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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


UMA MELODIA INESPERADA / Jodi Picoult
UMA MELODIA INESPERADA / Jodi Picoult

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                   

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

Zoe Baxter passou dez anos a tentar engravidar e, quando parece que este sonho está prestes a realizar-se, a tragédia destrói o seu mundo. Como consequência da perda e do divórcio, Zoe mergulha na carreira como terapeuta musical.
Ao trabalhar com Vanessa, o relacionamento profissional entre as duas transforma-se numa amizade e depois, para surpresa de Zoe, em amor. Quando Zoe começa a pensar de novo em formar família, lembra-se de que ainda há embriões dela e de Max congelados que nunca foram usados.
Sem fugir aos dilemas morais e éticos, e sem deixar de apresentar todos os lados da questão, Picoult dá aos seus leitores o fantástico enredo, suspense e reviravoltas a que já os habituou.
Sermos capazes de nos rodearmos de quem sabe mais do que nós é um sinal de inteligência. Por isso, tenho de agradecer a muitas pessoas que me ajudaram a criar este romance. Agradeço aos meus extraordinários conselheiros médicos e jurídicos: a Dra Judy Stern, a Dra Karen George, o Dr. Paul Maganiello, a Dr.a Michelle Lauria; a cabo Claire Demarais, a juíza Jennifer Sargent e as advogadas Susan Apel, Lise Iwon, Janet Gilligan e Maureen McBrien. Agradeço às terapeutas musicais que me deixaram entrar no seu mundo e partilhar alguns momentos extraordinários: Suzanne Hanser, Annette Whitehead Pleau, Karen Wacks, Kathleen Howland, Julie Buras Zigo, Emily Pelegrino, Samantha Hale, Bronwyn Bird, Brenda Ross e Emily Hoffman. Estou igualmente grata a Sarah Croitoru, Rebecca Linder, Lisa Bodager, Jon Picoult, Sindy Buzzell, Melissa Fryrear da Focus on the Family e Jim Burroway da Box Turtle Bulletin.
Agradeço também à minha mãe, Jane Picoult, por ser uma das primeiras leitoras, mas desta vez também gostaria de agradecer à minha avó Bess Friend. Devíamos todos ter uma mente assim tão aberta aos noventa anos.
Agradeço à Atria Books: Carolyn Reidy, Judith Curr, Mellony Torres, Jessica Purcell, Sarah Branham, Kate Cetrulo, Chris Lloreda, Jeanne Lee, Gary Urda, Lisa Keim, Rachel Zugschwert, Michael Selleck e a dezenas de outros sem os quais a minha carreira nunca teria chegado onde chegou. E a David Brown - é realmente bom tê-lo de volta à minha equipa. Estou muito grata por a sua primeira reação (quando anunciei que íamos publicar este livro com música original) ter sido de grande entusiasmo - e não de puro pânico.


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Num sábado soalheiro e límpido, quando tinha sete anos, vi o meu pai cair para o lado, morto. Estava a brincar com a minha boneca preferida no muro de pedra que
ladeava a nossa via de acesso enquanto ele cortava a relva. Num instante estava a mexer-se e no instante seguinte caiu de cara na relva, enquanto o cortador avançava
em câmara lenta pela encosta do nosso jardim.
Primeiro pensei que ele estivesse a dormir, ou a brincar. Mas quando me agachei junto a ele no relvado, ainda tinha os olhos abertos. A relva húmida cortada colava-se-lhe à testa.
Não me lembro de chamar a minha mãe, mas devo ter chamado.
Quando penso nesse dia, ele surge em câmara lenta. O cortador de relva, a avançar sozinho. O pacote de leite que a minha mãe trazia na mão quando saiu de casa a correr, que caiu na via de acesso alcatroada. O som das vogais redondas quando a minha mãe gritou ao telefone para dar a morada à ambulância.
A minha mãe deixou-me em casa da vizinha para ir para o hospital. A vizinha era uma senhora idosa cujo sofá cheirava a urina. Ofereceu-me pastilhas de mentol cobertas de chocolate tão velhas que o chocolate ficara branco nas pontas. Quando o telefone tocou, fui para o jardim e escondi-me atrás de uma sebe. Na terra macia, enterrei a minha boneca e fui-me embora.
A minha mãe nunca reparou no seu desaparecimento - mas, por outro lado, também parecia que mal dava pelo desaparecimento do meu pai. Nunca chorou. Ficou ali de pé, de costas direitas, no funeral do meu pai. Sentou-se à minha frente à mesa da cozinha, onde às vezes ainda ponho um terceiro lugar para o meu pai, enquanto comíamos guisado de carne e macarrão com queijo e salsichas, travessas de condolências dos colegas do meu pai e dos vizinhos que esperavam que a comida compensasse o facto de não saberem o que dizer. Quando um homem robusto e saudável de quarenta e dois anos morre de ataque cardíaco, a família enlutada de repente torna-se contagiosa. Se se aproximarem demasiado podem ficar contagiados com o nosso azar.
Seis meses após a morte do meu pai, a minha mãe - ainda estóica - tirou as camisas e os fatos dele do roupeiro que partilhavam e levou-os para uma instituição de caridade. Foi à loja de bebidas pedir caixas e empacotou a biografia que ele estava a ler, que estivera em cima da mesa de cabeceira aquele tempo todo; e o cachimbo, e a coleção de moedas. Não empacotou a coleção de vídeos do Bucha e Estica, apesar de sempre ter dito ao meu pai que não percebia bem o que os tornava engraçados.
A minha mãe levou aquelas caixas para o sótão, um lugar que parecia aprisionar enxames de moscas e calor. Na sua terceira viagem lá acima, não regressou. Em vez disso, o que flutuou cá para baixo foi um refrão tolo e efervescente, que saía das colunas de um velho gira-discos. Não consegui perceber as palavras todas, mas tinha qualquer coisa a ver com um feiticeiro que dizia a alguém como conquistar o coração de uma rapariga.
"Ooo eee ooo ah ah, ting tang, walla walla, bing bang", ouvi. Fez uma gargalhada borbulhar no meu peito, e, visto que ultimamente não tinha rido muito, apressei-me a aproximar-me da fonte.
Quando subi ao sótão, encontrei a minha mãe a chorar.
- Este disco - disse ela, voltando a pô-lo a tocar. - Deixava-o tão feliz.
Sabia que não devia perguntar-lhe por que razão estava ela então a chorar. Em vez disso, aninhei-me ao seu lado e ouvi a canção que finalmente dera à minha mãe permissão para chorar.
Todas as vidas têm uma banda sonora.
Há uma melodia que me faz pensar no verão que passei a esfregar óleo para bebé na barriga em busca do bronzeado perfeito. Há outra que me faz lembrar de acompanhar o meu pai aos domingos de manhã para ir comprar o New York Times. Há uma canção que me lembra de usar identificação falsa para entrar na discoteca; e outra que me faz recuar até ao décimo sexto aniversário da minha prima Isobel, onde toquei "Seven Minutes in Heaven" com um rapaz cujo hálito cheirava a sopa de tomate.
Para mim, a música é a linguagem da memória.
A Wanda, a enfermeira que faz turnos no Lar para Idosos Shady Acres, dá-me um passe de visitante, apesar de já vir ao lar há um ano para trabalhar com vários clientes.
- Como está ele hoje? - pergunto.
- Como sempre - diz a Wanda. - Pendurado no candeeiro a entreter as massas com uma combinação de sapateado e marionetas de sombra.
Sorrio. O Sr. Docker está nas últimas fases da demência. Ao longo dos doze meses em que tenho sido a sua terapeuta musical, interagiu comigo duas vezes. Durante a maior parte do tempo, fica sentado na cama ou na cadeira de rodas, a olhar para o infinito, sem reação.
Quando digo às pessoas que sou terapeuta musical, pensam que isso significa que toco guitarra para as pessoas que estão no hospital - que sou artista. Na verdade, sou mais uma fisioterapeuta, só que em vez de usar passadeiras e barras de apoio como instrumentos, uso a música. Quando digo isso às pessoas, normalmente consideram o meu trabalho algum disparate New Age.
Por acaso, é muito científico. Nas ressonâncias magnéticas feitas ao cérebro, a música faz funcionar o córtex pré-frontal e desencadeia uma memória que começa a manifestar-se. De repente, conseguimos ver um lugar, uma pessoa, um incidente. São as reações mais fortes à música aquelas que suscitam memórias vívidas - que provocam a maior atividade nos exames. É por essa razão que os pacientes que sofreram um AVC conseguem lembrar-se das letras das músicas antes de se lembrarem da linguagem, que os que sofrem de Alzheimer ainda se lembram de canções da sua juventude.
E é por isso que ainda não desisti do Sr. Docker.
- Obrigada por me avisar - digo à Wanda, e agarro no meu saco, na minha guitarra e no meu djembé.
- Pouse isso - insiste ela. - Não deve carregar pesos.
- Então o melhor é livrar-me disto - digo eu, tocando na barriga. Na vigésima oitava semana de gravidez, estou enorme.
E também estou a mentir. Esforcei-me demasiado para ter este bebé para achar que alguma parte da gravidez é um fardo. Aceno à Wanda e dirijo-me para o fundo do corredor, para começar a sessão do dia.
Normalmente, os meus clientes do lar reúnem-se em grupo, mas o Sr. Docker é um caso especial. Antigo presidente do conselho executivo de uma empresa pertencente à Fortune 500, agora vive neste lar de idosos luxuoso, e a filha Mim contratou os meus serviços para sessões semanais. Tem quase oitenta anos, uma juba de leão de cabelos brancos e mãos retorcidas que parece que costumavam tocar muito bem jazz. ao piano.
A última vez que o Sr. Docker deu algum sinal de que estava consciente que eu partilhava o seu espaço físico foi há dois meses. Eu estava a tocar guitarra, e ele bateu com o punho no braço da cadeira de rodas duas vezes. Não sei bem se queria acompanhar o ritmo, ou se estava a tentar dizer-me que parasse - mas estava dentro do compasso.
Bato e abro a porta.
- Sr. Docker? - digo. - É a Zoe. Zoe Baxter. Apetece-lhe tocar um pouco de música?
Algum dos funcionários mudou-o para uma poltrona, onde está sentado a olhar pela janela. Ou talvez esteja apenas a olhar através dela - não está concentrado em nada. Tem as mãos fechadas no colo, como pinças de lavagante.
- Pronto! - digo num tom enérgico, tentando contornar a cama, o televisor e a mesa com o pequeno-almoço intacto. - O que vamos usar hoje?
- espero um instante mas não estou verdadeiramente à espera de uma resposta. - "You Are Mr. Sunshine"? - pergunto. - "Tennessee Waltz"?
Tento tirar a guitarra do estojo num pequeno espaço ao lado da cama, que não é suficientemente grande para o instrumento e para a minha gravidez. Colocando desajeitadamente a guitarra por cima da barriga, começo a dedilhar alguns acordes. Então, pensando melhor, pouso-a.
Procuro uma maraca no saco - tenho todos os tipos de pequenos instrumentos lá dentro, para oportunidades como esta. Coloco-a delicadamente na curva da mão dele.
- No caso de querer acompanhar-me - depois começo a cantar numa voz suave: - "Take me out to the bali game; take me out with the...'"
1 "Leva-me ao jogo; leva-me para o meio da..." (N. da T.)
O final fica suspenso. Todos nós temos necessidade de completar uma frase que conhecemos, e assim espero conseguir fazê-lo murmurar aquele "crawd"2 final. Fico a olhar para o Sr. Docker, mas a maraca permanece na mão cerrada, silenciosa.
- "Buy me some peanuts and Cracker Jack; I dorít care ill never get back."3 Continuo a cantar enquanto me coloco à sua frente, dedilhando delicadamente a guitarra.
- "Lei me root, root, rootfor the team; if they dorít win it's a shame. For it's one, two, three.. ."4
De repente, a mão do Sr. Docker ergue-se e a maraca acerta-me na boca. Sinto o sabor do sangue. Fico tão surpreendida que cambaleio para trás, de lágrimas nos olhos. Encosto a manga ao corte no lábio, tentando impedir que ele veja que me magoou.
- Fiz alguma coisa de que não gostasse? O Sr. Docker não reage.
A maraca caiu na almofada em cima da cama.
- vou só estender a mão por trás de si, aqui, para ir buscar o instrumento - digo com cautela e, enquanto isso, ele atinge-me novamente. Desta vez tropeço, esbarrando na mesa e derrubando o tabuleiro com o pequeno-almoço.
- O que se passa aqui? - grita a Wanda, entrando de rompante pela porta. Olha para mim, para a confusão no chão e depois para o Sr. Docker.
- Estamos bem - digo-lhe. - Está tudo bem.
A Wanda lança um longo olhar propositado à minha barriga.
- Tem a certeza?
Aceno com a cabeça, e ela sai do quarto. Desta vez, sento-me cuidadosamente na beira do radiador em frente à janela.
- Sr. Docker - pergunto num tom suave -, há alguma coisa de errado? Quando olha para mim, tem os olhos brilhantes de lágrimas e lucidez.
Deixa que o olhar percorra o quarto - das cortinas institucionais ao
2 "Multidão" (N. da T.)
3 "Compra-me amendoins e bolachas, não me importo se nunca mais voltar." (N. da T.)
4 "Deixa-me aplaudir, aplaudir, aplaudir a equipa; se não ganharem é uma pena: porque é um, dois, três..." (N. da T.)
equipamento de emergência médica no armário atrás da cama, ao jarro de plástico cheio de água em cima da mesa de cabeceira.
- Tudo - diz com voz tensa.
Fico a pensar naquele homem, que outrora aparecera nas revistas Money e Fortune. Que costumava comandar centenas de empregados e que passava os dias num gabinete com ricos painéis de madeira, carpete de pelo e cadeira giratória de couro. Por um instante, quis pedir desculpa por ter tirado a minha guitarra, por ter aberto a sua mente bloqueada com a música.
Porque há algumas coisas que é melhor esquecer.
A boneca que enterrei em casa de uma vizinha no dia em que o meu pai morreu chamava-se Sweet Cindy. Implorei que ma oferecessem no Natal anterior, completamente iludida pelos anúncios da televisão que eram transmitidos nas manhãs de sábado entre os desenhos animados. A Sweet
Cindy comia, bebia, fazia coco e dizia que nos adorava.
- Ela consegue arranjar um carburador? - gracejara o meu pai, quando lhe mostrei a minha lista para o Natal. - É capaz de limpar a casa de banho?
Tinha um historial de tratar mal as minhas bonecas. Cortava o cabelo das Barbies com tesouras das unhas. Decapitei o Ken, apesar de em minha defesa se ter tratado de um acidente que envolveu uma queda do cesto da bicicleta. Mas tratava a Sweet Cindy como se fosse o meu bebé. Aconchegava-a todas as noites num berço colocado ao lado da minha própria cama. Dava-lhe banho todos os dias. Passeava-a para cima e para baixo na via de acesso, num carrinho que tínhamos comprado numa venda de garagem.
No dia da morte do meu pai, ele queria andar de bicicleta. Estava um dia lindo; tinha acabado de tirar as rodas de treino. Mas disse ao meu pai que estava a brincar com a Cindy, e que talvez pudéssemos ir mais tarde.
- Está combinado, Zo - dissera ele, e começara a aparar o relvado das traseiras e, claro, não houve mais tarde.
Se nunca tivesse recebido a Sweet Cindy no Natal. Se tivesse dito que sim ao meu pai quando ele perguntou. Se estivesse a vê-lo, em vez de estar a brincar com a
boneca. Havia mil trocas de comportamento que, na minha cabeça, poderiam ter salvado a vida ao meu pai - e assim, apesar de ser demasiado tarde, disse para comigo que também nunca tinha querido ter aquela boneca, que ela era a razão para o meu pai já não estar ali.
Da primeira vez que nevou depois de o meu pai ter morrido, sonhei que a Sweet Cindy estava sentada na minha cama. Os corvos tinham vazado os seus olhos azuis semelhantes a berlindes. Estava a tremer.
No dia seguinte, tirei uma pá de jardim da garagem e dirigi-me a casa da vizinha, ao sítio onde a tinha enterrado. Escavei a neve e a terra de metade da sebe, mas a boneca tinha desaparecido. Talvez tivesse sido levada por um cão, ou por uma menina mais sensata.
Sei que é uma estupidez uma mulher de quarenta anos relacionar um ato disparatado de desgosto com quatro ciclos mal sucedidos de fertilização in vitro, dois abortos espontâneos e problemas de infertilidade suficientes para derrubar uma civilização - mas não sei quantas vezes pensei se não seria uma espécie de castigo cármico.
Será que, se não tivesse abandonado tão imprudentemente o primeiro bebé que amei, já teria um bebé de verdade?
Quando a minha sessão com o Sr. Docker terminou, a filha dele, Mim, já tinha saído a correr da sua reunião do grupo de voluntárias em direção a Shady Acres.
- Tem a certeza de que não se magoou? - diz ela, olhando para mim pela centésima vez.
- Sim - digo-lhe, apesar de suspeitar que a preocupação dela está mais relacionada com o medo de ser processada do que com um interesse verdadeiro pelo meu bem-estar.
Procura na mala e tira um punhado de notas.
- Tome - diz a Mim.
- Mas já me pagou este mês...
- É um bónus - diz ela. - Tenho a certeza de que, com o bebé e tudo isso, deve ter mais despesas.
É um suborno para me calar, sei disso, mas ela tem razão. Contudo, as despesas relacionadas com o meu bebé não têm menos a ver com cadeirinhas para o automóvel e carrinhos de passeio do que com injeções de Lupron e Follitsim. Após cinco ciclos de fertilização in vitro - tanto natural como congelada - esgotámos todas as nossas economias e excedemos o limite de todos os cartões de crédito. Aceito o dinheiro e meto-o no bolso das calças de ganga.
- Obrigada - digo, e depois olho para ela. - Aquilo que o seu pai fez? Sei que não encara as coisas dessa maneira, mas foi um grande passo em frente para ele. Ele reagiu a mim.
- Pois, em cheio no seu maxilar - diz a Wanda entre dentes.
- Ele interagiu - corrigi. - Talvez de uma forma pouco apropriada a nível social... mas mesmo assim. Por um instante, a música chegou a ele. Por um instante, ele estava aqui.
Sei que a Mim não acredita nisso, mas não faz mal. Já fui mordida por uma criança autista; já chorei junto a uma menina que estava a morrer com cancro no cérebro, já toquei uma melodia ao som dos gritos de uma criança que tinha mais de oitenta por cento do corpo com queimaduras. Nesta profissão... se dói, sei que estou a fazer bem.
- É melhor ir-me embora - digo eu, agarrando no estojo da guitarra. A Wanda não olha por cima da tabela que está a preencher.
- Até para a semana.
- Por acaso, vai ver-me daqui a duas horas, no chá do bebé.
- Qual chá do bebé? Sorrio.
- Aquele de que eu não devo saber. Wanda suspira.
- Se a sua mãe perguntar, veja lá se lhe diz que não fui eu que me descaí.
- Não se preocupe. vou parecer adequadamente surpreendida. A Mim estende a mão para a minha barriga saliente.
- Posso? - aceno com a cabeça.
Sei que algumas mulheres grávidas acham que é uma invasão de privacidade desconhecidos tocarem-lhes ou darem-lhes conselhos sobre maternidade, mas eu não me importo nada. Eu própria mal consigo evitar colocar as mãos por cima do bebé, ser magneticamente atraída para a prova de que desta vez vai correr tudo bem.
- É um rapaz - anuncia ela.
Estou bastante convencida de que estou grávida de uma menina. Tenho sonhos cor-de-rosa. Acordo com contos de fadas debaixo da língua.
- Veremos - digo.
Sempre achei irónico alguém com dificuldades em engravidar começar o processo de fertilização in vitro tomando a pílula contracetiva. Trata-se de regular um ciclo irregular, para começar uma infindável sopa de letras de medicamentos: três ampolas de FSH e hMG - Follitsim e Repronex administradas por injeção duas vezes por dia pelo Max, um homem que costumava desmaiar ao ver uma agulha e que agora, passados cinco anos, é capaz de dar-me uma injeção com uma mão e servir o café com a outra. Seis dias após o início das injeções, o tamanho dos meus folículos foi avaliado por uma ecografia transvaginal e os meus níveis de estradiol foram calculados através de uma análise ao sangue. A isso sucedeu-se o Antagon, um novo medicamento destinado a manter os óvulos nos folículos até estarem prontos. Passados três dias: outra ecografia e análise ao sangue. As quantidades de Follitsim e Repronex foram reduzidas - uma ampola de cada de manhã e à noite - e passados dois dias, mais uma ecografia e uma análise ao sangue.
Um dos meus folículos media vinte e um milímetros. Outro media vinte
milímetros. E outro tinha dezanove milímetros.
Às 20:30 em ponto, o Max injetou-me dez mil unidades de hCG. Precisamente trinta e seis horas depois, esses óvulos foram retirados.
Depois foi usada uma ICSI - injeção intracitoplásmica de espermatozoides - para fertilizar o óvulo com o esperma do Max. E passados três dias, com o Max a dar-me a mão, inseriram-me um cateter vaginal e vimos o embrião ser transferido num ecrã de computador tremeluzente. Ali, o interior do meu útero parecia algas do mar a oscilarem na corrente. Uma pequena faísca branca, uma estrela, saiu da seringa e caiu entre duas algas. Festejámos a nossa potencial gravidez com uma injeção de progesterona no meu traseiro.
E pensar que algumas pessoas que querem ter um bebé só têm de fazer amor.
A minha mãe está ao computador quando entro em casa dela, a acrescentar informações ao seu recentemente criado perfil no Facebook. DARÁ WEEKS, diz o seu estado, DESEJA QUE A SUA FILHA A ADICIONE COMO AMIGA.
- Não falo contigo - diz ela, num tom insolente. - Mas o teu marido telefonou.
- O Max?
- Tens mais do que um?
- O que queria ele?
Encolhe os ombros. Ignorando-a, agarro no telefone da cozinha e marco o número de telemóvel do Max.
- Porque não tens o telemóvel ligado? - pergunta o Max assim que atende.
- Sim, querido - respondo. - Também te amo.
Ao fundo, ouço um cortador de relva. O Max gere uma empresa de paisagismo. Está ocupado a cortar relva no verão, a juntar folhas secas no outono e a escavar neve no inverno. "O que fazes quando há lama?", perguntei-lhe quando nos conhecemos.
"Fico atolado", disse ele, sorrindo.
- Ouvi dizer que te magoaste.
- As notícias embaraçosas espalham-se depressa. Mas afinal quem te telefonou?
- Pensa bem... Quero dizer, esforçámo-nos tanto para chegar até aqui o Max tropeça nas palavras, mas sei o que ele quer dizer.
- Ouviste a Dr.a Gelman - digo-lhe. -Já estamos próximos da meta. Parece irónico que, passados todos estes anos a tentar, seja eu a encarar
esta gravidez com mais tranquilidade. Houve anos em que era tão supersticiosa que antes de sair da cama fazia a contagem decrescente a partir de vinte, ou usava a mesma camisa de noite da sorte durante uma semana numa tentativa de assegurar que um determinado embrião fosse aquele que realmente fosse desenvolver-se. Mas nunca cheguei a esta fase antes, em que os meus tornozelos estão abençoadamente inchados, me doem as articulações e não consigo ver os pés quando estou no duche. Nunca estive tão grávida que alguém pensasse planear um chá do bebé.
- Sei que precisamos do dinheiro, Zoe, mas se os teus clientes são violentos...
- Max. O Sr. Docker está catatónico em noventa por cento do tempo e as minhas vítimas de queimaduras normalmente estão inconscientes. Sinceramente, foi um incidente.
Podia magoar-me ao atravessar a rua.
- Então não atravesses a rua - diz o Max. - Quando vens para casa? Tenho a certeza de que ele sabe do chá do bebé, mas entro no jogo.
- Tenho de fazer a avaliação de um novo cliente - gracejo. - O Mike Tyson.
- Que graça. Olha, agora não posso falar...
- Foste tu que me telefonaste...
- Só porque pensei que ias fazer algum disparate...
- Max - digo, interrompendo-o. - Agora não. Agora não.
Durante anos, o Max e eu ouvimos casais com filhos dizerem-nos como tínhamos sorte; como a nossa relação se centrava em nós, em vez de em quem devia fazer o jantar e em quem devia levar as crianças à Liga Infantil. Mas a chama do romance pode igualmente ser abafada por jantares marcados por conversas sobre níveis de estradiol e horas de consultas na clínica. Não se trata de o Max não fazer tudo o que deve fazer - desde fazer-me massagens nos pés a dizer-me que estou linda em vez de inchada. É que, ultimamente, mesmo quando estou encostada a ele, sinto que não consigo aproximar-me o suficiente para tocar-lhe, como se ele estivesse noutro lugar. Disse para comigo que estou a imaginar coisas. Que são os nervos dele e as minhas hormonas descontroladas. Só desejava não ter de estar sempre a inventar desculpas.
Não era a primeira vez que desejava ter uma amiga a quem pudesse fazer confidências. Alguém que acenasse com a cabeça e dissesse as palavras certas quando me queixasse do meu marido. Mas as minhas amizades desvaneceram-se quando o Max e eu começámos a dedicar-nos inteiramente a combater a nossa infertilidade. Algumas dessas amizades fui eu que terminei, porque não queria ouvir uma amiga falar das primeiras palavras do seu bebé, nem ir jantar a casa de um casal e ser confrontada com copos para bebé, carrinhos Matchbox e ursinhos de peluche - pormenores de uma vida que me escapava. Outras amizades simplesmente acabaram, visto que a única pessoa que compreendia verdadeiramente o ciclone de emoções do processo de fertilização in vitro era o Max. Isolámo-nos porque éramos o único casal entre os nossos amigos casados que ainda não tinha filhos. Isolámo-nos porque doía menos.
Ouço-o desligar o telefone. Vejo que a minha mãe esteve a ouvir atentamente cada palavra.
- Está tudo bem entre vocês os dois?
- Pensei que estavas zangada comigo.
- E estou.
- Então porque estás a escutar a conversa?
- Não estou a escutar a conversa, visto que se trata do meu telefone e da minha cozinha. O que se passa com o Max?
- Nada - abano a cabeça. - Não sei.
Ela mostra uma expressão de grande preocupação.
- Vamos sentar-nos e analisar este sentimento juntas. Reviro os olhos.
- Isso resulta realmente com os teus clientes?
- Ficarias admirada. A maior parte das pessoas já sabe a resposta para os seus problemas.
A minha mãe, ao longo dos últimos meses, reinventou-se como proprietária e única funcionária de Mamma Knows Best Life Coaching. Esta profissão sucede-se às suas reincarnações anteriores como instrutora de Reiki, artista de stand-up comedy e - durante um verão muito embaraçoso na minha adolescência - vendedora da sua invenção: o Saco para Bananas (um saco justo de neoprene cor-de-rosa que se colocava por cima do fruto para impedir que ficasse castanho demasiado depressa; infelizmente, era repetidamente confundido com um brinquedo sexual). Em comparação, tornar-se consultora era bastante moderado.
- Quando estava grávida de ti, o teu pai e eu discutíamos tanto que um dia deixei-o.
Fico a olhar para ela. Como é possível que ao longo dos meus quarenta anos de vida nunca tenha sabido disto?
- A sério?
Ela acena com a cabeça.
- Fiz as malas e disse-lhe que ia deixá-lo, e foi o que fiz.
- Para onde foste?
- Para o fim da via de acesso - diz a minha mãe. - Estava grávida de nove meses; foi a maior distância que consegui percorrer a bambolear-me sem sentir que o meu útero estava a cair.
Retraio-me.
- Tens de ser assim tão explícita?
- O que querias que lhe chamasse, Zoe? Uma sala de estar fetal?
- O que aconteceu?
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- O Sol pôs-se e o teu pai saiu para me levar um casaco. Ficámos sentados durante alguns minutos e voltámos para dentro de casa - encolhe os ombros. - E depois nasceste e a razão por que estávamos a discutir deixou de ter importância. Só estou a dizer que o passado é apenas um degrau para o futuro.
Cruzo os braços.
- Andaste a cheirar o Windex outra vez?
- Não, é o meu novo slogan. Olha...
Os dedos da minha mãe voam por cima do teclado. O melhor conselho que ela já me deu foi fazer um curso de datilografia. Opus-me ferozmente. Pertencia à área vocacional e técnica do liceu e estava cheio de jovens que não frequentavam as minhas disciplinas académicas de elite -jovens que fumavam lá fora antes das aulas, que usavam muito eydíner e ouviam heavy metal. "Estás lá para julgar as pessoas ou para aprender a datilografar?" perguntou-me ela. No fim, fui uma das únicas três raparigas que receberam uma fita azul por conseguirem datilografar setenta e cinco palavras por minuto. Hoje em dia utilizo teclas musicais, claro, mas cada vez que datilografo uma avaliação para um dos meus clientes agradeço silenciosamente à minha mãe por ter razão.
Ela mostra a sua página profissional no Facebook. Tem uma fotografia dela com o seu slogan piroso.
-Já saberias que era o meu novo slogan se tivesses aceitado o convite para seres minha amiga.
-Vais mesmo confrontar-me com a etiqueta das redes sociais? pergunto.
- Só sei que te transportei na barriga durante nove meses. Alimentei-te, vesti-te, paguei a tua educação universitária. Aceitares ser minha amiga no Facebook parece-me ser pedir pouco em troca de tudo isso.
- És a minha mãe. Não tens de ser minha amiga. Ela indica a minha barriga com um gesto.
- Espero que ela te dê o mesmo desgosto que me dás a mim.
- Mas afinal para que tens Facebook?
- Porque é bom para o negócio.
Que eu saiba, ela tem três clientes - e nenhum deles parece ficar preocupado por a minha mãe não ter nenhum curso de aconselhamento, consultoria nem nenhum outro que seria necessário para um treinador motivacional.
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Uma das clientes é uma ex-doméstica que deseja voltar a trabalhar mas não tem competências para além de fazer uma sandes de manteiga de amendoim e geleia fabulosa e saber separar a roupa clara da escura. Outro é um jovem de vinte e seis anos que recentemente descobriu a mãe biológica mas tem medo de contactá-la. E o último é um alcoólico em recuperação que apenas gosta da estabilidade de uma reunião semanal.
- Uma conselheira deve estar na vanguarda. Ser moderna - diz a minha mãe.
- Se fosses moderna, não usarias a palavra moderna. Sabes o que eu acho que foi? Foi o filme que fomos ver no domingo passado.
- Não gostei. O final do livro era muito melhor...
- Não, não é isso. A rapariga da bilheteira perguntou se eras da terceira idade, e não disseste nem mais uma palavra o resto da noite.
Ela levanta-se.
- Achas que pareço ser da terceira idade, por amor de Deus? Pinto os cabelos religiosamente. Tenho uma elíptica. Troquei o Brian Williams pelo Jon Stewart.
Tenho de admitir - ela tem melhor aspeto do que a maioria das mães das minhas amigas. Tem os cabelos castanhos e lisos e olhos verdes como eu e aquele estilo eclético
e pouco convencional que nos faz olhar sempre duas vezes para alguém e pensar se aquela roupa teria sido meticulosamente planeada ou simplesmente tirada das profundezas do roupeiro.
- Mãe - digo -, és a senhora de sessenta e cinco anos mais jovem que eu conheço. Não precisas do Facebook para prová-lo.
Fico espantada por alguém - qualquer pessoa - estar disposto a pagar pelos conselhos da minha mãe. Quero dizer, enquanto sua filha, não foi deles que sempre tentei escapar? Mas a minha mãe insiste que os clientes gostam do facto de ela própria ter sobrevivido a uma grande perda; dá-lhe credibilidade. Diz que a vasta maioria dos conselheiros não passa de bons ouvintes que, de vez em quando, são capazes de dar um safanão a um procrastinador. E, sinceramente, quais são as melhores credenciais para isso, para além de se ser mãe?
Olho por cima do ombro dela.
- Não achas que devias mencionar-me no site? - digo. - Por causa de ter sido a tua principal qualificação para o teu trabalho?
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- Imagina como seria ridículo ter o teu nome no site sem haver um lirik para o teu perfil. Mas - suspira - isso é apenas para as pessoas que aceitaram o convite para serem minhas amigas...
- Oh, por amor de Deus - debruço-me e datilografo, com as mãos entre as dela, este bebé encostado às suas costas. Faço o íog tn do meu perfil. A página que enche o ecrã contém os pensamentos e atos de pessoas que andaram comigo no liceu, ou de outros terapeutas musicais, ou de antigos professores; uma antiga colega de quarto da universidade chamada Darci com quem não falo há meses. "Devia telefonar-lhe", penso, mas ao mesmo tempo sei que não vou fazê-lo. Tem gémeos que vão entrar para o jardim de infância; os rostos sorridentes deles estão na sua foto do perfil.
Aceito o convite pendente da minha mãe para ser sua amiga, apesar de parecer um novo ponto baixo na utilização de redes sociais.
- Pronto - digo. - Estás satisfeita?
- Muito. Agora pelo menos já posso ver novas fotografias da minha neta quando fizer o log in.
- Em vez de guiares um quilómetro e meio até ao meu apartamento para vê-la pessoalmente?
- É uma questão de princípio, Zoe - diz a minha mãe. - Fico satisfeita por finalmente desceres do teu pedestal.
- Nada de pedestais - digo. - Não me apetece discutir até serem horas de sair para o chá do bebé.
A minha mãe abre a boca para responder, mas depois fecha-a bruscamente. Durante uma fração de segundo, pensa continuar com o estratagema, e depois, com a mesma rapidez, desiste.
- Quem te contou?
- Acho que a gravidez deu-me um sexto sentido - confidencio. Ela fica a pensar nisso, impressionada.
- A sério?
Entro na cozinha dela para assaltar o frigorífico - há três recipientes de hummus e um saco de cenouras, mais vários conteúdos coalhados indeterminados dentro de Tupperwares.
- Em algumas manhãs acordo e sei que o Max vai dizer que quer Cap'n Crunch para o pequeno-almoço. Ou ouço o telefone tocar e sei que és tu antes mesmo de atender.
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- Costumava conseguir prever se ia chover quando estava grávida de ti - diz a minha mãe. - Acertava mais do que o boletim meteorológico do noticiário da ABC.
Mergulho o dedo no hummus.
- Quando acordei hoje de manhã todo o quarto cheirava a beringela com parmesão... sabes, daquelas mesmo boas que fazem no Bolonisi's!
- É aí que vai ser o chá do bebé! - arqueja ela, espantada. - Quando é que tudo isso começou?
- Mais ou menos na altura em que encontrei um recibo do Kinko's dos convites no casaco do Max.
A minha mãe demora um instante e depois começa a rir.
- E aqui estava eu a planear o cruzeiro que ia fazer depois de ganhar a lotaria com os números que tu escolhesses.
- Desculpa se te desiludi.
Ela afaga a minha barriga com a mão.
- Zoe - diz a minha mãe -, não conseguias mesmo que tentasses.
Alguns cientistas peritos em cognição acham que a reação humana à música fornece provas de que somos mais do que apenas carne e osso - que também temos alma. O raciocínio deles é o seguinte:
Todas as reações aos estímulos externos podem ser associadas a uma lógica evolutiva. Afastamos a mão do lume para evitar danos físicos. Ficamos com um nó no estômago
antes de fazer um discurso importante porque a adrenalina que percorre as nossas veias causou uma reação fisiológica de preparação para o conforto ou para a fuga.
Mas não existe um contexto evolucionário no qual a reação das pessoas à música faça sentido - batermos o pé, o impulso de cantarmos ou de nos levantarmos e dançar, não há nenhum benefício para a sobrevivência nestas atividades. Por isso, alguns acreditam que a nossa reação à música é a prova de que somos mais do que apenas mecanismos biológicos e fisiológicos, que a única maneira de sermos levados pelo espírito, por assim dizer, é antes de mais termos um.
Há jogos. Calcular o tamanho da barriga da Zoe, uma busca às malas (quem diria que a minha mãe trazia uma conta fora de prazo dentro da mala?), um desafio para encontrar o par de meias de bebé e, agora, uma
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incursão particularmente repulsiva na qual fraldas de bebé cheias de chocolate derretido são passadas pelos presentes para identificarem as marcas dos chocolates.
Apesar de não ser das minas coisas preferidas, entro no jogo. A minha contabilista em tempo parcial, a Alexa, organizou o evento - e até se deu ao trabalho de reunir as convidadas: a minha mãe, a minha prima Isobel, a Wanda do Shady Acres e outra enfermeira da unidade de queimados do hospital onde trabalho, e uma psicóloga de aconselhamento escolar chamada Vanessa que me contratou no início deste ano para fazer terapia musical com um aluno do nono ano autista profundo.
É um pouco deprimente que aquelas mulheres, no máximo conhecidas, sejam substitutas de amigas íntimas. Por outro lado, quando não estou a trabalhar, estou com o Max. E o Max preferia ser atropelado por um dos seus próprios cortadores de relva a ter de identificar fezes de chocolate numa fralda. Basta isso para que ele seja o único amigo de que preciso.
Vejo a Wanda espreitar para a Pamper's.
- Snickers? - adivinha, incorretamente.
A Vanessa é a próxima a receber a fralda. É alta, de cabelos curtos platinados e olhos azuis penetrantes. Da primeira vez que a vi convidou-me a entrar no seu gabinete e deu-me um sermão severo sobre como os exames SAT eram uma conspiração das reitorias das universidades para dominarem o mundo, oitenta dólares de cada vez. "E então?", disse ela quando finalmente parou para respirar. "O que tem a dizer em sua defesa?"
"Sou a nova terapeuta musical", disse-lhe.
Ela ficou a olhar para mim, a pestanejar, e depois olhou para a agenda e recuou uma página. "Ah", disse ela. "Acho que a representante da Kaplan vem amanhã."
A Vanessa nem sequer olha para a fralda.
- A mim parece-me Mounds - diz ela secamente. - Dois, para ser mais precisa.
Desato a rir, mas aparentemente sou a única que percebe a piada da Vanessa. A Alexa parece desanimada por os seus jogos não estarem a ser levados a sério. A minha mãe intervém, tirando a fralda de cima do indivi-
dual da Vanessa.
- E se jogássemos aos nomes dos bebés? - sugere.
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Sinto uma pontada de lado e esfrego distraidamente o sítio com a mão. A minha mãe lê um papel que a Alexa imprimiu da Internet.
- Um bebé leão é uma...
A minha prima levanta-se de repente.
- Cria! - grita.
- Certo! Um peixe bebé é um...?
- Caviar? - sugere a Vanessa.
- Alevim5 - diz a Wanda.
- Isso é um verbo - argumenta a Isobel.
- Estou a dizer-lhe, vi no Quem Quer Ser Milionário...
De repente, sinto uma cãibra tão intensa que fico sem fôlego.
- Zoe? - a voz da minha mãe parece distante. Esforço-me por me levantar.
"Vinte e oito semanas", penso. "É demasiado cedo." Outra corrente trespassa-me. Ao cair para cima da minha mãe, sinto um jato quente entre as pernas.
- As minhas águas - sussurro. - Acho que rebentaram. Quando olho para baixo, estou de pé numa poça de sangue.
Ontem à noite foi a primeira vez que o Max e eu falámos sobre nomes para o bebé.
- Johanna - murmurei, depois de ele apagar a luz.
- Desculpa desiludir-te - disse o Max. - Mas sou só eu.
No escuro, via o sorriso dele. O Max é daqueles homens que eu nunca imaginei que se sentisse atraído por mim - alto, musculoso, um surfista com uma madeixa de cabelos
loiros e um sorriso tão radioso que faz as empregadas da caixa na mercearia deixarem cair o troco e as mães donas de casa abrandarem quando passam pela nossa via
de acesso. Sempre me consideraram inteligente, mas não sou nenhuma estampa. Sou a vizinha do lado, a que passa despercebida, aquela cujas feições as pessoas não
gravam na memória. Da primeira vez que ele falou comigo - no casamento do irmão, onde eu estava a substituir a vocalista da banda, que tinha um cálculo renal - olhei para trás, certa de que estava a falar com outra pessoa.
' Fry, na versão original em inglês, que também significa fritar. (N. da T.)
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Anos mais tarde, contou-me que nunca sabia o que dizer às raparigas, mas que a minha voz era como uma droga; penetrara-lhe nas veias e dera-lhe coragem para vir
ter comigo durante o intervalo de quinze minutos da banda.
Não achava que uma mulher com um mestrado em musicologia quisesse ter alguma coisa com um surfista que tinha desistido da universidade e que estava a tentar montar um negócio de paisagismo.
Não pensei que um homem que poderia ter levado para casa qualquer pessoa com dois cromossomas X me achasse minimamente interessante.
Ontem à noite pousou a mão ao de leve por cima do nosso bebé, como um guarda-chuva.
- Achei que falar sobre o bebé dava azar.
E dava. Ou, pelo menos, para mim sempre dera. Mas estávamos tão perto de cruzar a meta. Aquilo era tão real. O que poderia correr mal?
- Bem - disse eu -, mudei de ideias.
- Então está bem. Elspeth - disse o Max. - Como a minha tia preferida.
- Por favor, diz-me que estás a inventar... Ele riu.
- Tenho outra tia chamada Ermintrude...
- Hannah - contrapus. - Stella. Sage6.
- Isso é uma especiaria - disse o Max.
- Sim, mas não é como o cravinho. É bonito.
Ele debruçou-se sobre a minha barriga e encostou um ouvido.
- Vamos perguntar-lhe como quer que lhe chamem - sugeriu o Max. -Acho... espera... não, espera, estou a ouvi-la perfeitamente - olhou para mim, ainda com a face encostada ao nosso bebé. - Bertha - pronunciou.
O bebé, como se comentasse, deu-lhe um forte pontapé no maxilar; e na altura tive a certeza de que isso significava que estava bem. Que afinal não dera azar nenhum.
Estou a ser virada do avesso, estou a atravessar lâminas. Nunca senti tal agonia, como se a dor estivesse aprisionada sob a minha pele, tentando desesperadamente abrir caminho para se escapar.
Salva. (N. da T.)
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- Vai correr tudo bem - diz o Max, apertando-me a mão como se fôssemos fazer um braço de ferro. Interrogo-me sobre quando terá ele chegado. Interrogo-me porque está a mentir.
O rosto dele está tão branco como a Lua e, apesar de estar apenas a alguns centímetros de distância, mal consigo vê-lo. Em vez disso, vejo uma mancha indistinta de médicos e. enfermeiras que enchem a minúscula sala de partos. Colocam-me um cateter intravenoso no braço. Colocam-me uma faixa sobre a barriga e ligam-na a um monitor fetal.
- Só estou grávida de vinte e oito semanas - digo a arfar.
- Nós sabemos, minha querida - diz uma enfermeira, e concentra-se no pessoal médico. - Não estou a ver nada no monitor...
-Volte a tentar...
Agarro a manga da enfermeira.
- Ela é... ela é demasiado pequena?
- Zoe - diz a enfermeira -, estamos a fazer tudo o que podemos - mexe num botão no monitor e ajeita a faixa à volta da minha barriga. - Continuo sem batimento cardíaco...
- O quê? - esforço-me por me sentar, enquanto o Max tenta impedir-me.
- Porque não?
- Vá buscar o ecógrafo - diz a Dr.a Gelman bruscamente, e passado um instante trazem um para dentro da sala. Esguicham-me gel frio para cima do abdómen enquanto me contorço com outra cãibra. Os olhos da médica estão fixos no monitor do ecógrafo. - Aqui está a cabeça - diz ela calmamente. - E aqui está o coração.
Olho freneticamente, mas apenas vejo areias cinzentas e negras a moverem-se.
- O que está a ver?
- Zoe, preciso que relaxe por um instante - diz a Dr.a Gelman.
Por isso mordo o lábio. Ouço o sangue latejar nos ouvidos. Passa um minuto, e depois outro. Não se ouve nenhum som na sala à exceção dos ruídos silenciosos das máquinas.
E então a Dr.a Gelman diz o que sempre soube que ia dizer.
- Não estou a ver batimento cardíaco, Zoe - olha-me nos olhos. Lamento, mas o seu bebé está morto.
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O silêncio é rasgado por um som que me faz largar a mão do Max e tapar os ouvidos. É como uma metralhadora, unhas num quadro, promessas a quebrarem-se. É uma nota que nunca ouvi - este acorde de pura dor - e demoro um instante a aperceber-me de que vem de dentro de mim.
Foi isto que arrumei dentro da mala para levar para o hospital na altura do parto:
Uma camisa de noite com pequenas flores azuis, apesar de já não usar camisa de noite desde os doze anos.
Três pares de cuecas de maternidade.
Uma muda de roupa.
Um pequeno estojo de oferta com loção de manteiga de cacau e folhas de sabão para uma nova mamã, que me ofereceu a mãe de uma das minhas vítimas de queimaduras recentemente saída do hospital.
Um porco de peluche extraordinariamente macio que o Max e eu comprámos há anos, antes do aborto, quando ainda conseguíamos ter esperança.
E o meu iPod, cheio de música. Tanta música. Enquanto estava a tirar a minha licenciatura em terapia musical em Berklee, trabalhei com a professora que foi pioneira a catalogar os efeitos da terapia musical durante o parto. Apesar de terem sido realizados estudos que estabelecem a ligação entre a música e a respiração, e entre a respiração e o sistema nervoso autónomo, até ao momento ainda não se tinha estabelecido uma ligação formal entre as técnicas respiratórias Lamaze e a música selecionada pela própria pessoa. O pressuposto era que as mulheres que ouviam músicas diferentes em alturas diferentes do parto podiam usar aquelas músicas para respirar adequadamente, manter-se relaxadas e subsequentemente reduzir a dor do trabalho de parto.
Aos dezanove anos, achei espantoso trabalhar com uma pessoa cuja investigação se tornara prática comum durante o parto. Não me apercebi de que teria de esperar mais vinte anos para que eu própria tivesse a oportunidade de experimentar.
Como a música é tão importante para mim, escolhi com muito cuidado os trechos para ouvir durante o trabalho de parto e o parto. Para o início do
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trabalho de parto, relaxaria ao som de Brahms. Para a fase mais intensa do trabalho de parto, quando tivesse de concentrar-me na respiração, escolhi música com um compasso e um ritmo acelerados: a "Sonata ao Luar" de Beethoven. Para a transição, quando sabia que ia ter mais dores, reunira um conjunto de músicas - de entre as canções com as memórias positivas mais fortes da minha infância - REO Speedwagon, Madonna, Elvis Costello e "Cavalgada das Valquírias" de Wagner, cujas intensas variações espelhariam o que estava a acontecer no meu corpo.
Acredito convictamente que a música pode aliviar a dor física do parto.
Só não sei se pode aliviar o desgosto.
Enquanto estou a dar à luz, já estou a pensar no dia em que não me lembrarei disto. Que não me lembrarei da Dra Gelman a falar sobre os fibroides submucosos que ela queria remover antes deste ciclo de fertilização in vitro - uma cirurgia que eu rejeitei, porque estava com muita pressa para engravidar - fibroides esses que agora estão muito maiores. Não me lembrarei de ela dizer-me que a placenta se descolou da parede uterina. Não a sentirei a verificar-me o colo do útero e a dizer em voz baixa
que tenho seis centímetros. Não repararei que o Max está a ligar o meu iPod para que Beethoven encha a sala; não verei as enfermeiras deslizarem sombrias em câmara lenta, tão diferentes de todos os azafamados partos ruidosos que vi em A Baby Story.
Não me lembrarei das águas a rebentarem, nem de como tanto sangue ensopou o lençol debaixo de mim. Não me lembrarei dos olhos tristes do anestesista que disse que lamentava a minha perda antes de me fazer virar de lado para me dar uma epidural.
Não me lembrarei de perder a sensibilidade nas pernas e de pensar que aquilo era o início, interrogando-me se conseguiriam fazer com que não sentisse absolutamente nada.
Não me lembrarei de abrir os olhos após uma forte contração e de ver o rosto do Max, tão contorcido como o meu e cheio de lágrimas.
Não me lembrarei de dizer ao Max que desligasse o Beethoven. E não me lembrarei de, visto ele não ter sido suficientemente rápido, ter esticado um braço e atirado o iPod para o chão, partindo-o.
Não me lembrarei de, depois, ter ficado tudo em silêncio.
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Outra pessoa terá de dizer-me como o bebé deslizou entre as minhas pernas como um peixe prateado, como a Dr.a Gelman disse que o bebé era
um rapaz.
"Mas não está certo," vou pensar, apesar de não ter essa memória. "A Bertha devia ser uma rapariga." E como, a seguir, pensei em que mais a médica se teria enganado.
Não me lembrarei das enfermeiras a embrulharem-no numa manta, a coroarem-no com um minúsculo gorro tricotado.
Não me lembrarei de tê-lo ao colo: a cabeça, do tamanho de uma ameixa. As feições cobertas de veias azuis. O nariz perfeito, a boca a fazer beicinho, a pele macia
onde as sobrancelhas ainda estavam a desenhar-se. O peito, frágil como o de um passarinho, e imóvel. Como quase cabia na palma de uma mão; como não pesava quase nada.
Não me lembrarei de como, até àquele momento, não acreditava realmente que fosse verdade.
No meu sonho enevoado volto atrás um mês. O Max e eu estamos deitados
na cama depois da meia-noite.
- Estás acordado? - pergunto.
- Sim. Estou só a pensar.
- Em quê?
Ele abana a cabeça.
- Nada.
- Estás preocupado - digo.
- Não. Estava a pensar - diz ele num tom sério -, no azeite.
- No azeite?
- Sim. De que é feito?
- Isso é uma pergunta com rasteira? - pergunto. - De azeitonas.
- E o óleo de milho. De que é feito?
- De milho?
- Então - diz o Max -, e o óleo de bebé?
Por um instante, ficamos ambos em silêncio. Depois desatamos a rir. Rimos tanto que me vêm as lágrimas aos olhos. No escuro, estendo a mão para agarrar na mão do Max, mas não a encontro.
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Quando acordo, os estores do quarto estão fechados mas a porta está entreaberta. De início, não consigo lembrar-me de onde estou. Há um barulho no corredor, e vejo uma família - avós, crianças, adolescentes pairar no rasto do seu próprio riso. Trazem um arco-íris de balões.
Começo a chorar.
O Max senta-se ao meu lado na cama. Envolve-me desajeitadamente com um braço. Fazer de Florence Nightingale não é o seu forte. Num Natal, ficámos os dois com gripe. Entre os meus ataques de vómitos, ia à casa de banho buscar-lhe compressas frias.
- Zo - murmura ele. - Como te sentes?
- Como achas que me sinto? - estou a ser uma cabra. A raiva queima-me o fundo da garganta. Preenche o espaço dentro de mim que anteriormente era o lar do meu bebé. - Quero vê-lo.
O Max fica paralisado. -Eu, ha...
- Chama a enfermeira - a voz da minha mãe vem do canto do quarto onde está sentada. Tem os olhos vermelhos e inchados. - Ouviste o que ela quer.
Acenando com a cabeça, o Max levanta-se e sai do quarto. A minha mãe envolve-me nos braços.
- Não é justo - digo eu, com o rosto contorcido.
- Eu sei, Zo - afaga-me os cabelos, e encosto-me a ela, como quando tinha quatro anos e troçavam de mim por causa das minhas sardas, ou como quando tinha quinze anos, com o meu primeiro desgosto de amor. Apercebo-me de que não terei oportunidade de reconfortar assim o meu próprio bebé, e isso faz-me chorar ainda mais.
Uma enfermeira entra no quarto com o Max atrás dela.
- Olha - diz ele, entregando-me uma fotografia do nosso filho. Parecia ter sido tirada enquanto ele estava a dormir num berço do hospital. Tem as mãos fechadas, uma de cada lado da cabeça. Tem uma covinha no queixo.
Por baixo da fotografia há uma impressão da mão e do pé, demasiado pequenos para parecerem reais.
- Sr.a Baxter - diz ela num tom suave -, lamento a sua perda.
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- Porque está a sussurrar? - pergunto. - Porque estão todos a sussurrar? Mas onde é que está o meu bebei
Como se a tivesse chamado, uma segunda enfermeira entra, trazendo o meu filho. Agora está vestido, em roupas em que fica a nadar. Estendo os braços para ele.
Durante um único dia, trabalhei numa unidade de cuidados intensivos neonatais. Tocava guitarra para os prematuros, e cantava para eles, como parte dos cuidados de desenvolvimento - os bebés expostos à terapia musical apresentam melhores níveis de saturação de oxigénio e batimento cardíaco menos acelerado, e alguns estudos até demonstram que os prematuros duplicam o ganho de peso diário quando a terapia musical faz parte da sua rotina. Estava a trabalhar com uma mãe, a cantar uma canção de embalar em espanhol para o seu bebé, quando uma assistente social entrou e pediu a minha ajuda.
- O bebé dos Rodriguez morreu hoje de manhã - disse-me. - A família está à espera que a sua enfermeira preferida chegue para dar-lhe o último banho.
- O último banho?
- Às vezes ajuda - disse a assistente social. - Só que se trata de uma família muito grande, e acho que estão a precisar de uma ajuda.
Quando entrei no quarto privativo onde a família estava à espera, percebi porquê. A mãe estava sentada numa cadeira de baloiço com o bebé morto nos braços. O rosto dela parecia talhado em pedra. O pai estava atrás dela. Havia tias e tios e avós que se moviam em silêncio, contrastando diretamente com as sobrinhas e sobrinhos, que guinchavam e corriam uns atrás dos outros à volta da cama de hospital.
- Olá - disse eu. - Sou a Zoe. Posso tocar? - indiquei a guitarra pendurada pela alça atrás das costas.
Visto que a mãe não respondeu, ajoelhei-me em frente da cadeira.
- A sua filha era linda - disse.
Não respondeu, ninguém respondeu, por isso agarrei na guitarra e comecei a cantar - a mesma canção de embalar espanhola que estivera a cantar minutos antes:
"Duérmete, mi nina Duérmete, mi sol
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Duérmete, pedazo De mi corazón."
Por um instante, as crianças que andavam às voltas a correr pararam. Os adultos que estavam no quarto ficaram a olhar para mim. Tornei-me no centro das atenções, no centro de toda a energia, em vez daquela pobre criança. Assim que a enfermeira chegou e despiu o bebé para o seu último banho, saí do quarto e dirigi-me aos serviços administrativos do hospital para apresentar a minha demissão.
Já tinha tocado à cabeceira de crianças moribundas dezenas de vezes; sempre achei que era um privilégio embalá-las deste mundo para o outro com um dedilhar de notas, um doce refrão. Mas aquilo fora diferente. Não podia servir de Orfeu a um bebé morto, pelo menos quando o Max e eu nos esforçávamos tanto para engravidar.
O meu próprio filho está frio ao toque. Pouso-o entre as pernas em cima do colchão do hospital e dispo o pijama azul que alguma enfermeira bondosa lhe vestiu. Cubro o tronco com a mão, mas não sinto batimento cardíaco.
"Duérmete, mi nino'", sussurro.
- Quer ficar com ele durante algum tempo? - pergunta a enfermeira que o trouxe.
Olho para ela.
- Posso?
- Pode ficar com ele o tempo que quiser - diz ela. - Bem... - não termina o resto do pensamento.
- Onde vai ficar? - digo.
- Desculpe?
- Quando não estiver aqui. Onde vai ficar? - olho para a enfermeira. Na morgue?
- Não. Vai ficar connosco.
Está a mentir. Sei que está a mentir. Se estivesse num berço, como os outros bebés, a pele dele não estaria fria, como uma manhã de outono.
- Quero ver.
- Lamento, mas não podemos...
- Leve-a - a voz da minha mãe ressoa de autoridade. - Se é isso que ela precisa de ver, deixe-a.
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As duas enfermeiras olham uma para a outra. Depois uma delas sai do quarto e traz uma cadeira de rodas. Ajudam-me a passar as pernas por cima da cama e a sentar-me. Estou sempre a segurar no bebé.
O Max leva-me pelo corredor. Atrás de uma porta ouço o gemido de uma mulher em trabalho de parto. Ele empurra-me um pouco mais depressa.
- A Sr.a Baxter queria ver o sítio onde o filho tem estado - diz a enfermeira a uma colega atrás da secretária, como se fosse daqueles pedidos que recebe diariamente. Leva-me para lá da sala das enfermeiras, para junto de uma fila de prateleiras cheias de tubos com invólucros de plástico e pilhas de mantas e fraldas. Ao lado delas há um pequeno frigorífico de aço inoxidável, como o que costumava ter no quarto do dormitório da universidade.
A enfermeira abre o frigorífico. De início não percebo, mas depois quando olho lá para dentro e vejo as paredes brancas vazias e apenas um suporte, entendo.
Agarro no bebé mais perto de mim, mas ele é tão pequeno que é difícil sentir se estou a segurá-lo bem. É como se estivesse a pegar num saco de penas, num suspiro, num desejo. Levanto-me sem ter nenhuma ideia na cabeça - sabendo apenas que já não consigo olhar mais para o frigorífico
- e de repente não consigo respirar, e o mundo está a girar, e o meu peito está a ser esmagado num torno. E só consigo pensar, antes de cair para o chão, que não vou deixar cair o meu filho. Que uma boa mãe não o largaria.
- O que está a dizer - digo à Dra Gelman, a minha obstetra - é que sou uma bomba relógio.
Depois de ter desmaiado, ter sido reanimada e ter dito aos médicos quais eram os meus sintomas, administraram-me heparina. Uma TAC revelou um coágulo de sangue que tinha migrado para o pulmão - uma embolia pulmonar. Agora, a minha médica diz-me que as análises ao sangue revelaram problemas de coagulação. Que isso podia voltar a acontecer repetidamente.
- Não necessariamente. Agora que já sabemos que tem AT in, podemos administrar-lhe Coumadin. Tem tratamento, Zoe.
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Tenho algum receio de me mexer, certa de que vou deslocar o coágulo, enviá-lo diretamente para o cérebro e ter um aneurisma. A Dr.a Gelman assegura-me que as injeções de heparina que tomei impedirão que isso aconteça.
Há uma parte de mim que se sente como se tivesse engolido uma pedra, que está desiludida.
- Como é que não lhe fizeram exames para ver isso antes? - pergunta o Max. - Fizeram-lhe exames a tudo o resto.
A Dr.a Gelman vira-se para ele.
- A deficiência de antitrombina três não está relacionada com a gravidez. É algo com que se nasce, e esta trombofilia costuma surgir em pessoas mais jovens. Muitas vezes só conseguimos diagnosticar problemas de coagulação quando estes são agravados. Uma fratura na perna pode fazer isso. Ou, no caso da Zoe, o trabalho de parto e o parto.
- Não está relacionado com a gravidez - repito, agarrando-me a essa frase com todas as minhas forças. - Por isso, teoricamente ainda posso ter um bebé?
A obstetra hesita.
- As duas situações não são mutuamente exclusivas - diz ela -, mas por que não falamos sobre isto daqui a algumas semanas?
Viramo-nos ambas ao ouvir o som da porta fechar-se atrás de Max, que saiu da sala.
Quando me dão alta do hospital, uma auxiliar empurra-me a cadeira de rodas para junto dos elevadores e o Max leva a minha mala. Reparo numa coisa em que não reparei ao longo dos dois dias em que estive aqui - um único ranúnculo numa pequena jarra de vidro presa com uma ventosa à porta do meu quarto de hospital. O meu quarto é o único no corredor que tem uma jarra. Apercebo-me de que se trata de uma espécie de sinal, uma pista para os flebotomistas, para os médicos residentes e para os voluntários que entrem no quarto de que não é uma zona de felicidade, que, ao contrário dos quartos das novas mamãs, ali aconteceu qualquer coisa terrível.
Enquanto estamos à espera que as portas se abram, outra mulher é transportada numa cadeira de rodas ao meu lado. Tem um recém-nascido nos braços, e um balão de PARABÉNS preso ao braço da cadeira. O marido vem atrás dela, com braçadas de flores.
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- É o papá? - diz a mulher numa voz terna, enquanto o bebé se mexe.
- Estás a dizer adeus?
Soa uma campainha, e as portas do elevador abrem-se. Está vazio, há bastante espaço para dois. A mulher é empurrada lá para dentro primeiro, e depois a minha auxiliar começa a virar a cadeira, para que eu possa ser transportada lá para dentro ao lado dela.
Mas o Max bloqueia o caminho.
- Vamos no próximo - diz ele.
Vamos para casa em silêncio, na carrinha do Max, que cheira a terra e a erva acabada de cortar, apesar de não haver um cortador de relva ou um aparador na parte de trás. O Max liga a rádio e sintoniza uma estação de música. Isto é muito importante - em geral discutimos sobre a programação. Ouve Car Talk na NPR, Wait Wait...
Dorit Tell Me! e praticamente qualquer programa de informação... mas não gosta de ouvir música enquanto conduz. Eu nem consigo imaginar meia viagem sem cantar ao
som de alguma música.
- Deve estar bom tempo este fim de semana - diz o Max. - Calor. Olho pela janela. Estamos num semáforo vermelho, e no carro ao nosso
lado está uma mãe com duas crianças, que comem bolachinhas com a forma de animais no banco de trás.
- Achei que talvez pudéssemos dar um passeio até à praia.
O Max faz surf; são os últimos dias de verão. Era o que normalmente faria. Só que nada é normal.
- Talvez - digo.
- Pensei - continua o Max - que talvez fosse um bom lugar para... tu sabes - engole. - As cinzas.
Demos ao bebé o nome de Daniel e pedimos que fosse cremado. As cinzas viriam numa urna com a forma de um sapatinho de bebé de cerâmica com uma fita azul. Não falámos sobre o que íamos fazer quando chegassem, mas agora percebo que o Max tem razão. Não quero que a urna fique na bancada da cozinha. Não quero enterrá-la nas traseiras como enterrámos o canário quando morreu. Acho que a praia é um sítio bonito, até mesmo simbólico. Mas, por outro lado, qual será a opinião da minha mãe? O meu bebé não foi propriamente concebido num sítio romântico como Veneza, onde poderia colocar a urna para flutuar no rio Pó; ou sob as estrelas na Tanzâriia, onde poderia abrir a urna aos ventos do
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Serengueti. Foi concebido num laboratório, numa clínica de fertilização in vitro, e não posso propriamente espalhar as cinzas nos corredores.
- Talvez - digo eu, que é a única coisa que posso dizer ao Max neste momento.
Quando viramos para a nossa via de acesso, o carro da minha mãe já lá está. Vem passar o dia comigo para se certificar de que estou bem quando o Max for trabalhar. Sai cá para fora, para junto da carrinha, para ajudar-me a levantar do assento.
- Queres alguma coisa, Zo? - pergunta ela. - Um chá? Um chocolate? Podemos assistir aos episódios de True Blood que gravaste...
- Só quero deitar-me - digo, e quando ela e o Max se apressam a ajudar-me, afasto-os. Percorro o corredor devagar, apoiando-me na parede. Mas em vez de entrar no nosso quarto ao fundo do corredor, viro para um pequeno quarto à direita.
Até há um mês, fora o meu escritório improvisado - o lugar onde a Alexa vinha fazer a minha contabilidade uma vez por semana. Depois, durante um fim de semana, o Max e eu pintámo-lo de um amarelo soalheiro cor de gema de ovo e colocámos lá um berço e um fraldário que comprámos numa loja de beneficência pela impressionante quantia de quarenta dólares. Enquanto o Max carregava os pesos, eu organizava os livros - os meus preferidos de quando era pequena: Onde Vivem os Monstros, Harry the Dírty Dog e Capsfor Sale - numa prateleira.
Mas agora, quando abro a porta, sustenho a respiração. Em vez do berço e do fraldário, está lá o velho estirador que usava como secretária. O meu computador está outra vez ligado e a zumbir. Os meus ficheiros estão cuidadosamente empilhados ao lado dele. E os meus instrumentos djembés, banjos, guitarras e guizos - estão alinhados junto à parede.
A única indicação de que poderia ter sido um quarto de criança são as paredes, que ainda estão pintadas naquele amarelo soalheiro. A cor que sentimos por dentro quando sorrimos.
Deito-me no tapete entrançado no meio do chão e encosto os joelhos ao peito. A voz do Max chega do fundo do corredor.
- Zoe? Zo? Onde estás? - ouço-o abrir a porta do quarto, olhar rapidamente em volta e sair. Faz o mesmo na casa de banho. Então abre a porta e vê-me. - Zoe - diz -, que se passa?
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Olho em meu redor para este quarto, este não quarto de criança, e lembro-me do Sr. Docker, do que significa apercebermo-nos do que nos rodeia. É como acordar do melhor dos sonhos e encontrar centenas de facas
apontadas ao pescoço.
- Tudo - sussurro.
O Max senta-se ao meu lado.
- Temos de conversar.
Não olho para ele. Nem sequer me sento. Continuo a olhar em frente, com os olhos ao nível dos radiadores. O Max esqueceu-se de tirar as tampas de segurança das tomadas. Ainda estão todas cobertas por aqueles discos planos de plástico, para garantir que ninguém se magoa.
Tarde de mais.
- Agora não - digo eu.
Perdemos as chaves, a carteira, os óculos. Perdemos um emprego. Perdemos peso.
Perdemos dinheiro. Perdemos o juízo.
Perdemos a esperança; perdemos a fé. Perdemos o sentido de orientação.
Perdemos o contacto com os amigos.
Perdemos a cabeça. Perdemos uma partida de ténis. Perdemos uma aposta.
Perdemos um bebé, ou pelo menos é o que dizem.
Só que eu sei perfeitamente onde ele está.
No dia seguinte acordo e os meus seios estão transformados em mármore. Nem consigo respirar sem que me doam. Não tenho nenhum recém-nascido, mas o meu corpo parece que não sabe disso. As enfermeiras do hospital avisaram-me disto. Antigamente havia uma injeção para secar o leite, mas tinha efeitos secundários graves e agora só podem mandar-nos para casa avisando-nos do que irá acontecer.
Os lençóis do lado do Max ainda estão entalados. Não veio para a cama na noite anterior; não sei onde dormiu. Nesta altura, já deve ter saído para ir para o trabalho.
- Mãe - chamo, mas não aparece ninguém. Sento-me, retraindo-me, e vejo um bilhete em cima da mesa de cabeceira.
"Fui à mercearia", escreveu a minha mãe.
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Examino os papéis que deram no hospital. Mas ninguém se lembra de dar o contacto de um especialista em aleitamento a uma mãe que deu à luz um nado-morto.
Sentindo-me estúpida, marco o número do consultório da Dr.a Gelman. Atende a rececionista, uma rapariga amorosa que eu tenho visto mensalmente há mais de meio ano.
- Olá - digo. - Sou a Zoe Baxter...
- Zoe! - diz ela com entusiasmo. - Ouvi dizer que tinha ido para o hospital na sexta-feira! Então? É menino ou menina?
Pela alegria na sua voz percebo que não faz ideia do que aconteceu no fim de semana.
- Rapaz - consigo dizer. Não consigo dizer o resto.
Até o tecido da minha T-shirt me provoca dores excruciantes.
- Posso falar com uma enfermeira parteira?
- Claro, vou passar-lhe o telefone... - diz a rececionista, e fico à espera na esperança de que pelo menos a enfermeira parteira saiba o que aconteceu.
Ouve-se um estalido do outro lado da linha.
- Zoe - diz a enfermeira num tom suave -, como se sente?
- O leite - digo numa voz abafada. - Posso fazer alguma coisa para secá-lo?
- Nem por isso... tem de aguentar - diz ela. - Mas pode tomar ibuprofeno. Experimente colocar folhas de couve frias dentro do sutiã... não sabemos o quê, mas têm qualquer coisa que ajuda a reduzir a inflamação. E salva... se tiver, use-a para cozinhar. Ou faça um chá. A salva inibe a produção de leite.
Agradeço-lhe e desligo o telefone. Quando estou a colocá-lo no suporte, cai para cima do despertador e inadvertidamente liga o rádio. Tenho sintonizada uma estação de música clássica porque para mim é mais fácil acordar às 6:00 da manhã ao som de cordas de uma orquestra do que ao ritmo do rock.
A flauta. O som da secção de cordas. O gemido forte da tuba e da corneta. A "Cavalgada das Valquírias" voa das paredes para o teto e para o chão, enchendo o quarto de caos e motivação.
Esta música está num CD ainda dentro da mala de maternidade que não cheguei a desfazer.
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Esta música nunca foi tocada durante o parto, apesar de ter tido um bebé.
Num movimento rápido agarro no rádio despertador e puxo a ficha da tomada onde está ligada. Ergo-o bem alto por cima da cabeça e atiro-o para o outro lado do quarto para que se estilhace no chão de madeira num crescendo que teria deixado Wagner orgulhoso.
Quando há apenas o silêncio, ouço o som áspero da minha respiração. Imagino-me a explicar isto ao Max. Ou à minha mãe, a chegar com um saco de compras e a deparar-se com este cenário.
- Pronto - digo para comigo. - Tu és capaz. Só tens de apanhar os cacos. Na cozinha encontro um saco do lixo preto, uma pá e uma vassoura.
Apanho os restos do rádio e limpo tudo. Varro todos os pequenos fragmentos e as entranhas para dentro da pá.
"Apanhar os cacos."
Na verdade, é muito simples. Pela primeira vez em quarenta e oito horas sinto uma mudança, um objetivo. Marco o número do consultório da Dr.a Gelman pela segunda vez em dez minutos.
- É a Zoe Baxter outra vez - digo. - Queria marcar uma consulta.
Há várias razões para ter ido para casa com o Max na primeira noite em que o conheci:
1. Ele cheirava a verão.
2. Não era daquelas raparigas que levasse rapazes que não conhecesse para casa. Nunca.
3. Ele estava a sangrar abundantemente.
Apesar de se tratar do casamento do irmão dele, o Max passou o tempo todo à espera do próximo intervalo da banda. Enquanto os outros homens saíam para fumar ou iam buscar um copo de água ao bar, eu olhava para baixo e via o Max à minha espera com um refresco. Na altura, pensei que ele não estivesse a beber álcool por solidariedade: eu estava a trabalhar e não podia beber, por isso o Max também não bebia. Lembro-me de achar isso absolutamente encantador. Uma coisa que a maior parte dos homens não faria.
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Não conhecia o feliz casal, visto que era uma cantora substituta de última hora, mas era difícil de acreditar que o Reid e o Max fossem da mesma família. Não era
apenas a aparência - o Reid era alto e atlético, ao estilo de um praticante de golfe ou de racquetball, enquanto o Max era pura força bruta e tamanho - mas também postura. Os amigos do Reid pareciam ser todos banqueiros e advogados que gostavam de ouvir-se a si próprios; as namoradas e mulheres tinham nomes como Muffy e Winks. A nova mulher do Reid, Liddy, era do Mississippi e parecia agradecer muito a Deus - pelo tempo, pelo vinho e pelo facto de a sua avó Kate ter vivido o suficiente
para ver uma aliança no dedo da Liddy. Comparado com o resto da festa de casamento, o Max era uma lufada de ar fresco: era absolutamente espontâneo, sem artifícios.
À meia-noite, quando devíamos parar de tocar, já sabia que o Max geria o seu próprio negócio de paisagismo, que escavava a neve no inverno, que o irmão mais velho era responsável pela cicatriz prateada que tinha na face (com uma bola de basebol) e que era alérgico ao marisco. Ele sabia que eu era capaz de cantar o alfabeto de trás para a frente, que sabia tocar dez instrumentos e que queria ter uma família. Uma família grande.
Do meu lugar no palco, virei-me para a banda. Segundo a lista de músicas, a nossa última canção devia ser "Last Dance" de Donna Summers. Mas não me parecia que aquelas pessoas gostassem de disco, por isso virei-me para os rapazes que estavam atrás de mim.
- Conhecem Etta James? - perguntei, e o que estava no teclado tocou os primeiros acordes de "At Last".
Às vezes, quando canto, fecho os olhos. Há uma harmonia em cada respiração; a bateria é a minha pulsação, a melodia é o fluxo do meu sangue. É isto que significa perder-se na música, tornar-se uma sinfonia de notas, pausas e medidas.
Quando terminei de cantar, ouviu-se um estrondoso aplauso. Ouvia o Reid aplaudir ruidosamente:
"Bravo!" E as vozes agudas das amigas da Liddy:"... é a melhor banda
que já ouvi num casamento... tenho de pedir-te o cartão deles."
- Muito obrigada - murmurei e, quando finalmente abri os olhos, o Max estava a olhar para mim.
De repente, um homem caiu para cima do palco, a bater com a mão na bateria ao tropeçar para a frente. Estava completamente embriagado
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e, pelo seu sotaque sulista, devia ser um dos familiares ou amigos da Liddy.
- Ei, miúda - disse ele com entusiasmo, agarrando a bainha do meu vestido preto. - Sabes o que és?
O músico da guitarra baixo deu um passo em frente, protegendo-me, mas o Max já estava a vir em meu auxílio.
- Senhor - disse educadamente -, acho que devia ir-se embora... O bêbedo empurrou-o e agarrou-me na mão.
- Tu - disse com voz arrastada -, és um rouxinol, foda-se!
- Não diga palavrões à frente de uma senhora - disse o Max, e deu um soco no homem. O bêbedo caiu para cima de um grupo de damas de honor aos guinchos, e os longos vestidos delas ampararam-lhe a queda.
Num instante, um mastodonte de smoking agarrou no Max e virou-o.
- Isto é por bater no meu pai - disse ele, e deixou o Max inconsciente
com um soco.
Gerou-se o pandemónio - Hatfields contra McCoys, mesas a serem derrubadas, senhoras idosas a arrancarem as fitas dos chapéus umas das outras. A banda agarrou nos instrumentos, tentando evitar que o equipamento fosse destruído na escaramuça. Saltei do palco e agachei-me junto ao Max. Estava a sangrar da boca e do nariz, e também de um corte na testa onde batera no palco ao cair. Pousei-lhe a cabeça no colo e debrucei-me sobre ele, protegendo-o do resto dos tumultos.
- Isso - disse eu, assim que abriu os olhos - foi uma idiotice. Ele sorriu.
- Não sei se foi - disse o Max. - Consegui que me abraçasses. Estava a sangrar tanto que insisti que fosse às urgências. Deu-me as
chaves da carrinha dele e deixou-me conduzir enquanto pressionava a testa com um guardanapo.
- Acho que nunca mais ninguém vai esquecer-se do casamento do Reid
- disse, pensativo.
Não respondi.
- Estás zangada comigo - disse o Max.
- Foi um elogio - disse por fim. - Deste um soco a um tipo por fazer-me um elogio.
Ele hesitou.
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- Tens razão. Devia tê-lo deixado rasgar-te o vestido.
- Ele não ia rasgar-me o vestido. Os rapazes da banda tê-lo-iam impedido antes...
- Queria ser eu a salvar-te - disse o Max simplesmente, e eu fiquei a olhar para ele à luz verde do tablier.
No hospital, fiquei à espera com o Max num cubículo.
- Vais precisar de levar pontos - disse-lhe.
- vou precisar de muito mais do que isso - disse ele. - Para já, tenho a certeza de que o meu irmão nunca mais vai voltar a falar comigo.
Antes que eu pudesse responder, um médico abriu a cortina, entrou e apresentou-se. Calçou um par de luvas de látex e perguntou o que aconteceu.
- Esbarrei com uma coisa - disse o Max.
Retraiu-se quando o médico examinou a ferida no couro cabeludo.
- com o quê?
- Um punho?
O médico tirou uma pequena lanterna do bolso e disse ao Max que seguisse o pequeno feixe de luz. Vi os olhos dele virarem-se para cima e depois de um lado para o outro. Olhou para mim e piscou-me o olho.
- Vai precisar de levar pontos - repetiu o médico. - Não me parece que tenha sofrido uma concussão, mas não seria uma má ideia alguém ficar consigo durante a noite - afastou as cortinas do cubículo. -Já volto com o tabuleiro de sutura.
O Max olhou para mim, com uma pergunta nos olhos.
- Claro que fico - disse eu. - Foi o médico que mandou.
Passada uma semana, volto ao trabalho na unidade de queimados do hospital. A primeira paciente que visito é a Serena, uma rapariga de catorze anos da República Dominicana que é uma das minhas clientes habituais. Sofreu queimaduras graves num incêndio doméstico, foi tratada localmente e acabou por ficar desfigurada e cheia de cicatrizes. Escondeu-se na escuridão em casa da família durante dois anos antes de vir para Rhode Island para fazer enxertos cutâneos reconstrutivos. Tenho estado com ela durante uma hora cada vez que tenho de ir ao hospital, apesar de ao início ninguém perceber que benefício poderia a terapia musical trazer à Serena. Ficou cega devido a cataratas que se desenvolveram quando as pálpebras cobertas de
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cicatrizes não conseguiam fechar-se, e tem movimentos limitados nas mãos. De início cantei apenas para ela até começar a acompanhar-me. Acabei por adaptar uma guitarra para ela, afinando-a para um acorde aberto e colocando-lhe um slide para que pudesse tocar. Coloquei pedaços de velcro na parte de trás do braço da guitarra para que conseguisse literalmente ir às apalpadelas até chegar aos acordes que estava a aprender a tocar.
- Olá, Serena - digo enquanto bato à porta do quarto dela.
- Olá, amiga - responde. Ouço o sorriso na voz dela.
Sinto-me egoisticamente grata por ela ser cega. Por, ao contrário do que aconteceu há alguns minutos, quando estava a falar com as enfermeiras na sala delas, não ter de a deixar à vontade quando não soubesse o que dizer para apresentar as suas condolências. A Serena nunca chegou a saber que eu estava grávida; portanto, não há nenhuma razão para saber que o bebé morreu.
- Onde esteve? - pergunta.
- Estive doente - digo, arrastando uma cadeira para o lado dela e colocando a guitarra no colo. Começo a afiná-la, e ela agarra no seu próprio instrumento. - O que tens feito?
- O costume - diz a Serena. Tem o rosto envolto em ligaduras, ainda a sarar da operação mais recente. As palavras dela são arrastadas mas, passado todo este tempo, já conheço os padrões do discurso dela. - Tenho uma coisa para si.
- A sério?
- Sim. Ouça. Chama-se "Terceira Vida" - endireito-me, interessada. Este termo surgiu nas sessões de terapia que realizámos ao longo dos últimos dois meses, em que falámos da diferença entre a sua primeira vida, antes do incêndio, e a sua segunda vida, depois do incêndio. "Então e a terceira vida?", perguntei à Serena. "O que vais pensar de ti, quando tiverem sido feitas todas as cirurgias?"
Ouço a voz fina de soprano da Serena, pontuada pelos apitos e sussurros dos monitores ligados ao seu corpo:
"Sem ficar escondida na escuridão
Sem raiva e sem dor ?
Por fora posso estar diferente .,Mas por dentro sou a mesma.
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No segundo verso, quando a sua melodia se entranha na minha cabeça, começo a apanhar a harmonia na minha guitarra. Termino quando ela acaba de cantar e, quando faz
deslizar a mão pelo braço da guitarra, aplaudo.
- Esse - digo à Serena - foi o melhor presente de sempre.
- Valeu a pena estar doente?
Uma vez, durante uma sessão, a Serena estava a tocar com um pau-de-chuva, virando-o repetidamente e ficando cada vez mais agitada. Quando lhe perguntei o que lhe fazia lembrar, ela falou-me do último dia que estivera fora de casa na República Dominicana. Estava a ir para casa depois da escola e começou a chover. Sabia porque estava a pisar as poças de água que se formavam e porque tinha os cabelos molhados. Mas não conseguia sentir as gotas na pele, por causa das cicatrizes. Nunca compreendeu por que razão não conseguia sentir a chuva, mas algo tão insubstancial como um comentário desdenhoso de um colega devido ao seu rosto de Noiva de Frankenstein parecia uma espada quente a trespassá-la.
Foi nessa altura que resolveu não voltar a sair de casa.
A terapia musical não deve centrar-se no terapeuta, deve centrar-se no paciente. E, no entanto, uma pequena gota a cair na guitarra sugere que devo estar a chorar. Como a Serena, não senti as lágrimas nas faces.
Respiro fundo.
- De que verso gostas mais?
- Acho que do segundo.
Volto ao que é familiar: professora para aluna, terapeuta para paciente, a pessoa que costumava ser.
- Diz-me porquê - digo.
Não sei onde o Max arranjou o barco, mas está à nossa espera quando chegamos a Narragansett Bay. O boletim meteorológico estava errado; está frio e húmido. Tenho a certeza de que somos os únicos a alugar um barco a motor esta manhã. A bruma salpica-me o rosto, e fecho o casaco até ao queixo.
- Vai tu primeiro - diz o Max, e segura no barco para eu poder entrar lá para dentro. Depois dá-me a caixa de cartão que esteve no assento entre nós ao longo do caminho para a praia.
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O Max liga o motor e dirigimo-nos aos solavancos para o mar, passando devagar pela zona de velocidade limitada contornando bóias e as silhuetas adormecidas dos barcos à vela. A espuma branca estende os dedos ossudos por cima do casco do barquinho e molha-me os ténis.
- Onde vamos? - grito por cima do barulho do motor.
O Max não me ouve, ou finge que não me ouve. Ultimamente tem feito isso muito frequentemente. Chega a casa depois do pôr do Sol e eu sei que era impossível ter estado a podar, a plantar, a cortar relva ou até mesmo a surfar. Serve-se dessa desculpa para dormir no sofá. "Não queria acordar-te", diz ele, como se a culpa fosse minha.
Ainda nem sequer amanheceu. O Max é que teve a ideia de vir até aqui quando o oceano estivesse tranquilo, sem traineiras de pesca, sem marinheiros de fim de semana. Sento-me a meio do banco do barco com a
caixa no colo. Quando fecho os olhos, o ruído do motor e o marulhar das ondas reorganizam-se num ritmo de rap. Bato com os dedos no assento de metal, ao ritmo.
Passados cerca de dez minutos, o Max desliga o motor. Ficamos a oscilar, movidos pela onda que nós próprios provocamos.
Ele está sentado à minha frente, de mãos enfiadas entre os joelhos.
- O que achas que devemos fazer?
- Não sei.
- Queres...?
- Não - digo eu, entregando-lhe a caixa. - Faz tu.
Ele acena com a cabeça e tira o sapatinho azul de cerâmica da caixa. Alguns amendoins de poliestireno flutuam para longe ao vento. Faz-me entrar em pânico - e se há uma forte rajada de vento mesmo na altura errada? E se as cinzas acabarem por cair no meu cabelo, no meu casaco?
- Acho que devíamos dizer qualquer coisa - murmura o Max. Os meus olhos enchem-se de lágrimas.
- Tenho tanta pena - sussurro.
"Por não ter nada melhor para dizer." "Por ter de fazer isto."
"Por não ser capaz de manter-te em segurança dentro de mim durante mais algumas semanas."
O Max estende a mão atravessando o espaço entre nós e aperta-me a mão.
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- Eu também.
Afinal, a realidade do meu bebé não passa de um sopro no frio, uma nuvem de fumo. As cinzas desaparecem quase no instante em que se lançam no ar. Se tivesse pestanejado,
podia facilmente fingir que nunca chegou a acontecer.
Mas imagino-as pousarem na superfície agitada do oceano. Imagino as sereias no fundo do mar, a levá-lo para casa com os seus cânticos.
O Max está atrasado para a consulta com a Dr.a Gelman. Entra no consultório coberto de painéis de madeira a correr, a cheirar a terra.
- Desculpem - diz. - O trabalho atrasou-se.
Houve uma altura em que chegava dez minutos antes das consultas. Em que, uma vez, quando a carrinha se avariou, veio a correr para a clínica com uma amostra de sémen para que chegasse no intervalo de tempo necessário para fertilizar os óvulos recolhidos. Mas nas duas semanas após ter tido alta do hospital, as nossas conversas limitam-se ao tempo, à lista de compras e ao que eu gostaria de ver na televisão à noite. Senta-se na cadeira ao meu lado e olha para a obstetra, com um ar expectante.
- Ela está bem?
- Não há nenhuma razão para pensar que a Zoe não vai ficar bem - diz a Dr.a Gelman. - Agora que já temos conhecimento da trombofilia, pode ser controlada através de medicação. E os fibroides que vimos sob a placenta... vamos esperar que, sem as flutuações hormonais da gravidez, voltem a diminuir.
- Mas e da próxima vez? - pergunto.
- Sinceramente não prevejo a ocorrência de outro coágulo, desde que continue a tomar Coumadin...
- Não - interrompo. - Quero dizer, da próxima vez que engravidar. Disse que podia voltar a tentar.
- O quê? - diz o Max. - Mas que raio...? Viro-me para ele.
-Ainda temos três embriões. Três embriões congelados, Max. Não desistimos antes, quando abortei. Não podemos desistir agora... O Max vira-se para a Dr.a Gelman.
- Diga-lhe. Diga-lhe que não é uma boa ideia.
A obstetra passa o polegar pela borda do mata-borrão.
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- As hipóteses de voltar a ter um descolamento da placenta são entre vinte e cinquenta por cento. Além disso, existem outros riscos, Zoe. Pré-eclampsia, por exemplo: tensão alta e inchaço que a fariam ter de tomar magnésio para evitar convulsões. Podia ter um AVC...
- Meu Deus - murmura o Max.
- Mas posso tentar - volto a dizer, olhando-a diretamente nos olhos.
- Sim - diz ela. - Tendo conhecimento dos riscos, pode.
- Não - a palavra mal se ouve, quando o Max se levanta. - Não - repete, e sai do consultório.
vou atrás dele, apressando-me a percorrer o corredor para agarrar-lhe no braço. Ele sacode-me.
- Max! - grito, mas ele dirige-se ao elevador. Entra, e eu chego às portas mesmo quando estão a fechar-se. Entro e fico ao lado dele.
Também está uma mãe no elevador, a empurrar um carrinho de bebé. O Max olha em frente.
A campainha do elevador soa, as portas abrem-se e a mulher empurra a criança lá para fora.
- Foi o que sempre quisemos - digo eu, assim que ficamos novamente sozinhos. - Ter um bebé.
- E se não for o que eu quero?
- Era o que tu querias.
- Bem, tu também querias ter uma relação comigo - diz o Max -, por isso acho que mudámos os dois um bocadinho.
- O que estás a dizer? Ainda quero ter uma relação contigo.
- Queres ter uma relação com o meu esperma. Isto... esta questão do bebé... tornou-se muito mais importante do que nós os dois. Já nem se trata de nós. Trata-se de ti, e do bebé que parece que não conseguimos ter, e quanto mais difícil se torna mais espaço ocupa, Zoe. Já não há lugar para mim.
- Tens ciúmes? Tens ciúmes de um bebé que nem sequer existe?
- Não tenho ciúmes. Sinto-me sozinho. Quero ter a minha mulher de volta. Quero a rapariga que costumava querer passar tempo comigo, a ler os obituários em voz alta e a percorrer sessenta e cinco quilómetros de carro só para ver a que cidade íamos parar. Quero que me telefones para o telemóvel para falar comigo, e não para me lembrares de que tenho
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de estar na clínica às quatro. E agora... agora queres voltar a engravidar, mesmo que isso te mate? Quando vais parar, Zoe?
- Não vai matar-me - insisto.
- Então é capaz de me matar a mim - olha para cima. -Já se passaram nove anos. Já não consigo continuar com isto.
Há qualquer coisa no olhar dele, uma pílula amarga de verdade, que me provoca um arrepio na espinha.
- Então arranjamos uma barriga de aluguer. Ou adotamos...
- Zoe - diz o Max -, quero dizer que não consigo continuar com isto. Connosco.
As portas do elevador abrem-se. Estamos no piso térreo, e o sol vespertino entra pelas portas de vidro na parte da frente da clínica. O Max sai do elevador, mas eu não.
Digo para comigo que é um efeito de luzes. Que é uma ilusão de ótica. Num instante consigo vê-lo e no instante seguinte é como se nunca tivesse aqui estado.
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A CASA DA ESPERANÇA
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MAX
Sempre achei que ia ter filhos. Quero dizer, é uma história com a qual a maior parte dos homens se identifica: nascemos, crescemos, formamos uma família e morremos. Só desejava que, se tivesse de haver algum adiamento ao longo do processo, ocorresse na parte final.
Não sou o vilão. Também queria ter um bebé. Não por ter passado a minha vida a sonhar ser pai, mas por uma razão muito mais simples.
Porque é o que a Zoe quer.
Fiz tudo o que ela me pediu. Deixei de consumir cafeína, passei a usar boxers em vez de cuecas, comecei a fazer jogging em vez de andar de bicicleta. Fiz uma dieta que ela encontrou na Internet para aumentar a fertilidade. Já não coloco o portátil no colo. Até fui a um acunpunctor doido, que colocou agulhas perigosamente perto dos meus testículos e as incendiou.
Quando nada disso resultou, fui a um urologista e preenchi um formulário de dez páginas com perguntas como "Tem ereções?" e "Quantas parceiras sexuais teve?" e "A sua mulher atinge o orgasmo durante as relações sexuais?"
Cresci numa família onde não se falava de sentimentos, e onde a única razão para se ir ao médico era ter cortado acidentalmente um membro com uma motosserra. Por isso não quero estar na defensiva, mas devem compreender que a parte sentimental da fertilização in vitro e as análises não me saem naturalmente.
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Tinha um pressentimento de que não era só a Zoe que tinha problemas de infertilidade. O meu irmão Reid e a mulher dele já estão casados há mais de uma década e também ainda não conseguiram conceber. A diferença é que em vez de gastarem dez mil dólares numa clínica, ele e a Liddy rezam muito.
A Zoe diz que a Dr.a Gelman tem uma taxa de sucesso maior do que Deus.
Afinal, tenho uma contagem total de 60 milhões de espermatozoides
- que parece muito, não parece? Mas quando começamos a calcular a sua forma e velocidade, de repente fico reduzido a 400 000. Que, de novo, parece-me ser um número bastante grande. Mas imaginem que estão a correr a Maratona de Boston com mais de 59 milhões de bêbedos, de repente torna-se um pouco mais difícil atravessar a meta. Se juntarmos os problemas de infertilidade da Zoe aos meus, subitamente deparamo-nos com a fertilização in vitro e ICSI.
E depois há a questão do dinheiro. Não sei como é que as pessoas conseguem pagar a fertilização in vitro. Custa quinze mil dólares, incluindo a medicação. Temos a sorte de viver em Rhode Island, um estado que obriga as seguradoras a cobrirem as despesas a mulheres entre os vinte e cinco e os quarenta anos que sejam casadas e que não consigam conceber naturalmente - mas isso implica que ainda gastámos três mil dólares do nosso bolso por cada ciclo de embriões ao natural e seiscentos
dólares por cada ciclo congelado. Não se encontram cobertos: a ICSI, em que os espermatozoides são diretamente injetados nos óvulos (mil e quinhentos dólares), congelação
dos embriões (mil dólares) e armazenamento de embriões (oitocentos dólares por ano). Só estou a dizer que, mesmo com seguro, e mesmo antes do pesadelo financeiro
deste último ciclo, ficámos sem dinheiro.
Não consigo dizer ao certo quando começou a correr mal. Talvez tenha sido da primeira vez, ou da quinta, ou da quinquagésima que a Zoe contou os dias do ciclo menstrual
e se enfiou na cama, dizendo "Agora!" A nossa vida sexual tornou-se num jantar de Ação de Graças com uma família disfuncional - temos de estar presentes, apesar
de não estarmos a divertir-nos. Talvez tivesse sido quando iniciámos a fertilização in vitro, quando percebi que não haveria nada que a Zoe não fizesse na sua
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demanda para engravidar; aquele desejo transformou-se numa necessidade e depois numa obsessão. Ou talvez tivesse sido quando comecei a sentir que a Zoe e este bebé
por nascer estavam em sintonia - e que eu me tinha tornado numa espécie de intruso. Deixou de haver lugar para mim no meu casamento, a não ser como material genético.
Muita gente fala do que as mulheres sofrem quando não conseguem ter um bebé. Mas nunca ninguém pergunta pelos homens. Bem, deixem-me que vos diga, sentimo-nos uns falhados. Não somos capazes de fazer o que os outros homens conseguem fazer sem sequer se esforçarem... o que os outros homens tomam precauções para não fazerem, na maior parte das vezes. Se é ou não verdade, e se a culpa é ou não minha... a sociedade encara um homem de forma diferente se não tiver filhos. No Antigo Testamento
há um livro inteiro dedicado a quem gerou quem. Até as celebridades que são símbolos sexuais e que fazem as mulheres desfalecer, como o David Beckham, o Brad Pitt
ou o Hugh Jackman, aparecem sempre na revista People com um dos filhos às cavalitas. (i eu sei o que estou a dizer; li quase todos os números na sala de espera da
clínica de fertilização in vitro). Podemos estar no século XXI, mas ser-se um homem a sério ainda está relacionado com o facto de se ser capaz de procriar.
Sei que não pedi isto. Sei que não devia sentir-me desajustado. Sei que é um problema clínico e que se sofresse uma paragem cardíaca ou fraturasse um tornozelo não
me consideraria um banana se precisasse de ser submetido a uma cirurgia ou que me colocassem gesso; então por que razão me sinto envergonhado por causa disto?
Porque, numa longa, longa lista, é apenas mais uma prova de que sou um falhado.
No outono, o paisagismo é difícil de vender. Tenho a minha dose de folhas secas para soprar e de relvados para cortar, para ficarem preparados para o inverno. Podo
as árvores de folha caduca e arbustos que florescem no outono. Consegui convencer alguns clientes a plantar antes que o solo congele - é sempre uma coisa que ficamos
satisfeitos por ter feito quando chega a primavera - e sou um grande apologista de algumas variedades de áceres vermelhos que têm cores espetaculares no outono.
Mas neste outono vou sobretudo despedir os homens que contratei
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durante o verão. Normalmente consigo manter um ou dois, mas este inverno não - estou demasiado endividado e não há trabalho suficiente. A minha empresa de paisagismo
de cinco homens vai transformar-se num serviço de limpar neve de um só.
Estou a podar as roseiras de um cliente quando um dos meus empregados do verão vem a correr pela via de acesso. Todd - um aluno do liceu - deixou de trabalhar na
semana passada, quando recomeçaram as aulas.
- Max? - diz ele, segurando no boné de basebol. - Tem um minuto?
- Claro - digo eu. Sento-me apoiado nos calcanhares e semicerro os olhos para olhar para ele. O Sol já está baixo, e são só três e meia da tarde. - Como vai a escola?
- Vai andando - Todd hesita. - Eu, num, queria perguntar-lhe se podia voltar a dar-me emprego.
Os meus joelhos rangem quando me levanto.
- É um bocadinho cedo para começar a contratar pessoas para a primavera.
Estava a referir-me ao outono e ao inverno. Tenho carta de condução. Podia limpar a neve...
- Todd - interrompo -, és um bom rapaz, mas o negócio fica muito parado. Não posso aceitar-te agora - dou-lhe uma palmada no ombro.
- Fala comigo em março, está bem?
Começo a dirigir-me para a carrinha.
- Max! - chama ele, e eu viro-me. - Preciso mesmo disto - a maçã de Adão dele oscila para cima e para baixo como uma rolha. - A minha namorada... está grávida.
