Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
UMA FORTUNA PERIGOSA
Segunda Parte
Ele tratou de afastar da cabeça a idéia fantástica. Com quem iria casar? Não devia ser uma herdeira, pois nada tinha a oferecer a uma moça assim. Havia várias herdeiras que poderia cativar com a maior facilidade, mas conquistar seus corações seria apenas o começo: haveria uma batalha prolongada com os pais, sem qualquer garantia de resultado certo. Nada disso. Precisava de uma moça de origens modestas, que já gostasse dele e o aceitasse com a maior satisfação. Seus olhos vaguearam ociosos pelo teatro... e se fixaram em Rachel Bodwin.
Ela se ajusta com perfeição ao papel, compreendeu Micky. Já era meio apaixonada por ele. E começava a se desesperar na procura de um marido. O pai não apreciava Micky, mas a mãe gostava, e mãe e filha juntas superariam a oposição do pai.
Mais importante ainda, ela o excitava.
Seria uma virgem, inocente e apreensiva. Faria coisas com ela que a deixariam aturdida e repugnada. Ela poderia resistir, o que tornaria tudo ainda melhor. Afinal,
uma esposa tinha de ceder às exigências sexuais do marido, por mais bizarras ou repulsivas que pudessem ser, pois ela não tinha a quem se queixar. Mais uma vez, Micky imaginou-a amarrada na cama, só que desta vez ela se contorcia, de dor ou desejo, talvez de ambos...
O espetáculo terminou. Ao deixarem o teatro, Micky procurou os Bodwins. Encontraram-se na calçada, enquanto os Pilasters esperavam sua carruagem e Albert Bodwin fazia sinal para um fiacre. Micky ofereceu um sorriso cativante a Mrs. Bodwin e disse:
- Posso ter a honra de fazer uma visita amanhã à tarde? Ela ficou obviamente espantada.
- A honra será toda minha, Senor Miranda.
- É muito gentil. - Ele apertou a mão de Rachel, fitou-a nos olhos e acrescentou: - Até amanhã.
- Aguardarei ansiosa - murmurou ela.
A carruagem de Augusta chegou, Micky abriu a porta e perguntou num sussurro:
- O que acha dela?
- Seus olhos são muito juntos - respondeu Augusta ao subir. Depois de se acomodar em seu lugar, ela disse pela porta aberta: - Afora isso, ela parece comigo.
Augusta bateu a porta e a carruagem partiu.
Uma hora depois, Micky e Edward jantavam num quarto particular no Nellie"s. Além da mesa, o quarto continha um sofá, um guarda-roupa e uma cama enorme. April Tilsley redecorara todo o bordel, e aquele quarto tinha elegantes panos de William Morris e um jogo de desenhos emoldurados, mostrando pessoas fazendo sexo com uma variedade de frutas e legumes. Mas era da natureza do negócio que as pessoas se embriagassem e se comportassem mal, e o papel de parede já fora rasgado, as cortinas exibiam manchas, o carpete tinha rasgões. A luz de vela, no entanto, ocultava os defeitos e a falta de gosto do quarto, além de tirar anos da idade das mulheres.
Os homens estavam sendo servidos por duas de suas mulheres prediletas, Muriel e Lily, que usavam sapatos de seda vermelha e chapéus enormes e elaborados; afora isso, estavam nuas. Lá de fora vinham os sons de um canto rouco e de uma discussão acalorada, mas no interior do quarto reinava tranqüilidade, com o crepitar do carvão que mantinha o fogo e as palavras murmuradas pelas duas mulheres enquanto serviam o jantar. O ambiente relaxou Micky, que deixou de se sentir tão ansioso com o empréstimo ferroviário. Pelo menos tinha um plano. Só lhe restava agora tentá-lo. Ele olhou para Edward. A amizade entre os dois fora bastante proveitosa, refletiu Micky. Houvera ocasiões em que quase sentira afeição por ele. A dependência do amigo era cansativa, mas era o que proporcionava a Micky o poder sobre ele. Ajudara Edward, Edward o ajudara, e juntos haviam desfrutado todos os vícios da cidade mais sofisticada do mundo. Ao terminarem de comer, Micky serviu outro copo de vinho, e anunciou:
- Vou casar com Rachel Bodwin.
Muriel e Lily riram. Edward fitou-o aturdido por um longo momento, antes de murmurar:
- Não acredito. Micky deu de ombros.
- Acredite no que quiser. De qualquer forma, é verdade.
- Fala a sério?
- Claro.
- Seu porco!
Foi a vez de Micky se mostrar surpreso.
- Por que eu não deveria casar?
Edward levantou-se e inclinou-se sobre a mesa, agressivo.
- Você é um porco nojento, Miranda, e isso é tudo o que tenho a dizer. Micky não previra tal reação.
- Mas o que deu em você? Não vai casar também, com Emily Maple?
- Quem lhe disse isso?
- Sua mãe.
- Não Vou casar com ninguém.
- Por que não? Está com 29 anos. E eu também. É a idade certa para um homem providenciar o arremedo de uma família respeitável.
- Que se dane a família respeitável! - berrou Edward, virando a mesa. Micky saltou para trás, enquanto a louça quebrava no chão e o vinho se esparramava.
- Fique calmo! - protestou Micky.
- Depois de tantos anos! - berrou Edward. - Depois de tudo o que fiz por você!
Micky sentia-se desconcertado com a fúria de Edward. Compreendeu que precisava acalmá-lo. Uma cena assim poderia reforçar seu preconceito contra o casamento, o oposto do que Micky desejava.
- Não é um desastre - disse ele, num tom razoável. - Não fará qualquer diferença para nós.
- Isso é inevitável!
- Não é, não. Ainda viremos para cá.
Edward assumiu uma expressão desconfiada e indagou, numa voz mais contida:
- Viremos?
- Claro que sim, e continuaremos também a freqüentar o clube. É para isso que os clubes servem. Os homens vão aos clubes para escaparem das esposas.
- Acho que tem razão.
A porta abriu-se e April entrou.
- Que barulho foi esse? - indagou ela. - Edward, você quebrou minha porcelana?
- Desculpe, April. Pagarei tudo. Micky acrescentou para April:
- Estávamos apenas explicando a Edward que ele ainda pode vir aqui depois que casar.
- Espero que sim. Se nenhum homem casado nos visitasse, eu teria de fechar a casa. - April virou-se para a porta e gritou - Sid! Traga uma vassoura!
Edward acalmava-se rapidamente, para alívio de Micky.
- Logo depois de casarmos, Edward, devemos passar algumas noites em casa, oferecer um ou outro jantar. Mas depois de algum tempo, tudo voltará a ser como antes.
Edward franziu o cenho.
- As esposas não se importam? Micky deu de ombros.
- E quem se preocupa com o que elas se importam? O que uma esposa pode fazer?
- Se ela ficar insatisfeita, imagino que pode atormentar o marido.
Micky percebeu que Edward falava de sua mãe como uma esposa típica. Por sorte, poucas mulheres eram tão determinadas e inteligentes quanto Augusta.
- O truque é não ser muito bom para elas - explicou Micky, baseado na observação dos companheiros casados no Cowes Club. - Se for bom com sua esposa, ela vai querer sempre a sua presença. Trate-a com rigor, e ela sempre ficará contente quando você sair à noite para ir ao clube, deixando-a em paz.
Muriel passou os braços pelo pescoço de Edward.
- Prometo que continuará a ser a mesma coisa depois que você casar, Edward. Chuparei seu pau enquanto olha Micky foder Lily, exatamente como gosta.
- Vai mesmo? - perguntou ele, com um sorriso tolo.
- Claro que sim.
- Então nada vai realmente mudar - murmurou Edward, olhando para Micky.
- Só uma coisa vai mudar - ressaltou Micky. - Você será sócio no banco.
Abril
O music-hall estava tão quente quanto um banho turco. O ar recendia a cerveja, crustáceos e pessoas sem tomar banho. No palco, uma jovem vestida em trapos postava-se na frente de um pano de fundo pintado como um pub. Segurava uma boneca, para representar um bebê recémnascido, e cantava como fora seduzida e abandonada. A audiência, sentada em bancos, a mesas compridas sobre cavaletes, se deu os braços e entoou no coro:
E só foi preciso uma pequena gota degim!
Hugh cantava a plenos pulmões. Sentia-se bem. Comera uma porção de búzios e tomara vários copos da cerveja. Comprimia-se contra Nora Dempster, uma pessoa em que era agradável se espremer. Ela tinha um corpo macio e rechonchudo, um sorriso cativante, e provavelmente salvara sua vida.
Depois da visita a Kingsbridge Manor, Hugh mergulhara numa profunda depressão. Ver Maisie revolvera fantasmas antigos; e como ela o rejeitara outra vez, os fantasmas passaram a atormentá-lo sem trégua.
Era capaz de sobreviver durante o dia, pois no trabalho havia desafios e problemas para afastar sua mente da angústia: estava ocupado em organizar o empreendimento conjunto com o Madler and Bell, que os sócios do Pilasters haviam finalmente aprovado. E muito em breve se tornaria um sócio, algo com que sempre sonhara. Mas à noite não tinha entusiasmo por coisa alguma. Era convidado para muitas festas, bailes e jantares, já que ingressara na Turma de Marlborough devido à sua amizade com Solly. Ia com freqüência, mas se Maisie não estivesse presente, sentia-se entediado; e se a encontrasse, ficava angustiado. Assim, passava a maioria das noites em seus aposentos, pensando nela, ou vagueava pelas ruas na esperança, contra todas as probabilidades, de encontrá-la.
Conhecera Nora na rua. Fora à Peter Robinson"s, na Oxford Street - uma loja que outrora vendia tecidos, mas agora era chamada de "loja de departamentos", - a fim de comprar um presente de aniversário para a irmã Dotty: planejava pegar o trem para Folkestone logo em seguida. Mas sentia-se tão angustiado que não sabia como poderia encarar a família, e uma espécie de paralisia de opção o tornara incapaz de escolher um presente. Saiu de mãos vazias quando já começava a escurecer, e Nora literalmente esbarrara nele. Ela tropeçara, e Hugh a amparara em seus braços.
Jamais esqueceria a sensação. Embora ela usasse um casaco, seu corpo era macio e flexível, irradiava calor e uma fragrância inebriante. Por um instante, a rua fria e escura de Londres desaparecera, e ele se descobrira num mundo fechado de súbito prazer. Depois, ela largara sua compra, um pote de cerâmica, que quebrara ao bater na calçada. Nora soltara um grito de consternação, dando a impressão de que desataria a chorar. Hugh, é claro, insistira em comprar outro pote.
Nora era um ou dois anos mais moça do que ele, tinha 24 ou 25. O rosto era redondo e bonito, com cachos ruivos se projetando debaixo de uma touca. As roupas eram baratas, mas atraentes: um vestido rosa de lã com flores bordadas e uma anquinha, e um blusão de veludo azul justo, adornado com pele de coelho. Nora falava com um sotaque cockney.
Enquanto compravam outro pote, Hugh comentara, para puxar conversa, que não sabia o que dar à irmã como presente de aniversário. Nora sugerira um guarda-chuva colorido, e depois insistira em ajudá-lo a escolher.
Depois, ele a levara para casa num fiacre. Nora dissera-lhe que morava com o pai, um caixeiro-viajante que vendia remédios. A mãe morrera. O bairro em que ela residia era um pouco menos respeitável do que Hugh imaginara, de classe trabalhadora pobre em vez de classe média.
Ele presumira que nunca mais tornaria a vê-la, e durante todo o domingo em Folkestone pensara em Maisie, como sempre. Na segunda-feira, no banco, recebera um bilhete de Nora, agradecendo sua gentileza: sua letra era pequena, impecável, uma letra de menina, reparou Hugh antes de amassar o bilhete e jogar na cesta de papel.
No dia seguinte, ele saíra do banco ao meio-dia a caminho de um café para um prato de costeletas de cordeiro, e a vira se aproximando pela rua, em sua direção. Não a reconhecera a princípio, pensando apenas que era uma moça de rosto bonito; mas logo ela sorrira, e Hugh se recordara. Tirara o chapéu, e Nora parará para conversar. Trabalhava como assistente para uma fabricante de espartilhos, informara ela, corando, e voltava para a loja depois de visitar uma cliente. Um impulso repentino levara Hugh a convidá-la para dançar naquela noite.
Ela respondera que gostaria de ir, mas não tinha um chapéu decente. Hugh a acompanhara até uma loja, comprara o chapéu, resolvendo o problema.
Muito do romance entre os dois fora conduzido enquanto faziam compras. Nora nunca possuíra muita coisa e demonstrava um prazer desinibido pela prosperidade de Hugh.
Por sua vez, ele gostava de lhe comprar luvas, sapatos, casacos, pulseiras e qualquer outra coisa que Nora desejasse. A irmã Dotty, com toda a sabedoria de seus
12 anos, anunciara que Nora só gostava dele por seu dinheiro. Hugh rira e dissera:
- Mas quem me amaria por minha aparência?
Maisie não saíra de sua cabeça, - na verdade, ainda pensava nela todos os dias, - mas as recordações não mais o mergulhavam no desespero. Tinha algo por que esperar agora: seu próximo encontro com Nora. Em poucas semanas, ela lhe devolvera a joie de vivre.
Numa de suas excursões de compras encontraram Maisie, numa peleteria na Bond Street. Sentindo-se um tanto constrangido, Hugh apresentara-as. Nora se impressionara por conhecer Mrs. Solomon Greenbourne. Maisie convidara-os para um chá na casa em Piccadilly. Naquela noite, Hugh tornara a se encontrar com Maisie num baile. Para sua surpresa, Maisie mostrara-se desgraciosa em relação a Nora.
- Desculpe, mas não gosto dela - declarara Maisie. - Pareceu-me uma mulher de coração frio e gananciosa, e não acredito que ela o ame nem um pouco. Pelo amor de Deus, não case com ela.
Hugh se sentira magoado e ofendido. Era apenas ciúme de Maisie, concluíra ele. De qualquer forma, ele não estava pensando em casamento.
Quando o espetáculo do music-hall terminou, eles saíram para um nevoeiro denso e turbilhonante, recendendo a fuligem. Passaram cachecóis em torno do pescoço, cobrindo a boca, e seguiram para a casa de Nora, em Camden Town.
Era como estar debaixo d'água. Todos os sons eram abafados, as pessoas e as coisas assomavam da neblina de repente, sem aviso: uma prostituta à procura de fregueses sob um lampião de gás, um bêbado trocando as pernas na saída de um pub, um guarda em patrulha, um limpador de chaminés atravessando a rua, uma carruagem iluminada avançando devagar, um cachorro todo molhado na sarjeta, um gato de olhos brilhando num beco.
Hugh e Nora andavam de mãos dadas, paravam de vez em quando na escuridão mais densa, baixavam os cachecóis e se beijavam. Os lábios de Nora eram macios e sôfregos; ela o deixou enfiar a mão por dentro do casaco e acariciar seus seios. O nevoeiro tornava tudo secreto e romântico.
Hugh costumava deixá-la na esquina de sua rua, mas naquela noite, por causa do nevoeiro, conduziu-a até a porta. Queria beijá-la outra vez ali, mas teve medo de que o pai pudesse abrir a porta e vê-los. Nora, porém, surpreendeu-o ao perguntar:
- Não quer entrar?
Hugh nunca estivera em sua casa.
- O que seu pai vai pensar?
- Ele foi para Huddersfield - explicou Nora, abrindo a porta.
O coração de Hugh disparou ao entrar. Não sabia o que poderia acontecer em seguida, mas sem dúvida era excitante. Ajudou Nora a tirar o casaco, e seus olhos admiraram com anseio as curvas por baixo do vestido azul.
A casa era pequena, ainda menor do que a casa em Folkestone para a qual a mãe de Hugh se mudara depois da morte do pai. A escada ocupava a maior parte do vestíbulo estreito. Havia duas portas ali, e deviam levar a uma sala na frente e a uma cozinha nos fundos. Lá em cima devia haver dois quartos. Haveria uma pequena banheira de estanho na cozinha e uma privada no quintal dos fundos.
Hugh pendurou o casaco e o chapéu num suporte. Um cachorro latia na cozinha, e Nora abriu a porta para soltar um pequeno terrier escocês preto, com uma fita azul em torno do pescoço. O cachorro saudou-a com o maior entusiasmo, depois contornou Hugh, cauteloso.
- Blackie me protege quando papai viaja - disse Nora, e Hugh percebeu o duplo sentido.
Seguiu Nora para a sala. Os móveis eram velhos e surrados, mas Nora enfeitara a sala com coisas que haviam comprado juntos: almofadas graciosas, um tapete de várias cores e um quadro do Castelo de Balmoral. Ela acendeu uma vela e fechou as cortinas.
Hugh ficou parado no meio da sala sem saber o que fazer, até que ela o tirou de seu dilema ao pedir:
- Veja se consegue acender o fogo.
Havia algumas brasas na lareira. Hugh acrescentou os gravetos, soprou as brasas com um pequeno fole até que o fogo ressurgiu.
Virou-se em seguida para deparar com Nora sentada no sofá, sem o chapéu, os cabelos soltos. Ela apalpou a almofada ao seu lado e Hugh sentou, obediente. Blackie lançou-lhe um olhar ciumento, e ele se perguntou como poderia tirar o cachorro da sala.
Ficaram de mãos dadas, olhando para o fogo. Hugh sentia-se em paz. Não podia imaginar querer fazer outra coisa pelo resto de sua vida. Depois de algum tempo, tornou a beijá-la. Hesitante, tocou em seu seio. Era firme, encheu sua mão. Ele apertou-o, gentilmente, e Nora deixou escapar um suspiro profundo. Hugh não se sentia tão bem assim há anos, mas queria mais. Beijou-a com mais vigor, ainda acariciando os seios.
Aos poucos ela foi se inclinando para trás, até que Hugh se encontrou quase por cima. Os dois tinham a respiração ofegante. Ele tinha certeza de que Nora devia sentir seu pênis comprimido contra a coxa grossa. No fundo de sua mente, a voz da consciência lhe dizia que se aproveitava de uma moça na ausência do pai, mas era uma voz tênue, e não podia prevalecer contra o desejo que aflorava como um vulcão.
Hugh ansiava em tocar nas partes mais íntimas. Enfiou a mão entre as pernas de Nora. Ela se contraiu no mesmo instante e o cachorro latiu, sentindo a tensão. Hugh afastou-se um pouco, murmurando:
- Vamos pôr o cachorro lá fora. Nora parecia perturbada.
- Talvez devêssemos parar.
Hugh não podia suportar a perspectiva de parar. Mas a palavra "talvez" encorajou-o.
- Não posso parar agora. Leve o cachorro para fora.
- Mas... não estamos noivos, nem qualquer coisa assim!
- Podemos ficar noivos - disse ele sem pensar. Nora empalideceu um pouco.
- Fala a sério?
Hugh se fez a mesma pergunta. Desde o início, pensara no caso como uma mera aventura, não um namoro sério; contudo, apenas uns poucos momentos antes pensara no quanto gostaria de passar o resto de sua vida de mãos dadas com Nora na frente de uma lareira acesa. Queria realmente casar com ela? E ele concluiu que queria; mais do que isso, não havia nada que mais desejasse. Haveria problemas, é claro. A família diria que estava casando abaixo de sua classe. Pois que todos se danassem. Tinha 26 anos, ganhava mil libras por ano e se achava prestes a ser promovido a sócio num dos bancos de maior prestígio no mundo: podia casar com quem quisesse. A mãe ficaria desgostosa, mas o apoiaria: ela se preocuparia, mas acabaria contente por ver o filho feliz. E os outros podiam dizer o que lhes aprouvesse. Nunca haviam feito coisa alguma por ele.
Hugh contemplou Nora, rosada, bonita, adorável, recostada no sofá velho, os cabelos espalhados sobre os ombros nus. Queria-a demais, agora, e depressa. Vivera sozinho por muito tempo. Maisie levava uma vida consolidada com Solly, nunca seria sua. Era tempo de ele encontrar uma mulher quente e macia para partilhar sua cama e sua vida. Por que não podia ser Nora? Ele estalou os dedos.
- Venha até aqui, Blackie.
O cachorro se adiantou, cauteloso. Hugh afagou sua cabeça e pegou a fita em torno do pescoço.
- Trate de vigiar a porta da frente.
Ele puxou o cachorro para fora e depois fechou a porta. Blackie ainda latiu duas vezes, mas em seguida permaneceu em silêncio. Hugh foi sentar ao lado de Nora, pegou sua mão. Ela também se mostrava cautelosa.
- Nora, quer casar comigo?
Todo o rosto da moça se tornou vermelho.
- Quero.
Hugh beijou-a. Ela abriu a boca e retribuiu ao beijo com ardor. Ele tocou em seu joelho. Nora pegou sua mão e conduziu-a por baixo das roupas, entre as pernas, até
a bifurcação das coxas. Através do tecido fino, ele pôde sentir os pêlos ásperos e a carne macia. Os lábios de Nora roçaram seu rosto até o ouvido e ela sussurrou:
- Hugh, querido, faça-me sua esta noite, agora.
- Está bem - balbuciou ele, a voz rouca.
O baile a fantasia da duquesa de Tenbigh foi o primeiro grande evento da temporada de Londres em 1879. Todos falavam a respeito semanas antes. Fortunas foram gastas em fantasias, e as pessoas faziam qualquer coisa para conseguirem um convite.
Augusta e Joseph Pilaster não foram convidados. O que não era de surpreender, pois não pertenciam ao mais alto escalão da sociedade de Londres. Mas Augusta queria ir, e tomou a decisão de comparecer de qualquer maneira.
Assim que soube do baile mencionou-o para Harriet Morte, que reagiu com uma expressão embaraçada e não disse nada. Como dama de companhia da rainha, lady Morte tinha grande poder social e ainda por cima era prima distante da duquesa de Tenbigh.
Mas não se ofereceu para providenciar um convite para Augusta.
Augusta verificou a conta de lorde Morte no Pilasters Bank e descobriu que havia um saque a descoberto de mil libras. No dia seguinte, ele recebeu um bilhete indagando quando esperava regularizar sua conta.
Nesse mesmo dia, Augusta visitou lady Morte. Pediu desculpas, dizendo que o bilhete fora um equívoco e que o empregado responsável já tinha sido demitido. Depois, tornou a mencionar o baile.
O rosto normalmente impassível de lady Morte foi dominado por um instante por uma expressão furiosa de intenso ódio ao compreender a barganha que lhe era oferecida.
Augusta não se abalou. Não tinha o menor desejo de ser apreciada por lady Morte, queria apenas usá-la. E lady Morte se deparava com uma opção simples: exercer sua influência para que Augusta fosse convidada ao baile ou encontrar mil libras para cobrir o saque a descoberto. Ela preferiu a opção mais fácil, e os convites foram entregues no dia seguinte.
Augusta ficou aborrecida por lady Morte não tê-la ajudado de bom grado. Era irritante que lady Morte tivesse de ser coagida. Sentindo-se rancorosa, Augusta obrigou-a a obter um convite para Edward também.
Augusta iria à festa como a rainha Elizabeth e Joseph como o conde de Leicester. Na noite do baile, eles jantaram em casa e trocaram de roupa em seguida. Depois de se vestir, Augusta foi ao quarto de Joseph para ajudá-lo a pôr sua fantasia e falar sobre o sobrinho Hugh.
Estava furiosa porque Hugh seria promovido a sócio do banco ao mesmo tempo que Edward. Pior ainda, todos sabiam que Edward só se tornaria sócio porque casara e ganhara um investimento de 250 mil libras no banco, enquanto Hugh conseguia o cargo por ter fechado um negócio espetacularmente lucrativo com o Madler and Bell, de Nova York. As pessoas já começavam a se referir a Hugh como um possível Sócio Sênior. O mero pensamento fazia Augusta ranger os dentes.
A promoção dos dois seria efetivada no final de abril, quando o acordo anual da sociedade era formalmente renovado. Mas no início do mês, para enorme satisfação de Augusta, Hugh cometera o erro incrivelmente tolo de casar com uma rechonchuda moça das classes trabalhadoras, de Camden Town.
O episódio de Maisie, seis anos antes, demonstrara que ele tinha uma queda por mulheres da sarjeta, mas Augusta nunca ousara ter a esperança de que ele casasse com uma. Hugh o fizera com discrição, em Folkestone, com a presença apenas de sua mãe e irmã e do pai da noiva, e depois comunicara à família com um fait accompli.
Ao ajustar o rufo elisabetano de Joseph, Augusta comentou:
- Presumo que você terá de pensar de novo sobre a promoção de Hugh a sócio, agora que ele casou com uma criada.
- Ela não é uma criada, mas sim uma corsetière. Ou melhor, era. Agora é Mrs. Pilaster.
- Seja como for, um sócio do Pilasters não pode ter uma atendente de loja como esposa.
- Devo dizer que acho que ele pode casar com quem quiser. Augusta já receava que o marido enveredasse por essa linha.
- Você não diria isso se ela fosse feia, magra e antipática - disse Augusta, incisiva. - Só porque ela é bonita e simpática você se mostra tolerante.
- Não vejo qual é o problema.
- Um sócio deve se reunir com ministros de Estado, diplomatas, líderes de grandes negócios. Ela não saberá como se comportar. Pode embaraçá-lo a qualquer momento.
- Mas ela pode aprender. -Joseph hesitou por um instante, depois acrescentou: - Às vezes acho que você esquece suas próprias origens, minha cara.
Augusta empertigou-se e protestou com veemência:
- Meu pai tinha três lojas! Como ousa me comparar a essa pequena vagabunda?
Ele recuou no mesmo instante.
- Desculpe, desculpe... Augusta continuou indignada.
- Além do mais, nunca trabalhei nas lojas do meu pai! Fui criada para ser uma dama!
-Já pedi desculpas. Não vamos mais falar a respeito. E agora está na hora de partirmos.
Augusta se calou, mas por dentro ainda fervia de raiva.
Edward e Emily esperavam-nos no vestíbulo, vestidos como Henrique II e Eleanor de Aquitânia. Edward enfrentava dificuldades com as ligas, e disse:
- Vocês podem ir na frente, mamãe, e depois mande a carruagem nos buscar.
Mas Emily interveio prontamente:
- Oh, não, quero ir agora! Ajeite as ligas no caminho.
Emily tinha enormes olhos azuis e o rosto atraente de uma menina; estava fascinante no vestido e manto bordados do século XII, com uma touca comprida na cabeça. Augusta, porém, já descobrira que ela não era tão tímida quanto parecia. Durante os preparativos para o casamento, tornara-se evidente que Emily possuía uma vontade própria. Demonstrara o maior prazer em deixar que Augusta cuidasse do desjejum nupcial, mas insistira, com bastante obstinação, em se encarregar de seu próprio vestido e das damas de honra.
Ao embarcarem na carruagem e partirem, Augusta recordou vagamente que o casamento de Henrique II e Eleanor fora tempestuoso. Esperava que Emily não criasse muitos problemas para Edward. Desde o casamento Edward andava mal-humorado, e Augusta desconfiava que havia algo errado. Tentara descobrir, interrogando-o com a maior cautela, mas ele não revelara coisa alguma.
O mais importante, no entanto, era que ele estava casado e se tornaria sócio do banco. Já tinha o seu lugar. Todo o resto poderia ser resolvido.
O baile começou às dez e meia, e os Pilasters chegaram a tempo. Luzes brilhavam em todas as janelas de Tenbigh House. Já havia uma multidão de curiosos na rua, e uma fileira de carruagens esperava na Park Lane para entrar no pátio. A multidão aplaudia cada fantasia, enquanto os convidados desciam dos veículos e subiam os degraus para a porta. Olhando para a frente enquanto aguardavam, Augusta viu Antônio e Cleopatra, vários puritanos do tempo de Cromwell, diversos cavaleiros medievais, duas deusas gregas e três Napoleões entrarem na casa.
Sua carruagem finalmente chegou à porta e eles saltaram. Dentro da casa havia outra fila, começando no vestíbulo e subindo pela escada curva até o patamar, onde o duque e a duquesa de Tenbigh, vestidos como Salomão e Sabá, cumprimentavam os convidados. O vestíbulo era uma massa de flores; uma banda tocava para distrair os convidados enquanto esperavam sua vez.
Os Pilasters foram seguidos por Micky Miranda - convidado devido à sua posição como embaixador - e sua esposa, Rachel. Micky parecia mais vistoso do que nunca na seda vermelha do traje de cardeal Wolseley, e por um instante o coração de Augusta palpitou ao contemplá-lo. Ela fitou com um olhar critico sua esposa, que escolhera comparecer como uma escrava, o que era um tanto surpreendente. Augusta encorajara Micky a casar, mas não pôde reprimir uma pontada de ressentimento pela mulher um tanto feia que desposara. Rachel retribuiu o olhar de Augusta com frieza e segurou o braço de Micky, num gesto possessivo, depois que ele beijou a mão de Augusta.
Ao subirem a escada, lentamente, Micky disse a Rachel:
- O enviado espanhol também veio... não deixe de ser simpática com ele.
- Você é que tem de ser - protestou Rachel, incisiva. - Eu o acho insuportável.
Micky franziu o cenho, mas não disse mais nada. com suas opiniões extremistas e atitudes firmes, Rachel teria dado uma boa esposa para um jornalista combativo ou um membro radical do Parlamento. Micky merecia uma mulher menos excêntrica e mais bonita, refletiu Augusta.
Mais acima, ela divisou outros recém-casados, Hugh e Nora. Hugh era membro da Turma de Marlborough devido à sua amizade com os Greenbournes, e para tristeza de Augusta era convidado a todos os eventos. Ele vestia-se como um rajá indiano, e Nora parecia ter vindo como encantadora de serpentes, num traje cheio de lantejoulas cortado para revelar uma calça de harém. Havia serpentes artificiais enroladas em seus braços e pernas, e uma delas repousava a cabeça de papier-mâché em seu busto volumoso.
Augusta estremeceu.
- A esposa de Hugh é vulgar demais - murmurou ela para Joseph. Ele estava propenso a ser indulgente.
- Ora, é apenas uma fantasia.
- Nenhuma das outras mulheres aqui teve a falta de gosto de mostrar as pernas.
- Não vejo a menor diferença entre uma calça larga e um vestido. Era provável que ele estivesse apreciando a visão das pernas de Nora, pensou Augusta com profunda aversão. Era muito fácil para uma mulher assim turvar o julgamento dos homens.
- Apenas não acho que ela tenha condições de ser esposa de um sócio do Pilasters Bank.
- Nora não terá de tomar nenhuma decisão financeira.
Augusta teve vontade de soltar um grito de frustração. Não era suficiente que Nora fosse uma jovem das classes trabalhadoras. Ela teria de fazer algo imperdoável para que Joseph e seus sócios se voltassem contra Hugh.
Era uma idéia.
A raiva de Augusta se dissipou tão depressa quanto aflorara. Talvez houvesse algum meio de colocar Nora em encrenca, refletiu ela. Tornou a levantar os olhos pela escada, estudou sua presa.
Nora e Hugh conversavam com o adido húngaro, o conde De Tokoly, um homem de moral duvidosa, vestido de Henrique VIII. Nora era o tipo de mulher pela qual o conde se mostraria encantado, pensou Augusta, insidiosa. As damas respeitáveis cruzariam a sala para evitarem a possibilidade de falar com ele, mas ainda assim era preciso convidá-lo para os eventos sociais por se tratar de um diplomata importante. Não havia o menor sinal de desaprovação no rosto de Hugh enquanto observava a esposa flertar com o velho devasso. Mais do que isso, a expressão de Hugh era toda de adoração. Ainda se encontrava muito apaixonado para perceber qualquer defeito na esposa. Tal situação não duraria muito.
- Nora está conversando com De Tokoly - murmurou Augusta para Joseph. - É melhor ela cuidar de sua reputação.
- Não seja grosseira com ele - declarou Joseph, bruscamente. - Esperamos levantar dois milhões de libras para seu governo.
Augusta não ligava a mínima para De Tokoly. Continuou a remoer o que podia fazer em relação a Nora. A jovem era mais vulnerável agora, quando tudo lhe era desconhecido, e ainda não tivera tempo de aprender as maneiras da classe superior. Se conseguisse encontrar um meio de desgraçála de alguma forma, de preferência na frente do Príncipe de Gales...
No mesmo instante em que ela pensava no príncipe, houve uma grande aclamação lá fora, indicando que a comitiva real chegara.
Um momento depois, o príncipe e a princesa Alexandra entraram, vestidos como rei Artur e rainha Guinévera, seguidos por sua comitiva, cavaleiros de armadura e damas medievais. A banda parou de tocar de repente, no meio de uma valsa de Strauss, e iniciou o hino nacional. Todos os convidados no vestíbulo fizeram reverências, e a fila na escada se inclinou como uma onda, enquanto o casal real subia. O príncipe se tornava mais gordo a cada ano que passava, pensou Augusta ao fazer sua reverência.
Não tinha certeza de já haver fios brancos em sua barba, mas estava se tornando rapidamente calvo no alto da cabeça. Sempre sentira pena da linda princesa, que tinha de aturar muita coisa de seu marido perdulário e mulherengo.
No topo da escada, o duque e a duquesa receberam os convidados reais e levaram-nos para o salão de baile. Os outros convidados na escada arremeteram para acompanhá-los.
Dentro do salão, massas de flores das estufas da casa de campo dos Tenbighs estendiam-se pelas paredes, e a luz de mil velas refletia-se nos espelhos altos entreas janelas. Os lacaios servindo champanhe vestiam-se como cortesãos elisabetanos, de gibão e calção antigo. O príncipe e a princesa foram conduzidos a um palanque na extremidade do salão. Fora acertado que algumas das fantasias mais espetaculares deveriam desfilar em procissão pela frente do casal real. Assim que os dois sentaram, o primeiro grupo se adiantou. Formou-se um aglomerado perto do palanque, e Augusta descobriu-se ao lado do conde De Tokoly.
- É uma jovem deslumbrante a esposa de seu sobrinho, Mrs. Pilaster - comentou ele.
Augusta lançou-lhe um olhar gelado.
- É muita generosidade sua dizer isso, conde. De Tokoly alteou uma sobrancelha.
- Estou percebendo um tom de discordância? Não resta a menor dúvida de que teria preferido que o jovem Hugh escolhesse uma esposa de sua própria classe.
- Sabe a resposta sem precisar que eu lhe diga.
- Mas a jovem possui um charme irresistível.
- Sem dúvida.
- Vou convidá-la para dançar mais tarde. Acha que ela aceitará? Augusta não pôde resistir a um comentário ácido:
- Tenho certeza que sim. Ela não é muito exigente.
Augusta se virou. Seria demais esperar que Nora provocasse algum incidente com o conde...
E foi nesse instante que ela teve uma súbita inspiração.
O conde era o fator crítico. Se ela o juntasse a Nora, a combinação poderia ser explosiva.
Sua mente disparou. Aquela noite era uma oportunidade perfeita. Tinha de resolver tudo agora.
Sentindo-se um pouco ofegante de excitamento, Augusta olhou ao redor, avistou Micky e aproximou-se dele.
- Há uma coisa que quero que faça por mim agora, o mais depressa possível - murmurou ela.
Micky lançou-lhe um olhar sugestivo.
- Qualquer coisa. Augusta ignorou a insinuação.
- Conhece o conde De Tokoly?
- Claro. Todos os diplomatas se conhecem.
- Diga a ele que Nora não é melhor do que deveria ser. A boca de Micky se contraiu num meio sorriso.
- Apenas isso?
- Pode desenvolver, se quiser.
- Devo insinuar que sei disso... por experiência pessoal?
A conversa estava passando dos limites do decoro, mas a idéia de Micky era boa, e Augusta consentiu com a cabeça.
- Ainda melhor.
- Sabe o que ele fará?
- Espero que faça uma sugestão indecente a ela.
- Se é isso o que você quer...
- É, sim.
, Foi a vez de Micky consentir com a cabeça.
- Sou seu escravo nisto também, como em todas as coisas.
( Augusta dispensou o elogio com um gesto da mão, impaciente, tensa demais para ouvir galanteios jocosos). Procurou por Nora e avistou-a olhando ao redor em admiração, impressionada com a decoração suntuosa e os trajes extravagantes: a moça nunca vira nada assim em toda a sua vida. Estava desprevenida. Sem mais reflexões, Augusta atravessou a multidão para o lado de Nora e murmurou em seu ouvido:
- Quero lhe dar um conselho.
- Pode estar certa de que ficarei agradecida.
Hugh devia ter feito a Nora um relato insidioso do caráter de Augusta, mas a moça, para seu crédito, não deixou transparecer qualquer sinal de hostilidade. Parecia ainda não ter julgado Augusta, e não se mostrou calorosa nem fria.
- Observei-a conversando com o conde De Tokoly.
- Um velho safado - disse Nora no mesmo instante. Augusta estremeceu com a vulgaridade, mas continuou:
- Tome cuidado com ele, se dá valor à sua reputação.
- Tomar cuidado? O que exatamente está querendo me dizer?
- Seja polida, é claro... mas aconteça o que acontecer, não o deixe tomar liberdades. O menor encorajamento é suficiente para ele, e se não contido de imediato,
pode se tornar embaraçoso.
Nora balançou a cabeça, indicando sua compreensão.
- Não se preocupe. Sei lidar com esse tipo.
Hugh se encontrava perto, conversando com o duque de Kingsbridge. Notou Augusta, lançou um olhar desconfiado e veio para o lado da esposa. Augusta, no entanto, já dissera tudo o que precisava e afastou-se para assistir ao desfile. Realizara seu trabalho, as sementes estavam plantadas. Agora tinha de esperar, ansiosa, e torcer pelo melhor.
Algumas pessoas da Turma de Marlborough passavam agora pela frente do príncipe, inclusive o duque e a duquesa de Kingsbridge, e Solly e Maisie Greenbourne. Vestiam-se como potentados orientais, xás, paxás e sultanas, e em vez de fazerem uma reverência ajoelharam-se e ofereceram um salamaleque, o que despertou uma risada do corpulento príncipe e aplausos da multidão. Augusta detestava Maisie Greenbourne, mas mal a notou. Sua mente analisava rapidamente as possibilidades. Havia uma centena de meios pelos quais sua trama poderia ser frustrada: De Tokoly poderia ficar fascinado por outro rosto bonito, Nora podia tratá-lo com toda a cortesia, Hugh podia permanecer por perto, evitando que o conde fizesse qualquer coisa ofensiva. Mas com um pouco de sorte, o drama que ela planejara seria desempenhado... e haveria então o maior distúrbio.
O desfile terminava quando Augusta, consternada, divisou David Middleton se aproximando.
Vira-o pela última vez há seis anos, quando ele a interrogara sobre a morte de seu irmão Peter na Windfield School, e ela lhe dissera que as duas testemunhas, Hugh Pilaster e Antonio Silva, haviam viajado para o exterior. Mas agora Hugh voltara, e ali estava Middleton. Como um mero advogado podia ser convidado para um baile assim? Augusta recordou vagamente que ele era um parente distante do duque de Tenbigh. Mas seria muito difícil prever aquela situação, potencialmente desastrosa.
Não posso pensar em tudo, disse ela a si mesma, frenética.
Para seu horror, Middleton se encaminhou direto para Hugh. Augusta adiantou-se pela multidão e ouviu-o dizer:
- Olá, Pilaster. Soube que voltou à Inglaterra. Lembra de mim? Sou o irmão de Peter Middleton.
Augusta virou as costas a fim de que ele não percebesse sua presença e se esforçou para ouvir a conversa em meio ao burburinho ao seu redor.
- Lembro, sim... você compareceu ao inquérito. Permita que lhe apresente minha esposa.
- Como tem passado, Mrs. Pilaster? - murmurou Middleton, apressado, tornando a concentrar sua atenção em Hugh. - Nunca fiquei satisfeito com as conclusões do inquérito, como sabe.
Augusta sentiu um calafrio lhe percorrer o corpo. Middleton tinha de estar muito obcecado para mencionar daquela maneira um assunto tão impróprio no meio de um baile a fantasia. Era insuportável. O pobre Teddy nunca se livraria daquela suspeita antiga?
Ela não pôde ouvir a resposta de Hugh, mas o tom era neutro e cauteloso. A voz de Middleton era mais alta, e Augusta captou o que ele disse em seguida:
- Deve saber que o colégio inteiro não acreditou na história de que Edward tentou salvar meu irmão do afogamento.
Augusta ficou tensa de medo pelo que Hugh poderia dizer, mas ele se manteve circunspecto e comentou que o incidente ocorrera há muito tempo.
Foi nesse instante que Micky surgiu ao lado de Augusta. Seu rosto era uma máscara de urbanidade descontraída, mas ela podia perceber a tensão nos ombros rígidos.
- Aquele não é o tal de Middleton? - murmurou ele no ouvido de Augusta.
Ela acenou com a cabeça.
- Pensei tê-lo reconhecido.
- Fique calado e escute.
- Middleton se tornara um pouco agressivo.
- Acho que você conhece a verdade sobre o que aconteceu - declarou ele num tom de desafio.
- É isso o que pensa?
A voz de Hugh se tornou audível, o tom menos cordial.
- Perdoe-me por ser tão brusco, Pilaster. Ele era meu irmão. Há anos que me pergunto o que aconteceu de fato. Não acha que tenho o direito de saber?
Houve uma pausa. Augusta sabia que tal apelo ao certo e errado do caso era o tipo de coisa capaz de comover o hipócrita do sobrinho. Queria interferir, fazê-los se calarem ou mudarem de assunto, mas isso seria o equivalente a uma confissão de que tinha algo a esconder; por isso, permaneceu imóvel, impotente e apavorada, enraizada no chão, aguçando os ouvidos para escutar tudo em meio ao murmúrio da multidão. Hugh finalmente respondeu:
- Não vi Peter morrer, Middleton. Não posso lhe dizer o que aconteceu. Não sei com certeza, e seria errado especular.
- Isso significa que tem suspeitas? Pode imaginar como aconteceu?
- Não há margem para palpites num caso assim. Seria uma irresponsabilidade. Você diz que quer a verdade. Sou sempre a favor da verdade. Se eu soubesse qual era, haveria de me considerar obrigado pelo dever a revelá-la. Mas acontece que não sei.
- Acho que está protegendo seu primo. Hugh ficou ofendido.
- Está exagerando, Middleton. Tem direito a se sentir transtornado, mas não lance dúvidas sobre a minha honestidade.
- Mas tenho certeza de que alguém está mentindo - insistiu Middleton, rudemente, para se afastar em seguida.
Augusta voltou a respirar. O alívio deixou-a com os joelhos bambos, e teve de se apoiar em Micky, discretamente. Os preciosos princípios de Hugh haviam trabalhado em favor dela. Hugh desconfiava que Edward contribuíra para a morte de Peter, mas nada diria porque era apenas uma suspeita. E agora Middleton deixara Hugh furioso.
Um cavalheiro nunca devia dizer uma mentira, e para os jovens como Hugh a insinuação de que poderia não estar dizendo a verdade era um grave insulto. Era bem provável que Middleton e Hugh nunca mais tornassem a se falar.
A crise desabara de repente, como uma tempestade de verão, deixando-a bastante assustada; mas se dissipara com a mesma rapidez, deixando-a abalada, mas sã e salva.
O desfile terminou. A banda começou a tocar uma quadrilha. O príncipe levou a duquesa para dançar, e o duque foi com a princesa, formando o primeiro quarteto. Outros grupos seguiram o exemplo. A dança era meio tranqüila, talvez porque muitas pessoas usassem pesadas fantasias. Augusta comentou para Micky:
- Talvez Mr. Middleton não mais represente um perigo para nós.
- Não se Hugh continuar de boca fechada.
- E desde que seu amigo Silva permaneça em Córdoba.
- A família dele tem cada vez menos influência à medida que os anos passam. Não espero vê-lo na Europa outra vez.
- Ainda bem. - A mente de Augusta reverteu à conspiração. - Falou com De Tokoly?
- Falei.
- Ótimo.
- Só espero que você saiba o que está fazendo. Augusta lançou-lhe um olhar de reprovação.
- Que tolice a minha! - exclamou Micky. - Você sempre sabe o que está fazendo.
A segunda dança foi uma valsa, e Micky convidou-a para dançar. Quando Augusta era moça a valsa era considerada indecente, porque os parceiros ficavam muito perto, o braço do homem envolvendo toda a cintura da mulher, num abraço. Hoje em dia, porém, até a realeza dançava a valsa.
Assim que Micky a tomou em seus braços, ela sentiu que mudava. Era como ter 17 anos outra vez, e dançar com Strang. Quando dançava, Strang pensava em sua parceira, não nos próprios pés, e Micky possuía o mesmo talento. Fez Augusta se sentir jovem, bela e despreocupada. Podia sentir a suavidade das mãos de Micky, o cheiro masculino de tabaco e macáçar, o calor do corpo a se comprimir contra o seu. Teve uma pontada de inveja de Rachel, que partilhava a cama dele. Por um momento, recordou a cena no quarto do velho Seth, seis anos antes, mas parecia irreal, como um sonho que outrora tivera e que nunca podia acreditar por completo que acontecera de fato.
Algumas mulheres em sua posição teriam uma ligação amorosa clandestina, mas Augusta, embora às vezes sonhasse com encontros secretos com Micky, não suportaria a passagem sorrateira por ruas transversais, os encontros em algum esconderijo, os abraços furtivos, as evasivas e desculpas. Além do mais, tais ligações eram muitas vezes descobertas. Era mais provável que ela deixasse Joseph e fugisse com Micky. Ele talvez quisesse. E tinha certeza de que o faria querer, se assim se empenhasse. Mas sempre que aventava esse sonho, Augusta pensava em todas as coisas a que teria de renunciar.- suas três casas, a carruagem, o dinheiro para roupas, a posição social, o acesso a bailes como aquele. Strang poderia lhe dar tudo isso, mas Micky só tinha a oferecer sua personalidade sedutora, o que não era suficiente.
- Olhe nessa direção - sugeriu Micky, indicando com um aceno de cabeça.
Augusta avistou Nora dançando com o conde De Tokoly. Ficou tensa.
- Vamos chegar mais perto - murmurou ela.
Não foi fácil, pois o grupo real se encontrava naquele canto e todos queriam se manter nas proximidades; mas Micky, com extrema habilidade, conduziu-a através da multidão.
A valsa continuava, repetindo interminavelmente a mesma melodia banal Até agora, Nora e o conde dançavam como qualquer outro casal. Ele fazia comentários ocasionais, em voz baixa; ela balançava a cabeça, sorria. Talvez ele a segurasse um pouco perto demais, mas não o suficiente para causar estranheza. Enquanto a música prosseguia, Augusta se perguntou se julgara errado suas duas vítimas. A preocupação deixava-a tensa, e passou a dançar mal.
A valsa foi se aproximando do clímax. Augusta não desviava os olhos de Nora e do conde. E, de repente, houve uma mudança. O rosto de Nora assumiu uma expressão de total consternação: o conde devia ter dito alguma coisa de que ela não gostara. As esperanças de Augusta aumentaram. Mas o que dissera não fora bastante ofensivo para que Nora fizesse uma cena, e continuaram dançando.
Augusta já perdia as esperanças, a valsa entrava nos últimos acordes quando a confusão ocorreu.
Augusta foi a única pessoa a perceber como começara. O conde aproximou os lábios do ouvido de Nora e murmurou alguma coisa. Ela ficou vermelha, parou de dançar abruptamente e empurrou-o para longe; mas ninguém, à exceção de Augusta, notou isso, porque a dança terminava. O conde, no entanto, arriscou sua sorte, tornando a falar, o rosto contraído num sorriso lascivo característico. No instante em que a música parou e houve um silêncio momentâneo, Nora acertou-lhe uma bofetada.
O som ressoou pelo salão como o estampido de um tiro. Não foi um tapa polido, como o de uma dama, apropriado ao recinto, mas o tipo de golpe para deter um bêbado importuno num bar. O conde cambaleou para trás... e esbarrou no Príncipe de Gales.
Houve um murmúrio de espanto coletivo das pessoas ao redor. O príncipe quase caiu e foi amparado pelo duque de Tenbigh. No silêncio de horror, o sotaque cockney de Nora soou em alto e bom tom:
- Nunca mais chegue perto de mim, seu velho safado!
Por mais um segundo, eles formaram um quadro imóvel: a mulher indignada, o conde humilhado e o príncipe aturdido. Augusta foi invadida por uma intensa exultação.
Dera certo... e muito melhor do que ela poderia imaginar!
Foi então que Hugh apareceu ao lado de Nora e pegou-a pelo braço; o conde se empertigou e afastou-se; um grupo ansioso se aglomerou em torno do príncipe, escondendo-o de vista. As conversas irromperam por todo o salão, como uma trovoada.
Augusta olhou triunfante para Micky.
- Brilhante! - sussurrou ele com genuína admiração. - Você foi brilhante, Augusta!
Micky apertou o braço dela e levou-a para um canto do salão. Joseph a esperava.
- Mas que mulher terrível! - queixou-se ele. - Causar uma cena assim na presença do príncipe... acarretou a desgraça para toda a família, e ainda por cima também
perdemos com certeza um grande contrato!
Era justamente a reação que Augusta esperava.
- Agora talvez você entenda que Hugh não pode ser promovido a sócio - comentou ela, triunfante.
Joseph lançou-lhe um olhar pensativo. Por um terrível momento, Augusta temeu ter exagerado, e que o marido imaginava que fora ela quem orquestrara todo o incidente.
Mas se o pensamento lhe passou pela mente, ele devia tê-lo descartado, pois logo disse:
- Tem razão, minha cara. Tem razão desde o início. Hugh conduzia Nora para a porta.
- Estamos de saída - disse ele em tom neutro ao passarem.
- Vamos todos nos retirar agora - anunciou Augusta.
Mas ela não queria que o casal fosse embora imediatamente. Se nada mais fosse dito naquela noite, havia o perigo de que no dia seguinte, depois que todos esfriassem a cabeça, se pudesse dizer que o incidente não fora tão desastroso quanto parecera. Para se prevenir contra isso, Augusta queria mais uma briga agora: temperamentos exaltados, palavras iradas, acusações que não poderiam ser esquecidas com facilidade. Por isso, pôs a mão no braço de Nora, detendo-a, e comentou em tom acusador:
- Tentei avisá-la sobre o conde De Tokoly. Hugh disse:
- Quando um homem ofende uma dama ao dançarem, não há muito que ela possa fazer sem causar uma cena.
- Não seja ridículo - disse Augusta em tom ríspido. - Qualquer moça de boa educação saberia exatamente o que fazer. Ela deveria ter dito que se achava indisposta,
e pedir sua carruagem.
Hugh sabia que era verdade, e não tentou negar. Mais uma vez, Augusta preocupou-se com a possibilidade de todos se acalmarem e o incidente ser superado. Mas Joseph ainda estava furioso, e disse a Hugh:
- Só os céus sabem quantos danos você causou à família e ao banco esta noite.
Hugh ficou vermelho e indagou, tenso:
- O que está querendo dizer com isso?
Ao desafiar Joseph a fundamentar a acusação, Hugh só agravava sua situação, pensou Augusta com a maior satisfação. Ele era muito jovem para saber que àquela altura deveria se calar e ir para casa. Joseph ficou ainda mais irritado.
- É certo que perdemos a conta húngara e nunca mais seremos convidados para um evento real.
- Sei disso muito bem - respondeu Hugh. - Só perguntei por que acha que os danos foram causados por mim.
- Porque você trouxe para a família uma mulher que não sabe se comportar!
Cada vez melhor, pensou Augusta, com um júbilo malicioso. Hugh estava vermelho agora, mas falava com uma fúria controlada.
- Vamos esclarecer as coisas. A esposa de um Pilaster deve se mostrar disposta a sofrer insultos e humilhações em bailes, fazer qualquer coisa para não pôr em risco um negócio? É essa a sua filosofia?
Joseph se sentia agora muito ofendido.
- Seu garoto insolente! O que estou dizendo é que ao casar abaixo de sua classe, você se desqualificou para sempre de se tornar um sócio no banco!
Ele disse! pensou Augusta, exultante. Ele disse o que eu queria!
Hugh levou um choque que o reduziu ao silêncio. Ao contrário de Augusta, não previra as implicações da briga. Agora, começava a absorver o significado do que acontecera, e ela viu a expressão dele mudar da raiva, passando pela ansiedade e compreensão, ao desespero.
Augusta se esforçou para reprimir um sorriso vitorioso. Conseguira o que queria: vencera. Mais tarde, Joseph poderia se arrepender de seu pronunciamento, mas era improvável que o retirasse, pois era orgulhoso demais.
- Então é isso - disse Hugh, depois de um longo momento.
Ele olhava para Augusta, e não para Joseph. Ela constatou, surpresa, que o sobrinho se encontrava à beira das lágrimas.
- Muito bem, Augusta, você venceu. Não sei como foi feito, mas não tenho a menor dúvida de que foi você quem provocou esse incidente. - Ele virou-se para Joseph.
- Mas deve refletir a respeito, Tio Joseph. Deve pensar em quem se importa de fato com o banco...
Hugh tornou a fitar Augusta e arrematou:
- E quem são seus verdadeiros inimigos.
A notícia da queda de Hugh espalhou-se pela City rapidamente. Na tarde seguinte, pessoas que disputavam o privilégio de conversar com ele, propondo projetos para ferrovias, usinas siderúrgicas, estaleiros e conjuntos habitacionais suburbanos, estavam cancelando as reuniões. No banco, funcionários que o veneravam até então passaram a tratá-lo como um gerente qualquer. Ele descobriu que podia entrar num café nas ruas próximas do Banco da Inglaterra sem atrair um bando de pessoas ansiosas em conhecer suas opiniões sobre a Grand Trunk Railroad, o preço dos títulos públicos da Louisiana e a dívida nacional americana.
Houve uma briga na Sala dos Sócios. Tio Samuel se mostrou indignado quando Joseph anunciou que Hugh não poderia ser promovido a sócio. Mas o Jovem William apoiou seu irmão Joseph, e o major Hartshorn também, deixando Samuel sozinho.
Foi Jonas Mulberry, o calvo e lúgubre escriturário-chefe, quem disse a Hugh o que acontecera entre os sócios.
- Devo dizer que lamento a decisão, Mr. Hugh - declarou ele com evidente sinceridade. - Quando trabalhava sob as minhas ordens, ainda jovem, nunca tentou me culpar por seus erros... ao contrário de outros membros da família com os quais já lidei no passado.
- Eu não ousaria fazer isso, Mr. Mulberry - comentou Hugh, sorrindo.
Nora chorou por uma semana. Hugh recusou-se a culpá-la pelo que acontecera. Ninguém o obrigara a casar com ela: tinha de assumir a responsabilidade por suas próprias decisões. Se sua família tivesse um mínimo de decência, trataria de apoiá-lo numa crise assim, mas nunca fora capaz de contar com eles para esse tipo de amparo.
Depois que superou sua perturbação, Nora mostrou-se um tanto insensível, revelando um lado duro que surpreendeu Hugh. Ela não podia entender o significado da sociedade
para o marido. Hugh compreendeu, um pouco desapontado, que ela não era muito capaz de imaginar os sentimentos das outras pessoas. Pensou que isso devia acontecer porque ela crescera pobre e sem mãe, e fora obrigada a colocar seus interesses pessoais em primeiro lugar durante toda a vida. Embora ficasse um pouco abalado com a atitude de Nora, ele a esquecia todas as noites quando iam juntos para a cama enorme e faziam amor.
O ressentimento aumentava dentro de Hugh como uma úlcera, mas agora tinha uma esposa, uma casa nova e grande e seis criados para sustentar, por isso tinha de permanecer no banco. Ganhou sua própria sala, no andar acima da Sala dos Sócios, e pôs na parede um mapa enorme da América do Norte. Todas as manhãs de segunda-feira escrevia um sumário dos negócios norte-americanos da semana anterior e enviava um cabograma para Sidney Madler em Nova York. Numa segunda-feira, duas semanas depois do baile da duquesa de Tenbigh, na sala do telégrafo, no andar térreo, ele encontrou um estranho, de cabelos escuros e em torno dos 21 anos. Hugh sorriu.
- bom dia. Quem é você?
- Simon Oliver - respondeu o homem num sotaque vagamente espanhol.
- Deve ser novo aqui. - Hugh estendeu a mão. - Sou Hugh Pilaster.
- Muito prazer.
Oliver parecia um tanto esquivo.
- Trabalho nos empréstimos norte-americanos - acrescentou Hugh. - E você?
- Trabalho com Mr. Edward. Hugh fez a ligação.
- Você é da América do Sul?
- Isso mesmo. De Córdoba.
Fazia sentido. Como a especialidade de Edward era a América do Sul em geral, e Córdoba em particular, podia ser útil ter um natural daquele país trabalhando com ele, ainda mais porque Edward não falava espanhol.
- Fui colega de colégio do embaixador cordovês, Micky Miranda - informou Hugh. - Deve conhecê-lo.
- Ele é meu primo.
- Ah... - Não havia nenhuma semelhança de família, mas Oliver se arrumava de maneira impecável, as roupas sob medida e bem passadas, os cabelos bem penteados, os sapatos brilhando, sem dúvida seguindo o exemplo do primo mais velho e bem-sucedido. - Espero que goste de trabalhar conosco.
- Obrigado.
Hugh estava pensativo ao voltar para sua sala. Edward precisava de toda ajuda que pudesse obter, mas Hugh sentia-se um pouco incomodado por ter um primo de Micky numa posição tão potencialmente influente no banco.
Sua apreensão se justificou poucos dias depois.
Mais uma vez, foi Jonas Mulberry quem lhe relatou o que acontecia na Sala dos Sócios. Mulberry foi à sala de Hugh com uma programação dos pagamentos que o banco tinha de efetuar em Londres em nome do governo dos Estados Unidos, mas seu verdadeiro objetivo era conversar. O rosto de cocker spaniel parecia mais murcho do que nunca quando disse:
- Não gosto da situação, Mr. Hugh. Os títulos sul-americanos nunca foram sólidos.
- Estamos lançando um título sul-americano? Mulberry acenou com a cabeça.
- Mr. Edward propôs, e os sócios concordaram.
- Para que é?
- Uma nova ferrovia, da capital de Córdoba, Palma, até a província de Santamaria.
- Cujo governador é Papa Miranda...
- O pai do amigo de Mr. Edward, Senor Miranda.
- E tio do escriturário de Edward, Simon Oliver. Mulberry balançou a cabeça em desaprovação.
- Eu já trabalhava aqui quando o governo venezuelano deixou de pagar seus títulos, há 15 anos. Meu pai, que Deus guarde sua alma, podia se lembrar da inadimplência argentina em 1828. E olhe para os títulos mexicanos... só pagam dividendos de vez em quando. Quem já ouviu falar de títulos que só pagam o que é devido de vez em quando?
Hugh concordou, com um aceno de cabeça. "
- Além do mais, os investidores que gostam de ferrovias podem obter de cinco a seis por cento sobre seu dinheiro nos Estados Unidos... por que ir para Córdoba?
- Exatamente. Hugh cocou a cabeça.
- bom, tentarei descobrir o que eles estão pensando. Mulberry estendeu um maço de papéis.
- Mr. Samuel pediu um sumário das posições no Extremo Oriente. Pode levar os dados para ele.
Hugh sorriu.
- Você pensa em tudo.
Ele pegou os papéis e desceu para a Sala dos Sócios. Só Samuel e Joseph se encontravam ali. Joseph ditava cartas a um estenógrafo, e Samuel examinava um mapa da China. Hugh pôs o relatório na mesa de Samuel.
- Mulberry me pediu para lhe entregar isto.
- Obrigado. - Samuel fitou-o e sorriu. - Mais alguma coisa em sua mente?
- Há, sim. Tenho me perguntado por que vamos financiar a ferrovia de Santamaria.
Hugh ouviu Joseph interromper o ditado por um instante, e depois recomeçar. Samuel disse:
- Não é o investimento mais atraente que já lançamos, eu reconheço mas tudo deve dar certo com o apoio do nome Pilaster.
- Pode-se dizer a mesma coisa sobre qualquer lançamento que nos é proposto - protestou Hugh. - O motivo para termos tamanha reputação é que nunca oferecemos aos investidores um título que pode apenas "dar certo".
- Seu Tio Joseph acha que a América do Sul pode estar pronta para uma recuperação.
Ouvindo seu nome, Joseph entrou na conversa, alegando:
- É como mergulhar o dedão na água para sentir a temperatura.
- Ou seja, é um risco.
- Se meu bisavô nunca tivesse assumido um risco, não empenharia todo o seu dinheiro num navio negreiro, e hoje não existiria o Pilasters Bank.
- Mas desde então os Pilasters sempre deixaram para casas menores e mais especulativas a exploração de águas desconhecidas - insistiu Hugh.
Tio Joseph não gostou de ser contestado, e respondeu em tom irritado:
- Uma exceção não vai nos fazer mal.
- Mas a disposição para abrir exceções pode nos prejudicar profundamente.
- Não compete a você julgar isso.
Hugh franziu o cenho. Seu instinto fora certo: o investimento não tinha um senso comercial, e Joseph não podia justificá-lo. Então por que o aceitara? Assim que se fez a pergunta, Hugh percebeu qual era a resposta.
- Fez isso por causa de Edward, não é mesmo? Quer encorajá-lo, e este é o primeiro negócio que ele apresenta desde que se tornou sócio. Por isso, vai deixar que ele o realize, embora as perspectivas sejam desfavoráveis.
- Não cabe a você questionar meus motivos!
- E não a cabe a você arriscar o dinheiro de outras pessoas como um favor a seu filho. Pequenos investidores de Brighton e Harrogate aplicarão seu dinheiro nessa ferrovia e perderão tudo se fracassar.
- Você não é sócio, e assim não nos interessa sua opinião a respeito. Hugh detestava quando as pessoas mudavam de assunto no meio de uma discussão, e reagiu com a maior irritação:
- Sou um Pilaster, e quando se prejudica a reputação do banco também se está afetando o meu nome.
Samuel interveio:
- Creio que você já falou demais, Hugh...
Hugh sabia que deveria se calar, mas não pôde se conter.
- Receio ainda não ter dito tudo o que devo. - Ele se ouviu gritando, e tentou baixar a voz. - Estão dissipando a reputação do banco ao fazerem isso. Nosso bom nome é o maior patrimônio. Usá-lo dessa maneira é como esbanjar capital.
Tio Joseph se encontrava agora além da cortesia.
- Não se atreva a me fazer uma preleção sobre princípios de investimentos em meu banco, seu jovem insolente e presunçoso! Saia desta sala!
Hugh fitou o tio em silêncio por um longo momento. Sentia-se furioso e deprimido. O tolo e fraco Edward era um sócio, e levava o banco a realizar péssimos negócios com a ajuda do pai imprudente, e não havia nada que alguém pudesse fazer. Fervendo de frustração, Hugh virou-se e saiu da sala, batendo a porta.
Dez minutos depois ele foi pedir um emprego a Solly Greenbourne.
Não tinha certeza de os Greenbournes o aceitarem. Era um funcionário que qualquer banco cobiçaria por causa de seus contatos nos Estados Unidos e Canadá, mas os banqueiros achavam que não era uma atitude de cavalheiro tirar pessoas importantes de seus rivais. Além disso, os Greenbournes podiam temer que Hugh revelasse segredos à sua família durante o jantar, e o fato de não ser judeu só podia aumentar esse receio.
