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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


UMA ILHA DE SONHO / Magalhães & Alçada
UMA ILHA DE SONHO / Magalhães & Alçada

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

   

— Estava apavorado. Julguei que era o último dia da minha vida. Mas com medo ou sem ele, meti-me num batel com o meu amo para rebocar o navio através do nevoeiro. E lá fomos avançando, avançando... pensava eu que avançávamos para cair no inferno! A expressão de Álvaro era tão cómica que largaram todos a rir.

— Estão-se a rir? Também a gente riu... quando mais adiante nos vimos chegados a uma ilha tão formosa. Parecíamos um bando de miúdos aos gritos e aos abraços, troçando de nós mesmos por termos tido medo desta terra abençoada!

 

 

 

 

 

Sempre que entravam no castelo, era como se fosse a primeira vez. Tudo ali era diferente, estranho, irregular. E quanto mais velhas fossem as muralhas, as paredes, as chaminés, melhor! Precisamente porque eram velhas tinham o sabor da novidade.

Não admirava que Orlando se sentisse tão feliz, tão ambientado para realizar as suas experiências, pois a atmosfera em volta sugeria «tempo». As pedras tinham atravessado séculos e séculos, quase sem uma beliscadura, assistindo a cenas agitadas de cólera, de luta, de amor, de raiva. E embora parecendo alheias a tudo, de tudo iam absorvendo o sentido, de forma que quanto maior fosse o silêncio mais fácil era captar as suas vibrações.

Olhando as paredes do castelo, não se viam marcas do passado, mas o tempo estava ali, à mão de semear.

Não admirava pois que lá dentro houvesse uma brecha que permitia viajar para outras épocas. O que era de admirar é que os homens tivessem demorado tanto tempo a descobri-la!

Felizmente, Orlando e os cientistas da AIVET (1) tinham orientado as suas pesquisas no sentido de realizarem o mais velho sonho da humanidade: viajar pelo tempo fora, andando de uma época para a outra, ora mergulhando no passado ora atirando-se de cabeça para o futuro.

Felizmente, também, tinham traçado um mapa muito completo dos locais da terra que davam «passagem». E a pouco e pouco aí foram montando as fabulosas máquinas do tempo.

Na cave do castelo, uma dessas máquinas esperava por eles, e o João morria de impaciência por partir!

A próxima viagem seria a quarta. Das anteriores, guardavam as mais empolgantes e fabulosas recordações.

O que lhes reservaria esta agora?

Como sempre, a Ana esforçava-se por manter a calma. Parecia-lhe desagradável incomodar Orlando com muitas perguntas. Afinal de contas, ele era um cientista famoso, e embora fosse um homem alegre e descontraído, a verdade é que tinha idade para ser seu avô!

Mas o João não estava com meias-medidas! Mal avistaram Orlando ao longe, começou a gritar:

— Orlando! Orlando! Onde é que vamos desta vez?

 

(1) AIVET: Associação Internacional das Viagens no Espaço e no Tempo.

 

E agora não parava de saltitar à roda dele, falando pelos cotovelos.

— Diga lá! Onde é que vamos? Eu gostava de saber...

— Tem paciência! Por enquanto não posso dizer nada.

— Mas porquê? — insistia ele.

— Cá por coisas...

O João quase amuou, inquieto como estava.

— Das outras vezes não se pôs com estes mistérios! Não sei para que é isto hoje! Prometeu que nos levava...

— Prometi e levo. Tem calma.

— Mas por que é que não vamos já?

A Ana, envergonhada com a insistência do irmão, resolveu intervir:

— Se te calasses? O Orlando com certeza tem as suas razões. Se ele não quer dizer, por algum motivo é!

O velho cientista sorriu, olhando fixamente ora para um ora para outro. Nos seus olhos pequeninos, azuis, brilhava uma luz estranha que os fez recordar o primeiro encontro (1).

Parecera-lhes então um simpático boneco de borracha, com aquele corpo feito de linhas redondas, mas elástico e flexível. A careca luzidia, as rosetas encarnadas numa face prazenteira, o bigode branco muito farfalhudo, tudo encaixava perfeitamente no mesmo retrato. Tudo, excepto aquele olhar único, que trespassava os outros como se os visse por dentro. Aliás, ele tinha-lhes dito isso mesmo, naquela manhã memorável em que se encontraram pela primeira vez.

 

(1) Uma Viagem ao Tempo dos Castelos, n.o 1 desta colecção.

 

Seria verdade que lhes lia o pensamento?

Nunca tiveram a certeza, nem que sim nem que não. Mas às vezes havia coisas...

Só quando ele soltou uma das suas gargalhadas roucas perceberam que quase os hipnotizara, e que estavam ali especados, em silêncio, sem saberem porquê nem há quanto tempo.

Orlando sorriu de novo, mas agora de maneira diferente.

— Temos de esperar, João. Mas para te entreteres, já que estás sempre cheio de fome, vamos jantar, está bem?

A ideia não podia agradar-lhes mais. Os ares da serra do Marão sempre abriam o apetite. E a caminhada para chegarem ali reforçara o efeito! Os dois irmãos sentiam-se capazes de comer um boi inteirinho, se estivesse cortado em bifes. E com batatas fritas, claro!

Iam a encaminhar-se para a cozinha, mas Orlando barrou-lhes a passagem.

— Não é para aí! Hoje vou recebê-los na minha sala nova.

— Porquê? Há festa?

— Se calhar faz anos!

— Não faço anos, mas tenho uma sala nova que vamos estrear todos juntos! Por aqui, venham!

Entusiasmado como um miúdo pequeno, conduziu-os pelo corredor fora. Subiram umas escadinhas íngremes, cujos degraus tinham a beira arredondada de tão gasta. Viraram à esquerda, percorreram várias dependências e finalmente pararam junto de uma porta mínima! Mínima e própria de castelo, pois parecia mágica, nem redonda nem quadrada; em bico!

Com ares misteriosos, Orlando pousou a mão no fecho da porta e fê-lo rodar lentamente.

A Ana e o João já estavam mortos de curiosidade. O que haveria do lado de lá para o cientista se mostrar tão contente? Um compartimento atafulhado de aparelhagens supermodernas? Écrans e painéis iluminados cobrindo as paredes de uma ponta à outra? Mais máquinas do tempo?

Muito juntos, assomaram a espreitar. E o que viram deixou-os boquiabertos.

Aquele Orlando era, de facto, imprevisível!

A porta pequenina abria para uma sala imensa. De tecto baixo, mas muito comprido, como as salas dos contos de fadas.

Ao fundo, o lume crepitava numa lareira gigante, fazendo estalar um toro de lenha retorcido. O granito das paredes sobressaía à roda das duas tapeçarias riquíssimas que oscilavam ligeiramente suspensas do tecto. Ambas representavam figuras a cavalo, mas diferentes, pois na tapeçaria da esquerda podia ver-se uma cena de caça. Ali, homens, mulheres, cavalos, cães, pássaros, tudo perseguia pelos campos fora um desgraçado javali. Mas apesar disso era uma cena alegre. Do lado direito, pelo contrário, só faltava ouvir gritos e o ruído das espadas e lanças, pois a cena era de guerra.

E como oscilavam uma e outra, muito, muito ao de leve, as pessoas e os animais pareciam mover-se de facto. Pareciam ganhar vida.

A Ana e o João não conseguiram articular palavra durante um bom bocado.

Pela janela escorria apenas uma luz ténue, dourada. A tarde caía levando consigo o sol.

Orlando, em bicos de pés para não quebrar o encanto, acendeu uma por uma as trinta e três velas de cera que colocara nos candelabros. As chamazinhas bruxuleantes iluminaram por fim o verdadeiro banquete que estava em cima da mesa! Um peru assado inteirinho e apetitoso, com recheio a transbordar e vários molhos à parte para eles escolherem. Taças de batatas fritas eram quatro. Havia também tábuas com queijo de muitas qualidades, pêras, maçãs, e sobretudo cachos e cachos de uvas brancas, pretas, e até uvas sem grainha. Dos doces, era melhor nem falar!

— Porquê este banquete? — perguntou a Ana.

Orlando não respondeu, mas acenou a chamá-los.

Com água a crescer na boca, aproximaram-se da mesa e só então repararam que estava posta com quatro lugares.

Por que seria?

 

— Sentem-se! — disse Orlando. — Instalem-se aqui à minha esquerda.

A Ana encaminhou-se para a cadeira que ele apontava, mas estranhou. Sendo tão educado, não se compreendia que não esperasse pela pessoa que faltava.

— Vem mais alguém, não vem? — perguntou o João, que por certo também estranhara aquela atitude.

— Vem, sim — respondeu Orlando. — É uma convidada muito especial. Vocês vão gostar dela.

— Ah! Então é uma mulher?

— É.

O João, sempre pronto para a brincadeira, sorriu com ar divertido.

— Hum... Está-me a parecer que o Orlando arranjou uma namorada!

Surpreendido com o comentário, o velho cientista abanou a cabeça e brindou-os com uma das suas gargalhadas roucas.

Mas a conversa ficou por ali, pois uma luz intensa, vibrante, desceu sobre a cadeira vazia. E perante o assombro dos dois irmãos, surgiu, sentada, uma mulher.

— A...

— Bem... Hum...

Nem o João nem a Ana conseguiram falar, por mais esforços que fizessem. Parecia que tinham a língua enrolada na boca.

Orlando estava obviamente deliciado com tanta atrapalhação, e não teve pressa em esclarecê-los. Durante alguns instantes, passeou o olhar entre eles e a «fantástica» convidada, que aliás parecia igualmente muda de espanto com a presença deles.

Quando por fim se dispôs a fazer as apresentações, tiveram a sensação perturbante de que estavam ali sentados há uma eternidade.

— Esta é a minha grande amiga Misserfal. Uma cientista notável do seu tempo. — Orlando fez uma pequena pausa, antes de acrescentar, triunfante: — Ou seja, do século XXIII!

Um calafrio percorreu-lhes a espinha e fê-los estremecer. Terem pela frente uma pessoa vinda do futuro, era bom de mais!

E o João levantou-se, alvoroçado. Seria desta vez que Orlando os levava para a frente?

Com um sorriso bonacheirão, ele fez-lhe sinal para que se sentasse e, virando-se para a direita, explicou:

— Estes são dois grandes amigos meus do século XX, a Ana e o João, de quem tanto lhe falei.

Misserfal fitou-os, visivelmente emocionada. Os seus olhos tinham um brilho invulgar, mas não era só isso. Parecia mesmo encantada de os ver. E apressou-se a falar-lhes:

— Fico muito contente com esta surpresa. Além dos cientistas da AIVET, nunca tive oportunidade de conhecer ninguém do século XX!

A Ana e o João quiseram responder, mas não lhes ocorreu nada. Se aquilo mais parecia sonho do que realidade!

— Bom — Orlando tomara de novo a palavra — , enquanto se refazem da partida que lhes preguei, o melhor é irmos comendo! Posso garantir que está tudo muito bom, porque antes de chegarem provei cada um destes petiscos!

E, juntando o gesto à palavra, encheu-lhes o prato com diversas iguarias.

A Ana levou a mão ao estômago, que lhe parecia colado às costas. Seria fome? Ou aquela espécie de medo que não é bem medo?

— Vamos, trata de comer que isso passa...

Ela levantou os olhos do prato e não conseguiu esconder uma certa perturbação. Orlando parecia de facto ler-lhe os pensamentos! Misserfal teria os mesmos poderes? Fingindo comer, pôs-se a observá-la de soslaio.

Embora sentada, via-se que era alta e esguia. Tinha os braços compridos, e as mãos eram lindíssimas! O cabelo farto, muito escuro, caía-lhe pelas costas abaixo, apanhado junto ao pescoço por um elástico.

Naquele momento cortava uma enorme fatia de peru, inclinando ligeiramente a cabeça sobre o peito. Todos os seus gestos eram precisos, mas também suaves e elegantes.

A roupa que trazia era branca, pelo menos a camisola, pois como apareceu sentada à mesa era impossível saber se vestia saia ou calças compridas.

Sob todos os aspectos, era igual a uma mulher do século XX. Ou melhor, sob todos os aspectos menos num: o fio de luz que lhe rodeava o corpo.

Orlando estava radiante. E enquanto devorava o seu jantar com apetite, foi dando explicações várias:

— Vocês se calhar estranharam, mas no século XXIII é costume sentarmo-nos à mesa à espera dos convidados. Talvez seja para não perder tempo! Quando chegam, começa-se logo a comer. Não é, Misserfal?

Ela sorriu, mas não pôde responder porque mastigava um bom punhado de batatas fritas.

— Eu pensei que no século XXIII já não se comia — arriscou o João num fio de voz.

Misserfal olhou-o, admirada. E depois de limpar a boca com o guardanapo perguntou:

— Pensaste que já não se comia? Se fosse assim, morríamos todos!

— Não, não era isso — disse ele. — Julguei que as pessoas se alimentassem de pós e comprimidos.

Misserfal soltou uma gargalhada sonora.

— Pós e comprimidos? Que horror! Então isso é que era o progresso?

O João corou, um pouco envergonhado, mas ela pô-lo à vontade.

— Eu estou a brincar. Sei muito bem que havia essas ideias no século XX. E realmente usamos comprimidos e pós. Sabes para quê?

— Não.

— Para podermos comer tudo o que nos apetecer! Não há nada que faça mal à saúde.

— E não engordam? — perguntou a Ana, de olhos arregalados.

— Não. Ninguém engorda. As pessoas têm o corpo que querem ter, porque há pastilhas para esse efeito.

— Então não há ninguém gordo? Ela riu-se de novo.

— Claro que há! Muita gente sente-se bem sendo gordinha. E depois, pensem nos actores.

— Porquê?

— Então, está-se mesmo a ver! Têm de ficar mais gordos ou mais magros, conforme os papéis que vão representar.

Foi a vez de os dois irmãos rirem. E o João começou logo a atirar o barro à parede:

— Ó Orlando, por que é que não vamos assistir a uma peça de teatro no século XXIII?

— Se calhar era essa a surpresa! — disse a Ana, também tentada a ir ao futuro.

Mas para grande desilusão de ambos, ele abanou a cabeça negativamente.

— Nem pensem nisso! Por agora, é impossível!

— Oh!

— Fiquem descansados, que quando puder ser, lá iremos.

— E eu tenho muito gosto em os receber — exclamou Misserfal, enquanto se servia de uma quantidade inacreditável de doces de ovos. — Está combinado, Orlando, sim? Quando puderem ir ao futuro, vão logo visitar-me.

— Claro! Foi por isso mesmo que aqui os juntei. A Ana olhou para ele, inquieta.

— Nós viemos ter consigo ao castelo, convencidos de que nos levava outra vez de viagem. Não vamos?...

Foi Misserfal quem respondeu:

— Vão, sim! O Orlando tinha-me falado no que estava a preparar para vocês...

— E o que é?

— É uma viagem fabulosa!

Como quem se prepara para contar uma história, cruzou os braços apoiando-se sobre a mesa.

O fio de luz que a rodeava tornou-se mais intenso, tal como o brilho do olhar. Baixou ligeiramente a voz e começou:

— Houve um tempo em que os habitantes da Terra não faziam a menor ideia de como era o seu planeta.; Cada um conhecia o lugar onde nasceu, e pouco mais. Por isso mesmo havia tantas lendas, tantas histórias fantásticas...

O João e a Ana ouviam-na, apanhados pelo que dizia, pela voz cada vez mais rouca, e sobretudo pelos olhos azuis que agora pareciam lilases.

— Vocês sabem isso muito bem. Os homens que se aventuravam a navegar tinham medo de ir para longe da costa. Dizia-se que a Terra era plana, que se avançassem muito caíam no abismo, que havia monstros terríveis capazes de engolir de um só trago navios, homens e tudo!

De facto eles sabiam aquilo muito bem. Mas as coisas contadas por ela adquiriam outro sabor.

A estranha mulher do futuro tinha o poder de evocar imagens. Enquanto falava, era como se vissem tudo projectado na frente deles: os navios, os homens, até os monstros levantando-se no meio do mar!

— Já pensaram bem o que foi descobrir o mundo? — E após um instante de silêncio, continuou: — Foi muito mais empolgante do que descobrir o espaço. Os primeiros astronautas eram uma espécie de super-homens, escolhidos entre milhares de candidatos! Só seleccionavam pessoas muito saudáveis, muito equilibradas, inteligentes e bem preparadas para a sua missão. Vocês já viram filmes e séries sobre este assunto, não viram?

— Sim, claro!

— Então sabem de que é que eu estou a falar. Esses primeiros astronautas, os da vossa época, recebiam treino, sabiam para onde iam, eram apoiados da Terra pelos cientistas e pelo mundo inteiro que os seguia pela televisão...

— Eu adorava ser astronauta!

— E é natural. Os astronautas foram os heróis do seu tempo. Exploraram o universo como representantes de toda a humanidade...

— Deve ter sido fantástico, a primeira vez que puseram o pé na Lua! — disse a Ana.

— Ora, ora! Nada que se compare com a primeira vez que os navegadores puseram o pé numa ilha deserta, ou num continente desconhecido! Esses, sim, foram à aventura, sem saber para onde nem o que iam encontrar. E ainda por cima, muitos não queriam ir!

— Não queriam ir?

— Não! Foram obrigados.

— Todos?

— Todos, não. Alguns iam cheios de entusiasmo e cheios de coragem. Havia pilotos habituados ao mar e capitães desejosos de descobrir as terras do ouro. Mas muitos foram obrigados, ou então foram ao engano! E por vezes eram exactamente os menos indicados para partir. Homens doentes, homens fracos, que não sabiam nadar, que enjoavam... devem ter sofrido muito, a bordo de um barco à vela! Mas os que tiveram a sorte de pôr o pé em terras desconhecidas, foi como se desembarcassem no Paraíso!

— Nunca tinha pensado nisso. Mas acho que já estou a perceber que vamos à época dos Descobrimentos...

Orlando, que assistira ao diálogo em silêncio, meteu então a sua colherada:

— Pois vamos. Mas não lhes digo aonde. Sempre quero ver se adivinham onde estão, quando lá chegarem.

Foi quanto bastou para se porem logo os dois a tentar adivinhar...

Mas Orlando levantou-se.

— Têm de esperar aqui um bocadinho. Eu preciso de falar com a minha amiga Misserfal. Fiquem ao pé da lareira, está bem? Eu volto já.

A Ana e o João verificaram de imediato que, se Orlando se deslocava como toda a gente, saindo pela porta em direcção a outra sala, o mesmo não acontecia com a viajante do tempo! Sentada na cadeira, disse-lhes adeus e foi-se esbatendo, esbatendo, até que desapareceu.

A última coisa que viram dela foi um pontinho de luz do mesmo tom alilasado que tinham os olhos.

— Achas que ela se foi embora? — perguntou João.

— Claro que não! Deve ter ido ter com o Orlando a outra sala para falarem em particular!