Lembro-me vagamente de a namorada do Todd chegar a casa de um cliente em julho num carro cheio de adolescentes animadas. Das longas pernas morenas dela com calções
de ganga feitos de calças cortadas, enquanto se aproximava do Todd com um recipiente cheio de limonada. De como ele corou quando ela o beijou e voltou a correr para
o carro, com os chinelos a baterem-lhe nas plantas dos pés. Lembro-me de ter a idade dele e de entrar em pânico de cada vez que tinha relações sexuais, certo de que pertenceria àqueles dois por cento dos casos em que os preservativos não resultavam.
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A Zoe costumava dizer: "Como é que engravidamos aos dezasseis anos, quando estamos desesperadas para não engravidar... mas aos quarenta, quando queremos engravidar, não conseguimos?"
Não olho nos olhos do Todd.
- Desculpa - digo entre dentes -, não posso ajudar-te.
Mexo em algum equipamento que está na traseira da carrinha até vê-lo afastar-se. Ainda tenho trabalho para fazer, mas tomo a decisão executiva de acabar por hoje. Afinal, sou o patrão. Eu é que sei quando é hora de desistir.
Dirijo-me a um bar pelo qual já passei cinquenta vezes a caminho deste trabalho. Chama-se Quasimodo's e tem uma pintura de má qualidade e grades de metal numa das janelas, que também servem de anúncio luminoso à Budweiser. Por outras palavras, é daqueles lugares que ninguém frequenta à tarde.
Claro, quando entro lá dentro e os meus olhos se adaptam à luz, penso que só estou lá eu e o empregado do bar. Depois reparo numa mulher de cabelos loiros descolorados a fazer palavras cruzadas ao balcão, tem os braços nus e cheios de tendões, com pele semelhante a papel de crepe; parece estranha e ao mesmo tempo familiar, como uma T-shin que já foi lavada tantas vezes que a imagem na parte da frente se tornou uma simples mancha de cor.
- Irv - diz ela -, depósito de húmus com cinco letras? O empregado do bar encolhe os ombros.
- Uma coisa que necessita de Imodium? Ela franze a testa.
- As palavras cruzadas do New York Times têm demasiada classe para isso.
- Loess - digo eu, subindo para um banco.
- Menos7 quê? - pergunta ela, virando-se para mim.
- Não, loess. L-O-E-S-S. É um tipo de sedimento composto por camadas de poeira que o vento sopra para as ranhuras ou para as dunas
- aponto para o jornal. - É essa a sua resposta.
Less, na versão original em inglês. (N. da T.)
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Ela escreve-a, a caneta.
- Por acaso não sabe a sexta horizontal? Elétricos de Londres?
- Lamento - abano a cabeça. - Não tenho uma grande cultura geral. Apenas sei um pouco de geologia.
- O que deseja tomar? - pergunta o empregado do bar, colocando um guardanapo à minha frente.
Olho para a fileira de garrafas atrás dele.
- Uma Sprite - digo.
Ele serve o refrigerante de uma torneira por baixo do balcão e coloca-o à minha frente. Pelo canto do olho, vejo a bebida da mulher, um martíni. Começo realmente a salivar.
Há um televisor por cima do balcão. A Oprah Winfrey está a falar sobre segredos de beleza de todo o mundo. Quero mesmo saber como as mulheres japonesas conseguem ter uma pele tão lisa?
- É professor na Brown? - pergunta a mulher. Rio.
- Pois - digo. Porque não? Nunca mais voltarei a vê-la.
A verdade é que nem sequer tenho diploma universitário. Saí da Universidade de Rhode Island há uma eternidade, quando estava no primeiro ano. Ao contrário do Reid, o menino de ouro, que se formou com distinção e foi trabalhar no Banco de Boston como analista financeiro antes de abrir o seu próprio negócio de investimento, tinha-me formado em jogos de bebida e álcool de cereais. Ao princípio eram as festas aos fins de semana, e depois intervalos de estudo a meio da semana, só que não estudava nada. Não me consigo lembrar de um semestre inteiro e, uma manhã, acordei nu nas escadas da biblioteca sem ter nenhuma memória do que poderia ter levado a isso.
Quando o meu pai não me deixou voltar para casa, fiquei a dormir no sofá do Reid, no seu apartamento em Kenmore Square. Arranjei um emprego como segurança à noite num centro comercial, mas perdi-o porque faltava constantemente ao trabalho por estar a curar a bebedeira da tarde. Comecei a roubar dinheiro ao Reid para comprar bebidas baratas e a esconder as garrafas pelo apartamento. Então, uma manhã acordei, ressacado, e tinha uma arma apontada à testa.
- Reid! Mas que merda? - berrei, levantando-me.
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- Se andas a tentar matar-te, Max - disse ele -, o melhor é acelerarmos um pouco as coisas.
Juntos despejámos todo o álcool no lava-loiça. O Reid tirou o dia de folga para me acompanhar à primeira reunião dos AÃ. Foi há dezassete anos. Quando conheci a Zoe, aos vinte e nove, estava sóbrio e já tinha percebido o que um homem sem curso universitário podia fazer na vida. Recordando-me das únicas aulas de que gostava realmente na universidade - de geologia -, calculei que o melhor era ficar pela terra. Pedi um empréstimo para abrir um pequeno negócio e comprei o primeiro cortador de relva, pintei a parte lateral da carrinha e mandei imprimir alguns panfletos. Posso não ter uma vida de luxo, como o Reid e a Liddy, mas ganhei 23 000 dólares líquidos no ano passado e pude continuar a tirar dias de folga para fazer surf quando as ondas estavam boas.
com o ordenado da Zoe, era o suficiente para arrendar uma casa uma casa onde ela agora está a viver. Quando somos nós o cônjuge que quer acabar o relacionamento, temos de estar dispostos a sair realmente de casa. Às vezes, apesar de já ter passado um mês inteiro, dou por mim a pensar se ela se terá lembrado de pedir ao senhorio que limpasse a caldeira. Ou se terá assinado um contrato por mais um ano, desta vez sem o meu nome. Quem será que agora lhe leva os tambores pesados pelos degraus da entrada, ou será que os deixa no carro durante a noite?
Penso se não terei cometido um erro.
Olho para o martíni da mulher das palavras cruzadas.
- Olhe - digo ao Irv, o empregado do bar -, pode trazer-me um destes?
A mulher bate com a esferográfica no balcão.
- Então dá aulas de geologia?
Na televisão, a Oprah está a falar sobre como fazer o nosso próprio esfoliante de sal, como os que a Cleópatra usava.
- Não. Egito - minto.
- Como o Indiana Jones?
- Mais ou menos - respondo. - Só que não tenho medo de cobras.
- Já lá esteve? No Nilo?
- Oh, sim - digo, apesar de nem sequer ter passaporte. - Uma dezena de vezes.
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Ela empurra a caneta e o jornal na minha direção.
- Mostra-me como se escreve o meu nome em egípcio?
O Irv pousa o martíni à minha frente. Começo a suar. Seria demasiado fácil.
- Chamo-me Sally - diz a mulher. - S-A-L-L-Y.
É espantoso o que fazemos quando desejamos muito qualquer coisa. Estamos dispostos a fazer qualquer coisa, a dizer qualquer coisa, a ser qualquer pessoa. Costumava sentir-me assim em relação à bebida - houve coisas que fiz para ter dinheiro para a bebida que tenho a certeza de que apaguei permanentemente da memória. E sem dúvida que já houve um tempo em que me sentia assim em relação a ter um bebé. Contar os pormenores da minha vida sexual a um desconhecido? Claro. Espetar uma agulha no rabo da minha mulher? com todo o gosto. Masturbar-me para dentro de um frasco? Sem problemas. Se os médicos nos tivessem dito para andarmos às arrecuas e cantarmos ópera para aumentar o grau de fertilidade, nem teríamos pestanejado.
Quando desejamos muito uma coisa, mentimos a nós próprios mil vezes.
Como: À quinta é de vez.
Como: As coisas entre a Zoe e eu vão melhorar quando o bebé nascer.
Como: Um golinho não vai matar-me.
Uma vez vi um documentário sobre a lula-gigante, e filmaram uma a esguichar a tinta na água para escapar ao inimigo. A tinta era negra e linda e enrolava-se como se fosse fumo, uma distração para que a lula pudesse escapar. É essa a sensação do álcool no meu sangue. É a tinta da lula, e vai cegar-me para poder afastar-me de tudo o que me magoa.
A única língua que conheço é o inglês. Mas na margem do jornal desenho três linhas sinuosas, depois qualquer coisa que se assemelha a uma cobra e um sol.
- São apenas os sons do nome, claro - digo eu. - Não há uma tradução para Sally.
Ela rasga o canto do jornal, dobra-o e enfia-o no sutiã.
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- vou fazer uma tatuagem com isto, sem dúvida.
O mais provável é o artista de tatuagens não fazer ideia de que não são hieróglifos. Tanto quanto sei, posso ter escrito: "Para passarem um bom bocado, telefonem à Nefertiti."
A Sally salta do banco dela e senta-se no banco ao meu lado.
- Vai beber esse martíni ou vai ficar à espera que se transforme numa antiguidade?
- Ainda não decidi - digo eu, a primeira verdade que lhe disse.
- Bem, então decida-se - responde a Sally -, para poder oferecer-lhe outro.
Inclino o martíni e esvazio-o de um único trago ardente e estonteante.
- Irv - digo, pousando o copo vazio. - Ouviu o que a senhora disse.
Da primeira vez que tive de deixar uma amostra de sémen na clínica, a enfermeira entrou na sala de espera e disse o meu nome. Quando me levantei pensei: "Toda a gente que está aqui sabe o que vou fazer."
Os folhetos informativos que nos deram diziam que a mulher podia "ajudar" na recolha da amostra, mas a única coisa que parecia mais embaraçosa do que masturbar-me numa clínica era a minha mulher estar ali comigo, com os médicos, as enfermeiras e os pacientes do outro lado da porta. A enfermeira levou-me até ao fundo de um corredor.
- Aqui está - disse ela, entregando-me um saco de papel castanho.
- Leia as instruções.
- Não é assim tão mau - disse-me a Zoe ao pequeno-almoço. Pensa nisso como uma visita ao Pee-Wee's Playhouse.
E realmente, quem era eu para me queixar, quando ela recebia injeções duas vezes por dia, se submetia constantemente a exames pélvicos e tomava tantas hormonas que uma coisa tão simples como atravessar a rua podia fazê-la desfazer-se em lágrimas? Isto, em comparação, parecia canja.
A sala estava gelada e consistia num sofá coberto por um lençol, um televisor e leitor de vídeo, um lava-loiça e uma mesa de café. Havia alguns vídeos - Gata das Botas, Breast Side Story, Loiras Platinadas - vários
? números da Playboy e da Hustler e, estranhamente, um exemplar de
Cood Housekeeping. Havia uma pequena janela, que parecia uma janela HL de um speakeasy, à direita - devia ser onde deixaria a amostra quando
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terminasse. A enfermeira saiu da sala e tranquei a porta na maçaneta. Depois abri-a e voltei a trancá-la. Para ter a certeza.
Abri o saco de papel. O recipiente da amostra era enorme. Era praticamente um balde. Mas o que esperavam eles de mim?
E se entornasse?
Comecei a folhear uma das revistas. Da última vez que fizera isso, tinha quinze anos e roubara o número de dezembro da Playboy de um quiosque de jornais. Tornei-me incrivelmente consciente do ruído da minha respiração. Talvez não fosse normal. Talvez quisesse dizer que estava a ter um ataque cardíaco?
Talvez tivesse apenas de despachar aquilo.
Liguei a televisão. Já estava dar um vídeo. Fiquei a ver por um instante, e depois pensei se a pessoa que estava à espera da amostra do outro lado do alçapão estaria
a ouvir.
Estava a demorar uma eternidade.
No fim, fechei os olhos e imaginei a Zoe.
A Zoe, antes de começarmos a falar sobre uma família. Como da vez em que fomos fazer campismo selvagem nas White Mountains e quando acordei fui encontrá-la sentada numa rocha a tocar flauta, completamente nua.
Depois, fiquei a olhar para a amostra no recipiente. Não admira que não conseguíssemos engravidar; não havia quase nada, pelo menos em termos de volume. Escrevi o meu nome e a data na etiqueta. Meti a amostra na zona de entregas e fechei a porta, pensando se devia bater ou gritar para avisar o técnico que já estava pronta e ali à espera.
Decidi que haveriam de perceber por si, lavei as mãos e percorri apressadamente o corredor. A rececionista sorriu ao ver-me ir embora.
- Obrigada por vir - disse ela.
A sério? O uso dessa frase não devia ser banido numa clínica de fertilização in vitro?
Enquanto me dirigia para o carro, já estava a pensar em como ia contar à Zoe o que a rececionista dissera. Em como íamos rir os dois.
Quando acordo, estou deitado numa almofada coberta de pelo violeta, no chão de um quarto que não reconheço. Gradualmente, ignorando as
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marteladas nas têmporas, sento-me e vejo um pé descalço, verniz vermelho-vivo. A minha língua parece alcatifada.
Levantando-me a cambalear, olho para a mulher. Demoro um minuto a lembrar-me do nome dela. Não me recordo de como viemos para aqui, mas tenho uma imagem de outro bar, depois do Quasimodo's, e talvez até mesmo de outro a seguir. Sinto um sabor a tequila e a vergonha.
A Sally ressona como um estivador - é a minha única salvação. A última coisa que desejo é ter uma conversa com ela. Saio do quarto em bicos de pés, segurando nas calças, camisa e sapatos numa bola junto às virilhas. Terei vindo até aqui a conduzir ontem à noite? Espero bem que não. Mas só Deus sabe onde terei deixado o carro.
Casa de banho. vou à casa de banho e depois saio daqui de fininho. vou para casa e finjo que isto nunca aconteceu.
Urino e lavo-me, metendo a cabeça debaixo da torneira e secando os cabelos com uma toalha das mãos cor-de-rosa. Olho para a bancada, para uma fileira de preservativos embrulhados em papel de alumínio. Oh, graças a Deus que não cometi também esse erro.
"Controla-te, Max", digo em silêncio.
"já estiveste nesta situação, e não queres voltar a ela."
Toda a gente faz asneiras de vez em quando. Talvez eu tivesse feito asneiras em mais ocasiões do que outras pessoas, mas isso não significa que esteja condenado. Isto não foi um descarrilamento. Foi apenas... uma lomba.
Abro a porta da casa de banho e vejo uma criança pequena a chuchar no polegar e a olhar para mim, com a irmã mais velha - uma adolescente - de pé mesmo atrás dela.
- Mas quem é você? - pergunta ela.
Não respondo. Passo por elas a correr, saio pela porta e desço a via de acesso onde não está o meu carro. Fujo a correr deste beco suburbano de boxers. No cruzamento com a estrada estadual, visto as roupas e procuro o telemóvel no bolso, mas não tem bateria. Continuo a correr, certo de que a Sally e os filhos dela vão perseguir-me no monovolume que estava estacionado na via de acesso. Só paro quando vejo um centro comercial. Só preciso de encontrar um telefone; chamo um táxi para me levar de volta ao Quasimodo's para ir buscar o carro (que, espero eu, ainda está no sítio onde o deixei) e depois vou refugiar-me em casa do Reid.
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A culpa não é propriamente minha por o primeiro lugar que encontro aberto ser um restaurante cujo proprietário está a fazer um inventário ao sábado de manhã. Que o homem abane a cabeça quando peço para usar o telefone e diga que estou com ar de quem teve uma noite complicada. Que me ofereça uma bebida, por conta da casa.
Normalmente, estaríamos em casa. Afinal, a injeção de progesterona tinha de ser administrada entre as 19:00 e as 19:30, todas as noites - e era bastante fácil planear as nossas noites em função disso, visto que também não nos sobrava dinheiro nenhum para ir ao cinema ou jantar fora. Mas a Zoe tinha sido convidada para o casamento de dois idosos que tinha conhecido numa das suas sessões de terapia de grupo num lar de terceira idade.
- Se não fosse eu - disse ela -, nem sequer haveria casamento.
Por isso vim para casa depois do trabalho, tomei um duche e coloquei uma gravata e dirigimo-nos para o lar. Na mala, a Zoe levava a progesterona, toalhetes de álcool e seringas. Vimos a Sadie e o Clark, com uma idade somada de 184 anos, unirem-se em sagrado matrimónio. E depois comemos soufflé de carne e gelatina - a comida tinha de ser fácil de ingerir para quem usasse dentadura - e observámos os residentes que ainda tinham mobilidade dançarem ao som de discos de orquestra.
Os felizes recém-casados deram bolo um ao outro. Inclinando-me
para a Zoe, sussurrei:
- Dou dez anos a este casamento, no máximo. A Zoe riu.
- Cuidado, meu amigo. Um dia podemos ser nós - depois o relógio dela apitou e ela viu as horas. - Oh - disse. - São sete horas - fui atrás dela em direção à casa de banho, ao fundo do corredor.
Havia duas, uma para os homens e outra para as senhoras, cada uma delas suficientemente grande para acomodar uma cadeira de rodas - ou um marido que tivesse de dar uma injeção de progesterona à mulher. A casa de banho das senhoras estava trancada, por isso entrámos na dos homens. A Zoe puxou a saia para cima.
Havia um alvo desenhado na parte de cima da nádega com um marcador. Todos os dias ao longo da última semana, desde que iniciámos
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estas injeções, redesenhei o círculo depois de ela tomar duche. Não queria magoá-la espetando a agulha num sítio mais doloroso do que tinha de ser.
Achava que não havia nada pior do que dar injeções à Zoe na barriga - misturar o pó com a água e depois beliscar a pele para injetar Repronex; medir a dose na prática caneta que continha Follitsim. As agulhas eram minúsculas e ela jurava que não doía, apesar de ficar com hematomas no abdómen - tantos que às vezes era difícil encontrar um sítio para a injeção seguinte.
Mas a progesterona era diferente.
Primeiro, a agulha era maior. Segundo, o medicamento era um óleo e tinha um aspeto mais espesso e sinistro. Terceiro, teríamos de fazer isto todas as noites durante treze semanas.
A Zoe tirou os toalhetes de álcool e uma ampola. Parti a parte de cima da ampola e esfreguei o centro do alvo na nádega dela.
- Vais ficar bem de pé? - perguntei. Normalmente estaria deitada
na nossa cama.
- Despacha lá isso - disse a Zoe.
Enrosquei rapidamente a grande agulha na seringa e retirei a dose da ampola. Era difícil, por causa do óleo - era como chupar melaço por uma palhinha. Fiquei à espera até o líquido ter ultrapassado um pouco o número no êmbolo, para que ficasse absolutamente certo.
Depois retirei a agulha e coloquei uma nova, que íamos usar na injeção. Não era tão grossa, mas tinha um aspeto igualmente ameaçador - tinha de espetar uns bons cinco centímetros na Zoe, a nível intramuscular.
- Pronto - disse eu, respirando fundo, apesar de ser a Zoe que ia levar a injeção.
- Espera! - disse ela. Virou-se para mim. - Não disseste. Tínhamos um hábito.
"Quem me dera poder fazer isto por ti", dizia-lhe eu, todas as noites.
Ela acenou com a cabeça e apoiou as mãos na parede.
Nunca ninguém fala na resistência da pele. Foi criada para isso, e é por essa razão que é necessário ter coragem para lhe espetar uma seringa. Mas era pior para a Zoe do que para mim, por isso evitei que
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as mãos me tremessem (o que constituía um verdadeiro problema ao início) e espetei a agulha no centro do alvo. Assegurei-me de que não havia sangue misturado com o medicamento, e depois seguiu-se a parte mais difícil. Imaginam a força que é necessária para empurrar óleo para dentro do corpo humano? Juro, por muitas vezes que tivesse de fazer isto à minha mulher (e encarava as coisas nessa perspetiva - como uma coisa que tinha de fazer-lhe), sentia toda a resistência que a carne e o sangue dela exerciam contra a progesterona.
Quando finalmente terminei, retirei a agulha e deitei-a para o recipiente das agulhas para deitar fora que estava junto ao lavatório. Depois esfreguei o sítio da injeção, para tentar que a Zoe não ficasse com um nódulo ali. Agora também costumava colocar-lhe um saco de água quente, mas era óbvio que isso não ia acontecer naquela noite.
A Zoe voltou a guardar tudo na mala e a puxar o vestido para baixo.
- Espero que não tenhamos perdido o lançamento do bouquet - disse ela, e abriu a porta da casa de banho.
Um senhor idoso de andarilho estava pacientemente à espera. Viu a Zoe sair da casa de banho dos homens, comigo atrás, e piscou o olho.
- Lembro-me bem desses tempos - disse pensativamente. A Zoe e eu desatámos a rir.
- Só se for diabético - disse eu, e voltámos para a festa de mãos dadas.
O Tribunal de Família do Condado de Kent não fica assim tão
longe de Wilmington, onde a Zoe e eu arrendamos um apartamento há anos; mas fica bastante longe da casa do Reid, em Newport. com uma cópia da certidão de casamento que fui buscar à conservatória na mão, percorro um pórtico coberto desde o parque de estacionamento até à entrada do edifício.
De vez em quando, ouço uma ave.
Paro de andar, olho para cima e reparo no altifalante e no detetor de movimento. O tribunal tem uma gravação estranha de sons da natureza que me segue a cada passo que dou.
Por acaso, é bastante apropriado, irmos entregar os papéis para o divórcio e percebermos que algo que pensávamos ser real afinal não passa de uma mera ilusão.
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A secretária olha para mim quando entro no gabinete. Tem pelos pretos encaracolados - e isso apenas no bigode.
- Sim? - diz ela. - Posso ajudá-lo?
Ultimamente, acho que ninguém pode. Mas dou um passo em direção ao balcão que me dá pela altura do peito.
- Quero divorciar-me.
Ela aperta a boca num sorriso.
- Querido, nem sequer me lembro do nosso casamento - visto que não respondo, a secretária revira os olhos. - Pelo menos uma vez. Gostava que alguém se risse, pelo menos uma vez. Quem é o seu advogado?
- Não tenho dinheiro para um advogado. Ela entrega-me uma pilha de papéis.
- Possui bens imobiliários?
- Não.
- Tem filhos?
- Não - digo, desviando o rosto.
- Então preencha esses papéis e leve-os ao gabinete do xerife ao fundo do corredor.
Agradeço-lhe e levo a pilha para um banco no corredor.
Assunto: Casamento de
Queixoso: devo ser eu. E Arguido: deve ser a Zoe.
Leio atentamente a primeira linha a ser preenchida: a minha residência. Depois de hesitar um pouco, escrevo a morada do Reid. Já lá estou há dois meses. Além do mais, a linha seguinte diz respeito à morada da Zoe. Não quero que o juiz fique confuso, pense que ainda vivemos juntos e resolva não nos dar o divórcio.
As coisas não funcionam dessa maneira, mas mesmo assim...
Número três: A , em (cidade), (país), (estado), o
Queixoso e a Arguida casaram. Uma cópia oficial da certidão de casamento encontra-se anexada a este pedido de divórcio.
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A Zoe e eu fomos casados por um juiz de paz com um problema de dicção. Quando nos pediu que repetíssemos os votos, nenhum de nós conseguiu entendê-lo.
- Escrevemos os nossos próprios votos - disse a Zoe, num rasgo de inspiração e, tal como eu, inventou-os naquele instante.
No formulário de divórcio existem quatro espaços para os filhos e para as respetivas datas de nascimento.
Sinto-me banhado em suor.
Motivo para Isenção de Culpa:
Aqui, tenho apenas duas hipóteses, enumeradas. Copio cuidadosamente a primeira hipótese: Divergências insanáveis que provocaram a irremediável dissolução do casamento.
Não sei bem o que tudo isso significa, mas consigo adivinhar. E parece descrever-nos. A Zoe não deixa de querer ter um bebé; eu não suporto a ideia de voltar a tentar. As divergências insanáveis são os filhos que nunca tivemos. São as vezes em que ela se sentou à mesa ao jantar, a sorrir, quando sabia que não estava a pensar em mim. São os livros com nomes de bebé empilhados para ler na casa de banho, o móbile que ela comprou para o berço há três anos e nunca chegou a desembrulhar, os juros das nossas contas do cartão de crédito que me fazem ficar acordado à noite.
Mesmo acima do sítio onde devo assinar há um juramento: O Queixoso deseja um Divórcio Absoluto.
Sim, acho que desejo.
Desejaria qualquer pessoa ou qualquer coisa que pudesse dar uma volta à minha vida.
De certa forma, dou-me melhor com a minha cunhada do que com o meu próprio irmão. Ao longo dos últimos dois meses, cada vez que o Reid me pergunta se tenho algum plano, um objetivo para voltar a pôr-me de pé, a Liddy lembra-lhe que sou da família, que posso ficar o tempo que quiser. Ao pequeno-almoço, se prepara um número ímpar de
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fatias de bacon, dá-me a mim a que sobra, em vez de dá-la ao Reid. É como se fosse a única pessoa que realmente não se está nas tintas se eu vivo ou morro, que não repara que eu sou um completo falhado ou, melhor ainda, que não se importa com isso.
A Liddy foi educada pelo pai, que era pastor pentecostal, mas, quando não está com aquelas atitudes religiosas, consegue ser bastante fixe. Coleciona banda desenhada do Lanterna Verde, por exemplo. E adora filmes de série B, quanto mais exagerados melhor. Visto que a Zoe e o Reid nunca compreenderam a atração deste tipo de filmes, a Liddy e eu temos o costume de ir a uma sessão da meia-noite todos os meses, num cinema que é uma espelunca e que realiza festivais de cinema com realizadores duvidosos em honra de pessoas de quem nunca ouvimos falar, como William Castle ou Bert Gordon. Hoje à noite, estamos a assistir a Invasion of the Body Snatchers - não o remake de 1978 mas o original de 1956, de Don Siegel.
A Liddy paga-me sempre o bilhete. Costumava oferecer-me para pagar, mas a Liddy disse que era ridículo - em primeiro lugar, ela tinha o dinheiro do Reid para gastar e eu não e, em segundo lugar, eu fazia-lhe companhia enquanto o Reid estava em algum jantar com um cliente ou nalguma reunião da igreja, e por isso era o mínimo que ela podia fazer. Comprávamos sempre o balde maior de pipocas - com manteiga, porque, quando a Liddy e o Reid saíam, ele insistia em alimentação saudável para o coração. Mas foi o facto de saber que ia encontrar-me com a Liddy para ver este filme que me manteve sóbrio esta noite. Não quero que ela vá ter com o Reid e lhe diga que eu tresandava a álcool. Quero dizer, sei que ela gosta de mim e que nos damos bem, mas acima de tudo ela é mulher do meu irmão.
A Liddy agarra-me no braço quando o personagem principal, o Dr. Bennell, corre para a autoestrada no clímax do filme. Ela também fecha os olhos nas partes mais assustadoras, mas depois exige que lhe conte todos os pormenores do que perdeu.
"Eles já estão aqui!", diz o ator, olhando diretamente para a câmara. "A seguir são vocês!"
Ficamos sempre para ver os créditos. Mesmo até ao fim, quando agradecem à cidade que autorizou as filmagens. Normalmente, somos os últimos a sair do cinema.
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Hoje à noite, ainda estamos sentados nos lugares quando um adolescente com borbulhas entra para varrer o corredor e recolher o lixo.
- Viste o remake de 1978? - pergunta a Liddy.
- É uma porcaria - digo eu. - E é melhor nem sequer começar a falar em A Invasão.
- Acho que este talvez seja o meu filme de série B preferido responde a Liddy.
- Dizes isso de todos os filmes que vemos.
- Mas desta vez é a sério - diz ela. Encosta a cabeça para trás, no assento. - Achas que perceberam o que lhes aconteceu?
- Quem?
- Os Duplos. Os extraterrestres. Achas que uma manhã acordaram, olharam-se ao espelho e pensaram em como tinham ficado assim?
O rapaz que está a varrer para ao nosso lado. Levantamo-nos e dirigimo-nos para a escura entrada do cinema.
- É só um filme - digo à Liddy, quando o que quero realmente dizer-Ihe é que não, os Duplos não se questionam sobre o que aconteceu.
Que na verdade, quando nos transformamos numa pessoa que não reconhecemos, não sentimos absolutamente nada.
Setenta e sete.
É o número de dias após o preenchimento do pedido de divórcio que tenho para comparecer em tribunal. É o tempo que a Zoe terá, após ter recebido esta intimação do tribunal, para se juntar a mim lá.
Desde que preenchi os papéis para o divórcio, tenho tido dificuldade em voltar ao mesmo ritmo de trabalho. Agora, devia estar a distribuir os panfletos para a limpeza da neve. Devia estar a limpar e a guardar os cortadores de relva para o inverno. Em vez disso, tenho dormido no trabalho e ficado acordado até tarde, a ocupar espaço em casa do meu irmão.
Por isso quando o Reid me pediu que o ajudasse a ir buscar o Pastor Clive ao Aeroporto Logan na manhã seguinte, que vinha num voo noturno de uma conferência evangélica na Igreja de Saddleback, devia ter dito imediatamente que sim. Quero dizer, não tinha propriamente muito que fazer. E, depois de tudo o que o Reid tinha feito por mim, o mínimo que eu podia fazer era pagar-lhe com tempo, se não com dinheiro.
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Em vez disso, limitei-me a ficar a olhar para ele, incapaz de responder.
- Tu - disse o Reid numa voz calma - realmente és de mais, mano. A Liddy aproximou-se da mesa da cozinha, onde eu estava sentado,
e serviu-me um copo de sumo de laranja. Como se eu precisasse que me lembrassem que não passava de um buraco negro no meio da casa deles, a sugar-lhes a comida, o dinheiro, o tempo a sós.
Posso não ter sido capaz de dizer que sim ao meu irmão, mas a ela não podia dizer que não.
Por isso agora é madrugada, e estou decidido a dirigir-me a Logan para esperar pelo voo das 7:00 da manhã, mas, quando passo por Point Judith, reparo nas ondas. Olho para o relógio no tablier. Tenho a prancha e o fato - estão sempre na carrinha, para qualquer eventualidade - e estou a pensar que não vale a pena levantar-me assim tão cedo se não surfar durante quinze minutos antes de chegar a Boston.
Visto o fato, puxo o capuz, calço as luvas e dirijo-me para um baixio que já me deu provas no passado - uma fada madrinha feita de areias baixas que pode transformar uma longa parede de água num tubo.
Enquanto me dirijo para lá em cima da prancha, passo por um par de rapazes mais novos.
- Jerry, Herc - digo eu, acenando. Os surfistas de outono e inverno são uma espécie singular, e conhecemo-nos uns aos outros simplesmente porque não há assim tanta
gente suficientemente doida para ir surfar quando a água está a dez graus e a temperatura do ar a cinco. Chego mesmo a tempo de apanhar uma onda decente de um metro
e oitenta. Quando estou a sair, vejo a onda do Herc tornar-se vertical, vejo-o contornar a rebentação.
Sinto os tríceps arder, e a familiar dor de cabeça gelada de quando se é atingido em cheio no rosto por um oceano gelado e provocador. É difícil pôr-me em pé em
cima da prancha, é mais fácil acenar aos outros que apanhem esta enquanto espero pela próxima onda.
- Tens a certeza, Avozinho?
Tenho quarenta anos. Não sou de modo nenhum velho, mas sim uma relíquia no mundo do surf. "Avozinho, o caraças", penso eu, e resolvo apanhar a próxima onda para mostrar àqueles miúdos como se faz.
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Mas.
Assim que me levanto e faço a primeira curva, perco o equilíbrio e caio para trás. A última coisa que vejo é o fundo plano da minha prancha, a dirigir-se para mim com a força de um relâmpago.
Quando recupero os sentidos, a minha face está encostada à areia e puxaram-me o capuz para trás. O vento transformou os meus cabelos em gelo. O rosto do Jerry vai-se tornando nítido, lentamente.
- Então, Avozinho - diz ele -, sentes-te bem? Levaste uma grande pancada.
Sento-me, retraindo-me.
- Estou ótimo - digo entre dentes.
- Queres boleia para o hospital? Para seres examinado?
- Não - estou magoado e dorido e a tremer como varas verdes. Que horas são?
O Herc levanta a manga de neoprene para olhar para o relógio.
- São sete e dez.
Estive a surfar durante mais de uma hora?
- Merda - digo, levantando-me a custo. O mundo fica a andar à roda por um instante, e o Herc segura-me.
- Há alguém a quem devamos telefonar? - pergunta.
Não posso dar-lhes o número de um dos meus empregados, porque os despedi a todos para o inverno. Não posso dar-lhes o número do Reid e da Liddy, porque pensam que fui buscar o pastor. Não posso dar-lhes o número da Zoe, por causa do que lhe fiz.
Abano a cabeça, mas não consigo forçar-me a dizer as palavras: "Não há ninguém."
O Herc e o Jerry vão novamente para o mar, e eu dirijo-me para a carrinha devagar. O meu telemóvel tem quinze mensagens. Não preciso de ligar para o correio de voz
para saber que são todas do Reid, e que são todas num tom irado.
Telefono-lhe.
- Reid - digo eu. - Olha, pá, peço-te imensa desculpa. Estava mesmo a chegar à Noventa e Três Norte quando a carrinha se avariou. Tentei telefonar, mas não tinha rede...
- Onde estás agora?
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- Estou à espera de um reboque - minto. - Não sei quanto tempo vai demorar a arranjar.
O Reid suspira.
- vou arranjar uma limusina para o Pastor Clive - diz ele. - Também precisas de boleia?
Não sei o que fiz para merecer um irmão como o Reid. Quero dizer, qualquer outra pessoa já teria desistido de mim há muito tempo.
- Estou bem - respondo.
A Zoe queria que eu desistisse do surf. Não entendia a obsessão, a forma como não conseguia passar por uma praia com boas ondas. "Vê se cresces, Max", dizia ela. "Não podes ter uma criança se fores uma."
Teria razão?
Acerca de tudo?
Imagino o xerife a aparecer em casa dela. "Zoe Baxter?", diria ele, e ela acenaria com a cabeça. "Foi intimada." Depois deixá-la-ia com aquele papel azul na mão, aquele que ela sabia que ia chegar mais tarde ou mais cedo, mas que seria como um soco no estômago.
Na carrinha, ainda estou a tremer, até com o aquecimento ligado no máximo. Hesito... e depois abro o porta-luvas. A garrafa de jãgermeister é só para fins medicinais. Estamos sempre a ver isso nos filmes - o tipo que sofreu queimaduras devido ao frio, o que caiu de uma ponte para a água, o sujeito que ficou ao frio durante demasiado tempo... ficam todos confusos e em pânico até beberem um trago para fazer circular
novamente o sangue.
Um gole, e de repente estão curados.
Dois meses mais tarde
Se não fosse o camião do lixo, teria faltado ao tribunal.
Acordo sobressaltado quando ouço os apitos agudos, endireito-me de um salto e bato com a cabeça no tejadilho do carro. O camião do lixo recua em direção ao contentor ao lado do qual estou estacionado e encaixa os dentes nas argolas de metal para poder levantá-lo. Só sei que parece o Armagedão.
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Os vidros estão embaciados e estou a tremer, por isso ligo o motor e ligo o aquecimento no máximo. É nessa altura que me apercebo de que não são 6.00 da manhã, como achava, mas sim 8:34.
Daqui a vinte e seis minutos vou divorciar-me.
Como é óbvio, não tenho tempo para voltar para casa do Reid e tomar um duche. Mesmo assim, já vou ter de ultrapassar o recorde de velocidade terrestre para chegar ao Tribunal do Condado de Kent a horas.
- Merda - digo entre dentes, fazendo marcha atrás e saindo do parque de estacionamento do banco onde devo ter adormecido ontem à noite. Há um bar irlandês na esquina, que fecha às 3:00 da manhã. Tenho uma vaga lembrança de um grupo de homens que estavam numa despedida de solteiro, de ser convidado para beber uns shots de tequila.
Felizmente, ainda não há neve, nem nenhum camião capotado na autoestrada. Estaciono ilegalmente num lugar que não é bem um lugar (não é uma ideia brilhante num tribunal, mas o que hei de fazer?) e desato a correr para o edifício.
- Desculpem - digo entre dentes, com a cabeça a latejar enquanto corro escadas acima para a sala de audiências da Juíza Meyers. Esbarro com uma mulher com os dois filhos e um advogado a ler uma circular.
- Desculpem... com licença...
Esgueiro-me para a última fila de bancos. Estou a suar e tenho a camisa fora das calças. Não tive tempo para fazer a barba, nem sequer para me lavar na casa de banho. Cheiro a manga, que cheira à festa de ontem à noite.
Quando volto a olhar para cima, vejo-a a fitar-me.
A Zoe também parece que não dorme há setenta e sete dias. Tem olheiras escuras debaixo dos olhos. Está demasiado magra. Mas basta-lhe olhar uma vez para o meu rosto, os meus cabelos, as minhas roupas, para ficar a saber. Percebe o que tenho andado a fazer.
Desvia o rosto e olha em frente.
Sinto esta rejeição como um buraco aberto no peito. A única coisa que desejava era estar à altura dela, e falhei. Não consegui dar-lhe o filho que queria. Não consegui dar-lhe a vida que ela merecia. Não consegui ser o homem que ela julgava que eu era.
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A secretária do tribunal levanta-se e começa a ler a lista.
- "Malloy contra Malloy"? - diz ela. Uma advogada levanta-se.
- Está pronto, Meritíssima. Podemos ter acesso ao processo, por favor?
A juíza, uma mulher de rosto redondo e luminoso, decorou a secretária com artigos da época: bonecos vestidos de peregrinos, um peru recheado.
- "Jones contra Jones"? Outra advogada levanta-se.
- Pronto, nominal.
- "Kasen contra Kasen"?
- Meritíssima, preciso de marcar uma nova data. Pode ser 18 de dezembro?
- "Horowitz contra Horowitz" - diz a secretária.
- É uma proposta, Meritíssima - responde outra advogada. - Estou preparada para avançar.
- "Baxter contra Baxter"?
Demoro um instante a perceber que a secretária está a chamar o
meu nome.
- Sim - digo, levantando-me. Como se um fio nos ligasse, a Zoe também se levanta, do outro lado da sala.
- Hum - digo eu. - Presente.
- O senhor está a representar-se a si próprio? - pergunta a Juíza Meyers.
- Sim - digo eu.
- A sua mulher está presente? A Zoe pigarreia.
- Estou.
- A senhora está a representar-se a si própria? - pergunta a Juíza Meyers.
- Sim - diz a Zoe -, estou.
- Estão preparados para avançar hoje com o divórcio?
Aceno com a cabeça. Não olho para a Zoe para ver se ela também está a fazer o mesmo.
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- Se estão a representar-se a vós próprios - diz a Juíza Meyers -, são os vossos próprios advogados. Isso significa que terão de explicar o vosso caso se quiserem divorciar-se hoje. Recomendo vivamente que observem os outros divórcios nominais para verem o procedimento, porque não posso fazer isso por vocês. Alguma dúvida?
- Não, Doutora Juíza - digo eu, mas era como se ela estivesse a falar chinês.
Só somos chamados duas horas mais tarde. O que significa que podia ter tomado um duche, visto que, apesar de ter assistido a cinco outros divórcios, não faço ideia do que devo fazer. Passo através da cancela na parte da frente da sala de audiências para entrar no banco das testemunhas, e um dos oficiais de justiça fardados aproxima-se de mim com uma Bíblia na mão.
- Sr. Baxter, jura por Deus dizer a verdade?
Pelo canto do olho, vejo a secretária indicar à Zoe que deve sentar-se numa das mesas em frente à juíza.
- Juro - digo.
- Por favor, diga o seu nome para que fique registado...
- Max - digo. - Maxwell Baxter.
A juíza cruza as mãos em cima da secretária.
- Sr. Baxter, requereu a sua audiência? Limito-me a ficar a olhar para ela, a pestanejar.
- Xerife, o Sr. Baxter requereu a sua audiência... Quer divorciar-se hoje, Sr. Baxter?
- Sim.
- E está a representar-se a si próprio hoje?
- Não tenho dinheiro para contratar um advogado - explico. A juíza olha para a Zoe
- E a senhora, Sr.a Baxter? A senhora também está a representar-se a si própria?
- Estou.
- Não se opõe ao divórcio hoje, não é verdade? Ela acena com a cabeça.
- Xerife, peça à Sr.a Baxter que entregue a sua requisição de audiência, por favor - a juíza volta a dirigir-se a mim e funga. - Sr. Baxter,
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o senhor cheira imenso a álcool. Encontra-se sob influência de álcool ou drogas? Hesito.
- Ainda não - respondo.
- A sério, Max? - diz a Zoe bruscamente. - Andas outra vez a beber?
- O problema já não é teu... A juíza bate com o martelo.
- Se quiserem ter uma sessão de aconselhamento, não me façam perder tempo.
- Não, Meritíssima - digo. - Só quero acabar com isto.
- Muito bem, Sr. Baxter. Pode prosseguir.
Só que não sei como. Onde vivo, e se vivi em Wilmington durante um ano, e quando me casei, e quando me separei - bem, nada disso explica verdadeiramente por que razão duas pessoas, que achavam que iam passar o resto da vida juntas, um dia acordam e percebem que não conhecem a pessoa que está a dormir ao seu lado.
- Que idade tem o senhor, Sr. Baxter? - pergunta a juíza.
- Tenho quarenta anos.
- Qual foi o máximo grau académico que completou?
- Frequentei a universidade durante três anos, antes de desistir a abrir um negócio de paisagismo.
- Há quanto tempo é paisagista?
- Há dez anos - respondo.
- Quanto dinheiro ganha?
Olho para a galeria. Já é suficientemente mau ter de dizer isto em frente a uma juíza, mas na sala de audiências estão muitas outras pessoas.
- Cerca de trinta e cinco mil dólares por ano - digo, mas não é completamente verdade. Ganhei isso num ano.
- O senhor no seu pedido de divórcio alega que surgiram certas divergências entre os senhores que provocaram a dissolução do vosso casamento, isso é verdade? - pergunta a juíza.
- Sim, Meritíssima. Já estamos a tentar ter um bebé há nove anos. E eu... eu já não quero continuar a tentar.
Os olhos da Zoe estão brilhantes de lágrimas, mas não estende a mão para a caixa de lenços de papel que está ao seu lado.
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Reunimo-nos há dois meses - depois de ela ter sido notificada com os papéis de divórcio - para acertar todos os pormenores de que a juíza ia precisar. Deixem-me que vos diga, é estranho voltar a entrar na casa que costumávamos arrendar, sentar-me à mesa onde costumava jantar todos os dias, e sentir-me um completo estranho.
A Zoe estava com um péssimo aspeto quando veio abrir a porta. Mas achei que não estava certo dizer-lhe isso, por isso limitei-me a ficar à porta até ela me convidar a entrar.
Acho que, nesse instante, se ela me tivesse pedido que voltasse para casa, que reconsiderasse, eu tê-lo-ia feito.
Mas, em vez disso, a Zoe disse:
- Bem, vamos lá despachar isto - e nada mais.
- Possui alguns bens imobiliários? - diz a juíza.
- Vivíamos numa casa arrendada - digo.
- Existem alguns bens com valor monetário?
- Eu levei o meu equipamento para tratar dos relvados; a Zoe ficou com os instrumentos dela.
- Então está a pedir que lhe sejam concedidos os artigos que estão em sua posse, e que à sua mulher sejam concedidos os artigos que estão na posse dela?
Não foi isso que acabei de dizer, mas mais claramente?
- Acho que sim.
- Tem seguro de saúde? - pergunta a juíza.
- Concordámos que cada um seria responsável pelo seu seguro. A juíza acena com a cabeça.
- E as dívidas em seu nome?
- Ainda não posso pagá-las - admito. - Mas vou tratar disso quando puder.
- A sua mulher será responsável por quaisquer dívidas em nome dela?
- Sim - digo.
- Sr. Baxter, o senhor está de boa saúde?
- Sim.
- Compreende o que é a pensão de alimentos? - aceno com a cabeça para a juíza. - Aqui está escrito que pede ao tribunal para renunciar à pensão de alimentos.
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- Quer dizer, para que a Zoe não tenha de me pagar nada? É verdade.
- Compreende que essa renúncia é permanente? Não poderá voltar atrás e recorrer a este tribunal, ou a outro tribunal qualquer, para que lhe concedam uma pensão de alimentos?
A Zoe e eu nunca tivemos muito dinheiro, mas só de pensar que ela tinha de me sustentar é absolutamente humilhante.
- Compreendo - digo.
- Está a pedir um divórcio absoluto da sua mulher?
Sei que é linguagem jurídica, mas faz-me parar para pensar. Absoluto. É tão definitivo. Como um livro que adorámos e que não queremos que acabe, porque sabemos que teremos de devolvê-lo à biblioteca quando terminarmos.
- Sr. Baxter - pergunta a juíza -, deseja dizer mais alguma coisa ao tribunal?
Abano a cabeça.
- Ao tribunal não. Mas gostaria de dizer uma coisa à Zoe - espero até que ela olhe para mim. Tem um olhar vazio, como se estivesse a olhar para um desconhecido no metro. Como se nunca me tivesse conhecido.
- Desculpa - digo.
Como vivemos em Rhode Island, que é um estado predominantemente católico, demora algum tempo a obter o divórcio. Após os setenta e sete dias que esperámos para comparecer em tribunal, temos de esperar cerca de vinte e nove dias pelo julgamento final, como se a juíza estivesse a dar aos casais mais uma oportunidade para reconsiderarem.
Admito, passei a maior parte do tempo embriagado.
Os maus hábitos são como a salicária. Quando essa planta aparece no nosso jardim, pensamos que conseguimos lidar com ela - são alguns lindos caules roxos. Mas espalha-se como um incêndio florestal e, quando damos por isso, sufocou tudo o que estava à sua volta, até só conseguirmos ver aquele luminoso tapete de cor, e pensamos como é possível ter ficado tão descontrolado.
Jurei que nunca seria um dos oitenta por cento dos alcoólicos em recuperação que acabam por cometer os mesmos erros vezes sem conta. No entanto, aqui estou eu, a
esconder garrafas nos ladrilhos do teto das
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casas de banho do Reid, atrás dos livros nas estantes, dentro de um canto que abri cuidadosamente no colchão do quarto dos hóspedes. Despejo pacotes inteiros de
leite no lava-loica quando a Liddy não está em casa, e depois ofereço-me galantemente para sair à noite e ir comprar mais para não faltar ao pequeno-almoço - mas
paro num bar a caminho de casa depois de ir à loja de conveniência para uma bebida rápida. Quando sei que tenho de estar com outras pessoas, bebo vodka, que deixa menos odor no hálito. Guardo garrafas de Gatorade debaixo da cama, para curar as ressacas. Tenho o cuidado de ir a bares em cidades diferentes, para parecer que vou lá de vez em quando para tomar um copo e não ser reconhecido na minha zona por alguém que me pudesse denunciar ao Reid. Uma noite, fui a Wilmington. Bebi o suficiente para ter coragem de passar pela nossa antiga casa. Bem, pela atual casa da Zoe. As luzes estavam acesas no quarto, e pensei no que estaria ela a fazer lá em cima. Talvez a ler. A arranjar as unhas.
Depois pensei se não estaria alguém com ela, e afastei-me dali com os pneus a chiarem no pavimento.
Claro, digo para comigo que não tenho nenhum problema, visto que parece que ninguém repara que ando a beber.
Ainda vivo em casa do Reid, sobretudo porque ele ainda não me expulsou de lá. Sinceramente, não me parece que seja por gostar que eu viva na cave; é basicamente por caridade cristã. Antes de se casar com a Liddy, o meu irmão "renasceu" ("A primeira vez não lhe bastou?", perguntou a
Zoe e começou a frequentar uma igreja
evangélica que se reunia aos domingos na cantina de uma escola do segundo ciclo ali da zona; acabou por se tornar no contabilista deles. Não sou religioso
- cada um tem direito às suas preferências, calculo - mas chegou ao ponto de começarmos a ver o meu irmão e a mulher cada vez com menos frequência, simplesmente
porque não conseguíamos passar um mero jantar de família sem que a Zoe e o Reid discutissem - sobre o caso "Roe contra Wade", ou sobre os políticos que foram apanhados em escândalos de adultério, ou sobre a oração nas escolas públicas. Da última vez que fomos a casa deles, a Zoe chegou a ir-se embora depois da salada quando o Reid a criticou por cantar uma música dos Green Day a uma das suas vítimas.
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- São anarquistas - disse o Reid.
O Reid, que ouvia Led Zeppelin no quarto quando éramos miúdos. Calculei que a sua igreja objetasse qualquer coisa que estava na letra, mas afinal, era o caráter das músicas que era maligno.
- A sério? - perguntou a Zoe, incrédula. - Quais delas, concretamente? Que acorde? E onde está isso escrito na Bíblia?
Não me lembro de como a discussão subiu de tom, mas acabou com a Zoe a levantar-se tão depressa que derrubou um jarro de água.
- Pode ser uma novidade para ti, Reid - disse ela -, mas Deus não vota nos Republicanos.
Sei que o Reid quer que eu me junte à igreja deles. A Liddy deixou uns panfletos sobre salvação em cima da minha cama quando foi mudar os lençóis. O Reid convidou o seu grupo masculino de discussão da Bíblia lá para casa ("Inserimos as coisas de homens no estudo da Bíblia") e convidou-me para me juntar a eles na sala de estar.
Inventei uma desculpa e saí para beber um copo.
Mas, hoje à noite, percebo que a Liddy e o Reid jogaram todos os seus trunfos. Quando ouço a Liddy tocar a pequena campainha antiga que tem em cima da lareira para anunciar o jantar, saio do meu quarto de hóspedes na cave e encontro o Clive Lincoln sentado no sofá com o Reid.
- Max - diz ele. - Conheces o Pastor Clive?
Quem não conhece?
Ele está sempre a aparecer nos jornais, graças aos protestos contra o casamento de homossexuais que organizou perto do Capitólio. Quando um liceu da região disse a um adolescente gay que podia levar o namorado ao baile de finalistas, o Clive apareceu com uma centena de paroquianos para ocuparem os degraus do liceu a rezar
em voz alta para que Jesus o ajudasse a voltar a encontrar o caminho para um estilo de vida cristão. Apareceu no Fox News Channel em Boston no outono quando pediu
publicamente que se doassem filmes pornográficos às creches, dizendo que isso não seria diferente do plano do presidente para ensinar educação sexual na pré-escola.
O Clive é alto, com uma bela cabeleira branca e roupas muito caras. Tenho de admitir, é impressionante. Quando o vemos numa sala, não conseguimos deixar de olhar
para ele.
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- Ah! O irmão de que tanto tenho ouvido falar.
Não sou contra a igreja. Cresci a ir à missa aos domingos com a minha mãe, que era chefe das voluntárias. Mas, após a morte dela, deixei de ir com regularidade. E quando me casei com a Zoe, deixei de ir por completo. Ela não é, como costuma dizer, uma pessoa muito dada a Jesus. Diz que a religião prega o amor incondicional de Deus, mas há sempre condições: temos de acreditar no que nos dizem, para podermos ter tudo o que queremos. Não gostava que as pessoas religiosas a desdenhassem por ser ateia; mas, para ser sincero, não consigo perceber em que é que isso é diferente da forma como ela própria desdenha as pessoas por serem cristãs.
Quando o Clive me aperta a mão, um choque elétrico salta entre nós.
- Não sabia que íamos ter convidados para o jantar - digo eu, olhando para o Reid.
- O pastor não é um convidado - responde o Reid. - É da família.
- Um irmão em Cristo - diz o Clive, sorrindo. Desvio o peso do corpo de um pé para o outro.
- Bem. vou ver se a Liddy precisa de ajuda na cozinha...
- Eu vou - interrompe o Reid. - Porque não ficas aqui com o Pastor Clive?
É nesta altura que percebo que o facto de eu andar a beber - que pensava ter tão astuciosamente mantido em segredo - não era nem astuto nem secreto. Que este jantar não é uma refeição cordial com um sacerdote, mas sim uma cilada.
Pouco à vontade, sento-me no lugar onde o Reid estava há um instante.
- Não sei o que o meu irmão lhe disse - começo.
- Apenas que tem rezado por si - diz o Pastor Clive. - Pediu-me que rezasse por si também, para que encontre o seu caminho.
- Acho que tenho um sentido de orientação bastante bom - digo entre dentes.
O Clive chega-se para a frente.
- Max - pergunta ele -, tem uma relação pessoal com Jesus Cristo?
- Somos... mais uma espécie de conhecidos. Ele não sorri.
- Sabe, Max, nunca pensei vir a ser um pastor.
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- Não? - digo educadamente.
- Venho de uma família que não tinha nem um tostão, e tenho cinco irmãos e irmãs mais novos. O meu pai foi despedido quando eu tinha doze anos, e a minha mãe adoeceu
e teve de ir para o hospital. Cabia-me a mim alimentar a família, e não tínhamos dinheiro no banco. Um dia, fui à mercearia e disse à empregada da caixa que ia pagar-lhe assim que pudesse, mas ela disse que não podia dar-me a comida que tinha no cesto se não pagasse. Bem, um homem que estava atrás de mim, todo bem vestido, de fato e gravata, disse que se encarregaria das minhas despesas. "Precisas de uma lista de compras, rapaz", disse ele, e escreveu qualquer coisa num cartão de visita e colocou-o num dos pratos da balança da caixa. Apesar de ser apenas um pedaço de papel, a balança começou a afundar-se. Depois, tirou o leite, o pão, os ovos, o queijo e o hambúrguer que tinha no cesto e colocou-os no outro prato da balança. A balança não se mexeu, apesar de ser evidente que todos aqueles artigos deviam ter feito desequilibrar a balança. com um peso de zero quilos, a empregada da caixa não tinha outro remédio senão dar-me a comida de graça, mas o homem deu-lhe uma nota de vinte dólares na mesma. Quando cheguei a casa, encontrei o cartão de visita no saco das compras, juntamente com a comida. Tirei-o para fora para ler a lista que o homem me tinha escrito, mas não havia lista nenhuma. Nas costas do cartão dizia apenas: "Senhor, por favor ajudai este rapaz." Na parte da frente estava o nome dele: Reverendo Billy Graham.
- Calculo que vá dizer-me que foi um milagre.
- Claro que não... a balança estava avariada. O merceeiro teve de comprar uma nova - diz o Clive. - O milagre foi a forma como Deus fez avariar a balança no momento certo. A questão, Max, é que Jesus tem um plano para a sua vida. É isso que ele tem de curioso: Ele ama-o agora, mesmo enquanto está a pecar. Mas também o ama demasiado para o deixar ficar assim.
Agora estou a começar a ficar zangado. É certo que isto não é a minha casa, mas não será um pouco indelicado tentar converter uma pessoa na sua própria sala de estar?
- A única forma de agradar a Deus é fazer aquilo que Ele diz que temos de fazer - continua o Pastor Clive. - Se o seu trabalho for fazer
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tartes na Pastelaria Nothing-But-Pies, não vai para o trabalho decidido a fazer bolachas. Assim nunca será promovido. Mesmo que as suas bolachas sejam as mais deliciosas do mundo, continuam a não ser o que o seu patrão quer que faça.
- Não faço tartes nem bolachas - digo. - E, com o devido respeito, não preciso da religião.
O Pastor Clive sorri e encosta-se para trás, batendo com os dedos no braço do sofá.
- Isso é outra coisa que Jesus tem de curioso - diz ele. - Tem uma forma especial de lhe mostrar que está enganado.
A tempestade surge sem mais nem menos. Não é completamente inesperada, em finais de novembro, mas não se trata do leve nevão que o meteorologista previra. Em vez disso, quando abro a porta do bar e escorrego no gelo que ali se acumulou, a neve cai como uma cortina branca.
Volto a entrar e peço mais uma cerveja ao empregado do bar. Não vale a pena sair agora; mais vale deixar passar a tempestade.
Hoje à noite não está mais ninguém no bar; numa terça-feira, com as estradas escorregadias, a maior parte das pessoas resolve ficar em casa. O empregado do bar dá-me o comando da televisão e eu encontro um jogo de basquetebol na ESPN. Torcemos pelos Celtics, entram em prolongamento e acabam por perder.
- As equipas de Boston - diz o empregado do bar - estão sempre a dar-nos desgostos. Acho que hoje vou fechar cedo - diz ele. - Por esta altura, já há mais de vinte centímetros de neve no chão. - Está bem para ir para casa?
- Sou o homem do limpa-neves - digo eu. - Por isso é bom que esteja. O meu Dodge Ram tem um limpa-neves Access e, graças aos panfletos
que imprimi no Mac do Reid, tenho alguns clientes que estão à espera que eu torne as suas vias de acesso acessíveis antes da hora de irem para o trabalho de manhã. Durante uma boa tempestade, como esta, não costumo dormir de noite; limito-me a limpar a neve até terminar. Esta é a primeira grande tempestade de nordeste da estação, e dá-me jeito a injeção de capital que ela implicará.
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A minha respiração embacia o para-brisas da carrinha quando entro lá dentro. Ligo o aquecimento e vejo as luzes vermelhas do Prius do empregado do bar a sair do parque de estacionamento a derrapar. A seguir meto a mudança na carrinha e dirijo-me para a morada do meu primeiro cliente.
A estrada está escorregadia, mas não é nada que eu nunca tivesse feito antes. Ligo a rádio - a voz do maldito John Tesh enche a cabina da carrinha. "Sabiam que o vosso estômago demora vinte minutos a enviar a mensagem de que estão cheios para o cérebro?"
- Não, não sabia - digo em voz alta.
Não posso usar os máximos por causa do volume da neve, por isso quase não reparo na curva da estrada. As rodas traseiras começam a girar, e viro-as para derrapar. Ainda com o coração aos saltos, tiro o pé do acelerador e avanço mais devagar, com os pneus a cortarem a acumulação de neve e a compactarem-na sob a carrinha.
Passados alguns minutos, o mundo parece diferente. Pintado de branco, com elevações e torres que parecem gigantes adormecidos. Não se vêem as marcas da paisagem. Não sei bem se estou no sítio certo. Por acaso, nem sei bem se sei onde estou.
Pestanejo, esfrego os olhos e ligo os máximos... mas nada se altera.
Agora estou a começar a entrar em pânico. Agarro no telemóvel, que tem um GPS algures, para ver onde me enganei no caminho. Mas enquanto ando às voltas com a consola, a carrinha escorrega num trecho coberto de lama gelada e começa a fazer um pião.
Está alguém na estrada.
Os cabelos escuros dela esvoaçam-lhe à volta do rosto, e está curvada por causa do frio. Consigo carregar com o pé no travão e virar completamente à direita, tentando desesperadamente virar a carrinha antes que bata nela. Mas os pneus não reagem no gelo, e olho para cima, em pânico, ao mesmo tempo que ela estabelece contacto visual comigo.
É a Zoe.
- Naaaaão - grito.
Levanto o braço como se pudesse preparar-me para o embate inevitável, e ouve-se um guincho agonizante de metal e o estrondo do airbag enquanto a carrinha anda às voltas no local exato onde ela estava.
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Quando recupero os sentidos, estou coberto de pó de diamante de vidros partidos, estou pendurado de cabeça para baixo, e não consigo mexer as pernas.
"Que Deus me ajude. Por favor, meu Deus. Ajudai-me." Há um silêncio absoluto, à exceção da neve a cair suavemente nos estofos. Não sei quanto tempo estive inconsciente, mas não parece que o amanhecer esteja quase a chegar. Posso morrer gelado, aqui preso. Posso tornar-me num daqueles montes brancos cobertos de neve, um acidente que ninguém sabe que aconteceu até ser tarde de mais. "Oh, meu Deus", penso. "vou morrer." E logo depois disso: "Ninguém vai sentir a minha falta." A verdade dói, mais do que o ardor na minha perna esquerda, e do crânio a latejar, e do metal a enterrar-se no meu ombro. Posso desaparecer deste mundo, que provavelmente se tornará num sítio melhor. Ouço o ruído de pneus, e vejo a luz de uns faróis iluminar a estrada por cima de mim.
- Ei! - grito o mais alto que consigo. - Ei, estou aqui! Socorro!
Os faróis passam por mim, e depois ouço a porta de um carro bater. As botas de um polícia levantam a neve enquanto ele desce o monte a correr em direção à carrinha capotada.
- Chamei uma ambulância - diz ele.
- A rapariga - digo com voz rouca. - Onde está ela?
- Transportava outro passageiro nesta carrinha?
- Dentro... não. A carrinha atropelou-a...
Ele corre pelo monte, e vejo-o fazer incidir uma lanterna. Quero falar. Mas estou tremendamente tonto e, quando tento falar, vomito.
Talvez tenham passado horas, talvez tenham passado minutos, mas um bombeiro está a cortar o cinto de segurança que me manteve vivo, e outro está a usar equipamento de desencarceramento para cortar a carrinha em pedaços. Ouvem-se vozes à minha volta:
"Coloquem-no numa maca..."
"Fratura composta..."
"... taquicardíaco..."
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Subitamente, o polícia está novamente à minha frente.
- Procurámos por todo o lado. A carrinha não atropelou ninguém
- diz ele. - Foi só uma árvore. E se não tivesse virado onde virou e saído da estrada, agora estaria no fundo de um penhasco. É um homem cheio de sorte.
A vaga de alívio vem em soluços. Começo a chorar tanto que nem consigo respirar; não consigo parar. Terei tido alucinações com a Zoe por estar bêbedo? Ou estaria bêbedo por estar sempre a ter alucinações com a Zoe?
A neve atinge-me no rosto, como mil pequenas agulhas, enquanto estou a ser transportado da carrinha para uma ambulância. Tenho o nariz a pingar e sangue nos olhos.
De repente, já não quero ser esta pessoa. Não quero fingir que estou a enganar o mundo inteiro quando não estou. Quero que outra pessoa tenha um plano para mim, visto que eu próprio não tenho conseguido.
A ambulância começa a roncar e a ganhar vida quando a técnica de emergência médica me liga a outro monitor e me coloca um cateter intravenoso. A minha perna parece arder de cada vez que o condutor trava.
- A minha perna...
- Provavelmente está partida, Sr. Baxter - diz a técnica de emergência médica. Penso em como saberá o meu nome, e depois apercebo-me de que está a lê-lo na minha carta de condução. - Vamos levá-lo para o hospital. Quer que telefone a alguém?
À Zoe não, agora já não. O Reid terá de saber mas, neste preciso momento, não quero pensar na expressão no olhar dele quando perceber que estive a beber e a conduzir. E provavelmente também vou precisar de um advogado.
- Ao meu pastor - digo. - Clive Lincoln.
Estou nervoso, mas a Liddy e o Reid estão de pé, cada um de seu lado, com sorrisos tão rasgados que seria de pensar que descobri a cura para o cancro ou que estabeleci a paz mundial, e não que apenas entrei na Igreja da Glória Eterna para apresentar o meu testemunho sobre ter encontrado Jesus.
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Não teria sido mais claro para mim se as respostas estivessem tatuadas na minha cara: para mim o fundo do poço foi aquele acidente. A aparição da Zoe foi a maneira de Jesus entrar na minha vida. Se não a tivesse visto ali, agora estaria morto. Mas, em vez disso, desviei-me. Desviei-me mesmo para os Seus braços abertos.
Quando o Clive foi ver-me ao hospital, estava drogado com analgésicos, tinha um gesso novo na perna esquerda e pontos na cabeça e no ombro. Não parara de chorar desde que me puseram naquela ambulância. O pastor sentou-se na beira da cama e agarrou-me na mão.
- Deixa o Diabo sair, meu filho - disse o Clive. - Abre espaço para Cristo.
Acho que não consigo explicar o que me aconteceu depois disso. Foi simplesmente como se alguém ligasse um interruptor dentro de mim e eu tivesse deixado de sentir
dor. Senti-me como se estivesse a flutuar por cima da cama, e teria flutuado, se aquela colcha de algodão não me estivesse a segurar. Quando olhei para o meu corpo,
para os espaços entre os dedos e para as pontas das unhas, juro que conseguia ver luz a brilhar.
Para uma pessoa que não deixou Jesus entrar no seu coração, é assim que nos sentimos: como se tivéssemos lutado contra o facto de a nossa visão se ter tornado pouco nítida, e precisássemos de usar óculos. Mas acabamos por não ver um palmo à frente do nariz e derrubamos coisas e esbarramos nas paredes, por isso vamos ao optometrista. Saímos do consultório com um par de óculos novos e o mundo parece mais nítido, mais luminoso, mais colorido. Límpido. Não compreendemos por que razão esperámos tanto tempo para marcar a consulta.
Quando Jesus está ao nosso lado, nada parece particularmente assustador. Nem a ideia de que nunca mais vamos voltar a beber; nem o momento em que nos sentamos no tribunal devido a uma acusação de condução sob a influência do álcool. E nem agora, quando vou ser batizado em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo.
Depois de sair do hospital, comecei a frequentar a Igreja da Glória Eterna. Falei com o Pastor Clive, que enviou uma carta para uma oração em cadeia para que muitas pessoas que nem sequer conheço rezassem por mim. É uma sensação que nunca tive anteriormente - desconhecidos que não me julgam pelos erros que cometi e que pareciam apenas ficar
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felizes por eu estar ali. Não tinha de ter vergonha por ter desistido da universidade, nem por me ter divorciado ou por me ter embebedado até cair na sarjeta. Na verdade, não tinha de estar à altura de nada. O facto de Jesus me ter colocado nas suas vidas já valia a pena.
A Igreja da Glória Eterna não tem um edifício próprio, por isso arrenda o auditório de uma escola ali da zona. Estamos de pé ao fundo, à espera que o Pastor Clive nos faça sinal. A mulher do Clive está a tocar piano, e as três filhas pequenas cantam.
- Parecem anjos - murmuro.
- Pois é - concorda o Reid. - Também têm mais uma filha, que não
toca nem canta.
- É como o outro irmão Jonas8 - digo eu.
O hino termina, e o Pastor Clive sobe ao palco com os dedos entrelaçados.
- Hoje - diz ele numa voz forte -, o mais importante é Jesus. Ouve-se um coro de assentimento vindo da congregação.
- E é por isso que hoje, o nosso mais recente irmão em Cristo vai contar-nos a sua história. Max, pode vir até aqui?
com a ajuda do Reid e da Liddy, percorro o corredor de muletas. Não gosto de ser o centro das atenções, mas isto é diferente. Hoje, vou
contar-lhes a história de como encontrei Cristo. vou anunciar publicamente a minha fé, para que todas estas pessoas me considerem responsável.
"Bem-vindo", ouço.
"Olá, irmão Max."
O Clive conduz-me a uma cadeira no palco. Deve vir de uma sala de aula; as pernas da cadeira têm bolas de ténis para que não risquem o linóleo. Ao lado dela está o que parece ser uma câmara frigorífica de um talho, cheio de água, com uma série de degraus que conduzem a ela. Sento-me na cadeira e o Clive mete-se entre a Liddy e o Reid, dando-lhes as mãos.
- Jesus, ajudai o Max a aproximar-se de Vós. Deixai que o Max conheça Deus, ame Deus, passe tempo de qualidade com a Sua palavra.
8 Referência a Frankie Jonas, também conhecido por Bónus Jonas; Frankie é irmão mais novo de Joe, Nick e Kevin, que formam o grupo musical Jonas Brothers, ao qual Frankie não pertence. (N. da R.)
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Enquanto reza por mim, fecho os olhos. Sinto o calor das luzes do palco no rosto; faz-me lembrar de quando era pequeno e andava de bicicleta com o rosto virado para
o Sol, de olhos fechados, sabendo que era invencível e que não podia cair, não podia magoar-me.
Outras vozes juntam-se à do Pastor Clive. Parecem mil beijos, como se estivesse cheio, a rebentar, com toda a bondade do mundo, e não houvesse espaço nenhum para o mal. É amor, e é aceitação incondicional, e eu não só não desiludi Jesus, como Ele diz que nunca o farei. O Seu amor preenche-me, até já não ser capaz de o manter dentro de mim. Transborda pela minha garganta aberta - sílabas que, apesar de não serem verdadeiramente uma linguagem, eu percebo a mensagem. Para mim, é clara como água.
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REFÚGIO
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VANESSA
Não pensei muito na Zoe Baxter até encontrá-la a afogar-se no fundo da piscina da YMCA.
De início, não sei quem é. Estou a nadar as minhas voltas à piscina às 6:30 da manhã - é o único exercício para o qual consigo arrastar-me para fora da cama - e
a meio de uma braçada crawl vejo uma mulher afundar-se devagar, com os cabelos a pairar à volta da cabeça. Tem os braços esticados, e parece mais que está a deixar-se
ir do que a afundar-se.
Dobro o corpo e mergulho, agarro-lhe na mão e puxo-a pela água. Ela começa a debater-se quando nos aproximamos da superfície, mas nessa altura a adrenalina já está a circular e eu puxo-a para fora da piscina e ajoelho-me ao lado dela, a pingar-lhe para o rosto enquanto ela tosse e se vira de lado.
- Mas que raio - diz ela a arquejar - está você a fazer?
- Mas que raio estava você a fazer? - respondo e, quando ela se senta, apercebo-me de quem salvei. - Zoe?
Está tudo muito calmo na Y. Antes do Natal, os ocupantes das pistas ficaram reduzidos a mim, a alguns nadadores idosos e a um ou outro paciente de fisioterapia/reabilitação
ocasional. A Zoe e eu estamos a protagonizar esta pequena cena na beira da piscina coberta de ladrilhos sem que ninguém esteja a prestar verdadeiramente atenção.
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- Estava a observar as luzes - diz a Zoe.
- Não sei se sabe: não é preciso afogar-se para fazer isso - agora que ambas saímos da água, estou a tremer. Agarro na toalha e coloco-a sobre os ombros.
Como é evidente, soube o que aconteceu ao bebé. Foi horrível, no mínimo, a convidada de honra de um chá de bebé ter de ir a correr para o hospital para dar à luz um nado-morto. Nem sequer estava a pensar ir ao chá, mas senti-me mal por causa dela - que mulher tem tão poucas amigas que precisa de convidar pessoas que contrataram os seus serviços de terapeuta musical? Depois, naturalmente, fiquei a sentir-me ainda pior. Ajudei a contabilista dela a limpar o restaurante, depois de a ambulância se ter ido embora com a sirene a tocar. Havia pequenas varinhas com a forma de pequenos biberões em cada um dos lugares; e recolhi-as antes de sair, achando que depois as devolveria à Zoe numa outra ocasião no futuro. Ainda as tenho no porta-bagagem do carro.
Não sei o que hei de dizer-lhe. "Como se sente?" parece-me supérfluo. "Tenho muita pena" parece-me ainda pior.
- Devia experimentar - diz a Zoe.
- Suicidar-me?
- Uma psicóloga de aconselhamento escolar nunca deixa de ser uma psicóloga de aconselhamento escolar - responde ela. - Já lhe disse, não estava a tentar suicidar-me. Por acaso era o oposto. Sentimos o nosso coração bater, até às pontas dos dedos, quando estamos lá em baixo.
Ela volta a entrar na piscina como uma lontra e olha para mim. À espera. Suspirando, largo a toalha e volto a mergulhar. Abro os olhos debaixo de água e vejo a Zoe afundar-se novamente; então imito-a. Virando-me de barriga para cima, olho para os traços de código Morse das luzes fluorescentes e expiro pelo nariz enquanto me afundo.
O meu primeiro instinto é entrar em pânico - afinal, fiquei sem ar. Mas depois a minha pulsação começa a bater debaixo das unhas, na garganta, entre as pernas. É como se o coração se tivesse expandido para preencher o espaço sob a pele.
Percebia por que razão sentir-se assim tão preenchida seria um conforto para alguém que perdeu tanto.
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Quando já não aguento mais, venho à superfície. A Zoe emerge ao meu lado e bate com os pés dentro de água.
- Quando era pequena, queria ser sereia quando crescesse - diz ela. - Costumava treinar atando os tornozelos e nadando na piscina municipal.
- O que aconteceu?
- Bem, como é óbvio, não me transformei numa sereia.
- O exemplo clássico de um desempenho insuficiente...
- Nunca é tarde de mais, pois não? - a Zoe sai da piscina e senta-se na beira.
- Só não sei como está o mercado de emprego atualmente para as sereias no mar - digo. - Ora, por outro lado, os vampiros estão completamente em alta. Há uma enorme procura pelos mortos-vivos.
- Logo vi - a Zoe suspira. - Mesmo quando voltei para o mundo dos vivos.
Levanto-me e estendo a mão para ajudar a Zoe a pôr-se de pé.
- Bem-vinda de volta - digo.
Por estarmos numa YMCA, não há nenhum bar chique de sumos, assim, em vez disso, vamos tomar um café a um Dunkin' Donuts, que estão espalhados tão perto uns dos outros em Wilmington que podemos estar à porta de um e cuspir para a porta de outro. A Zoe vem atrás de mim no carro dela e estaciona ao meu lado no parque de estacionamento.
- Tem aí uma matrícula e tanto - diz ela, quando saio do carro.
A minha é VS-66. É uma mania em Rhode Island ter uma matrícula com um número baixo. Há pessoas que deixam matrículas com dois ou três algarismos aos familiares em testamento; a determinada altura, um ex-governador integrou o combate à corrupção na atribuição de matrículas na sua plataforma eleitoral. Se tivermos as nossas iniciais e um número baixo - como eu - provavelmente somos um patrão da máfia. Eu não sou um chefe da máfia, mas sei como conseguir as coisas. No dia em que fui registar o meu carro, ofereci a cada um dos funcionários uma embalagem de seis garrafas de cerveja e perguntei-Ihes o que podiam fazer por mim.
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- Amigos bem colocados - respondo, enquanto entramos no café. Pedimos ambas um caffè latte com aroma de baunilha e sentamo-nos numa mesa ao fundo do estabelecimento.
- A que horas tem de ir trabalhar? - pergunta a Zoe.
- Às oito. E a Zoe?
- Também - bebe um pouco da sua bebida. - Hoje vou trabalhar no hospital.
A referência àquele sítio parece uma rede lançada sobre nós, uma memória dela a ser levada da sua própria festa numa ambulância. Brinco com a tampa do meu copo. Apesar de aconselhar jovens todos os dias, sinto-me pouco à vontade aqui com ela. Por acaso, nem sei bem porque a convidei para tomar um café. Não nos conhecemos propriamente muito bem.
Contratei a Zoe para trabalhar com um rapaz autista ha vários meses. Já estava no nosso agrupamento escolar há seis anos e, tanto quanto sei, nunca disse uma palavra a um único professor. Foi a mãe que ouviu falar na terapia musical e me pediu que encontrasse alguém ali perto que pudesse trabalhar com o filho. Sou a primeira a admitir que não tinha grandes expetativas quando conheci a Zoe. Ela parecia um pouco deslocada, uma filha dos anos setenta que foi largada no novo milénio. Mas, passado um mês, a Zoe conseguiu que o rapaz tocasse sinfonias de improviso com ela. Os pais acharam que a Zoe era um génio, e o diretor da minha escola achou-me genial por tê-la encontrado.
- Olhe - começo a dizer depois de um longo silêncio incómodo -, não sei bem o que dizer sobre o bebé.
A Zoe olha para mim.
- Ninguém sabe - passa a ponta do dedo pela tampa de plástico do copo. Acho que não vai dizer mais nada e estou prestes a olhar para o relógio e a soltar uma exclamação por causa das horas quando ela volta a falar. - No hospital havia uma pessoa responsável pelos mortos
- diz ela. - Entrou no meu quarto... depois... e perguntou-nos para onde queríamos que o corpo fosse. Se queríamos que fosse autopsiado. Se sabíamos que tipo de caixão queríamos. Se preferíamos a cremação. Disse que também podíamos levá-lo para casa. Não sei, enterrá-lo no
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jardim - a Zoe olha para mim. - Às vezes ainda tenho pesadelos sobre isso. Sobre enterrá-lo e depois a neve derreter-se em março e sair lá para fora e encontrar lá os ossos - limpa os olhos com um guardanapo.
- Desculpe, não costumo falar sobre isto. Nunca falei sobre isto.
Sei que está a fazer-me confidências. Pela mesma razão que os miúdos vêm ao meu gabinete e confessam que, depois de cada refeição, provocam o vómito; ou se cortam na privacidade do duche com uma lâmina de barbear. Às vezes é mais fácil falar com uma desconhecida. O problema é que, assim que abrimos o coração a outra pessoa, a outra pessoa deixa de ser anónima.
Uma vez, quando a Zoe estava a trabalhar com o seu aluno autista, fiquei a observar a sessão deles. "Para entrar na terapia musical tem de colocar-se na posição do paciente", explicou ela, e quando ele chegou não estabeleceu contacto visual com ele nem forçou uma interação. Em vez disso tirou a guitarra e começou a tocar e a cantar sozinha. O rapaz sentou-se ao piano e começou a percorrer as teclas com as mãos, em arpejos irados. Gradualmente, cada vez que ele fazia uma pausa, ela tocava um acorde igualmente forte na guitarra. De início, ele não interagiu com o que ela estava a fazer, mas depois começou a fazer pausas mais frequentes, à espera de interagir musicalmente. Apercebi-me de que estavam a conversar: primeiro a frase dele, depois a dela. Só estavam a falar numa linguagem diferente.
Talvez a Zoe precisasse apenas disso - de um novo método de comunicação. Para deixar de se afundar nas piscinas. Para sorrir.
vou ser absolutamente sincera: sou o género de pessoa que compra mobília partida, certa de que vou conseguir repará-la. Tive um galgo que resgatei. Sou uma reparadora patológica, o que explica a minha carreira de psicóloga de aconselhamento escolar, visto que Deus sabe que não é por causa do dinheiro nem da realização profissional. Por isso, não fico nada admirada por o meu instinto imediato, em relação à Zoe Baxter, seja querer que ela se recomponha.
- Responsável pelos mortos - digo, abanando a cabeça. - E eu pensei que o meu emprego era uma porcaria.
A Zoe olha para cima, e então um solta um riso abafado. Tapa a
boca com a mão.
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- Não faz mal rir - digo suavemente.
- Parece-me que faz. Como se quisesse dizer que isto não significou nada para mim - abana a cabeça, e de repente os olhos enchem-se-Ihe de lágrimas. - Desculpe. Não veio à Y hoje de manhã para ouvir isto. Este encontro não está a correr nada bem.
Fico imediatamente paralisada. Mas que saberá ela? O que terá ouvido dizer?
E porque é que isso interessa?
Seria de imaginar que nesta altura, aos trinta e quatro anos, me preocupasse menos com o que as pessoas pensam. Acho que quando já nos queimámos, é menos provável que queiramos mergulhar um dedo no lago de fogo.
-Ainda bem que nos encontrámos - ouço-me dizer. - Estava a pensar telefonar-lhe.
"A sério?", penso, interrogando-me aonde quererei chegar com isto.
- A sério? - responde a Zoe.
- Há uma rapariga que sofre de depressão - digo. - Tem estado várias vezes internada em hospitais, e tem reprovado na escola. Ia pedir-lhe que viesse trabalhar com
ela.
Na verdade, não tenho pensado na Zoe nem na sua terapia musical, pelo menos não em relação à Lucy DuBois. Mas, agora que o disse, faz sentido. Nada mais resultou
para aquela rapariga, que já tentou suicidar-se por duas vezes. Terei de convencer os pais, tão conservadores que nem deixaram a Lucy falar com um psicólogo, de que a terapia musical não é um vudu moderno.
A Zoe hesita, mas percebo que está a ponderar a oferta.
- Vanessa, já lhe disse que não preciso que me venham salvar.
- Não estou a salvá-la - digo. - Estou a pedir-lhe que salve outra pessoa.
Na altura, acho que estava a referir-me à Lucy. Não me apercebi que estava a referir-me a mim própria.
Quando era criança nos subúrbios a sul de Boston, costumava percorrer as ruas do bairro na minha bicicleta baixa com fitas brilhantes, assinalando silenciosamente as casas das meninas que eu achava
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bonitas. Aos seis anos, acreditava piamente que a Katie Whitaker, com os seus cabelos loiros como o sol e constelação de sardas, um dia iria casar-se comigo e viveríamos felizes para sempre.
Não me lembro bem de quando percebi que não era nisso que as outras meninas pensavam, e assim comecei a dizer, como o resto das meninas do segundo ano, que gostava do Jared Tischbaum, que era tão fixe que jogava na equipa de futebol que representava a escola e que todos os dias trazia o mesmo blusão de ganga para a escola porque uma vez o ator Robin Williams tinha tocado nele no terminal de bagagens de um aeroporto.
Uma noite, perdi a virgindade no banco da equipa de basebol convidada, na escola, com o meu primeiro namorado, o Ike. Ele foi delicado e terno, e disse-me que eu era linda - por outras palavras, fez tudo certo
- no entanto, lembro-me de ter ido para casa depois e de ter pensado por que razão as pessoas criavam um tal alvoroço a respeito do sexo. Foi suado e mecânico e, apesar de amar mesmo o Ike, faltava alguma coisa.
A minha melhor amiga, a Molly, foi a pessoa a quem confidenciei isto. Dava por mim a falar com ela ao telefone depois da meia-noite, a dissecar os tendões e o esqueleto da minha relação com o Ike. Ia estudar com ela para um teste de História e não queria vir-me embora. Fazia planos para ir às compras com ela no centro comercial ao sábado e contava sem fôlego os dias de aulas que faltavam para o fim de semana. Criticávamos as raparigas superficiais que quando começavam a namorar deixavam de ter tempo para as amigas. Jurámos ser inseparáveis.
Em outubro de 1998, no primeiro ano da faculdade, o Mathew Shepard - um jovem estudante homossexual da Universidade de Wyoming - foi gravemente espancado e abandonado moribundo. Não conhecia o Mathew Shepard. Não era ativista política. Mas o meu namorado da altura e eu metemo-nos numa camioneta e fomos até Laramie para participar na vigília à luz das velas na universidade. Apenas ali, rodeada por todos aqueles pontos de luz, consegui confessar o que tinha terror de admitir para comigo própria: podia ter sido eu. Eu era, e sempre fora, homossexual.
E eis o mais espantoso: mesmo depois de ter dito isso em voz alta, o mundo não deixou de girar.
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Continuava a ser uma estudante universitária a estudar ciências educativas, com uma média de 3,8. Continuava a pesar 55 quilos, a preferir chocolate a baunilha e a cantar num grupo a capella chamado Son of a Pitch. Nadava na piscina universitária pelo menos duas vezes por semana, e era muito mais provável que me encontrassem a ver o Cheers do que a embriagar-me numa festa da associação de estudantes. Admitir que era homossexual não mudou em nada quem eu era, nem quem eu ia ser.
Uma parte de mim preocupava-se com o facto de não me integrar em nenhum dos lados. Nunca estivera com uma mulher e receava que fosse tão insípido como com um rapaz. E se eu não fosse realmente homossexual, mas apenas completa e funcionalmente assexuada? Além disso, havia mais um senão neste novo mundo social que eu não tivera em conta: quando conhecemos uma mulher, normalmente calculamos que é heterossexual (a não ser que estejamos num concerto das índigo Girls... ou num jogo de basquetebol da WNBA). Não é que algumas raparigas tivessem um L na testa, e a minha capacidade de detetar lésbicas ainda não estava bem sintonizada.
Mas afinal não havia razão para estar preocupada. A minha parceira de laboratório em bioquímica convidou-me para ir ao quarto dela no dormitório para uma sessão de estudo, e dali a nada estávamos a passar todo o tempo livre juntas. Quando não estava com ela, queria estar. Quando um professor dizia algo de ridículo, ou sexista, ou hilariante, ela era a primeira pessoa a quem eu queria contar. Num sábado, num jogo de futebol americano tremíamos de frio nas bancadas debaixo de uma
manta de lã de xadrez, passando um recipiente térmico de cacau quente temperado com Baileys uma à outra. As equipas estavam quase empatadas, e durante uma jogada mesmo muito importante, ela agarrou-me na mão e, mesmo depois do golo, não me largou. Da primeira vez que me beijou, achei realmente que tinha um aneurisma - o coração batia com muita força e os sentidos explodiam. "Isto", lembro-me de pensar, a única palavra a que conseguia agarrar-me num mar de emoções.
Depois disso, consegui ver em retrospetiva com nitidez que nunca tive limites com as minhas amigas. Queria ver as fotografias delas em bebés, e ouvir as suas músicas preferidas, e fazer o mesmo penteado
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delas. Desligava o telefone e lembrava-me de mais uma coisa que tinha para dizer. Não tinha definido isso como atração física - era mais uma ligação emocional. Nunca me bastava, mas nunca consegui perguntar-me a mim própria o que me "bastaria".
Acreditem, ser homossexual não é uma escolha. Ninguém escolheria tornar a vida mais difícil do que já é, e por muito confiante e confortável que um homossexual seja, não consegue controlar os pensamentos dos outros. Já houve pessoas que mudaram de fila num cinema por me verem de mão dada com uma mulher - aparentemente repugnados pela nossa demonstração pública de afeto quando, na fila de trás, um casal de adolescentes está praticamente a despir-se um ao outro. Já me escreveram a palavra FUFA no carro a tinta em spray. Já houve pais que pediram que os filhos mudassem para uma jurisdição diferente de aconselhamento escolar, pais esses que, quando lhes pediam que apresentassem uma razão justificativa, diziam que a minha "filosofia educacional" era diferente da deles.
Podemos dizer que estamos num mundo diferente daquele em que Mathew Shepard foi assassinado, mas existe uma diferença subtil entre tolerância e aceitação. É a distância entre mudarmo-nos para um beco sem saída e a nossa vizinha do lado confiar em nós para ficarmos a tomar conta da filha pequena durante alguns minutos enquanto ela vai aos correios. É o abismo entre sermos convidados para o casamento de um colega com o nosso parceiro do mesmo sexo e podermos dançar com ele ao som de uma balada sem que os outros convidados comentem.
Lembro-me de a minha mãe me dizer que, quando era pequena, no colégio católico, as freiras costumavam bater-lhe na mão esquerda cada vez que escrevia com ela. Atualmente, se uma professora fizesse isso, provavelmente seria presa por maus tratos infantis. A otimista em mim deseja acreditar que a sexualidade acabará por assemelhar-se à escrita: não há uma forma certa ou uma forma errada de fazer. Somos
apenas diferentes.
Também vale a pena notar que, quando conhecemos alguém, nunca nos damos ao trabalho de perguntar se essa pessoa é destra ou canhota.
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Afinal, será realmente importante para mais alguém além da pessoa que está a segurar na caneta?
A relação mais longa que já tive com uma mulher foi com a Rajasi, a minha cabeleireira. Todos os meses vou ter com ela para pintar as raízes de louro e aparar os cabelos no seu corte curto e irregular. Mas hoje a Rajasi está furiosa e pontua as frases com tesouradas iradas.
- Hum - digo, semicerrando os olhos para a minha franja ao espelho.
- Não está um bocadinho curto?
- Um casamento combinado! - diz a Rajasi. - Acredita? Viemos da índia há vinte anos. Somos completamente americanos. Os meus pais vão comer ao McDonald's uma vez por semana, por amor de Deus.
- Talvez se lhes dissesse...
Um pedaço de cabelo passa-me à frente dos olhos.
- Convidaram o meu namorado para jantar na sexta-feira passada bufa a Rajasi. - Pensariam mesmo que eu ia deixar o rapaz com quem namoro há três anos por causa de algum velho decrépito do Punjab que está disposto a oferecer-lhes um bando de galinhas como dote?
- Galinhas? - digo. - A sério?
- Não sei. A questão não é essa - ainda continua a cortar, perdida na sua diatribe. - Estamos em 2011, não estamos? - diz a Rajasi. - Eu não devo poder casar-me com quem quiser?
- Querida - respondo -, está a ensinar o pai-nosso ao vigário. Vivo em Rhode Island, um dos únicos estados da Nova Inglaterra
que não reconheceram o casamento entre pessoas do mesmo sexo. Por esta razão, os casais que querem dar o nó atravessam a fronteira para Fali River, Massachusetts. Parece bastante simples, mas na realidade levanta uma série de questões. Tenho amigos, dois homens homossexuais, que se casaram em Massachusetts e depois, passados cinco anos, separaram-se. Os bens de ambos encontravam-se todos em Rhode Island, onde viviam. Mas visto que o casamento nunca foi legal no estado, não podiam divorciar-se. Rajasi para.
- Então? - diz ela.
- Então o quê?
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- Estou para aqui a falar sobre a minha vida amorosa e você não disse nada sobre a sua...
Rio.
- Rajasi, tenho mais hipóteses de ficar com o seu punjabi do que com qualquer outra pessoa. Acho que as minhas escolhas românticas se esgotaram.
- Parece que tem sessenta anos - diz a Rajasi. - Como se fosse ficar o fim de semana todo em casa a fazer croché com uma centena
de gatos.
- Não diga disparates. Os gatos gostam muito mais de ponto cruz. Além do mais, tenho grandes planos para o fim de semana. vou a Boston assistir a um bailado.
- Não vai nevar?
- Não o suficiente para nos impedir de ir - digo.
- Nos- repete a Rajasi. - Conte-me...
- É só uma amiga. Vamos festejar o aniversário dela.
- Sem o marido?
- É divorciada - digo. - Estou a tentar ajudá-la a ultrapassar uma fase má.
A Zoe e eu tornámo-nos boas amigas nas semanas após o nosso encontro na Y. Devo ter-lhe telefonado primeiro, visto que eu é que tinha o número de telefone de casa dela. Ia comprar um quadro numa loja de molduras perto de casa dela, e perguntei-lhe se não queria almoçar comigo. Enquanto comíamos as sandes do pronto a comer, falámos sobre a investigação que estava a fazer sobre a depressão e a terapia musical; falei-lhe em abordar o assunto com os pais da Lucy. No fim de semana seguinte, ela ganhou dois bilhetes para uma antestreia num concurso de rádio e perguntou-me se eu queria ir. Começámos a passar algum tempo juntas, e daquela estranha forma exponencial como as amizades costumam crescer, tornou-se difícil imaginar uma altura em que ainda não a conhecia.
Falámos sobre como ela descobriu a terapia musical (em criança, fraturou um braço e precisou de colocar um parafuso cirurgicamente e havia um terapeuta musical na ala de pediatria do hospital). Falámos sobre a mãe dela (que telefona à Zoe três vezes por dia, muitas vezes para discutir um assunto completamente desnecessário, como o relatório
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do Anderson Cooper na noite anterior ou em que dia calha o Natal daqui a três anos). Falámos sobre o Max, sobre ter voltado a beber, e sobre os rumores que agora o colocam à direita do pastor da Igreja da Glória Eterna.
Eis o que eu não esperava da Zoe: é divertida. Tem uma maneira de ver o mundo suficientemente original para me fazer rir de admiração.
"Se alguém com personalidade múltipla tentar suicidar-se, será tentativa de homicídio?"
"Não é um pouco perturbador os médicos chamarem 'prática' ao seu trabalho?"
"Porque entramos num filme, mas aparecemos na televisão?"
"A zona dos fumadores num restaurante não é um pouco como uma zona para se urinar na piscina?"
Temos muito em comum. Crescemos em famílias monoparentais (o pai dela faleceu, o meu fugiu com a secretária); sempre desejámos viajar mas nunca tivemos dinheiro suficiente; ambas temos medo de palhaços. Temos um fascínio secreto pela reality TV. Adoramos o cheiro da gasolina, detestamos o cheiro da lixívia e desejávamos saber usar fondant, como chefes de pastelaria. Preferimos vinho branco ao tinto, frio extremo a calor extremo, e amendoins cobertos de chocolate a passas cobertas de chocolate. Nenhuma de nós tem problemas em usar a casa de banho dos homens num evento público se a fila para a das senhoras for demasiado longa.
Amanhã seria o seu décimo aniversário de casamento, e percebi que ela o receava. A mãe da Zoe ia estar em San Diego durante o fim de semana, numa conferência de aconselhamento motivacional, por isso sugeri que fizéssemos uma coisa que o Max nunca aceitasse fazer. Imediatamente, a Zoe escolheu o bailado no Wang Theatre em Boston. Era Romeu e Julieta de Prokofiev. O Max, disse-me ela, nunca conseguiu tolerar a dança clássica. Se não estivesse a fazer comentários aos collants dos homens, estava a dormir profundamente.
- Talvez eu deva fazer isso - diz a Rajasi pensativamente. - Levar este velho tonto que os meus pais convidaram a vir para cá de avião a um lugar que ele deteste completamente - olha para cima. - Que sítio é que um brâmane detestaria mais?
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- Uma churrasqueira com comida à descrição? - sugiro.
- Uma rave de heavy metal. Depois olhamos uma para a outra.
- MASCAR - dizemos ao mesmo tempo.
- Bem, é melhor ir andando - digo. - Tenho de ir buscar a Zoe daqui a quinze minutos.
A Rajasi vira a cadeira de novo para o espelho e retrai-se.
Quando a nossa cabeleireira se retrai, nunca pode ser um bom sinal. Os meus cabelos estão tão curtos que ficam espetados em tufos semelhantes a erva no cimo da cabeça. A Rajasi abre a boca, e lanço-Ihe um olhar mortífero.
- Não se atreva a dizer-me que vai crescer...
- Ia dizer que a boa notícia é que o estilo militar está na moda esta primavera...
Passo as mãos pelos cabelos, tentando despenteá-los um pouco, apesar de não ajudar muito.
- Eu matava-a - digo -, mas por acaso acho que vai sofrer mais estando viva para se encontrar com o tal homem do Punjab.
- Está a ver? Já está a começar a gostar deste visual. Se não gostasse, estava demasiado ocupada a chorar para dizer piadas, aceita o dinheiro que lhe dou. - Tenha
cuidado a conduzir -, avisa a Rajasi. - Já está a começar a nevar.
- É só um nevão ligeiro - digo, eu acenando. - Não se preocupe.
Outra coisa que afinal temos em comum: Romeu e Julieta.
- Sempre foi a minha peça de Shakespeare preferida - diz a Zoe, assim que a companhia de ballet fez as vénias e ela vem ter comigo ao lobby remodelado do Wang Theatre depois de uma visita à casa de banho. - Sempre quis que um homem viesse ter comigo e iniciasse uma conversa que se transformasse naturalmente num soneto.
- O Max não fez isso? - pergunto, sorrindo. Ela funga.
- O Max acha que um soneto é uma coisa que se pede na secção da canalização no Home Depot.
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- Uma vez disse à diretora do departamento de inglês da escola que a minha peça preferida era Romeu e
Julieta - digo -, e ela respondeu que eu era uma ignorante.
- O quê! Porquê?
- Porque não é tão complexa como o Rei Lear ou Hamlet, suponho.
- Mas é mais sonhadora. É a fantasia de toda a gente, não é?
- Morrermos com o nosso amante?
A Zoe ri.
- Não. Morrermos antes de começarmos a fazer listas de todos os defeitos dele que nos levam à loucura.
- Pois, imagine a sequela, se tivesse terminado de maneira diferente
- respondo. - O Romeu e a Julieta são deserdados pelas famílias e vão viver para um parque de campismo. O Romeu deixa crescer o cabelo atrás e fica viciado em póquer online enquanto a Julieta tem um caso com o Frei Lawrence.