O Pilasters, no entanto, tornara-se um beco sem saída para ele. Tinha de sair de lá de qualquer maneira.
Chovera no início do dia mas o sol aparecera na metade da manhã e o vapor se elevava do estrume de cavalo que cobria as ruas de Londres. A arquitetura da City era uma mistura de grandiosos prédios clássicos e casas velhas quase em ruínas: o prédio do Pilasters era do tipo grandioso; o do Greenbournes não. Não se poderia imaginar que o Greenbournes Bank era maior e mais importante do que o Pilasters pela aparência da matriz. Os negócios haviam sido iniciados três gerações antes, com empréstimos a importadores de peles, de duas salas de uma casa antiga na Thames Street. Sempre que havia necessidade de mais espaço, eles se expandiam para outra casa. Agora, ocupavam quatro prédios adjacentes e mais três nas proximidades. Só que mais negócios eram realizados naquelas casas dilapidadas do que no esplendor ostentoso do prédio do Pilasters.
No interior, não havia o silêncio devoto do salão de clientes do Pilasters. Hugh teve de abrir caminho através de uma multidão, como suplicantes esperando para falar com um rei medieval, cada um convencido de que se pudesse ao menos falar com Ben Greenbourne, apresentar o seu caso ou vender uma proposta, ganharia uma fortuna.
Os corredores em ziguezague e as escadas estreitas eram parcialmente obstruídos por caixas de metal de arquivos antigos, caixas de papelão com papel timbrado e garrafões de tinta, e cada cubículo fora convertido numa sala para um escriturário. Hugh encontrou Solly numa sala grande, de assoalho irregular, e uma janela em estado precário dando para o rio. A corpulência de Solly se achava meio escondida por trás de pilhas de papel em sua mesa.
- Moro num palácio e trabalho numa choupana - comentou Solly, pesaroso. - Tento persuadir meu pai a construir um prédio próprio para um banco, mas ele alega que não há lucro em ter uma propriedade assim.
Hugh sentou num sofá cheio de caroços e aceitou um copo grande com um xerez muito caro. Sentia-se constrangido, porque pensava em Maisie no fundo de sua mente. Seduzira-a antes que ela se tornasse esposa de Solly, e o teria feito de novo mais tarde, se ela permitisse. Mas tudo isso acabara agora, ele disse a si mesmo. Maisie trancara a porta em Kingsbridge Manor e ele casara com Nora. Não tencionava ser um marido infiel. Ainda assim, sentia-se constrangido.
- Vim procurá-lo aqui porque quero falar de negócios - anunciou ele.
Solly abriu os braços.
- Pode falar.
- Minha área de competência é a América do Norte, como sabe.
- E como sei! Você se saiu tão bem por lá que não nos deixou muito espaço para operar.
- Exatamente. E por causa disso, estão perdendo muitos negócios lucrativos.
- Não precisa me jogar na cara. Papai me pergunta a todo instante por que não sou mais parecido com você.
- O que precisa é de alguém com experiência norte-americana, para abrir um escritório em Nova York e partir atrás dos negócios.
- Isso e mais uma fada madrinha.
- Falo a sério, Greenbourne. Sou o homem que precisa.
- Você?
- Quero trabalhar para vocês.
Solly estava aturdido. Espiou por cima dos óculos como se conferisse que fora realmente Hugh quem dissera aquilo. Depois de um momento, comentou:
- Suponho que é por causa daquele incidente no baile da duquesa de Tenbigh.
- Disseram que não vão me promover a sócio por causa de minha esposa.
Solly compreenderia, pensou Hugh, porque também casara com uma moça da classe inferior.
- Lamento ouvir isso - murmurou Solly.
- Mas não estou pedindo compaixão. Sei o quanto valho, e terá de pagar o preço, se me quiser. Ganho agora mil libras por ano e espero ser aumentado todos os anos enquanto proporcionar mais e mais lucros para o banco.
- Isso não é problema. - Solly pensou por um momento. - Pode ser uma coisa muito importante para mim. Sou grato pela oferta. Você é um bom amigo, e um excepcional homem de negócios.
Hugh, pensando outra vez em Maisie, sentiu uma pontada de culpa perante a expressão "bom amigo". Solly acrescentou:
- Não há nada que eu gostaria mais do que tê-lo trabalhando comigo.
- Percebo que há um "mas" que você ainda não disse - comentou Hugh com apreensão no coração.
Solly sacudiu a cabeça.
- Não há mas nenhum, pelo menos para mim. Claro que não posso contratá-lo como faria com um escriturário subalterno. Terei de consultar meu pai. Mas sabe como as coisas funcionam no mundo bancário: o lucro é um argumento que supera todos os outros. Não posso imaginar meu pai recusando uma considerável fatia do mercado norte-americano.
Hugh não queria parecer muito ansioso, mas não pôde deixar de indagar:
- Quando vai falar com ele?
- Por que não agora? - Solly levantou-se. - Não demorarei um minuto. Tome outro copo de xerez.
Ele saiu da sala. Hugh tomou um gole do xerez, mas descobriu que tinha dificuldade para engolir, tamanha era a sua tensão. Nunca pedira um emprego antes. Era enervante saber que seu futuro dependia do capricho do velho Ben Greenbourne. Pela primeira vez pôde compreender os sentimentos dos jovens bem-arrumados, em colarinhos engomados, que entrevistara algumas vezes para vagas de escriturário. Inquieto, ele se levantou e foi até a janela. No outro lado do rio, uma barcaça descarregava fardos de tabaco para um armazém: era tabaco da Virgínia, e era bem provável que tivesse sido ele quem financiara a transação.
Tinha um senso de juízo final, um pouco parecido com a sensação que experimentara ao embarcar no navio para Boston seis anos antes, a expectativa de que nada mais voltaria a ser como antes.
Solly voltou com o pai. Ben Greenbourne tinha o porte empertigado e a cabeça em formato de bala de um general prussiano. Hugh levantouse para apertar sua mão; examinouansioso o rosto do velho. A expressão era solene. Significava um Não?
- Solly me contou que sua família decidiu não lhe oferecer um lugar na sociedade.
A fala de Ben era fria e incisiva. Ele era muito diferente do filho, refletiu Hugh.
- Para ser mais preciso, eles ofereceram, mas depois retiraram - explicou Hugh.
Ben balançou a cabeça. Era um homem que apreciava a precisão.
- Não cabe a mim criticar o julgamento deles. Mas se seu conhecimento do mercado norte-americano está à venda, pode ter certeza de que sou um comprador.
O coração de Hugh disparou. Parecia uma oferta de emprego.
- Obrigado.
- Mas não quero contratá-lo sob falsas impressões, e por isso devo esclarecer uma coisa. Não é provável que algum dia você venha a se tornar sócio do nosso banco.
Hugh não chegara a pensar tão longe, mas ainda assim era um golpe.
- Entendo.
- Digo isso agora para que nunca pense que é um reflexo do seu trabalho. Muitos cristãos são colegas apreciados e amigos queridos, mas os sócios sempre foram judeus,
e sempre continuarão a ser.
- Agradeço sua franqueza.
Por Deus, pensou Hugh, você é mesmo um velho impiedoso!
- Ainda quer o emprego?
- Quero.
Ben Greenbourne tornou a apertar a mão de Hugh e acrescentou, antes de se retirar:
- Neste caso, aguardo ansioso o momento de começar a trabalhar com você.
Solly exibiu um sorriso expansivo.
- Seja bem-vindo à firma! Hugh sentou.
- Obrigado.
Seu alívio e prazer eram um pouco ofuscados pelo pensamento de que nunca seria um sócio, mas fez um esforço para aceitar de bom grado a situação. Ganharia um bom salário, viveria com conforto; só que nunca seria um milionário... pois era preciso ser um sócio para ganhar tanto dinheiro assim.
- Quando pode começar? - perguntou Solly, ansioso.
Hugh não pensara nisso.
- Provavelmente devo cumprir o aviso prévio de 90 dias.
- Faça menos, se for possível.
- Claro. É maravilhoso, Solly. Não tenho palavras para descrever como estou satisfeito.
- Eu também.
Hugh não podia pensar em nada para dizer em seguida e levantou-se, mas Solly acrescentou:
- Posso fazer outra sugestão?
- Claro - disse ele, tornando a sentar.
- É sobre Nora. Espero que não se ofenda.
Hugh hesitou. Eram velhos amigos, mas ele não queria conversar com Solly sobre sua esposa. Seus próprios sentimentos eram ambíguos. Sentia-se embaraçado pela cena que ela fizera, mas ainda assim achava que a atitude de Nora fora justificada. Caía na defensiva por seu sotaque, maneiras e origem de classe inferior, mas também se orgulhava por Nora ser tão bonita e encantadora. Mas não podia ser melindroso com o homem que acabara de salvar sua carreira, e por isso concordou:
- Pode falar.
- Como sabe, também casei com uma moça que... não estava acostumada à alta sociedade.
Hugh acenou com a cabeça. Sabia disso muito bem, mas ignorava como Maisie e Solly haviam enfrentado a situação, pois se encontrava no exterior na ocasião do casamento.
Deviam ter cuidado direito, pois Maisie se tornara uma das mais destacadas anfitriãs da sociedade de Londres; e se alguém se lembrava de suas origens humildes, nunca falava a respeito. Era algo raro, mas havia precedentes: Hugh já ouvira falar de duas ou três beldades das classes inferiores que haviam sido aceitas pela alta sociedade no passado.
- Maisie sabe o que Nora está passando - continuou Solly. - Pode ajudá-la bastante, dizer a ela o que fazer e falar, que erros evitar, onde comprar vestidos e chapéus, como controlar o mordomo e a governanta, todas essas coisas. Maisie sempre gostou de você, Hugh, e por isso estou certo de que ela teria o maior prazer em ajudar.
E não há motivo para que Nora não possa fazer a mesma coisa que Maisie, e se tornar um pilar da sociedade.
Hugh descobriu-se comovido quase às lágrimas. Aquele gesto de apoio do velho amigo tocou fundo em seu coração.
- Farei a sugestão - respondeu ele em tom um pouco brusco para disfarçar seus sentimentos, e se levantou para ir embora.
- Espero não ter ido além do que deveria - comentou Solly, apreensivo, ao trocarem um aperto de mão.
Hugh parou na porta.
- Ao contrário, Greenbourne. Você é um amigo melhor do que eu mereço.
Ao voltar ao Pilasters Bank, Hugh encontrou um bilhete à sua espera. Dizia:
ia!". jrt
Então Tonio voltara! Sua carreira fora arruinada quando perdera mais do que podia pagar num jogo de cartas com Edward e Micky. Deixara a Inglaterra em desgraça,
mais ou menos na mesma ocasião que Hugh. O que lhe teria acontecido desde então? Na maior curiosidade, Hugh seguiu direto para o café.
Encontrou um Tonio mais velho, mais controlado, em roupas mais surradas, sentado a um canto lendo The Times. Ainda tinha os cabelos ruivos, mas afora isso nada restava do colegial travesso ou do jovem perdulário. Embora tivesse apenas a idade de Hugh, 26 anos, já havia pequenas rugas de preocupação em torno dos olhos.
- Fiz muito sucesso em Boston - disse Hugh em resposta à primeira pergunta de Tonio. - Voltei em janeiro. Mas agora tenho problemas outra vez com minha família.
E você?
- Houve muitas mudanças em meu país. Minha família não é mais tão influente quanto antes. Ainda controlamos Milpita, nossa cidade natal, mas na capital outros se interpuseram entre nós e o presidente Garcia.
- Quem?
- A facção Miranda.
- A família de Micky?
- Isso mesmo. Eles assumiram o controle das minas de nitrato no norte, o que os tornou muito ricos. Também monopolizam o comércio com a Europa por causa da ligação com o banco de sua família.
Hugh ficou surpreso.
- Sabia que Edward fazia muitos negócios com Córdoba, mas não imaginei que eram todos por intermédio de Micky. Mas creio que isso não tem importância.
- Tem, sim. - Tonio tirou um maço de papéis do bolso interno do paletó. - Leia isto. É um artigo que escrevi para The Times.
Hugh pegou o manuscrito e começou a ler. Era uma descrição das condições nas minas de nitrato que pertenciam aos Mirandas. Como o comércio era financiado pelo Pilasters Bank, Tonio considerava o banco responsável pelos maus tratos infligidos aos mineiros. A princípio, Hugh não se impressionou: longas horas de trabalho, salários ínfimos e crianças empregadas eram coisas que existiam em minas do mundo inteiro. Mas ao continuar a ler, compreendeu que a situação ali era muito pior. Nas minas dos Mirandas, os capatazes estavam armados com pistolas e chicotes, e usavam-nos sem a menor hesitação para impor a disciplina. Os trabalhadores - inclusive mulheres e crianças - eram açoitados por serem lerdos, e podiam ser fuzilados se tentassem escapar antes que findasse o prazo de seus contratos. Tonio tinha depoimentos de testemunhas dessas "execuções". Hugh ficou horrorizado.
- Mas isso é assassinato!
- Exatamente.
- Seu presidente não sabe disso?
- Claro que sabe, mas os Mirandas são agora seus favoritos.
- E sua família...
- Houve um tempo em que podíamos dar um fim a essa situação. Agora, precisamos de todo o nosso esforço só para manter o controle de nossa província.
Hugh sentia-se mortificado por saber que sua própria família e seu banco financiavam uma indústria tão brutal, mas por um momento tentou deixar de lado os sentimentos e analisar as conseqüências de forma objetiva. O artigo escrito por Tonio era o tipo de material que The Times gostava de publicar. Haveria discursos no Parlamento e cartas de protesto nos jornais semanais. A consciência social dos homens de negócios, muitos dos quais metodistas, faria com que hesitassem antes de se envolveremcom o Pilasters Bank. Seria tudo extremamente prejudicial para o banco.
E eu me importo? pensou Hugh. O banco o tratara muito mal, e se encontrava prestes a deixá-lo. Apesar disso, porém, não podia ignorar aquele problema. Ainda era um empregado, receberia seu salário no fim do mês e devia lealdade ao Pilasters, pelo menos até lá. Tinha de fazer alguma coisa.
O que Tonio queria? O fato de mostrar o artigo a Hugh antes de publicá-lo indicava que desejava um acordo.
- Qual é o seu objetivo? - perguntou Hugh. - Quer que suspendamos o financiamento ao comércio de nitrato?
Tonio sacudiu a cabeça.
- Se o Pilasters saísse, alguém mais assumiria... outro banco, mais insensível. Nada disso. Devemos ser mais sutis.
- Tem alguma idéia específica?
- Os Mirandas estão planejando uma ferrovia.
- Isso mesmo. A Ferrovia Santamaria.
- Essa ferrovia tomará Papa Miranda o homem mais rico e poderoso do país, abaixo apenas do presidente. E Papa Miranda é um homem brutal. Quero que a ferrovia seja cancelada.
- E é por isso que vai publicar seu artigo.
- Vários artigos. E também promoverei reuniões, farei discursos, pressionarei membros do Parlamento e tentarei até me encontrar com o ministro do Exterior... qualquer coisa para impedir o financiamento da ferrovia.
Podia dar certo, pensou Hugh. Os investidores se afastariam de um empreendimento tão controvertido. Tonio mudara muito, do jovem arrebatado que não conseguia parar de jogar ao adulto sóbrio que fazia campanha contra os maus tratos infligidos a mineiros.
- Então por que veio me procurar?
- Podemos abreviar o processo. Se o banco decidir que não lançará os títulos da ferrovia, não publicarei o artigo. Assim, vocês evitam muita publicidade desagradável
e eu consigo o que quero. - Tonio sorriu embaraçado. - Espero que não considere minha atitude uma chantagem. Sei que é um tanto grosseiro, mas nem de longe tão terrível quanto açoitar crianças numa mina de nitrato.
Hugh balançou a cabeça.
- Não tem nada de grosseiro, e admiro seu espírito de cruzado. As conseqüências para o banco não me afetam diretamente... estou prestes a pedir demissão.
- É mesmo? - A surpresa de Tonio era enorme. - Por quê?
- É uma história comprida, e deixarei para lhe contar em outra ocasião. Mas a conclusão é a de que só posso fazer uma coisa: comunicar aos sócios que você me procurou com essa proposta. Eles decidirão como se sentem a respeito e o que pretendem fazer. Tenho certeza de que não pedirão minha opinião. - Hugh ainda segurava o manuscrito de Tonio. - Posso ficar com isto?
- Pode, sim. Tenho uma cópia.
As folhas tinham o cabeçalho do Hotel Russe, Berwick Street, Soho. Hugh nunca ouvira falar: não era um dos melhores hotéis de Londres.
- Eu lhe transmitirei a resposta dos sócios.
- Obrigado. - Tonio mudou de assunto. - Lamento que toda a nossa conversa tenha sido sobre negócios. Vamos nos encontrar em outra ocasião e conversar sobre os velhos tempos.
- Você precisa conhecer minha esposa.
- Eu adoraria.
- Ficaremos em contato.
Hugh deixou o café e voltou ao banco. Ficou surpreso ao olhar para o relógio grande na parede: ainda não era uma hora da tarde, e tanta coisa ocorrera naquela manhã!
Foi direto para a Sala dos Sócios, onde encontrou Samuel, Joseph e Edward. Entregou o artigo de Tonio a Samuel, que o leu e passou para Edward.
Edward ficou apoplético de raiva e não conseguiu terminar de ler. com o rosto vermelho, apontou um dedo para Hugh e disse:
- Você tramou essa história com seu velho amigo do colégio! Está tentando frustrar toda a nossa operação sul-americana! Tem inveja de mim porque não foi promovido a sócio!
Hugh compreendeu por que o primo se tornara tão histérico. O comércio sul-americano era a única contribuição significativa de Edward aos negócios do banco. Se isso acabasse, ele seria inútil. Hugh suspirou.
- Você era um cabeça-dura no colégio, e continua a ser. A questão é se o banco quer ser responsável por aumentar o poder e influência de Papa Miranda, um homem que aparentemente não hesita em açoitar mulheres e assassinar crianças.
- Não acredito nisso! - protestou Edward. - A família Silva é inimiga dos Mirandas. Trata-se apenas de uma propaganda maldosa.
- Tenho certeza de que seu amigo Micky dirá isso. Mas será verdade? Tio Joseph fitava Hugh com uma expressão desconfiada.
-Você esteve aqui há poucas horas para tentar me dissuadir desse lançamento. Não posso deixar de me perguntar se toda essa história não é um plano para frustrar a primeira grande operação de Edward como sócio.
Hugh levantou-se.
- Se vai lançar dúvidas sobre a minha boa fé, devo me retirar imediatamente.
Tio Samuel interveio:
- Sente-se, Hugh. Não precisamos descobrir se a história é falsa ou verdadeira. Somos banqueiros, não juizes. O simples fato de a Ferrovia Santamaria se tornar uma questão controvertida torna o lançamento dos títulos mais arriscado, e isso significa que devemos reconsiderar. Tio Joseph declarou, agressivo:
- Não estou disposto a permitir que me pressionem. Vamos deixar esse idiota sul-americano publicar seu artigo, e ele que se dane.
- É uma maneira de cuidar do problema - disse Samuel, tratando a beligerância de Joseph com mais seriedade do que merecia. - Podemos esperar para verificar o efeito do artigo no preço dos títulos sul-americanos existentes: não são muitos, mas há o suficiente para servir como um termômetro. Se caírem, cancelaremos a Ferrovia Santamaria. Se não, efetuaremos o lançamento.
Joseph, um tanto apaziguado, comentou:
- Não me importo de submeter a decisão ao mercado.
- Há uma outra opção que podemos considerar - continuou Samuel.
- Podemos chamar outro banco para participar conosco do lançamento. Assim, qualquer publicidade hostil seria atenuada pela divisão do alvo.
O que fazia sentido, pensou Hugh. Não era o que ele faria: teria preferido pura e simplesmente cancelar o lançamento dos títulos. Mas a estratégia imaginada por
Samuel diminuiria o risco, e esse era o fator fundamental na atividade bancária. Samuel era um banqueiro muito melhor do que Joseph.
- Muito bem - disse Joseph, com sua impulsividade habitual.
- Edward, veja se consegue nos arrumar um parceiro no empreendimento.
- A quem devo procurar? - indagou Edward, ansioso.
Hugh compreendeu que ele não tinha a menor idéia do que fazer num caso assim. Foi Samuel quem respondeu:
- É um lançamento grande. Pensando bem, não são muitos os bancos que querem tamanha exposição na América do Sul. Deve procurar os Greenbournes: talvez sejam os únicos bastante grandes para assumir o risco. Conhece Solly Greenbourne, não é?
- Conheço, sim. Falarei com ele.
Hugh especulou se deveria aconselhar Solly a rejeitar a proposta de Edward, mas mudou de idéia no mesmo instante: estava sendo contratado como um expert na América do Norte, e seria muita presunção de sua parte se começasse com um julgamento numa área completamente diferente. Mas ele decidiu fazer mais uma tentativa de persuadir Tio Joseph a cancelar o projeto.
- É um negócio pouco lucrativo. O risco sempre foi alto, e agora, ainda por cima, somos ameaçados com uma publicidade negativa. Precisamos mesmo disso?
Edward disse, petulante:
- Os sócios tomaram sua decisão, e não cabe a você questioná-los. Hugh desistiu.
- Tem toda a razão. Não sou um sócio, e em breve não serei também um empregado.
Tio Joseph franziu o cenho.
- O que isso significa?
- Estou pedindo demissão do banco. A surpresa de Joseph foi evidente.
- Não pode fazer isso!
- Claro que posso. Sou um mero empregado e tenho sido tratado como tal. Portanto, como um empregado, estou saindo para um lugar melhor.
- Onde?
- Para ser franco, Vou trabalhar no Greenbournes.
Os olhos de Tio Joseph davam a impressão de que iam saltar.
- Mas é você quem conhece todos os norte-americanos!
- Imagino que foi por isso que Ben Greenbourne se mostrou tão ansioso em me contratar.
Hugh não podia deixar de se sentir satisfeito por ver Tio Joseph tão irado.
- Mas vai tirar negócios de nós!
- Deveria ter pensado nisso quando decidiu voltar atrás em sua oferta de sociedade.
- Quanto vão lhe pagar? Hugh levantou-se para se retirar.
- Não é da sua conta. Edward gritou, estridente:
- Como se atreve a falar assim com meu pai?
A indignação de Joseph esvaziou-se como uma bolha, e para surpresa de Hugh ele se acalmou subitamente.
- Cale a boca, Edward - disse ele, em tom suave. - Um bom banqueiro se faz com um mínimo de astúcia e discrição. Há ocasiões em que eu gostaria que você fosse mais parecido com Hugh. Ele pode ser a ovelha negra da família, mas pelo menos tem algum brio.
Ele tornou a se virar para Hugh e acrescentou, sem maldade:
- Pode ir embora. Torço para que fracasse, mas não estou apostando nisso.
- Não tenho a menor dúvida de que isso é o máximo de desejo de boa sorte que receberei do seu ramo da família - respondeu Hugh. - bom dia para todos.
- E como está a nossa cara Rachel? - perguntou Augusta a Micky enquanto servia o chá.
- Está bem. Ela pode vir mais tarde.
Na verdade, ele não conseguia entender a esposa. Ela era virgem ao casarem, mas se comportava como uma prostituta. Entregava-se a ele em qualquer momento, em qualquer lugar, e sempre com entusiasmo. Uma das primeiras coisas que ele tentara, logo depois do casamento, fora amarrá-la na cabeceira da cama para recriar a visão que desfrutara ao se sentir atraído pela primeira vez; e um tanto para sua surpresa, Rachel se submetera com a maior docilidade. Até agora, nada do que Micky fizera com ela a levara a resistir. Ele até a possuíra na sala de estar, onde havia um risco constante de serem surpreendidos pelos criados; e Rachel parecera gostar mais do que nunca.
Por outro lado, ela era o oposto da esposa submissa em todas as demais áreas da vida. Discutia com ele sobre a casa, os criados, dinheiro, política e religião. Quandose cansava de contestá-la, Micky tentava ignorá-la, depois a insultava, mas nada fazia qualquer diferença. Rachel sofria a ilusão de que tinha tanto direito a seu ponto de vista quanto um homem.
- Espero que ela seja uma boa ajuda em seu trabalho - comentou Augusta.
Micky confirmou com um aceno de cabeça.
- Ela é uma boa anfitriã nas funções da embaixada, sempre atenciosa e graciosa.
- Achei que ela se saiu muito bem na festa que você ofereceu ao embaixador Portillo.
Portillo era o enviado português, e Augusta e Joseph haviam sido convidados para o jantar.
- Ela tem um plano estúpido de criar um hospital-maternidade para mulheres sem marido - anunciou Micky de repente, deixando transparecer sua irritação.
Augusta sacudiu a cabeça em desaprovação.
- É inadmissível para uma mulher com a sua posição na sociedade. Além do mais, já existem um ou dois hospitais assim.
- Ela alega que são instituições religiosas que dizem às mulheres que não passam de pecadoras. Seu hospital vai ajudar sem pregações.
- Pior ainda. Pense só no que a imprensa diria a respeito.
- É verdade. Tenho sido muito firme com ela nessa questão.
- Rachel é uma moça de sorte - murmurou Augusta, favorecendo-o com um sorriso insinuante.
Ele compreendeu que Augusta flertava, e não estava reagindo. O fato é que se encontrava envolvido demais com Rachel. Claro que não a amava, mas se deixara arrebatar ao máximo pelo relacionamento, e ela absorvia toda a sua energia sexual. Para compensar sua distração, ele segurou a mão de Augusta por um momento quando ela estendeu a xícara com o chá.
- Está me lisonjeando - murmurou ele.
- Não tenha a menor dúvida quanto a isso. Mas posso perceber que alguma coisa o preocupa.
- Perceptiva como sempre, minha cara Mrs. Pilaster. Por que ainda imagino que posso lhe esconder alguma coisa? - Ele soltou a mão de Augusta e pegou o chá. - Estou um pouco tenso com a Ferrovia Santamaria.
- Pensei que os sócios já houvessem concordado.
- E concordaram, mas demora-se muito tempo para organizar essas coisas.
- O mundo financeiro se move devagar.
- Eu compreendo isso, mas minha família não. Papa me envia cabogramas duas vezes por semana. Amaldiçoe o dia em que o telégrafo chegou a Santamaria.
Edward entrou nesse instante, ansioso em dar as notícias.
- Antônio Silva voltou! - anunciou ele antes mesmo de fechar a porta.
Augusta empalideceu.
- Como sabe?
- Hugh esteve com ele.
- É um golpe e tanto - murmurou ela.
Micky ficou surpreso ao perceber que a mão dela tremia ao largar o pires e a xícara numa mesinha. Recordando a conversa de Middleton com Hugh no baile da duquesa de Tenbigh, ele comentou:
- E David Middleton ainda continua a fazer perguntas.
Micky fingia estar preocupado, mas na verdade não se sentia insatisfeito com a situação. Gostava que Edward e Augusta se lembrassem de vez em quando do segredo e culpa que todos partilhavam.
- E não é apenas isso - acrescentou Edward. - Ele está tentando sabotar o lançamento dos títulos da Ferrovia Santa Maria.
Micky franziu o cenho. A família de Tonio se opusera ao plano da ferrovia em Córdoba, mas fora repelida pelo presidente Garcia. O que Tonio poderia fazer aqui em
Londres? A mesma indagação ocorreu a Augusta.
- Como ele pode fazer alguma coisa? Edward entregou um maço de papéis à mãe.
- Leia isto.
- E o que é isso? - perguntou Micky.
- Um artigo que Tonio planeja publicar em The Times sobre as minas de nitrado de sua família.
Augusta folheou as páginas rapidamente.
- Ele alega que a vida de um mineiro de nitrato é desagradável e perigosa - comentou ela, desdenhosa. - Quem poderia supor que fosse uma festa?
- Ele também diz que mulheres são açoitadas e crianças fuziladas por desobediência - ressaltou Edward.
- Mas o que isso tem a ver com o lançamento dos títulos? - indagou Augusta.
- A ferrovia vai transportar o nitrato para a capital. Os investidores não gostam de um negócio controvertido. Muitos já são cautelosos com qualquer título sul-americano.
Algo assim pode afugentá-los por completo.
Micky estava abalado. Aquilo parecia uma péssima notícia. Ele perguntou a Edward:
- O que seu pai diz de tudo isso?
- Estamos tentando atrair outro banco para participar conosco da operação, mas basicamente vamos deixar Tonio publicar o artigo e ver o que acontece. Se a publicidade provocar uma queda nos títulos sul-americanos, teremos de desistir da Ferrovia Santamaria.
Maldito Tonio! Ele era esperto... e Papa era um tolo por dirigir suas minas num sistema de escravidão, e depois ainda ter a esperança de levantar dinheiro no mundo
civilizado.
Mas o que podia ser feito? Micky pôs-se a pensar. Era preciso silenciar Tonio, mas ele não se deixaria persuadir, nem subornar. Micky sentiu um calafrio no coração ao compreender que teria de usar métodos mais brutais e arriscados. Fingiu manter a calma.
- Posso ver o artigo, por favor?
Augusta entregou-o. A primeira coisa que ele notou foi o endereço do hotel no alto da folha. Aparentando uma despreocupação que não sentia, Micky declarou:
- Ora, isso não tem o menor problema. Edward protestou:
- Mas você ainda não leu!
- Nem preciso. Já vi o endereço.
- E daí?
- Agora que sabemos onde encontrá-lo, podemos negociar com Tonio. Deixem que eu resolvo tudo.
Maio
Solly adorava observar Maisie se vestir.
Ao final da tarde, ela punha um penhoar, e chamava as criadas para prender seus cabelos, enfeitá-los com flores, plumas ou contas; depois, dispensava as criadas
e esperava o marido.
Iam sair naquela noite, o que quase sempre acontecia. Só costumavam ficar em casa durante a temporada em Londres quando ofereciam uma festa. Entre a Páscoa e o final de julho nunca jantavam a sós.
Solly entrou em seu quarto às seis e meia, de calça a rigor e colete branco, carregando um enorme copo de champanhe. Os cabelos de Maisie estavam enfeitados com flores amarelas de seda naquela noite. Ela tirou o penhoar e postou-se nua diante do espelho. Fez uma pirueta para agradá-lo e começou a se vestir.
Primeiro, pôs uma camisa de baixo de linho com uma gola bordada de flores. Tinha fitas de seda nos ombros para amarrar ao vestido, a fim de que não aparecesse. Depois, ela enfiou as meias brancas de lã, prendendo com ligas elásticas um pouco acima dos joelhos. Vestiu um calção de algodão que descia até os joelhos, com galões nas bainhas e um elástico na cintura; em seguida calçou as sandálias amarelas de seda.
Solly pegou o espartilho na armação, ajudou-a a vestir e depois puxou os cordões atrás. A maioria das mulheres precisava da ajuda de uma ou duas criadas ao se vestir, pois era impossível pôr sozinha o espartilho e o vestido aprumado. Solly, no entanto, aprendera a prestar esses serviços para não dispensar o prazer de assistir.
As anáguas de crinolina e anquinhas haviam saído de moda, mas Maisie pôs uma anágua de algodão, com uma cauda de babados e uma bainha franzida, para sustentar a cauda do vestido. A anágua era presa nas costas com um laço, que Solly se encarregou de dar.
Finalmente ela estava pronta para o vestido. Era de tafetá, em listras amarelas e brancas. O corpete era folgado, o que ressaltava seu busto volumoso, e preso nos ombros por laços. O resto do traje era preso na cintura, joelhos e bainha. Uma criada levara o dia inteiro para passá-lo a ferro.
Maisie sentou no chão e Solly levantou o vestido por cima de sua cabeça, de tal maneira que ela parecia sentada dentro de uma tenda. Depois, Maisie se levantou com o maior cuidado, enfiando as mãos pelas aberturas e a cabeça pela gola. Juntos, ela e Solly arrumaram as dobras do vestido, até que tudo parecia certo.
Maisie abriu sua caixa de jóias, pegou um colar de diamantes e esmeraldas, brincos iguais, um presente de Solly no primeiro aniversário de casamento. Enquanto ela punha as jóias, Solly disse:
- Vamos ver muito mais nosso velho amigo Hugh Pilaster daqui por diante.
Maisie reprimiu um suspiro. A natureza confiante de Solly podia ser cansativa. O marido normal, desconfiado, já teria percebido a atração entre Maisie e Hugh, e ficaria de mau humor cada vez que o nome do outro homem fosse mencionado, mas Solly era inocente demais. Não tinha a menor idéia de que punha a tentação no caminho da esposa.
- O que aconteceu? - perguntou ela em tom neutro.
- Ele vai trabalhar no banco.
Não era tão ruim assim. Maisie meio que temera que Solly convidasse Hugh a morar com eles.
- Por que ele está deixando o Pilasters? Pensei que ia muito bem lá.
- Recusaram-se a admiti-lo na sociedade.
- Oh, não!
Ela conhecia Hugh melhor do que qualquer outra pessoa, e sabia o quanto ele sofrerá por causa da falência e suicídio do pai. Podia imaginar como ele ficara abalado ao lhe negarem a posição de sócio.
- A família Pilaster é muito mesquinha - murmurou Maisie, com ressentimento.
- Foi por causa da esposa. Maisie balançou a cabeça.
- Isso não me surpreende.
Ela testemunhara o incidente no baile da duquesa de Tenbigh. Conhecendo os Pilasters, não podia deixar de especular se não fora Augusta quem arquitetara de algum modo o incidente a fim de desacreditar Hugh.
- Deve sentir pena de Nora.
- Hum...
Maisie conhecera Nora algumas semanas antes do casamento, e sentira uma aversão imediata. Na verdade, magoara Hugh ao lhe dizer que Nora era uma interesseira sem amor, e que não deveria casar com ela.
- Seja como for, sugeri a Hugh que você poderia ajudá-la.
- Como? - disse Maisie em tom um tanto brusco, desviando os olhos do espelho. - Ajudá-la?
- Reabilitá-la. Sabe como é ser desprezada por causa de suas origens. Você conseguiu superar todos os preconceitos.
- E agora devo promover a mesma transformação em todas as outras mulheres da classe inferior que casam na sociedade?
- Parece evidente que cometi algum erro - murmurou Solly, preocupado. - Pensei que você teria o maior prazer em ajudar, pois sempre gostou de Hugh.
Maisie foi até o armário para pegar as luvas.
- Eu gostaria que você tivesse me consultado antes.
Ela abriu o armário. Atrás da porta, emoldurado em madeira, estava pendurado o cartaz antigo que ela guardara do circo, mostrando-a de calção, de pé no lombo de um cavalo branco, sobre a legenda: A maravilhosa Maisie. A imagem arrancou-a de seu acesso de raiva, e no mesmo instante sentiu-se envergonhada. Correu para Solly e abraçou-o.
- Oh, Solly, como posso ser tão ingrata?
- Calma, calma... - sussurrou ele, acariciando os ombros nus da esposa.
- Tem sido gentil e generoso demais comigo e com minha família, e é claro que farei isso por você, se é o que deseja.
- Eu detestaria forçá-la a qualquer coisa...
- Não, Solly, não está me forçando a nada. Por que eu não deveria ajudá-la a conseguir o que tenho? - Ela contemplou o rosto rechonchudo do marido, vincado agora em linhas de ansiedade. Acariciou sua face. - Pare de se preocupar. Fui horrivelmente egoísta por um momento, mas já passou. E agora vista seu casaco. Já estou pronta.
Solly voltou com o casaco e os dois foram até os aposentos de Bertie. Ele já estava de camisola para dormir, e brincava com um trenzinho de madeira. Adorava ver Maisie vestida para sair, e ficaria muito desapontado se, por algum motivo, ela saísse à noite sem mostrar o que usava. Bertie contou o que acontecera no parque naquela tarde - fizera amizade com um cachorro enorme - e Solly sentou no chão para brincar de trem com o menino por algum tempo. Depois, chegou a hora de Bertie ir para a cama; Maisie e Solly desceram e embarcaram na carruagem.
Iam a um jantar, e depois a um baile. Os dois seriam realizados a menos de um quilômetro de sua casa em Piccadilly, mas Maisie não podia andar pelas ruas num traje tão aprumado: a bainha e a cauda, sem falar nos sapatos de seda, estariam imundos quando chegasse. Mesmo assim, ela ainda sorria ao pensar que a garota que outrora andara por quatro dias para chegar a Newcastle não podia agora percorrer menos de um quilômetro sem sua carruagem.
Maisie pôde iniciar sua campanha em favor de Nora naquela mesma noite. Ao chegarem a seu destino e entrarem na sala de estar do marquês de Hatchford, a primeira pessoa que ela viu foi o conde De Tokoly. Conhecia-o bastante bem, e o conde sempre flertava com ela; por isso Maisie se sentiu à vontade para ser direta.
- Quero que perdoe Nora Pilaster por esbofeteá-lo - disse ela.
- Perdoar? Mas eu me sinto lisonjeado! Pensar que na minha idade ainda posso fazer uma mulher jovem me dar um tapa na cara... é um grande elogio!
Não foi assim que você se sentiu na ocasião, pensou Maisie. Contudo, ela ficou contente por constatar que o conde decidira não dar maior importância ao incidente.
- Se ela se recusasse a me levar a sério... isso é que seria um insulto - acrescentou De Tokoly.
Era exatamente o que Nora deveria ter feito, refletiu Maisie.
- Diga-me uma coisa: Augusta Pilaster o encorajou a flertar com sua nora?
- Uma sugestão espantosa! Mrs. Joseph Pilaster como uma alcoviteira! Ela não fez nada disso.
- Alguém o encorajou?
Ele fitou Maisie através dos olhos contraídos.
- É muito esperta, Mrs. Greenboume; sempre a respeitei por isso. Mais esperta do que Nora Pilaster. Ela jamais conseguirá chegar à sua posição.
- Mas não respondeu à minha pergunta.
- Direi a verdade, pois a admiro demais. O embaixador cordovês, Senor Miranda, disse-me que Nora era... como posso explicar?... suscetível.
Então era isso.
- E Micky Miranda foi instruído por Augusta, tenho certeza. Aqueles dois são como unha e carne.
De Tokoly ficou furioso.
- Espero não ter sido usado como um peão de xadrez.
- Esse é o perigo de ser tão previsível - comentou Maisie, irritada.
No dia seguinte, ela levou Nora à sua costureira. Enquanto Nora experimentava modas e panos, Maisie descobriu um pouco mais sobre o incidente no baile da duquesa de Tenbigh.
- Augusta lhe disse alguma coisa antes do seu problema com o conde? - perguntou ela.
- Avisou-me para não deixar que ele tomasse nenhuma liberdade - respondeu Nora.
- Ou seja, você estava preparada para ele, por assim dizer.
- É isso mesmo.
- E se Augusta nada dissesse, você teria se comportado da mesma maneira?
Nora assumiu uma expressão pensativa.
- Provavelmente não o teria esbofeteado... não teria coragem para isso. Mas Augusta me fez pensar que era importante tomar uma posição firme.
Maisie balançou a cabeça.
- Ela queria que isso acontecesse. Também mandou alguém dizer ao conde que você era fácil.
Nora se espantou.
- Tem certeza?
- Ele me contou. Augusta é uma vaca insidiosa, e não tem o menor escrúpulo. - Maisie percebeu que falava com seu sotaque de Newcastle, algo que quase nunca acontecia hoje em dia. Voltou ao normal. - Nunca subestime a capacidade de Augusta para a traição.
- Ela não me assusta - afirmou Nora num tom de desafio.
- Também não tenho muitos escrúpulos. Maisie acreditou... e sentiu pena por Hugh.
Uma polonesa era o estilo perfeito para ela, pensou Maisie enquanto a costureira prendia um vestido em torno do corpo generoso de Nora. Os detalhes elaborados combinavam com sua aparência: os rufos pregueados, a abertura na frente enfeitada com laços e a saia trançada e debruada, tudo caía muito bem nela. Talvez Nora fosse um pouco voluptuosa demais, mas um espartilho poderia conter sua tendência para rebolar.
- Ser bonita é a metade da batalha - comentou Maisie enquanto Nora se admirava no espelho. - Em relação aos homens, isso é tudo o que realmente importa. Mas precisa fazer mais para ser aceita pelas mulheres,
- Sempre me dei melhor com os homens do que com as mulheres. Maisie não se surpreendeu: Nora era desse tipo.
- Você também deve ser assim - acrescentou Nora. - Foi por isso que chegamos onde estamos.
Somos iguais? perguntou-se Maisie.
- Não que eu me coloque no mesmo nível que o seu - continuou Nora. - É invejada por todas as garotas ambiciosas de Londres.
Maisie estremeceu ao pensamento de que era encarada como uma heroína pelas caçadoras de fortunas, mas não disse nada porque provavelmente merecia. Nora casara por dinheiro, e não se importava em admiti-lo para Maisie, pois presumia que a outra fizera o mesmo. E tinha razão.
- Não estou me queixando, mas peguei a ovelha negra da família, o que não tem capital, enquanto você casou com um dos homens mais ricos do mundo.
Como você ficaria surpresa, pensou Maisie, se soubesse que eu trocaria de bom grado!
Maisie tratou de afastar o pensamento da mente. Muito bem, ela e Nora eram da mesma espécie. Ajudaria Nora a ser aceita pelos esnobes e megeras que dominavam a sociedade.
- Nunca diga quanto custa qualquer coisa - começou ela, recordando seus equívocos iniciais. - Sempre se mantenha calma e inabalável, não importa o que possa acontecer.
Se seu cocheiro sofre um ataque do coração, a carruagem bate, o chapéu voa para longe, o calção cai, diga apenas "Mas que excitante!" e pegue um fiacre de aluguel.
Lembre-se de que o campo é melhor do que a cidade, a ociosidade é superior ao trabalho, o velho é preferível ao novo, e a posição na sociedade é mais importante
do que dinheiro. Conheça um pouco de tudo, mas nunca seja uma profunda conhecedora de qualquer coisa. Pratique falar sem mexer a boca... vai melhorar seu sotaque.
Diga às pessoas que seu bisavô cultivava a terra em Yorkshire, que é grande demais para alguém verificar, e além disso a agricultura é um meio honrado de se tornar pobre.
Nora assumiu uma pose, com um olhar vago, e murmurou, lânguida:
- Mas é tanta coisa para lembrar... como posso conseguir algum dia?
- Perfeito! - exclamou Maisie. - Vai se sair muito bem.
Micky Miranda se encontrava parado num portal na Berwick Street, usando um sobretudo para se proteger do frio da noite de primavera. Fumava um charuto e observava a rua. Havia um lampião a gás ali perto, mas ele se mantinha na sombra, e assim seu rosto não podia ser visto com facilidade pelas pessoas que passavam. Sentia-se ansioso, insatisfeito consigo mesmo, aviltado. Detestava a violência. Era o estilo de Papa, o estilo de Paulo. Para Micky, sempre parecera uma admissão de fracasso.
A Berwick Street era estreita e imunda, cheia de pubs ordinários e pensões. Cachorros revolviam o lixo nas sarjetas, crianças pequenas brincavam à luz do lampião.
Micky estava ali desde o anoitecer e não avistara um único guarda. Já era quase meia-noite.
O Hotel Russe ficava no outro lado da rua. Já conhecera dias melhores, mas ainda se mantinha um ponto acima dos demais na região . Havia uma luz sobre a porta, e Micky podia avistar lá dentro um saguão com um balcão de recepção. Mas parecia não haver ninguém no balcão.
Dois outros homens espreitavam na outra calçada, nas laterais da entrada do hotel. Todos os três esperavam por Antônio Silva.
Micky simulara calma na presença de Edward e Augusta, mas na verdade se sentira desesperadamente preocupado com a possibilidade de o artigo de Tonio aparecer em The Times. Empenhara muito esforço para persuadir os Pilasters a fazerem o lançamento da Ferrovia Santamaria. Chegara até a casar com a desgraçada Rachel para conseguir o que queria. Toda a sua carreira dependia do sucesso do lançamento. Se falhasse à sua família, o pai não apenas ficaria furioso, mas também vingativo. Papa tinha o poder de promover a dispensa de Micky do cargo de embaixador. Sem dinheiro e sem posição, não teria condições de permanecer em Londres: teria de voltar para seu país, enfrentar a humilhação e a desgraça. De qualquer forma, a vida que desfrutara por tantos anos seria encerrada.
Rachel queria saber onde ele planejava passar a noite. Micky rira e respondera:
- Nunca tente me interrogar. Ela o surpreendera ao declarar:
- Então Vou sair também esta noite.
- Para ir aonde?
- Nunca tente me interrogar.
Micky a trancara no quarto.
Quando ele voltasse para casa, Rachel estaria fervendo de raiva, mas isso já acontecera antes. Em ocasiões anteriores, quando Rachel tinha seus acessos, Micky a jogara na cama, arrancara suas roupas e sempre fizera com que ela se submetesse, na maior ansiedade. Tinha certeza de que isso ocorreria outra vez naquela noite.
Gostaria de poder ter tanta certeza em relação a Tonio. Nem mesmo sabia se ele ainda residia naquele hotel, mas não podia perguntar sem levantar suspeitas.
Agira tão depressa quanto possível, mas ainda assim levara 48 horas para localizar e contratar dois criminosos impiedosos, fazer o reconhecimento do local e preparar a emboscada. Durante esse período, Tonio poderia ter se mudado. E, nesse caso, Micky estaria perdido.
Um homem cauteloso mudaria de hotel a intervalos de poucos dias. Mas um homem cuidadoso não usaria um papel com o endereço em que podia ser encontrado. Tonio não era do tipo cauteloso. Ao contrário, sempre fora imprudente. Era bem provável que ainda continuasse naquele hotel, refletiu Micky. E estava certo.
Poucos minutos depois da meia-noite, Tonio apareceu. Micky pensou reconhecer o jeito de andar quando o vulto surgiu na outra extremidade da Berwick Street, vindo da direção da Leicester Square. Foi dominado pela tensão, mas resistiu à tentação de agir de imediato. Controlando-se com o maior esforço, esperou até que o homem passasse sob um lampião a gás; seu rosto se tornou claramente visível por um momento. A partir daí, não houve mais qualquer dúvida: era mesmo Tonio. Micky pôde até divisar a costeleta ruiva. Sentiu alívio e uma ansiedade aguçada ao mesmo tempo: alívio por Tonio se encontrar à sua vista, ansiedade pelo ataque violento e perigoso que estava prestes a acontecer. E foi nesse instante que avistou os guardas.
Era muito azar. Dois guardas descendo pela Berwick Street da direção oposta, de capacete e capa, os cassetetes pendendo do cinto, iluminando os cantos escuros com suas lanternas furta-fogos. Micky permaneceu absolutamente imóvel. Não havia nada que pudesse fazer. Os guardas viram Micky, notaram a cartola e o charuto, acenaram com a cabeça, deferentes: não era da conta deles o que um homem da classe superior podia estar fazendo parado num portal... procuravam criminosos, não cavalheiros.
Passaram por Tonio a 15 ou 20 metros da entrada do hotel. Micky se remexeu, em frustração. Mais alguns momentos e Tonio estaria são e salvo dentro do hotel.
Depois os guardas viraram uma esquina e desapareceram. Micky gesticulou para seus dois cúmplices. Eles agiram depressa.
Antes que Tonio alcançasse a porta do hotel, os dois o agarraram e o empurraram por um beco ao lado do prédio. Ele gritou uma vez, mas depois seus gritos foram abafados.
Jogando fora o resto do charuto, Micky atravessou a rua e entrou no beco. Tinham metido um lenço na boca de Tonio para evitar que ele fizesse qualquer barulho, e
o espancavam com barras de ferro. Seu chapéu caíra, e a cabeça e o rosto já se encontravam ensangüentados. O corpo estava protegido por um capote, mas os bandidos batiam nos joelhos, canelas e mãos desprotegidas. A cena deixou Micky aflito.
- Parem com isso, seus idiotas! - disse Micky. - Não podem ver que ele já apanhou bastante?
Não queria que os homens matassem Tonio. O incidente deveria parecer um assalto de rotina, acompanhado por uma surra brutal. Um assassinato teria uma repercussão muito maior... e os guardas haviam visto o rosto de Micky, mesmo que só por um instante.
Com evidente relutância, os dois homens pararam de bater em Tonio, que despencou para o chão e ficou imóvel.
- Esvaziem seus bolsos! - sussurrou Micky. Tonio não se mexeu quando lhe tiraram o relógio e a corrente, a carteira, algumas moedas, um lenço de seda e uma chave.
- A chave é minha - disse Micky. - Podem levar o resto. O mais velho dos dois homens, Barker - jocosamente chamado de Dog, o Cachorro, porque seu nome em inglês pode significar também aquele que late, - murmurou.- Dê-nos o dinheiro.
Micky entregou dez libras a cada um, em soberanos de ouro. Dog deu-lhe a chave. Amarrada com um barbante, tinha um pedaço de cartolina com o número 11 rabiscado.
Era tudo de que Micky precisava.
Ele se virou para deixar o beco... e descobriu que eram observados. Um homem estava parado na rua, olhando para eles. O coração de Micky disparou.
Dog também o viu um momento depois. Grunhiu uma imprecação e levantou a barra de ferro, como se tencionasse atacar o homem. Subitamente, Micky percebeu uma coisa, e segurou o braço de Dog.
- Não faça isso - disse ele. - Não é necessário. Olhe bem para o homem.
O intruso tinha a boca frouxa e um olhar vazio- era um retardado. Dog baixou a arma, murmurando.
- Ele não vai nos causar nenhum mal. Não entende as coisas. Micky passou pelo homem, voltando à rua. Olhando para trás, avistou Dog e seu companheiro tirando as botas de Tonio. Micky se afastou, esperando nunca mais tornar a vê-los. Entrou no Hotel Russe. Para seu alívio, a recepção no pequeno saguão continuava vazia. Subiu a escada.
O hotel consistia de três casas reunidas, e Micky demorou um pouco para encontrar o caminho. Dois ou três minutos depois, no entanto, entrou no quarto 11.
Era pequeno e sujo, com móveis que outrora haviam sido pretensiosos, mas que agora eram apenas surrados. Micky pôs o chapéu e a bengala numa cadeira e começou a revistar tudo, rápida e metodicamente. Encontrou na escrivaninha uma cópia do artigo para The Times, que embolsou. O que não valia grande coisa. Tonio tinha outras cópias, ou poderia reescrever tudo de memória. Mas para que o artigo fosse publicado, ele teria de apresentar alguma espécie de prova, e era isso que Micky procurava.
Na arca de gavetas ele encontrou um romance intitulado A duquesa deSodoma, que se sentiu tentado a roubar; mas decidiu que era um risco desnecessário. Tirou as camisas e roupas de baixo de Tonio das gavetas e jogou tudo no chão. Não havia nada escondido ali.
Ele não esperava mesmo encontrar num lugar tão óbvio. Olhou por trás e por baixo da arca, cama e guarda-roupa. Subiu na mesa para olhar em cima do guarda-roupa. Não havia nada ali além de uma espessa camada de poeira.
Tirou os lençóis da cama, apalpou os travesseiros em busca de alguma coisa dura, examinou o colchão. Acabou descobrindo o que queria debaixo dele.
Dentro de um envelope grande havia um maço de papéis amarrado com fitas de advogados.
Antes de poder examinar os documentos, Micky ouviu passos no corredor.
Largou tudo e se postou atrás da porta.
Os passos seguiram adiante, desvanecendo-se.
Micky desatou as fitas e passou os olhos rapidamente pelos documentos. Estavam escritos em espanhol e tinham o lacre de um advogado de Palma, capital de Córdoba.
Continham depoimentos juramentados de testemunhas que haviam presenciado os açoites e execuções nas minas de nitrato da família de Micky.
Ele levou os papéis aos lábios e beijou-os. Eram a resposta às suas orações.
Guardou-os no bolso interno do casaco. Antes de destruí-los, precisava anotar os nomes e endereços das testemunhas. Os advogados podiam ter cópias dos depoimentos, mas de nada adiantariam sem as testemunhas. E agora que Micky sabia quem eram elas, seus dias estavam contados. Mandaria os endereços para Papa, que trataria de silenciá-las.
Havia mais alguma coisa? Micky correu os olhos pelo quarto. Estava todo desarrumado. Nada mais restava para ele ali. Já tinha o que precisava. Sem provas, o artigo de Tonio não tinha o menor valor.
Ele saiu do quarto e desceu a escada.
Para sua surpresa, deparou com um homem na recepção. Fitando-o, o homem perguntou em tom belicoso:
- Posso perguntar o que está fazendo aqui?
Micky tomou uma decisão imediata. Se ignorasse a interpelação, o homem provavelmente pensaria que ele era apenas grosseiro. Se parasse para se explicar, o homem poderia estudar seu rosto. Micky não disse nada, apenas deixou o hotel. O homem não o seguiu.
Ao passar pelo beco, ele ouviu um débil pedido de socorro. Tonio rastejava para a rua, deixando uma trilha de sangue. A visão provocou náuseas em Micky. Repugnado, ele fez uma careta, desviou os olhos e se afastou.
À tarde, as damas ricas e os cavalheiros ociosos se visitavam. Era uma prática cansativa, e quatro dias por semana Maisie mandava os criados informarem que ela não estava em casa. Só recebia as pessoas nas sextasfeiras, e podia haver 20 ou 30 ao longo de uma tarde Eram sempre mais ou menos as mesmas: a Turma de Marlborough, a colônia judaica, mulheres com idéias "avançadas", como Rachel Bodwin, e algumas esposas dos mais importantes associados de Solly nos negócios.
Emily Pilaster pertencia à última categoria. Seu marido, Edward, participava com Solly do lançamento dos títulos de uma ferrovia em Córdoba, e Maisie presumiu que era por isso que Emily a visitava. Mas ela passou a tarde inteira ali, e às cinco e meia, quando os outros se retiraram, ainda permaneceu.
Era uma moça bonita, com enormes olhos azuis, tinha apenas 20 anos, e qualquer um podia perceber que se sentia angustiada. Por isso, Maisie não ficou surpresa quando ela indagou:
- Posso lhe falar de uma coisa pessoal, por favor?
- Claro que sim. O que é?
- Espero que não fique ofendida, mas não há mais ninguém com quem eu possa conversar.
Parecia um problema sexual. Não seria a primeira vez que uma moça bem-nascida abordava Maisie em busca de conselhos sobre um assunto que não podia discutir com a mãe. Talvez tivessem ouvido rumores sobre seu passado irregular, ou talvez apenas a considerassem acessível.
- É difícil me ofender - respondeu Maisie. - Qual é o problema?
- Meu marido me odeia - balbuciou Emily, desatando a chorar. Maisie sentiu pena da moça. Conhecera Edward nos velhos tempos do Argyll Rooms, e ele já era um porco naquela ocasião. Não podia haver a menor dúvida de que piorara desde então. Maisie podia se compadecer de qualquer moça bastante infeliz para casar com um homem assim.
- Os pais queriam que ele casasse - explicou Emily, entre soluços, - mas ele não queria. Por isso, ofereceram-lhe uma enorme quantia e a posição de sócio no banco, e isso o convenceu. Concordei porque meus pais queriam, ele parecia tão bom quanto qualquer outro, e eu queria ter filhos. Mas Edward nunca gostou de mim, e agora que tem o dinheiro e se tornou sócio do banco não consegue suportar nem minha presença.
Maisie suspirou.
- Pode parecer uma coisa terrível, mas você se encontra na mesma situação de milhares de mulheres.
Emily enxugou os olhos com um lenço e se esforçou para parar de chorar.
- Sei disso, e não quero que pense que sinto pena de mim mesma. Compreendo que devo tirar o melhor proveito possível. E sei que conseguiria suportar a situação se ao menos pudesse ter um bebê. Isso é tudo o que sempre desejei.
As crianças são o consolo da maioria das esposas infelizes, refletiu Maisie.
- Há algum motivo para que não deva ter filhos?
Emily se remexia inquieta no sofá, embaraçada, mas o rosto infantil se contraía em linhas de determinação.
- Estou casada há dois meses, e nada aconteceu.
- Às vezes demora...
- Não estou querendo dizer que esperava já ter engravidado a esta altura.
Maisie sabia que era difícil para moças assim serem específicas, e por isso resolveu conduzi-la com algumas perguntas.
- Ele vai para sua cama?
- Ia no começo, agora não vai mais.
- Quando ele ia, qual era o problema?
- O problema é que não sei direito o que deveria acontecer. Maisie tornou a suspirar. Como as mães podiam permitir que as filhas se casassem tão ignorantes? Ela recordou que o pai de Emily era um ministro metodista. O que em nada ajudava.
- Vou explicar o que deve acontecer. Seu marido a beija e acaricia, seu membro fica grande e duro e entra dentro de você. A maioria das mulheres gosta.
Emily ficou vermelha.
- Ele me beijou e acariciou, mas foi só isso.
- Seu membro ficou duro?
- Estava escuro.
- Você não sentiu?
- Ele esfregou contra mim uma vez.
- E como estava? Rígido como uma vela ou mole como uma minhoca? Ou num jeito intermediário, como uma salsicha antes de ser cozida?
- Mole.
- E ficou duro quando ele esfregou em você?
- Não. E isso o deixou furioso; ele me bateu, disse que eu não era bastante boa. A culpa é minha, Mrs. Greenbourne?
- Não, não é culpa sua, embora os homens costumem dizer que a mulher é responsável. É um problema comum chamado impotência.
- Qual é a causa?
- Podem ser várias coisas diferentes.
- E isso significa que não posso ter um bebê?
- Não, não pode enquanto ele não ficar duro. Emily dava a impressão de que ia chorar.
- Quero tanto ter um bebê... Eu me sinto solitária e infeliz, mas poderia suportar todo o resto se tivesse um bebê.
Maisie especulou qual seria o problema de Edward. Tinha certeza de que ele não era impotente no passado. Poderia fazer alguma coisa para ajudar Emily? Talvez conseguisse descobrir se Edward era impotente durante todo o tempo ou apenas com a esposa. April Tilsley saberia.
Edward continuava a ser um freqüentador do bordel na última vez em que Maisie conversara com April... embora isso tivesse ocorrido há alguns anos. Era muito difícil para uma dama da sociedade permanecer amiga íntima da principal meretriz de Londres.
- Conheço uma pessoa muito ligada a Edward - disse Maisie, cautelosa. - Talvez ela possa informar alguma coisa sobre o problema.
Emily engoliu em seco.
- Está querendo dizer que ele tem uma amante? Por favor, conte-me tudo... tenho de enfrentar a verdade.
Era uma moça determinada, pensou Maisie. Podia ser ignorante e ingênua, mas conseguiria o que desejava.
- Essa mulher não é amante de seu marido. Mas se ele tem uma amante, ela pode saber.
Emily balançou a cabeça.
- Eu gostaria de conhecer sua amiga.
- Não sei se deve pessoalmente...
- Eu quero. Ele é meu marido, e se há alguma coisa errada a ser dita a seu respeito quero ouvir. - Seu rosto tornou a assumir uma expressão obstinada, e ela acrescentou:
- Farei qualquer coisa, deve acreditar... absolutamente qualquer coisa. Toda a minha vida será um desperdício se eu não me salvar.
Maisie decidiu testar a determinação de Emily.
- O nome da minha amiga é April. Ela é dona de um bordel perto da Leicester Square. Fica a dois minutos daqui. Está disposta a ir até lá comigo agora?
- O que é um bordel?
O fiacre parou diante do Nellie"s. Maisie esquadrinhou a rua. Não queria ser vista entrando num bordel por alguém que a conhecesse. Mas aquela era a hora em que a maioria das pessoas de sua classe se vestia para o jantar, e só havia umas poucas pessoas pobres na rua. Ela e Emily saltaram do fiacre. Maisie pagara antes ao cocheiro. A porta do bordel não estava trancada. As duas entraram.
A luz do dia não era generosa com o Nellie"s. À noite, ainda podia ter um certo encanto maltrapilho, pensou Maisie, mas naquele momento tudo parecia puído e encardido.
Os estofamentos de veludo estavam desbotados, as mesas tinham marcas de copos e queimaduras de charuto, o papel de parede descascava e os quadros eróticos eram apenas vulgares.
Uma velha varria o chão, com um cachimbo na boca. Não se mostrou surpresa por ver duas damas da sociedade em vestidos elegantes. Quando Maisie pediu para falar com April, a velha sacudiu o polegar na direção da escada.
Encontraram April numa cozinha lá em cima, tomando chá à mesa com várias outras mulheres, todas de roupão ou vestidos de usar em casa: era evidente que ainda se passariam algumas horas antes que o movimento começasse. A princípio, April não reconheceu Maisie, e as duas ficaram se olhando em silêncio por um longo momento.
Maisie constatou que sua velha amiga pouco mudara: ainda era esguia, o rosto duro, os olhos vivos, talvez parecendo um pouco cansada de tantas noites acordada e muito champanhe ordinário, mas tinha o ar confiante e decidido de uma mulher de negócios vitoriosa.
- O que desejam? - perguntou ela.
- Não me reconhece, April?
No mesmo instante, April soltou um grito de alegria, levantou-se de um pulo e adiantou-se. Depois que se abraçaram e beijaram, ela virou-se para as outras mulheres na cozinha e disse:
- Meninas, esta é a mulher que fez aquilo com que todas nós sonhamos. A ex-Miriam Rabinowicz, depois Maisie Robinson, é agora Mrs. Solomon Greenbourne!
As mulheres aclamaram, como se Maisie fosse uma espécie de heroína. Ela se sentiu constrangida: não previra que April faria um relato tão franco de sua vida, ainda mais na presença de Emily Pilaster, mas agora era tarde demais.
- Vamos tomar um gim para celebrar - propôs April.
Elas sentaram, uma das mulheres pegou uma garrafa e alguns copos, o gim foi servido. Maisie jamais gostara de gim, e agora, depois que se acostumara ao melhor champanhe, gostava ainda menos; mas bebeu para se mostrar cordial. Viu Emily tomar um gole de seu copo e fazer uma careta. Os copos foram imediatamente reabastecidos.
- O que a traz aqui? - indagou April.
- Um problema conjugal - respondeu Maisie. - Minha amiga aqui tem um marido impotente.
- Mande-o para cá, minha querida - disse April a Emily. - Daremos um jeito nele.
- Desconfio que ele já é um freguês - informou Maisie.
- Qual é o nome?
- Edward Pilaster. April se mostrou surpresa.
- Santo Deus! - Ela fitou Emily. - Então você é Emily! Pobre criança!
- Sabe meu nome. - Emily estava mortificada. - Isso significa que ele fala a meu respeito.
Ela tomou outro gole de gim. Uma das outras mulheres garantiu:
- Edward não é impotente. Emily corou.
- Desculpe - acrescentou a mulher. - Acontece que ele quase sempre me chama.
Era uma moça alta, de cabelos escuros e busto volumoso. Maisie não a achou muito atraente em seu robe sujo, fumando um cigarro como um homem; mas talvez ela o fosse quando estivesse arrumada. Emily recuperou o controle.
- É muito estranho. Ele é meu marido, mas você sabe mais a respeito dele do que eu. E nem mesmo sei o seu nome.
- Lily.
