportar tanto terror. Correu pela praça um longo murmúrio; as luzes apagaram-se; os soldados, repelidos, gritaram às armas; seguiu-se um momento de ruído e de confusão, durante o qual algumas vozes gritaram:

- À morte, os comissários! À morte, os carrascos!

Os canhões do forte, inclinaram as suas bocas escancaradas para o povo.

- Que devo fazer? - disse Omar.

- Dar o golpe! - respondeu a mesma voz.

Pontcalec ajoelhou. Os ajudantes seguraram- lhe a cabeça. Então os padres fugiram espavoridos, os soldados tremeram e Omar feriu desviando os olhos a fim de não ver a vítima.

Passados dez minutos, a praça estava deserta e as janelas fechadas. A artilharia acampava em volta do cadafalso demolido e os soldados olhavam silenciosos para as grandes manchas de sangue que se viam no chão.

Os religiosos a quem entregaram os corpos, reconheceram, com pavor, que eram cinco cadáveres em vez de quatro. Um deles conservava ainda na mão um papel amarrotado.

Esse papel continha o perdão dos outros quatro!

Só assim se explicou tudo, e a dedicação do cavaleiro que não tivera confidentes, foi adivinhada.

Os religiosos quiseram celebrar uma missa; mas o presidente, Chateauneuf, que receava algumas manifestações em Nantes, ordenou-Lhes que a celebrassem sem pompa.

Os corpos dos supliciados foram enterrados em quarta-feira de trevas. O povo foi afastado da capela onde repousavam os seus corpos mutilados, de que a cal, segundo se diz, consumiu a maior parte.

Assim terminou o drama de Nantes.

 

                 CONCLUSÃO

Quinze dias depois dos acontecimentos que acabamos de relatar, uma carruagem verde, a mesma que vimos chegar a Paris no começo desta história, saía pela mesma porta por onde entrara e seguia a estrada de Paris a Nantes.

Uma mulher nova, pálida e quase moribunda, estava aí sentada ao lado de uma religiosa que, a cada instante que voltava os olhos para a sua companheira, soltava um suspiro e enxugava uma lágrima.

Um homem, a cavalo, esperava essa carruagem perto de Rambouillet.

Envolvia-o um grande capote que apenas lhe deixava ver os olhos.

Junto dele achava-se um homem embuçado como ele.

Quando a carruagem passou, soltou um profundo suspiro, e caíram- lhe duas lágrimas pelas faces.

- Adeus! - murmurou ele. - Adeus, minha alegria! Adeus, minha felicidade, adeus, Helena! Adeus, minha filha!

- Monsenhor! - disse-lhe o companheiro. - É difícil ser um grande príncipe e aquele que quer mandar os outros, deve começar por se vencer a si mesmo. Seja forte até ao fim, monsenhor e a posteridade chamar-lhe-á grande.

- Oh, nunca lhe perdoarei, senhor - tornou o regente, com um suspiro que mais parecia um gemido -, porque matou a minha felicidade.

- É isso mesmo! Vão trabalhar para os reis! - respondeu, encolhendo os ombros, o companheiro do desventurado: "Noli fidere principibus terrae nec flus orum.

Os dois homens conservaram-se no mesmo lugar até que a carruagem desapareceu no horizonte tomando em seguida o caminho de Paris.

Oito dias depois, a carruagem entrava no portão do convento das agostinhas de Clisson; à sua chegada todos que aí se achavam correram ao encontro da viajante doente, pobre flor tão depressa murchada.

- Venha, minha filha, venha viver connosco - disse a superiora.

- Viver, não, minha mãe - respondeu a jovem -, mas morrer!

- Pense só no Senhor, minha filha - tornou a boa abadessa.

- Sim, minha mãe, no Senhor, que morreu pelos crimes dos homens, não é assim? A superiora recebeu-a nos braços sem lhe fazer outra pergunta; estava acostumada a assistir aos sofrimentos da terra e a lastimá-los sem lhes perguntar o que os causara.

Helena voltou para a sua cela donde estivera ausente apenas um mês; tudo estava como ela tinha deixado: foi à janela: o lago dormia, tranquilo e sereno, mas o gelo que o cobrira tinha desaparecido sob as chuvas e com ele as marcas dos passos de Gastão que a jovem reconhecera antes de partir.

A Primavera voltou, e com ela tudo reviveu - excepto Helena.

As árvores que cercavam o lago reverdeceram, as largas folhas dos nenúFares flutuaram ainda à superfície da água, Os caniços ergueram-se, e os passarinhos voltaram a habitá-los.

Até a grade tornou a abrir-se para dar passagem ao jardineiro. Helena passou ainda o Verão; quando chegou o mês de setembro, morreu.

Na manhã da sua morte, a superiora recebeu uma carta expedida de Paris. Levou-a à agonizante.

Continha apenas estas palavras:

"Minha mãe, obtenha de sua filha o perdão do regente."

Helena, instada pela superiora tornou-se ainda mais pálida ouvindo aquele nome. Mas respondeu:

- Sim, minha mãe, perdoo-Lhe. E faço-o, porque me vou reunir àquele cuja morte ele causou.

Às quatro horas da tarde expirava.

Tinha pedido para ser sepultada no próprio local onde Gastão desamarrava o barco onde ia vê-la.

Os seus últimos desejos foram realizados. 

 

                                                               Alexandre Dumas

 

 

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