O João reclinou-se na cadeira e suspirou.

— Ir ao futuro deve ser fabuloso! Confesso que era o que eu gostava mais.

 

Ficaram sozinhos bastante tempo. A noite caíra por completo. As velas a pouco e pouco foram-se apagando e a única luz que iluminava agora o aposento eram as chamas que ardiam na lareira.

Um vago torpor invadiu-os, tomando-lhes primeiro os pés e as pernas, depois o tronco, os braços, o pescoço, até que a cabeça lhes pendeu sobre o peito e adormeceram sem dar por isso.

Talvez fosse do jantar, ou do calorzinho bom, mas a verdade é que, aninhados ao pé do lume, mergulharam num sono muito, mas muito profundo!

Na sala ouvia-se apenas o crepitar da lenha e a respiração compassada dos dois irmãos. Até que uma rajada de vento, vinda sem se saber de onde, fez bater a porta com estrondo. O João acordou sobressaltado.

— Que foi isto? O que é que estamos aqui a fazer? Acorda, Ana! Tu não ouves?

Ela esfregou os olhos e espreguiçou-se.

— Que é que aconteceu?

— Sei lá. Ouvi um barulho.

— Deve ser o Orlando — respondeu, com um bocejo.

— Onde é que ele se terá metido?

— Não faço ideia!

A Ana levantou-se, ainda com os membros entorpecidos, e olhou para o relógio.

— Hi! Já viste que horas são? Estivemos aqui a dormir imenso tempo.

— Pois foi! O Orlando pregou-nos uma partida. A estas horas já podíamos estar a viajar pelo tempo...

— Se fôssemos procurá-lo? — propôs a Ana. — A conversa com a Misserfal com certeza já acabou, não achas?

— Acho! Vem daí comigo, que depressa o encontramos.

De novo cheio de energia, o João abandonou a sala puxando a irmã por um braço.

— O mais provável é estarem na cave.

— Qual cave?

— Ó João! Eu cá por mim só conheço uma cave, é aquela onde guardam a máquina do tempo!

— Tens toda a razão. Mas também te digo uma coisa, se se foram embora e nos deixaram aqui, nunca mais lhes perdoo!

— Eles não faziam isso!

A voz da Ana soou vagamente hesitante, mas o João preferiu ignorar e seguiram escada abaixo, tacteando as paredes à procura do caminho certo.

Na verdade, aquele castelo tinha uma imensidade de salas, salinhas, recantos, escadas, mas enfim, se fossem sempre a descer, haviam de ir ter à cave!

Às escuras, um pouco atordoados ainda pela jantarada e pelo sono interrompido, lá foram andando ao acaso.

E por fim um cheiro intenso a ozono fê-los ter a certeza de que estavam próximos do que procuravam. Mais meia dúzia de passos e o João, estendendo o braço direito, tocou na porta grossa de castanho que dava acesso à cave.

Radiante, avançou, chamando:

— Orlando! Or-lan-do!

Ninguém respondeu. Pela passagem (1) oblíqua que tão bem conheciam, irradiava uma luz intensa. Para lá se dirigiram, e um atrás do outro penetraram na central de comando.

— Meu Deus! — exclamou a Ana, juntando as mãos de encontro ao peito. — Como isto está diferente!

De facto, a parede recoberta de écrans de televisão tinha agora mais uns trinta aparelhos. Os painéis com botõezinhos luminosos, os instrumentos de formas exóticas, as placas de metal de todos os feitios, tinham-se multiplicado na mesma proporção. Não havia dúvida de que a AIVET progredira nos últimos meses!

A Ana estava fascinada, mas o João continuou às voltas pela sala, chamando sempre:

 

(1) Uma Viagem ao Tempo dos Castelos, n.o 1 desta colecção.

 

— Orlando! Or-lan-do! De Orlando, nem sinais!

Perplexos, olharam em redor. E só então viram uma outra passagem oblíqua, muito estreita, na parede do fundo. Foram espreitar, e deparou-se-lhes não uma, mas duas máquinas do tempo estacionadas naquela divisão. No entanto, não foi isso que os impressionou!

A meio da sala, segurando-se de pé como por artes mágicas, estavam três enormes bolhas de ar. Não tinham mais nada além de uma fina película transparente, onde se reflectiam as imagens como numa bola de sabão.

— Oh! Já viste isto? — exclamou o João, assombrado.

— Que maravilha! O que será?

— Não sei — e, hesitando, acrescentou: — Vou tocar-lhes ao de leve.

— Não faças isso...

— Porquê, achas que é perigoso?

— Pode ser. Mas o que me parece é que são muito frágeis. Já pensaste se tocas numa das bolhas e ela rebenta?

— Hum... não creio!

A tentação de avaliar a consistência de tão esquisito material foi mais forte. O João aproximou-se e a Ana não o impediu. No fundo, também ela estava morta por ver o que acontecia!

Ele esticou o braço, que tremia ligeiramente. Recuou, tornou a avançar e foi num impulso que encostou a palma da mão, bem espalmada, de encontro à bolha de ar.

Mas para grande espanto de ambos, não aconteceu nada.

A bolha era flexível, elástica, ia para lá e para cá conforme os movimentos com que a empurravam.! Deformava-se um pouco, para logo retomar o seu formato redondo.

Tudo aquilo era surpreendente! Mas o mais estranho de tudo era a temperatura. Morninha e agradável como uma pele.

— Toca aqui, Ana! É tão macio!

A ideia sorriu-lhe. Mas como tinha medo, experimentou primeiro só com o polegar. Depois com o polegar e o indicador. A seguir, aplicou a palma da mão esquerda. Depois as duas mãos. E a bolha sempre a balançar para cá e para lá, complacente, sem se estragar nem fazer ruído.

— O que será isto? — disse a Ana muito baixinho.

— O que será isto? O que será isto? — repetiu o João.

Encostaram-se um de cada lado, a rir e a fazer caretas para as feições deformadas que viam através da película.

A brincadeira prolongou-se, até ao momento em que por acaso deram com os olhos num varão também transparente, de onde estavam suspensos cabides metálicos com roupas de outro século.

O João até corou de prazer.

— Ana! Olha! Estão ali as roupas para irmos viajar!

— Onde?

— Aqui! Anda ver!

É claro que não pensaram mais nas bolhas de ar, ansiosos como estavam por partir à aventura. Se se vestissem, logo que o Orlando aparecesse podiam ir-se embora sem mais delongas.

E foi isso que fizeram. A roupa parecia feita por medida! O velho cientista já da outra vez tinha encomendado tudo impecável. Só que agora as roupas eram muito mais bonitas! Ricas, mesmo.

— Está-me cá a parecer que vamos passar por nobres — disse a Ana com um sorriso de orelha a orelha, enquanto enfiava a sua camisa de linho.

— De que século será isto?

— Não faço a menor ideia! Mas é tudo muito elegante.

O João concordou. Vaidoso como era, quanto mais enfeites e adornos melhor! O seu guarda-roupa era muito completo e fora do vulgar.

As calças, bastante justas, tinham uma perna de cada cor e eram bordadas a fio de prata. Por cima das calças, havia de vestir o saio azul, espécie de túnica larga que se prendia com um cinto de fivela trabalhada.

Como acessórios, dispunha de botas altas, um gorro e um punhal para prender à cintura.

— Que tal? Estou bem? — perguntou à irmã, com cara de quem se vê ao espelho.

— Estás óptimo. E eu?

A Ana girou sobre si mesma, para fazer dançar a saia comprida e ampla. O coletinho ajustava-lhe a camisa ao peito, e também ela usava cinto, mais fino, com fivela de prata. Pelos ombros, tinha posto o manto que a fazia sentir-se uma autêntica princesa. Bem como o toucado, que era lindíssimo!

Tão contentes estavam e tão entusiasmados com a perspectiva da viagem, que deram um grande abraço!; Em seguida, o João com ares misteriosos retirou do bolso dois anéis e um medalhão.

— Olha o que eu achei, Ana... Vamos mesmo pas- sar por nobres!

De facto, aquelas jóias só podiam ser de alguém muito importante e rico!

O medalhão tinha uma efígie gravada no ouro. E os anéis exibiam símbolos em forma de animais muito bem feitinhos.

Cada um pôs o seu.

E, impacientes por se verem em pormenor, plantaram-se diante das bolhas de ar, já que não encontraram outro espelho.

— Não achas que isto me faz gorda? — perguntou a Ana, cuja imagem aparecia mais larga no arredondado da bola.

— Que disparate! — troçou o João. — Não vês que é do espelho?...

— Qual?

— Este!

E com um gesto desajeitado, empurrou-a para a frente. Ela desequilibrou-se, e para não cair agarrou-lhe uma manga com toda a força... Só que escorregaram os dois e precipitaram-se de encontro à superfície elástica. O peso foi excessivo. E, sem perceberem como, sentiram-se sugados lá para dentro, para o vácuo.

Nem tiveram tempo de gritar! A bolha fechou-se sobre eles. Ouviram um assobio agudo, como quando o vento sopra por uma frincha. A bolha pulsou como um coração, primeiro devagar, depois cada vez mais depressa, e disparou pelos séculos fora, carregando consigo os dois irmãos.

 

A Ana e o João, arrastados para o desconhecido naquele invólucro misterioso, perderam a noção de tudo, até do movimento!

Incapazes de pensar, de raciocinar, de sentir outra coisa para além da vertigem que lhes espremia ao mesmo tempo o cérebro e o estômago, abandonaram-se à sua sorte. As forças fugiram-lhes do corpo como se saíssem pela ponta dos dedos.

Antes de perderem os sentidos, a Ana teve uma vaga ideia de que corriam o perigo de se desintegrarem, pois não se recordava de ter posto o cinto protector (1)• Tentou ainda agarrar carinhosamente o braço do irmão para lhe fazer sinal de despedida mas, ou porque estava confusa e sem energia, ou porque o pior já tinha acontecido,

 

(1) Uma Viagem ao Tempo dos Castelos, n.o 1 desta colecção.

 

em vez de sentir o volume do braço teve a sensação de atravessar um campo de partículas magnéticas.!

Depois, mergulhou na escuridão.

Quanto tempo teria estado desligada da vida? Que mecanismo fantástico a arrastara pelos séculos fora? E onde teriam afinal ido parar?

A primeira impressão que teve foi terrível! Doía-lhe muito o corpo, que era atirado num balanço infernal contra uma superfície dura e húmida. Ouviam-se ao longe gritos de terror, abafados por um rugido tremendo.

A Ana concentrou todas as suas forças na tentativa de abrir as pálpebras. Mas não conseguiu. Os olhos pareciam colados nas órbitas. Estaria a sonhar?

O balanço tornava-se cada vez mais forte, e um estampido atordoou os ares. Aos gritos humanos juntou-se o inesperado balir de uma ovelha. «Bééé...»

«Devo estar louca!», pensou. «Ou então este é o pior pesadelo da minha vida! Tenho de acordar! Tenho de acordar!»

As forças voltavam e o sangue parecia correr-lhe de novo nas veias... Num impulso, conseguiu finalmente abrir os olhos e levantou-se de repelão, ficando de imediato atordoada. Estavam num barco!

O João jazia inanimado no meio de várias pipas. E o barco corria à deriva, arrastado por uma tormenta sem fim.

— Socorro! — gritou apavorada.

Mas nem ela conseguiu ouvir a sua própria voz!

Caiu então de joelhos e foi-se arrastando até junto do irmão. Estaria morto?

O corpo inerte oscilava para um lado e para o outro ao sabor da tempestade.

O mar enlouquecido levantava-se em ondas negras, medonhas. E abatia-se com fragor sobre o barco, reduzindo-o às dimensões de uma casca de noz.

A escuridão impedia-a de ver os viajantes, mas alguns vultos agitavam-se bradando aos céus em grande alarido:

— São Vicente e Santa Bárbara nos protejam! — berrou uma mulher.

O que os outros diziam não se percebia, mas de vez em quando o nome de um santo sobrepunha-se àquele estranho coro em que se misturavam gemidos humanos e vozes de animais!

Aterrada, a Ana virou-se para trás no momento exacto em que uma vaga imensa rebentou sobre o barco, varrendo-o de ponta a ponta. Era inútil oferecer resistência. Encharcada, rebolou com toda a força direita ao João. E o embate acordou-o.

Atarantado, ele balbuciou qualquer coisa ininteligível. E pensando que iam morrer naquele temporal, abraçaram-se, escondendo a cabeça no ombro um do outro.

De novo um estampido cortou os ares, e vários riscos de luz iluminaram o horizonte. Uma chuva torrencial desabou sobre eles, e um balanço mais forte atirou-os de encontro à amurada. Desesperados, agarraram-se à borda de madeira, lutando para não caírem ao mar. Mas a água tornava tudo escorregadio...

— Segura-te, João! Segura-te, João!

A sorte de ambos foi terem-se quebrado as cordas que seguravam a pilha dos tonéis. Alguns escaqueiraram-se logo de encontro à amurada, espalhando sementes e vinho por toda a parte. Mas um arco de metal encravou numa saliência e serviu-lhes de apoio quando o barco se inclinou perigosamente, quase a pontos de virar.

Em vez deles, quem saiu pela borda fora foi uma pobre ovelha, que ainda baliu antes de desaparecer no meio das ondas.

Quase no mesmo instante, amainou a tempestade.

A mulher, que ainda há pouco gritava por Santa Bárbara, parou de se benzer e levantou os braços ao céu, cruzando os dedos como quem faz figas.

— Foi a ovelha! Foi a ovelha! O mar já está satisfeito com a minha rica ovelha e vai deixar-nos em paz!

Ninguém lhe respondeu, pois, tão perto de perder a vida, pouco lhes importava que a mulher falasse de santos ou de feitiçaria.

Caídos no chão, encharcados até aos ossos, os dois irmãos foram recuperando a serenidade. Tinha parado ] de chover. O mar ainda encrespado ia amainando e o vento já não soprava com tanta força. As figuras humanas recortavam-se numa claridade ténue, mas eles levaram o seu tempo a perceber que amanhecia.

Um homem pequenino, de barrete encarnado na cabeça, que devia ser o piloto, tomou o comando das operações e, com gestos firmes, mandou desembrulhar e içar as velas nos dois mastros daquela embarcação. Os outros obedeciam-lhe sem hesitar. Assim que o pano se endireitou, o barco disparou, correndo a direito, como se fosse conduzido por mão invisível. Os homens festejaram então com gritos e gargalhadas, abraçando-se em grande festa.

E quando os primeiros raios de Sol se derramaram sobre o barco, eles puderam então ver que três mulheres e duas crianças, aninhadas num canto, não pareciam acreditar que tudo tinha passado pois choravam desabaladamente. Uma menina pequena soluçava, apertando contra si um pombo cinzento. Tudo aquilo era estranho, diferente, irreal.

O João levantou-se e agarrou a escada de corda que pendia do mastro, inclinou a cabeça e olhou para cima. Bem no alto, o cesto da gávea, onde os marinheiros subiam para perscrutar o horizonte, parecia chamá-lo...

A Ana percebeu logo as intenções do irmão e esboçou um gesto para o deter. Mas, como de costume, ele não se deu ao trabalho de pensar antes de agir. Ágil como um macaco, trepou por ali acima, instalando-se no posto de vigia.

Nem de propósito! Mal ali chegara, o recorte inequívoco de uma ilha destacou-se ao longe. A alegria que sentiu foi de mais! E imitando o que tantas vezes vira fazer em filmes de piratas, abriu os braços e gritou:

— Terra à vista! Terra à vista!

A irmã olhou-o, sufocada de emoção. Só naquele momento percebeu que tinha atravessado a tempestade sem verter uma única lágrima. Mas agora corriam-lhe a quatro e quatro pela cara abaixo. Como todos os outros, foi até à proa do barco, tentando ver a terra anunciada.

A linha da costa aproximava-se deles ao ritmo do vento. E os gritos de entusiasmo misturavam-se com o barulho agora suave das ondas. Um respingo de espuma salgada veio juntar-se ao seu choro, que era feito de medo, de susto, de alívio e de espanto. E sem saber porquê, lembrou-se então de um verso que tinha ouvido alguém dizer:

 

Ó mar salgado,

Quanto do teu sal

São lágrimas de Portugal.

 

Já estavam muito perto da baía, que não podia ser mais acolhedora! Um vale imenso, largo, verdejante, rodeado por uma cadeia de montanhas, ainda com ar bastante selvagem. Mas aqui e ali, no entanto, já se viam casas cobertas de colmo, uma igrejinha e campos lavrados.

No porto, estava ancorada uma embarcação, também de madeira, maior do que aquela onde viajavam, com dois mastros e dois cestos de gávea.

O piloto suspirou de alívio.

— O barinel (1) chegou antes de nós! Receei que se tivesse perdido na tempestade.

— Salvámo-nos todos, graças a Deus! — respondeu alguém.

 

(1) Antiga embarcação movida a remos e à vela usada no Mediterrâneo e na navegação costeira do Atlântico.

 

— Eu bem encomendei a barca a São Vicente e Santa Bárbara... e eles não me deixaram ficar mal. Venho a rezar desde que saímos de Lagos, pedindo que nos protegessem a todos, aos que vínhamos aqui e aos do bari-nel, que não me esqueci deles!

A conversa decorria animada entre os tripulantes e os passageiros. Todos pareciam contentes e ansiosos por pôr o pé em terra firme. Talvez por isso ninguém se preocupou em perguntar-lhes quem eram e por que artes tinham aparecido a bordo.

Ou melhor, só a menina que transportava consigo o pombo cinzento não desfitava os olhos deles. A mãe, inquieta com medo de que a filha tivesse perdido a fala com o susto, tentou animá-la com muitos carinhos e afagos.

— Vês que já cá estamos, Everilde? O teu pai vai ficar tão contente quando nos vir... estou morta por o abraçar... Havemos de ser muito felizes os três aqui em Porto Santo.

Um dos marinheiros riu-se.

— Desiluda-se, tiazinha! Isto não é Porto Santo.

— Não é? Então onde é que viemos parar?

— A tempestade arrastou-nos para o Sul. É a ilha da Madeira. E já que cá estamos, desembarcam primeiro os que vêm para aqui.

A Ana e o João trocaram um olhar de entendimento.

— Combinámos tantas vezes ir ao Funchal (1) com o pai e afinal acabámos por vir sozinhos — disse o João em voz baixa.

 

(1) Uma Visita à Corte do Rei D. Dinis, n.o 2 desta colecção.

 

A Ana ia a responder, mas o diligente marujo que a todos dava informações explicou de novo:

— Desiludam-se também. Isto não é o Funchal, é o Machico...

A Ana encolheu os ombros. No final de contas, um sítio ou outro, tanto lhe fazia. A única coisa que a perturbava naquele momento era não sentir absolutamente nada: nem alegria, nem tristeza, nem curiosidade, nem inquietação quanto ao futuro. Só queria sair do barco e que se esquecessem dela! Precisava tanto de descansar!