- Que, afinal - acrescenta a Zoe -, tem um laboratório de metanfe-
tamina na cave.
- Completamente. Por que outra razão saberia que droga devia dar-lhe? - enrolo o cachecol à volta do pescoço enquanto nos preparamos para caminhar ao frio.
- E agora? - pergunta a Zoe. - Acha que é demasiado tarde para ir jantar... - a voz dela desvanece-se quando saímos lá para fora.
Ao longo das três horas em que estivemos dentro do teatro, a tempestade transformou-se numa tempestade de neve. Nem consigo ver um palmo à minha frente, com a intensidade da neve. Começo a dirigir-me para a rua, e o meu pé afunda-se em quase vinte centímetros de neve.
- Uau - digo eu. - Isto é uma chatice.
-Talvez devêssemos esperar que passe para ir para casa responde a Zoe.
Um motorista de uma limusina que está encostado ao veículo olha para nós.
- Então preparam-se para uma longa espera, minhas senhoras - diz ele. - O AccuWeather diz que ainda vai cair mais meio metro de neve antes de a tempestade acabar.
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- Vamos passar aqui a noite - anuncia a Zoe. - Há muitos hotéis aqui perto...
- Que custam uma fortuna...
- Não se dividirmos um quarto - encolhe os ombros. - Além disso, é para isso que servem os cartões de crédito - dá-me o braço e arrasta-me para o bafo violento da tempestade. Do outro lado da rua há uma loja de conveniência. - Escovas de dentes, pasta de dentes, e tenho de comprar tampões - diz ela, enquanto as portas automáticas se fecham atrás de nós. - Também podemos comprar um verniz para as unhas e enroladores de pestanas e maquilharmo-nos uma à outra para ficarmos acordadas até tarde a falar de rapazes...
"Isso não vai acontecer", penso eu. Mas ela tem razão; ir para casa com este tempo seria uma estupidez, uma irresponsabilidade.
- Tenho duas palavras para lhe dizer - diz ela, convencendo-me.
- Serviço de quartos.
Hesito.
- Eu é que escolho o filme para alugar?
- Combinado - a Zoe estende a mão para que eu a aperte.
Não há nenhuma razão concreta para evitar esta estadia improvisada no hotel. Posso pagar o luxo de um quarto por uma noite, ou pelo menos justifico isso assim para comigo própria. Mas, apesar disso, quando damos entrada no hotel e levamos os nossos sacos da loja de conveniência lá para cima, tenho o coração aos saltos. Não fui propriamente desonesta com a Zoe acerca da minha orientação sexual, mas isso também não foi realmente um tópico de discussão. Se ela tivesse perguntado, ter-lhe-ia dito a verdade. E o simples facto de ser lésbica não significa que me atire a todas as mulheres nas proximidades, apesar do que os homofóbicos pensam. Mas aqui há outro problema: seria ridículo pensar que uma mulher heterossexual não seria capaz de manter uma relação platónica de amizade com um homem., mas apesar disso, se se encontrasse nesta situação, provavelmente não partilharia o quarto com esse seu grande amigo.
Quando finalmente disse à minha mãe que sou homossexual, a primeira coisa que ela disse foi:
- Mas és tão bonita! - como se as duas coisas fossem mutuamente exclusivas. Depois ficou calada e foi para a cozinha. Passados alguns
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minutos, voltou para a sala e sentou-se à minha frente. - Quando vais à Y - perguntou -, continuas a usar o vestiário das senhoras?
- Claro que sim - disse eu, exasperada. - Não sou transexual, Mãe.
- Mas, Vanessa - perguntou ela -, quando estás lá dentro... olhas para as outras?
A resposta, por acaso, é não. Troco de roupa dentro de uma cabina, e passo a maior parte do tempo a olhar para o chão. Por acaso, provavelmente sinto-me menos à vontade e extremamente consciente de mim própria do que qualquer pessoa ficaria ao saber que a mulher de fato de banho violeta é homossexual.
Mas é apenas mais uma coisa com que tenho de preocupar-me, com que a maior parte das pessoas nunca se preocupa.
- Oooh - diz a Zoe, quando entra no quarto. - Mas que chique!
É um daqueles hotéis para executivos que foi remodelado para agradar ao homem de negócios metrossexual, que aparentemente gosta de colchas de fazenda preta, iluminação cromada e mistura para preparar margaritas no minibar. A Zoe afasta as cortinas e olha lá para baixo, para Boston Common. Depois descalça as botas e salta para cima de uma das camas. Por fim, agarra no saco da loja de conveniência.
- Bem - diz ela -, acho que vou desfazer as malas. - Agarra em duas escovas de dentes, uma azul e outra violeta. - Tem alguma preferência?
- Zoe... sabe que sou lésbica, não sabe?
- Estava a falar das escovas de dentes - diz ela.
- Eu sei - passo a mão pelos meus ridículos cabelos espetados.
- Só que.... não quero que pense que estou a esconder alguma coisa.
Senta-se à minha frente, na outra cama.
- Sou peixes.
- Que diferença faz isso?
- E o facto de ser homossexual, que diferença faz isso para mim?
- responde a Zoe.
Expiro o ar que não me apercebi que estava a suster.
- Obrigada.
- Porquê?
- Por... não sei. Ser quem é, acho eu. Ela sorri.
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- Pois. Nós os peixes somos pessoas especiais - voltando a procurar no saco da farmácia, tira lá de dentro uma caixa de tampões. - Volto já.
- Sente-se bem? - pergunto. - É a quinta vez que vai à casa de banho na última hora.
Agarro no comando da televisão enquanto a Zoe está na casa de banho. Há quarenta filmes disponíveis.
- Olhe - grito. - As nossas escolhas são estas... - recito cada título enquanto a apresentação de um filme com o Adam Sandler se repete infinitas vezes em voz alta. - Preciso de uma comédia - continuo. - Já
viu o da Jennifer Aniston no cinema?
A Zoe não responde. Ouço água a correr.
-Alguma ideia? - digo eu. - Algum comentário? - volto novamente a ler os títulos. - vou tomar uma decisão... - faço uma pausa no serviço de Aquisição, porque não quero que a Zoe perca o princípio do filme. Enquanto espero, olho para a lista do serviço de quartos. Quase podia comprar um pequeno automóvel pelo preço da costeleta, e não percebo por que razão vendem o gelado aos meios litros e não às bolas, mas decididamente parece mais requintado do que eu teria preparado em casa.
- Zoe! O meu estômago está a começar a digerir-se a si próprio!
- olho para o relógio. Já tenho o ecrã em pausa há dez minutos, ela já está na casa de banho há quinze.
E se aquilo que disse sobre mim não fosse o que ela realmente sente? Se está arrependida por ter decidido passar aqui a noite, se está preocupada por eu poder esgueirar-me para a cama dela a meio da noite. Levantando-me, bato à porta da casa de banho.
- Zoe? - grito. - Sente-se bem? . Não obtenho resposta.
-Zoe?
Agora, estou a ficar nervosa.
Abano a maçaneta e volto a chamá-la, e depois lanço todo o meu peso contra a porta até a fechadura se abrir.
A torneira está aberta. A caixa dos tampões está fechada. E a Zoe está inconsciente no chão, com as calças de ganga à volta dos tornozelos, as cuecas completamente encharcadas em sangue.
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Acompanho a Zoe na curta viagem de ambulância ao Bingham and Women's Hospital. Se é que há algum aspeto positivo em tudo isto, é que ao ficarmos retidas em Boston, ficámos a curta distância de algumas das melhores instalações médicas do mundo. A técnica de emergência médica faz-me perguntas: "Ela costuma estar assim tão pálida? Isto já aconteceu anteriormente?"
Não sei a resposta a nenhuma das perguntas.
Nesta altura a Zoe já recuperou a consciência, apesar de estar tão fraca que nem consegue sentar-se.
- Não se preocupe... - murmura. - Acontece... muitas vezes.
Sem mais nem menos, apercebo-me de que, por muito que eu ache que já sei acerca da Zoe Baxter, há muito mais que desconheço.
Enquanto está a ser examinada por uma médica e recebe uma transfusão de sangue, eu fico sentada à espera. Há um televisor a transmitir uma repetição da série Friends, e no hospital há um silêncio de morte, quase como se fosse uma cidade fantasma. Interrogo-me se todos os médicos terão ficado aqui retidos por causa da tempestade, como nós. Por fim, uma enfermeira chama-me e entro no quarto onde a Zoe está deitada na cama de olhos fechados.
- Então - digo num tom suave. - Como se sente?
Ela vira a cabeça para mim e olha para o saco de sangue pendurado, a transfusão a ser administrada.
- Vampírica.
- B positivo9 - respondo, tentando dizer uma piada, mas nenhuma de nós sorri. - O que disse a médica?
- Que devia ter ido ao hospital da última vez que isto aconteceu. Abro mais os olhos.
- Já desmaiou anteriormente por causa do período?
- Não é bem um período. Não estou a ovular, pelo menos não de forma regular. Isso nunca aconteceu. Mas desde o... bebé... o meu período é assim. A médica fez uma
ecografia. Disse que tenho um espessamento da faixa endométrica.
9 B positive, na versão original em inglês, ou seja, encarar a situação de forma positiva. (N. da T.)
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Olho para ela, pestanejando.
- Isso é bom?
- Não. Preciso de fazer uma curetagem - os olhos da Zoe enchem-se de lágrimas. - É como reviver um pesadelo.
Sento-me na beira da cama.
- É completamente diferente - digo -, e vai ficar bem.
E é diferente, não só por não haver nenhum nado-morto. Da última vez que a Zoe teve uma crise de saúde, o marido e a mãe estavam ao lado dela. Agora só me tem a mim... e que sei eu acerca de tomar conta de outra pessoa para além de mim? Já não tenho cão. Nem sequer tenho um peixinho. Matei a orquídea que o diretor da escola me ofereceu no Natal.
- Vanessa? - pergunta ela. - Pode dar-me o telefone para poder telefonar à minha mãe?
Aceno com a cabeça e tiro o telemóvel dela da mala mesmo na altura em que duas enfermeiras entram para preparar a Zoe para a cirurgia.
- Eu telefono-lhe - prometo, enquanto levam a Zoe para o fundo do corredor numa cadeira de rodas. Passado um instante, abro o telemóvel dela.
Não consigo evitar. É como ser convidada para jantar em casa de alguém, ir à casa de banho e espreitar para dentro do armário dos medicamentos. Olho para os contactos dela para ver se consigo obter um melhor retrato da Zoe através das pessoas que ela conhece. Nunca ouvi falar na maior parte das pessoas na lista, como seria previsível. Depois há os números úteis do costume: AAA, a pizaria da vizinhança, os números dos hospitais e escolas que a contrataram.
Mas dou por mim a pensar. Quem é a Jane? A Alice? Serão amigas da faculdade, ou colegas de trabalho? Alguma vez me terá falado delas?
Alguma vez lhes terá falado de mim?
O Max ainda está na lista. Avançando mais para cima, encontro a Dará na lista, como MÃE, tal como seria previsível.
Marco o número, mas vai diretamente para as mensagens e desligo. Não me parece correto deixar uma mensagem alarmista no telemóvel de alguém que está a quase cinco mil quilómetros de distância e que neste momento não pode fazer nada para ajudar a Zoe. vou continuar a tentar.
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Uma hora e meia depois de a Zoe ter sido levada para a cirurgia, voltam a trazê-la para o quarto.
- Ela vai estar zonza durante algum tempo - diz-me a enfermeira. Mas vai ficar bem.
Aceno com a cabeça e observo a enfermeira a fechar a porta depois de sair.
- Zoe? - sussurro.
Ela está a dormir profundamente, com as pestanas a projetarem sombras azuladas nas faces. Tem a mão aberta em cima da colcha de algodão, como se estivesse a oferecer-me algo que não consigo ver. Outro meio litro de sangue está pendurado num suporte de um cateter intravenoso à esquerda, com o conteúdo a agitar-se pelo tubo ligado à curva do braço.
Da última vez que estive num hospital, a minha mãe estava a morrer gradualmente. O diagnóstico era cancro pancreático, mas não era segredo nenhum que as suas doses de morfina estavam a ser cada vez mais elevadas, até o sono distanciar permanentemente a dor. Sei que a Zoe não é a minha mãe, que não tem a mesma doença, mas há qualquer coisa na forma como está deitada assim tão imóvel e em silêncio nesta cama que me faz sentir como se estivesse a reviver a minha vida, a ler um capítulo que desejava que nunca tivesse sido impresso.
- Vanessa - diz a Zoe, e eu dou um salto. Passa a língua pelos lábios, secos e brancos.
Agarro-lhe na mão. É a primeira vez que seguro na mão da Zoe, que parece pequena, como uma ave. Tem calos nas pontas dos dedos, das cordas da guitarra.
- Tentei falar com a sua mãe. Não consegui contactá-la. Posso deixar uma mensagem, mas achei que talvez...
- Não posso... - murmura a Zoe, interrompendo-me.
- Não pode o quê? - sussurro, aproximando-me, esforçando-me por ouvir.
- Não posso acreditar...
Há tantas coisas em que não posso acreditar. Que as pessoas mereçam o que têm, tanto o mal como o bem. Que um dia viverei
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mundo em que as pessoas são julgadas pelo que fazem e não por quem são. Que os finais felizes não têm contingências e condições.
- Não posso acreditar - repete a Zoe, num fio de voz tão ténue que o podia enfiar no bolso - que desperdiçámos dinheiro num quarto de hotel...
Olho para ela, para ver se estará a brincar, mas a Zoe já voltou a adormecer.
Já estão muito longe os dias em que ser homossexual e ser educador eram duas coisas incompatíveis, mas ainda existe uma política de silêncio em vigor no liceu onde trabalho. Não oculto ativamente dos meus colegas a minha orientação sexual, mas também não me esforço para comunicá-la. Sou um dos dois conselheiros adultos para estudantes da Rainbow Alliance, mas o outro - Jack Kumanis - é absolutamente heterossexual. Tem cinco filhos, compete no triatlo e gosta de fazer citações do Clube de Combate-e, por acaso, foi educado por duas mães.
Mesmo assim, tenho cuidado. Apesar de a maior parte dos psicólogos escolares achar natural fechar a porta do gabinete para uma sessão privada com um aluno, eu nunca o faço. A minha porta está sempre um pouco entreaberta, para que não haja dúvidas de que o que está a acontecer é completamente legítimo e passível de ser interrompido.
O meu trabalho divide-se entre escutar os alunos que precisam apenas de que os ouçam, e manter-me em contacto com os psicólogos que emitem pareceres relativamente às candidaturas às universidades para que coloquem a nossa escola nos seus mapas virtuais, além de apoiar aquela jovem que é demasiado tímida para poder dar a sua opinião e coordenar os horários de trezentos alunos cuja primeira escolha em termos de disciplinas obrigatórias é Inglês. Hoje tenho a mãe da Michaela Berrywick no meu sofá - mãe de uma aluna do nono ano que acabou de receber um bom menos na aula de Estudos Sociais.
- Sra Berrywick - digo -, isto não é o fim do mundo.
- Não me parece que esteja a compreender, Dra Shaw. A Michaela está ansiosa por ir para Harvard desde pequena.
Por acaso, duvido. Nenhuma criança sai do ventre materno a planear o currículo para a universidade; isso vem de uma educação
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zelosa. Quando estava na escola, o termo pais helicóptero nem sequer existia. Agora os pais andam sempre tão à volta dos filhos que estes se esquecem do que é ser criança.
- Ela não pode deixar um professor de História que não engraça com ela deixar uma mancha permanente no seu currículo - sublinha a Sra Berrywick. - A Michaela está disposta a completar os créditos necessários para que o professor Levine reconsidere a sua política de avaliação...
- Em Harvard não se interessam se a Michaela teve um bom menos a Estudos Sociais. Querem saber se ela passa o primeiro ano a aprender mais sobre si própria. Que encontre algo de que goste de fazer.
- Precisamente - diz a Sra Berrywick. - E foi por isso que se inscreveu nas aulas de preparação para os exames de admissão.
A Michaela só fará os exames de admissão daqui a dois anos. Suspiro.
- vou falar com o professor Levine - digo -, mas não posso prometer-Ihe nada.
A Sra Berrywick abre a mala e tira uma nota de cinquenta dólares.
- Fico muito agradecida por estar interessada em ver as coisas do meu ponto de vista.
- Não posso aceitar o seu dinheiro. Não pode comprar uma nota melhor para a Michaela...
- E não estou - interrompe a mulher, com um sorriso tenso. - A Michaela ganhou a nota. Só estou... a demonstrar-lhe a minha gratidão.
- Obrigada - digo, voltando a meter-lhe a nota na mão. - Mas a sério que não posso aceitar isto.
Ela olha para mim de alto a baixo.
- Não quero ofendê-la - murmura, num tom de conspiração -, mas está a precisar de atualizar o seu guarda-roupa.
Estou a pensar ir falar com o Alec Levine para pedir-lhe que baixe a nota da Michaela Berrywick quando ouço alguém chorar à entrada do gabinete.
- Desculpe - digo, certa de que é aquela aluna do décimo ano que recebi há uma hora, cujo período está doze dias atrasado e o namorado a deixou depois de terem tido sexo. Agarro na minha caixa de lenços de papel (os psicólogos escolares deviam fazer publicidade aos Kleenex) e saio.
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Mas não se trata da aluna do décimo ano. É a Zoe.
- Olá - diz ela, e tenta sorrir, mas falha miseravelmente.
Já se passaram três dias desde a nossa viagem desastrosa a Boston. Depois da curetagem da Zoe, consegui finalmente entrar em contacto com a mãe dela, que veio de avião da conferência para se encontrar comigo em casa da Zoe. Já tinha telefonado várias vezes à Zoe desde essa altura para saber como ela estava, até ela me dizer que se voltasse a telefonar a perguntar como se sentia me desligava o telefone. Por acaso, hoje ela devia voltar a trabalhar.
- O que se passa? - pergunto, enquanto a levo para o meu gabinete. Fecho a porta.
Ela limpa os olhos com um lenço de papel.
- Não percebo. Não sou uma pessoa má - diz a Zoe, com a boca a tremer. - Tento ser simpática e dou dinheiro aos sem abrigo. Digo por favor e obrigada, uso fio dental todos os dias, sou voluntária numa cozinha que serve sopa aos pobres no Dia de Ação de Graças. Trabalho com pessoas que sofrem de Alzheimer e depressão e que têm medo e tento dar-lhes alguma coisa boa para o dia delas, uma pequena coisa para guardarem
- olha para mim. - E o que recebo em troca? Infertilidade. Abortos espontâneos. Um nado-morto. Uma maldita embolia. Um divórcio.
- Não é justo - digo, simplesmente.
- Bem, e o telefonema que recebi hoje também não. A médica... aquela do Bingham and Women's. Disse que fez algumas análises - a Zoe abana a cabeça. - Tenho cancro. Cancro do endométrio. E espere... ainda não acabei... e isso é uma boa notícia. Detetaram-no a tempo, por isso posso fazer uma pequena histerectomia e fico pronta para outra. Não é simplesmente fabuloso? Devia agradecer a minha sorte? Quero dizer, o que virá a seguir? Uma bigorna a cair do segundo andar em cima da minha cabeça? Ser despejada pelo meu senhorio? - levanta-se, andando às voltas. - Já podem sair -, grita ela para as paredes, para o chão, para o teto. - Seja qual for a versão merdosa dos Apanhados, seja quem for que decidiu que este ano o alvo seria eu... já estou farta. Já estou farta. Já estou...
Levanto-me e abraço-a com força, interrompendo o que estava prestes a dizer. A Zoe fica imóvel por um instante, e depois começa a soluçar encostada à minha blusa de seda.
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-Zoe-digo. - Eu...
- Não se atreva - interrompe a Zoe. - Não se atreva a dizer que tem muita pena.
- Não tenho - digo eu, com um ar sério. - Quero dizer, se considerarmos as probabilidades... o facto de todas estas coisas lhe estarem a acontecer a si significa que é muito mais provável que eu esteja a salvo. Por acaso, estou encantada. A Zoe dá-me sorte.
Zoe pestaneja, estupefacta, e depois solta uma gargalhada.
- Nem acredito que disse isso.
- Nem acredito que a fiz rir, quando na realidade devia estar a bradar aos céus ou a renunciar a Deus, ou qualquer coisa assim. Deixe-me que lhe diga, a Zoe é uma péssima doente de cancro.
Outra gargalhada.
- Tenho cancro - diz ela, incrédula. - Tenho realmente cancro.
- Talvez também arranje uma gangrena, antes do pôr do Sol.
- Não queria parecer gananciosa - responde a Zoe. - Quero dizer, com certeza que mais alguém deve precisar de uma praga de gafanhotos ou de gripe suína...
- Térmitas! - acrescento. - Fungos! -Gengivite...
- Uma panela furada - digo. Zoe faz uma pausa.
- Metaforicamente - faz notar -, esse foi o problema inicial.
Isto faz-nos rir ainda mais, tanto que a secretária do departamento de aconselhamento espreita para ver se estamos bem. Nessa altura, tenho os olhos cheios de lágrimas
e doem-me os músculos abdominais.
- Preciso de fazer uma histerectomia - diz a Zoe, dobrada para recuperar o fôlego - e não consigo parar de rir. O que se passa comigo?
Fico a olhar para ela com o ar mais sério que consigo fazer.
- Bem... creio que tem cancro - digo.
Quando contei ao Teddy, o meu namorado da universidade, que era homossexual, na vigília do Mathew Shepard, aconteceu a coisa mais extraordinária: ele também me contou
que era homossexual.
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Ali estávamos nós, dois homossexuais que tinham tentado parecer o mais heterossexuais possível diante do resto da comunidade universitária - e agora, felizmente,
estavam a confessar-se. Ainda fazíamos festas um ao outro e nos abraçávamos, mas com a sensação de puro alívio por saber que já não tínhamos de tentar (sem sucesso)
excitarmo-nos um ao outro, ou fingir atração. (No passado, quando dizia às pessoas heterossexuais que tive um namorado na universidade, que dormi com ele e tudo, ficavam sempre surpreendidas. Mas por ser homossexual, não quer dizer que não possa ter sexo com um homem - só que isso não está no topo das minhas prioridades). A seguir ao nosso recente despertar para o mesmo sexo, o Teddy e eu fomos a Provincetown no fim de semana do Memorial Day. Ficámos a olhar para as drag queens que percorriam a Commercial Street de saltos altos e para os homens bronzeados cobertos de óleo que caminhavam na praia de fio dental. Fomos a uma festa na Boatslip e depois ao PiedBar - onde nunca vi tantas lésbicas juntas na minha vida. Nesse fim de semana, era como se o mundo estivesse virado ao contrário, e os heterossexuais fossem a anomalia, em vez da norma. Mas também não me inseria ali. Nunca fui como aqueles homossexuais que só se dão exclusivamente com homossexuais, nem gosto de estar sempre a frequentar festas, nem de ter um estilo de vida louco e decadente. Não sou excessivamente masculina. Não seria
capaz de andar de mota nem que a minha vida dependesse disso. Não, é muito mais provável que esteja de pijama às oito da noite, a ver reposições do House na USA Network. O que significa que, na maior parte das vezes, é muito mais provável que as mulheres com quem me cruzo sejam heterossexuais do que lésbicas.
Todo o homossexual já teve a infeliz circunstância de se apaixonar por alguém que não o é. Da primeira vez que isso acontece, pensamos: "Sou capaz de mudá-la. Conheço-a melhor do que ela se conhece a si própria." E, invariavelmente, acabamos com uma relação desfeita ou até um coração desfeito. O equivalente heterossexual são aquelas mulheres que têm a certeza de que o homem que amam, aquele que lhes bate todas as noites, acabará por deixar de o fazer. Em ambos os casos, a conclusão final é que as pessoas não mudam; que por muito
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encantadoras que sejamos e por muito que amemos, não podemos transformar uma pessoa naquilo que ela não é.
Tive paixonetas por raparigas heterossexuais ao longo de toda a minha infância, mesmo que não conseguisse identificar o sentimento
- mas o meu primeiro erro em adulta foi a Janine Durfee, que jogava numa equipa interna de softball na universidade. Sabia que ela tinha um namorado - que estava
constantemente a traí-la. Uma noite, quando apareceu à porta do meu quarto do dormitório lavada em lágrimas por tê-lo apanhado com outra, convidei-a a entrar enquanto
se acalmava. De alguma forma, ouvir a história dela deu origem a que eu a beijasse e a dez dias maravilhosos como casal, antes de ela voltar para o rapaz que a tratava
como lixo. "Foi divertido, Vanessa", disse ela apologeticamente. "Só que eu não sou assim."
É importante fazer notar que tenho bastantes amigas heterossexuais, mulheres por quem nunca me senti atraída mas que continuam a gostar de almoçar, ir ao cinema
ou fazer outras coisas comigo. Mas ao longo dos anos houve algumas que acenderam uma pequena chama dentro de mim, uma possibilidade. É dessas que tenho de distanciar-me,
porque não sou masoquista. Só aguentamos ouvir "O problema não é teu. É meu" um determinado número de vezes.
Não sou nenhuma cobaia. Não quero servir de experiência. Não tenho nenhum interesse em ver se os meus encantos pessoais conseguem superar aquilo para que o cérebro
de alguém foi programado.
Acredito que nasci assim, e por isso tenho de acreditar que um heterossexual também nasce assim. Mas também acredito que nos apaixonamos por uma pessoa; é natural
que às vezes seja um homem, e às vezes uma mulher. Muitas vezes me interroguei sobre o que faria se o amor da minha vida fosse um homem. Sentimo-nos atraídos por
quem uma pessoa é, ou por aquilo que ela é?
Não sei. Mas sei que estou numa fase da minha vida em que quero algo permanente e não imediato.
Sei que a primeira pessoa que beijei não será tão importante como a última pessoa que beijarei.
E também sei que não devo sonhar com coisas que não vão acontecer.
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Estou sentada à secretária sem fazer nada.
De dois em dois minutos olho para o relógio ao canto do computador. São 12:45, o que significa que a Zoe já devia ter saído da cirurgia há muito tempo.
A mãe dela está no hospital. Penso ir para lá também, mas não sei se não pareceria estranho. Afinal, a Zoe não me pediu propriamente para ir. E não quero intrometer-me,
se lhe apetecer estar sozinha com a mãe.
Mas interrogo-me se ela não terá pedido por não querer que eu me sentisse obrigada a ir.
O que não teria acontecido, de modo algum.
No fim de semana passado, a Zoe e eu fomos ao museu de artes em RISD. A exposição era uma sala vazia, com caixas de cartão no recinto. Eu sentei-me numa delas e
fui afastada por um guarda do museu, sem me aperceber de que estava inadvertidamente a tornar-me parte da exposição.
- Talvez seja uma ignorante - disse eu -, mas gosto de arte sobre tela.
- O Duchamp é que tem a culpa - respondeu a Zoe. - O tipo agarrou num urinol, assinou-o e colocou-o em exposição em 1917 como obra de arte intitulada Fonte.
- Está a brincar...
- Não - disse a Zoe. - Foi recentemente votada como a obra de arte
mais influente por cerca de quinhentos peritos.
- Calculo que seja para que percebamos que qualquer coisa pode ser arte... como um urinol ou uma caixa de cartão... se o metermos num museu.
- Sim. E é por isso - disse a Zoe, com um ar sério - que vou doar o meu útero ao RISD.
- Verifique se também tem caixas de cartão. E uma janela. Então poderia intitular-se Útero com Vista10.
10 Womb with a View, na versão original em inglês, numa referência a Room with a View, de E. M. Forster. (N. da T.)
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Ela riu, um pouco melancólica.
- É mais Útero Vazio - disse a Zoe e, antes que se perdesse nos seus pensamentos, levei-a para o fundo da rua, para um sítio onde fazem uns lafies espetaculares,
com desenhos na espuma que são realmente arte.
Será que a Dará me vai telefonar quando a Zoe sair da cirurgia? Quero dizer, é absolutamente normal que eu queira saber que correu tudo bem. Digo para comigo que
o facto de eu não ter tido notícias dela não significa que algo tenha corrido mal.
Sou daquelas pessoas que imaginam o pior. Quando alguns amigos viajam de avião, verifico as chegadas online, só para me certificar de que não houve nenhum acidente.
Quando vou para fora da cidade, desligo todos os eletrodomésticos no caso de haver algum pico de corrente.
No browserdo meu computador, procuro a página do hospital onde a Zoe está a ser operada. Escrevo as palavras "histerectomia laparoscópica" no Google e procuro uma
lista de possíveis complicações nos resultados.
Quando o telefone toca, salto-lhe para cima.
- Estou?
Mas não é a Dará, e não é a Zoe. A voz é fina, tão débil que desaparece mesmo antes de me aperceber dela.
- Estou a telefonar só para me despedir - murmura a Lucy DuBois. É a rapariga - uma aluna do décimo primeiro ano - de quem falei à
Zoe há algumas semanas, aquela que sofre de depressão há já algum tempo. Não é a primeira vez que me telefona a meio de uma crise.
Mas é a primeira vez que a voz dela soa assim. Como se estivesse debaixo de água, a afundar-se rapidamente.
- Lucy? - grito ao telefone. - Onde estás?
Ao fundo, ouço o apito de um comboio, e o que parecem ser sinos de igreja.
- Diga a toda a gente - diz a Lucy com voz arrastada -, que eu disse "que se fodam todos".
Agarro na folha de presenças, onde, profeticamente, a Lucy DuBois já foi assinalada com uma falta.
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É uma coisa bastante extraordinária, salvar a vida de alguém.
Baseada no apito do comboio e nos sinos da igreja que ouvi, a polícia conseguiu concentrar as buscas numa velha ponte encostada a uma igreja católica com uma missa
às 13:00. Encontraram a Lucy deitada debaixo de um pilar com um litro de Gatorade e um frasco vazio de Tylenol ao lado dela.
Encontrei-me com a mãe dela no hospital. Depois de lhe terem dado uma solução de carvão ativado para beber, a Lucy foi levada para a ala de psiquiatria para os pacientes
com tendências suicidas. Resta saber a extensão dos danos que ela provocou nos rins e no fígado.
A Sandra DuBois está sentada ao meu lado numa cadeira na sala
de espera.
- Ela tem de ficar sob observação durante alguns dias - diz ela, e obriga-se a olhar-me nos olhos. - Dra Shaw, não sei como agradecer-lhe.
- Por favor, chame-me Vanessa - digo. - E eu sei: deixe-me ajudar a sua filha.
Ao longo deste último mês, tenho tentado convencer os pais da Lucy de que a terapia musical é uma ferramenta científica válida para tentar quebrar o isolamento cada
vez maior da filha deles. Até agora, não consegui que aceitassem. Sandra e o marido estão muito envolvidos na Igreja da Glória Eterna, e não tratam as doenças mentais
como tratam as físicas. Se tivesse sido diagnosticada uma apendicite à Lucy, compreenderiam a necessidade de se fazer um tratamento. Mas, para eles, a depressão
é algo que uma boa noite de sono e uma reunião de estudo da Bíblia conseguem curar.
Pergunto-me quantas tentativas de suicídio serão necessárias para que isso mude.
- O meu marido não acredita nos psiquiatras...
- Já me disse - ele nem sequer está aqui, apesar da situação grave da Lucy, parece que está numa viagem de negócios. - O seu marido não teria de saber. Podia manter
isto em segredo, só entre nós.
Ela abana a cabeça.
- Não vejo como cantar canções possa fazer alguma diferença...
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- Vinde ao Senhor com cânticos de júbilo - cito, e ela fica a olhar para mim, a pestanejar, como se finalmente tivesse falado a linguagem dela. - Olhe, Sra DuBois.
Não sei o que poderá ajudar a Lucy, mas aquilo que a senhora e eu fizemos até agora não me parece estar a resultar. E a senhora pode ter a congregação inteira a
rezar pela sua filha, mas, se eu estivesse no seu lugar, gostaria de ter um plano de recurso, para prevenir.
As narinas da mulher estremecem, e eu tenho a certeza de que ultrapassei aquela fronteira tácita em que o profissionalismo e as crenças pessoais se misturam.
- Esta terapeuta musical - diz Sandra por fim - já trabalhou com adolescentes?
- Sim - hesito. - É minha amiga.
- Mas é uma boa cristã?
Apercebo-me de que não faço ideia de qual é a religião da Zoe, se é que tem alguma. Se pediu a presença de um padre no hospital, ou até preencheu algum campo no
formulário de admissão relativo ao seu credo. Sem saber o que dizer, vejo a Sandra DuBois levantar-se e dirigir-se para o fundo do corredor, para junto da Lucy.
E então lembro-me do Max.
- Creio que tem familiares que frequentam a sua igreja - grito.
A mãe da Lucy hesita. Então, antes de virar a esquina, olha para mim e acena com a cabeça.
No primeiro dia em que fui visitar a Zoe, ela estava inconsciente. A Dará e eu jogámos às cartas, e ela fez-me perguntas sobre a minha infância e depois ofereceu-se
para ler as folhas do meu chá verde.
No segundo dia em que fui visitar a Zoe, levei uma flor que fiz espetando uma dezena de palhetas de guitarra num pedaço de espuma para arranjos florais com a forma
de uma margarida. E digo-vos que não sou uma pessoa nada dada ao artesanato, por acaso tenho uma reação de vómito quando sou confrontada com uma pistola de cola
ou uma agulha de croché.
No terceiro dia, ela está à minha espera à porta.
- Rapte-me - implora. - Por favor.
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Olho por cima do ombro dela, na direção da cozinha, onde ouço a Dará a bater com os tachos e panelas a preparar o jantar.
-A sério, Vanessa. Um ser humano só consegue aguentar uma certa dose de conversas sobre os efeitos positivos das pulseiras de cobre no corpo.
- Ela vai matar-me - murmuro.
- Não - diz a Zoe. - Ela vai matar-me a mim.
- Nem sequer devia andar...
- A médica não me impôs restrições em relação a andar um pouco de carro. Apanhar ar fresco - diz ela. - Tem um descapotável...
- Estamos em janeiro - faço notar.
Apesar disso, sei que vou fazer o que e a está a pedir; a Zoe provavelmente conseguiria convencer-me de que fazer umas férias na Antártida em pleno inverno é uma
boa ideia. Caramba, provavelmente, se ela fosse, eu também reservaria um bilhete para mim.
Leva-me para um campo de golfe coberto de neve, um sítio habitualmente frequentado por crianças da escola do primeiro ciclo que arrastam os seus tubos insufláveis
para o cimo da colina e depois agarram as pernas e os braços uns dos outros antes de escorregarem encosta abaixo, unidos como átomos numa molécula gigante. A Zoe
abre a janela, para podermos ouvir as vozes deles.
"Bolas, foi espetacular."
"Quase esbarraste com aquela árvore!"
"Viram o salto que eu dei?"
"Da próxima vez, sou eu primeiro."
- Lembra-se - pergunto - quando a parte mais trágica do dia era ficar a saber que o almoço na cantina era rolo de carne?
- Ou como era acordar e descobrir que estava a nevar?
- Por acaso - admito -, ainda faço isso.
A Zoe observa as crianças fazerem outra corrida.
-Quando estava no hospital, sonhei com uma menina. Estávamos num trenó Flexible Flyer e eu segurava-a à minha frente. Era a primeira vez que ela andava de trenó.
Foi tão, tão real. Quero dizer, tinha os olhos a lacrimejar por causa do vento, e as faces vermelhas do frio, e
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aquela menina... sentia o cheiro do champô nos cabelos dela. Sentia o coração dela a bater.
Então foi por isso que me levou à colina, que está a observar estas crianças como se depois lhe fossem fazer perguntas acerca das feições delas.
- Calculo que não a conhecesse?
- Não. E agora nunca vou conhecer.
- Zoe... - pouso-lhe a mão no braço.
- Sempre quis ser mãe - diz ela. - Achei que era porque queria ler histórias à hora de dormir ou ver a minha filha cantar no coro da escola, ou comprar-lhe um vestido
para o baile de finalistas... sabe, as coisas que me lembro de deixarem a minha mãe tão feliz. Mas a verdadeira razão acabou por ser egoísta. Queria alguém que crescesse
e se tornasse no meu ponto de apoio, sabe? - diz ela. - Que telefonasse todos os dias para saber se eu estou bem. Que fosse à farmácia a meio da noite quando estivesse
doente. Que sentisse a minha falta, quando eu estivesse longe. Que tivesse de amar-me, acontecesse o que acontecesse.
"Eu podia ser essa pessoa."
Atinge-me como um furacão: a perceção de que o que achei que era amizade - pelo menos da minha parte - afinal é algo mais. E a certeza de que o que quero da Zoe
é algo que nunca vou obter.
Já passei por isto antes, por isso sei como agir, como fingir. Afinal, prefiro muito mais ter uma parte dela do que absolutamente nada.
Por isso afasto-me da Zoe, deixando o meu braço cair, criando intencionalmente espaço entre nós.
- Bem - digo, forçando um sorriso. - Acho que só lhe resto eu.
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O ÚLTIMO AMOR DE ZOE
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ZOE
A minha primeira grande amizade foi fruto da proximidade. A Ellie morava do outro lado da rua numa casa que sempre pareceu um pouco gasta, com as suas estruturas
pendentes para recolher a água debaixo das janelas e tábuas de madeira corroídas. A mãe dela era sozinha, como a minha, apesar de se dever a uma escolha e não ao destino. Trabalhava numa companhia de seguros e usava sapatos de salto baixo e fatos largos para ir para o escritório, mas lembro-me de vê-la colocar pestanas postiças glamorosas e ripar os cabelos antes de ir a uma discoteca aos fins de semana.
Eu era completamente diferente da Ellie, que - aos onze anos - era uma rapariga deslumbrante com raios de sol entrelaçados nos cabelos ondulados e longas pernas de potro permanentemente bronzeadas. O quarto dela estava sempre desarrumado, e ela tinha de atirar montes de roupas, livros e peluches para o chão para podermos ter um sítio onde nos sentarmos em cima da cama. Não tinha problemas nenhuns em ir ao roupeiro da mãe e pegar em roupas "emprestadas" para se arranjar ou borrifos de perfume. Lia revistas, nunca livros.
Mas uma coisa que a Ellie e eu tínhamos em comum era o facto de, entre todos os alunos da nossa turma, sermos as únicas que não tínhamos pai. Até aqueles cujos pais estavam divorciados viam o pai com quem não viviam aos fins de semana ou nas férias, mas a Ellie e eu não. Como é óbvio, eu não podia. E a Ellie não conhecia o pai. A mãe da Ellie referia-se
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a ele como o Tal, num tom de reverência que me fazia pensar que devia ter morrido jovem, como o meu pai. Anos mais tarde, fiquei a saber que afinal não era nada disso; que o Tal era um homem casado que enganava a mulher mas não queria deixá-la.
A irmã mais velha da Ellie, a Lila, devia ficar a tomar conta de nós nas noites em que a mãe saía, mas a Lila passava o tempo todo no quarto com a porta fechada. Não podíamos ir incomodá-la, e na maior parte das vezes não incomodávamos, apesar de ela ter uns posters fluorescentes mesmo fixes que brilhavam à luz negra atrás da cama. Em vez disso, preparávamos sopa Campbell e víamos filmes de terror nos canais premium da televisão por cabo, tapando os olhos do ecrã.
Podia contar tudo à Ellie. Como às vezes acordava a gritar por ter tido um pesadelo em que a minha mãe também tinha morrido. Ou que me preocupava por não vir a ser muito boa a nada, e quem queria ser mediana a vida toda? Confessei que tinha fingido uma dor de estômago para me escapar ao teste de matemática e que uma vez tinha visto o pénis de um rapaz no campo de férias, quando os calções de banho dele escorregaram num mergulho. Nas noites dos dias de aulas telefonava antes de adormecer e, de manhã, ela telefonava-me para me perguntar de que cor era a camisola que tinha vestida, para irmos a condizer.
Num fim de semana, quando fui dormir a casa da Ellie, saí da cama que partilhávamos e esgueirei-me pelo corredor. A porta do quarto da mãe estava aberta, apesar de passar das três da manhã. A porta da Lila estava fechada, como era habitual, mas via-se uma linha de luz roxa a sair lá de baixo. Girei a maçaneta, interrogando-me se ainda estaria acordada. Lá dentro, o quarto era mágico - enevoado de incenso e focos de luz cor da alfazema, aqueles posters 3-D que pareciam ganhar vida. Um deles, uma caveira com olhos de roseta, parecia estar a avançar na minha direção. A Lila estava deitada na cama de olhos bem abertos, com uma tira de borracha atada à volta do braço, como aquelas que tinha visto no consultório do médico quando uma vez tive de fazer uma análise ao sangue. Tinha uma seringa na palma da mão aberta.
Tinha a certeza de que estava morta.
Avancei um passo. A Lila estava incrivelmente imóvel, e ligeiramente azulada à luz fantasmagórica. Pensei no meu pai, e
como desfaleceu no relvado.
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Estava a juntar os fios soltos de um grito na garganta, quando de repente a Lila se virou num movimento lânguido, assustando-me terrivelmente.
- Desaparece, sua ranhosa - disse ela, e as palavras eram ténues como bolhas, rebentando assim que chegaram ao ar.
Não me lembro do resto da noite. Só sei que fui a correr para casa, apesar de serem três da manhã.
Depois do que aconteceu, a Ellie e eu nunca mais fomos realmente amigas.
Quando estava no liceu, a minha mãe costumava inventar nomes alternativos para as raparigas que convidava para nossa casa. A Robin transformava-se em Bonnie, a Alice
tornava-se Elise, a Suzy tornava-se Julie. Por muitas vezes que a corrigisse, ela preferia dar àquelas raparigas nomes com os quais se sentisse à vontade, em vez dos nomes verdadeiros. Passado um tempo, as minhas amigas até passavam a responder aos nomes que ela lhes chamava.
É por isso que para mim é tão extraordinário a minha mãe nunca - nem uma única vez - ter confundido o nome da Vanessa. As duas deram-se bem
logo que se conheceram. Têm infinitas coisas em comum; e parece que acham engraçado que isso me faça enlouquecer.
Já se passaram dois meses desde que a Vanessa e eu nos encontrámos na Y, e ela assumiu naturalmente o papel de minha melhor amiga numa altura em que precisava desesperadamente de uma - visto que o meu ex-melhor amigo por acaso se divorciou de mim. Uma amizade tem muito em comum com um romance - a novidade e o brilho a esmorecerem-se
para se tornarem em algo confortável e previsível, como o casaco de malha que tiramos da gaveta num domingo chuvoso porque precisamos de nos envolver numa coisa confortável e familiar. É à Vanessa que telefono quando estou a adiar o facto de ter de organizar os meus impostos; quando estou a passar pelos canais e encontro o Dança Comigo no TNT e não consigo deixar de ver; quando o sem abrigo que costuma estar à frente do Dunkin' Donuts olha para a nota de cinco dólares que lhe dei e pergunta se não posso trocar por notas de um dólar. É a ela que telefono quando estou aborrecida no trânsito na 1-95, e quando estou a chorar porque um paciente de dois anos com queimaduras em mais de oitenta por cento do
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corpo morre a meio da noite. Programei o número de telemóvel dela no meu telemóvel, na tecla de marcação direta que era do Max.
Em retrospetiva, é fácil ver como cheguei a um ponto em que não tinha nenhuma amiga. Há aquela mudança necessária depois do casamento, quando o nosso confidente
passa a dormir connosco à noite. Mas então as outras mulheres que eu conhecia começaram a ter bebés, e eu distanciei-me delas por autopreservação e inveja. O Max era o único que entendia o que eu desejava e precisava tanto. Pelo menos era isso que dizia para comigo.
É isto que as amigas fazem por nós: elas dão-nos a noção de realidade. São elas que nos dizem que temos espinafre entre os dentes, ou que um par de calças de ganga nos faz o rabo grande, ou que estamos a ser cabras. Dizem-nos, e não há dramas nem segundas intenções, como se a mensagem tivesse vindo do nosso marido. Dizem-nos porque precisamos de ouvir, mas isso não altera a nossa relação. Acho que, até agora, não me apercebi da falta que isso me fazia.
Neste instante, a Vanessa e eu estamos quase a chegar atrasadas ao cinema porque a minha mãe está a falar numa inovação que fez com uma das clientes.
- Então, comprei duas dúzias de tijolos e coloquei-os no porta-bagagem - diz a minha mãe. - E depois, quando chegámos ao promontório, disse à Deanna que escrevesse em cada um deles com um marcador... palavras-chave, sabem, que simbolizassem a bagagem emocional dela.
- Genial - diz a Vanessa.
-Acha? Então ela escreve "O meu ex-marido" num deles. E "Nunca
cheguei a fazer as pazes com a minha irmã" noutro. E "Não perdi aqueles últimos dez quilos depois de ter filhos", e assim em diante. Estou a dizer-Ihe, Vanessa, ela gastou três marcadores. E depois levei-a até à beira do precipício e disse-lhe para lançar os tijolos, um de cada vez. Disse-lhe que, assim que caíssem na água, aquele peso ia sair-lhe de cima dos ombros
para sempre.
- Espero bem que não houvesse uma migração de baleias-de-bossa lá em baixo - murmuro, batendo impacientemente com o pé. - Olhem, detesto ter de interromper a sessão de desenvolvimento profissional, mas estamos quase a perder o princípio do filme...
A Vanessa levanta-se.
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- Acho que é uma excelente ideia, Dará - diz ela. - Devia colocá-la por escrito e enviá-la a uma revista profissional.
As faces da minha mãe ficam rosadas.
- A sério?
Agarro na mala e no casaco.
- Sais sozinha? - pergunto à minha mãe.
- Não, não - diz ela, levantando-se. - vou para casa.
- Tem a certeza de que não quer ir connosco? - pergunta a Vanessa.
- Tenho a certeza de que a minha mãe tem coisas mais interessantes para fazer - apresso-me a dizer, e dou-lhe um abraço breve. - Telefono amanhã de manhã - digo, e arrasto a Vanessa para fora do apartamento.
A meio caminho do carro, a Vanessa dá meia volta.
- Esqueci-me de uma coisa - diz ela, atirando-me as chaves. - Volto já - por isso entro no descapotável e ligo o motor. Estou a percorrer as estações de rádio quando ela se senta no lugar do condutor. - Pronto - diz a Vanessa, saindo da via de acesso de marcha atrás. - Por que estás assim de tão mau humor?
- Bem, onde estavas com a cabeça quando convidaste a minha mãe para vir connosco?
- Ela está sozinha num sábado à noite...?
- Tenho quarenta anos, Vanessa... não quero sair com a minha mãe!
- Se não pudesses, querias - diz a Vanessa.
Olho para ela. No escuro, o reflexo do espelho retrovisor projeta-lhe uma máscara amarela à volta dos olhos.
- Se sentes assim tanta falta da tua mãe, podes ficar com a minha - digo.
- Só estou a dizer que não tens de ser assim tão má.
- Bem, e tu também não tens de apoiá-la. Achaste realmente que o exercício dos tijolos foi uma boa ideia?
- Claro. Eu própria o usaria, mas acho que provavelmente os miúdos escreveriam os nomes dos professores nos tijolos que fossem lançar, e isso não seria muito construtivo - para num sinal de stop e vira-se para mim. Sabes, Zoe, a minha mãe costumava contar-me a mesma história cinco vezes. Sem falhar. Eu estava constantemente a dizer "Sim, Mãe, eu sei", e a revirar os olhos. E agora... nem sequer me lembro da voz dela. Às vezes acho que a tenho na minha cabeça, mas desvanece-se antes de conseguir ouvi-la. Às vezes,
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vejo cassetes de vídeo antigas só para não me esquecer completamente do som da sua voz, e ouvi-la dizer-me para ir buscar uma colher para servir as batatas, ou cantar os "Parabéns a Você". Agora, era capaz de matar para que ela me contasse uma história cinco vezes. Até me contentava só com uma.
A meio da história dela, sei que vou ter de ceder.
- É isto que costumas fazer com os miúdos lá na escola? - suspiro. Fazê-los ver por si próprios que são pessoas mesquinhas e cruéis?
- Se achar que resulta - diz ela, sorrindo. Ligo o telemóvel.
- vou dizer à minha mãe que venha ter connosco ao cinema.
- Ela já vem aí. Foi por isso que voltei para casa... para convidá-la.
- Tinhas assim tanta certeza de que eu ia mudar de ideias?
- Por favor - ri a Vanessa. - Até sei o que vais pedir ao balcão do bar. Provavelmente sabe. A Vanessa é assim - se dissermos qualquer coisa
uma vez, ela grava-o na memória para poder ter essa referência quando for necessário. Como quando uma vez referi que não gosto de azeitonas, e depois, passado um mês, quando nos deram um cesto com pão de azeitonas ela pediu bolachas de água e sal antes que eu conseguisse sequer fazer algum comentário.
- Para que fique esclarecido - digo eu -, ainda há muitas coisas que não sabes acerca de mim.
- Pipocas, sem manteiga - diz a Vanessa. - Sprite - franze os lábios.
- E amendoins cobertos de chocolate, porque se trata de uma comédia romântica e as comédias românticas nunca são tão boas sem chocolate.
Ela tem razão. Mesmo nos chocolates.
Não é a primeira vez que penso que, se o Max fosse assim tão observador e atento como a Vanessa, provavelmente ainda estaria casada.
Quando paramos em frente ao cinema, fico espantada por ver uma multidão. O filme já estreou há algumas semanas - é uma comédia romântica tola e efervescente. O outro filme que está em cartaz é um filme independente chamado July que tem tido muita publicidade, porque uma cantora pré-adolescente muito popular participa nele, e
por causa do tema: em vez de ser uma tragédia com o Romeu e a Julieta... é uma história de amor entre a Julieta e a Julieta.
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A Vanessa vê a minha mãe do outro lado da multidão e acena-lhe.
- Acreditas nisto? - diz ela, olhando em volta.
Já vi alguns artigos escritos sobre o filme e a controvérsia que o rodeia. Começo a interrogar-me se não devíamos ir ver esse filme, só pela sua atração popular. Mas, à medida que nos aproximamos do cinema, apercebo-me de que as pessoas ali reunidas não estão na fila das bilheteiras. Estão ao lado dela, e trazem cartazes:
"DEUS ODEIA BICHAS"
"GAYS: DEUS ACHA-VOS UMA ABERRAÇÃO"
"ADÃO E EVA, E NÃO ADÃO E IVO"
Não são militantes, pessoas doidas. Os manifestantes são calmos e organizados, e vestem fatos pretos com gravatas brilhantes, ou modestos vestidos florais. Parecem os nossos vizinhos, a nossa avó, a nossa professora de História. Suponho que nisso tenham alguma coisa em comum com as pessoas que estão a difamar.
Ao meu lado, sinto as costas da Vanessa ficarem rígidas.
- Podemos ir embora - murmuro. - Vamos alugar um filme e vê-lo em casa. Mas, antes que consiga afastar-me, ouço alguém chamar o meu nome. -Zoe?
De início, não reconheço o Max. Afinal, a última vez que o vi estava embriagado e desalinhado, a tentar explicar a uma juíza por que razão devia dar-nos o divórcio. Tinha ouvido dizer que ele tinha começado a frequentar a igreja do Reid e da Liddy, mas não estava à espera de uma transformação assim tão... radical.
O Max veste um fato escuro e uma gravata antracite. Tem os cabelos bem aparados, e a barba feita. Tem um alfinete na lapela do casaco: uma pequena cruz dourada.
- Uau - digo. - Estás com ótimo aspeto, Max.
Executamos uma dança desajeitada, em que nos movimentamos um em direção ao outro para nos beijarmos na face, mas depois eu afasto-me, e ele afasta-se; e ambos ficamos a olhar para o chão.
- Tu também - diz ele.
Traz uma bengala.
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- O que aconteceu? - pergunto. Parece impossível eu não saber. Que o Max se tivesse magoado e que ninguém me tivesse dito nada.
- Não é nada. Um acidente - diz o Max.
Interrogo-me sobre quem terá cuidado dele, quando se magoou.
Atrás de mim, estou muitíssimo consciente da presença da minha mãe e da Vanessa. Sinto a presença delas como o calor vindo de uma lareira. Alguém à frente da fila compra um bilhete para july, e os protestos sobem de tom, com cânticos, gritos e agitação de cartazes.
- Ouvi dizer que agora fazes parte da Glória Eterna - digo.
- Por acaso, é uma parte de mim - responde o Max. - Deixei que Jesus
entrasse no meu coração.
Diz isto com um sorriso branco radioso, da mesma forma que diria "Esta tarde pus cera no carro" ou "Acho que vou comer comida chinesa ao jantar". Como se isso fizesse parte de uma conversa normal do dia a dia em vez de ser uma afirmação que nos faz fazer uma pausa. Fico à espera que o Max faça um risinho desdenhoso - às vezes troçávamos do Reid e da Liddy por causa das afirmações de louvor que lhes saíam da boca - mas ele não o faz.
- Andas outra vez a beber? - pergunto, a única explicação que consigo arranjar para reconciliar o homem que conheço com aquele que tenho à minha frente.
- Não - diz o Max. - Nem uma gota.
Talvez não de álcool, mas para mim é bastante claro que o Max tem andado a emborcar o refrigerante que a Igreja da Glória Eterna está a oferecer, seja ele qual for. Há qualquer coisa nele que não bate certo - qualquer coisa ao estilo de Stepford. Preferia o Max com todas as suas imperfeições complicadas. Preferia o Max quando troçávamos da Liddy por dizer "Valha-me Deus" quando estava frustrada, por ser suficientemente crédula para acreditar quando ele lhe dizia que o Rick Warren estava a preparar-se para uma campanha presidencial.
vou ser absolutamente sincera: não sou uma pessoa religiosa. Não censuro as pessoas por acreditarem naquilo que quiserem acreditar, mas não gosto que me venham impingir essas crenças. Por isso, quando o Max diz "Tenho rezado por ti, Zoe", não faço absolutamente ideia do que dizer. Isto é, simpático que rezem por nós, acho eu,
apesar de nunca ter pedido isso.
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Mas será que quero que um grupo de pessoas que se servem de Deus para camuflar uma mensagem de ódio rezem por mim? Há lindas adolescentes sadias à frente da bilheteira
a distribuírem panfletos que dizem: "EU NASCI LOIRA. VOCÊS ESCOLHERAM SER GAYS." Apercebo-me de que a preocupação linear delas, o facto de alegarem ser "Boas Cristãs", é a cobertura num bolo aromatizado com arsénico.
- Porque fazes uma coisa destas? - pergunto ao Max. - Porque te importas com um filme?
- Talvez eu possa responder a isso - diz um homem. Tem uma cascata de cabelos brancos e é quase quinze centímetros mais alto do que o Max; acho que o reconheço das
notícias como sendo o pastor desta igreja. Não estaríamos aqui se os homossexuais não estivessem a promover os seus próprios interesses, o seu próprio ativismo.
Se não fizermos nada, quem irá defender os direitos da família tradicional? Se não fizermos nada, quem irá garantir que o nosso grande país não se torna num sítio onde o Joãozinho tem duas mães e onde o casamento é o que Deus quis que fosse: entre um homem e uma mulher? - a voz dele subiu de tom.
- Irmãos e irmãs... estamos aqui porque os cristãos se tornaram numa minoria! Os homossexuais alegam ter o direito de serem ouvidos? Bem, os cristãos
também!
Ouve-se um brado vindo dos membros da congregação, que erguem os cartazes bem alto.
- Max - diz o pastor, atirando-lhe um molho de chaves -, precisamos de outra caixa de panfletos da carrinha.
O Max acena com a cabeça e depois vira-se para mim.
- Fico muito satisfeito por estares bem - diz ele, e pela primeira vez desde que começámos a conversar, acredito no que diz.
- Também fico satisfeita por estares bem - quero dizer, mesmo que tenha seguido por um caminho que eu nunca seguiria. Mas de certa forma, para mim esta é derradeira justificação, a prova de que a nossa relação nunca poderia ser reatada. Se era este o caminho que o Max ia seguir, eu nunca teria desejado acompanhá-lo.
- Não vais ver Juíy, espero - diz o Max, e esboça aquele sorriso que me fez apaixonar-me por ele.
- Não. O filme com a Sandra Bullock.
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- Boa escolha - responde o Max. Impulsivamente, inclina-se para a frente e beija-me na face. Inspiro o aroma do champô dele e a imagem de um frasco no duche atinge-me visceralmente, com a sua tampa azul e um pequeno autocolante sobre o óleo de chá verde e as suas propriedades benéficas. - Penso em ti todos os dias... - diz o Max.
Afastando-me, sinto-me subitamente tonta; questiono-me se isto será o fantasma de um velho amor.
- ... penso em como serias muito mais feliz se deixasses Deus entrar na tua vida - termina o Max.
E, sem mais nem menos, sinto-me firmemente assente na realidade.
- Quem és tu? - murmuro, mas o Max já virou costas, dirigindo-se para o parque de estacionamento para fazer o que o pastor lhe disse.
O bar chama-se Atlantis e é tragicamente popular, situado num novo hotel boutique em Providence. Um projetor faz ondular cores nas paredes, para simular um ambiente submarino. As bebidas são todas servidas em vidro azul-cobalto, e as mesas são feitas de coral falso, com almofadas semelhantes a anémonas de cores vivas. O centro da
sala é um enorme aquário, onde os peixes tropicais nadam com uma mulher enfiada numa cauda de sereia de silicone e com um sutiã feito
de conchas.
Felizmente, a minha mãe decidiu ir para casa depois do filme, deixando-nos sozinhas para ir tomar uma bebida. Fico fascinada pela mulher que está no aquário.
- Como consegue respirar? - pergunto em voz alta, e depois vejo-a sorver sub-repticiamente um trago de oxigénio de um aparelho de mergulho que esconde na mão, ligado ao equipamento na parte de cima do aquário.
- Eu estava certa - diz a Vanessa. - Existe mesmo uma carreira para as mulheres que sonhavam ser sereias quando eram pequenas.
Uma empregada traz-nos as bebidas e uma mistura de frutos secos servida numa grande concha, como seria de prever.
- Estou mesmo a ver que isto vai passar de moda muito rapidamente
- digo.
- Não sei. Li que na China os restaurantes temáticos são a sensação do momento. Há um que só serve jantares de comida congelada. E outro
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que só tem comida medieval, e temos de comer com as mãos - olha para mim. - Mas estou ansiosa por ir ao restaurante pré-histórico. Servem
carne crua.
- Temos de ser nós próprias a matar? Vanessa ri.
- Talvez. Imagina ser a anfitriã: "Hum, minha senhora, fizemos uma reserva na mesa dos caçadores, mas em vez disso estamos sentados na dos recoletores" - ergue o copo, um martíni turvo que me sabe a diluente (quando disse isto à Vanessa, ela perguntou: "Quando é que bebeste diluente?"), e faz um brinde. - À Glória Eterna. Que um dia consigam separar a Igreja do Ódio.
- Não compreendo as pessoas que se queixam dos misteriosos "interesses dos homossexuais" - diz a Vanessa, pensativa. - Sabes quais são os interesses dos meus amigos homossexuais? Passar tempo com a família, pagar as contas e comprar leite a caminho de casa, depois do trabalho.
- O Max era alcoólico - digo bruscamente. - Desistiu da faculdade por causa da bebida. Costumava ir surfar sempre que se reuniam as condições certas. Costumávamos discutir porque ele devia estar a gerir um negócio, e depois descobria que tinha deixado os clientes pendurados por causa de umas ondas de três metros.
A Vanessa pousa o copo e olha para mim.
- O que eu quero dizer - continuo - é que ele nem sempre foi assim. Até aquele fato... não me parece que tenha tido mais do que um blusão enquanto fomos casados.
- Parecia um agente da CIA - diz a Vanessa. Os meus lábios contorcem-se.
- Só lhe faltava um auricular.
- Tenho a certeza de que Deus tem ligação sem fios.
- As pessoas não devem acreditar naquela retórica - digo. - Será que há alguém que leve o Clive Lincoln a sério?
Vanessa passa o dedo pela borda do copo de martíni.
- Ontem fui à mercearia e a carrinha pickup que estava ao lado do meu carro tinha um autocolante no para-choques. Dizia: "SALVEM os VEADOS... MATEM AS BICHAS" - olha para cima. - Por isso, sim. Acho que há pessoas que o levam a sério.
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- Mas nunca pensei que o Max fosse uma delas - hesito. - Achas que a culpa é minha?
Estou à espera que a Vanessa rejeite imediatamente a ideia, mas, em vez disso, fica um instante a pensar.
- Se não estivesses a tentar recompor-te depois de teres perdido o bebé, talvez tivesses conseguido ajudar o Max quando ele precisava. Mas parece-me que o Max já não estava bem quando o conheceste. E se for esse o caso, por muito que tentasses ajudá-lo, mais tarde ou mais cedo ele ia voltar a ir-se abaixo - agarra no copo e esvazia-o. - Sabes o que tens de fazer? Tens de te afastar.
- De quê?
- Do Max, claro. Sinto as faces arder.
- Não estou agarrada a ele.
- Olha, já percebi. É natural, visto que os dois...
- Ele nem sequer era do meu género - digo bruscamente, e depois de dizê-lo apercebo-me de que é verdade. - O Max era... bem, era completamente diferente do tipo de rapazes que normalmente se interessavam por mim.
- Queres dizer alto, forte e sexyl
- Achas? - pergunto, surpreendida.
- O facto de não ter arte moderna pendurada nas paredes de casa não significa que não saiba apreciá-la - diz a Vanessa.
- O Max estava sempre a tentar ensinar-me futebol americano, e eu detesto futebol americano. Todos aqueles homens amontoados uns em cima dos outros em cima da relva artificial. E o basquetebol não tem sentido. Nem sequer é preciso assistir a um jogo inteiro... os últimos dois minutos são sempre decisivos. E era desarrumado. Era capaz de deixar um melão em cima da bancada depois de cortar uma fatia e à noite a cozinha estava cheia de formigas. E guardava ressentimentos como ninguém. Só percebia que ele estava zangado passados seis meses, quando abordava o assunto durante uma discussão sobre qualquer coisa completamente diferente.
- Mas casaste-te com ele - faz notar a Vanessa.
- Bem - respondo. - Sim.
- Porquê?
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Nem sequer sei como hei de responder a isso.
- Porque - digo por fim -, quando amamos alguém, não vemos as partes dele de que não gostamos.
- Parece-me que da próxima vez vais ter de procurar mesmo o que queres.
- Da próxima vez! - repito. - Não me parece. Acabaram-se as relações.
- A sério. Ficas na prateleira aos quarenta?
- Cala-te - digo. - Fala comigo quando te divorciares.
- Zo, eu até aceitaria isso, porque isso pelo menos implicaria que tinha o direito de me casar. A sério, olha à tua volta. Tem de estar aqui alguém que aches atraente...
- Não vou deixar que faças de casamenteira, Vanessa.
- Então diz-me só. Como exercício académico, claro...
- Dizer-te o quê?
- O que procuras.
- Por amor de Deus, Vanessa. Não faço ideia. Ainda não estou a pensar em nada disso.
Olho para a sereia. Está a fazer um intervalo, a emergir do aquário e a subir por uma escada. Quando chega lá acima, onde há um parapeito onde pode sentar-se, agarra numa toalha e seca-se antes de verificar o BlackBerry.
- Uma pessoa real - ouço-me dizer. - Uma pessoa que nunca tenha de fingir, e com quem eu nunca tenha de fingir. Alguém inteligente, mas que saiba rir de si próprio. Alguém que ouça uma sinfonia e comece a chorar, porque percebe que a música pode ser demasiado grandiosa para se descrever em palavras. Alguém que me conheça melhor do que eu me conheço a mim própria. Alguém com quem eu queira falar logo de manhã e à noite, ao deitar. Alguém que sinta que conheço desde sempre, mesmo que não conheça.
Quando acabo, olho para cima e vejo a Vanessa a sorrir para mim com
um sorriso trocista.
- Caramba - diz ela. - Ainda bem que ainda não estás a pensar nisto. Acabo de beber o vinho.
- Bem, tu é que perguntaste.
- Pois foi. Para que quando encontre o teu futuro esposo na rua, possa dar-lhe o teu número de telefone.
- Qual é a tua companheira perfeita? - pergunto.
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A Vanessa atira uma nota de vinte dólares para cima da mesa.
- Oh, eu não sou tão esquisita como tu. Mulher, desesperada, disposta
- olha para a sereia, que agora está a beber um copo de whisky com um ar sério. - Humana.
- És tão exigente - digo, rindo. - Como irás alguma vez encontrar alguém?
- É a história da minha vida - responde ela. - É a história da minha vida. Só quando chego a casa e estou deitada na cama é que me apercebo
de que a Vanessa nunca chegou a responder verdadeiramente à minha pergunta, pelo menos não de forma tão séria como eu respondi à dela.
E que - à exceção do pronome que utilizei - o perfil verbal que fiz do meu par perfeito na verdade descrevia a Vanessa.
Que músicas fariam parte de CD que o descrevesse?
É uma pergunta que eu fiz ao longo de toda a minha vida, para testar o caráter. Surgiu daquele velho disco "Witch Doctor" que fazia a minha mãe lembrar-se tanto do meu falecido pai. No caso dela, sem dúvida que esta seria uma das faixas. E "Always and Forever" - a música que ela e o meu pai dançaram no casamento deles - que, quando a ouviam na sua incarnação Muzak de elevador, não conseguiam resistir a circular nos braços um do outro, onde quer que estivessem e por muita gente que estivesse presente, o que para mim era simultaneamente mágico e embaraçoso. E uma canção dos Beatles - ela conta que dormiu à porta de um hotel onde estavam hospedados os Quatro Magníficos para a promoção de um filme, para poder vislumbrá-los quando fossem para o aeroporto. E Enya e Yanni, que agora usa para fazer uma meditação na respiração. A sério, se olharem para a lista de Favoritos no iPod da minha mãe, provavelmente conseguiriam traçar um perfil dela tão exato como se a conhecessem em pessoa.
Isto é válido para toda a gente: a música que escolhemos é um claro reflexo de quem verdadeiramente somos. Podemos ficar a saber muito acerca de uma pessoa que coloca Bon Jovi na sua lista de favoritos. Ou Weezer. Ou a gravação original de Bye Bye Birdie.
Primeiro usei o teste da lista de músicas para verificar a compatibilidade romântica no liceu, quando o meu namorado insistiu em ouvir uma faixa dos Journey vezes sem conta no rádio do carro sempre que estávamos a
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embaciar os vidros. Parava no meio do que quer que estivéssemos a fazer para cantar o refrão. Devia ter percebido que não devia confiar num homem que adorava baladas.
Depois disso, passei a perguntar a todos os meus potenciais interesses amorosos qual a sua hipotética lista de músicas. Dizia-lhes que não havia uma resposta certa, o que é verdade. No entanto, há algumas respostas claramente erradas:
"Crazy."
"Fm Too Sexy."
"Mmmbop."
"The Streak."
"Ali My Ex's Live in Texas."
A lista do Max era uma coleção de música country, um género de que nunca fui apreciadora. As músicas parecem ser sempre acerca da bebida e de serem abandonados pela mulher, ou então comparam as mulheres a grandes peças de maquinaria rural, como tratores e camiões. Conhecem aquela velha anedota sobre o cowboy e o motoqueiro que estão no corredor da morte, prontos para serem executados no mesmo dia? O guarda prisional pergunta ao cowboy qual é o seu último desejo, e ele implora ouvir a canção "Achy Breaky Heart" antes de morrer. O guarda pergunta então ao motoqueiro qual é o seu último desejo. "Morrer antes de ouvir essa canção", diz ele.
As pessoas mais interessantes que conheço são as que respondem à pergunta com músicas que nunca ouvi: grupos sul-africanos que cantam a cappdla, tocadores de tambor peruanos, músicos promissores de rock alternativo de Seattle, Jane Birkin, os Postelles. Quando estava em Berklee namorei com um rapaz cuja lista era totalmente composta por rap. Cresci nos subúrbios a ouvir Casey Kasem e não sabia muito acerca do hip-hop. mas ele explicou que tem as suas raízes nos contadores de histórias da África ocidental - cantores e poetas itinerantes que mantinham uma tradição oral secular. Mostrou-me músicas rap que eram comentários sociais. Ensinou-me a escrever ao meu ritmo, a sentir a poesia nas sílabas e o ritmo nos espaços entre as palavras. Ensinou-me que o que não era dito era tão importante como o que era.
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Por acaso, apaixonei-me completamente por ele.
Claro, assim que conheci o Max deixei de usar a pergunta para ficar a saber mais acerca de potenciais namorados, mas não me descartei do inquérito. Agora, faço-o aos meus clientes. Conheci pessoas cujas listas são clássicas; conheci pessoas que escolhem apenas heavy metal. Conheci motoqueiros corpulentos e tatuados que adoram ópera e avós que sabem as letras do Eminem de cor.
A música que ouvimos pode não definir quem somos.
Mas é um ótimo ponto de partida.
Em fevereiro, a Vanessa e eu inscrevemo-nos numa aula de Bikram ioga, aquelas que se realizam numa sala anormalmente quente. Vamos a uma sessão e vamo-nos embora no intervalo de cinco minutos a meio, certas de que estamos prestes a ter um AVC.
Por isso na semana seguinte telefono-lhe para lhe dizer que talvez a dança do ventre seja mais ao nosso gosto. Por acaso, somos bastantes boas nisso, mas as nossas colegas não são. Fomos expulsas pelo instrutor porque não conseguíamos parar de rir quando devíamos estar concentradas.
Aos sábados, adquirimos um hábito. A Vanessa vem a minha casa e traz café e bagds, e lemos o jornal à mesa da cozinha. Depois fazemos uma lista de tarefas que temos de realizar ao longo do fim de semana. Como eu, ela está demasiado ocupada aos dias de semana para ir à lavandaria, à mercearia ou aos correios, por isso juntamos os nossos destinos. Em vez de irmos sozinhas, é muito mais divertido deambularmos juntas pelos corredores do Walmart a discutir se a lingerie de tamanhos extra grandes da fada Sininho serve um nicho de mercado aberrante ou cria um.
Vamos ao mercado dos produtores - que vende sobretudo boiões de mel, velas de cera de abelhas e artesanato feito de lã fiada à mão, nesta altura do ano - e avançamos de banca em banca, a experimentar amostras grátis. Às vezes ficamos inspiradas e escolhemos uma receita do Cooking Light, e depois reunimos todos os ingredientes e passamos a tarde a preparar o soujlé ou guisado ou beef Wellington.
Num sábado, em princípios de março, fico sozinha. A Vanessa foi para São Francisco, ao casamento de uma amiga, o que é realmente bom - visto que tenho mais coisas para fazer do que o habitual. A aluna de que a Vanessa
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me falou há alguns meses - a Lucy DuBois - acabou de ter alta de um programa para adolescentes deprimidos internados no Hospital McLean. Vai voltar à escola, e eu vou começar a trabalhar com ela. Tenho estado a ler livros sobre os adolescentes e a depressão, e sobre a terapia musical nas perturbações de humor.
Prometi à Vanessa que vou buscar a roupa dela à lavandaria quando for buscar a minha, por isso dou um saltinho ao centro antes de me instalar a reler o processo escolar da Lucy. A dona da lavandaria é muito pequena, com uma rapidez de movimentos que me faz sempre lembrar um beija-flor.
- Hoje veio sozinha - diz ela, tirando-me os talões da mão e percorrendo o labirinto fantástico de cabides mecanizados. Na semana passada, quando a Vanessa disse que pareciam saídos de um filme do Tim Burton, a dona levou-nos para trás do balcão para vermos como serpenteavam lá atrás, como um fecho de correr gigante que atravessa todo o teto.
- Pois. Este fim de semana estou sozinha - respondo.
Ela entrega-me as minhas calças, e um bouquct de cores vivas das camisas da Vanessa. Entrego-lhe a roupa desta semana e meto os talões cor-de-rosa na mala.
- Obrigada - digo. - Até para a semana.
- Diga à sua companheira que eu mando cumprimentos! Fico imóvel enquanto estou a fechar a carteira.
- Ela não é... eu não sou... - abano a cabeça. - Sr.a Chin, a Vanessa e eu... somos só amigas.
Calculo que seja um engano natural. Já me vê com a Vanessa há algumas semanas; na verdade é maravilhoso pensar que o mundo mudou o bastante para que a dona de uma loja presuma que duas pessoas do mesmo sexo formem um casal.
Então porque estou a corar?
Ao levar a roupa para o carro, penso que na realidade é engraçado. Que quando contar à Vanessa, ela também vai achar graça.
Os últimos adolescentes com quem trabalhei faziam parte de um programa de diversão destinado a reunir membros de gangues rivais do centro da cidade. Anteriormente, estavam nas ruas a tentar matar-se
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uns aos outros. Quando lhes disse que íamos tocar tambor juntos, quase apertaram o pescoço uns aos outros, mas os guardas obrigaram-nos a sentar-se junto aos instrumentos de percussão que eu reunira: um djembé e um tubano, um conga, um ashiko e um djun-djun. Um por um, distribuí os instrumentos e, acreditem, um adolescente com um tambor nas mãos vai mesmo bater nele. Começámos a bater palmas num ritmo simples: clap-clap-clap; clap-clap-clap. Depois passámos aos tambores. Acabámos por percorrer todo o círculo para que cada jovem tivesse o seu momento a solo com um ritmo único.
Eis o que o círculo de tambores tem de bom: nunca ninguém tem de tocar sozinho. E todas as formas desadequadas de exprimir a raiva podem ser canalizadas para o movimento de bater no tambor num ambiente seguro e controlado. Antes que o grupo sequer se tivesse apercebido, estavam a criar uma música, e estavam a fazê-lo juntos.
Por isso, tenho de admitir, sinto-me bastante confiante em relação à minha primeira sessão com a Lucy DuBois. Uma das caraterísticas fantásticas da música é que acede a ambos os lados do cérebro - o lado esquerdo analítico e o lado direito emocional - e obriga a uma ligação. É assim que alguém que sofre um AVC e que não consegue dizer uma frase pode ser capaz de cantar uma letra; como um paciente que sofra de um caso grave de doença de Parkinson consegue usar a sequência e o ritmo inerente da música para se voltar a mover e dançar. Se a música consegue contornar a parte do cérebro que não está a funcionar corretamente para facilitar a ligação ao resto do cérebro nestas outras situações, deve ser capaz de fazer o mesmo por uma mente afetada pela depressão clínica.
Na escola, a Vanessa é diferente do que é quando estamos simplesmente uma com a outra. Veste calças de fato e blusas de seda de cores vivas como jóias, e tem um passo enérgico, como se estivesse cinco minutos atrasada. Quando passa por dois adolescentes a apalparem-se no corredor, separa-os com eficiência.
- Jovens - suspira, com uma autoridade discreta e despretensiosa -, é assim que querem fazer-me perder o meu tempo?
- Não, Dr.a Shaw - murmura a rapariga, e ela e o namorado seguem direções opostas no corredor, como dois imanes repelidos pela mesma polaridade.
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- Desculpa - diz a Vanessa, enquanto tento acompanhá-la. - No meu trabalho, as hormonas são ossos do ofício - sorri. - Então qual é o plano de atividades para hoje?
- Uma avaliação - digo-lhe. - O objetivo da terapia é entrar no processo em que a Lucy se encontra.
- Estou muito entusiasmada. Nunca te vi trabalhar antes - diz a Vanessa.
Paro de andar.
- Não sei se será uma boa ideia...
- Oh, tenho a certeza de que vai ser ótimo...
- Não é isso - interrompo. - Vanessa, é uma terapia. Se encaminhasses a Lucy para um psiquiatra, não estarias à espera de ficar a assistir à consulta, pois não?
- Pois. Já percebi - diz ela, mas percebo que ainda está aborrecida. Em todo o caso - a Vanessa começa a andar novamente a uma velocidade estonteante -, tenho uma sala para usar na ala das necessidades especiais.
- Olha, não quero que...
- Zoe - diz a Vanessa bruscamente. - Eu compreendo.
Digo para comigo que lhe explicarei mais tarde. Porque viramos uma esquina e entramos na sala reservada, e a Lucy DuBois está afundada numa cadeira.
Tem longas madeixas de cabelos ruivos, algumas delas presas sob a camisa de flanela aos quadrados. Os olhos são de um castanho sombrio, zangado. Tem as mangas arregaçadas para mostrar ténues cicatrizes vermelhas nos pulsos, como se nos estivesse a desafiar para fazermos algum comentário. Mastiga pastilha elástica, o que é proibido dentro da escola.
- Lucy - diz a Vanessa. - Deita a pastilha fora.
Ela tira-a da boca e esmaga-a na superfície da secretária.
- Lucy, esta é a Dra Baxter.
Pensei voltar ao meu apelido de solteira, Weeks, mas isso fez-me pensar na minha mãe. O Max tinha-me tirado muitas coisas, mas, legalmente, ainda podia usar aquele apelido, se quisesse. E uma rapariga que cresceu no fim do alfabeto não se descarta de ânimo leve de um apelido começado por B.
- Podes tratar-me por Zoe - digo.
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Tudo nesta rapariga é ostensivamente defensivo - desde os ombros curvados à sua recusa deliberada em olhar-me nos olhos. Reparo que tem uma argola no nariz - uma pequena argola de ouro que parece um efeito da luz à primeira - e o que parecem ser tatuagens nos nós dos dedos de uma das mãos.
Na realidade, são letras.
F.U.C.K.
Lembro-me de a Vanessa me dizer que a família da Lucy frequenta a Glória Eterna - a igreja ultraconservadora do Max. Tento imaginar a Lucy a distribuir panfletos
à porta do cinema juntamente com as adolescentes radiosas e radiantes que estavam lá na noite em que o Pastor Clive & Companhia organizaram a manifestação.
Será que o Max a conhece?
- Estou mesmo ansiosa por trabalhar contigo, Lucy - digo. Ela não mexe um músculo.
- Espero que prestes atenção à Zoe - acrescenta a Vanessa. - Queres fazer alguma pergunta antes de começarem?
- Quero - a cabeça da Lucy cai para trás, como um dente-de-leão demasiado pesado para o caule. - Se não vier a estas sessões, isso vai ficar registado no meu processo?
A Vanessa olha para mim e ergue as sobrancelhas.
- Boa sorte - diz, e fecha a porta atrás de si ao sair.
- Então - puxo uma cadeira para a frente da Lucy, para que ela seja obrigada a ver-me, e sento-me. - Estou muito satisfeita por poder trabalhar contigo. Alguém te
explicou o que é a terapia musical?
- Uma treta? - sugere a Lucy.
- É uma forma de utilizar a música para ter acesso a sentimentos que às vezes estão presos dentro de nós - digo, como se ela nem sequer tivesse falado. - Por acaso,
provavelmente já fazes um bocadinho disso sozinha. Toda a gente faz. Sabes quando tens um dia mau e só queres vestir o fato de treino e comer meio litro de gelado
de chocolate e chorar ao som da música "Ali by Myself"? Isso é terapia musical. Ou quando finalmente está calor suficiente para abrires os vidros do carro e poderes
aumentar o som do rádio e cantar ao som da música? Isso também é terapia musical.
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Enquanto falo, tiro um caderno para poder começar a fazer a minha avaliação. A ideia é assentar os comentários da cliente e as minhas impressões para mais tarde as reunir num documento clínico mais formal. Quando faço isto no hospital, é fácil - avalio o nível de dor do cliente, o estado de ansiedade, as expressões faciais.
Mas a Lucy é uma folha em branco.
Os olhos dela olham em frente por cima do meu ombro; esfrega distraidamente com o polegar as gravuras na secretária feitas a esferográfica por alunos entediados.
- Então - digo num tom animado. - Achei que hoje talvez me pudesses ajudar a ficar a saber um pouco mais sobre ti. Como, por exemplo, alguma vez tocaste um instrumento?
A Lucy boceja.
- Calculo que isso seja um não. Bem, algumas vez quiseste tocar um? Quando ela não responde, puxo a cadeira um pouco mais para a frente.
- Lucy, perguntei-te se alguma vez quiseste tocar um instrumento... Ela apoia a cabeça nos braços, fechando os olhos.
- Não faz mal. Muita gente nunca aprende a tocar instrumentos. Mas, sabes, se te interessares por isso enquanto trabalhamos juntas, posso ajudar-te. Sei tocar todos os instrumentos... Flautas de madeira, instrumentos de percussão, metais, teclas, guitarra... - olho para o meu caderno. Até agora só escrevi o nome da Lucy e mais nada.
- Todos os instrumentos - repete a Lucy num tom suave.
Fico tão entusiasmada por ouvir a voz rouca dela que quase caí da cadeira.
- Sim - repito. - Todos os instrumentos.
- Toca acordeão?
- Bem. Não - hesito. - Mas posso aprender contigo, se quiseres.
- Didgeridool
Uma vez tentei, mas não consegui controlar a técnica de respiração. -Não.
- Então, basicamente - diz a Lucy -, é uma mentirosa como toda a gente que já conheci.
Aprendi há muito tempo que o envolvimento - qualquer tipo de envolvimento, até a raiva - é melhor do que a total indiferença.
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- De que tipo de música gostas? Que tipo de música encontraria no teu iPod?
A Lucy voltou a mergulhar no silêncio. Agarra numa caneta e pinta um padrão elaborado na palma da mão, um emaranhado maori de curvas e espirais.
Talvez não tenha um iPod. Mordo o interior do lábio, zangada comigo própria por ter feito uma elação de caráter socíoeconómico de uma cliente.
- Sei que a tua família é muito religiosa - digo. - Ouves rock cristão? Talvez gostes de alguma banda em particular...?
Silêncio.
- Então e a primeira música pop cuja letra decoraste? Quando eu era pequena, a irmã mais velha da minha melhor amiga tinha um gira-discos, e costumava ouvir "Billy, Don't Be a Hero" repetidamente. Foi em 1974, e eram os Paper Lace que cantavam. Poupei a minha mesada para comprar um disco para mim. Até hoje, quando ouço essa música vêm-me as lágrimas aos olhos quando a rapariga recebe o bilhete a informá-la de que o namorado morreu - digo. - É engraçado... se eu pudesse escolher uma música para levar para uma ilha deserta, levaria essa. Acredita, desde essa altura já ouvi músicas muito mais complexas e melhores, mas por pura nostalgia, seria essa a receber o meu voto - olho para a Lucy. - E tu? Que música gostarias de levar se fosses abandonada numa ilha deserta?
A Lucy mostra-me um sorriso doce.
- The Very Best of David Hasselhoff - diz, e depois levanta-se. - Posso ir à casa de banho?
Fico a olhar para ela por um instante; a Vanessa e eu não falámos sobre se isso é permitido. Mas isto é uma sessão de terapia, não é nenhuma prisão e, além do mais, impedi-la de ir seria um castigo cruel e exagerado.
- Claro - digo. - vou ficar aqui à espera.
- Aposto que sim - murmura a Lucy, e sai porta fora.
Bato com os dedos na secretária e depois agarro na caneta. "A cliente mostra-se muito renitente em fornecer informações pessoais", escrevo.
"Gosta de Hasselhoff."
Depois risco essa última parte. A Lucy só disse isso para ver qual seria a minha reação.
Acho eu.
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Tinha tanta certeza de que conseguiria comunicar com a Lucy; nunca duvidei das minhas capacidades como terapeuta. Mas, por outro lado, ultimamente tenho trabalhado
ou com uma audiência cativa (os residentes do lar de idosos) ou com pessoas em tal sofrimento físico que a música só poderá ajudar, e não prejudicar (as vítimas de queimaduras). Mas o fator que eu não considerei, apesar de estar ansiosa por esta sessão, foi que a Lucy DuBois preferiria estar em qualquer lado menos aqui.
Passados alguns minutos começo a olhar para a sala à minha volta.
Apesar de a maior parte das crianças com necessidades especiais estar integrada no ensino normal, esta pequena sala de reuniões possui as instalações próprias para os que têm Programas Educativos Individuais: bolas para se sentarem em vez de cadeiras; minissecretárias onde os alunos podem ficar sentados ou trabalhar com outros; estantes de livros; recipientes cheios de bolas koosh, arroz e lixas. No quadro branco há uma única frase escrita: "Olá, lan!"
"Quem é o lan?", interrogo-me. "E o que lhe fizeram para que a Lucy e eu pudéssemos encontrar-nos?"
Apercebo-me de que já se passaram quinze minutos desde que a Lucy saiu para ir à casa de banho. Saio da sala e espreito para a casa de banho das raparigas do outro lado do corredor. Abro a porta e encontro uma rapariga debruçada para o espelho, a aplicar eyeliner preto.
Baixo-me, mas não há pés em nenhuma das casas de banho.
- Conheces a Lucy DuBois?
- Ha, sim - diz a rapariga. - É completamente esquisita.
- Ela entrou na casa de banho?
A rapariga abana a cabeça.
- Bolas - digo entre dentes, dirigindo-me novamente para o corredor. Olho para a sala onde estávamos, mas não sou suficientemente ingénua para achar que a Lucy está ali à espera.
vou ter de voltar para o gabinete principal e comunicar que a Lucy abandonou a sessão.
vou ter de dizer à Vanessa.
E depois vou fazer precisamente o que a Lucy disse: reduzir as minhas perdas e ir-me embora.
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Depois de ter falhado miseravelmente com a Lucy, a última coisa que desejo fazer é ir para casa. Sei que vou ter mensagens da Vanessa à minha espera - ela não estava no gabinete quando me fui embora, e por isso tive de deixar um bilhete a explicar e a pedir desculpa pela primeira sessão de terapia musical abortada. Desligo o telemóvel e dirijo-me para o sítio mais anónimo que conheço: o Walmart. Ficariam admirados com o tempo que conseguimos passar a percorrer os corredores, a olhar para os serviços Corelle com padrões de limões e limas, e a comparar os preços das vitaminas genéricas com os das de marca. Encho um carrinho com coisas de que não necessito: panos da loiça, uma lanterna de campismo, um BeDazzler; três DVDs de filmes com o Jim Carrey vendidos em conjunto por dez dólares, tiras branqueadoras de dentes Crest Whitestrips. Depois abandono o carrinho algures na secção de caça e pesca e abro uma espreguiçadeira. Sento-me e tento ler a última revista People.
Não sei bem porque é que o meu fracasso com a Lucy DuBois é tão esmagador. Já tive muitos outros clientes cujas consultas iniciais não foram um sucesso retumbante. O rapaz autista com quem trabalhei no mesmo liceu há um ano, por exemplo, limitou-se a ficar a balançar-se a um canto nas quatro primeiras visitas. Sei que, apesar
do que aconteceu hoje, que a Vanessa vai confiar na minha opinião se eu disser que da próxima vez será melhor. Vai perdoar-me por ter deixado a Lucy fugir; provavelmente
até vai culpar a rapariga em vez de me culpar a mim.
Não tenho medo que ela fique desiludida.
Só que não quero ser eu a desiludi-la.
- Desculpe - diz um empregado. Olho para cima e vejo o seu grande crachá do Walmart, os cabelos ralos. Fala devagar, como se eu fosse uma criança pequena, incapaz de compreendê-lo. - As cadeiras não são para sentar.
"Então para que serão?", interrogo-me. Mas limito-me a sorrir educadamente, levanto-me, volto a dobrar a cadeira e a colocá-la na prateleira.
Conduzo distraidamente durante meia hora e dou por mim no parque de estacionamento de um bar que fica apenas a quilómetro e meio de
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minha casa. Já trabalhei ali - primeiro como empregada de mesa, depois como cantora - antes de o Max e eu começarmos a tentar a fertilização in vitro. Então, passei a estar sempre cansada, ou tensa, ou ambas as coisas. Tocar guitarra acústica às dez da noite duas vezes por semana perdeu o encanto.
Está quase vazio, porque é quarta-feira, pouco depois da hora de jantar.
Também porque há um grande cartaz lá fora a dizer: "QUARTA-FEIRA É
NOITE DE KARAOKE."
O karaoke, na minha opinião, está na lista dos maiores erros alguma vez inventados, juntamente com o Windows Vista e o spray para disfarçar as carecas dos homens. Permite que as pessoas que normalmente só teriam coragem para cantar nos confins do seu duche com a água a correr com toda a força subam a um palco e tenham quinze minutos de fama duvidosa. Por cada atuação de karaoke verdadeiramente notável que ouvimos, há outras vinte terríveis.
Por outro lado, depois da minha quarta bebida em duas horas, estou quase a arrancar o microfone das mãos de uma senhora de meia-idade com uma permanente péssima. Digo para comigo que é porque se ela cantar mais uma música da Celine Dion vou ter de estrangulá-la com o tubo ligado ao barril de soda debaixo do bar. Mas é igualmente provável que precise de cantar porque sei que é a única coisa que poderá fazer-me sentir melhor.
A diferença entre os músicos e os terapeutas musicais é simples: uma mudança de foco daquilo que conseguimos tirar pessoalmente da música para o que conseguimos encorajar alguém a tirar. A terapia musical é a música sem o ego - apesar de a maior parte de nós continuar a aperfeiçoar as suas capacidades tocando em bandas comunitárias ou cantando em coros.
Ou, agora no meu caso, no karaoke.
Sei que tenho uma boa voz. E, num dia em que as minhas outras capacidades estão a ser postas em causa, é muito compensador ouvir os clientes do bar aplaudirem e pedirem que volte a cantar, que o empregado do bar me dê um copo para recolher as gorjetas.
Canto algo de Ronstad. Um pouco de Aretha. Qualquer coisa de Eva Cassidy. A dada altura, vou ao carro buscar a guitarra. Canto algumas
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canções que escrevi e tempero-as com um pouco de Melissa Etheridge e uma versão acústica de "Glory Days" de Springsteen. Quando canto "American Pie", tenho o bar todo a fazer coro comigo, e já não estou a pensar na Lucy DuBois.
Não estou a pensar em nada, ponto final. Estou apenas a deixar-me levar pela música, a ser eu própria. Sou uma vibração de som que desliza como um ponto por todas as pessoas que estão ali presentes, ligando-nos completamente.
Quando termino, todos aplaudem. O empregado do bar empurra outro gim tónico para a minha frente no balcão.
- Zoe - diz ele -, já era altura de voltares. Talvez devesse fazer isto mais vezes.
- Não sei, Jack. vou pensar.
- Aceitas pedidos?
Volto-me e vejo a Vanessa de pé junto ao banco, ao balcão.
- Desculpa - diz ela.
- Que versão? Brenda Lee ou Buckcherry? - fico à espera até ela ter subido para o banco ao lado do meu e pedido uma bebida. - Não vou
perguntar como me encontraste.
- Tens o único Jeep amarelo na cidade inteira. Até os helicópteros do trânsito conseguem encontrar-te - a Vanessa abana a cabeça. - Não és a primeira de quem a Lucy foge, sabes. Ela fez o mesmo ao psicólogo da escola, na primeira consulta.
- Podias ter-me dito...
- Tinha esperança de que desta vez fosse diferente - diz a Vanessa. Vais voltar?
- Queres que eu volte? - pergunto. - Quero dizer, se precisas apenas de alguém que a Lucy possa descartar, podia contratar um adolescente qualquer pelo salário mínimo.
- Da próxima vez vou amarrá-la à cadeira - promete a Vanessa. - E talvez possamos obrigá-la a ouvir aquela senhora a cantar Celine Dion.
Aponta para a mulher de meia-idade cuja carreira no karaoke interrompi.
-Já estás aqui há tanto tempo?
-Já. Porque não me disseste que eras capaz de cantar assim?
-Já me ouviste cantar centenas de vezes...
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- Por alguma razão, quando cantas o jingk de Hot Pockets, não consegues transmitir o verdadeiro alcance da tua voz.
- Costumava cantar aqui umas duas vezes por semana - digo-lhe. Esqueci-me do quanto gostava disso.
- Então devias voltar a fazê-lo. Até venho servir de público para que não tenhas de cantar para uma sala vazia.
Ao ouvi-la falar numa sala vazia lembro-me da sessão de terapia musical que a minha cliente abandonou. Abraço o braço do estojo da guitarra, como se estivesse a criar um escudo para mim própria.
- Achei mesmo que seria capaz de fazer com que a Lucy se abrisse. Sinto-me um fracasso.
- Não me parece que sejas um fracasso.
- O que pensas de mim? - as palavras saem-me da boca, antes sequer que eu queira que elas se libertem.
- Bem - diz a Vanessa devagar -, acho que és a pessoa mais interessante que já conheci. De cada vez que acho que já te percebi, fico a saber mais qualquer coisa sobre ti que me apanha completamente de surpresa. Como na semana passada, quando disseste que tinhas uma lista de todos os sítios onde desejavas ter ido quando eras mais nova. Ou que costumavas ver o Star Trek e decorar os diálogos de cada episódio. Ou que, agora apercebo-me disso, vais ser a próxima Sheryl Crow.
Agora o bar tem um brilho untuoso; tenho as faces afogueadas e sinto-me tonta apesar de estar sentada. Não bebia muito quando estava casada com o Max - por solidariedade, e depois porque queria engravidar - e assim o álcool que não estou habituada a beber ainda faz mais efeito no meu organismo. Estendo a mão à frente da Vanessa para alcançar a pilha de guardanapos que está ao lado da travessa das azeitonas, e os finos pelos do meu pulso tocam na manga da blusa de seda dela. Causa-me um arrepio.
- Jack - chamo. - Preciso de uma caneta.
O empregado do bar atira-me uma e eu desdobro o guardanapo de cocktaú e escrevo os números de um a oito numa lista.
- Que músicas - pergunto - é que colocarias numa lista que te descrevesse?
Sustenho a respiração, a pensar que ela vai começar a rir ou simplesmente amachucar o guardanapo, mas em vez disso a Vanessa tira-me a caneta da
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mão. Quando curva a cabeça em direção ao balcão do bar, a franja tapa-lhe um olho.
"Já reparaste que as casas das outras pessoas têm um cheiro particular?", perguntei da primeira vez que fui a casa da Vanessa.
"Por favor diz-me que o da minha não é qualquer coisa horrível, como salsichas."
"Não", disse eu. "Cheira a limpo. Como o sol nos lençóis." Depois perguntei-lhe a que cheirava o meu apartamento.
"Não sabes?"
"Não", expliquei-lhe. "Não consigo perceber porque vivo lá. Estou demasiado próxima."
"Tem o teu cheiro", disse a Vanessa. "O cheiro de um lugar de onde nunca ninguém quer ir embora."
Vanessa morde o lábio enquanto escreve a sua lista. Às vezes, semicerra os olhos, ou olha para o empregado do bar, ou faz-me uma pergunta retórica sobre o nome de uma banda antes de descobri-lo sozinha.
Há algumas semanas estávamos a ver um documentário que dizia que as pessoas mentem em média quatro vezes por dia. "São 1460 vezes por ano", fez notar a Vanessa.
Também fiz as contas. "Quase oitenta e oito mil vezes quando chegamos aos sessenta anos."
"Aposto que sei qual é a mentira mais comum", disse a Vanessa: "Estou bem."
Disse para comigo que tinha saído da escola sem esperar que a Vanessa voltasse ao seu gabinete porque ela estava ocupada. Tinha medo que ela pensasse que eu era uma péssima terapeuta musical. Mas tinha fugido porque queria ("desejava?") que ela viesse atrás de mim.