Houve um momento de silêncio e embaraço. Maisie tomou outro gole de gim; a segunda dose parecia melhor do que a primeira. Era uma cena insólita, pensou ela: a cozinha, as mulheres em deshabille, os cigarros e o gim, e Emily, que uma hora atrás não sabia direito de que consistia o intercurso sexual, discutindo a impotência do marido com a prostituta predileta dele.
- Muito bem - interveio April, incisiva, - agora você já tem a resposta para sua pergunta. Por que Edward é impotente com a esposa? Porque Micky não está presente.
Ele jamais consegue ficar duro quando está a sós com uma mulher.
- Micky? - repetiu Emily, incrédula. - Micky Miranda? O embaixador cordovês?
April confirmou com um aceno de cabeça.
- Eles fazem tudo juntos, especialmente aqui. Edward bem que tentou fazer sozinho algumas vezes, mas nunca deu certo.
A perplexidade de Emily era cada vez maior. Maisie fez a pergunta óbvia:
- O que exatamente eles fazem? Foi Lily quem respondeu:
- Nada muito complicado. Ao longo dos anos, experimentaram diversas variações. No momento, gostam de ir para a cama, os dois juntos, com uma só mulher, em geral eu ou Muriel.
- Mas Edward faz a coisa direito? - insistiu Maisie. - Fica duro e todo o resto?
Lily concordou com a cabeça.
- Quanto a isso, não tenha a menor dúvida.
- Acha que essa é a única maneira pela qual ele pode conseguir? Lily franziu o cenho.
- Tenho a impressão de que não faz muita diferença o que acontece, com quantas mulheres, e assim por diante. Se Micky está presente, funciona; se não está, nada feito.
Maisie murmurou:
- Quase como se fosse Micky quem Edward realmente ama.
- Tenho a sensação de estar sonhando, ou qualquer coisa parecida - balbuciou Emily, tomando outro gole de gim. - Tudo isso pode ser verdade? Essas coisas acontecem de fato?
- Você nem imagina o que se passa aqui - respondeu April. - Edward e Micky até que são ótimos em comparação com alguns dos nossos outros fregueses.
Até Maisie se sentira espantada. O pensamento de Edward e Micky juntos na cama com uma mulher era tão bizarro que a deixava com vontade de rir, e teve de fazer um esforço para se conter.
Recordou a noite em que Edward a encontrara fazendo amor com Hugh. Ele se mostrara incontrolavelmente excitado; e sua intuição lhe dissera que Edward fora atraído pela idéia de deitar com ela logo depois de Hugh.
- A "sopa"! - exclamou ela. Algumas mulheres riram.
- É isso mesmo - concordou April. Emily sorriu, aturdida.
- Não estou entendendo.
- Alguns homens gostam de deitar com mulheres que acabaram de ser possuídas por outros - explicou April, enquanto as mulheres riam ainda mais.
Emily começou a rir, e um instante depois todas se sacudiam em gargalhadas histéricas. Era uma combinação do gim, a estranha situação e a conversa sobre as insólitas preferências sexuais dos homens, Maisie pensou. Seu uso da expressão vulgar aliviara a tensão. Cada vez que os risos se atenuavam, uma delas dizia "Uma "sopa"!",
e todas tornavam a se desmanchar em gargalhadas.
Ao final, todas ficaram tão exaustas que não podiam mais continuar a rir. Assim que se acalmaram, Maisie indagou:
- Mas onde isso deixa Emily? Quer ter um bebê e não pode convidar Micky para se deitar na cama com ela e o marido.
Emily estava angustiada. April fitou-a nos olhos e perguntou:
- Até que ponto você é determinada, Emily?
- Farei qualquer coisa... tudo o que for necessário.
- Se está mesmo decidida, há uma coisa que podemos tentar.
Joseph Pilaster terminou de comer um prato de rins de cordeiro grelhados com ovos mexidos e começou a passar manteiga numa torrada. Augusta costumava se perguntar se o mau humor habitual dos homens de meia-idade não teria alguma relação com a quantidade de carne que comiam. Passava mal só de pensar em comer rins no desjejum.
- Sidney Madler está em Londres - informou Joseph. - Vou me reunir com ele esta manhã.
Por um momento, Augusta não soube de quem o marido falava.
- Madler?
- De Nova York. Ele está furioso porque Hugh não foi promovido a sócio.
- E o que ele tem a ver com isso? - perguntou Augusta. - Que insolência!
Ela falou com arrogância, mas sentia-se perturbada.
- Já sei o que ele vai dizer - continuou Joseph. - Quando formamos o nosso empreendimento conjunto com o Madler and Bell, havia um acordo tácito de que o lado da operação em Londres seria dirigido por Hugh. Agora, Hugh pediu demissão do banco, como sabe.
- Mas você não queria que Hugh saísse.
- Não, mas só poderia mantê-lo se oferecesse sociedade. Augusta podia perceber que havia algum risco do marido enfraquecer. A perspectiva a assustava. Precisava reforçar sua coragem.
- Espero que não permita que pessoas de fora decidam quem será e quem não será um sócio no Pilasters Bank.
- Claro que não permitirei.
Um pensamento ocorreu a Augusta.
- Mr. Madler pode cancelar o empreendimento conjunto?
- Pode, sim, embora até agora não tenha feito essa ameaça.
- Vale muito dinheiro?
- Valia. Mas é provável que Hugh, ao se transferir para o Greenbournes, leve muitos negócios.
- Portanto, não faz muita diferença o que Mr. Madler possa pensar.
- Talvez não. Mas terei de lhe dizer alguma coisa. Ele veio de Nova York só para protestar pelo que aconteceu.
- Diga que Hugh casou com uma mulher inaceitável. Ele não pode deixar de compreender isso.
- Claro. -Joseph levantou-se. - Até mais tarde, querida. Augusta também se levantou, e beijou o marido nos lábios.
- Não se deixe pressionar, Joseph.
Ele empertigou os ombros, a boca se contraiu de um jeito determinado.
- Não deixarei.
Depois que o marido se foi ela tornou a sentar à mesa, tomando café e se perguntando até que ponto aquela ameaça era séria. Tentara incentivar a resistência de Joseph, mas havia um limite ao que podia fazer. Teria de se manter atenta à situação.
Estava surpresa por saber que a saída de Hugh custaria muito dinheiro ao banco. Não lhe ocorrera que ao promover Edward e derrubar Hugh também perdia dinheiro. Por um momento, especulou se poderia estar pondo em perigo o banco que era a fundação de todos os seus planos e esperanças. Mas isso era ridículo. O Pilasters Bank era rico demais, nada poderia ameaçá-lo.
Enquanto ela terminava o desjejum, Hastead entrou para avisar que Mr. Fortescue desejava lhe falar. Augusta tratou de afastar Sidney Madler de seus pensamentos.
Aquilo era muito mais importante. Seu coração passou a bater mais depressa.
Michael Fortescue era o seu político submisso. Depois de ganhar a eleição complementar de Deaconridge, com a ajuda financeira de Joseph, ele era agora um membro do Parlamento e tinha uma dívida com Augusta. Ela deixara bem claro como essa dívida poderia ser saldada: ajudando-a a obter um pariato para Joseph. A eleição complementar
custara cinco mil libras, o suficiente para comprar a melhor casa de Londres, mas era um preço ínfimo por um título de nobreza. A tarde era a ocasião para visitas,
e assim os visitantes matutinos só apareciam por problemas urgentes. Ela tinha certeza de que Fortescue não a procuraria tão cedo se não tivesse novidades sobre a concessão do título, e era por isso que seu coração disparara.
- Leve Mr. Fortescue para a sala de vigia - disse ela ao mordomo. - Irei ao seu encontro daqui a pouco.
Augusta se manteve imóvel por algum tempo, fazendo um esforço para se acalmar. Sua campanha transcorrera até agora de acordo com os planos. Arnold Hobbes publicara uma série de artigos em seu jornal, The Fórum, reclamando títulos de nobreza para os homens do comércio. Lady Morte falara com a rainha a respeito e entoara louvores a Joseph; e informara que Sua Majestade se mostrara impressionada. Fortescue afirmara ao primeiro-ministro Disraeli que havia uma onda da opinião pública em favor da idéia. Agora, talvez, todo o esforço estivesse prestes a ser coroado de sucesso.
A tensão era quase insuportável, e Augusta sentiu-se um pouco ofegante ao subir a escada, a cabeça transbordando com as palavras que esperava ouvir em breve: Lady Whitehaven... o conde e condessa Whitehaven... está certo, milady...
A sala de vigia era curiosa. Ficava em cima do vestibulo, com o acesso por uma porta no meio da escada. Tinha uma janela ampla dando para a rua, mas não era daíque tirava seu nome. O detalhe mais insólito era uma janela interna, pela qual se podia avistar o salão de entrada. As pessoas ali nem desconfiavam que eram observadas, e ao longo dos anos Augusta vira muitas coisas inesperadas daquele ponto de vigia. Era uma sala informal, pequena e aconchegante, de teto baixo e lareira. Augusta recebia ali os visitantes pela manhã.
Fortescue era um jovem alto e bem-apessoado, com mãos enormes. Parecia um pouco tenso. Augusta sentou ao seu lado no divã próximo à janela, oferecendo-lhe um sorriso efusivo e tranqüilizador.
- Acabei de falar com o primeiro-ministro - anunciou Fortescue. Augusta mal podia falar.
- Conversaram sobre títulos de nobreza?
- Conversamos. Consegui convencê-lo de que está na hora de os bancos terem um representante na Câmara dos Lordes, e ele resolveu se empenhar em conceder um pariato a um homem da City.
- Maravilhoso! - Mas a expressão de Fortescue era contrafeita, não a de quem trazia grandes notícias, e por isso Augusta acrescentou, apreensiva: - Então por que você parece tão sombrio?
- Há também más notícias - murmurou Fortescue parecendo agora um pouco assustado.
- Qual?
- Infelizmente, ele quer conceder o título a Ben Greenbourne.
- Oh, não! - Augusta experimentava a sensação de que levara um soco violento. - Como ele pode fazer uma coisa dessas?
Fortescue caiu na defensiva:
- Acho que ele pode conceder títulos a quem quiser, pois é o primeiro-ministro.
- Mas não me dei a todo esse trabalho em benefício de Ben Greenbourne!
- Concordo que é irônico - disse Fortescue, um tanto lânguido. - Mas fiz o melhor que podia.
- Não seja tão presunçoso - protestou ela em tom ríspido. - Não se quiser minha ajuda em futuras eleições.
A revolta aflorou nos olhos de Fortescue, e por um momento ela pensou que o perdera, pensou que ele ia dizer que já saldara sua dívida, e agora não precisava mais de sua ajuda; mas o jovem membro do Parlamento baixou os olhos e murmurou:
- Eu lhe asseguro que fiquei arrasado com a notícia...
- Fique quieto e deixe-me pensar. - Augusta pôs-se a andar de um lado para outro da pequena sala. - Devemos encontrar um meio de fazer o primeiro-ministro mudar de idéia... Precisamos criar um escândalo. Quais são as fraquezas de Ben Greenbourne? O filho é casado com uma sem-vergonha, mas isso não é suficiente...
Ocorreu-lhe que se Greenbourne ganhasse um título, seria herdado pelo filho Solly, o que significaria que Maisie acabaria se tornando uma condessa. A possibilidade era angustiante.
- Qual é a posição política de Greenbourne?
- Ele não tem nenhuma, pelo que se sabe.
Augusta fitou-o atentamente e constatou que ele estava contrariado. Compreendeu que lhe falara com uma aspereza excessiva. Tornou a sentar ao seu lado, pegando uma das mãos enormes entre as suas.
- Seu instinto político é extraordinário, e foi isso que primeiro atraiu minha atenção. Diga-me qual é seu palpite.
Fortescue se desmanchou no mesmo instante, como em geral acontecia com todos os homens quando ela se dava ao trabalho de envolvê-los com seu charme.
- Se pressionado, ele provavelmente se declararia liberal. Quase todos os homens de negócios são liberais, assim como a maioria dos judeus. Mas como ele nunca expressou qualquer opinião em público, será difícil convertê-lo num inimigo do governo conservador...
- Ele é judeu - disse Augusta. - É esse o caminho. Fortescue assumiu uma expressão de dúvida.
- O próprio primeiro-ministro é judeu por nascimento, e agora se tornou lorde Beaconsfield.
- Sei disso, mas ele é agora um cristão praticante. Além do mais... Augusta fez uma pausa e Fortescue alteou as sobrancelhas, inquisitivo.
- Também tenho um instinto - acrescentou Augusta. - E o meu diz que o fato de Ben Greenbourne ser judeu é a chave de tudo.
- Se houver alguma coisa que eu possa fazer...
- Tem sido maravilhoso. Não há nada por enquanto. Mas quando o primeiro-ministro começar a ter dúvidas sobre Ben Greenbourne, basta lembrá-lo de que há uma alternativa segura em Joseph Pilaster.
- Conte comigo, Mrs. Pilaster.
Lady Morte morava numa casa na Curzon Street que seu marido não tinha condições de manter. A porta foi aberta por um lacaio de libre que usava uma peruca empoada.
Augusta foi conduzida a uma sala repleta de dispendiosas quinquilharias das lojas da Bond Street: candelabros de ouro, molduras de retratos em prata, ornamentos de porcelana, vasos de cristal e um requintado tinteiro antigo cravejado de pedras preciosas, que deveria ter custado tanto quanto um cavalo de corrida. Augusta desprezava Harriet Morte por sua fraqueza de gastar um dinheiro que não possuía; ao mesmo tempo, porém, sentiu-se tranqüilizada por aqueles sinais de que a mulher continuava tão perdulária quanto antes.
Ela ficou andando de um lado para outro da sala enquanto esperava. Um sentimento de pânico a dominava cada vez que encarava a perspectiva do título de nobreza ser concedido a Ben Greenbourne, e não a Joseph. Achava que não seria capaz de desfechar uma campanha igual pela segunda vez. E se contorcia só de pensar que o resultado de seus esforços podia ser o título de nobreza acabando algum dia com aquela ratazana de esgotos, Maisie Greenbourne... Lady Morte entrou na sala nesse instante, dizendo num tom frio:
- Mas que adorável surpresa vê-la a esta hora do dia!
Era uma censura a Augusta por visitá-la antes do almoço. Os cabelos grisalhos de lady Morte pareciam ter sido penteados às pressas, e Augusta calculou que ela não se vestira completamente.
Mas você tinha de me receber de qualquer maneira, não é? pensou Augusta. Ficou com medo que eu viesse procurá-la por causa de sua conta no banco, e assim não tinha alternativa. Mas ela falou num tom subserviente que agradaria à outra mulher:
- Vim pedir seu conselho sobre um problema urgente.
- Qualquer coisa que eu possa fazer...
- O primeiro-ministro concordou em conceder um pariato a um banqueiro.
- Esplêndido! Mencionei o assunto a Sua Majestade, como sabe. Sem dúvida teve seu efeito.
- Infelizmente, ele quer dar o título a Ben Greenbourne.
- Oh, não! Mas isso é lamentável!
Augusta percebeu que Harriet Morte sentia-se secretamente satisfeita com a notícia. Ela odiava Augusta.
- É mais do que lamentável. Empenhei muito esforço para conseguir, e agora tudo indica que o beneficiado será o maior rival de meu marido.
- Posso compreender sua posição.
- Gostaria de podermos impedir que isso acontecesse.
- Não tenho certeza de podermos fazer alguma coisa. Augusta fingiu estar pensando em voz alta:
- Os pariatos não devem ser aprovados pela rainha?
- Devem, sim. Tecnicamente, é ela quem os concede.
- Então ela poderia fazer alguma coisa, se você pedisse. Lady Moite soltou uma risada breve.
- Minha cara Mrs. Pilaster, superestima o meu poder.
Augusta conteve a língua e ignorou o tom condescendente, enquanto lady Morte acrescentava:
- Não é provável que Sua Majestade aceite o meu conselho em detrimento da recomendação do primeiro-ministro. Além do mais, qual seria a minha base para uma objeção?
- Greenbourne é judeu. Lady Morte balançou a cabeça.
- Houve um tempo em que isso liquidaria todas as suas pretensões. Lembro de quando Gladstone quis promover Lionel Rothschild a par do reino: a rainha recusou de imediato. Mas isso aconteceu há dez anos. Desde então, tivemos Disraeli.
- Mas Disraeli é cristão. Greenbourne é um judeu praticante.
- Eu me pergunto se isso faria alguma diferença. É possível. E ela vive criticando o Príncipe de Gales por ter tantos judeus entre seus amigos.
- Neste caso, se mencionar a ela que o primeiro-ministro tenciona elevar um deles à nobreza...
- Posso fazer um comentário durante uma conversa. Não tenho certeza de ser suficiente para atender a seu propósito.
Augusta pensou depressa.
- Há alguma coisa que possamos fazer para que a questão desperte a preocupação de Sua Majestade?
- Se houvesse algum protesto público... perguntas no Parlamento, talvez, ou artigos na imprensa...
- É isso, a imprensa! - Augusta pensou em Arnold Hobbes. - Acho que se pode dar um jeito.
Hobbes ficou extremamente nervoso com a presença de Augusta em seu escritório pequeno e todo sujo de tinta. Não sabia se arrumava as coisas, dispensava-lhe toda a sua atenção ou tentava se livrar dela. Por isso fez todas as três coisas, numa confusão histérica: transferiu papéis e pilhas de provas do chão para a mesa, tornou a largar no chão; foi buscar uma cadeira, um copo de xerez e um prato de biscoitos; e ao mesmo tempo propôs que fossem conversar em outro lugar. Augusta deixou-o se agitar por um ou dois minutos antes de dizer:
- Mr. Hobbes, sente, por favor, e me escute.
- Claro, claro... - balbuciou ele, arriando numa cadeira e fitando-a por cima dos óculos sujos.
Augusta relatou em poucas frases a possibilidade da concessão do título de nobreza a Ben Greenbourne.
- É lamentável, lamentável... - murmurou o jornalista cada vez mais nervoso. - Mas não creio que The Fórum possa ser acusado de falta de entusiasmo na promoção da causa que tão gentilmente me sugeriu.
E em troca disso você recebeu duas diretorias lucrativas em companhias controladas por meu marido, pensou Augusta.
- Sei que não é culpa sua - disse ela, irritada. -A questão é outra: o que pode fazer a respeito?
- Meu jornal se encontra numa situação difícil - respondeu ele, preocupado. - Depois de fazer uma campanha vigorosa para que um banqueiro fosse elevado à nobreza, é difícil para nós voltar atrás e protestar quando isso acontece.
- Mas nunca teve como objetivo a concessão do título a um judeu.
- É verdade, é verdade, embora muitos banqueiros sejam judeus.
- Não poderia escrever que há banqueiros cristãos em número suficiente para que o primeiro-ministro escolha um deles?
Hobbes continuou relutante.
- Poderia...
- Então faça isso!
- Desculpe, Mrs. Pilaster, mas não é suficiente.
- Não estou entendendo - disse ela, impaciente.
- Uma consideração profissional, mas preciso do que os jornalistas chamam de ponto de vista. Por exemplo: poderíamos acusar Disraeli... ou Lorde Beaconsfield, como ele é agora... de parcialidade com pessoas de sua própria raça. Isso seria um ponto de vista. Mas, de um modo geral, ele é um homem tão íntegro que essa acusação específica não seria aceita.
Augusta detestava vacilações, mas conteve sua impaciência porque percebeu que havia nisso um problema genuíno. Pensou por um instante e uma idéia lhe ocorreu.
- A cerimônia foi normal quando Disraeli tomou posse na Câmara dos Lordes?
- Creio que sim, sob todos os aspectos.
- Ele prestou o juramento de lealdade numa Bíblia cristã?
- Claro.
- O Antigo e o Novo Testamento?
-Já entendi onde quer chegar, Mrs. Pilaster. Ben Greenboume juraria sobre uma Bíblia cristã? Pelo que sei a seu respeito, duvido muito. Augusta balançou a cabeça, ainda em dúvida.
- Bem que poderia se nada fosse dito a respeito. Ele não é um homem de procurar uma confrontação. Mas se torna obstinado quando é desafiado. Se houvesse um clamor público para que ele prestasse o juramento da mesma forma que todos os outros, Greenboume poderia se rebelar. Não deixaria as pessoas dizerem que foi pressionado a qualquer coisa.
- Um clamor público... - repetiu Hobbes. - É isso mesmo.
- Poderia criá-lo?
Hobbes começou a se entusiasmar com a idéia.
- Já posso imaginar - disse ele, excitado. - blasfêmia na Câmara dos Lordes. Isso é o que chamo de um ponto de vista, Mrs. Pilaster. É muito inteligente. Deveria ser jornalista!
- Quanta lisonja!
Ele nem percebeu o sarcasmo, e de repente assumiu uma expressão pensativa.
- Mr. Greenboume é um homem muito poderoso.
- Mr. Pilaster também é.
- Claro, claro...
- Posso contar com você?
Hobbes avaliou rapidamente os riscos e decidiu apoiar a causa de Pilaster.
- Deixe tudo comigo.
Augusta acenou com a cabeça. Já se sentia melhor. Lady Morte viraria a rainha contra Greenboume, Hobbes protestaria na imprensa e Fortescue sussurraria no ouvido do primeiro-ministro o nome de uma alternativá impecável: Joseph.
Mais uma vez, as perspectivas pareciam boas. Ela se levantou, mas Hobbes ainda tinha uma coisa a dizer:
- Permite-me falar sobre outro assunto?
- Claro.
- Ofereceram-me um prelo bastante barato No momento, como sabe, usamos prelos de terceiros. Se tivéssemos o nosso, poderíamos reduzir o custo do jornal, e talvez até ganhar algum dinheiro extra imprimindo também outras publicações.
- Isso é óbvio - murmurou Augusta, impaciente.
- Tenho pensado na possibilidade do Pilasters Bank conceder um empréstimo comercial.
Era o preço da manutenção do apoio de Hobbes.
- Quanto?
- Cento e sessenta libras.
Era uma ninharia. E se ele fizesse uma campanha contra a elevação de judeus à nobreza com a mesma energia e astúcia que empregara na defesa do pariato para os banqueiros, valeria a pena.
- Um preço ínfimo, posso garantir... - acrescentou Hobbes.
- Falarei com Mr. Pilaster.
Joseph concordaria, mas ela não queria que Hobbes pensasse que era fácil demais. Ele daria uma importância maior se o empréstimo fosse concedido com alguma relutância.
- Obrigado. É sempre um prazer encontrá-la, Mrs. Pilaster.
- Sem dúvida - murmurou ela, saindo em seguida.
Junho
A embaixada cordovesa estava quieta. As salas no andar térreo se encontravam vazias, os três funcionários tendo ido para casa horas antes. Micky e Rachel haviam oferecido um jantar no segundo andar a um pequeno grupo - Sir Peter Mountjoy, um subsecretário do Ministério do Exterior, e sua esposa; o embaixador dinamarquês; e o cbevalierMichele, da embaixada italiana. Os convidados já tinham se retirado, os criados arrumado tudo, e agora Micky se preparava para sair.
A novidade do casamento começava a se desgastar. Tentara chocar ou repugnar sua esposa sexualmente inexperiente, mas fracassara. O incessante entusiasmo de Rachel por qualquer perversão que ele propunha passara a enervá-lo. Ela decidira aceitar qualquer coisa que ele quisesse, e não havia como demovê-la quando tomava uma decisão assim. Micky jamais conhecera uma mulher que pudesse exibir uma lógica tão implacável.
Rachel faria qualquer coisa que ele pedisse na cama, mas acreditava que fora do quarto uma mulher não deve ser uma escrava do marido, e era igualmente rígida com as duas regras. Assim, viviam brigando sobre questões domésticas. Às vezes Micky podia passar de uma situação para outra. No meio de uma discussão sobre criados ou dinheiro, ele dizia:
- Levante a saia e deite no chão.
E tudo terminava num abraço arrebatado. Só que isso não funcionava em todas as ocasiões: de vez em quando Rachel retomava a discussão assim que ele saía de cima.
Ultimamente, ele e Edward vinham passando cada vez mais noites em seus antigos pousos. Aquela era a Noite das Máscaras no bordel da Nellie. Era uma das inovações introduzidas por April: todas as mulheres estariam de máscara. April alegava que damas da alta sociedade sexualmente frustradas se misturavam com as prostitutas nas Noites das Máscaras. É verdade que algumas mulheres não eram do bordel, mas Micky desconfiava que as forasteiras eram mulheres de classe média em dificuldades financeiras, em vez de aristocratas entediadas à procura de emoções degeneradas. Qualquer que fosse a verdade, a Noite das Máscaras nunca deixava de ser interessante.
Ele penteou os cabelos, encheu a charuteira e desceu. Para sua surpresa, deparou com Rachel parada no vestibulo, bloqueando a passagem para a porta. Ela cruzara os braços e exibia uma expressão determinada. Micky preparou-se para uma briga.
- São onze horas da noite - disse Rachel. - Para onde você vai?
- Para o inferno. Saia da minha frente. Ele pegou o chapéu e a bengala.
- Vai a um bordel chamado Nellie"s?
Micky ficou bastante surpreso para se manter calado por um momento. -Já vi que vai - acrescentou Rachel.
- com quem você andou conversando? Ela hesitou, mas acabou respondendo:
- Emily Pilaster. Ela me contou que você e Edward vão a esse bordel com freqüência.
- Não deve dar ouvidos às intrigas das mulheres.
Ela tinha o rosto muito branco, e Micky compreendeu que estava assustada. O que era inesperado. Talvez aquela briga fosse diferente.
- Deve parar de ir a esse lugar, Micky.
- Já lhe disse que não deve tentar dar ordens a seu amo.
- Não é uma ordem, mas sim um ultimato.
- Não seja tola. Saia da minha frente.
- A menos que você me prometa que não irá mais lá, Vou deixá-lo. Sairei daqui esta noite e nunca mais voltarei.
Micky percebeu que ela falava a sério. Era por isso que parecia assustada. Até calçara os sapatos de sair.
- Você não vai embora - disse ele. - Eu a trancarei em seu quarto.
- Vai ser difícil. Recolhi todas as chaves e joguei fora. Não há um único aposento nesta casa que possa ser trancado.
Rachel fora muito esperta. Parecia que aquela seria uma das disputas mais interessantes entre os dois. Ele sorriu e murmurou:
- Tire o calção.
- Isso não vai adiantar esta noite, Micky. Eu pensava que isso significava que você me amava. Agora, compreendi que o sexo é apenas a sua maneira de controlar as pessoas. Duvido até de que você goste.
Ele estendeu a mão e apertou o seio da esposa. Era quente e pesado em sua mão, apesar das camadas de roupa. Acaríciou-o, observando o rosto de Rachel, mas a expressão dela não se alterou. Micky concluiu que ela não se entregaria à paixão naquela noite. Apertou com força, machucando-a, depois retirou a mão.
- O que deu em você? - perguntou ele com genuína curiosidade.
- Os homens pegam doenças infecciosas em lugares como o Nellie"s.
- As garotas são muito limpas...
- Por favor, Micky... não finja ser tão estúpido.
Ela tinha razão. Não havia uma prostituta limpa. Na verdade, ele tivera sorte até agora, só pegara um caso brando de varíola durante os muitos anos de visitas a bordéis.
- Está bem - admitiu ele. - Posso pegar uma doença infecciosa.
- E transmitir para mim. Ele deu de ombros.
- É um dos riscos de ser uma esposa. Também posso lhe transmitir sarampo, se o pegar.
- Mas a sífilis pode ser hereditária.
- Onde está querendo chegar?
- Posso transmiti-la a nossos filhos, se os tivermos. E isso é o que não estou disposta a fazer. Não trarei para o mundo uma criança com uma doença tão terrível.
Rachel respirava em ofegos curtos, um sinal de tensão intensa. Ela a fala a sério, pensou Micky.
- Por isso, Vou deixá-lo - arrematou Rachel, - a menos que você concorde em interromper todo e qualquer contato com prostitutas.
Não havia sentido em continuar a discussão.
- Veremos se você pode me deixar com o nariz quebrado - disse ele, erguendo a bengala para agredi-la.
Ela estava preparada. Esquivou-se do golpe e correu para a porta. Para surpresa de Micky, a porta se encontrava entreaberta - ela devia têla deixado assim, na expectativa de violência, pensou ele - e Rachel saiu num instante.
Micky foi em seu encalço. Outra surpresa o aguardava lá fora: havia uma carruagem à espera no meio-fio. Rachel embarcou. Ele estava espantado por constatar como a esposa planejara tudo de forma meticulosa. Já ia entrar também na carruagem, atrás dela, quando foi bloqueado por um vulto grande, de cartola. Era o pai, Mr. Bodwin, o advogado.
- Presumo que você se recusa a corrigir seus hábitos - disse ele.
- Está seqüestrando minha esposa? - indagou Micky, furioso por ter sido ludibriado.
- Ela deixa esta casa por sua livre e espontânea vontade. -A voz de Bodwin soava um pouco trêmula, mas ele se mantinha firme. - Voltará quando você concordar em renunciar a seus hábitos depravados. Na dependência, é claro, de um exame médico satisfatório.
Por um momento, Micky sentiu-se tentado a agredi-lo... mas apenas por um momento. A violência não era o seu estilo. De qualquer forma, o advogado com certeza o acusaria de agressão, e um escândalo assim poderia arruinar uma carreira diplomática. Rachel não valia isso. Ele compreendeu que havia um impasse. Por que estou lutando? perguntou a si mesmo.
- Pode ficar com sua filha - declarou Micky. -Já fiz tudo o que queria com ela.
Ele tornou a entrar na casa, batendo a porta. Ouviu a carruagem se afastar. Para sua surpresa, descobriu-se a lamentar a partida de Rachel. Casara com ela apenas
por conveniência, é claro - fora um meio de persuadir Edward a casar também, - e sob alguns aspectos a vida seria mais simples sem ela. Mas, de um modo curioso, gostara do duelo diário de personalidades. Nunca tivera isso com uma mulher. Às vezes era cansativo, sem dúvida, e ele disse a si mesmo que, enfim, estaria melhor sozinho.
Depois de recuperar o fôlego, Micky pôs o chapéu e saiu. Era uma noite amena de verão, com o céu claro, as estrelas cintilando. O ar de Londres sempre se tornava melhor no verão, quando as pessoas não precisavam queimar carvão para aquecer suas casas.
Enquanto descia pela Regent Street, concentrou os pensamentos nos negócios. Desde que ordenara uma surra em Tonio Silva, um mês atrás, nunca mais ouvira falar de seu artigo sobre as minas de nitrato. Era provável que Tonio ainda estivesse se recuperando dos ferimentos. Micky enviara a Papa um telegrama em código, com os nomes e endereços das testemunhas que haviam assinado os depoimentos em poder de Tonio, e todas já deviam estar mortas àquela altura. Hugh parecera tolo por ter iniciado um pânico desnecessário, e Edward ficara exultante.
Enquanto isso, Edward persuadira Solly Greenbourne a concordar em princípio com o lançamento em conjunto dos títulos da Ferrovia Santamaria. Não fora fácil: Solly se mostrava muito desconfiado da América do Sul quanto a maioria dos investidores. Edward fora obrigado a oferecer uma comissão mais alta e assumir uma parte de um esquema especulativo de Solly, antes que o negócio pudesse ser fechado. Edward também recorrera ao fato de serem antigos colegas de colégio, e Micky desconfiava que fora o coração mole de Solly que acabara se tornando o fator decisivo.
Agora, estavam elaborando os contratos. Era um processo angustiosamente lento. O que tornava a vida difícil para Micky era que Papa não entendia por que essas coisas não podiam ser feitas em umas poucas horas. Exigia o dinheiro de imediato.
Mas Micky sentia-se satisfeito consigo mesmo ao pensar nos obstáculos que tivera de superar. Depois da rejeição inicial de Augusta, a missão parecia impossível.
Mas com a ajuda dela, manobrara Edward para o casamento e o lugar de sócio no banco. Depois, enfrentara a oposição de Hugh Pilaster e Tonio Silva. Agora, os frutos de seus esforços se achavam prestes a caírem em suas mãos. Lá em Córdoba, a Ferrovia Santamaria seria sempre a ferrovia de Micky. Meio milhão de libras era uma vasta soma, maior do que o orçamento militar de todo o país. Era uma realização que valeria mais do que tudo o que seu irmão Paulo já fizera.
Ele entrou no Nellie"s poucos minutos depois. A festa alcançara um ponto de extrema animação, todas as mesas ocupadas, o ar denso de fumaça de charuto, conversas obscenas e risadas roucas ressoando por toda parte, disputando com uma pequena orquestra que tocava música dançante. Todas as mulheres usavam máscaras. Algumas eram simples, mas a maioria era aprumada; umas poucas cobriam toda a cabeça, deixando à mostra apenas os olhos e a boca.
Micky abriu caminho pela multidão, acenando com a cabeça para os conhecidos e beijando algumas mulheres. Edward estava na sala de jogo, mas levantou-se assim que Micky entrou.
- April arrumou uma virgem para nós - informou ele numa voz meio engrolada.
Havia sempre algo estimulante numa garota assustada, e Micky sentiu-se excitado.
- Que idade?
- Dezessete anos.
O que devia significar 23, pensou Micky, sabendo como April calculava a idade de suas mulheres. Ainda assim, ele estava fascinado.
- Você já a viu?
-Já, sim. Ela usa uma máscara, é claro.
- Não podia ser de outra forma.
Micky se perguntou qual seria a história da garota. Podia ser do interior: fugira de casa e agora passava fome em Londres; podia ter sido seqüestrada de uma fazenda; podia ser uma mera criada, cansada de trabalhar como uma escrava, 16 horas por dia a seis xelins por semana.
Uma mulher numa pequena máscara preta tocou em seu braço. A máscara não era mais que um símbolo, e ele reconheceu April, que murmurou:
- Uma virgem genuína.
com toda a certeza, ela cobraria a Edward uma fortuna pelo privilégio de tirar a virgindade da moça.
- Já pôs a sua mão nela para sentir o hímen? - perguntou Micky, cético.
April sacudiu a cabeça.
- Não preciso. Sei quando uma moça está dizendo a verdade.
- Se eu não sentir arrebentar, você não recebe - disse ele, embora ambos soubessem que Edward é que pagaria.
- Combinado.
- Qual é a história da garota?
- Ela é uma órfã, criada por um tio. Ele estava ansioso para se livrar da sobrinha o mais depressa possível, e acertou seu casamento com um homem mais velho. Quando ela se recusou, o tio a expulsou de casa. Eu a salvei de uma vida de trabalho servil.
- Você é um anjo - murmurou Micky, sarcástico.
Ele não acreditava em uma só palavra. Não podia ver a expressão de April por trás da máscara, mas tinha um forte pressentimento de que ela tramava alguma coisa.
Fitou-a com um olhar cético e indagou:
- Conte-me a verdade.
-Já contei. Se não a quiser, há seis outros homens aqui que pagarão por ela tanto quanto você.
Edward interveio, impaciente:
- Nós a queremos. Pare de discutir, Micky. Vamos dar uma olhada na garota.
- Quarto três - informou April. - Ela espera por vocês.
Micky e Edward subiram a escada, repleta de casais se abraçando, e foram para o quarto três.
A garota se encontrava num canto. Usava um vestido simples de musseline e tinha a cabeça inteira coberta por um capuz, apenas com aberturas para os olhos e para a boca. Mais uma vez, Micky foi invadido pela suspeita. Nada podiam ver de seu rosto e cabeça: ela podia ser de uma feiúra hedionda, talvez deformada. Seria alguma brincadeira?
Ele percebeu, enquanto a contemplava, que a garota tremia de medo, e deixou as dúvidas de lado ao sentir a agitação do desejo na virilha. Para assustá-la ainda mais, atravessou o quarto apressado, abriu a gola do vestido e enfiou a mão chegando aos seios.
Ela se encolheu, o terror assomou nos olhos azuis-claros, mas não saiu do lugar. Tinha seios pequenos e firmes.
O medo da moça fez com que Micky quisesse ser brutal. Normalmente, ele e Edward se divertiam com uma mulher por algum tempo, mas Micky decidiu que possuiria aquela logo de uma vez.
- Fique de joelhos na cama - ordenou ele.
Ela obedeceu. Micky postou-se por trás e levantou a saia. Ela soltou um gritinho de medo. Não usava nada por baixo.
Foi mais fácil penetrá-la do que ele esperava: April devia ter dado algum creme para lubrificá-la. Ele sentiu a obstrução do hímen. Agarrou-a pelos quadris e puxou com força em sua direção, ao mesmo tempo em que arremetia para a frente. A membrana se rompeu. Ela começou a soluçar, e isso excitou-o ainda mais, a tal ponto que alcançou o orgasmo no instante seguinte.
Retirou-se para dar a vez a Edward. Havia sangue em seu pênis. Sentia-se insatisfeito agora que acabara, e desejou ter ficado em casa, ido para a cama com Rachel.
Depois recordou que ela o deixara, e sentiu-se ainda pior.
Edward virou a garota de costas. Ela quase caiu da cama, e ele teve de segurá-la pelos tornozelos, puxá-la para o meio. Ao fazê-lo, o capuz se soltou parcialmente.
- Santo Deus! - exclamou Edward.
- Qual é o problema? - perguntou Micky sem muito interesse. Edward se encontrava ajoelhado entre as coxas da moça, com o pau na mão, olhando fixamente para o rosto meio revelado. Micky concluiu que a moça devia ser alguém que eles conheciam. Observou, fascinado, enquanto ela tentava puxar o capuz para baixo. Edward impediu-a, arrancando o capuz.
E foi nesse instante que Micky viu os enormes olhos azuis e o rosto de menina da esposa de Edward, Emily.
- Nunca ouvi falar de uma coisa assim! - exclamou ele, desatando a rir.
Edward soltou um berro de raiva.
- Sua vaca nojenta! Fez isso para me envergonhar!
- Não, Edward, não! - soluçou ela. - Para ajudar você... ajudar a nós!
- Agora todos sabem! - gritou ele dando um soco no rosto da esposa. Ela começou a chorar e se debater, e Edward agrediu-a outra vez. Micky riu ainda mais. Era a
coisa mais engraçada que já vira: um homem entrando num bordel e encontrando a própria esposa!
April veio correndo, em resposta aos gritos.
- Deixem-na em paz! - gritou ela, tentando afastar Edward. Ele empurrou-a para o lado.
- Posso bater em minha esposa, se assim quiser!
- Seu grande tolo, ela só quer ter um bebê!
- Vai ter meu punho em vez disso!
Lutaram por um momento. Edward acertou outro soco na esposa, e depois April bateu em seu ouvido. Ele soltou um grito de dor e surpresa, fazendo Micky se desmanchar num riso histérico.
April conseguiu finalmente afastar Edward da esposa.
Emily saiu da cama. Inesperadamente, não saiu correndo do quarto. Em vez disso, declarou ao marido:
- Por favor, Edward, não desista. Farei qualquer coisa que você quiser... absolutamente qualquer coisa!
Ele tornou a avançar para Emily. April puxou suas pernas, derrubando-o. Ele caiu de joelhos, e April disse:
- Saia, Emily, antes que ele a mate.
Emily saiu correndo, em lágrimas. Edward ainda continuava enfurecido.
- Nunca mais virei a este bordel nojento! - berrou ele, apontando o dedo para April.
Micky arriou no sofá, comprimindo os flancos, morrendo de rir.
O Baile do Solstício de Verão, oferecido por Maisie Greenbourne, era um dos pontos altos da temporada de Londres. Ela sempre tinha a melhor banda, a comida mais deliciosa, as ornamentações mais extravagantes e um estoque interminável de champanhe. Mas o principal motivo para que todos quisessem ir era a presença garantida do Príncipe de Gales.
Neste ano, Maisie decidiu aproveitar a ocasião para lançar a nova Nora Pilaster.
Era uma estratégia de alto risco, pois se saísse errada, tanto Nora quanto Maisie seriam humilhadas. Mas se tudo corresse bem, ninguém se atreveria mais a esnobar Nora.
Maisie deu um jantar pequeno, para 24 pessoas, antes do baile. O príncipe não pôde comparecer ao jantar. Hugh e Nora estavam presentes, e ela estava fascinante num vestido azul-celeste, coberto com pequenos laços de cetim. O estilo de ombros à mostra realçava a pele rosada e o corpo voluptuoso.
Os outros convidados se mostraram surpresos ao vê-la à mesa, mas presumiram que Maisie sabia o que estava fazendo. Ela esperava que estivessem certos. Compreendia como a mente do príncipe funcionava, e tinha quase certeza de que podia prever suas reações; mas de vez em quando ele contrariava as expectativas e se virava contra os amigos, em particular se achasse que tentavam usá-lo. Se isso acontecesse, Maisie acabaria, como Nora, desprezada pela sociedade de Londres. Quando pensava a respeito, ela se espantava por assumir tamanho risco apenas em benefício de Nora. Mas só que não era por Nora, e sim por Hugh.
Hugh concluía o prazo de aviso prévio no Pilasters Bank. Dois meses já haviam passado desde que pedira demissão. Solly estava impaciente para que ele começasse logo a trabalhar no Greenbournes, mas os sócios do Pilasters haviam exigido o cumprimento dos três meses. Não restava a menor dúvida de que queriam adiar ao máximo possível o momento em que Hugh passaria a trabalhar para os rivais. Depois do jantar, Maisie conversou por um instante com Nora enquanto as mulheres usavam o banheiro.
- Fique tão perto de mim quanto puder - recomendou ela. - Quando se aproximar a ocasião de apresentá-la ao príncipe, não poderei sair à sua procura; você deve estar próxima.
- Ficarei grudada em você como um escocês numa nota de cinco libras - prometeu Nora em seu sotaque cockney, trocando em seguida para a fala arrastada da classe superior ao acrescentar: - Não tenha medo! Não Vou fugir!
Os convidados começaram a chegar às dez e meia. Maisie normalmente não convidava Augusta Pilaster, mas a chamara naquele ano para testemunhar o triunfo de Nora... se é que haveria um triunfo. Meio que esperava que Augusta recusasse, mas ela foi uma das primeiras a chegar. Maisie também convidara o mentor de Hugh em Nova York, Sidney Madler, um homem encantador, em torno dos 60 anos, com uma barba branca. Ele, se apresentou numa versão nitidamente americana de um traje a rigor, de casaco curto e gravata preta.
Maisie e Solly ficaram apertando as mãos de convidados por uma hora, até que o príncipe chegou. Escoltaram-no para o salão de baile e apresentaram-no ao pai de Solly.
Ben Greenbourne fez uma reverência formal, abaixando-se à altura da cintura, as costas retas como um militar prussiano. Depois, Maisie dançou com o príncipe.
- Tenho uma esplêndida intriga para lhe contar, senhor - disse ela enquanto valsavam. - Só espero que não o deixe zangado.
Ele puxou-a mais um pouco e disse em seu ouvido:
- Muito intrigante, Mrs. Greenbourne... continue.
- É sobre o incidente no baile da duquesa de Tenbigh. Ela sentiu que o príncipe se empertigava.
- Ah, sim... um pouco embaraçoso, eu confesso. - Ele baixou a voz. - Quando a garota chamou De Tokoly de velho safado, pensei por um instante que estivesse falando comigo!
Maisie riu alegremente, como se a idéia fosse absurda, embora soubesse que muitas pessoas haviam feito a mesma suposição.
- Mas continue - acrescentou o príncipe. - Havia mais do que os olhos podiam ver?
- Parece que sim. De Tokoly fora informado, falsamente, de que a jovem era... como posso dizer... abeita a convites.
- Abeita a convites! - O príncipe riu, deliciado. - Devo me lembrar dessa expressão!
- E ela, por sua vez, fora aconselhada a esbofeteá-lo no mesmo instante se ele tentasse tomar liberdades.
- Então era quase inevitável que ocorresse uma cena. Muito hábil. Quem estava por trás de tudo?
Maisie hesitou por um momento. Nunca antes usara sua amizade com o príncipe para falar mal de alguém. Mas Augusta era bastante perversa para merecê-lo.
- Sabe quem é Augusta Pilaster?
- Claro. A matriarca da outra família bancária.
- Foi ela. A moça, Nora, é casada com o sobrinho de Augusta, Hugh. Augusta fez isso para se vingar de Hugh, a quem ela odeia.
- Que cobra ela deve ser! Mas não deveria provocar tais cenas quando estou presente. Tenho vontade de puni-la.
Era o momento que Maisie esperava.
- Tudo o que precisa fazer é notar Nora, mostrar que ela está perdoada - disse Maisie, prendendo a respiração à espera da resposta.
- E talvez ignorar Augusta. Acho que posso fazer isso. A dança terminou. Maisie perguntou:
- Devo apresentá-lo a Nora? Ela está aqui. O príncipe fitou-a nos olhos.
- Planejou tudo isso, hem, minha cara petulante?
Ela receava isso. Ele não era estúpido, e podia perceber a sua trama. Seria melhor não negar. Maisie assumiu um ar tímido, fez o melhor que pôde para corar.
- Descobriu tudo. Foi tolice da minha parte pensar que conseguiria lançar areia nos seus olhos de águia. - Ela mudou a expressão e favoreceu-o com um olhar direto e franco. - O que devo fazer por penitência?
Um sorriso lascivo se estampou no rosto do príncipe.
- Não me tente. Mas vamos embora. Eu a perdôo.
Maisie respirou mais tranqüila; escapara impune. Agora, cabia a Nora encantá-lo.
- Onde está Nora? - indagou ele.
Nora estava por perto, de acordo com as instruções. Maisie fitou-a e ela se aproximou no mesmo instante.
- Sua Alteza Real - disse Maisie, - permita que lhe apresente Mrs. Nora Pilaster.
Nora fez uma reverência, piscando os olhos. O príncipe contemplou os ombros nus, o colo cheio e rosado.
- Encantadora! - exclamou ele, no maior entusiasmo. - Muito encantadora!
Hugh observava, espantado e feliz, Nora conversar jovialmente com o Príncipe de Gales.
Ontem, ela era uma pária social, a prova viva de que não se pode aparentar o que não se é. Fizera o banco perder um grande contrato e lançara a carreira de Hugh
a um impasse. Agora, era invejada por todas as mulheres no salão: suas roupas eram perfeitas, as maneiras encantadoras, e flertava com o herdeiro do trono. E a transformação fora promovida por Maisie.
Hugh olhou para Tia Augusta, parada nas proximidades, com Tio Joseph ao seu lado. Ela não desviava os olhos de Nora e do príncipe. Tentava parecer despreocupada, mas Hugh podia perceber que se sentia horrorizada. Como isso deve enfurecê-la, pensou Hugh, saber que Maisie, a moça da classe inferior que desdenhara seis anos antes, é agora muito mais influente do que ela.
Sidney Madler aproximou-se no momento mais oportuno e perguntou a Joseph, com um ar incrédulo:
- É aquela a mulher que você diz ser irremediavelmente imprópria para esposa de um banqueiro?
Antes que Joseph pudesse responder Augusta interveio, num tom suave, que só podia enganar quem não a conhecesse:
- Ela fez o banco perder um grande contrato.
- Não fez, não - protestou Hugh. - O negócio está sendo fechado. Augusta virou-se para Joseph.
- O conde De Tokoly não interferiu?
- Ele parece ter superado o seu acesso de ressentimento muito depressa - respondeu Joseph.
Augusta tinha de fingir estar satisfeita.
- Ainda bem - murmurou ela, mas com uma insinceridade evidente.
- De um modo geral, a necessidade financeira sempre acaba prevalecendo sobre os preconceitos sociais - comentou Madler.
- Tem toda a razão - concordou Joseph. - Talvez eu tenha sido um pouco precipitado ao negar sociedade a Hugh.
Augusta tornou a interferir, numa voz de doçura venenosa:
- Mas o que está dizendo, Joseph?
- Falamos de negócios, minha cara... conversa de homens. Não precisa se preocupar com essas coisas. - Ele virou-se para Hugh. - Não queremos que você trabalhe para o Greenbournes.
Hugh não sabia o que dizer. Sabia que Sidney Madler protestara com veemência, e que Tio Samuel o apoiara... mas era quase sem precedentes Tio Joseph reconhecer um erro. E, no entanto, pensou ele com crescente excitamento, por que outro motivo Joseph estaria abordando o assunto?
- Sabe por que Vou para o Greenbournes, Tio.
- Nunca o farão sócio, e sabe disso. Só se fosse judeu.
- Estou a par da situação.
- Nessas circunstâncias, não prefere trabalhar para a família? Hugh sentiu-se decepcionado: no final das contas, Joseph apenas tentava persuadi-lo a continuar como empregado.
- Não, não prefiro trabalhar para a família - respondeu ele, indignado. Percebeu que o tio se sentia consternado com a intensidade de seu sentimento, mas continuou:
- Para ser franco, prefiro trabalhar para os Greenbournes, onde estarei livre das intrigas de família... - Hugh lançou um olhar desafiador para Augusta -... e onde minhas responsabilidades e recompensas dependeriam exclusivamente de minha capacidade como banqueiro.
Augusta disse, em tom escandalizado:
- Prefere judeus à sua própria família?
- Fique fora disso! - ordenou Joseph, bruscamente. - Sabe por que toquei no assunto, Hugh. Mr. Madler acha que o desapontamos dos os sócios se preocupam com a possibilidade de você levar nossos negócios norte-americanos quando sair.
Hugh tentou se controlar. Era o momento de impor um acordo firme.
- Eu não voltaria atrás nem que dobrasse meu salário - declarou ele, queimando seus navios. - Só pode me oferecer uma coisa para me fazer mudar de idéia: a sociedade.
Joseph suspirou.
- Você é o próprio demônio para se negociar. Madler interveio:
- Como todo bom banqueiro deve ser.
- Muito bem - disse Joseph, depois de um longo momento. - Eu lhe ofereço sociedade.
Hugh sentiu-se tonto. Eles recuaram, pensou. Cederam. E eu venci. Mal podia acreditar que acontecera de fato.
Olhou para Augusta. Seu rosto era uma máscara rígida de autocontrole, mas ela não disse nada: sabia que perdera.
- Neste caso... - disse ele, e hesitou, saboreando o momento. Respirou fundo. - Neste caso, eu aceito.
Augusta finalmente perdeu a compostura. Ficou vermelha, os olhos pareceram esbugalhar.
- Vão se arrepender pelo resto de suas vidas! - exclamou ela, afastando-se em seguida.
Ela abriu passagem pela multidão no salão de baile, a caminho da porta. As pessoas a fitavam e se mostravam nervosas. Augusta compreendeu que sua raiva transparecia e desejou poder ocultar seus sentimentos, mas estava transtornada demais. Todas as pessoas que ela detestava e desprezava haviam triunfado. A desgraçada Maisie, o miserável Hugh e a lamentável Nora haviam frustrado seus esforços e conseguido o que queriam. O estômago de Augusta se contraía em frustração e náusea.
Acabou passando pela porta e saiu para o patamar do segundo andar, onde a multidão não era tão densa. Abordou um lacaio que passava.
- Chame imediatamente a carruagem de Mrs. Pilaster! - ordenou ela.
Ele saiu em disparada. Pelo menos ela ainda podia intimidar os lacaios.
Deixou a festa sem falar com mais ninguém. O marido podia ir para casa num fiacre. Ferveu de raiva por todo o caminho até Kensington. Ao chegar em casa deparou com o mordomo, Hastead, no vestíbulo.
- Mr. Hobbes está à espera na sala de estar - anunciou ele, sonolento. - Eu disse que a senhora talvez não voltasse antes do amanhecer, mas ele insistiu em esperar.
- Mas o que ele quer?
- Não me informou, madame.
Augusta não sentia a menor disposição para falar com o editor de The Fórum. O que ele vinha fazer em sua casa de madrugada? Ficou tentada a ignorá-lo e subir direto para seu quarto, mas depois se lembrou do pariato e decidiu que era melhor atendê-lo.
Foi para a sala de estar. Hobbes dormia ao lado do fogo agonizante na lareira.
- bom dia! - disse Augusta quase gritando.
Ele estremeceu; levantou-se de um pulo, fitando-a através dos óculos sujos.
- Mrs. Pilaster! Boa... ah, sim, bom dia.
- O que o traz aqui a esta hora?
- Achei que gostaria de ser a primeira a ver isto - respondeu Hobbes, estendendo um exemplar do jornal.
Era o novo número de TheFonim, ainda quente, recendendo a tinta. Augusta abriu a primeira página e leu a manchete do artigo principal:
UM JUDEU PODE SE TORNAR UM LORDE?
Ela se reanimou. O fiasco daquela noite fora apenas uma derrota, lembrou a si mesma. Havia outras batalhas a serem travadas. Leu os primeiros parágrafos.
Esperamos que não haja qualquer procedência, nos rumores que circulam em Westminster e nos clubes de Londres, de que o primeiro-ministro cogita da concessão de um pariato a um proeminente banqueiro da raça e fé judaicas.
Nunca fomos a favor da perseguição a religiões pagas. Contudo, a tolerância pode ir longe demais. Oferecer a mais alta honraria a quem rejeita a salvação cristã seria uma atitude perigosamente próxima da blasfêmia.
É verdade que o próprio primeiro-ministro é judeu por nascimento. Mas converteu-se, e prestou o juramento de lealdade a Sua Majestade sobre a Bíblia cristã. Assim,não houve qualquer dúvida institucional em sua elevação à nobreza. Mas temos de indagar se o banqueiro sem batismo, o homem indicado pelos rumores, estaria disposto a fazer uma concessão à sua fé a ponto de jurar sobre o Antigo e Novo Testamento juntos. Se ele insistisse em só fazê-lo pelo Antigo Testamento, como os bispos da Câmara dos Lordes poderiam admitir tal atitude sem protestos?
Não temos a menor dúvida de que se trata de um cidadão leal e um honesto homem de negócios...
Havia muito mais no mesmo estilo. Augusta ficou satisfeita. Levantou os olhos do jornal e comentou:
- bom trabalho. Deve ter a maior repercussão.
- Espero que sim. - Num gesto rápido, Hobbes enfiou a mão dentro do paletó e tirou um papel. - Tomei a liberdade de efetuar a compra do prelo de que falei. A nota...
- Vá ao banco pela manhã - disse Augusta, ríspida, ignorando o papel estendido.
Ela nunca conseguia ser cortês com Hobbes por muito tempo, nem mesmo quando ele a servia da melhor maneira possível. Algo em seu comportamento a irritava. Fez um esforço para ser mais afável e acrescentou, abrandando a voz:
- Meu marido lhe dará um cheque. Hobbes fez uma mesura.
- Neste caso, peço licença para me retirar.
Ele saiu. Augusta deixou escapar um suspiro de satisfação. Seria uma lição para todos. Maisie Greenbourne pensava que era a líder da sociedade de Londres. Podia dançar com o Príncipe de Gales a noite inteira, mas não era capaz de lutar contra o poder da imprensa. Os Greenbournes levariam muito tempo para se recuperarem daquele ataque. E, enquanto isso, Joseph obteria seu pariato.
Sentindo-se melhor, ela sentou-se para reler o artigo.
Hugh despertou exultante na manhã seguinte ao baile. A esposa fora aceita na alta sociedade, e ele se tornaria sócio do Pilasters Bank. A sociedade lhe proporcionava a oportunidade de não apenas ganhar milhares de libras, mas também, ao longo dos anos, centenas de milhares. Um dia seria rico.
Solly ficaria desapontado ao saber que Hugh não iria trabalhar para ele, no final das contas. Mas Solly era um homem afável e compreenderia a situação.
Hugh vestiu o chambre. Pegou na gaveta da mesinha de cabeceira uma caixa de jóia embrulhada para presente, pôs no bolso e foi para o quarto da esposa.
O quarto de Nora era grande, mas sempre parecia apertado. As janelas, os espelhos e a cama tinham cortinas estampadas de seda, o chão era coberto por tapetes espessos, as cadeiras ostentavam almofadas bordadas, e cada prateleira e tampo de mesa se achavam ocupados por retratos emoldurados, bonecas e caixinhas de porcelana e outros objetos similares. As cores predominantes eram as prediletas de Nora, rosa e azul, mas quase todas as outras se encontravam em algum lugar, no papel de parede, nas roupas de cama, nas cortinas ou nos estofamentos.
Nora estava sentada na cama cercada por travesseiros de rendas, tomando chá. Hugh sentou-se na beira da cama e disse:
- Você foi maravilhosa ontem à noite.
- Dei uma lição em todo mundo! - exclamou ela, satisfeita consigo mesma. - Dancei com o Príncipe de Gales.
- Ele não parava de olhar para seu busto.
Hugh estendeu a mão, acariciou os seios da esposa através da seda da camisola abotoada até o pescoço. Ela empurrou sua mão para o lado, irritada.
- Agora não, Hugh! Ele sentiu-se magoado.
- Por que não?
- É a segunda vez esta semana.
- Assim que casamos, costumávamos fazer constantemente.
- Mas foi assim que casamos. Uma mulher não espera ter de fazer isso todos os dias para sempre.
Hugh franziu o cenho. Ficaria feliz se pudesse fazer todos os dias, para sempre... afinal, o casamento não era para isso? Mas ele não sabia o que era normal. Talvez fosse superativo. - com que freqüência acha que deveríamos fazer? - indagou, indeciso.
Nora parecia satisfeita com a pergunta, como se aguardasse uma oportunidade para esclarecer o assunto.
- Não mais que uma vez por semana - respondeu ela com firmeza.
- É mesmo?
O sentimento de exultação de Hugh se desvaneceu, e ele foi dominado por uma súbita depressão. Uma semana parecia tempo demais. Acariciou a coxa de Nora através dos lençóis.
- Talvez um pouco mais do que isso.
- Não! - disse ela, afastando a perna.
A perturbação de Hugh era intensa. Houvera um tempo em que ela se mostrava entusiasmada com o ato de amor. Fora uma coisa que desfrutavam juntos. Como pudera se transformar num dever que ela cumpria em benefício do marido? Será que Nora jamais gostara, apenas fingia? Havia algo terrivelmente depressivo nessa idéia.
Ele não sentia mais vontade de lhe dar o presente, mas já o comprara e não queria levar de volta à loja.
- Seja como for, comprei isto para você a fim de comemorar seu triunfo no baile de Maisie Greenbourne - murmurou ele, meio triste, estendendo a caixa.
A atitude da esposa mudou no mesmo instante.
- Oh, Hugh, você sabe como eu adoro presentes!
Ela tirou a fita e abriu a caixa. Continha um pingente no formato de um buquê de flores, com rubis e safiras em hastes de ouro. Pendia de uma corrente de ouro.
- É lindo! - exclamou Nora.
- Pois então ponha-o.
Ela enfiou pela cabeça. Não se destacava muito sobre a camisola.
- Ficará melhor com um vestido decotado - comentou Hugh.
Nora ofereceu-lhe um olhar coquete e começou a desabotoar a camisola. Hugh observava, na maior ansiedade, enquanto ela expunha mais e mais do busto. A jóia se aninhou entre os seios como uma gota de chuva num botão de rosa. Ela sorriu para Hugh; continuou a abrir a camisola e depois puxou-a, mostrando os seios.
- Não quer beijá-los, Hugh?
Ele não sabia agora o que pensar. Nora brincava com ele ou queria mesmo fazer amor? Ele inclinou-se, beijou os seios com a jóia aninhada no meio. Pegou o mamilo entre os lábios, sugou gentilmente.
- Venha para a cama - sussurrou Nora.
- Mas você disse...
- Uma mulher tem de demonstrar sua gratidão, não é mesmo?
Ela empurrou as cobertas para o lado. Hugh sentia-se angustiado. Fora a jóia que a fizera mudar de idéia. Mesmo assim, ele não foi capaz de resistir ao convite. Tirou a roupa, odiando-se por ser tão fraco, e se estendeu na cama ao lado de Nora.
Ao gozar, sua vontade era chorar.
Havia uma carta de Tonio Silva na correspondência da manhã.
Tonio sumira pouco depois que Hugh o encontrara na Plage"s Coffee House. Nenhum artigo aparecera em The Times. Hugh parecera um tanto tolo por ter feito tamanho estardalhaço sobre o perigo para o banco. Edward aproveitava todas as oportunidades para lembrar aos sócios o alarme falso de Hugh. Contudo, o incidente fora ofuscado pela ameaça de Hugh de ir trabalhar para os Greenbournes.
Hugh escrevera para o Hotel Russe mas não recebera nenhuma resposta. Preocupara-se com o amigo, contudo não podia fazer mais nada.
Abriu a carta com ansiedade. Vinha de um hospital e pedia a Hugh para visitá-lo. Ao final, recomendava: "O que quer que faça, não conte a ninguém onde estou!"
O que teria acontecido? Tonio se encontrava em perfeita saúde dois meses atrás. E por que se encontrava num hospital público? Hugh ficou consternado. Apenas os pobres se internavam em hospitais, que eram lugares sujos, insalubres; quem tinha recursos ficava em casa, contratando médicos e enfermeiras até mesmo para operações.
Aturdido e preocupado, Hugh seguiu direto para o hospital. Encontrou Tonio numa enfermaria escura em que havia 30 leitos. Seu cabelo vermelho fora raspado, o rosto e a cabeça exibiam diversas cicatrizes.
- Santo Deus! - exclamou Hugh. -Você foi atropelado?
- Espancado.
- O que aconteceu?
- Fui atacado na rua, perto do Hotel Russe, há dois meses.
- E foi roubado, suponho.
- Isso mesmo.
- Você está horrível!
- Não é tão ruim quanto parece. Quebrei um dedo e um tornozelo, mas fora isso só sofri talhos e equimoses... embora muitos. Mas já estou melhor agora.
- Deveria ter me procurado antes. Precisamos tirá-lo daqui. Mandarei meu médico para você e providenciarei uma enfermeira...
- Não, obrigado, meu caro amigo. Agradeço sua generosidade, mas o dinheiro não é o único motivo para a minha permanência aqui. Também é mais seguro. Além de você, só há uma pessoa que sabe onde estou, um colega de confiança que me traz comida, conhaque e mensagens de Córdoba. Espero que não tenha contado a ninguém que vinha me visitar.
- Nem mesmo à minha esposa.
- Ainda bem.
A antiga temeridade de Tonio parecia ter acabado, pensou Hugh; e ele passara para o outro extremo.
- Mas não pode ficar no hospital pelo resto de sua vida para se esconder dos assaltantes que rondam pelas ruas.
- As pessoas que me atacaram não eram meros ladrões, Pilaster. Hugh tirou o chapéu e sentou na beira da cama. Tentou ignorar os gemidos intermitentes do homem na cama ao lado.
- Conte-me o que aconteceu.
- Não foi um assalto comum. Pegaram minha chave e usaram-na para entrar em meu quarto. Não levaram nada de valor, apenas os papéis relacionados com meu artigo para The Times, inclusive os depoimentos assinados pelas testemunhas.
Hugh ficou horrorizado. Sentiu um frio no coração ao pensar que transações respeitáveis, discutidas nas salas solenes do Pilasters, podiam ter qualquer ligação com o crime violento nas ruas e o rosto desfigurado à sua frente.
- Quase parece que o banco está sob suspeita!
- Não o banco - disse Tonio. - O Pilasters é uma instituição poderosa, mas não creio que pudesse organizar assassinatos em Córdoba.
- Assassinatos? - A situação se tornava cada vez pior. - Quem foi assassinado?
- Todas as testemunhas cujos nomes e endereços constavam dos depoimentos que foram roubados do meu quarto no hotel.
- Não dá para acreditar!