Mas o irmão não partilhava desses sentimentos. Com o seu olho vivo, muito debruçado na amurada, já devia ter congeminado um plano qualquer para se orientar, e que provavelmente lhes traria as maiores complicações.

A barca ancorou um pouco ao largo e os passageiros dispuseram-se a tomar lugar nos batéis. O João foi o primeiro a descer, acotovelando toda a gente. A Ana estava incapaz de lutar fosse pelo que fosse, e aguardou. Mas, para seu grande espanto, as pessoas afastaram-se para ela passar à frente e um marinheiro ajudou-a com mil cuidados e deferências.

O João piscou o olho, e chegou-se para ela.

— Isto de viajar pelo tempo com roupas e jóias dos nobres é muito agradável, hã? Agora não te desmanches.

Ela sorriu-lhe apenas, incapaz de articular palavra, pois sentia-se enjoadíssima. O batel ainda balançava mais do que a barca, pelo menos pareceu-lhe. Seguiram para terra com outros passageiros e dois marujos a remar vigorosamente. Em todas as caras bailava uma certa ansiedade, procurando alguém conhecido no cais. Todos menos eles eram colonos que vinham instalar-se numa terra novinha em folha, e por certo ainda mal conhecida. Era preciso coragem e espírito de aventura para abandonar a casa, a aldeia, o mundo onde tinham vivido até aí e meterem-se em frágeis embarcações dispondo-se a começar tudo de novo numa ilha perdida no meio do mar, da qual lhes teriam contado histórias que tanto podiam ser verdadeiras como fruto da imaginação. Ao lado da Ana sentava-se um rapaz de idade indefinida. Como todos os outros, estava encharcado, e tinha a barba por fazer. Vinha só, não falava com ninguém, e nos seus olhos claros havia mais do que tristeza. Medo, talvez. As mãos eram brancas e esguias, de dedos finos. Não devia estar habituado a trabalhar no campo.

— É muito bonita esta terra que eu descobri! — exclamou de repente o João, fazendo com que todos o olhassem surpreendidos. Mas ele não se atrapalhou: — Quem é que vinha no cesto da gávea, não era eu?

Alguns riram-se e ele, todo satisfeito, levantou-se para ser também o primeiro a pôr o pé em terra.

O que lhes iria acontecer naquela ilha? Optimista como sempre, partiu do princípio de que a solução havia de vir ao seu encontro sem se fazer esperar. E às vezes o impossível acontece. Logo que saltou do batel, um homem alto e entroncado enfiou-se pela água acenando alegremente.

— Ora ainda bem que chegaram, Vossas Senhorias! Isto às vezes abana muito pelo caminho, mas acaba por chegar!

Pelos vistos estava ali outro optimista. O João e ele entenderam-se às mil maravilhas desde o primeiro olhar.

O homem curvou-se respeitosamente diante dos dois irmãos apresentando-se:

— Eu chamo-me Álvaro. Sou o criado que D. Gon-çalo Aires mandou para vos receber.

A Ana e o João entreolharam-se sem saber o que pensar. O melhor era não fazerem perguntas. O homem estava tão seguro de que eles eram quem procurava, que bastava deixá-lo proceder como entendesse.

A primeira coisa que fez foi tomar a Ana nos braços e ir depositá-la na zona seca do areal. Depois arregaçou as mangas, disposto a ir buscar toda a bagagem, e eles puderam verificar que tinha os braços cobertos de manchas rosadas, tal como a cara e o pescoço.

— As arcas? São muitas? Talvez seja melhor pedir ajuda a um dos marujos para trazer tudo para terra.

A Ana engoliu em seco.

— As arcas? A...

Sem se dar por achado, o João respondeu logo:

— As arcas? A esta hora devem estar todas no fundo do mar! A tempestade foi tão grande que por pouco não morríamos também.

O homem olhou-os, contristado. Mas o João, já radiante por se sentir a viver o papel de outro personagem, virou-se de costas para a irmã e pôs-se a contar histórias.

— Sabe lá você o que se perdeu! Só arcas, eram dezoito! E os presentes que trazíamos? Panos, coisas de ouro e prata e... e... e pedras preciosas! Mais o nosso Flecha Negra, coitadinho! Morreu afogado. — E já de lágrima ao canto do olho, por causa de um cão que acabara de inventar, ainda acrescentou: — Era um cão de fila como nunca vi outro para a caça! Foi pela borda fora com uma ovelha branca...

O criado agitou-se com pena deles, sobretudo da Ana, que parecia muito aflita, e resolveu animá-los: — Ora, ora! Não pensem mais nisso. O meu amo, Gonçalo Aires, não quer saber de presentes. O que ele quer é ter-vos cá sãos e salvos. E vai dar-lhes tudo o que perderam a dobrar, que ele é um homem generoso e bom. E se gostam de caçar, vão ter muito com quem. Um dos filhos do capitão Tristão Vaz caça como mais nenhum. Por agora vamos é tratar de comer!

A Ana estendera-se ao comprido no chão, que ainda lhe parecia flutuar. Não tinha fome nenhuma e só queria dormir.

Álvaro, carinhosamente, propôs-lhe que se deixasse ficar ali descansando, enquanto ele ia arranjar peixe e talvez biscoito.

O João arrebitou logo a orelha.

— Biscoitos? Isso é que vinha mesmo a calhar. Fica aqui, Ana. Eu vou com o Álvaro.

Todo lampeiro, seguiu-o para o local onde os marinheiros descarregavam tonéis cheios de sementes, de vinho, e alguns com grandes peças de pano lá dentro. Usavam aquela embalagem para, em caso de naufrágio, terem mais hipóteses de salvar a mercadoria.

Os colonos já estavam todos em terra, e com eles os animais que traziam; uma vaca, alguns borregos e seis porcos que grunhiam desesperadamente.

Álvaro dirigiu-se a um marujo e perguntou:

— Sobrou-vos alguma pipa de biscoito?

— Sobrou, sim, mas só aquilo que ali está! — respondeu ele, apontando um tonel escaqueirado.

O João aproximou-se e a desilusão foi completa. Lá dentro, em vez dos apetitosos bolinhos que esperava encontrar, havia uma papa feita de farinha e água salgada.

— A tempestade deu-nos cabo do almoço! — exclamou, desanimado.

— Que pena! — disse Álvaro. — Isto, quem andou muito no mar, fica sempre com saudades do biscoito. Aqueles pães redondos, cozidos duas vezes para ficarem bem secos e aguentarem a viagem, são duros, mas sabem muito bem! Pelo menos quando a fome aperta.

À palavra fome, o rapaz das mãos esguias, que ali estava sentado no chão, reagiu vivamente. O João e Álvaro repararam nele.

— Também tens fome?

— E não é pouca — suspirou.

— Não tens ninguém à tua espera?

— Não.

— E vens sozinho?

— Venho.

O João percebeu que os modos do rapaz causaram estranheza ao seu companheiro, que perguntou:

— Por que é que vieste aqui para a ilha?

Ele não respondeu logo. De olhos baixos, pôs-se a fazer riscos na areia com um pauzinho.

— Não ouves? — insistiu Álvaro. — Vieste para a ilha porquê?

— Estou aqui para trabalhar.

— Trabalho não falta. Tens algum ofício?

— Sou... sapateiro.

— Ah! Isso é bom, porque só cá temos dois. Trouxeste ferramenta?

— Trouxe. Mas perdi tudo na tempestade. As minhas caixas foram pela borda fora.

Ao ouvir aquilo, o João até pestanejou. Quando se tem um problema, percebe-se muito mais depressa os problemas dos outros. Sobretudo se forem iguais! O rapaz devia estar a mentir. Mas porquê? O mais certo era ter alguma coisa para esconder.

Fitou-o com redobrada atenção e, tal como a Ana há pouco, reparou que nos seus olhos havia medo. Muito medo. E ficou com pena dele.

 

Acabaram por passar o dia no Machico porque a Ana adormeceu profundamente e eles preferiram não a acordar. Estava um sol magnífico, a atmosfera límpida e fresca. Quase custava a crer que na noite anterior tivessem sofrido os terrores da tempestade.

— Isto é mesmo assim — explicara Álvaro, orgulhoso da sua ciência de velho marinheiro. — A bonança segue a tormenta! Muitas vezes assisti a mudanças como esta... por exemplo, quando descobrimos a Madeira, sabe Deus! Alguns iam morrendo de susto!

— O senhor vinha com os descobridores? — perguntou o João, de olhos arregalados.

— Vinha, pois! Eu sou um homem da primeira hora. Estou ao serviço do meu amo há muitos anos, e nunca me afasto de ao pé dele. Para onde ele for, eu vou também!

— Ah, pois! Gonçalo Aires — balbuciou João.

— Um grande homem! Ele é um dos companheiros preferidos do capitão Zarco.

A conversa decorria na praia, junto de uma fogueira onde Álvaro e o rapaz dos olhos tristes, que se apresentara como sendo Diogo de Lagos, assavam peixe espetado nuns pauzinhos. Álvaro estava visivelmente satisfeito por ter quem o escutasse. Era muito conversador e não se cansava de contar histórias, dando sempre que possível um papel importante a Gonçalo Aires.

Os colonos já tinham seguido para casa dos parentes que os aguardavam. E as duas mulheres que iam para Porto Santo não quiseram esperar e meteram-se num batel de pescadores que para lá se dirigia.

Na praia brincavam várias crianças da minúscula vila do Machico. Algumas acabaram por se sentar em círculo, à volta da fogueira, para ouvirem também, pois Álvaro tinha o verdadeiro talento de um contador de histórias.

Quando estavam no melhor da festa, passou por ali um homem que acenou de longe.

— Eh, Malhado! Estás a entreter a miudagem? Ele acenou-lhe também, e riu-se.

— Miudagem é cá comigo. Quantos mais, melhor! O que eles precisam é de ouvir histórias de gente corajosa, para se fazerem corajosos também!

— Mas foi preciso assim tanta coragem para virem do Porto Santo à Madeira? — duvidou o João. — Fica perto...

Álvaro franziu o sobrolho e endireitou-se.

— Fica perto? Isso é agora, que já se sabe como é que as coisas são. Depois de os primeiros descobrirem tudo, aparece logo quem venha atrás a dizer que é fácil!

O João apressou-se a concordar. Era melhor não pôr em questão as façanhas que ele relatava, pois ofendia-se.

E Álvaro embalou, entusiasmado:

— Já tínhamos descoberto a ilha do Porto Santo (1)• Mas de lá para cá não se via nada. Isto era um negrume que saía do meio do mar, um nevoeiro medonho, muito escuro! Alguns afiançavam que aqui é que eram as portas do inferno... e tinham um medo que se pelavam! Nem queriam ouvir falar em virem até aqui!

— Então por que é que vieram?

Com um sorriso superior, o velho marinheiro respondeu:

— Porque nem todos têm medo. O capitão Zarco é um homem como há poucos. Quando se lhe mete uma ideia na cabeça, não há quem o desvie... Foi num domingo, antes do nascer do Sol, que nos fez ir todos para os navios, teimando em ver de perto o que era aquele negrume...

— E depois?

Depois de Lagos ousara fazer uma pergunta!

— Depois? Encomendámo-nos a Deus e lá viemos. Mas ali perto do meio-dia deu um pavor a todos que nem queiram saber! Ouviam-se uns roncos espantosos, ondas e mais ondas a rebentar, mas não se via aonde, porque o nevoeiro era negro e cerrado como poucas vezes encontrei...

 

(1) A descrição da descoberta da ilha da Madeira encontra-se na parte final deste livro, na p. 161.

 

— E não fugiram?

— Fugir? Bem tentaram os marinheiros! Até houve quem se pusesse de joelhos a pedir ao capitão: «Vamos voltar para trás! Vamos voltar para trás, ai que caímos no inferno...», mas ele não quis ouvir nada. Nem ele nem o piloto, verdade se diga! O meu amo Gonçalo Aires tem isto tudo escrito lá num papel... (1)

— E o senhor, não tinha medo?

— Eu?

Pela primeira vez, pareceu hesitar. Mas depois deu uma gargalhada.

— Estava apavorado. Julguei que era o último dia da minha vida. Mas com medo ou sem ele, meti-me num batel com o meu amo para rebocar o navio através do nevoeiro. E lá fomos avançando, avançando... pensava eu que avançávamos para cair no inferno!

A expressão de Álvaro era tão cómica que largaram todos a rir.

— Estão-se a rir? Também a gente riu... quando mais adiante nos vimos chegados a uma ilha tão formosa. Parecíamos um bando de miúdos aos gritos e aos abraços, troçando de nós mesmos por termos tido medo desta terra abençoada!

O som das vozes, misturadas com o barulho do mar, chegou aos ouvidos da Ana, ainda meio adormecida. Mexeu-se ligeiramente e sentiu um formigueiro esquisito na cara e nos braços.

 

(1) Ao que parece, a primeira narração da descoberta da Madeira foi feita por Gonçalo Aires. O manuscrito serviu de base a vários historiadores, mas hoje não se lhe conhece o paradeiro.

 

Abriu um olho e logo se levantou, estarrecida! Estava coberta de lagartixas verdes, que passeavam alegremente por cima dela. Mas, sacudindo-se, fugiram logo e foram instalar-se numa rocha adiante, onde estavam muitas, muitas mais! E todas igualmente inofensivas.

Quando a Ana acordou ia a história a meio. Olhou o irmão no meio dos outros, mas durante alguns momentos não se conseguiu lembrar de nada relacionado com a sua estranha viagem. Que sítio era aquele? Que roupas? Que gente? A pouco e pouco a memória fez o seu papel.

Estonteada, levantou-se e foi para ao pé deles, segurando nas saias para não tropeçar. Sentia um peso horrível no peito, uma angústia pavorosa, tal era o medo de nunca mais poder sair dali.

Mas o irmão nem reparou! Já se integrara no grupo, e quem o visse diria que tinha nascido naquela ilha!

Irritada, chamou-o de parte:

— És um perfeito inconsciente! Estás aí todo satisfeito, parece que não temos problema nenhum!

— Ó Ana, acordaste maldisposta? Qual é o problema? Ninguém desconfia de nós...

Uma raiva imensa subiu-lhe do peito. Aquele rapaz era completamente louco.

— Já viste a situação em que estamos? Como é que pensas voltar para casa? Hã?

— Eu? Muito fácil. Na máquina do tempo.

— Ah, sim? E onde é que ela está, podes dizer-me?

— Ó Ana, deixa-te de tragédias. O Orlando não tarda aí a vir-nos buscar.

— E como é que ele sabe onde nós estamos? Tens alguma ideia?

— Tenho. Acho que ele sabe. Devia ter as «bolas» reguladas para esta época. E se não souber, pergunta! Tem os cientistas todos da AIVET para o ajudar!

— Pois, estou a ver. Para ti, são tudo facilidades.

— E para ti, são tudo dificuldades! Deixa-te disso, Ana! Não sabes gozar a vida. Olha, anda mas é comer peixe grelhado nas chamas que é muito bom.

Desarmada por tão boa disposição, acabou por segui-lo. Álvaro apressou-se a servi-la e propôs:

— Se quiserem, podemos pernoitar aqui no Machico. Já é tarde, e até às terras do meu amo ainda há muito que andar e que subir...

— Vamos a pé? — perguntaram em coro os dois irmãos.

— Vamos, sim. Burros e cavalos só vêm no Verão, e os que há na ilha são poucos. Não chegam para as encomendas. Tinha-se combinado que mandavam um batel buscar as arcas, mas só para o mês que vem. Também há falta de barcos...

— Nesse caso, passamos aqui a noite. Eu não me sinto capaz de fazer escaladas! — exclamou a Ana, deitando um olhar de desânimo às elevações que se erguiam em redor.

Álvaro dispôs-se logo a ir pedir guarida a casa de Tristão Vaz Teixeira, que por certo receberia bem os parentes de Gonçalo Aires. Eles concordaram. Mas quando se preparavam para abandonar a praia, voltou a chamar-lhes a atenção o silencioso e triste Diogo de Lagos que obviamente não tinha para onde ir. Foi o próprio Álvaro quem se compadeceu e o convidou:

— Anda daí connosco. Um bom sapateiro faz sempre falta na casa de um senhor. Até talvez possas ficar

aqui, que a capitoa (1) Dona Branca Teixeira deu a Tristão Vaz nada menos que quatro filhos varões e mais oito filhas! Só à conta da família, são vinte e quatro pés para calçar!

E, soltando uma gargalhada, fez sinal para que o seguissem.

Diogo de Lagos aceitou o convite, mas não pareceu muito entusiasmado com a perspectiva de fabricar sapatos e botas para tanta gente. Pelo menos foi o que pensou a Ana, que o observava de soslaio. Era tão estranho, aquele rapaz!

Todos juntos, enfiaram por um carreiro de terra batida. E como ninguém falasse, Álvaro interpretou o silêncio à sua maneira:

— Se calhar, estão com saudades da terra, hã? Mas aqui na ilha não se querem tristezas! Logo à noite conto mais histórias para animar. Talvez gostem daquela do inglês, que deu o nome à vila. Chamava-se Machim. Estão a ver? Machim, Machico! (2)

 

(1) Nos documentos dos séculos XV e XVI as mulheres dos capitães são referidas como capitoas.

(2) A lenda do Machim encontra-se na parte final deste livro, na p. 157.

 

A casa de Tristão Vaz era surpreendente. Aliás, não era uma, mas duas casas.

Quando se instalou na ilha, o capitão mandara construir, como todos os colonos, uma casa provisória de madeira com telhado de colmo. Depois, com mais vagar, começou a erguer mesmo ao lado a habitação definitiva, em pedra. Tratava-se esta de uma construção ampla, onde vivia confortavelmente com a mulher, os seus doze filhos e vários criados. Mas como não dispunham ainda de telhas, a cobertura mantinha-se de colmo, o que lhe dava o aspecto simpático, acolhedor, de uma capa de livro de histórias.

No entanto, mais do que o aspecto exterior ou interior da casa, o que mais os surpreendeu foram os próprios moradores. Eram tantos, de todas as idades e tão alegres que criavam à sua volta um ambiente invulgar.

A capitoa, Dona Branca Teixeira, era uma mulher forte e sadia, de bochechas encarnadas e o cabelo já grisalho agarrado numa trança que desaparecia dentro do toucado.

Andava cá fora a deitar comida aos patos e galinhas, que circulavam à sua volta em inteira liberdade. E cantarolava versos de outros tempos:

Bailemos nós já todas três ai amigas...

Logo que reparou neles, a cara abriu-se num grande sorriso, mesmo antes de ter reconhecido Álvaro.

Não era para admirar que tivesse tido tantos filhos, pois a sua figura redonda e bem-disposta era a perfeita imagem da mãe. As crianças deviam sentir-se confortáveis, embaladas por aqueles braços roliços e quentes.