- Pronto - diz a Vanessa, e empurra o guardanapo de cocktail para a minha frente. Este ergue-se, como uma borboleta, e depois pousa no balcão.
Aimee Mann. Ani DiFranco. Damien Rice. Howie Day.
Tori Amos, Charlotte Martin, Garbage, Elvis Costello.
Wilco. The índigo Girls. Alison Krauss.
Van Morrison, Anna Nalick, Etta James.
Fico sem fala por um instante.
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- Sei que é estranho, não é? Colocar Wilco e Etta James no mesmo CD é como sentar o Jesse Helms e o Adam Lambert ao lado um do outro num jantar... mas senti-me culpada por ver-me livre de um deles - a Vanessa aproxima-se mais, apontando novamente para a lista. - Também não consegui escolher uma música em particular. Não será como perguntar a uma mãe de que filho gosta mais?
Teria colocado na minha lista todos os artistas que ela colocou na sua. No entanto sei que nunca partilhei essa informação com ela. Seria impossível, porque nunca cheguei a fazer a minha lista. Já tentei, mas nunca consegui acabar, pelo menos com todas as músicas que existem neste mundo.
Na música, o tom perfeito é a capacidade de reproduzir um som sem qualquer referência a um padrão externo. Por outras palavras - não há necessidade de catalogar ou designar as notas, podemos começar a cantar um dó sustenido, ou podemos ouvir um si e saber de que se trata. Podemos ouvir a buzina de um carro e saber que é um fá.
Na vida real, o tom perfeito é a capacidade de conhecer verdadeiramente alguém, melhor do que ela se conhece a si própria.
Quando o Max e eu éramos casados, estávamos sempre a discutir por causa do rádio do carro. Ele gostava de ouvir a NPR; eu gostava de ouvir música. Percebo que ao longo de todos os meses que já sou amiga da Vanessa, em todas as viagens de carro que já fizemos - desde a ida à padaria da vizinhança até uma viagem a Franconia Notch, New Hampshire
- nunca mudei a estação. Nem uma única vez. Nem sequer quis saltar alguma música de um CD que ela tivesse escolhido.
Seja que música a Vanessa ponha a tocar, eu quero continuar a ouvir.
Talvez tenha soltado algum som de surpresa, ou talvez não, mas a Vanessa vira-se, e por um instante ficamos paralisadas pela nossa proximidade.
- Tenho de ir embora - murmuro, afastando-me. Tiro todo o dinheiro que tenho no bolso e deixo-o amachucado em cima do balcão do bar, depois agarro no estojo da guitarra e apresso-me a dirigir-me para o parque de estacionamento. Quando abro a porta do carro, com as mãos ainda a tremer, vejo a Vanessa de pé à porta. Mesmo quando a porta está fechada e ligo o motor, sei que ela está a chamar-me.
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Na noite em que a Lila estava a injetar-se com heroína, havia uma razão para eu estar a deambular pela casa da Ellie.
Tinha acordado a meio da noite e vi a Ellie olhar para mim.
- O que foi? - perguntei, esfregando os olhos ensonados.
- Não ouves? - sussurrou ela.
- Ouvir o quê?
- Chiu - disse a Ellie, encostando um dedo aos lábios. Depois encostou
o mesmo dedo aos meus lábios.
Mas não ouvi nada.
-Acho...
Antes de poder terminar, a Ellie colocou-me ambas as mãos nas faces e beijou-me.
Naquele momento, ouvi tudo. Desde o som de baixo do meu sangue até ao som da casa a assentar, às mariposas a baterem com as pesadas asas nos vidros das janelas, a um bebé a chorar algures ao fundo do quarteirão.
Saltei da cama e comecei a correr pelo corredor. Sabia que a Ellie não ia chamar-me, porque ia acordar toda a gente. Mas afinal a mãe da Ellie ainda não estava em casa. E a Lila, a irmã da Ellie, estava a sofrer uma overdose no quarto quando entrei pela porta.
Na altura pensei que estava a fugir da Ellie, mas agora penso se não estaria a fugir de mim própria.
Não fiquei incomodada por a minha melhor amiga me ter beijado inesperadamente.
Fiquei incomodada porque também a beijei.
Conduzo sem rumo durante duas horas, mas acho que sei para onde me dirijo antes mesmo de lá chegar. Há uma luz acesa no piso superior da casa da Vanessa, por isso quando ela abre a porta não me sinto culpada por tê-la acordado.
- Onde estiveste? - diz ela bruscamente. - Não atendias o telemóvel. A Dará e eu temos tentado telefonar-te. Não chegaste a ir para casa...
- Temos de conversar - interrompo.
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A Vanessa afasta-se para eu poder entrar. Ainda tem as mesmas roupas que usou hoje na escola, e está com péssimo aspeto - tem os cabelos despenteados; ténues olheiras roxas debaixo dos olhos.
- Desculpa - diz ela. - Não queria que tu... não queria... - interrompe o que ia dizer, abanando a cabeça. - Zoe, não aconteceu nada. E prometo que não vai acontecer
nada, porque para mim a tua amizade é demasiado importante para arriscar perder-te por causa...
- Não aconteceu nada? Não aconteceu nada? - mal consigo respirar. - És a minha melhor amiga - digo. - Quero estar sempre contigo, e quando não estou, penso em estar
contigo. Não conheço ninguém, incluindo a minha mãe e o meu ex-marido, que me compreenda como tu me compreendes. Nem preciso de dizer uma frase em voz alta para
que tu consigas acabá-la
- fico a fitar a Vanessa até ela que ela me olhe nos olhos. - Por isso quando me dizes que não aconteceu nada, estás muito enganada, Vanessa, porque te amo. E isso quer dizer que aconteceu tudo. Tudo.
A Vanessa fica de boca aberta. Não mexe um músculo.
- Não... não percebo. -Já somos duas - admito.
Nunca conhecemos as pessoas tão bem quanto julgamos conhecer incluindo nós próprios. Não acredito que acordemos um dia e de repente sejamos homossexuais. Mas acredito que possamos acordar e apercebermo-nos de que não podemos passar o resto da vida sem uma certa pessoa.
Ela é mais alta do que eu, por isso tenho de me pôr em bicos de pés. Pouso-lhe as mãos nos ombros.
Não é como beijar um homem. É mais suave. Mais intuitivo. Mais igual.
Ela coloca as mãos no meu rosto, e a sala desaparece. Nunca me perdi tanto num beijo antes.
E depois, o espaço entre nós explode. O meu coração fica descompassado e as minhas mãos não conseguem aproximá-la o suficiente de mim. Provo-a, e percebo que estava faminta.
Já amei, mas não me senti assim.
Já beijei, mas não me queimou viva.
Talvez dure um minuto, talvez uma hora. Só me apercebo daquele beijo, da suavidade da pele dela ao roçar na minha, e que, apesar de não o saber, tenho estado à espera desta pessoa toda a minha vida.
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VANESSA
Quando era pequena, fiquei obcecada com os prémios que a comics Joe Bazooka oferecia. Um anel com banho de ouro com a minha
inicial, um conjunto mágico de química, um telescópio, uma bússola verdadeira. Lembram-se daqueles papéis onde vinham embrulhadas as pastilhas elásticas? O Bazooka estava coberto por uma camada de fino pó branco que se colava aos dedos quando líamos as piadas, que raramente tinham graça.
Cada prémio parecia mais mágico do que o anterior, e podia ser meu por uma pequena quantia e um número ridículo de comics Bazooka. Mas nada me fascinava tanto como aquele que encontrei no papel de uma pastilha na primavera de 1985. Se conseguisse juntar um dólar e dez cêntimos e sessenta e cinco comics Bazooka, podia ter o
meu par de óculos de visão raio X.
Durante uma semana inteira ia dormir à noite a pensar no que se poderia ver com visão raio X. imaginei as pessoas de roupa interior, esqueletos de cães a passearem
na rua, o interior dos estojos de jóias e de violinos. Interroguei-me se seria capaz de ver através das paredes, se saberia o que estava a acontecer na sala dos professores, se seria capaz de ler através da pasta que estava em cima da secretária da professora Watkins e ver as respostas para o teste de matemática. Havia um mundo de possibilidades na
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visão raio X, e eu sabia que não seria capaz de viver nem mais um dia sem ela.
Por isso comecei a poupar. Não demorei muito tempo a juntar um dólar e dez cêntimos, mas os comics Bazooka eram uma coisa completamente diferente. Comprei vinte pastilhas elásticas naquela semana com a minha semanada. Troquei o meu melhor cartão de basebol Topps - um do Roger Clemens, caloiro dos Red Sox - com o Joe Palliazo por dez comics Bazooka (ele andava a juntá-los para receber os anéis descodificadores). Deixei o Adam Waldman tocar-me na mama em troca de outras cinco (acreditem, não foi bom para nenhum de nós). Por fim, passadas algumas semanas, tinha comics e moedas suficientes para enviar para o endereço indicado. Dentro de quatro a seis semanas, aqueles óculos de visão raio X seriam meus.
Passei o tempo a imaginar um mundo em que conseguisse ver por baixo da superfície. Em que pudesse escutar as conversas dos meus pais sobre os presentes de Natal, em que visse o que havia no frigorífico sem ter de o abrir, em que fosse capaz de ler o diário da minha melhor amiga para ver se ela sentia por mim o que eu sentia por ela. Então, um dia, chegou uma simples caixa castanha com o meu nome. Rasguei-a para abri-la, tirei o plástico de bolhas de ar e tirei um par de óculos de plástico branco.
Eram demasiado grandes para mim e escorregavam-me pelo nariz. Tinham lentes ligeiramente opacas com um osso branco pouco nítido gravado a meio de cada uma. Quando os pus, tudo para que olhasse tinha aquele estúpido osso falso.
Não conseguia ver através de absolutamente nada.
Conto-vos isto como um aviso: cuidado com o que desejam. É inevitável que fiquem desiludidos.
Seria de pensar que, depois daquele beijo, tivesse havido algum pedido de desculpas, uma pausa desconfortável entre nós. E, de facto, no dia seguinte, depois de ter passado oito horas na escola a analisar cada momento daquele beijo (A Zoe estaria embriagada, ou apenas um pouco inebriada? Tê-la-ia encorajado, ou a ideia teria sido dela? Teria sido mesmo mágico, como eu achei que tinha sido, ou isso
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dever-se-ia à clareza da visão em retrospetiva?), encontrei-me com a Zoe no hospital onde ela estava a trabalhar com as suas vítimas de queimaduras. Disse às enfermeiras que ia fazer um intervalo de dez minutos, e caminhámos ao longo do corredor, suficientemente perto para darmos as mãos, mas não demos.
- Olha - disse eu, assim que ficámos lá fora longe dos ouvidos de todos que por acaso estivessem à escuta.
Não consegui dizer mais nada porque a Zoe se lançou para cima de mim. O beijo dela foi ardente.
- Meu Deus, sim - sussurrou junto dos meus lábios, quando nos afastámos. - Precisamente como me lembrava - depois olhou para mim, de olhos brilhantes. - É sempre assim?
Como podia responder a isso? Da primeira vez que beijei uma mulher, parecia que tinha sido lançada para o espaço. Era estranho e excitante, e parecia tão certo que nem acreditava que nunca o tivesse feito antes. Havia uma harmonia diferente dos beijos que dei a rapazes - mas não era suave e delicado. Era como o som surrond, um terramoto, intenso.
Mas dito isso, não era sempre assim.
Queria dizer à Zoe que, sim, parecia que tinha a pele em chamas porque estava a beijar uma mulher. Mas mais do que isso, queria dizer à Zoe que parecia que tinha a pele em chamas porque estava a beijar-me a mim.
Por isso não respondi. Limitei-me a tocar-lhe, a envolver a cabeça dela com as mãos e a beijá-la de novo.
Nos três dias seguintes, passámos horas no carro dela, no meu sofá e na arrecadação do hospital aos beijos, como adolescentes. Conheço cada centímetro da boca dela. Conheço aquele sítio no maxilar que quando tocado a faz estremecer. Sei que aquele recanto atrás da orelha cheira a limão e que tem um sinal com a forma do Massachusetts na nuca.
Ontem à noite, quando parámos, afogueadas e com a respiração acelerada, a Zoe disse:
- O que acontece a seguir?
E foi assim que acabámos onde agora estou: deitada na minha cama, completamente vestida, com a cortina dos cabelos da Zoe
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a cobrir-me o rosto ao beijar-me. com as mãos dela a moverem-se, hesitantes, por cima do meu corpo.
Acho que ambas sabíamos que esta noite ia acabar assim - apesar do seu humilde começo com um jantar no restaurante italiano e um filme mau. Como é que o sexo acontece entre os casais, a não ser como uma tempestade elétrica que ganha força no espaço entre as duas pessoas, e que acaba por entrar em combustão?
Mas isto é diferente. Porque, apesar de ser a primeira vez da Zoe, sou eu quem tem tudo a perder se não for perfeito.
Nomeadamente, a Zoe.
Por isso digo para comigo que vou deixá-la ir ao seu próprio ritmo, o que é uma tortura incrível, à medida que as mãos dela se movem dos meus ombros para as costelas e para a cintura. Mas então ela para.
- O que foi? - sussurro, imaginando o pior: isto está a causar-lhe repulsa; não está a sentir nada; sabe que cometeu um erro.
- Acho que tenho medo - confessa a Zoe.
- Não tens de fazer nada - digo.
- Mas eu quero. Só tenho medo de errar.
- Zoe - digo-lhe -, errar não existe.
Faço as mãos dela deslizarem por baixo da minha camisa. As palmas dela queimam-me o estômago; tenho a certeza de que vou acordar com as suas iniciais gravadas na pele. As mãos dela sobem devagar, até tocarem na renda do sutiã.
É esta a particularidade do sexo lésbico: não importa que o nosso corpo não seja perfeito, porque a nossa parceira também vai sentir isso. Não importa que nunca tenhamos tocado numa mulher, porque somos mulheres, e já sabemos do que gostamos. Quando a Zoe finalmente me despe a blusa, acho que solto um grito, porque ela tapa a minha boca com a sua e engole o som. E então despe também a camisola, e o resto. Somos um emaranhado de pernas, cumes e vales suaves, de suspiros e apelos. Ela agarra-me, e eu tento abrandar o nosso ritmo, e conseguimos encontrar-nos em glória no meio.
Depois, aninhamo-nos as duas por cima da colcha. Sinto o cheiro da pele, do suor e dos cabelos dela e adoro pensar que, mesmo depois de se ir embora, os meus lençóis vão guardar essa memória. Mas as
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coisas assim tão perfeitas não duram muito. Já estive nesta situação antes, com uma mulher heterossexual, por isso sei que concretizar uma fantasia nem sempre implica que esta seja permanente. Acredito que a Zoe quisesse que acontecesse isto entre nós. Só não consigo acreditar que ela queira que continue.
Ela mexe-se durante o sono e vira-se, ficando virada para mim. A perna dela desliza entre as minhas. Puxo-a para mais perto de mim, e interrogo-me quando deixarei de ser novidade.
Passadas duas semanas, continuo à espera que aconteça o pior. A Zoe e eu passámos todas as noites juntas - chegou ao ponto em que nem sequer pergunto se ela quer vir para minha casa depois do trabalho, porque sei que já estará à minha espera com comida chinesa ou um DVD que tínhamos pensado ver, ou uma tarte acabada de fazer que ela insiste que não consegue comer sozinha.
Há momentos em que nem posso acreditar na minha felicidade. Mas também há momentos em que me lembro de que para a Zoe ainda se trata de um belo brinquedo novo. Em privado, a Zoe é tão, tão homossexual. Lê todas as minhas revistas Curve antigas. Telefona para a operadora de televisão por cabo e subscreve Logo. Começa a falar-me em Provincetown: se já lá estive, se penso lá voltar. Comporta-se como eu quando me aceitei pela primeira vez como sou - como se me tivessem deixado sair da minha cela passados vinte anos. Mas ela não disse nada a ninguém - nem sequer a mim - que está apaixonada por uma mulher. Nunca teve uma relação que faça as pessoas na rua segredarem quando ela passa. Nunca ninguém lhe chamou fufa. Isto para ela ainda não é real. E, quando for, ela virá ter comigo para dizer-me que foi tudo um erro maravilhoso e divertido.
No entanto... agora não tenho força para a afastar, quando ela me quer. Quando é tão bom estar com ela.
E é por isso que, quando me pede que observe a segunda sessão com a Lucy, eu aceito imediatamente. Tinha pedido para estar presente da última vez, mas agora penso se não terá sido apenas para ver a Zoe trabalhar, e não por estar a pensar no bem da Lucy. Em todo o caso, a Zoe recusou, e tinha razão - mas esta semana mudou de ideias, depois
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de a Lucy ter fugido. Sinceramente, acho que ela quer que eu esteja lá para bloquear a porta se a Lucy voltar a tentar fugir.
Hoje ajudo-a a carregar uma série de instrumentos que trazia no carro.
- A Lucy toca isto? - pergunto, ao pousar uma pequena marimba.
- Não. Não toca nenhum instrumento musical. Mas não é preciso saber tocar nenhum instrumento para que aqueles que trouxe hoje soem bem. Estão todos afinados pela escala pentatónica.
- O que é isso?
- Uma escala com cinco tons. É diferente de uma escala heptatónica, que tem sete notas, como a escala maior: dó, ré, mi, fá, sol, lá, si. Existem em todo o mundo, no Jazz, nos blues, na música folclórica céltica, na música folclórica japonesa. Tem a particularidade de ser impossível tocar uma nota errada... seja qual for o tom, vai soar bem.
- Não percebo.
- Conheces a música "My Girl"? Dos Temptations? -Sim.
A Zoe ergue a lira que tem na mão e toca uma introdução instrumental, aquelas seis notas familiares que se repetem.
- Isto é uma escala pentatónica. Como a melodia que os extraterrestres compreendiam em Encontros Imediatos do Terceiro Grau. E uma escala de blues baseia-se numa escala pentatónica menor - pousa a lira e dá-me um pequeno martelo. - Experimenta.
- Não, muito obrigada. A minha última experiência com instrumentos foi com o violino, aos oito anos. Os vizinhos chamaram os bombeiros porque pensaram que estava um animal a morrer dentro da minha casa.
- Experimenta.
Agarro no pequeno martelo e bato hesitantemente numa corda. E noutra. E numa terceira. Depois toco o mesmo padrão. Quando dou por mim estou a bater em várias cordas, compondo uma música de improviso.
- Isto - digo - é bastante fixe.
Imaginem se existisse uma escala pentatónica para a vida: se, independentemente do que fizéssemos, fosse impossível errar.
Volto a dar-lhe o martelo mesmo quando a Lucy entra pela porta com um ar amuado. É a única forma de o descrever; olha para a Zoe e
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depois olha para mim e percebe que desta vez não se vai escapar tão facilmente. Atira-se para cima de uma cadeira e começa a roer a unha do polegar.
- Olá, Lucy - diz a Zoe. - É bom voltar a ver-te.
A Lucy faz rebentar um balão de pastilha elástica. Levanto-me, agarro no caixote do lixo e seguro-o debaixo do queixo dela até a cuspir. Depois fecho a porta da sala de necessidades especiais, para que o ruído do corredor não interrompa a sessão da Zoe.
- Então, como vês, a Dra Shaw hoje está connosco. Porque queremos ter a certeza de que não voltes a ter um compromisso urgente noutro sítio - diz-lhe a Zoe.
- Quer dizer que não quer que me vá embora - diz a Lucy.
- Isso também - concordo.
- Lucy, estava a pensar que talvez pudesses dizer-me uma coisa de que tivesses gostado da nossa última sessão, para que eu pudesse repetir...
- Que tivesse sido curta - responde a Lucy.
Se eu estivesse no lugar da Zoe, provavelmente teria vontade de esganar a miúda. Mas a Zoe limita-se a sorrir.
- Muito bem - diz ela. - Então vou ver se não perdemos tempo agarra na lira e pousa-a em cima da secretária, em frente à Lucy. Já viste uma destas? - Quando a Lucy abana a cabeça, a Zoe toca em algumas cordas. As notas de início são esporádicas, e depois reorganizam-se numa canção de embalar.
- "Hush, //ff/e baby, dorít say a word" canta a Zoe, suavemente "Mama's gonna buy you a mockingbird. And if that mockingbird dorít sing, Mama's gonna buy you a diamond
ring"11 - pousa a lira. - Nunca cheguei a compreender esta letra. Quero dizer, não preferias ter um sabiá que fosse capaz de dizer tudo o que lhe ensinasses a dizer?
É muito mais fixe do que uma jóia - dedilha a lira mais algumas vezes.
- Gostavas de experimentar?
A Lucy não mostra querer tocar-lhe.
11 "Chiu, meu bebé, não digas nada, a Mamã vai comprar-te um sabiá. E se o sabiá não souber cantar, a Mamã vai comprar-te um anel de diamantes." (N. da T.)
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- Preferia ter o anel de diamantes - diz por fim. - Empenhava-o e com o dinheiro comprava um bilhete de camioneta para sair daqui.
Já conheço a Lucy há um ano, e nunca a ouvi dizer tantas palavras de uma vez numa resposta. Estou estupefacta - talvez a música faça mesmo milagres - inclino-me para a frente para ver o que a Zoe fará a seguir.
- A sério? - diz ela. - E para onde ias?
- Para onde não ia?
A Zoe puxa a marimba para mais perto. Começa a marcar um ritmo que parece vagamente africano, ou caribenho.
- Costumava pensar em viajar pelo mundo inteiro. Ia fazê-lo depois de acabar a faculdade. Trabalhar num sítio, sabes, a servir às mesas ou qualquer coisa assim, até juntar dinheiro suficiente para viajar para outro lugar. Dizia para comigo que nunca iria ser daquelas pessoas que possuísse mais coisas do que as que conseguisse transportar numa mochila.
Pela primeira vez, vejo a Lucy olhar ativamente para a Zoe.
- Porque não o fez? Ela encolhe os ombros.
- A vida interferiu.
"Onde pensaria ela em ir?", interrogo-me. Para uma praia imaculada? Um glaciar azul a erguer-se ao centro de uma massa de gelo? As bancas de livros apinhadas das margens do Sena?
A Zoe começa a tocar outra melodia com o pequeno martelo. Esta parece uma polca.
- Uma das coisas mesmo fixes que estes instrumentos têm é estarem afinados segundo uma escala pentatónica. Muita da música folclórica de todo o mundo baseia-se nessas escalas. Adoro a forma
como se pode ouvir uma música e surgir-nos uma imagem de outra parte do mundo na cabeça. É a segunda coisa melhor, a seguir a estar lá, se não pudermos meter-nos num avião por termos um teste de matemática na aula a seguir, por exemplo - bate com o pequeno martelo, e a música parece asiática, com as notas a saltarem escala acima e escala abaixo. Fecho os olhos e vejo as flores das cerejeiras, as casas de papel. - Toma - diz a Zoe, dando o pequeno martelo à Lucy. - E se me tocasses uma música que faça lembrar o sítio para onde queres ir?
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A Lucy agarra no pequeno martelo com a mão e fica a olhar para ele. Toca na corda mais alta, só uma vez. Parece um grito agudo. A Lucy bate-lhe mais uma vez, e depois deixa cair o martelo dos dedos.
- Isto é tão inacreditavelmente gay- diz ela. Não consigo evitar, retraio-me.
A Zoe nem olha para mim.
- Se ao dizeres "gay" queres dizer alegre, e só pode ser isso, porque nem imagino que encontrasses algo que apontasse para a orientação sexual em tocar uma marimba... então, teria de discordar. Acho que as músicas tradicionais japonesas são bastante melancólicas, por acaso.
- E se não fosse isso que eu queria dizer? - diz a Lucy em tom de desafio.
- Então acho que ia ficar a pensar na razão que levará uma rapariga que detesta ser catalogada pelos outros, inclusive pelos terapeutas, a catalogar os outros tão prontamente.
Ao ouvir isso, a Lucy volta a fechar-se em si própria. Desapareceu a rapariga disposta a falar em fugir daqui. No seu lugar, está a habitual boca franzida, olhos zangados e braços cruzados. Um passo em frente, dois atrás.
- Queres tocar a marimba? - volta a perguntar a Zoe. Depara-se com um muro de pedra de silêncio.
- E a lira?
Quando a Lucy volta a ignorá-la, a Zoe coloca o instrumento de lado.
- Cada compositor usa a música para exprimir algo que não pode ter. Talvez seja um lugar, talvez um sentimento. Sabes como às vezes sentes que, se não libertares alguma pressão que tens dentro de ti, vais explodir? Uma música pode ser essa libertação. E se escolhesses uma música e falássemos sobre o sítio aonde ela nos leva quando a ouvimos?
A Lucy fecha os olhos.
-vou dar-te algumas hipóteses - diz a Zoe. - "Amazing Grace". "Wake Me Up When September Ends". Ou "Goodbye Yellow Brick Road".
Não podia ter escolhido três músicas mais diferentes: um espiritual, uma música dos Green Day, e uma canção antiga do Elton John.
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- Então está bem - diz a Zoe, quando a Lucy não responde. - Eu escolho.
Começa a tocar a lira. A voz começa numa nota grave e rouca, e segue subindo de tom:
"Amazing grace, how sweet the sound... That saved a wretch like me,
once was lost, buí now m found. Was blind, but now see."12
A voz da Zoe tem uma riqueza que me faz lembrar um chá num dia chuvoso, como uma manta por cima dos ombros quando estamos a tremer. Muitas mulheres têm belas vozes,
mas a dela tem alma. Adoro a forma como quando ela acorda de manhã parece que tem a garganta coberta de areia. Adoro a forma como quando fica frustrada em vez de
gritar solta um brado agudo e operático de raiva.
Quando olho para a Lucy, tem lágrimas nos olhos. Lança-me um olhar furtivo, e limpa-as enquanto a Zoe termina a canção com algumas notas dedilhadas na lira.
- Sempre que ouço este hino imagino uma rapariga de vestido branco, descalça de pé num baloiço - diz a Zoe. - E o baloiço está num grande e velho ulmeiro - ri, abanando
a cabeça. - Não faço ideia porquê. A canção é sobre um comerciante de escravos que se debatia com a vida que tinha, e sobre como um poder divino o fez ver a pessoa
que ele estava destinado a ser. E tu? O que te faz lembrar a canção?
- Mentiras.
- A sério? - diz a Zoe. - Que interessante. Que tipo de mentiras? De repente, a Lucy levanta-se tão bruscamente que derruba a
cadeira.
- Detesto essa música. Detesto!
A Zoe movimenta-se depressa, ficando apenas a alguns centímetros da rapariga.
12 "Graça divina, que doce som... Que salvou um miserável como eu. Já estive perdido, mas agora encontrei-me. Estava cego, mas agora vejo." (N. da T.)
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- Isso é ótimo. A música fez-te sentir alguma coisa. O que detestas nela?
A Lucy semicerra os olhos.
- O facto de estar a cantá-la - diz ela, e afasta a Zoe da sua frente com um empurrão. - Por mim acabou-se - dá um pontapé na marimba ao passar. Parece uma despedida num tom grave.
A Zoe vira-se para mim quando a porta bate atrás da Lucy.
- Bem - diz ela, radiante. - Pelo menos desta vez, ela ficou o dobro do tempo.
- O homem morto no comboio - digo.
- Desculpa?
- É isso que a música me faz lembrar - digo. - Estava na faculdade e ia para casa para o Dia de Ação de Graças. Os comboios estavam cheios, e eu acabei por me sentar ao lado de um senhor idoso que me perguntou como me chamava. "Vanessa", respondi, e ele perguntou "Vanessa quê?" Não o conhecia, e tive medo de dizer-lhe o meu apelido, no caso de ser um assassino em série ou qualquer coisa assim, por isso disse-lhe o meu primeiro apelido: "Vanessa Grace." E ele começou a cantar para mim, substituindo o meu nome por Amazing Grace. Tinha uma linda voz grave, e as pessoas aplaudiram. Eu fiquei envergonhada, e ele não parava de falar, por isso fingi que estava a dormir. Quando chegámos a South Station, a última paragem, ele estava encostado à janela, de olhos fechados. Abanei-o, para dizer-lhe que era altura de sair do comboio, mas ele não acordou. Fui chamar um revisor, e veio a polícia e uma ambulância, e eu tive de dizer-lhes tudo o que sabia... que era quase nada- hesito. - Chamava-se Murray Wasserman, e era um desconhecido, e eu fui a última pessoa para quem cantou antes de morrer.
Quando acabo de falar vejo a Zoe a olhar para mim. Lança um olhar para a porta da sala, que ainda está fechada, e depois abraça-me.
- Acho que provavelmente era um homem cheio de sorte. Olho para ela, duvidosa.
- Por ter morrido de repente? Num comboio? No dia antes da Ação de Graças?
- Não - diz a Zoe. - Por estares sentada ao lado dele, na última viagem da sua vida.
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Baixo a cabeça. Não costumo rezar, mas neste momento rezo para que, quando chegar a minha hora, a Zoe e eu ainda estejamos a viajar juntas.
No dia a seguir a ter contado à minha mãe que sou lésbica, o choque passou e ela tinha imensas perguntas a fazer. Perguntou-me se era uma fase que eu estava a passar, como daquela vez em que estava determinada a pintar o cabelo de roxo e a fazer um piercing na sobrancelha. Quando lhe disse que estava convencida da minha atração por mulheres, ela desatou a chorar e perguntou-me em que tinha falhado como mãe. Disse-me que ia rezar por mim. Todas as noites, quando ia para a cama, ela metia um novo panfleto debaixo da porta. Muitas árvores morreram para que a Igreja Católica possa pregar contra a homossexualidade.
Comecei a organizar um contra-ataque. Agarrei num marcador grosso e escrevi o nome de alguém famoso com um filho LGBT em cada panfleto: Cher. Barbra Streisand. Dick
Gephardt. Michael Landon. Enfiava-os debaixo da porta do quarto dela.
Porfim, num impasse, aceitei falar com o padre dela. Ele perguntou-me como podia fazer isto à mulher que me tinha criado, como se a minha sexualidade fosse um ataque
pessoal que eu lhe fazia. Perguntou-me se não punha a hipótese de ser freira. Não me perguntou nem uma única vez se tinha medo, se me sentia sozinha, ou se estava preocupada com o meu futuro.
A caminho de casa, depois de sair da igreja, perguntei à minha mãe se ainda gostava de mim.
- Estou a tentar - disse ela.
Foi preciso a minha primeira namorada a longo prazo (cuja mãe, quando ela lhe contou, encolheu os ombros e disse: "E achas que eu não sei") para eu compreender por que razão a minha mãe era o oposto diametral.
- Para ela morreste - disse-me a minha namorada. - Tudo o que ela sonhou para ti, tudo o que achou que serias e terias, não vai acontecer. Ela via-te a morar nos subúrbios, com um marido normal, dois vírgula quatro filhos e um cão, e agora arruinaste isso por estares comigo.
Então dei à minha mãe tempo para o luto. Nunca exibi as minhas namoradas à frente dela, nem levei nenhuma para casa, para uma
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refeição festiva, nem escrevi o nome dela num cartão de Natal. Não por ter vergonha, mas simplesmente porque gostava da minha mãe e sabia que era isso que ela precisava que eu fizesse. Quando a minha mãe adoeceu e foi para o hospital, cuidei dela. Gosto de pensar que, antes de a morfina ter assumido o controlo do seu cérebro - antes de
morrer - percebeu que o facto de ser lésbica era menos importante do que o facto de ser realmente uma boa filha.
Conto-vos isto para explicar que já ultrapassei a fase de sair do armário, e que desejo tanto repeti-la como fazer uma desvitalização. Mas quando a Zoe me implora que a acompanhe quando ela contar tudo à Dará sobre a nossa relação, sei que o farei. Porque é a primeira prova que tenho de que - talvez - a Zoe não esteja apenas a experimentar esta nova personalidade lésbica, pensando devolvê-la, recuperar o seu velho eu heterossexual.
- Estás nervosa? - pergunto, quando estamos de pé ao lado uma da outra em frente à porta de casa da mãe da Zoe.
- Não. Bem, sim. Um bocadinho - olha para mim. - Parece importante, não é?
- A tua mãe é das pessoas com a mente mais aberta que já conheci.
- Mas ela acha que me conhece como ninguém - diz a Zoe. Éramos só as duas, quando estava a crescer.
- Bem, eu também cresci só com a minha mãe.
- É diferente, Vanessa. No dia do meu aniversário, a minha mãe ainda me telefona às 10:30 aos gritos e a arquejar ao telefone para reviver a experiência do parto.
Olho para ela, a pestanejar.
- Isso é completamente estranho. A Zoe sorri.
- Eu sei. Ela é única. É simultaneamente uma bênção e uma maldição - respirando fundo, toca à campainha.
A Dará abre a porta com um cabide torcido na mão.
- Zoe! - diz ela, encantada por ver a filha. - Não sabia que vinhas! O riso da Zoe é abafado.
- Não fazes ideia...
A Dará também me abraça brevemente.
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- Como está, Vanessa?
- Ótima - digo. - Nunca estive melhor.
Ao fundo, ouve-se a voz de um homem, grave a tranquilizante. "Sinta a água. Sinta-a subir debaixo de si..."
- Oh - diz a Dará. - Deixem-me ir desligar isto. Entrem - dirige-se à aparelhagem de som e desliga o leitor de CDs, tira o disco do aparelho e enfia-o na sua bolsa de plástico. - São os meus trabalhos de casa, das aulas de vedor. É para isso que serve o cabide.
- Anda à procura de água?
- Sim - diz a Dará. - Quando a encontrar, as varas movem-se sozi-
nhas e cruzam-se nas minhas mãos.
- Deixa-me poupar-te algum trabalho - responde a Zoe. - Tenho a certeza de que a água vem das torneiras.
-Oh, mulher de pouca fé. Para tua informação, minha rapariga tão prática, usar a vara de vedor é uma capacidade muito lucrativa. Digamos que queres investir num terreno. Não gostarias de saber o que está abaixo da superfície?
- Provavelmente contratava uma empresa de poços artesianos digo -, mas isso sou eu.
- Talvez, Vanessa, mas quem vai dizer à empresa onde deve escavar, ha? - sorri para mim. - Têm fome? Tenho um bolo de café muito bom no frigorífico. Uma das minhas clientes está a tentar visualizar tornar-se chefe de pastelaria...
- Sabes, Mãe, por acaso, vim para dizer-te uma coisa muito importante - diz a Zoe. - Uma coisa muito boa, acho eu.
Os olhos da Dará iluminam-se.
- Tive um sonho sobre isto, ontem à noite. Deixa-me adivinhar... vais
voltar a estudar!
- O quê? Não! - diz a Zoe. - De que estás tu afalar? Tenho um mestrado!
- Mas podias ter uma licenciatura em canto clássico. Vanessa, já a ouviu cantar...
- Hum, sim...
- Mãe - interrompe a Zoe. - Não vou voltar a estudar para ter uma licenciatura em canto clássico. Estou perfeitamente satisfeita por ser terapeuta musical...
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A Dará olha para ela.
- Então, piano yàzz?
- Por amor de Deus, não vou voltar a estudar. Vim aqui para te dizer que sou lésbica!
A palavra divide a sala a meio.
- Mas - diz a Dará passado um instante. - Mas eras casada.
- Eu sei. Fui, com o Max. Mas agora... agora estou com a Vanessa. Quando a Dará se volta para mim, os olhos dela parecem magoados
- como se a tivesse traído por fingir ser uma boa amiga da Zoe quando, na verdade, é isso que tenho sido.
- Sei que é inesperado - digo.
-Tu não és assim, Zoe. Eu conheço-te. Sei quem tu és...
- E eu também. E se achas que isto significa que vou começar a andar numa Harley e a vestir-me de cabedal, é porque não me conheces nada bem. Acredita, eu também fiquei surpreendida. Não era isto que eu pensava que ia acontecer.
A Dará começa a chorar. Envolve as faces da Zoe com as mãos.
- Podias voltar a casar-te.
- Podia, mas não quero, Mãe.
- E netos?
- Parece que não consegui fazer que isso acontecesse, nem mesmo com um homem - faz notar a Zoe. Agarra na mão da mãe. - Encontrei uma pessoa com quem quero estar. Estou feliz. Não consegues ficar feliz por mim?
A Dará fica muito quieta por um instante, a olhar para os dedos entrelaçados de ambas. Depois afasta-se.
- Preciso de um minuto - diz ela, e agarra nas varas de vedor e dirige-se para a cozinha.
Quando sai, a Zoe olha para mim, de lágrimas nos olhos.
- Lá se vai a abertura de espírito. Coloco um braço à volta dela.
- Dá-lhe algum tempo. Ainda estás a habituar-te a estes sentimentos, e já se passaram semanas. Não podes esperar que ela ultrapasse o choque em cinco segundos.
- Achas que ela está bem?
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Vêem, é por isso que amo a Zoe. No meio do seu momento de pânico, preocupa-se com a mãe.
- vou ver - digo, e dirijo-me para a cozinha.
A Dará está apoiada na bancada da cozinha, com as varas de vedor ao seu lado, no granito.
- Terá sido alguma coisa que eu fiz? - pergunta ela. - Talvez devesse ter voltado a casar-me. Para que houvesse um homem em casa...
- Acho que isso não faz diferença. Tem sido uma mãe maravilhosa. E é por isso que a Zoe tem tanto medo que queira renegá-la.
- Renegá-la? Que disparate. Ela disse que é lésbica, não disse que é republicana - a Dará respira fundo. - É que... tenho de habituar-me a isso.
- Devia dizer-lhe isso. Ela vai compreender.
A Dará olha para mim, e depois acena com a cabeça. Volta para a sala pelas portas oscilantes. Penso ir atrás dela, mas quero dar à Zoe um minuto para estar sozinha com a mãe. Quero que possam mudar e redistribuir a sua relação como eu nunca pude fazer com a minha mãe, aquela acrobacia do amor em que tudo fica de pernas para o ar sem que percam o equilíbrio.
Assim, em vez disso, escuto a conversa. Empurro a porta para que fique entreaberta a tempo de ouvir a Dará falar.
- Não poderia gostar mais de ti se me dissesses agora que és heterossexual - diz ela. - E não gosto menos de ti por me teres dito que não és.
Fecho delicadamente a porta. Volto-me, na cozinha, para examinar a taça de frutas que está em cima da bancada, a torradeira azul-cobalto, o robô de cozinha. A Dará deixou ali as varas de vedor. Agarro nelas, seguro-as ao de leve nas mãos. Apesar de a torneira e os canos estarem a menos de trinta centímetros de distância, as varas não se mexem nas minhas mãos, não estremecem, nem se cruzam. Imagino como será ter esse sexto sentido, a certeza de que o que procuro está ao meu alcance, mesmo que ainda esteja escondido.
Os cinemas são sítios excelentes para um homossexual. Assim que as luzes se apagam, ninguém olha para nós se dermos a mão à nossa namorada, ou se nos aconchegarmos mais perto dela. No cinema, por
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definição, a atenção está focada no espetáculo que se desenrola no ecrã, e não nos assentos.
Não sou pessoa de me exibir em público. Nunca comecei a beijar alguém em público; não tenho aquele abandono que se vê nos casais de adolescentes que estão sempre aos beijos ou a andar pela rua com as mãos enfiadas nas calças um do outro. Por isso não estou a dizer que andaria pela rua com o braço à volta da mulher que amo - mas gostaria de saber que, se fosse essa a minha disposição, não ia atrair uma série de olhares chocados e incómodos. Estamos condicionados para ver homens de arma na mão, e não homens de mão dada.
Quando aparecem os créditos do filme, as pessoas começam a levantar-se dos assentos. Quando as luzes se acendem, a Zoe tem a cabeça apoiada no meu ombro. Então ouço:
- Zoe? Olá!
Ela levanta-se de um salto, como se tivesse sido apanhada a fazer alguma coisa errada, e cola um grande sorriso no rosto.
-Wanda! - diz a uma mulher que parece vagamente familiar. Gostou do filme?
- Não sou grande fã do Tarantino, mas por acaso, não foi mau - diz ela. Dá o braço a um homem. - Zoe, acho que não conhece o meu marido, o Stan? A Zoe é uma terapeuta musical que trabalha no lar - explica a Wanda.
A Zoe vira-se para mim.
- Esta é a Vanessa - diz ela. - Uma... uma amiga.
Ontem à noite a Zoe e eu festejámos um mês juntas. Bebemos champanhe e comemos morangos, e ela venceu-me no Scrabble. Fizemos amor e, quando acordámos de manhã, ela estava entrelaçada em mim como um heliotropo.
Amiga.
-Já nos conhecemos - digo à Wanda, apesar de não mencionar que foi no chá de bebé para o bebé que morreu.
Saímos do cinema com a Wanda e o marido, fazendo conversa de circunstância sobre o enredo e se o filme será nomeado para um Oscar. A Zoe tem o cuidado de manter uma boa distância entre nós. Nem sequer estabelece contacto visual comigo até entrarmos no meu carro, a caminho da minha casa.
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A Zoe preenche o silêncio com uma história sobre a filha da Wanda e do Stan, que queria alistar-se no exército porque tinha um namorado que já tinha ido em missão. Não me parece que tenha reparado que não lhe disse uma palavra. Quando chegamos a casa, abro a porta, entro e dispo o casaco.
- Queres um chá? - pergunta a Zoe, dirigindo-se para a cozinha. vou pôr a chaleira ao lume.
Não lhe respondo. Agora estou muito magoada, e não tenho confiança em mim para falar.
Em vez disso, sento-me no sofá e agarro no jornal que hoje não cheguei a ter oportunidade de ler. Ouço a Zoe na minha cozinha, a tirar canecas da máquina de lavar a loiça, a encher a chaleira, a acender o lume no fogão. Sabe onde está tudo, em que gaveta estão as colheres, em que armário guardo as saquetas de chá. Movimenta-se na minha casa como se pertencesse a este lugar.
Estou a olhar distraidamente para os editoriais quando ela entra na sala, se debruça sobre as costas do sofá e me abraça.
- Há mais alguma carta sobre o escândalo do comandante da polícia? Afasto-a.
- Não faças isso. Ela recua.
- Acho que ficaste mesmo maldisposta por causa do filme.
- Não foi o filme - viro-me para olhar para ela. - Foste tu.
- Eu? Que foi que eu fiz?
- Foi o que não fizeste, Zoe - digo. - O que é? Só me queres quando não há ninguém por perto? Não te custa nada atirares-te a mim quando ninguém está a ver?
- Pronto. É óbvio que estás de mau humor...
- Não quiseste que a Wanda soubesse que estamos juntas. Isso foi evidente...
- Os meus colegas de trabalho não têm de saber pormenores da minha vida pessoal...
- Ah, sim? Disseste-lhe, quando engravidaste da última vez? pergunto.
-Claro que sim...
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- Vês - engulo, esforçando-me muito por não chorar. - Disseste-lhe que sou tua amiga.
- E és minha amiga - diz a Zoe, exasperada.
- É só isso que sou?
- O que achas que devo chamar-te? Minha amante? Parece um filme mau dos anos setenta. Minha companheira? Nem sei se é isso que somos. Mas a diferença que existe entre nós é que eu não me importo com os nomes. Não tenho de catalogar a nossa relação para os outros. E porque é que tu tens? - na cozinha, a chaleira começa a apitar. - Olha - diz a Zoe, respirando fundo. - Estás a exagerar. vou apagar o lume e vou para casa. Podemos conversar sobre isto amanhã de manhã, depois de uma boa noite de sono.
Entra na cozinha, mas, em vez de deixá-la ir, vou atrás dela. Observo os seus movimentos, eficientes e graciosos, ao tirar a chaleira do fogão. Quando se vira para mim, tem as feições suaves, sem expressão.
- Boa noite.
Passa por mim, mas quando chega à porta da cozinha, falo. -Tenho medo.
A Zoe hesita, com as mãos na ombreira da porta, como se estivesse presa entre dois momentos.
- Tenho medo que te fartes de mim - admito. - Que te canses de viver uma vida que continua a não ser completamente aceite pela sociedade. Tenho medo de me sentir radiante por estar contigo e que depois quando me deixares não seja capaz de me recompor.
Num gesto, a Zoe atravessa a cozinha e vira-se para mim.
- Porque achas que eu me vou embora?
- Por causa dos meus antecedentes - digo. - Por causa disso e porque não fazes ideia de como é difícil. Ainda fico preocupada todos os dias que um pai ou uma mãe descubra que sou lésbica e convença a direção da escola a despedir-me. Ouço as notícias e vejo os políticos que não sabem nada acerca de mim tomarem decisões sobre o que devo ou não poder fazer. Não compreendo por que razão a coisa mais intrigante acerca da minha identidade seja sempre o facto der ser lésbica, e não o facto de ser Leão, ou saber dançar sapateado, ou ter um diploma de zoologia.
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- Sabes dançar sapateado? - pergunta a Zoe.
- A questão é que - digo - passaste quarenta anos a ser heterossexual. Porque não haverás de voltar ao caminho que oferece menos resistência?
A Zoe olha para mim como se eu fosse incrivelmente obtusa.
- Porque não és um homem, Vanessa.
Nessa noite, não fazemos amor. Bebemos o chá que a Zoe fez e falamos sobre a primeira vez que me chamaram fufa, sobre como fui para casa e chorei. Falamos sobre o quanto detesto que o mecânico presuma sempre que sei do que está a falar quando me arranja o carro, só porque sou lésbica. Até faço um pequeno número de sapateado para ela: passo-passo-troca, passo-passo-troca. Aninhamo-nos no sofá.
A última coisa de que me lembro de pensar antes de adormecer nos braços dela é: "Isto também é bom."
Apesar da minha desilusão com os óculos de visão raio X da lista de prémios Bazooka, acabei por poupar para adquirir mais um artigo que pura e simplesmente tinha de ter. Era um amuleto feito de dente de baleia, num porta-chaves. O que me deixou intrigada foi a descrição do artigo:
"Boa sorte vitalícia garantida para o proprietário."
Depois dos óculos de visão raio X, já sabia que não devia estar à espera que o dente de baleia fosse mesmo de baleia ou fosse mesmo um dente. Provavelmente seria de plástico, com um furo feito na parte de cima para a argola de metal. Mas mesmo assim poupei novamente a minha semanada para comprar pastilhas elásticas Bazooka. Andei à cata de moedas no chão do carro da minha mãe, para poder juntar um dólar e dez cêntimos para os portes.
Passados três meses, já tinha reunido os meus sessenta e cinco comics Bazzoka e enviado o envelope para receber o prémio. Quando o amuleto chegou, fiquei um pouco surpreendida por ver que o dente parecia ser verdadeiro (apesar de não saber se era mesmo de baleia)
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e que a argola prateada era pesada e brilhante. Enfiei-o no bolso da frente da minha mochila e comecei e pedir desejos.
O dia seguinte era o Dia de São Valentim na escola. Cada um de nós tinha feito pequenas "caixas de correio" com caixas de sapatos e cartolina. Estávamos na época da análise transacional, em que ninguém podia sentir-se excluído, por isso a professora tinha um plano infalível: cada rapariga da turma ia enviar um cartão a cada rapaz e vice-versa. Desta forma, receberia de certeza catorze cartões do Dia de São Valentim em troca dos catorze cartões do Tweety e do Sylvester que enviei aos rapazes da turma - infelizmente, até ao Luke, que tirava macacos do nariz e os comia. No fim das aulas, levei para casa a minha caixa de sapatos, sentei-me na cama e vi os cartões. Para minha surpresa, havia um cartão extra. Sim, todos os rapazes me tinham dado um cartão do Dia de São Valentim, como era esperado. Mas o décimo quinto era da Eileen Connelly, que tinha olhos azuis cintilantes e cabelos negros como a noite e que uma vez, na aula de ginástica, tinha colocado os braços à minha volta para me mostrar como se segura num bastão de basebol. "FELIZ DIA DE SÃO VALENTIM", dizia o cartão, "DA EILEEN." Não importava que não estivesse assinado com "AMOR". Não importava que ela podia ter dado um cartão a todas as raparigas da turma, para além de mim. Naquele momento só sabia - e era a única coisa que interessava - que ela tinha pensado em mim, mesmo que por breves instantes. Fiquei convencida de que só tinha recebido este cartão por causa do meu amuleto de dente de baleia - que era realmente de atuação rápida.
Ao longo dos anos, cada vez que mudava de casa - de minha casa para o dormitório da faculdade, do dormitório da faculdade para o meu apartamento na cidade, do meu apartamento para esta casa - examinei os meus pertences e separei o trigo do joio. E de cada vez, em cima da mesa-de-cabeceíra, encontrei aquele amuleto de dente de baleia. Nunca consegui sequer imaginar livrar-me dele.
Parece que ainda resulta.
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MAX
Há quatro discos de mármore branco ao canto do jardim virado a leste do meu irmão. Demasiado pequenos para criarem um caminho, alguns estão mesmo cobertos por um emaranhado de arbustos - roseiras que, pelo que vejo, nunca foram podadas. São memoriais, um por cada bebé que o Reid e a Liddy perderam.
Hoje, estou a colocar um quinto disco.
Desta vez a Liddy não estava grávida de muito tempo, mas a casa está cheia de lágrimas. Gostaria de dizer-vos que vim para aqui para que o meu irmão e a mulher pudessem chorar a sua perda em privado, mas a verdade é que isso me traz demasiadas recordações. Por isso, fui ao viveiro e encontrei o disco de mármore igual aos outros. E estou a pensar que - em agradecimento a tudo o que o Reid fez por mim
- vou arranjar esta pequena área do relvado para transformá-la num jardim, quando o gelo derreter. Estou a pensar juntar um marmeleiro do Japão e alguns salgueiros,
algumas weigela variegadas. vou colocar um pequeno banco de granito ao meio, com pedras em forma de meia-lua à volta - um sítio onde a Liddy possa ficar sentada
a pensar e a rezar. E vou coordenar as flores para que haja sempre qualquer planta florida - roxas e azuis, como jacintos e centáureas, heliotropo e verbena-roxa;
e as mais brancas entre as brancas: magnólias-estrela, pereiras, salsa-burra.
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Acabei de dar início ao esboço deste jardim dos anjos quando ouço passos atrás de mim. O Reid está ali de pé, de mãos nos bolsos do casaco.
- Olá - diz ele.
Viro-me e semicerro os olhos ao sol.
- Como está ela?
O Reid encolhe os ombros.
- Tu sabes.
E sei. Nunca me senti tão perdido como quando a Zoe abortava. Nisto, todos os futuros pais têm algo em comum com a Igreja da Glória Eterna: para eles, uma vida é uma vida, por muito pequena que seja. Não se trata de células, trata-se do nosso futuro.
- O Pastor Clive está lá dentro com ela - acrescenta o Reid.
- Tenho mesmo muita pena, Reid - digo. - Ainda que não sirva de nada.
A Zoe e eu fomos a uma clínica para sermos examinados devido a problemas de infertilidade. Não me lembro de muitas coisas sobre o problema que originava uma reduzida contagem de espermatozoides, e que tornava aqueles que existiam menos móveis, mas lembro-me de que era genético. O que quer dizer que provavelmente o Reid deve estar no mesmo barco.
De repente, debruça-se e apanha o disco de mármore que eu comprei. Não consegui escavar a terra congelada o suficiente para colocá-lo no lugar. Vejo-o girá-lo nas mãos, e depois envolve-o como um disco e lança-o pelo ar em direção à parede de tijolo da churrasqueira encastrada. O mármore parte-se ao meio e cai no chão. O Reid ajoelha-se, escondendo o rosto nas mãos.
Têm de compreender - o meu irmão mais velho é uma das pessoas mais imperturbáveis que já conheci. Ao longo da minha vida, quando estou a afundar, ele é a constante com que posso contar para me manter à tona. Vê-lo perder assim o controlo deixa-me paralisado.
Agarro-o pelos ombros.
- Reid, meu, tens de acalmar-te.
Ele olha para mim, com a respiração suspensa no ar gélido.
- O Pastor Clive está lá dentro a falar sobre Deus, a rezar a Deus, mas sabes o que eu acho, Max? Que Deus já nos abandonou há muito
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tempo. Não me parece que Deus queira saber que a minha mulher deseja ter um bebé.
Nos meses que decorreram desde o meu batismo, comecei a acreditar que Deus tem uma razão para tudo. Faz sentido quando as pessoas más têm o castigo que merecem, mas é mais difícil entender por que razão um salvador que nos ama faz acontecerem coisas terríveis a pessoas boas. Já rezei muito e durante muito tempo por causa
disso, a tentar perceber, e parece-me que, durante a maior parte do tempo, se Deus nos dá qualquer coisa má, isso deve ser um aviso, um meio de nos informar de forma
não muito subtil que estamos a arruinar as nossas vidas. Talvez seja por estarmos com a mulher errada, ou porque nos falta humildade, ou talvez seja por nos termos
tornado tão gananciosos em relação ao presente que nos esquecemos de que o mais importante não é o ego, mas a abnegação. Pensem naquelas pessoas que conhecem que sobreviveram a uma doença incurável. Quantas começam a agradecer a Deus a torto e a direito? Bem, o que eu quero dizer é que talvez tenham adoecido porque a doença era a única forma de Ele conseguir chamar-lhes a atenção.
Posso dizer-vos - apesar de me custar dizer isto - que agora vejo que sou eu a razão para que eu e a Zoe não pudéssemos ter um bebé. Que foi Jesus, a dar-me pancadas na cabeça vezes sem conta até eu perceber que não era digno de ser pai até ter recebido o Filho. Mas o Reid e a Liddy - é uma história diferente. Têm feito tudo certo, há tanto tempo. Não merecem este desgosto.
Ambos olhamos para cima quando o Pastor Clive sai de casa. Fica ali de pé, em frente ao Reid, a projetar uma sombra.
- Ela também o mandou embora - adivinha o Reid.
- A Liddy só precisa de um pouco de tempo - diz o pastor. - Venho ver como ela está hoje à noite, Reid.
Quando o Pastor Clive sai pelo portão, o Reid passa a mão pelo rosto.
- Ela não fala comigo. Não quer comer nada. Não quer tomar os comprimidos que o médico nos deu. Nem sequer quer rezar - olha para mim, com os olhos vermelhos. - Será pecado dizer que, claro, amava aquele bebé, mas amo mais a minha mulher?
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Abano a cabeça. Depois de todas aquelas vezes em que me senti encurralado, sem saída, e encontrei a mão do meu irmão estendida para mim, posso finalmente ser eu a estender-lhe a mão.
Reid - digo-lhe -, acho que sei o que fazer.
Demoro dez horas a ir a Jersey e a voltar. Quando estaciono na via de acesso do Reid, a luz do quarto deles está apagada. Encontro o meu irmão na cozinha, a lavar
a loiça. Tem o avental cor-de-rosa da Liddy, aquele que diz "sou A COZINHEIRA, É POR isso", com um debrum de folhos.
- Olá - digo, e ele vira-se. - Como está ela?
- Na mesma - responde o Reid. Lança um olhar duvidoso ao saco de papel que tenho na mão.
- Confia em mim - tiro a caixa de pipocas de manteiga do Cinema Orville Redenbacher e enfio um saco no micro-ondas. - O Pastor Clive voltou?
- Sim, mas ela não quis falar com ele.
"Porque ela não quer falar", penso. Falar só a faz voltar a este pesadelo. Neste momento, ela precisa de fugir a isso.
- A Liddy não come pipocas de micro-ondas - diz o Reid.
Por acaso, o meu irmão não deixa a Liddy comer pipocas de micro-ondas. É um grande fã de produtos de agricultura biológica, apesar de não saber bem se é por causa
dos benefícios para a saúde ou por gostar de ter sempre as coisas mais caras, seja de que género for.
- Há sempre uma primeira vez - respondo.
O micro-ondas tilinta, tiro o saco insuflado cá para fora e rasgo-o para dentro de uma grande taça de cerâmica azul.
O quarto está completamente escuro e cheira a alfazema. A Liddy está deitada de lado debaixo dos cobertores na sua grande cama de dossel, virada de costas para mim.
Não tenho a certeza se está a dormir, mas então ouço uma voz.
- Vai-te embora - murmura. As palavras parecem vir do fundo de um túnel.
Ignoro-a e como uma mancheia de pipocas.
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O som, e o cheiro a manteiga, fazem-na virar-se. Olha para mim de olhos semicerrados.
- Max - diz ela. - Não me apetece companhia.
- Não faz mal - digo-lhe. - Só estou aqui para usar o teu leitor de DVDs - meto a mão dentro do saco de papel e tiro um filme. Depois introduzo-o no leitor de DVDs e ligo a televisão.
"As balas não conseguem matá-la!", promete a apresentação.
"As chamas não a atingem!"
"Nada a pode deter!"
"A ARANHA... vai comer-vos vivos!"
A Liddy senta-se, encostada às almofadas. Os olhos fixam-se no ecrã, na incrível tarântula gigante falsa que está a aterrorizar um grupo de adolescentes.
- Onde arranjaste isto?
- Num sítio que conheço - é uma loja alternativa em Elizabeth, New Jersey, que tem um serviço de compras online de filmes de culto de série B. Já fiz compras online
lá. Mas, visto que não podia esperar o tempo suficiente para me enviarem o DVD, e porque se tratava da Liddy, em vez disso fui à loja.
- Este é dos bons - digo à Liddy. - De 1958.
- Agora não quero ver filme nenhum - diz a Liddy.
- Está bem - encolho os ombros. - vou baixar o som.
Então finjo que estou a ver televisão, onde uma rapariga adolescente e o namorado vão à procura do pai dela, que está desaparecido, e encontram uma enorme teia de uma aranha gigante. Mas na realidade estou a lançar olhares de soslaio à Liddy. Apesar de tudo, ela também não consegue deixar de ver. Passados alguns minutos, estende a mão para as pipocas no meu colo e eu dou-lhe a taça.
Quando os adolescentes arrastam o corpo sem vida da aranha para o ginásio do liceu para o examinarem - descobrindo que ainda está viva - o Reid espreita para o quarto. Nessa altura, estou recostado no seu lado da cama. Espeto o polegar para cima, e vejo o alívio no rosto dele ao ver a Liddy sentada, novamente no mundo dos vivos. Afasta-se e fecha a porta atrás de si.
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Passada meia hora, já quase acabámos de comer as pipocas. Quando a tarântula é finalmente eletrocutada e cai, volto-me e vejo lágrimas a escorrer pelo rosto da Liddy.
Tenho a certeza de que nem sequer sabe que está a chorar.
- Max - pergunta ela. - Podemos vê-lo outra vez?
Há um benefício óbvio em pertencer à Igreja da Glória Eterna ser-se salvo. Mas também há outra vantagem, que é ser-se resgatado. Ao contrário de encontrar Jesus, que é como ser atingido por um relâmpago, isto é muito mais subtil. É a senhora idosa que aparece à porta do Reid uma semana depois de eu ter ido à igreja pela primeira vez, com um bolo de banana para me dar as boas-vindas à congregação. É o meu nome estar numa lista de oração quando estou com gripe. É colocar o meu panfleto com os serviços de limpeza de neve no quadro de mensagens e ver que passados alguns dias todos os papelinhos com o meu número de telefone foram rasgados pelas pessoas da Glória Eterna, que gostam de apoiar os seus. Não nasci apenas de novo, recebi uma grande família alargada.
O Pastor Clive é o pai que desejei ter quando estava a crescer - um pai que percebe que posso ter errado no passado, mas que vê possibilidades infinitas. Em vez de concentrar-se em tudo o que fiz de errado na minha vida, celebra as coisas acertadas que fiz. Levou-me a um restaurante italiano na semana passada para festejar o terceiro mês em que me mantenho sóbrio; tem-me atribuído cada vez mais responsabilidades na igreja: desde chamar-me para fazer uma leitura na missa ao domingo, à aventura de compras desta tarde para o nosso jantar anual de empada de frango.
Passa pouco das três e meia da tarde, e o Elkin e eu levamos cada um um carrinho de compras do Stop SC Shop. Não é aqui que costumo comprar comida, mas o dono pertence à Glória Eterna e faz um desconto ao Pastor Clive e, ainda mais importante, aceitou dar o frango de graça.
Carregámos os carrinhos com mistura para fazer massa de tarte e ervilhas e cenouras congeladas, e estamos à espera na fila do talho para ir buscar o frango que está reservado para nós quando ouço uma voz
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familiar. Quando me viro, vejo a Zoe a ler o rótulo de um boião de molho para salada César.
- Acho que devia haver novas informações nutricionais - diz ela a outra mulher. - Sem gordura; baixo teor de gordura; teor reduzido de gordura; e gordura, mas com muita personalidade.
A mulher que a acompanha tira-lhe o molho de salada César da mão. Volta a colocá-lo na prateleira e em vez disso pega num molho vinagreta.
- E eu acho que o pudim devia ter a sua própria categoria entre os alimentos - diz ela -, mas nem sempre conseguimos aquilo que queremos.
- Volto já - digo ao Elkin, e aproximo-me da Zoe. Tem as costas viradas para mim, por isso toco-lhe no ombro. - Olá.
Ela vira-se e esboça um grande sorriso. Parece calma e feliz, como se ultimamente tivesse passado muito tempo a rir.
- Max! - abraça-me.
Dou-lhe umas palmadinhas nas costas, desajeitadamente. Quero dizer, devemos abraçar a mulher de quem nos divorciámos? A mulher com quem veio às compras, que é mais alta, um pouco mais nova, com um corte de cabelo à rapaz, tem os lábios cerrados no que devia ser um sorriso. Estendo-lhe a mão.
- Sou o Max Baxter.
- Oh! - diz a Zoe. - Max, esta é a... Vanessa.
- Muito gosto.
- Olha para ti, todo aperaltado - a Zoe puxa-me a gravata preta na brincadeira. - E já te livraste do gesso.
- Já - digo. - Agora só tenho um suporte.
- O que estás aqui a fazer? - pergunta a Zoe, e revira os olhos. Bem, como é óbvio, sei o que estás aqui a fazer... só há uma razão para virmos à mercearia...
- Tem de desculpá-la - diz a Vanessa. - Ela fica assim quando bebe muitos cafés de manhã...
- Pois - digo num tom suave. - Eu sei.
A Vanessa olha para a Zoe e depois para mim, e de novo para a Zoe. Não sei bem porquê, mas parece estar um pouco irritada. Se é amiga da Zoe, com certeza que sabe que eu sou o ex-marido dela; não imagino como é que o que eu disse a poderia ter incomodado.
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- vou buscar as frutas e os legumes - diz a Vanessa, afastando-se. Tive muito gosto em conhecê-lo.
- Igualmente - a Zoe e eu observamo-la enquanto se dirige para a secção da agricultura biológica. - Lembras-te daquela vez em que resolveste só comprar produtos de agricultura biológica e a nossa conta da mercearia quadruplicou nessa semana? - pergunto.
- É, eu agora fico-me pelas uvas e alface biológicas - responde ela. Viver e aprender.
É estranho, o divórcio. A Zoe e eu estivemos juntos durante quase uma década. Apaixonei-me por ela, dormi com ela, quis formar uma família com ela. Houve uma altura - apesar de ter sido há muito tempo - em que ela me conhecia melhor do que qualquer outra pessoa no mundo. Não quero falar de comida com ela. Quero perguntar-lhe como chegámos ao ponto de ficar a um metro de distância um do outro num corredor de uma mercearia a fazer conversa de circunstância, depois de dançarmos no nosso casamento.
Mas o Elkin aparece com o seu carrinho.
- Meu, já podemos ir - acena com o queixo para a Zoe. - Olá.
- Zoe, este é o Elkin. Elkin, a Zoe - olho para ela. - Hoje vamos ter um jantar na igreja... empada de frango. Tudo caseiro. Devias vir.
Há qualquer coisa que fica imóvel sob as feições dela.
- Pois. Talvez.
- Está bem - sorrio-lhe. - Gostei de te ver.
- Eu também gostei de te ver, Max - passa por mim a empurrar o carrinho e vai ter com a Vanessa junto à beterraba sacarina. Vejo-as a discutir, mas estou demasiado longe para ouvir o que estão a dizer.
- Vamos - diz o Elkin. - A auxiliar fica mesmo arreliada quando não levamos os ingredientes a tempo.
Enquanto o Elkin está a colocar os artigos no tapete da caixa, estou a tentar perceber o que não batia certo na Zoe. Quero dizer, estava com ótimo aspeto, e parecia estar feliz. Era evidente que tinha encontrado amigos para a acompanharem, como eu encontrei. E no entanto havia qualquer coisa que não estava bem, algo que eu não conseguia identificar. Enquanto a empregada da caixa lê os códigos de barras dos artigos, dou por mim a olhar para os corredores atrás de nós, à procura de mais um vislumbre da Zoe.
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Dirigimo-nos para a minha carrinha e começamos a colocar as mercearias na parte de trás. Começou a chover.
- vou devolver o carrinho - grita o Elkin, e empurra-o para um dos recetáculos que estão duas filas atrás de nós. Estou prestes a entrar na carrinha quando a Zoe me detém.
- Max! - saiu a correr da mercearia, com os cabelos a esvoaçar atrás de si como a cauda de um papagaio. Tem gotas de chuva no rosto, na camisola. - Há uma coisa que tenho de te dizer.
No nosso quinto encontro, fomos acampar nas White Mountains com uma tenda que pedi emprestada a um sujeito de cujo relvado cuidava. Mas quando chegámos já estava escuro e acabámos por não encontrar o parque de campismo e por ir montar a tenda no meio do bosque. Rastejámos para dentro do espaço exíguo, fechámos a tenda e tínhamos acabado de despir-nos quando a tenda desabou para cima de nós.
A Zoe começou a chorar. Enrolou-se numa bola no chão enlameado, e eu pousei-lhe a mão no ombro. "Está tudo bem", disse, apesar de ser mentira. Não podia parar a chuva. Não podia arranjar aquilo. Ela virou-se e olhou para mim, e foi nessa altura que percebi que estava a rir, e não a chorar. Estava a rir tanto que não conseguia respirar.
Acho que foi nessa altura que soube realmente que queria ficar com ela para o resto da vida.
Cada vez que a Zoe chorava depois de descobrir que não estava grávida, olhava sempre duas vezes, na esperança de que afinal não fossem lágrimas. Mas eram.
Não sei porque estou a pensar nisso agora, enquanto a chuva lhe alisa os cabelos e lhe apaga o brilho dos olhos.
- Aquela mulher com quem eu estava - diz a Zoe -, a Vanessa. É a minha nova parceira.
Quando estávamos casados, a Zoe estava sempre a falar sobre como era difícil encontrar pessoas que percebessem que a terapia musical é um instrumento válido para a cura, sobre como seria bom ter uma comunidade de terapeutas musicais como quando estava a estudar em Berklee.
- Isso é ótimo - digo, porque parece ser o que ela precisa de ouvir.
- Sempre quiseste ter alguém com quem pudesses trabalhar.
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- Não estás a perceber. A Vanessa é a minha parceira - hesita. Estamos juntas.
Nesse instante percebo o que não estava a bater certo na loja. A Zoe e aquela mulher andavam às compras com o mesmo carrinho. Quem faz compras na mercearia com outra pessoa a menos que partilhe o frigorífico com ela?
Fico a olhar para a Zoe, sem saber bem o que devo dizer. Uma dor de cabeça começa a formar-se atrás dos meus olhos, e surge acompanhada pelas palavras:
"Não se deixem enganar: nem imorais, nem idólatras, nem adúlteros, nem homossexuais passivos ou ativos, nem ladrões, nem avarentos, nem alcoólatras, nem caluniadores, nem trapaceiros herdarão o Reino de Deus."
É da Primeira Carta aos Coríntios 6:9-10, e para mim é um comentário bastante explícito da opinião de Deus acerca do estilo de vida homossexual. Abro a boca para dizer isto à Zoe, mas em vez disso, digo o seguinte:
- Mas estavas comigo - porque as duas coisas devem ser, têm de ser mutuamente exclusivas.
O Elkin bate no seu lado da carrinha, para que eu destranque a porta e o deixe sair da chuva. Carrego no botão da chave e ouço a porta abrir e fechar, mas continuo ali de pé, estupefacto com a revelação da Zoe.
A paralisia que sinto tem tantas camadas que mal consigo começar a contá-las. Choque, pelo que ela acabou de me dizer. Incredulidade, porque não consigo acreditar que tenha fingido a relação que teve comigo ao longo de nove anos. E dor, porque apesar de agora não sermos casados, não suporto a ideia de ela ficar para trás quando Cristo regressar. Não desejaria esse horror a ninguém.
O Elkin toca a buzina, assustando-me.
- Bem - diz a Zoe com um rneio sorriso, daqueles que me faziam apaixonar-me por ela todos os dias. Dá meia volta e volta para o coberto da mercearia, onde a Vanessa está à espera com o carrinho.
Ao correr, a mala escorrega-lhe do ombro e fica presa no cotovelo. Quando a Zoe começa a empurrar o carrinho para o parque de estacionamento, a Vanessa ajeita-lhe a mala, para que fique no lugar.
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É um gesto casual e íntimo. Daqueles que antigamente eu teria feito pela Zoe.
Não consigo desviar o olhar enquanto elas colocam as compras no porta-bagagem de um carro desconhecido - um descapotável antigo. Continuo a observar a minha ex-mulher recentemente homossexual
apesar de estar a ficar encharcado até aos ossos, apesar de esta chuva me impedir de vê-la com nitidez.
Como a sede da Igreja da Glória Eterna se situa no auditório de uma escola do segundo ciclo, os escritórios situam-se noutro local. É um pequeno escritório, anteriormente ocupado por um escritório de advogados num pequeno centro comercial junto a um Dunkin' Donuts. Há uma sala de espera com uma rececionista, uma fotocopiadora, sala de convívio com uma mesinha, um minifrigorífico e uma máquina de café, uma capela, e o gabinete do Pastor Clive.
- Já pode entrar - diz a Alva, a secretária.
É pequena e curvada como um ponto de interrogação, com escassos caracóis brancos na cabeça. O Reid costuma dizer na brincadeira que ela já está ali desde o Dilúvio,
mas há uma parte de mim que acha que ele é capaz de ter razão.
O gabinete do Pastor Clive é quente e usado, com sofás com motivos florais, uma abundância de plantas e uma estante cheia de textos inspiradores. Um suporte de leitura
exibe uma enorme Bíblia aberta. Atrás da secretária há um enorme quadro de Jesus a montar uma Fénix a erguer-se das cinzas. O Pastor Clive uma vez disse-me que Cristo lhe tinha aparecido num sonho e lhe dissera que o seu sacerdócio seria como a ave mítica, que ia erguer-se do esgoto da imoralidade para alcançar a graça. Na manhã seguinte saiu para encomendar o quadro.
O pastor está debruçado sobre uma planta-aranha que já viu melhores dias. As pontas de todas as folhas estão castanhas e secas.
- Por muito que cuide desta pequenina - diz ele -, ela parece estar
sempre a morrer.
Aproximo-me da planta e enfio o dedo na terra para verificar a hidratação.
- A Alva costuma regá-la?
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- Religiosamente.
- com água da torneira, suponho. A planta-aranha é sensível aos produtos químicos presentes na água da torneira. Se mudar para água destilada, e aparar as pontas das folhas, vão todas voltar a adquirir um verde saudável e normal.
O Pastor Clive sorri para mim.
- Você, Max, é uma verdadeira dádiva.
Ao ouvir as palavras dele, sinto-me como se uma fogueira ardesse dentro de mim. Arruinei de tal forma a minha vida que ouvir elogios ainda é uma raridade. Leva-me para o sofá do outro lado do gabinete, convida-me a sentar e oferece-me uma taça cheia de doces.
- Ora bem - diz ele -, a Alva disse-me que estava muito perturbado ao telefone.
Não sei como hei de dizer o que quero dizer, só sei que tenho de dizê-lo. E a pessoa a quem normalmente faria confidências, o Reid, tem os seus próprios problemas.
A Liddy está melhor, mas não está de maneira nenhuma totalmente recuperada.
- Posso garantir-lhe - diz o Pastor Clive num tom suave - que o seu irmão e a Liddy vão ultrapassar este último desafio e ficar ainda mais fortes do que antes. Deus tem um plano para eles, ainda que não tenha achado conveniente revelar-nos esse segredo.
Ouvir o pastor falar sobre o aborto faz-me mudar de posição - devia estar a rezar pelo meu irmão, e não a entregar-me à minha própria confusão acerca de uma mulher de quem me divorciei voluntariamente.
- Não se trata do Reid - digo. - Ontem vi a minha ex-mulher, e ela disse-me que é lésbica.
O Pastor Clive recosta-se nas almofadas da cadeira. -Ah.
- Ela estava na mercearia com uma mulher... a parceira dela. Foi isso que ela disse - olho para o colo. - Como foi capaz? Ela amava-me, eu sei que sim. Casou-se comigo. Ela e eu... nós... bem, já sabe. Eu ia perceber se estivesse apenas a cumprir uma obrigação. Eu ia saber - paro para recuperar o fôlego. - Não acha?
- Talvez sim - diz o Pastor Clive pensativo -, e acabou por ser isso que o fez perceber que o vosso casamento tinha acabado.
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Seria possível? Teria captado vibrações da Zoe, teria percebido o que se passava mesmo antes de ela própria o saber?
- Imagino que se sinta... desadequado - diz o pastor. - Talvez ache que se tivesse sido mais homem isto não teria acontecido.
Não consigo olhá-lo nos olhos, mas tenho as faces a arder.
- E suponho que esteja zangado. Provavelmente acha que todos os que ficarem a saber do novo estilo de vida dela o vão julgar, por ter sido enganado.
- Sim! - expludo. - Não consigo... não posso... - as palavras ficam-me presas na garganta. - Não compreendo porque é que ela está a fazer isto.
- A decisão não é dela - diz o Pastor Clive.
- Mas... ninguém nasce homossexual. Está sempre a dizer isso.
- Tem razão. E eu também tenho razão. Não existem homossexuais biológicos, somos todos heterossexuais. Mas, por uma série de razões, há pessoas que se debatem com um problema de homossexualidade. Ninguém decide sentir-se atraído por uma pessoa do mesmo sexo, Max. Mas decidimos de facto como havemos de reagir a esses sentimentos inclina-se para a frente, de mãos entre os joelhos. - Os meninos não nascem homossexuais... tornam-se homossexuais, por terem mães demasiado dominantes, ou que dependem dos filhos para satisfazerem as suas próprias necessidades emocionais; ou por terem pais demasiado distantes. Da mesma forma, as meninas cujas mães são demasiado distantes podem não ter o modelo de que necessitam para desenvolverem a sua feminilidade; e normalmente também têm pais ausentes.
- O pai da Zoe morreu quando ela era pequena... - digo. O pastor Clive olha para mim.
- O que eu estou a dizer-lhe, Max, é que não fique zangado com ela. Ela não precisa da sua raiva. Ela precisa... ela merece... a sua graça.
- Não... não percebo.
- Quando eu era jovem, servi no ministério de um pastor muito conservador. Foi durante a crise da SIDA, e o Pastor Wallace começou a visitar pacientes homossexuais que estavam hospitalizados. Rezava com eles se eles se sentissem confortáveis e, se não, ficava apenas ao lado deles. Bem, uma rádio homossexual local acabou por
saber o que o Pastor Wallace andava a fazer, e convidou-o para uma entrevista. Quando lhe
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pediram a sua opinião sobre a homossexualidade, disse sem rodeios que era um pecado. O
DJ admitiu que não gostou de ouvir isso, mas gostava do Pastor Wallace. No
fim de semana seguinte, alguns homossexuais vieram assistir à sua missa. Na semana a seguir, o número duplicou. A congregação começou a ficar apreensiva e a perguntar
o que haveria de fazer com todos aqueles homossexuais a andarem por ali. E o Pastor Wallace respondeu: "Ora, deixem-nos sentar-se." Os homossexuais, disse ele, podiam
juntar-se aos intriguistas, aos fornicadores, aos adúlteros e a todos os outros pecadores que havia entre eles. Levanta-se e dirige-se para a secretária.
- O mundo é estranho, Max. Temos igrejas gigantescas. Temos televisão cristã por satélite e bandas cristãs nas tabelas de música pop. Temos The Shack, por amor de
Deus. Cristo tem mais visibilidade do que alguma vez teve, maior influência do que alguma vez teve. Então porque é que as clínicas que fazem abortos prosperam? Porque
é que a taxa de divórcios está a subir? Porque é que a pornografia vai de vento em popa? - faz uma pausa, mas acho que não está à espera de uma resposta minha. -
Eu digo-lhe porquê, Max. É porque a debilidade moral que vemos fora da igreja também a invadiu. Veja o Ted Haggard ou o Paul Barnes: há escândalos sexuais entre
os nossos próprios líderes. Não podemos abordar o assunto mais crítico da nossa época porque abdicámos da nossa autoridade moral.
Franzo a testa, um pouco confuso. Não percebo o que é que isto tem a ver com a Zoe.
- Num encontro de oração ouvimos as pessoas dizerem que têm cancro, ou que precisam de arranjar um emprego. Nunca ouvimos ninguém confessar que vê pornografia na Internet, ou que tem fantasias homossexuais. Porque é que isso acontece? Porque é que a igreja não é um local seguro para nos dirigirmos quando nos sentimos tentados pelo pecado... por qualquer pecado? Se não conseguimos ser esse local seguro, partilhamos a responsabilidade quando essas pessoas caírem no abismo. O Max sabe muito bem como é sentarmo-nos a um balcão de um bar sem sermos julgados... tomar uma bebida e descontrair. Porque é que a igreja não pode ser assim? Porque é que não pode
entrar e simplesmente dizer: "Oh, Deus, sois apenas Vós. Ótimo. Agora posso ser eu próprio."
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Não de forma a ignorar os nossos pecados, mas de forma a tornarmo-nos responsáveis por eles. Está a ver aonde eu quero chegar, Max?
- Não, senhor - admito. - Nem por isso...
- Sabe o que o fez vir ter comigo hoje? - diz o Pastor Clive.
- A Zoe?
- Não. Jesus Cristo - surge um sorriso no rosto do Pastor Clive. - Foi enviado aqui para me lembrar de que não podemos envolver-nos tanto na batalha ao ponto de
esquecermos a guerra. Os alcoólicos recebem medalhas para comemorar o tempo que estão sóbrios. Nós na igreja temos de ser esse símbolo para os homossexuais que queiram
mudar.
- Não sei se a Zoe quer mudar...
- Já sabemos que não podemos dizer a uma mulher grávida que não faça um aborto: temos de ajudá-la a tomar a atitude certa, dando-Ihe conselhos, apoio e possibilidades
de adoção. Por isso não podemos limitar-nos a dizer que ser homossexual é errado. Também temos de estar dispostos a trazer estas pessoas para a igreja, para lhes
mostrar como se toma a atitude certa.
Percebo que o pastor quer dizer que devo tornar-me um guia. É como se a Zoe estivesse perdida na floresta. Posso não conseguir convencê-la a vir imediatamente comigo,
mas posso dar-lhe um mapa.
- Acha que devo falar com ela?
- Precisamente, Max.
Só que nós temos um passado.
E eu ainda não renasci em Cristo há tempo suficiente para ser persuasivo.
E.
("Mesmo que me custe")
("Mesmo que faça sentir-me menos homem")
("Quem sou eu para dizer que ela está errada?")
Mas nem consigo admitir este último pensamento a mim próprio, quanto mais ao Pastor Clive.
- Não me parece que ela queira ouvir o que a igreja tem para dizer.
- Não disse que ia ser uma conversa fácil, Max. Mas não se trata de ética sexual. Nós não somos contra os homossexuais - diz o Pastor Clive. - Somos a favor de Cristo.
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Quando as coisas são postas nestes termos, tornam-se claras. Não vou atrás da Zoe por ela me ter magoado, ou porque estou zangado. Só estou a tentar salvar a sua alma.
- Então o que devo fazer?
- Rezar. A Zoe tem de confessar o seu pecado. E, se não for capaz, reze para que isso aconteça. Não pode arrastá-la até nós, não pode forçá-la a receber aconselhamento.
Mas pode fazê-la ver que existe uma alternativa - senta-se à secretária e começa a folhear uma agenda. - Há alguns dos nossos fiéis que se debateram com uma atração
indesejada pelo mesmo sexo mas que têm uma visão cristã do mundo.
Penso na congregação - nas famílias felizes, nos rostos radiosos, no brilho nos olhos que sei que vem do Espírito Santo. Estas pessoas são amigas, são família. Tento perceber quem já teve um estilo de vida homossexual. Talvez o Patrick, o cabeleireiro cujas gravatas ao domingo condizem sempre com a blusa da mulher? Ou o Neal, que é chefe de pastelaria de um restaurante de cinco estrelas no centro?
- Acho que conhece a Pauline Bridgman...? - diz o Pastor Clive. A Pauline?
A sério?
A Pauline e eu cortámos cenouras ontem enquanto preparávamos as empadas de frango para o jantar da igreja. Ela é muito pequena, com um nariz arrebitado na ponta e sobrancelhas demasiado finas. Quando fala gesticula muito com as mãos. Acho que nunca a vi sem estar vestida de cor-de-rosa.
Quando penso em lésbicas, imagino mulheres com um aspeto rude e beligerante, de cabelos espetados, calças de ganga largas e camisas de flanela. Claro, isto é um estereótipo... mas mesmo assim, não há nada na Pauline Bridgman que sugira que já foi lésbica.
Por outro lado, também não houve nada na Zoe que me tivesse levantado suspeitas.
- A Pauline procurou a ajuda da Exodus International. Costumava falar sobre a sua experiência de se tornar ex-homossexual nas conferências de Love Won Out. Acho que se lhe pedirmos ela ficará muito satisfeita por partilhar a sua história com a Zoe.
O pastor Clive escreve o número da Pauline num post-it.
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- vou pensar no assunto - digo de forma evasiva.
- Eu diria: "O que tem a perder?" Só que não é isso que importa aqui
- o Pastor Clive fica à espera até eu olhar diretamente para ele. - O que importa é o que a Zoe tem a perder.
A salvação eterna.
Mesmo que já não seja minha mulher. Mesmo que nunca me tivesse amado verdadeiramente. Tiro o post-it das mãos do Pastor Clive, dobro-o ao meio e enfio-o na carteira.
Naquela noite sonho que ainda sou casado com a Zoe, que ela está na minha cama e que estamos a fazer amor. Faço deslizar a mão pela anca dela, para a curva da cintura. Escondo o rosto nos seus cabelos. Beijo-lhe a boca, a garganta, o pescoço, o seio. Então olho para baixo, para a minha mão, aberta em cima da barriga dela.
Não é a minha mão.
Em primeiro lugar, tenho um anel no polegar - uma aliança fina de ouro.
E verniz vermelho nas unhas.
"O que se passa?", pergunta a Zoe.
"Há qualquer coisa de errado", digo-lhe.
Ela agarra-me no pulso e puxa-me para mais perto de si. "Não há nada de errado."
Mas vou até à casa de banho a cambalear e acendo as luzes. Olho
para o espelho e vejo a Vanessa a olhar para mim.
Então acordo, com os lençóis encharcados de suor. Levanto-me da cama do quarto de hóspedes do Reid e, na casa de banho (com cuidado para não olhar para o espelho), lavo o rosto e molho a cabeça debaixo da torneira. Agora não vou de maneira nenhuma voltar a adormecer, por isso dirijo-me à cozinha para comer qualquer coisa.
Mas, para minha surpresa, não sou só eu que estou acordado às três da manhã.
A Liddy está sentada à mesa da cozinha, a rasgar um guardanapo. Veste um robe branco de algodão fino por cima da camisa de noite. A Liddy usa camisas de noite, daquelas de algodão fino com pequenas rosas bordadas
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na gola e na bainha. A Zoe costumava dormir nua, e quando vestia alguma coisa era uma das minhas T-shirts e um par de boxers.
- Liddy - digo, e ela dá um salto ao ouvir a minha voz. - Estás bem?
- Assustaste-me, Max.
Ela sempre me pareceu frágil - como imagino os anjos, vaporosa e delicada, demasiado bonita para estar a observar por longos períodos de tempo. Mas agora parece destroçada. Tem meias luas azuladas debaixo dos olhos; os lábios gretados. As mãos, quando não estão a rasgar o guardanapo de papel, estão a tremer.
- Precisas de ajuda para voltares para a cama? - pergunto num tom suave.
- Não... estou bem.
- Queres um chá? - pergunto. - Ou podia preparar-te uma sopa...? Ela abana a cabeça. A cascata de cabelos dourados ondula.
Não me parece bem sentar-me quando a Liddy está sentada na sua própria cozinha, e quando é óbvio que veio para aqui para ficar sozinha. Mas também não me parece bem deixá-la aqui.
- Posso ir chamar o Reid - sugiro.
- Deixa-o dormir - ela suspira, e quando o faz o pequeno monte de papel rasgado que fez ergue-se a toda a sua volta, caindo no chão. A Liddy dobra-se para apanhar os pedaços.
- Oh - digo eu, satisfeito por ter qualquer coisa para fazer. - Eu apanho.
Ajoelho-me antes que ela possa lá chegar, mas ela afasta-me da frente.
- Para - diz. - Para.
Tapa o rosto com as mãos. Não consigo ouvi-la, mas vejo os ombros estremecerem. Sei que está a chorar.
Sem saber o que fazer, dou-lhe palmadinhas hesitantes nas costas.
- Liddy? - murmuro.
- Será que não podem parar todos de ser tão simpáticos para mim,
foda-se! Fico de boca aberta. Em todos estes anos desde que conheço a Liddy,
nunca a ouvi dizer um palavrão, quanto mais dizer essa palavra. Cora de imediato.
- Desculpa - diz. - Não sei... não sei o que se passa comigo.
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- Eu sei - sento-me na cadeira à frente dela. - A tua vida. Não está
a correr como pensavas.
A Liddy fica a olhar para mim por um longo momento, como se nunca tivesse olhado para mim. Cobre a minha mão com as suas.
- Sim - murmura. - É precisamente isso - depois franze um pouco a testa. - Mas porque é que estás acordado?
Solto a mão.
- Fiquei com sede - digo, e encolho os ombros.
- Lembre-se - diz a Pauline, antes de sairmos do carocha dela -, hoje o mais importante é o amor. Vamos tirar-lhe o tapete de baixo dos pés porque ela vai estar à espera de encontrar ódio e crítica, mas não é isso que vamos dar-lhe.
Aceno com a cabeça. Para ser sincero, até convencer a Zoe a encontrar-se comigo foi mais difícil. Não me pareceu certo marcar uma hora sob falsos pretextos; dizer que tinha alguns documentos para ela assinar, ou uma questão financeira relacionada com o divórcio para discutir. Em vez disso, com o Pastor Clive ao meu lado a rezar para que eu encontrasse as palavras certas, telefonei-lhe para o telemóvel e disse que tinha gostado muito de tê-la encontrado na mercearia. Que tinha ficado surpreendido com a novidade dela sobre a Vanessa. E que, se ela tivesse alguns minutos livres, gostaria muito de conversar com ela.
Claro que não disse nada acerca de a Pauline também estar presente.
E é por isso que, quando a Zoe abre a porta desta casa desconhecida (uma moradia vermelha numa praceta, com um jardim extremamente bem cuidado), olha para mim e depois para a Pauline e franze o sobrolho.
- Max - diz a Zoe -, pensei que vinhas sozinho.
É estranho ver a Zoe na casa de outra pessoa, com uma caneca na mão que lhe ofereci no Natal e que diz TM IN TREBLE13. Atrás dela, no chão, há um monte de sapatos
- alguns dos quais reconheço e outros não. Causa-me um aperto no peito.
- Esta é uma amiga da igreja - explico. - Pauline, esta é a Zoe.
13 Próprio de um soprano. Jogo de palavras com /'m in trouble, estou metida em sarilhos. (N. da T.)
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Acredito na Pauline quando ela diz que já não é homossexual, mas há qualquer coisa que me faz observá-la quando aperta a mão da Zoe. Para ver se há um brilho nos
seus olhos, ou se segura a mão da Zoe durante mais um instante. Mas nada disso acontece.
- Max - pergunta a Zoe -, o que se passa aqui?
Cruza os braços, como costumava fazer quando um vendedor lhe aparecia à porta e queria deixar bem claro que não tinha tempo para ficar a ouvir a conversa dele. Abro a boca para explicar mas depois fecho-a sem dizer nada.
- É uma casa muito bonita - diz a Pauline.
- Obrigada - responde a Zoe. - É da minha namorada.
A palavra explode na sala, mas a Pauline parece que nem a ouviu. Aponta para uma fotografia na parede atrás da Zoe.
- É Block Island?
- Acho que sim - a Zoe vira-se. - Os pais da Vanessa tinham uma casa de férias lá quando ela era pequena.
- A minha tia também - diz a Pauline. - Estou sempre a dizer para comigo que hei de lá voltar, e depois isso nunca acontece.
A Zoe vira-se para mim.
- Olha, Max, podes abrir o jogo. vou ser sincera contigo. Não temos nada para conversar. Se quiseres ser apanhado na lavagem cerebral da Igreja da Glória Eterna, isso é contigo. Mas se tu e a tua amiga missionária estão aqui para me converterem, isso não vai acontecer.
- Não estou aqui para te converter. Independentemente do que aconteceu entre nós, tens de perceber que me preocupo contigo. E quero assegurar-me de que tomas as decisões certas.
Os olhos da Zoe lançam faíscas.
- Estás a dar-me um sermão a mim sobre tomar as decisões certas? Isso é muito engraçado, Max.
- Cometi erros - admito. - Cometo-os todos os dias. Não sou de
modo nenhum perfeito. Mas ninguém é. E é precisamente por isso que devias dar-me ouvidos quando digo que o que sentes... a culpa não é tua. É uma coisa que te aconteceu.
Mas tu não és assim.
Ela fica a olhar para mim por um instante, a pestanejar, a tentar decifrar as minhas palavras. Vejo logo quando ela percebe.
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- Estás a referir-te à Vanessa. Oh, meu Deus. Trouxeste a tua demanda anti-homossexual para o meio da minha sala - em pânico, olho para a Pauline enquanto a Zoe abre os braços. - Vá lá, Max - diz ela num tom sarcástico. - Mal posso esperar para ouvir o que tens a dizer sobre o meu estilo de vida degenerado. Afinal, passei o dia com crianças às portas da morte no hospital. Bem que preciso de um momento de humor para desanuviar.
- Talvez devêssemos ir-nos embora - murmuro para a Pauline, mas ela passa por mim e senta-se no sofá da sala.
- Eu era exatamente igual a si - diz à Zoe. - Vivia com uma mulher, amava-a e considerava-me homossexual. Estávamos de férias, a jantar num restaurante, e a empregada assentou o pedido da minha namorada e depois virou-se para mim. "E o senhor", disse ela, "o que deseja?" Devo dizer-lhe que não tinha o aspeto que agora tenho. Vestia-me como um rapaz, andava como um rapaz. Queria que me confundissem com um rapaz, para que as raparigas se apaixonassem por mim. Acreditava convictamente que tinha nascido assim, porque me lembrava desde sempre de me sentir diferente das outras pessoas. Nessa noite fiz uma coisa que já não fazia desde criança: agarrei na Bíblia que estava em cima da mesa de cabeceira do hotel e comecei a ler. Por mero acaso, calhei no Levítico: "O homem que se deita com outro homem, como se fosse uma mulher, comete uma abominação." Não sou um homem, mas soube que Deus estava a referir-se a mim.
A Zoe revira os olhos.
- Estou um pouco enferrujada nas Escrituras, mas tenho a certeza de que o divórcio não é permitido. Mas não apareci à tua porta depois da decisão do tribunal, Max.
A Pauline continua como se a Zoe não tivesse dito nada.
- Comecei a perceber que podia separar a pessoa dos atos. Não era homossexual: identificava-me com a homossexualidade. Voltei a ler os estudos que alegadamente provavam que tinha nascido assim, e encontrei falhas e lacunas suficientemente grandes para caber lá um camião. Tinha acreditado numa mentira. E assim que percebi isso, também percebi que as coisas podiam mudar.
- Quer dizer que... - diz a Zoe sem fôlego - é assim tão fácil? Basta dizer? Digo que acredito em Deus e sou salva por magia. Basta dizer
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que não sou homossexual, e aleluia! Devo estar curada. Tenho a certeza de que se a Vanessa entrasse agora por aquela porta, não a acharia minimamente atraente.
Como se a Zoe a tivesse invocado, a Vanessa entra na sala, ainda a desabotoar o casaco.
- Acabei de ouvir o meu nome? - pergunta. A Zoe aproxima-se dela e dá-lhe um beijo rápido nos lábios, uma saudação.
Como se fosse algo que estivessem sempre a fazer. Como se não me desse voltas ao estômago. Como se fosse perfeitamente natural. A Zoe olha para a Pauline.
- Bolas. Afinal acho que não estou curada. Agora a Vanessa já reparou em nós.
- Não sabia que tínhamos visitas.
- Esta é a Pauline, e claro que já conheces o Max - diz a Zoe. - Estão aqui para nos salvarem de irmos para o Inferno.
- Zoe - diz a Vanessa, puxando-a para o lado -, podemos falar um minutinho? - conduz a Zoe para a cozinha adjacente. Tenho de esforçar-me para ouvir, mas consigo perceber a maior parte do que ela está a dizer. - Não vou dizer-te que não podes convidar pessoas para virem a nossa casa, mas o que estás tu a pensar?
- Que eles são loucos - diz a Zoe. - A sério, Vanessa, se nunca ninguém lhes disser que estão a alucinar, como vão sabê-lo?
Há mais conversa, mas é abafada. Olho nervosamente para a Pauline.
- Não se preocupe - diz ela, dando-me palmadinhas no braço. A negação é normal. Cristo chama-nos para espalharmos a Sua palavra, mesmo quando parece que cai em orelhas moucas. Mas penso sempre numa conversa destas como se estivesse a aplicar um acabamento cor de mogno num soalho de madeira natural. Mesmo que apaguemos a cor, vai sendo absorvido a pouco e pouco, e é impossível de tirar. Muito depois de termos ido embora, a Zoe ainda vai ficar a pensar no que dissemos.
Por outro lado, aplicar acabamento de mogno numa peça de pinho apenas altera o seu aspeto exterior. Não o transforma em mogno verdadeiro. Será que a Pauline alguma vez se lembrou disso?
A Zoe entra pela porta, com a Vanessa atrás.
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- Não faças isso - pede-lhe a Vanessa. - Se começasses a namorar com uma pessoa de pele negra, irias convidar o Ku Klux Klan para discutir o assunto?
- Sinceramente, Vanessa - diz a Zoe para encerrar o assunto, e depois dirige-se à Pauline. - Desculpe. Estava a dizer?
A Pauline cruza as mãos no colo.
- Bem, acho que estávamos a falar sobre o meu momento de descoberta - diz ela, e a Vanessa solta um grunhido de desdém. Apercebi-me de que era vulnerável à atração pelo mesmo sexo por várias razões. A minha mãe cresceu numa quinta no lowa, era daquelas mulheres que se levantam às quatro da manhã e que já mudaram o mundo quando vão tomar o pequeno-almoço. Acreditava que as mãos eram feitas para trabalhar e que, se caíssemos e ficássemos a chorar, éramos fracos. O meu pai viajava muito e não estava presente. Sempre fui maria-rapaz, e preferia jogar futebol com os meus irmãos a ficar dentro de casa a brincar com as minhas bonecas. E, claro, tinha um primo que abusava sexualmente de mim.