- Tenho sorte de continuar vivo. Acho que teriam me matado também se não fosse pelo fato de os crimes serem investigados com mais rigor em Londres do que em Córdoba.
Ficaram com medo das repercussões.
Hugh ainda se achava atordoado e indignado pela revelação de que pessoas haviam sido assassinadas por causa de um lançamento de títulos pelo Pilasters Bank.
- Mas quem está por trás de tudo isso?
- Micky Miranda.
Hugh balançou a cabeça, incrédulo.
- Não gosto de Micky, como sabe, mas não posso acreditar que ele faria isso.
- A Ferrovia Santamaria é vital para ele. Fará com que sua família se torne a segunda mais poderosa do país.
- Sei disso, e não duvido que Micky seria capaz de violar várias regras para alcançar seus objetivos. Mas ele não é um assassino.
- É, sim! - garantiu Tonio.
- Ora, pare com isso!
- Sei com certeza. Nem sempre agi como se soubesse... para dizer a verdade, tenho sido um idiota em relação a Miranda. Mas isso acontece porque ele tem um charme
irresistível. Por algum tempo, ele me fez pensar que era meu amigo. A verdade é que ele é um demônio, e sei disso desde o tempo de colégio.
- Como poderia?
Tonio mudou de posição na cama.
- Sei o que realmente aconteceu há 13 anos, na tarde em que Peter Middleton se afogou no poço em Bishop's Wood.
Hugh sentiu um calafrio. Há anos que vinha especulando a respeito. Peter Middleton era um excelente nadador: era bastante improvável que tivesse morrido por acidente.
Hugh se convencera há muito de que ele fora vítima de algum ato infame. Talvez, finalmente, fosse descobrir a verdade.
- Continue, meu caro. Mal posso esperar para ouvir toda a história. Tonio hesitou.
- Poderia me dar um pouco de vinho?
Havia uma garrafa de Madeira no chão, ao lado da cama. Hugh despejou num copo. Enquanto Tonio tomava um gole, Hugh recordou o calor daquele dia, o ar parado em Bishop's Wood, as paredes rochosas do poço e a água fria, muito fria.
- O juiz que presidiu o inquérito foi informado de que Peter se encontrava em dificuldades na água. Nunca lhe contaram que Edward empurrou sua cabeça para dentro d'água várias vezes.
- Até aí eu sei - interrompeu Hugh. - Recebi uma carta de "Hump" Cammel, da Colônia do Cabo. Ele assistiu do outro lado do poço. Mas não ficou para ver até o fim.
- Isso mesmo. Você escapou, e Hump foi embora. Só Peter, Edward, Micky e eu continuamos ali.
- O que aconteceu depois que fui embora? - perguntou Hugh, impaciente.
- Saí da água e joguei uma pedra em Edward. Acertou no meio da testa, e saiu sangue. Ele parou de atormentar Peter e foi atrás de mim. Subi pelo lado da pedreira, tentando escapar.
- Edward nunca foi rápido, nem mesmo naquele tempo - comentou Hugh.
- É verdade. Consegui me distanciar, e na metade do paredão olhei para trás. Micky continuava a atormentar Peter. Peter nadara para a beira do poço e tentava sair
da água, mas Micky empurrava sua cabeça para baixo. Só olhei para os dois por um momento, mas pude ver nitidamente o que acontecia. E, depois, continuei a subir.
Ele tomou outro gole de vinho.
- Quando cheguei lá em cima, tornei a olhar para trás. Edward ainda me seguia, mas se encontrava muito longe, e tive tempo de recuperar o fôlego. - Tonio fez uma pausa, e uma expressão de repulsa estampou-se no rosto deformado. - A esta altura, Micky entrara na água, junto com Peter. O que vi... com absoluta nitidez, e ainda posso ver na minha memória como se tivesse acontecido ontem... foi Micky mantendo Peter debaixo d'água. Peter se debatia, mas Micky prendia sua cabeça com o braço e ele não conseguia se desvencilhar. Micky estava afogando Peter. Não tenho a menor dúvida sobre isso. Foi mesmo um assassinato.
- Santo Deus! - balbuciou Hugh. Tonio balançou a cabeça.
- Mesmo agora, ainda me sinto mal só de pensar a respeito. Não sei por quanto tempo fiquei olhando para os dois. Edward quase me alcançou. Peter parará de se debater, e seus movimentos eram cada vez mais lentos quando Edward chegou à beira da pedreira e tive de fugir.
- Então foi assim que Peter morreu... Hugh estava aturdido e horrorizado.
- Edward seguiu-me pelo bosque por algum tempo, mas logo perdeu o fôlego e me livrei dele. Depois, encontrei você.
Hugh recordou Tonio aos 13 anos vagueando por Bishop's Wood, nu, todo molhado, carregando suas roupas e chorando. A lembrança trouxe de volta o choque e a dor que sofrerá mais tarde, naquele mesmo dia, quando soubera da morte do pai.
- Mas por que você nunca contou a ninguém o que tinha visto?
- Sentia medo de Micky... medo de que ele pudesse fazer comigo o que fizera com Peter. Ainda tenho medo de Micky... olhe só como estou! Você também deveria ter medo dele.
- E tenho, não se preocupe. - Hugh pensou por um momento. - Quer saber de uma coisa? Não acredito que Edward e sua mãe soubessem de toda a verdade.
- O que o leva a pensar assim?
- Eles não tinham motivos para proteger Micky. Tonio parecia em dúvida.
- Edward poderia fazê-lo por amizade.
- Talvez... embora eu duvide que ele pudesse guardar o segredo por mais de um ou dois dias. Seja como for, Augusta sabia que a história que eles contaram sobre Edward tentando salvar Peter era mentira.
- Como ela podia saber?
- Minha mãe contou a ela. O que significa que Augusta estava envolvida no encobrimento da verdade. Posso acreditar que Augusta diria qualquer mentira para proteger o filho... mas não Micky. Ela nem mesmo o conhecia naquele tempo.
- Então o que acha que aconteceu? Hugh franziu o cenho.
- Imagine a cena. Edward desiste de alcançar você e volta para o poço. Encontra Micky tirando o corpo de Peter da água. Quando Edward aparece, Micky diz: "Você o matou!" Lembre-se de que Edward não vira Micky mantendo a cabeça de Peter dentro d'água. Micky alega que Peter ficou tão cansado com os caldos dados por Edward que não conseguiu mais nadar e se afogou. "O que Vou fazer?" pergunta Edward. E Micky responde: "Não se preocupe. Diremos que foi um acidente. Mais do que isso, diremos que você pulou na água para tentar salvá-lo". com isso, Micky encobre seu próprio crime e ainda ganha a gratidão eterna de Edward e Augusta. Faz sentido?
Tonio concordou com a cabeça.
- Por Deus, acho que você está certo!
- Devemos procurar a polícia - declarou Hugh, furioso.
- com que propósito?
- Você é testemunha de um crime. O fato de ter acontecido há 13 anos não faz a menor diferença. Micky deve ser levado a julgamento.
- Está esquecendo uma coisa, Hugh. Micky tem imunidade diplomática.
Hugh não pensara nisso. Como embaixador cordovês, Micky não poderia ser julgado na Inglaterra.
- Ainda assim, podemos fazê-lo cair em desgraça, o que o obrigaria a voltar a seu pais.
Tonio sacudiu a cabeça.
- Sou a única testemunha. Micky e Edward contarão uma história diferente. E todos sabem que a família de Micky e a minha são inimigas em Córdoba. Mesmo que tivesse ocorrido ontem, teríamos dificuldade para convencer alguém. - Tonio fez uma pausa. - Mas você pode querer contar a Edward que ele não é um assassino.
- Acho que ele não acreditaria em mim. Acharia que estou tentando jogá-lo contra Micky. Mas há uma pessoa a quem devo contar.
- Quem?
- David Middleton.
- Por quê?
- Ele tem o direito de saber como o irmão morreu. Interrogou-me a respeito no baile da duquesa de Tenbigh. Foi um tanto grosseiro, para ser franco. Mas eu disse que, se soubesse a verdade, seria obrigado pela honra a revelá-la. Vou procurá-lo hoje mesmo.
- Acha que ele falará com a polícia?
- Presumo que chegará à conclusão de que seria inútil, como nós dois compreendemos. - Subitamente, Hugh sentiu-se sufocado pela enfermaria escura e miserável e pela sombria conversa sobre um crime do passado. Levantou-se. - É melhor eu voltar ao trabalho. Vou ser promovido a sócio do banco.
- Meus parabéns. Tenho certeza de que você merece. - Tonio se mostrou esperançoso. - Acha que poderá impedir o financiamento para a Ferrovia Santamaria?
Hugh sacudiu a cabeça.
- Sinto muito, Tonio. Por mais que eu deteste o projeto nada mais posso fazer a respeito. Edward fez um acordo com o Greenbournes Bank para o lançamento conjunto dos títulos. Os sócios dos dois bancos já aprovaram a operação e os contratos estão sendo elaborados. Receio termos perdido essa batalha.
- Droga!
Tonio estava desolado.
- Sua família terá de encontrar outros meios de se opor aos Mirandas.
- Receio que se torne impossível detê-los.
- Sinto muito - repetiu Hugh. Um novo pensamento ocorreu-lhe, e ele franziu o cenho, perplexo. - Você resolveu um mistério para mim, Tonio. Eu não podia compreender como Peter se afogara, já que ele era um excelente nadador. Mas sua resposta provoca um mistério ainda maior.
- Não entendi.
Pense um pouco. Peter nadava inocentemente; Edward deu-lhe alguns caldos, por pura maldade; todos fugimos; Edward foi atrás de você... e Micky aproveitou para matar Peter a sangue frio. Isso nada tem a ver com o que aconteceu antes. Então o que aconteceu? O que Peter terá feito?
Tem toda a razão. Também é um mistério para mim há anos.
Micky Miranda assassinou Peter Middleton... mas por quê?
Julho
Augusta se comportou como uma galinha que pusera um ovo no dia em que o pariato de Joseph foi anunciado. Micky foi para a casa na hora do chá, como sempre, e encontrou a sala de estar apinhada de pessoas dando os parabéns a ela por se tornar a condessa de Whitehaven. O mordomo Hastead exibia um sorriso presunçoso, e dizia "milady" em todas as oportunidades.
Ela era incrível, refletiu Micky enquanto observava as pessoas zumbindo ao redor de Augusta como as abelhas no jardim ensolarado, além das janelas abertas. Augusta planejara sua campanha como um general. Em determinado momento, circulara o rumor de que Ben Greenbourne receberia o pariato, mas essa perspectiva fora liquidada pela explosão de um sentimento anti-semita na imprensa. Augusta não admitia, nem mesmo para Micky, que se encontrava por trás dessa manifestação da imprensa, mas ele tinha certeza disso. Sob alguns aspectos, ela lembrava seu pai: Papa tinha a mesma determinação implacável. Mas Augusta era mais esperta. A admiração de Micky por ela aumentava com o passar dos anos.
A única pessoa que conseguira derrotar sua astúcia fora Hugh Pilaster. Era incrível como parecia difícil destruí-lo. Como uma erva daninha persistente, Hugh podia ser arrancado de seu lugar várias vezes, mas sempre voltava a crescer, mais forte do que nunca.
Ainda bem que Hugh não fora capaz de impedir o financiamento para a Ferrovia Santamaria. Micky e Edward haviam demonstrado serem mais fortes do que Hugh e Tonio.
- Por falar nisso - disse Micky a Edward enquanto tomavam chá, - quando você vai assinar o contrato com o Greenbournes?
- Amanhã.
- Excelente!
Micky ficaria aliviado quando o negócio fosse finalmente sacramentado. Arrastava há meio ano, e Papa agora enviava cabogramas furiosos todas as semanas indagando se algum dia receberia o dinheiro.
Naquela noite, Micky e Edward jantaram no Cowes Club. Ao longo da refeição, Edward foi interrompido várias vezes por pessoas que lhe davam os parabéns. Um dia ele herdaria o título. Micky sentia-se satisfeito. Sua associação com Edward e os Pilasters fora um fator fundamental em tudo o que conseguira, e mais prestígio para os Pilasters significaria mais poder para Micky.
Depois do jantar, foram para a sala de fumantes. Haviam sido os primeiros a jantar, e por algum tempo ficaram sozinhos ali.
- Cheguei à conclusão de que os ingleses têm pavor de suas esposas - comentou Micky enquanto acendiam os charutos. - É a única explicação possível para o clube londrino.
- Mas do que você está falando?
- Olhe ao redor. Este lugar é exatamente como a sua casa, ou a minha. Móveis elegantes, criados por toda parte, comida insossa e bebida ilimitada. Podemos fazer todas as nossas refeições aqui, receber a correspondência, ler os jornais, tirar um cochilo; e se ficarmos bêbados demais para conseguir entrar num fiacre, podemos até arrumar uma cama para passar a noite. A única diferença entre o clube de um inglês e sua casa é a de que no clube não existem mulheres.
- Quer dizer que vocês não têm clubes assim em Córdoba?
- Claro que não. Ninguém se tornaria sócio. Se um cordovês quiser beber, jogar cartas, conversar sobre política, falar de prostitutas, fumar, arrotar e peidar com
o todo conforto, faz isso em sua própria casa; e se a esposa é tola o bastante para protestar, ele a espanca até que veja a luz da razão. Mas um cavalheiro inglês tem tanto medo da esposa que sai de casa para se divertir. É por isso que existem os clubes.
- Você não parece ter medo de Rachel. Livrou-se dela, não é mesmo?
- Mandei-a de volta para a mãe - disse Micky, jovial.
Não fora bem assim que acontecera, mas ele não contaria a verdade a Edward.
- As pessoas devem notar que ela não cumpre mais suas funções na embaixada. Ninguém comenta?
- Digo a todo mundo que está com problemas de saúde.
- Mas todos sabem que Rachel está tentando abrir um hospital para mulheres solteiras terem filhos. É um escândalo público.
- Não tem importância. As pessoas se compadecem de mim por ter uma esposa difícil.
- Vai se divorciar?
- Não. Isso é que seria um verdadeiro escândalo. Um diplomata não pode se divorciar. Terei de continuar casado enquanto for o embaixador cordovês, infelizmente.
Graças a Deus que ela não engravidou antes de ir embora.
Era um milagre que isso não tivesse acontecido, pensou Micky. Talvez ela fosse estéril. Ele acenou para um garçom e pediu outro conhaque, antes de acrescentar, hesitante:
- Por falar em esposas, o que me diz de Emily? Edward parecia embaraçado.
- Eu a vejo tão pouco quanto você vê Rachel. Comprei uma casa de campo em Leicestershire há algum tempo... e ela passa todo o tempo lá.
- Portanto, somos solteiros outra vez. Edward sorriu.
- Nunca fomos outra coisa, não é mesmo?
Micky olhou através da sala vazia e avistou o vulto corpulento de Solly Greenbourne à porta. Por algum motivo, sua presença fez Micky se sentir nervoso... o que era estranho, porque Solly era o homem mais inofensivo de Londres.
- Lá vem outro amigo para lhe dar os parabéns - disse Micky a Edward, enquanto Solly se aproximava.
Quando Solly chegou perto, no entanto, Micky compreendeu que ele não ostentava seu sorriso amável habitual. Na verdade, parecia muito zangado. O que era raro. Micky concluiu, intuitivamente, que era algum problema com a operação da Ferrovia Santamaria. Disse a si mesmo que estava se preocupando como uma velha. Mas Solly nunca se irritava... A ansiedade levou Micky a demonstrar uma falsa cordialidade.
- Olá, Solly, meu caro... como vai o gênio da City?
Só que Solly não estava interessado em Micky. Sem ao menos responder ao cumprimento, virou as costas a Micky e confrontou Edward.
- Pilaster, você não presta!
Micky ficou atônito e horrorizado. Solly e Edward estavam a ponto de assinar o acordo. Aquilo era muito grave... Solly nunca discutia com as pessoas. O que teria acontecido? Edward também se encontrava surpreso.
- Mas do que você está falando, Greenbourne? com o rosto vermelho, Solly mal conseguia falar.
- Descobri que você e aquela bruxa a que chama de mãe é que estão por trás daqueles artigos sórdidos em The Fórum.
- Oh, não! - murmurou Micky para si mesmo, consternado.
Era uma catástrofe. Desconfiara do envolvimento de Augusta, embora não tivesse qualquer prova... mas como Solly descobrira? A mesma pergunta ocorreu a Edward.
- Quem encheu sua cabeça gorda com tamanha podridão?
- Uma das amigas de sua mãe é dama de companhia da rainha. Micky calculou que ele se referia a Harriet Morte: Augusta parecia ter algum poder sobre ela. Solly continuou:
- Ela revelou o segredo... contou tudo ao Príncipe de Gales. Acabei de conversar com ele.
Solly devia estar quase insano de raiva ao falar de uma forma tão indiscreta sobre uma conversa particular com a realeza, pensou Micky. Tratava-se de uma alma doce sendo pressionada a um ponto excessivo. Ele não podia imaginar como uma briga assim poderia ser reparada... pelo menos não a tempo para a assinatura do contrato no dia seguinte. Desesperado, tentou acalmar os ânimos.
- Solly, meu caro, não pode ter certeza de essa história ser verdadeira... Solly virou-se para ele. Tinha os olhos arregalados, o rosto coberto de suor.
- Não posso? Quando leio no jornal de hoje que Joseph Pilaster recebeu o pariato que deveria ser concedido a Ben Greenbourne?
- Mesmo assim...
- Pode imaginar o que isso significa para meu pai?
Micky começou a compreender como a armadura da cordialidade de Solly fora rompida. Não era por si mesmo que ele estava furioso, mas pelo pai. O avô de Ben Greenbourne chegara a Londres com o fardo de peles russas, uma nota de cinco libras e um buraco na botina. Para Ben, ocupar um lugar na Câmara dos Lordes seria o supremo símbolo de aceitação na sociedade inglesa. Por outro lado, não havia a menor dúvida de que Joseph também gostaria de coroar sua carreira com um pariato - sua família também se elevara pelos próprios esforços, - mas seria uma realização muito maior para um judeu. O pariato de Greenbourne seria um triunfo não apenas para si mesmo e sua família, mas também para toda a comunidade judaica na Grã-Bretanha.
- Não posso evitar que você seja um judeu - disse Edward. Micky apressou-se em interferir:
- Não deveriam deixar que seus pais interferissem entre vocês dois. Afinal, estão associados num grande empreendimento...
- Não seja idiota, Miranda! - gritou Solly com uma fúria que fez Micky se encolher. - Pode esquecer a Ferrovia Santamaria ou qualquer outro empreendimento com o Greenbournes Bank. Depois que nossos sócios ouvirem essa história, nunca mais vão querer fazer qualquer negócio com os Pilasters.
Micky sentiu a bílis subir pela garganta enquanto observava Solly deixar a sala. Era fácil esquecer como aqueles banqueiros eram poderosos... em particular o despretensioso Solly. Contudo, num momento de fúria, ele era capaz de liquidar todas as esperanças de Micky com uma única frase.
- Mas que insolência! - murmurou Edward. - Típica de judeu. Micky quase lhe disse para se calar. Edward sobreviveria ao colapso daquele negócio, mas talvez Micky não conseguisse. Papa ficaria desapontado e irado, procuraria alguém para punir, e Micky teria de suportar todo o impacto de sua raiva.
Será que não havia mesmo qualquer esperança? Ele tentou parar de se sentir destruído, e começou a pensar. Poderia fazer alguma coisa para evitar que Solly cancelasse a operação? Se houvesse, teria de agir depressa, pois após Solly revelar o que descobrira aos outros Greenbournes, todos se poriam contra o negócio.
Conseguiria dissuadir Solly?
Micky tinha de tentar.
Levantou-se abruptamente.
- Onde você vai? - perguntou Edward.
Micky decidiu não dizer a Edward o que tinha em mente.
- À sala de jogo. Não quer jogar?
- Claro que quero.
Edward também se levantou e os dois saíram da sala. Na base da escada, Micky desviou-se para o banheiro, avisando:
- Pode subir... eu o alcançarei num instante.
Edward subiu. Micky foi para o vestiário, pegou o chapéu e a bengala e passou apressado pela porta da frente.
Olhou para um lado e outro da Pall Mall, apavorado com a possibilidade de Solly já ter desaparecido de vista. Era o crepúsculo, os lampiões a gás começavam a ser acesos. Micky não avistou Solly em parte alguma. Só depois de algum tempo é que o divisou, a uns cem metros de distância, um vulto corpulento, de cartola, encaminhando-se em passos rápidos para St. James"s.
Micky partiu em seu encalço.
Explicaria a Solly como a ferrovia era importante para ele e Córdoba. Diria que Solly punia milhares de camponeses pobres por causa de uma atitude de Augusta. Solly tinha o coração mole; se conseguisse acalmá-lo, talvez a persuasão desse certo.
Ele dissera que acabara de conversar com o Príncipe de Gales. Isso significava que talvez ainda não tivesse contado a ninguém o segredo que o príncipe revelara
que Augusta promovera a campanha anti-judaica na imprensa. Ninguém ouvira a discussão no clube: só os três se encontravam no momento na sala de fumantes. Era bem provável que Ben Greenbourne ainda não soubesse que fora privado de seu pariato de uma forma fraudulenta.
Claro que a verdade poderia aflorar mais cedo ou mais tarde. O príncipe talvez contasse a outra pessoa. Mas o contrato deveria ser assinado no dia seguinte. Se fosse
possível guardar o segredo até lá, tudo acabaria bem. Depois disso, os Greenbournes e os Pilasters poderiam brigar até o Juízo Final, pois Papa já teria sua ferrovia.
A Pall Mall estava apinhada de prostitutas andando pelas calçadas, homens entrando e saindo dos clubes, os acendedores de lampiões empenhados em seu trabalho, carruagens e fiacres passando de um lado para outro. Micky tinha dificuldades para alcançar Solly. O pânico dominou-o. Solly entrou numa rua transversal, seguindo para sua casa, em Piccadilly.
Micky foi atrás. O movimento na rua transversal era menor. Micky desatou a correr.
- Greenbourne! - gritou ele. - Espere um instante!
Solly parou, virou-se, a respiração ofegante. Reconheceu Micky e tornou a se virar. Micky alcançou-o e segurou-o pelo braço.
- Preciso falar com você!
Solly ofegava tanto que mal podia falar.
- Tire a mão do meu braço! - balbuciou ele. Desvencilhando-se de Micky, ele continuou a andar. Micky foi atrás, segurando-o de novo. Solly tentou se livrar, mas desta vez Micky o segurava com firmeza.
- Quero que me escute!
- Eu disse para você me deixar em paz!
- Só um instante!
Micky começava a se sentir furioso. Mas Solly não queria escutar. Sacudiu o braço, soltando a mão de Micky, e continuou a andar.
Dois passos adiante chegou a um cruzamento e foi obrigado a parar no meio-fio, enquanto uma carruagem passava a toda velocidade. Micky aproveitou a oportunidade para falar outra vez:
- Solly, acalme-se! Só quero argumentar com você!
- Vá para o inferno!
A rua ficou livre. Para impedi-lo de continuar, Micky segurou Solly pelas lapelas. Solly se debateu, mas Micky manteve-se firme.
- Escute!
- Largue-me!
Solly livrou uma das mãos e acertou um soco no nariz de Micky. O golpe doeu, Micky sentiu o gosto de sangue. Largou o casaco de Solly e desferiu um soco em resposta, acertando no rosto.
Solly cambaleou para a rua. Nesse momento, os dois viram uma carruagem se aproximando em alta velocidade. Solly pulou de volta para a calçada, a fim de não ser atropelado.
Micky percebeu uma oportunidade.
Se Solly morresse, todos os seus problemas acabariam.
Não havia tempo para calcular as probabilidades, nenhuma margem para hesitação e ponderação.
Micky deu um violento empurrão em Solly, jogando-o na frente dos cavalos.
O cocheiro soltou um berro, puxando as rédeas. Solly tropeçou; viu os cavalos quase em cima dele quando caiu no chão, gritando.
Paralisado por um instante, Micky viu os cavalos avançando, as pesadas rodas da carruagem, o cocheiro apavorado e o corpo imenso e impotente de Solly caído de costas no meio da rua.
E depois os cavalos passaram por cima de Solly. Micky viu o corpo gordo se contorcer, atingido pelos cascos com ferraduras. A roda da frente da carruagem atingiu a cabeça de Solly, um golpe violento, e ele ficou inerte, inconsciente. Uma fração de segundo depois, a roda posterior passou sobre o seu rosto, esmagando o crânio como se fosse uma casca de ovo.
Micky virou-se. Pensou que ia vomitar, mas conseguiu controlar o impulso. E depois começou a tremer. Sentia-se fraco, meio tonto, teve de se encostar na parede.
Forçou-se a olhar para o corpo imóvel no meio da rua. A cabeça de Solly fora esmagada, o rosto se tornara irreconhecível, o sangue e mais alguma coisa espalhavam-se pela rua, ao seu lado. Ele estava morto.
E Micky se salvara.
Agora, Ben Greenbourne nunca saberia o que Augusta lhe fizera; a operação seria concretizada, a ferrovia construída e Micky viraria um herói em Córdoba.
Ele sentiu um filete quente no lábio. Seu nariz sangrava. Tirou o lenço do bolso e enxugou-o.
Olhou para Solly por mais um momento. Você só perdeu a calma uma vez na vida, e isso o matou, pensou Micky.
Olhou para um lado e outro da rua iluminada pelos lampiões a gás. Não havia ninguém por perto. Apenas o cocheiro vira o que acontecera.
A carruagem parou, estremecendo toda, 30 metros adiante. O cocheiro saltou, uma mulher olhou pela janela. Micky virou-se, afastando-se apressado, voltando para Pall Mall. Poucos segundos depois, ouviu o cocheiro gritar:
- Ei, você!
Micky andou mais depressa, virou a esquina para Pall Mall sem olhar para trás. Um momento depois, perdeu-se na multidão.
Por Deus, eu consegui! pensou ele. Agora que não podia mais ver o corpo mutilado, a sensação de repulsa começava a passar e o sentimento era de triunfo. O pensamento rápido e a ação ousada haviam lhe permitido superar mais um obstáculo.
Subiu apressado os degraus do clube. com um pouco de sorte, ninguém teria percebido sua ausência, ele esperava; mas ao passar pela porta da frente teve o azar de esbarrar com Hugh Pilaster, que estava saindo. Hugh acenou com a cabeça.
- Boa noite, Miranda.
- Boa noite, Pilaster.
Micky entrou, amaldiçoando Hugh. Foi para o vestiário. O nariz se achava vermelho do soco de Solly, mas afora isso parecia apenas um pouco machucado. Ele endireitou as roupas e alisou os cabelos. Ao fazêlo, pensou em Hugh Pilaster. Se Hugh não estivesse bem na porta no momento errado, ninguém jamais saberia que Micky deixara o clube... ele só se ausentara por uns poucos minutos. Mas será que tinha alguma importância? Ninguém desconfiaria que Micky pudesse matar Solly; e se alguém desconfiasse, o fato de ter deixado o clube por alguns minutos não provaria nada. Ainda assim, ele não tinha mais um álibi irrefutável, e isso o preocupava.
Lavou as mãos com todo o cuidado e subiu apressado para a sala de jogo.
Edward já estava jogando bacará, e havia um lugar vazio na mesa ao seu lado. Micky sentou. Ninguém comentou sua ausência. Ele recebeu as cartas.
- Você parece um pouco enjoado - comentou Edward.
- E estou mesmo - respondeu Micky, calmamente. - Acho que a sopa de peixe não estava muito fresca esta noite.
Edward acenou para um garçom.
- Traga um copo de conhaque para este homem.
Micky olhou para suas cartas. Tinha um nove e um dez, a mão perfeita. Apostou um soberano. Hoje não podia perder.
Hugh foi procurar Maisie dois dias depois da morte de Solly.
Encontrou-a sozinha, sentada em silêncio e imóvel num sofá, impecável num vestido preto, parecendo pequena e insignificante no esplendor da sala de estar da mansão em Piccadilly. O rosto estava vincado pelo pesar, e ela dava a impressão de que não dormira. O coração de Hugh se confrangeu por ela. Foi Maisie quem se jogou em seus braços, balbuciando:
- Oh, Hugh, ele era o melhor de nós!
Quando ela disse isso, Hugh não pôde conter as lágrimas. Até aquele momento sentira-se atordoado demais para chorar. Era um destino terrível morrer como Solly, e ele o merecia menos do que qualquer homem que Hugh pudesse nomear.
- Não havia maldade nele - murmurou Hugh. - Parecia incapaz disso. Eu o conheci durante 15 anos, e não posso me recordar de uma única ocasião em que tenha sido grosseiro com alguém.
- Por que essas coisas acontecem? - indagou Maisie, desesperada. Hugh hesitou. Apenas poucos dias antes descobrira, por intermédio de Tonio Silva, que Micky Miranda matara Peter Middleton. Por causa disso, Hugh não podia deixar de especular se Micky não tinha alguma coisa a ver com a morte de Solly. A polícia procurava por um homem bem-vestido que discutira com Solly pouco antes do atropelamento. Hugh vira Micky entrando no Cowes Club mais ou menos na ocasião da morte de Solly, e assim era certo que ele estivera nas proximidades.
Mas não havia motivo: pelo contrário. Solly estava prestes a fechar o contrato da Ferrovia Santamaria, um projeto do maior interesse de Micky. Por que ele mataria seu benfeitor? Hugh decidiu não dizer nada a Maisie sobre suas suspeitas infundadas.
- Parece ter sido um trágico acidente - comentou ele.
- O cocheiro acha que Solly foi empurrado. Por que o homem que testemunhou tudo fugiria se não fosse culpado?
- Talvez ele estivesse tentando assaltar Solly. Pelo menos é o que dizem os jornais.
A história tivera a maior repercussão. Era um caso sensacional: a morte macabra de um proeminente banqueiro, um dos homens mais ricos do mundo.
- Ladrões usam traje a rigor?
- Estava quase escuro. O cocheiro pode ter se enganado sobre as roupas do homem.
Maisie afastou-se de Hugh e tornou a sentar.
- E se você esperasse um pouco mais poderia casar comigo, em vez de Nora - murmurou ela.
Hugh ficou surpreso com a franqueza. O pensamento lhe ocorrera segundos depois de ouvir a notícia... e se envergonhara por acalentá-lo. Era típico de Maisie dizer
à queima-roupa o que ambos pensavam. Ele não sabia como responder, e por isso fez um gracejo tolo:
- Se uni Pilaster casasse com uma Greenbourne, não seria um casamento, mas sim uma fusão.
Ela balançou a cabeça.
- Não sou uma Greenbourne. A família de Solly nunca me aceitou.
- Mas deve ter herdado uma boa parte do banco.
- Não herdei nada, Hugh.
- Mas isso é impossível!
- É a pura verdade. Solly não tinha dinheiro seu. O pai lhe dava uma quantia considerável todos os meses, mas nunca concedeu nenhum capital por minha causa. Até mesmo esta casa é alugada. Possuo minhas roupas, móveis e jóias, e assim nunca passarei fome. Mas não sou herdeira do banco... e o pequeno Bertie também não é.
Hugh ficou espantado... e também irritado por alguém ser tão mesquinho com Maisie.
- O velho não vai sequer sustentar seu filho?
- Não vai dar nada a Bertie. Estive com meu sogro esta manhã. Era uma maneira lamentável de tratá-la, e Hugh, como amigo de Maisie, ficou pessoalmente ofendido.
- É vergonhoso!
- Nem tanto. Dei a Solly cinco anos de felicidade e em troca tive cinco anos da melhor vida. Posso voltar ao que era antes. Venderei minhas jóias, investirei o dinheiro e viverei dos rendimentos.
Era difícil aceitar.
- Vai morar com seus pais?
- Em Manchester? Não. Acho que não conseguiria retroceder tanto. Permanecerei em Londres. Rachel Bodwin está abrindo um hospital para mães solteiras, e posso trabalhar com ela.
- Há muita reação contra o hospital de Rachel. As pessoas acham que é um escândalo.
- Então me convém muito bem!
Hugh ainda se sentia magoado e preocupado pelo mau tratamento que Ben Greenbourne dispensava à nora. Decidiu falar com ele, tentar persuadi-lo a mudar de idéia.
Mas não mencionaria a tentativa a Maisie. Não queria atiçar suas esperanças e depois desapontá-la.
- Não tome nenhuma decisão súbita, está bem, Maisie?
- Por exemplo?
- Não saia desta casa. Greenbourne pode tentar confiscar seus móveis.
- Não sairei.
- E precisa de um advogado para defender seus interesses. Ela sacudiu a cabeça.
- Não pertenço mais à classe de pessoas que chamam um advogado como se fosse um lacaio. Preciso pensar no custo. Não contratarei nenhum advogado a menos que tenha certeza de que estou sendo trapaceada. E não creio que isso aconteça. Ben Greenbourne não é desonesto. É apenas um velho duro como o ferro, e muito frio. É espantoso que tenha gerado alguém tão generoso quanto Solly.
- Encara a situação de uma maneira filosófica - comentou Hugh, admirando tanta coragem.
Maisie deu de ombros.
- Levei uma vida espantosa, Hugh. Era indigente aos 11 anos e fabulosamente rica aos 19. - Ela tocou num anel em seu dedo. - Este diamante deve valer muito mais dinheiro
do que minha mãe jamais viu. Promovi as melhores festas de Londres, conheci todas as pessoas ilustres, dancei com o Príncipe de Gales. Não lamento coisa alguma... exceto o seu casamento com Nora.
- Gosto muito dela - disse Hugh, não muito convincente.
- Ficou furioso porque eu não quis ter um caso com você. Sentia-se desesperado, precisando da descarga sexual. E escolheu Nora porque ela fazia com que lembrasse de mim. Mas ela não tem nada a ver comigo, e agora você é infeliz.
Hugh estremeceu como se tivesse sido golpeado. Tudo aquilo era angustiosamente próximo da verdade.
- Você jamais gostou de Nora.
- E você pode dizer que tenho ciúme, talvez esteja certo, mas continuo a dizer que ela nunca o amou e só casou pelo seu dinheiro. Aposto que você descobriu que isso
é verdade desde o casamento. Não tenho razão?
Hugh pensou na maneira como Nora se recusava a fazer amor mais de uma vez por semana e como mudava se ganhasse presentes; sentiu-se angustiado e desviou os olhos.
- Ela sempre foi pobre, Maisie. Não é de surpreender que seja tão materialista.
- Ela nunca foi tão pobre quanto eu - respondeu Maisie, desdenhosa. - Até mesmo você foi tirado do colégio por falta de dinheiro, Hugh. Não é desculpa para falsos valores. O mundo está repleto de pessoas pobres que compreendem que o amor e a amizade são mais importantes do que as riquezas.
Seu desdém levou Hugh a assumir uma posição defensiva.
- Ela não é tão ruim quanto a pinta.
- De qualquer forma, você não é feliz.
Confuso, Hugh tratou de voltar ao que sabia que era certo.
- Mas agora estou casado com ela e não Vou deixá-la. É isso que representa um juramento.
Maisie sorriu, à beira das lágrimas.
- Eu sabia que você diria isso.
Hugh teve uma súbita visão de Maisie nua, os seios redondos e sardentos, a moita de cabelos vermelhos-dourados entre as coxas, e desejou poder voltar atrás em suas palavras de princípios elevados. Em vez disso, levantou-se para sair. Maisie também se levantou.
- Obrigada por ter vindo, Hugh querido.
Ele tencionava apenas apertar sua mão, mas acabou se inclinando para beijá-la no rosto; e, de alguma forma, descobriu-se a beijá-la nos lábios. Foi um beijo terno,que se prolongou por um momento a mais e quase destruiu a determinação de Hugh; mas ele acabou se desvencilhando e saiu da sala sem dizer mais nada.
A casa de Ben Greenbourne era outro palácio a poucos metros de distância, ao longo de Piccadilly. Hugh foi direto para lá depois de conversar com Maisie. Sentia-se contente por ter alguma coisa para fazer, um meio de afastar os pensamentos do turbilhão em seu coração. Pediu para falar com o velho.
- Avise que é uma questão da maior urgência - disse ele ao mordomo.
Enquanto esperava, notou que os espelhos no vestibulo se achavam cobertos e imaginou que era parte do ritual de luto judaico.
Maisie o deixara atordoado. Quando a vira, seu coração se enchera de amor e anseio. Sabia que nunca poderia ser realmente feliz sem ela. Mas Nora era sua esposa.
Ela trouxera calor e afeição à sua vida depois que Maisie o rejeitara, e fora por isso que se casara. Qual era o sentido de fazer promessas numa cerimônia de casamento se fosse mudar de idéia mais tarde?
O mordomo conduziu Hugh à biblioteca. Seis ou sete pessoas se retiravam, deixando Ben Greenbourne sozinho. Ele não usava sapatos e sentava num banco de madeira.
Havia frutas e doces para os visitantes numa mesa.
Greenbourne já passara dos 60 anos - Solly fora um filho que nascera tarde em sua vida - e parecia velho e consumido, mas não apresentava sinais de lágrimas. Levantou-se, empertigado e formal como sempre, apertou a mão de Hugh, acenou-lhe para sentar em outro banco. Tinha uma carta antiga na mão.
- Escute isto - disse ele, começando a ler: "Querido papai: Temos um novo professor de latim, o reverendo Green, e estou ficando cada vez melhor. Waterford pegou um rato no armário de vassouras e está tentando treiná-lo para comer de sua mão. A comida aqui é muito pouca; pode me mandar um bolo? Seu filho que muito o ama, Solomon". Ele tinha 14 anos quando escreveu isto.
Hugh compreendeu que Greenbourne sofria, apesar de seu rígido autocontrole.
- Lembro desse rato - disse ele. - Acabou roendo os dedos de Waterford.
- Como eu gostaria que os anos pudessem voltar...
Hugh percebeu que o autocontrole do velho começava a enfraquecer.
- Devo ser um dos amigos mais antigos de Solly.
- É verdade. Ele sempre o admirou, apesar de você ser mais jovem.
- Não consigo imaginar por quê. Mas ele sempre se mostrava disposto a pensar o melhor das pessoas.
- Tinha o coração bom.
Hugh não queria que a conversa seguisse por esse rumo.
- Não vim aqui apenas como amigo de Solly, mas também como amigo de Maisie.
Greenbourne reassumiu uma postura rígida no mesmo instante. A expressão triste desapareceu do rosto, e ele voltou a ser a caricatura do prussiano empertigado. Hugh se perguntou como alguém podia odiar tanto uma mulher tão bela e alegre quanto Maisie.
- Só a conheci depois de Solly. Apaixonei-me por ela, mas foi Solly quem a conquistou.
- Ele era mais rico.
- Mr. Greenbourne, espero que me permita ser franco. Maisie era uma moça sem dinheiro à procura de um marido rico. Mas depois que casou com Solly, cumpriu sua parte.
Foi uma boa esposa.
- E teve sua recompensa. Desfrutou a vida de uma dama durante cinco anos.
- É curioso, mas ela disse a mesma coisa. Mas não creio que seja o suficiente. E o pequeno Bertie? Não vai querer deixar seu neto na indigência, não é mesmo?
- Neto? - repetiu Greenbourne. - Hubert não é meu parente. Hugh teve a estranha premonição de que algo da maior importância estava prestes a acontecer. Era como um pesadelo, em que algo terrível, mas indefinido, se achava prestes a acontecer.
- Não entendi. O que está querendo dizer com isso?
- Aquela mulher já esperava uma criança quando casou com meu filho. Hugh soltou um murmúrio de espanto.
- Solly sabia disso, e sabia também que a criança não era sua - continuou Greenbourne. - Casou com ela mesmo assim... contra a minha vontade, nem preciso acrescentar.
As pessoas, de um modo geral, não sabem disso, é claro: envidamos todos os esforços para guardar o segredo, mas não há mais necessidade agora que...
Ele parou de falar e engoliu em seco antes de acrescentar:
- Eles viajaram pelo mundo depois do casamento; a criança nasceu na Suíça. Providenciaram uma data de nascimento falsa, e quando voltaram para casa, depois de uma ausência de quase dois anos, era difícil alguém perceber que o bebê tinha quatro meses a mais do que diziam.
Hugh experimentou a sensação de que seu coração parará. Havia uma pergunta que precisava fazer, mas tinha pavor da resposta.
- Quem... quem era o pai?
- Ela nunca disse - respondeu Greenbourne. - Solly nunca soube. Mas Hugh sabia.
O filho era seu.
Ele ficou olhando fixamente para Ben Greenbourne, incapaz de falar.
Conversaria com Maisie, haveria de obrigá-la a contar a verdade, mas sabia que ela confirmaria sua intuição. Maisie nunca fora promíscua, apesar das aparências.
Era virgem quando ele a seduzira. Engravidara-a naquela noite. Depois, Augusta tramara para separá-los e Maisie casara com Solly.
Ela até dera ao bebê o nome de Hubert, bastante parecido com Hugh.
- É terrível, eu sei - comentou Greenbourne, percebendo a consternação de Hugh e não entendendo o motivo.
Tenho um filho, pensou Hugh. Um filho. Hubert. Que todos chamam de Bertie. O pensamento dilacerava seu coração.
- Mas tenho certeza de que compreende por que não desejo ter mais nenhum relacionamento com aquela mulher e sua criança, agora que meu querido filho morreu.
- Não se preocupe - murmurou Hugh, distraído. - Cuidarei deles.
- Você? - murmurou Greenbourne, surpreso. - Por que isso deveria ser um problema seu?
- Ah... acho que sou a única pessoa com quem podem contar agora.
- Não se deixe enganar, jovem Pilaster - disse Greenbourne, gentilmente. - Tem sua própria esposa para se preocupar.
Hugh não queria explicar, e estava atordoado demais para inventar uma história. Compreendeu que precisava sair dali sem demora. Levantou-se.
- Preciso ir. Minhas sentidas condolências, Mr. Greenbourne. Solly era o melhor homem que já conheci.
Greenbourne abaixou a cabeça. Hugh se retirou.
No vestíbulo, com os espelhos amortalhados, ele recebeu o chapéu de um lacaio e saiu para o sol de Piccadilly. Foi andando para oeste entrou no Hyde Park, a caminho de sua casa, em Kensington. Poderia pegar um fiacre, mas queria tempo para pensar.
Tudo era diferente agora. Nora era sua esposa legal, mas Maisie era a mãe de seu filho. Nora podia cuidar de si mesma - e Maisie também, sem dúvida, - mas uma criança precisava de um pai. Subitamente, a questão do que fazer com o resto de sua vida aflorava outra vez.
Um clérigo diria, com toda a certeza, que nada mudara, e ele deveria continuar com Nora, a mulher com quem casara na igreja; mas os clérigos não sabiam muito da
vida. O metodismo rigoroso dos Pilasters não fora absorvido por Hugh: nunca fora capaz de acreditar que a resposta a todos os modernos dilemas morais podia ser encontrada na Bíblia. Nora o seduzira e casara pelo proveito próprio, com o coração frio - Maisie tinha razão nesse ponto, - e tudo o que havia entre os dois era um pedaço de papel. O que era muito pouco, se comparado com uma criança - filho de um amor tão forte que resistira por muitos anos a muitas provações.
Estou apenas inventando desculpas? perguntou-se Hugh. Tudo isso não passa de uma justificativa capciosa para ceder a um desejo que sei estar errado?
Ele sentia-se dividido.
Tentou avaliar os aspectos práticos. Não tinha motivos para o divórcio, mas estava convencido de que Nora se mostraria disposta a concordar se lhe oferecesse bastante dinheiro. Os Pilasters, no entanto, pediriam que ele deixasse o banco: o estigma social do divórcio era grande demais para permitirem que continuasse como sócio.
Poderia conseguir outro emprego, mas as pessoas respeitáveis de Londres não o receberiam e a Maisie, mesmo depois que casassem. Era quase certo que teriam de ir para o exterior. Mas essa perspectiva o atraía, e tinha certeza de que também agradaria a Maisie. Podia voltar a Boston, ou melhor ainda, ir para Nova York. Talvez nunca se tornasse um milionário, mas o que isso representava em comparação com a alegria de viver com a mulher que sempre amara?
Ele se descobriu diante de sua casa. Era parte de um conjunto novo e elegante, em Kensington, a menos de um quilômetro da residência muito mais extravagante de sua Tia Augusta, em Kensington Gore. Nora estaria em seu quarto ornamentado com o maior exagero, vestindo-se para almoçar. O que o impedia de entrar e anunciar que ia deixá-la?
Era o que desejava fazer, sabia disso agora. Mas seria certo?
Era a criança que fazia a diferença. Seria errado deixar Nora por Maisie; mas era certo deixar Nora pelo bem de Bertie.
Ele se perguntou o que Nora diria quando lhe contasse, e sua imaginação deu a resposta. Viu seu rosto se contrair em linhas de determinação, ouviu o tom desagradável em sua voz e pôde adivinhar as palavras exatas que ela diria: "Custará todo o seu dinheiro".
Por mais estranho que pudesse parecer, foi isso que o fez decidir. Se a imaginasse se desmanchando em lágrimas de tristeza seria incapaz de seguir em frente, mas sabia que sua primeira intuição era a certa.
Entrou na casa e subiu correndo a escada.
Nora se encontrava na frente do espelho, pondo o pingente que lhe dera. Era um amargo lembrete de que precisava comprar jóias para persuadi-la a fazer amor. Ela falou antes que Hugh pudesse dizer qualquer coisa:
- Tenho uma notícia para você.
- Não se preocupe com isso agora...
Mas ela não queria calar. Tinha uma expressão estranha, meio triunfante, meio soturna.
- Você terá de passar algum tempo longe da minha cama.
Hugh compreendeu que não conseguiria falar enquanto ela não acabasse o que tinha a dizer.
- Mas do que está falando? - indagou ele, impaciente.
- O inevitável aconteceu.
E, de repente, Hugh adivinhou. Experimentou a sensação de que fora atropelado por um trem. Era tarde demais, compreendeu: nunca poderia deixá-la agora. Sentiu repulsa e angústia pela perda... a perda de Maisie, a perda de seu filho.
Fitou Nora nos olhos. Havia desafio ali, quase como se ela tivesse previsto o que ele planejava. O que talvez fosse verdade. Mas ele se forçou a sorrir.
- O inevitável?
E Nora confirmou:
- Vou ter um bebê.
Setembro
Joseph Pilaster morreu em setembro de 1890, tendo sido Sócio Sênior do Pilasters Bank por 17 anos. Durante esse período, a Inglaterra se tornara cada vez mais rica, e os Pilasters também. Eram agora quase tão ricos quanto os Greenbournes. O patrimônio de Joseph se elevava a mais de 2 milhões de libras, inclusive sua coleção de 65 caixinhas de rapé antigas, cravejadas de pedras preciosas - uma para cada ano de sua vida, - que valia 100 mil libras e que deixou para o filho Edward.
A família inteira mantinha todo o seu capital investido no banco, que pagava juros garantidos de cinco por cento sobre o dinheiro, na maior parte do tempo. Os sócios recebiam ainda mais. Além de cinco por cento sobre seu capital investido, partilhavam os lucros entre eles de acordo com fórmulas complicadas. Depois de dez anos partilhando os lucros, Hugh se encontrava a meio caminho de se tornar um milionário.
Na manhã do funeral, Hugh examinou seu rosto no espelho, ao fazer a barba, à procura de sinais de velhice. Tinha 37 anos. Os cabelos começavam a ficar grisalhos, mas a barba do rosto ainda era preta. Os bigodes crespos estavam em moda e ele se perguntou se deveria deixar crescer o seu, a fim de parecer mais jovem.
Tio Joseph tivera sorte, pensou ele. Durante o tempo em que fora Sócio Sênior, o mundo financeiro se mantivera estável. Houvera apenas duas crises menores: a bancarrota do City of Glasgow Bank em 1878 e a quebra do banco francês Union Générale em 1882. Nas duas ocasiões, o Banco da Inglaterra contivera a crise, elevando as taxas de juros para seis por cento por um breve período, o que ainda ficara muito abaixo do nível de pânico. Na opinião de Hugh, Tio Joseph comprometera demais o banco com investimentos na América do Sul... mas o desastre que ele constantemente temera não ocorrera; e para Joseph, jamais ocorreria. Contudo, fazer investimentos arriscados era como possuir uma casa prestes a desmoronar e alugá-la a inquilinos: os aluguéis continuariam a ser pagos até o fim, mas quando a casa finalmente desmoronasse não haveria mais nem o aluguel, nem a casa. Agora que Joseph morrera, Hugh queria levar o banco para um terreno mais sólido, vendendo ou liquidando alguns dos perigosos investimentos sul-americanos.
Depois de fazer a barba e se lavar, vestiu o chambre e foi para o quarto de Nora. Ela o esperava: sempre faziam amor nas manhãs de sexta-feira. Há muito que Hugh aceitara a regra de uma vez por semana. Ela se tornara bastante gorda, seu rosto estava mais redondo do que nunca, mas em conseqüência tinha poucas rugas e ainda parecia bonita.
Mesmo assim, enquanto fazia amor com ela, Hugh fechou os olhos e imaginou que estava com Maisie.
Às vezes tinha vontade de renunciar. Mas aquelas sessões nas manhãs de sexta-feira já haviam lhe dado três filhos, aos quais amava profundamente.- Tobias, assim chamado em homenagem a seu pai; Samuel, em homenagem ao tio; e Solomon, em homenagem a Solly Greenbourne. Toby, o mais velho, começaria a estudar na Windfield School no ano seguinte. Nora gerava bebês sem maiores dificuldades, mas perdia o interesse por eles depois que nasciam, e Hugh lhes dispensava a maior atenção a fim de compensar a frieza da mãe.
O filho secreto de Hugh com Maisie, Bertie, tinha agora 16 anos, estudava em Windfield há anos, era um aluno premiado e o astro da equipe de críquete. Hugh pagava
o colégio, visitava-o nas festas escolares e se comportava em geral como um padrinho. Talvez isso levasse algumas pessoas cínicas a desconfiarem que ele era o verdadeiro pai de Bertie. Mas Hugh fora amigo de Solly, e todos sabiam que o pai de Solly se recusava a sustentar o menino; assim, a maioria das pessoas presumia que ele apenas se mostrava generoso e fiel à memória de Solly. Ao sair de cima de Nora, ela perguntou:
- A que horas será a cerimônia?
- Às 11 horas, na Igreja Metodista de Kensington. Haverá um almoço depois na Whitehaven House.
Hugh e Nora ainda moravam em Kensington, mas haviam se mudado para uma casa maior por causa dos meninos. Hugh deixara a escolha aos cuidados de Nora, e ela optara por uma casa grande, no mesmo estilo muito ornamentado e vagamente flamengo da mansão de Augusta – um estilo que se tornara o auge da moda, pelo menos da suburbana, depois que Augusta construíra sua casa.
Augusta nunca se sentira satisfeita com a Whitehaven House. Queria um palácio em Piccadilly, como os Greenbournes. Mas ainda havia um certo puritanismo metodista nos Pilasters, e Joseph insistira que a Whitehaven House já era luxo suficiente para qualquer um, por mais rico que fosse. Agora, a casa pertencia a Edward. Talvez Augusta o persuadisse a vendê-la e comprar algo mais espetacular.
Ao descer para o desjejum, Hugh encontrou sua mãe à espera. Ela e sua irmã Dotty haviam chegado de Folkestone no dia anterior. Hugh beijou a mãe e sentou. Ela indagou, sem qualquer preâmbulo:
- Acha que ele realmente a ama, Hugh?
Hugh não precisava perguntar a quem a mãe se referia. Dotty, agora com 24 anos, estava noiva do lorde Ipswich, o filho mais velho do duque de Norwich. Nick Ipswich era herdeiro de um ducado falido, e a mãe receava que ele só quisesse Dotty por seu dinheiro; ou melhor, pelo dinheiro do irmão.
Hugh olhou afetuosamente para a mãe. Ela ainda se vestia de preto, 24 anos depois da morte de seu pai. Tinha agora os cabelos brancos, mas os olhos continuavam lindos como sempre.
- Ele a ama, mamãe.
Como Dotty não tinha pai vivo, Nick procurara Hugh para pedir a permissão formal para casar com ela. Em casos assim, era comum os advogados de ambas as partes elaborarem o contrato de casamento antes que o noivado fosse confirmado, mas Nick insistira em agir de outro modo.
- Já contei para Miss Pilaster que sou pobre - dissera ele a Hugh. - Ela diz que já conheceu tanto a prosperidade quanto a pobreza, e sabe que a felicidade vem das pessoas com quem se vive, não do dinheiro que se possui.
Era tudo muito idealista, e Hugh com certeza daria um dote generoso à irmã; mas sentia-se feliz por saber que Nick a amava de verdade, independentemente de sua riqueza ou pobreza.
Augusta ficara furiosa ao saber que Dotty casaria tão bem. Quando o pai de Nick morresse, Dotty seria uma duquesa, o que era superior a uma condessa.
Dotty desceu poucos minutos depois. Crescera de uma forma que Hugh nunca poderia imaginar. A menina tímida e risonha se tornara uma mulher fascinante e sensual, cabelos escuros, vontade firme e temperamento explosivo. Hugh calculava que muitos rapazes se sentiam intimidados por ela, e talvez fosse por isso que chegara aos 24 anos sem casar. Mas Nick Ipswich possuía uma força tranqüila que não precisava do adereço de uma esposa dócil. Hugh tinha a impressão de que aquele casamento seria repleto de paixão e brigas, muito diferente do seu.
Nick apareceu, conforme o combinado, às dez horas, quando ainda continuavam sentados à mesa do desjejum. Hugh o convidara. Nick sentou ao lado de Dotty e tomou uma xícara de café. Era um rapaz inteligente, com 22 anos; acabara de sair de Oxford, onde prestara exames e obtivera um diploma, ao contrário do que acontecia com a maioria dos jovens aristocratas. Possuía a boa e típica aparência inglesa, cabelos louros e olhos azuis, e Dotty o contemplava como se quisesse devorá-lo com os olhos. Hugh invejava o amor simples e sensual dos dois.
Aos 37 anos, ele sentia-se jovem demais para assumir o papel de chefe da família, mas convocara aquela reunião e por isso foi direto ao assunto.
- Dotty, seu noivo e eu tivemos várias conversas sobre dinheiro. A mãe se levantou para deixar a sala, mas Hugh a deteve.
- As mulheres também devem compreender os problemas hoje em dia, mamãe... é o jeito moderno.
Ela sorriu para Hugh como se ele estivesse sendo um menino tolo, mas tornou a sentar. Hugh continuou:
- Como todos sabem, Nick planejava iniciar uma carreira profissional e pensava em se tornar um advogado, já que o ducado não tem mais condições de prover seu sustento.
Como um banqueiro, Hugh compreendia exatamente como o pai de Nick perdera tudo. O duque fora um proprietário de terras progressista, e no surto de expansão agrícola na metade do século tomara dinheiro emprestado para financiar melhorias: sistemas de drenagem, a remoção de quilômetros de sebes e dispendiosas máquinas a vapor para cortar, colher e debulhar. Depois, na década de 1870, ocorrera a grande depressão agrícola, que ainda persistia em 1890. O preço das terras agrícolas caíra, e as propriedades do duque valiam menos do que as hipotecas que ele assumira.
- Mas se Nick conseguir se livrar das hipotecas que pendem em torno de seu pescoço e racionalizar o ducado, ainda pode gerar uma renda considerável. Só precisa ser bem administrado, como qualquer empreendimento.
Nick acrescentou:
- Vou vender muitas das fazendas externas e outras propriedades e me concentrar em tirar o máximo de proveito do que restar. E Vou construir casas nos terrenos que possuímos em Sydenham, no sul de Londres.
- Chegamos à conclusão de que as finanças do ducado podem ser transformadas em caráter permanente com cerca de cem mil libras. Assim, Dotty, esse é o dote que Vou lhe dar.
Dotty soltou um grito de espanto, e a mãe começou a chorar. Nick, que já conhecia a cifra, murmurou:
- É muita generosidade de sua parte.
Dotty abraçou e beijou o noivo, depois contornou a mesa para beijar o irmão. Hugh sentiu-se um pouco embaraçado, mas ainda assim estava contente por ser capaz de torná-los tão felizes. Tinha confiança de que Nick saberia usar muito bem o dinheiro, proporcionando um lar seguro a Dotty.
Nora desceu nesse instante, vestida para o funeral, numa bombazina púrpura e preta. Comera o desjejum em seu quarto, como sempre.
- Onde estão os meninos? - indagou ela, irritada. - Mandei aquela governanta estúpida aprontá-los...
Foi interrompida pela chegada da governanta com os meninos: Toby, de onze anos; Sam, de seis; e Sol, de quatro. Todos vestiam casaco e gravata pretos, e carregavam cartolas em miniatura. Hugh sentiu o maior orgulho.
- Meus pequenos soldados - murmurou ele. - Qual foi a taxa de desconto do Banco da Inglaterra ontem à noite, Toby?
- Inalterada em dois e meio por cento, senhor - respondeu Tobias, que tinha de ler The Times todas as manhãs.
Sam, o do meio, transbordava de notícias, e anunciou, muito excitado:
- Mamãe, tenho um bicho de estimação! A governanta parecia nervosa.
- Você não me contou...
Sam tirou uma caixa de fósforos do bolso, estendeu-a para a mãe e abriu-a, declarando, orgulhoso:
- Bill, a aranha!
Nora gritou, arrancou a caixa de sua mão com um tapa e saltou para longe, berrando:
- Menino horrível!
Sam abaixou-se para pegar a caixa.
- Bill sumiu! - exclamou ele, começando a chorar. Nora virou-se para a governanta.
- Como permite que ele faça uma coisa assim?
- Desculpe. Eu não sabia...
Hugh interveio, tentando acalmar a situação:
- Não houve mal nenhum. - Ele passou o braço pelos ombros de Nora. - Você apenas foi tomada de surpresa, mais nada. - Ele conduziu-a para o vestíbulo. - Vamos embora.
Está na hora de partirmos.
Ao deixarem a casa, ele pôs a mão no ombro de Sam.
- Espero que tenha aprendido que não se deve assustar as mulheres, Sam.
- Perdi meu bichinho de estimação - murmurou o menino, angustiado.
- As aranhas não gostam mesmo de viver em caixas de fósforo. Talvez você devesse ter um bicho de estimação diferente. Que tal um canário?
Sam se animou no mesmo instante.
- Eu posso?
- Teria de alimentá-lo e dar água regularmente, ou o canário morreria.
- Eu faria qualquer coisa!
- Então vamos procurar um canário amanhã.
- Oba!
Seguiram para o Salão Metodista de Kensingtoa em carruagens fechadas. Chovia muito. Os meninos nunca haviam ido a um funeral. Toby, que era um tanto solene, perguntou:
- Devemos chorar?
- Não seja estúpido! - respondeu Nora.
Hugh gostaria que ela fosse mais afetuosa com os meninos. Nora era um bebê quando a mãe morrera, e ele imaginava que era por isso que tinha tanta dificuldade para tratar com os próprios filhos: nunca aprendera. Apesar disso, ela deveria tentar com mais afinco, pensou Hugh. Ele disse a Toby.
- Mas você pode chorar, se sentir vontade. É permitido nos funerais.
- Acho que não Vou chorar. Não gostava muito do Tio Joseph.
- Eu adorava Bill, a aranha - declarou Sam.
- Sou muito grande para chorar - arrematou Sol, o caçula.
O Salão Metodista de Kensington expressava em pedras os sentimentos ambivalentes dos prósperos metodistas que acreditavam na simplicidade religiosa, mas secretamente ansiavam por ostentar sua riqueza. Embora fosse chamado de salão, era tão ornamentado quanto qualquer igreja anglicana ou católica. Não tinha altar, mas havia um órgão magnífico. Quadros e estátuas eram proibidos, mas a arquitetura era barroca, as comijas extravagantes e a decoração elaborada.
Naquela manhã a igreja se encontrava apinhada até as galerias, com pessoas de pé nos corredores laterais e no fundo. Os empregados do banco haviam recebido o dia de folga para comparecerem, e ali estavam representantes de todas as instituições financeiras importantes da City.
Hugh acenou com a cabeça para o diretor do Banco da Inglaterra, o ministro da Fazenda e o velho Ben Greenbourne, com mais de 70 anos, mas ainda empertigado como um jovem soldado.
A família foi conduzida aos bancos reservados, na frente. Hugh sentou ao lado de Tio Samuel, impecável como sempre, de casaca preta, colarinho de ponta virada e uma elegante gravata de seda. Como Greenbourne, Samuel também já entrara na casa dos 70 anos, e ainda se mantinha alerta e capaz.
Samuel era a escolha óbvia para Sócio Sênior, agora que Joseph morrera. Era o mais velho e o mais experiente dos sócios. Contudo, Augusta e Samuel acalentavam um ódio mútuo, e ela se oporia a ele com todo o vigor. Provavelmente apoiaria o irmão de Joseph, o "Jovem" William, agora com 42 anos.
Entre os outros sócios, dois não seriam considerados porque não tinham o nome Pilaster: o major Hartshorn e Sir Harry Tonks, marido da filha de Joseph, Clementine.
Os sócios restantes eram Hugh e Edward.
Hugh queria ser Sócio Sênior... e queria de todo o coração. Embora fosse o mais jovem dos sócios, era o mais competente banqueiro entre todos. Sabia que poderia tornar o banco maior e mais forte do que nunca, e ao mesmo tempo reduzir sua exposição ao tipo de empréstimos de risco que Joseph aceitara. Só que Augusta se oporia a ele com mais empenho do que a Samuel. Mas ele não suportaria esperar até que Augusta estivesse velha ou morta para assumir o controle. Ela tinha apenas 58 anos, e poderia muito bem viver por mais 15, tão vigorosa e rancorosa quanto sempre.
O outro sócio era Edward. Ele sentava na primeira fila, ao lado de Augusta. Tornara-se corpulento, com o rosto vermelho; estava na meia-idade e pouco antes passara
a ter erupções na pele, que eram repulsivas. Edward não era inteligente nem trabalhador, e em 17 anos aprendera muito pouco das atividades bancárias. Chegava no banco depois das 10 horas, saía para almoçar por volta do meio-dia e muitas vezes não voltava à tarde. Bebia xerez no desjejum e nunca se mantinha completamente sóbrio durante o dia inteiro, contando com seu assistente, Simon Oliver, para mantê-lo fora de maiores encrencas. A idéia de promovê-lo a Sócio Sênior era inadmissível.
A esposa de Edward, Emily, sentava ao seu lado, o que era um fato raro. Levavam vidas inteiramente separadas. Ele residia na Whitehaven House junto com a mãe, e Emily passava todo o seu tempo na casa de campo, só vindo a Londres para ocasiões formais, como funerais. Emily fora outrora muito bonita, com enormes olhos azuis e um sorriso de criança, mas ao longo dos anos seu rosto se tornara marcado por rugas de desapontamento. Não tinham filhos, e a impressão de Hugh era a de que se odiavam.
Ao lado de Emily estava Micky Miranda, sempre afável e insinuante, num casaco cinza com gola preta de visom. Desde que descobrira que Micky assassinara Peter Middleton.
Hugh passara a ter medo dele. Edward e Micky ainda eram como unha e carne. Micky estava envolvido em muitos dos investimentos sul-americanos que o banco apoiara nos últimos dez anos.