— Ó Álvaro! Há quanto tempo não aparecias por cá! Vieste com o teu amo? Não, já vejo que não — acrescentou, olhando-os um por um. — Quem são estes companheiros?

Álvaro, depois de cumprimentar respeitosamente a senhora, explicou quem eles eram e ao que vinham.

— Claro que podem pernoitar em minha casa — exclamou, toda sorridente. — Aqui somos tantos que há sempre lugar para mais um! E então quando vêm bem acompanhados, com gente boa como este Álvaro, o Malhado, melhor ainda! Entrem! Entrem, que precisam de repousar.

Naquele momento abriu-se a porta de par em par e saíram duas rapariguinhas a correr.

— Mãe! Mãe! — gritava a mais pequena. — A Solanda não me deixa cozinhar! Ela é que quer fazer tudo e eu não faço nada!

Solanda, afogueada da corrida, interpôs-se entre a irmã e a mãe, gesticulando:

— Eu disse que hoje era eu! Que era só eu! Nunca posso fazer nada que ela não venha atrás a querer fazer também!

A mãe soltou uma gargalhada, e ergueu a mais pequena por baixo dos braços, escarranchando-a na cintura.

— Está resolvido, Ana. Hoje vais ajudar a tua irmã

Catarina a fiar, combinado?

Solanda virou costas, toda contente por ver o assunto resolvido a seu favor, e correu para dentro de casa. Mas antes de entrar, olhou para trás e deitou a língua de fora à irmã, que se pôs aos gritos.

Pelos vistos, aquela cena caseira repetia-se pelos séculos fora, sem alteração apreciável!

A mãe abanou a cabeça.

— Andam sempre nisto, mas o que é que eu hei-de fazer?

E sem se ralar mais, conduziu-os pelas traseiras, em busca de Catarina.

Mas aí, uma surpresa os esperava. O compartimento destinado aos trabalhos de fiação e tecelagem estava cheio de raparigas que tagarelavam animadamente em volta de um pano que bordavam em conjunto. Discutiam qualquer coisa, que devia ser segredo, pois logo que viram a mãe calaram-se todas ao mesmo tempo e algumas ficaram muito coradas.

Houve um silêncio breve e depois Dona Branca perguntou com ar severo:

— Onde está Catarina?

— A...

— Ela vem já.

— Sim, creio que não demora!

A mais velha de todas tentou ainda disfarçar,! metendo conversa com eles:

— Já vejo que temos visitas — disse, largando a agulha e linhas. — Vieram do reino?

Foi a vez de João e a Ana ficarem corados. De facto, vinham do reino... mas a viagem iniciara-se cinco séculos mais tarde, e nem que estivessem ali o resto da vida conseguiriam explicar-lhes tudo a respeito de Orlando e da máquina do tempo!

Felizmente, a rapariga não insistiu e fez as apresentações.

— Eu sou Tristoa, a filha mais velha... e estas são as minhas irmãs Isabel, Guiomar, Branca...

A mãe interrompeu, zangada:

— Não disfarces mais, Tristoa! Onde se meteu a tua irmã Catarina?

Ela baixou os olhos e não respondeu. Aquela atitude deixou-os perplexos. Qual seria o problema? Dona Branca não explicou e saiu de rompante.

— Deixa, que eu já lhe digo... Apanha o pai fora, e é isto! — ouviram-na resmungar.

Logo que desapareceu, as raparigas agitaram-se.

— Desta vez é que ela não escapa! — suspirou Branca, apertando as mãos de encontro ao peito, muito aflita. — Valha-nos Deus!

Álvaro, que as conhecia e estava mais à vontade, acabou por perguntar:

— O que é que se passa com a vossa irmã?

Foi Isabel quem falou. Era miúda, magrinha e muito morena. Os olhos pareciam duas contas pretas e tinha um tique. No fim de cada frase, humedecia a boca com a ponta da língua.

— A Catarina anda a namorar às escondidas um tal Diogo Barradas e o pai não gosta. Mas não há quem lhe tire o rapaz da cabeça!... Perdeu-se de amores. Quando o pai está cá, ainda tem algum respeito. Agora quando ele sai... aproveita!

A Ana sorriu, concluindo que a questão dos amores também não tinha mudado muito ao longo dos séculos!

— O pai farta-se de fazer ameaças. Diz que o prende, que o mata, sei lá (1).

Álvaro abanou vivamente a cabeça.

— Então é melhor acautelarem-se. O vosso pai não é para brincadeiras. Quando toca a fazer justiça, é muito severo! E aqui estamos longe do reino, torna-se difícil apelar para o rei.

— Sim, sim! Nós sabemos isso muito bem. O pai até já teve problemas o ano passado — disse Tristoa baixando a voz. — Queria mandar matar um ladrão. A gente bem lhe lembrou que a pena de morte só o rei pode aplicar... mas ele parecia um toiro furioso a rugir pela casa.

 

(1) O que aconteceu a Catarina e a Diogo Barradas vem relatado na parte final deste livro, na p. 181.

 

— Ele odeia ladrões!

— E não só ladrões. Odeia que lhe desobedeçam! O João ouvia a conversa, mantendo-se à parte, mas sempre a observar tudo e todos. Por isso deve ter sido o único a reparar que Diogo de Lagos empalidecera ao ouvir a palavra «ladrão». Teria ele roubado alguma coisa? Mas o quê, se não trazia nada consigo, além da roupa e dos sapatos? Bom, pensando melhor, não era bem assim. Sobre os seus ombros frágeis pesava um fardo terrível. Um segredo que não podia partilhar com ninguém! Compadecido, olhou-o então de alto a baixo e decidiu:

«Se ele precisar da minha ajuda para qualquer coisa, eu dou-lha! Mesmo que seja um ladrão. Se ele está tão triste é porque se arrependeu!»

E considerando que a decisão que acabava de tomar era correcta e justa, sentiu-se muito contente consigo próprio! Só era pena que os outros nada soubessem acerca dos seus elevados pensamentos. Mas na primeira oportunidade, não deixaria de os informar!

Respirou fundo e aproximou-se das meninas, que tinham retomado o trabalho para lhe darem os últimos retoques antes do jantar.

O pano que bordavam era bastante grande, e com paciência infinita lá iam desenhando uma ave branca, a arder, por cima de um campo azul.

— Este é o brasão de armas que o rei concedeu ao meu pai, por ele se ter mostrado tão corajoso quando foi a conquista de Ceuta — explicou Tristoa com orgulho.

— Uma ave a arder? Porquê?

Elas soltaram uma gargalhada.

— Porque é uma fénix. Vocês não sabem o que é uma fénix?

— Bem...

— É uma ave da lenda, que renasce sempre das cinzas, quer dizer, arde, mas nunca morre.

— Quem fala aqui em morrer? — perguntou alguém do lado de fora.

A porta voltou a abrir-se com um pontapé violento.

Dois rapagões entraram na sala com grande estardalhaço.

— São os meus irmãos! — disse Isabel. — Este é o

mais velho e chama-se Tristão como o pai!

Ele fez uma vénia profunda e exagerada antes de tomar a irmã nos braços.

— Chamo-me Tristão, mas não sou triste, sou pelo contrário o mais alegre e bem-disposto da família!

E para provar o que dizia, pôs-se a rodopiar com

Isabel ao colo.

— Não se janta? — perguntou o outro. — Venho cheio de fome...

— Pudera, Henrique! Saíste de madrugada e não levaste farnel!

— Vamos, vamos mas é comer e deixem-se de conversa!

A Ana, o João, Álvaro e Diogo de Lagos, sem saberem como, foram envolvidos por aquele bando de irmãos tagarelas e arrastados para dentro de casa. Talvez por ser construída na encosta, havia pequenas diferenças de altura entre as várias divisões, pelo que para passar de umas às outras era preciso subir e descer vários degrauzinhos.

Conforme puderam verificar, não havia nenhuma sala especialmente destinada a refeições. Em qualquer parte se comia, variando o sítio ao acaso, ou conforme o número de pessoas presentes.

Naquela noite, como eram ainda mais que do costume, as criadas armaram com tábuas uma grande mesa na sala maior, e trouxeram tochas e velas de sebo, já acesas. As chamas faziam dançar pelo chão e pelas paredes a sombra daquela gente toda, o que dava a impressão de se encontrarem ali pelo menos o dobro das pessoas que realmente estavam. Conversas cruzadas, risos, uma alegre barafunda como nos dias de festa! Só que, naquela casa, devia ser assim todos os dias.

Catarina aproveitara a confusão para se escapulir de novo à vigilância da mãe e saíra pé ante pé. Ninguém deu por isso, porque Solanda fez uma entrada triunfal. Bateu as palmas, pediu silêncio e explicou:

— Hoje fui eu que fiz o jantar! Depois quero que me digam se gostaram ou não. Mas sem mentir!

Os irmãos festejaram-na com vivas e assobios, todos excepto a mais nova, claro!

E ela, dando-se ares de grande importância, chamou uma criada:

— Briolanja! Traz o jantar!

A mulher entrou, perdida de riso, e para estupefacção geral pousou uma terrina em cima da mesa e tirou-lhe a tampa. Um cheirinho bom a coentros e hortelã elevou-se no ar, mas lá dentro estava apenas uma galinha.

Após o primeiro instante de surpresa, Henrique perguntou:

— Só uma galinha para tanta gente?

Atrapalhada, Solanda abriu os braços, gaguejando:

— Era o que estava na receita! Foi gargalhada geral!

A miúda correu para os braços da mãe, lavada em lágrimas, repetindo sempre:

— Era o que estava na receita... era o que estava na receita...

E foi um sarilho para a acalmar! É claro que os criados não tardaram a aparecer com terrinas e travessas repletas de peças de caça, e todos se regalaram a matar a fome.

Dona Branca insistiu em comer da galinha cozinhada com tanto desvelo pela infeliz Solanda, que queria por força fugir para o quarto, envergonhada com a troça dos outros.

A Ana aproximou-se dela e tentou distraí-la. Mas não seria tão cedo que a pequenita se esqueceria daquele incidente. Com olhos vermelhos de tanto chorar, desdobrou um papelinho na frente da Ana e perguntou com voz sumida:

— Vê lá se não era isso que estava na receita...? É ou não é? É ou não é?

A Ana ia explicar-lhe que devia usar muitas galinhas sempre que tivesse de cozinhar para muitas pessoas, quando um novo personagem irrompeu pela casa e a deixou sem fala.

Era um rapaz alto e magro, que trazia consigo o cheiro do campo, da terra molhada, do vento quando sopra morno vindo das bandas do mar. A cara não era bonita nem feia, mas tinha qualquer coisa de fruto amadurecido ao sol. Diferente de todos os outros, não estranhou que lhe chamassem Lançarote. Só podia ter um nome assim, um nome de brincadeira! Foi Tristoa quem lho apresentou:

— Este é o meu irmão preferido. Chama-se Lançarote e é o melhor domador de cavalos desta ilha!

Corada até à raiz dos cabelos, a Ana fez um esforço medonho para não dar parte de fraca. Mas era tão difícil olhá-lo de frente, olhos nos olhos!

Lançarote sorriu e aproximou-se mais. Tinha uma pequena falha nos dentes da frente, que lhe ficava a matar! E um sinal redondinho junto à asa do nariz.!

Percebendo quanto a perturbava, não se afastou mais dali, sempre a dizer-lhe graças e gracinhas. Contou-lhe das suas cavalgadas pela ilha, inventou histórias meio] loucas e acabou até a cantar, muito baixinho, claro está, uma canção que ele próprio inventara.

A Ana pouco ou nada disse. Os seus olhos brilhavam como estrelas e tinha uma bola no peito que não a deixava respirar. Antes de se separarem, ele pegou-lhe na mão, com ares misteriosos.

— Vou dar-te um presente para que não te esqueças de mim.

— Um presente? — balbuciou, atordoada.

— Sim, isto!

Com mil cuidados, desnecessários aliás, depositou-lhe nos dedos um pêlo da crina do cavalo branco.

— É o meu cavalo preferido.

— A... e como é que se chama?

— Siroco. Porque é veloz como o vento do Sul! O vento do deserto!

E para melhor se explicar, Lançarote soprou-lhe ao de leve para os cabelos e para a testa.

Naquele momento, o medo de não conseguir regressar ao século XX desapareceu. E a vida apresentou-se bela, fácil, magnífica, mesmo! Teve até a sensação de que, se fosse necessário, levantaria voo sem qualquer dificuldade! Porque o amor à primeira vista também não mudou muito pelos séculos fora!

 

Se quanto a sentimentos as coisas pouco mudaram, o mesmo não se pode dizer noutros aspectos, e ainda bem! A noção de conforto, por exemplo, é bastante moderna.

A Ana ficou admiradíssima quando nessa noite a conduziram ao quarto. Aquela casa era a mais importante da capitania do Machico, porque era a casa do capitão. Tinha várias salas e dependências, uma grande cozinha onde labutavam imensos criados. Mas os quartos e as camas estavam reduzidas ao mínimo! As oito filhas de Tristão Vaz dormiam todas no mesmo quarto, em duas camas. E pareceu-lhes muito natural receberem ali mais uma pessoa.

Felizmente para ela, as duas mais novas fizeram uma birra, para irem dormir com a mãe, já que o pai se encontrava ausente. Dona Branca fez-lhes a vontade e à cautela levou também Catarina, não fosse esta lembrar-se de passar a noite a namorar ao relento!

Assim, a Ana pôde instalar-se com algum conforto. O único problema foi explicar por que motivo não tirava o cinto. Ela e o irmão tinham descoberto, entretanto, que o aparelho que lhes permitia viajar pelo tempo sem se desintegrarem vinha cosido dentro do cinto que usavam. Portanto tinham de andar com ele posto noite e dia!

Elas bem estranharam, mas, no meio da sua atrapalhação, acabou por ter uma ideia capaz de as convencer:

— É porque estive doente. Fiz uma promessa a, a... a Santa Catarina! Prometi que, se me curasse, não tirava este cinto durante quatro anos.

— Ah! Bom! Então nunca te esqueças — aconselhou Branca. — As promessas devem-se cumprir com respeito!

Para o João as coisas ainda foram mais complicadas, pois os homens desta época tinham o hábito de dormir completamente nus, e portanto sentiu-se bem ridículo quando se despiu todo e conservou o cinto! Os outros puseram-se a rir, mas como não perguntaram nada, nada respondeu.

Os dias passados na ilha a domar cavalos, a caçar, a subir e a descer encostas, seguidos de jantaradas onde o vinho corria com abundância, não deixavam margem a grandes conversas nocturnas.

Logo que caíram na cama, adormeceram todos profundamente e pouco depois apenas se ouvia ressonar.

Mas aquela noite não estava destinada a ser de paz. De madrugada, um uivo pavoroso cortou os ares, acordando toda a gente em sobressalto. Homens, mulheres e crianças saíram dos quartos aos tropeções, chocando uns de encontro aos outros sem saber o que faziam.

— Fujam! — disse alguém. — Fujam que isto é o demónio em figura de gente!

— Onde?

— Ali!

— Não vejo nada...

— Acendam uma luz!

— Nossa Senhora tenha pena de nós!

As mulheres já rezavam, abraçadas aos filhos, julgando que iam morrer, pois o uivo medonho que descia pela encosta não podia ser de gente nem de bicho, de tal modo se tornara ensurdecedor.

— São lobos! Muitos lobos — murmurou a Ana agarrando-se ao irmão.

— Não pode ser — respondeu Henrique. — Não há lobos na ilha. Mas eu vou ver o que se passa.

Embora a mãe tentasse detê-lo, com medo de que fosse vítima de algum feitiço, ele cingiu um punhal à cintura e abriu a porta de par em par. Irmãos e criados foram logo atrás dele, e os gritos dentro de casa cessaram um momento. A velha Briolanja, de mãos trémulas, acendeu uma vela que trouxe para ao pé deles. A chamazinha difusa bruxuleou iluminando um magote de gente assustada, que se escondia sem saber de quê.

— Nunca, desde que aqui estou, assisti a uma coisa destas! — exclamou Dona Branca, muito aflita. — E logo hoje, que o pai não está-Mas os ânimos foram serenando, porque o uivo se extinguia a pouco e pouco e o silêncio voltara a apoderar-se da noite. Estava escuro como breu. A Lua parecia um risco feito à unha no céu aveludado.

O que teria sido aquilo? Se não havia lobos, talvez se tratasse de cães. Mas para conseguirem semelhante efeito, teria de ser não uma, mas várias matilhas e uivando todas a uma só voz!

«Só a ideia é idiota!», pensou o João, prático como sempre. «Mas alguma coisa há-de ter acontecido para provocar este barulho horrível!»

Curioso, esgueirou-se por entre as mulheres e foi espreitar lá para fora. Os quatro filhos do capitão, mais os criados e Álvaro, o Malhado, conversavam um pouco adiante. Pareciam à vontade, mas todos tinham a mão pousada no cabo do punhal. O único homem adulto e saudável que ficou dentro de casa foi Diogo de Lagos. Encostado à chaminé da cozinha, branco como a cal, parecia prestes a desmaiar de pavor, mesmo agora que o perigo se tinha afastado.

Sem saber se havia de o considerar um cobarde ou, pelo contrário, se devia ter compaixão, o João aproximou-se dele, que murmurava:

— É o demónio... é o demónio... só pode ser o

demónio!

Uma onda de ternura subiu-lhe ao peito. Pobre Diogo de Lagos, tão assustado, tão incapaz de sair ao encontro das forças sobrenaturais numa noite escura, como provavelmente de sair ao encontro do inimigo no campo de batalha! O seu corpo era débil, os braços magros, os pulsos finos. Tinha a cara afilada e uns grandes olhos tristes. Tudo na sua figura era frágil e suave.

Não era justo exigir-lhe que fosse igual aos outros, se tinha nascido diferente.

«Coitado! Tem todo o direito de sentir medo e de ficar aqui», comentou o João com os seus botões. «Cada um é como é!»

Mas, como este tipo de reflexões não eram o seu forte, respirou fundo antes de confessar a si próprio:

«Mas ainda bem que eu não sou assim!»

E lembrando-se de que também ele tinha um punhal à cintura, saiu para o exterior a juntar-se aos demais.

— O que foi isto, Lançarote? Descobriram alguma coisa?

 

Ninguém descobrira nada. Os ruídos tinham desaparecido da mesma forma como tinham começado — sem deixar rasto. Agora ouviam-se apenas os grilos e os ralos, que, passado o primeiro susto, voltaram a

cantar.

Os homens no entanto mantiveram-se de vigília ainda bastante tempo.

Lançarote queria ir buscar cavalos para fazerem uma batida em redor da casa, mas os outros acharam que não valia a pena. E como cada um ia dando a sua opinião, a conversa foi-se prolongando pela madrugada.

Com um bocejo, o João instalou-se sentado de encontro ao muro e fechou os olhos.