- Claro - murmura a Vanessa.
- Bem - diz a Pauline, olhando para ela -, todas as pessoas que se identificam com a homossexualidade que já conheci sofreram algum tipo de abuso.
Olho para a Zoe, pouco à vontade. Ela não sofreu abusos. Ter-me-ia dito.
- Deixe-me adivinhar - diz a Vanessa. - Os seus pais não a receberam propriamente de braços abertos quando lhes disse que era homossexual.
A Pauline sorri.
- Os meus pais e eu agora temos uma excelente relação... já passámos por tantas coisas, meu Deus... a culpa de eu me identificar com a homossexualidade não foi deles. Foi um conjunto de fatores, desde esse abuso até não me sentir segura no meu próprio sexo e achar que as mulheres eram cidadãs de segunda classe. Por todas essas razões, comecei a comportar-me de uma certa maneira. Uma maneira que me afastou de Cristo. Por que razão - pergunta ela à Zoe - acha que se mostrou disposta a ter uma relação do mesmo sexo? É óbvio que não nasceu assim, visto que era feliz no casamento...
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- Tão feliz no casamento - faz notar a Vanessa - que se divorciou.
- É verdade - concordo. - Não estive lá para te apoiar, Zoe, quando precisavas de mim. E nunca vou conseguir compensar-te. Mas posso impedir que o mesmo erro se repita. Posso ajudar-te a conhecer pessoas que te compreendam, que não te julguem, que gostem de ti como és, e não por aquilo que fazes.
A Zoe dá o braço à Vanessa.
- Já tenho tudo isso aqui.
- Não podes... não és... - dou por mim a tropeçar nas palavras. Não és homossexual, Zoe. Não és.
- Talvez seja verdade - diz a Zoe. - Talvez não seja homossexual. Talvez seja só desta vez. Mas uma coisa é certa: quero que desta vez dure a vida inteira. Amo a Vanessa. E por acaso ela é uma mulher. Se isso faz de mim lésbica, então que seja.
Começo a rezar em silêncio. Rezo para não me levantar e começar aos gritos. Rezo para que a Zoe fique o mais infeliz possível, o mais depressa possível, para poder ver Cristo mesmo à frente dela.
- Também não gosto muito de catalogar as pessoas - diz a Pauline.
- Meu Deus, olhem para mim agora. Nem gosto de dizer que sou ex-homossexual, porque isso sugere que nasci homossexual. Nem pensar: sou uma mulher heterossexual, evangélica e cristã, só isso. Uso mais saias do que calças. Nunca saio de casa sem maquilhagem. E se por acaso virem o Hugh Jackman na rua, por favor agarrem-no até...
- Já dormiu com um homem? - a voz da Vanessa parece um disparo.
- Não - admite a Pauline, corando. - Isso ia contra os princípios fundamentais da igreja, visto que não sou casada.
- Mas que conveniente - a Vanessa vira-se para a Zoe. - Aposto vinte dólares em como a Megan Fox era capaz de seduzi-la no tempo que demora a rezar um Pai Nosso.
A Pauline não morde o isco. Volta-se para a Vanessa, com os olhos cheios de piedade.
- Pode dizer o que quiser sobre mim. Está a ver, eu já fui como a Vanessa. Sei o que é viver a sua vida, e olhar para uma mulher como eu e pensar que é completamente
doida. Acredite, já me deixaram livros em cima da cómoda e artigos debaixo da chávena de café em cima da
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mesa da cozinha: os meus pais fizeram tudo o que podiam para me obrigarem a abandonar a minha identidade homossexual, e isso apenas me deu mais certeza de que tinha
razão. Mas, Vanessa, não estou aqui para ser essa pessoa. Não vou dar-lhe literatura e fazer telefonemas de acompanhamento nem fingir que sou a sua nova melhor amiga. Estou aqui simplesmente para dizer que quando a Vanessa e a Zoe estiverem preparadas... e acho que um dia vão estar... posso fornecer-vos os recursos que procuram para colocar as necessidades de Cristo acima das vossas.
- Então deixe-me ver se percebi bem - diz a Zoe. - Não preciso de mudar já. Pode ficar para depois...
- Claro - respondo. - Quero dizer, é um passo na direção certa, não é?
- ... mas continua a achar que a nossa relação é errada.
- Jesus acha - diz a Pauline. - Se ao olharmos para a Escrituras pensarmos de maneira diferente, é porque estamos a lê-las mal.
- Sabe, frequentei a catequese durante dez anos - diz a Vanessa. Tenho a certeza de que a Bíblia também diz que a poligamia é uma boa ideia. E que não devíamos comer
vieiras.
- O facto de uma coisa estar escrita na Bíblia não quer dizer que Deus teve a intenção...
- Acabou de dizer que o que está escrito nas Escrituras é um facto!
- argumenta a Vanessa.
A Pauline levanta um pouco o queixo.
- Não vim aqui para discutir semântica. O oposto da homossexualidade não é a heterossexualidade. É a santidade. É por isso que estou aqui: como prova viva de que existe outro caminho. Um caminho melhor.
- E de que forma isso se coaduna com dar a outra face?
- Não estou a julgá-la - explicou a Pauline. - Estou só a explicar-lhe a minha visão bíblica do mundo.
- Bem - diz a Vanessa, levantando-se. - Então acho que sou cega, porque essa distinção é demasiado subtil para mim. Como se atreve a dizer que o que faz de mim aquilo que eu sou está errado? Como se atreve a dizer que é tolerante, desde que eu seja igual a si? Como se atreve a sugerir que não devia poder casar-me com uma pessoa que amo, nem adotar uma criança, ou que os direitos dos homossexuais não
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são direitos civis porque, ao contrário da cor da pele ou das deficiências, acha que a orientação sexual pode ser alterada? Mas sabe uma coisa? Nem esse argumento é consistente, porque podemos mudar de religião, sem que a filiação religiosa deixe de ser protegida pela lei. E essa é a única razão que me leva a pedir-lhe delicadamente que saia da minha casa, em vez de pô-la na rua por causa das suas baboseiras evangélicas hipócritas.
A Zoe também se levanta.
- Não deixem que a porta vos bata ao saírem - disse ela.
A caminho de casa, começa a chover. Fico a ouvir os límpa-para-brisas marcar o compasso e penso em como a Zoe, no assento do passageiro, costumava bater no porta-luvas ao ritmo.
- Posso fazer-lhe uma pergunta pessoal? - digo, dirigindo-me à Pauline.
- Claro.
- Alguma vez... sabe... sente falta? A Pauline olha para mim.
- Algumas pessoas sentem. Lutam contra isso durante anos. É como qualquer outro vício... pensam que aquela é a droga delas, e tomam a decisão de não deixar que isso
faça parte das suas vidas. com sorte, podem considerar-se completamente curadas e alterarem verdadeiramente a sua identidade. Mas mesmo que não tenham essa sorte,
continuam a acordar de manhã e a rezar a Deus para passarem mais um dia sem cederem a essas tentações.
Apercebi-me de que não respondeu verdadeiramente à minha pergunta.
- Há séculos que os Cristãos são chamados à batalha - diz a Pauline.
- Isto não é diferente.
Uma vez, a Zoe e eu fomos ao casamento de um dos clientes dela. Era um casamento judaico, e foi mesmo bonito - com ornamentos e tradições que nunca tinha visto antes. A noiva e o noivo estavam debaixo de uma abóbada, e as orações foram feitas numa língua desconhecida. No fim, o rabi pediu ao noivo que pisasse um copo de vinho embrulhado num guardanapo. "Que o vosso casamento dure tanto quanto o tempo necessário para juntar todos estes pedaços de vidro", disse ele. Mais tarde, quando todos estavam a dar os parabéns ao casal, esgueirei-me
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para debaixo da abóbada e tirei um pequeno estilhaço de vidro do guardanapo onde ainda estava, em cima da relva. Lancei-o ao oceano a caminho de casa, para que, acontecesse o que acontecesse, aquele copo nunca pudesse voltar a ser reconstituído, para que o casal Uudesse ficar junto para sempre.
Quando a Zoe me perguntou o que eu estava a fazer e eu lhe contei, disse que achava que me amava mais do que nunca.
O meu coração ultimamente parece esse copo de vinho. Algo que devia estar inteiro mas que - graças a algum idiota que pensou que ele é que sabia - não tem qualquer hipótese.
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CASA COMIGO
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ZOE
Toda a gente quer saber como é o sexo.
É diferente de estar com um homem, por todas as razões óbvias, e muitas mais que nunca imaginariam. Em primeiro lugar, é mais emocional, e há menos a provar. Há
momentos suaves e ternos, e outros violentos e intensos - mas não há nenhum homem para desempenhar o papel dominante e uma rapariga para desempenhar o papel passivo. Revezamo-nos a sermos protegidas e a sermos protetoras.
Sexo com uma mulher é o que desejávamos que fosse com um homem mas que raramente é: centrado na viagem e não no destino. São os preliminares para sempre. É a liberdade de não termos de encolher a barriga nem pensarmos na celulite. É podermos dizer "isso é bom" e, acima de tudo "isso não é". Admito que, de início, era estranho aconchegar-me nos braços da Vanessa, quando estava habituada a descansar encostada a um peito musculoso - mas a estranheza não era desagradável. Apenas pouco familiar, como se de repente tivesse ido viver para a floresta tropical depois de ter vivido no deserto. É outro tipo de beleza.
Às vezes, quando um colega descobre que estou com a Vanessa, vejo nos olhos dele - a expetativa de que cada noite seja um vídeo pornográfico de lésbicas. A minha vida sexual atual é tão parecida com isso como a minha vida sexual anterior era parecida com uma cena de amor com o Brad Pitt. Podia voltar a dormir com um homem, mas acho que não ia
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gostar tanto, nem sentir-me tão segura, nem tão ousada. Por isso, se a Vanessa não me enche - pelo menos no sentido literal -, preenche-me, o que é muito melhor.
A verdadeira diferença entre o meu casamento com o Max e a minha relação com a Vanessa por acaso não tem nada a ver com sexo. Tem a ver com equilíbrio. Quando o Max chegava a casa, interrogava-me se estaria de bom humor, ou se teria tido um dia bom - e transformava-me na pessoa que ele precisava que eu fosse. com a Vanessa posso chegar a casa e ser apenas eu própria.
com a Vanessa, acordo e penso: "Esta é a minha melhor amiga. É a pessoa mais radiosa da minha vida." Acordo e penso: "Tenho muito mais a perder."
Cada dia é uma negociação. A Vanessa e eu sentamo-nos a tomar café e, em vez de se esconder atrás do jornal - como o Max costumava fazer -, discutimos o que temos de fazer. Agora que vim viver com ela, temos uma casa para gerir. Não há homem para mudar as lâmpadas fundidas, nem para levar o lixo lá para fora. Se é preciso mudar qualquer coisa pesada de sítio, mudamo-la juntas. Uma de nós tem de cortar a relva, pagar as contas, desentupir as sarjetas.
Quando era casada, o Max perguntava-me o que era o jantar; eu perguntava-lhe se ele tinha ido buscar a roupa à lavandaria. Agora, a Vanessa e eu dividimos as nossas tarefas. Se a Vanessa precisa de fazer alguma coisa a caminho de casa, depois de sair da escola, pode trazer comida pronta. Se eu vou para a cidade, levo o carro dela para poder encher o depósito de gasolina. Há muita conversa, muito dar e receber, quando estão apenas duas mulheres na cozinha.
É engraçado - quando ouvia os homossexuais utilizarem o termo companheiro para se referirem à pessoa mais importante para eles, isso parecia-me estranho. Os cônjuges heterossexuais também não seriam companheiros? Mas agora vejo que não é esse o caso, que há uma diferença entre alguém a quem chamamos "cara-metade" num cocktail e alguém que realmente nos complete. A Vanessa e eu temos de inventar a dinâmica entre nós, porque não temos uma relação tradicional de marido e mulher. Assim, estamos constantemente a tomar decisões em conjunto. Estamos
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sempre a pedir a opinião uma da outra. Não presumimos nada. E, dessa forma, é muito menos provável ferirmos os nossos sentimentos.
Seria de pensar que agora, com um mês de relação, algum do brilho se tenha desvanecido, que talvez ame a Vanessa mas provavelmente não estarei tão apaixonada por ela - mas não é verdade. Ela continua a ser a pessoa com quem estou ansiosa por falar depois de acontecer algo fenomenal no trabalho. É com ela que quero festejar quando, três meses após a histerectomia, continuo livre de cancro. É com ela que quero estar num domingo ocioso. Por esta razão, muitas das tarefas que podíamos dividir para conquistar aos fins de semana demoram o dobro do tempo, porque as fazemos juntas. Mas, visto que de qualquer forma queremos estar juntas, porque não?
É por isso que estamos na mercearia numa tarde de sábado em março a ler o rótulo do molho para salada, quando o Max aparece ao pé de mim. Abraço-o, um hábito instintivo - e tento não olhar para o fato preto e gravata lustrosa dele. Parece um rapaz do liceu que acha que se se vestir como aqueles homens cheios de estilo se transformará num deles, só que
isso nunca acontece.
Sinto a Vanessa arder atrás de mim, à espera que os apresente. Mas as palavras ficam-me entaladas na garganta.
O Max estende a mão; a Vanessa aperta-a. Isto é um inferno, penso. O homem que amei e a mulher sem a qual não posso viver. Sei o que a Vanessa quer, o que ela espera. com todos os protestos para convencê-la de que não a vou deixar nos tempos mais próximos, esta é a prova perfeita. Só tenho de dizer ao Max que agora a Vanessa e eu somos um casal.
Então porque não sou capaz?
A Vanessa fica a olhar para mim, e depois cerra os lábios.
-vou buscar os legumes - diz ela mas, enquanto se afasta, sinto que algo se quebrou dentro do meu peito, como uma corda demasiado apertada.
O amigo do Max aparece, um clone com um fato semelhante, com uma maçã de Adão que oscila como a bolha de um nível. Cumprimento-o entre dentes, mas estou a tentar espreitar por cima do ombro dele para os expositores dos legumes, onde a Vanessa está de costas para mim. Então ouço o Max convidar-me para ir à igreja dele.
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"É muito pouco provável", penso. Imagino-me a aparecer à frente daquele grupo de homofóbicos de mão dada com a Vanessa. Provavelmente seríamos linchadas. Balbucio uma resposta e dirijo-me imediatamente para ela.
- Estás chateada comigo - digo.
A Vanessa está a apertar mangas.
- Não estou chateada. Só um pouco desiludida - olha para cima. Porque não lhe disseste?
- Porque tinha de dizer-lhe? Ninguém tem nada a ver com isso, só tu e eu. Acabei de conhecer um amigo do Max e ele não disse: "Oh, já agora, sou heterossexual."
Pousa a fruta.
- Sou a última pessoa no mundo que quer andar com um cartaz numa marcha do Orgulho Gay - diz a Vanessa. - E sei que não é fácil dizer a alguém que já amámos que amamos outra pessoa. Mas é quando não o dizemos em voz alta que as pessoas começam a preencher o silêncio com as suas estúpidas suposições. Não achas que, se o Max soubesse que tens uma relação com uma pessoa do mesmo sexo, era capaz de pensar duas vezes antes de voltar a manifestar-se contra os homossexuais? Porque de repente deixa de ser uma lésbica desconhecida no meio da multidão, Zoe, é uma pessoa que ele conhece - desvia o rosto. - E eu. Quando te vejo a esforçares-te para não dizeres que sou tua namorada, fico a pensar que, digas o que me disseres, estás a mentir. Que ainda andas à procura daquela saída de emergência.
- Não é por isso que eu...
- Então porque não? Tens vergonha de mim? - pergunta a Vanessa. Ou tens vergonha de ti própria?
Estou em frente às caixas de morangos. Uma vez tive uma cliente que, antes de ir para uma clínica com cancro nos ovários, tinha sido botânica. Já não conseguia ingerir alimentos sólidos mas disse-me que sentia mais falta dos morangos. São os únicos frutos no mundo com sementes no exterior e, por causa disso, não são verdadeiramente
bagas. São da família das rosas, apesar de não conseguirmos perceber isso só de olhar.
- Vem ter comigo lá fora - digo à Vanessa.
Está a chover quando alcanço o Max junto à carrinha dele.
- Aquela mulher com quem estou. A Vanessa - digo eu. - É a minha nova parceira.
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O Max fica a olhar para mim como se fosse maluca. Porque haveria de vir a correr à chuva para dizer-lhe isto? Depois começa a falar sobre o meu trabalho, e percebo que a Vanessa tinha razão; compreendeu mal, porque não lhe disse a verdade.
- A Vanessa é a minha parceira - repito. - Estamos juntas.
Consigo perceber mal ele compreende o que estou a dizer. Não é por causa das cortinas invisíveis que se fecham sobre os seus olhos mas porque algo transborda dentro de mim, doce e livre. Não sei porque achei que precisava da aprovação do Max. Posso não ser a mulher que ele pensava que conhecia, mas isso é válido para ambos.
Quando dou por mim estou a dirigir-me para a Vanessa, que está à espera com o carrinho de compras debaixo do toldo da loja, ao abrigo da chuva. Vejo que estou a correr.
- O que lhe disseste? - pergunta a Vanessa.
- Que quero ficar contigo para sempre. Só que para sempre não basta digo-lhe. - Posso estar a parafrasear um pouco.
A expressão no rosto dela faz-me sentir como me sinto quando vejo o primeiro crocus, depois dos meses de inverno. Finalmente.
Baixamos as cabeças à chuva e corremos para o carro da Vanessa para descarregar as mercearias. Quando ela coloca os sacos no porta-bagagem, vejo duas crianças a
passar. São pré-adolescentes, um rapaz com uma penugem no rosto e uma rapariga a rebentar um balão de pastilha elástica. Têm os braços à volta um do outro, com as mãos enfiadas no bolso de trás das calças de ganga um do outro.
Não parecem ter idade suficiente para ver filmes para maiores de doze anos, quanto mais para namorar, mas ninguém pestaneja sequer quando eles passam.
- Olha - digo eu, e a Vanessa vira-se para mim, ainda com um saco de compras na mão. Envolvo-lhe o rosto com as mãos e beijo-a, um beijo longo, maravilhoso e lento. Espero que o Max esteja a ver. Espero que o mundo inteiro veja.
Quando a maior parte das pessoas ouve gritar, corre na direção oposta. Eu, agarro na guitarra e corro nessa direção.
- Olá - digo, entrando num dos quartos da ala de pediatria do hospital.
- Posso ajudar?
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A enfermeira, que está a tentar corajosamente tirar um cateter intravenoso a um menino, suspira de alívio.
- Esteja à vontade, Zoe.
A mãe do rapaz, que estava a segurá-lo enquanto se debatia, acena com a cabeça.
- Ele só sabe que lhe doeu a entrar, por isso acha que também vai doer-Ihe a sair.
Estabeleço contacto visual com o filho dela.
- Olá - digo. - Sou a Zoe. Como te chamas? O lábio inferior dele treme.
- C-Cari.
- Cari, gostavas de cantar?
Abana a cabeça veementemente. Olho à minha volta, para o quarto, e reparo num monte de figurinhas dos Power Rangers em cima da mesa-de-cabeceira. Puxo a guitarra
para a minha frente e começo a tocar os acordes de "The Wheels on the Bus", só que mudo a letra.
- Os Power Rangers... chutam, chutam, chutam - canto. - Chutam, chutam, chutam... chutam, chutam, chutam. Os Power Rangers chutam, chutam, chutam... todo o dia.
Algures a meio do verso, ele deixa de se debater e olha para mim.
- Eles também saltam - diz.
Assim cantamos o verso seguinte juntos. Ele passa dez minutos a dizer-me todas as outras coisas que os Power Rangers fazem: o vermelho, o cor-de-rosa e o preto.
Depois olha para a enfermeira.
- Quando é que vai começar? - pergunta o Cari. Ela sorri.
-Já acabei.
A mãe do Cari olha para mim com puro alívio.
- Muito, muito obrigada.
- De nada - digo. - Cari, obrigada por teres cantado comigo.
Assim que saio do quarto e viro a esquina, outra enfermeira vem ter comigo a correr.
- Tenho procurado por si em todo o lado. É a Marisa.
Não precisa de dizer-me o que está a acontecer. A Marisa é uma menina de três anos que neste último ano de vez em quando tem estado internada
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no hospital com leucemia. O pai, um músico folk, adora a ideia da terapia musical para a filha, porque sabe como a música pode transportar uma pessoa. Às vezes entro no quarto quando ela está alerta e feliz, e cantamos as suas músicas preferidas - "Old MacDonald", "Fm a Little Teapot", "John Jacob Jingleheimer Schmidt" e "My Bonnie Lies over the Ocean". Às vezes entro durante os tratamentos de quimioterapia, que lhe fazem arder as palmas das mãos, e invento canções sobre mergulhar as mãos em água gelada e construir iglus. Mas ultimamente a Marisa tem estado tão doente que somos só eu e a família a cantar para ela, enquanto ela dorme num torpor de medicamentos.
- O médico dela diz que deve ser na próxima hora - murmura a enfermeira.
Abro silenciosamente a porta do quarto dela. As luzes estão apagadas, e a luz cinzenta do fim de tarde incide nas pregas do cobertor de hospital que cobre a menina. Está imóvel e pálida, com um gorro cor-de-rosa de tricô a tapar-lhe a cabeça calva, verniz com purpurinas nas unhas. Estava aqui quando a irmã mais velha da Marisa o aplicou. Cantámos "Girls Just Wanna Have Fun", apesar de a Marisa ter estado sempre a dormir. Apesar de a Marisa não ter estado consciente para saber que alguém se preocupava suficientemente com ela para a pôr bonita.
A mãe da Marisa chora baixinho nos braços do marido.
- Michael, Louisa - digo. - Tenho muita pena.
Eles não respondem, mas não precisam de responder. A doença pode tornar desconhecidos em família.
Uma funcionária do hospital está sentada ao lado da cama dela, a fazer um molde de gesso da mão da Marisa antes de morrer, uma oferta que se faz aos pais de todos os pacientes pediátricos em estado terminal. O ar parece mais pesado, como se estivéssemos todos a respirar chumbo.
Recuo, ao lado da irmã da Marisa, a Anya. Ela olha para mim, de olhos vermelhos e inchados. Aperto-lhe a mão, e então, para manter o estado de espírito, começo a improvisar na guitarra, trechos instrumentais sombrios e em tons menores. De repente, o Michael dirige-se a mim.
- Não queremos que toque isso aqui. O calor sobe-me às faces.
- Eu... eu peço desculpa. Vou-me embora.
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O Michael abana a cabeça.
- Não... queremos que toque as músicas que sempre tocou para ela. As de que ela gosta.
Então toco. Toco "Old MacDonald", e um por um, toda a família começa a cantar. A funcionária do hospital coloca a mão da Marisa no gesso, limpa-a.
Quando as máquinas ligadas à Marisa dão sinal, continuo a cantar.
"My Bonnie lies over the ocean. My Bonnie lies over the sea."
Vejo o Michael ajoelhar-se junto à cama da filha. A Louisa agarra na mão da Marisa. A Anya dobra-se pela cintura, num origami de dor.
"My Bonnie lies over the ocean. Oh, bring back my Bonnie to me."
Ouve-se um zumbido agudo, e depois a enfermeira vem desligar o monitor, pousar suavemente a mão na testa da Marisa enquanto apresenta as condolências.
"Bring back.
Bring back.
Bring back my Bonnie to me."
Quando termino, o único som que se ouve no quarto é a ausência de uma menina.
- Tenho muita, muita pena - volto a dizer.
O Michael estende a mão. Não sei o que quer, mas o meu corpo parece saber. Dou-lhe a palheta que usei para tocar a guitarra. Coloca-a no gesso, mesmo acima da mão da Marisa.
Consigo controlar-me até sair do quarto. Depois encosto-me à parede e deslizo para baixo até ficar sentada, a chorar. Embalo a guitarra nos braços, como a Louisa estava a embalar o corpo da filha.
Depois.
Ouço um bebé chorar - aquele guincho agudo e intermitente que se torna cada vez mais histérico. Levanto-me pesadamente e sigo o som até à
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segunda porta a seguir ao quarto da Marisa, onde uma mãe chorosa e. uma enfermeira seguram num bebé enquanto uma flebotomista tenta retirar sangue. Todas olham para cima quando eu entro.
- Talvez eu possa ajudar - digo.
Foi um dia infernal e muito ocupado no hospital, e no caminho para casa sou consumida pela ideia de beber um grande copo de vinho e atirar-me para cima do sofá, e é por causa disso que quase não atendo o telemóvel quando vejo o nome do Max a piscar no ecrã. Mas depois suspiro e atendo, e ele pede apenas alguns minutos. Não diz para o que é, mas presumo que esteja relacionado com documentos para assinar. Mesmo depois do divórcio, a burocracia persiste.
Por isso fico absolutamente surpreendida quando ele chega com uma mulher a reboque. E fico ainda mais chocada quando percebo que a trouxe para me salvar do meu novo estilo de vida degenerado.
Até era capaz de me rir, se não me apetecesse tanto chorar. Hoje vi uma menina de três anos morrer, mas o meu ex-marido acha que eu sou o problema do mundo dele. Talvez se o Deus dele não estivesse tão ocupado a prestar atenção às vidas das pessoas como a Vanessa e eu, pudesse ter salvado a Marisa.
Mas a vida não é justa. É por isso que há meninas que não chegam a fazer quatro anos. É por isso que perdi tantos bebés. É por isso que as pessoas como o Max e o
meu governador parecem pensar que podem dizer-me quem eu devo amar. Se a vida não é justa, eu também não tenho de ser. E por isso canalizo toda a raiva que sinto
para as coisas que não consigo mudar nem controlar, e dirijo-a para o homem e a mulher que estão sentados à minha frente no sofá.
Será que o Pastor Clive, que gere a maior irmandade anti-homossexual por estas bandas, já terá pensado o que acharia Jesus das suas táticas. Algo me diz que um rabi progressivo que pregava aos leprosos, às prostitutas e a todos aqueles que a sociedade marginalizou - alguém que recomendou que devíamos tratar as pessoas da forma como gostamos de ser tratados
- não ia propriamente admirar a posição da Igreja da Glória Eterna. Mas tenho de admitir isto: são eficientes. Têm uma retórica circular para tudo. Dou por mim fascinada pela Pauline, que nem sequer gosta de referir-se a
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si própria como ex-lésbica, por agora se considerar tão evidentemente heterossexual. Será assim tão fácil acreditar no que dizemos a nós próprios? Se, no meio de todas aquelas gravidezes falhadas e abortos, tivesse dito que era feliz, teria sido?
Se ao menos o mundo fosse tão simples como aparentemente a Pauline pensa.
Estou a tentar apanhá-la na sua própria lógica circular quando a Vanessa chega a casa. Dou-lhe um beijo de boas-vindas. De qualquer forma, tê-la-ia beijado, mas fico particularmente satisfeita por a Pauline e o Max terem de ver.
- Esta é a Pauline, e claro que já conheces o Max - digo. - Estão aqui para nos salvarem de irmos para o Inferno.
A Vanessa olha para mim como se eu tivesse perdido o juízo.
- Zoe, podemos falar um minutinho? - diz ela, e arrasta-me para a cozinha. - Não vou dizer-te que não podes convidar pessoas para virem a nossa casa - diz ela -, mas o que estás tu a pensar?
- Sabias que não és lésbica? - digo. - Só tens um problema de lesbianismo.
- O único problema que tenho neste momento é tirar aquelas pessoas da minha sala - responde a Vanessa, mas volta comigo lá para dentro. Vejo-a ficar cada vez mais tensa enquanto a Pauline nos diz que todos os homossexuais sofreram abusos sexuais e que a feminilidade implica usar collants e maquilhagem. Finalmente, a Vanessa chega ao limite. Põe o Max e a Pauline na rua e fecha a porta atrás deles.
-Amo-te - diz-me -, mas se alguma vez voltares a convidar o teu ex-marido com aquela desgraçada Anita Bryant, gostava que me avisasses com antecedência para poder sair daqui. Estar a mais ou menos seis mil quilómetros de distância.
- O Max disse que precisava de falar comigo - explico. - Calculei que fosse sobre o divórcio. Não sabia que ele ia trazer reforços.
A Vanessa solta um grunhido de desdém. Descalça os sapatos de salto alto.
- Nem sequer me agrada o facto de terem estado sentados no meu sofá, sinceramente. Parece-me que devíamos fumigar a casa. Ou fazer um exorcismo, ou qualquer coisa assim...
- Vanessa!
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- Só não estava à espera de o ver na minha casa. Sobretudo hoje à noite, quando eu... - a voz dela desvanece-se no silêncio.
- Quando tu o quê?
- Nada - abana a cabeça.
- Acho que não podes censurá-los por desejarem que um dia acordemos e percebamos como estávamos enganadas.
- Não posso?
- Não - digo -, porque é precisamente isso que desejamos em relação a
223dês.
A Vanessa mostra-me um meio sorriso.
- Só mesmo tu para encontrares a única coisa que tenho em comum com o Pastor Clive e o seu grupo de heterossexuais contentes.
Vai para a cozinha, e presumo que vá buscar a garrafa de vinho ao frigorífico. É um hábito que temos, descontrair e contar uma à outra como foi o nosso dia a beber
um belo copo de Pinot Grigio.
- Acho que ainda temos algum Midlife Crisis - grito. É um vinho da Califórnia que a Vanessa e eu comprámos só por causa do nome no rótulo. Enquanto espero, sento-me
no sofá, no lugar onde o Max estava sentado. Percorro os canais da televisão, parando em Ellen.
O Max e eu às vezes víamo-la, quando ele chegava a casa do trabalho. Ele gostava dos ténis Converse dela e dos seus olhos azuis. Costumava dizer que não queria ficar
fechado numa sala com a Oprah, porque ela era intimidante - mas a Ellen DeGeneres era alguém que podíamos convidar para ir tomar uma cerveja.
O que me agrada na Ellen é que (sim) é lésbica, mas isso é o que tem de menos interessante. Lembramo-nos dela por causa do seu bom trabalho na televisão, e não porque
quando vai para casa tem a Portia de Rossi à sua espera.
A Vanessa entra na sala, mas em vez de trazer um copo de vinho, traz
duas flutes de champanhe.
- É Dom Pérignon - diz ela. - Porque nós vamos festejar. Olho para as bolhas que se erguem no líquido pálido.
- Hoje uma paciente morreu - digo bruscamente. - Só tinha três anos. A Vanessa pousa os dois copos no chão e abraça-me. Não diz nada. Não
precisa de dizer.
223
Sabemos que uma pessoa é certa para nós quando as coisas que não precisa de dizer são mais importantes do que as coisas que diz.
Chorar não vai trazer a Marisa de volta. Não vai impedir que pessoas como o Max e a Pauline me julguem. Mas faz-me sentir melhor na mesma. Fico assim durante algum tempo, com a Vanessa a afagar-me os cabelos até ter os olhos secos e me sentir vazia por dentro. Então olho para ela.
- Desculpa. Querias festejar qualquer coisa... Um rubor sobe ao rosto da Vanessa.
- Noutra altura.
- Não vou deixar que o meu dia péssimo se sobreponha ao teu dia bom...
-A sério, Zo. Pode esperar...
- Não - viro-me no sofá para ficar de pernas cruzadas, de frente para ela. - Conta-me.
Ela parece atormentada.
- É uma estupidez. Posso perguntar-te depois...
- Perguntar-me o quê? A Vanessa respira fundo.
- Se estavas a falar a sério quando disseste aquilo ontem. Depois de termos encontrado o Max na mercearia.
Disse-lhe que queria ficar com ela para sempre. Que para sempre não bastava.
Apesar de nunca ter imaginado a minha vida assim...
Apesar de existirem pessoas que não conheço que me vão odiar por isso...
Apesar de se terem passado apenas meses, e não anos...
A primeira coisa que faço todas as manhãs é entrar em pânico. E depois olho para a Vanessa e penso: "Não te preocupes, ela ainda está aqui."
- Sim - digo-lhe. - Cada palavra.
A Vanessa abre a mão. Lá dentro está uma aliança de ouro com uma constelação de diamantes a pontilharem a superfície.
- Se para sempre não basta, então e se for para o resto da minha vida? Por um instante, não consigo mexer-me, não consigo respirar. Não
estou a pensar na logística, em qual será a reação das pessoas à novidade. Só penso: "Eu fico com a Vanessa. Eu, e mais ninguém."
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Começo novamente a chorar, mas por uma razão diferente.
- Uma vida inteira - digo - é um bom começo.
Estou rodeada por nuvens. Roçam-me a ponta dos ténis. Acumulam-se no chão. Poderia chegar mesmo a dizer que aterrei no Paraíso - só que tenho andado a arrastar os pés para evitar comprar um vestido de noiva, o que torna toda esta experiência mais como o Inferno.
A minha mãe tem um vestido na mão com um decote em coração que se dissolve numa saia de penas. Parece uma galinha que saiu de uma trituradora.
- Não - digo. - Veementemente não.
- Há ali um com cristais Swarovsky no corpete - diz a minha mãe.
- Podes usá-lo tu - digo entre dentes.
Não fui eu que tive a ideia de ir ao salão das noivas em Boston. A minha mãe teve um sonho connosco a fazer compras aqui, no salão Priscilla, e depois disso não consegui escapar-me à viagem. Ela acredita convictamente no poder de previsão do subconsciente.
A minha mãe - que demorou uma semana a habituar-se ao facto de a Vanessa e eu sermos um casal - ainda está mais entusiasmada com
o casamento do que nós. Eu acho secretamente que ela gosta mais da Vanessa do que de mim, visto que a Vanessa é a filha realista e prática que ela nunca teve - a que fala de planos poupança-reforma e que tem uma agenda com as datas de aniversário para nunca se esquecer de enviar um cartão. Acho que a minha mãe acredita mesmo que a Vanessa vai cuidar de mim para sempre; enquanto em relação ao Max, tinha as suas dúvidas.
Mas estou nervosa, neste lugar cheio de outras noivas com casamentos sem complicações. Sinto-me afogada em tule, rendas e cetins, e ainda nem experimentei um único vestido.
Quando a empregada se aproxima e pergunta se precisamos de ajuda, a minha mãe avança com um grande sorriso.
- A minha filha lésbica vai casar-se - anuncia.
Sinto as faces arder.
- Porque é que agora de repente sou a tua filha lésbica?
- Bem, acho que sabes a resposta melhor do que ninguém.
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- Antes nunca me apresentaste como a tua filha heterossexual. A minha mãe fica atónita.
- Achei que querias que eu ficasse orgulhosa de ti.
- Não ponhas as culpas em mim - digo.
A empregada olha para mim e depois para a minha mãe.
- Se calhar é melhor dar-vos mais alguns minutos? - pergunta, e vai-se embora.
- Vê o que fizeste. Deixaste-a pouco à vontade - suspira a minha mãe.
- Estás a brincar! - tiro um sapato cheio de lantejoulas do escaparate.
- Olá - imito. - Tem estes sapatos para a minha mãe sadomasoquista? Ela calça quarenta.
- Em primeiro lugar, não sou sadomasoquista. E em segundo lugar, esse sapato é absolutamente horroroso - olha para mim. - Sabes, nem toda a gente quer atacar-te. Lá por pertenceres há pouco tempo a uma minoria não quer dizer que tenhas de esperar o pior de toda a gente.
Sento-me no sofá branco, no meio de uma montanha de tule.
- Para ti é fácil falar. Não recebes panfletos diariamente da Igreja da Glória Eterna. "Dez Pequenos Passos para Chegar a Jesus." "Heterossexual
- Ódio" - olho para ela. - Pode apetecer-te divulgar o estatuto da minha relação, mas a mim não. Não vale a pena fazer alguém sentir-se incomodado - lanço um olhar à empregada, que está a embrulhar um vestido em plástico. - Por mim, ela até pode cantar no coro da Igreja da Eterna Glória.
- Por mim - argumenta a minha mãe -, ela também pode ser lésbica.
- Senta-se ao meu lado, e os vestidos insuflam-se à nossa volta, numa pequena explosão. - Querida... o que se passa?
Para meu grande embaraço, tenho os olhos cheios de lágrimas.
- Não sei o que vestir no meu próprio casamento - admito.
A minha mãe olha novamente para mim, depois agarra-me na mão e puxa-me do sofá lá para baixo, para Boylston Street.
- Mas o que estás tu a dizer?
- A noiva deve ser o foco de toda a atenção - soluço - mas o que acontece quando há duas noivas?
- Bem, o que vai a Vanessa usar?
- Um fato - um lindo fato branco que encontrou no Marshalls e que parece que foi feito para ela. Mas nunca usei um fato na minha vida.
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- Acho que podes usar o que quiseres...
- Branco não - digo bruscamente. A minha mãe franze os lábios.
- Por já teres sido casada?
- Não. Porque... - antes que consiga dizer o que tem jazido discretamente pesando-me no coração, como uma camada nova de asfalto, fecho a boca.
- Porquê? - insiste a minha mãe.
- Porque é um casamento lésbico - sussurro.
Quando a Vanessa me pediu em casamento, não pensei duas vezes em dizer que sim. Mas teria ficado absolutamente feliz por me casar num cartório em Massachusetts, em vez de ter uma grande cerimónia e copo-de-água.
- Vá lá, Zo - disse ela. - Há duas vezes na vida em que toda a gente de quem gostas se reúne: no dia do teu casamento e no dia do teu funeral, e sei que não vou divertir-me tanto no segundo.
Mas mesmo quando me sentei todas as noites ao computador com a Vanessa para pesquisar bandas e locais para o copo-de-água, pensei sempre que ia encontrar uma saída, uma forma de convencer a Vanessa a tirar umas férias em Turks e Caicos em vez disso.
Mesmo assim.
Ao contrário de mim, ela nunca percorreu a nave da igreja. Nunca lhe deram bolo de noiva à boca nem dançou até ficar cheia de bolhas nos pés. Se era isso que queria, então não ia negar-lhe essa experiência.
Queria que todos soubessem como estou feliz com a Vanessa, mas não precisava de um casamento para isso. Só não tinha a certeza se era por tudo isto ainda ser uma novidade para mim ou por ter ouvido perfeitamente os pensamentos do Max - que um casamento homossexual não é
um casamento a sério.
Nem consigo explicar porque é que isso importa sequer. Afinal, não íamos pedir ao Pastor Clive para presidir à cerimónia. Os convidados do casamento gostam de nós e não vão criticar o facto de haver duas pequenas noivas no bolo, em vez de uma noiva e um noivo.
Mas, para nos casarmos, tínhamos de atravessar a fronteira de Rhode Island. Tínhamos de encontrar um padre que apoiasse o casamento entre
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homossexuais. Provavelmente, teríamos de contratar um advogado para tratar das procurações para que cada uma tenha poder de decisão em questões médicas em relação à outra, para que sejamos beneficiárias dos seguros de vida uma da outra. Não tinha vergonha de querer passar o resto da vida com a Vanessa. Mas tinha vergonha que os passos a dar para o fazer me tornassem numa cidadã de segunda classe.
- Estou feliz - digo à minha mãe, apesar de estar a chorar. A minha mãe olha para mim.
- Não precisas - diz ela, indicando o salão das noivas atrás de nós com um gesto de rejeição - de nada disto. Precisas é de qualquer coisa elegante e discreta. Como tu e a Vanessa.
Vamos a três lojas antes de encontrá-lo - um vestido simples cor de marfim, pelo joelho, que não me faz parecer a Gata Borralheira.
- Apaixonei-me pelo teu pai num exercício de incêndio - diz a minha mãe ociosamente, enquanto aperta os botões atrás. - Trabalhávamos os dois num escritório de advogados, ele como contabilista e eu como secretária, e o edifício foi evacuado. Encontrámo-nos junto a uma vedação de rede, e ele ofereceu-me metade de um Twinkie. Quando o edifício foi declarado seguro, não voltámos a entrar - encolhe os ombros. - No funeral dele, muitos amigos disseram que tinha tido o azar de me apaixonar por um homem que morreu aos quarenta anos, mas, sabes, nunca vi as coisas dessa maneira. Acho que tive sorte. Quero dizer, e se não tivesse havido nenhum exercício de incêndio? Nunca nos teríamos conhecido. E prefiro muito mais ter tido alguns anos maravilhosos com ele do que absolutamente nada - vira-me, para que eu fique de frente para ela. - Não deixes que ninguém te diga quem deves ou quem não deves amar, Zoe. Sim, é um casamento entre homossexuais... mas é o teu casamento.
Vira-me novamente, para que eu possa ver-me ao espelho. De frente, podia ser um lindo vestido simples como tantos outros. Mas atrás, tudo é diferente. Uma fileira de botões de cetim transforma-se, à cintura, num leque pregueado. É como se o vestido se abrisse como uma rosa.
Como se alguém que estivesse a ver-me ir embora pensasse: "Não era disto que eu estava à espera."
Fico a olhar para a minha imagem.
- O que achas?
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Talvez a minha mãe esteja a falar sobre o vestido, ou talvez esteja a falar do meu futuro.
- Acho - diz ela - que encontraste a perfeição.
Quando a Lucy entra na sala de reuniões, já estou a tocar uma melodia na guitarra e a cantar.
- Olá - digo. Olho para ela. Hoje os cabelos vermelhos estão despenteados e torcidos. - Estás a tentar fazer rastas?
Ela encolhe os ombros.
- Tive uma colega de quarto na faculdade que queria ter rastas. Desistiu à última hora porque a única maneira de nos vermos livres das rastas é cortando-as.
- Bem, talvez rape a cabeça - diz a Lucy.
-Podias fazer isso - concordo, deliciada por estarmos a ter o que quase poderia considerar-se uma conversa. - Podias ser a próxima Sinéad O'Connor.
- Quem?
Apercebo-me de que, quando a cantora careca rasgou uma fotografia do papa no Saturdoy Night Live em 1992, a Lucy nem sequer era nascida.
- Ou a Melissa Etheridge. Viste-a atuar nos Grammys quando estava careca por causa da quimioterapia? Cantou Janis Joplin.
Agarro na palheta e começo a tocar as notas de "Piece of My Heart". Pelo canto do olho, vejo a Lucy observar os meus dedos moverem-se para cima e para baixo nas cordas.
- Lembro-me de ouvi-la cantar e pensar como era corajosa, por ter sobrevivido a um cancro... e como a canção era perfeita. De repente, deixou de ser uma mulher a
fazer frente a um homem... passou a ser sobre ultrapassar tudo o que podia rebaixar-te - toco um excerto da melodia e depois canto o verso seguinte: 'Tm gonna show
you, baby, that a woman can be tough.'14
com um forte acorde final.
- Sabes - digo, como se acabasse de ter aquela ideia, em vez de ser uma lição planeada -, o que os versos têm de curioso é que funcionam mesmo bem quando existe
uma ligação pessoal com quem está a tocar... ou com
14. vou mostrar-te, querido, que uma mulher pode ser forte. (N. da T.)
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quem está a ouvir - começo a tocar novamente a mesma melodia, mas desta vez improvisando a letra:
"Alguma vez sentiste que estavas sozinha, sim,
E nunca sentiste que não tinhas ninguém.
Querida, sabes que sim.
Sempre que dizes a ti própria que tens azar
Pensas em como ficaste tão perdida.
Quero que ouças, ouças, ouças
Sabes que estou pronta para ajudar-te, Lucy
vou mostrar-te que estou pronta para ajudar-te, Lucy..."
Mesmo quando estou a começar a entregar-me à música, a Lucy solta um grunhido de desdém.
- Isso é a maior porcaria que já ouvi - murmura.
- Talvez gostasses de experimentar - sugiro, e pouso a guitarra para agarrar num bloco e numa caneta. Escrevo a letra para ser improvisada, deixando espaços em branco onde a Lucy possa exprimir os seus próprios pensamentos e sentimentos.
"As vezes fazes-me sentir- Não sabes que eu ?"
Repito este padrão para toda a canção, e depois pouso o papel em cima da mesa, entre nós. A Lucy limita-se a ignorá-lo durante alguns minutos, concentrando-se numa madeixa de cabelo embaraçada. Depois, devagar, estende a mão e aproxima mais o papel.
Tento não ficar demasiado entusiasmada por ela ter dado um passo para participar. Em vez disso, agarro na guitarra e finjo afiná-la, apesar de já o ter feito antes de a Lucy chegar.
Quando escreve, debruça-se sobre o papel como se estivesse a proteger um segredo. É canhota; porque será que não reparei antes? Os cabelos caem-lhe para cima do rosto como uma cortina. Tem cada unha pintada de cor diferente.
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A determinada altura, a manga sobe um pouco e vejo as cicatrizes no pulso. Por fim, empurra o papel na minha direção.
- Ótimo - digo animada. - Vamos lá ver!
Em cada espaço em branco, a Lucy escreveu uma série de obscenidades. Espera que eu olhe para ela, levanta as sobrancelhas e esboça um sorriso arrogante.
- Bem - agarro na guitarra. - Então, está bem.
Coloco o papel em cima da mesa onde o consiga ver, e começo a cantar, certa de que, se alguém compreendia o que era a raiva e a angústia era a Janis Joplin, e que não vai andar às voltas na sepultura. - "Às vezes fazes-me sentir uma imbecil de merda" - canto, o mais alto que consigo. - "Não sabes que eu... brochista..." - interrompo, apontando para a página. - Não consigo perceber isto...
A Lucy cora.
- Ha... monga dum cabrão.
- "Não sabes que eu... brochista monga dum cabrão" - canto.
A porta para o corredor está completamente aberta. Um professor passa e hesita.
- "Vá lá, vá lá, vá lá e toma... Toma uma merda dum cagalhão..."
Canto como se fosse uma canção qualquer, como se os palavrões não tivessem nenhum significado para mim. Canto a plenos pulmões. E por fim, quando termino o refrão, a Lucy está a olhar para mim com um sorriso fugaz a pairar-lhe nos lábios.
Infelizmente, também há um grupo de alunos de pé à porta, divididos entre o choque e o deleite. Quando termino, começam a aplaudir e a gritar, e então a campainha toca.
- Parece que não temos mais tempo - digo. A Lucy atira a mochila por cima do ombro e, como de costume, afasta-se de mim o mais rapidamente possível. Agarro no estojo da guitarra, resignada.
Mas, à porta, vira-se para trás.
- Até para a semana - diz a Lucy, a primeira vez que me mostra que está a pensar voltar.
Sei que quando chove no nosso casamento isso significa boa sorte, mas não tenho a certeza do que quer dizer quando há uma tempestade de neve.
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É o dia do meu casamento com a Vanessa, e a tempestade de neve extemporânea em abril prevista pelos meteorologistas agravou-se. O Ministério dos Transportes até encerrou algunas troços da autoestrada.
Viemos para Fali River ontem à noite, para preparar tudo, mas a maioria dos convidados vem hoje para assistir à cerimónia. Afinal, Massachusetts fica a menos de uma hora de caminho. Mas hoje, até isso parece demasiado longe.
E agora, como se uma catástrofe climática não bastasse, também houve um problema de canalização. Houve uma rutura de canos no restaurante onde estávamos a pensar fazer o copo-de-água. Vejo a Vanessa tentar acalmar o seu amigo Joel, um organizador de casamentos que ofereceu a boda como presente.
- Há sete centímetros de água - lamenta-se o Joel, escondendo o rosto nas mãos. - Acho que estou a hiperventilar.
- Tenho a certeza de que deve haver algum lugar onde se possa dar uma festa sem reservar com antecedência - diz a Vanessa.
- Pois. E talvez o Ronald McDonald até aceite presidir à cerimónia - o Joel lança um olhar duro à Vanessa. - Tenho uma reputação a defender, sabes? Não vou deixar, repito, não vou deixar que a entrada seja batatas fritas.
- Talvez devêssemos alterar a data - diz a Vanessa.
- Ou - sugiro - podíamos ir a um cartório e resolver o assunto.
- Minha querida - diz o Joel. - Não vais desperdiçar um vestido deslumbrante de cetim de seda num casamento instantâneo num cartório.
A Vanessa ignora-o e aproxima-se de mim.
- Diz lá.
- Bem - digo. - A festa é o menos importante, não é? Atrás de mim, o Joel solta um som abafado.
- Não ouvi nada - diz ele.
- Não quero que as pessoas arrisquem a vida a viajarem até aqui de carro - digo. - Temos o Joel para ser nossa testemunha, e tenho a certeza de que arranjamos mais alguém na rua.
A Vanessa olha para mim.
- Mas não queres que a tua mãe esteja aqui?
- Claro que quero. Mas mais do que isso, quero casar-me. Temos a autorização. Temo-nos uma à outra. O resto é secundário.
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- Faz-me um favor - implora o Joel. - Telefona aos convidados e deixa-os decidir.
- Devemos dizer-lhes que tragam os fatos de banho para o copo-de-água? - pergunta a Vanessa.
- Deixa isso comigo - diz ele. - Se o David Tutera consegue solucionar um casamento catastrófico, eu também consigo.
- Mas quem é o David Tutera? - pergunta a Vanessa. Ele revira os olhos.
- Às vezes és mesmo fufa - agarra no telemóvel da Vanessa que estava em cima da mesa e mete-o na mão dela. - Começa a telefonar, minha amiga.
- A boa notícia - diz a minha mãe, ao fechar a porta da casa de banho atrás de si - é que ainda vais percorrer uma galeria.
Demorou cinco horas, mas conseguiu chegar a Massachusetts no meio da tempestade do século. Aqui cheira a pipocas. Olho para mim no grande espelho industrial. O vestido está perfeito; a maquilhagem parece demasiado dramática nesta luz ténue. Os cabelos, com esta humidade, não têm a mínima hipótese de fixarem os caracóis.
- A pastora já chegou - diz-me a minha mãe.
Eu sei, porque ela já apareceu para dizer olá. A Maggie MacMillan é uma pastora humanista que encontrámos nas páginas amarelas. Não é lésbica, mas costuma realizar casamentos do mesmo sexo, e tanto a Vanessa como eu gostámos do facto de a cerimónia realizada por ela não ter uma componente religiosa. Sinceramente, depois da visita do Max, já tivemos a nossa dose de religião. Mas acabou por convencer-nos ao soltar uma exclamação de satisfação no seu gabinete quando lhe dissemos que íamos atravessar a fronteira com o Massachusetts para nos casarmos.
- Quem me dera que Rhode Island também aceitasse essa lei - disse com um sorriso. - Mas calculo que a legislatura ache que, se atribuir direitos civis aos homossexuais, toda a gente no estado vai começar a exigi-los...
O Joel espreita pela porta.
- Estás pronta? - pergunta. Respiro fundo.
- Acho que sim.
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- Sabes, tentei arranjar um ilusionista homossexual para o copo-de-água, mas não resultou - diz o Joel. - Desapareceu com uma nuvem de fumo15 - fica à espera até eu perceber a piada e depois sorri. - Resulta sempre com as noivas nervosas.
- Como está a Vanessa? - pergunto.
- Deslumbrante - diz ele. - Quase tão deslumbrante como tu. A minha mãe dá-me um beijo na face.
- Vemo-nos lá fora.
A Vanessa e eu decidimos percorrer a galeria juntas, visto que nenhuma de nós tem um pai para a acompanhar, e desta vez, não achei que estivesse a ser entregue aos cuidados de alguém. Senti que nos equilibrávamos uma à outra. Por isso saio da casa de banho das senhoras
atrás do Joel e fico à espera enquanto ele vai chamar a Vanessa à casa de banho dos homens. Tem o seu fato branco, e os olhos brilhantes e focados.
- Uau - diz ela, olhando para mim. Vejo-a engolir em seco, tentando encontrar palavras suficientemente importantes para aquilo que estamos a sentir. - Tenho medo de acordar daqui a alguns segundos - sussurra.
- Muito bem, pombinhas - diz o Joel, batendo palmas para nos interromper. - Deixem isso para os convidados.
- Para os quatro? - murmuro, e a Vanessa solta um grunhido de desdém.
- Lembrei-me de outra - diz ela. - A Rajasi.
Ao longo das últimas quatro horas, temos trocado nomes de pessoas que achamos terem coragem suficiente para enfrentar os elementos para celebrar o nosso casamento connosco. Talvez a Wanda, do lar de terceira idade; cresceu em Montana e está habituada a tempestades de neve. E a Alexa, a minha auxiliar técnica, cujo marido trabalha no Ministério dos Transportes e que provavelmente recrutaria um limpa-neves para chegar até aqui. É lógico que a cabeleireira de longa data da Vanessa talvez também seja uma das convidadas à nossa espera.
com a minha mãe, perfaz um número extraordinário de quatro pessoas na nossa festa.
15 "He vanished with a poof, na versão original em inglês, sendo que poof significa homossexual. (N. da T.)
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O Joel leva-nos por um amontoado de alavancas, roldanas e equipamento, por pilhas de caixotes e através de uma porta. Uma cortina curta foi ali colocada, e o Joel sibila uma ordem:
- Sigam a passadeira e tenham cuidado para não tropeçarem e caírem para as calhas... e, minhas senhoras, lembrem-se, estão fabulosas - beija-nos nas faces e depois a Vanessa agarra-me na mão.
Um quarteto de cordas começa a tocar. Juntas, a Vanessa e eu pisamos a passadeira branca e damos a curva apertada junto à cortina - o lugar onde entramos na galeria do salão de bowling que vamos percorrer, o lugar onde os convidados podem ver-nos.
Só que não são quatro. São quase oitenta. Pelo que vejo, toda a gente a quem telefonámos hoje - toda a gente que aconselhámos a não vir com este tempo traiçoeiro - fez a viagem para estar aqui connosco.
É a primeira coisa em que reparo. A segunda é que o salão de bowling AMC Lanes & Games - o único sítio na cidade que o Joel conseguiu alugar na totalidade com tão pouca antecedência -já nem sequer parece um salão de bowling. Há trepadeiras entrançadas com lírios a debruarem as calhas de cada lado da galeria que estamos a percorrer. Há pequenas luzes penduradas no teto e nas paredes. O repositor automático de bolas está decorado com seda branca, com o retrato do meu pai e dos pais da Vanessa. As máquinas de pinball estão ornamentadas com veludo e cobertas de entradas e taças cheias de camarão. A mesa de hóquei exibe uma fonte de champanhe.
- Mas que casamento lésbico emblemático - diz-me a Vanessa. - Quem mais ia dar o nó numa sala cheia de bolas?
Ainda estamos a rir quando chegamos ao fim da galeria improvisada. A Maggie está à espera, com um xaile roxo franjado com um arco-íris de contas.
- Bem-vindos - diz ela - à tempestade de neve de 2011 e ao casamento da Vanessa e da Zoe. vou abster-me de fazer piadas sobre lucky strikes, e em vez disso vou dizer-vos que vieram honrar o vosso compromisso mútuo não apenas hoje mas sim para todos os dias que estão para vir. Regozijamo-nos com elas... e por elas.
As palavras da Maggie desvanecem-se quando olho para a minha mãe, para os meus amigos e, sim, até para a cabeleireira da Vanessa. Depois a Vanessa pigarreia e começa a recitar um poema de Rumi:
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"Assim que ouvi a minha primeira história de amor comecei a procurar-te,
sem me aperceber que essa busca era inútil.
Os amantes não se encontram pelo caminho.
Estão dentro da alma um do outro desde o início."
Quando acaba, ouço a minha mãe fungar. Puxo mentalmente a fita de palavras que memorizei para a Vanessa, um poema de E. E. Cummings com sílabas cheias de música.
"levo o teu coração comigo (levo-o no meu coração) nunca estou sem ele (para onde for, minha querida; e o que quer que faça sozinho é tua obra, meu amor)
não receio
nenhum destino (porque tu és o meu destino, minha doçura) não quero nenhum mundo (porque tu, minha bela, és o meu mundo, e minha verdade) e és o que a lua sempre significou e o que o sol sempre cantará."
Há alianças, e estamos ambas a chorar, e a rir.
- Vanessa e Zoe - diz a pastora -, que consigam sempre evitar as separações e jogar um jogo perfeito. Como juraram nesta cerimónia, diante de familiares e amigos, serem companheiras para a vida, só posso dizer o que já foi dito milhares de vezes, em milhares de casamentos...
A Vanessa e eu sorrimos. Demorámos muito tempo a pensar em como íamos terminar a cerimónia. Não se pode propriamente dizer: "Declaro-vos marido e mulher." Da mesma forma "Declaro-vos companheiras" parece que fica aquém, parece que não é um casamento a sério.
A nossa pastora sorri-nos.
- Zoe? Vanessa? - diz ela. - Podem beijar a noiva.
No caso de não terem a certeza se o Highlands Inn tem uma política de aceitação relativamente a lésbicas depois de telefonarem para o número de
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telefone (877-LES-B-INN), há uma fila de cadeiras de madeira de todas as cores do arco-iris no cimo de uma colina. Não escapou ao meu sentido de ironia o facto de este pequeno cantinho de paraíso de abertura de espírito se situar em Bethlehem16, New Hampshire, que talvez esta pacata cidadezinha homónima junto às White Mountains pudesse ser o local de nascimento de uma nova maneira de pensar.
Depois da cerimónia do casamento - que deve ter sido a única cerimónia no mundo que incluiu bolo de chocolate e Grand Marnier com cobertura de chocolate e folha de ouro verdadeiro e um jogo de bowling cósmico à meia-noite no escuro - a Vanessa e eu ficamos à espera que a tempestade passe para nos dirigirmos para o destino da nossa lua-de-mel. Estamos a pensar fazer esqui de fundo, comprar antiguidades. Mas passamos quase as primeiras vinte e quatro horas da nossa lua-de-mel no quarto - não a fazer amor, apesar de haver maravilhosos intervalos em que fazemos apenas isso. Em vez disso, sentamo-nos junto à lareira a beber o champanhe que o dono da pousada nos ofereceu, e conversamos. Parece-me impossível não termos esgotado as nossas histórias, mas cada uma delas desemboca noutra. Conto à Vanessa coisas que nunca contei nem à minha mãe: sobre o aspeto do meu pai na manhã em que morreu; sobre como roubei o desodorizante dele da casa de banho e o escondi na gaveta da roupa interior durante os anos seguintes para que, quando precisava de sentir esse cheiro para me reconfortar, o tivesse ali à mão. Conto-lhe como há cinco anos encontrei uma garrafa de gim no reservatório do autoclismo e a deitei fora sem nunca dizer ao Max que a encontrara, como se não falar implicasse que isso nunca tinha acontecido.
Canto-lhe o alfabeto, de trás para a frente.
E em troca, a Vanessa fala-me do seu primeiro ano de aconselhamento escolar, sobre a aluna do sexto ano que confessou que o pai a violava, e que acabou por sair da escola e ir para outro estado, levada por esse mesmo pai que a violava, e que, periodicamente, a Vanessa ainda tenta pesquisar no Google para ver se sobreviveu. Conta-me como, depois do funeral da mãe, ficou com uma noz dura e amarga de ódio no coração por aquela mulher nunca a ter aceitado tal como ela é.
Belém. (N. da T.)
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Fala-me sobre a única vez que experimentou erva na universidade, e acabou por comer uma pizza de pepperoni grande e um pão de forma inteiros.
Conta-me que costumava ter pesadelos em que morria sozinha no chão da sala e se passavam semanas até algum vizinho reparar que ela não tinha saído de casa.
Diz-me que o seu primeiro animal de estimação foi um hamster, que fugiu a meio da noite, entrou pela conduta do radiador e nunca mais ninguém o viu.
Às vezes, quando estamos a conversar, apoio a cabeça no ombro dela. Às vezes ela abraça-me. Às vezes estamos nas extremidades opostas do sofá, com as pernas entrelaçadas. Quando a Vanessa me deu a brochura deste hotel, opus-me - tínhamos mesmo de nos esconder com os outros casais de lésbicas de quarentena durante a nossa lua-de-mel? Porque não podíamos simplesmente ir para Nova Iorque, para Poconos, para Paris, como todos os outros recém-casados?
- Bem - disse a Vanessa -, podíamos ir. Mas não seríamos como os outros recém-casados.
Aqui somos. Aqui, ninguém sequer pestaneja se estivermos de mãos dadas ou a entrar para um quarto como uma cama de casal de tamanho extragrande. Fazemos algumas excursões - ao Hotel Mount Washington para jantar, a um cinema - e sempre que abandonamos esta pousada, dou por nós automaticamente a afastarmo-nos trinta centímetros uma da outra. Mas assim que voltamos para casa, somos como gémeas siamesas.
- É como separar os alunos por notas - diz a Vanessa, quando estamos sentadas à mesa na sala de refeições da pousada, a tomar o pequeno-almoço e a ver um esquilo bailar por uma beira de gelo num muro de pedra. - Quase fui expulsa da pós-graduação por escrever um trabalho a defender a separação dos alunos por capacidades. Mas sabes uma coisa? Se perguntares a um miúdo que tem dificuldades em matemática se gosta de estar numa turma mista, ele responde-te que se sente um incapaz. Se perguntares a um génio da matemática se gosta de estar numa turma mista, ele responde-te que está farto de ser só ele a fazer os trabalhos de grupo. Às vezes, é melhor juntar aqueles que são iguais.
Olho para ela.
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- Cuidado, Ness. Se a GLAAD17 te ouvisse agora, tiravam-te o estatuto arco-íris.
Ela ri.
- Não defendo campos de concentração para homossexuais. Só que... bem, tu sabes, cresceste como católica, e é bom dizer uma piada sobre o papa ou falar sobre as Estações da Via Sacra sem receber um olhar vazio em troca. É muito bom estarmos com a nossa gente.
- vou ser absolutamente sincera - digo. - Não sabia isso das estações.
- Quero a minha aliança de volta - graceja ela.
Somos interrompidas pelos berros de uma criança pequena que correu para a sala do pequeno-almoço, quase esbarrando com uma empregada. As mães vêm a correr atrás dele.
- Travis! - o rapazinho ri e olha por cima do ombro antes de se esconder debaixo da toalha da nossa mesa, como um cachorrinho humano.
- Desculpe - diz uma das mulheres. Tira-o de lá, faz-lhe cócegas na barriga e põe-no às cavalitas.
A companheira olha para nós e sorri.
- Ainda andamos à procura do botão para o desligar.
Enquanto a família se afasta dirigindo-se à receção, observo aquele menino, o Travis, e imagino como seria o meu próprio filho naquela idade. Cheiraria a chocolate e menta? O riso dele seria como uma cascata
de bolhas? Teria medo dos monstros que vivem debaixo do colchão, seria capaz de dar-lhe coragem para dormir à noite com o meu canto?
- Talvez - diz a Vanessa -, um dia sejamos nós. Sinto-o de imediato, aquele rubor de completo fracasso.
- Disseste-me que para ti não era importante. Que tens os teus alunos
- sufoco nas palavras. - Sabes que não posso ter filhos.
- Antes não era importante porque nunca quis ser mãe solteira. Tive a minha dose disso quando era criança.
É claro que sei que não podes ter filhos
- a Vanessa entrelaça os dedos nos meus. - Mas Zoe - diz ela -, eu posso.
Um embrião é congelado na fase de blastocisto, quando tem aproximadamente cinco dias. Numa ampola cheia de fluido crioprotetor - um
Aliança Gay e Lésbica Contra a Difamação. (N. da T.)
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anticongelante humano - é gradualmente arrefecido até atingir os -196 ºC. A ampola é então colocada num suporte de alumínio e armazenada num recipiente cheio de azoto líquido. Custa oitocentos dólares por ano manter o embrião congelado. Quando descongelado à temperatura ambiente, o fluido crioprotetor dilui-se para que o
embrião possa recuperar o seu ambiente de cultura. É avaliado para verificar se existem danos, para ver se é apropriado para ser transferido. Se o embrião tiver sobrevivido quase intacto, tem boas hipóteses de conduzir a uma gravidez bem-sucedida. Os danos celulares, se não forem extensivos, não são impeditivos. Alguns embriões estiveram congelados durante uma década e mesmo assim deram origem a crianças saudáveis.
Quando fazia uma fertilização in vitro, pensava sempre nos embriões extra que congelávamos como flocos de neve. Bebés minúsculos em potencial - cada um um pouco diferente do outro.
Segundo um estudo de 2008 publicado na revista Fertility and Sterility, quando perguntavam aos pacientes que não queriam ter mais filhos que destino queriam dar aos embriões congelados, cinquenta e três por cento não queriam doá-los a terceiros por não quererem que os filhos um dia encontrassem um irmão ou irmã desconhecidos; e não queriam que outros pais criassem um filho seu. Sessenta por cento disseram que doariam os embriões para investigação, mas as clínicas nem sempre disponibilizam essa opção. Vinte por cento disseram que manteriam os embriões congelados para sempre. Marido e mulher muitas vezes não estão de acordo.
Tenho três embriões congelados, a nadar em azoto líquido numa clínica em Wilmington, Rhode Island. E agora que a Vanessa mencionou o assunto, não consigo comer, beber, dormir ou concentrar-me. Só consigo pensar nesses bebés, que estão à minha espera.
Cuidado com esses ativistas que se esforçam tanto por impedir uma revisão constitucional que permita o casamento entre homossexuais: nada muda. Sim, a Vanessa e eu temos um papel que agora está num pequeno cofre à prova de incêndio, num envelope juntamente com os nossos passaportes e cartões da segurança social, mas só isso é que está diferente. Continuamos a ser melhores amigas. Continuamos a ler uma à outra os editoriais do jornal matutino, e damos um beijo de boas-noites antes de apagar a luz. Ou, por outras palavras, pode-se impedir a lei, mas não se pode impedir o amor.
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O casamento foi um anticlímax, uma pequena lomba na estrada da vida real. Mas agora que estamos de regresso a casa, voltámos à vida normal. Levantamo-nos, vestimo-nos, vamos trabalhar. O que para mim é uma distração necessária, porque quando estou sozinha dou por mim a olhar para os papéis da clínica de fertilidade, que foi para mim uma segunda casa durante cinco anos, a tentar arranjar coragem para fazer o telefonema.
Sei que não há nenhuma razão lógica para achar que as complicações médicas que eu sofri também vão afetar a Vanessa. Ela é mais nova do que eu; é saudável. Mas a ideia de fazê-la passar pelo que eu passei - não as preocupações físicas, mas sim as mentais - é-me quase insuportável. Nisto, encontrei um respeito renovado pelo Max. A única coisa mais difícil do que perder um bebé, acho eu, é yer a pessoa que amamos mais no mundo perder um.
Por isso hoje estou ansiosa por ocupar os pensamentos com outra coisa - a minha próxima sessão com a Lucy. Afinal, da última vez que nos encontrámos, quando proferi uma série de palavrões, fi-la sorrir.
Mas quando ela entra na sala de aulas, não está nada feliz. As rastas que estavam a formar-se foram escovadas e os cabelos estão moles e sujos. Tem olheiras e os olhos raiados de sangue. Veste leggings pretas, uma T-shirt rasgada e calça ténis Converse de cores diferentes.
No pulso direito tem uma gaze, presa com o que parece ser fita adesiva.
A Lucy não estabelece contacto visual. Atira-se para cima de uma cadeira, virando-a para não ficar de frente para mim, e apoia a cabeça na mesa.
Levanto-me e fecho a porta da sala.
- Queres falar sobre isso? - pergunto. Ela abana a cabeça, mas não a levanta.
- Como te magoaste?
A Lucy levanta os joelhos, enrolando-se numa pequena bola.
- Sabes - digo, abandonando mentalmente o meu plano para aquela aula -, talvez devêssemos ouvir algumas músicas juntas. E, se te apetecer, podes falar. - Dirijo-me para o meu iPod, que está ligado a uma coluna portátil, e examino a minha lista de músicas.
A primeira música que ponho a tocar é "Hate on Me", de Jill Scott. Quero encontrar algo que esteja em sintonia com o estado de espírito da Lucy, que a traga para junto de mim.
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Nem mexe um dedo.
Mudo para músicas frenéticas - Bangles, Karen O. Espirituais. Até Metallica. Quando chegamos à sexta música - "Love Is a Battlefield" de Pat Benatar - admito finalmente
a derrota.
- Pronto, Lucy. Vamos terminar por hoje - carrego no botão da Pausa no iPod.
- Não faça isso.
A voz dela é fraca, um fio de voz. Ainda tem a cabeça encostada aos joelhos, o rosto escondido.
- O que disseste?
- Não faça isso - repete a Lucy.
Ajoelho-me ao lado dela e espero até que ela se vire e olhe para mim.
- Porque não?
Passa a língua pelos lábios, humedecendo-os.
- Essa música. É assim que o meu sangue soa.
com o baixo motivador e percussão insistente, percebo por que razão se sente ela assim.
- Quando estou chateada - digo-lhe -, é esta música que ponho a tocar. Mesmo alto. E toco bateria ao ritmo.
- Detesto vir aqui.
As palavras dela trespassam-me.
- Tenho muita pena...
- A sala de educação especial? A sério? Já sou a maior aberração da escola, e agora toda a gente acha que também sou atrasada mental.
- com deficiência mental - corrijo automaticamente, e a Lucy lança-me um olhar mortífero. - Acho que precisas de tocar alguns instrumentos de percussão - anuncio.
- E acho que precisa de ir-se f...
-Já chega - agarro-a pelo pulso, o que não está magoado, e puxo-a para que se levante. - Vamos fazer uma visita de estudo.
De início arrasto-a, mas, quando nos dirigimos para o corredor, ela segue-me de livre vontade. Passamos por casais colados aos cacifos, aos beijos; contornamos quatro raparigas aos risinhos debruçadas sobre um telemóvel, a olhar para o ecrã; passamos por entre os volumosos jogadores de lacrosse, com as camisolas da equipa.
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Só sei onde se situa a cantina porque a Vanessa já me levou lá para tomar um café das outras vezes em que estive na escola. Parece-se com todas as outras cantinas de escolas que já vi - uma placa de petri em tamanho real a cultivar descontentamentos sociais, alunos a separarem-se em géneros individuais; os Populares, os Totós, os Atletas, os Emos. No Liceu de Wilmington a fila para o almoço e a cozinha situam-se por trás das mesas, por isso dirigimo-nos de imediato para o centro da cantina e falamos com uma mulher que está a servir puré de batata.
- vou precisar que liberte esta área - anuncio.
- Ah sim - diz ela, e ergue uma sobrancelha. - Quem morreu e a nomeou rainha?
- Sou uma das terapeutas da escola - isto não é inteiramente verdade. Não tenho qualquer vínculo com a escola. E é por isso que, quando arranjar problemas por estar
a fazer isto, não será assim tão devastador. - É só um pequeno intervalo de dez minutos.
- Ninguém me disse nada sobre isto...
- Olhe - puxo-a para o lado e, na minha melhor voz de educadora, digo:
- Tenho aqui uma rapariga com tendências suicidas, e estou a aumentar-lhe a autoestima. Ora, da última vez que verifiquei, esta escola, como todas as outras escolas do país, tinha uma iniciativa de prevenção de suicídios implementada. Quer mesmo que o diretor descubra que estava a impedir o progresso?
Estou a fazer bluff. Nem sequer sei como se chama o diretor. E a Vanessa, quando ouvir isto, vai matar-me ou dar-me os parabéns - não sei bem qual dos dois.
- vou chamar o diretor - bufa a mulher. Ignorando-a, vou para trás do balcão e começo a agarrar em tachos e panelas que estão pendurados e a colocá-los sobre a superfície de trabalho, virados ao contrário. Reuno colheres de sopa, colheres, espátulas.
- Vai ouvir um sermão - diz a Lucy.
- Não trabalho para a escola - digo, encolhendo os ombros. - Também não sou daqui - construo duas estações de percussão - um címbalo improvisado (uma frigideira virada ao contrário), um tambor (uma panela virada ao contrário) e a porta de metal aos nossos pés é o baixo. - Vamos tocar bateria - anuncio.
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A Lucy olha para os alunos na cantina - alguns deles estão a observar-nos, a maioria está simplesmente a ignorar-nos.
- Ou não.
- Lucy, querias ou não querias sair daquela sala horrorosa de educação especial? Anda cá e para de discutir comigo.
Para minha surpresa, ela vem mesmo.
- No chão está o nosso tambor para tocar com os pés. Quatro batidas, regulares. Bate-lhe com o pé esquerdo, porque és canhota - enquanto conto, bato com a bota nas portas de metal do balcão. - Experimenta.
- Isto é mesmo estúpido - diz a Lucy, mas também dá pontapés hesitantes no metal.
- Ótimo. É um compasso quaternário - digo-lhe. - Agora, o tambor está à tua direita - dou-lhe uma colher de metal e aponto para a panela virada ao contrário. - Toca na segunda e quarta batida.
- A sério? - pergunta a Lucy.
Em resposta, toco o compasso seguinte - oito notas no címbalo: um-e-dois-e-três-e-quatro. A Lucy mantém o ritmo, e com a mão esquerda imita o que estou a fazer.
- Não pares - digo-lhe. - Este é o ritmo de fundo básico - por cima da cacofonia agarro em duas espátulas de madeira e faço um solo de bateria.
Nesta altura, toda a gente na cantina está a ver. Um grupo de alunos junta-se a nós numa batida improvisada.
A Lucy não repara. Entrega-se ao ritmo que lhe percorre os braços e a coluna. Começo a cantar "Love Is a Battlefield", com palavras rasgadas, como bandeiras retalhadas pelo vento. A Lucy não consegue tirar os olhos de mim. Canto um refrão, e depois, no segundo, ela junta-se a mim.
"Sem promessas. Sem exigências."
Tem um sorriso rasgado, e penso que esta inovação vai ficar escrita nos anais da terapia musical - e então o diretor entra na cantina, com a senhora dos almoços de um lado e a Vanessa do outro.
A minha esposa não parece muito satisfeita, devo acrescentar.
Paro de cantar, paro de bater nas panelas e nos tachos.
- Zoe - diz a Vanessa -, mas que raio estás afazer?
- O meu trabalho - agarro na mão da Lucy e puxo-a para a frente do balcão. Ela está completamente envergonhada por ter sido apanhada em
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flagrante. Dou a espátula com que estive a tocar ao diretor e passo por ele sem dizer uma palavra, até a Lucy e eu estarmos viradas para a sala cheia de alunos.
Levanto rapidamente as nossas mãos, num momento vitorioso de banda de rock.
- Obrigada, Liceu de Wilmington! - grito. - "Paz!"
Sem dizer nem mais uma palavra - e com os olhares do diretor e da Vanessa a trespassarem-me as costas -, a Lucy e eu saímos da cantina no meio de aplausos e gestos de exultação.
- Zoe - diz ela.
Arrasto-a por corredores desconhecidos da escola, determinada a afastar-me o mais possível da administração. -Zoe...
- vou ser despedida - digo entre dentes.
- Zoe - diz a Lucy. - Pare.
com um suspiro, viro-me para pedir desculpa.
- Não devia ter-te colocado em cheque assim.
Mas depois vejo que o rubor nas faces dela não era vergonha mas sim entusiasmo. Tinha os olhos brilhantes, um sorriso contagiante.
- Zoe - diz ela em voz baixa. - Podemos voltar a fazer isto?
Apesar do aviso da Wanda, fico chocada ao abrir a porta do quarto do Sr. Docker em Shady Acres e vê-lo mirrado e sumido na sua cama. Mesmo num dos seus silenciosos estados de catatonia, antes era capaz de se sentar numa cadeira de baloiço ou de ser levado para a sala comum, mas, segundo a Wanda, não sai da cama há quinze dias, desde que o vi pela última vez. Também não falou.
- bom dia, Sr. Docker - digo, tirando a guitarra do estojo. - Lembra-se de mim? A Zoe? Estou aqui para tocar música com o senhor.
Já assisti a isto antes, com alguns dos meus pacientes - sobretudo aqueles que estão internados em lares. Há um abismo no fim da vida de uma pessoa; muitos de nós espreitamos lá de cima, à beira. É por isso que, quando alguém resolve deixar-se ir, isso é tão nitidamente visível. O corpo parece quase transparente. Os olhos contemplam algo que o resto de nós não consegue ver.
Começo a dedilhar a guitarra e a cantar, uma canção de embalar improvisada. Hoje não é dia para fazer o Sr. Docker participar. Hoje, a terapia
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musical é ser o Flautista Mágico, levá-lo em paz para um ponto em que possa fechar os olhos e deixar-nos ficar para trás.
Enquanto toco sem palavras para o Sr. Docker, percebo que tenho lágrimas nos olhos. O velho era um sacana rabugento e amargo, mas são os que nos dão mais trabalho
que nos fazem mais falta. Pouso a guitarra e agarro-lhe na mão. Parece um feixe de paus. Os olhos, de um azul turvo, permanecem fixos no ecrã negro e vazio do televisor
desligado.
- Casei-me - digo-lhe, apesar de ter a certeza de que ele não está a ouvir. O Sr. Docker nem se mexe.
- É estranho, não é, como acabamos em sítios em que nunca imaginámos estar. Aposto que nunca pensou, quando estava no seu grande gabinete, que um dia ia ficar preso aqui, num quarto com vista para um parque de estacionamento. Nunca imaginou, quando estava a dar ordens a toda a gente, que um dia podia não estar lá ninguém para o ouvir. Bem, eu sei como é, Sr. Docker - olho para ele, mas ele continua a olhar em frente, para o vazio. - Já esteve apaixonado. Sei que sim, porque tem uma filha. Por isso sabe ao que me refiro quando digo que acho que uma pessoa não tem escolha quando se apaixona. Somos simplesmente atraídos para essa pessoa como se fosse o norte magnético, quer seja bom para nós, quer nos parta o coração.
Quando me casei com o Max, confundi ser uma tábua de salvação com estar apaixonada. Era eu que podia salvá-lo; era eu que podia mante-lo sóbrio. Mas há uma diferença entre restabelecer uma pessoa que está destroçada e encontrar alguém que nos complete.
Não o digo em voz alta, mas é assim que sei que a Vanessa nunca irá magoar-me: ela preocupa-se mais com o meu bem-estar do que com o seu. Preferia partir o seu próprio coração a causar o mais pequeno dano
ao meu.
Desta vez, quando olho para baixo, o Sr. Docker está a olhar diretamente para mim.
- Vamos ter um bebé - digo-lhe.
O sorriso começa dentro de mim, como uma luz piloto, e atiça as chamas da possibilidade.
Ao dizê-lo em voz alta, subitamente tornou-se real.
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A Vanessa e eu estamos de pé no guiché da receção da clínica de fertilidade.
- Baxter - digo. - Temos uma reunião marcada para falar sobre uma transferência de embriões.
A enfermeira encontra o meu nome no computador.
- Aqui está. O seu marido também veio? Sinto o rosto afogueado.
- Voltei a casar-me. Quando telefonei, disse que tinha de vir com o meu cônjuge.
A enfermeira olha para mim, e depois para a Vanessa. Se ficou surpreendida, não deu a entender.
- Espere um pouco - diz ela.
A Vanessa olha para mim assim que ela sai da secretária.
- Qual é o problema?
- Não sei. Espero que não tenha acontecido nada de mal aos embriões...
- Leste aquele artigo sobre a família que recebeu os embriões errados?
- pergunta a Vanessa. - Quero dizer, meu Deus, imaginas?
Lanço-lhe um olhar determinado.
- Não estás a ajudar.
- Zoe? - ao ouvir o meu nome, viro-me e vejo a Dr.a Anne Fourchette, a diretora da clínica, aproximar-se de mim. - Porque não vêm as duas para o meu gabinete?
Percorremos o corredor atrás dela até chegar ao espaço sofisticado e com painéis de madeira que já devia existir mas que não me lembro de ter visto anteriormente. A maior parte das minhas visitas ocorria em salas de tratamento.
- Há algum problema, Dr.a Fourchette? Perderam-nos?
Ela é uma mulher impressionante, com uma cascata de cabelos prematuramente embranquecidos, um aperto de mão esmagador e o sotaque que prolonga o meu nome em três ou quatro sílabas extra.
- Receio que tenha havido um mal-entendido - diz ela. - O seu ex-marido tem de assinar para permitir a utilização dos embriões. Assim que o fizer, podemos marcar a transferência.
- Mas o Max não os quer. Ele divorciou-se de mim por não querer ser pai.
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- Então é um assunto puramente burocrático - responde a Dr.a Fourchette num tom animado. - É um aspeto legal que temos de cumprir antes de podermos marcar uma reunião
com uma assistente social.
- Assistente social - repete a Vanessa.
- É um procedimento que costumamos realizar no caso de casais do mesmo sexo, para abordar alguns assuntos que podem não ter tido em consideração. Por exemplo, Zoe, se a sua companheira tiver o bebé, então, quando ele nascer, terá de adotá-lo formalmente.
- Mas nós somos casadas...
- Segundo o estado de Rhode Island não - abana a cabeça. - Mais uma vez, não há motivo de preocupações. Só temos de dar início ao processo.
Sou inundada por uma familiar vaga de desilusão; mais uma vez o caminho para chegar a este bebé está cheio de obstáculos.
- Está bem - diz a Vanessa num tom enérgico. - O Max tem de assinar algum papel? Algum formulário?
A Dr.a Fourchette dá-lhe uma folha de papel.
- Diga-lhe que depois volte a enviar-nos isto e, assim que o recebermos, telefonamos-lhes - sorri para nós. - Estou muito satisfeita por si, Zoe. Parabéns a ambas.
A Vanessa e eu ficamos caladas até sairmos da clínica, descendo juntas num elevador sem mais ninguém.
- Tens de falar com ele - diz ela.
- E digo-lhe o quê? "Olá, casei-me com a Vanessa e gostávamos que fosses o nosso dador de esperma?"
- As coisas não funcionam assim - faz notar a Vanessa. - Os embriões
já existem. O que pensa ele fazer em relação a eles?
As portas abrem-se no rés do chão. Há uma mulher à espera, com um bebé num carrinho. O bebé tem uma camisola branca com um capuz com pequenas orelhas de urso espetadas.
- vou tentar - digo.
Encontro o Max em casa de um cliente, a retirar folhas apodrecidas e paus dos canteiros com um ancinho, para prepará-los para a primavera. A neve derreteu tão depressa como surgiu, e cheira a primavera. O Max veste uma camisa e gravata, e está a suar.
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- Que bela casa - digo apreciativamente, olhando em volta para aquela
rica mansão.
O Max vira-se ao ouvir a minha voz.
- Zoe? O que estás aqui a fazer?
- A Liddy disse-me onde estavas - digo. - Será que tens um minuto para conversarmos?
Ele apoia-se no ancinho e limpa a transpiração da testa, acenando com a cabeça.
- Claro. Queres, hum, sentar-te? - indica um banco de pedra no meio de um jardim em hibernação. O granito é frio através do tecido das minhas calças de ganga.
- Como é? - pergunto. - Isto é, quando está cheio de flores?
- Oh, por acaso é espantoso. Lírios. Devem aparecer em finais de abril, se conseguir manter os escaravelhos afastados deles.
- Ainda bem que continuas a trabalhar em jardinagem, não tinha a certeza.
- Porque não haveria de estar a fazer isto?
- Não sei - encolho os ombros. - Pensei que pudesses estar a trabalhar para a tua igreja.
- Bem, às segundas-feiras trabalho - diz ele. - Também são meus clientes - esfrega o maxilar com o punho. - Vi um cartaz à porta de um bar a dizer que ias cantar lá. Já não atuas desde antes de nos... bem, há imenso tempo.
- Eu sei... acabei por voltar a fazer isso - hesito. - Não estiveste no bar...?
- Não - o Max ri. - Ultimamente tenho andado mais limpo do que um sabonete.
- Ainda bem. Quero dizer, isso é fantástico. E, sim, tenho cantado aqui e ali. Guitarra acústica. Mantém-me afinada para as minhas sessões de terapia.
- Continuas a fazer isso.
- Porque não haveria de fazer? Ele abana a cabeça.
- Não sei. Houve muitas coisas em ti que... mudaram.
É tão estranho encontrar um ex-marido. É como se estivéssemos num filme estrangeiro e o que dizemos cara a cara não tivesse nada a ver com as legendas que vão passando por baixo de nós. Temos muito cuidado para
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não nos tocarmos, apesar de antigamente ter dormido colada a ele na nossa cama, como líquen numa rocha. Somos dois desconhecidos que conhecem todos os segredos vergonhosos, todas as sardas escondidas, todos os defeitos fatais um do outro.
- Casei-me - digo repentinamente.
Visto que o Max não me paga pensão de alimentos, não havia nenhuma razão para saber. Por um instante, parece absolutamente confuso. Depois abre muito os olhos.
- Queres dizer, tu e...?
- A Vanessa - digo. - Sim.
- Uau - o Max muda de posição, afastando-se alguns centímetros de mim no banco de pedra. - Eu, hum, não me apercebei de que era tão... real.
- Real?
- Quero dizer, sério. Achei que era um capricho que tinhas de experimentar.
- Queres dizer, da mesma forma que tu bebias ocasionalmente? - assim que digo estas palavras, arrependo-me. Estou aqui para tentar convencer o Max a ficar do meu lado, e não para antagonizá-lo. - Desculpa. Isto foi desnecessário.
O Max parece estar agoniado.
-Ainda bem que me disseste isso pessoalmente. Seria mesmo muito difícil ouvir isso da boca de terceiros.
Por um instante, quase sinto pena dele. Imagino a reprimenda que vai ouvir dos novos amigos da igreja por minha causa.
- Não é tudo - digo, engolindo em seco. - A Vanessa e eu queremos começar uma família. A Vanessa é jovem e saudável, e não há nenhuma razão para não poder ter um bebé.
- Eu lembro-me de uma razão bastante determinante - diz o Max.
- Bem, por acaso é por isso que estou aqui - respiro fundo. - Seria muito importante para nós que o bebé que a Vanessa tivesse fosse biologicamente meu. E sobraram três embriões de quando tu e eu estávamos a tentar. Queria ter a tua autorização para poder usá-los.
O Max levanta bruscamente a cabeça.
- O quê?
- Sei que é muito para assimilar de uma só vez...
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-Já te disse que não quero ser pai...
- Não estou a pedir-te que sejas. Sem compromissos, Max. Assinamos tudo o que quiseres para garantir isso. Não estamos à espera que sustentes o bebé: nem com dinheiro, nem com o teu nome, nada. Não terás qualquer obrigação nem responsabilidade para com ele, se tivermos a sorte de conseguir ter um - olho diretamente para ele. - Estes embriões... já existem. Estão simplesmente à espera. Durante quanto tempo? Cinco anos? Dez? Cinquenta? Nenhum de nós quer destruí-los, e já disseste que não queres ter filhos. Mas eu quero. Quero tanto que me dói.
-Zoe...
- É a minha última oportunidade. Sou demasiado velha para voltar a submeter-me a fertilização in vitro, para recolher mais óvulos com um dador de esperma anónimo - com uma mão trémula, tiro o formulário da clínica de dentro da mala. - Por favor, Max? Imploro-te.
Ele agarra na folha de papel mas não olha para ela. Não olha para mim.
- Eu... não sei o que dizer.
"Sabes", apercebo-me. "Só que não queres dizer."
- Vais pensar nisso? - pergunto. Ele acena com a cabeça e levanta-se.
- Agradeço-te imenso, Max. Sei que não era o que estavas à espera recuo um passo. - Eu, hum, telefono-te. Ou telefonas-me tu.
Ele acena com a cabeça, depois dobra o papel ao meio duas vezes e enfia-o no bolso de trás das calças. Será que vai olhar sequer para ele? Que o vai rasgar em
pedacinhos e juntá-lo à terra com o ancinho? Que vai metê-lo na máquina de lavar a roupa juntamente com as calças de ganga para ser impossível ler as palavras?
Começo a caminhar pelo passeio, onde deixei o carro, mas paro ao ouvir a voz do Max.
- Zoe - chama. - Continuo a rezar por ti, sabes. Viro-me de frente para ele.
- Não preciso das tuas orações, Max - digo. - Só do teu consentimento.
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254
MAX
Às vezes Deus simplesmente irrita-me.
Sou o primeiro a admitir que nem sempre sou muito perspicaz, e que nunca pensaria que seria capaz de perceber os desígnios do Senhor, mas há ocasiões em que é realmente
difícil de entender o que Ele está
a pensar.
Como quando ouvimos dizer que um grupo de miúdos morreu num tiroteio numa escola.
Ou quando um furacão arrasa uma comunidade inteira.
Ou quando a Alison Gerhart, uma rapariga amorosa de vinte e tal anos que frequentava a Universidade Bob
Jones, com a melhor voz de soprano do coro da igreja e que nunca fumou um cigarro na vida, foi diagnosticada com um cancro no pulmão e faleceu um mês depois.
Ou quando o Ed Emmerly, um diácono da Glória Eterna, perdeu o emprego mesmo quando o filho precisava de uma cirurgia dispendiosa à coluna.
Desde a visita inesperada da Zoe que tenho rezado para saber o que hei de fazer, mas não é linear. Sobre uma coisa estamos de acordo: para nós, não se trata apenas de células congeladas naquela clínica; são crianças em potencial. Talvez ambos acreditemos nisto por razões diferentes - as minhas religiosas, as dela pessoais - mas de qualquer forma, não queremos que aqueles embriões sejam desperdiçados. Tenho andado a adiar o inevitável
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ao aceitar mante-los congelados, suspensos num limbo. A Zoe quer dar-lhes uma oportunidade de viver que cada bebé merece ter.
Até o Pastor Clive concordaria com ela.
Mas provavelmente ficaria fora de si se lhe dissesse que este futuro bebé ia passar a vida com duas mães lésbicas.
Por um lado, tenho Deus a lembrar-me de que não posso destruir uma vida em potencial. Mas a que tipo de vida estará sujeita uma criança inocente num lar de homossexuais? Quero dizer, li os folhetos que o Pastor Clive me deu, e para mim (e para os cientistas citados) é óbvio que ser homossexual não é uma questão de biologia mas sim de ambiente. Sabem como os homossexuais se reproduzem, não sabem? Visto que não conseguem propriamente fazê-lo da forma bíblica, recrutam. É por isso que a Igreja da Glória Eterna luta tanto contra autorizar-se professores homossexuais nas escolas - aquelas pobres crianças não têm qualquer hipótese de não serem corrompidas.
- Boa tarde, Max - ouço, e olho para cima e vejo o Pastor Clive a vir do parque de estacionamento com uma caixa de bolos. Não fuma nem bebe, mas tem um fraquinho por cannoli. - Quer provar um pedaço de paraíso de degustação de Federal Hill?
- Não, obrigado - o Sol atrás da cabeça forma uma auréola. - Pastor Clive, tem um minuto?
- Claro. Entre - diz ele.
vou atrás dele, passando pela secretária da igreja, que me oferece um chocolate de uma taça que está em cima da sua secretária, e entro no gabinete dele. O Pastor Clive corta os cordéis que atam a caixa de bolos com uma faca de caça que tem pendurada no cinto e agarra num deles.
- Continua a não se sentir tentado? - pergunta, e, quando abano a cabeça, lambe o creme de uma das pontas. - É assim - diz ele de boca cheia - que sei que Deus existe.
- Mas Deus não fez esses cannoli. Foi o Big Mike, nos Scialo Brothers.
- E Deus criou o Big Mike. É tudo uma questão de perspetiva - o Pastor Clive limpa a boca com um guardanapo. - O que o preocupa hoje, Max?
- A minha ex-mulher acabou de dizer-me que se casou com uma mulher e quer usar os nossos embriões para ter um bebé - tenho vontade de lavar a boca. A vergonha tem um gosto amargo.
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O Pastor Clive pousa o cannoli.
- Estou a perceber - diz ele.
- Tenho rezado. Sei que o bebé merece viver. Mas não... não assim olho para o chão. - Posso não ser capaz de impedir que a Zoe vá para o Inferno no Dia do Juízo Final, mas não vou deixar que o meu filho seja arrastado com ela.
- O seu filho - repete o Pastor Clive. - Max, não percebe? Foi você que o disse: este bebé é seu. Pode ser a forma de Jesus dizer-lhe que é altura de assumir responsabilidade por esses embriões, para não acabarem nas mãos da sua ex-mulher.
- Pastor Clive - digo eu, entrando em pânico. - Não fui feito para ser pai. Olhe para mim. Sou uma obra inacabada.
- Somos todos. Mas ser responsável pela vida desse bebé não significa necessariamente o que você pensa. O que desejaria para essa criança?
- Que crescesse com uma mãe e um pai que a amassem, acho eu. E que pudessem dar-lhe tudo o que precisa...
- E que sejam bons cristãos - acrescenta o Pastor Clive.
- Bem, sim - olho para ele. - Um casal como o Reid e a Liddy. O Pastor Clive contorna a secretária e senta-se na beira.
- Que tentam há anos ser abençoados com um filho. Tem rezado pelo seu irmão e pela sua cunhada, não tem?
- Claro que tenho...
- Tem pedido a Deus que os abençoe com um bebé - aceno com a cabeça. - Bem, Max. Quando Deus fecha uma porta, é porque abriu uma janela.
Só tive um momento de revelação assim uma vez na vida - foi quando estava no hospital e o Pastor Clive me ajudou a afastar o fumo e as falsidades para ver Jesus, tão perto que se estendesse a mão poderia tocar-lhe. Mas agora percebo que a Zoe veio ter comigo hoje porque Deus tem um plano para mim. Se não for capaz de criar este bebé sozinho, pelo menos sei que será criado por alguém do meu sangue.
Este bebé é a minha família, e é aqui que deve estar.
- Tenho de falar convosco - digo nessa noite ao jantar, quando o Reid me passa uma travessa de batatas gratinadas. - Quero oferecer-vos uma coisa.
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O Reid abana a cabeça.
- Max, já te disse. Não nos deves nada.
- Devo sim. Devo-vos a minha vida, na prática, mas não é a isso que me refiro - digo.
Viro-me para a Liddy. Semanas após o aborto espontâneo, ainda parece um espetro. No outro dia encontrei-a sentada no carro estacionado na garagem, a olhar pelo vidro para uma fila de prateleiras cheias de ferramentas elétricas e tintas. Perguntei-lhe para onde ia, e ela deu um grande salto, de tão surpreendida que ficou por ver-me. "Não faço ideia", disse ela, e olhou para baixo, para si própria, como se não soubesse como tinha ido ali parar.
- Não conseguem ter filhos - afirmo.
Os olhos da Liddy enchem-se de lágrimas, e o Reid interrompe-me rapidamente.
- Conseguimos e vamos ter filhos. Só temos estado à espera que isso aconteça quando nós quisermos, e não quando Deus quiser. Não é verdade, minha querida?
- E eu tenho um bebé que não posso ter - prossigo. - A Zoe e eu divorciamo-nos, e ainda ficaram três embriões congelados na clínica. A Zoe quer usá-los. Mas eu acho... eu acho que deviam ficar para vocês.
- O quê? - sussurra a Liddy.
- Eu não sirvo para ser pai. Mal consigo cuidar de mim próprio, quanto mais de outra pessoa. Mas vocês... merecem ter uma família. Não imagino uma vida melhor para uma criança do que viver convosco
- hesito. - Por acaso, sei por experiência própria.
O Reid abana a cabeça.
- Não. Daqui a cinco anos, vais estar recomposto. Talvez até te casses...