O serviço foi longo e tedioso, e depois o cortejo da igreja ao cemitério, sob a chuva implacável de setembro, levou mais de uma hora porque centenas de carruagens seguiam o coche fúnebre.
Hugh estudou Augusta enquanto o caixão de seu marido era baixado para a sepultura. Ela se postava sob um enorme guarda-chuva, segurado por Edward. Os cabelos eram prateados e parecia magnífica, com um enorme chapéu preto. Será que agora, ao perder o companheiro de toda a sua vida, pareceria humana e digna de compaixão? Mas seu rosto orgulhoso mantinha linhas firmes, como uma escultura em mármore de um senador romano, e ela não demonstrava o menor pesar.
Depois do funeral houve um almoço na Whitehaven House para toda a família Pilaster, incluindo os sócios com suas esposas e filhos, mais os associados nos negócios e os antigos parasitas, como Micky Miranda. A fim de que todos pudessem comer juntos, Augusta pusera duas mesas de jantar unidas na enorme sala de estar.
Há mais de um ano que Hugh não entrava na casa. Fora redecorada desde a sua última visita, mais uma vez, agora na nova moda em voga: o estilo árabe. Arcadas mouriscas haviam sido instaladas nas portas, todos os móveis exibiam arabescos, os estofamentos eram nos coloridos padrões abstratos islâmicos, e no meio da sala havia um biombo do Cairo e um suporte para o Corão.
Augusta sentou Edward na cadeira do pai. Hugh achou que era uma falta de tato. Colocá-lo à cabeceira da mesa enfatizava cruelmente como ele era incapaz de tomar o lugar de Joseph. Joseph podia ter sido um líder excêntrico, mas nunca fora um tolo.
Porém, Augusta tinha um propósito, como sempre. Quase ao final da refeição, declarou, em sua forma brusca habitual:
- Deve haver um novo Sócio Sênior o mais depressa possível, e é evidente que será Edward.
Hugh ficou horrorizado. Augusta sempre se mostrara cega aos defeitos do filho, mas mesmo assim era uma atitude totalmente inesperada. Ele tinha certeza de que Augusta jamais conseguiria realizar seu intento, mas a mera sugestão já era enervante.
Houve um momento de silêncio, e Hugh compreendeu que todos esperavam que ele se manifestasse. Era considerado pela família como a oposição a Augusta. Ele hesitou, considerando a melhor maneira de enfrentar a situação. Decidiu tentar um adiamento da decisão.
- Acho que os sócios devem discutir a questão amanhã. Augusta não se deixaria desviar de seu objetivo com facilidade.
- Agradeceria se não me dissesse o que posso ou não discutir em minha própria casa, jovem Hugh.
-Já que insiste... - Hugh se recuperou no mesmo instante. - Não há nada de evidente nessa decisão, embora seja óbvio, minha cara tia, que não compreende as sutilezas do problema, talvez porque nunca tenha trabalhado no banco ou em qualquer outra coisa, diga-se de passagem...
- Como ousa...
Ele alteou a voz para abafá-la:
- O sócio mais velho é Tio Samuel. - Hugh percebeu que estava sendo muito agressivo e tratou de abrandar a voz. - Tenho certeza de que todos concordariam que ele seria uma escolha sensata, um Sócio Sênior maduro, experiente e aceitável para a comunidade financeira.
Tio Samuel inclinou a cabeça em agradecimento pelo elogio, mas não disse nada.
- Ninguém contestou Hugh... mas também ninguém o apoiou. Ele calculou que não queriam hostilizar Augusta: os covardes preferiam que ele o fizesse por conta de todos, pensou Hugh. Pois que assim fosse.
- Contudo, Tio Samuel já recusou essa honra uma vez. Se assumisse essa mesma atitude de novo, o Pilaster mais velho seria o Jovem William, que também é muito respeitado na City.
Augusta declarou, impaciente:
- Não é a City que tem de fazer a escolha... é a família Pilaster.
- Os sócios Pilasters, para ser mais preciso - corrigiu-a Hugh. - Mas assim como os sócios precisam da confiança do resto da família, o banco precisa merecer a confiança da comunidade financeira em geral. Se perdermos essa confiança, estaremos liquidados.
Augusta parecia cada vez mais furiosa.
- Temos o direito de escolhermos quem quisermos!
Hugh sacudiu a cabeça vigorosamente. Nada o irritava mais do que aquele tipo de declaração irresponsável.
- Não temos direitos, apenas deveres - disse ele, incisivo. - Outras pessoas nos confiam milhões de libras. Não podemos fazer o que quisermos; temos de fazer o que devemos.
Augusta tentou outro rumo:
- Edward é o filho e herdeiro.
- Não é um título hereditário! - protestou Hugh, indignado. - Vai para o mais competente.
Foi a vez de Augusta se mostrar indignada.
- Edward é tão bom quanto qualquer outro!
Hugh correu os olhos pela mesa, fitando cada um de forma dramática antes de perguntar:
- Há alguém aqui que esteja disposto a pôr a mão no coração e declarar que Edward é o banqueiro mais competente entre nós?
Ninguém falou por um minuto. Augusta disse:
- Os títulos sul-americanos de Edward obtiveram uma fortuna para o banco.
Hugh concordou com a cabeça.
- É verdade que vendemos milhões de libras em títulos sul-americanos nos últimos dez anos, e Edward cuidou de todas essas operações. Mas é um dinheiro perigoso.
As pessoas compram os títulos porque confiam no Pilasters. Se um desses governos suspender o pagamento dos juros, a cotação de todos os títulos sul-americanos vai cair... e o Pilasters será responsabilizado por isso. Por causa do sucesso de Edward na venda de títulos sul-americanos, nossa reputação, que é o patrimônio mais valioso do banco, se encontra agora nas mãos de déspotas cruéis e generais que nem sabem ler.
Hugh descobriu-se dominado pela emoção ao dizer isso. Ajudara a desenvolver a reputação do banco com sua inteligência e trabalho árduo, e sentia-se furioso por constatar que Augusta estava disposta a arriscar tudo.
- Você vende títulos norte-americanos - declarou Augusta. - Há sempre um risco. É a própria essência da atividade bancária.
Ela falou triunfante, como se fosse um argumento irrefutável.
- Os Estados Unidos da América possuem um moderno governo democrático, vastas riquezas naturais e nenhum inimigo. Agora que aboliram a escravidão, não há motivo para que o país não seja estável pelos próximos cem anos. Em contraste, a América do Sul é um amontoado de ditaduras em guerras, que podem não ser mais as mesmas nos próximos dez dias. Há um risco nos dois casos, mas no norte é muito menor. A essência da atividade bancária é o risco calculado.
Augusta não entendia mesmo de negócios, pois declarou:
- Você está apenas com inveja de Edward... como sempre esteve. Hugh se perguntou por que os outros sócios mantinham-se em silêncio. Compreendeu no mesmo instante que Augusta devia ter conversado com eles antes. Mas como pudera persuadi-los a aceitarem Edward como Sócio Sênior? Ele começou a ficar muito preocupado.
- O que ela disse a vocês? - perguntou ele, abruptamente, olhando para cada um. - William? George? Harry? Vamos, contem logo. Discutiram o assunto antes e Augusta os aliciou.
Todos pareciam contrariados. William acabou respondendo:
- Ninguém foi aliciado, Hugh. Mas Augusta e Edward deixaram claro que se ele não fosse o escolhido para Sócio Sênior...
O Jovem William hesitou, constrangido.
- Fale logo! - insistiu Hugh.
- Eles retirariam seu capital do banco.
- O quê?
Hugh estava atordoado. Retirar o capital do banco era um pecado mortal na família: seu pai fizera isso e nunca fora perdoado. O fato de Augusta se mostrar disposta a fazer tal ameaça era espantoso... e demonstrava como ela estava decidida.
Ela e Edward controlavam cerca de quarenta por cento do capital do banco, mais de dois milhões de libras. Se retirassem o dinheiro ao final do ano financeiro, como tinham o direito de fazer, o banco ficaria numa situação crítica.
Era surpreendente que Augusta fizesse tal ameaça... e ainda pior que os sócios parecessem dispostos a ceder.
- Vocês estão entregando toda a autoridade a ela! Se a deixarem impor sua vontade agora, ela tornará a agir assim mais tarde. No momento em que quiser alguma coisa, bastará ameaçar com a retirada de seu capital e vocês terão de se submeter. Podem muito bem indicar logo ela própria para Sócio Sênior!
Edward protestou:
- Não se atreva a falar com minha mãe desse jeito... cuide de suas maneiras!
- As maneiras que se danem! - Hugh sabia que de nada servia à sua causa perder o controle, mas estava furioso demais para se conter. - Vocês estão prestes a arruinarem um grande banco. Augusta é cega, Edward é estúpido, e os outros são covardes demais para detê-los.
Ele empurrou sua cadeira para trás, levantou-se, jogou o guardanapo na mesa como um desafio antes de acrescentar.
- Pois aqui está alguém que não se deixará intimidar! Respirando fundo, Hugh compreendeu que se achava prestes a dizer uma coisa que mudaria o curso do resto de sua vida. Ao redor da mesa, todos o fitavam. Concluiu que não tinha alternativa e arrematou:
- Peço demissão.
Ao se virar, divisou Augusta e verificou que seu rosto exibia um sorriso vitorioso.
Tio Samuel procurou-o naquela noite.
Era um velho agora, mas não menos vaidoso do que 20 anos antes. Ainda vivia com seu "secretário", Stephen Caine. Hugh era o único Pilaster que freqüentava sua casa, no bairro vulgar de Chelsea, decorada no estilo estético em voga, e cheia de gatos. Uma ocasião, depois que haviam tomado meia garrafa de Porto, Stephen comentara que ele era a única esposa Pilaster que não se comportava como uma megera.
Quando Samuel chegou Hugh estava na biblioteca, para onde costumava ir depois do jantar. Tinha um livro nos joelhos, mas não o lia. Em vez disso olhava para o fogo, pensando no futuro. Tinha bastante dinheiro, o suficiente para levar uma vida confortável pelo resto de seus dias, sem trabalhar; mas agora nunca seria o Sócio Sênior.
Tio Samuel parecia cansado e triste.
- Passei a maior parte da vida em conflito com meu primo Joseph - comentou ele. - Gostaria agora que não tivesse sido assim.
Hugh ofereceu-lhe um drinque, e ele pediu um Porto. Hugh chamou seu mordomo e pediu uma garrafa.
- Como se sente em relação a tudo isso, Hugh?
Tio Samuel era a única pessoa no mundo que perguntava como Hugh se sentia.
- Fiquei zangado antes, mas agora estou apenas desanimado. Edward é irremediavelmente inadequado para o cargo de Sócio Sênior, mas não há nada que se possa fazer.
E você, como se sente?
- Igual a você. Também Vou pedir demissão. Não retirarei meu capital, pelo menos não de imediato, mas sairei no final do ano. Foi o que anunciei após sua saída dramática.
Não sei se não deveria ter falado antes. Mas não faria a menor diferença.
- O que mais eles disseram?
- É por isso que estou aqui, meu caro. Lamento dizer que sou uma espécie de mensageiro do inimigo. Pediram-me para persuadi-lo a não pedir demissão.
- Então são uns idiotas.
- Quanto a isso, não resta a menor dúvida. Mas há uma coisa em que você deve pensar. Se pedir demissão agora, todos na City saberão por quê. As pessoas dirão que, se Hugh Pilaster acredita que Edward não tem condições de dirigir o banco, é bem provável que ele esteja certo. Poderia causar uma perda de confiança.
- Se o banco tem uma liderança fraca, as pessoas devem mesmo perder a confiança nele. Caso contrário, perderão seu dinheiro.
- E se sua saída provocar uma crise financeira? Hugh não pensara nisso.
- É possível?
- Acho que sim.
- É desnecessário dizer que eu não gostaria que isso acontecesse.
Uma crise poderia destruir outros empreendimentos, sólidos, da mesma forma que o colapso do Overend Gurney liquidara com a empresa do pai de Hugh em 1866.
- Talvez você devesse ficar até o final do ano financeiro, como eu - disse Samuel. - Faltam apenas uns poucos meses. Até lá, Edward já estará no comando há algum
tempo e as pessoas terão se acostumado. Poderia sair sem maiores repercussões.
O mordomo voltou com o Porto. Hugh tomou um gole, pensativo. Achava que devia concordar com a proposta de Samuel, por mais que detestasse a idéia. Fizera um sermão sobre o dever para com os depositantes e a comunidade financeira em geral, e devia se guiar por suas próprias palavras. Se permitisse que o banco fosse prejudicado só por causa de seus sentimentos pessoais, não seria melhor do que Augusta. Além do mais, o adiamento lhe proporcionaria tempo para pensar no que fazer com o resto de sua vida. Ele suspirou.
- Está certo. Ficarei até o final do ano. Samuel balançou a cabeça.
- Eu já imaginava que você concordaria. É a coisa certa a fazer... e você sempre acaba fazendo a coisa certa.
Antes de se despedir da alta sociedade, 11 anos antes, Maisie Greenbourne procurara todos os seus amigos - que eram muitos e ricos - e os persuadira a darem dinheiro ao Hospital para Mulheres Southwark, criado por Rachel Bodwin. Assim, os custos de operação do hospital eram cobertos pela receita dos investimentos.
O dinheiro era administrado pelo pai de Rachel, o único homem envolvido na direção do hospital. A princípio, Maisie quisera cuidar pessoalmente dos investimentos, mas logo descobrira que os banqueiros e corretores recusavam-se a levá-la a sério. Ignoravam suas instruções, pediam a autorização de seu marido e abstinham-se de lhe fornecer informações. Maisie poderia ter lutado contra eles, mas ao fundarem o hospital ela e Rachel já tinham brigas demais para enfrentar, e por isso deixaram Mr. Bodwin cuidar das finanças.
Maisie era viúva, mas Rachel continuava casada com Micky Miranda. Rachel nunca via o marido, mas ele não se divorciava. Há dez anos que Rachel mantinha uma ligação discreta com o irmão de Maisie, Dan Robinson, um membro do Parlamento. Os três viviam juntos na casa de Maisie no subúrbio de Walworth.
Southwark, o bairro em que se situava o hospital, era uma área da classe trabalhadora, no coração da cidade. Haviam feito um arrendamento longo de quatro casas vizinhas, perto da catedral de Southwark, abrindo portas internas de ligação em cada andar. Em vez de fileiras de camas em imensas enfermarias, havia quartos pequenos e confortáveis, cada um com apenas duas ou três camas.
O escritório de Maisie era um santuário aconchegante, perto da entrada principal. Ela tinha duas poltronas confortáveis, flores num vaso, um tapete desbotado e cortinas alegres. Na parede fora pendurado o cartaz emoldurado de A maravilhosa Maisie, sua única recordação do circo. A escrivaninha era pequena e os livros em que mantinha os registros ficavam guardados num armário.
A mulher sentada à sua frente estava descalça, esfarrapada e grávida de nove meses. Tinha nos olhos a expressão cautelosa e desesperada de um gato faminto que entra numa casa estranha, com a esperança de ser alimentado.
- Qual é o seu nome, minha cara? - perguntou Maisie.
- Rose Porter, madame.
Sempre a chamavam de "madame", como se ela fosse uma grande dama. Há muito que desistira de tentar fazer com que a tratassem por Maisie.
- Quer tomar uma xícara de chá?
- Quero, sim; obrigada, madame.
Maisie serviu o chá numa xícara simples de porcelana e acrescentou leite e açúcar.
- Você parece cansada.
- Andei desde Bath, madame.
Era um percurso de mais de 150 quilômetros.
- Mas deve ter levado uma semana! - exclamou Maisie. - Pobrezinha!
Rose começou a chorar.
Isso era normal, e Maisie já se acostumara. Era melhor deixar que elas chorassem pelo tempo que quisessem. Maisie sentou-se no braço da poltrona de Rose e passou
o braço por seus ombros.
- Sei que fui uma pecadora - soluçou Rose.
- Não foi, não - protestou Maisie. - Somos todas mulheres aqui, e compreendemos. Não falamos de pecado. Deixamos essa conversa para os clérigos e políticos.
Depois de algum tempo, Rose se acalmou e tomou seu chá. Maisie pegou um livro no armário e sentou à escrivaninha. Fazia anotações sobre todas as mulheres que eram internadas no hospital. Os registros muitas vezes eram úteis. Se algum conservador hipócrita se levantava no Parlamento para dizer que a maioria das mães solteiras era composta de prostitutas, ou que todas queriam abandonar seus bebês, ou alguma outra infâmia, ela o refutava com uma carta cuidadosa, polida e objetiva, e repetia os argumentos em discursos que fazia por todo o país.
- Conte-me o que aconteceu, Rose. Como você vivia antes de engravidar?
- Era cozinheira de Mrs. Foljambe, em Bath.
- E como conheceu seu jovem?
- Ele se aproximou e falou comigo na rua. Era a minha tarde de folga, e eu levava uma sombrinha amarela nova. Estava muito atraente. Sei disso. Aquela sombrinha amarela foi a minha perdição.
Maisie lhe arrancou toda a história. Era típica. O homem era um estofador, um respeitável e próspero membro da classe trabalhadora. Cortejara Rose, falaram em casamento.
Nas noites quentes acariciavam-se sentados no parque, depois do escurecer, cercados por outros casais fazendo a mesma coisa. As oportunidades de intercurso sexual eram poucas, mas conseguiram quatro ou cinco vezes quando a patroa de Rose viajava ou a senhoria do estofador ficava bêbada demais. Depois, ele perdera o emprego.
Mudara-se para outra cidade à procura de trabalho; ainda escrevera para Rose uma ou duas vezes, e logo desaparecera de sua vida por completo. Ela descobrira que estava grávida.
- Tentaremos entrar em contato com ele - disse Maisie.
- Acho que ele não me ama mais.
- Veremos.
Era surpreendente com que freqüência os homens se dispunham a casar com a moça, no final das contas. Mesmo quando fugiam ao saberem da gravidez, podiam se arrepender de seu pânico. No caso de Rose, as chances eram grandes. Afinal, o homem fora embora porque perdera o emprego, não porque deixara de gostar da moça; e ainda não sabia que ia ser pai. Maisie sempre tentava atrair os homens ao hospital para que vissem a mãe com a criança. A visão de um bebê desamparado, sua própria carne e sangue, às vezes despertava o melhor nos homens. Rose estremeceu, e Maisie indagou:
- Qual é o problema?
- Sinto muita dor nas costas. Deve ser de tanto andar. Maisie sorriu.
- Não é dor nas costas, mas seu bebê que já vai chegar. Vamos para uma cama.
Ela levou Rose para o segundo andar e entregou-a aos cuidados de uma enfermeira.
- Vai acabar tudo bem - garantiu Maisie. - Você terá um bebê lindo e forte.
Ela foi para outro quarto, parou ao lado da cama da mulher que chamavam de Senhorita Ninguém, pois se recusava a fornecer qualquer informação a seu respeito; nem sequer dizia seu nome. Era uma jovem de cabelos escuros, em torno dos 18 anos. Seu sotaque era da classe superior, e as roupas de baixo caras; além disso, Maisie tinha quase certeza de que era judia.
- Como se sente, minha cara? - perguntou Maisie.
- Estou bem... e lhe agradeço por tudo, Mrs. Greenbourne.
Ela era tão diferente de Rose quanto era possível - poderiam ter vindo de extremidades opostas do mundo, - mas ambas se encontravam no mesmo apuro e dariam à luz da mesma maneira dolorosa.
Ao retornar à sua sala, Maisie continuou a carta que começara a escrever ao editor de The Times.
Hospital para Mulheres
Bridge Street
Southivark
Londres, S.E
lOde setembro de 1890
Ao editor de The Times Prezado Senhor:
Li com interesse a cana do dr. Charles Wickham sobre a questão da inferioridade física das mulheres em relação aos homens.
Não sabia antes como continuar, mas a chegada de Rose Porter lhe inspirava.
Acabei de internar neste hospital uma jovem numa determinada condição que aqui chegou procedente de Bath, de onde veio a pé.
O editor provavelmente cortaria as palavras "numa determinada condição", considerando-as vulgares, mas Maisie não faria a censura por ele.
Constato que o dr. Wickham escreve do Cowes Club, e não posso deixar de me perguntar quantos sócios do clube seriam capazes de andar de Bath a Londres.
É claro que uma mulher como eu nunca esteve no interior do clube, mas vejo com freqüência os sócios nos degraus, chamando fiacres para conduzi-los a uma distância de um quilômetro ou menos, e me sinto propensa a dizer que a maioria dá a impressão de que teria a maior dificuldade para andar de Piccadilly Circus à Parliament Square.
Claro que não teriam condições de cumprirem uma jornada de trabalho de 12 horas numa oficina de costura no East End, como milhares de mulheres inglesas fazem todos os dias...
Ela foi interrompida de novo por uma batida na porta.
- Entre!
A mulher que entrou não era pobre nem estava grávida. Tinha enormes olhos azuis e o rosto de menina, e se vestia com elegância. Era Emily, a esposa de Edward Pilaster.
Maisie levantou-se e beijou-a. Emily Pilaster era um dos esteios do hospital. O grupo incluía uma surpreendente diversidade de mulheres. A amiga antiga de Maisie, April Tilsley, agora proprietária de três bordéis em Londres, era uma delas. Doavam roupas que seriam jogadas fora, móveis velhos, o excesso de comida de suas cozinhas e suprimentos sortidos, até mesmo papel e tinta. Podiam às vezes arrumar empregos para as mães depois do resguardo. Mas, acima de tudo, ofereciam apoio moral a Maisie e Rachel quando eram difamadas pelos homens por não exigirem orações, hinos e sermões sobre a iniqüidade da condição de mãe solteira.
Maisie sentia-se responsável em parte pela desastrosa visita de Emily ao bordel de April na Noite das Máscaras, quando ela fracassara na tentativa de seduzir o próprio marido. Desde então, Emily e o repulsivo Edward levavam discretamente vidas separadas, como os casais ricos que se odiavam.
Naquela manhã, os olhos de Emily faiscavam, num excitamento evidente. Ela sentou, tornou a se levantar e verificou se a porta estava fechada direito. Só depois é que ela anunciou:
- Estou apaixonada!
Maisie não tinha certeza de ser mesmo uma boa notícia, mas disse:
- Que coisa maravilhosa! Por quem?
- Robert Charlesworth. Ele é poeta e escreve artigos sobre a arte italiana. Passa a maior parte do ano em Florença, mas alugou um chalé em nossa aldeia, pois gosta da Inglaterra em setembro.
A impressão de Maisie foi de que Robert Charlesworth tinha dinheiro suficiente para viver bem sem ter de trabalhar de verdade.
- Ele parece muito romântico - comentou ela.
- E é mesmo, um homem muito sensível! Você vai gostar dele!
- Tenho certeza disso.
Na verdade, Maisie não suportava os poetas sensíveis com uma renda particular. Mas sentiu-se feliz por Emily, que tivera mais azar do que merecia.
-Já é amante dele? Emily corou.
- Oh, Maisie, você sempre faz as perguntas mais embaraçosas! Claro que não!
Depois do que acontecera na Noite das Máscaras, Maisie achava incrível que Emily ainda pudesse ficar embaraçada por qualquer coisa. Contudo, a experiência lhe ensinara que era ela, Maisie, quem se mostrava diferente sob esse aspecto. A maioria das mulheres era capaz de fechar os olhos a tudo, se assim desejasse. Mas Maisie não tinha paciência com eufemismos polidos e frases delicadas. Se queria saber alguma coisa, não hesitava em perguntar.
- Ora, não pode se tornar a esposa dele, não é mesmo? A resposta a pegou de surpresa:
- Foi por isso que vim procurá-la, Maisie. Sabe alguma coisa sobre anulação de casamento?
- Oh, Deus! - Maisie pensou por um momento. - Sob a alegação de que o casamento nunca foi consumado, eu presumo?
- Isso mesmo.
Maisie balançou a cabeça.
- Sei alguma coisa a respeito.
Não era surpresa que Emily a procurasse em busca de conselhos legais. Não havia nenhuma mulher que fosse advogada, e um homem trataria de contar tudo a Edward. Maisie fazia campanha pelos direitos das mulheres, e estudara as leis existentes do casamento e divórcio.
- Teria de recorrer à Divisão de Divórcio do Tribunal Superior e provar que Edward é impotente em todas as circunstâncias, não apenas com você.
Emily ficou desanimada.
- Sabemos que ele não é...
- Além disso, o fato de você não ser mais virgem seria um grande problema.
- Então não tem jeito - murmurou Emily, angustiada.
- O único meio seria persuadir Edward a cooperar. Acha que ele concordaria?
Emily se reanimou.
- É possível.
- Se ele assinasse um depoimento dizendo que é impotente e concordasse em não contestar a anulação, não haveria muitas dificuldades.
- Neste caso, terei de encontrar uma maneira de fazê-lo assinar.
O rosto de Emily assumiu uma expressão obstinada, e Maisie recordou como aquela mulher podia se mostrar inesperadamente forte.
- Seja discreta. É contra a lei que marido e mulher conspirem dessa forma, e há um homem chamado Procurador da Rainha que atua como uma espécie de policial dos divórcios.
- Poderei casar com Robert depois?
- Claro. A não-consumação é motivo para um divórcio pleno pelas leis da igreja. Levaria cerca de um ano para que o caso fosse levado a julgamento, com um período
posterior de espera de seis meses antes que o divórcio fosse homologado. Mas depois você terá permissão para casar de novo.
- Espero que ele concorde.
- Como Edward se sente em relação a você?
- Ele me odeia.
- Acha que gostaria de se livrar de você?
- Não creio que se importe comigo, desde que eu não o atrapalhe.
- E se você o atrapalhasse?
- Se me tornasse um estorvo para ele?
- Foi o que pensei.
- Acho que é possível.
Maisie tinha certeza de que Emily poderia se tornar um estorvo insuportável, se assim decidisse.
- Precisarei de um advogado para escrever a carta que Edward terá de assinar - lembrou Emily.
- Pedirei ao pai de Rachel. Ele é advogado.
- Pedirá mesmo?
- Claro que sim. - Maisie olhou para o relógio. - Não posso falar com ele hoje, pois é o primeiro dia do ano letivo em Windfield e tenho de levar Bertie. Mas prometo que o procurarei amanhã de manhã.
Emily levantou-se.
- Maisie, você é a melhor amiga que uma mulher jamais teve.
- Isso vai provocar a maior agitação na família Pilaster. Augusta terá um ataque.
- Augusta não me assusta - declarou Emily.
Maisie Greenbourne atraiu muita atenção na Windfield School, o que sempre acontecia. E havia vários motivos. Era conhecida como a viúva do fabulosamente rico Solly Greenbourne, embora ela própria não tivesse muito dinheiro. Era também notória como uma mulher "avançada" que acreditava nos direitos das mulheres e encorajava as criadas, pelo que se dizia, a terem bebês ilegítimos. E quando levava Bertie para a escola, era sempre acompanhada por Hugh Pilaster, o belo banqueiro que pagava os estudos de seu filho: com toda a certeza, os mais sofisticados entre os outros pais desconfiavam que Hugh era o verdadeiro pai de Bertie. Mas o principal motivo, refletiu ela, era que aos 34 anos continuava bastante bonita para fazer os homens virarem a cabeça.
Hoje ela usava um vestido vermelho com um casaco curto por cima e um chapéu com uma pluma. Sabia que parecia linda e despreocupada. Na verdade, porém, aquelas idas à escola com Bertie e Hugh partiam seu coração.
Dezessete anos haviam transcorrido desde que passara uma noite com Hugh, e ainda o amava tanto quanto antes. Durante a maior parte do tempo, absorvia-se nos problemas das moças pobres que procuravam o hospital e esquecia seu próprio pesar; duas ou três vezes por ano, porém, tinha de se encontrar com Hugh, e toda a angústia ressurgia.
Há 11 anos ele sabia ser o verdadeiro pai de Bertie. Ben Greenbourne dera-lhe uma indicação, e ele a confrontara com suas suspeitas. Maisie contara a verdade. Desde então, Hugh fizera tudo o que podia por Bertie, só faltara reconhecê-lo como seu filho. Bertie pensava que seu pai era o falecido e adorável Solomon Greenbourne, e revelar-lhe a verdade poderia apenas causar um sofrimento desnecessário.
Seu nome era Hubert, e chamá-lo de Bertie fora um cumprimento insinuante ao Príncipe de Gales, que também era Bertie. Maisie não via mais o príncipe. Deixara de ser uma anfitriã da sociedade e a esposa de um milionário: era apenas uma viúva, vivendo numa casa modesta num subúrbio ao sul de Londres, e uma mulher assim não se enquadrava no círculo de amigos do príncipe.
Ela resolvera dar ao filho o nome de Hubert porque soava parecido com Hugh, mas logo se sentira embaraçada com a semelhança e esse fora outro motivo para chamá-lo de Bertie. Por sorte, não havia uma semelhança física óbvia entre Bertie e Hugh. Na verdade, Bertie era como o pai de Maisie, de cabelos escuros lisos e olhos castanhos tristes. Era alto e forte, um bom atleta e um excelente aluno, e Maisie se orgulhava tanto do filho que às vezes tinha a sensação de que seu coração ia explodir.
Nessas ocasiões, Hugh se mostrava escrupulosamente polido com Maisie, desempenhando o papel de amigo da família, mas ela podia perceber que ele sentia a amargura e ternura da situação com a mesma intensidade.
Maisie soubera, pelo pai de Rachel, que Hugh era considerado um prodígio na City. Quando ele falava sobre o banco seus olhos brilhavam, e era sempre interessante e divertido. Dava para compreender que seu trabalho representava um desafio e uma realização. Mas se a conversa por acaso se desviasse para o campo doméstico, Hugh se tornava azedo e pouco comunicativo. Não gostava de falar sobre sua casa, vida social ou - muito menos - esposa. De sua família, só falava a Maisie sobre os três filhos, que amava profundamente. Mas havia um tom de pesar até mesmo quando discorria sobre os meninos, e Maisie concluíra que Nora não era uma mãe amorosa. Ao longo dos anos, ela o vira se resignar a um casamento frio e frustrante na área sexual.
Hoje, ele usava um terno de tweed cinza-prateado, combinando com os cabelos, e uma gravata azul da cor dos olhos. Estava mais corpulento do que antes, mas ainda tinha um sorriso insinuante que aflorava de vez em quando. Formavam um casal atraente... mas não eram um casal, e o fato de parecerem e agirem como tal era o que a deixava tão triste. Maisie pegou o seu braço ao entrarem na Windfield School e pensou que daria sua própria alma para estar com Hugh todos os dias.
Ajudaram Bertie a desfazer seu baú, e depois o garoto fez-lhes um chá em seu estúdio. Hugh trouxera um bolo que provavelmente alimentaria toda a sexta série por uma semana.
- Meu filho Toby estará aqui no próximo semestre - comentou Hugh, enquanto tomavam o chá. - Será que você poderia ficar de olho nele por mim?
- Terei o maior prazer... e cuidarei para que ele não vá nadar em Bishop's Wood. - Maisie franziu o cenho; Bertie se apressou em acrescentar: - Desculpem. Foi uma piada de mau gosto.
- Ainda falam sobre isso até hoje? - perguntou Hugh.
- Todos os anos o diretor conta a história do afogamento de Peter Middleton para tentar assustar os alunos. Mas eles continuam a ir até lá para nadar.
Despediram-se de Bertie depois do chá. Maisie sentia-se chorosa, como sempre, por ter de deixar seu filhinho, embora fosse agora mais alto do que ela. Voltaram a pé para a cidade e pegaram o trem para Londres. Ficaram sozinhos num compartimento da primeira classe. Enquanto contemplavam a paisagem pela janela, Hugh informou:
- Edward vai ser o novo Sócio Sênior do banco. Maisie se surpreendeu.
- Nunca pensei que ele fosse bastante inteligente para isso.
- E não é. Devo deixar o banco no final do ano.
- Oh, Hugh! - Maisie sabia como o banco era importante para ele. Depositara ali todas as suas esperanças. - O que pretende fazer?
- Não sei. Continuarei até o final do ano financeiro, e assim terei tempo para pensar a respeito.
- O banco não será arruinado por Edward?
- Infelizmente, é bem possível.
Maisie sentiu-se triste por Hugh. Ele tivera mais azar do que merecia, enquanto Edward contara com muita sorte.
- Edward é também lorde Whitehaven. Compreende que se o título tivesse ido para Ben Greenbourne, como deveria, Bertie estaria na fila para herdá-lo?
- É verdade.
- Mas Augusta acabou com essa possibilidade.
- Augusta? - murmurou Hugh, franzindo o cenho em perplexidade.
- Isso mesmo. Ela estava por trás daquela campanha na imprensa: Um judeu pode se tornar um lorde? Você lembra?
- Claro que lembro. Mas como pode ter certeza de que Augusta foi responsável?
- O Príncipe de Gales nos contou.
- Ora, ora... - Hugh balançou a cabeça. -Augusta nunca deixa de me surpreender.
- Seja como for, a pobre Emily é agora lady Whitehaven.
- Pelo menos ela obteve alguma coisa desse casamento infeliz.
- Vou lhe contar um segredo. - Maisie baixou a voz, embora não houvesse ninguém por perto para escutar. - Emily está prestes a pedir a Edward a anulação do casamento.
- O que é ótimo para ela. Sob a alegação de não-consumação, não é mesmo?
- É, sim. Você não parece surpreso.
- Dá para perceber. Eles nunca se tocam. Mostram-se tão contrariados um com o outro que é difícil acreditar que sejam marido e mulher.
- Ela tem levado uma vida falsa durante todos esses anos, e decidiu acabar com isso.
- Enfrentará problemas com a minha família.
- Ou seja, com Augusta. - Essa fora também a reação de Maisie. - Emily sabe disso. Mas tem uma veia de obstinação que deve ajudá-la.
- Ela tem um amante?
- Tem um homem por quem está apaixonada, mas se recusa a ser sua amante. Não consigo entender por que ela tem de ser tão escrupulosa. Edward passa todas as noites num bordel.
Hugh sorriu para ela, um sorriso triste e afetuoso.
- Você também foi escrupulosa certa ocasião.
Maisie sabia que ele se referia à noite em Kingsbridge Manor quando trancara a porta do quarto para impedir sua entrada.
- Eu era casada com um bom homem, e nós dois estávamos prestes a traí-lo. A situação de Emily é muito diferente.
Hugh concordou com a cabeça.
- Mesmo assim, creio que compreendo como ela se sente. É a mentira que torna o adultério vergonhoso.
Maisie discordava.
- As pessoas devem aproveitar a felicidade onde puderem encontrála. Só se tem uma vida.
- Mas quando se aproveita a felicidade, pode-se perder uma coisa ainda mais valiosa... sua integridade.
- É abstrato demais para mim.
- Pode ter certeza de que também foi para mim naquela noite na casa de Kingo, quando eu trairia de bom grado a confiança de Solly, se você permitisse. Ao longo dos
anos, porém, foi se tornando cada vez mais concreto. Agora, acho que prezo a integridade mais do que qualquer outra coisa.
- Mas o que é isso?
- Significa dizer a verdade, cumprir as promessas e assumir a responsabilidade por seus erros. Funciona tanto nos negócios quanto na vida cotidiana. É uma questão de ser o que você alega ser, de fazer o que diz que fará. E um banqueiro, entre todas as pessoas, não pode ser um mentiroso. Afinal, se a própria mulher não pode confiar nele, quem poderá?
Maisie percebeu que começava a se zangar com Hugh e especulou por quê. Recostou-se em silêncio por algum tempo, olhando pela janela para os subúrbios de Londres ao crepúsculo. Agora que ele ia deixar o banco, o que restava em sua vida? Não amava a esposa, e a esposa não amava seus filhos. Por que não deveria encontrar a felicidade nos braços de Maisie, a mulher que sempre amara?
Na estação de Padelington, Hugh conduziu-a até o ponto dos fiacres e ajudou-a a embarcar. Ao se despedirem, ela segurou suas mãos e murmurou:
- Venha para casa comigo.
Ele se mostrou triste, balançou a cabeça.
- Nós nos amamos... sempre nos amamos - suplicou Maisie. -Venha comigo e que se danem as conseqüências.
- Mas a vida é feita de conseqüências, não é mesmo?
- Por favor, Hugh!
Ele retirou as mãos e recuou.
- Adeus, Maisie querida.
Ela fitou-o, desolada. Anos de anseio reprimido a dominavam. Se fosse bastante forte, poderia agarrá-lo, arrastá-lo para o fiacre mesmo contra sua vontade. Sentia-se enlouquecida de frustração.
Poderia ter permanecido ali para sempre, mas Hugh acenou com a cabeça para o cocheiro e disse.
- Pode partir.
O homem encostou o chicote no cavalo e as rodas giraram. Um momento depois, Hugh desapareceu das vistas de Maisie.
Ele dormiu mal naquela noite. Acordou várias vezes, recordando a conversa com Maisie. Desejava ter cedido, ido para casa com ela. Poderia estar dormindo em seus braços agora, a cabeça aconchegada em seus seios, em vez de ficar se revirando na cama, sozinho.
Mas outra coisa também o perturbava. Tinha a impressão de que ela dissera algo da maior importância, algo surpreendente e sinistro, cujo significado lhe escapara no momento. E que continuava a se esquivar agora.
Haviam falado sobre o banco, a promoção de Edward a Sócio Sênior; o título de Edward; o plano de Emily para obter a anulação do casamento; a noite em Kingsbridge
Manor em que quase haviam feito amor; os valores conflitantes da felicidade e integridade... Qual seria a revelação de suma importância?
Hugh tentou reconstituir a conversa de trás para a frente: Venhapara casa comigo... As pessoas devem aproveitar a felicidade onde puderem encontrá-la... Emily está prestes a pedir a Eduard a anulação do casamento... Emily é agora lady Whitehaven... Compreende que se o título tivesse ido para Ben Greenbourne, como deveria, Bertie estaria na fila para herdá-lo?
Não, ele perdera alguma coisa. Edward ganhara o título que deveria ter sido de Ben Greenbourne... mas Augusta acabara com essa possibilidade. Ela estivera por trás da campanha contra a elevação de um judeu a nobre. Hugh não compreendera isso, embora recordando os fatos agora pensasse que deveria ter adivinhado na ocasião. Mas o Príncipe de Gales descobrira, de alguma forma, e contara a Maisie e Solly.
Hugh revirou a questão. Por que deveria ser tão significativa? Era apenas outro exemplo da força impiedosa de Augusta. Fora abafado na ocasião. Mas Solly soubera...
Subitamente, Hugh sentou na cama, olhando para a escuridão.
Solly soubera.
E se Solly sabia que os Pilasters eram os responsáveis por uma campanha de imprensa de ódio racial contra seu pai, jamais faria qualquer negócio com o Pilasters Bank. Em particular, teria cancelado o lançamento dos títulos da Ferrovia Santamaria. E teria comunicado a Edward que estava se retirando da transação. E Edward teria avisado a Micky.
- Oh, Deus! - exclamou Hugh.
Sempre se perguntara se Micky tinha alguma coisa a ver com a morte de Solly. Sabia que Micky se encontrava nas proximidades. Mas o motivo sempre fora um enigma.
Até onde ele sabia, Solly se achava prestes a concretizar o negócio, dar o que Micky queria; e se isso era certo, Micky tinha todos os motivos para manter Solly vivo. Mas se Solly estava disposto a cancelar o lançamento, Micky poderia tê-lo matado para salvar a operação. Teria sido Micky o homem bem-vestido que discutia com Solly poucos segundos antes do atropelamento? O cocheiro sempre alegara
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que Solly fora empurrado para sua frente. Micky teria jogado Solly sob as rodas da carruagem? O pensamento era horrível e repulsivo.
Hugh saiu da cama e acendeu a luz a gás. Não voltaria a dormir naquela noite. Pôs um chambre e ficou sentado junto das brasas na lareira. Micky assassinara dois de seus amigos, Peter Middleton e Solly Greenbourne?
E se isso tivesse acontecido, o que faria?
Ele ainda se afligia com a pergunta no dia seguinte, quando aconteceu algo que lhe proporcionou a resposta.
Passou a manhã à sua mesa, na Sala dos Sócios. Outrora ansiara em sentar ali, no centro do poder, tranqüilo e luxuoso, tomando decisões sobre milhões de libras sob os olhos dos retratos de seus ancestrais; mas agora já se acostumara. E muito em breve renunciaria a tudo aquilo.
Estava cuidando dos problemas, concluindo projetos já iniciados mas sem começar novos. Seus pensamentos se desviavam a todo instante para Micky Miranda e o pobre Solly. Enfurecia-o pensar que um homem tão bom quanto Solly fora liquidado por um réptil e parasita como Micky. Sua vontade era estrangular Micky com as próprias mãos. Mas não podia matá-lo; na verdade, nem adiantava comunicar suas convicções à polícia, pois não dispunha de provas.
Seu assistente, Jonas Mulberry, parecera nervoso durante toda a manhã. Entrara na Sala dos Sócios quatro ou cinco vezes sob diferentes pretextos, mas não dissera o que tinha em mente. Hugh acabou chegando à conclusão de que Mulberry tinha algo a revelar, mas não queria que os outros sócios ouvissem.
Poucos minutos antes do meio-dia, Hugh deixou a Sala dos Sócios e seguiu pelo corredor para a sala do telefone. O telefone fora instalado dois anos antes, e já estavam arrependidos de não tê-lo posto na Sala dos Sócios: cada um deles era chamado ao aparelho várias vezes por dia.
No caminho, ele encontrou Mulberry no corredor. Deteve-o e perguntou:
- Tem alguma coisa que quer me contar?
- Tenho, sim, Mr. Hugh - respondeu Mulberry com evidente alívio. Ele baixou a voz. - Por acaso vi alguns documentos que estão sendo preparados por Simon Oliver, o assistente de Mr. Edward.
- Venha comigo. - Hugh entrou na sala do telefone e fechou a porta. - O que havia nesses papéis?
- Uma proposta para um empréstimo a Córdoba... no valor de dois milhões de libras!
- Essa não! - exclamou Hugh. - O banco precisa de menos exposição à dívida sul-americana... não de mais!
- Eu sabia que pensaria assim.
- Para que é o empréstimo?
- Para a construção de um novo porto na província de Santamaria.
- Outro esquema do Senor Miranda.
- Isso mesmo. Receio que ele e seu primo Simon Oliver tenham muita influência sobre Mr. Edward.
- Obrigado por me avisar, Mulberry. Tentarei resolver o problema. Esquecendo o telefonema, Hugh voltou à Sala dos Sócios. Os outros sócios deixariam que Edward levasse adiante esse projeto? Era bem possível. Hugh e Samuel não tinham mais grande influência, já que estavam de saída. O Jovem William não partilhava o temor de Hugh com relação a um colapso sul-americano. O major Hartshorn e Sir Harry fariam o que mandassem. E Edward era agora o Sócio Sênior.
O que Hugh podia fazer? Ainda não deixara o banco e tinha sua participação nos lucros; portanto, suas responsabilidades não haviam terminado.
O problema era que Edward não agia de uma forma racional: como Mulberry dissera, ele se encontrava sob a influência total de Micky Miranda.
Haveria algum meio de Hugh enfraquecer essa influência? Podia dizer a Edward que Micky era um assassino. Edward não acreditaria. Mas ele começava a pensar que não podia deixar de tentar. Nada tinha a perder. E precisava fazer algo sobre a terrível revelação da noite anterior.
Edward já saíra para o almoço. Num súbito impulso, Hugh decidiu segui-lo.
Adivinhando o destino de Edward, pegou um fiacre para o Cowes Club. Passou a viagem da City a Pall Mall tentando definir as palavras que seriam plausíveis e inofensivas, a fim de convencer Edward. Mas todas as frases que imaginou pareciam artificiais, e ao chegar decidiu contar a verdade pura e simples, torcendo para o melhor.
Ainda era cedo, e ele encontrou Edward sozinho na sala de fumantes do clube, tomando um copo grande de Madeira. As erupções na pele de Edward estavam cada vez piores, ele notou: onde o colarinho roçava no pescoço, a pele se achava vermelha, quase em carne viva.
Hugh sentou à mesma mesa e pediu um chá. Quando eram meninos, Hugh dedicava um ódio profundo a Edward por ser brutal e arrogante. Nos últimos anos, porém, passara a encarar o primo como uma vítima. Edward era assim por causa da influência de duas pessoas impiedosas, Augusta e Micky. Augusta o sufocara, e Micky o corrompera. Mas Edward não abrandara sua opinião em relação a Hugh, e agora não hesitou em deixar claro que a companhia do primo não era do seu agrado.
- Não veio tão longe para tomar uma xícara de chá - disse ele. - O que você quer?
Era um mau começo, mas nada se podia fazer para contorná-lo. Sentindo-se pessimista, Hugh começou:
- Tenho uma coisa para lhe contar que vai deixá-lo chocado e horrorizado.
- É mesmo?
- Não vai querer acreditar, mas mesmo assim é a verdade. Acho que Micky Miranda é um assassino.
- Ora, pelo amor de Deus! - exclamou Edward, irritado. - Não venha me incomodar com esses absurdos!
- Quero que me escute antes de descartar a idéia por completo - insistiu Hugh. - Estou deixando o banco, você é o Sócio Sênior, nada me resta por que brigar. Mas descobri uma coisa ontem. Solly Greenbourne sabia que sua mãe estava por trás da campanha de imprensa contra a concessão do pariato a Ben Greenbourne.
Edward estremeceu, numa reação involuntária, como se as palavras de Hugh se ligassem a algo que já soubesse. Hugh sentiu-se mais esperançoso.
- Estou no caminho certo, não é mesmo? - Adivinhando, ele continuou: - E Solly não ameaçou cancelar o acordo da Ferrovia Santamaria?
Edward confirmou com um aceno de cabeça.
Hugh inclinou-se para a frente, tentando conter o excitamento.
- Eu sentava a esta mesma mesa, com Micky, quando Solly apareceu, furioso. Mas...
- E nessa noite Solly morreu.
- Isso mesmo... mas Micky passou a noite inteira comigo. Jogamos cartas aqui, e depois fomos ao Nellie"s.
- Ele deve tê-lo deixado, nem que fosse por uns poucos minutos.
- Não...
- Eu o vi entrando no clube mais ou menos na hora em que Solly morreu.
- Deve ter sido antes.
- Ele pode ter ido ao banheiro ou qualquer coisa assim.
- O que não lhe daria tempo suficiente.
Edward assumiu uma expressão de decidido ceticismo. As esperanças de Hugh tornaram a se desvanecer. Por um momento, conseguira criar uma dúvida na mente de Edward, mas não durara muito.
- Você perdeu o juízo - acrescentou Edward. - Micky não é um assassino. A idéia é absurda.
Hugh decidiu falar sobre Peter Middleton. Era um ato de desespero, pois se Edward se recusava a acreditar que Micky matara Solly 11 anos antes, por que acreditaria que Micky matara Peter há 24? Mas tinha de tentar.
- Micky matou Peter Middleton também - declarou ele, sabendo que corria o risco de parecer delirante.
- Isso é ridículo!
- Você pensa que o matou. Sei disso. Deu-lhe diversos caldos e depois saiu atrás de Tonio; e você pensa que Peter ficou exausto demais para nadar até a beira e se
afogou. Mas há uma coisa que não sabe.
Apesar de seu ceticismo, Edward ficou curioso.
- O quê?
- Peter era um excelente nadador.
- Ele era um fraco!
- Era, sim... mas vinha praticando natação todos os dias durante o verão. Era um fraco, é verdade, mas podia nadar por quilômetros. Nadou até a beira sem dificuldades...
Tonio viu.
- O que... - Edward engoliu em seco. - O que mais Tonio viu?
- Enquanto você subia pela pedreira, Micky manteve a cabeça de Peter debaixo d'água até que ele se afogasse.
Para surpresa de Hugh, Edward não rejeitou a idéia; em vez disso, perguntou:
- Por que esperou tanto tempo para me contar?
- Achei que não acreditaria. Só estou contando agora por desespero, para tentar dissuadi-lo desse novo investimento em Córdoba. - Ele estudou a expressão de Edward e acrescentou: - Mas acredita em mim, não é mesmo?
Edward concordou com a cabeça.
- Por quê?
- Porque conheço o motivo.
- Conhece o motivo? - Hugh foi dominado pela curiosidade. Há anos que especulava a respeito. - E por que Micky matou Peter?
Edward tomou um gole longo do Madeira e permaneceu em silêncio por algum tempo. Hugh receou que ele não quisesse falar mais nada, mas o primo acabou respondendo:
- Em Córdoba a família Miranda é muito rica, mas seu dinheiro não compra muita coisa aqui. Quando Micky foi para Windfield, gastou todo o seu dinheiro em poucas
semanas. Mas se gabara da fortuna da família, e era muito orgulhoso para admitir a verdade. Assim, quando seu dinheiro acabou... ele roubou.
Hugh recordou o escândalo que abalara o colégio em junho de 1866.
- Os seis soberanos de ouro que roubaram de Mr. Offerton - murmurou ele, espantado. - Micky foi o ladrão?
- Isso mesmo.
- Essa não!
- E Peter sabia.
- Como?
- Ele viu Micky saindo da sala de Offerton e adivinhou a verdade quando o roubo foi denunciado. Disse que contaria tudo se Micky não confessasse. Achamos que foi um golpe de sorte encontrá-lo no poço. Quando dei os caldos, estava tentando assustá-lo para se manter calado. Mas nunca pensei...
- Que Micky o mataria.
- E durante todos esses anos ele me deixou acreditar que a culpa era minha, e que me dava cobertura - comentou Edward. - Que desgraçado!
Hugh compreendeu que, contra todas as chances, conseguira abalar a fé de Edward em Micky. Sentiu-se tentado a dizer Agora que você sabe como ele é, esqueça o porto do Santamaria. Mas precisava ser cauteloso para não forçar demais. Concluiu que já falara o suficiente: era melhor deixar que Edward tirasse suas próprias conclusões.
Hugh levantou-se para sair.
- Lamento ter dado tamanho golpe.
Edward estava imerso em seus pensamentos, esfregando o pescoço no ponto em que cocava.
- Tudo bem - murmurou ele, vagamente.
- Tenho de ir agora.
Edward não disse nada. Parecia ter esquecido a existência de Hugh. Olhava para seu copo. Hugh fitou-o com mais atenção e descobriu, surpreso, que ele chorava.
Saiu em silêncio e fechou a porta.
Augusta gostava de ser uma viúva. Por um lado, o preto lhe caía muito bem. com seus olhos escuros, cabelos prateados e sobrancelhas pretas, ficava muito atraente em roupas de luto.
Joseph morrera há quatro semanas e era extraordinário quão pouca saudade sentia dele. Estranhava um pouco que ele não estivesse ali para se queixar que o bife estava malpassado, ou a biblioteca coberta de pó. Jantava sozinha uma ou duas vezes por semana, mas sempre fora capaz de desfrutar sua própria companhia. Não era mais a esposa do Sócio Sênior, mas era a mãe do novo Sócio Sênior. E era a condessa-viúva de Whitehaven. Tinha tudo o que Joseph lhe dera, sem o estorvo do próprio Joseph.
E poderia casar outra vez. Tinha 58 anos, e não era mais capaz de gerar filhos, mas ainda sentia os desejos que considerava sentimentos juvenis. Quando Micky Miranda tocava em seu braço, a fitava nos olhos ou punha a mão em seu quadril ao conduzi-la para uma sala, Augusta sentia mais forte do que nunca a sensação de prazer combinada com fraqueza que provocava uma vertigem em sua cabeça.
Contemplando-se no espelho da sala de estar, ela pensou: Somos muito parecidos, Micky e eu, até mesmo na cor da pele. Poderíamos ter tido lindos bebês morenos.
Enquanto pensava nisso, seu bebê de cabelos louros e olhos azuis entrou na sala. Ele não parecia bem disposto. Passara da corpulência à gordura incontestável, e tinha algum problema de pele. Muitas vezes se mostrava irritado na hora do chá, à medida que passava os efeitos do vinho que tomara durante o almoço.
Mas Augusta tinha uma coisa para lhe dizer, e não sentia o menor ânimo para tratá-lo com brandura.
- Que história é essa que ouvi sobre Emily pedir anulação do casamento?
- Ela quer casar com outro - respondeu Edward, apático.
- Mas não pode... já é casada com você!
- Não realmente.
Mas do que ele estava falando? Por mais que o amasse, não podia deixar de reconhecer que Edward era às vezes profundamente irritante.
- Não diga bobagem! - protestou Augusta, ríspida. - Claro que ela é casada com você.
- Só casei porque você queria, e Emily só concordou porque seus pais a obrigaram. Nunca nos amamos e... - Ele hesitou, mas acabou acrescentando: - Nunca consumamos o casamento.
Então era esse o problema. Augusta se espantou pelo filho se referir diretamente ao ato sexual: tais coisas nunca eram ditas na presença das mulheres. Contudo, ela não se surpreendia por descobrir que o casamento não passara de uma farsa: há anos que já desconfiava. Mesmo assim, não permitiria que Emily cumprisse seu intento.
- Não podemos ter um escândalo - declarou ela com firmeza.
- Não seria um escândalo...
- Claro que seria! - gritou Augusta, exasperada com a miopia do filho. - Seria a conversa de toda a Londres por um ano, e ainda seria noticiado nos jornais mais vulgares.
Edward era lorde Whitehaven agora, e uma sensação sexual envolvendo um par do reino era o tipo de assunto publicado pelos jornais semanais que os criados compravam.
- Mas não acha que Emily tem direito à sua liberdade? - indagou Edward, angustiado.
Augusta ignorou o débil apelo à justiça.
- Ela pode forçá-lo?
- Quer que eu assine um documento admitindo que o casamento nunca foi consumado. E depois, ao que parece, o processo é simples.
- E se você não assinar?
- Torna-se mais difícil. Essas coisas não são fáceis de provar.
- Então está decidido. Não temos que nos preocupar com nada. E não falemos mais sobre esse assunto embaraçoso.
- Mas...
- Diga a ela que não pode ter uma anulação. Não admitirei de jeito nenhum.
- Está bem, mãe.
Augusta ficou consternada com a rápida capitulação. Embora sempre acabasse, ao final, impondo sua vontade, Edward costumava resistir com mais empenho. Ele devia
ter outros problemas na cabeça.
- O que aconteceu, Teddy? - indagou eia com voz suave. O filho suspirou.
- Hugh me contou uma coisa terrível.
- O quê?
- Disse que Micky matou Solly Greenbourne. Augusta sentiu um calafrio de fascínio horrorizado.
- Como? Solly foi atropelado.
- Hugh diz que Micky o empurrou para a frente da carruagem.
- E você acreditou?
- Micky esteve comigo naquela noite, mas pode ter escapulido por alguns minutos. É possível. Acredita nisso, mãe?
Augusta concordou com a cabeça. Micky era perigoso e ousado; e era isso que o tornava tão magnético. Ela não tinha a menor dúvida de que Micky era capaz de cometer um crime tão audacioso... e escapar impune.
- Acho difícil acreditar - acrescentou Edward. - Sei que Micky é cruel em algumas coisas, mas pensar que ele seria capaz de matar...
- Mas ele seria - garantiu Augusta.
- Como pode ter certeza?
Edward parecia tão patético que Augusta sentiu-se tentada a partilhar seu segredo. Seria sensato? Não podia fazer mal. O choque da revelação de Hugh parecia ter deixado Edward mais pensativo do que o habitual. Talvez a verdade lhe fosse benéfica. Poderia torná-lo mais sério. Ela decidiu contar:
- Micky matou seu Tio Seth.
- Santo Deus!
- Sufocou-o com um travesseiro. Eu o surpreendi em flagrante. Augusta experimentou um calor intenso na virilha ao recordar a cena subseqüente. Edward perguntou:
- Mas por que Micky mataria Tio Seth?
- Não lembra que ele tinha pressa no embarque daqueles rifles para Córdoba?
- Lembro, sim.
Edward permaneceu em silêncio por alguns momentos. Augusta fechou os olhos, revivendo aquele longo e desvairado abraço com Micky, no quarto, junto ao falecido. O filho arrancou-a de seu devaneio.
- Há mais uma coisa, e é ainda pior. Lembra daquele menino chamado Peter Middleton?
- Claro. - Augusta nunca o esqueceria. Sua morte atormentava a família desde então. - O que há com ele?
- Hugh diz que foi Micky quem o matou. Agora, Augusta ficou chocada.
- O quê? Não... não posso acreditar. Edward balançou a cabeça em confirmação.
- Deliberadamente, Micky manteve sua cabeça debaixo d'água e afogou-o.
Não era o assassinato em si, mas a idéia da traição de Micky que horrorizava Augusta.
- Hugh deve estar mentindo.
- Ele diz que Tonio Silva viu tudo.
- Mas isso significaria que Micky nos enganou durante todos esses anos!
- Acho que é verdade, mãe.
Augusta compreendeu, com um crescente senso de temor, que Edward não daria crédito a uma história assim sem um motivo.
- Por que se mostra tão disposto a acreditar no que Hugh diz?
- Porque sei de uma coisa que Hugh ignorava, uma coisa que confirma a história. Micky roubara dinheiro de um dos professores. Peter sabia e ameaçara denunciá-lo.
Micky estava desesperado, à procura de um meio de fazê-lo se calar.
- Micky sempre teve pouco dinheiro - recordou Augusta, balançando a cabeça em incredulidade. - E durante todos esses anos pensamos...
- Que foi por minha culpa que Peter morreu. Augusta assentiu.
- E Micky nos deixou pensar - acrescentou Edward. - Não consigo suportar, mãe. Pensava que era um assassino, e Micky sabia que eu não era, mas nunca disse nada.
Não é uma terrível traição de amizade?
Augusta fitou o filho, compadecida.
- Vai romper com ele?
- É inevitável - murmurou Edward, desesperado. - Mas o problema é que ele é meu único amigo.
Augusta se encontrava à beira das lágrimas. Ficaram olhando um para o outro, pensando no que haviam feito e por quê.
- Há quase 25 anos que o tratamos como um membro da família - disse Edward. - E ele é um monstro.
Um monstro, pensou Augusta. Era verdade.
E, no entanto, ela o amava. Embora ele tivesse matado três pessoas, Augusta amava Micky Miranda. Apesar de ter sido enganada, ela sabia que, se Micky entrasse na sala naquele momento ansiaria em tomá-lo nos braços.
Ela tornou a olhar para o filho. Lendo seu rosto, compreendeu que ele sentia o mesmo. Sempre soubera, no fundo de seu coração, mas agora sua mente reconhecia, Edward também amava Micky.
Outubro
Micky Miranda estava preocupado. Sentado no salão do Cowes Club, fumando um charuto, queria saber o que fizera para ofender Edward. O fato é que Edward passara a evitá-lo. Não aparecia no clube, deixara de freqüentar o Nellie"s, e nem sequer comparecia à sala de estar de Augusta na hora do chá. Há uma semana que Micky não o via.
Perguntara a Augusta qual era o problema, mas ela dissera que não sabia. Também vinha se comportando de uma maneira um pouco estranha com ele, e Micky desconfiava que ela sabia, mas não queria contar.
Há muito que isso não acontecia. De vez em quando Edward se ofendia com alguma coisa que Micky fazia, só que nunca durava mais que um ou dois dias. Desta vez era sério...
e isso significava que podia ser um risco para o dinheiro do porto de Santamaria.
Nos últimos dez anos, o Pilasters Bank lançara títulos cordoveses cerca de uma vez por ano. Uma parte do dinheiro fora capital para ferrovias, sistemas de abastecimento de água e minas; outra parte fora de simples empréstimos para o governo. Tudo beneficiara a família Miranda, direta ou indiretamente, e Papa era agora o homem mais poderoso de Córdoba, depois do presidente.
Micky ganhara uma comissão em tudo - embora ninguém no banco soubesse disso - e tinha agora uma enorme fortuna pessoal. E mais, sua capacidade de levantar o dinheiro o convertera numa das figuras mais importantes na política cordovesa, o herdeiro incontestável do poder do pai. Papa se achava prestes a desencadear uma revolução.
Os planos estavam prontos. O exército Miranda seguiria para o sul, pela ferrovia, e sitiaria a capital. Haveria um ataque simultâneo a Milpita, o porto na costa do Pacífico que servia à capital.
Mas revoluções custam muito dinheiro. Papa instruíra Micky a levantar o maior empréstimo até agora, dois milhões de libras esterlinas, a fim de comprar armas e suprimentos para uma guerra civil. E Papa prometera uma recompensa incomparável. Quando ele se tornasse o presidente, Micky seria o primeiro-ministro, com autoridade sobre todos, à exceção do próprio Papa. E seria designado como o sucessor deste, assumindo a presidência quando o velho morresse. Era tudo o que ele sempre desejara.
Retornaria a seu país como um herói vitorioso, o herdeiro do trono, o braço direito do presidente, predominando sobre todos os primos e tios, e até mesmo - o mais gratificante - sobre o irmão mais velho. E agora, tudo isso corria risco por causa de Edward. Ele era essencial para o plano. Micky dera ao Pilasters o monopólio extra-oficial do comércio com Córdoba, a fim de elevar o prestígio e poder de Edward no banco. Dera certo: Edward era agora o Sócio Sênior, algo que jamais conseguiria obter sem ajuda. Mas ninguém mais na comunidade financeira de Londres tivera a oportunidade de desenvolver um conhecimento mais profundo dos negócios cordoveses.
Em conseqüência, os outros bancos achavam que não sabiam o suficiente para investir ali, e se mostravam duplamente desconfiados de qualquer projeto que Micky lhes apresentasse, presumindo que já fora rejeitado pelo Pilasters. Micky tentara levantar dinheiro para Córdoba por intermédio de outros bancos, mas nunca tivera êxito.
O mau humor de Edward, portanto, era inquietante demais. Há noites que Micky não conseguia dormir direito. com Augusta relutante ou incapaz de esclarecer qual era o problema, Micky não tinha mais ninguém a quem perguntar: era o único amigo íntimo de Edward.
Sentado ali, fumando preocupado, ele avistou Hugh Pilaster. Eram sete horas da noite e Hugh estava trajado a rigor: viera tomar um drinque sozinho, presumivelmente antes de se encontrar com outras pessoas para o jantar.
Micky não gostava de Hugh e sabia que o sentimento era mútuo. Hugh, no entanto, talvez soubesse o que estava acontecendo. E Micky nada tinha a perder por perguntar.
Levantou-se e foi até a mesa de Hugh.
- Boa noite, Pilaster.
- Boa noite, Miranda.
Tem visto seu primo Edward ultimamente? Ele parece ter desaparecido.
- Ele vai ao banco todos os dias.
Ah... - Micky hesitou; como Hugh não o convidara a sentar, ele perguntou: - Posso me juntar a você?
Micky sentou sem esperar por uma resposta e indagou, em voz baixa:
- Por acaso fiz alguma coisa que pudesse ofendê-lo?
Hugh se manteve calado, pensativo, por um momento; depois declarou:
- Não vejo nenhum motivo para não lhe contar. Edward descobriu que você matou Peter Midelleton e que há 24 anos vem lhe mentindo a respeito.
Micky quase saltou da cadeira. Como isso viera à tona? Ele quase fez a pergunta, mas se lembrou a tempo que não poderia formulá-la sem admitir sua culpa. Em vez
disso, simulou raiva e levantou-se abruptamente.