Eram engraçados, aqueles tempos! Se estivesse na sua época, mal começassem os ruídos estranhos começava também a correria para o telefone, para o rádio, para a televisão. Em poucos segundos, seriam informados acerca do fenómeno com todos os detalhes possíveis. A notícia correria mundo de uma ponta a outra, e várias agências rivalizariam entre si para darem mais pormenores sobre o assunto.

Ficariam também a saber a reacção dos amigos e da família, com uns a soluçar de susto ao telefone, outros a atenderem estremunhados e fulos pois estavam a dormir e não tinham dado por nada.

Agora no século XV era tudo muito diferente. Talvez alguém na ilha, ou noutro sítio do mundo, soubesse o que se tinha passado. Mas se não lhe fosse possível partilhar a sua descoberta, de pouco ou nada adiantava!

Embalado pelos seus pensamentos, o João adormeceu de novo, para só acordar quando o sol lhe bateu em cheio na cara. Tinha o corpo dorido, devido à posição de pernas e braços flectidos. A cabeça pesava-lhe como chumbo e a mão esquerda estava dormente.

— Eh, João! Que cama foste arranjar! — gracejou Lançarote, que surgiu no terreiro, puxando dois cavalos à arreata.

Ele sorriu e espreguiçou-se longamente. Depois levantou-se, já mais lesto, e verificou que ao sair do quarto atabalhoadamente levara tudo consigo, menos as botas.

— Vou-me calçar! — disse, já a caminho da porta.

— Então, despacha-te. Já combinei tudo com o Álvaro. Vou convosco até às terras de Gonçalo Aires. Levamos os meus cavalos, que é melhor! A viagem torna-se mais agradável.

As despedidas foram breves mas calorosas. E foi com pena que se afastaram daquela gente que tão bem os recebera.

Cada um na sua montada, seguiram Lançarote por um caminho íngreme, sempre a passo. Estava uma manhã esplendorosa, de céu azul-claro e mar azul-escuro que brilhava ao sol. Uma neblina muito branca formava-se e desfazia-se para se voltar a formar, mesmo junto à costa. A serra era cortada a pique e, à medida que subiam, quase tinham vertigens quando olhavam para baixo, imaginando que podiam cair em precipícios. Mas a vista que desfrutavam era espectacular.

Álvaro, que não conseguia estar calado durante muito tempo, pôs-se a fazer comentários:

— Estão com medo de cair? Isto não é nada! Queria vê-los era no Norte da ilha! Nem há caminhos, e a gente tem de subir a umas alturas que nem queiram saber!

— Eu não estou com medo nenhum — disse o João. — Até acho isto muito bonito!

Álvaro concordou imediatamente.

— É bonito, não é? Se querem que lhes diga, é a única coisa que eu não percebo no capitão...

Olharam todos para ele, surpreendidos. Aquela frase não fazia sentido. Mas ele explicou:

— Não percebo por que é que o capitão deixou chamar Madeira a uma ilha destas! Eu sei que tinha muitas árvores... tantas que quase entravam pelo mar adentro. Mas isso não é caso para lhe pôr semelhante nome! Há nomes muito mais bonitos. Cá para mim, esta ilha havia de se chamar Rainha dos Mares! Ou então Princesa do Oceano!

Eles riram-se, divertidos.

— E por que não Pérola do Atlântico? — sugeriu Lançarote na brincadeira.

— Ou isso! Também era bonito. Eu bem pedi ao capitão que escolhesse outro nome, mas ele não me deu ouvidos. E até lhe disse assim: «Ó capitão, se quer chamar-lhe Madeira por causa das árvores, então dê-lhe antes o nome de uma árvore! Fica ilha dos Dragoeiros!» Ele fartou-se de rir comigo!

— Dragoeiros? Que diabo é isso?

Álvaro achou graça à pergunta, porque a ilha estava cheia dos dragoeiros que tinham feito o encanto de quantos ali desembarcaram pela primeira vez alguns anos antes. E apressou-se a apontar-lhes um tufo das ditas árvores, explicando tudo sobre as virtudes medicinais da sua resina vermelha.

— Também é usada para tingir panos — acrescentou. — Tanto dá para uma coisa como para outra. E a madeira do tronco é do melhor que há! Podem-se fazer barcos, casas, e coisas miúdas para uso de todos os dias. Malgas, canecas, sei lá! Então em Porto Santo, há um ror deles! Dragoeiros por toda a parte. E chegam a atingir seis metros e meio! Também não admira, se pensarmos que ali estão desde o princípio do mundo!

Não era novidade, mas puderam constatar mais uma vez que tudo o que dizia respeito àquela ilha entusiasmava Álvaro ao rubro.

Lançarote guiava-os para o interior, pois na zona que atravessavam era difícil fazer o percurso à beira-mar. Como o caminho se tornasse mais largo, foi possível colocarem-se aos pares. A Ana e Lançarote distanciaram-se um pouco, deixando para trás o João, Álvaro e Diogo de Lagos.

Após um breve silêncio, Álvaro tomou a palavra, muito solene:

— Escuta, amigo — disse, virando-se para Diogo. — Agora que estamos sozinhos, vais-nos dizer a verdade.

O rapaz, que já era pálido, ficou cor de cera.

— A... a verdade? — gaguejou aflito. — Qual verdade?

— A única. A verdade é só uma e eu não sou tolo! Desde que desembarcaste que te arrastas atrás de nós, perdido de medo! Eu já vi muito nesta vida e sei muito bem distinguir quando um homem esconde qualquer coisa.

Diogo baixou os olhos e não respondeu. Álvaro voltou à carga.

— Por que é que tu julgas que eu não propus à Dona Branca que te tomasse ao seu serviço como sapateiro?

— Não sei...

— Então eu digo-te. Não recomendo gente em quem não confio. E a verdade é que não sei nada a teu respeito. Mas vais-me dizer!

O João aproximou o cavalo dos outros dois e meteu a sua colherada, tentando dar uma ajuda:

— O Álvaro não tem confiança em ti porque tu não contas o teu segredo. Diz-nos o que se passa, seja o que for! Podes contar connosco. Não pode, Álvaro?

O velho hesitou antes de responder, e revelou-se prudente.

— Depende. Eu não gosto de fazer promessas sem saber a quem.

Diogo de Lagos suspirou fundo. Fez menção de falar, mas depois calou-se. E eles aguardaram, sem perguntar mais nada. Era preciso dar-lhe tempo para se libertar do que trazia entalado na garganta.

Ainda andaram um bom pedaço até que se decidiu:

— Sou um homiziado — disse em voz quase inaudível. — Sou um homiziado.

O João olhou vivamente para Álvaro a ver qual era a reacção dele, pois não fazia a menor ideia do que era um homiziado! Mas a expressão de Álvaro mostrava apenas que ele continuava na retranca.

— Quanto a isso, tudo bem. Homiziados temos cá muitos. O rei autorizou que viessem connosco, quando partimos do reino para povoar estas ilhas. Tens é de dizer porquê...

Olhando ora para um, ora para outro, o João dava voltas ao miolo para descobrir o significado daquela palavra. O que seria homiziado? Uma profissão? Uma doença?

Afinal não era nada disso.

— Fugi à justiça. Mas foi para não me condenarem por um crime que eu não cometi! — acabou por confessar o pobre Diogo, com os olhos cheios de lágrimas. — Estou inocente.

O João agitou-se na sela, disposto a fazer ali os seus votos de confiança, mas Álvaro acenou-lhe pedindo calma. Depois insistiu com o rapaz para que contasse tudo sem reservas. E ele lá desabafou, deixando correr lágrimas gordas pela cara abaixo, sem se importar. Parecia sincero! Segundo ele, assistira a um roubo numa estalagem onde pernoitara, mas tinha tido tanto medo que não ousou gritar nem chamar ninguém. Quando o estalajadeiro deu por isso, acusou-o de ser o ladrão e a única coisa que lhe ocorreu foi fugir. Assim, todos se convenceram de que era culpado.

— Sou um cobarde! — concluiu. — Um medroso. Fui sempre assim desde pequeno. E tenho muita vergonha, mas não consigo mudar.

Álvaro ficou pensativo e não fez comentários. Afrouxou a pressão que fazia sobre as rédeas, deixando-as pendentes sobre o pescoço do cavalo.

Diogo ia um pouco à frente, cabisbaixo, e o João morria de impaciência por fazer alguma coisa. Mas o velho Álvaro, embora alegre e brincalhão, impunha respeito. Se ia calado, por algum motivo era. Portanto, aguardou que fosse ele a pronunciar-se.

Quando por fim se decidiu a falar, foi num tom solene mas amigo:

— Dizes que és cobarde, mas tiveste a coragem de me dizer a verdade. Foi a primeira prova a que te submeti, e saíste-te bem. Por isso vou-te ajudar.

Diogo interrompeu, já mais seguro:

— Ainda falta dizer-lhe outra coisa. Eu não sou sapateiro. Nunca fiz sapatos na minha vida nem faço ideia de como é que se fazem! Inventei uma profissão, porque queria que me aceitassem na ilha.

O João riu-se com gosto.

— Então e quando te dessem sapatos para fazer, como é que resolvias o problema?

Ele encolheu os ombros.

— Não pensei nisso. Só me lembrei de que os colonos haviam de ter falta de quem fabricasse coisas... fui estúpido!

Álvaro irritou-se pela primeira vez.

— Homem, pára de dizer mal de ti próprio! Ora te chamas cobarde, ora te chamas estúpido! Uma pessoa tem de acreditar em si, se quer que os outros acreditem também. Está lá mas é calado, e ouve o que te vou dizer. O capitão João Gonçalves Zarco aceitou que viessem para a ilha homiziados, homens que como tu andavam fugidos à justiça. Mas não aceitou ninguém acusado de crimes contra a religião, ou acusados de roubos. Portanto, vamos ter de inventar uma história, se queres ficar aqui.

— Tenho uma ideia! — gritou logo o João, entusiasmadíssimo. — Ele podia dizer que vinha no barco com a família, que morreram todos afogados no temporal!

— Nem penses nisso! No barco vinha mais gente e sabem muito bem que não é verdade. O capitão também não gosta que o enganem.

— Então o que havemos de fazer?

— O melhor é não inventarmos nada. Dizemos que ele veio para aqui pensando fazer fortuna numa terra nova, e pronto.

Se tiveres juízo e fores trabalhador, acabas por ser aceite por toda a gente. E quanto ao segredo, fica só entre nós. Podes confiar em mim. Nunca voltei com a minha palavra atrás.

— Obrigado, senhor.

— Não me agradeças. Faz de conta que já me esqueci

de tudo. E se houver problemas, eu digo que és meu parente. Mas agora anima-te!

Os cavalos desciam em direcção ao mar. Pelo caminho, tiveram de atravessar um canavial cujas canas eram diferentes do costume. Devia andar por ali alguém na brincadeira, pois ouviram uma restolhada e risos de criança.

Uma voz grossa sobrepôs-se, chamando:

— Grimanesa! Gri-ma-ne-sa!

 

Um frade corpulento, com a cabeça rapada e umas grandes bochechas descaídas, irrompeu pelo canavial de uma forma tão brusca e inesperada que fez empinar o cavalo da Ana, relinchando do susto: «Hiiiihiiihii...»

Lançarote, num movimento rápido e preciso, inclinou-se para a esquerda e agarrou as rédeas obrigando-o a serenar.

— Quieto, Lagarto! Quieto... Ho... O cavalo obedeceu imediatamente! Zangado, Lançarote virou-se para o frade.

— Isto é maneira de sair ao caminho, frei Gaspar? Podia ter espantado os cavalos...

— Desculpem, não foi por mal. Mas depois do que se tem visto por aqui, andamos desnorteados. Todo o cuidado é pouco! Eu vim para buscar as crianças, não convém que se afastem de casa.

— Porquê? Aqui também ouviram uivos durante a noite, é?

— Se fosse só isso, já não era mau. Antes de começar o barulho, acendeu-se um clarão no meio da mata, um clarão arroxeado, que iluminou a noite como se fosse dia! Caímos todos de joelhos a rezar, que aquilo só podia ser coisa do demónio!

— E depois?

— Depois foram uns uivos pela serra abaixo e pela serra acima! O clarão desapareceu, mas a mata ficou a arder... aqui andam as forças do mal a atentar a gente.

Por trás de frei Gaspar, ouviram-se de novo gargalhadas. Ele virou-se, todo enxofrado:

— Saiam daí! Saiam já daí! Se o demónio entra no vosso corpo, é muito difícil tirá-lo de lá...

As canas agitaram-se e apareceram duas cabeças a espreitar.

O João, Álvaro e Diogo tinham-se aproximado também e riram-se com a expressão divertida das meninas que arreliavam o frade.

— Eu não tenho medo do demónio, o demónio é que tem medo de mim, porque eu sou má, muito má! — declarou a mais pequena, arregalando os olhos e erguendo os braços com os dedos encurvados a fingir que eram garras. — Sou má! Ah! Ah! Ah!

Frei Gaspar, aflito, benzeu-se três vezes.

— Grimanesa, não brinques com coisas sérias! Valha-te Deus, que já tens idade para saber o que fazes!

Que idade teria ela? O João olhou-a descaradamente. Era bem bonita! Teria uns onze ou doze anos, era esguia, flexível, e o seu corpo ondulava ao vento como as canas que afastara para se apresentar no meio deles. O cabelo cor de castanha era grosso e brilhante. Caía-lhe sobre os ombros em tranças meio desfeitas. Devia andar sempre a correr e não se importar muito com a sua aparência. Mas não tinha importância nenhuma, pois era bonita a valer. E a roupa, mesmo suja e com um rasgão na manga, ficava-lhe muito bem.

A outra, a quem frei Gaspar chamara Esmeralda, devia ser um pouco mais velha. E era diferentíssima. O corpo formava-se de linhas redondinhas, embora não fosse gorda. Tinha uns olhos imensos, de um verde-escuro invulgar, quase grandes de mais para a cara. As pestanas eram rijas e loiras como a cabeleira forte, aos caracóis. E apesar de ter vindo a correr pelos campos, não tinha um cabelo fora do sítio nem uma prega da saia fora do lugar. Embora risonha e comunicativa, transmitia uma sensação de calma, de serenidade.

Seriam irmãs? Não. Eram primas! E frei Gaspar andava atrás delas para as levar para casa, receando que lhes acontecesse algum mal.

— Não se querem apear e vir connosco? — perguntou o frade.

— Sim, sim! — disse logo Grimanesa. — A minha mãe fica muito contente quando aparecem visitas para provarem os bolos de mel.

A ideia dos bolinhos não lhes desagradou. E um pequeno descanso a meio do caminho sabia sempre bem!

Não podiam era imaginar que o descanso seria muito maior do que esperavam e que muita coisa ainda ia acontecer por aqueles lugares!

O João foi o primeiro a saltar da sua montada e fez amizade instantânea com as duas primas.

Frei Gaspar preferiu chegar-se a Álvaro, a quem conhecia bem, calculando que ele mostraria interesse em saber pormenores sobre as histórias que tinha para contar.

— Isto não vai bem, não! Já se incendiou uma seara de trigo, mais uma plantação de cana-de-açúcar, que por estas bandas está a dar muito bem. As canas plantam-se e depois crescem que benza-as Deus! Chegam a atingir oito a dez braços de altura... e depois, vê-las arder é uma dor de alma!

— Mas quem é que lhes terá posto fogo? — perguntou Diogo de Lagos.

Frei Gaspar voltou a benzer-se.

— Eu tenho cá para mim que só pode ser o demónio, quando anda por aí de noite a uivar pelas serras.

— Mas esses uivos não serão de animais? — perguntou de novo Diogo de Lagos.

— Não — responderam Álvaro e o frade em coro. — Em toda a ilha não há animais venenosos! Nem lobos, nem ursos, nem feras que causem pavor!

— Até te digo mais, nem cobras! Só há duas espécies de animalejos imundos: ratos e pulgas!

Nem de propósito! Após a última curva do caminho, deparou-se-lhes um fio esticado com muitos ratos mortos pendurados pelo rabo.

— Bâ, que nojo! — gritou a Ana, saltando para trás. — Que porcaria é esta?

Grimanesa riu-se, divertida com o susto dos visitantes, pois para ela aquilo não tinha novidade.

— Há muitos ratos por aqui. O meu pai quis experimentar esta plantação de cana-de-açúcar, mas a rataria anda a dar cabo de tudo! Roem os pés, roem as canas, roem as folhas... roem tudo! É preciso matá-los.

— Matá-los, está bem. Mas para que é que os penduram num fio?

— Ora, isso são os criados e a rapaziada para mostrarem as suas habilidades. O meu pai dá-lhes pão e vinho por cada fio com ratos que apresentarem. E então é isto!

Ao longo do canavial, havia várias fiadas de ratazanas mortas e secas ao sol, que muito os enojou. Mas valeu a pena a caminhada, pois foram muito bem recebidos pela mãe de Grimanesa. De facto, a senhora pareceu ficar encantada por ter tantos convivas a quem oferecer os tais bolinhos que eram o seu orgulho.

— Comam! Comam à vontade! Estes são de mel vindo do Porto Santo, um mel como não creio que haja outro no mundo! E estes, são uma receita nova! São bolos de açúcar. Tenho a certeza de que nunca provaram bolos feitos com açúcar.

O João e a Ana trocaram um olhar cúmplice e disfarçaram a vontade de rir. Era tão engraçado estar num tempo em que o açúcar ainda era novidade! E que novidade! A senhora não se cansava de apregoar as virtudes daquele produto.

— O açúcar é o melhor dos manjares! Fortalece o espírito e o corpo, principalmente os pulmões e a garganta. A minha Grimanesa, aqui há tempos, teve uma inflamação e encheu-se-lhe o corpo de feridas. E sabem como é que lhas curei? Com açúcar em pó! Ela fartou-se de chorar, mas depois passou-lhe tudo.

O João olhou a rapariga, compadecido, imaginando-a cheia de ardores e comichões nas feridas açucaradas! O frade partilhava inteiramente as opiniões da senhora a respeito das propriedades do açúcar, pois explicou que tanto ele como os seus companheiros comiam sempre em jejum várias canas verdes ou maduras, conforme a época do ano.

— Não há melhor para refrescar o fígado, para saciar a sede e branquear os dentes! Querem ver?

Frei Gaspar abriu a bocarra, exibindo uma exígua dentadura. De facto, os dentes eram muito brancos mas já só tinha quatro...

A Ana ponderou a hipótese de lhe explicar que o açúcar em excesso fazia mal a tudo! Inclusive aos dentes. Mas desistiu, pois teve a certeza de que ele não acreditaria.

A conversa e o lanche decorriam em boa paz quando se ouviram gritos vindos da praia. Uma criada apareceu a correr, chamando:

— Minha senhora! Minha senhora! Que grande desgraça aconteceu aos pescadores!

Ninguém esperou que ela se explicasse melhor e correram todos para a beira-mar, onde três desgraçados arrepelavam as barbas em desespero.