- Não ias tirar-me o meu filho - digo. - Continuaria a ser o Tio Max. Continuaria a poder levá-lo a fazer surf. A ensiná-lo a conduzir. Tudo isso.
- Max, isto é uma loucura...
- Não, não é. ]á estão a pensar na adoção - digo. - Vi as brochuras em cima da bancada da cozinha. Isto é a mesma coisa... o Pastor Clive diz que a adoção de embriões é uma coisa que está sempre a acontecer. Mas este embrião é da vossa família.
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Percebo que isto afeta o meu irmão. Ambos olhamos para a Liddy ao mesmo tempo.
Há uma parte de mim que é egoísta, tenho de admiti-lo. Uma mulher como a Liddy - bonita, inteligente, religiosa - é tudo o que um homem como eu poderia desejar, tudo o que provavelmente nunca terei. Ficou sempre do meu lado ao longo dos anos, mesmo quando o Reid ficou frustrado comigo por não realizar o meu potencial, ou simplesmente por arruinar a minha vida. Se a Liddy engravidar depois da transferência dos embriões, o bebé será dela - dela e do Reid - mas tenho de confessar que gosto da ideia de ser eu a colocar-lhe novamente um sorriso no rosto.
Deus sabe que não fui capaz de fazer isso com a minha própria mulher.
Mas a Liddy não parece estar feliz. Parece aterrorizada.
- E se também perder este?
É uma possibilidade; é sempre, quando se faz uma fertilização in vitro. Mas não há garantias na vida, ponto final. Um bebé que nasça perfeitamente saudável pode dormir na posição errada e sufocar. Um atleta do triatlo pode morrer subitamente devido a um defeito cardíaco congénito que desconheça. Uma rapariga que achamos que nos ama pode apaixonar-se por outra pessoa. Sim, a Liddy pode abortar. Mas quais são as alternativas? Um bebé permanecer dentro de um cubo de gelo ao longo da próxima década ou das próximas duas décadas? Nascer de duas mulheres que escolheram viver em pecado?
O Reid olha para a Liddy com tanta esperança nos olhos que me desvio o rosto, envergonhado.
- E se não perderes? - diz ele.
De repente estou lá fora a olhar pela janela. Um voyeur, um observador, e não um participante.
Mas esse bebé. Esse bebé vai ser diferente.
Nessa noite estou a lavar os dentes na casa de banho dos hóspedes quando o Reid aparece à porta.
- Podes mudar de ideias - diz ele, e não finjo não perceber ao que ele se refere.
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Cuspo a pasta de dentes, limpo a boca.
- Não vou mudar.
O Reid parece estar pouco à vontade, a mudar de posição. Tem as mãos enfiadas nos bolsos das calças. Mal parece ser o homem que conheço
- o que tem sempre a situação sob controlo, cujo encanto pessoal só é igualado pela inteligência. Percebo, sobressaltado, que, apesar de o Reid ser o rapaz perfeito que parece fazer tudo certo à primeira, descobri uma coisa que ele não consegue fazer bem.
Exprimir gratidão.
É capaz de despir a camisa para dar a outra pessoa, mas quando se trata de aceitar alguma ajuda, fica sem saber o que fazer.
- Não sei o que dizer - admite o Reid.
Quando éramos pequenos, o Reid inventou uma linguagem secreta, com um livro de vocabulário e tudo. Depois ensinou-ma. Ao jantar, sentados à mesa, dizia "Mumu rabba wollabang", e eu desatava a rir. A minha mãe e o meu pai limitavam-se a olhar um para o outro, confusos, porque não sabiam que o Reid tinha acabado de dizer que o rolo de carne cheirava a rabo de macaco. Os meus pais ficavam fora de si, pela forma como conseguíamos comunicar para além dos limites de uma conversa normal.
- Não tens de dizer nada - digo-lhe. - Eu já sei.
O Reid acena com a cabeça e puxa-me para me dar um abraço. Está a lutar contra as lágrimas, percebo pela respiração dele.
- Adoro-te, irmãozinho - murmura.
Fecho os olhos. "Acredito em ti. Rezo por ti. Quero ajudar-te." O Reid já me disse muitas coisas ao longo dos anos, mas só agora me apercebo do quanto esperei para ouvi-lo dizer isto.
- Também já sei - respondo.
A Sr.a O'Connor fez donuts. Fá-los à moda antiga, fritando-os, e polvilhando-os com um pouco de açúcar. Procuro sempre o nome dela no quadro de voluntariado da igreja, para ver quando é a sua vez de trazer qualquer coisa para comer com o café depois da Missa. Acreditem que sou o primeiro a sair do santuário no auditório, para poder chegar àquela travessa antes dos miúdos da catequese.
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Enchi o prato mais do que devia quando ouço a voz do Pastor Clive.
- Max - diz ele -, já devia saber que estava aqui.
Viro-me, já com a boca cheia de donut. O pastor está ao lado de um recém-chegado, ou pelo menos acho que é um recém-chegado. É mais alto do que o Pastor Clive e tem cabelos negros penteados para trás com algum óleo ou mousse. A gravata é da mesma cor que o lenço - rosada, como salmão fumado. Nunca vi dentes tão brancos na minha vida.
- Ah - diz ele, estendendo a mão. - O infame Max Baxter. "Infame? Mas que fiz eu agora?"
- Max - diz o Pastor -, este é o Wade Preston. Talvez o reconheça da televisão?
Abano a cabeça.
- Lamento.
O Wade ri a bom rir.
- Tenho de arranjar um publicista melhor! Sou um velho amigo do Clive. Frequentámos o mesmo seminário.
Tem um sotaque sulista que faz as palavras parecerem nadar debaixo de água.
- Então também é pastor?
- Sou advogado e um bom cristão - diz o Wade. - Embora isso pareça um paradoxo.
- O Wade está a ser modesto - explica o Pastor Clive. - Ele é a voz dos que ainda não nasceram. Aliás, a missão da sua vida é garantir os seus direitos e protegê-los. Está muito interessado no seu caso, Max.
- Que caso?
Só percebo que disse isso em voz alta quando o Wade Preston responde.
- O Clive disse-me que vai colocar uma ação judicial para impedir que a sua ex-mulher lésbica se apodere do seu filho.
Olho para o Pastor Clive, e depois para a sala em meu redor, para ver se o Reid e a Liddy já entraram, mas estou sozinho aqui.
- O que você precisa de saber, Max, é que não está sozinho - diz o Wade. - É o gay-by boorn11: os homossexuais estão a tentar perverter
18 Alusão a baby boom, referindo-se aos casais homossexuais que se tornam pais. (N. da T.)
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a noção de família, como se fosse algo para além de uma mãe e um pai num afetuoso lar cristão. O meu objetivo é fazer pelas adoções o que a Lei de Defesa do Casamento faz pela santidade desse sacramento: nomeadamente, impedir que crianças inocentes sejam vitimizadas coloca-me o braço à volta dos ombros, afastando-me de um bando de beatas que se reuniram junto à cafeteira do café. - Sabe como encontrei Jesus, Max? Tinha dez anos e estava na escola durante o verão por ter chumbado no quarto ano. E a minha professora, a Sr.a Percival, perguntou se alguém queria ficar com ela durante o intervalo para rezar. Bem, deixe-me que lhe diga, nessa altura não queria saber da religião para nada. Só queria ser o menino querido da professora para poder ser o primeiro na fila para o lanche naquele dia, porque iam dar bolachas, e nunca havia bolachas de chocolate que chegassem para todos, e as de baunilha, desculpe a expressão, eram uma trampa. Achei que ia dizer umas orações tolas com ela e ia ficar no lugar da frente daquela fila para o lanche.
"Claro, ouvi-a falar de Jesus a torto e a direito. Fingi acompanhá-la, mas estive sempre a pensar naquelas bolachas. Quando chegou a hora do lanche, a Sr.a Percival deixou-me ser o primeiro da fila. Fui a correr para a mesa do lanche, mas era como se voasse, de tão ligeiros iam os meus pés. Olhei para o tabuleiro, e não havia lá uma única bolacha de chocolate."
Olho para baixo, para o meu prato de donuts.
- Esta é a parte mais incrível, Max. Agarrei numa daquelas bolachas de baunilha, que provavelmente eram feitas de cartão e bosta de burro, e dei-lhe uma grande dentada, e foi a coisa mais deliciosa que já comi. Sabia a chocolate e a manhã de Natal e a vencer o Campeonato do Mundo, tudo reunido numa pequena porção de massa. E foi nesse instante que percebi que Jesus estava comigo, mesmo quando não o esperava.
- Foi salvo por uma bolacha? - pergunto.
- Fui, sim. E sabe como tenho a certeza? Porque desde esse instante nas aulas de verão da Sr.a Percival, já estive envolvido num acidente de viação em que morreram todos os outros passageiros, exceto eu. Sobrevivi a uma meningite espinhal. Fui o melhor aluno
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da turma na faculdade de Direito em Ole Miss. Naveguei pela vida, Max, e sou suficientemente esperto para saber que não sou o capitão do meu próprio navio, se
é que me entende. E, por Deus ter cuidado sempre de mim, acredito que é meu dever enquanto cristão cuidar daqueles que não podem cuidar de si. Estou autorizado a
exercer direito em dezanove estados - diz o Wade. - Sou participante ativo no Programa de Adoção de Embriões Congelados Flocos de Neve... já ouviu falar?
Só por o Pastor Clive ter falado nisso ao Reid e à Liddy, depois do último aborto. É uma agência de adoção cristã que começa a atuar antes de o bebé nascer e permite que as pessoas que se submeteram a fertilização in vitro cedam os seus embriões extra às famílias que precisam deles.
- O quer estou a tentar dizer-lhe - diz ele num tom suave - é que tenho a experiência que um advogado local pode não ter. Em todo o país há homens como o Max, que tentam fazer tudo certo e que mesmo assim se vêem nesta situação terrível. O Max foi salvo. Agora cabe-lhe a si salvar os seus filhos - olha-me nos olhos. - E eu estou aqui para ajudar.
Não sei o que dizer. Ontem recebi uma mensagem da Zoe no telemóvel. Só queria saber se já tinha assinado o papel. Se queria conversar um pouco mais, tomar um café, fazer-lhe algumas perguntas.
Guardei a mensagem dela. Não por aquilo que estava a perguntar, mas por causa da sua voz. Não estava a cantar, mas as palavras tinham uma cadência que me fez lembrar música.
A verdade é que já fiz asneira outra vez. Não quero dizer à Zoe que tomei uma decisão, mas tenho de o fazer. E algo me diz que ela vai ficar tão satisfeita por os seus bebés serem criados pela Liddy e pelo Reid como eu estou por saber que os meus vão ser criados por duas fufas.
O Wade Preston tira um cartão do bolso de dentro do casaco.
- Porque não nos encontramos para a semana? - sugere. - Temos muito que conversar para dar início a este processo - enquanto o pastor Clive o leva para falar com outros membros da congregação, ele mostra-me novamente aquele sorriso radioso.
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Tenho seis donuts no prato, e já nem me apetece comer nenhum. Na verdade, estou enjoado.
Porque a verdade é esta: o processo já foi iniciado. Já vai a meio caminho.
Na noite antes de encontrar-me com o Wade Preston no gabinete do Pastor Clive - ele achou que talvez quiséssemos ter privacidade - tenho um sonho. A Liddy já está grávida e, em vez de estar só o Reid na sala de partos, estão lá dezenas de pessoas, todas de fatos operatórios e máscaras azuis. Não conseguimos ver o rosto de ninguém, só os olhos.
O Pastor Clive está sentado entre as pernas da Liddy e faz de médico. Estende a mão para apanhar o bebé.
- Está a ir muito bem - diz-lhe ele enquanto ela grita, empurrando aquele bebé cheio de sangue para o mundo.
Uma enfermeira agarra no bebé e embrulha-o, e ao fazê-lo solta um grito abafado. Chama o Pastor Clive, que olha para as pregas da manta azul e diz:
- Santo Deus.
- O que se passa? - pergunto, abrindo caminho por entre a multidão.
- O que foi?
Mas não me ouvem.
- Talvez ela nem repare - murmura a enfermeira, e entrega o bebé à Liddy. - Está aqui o seu filho - diz ela gentilmente.
A Liddy levanta a ponta da manta que envolve o recém-nascido e começa a gritar. Quase deixa cair o bebé, e eu corro para apanhá-lo.
É nessa altura que vejo: não tem rosto.
Em vez disso há apenas uma forma oval cheia de altos, uma costura onde devia estar a boca.
- Não o quero! - grita a Liddy. - Ele não é meu!
Uma das observadoras com máscara avança. Tira-me o bebé das mãos e começa a beliscar a carne criando feições falsas - uma elevação para o nariz, duas marcas de polegar para os olhos - como se o bebé fosse feito de barro. Olha para ele como se fosse a coisa mais linda que já viu.
- Pronto - diz ela. Tira a máscara e sorri, e é nessa altura que vejo que é a Zoe.
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Estou a suar quando entro no gabinete do Pastor Clive para me encontrar com o Wade, tanto que quase ensopei a camisa, e calculo que ele ache que sou uma aberração ou que tenho alguma estranha perturbação metabólica, quando na realidade estou apenas com algum receio de dizer-lhe o que tenho estado a pensar durante toda a manhã.
Ou seja, que talvez esteja a cometer um erro. Claro, quero ajudar a Liddy e o Reid... mas não quero magoar a Zoe.
O Wade veste outro fato de corte perfeito, este com um leve brilho prateado que o faz parecer Jesus nos quadros - refulgente, um pouco mais brilhante do que todos os que estão à Sua volta.
- Estou muito satisfeito por vê-lo, Max - diz o Wade, apertando-me a mão e sacudindo-a para cima e para baixo. - Devo dizer-lhe que desde que falei consigo no domingo não me sai da cabeça.
- Oh - digo. - Bem.
- Ora, temos muitos antecedentes a esclarecer, por isso vou fazer-lhe algumas perguntas, e o Max vai responder o melhor que puder.
- Posso fazer-lhe uma pergunta primeiro? - pergunto. Ele olha para cima e acena com a cabeça.
- com certeza.
- Por acaso, não é bem uma pergunta. É mais uma afirmação. Quero dizer, sei que tenho o direito de decidir o que vai acontecer àqueles embriões. Mas a Zoe também tem.
O Wade senta-se na beira da secretária do Pastor Clive.
- Tem toda a razão, pelo menos quando olha para este assunto superficialmente. O Max e a Zoe têm direitos cromossómicos iguais sobre estes embriões. Mas deixe-me fazer-lhe uma pergunta: pensava educar estas crianças por nascer numa relação heterossexual com a sua ex-mulher?
- Sim.
- Pois, infelizmente o seu casamento não durou.
- Foi precisamente isso - digo repentinamente. - Nada correu como pensámos. E finalmente, ela parece estar feliz. Pode não ser o que eu faria, ou o que você faria, mas porque haveria de estragar-lhe essa felicidade?
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Sempre achei que ela seria uma boa mãe. E disse que não tenho de pagar nenhuma pensão...
- Espere aí - o Wade levanta uma mão. - Vamos analisar um pouco isto. Em primeiro lugar, se realmente deu à Zoe os seus filhos por nascer, continua a ser o pai. Estas crianças já existem, Max. Não pode recusar as suas responsabilidades biológicas em relação a elas. Por isso, mesmo que sejam criadas neste lar de lésbicas, vai ter de contribuir para o seu sustento. E, mesmo que a sua ex-mulher agora não lho peça, em qualquer altura da vida dessa criança ela pode vir ter consigo a dizer que precisa de apoio financeiro ou emocional. A Zoe pode afirmar que não tem de ter uma relação com este bebé, mas a decisão não é dela - cruza os braços. - Agora diz que a sua ex-mulher seria uma boa mãe, e não tenho dúvidas de que isso seja verdade. E o seu irmão e a sua cunhada?
Olho para o Pastor Clive.
- Seriam os melhores pais que consigo imaginar.
- E a amante lésbica da sua mulher?
- Não sei muito sobre ela...
- À exceção do facto de ela querer tirar-lhe os filhos - faz notar o Wade.
Eis o que sei sobre a Vanessa: tinha uma mulher, uma mulher que me amava e que fazia amor comigo, e agora de repente ela dorme com uma mulher que a seduziu.
O Pastor Clive aproxima-se de uma Bíblia enorme num suporte de leitura e começa a ler em voz alta:
- "Por causa disso Deus os entregou a paixões vergonhosas. Até suas mulheres trocaram suas relações sexuais naturais por outras contrárias à natureza. Da mesma forma, os homens também abandonaram as relações naturais com as mulheres e se inflamaram de paixão uns pelos outros. Começaram a cometer atos indecentes, homens com homens, e receberam em si mesmos o castigo merecido pela sua perversão." É isso que Deus tem a dizer sobre os homossexuais na Carta aos Romanos
1:26-27 - diz o Pastor. - A homossexualidade é uma aberração. Algo que deve ser punido.
- E se essa criança por nascer for um rapazinho, Max? - pergunta o Wade. - Compreende que tem grandes hipóteses de se tornar ele próprio
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homossexual se o deixar ser criado por duas lésbicas. Sinceramente, mesmo se a Zoe for a Melhor Mãe do Ano, quem será o pai naquela casa? Como é que o seu filho vai aprender a ser um homem?
Abano a cabeça. Não tenho resposta para isso. Se o bebé for entregue aos cuidados do Reid e da Liddy, terá uma excelente figura paterna. A mesma que admirei ao longo de toda a minha vida.
- A melhor decisão que pode tomar como pai - diz o Wade -, mesmo que seja a única decisão que tome como pai, é perguntar a si próprio o que será de facto melhor para o seu filho.
Fecho os olhos.
- O Pastor Clive disse-me que o Max e a Zoe perderam alguns bebés enquanto estavam a tentar engravidar - diz o Wade. - Incluindo um que estava quase no termo.
Sinto a garganta apertar-se. -Sim.
- Como se sentiu quando ele morreu?
Pressiono os cantos dos olhos com os polegares. Não quero chorar. Não quero que me vejam chorar.
- Sofri imenso.
- Se lhe custou tanto perder um filho - pergunta o Wade -, como vai sentir-se se perder mais três?
"Desculpem", penso, e já nem sequer sei a quem estou a pedir perdão.
- Está bem - digo entre dentes.
- Desculpe?
- Está bem - repito, olhando para o Wade. - O que fazemos a seguir?
A Liddy está na cozinha quando chego a casa depois da reunião. Está a fazer uma tarte de mirtilos, apesar de não ser época dos mirtilos. É a minha preferida.
Também está a fazer a massa. A Zoe nunca fazia a massa. Dizia que não valia a pena, porque a Pillsbury já tinha feito todo o trabalho.
- Chama-se pró hac vice - explico. - Quer dizer que o Wade Preston é um advogado de outro estado que está autorizado a representar-me devido à experiência que tem na área.
- Então tens dois advogados? - pergunta a Liddy.
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- Acho que sim. Ainda não conheço o tal Ben Benjamin, mas o Wade diz que ele conhece os juizes do estado e pode ajudar a arranjar a melhor estratégia. Costumava ser secretário do Juiz O'NeilI, e tem hipóteses de defender o caso diante dele.
A Liddy apoia-se na bancada e estende a massa entre duas folhas de película aderente. A bola achata-se num círculo perfeito, que ela coloca sobre uma forma de tartes de cerâmica.
- Parece complicado.
- Pois, mas eles sabem o que estão a fazer - não quero que se preocupe com isto. Quero que acredite que vai tudo acontecer como ela quer. Uma atitude positiva é tão importante como o aparelho reprodutivo quando se trata de gravidez. Pelo menos era o que a obstetra da Zoe costumava dizer.
A Liddy coloca o recheio com a colher - há mirtilos, que ela tentou impedir-me de roubar - e algum açúcar e aquela porcaria daquele pó branco que não é farinha - por cima da massa. Coloca algumas nozes de manteiga por cima. Depois tira uma segunda bola de massa do frigorífico para poder estender a cobertura da tarte.
Levanta a película aderente e retira-a. Mas, em vez de estender a massa, dobra-se para a frente, apoiando-se na bancada e tapando o rosto com as mãos.
Está a chorar.
- Liddy? O que foi?
Abana a cabeça, afastando-me.
Começo a entrar em pânico. Devia chamar o Reid. Devia telefonar para o 112.
- Estou bem, Max - diz ela numa voz sufocada. - A sério.
- Estás a chorar!
Ela olha para mim. Tem os olhos da cor do vidro do mar, daqueles que encontramos na praia e guardamos no bolso.
- Porque estou feliz. Fizeste-me tão inacreditavelmente feliz.
Não faz sentido para mim, mas também não faz sentido o que sinto quando ela se encosta a mim por um segundo. Dá-me um breve abraço e depois volta à tarte, estendendo a massa como se o mundo não se tivesse deslocado sobre o seu eixo.
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O Ben Benjamin tem pequenos óculos redondos e a boca franzida como um funil. Está sentado à minha frente na sala de reuniões da igreja a assentar tudo o que digo, como se mais tarde fosse haver um questionário.
- Como dividiram os bens? - pergunta.
- Dividimos tudo ao meio.
- O que quer dizer com isso?
- Bem, a Zoe ficou com os instrumentos musicais, e eu fiquei com o meu equipamento de jardinagem. Combinámos que cada um era responsável pelas suas próprias dívidas. Não tínhamos casa nem nada.
- Abordaram a questão dos embriões no julgamento?
- Bem, não. Eles não são propriamente bens.
O Wade inclina-se para a frente, de mãos cruzadas.
- Claro que não. São pessoas.
O Ben anota qualquer coisa no caderno.
- Então enquanto se representavam a si próprios ao longo do divórcio, cometeram os dois um erro involuntário. Esqueceram-se de falar sobre essas... crianças... congeladas nas suas cápsulas do tempo na sentença do divórcio. Não foi?
- Acho que sim - digo.
- Não, sabe que sim - corrige o Ben. - Porque é assim que vamos abrir este caso. Não se apercebeu da necessidade de abordar esta questão durante o divórcio, por isso voltamos a levar o caso diante do tribunal de família colocando uma ação judicial.
- E se a Zoe fizer o mesmo primeiro? - pergunto.
- Acredite - diz o Wade -, a clínica não vai dar nenhum passo sem o consentimento de ambos... ou uma ordem do tribunal. Aliás, vou fazer um telefonema ao advogado da clínica para garantir isso.
- Mas, mesmo se formos a tribunal, o juiz não vai pensar que sou um canalha por querer dar os meus bebés? Quero dizer, a Zoe quere-os para si própria.
- É um argumento de peso - concorda o Ben -, só que ambos têm direitos biológicos iguais relativamente aos embriões...
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- Crianças por nascer - interrompe o Wade. Ben olha para cima.
- Pois. As crianças. Tem o mesmo direito de decidir o que vai acontecer-lhes do que a sua ex-mulher. Mesmo que quisesse que fossem destruídos...
- Que não quer - diz o Pastor Clive.
- Não, mas se quisesse, o tribunal teria de ter em conta os seus direitos legais de o fazer.
- O tribunal preocupa-se com o interesse superior das crianças - acrescenta o Wade. -
Já ouviu esse termo. E aqui as opções são uma família cristã tradicional ou
uma unidade que nem sequer se aproxima dessa definição.
- Vamos pedir ao seu irmão e à sua cunhada que testemunhem. Vão ser uma parte muito importante deste julgamento - diz o Ben.
Passo a unha do polegar por uma ranhura na mesa. Ontem à noite, a Liddy e o Reid estiveram na Internet à procura de nomes de bebés. ")oshua é bonito", disse o Reid,
e a Liddy disse que talvez Mason.
"É demasiado sofisticado", disse o Reid.
E a Liddy disse: "Bem, o que acha o Max? Também devia ter uma palavra a dizer."
Abro as mãos em cima da mesa.
- Sobre este julgamento... provavelmente devia ter dito isto antes. Não posso pagar a um advogado, quanto mais a dois.
O Pastor Clive pousa-me uma mão no ombro.
- Não se preocupe com isso, meu filho. A igreja trata disso. Afinal, vai atrair muitas atenções.
O Wade encosta-se para trás, com um sorriso a surgir-lhe no rosto.
- Atenções - diz ele - são o meu forte.
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ZOE
Gosto de Emma. E Ella. E Hannah.
- Todos os nomes têm de ser um palíndromo? - pergunta a Vanessa.
- Não - digo-lhe, enquanto estamos estendidas no chão da sala, rodeadas por todos os livros de nomes de bebé que havia na livraria aqui perto.
- Florais? - diz a Vanessa. - Rose? Lily? Ou Daisy. Sempre gostei de Daisy.
- Amanda Lynn? - fico à espera para ver se ela percebe a piada19.
A Vanessa ri.
- Bem, é melhor do que Tuba ou Banjo...
- E nomes de rapariga que também são de rapaz? - digo. - Como Stevie. Ou Alex.
- Ia poupar-nos muito trabalho - admite a Vanessa.
Já estive grávida três vezes e sempre evitei fazer isto: ter esperança. É muito mais fácil não ficarmos desiludidas quando não temos expetativas. Mas desta vez não
consigo evitar. Há algo na forma como as coisas ficaram com o Max que me faz acreditar que isso possa realmente acontecer.
Afinal, ele não disse logo que não, que era o que eu estava à espera.
O que significa que ainda está a pensar.
E isso só pode ser bom, não é?
- Joey - sugere a Vanessa. - Até é giro.
19 Semelhança fonética com a mandolin, um bandolim. (N. da T.)
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- Quando se é um canguru20... - viro-me de barriga para cima e olho para o teto. - Nuvens.
- Nem pensar. Não vou seguir a tradição hippy. Nada de Nuvens, Chuva, ou Prado. Quero dizer, imagina a pobre criança quando tiver noventa anos e estiver num lar.
- Não estava a falar do nome - digo. - Estava a pensar no quarto do bebé. Sempre achei que seria tranquilizador adormecer a olhar para as nuvens pintadas no teto.
- Isso é fixe. Achas que o Miguel Angelo vem nas páginas amarelas? A campainha da porta toca quando lhe atiro uma almofada.
- Estás à espera de alguém? - pergunto. A Vanessa abana a cabeça.
-E tu?
Está um homem de pé no alpendre, a sorrir. Tem um boné de basebol vermelho e uma camisola dos Red Sox e não me parece ser um assassino em série, por isso abro a porta.
- A senhora é a Zoe Baxter? - pergunta ele. -Sou...
Tira um monte de papéis azuis do bolso de trás das calças.
- Estes documentos são para si - diz ele. - Foi notificada. Abro o documento e as palavras saltam-me das páginas:
"Que este Ilustre Tribunal...
... atribuir-lhe a posse e custódia total dos seus filhos por nascer...
... deseja proporcionar-lhes uma família biparental adequada..."
Deixo-me cair no chão e leio.
"Em apoio destas afirmações, fica aqui especificado:
1. O queixoso é pai biológico destas crianças por nascer, que foram concebidas num casamento heterossexual, permitido por Deus e constitucional afim de serem criados num casamento heterossexual, permitido por Deus e constitucional.
20 Joey significa também cria de canguru. (N. da T.)
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2. Desde que estas crianças por nascer foram concebidas, as partes divorciaram-se.
3. Desde o julgamento final a ré abraçou um estilo de vida dissoluto, desviante e homossexual.
4. A arguida contactou a clínica para obter a posse das crianças por nascer, querendo que fossem transferidas para a sua amante lésbica.
-Zoei
A Vanessa parece estar a milhares de quilómetros de distância. Ouço-a, mas não consigo mexer-me.
- Zoe? - diz novamente, e tira-me o papel da mão. Abro a boca, mas não sai nada. Não há palavras para descrever uma traição tão grande.
A Vanessa começa a folhear as páginas tão depressa que estou à espera que comecem a arder.
- Mas que porcaria é esta?
O equilíbrio não passa de uma ilusão. Podemos ser atingidos sem nunca aparar um golpe.
- É do Max - digo. - Ele está a tentar tirar-nos o nosso bebé.
273
VANESSA
Logo a seguir ao Dia de Ação de Graças de 2008, uma mulher no seu leito de morte confessou ter matado há quarenta anos duas raparigas que a atormentaram por ser lésbica. Sharron Smith foi à geladaria em Staunton, Virgínia, onde todas trabalhavam para dizer que não podia trabalhar no dia seguinte. Segundo o relatório da polícia, uma coisa conduziu à outra, e disparou contra elas.
Não sei porque trazia uma pistola automática de calibre 25 quando foi à geladaria, mas compreendo os seus motivos. Sobretudo quando estou aqui, com esta alegação ridícula do ex-marido da Zoe na mão.
Uma alegação na qual sou chamada de dissoluta e desviante.
Sou inundada por um sentimento que achei que tinha deixado para trás na faculdade, quando as raparigas me chamavam aberração no balneário e se afastavam do sítio onde eu estava porque tinham a certeza de que estava a olhar para elas; quando algum imbecil da equipa de futebol americano, que tinha apostado com os amigos que era capaz de transformar-me numa rapariga a sério, me encostava a um canto escuro num baile e me apalpava. Era castigada só por ser eu própria, e aquilo que queria dizer - o que nunca cheguei a dizer, até ficar com a garganta dorida do esforço do silêncio - era "Porque se importam comigo? Porque não se preocupam convosco?"
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Por isso, apesar de aceitar tanto a violência como ser chamada de dissoluta ou desviante, nesse momento desejava ter a coragem da Sharron Smith.
- vou telefonar àquele filho da puta - anuncia a Zoe.
Não sei se alguma vez a vi tão transtornada. Tem o rosto afogueado, de um vermelho escuro; está a chorar e a ferver de raiva ao mesmo tempo. Carrega nos botões com tanta força que o telefone lhe cai das mãos. Apanho-o, carrego no botão de alta voz e pouso-o em cima da bancada para que possamos ambas ouvir.
Para ser sincera, fico admirada por o Max sequer atender.
- Não posso falar contigo. O meu advogado disse-me que não devia...
- Porquê? - interrompe a Zoe. - Porque me fizeste isto?
Há uma longa pausa - tão longa que acho que o Max talvez tenha desligado o telefone.
- Não estou a fazer-te isto a ti, Zoe. Estou a fazer isto pelos nossos filhos.
Quando ouvimos o ruído do outro lado da linha, a Zoe agarra no telefone e atira-o para o outro lado da cozinha.
- Ele nem sequer quer ter filhos - grita ela. - O que vai ele fazer aos embriões?
- Não sei - mas para mim é evidente que para o Max a questão mais importante aqui pode não ser os embriões. É a Zoe e a vida que ela leva.
Ou, por outras palavras, um castigo por ser ela própria.
Tenho uma visão repentina da minha mãe lavada em lágrimas, uma vez, quando me levou ao consultório médico para tomar vacinas. Tinha cerca de cinco anos, e muito medo de agulhas. Estive praticamente a manhã toda a hiperventilar de ansiedade por causa da dor que ia sentir, e, claro, estava a contorcer todo o meu pequeno corpo para fugir à enfermeira. Mas o som dos soluços da minha mãe fez-me parar imediatamente. Afinal, ela não ia propriamente levar a injeção.
"Faz-me doer", tentou explicar, "quando tu te magoas".
Na altura era demasiado pequena e demasiado literal para compreender, não tinha amado ninguém o suficiente para saber ao que se
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referia. Mas ao ver a Zoe assim, sabendo que lhe estão a tirar o que ela mais deseja no mundo - bem, não consigo respirar. Só vejo chamas.
Por isso deixo-a ali de pé na cozinha, e dirijo-me para o quarto. Ajoelho-me em frente à mesa-de-cabeceira e começo a procurar entre os números antigos de revistas School Counselorpor ler e receitas que recortei do jornal de quarta-feira e que estou sempre a pensar preparar sem nunca o fazer. Enterrado várias camadas mais abaixo está um
número de Options Newsletter, uma publicação para os transexuais, lésbicas, bissexuais e outros. No verso estão os anúncios classificados.
GLAD. Advogados de Defesa de Gays e Lésbicas. Winter Street, Boston.
Agarro na newslettere levo-a para a cozinha, onde a Zoe está prostrada em cima da mesa. Apanho o telefone do sítio onde caiu atrás de um parapeito e marco o número que está no anúncio.
- Olá - digo bruscamente. - O meu nome é Vanessa Shaw. A minha mulher acabou de ser notificada de um processo judicial acionado pelo ex-marido. Ele está a tentar obter a custódia e o controlo de embriões
congelados que esperávamos utilizar para formar uma família, e está a transformar isto num caso evangélico de direita contra os homossexuais para estabelecer um precedente. Pode ajudar-nos? - as palavras saem numa torrente furiosa, até a Zoe levantar a cabeça da mesa e ficar a olhar para mim, de olhos muito abertos. - Sim - digo à rececionista. Eu espero.
A música de fundo Muzak enche-me o ouvido. Foi a Zoe que me disse que a empresa que inventou aquela música horrível de elevador faliu em 2009. Disse que se tratava de carma musical.
Aproxima-se de mim, tirando-me a newsletter da mão e olhando para o anúncio de serviços jurídicos.
- Se o Max quer luta - digo-lhe -, então é luta que vai ter.
Quando tinha vinte e quatro anos, parti o tornozelo a jogar hóquei no gelo no dia a seguir ao Natal. Fraturei a tíbia, e um cirurgião fixou uma placa de metal ao osso (gosto de dizer que foi a última vez que um homem me penetrou). Apesar de as minhas colegas de turma me terem levado às urgências, a minha mãe veio para o meu apartamento
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porque fiquei completamente incapacitada. Conseguia andar a custo de muletas mas não conseguia sentar-me e levantar-me da sanita. Não conseguia sair da banheira.
Não conseguia ir a lado nenhum, porque as muletas escorregavam e deslizavam no gelo lá fora.
Se não fosse a minha mãe, provavelmente teria definhado à base de bolachas de água e sal, água da torneira e telenovelas de terceira categoria.
Em vez disso, a minha mãe ajudou-me estoicamente a ir à casa de banho. Lavou-rne a cabeça na banheira para não perder o equilíbrio. Levou-me às consultas médicas, abasteceu-me o frigorífico e limpou-me a casa.
Em troca eu queixava-me e gemia porque estava mesmo furiosa comigo própria. Por fim, toquei num ponto fraco. Largou a travessa de comida que me preparou - uma tosta de queijo, lembro-me, porque me queixei por ser de queijo americano e não suíço - e saiu porta fora.
"Está bem", disse para comigo. "Também não preciso dela."
E não precisei. Pelo menos durante as primeiras três horas. E depois tive mesmo de ir fazer chichi.
Primeiro fui a cambalear de muletas até à casa de banho. Mas não
conseguia baixar-me para me sentar na sanita com medo de cair. Acabei por me equilibrar num pé e urinar para dentro de uma caneca de café vazia, e depois atirei-me para cima da cama e telefonei à minha mãe.
"Desculpa", solucei. "Não consigo fazer nada."
"Enganas-te", disse-me ela. "Precisas é de ajuda. É muito diferente."
Em cima da secretária da Angela Moretti está um boião de vidro selado, e a nadar lá dentro está o que parece uma ameixa seca.
- Oh - diz ela, quando me vê a olhar para ele. - Isso é do meu último caso.
A Zoe e eu não fomos trabalhar para nos encontrarmos com a Angela no escritório dela no centro de Boston. Faz-me lembrar a Fada Sininho
a alta velocidade - pequena, a falar a cem à hora. Os caracóis negros oscilam quando levanta o boião e o aproxima mais de mim.
- O que é?
- Um testículo - diz Angela.
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Não admira que não tivesse percebido. Ao meu lado, a Zoe engasga-se e começa a tossir.
- Foi arrancado à dentada numa briga de bar a um imbecil qualquer.
- E ele guardou-o? - digo.
- Em formaldeído - Angela encolhe os ombros. - É um homem responde, à laia de explicação. - Eu representei a ex-mulher dele. Agora casou-se com uma pessoa do mesmo sexo, e o idiota nem sequer a deixa ver os filhos. Ela trouxe-me isto para aqui para ficar guardado em segurança porque disse que para ele era a coisa mais importante do mundo e queria usá-lo como garantia. Fiquei com ele porque me agradava a ideia de ter o queixoso preso pelos tomates.
Gosto da Angela Moretti - e não apenas por ter um órgão reprodutivo em cima da secretária. Gosto dela porque a Zoe e eu entrámos no escritório sem que ninguém pestanejasse sequer ao ver-nos de mãos dadas
- por solidariedade e por causa dos nervos, acho eu. Gosto da Angela porque ela está do nosso lado, e eu nem sequer tive de convencê-la.
- Tenho muito medo - diz a Zoe. - Nem acredito que o Max esteja a fazer isto.
A Angela tira um bloco e uma caneta de tinta permanente com aspeto de ser cara.
- Sabem, a vida às vezes muda as pessoas. O meu primo Eddie era o maior sacana a norte de New Jersey, até ser enviado para a Guerra do Golfo. Não estou apenas a dizer que ele tinha mau feitio: era daqueles tipos que tentam atropelar o esquilo a atravessar a estrada. Não sei o que ele viu naquele deserto, mas quando o Eddie voltou para casa, tornou-se monge. É a pura verdade.
- Pode ajudar-nos? - pergunto. A Zoe morde o lábio.
- E pode dizer-nos quanto vai custar?
- Nem um tostão - diz a Angela. - E com isto quero mesmo dizer, nem um tostão. A GLAD é uma organização sem fins lucrativos. Atuamos na Nova Inglaterra há mais de trinta anos para proteger os direitos civis dos homossexuais, lésbicas, transexuais e outros. Levámos a tribunal o caso Goodrídge contra o Departamento de Saúde Pública, que estabeleceu um precedente ao afirmar que é inconstitucional não autorizar
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o casamento entre homossexuais: e em resultado o Massachusetts tornou-se no primeiro estado a permitir o casamento entre homossexuais, em 2004. Lutámos pelo direito dos homossexuais à adoção, para que o parceiro solteiro de um progenitor biológico de uma criança possa adotar essa criança e tornar-se o segundo progenitor legal, sem que o progenitor biológico tenha de prescindir dos seus direitos. Pusemos em causa a Lei Federal de Defesa do Casamento. O vosso caso encaixa-se perfeitamente nos nossos objetivos - diz a Angela -, tal como o caso do
seu ex-marido se encaixa nos objetivos do Wade Preston.
- Conhece este advogado? - pergunto.
Ela solta um grunhido de desdém.
- Sabe qual é a diferença entre o Wade Preston e um abutre? Milhas aéreas de passageiro frequente. Ele é um homofóbico desvairado que viaja pelo país a tentar convencer
os estados a rever as suas constituições para que os casais de homossexuais não possam casar-se. Ele é a Anita Bryant e o Jesse Helms deste milénio, juntos num e
enfiados num fato Armani. Mas também faz jogo duro, e isto vai complicar-se. Ele vai arrastar a comunicação social e pôr o tribunal em polvorosa porque vai querer
que o público fique do seu lado. Vai transformar-vos em ateias solteiras, incapazes de criar um bebé - a Angela olha para mim e depois para a Zoe. - Tenho de saber
que vocês estão preparadas para considerar isto a longo prazo.
Agarro na mão da Zoe.
- Sem dúvida.
- Mas nós somos casadas - faz notar a Zoe.
-Segundo a lei do grande estado de Rhode Island não são. Se o vosso caso fosse levado a um tribunal de Massachusetts, a vossa posição seria muito mais forte do que no vosso estado.
- E os milhões de casais heterossexuais que não são casados e têm filhos? Porque é que ninguém questiona a capacidade deles de educar uma criança?
- Porque o Wade Preston vai assegurar-se de que este caso seja encarado como uma questão de custódia apesar de não estarmos a falar de crianças, mas sim de bens. E sempre que há um caso de custódia, a moralidade da relação é posta em causa.
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A Zoe abana a cabeça.
- Biologicamente, o bebé é meu.
- com esse argumento, o bebé também é do Max. Ele tem os mesmos direitos legais relativamente aos embriões, e o Preston vai dizer que tem um plano moral melhor para essa criança por nascer.
- Bem, ele não é propriamente o papá cristão modelo - digo. - Não é casado. É um alcoólico em recuperação...
- Ótimo - diz a Angela entre dentes, escrevendo no bloco. - Isso pode ajudar. Mas ainda não sabemos o que o Max quer fazer aos embriões. A nossa posição vai ser retratar-vos como um casal afetuoso e empenhado, bem inserido na comunidade e respeitado a nível profissional.
- E isso basta? - pergunta a Zoe.
- Não sei. Não vamos conseguir controlar a diatribe que o Wade Preston está prestes a iniciar, mas temos um bom caso, e não vamos deixá-lo cilindrar-nos. Agora, deixem-me recolher algumas informações sobre vocês. Quando se casaram?
- Em abril, em Fali River - digo.
- E onde moram atualmente?
- Em Wilmington, Rhode Island. A Angela assenta isto.
- Vivem na mesma casa?
- Sim - digo. - A Zoe veio viver comigo.
- A casa é sua?
Aceno com a cabeça.
- É um T3. Temos bastante espaço para crianças.
- Zoe - diz a Angela -, sei que lutou contra a infertilidade e não tem filhos... mas Vanessa, e você? Já esteve grávida?
-Não...
- Mas ela não tem problemas de infertilidade - acrescenta a Zoe.
- Bem, presumo que não. As lésbicas nunca correm o risco de engravidar, por isso nunca chegamos a saber.
A Angela sorri.
- Vamos falar um pouco sobre o Max. Quando era casada com ele, ele bebia?
A Zoe olha para o colo.
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- Houve alturas em que encontrei bebidas alcoólicas escondidas, mas deitava-as fora. Ele sabia... afinal, levava as garrafas vazias para o vidrão. Mas nunca falámos
sobre isso. Quando encontrava um esconderijo e despejava a bebida no lava-louça, ele começava a ser o marido perfeito, a fazer-me massagens nas costas e a levar-me
a jantar fora. Isso durava até descobrir outra garrafa escondida debaixo dos sacos do aspirador ou atrás das lâmpadas no armário. Era quase como se tivéssemos uma conversa sobre ele ultrapassar os limites sem dizer uma única palavra.
- O Max alguma vez a maltratou?
- Não - diz a Zoe. - Sofreu muito para tentar ter um bebé, mas nunca duvidei que me amasse. As coisas que ele diz agora nem parecem sair da boca dele. Parecem coisas que o irmão dele diria.
- O irmão?
- O Reid cuidava do Max antes de o conhecer, e levou-o para os AÃ. Pertence à Igreja da Glória Eterna, que o Max agora frequenta; e o Max vive com ele.
- Sabe o que é uma freira que entrou para a ordem dos advogados?
- diz a Angela, examinando ociosamente a reclamação legal que enviei para o gabinete após o meu telefonema inicial. - Uma cunhada21.
Ao meu lado, a Zoe ri-se.
- Pronto - diz a Angela. - Desde que se consiga dizer uma boa piada de advogados, continua a haver esperança no mundo. E eu tenho um milhão delas - pousa o fax. - Há aqui muita linguagem religiosa. O Reid pode ter influenciado a decisão do Max de instaurar o processo legal?
- Ou o Clive Lincoln - diz a Zoe. - É o pastor que é o chefe da igreja.
- Um homem encantador- responde a Angela, revirando os olhos.
- Uma vez atirou-me com um balde de tinta nos degraus do Capitólio de Massachusetts. O Max sempre foi religioso?
- Não. Quando nos casámos, até deixámos de frequentar a casa do Reid e da Liddy porque tínhamos a sensação de que eles estavam
a dar-nos um sermão.
- Qual era a atitude do Max face à homossexualidade nessa altura?
- pergunta a Angela.
21 No original, "sister-in-law", literalmente "irmã em direito". (N. da R.)
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A Zoe pestaneja.
- Acho que nunca chegámos a falar sobre isso. Quero dizer, não era abertamente intolerante, mas também não era um defensor dos direitos dos homossexuais.
- O Max tem alguma namorada agora?
- Não sei.
- Quando lhe disse que queria utilizar os embriões, ele disse alguma coisa sobre ele próprio querer utilizá-los?
- Não. Disse que ia pensar no assunto - diz a Zoe. - Fui para casa e disse à Vanessa que achava que tínhamos boas hipóteses.
- Bem, nunca conhecemos as pessoas tão bem quanto julgamos
- a Angela pousa o bloco. - Vamos falar um pouco sobre como este caso irá progredir. Zoe, sabe que vai ter de testemunhar... e você também, Vanessa. Vão ter de falar muito aberta e honestamente sobre a vossa relação, apesar de poderem ser criticadas por isso, mesmo nos nossos dias. Hoje de manhã telefonei à secretária e soube que o caso foi atribuído ao Juiz O'Neill.
- Isso é bom? - pergunto.
- Não - responde a Angela sem rodeios. - Sabe o que se chama a um advogado com um QI de cinquenta, não sabe? Meritíssimo franze o sobrolho. - O Padraic O'Neill está
quase a reformar-se, algo por que tenho rezado ao longo da última década. Tem uma visão muito tradicional e conservadora.
- Podemos trocar? - diz a Zoe.
- Infelizmente, não. Se os tribunais nos deixassem trocar de juizes só porque não gostamos daquele que nos calhou, estaríamos sempre a trocar de juizes. Mas, por
muito conservador que o O'Neill seja, continua a ter de obedecer à lei. E, legalmente, vocês têm um bom caso.
- O que aconteceu anteriormente aos casos semelhantes a este em Rhode Island?
A Angela olha para mim.
- Não há nenhum. Nós vamos fazer a lei.
- Então - murmura a Zoe. - Pode correr bem, ou pode correr mal.
- Olhe - diz a Angela. - O Juiz O'Neill não é o juiz que eu teria escolhido, mas é o que temos, e vamos apresentar o nosso caso para que
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ele veja como vocês as duas são a melhor solução para os embriões. Todo o argumento do Wade Preston baseia-se no protocolo da melhor família tradicional, mas o Max
é solteiro. Nem sequer tem a sua própria casa para poder criar uma criança. Por outro lado, vocês as duas dão uma imagem de um casal empenhado, afetuoso e inteligente. Foram as primeiras a abordar o assunto de utilizar os embriões que estão na clínica. Em última análise, este caso vai resumir-se a vocês as duas contra o Max, e até mesmo um juiz como o Padraic O'Neill vai perceber o que é evidente.
Ouve-se alguém bater suavemente à porta atrás de nós, e uma secretária abre-a.
- Ange, o seu cliente das onze já chegou.
- É um excelente rapaz, deviam conhecê-lo. É transexual e quer inscrever-se na equipa itinerante de futebol da escola, mas ainda não se submeteu à cirurgia e o treinador diz que não pode pagar um quarto de hotel para ele. vou ganhar este caso de caras- levanta-se. - Depois mantenho-vos informadas - diz a Angela. - A não ser que queiram fazer alguma pergunta?
- Eu quero - diz a Zoe -, mas é pessoal.
- Quer saber se sou lésbica.
A Zoe cora.
- Bem. Sim. Mas não precisa de responder.
- Sou completamente heterossexual. O meu marido e eu temos três pestinhas e uma casa cheia de um caos constante.
- Mas a Angela... - a Zoe hesita. - Trabalha aqui?
- Adoro comer frango kung pão, mas tenho a certeza absoluta de que não tenho nem uma única célula asiática no corpo. Gosto muito dos romances da Toni Morrison e dos filmes do Tyler Perry apesar de não ser negra - a Angela sorri. - Sou heterossexual, Zoe, com um casamento feliz. Trabalho aqui porque acho que vocês também merecem isso.
Não tenho bem a certeza de quando comecei a dizer para comigo que nunca ia ter filhos. Ainda sou jovem, claro, mas as opções são diferentes para as lésbicas. Há menos pessoas com quem namorar; o mais
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provável é sairmos com alguém que já conhece a última pessoa que nos partiu o coração. Além do mais, ao contrário dos heterossexuais, que quase se espera que sigam um caminho que os leve ao casamento e a ter filhos, um casal homossexual tem de fazer um grande e sério esforço para ter um bebé. As lésbicas precisam de um dador de esperma, os homossexuais precisam de uma barriga de aluguer, senão temos de navegar nas águas turbulentas da adoção, onde os casais do mesmo sexo são muitas vezes recusados.
Nunca fui daquelas raparigas que sonham com bebés e que treinam embalando os ursinhos de peluche. Como filha única, não tive a oportunidade de ajudar a cuidar de um irmão mais novo. Não tive nenhuma relação séria antes da Zoe, durante vários anos. Contentar-me-ia de bom grado com o amor, sem descendência, se fosse preciso.
Além do mais, como dizia para comigo, já tinha filhos. Cerca de seiscentos, na Escola Secundária de Wilmington. Ouvia-os, chorava com eles e dizia-lhes que amanhã ia ser um pouco melhor do que hoje. Ainda penso até naqueles que já acabaram o liceu, mantendo-me em contacto através do Facebook. Gosto de saber que, tal como prometi, tudo acabou por correr bem.
Mas ultimamente, tenho pensado muito.
E se eu não fosse a mãe substituta de todos das oito da manhã às
três da tarde, mas uma mãe verdadeira? E se houvesse uma noite em que eu fosse à escola como parte da audiência e não como oradora? E se um dia me visse do outro lado da secretária de uma psicóloga escolar, a defender a minha filha, desesperada por ser colocada numa turma de Inglês que já estava lotada?
Nunca experimentei aquele bater de asas de borboleta de ter uma vida dentro de mim, ainda não. Mas aposto que é um pouco parecido com a esperança. Logo que a sentimos, também sentimos a sua falta.
A Zoe e eu não tivemos o nosso bebé, mas pudemos desejá-lo. E digo-vos... desde o primeiro instante, fiquei conquistada.
Tem sido uma manhã infernal. Uma aluna do décimo ano foi
suspensa por tomar xarope Robitussin para a tosse para ficar pedrada. Mas agora está tudo tranquilo. Até telefonava à Zoe, mas sei que está
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cheia de trabalho. Tirar um dia de folga para ir aos escritórios da GLAD implicou ter de faltar um dia ao hospital; por causa disso, adiou a sessão de terapia musical com a Lucy para poder passar algumas horas na unidade pediátrica de queimados. Estamos em maio, e trabalho não me falta, mas em vez de fazê-lo, ligo o computador e pesquiso "gravidez" no Google.
Clico no primeiro site. "3.a e 4a semanas", leio. "O seu bebé é do tamanho de uma semente de papoila."
"7a semana. O seu bebé é do tamanho de um mirtilo."
"9a semana. O seu bebé é do tamanho de uma azeitona."
"19a semana. O seu bebé é do tamanho de uma manga."
"26.a semana. O seu bebé é do tamanho de uma beringela." ?!
"Parto: O seu bebé é do tamanho de uma melancia."
Coloco a mão sobre a barriga. Parece inconcebível (o trocadilho é intencional) que possa ser lar de alguém, em breve. Apesar de esse alguém ser do tamanho de uma
azeitona. Por que razão descrevem tudo em termos de alimentos? Não admira que as grávidas estejam sempre a morrer de fome.
De repente, a Lucy entra intempestivamente no meu gabinete.
- Mas que merda é esta? - diz ela.
- Linguagem - respondo. Ela revira os olhos.
- Sabe, se vou tirar tempo do meu dia para me encontrar com ela, pelo menos podia ter a delicadeza de aparecer.
Posso explicar facilmente a raiva da Lucy - o que ela quer dizer é que está desiludida por a sessão ter sido adiada. Que - apesar de ela preferir morrer a admiti-lo - gosta de se encontrar com a Zoe.
- Deixei um bilhete no teu cacifo - digo. - Não o recebeste? - é desta forma que comunicamos na escola, colando nos cacifos bilhetes sobre idas ao gabinete da psicóloga escolar e sessões de aconselhamento académico e até avisos de campeonatos de hóquei em campo.
- Nem me aproximo do meu cacifo. No ano passado houve alguém que pôs um rato morto lá dentro só para ver o que eu fazia.
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Isso é bastante chocante, mas não é surpreendente, os adolescentes nunca cessam de me admirar com a criatividade da sua crueldade.
- O horário de trabalho da Zoe estava um pouco sobrecarregado esta semana, e ela teve de marcar para outro dia. Vai estar presente na próxima sessão.
A Lucy não me pergunta como sei isto. Não sabe que sou casada com a terapeuta musical dela. Mas saber que a Zoe não se foi embora de vez parece tê-la acalmado.
- Então vai voltar - repete a Lucy. Inclino a cabeça.
- É isso que queres?
- Bem, se ela se vir livre de mim, isso encaixava-se mesmo bem no padrão da minha vida. Confiamos em alguém, e depois lixamo-nos - a Lucy olha para mim. - Linguagem - diz ela, precisamente quando digo
o mesmo.
- A tua sessão de percussão foi muito interessante - digo, lembrando-me do concerto de rock improvisado na cantina. Estive uma hora com o diretor depois desse fiasco, a tentar explicar os méritos da terapia musical em adolescentes suicidas, e por que razão ter de voltar a esterilizar as panelas, os tachos e as conchas de sopa era um pequeno preço a pagar pela saúde mental.
- Nunca ninguém fez isso por mim antes - admite a Lucy.
- O que queres dizer com isso?
- Ela ia arranjar problemas. Mas não se importou. Em vez de me obrigar a fazer o que devia fazer, ou ser quem toda a gente quer que eu seja, fez uma coisa completamente louca. Foi... - a Lucy hesita, tentando encontrar as palavras certas. - Foi de uma coragem do caraças, foi o que foi.
- Talvez a Zoe esteja a fazer-te sentir mais à vontade contigo própria.
- Talvez esteja a usar a hora em que eu devia estar na terapia musical para fazer de Freud.
Sorrio.
- Conheces os meus truques todos.
- É tão difícil de interpretar como o Gualter.
- Sabes, Lucy - digo. - As aulas acabam daqui a menos de dois meses.
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- A quem o diz... estou a contar os dias.
- Bem... se estiveres a pensar continuar a terapia musical no verão, temos de combinar isso com antecedência.
A Lucy ergue imediatamente os olhos para os meus. Percebo que não pensou nisso - quando a escola fecha em junho, todas as atividades escolares também são suspensas, incluindo as sessões de aconselhamento realizadas na escola.
Levanta o queixo.
- Vamos ver. Para mim é-me indiferente.
Mas não é, desesperadamente. Só não o diz em voz alta.
-Tens de admitir, Lucy - digo-lhe -, já percorreste um longo caminho. Mal podias esperar para sair da sala naquela primeira sessão com a Zoe, e, bem, olha para ti agora. Estás zangada porque tivemos de marcar a sessão para outro dia.
Os olhos da Lucy lançam faíscas, e acho que ela vai dizer-me para ir fazer qualquer coisa anatomicamente impossível, mas então encolhe os ombros.
- Ela foi-se aproximando sem eu me aperceber. Mas... não de forma negativa. Como quando estamos de pé na praia mesmo ao pé do mar, e pensamos que está tudo sob controlo, mas depois quando olhamos novamente para baixo vemos que nos afastámos tanto que a água nos dá pelas ancas. E antes de ficarmos assustadas, percebemos que de facto não nos importamos de ir nadar.
Debaixo da barreira da secretária, a minha mão volta a pousar na barriga. O nosso bebé vai ser do tamanho de uma ameixa, de uma nectarina, de uma tangera. Uma colheita das coisas mais doces. De repente quero ouvir a voz da Zoe a perguntar-me pela milionésima vez se as embalagens de iogurte são ou não recicláveis, ou se usei a blusa de seda azul dela na semana passada e a levei para a lavandaria. Quero passar dez mil dias vulgares com ela; e quero ter este bebé como prova de que nos amamos tanto uma à outra que aconteceu algo de mágico.
- Sim - concordo. - Ela é exatamente assim.
A Angela Moretti disse que nos telefonava quando tivesse mais notícias, mas não esperávamos que isso acontecesse apenas
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alguns dias depois da nossa primeira reunião. Desta vez, disse que não se importava de vir ter connosco, por isso a Zoe e eu fizemos uma lasanha de legumes e começámos a beber o vinho ainda antes de a Angela ter chegado, por puro nervosismo.
- E se ela não gostar de lasanha? - pergunta a Zoe, enquanto mexe a salada.
- com um apelido como Moretti?
- Isso não quer dizer nada...
- Bem, e quem não gosta de lasanha? - pergunto.
- Não sei. Muita gente.
- Zo. O facto de ela gostar ou não de massa não vai fazer-nos perder ou ganhar este caso.
Vira-se para mim, de braços cruzados.
- Isto não me agrada. Se fosse alguma coisa simples, ela ter-nos-ia dito ao telefone.
- Ou talvez tenha ouvido dizer que fazes uma lasanha fantástica. A Zoe deixa cair as pinças da salada.
- Estou um caco - diz ela. - Não consigo lidar com isto.
- Vai piorar muito mais até começar a melhorar.
Ela abraça-me e, por um instante, ficamos agarradas uma à outra
na cozinha.
- Hoje no lar durante a sessão de grupo estávamos a tocar guizos e a Sr.a Greaves levantou-se, foi à casa de banho e esqueceu-se de voltar - diz a Zoe. - Ela era o meu lá. Fazes ideia de como é difícil tocar
"Amazing Grace" sem o lá?
- Para onde é que ela foi?
- As funcionárias encontraram-na na garagem, sentada na carrinha que costuma levar os residentes à mercearia às quintas-feiras. Encontraram o guizo no forno cerca de uma hora depois.
- Estava ligado?
- A carrinha? - pergunta a Zoe.
- O forno.
- Não. Felizmente.
- E a moral desta história é que tu e eu podemos ter de enfrentar um grande processo legal, mas não perdemos os nossos guizos.
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Sinto o sorriso dela junto à clavícula.
- Sabia que ias ajudar-me a encontrar um aspeto positivo - diz a
Zoe.
Ouve-se alguém bater à porta. A Angela já está a falar quando a abro.
- Sabe o que o Wade Preston e um espermatozoide têm em comum? Uma hipótese em trezentos milhões de tornar-se humano - entrega-me uma espessa pilha de papéis. - Mistério resolvido. Agora já sabemos o que o Max quer fazer aos embriões... dá-los ao irmão.
- O quê? - é a voz da Zoe, mas parece um soco.
- Não percebo - folheio os papéis, mas estão escritos em linguagem jurídica. - Não pode dá-los como se se tratasse de uma troca de presentes.
- Bem, não há dúvidas de que pelo menos vai tentar - diz a Angela.
- Hoje recebi uma moção do Ben Benjamin, o advogado local que está a trabalhar com o Wade Preston. Quer implicar o Reid e a Liddy como queixosos. O Max junta o nome deles na petição e diz que o irmão e a cunhada são os recetores dos embriões - solta um grunhido de desdém. - Têm dez tentativas para adivinhar quem está a pagar os honorários chorudos do Wade.
- Então eles vão comprar os embriões?
- Nunca vão dizer isso, mas, na realidade, é exatamente o que está a acontecer. O Reid e a Liddy estão a financiar o processo legal; colocam-se como potenciais pais recetores e, de repente, o Wade tem a sua garantia de pagamento e um casal cristão tradicional para exibir como um estandarte em frente ao Juiz
O'Neill.
Estou a encaixar as peças, muito devagar.
- Quer dizer que a Liddy vai ter o bebé da Zoe?
- É esse o plano deles - diz a Angela.
Estou tão zangada que estou literalmente a tremer. -Eu é que vou ter o bebé da Zoe.
Mas a Angela não está a ouvir. Está a olhar para a Zoe, que parece paralisada.
- Zoe? Sente-se bem?
Uma coisa sei acerca da minha mulher: quando grita, isso passa-Ihe rápido. É quando a voz dela é pouco mais do que um sussurro
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que está furiosa; e neste preciso momento, as palavras da Zoe são virtualmente inaudíveis.
- Está a dizer-me que o meu filho, o filho que quero que a minha mulher carregue no ventre e que eu própria desejo educar... vai ser carregado no ventre e educado por alguém que não suporto? Que não tenho uma palavra a dizer em relação a isso?
A Angela tira-me o copo de vinho da mão e esvazia-o de um só trago.
- Vão pedir ao juiz que dê os embriões ao Max. Depois ele poderá fazer-lhes o que quiser... mas vão dizer ao juiz que tenciona dá-los ao Reid e à Liddy, porque sabem muito bem que isso vai influenciar a decisão do tribunal.
- Porque é que o Reid e a Liddy não podem ter os seus próprios filhos? - pergunto.
A Zoe volta-se para mim.
- Porque o Reid tem os mesmos problemas de infertilidade do que o Max. É genético. Fomos a uma clínica à procura de respostas, e eles foram ter com o Clive Lincoln.
- Os embriões foram gerados durante o casamento do Max e da Zoe. Se ela ainda os quer, como é que um juiz pode dá-los a um estranho?
- Do ponto de vista deles, o Max acredita que o melhor futuro para estas crianças em potencial é uma família biparental, heterossexual, rica e cristã. E o Reid e
a Liddy não são estranhos. Têm ligações genéticas com os embriões. Demasiadas, em minha opinião. O Reid é tio dos embriões, e a mulher dele vai dar à luz a sobrinha ou sobrinho. Parece a reunião familiar de Fim de Semana Alucinante.
- Mas o Reid e a Liddy podiam usar um dador de esperma. Ou submeterem-se à fertilização in vitro, como o Max e a Zoe fizeram. Este é o último conjunto de óvulos viáveis da Zoe. É a última oportunidade que temos de ambas termos uma ligação biológica com uma criança
- digo.
- E é isso que vou dizer ao juiz - diz a Angela. - A Zoe, como mãe biológica, tem os direitos mais evidentes e mais fortes em relação aos embriões, e tenciona educar a criança ou crianças daí resultantes no
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seio de uma família estável e unida. Longe do futuro cheio de Inferno e enxofre que o Wade Preston vaticina.
- Então o que fazemos? - pergunta a Zoe.
- Hoje à noite vamos sentar-nos e vai contar-me tudo sobre o Reid e a Liddy Baxter. vou apresentar um requerimento para tentar mantê-los fora deste caso, mas tenho um mau pressentimento de que eles vão conseguir infiltrar-se - diz a Angela. - Mas vamos lutar na mesma. A luta só se tornou um pouco mais difícil.
Nesse instante, o temporizador do forno começa a tocar. Temos lasanha com molho caseiro; pão de alho fresco e uma salada com pêra, Brie e nozes caramelizadas. Há cinco minutos, a Zoe e eu estávamos a tentar criar uma refeição memorável, para que, no caso de haver um adiamento cármico no mundo jurídico, a Angela Moretti ficasse a saber em primeira mão como esta casa era acolhedora, e de repente se esforçasse ao máximo de corpo e alma para vencer esta batalha. Há cinco minutos, o jantar cheirava divinalmente.
Agora, já todas perdemos o apetite.
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MAX
Imaginem que são o pólo positivo de um imane, e lhes dizem que não podem em nenhuma circunstância tocar naquele pólo negativo que vos puxa como um buraco negro. Ou que saem do deserto e vêem uma mulher ali de pé com um jarro de água gelada, mas ela o tira do vosso alcance. Imaginem que saltam de um edifício, e que depois vos dizem para não caírem.
É assim que nos sentimos quando queremos uma bebida.
E é assim que me sinto quando a Zoe me telefona, depois de ter recebido a notificação legal.
O Pastor Clive sabia que ela ia telefonar - e foi por isso que disse ao Reid que ficasse colado a mim no dia em que o funcionário ia entregá-la a casa dela. O Reid tirou o dia de folga, e fomos pescar bodiões de ostra no barco dele. Ele tem um Boston Whaler fantástico e leva os clientes a
pescar anchovas e sardas. Mas os bodiões de ostra são diferentes. Vivem em sítios onde a linha fica presa. E também não podemos puxar logo o anzol assim que sentimos picar. Temos de esperar que o bodião engula o caranguejo verde que estamos a usar como isco, senão vamos de certeza puxar o anzol vazio.
Já estamos aqui há horas e até agora ainda não apanhámos nada.
Está calor suficiente, em princípios de maio, para despirmos as camisas e apanharmos um escaldão - sinto o rosto repuxado e desconfortável,
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apesar de isso poder dever-se mais a imaginar como será quando a Zoe abrir a porta do que ao sol.
O Reid tira dois ginger ale Canada Dry frescos da geleira.
- Estes peixes não querem mesmo ser apanhados.
- Parece que não.
- Talvez tenhamos de inventar uma história para contar à Liddy - diz o Reid. - Para evitarmos uma humilhação masculina excessiva.
Olho para ele de olhos semicerrados.
- Acho que ela não se importa se levamos um bodião para casa ou não.
- Mesmo assim, quem gosta de admitir que foi enganado por um peixe que vive nas rochas?
O Reid puxa o anzol e coloca outro caranguejo verde a servir de isco. Foi ele que me ensinou a prender uma minhoca num anzol pela primeira vez, apesar de eu ter vomitado ao tentar. Estava comigo quando apanhei a minha primeira truta no lago, e, da forma como ficou entusiasmado, parecia que tinha ganho a lotaria.
Ele vai ser um excelente pai.
Como se me lesse os pensamentos, olha para mim com um grande sorriso no rosto.
- Lembras-te de quando te ensinei a lançar o anzol? Como ficou preso no chapéu de palha da Mãe e o lançou para o meio do lago?
Não pensava nisso há anos. Abano a cabeça.
- Talvez te saias melhor a ensinares o teu filho.
- Ou filha - diz o Reid. - Não há razão nenhuma para não poder ser uma exímia pescadora.
Está muito entusiasmado com essa possibilidade. Só preciso de olhar para a cara dele para quase ver o seu futuro: o primeiro recital de bailei, uma fotografia do baile de finalistas, um pai a dançar com a filha num casamento. Tenho-o subestimado. Achei que só ficava entusiasmado com os seus negócios, mas agora acho que talvez se tenha dedicado ao trabalho por desejar uma família que não podia ter, e isso magoá-lo de mais para se lembrar disso constantemente.
- Olha, Max? - pergunta o Reid, quando olho para cima. - Achas que o meu filho... achas que ele ou ela vai gostar de mim?
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Raramente vi o Reld sem ter confiança absoluta em si próprio.
- O que queres dizer com isso? - pergunto. - Claro que vai.
O Reid esfrega a nuca. A sua vulnerabilidade torna-o, bem, mais humano.
- Dizes isso - faz notar -, mas não pensávamos o mesmo do nosso pai.
- Isso era diferente - digo-lhe. - Tu não és o Pai.
- Como assim?
Tenho de ficar a pensar nisso por um segundo.
- Nunca deixaste de te preocupar - digo. - Ele nunca se preocupou. O Reid deixa que a palavras assentem, e exibe um sorriso radioso.
- Obrigado - diz ele- - É muito importante saber que confias em mim. Bem, claro que confio. No papel, não há pais melhores do que o
Reid e a Liddy. Tenho uma subita recordação de estar sentado na cama com uma calculadora, a tentar calcular como a Zoe e eu ficaríamos endividados se além de recorrermos à fertilização in vitro para conceber também tivéssemos realmente de pagar as consultas médicas do bebé, as fraldas, a comida e roupa. A Zoe amachucou os meus
cálculos. "O facto de não resultar no papel", disse ela, "não quer dizer que não arranjemos maneira de
se resulte na vida real."
- É normal, não é? Estar um pouco assustado por ser pai?
- Não somos um modelo para ninguém por sermos suficientemente inteligentes para darmos as respostas certas - digo devagar. Estou a pensar no Reid, e na razão por
que sempre o admirei. - Tornamo-nos o modelo de alguém por sermos suficientemente inteligentes para continuarmos a fazer as perguntas certas.
O Reid fica a olhar para mim.
- Estás diferente, sabes? A maneira como falas, as decisões que tomas. Estou a falar a sério, Max. Não és o mesmo.
Sempre quis ter a aprovação do Reid, ao longo de toda a iminha vida. Então porque me sinto agoniado?
Quando o telemóvel toca, é estranho. Não só por estarmos a flutuar ao largo da costa de Rhode Island, mas porque já ambos sabemos quem está a telefonar.
- Lembra-te do que o Wade disse - diz-me o Reid, quando seguro no telemóvel a tocar.
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A Zoe começa a gritar antes mesmo de eu encostar o telemóvel ao ouvido.
- Não posso falar contigo - interrompo. - O meu advogado disse-me que não podia...
- Porque me fizeste isto? - a Zoe está a chorar.
Sei isso porque quando chora a voz dela parece embrulhada em flanela. Só Deus sabe que já a ouvi bastantes vezes do outro lado da linha, quando me telefonava a dizer que tinha voltado a abortar, e eu tentava convencer-me de que ela estava bem, quando era óbvio que não estava.
O Reid pousa-me a mão no ombro. Por solidariedade, para me dar apoio. Fecho os olhos.
- Não estou a fazer-te isto a ti, Zoe. Estou a fazê-lo pelos nossos filhos. Sinto o Reid agarrar no telemóvel, carregar no botão para terminar
a chamada.
- Estás a agir bem - diz ele.
Se agora estou assim tão diferente, porque precisarei que o Reid me diga isso?
Ao lado do meu pé está o balde cheio de caranguejos verdes que usamos como isco. Ninguém gosta de caranguejos verdes; estão na base da cadeia alimentar. Andam às voltas, a meterem-se no caminho uns dos outros. Tenho um desejo incontrolável de os lançar borda fora para poderem ter uma segunda oportunidade.
- Estás bem? - pergunta o Reid, a olhar para mim. - Como te sentes? "com sede."
- Estou um bocado enjoado, acredita. Acho que devíamos desistir - e, quando chegamos à doca, passados quinze minutos, digo-lhe que prometi ao Pastor Clive que o ajudava a tirar algumas ervas na sua casa.
- Desculpa a pescaria - diz o Reid. - Da próxima pode ser que tenhamos mais sorte...
- Não pode ser muito pior.
Ajudo-o a colocar o barco no atrelado e a passá-lo por água, e depois digo-lhe adeus enquanto ele vai para casa ter com a Liddy.
A questão é que não prometi ao Pastor Clive que ia tirar ervas. Entro na carrinha e começo a guiar. Ia pôr-me em cima de uma prancha e surfar para arrancar todos os pensamentos da minha cabeça, mas o
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mar hoje está completamente flat - a minha perdição. Entretanto, a minha língua parece estar inchada, do dobro do tamanho, e tenho a garganta tão apertada que mal consigo respirar.
"Sede."
Uma bebida não vai fazer-me mal. Afinal, como disse o Reid, agora estou diferente. Encontrei Jesus; juntos sei que conseguimos afastar-nos da segunda. E, para ser sincero, acho que se Jesus estivesse agora no meu lugar, também lhe apeteceria uma bem fresquinha.
Não quero ir a um bar, porque as paredes têm olhos e nunca se sabe o que pode ir parar aos ouvidos de quem. Agora que o Reid está a pagar a maior parte dos honorários do Wade Preston ("Tudo para o meu maninho", disse ele), e que a igreja está a cobrir o resto das despesas... bem, a última coisa de que preciso é que algum membro da congregação ande a espalhar que eu me desviei do bom caminho. Por isso dirijo-me a uma loja de bebidas em Woonsocket, onde não conheço ninguém e ninguém me conhece.
Falando em provas legais - que parece que é o que eu vou fazer frequentemente no futuro -, eis algumas:
1. Só compro uma garrafa de J.D.
2. Penso beber um pouco e deitar fora o resto.
3. Como prova adicional de que estou a pensar com lucidez e não a descarrilar (ou, já agora, ser atropelado pelo comboio), só abro o selo quando volto a Newport. Assim, quando for para casa, terei apenas de percorrer alguns quilómetros.
Tudo o que foi acima referido, Meritíssimo, prova que Max Baxter tem a bebida e a sua vida sob controlo.
Mas quando estaciono num parque de estacionamento e abro a garrafa, tenho as mãos a tremer. E quando aquele primeiro trago dourado me chega à garganta, juro que vejo o rosto de Deus.
Quando fui apresentado à Liddy, não gostei dela. O Reid conhecera-a quando estava a fazer negócios no Mississippi; ela era filha de um dos seus investidores. Estendeu uma mão flácida, fez covinhas nas faces e disse:
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- Fico muito contente por conhecer o irmão mais novo do Reid parecia uma boneca, com os seus caracóis dourados, a cintura, mãos e pés delicados. Usava uma aliança de castidade.
O Reid e eu chegámos a falar sobre esse pormenor. Sabia que o Reid não era nenhum santo e que já tinha tido a sua dose de relacionamentos no passado - e eu próprio não conseguia imaginar-me a comprar um suprimento vitalício de gelado sem primeiro provar o sabor - mas a vida era do meu irmão, e eu não era de maneira nenhuma a pessoa certa para lhe dizer como devia vivê-la. Se queria segurar as mãos (flácidas) da noiva até à noite de núpcias, o problema era dele, e não meu.
O único emprego da Liddy, apesar de já ter acabado a faculdade de Estudos Bíblicos há três anos, era dar catequese na igreja do pai. Não tinha carta de condução. Às vezes, começava a discutir com ela só por ser tão fácil.
- O que fazias quando precisavas de comprar alguma coisa? - perguntava. - E se quisesses ir a um bar uma noite?
- O Papá paga - disse-me ela. - E não frequento bares.
Não era apenas encantadora, era doce, e juro que não percebia por que razão o Reid ignorava o facto de a Liddy ser demasiado perfeita para ser real. Ninguém era assim tão pura e encantadora; ninguém lia realmente a Bíblia de ponta a ponta ou começava a chorar ao ver o Peter Jennings apresentar uma notícia sobre crianças
a morrer de fome na Etiópia. Calculei que ela andava a esconder qualquer coisa, como que tinha sido namorada de um motoqueiro ou que tinha dez filhos escondidos
no Arkansas, mas o Reid limitava-se a rir de mim.
- Às vezes, Max - disse ele -, as coisas são realmente o que parecem. A Liddy crescera como filha única e mimada de um pastor evangélico,
e, como ela ia dar um grande passo mudando a sua vida ao ir viver para norte da Linha Mason-Dixie, o pai insistiu que primeiro fosse à experiência. Então ela e a
prima Martine foram viver para Providence, para um pequeno apartamento em College Hill que o Reid lhe arranjou. A Martine tinha dezoito anos e estava exultante por
estar longe de casa. Começou a usar saias curtas e saltos altos e a passar imenso tempo a namorar com os estudantes da Brown em Thayer Street. Por outro lado, a
Liddy começou a trabalhar como voluntária a servir sopa dos pobres em Amos House.
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- Digo-te, ela é um anjo - dizia o Reid.
Mas eu não respondia. E como eu não gostava da noiva dele - e não queria essas tensões no seio da família - resolveu que a melhor maneira de eu começar a gostar
mais dela era passando mais tempo com ela. Começou a inventar desculpas, a trabalhar até tarde, e a pedir-me que levasse a Liddy todos os dias do centro de Providence
a Newport, onde ele a levava a jantar fora ou ao cinema.
Enfiava-me na minha carrinha, e ela começava logo a mudar a estação de rádio para uma de música clássica. A Liddy é que me disse que os compositores acabavam sempre
as suas obras num acorde maior - mesmo quando a maior parte da peça era escrita num acorde menor - porque terminar com um acorde menor tinha uma conotação qualquer
com o Diabo. Afinal ela era flautista e tinha tocado em orquestras sinfónicas e sido solista na faculdade de Estudos Bíblicos.
Praguejava com o condutor que se atravessara na minha faixa e ela retraía-se como se lhe tivesse batido.
Quando me faria perguntas, tentava chocá-la. Dizia-lhe que às vezes ia surfar na escuridão só para ver se conseguia ir na crista da onda sem abrir a cabeça contra
as rochas. Disse-lhe que a minha última namorada era strípper (o que era verdade, só que o trabalho dela não envolvia o varão, apenas papel de parede. Mas não disse
isto à Liddy).
Num dia gélido, quando estávamos presos no trânsito, ela pediu-me que ligasse o aquecimento da carrinha. Eu liguei, e passados três segundos ela queixou-se que estava
demasiado calor.
- Por amor de Deus - disse eu -, decide-te.
Calculei que fosse dar-me um sermão por ter invocado o nome do Senhor em vão, mas em vez disso a Liddy virou-se para mim.
- Porque não gostas de mim?
- Vais casar-te com o meu irmão - respondi. - Acho que é mais importante que ele goste de ti.
- Não respondeste à minha pergunta. Revirei os olhos.
- Somos diferentes, é só isso. Ela franziu os lábios.
- Bem, eu não acho.
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- Oh, a sério - disse eu. - Alguma vez te embebedaste? A Liddy abanou a cabeça.
- Alguma vez deste uma passa num cigarro? Não tinha dado.
- Alguma vez roubaste um pacote de pastilhas? Nem uma única vez.
- Alguma vez traíste um rapaz? Não.
- Aposto que nem sequer chegaste a vias de facto - disse entre dentes, e ela corou tanto que também senti o rosto arder.
- Esperar pelo casamento não é nenhum crime - disse a Liddy. - É o melhor presente que podemos dar a alguém que amamos. Além do mais, não sou a primeira rapariga
a fazer isso.
"Mas talvez sejas a primeira a concretizá-lo", pensei.
- Alguma vez mentiste?
- Bem. Sim. Mas só para manter a festa de aniversário surpresa do meu pai em segredo.
- Alguma vez fizeste alguma coisa de que mais tarde te arrependesses?
- Não - disse ela, tal como eu esperava.
Apoiei o pulso no volante e olhei para o perfil dela.
- Alguma vez quiseste fazer?
Parámos num semáforo. A Liddy olhou para mim e eu olhei mesmo para ela, talvez pela primeira vez. Aqueles olhos azuis, que achei tão vazios e vidrados, como os de
uma boneca, estavam cheios de raiva.
- Claro - sussurrou.
Atrás de nós, um condutor buzinou; o semáforo estava verde. Olhei pelo espelho retrovisor e percebi que começara a nevar; isso significava que os meus serviços de
motorista demorariam ainda mais tempo.
- Calminha aí - disse ao condutor em voz baixa, ao mesmo tempo que a Liddy se apercebeu que o tempo mudara.
- Oh, céus - gritou ela (quem é que diz "Oh, céus" neste milénio?) e, antes que pudesse impedi-la, saltou para fora da carrinha. Correu para o meio do cruzamento,
de braços esticados e olhos fechados, enquanto os flocos de neve lhe caíam nos cabelos e no rosto.
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Buzinei, mas ela não reagiu. Ia provocar um engarrafamento enorme. Praguejando em voz baixa, saí da carrinha. ;
- Liddy - gritei. - Entra na merda do carro! Ela ainda andava às voltas.
- Nunca vi neve antes! - disse ela. - Isto nunca acontece no Mississippi! É tão bonito!
Não era bonito. Pelo menos numa rua suja de Providence onde um tipo estava a vender droga numa esquina. Mas os cínicos pensam sempre no pior, e calculo que eu fosse o maior de todos eles. Porque, naquele momento, apercebi-me que desconfiava da Liddy por princípio. Receava que talvez tivesse de existir uma pessoa como a Liddy no universo para contrabalançar uma pessoa como eu. Uma mulher que não era capaz de fazer nada de errado certamente anularia um homem que nunca fez nada certo.
Juntos, éramos duas metades de um todo.
Percebi então porque é que o Reid se tinha apaixonado por ela. Não apesar de ela ser tão protegida, mas precisamente por causa disso. Ele ia estar presente em todas
aquelas primeiras vezes - a primeira conta bancária, o primeiro encontro sexual, o primeiro emprego. Nunca fui o primeiro em nada para ninguém, a menos que conte com erro.
Naquela altura, os outros carros começaram a buzinar. A Liddy, agarrou-me na mão e fez-me rodopiar, a rir.
Consegui voltar a enfiá-la dentro do carro, mas desejei não o ter feito. Desejei que tivéssemos ficado no meio daquela rua.
Quando começámos novamente a andar, as faces dela estavam rosadas e ela estava sem fôlego.
O Reid podia ter tudo o resto, lembro-me de pensar, mas aquela primeira neve? Isso era meu.
Um gole, quando o medimos, não é praticamente nada. Uma colher de chá. Só para sentir o sabor. Mas isso não basta para acalmar a sede, e é por isso que aquele primeiro gole leva a um segundo, mais pequeno, e depois só o suficiente para molhar os lábios. E então começo a pensar na voz da Zoe e na da Liddy, e elas misturam-se e bebo outro gole porque acho que isso pode voltar a separá-las.
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Nem bebi realmente muito. Só que já se passou tanto tempo que o torpor surge rápido e espalha-se por mim. Sinto uma vaga, como uma maré, na cabeça cada vez que o pé carrega no travão, que leva consigo o que estava a pensar naquele momento.
E isso é mesmo bom.
Volto a agarrar na garrafa e, para minha surpresa, está vazia.
Devo ter entornado, porque é impossível ter bebido uma garrafa de whisky.
Quero dizer, não podia ter bebido, não é?
Pelo espelho retrovisor vejo uma árvore de Natal iluminada. Fico surpreendido quando por acaso olho para ela, e depois não consigo deixar de olhar, apesar de saber que devia ter os olhos fixos na estrada. Então a árvore solta uma sirene.
Estamos em maio; não há luzes de árvores de Natal. O polícia bate-me na janela.
Tenho de abri-la, porque senão ele prende-me. Digo a mim próprio para me controlar, para ser educado e encantador. Consigo convencê-lo de que não estive a beber. Fiz isso durante anos, com o resto das pessoas.
Acho que o conheço. Acho que até é capaz de frequentar a minha igreja.
- Não me diga - digo, mostrando-lhe um sorriso rasgado, comprometido. - Ia a sessenta quando o limite de velocidade é cinquenta quilómetros por hora?
- Desculpe, Max, mas vai ter de sair do...
- Max! - ambos nos viramos ao ouvir o som de uma outra voz, seguida por uma porta de um carro a bater.
O polícia recua quando a Liddy se debruça sobre a janela do meu carro.
- Onde estás com a cabeça, a conduzir para as urgências? - volta-se para o polícia. - Oh, Grant, ainda bem que o encontrou...
- Mas eu não...
- Ele caiu de uma escada quando estava a limpar os algerozes e bateu com a cabeça, e eu fui buscar um saco de gelo e quando voltei vi-o afastar-se na carrinha -
franze-me o sobrolho. - Podias ter morrido! Ou pior... podias ter matado alguém! Não me disseste que estavas com visão dupla?
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Sinceramente, não sei o que dizer. Estou a pensar se ela não terá batido com a cabeça.
A Liddy abre a porta do condutor.
- Chega-te para lá, Max - diz ela, e eu desaperto o cinto de segurança e deslizo para o lugar do passageiro. - Grant, não tenho palavras para lhe agradecer. É uma
bênção tê-lo como agente de segurança pública, já para não falar como membro da nossa congregação - olha para ele e sorri. - Pode fazer-me o favor de verificar se
o meu carro chega a casa em segurança?
Acena enquanto se afasta.
- Não bati com a cabeça...
- E achas que eu não sei? - diz a Liddy bruscamente. - Andava à tua procura. O Reid disse-me que te deixou na doca para ires ajudar o Pastor Clive.
- E fui.
Ela olha para mim.
- É curioso. Porque eu estive toda a tarde com o Pastor Clive, e não te vi.
- Disseste ao Reid? A Liddy suspira. -Não.
- Posso explicar...
Ela levanta uma mão pequena.
- Não digas nada, Max. Não... digas nada - ela franze o nariz e diz: - Whisky.
Fecho os olhos. Que estúpido idiota sou, a pensar que era capaz de enganá-la. Cheiro a álcool.
- Como sabes, se nunca experimentaste?
- Porque o meu pai bebia, todos os dias da minha infância - diz a Liddy.
Há qualquer coisa na maneira como o diz que me faz pensar se o pai, o pregador, também estava a tentar afugentar os seus próprios demónios.
Ela passa por uma saída que ia dar a nossa casa.
- Deus sabe que não posso levar-te para casa nesse estado.
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- Podias dar-me uma pancada na cabeça e levar-me para o hospital
- digo entre dentes.
A Liddy franze os lábios.
- Não penses que não considerei essa hipótese - diz ela.
A maior discussão que tive com a Zoe foi depois da Consoada em casa do Reid e da Liddy. Já estávamos casados há cinco anos e já tínhamos tido a nossa dose de pesadelos de fertilidade. Em todo o caso, não é segredo nenhum que a Zoe não gostava muito do meu irmão e da mulher dele. Tinha estado a ver o canal da meteorologia todo o dia, na esperança de convencer-me que a neve que ia cair naquela noite poderia impedir-nos de ir a casa deles.
A Liddy adorava o Natal. Decorava - não daquela maneira pirosa com Pais Natais insufláveis, mas com grinaldas verdadeiras enroladas no corrimão e visco pendurado
nos candeeiros. Tinha uma coleção de representações de São Nicolau de madeira, que colocava nos parapeitos e em cima das mesas. Trocava a loiça do dia a dia por
um serviço debruado a azevinho. O Reid disse-me que ela demorava um dia inteiro a preparar a casa para as festas e, olhando em volta, acreditava perfeitamente.
- Uau - murmurou a Zoe, enquanto esperávamos à entrada que a Liddy levasse os nossos casacos e os pendurasse no roupeiro. - É como se tivéssemos entrado num quadro de Thomas Kinkade.
Foi nessa altura que o Reid apareceu, com duas canecas de sidra aquecida na mão. Nunca bebia quando estava comigo.
- Feliz Natal - disse ele, dando-me uma palmada nas costas e um beijo na face da Zoe. - Como estão a estradas?
- Más - disse-lhe. - A ficarem piores.
- Provavelmente não poderemos ficar muito tempo - acrescentou a Zoe.
- Vimos um carro derrapar e sair da estrada quando vínhamos da igreja - disse o Reid. - Felizmente ninguém se magoou.
Na Véspera de Natal, a Liddy organizava sempre a Natividade interpretada pelas crianças.
- Então, como correu? - perguntei-lhe. - Vão levá-la para a Broadway?
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- Foi bastante inesquecível - disse o Reid, e a Liddy deu-lhe um safanão.
- Tivemos um problema de controlo de animais - disse ela. - Uma das meninas da catequese tem um tio que dirige uma quinta pedagógica, e emprestou-nos um burro.
- Um burro - repeti. - Um burro a sério?
- Era muito dócil. Nem sequer se mexeu quando a menina que fazia de Maria lhe subiu para o dorso. Mas depois... - ela estremeceu - parou a meio da nave da igreja e... fez o que tinha a fazer.
Desatei a rir.
- Largou uma bosta?
- Em frente à mulher do Pastor Clive - disse a Liddy.
- O que fizeste?
- Mandei um pastor limpar, e a mãe de um dos anjos foi a correr buscar produto para limpar carpetes. Quero dizer, o que havia eu de fazer? Não cheguei a obter uma autorização oficial da escola para levar animais vivos para lá.
- Não seria a primeira vez que um asno vai à igreja - diz a Zoe, com um ar sério.
Agarrei-a pelo cotovelo.
- Zoe, vem ajudar-me na cozinha - arrastei-a pela porta basculante. Cheirava deliciosamente bem, a bolo de gengibre e baunilha. - Nada de política. Prometeste.
- Não vou ficar quieta enquanto ele...
- Enquanto ele faz o quê? - argumentei. - Ele não fez nada. Foste tu que fizeste um comentário sarcástico!
Ela desviou o olhar, petulante. Olhou para o frigorífico, para um imane com um feto a chuchar no dedo. "sou UMA CRIANÇA" estava escrito. "E NÃO UMA ESCOLHA."
Coloquei-lhe as mãos nos braços.
- O Reid é a minha única família. Pode ser conservador, mas não deixa de ser meu irmão, e é Natal. Só estou a pedir-te que, durante uma hora, sorrias, acenes com a cabeça e não fales sobre assuntos da atualidade.
- E se ele falar primeiro?
- Zoe - implorei -, por favor.
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E durante cerca de uma hora, parecia que talvez conseguíssemos acabar de jantar sem grandes percalços. A Liddy serviu fiambre, batatas assadas e feijão-verde salteado. Falou-nos dos ornamentos da árvore de Natal, uma coleção de antiguidades que eram da avó. Perguntou à Zoe se ela gostava de fazer bolos, e a Zoe falou da tarte de limão que a mãe costumava fazer quando ela era pequena. O Reid e eu falámos de futebol americano universitário.
Quando "Angels We Have Heard on High" tocou no CD de música ambiente, a Liddy cantou também.
- Ensinei esta às crianças este ano, para o cortejo. Algumas nunca tinham ouvido.
- O concerto infantil na escola do primeiro ciclo parece que agora é um concerto de festividades - disse o Reid. - Alguns dos pais juntaram-se e apresentaram queixa, e agora não cantam nada que tenha a mínima conotação religiosa.
- Porque é uma escola pública - disse a Zoe.
O Reid cortou um triângulo perfeito do fiambre.
- Liberdade de culto. Está na Constituição.
- E a liberdade de religião também - respondeu a Zoe. O Reid sorriu.
- Podes tentar à vontade, mas não vais conseguir tirar Cristo do Natal, minha querida.
- Zoe... - interrompi.
- Foi ele que começou - respondeu a Zoe.
- Talvez seja altura de servir o próximo prato - a Liddy, sempre apaziguadora, levantou-se de um salto e tirou os pratos da mesa, depois desapareceu, entrando na cozinha.
- Deixa-me pedir-te desculpa pela minha mulher - disse ao Reid, mas, antes que pudesse terminar a frase, a Zoe voltou-se para mim, furiosa.
- Em primeiro lugar, sou perfeitamente capaz de falar por mim. Em segundo lugar, não vou ficar aqui calada a fingir que não tenho opinião sobre...
- Vieste para aqui preparada para discutir... - argumentei.
- Então tenho muito gosto em pedir tréguas - interrompeu o Reid, sorrindo pouco à vontade. - É Natal, Zoe. Vamos concordar em discordar. Vamos falar de assuntos como o tempo.
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- Quem está preparado para a sobremesa? - a porta basculante que dava para a cozinha abriu-se, e a Liddy apareceu, trazendo um bolo caseiro. Estava escrito a cobertura de açúcar branca em cima: "PARABÉNS
MENINO JESUS."
- Meu Deus - murmurou a Zoe.
A Liddy sorriu.
- Meu também!
- Desisto - a Zoe saiu da mesa. - Liddy, Reid, obrigada pelo jantar. Espero que tenham um excelente Natal. Max? Não precisas de vir se não quiseres. Encontramo-nos em casa - sorriu educadamente e dirigiu-se para a entrada para ir buscar as botas e o casaco.
- O que vais fazer, ir a pé? - gritei-lhe. Desculpando-me à pressa, agradeci ao Reid e dei um beijo de despedida à Liddy.
Quando saí de casa, a Zoe já estava a andar pela rua. A neve, acumulada, chegava-lhe aos joelhos. A minha carrinha passava facilmente através dela e parei ao lado da Zoe. Debrucei-me e abri a porta do passageiro.
- Entra - disse bruscamente.
Ela pensou duas vezes, mas entrou para a cabina da carrinha.
Durante alguns quilómetros, não lhe dirigi a palavra. Não pude. Tinha medo de explodir. Depois, quando chegámos à autoestrada - que tinha sido limpa - voltei-me para a Zoe.
- Já pensaste como foi humilhante para mim? Será pedir de mais que comas uma refeição com o meu irmão e a minha cunhada sem seres uma cabra sarcástica?
- Oh, isso é mesmo fantástico, Max. Então agora sou uma cabra por não me apetecer levar uma lavagem cerebral da direita cristã.
- Era uma merda de um jantar de família, Zo. Não era uma reunião religiosa!
Ela virou-se para mim, com o cinto de segurança a pressionar-lhe a garganta.
- Desculpa não ser mais parecida com a Liddy - disse a Zoe. - Talvez o Pai Natal possa pôr-me uma lobotomia no sapatinho hoje à noite. Isso ia ajudar.
- Porque não calas a boca? O que foi que ela te fez?
- Nada, porque não pensa pela sua própria cabeça - diz a Zoe.
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Já tive muitas conversas com a Liddy sobre se pessoas como o Jack Nicholson e o Jonnathan Demme devem ou não o seu sucesso aos filmes de série B; sobre o impacto de Psico na censura.
- Não sabes nada sobre ela - argumentei. - Ela é uma... uma... Virei a carrinha para a nossa via de acesso, deixando que a minha
voz se desvanecesse.
A Zoe saltou para fora da carrinha. Estava a nevar tanto que tinha uma cortina branca atrás dela.
- Uma santa? - disse ela. - Era dessa palavra que andavas à procura? Bem, eu não consigo ser santa, Max. Sou apenas uma mulher de carne e osso, e parece que nem mesmo isso sou capaz de fazer bem.
Bateu com a porta do passageiro e entrou em casa. Furioso, fiz marcha atrás e desci a rua, a derrapar.
Como era Véspera de Natal e havia uma forte tempestade, parecia que eu era o único na estrada. Não havia nada aberto, nem sequer o McDonalds. Era fácil imaginar que era a única pessoa no universo, porque era mesmo assim que me sentia.
Outros homens estavam ocupados a montar bicicletas e estruturas para trepar para que os filhos pudessem acordar na manhã de Natal e ter a maior surpresa das suas vidas, mas eu nem sequer era capaz de gerar um filho.
Estacionei num parque de estacionamento vazio de um centro comercial e vi um limpa-neves passar. Lembrei-me da primeira vez que a Liddy viu neve.
Agarrei no telemóvel e marquei o número de casa do meu irmão, porque sabia que seria ela a atender. Ia só ouvi-la a dizer está, e depois desligava.
- Max? - disse ela, e eu fiz uma careta: esquecera-me do identificador de chamadas.
- Olá - respondi.
- Está tudo bem?
Eram dez da noite, e tínhamos vindo embora no meio de uma forte tempestade. Claro que ela estava em pânico.
- Tenho de perguntar-te uma coisa - disse eu. "Sabes como iluminas uma sala?"
307
"Alguma vez pensas em mim?" Então ouvi a voz do Reid lá ao fundo.
- Volta para a cama, querida. Mas quem é que está a telefonar tão tarde?
E a resposta da Liddy:
- É só o Max.
"Só o Max."
- O que querias perguntar? - inquiriu a Liddy. Fechei os olhos.
- Deixei... deixei aí o meu cachecol?
Ela chamou o Reid.
- Amor? Viste o cachecol do Max? - houve uma troca de palavras que não consegui ouvir. - Desculpa, Max, não o encontrámos. Mas vamos procurá-lo.
Passada meia hora, entrei no apartamento. A luz por cima do fogão ainda estava acesa, e a arvorezinha que a Zoe comprara e decorara brilhava a um canto da sala. Ela insistira em ter uma árvore viva, apesar de termos de transportá-la por dois lanços de escadas. Naquele ano tinha atado fitas brancas de cetim aos ramos. Disse que cada uma delas era um desejo para o ano seguinte.
A única diferença entre um desejo e uma oração é que no primeiro estamos à mercê do universo, e na segunda temos alguma ajuda.
A Zoe estava a dormir no sofá, enrolada debaixo de uma manta. Tinha o pijama com flocos de neve. Parecia ter estado a chorar.
Beijei-a, para acordá-la. "Desculpa", murmurou ela junto dos meus lábios. "Não devia ter feito aquilo..."
- Eu também não - disse-lhe.