- Esquecerei que você disse isso - murmurou ele, deixando a sala em seguida.
Micky levou apenas uns poucos minutos para concluir que não corria mais perigo com a polícia do que antes. Ninguém poderia provar o que ele fizera, e acontecera
há tanto tempo que não haveria sentido em reiniciar a investigação. O verdadeiro perigo que ele enfrentava agora era a possibilidade de Edward se recusar a levantar os dois milhões de libras de que Papa necessitava.
Precisava que Edward o perdoasse. E para isso tinha de vê-lo.
Não podia fazer nada naquela noite, pois já se comprometera a comparecer a uma recepção diplomática na embaixada francesa e a uma ceia com membros conservadores do Parlamento. Mas no dia seguinte foi ao Nellie"s, na hora do almoço, acordou April e persuadiu-a a enviar um bilhete a Edward prometendo "algo especial", se ele fosse ao bordel naquela noite.
Micky providenciou o melhor quarto de April e reservou a atual favorita de Edward, Henrietta, uma jovem esguia, de cabelos escuros curtos. Instruiu-a a usar um traje a rigor masculino, inclusive com uma cartola, uma peça que Edward achava sensual.
As nove e meia da noite ele esperava por Edward. O quarto tinha uma enorme cama de baldaquino, dois sofás, uma lareira grande e toda ornamentada, o lavatório habitual e uma série de quadros obscenos, mostrando um atendente servil, numa capela mortuária, desempenhando vários atos sexuais no cadáver pálido de uma linda jovem. Micky reclinava-se num sofá de veludo, usando apenas um chambre de seda, e tomava conhaque com Henrietta ao seu lado. Ela logo se entediou e perguntou:
- Gosta desses quadros?
Micky deu de ombros. Não queria conversar com ela. Tinha pouco interesse em mulheres, para o bem delas próprias. O ato sexual em si era um processo mecânico enfadonho.
O que apreciava no sexo era o poder que lhe proporcionava. Mulheres e homens se apaixonavam por ele, e nunca se cansava de usar essa atração para controlá-los, explorá-los e humilhá-los. Até mesmo sua paixão juvenil por Augusta Pilaster fora em parte o desejo de domar e cavalgar uma égua arisca.
Desse ponto de vista, Henrietta nada lhe oferecia: não havia qualquer desafio em controlá-la, ela nada tinha que pudesse explorar e não se obtinha qualquer satisfação em humilhar uma mulher tão baixa quanto uma prostituta. Por isso, ele se limitava a fumar seu charuto, preocupado em saber se Edward viria ou não.
Uma hora passou, e depois outra. Micky começou a perder a esperança. Haveria algum outro meio de entrar em contato com Edward? Era muito difícil abordar um homem que não quisesse ser visto. Ele podia "não estar em casa" quando fosse visitá-lo ou permanecer indisponível no local de trabalho. Micky poderia esperar fora do banco para pegar Edward quando saísse para o almoço, mas seria pouco digno, e de qualquer maneira o outro ainda poderia ignorá-lo. Mais cedo ou mais tarde haveriam de se encontrar em alguma ocasião social, mas talvez não ocorresse por semanas e Micky não podia se dar ao luxo de esperar por tanto tempo.
Pouco antes da meia-noite, April estendeu a cabeça pela porta e anunciou:
- Ele chegou.
- Finalmente - murmurou Micky, aliviado.
- Está tomando um drinque, mas disse que não vai querer jogar cartas. Calculo que subirá dentro de poucos minutos.
A tensão de Micky aumentou. Era culpado de uma terrível traição. Permitira que Edward sofresse por um quarto de século sob a ilusão de que matara Peter Middleton, quando na verdade era ele o culpado. Era demais pedir que Edward o perdoasse.
Mas Micky tinha um plano.
Ajeitou Henrietta no sofá. Fê-la sentar com a cartola sobre os olhos, as pernas cruzadas, fumando um cigarro. Abaixou as luzes a gás e foi sentar na cama, atrás da porta.
Edward entrou alguns momentos depois. Na semi-escuridão não percebeu Micky sentado na cama. Parou na porta, olhando para Henrietta, e disse:
- Olá... quem é você? Ela ergueu o rosto.
- Olá, Edward.
- Ah, é você... - Ele fechou a porta e se adiantou. - O que é o "algo especial" que April me prometeu? Já a vi vestida com uma casaca antes.
- Sou eu - respondeu Micky, levantando-se. Edward franziu o cenho.
Não quero falar com você - disse ele, virando-se para a porta.
Micky postou-se na sua frente.
- Pelo menos me diga por quê. Somos amigos há muito tempo.
- Descobri a verdade sobre Peter Middleton. Micky balançou a cabeça.
- Pode me dar a oportunidade de explicar?
- O que há para explicar?
- Como cometi um erro tão lamentável, e por que nunca tive a coragem de admiti-lo.
Edward parecia obstinado.
- Sente-se, só por um instante, ao lado de Henrietta e deixe-me falar - insistiu Micky.
Edward hesitou.
- Por favor... - murmurou Micky.
Edward sentou no sofá. Micky foi até o aparador e serviu-lhe um conhaque. Edward aceitou, com um aceno de cabeça. Henrietta chegou mais perto, no sofá, e segurou seu braço. Edward tomou um gole, olhou ao redor e comentou:
- Detesto esses quadros.
- Eu também - disse Henrietta. - Deixam-me toda arrepiada.
- Cale a boca, Henrietta - ordenou Micky.
-Já me arrependi de ter falado - protestou ela, indignada. Micky foi sentar no outro sofá, fitando Edward.
- Eu estava errado, e o traí. Mas tinha 15 anos na ocasião, e temos sido amigos durante a maior parte de nossas vidas. Pretende mesmo romper essa amizade por causa de um pecadilho de colegial?
- Mas poderia ter me contado a verdade em qualquer momento dos últimos 25 anos! - protestou Edward, indignado.
Micky fez sua cara triste.
- Poderia, e deveria, mas depois que se conta uma mentira é difícil voltar atrás. Teria arruinado nossa amizade.
- Não necessariamente.
- Mas não é o que aconteceu agora?
- Tem razão - murmurou Edward, mas com um tremor de incerteza em sua voz.
Micky compreendeu que chegara o momento de jogar a cartada decisiva.
Levantou-se e tirou o chambre.
Sabia que tinha um corpo atraente: ainda era esguio e tinha a pele lisa, exceto pelos cabelos crespos no peito e na virilha.
Henrietta saiu do sofá no mesmo instante e ajoelhou-se na sua frente. Micky observou Edward. O desejo faiscou em seus olhos, mas depois ele assumiu uma expressão irritada e obstinada, virando o rosto.
Em desespero, Micky resolveu usar seu último trunfo.
- Deixe-nos, Henrietta - disse ele.
Ela ficou surpresa, mas levantou-se e saiu. Edward olhou aturdido para Micky.
- Por que a mandou sair?
- Para que precisamos dela?
Micky aproximou-se do sofá, o membro a poucos centímetros do rosto de Edward. Estendeu a mão, tocou na cabeça de Edward, afagou-lhe gentilmente os cabelos. Edward não se mexeu.
- Estamos melhor sem ela... não concorda? - acrescentou Micky. Edward engoliu em seco; não disse nada.
- Não estamos? - insistiu Micky.
E Edward acabou respondendo, num sussurro:
- Estamos, sim.
Na semana seguinte, Micky entrou pela primeira vez na sóbria dignidade da Sala dos Sócios do Pilasters Bank.
Trazia negócios para o banco há 17 anos, mas sempre que ia até lá era conduzido a uma das outras salas e um mensageiro chamava Edward na Sala dos Sócios. Desconfiava que um inglês teria sido admitido naquele santuário muito mais depressa. Adorava Londres, mas sabia que sempre seria um forasteiro na cidade.
Sentindo-se nervoso, estendeu na mesa grande, no meio da sala, os planos para o porto de Santamaria. As plantas mostravam um porto inteiramente novo na costa atlântica de Córdoba, com instalações para reparos em navios e um ramal ferroviário.
Nada daquilo jamais seria construído, é claro. Os dois milhões de libras iriam direto para o tesouro de guerra dos Mirandas. Mas o levantamento era genuíno; as plantas, um trabalho de profissionais, e poderia até dar um bom dinheiro se se tratasse de uma proposta honesta.
Tratando-se de uma proposta desonesta, podia ser incluída entre as fraudes mais ambiciosas da história.
Enquanto Micky explicava, falando de materiais de construção, custo de mão-de-obra, tarifas alfandegárias e projeções de receita, esforçava-se para manter uma aparência calma. Toda a sua carreira, o futuro da família e o destino do país dependiam da decisão que seria tomada hoje naquela sala.
Os sócios também estavam tensos. Todos os seis se encontravam presentes: os dois parentes pelo casamento, o major Hartshorn e Sir Harry Tonks; Samuel, o velho pederasta;
o Jovem William, Edward e Hugh.
Haveria uma batalha, mas as chances eram favoráveis a Edward. Afinal, era o Sócio Sênior. O major Hartshorn e Sir Harry sempre faziam o que suas esposas Pilasters
mandavam, e estas recebiam suas ordens de Augusta; por isso, eles apoiariam Edward. Samuel deveria apoiar Hugh. O Jovem William era o único imprevisível.
Edward se mostrou entusiasmado, como era de esperar. Perdoara Micky, eram de novo os melhores amigos e aquele era o seu primeiro grande projeto como Sócio Sênior.
Estava satisfeito por trazer um negócio tão vultoso para marcar o início de seu mandato. Sir Harry falou depois de Micky:
- A proposta é meticulosa e bem fundamentada, há dez anos que temos lucrado com os títulos de Córdoba. Parece-me uma idéia muito atraente.
Como era previsto, a oposição partiu de Hugh. Fora Hugh quem revelara a Edward a verdade sobre Peter Middleton, e o motivo fora sem dúvida impedir o lançamento daquele empréstimo.
- Andei examinando o que aconteceu com os nossos últimos lançamentos de títulos sul-americanos - disse ele, distribuindo cópias de um relatório ao redor da mesa.
Micky estudou o relatório enquanto Hugh continuava:
- A taxa de juros subiu de seis por cento há três anos para sete e meio por cento no ano passado. Apesar desse aumento, o número de títulos não vendidos tem sido mais alto a cada lançamento.
Micky entendia o suficiente de finanças para saber o que isso significava: os investidores consideravam os títulos sul-americanos cada vez menos atraentes. A exposição serena e a lógica irrefutável de Hugh deixaram Micky furioso.
- Além disso - continuou Hugh, - nos últimos três lançamentos o banco foi obrigado a comprar títulos no mercado aberto para manter o preço alto artificialmente.
O que significava, concluiu Micky, que os dados no relatório ainda se encontravam aquém da gravidade do problema.
- A conseqüência de nossa persistência neste mercado saturado é que agora temos em nossas mãos quase meio milhão de libras em títulos de Córdoba. Nosso banco se encontra comprometido demais com esse único setor.
Era um argumento convincente. Tentando permanecer calmo, Micky refletiu que, se fosse um sócio, votaria agora contra o lançamento. Mas a questão não seria resolvida apenas pelo raciocínio financeiro. Havia mais em jogo do que o dinheiro.
Ninguém falou por alguns segundos. Edward parecia furioso, mas estava se contendo, pois sabia que seria melhor se um dos outros sócios contestasse Hugh. Sir Harry acabou dizendo:
- Um bom argumento, Hugh, mas acho que você pode estar exagerando um pouco.
George Hartshorn apoiou-o:
- Todos concordamos que o plano em si é sólido. O risco é mínimo, os lucros serão consideráveis. Acho que devemos aceitar.
Micky já sabia que aqueles dois apoiariam Edward. Esperava pelo veredito do Jovem William, mas foi Samuel quem falou em seguida:
- Compreendo que todos relutem em vetar a primeira grande proposta apresentada por um novo Sócio Sênior. - Seu tom sugeria que eles não eram inimigos divididos
em campos opostos, mas homens razoáveis que não poderiam deixar de chegar a um acordo, se houvesse um pouco de boa vontade. - Talvez vocês não se sintam muito propensos a depositar maior confiança nas opiniões de dois sócios que já anunciaram sua decisão de deixar o banco. Mas estou neste negócio há pelo menos o dobro do tempo de qualquer outro nesta sala, Hugh é provavelmente o mais bem-sucedido jovem banqueiro do mundo, e ambos achamos que este projeto é mais perigoso do que parece. Não deixem que considerações pessoais os levem a descartar de imediato nosso conselho.
Samuel era eloqüente, pensou Micky, mas sua posição já era conhecida. Todos olharam para o Jovem William, que agora se manifestou:
- Os títulos sul-americanos sempre pareceram mais arriscados. Se permitíssemos que nos assustassem, teríamos perdido muitos negócios lucrativos durante os últimos anos.
Parecia um bom começo, refletiu Micky enquanto William continuava:
- Não creio que possa ocorrer um colapso financeiro. Córdoba tornou-se cada vez mais forte sob a orientação do presidente Garcia. Podemos prever lucros crescentes de nossas operações ali, no futuro. Devemos procurar por mais negócios, não menos.
Micky deixou escapar a respiração num longo e silencioso suspiro de alívio. Vencera.
- Quatro sócios a favor, portanto, e dois contra - anunciou Edward.
- Um momento, por favor - disse Hugh.
Deus me livre que Hugh tenha algum trunfo na manga, Micky pensou. Sua vontade era gritar um protesto, mas reprimiu os sentimentos. Edward lançou um olhar irritado para Hugh.
- O que é? Você perdeu a votação.
- O voto sempre foi o último recurso nesta sala - argumentou Hugh. - Quando há divergência entre os sócios, tentamos chegar a um acordo que todos possam aceitar.
Micky percebeu que Edward estava disposto a descartar essa idéia, mas William perguntou:
- Qual é sua idéia, Hugh?
- Gostaria de fazer uma pergunta a Edward primeiro - disse Hugh. - Está confiante de que podemos vender todo esse lançamento ou a maior parte dele?
- Claro, se o preço for adequado - respondeu Edward.
Era evidente por sua expressão que ele não sabia quais eram as intenções de Hugh. Micky teve uma terrível premonição de que se achava prestes a ser superado em sua manobra.
- Então por que não vendemos os títulos na base de comissão, em vez de subscrevermos todo o lançamento? - propôs Hugh.
Micky reprimiu uma imprecação. Não era o que ele queria. Normalmente, quando o banco efetuava um lançamento, por exemplo, de títulos no valor de um milhão de libras, concordava em adquirir todos os títulos que não fossem vendidos no mercado, garantindo assim que o tomador recebesse seu milhão completo. Em troca dessa garantia, o banco assumia uma porcentagem mais elevada. O método alternativo era pôr os títulos à venda sem qualquer garantia. O banco não assumia riscos, sua comissão era muito menor, mas se apenas dez mil do milhão em títulos fossem vendidos, o tomador só receberia dez mil libras. O risco permanecia com o tomador... e, àquela altura, Micky não queria qualquer risco.
- Hum... - murmurou William. - É uma idéia.
Hugh fora muito esperto, pensou Micky, desolado. Se continuasse a se opor totalmente ao projeto, os outros prevaleceriam. Mas sugerira um meio de reduzir os riscos.
Os banqueiros, sendo conservadores, adoravam reduzir seus riscos. Sir Harry comentou:
- Se vendermos tudo, ainda ganharemos cerca de 60 mil libras, mesmo com a comissão reduzida. E se não vendermos tudo, teremos evitado uma perda considerável.
Diga alguma coisa, Edward! pensou Micky. Edward estava perdendo o controle da reunião, mas parecia não saber como recuperá-lo. Samuel acrescentou:
- E poderemos registrar uma decisão unânime dos sócios... o que é sempre um resultado dos mais agradáveis.
Houve um murmúrio geral de assentimento. Em desespero, Micky declarou:
- Não posso prometer que meus superiores vão concordar com isso. No passado, o banco sempre subscreveu os títulos cordoveses. Se decidirem mudar sua política...
- Ele hesitou. - Posso recorrer a outro banco.
Era uma ameaça vazia, mas eles sabiam disso? William mostrou-se ofendido.
- É um privilégio seu. Outro banco pode assumir uma posição diferente sobre os riscos.
Micky compreendeu que a ameaça só servira para consolidar a oposição. Apressou-se em acrescentar:
- Os líderes de meu país prezam seu relacionamento com o Pilasters Bank, e não gostariam de arriscá-lo.
- O sentimento é recíproco - declarou Edward.
- Obrigado.
Micky concluiu que não havia mais nada a dizer. Começou a enrolar as plantas do porto. Fora derrotado, mas não desistiria. Aqueles dois milhões de libras constituíam a chave para a presidência de seu país. Tinha de obtê-los.
Pensaria em alguma coisa.
Edward e Micky haviam combinado almoçar juntos no Cowes Club. Fora planejado como uma comemoração do triunfo, mas agora nada tinham para celebrar.
Quando Edward chegou, Micky já definira o que tinha de fazer. Sua única chance agora era persuadir Edward a se colocar secretamente contra a decisão dos sócios e subscrever os títulos sem informá-los. Era um ato afrontoso, temerário, provavelmente criminoso. Mas não havia alternativa. Micky já sentara à mesa quando Edward entrou no restaurante.
- Estou muito desapontado com o que aconteceu no banco hoje de manhã - declarou Micky, sem qualquer preâmbulo.
- Foi culpa do desgraçado do meu primo Hugh - disse Edward, ao sentar. Ele acenou para um garçom. -Traga-me um copo grande de Madeira.
- O problema é que se o lançamento não for subscrito, não haverá garantia de que o porto será construído.
- Fiz o melhor que pude - protestou Edward, quase se lamuriando. - Você viu isso, estava presente.
Micky balançou a cabeça. Infelizmente, era verdade. Se Edward fosse um brilhante manipulador de pessoas - como a mãe - poderia ter derrotado Hugh. Mas se Edward fosse esse tipo de pessoa, não seria um peão nas mãos de Micky.
Mas mesmo sendo um peão, ele podia resistir à proposta de Micky, que tentou imaginar um meio de persuadi-lo ou coagi-lo. Pediram o almoço. Depois que o garçom se afastou, Edward disse:
- Estive pensando em ter minha própria casa. Moro com minha mãe há tempo demais.
Micky fez um esforço para se mostrar interessado.
- Pretende comprar uma casa?
- Pequena. Não quero um palácio, com dezenas de criados circulando por toda parte, pondo carvão nas lareiras. Uma casa modesta, que possa ser bem cuidada por um mordomo eficiente e alguns criados.
- Mas tem tudo o que precisa na Whitehaven House.
- Tudo menos privacidade.
Micky percebeu onde ele queria chegar.
- Não quer que sua mãe saiba de tudo o que faz...
- Você pode querer passar a noite comigo, por exemplo - sugeriu Edward, fitando Micky nos olhos.
Micky percebeu no mesmo instante que poderia explorar essa idéia. Simulou tristeza, sacudiu a cabeça.
- Quando você encontrar sua casa, é bem provável que eu já tenha deixado Londres.
Edward ficou arrasado.
- Mas como assim?
- Se eu não levantar o dinheiro para o novo porto, tenho certeza de que serei chamado de volta pelo presidente.
- Mas não pode voltar! - exclamou Edward, apavorado.
- E nem quero. Mas talvez não tenha opção.
- Venderemos todos os títulos, tenho certeza.
- Espero que sim. Se isso não acontecer...
Edward bateu na mesa com o punho, fazendo a louça tremer.
- Eu bem que gostaria que Hugh me deixasse subscrever o lançamento!
Micky murmurou, nervoso:
- Suponho que você tem de respeitar a decisão dos sócios.
- Claro que tenho... o que mais poderia fazer?
- bom... - Ele hesitou. Tentou parecer indiferente ao acrescentar: - Não poderia ignorar o que foi dito hoje e mandar seu pessoal preparar um contrato de subscrição, sem contar a ninguém?
- Creio que é possível - respondeu Edward, preocupado.
- Afinal, você é o Sócio Sênior. Isso deve significar alguma coisa.
- Tem toda a razão.
- Simon Oliver prepararia os documentos com toda a discrição. Você pode confiar nele.
- Sei disso.
Micky mal podia acreditar que Edward estivesse concordando com tanta facilidade.
- Talvez seja a diferença entre minha permanência em Londres e ser chamado de volta a Córdoba.
O garçom trouxe o vinho e serviu-os.
- Mais cedo ou mais tarde, todos acabariam sabendo - comentou Edward.
- A esta altura, já seria tarde demais. E você pode dizer que foi um erro de um escriturário.
Micky sabia que isso era implausível, e duvidava que Edward pudesse engolir. Mas Edward ignorou a questão.
- Se você ficar...
Ele fez uma pausa e baixou os olhos.
- O que é?
- Se continuar em Londres, vai passar algumas noites em minha nova casa?
Era a única coisa por que Edward se interessava, compreendeu Micky com um senso de triunfo. Ofereceu o seu sorriso mais cativante.
- Claro. Edward assentiu.
- Isso é tudo o que quero. Falarei com Simon esta tarde.
Micky levantou seu copo de vinho.
- À amizade.
Edward retiniu os copos, com um sorriso inibido.
- À amizade.
Sem avisar, a esposa de Edward, Emily, mudou-se para a Whitehaven House.
Embora todos ainda pensassem nela como a casa de Augusta, Joseph na verdade a legara a Edward. Assim, não podiam expulsar Emily: seria uma provável base para o divórcio, e era justamente isso o que Emily queria.
O fato é que, em termos técnicos, Emily era a dona da casa e Augusta apenas uma sogra residindo ali por tolerância. Se Emily procurasse uma confrontação aberta com Augusta, haveria um tremendo conflito de vontades. Augusta bem que gostaria, mas Emily era hábil demais para combatê-la ostensivamente.
- A casa é sua - dizia ela em seu tom mais doce. - Pode fazer o que desejar.
A condescendência deixava Augusta toda arrepiada. Emily tinha até o título de Augusta. Como esposa de Edward, era agora a condessa de Whitehaven, enquanto Augusta não passava da condessa-viúva.
Augusta continuava a dar ordens aos criados como se ainda fosse a dona da casa, e sempre que tinha a oportunidade revogava as instruções de Emily, que nunca se queixava.
Os criados, no entanto, logo se tornaram subversivos. Gostavam mais de Emily que de Augusta - porque era indulgente demais, pensava Augusta - e sempre descobriam meios de tornar a vida de Emily mais confortável, apesar dos esforços em contrário de sua sogra.
A arma mais poderosa que uma empregadora tinha era a ameaça de dispensar um criado sem uma carta de referências. Ninguém mais daria emprego ao criado depois disso.
Mas Emily tirara essa arma de Augusta com uma tranqüilidade quase assustadora. Um dia, Emily pediu linguado para o almoço, e Augusta mudou para salmão. O linguado foi servido, e Augusta despediu a cozinheira. Mas Emily deu à cozinheira uma carta de referências excepcional e ela foi contratada pelo duque de Kingsbridge, com um salário maior. Pela primeira vez, os criados não tinham medo de Augusta.
Os amigos de Emily apareciam na Whitehaven House à tarde. O chá era um ritual presidido pela dona da casa. Emily exibia um sorriso insinuante e pedia a Augusta que assumisse o comando. Neste caso, porém, Augusta tinha de ser polida com os amigos de Emily, o que era quase tão ruim quanto permitir que a nora desempenhasse o papel de dona da casa.
O jantar era pior. Augusta tinha de suportar os convidados lhe dizerem como era gentil da parte de lady Whitehaven homenagear a sogra, deixando-a sentar à cabeceira.
Augusta estava sendo manipulada, uma experiência nova para ela. Normalmente mantinha sobre as pessoas a suprema ameaça: a expulsão do círculo de seu favor. Mas era a expulsão que Emily queria, o que tornava impossível assustá-la.
Augusta ficou ainda mais determinada a nunca ceder.
As pessoas começaram a convidar Edward e Emily para funções sociais. Emily ia, quer Edward a acompanhasse ou não. As pessoas passaram a notar. Quando Emily se escondia em Leicestershire, seu afastamento do marido podia ser ignorado; mas com os dois vivendo na mesma cidade, era uma situação embaraçosa.
Houvera uma época em que Augusta se mostrava indiferente à opinião da alta sociedade. Era uma tradição entre o pessoal do comércio considerar a aristocracia frívola, se não mesmo degenerada, e ignorar suas opiniões, ou pelo menos assim fingir. Mas Augusta há muito deixara para trás esse orgulho simplório de classe média. Era a condessa-viúva de Whitehaven, e ansiava pela aprovação da elite de Londres. Não podia permitir que o filho recusasse grosseiramente os convites das melhores pessoas, passando a obrigá-lo a comparecer.
Aquela noite era um caso assim. O marquês de Hocastle viera a Londres para um debate na Câmara dos Lordes, e a marquesa oferecia um jantar para seus poucos amigos que não se encontravam no campo, caçando. Edward e Emily iriam, e Augusta também.
Ao descer, em seu vestido preto de seda, Augusta deparou com Micky Miranda num traje a rigor, tomando um uísque na sala de estar. Seu coração disparou ao vê-lo, tão atraente no colete branco e colarinho alto. Ele se levantou e beijou sua mão. Augusta sentiu-se contente por ter escolhido aquele vestido decotado que deixava à mostra o colo do seio.
Edward se afastara de Micky depois de descobrir a verdade sobre Peter Middleton, mas a separação durara apenas poucos dias; e agora eram amigos ainda mais unidos do que antes, o que deixava Augusta satisfeita. Não podia se zangar com Micky. Sempre soubera que ele era perigoso: tornava-o ainda maisdesejável. Às vezes sentia medo de Micky, sabendo que ele matara três pessoas, mas o medo era excitante. Era a pessoa mais imoral que ela já conhecera, e gostaria que Micky a jogasse no chão e a estuprasse.
Micky ainda era casado. Era bem provável que pudesse se divorciar de Rachel, se assim desejasse - havia rumores persistentes sobre ela e o irmão de Maisie Robinson, Dan, o membro radical do Parlamento, mas não poderia fazê-lo enquanto fosse embaixador.
Augusta sentou no sofá egípcio, desejando que Micky se instalasse ao seu lado: para seu desapontamento, no entanto, ele se acomodou em frente. Sentindo-se desprezada, ela perguntou:
- O que veio fazer aqui?
- Edward e eu vamos a uma luta de boxe.
- Não vão, não. Edward vai jantar com o marquês de Hocastle.
- Ah... - Micky hesitou. - Não sei se fui eu quem cometeu o erro... ou se foi ele.
Augusta tinha quase certeza de que Edward era o responsável, e duvidava que fosse um mero equívoco. Ele adorava lutas de boxe, e tudo indicava que tencionava se esquivar ao compromisso para o jantar. Teria de pôr um paradeiro nisso.
- É melhor você ir sozinho, Micky.
Uma expressão de rebeldia aflorou nos olhos de Micky; por um momento Augusta chegou a pensar que ele fosse desafiá-la, e se perguntou se estaria perdendo o poder sobre aquele jovem. Mas Micky se levantou, embora devagar, e disse:
- Neste caso, Vou sair agora, se puder fazer a gentileza de explicar a Edward.
- Claro.
Mas era tarde demais. Edward entrou na sala antes que Micky alcançasse a porta.
Augusta notou que a pele do filho se achava ainda mais inflamada naquela noite. As erupções cobriam a garganta e a nuca, subiam até uma orelha. Era algo que a perturbava, mas Edward dizia que o médico garantira que não havia motivos para preocupação. Esfregando as mãos, em expectativa, ele comentou:
- Estou ansioso pelas lutas desta noite. Augusta interveio, em sua voz mais autoritária:
- Edward, você não pode ir às lutas.
Ele parecia uma criança informada de que o Natal fora cancelado.
- Por que não?
Por um momento, Augusta sentiu pena do filho e quase cedeu. Mas logo endureceu o coração e respondeu:
- Sabe muito bem que temos um compromisso para jantar com o marquês de Hocastle.
- Não é esta noite, não é?
- Sabe que é.
- Eu não Vou.
- Tem de ir!
- Mas jantei com Emily ontem à noite!
- Então esta noite fará dois jantares civilizados seguidos.
- Por que diabo fomos convidados?
- Não pragueje na frente de sua mãe! Fomos convidados porque eles são amigos de Emily.
- Emily pode ir para... - Ele percebeu o olhar de Augusta e se conteve. - Diga a eles que fiquei doente.
- Não seja ridículo.
- Acho que posso ir para onde eu quiser, mãe.
- Não pode ofender pessoas da classe alta!
- Quero assistir às lutas!
- Mas não pode ir!
Emily entrou na sala nesse momento. Não podia deixar de notar o clima tenso, e se apressou em indagar:
- Qual é o problema?
- Vá buscar aquela droga de papel que está sempre me pedindo para assinar! - gritou Edward.
- Mas do que está falando? - perguntou Augusta. - Que papel é esse?
- Minha concordância com a anulação do casamento - respondeu ele.
Augusta ficou horrorizada... e compreendeu, com uma raiva súbita, que nada daquilo fora acidental. Emily planejara tudo. Seu objetivo era irritar Edward a tal ponto que ele assinaria qualquer coisa, só para se livrar dela. Augusta até a ajudara, sem saber, ao insistir que Edward cumprisse suas obrigações sociais. Sentia-se uma tola: permitira que a manipulassem. E agora o plano de Emily estava na iminência do sucesso.
- Emily! Fique aqui! - gritou Augusta.
Com um doce sorriso, Emily saiu da sala. Augusta virou-se para Edward.
- Você não vai consentir na anulação!
- Tenho 40 anos de idade, mãe. Sou o chefe do negócio da família, e esta casa é minha. Não deve me dizer o que fazer.
Edward tinha uma expressão irritada e obstinada, e ocorreu a Augusta o pensamento terrível de que ele poderia desafiá-la, pela primeira vez em sua vida.
Começou a se sentir assustada.
- Venha sentar aqui, Teddy - disse ela em voz mais branda. Relutante, ele sentou ao seu lado.
Augusta levantou a mão para acariciar seu rosto, mas o filho desviou a cabeça.
- Não tem condições de cuidar de si mesmo sozinho, Teddy. Nunca foi capaz. É por isso que Micky e eu sempre cuidamos de você, desde os tempos do colégio.
Ele parecia ainda mais obstinado.
- Talvez seja a hora de pararem.
Um sentimento de pânico dominou Augusta. Era quase como se estivesse perdendo o controle.
Antes que ela pudesse dizer mais alguma coisa, Emily voltou com um documento. Pôs na escrivaninha mourisca, onde já havia penas e tinta.
Augusta olhou para o rosto do filho. Seria possível que ele tivesse mais medo da esposa do que da mãe? Augusta pensou em apanhar o documento, jogar as penas no fogo,
derramar a tinta. Tratou de se controlar. Talvez fosse melhor ceder e fingir que isso não tinha muita importância. Mas a farsa seria inútil: assumira a posição de proibir a anulação, e todos saberiam que fora derrotada. Ela disse a Edward:
- Terá de renunciar à sua posição no banco se assinar esse documento.
- Não vejo por quê - respondeu ele. - Não é como um divórcio.
- A Igreja não faz qualquer objeção a uma anulação se os motivos forem genuínos - acrescentou Emily.
Parecia uma citação: era evidente que ela já verificara. Edward sentou à mesa, escolheu uma pena, mergulhou a ponta num tinteiro de prata. Augusta disparou seu último tiro.
- Edward! - gritou ela, a voz trêmula de raiva. - Se assinar esse documento, nunca mais falarei com você!
Ele hesitou por um instante, depois encostou a pena no papel. Todos se mantiveram em silêncio. Sua mão se deslocou e o roçar da pena no papel soava como uma trovoada.
Edward largou a pena.
- Como pode tratar sua mãe desse jeito? - balbuciou Augusta, e o soluço em sua voz era genuíno.
Emily espalhou areia sobre a assinatura e pegou o documento. Augusta foi se postar entre Emily e a porta.
Edward e Micky ficaram olhando, fascinados e imóveis, enquanto as duas mulheres se confrontavam.
- Dê-me esse papel - disse Augusta.
Emily se adiantou, hesitou diante de Augusta, e depois, surpreendentemente, acertou-lhe um tapa no rosto.
O golpe doeu. Augusta soltou um grito de surpresa e dor, cambaleando para trás.
Emily passou por ela rapidamente, abriu a porta e deixou a sala, ainda segurando o documento.
Augusta arriou na cadeira mais próxima e começou a chorar.
Ouviu Edward e Micky se retirarem.
Sentia-se velha, derrotada e sozinha.
O lançamento dos títulos para o porto de Santamaria, no valor de 2 milhões de libras, foi um fracasso, muito pior do que Hugh temera. Ao final do prazo, o Pilasters
Bank vendera apenas 400 mil libras, e o preço caiu no dia seguinte. Hugh sentiu a maior satisfação por ter forçado Edward a vender os títulos por comissão em vez de subscrevê-los.
Na manhã da segunda-feira seguinte, Jonas Mulberry trouxe o sumário das operações da semana anterior, que foi entregue a todos os sócios. Antes que o homem se retirasse, Hugh notou uma discrepância.
- Espere um instante, Mulberry. Isto não pode estar certo. - Havia uma enorme queda no dinheiro em caixa, acima de um milhão de libras, e Hugh acrescentou: - Não houve nenhuma grande retirada, não é mesmo?
- Não que eu saiba, Mr. Hugh.
Hugh correu os olhos pela sala. Todos os sócios se encontravam ali, à exceção de Edward, que ainda não chegara.
- Alguém se lembra de uma grande retirada na semana passada? Ninguém lembrava. Hugh levantou-se, dizendo a Mulberry:
- Vamos verificar.
Eles subiram a escada para a sala do escriturário-chefe. O item que procuravam era volumoso demais para ter sido uma retirada em dinheiro. Só podia ser uma transação interbancária. Hugh recordava, de seus tempos como escriturário, que havia um registro dessas transações, atualizado todos os dias. Sentou a uma mesa e pediu a Mulberry:
- Traga-me o livro interbancário, por favor.
Mulberry tirou um enorme livro-caixa de uma prateleira e colocou-o na frente de Hugh. Outro escriturário perguntou:
- Há alguma coisa que eu possa fazer para ajudar, Mr. Hugh? Eu cuido desses registros.
Ele tinha um ar preocupado, e Hugh compreendeu que receava ter cometido um erro.
- Seu nome é Clemmow, não é mesmo?
- Sim, senhor.
- Quais foram as grandes retiradas na semana passada... um milhão
de libras ou mais?
- Só houve uma - respondeu Clemmow no mesmo instante. - A Companhia Docas de Santamaria retirou um milhão e oitocentas mil libras... o valor total do lançamento dos títulos, menos a comissão.
Hugh levantou-se de um pulo.
- Mas eles não tinham tudo isso... só levantaram quatrocentas mil libras!
Clemmow empalideceu.
- O lançamento foi de títulos no valor de dois milhões de libras...
- Mas não foi subscrito! Era uma venda comissionada!
- Verifiquei o saldo deles... era um milhão e oitocentas mil libras.
- Santo Deus! - berrou Hugh, atraindo os olhares de todos os funcionários. - Mostrem-me os registros!
Outro escriturário trouxe um enorme livro para Hugh, abrindo-o numa página com a indicação de "Companhia Docas de Santamaria".
Havia apenas três registros: um crédito de dois milhões de libras, um débito de duzentas mil libras de comissão devida ao banco, e uma transferência do saldo para outro banco.
Hugh ficou lívido. O dinheiro desaparecera. Se apenas tivesse sido creditado à conta por equívoco, o erro poderia ser retificado sem qualquer problema. Mas o dinheiro fora retirado do banco no dia seguinte. Isso sugeria uma fraude cuidadosamente planejada.
- Alguém vai para a cadeia por isso! - exclamou ele, furioso. - Quem escreveu estes registros?
- Fui eu, senhor - respondeu o empregado que trouxera o livro, tremendo de medo.
- com base em quais instruções?
- Os documentos habituais, senhor. Estava tudo em ordem.
- De onde vieram?
- De Mr. Oliver.
Simon Oliver era um cordovês, primo de Micky Miranda. Hugh desconfiou no mesmo instante que ele se encontrava por trás da fraude.
Hugh não queria continuar a fazer perguntas na presença de 20 empregados. Já lamentava ter permitido que todos tomassem conhecimento do problema. Ao começar, porém, não sabia que descobriria um maciço desfalque.
Oliver era o assistente de Edward e trabalhava no andar dos sócios, ao lado de Mulberry.
- Procure Mr. Oliver e leve-o imediatamente à Sala dos Sócios - ordenou Hugh a Mulberry.
Seria melhor continuar a investigação ali, junto com os outros sócios.
- Certo, Mr. Hugh - disse Mulberry. - E vocês todos podem voltar ao seu trabalho agora.
Os empregados retornaram às suas mesas, pegaram suas penas, mas irrompeu um zumbido de conversas excitadas antes mesmo que Hugh se retirasse. Ele voltou à Sala dos Sócios e anunciou, sombrio:
- Houve uma grande fraude. A Companhia Docas de Santamaria recebeu o valor total do lançamento dos títulos, apesar de só termos vendido quatrocentas mil libras.
Todos ficaram horrorizados.
- Como isso aconteceu? - perguntou William.
- A quantia foi creditada na conta deles, e no instante seguinte transferida para outro banco.
- Quem é o responsável?
- Creio que seja Simon Oliver, o assistente de Edward. Mandei chamá-lo, mas meu palpite é de que o miserável já embarcou num navio a caminho de Córdoba.
- Podemos recuperar o dinheiro? - indagou Sir Harry.
- Não sei. A esta altura já devem ter enviado o dinheiro para fora do país.
- Não podem construir um porto com dinheiro roubado!
- Talvez não queiram construir um porto. Toda a coisa pode ter sido uma fraude planejada desde o início.
- Santo Deus!
Mulberry entrou... e, para surpresa de Hugh, estava acompanhado por Simon Oliver. O que sugeria que Oliver não roubara o dinheiro. Trazia na mão um volumoso contrato.
Parecia assustado: sem dúvida o comentário de Hugh de que alguém iria para a cadeia chegara a seus ouvidos. Sem qualquer preâmbulo, Oliver declarou:
- O lançamento de Santamaria foi subscrito... é o que diz o contrato. Ele estendeu o documento para Hugh, com a mão trêmula.
- Os sócios aceitaram que esses títulos seriam vendidos numa base de comissão - disse Hugh.
- Mr. Edward mandou-me preparar um contrato de subscrição.
- Pode provar?
- Posso, senhor.
Ele entregou outro documento a Hugh. Era um sumário de contrato, as instruções abreviadas sobre os termos de um acordo, encaminhado por um sócio ao funcionário encarregado
de elaborar o contrato completo. Era a letra de Edward, e dizia expressamente que o empréstimo seria subscrito.
Isso esclarecia a questão. Edward era o responsável. Não houvera fraude, e não havia a menor possibilidade de se recuperar o dinheiro. A transação fora absolutamente legítima. Hugh sentia-se consternado e furioso.
- Muito bem, Oliver, pode se retirar - disse ele. Oliver não se mexeu.
- Espero que não reste qualquer suspeita sobre o meu comportamento, Mr. Hugh.
Hugh não estava convencido da absoluta inocência de Oliver, mas foi obrigado a dizer:
- Você não é culpado por qualquer coisa que fez por ordens de Mr. Edward.
- Obrigado, senhor.
Oliver se retirou. Hugh olhou para os outros sócios e disse, amargurado:
- Edward foi contra nossa decisão coletiva. Mudou os termos do lançamento sem o nosso conhecimento. E isso nos custou um milhão e quatrocentas mil libras.
Samuel arriou na cadeira, murmurando:
- Que coisa terrível!
Sir Harry e o major Hartshorn pareciam apenas aturdidos.
- Estamos quebrados? - indagou William.
Hugh compreendeu que a pergunta fora dirigida a ele. Estavam quebrados? Era inconcebível. Ele refletiu por um momento antes de responder:
- Tecnicamente, não. Embora nossa reserva em dinheiro tenha caído em um milhão e quatrocentas mil libras, os títulos aparecem no outro lado, na coluna de crédito, valorizados quase ao preço de compra. Portanto, o patrimônio se iguala aos débitos, e continuamos solventes.
Samuel acrescentou:
- Desde que não haja uma queda brusca nas cotações.
- É verdade. Se acontecer alguma coisa que provoque uma queda nos títulos sul-americanos, ficaremos em graves dificuldades.
Pensar que o poderoso Pilasters Bank era tão fraco deixava-o trêmulo de raiva por Edward.
- Podemos abafar o caso? - perguntou Sir Harry.
- Duvido muito - respondeu Hugh. - Infelizmente, não tentei esconder o problema quando fui investigar. Já deve estar circulando por todo o prédio a esta altura, e toda a City tomará conhecimento antes de terminar a hora do almoço.
Jonas Mulberry interveio, com uma indagação prática:
- E a nossa liquidez, Mr. Hugh? Precisaremos de um depósito grande antes do final da semana para atender às retiradas de rotina. Não podemos vender os títulos do porto... faria o preço cair ainda mais.
Era um problema e tanto. Hugh pensou a respeito por um momento.
- Pedirei um milhão ao Colonial Bank. O velho Cunliffe será discreto. Deve ser suficiente para agüentar o primeiro impacto. - Ele correu os olhos pelos outros. -
Isso resolve a emergência imediata. Mas o banco se encontra numa posição perigosamente fraca. A médio prazo, temos de corrigi-la.
- O que me diz de Edward? - indagou William.
Hugh sabia o que Edward tinha de fazer: renunciar. Mas queria que outro declarasse isso, e assim permaneceu calado. Foi Samuel quem se manifestou:
- Edward deve renunciar a seu cargo no banco. Nenhum de nós poderá jamais tornar a confiar nele.
- Ele pode retirar seu capital - lembrou William.
- Não pode, não - respondeu Hugh. - Não temos mais o dinheiro. A ameaça perdeu seu poder.
- Tem razão - murmurou William. - Eu não tinha pensado nisso.
- Mas quem será o Sócio Sênior? - perguntou Sir Harry. Houve um momento de silêncio, interrompido por Samuel:
- Ora, pelo amor de Deus, como pode haver qualquer dúvida a respeito? Quem descobriu a trapaça de Edward? Quem assumiu o comando na crise? A quem todos vocês recorreram em busca de orientação? Durante a última hora, todas as decisões foram tomadas por uma única pessoa. Vocês se limitaram a fazer perguntas, impotentes. Vocês sabem quem deve ser o novo Sócio Sênior.
Hugh foi tomado de surpresa. Concentrara-se nos problemas que o banco enfrentava e não pensara por um instante sequer em sua própria posição. Percebia agora que Samuel tinha razão. Os outros haviam se mantido mais ou menos incites. Desde que notara a discrepância no sumário semanal, ele vinha se comportando como se fosse o Sócio Sênior. E sabia que era o único capaz de conduzir o banco através da crise.
E, lentamente, ocorreu-lhe que estava prestes a consumar a grande ambição de sua vida: seria o Sócio Sênior do Pilasters Bank. Olhou para William, Harry e George.
Todos tinham um ar envergonhado. Haviam provocado aquele desastre ao permitirem que Edward se tornasse Sócio Sênior. Agora, sabiam que Hugh tinha razão desde o início.
Desejavam tê-lo ouvido antes e queriam compensar seu erro. Dava para perceber em seus rostos que eram a favor de que ele assumisse.
Mas tinham de dizê-lo expressamente. Hugh olhou para William, que era o Pilaster mais velho depois de Samuel.
- Qual é a sua opinião?
William hesitou apenas por um segundo.
- Acho que você deve ser o Sócio Sênior, Hugh.
- Major Hartshorn?
- Concordo.
- Sir Harry?
- Claro que sim... e espero que você aceite.
Estava consumado. Hugh mal podia acreditar. Respirou fundo.
- Obrigado pela confiança, Eu aceito. Espero poder conduzir a todos através dessa calamidade com nossa reputação e fortuna intactas.
Foi nesse momento que Edward entrou na sala.
Houve um silêncio contrafeito. Vinham conversando quase como se ele estivesse morto, e foi um choque vê-lo na sala. A princípio, Edward não notou o clima.
- Todo o banco se encontra em turbilhão - comentou ele. - Os empregados mais novos correm de um lado para outro, os mais graduados sussurram nos corredores, quase ninguém trabalha... o que está acontecendo?
Ninguém disse nada.
A consternação espalhou-se pelo rosto de Edward, depois surgiu uma expressão de culpa.
- Qual é o problema? - indagou ele, mas seu rosto revelou a Hugh que já adivinhara. - É melhor me contarem por que estão todos me olhando desse jeito. Afinal, sou o Sócio Sênior.
- Não, não é mais - declarou Hugh. - Agora sou eu.
capítulo três Novembro
Miss Dorothy Pilaster casou com o visconde Nicholas Ipswich no Salão Metodista de Kensington, numa manhã clara e fria de novembro. O serviço foi simples, embora o sermão fosse longo. Depois, um almoço de consome quente, linguado de Dover e galinha silvestre assada foi servido para 300 pessoas, numa vasta barraca, no jardim da casa de Hugh.
Ele sentia-se muito feliz. A irmã exibia uma beleza radiante, e seu marido foi encantador com todos. Mas a pessoa mais feliz era a mãe de Hugh. Sorrindo extasiada, sentou ao lado do pai do noivo, o duque de Norwich. Pela primeira vez em 24 anos ela não vestia preto: usava um traje de cashmere azul-acinzentado, que realçava os cabelos grisalhos e os serenos olhos de cor cinza. Sua vida fora atormentada pelo suicídio do marido e sofrerá anos de extrema pobreza, mas agora, na casa dos 60 anos, tinha tudo o que desejava. A linda filha tornara-se a viscondessa Ipswich, e um dia seria a duquesa de Norwich, enquanto o filho era rico e bem-sucedido, o Sócio Sênior do Pilasters Bank.
- Eu costumava pensar que tinha muito azar - murmurou ela para Hugh no intervalo entre os pratos. - Estava enganada.
Ela pôs a mão no braço do filho, num gesto que parecia uma bênção, e acrescentou:
- Sou muito afortunada.
Hugh sentiu vontade de chorar. Como nenhuma das mulheres queria usar branco (com receio de competir com a noiva), nem preto (porque era reservado a funerais), as convidadas ofereciam um espetáculo colorido. Pareciam ter escolhido cores quentes como uma defesa contra o frio do outono: laranja brilhante, amarelo carregado, vermelho-morango e rosa-fúcsia. Os homens vestiam-se em preto, branco e cinza, como sempre. Hugh usava uma casaca com lapelas e punhos de veludo.- era preta, mas ele desafiava as convenções, como sempre, ao exibir uma gravata de seda azul, sua única excentricidade. Era tão respeitável agora que às vezes sentia saudade do tempo em que fora a ovelha negra da família.
Ele tomou um gole do Chateau Margaux, seu vinho tinto predileto. Era um suntuoso desjejum nupcial para um casal muito especial, e Hugh sentia-se contente por ter condições de pagá-lo. Mas também sentia uma pontada de culpa por gastar todo aquele dinheiro num momento em que o Pilasters Bank atravessava uma situação difícil.
Ainda tinham um milhão e quatrocentas mil libras em títulos do porto de Santamaria, além de outros títulos cordoveses, num total de quase meio milhão de libras;
e não podiam vendê-los sem provocar uma queda nas cotações, justamente o que Hugh mais temia. Precisaria de pelo menos um ano para recuperar a posição do banco.
Mas conseguira levá-lo através da crise imediata, e agora dispunham de dinheiro suficiente para atender às retiradas normais num futuro previsível. Edward nem aparecia mais no banco, embora oficialmente ainda fosse um sócio até o final do ano financeiro. Estavam a salvo de tudo, exceto de alguma catástrofe inesperada como guerra, terremoto ou praga. Em tudo e por tudo, ele achava que tinha o direito de oferecer um casamento luxuoso à única irmã.
E era bom para o Pilasters Bank. Todos na comunidade financeira sabiam que o banco tinha um rombo de mais de um milhão de libras por causa do porto de Santamaria.
Aquela grande festa incutia confiança, assegurando às pessoas que os Pilasters ainda eram imensamente ricos. Um casamento despretensioso despertaria suspeitas.
O dote de Dotty, no valor de cem mil libras, fora transferido para o marido, mas permanecia investido no banco a juros de cinco por cento. Nick podia retirá-lo,
mas não precisava do dinheiro de imediato. Sacaria aos poucos, à medida que pagasse as hipotecas contraídas pelo pai e reorganizasse as propriedades. Hugh sentia-se contente por ele não querer todo o dinheiro logo, pois retiradas vultosas eram um sacrifício para o banco no momento.
Todos sabiam do enorme dote de Dotty. Hugh e Nick não conseguiram manter em segredo, e era o tipo de notícia que se espalhava muito depressa. Agora, era o tema das conversas em Londres. Hugh calculou que o assunto era discutido naquele exato momento na metade das mesas, no mínimo.
Olhando ao redor, ele avistou uma única convidada que não parecia feliz... mais do que isso, exibia uma expressão angustiada, como um eunuco numa orgia: Tia Augusta.
- A sociedade de Londres degenerou por completo - disse Augusta ao coronel Mudeford.
- Infelizmente, lady Whitehaven, acho que tem razão - murmurou ele, polido.
- A criação não conta mais - continuou ela. - Os judeus são admitidos em toda parte.
- É verdade.
- Fui a primeira condessa de Whitehaven, mas os Pilasters já constituíam uma família distinta por um século antes de serem honrados com um título; hoje um homem cujo pai foi um mero trabalhador pode obter um pariato só porque ganhou uma fortuna vendendo salame.
- Tem toda a razão. - O coronel Mudeford virou-se para a mulher no seu outro lado. - Mrs. Telston, posso servi-la mais um pouco deste molho de groselha?
Augusta perdeu o interesse nele. Fervia de raiva pelo espetáculo a que fora obrigada a comparecer. Hugh Pilaster, o filho do falido Tobias, oferecendo Chateau Margaux a 300 convidados; Lydia Pilaster, viúva de Tobias, sentada ao lado do duque de Norwich; Dorothy Pilaster, a filha de Tobias, casada com o visconde Ipswich, com o maior dote de que todos já haviam ouvido falar. Enquanto isso, seu filho, o querido Teddy, a prole do grande Joseph Pilaster, fora sumariamente afastado da posição de Sócio Sênior e em breve teria seu casamento anulado.
Não havia mais regras! Qualquer pessoa podia ingressar na sociedade. Como a provar seu ponto, ela avistou nesse momento o maior entre todos os arrivistas: Mrs. Solly Greenbourne, ex-Maisie Robinson. Era espantoso que Hugh tivesse a desfaçatez de convidá-la, uma mulher cuja vida inteira fora escandalosa. Primeiro, fora praticamente uma prostituta, depois casara com o judeu mais rico de Londres, e agora dirigia um hospital em que mulheres não melhores do que ela davam à luz seus bastardos. Mas lá estava ela, sentada na mesa ao lado num vestido da cor de uma moeda nova de cobre, conversando muito séria com o diretor do Banco da Inglaterra. Devia estar falando sobre mães solteiras... e ele escutava!
- Ponha-se no lugar de uma criada solteira - disse Maisie. O diretor do banco ficou surpreso, e ela reprimiu um sorriso. - Pense nas consequências de se tornar uma mãe: perderá o emprego e a casa, não terá meios de se sustentar e seu filho não terá pai. Pode então pensar: "Ora, sempre posso fazer
um aborto no hospital de Mrs. Greenbourne, em Southwark". Acha que eu concordaria? Claro que não. Meu hospital não faz nada para encorajar as moças à imoralidade.
Apenas evito que tenham seus filhos na sarjeta.
Dan Robinson, sentado ao outro lado da irmã, acrescentou:
- É como a lei bancária que estou propondo no Parlamento, que obrigaria os bancos a fazerem um seguro em benefício dos pequenos depositantes.
- Sei disso. Dan continuou:
- Alguns críticos dizem que estimularia a bancarrota dos bancos, tornando-a menos dolorosa. Mas é um absurdo. Nenhum banqueiro vai querer quebrar, em quaisquer circunstâncias.
- Tem toda a razão.
- Quando um banqueiro faz um negócio, não pensa que pode deixar uma viúva em Bournemouth na indigência por causa de sua imprudência... preocupa-se apenas com sua própria riqueza. Da mesma forma, fazer as crianças ilegítimas sofrerem não contribui em nada para desencorajar homens inescrupulosos a seduzirem pobres criadas.
- Compreendo seu argumento - disse o diretor do banco com uma expressão aflita. - Um... ah... paralelo muito original.
Maisie decidiu que já o haviam atormentado bastante e virou o rosto, deixando que ele se concentrasse na comida. Dan comentou:
-Já notou como os títulos de nobreza sempre vão para as pessoas erradas? Olhe só para Hugh e seu primo Edward. Hugh é honesto, talentoso e trabalhador, enquanto Edward é tolo, preguiçoso e sem valor... mas Edward é o conde de Whitehaven, enquanto Hugh é apenas Mr. Pilaster.
Maisie tentava não olhar para Hugh. Embora ficasse contente por ter sido convidada, era angustiante observá-lo no seio de sua família. A esposa, os filhos, a mãe e a irmã formavam um círculo familiar fechado, que a deixava de fora. Sabia que o casamento dele com Nora era infeliz, o que se tornava evidente pela maneira como falavam um com o outro, jamais se tocando, jamais sorrindo, sem qualquer demonstração de afeto. Mas isso não servia de consolo. Eles constituíam uma família, da qual ela nunca faria parte.
Desejou não ter ido ao casamento.
Um lacaio aproximou-se de Hugh e informou:
- Há um telefonema do banco para o senhor.
- Não posso atender agora - respondeu Hugh.
O mordomo veio procurá-lo poucos minutos depois.
- Mr. Mulberry, do banco, está ao telefone desejando lhe falar, senhor.
- Não posso atender agora! - disse Hugh, irritado.
- Está bem, senhor.
O mordomo afastou-se.
- Não. Espere um pouco.
Mulberry sabia que Hugh estaria no meio da recepção do casamento. Era um homem inteligente e responsável. Não insistiria em falar com Hugh se não houvesse algum problema grave.
E muito grave.
Hugh sentiu um calafrio de medo.
- É melhor eu falar com ele. - Hugh levantou-se. - com licença, por favor, mãe, Sua Graça... tenho de resolver um problema.
Ele saiu da barraca apressado, atravessou o gramado e entrou na casa. O telefone ficava na biblioteca. Ele atendeu.
- Hugh Pilaster falando.
Ele ouviu a voz de seu assistente:
- É Mulberry, senhor. Lamento...
- O que aconteceu?
- Um telegrama de Nova York. Irrompeu uma guerra em Córdoba.
- Oh, não!
Era uma notícia catastrófica para Hugh, sua família e o banco. Nada
poderia ser pior.
- Uma guerra civil, para ser mais preciso - continuou Mulberry. - Uma rebelião. A família Miranda atacou a capital, Palma.
O coração de Hugh estava disparado.
- Alguma indicação da força dos rebeldes?
Se a rebelião pudesse ser esmagada depressa, ainda haveria esperança.
- O presidente Garcia fugiu.
- Essa não! - A crise era mesmo grave. Hugh xingou Micky e Edward, amargurado. - Mais alguma coisa?
- Há um cabograma do nosso escritório em Córdoba, mas ainda está sendo decodificado.
- Telefone-me assim que ficar pronto.
- Certo, senhor.
Hugh girou a manivela e deu à telefonista o nome do corretor do banco. Esperou enquanto o homem era chamado ao telefone.
- Danby, aqui é Hugh Pilaster. O que está acontecendo com os títulos cordoveses?
- Estamos oferecendo à metade do preço, e ninguém quer comprar. O que significava que o Pilasters já estava quebrado, pensou Hugh. O desespero envolveu seu coração.
- Até que ponto devem cair?
- Acho que chegarão a zero. Ninguém paga juros sobre títulos do governo no meio de uma guerra civil.
Zero. O Pilasters acabara de perder dois milhões e meio de libras. Não havia esperança agora de uma recuperação gradativa do banco. Tentando se agarrar a qualquer coisa, Hugh perguntou:
- Se os rebeldes forem esmagados nas próximas horas... o que acontece?
- Creio que ninguém compraria os títulos mesmo assim - respondeu Danby. - Os investidores vão esperar para ver. Na melhor das hipóteses, vai demorar cinco ou seis
semanas para a confiança começar a voltar.
- Entendo...
Hugh sabia que Danby tinha razão. O corretor apenas confirmava o que seu instinto já lhe dissera.
- Não haverá maiores problemas com seu banco, não é mesmo, Pilaster? - perguntou Danby, preocupado. - Vocês devem ter muitos desses títulos. Circulou a informação de que quase não conseguiram vender o lançamento do porto de Santamaria.
Hugh hesitou. Detestava mentir, mas a verdade destruiria o banco.
- Temos mais títulos cordoveses do que eu gostaria Danby. Mas também temos muitas outras coisas.
- Ainda bem.
- Tenho de voltar para os meus convidados. - Hugh não tinha a menor intenção de fazer isso, mas queria passar uma impressão de calma. - Estou oferecendo uma recepção para 300 pessoas... minha irmã casou esta manhã.
- Eu soube. Meus parabéns.
- Adeus.
Antes que Hugh pudesse pedir outro número, Mulberry tornou a telefonar.
- Mr. Cunliffe, do Colonial Bank, está aqui, senhor - disse ele, com pânico na voz. - Pede o pagamento do empréstimo.
- Desgraçado!
O Colonial emprestara ao Pilasters um milhão de libras para sustentálo durante a crise, mas o dinheiro deveria ser pago de imediato, à vista.
Cunliffe soubera da guerra civil, acompanhara a queda nos títulos cordoveses, e sabia que o Pilasters se encontrava em situação precária. Como não podia deixar de ser, queria tirar seu dinheiro antes que o banco estourasse.
E era apenas o primeiro. Outros viriam logo em seguida. Amanhã de manhã os depositantes fariam fila nas portas do banco para tirar seu dinheiro. E Hugh não teria condições de pagar.
- Temos um milhão de libras, Mulberry?
- Não, senhor.
O peso do mundo se abateu sobre os ombros de Hugh, e ele se sentiu muito velho. O fim chegara. Era o pesadelo do banqueiro: as pessoas vinham buscar seu dinheiro, e o banco não o tinha. Acontecia agora com Hugh.
- Diga a Mr. Cunliffe que não conseguiu obter autorização para assinar o cheque porque todos os sócios estão no casamento.
- Certo, Mr. Hugh.
- E mais uma coisa...
- Pois não, senhor?
Hugh fez uma pausa. Sabia que não tinha opção, mas ainda assim hesitava em pronunciar as palavras terríveis. Fechou os olhos. Era melhor acabar logo com aquilo.
- E depois, Mulberry, você deve fechar as portas do banco.
- Oh, Mr. Hugh!
- Sinto muito, Mulberry.
Houve um ruído estranho na linha e Hugh compreendeu que Mulberry estava chorando.
Ele desligou. Olhando para as prateleiras de sua biblioteca, viu em vez disso a fachada imponente do Pilasters Bank e imaginou o fechamento das portas de ferro.
Viu os transeuntes pararem e olharem, logo havendo uma multidão apontando para as portas fechadas, com comentários excitados. A notícia circularia pela City mais depressa do que fogo num depósito de óleo: o Pilasters quebrara.
O Pilasters quebrara.
Hugh baixou o rosto para as mãos.
- Estamos absolutamente sem dinheiro - declarou Hugh.
Eles não entenderam, a princípio. Dava para perceber por seus rostos.
Haviam se reunido na sala de estar de sua casa. Era um lugar atravancado, decorado por sua esposa, Nora, que adorava cobrir cada móvel com tecidos floridos e encher todas as superfícies com ornamentos. Os convidados haviam finalmente se retirado - Hugh não dera a má notícia a ninguém antes de a festa terminar - e a família ainda vestia os trajes elegantes. Augusta sentava ao lado de Edward, os dois com expressões desdenhosas e incrédulas. Tio Samuel sentava ao lado de Hugh. Os outros sócios - o Jovem William, o major Hartshorn e Sir Harry - mantinham-se de pé atrás de um sofá em que sentavam suas esposas, Beatrice, Madeleine e Clementine. Nora, corada devido ao champanhe, sentava em sua poltrona habitual, ao lado do fogo. Os recém-casados, Nick e Dotty, de mãos dadas, pareciam assustados. Hugh sentia pena deles.
- O dote de minha irmã se perdeu, Nick. Receio que todos os nossos planos tenham sido em vão.
Tia Madeleine protestou, a voz estridente:
- Você é o Sócio Sênior... a culpa deve ser sua!
Ela estava sendo estúpida e maldosa. Era uma reação previsível, mas mesmo assim Hugh sentiu-se magoado. Era uma injustiça que ela o culpasse depois que lutara com tanto empenho para evitar o desastre. Mas William, o irmão mais moço, apressou-se em corrigi-la com uma surpreendente rispidez:
- Não diga bobagem, Madeleine. Edward enganou a todos nós, sobrecarregando o banco com imensas quantidades de títulos cordoveses, que agora não valem nada.
Hugh sentiu-se grato a ele por ser honesto. William acrescentou, olhando para Augusta:
- A culpa é daqueles entre nós que permitiram que Edward se tornasse o Sócio Sênior.
Nora parecia aturdida, e murmurou:
- Não podemos estar sem dinheiro.
- Mas estamos - reiterou Hugh, paciente. - Todo o nosso dinheiro está no banco, e o banco quebrou.
Havia alguma desculpa para sua esposa não compreender: ela não nascera numa família bancária.
Augusta levantou-se e foi até a lareira. Hugh se perguntou se ela tentaria defender o filho, mas Augusta não era tão tola assim.
- Não importa de quem é a culpa - disse ela. - Devemos tentar salvar o que for possível. Imagino que ainda resta muito dinheiro no banco, em ouro e notas. Podemos retirar tudo, esconder em algum lugar seguro antes que os credores peguem. E depois...
Hugh interrompeu-a em tom incisivo:
- Não faremos isso. O dinheiro não é nosso.
- Mas claro que o dinheiro é nosso!
- Cale a boca e sente-se, Augusta, ou mandarei os lacaios expulsarem-na daqui.
Ela ficou bastante surpresa e calou-se, mas não sentou. Hugh continuou:
- Há dinheiro no banco e, como não fomos declarados oficialmente na bancarrota, podemos optar pelo pagamento de alguns credores. Todos terão de dispensar seus criados; e se os mandarem para a porta lateral do banco com uma nota dizendo o quanto lhes é devido, providenciarei o pagamento. Devem pedir a todos os comerciantes com os quais mantêm contas para lhes apresentar o saldo devedor, e providenciarei também o pagamento deles... mas só até a data de hoje; não pagarei qualquer dívida que assumirem daqui por diante.
- Quem é você para me mandar dispensar meus criados? - protestou Augusta, indignada.
Hugh estava propenso a sentir compaixão pela situação crítica em que todos se encontravam, apesar de ter sido provocada por eles próprios; mas começava a ficar cansado daquela obtusidade deliberada, e disse bruscamente:
- Se não dispensá-los, eles sairão de qualquer maneira, porque não serão mais pagos. Tia Augusta, tente compreender: você não tem mais dinheiro.