Tinham vindo à reboleta com as ondas, e o quarto companheiro debatia-se ainda dentro da água prestes a afogar-se. Pelos gritos aflitos percebia-se que as forças o abandonavam e que pedia socorro, mas a voz era abafada pelo rugido do mar.

Álvaro correu para a água, despindo a camisola que arregaçou por cima da cabeça e atirou para o lado.

Depois mergulhou, afoito, e dirigiu-se ao náufrago com braçadas vigorosas.

Um silêncio de expectativa envolveu-os. Lançarote murmurou entredentes:

— Que sorte estar aqui um dos poucos homens que sabe nadar...

Ao longe, Álvaro lutava contra uma corrente forte para não ser arrastado. Tinha conseguido agarrar o pescador por um braço, e puxava-o em direcção a terra.

O que sobrava do barco aparecia e desaparecia enrolado na espuma branca, até que um redemoinho enrolou na direcção da terra e o atirou de encontro aos calhaus.

Álvaro apanhara também a correnteza de feição e ofegante, exausto, veio dar à costa. O seu corpo coberto de manchas brancas e rosadas tinha a pele franzida como uma pele de galinha. Percebia-se que lhe tivessem dado a alcunha de o Malhado!

Mais calmos, vendo o companheiro a salvo, os homens contaram então o que lhes tinha sucedido.

— Já tínhamos pescado bastante, quando um monstro nos atacou...

— Um peixe-agulha, com mais de quatro metros! Atirou-se a nós, e furou o barco com o esporão!

— Que grande prejuízo!

Desolados, os pescadores olhavam a carcaça da sua embarcação, que lhes parecia difícil de consertar.

— Perdemos o peixe e perdemos o barco! Está de uma maneira que ninguém vai conseguir pô-lo de novo a flutuar.

Diogo de Lagos, que ficava sempre atrás de toda a gente, que embora ouvisse os outros permanecia à margem das conversas, desta feita passou à primeira linha.

— Eu sou capaz de arranjar o vosso barco numa noite — disse, da mesma forma suave e simples com que sempre se exprimia.

Olharam todos para ele, colhidos de surpresa. Seria verdade? Mas Diogo de Lagos parecia seguro do que dizia. As suas mãos esguias e pálidas afagavam já a madeira enchardada num diálogo inequívoco entre o artista e a sua obra.

— Sou capaz, podem crer — garantiu, erguendo para Álvaro os seus olhos tristes.

— Está decidido — afirmou este. — Nesse caso, ficamos aqui. Se a senhora nos deixar pernoitar em sua casa!

— Claro que deixo! Nunca recusei guarida a gente de paz.

Grimanesa e Esmeralda ficaram radiantes por terem visitas. A Ana também não se importou nada por ver a viagem prolongada por mais um dia, visto que Lançarote ficava também. A dona da casa já planeava mentalmente os petiscos com que ia brindar os seus hóspedes.

O percalço, afinal, convinha a toda a gente.

 

Claro que ninguém deixou que o arranjo do barco fosse feito de noite. Portanto, mal escureceu, recolheram a casa onde o serão foi muito divertido.

Os donos da casa tinham por hábito comer na cozinha com os criados, e após a refeição organizaram danças de roda acompanhadas por palmas e canções. A mãe da Grimanesa cantava muito bem, e sabia músicas e mais músicas! A filha já ia pelo mesmo caminho. Ambas cantaram ao desafio quadras alegres e vivas, sem nunca repetir. Esmeralda, essa, dançava rodopiando com uma leveza e uma graça que dava gosto ver.

Toda a gente se divertia sem qualquer cerimónia. Até o tímido Diogo acabou por participar na festa, assobiando uma moda algarvia que foi muito aplaudida!

Mas quem parecia mesmo nas nuvens era o João, que ora se chegava a uma das meninas ora se chegava à outra, dizendo a ambas exactamente o mesmo. E elas encantadíssimas, coravam muito e não respondiam nada.

— És a rapariga mais bonita desta ilha — sussurrou primeiro ao ouvido da Esmeralda. Ela sorriu toda dengosa, sem suspeitar que daí a pouco, apanhando-a distraída, já soprava o mesmo ao ouvido de Grimanesa.

— Amanhã de manhã podíamos ir dar um passeio só os dois — convidou ele, primeiro Grimanesa e em seguida Esmeralda, não se preocupando em pensar como resolvia o problema quando lhe aparecessem as duas para o dito passeio!

Dançando, cantando e petiscando pão, uvas, bolos de mel e de açúcar, ninguém dava por nada. Só a Ana, que bem conhecia o irmão, foi reparando naquelas andanças entre as duas primas e teve a certeza do que ele estava a fazer: ou seja, declarações de amor em duplicado. E tentou aproximar-se para lhe ralhar, mas o João evitou-a esgueirando-se disfarçadamente por baixo da mesa. Teve de desistir, pois Lançarote agarrou-lhe a mão para entrarem numa dança de roda. No entanto, continuou a observá-lo de longe.

A festa estava no auge da animação quando alguém ouviu o ruído de cascos de cavalo que entraram no pátio. Danças e cantares cessaram, e o dono da casa foi abrir.

Para seu grande espanto, quem se apeou foi o próprio João Gonçalves Zarco, que trazia consigo apenas dois acompanhantes. Toda a gente o foi cumprimentar com respeito e deferência.

Era um homem grande, forte, de pescoço largo e de cara quadrada. Dava a sensação de respirar saúde por todos os poros, e a sua figura impunha-se naturalmente.

Tudo isto veio ao encontro do que a Ana e o João pensavam dele, mesmo antes de o conhecer. Não se mandam fracos para comandar homens!

Só um pormenor constituía inteira novidade. João Gonçalves não tinha um olho. Mas isso não parecia incomodá-lo pois nem sequer o tapava com uma pala.

Com uma certa altivez, entrou por ali dentro e foi instalar-se ao pé do lume. Toda a gente se afadigou para que ele ficasse confortável, no melhor sítio, no melhor banco, servindo-lhe de tudo o que havia em casa.

A expressão de cada um deixava transparecer estima, sem dúvida. Mas muito respeito também!

Morto por fazer perguntas, o João esqueceu momentaneamente as suas namoradas e chegou-se a Álvaro.

— Não sabia que o capitão tinha um olho vazado. Foi algum desastre? — perguntou em voz baixa.

— Foi, sim! — explicou o velho com solenidade. — Perdeu aquele olho quando acompanhou o infante D. Henrique a combater os mouros no cerco de Tânger.

— Coitado!

— Coitado? Uma ferida daquelas é motivo para um homem se orgulhar.

— Porquê?

— Porque quando protegia a retirada do infante foi atingido por um virotão. Outro qualquer tinha ficado logo ali sem forças, mas João Gonçalves não se abate à primeira! É um homem forte como há poucos!

O João olhou de novo para ele. Sentado de costas para a lareira, comia vagarosamente um grande cacho de uvas. Os pais de Grimanesa davam-lhe conta dos estranhos acontecimentos que tinham assustado os habitantes daquela zona.

— Não sabemos a que atribuir tudo isto. Incêndios, ruídos, luzes a acender e a apagar! Os frades garantem que é obra do demónio...

João Gonçalves Zarco interrompeu:

— Disparates! A ilha foi benzida assim que desembarcámos pela primeira vez, para desfazer os encantamentos que aqui houvesse. Espalhámos água benta para expulsar os espíritos malignos!

— Sendo assim, não sei...

— Isto é obra do homem! — afirmou peremptório. — Foi para discutir este assunto que vim ao Machico. Quero conversar com Tristão Vaz para decidirmos o que vamos fazer.

Lançarote destacou-se do grupo.

— Capitão, o meu pai não está no Machico. Foi ao Norte, a Ponta Delgada.

— Porquê?

— Porque o chamou António Carvalhal. Parece que os colonos andam à luta por causa da marcação de terras e o meu pai foi lá resolver o assunto. Mas depois seguia para o Funchal, pois queria ir ao seu encontro.

— Então a minha viagem foi inútil. Desencontrámo-nos! — exclamou, irritado.

A mãe de Grimanesa apressou-se a dizer:

— Inútil não, senhor! Há muito que não tínhamos o prazer de o receber em nossa casa!

Zarco sorriu e levantou-se.

— Então, se me quereis receber bem, indicai-me já onde posso dormir que venho cansado.

É evidente que a festa acabou assim e as pessoas foram recolhendo para não incomodarem o capitão que queria dormir.

— Que maçada estes homens importantes — resmungou o João. — Quando chegam estragam tudo!

— Está calado, não digas disparates! — ralhou a Ana.

— Se calhar não é verdade? — insistiu. — Estávamos tão divertidos a cantar e a dançar, ele chegou e pronto! Acabou com a festa. Estávamos tão divertidos!

A Ana aproveitou logo para o repreender:

— Tu realmente estavas muito divertido, que eu bem vi! Não tens vergonha?

Claro que ele se fez inocente e, com os olhos muito arregalados, perguntou:

— Vergonha? De quê?

Furiosa, ia a responder-lhe à letra mas ele desviou o assunto:

— Sabes por que é que o capitão se chama Zarco?

— Porque é o apelido!

— Enganas-te! Zarco é alcunha e quer dizer zarolho.

— Não acredito!

— Mas podes acreditar. Esta gente tem a mania das alcunhas. Não vês o Álvaro? Chamam-lhe o Malhado. Ao capitão, chamam Zarco. E ao Diogo, sabes como deviam chamar? O Tristonho.

A Ana riu-se. O irmão era impossível! Mas já os criados apagavam as últimas velas e ela seguiu com Esmeralda e Grimanesa para um quartinho exíguo, sem janela, onde iam dormir as três na mesma cama.

Antes de se deitar bocejou longamente, e procurou afastar a sensação de desconforto que a assaltou.

A viagem estava a ser interessante, mas tinha tantas saudades de uma cama só para ela, e de uma boa chuveirada de água quente!

 

Naquela noite nada de extraordinário veio perturbar o sono dos habitantes da capitania do Machico. Em casa de Grimanesa, como em todas as outras, foi possível descansar sem sobressaltos.

A Ana acordou muito tarde. Na véspera tivera dificuldade em adormecer, mas pela madrugada mergulhou num sono profundo e nem deu conta que as suas companheiras se levantaram mal rompeu o Sol.

A vida retomara o seu ritmo normal, com toda a gente entregue aos seus afazeres habituais. Diogo de Lagos, ainda antes da alvorada, já tinha escolhido as tábuas de dragoeiro para consertar o barco dos desafortunados pescadores, e ajudado por eles entregava-se com volúpia ao seu trabalho. Era uma tarefa que sempre lhe dava prazer, porque embora não fosse carpinteiro tinha um jeitão! Nas suas mãos a madeira parecia transformar-se numa pasta moldável, de tal forma lhe* era fácil cortar, arredondar, talhar, usando apenas uma serra ou uma lima.

O barco ficou pronto e impecável ainda antes do meio-dia. Os pescadores, embora desconfiados, arrastaram-no para dentro de água, verificando com júbilo que flutuava e nem uma gotinha de água se atrevia a penetrar entre as tábuas do remendo!

Foi por essa altura que a Ana acordou, levantando-se estremunhada e com a vaga ideia de que se esquecera de qualquer coisa importante.

Saiu para o terreiro ainda em jejum, e viu Esmeralda e o irmão de roda de uma árvore. Desenhavam qualquer coisa no tronco com a ponta do punhal e riam muito.

Aproximou-se, curiosa, mas Esmeralda fugiu de cabeça baixa.

— O que é que disseste à rapariga para ela fugir cheia de vergonha?

— Nada! Fiz um desenho e ela gostou porque nunca tinha visto outro igual!

Malandro, o João apontou uma rodela de casca aplainada onde inscrevera um coração trespassado por uma seta.

— És completamente doido!

— Porquê?

— Porque é um disparate vir namorar para o século XV!

— Olha quem fala! — ripostou o João com ênfase. — Julgas que eu sou parvo? Julgas que não reparei nos olhinhos doces que andas a fazer ao Lançarote?

— Eu?

— Ah! Ah! Ah! Faz-te desentendida, que eu já te conheço!

Ela encolheu os ombros e virou-lhe as costas. Mas não era fácil ver-se livre do irmão, que a seguiu fazendo comentários jocosos:

— Ora diz-me lá, a partir de agora vais passar a um laçarote em honra do Lançarote?...

— Deixa-me em paz!

— Isso era o que tu querias! Ora diz-me cá...

A Ana, entre irritada e divertida, acelerou o passo e caminhou ao acaso por ali fora.

O irmão não se desgrudou, sempre a sarrazinar-lhe a paciência.

Acabaram a correr pelo campo, ela a fugir com as mãos a tapar os ouvidos.e ele dizendo graças sem parar.

A brincadeira levou-os até ao fundo da quinta, onde encontraram um telheiro feito de madeira e folhagens. Por baixo havia uma espécie de maquineta rudimentar com três cilindros e uma enorme roda dentada. O João já devia ter estado ali, porque quando a Ana se deteve a olhar para aquilo disse logo:

— É uma alçaprema! Serve para espremer as canas-de-açúcar, sabias?(1)

— Não.

A Ana aproximou-se e tocou nos cilindros, moveu uma roldana e tentou fazê-la funcionar. Mas deu com os olhos numa inscrição e perguntou, furiosa:

— João! Que é isto? Ele riu-se.

— Não sabes?

— És incrível! Nem a alçaprema te escapou!

— Marquei-a para não se esquecerem de mim. De facto, um dos cilindros estava riscado, nada mais

nada menos que com um coração onde se lia:

— És de todo. Já pensaste o que é que elas vão sentir quando descobrirem?

— Já — disse sem hesitar. — Vão ficar furiosas.

Mas eu já cá não estou!

— Isso é brincar com os sentimentos das pessoas!

— Ora! Isto é uma brincadeira sem importância. Tu é que levas as coisas muito a sério.

 

(1) As informações sobre o fabrico do açúcar encontram-se na parte final deste livro, na p. 177.

 

— Eu?

— Sim. Basta veres um rapaz a cavalo e pronto! Então se o nome for começado por L... Lourenço (1), Lançarote, qual será o próximo? Ludovico? Lisandro? Leonel?

— Pára com isso! Ao menos eu gosto de um de cada vez!

— Ah, sempre confessas...

A Ana corou violentamente e fez sinal ao irmão para que se calasse.

— Schiu! Olha quem vem ali!

Lançarote aproximava-se acompanhado pelo capitão Zarco. Gesticulava com vivacidade, explicando qualquer coisa que não conseguiram ouvir imediatamente.

Zarco escutava-o com certa benevolência.

— Eu compreendo... compreendo! A rapariga é bonitinha, mas...

O João deu uma cotovelada na irmã e sussurrou:

— Estão a falar de ti!

— Não estão nada.

— Ai não? Então ouve!

Com um gesto firme, puxou-a de forma a esconderem-se ambos por trás da alçaprema.

E a conversa foi de molde a deixar a Ana furibunda! Lançarote acabara de pedir autorização para casar com ela! O João ia morrendo com vontade de rir e pôs-se a fazer-lhe negaças.

— Vais-te casar! Vais-te casar! Ah, Ah! Ah!

— Schiu! Deixa-me ouvir.

 

(1) Uma Viagem ao Tempo dos Castelos, n.o 1 desta colecção.

 

Irritadíssima, percebeu que a tratavam como uma autêntica mercadoria, quando o capitão lembrou:

— Lançarote, eu compreendo, mas não é possível. Se Gonçalo Aires mandou vir uma prima do reino, com certeza já a destinou para casar com alguém! O mais certo é querê-la para noiva do filho dele.

— Ora que esta! — resmungou a Ana entredentes. — Então eu sou alguma encomenda?

O João ria-se com a mão na frente da cara, ansioso que se afastassem para poder arreliar a irmã à vontade.

Lançarote e o capitão continuaram o seu passeio e, assim que desapareceram atrás dos canaviais, a Ana correu para casa. O João foi de novo atrás dela.

— Estás a ver? Estás a ver? Vão-te casar, nem tu sabes com quem!

— Eu não tenho idade para casar!

— Ah! Ah! Neste tempo era assim. Se o Orlando não aparece depressa para nos buscar, estás tramada! Casas e casas mesmo!

Um arrepio desagradável percorreu-lhe a espinha. Só lhe apetecia fugir dali para se fechar no quarto! Mas no seu quarto, na sua casa, na sua época, onde as mulheres só casavam com quem queriam e quando tinham idade para o fazer!

Se o Orlando não os encontrasse depressa, o que iria ser da vida deles? Seria mesmo obrigada a casar? Só a ideia encheu-a de pavor.

Previra mil perigos diferentes para uma viagem no tempo. Desintegrarem-se. Perderem-se noutro século. Não conseguirem voltar. Caírem no meio de uma guerra terrível e sangrenta. Serem feitos escravos ou prisioneiros.

Apanharem uma doença mortal. Tudo isso lhe enchia a alma de susto sempre que iniciava uma viagem pelo tempo fora.

Mas obrigarem-na a casar com um desconhecido nunca lhe tinha passado pela cabeça! Era um perigo novo e aterrorizador!

 

João Gonçalves Zarco tinha decidido regressar ao Funchal de barco, para a viagem ser mais rápida, pois receava desencontrar-se de Tristão Vaz. Era um homem decidido e via-se que estava ansioso por descobrir quem provocava os incidentes que tanto assustavam os colonos, causando ainda prejuízos enormes. Era também um homem autoritário, pois, convencido de que a Ana estava destinada para noiva de um filho de Gonçalo Aires, resolveu mandar Lançarote de volta para casa. E ele foi, sem retorquir. Não era imaginável ir contra as ordens do capitão!

Despedira-se de olhos compridos, e depois desapareceu a galope no seu cavalo branco, sem olhar para trás.

Demasiado assustada com a perspectiva de ter de casar fosse com quem fosse, a Ana suspirou de alívio quando viu pelas costas um dos pretendentes! E foi a primeira a meter-se na embarcação onde todos seguiriam viagem.

O dia estava lindo. Soprava uma brisa ligeira, que era o suficiente para enfunar a vela mas não para agitar as águas, que pareciam um espelho.

Apoiados no rebordo de madeira, divertiram-se com o movimento dos muitos cardumes que ora apareciam ora desapareciam em volta das rochas.

— Hum! Apetecia-me mesmo dar um mergulho! — suspirou o João.

— Não comeces com fantasias — pediu a Ana. Ele riu-se. Não tinha a menor intenção de arranjar

sarilhos. O passeio de barco, num dia tão bonito e calmo, estava a saber-lhe muito bem.

À medida que se afastavam da terra, o mar tornava-se mais azul e a ilha oferecia-lhes uma imagem diferente. Parecia um cenário, cuidadosamente recortado, enfeitado, montado por um artista de talento que tivesse querido colocar no meio do oceano a sua obra-prima. Não era portanto de admirar que Álvaro voltasse à carga junto do capitão, pedindo-lhe com insistência que mudasse o nome da ilha para Jardim dos Mares ou Ilha Maravilhosa.