Ainda a beijá-la, enfiei as mãos debaixo da parte de cima do pijama. A pele dela estava tão quente que me queimou as palmas. Ela enfiou os dedos nos meus cabelos e enrolou as pernas à minha volta. Rebolei para o chão e puxei-a para baixo comigo. Conhecia cada cicatriz do corpo dela, cada sarda, cada curva. Eram sinais numa estrada que percorria desde sempre.
Lembro-me de pensar que fizemos amor tão intensamente naquela noite que devia ter deixado alguma marca indelével, como o início de um bebé, mas não deixou.
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Lembro-me de os meus sonhos estarem repletos de desejos, apesar de, ao acordar, não conseguir lembrar-me de um único.
Quando a Liddy chega onde está a pensar ir, o meu torpor já se dissipou e estou bastante irritado comigo próprio e com o mundo. Assim que o Reid descobrir que um polícia me mandou parar por conduzir embriagado, vai dizer ao Pastor Clive, que vai dizer ao Wade Preston, que vai dar-me um sermão, explicando como é fácil perder um julgamento. Quando tudo o que eu queria, juro, era deixar de ter sede.
Tenho estado a viajar de olhos fechados porque de repente estou tão cansado que mal me consigo manter direito. A Liddy estaciona a carrinha.
- Chegámos - diz ela.
Estamos no parque de estacionamento do edifício que alberga os escritórios da Igreja da Glória Eterna.
Já não são horas de expediente, e sei que o Pastor Clive não vai estar lá, mas isso não me faz sentir menos culpado. O álcool já me estragou a vida uma vez, e aqui estou a servir-me dele para estragar as vidas de
outras pessoas.
- Liddy - prometo -, isto não volta a acontecer...
- Max - atira-me as chaves do escritório da igreja, que tem porque dirige o programa da catequese. - Cala-te.
O Pastor Clive montou aqui uma pequena capela, no caso de alguém precisar de vir rezar fora da missa semanal no auditório da escola. Tem algumas filas de cadeiras,
um suporte de leitura, e um quadro de Jesus na cruz. vou atrás da Liddy, passando pela secretária da receção e pela fotocopiadora, para entrar na capela. Em vez
de acender as luzes, ela acende um fósforo e aproxima-o de uma vela que está em cima do suporte de leitura. As sombras fazem o rosto de Jesus parecer o do Freddy Krueger.
Sento-me e fico à espera que ela reze em voz alta. É isso que fazemos na Glória Eterna. O Pastor Clive tem uma conversa com Jesus e nós escutamo-lo.
Mas, esta noite, a Liddy cruza as mãos no colo, como se estivesse à espera que fosse eu a falar.
- Não vais dizer nada? - pergunto.
A Liddy olha para cima por trás do suporte de leitura.
309
- Sabes qual é a minha passagem da Bíblia preferida? O início de João 20. Quando a Maria Madalena está a chorar a morte de
Jesus. Para ela, ele não era Jesus, sabes,
era um amigo e professor e alguém de quem ela gostava muito. Aproximou-se do túmulo, porque queria estar perto do corpo, se era tudo o que restava dele. Mas chegou
lá e o corpo tinha desaparecido. Imaginas como deve ter-se sentido tão sozinha? Então começou a chorar, e um desconhecido perguntou-lhe o que se passava... e depois disse o nome dela, e foi nessa altura que se apercebeu que era Jesus que falava com ela - a Liddy olha para mim. -
Já houve muitas ocasiões em que tive a certeza
de que Deus me abandonou. Mas afinal só estava a procura-Lo no sítio errado.
Não sei do que tenho mais vergonha: de ser um falhado aos olhos de Deus, ou aos olhos da Liddy.
- Deus não está no fundo dessa garrafa. O juiz O'Neill vai estar a observar tudo o que fazemos. Eu e o Reid, e tu - a Liddy fecha os olhos. - Quero ter o teu bebé,
Max.
Sinto a eletricidade percorrer-me.
"Santo Deus", rezo em silêncio, "deixai-me ver-me como me vedes. Lembrai-me de que ninguém é perfeito até olhar para o Vosso rosto." Mas estou a olhar para o da Liddy.
- Se for um rapaz - diz ela -, vou chamar-lhe Max. Engulo, com a boca subitamente seca.
- Não precisas de fazer isso.
- Eu sei que não preciso, mas quero - a Liddy volta-se para mim. Alguma vez desejaste tanto uma coisa que achas que ter esperança pode dar azar?
Nos espaços entre as palavras, ouço as que ela não disse em voz alta. Por isso agarro-lhe a nuca, inclino-me para a frente e beijo-a.
"Deus é amor." Ouvi o Pastor Clive dizer isso mil vezes, mas agora compreendo.
Os braços da Liddy erguem-se entre nós e empurram-me para trás com uma força que não esperei que tivesse. A minha cadeira range no chão. Tem as faces muito vermelhas e está a tapar a boca com uma mão.
- Liddy - digo, destroçado. - Não quis fazer isso...
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- Não precisas de pedir desculpa, Max - de repente há um muro entre nós. Posso não conseguir vê-lo, mas sinto-o. - Foi só o álcool, a atuar - apaga a vela com um sopro. - Devíamos ir embora.
A Liddy sai da capela, mas eu fico para trás. Pelo menos durante mais um minuto, fico à espera na escuridão.
Depois do acidente de automóvel, quando deixei que Jesus entrasse no meu coração, também deixei que o Clive Lincoln entrasse na minha vida. Encontrámo-nos no escritório dele, e falámos das razões que me levavam a beber.
Disse-lhe que parecia que tinha um buraco dentro de mim, e que estava a tentar preenchê-lo.
Ele disse que aquele buraco era como areias movediças, e que eu estava a afundar-me rapidamente.
Pediu-me que fizesse uma lista das coisas que tornavam o buraco maior.
"Não ter dinheiro", disse.
"Estar embriagado."
"Perder clientes."
"Perder a Zoe."
"Perder um bebé.
Então ele começou a falar no que conseguia remendar esse buraco dentro de mim.
"Deus. Os amigos. A família."
- Pois - disse eu, olhando para o chão. - Ainda bem que existe o Reid. Mas o Pastor Clive não consegue ouvir-nos quando dizemos coisas
que não queremos mesmo dizer, e recostou-se na cadeira.
- Não é a primeira vez que o Reid o tira de uma situação difícil, pois não?
- Não.
- Como é que isso o faz sentir-se?
- Como acha que me sinto? - explodi. - Como um desgraçado. É tudo tão fácil para o Reid, e eu, eu estou sempre a afogar-me.
- É porque o Reid se entregou nas mãos de Jesus. Deixa que outra pessoa o leve a atravessar os rápidos, Max, e o Max... o Max ainda está a tentar nadar contra a corrente.
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Sorri.
- Então devo deixar-me ir, que Deus trata do resto?
- Porque não? Não há dúvidas de que ultimamente não se tem saído muito bem sozinho - o Pastor Clive colocou-se atrás da minha cadeira.
- Diga a Jesus o que quer. O que tem o Reid que o Max também deseja ter?
- Não vou falar a Jesus em voz alta...
- Acha que Ele não consegue ler-lhe os pensamentos?
- Está bem - suspirei. - Tenho inveja do meu irmão. Quem me dera ter a casa dele. A conta bancária dele. Acho que até a fé dele.
Dizer isso tão cruamente fez-me sentir na merda. O meu irmão sempre me ajudou, e ali estava eu a cobiçar tudo o que ele tinha. Senti-me feio, como se tivesse tirado uma camada de pele e por baixo tivesse visto uma infeção.
E, meu Deus, só queria curar-me.
Talvez tenha chorado nesse momento; não me lembro. Sei que foi a primeira vez que me vi realmente como era: alguém demasiado orgulhoso para admitir os seus defeitos.
Mas deixei uma coisa fora da lista, quando estava a falar com o Pastor Clive. Nunca disse que queria a mulher do Reid.
Mantive isso em segredo.
De propósito.
Peço desculpas à Liddy pelo menos mais cinquenta vezes a caminho de casa, mas ela permanece imperturbável, de lábios cerrados.
- Desculpa - volto a dizer, quando ela vira para a via de acesso.
- Porquê? - pergunta a Liddy. - Não aconteceu nada.
Abre a porta de casa para eu entrar e coloca o meu braço por cima do seu pescoço, para que pareça que está a apoiar-me.
- Segue as minhas indicações - diz ela.
Ainda não tenho os pés muito firmes, por isso deixo-a arrastar-me lá para dentro. O Reid está de pé à entrada.
- Graças a Deus. Onde o encontraste?
- A vomitar à beira da estrada - responde a Liddy. - Tem um caso grave de intoxicação alimentar, segundo o que disseram nas urgências.
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- Caramba, maninho, o que foi que comeste? - pergunta o Reid, colocando um braço à minha volta para poder suportar uma parte do meu peso. Finjo tropeçar, e deixo-o levar-me lá para baixo, para o quarto de hóspedes na cave. Depois de o Reid me deitar na cama, a Liddy descalça-me os sapatos. As mãos dela são quentes nos meus tornozelos.
Mesmo no escuro, o teto está a girar. Ou talvez seja apenas a ventoinha.
- O médico diz que ele talvez recupere depois de dormir - diz a Liddy. Através de olhos semicerrados, reparo que o meu irmão tem o braço à volta dela.
- vou telefonar ao Pastor Clive, para lhe dizer que o Max voltou para casa - diz o Reid, e sai do quarto.
O Pastor Clive também estava à minha procura? Sou assolado por uma nova vaga de culpa. Entretanto a Liddy vai ao roupeiro e alcança a prateleira de cima. Tira uma manta e tapa-me. Pondero pedir-lhe novamente desculpa, mas, pensando melhor, finjo que estou a dormir.
A cama afunda-se sob o peso da Liddy. Está sentada suficientemente perto para me tocar, e sustenho a respiração até sentir a mão dela afastar-me os cabelos do rosto.
A sua voz é um sussurro, e tenho de esforçar-me para ouvi-la.
Está a rezar. Ouço a cadência das palavras, e finjo que em vez de pedir ajuda a Deus, pede a Deus por mim.
Na manhã da primeira vez que devemos comparecer na sala de audiências, o Wade Preston aparece à porta de casa do Reid com um fato na mão.
- Eu tenho um - digo-lhe.
- Sim - diz ele -, mas será o ideal, Max? As primeiras impressões são fundamentais. Não pode repeti-las.
- Ia usar o meu fato preto - digo. É o único que tenho; recebi-o da obra de solidariedade da Glória Eterna. Tem servido para usar aos domingos na igreja, ou quando vou trabalhar para o Pastor Clive.
O que o Preston trouxe é antracite. Também há uma camisa branca muito bem passada e uma gravata azul.
- Ia usar uma gravata vermelha - digo. - Pedi-a emprestada ao Reid.
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- Está fora de questão. Não vai querer evidenciar-se. Vai querer parecer humilde, estável, sólido como uma rocha. Vai querer ter o mesmo aspeto de quando for a uma reunião de pais no jardim de infância.
- Mas o Reid é que vai fazer isso... O Wade faz um gesto de recusa.
- Não seja obtuso, Max. Sabe o que eu quero dizer. Uma gravata vermelha diz: "Reparem em mim."
Faço uma pausa. O Wade veste o fato de melhor corte que já vi. Tem as iniciais bordadas no punho da camisa. Tem um lenço de seda..
- Tem uma gravata vermelha - digo.
- Era precisamente isso que eu estava a dizer - responde o Wade. Agora vista-se.
Passada uma hora, estamos apertados numa das mesas na parte da frente da sala de audiências: a Liddy, o Reid, o Ben Benjamin, o Wade e eu. Não falei com a Liddy toda a manhã. Provavelmente ela é a única pessoa que podia acalmar-me, mas, sempre que tento, o Wade lembra-se de alguma coisa que precisa de dizer sobre o meu comportamento no tribunal: "Sente-se direito, não mexa as mãos, não faça caras ao juiz. Não reaja a nada do que diz o outro lado, por muito transtornado que fique." Pelo que ele disse, parecia que ia estrear-me em palco em vez de estar a assistir a uma ação legal.
A minha gravata sufoca-me, mas, sempre que a puxo, o Wade ou o Reid dizem-me para não o fazer.
- O espetáculo começou - murmura o Wade, e eu volto-me para ver para onde ele está a olhar. A Zoe acabou de entrar na sala de audiências, acompanhada pela Vanessa e por uma senhora muito pequena com caracóis negros a balançar em todas as direções.
- Estamos em minoria - diz a Vanessa em voz baixa, mas consigo ouvi-la na mesma, e agrada-me a ideia de que o Wade já as fez desconcentrarem-se. A Zoe não olha para mim quando se senta. Aposto que aquela pequena advogada também lhe deu algumas instruções.
O Wade marca discretamente um número no telemóvel e, passado um instante, a porta dupla ao fundo da sala de audiências abre-se e uma jovem que trabalha para o Ben Benjamin como assistente jurídica
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empurra um carrinho cheio de livros pela galeria. Empilha-os em cima da mesa à frente do Wade, enquanto a Zoe, a Vanessa e a advogada delas observam. Há livros de pesquisa, livros de direito de outros estados. Começo a ler os títulos nas lombadas: Casamento Tradicional. A Preservação dos Valores Familiares.
O último livro que ela coloca em cima da pilha é a Bíblia.
- Olhe, Zoe - diz a advogada. - Sabe qual é a diferença entre um peixe-gato e o Wade? Um é viscoso e alimenta-se de lodo no fundo do rio. E o outro é apenas um peixe.
Um homem levanta-se.
- Todos de pé, o ilustre Padraic O'NeiII preside a esta sessão.
O juiz entra por outra porta. É alto, com uma cabeleira branca com um pequeno triângulo de negro ao meio da testa. Duas rugas profundas ladeiam-lhe a boca, como
se o sobrolho franzido precisasse de atrair ainda mais a atenção.
Quando ele se senta, nós também nos sentamos.
- "Baxter contra Baxter" - lê a secretária do tribunal. O juiz coloca um par de óculos de leitura.
- De quem é esta ação? Ben Benjamin levanta-se.
- Meritíssimo, estou aqui hoje a representar terceiros queixosos, Reid e Liddy Baxter. O meu cliente une-se no esforço de os incluir no caso, e o meu colega, o Dr. Preston, e eu gostaríamos muito de ouvir a sua opinião sobre esse assunto.
O rosto do juiz enruga-se num sorriso.
- Ora, Ben Benjamin! É sempre um prazer tê-lo no tribunal. vou ter oportunidade de verificar se conseguiu aprender alguma coisa do que eu lhe ensinei - olha por cima dos documentos que estão na pasta. - Ora bem, sobre o que é esta ação ao certo?
- Doutor Juiz, trata-se de uma litigação para obter a custódia de três embriões congelados que restaram após o divórcio de Max e Zoe Baxter. O Reid e a Liddy Baxter
são o irmão e a cunhada do meu cliente. Desejam... e o Max também deseja... obter a custódia dos embriões com o intuito de dá-los ao irmão e à cunhada para completar
a gestação e dá-los à luz e educá-los como seus filhos.
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As sobrancelhas do Juiz O'Neill juntam-se.
- Está a dizer-me que há uma questão de bens que as partes não abordaram ao longo do seu divórcio?
O Wade levanta-se ao meu lado. A água-de-colónia dele cheira a lima.
- Meritíssimo, com o devido respeito - diz ele -, estamos a falar de crianças. De crianças por nascer...
Do outro lado da galeria, a advogada da Zoe levanta-se.
- Objeção, Meritíssimo. Isto é ridículo. Alguém pode por favor dizer ao Dr. Preston que não estamos no Louisiana?
O Juiz O'Neill aponta para o Wade.
- O senhor! Sente-se imediatamente.
- Meritíssimo - diz a advogada da Zoe -, Max Baxter está a servir-se da biologia para tirar três embriões congelados à minha cliente... que é uma das potenciais
progenitoras. Ela e o cônjuge pretendem criá-los no seio de uma família saudável e afetuosa.
- Onde está o cônjuge? - pergunta O'Neill. - Não o vejo sentado ao lado dela.
- A minha cliente casou-se legalmente com o cônjuge, Vanessa Shaw, no estado de Massachusetts.
- Bem, Dr.a Moretti - responde o juiz -, ela não é legalmente casada em Rhode Island. Ora bem, deixem-me esclarecer isto22...
Atrás de mim, ouço a Vanessa abafar um grunhido de desdém.
- Mas nós não somos heterossexuais - murmura.
- ... a senhora quer os embriões - aponta para a Zoe. - E o senhor também os quer - diz ele, e por fim aponta para o Reid e para a Liddy.
- E agora os senhores também os querem?
- Por acaso, Meritíssimo - diz a advogada da Zoe -, Max Baxter não quer os embriões. Tenciona dá-los.
O Wade levanta-se.
- Pelo contrário, Meritíssimo. O Max quer que os filhos sejam educados no seio de uma família tradicional, e não no de uma família sexualmente desviante.
22 "Let me get this straight", na versão original em inglês, sendo que straight significa também heterossexual. (N. da T.)
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- Um homem que procura obter a posse de alguns embriões para poder dá-los a outra pessoa - resume o juiz. - Está a dizer que isso é tradicional? Porque, na minha terra, certamente não é.
- Se me permite, doutor juiz, este é um caso complicado - diz a advogada da Zoe. - Tanto quanto sei, é uma nova área do direito que nunca foi determinada em Rhode Island. Mas hoje só nos reunimos aqui por causa do requerimento para incluir Reid e Liddy Baxter, e eu oponho-me veementemente a que eles participem neste processo. Hoje apresentei um memorando a afirmar que, de facto, se decidir permitir que potenciais gestantes participem neste caso, então a Vanessa Shaw também devia participar, e vou imediatamente apresentar um requerimento...
- Objeção, Meritíssimo - argumenta o Wade. - Já disse que não se trata de um casamento legal, e agora a Dr.a Moretti está a recorrer a uma manobra de distração que já foi refutada.
O juiz fica a olhar para ele.
- Dr. Preston, se voltar a interromper a Dr.a Moretti, vou ter de acusá-lo de desrespeito pelo tribunal. Isto não é nenhum programa de televisão; o senhor não é o Pat Robertson. É a minha sala de audiências, e não estou disposto a deixá-lo transformá-la no circo que gostaria que fosse. vou reformar-me depois deste caso, e não estou disposto a retirar-me no meio de uma escaramuça religiosa - bate com o martelo. O requerimento para incluir terceiros queixosos é indeferido. Este caso é entre Max Baxter e Zoe Baxter, e seguirá os trâmites normais. O senhor, Dr. Benjamin, poderá convocar quem quiser para ser testemunha, mas eu não vou incluir mais nenhum queixoso. Nem Reid e Liddy Baxter - diz ele, e depois volta-se para a outra advogada -, nem Vanessa Shaw, por isso não vale a pena apresentarem nenhum requerimento a solicitar isso.
Por fim, dirige-se ao Wade.
- E o senhor, Dr. Preston. Um conselho de amigo: pense muito bem sobre o espetáculo que pretende encenar. Porque não vou permitir que o senhor se apodere deste tribunal. Aqui sou eu que mando.
Levanta-se e abandona a sua secretária, e nós também nos levantamos de um salto. Estar no tribunal não é assim tão diferente de estar na igreja. Levantamo-nos, sentamo-nos, olhamos para a frente à procura de orientação.
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A advogada da Zoe aproxima-se da nossa mesa.
- Angela - diz o Wade. - Quem me dera poder dizer que tenho muito gosto em vê-la, mas mentir é pecado.
- Lamento que as coisas não lhe tenham corrido tão bem como estava a pensar - responde ela.
- Correram muito bem, obrigado.
- Talvez seja o que todos pensam no Louisiana, mas, acredite, aqui acabou de ser desancado - diz a advogada.
O Wade apoia-se nos livros que a assistente jurídica trouxe.
- A verdadeira personalidade deste juiz vai acabar por evidenciar-se, minha cara - diz ele. - E acredite... não tem as cores do arco-íris.
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A SEREIA
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ZOE
A Lucy está a desenhar uma sereia: os cabelos são longos e torcidos, a cauda enrolada para o canto da grossa cartolina. Quando termino de cantar "Angel", pouso a guitarra, mas a Lucy continua a fazer pequenos retoques
- uma fita de algas, o reflexo do sol.
- És uma boa artista - digo-lhe. Ela encolhe os ombros.
- Sou eu que desenho as minhas tatuagens.
- Tens algumas?
- Se tivesse, seria expulsa de casa - diz a Lucy. - Um ano, seis meses, quatro dias.
- É nessa altura que vais fazer uma tatuagem? Ela olha para mim.
- É nesse instante que faço dezoito anos.
Após a nossa sessão de percussão, jurei nunca mais obrigar a Lucy a encontrar-se comigo na sala de necessidades especiais. Em vez disso, a Vanessa diz-me que salas vão estar vagas (a turma de Francês está numa visita de estudo; a turma de Artes foi para o auditório assistir a um filme). Hoje, por exemplo, encontramo-nos na sala de saúde. Estamos rodeadas por posters inspiradores: "ESTE É o TEU CÉREBRO SOB o EFEITO DE DROGAS." E "ESCOLHES o ÁLCOOL? ÉS TU QUE PERDES." E uma adolescente grávida de perfil:
"NÃO SE ACEITAM DEPÓSITOS, NÃO SE ACEITAM DEVOLUÇÕES."
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Temos estado a trabalhar na análise de letras. É uma coisa que já fiz com os grupos do lar de terceira idade, porque faz as pessoas interagirem umas com as outras. Normalmente, começo por dizer-lhes o título de uma música - muitas vezes uma que não conheçam - e
peço-lhes que adivinhem do que se trata. Depois canto-a, e pergunto-lhes quais as palavras e frases que sobressaíram. Falamos das suas reações pessoais à letra, e, por fim, pergunto que emoções a música suscitou neles.
Como não me pareceu que a Lucy quisesse expressar-se verbalmente, comecei a pedir-lhe que desenhasse as suas reações às letras.
- É interessante que tenhas desenhado uma sereia - disse. - Os anjos não são normalmente representados debaixo de água.
A Lucy fica imediatamente na defensiva.
- Disse que não havia uma maneira certa e uma maneira errada de fazer isto.
- E não há.
- Acho que podia ter desenhado daqueles animais completamente deprimentes do anúncio da Sociedade Americana para a Prevenção de Crueldade Contra os Animais...
Já é transmitido há alguns anos: uma montagem de cachorrinhos e gatinhos de olhos tristes, acompanhada por esta música.
- Sabes, a Sarah McLachlan disse que esta música é sobre o teclista dos Smashing Pumpkins, que morreu com uma overdose de heroína - digo. Escolhi esta música na esperança de que ela falasse sobre as suas anteriores tentativas de suicídio.
- Da. Foi por isso que desenhei uma sereia. Ela está a flutuar e a afogar-se
ao mesmo tempo.
Às vezes a Lucy diz coisas que me deixam sem palavras. Como é que a Vanessa e os outros psicólogos da escola pensaram que ela estava a distanciar-se do mundo. Ela
retratou isso, melhor do que a maioria das pessoas.
- Alguma vez te sentiste assim? A Lucy olha para cima.
- com vontade de ter uma overdose de heroína?
- Entre outras coisas.
Ela está a colorir os cabelos da sereia, ignorando a minha pergunta.
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- Se pudesse escolher, como gostaria de morrer?
- Durante o sono.
- Toda a gente diz isso - a Lucy revira os olhos. - Se não tivesse essa opção, o que escolheria?
- Esta conversa é um bocadinho mórbida...
- E falar sobre suicídio também.
Aceno com a cabeça, admitindo.
- Depressa. Como numa execução por um pelotão de fuzilamento. Não queria sentir nada.
- Um acidente de avião - diz a Lucy. - É-se praticamente vaporizada.
- Pois, mas imagina como devem ser os minutos antes, quando sabes que vais cair - costumava ter pesadelos sobre acidentes de avião. Que não conseguia ligar o telemóvel ou ter rede suficientemente depressa para poder deixar uma mensagem ao Max a dizer-lhe que o amava. Costumava imaginá-lo sentado junto ao atendedor de chamadas depois do meu funeral, a ouvir os ruídos de fundo e a pensar no que eu estava a tentar dizer.
-Já ouvi dizer que o afogamento não é assim tão mau. Desmaiamos por suster a respiração antes de acontecerem aquelas coisas mesmo horríveis olhou para baixo, para a sereia no papel. - com a minha sorte, era capaz de respirar água.
Olho para ela.
- Porque é que isso seria assim tão mau?
- Como é que as sereias se suicidam? - diz a Lucy, pensativa. - Morte por oxigénio?
- Lucy - digo, à espera que ela olhe para mim -, continuas a pensar em suicidar-te?
Ela não transforma a pergunta numa piada. Mas também não responde. Começa a desenhar padrões na cauda da sereia, um floreado de escamas.
- Sabe como às vezes fico zangada? - diz ela. - É porque é a única coisa que ainda consigo sentir. E preciso de me pôr à prova, para ter a certeza de que ainda estou mesmo aqui.
A terapia musical é uma profissão híbrida. Às vezes sou uma intérprete, às vezes uma curandeira. Às vezes sou psicóloga, e às vezes sou apenas uma confidente. A arte da minha profissão é saber quando devo ser cada uma destas coisas.
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- Talvez haja outras formas de te pores à prova - sugiro. - De te fazer sentir.
- Tais como?
- Podias compor alguma música - digo. - Para muitos músicos, as canções são a forma de falarem sobre coisas mesmo muito difíceis que estão
a atravessar.
- Nem sequer sou capaz de tocar um apito.
- Eu posso ensinar-te. E também não precisa de ser um apito. Pode ser guitarra, bateria, piano. O que quiseres.
Ela abana a cabeça, já a recuar.
- Vamos jogar à roleta russa - diz ela, e agarra no meu iPod. - Vamos ouvir a primeira música que aparecer no Shuffle empurra o desenho da sereia para a minha frente e agarra noutra folha de papel.
"Rudolph, the Red Nose Deer" começa a tocar. Olhamos ambas uma para a outra e começamos a rir.
- A sério? - diz a Lucy. - Esta é uma das suas músicas?
- Trabalho com crianças pequenas. Esta é uma das preferidas. Debruça-se sobre o papel e começa novamente a desenhar.
- Todos os anos, as minhas irmãs vêem isto na televisão. E todos os anos, fico assustada a sério.
- O Rudolph assusta-te?
- O Rudolph não. O sítio para onde ele vai.
Está a desenhar um comboio com rodas quadradas, um elefante malhado.
- A Ilha dos Brinquedos Inadaptados? - pergunto.
- Pois - diz a Lucy, olhando para cima. - Eles causam-me arrepios.
- Nunca cheguei a perceber qual é o problema deles - admito. - Como aquele diabrete? Grande coisa. O Gualter seria um sucesso na mesma se se chamasse Gertrude. E sempre achei que uma bisnaga que dispara gelatina podia ser o próximo Transformer.
- E o elefante às pintas? - diz a Lucy, com um sorriso a bailar-lhe nos lábios. - Uma completa aberração.
-Pelo contrário... colocá-lo na ilha foi um gesto abertamente racista. A mãe dele pode ter tido um caso com uma chita.
- A boneca é a mais assustadora...
- Qual é o problema dela?
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- Está deprimida - diz a Lucy. - Porque nenhuma das crianças a quer.
- E chegam a dizer-nos isso?
- Não, mas que mais poderia ser? - de repente, ela sorri. - A menos que ela fosse um ele...
- Travestismo - dizemos, ao mesmo tempo.
Ambas rimos, e depois a Lucy debruça-se novamente por cima do seu desenho. Desenha em silêncio por alguns instantes, acrescentando pintas ao pobre elefante incompreendido.
- Provavelmente ia inserir-me perfeitamente naquela estúpida ilha - diz a Lucy. - Porque devia ser invisível, mas toda a gente me vê.
- Talvez não devesses ser invisível. Talvez devas ser apenas diferente.
Ao dizer estas palavras, penso na Angela Moretti, e na Vanessa, e naqueles embriões congelados. Penso no Wade Preston, com o seu fato feito em Hong Kong e cabelos negros penteados para trás, a olhar para mim como se eu fosse uma completa aberração, um crime contra a espécie.
Se bem me lembro, aqueles brinquedos todos saltam para dentro do trenó do Pai Natal e são redistribuídos pelas árvores de Natal em todo o lado. Se isso for verdade, espero acabar debaixo da árvore de Natal do Wade Preston.
Viro-me e vejo a Lucy a observar-me.
- As outras vezes que sinto alguma coisa - confessa - são quando estou consigo.
Normalmente, depois da sessão de terapia com a Lucy, vou ao gabinete da Vanessa e almoçamos na cantina - os Tater Tots, deixem-me que vos diga, são muito subestimados - mas hoje, ela foi a uma feira de vagas na universidade, em Boston, por isso dirijo-me para o meu carro. Pelo caminho verifico as mensagens no telemóvel. Tenho uma da Vanessa, a falar de uma funcionária que trata das candidaturas em Emerson com um penteado alto cor de laranja que parecia saída da capa de um álbum dos B-52, e outra a dizer-me que me ama. Tenho uma da minha mãe, a perguntar-me se posso ajudá-la a mudar alguma mobília hoje à tarde.
À medida que me aproximo do meu Jeep amarelo no parque de estacionamento, vejo a Angela Moretti encostada a ele.
- Há algum problema? - digo imediatamente.
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Não pode ser bom que a minha advogada tivesse viajado uma hora para me dizer qualquer coisa.
- Estava aqui perto. Bem, estava em Fali River. Por isso achei melhor passar por aqui para contar-lhe as últimas novidades...
- Não me parecem muito boas...
- Hoje de manhã tinha outro requerimento em cima da secretária, da parte do Wade Preston - explica a Angela. - Ele quer nomear um representante legal para o caso.
- Um quê?
- Ê comum nos casos relativos à custódia de menores. É uma pessoa cuja função é determinar qual é o superior interesse da criança, e comunicá-lo ao tribunal - abana a cabeça. - O Preston quer nomear um para as crianças
por nascer.
- Como é que ele pode... - a minha voz desvanece-se.
- Está a tomar uma posição - explica a Angela. - É a sua maneira de divulgar objetivos políticos, só isso. Vai ser recusado pelo tribunal antes mesmo que tenha tempo para se sentar na cadeira - olha para mim. - Mas há mais. O Preston esteve no Joe Hoffman ontem à noite.
- Quem é o Joe Hoffman?
-Um conservador que dirige a Voice of Liberty Broadcasting. Uma Meca para as pessoas mesquinhas, na minha opinião.
- De que falaram?
A Angela olha diretamente para mim.
- Da destruição dos valores familiares. Mencionou-vos especificamente, a si e à Vanessa, como estando na vanguarda de um movimento para arruinar a América. Costumam receber correspondência em casa? Porque recomendo vivamente um apartado. E presumo que tenham um sistema de alarme...
- Está a afirmar que corremos perigo?
- Não sei - diz a Angela. - É melhor prevenir do que remediar. O Hoffman não é nada, comparado com o rumo que o Preston está a tomar. O'Reilly, Glenn Beck, Limbaugh. Ele não aceitou este caso por se preocupar muito com o Max. Aceitou-o para servir de plataforma para poder pregar, e por ser um pretexto para poder ser convidado a aparecer nestes programas. Quando formos a julgamento, o Preston vai assegurar-se de que não consiga ligar a televisão sem ver a cara dele.
326
A Angela tinha-nos avisado que esta ia ser uma batalha difícil, que tínhamos de estar preparadas. Presumi que fosse a minha oportunidade de ser mãe que estivesse em jogo; não me apercebi de que também ia perder a privacidade, o anonimato.
- Se pensar até onde ele está disposto a ir, é risível
Mas não acho piada. Quando começo a chorar, a Angela abraça-me.
- Vai ser sempre assim?
- Vai ser pior - promete ela. - Mas imagine as histórias que um dia vai ter para contar ao seu bebé.
Espera até eu me recompor, e depois diz-me que tenho de estar no tribunal amanhã para objetar o requerimento. Quando estou a entrar novamente no carro, o telemóvel
toca.
- Porque é que ainda não estás em casa? - pergunta a Vanessa. Devia falar-lhe na visita da Angela; devia falar-lhe no Wade Preston.
Mas quando amamos alguém, protegemos essa pessoa. Posso estar prestes a perder a credibilidade, a reputação, a carreira, mas, por outro lado, a batalha é minha.
É o meu ex-marido, os meus embriões do meu casamento anterior. A única razão para a Vanessa estar envolvida é ter tido o azar de se apaixonar por mim.
- Atrasei-me - digo-lhe. - Fala-me na senhora com o penteado alto. Mas a Vanessa não acredita nisso.
- O que foi? Parece que estás a chorar. Fecho os olhos.
- Estou a ficar constipada.
Apercebo-me de que é a primeira vez que lhe minto.
Eu e a minha mãe demoramos duas horas a trocar toda a mobília do
meu antigo quarto com a do dela. Resolveu que precisa de ter uma nova perspetiva, e haverá melhor maneira de começarmos o dia do que vendo algo diferente quando abrimos os olhos?
- Além do mais - diz ela -, a tua janela dá para oeste. Estou cansada de acordar com o sol nos olhos.
Olho em volta para as mesmas roupas de cama, a mesma disposição do quarto.
- Então basicamente és a tua própria conselheira?
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- Como posso esperar que os meus clientes sigam os meus conselhos se eu própria não os seguir?
- E acreditas mesmo que realojares-te três metros mais abaixo no corredor vai revolucionar a tua vida?
- Acreditar é a estrada que seguimos para alcançar os nossos sonhos. Se acreditarmos que conseguimos fazer uma coisa... ou se acreditarmos que não conseguimos... isso vai concretizar-se.
Revirei-lhe os olhos. Tenho a certeza de que houve um movimento de autoajuda não há muito tempo que seguia esse mantra. Lembro-me de ver uma aluna do liceu numa revista que subscrevia essa filosofia e que não estudou para os exames de admissão à faculdade porque, afinal, conseguia visualizar aquela nota perfeita. Será desnecessário dizer que acabou por ir para uma universidade comunitária, e queixar-se na televisão sobre como isso não passava de conversa fiada.
Olho em meu redor, para a mesma roupa de cama da minha mãe, a mesma mobília.
- O facto de começares de novo com coisas que tens desde sempre não gora os objetivos?
- Sinceramente, Zoe, às vezes és tão negativa - suspira a minha mãe. Ficaria muito satisfeita por dar-te alguns conselhos, de graça.
- Fica para a próxima, obrigada.
- Como queiras - desliza para baixo, encostada à parede, enquanto eu me atiro para cima do colchão. Quando olho para cima, vejo um pontilhado de estrelas fluorescentes coladas ao teto.
-Já me tinha esquecido delas - digo.
Após a morte do meu pai, fiquei obcecada por fantasmas. Queria desesperadamente que o meu pai fosse um, na esperança de que pudesse vê-lo sentado na minha cama quando acordasse a meio da noite, ou senti-lo sussurrar num arrepio na nuca. Por isso, requisitei livros na biblioteca sobre atividade paranormal; tentei realizar sessões espíritas no meu quarto; descia sorrateiramente as escadas à noite para ver filmes de terror quando devia estar a dormir. A minha professora reparou, e disse à minha mãe que talvez eu precisasse de ajuda. O psiquiatra que consultava esporadicamente depois da morte do meu pai concordou que podia ser um problema que teria de ser tratado.
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A minha mãe não. Achou que se eu queria que o meu pai fosse um espírito, devia ter alguma razão válida para isso. Uma noite ao jantar disse-me:
- Não me parece que ele seja um fantasma. Acho que é uma estrela, a olhar para nós cá em baixo.
- Isso é uma parvoíce. Uma estrela é apenas uma bola de gás - desdenhei.
- E um fantasma é...? - fez notar a minha mãe. - Pergunta a qualquer cientista... vai dizer-te que nascem novas estrelas a cada minuto.
- As pessoas que morrem não se transformam em estrelas.
- Alguns nativos americanos não concordariam contigo, nesse assunto. Fiquei a pensar nisso.
- Para onde vão as estrelas durante o dia?
- A questão é essa - disse a minha mãe -, continuam lá. Estão a observar-nos, apesar de estarmos demasiado ocupados para olhar para elas.
Quando estava na escola, no dia seguinte, a minha mãe colou estrelinhas de plástico no teto. Naquela noite, deitámo-nos as duas na cama e tapámo-nos com o meu cobertor. Não saí da cama para ver um filme de terror. Em vez disso, adormeci com os braços da minha mãe à minha volta.
Agora, olho para ela.
-Achas que eu teria sido diferente se o Pai tivesse estado presente quando estava a crescer?
- Bem, claro - diz a minha mãe, sentando-se ao meu lado na cama. mas acho que ele teria ficado muito orgulhoso de ti na mesma.
Depois de a Angela ter ido embora, parei em minha casa. Fui à Internet fazer o download do podcast do programa de rádio do Joe Hoffman, e ouvi-o a ele e ao Wade Preston falar de estatísticas: as crianças criadas por pais homossexuais tinham mais probabilidades de experimentarem elas próprias uma relação homossexual; os filhos de pais homossexuais tinham vergonha de os amigos ficarem a saber das suas vidas domésticas; as mães lésbicas efeminavam os filhos e masculinizavam as filhas.
- O meu processo legal foi discutido no programa do Joe Hoffman
- digo.
- Eu sei - diz a minha mãe. - Eu ouvi.
- Tu costumas ouvi-lo?
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- Religiosamente... com o trocadilho e tudo. Ligo a rádio quando estou a fazer exercício na passadeira. Descobri que quando estou zangada ando mais depressa - ri. - Deixo o Rush para os abdominais.
- Mas e se ele tiver razão? E se tivermos um rapaz? Não sei nada sobre criar um rapaz. Não sei nada de dinossauros, nem de equipamento de construção, nem sei jogar
basebol...
- Querida, os bebés não vêm com livro de instruções. Vais aprender da mesma forma que todas nós aprendemos... vais ler sobre dinossauros; vais fazer pesquisas sobre escavadoras e tratores no Google. E não é preciso ter um pénis para comprar uma luva de basebol - a minha mãe abana a cabeça. - Não te atrevas a deixar que alguém te diga o que podes ou não ser, Zoe.
- Tens de admitir, teria sido mais fácil se o Pai estivesse aqui - digo.
- Sim. Por acaso concordo com o Wade Preston numa coisa: todas as crianças deviam ser criadas por um casal casado - esboça um grande sorriso.
- É por isso que o casamento entre pessoas do mesmo sexo devia ser legal.
- Quando é que te tornaste numa ativista pelos direitos dos homossexuais?
- Não sou. Sou uma ativista pela Zoe. Se me dissesses que és vegana, não posso dizer que ia deixar de comer carne, mas ia lutar pelo teu direito de não a comer. Se me dissesses que ias ser freira, não posso prometer-te que ia converter-me, mas ia ler a Bíblia para podermos falar sobre isso. Mas és lésbica, por isso sei que a Associação Psicológica Americana afirma que as crianças criadas por pais homossexuais se descrevem como sendo heterossexuais em igual proporção às crianças criadas em famílias heterossexuais. Sei que não existe base científica para dizer que os pais homossexuais são menos capazes do que os heterossexuais. Por acaso, há certas vantagens em ser-se criado por duas mamãs ou por dois papás; em primeiro lugar, a compaixão. Além disso, as raparigas brincam e vestem-se de maneiras que quebram os estereótipos, e os rapazes tendem a ser mais afetuosos, mais afetivos e menos promíscuos. E, provavelmente por terem lidado com perguntas ao longo de todas as suas vidas, as crianças criadas por pais homossexuais adaptam-se geralmente melhor.
Fico de boca aberta.
- Onde aprendeste isso tudo?
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- Na Internet. Porque quando não estou a ouvir o Joe Hoffman, estou a pesquisar o que vou dizer quando finalmente encostar o Wade Preston à parede.
Independentemente do que o Joe Hoffman ou o Wade Preston disserem, não é o género que faz uma família; é o amor. Não precisamos de ter um pai e uma mãe; nem precisamos necessariamente de ter dois pais. Precisamos apenas de alguém que nos proteja.
Imagino a minha mãe a ir atrás do Wade Preston, e sorrio.
- Espero estar presente para ver isso.
A minha mãe aperta-me a mão. Olha para as estrelas no teto.
- Onde mais poderias estar? - pergunta.
Debruço-me por trás da Lucy e coloco-lhe a guitarra nos braços.
- Pega-lhe como se fosse um bebé - digo -, com a mão esquerda a apoiar o braço.
- Assim? - ela vira-se no assento, para poder olhar para mim.
- Esperemos que se ficares a tomar conta de crianças não as estrangules assim...
Ela larga o braço da guitarra. -Oh.
- Agora, põe o indicador na quinta corda, segunda casa. Coloca o médio na quarta corda, segunda casa.
- Os meus dedos estão a ficar todos baralhados...
- Tocar guitarra é como o Twister para as mãos. Agarra na palheta entre o polegar e o indicador direito. Pressiona as cordas com a mão esquerda e arrasta delicadamente a palheta sobre a abertura de som com a direita.
Um acorde enche o espaço exíguo do gabinete da enfermeira, o sítio que hoje estamos a ocupar para realizar a nossa sessão. A Lucy olha para cima, radiante.
- Consegui!
- É um mi menor. Também foi o primeiro acorde que aprendi - vejo-a tocar mais algumas vezes. - Tens realmente uma boa noção da música
- digo.
A Lucy debruça-se sobre a minha guitarra.
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- Deve ser genético. A minha família é muito boa a fazer um "concerto de júbilo".
Na maior parte das vezes, esqueço-me de que a família da Lucy frequenta a igreja do Max. A Vanessa disse-me isso há alguns meses, quando a Lucy e eu começámos a trabalhar juntas. O mais provável é conhecerem o Max e o Wade Preston. Só ainda não relacionaram as coisas e perceberam que a sua preciosa filha está a passar algum do seu tempo com a Incarnação do Diabo.
- Posso tocar uma música? - pergunta a Lucy, entusiasmada.
- Bem, com mais um acorde podes aprender a tocar "A Horse with No Name" - tiro-lhe a guitarra da mão e coloco-a no colo, depois toco mi menor, seguido de um ré sexta aumentada, nona aumentada.
- Espere - diz a Lucy. Coloca a mão sobre a minha, para que os dedos pousem nos mesmos sítios em que os meus tocam na guitarra. Depois levanta-me a mão do braço do instrumento e roda a minha aliança de casamento. - É mesmo bonita - diz a Lucy.
- Obrigada.
- Nunca tinha reparado nela antes. É a sua aliança de casamento? Coloco os braços à volta da guitarra. Porque é que uma pergunta que
devia ser tão simples de responder é tudo menos simples?
- Não estamos aqui para falar de mim.
- Mas eu não sei nada sobre si. Não sei se é casada, ou se tem filhos, ou
se é uma assassina em série...
Quando diz a palavra jííhos, sinto um nó no estômago.
- Não sou uma assassina em série.
- Bem, fico mais descansada.
- Olha, Lucy. Não quero desperdiçar o nosso tempo a...
- Não é desperdiçar tempo se for eu a perguntar, pois não?
Há uma coisa que eu sei sobre a Lucy: é imparável. Quando mete uma coisa na cabeça, não desiste. É por isso que aprende tão depressa qualquer desafio musical que lhe lanço, desde a análise de letras a aprender a tocar um instrumento. Já pensei muitas vezes que é por isso que ela parecia estar tão desligada do mundo quando nos vimos pela primeira vez - não por não se interessar, mas por se interessar de mais; sempre que se envolvia em alguma coisa, ficava exausta.
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Também sei outra coisa sobre a Lucy: apesar de não achar que ela seja particularmente conservadora, a família dela é. E, neste caso, o melhor é não ficar a saber de mais. Se revelar acidentalmente à mãe que sou casada com a Vanessa, não tenho dúvidas de que a terapia musical vai ser imediatamente suspensa. Não ia conseguir suportar a ideia de que a minha situação de alguma maneira afetara negativamente a dela.
- Não percebo porque é que isso tem de ser um segredo de estado diz ela.
Encolho os ombros.
- Não ias fazer perguntas ã psicóloga da escola sobre a sua vida pessoal, pois não?
- A psicóloga da escola não é minha amiga.
- Eu não sou tua amiga - corrijo. - Sou a tua terapeuta musical. Ela afasta-se imediatamente de mim. Os olhos dela ensombram-se.
- Lucy, não estás a perceber...
- Oh, acredite, eu percebo - diz ela. - Sou a sua dissertação de merda. A sua experienciazinha de Frankenstein. Saí daqui, vai para casa e está-se nas tintas para mim. Sou só trabalho, para si. Está bem. Já percebi perfeitamente.
Suspiro.
- Sei que para ti é doloroso, mas o meu trabalho, Lucy, é falar sobre ti. Concentrar-me em ti. Claro que me importo contigo, e claro que penso em ti quando não estamos reunidas. Mas ultimamente preciso que me vejas como a tua terapeuta musical,
e não como tua amiga.
A Lucy volta-se no assento, olhando para a janela com um olhar vazio. Durante os quarenta minutos seguintes, não reage quando toco, canto, nem pede para ouvir música
no meu iPod. Quando a campainha finalmente toca, ela sai dali tão depressa como um musíang que roeu as rédeas. Já vai a meio caminho da porta quando lhe digo que nos vemos na sexta-feira, mas não sei se ela me ouve.
- Para de te mexer - sussurra a Vanessa quando me sento ao lado da Angela Moretti, à espera que o juiz entre na sala de audiências e delibere sobre o requerimento do Wade Preston para nomear um representante legal.
- Não consigo evitar - digo entre dentes.
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A Vanessa está sentada diretamente atrás da nossa mesa. A minha mãe, ao lado dela, fala:
- A ansiedade é como uma cadeira de baloiço. Dá-nos qualquer coisa para fazer, mas não nos leva muito longe.
A Vanessa olha para ela.
- Quem disse isso?
- Acabei eu de dizer.
- Mas estava a citar alguém?
- Eu própria - diz ela, orgulhosa.
- vou dizer isso a um dos meus alunos. Ele mandou realmente mudar a
matrícula do carro para dizer "HARVARD OR BUST23"
Distraio-me com a chegada do Max e dos advogados dele. O Wade Preston é o primeiro a percorrer a galeria da sala de audiências, seguido pelo Ben Benjamin e pelo Reid. Alguns passos mais atrás vem o Max, vestindo outro fato que o irmão lhe deve ter comprado. Tem os cabelos muito compridos, ondulados por cima das orelhas. Costumava troçar dele quando ficava assim, costumava dizer que estava a criar um visual à Carol Brady.
Se é que existe uma componente física da paixão - o nó no estômago, a montanha-russa na alma - então perder a paixão também deve ter uma componente física. Parece que os pulmões são crivos, e não conseguimos respirar ar suficiente. As entranhas ficam petrificadas. O coração transforma-se numa pequena pérola amarga, uma reação química a um grão irritante de verdade.
A última pessoa do grupo é a Liddy. Hoje está a reencarnar a Jackie Kennedy.
- Ela tem uma perturbação obsessivo-compulsiva - sussurra a Vanessa
- ou as luvas estão na moda?
Antes que possa responder, uma assistente jurídica esgotada percorre apressadamente a galeria com um carrinho e começa a empilhar manuais em frente ao Wade Preston, tal como no outro dia. Mesmo que seja apenas para a imagem, está a resultar. Estou completamente intimidada.
21 Busí, que significa busto, é foneticamente semelhante a burst, explodir, fazendo alusão à frase Harvard or burst, que significa: se não for para Harvard vou explodir.
(N. da T.)
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- Olhe, Zoe - diz a Angela, sem levantar os olhos das notas que escreveu. - Sabia que os correios quase puseram a cara do Wade Preston num selo? Mas desistiram porque as pessoas não conseguiam perceber de que lado deviam cuspir. Num esvoaçar de vestes negras, o juiz O'Neill entra.
- Sabe, Dr. Preston, o senhor não vai ganhar nenhum bónus pela quilometragem por vir ao tribunal com maior frequência - folheia o requerimento que tem à sua frente. - Estarei a interpretar isto mal, doutor, ou o senhor está a pedir que seja nomeado um representante legal para uma criança que não existe e que talvez nunca venha a existir?
- Meritíssimo - diz o Preston, levantando-se -, o mais importante aqui é que estamos a falar de uma criança. Foi o senhor que disse. E assim que esta criança por nascer venha ao mundo, o resultado da sua decisão vai determinar onde ela ou ele irá crescer. Para isso, acho que deveríamos contar com a opinião de um profissional qualificado que possa entrevistar as potenciais famílias e pais para dar-nos os instrumentos necessários a fim de podermos tomar uma decisão.
O juiz olha para a Angela por cima dos óculos.
- Dr.a Moretti, algo me diz que talvez tenha uma opinião diferente.
- Meritíssimo, as responsabilidades de um representante legal incluem entrevistar a criança que está no meio do desentendimento. Como é que se pode entrevistar um embrião?
O Wade Preston abana a cabeça.
- Ninguém está a sugerir que o representante legal fale com uma placa de petri, Doutor Juiz. Mas achamos que conversar com os potenciais pais vai dar-nos uma boa indicação do estilo de vida mais apropriado para uma criança.
- Ampola - sussurro.
Distraída, a Angela aproxima-se mais de mim.
- O quê?
Abano a cabeça, em silêncio. Os embriões são guardados em ampolas, e não em placas de petri. Se o Preston se tivesse documentado, saberia isso. Mas aqui o mais importante para ele não é ser meticuloso, nem exato. É ser o diretor de um circo.
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- com o devido respeito, Meritíssimo, a lei de Rhode Island é clara
- contrapõe a Angela. - Quando se discute o superior interesse de uma criança numa litigação para obtenção da custódia, estamos a referir-nos a crianças que já estão vivas. O que o Dr. Preston está a tentar fazer é elevar o estatuto de embriões congelados a algo que eles não são neste estado... nomeadamente, humanos.
O juiz dirige-se ao Wade Preston.
- O senhor abordou um ponto interessante, Dr. Preston. Não sei bem se não gostaria de aprofundar esse conceito, mas a Dra Moretti tem razão quanto à lei. A nomeação de um representante legal pressupõe a existência de um menor, por isso vou ter de indeferir o requerimento. No entanto, tal como é dever deste tribunal, é do nosso interesse proteger as vítimas inocentes. Para isso, vou ouvir todas as testemunhas e assumir eu próprio o papel de um representante legal - olha para cima. - Estamos preparados para estabelecer uma data para o julgamento?
- Meritíssimo - diz a Angela -, a minha cliente tem quarenta e um anos, a esposa tem quase trinta e cinco. Os embriões já estão criopreservados há mais de um ano. Gostaríamos de ver este assunto resolvido o mais depressa possível, para garantir as melhores hipóteses de uma gravidez viável.
- Parece que a Dr.a Moretti e eu concordamos de facto em alguma coisa
- acrescenta o Wade Preston. - Apesar de querermos levar este caso a julgamento de forma célere porque estas crianças merecem ser colocadas num lar cristão tradicional e afetuoso o mais depressa possível.
- Existe uma terceira razão para que o julgamento seja marcado atempadamente - diz o Juiz O'Neill. - vou reformar-me no final de junho, e não pretendo deixar esta confusão para outra pessoa resolver. Vamos marcar o julgamento para daqui a quinze dias. Presumo que ambos os lados estejam totalmente preparados...
Depois de o juiz sair para o seu gabinete, viro-me para a Angela.
- Isso é bom, não é? Ganhámos o requerimento?
Mas ela está menos entusiasmada do que eu estava à espera.
- Teoricamente - admite ela. - Mas não gostei do que ele disse sobre "vítimas inocentes". Parece-me distorcido.
Deixamos de falar quando o Wade Preston se aproxima e entrega um papel à Angela.
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-A sua lista de testemunhas - diz ela, examinando-a. - É mesmo proativo, não é?
Ele sorri, como um tubarão.
- Ainda não viu nada, minha cara - diz ele.
Na sexta-feira, a Lucy chega quinze minutos atrasada à nossa sessão. Decido dar-lhe o benefício da dúvida, visto que nos mudaram para o estúdio de fotografia no terceiro piso - uma sala que nem sequer sabia que existia.
- Olá - digo, quando ela entra. - Também tiveste dificuldades em encontrar a sala?
A Lucy não responde. Senta-se a uma secretária, tira um livro e enfia o nariz nele.
- Está bem, ainda estás zangada comigo. É absolutamente evidente. Então vamos falar sobre isso - inclino-me para a frente, com as mãos entaladas entre os joelhos. - É absolutamente normal uma cliente interpretar mal a sua relação com a terapeuta... o Freud até referiu que isso era fundamental para descobrir qualquer coisa do seu passado que estivesse a perturbá-la. Por isso talvez possamos abordar de forma construtiva a razão de quereres que eu seja tua amiga. O que é que isso diz de ti, e do que precisas neste momento?
Imperturbável, ela vira a página.
O livro é uma coleção de contos de Anton Chekhov.
- Estás a estudar literatura russa - deduzo. - Impressionante. - Nunca estudei literatura russa. Sou demasiado burra. Já me custa perceber quando está em inglês - alcanço a guitarra e dedilho algumas notas eslavas, em tom menor. - Se fôssemos tocar literatura russa, acho que ia soar mais ou menos assim - digo, pensativa. - Só que preciso mesmo de um violino.
A Lucy fecha o livro, lança-me um olhar fulminante e pousa a cabeça
na secretária.
Puxo a cadeira para mais perto dela.
- Talvez não me queiras dizer em que estás a pensar. Talvez preferisses tocar.
Não tenho resposta.
Alcanço o meu djembé e coloco-o entre os joelhos, inclinado, para que ela possa tocar.
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- Estás zangada assim - pergunto, batendo ligeiramente no djembé -, ou assim? - bato-lhe com força, com a palma da mão.
A Lucy continua virada na direção oposta. Começo a tocar um ritmo, tum-tum-tum-TUM, tum-tum-twn-TUM. Acabo por parar.
- Se não queres conversar, talvez hoje devêssemos ficar só a ouvir. Logo o iPod ao sistema de colunas portáteis e começo a tocar algumas
das músicas a que a Lucy já reagiu anteriormente - positiva ou negativamente. Nesta altura, só quero que ela tenha alguma reação. Acho que finalmente consegui quebrar-lhe a concha quando ela se endireita, se vira na cadeira e procura qualquer coisa na mochila. Passado um instante, tira um lenço de papel velho e amachucado.
A Lucy rasga dois pequenos pedaços do lenço de papel. Amachuca-os numa bola e enfia-os nos ouvidos.
Desligo a música.
Quando comecei a trabalhar com a Lucy e ela se comportava assim, encarava isso como um desafio a superar, tal como encarava os desafios com todos os outros pacientes. Mas após meses de progresso... é como se fosse uma afronta pessoal.
Freud designá-lo-ia contratransferência. Ou, por outras palavras, é o que acontece quando as emoções do terapeuta se misturam com as do paciente. Devo recuar e pensar por que razão a Lucy está a tentar canalizar esta raiva para mim. Assim, volto a assumir o controlo das emoções no nosso relacionamento terapêutico... e, acima de tudo, descubro mais uma peça do quebra-cabeças que é a Lucy.
A questão é que Freud compreendeu tudo mal.
Quando o Max e eu nos conhecemos, ele levou-me a pescar. Nunca tinha feito isso, e não percebia como é que as pessoas eram capazes de passar dias inteiros a balançar no oceano à espera de um peixe que nunca chegava a morder o anzol. Parecia um disparate, uma pura perda de tempo. Mas, naquele dia, os robalos eram aos montes. Ele colocou o isco no meu anzol, lançou-o e mostrou-me como devia segurar na cana. Após cerca de quinze minutos, senti um puxão na linha. "Apanhei um", disse, entusiasmada e nervosa. Escutei o Max com atenção quando ele me disse o que devia fazer - mover-me devagar e ritmadamente, sem nunca, deixar
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de manter a linha esticada - mas então, de repente, ficou frouxa. Quando a puxei, o isco tinha desaparecido, e o robalo também. Fiquei completamente desanimada, e nesse momento compreendi porque é que os pescadores ficam o dia inteiro à espera de apanhar qualquer coisa: temos de perceber o que perdemos antes de acharmos que perdemos realmente algo.
E por isso que o boicote da Lucy a esta sessão me magoa muito mais do que ao início. Agora conheço-a. Estabeleci uma relação com ela. Por isso a introspeção dela não é um desafio; é um contratempo.
Passados alguns minutos, desligo a música, e ficamos sentadas em silêncio durante o resto da sessão.
Quando o Max e eu estávamos a tentar ter um bebé, tivemos de falar com uma assistente social na clínica de fertilização in vítro - mas não me lembro de as perguntas serem parecidas com aquelas que a Vanessa e eu estamos agora a ouvir.
A assistente social chama-se Felicity Crimes, e parece que não recebeu a mensagem a informar que os anos oitenta já tinham terminado. Tem um blazer assimétrico, com enormes chumaços nos ombros. Tem uma pala tão alta nos cabelos que podia servir de vela.
- Acham realmente que vão ficar juntas? - pergunta.
- Somos casadas - digo. - Acho que isso é um bom indicador do nosso compromisso.
- Cinquenta por cento dos casamentos acabam em divórcio - diz a Felicity.
Tenho quase a certeza de que, quando o Max e eu falámos com a assistente social, ela não nos perguntou se a nossa relação ia ou não aguentar a prova do tempo.
- Isso é verdade nos casamentos de sexo oposto - diz a Vanessa. Mas o casamento entre homossexuais não existe há tempo suficiente para existirem estatísticas. Por outro lado, tendo em conta as dificuldades que tivemos de ultrapassar para nos casarmos, poderia afirmar-se que estamos ainda mais empenhadas do que a maioria dos casais heterossexuais.
Aperto a mão da Vanessa, num sinal de aviso. Tentei explicar-lhe que, por muito estúpidas que as perguntas sejam, temos de manter a calma e responder. Aqui o objetivo não é agitar uma bandeira com as cores do
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arco-íris. É receber a aprovação da assistente social, para podermos prosseguir para a fase
seguinte.a
- O que ela quer dizer é que estamos empenhadas a longo prazo - digo, sorrindo hesitantemente.
Tivemos de defrontar a diretora da clínica para iniciar o processo da fertilização in vitro - apesar de o tribunal ter colocado os embriões congelados suspensos num limbo. Ela aceitou deixar-nos completar os elementos psicológicos, e depois - se o tribunal deliberar a nosso favor - a Vanessa começará imediatamente a tomar os medicamentos. Mas, tal como ela fez notar, se o Max quisesse que o Reid e a Liddy tivessem os mesmos privilégios, teria de conceder-lhos.
Jã explicámos à assistente social como nos conhecemos, há quanto tempo estamos juntas.
- Já pensaram nas implicações legais de serem pais do mesmo sexo?
- Sim - digo. - Eu vou adotar o bebé, depois de a Vanessa dar à luz.
- Presumo que ambas tenham uma procuração?
Ficamos a olhar uma para a outra. Ao contrário dos casais heterossexuais, se eu tivesse um acidente de viação e estivesse a morrer, a Vanessa, como minha mulher, não teria o direito de ficar ao pé de mim no hospital, de tomar a decisão de desligar os sistemas de suporte de vida. Visto que o nosso casamento não é reconhecido a nível federal, temos de ultrapassar todas estas contingências legais para ter os mesmos direitos - os 1138 que surgem naturalmente quando os casais heterossexuais se casam. A Vanessa e eu estávamos a pensar sentarmo-nos com uma garrafa de bourbon uma noite e fazer uma à outra perguntas que ninguém gostaria de ter de responder - sobre doação de órgãos, cuidados paliativos e morte cerebral
- mas depois fomos notificadas com uma ação legal e, ironicamente, pedir a uma advogada que escrevesse uma procuração ficou para segundo plano.
- Estamos a tratar disso - não é mentira se estivermos a pensar em fazê-lo, pois não?
- Porque querem ter um filho? - pergunta a Felicity.
- Não falo pela Vanessa - digo -, mas eu sempre quis ter um filho. Tentei ao longo de quase uma década, com o meu ex-marido. Acho que não me sentirei completa se não puder ser mãe.
A assistente social volta-se para a Vanessa.
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- Vejo jovens todos os dias no trabalho. Alguns são tímidos, ou engraçados, ou só nos dão dores de cabeça. Mas todos eles são a prova viva de que, em determinada altura, os pais acreditaram que teriam um futuro juntos. Quero ter um bebé da Zoe para poder crescer com duas mães que moveram montanhas para o trazer a este mundo.
- Mas como se sente em relação a ser mãe?
- É óbvio que me sinto bem - diz a Vanessa.
- Mas antes nunca expressou o desejo de ter um filho...
- Porque não tinha uma companheira com quem quisesse ter filhos.
- Então está a fazer isto pela Zoe, ou por si própria?
- Como pode pedir-me que separe as duas coisas? - diz a Vanessa, exasperada. - Claro que estou a fazer isto pela Zoe. Mas também o faço por mim.
A Felicity anota qualquer coisa no bloco. Deixa-me nervosa.
- O que a faz pensar que seria uma boa mãe?
- Sou paciente - respondo. - Tenho muita experiência a ajudar pessoas com problemas em expressarem-se de maneiras diferentes. Sei ouvir.
- E ama mais do que qualquer outra pessoa que conheço - acrescenta a Vanessa. - Faria qualquer coisa por um filho. E... bem, eu sou psicóloga numa escola. Tenho de acreditar que isso acabará por ser útil com o meu próprio filho.
- Também é inteligente, confiante e empática - digo. - Um excelente modelo de comportamento.
- Então, Sr.a Shaw... trabalha com adolescentes. Alguma vez tomou conta de crianças quando era mais jovem? Tem irmãos mais novos que tivesse ajudado a criar?
- Não - diz a Vanessa -, mas tenho a certeza de que posso fazer uma pesquisa no Google sobre como mudar uma fralda se tiver problemas.
- Também tem sentido de humor - interrompo. - Um grande sentido de humor!
- Sabe, já me deparei com algumas mães adolescentes ao longo da minha carreira - refere a Vanessa. - Estão suficientemente próximas da infância para se lembrarem dela muito bem, mas não diria que por isso estejam mais bem preparadas para serem mães...
A Felicity olha para ela.
- É sempre assim tão sensível?
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- Só quando estou a falar com uma pessoa que é...
- Que mais? - digo num tom alegre. - Deve ter outras perguntas para nos fazer.
- Como vão explicar ao vosso filho porque tem duas mães e nenhum pai? - pergunta a Felicity.
Já estava à espera desta pergunta.
- Começaria por dizer-lhe que há muitos géneros diferentes de família, e que um não i melhor do que o outro.
- As crianças, como sabe, podem ser cruéis. E se um colega troçar dele por ter duas mães?
A Vanessa cruza as pernas.
- Ia dar uma sova no miúdo que tivesse troçado dele. Fico a olhar para ela.
- Não acabaste de dizer isso.
- Oh, pronto. Haveríamos de lidar com isso. Falaríamos com o nosso filho - diz a Vanessa. - E depois eu ia dar uma sova no rufia.
Ranjo os dentes.
- O que ela quer dizer é que íamos falar com os pais da criança e tentar explicar-lhes como podiam fazer o filho ser um pouco mais tolerante...
O telefone toca, e a assistente social atende.
- Desculpem - diz-nos. - Dão-me licença por um instante?
Assim que a Felicity Grimes sai do gabinete, viro-me para a Vanessa.
- A sério? Acabaste mesmo de dizer isso àquela assistente social que vai decidir se podemos usar ou não estes embriões?
- Não é ela que decide. É o Juiz O'Neill. E além do mais... estas perguntas são ridículas! Há pais desleixados no mundo que bastem para glorificar as mães lésbicas.
- Mas a assistente social tem de dar-nos a sua aprovação para que a clínica dê início a qualquer procedimento - faço notar. - Não sabes jogar este jogo, Vanessa, mas eu sei. Diz e faz tudo o que tens de fazer para que ela nos dê autorização.
- Não vou deixar que uma pessoa me julgue por ser homossexual. Já não basta que a nossa relação esteja a ser arrastada pelos tribunais? Tenho mesmo de ficar aqui a sorrir enquanto a Pam Ewing me diz que não posso ser lésbica e boa mãe?
342
- Ela nunca disse isso - argumento. - Foi o que deduziste.
Imagino a Felicity Crimes a escutar do outro lado da porta, e a fazer uma grande cruz a vermelho no nosso processo. "O casal nem consegue concordar ao longo de um entrevista de uma hora. Incapazes para serem pais."
A Vanessa abana a cabeça.
- Desculpa, mas não vou entrar neste jogo como o Max entrou. Não posso fingir que sou uma pessoa que não sou, Zoe. Passei metade da minha vida a fazer isso.
Nesse momento, a raiva que senti pelo Max efervesce como bolhas na minha língua. Uma coisa é ele tirar-me o direito de usar esses embriões. Outra é ele tirar-me o que me faz feliz.
- Vanessa - digo -, quero ter um bebé. Mas não se isso implicar perder-te. Ela olha para mim quando a assistente social volta a entrar pela porta.
- Peço novamente desculpa. Da minha parte está tudo bem. A Vanessa e eu ficamos a olhar uma para a outra.
- Quer dizer que acabámos? - pergunto. - Passámos? Ela sorri.
- Não se trata de um teste. Não estamos à espera que nos dêem as respostas certas. Só queremos que nos dêem respostas, é tudo.
A Vanessa levanta-se e aperta a mão à assistente social.
- Boa sorte.
Agarro no casaco e na mala, e saímos do gabinete. Por um instante, ficamos ali de pé no corredor, e então a Vanessa agarra-me e abraça-me com tanta força que me levanta os pés do chão.
- Parece que acabei de ganhar a Super Taça.
- É mais o primeiro jogo da época - faço notar.
Tem o braço por cima dos meus ombros enquanto percorremos o corredor.
- Para que saibas - digo -, quando disseste que ias dar uma sova naquele rufia hipotético? Posso não ter dito isso à assistente social, mas ia apoiar-te a cem por cento.
- É por isso que te amo.
Chegámos ao elevador, e eu carrego no botão. Quando a campainha toca, a Vanessa e eu afastamo-nos.
343
É instintivo.
É para que as pessoas lá dentro não tenham motivos para ficarem a
olhar.
Às terças-feiras de manhã, vou a uma unidade de cuidados paliativos e faço terapia musical com pessoas que estão a morrer gradualmente. É um trabalho brutal, que esgota a alma. Mesmo assim, preferia estar lá a estar outra vez sentada ao lado da Angela Moretti, desta vez para uma audiência sobre um requerimento de emergência apresentado pelo Wade Preston à última hora ontem. A Angela está tão zangada que nem sequer diz piadas de advogados à custa do Preston.
O Juiz O'Neill lança um olhar acutilante ao Preston.
- Tenho à minha frente um requerimento de emergência apresentado pelo senhor a pedir que desqualifique a Dra Angela Moretti como advogada de Zoe Baxter e um requerimento apresentado pela Dr.a Angela Moretti para revogar o primeiro. Ou, como gosto de dizer, um frasco inteiro de Excedrin antes do meio-dia. O que se passa, Dr. Preston?
- Doutor Juiz, não me dá nenhuma satisfação em trazer estas informações ao tribunal. Mas, tal como pode ver na fotografia em anexo, que gostaria de apresentar como Prova A, a Dr.a Moretti não só é simpatizante da causa lésbica... como ela própria está envolvida neste estilo de vida desviante.
Mostra uma fotografia pouco nítida de vinte por vinte e cinco centímetros com a Angela e eu, abraçadas. Tenho de semicerrar os olhos para perceber onde foi tirada. Então vejo a rede de arame e o poste do candeeiro e apercebo-me de que foi no parque de estacionamento do liceu.
A Angela e eu não tínhamos nenhuma reunião marcada para aquele dia.
O que significa que o Preston mandou alguém seguir-me.
O Wade Preston encolhe os ombros.
- Uma imagem vale mil palavras.
- Ele tem razão - diz a Angela. - E esta fotografia falaciosa fala por si.
- Se é isto que estão dispostas fazer em público, imagine o que farão em privado...
- Oh, meu Deus - diz a Angela entre dentes.
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- Agora é um pouco tarde para começar a rezar, minha cara. É evidente que a arguida e a sua advogada estão envolvidas numa relação imprópria que viola as regras de ética que regem os advogados no estado de Rhode Island - diz o Preston.
O Ben Benjamin levanta-se do assento devagar.
- Hum, por acaso, Wade, em Rhode Island, um advogado pode ter uma relação sexual com o cliente.
O Preston vira-se bruscamente e olha para ele.
- Pode?
Eu viro-me para a Angela:
- Podei
O Benjamin acena com a cabeça.
- Desde que não sirva para pagar os honorários. Imperturbável, o Preston vira-se novamente para o juiz.
- Meritíssimo, não obstante, todos nós sabemos que existem padrões de ética na prática do direito, e que uma advogada teria de ser moralmente dúbia para ter uma relação com uma cliente que ultrapassa os limites da decência como é indicado pela Prova A. É evidente que a Dr.a Moretti não está apta a representar a sua cliente com imparcialidade
neste assunto.
O juiz vira-se para a Angela.
- Presumo que tenha qualquer coisa a acrescentar...
- Nego absoluta e inequivocamente que tenha um caso amoroso com a minha cliente, cuja mulher está neste momento sentada atrás de mim. E o que os papamzzi do Dr.
Preston testemunharam foi um abraço inocente a seguir a uma reunião com a minha cliente, quando ela estava desanimada depois de ficar a saber da tentativa do Dr. Wade Preston para distorcer a justiça apresentando um requerimento para nomear um representante legal para zigotos. Apesar de compreender perfeitamente por que razão o Dr. Preston não seria capaz de reconhecer um ato comum de compaixão humana... presumindo que ele seja realmente humano... interpretou a situação erradamente. Além disso, Meritíssimo, isto suscita a pergunta: por que razão havia alguém a tirar uma fotografia à minha cliente?
- É uma aliança de casamento que tem no dedo? - pergunta o juiz à Angela.
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-É.
- A senhora é casada, Dr.a Moretti? Ela semicerra os olhos.
- Sou.
- com um homem ou com uma mulher? - interrompe o Wade Preston. A Angela confronta-o.
- Objeção! Isto é absolutamente intolerável, Meritíssimo. É calúnia e difamação...
- Basta - ruge o Juiz O'Neill. - Requerimento indeferido. Não vou atribuir indemnizações nem sanções a nenhuma das partes. Portanto, parem de fazer-me perder tempo.
Assim que ele se levanta do seu lugar, a Angela aproxima-se da mesa do queixoso e grita ao Wade Preston, que tem pelo menos mais vinte centímetros do que ela.
-Juro que se voltar a denegrir desta maneira o meu caráter, vou processá-lo tão depressa que vai logo a voar diretamente para a semana seguinte.
- Denegrir o seu caráter? Ora, Dr.a Moretti, está a sugerir que ser homossexual é. um insulto? - solta um som de reprovação. - Que vergonha, que vergonha. A GLAAD talvez tenha de revogar o seu cartão de sócia vitalícia.
Ela espeta um dedo na fina lapela dele e parece que vai soltar chamas da boca, mas de repente afasta-se e ergue as palmas das mãos, fazendo uma concessão.
- Sabe que mais? Ia dizer "vá-se lixar", mas depois resolvi ficar à espera que comece o julgamento para se lixar a si próprio.
Dá meia volta e sai pela cancela, subindo a galeria, para fora da sala de audiências. A Vanessa olha para mim.
- vou certificar-me de que não lança fogo ao carro dele - diz ela, e sai a correr atrás da Angela. Entretanto, o Wade Preston vira-se para os seus acompanhantes.
- Missão cumprida, meus amigos. Enquanto estiverem a preparar uma defesa não poderão preparar uma ofensiva.
Ele e o Ben Benjamin saem juntos, segredando em murmúrios. Deixam ficar a pilha de livros que aparece sempre que o Wade Preston aparece, e o Max, que fica sentado com a cabeça curvada apoiada nas mãos.
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Quando me levanto, o Max também se levanta. Há uma secretária do tribunal algures na sala de audiências, um par de oficiais de justiça, mas nesse momento, todos desaparecem e ficamos apenas nós. Reparo nos primeiros reflexos brancos na barba por fazer. Os seus olhos parecem pisados.
- Zoe. Sobre isto. Tenho muita pena.
Tento lembrar-me do que o Max disse no dia em que perdemos o nosso filho. Talvez estivesse sedada, talvez não estivesse em mim, mas não me lembro de uma única palavra de conforto. Aliás, não me lembro de uma única coisa concreta que ele alguma vez me tivesse dito, nem sequer "amo-te". É como se todas as conversas do nosso passado tivessem ficado mumificadas, uma relíquia antiga que se desfaz em pó se nos aproximarmos demasiado.
- Sabes, Max - digo -, não me parece que tenhas mesmo.
Durante mais duas sessões de terapia musical, a Lucy chega atrasada, ignora-me e depois vai-se embora. À terceira, decido que já basta. Estamos na sala de matemática, e há símbolos no quadro que me fazem ficar tonta e ligeiramente nauseada. Quando a Lucy chega, pergunto-lhe como está, como é habitual, e, como é habitual, ela não responde. Mas desta vez, agarro na minha guitarra e toco Air Supply, "Ali Out of Love".
A seguir a isso, toco uma versão ao vivo de "My Heart Will Go On", de Celine Dion.
Toco tudo o que acho que vai pôr a Lucy num coma diabético ou fazê-la arrancar-me o instrumento das mãos. Mas a Lucy não cede.
- Desculpa - digo por fim. - Mas não me deixas outra alternativa senão recorrer às armas mais mortíferas.
Coloco a guitarra no estojo e tiro um ukdde. Então começo a tocar a música de Barney e os Seus Amigos.
Durante os primeiros três refrães, a Lucy ignora-me. Mas depois, num gesto rápido, agarra no braço do ukelele e aperta-o com os dedos para eu não poder tocar.
- Deixe-me em paz - grita ela. - De qualquer modo, é isso que quer.
- Se vais colocar palavras na minha boca, então eu vou fazer o mesmo contigo - digo. - Sei o que estás a fazer, e sei porque estás a fazê-lo. Percebo que estás zangada.
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- Obrigada, Capitão Óbvio - diz a Lucy entre dentes.
- Mas não estás zangada comigo. Estás zangada contigo própria. Porque contra todas as expetativas, apesar de teres tanta certeza de que ias odiar trabalhar comigo e ires às sessões de terapia musical, elas começaram a resultar. E gostas de vir - pouso o ukelelc em cima de uma secretária ao meu lado e fico a olhar para a Lucy. - Gostas de estar comigo.
Ela olha para cima, com um rosto tão sofrido e aberto que, por um instante, me esqueço do que estava a dizer.
- Então o que fazes? Vais sabotar a relação terapêutica que construímos, porque assim podes dizer a ti própria que tinhas razão. Que isto é uma treta. Que nunca ia resultar. Como o fazes ou que razão inventas para ficarmos zangadas não interessa. Estragas a única coisa boa que tens porque se a estragares, então mais tarde não vais ter de lidar com a desilusão.
A Lucy levanta-se bruscamente. Tem os punhos cerrados ao lado do corpo, e a boca é um traço vermelho lívido.
- Porque é que não é capaz de seguir uma dica? Por que raio ainda está aqui?
- Porque não há nada que possas fazer ou dizer, nem nenhuma forma de te comportares, que me faça afastar, Lucy. Não vou deixar-te.
Ela fica imóvel.
- Nunca? - a palavra é como vidro temperado, quebrada e cheia de beleza. Sei como é difícil para ela abrir-se, expor o seu âmago mais frágil sob
aquela dura carapaça. Por isso prometo. Não me surpreendo quando surgem as lágrimas, quando ela soçobra junto a mim. Faço aquilo que qualquer outra pessoa faria, naquela situação: abraço a Lucy até ela ser capaz de se equilibrar.
A campainha toca, mas a Lucy não faz nada para sair da sala. Passa-me pela cabeça que alguém possa precisar de usar este espaço, mas, quando uma professora entra, depois de ter terminado o período de preparação da aula, vê a Lucy sentada com a cabeça apoiada na secretária, e a minha mão a afagar-lhe as costas ao de leve. Estabelecemos contacto visual, e a professora sai da sala.
- Zoe? - a voz da Lucy é lenta e redonda, como se a girasse debaixo de água. - Promete-me?
-Já prometi.
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- Então nunca mais vai voltar a tocar o Barney.
Olha para rmm de lado. Tem os olhos vermelhos e inchados, o nariz a pingar, mas há um sorriso. "Trouxe-lho de volta", penso. Finjo refletir sobre o seu pedido.
- Negociar contigo não é brincadeira - digo.
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UMA VIDA NORMAL
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MAX
Nada faz uma igreja ficar mais bonita do que uma situação de crise. Um parente moribundo, uma criança que vai ser submetida a uma cirurgia, um diagnóstico de cancro - e de repente toda a gente lança mão à obra. Encontramos tachos de guisado à nossa porta, vemos o nosso nome numa lista de orações impressa no boletim. Senhoras aparecem à nossa porta para fazerem limpeza ou tomarem conta das crianças. Sabemos que, apesar de estarmos a atravessar um dos cantos do Inferno, não estamos sozinhos.
Já há semanas que sou objeto de oração na Glória Eterna, para que quando for ao tribunal Deus já tenha ouvido quase cem paroquianos. Hoje, estou sentado no auditório da escola quando o Pastor Clive dá início ao seu sermão.
As crianças da congregação estão ao fundo do corredor, na sala de expressão plástica, a colar imagens de animais numa fotocópia da arca. Sei isto porque, ontem à noite, ajudei a Liddy a desenhar as girafas, os hipopótamos, os esquilos e os porcos-formigueiros para as crianças colorirem e recortarem na catequese. E ainda bem que não estão aqui, porque hoje o Pastor Clive está a falar de sexo.
- Irmãos e irmãs em Cristo - diz ele -, tenho uma pergunta para vos fazer. Sabem como algumas coisas parecem andar aos pares? Não podemos falar numa sem pensar automaticamente na outra metade natural. Como o sal e a pimenta. A manteiga de amendoim e a geleia. Beijos e abraços.
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Quando temos apenas uma das duas, parece que falta qualquer coisa, não parece? Está incompleta. Inacabada. E se ouvirmos outra palavra, como se eu dissesse gatos e papagaios, em vez de gatos e cães, soa mal, não soa? Por exemplo, se disser mãe, vocês diriam...?
- Pai - murmuro, como toda a gente.
- Marido?
- Mulher!
O Pastor Clive acena com a cabeça.
- Reparem que não disse "mãe e mãe". Não disse "marido e marido", nem "mulher e mulher". Não disse essas coisas porque, quando as ouvimos, sabemos que estão erradas.
Creio que isto é particularmente verdadeiro quando se trata de compreender por que razão o plano de Deus não inclui um estilo de vida homossexual.
Olha para a congregação.
- Há pessoas que vos dirão que a Bíblia não diz nada sobre a homossexualidade, mas isso não é verdade. Carta aos Romanos 1:26-27: "Por causa disso Deus os entregou a paixões vergonhosas. Até suas mulheres trocaram suas relações sexuais naturais por outras contrárias à natureza. Da mesma forma, os homens também abandonaram as relações naturais com as mulheres e se inflamaram de paixão uns pelos outros. Começaram a cometer atos indecentes, homens com homens, e receberam em si mesmos o castigo merecido pela sua perversão." Alguns que refutam isto, aqueles que nos dizem que Deus não tem nada a dizer sobre a homossexualidade, dir-vos-ão que Paulo está a referir-se ao que se passava nos templos pagãos da Grécia. Esses que refutam dir-vos-ão que estamos a ignorar o contexto. Eu, meus amigos, digo que nós percebemos o contexto
- faz uma pausa, estabelecendo contacto visual com todos nós. - Deus detesta a homossexualidade - diz ele.
O Pastor Clive lê em voz alta o versículo que hoje está escrito no boletim. É de Coríntios 6:9-10:
- "Não se deixem enganar: nem imorais, nem idólatras, nem adúlteros, nem homossexuais passivos ou ativos, nem ladrões, nem avarentos, nem alcoólatras, nem caluniadores,
nem trapaceiros herdarão o Reino de Deus." Pergunto-vos, amigos. Deus podia ter sido mais claro? Não há vida eterna para os desviantes. Ora, esses que o refutam
dir-vos-ão que
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o problema é a tradução da Bíblia. Que a palavra homossexual não significa realmente "homossexual" nesta passagem; que é uma palavra grega que significa "acompanhante
efeminado." Dir-vos-ão que foi apenas em 1958 que um tradutor qualquer tomou a decisão arbitrária de escrever a palavra homossexual na Bíblia em língua inglesa.
"Bem, digo-vos que essa decisão não foi nada arbitrária. Estas passagens descrevem uma sociedade que perdeu a capacidade de distinguir o bem do mal. E, de facto, cada vez que se menciona a homossexualidade nas escrituras, esta é condenada."
A Liddy senta-se no banco ao meu lado. Começa a catequese com os catequistas e depois vem ouvir o sermão do Pastor Clive. Sinto o calor da pele dela, a centímetros do meu braço.
- Amanhã, quando a ex-mulher do Max estiver no tribunal diante de Deus e disser que o seu estilo de vida é normal, saudável e afetuoso, eu dir-lhe-ei que na Carta aos Hebreus 11:25 se diz que os prazeres do pecado duram pouco. Mas na Carta aos Gaiatas também se diz que aquele que semeia para satisfazer a sua natureza pecaminosa, dessa natureza colherá a destruição. Amanhã, quando a ex-mulher do Max estiver no tribunal diante Deus e disser que a homossexualidade está generalizada, eu dir-lhe-ei que talvez assim seja, mas isso não a exonera aos olhos de Deus. Prefiro estar em minoria e estar certo a estar errado na maioria.
Ouve-se um murmúrio de assentimento vindo da congregação.
- Amanhã, quando a ex-mulher do Max estiver no tribunal diante de Deus e disser que nasceu lésbica, eu dir-lhe-ei que não existe um só estudo científico que prove
isso, e que tem simplesmente uma tendência para esse estilo de vida. Afinal, eu gosto de nadar... mas não sou um peixe.
O Pastor Clive desce os degraus do palco, dirige-se para a galeria e para na minha fila.
- Max - diz ele -, venha juntar-se a mim - envergonhado, de início não me mexo, mas a Liddy pousa-me a mão no braço. "Vai", incita, e eu vou.
Subo para o palco atrás do Pastor Clive enquanto um dos assistentes coloca uma cadeira ao meio.
- O Max é mais do que apenas nosso irmão. É um homem ao serviço de Jesus, na linha da frente, a lutar para que a verdade de Deus prevaleça. Por isso, rezo por ele.
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- Ámen - grita alguém. O pastor levanta a voz.
- Quem quer vir para aqui rezar comigo?
Uma dezena de pessoas levanta-se do assento e dirige-se para o palco. Pousam as mãos em mim enquanto a voz do pastor bate como as asas de cem corvos.
- Senhor, que Vos senteis ao lado do Max na sala de audiências. Que ajudeis a sua ex-mulher a perceber que o pecado dela não é maior do que o meu ou o Vosso, e que seja bem recebida no Reino de Deus. Que ajudeis os filhos do Max Baxter a encontrarem o caminho para Vós.
Uma multidão sobe ao palco para rezar por mim, para me tocar. Os seus dedos são como borboletas que pousam na terra por apenas um segundo antes de seguirem o seu caminho. Ouço o murmúrio das suas palavras subir até Deus. Para quem não acredita no poder da oração, desafio-vos: venham a uma igreja como a minha e sintam a eletricidade de uma multidão a torcer por nós.
O tribunal do Condado de Kent tem uma longa passagem que vai do parque de estacionamento até ao interior do edifício, e está cheia de membros da Igreja da Glória Eterna. Apesar de estarem lá alguns polícias, para garantir a segurança, o protesto está longe de ser perturbador. O Pastor Clive pediu a todos que se alinhassem de cada lado da passagem, a cantar um hino. Quero dizer, não se pode prender ninguém por cantar, pois não?
Assim que chegamos - e ao dizer nós estou a referir-me a mim, ladeado pelo Wade e pelo Ben, e com o Reid e a Liddy, que vêm logo atrás de nós -, o Pastor Clive sai do seu lugar e dirige-se para o meio da passagem. Veste um fato de linho branco com uma camisa rosa e uma gravata às riscas; não há dúvida de que chama a atenção mas, por outro lado, provavelmente chamaria a atenção mesmo que vestisse um saco de batatas.
- Max - diz ele, abraçando-me. - Como se sente?
Hoje de manhã, a Liddy preparou-me um grande pequeno-almoço antes de sair, e eu comi-o, para logo depois vomitá-lo. De tão nervoso que estava. Mas antes que consiga dizer isto ao Pastor Clive, o Wade aproxima-se de nós.
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- Vire-se para a esquerda.
Eu viro-me, e é nessa altura que vejo as câmaras.
- Vamos rezar - diz o Pastor Clive.
Abrangemos as duas filas de pessoas formando uma ferradura que
bloqueia a entrada para o tribunal. O Wade segura na minha mão
direita; o Pastor Clive na esquerda. À medida que os jornalistas gritam perguntas, a voz do Pastor Clive é sonora e firme.
- Pai, em nome de Jesus, está escrito na Vossa Palavra que devemos dirigir-nos a Vós que Vós nos respondereis e nos mostrareis coisas magnânimas e poderosas. Hoje, pedimo-Vos que o Max e o seu advogado fiquem bem firmes e que triunfem. Escondei o Max daquelas línguas que procuram amesquinhá-lo e das falsas testemunhas que espalham mentiras. Por causa de Vós, o Max não estará nervoso. Ele
sabe, e nós sabemos, que o Espírito Santo o levará a dizer o que tem de ser dito.
- Bip, bip - ouço, e abro os olhos. A Angela Moretti, a advogada que representa a Zoe, está a alguns metros de distância, encurralada pela barreira do nosso círculo de oração. - Detesto ter de interromper o vosso momento à Billy Graham, mas a minha cliente e eu gostávamos mesmo
de entrar no tribunal.
- Dr.a Moretti - diz o Wade -, certamente que não está a tentar tirar a toda esta boa gente os direitos concedidos pela Primeira Emenda...
- Ora, não, Dr. Preston. Isso iria contra os meus princípios. Tal como, por exemplo, um advogado a desejar de tal forma as luzes da ribalta que convoca a comunicação social com antecedência, sabendo que vai haver algum tipo de confronto forçado entre o seu lado e o lado oposto.
A Zoe está à espera atrás da Angela Moretti, com a mãe e a Vanessa. Por um minuto, interrogo-me que lado irá ceder primeiro. E então, a Liddy faz uma coisa de que não estou nada à espera. Avança e abraça a Zoe, sorrindo-lhe.
- Jesus ama-te, sabes - diz ela.
- Estamos a rezar por si, Zoe - acrescenta alguém.
Isso basta para quebrar a barreira, e de repente toda a gente murmura alguma mensagem de fé e esperança para a Zoe. Faz-me pensar em apanhar moscas com mel, em matar com gentileza.
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E funciona. Apanhada de surpresa, a Angela Moretti agarra no braço da Zoe e arrasta-a pelas portas do tribunal. O Wade larga-me a mão, para que ela possa passar por nós. Ao fazê-lo, a Zoe olha para mim.
Por um instante, o mundo para.
- Deus perdoa-te - digo-lhe.
Os olhos da Zoe estão límpidos, abertos, da cor de uma tempestade.
- Deus deve saber que não há nada para perdoar - diz ela.
Desta vez é diferente.
Já estive no tribunal algumas vezes, graças a todos aqueles requerimentos que o Wade apresentou, e o procedimento é o mesmo: percorremos a galeria da sala de audiências, e sentamo-nos no nosso lugar, à mesa do queixoso; a ajudante do Wade empilha uma dezena de livros que ele nunca chega a abrir à frente dele; o xerife diz-nos para nos levantarmos e o Juiz O'Neill entra na sala.
Mas, desta vez, não somos os únicos na sala de audiências. Há jornalistas e desenhadores. Há uma delegação do Fred Phelps da Igreja Batista de Westboro, de T-shirts amarelas com letras maiúsculas a dizer:
"DEUS DETESTA BICHAS, DEUS DETESTA A AMÉRICA, BICHA = PECADO, VÃO PARA
o INFERNO." Já vi fotografias deles a manifestarem-se em funerais de militares - acreditam que Deus está a matar os militares americanos para castigar a América por causa de todos os seus homossexuais - e isso faz-me pensar ao ponto que chegou o Wade para atrair a atenção da comunicação social. Este julgamento, o meu julgamento, é realmente importante para eles?
Mas não foi só a gente de Westboro que veio para ver. Os membros da minha igreja também estão aqui, o que me deixa um pouco mais calmo.
E há os outros. Homens que se sentam ao lado de outros homens, de mãos dadas. Um par de mulheres a revezarem-se para pegar num bebé. Talvez sejam amigos da Zoe. Ou da fufa da advogada.
O Juiz O'NeilI senta-se à sua secretária.
- O espetáculo começou - murmura o Wade.
- Antes de começarmos - diz o juiz -, quero avisar todos os presentes, incluindo os advogados, as partes, a comunicação social e a assistência,
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que nesta sala de audiências eu sou Deus. Se alguém interromper o procedimento ordeiro deste tribunal, será expulso. E é por isso que os senhores de T-shirts amarelas, ou as despem, ou as viram do avesso, ou terão de ser levados lá para fora imediatamente. E antes que comece a falar em liberdade de expressão, Dr. Preston, deixe-me reiterar que não fico satisfeito com nada que venha perturbar a ordem.
O grupo da Igreja Batista de Westboro veste camisolas. Tenho a sensação de que já fizeram isto antes.
- Há algum assunto preliminar? - pergunta o juiz, e a Angela Moretti levanta-se.
- Meritíssimo, gostaria de apresentar um requerimento antes de começarmos... para isolar as testemunhas.
- Quem são as suas testemunhas, Dr. Preston? - pergunta o juiz. O Wade entrega uma lista, e a Angela Moretti também. OHNeill acena com a cabeça.
- Os senhores que constam da lista de testemunhas, abandonem a sala de audiências.
- O quê? - grita a Liddy atrás de mim. - Mas então como poderei...
- Quero ficar aqui para te apoiar - diz a Vanessa à Zoe. O Juiz O'NeiII olha para ambas as mulheres.
- Per... tur... bar - diz ele diretamente.
Relutantes, a Vanessa, o Reid e a Liddy preparam-se para sair.
- Aguenta-te aí, mano - diz o Reid, dando-me uma palmada no ombro antes de colocar o braço à volta da cintura da Liddy e levá-la para fora da sala de audiências.
Para onde será que irão. O que farão.
- Hoje temos alegações introdutórias? - pergunta o juiz O'Neill. Quando ambos os advogados acenam com a cabeça, olha para o Wade.
- Dr. Preston, pode começar.
Apesar de ser um tribunal de família e ser o juiz a deliberar sobre este caso em vez de um júri, o Wade trata toda a gente na sala de audiências como público. Levanta-se, ajeita a gravata cor de esmeralda, e vira-se para a galeria com um sorriso rasgado.
- Hoje estamos aqui reunidos para chorar a perda de algo que nos é próximo e querido: a família tradicional. com certeza que se lembram dela, antes da sua morte prematura: um marido e uma mulher, dois
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filhos. Uma vedação de madeira pintada de branco. Um monovolume. Talvez até um cão. Uma família que frequentava a igreja aos domingos e que amava Jesus. Uma mãe
que fazia bolachas com pepitas de chocolate e pertencia aos escuteiros. Um pai que jogava basebol, que acompanhou a filha na igreja no dia do seu casamento. já deixou
de ser a norma na sociedade há muito tempo, mas dissemos para nós próprios que com certeza que uma instituição tão forte como a família tradicional poderia sobreviver a tudo. No entanto, ao tomar isso como certo, garantimos virtualmente o seu declínio - o Wade coloca a mão sobre o coração. Que descanse em paz.
"Este não é apenas um caso de custódia, Meritíssimo. É um aviso para mantermos viva a base da nossa sociedade: a família tradicional cristã. Porque a investigação e o senso comum determinam que as crianças precisam de um modelo masculino e de um modelo feminino e que a ausência de um deles pode ter consequências nefastas, desde lutas académicas, a pobreza, a comportamentos de alto risco. Porque quando os valores familiares tradicionais se desmoronam, as vítimas tendem a ser as crianças. Max Baxter, o meu cliente, sabe disso, Meritíssimo. E é por isso que hoje está aqui, para proteger os seus filhos por nascer concebidos enquanto ainda estava casado com a arguida, Zoe Baxter. O meu cliente hoje só pede ao tribunal que lhe permita realizar a intenção original destas duas partes, ou seja, permitir que estas crianças possam ter um casal heterossexual casado como pais. Que possam prosperar, Meritíssimo, no seio de uma família cristã tradicional.
O Wade aponta com um dedo, sublinhando a frase enquanto a repete.
- Uma família tradicional. Era isso que o Max e a Zoe tinham em vista, quando aproveitaram a ciência disponível para criar essas bênçãos, estas crianças por nascer. Agora, infelizmente, o casamento do Max e da Zoe já não está intacto. E o Max não voltou a casar-se. Mas reconhece que está em dívida para com os seus filhos por nascer, e por isso está a tomar uma decisão tendo em conta o superior interesse das crianças, e não o seu. Escolheu o irmão, o Reid, um homem decente e honesto que mais tarde irão ouvir, e a sua mulher, a Liddy, um exemplo de virtude cristã nesta comunidade, para futuros pais dos seus filhos por nascer.
- Ámen - diz alguém atrás de mim.
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- Meritíssimo, deixou bem claro a ambas as partes e aos advogados que este será o seu último caso, após uma longa e distinta carreira de juiz. É bastante apropriado que possa proteger a família tradicional aqui em Rhode Island, um estado fundado por Roger Williams, que fugiu para as colónias em busca de liberdade religiosa. Rhode Island, um dos últimos bastiões da Nova Inglaterra, um estado que se mantém fiel aos valores familiares cristãos. Mas para fazer de advogado do diabo, vamos contemplar a alternativa. Apesar de o Max não ter nada contra a ex-mulher, a Zoe agora vive em pecado com a amante lésbica...
- Objeção - diz a Angela Moretti.
- Sente-se, doutora - responde o juiz. - Terá a sua oportunidade.
- Estas duas mulheres tiveram de se casar no estado de Massachusetts, porque este estado, o seu estado natal, não reconhece legalmente a união do mesmo sexo. O casamento delas não é válido nem para o governo, nem para Deus. Ora, imagine que estas crianças por nascer acabam por ficar nessa família, Meritíssimo. Imagine um rapazinho com duas mães, exposto a um estilo de vida homossexual. O que vai acontecer quando for para a escola e for gozado por ter duas mães? O que vai acontecer quando, como demonstram os estudos, acabar ele próprio por ser homossexual devido à maneira como foi criado? Doutor juiz, o senhor cresceu com um pai. E o senhor é pai. Sabe a importância que estes papéis tiveram para si. Imploro-lhe, em nome dos filhos por nascer do Max Baxter, não deixe que a sua decisão hoje lhes negue essa oportunidade - vira-se para a galeria. - Quando pregarmos esse último prego no caixão dos valores familiares tradicionais - diz o Wade -, nunca mais conseguiremos ressuscitá-los.