- Ridículo! - murmurou ela. Nora tornou a falar:
- Não posso dispensar nossos criados. Não é possível viver numa casa como esta sem criados.
- Quanto a isso, não precisa se preocupar - respondeu Hugh. - Não vai mais viver numa casa como esta. Terei de vendê-la. Todos nós teremos de vender nossas casas, móveis, obras de arte, adegas e jóias.
- Isso é um absurdo! - gritou Augusta.
- É a lei - declarou Hugh. - Cada sócio é pessoalmente responsável por todas as dívidas do negócio.
- Não sou um sócio - disse Augusta.
- Mas Edward é. Ele renunciou ao cargo de Sócio Sênior, mas permaneceu como sócio. E é o dono de sua casa. Joseph deixou-a para ele.
Nora interveio:
- Temos de morar em algum lugar.
- Amanhã, todos devemos procurar por casas menores e mais baratas para alugar. Se escolherem casas modestas, nossos credores aceitarão. Se não, terão de procurar outra coisa.
Augusta declarou:
- Não tenho a menor intenção de sair da minha casa e ponto final. E imagino que o resto da família pensa da mesma forma. - Ela olhou para a cunhada. - Madeleine?
- Você está certa, Augusta - disse Madeleine. - George e eu ficaremos onde estamos. Tudo isso é invenção. Não podemos estar na miséria.
Hugh desprezava-os. Mesmo agora, quando se encontravam arruinados por sua arrogância e irresponsabilidade, ainda se recusavam a escutar a voz da razão. Ao final, teriam de renunciar a suas ilusões. Mas se tentassem se apegar à riqueza que não mais lhes pertencia, destruiriam a reputação da família, além de sua fortuna. Ele estava determinado a fazer com que se comportassem com uma honestidade escrupulosa, tanto na pobreza como na riqueza. Seria uma luta árdua, mas ele não cederia.
Augusta virou-se para a filha.
- Clementine, tenho certeza de que você e Harry assumirão a mesma posição de Madeleine e George.
- Não, mãe.
Augusta ficou aturdida. Hugh também se surpreendeu. Sua prima Clementine não costumava se colocar contra a mãe. Pelo menos uma pessoa da família adquiriu um pouco
de bom senso, pensou ele.
- Foi por escutar o que você diz que todos nos metemos nesta encrenca - acrescentou Clementine. - Se promovêssemos Hugh a Sócio Sênior, em vez de Edward, ainda seríamos tão ricos quanto Creso.
Hugh começou a se sentir melhor. Havia na família quem compreendesse o que ele tentava fazer. Clementine continuou:
- Você estava errada, mãe, e nos arruinou. Nunca mais aceitarei seus conselhos. Hugh estava certo, e é melhor que todos concordemos que ele nos guie através deste
terrível desastre.
- Tem toda a razão, Clementine - disse William. - Devemos fazer qualquer coisa que Hugh aconselhar.
As linhas da batalha haviam sido traçadas. No lado de Hugh se postavam William, Samuel e Clementine, que controlava o marido, Sir Harry.
Tentariam se comportar de uma maneira decente e honesta. A ele se opunham Augusta, Edward e Madeleine, que falava pelo major Hartshorn: tentariam arrebatar o que pudessem, e deixariam que a reputação da família se danasse. Mas foi nesse instante que Nora declarou, num tom de desafio:
- Só sairei desta casa carregada.
Hugh sentiu um gosto amargo na boca. Sua própria esposa se juntava ao inimigo.
- Você é a única pessoa nesta sala que assumiu uma posição contra seu marido ou esposa - comentou ele, muito triste. - Não me deve nenhuma lealdade?
Ela sacudiu a cabeça.
- Não casei com você para viver na pobreza.
- Mesmo assim, terá de sair desta casa. - Ele olhou para os outros intransigentes: Augusta, Edward, Madeleine e o major Hartshorn. - Todos terão de ceder, mais cedo ou mais tarde. Se não o fizerem agora, com dignidade, serão forçados depois, em desgraça, com a presença de oficiais de justiça, guardas e repórteres de jornais, criticados pela imprensa sensacionalista e insultados por seus criados sem pagamento.
- É o que veremos! - gritou Augusta.
Depois que todos se retiraram, Hugh continuou sentado, olhando para o fogo, vasculhando o cérebro à procura de algum meio de pagar os credores do banco.
Estava determinado a impedir que o Pilasters Bank caísse na falência formal. Era uma perspectiva angustiante demais. Passara toda a sua vida à sombra da bancarrota do pai. Toda a sua carreira fora uma tentativa de provar que não se contaminara. No fundo de seu coração, temia que, se sofresse o mesmo destino do pai também poderia ser levado a se matar.
O Pilasters estava liquidado como banco. Fechara as portas aos depositantes, e tal situação era irremediável. A longo prazo, no entanto, teria condições de pagar
suas dívidas, especialmente se os sócios fossem escrupulosos na venda de seus bens valiosos.
Enquanto a tarde se transformava em crepúsculo, os contornos de um plano começaram a se delinear em sua mente, e ele se permitiu um tênue vislumbre de esperança.
Às seis horas da tarde foi procurar Ben Greenbourne.
Aos 70 anos, Greenbourne ainda gozava de excelente saúde e continuava a dirigir seus negócios. Tinha uma filha, Kate, mas Solly era o único filho homem; assim, quando se aposentasse, teria de entregar tudo aos sobrinhos, e parecia relutante em fazê-lo.
Hugh foi à mansão em Piccadilly. A propriedade dava a impressão não apenas de prosperidade, mas também de riqueza ilimitada. Cada relógio era uma jóia, cada móvel uma antigüidade de valor inestimável, cada painel era esculpido com requinte, cada tapete um luxo incomparável. Hugh foi conduzido à biblioteca, onde havia luzes a gás acesas e fogo na lareira. Fora naquela sala que descobrira que o menino chamado Bertie Greenbourne era seu filho.
Especulando se os livros seriam apenas mera ostentação, ele examinou vários enquanto esperava. Alguns podiam ter sido escolhidos por serem edições de luxo, concluiu Hugh, mas outros mostravam sinais de bastante manuseio, e havia diversas línguas representadas. O saber de Greenbourne era genuíno. O velho apareceu 15 minutos depois e pediu desculpas por deixar Hugh esperando.
- Um problema familiar me deteve - explicou ele com sua cortesia prussiana.
Sua família nunca fora prussiana; copiara as maneiras dos alemães da classe superior e as conservara ao longo de cem anos de vida na Inglaterra. Ele continuava tãoempertigado quanto antes, mas Hugh achou que parecia cansado e preocupado. Greenbourne não informou qual era o problema familiar, e Hugh não perguntou.
- Creio que já sabe que os títulos cordoveses caíram esta tarde - disse Hugh.
- Sei, sim.
- E provavelmente já foi informado de que meu banco fechou as portas em conseqüência disso.
-Já sabia. Lamento muito.
- Já se passaram 24 anos desde a última vez em que um banco inglês quebrou.
- Foi o Overend and Gurney. Lembro muito bem.
- Eu também. Meu pai foi à bancarrota e enforcou-se em seu escritório, na Leadenhall Street.
Greenbourne se mostrou embaraçado.
- Sinto muito, Pilaster. Havia esquecido esse fato terrível.
- Muitas firmas quebraram naquela crise. Mas pior ainda acontecerá amanhã. - Hugh inclinou-se para a frente e iniciou sua argumentação. - No último quarto de século, os negócios na City aumentaram dez vezes.
E como a atividade bancária se tornou cada vez mais sofisticada e complexa, estamos mais interligados do que nunca. Algumas pessoas cujo dinheiro perdemos não conseguirão pagar suas dívidas e quebrarão também... e assim por diante. Na próxima semana, dezenas de bancos estarão quebrados, centenas de companhias serão obrigadas a fechar, e milhares e milhares de pessoas vão se descobrir de repente na miséria... a menos que iniciemos uma ação para impedir.
- Ação? - repetiu Greenbourne com mais do que um indício de irritação. - Que ação pode ser feita? Sua única solução é pagar as dívidas; não pode fazê-lo; portanto, está impotente.
- Sozinho, estou mesmo. Mas espero que a comunidade bancária faça alguma coisa.
- Propõe pedir aos outros bancos que paguem suas dívidas? Por que deveriam?
Ele parecia quase furioso.
- Tenho certeza de que vai concordar que seria melhor para todos se os credores do Pilasters pudessem ser pagos integralmente.
- Isso é óbvio.
- Vamos supor que se formasse uma associação de banqueiros para assumir tanto o patrimônio quanto as dívidas do Pilasters. A associação garantiria o pagamento a todos os credores. Ao mesmo tempo, começaria a liquidar o patrimônio do Pilasters de uma maneira ordenada.
Subitamente, Greenbourne mostrou-se interessado; sua irritação desapareceu enquanto avaliava a proposta.
- Estou entendendo. Se os membros da associação fossem bastante respeitados e prestigiados, a garantia poderia ser suficiente para tranqüilizar a todos, e os credores talvez não exigissem o pagamento imediato. Com um pouco de sorte, o fluxo de dinheiro da venda do patrimônio poderia cobrir os pagamentos aos credores.
- E uma tremenda crise seria evitada. Greenbourne balançou a cabeça.
- Ao final, porém, os membros da associação perderiam dinheiro, pois as dívidas do Pilasters são maiores que seu patrimônio.
- Não necessariamente.
- Como assim?
- Temos mais de dois milhões de libras em títulos de Córdoba, que hoje não valem nada. Mas nossos outros ativos são substanciais. Muita coisa dependerá do quanto conseguirmos levantar com a venda das casas dos sócios e assim por diante; mas calculo que a diferença a menos é de apenas um milhão de libras.
- Portanto, a associação deve esperar um prejuízo de um milhão.
- Talvez. Mas os títulos de Córdoba podem recuperar seu valor. Talvez os rebeldes sejam derrotados. Ou o novo governo retome o pagamento dos juros. Em algum momento, a cotação dos títulos de Córdoba vai subir.
- É possível.
- Se os títulos alcançarem apenas a metade do nível anterior, a associação não terá prejuízo. E se subirem mais do que isso, a associação passará a ter lucro.
Greenbourne balançou a cabeça.
- Poderia dar certo, se não fosse por aqueles títulos do porto de Santamaria. Aquele embaixador cordovês, Miranda, me parece um ladrão rematado; e o pai, ao que parece, é o líder dos rebeldes. Meu palpite é de que todo o dinheiro foi gasto em armas e munição. Neste caso, os investidores nunca terão qualquer retorno.
O velho continuava tão perceptivo quanto antes, pensou Hugh: era exatamente o que ele temia.
- Acho que é isso mesmo. Ainda assim, há uma possibilidade. E se permitirem um pânico financeiro, podem estar certos de que perderão dinheiro por outros meios.
- É um plano engenhoso. Você sempre foi o mais inteligente de sua família, jovem Pilaster.
- Mas o plano depende de você.
- Hum...
- Se concordar em liderar a associação, a City seguirá seu exemplo. Se recusar sua participação, a associação não terá o prestígio necessário para tranqüilizar os credores.
- Sei disso.
Greenbourne não era um homem de falsa modéstia.
- O que pretende fazer?
Hugh prendeu a respiração. O velho permaneceu em silêncio por vários segundos, pensando, depois declarou, com firmeza:
- Não Vou participar.
Hugh arriou na cadeira. Era seu último recurso, e fracassara. Sentiu um imenso cansaço dominá-lo, como se sua vida chegasse ao fim e fosse um velho exausto. Greenbourne acrescentou:
- Tenho sido cauteloso durante toda a minha vida. Onde outros homens vêem lucros altos vejo riscos altos, e resisto à tentação. Seu Tio Joseph não era como eu. Assumia os riscos... e embolsava os lucros. Seu filho Edward foi pior ainda. Não digo nada a seu respeito, pois acaba de assumir. Mas os Pilasters devem pagar o preço por seus anos de lucros elevados. Não me beneficiei desses lucros... por que deveria pagar suas dívidas? Se eu gastar dinheiro para salvá-los agora, o investidor tolo será recompensado e o cauteloso sofrerá. E se a atividade bancária fosse dirigida assim, por que alguém seria cauteloso?
Poderíamos todos assumir os maiores riscos, pois nada significam quando bancos quebrados podem sempre ser salvos. Mas há sempre um risco. A atividade bancária não pode ser conduzida à sua maneira. Sempre haverá quebras. São necessárias para lembrar aos bons e maus investidores que o risco é real.
Antes de vir, Hugh se perguntara se deveria contar ao velho que Micky Miranda assassinara Solly. Agora, considerou outra vez a idéia e chegou à mesma conclusão: deixaria Greenbourne chocado e angustiado, mas não ajudaria a persuadi-lo a salvar o Pilasters.
Procurava alguma coisa para dizer, uma última tentativa de fazer Greenbourne mudar de idéia, quando o mordomo entrou e disse:
- com licença, Mr. Greenbourne, mas me pediu para avisá-lo no momento em que o detetive chegasse.
Greenbourne levantou-se no mesmo instante, parecendo nervoso, mas a cortesia não lhe permitia se retirar às pressas sem uma explicação.
- Lamento muito, Pilaster, mas devo deixá-lo. Minha neta Rebecca... desapareceu... e estamos todos transtornados.
- Lamento muito. - Hugh conhecia a irmã de Solly, Kate, e tinha uma vaga lembrança de sua filha, uma garota bonita, de cabelos escuros. - Espero que a encontrem sã e salva.
- Não acreditamos que ela tenha sofrido alguma violência... para ser franco, temos quase certeza de que apenas fugiu de casa com um rapaz. Mas isso já é bastante terrível. Peço que me dê licença, por favor.
- Claro.
O velho se retirou, deixando Hugh em meio às ruínas de suas esperanças.
Maisie se perguntava às vezes se não haveria algo contagioso no trabalho de parto. Acontecia com freqüência, nos quartos cheios de mulheres grávidas de nove meses, que dias transcorriam sem qualquer incidente, mas assim que uma entrava em trabalho de parto, as outras seguiam o exemplo numa questão de horas.
Fora assim hoje. Começara às quatro horas da madrugada e diversos partos haviam ocorrido desde então. As parteiras e enfermeiras faziam a maior parte do trabalho, mas quando havia atividade demais Maisie e Rachel tinham de largar suas penas e livros de registros e circular com toalhas e mantas.
Por volta das sete horas, no entanto, tudo já acabara, e tomavam chá na sala de Maisie junto com o amante de Rachel, Dan Robinson, quando Hugh Pilaster apareceu
e foi logo dizendo:
- Trago péssimas notícias, infelizmente.
Maisie servia o chá naquele instante, mas o tom de voz de Hugh deixou-a tão chocada que parou. Fitando-o, constatou que ele estava desesperado e pensou que alguém morrera.
- O que aconteceu, Hugh?
- Guardavam todo o dinheiro do hospital numa conta em meu banco, não é mesmo?
Se era apenas dinheiro, refletiu Maisie, a notícia não podia ser tão ruim assim. Foi Rachel quem respondeu:
- É, sim. Meu pai cuida do dinheiro, mas tem uma conta particular com vocês desde que se tornou advogado do banco. Suponho que ele achou mais conveniente também manter a conta do hospital com vocês.
- E ele investiu o dinheiro em títulos de Córdoba.
- Investiu?
- Qual é o problema, Hugh? - perguntou Maisie. - Pelo amor de Deus, conte logo!
- O banco quebrou.
Os olhos de Maisie ficaram marejados de lágrimas, não por si mesma, mas por ele.
- Oh, Hugh!
Ela sabia o quanto Hugh estava angustiado. Para ele, era quase como a morte de uma pessoa amada, pois investira todas as suas esperanças e sonhos no banco. Desejou poder assumir uma parte da aflição a fim de atenuar o sofrimento dele.
- Santo Deus! - exclamou Dan. - Haverá um pânico!
- Perderam todo o dinheiro - disse Hugh. - É bem provável que tenham de fechar o hospital. Não tenho palavras para dizer o quanto lamento.
Rachel ficara pálida com o choque.
- Não é possível! - gritou ela. - Como podem ter perdido nosso dinheiro?
Foi Dan quem respondeu, amargurado:
- O banco não pode pagar suas dívidas. É isso que significa a bancarrota, que você deve dinheiro às pessoas e não tem condições de pagá-las.
Num súbito relance, Maisie viu seu pai, um quarto de século mais jovem, muito parecido com Dan hoje, dizendo a mesma coisa sobre bancarrota. Dan passara grande parte de sua vida tentando proteger as pessoas comuns dos efeitos daquelas crises financeiras... mas até agora nada conseguira.
- Talvez agora aprovem a sua lei dos bancos, Dan - comentou ela.
Rachel perguntou a Hugh:
- Mas o que vocês fizeram com o nosso dinheiro?
Hugh suspirou.
- Isto aconteceu por causa de uma coisa que Edward fez quando era Sócio Sênior. Foi um erro, um tremendo erro, e ele perdeu muito dinheiro, mais de um milhão de
libras. Venho tentando recuperar o banco desde então, mas hoje minha sorte acabou.
- Nunca imaginei que isso pudesse acontecer - disse Rachel.
- Vocês devem recuperar uma parte do dinheiro, mas não antes de um ano ou mais - informou Hugh.
Dan passou o braço pelos ombros de Rachel, mas não havia como confortá-la.
- E o que vai acontecer com todas estas pobres mulheres que vêm aqui em busca de ajuda?
Hugh parecia tão consternado que Maisie sentiu vontade de mandar Rachel se calar.
- Eu daria todo o dinheiro do meu próprio bolso com o maior prazer - respondeu ele. - Mas também perdi tudo.
- Tem certeza de que não se pode fazer coisa alguma? – insistiu Rachel.
- Bem que tentei. Estou vindo da casa de Ben Greenbourne. Pedilhe que salvasse o banco e pagasse aos credores, mas ele recusou. O pobre-coitado já tem seus problemas pessoais: ao que parece, sua neta Rebecca fugiu de casa com o namorado. De qualquer forma, nada se poderá fazer sem o seu apoio.
Rachel levantou-se.
- Acho melhor eu ir conversar com meu pai.
- E eu devo ir para a Câmara dos Comuns - declarou Dan. Eles saíram.
Maisie sentia uma angústia profunda. Estava transtornada pela perspectiva de fechar o hospital, abalada pela súbita destruição de tudo por que tanto se empenhara; mas, acima de tudo, sofria por Hugh. Recordou, como se fosse ontem, uma noite há 17 anos, depois das corridas de cavalos em Goodwood, quando Hugh lhe contara a história de sua vida; e ainda agora podia ouvir a agonia em sua voz ao relatar que o pai quebrara, e por isso se matara. Ele dissera na ocasião que seria um dia o banqueiro mais esperto, mais conservador e mais rico do mundo... como se acreditasse que isso atenuaria a dor de sua perda. E talvez atenuasse mesmo. Em vez disso, porém, ele se deparava com o mesmo destino do pai.
Seus olhos se encontraram. Maisie viu um apelo silencioso no olhar de Hugh. Levantou-se, foi se postar ao lado de sua cadeira, pegou sua cabeça entre as mãos e aninhou-a nos seios, afagando os cabelos. Hesitante, ele passou o braço pela cintura de Maisie, cauteloso, a princípio, e depois apertando-a com força. E começou a chorar.
Depois que Hugh foi embora, Maisie fez uma ronda pelos quartos. Agora, via tudo com novos olhos: as paredes que elas próprias haviam pintado, as camas de segunda mão, as lindas cortinas feitas pela mãe de Rachel. Recordou os esforços necessários para abrir o hospital: as brigas com os médicos e o conselho administrativo local, os argumentos incessantes que ela e Rachel haviam usado para covencer respeitáveis donas de casa e clérigos hostis da vizinhança, a persistência obstinada que lhes permitira vencer. Consolou-se com o pensamento de que, no final das contas, foram bem-sucedidas e o hospital funcionara por 12 anos, proporcionando conforto a centenas de mulheres. Mas ela desejara promover uma mudança permanente. Encarara aquele como o primeiro de dezenas de Hospitais para Mulheres que se espalhariam por todo o país. Mas fracassara nesse ponto.
Falou com cada uma das mulheres que dera à luz naquele dia. Só se preocupava com uma, a Senhorita Ninguém. Ela era franzina, e a criança nascera muito pequena. Maisie calculava que ela andara passando fome para esconder a gravidez da família. Maisie sempre se espantava que outras mulheres conseguissem fazer isso - ela estufara ao engravidar, e não fora mais possível esconder depois de cinco meses, - mas sabia por experiência que era algo que acontecia a todo instante.
Ela sentou na beira da cama da Senhorita Ninguém, que amamentava a filha recém-nascida.
- Ela não é linda? - murmurou a moça. Maisie concordou com a cabeça.
- Tem os cabelos pretos, iguais aos seus.
- Minha mãe também tem cabelos assim.
Maisie estendeu a mão e acariciou a cabeça da criança. Como todos os bebês, aquele também parecia com Solly. Na verdade... Maisie teve um sobressalto com a súbita revelação.
- Oh, Deus, já sei quem você é! A moça fitou-a aturdida.
- É Rebecca, a neta de Ben Greenbourne, não é mesmo? Manteve a gravidez em segredo por tanto tempo quanto pôde e depois fugiu de casa para ter a criança.
Os olhos da moça se arregalaram.
- Como soube? Não me via desde que eu tinha dois anos!
- Mas conheci sua mãe muito bem. Afinal, fui casada com o irmão dela. - Kate não se mostrara tão esnobe quanto o resto dos Greenbournes, e sempre fora gentil com Maisie quando a família não se encontrava presente. - E me lembro quando você nasceu. Tinha cabelos pretos, iguais aos de sua filha.
Rebecca estava assustada.
- Promete que não vai contar a eles?
- Prometo que não farei coisa alguma sem o seu consentimento. Mas acho que deve mandar um aviso para sua família. Seu avô está transtornado.
- É dele que tenho medo. Maisie balançou a cabeça.
- Posso compreender por quê. É um velho rabugento de coração duro, como sei por experiência própria. Mas se me deixar conversar com ele, acho que posso meter um pouco de bom senso em sua cabeça.
- É mesmo? - murmurou Rebecca, a voz já transbordando com um otimismo juvenil. - Faria isso por mim?
- Claro que sim. Mas não direi onde você está, a menos que ele prometa ser gentil.
Rebecca baixou os olhos. A criança parará de mamar e mantinha os olhos fechados.
- Ela está dormindo... Maisie sorriu.
-Já escolheu um nome para ela?
-Já, sim - respondeu Rebecca. - Vou chamá-la de Maisie.
O rosto de Ben Greenbourne se achava molhado de lágrimas quando ele desceu do quarto.
- Deixei-a a sós com Kate - murmurou ele, a voz embargada.
O velho tirou um lenço do bolso, tentou em vão enxugar as faces. Maisie nunca vira o sogro perder o controle daquele jeito. Ele parecia uma figura um tanto patética,
mas Maisie refletiu que isso lhe faria muito bem.
- Vamos para a minha sala - sugeriu ela. - Farei um chá.
- Obrigado.
Quando ele sentou, Maisie pensou que era o segundo homem que chorava ali naquela noite.
- Todas essas moças... estão na mesma situação de Rebecca?
- Nem todas - respondeu Maisie. - Algumas são viúvas. Outras foram abandonadas pelos maridos. Muitas fugiram de homens que as espancavam. Uma mulher pode suportar muita coisa e permanecer com um marido mesmo quando ele a machuca; mas quando engravida fica com medo de que as pancadas possam afetar a criança, e é nesse momento que ela sai de casa. Mas a maioria é como Rebecca, moças que simplesmente cometeram um erro estúpido.
- Pensava que a vida não tinha muita coisa a mais para me ensinar. Agora, descubro que tenho sido um tolo e ignorante.
Maisie entregou-lhe a xícara com chá.
- Obrigado. É muito gentil... e eu nunca fui gentil com você.
- Todos nós cometemos erros.
- Ainda bem que você está aqui - comentou Greenbourne. - De outro modo, para onde iriam essas pobres moças?
- Teriam seus bebês em valas e becos.
- E pensar que isso poderia ter acontecido com Rebecca...
- Infelizmente, o hospital vai fechar.
- Mas por quê?
Ela fitou-o nos olhos.
- Todo o nosso dinheiro estava no Pilasters Bank. Agora, não temos mais nada.
- É mesmo? - murmurou Ben Greenbourne, pensativo.
Hugh preparou-se para dormir, mas não sentia sono. Foi sentar diante da lareira, de chambre, e ficou olhando para o fogo. Analisou várias vezes a situação do banco, mas não conseguiu descobrir nenhum meio de melhorá-la. Mas não podia parar de pensar a respeito.
À meia-noite, ouviu uma batida alta e determinada na porta da frente. Desceu para atender. Havia uma carruagem parada no meio-fio, e um lacaio de libre junto à porta.
- Peço perdão por bater em sua porta tão tarde, senhor, mas a mensagem é urgente.
Ele entregou um envelope e foi embora. Enquanto Hugh fechava a porta, seu mordomo desceu a escada e indagou, preocupado:
- Está tudo bem, senhor?
- É apenas uma mensagem. Pode voltar para a cama.
- Obrigado, senhor.
Hugh abriu o envelope e deparou com a letra impecável e antiquada de um velho meticuloso. As palavras fizeram seu coração transbordar de alegria.
Piccadilly, 12 Londres, S. W.
23 de novembro de 1890
Prezado Pilaster:
Pensando melhor, decidi concordar com sua proposta.
Cordialmente, B. Greenbourne
Ele levantou os olhos da mensagem e sorriu para o vestíbulo vazio. - Mas que tremenda surpresa! O que será que fez o velho mudar de idéia?
Augusta estava sentada na sala dos fundos da melhor joalheria da Bond Street. Luzes a gás faziam as jóias faiscarem em seus mostruários. A sala tinha vários espelhos.
Um assistente atencioso atravessou a sala, e pôs na sua frente uma caixa de veludo preto contendo um colar de diamantes. O gerente da loja mantinha-se de pé ao lado de Augusta.
- Quanto custa? - perguntou ela.
- Nove mil libras, lady Whitehaven.
Ele murmurou o preço com devoção, quase como se fosse uma oração. O colar era simples, apenas uma fieira de enormes diamantes idênticos encrustados em ouro. Ficaria deslumbrante contra os vestidos pretos de uma viúva, pensou Augusta. Só que não ia comprá-lo para usar.
- É uma peça maravilhosa, milady, a mais adorável que temos aqui.
- Não tente me apressar. Estou pensando.
Era a sua última e desesperada tentativa de conseguir levantar algum dinheiro. Já tentara indo ao banco e exigindo cem libras em soberanos de ouro: o empregado, um cão insolente chamado Mulberry, recusara. Tentara transferir a casa do nome de Edward para o seu, mas também não dera certo: a escritura estava no cofre do velho Bodwin, o advogado do banco, e ele passara para o lado de Hugh. Agora, sua idéia era comprar diamantes a crédito para vender à vista. Edward fora seu aliado, a princípio, mas agora até ele se recusava a ajudá-la.
- O que Hugh está fazendo é o melhor - dissera ele, como um idiota. - Se por acaso se espalhar a notícia de que pessoas da família estão tentando se apoderar do
que podem, a associação de bancos pode se desfazer. Foram persuadidos a entrar com dinheiro para evitar uma crise financeira, não para manter a família Pilaster
no luxo.
Fora um discurso longo para Edward. Um ano antes, ela ficaria profundamente abalada pela posição contrária do filho, mas desde sua rebelião no caso da anulação do casamento ele deixara de ser o menino meigo e dócil que Augusta tanto amara. Clementine também se virará contra ela, aprovando os planos de Hugh para transformar a todos em indigentes. Augusta tremia de raiva só de pensar a respeito. Mas eles não escapariam impunes. Ela levantou os olhos para o gerente da joalheria e anunciou, decidida:
- Vou levá-lo.
- Uma sábia escolha, não tenho a menor dúvida, lady Whitehaven.
- Mande a conta para o banco.
- Pois não, milady. Entregaremos o colar na Whitehaven House.
- Vou levá-lo agora. Quero usá-lo esta noite. O gerente fitou-a com uma expressão aflita.
- Deixa-me numa situação embaraçosa, milady.
- Mas do que está falando? Mande logo embrulhar!
- Lamento, mas não posso liberar a jóia antes que o pagamento tenha sido efetuado.
- Não seja ridículo! Sabe quem eu sou?
- ... mas os jornais dizem que o banco fechou.
- Isto é um insulto!
- Sinto muito.
Augusta levantou-se e pegou o colar.
- Eu me recuso a escutar esses absurdos. Levarei o colar agora. Suando muito, o gerente colocou-se entre ela e a porta.
- Suplico que não faça isso, milady.
Ela se adiantou, mas o homem se manteve firme.
- Saia da minha frente!
- Terei de mandar trancar a porta da joalheria e chamar a polícia.
Augusta compreendeu que o homem podia estar balbuciando de terror, mas não cedera um milímetro. Tinha medo dela, mas sentia um medo ainda maior de perder um colar de diamantes no valor de nove mil libras. Ela concluiu que estava derrotada. Furiosa, jogou o colar no chão. O homem recolheu-o sem qualquer tentativa de dignidade.
Augusta abriu a porta, atravessou a loja e saiu para sua carruagem que a esperava.
Mantinha a cabeça erguida, mas sentia-se mortificada. O homem praticamente a acusara de roubo. Uma vozinha no fundo de sua mente dizia que fora mesmo um roubo o que tentara fazer, mas tratou de reprimi-la. Voltou para casa dominada pela raiva.
Ao entrar, Hastead tentou detê-la, mas Augusta não tinha cabeça para trivialidades domésticas naquele momento e silenciou-o, ordenando:
- Leve-me um copo de leite quente.
Ela sentia dor no estômago. Foi para seu quarto. Sentou à penteadeira e abriu sua caixa de jóias. Havia bem pouco ali. Valia no máximo umas poucas centenas de libras.
Augusta removeu a bandeja do fundo, tirou um pedaço de seda dobrado e abriu-o para revelar o anel de ouro em formato de serpente que Strang lhe dera. Como sempre, enfiou-o no dedo e esfregou a cabeça da serpente contra os lábios. Nunca venderia aquele anel. Como tudo teria sido diferente se lhe permitissem casar com Strang...
Por um momento, ela sentiu vontade de chorar.
Foi então que ouviu vozes estranhas além da porta do quarto. Um homem... talvez dois homens... e uma mulher. Não pareciam criados, e além do mais os criados jamais teriam a ousadia de conversar no patamar. Ela deixou seu quarto.
A porta do quarto de seu falecido marido estava aberta e as vozes vinham de lá. Ao chegar à porta, Augusta deparou com um jovem, obviamente um empregado subalterno, e um casal mais velho, bem-vestido, da classe superior.
- Mas quem são vocês? - perguntou ela.
O jovem respondeu:
- Sou Stoddart, dos agentes, milady. Mr. e Mrs. De Graaf estão muito interessados em comprar sua linda casa...
- Saiam daqui!
A voz do jovem reduziu-se a um ganido:
- Mas recebemos instruções para oferecer a casa no mercado...
- Eu mandei saírem! Minha casa não está à venda!
- Mas falei pessoalmente...
Mr. De Graaf tocou no braço de Stoddart, silenciando-o.
- Um equívoco embaraçoso, com toda a certeza, Mr. Stoddart - disse ele, suavemente. Virou-se para a esposa. - Vamos embora, minha cara?
Os dois se retiraram com uma tranqüila dignidade, que deixou Augusta fervendo de raiva; Stoddait foi atras, desmanchando-se em desculpas.
Hugh era o responsável. Augusta nem precisava indagar para saber disso. A casa era propriedade da associação que salvara o banco, dissera ele, e é claro que desejavam vendê-la. Hugh aconselhara Augusta a se mudar, mas ela recusara. A reação dele fora a de enviar compradores em potencial para visitar a casa assim mesmo. Ela sentou na cadeira de Joseph. O mordomo entrou com o leite quente.
- Não deve mais deixar essas pessoas entrarem, Hastead... a casa não está à venda.
- Certo, milady.
Ele pôs a bandeja numa mesa; hesitou.
- Mais alguma coisa? - perguntou Augusta.
- O açougueiro veio aqui hoje para tratar da conta, milady.
- Diga a ele que será pago de acordo com a conveniência de lady Whitehaven, não da sua.
- Certo, milady. E os dois lacaios foram embora hoje.
- Quer dizer que eles apresentaram um aviso prévio?
- Não. Apenas foram embora.
- Desgraçados!
- Milady, os outros empregados querem saber quando receberão seus salários.
- Mais alguma coisa? Hastead estava aturdido.
- Mas o que direi a eles?
- Diga que não respondi à sua pergunta!
- Está bem. - Ele tornou a hesitar. - Desejo comunicar que Vou embora no final da semana.
- Por quê?
- Todos os outros Pilasters dispensaram seus empregados. Mr. Hugh nos disse que receberíamos até a última sexta-feira, não mais do que isso, independente do tempo que continuássemos no serviço.
- Suma da minha vista, seu traidor!
- Pois não, milady.
Augusta disse a si mesma que ficaria contente por nunca mais ver Hastead. Era melhor se livrar de todos eles, ratos abandonando o navio que naufragava.
Ela tomou um gole do leite, mas a dor no estômago não diminuiu. Correu os olhos pelo quarto. Joseph nunca a deixara redecorá-lo, e por isso continuava no estilo que ela escolhera em 1873, o mesmo papel de parede, cortinas de brocado e a coleção de caixinhas de rapé cravejadas de pedras preciosas, num mostruário laqueado.
O quarto parecia morto, como Joseph. Ela desejou poder trazê-lo de volta. Nada daquilo estaria acontecendo se ele continuasse vivo. Teve uma visão momentânea de Joseph parado ao lado da janela, segurando uma de suas caixinhas de rapé prediletas, virando-a para um lado para outro a fim de admirar o jogo de luz nas pedras preciosas. Sentiu uma estranha sensação de sufoco na garganta e sacudiu a cabeça para dissipar a visão.
Muito em breve Mr. De Graaf ou outro como ele se instalaria naquele quarto. E com toda a certeza removeria o papel de parede e as cortinas, e faria uma nova decoração, provavelmente no estilo em voga, com painéis de carvalho e cadeiras rústicas.
Ela teria de sair da casa. Já aceitara isso, embora fingisse o contrário. Mas não se mudaria para uma casa moderna e apertada, em St. John"s Wood ou Clapham, como Madeleine e Clementine. Não suportaria viver em condições modestas em Londres, onde poderia ser vista por pessoas que outrora desdenhara. Preferia deixar o país.
Ainda não sabia direito para onde ir. Calais era uma cidade de vida barata, mas muito perto de Londres. Paris era elegante, mas sentia-se velha demais para iniciar uma nova vida social numa cidade estranha. Ouvira pessoas falarem de um lugar chamado Nice, na costa mediterrânea da França, onde se podia ter uma casa grande e vários criados por uma bagatela, e havia uma comunidade de estrangeiros, muitos de sua idade, desfrutando os invernos amenos e o ar marinho.
Mas não poderia viver do nada. Precisava de dinheiro suficiente para o aluguel e os salários dos criados; e embora estivesse disposta a levar uma vida frugal, não poderia dispensar uma carruagem. Só que dispunha de muito pouco dinheiro, não mais do que cinqüenta libras. Daí a sua tentativa desesperada de comprar os diamantes.
Nove mil libras não eram muita coisa, mas talvez fossem suficientes para sustentá-la por alguns anos.
Ela sabia que punha em risco os planos de Hugh. Edward tinha razão nesse ponto. A boa vontade da associação de banqueiros dependia da seriedade da família no empenho de pagar as dívidas. Uma pessoa da família fugindo para o Continente com a bagagem cheia de jóias era o tipo de coisa que podia liquidar uma frágil coalizão. De certa forma, isso tornava a perspectiva ainda mais atraente: ficaria feliz em destruir o hipócrita do Hugh.
Mas precisava ter uma base. O resto seria fácil: arrumaria tudo num único baú, iria ao escritório da companhia de navegação para reservar a passagem, chamaria umfíacre pela manhã e seguiria para a estação ferroviária sem avisar a ninguém. Mas o que poderia converter em dinheiro?
Tornando a correr os olhos pelo quarto do marido, ela notou um caderninho de anotações. Abriu-o, com uma vaga curiosidade, e notou que alguém - devia ter sido Stoddart, o funcionário dos agentes imobiliários - fizera um inventário do que havia na casa. Enfureceu-a ver seus bens relacionados no caderninho de um empregado subalterno
e avaliados por alto: mesa de jantar, 9 libras; biombo egípcio, 30 xelins; retrato de uma mulher por Joshua Reynolds, 110 libras. Os quadros na casa deviam valer
alguns milhares de libras, mas não havia como levá-los num baú. Ela virou a página e leu: 65 caixas de rapé- consultar departamento de jóias. Levantou os olhos.
Ali, na sua frente, no mostruário que comprara há 17 anos, encontrava-se a solução para seu problema. A coleção de caixas de rapé de Joseph valia milhares de libras, talvez até cem mil. Poderia esconder as caixas na bagagem com a maior facilidade, pois eram pequenas, feitas para caber no bolso do colete de um homem. Não teria dificuldade para vendê-las, uma a uma, à medida que precisasse do dinheiro.
Seu coração bateu mais depressa. Podia ser a resposta para suas preces.
Estendeu a mão para abrir o mostruário. Estava trancado.
Augusta ficou em pânico. Não sabia se conseguiria arrombá-lo: a madeira era grossa, os painéis de vidro pequenos e espessos.
Tratou de se acalmar. Onde Joseph costumava guardar a chave? Devia ser na gaveta de sua escrivaninha. Ela foi até lá e abriu a gaveta. Havia um livro ali, com o
título horrível de A duquesa de Sodoma, que ela empurrou para o fundo, e uma pequena chave prateada. Pegou a chave.
com a mão trêmula, tentou inseri-la na fechadura do mostruário. Ao virar, ouviu um estalido e a porta se abriu no instante seguinte.
Respirou fundo, esperou até que as mãos parassem de tremer.
E depois começou a retirar as caixinhas das prateleiras.
Dezembro
A quebra do Pilasters fora o escândalo do ano na sociedade. Os jornais sensacionalistas noticiavam cada fato com o maior estardalhaço: a venda das grandes mansões em Kensington; os leilões dos quadros, móveis antigos e caixas de vinho do Porto; o cancelamento da planejada lua-de-mel de seis meses de Nick e Dotty na Europa; e as modestas casas suburbanas em que os orgulhosos e poderosos Pilasters agora descascavam as batatas que iam comer e lavavam suas roupas de baixo.
Hugh e Nora alugaram uma casa pequena com um jardim em Chingford, uma aldeia a 15 quilômetros de Londres. Desfizeram-se de todos os seus criados, mas uma musculosa moça de 14 anos vinha às tardes para limpar o chão e lavar as janelas. Nora, que há 12 anos não fazia qualquer trabalho doméstico, submeteu-se à mudança contrafeita; arrastava-se de um lado para outro num avental imundo, varrendo o chão sem muito ânimo, preparando refeições intragáveis e sempre se queixando. Os meninos gostavam mais da aldeia do que de Londres porque podiam brincar no bosque. Hugh viajava de trem para a City todos os dias e continuava a ir ao banco, onde seu trabalho consistia na liquidação do patrimônio dos Pilasters por conta da associação de banqueiros.
Cada sócio recebia uma pequena quantia mensal do banco. Em teoria, não tinham direito a nada. Mas os membros da associação eram banqueiros como os Pilasters e pensavam, no fundo de suas mentes; Eu poderia me encontrar nessa situação, se não fosse pela graça de Deus. Além do mais, a cooperação dos sócios era importante na liquidação do patrimônio, e valia um pequeno pagamento para contar com sua boa vontade.
Hugh acompanhava o andamento da guerra civil em Córdoba com o coração ansioso. O resultado determinaria quanto dinheiro a associação perderia. Hugh queria muito que obtivessem lucro. Queria que um dia pudesse dizer que ninguém perdera dinheiro ao salvar o Pilasters Bank. Mas a possibilidade parecia remota.
A princípio, a facção dos Mirandas dava a impressão de estar na iminência de ganhar a guerra. Pelos relatos, seu ataque fora bem planejado e desfechado com a maior brutalidade. O presidente Garcia fora obrigado a fugir da capital, e se refugiara na cidade fortificada de Campanário, no Sul, sua região natal. Hugh andava desanimado.
Se os Mirandas vencessem, dirigiriam Córdoba como um reino particular e nunca pagariam os juros por empréstimos contraídos pelo regime anterior; e os títulos de Córdoba continuariam a não ter qualquer valor por todo o futuro previsível.
Mas depois ocorreu um desenvolvimento inesperado. A família de Tonio, os Silvas, que por alguns anos fora a base da pequena e ineficaz oposição liberal, entrara na guerra ao lado do presidente em troca de promessas de eleições livres e reforma agrária quando Garcia recuperasse o controle do país. As esperanças de Hugh tornaram a aumentar.
O exército presidencial revitalizado conquistara um grande apoio popular e conseguira deter os usurpadores. Havia agora um equilíbrio de forças. O mesmo acontecia com os recursos financeiros. Os Mirandas haviam gasto seu tesouro de guerra na violenta ofensiva inicial. O Norte tinha as minas de nitrato, o Sul tinha a prata, mas nenhum dos lados podia obter financiamento ou seguro para suas exportações, já que o Pilasters não mais operava e nenhum outro banco aceitaria um cliente que poderia desaparecer no dia seguinte.
Ambos os lados apelaram ao governo britânico por reconhecimento, na esperança de que isso os ajudaria a conseguir uma linha de crédito. Micky Miranda, ainda oficialmente o embaixador cordovês em Londres, assediava as autoridades do Ministério do Exterior, os altos escalões do governo e membros do Parlamento, pressionando para que Papa Miranda fosse reconhecido como o novo presidente. Até agora, porém, o primeiro-ministro, lorde Salisbury, recusara-se a favorecer qualquer dos lados. E foi então que Tonio Silva voltou a Londres.
Ele apareceu na casa suburbana de Hugh na véspera do Natal. Hugh estava na cozinha, servindo leite quente e torrada com manteiga aos meninos enquanto Nora se vestia, pois iria a Londres para fazer suas compras de Natal, embora dispusesse de bem pouco dinheiro para gastar. Hugh concordara em ficar em casa, cuidando dos meninos: não tinha nenhum trabalho urgente para fazer no banco naquele dia.
Ele atendeu pessoalmente à campainha da porta, uma experiência que o lembrou dos velhos tempos com a mãe, em Folkestone. Tonio deixara crescer o bigode e a barba, sem dúvida para esconder as cicatrizes da surra que recebera dos sicários contratados por Micky há 12 anos; mas Hugh reconheceu no mesmo instante os cabelos ruivos e o sorriso espontâneo. Estava nevando, e havia uma camada branca no chapéu e ombros de Tonio. Hugh levou seu velho amigo para a cozinha.
- Como me descobriu?
- Não foi fácil - respondeu Tonio. - Não havia ninguém em sua antiga casa e o banco estava fechado. Mas fui à Whitehaven House e falei com sua Tia Augusta. Ela não mudou. Não sabia o seu endereço, mas se lembrou de Chingford. Pela maneira como falou, parecia um campo de prisioneiros, como a Terra de Van Diemen.
Hugh balançou a cabeça.
- Não é tão ruim assim; os meninos até que gostam. É um pouco duro para Nora.
- Augusta não deixou a casa.
- Sei disso. Ela é mais culpada do que qualquer outra pessoa pela nossa situação crítica, mas é a única que ainda se recusa a aceitar a realidade. Vai descobrir
que há lugares piores do que Chingford.
- Córdoba, por exemplo - disse Tonio.
- Como estão as coisas por lá?
- Meu irmão morreu em combate.
- Sinto muito.
- A guerra chegou a um impasse. Tudo depende agora do governo britânico. O lado que conseguir o reconhecimento poderá obter crédito, reabastecer seu exército e esmagar a oposição. É por isso que estou aqui.
- Foi enviado pelo presidente Garcia?
- Melhor do que isso. Sou agora, oficialmente, o embaixador cordovês em Londres. Miranda foi afastado do cargo.
- Esplêndido!
Hugh sentia-se satisfeito por Micky ter sido finalmente demitido. Irritava-o ver um homem que lhe roubara dois milhões de libras circulando por Londres, freqüentando
clubes, teatros e jantares como se nada tivesse acontecido. Tonio acrescentou:
- Trouxe cartas de credenciamento e as apresentei ontem no Ministério do Exterior.
- E espera persuadir o primeiro-ministro a apoiar o seu lado.
- Isso mesmo.
Hugh fitou-o com uma expressão irônica.
- Como?
- Garcia é o presidente... a Inglaterra deve apoiar o governo legítimo. Era um argumento pouco incisivo, pensou Hugh.
- Não o fizemos até agora.
- Direi ao primeiro-ministro que devem fazer isso.
- Lorde Salisbury anda muito ocupado tentando manter fechado o caldeirão fervendo na Irlanda... não tem tempo para uma distante guerra civil sul-americana.
Hugh não tencionava parecer negativo, mas uma idéia começava a aflorar em sua cabeça. Tonio comentou, irritado:
- Meu trabalho é persuadir Salisbury de que deve dispensar alguma atenção ao que acontece na América do Sul, mesmo que tenha outros problemas a preocupá-lo.
Mas até ele podia perceber a fraqueza dessa posição, e tratou de perguntar depois de um momento:
- Você é inglês, Hugh. O que acha que atrairia a atenção do primeiro-ministro?
Hugh respondeu sem hesitação:
- Pode prometer que protegerão os investidores britânicos de prejuízos.
- Como?
- Ainda não sei direito, estou apenas pensando em voz alta. Hugh mudou de posição na cadeira. Sol, com quatro anos, construía um castelo de blocos de madeira em torno de seus pés. Era muito estranho estar decidindo o futuro de todo um país ali, na cozinha pequena de uma despretensiosa casa suburbana.
- Investidores britânicos aplicaram dois milhões de libras na companhia Docas de Santamaria... o Pilasters Bank foi o maior contribuinte. Todos os diretores da companhia eram membros ou associados da família Miranda, e não tenho a menor dúvida de que todo o dinheiro foi direto para seu tesouro de guerra. Precisamos recuperá-lo.
- Mas já foi tudo gasto com armas!
- Mas a família Miranda deve ter um patrimônio que vale milhões.
- É verdade... possui as minas de nitrato do país.
- Se o seu lado vencesse a guerra, o presidente Garcia poderia entregar as minas à Companhia Docas de Santamaria como compensação pela fraude? Os títulos passariam a valer alguma coisa assim.
- O presidente me disse que posso prometer qualquer coisa... absolutamente qualquer coisa... que atraia os britânicos para o lado das forças do governo em Córdoba.
Hugh começou a se sentir excitado. A perspectiva de pagar todas as dívidas do Pilasters parecia de repente mais próxima.
- Deixe-me pensar... Devemos preparar o terreno antes que você faça o contato. Creio que posso persuadir o velho Ben Greenboume a falar com lorde Salisbury, dizendo-lhe que deve apoiar o investidor britânico. E como reagiria a oposição no Parlamento? Podemos conversar com Dan Robinson, o irmão de Maisie... ele é membro do Parlamento, e obcecado pela quebra de bancos. Aprova o meu esquema de salvação do Pilasters, e quer que dê certo. Pode nos garantir o apoio da oposição na Câmara dos Comuns.
- Hugh tamborilou com os dedos sobre a mesa da cozinha. -Já começa a parecer possível!
- Temos de agir depressa.
- Iremos para a cidade imediatamente. Dan Robinson mora com Maisie, na zona sul de Londres. Greenbourne deve estar em sua casa de campo, mas posso lhe telefonar do banco. - Hugh levantou-se. - Vou avisar Nora.
Ele tomou cuidado para não derrubar o castelo de Sol com os pés e deixou a cozinha. Encontrou Nora no quarto, pondo um chapéu todo elaborado com forro de pele.
- Tenho de ir a Londres - anunciou Hugh, pondo o colarinho e gravata.
- E quem vai tomar conta dos meninos?
- Você, eu espero.
- Não! - protestou Nora, a voz estridente. - Eu Vou fazer compras!
- Lamento, Nora, mas é muito importante.
- Eu também sou importante!
- Claro que é, mas não posso fazer o que você deseja agora. Preciso conversar o mais depressa possível com Ben Greenbourne.
- Estou cansada de tudo isto! Cansada desta casa, cansada desta aldeia insuportável, cansada das crianças e cansada de você! Meu pai vive melhor do que nós! - O pai de Nora abrira um pub, com um empréstimo do Pilasters Bank, e estava indo muito bem. - Prefiro ir morar com ele e trabalhar no bar! Seria mais divertido, e eu ainda receberia um pagamento pelo trabalho!
Hugh fitou-a, aturdido. Compreendeu subitamente que nunca mais partilharia a cama da esposa. Nora o odiava, e ele a desprezava.
- Tire o chapéu, Nora. Você não vai fazer compras hoje.
Hugh vestiu o casaco e saiu do quarto. Tonio esperava, impaciente, no vestíbulo. Hugh beijou os meninos, pegou seu chapéu e sobretudo e abriu a porta.
- Há um trem dentro de poucos minutos - informou ele ao saírem.
Ele pôs o chapéu na cabeça e vestiu o sobretudo enquanto atravessavam o pequeno jardim e passavam pelo portão. Continuava a nevar, e havia uma camada espessa sobre a relva. Havia mais 20 ou 30 casas iguais à de Hugh, construídas no que fora outrora uma plantação de rabanetes. Foram andando por um caminho de cascalho na direção da aldeia.
- Falaremos com Robinson primeiro - disse Hugh, planejando o esquema de ação. - Depois, poderei comunicar a Greenbourne que a oposição já está do nosso lado... Escute!
- O quê?
- É o nosso trem. Temos de nos apressar.
Aceleraram os passos. Por sorte, a estação ficava no lado mais próximo da aldeia. O trem apareceu no momento em que atravessavam uma passarela sobre a linha.
Um homem se debruçava no parapeito, observando o trem. Virou-se no momento em que eles passaram, e Hugh reconheceu-o: era Micky Miranda.
E tinha um revólver na mão.
Depois disso, tudo aconteceu muito depressa.
Hugh berrou, mas seu grito foi um sussurro em comparação com o ruído do trem. Micky apontou a arma para Tonio e disparou à queima-roupa. Tonio cambaleou e caiu.
Micky virou a arma para Hugh... mas nesse instante o vapor e a fumaça da locomotiva passaram pela passarela numa densa nuvem, e os dois ficaram ofuscados. Hugh jogou-se no chão, coberto de neve. Ouviu a arma disparar de novo, duas vezes, mas nada sentiu. Rolou para o lado e ficou de joelhos, tentando divisar alguma coisa através da nuvem.
A fumaça começou a se dissipar. Hugh vislumbrou um vulto e jogouse em sua direção. Micky viu-o e se virou, mas tarde demais; Hugh chocou-se contra ele antes que pudesse atirar. Micky caiu, a arma escapuliu de sua mão, voou por cima do parapeito e foi parar na linha do trem, lá embaixo. Hugh tombou por cima de Micky, e rolou para o lado.
Ambos se levantaram com bastante dificuldade. Micky inclinou-se para pegar sua bengala. Hugh tornou a avançar; derrubou-o outra vez, mas Micky não largou a bengala.
Quando ele se levantou, Hugh atacou-o mais uma vez. Só que Hugh não brigava com ninguém há 20 anos, e errou o soco. Micky levantou a bengala e acertou-a em sua cabeça.
O golpe doeu. Micky bateu de novo. O segundo golpe enfureceu Hugh, que soltou um urro de raiva; avançou para Micky e deu uma cabeçada em seu rosto. Ambos cambalearam para trás, ofegantes.
Foi nesse instante que soou um apito na estação, indicando que o trem estava prestes a partir. O pânico estampou-se no rosto de Micky. Hugh concluiu que Micky planejara escapar naquele trem e não podia permanecer em Chingford por mais uma hora, tão perto do local de seu crime. O palpite era certo: Micky virou-se e saiu correndo para a estação. Hugh partiu em seu encalço.
Micky não era um corredor, tendo consumido noites demais bebendo em bordéis; mas Hugh passara sua vida adulta sentado atrás de uma escrivaninha, e não se encontrava em muito melhor forma. Micky entrou correndo na estação no momento em que o trem começava a andar. Hugh seguiu-o, respirando com dificuldade. Ao avançarem para a plataforma, um ferroviário gritou:
- Ei, onde estão suas passagens? À guisa de resposta, Hugh berrou:
- Assassino!
Micky disparou pela plataforma, tentando alcançar a traseira do trem. Hugh foi atrás, fazendo um esforço para ignorar a pontada de dor no flanco. O ferroviário aderiu à perseguição. Micky alcançou o trem, segurou uma alça e pulou para o degrau. Hugh saltou, segurou seu tornozelo, mas teve de largá-lo. O ferroviário tropeçou em Hugh e caiu no chão.
Quando Hugh se levantou, o trem já estava fora de alcance. Ficou olhando, desesperado. Viu Micky abrir a porta do vagão e cruzá-la cauteloso, tornando a fechá-la.
O ferroviário também se levantou, removendo a neve da roupa.
- Mas, afinal, o que aconteceu?
Hugh dobrou-se, respirando como um fole cheio de buracos, fraco demais para falar.
- Um homem foi baleado - informou ele assim que recuperou o fôlego.
Ele foi para a entrada da estação, fazendo sinal para o ferroviário segui-lo. Levou-o para a passarela em que Tonio ficara. Hugh ajoelhou-se ao lado do corpo. Tonio
fora atingido entre os olhos, e não restava muita coisa de seu rosto.
- Por Deus, que coisa terrível! - murmurou o ferroviário.
Hugh engoliu em seco, reprimindo a náusea. Forçou a enfiar a mão por baixo do capote de Tonio e sentir o coração. Como já esperava, não havia pulsação. Recordou o menino travesso com quem costumava nadar no poço em Bishop's Wood há 24 anos e sentiu uma onda de tristeza, que o levou à beira das lágrimas.
A cabeça de Hugh começava a desanuviar, e ele pôde perceber, com uma lucidez angustiante, como Micky planejara tudo. Micky tinha amigos no Ministério do Exterior, como todos os diplomatas competentes. Um desses amigos devia tê-lo informado, talvez numa recepção ou num jantar na noite anterior, que Tonio se encontrava em Londres.
Tonio já apresentara suas credenciais, e por isso Micky sabia que seus dias estavam contados. Mas se Tonio morresse, a situação voltaria a ficar confusa. Não haveria ninguém em Londres para negociar por conta do presidente Garcia, e Micky seria o embaixador de facto. Era a única esperança de Micky. Mas ele tinha de agir depressa e correr riscos, pois só lhe restava um dia, no máximo dois.
Como Micky soubera onde encontrar Tonio? Talvez mandara pessoas o seguirem... ou talvez Augusta o avisara que Tonio a procurara, perguntando onde encontrar Hugh.
Seja como for, ele acompanhara Tonio até Chingford.
Procurar a casa de Hugh implicaria falar com pessoas demais. Mas ele sabia que Tonio voltaria à estação ferroviária, mais cedo ou mais tarde. Assim, permanecera à espreita perto da estação, planejando matar Tonio - e qualquer testemunha do crime - e escapar de trem.
Micky era um homem em desespero, e seu plano muito arriscado... mas quase dera certo. Precisaria matar Hugh também, além de Tonio, mas a fumaça da locomotiva prejudicara sua mira. Se tudo corresse de acordo com o plano, ninguém o teria reconhecido. Chingford não tinha telégrafo nem telefone, e não havia meio de transporte mais rápido do que o trem; com isso ele voltaria a Londres antes que o crime pudesse ser comunicado. E, com toda a certeza, um de seus empregados lhe providenciaria um álibi.
Mas ele não conseguira matar Hugh. E - Hugh compreendeu de repente - tecnicamente Micky não era mais o embaixador cordovês; perdera sua imunidade diplomática.
Podia ser enforcado pelo que fizera.
Hugh levantou-se.
- Devemos comunicar o crime o mais depressa possível.
- Há uma delegacia de polícia em Walthamstow, a poucas estações daqui.
- Quando passa o próximo trem?
O homem tirou um relógio grande do bolso do colete.
- Daqui a 47 minutos.
- Devemos embarcar nele. Você vai à delegacia em Walthamstow e eu irei a Londres para comunicar à Scotland Yard.
- Não há ninguém para cuidar da estação. Sou o único de serviço, já que é a véspera do Natal.
- Tenho certeza de que o chefe vai querer que cumpra seu dever público.
- Tem razão - respondeu o ferroviário, agradecido por alguém lhe determinar o que fazer.
- É melhor levarmos o pobre Silva daqui. Há algum lugar na estação em que possamos deixar o corpo?
- Só a sala de espera.
- Então vamos carregá-lo até lá e trancá-la. - Hugh inclinou-se, pegou o corpo pelos braços. -Você segura as pernas.
Levaram Tonio para a estação e estenderam-no num banco na sala de espera. Depois, não sabiam direito o que fazer. Hugh sentia-se irrequieto. Não podia se lamentar... era cedo demais. Queria primeiro pegar o assassino. Ficou andando de um lado para outro, consultando seu relógio a intervalos de poucos minutos e esfregando a área dolorida na cabeça em que a bengala de Micky o acertara. O ferroviário sentou no banco em frente, olhando para o cadáver com um fascínio assustado. Depois de algum tempo, Hugh sentou ao seu lado. Assim permaneceram, calados, olhando, partilhando a sala fria com o cadáver até que o trem seguinte entrou na estação.
Micky Miranda fugia por sua vida.
Sua sorte se esgotava. Cometera quatro assassinatos nos últimos 24 anos e escapara impune dos três primeiros, mas desta vez fora diferente. Hugh Pilaster o vira. atirar em Tonio Silva em plena luz do dia, e não havia jeito de escapar ao carrasco, a não ser deixando a Inglaterra.
E de repente ele se tornara um fugitivo na cidade que fora o seu lar durante a maior parte de sua vida. Atravessou apressado a estação da Liverpool Street, evitando os olhos dos guardas - o coração disparado, a respiração saindo em ofegos curtos, - e embarcou num fiacre de aluguel.
Seguiu direto para o escritório da Companhia de Navegação da Costa do Ouro e do México.
O lugar estava apinhado, e quase todos eram latinos. Alguns tentavam voltar a Córdoba, outros trazer parentes de lá, e havia até quem estivesse apenas atrás de notícias.
Havia a maior confusão, uma completa desorganização. Micky não podia esperar que a gentalha fosse atendida na sua frente. Abriu caminho até o balcão, usando a bengala em homens e mulheres, indiscriminadamente. As roupas elegantes e a arrogância da classe superior atraíram a atenção de um funcionário, a quem ele disse:
- Quero reservar uma passagem para Córdoba.
- Há uma guerra em Córdoba. Micky suprimiu uma resposta sarcástica.
- Mas presumo que vocês não suspenderam todas as viagens.
- Estamos vendendo passagens para o Peru. O navio continuará até Palma se as condições políticas permitirem: a decisão só será tomada quando chegar ao Peru.
Serviria. Antes de mais nada, Micky precisava sair da Inglaterra.
- Quando é a próxima saída?
- Daqui a quatro semanas. Ele sentiu um frio no coração.
- Não dá! Tenho de partir antes disso!
- Há um navio que zarpa de Southampton esta noite, se tem tanta pressa.
- Graças a Deus! - Sua sorte ainda não se esgotara por completo. - Reserve-me um camarote... o melhor que tiver.
- Pois não, senhor. Pode me dar seu nome?
- Miranda.
- Como, senhor?
Os ingleses se tornavam surdos quando um nome estrangeiro era pronunciado. Micky já ia soletrar seu nome quando mudou de idéia.
- Andrews - disse ele. - M.R. Andrews.
Ocorrera-lhe que a polícia poderia verificar as listas de passageiros, procurando pelo nome Miranda. Agora, não o descobririam. Sentia-se grato pelo insano liberalismo das leis britânicas, que permitiam que as pessoas entrassem e saíssem do país sem passaportes. Não seria tão fácil em Córdoba.
O funcionário começou a preparar a passagem. Micky ficou observando, apreensivo, massageando o ponto dolorido do rosto em que Hugh Pilaster o atingira com uma cabeçada.
Compreendeu que tinha outro problema. A Scotland Yard poderia enviar sua descrição a todos os portos pelo telégrafo. Em apenas uma hora, haveria policiais locais verificando todos os passageiros. Precisava de alguma espécie de disfarce.
O funcionário lhe entregou a passagem e ele pagou em dinheiro. Tornou a abrir caminho pela multidão e saiu para a neve, ainda preocupado.
Pegou um fiacre, mandando o cocheiro seguir para a embaixada cordovesa, mas depois mudou de idéia. Era arriscado voltar lá, e de qualquer forma dispunha de bem pouco tempo.
A polícia procuraria por um homem bem-vestido, em torno dos 40 anos, viajando sozinho. Um jeito de despistá-la era se apresentar como um homem mais velho, acompanhado.
Podia até se fingir de inválido e ser levado para bordo numa cadeira de rodas. Para isso, no entanto, precisaria de um cúmplice. Quem poderia usar? Não tinha certeza de poder confiar em qualquer um dos seus subordinados, ainda mais agora que deixara de ser o embaixador. Portanto, só restava Edward.
- Siga para a Hill Street - ordenou ele ao cocheiro. Edward tinha uma pequena casa em Mayfair. Ao contrário dos outros Pilasters, já morava numa casa alugada, e não fora obrigado a se mudar porque pagara adiantado três meses de aluguel.
Edward parecia não ter se importado que Micky tivesse destruído o Pilasters Bank e provocado a ruína de sua família. Apenas se tornara ainda mais dependente de Micky.
Quanto ao resto dos Pilasters, Micky não os via desde que o banco quebrara.
Edward abriu a porta num chambre de seda todo manchado e levou Micky para o seu quarto, onde havia uma lareira. Fumava um charuto e bebia uísque, às onze horas da manhã. As erupções na pele haviam se espalhado por todo o rosto agora, e Micky quase abandonou a idéia de usálo como cúmplice, pois o rosto marcado atrairia muita atenção. Mas não havia tempo para ser exigente. Teria de se contentar com Edward.
- Estou deixando o país - anunciou Micky.
- Leve-me com você! - exclamou Edward, começando a chorar.
- Mas o que há com você? - indagou Micky, irritado.
- Estou morrendo. Vamos para algum lugar tranqüilo em que possamos viver juntos, em paz, até eu morrer.
- Você não está morrendo, seu idiota... apenas tem uma doença de pele.
- Não é uma doença de pele, mas sífilis. Micky escancarou a boca, horrorizado.
- Meu Deus, eu também posso estar!
- Não seria de admirar, de tanto tempo que passávamos no Nellie"s.
- Mas as mulheres de April são consideradas limpas!
- As prostitutas nunca são completamente limpas.
Micky fez um esforço para reprimir o pânico. Se permanecesse em Londres para consultar um médico, poderia morrer na extremidade de uma corda. Precisava deixar o país ainda hoje. Mas o navio fazia escala em Lisboa: poderia procurar um médico ali, dentro de poucos dias. Teria de se satisfazer
com isso. E talvez nem tivesse a doença: era muito mais saudável do que Edward, em termos gerais, e sempre se lavara depois do sexo, enquanto o amigo não era tão meticuloso.