Zarco nem se deu ao trabalho de responder, mas achou graça.

Sentado entre Álvaro e Diogo de Lagos, puxou a conversa para assuntos mais sérios.

— A nossa ilha, lá bonita é! Mas se não resolvermos isto, se não apanharmos os malandros que andam por aí a destruir as nossas colheitas, um dia destes temos pela frente tal miséria que muitos dos colonos hão-de querer voltar para o reino. Isto é se não forem todos! Diogo anuiu com um gesto silencioso, pois era homem de poucas falas. Mas Álvaro pôs-se logo ao dispor para tudo o que fosse preciso.

— Pode contar comigo, capitão! Comigo, com o meu amo e com quantos homens ele puder arranjar. Todos juntos, fazemos uma batida por esses montes fora, que não há quem escape.

— É exactamente isso que pretendo fazer. Assim que chegarmos tratamos dos pormenores. E ai de quem estiver envolvido nesta história!

Impaciente, Zarco agitou os braços e as pernas, o que fez o barco oscilar para um lado e para o outro. Como eram frágeis aquelas embarcações!

— Estou ansioso por chegar! — suspirou. Ansiosos por chegar estavam todos. Talvez por isso, mantiveram-se em silêncio com os olhos postos em terra. Claro que era uma ilusão, mas a distância parecia diminuir sempre que fitavam todos ao mesmo tempo, o mesmo lugar. Era como se tivessem lançado uma corda invisível, com a qual se puxavam a si próprios em direcção à costa.

— Que grande incêndio que houve por aqui — disse o João, ao avistar um morro totalmente queimado.

— Foram os malfeitores? — perguntou a Ana. Zarco riu-se.

— Não. Aquele incêndio foi obra dos benfeitores! Eu mesmo ordenei que o ateassem.

Os dois irmãos não se atreveram a fazer comentários, e baixaram os olhos sem saber o que dizer. Qual seria a ideia do capitão, ao pegar fogo à sua própria ilha?

Mas ele explicou sem que lho perguntassem:

— Quando aqui chegámos, a terra estava de tal forma coberta de árvores que, se fôssemos abrir clareiras à machadada, ainda hoje não tínhamos semeado um único copo de trigo!

— Havia troncos tão grossos, que nem dez homens à volta os conseguiam abraçar — interrompeu o Malhado.

— Pois foi por isso que mandei atear o fogo. E durante sete anos não se extinguiu.

— Sete anos?

— É verdade. Espalhou-se por aí adentro. Ora aparecia para norte, ora para sul... Foram tempos difíceis. Mas valeu a pena. Agora já temos muito por onde cultivar e pudemos fundar várias povoações. A mais linda de todas está além — declarou orgulhoso e apontando uma baía.

Naquele momento o Sol mergulhava no horizonte, envolvendo vales e colinas na sua luz dourada. Aproximavam-se do Funchal, que era apenas uma pequena povoação com casas de madeira de colmo, embaladas pelo toque pausado dos sinos de uma capelinha.

— Estão a ver a igreja? Foi a minha mulher quem a mandou construir depois do incêndio, em honra de Santa Catarina (1). A nossa casa era ali, mas agora mandámos fazer outra mais acima.

Zarco indicou um lugar alto, onde se destacava uma das poucas construções de pedra da região. Era uma casa grande, que se estendia em dois níveis, mas com um piso só.

 

(1) Esta igreja sofreu várias modificações mas ainda existe.

 

Emoldurada por arbustos redondos, lembrava um simpático desenho de criança. Nem faltava o fumo branco saindo pela chaminé!

Ao longe, dava uma sensação de paz e serenidade. Mas logo que chegaram perceberam que não era assim!

Vários colonos gritavam e esbracejavam muito aflitos em frente da porta. Dona Constança bem procurava acalmá-los, mas a algazarra era tão grande que não a conseguiam ouvir.

— É obra do demónio! — diziam uns.

— É preciso benzer a vila antes que aconteçam mais desgraças!

— Os espíritos não acendem lume! — insistia um homem sensato. — Isto foi patifaria de algum bandido.

— Qual bandido! Isto foi «mau olhado»... Claro que com muitos a falar ao mesmo tempo ninguém se entende!

Se o capitão não chegasse naquela altura, o mais certo era continuarem aos gritos e aos berros pela noite fora, sem resolverem coisa nenhuma. Mas a sua presença teve o efeito de uma anestesia. O silêncio foi súbito, e abriram alas para ele passar, curvando-se respeitosamente e tirando o barrete.

Dona Constança, de tão aflita, nem perguntou quem eles eram e foram entrando.

Também ali foram envolvidos por uma grande família calorosa, simpática e barulhenta. Havia pessoas de todas as idades. Uma criança de colo, assustada com a agitação, berrava a plenos pulmões, sem que a mãe lograsse adormecê-la.

Um rapaz tentou explicar ao pai o que tinha acontecido, mas os irmãos e a mãe interromperam-no tantas vezes que Zarco acabou por dar dois murros na mesa.

— Calem-se todos de uma vez! — berrou. A ordem foi tão vigorosa que até o bebé lhe obedeceu! Depois, mais calmo, virou-se para o filho segundo e perguntou: — Tu, Rui! Conta-me tudo. O que é que se passou na minha ausência?

O rapaz explicou-se com clareza. Por certo o pai escolhera-o por ser quem expunha as suas ideias com mais facilidade.

— Ontem à noite alguém deitou fogo a um campo de trigo. O incêndio pegou com tanta força que ardeu um estábulo, passou a uma casa, depois a outra e foram precisos muitos homens para o apagar.

— E não viram nada, nem ninguém suspeito?

— Meu pai — disse uma das filhas com voz sumida. — O Rui não está a contar tudo...

Ele irritou-se.

— Não me deixaste acabar!

— Continua, então! Aconteceu mais alguma coisa?

— Dizem que sim, mas eu não vi. Algumas mulheres juram que por cima do incêndio pairava uma nuvem brilhante.

— Oh! Uma nuvem! — exclamou o capitão, desdenhoso. — Era o fumo, com certeza!

A rapariga que falara ergueu-se vivamente e insistiu:

— Não era só fumo, meu pai. Eu vi.

— E viste o quê?

— Uma nuvem de luz, de luz muito branca. Desceu sobre a seara e lançou raios verdes por cima do campo. Onde quer que tocassem, apareciam labaredas.

O pai olhou a filha com assombro, mas ela sustentou o olhar.

— Eu vi, meu pai! Eu vi! — repetiu baixinho, com firmeza.

João Gonçalves Zarco virou-se então para a mulher, a pedir-lhe que confirmasse. Dona Constança encolheu os ombros.

— Eu não assisti a nada, mas a Beatriz não se cala com isto desde ontem à noite.

O capitão hesitou um momento. Tiveram a impressão de que ele ia falar, mas calou-se e baixou a cabeça por instantes.

Fez-se um silêncio de expectativa. Filhos, filhas, criados, colonos, todos aguardavam em suspenso o seu parecer, habituados como estavam a reconhecer-lhe autoridade.

Mas ele tardou em pronunciar-se. Por fim, pôs-se de pé muito sério e falou em voz bem alta e pausada para que todos o pudessem ouvir:

— Esta ilha era deserta. Não havia aqui obra de homem que louvasse a Deus. Nós desbravámos a terra, cultivámos os campos, construímos povoações, casas e igrejas. Nada nem ninguém vai destruir o que fizemos! — Após uma breve pausa, continuou: — Por toda a ilha têm acontecido estranhos incidentes, mas eu sei que não é obra do demónio. É obra de gente vil, que vamos apanhar e castigar severamente.

— Mas de quem? — perguntou Dona Constança. — Quem teria interesse em destruir as culturas? Pegar fogo às casas?

Beatriz, muito nervosa e quase a chorar, interrompeu a mãe:

— E quem teria poder para lançar faíscas, atear incêndios, provocar ruídos de ensurdecer? Só se forem feiticeiras!

— Nesta ilha não há feiticeiras! Só aceitámos que para cá viesse gente de bem!

— E o pai conhece todos os que foram chegando ano após ano?

— Se não os conheço eu, conhecem-nos os parentes que os mandaram vir.

Aquela frase do capitão fez com que um frio súbito envolvesse o aposento. A atenção geral virou-se para a Ana, o João e Diogo de Lagos, que coraram até à raiz dos cabelos. Além de o facto em si ser embaraçoso, o pior era o risco de serem desmascarados, pois todos se faziam passar por quem não eram.

Álvaro apercebeu-se da atrapalhação dos seus companheiros, mas as palavras enrolavam-se-lhe na garganta. Ia chamar a si toda a coragem necessária para apresentar Diogo de Lagos como seu parente, pois se não era homem para mentir também não era homem para faltar ao prometido, quando fortes pancadas na porta resolveram a questão:

«Pam! Pam! Pam!»

— Ó da casa! Ó da casa! — ouviram gritar lá fora. Os criados correram a abrir e uma figura imponente

de homem recortou-se em contraluz. Atrás dele, várias tochas iluminavam a noite.

Álvaro quase chorou de alegria, pois foi o primeiro a reconhecer o recém-chegado. Mais uma vez a presença do seu amo o livrava de embaraços!

— Senhor Gonçalo Aires! Bem-vindo! Bem-vindo seja!

Gonçalo Aires entrou por ali adentro, trazendo no corpo e nas vestes o cheiro da noite, do mato, da urze dos caminhos. De semblante sério dirigiu-se primeiro ao capitão e os dois homens abraçaram-se.

— Venho ajudar em tudo o que for preciso! — foi logo dizendo sem mais delongas. — O que se passa na ilha tem de ser resolvido por todos nós. Trouxe os meus filhos, os meus homens e os meus primos que chegaram há pouco do reino.

Gonçalo Aires virou-se para o grupo que o acompanhava e fez sinal a alguém.

A Ana e o João quase desmaiaram de pavor, quando viram um rapaz e uma rapariga, mais ou menos da idade deles, avançarem para serem apresentados a Gonçalves Zarco.

Se os primos verdadeiros estavam ali, então eles iam ser descobertos! Com passinhos miúdos até se encostaram à parede. Diogo olhava-os, espantado. Menos espantado não estava o capitão, que perplexo olhava ora para uns ora para outros.

E foi Álvaro, o Malhado, quem avançou para o meio da sala, tão lívido de fúria que se lhe acentuaram as malhas da pele, vociferando:

— Aldrabaram-me! Mentirosos! Mentirosos!

A Ana e o João sentiram-se perdidos.

Gonçalo Aires, que nada entendia, ergueu as sobrancelhas fitando o seu criado. Mas ele não teve tempo de se explicar, pois Zarco tomou a palavra:

— Se estes são os parentes de Gonçalo Aires, quem são vocês? — perguntou, fulminando os dois irmãos com o olhar.

 

A temperatura subiu ao rubro com a fúria que todos sentiram crescer dentro de si. Os colonos avançaram para eles empunhando varapaus e dispostos a descarregarem cegamente a ira acumulada nos últimos dias. Finalmente tinham alguém a quem podiam culpar de todas as suas desgraças, alguém de carne e osso sobre quem era possível exercer vingança, a murro, à paulada, a pontapé! Porque enquanto todos os acontecimentos eram atribuídos ao demónio, nada mais podiam fazer do que rezar, tremer de medo e guardar dentro de si quanta raiva sentiam por verem destruído em poucas horas o seu trabalho de muitos

meses.

Diante dos olhos bailavam-lhes ainda as casas e as searas em chamas, quando avançaram num magote desenfreado ao encontro dos três infelizes.

A Ana e o João pensaram que era o último dia da vida deles!

Mas Zarco não era homem para se deixar ultrapassar ou demitir das suas funções. E com voz de trovão interpôs-se, gritando:

— Alto aí! Quem faz justiça nesta ilha sou eu! Embora contrariados, os colonos recuaram.

A Ana sentiu uma tontura. Na sua frente as pessoas pareciam flutuar e as imagens iam perdendo os contornos. Num gesto de quem pede socorro, apertou os dedos do irmão que achou gelados e cobertos de suor.

Diogo de Lagos tremia como varas verdes, e o sangue fugira-lhe, de modo que a cara parecia esculpida em cera. Tinha perdido o controlo a tal ponto que não conseguia evitar que os dentes batessem como castanholas.

O silêncio que se seguiu à ordem do capitão foi cortado pela voz esganiçada de Beatriz:

— Feiticeiros! Feiticeiros! Vieram para a ilha praticar bruxarias! São eles, meu pai! São eles!

Não foi o pai, mas a mãe, quem a mandou calar. Dona Constança saiu lá do seu canto e agarrou-lhe um braço com toda a força.

— Pára de dizer disparates! Vai lá para dentro! Beatriz soltou-se com um safanão. A voz saiu mais esganiçada que nunca, quando de olhos esbugalhados e a babar-se voltou a guinchar:

— Bruxos! São bruxos!

Dona Constança não esteve com meias-medidas e aplicou-lhe um bofetão em cheio na cara.

O efeito foi surpreendente, pois não só a rapariga serenou de imediato como toda a assistência pareceu cair em si.

A capitoa era sem dúvida uma mulher prática e inteligente. Atravessou a sala em passadas largas e abriu os braços numa atitude de protecção. E o que disse vinha carregado de bom senso:

— Não vejo aqui ninguém que pareça bruxo ou feiticeiro. O que eu vejo são duas crianças e um homem fraco. Já pensaram no pecado enorme que é acusar inocentes? — perguntou, dirigindo-se a todos e a ninguém.

— E se forem culpados? — perguntou uma voz lá de trás.

— Se forem culpados, receberão o castigo que merecem. Mas não é no meio da confusão que se pode julgar seja quem for. Portanto...

Suspendeu o discurso e olhou para o marido antes de prosseguir. E vendo que a aprovava, continuou, ainda mais firme:

— O capitão ordena que agora recolham todos a casa. Quem não tem para onde ir por causa do incêndio, que durma no estábulo e amanhã trataremos de resolver a questão.

Os colonos ainda hesitaram, mas, quando ouviram Zarco dar ordem aos criados para que encerrassem os três suspeitos na adega e os fechassem à chave para serem julgados no dia seguinte, iniciaram a retirada em silêncio.

A Ana e o João prepararam-se para serem presos mas tal não aconteceu. O capitão mandou sair toda a gente, excepto a mulher, Gonçalo Aires e Álvaro, o Malhado.

Assim que ficaram sozinhos, procurou esclarecer a situação interrogando todos com muita calma. Primeiro dirigiu-se a Gonçalo Aires.

— Quem são afinal os parentes que mandaste vir do reino?

Ele apressou-se a explicar a sua história:

— São meus primos. O pai deles era um homem de boa linhagem e um grande amigo. Morreu há pouco e deixou-os sem ninguém que os pudesse proteger e orientar. Mandei-os vir, pensando casar a rapariga com o meu filho Adão. Ele foi o primeiro rapaz que nasceu nesta ilha e faço gosto que aqui deixe grande e ilustre descendência.

A Ana fechou os olhos e suspirou. Coitada da pobre que iam casar com um desconhecido! E para mais, à partida já com a obrigação de lhe dar uma ranchada de filhos.

A conversa prosseguia entre os dois homens.

— Mas então como é que apareceram, em vez de dois, quatro parentes?

Álvaro agitou-se, inquieto por falar. Mas como o seu amo tomou a palavra, aguardou. Gonçalo Aires foi explicando:

— Eu tinha mandado Álvaro buscar os meus primos ao Machico. E disse-lhe que depois lá iria um batel para trazer as arcas e o resto da bagagem. Mas afinal pude mandar o batel mais cedo do que esperava, com dois remadores muito despachados.

— Mesmo assim, não entendo!

— Nem eu! Mas o que se passou é que, quando os remadores chegaram ao Machico, já lá estava o barinel onde viajavam os meus parentes. Recolheram-nos, mais a bagagem, e regressaram imediatamente porque tinham ordens para não perderem tempo. Quanto a estes dois, não sei quem são!

Álvaro não se conteve mais.

— Dá-me licença, Senhor Gonçalo Aires?

— Fala, homem! Explica-te, que estamos todos mortos por ouvir.

— Bom, quando eu cheguei ao Machico, o barinel estava ancorado e ninguém me falou que os seus parentes tinham seguido viagem. Fiquei à espera, e pouco depois apareceu uma barca que trazia aqueles dois! — disse, apontando o João e a Ana. — Pensei que fossem os seus primos, devido às vestes e aos anéis que traziam. E eles não negaram...

Naquele momento os dois irmãos davam tudo para terem combinado uma história que pudesse ser convincente. Mas não só não tinham combinado nada como nada de verosímil lhes ocorria. Pior ainda, a língua estava presa, colada ao céu-da-boca e seca como um pedaço de cortiça. A Ana teve esperança de que o irmão, habitualmente mais despachado, conseguisse arranjar uma desculpa para os livrar daquele embaraço. Mas ele abriu e fechou a boca várias vezes sem emitir nenhum som. Diogo de Lagos, por sua vez, chorava silenciosamente, como se já o tivessem julgado e condenado por crimes que não cometera. A sua sorte estava nas mãos de Álvaro! O João recordou o tom amigo com que este declarara pelo caminho: «E quanto ao segredo, fica só entre nós!»

Iria cumprir a palavra dada?

Era evidente que o Malhado se debatia de novo com esse dilema. De olhos baixos, com a respiração alterada, aguardou a pergunta que não deixaria de vir. Foi Zarco quem a fez:

— E o outro? Quem é?

Em suspenso, olharam para ele que, sem levantar a cabeça, respondeu:

— O outro não sei quem é. Vinha também na barca e diz chamar-se Diogo de Lagos.

— Bom, já todos contaram o que sabiam. Faltam vocês. Chegou a altura de nos dizerem quem são e o que estão aqui a fazer. Tu, primeiro, já que és o mais velho!

Interpelado pelo capitão, Diogo tentou levantar-se mas não conseguiu. Emitiu um som estranho e largou a soluçar desabaladamente.

O capitão impacientou-se.

— Uma coisa já sei a teu respeito! Não és homem para a guerra — disse com profundo desprezo.

Gonçalo Aires, mais interessado em desvendar a identidade dos outros dois, já que se faziam passar por seus parentes, perguntou:

— E vocês? Por que é que fingiram ser da minha

família, hã?

Boa pergunta! Se a fizessem ao Orlando, talvez ele pudesse responder! Por que carga de água teria o velho cientista arranjado aqueles anéis? E aquelas roupagens?

Gonçalo Aires insistia, num tom brando e amigável:

— Quem são vocês? Hã? Digam a verdade!

«Que ironia!», pensou o João. A verdade era exactamente o que não podiam dizer, pois os homens do século XV nunca a entenderiam!

Nenhum deles ousou pronunciar-se. Mudos como estátuas!

Zarco, exasperado com o silêncio incompreensível, acabou por ordenar a Álvaro:

— Leva-os daqui! Prendam-nos na adega e amanhã os julgarei. Chamem testemunhas...!

A Ana sentiu-se desfalecer. Aquela gente estava tão cega de raiva, que não era difícil aparecer alguém garantindo que os tinha visto a praticar actos de feitiçaria...

Atordoada, deixou-se levar por Álvaro e mais dois criados, que atiraram com eles para um compartimento escuro e húmido onde os fecharam à chave.

 

Foi preciso algum tempo para se recomporem. A Ana permaneceu sentada, sem se mexer, tacteando com a ponta dos dedos o soalho, que afinal não existia, pois o chão era de terra batida. Um cheiro intenso a vinho penetrou-lhe as narinas. Não havia dúvida de que estavam na adega!

À medida que os olhos se habituavam à escuridão, começaram a distinguir o contorno das pipas alinhadas de encontro à parede.

Quem primeiro se mexeu foi o João, gatinhando para junto da irmã.

— Temos de sair daqui! Vamos fugir — murmurou-lhe ao ouvido.

Ela respirou fundo, contente. Era bom ouvir de novo uma palavra de esperança! Ouvir alguém que acreditava ser possível escapar...

— João! João! — foi a única coisa que conseguiu dizer naquele momento.

Já de pé, ele agitava-se, em busca de uma abertura qualquer por onde pudessem fugir. Mas a adega não tinha janelas! A porta era sólida e estava fechada a sete chaves. Pelo tecto, talvez? Se subisse a uma pipa, conseguiria esticar-se e tocar o telhado de colmo? Mediu a distância com os olhos e pareceu-lhe difícil. Só se alguém lhe pegasse ao colo. Ou o empoleirasse às cavalitas... Mas a irmã não tinha força para isso.

— Ana, vou pedir ao Diogo que suba ali para cima daqueles tonéis e me levante no ar. O colmo deve ser mole... acho que consigo fazer uma abertura para fugirmos.

O plano soou muito arriscado. Ainda que conseguissem sair para o telhado, o mais certo era os guardas darem por isso. E, aliás, não tendo escada para descer, o que fariam? Saltarem de tão grande altura era perigoso.

Mas os seus argumentos foram inúteis. Não vislumbrando outra hipótese, o João insistiu na ideia dele e pôs-se à procura do Diogo, impaciente.

— Diogo! Diogo! Onde é que te meteste? Ninguém respondeu.

A Ana estranhou. O rapaz não podia ter saído dali. Se não respondia, se calhar tinha desmaiado.

Procuraram-no, um pouco ansiosos, e foram dar com ele deitado ao comprido num monte de palha. O João, abanou-o com força.

— Diogo! Que é que estás aí a fazer?

Ele entreabriu ligeiramente os olhos, e gemeu:

— Bâ...

— O que é que tens? Estás doen...

A Ana não acabou a frase, pois chegou-lhe ao nariz um bafo inequívoco. O rapaz estava completamente bêbado e cheirava a vinho que tresandava.

— Já viste isto? — perguntou, furiosa. — Assim que o prenderam, não achou nada melhor para fazer do que embebedar-se!

— É um palerma! Em vez de tentar fugir, abriu uma pipa e vá de beber!

A Ana quase sentiu vontade de rir. Que hora tão estranha para não resistir aos encantos do famoso vinho da Madeira!

— E agora? — perguntava o irmão irritadíssimo. — E agora, o que é que a gente faz? Hã?

Desanimados, olharam um para o outro. Aquilo parecia mesmo não ter solução!

E foi quando menos esperavam que surgiu na frente deles um ponto de luz intensa, vibrante, lilás...

— Misserfal! — gritaram a uma só voz.

Não tiveram tempo de perceber o que se passava. Um assobio estridente e agudo entrou-lhes pelos ouvidos dentro, tomando-lhes conta do cérebro como uma anestesia. Deixaram de ver, de ouvir, de cheirar, de sentir fosse o que fosse, além de uma vertigem imensa que os arrastava para o desconhecido.

Os músculos contraíram-se com tanta força que o corpo lhes ficou hirto como uma tábua. Depois, a pouco e pouco a pressão afrouxou e tiveram a vaga ideia de que pairavam no espaço, sem nem volume. Era como se o corpo tivesse desaparecido, ou melhor, como se a carne e os ossos se tivessem transformado em penas.

Como um esforço imenso, a Ana pestanejou até abrir os olhos. E logo soltou um grito!

Estavam mesmo no ar, dentro de uma bolha transparente que se deslocava a uma velocidade incrível. Atrás de si, soou a inconfundível gargalhada rouca.

— Orlando!

— Ó Orlando!

O velho cientista abraçou-os, muito prazenteiro. Viajava com eles dentro da mesma bolha. Misserfal, ao seu lado, era quem conduzia, embora não houvesse ali nada parecido com instrumentos de navegação aérea. As mãos é que serviam de indicador, arrastando aquele estranho veículo na direcção certa.

— Que susto, hã? Isto é que foi uma aventura!

— Ó Orlando! Se soubesse o que a gente passou...

— Vocês mereceram. Quem é que os mandou partir sozinhos?

— Foi sem querer...

Ele riu-se, compreensivo:

— Eu sei, eu sei! Mas agora não se fala mais nisso! Depois me contam tudo em pormenor.

— Vamos já para casa? — perguntou a Ana, olhando através da película transparente onde se deslocavam.

Naquele momento sobrevoavam os picos fantásticos da ilha da Madeira. Parecia incrível que alguém se atrevesse a escalar tais encostas, íngremes, escarpadas, mas tão bonitas e verdejantes! Aqui e ali irrompia a água ainda muito pura e muito fresca, formando ribeiras caudalosas que se uniam chegando ao vale e que depois entravam pelo mar adentro com fragor.

— Vamos para casa? — insistiu. Orlando tentou sossegá-la.

— Vamos, sim! Mas antes temos de apanhar o malandro que anda por aqui a incomodar toda a gente!

O João virou-se para ele, admiradíssimo.

— Nós é que vamos apanhar o homem? Então o Orlando não disse sempre que podíamos fazer tudo, menos alterar o passado?

— Pois disse e é verdade. Não temos nada que nos meter na vida das pessoas de outra época.

— Então por que é que vamos prender este homem do século XV?

— Precisamente porque ele não é do século XV. É um companheiro aqui da Misserfal.

— Um homem do século XXIII!

— Como é que não nos lembrámos disto, ó Ana? Nuvens de luz a pairar, ruídos estereofónicos, raios que incendeiam à distância...

— Claro, claro! Agora já compreendo tudo. Não admira que os colonos julgassem ser obra de feitiçaria.

— Por que é que esse homem da sua época resolveu incomodar os madeirenses do século XV?

Sem parar de dirigir o veículo, ela explicou:

— É um infeliz que endoideceu. Meteu-se-lhe na cabeça que esta ilha havia de ser só para ele e portanto anda a tentar expulsar os colonos, provocando incidentes que os arruinam e lhes metem medo.

— Isso é incrível!

— Pois é. Mas ele está doido e se não o apanhamos depressa não sei o que fará. Lembrem-se de que ele vem do século XXIII. Dispõe de tecnologia muito avançada.

Nem percebo como é que ainda não a utilizou para desintegrar toda a gente, mas receio que o faça. A bolha transparente perdia altura de uma forma suave.

Sobrevoaram primeiro Câmara de Lobos, depois Ribeira Brava, e em qualquer dos sítios havia marcas de fogo recente. O cientista louco deixara atrás de si uma pista fácil de seguir: terra queimada.

Finalmente, ao aproximarem-se da Ponta do Sol, viram-no a esbracejar desvairado. Vestia uma túnica azul-turquesa, tinha uma cabeleira imensa escorrendo pelas costas abaixo e usava luvas de metal brilhante de onde saíam raios verdes. Quando fazia um gesto mais brusco, logo saltava uma nuvem de vapor das águas do mar.

— Sou o rei Sol! Sou o rei Sol! Esta é a minha ilha! O meu paraíso — gritava a plenos pulmões.

Misserfal fez descer a bolha transparente sobre a cabeça dele, e arrebatou-o lançando uma rede em tudo semelhante à dos pescadores, só que feita de raios de luz. Lá dentro, o cientista debateu-se agitando braços e pernas, mas não serviu de nada! Foi içado para dentro, onde logo lhe aplicaram um sedativo que o pôs a dormir.

 

A máquina do tempo que conheciam, aquela onde tinham feito as primeiras viagens na companhia de Orlando, estava estacionada num vale profundo, apertado entre montanhas, onde no século XV ainda não vivia ninguém.

Misserfal deixou-os ali, despedindo-se um tanto à pressa e prometendo voltar a contactar com eles na primeira oportunidade. Tinha urgência em regressar ao século XXIII, para que o cientista louco iniciasse de imediato o tratamento que o iria pôr bom.

— O que é que lhe vão fazer? — perguntou o João, cheio de curiosidade acerca da medicina do futuro.

— Bom, o tratamento começa por apagar da memória do doente todos os disparates que ele fez, que o prejudicaram ou que prejudicaram outras pessoas.

— Para quê?

— Para que se sinta mais leve. Depois, com uma sonda especial, detectam certos nozinhos psicológicos que é preciso desatar, e pronto! Fica óptimo... Continua com a mesma personalidade, mas sem problemas nem complicações.

— Que maravilha! — exclamou a Ana. — Estou-me a lembrar de imensa gente que precisava de ir ao século XXIII tratar-se!

Com aquela saída, Misserfal partiu rindo a bandeiras despregadas!

Orlando também achou graça. E bem-disposto, como era seu costume, fartou-se de dizer piadas, enquanto os conduzia para junto do painel de comandos da máquina do tempo. E não resistiu a informar:

— Este sítio há-de chamar-se um dia Curral das Freiras por causa de uns corsários franceses que desembarcaram na ilha. As freiras, com medo deles, vieram-se esconder aqui...

— Não há dúvida de que escolheram bem. Que rico esconderijo!

Aquela frase da Ana fez-lhes voar o pensamento para a adega de João Gonçalves Zarco onde o pobre Diogo de Lagos curtia a bebedeira, única forma que encontrara de fugir aos seus perseguidores.

O que lhe iria acontecer? O mais certo era ter de pagar sozinho as acusações que o povo fazia a eles os três.

— Achas que o matam? — perguntou o João.

— Pena de morte não podem aplicar aqui — balbuciou a Ana. — Mas se o mandarem para Lisboa com acusações graves, talvez o rei o mande executar.

— Coitado... ainda por cima sabemos que ele está inocente!

A Ana franziu-se, inquieta.

— Estou cá a pensar numa coisa...

— O quê?

— A fúria com que as pessoas estão pode muito bem levá-las a perderem a cabeça e matarem-no sem julgamento!

— Mas como?

— Sei lá! À pedrada, ou até o podem queimar vivo. Lembra-te de que julgam que ele é feiticeiro.

— Ó Ana, que horror! Temos de ir lá ajudá-lo.

— E o que é que podemos fazer? Se aparecemos ainda nos queimam também!

— Talvez o Orlando tenha uma ideia qualquer. Não podemos é ir embora e abandonar o rapaz à sua sorte!

— Isso é verdade!

Orlando preparava-se para regressar ao século XX, accionando botões e manípulos sem prestar grande atenção ao que os dois irmãos diziam entre si.

A Ana e o João aproximaram-se, muito enervados, e puseram-se a falar ao mesmo tempo na ânsia de o convencer. Mas a conversa saiu tão atrapalhada que ele teve de fazer um esforço enorme para perceber o que pretendiam.

— Bom, só vejo uma hipótese! — disse ele por fim. — Levá-lo na máquina do tempo para outro sítio onde ninguém o conheça.

— Isso, isso! Mas para onde?

— Podemos levá-lo para Porto Santo.

— E não é muito perto?

— Nesta época os contactos são poucos. E de resto, podemos rapar-lhe o cabelo para não ser reconhecido e deixamo-lo meio a dormir na praia como se fosse um náufrago. Com certeza recolhem-no e ele fica por lá.

— Então temos de ir depressa buscá-lo à adega. Se não nos despachamos, pode ser tarde...

— Pois. Mas atenção, vocês têm de cumprir à risca as minhas indicações. Lembrem-se de duas coisas: primeiro, não podem deixar-se apanhar. Vocês também são acusados de bruxaria!

— E segundo?

— Segundo, têm de o adormecer com este instrumento, o «sonofílio». É o que há de mais moderno para insónias.

Orlando estendeu-lhes o que parecia ser uma pequena corneta de metal amarelo e muito brilhante.

— Encostam-lhe a parte mais larga junto ao olho esquerdo, carregam num botão e vão ver que ele adormece instantaneamente. Depois eu puxo-os para dentro da máquina.

— Hum... ele é capaz de se assustar quando vir o Orlando e a máquina do tempo!

A resposta foi uma gargalhada rouca.

— Ele não pode nem sonhar que estou ali! Eu e a máquina do tempo ficamos cá fora, invisíveis. Só entram na adega vocês os dois.

— Mas como?

— Da mesma maneira como saíram. Vou projectá-los lá para dentro. E depois sugo-os de volta. Têm é um tempo limitado para fazerem o que têm a fazer... São poucos segundos. Tratem de os aproveitar bem!

O João pôs-se aos pulinhos de impaciência e apressou-se a pedir:

— Vamos depressa... estou morto por entrar em acção. Vai ser mesmo cómico... Quem leva o «sonofílio» sou eu!

— Então agora vê lá o que fazes, hã? Cada segundo conta!

O regresso ao Funchal foi bem cómodo e rápido, conduzidos por Orlando com toda a segurança na sua fabulosa máquina.

A projecção para o interior da adega deu-se num ápice. Num momento ainda estavam cá fora e no momento seguinte já estavam lá dentro sem perceberem como.

Só que as coisas não se passaram exactamente como seria de esperar...

Diogo de Lagos, que ao acordar se tinha encontrado sozinho, e ficara agachado atrás de uma pipa transido de medo, ia morrendo de pavor quando viu os seus companheiros materializarem-se-lhe na frente, vindos ele não sabia de onde, e com um objecto retorcido e brilhante apontado na sua direcção.

Levantou-se de um salto e pôs-se aos berros.

— Bruxos! Bruxos! Socorro!

Eles hesitaram um instante pois não estavam a contar com aquilo, mas logo de seguida correram para ele.

— Diogo! Não fujas... viemos buscar-te! Aquela frase não podia ter-lhe soado pior! Julgando que o queriam arrastar para o inferno, o pobre infeliz em pânico soltou um grito de verdadeiro terror:

 

— NÃÃÃÃO!

Com os dois irmãos desesperados atrás dele largou a correr à volta das pipas, gritando cada vez mais. Deviam-no ter ouvido lá fora, pois a porta abriu-se de par em par e surgiram vários homens armados de varapaus. De cabelos em pé, lívido, com os olhos injectados de sangue, a roupa em desalinho coberta de terruça e palha, Diogo era a imagem perfeita de um homem transtornado. E, receando igualmente os que vinham para o julgar e os que tinham atravessado a parede para o levar, caiu de joelhos com os braços abertos e soltou um último apelo.

— Valha-me Santa Catarina!

Naquele preciso momento, o João e a Ana desapareceram diante de uma assistência petrificada de assombro.

O tempo esgotara-se e Orlando sugara-os para dentro da máquina onde ficaram imediatamente invisíveis.

— Então?

— Oh! Não conseguimos nada! — exclamou o João, irritadíssimo. — O homem é estúpido como uma porta.

— Bem — disse a Ana. — Estúpido não! Ele é um homem do século XV! Não pode compreender certas coisas. Viu-nos aparecer de repente ao pé dele, assustou-se! Julgou que era magia!

— E agora?

Orlando não lhes prestava atenção nenhuma, entretido a observar o que se passava em redor da adega de João Gonçalves Zarco.

— Olhem, olhem! Olhem para ali!

O povo acorrera em magote. Diogo de Lagos saía lá de dentro levado em ombros por quantos tinham assistido ao desaparecimento dos dois irmãos!

Aquela cena foi entendida como uma vitória das forças do bem sobre as forças do mal. Todos diziam já que só um homem bom, um homem de grande coragem, poderia ter feito rebentar dois feiticeiros.

Os sinos repicavam, festejando o acontecimento.

Diogo de Lagos tornara-se o herói do dia!

— Ja viste isto, ó Ana? Então agora julgam que somos feiticeiros?

— Que é que queres? Aparecemos e desaparecemos sem ninguém perceber como, é natural!

— Deixem lá — disse Orlando com um sorriso divertido. — Não queriam salvar o homem? Pois salvaram-no!

— Queríamos, mas não assim! — resmungou o João, pouco convencido.

— Porquê? Foi a melhor das maneiras! Assim, ele fica onde queria ficar. E mais! De um momento para o outro passou de cobarde a herói! Vai ser muito feliz, admirado por toda a gente.

Um pouco contristados, observaram as cenas de júbilo que se desenrolavam na pequena vila do Funchal, e nas quais não podiam participar.

A notícia corria de boca em boca, por certo já aumentada pois «quem conta um conto, acrescenta-lhe um ponto...»!

O rapaz ia no meio dos outros, feliz como nunca, recebendo homenagens dos que na véspera o queriam matar.

O próprio João Gonçalves Zarco, acompanhado de Gonçalo Aires, veio abraçá-lo.

Mas talvez melhor do que isso foi um grupo de raparigas que desceu a encosta carregando as flores mais lindas para lhas atirarem com o mais lindo dos sorrisos.

O ambiente era de alegria esfuziante. Por certo pensavam que aquele homem de fé, ao gritar por Santa Catarina, afastara para sempre as forças malignas que os tinham atormentado.

O João e a Ana já riam, aceitando aquele fim, quando viram ao longe, no meio de um grande grupo, o seu amigo Álvaro, o Malhado, gesticulando muito. Sem dúvida, contava «a história!».

Desconsolado, o João suspirou:

— Tenho pena de não me poder despedir dele, e dizer que não sou nenhum bruxo! Demo-nos tão bem! Ele foi tão simpático connosco.

Foi Orlando que o consolou:

— Não te rales, João! Até tem graça. Observaram-no ainda um instante. O grupo à sua volta crescia. Ele gesticulava cada vez mais, com o entusiasmo que tão bem lhe conheciam.

Imaginaram então que, até ao fim da vida, a melhor das histórias com que iria entreter crianças e adultos, animar festas e serões, seria aceca deles, os poderosos feiticeiros que um dia desembarcaram no Machico fingindo ser parentes de Gonçalo Aires, para semearem destruição e terror entre os habitantes da ilha.

— Tem razão — disse a Ana. — À conta de tudo isto, não é tão cedo que se esquecem de nós na ilha da Madeira!

Mas a frase foi abafada, porque a máquina partira já de regresso ao século XX, arrastando-os pelo tempo fora numa vertigem sem fim.

 

                                                                  Ana Maria Magalhães & Isabel Alçada

 

 

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