Mas Edward não se encontrava em condições de ajudá-lo a fugir do país. Além do mais, Micky não tinha a menor intenção de levar para Córdoba um caso terminal de sífilis.
Ainda precisava de um cúmplice. E só restava uma pessoa a quem podia recorrer: Augusta.
Não tinha tanta certeza dela quanto tinha de Edward. Afinal, Edward sempre se mostrara disposto a fazer qualquer coisa que ele pedisse. Augusta era independente.
Mas ela era sua última chance.
Ele virou-se para sair.
- Não me deixe aqui! - suplicou Edward. Não havia tempo para sentimentalismo.
- Não posso levar comigo um homem agonizante.
O rosto de Edward assumiu uma expressão rancorosa.
- Se não me levar...
- O que vai fazer?
- Contarei à polícia que você matou Peter Middleton, Tio Seth e Solly Greenbourne.
Augusta devia ter lhe contado sobre o velho Seth. Micky contemplou Edward. Era uma figura patética. Como pude aturá-lo por tanto tempo? perguntou-se ele. E compreendeu que ficaria muito feliz em deixá-lo para trás.
- Pode contar. Já estão à minha procura por matar Tonio Silva, e a pena por um crime é a mesma que por quatro: a forca.
Micky saiu sem olhar para trás. Foi pegar um fiacre em Park Lane, e disse ao cocheiro:
- Kensington Gore. Whitehaven House.
No caminho, refletiu sobre sua saúde. Não tinha nenhum dos sintomas: nada de problemas de pele, nada de caroços inexplicáveis nos órgãos genitais. Mas teria de esperar para ter certeza. Maldito Edward!
Também se preocupou com Augusta. Não a via desde a quebra do banco. Ela o ajudaria? Sabia que Augusta sempre lutara para conter o desejo sexual que sentia por ele; e numa única e bizarra ocasião, até cedera à sua paixão. Naquele tempo, Micky também a desejava. Desde então, porém, o fogo de sua paixão arrefecera, mas tinha a impressão que o de Augusta se tornara ainda mais quente. Esperava que assim fosse, pois ia lhe pedir para fugir com ele.
A porta de Augusta não foi aberta pelo mordomo, mas sim por uma mulher desleixada, usando um avental. Passando pelo vestíbulo, Micky notou que o lugar não estava muito limpo. Era evidente que Augusta passava por dificuldades. Tanto melhor: isso a deixaria mais propensa a concordar com seu plano.
Mas ela exibia sua personalidade autoritária habitual ao entrar na sala de estar, usando uma blusa púrpura de seda e uma saia pregueada preta, justa na cintura.
Mais jovem, fora uma mulher de beleza espetacular, e ainda agora, aos 58 anos, podia fazer os homens virarem a cabeça para admirá-la. Micky recordou o desejo que sentira por ela quando era um menino de 16 anos, mas agora nada mais sentia. Teria de simular. Augusta não lhe estendeu a mão.
- Por que veio aqui? - perguntou ela, friamente. - Trouxe a ruína para mim e minha família.
- Não tive a intenção...
- Devia saber que seu pai estava prestes a iniciar uma guerra civil.
- Mas não sabia que os títulos cordoveses perderiam o valor por causa da guerra. Você sabia?
Ela hesitou. Era evidente que isso não lhe passara pela cabeça. Abrira-se uma fresta em sua armadura, e Micky tentou expandi-la.
- Não teria feito se soubesse... preferiria cortar minha própria garganta antes de lhe fazer qualquer mal.
Ele percebeu que Augusta queria acreditar nisso, mas ela disse:
-Você persuadiu Edward a enganar os sócios a fim de obter os dois milhões de libras.
- Pensei que houvesse tanto dinheiro no banco que não faria a menor diferença.
Augusta desviou os olhos, murmurando:
- Eu também.
Micky tratou de aproveitar a vantagem.
- Seja como for, tudo isso é irrelevante agora... deixarei a Inglaterra hoje, e é bem provável que nunca mais volte.
Ela fitou-o com um súbito temor nos olhos, e Micky compreendeu que já a dominara.
- Por quê?
Não havia tempo para rodeios.
- Acabo de matar um homem com um tiro, e a polícia está à minha procura.
Augusta soltou uma exclamação aturdida, pegando a mão dele.
- Quem?
- Antonio Suva.
Ela ficou excitada, além de chocada. O rosto ficou um pouco corado, os olhos brilhantes.
- Tonio! Mas por quê?
- Ele era uma ameaça para mim. Reservei passagem num vapor que parte de Southampton esta noite.
- Tão depressa?
- Não tenho opção.
- E veio se despedir - murmurou Augusta, baixando os olhos.
- Não.
Ela tornou a fitá-lo. Seria de esperança o brilho em seus olhos? Micky hesitou, mas logo arriscou-se:
- Quero que você venha comigo.
Os olhos de Augusta se arregalaram. Ela deu um passo para trás. Micky agarrou sua mão.
- Ter de partir... e tão depressa... me fez compreender uma coisa que já deveria ter admitido para mim mesmo há muito tempo. Acho que você sempre soube. Eu a amo, Augusta.
Enquanto representava seu papel, ele observava o rosto de Augusta, avaliando-o da maneira como um marujo interpreta a superfície do mar. Por um momento, ela tentou demonstrar espanto, mas só por um instante. Ofereceu o indício de um sorriso de satisfação, depois um rubor de embaraço, quase como uma donzela; e ao final um olhar calculista, de quem avaliava o que tinha a ganhar e perder.
Micky compreendeu que ela ainda estava indecisa.
Pôs a mão em sua cintura e puxou-a gentilmente. Augusta não resistiu, mas seu rosto ainda conservava a expressão avaliadora que dizia a Micky que não chegara a uma decisão. Quando seus rostos se encontravam próximos, e os seios de Augusta encostavam em suas lapelas, Micky disse:
- Não posso viver sem você, Augusta querida.
Sentiu-a tremer sob seu contato. com a voz trêmula, ela sussurrou:
- Tenho idade bastante para ser sua mãe.
Ele falou em seu ouvido, roçando o rosto com os lábios:
- Mas não é... Ao contrário, é a mulher mais desejável que já conheci. Ansiei por você durante todos esses anos, e sabe disso. Agora...
Micky subiu a mão da cintura até quase alcançar o seio.
- Agora, mal consigo manter as mãos sob controle. Augusta... Ele fez uma pausa.
- O que é?
Ele quase a tinha por completo, mas ainda faltava pouco. Tinha de jogar seu último trunfo.
- Agora que não sou mais embaixador, posso me divorciar de Rachel.
- O que está querendo dizer? Ele sussurrou em seu ouvido:
- Quer casar comigo?
- Quero.
E Micky beijou-a.
April Tilsley entrou na sala de Maisie no Hospital para Mulheres vestida com esmero, em seda escarlate e pele de raposa, com um jornal na mão, e foi logo dizendo:
-Já soube o que aconteceu?
Maisie levantou-se.
- April! O que houve?
- Micky Miranda atirou em Tonio Silva!
Maisie sabia quem era Micky, mas demorou um momento para recordar que Tonio fora um dos rapazes que andavam com Solly e Hugh quando eram jovens. Era um jogador naquele
tempo, lembrou ela, e April gostava dele até descobrir que perdia o pouco dinheiro que tinha em apostas.
- Micky atirou nele? - disse ela, aturdida. - E ele morreu?
- Morreu. Saiu no jornal da tarde.
- Mas por quê?
- O jornal não diz. Mas também informa... - April hesitou. - Sente-se, Maisie.
- Por quê? O que houve?
- O jornal diz que a polícia quer interrogá-lo sobre três outros crimes... de Peter Middleton, Seth Pilaster e... Solomon Greenbourne.
Maisie desabou na cadeira.
- Solly! - Sentiu que quase desfalecia. - Micky matou Solly? Oh, pobre Solly!
Ela fechou os olhos e baixou o rosto para as mãos.
- Você precisa de um gole de conhaque, Maisie. Onde guarda a garrafa?
- Não temos conhaque aqui. - Maisie fez um esforço para se controlar. - Mostre-me esse jornal.
April entregou-o.
Maisie leu o primeiro parágrafo. Dizia que a polícia procurava pelo ex-embaixador cordovês, Miguel Miranda, para interrogá-lo sobre o assassinato de Antônio Silva.
- Pobre Tonio... - murmurou April. - Foi um dos homens mais simpáticos para quem já abri as pernas.
Maisie continuou a ler. A polícia também queria interrogar Miranda sobre as mortes de Peter Middleton, na Windfield School, em 1866; de Seth Pilaster, o Sócio Sênior do Pilasters Bank, em 1873; e de Solomon Greenbourne, atropelado por uma carruagem a toda velocidade numa rua transversal de Piccadilly, em julho de 1879.
- Até Seth Pilaster... o Tio Seth de Hugh? - disse Maisie, muito nervosa. - Por que ele matou todas essas pessoas?
- Os jornais nunca explicam o que a gente quer realmente saber.
O terceiro parágrafo provocou outro abalo em Maisie. O crime ocorrera a nordeste de Londres, perto de Walthamstow, numa aldeia chamada Chingford. Seu coração parou.
- Chingford!
- Nunca ouvi falar...
- É onde Hugh vive!
- Hugh Pilaster? Ainda é apaixonada por ele?
- Não percebe que ele deve estar envolvido? Não pode ser mera coincidência! Oh, Deus, espero que nada tenha lhe acontecido!
- Acho que o jornal diria se ele estivesse ferido.
- Aconteceu há poucas horas, talvez ainda não saibam. - Maisie não podia suportar a incerteza. Levantou-se. -Tenho de descobrir se ele está bem.
- Como?
Ela pôs o chapéu, prendendo-o com um alfinete.
- Irei até sua casa.
- A esposa não vai gostar.
- Ela não passa de um paskudniak. April riu.
- O que é isso?
- Um saco de merda.
Maisie pôs o casaco. April também se levantou.
- Minha carruagem está lá fora. Eu a levarei até a estação.
Ao entrarem na carruagem de April, descobriram que nenhuma das duas sabia em que estação de Londres podia-se pegar um trem para Chingford. Por sorte, o cocheiro, que também era o porteiro do bordel Nellie"s, pôde informar que era a estação da Liverpool Street.
Ao chegarem ali, Maisie agradeceu apressada a April e entrou correndo na estação. Estava lotada de passageiros devido às festividades do Natal, pessoas que voltavam das compras para suas residências suburbanas. O ar estava impregnado de fumaça e poeira. Ouvia-se gritos de saudações e despedidas em meio ao ranger dos freios de aço e aos jatos explosivos das locomotivas a vapor. Maisie fez o maior esforço para abrir caminho até o guichê de passagens, através da multidão de mulheres com os braços cheios de pacotes, escriturários de chapéu-coco voltando mais cedo para casa, maquinistas e foguistas de cara preta, crianças, cavalos e cachorros.
Teve de esperar 15 minutos por um trem. Na plataforma, assistiu à dolorosa despedida entre dois jovens enamorados e invejou-os.
O trem passou pelas favelas de Bethnal Green, os subúrbios de Walthamstow e os campos cobertos de neve de Woodford, parando a intervalos de poucos minutos. Embora fosse duas vezes mais rápido do que uma carruagem puxada por cavalos, parecia lento a Maisie, enquanto roía as unhas, e se perguntava se Hugh estaria bem.
Ao desembarcar em Chingford foi detida pela polícia e convidada a entrar na sala de espera. Um detetive perguntou-lhe se estivera na localidade naquela manhã. Era evidente que procuravam por testemunhas do crime. Maisie explicou que nunca estivera em Chingford. Num súbito impulso, resolveu indagar:
- Mais alguém foi ferido além de Antônio Silva?
- Duas pessoas sofreram pequenos cortes e contusões no tumulto.
- Estou preocupada com um amigo meu que conhecia Mr. Silva. Seu nome é Hugh Pilaster.
- Mr. Pilaster atracou-se com o atacante e foi atingido na cabeça. Seus ferimentos não são graves.
- Graças a Deus! Pode me informar onde fica a sua casa? O detetive disse para onde ela devia ir e acrescentou:
- Mr. Pilaster esteve na Scotland Yard... não sei dizer se já voltou. Maisie se perguntou se não deveria voltar a Londres imediatamente, agora que sabia que Hugh estava bem. Evitaria um encontro com a terrível Nora. Mas se sentiria melhor se visse Hugh, e não tinha medo de Nora. Partiu para a casa indicada, andando por uma camada de neve de cinco ou seis centímetros.
Chingford contrastava brutalmente com Kensington, refletiu ela enquanto caminhava pela rua nova de casas baratas, com pequenos jardins na frente. Hugh se mostraria estóico com a queda de padrão, concluiu Maisie, mas não tinha a mesma certeza em relação a Nora. A infeliz casara com Hugh por dinheiro, e não devia estar gostando nada de voltar a ser pobre.
Ela ouviu uma criança chorando lá dentro quando bateu na porta da casa de Hugh. Foi aberta por um garoto de cerca de 11 anos.
- Você é Toby, não é mesmo? - disse Maisie. - Vim falar com seu pai. Sou Mrs. Greenbourne.
- Lamento, mas papai não está em casa.
- Quando ele deve voltar?
- Não sei.
Maisie ficou desolada. Aguardara com ansiedade a oportunidade de se encontrar com Hugh.
- Talvez possa dizer a seu pai que li a notícia no jornal e vim me certificar de que ele estava bem.
- Está certo. Direi a ele.
Não havia mais nada a falar. Ela podia voltar logo à estação e esperar pelo próximo trem para Londres. Virou-se, desapontada. Pelo menos escapara a uma altercação com Nora.
Alguma coisa no rosto do menino a perturbara: uma expressão quase de medo. Numa reação impulsiva, Maisie tornou a se virar e perguntou.
- Sua mãe está?
- Não. Ela saiu.
O que era muito estranho. Hugh não tinha mais condições de pagar uma governanta. Maisie teve o pressentimento de que havia algo errado.
- Posso falar com a pessoa que está tomando conta de vocês? O menino hesitou.
- Na verdade, não há mais ninguém em casa, só eu e meus irmãos.
A intuição de Maisie estava certa. O que teria acontecido? Como puderam deixar três meninos pequenos sozinhos em casa? Não queria interferir, sabendo que ouviria o diabo de Nora Pilaster. Por outro lado, também não podia ir embora e deixar os filhos de Hugh sozinhos.
- Sou uma velha amiga de seu pai... e de sua mãe.
- Eu a vi no casamento de Tia Dotty.
- Tem razão. Ah... posso entrar? Toby parecia aliviado.
- Por favor.
Maisie passou pela porta e seguiu o som do menino chorando até a cozinha, no fundo da casa. Havia um garoto de quatro anos sentado no chão, chorando, e outro de seis sentado à mesa da cozinha, dando a impressão de que também poderia começar a chorar a qualquer momento.
Ela pegou o menor no colo. Sabia que ele se chamava Solomon em homenagem a Solly Greenbourne, mas todos o tratavam por Sol.
- Calma, calma... - murmurou ela. - Qual é o problema?
- Quero mamãe! - gritou o menino, passando a chorar ainda mais alto.
- Calma, calma...
Maisie se pôs a embalá-lo. Sentiu a umidade penetrar em suas roupas e compreendeu que o menino urinara. Olhando ao redor, constatou que a cozinha se encontrava na maior confusão. A mesa se achava coberta por migalhas de pão e leite derramado, havia pratos sujos na pia e lama no chão. Também fazia frio: o fogo se extinguira.
Quase parecia que as crianças haviam sido abandonadas.
- O que está acontecendo por aqui? - perguntou ela a Toby.
- Dei alguma coisa para eles almoçarem. Passei manteiga no pão, cortei um pouco de presunto. Tentei fazer um chá, mas queimei a mão na chaleira. - Toby tentava se mostrar corajoso, mas era óbvio que também estava à beira das lágrimas. - Sabe onde meu pai foi?
- Não, não sei. - O caçula pedira a mãe, mas o mais velho perguntava pelo pai, notou Maisie. - E sua mãe?
Toby pegou um envelope no consolo da lareira e estendeu-o. Era endereçado apenas a Hugh.
- Não foi lacrado - disse Toby. - Eu li.
Maisie abriu o envelope, tirou uma única folha de papel. Continha uma única palavra, escrita em letras grandes, maiúsculas, furiosas:
ADEUS
Maisie ficou horrorizada. Como uma mãe podia abandonar três filhos pequenos... deixá-los entregues à própria sorte? Nora dera à luz cada um daqueles meninos, aconchegara-os contra o seio, como bebês desamparados. Maisie pensou nas mães no Hospital para Mulheres de Southwark. Se uma delas pudesse viver numa casa de três quartos em Chingford, haveria de pensar que alcançara o paraíso. Ela tratou de afastar tais pensamentos, pelo menos por enquanto.
- Seu pai voltará ainda esta noite, tenho certeza - declarou ela, rezando para que fosse verdade. Olhou para o menino de quatro anos em seu colo. - Mas não gostaríamos que ele encontrasse a casa nessa confusão, não é mesmo?
Sol balançou a cabeça, com uma expressão solene.
- Vamos lavar os pratos, limpar a cozinha, acender o fogo e preparar o jantar. - Ela fitou o menino de seis anos. - Acha que é uma boa idéia, Samuel?
O menino concordou com a cabeça.
- Eu gosto de torrada com manteiga - sugeriu ele, esperançoso.
- Pois então é o que teremos. Toby ainda não se sentia tranqüilo.
- A que horas acha que meu pai voltará para casa?
- Não sei - respondeu Maisie com franqueza. Não havia sentido em mentir: as crianças sempre sabiam. - Mas faremos uma coisa. Você pode ficar acordado até ele chegar, por mais tarde que seja. Combinado?
O menino ficou um pouco aliviado.
- Combinado.
- Muito bem. Toby, você é o mais forte, pode ir buscar um balde de carvão. Samuel, creio que posso confiar em você para fazer um trabalho direito: limpe a mesa da cozinha com um pano. Sol, você pode varrer o chão porque... porque é o menor, e fica mais perto do chão. Muito bem, meninos, vamos começar a trabalhar!
Hugh se impressionou pela maneira como a Scotland Yard reagiu a seu relato. O caso foi entregue ao inspetor-detetive Magridge, um homem de rosto afilado, mais ou menos da idade de Hugh, meticuloso e inteligente, do tipo que seria promovido a escriturário-chefe num banco. Em menos de uma hora, ele já distribuíra uma descrição de Micky Miranda e providenciara uma vigilância em todos os portos.
Também mandou um sargento-detetive entrevistar Edward Pilaster, por sugestão de Hugh; e o homem voltou com a informação de que Miranda pretendia deixar o país.
Edward dissera ainda que Micky estava implicado nas mortes de Peter Middleton, Seth Pilaster e Solomon Greenbourne. A sugestão de que Micky matara Tio Seth abalou Hugh, mas ele disse a Magridge que já desconfiava que Micky matara Peter e Solly.
O mesmo detetive foi procurar Augusta. Ela ainda morava na Whitehaven House. Sem dinheiro, não poderia resistir indefinidamente, mas até agora conseguira evitar a venda da casa e do que havia lá dentro.
Um guarda encarregado da verificação nos escritórios das companhias de navegação em Londres comunicou que um homem correspondendo à descrição, mas se apresentando como M.R. Andrews, adquirira uma passagem no Aztec, que zarparia de Southampton naquela noite. A polícia de Southampton foi instruída a postar seus homens na estação ferroviária e no cais.
O detetive que fora procurar Augusta voltou com a notícia de que ninguém atendera quando tocara a campainha e batera na porta da Whitehaven House.
- Tenho uma chave - informou Hugh. Magridge disse:
- É provável que ela simplesmente tenha saído... e quero que o sargento dê um pulo à embaixada cordovesa. Por que você mesmo não revista a Whitehaven House?
Contente por ter alguma coisa para fazer, Hugh pegou um fiacre até Kensington Gore. Tocou a campainha, bateu na porta, mas ninguém atendeu. Era evidente que o último criado já fora embora. Ele usou sua chave para entrar na casa.
Estava frio lá dentro. Esconder-se não era o estilo de Augusta, mas assim mesmo ele decidiu revistar todos os cômodos. Não havia ninguém no térreo. Ele subiu para o segundo andar, indo direto ao quarto de Augusta.
E se espantou com o que viu. As portas do guarda-roupa estavam entreabertas, as gavetas do cofre puxadas, havia roupas espalhadas pela cama e cadeiras. Era estranho, por Augusta ser uma pessoa meticulosa, com a mente ordenada A princípio, ele pensou que houvera um assalto. E, depois, outro pensamento lhe ocorreu.
Subiu dois lances de escada para os aposentos dos criados. Quando morara ali, há 17 anos, as malas e baús eram guardados num closet grande, conhecido como quarto da bagagem.
Encontrou a porta aberta. Havia algumas malas, mas nenhum baú de viagem.
Augusta fugira.
Ele se apressou em revistar todos os outros cômodos da casa. Como esperava, não havia ninguém ali Os aposentos dos criados e os quartos de hóspedes já começavam a adquirir a aparência mofada da falta de uso. Ao olhar no quarto que fora de seu Tio Joseph, ficou surpreso ao constatar que continuava como sempre fora, embora o resto da casa tivesse sido redecorado várias vezes. Já ia se retirar quando seus olhos se fixaram na estante que continha a valiosa coleção de caixinhas de rapé de Joseph.
Estava vazia.
Hugh franziu o cenho. Sabia que as caixas de rapé ainda não haviam sido entregues aos leiloeiros: até agora, Augusta conseguira evitar a remoção de qualquer coisa da casa.
Portanto, só podia significar uma coisa: ela levara as caixas de rapé ao fugir.
Valiam cem mil libras... e ela poderia viver confortavelmente com esse dinheiro pelo resto de sua vida.
Só que as caixas não lhe pertenciam. Eram propriedade da associação de banqueiros.
Hugh decidiu partir em seu encalço.
Desceu correndo a escada e saiu. Havia um ponto de fiacres na rua, a alguns metros de distância. Os cocheiros conversavam num grupo, batendo os pés para se manterem aquecidos. Hugh foi até lá e perguntou:
- Algum de vocês conduziu lady Whitehaven esta tarde?
- Dois de nós - respondeu um cocheiro. - Um só para a sua bagagem!
Os outros riram. A dedução de Hugh fora confirmada.
- Para onde a levaram?
- Estação de Waterloo, para pegar o trem costeiro da uma hora.
O trem costeiro ia para Southampton... por onde Micky pretendia deixar a Inglaterra. Os dois sempre haviam sido muito ligados. Micky sempre estivera nas boas graças de Augusta, beijando sua mão, adulando-a. Apesar da diferença de idade de 18 anos, formavam um belo casal.
- Mas eles perderam o trem - acrescentou o cocheiro.
- Eles? - repetiu Hugh. - Havia alguém com ela?
- Um velho numa cadeira de rodas.
Não era Micky, com toda a certeza. Quem seria então? Ninguém na família era bastante frágil para precisar de uma cadeira de rodas.
- Disse que eles perderam o trem. Sabe quando parte o próximo trem para Southampton?
- Às três horas.
Hugh olhou para seu relógio. Eram duas e meia. Ainda conseguiria alcançá-lo.
- Leve-me para Waterloo - disse ele, subindo no fiacre. Chegou à estação bem a tempo de comprar a passagem e embarcar no trem.
Os vagões eram interligados, e assim ele podia percorrer toda a composição. Enquanto o trem saía da estação e aumentava a velocidade, passando pelos cortiços do sul de Londres, Hugh saiu em busca de Augusta.
Não precisou procurar muito. Encontrou-a no vagão seguinte.
Com um rápido olhar, passou direto pelo compartimento para que ela não o visse.
Micky não estava ali. Devia ter viajado num trem anterior. A única outra pessoa no compartimento era um homem idoso, com uma manta nos joelhos.
Hugh foi para o outro vagão e sentou-se. Não havia muito sentido em confrontar Augusta agora. Ela podia não estar com as caixinhas de rapé em seu poder... talvez as tivesse guardado na bagagem. Falar com ela agora serviria apenas para alertá-la. Era melhor esperar que o trem chegasse a Southampton. Ele saltaria na frente, procuraria um guarda e confiscaria a bagagem no momento em que estivesse sendo descarregada.
E se Augusta negasse a posse das caixinhas de rapé? Hugh exigiria que a polícia revistasse a bagagem. Eles eram obrigados a investigar qualquer comunicação de roubo; e quanto mais Augusta negasse, mais desconfiados ficariam.
E se ela alegasse que as caixinhas de rapé lhe pertenciam? Era difícil provar qualquer coisa de imediato. Se isso acontecesse, Hugh decidiu que proporia que a polícia assumisse a custódia da coleção, enquanto investigava as alegações contraditórias.
Ele conteve sua impaciência, enquanto o trem passava pelos campos brancos de Wimbledon. Cem mil libras era uma boa parcela do dinheiro que o Pilasters Bank devia.
Não permitiria que Augusta o roubasse. As caixinhas de rapé também simbolizavam a determinação da família em pagar suas dívidas. Se deixasse Augusta escapar com a coleção, as pessoas diriam que os Pilasters estavam desviando tudo o que podiam, como defraudadores comuns. Hugh sentia-se furioso só de pensar nisso.
Ainda nevava quando o trem chegou a Southampton. Hugh inclinouse pela janela no momento em que a locomotiva entrou na estação. Havia policiais uniformizados por toda parte, o que só podia significar que Micky ainda não fora capturado.
Ele saltou para a plataforma com o trem ainda em movimento e chegou na barreira de saída na frente de todo mundo.
- Sou o Sócio Sênior do Pilasters Bank - disse ele a um inspetor de polícia, entregando seu cartão. - Sei que procura por um assassino, mas há uma mulher neste trem que carrega bens roubados, no valor de cem mil libras, pertencente ao banco. Creio que ela planeja deixar o país esta noite, no Aztec.
- E do que se trata, Mr. Pilaster?
- Uma coleção de caixinhas de rapé cravejadas de pedras preciosas.
- E o nome da mulher?
- Trata-se da condessa-viúva de Whitehaven. O inspetor franziu as sobrancelhas.
- Costumo ler os jornais, senhor. Presumo que tudo isso tem a ver com a quebra do banco.
Hugh confirmou com um aceno de cabeça.
- A coleção deve ser vendida para ajudar a pagar as pessoas que perderam seu dinheiro.
- Pode me apontar lady Whitehaven?
Hugh correu os olhos pela plataforma, através da neve que caía.
- É aquela ali, junto ao vagão de bagagem, usando um chapéu grande com asas de pássaro.
Augusta supervisionava a descarga de sua bagagem.
- Fique aqui comigo, senhor. Vamos detê-la quando ela passar. Hugh ficou tenso enquanto observava as pessoas descerem do trem e deixarem a plataforma. Mesmo tendo certeza de que Micky não viajara no trem, examinou o rosto de cada passageiro.
Augusta foi a última a se retirar. Três carregadores levavam sua bagagem. Ela empalideceu ao avistar Hugh na barreira. O inspetor lhe falou com extrema polidez:
- com licença, lady Whitehaven, mas podemos conversar por um momento?
Hugh nunca vira Augusta tão assustada, mas nem assim ela perdeu a atitude arrogante.
- Lamento não dispor de tempo - respondeu ela, com toda a frieza.
- Tenho de embarcar num navio que vai zarpar esta noite.
- Garanto que o Aztec não partirá sem levá-la. - O inspetor olhou para os carregadores. - Podem deixar tudo aqui por um minuto.
Ele tornou a se virar para Augusta e acrescentou:
- Mr. Pilaster aqui presente alega que tem em seu poder algumas caixas de rapé muito valiosas que lhe pertencem. É verdade?
Ela começou a parecer menos alarmada... o que deixou Hugh perplexo. Preocupou-o também: tinha medo de que ela pudesse contar com algum trunfo escondido.
- Não sei por que devo responder a uma pergunta tão impertinente - protestou Augusta.
- Se não o fizer, terei de revistar sua bagagem.
- Muito bem, estou com as caixinhas de rapé. Só que elas me pertencem. Eram de meu marido.
O inspetor virou-se para Hugh.
- O que tem a dizer sobre isso, Mr. Pilaster?
- Eram de fato de seu marido, mas ele as deixou para o filho, Edward Pilaster; e todos os bens de Edward foram confiscados pelo banco. Lady Whitehaven está tentando roubá-las.
O inspetor declarou:
- Devo pedir aos dois que me acompanhem à delegacia enquanto suas alegações são investigadas.
Augusta entrou em pânico.
- Mas não posso perder meu navio!
- Neste caso, só posso sugerir que deixe a propriedade contestada aos cuidados da polícia. Será devolvida se suas alegações forem confirmadas.
Augusta hesitou. Hugh sabia que partiria seu coração se separar de tamanha fortuna. Mas ela podia compreender que era inevitável, não é mesmo? Fora apanhada em flagrante, e tinha sorte de não ir para a cadeia.
- Onde estão as caixinhas de rapé, milady? - insistiu o inspetor. Hugh esperou. Augusta apontou para uma valise.
- Estão ali.
- A chave, por gentileza...
Ela tornou a hesitar e cedeu outra vez. Pegou uma pequena argola com as chaves da bagagem, separou uma e entregou-a.
O inspetor abriu a valise. Estava cheia de bolsas de sapatos. Augusta indicou uma delas. O inspetor abriu-a, tirando uma caixa de charutos e de madeira clara. Levantou a tampa para revelar numerosos objetos pequenos, enrolados em papel. Tirou um ao acaso e desembrulhou. Era uma caixinha de ouro, com pequenos diamantes, no formato de um lagarto.
Hugh deixou escapar um profundo suspiro de alívio. O inspetor fitou-o.
- Sabe quantas caixas deve haver aqui, senhor? Todos na família sabiam.
- Sessenta e cinco - respondeu Hugh. - Uma para cada ano da vida de Tio Joseph.
- Gostaria de conta-las?
- Estão todas aí - garantiu Augusta.
Hugh contou-as assim mesmo. Havia 65. Ele começou a sentir o prazer da vitória. O inspetor pegou a caixa de charutos e entregou-a a outro policial
- Se quiser acompanhar o guarda Neville até a delegacia, milady, ele lhe dará um recibo oficial pela mercadoria apreendida.
- Mande o recibo para o banco - disse Augusta. - Posso ir agora?
Hugh estava inquieto. Augusta se mostrava desapontada, mas não arrasada. Era quase como se estivesse mais preocupada com outra coisa, ainda mais importante do que as caixinhas de rapé. E onde se metera Micky Miranda?
O inspetor fez uma reverência e Augusta se afastou, acompanhada pelos três carregadores.
- Muito obrigado, inspetor - disse Hugh. - Só lamento não terem também capturado Miranda.
- Mas vamos pegá-lo, senhor. Ele só embarcará no Aztec se souber voar.
O guarda do vagão de bagagem aproximou-se pela plataforma empurrando uma cadeira de rodas. Parou na frente de Hugh e do inspetor e indagou:
- O que devo fazer com isto?
- Qual é o problema? - perguntou o inspetor, paciente.
- Aquela mulher com muita bagagem e um pássaro na cabeça...
- Lady Whitehaven. O que tem ela?
- Ela embarcou em Waterloo com um velho. Levou-o para um compartimento na primeira classe e depois me pediu para guardar a cadeira de rodas no vagão de bagagem.
Será um prazer atendê-la, eu disse. Mas ao desembarcar em Southampton, ela fingiu que não sabia do que eu falava. Alegou que eu devia estar confundindo ela com outra pessoa. Insisti que não era possível, pois só existe um chapéu como o dela.
Hugh interveio:
- É isso mesmo... o cocheiro me disse que ela foi para a estação com um homem numa cadeira de rodas... e vi um velho em seu compartimento.
- Não falei? - disse o guarda, triunfante.
O inspetor perdeu de repente o ar indulgente e virou-se para Hugh.
- Viu o velho passar pela barreira?
- Não. E examinei bem cada passageiro. Tia Augusta foi a última. - E foi nesse instante que lhe ocorreu. - Santo Deus! Acha que era Micky Miranda disfarçado?
- Isso mesmo. Mas onde ele está agora? Pode ter desembarcado numa estação anterior?
- Não - respondeu o guarda. - É um trem expresso, que vai direto de Waterloo a Southampton.
- Então vamos revistar o trem. Miranda ainda deve estar nele. Mas não estava.
O Aztec fora todo enfeitado com lanternas e tiras de papel coloridas. A festa de Natal estava animada quando Augusta embarcou: uma banda tocava no convés principal, os passageiros em trajes a rigor tomavam champanhe e dançavam com amigos que tinham vindo se despedir.
Um camareiro conduziu Augusta pela escada principal até um camarote num convés superior. Ela gastara todo o seu dinheiro no melhor camarote disponível, pensando que não precisava se preocupar com tais problemas, já que levava as caixinhas de rapé numa valise. O camarote se abria direto para o deque. Tinha uma cama larga, lavatório amplo, poltronas confortáveis e luz elétrica. Havia flores na cômoda, uma caixa de bombons ao lado da cama e uma garrafa de champanhe num balde com gelo na mesinha de canto. Augusta ia dizer ao camareiro para levar o champanhe, mas mudou de idéia. Estava iniciando uma vida nova; talvez devesse tomar champanhe daqui por diante.
Chegara bem a tempo. Ouviu o tradicional grito de "Todos em terra, os que em terra vão ficar!" no momento mesmo em que os carregadores traziam a bagagem para o camarote.
Assim que eles se retiraram, Augusta saiu para o estreito deque, levantando a gola do casaco para se proteger da neve. Debruçou-se na amurada e olhou para baixo.
Era enorme a distância até a água, onde um rebocador já manobrava em posição para tirar o transatlântico da enseada e levá-lo para mar aberto. Enquanto ela observava, os passadiços foram recolhidos, um a um, e os cabos de atracação soltos. O navio tocou o apito de nevoeiro, a multidão no cais aclamou, e devagar, de uma forma quase imperceptível, o imenso navio começou a se deslocar.
Augusta retornou ao camarote e fechou a porta. Despiu-se sem pressa, pôs uma camisola de seda e um chambre combinando. Depois, chamou o camareiro e avisou que não precisaria de mais nada naquela noite.
- Devo acordá-la pela manhã, milady?
- Não, obrigada. Tocarei a campainha quando precisar.
- Pois não, milady.
Augusta trancou a porta assim que o homem se retirou. Foi abrir o baú, deixou Micky sair. Ele cambaleou através do camarote e caiu na cama.
- Pensei que fosse morrer - balbuciou ele.
- Meu pobre querido! Onde sente dor?
- Nas pernas.
Augusta massageou suas pernas, que tinham os músculos contraídos em câimbras. Comprimia a carne com as pontas dos dedos, sentindo o calor de seu corpo através do pano da calça. Há muito tempo não tocava num homem assim, e sentiu um fluxo de calor subir pela garganta.
Sonhara muitas vezes em fazer aquilo, fugir com Micky Miranda, tanto antes quanto depois da morte de seu marido. Sempre fora contida ao pensar em tudo o que perderia... casa, criados, dinheiro para roupas, posição social e poder na família. Mas a quebra do banco acabara com tudo isso, e agora estava livre para se entregar a seus desejos.
- Água - murmurou Micky.
Ela serviu em um copo, do jarro ao lado da cama. Micky virou-se, sentou para segurar o copo e tomou tudo.
- Mais um pouco... Micky? Ele sacudiu a cabeça. Augusta pegou o copo.
- Você perdeu as caixinhas de rapé - disse Micky. - Ouvi tudo. Aquele desgraçado do Hugh...
- Mas você tem bastante dinheiro. - Ela apontou para o champanhe no balde com gelo. - Devemos beber a isso. Você deixou a Inglaterra. Conseguiu escapar.
Ele olhava para seu busto. Augusta compreendeu que tinha os mamilos duros de excitamento, e Micky podia vê-los através da seda da camisola. Sentiu vontade de dizer
Pode tocá-los, se quiser, mas hesitou. Havia tempo suficiente: tinham toda a noite. Tinham toda a viagem. Tinham o resto de suas vidas. Mas, subitamente, ela não podia mais esperar. Sentiu-se culpada e envergonhada, mas ansiava por apertar o corpo nu de Micky em seus braços, e o desejo foi maior que a vergonha. Sentou na beira
da cama. Pegou a mão de Micky, levantou-a para seus lábios e beijou-a; depois a comprimiu contra seu seio.
Micky fitou-a com uma expressão estranha, por um momento. Mas apertou o seio através da seda. Era uma carícia gentil. As pontas dos dedos roçaram no mamilo sensível, e Augusta ofegou de prazer. Ele mudou a posição, comprimiu a palma contra o seio, subindo e descendo, deslocando de um lado para outro.
Pegou o mamilo entre o polegar e o indicador, apertou. Augusta fechou os olhos. Ele apertou com mais força, e doeu. E de repente Micky torceu o mamilo com a maior violência. Ela soltou um grito, desvencilhou-se e ficou de pé.
- Sua vaca estúpida! - exclamou Micky, desdenhoso, também se levantando.
- Não, Micky! Não!
- Pensou realmente que eu fosse casar com você?
- Pensei...
- Não tem mais dinheiro nem influência, o banco estourou, e você até perdeu as caixinhas de rapé. O que eu poderia querer com você?
Augusta sentiu uma dor intensa no peito, como uma faca cravada em seu coração.
- Você disse que me amava...
-Já tem 58 anos... a idade de minha mãe! É velha e enrugada, mesquinha e egoísta, e eu não treparia com você nem que fosse a última mulher do mundo!
Augusta sentiu-se tonta. Fez um esforço para não chorar, mas não adiantou. As lágrimas afloraram a seus olhos, pôs-se a tremer em soluços de desespero. Estava arruinada.
Não tinha uma casa, nem dinheiro, nem amigos, e agora era traída pelo homem em quem confiara. Virou-se para ocultar o rosto: não queria que ele visse sua vergonha e sofrimento.
- Pare, por favor, Micky...
- Vou parar mesmo. Tenho um camarote reservado neste navio e é para lá que eu Vou.
- Mas quando chegarmos a Córdoba...
- Você não vai para Córdoba. Pode deixar o navio em Lisboa e voltar para a Inglaterra. Não tenho mais serventia para você.
Cada palavra era como um golpe, e Augusta recuou, erguendo as mãos à sua frente como se pudesse assim aparar os insultos. Esbarrou na porta do camarote. Desesperada para escapar de Micky, abriu-a e saiu.
O ar gelado da noite desanuviou sua cabeça subitamente. Comportava-se como uma mocinha desamparada, não como uma mulher madura e capaz. Perdera o controle de sua vida por um instante e era o momento de recuperá-lo.
Um homem vestido a rigor passou por ela, fumando um charuto. Olhou aturdido para suas roupas de dormir, mas não disse nada.
E isso deu uma idéia a Augusta.
Tornou a entrar no camarote e fechou a porta. Micky ajustava a gravata diante do espelho.
- Há um homem vindo para cá! - sussurrou Augusta, em tom de urgência. - Um policial!
A atitude de Micky mudou no mesmo instante. O desdém desapareceu de seu rosto, sendo substituído pelo pânico.
- Oh, Deus!
Augusta pensava depressa.
- Ainda estamos dentro das águas territoriais britânicas. Você pode ser preso e enviado de volta num cúter da Guarda Costeira.
Ela não tinha a menor idéia de isso ser verdade.
- Terei de me esconder de novo. - Ele entrou no baú. - Feche logo!
Augusta fechou-o dentro do baú. E puxou a tranca, murmurando:
- Assim está melhor.
Sentou na cama, olhando para o baú. Reconstituiu toda a conversa. Tornara-se vulnerável, e ele a magoara. Pensou na maneira como Micky a acariciara. Apenas dois outros homens haviam tocado em seus seios: Strang e Joseph. Pensou na maneira como ele torcera seu mamilo e depois a desacatara com palavras obscenas. À medida que os minutos passaram, a raiva se desvaneceu, foi se transformando num sinistro desejo de vingança. A voz de Micky saiu abafada do interior do baú:
- Augusta! O que está acontecendo? Ela não respondeu.
Micky se pôs a gritar por socorro. Ela cobriu o baú com os cobertores da cama para abafar o som.
Depois de algum tempo, ele parou.
Pensativa, Augusta removeu as etiquetas com seu nome do baú.
Ouviu portas de camarotes sendo fechadas: os passageiros seguiam para o jantar. O navio começou a balançar um pouco, enquanto avançava pelo canal da Mancha. A noite passou depressa para Augusta, sentada na cama, absorta em pensamentos.
Os passageiros voltaram a seus camarotes, de meia-noite às duas horas da madrugada. Depois disso, a banda parou de tocar, houve silêncio, rompido apenas pelos ruídos das máquinas do navio e do mar.
Obsessiva, Augusta não desviava os olhos do baú em que trancara Micky. Fora trazido para o camarote nas costas de um musculoso carregador. Augusta não seria capaz de erguê-lo, mas tinha a impressão que conseguiria arrastá-lo. Tinha alças de latão nos lados, tiras de couro em cima e em baixo. Ela segurou a tira de couro em cima, deu um puxão, inclinando o baú para o lado. Balançou por um instante, e caiu, com o maior estrépito.
Micky recomeçou a gritar, e ela tornou a cobrir o baú com os cobertores. Esperou para ver se alguém aparecia, querendo saber o motivo do estrondo, mas ninguém veio. Micky parou de gritar.
Augusta tornou a pegar a alça e puxou de novo. Era muito pesado, mas conseguia deslocar o baú uns poucos centímetros de cada vez. Descansava um pouco depois de cada puxão.
Levou dez minutos para arrastar o baú até a porta do camarote. Pôs meias, botas, casaco de pele e abriu a porta.
Não havia ninguém por ali. Os passageiros dormiam, e se algum tripulante patrulhava o convés, ela não o viu. O navio era iluminado por lâmpadas elétricas fracas, e não havia estrelas.
Augusta arrastou o baú pela porta do camarote e descansou.
Depois foi um pouco mais fácil, pois o deque se encontrava escorregadio com a neve. Em dez minutos, encostou o baú na amurada.
Vinha agora a parte mais difícil. Segurando a tira, ergueu uma extremidade do baú, tentando pô-lo de pé. Deixou-o cair na primeira tentativa. O som lhe pareceu outra vez muito alto, mas ninguém veio investigar: havia ruídos intermitentes durante todo o tempo no navio, as chaminés expelindo fumaça, o casco cortando as ondas.
Augusta fez um esforço mais determinado na segunda vez. Abaixou-se sobre um joelho, segurou a alça com as duas mãos e ergueu o baú devagar. Quando o tinha num ângulo de 45 graus, Micky moveu-se lá dentro, seu peso se deslocando para o fundo, e de repente ficou fácil terminar de levantá-lo.
Ela tornou a inclinar o baú, encostando-o na amurada.
A última parte era a mais difícil de todas. Augusta se abaixou, segurou a tira inferior, respirou fundo e a ergueu.
Não sustentava todo o peso do baú, pois a outra extremidade se apoiava na amurada; mas ainda assim precisou de toda a sua força para erguê-lo a dois ou três centímetros do chão; depois os dedos gelados escorregaram, e ela o deixou cair.
Não ia conseguir.
Descansou, sentindo-se exausta, o corpo dormente. Mas não podia desistir. Tivera a maior dificuldade para trazer o baú até ali. Devia tentar outra vez.
Abaixou-se, pegou a alça. Micky voltou a falar:
- O que está fazendo, Augusta?
Ela respondeu em voz baixa e incisiva:
- Lembre como Peter Middleton morreu.
Fez uma pausa. Não veio qualquer som do interior do baú.
- Você vai morrer da mesma maneira.
- Não, por favor, Augusta, meu amor!
- A água será mais fria, terá um gosto salgado ao encher seus pulmões; mas você conhecerá o terror que ele experimentou quando a morte fechar o punho sobre seu coração.
Ele começou a gritar:
- Socorro! Socorro! Alguém me salve!
Augusta agarrou a alça e levantou-a com toda a sua força. O fundo do baú se separou do deque. Enquanto Micky compreendia o que estava acontecendo, seus gritos abafados se tornaram ainda mais altos, mais apavorados, sobrepondo-se ao barulho das máquinas e do mar. Augusta fez outro esforço. Ergueu a base do baú até o nível do peito e parou, exausta, sentindo que não podia fazer mais nada. Sons frenéticos partiam lá de dentro, enquanto Micky tentava em vão escapar. Ela fechou os olhos, cerrou os maxilares, recorreu a toda a sua força. Sentiu que alguma coisa se rompia em suas costas, soltou um grito de dor, mas continuou a levantar. O fundo do baú se achava agora mais alto do que a parte superior, e escorregou pela amurada por vários centímetros; mas parou. Augusta sentia uma terrível dor nas costas. A qualquer momento um passageiro seria despertado do sono meio embriagado pelos gritos de Micky. Ela sabia que só teria condições de levantar mais uma vez. Tinha de ser a decisiva.
Concentrou todas as suas forças, fechou os olhos, rangeu os dentes contra a dor nas costas e empurrou.
O baú deslizou para a frente sobre a amurada, lentamente, depois caiu.
Micky soltou um grito prolongado, que se perdeu no vento.
Augusta cambaleou para a frente, inclinando-se sobre a amurada a fim de atenuar a dor nas costas, e observou o enorme baú cair, rolando pelo ar, em meio aos flocos de neve. Bateu na água com um estrondo e afundou.
Aflorou à superfície um momento depois. Flutuaria por algum tempo, pensou Augusta. A dor nas costas era lancinante, e ela ansiava em deitar, mas permaneceu na amurada observando o baú balançar nas ondas. Até que desapareceu de vista. Foi nesse instante que ouviu uma voz de homem ao seu lado, preocupada:
- Pensei ter ouvido alguém gritar por socorro.
Augusta controlou-se depressa, virou-se para deparar com um jovem polido, num chambre de seda e echarpe.
- Era eu - disse ela, forçando um sorriso. - Tive um pesadelo e acordei gritando. Saí do camarote para desanuviar a cabeça.
- Tem certeza de que está bem?
- Estou, sim. É muito gentil.
- Neste caso, boa noite.
- Boa noite.
O jovem voltou a seu camarote.
Augusta tornou a olhar para o mar. Daqui a pouco voltaria cambaleando para a cama, mas ainda queria contemplar o mar por mais um momento. O baú se encheria pouco a pouco, pensou ela, a água entrando pelas fendas mínimas. O nível subiria pelo corpo de Micky, centímetro a centímetro, enquanto ele tentasse abrir o baú. Quando cobrisse o nariz e a boca, ele prenderia a respiração por tanto tempo quanto pudesse. Ao final, porém, soltaria um ofego profundo, involuntário, e a água salgada do mar entraria por sua boca, desceria pela garganta, encheria os pulmões. Ele ainda se debateria por um instante, sacudido pela dor e terror, e depois os movimentos se tornariam cada vez mais fracos, até cessarem por completo; tudo se tornaria escuro... e Micky morreria.
Hugh estava exausto quando finalmente seu trem entrou na estação de Chingford e ele desembarcou. Embora ansiasse por cama, parou na passarela por cima da linha, no lugar em que Micky atirara em Tonio naquela manhã. Tirou o chapéu, permaneceu imóvel por um minuto, a neve caindo sobre a cabeça descoberta enquanto recordava o amigo como um garoto e um homem. Depois, seguiu em frente.
Perguntou-se como o crime afetaria a atitude do Ministério do Exterior em relação a Córdoba. Micky esquivara-se à polícia até agora. Mas quer Micky fosse ou não capturado, Hugh poderia explorar o fato de que testemunhara o assassinato. Os jornais adorariam publicar seu relato detalhado. O público ficaria indignado por um diplomata estrangeiro cometer um assassinato em plena luz do dia, e os membros do Parlamento provavelmente exigiriam alguma espécie de retaliação. O fato de Micky ser o assassino podia muito bem arruinar as chances de Papa Miranda ser reconhecido pelo governo britânico. O Ministério do Exterior poderia ser persuadido a apoiara família Silva para punir os Mirandas... e para obter uma compensação para os investidores britânicos na Companhia Docas de Santamaria.
Quanto mais pensava a respeito, mais otimista ficava.
Esperava que Nora já estivesse dormindo quando chegasse em casa. Não queria ouvi-la descrever o dia miserável que tivera, perdida numa aldeia remota, sem ninguém para ajudá-la a tomar conta de três meninos turbulentos. Queria apenas se meter debaixo das cobertas e fechar os olhos. Amanhã pensaria nos acontecimentos daquele dia e determinaria quais seriam as conseqüências para ele e seu banco.
Ficou desapontado ao divisar uma luz acesa por trás das cortinas quando alcançou o portão do pequeno jardim. Isso significava que Nora ainda estava acordada. Ele entrou com sua chave e foi para a sala da frente.
Ficou espantado ao deparar com os três meninos, todos de pijama, sentados no sofá, olhando para um livro ilustrado.
E se espantou ainda mais ao deparar com Maisie entre eles, lendo a história em voz alta.
Os meninos se levantaram de um pulo e correram para ele. Hugh abraçou-os e beijou-os, um a um: Sol, o caçula; Samuel; e Toby, com 11 anos. Os dois menores demonstravam apenas alegria por vê-lo, mas havia algo mais no rosto de Toby.
- O que foi, meu velho? - perguntou-lhe Hugh. -Aconteceu alguma coisa? Onde está sua mãe?
- Ela foi fazer compras - respondeu o menino, desatando a chorar. Hugh passou o braço por seus ombros e olhou para Maisie.
- Cheguei aqui por volta das quatro horas da tarde - informou ela. - Nora deve ter saído logo depois de você.
- Ela deixou-os sozinhos? Maisie concordou com a cabeça.
Hugh sentiu uma raiva intensa aflorar em seu peito. Os meninos haviam passado a maior parte do dia sozinhos naquela casa. Qualquer coisa poderia ter acontecido.
- Como ela foi capaz de fazer uma coisa dessas? - murmurou ele, amargurado.
- Há um bilhete.
Maisie entregou-lhe o envelope. Hugh abriu-o, leu a mensagem de uma única palavra: ADEUS.
- Não estava lacrado - explicou Maisie. - Toby leu e me mostrou.
- É difícil acreditar...
Mas assim que as palavras saíram de sua boca, Hugh compreendeu que não representavam a verdade: ao contrário, era muito fácil acreditar. Nora sempre colocara seus próprios desejos acima de qualquer outra coisa.
Agora, abandonara os filhos. Hugh imaginou que devia ter ido para o pub do pai.
E o bilhete parecia insinuar que ela não voltaria.
Ele não sabia o que sentir.
Seu primeiro dever era para com os meninos. Era importante não deixá-los ainda mais transtornados. Ele tratou de reprimir seus próprios sentimentos por um momento.
- Já deviam ter ido para a cama há muito tempo. Está na hora de dormirem. Vamos embora.
Hugh levou-os para o segundo andar. Samuel e Sol partilhavam um quarto, mas Toby tinha o seu próprio. Hugh ajeitou os menores na cama e foi para o quarto do mais velho. Inclinou-se para beijá-lo.
- Mrs. Greenbourne é muito boa - disse Toby.
- Sei disso. Ela era casada com meu melhor amigo, Solly, que morreu há algum tempo.
- Ela é bonita também.
- Você acha?
- Acho. Mamãe vai voltar?
Era essa a pergunta que Hugh receava.
- Claro que vai.
- É mesmo verdade? Hugh suspirou.
- Para ser franco, meu velho, eu não sei.
- Se ela não voltar, Mrs. Greenbourne vai cuidar da gente? Confie numa criança para ir direto à essência do problema, pensou Hugh. Mas ele se esquivou a uma resposta.
- Ela dirige um hospital. Tem dezenas de pacientes para cuidar. Acho que não dispõe de tempo para cuidar também de meninos. Agora, chega de perguntas. Boa noite.
Toby não parecia muito convencido, mas não insistiu.
- Boa noite, papai.
Hugh soprou a vela, saiu do quarto e fechou a porta. Maisie fizera um chocolate.
- Tenho certeza de que você preferiria um conhaque, mas parece que não há nenhum na casa.
Hugh sorriu.
- Nós, da classe média baixa, não temos condições de tomar bebidas alcoólicas. Chocolate está ótimo.
Havia xícaras e um jarro numa bandeja, mas nenhum dos dois foi até lá. Permaneceram no meio da sala, olhando um para o outro. Maisie disse:
- Li sobre o crime no jornal da tarde e vim até aqui para ver se você estava bem. Encontrei os meninos sozinhos e providenciei o jantar. Ficamos esperando por você.
Ela ofereceu um sorriso resignado, de aceitação, que indicava que dependeria de Hugh o que aconteceria em seguida. E, de repente, ele começou a tremer. Teve de se apoiar no encosto de uma cadeira.
- Foi um dia terrível - murmurou Hugh, a voz trêmula também.-Estou me sentindo um pouco tonto.
- Talvez seja melhor sentar.
Subitamente, ele foi dominado pelo amor que sentia por Maisie. Em vez de sentar, foi abraçá-la, suplicando:
- Aperte-me com força!
Ela passou os braços por sua cintura.
- Eu amo você, Maisie. Sempre amei.
- Sei disso.
Ele fitou-a nos olhos. Estavam marejados de lágrimas. Enquanto Hugh observava, uma lágrima rolou, escorrendo pela face. Ele removeu-a com um beijo.
- Depois de tantos anos, Maisie... depois de tantos anos...
- Faça amor comigo esta noite, Hugh. Ele acenou com a cabeça.
- E todas as noites, daqui por diante. E tornou a beijá-la.
De The Times:
MORTES
A 30 de maio, em sua residência em Antibes, França, depois de uma prolongada doença, o CONDE DE WHITEHAVEN, ex-Sócio Sênior do Pilasters Bank
- Edward morreu - disse Hugh, levantando os olhos do jornal. Maisie sentava ao seu lado no trem, usando um vestido de verão, amarelo com manchas vermelhas, e um pequeno chapéu com fitas amarelas de tafetá. Seguiam para o Dia do Discurso na Windfield School.
- Ele era um infeliz, mas a mãe vai sentir saudade - comentou Maisie.
Augusta e Edward viviam juntos no sul da França há 18 meses. Apesar do que haviam feito, a associação de banqueiros que assumira o Pilasters Bank decidira lhes pagar o mesmo estipêndio que os outros Pilasters recebiam. Ambos eram inválidos: Edward tinha sífilis terminal e Augusta sofrerá um deslocamento de disco, passando a maior parte do tempo numa cadeira de rodas. Hugh soubera que, apesar da doença, ela se tornara a rainha sem coroa da comunidade inglesa naquela parte do mundo: promovia casamentos, arbitrava as disputas, organizava os eventos, promulgava as regras sociais.
- Ele amava a mãe - murmurou Hugh. Maisie fitou-o, curiosa.
- Por que diz isso?
- É a única coisa boa que me ocorre a seu respeito.
Ela sorriu afetuosamente e beijou-o no nariz.
O trem entrou na estação de Windfield e eles desembarcaram. Era o final do primeiro ano de Toby e do último ano de Bertie na escola. O sol brilhava, o dia era quente.
Maisie abriu sua sombrinha - feita com a mesma seda estampada do vestido - e seguiram a pé para a escola.
Mudara bastante nos 26 anos desde que Hugh saíra de lá. Seu velho diretor, o dr. Poleson, morrera há muito tempo, e havia agora uma estátua dele na entrada. O novo diretor ainda usava a notória bengala conhecida como Listradora, mas com menos freqüência. O dormitório da quarta série ainda era na antiga leitería, ao lado da capela de pedra, mas havia um prédio novo, com um salão em que cabiam todos os alunos. A instrução também era melhor: Toby e Bertie aprendiam matemática e geografia, além de latim e grego.
Encontraram-se com Bertie diante do salão. Há um ou dois anos que ele era mais alto do que Hugh. Era um garoto solene, esforçado e bemcomportado: não se metia em encrencas no colégio como costumava acontecer com Hugh. Tinha muita coisa dos ancestrais Rabinowicz, e lembrava a Hugh o irmão de Maisie, Dan. Ele beijou a mãe, apertou a mão de Hugh.
- Está havendo um pequeno tumulto - disse Bertie. - Não temos cópias suficientes da canção da escola, e os garotos menores não estão cantando direito. Preciso corrigi-los logo. Falarei com vocês depois dos discursos.
Ele se afastou, apressado. Hugh observou-o, afetuosamente, recordando nostálgico como o colégio lhe parecera importante ao deixá-lo. Encontraram Toby pouco depois.
Os meninos pequenos não eram mais obrigados a usar fraque e cartola: Toby usava um chapéu de palha e um casaco curto.
- Bertie disse que eu posso tomar chá com vocês em seu estúdio depois dos discursos, se não se importarem... Posso?
- Claro! - respondeu Hugh, rindo.
- Obrigado, pai!
Toby se afastou correndo. Entrando no salão, Hugh e Maisie ficaram surpresos ao depararem com Ben Greenbourne, parecendo mais velho, um tanto frágil. Maisie, brusca como sempre, perguntou:
- O que está fazendo aqui?
- Meu neto é o primeiro da turma. Vim ouvir seu discurso.
Hugh se espantou. Bertie não era neto de Greenbourne, e o velho sabia disso. Será que ele estava amolecendo na velhice?
- Sentem-se ao meu lado - ordenou Greenbourne.
Hugh olhou para Maisie. Ela deu de ombros e sentou. Ele fez o mesmo.
- Soube que vocês dois casaram - disse Greenbourne.
- No mês passado - confirmou Hugh. - Minha primeira esposa não contestou o divórcio.
Nora vivia com um vendedor de uísque, e o detetive contratado por Hugh levara menos de uma semana para obter provas de adultério.
- Não aprovo o divórcio. - Greenbourne suspirou. - Mas estou velho demais para dizer às pessoas o que fazer. O século se aproxima de seu final. O futuro pertence
a vocês. Eu lhes desejo o melhor.
Hugh pegou a mão de Maisie e apertou-a. Greenbourne perguntou a Maisie:
- Vai mandar o garoto para a universidade?
- Não tenho condições. Já é difícil pagar o colégio.
- Eu teria o maior prazer em pagar. Maisie se surpreendeu.
- É muita gentileza sua.
- Eu deveria ter sido mais gentil há alguns anos - disse Greenbourne.
- Sempre a considerei uma mulher que só se interessava pelo dinheiro. Foi um dos meus erros. Se fosse mesmo assim, não teria casado com o jovem Pilaster. Eu me enganei a seu respeito.
- Não me causou qualquer mal.
- Mesmo assim, fui rigoroso demais. Não tenho muitos arrependimentos na vida, mas esse é um deles.
Os alunos começaram a entrar no salão, os menores sentando lá na frente, no chão, e os mais velhos em cadeiras. Maisie informou a Greenbourne:
- Hugh adotou Bertie legalmente. O velho fitou Hugh nos olhos.
- Imagino que você é o verdadeiro pai. Hugh concordou com a cabeça.
- Eu deveria ter adivinhado há muito tempo. Mas não importa. O menino pensa que sou seu avô, e isso me dá uma responsabilidade. - Ele tossiu, embaraçado, apressou-se em mudar de assunto. - Soube que a associação vai pagar um dividendo.
- É verdade. - Hugh conseguira finalmente liquidar todo o patrimônio do Pilasters Bank, e a associação de banqueiros que evitara a bancarrota obtivera um pequeno lucro. - Todos os participantes receberão cerca de cinco por cento sobre seu investimento.
- bom trabalho. Não pensei que você conseguiria.
- Tudo foi possível graças ao novo governo em Córdoba. Entregaram os bens da família Miranda à Companhia Docas de Santamaria, e isso fez com que os títulos voltassem a valer alguma coisa.
- O que aconteceu com aquele Miranda que vivia aqui? Ele não prestava.
- Micky? Seu corpo foi encontrado dentro de um baú de viagem que o mar levou para uma praia da ilha de Wight. Ninguém jamais descobriu como chegou lá, ou por que ele estava dentro do baú.
Hugh se preocupara com a identificação do corpo: fora importante determinar que Micky estava mesmo morto, a fim de que Rachel pudesse finalmente casar com Dan Robinson.
Um estudante circulou por ali, distribuindo cópias manuscritas da canção do colégio a todos os pais e parentes.
- E você? - perguntou Greenbourne a Hugh. - O que pretende fazer quando o Pilasters Bank for liquidado?
- Planejava pedir seus conselhos a respeito. Gostaria de abrir um novo banco.
- Como?
- Lançando as cotas no mercado. Pilasters Limited. O que acha?
- É uma idéia ousada, mas você sempre foi original. - Greenbourne pensou por um momento. - O mais curioso é que a quebra do seu banco acabou aumentando ainda mais a sua reputação de banqueiro competente, devido à maneira como se comportou durante a crise. Afinal, quem poderia ser mais confiável do que um banqueiro que consegue pagar todos os seus credores mesmo depois de quebrar?
- Acha então que pode dar certo?
- Tenho certeza. E sou capaz até de investir meu dinheiro no empreendimento.
Hugh balançou a cabeça, agradecido. Era importante que Greenbourne gostasse da idéia. Todos na City procuravam sua opinião, e a aprovação dele valia muito. Hugh calculara que o plano podia funcionar, mas era preciso que Greenbourne acrescentasse a marca de sua confiança.
Todos se levantaram no momento em que o diretor entrou, acompanhado pelos professores, o orador convidado - um membro liberal do Parlamento - e Bertie, o primeiroda turma que se formava. Sentaram nas cadeiras na plataforma depois Bertie se adiantou e disse em voz firme:
- Vamos cantar a canção da escola.
Hugh olhou para Maisie, que sorriu, orgulhosa. Os acordes familiares da introdução foram tocados ao piano, e logo todos estavam cantando.
Uma hora depois, Hugh deixou-os tomando chá no estúdio de Bertie, atravessou a quadra de tênis e entrou no Bishop's Wood.
Fazia calor, como naquele dia fatídico, há 26 anos. O bosque parecia igual, silencioso e úmido, à sombra das faias e olmos. Ele ainda se lembrava do caminho para
o poço na pedreira abandonada, e encontrou-o sem a menor dificuldade.
Não desceu pela encosta da pedreira... não tinha mais a agilidade necessária. Sentou na beira e jogou uma pedra no poço. Rompeu o espelho da superfície, irradiando ondulações, em círculos perfeitos.
Ele era o único que restava, além de Albert Cammel, que ainda vivia na Colônia do Cabo. Todos os outros haviam morrido: Peter Middleton afogado naquele dia; Tonio baleado por Micky no Natal, há dois anos; o próprio Micky afogado num baú de viagem; e agora Edward, morto pela sífilis, enterrado num cemitério na França. Era como se alguma força maligna tivesse saído da água profunda, naquele dia em 1866, e entrado em suas vidas fazendo aflorar as paixões sinistras que acabaram por arruinálas, o ódio, a ganância, o egoísmo e a crueldade que fomentaram a fraude, a bancarrota, a doença e o assassinato. Mas tudo acabara agora. As dívidas estavam pagas. Se houvera algum espírito do mal, este já retornara ao fundo do poço. E Hugh sobrevivera.
Ele se levantou. Era tempo de voltar à sua família. Afastou-se alguns passos, parou, lançou um último olhar para trás.
As ondulações da pedra haviam desaparecido e a superfície do poço recuperara a serenidade de outrora.
Ken Follett
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