Volta a sentar-se, e a Angela Moretti levanta-se.
- Se parece uma família, fala como uma família, age como uma família e funciona como uma família - diz ela -, então é uma família. A relação entre a minha cliente, Zoe Baxter, e Vanessa Shaw não é a de partilharem a mesma casa, ou o mesmo quarto, mas sim de partilharem a vida. Cônjuges. Amam-se e assumiram um compromisso uma com a outra, e funcionam como uma unidade, e não apenas como indivíduos. Da última vez que verifiquei, essa era uma definição válida de família.
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"O Dr. Preston quer seduzi-lo falando do declínio da família tradicional. Mencionou o facto de que Rhode Island é um estado que foi fundado com base na liberdade religiosa, e concordamos plenamente. Contudo, também sabemos que nem todos os residentes em Rhode Island acreditam no que o Dr. Preston e o seu cliente acreditam - vira-se para a galeria. - Além do mais, Rhode Island reconhece de facto a relação entre a Zoe e a Vanessa. Ao longo de quinze anos, o estado tem vindo a oferecer direitos legais limitados a parcerias domésticas do mesmo sexo. Este mesmo tribunal concede rotineiramente adoções em famílias homossexuais. E, na realidade, Rhode Island foi um dos primeiros estados do país a ter uma certidão de nascimento neutra em termos de sexo que enumera não a mãe e o pai mas os progenitores.
"Mas, ao contrário do Dr. Preston, não me parece que este seja um caso de valores familiares no geral. Acho que trata de uma família em particular - olha para a Zoe. - Os embriões em questão foram gerados durante o casamento da Zoe com o ex-marido, Max Baxter. Estes embriões são bens que não foram divididos no acordo de divórcio. Existem dois progenitores biológicos destes embriões: o queixoso e a arguida, e ambos têm direitos iguais aos embriões. A diferença aqui, porém, é que Max Baxter já não quer ter um filho. Está a usar a biologia para obter vantagem, para tirar os embriões a uma pessoa que pretende ser mãe e ao cônjuge. Se o meritíssimo deliberar a favor da minha cliente, envidaríamos todos os esforços para incluir o outro progenitor biológico dos embriões, Max Baxter, nesta família. Acreditamos que não pode haver demasiadas pessoas a amar uma criança. Mas, se o Meritíssimo deliberar contra a minha cliente, a Zoe, a mãe destes embriões, ver-se-á impedida de criar os seus filhos biológicos.
Faz um gesto em direção à Zoe.
- Vai ouvir o testemunho dela, Meritíssimo, sobre as complicações médicas que deixaram a Zoe incapaz de completar a gestação dos seus próprios embriões. Nesta altura da sua vida, já não tem tempo no seu ciclo reprodutivo para se submeter novamente a mais procedimentos in vitro para a recolha de óvulos. O ex-marido da Zoe, que quer tão desesperadamente ter um bebé, está a tirar-lhe essa a oportunidade.
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Não está a lutar pelo direito de ser pai. Está a lutar, para garantir que a Zoe não seja mãe.
A Angela Moretti olha para o juiz.
- O advogado do Sr. Baxter levantou bastantes questões sobre Deus, sobre o que Deus quer e o que Deus acha que uma família deve ser. Mas o Max Baxter não está a pedir a bênção de Deus para ser pai. Não está a perguntar a Deus qual será a melhor situação para estes embriões.
Olha para mim, e, nesse instante, mal consigo respirar.
- Max Baxter está a pedir-lhe que faça o papel de Deus - diz ela.
Estar no banco das testemunhas, diz o Pastor Clive, é como apresentar o seu testemunho numa igreja. Vamos para lá e contamos a nossa história. Não importa que seja humilhante ou difícil de reviver. O que importa é sermos absolutamente sinceros, porque é assim que as pessoas ficam convencidas.
O Pastor Clive é uma das testemunhas que estão lá fora à espera no limbo para onde as mandaram, e quem me dera que assim não fosse. Precisava da sua força neste momento, para ter alguém para quem olhar quando estivesse no banco das testemunhas. Assim, tenho de continuar a limpar as palmas das mãos às calças, por estar a suar tanto.
Por acaso, o que me acalma é o xerife vir ter comigo com uma Bíblia. De início penso que vai pedir-me que leia uma passagem, mas depois lembro-me como os julgamentos começam. "Jura dizer a verdade, toda a verdade, e nada além da verdade?" Pouso a mão na capa de couro gasta. Imediatamente, o meu coração deixa de estar acelerado. "Não vais estar ali sozinho", disse o pastor Clive, e é certo que tem razão.
O Wade e eu ensaiámos o meu discurso uma dezena de vezes. Sei
as perguntas que ele vai fazer, por isso não estou preocupado com elas. O que me está a deixar os nervos em franja é o que vai acontecer quando ele terminar, quando for a vez de a Angela Moretti me desfazer em pedaços.
- Max - começa o Wade -, porque pediu ao tribunal a custódia destas crianças por nascer?
- Objeção - diz a Angela Moretti. - Uma coisa é chamar "crianças por nascer" aos embriões durante as alegações introdutórias, mas vamos ter de ouvir isto durante todo o julgamento?
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- Indeferido - responde o juiz. - Não me interessa a semântica, Dr.a Moretti. É-me indiferente. Sr. Baxter, responda à pergunta.
Respiro fundo.
- Quero assegurar-me de que eles tenham uma vida maravilhosa, com o meu irmão, o Reid, e a mulher dele, a Liddy.
"A mulher dele, a Liddy." As palavras queimam-me a língua.
- Porque não negociou a custódia no acordo de divórcio?
- Não tínhamos advogados; fomos nós que fizemos o nosso próprio acordo. Sabia que devíamos dividir os nossos bens, mas tratam-se... tratam-se de crianças.
- Em que circunstâncias foram geradas estas crianças por nascer? pergunta o Wade.
- Quando a Zoe e eu éramos casados, queríamos ter filhos. Acabámos por fazer fertilização in vitro cinco vezes.
- Qual dos dois é infértil?
- Somos os dois - digo.
- Como foi feita a fertilização m vitro?
Quando o Wade me faz contar o nosso historial médico, sinto um triste vazio no estômago. Um casamento de nove anos pode realmente resumir-se a isto: dois abortos e um nado-morto? É difícil imaginar que tudo o que restou foram alguns documentos legais e este rasto de sangue.
- Como reagiu ao nado-morto? - diz o Wade.
Parece horrível dizer isto, mas, quando um bebé morre, acho que é mais fácil para a mãe. Pode exprimir o seu desgosto; toda a gente pode constatar a sua perda na curva do ventre. Mas para mim, a perda foi interior. Consumiu-me. De tal forma que, durante muito tempo, só queria preencher o vazio dentro de mim.
Deus sabe que tentei fazê-lo, com o álcool.
Tenho os olhos marejados de lágrimas; isso deixa-me envergonhado. Baixo a cabeça.
- Posso não o ter demonstrado como a Zoe - digo -, mas deixou-me destroçado. Completamente. Sabia que não seria capaz de voltar a passar por isso apesar de ela querer.
- Como foi a sua vida depois, Max?
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De um momento para o outro, a minha garganta parece que se transformou em algodão, por isso sinto que se não tomar uma bebida vou morrer. Obrigo-me a pensar na Liddy, naquela noite, sentada na beira da cama, a rezar por mim.
- Passei por um mau bocado. Perdi muitas oportunidades de trabalho. E comecei novamente a beber. O meu irmão acolheu-me em sua casa, mas continuei a enterrar-me cada vez mais no buraco. E então, um dia, bati com a carrinha numa árvore e acabei por ir para o hospital.
- As coisas mudaram depois disso?
- Sim - digo -, encontrei Jesus.
- Objeção, Meritíssimo - diz a Angela Moretti. - Estamos no tribunal, e não numa reunião da igreja.
- vou permitir - responde o juiz O'NeiII.
- Então tornou-se religioso - incita o Wade. Aceno com a cabeça.
- Comecei a frequentar a Igreja da Glória Eterna, e a falar com o pastor, Clive Lincoln. Ele salvou-me a vida. Quero dizer, estava num estado deplorável. Tinha arruinado a minha vida familiar; era um alcoólico, e não sabia nada sobre religião. Primeiro pensei que, se fosse à igreja, todos iriam julgar-me. Mas fiquei muito impressionado. Para aquelas pessoas era indiferente quem eu era: viam quem eu podia ser. Comecei a frequentar as reuniões de estudo da Bíblia para adultos, e a ir aos jantares e às reuniões depois da missa aos domingos. Todos rezaram por mim: o Reid, a Liddy, o Pastor Clive e toda a congregação. Amavam-me incondicionalmente. E um dia sentei-me na beira da cama e pedi a Jesus que salvasse a minha alma e que fosse senhor da minha vida. Quando Ele o fez, plantou a semente do Espírito Santo no meu coração.
Quando termino, sinto-me como se a luz irradiasse de dentro de mim. Olho para a Zoe, que está a olhar para mim como se nunca me tivesse visto antes.
- Meritíssimo - diz a Angela Moretti. - Parece que o Dr. Preston não está ciente da separação entre o estado e a igreja...
- O meu cliente tem o direito de apresentar o seu testemunho sobre o que mudou a sua vida - responde o Wade. - Foi a religião que levou o Sr. Baxter a instaurar esta ação judicial.
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- Neste caso em particular, tenho de concordar - diz o juiz O'Neill.
- A transformação espiritual do Sr. Baxter é intrínseca a este caso.
- Não posso acreditar - resmunga a Angela Moretti. - Literal e figurativamente.
Volta a sentar-se, de braços cruzados.
- Só para deixar claro - pergunta-me o Wade -, continua a beber bebidas alcoólicas?
Penso na Bíblia sobre a qual jurei. Penso na Liddy, que quer tanto ter este bebé.
- Nem uma gota - minto.
- Há quanto tempo se divorciou?
- É oficial há cerca de três meses.
- Depois do divórcio, quando é que pensou nos seus filhos por nascer pela primeira vez?
- Objeção! Se continuar a chamar crianças aos embriões, Meritíssimo, vou continuar a objetar...
- E eu vou continuar a indeferir - diz o juiz O'NeiII.
Quando o Wade e eu ensaiámos a resposta a esta pergunta, ele sugeriu que eu dissesse: "Todos os dias." Mas estou a pensar em como menti sobre a bebida, e em como
sinto Jesus atrás de mim, e em como Ele sabe quando não estamos a ser sinceros para connosco próprios ou para com Ele. Por isso, quando o juiz olha para mim à espera
de uma resposta, digo:
- Só quando a Zoe veio ter comigo para me falar deles, há um mês. Por um segundo, acho que o Wade Preston vai ter uma paragem
cardíaca. Depois as feições dele suavizam-se.
- E o que foi que ela disse?
- Queria usá-los para ter um bebé com a... com a Vanessa.
- Como reagiu?
- Fiquei chocado. Sobretudo com a ideia de que um filho meu fosse crescer num lar cheio de pecado...
- Objeção, Meritíssimo!
- Deferida - diz o juiz.
O Wade nem sequer pestaneja.
- O que lhe disse?
- Que precisava de algum tempo para pensar no assunto.
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- E a que conclusão chegou?
- Que não estava certo. Deus não quer que duas mulheres criem um bebé. O meu bebé. Todas as crianças devem ter uma mãe e um pai; é essa a ordem natural das coisas, segundo a Bíblia - penso naqueles recortes de animais que fiz com a Liddy para as crianças da catequese. - Quero dizer, não vemos os animais a entrar na arca aos pares de fêmeas com fêmeas.
- Objeção - diz a Angela Moretti. - Relevância?
- Deferida.
- Max - pergunta o Wade -, quando ficou a saber que a sua ex-mulher adotara um estilo de vida lésbico?
Olho para a Zoe. É difícil imaginá-la a tocar na Vanessa. Faz-me sentir que esta sua nova vida é uma farsa, ou então a nossa é que era, e não consigo encarar essa possibilidade.
- Depois de nos separarmos.
- Como se sentiu?
Como se tivesse engolido alcatrão. Como se tivesse aberto os olhos e o mundo de repente estivesse a preto e branco, e por muito que os esfregasse, não conseguisse fazer regressar a cor.
- Como se eu tivesse algum problema - digo numa voz tensa. Como se não fosse suficientemente bom para ela.
- A sua opinião sobre a Zoe alterou-se após ter ficado a saber que adotou um estilo de vida homossexual?
- Bem, rezei por ela, porque isso é pecado.
- Considera-se anti-homossexual, Max? - pergunta o Wade.
- Não - respondo. - Nunca. Não estou a fazer isto para magoar a Zoe. Amo-a, e não posso apagar os nove anos que estivemos casados. Não quero fazê-lo. Só que preciso de proteger os meus filhos.
- Se este tribunal considerar apropriado devolver-lhe os seus filhos por nascer, qual é a sua intenção?
- Merecem ter os melhores pais que uma criança pode ter. Mas sou suficientemente inteligente para perceber que não sou eu, mas sim outra pessoa. É por isso que quero que o meu irmão Reid fique com eles. Ele e a Liddy cuidaram de mim, amaram-me, acreditaram em mim. Mudei tanto, para melhor, por causa deles. Sei que farei parte da família
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alargada dos bebés, e que serão criados no seio de uma família biparental e cristã. Frequentarão a catequese e a igreja, e crescerão a amar Deus - olho para cima, tal como o Wade me disse para fazer, e digo o que ensaiámos. - O Pastor Clive disse-me que Deus não comete erros, que tudo acontece por alguma razão. Durante muito tempo, acreditei que a minha vida era um erro. Que eu era um erro. Mas agora sei que não sou. Sempre foi este o plano de Deus; juntar-me ao Reid e à Liddy na mesma altura em que os meus filhos por nascer precisavam de ter um lar e uma família - aceno com a cabeça, convencendo-me a mim próprio. - Foi para isto que vim a este mundo.
- Não tenho nada mais a acrescentar - diz o Wade, e, acenando-me com a cabeça de forma encorajadora, senta-se.
Quando a Angela Moretti começa a avançar, apercebo-me do que ela me faz lembrar: um felino. Uma pantera, suponho, com todos aqueles cabelos negros.
- Sr. Baxter, ao longo dos quatro anos do vosso casamento em que tentaram conceber de forma natural, e dos cinco anos de tratamentos de fertilidade, acreditou que a Zoe seria uma boa mãe?
- Claro.
- O que é que hoje em dia a torna menos capaz de criar uma criança?
- Adotou um estilo de vida que eu acho errado - digo.
- É certo que é diferente do seu - corrige a advogada. - O facto de a Zoe ser lésbica para si é o único aspeto negativo para ser mãe?
- É bastante importante. Na Bíblia está escrito que...
- É uma pergunta para responder sim ou não, Sr. Baxter. Esse é o único aspeto negativo que tem para dizer sobre a capacidade da Zoe para ser uma boa mãe?
- Sim - digo em voz baixa.
- Não é verdade, Sr. Baxter, que o senhor ainda tem esperma para gerar mais embriões?
- Não sei. Tenho infertilidade masculina, o que quer dizer que, se tiver, não será fácil.
- Mas não quer estes embriões. Quer dá-los a outra pessoa.
- Quero que estas crianças tenham a melhor vida possível - digo. E sei que isso implica terem uma mãe e um pai.
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- Na verdade, o senhor foi criado por uma mãe e um pai, não é verdade, Sr. Baxter?
- Sim.
- No entanto, acabou por se tornar um alcoólico fracassado, divorciado e a viver no quarto de hóspedes do irmão.
Não consigo evitar, quase me levanto da cadeira.
- Objeção! - diz o Wade. - Preconceito!
- Retiro o que disse. Se este tribunal entregar os embriões ao seu irmão e à sua cunhada - pergunta a Angela Moretti -, onde é que o senhor se encaixa?
- vou... vou ser o tio.
- Ah. Como pode ser o tio se é o pai biológico?
- É como uma adoção - digo, atrapalhado. - Quero dizer, é uma adoção. O Reid torna-se pai e eu sou o tio.
- Então vai abdicar dos seus direitos de pai relativamente a estas crianças quando elas nascerem?
O Ben Benjamin disse que, independentemente do que assinarmos, a qualquer altura, as crianças ao atingirem a maioridade podem ir à nossa procura. Confuso, olho para ele, sentado na nossa mesa.
- Achava que tinha dito que não podia nunca fazer isso...?
- Quer que estes embriões fiquem com uma família cristã? - diz a advogada.
-Sim.
- Mas em vez disso está a sugerir que o tribunal os entregue a um pai biológico que vai ser chamado de tio e está a viver na cave da casa dos pais que os vão criar. Isso parece-lhe ser uma família cristã tradicional, Sr. Baxter?
- Não! Quero dizer, sim...
- Sim ou não?
As palavras dela são como balas. Quem me dera que falasse mais devagar. Quem me dera que me desse tempo para pensar.
- É... é uma família...
- Quando gerou estes embriões com a Zoe, na altura pretendia criar estas crianças com ela, não é verdade?
- Sim.
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- No entanto a Zoe ainda está pronta, disposta e capaz de receber estes embriões e criá-los como filhos. O senhor, por outro lado, foi-se embora.
- Não me fui embora...
- Foi ela que pediu o divórcio, ou foi o senhor?
- Fui eu. Mas deixei o meu casamento, não deixei os meus filhos...
- Não, os seus filhos o senhor pretende apenas dá-los a outra pessoa
- diz a Angela. - Também afirmou que entre o seu divórcio e a altura em que a Zoe veio falar consigo sobre usar os embriões, não pensou neles?
- Não quis dizer isso...
- Mas foi isso que disse. Que mais disse que não queria realmente dizer, Sr. Baxter? - dá um passo na minha direção. - Que não se importa de dar estes embriões ao seu irmão e assumir um papel secundário na educação deles? Que é um homem completamente mudado? Que não está a servir-se desta ação judicial para se vingar da sua ex-mulher, cujo novo relacionamento o faz sentir-se menos homem?
- Objeção! - ruge o Wade, mas nessa altura já estou de pé, a tremer, de rosto vermelho e cem respostas iradas presas entre os dentes.
- É tudo, Sr. Baxter - diz a Angela Moretti, sorrindo. - É o bastante.
O Wade pede um intervalo, para que eu recupere o autocontrole. Quando saio da sala de audiências, os membros da igreja de Westboro aplaudem. Faz-me sentir um pouco
sujo. Uma coisa é amarmos Jesus de todo o coração; outra coisa é manifestarmo-nos à porta de sinagogas por acreditarmos que os judeus mataram o nosso Salvador.
- Não consegue livrar-se deles? - sussurro ao Wade.
- Nem pensar - responde ele num murmúrio. - São uma publicidade fantástica. Já passou pela parte mais difícil, Max. A sério, sabe porque é que aquela advogada teve
de o fazer zangar-se daquela maneira? Porque não tinha mais nada para poder trabalhar. Nem o direito deste estado, e muito menos a lei de Deus.
Leva-me para uma pequena sala com uma mesa, duas cadeiras, uma máquina de fazer café e um micro-ondas. O Wade aproxima-se do micro-ondas e debruça-se até estar ao nível da porta negra brilhante.
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Sorri para poder ver os dentes, serve-se do polegar para poder tirar qualquer coisa presa entre eles, e volta a sorrir.
- Se acha que o contrainterrogatório foi brutal, sente-se e desfrute do que estou a pensar fazer à Zoe.
Não sei bem porque é que isso me faz sentir pior.
- Pode fazer-me um favor? - pergunto. - Pode chamar o Pastor Clive? O Wade hesita.
- Desde que vá falar com ele como seu conselheiro espiritual, e não como testemunha em recolhimento...
Aceno com a cabeça. A última coisa que desejo neste momento é voltar a falar nesta última hora no tribunal.
O Wade sai, levando consigo todo o ar. Sento-me numa cadeira de plástico e coloco a cabeça para baixo, entre os joelhos, certo de que vou desmaiar. Passados alguns minutos, a porta volta a abrir-se e vejo o fato de linho branco do Pastor Clive. Arrasta uma cadeira para o lado da minha.
- Vamos rezar - diz ele, e curva a cabeça.
As palavras dele passam por cima de mim, apanhando todas as zonas ásperas e alisando-as. A oração é como a água, algo que nunca imaginaríamos ter a força ou o poder de fazer algum bem, mas que com o tempo pode mudar a face da Terra.
- Max, parece estar a atormentado com qualquer coisa - diz ele.
- Eu só... - desviando o rosto, abano a cabeça. - Não sei. Talvez devesse dá-los à Zoe e pronto.
- O que o faz duvidar de si próprio? - pergunta o Pastor Clive.
- O que a advogada dela disse. Que eu sou o pai, mas que tenho de ser como um tio. Se eu já estou confuso, como é que uma criança vai ser capaz de perceber isso?
Ele cruza as mãos, acenando com a cabeça.
- Sabe, por acaso lembro-me de um caso muito semelhante a este. Nem acredito que não pensei nisto antes.
- A sério?
- Sim. Um pai biológico, cujo filho foi criado por outro casal. Foram escolhidos a dedo por este homem, tal como o Max está a fazer, porque o pai queria fazer o melhor para os filhos. E no entanto arranjou maneira de dar a sua opinião sobre a educação do filho.
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- Conhecia-os?
- Muito bem - diz o Pastor Clive, sorrindo. - E o Max também. Deus entregou Jesus a Maria, para que o carregasse no ventre, e a José, para que o educasse. Sabia que isso tinha de ser feito. E Jesus... bem, como é óbvio, conseguiu perceber isso muito bem.
Mas eu não sou Deus. Sou apenas um homem que errou vezes sem conta, que está a esforçar-se muito para não cometer outro erro.
- Vai tudo correr bem, Max - promete o Pastor Clive.
Faço aquilo que faço sempre quando estou ao pé dele. Acredito no que me diz.
Quando o Reid entra na sala de audiências, tenho de admitir, as minhas dúvidas começam a dissipar-se. Veste um dos seus elegantes fatos Savile Row e calça sapatos italianos cosidos à mão. Tem os cabelos negros bem aparados; sei que foi um barbeiro que lhe fez a barba hoje de manhã. É daqueles homens que chama a atenção quando entra numa sala, não apenas por ser bem-parecido, mas por ter tanta autoconfiança. Quando passa por mim para se dirigir ao banco das testemunhas, sinto o aroma do seu aftershave e de algo mais. Não é água-de-colónia, o Reid não a usa. É o cheiro do dinheiro.
- Pode dizer o seu nome para que fique registado? - pede o Wade.
- Reid Baxter.
- E onde reside, Sr. Baxter?
- Em Newport. Ocean Drive, número cento e quarenta.
- Qual é a sua relação com o queixoso, Max Baxter? O Reid sorri.
- Sou o irmão mais velho dele.
- É casado, Sr. Baxter?
- Há onze anos, com a minha linda noiva, a Liddy.
- Tem filhos? - pergunta o Wade.
- Deus não nos abençoou com filhos - diz ele. - Mas confesso que não é por falta de tentar.
- Fale-me do seu lar - pede o Wade.
- É uma moradia de quatrocentos e vinte metros quadrados com vista para o mar. Tem quatro quartos e três casas de banho e um lavabo.
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Temos um cesto de basquetebol e um pátio enorme. A única coisa que falta são as crianças.
- Qual é a sua profissão?
- Sou gestor de carteiras da Monroe, Flatt St Cohen - diz o Reid. - Já trabalho lá há dezassete anos, e sou um dos sócios. Faço a gestão, invisto e reinvisto o dinheiro de outras pessoas para preservar e aumentar o seu património.
- Quais são os seus rendimentos anuais líquidos, Sr. Baxter? O Reid olha modestamente para o colo.
- Um pouco acima dos quatro milhões de dólares. Caramba.
Sabia que o meu irmão ganhava bem, mas quatro milhões de dólares?
Na melhor das hipóteses, o máximo que eu poderia oferecer a um filho era a sociedade numa empresa de jardinagem duvidosa e todos os meus conhecimentos sobre cultivar roseiras num clima difícil. Não se
trata propriamente de um fundo fiduciário.
- A sua mulher, a Liddy, também trabalha? - pergunta o Wade.
- É voluntária em várias organizações. É coordenadora da catequese na nossa igreja; serve refeições num lar para os sem abrigo; participa na Liga de Mulheres do Hospital de Newport. Também pertence ao conselho de administração da Sociedade para a Preservação do Património. Mas ela sempre pensou ficar em casa, para poder ser ela a criar os nossos filhos.
- Considera-se um homem religioso? - pergunta o Wade.
- Considero - diz o Reid.
- Que igreja frequenta, Sr. Baxter?
- A Igreja da Glória Eterna. Já pertenço à congregação há quinze anos.
- Desempenha alguma função ou cargo na hierarquia da igreja?
- Sou o tesoureiro - responde o Reid.
- O senhor e a sua mulher costumam frequentar regularmente a igreja? Ele acena com a cabeça.
- Todos os domingos.
- Considera-se um cristão renascido?
- Se com isso quer dizer que aceitei Jesus como meu salvador, então sim - diz o Reid.
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- Gostaria de chamar a sua atenção para o queixoso neste caso, Max Baxter - o Wade faz um gesto na minha direção. - Como descreveria o seu relacionamento com ele?
O Reid fica a pensar por um minuto.
- Abençoado - diz ele. - É incrível que o meu irmão mais novo tenha voltado a entrar na minha vida, e num caminho que é bom para ele.
Na minha primeira memória, tenho cerca de três anos e estou com inveja do clube secreto do Reid. Localizava-se na sua casa na árvore, um esconderijo especial para onde podia escapar-se com os amigos da escola. Eu era demasiado pequeno para poder subir até lá acima, pelo menos era o que os meus pais e o Reid, que não queria um irmão mais novo chato a andar atrás dele, estavam sempre a dizer-me. À noite, costumava sonhar como seria o interior daquela casa na árvore. Imaginava paredes psicadélicas, pilhas de rebuçados, revistas MAD. Um dia, apesar de saber que ia arranjar problemas, trepei para a casa na árvore enquanto o Reid ainda estava na escola. Para minha surpresa, era apenas madeira em bruto, com alguns desenhos a lápis de cera que ele e os amigos tinham feito em alguns sítios. Havia um jornal no chão e alguns fulminantes usados de uma pistola de fulminantes.
Achei que era o lugar mais mágico que já tinha visto - mas, por outro lado, é isso que toda a gente pensa sobre as coisas que estão fora dos seus limites. Por isso escondi-me, apesar de ter ouvido a minha mãe chamar-me várias vezes. Quando o Reid chegou a casa vindo da escola, como era habitual, subiu a escada para a casa na árvore antes sequer de entrar em casa.
"O que estás aqui a fazer?", perguntou ele, mesmo quando se ouviu a voz da minha mãe e, passado um minuto, ela espreitou pelo pequeno alçapão.
"Como é que o Max veio cá para cima?", gritou ela. "Ele ainda não tem idade para trepar a esta árvore..."
"Não faz mal", disse o Reid. "Eu ajudei-o."
Não sabia porque estava ele a mentir por minha causa. Não sabia porque não estava zangado por eu estar na sua casa na árvore.
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A minha mãe acreditou, apesar de ter dito que ia voltar para me ajudar a descer porque a última coisa de que precisava era de ter de ir às urgências. Depois o Reid olhou para mim.
"Se quiseres pertencer ao clube, tens de seguir as regras. Eu é que digo quais são as regras", disse ele.
Acho que durante toda a minha vida, só quis pertencer ao clube a que o meu irmão pertence.
O Wade ainda está a fazer-lhe perguntas quando volto a concentrar-me.
- Há quanto tempo conhece a Zoe Baxter?
- Ela cantou no meu casamento com a Liddy. Foi nessa altura que nos conhecemos, e ela começou a namorar com o meu irmão.
- Como se davam? - pergunta o Wade. O Reid sorri, embaraçado.
- Digamos que tínhamos diferentes filosofias de vida.
- Via a Zoe com frequência quando ela era casada com o seu irmão?
- continua o Wade.
- Não mais do que algumas vezes por ano.
- Tinha conhecimento dos problemas de infertilidade deles?
- Sim - diz o Reid. - Aliás, a determinada altura, o meu irmão até veio pedir-me ajuda.
Sinto o coração começar a bater mais depressa. Não estive presente nas sessões do Wade com o Reid, em que ele o instruiu sobre o que devia dizer em resposta a estas perguntas. Se tivesse estado, saberia o que ele ia responder.
- Fomos almoçar juntos - explica o Reid. - Eu sabia que ele e a Zoe já tinham recorrido à fertilização in vitro algumas vezes... mas isso também estava a criar uma enorme pressão financeira sobre eles - olha para mim. - O Max tinha dito à Zoe que ia arranjar maneira de pagar um quinto ciclo de fertilização in vitro, mas não
sabia como. Não podia fazer uma segunda hipoteca, porque a casa era arrendada.
Já tinha vendido algum equipamento da empresa. Precisava de dez mil dólares para dar
à clínica, e não sabia a quem mais havia de recorrer.
Não olho para ela, mas sinto o olhar da Zoe na face. Nunca lhe disse nada sobre este almoço, só que tinha arranjado maneira de ela ter aquele bebé, acontecesse o
que acontecesse.
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- O que foi que o senhor fez, Sr. Baxter?
- O que qualquer irmão teria feito - diz o Reid. - Passei-lhe um cheque.
A Angela Moretti pede um intervalo. Sobretudo porque acho que tem medo que a Zoe esteja prestes a atirar-se a mim de unhas e dentes.
Não estive propriamente a mentir-lhe, nem a esconder-lhe o facto de que o Reid nos deu o dinheiro para aquele último ciclo de fertilização in vitro que fizemos na clínica. Mas estávamos atolados em dívidas; não podia pagar mais dez mil dólares com um cartão de crédito nem arranjar outra maneira de fazer face às despesas. Também não consegui suportar a ideia de ter de dizer-lhe que não tínhamos dinheiro. Que tipo de falhado isso faria de mim?
Só queria fazê-la feliz. Não queria que pensasse no que ficaríamos a dever se e quando tivéssemos aquele bebé.
O Reid também nunca me pediu para devolver o dinheiro. Acho que ambos sabíamos que não se tratava de um empréstimo, era mais uma doação. O que ele me disse, quando assinou o seu nome ao fundo do cheque, foi: "Sei que se estivéssemos na situação inversa, Max, farias tudo o que pudesses para ajudar-me."
Quando a Zoe volta à sala de audiências, não estabelece contacto visual comigo. Ela olha em frente, para um ponto mesmo à direita do juiz, enquanto a advogada se levanta para contrainterrogar o Reid.
- Então está a comprar um bebé - começa a Angela Moretti.
- Não. Aquele dinheiro foi uma oferta.
- Mas deu dez mil dólares ao seu irmão, que ele usou para gerar aqueles embriões cuja custódia está agora a tentar obter, não é verdade?
- Sim.
- E tem direito a esses embriões porque os comprou, não tem? insiste a Angela.
- Tenho a responsabilidade moral de assegurar que eles são criados de forma adequada - diz ele.
- Não foi isso que perguntei. Acredita que tem direito a esses embriões porque os comprou, não é verdade, Sr. Baxter?
Durante todo o tempo que estivemos a falar sobre o Reid e a Liddy terem aqueles bebés, o Reid nunca mencionou aquele cheque que me
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passou. Nunca disse nada que me fizesse sentir que agora estou em dívida para com ele por causa do que ele fez por mim.
O Reid olha para baixo, refletindo cuidadosamente nas palavras antes de falar.
- Se não fosse eu - diz ele por fim -, estas crianças nem sequer existiriam.
Quando o juiz decide que por hoje já ouviu o suficiente, levanto-me de um salto antes que o Wade consiga deter-me e saio da sala de audiências a correr. Tenho de abrir caminho por entre um grupo de gente de Westboro, que grita que está do meu lado.
Quando é que isto se tornou uma guerra?
Assim que saio do tribunal, uma multidão de jornalistas avança. Quando ouço a voz do Wade atrás de mim, quase perco a força nas pernas de alívio.
- O meu cliente não tem comentários a fazer - diz ele, e pousa-me a mão no ombro, conduzindo-me pela passagem em direção ao parque de estacionamento. - Não volte a fazer isso - sussurra-me ao ouvido. - Não
vai a lado nenhum antes de eu dizer-lhe que pode ir. Não vou deixá-lo lixar isto tudo, Max.
Paro de andar e endireito-me ao máximo no meu metro e oitenta e três. Espeto-lhe um dedo na camisa sofisticada feita por medida.
- Você - digo eu, trabalha para mim.
Mas isto também não é totalmente verdade. Porque também foi o Reid que pagou ao Wade.
Isto faz-me ter vontade de dar um soco em alguma coisa, qualquer coisa. A cara do Wade é tentadora, mas em vez disso encosto a mão aberta ao peito dele e dou-lhe um empurrão, o suficiente para o fazer cambalear. Dirijo-me para a carrinha sem olhar para trás.
Acho que sei para onde vou mesmo antes de lá chegar. Há um sítio em Newport perto de Ruggles Avenue onde há algumas rochas, e nos dias em que há ondulação, tem a onda mais incrível que já vi.
Também é um sítio onde podemos levar uma tareia a sério.
A minha prancha está na parte de trás da carrinha. Dispo-me até ficar de roupa interior e visto o fato que tenho sempre no banco de trás,
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no caso de ser preciso. Depois sigo por entre as rochas e entro na água, com cuidado para evitar ser derrubado pela onda.
Não há novatos a flutuar na água - sou só eu, e as ondas mais bonitas que já vi.
Não sei por que razão os problemas que tenho em terra parecem diferentes no mar. Talvez seja o facto de ser tão mais pequeno do que o que me rodeia. Talvez seja por saber que, mesmo que seja derrubado, posso sair e voltar a fazer tudo de novo.
Se nunca surfaram, não conseguem perceber a atração do desporto. Independentemente do que o Pastor Clive diga ou faça, nunca me senti mais perto de Deus. É uma estranha
combinação de serenidade absoluta e euforia descontrolada. Aí estamos nós, a bater os pés como doidos, até que a espuma se torna uma asa debaixo de nós e a onda assume o controlo como que por magia. E estamos a voar. Estamos a voar, e depois, mesmo quando pensamos que o coração vai saltar do peito, acabou.
Uma ondulação ergue-se debaixo da minha prancha, viro-me e vejo um tubo a formar-se atrás de mim. Endireito-me e coloco-me na curva da
onda, surfando-a à medida que ela se fecha à minha volta, e depois estou a cair, às cambalhotas, debaixo de água, sem saber onde fica a superfície.
Venho à superfície, com os pulmões a arder, os cabelos despenteados, e os ouvidos a latejar do frio. Isto, eu entendo. Nisto, sou bom.
Muito intencionalmente, fico fora de casa até depois de o Sol se pôr. Enrolo-me numa manta e sento-me à beira das rochas a ver a Lua surfar
as ondas. Tenho a cabeça a latejar, dói-me o ombro por causa de uma grande queda e devo ter engolido uns quatro litros de água salgada. Nem consigo descrever a sede que tenho, como era capaz de matar para beber uma cerveja. Mas também sei que, se entrar na carrinha, vou direito a algum bar para beber aquela cerveja, por isso fico à espera até que a maior parte dos sítios esteja encerrada para poder ir para casa.
Todas as luzes estão apagadas em casa do Reid, o que faz sentido, visto que são quase três da manhã quando estaciono na via de acesso. Enfio a chave na fechadura e deixo os sapatos no alpendre, para não incomodar ninguém ao entrar.
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Esgueiro-me para a cozinha para beber um copo de água, e vejo-a sentada à mesa como um fantasma. A camisa de noite branca de algodão da Liddy rodopia-lhe à volta dos tornozelos como espuma do mar ao levantar-se para olhar para mim.
- Graças a Deus - diz ela. - Onde estiveste?
- Fui surfar. Precisava de desanuviar a cabeça.
- Tentei telefonar-te. Estava preocupada.
Vi as mensagens dela no meu telemóvel. Apaguei-as, sem as ouvir. Tive de o fazer, apesar de não conseguir explicar porquê.
- Não estive a beber, se é isso que queres saber - digo.
- Não era. Estava só... queria telefonar para o hospital, mas o Reid disse que já eras adulto e que eras capaz de cuidar de ti próprio.
Vejo a lista telefónica, aberta em cima da mesa, e sinto uma pontada de remorso.
- Não queria que ficasses acordada. Amanhã é um dia importante para ti.
- De qualquer forma, não consigo dormir. O Reid tomou Ambien, e está a ressonar mais alto do que uma banda.
A Liddy senta-se no chão, encostada à parede. Quando bate no lugar ao lado dela, eu também me sento. Ficamos calados por um minuto, a ouvir a casa assentar à nossa volta.
- Lembras-te de A Máquina do Tempo?
- Claro - foi um filme que vimos há alguns anos, um filme particularmente mau, sobre um viajante no tempo que se perde no espaço e fica preso 800 000 anos no futuro.
- Querias ver o futuro, apesar de saberes que não podias alterá-lo?
- pergunta ela.
Fico a pensar nisso.
- Não sei. Acho que poderia ser demasiado doloroso.
Quando ela encosta a cabeça ao meu ombro, juro que deixo de respirar.
- Costumava ler uns livros de mistério quando era pequena, em que podíamos escolher um caminho diferente no final de cada capítulo. E, dependendo do que escolhêssemos, o resultado seria diferente.
Sinto o cheiro do sabonete dela - manga e menta - e do champô que usa, que às vezes tiro da casa de banho e eu próprio uso.
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- Costumava saltar para o fim do livro e ler todos os finais para escolher o que gostava mais... e depois tentava fazer o caminho inverso
- ri um pouco. - Nunca resultava. Nunca conseguia que as coisas acontecessem como eu queria.
Da primeira vez que a Liddy viu neve, quando eu estava com ela para presenciar, estendeu a mão para apanhar um floco de neve na palma. "Olha para o padrão", disse ela, e mostrou-me para eu poder ver. Mas nessa altura, já tinha desaparecido.
- O Reid contou-me o que disse hoje no tribunal. Olho para o chão. Não sei o que devo dizer.
- Sei que o Reid às vezes consegue ser... bem, às vezes intimida. Sei que age como se fosse dono do mundo. Sei isso melhor do que ninguém, exceto talvez tu. Também sei que te questionas por que razão estás a fazer isto, Max - a Liddy põe-se de joelhos e aproxima-se mais, com os cabelos a caírem-lhe para a frente. Encosta uma mão à minha face. Depois beija-me, devagar. - Estás a fazer isto por mim.
Fico à espera de acordar deste sonho infernal e maravilhoso; certo de que a qualquer instante verei um médico a olhar para mim e a dizer-me que aquela última queda me provocou uma grave concussão. Agarro no pulso da Liddy antes que ela possa afastar-se do meu rosto. A pele dela é quente, macia.
Beijo-a também. Meu Deus, sim, beijo-a também. Agarro no rosto dela com as mãos e verto nela tudo o que nunca pude dizer. Fico à espera que ela se liberte, me dê uma estalada, mas neste mundo alternativo há lugar para nós os dois. Agarro na bainha da camisa de noite dela e puxo-a para cima, para que as pernas dela possam enrolar-se à volta das minhas, dispo a camisola pela cabeça para que ela possa beijar-me o sal nas omoplatas. Deito-a. Amo-a.
Depois, quando a realidade volta a instalar-se e sinto os ladrilhos duros debaixo da anca e o peso dela estendida por cima de mim, fico completamente em pânico.
Toda a minha vida, sonhei ser o meu irmão, e agora sou.
Tal como o Reid, quero algo que não me pertence.
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Quando acordo no chão da cozinha, estou sozinho com os boxers vestidos e o meu irmão está de pé ao meu lado.
- Olha só o que o gato trouxe - diz ele. - Bem disse à Liddy que tinhas sete vidas - está impecavelmente vestido, com uma caneca de café na mão. - É melhor ires depressa tomar um duche, senão vais chegar atrasado ao tribunal.
- Onde está ela?
- Está bastante doente - diz o Reid. - Parece que está com febre. Queria ficar em casa, mas eu disse-lhe que ela é a próxima testemunha.
Agarro nas minhas roupas e corro lá para cima. Devia despachar-me, como disse o Reid, mas em vez disso bato à porta fechada do quarto da Liddy e do Reid.
- Liddy? - sussurro. - Liddy, estás bem?
A porta abre-se um pouco. A Liddy está de roupão. Aperta-o bem no decote, como se eu já não tivesse visto tudo o que está ali debaixo. Tem as faces afogueadas.
- Não posso falar contigo.
Meto o pé na porta para que ela não possa fechá-la.
- As coisas não têm de ser assim. Ontem à noite foste...
- Uma pecadora - interrompe a Liddy, com os olhos a encherem-se de lágrimas. - Ontem à noite era casada. Ainda sou casada, Max. E quero ter um bebé.
- Podemos arranjar uma forma de resolver isto. Podemos dizer no tribunal...
- Dizer o quê no tribunal? Que o bebé deve ficar com o casal em que a mulher engana o marido? A mulher que ama o irmão do marido? Isso não é a definição de família tradicional de ninguém, Max.
Mas mal consigo ouvir a última frase.
- Tu amas-me?
Ela baixa a cabeça.
- O hornem por quem me apaixonei estava disposto a dar-me a coisa mais importante que tinha, o seu filho, para eu criar. O homem por quem me apaixonei ama Deus, tal como eu. O homem por quem
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me apaixonei nunca pensaria magoar o irmão. A noite de ontem não aconteceu, Max. Porque senão... senão deixas de ser esse homem.
Ela fecha a porta, mas eu fico ali de pé, incapaz de me mexer. Os passos do Reid ecoam ao fundo do corredor à medida que se aproxima. Quando me vê em frente à porta do seu quarto, franze o sobrolho e olha para o relógio.
- Ainda não estás pronto? Engulo.
- Não - digo-lhe. - Parece que não.
No banco das testemunhas, a Liddy não consegue parar de tremer. Enfia as mãos debaixo das pernas, mas, mesmo assim, vejo as tremuras percorrerem-lhe o corpo.
- Sempre falei em ser mãe - diz ela. - No liceu, as minhas amigas e eu inventávamos nomes para os bebés que íamos ter. Já tinha tudo planeado mesmo antes de me casar.
Ao dizer a palavra casar, a voz cede.
- Tenho uma vida perfeita. O Reid e eu temos uma linda casa, e ele ganha bem como gestor de carteiras. E segundo a Bíblia, o objetivo do casamento é ter filhos.
- A senhora e o seu marido tentaram conceber? - pergunta o Wade.
- Sim. Durante anos - olha para o colo. - íamos começar a pensar na adoção. Mas então o Max... o Max veio ter connosco com uma ideia diferente.
- Tem uma relação forte com o seu cunhado?
O rosto da Liddy fica sem cor. í
- Sim.
- Como é que reagiu quando ele lhe disse que queria dar os seus filhos por nascer a si e ao seu marido?
- Achei que Deus tinha respondido às minhas orações.
- Perguntou-lhe por que razão não queria ele próprio criá-los? Talvez mais tarde?
- O Reid perguntou - admite ela. - O Max disse-nos que achava que não ia ser um bom pai. Tinha cometido demasiados erros. Queria que os filhos crescessem com uma
mãe e um pai que... que se amassem.
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- Tem tido muitas interações com crianças?
Ela anima-se, pela primeira vez desde que se sentou naquela cadeira.
- Sou eu que dirijo o programa da catequese na nossa igreja. E organizo um campo de férias no verão. Adoro crianças.
- Se o tribunal achasse adequado dar-lhe estas crianças por nascer pergunta o Wade -, como as educar?
- Para serem bons cristãos - diz a Liddy. - Para fazerem o que está certo - assim que diz isto, franze o rosto. - peço desculpa - soluça.
À minha frente, a Zoe remexe-se na cadejra. Hoje está vestida de preto, como se estivesse de luto. Olha para a Liddy como se fosse o anticristo.
O Wade tira um lenço carmesim do bolso do casaco do fato e dá-o à Liddy, para limpar os olhos.
- A testemunha é sua - diz ele, e vira-se para a advogada da Zoe. A Angela Moretti levanta-se e puxa o casaco para o endireitar.
- O que pode dar a estes embriões que a mãe biológica deles não possa? - Oportunidades - diz a Liddy. - Um lar cristão estavel
- Então acha que basta ter dinheiro para criar crianças?
- Claro que não. Iam viver no seio de uma família afetuosa.
- Quando foi a última vez que passou algumas horas com a Zoe e a Vanessa?
- Eu... não passei...
- Então não sabe ao certo que tipo de amor enche o lar delas, pois não?
- Sei que é imoral - diz a Liddy.
- Então é a orientação sexual da Zoe que a torna incapaz de ser mãe? É esse o seu testemunho?
A Liddy hesita.
- Eu não disse isso. Só acho que o Reid e eu... nós somos a melhor escolha para estas crianças.
- Que tipo de contraceção usa? - pergunta a Angela. A Liddy cora.
- Não uso nenhuma.
Tenho um súbito vislumbre da noite de ontem, a cabeça dela virada para expor a garganta, as costas arqueadas debaixo de mim.
- com que frequência a senhora e o seu marido têm relações sexuais?
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- Objeção!
- vou permitir - diz o juiz. "Velho tarado."
- Responda à pergunta, Sr.a Baxter.
- Às quintas-feiras - diz a Liddy.
"Às quintas-feiras?" Uma vez por semana? Certo como um relógio? Se a Liddy fosse minha mulher, estava com ela no duche todas as manhãs. Agarrava-a quando ela passasse
por mim à mesa ao jantar e puxava-a para o meu colo....
- Coordena as relações sexuais para poder engravidar?
- Sim...
- Alguma vez esteve grávida?
- Sim... várias vezes... mas abortei.
- Sabe sequer se consegue levar uma gravidez até ao fim?
- E alguém sabe? - pergunta a Liddy. "Assim é que é."
- Compreende que se receber estes embriões e eles forem transferidos para si, pode não ter um nado-vivo.
- Ou - faz notar a Liddy - posso ter trigémeos.
- Disse que, na Bíblia, o objetivo do casamento é ter filhos?
- Sim.
- Então se Deus quisesse que tivessem filhos, já não os teriam?
- Eu... eu acho que Ele tem outros planos para nós - diz a Liddy. A advogada acena com a cabeça.
- Claro. Deus quer que seja mãe substituta privando uma mãe biológica dos mesmos direitos.
- Objeção! - diz o Wade.
- Deixe-me reformular - diz a Angela. - Concorda que aquilo que mais deseja no mundo é ter e criar filhos?
Os olhos da Liddy, que têm estado fixos na Angela Moretti com tanto cuidado, desviam-se para mim. Parece que tenho a boca cheia de vidros partidos.
- Sim - diz ela.
- Concorda que não poder ter um filho biológico é devastador? Um grande desgosto?
- Sim.
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- Mas não é precisamente esse o destino ao qual vai condenar a Zoe Baxter, se lhe tirar os embriões?
A Liddy volta-se para a Zoe, de olhos cheios de lágrimas.
- Criaria estes bebés como se fossem meus - murmura. As palavras fazem a Zoe levantar-se da cadeira.
- Não são teus - responde ela, primeiro em voz baixa, e depois mais violentamente. - São meusl
O juiz bate com o martelo.
- Dr.a Moretti, controle a sua cliente!
- Deixem-na em paz! - grito, levantando-me. - Não vêem que ela está transtornada?
Por um instante, o mundo deixa de girar. A Zoe vira-se para mim com a sombra de um sorriso nos lábios - grata, porque pensa que as minhas palavras se destinavam a ela.
Mas depois percebe que não.
Não podemos estar casados com uma pessoa durante quase uma década e não sermos capazes de ler o código Morse de uma relação: olhos que se cruzam num jantar, a dizer que é altura de inventar uma desculpa e ir para casa. Um pedido de desculpas silencioso quando agarro na mão dela debaixo dos cobertores. Um sorriso a dizer "Amo-te", lançado aos seus pés.
Ela sabe. Percebo pela forma como está a olhar para mim que ela está ciente daquilo que eu fiz. Que me perdeu, e que provavelmente perdeu os seus embriões, para uma mulher que detesta.
Então o mundo volta a girar e a Zoe lança-se para o banco das testemunhas. Um xerife agarra-a e obriga-a a ajoelhar-se. Alguém grita.
- Eu quero ordem neste tribunal, imediatamente - ruge o Juiz O'NeilI. Nesta altura, a Liddy está a chorar descontroladamente. O Wade
agarra-me no braço.
- Cale-íe antes que estrague tudo.
- Zoe - diz a Angela Moretti, tentando puxar o xerife de cima da sua cliente. - Tem de acalmar-se...
- A sessão está interrompida - grita o juiz, e sai intempestivamente do seu lugar.
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O Wade fica à espera até a Angela ter arrastado a Zoe para fora da sala de audiências, até o grosso da galeria ter saído para o corredor, para fazerem comentários sobre o que acabaram de ver.
- Mas que raio foi aquilo? - acusa ele.
Não sei o que hei de dizer-lhe. Eu próprio mal compreendo.
- Aconteceu - consigo dizer.
- Bem, é melhor certificar-se de que isto não volte a acontecer, se é que quer ganhar este julgamento. Se a sua ex-mulher quer levantar-se do lugar e parecer uma doida, isso para nós é fantástico. Acha que um juiz vai assistir a isso e pensar que ela vai ser uma boa mãe? Se ela voltar a fazer isto, e rezo para que isso aconteça, o Max vai ficar sentado de mãos cruzadas numa imagem perfeita de calma. Não vai levantar-se e defendê-la, por amor de Deus!
Baixo a cabeça, para que ele não veja a onda de alívio inundar-me o rosto.
Não faço ideia onde o Wade encontrou a Genevieve Newkirk. Psicóloga clínica licenciada, tem um doutoramento da UCLA e publicou vários artigos sobre questões fundamentais do casamento, sexualidade e parentalidade. Já apareceu na rádio e na televisão - a nível local e nacional - e foi entrevistada pela comunicação social na Web e na imprensa. Já foi consultora em mais de setenta e cinco casos legais e testemunhou em quarenta deles.
- Dr.a Newkirk - começa o Wade, assim que ela foi aceite como testemunha especializada -, no seu trabalho, já teve oportunidade de explorar se a homossexualidade
é herdada geneticamente?
- Sim. Sinceramente, não se realizaram muitos estudos, por isso é muito fácil analisar toda a investigação.
- Está familiarizada com os estudos Bailey-Pillard? - pergunta o Wade.
- Estou - a Dr.a Newkirk vira-se para a galeria. - Em 1991 e 1993, J. M. Bailey e R. C. Pillard dedicaram-se a investigar a homossexualidade nos gémeos. Descobriram que cinquenta e dois por cento dos gémeos idênticos de homens homossexuais também eram homossexuais, que vinte e dois por cento dos gémeos fraternos de homossexuais também eram homossexuais e que onze por cento dos irmãos adotivos de homens
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homossexuais eram igualmente homossexuais. Entre as mulheres, descobriram que quarenta e oito por cento das gémeas idênticas de lésbicas eram também lésbicas, dezasseis por cento das gémeas fraternas de lésbicas também eram lésbicas e seis por cento das irmãs adotivas de lésbicas também eram lésbicas.
- O que isso sugere?
- Bem, é complicado. Alguns afirmam que os dados sugerem que existe uma componente biológica da homossexualidade. Contudo, os gémeos que são criados juntos estão sujeitos ao mesmo tipo de influências. Para que o estudo seja válido, os gémeos que são criados separados teriam de ser avaliados, e nos gémeos idênticos criados separados, existe uma correlação de zero por cento; por outras palavras, o facto de um gémeo ser homossexual não implica que o seu gémeo idêntico seja homossexual. Além disso, se a orientação sexual for genética, como se explica os outros quarenta e oito por cento de gémeos idênticos do sexo masculino e cinquenta e dois por cento das gémeas idênticas do sexo feminino que não são homossexuais?
- Espere um pouco - diz o Wade. - Está a dizer que há gémeos idênticos... gémeos idênticos exatamente com o mesmo material genético... que crescem e um torna-se homossexual e o outro não?
- Quase metade - concorda a Newkirk. - Isto sugere bastante que a homossexualidade não é determinada geneticamente. Pode muito bem haver uma predisposição genética... mas isso não é de modo nenhum o mesmo. Muita gente nasce com uma predisposição genética para a depressão ou para o abuso de álcool ou drogas, mas não se entrega a comportamentos que os tragam à superfície. Ou, por outras palavras: o ambiente em que uma criança é criada exerce uma enorme influência sobre a mesma para tornar-se ou não homossexual.
- Obrigado, doutora. Então e a investigação de Simon LeVay?
- O Dr. LeVay era um neurocientista do Instituto Salk, e dedicou-se a encontrar uma base psicológica para a homossexualidade estudando o cérebro de quarenta e uma pessoas: dezanove homens homossexuais, dezasseis homens heterossexuais, e seis mulheres heterossexuais. Descobriu que um pequeno grupo de neurónios no hipotálamo, um grupo que se pensava controlar o comportamento
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sexual, é mais reduzido nos homens homossexuais do que nos homens heterossexuais. Além disso, determinou que tinha aproximadamente o tamanho do hipotálamo de uma mulher heterossexual, que tem cerca de metade do de um homem heterossexual, como já fora previamente demonstrado.
- Isso demonstra a existência de uma base psicológica para a homossexualidade? - pergunta o Wade.
- Não. Em primeiro lugar, a região do hipotálamo apresenta uma variação considerável: em alguns homens homossexuais a região tinha o mesmo tamanho da de um homem heterossexual. Além disso, o grupo de controlo era bastante pequeno, e o estudo não foi repetido. Por fim, temos de nos interrogar se a estrutura cerebral origina a orientação sexual, ou se muda por causa dela. Por exemplo, um estudo do Instituto Nacional de Saúde mostrou que, nas pessoas que começam a ler Braille depois de ficarem cegas, a zona do cérebro que controla o dedo de leitura expande-se.
- Então e o estudo de Dean Hamer, de 1993? - diz o Wade. - Ele não descobriu um gene "homossexual"?
- Não propriamente - responde a Dr. Newkirk. - Ele descobriu que os irmãos homossexuais partilhavam uma zona do cromossoma X, o Xq28, mais frequentemente do que os irmãos heterossexuais. Mas, por outro lado, este estudo não foi repetido.
- Então nenhum destes reputados cientistas conseguiu provar de forma conclusiva que uma pessoa nasce homossexual?
- Não - diz a psicóloga. - Não é certamente como a cor da pele, por exemplo. Não podemos fazer nada para alterar a cor da pele, não obstante o Michael Jackson. Mas
a orientação sexual não depende apenas da natureza. Também há uma pesada influência do ambiente.
- Isso leva-me a abordar o seu mais recente artigo: "Para Além do Amor: Por Que Razão o Casamento do Mesmo Sexo Prejudica as Crianças." Pode dizer-nos o que a levou a escrevê-lo?
- Há uma profusão de provas de que o superior interesse da criança é ser criada por pais heterossexuais - diz a Dr.a Newkirk. - As companheiras lésbicas podem de facto ser ótimas mães, mas simplesmente não podem ser pais.
- Pode explicar?
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A Dr.a Newkirk acena com a cabeça.
- Há quatro razões principais para ser fundamental que uma criança seja amada por uma mãe e por um pai. Em primeiro lugar, as ligações que os pais de sexos diferentes
têm com os filhos, apesar de serem igualmente importantes, são determinantemente únicas. O amor incondicional de uma mãe e o amor condicional de um pai complementam-se
e influenciam a maneira como a criança cresce. Uma relação com ambos os sexos ao longo dos anos de formação da criança permite que a mesma interaja mais facilmente
com o mundo nos anos seguintes. Em segundo lugar, é um facto bem conhecido no desenvolvimento da criança existirem várias fases de crescimento psicológico. Por exemplo, apesar de os bebés de ambos os sexos de início reagirem melhor aos cuidados da mãe, a determinada altura, para afinar a sua identidade masculina, um rapaz tem de se desligar da mãe e identificar-se com o pai, para aprender a canalizar a agressividade e a controlar as emoções. A relação com o pai é importante para as meninas: torna-se um lugar seguro para validar a sua feminilidade. Sem essa figura paterna na sua vida, é mais provável que sacie a sua ânsia por atenções masculinas de forma a torná-la sexualmente ousada de forma inadequada.
- E a terceira razão? - insiste o Wade.
- Está documentado que as relações do mesmo sexo provocam confusão nas crianças, e promiscuidade. A mensagem que é enviada é que todas as escolhas são igualmente desejáveis, que não importa com quem nos casamos. Por esta razão, os jovens que são criados por famílias com uma relação do mesmo sexo tendem a ser sexualmente ativos e sexualmente indiscriminados.
- Quer dizer que é mais provável que eles próprios tenham relacionamentos homossexuais?
- Precisamente. Lembre-se da Grécia Antiga, por exemplo. A homossexualidade era exuberante: não por causa de um gene homossexual, mas sim porque a sociedade a aceitava. A aceitação deste tipo de comportamento só conduz a uma proliferação do mesmo.
- E a última razão para o casamento do mesmo sexo ser prejudicial para as crianças?
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- Abre caminho para relacionamentos ainda mais inaceitáveis. Casais polígamos, por exemplo. Imagina as implicações emocionais para uma criança que tenha um único pai mas muitas mães? com quem vai essa criança estabelecer uma ligação? E se extrapolarmos, imagine o que acontece quando esses casamentos se desintegram e há novos casamentos, bem, poderia haver crianças com dois pais e seis mães... - abana a cabeça. - Isso não é uma família, Dr. Preston. É uma comuna.
- Deixe-me fazer-lhe uma pergunta, Dr.a Newkirk... as suas objeções derivam da incapacidade de um casal de homossexuais dar afeto a uma criança?
- Claro que não. com certeza que os casais de homossexuais podem criar um ambiente tão afetuoso como os casais de heterossexuais.
Contudo, as crianças não precisam apenas de amor. Precisam das experiências complementares proporcionadas por terem um pai e uma mãe para a sua orientação, instrução e desenvolvimento psicológico.
- As pessoas que recusam isso vão perguntar-lhe quais são as suas provas - diz o Wade.
A Dr.a Newkirk sorri.
- Mais ou menos cinco mil anos de parentalidade, Dr. Preston. Colocar as crianças numa experiência social bizarra pode ser absolutamente devastador para as gerações seguintes - olha para a Zoe. - Sinto apenas compaixão pelos homossexuais que desejam formar uma família. Mas não posso permitir que a minha compaixão por eles se sobreponha aos direitos de crianças inocentes.
- Em resultado da sua investigação, Dr.a Newkirk, tem uma opinião de especialista relativamente a que família seria mais indicada para alojar estas crianças por nascer?
- Tenho, sim. Acredito convictamente que estas crianças estariam muito melhor em casa do Reid e da Liddy Baxter.
- Obrigada, Doutora - diz o Wade e vira-se para a Angela Moretti.
- A testemunha é sua.
- Afirma que a homossexualidade não é genética, Doutora? - começa a Angela.
- Não há evidências que provem isso.
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- Afirmou que o estudo de Bailey e Pillard não é válido porque nem todos os gémeos idênticos que se identificaram como homossexuais tinham um gémeo homossexual, não é verdade?
- É verdade.
- Sabe que, apesar de os gémeos idênticos partilharem muitos traços idênticos, há certos fatores biológicos que diferem entre eles? As impressões digitais, por exemplo?
- Bem...
- E, Doutora, rejeitou o estudo LeVay porque ainda não foi confirmado por um estudo similar.
- Precisamente - diz a psicóloga.
- Conhece a investigação realizada nos oito por cento dos carneiros domésticos que estão apenas interessados em copular com outros carneiros?
-Não.
- Bem - diz a Angela Moretti -, de facto, os investigadores descobriram um grupo de neurónios no hipotálamo desses carneiros que tendiam a ser mais pequenos do que nos carneiros heterossexuais. Aliás, as conclusões eram muito semelhantes às do estudo de Simon LeVay. Doutora, também criticou a investigação de Dean Hamer por não ter sido repetida, não é verdade?
- Sim.
- Isso significa que o estudo pode ser repetido a determinada altura?
- Como é óbvio não consigo prever o futuro.
- Conhece um estudo sueco que identificou as diferenças na forma como o cérebro de homens heterossexuais e homens homossexuais reagia às feromonas masculinas e femininas, que sugeria uma forte componente física da homossexualidade?
- Sim, mas...
- Sabe que alguns cientistas em Viena identificaram um interruptor genético para a orientação sexual nas moscas da fruta? E que, quando alteravam o interruptor, as fêmeas da mosca da fruta ignoravam os machos e tentavam acasalar com outras fêmeas imitando os rituais de acasalamento dos machos?
- Não tinha conhecimento disso, não - admite a psicóloga.
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- E sabia, Dr.a Newkirk, que atualmente está a ser efetuado um estudo de dois milhões e meio de dólares, encomendado pelo Instituto Nacional de Saúde, para realizar testes genéticos a mil pares de irmãos homossexuais para melhor compreender a componente genética da homossexualidade? Ambas sabemos que o governo raramente suja as mãos em investigações que incidam sobre sexualidade, Doutora. Isto sugere que até uma reputada instituição como o INS está a validar a base biológica da homossexualidade.
- Qualquer um pode apresentar uma hipótese, Dr.a Moretti. Mas a investigação nem sempre as apoia.
- Então e o Dr. William Reiner, da Universidade de Oklahoma? pergunta a Angela. - Tem conhecimento de que ele estudou centenas de casos de crianças que nasceram com perturbações de diferenciação sexual: como um menino com um pénis subdesenvolvido ou sem pénis? O protocolo habitual é castrar a criança, que depois é criada como uma menina. Sabia, Doutora, que nenhuma delas se sentia atraída por homens quando cresceu? Que muitos desses bebés com um sexo atribuído artificialmente voltaram a ser homens, porque se sentiam sexualmente atraídos por mulheres? Diria que se trata de um exemplo muito claro em que o ambiente não se sobrepõe à natureza, não acha?
- Doutora - diz a psicóloga -, presumo que tenha conhecimento do princípio de seleção natural de Darwin...
- Claro.
- Então sabe que é um dado científico geralmente aceite que o principal objetivo de todas as espécies é transmitirem os genes mais fortes para as gerações futuras. Visto que os homossexuais apenas geram vinte por cento dos filhos que os heterossexuais geram, esse tal gene homossexual que está a sugerir não teria sido há muito eliminado pela seleção natural? - sorri. - Não pode recorrer ao argumento da biologia se depois não conseguir justificá-lo.
A advogada justifica o comentário.
- Sou apenas uma modesta advogada, Dr.a Newkirk. Não tenho pretensões de opinar sobre ciência nem pseudociência. Ora bem, uma das suas justificações para as crianças serem criadas em uniões heterossexuais é que o facto de não terem uma mãe e um pai é problemático, correto?
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- Sim.
- Então se um dos pais de um casal heterossexual falecer, defende que a criança seja tirada ao pai sobrevivente e alojada em casa de outro casal heterossexual?
- Isso seria ridículo. A situação ótíma para qualquer criança é viver com a mãe e o pai, mas.como é óbvio nem sempre é esse o caso. As tragédias acontecem.
- Tal como impedir que um embrião seja entregue à mãe biológica?
- Objeção...
O juiz franze o sobrolho.
- Deferida.
- Retiro o que disse - diz a Angela Moretti.
- Por acaso, gostaria de responder - diz a Dr.a Newkirk. - Posso referir à Dr.a Moretti numerosos estudos que provam que um rapai que cresce sem o pai tem maiores probabilidades de se tornar delinquente, e acabar na prisão.
- Então e a sua alegação de que o casamento entre pessoas do mesmo sexo abre caminho para a poligamia? Desde que o casamento entre homossexuais foi legalizado no Massachusetts, alguém requereu que as uniões polígamas fossem legisladas?
- Não estou a par da legislação nesse estado...
- Eu posso ajudá-la. A resposta é não - diz a Angela. - E também ninguém pediu para se casar com uma rocha, ou uma cabra - começa a contar pelos dedos. - Deixe-me só resumir o que disse, Dr.a Newkirk. Pais homossexuais são a causa de todo o tipo de problemas devastadores de desenvolvimento nas crianças envolvidas. A homossexualidade não é inata, é aprendida. Se tivermos pais homossexuais, é provável que experimentemos relações homossexuais. Se crescermos com pais heterossexuais, seremos heterossexuais em adultos.
A psicóloga acena com a cabeça.
- Está basicamente certo.
- Então talvez possa explicar-me uma coisa - diz a Angela Moretti. Por que razão a maior parte dos homossexuais tem pais heterossexuais? dá meia volta e dirige-se novamente para o seu lugar enquanto a psicóloga continua a tentar encontrar uma resposta. - Não tenho mais perguntas.
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A Angela Moretti não quer realmente que o Pastor Clive testemunhe.
- Meritíssimo - diz ela -, se o Sr. Lincoln é uma testemunha de caráter para Max Baxter, não há necessidade de qualificá-lo como especialista na sua área. O estudo de Max Baxter não é uma disciplina académica.
- O Pastor Clive é um líder religioso e um académico - argumenta o Wade. - Já viajou por todo o país para pregar a palavra de Deus.
- E sabe qual é o único lugar onde não pode pregá-la? Num tribunal
- responde a Angela.
- Acho que quero ouvir o que ele tem para dizer - diz o Juiz O'NeilI.
- Claro que queria - murmura a Angela. O juiz franze o sobrolho.
- Perdão, Doutora? Ela olha para cima.
- Disse que sou judia.
- Bem, nunca teria imaginado, visto que o seu apelido vem diretamente de Federal Hill. Mas obrigado por partilhar connosco - acrescenta. - Faz-nos ver algumas das
suas anteriores objeções de forma muito diferente. Dr. Preston, pode chamar a sua testemunha.
Quando o Pastor Clive entra vindo do sítio onde estava isolado, acompanhado por um xerife, a galeria reage. Os membros da Igreja da Glória Eterna gritam aleluias
e améns; o grupo da Igreja Batista de Westboro começa a aplaudir. Por seu lado, o Pastor Clive curva humildemente a cabeça e percorre a galeria.
Pede para jurar sobre a sua própria Bíblia.
- Por favor, diga o seu nome para que fique registado - diz o Wade.
- Clive Lincoln.
- Qual é a sua profissão?
- Sou o pastor da Igreja Evangélica de Deus da Glória Eterna.
- Tem família, Pastor?
- Sim - diz o Pastor Clive. - Tenho uma mulher maravilhosa, e Deus quis que fôssemos abençoados com quatro lindas filhas.
Conheço três delas - são pré-adolescentes de aspeto impecável que vestem vestidos iguais e cantam com o Pastor Clive ao domingo. A outra
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costuma sentar-se na fila de trás durante a missa sem dizer uma palavra. Consta que não aceitou Jesus como seu Senhor e Salvador. Nem imagino a vergonha que isso deve ser para um homem como o Pastor Clive. Acho que toda a gente tem de carregar a sua cruz.
- Conhece o queixoso?
- Conheço. O Max juntou-se à nossa congregação há cerca de seis meses.
- Também conhece o Reid e a Liddy Baxter? - pergunta o Wade.
- Já conheço o Reid, há quinze anos. Sinceramente, é um mago das finanças... já gere as finanças da igreja há mais de uma década. Talvez sejamos a única organização
não lucrativa que ganhou dinheiro durante a recessão - o Pastor Clive olha para cima. - Por outro lado, talvez haja Alguém a olhar por nós na bolsa.
- Há quanto tempo é pastor desta igreja?
- Há vinte e um gloriosos anos.
- Pastor, o que ensina a sua igreja acerca da homossexualidade?
- Objeção - diz a Angela Moretti. - Não vejo como este testemunho possa aprofundar o seu conhecimento acerca do caráter do queixoso.
- Indeferida.
- Acreditamos na palavra de Deus - diz o Pastor Clive. - Interpretamos a Bíblia literalmente, e há muitas passagens que afirmam que o casamento deve realizar-se entre um homem e uma mulher, com o propósito da procriação, e muitas outras que condenam diretamente a homossexualidade.
- Pode explicar?
- Objeção! - a Angela Moretti levanta-se. - A Bíblia não é relevante num tribunal.
- Oh, a sério? - diz o Wade. Indica a Bíblia usada para os juramentos. A Angela Moretti ignora-o.
- Meritíssimo, a interpretação que o Sr. Lincoln faz dos versículos da Bíblia é uma unificação entre religião e justiça... que viola os próprios princípios do nosso sistema legal.
- Pelo contrário, Meritíssimo, isto é bastante relevante para o superior interesse das crianças por nascer, e para o tipo de lar para onde vão acabar por ir.
- vou permitir o testemunho - diz o Juiz O'NeiII.
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Um homem ao fundo da galeria que veste uma T-shirt que diz "os ARMÁRIOS SÃO PARA AS ROUPAS" levanta-se.
- Vá-se foder, Juiz! O'NeilI olha para cima.
- Requerimento indeferido - diz secamente. - Xerife, por favor, retire este homem da minha sala de audiências - vira-se para o Pastor Clive. Como estava a dizer,
pode prosseguir. Mas vou limitá-lo a escolher um único versículo como exemplo. A Dr.a Moretti tem razão numa coisa: isto é um julgamento, e não uma aula de catequese.
O Pastor Clive abre calmamente a sua Bíblia e lê em voz alta.
- "Não te deitarás com um homem, como se fosse mulher: isso é uma abominação [...] Se um homem dormir com outro homem, como se fosse mulher, ambos cometem uma coisa abominável. Serão punidos de morte e levarão a sua culpa." Sei que são dois versículos, mas estão praticamente na mesma página.
- Como é que o senhor e a sua congregação interpretam essas passagens?
- Não me parece que seja apenas eu e a minha congregação - diz o Pastor Clive. - Está escrito para toda a gente ler: a homossexualidade é uma abominação. Um pecado.
- Por favor - diz a Angela Moretti -, objeto. Pela centésima vez.
- vou dar ao seu testemunho a relevância que merece, Doutora - diz o Juiz O'Neill.
O Wade vira-se para o Pastor Clive.
- Gostaria de lhe chamar a atenção para as crianças por nascer que estão na base deste caso - diz ele. - Quando soube da existência delas?
- O Max veio pedir-me conselhos, muito transtornado depois de uma conversa com a ex-mulher. Parece que ela agora vive em pecado...
- Objeção!
- Por favor, apague isso do registo - diz o juiz.
- A ex-mulher do Max queria obter a custódia destas crianças por nascer para poder transferi-las para a sua amante lésbica.
- Que conselho deu ao Max? - pergunta o Wade.
- Disse-lhe que podia ser a maneira de Deus dizer-lhe alguma coisa. Falámos do tipo de família com a qual desejava que os filhos crescessem, e ele disse que gostaria que fosse uma família cristã tradicional. Quando
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lhe perguntei se conhecia alguém assim, ele imediatamente mencionou o irmão e a cunhada.
"Liddy", penso, e sinto uma pontada no peito.
"E se eu sugerisse que criássemos os bebés juntos?" Podíamos dizer ao Wade, e ele podia dizer ao juiz, e então, de repente, o pai biológico, eu, passaria a fazer parte do acordo. Já não ia dar os bebés a outra pessoa; ia ficar com eles para mim.
Só que o Wade construiu todo o caso com base em eu não estar preparado para ser pai.,
E a Liddy.
Mesmo que ela estivesse disposta a isso, não poderia privá-la de tudo o que tem. O dinheiro, a casa, a segurança. Como é que eu conseguiria chegar sequer aos calcanhares
do Reid?
O Reid, que só me ajudou e que em troca recebe um irmão que dorme com a mulher dele.
Pois, sou um pai perfeito. Um verdadeiro exemplo a seguir.
- O Reid e a Liddy rezam para ter filhos há anos - diz o Pastor Clive.
- Recentemente, pensaram adotar através da agência Flocos de Neve. Quando o Max veio ter comigo, pensei que talvez Deus estivesse a apresentar-nos uma outra solução, uma solução que beneficiaria todos os envolvidos. Que talvez a Liddy e o Reid fossem os melhores pais para estas crianças por nascer em particular.
- Como é que o Max reagiu?
- Ficou moderadamente otimista - o Pastor Clive olha para cima. -
Todos ficámos.
- Obrigado, Pastor - diz o Wade, e volta a sentar-se.
A Angela Moretti começa a falar mesmo antes de se levantar da cadeira.
- Uma solução que beneficiaria todos os envolvidos - repete ela. Foi isso que pensou?
-Foi.
- Não me parece que beneficie muito a Zoe, a mãe biológica destes embriões.
- Por muito que compreenda a necessidade de servir os interesses da
Sr.a Baxter, o que uma criança precisa é muito mais importante - diz o Pastor Clive.
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- Por isso acha que escolher pais não biológicos para estes embriões é melhor do que escolher uma mãe que tem uma ligação genética direta com eles?
- O que eu penso é muito menos importante do que o que Deus pensa.
- Ah sim? - pergunta a Angela. - Quando foi a última vez que falou com ele?
- Objeção - diz o Wade. - Não vou deixar que faça troça da minha testemunha.
- Deferida... cuidado, Doutora.
- Disse que conhece o Max há meio ano, Pastor?
- Sim.
- E não conhece a Zoe Baxter, só a viu nesta sala de audiências, não é verdade?
- É verdade.
- Não tem nenhuma informação sobre eles, de quando eram casados?
- Não. Na altura não eram membros da minha igreja.
- Compreendo - diz a Angela. - Mas conhece o Reid e a Liddy bastante bem?
- Conheço.
- Não teve problemas em vir a este tribunal dizer que, na sua opinião, são o casal que deve ser escolhido para obter a custódia destes embriões.
- Não - diz o Pastor Clive.
- Também tem uma relação profissional com o Reid Baxter, não tem?
- Ele gere os fundos da igreja.
- Também é um dos principais contribuintes para a sua igreja, não é?
- Sim. O Reid sempre foi muito generoso.
- Na verdade, a sua igreja recomenda que os seus membros paguem o dízimo, não recomenda?
- Muitas igrejas fazem isso...
- Não é verdade que recebe a elevada quantia de cerca de quatrocentos mil dólares anuais do seu amigo Reid Baxter?
- Está basicamente correto.
- E que, por coincidência, está aqui hoje a recomendar que lhe seja atribuída a custódia destes embriões, correto?
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- A generosidade do Reid para com a igreja não tem nada a ver com a minha recomendação...
- Oh, aposto que não - diz a Angela Moretti. - Quando falou com o Max sobre o pedido da ex-mulher dele para ficar com a custódia dos embriões, foi o senhor que sugeriu que ele pensasse no Reid e na Liddy como potenciais pais, não foi?
- Abri a mente dele a essa possibilidade.
- E ainda foi mais longe, não foi... arranjando-lhe um advogado? O Pastor Clive acena com a cabeça.
- Faria o mesmo por qualquer membro da minha congregação...
- Na verdade, Pastor, o senhor não se limitou a arranjar um advogado para o Max. Arranjou-lhe o advogado mais importante dos Estados Unidos com a reputação de proteger os direitos das crianças por nascer, não foi?
- Não tenho culpa que o infortúnio do Max tenha atraído a atenção de uma pessoa tão prestigiada.
- Sr. Lincoln, o senhor afirmou que o propósito do casamento é a procriação?
- Sim.
- A Bíblia diz alguma coisa sobre os casais heterossexuais que não podem ter filhos?
-Não.
- Então e os casais heterossexuais demasiado velhos para terem filhos?
- Não...
- E as pessoas que ficam solteiras? A Bíblia condena-as como antinaturaís?
- Não.
- Mesmo assim, segundo a sua lógica, não vão procriar?
- Há muitas outras passagens da Bíblia que condenam a homossexualidade - diz o Pastor Clive.
- Ah, sim. Aquele maravilhoso excerto que leu do Levítico. Tem conhecimento, Sr. Lincoln, que o Levítico é um código de santidade escrito há mais de três mil anos?
- Claro que tenho.
- Sabe que os códigos de santidade tinham um objetivo muito específico? Que não eram mandamentos mas sim proibições de comportamentos
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que as pessoas de fé achariam ofensivos numa determinada época e num determinado local? Tem conhecimento, Pastor, de que no caso do Levítico, o código foi escrito apenas para os padres de Israel, para que fossem mais responsáveis do que os padres dos outros países, como a Grécia?
- É bastante claro o que está certo e o que está errado, quando se lê a passagem. E pode tentar explicar isso historicamente, mas hoje ainda é moralmente relevante.
- A sério? Sabia que, no Levítico, são referidas muitas mais proibições? Por exemplo, há uma contra os cortes de cabelo, sabia?
- Bem...
- E outra contra as tatuagens - sorri. - Eu própria tenho uma, mas não vou dizer onde - a advogada aproxima-se do Pastor Clive. - Tem uma gravata de seda junto a uma camisa de algodão? Sabia que há outra proibição contra roupas feitas de tecidos mistos?
- Não percebo como é que...
- E olhe, há outra que diz que não devemos comer carne de porco nem marisco. Gosta de gambás fritas, Pastor?
- Isso não é...
- Há outra proibição de ler a sina. E futebol americano? Gosta de futebol americano, não gosta? Quero dizer, quem não gosta? Bem, há uma proibição contra jogar com a pele de um porco. Não acha, Pastor, que muitas destas proibições estão historicamente ultrapassadas?
- Objeção - diz o Wade. - A advogada está a testemunhar! O juiz inclina a cabeça.
- O que serve para uns serve para os outros, Dr. Preston. Indeferida.
- A Bíblia é muitas coisas para muitas pessoas, mas não é um manual de sexo, certo?
- Claro que não!
- Então por que razão recorre a ela para procurar recomendações sobre atividade sexual adequada?
O pastor Clive vira-se para a advogada.
- Eu recorro à Bíblia para tudo, Dr.a Moretti. Até para procurar exemplos de desvios sexuais.
- O que está lá escrito sobre vibradores anais?
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O Wade levanta-se.
- Objeção!
- Então, Dr.a Moretti? - diz o juiz, franzindo o sobrolho.
- Então devemos presumir que há coisas que não são mencionadas na Bíblia e que apesar disso são sexualmente desviantes?
- É totalmente possível - diz o Pastor Clive. - A Bíblia só traça os contornos gerais.
- Mas aquelas que são mencionadas na Bíblia como sendo desvios sexuais, na sua opinião, são a palavra de Deus? Total e absolutamente inviolável?
- Exatamente.
A Angela Moretti agarra na Bíblia que está em cima da mesa de defesa, cheia de notas em Post-it.
- Conhece Deuteronómio 22:20-21? - pergunta ela. - Pode ler em voz alta para o tribunal?
A voz do Pastor Clive ressoa na sala.
- "Se, porém, o facto for verídico e não se tiver comprovado as marcas de virgindade da jovem, esta será conduzida ao limiar da casa paterna, e os habitantes de sua cidade a apedrejarão até que morra."
- Obrigada, Pastor. Pode explicar esta passagem? Ele franze os lábios.
- Defende o apedrejamento de uma mulher que não seja virgem na altura do casamento.
- Aconselharia o seu rebanho a fazer isso? - antes que ele possa responder, faz-lhe outra pergunta. - Então e São Marcos 10:1-12? Essas passagens proíbem o divórcio. Tem alguns divorciados na sua congregação? Oh, espere... claro que tem. Max Baxter.
- Deus perdoa aos pecadores - diz o Pastor Clive. - Recebe-os de braços abertos.
A Angela volta a folhear a Bíblia.
- Então e São Marcos 12:18-23? Se um homem morrer sem filhos, a viúva deve, por lei bíblica, ter relações sexuais com todos os irmãos dele até dar ao falecido marido um herdeiro do sexo masculino. É isso que diz às viúvas de luto?
Detesto-me por isso, mas penso novamente na Liddy.
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- Objeção!
- Ou Deuteronómio 25:11-12? Se dois homens lutarem e a mulher de um deles tentar salvar o marido agarrando nos órgãos genitais do seu inimigo, a mão dela deve ser cortada sem piedade...
A sério? Tinha-me inscrito numas aulas de estudo da Bíblia para adultos por sugestão do Reid, mas nunca lemos nada tão picante.
- Objeção! - o Wade bate na mesa com a mão aberta. O juiz levanta a voz.
- Dr.a Moretti, vou acusá-la de desrespeito pelo tribunal se...
- Está bem. Retiro a última frase. Mas tem de admitir, Pastor, que nem todos os preceitos que estão escritos na Bíblia fazem sentido nos nossos dias.
- Porque está a tirar os versículos do seu contexto histórico...
- Sr. Lincoln - diz a Angela Moretti sem rodeios. - Foi o senhor que fez isso primeiro.
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O LUGAR ONDE ESTÁS
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ZOE
Nos cinco primeiros segundos depois de acordar, o dia é novinho em folha como uma nota de dólar... impecável, cheio de possibilidades.
E então lembro-me.
De que há uma ação judicial.
De que há três embriões.
De que hoje vou testemunhar.
De que a Vanessa e eu vamos ter de saltar duas vezes mais alto e correr duas vezes mais depressa do que um casal heterossexual, para o resto da vida. O amor nunca é fácil, mas parece que, para os casais de homossexuais, é uma corrida de obstáculos.
Sinto o braço dela à minha volta, por trás.
- Para de pensar - diz ela.
- Como sabes que estou a pensar?
A Vanessa sorri de novo encostada à minha omoplata.
- Porque tens os olhos abertos. Viro-me para olhar para ela.
- Como conseguiste? Como é que alguém consegue assumir-se enquanto é mais novo? Quero dizer, mal consigo lidar com o que dizem de mim naquela sala de audiências, e tenho quarenta e um anos. Se tivesse catorze, não estava apenas no armário: estava colada ao seu interior.
A Vanessa deita-se de barriga para cima e fica a olhar para o teto.
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- Preferia morrer a assumir-me enquanto estava no liceu. Apesar de, lá no fundo, saber quem era. Há um milhão de razões para não nos assumirmos na adolescência: porque a sua essência é sermos iguais aos outros, e não sobressairmos; porque não sabemos o que os nossos pais vão dizer; porque temos imenso medo que a nossa melhor amiga pense que estamos a atirar-nos a ela. A sério, já passei por tudo isso - olha para mim. - Agora, na minha escola, há cinco adolescentes abertamente homossexuais, e cerca de quinze que ainda não querem admitir que são homossexuais. Posso dizer-lhes cem milhões de vezes que o que estão a sentir é perfeitamente normal, e depois vão para casa, vêem as notícias e percebem que o exército não deixa que os homossexuais se alistem. Vêem outro referendo para o casamento entre homossexuais ir por água abaixo. Os jovens não são estúpidos.
- Quantas pessoas terão de dizer que há algo de errado connosco antes de começarmos a acreditar nisso? - reflito em voz alta.
- Diz-me tu - diz a Vanessa. - Revelaste-te tarde, Zo, mas és tão corajosa como todas nós. Acho que os homossexuais são como as baratas. Extraordinariamente resistentes.
Rio.
- É evidente que esse seria o pior pesadelo do Pastor Clive. As baratas já existem desde o tempo dos dinossauros.
- Por outro lado, o Pastor Clive teria de acreditar na evolução - diz a Vanessa.
Pensar no Pastor Clive faz-me pensar na tortura que tivemos de suportar ontem para chegarmos ao tribunal. Ontem à noite, o Wade Preston esteve no Hannity Show. Hoje vai haver o dobro da comunicação social. O dobro das atenções focadas em mim.
Estou habituada a isso; afinal, sou artista. Mas há uma enorme diferença entre um público que nos observa porque está ansioso por saber o que vem a seguir e um público que nos observa porque está à espera que fracassemos.
De repente, não há nada no Pastor Clive que tenha graça. Viro-me de lado, fitando a luz untuosa no chão de madeira, a pensar no que aconteceria se telefonasse à Angela e lhe dissesse que estava com gripe. com urticária. com peste negra.
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A Vanessa enrola o corpo à minha volta, entrelaçando os nossos tornozelos.
- Para de pensar - volta ela a dizer. - Vai correr tudo bem.
Um dos custos ocultos de um julgamento é a quantidade de tempo em que a nossa vida real é totalmente interrompida por algo que preferíamos que ficasse em segredo. Talvez nos sintamos um pouco envergonhados; talvez achemos que ninguém tem nada a ver com isso. Temos de faltar ao trabalho; temos de pressupor que tudo o resto fica à nossa espera e que isto é mais importante.
Nisso, uma ação judicial não é muito diferente da fertilização in vitro.
Por causa disso - e porque a Vanessa está a perder tanto tempo quanto eu - decidimos passar uma hora no liceu antes de irmos para o tribunal passar o resto do dia. A Vanessa pode arrumar a secretária e extinguir os incêndios que deflagraram desde ontem; e eu vou encontrar-me com a Lucy.
Pelo menos é isso que penso, até virarmos a esquina do parque de estacionamento da escola e encontrarmos uma multidão de manifestantes
com cartazes e a cantar.
TEMAM DEUS, E NÃO OS HOMOSSEXUAIS
O DIA DO JUÍZO FINAL ESTÁ A CHEGAR.
NÀO SÃO PERMITIDOS BICHAS.
3 DIREITOS DOS HOMOSSEXUAIS: 1. DSTS 2. SIDA 3. INFERNO.
Dois polícias estão ali perto, a observar a manifestação com desconfiança. O Clive Lincoln está ali de pé mesmo no meio deste fiasco, vestindo outro fato branco,
desta vez assertoado.
- Estamos aqui para proteger as crianças - grita ele. - O futuro deste grande país, e aqueles que estão mais sujeitos ao risco de serem presas dos homossexuais,
homossexuais que trabalham nesta mesma escola!
- Vanessa - digo numa voz abafada. - E se ele te denunciar?
- Depois desta cobertura mediática, não me parece que isso seja possível - diz a Vanessa. - Além do mais, as pessoas de quem gosto mais já sabem. As pessoas que
não me interessam... bem, vão ter apenas de lidar com isso. Não podem despedir-me por ser homossexual - endireita-se um pouco mais. - A Angela até se babava para
ficar com o caso.
407
Um autocarro escolar para e, à medida que os jovens confusos saem lá de dentro, os membros da igreja gritam-lhes, ou empurram os cartazes para cima deles. Um rapaz
pequeno e delicado, com uma camisola com capuz bem puxado para cima do rosto, fica todo vermelho quando vê os cartazes.
A Vanessa aproxima-se mais de mim.
- Lembras-te do que estávamos a falar hoje de manhã? Ele é um daqueles quinze.
O rapaz baixa a cabeça, tentando tornar-se invisível.
- vou resolver este assunto - diz a Vanessa. - Ficas bem aqui sozinha?
- não fica à espera para ouvir a minha resposta e abre caminho por entre a multidão: a empurrar com a força de um defesa até chegar junto do rapaz e o levar por este campo de forças de ódio.
- Porque não arranja uma vida própria? - grita a Vanessa ao Pastor Clive.
- Porque não arranja um homem? - responde ele.
De repente, o rosto da Vanessa fica tão vermelho como o do rapaz. Vejo-a desaparecer atrás das portas da escola, tentado ainda focar a atenção do rapaz.
- Os homossexuais estão a ensinar os nossos filhos... a tentar converte -
-los ao seu estilo de vida - diz o Pastor Clive. - Que ironia, estes jovens impressionáveis receberem aconselhamento psicológico daqueles que vivem em pecado...
Agarro na manga de um polícia.
- Isto é uma escola. com certeza que não deviam estar a manifestar-se aqui. Não pode ver-se livre deles?
- Não, a não ser que atuem com violência. Bem pode culpar os liberais pelo reverso da democracia, minha senhora. Tipos como este podem dizer tudo o que pensam; os terroristas vêm viver para o nosso bairro. Que Deus abençoe os EUA.
Olha para mim, estalando a pastilha elástica.
- Não tenho nada contra os homossexuais - diz o Pastor Clive. - Mas
não gosto do que fazem. Os homossexuais já têm direitos iguais. O que eles querem é ter direitos especiais. Direitos que lenta mas seguramente nos privam das nossas próprias liberdades. Nos lugares em que a vontade deles prevaleceu, dizer o que penso, como estou agora a fazer, podia fazer-me ir para a prisão por discurso de ódio. No Canadá, na Inglaterra, na Suécia, pastores,
408
padres, cardeais e bispos foram processados ou condenados à prisão por pregarem contra a homossexualidade. Na Pensilvânia, um grupo evangélico com cartazes, como vocês trazem, foi preso por intimidação étnica.
Os alunos que chegaram noutro autocarro escolar passam por nós. Um deles cospe para o Pastor Clive.
- Imbecil - diz o rapaz?
O pastor limpa o rosto tranquilamente.
- Já lhes lavaram o cérebro - diz ele. - Os sistemas de ensino agora até ensinam aos bebés nas creches que ter duas mamãs é normal. Se o vosso filho tiver uma opinião diferente, será humilhado em frente aos colegas. Mas isto não se limita às escolas. Podemos acabar como o Chris Kempling: um professor canadiano que foi suspenso por escrever uma carta ao editor a afirmar que o sexo entre homossexuais tem riscos para a saúde e que muitas religiões acham a homossexualidade imoral. Estava apenas a referir factos, meus amigos, mas foi suspenso durante um mês sem direito a remuneração. Ou a Annie Coffey-Montes, uma empregada da Bell Atlantic que foi despedida por pedir que a retirassem da lista de email de homossexuais e lésbicas da sua empresa que anunciavam festas e bailes. Ou o Richard Peterson, que colocou versículos da Bíblia sobre homossexualidade no seu gabinete na Hewlett-Packard e ficou sem emprego.
Apercebo-me de que ele é o chefe de claque daqueles que não têm vontade de aplaudir. Uma pessoa que não leva propriamente os outros a juntarem-se à sua causa, mas que os faz juntarem-se à sua causa através da paranóia.
Ouve-se um tumulto na multidão, uma ondulação, como um cachorrinho debaixo de uma colcha. Levo uma cotovelada de uma mulher com
uma grande cruz de ouro entre os seios.
- O vosso direito enquanto cristãos de abraçarem as vossas próprias crenças está a ser limitado pelos interesses dos homossexuais - continua o Pastor Clive. - Temos de ripostar, antes que percamos as nossas liberdades religiosas e civis, espezinhadas por estes...
De repente, é derrubado por uma mancha negra. De imediato, três dos seus capangas de fato preto ajudam-no a levantar-se, ao mesmo tempo que os dois polícias agarram o atacante. Acho que ele fica tão chocado quanto eu ao ver quem é.
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- Lucy! - grita ele. - Mas que estás tu a fazer?
Ao princípio, não consigo perceber como é que ele sabe o nome dela. Depois lembro-me de que ela frequenta a igreja dele.
Aparentemente, obrigada.
Abro caminho por entre a multidão e coloco-me entre o Clive e os polícias, que estão a exagerar na forma como lidam com a Lucy. Cada um deles segura num braço dela,
torcendo-o atrás das costas, e ela não pesa mais de cinquenta quilos.
- Eu resolvo este assunto - digo, com a voz a ressoar de tanta autoridade que eles acabam realmente por largá-la.
- Ainda não acabámos de falar - diz o Clive, mas lanço-lhe um olhar por cima do ombro enquanto levo a Lucy para a escola.
- Continue no tribunal - digo-lhe.
Aposto que a Lucy nunca ficou tão satisfeita por ver as portas da escola fecharem-se atrás de si. Tem o rosto afogueado e manchado.
- Respira fundo - digo-lhe. - Vai ficar tudo bem.
A Vanessa sai do gabinete principal e olha para nós as duas.
- O que aconteceu?
- A Lucy e eu precisamos de um sítio para nos acalmarmos - digo, com uma voz o mais pausada possível, quando o que me apetece mesmo fazer é telefonar à União Americana de Liberdades Civis, ou à Angela, ou a um proctologista, ou a qualquer outra pessoa com experiência em lidar com caras de eu como o Clive Lincoln.
A Vanessa nem hesita.
- O meu gabinete. Podem ficar lá o tempo que quiserem.
Levo a Lucy pára o gabinete principal - um lugar onde já passou demasiado tempo, a ser disciplinada pelo vice-diretor - e entramos no espaço acolhedor da Vanessa. Fecho a porta atrás de nós.
- Sentes-te bem?
Ela limpa a boca com a manga.
- Só queria que ele se calasse - murmura a Lucy.
Ela agora já deve saber que estou no meio desta tempestade. Foram publicados nos jornais artigos sobre o julgamento. Ontem à noite, quando estava a lavar os dentes, a minha cara estava no noticiário da noite. E agora, há uma manifestação à porta da escola. Inicialmente posso ter tentado
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resguardar a minha vida privada devido à nossa relação terapêutica, mas agora, fazê-lo seria como tentar conter o oceano com sacos de areia.
Faz sentido que a Lucy já saiba tudo sobre isto. Que as pessoas que frequentam a igreja dela estejam a dizer mal de mim, e que ela se sinta dividida.
O suficiente para empurrar o Pastor Clive.
Puxo uma cadeira para ela se sentar.
- Acredita nele? - pergunta ela.
- Sinceramente, não - admito. - Parece saído de um espetáculo de circo.
- Não - a Lucy abana a cabeça. - Quero dizer... acredita nele?
De início fico chocada. É difícil de imaginar que alguém seja capaz de ouvir o Pastor Clive e achar que as palavras dele não sejam simplesmente mentiras. Mas por
outro lado, a Lucy é apenas uma adolescente. A Lucy frequenta uma igreja evangélica. Ouviu esta retórica ao longo de toda a sua vida.
- Não, não acredito nele - digo num tom suave. - E tu? A Lucy puxa os fios pretos das leggings.
- Havia um rapaz que frequentava esta escola no ano passado. O Jeremy. Estava na minha turma. Todos sabíamos que ele era homossexual, apesar de ele nunca o ter dito. Não era preciso. Quero dizer, toda a gente lhe chamava bicha - olha para mim. - Enforcou-se na cave mesmo antes do Natal. Os cabrões dos pais disseram que foi por causa de uma negativa que teve em Educação Cívica - os olhos da Lucy cintilam, duros como diamantes. - Tive tanta inveja dele. Porque pode sair deste lugar para sempre. Foi-se embora, e eu não consigo, por muito que tente.
Sinto um gosto a cobre na língua; demoro um momento a perceber que se trata de medo.
- Lucy, estás a pensar ferires-te a ti própria? - visto que não responde, olho para os braços dela, para ver se anda outra vez a mutilar-se, mas, mesmo com este tempo ameno, veste uma camisola térmica de manga comprida.
- Só gostava de saber onde raio anda Jesus - diz a Lucy. - Onde está Ele quando há tanto ódio que parece betão à nossa volta? Bem, vai-te foder, Deus. Vai-te foder por virares as costas quando as coisas se tornam difíceis.
- Lucy. Fala comigo. Tens algum plano? - faz parte do aconselhamento psicológico básico em caso de tentativa de suicídio: fazer a pessoa falar sobre as suas intenções, e é possível suavizá-las. Tenho de saber se ela tem comprimidos na mala, uma corda no roupeiro, uma arma debaixo do colchão.
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- As pessoas podem deixar de gostar de nós por não sermos quem elas queriam que fôssemos?
A pergunta dela faz-me ficar petrificada. Dou por mim a pensar no Max.
- Acho que sim - admito.
Terá a Lucy sofrido algum desgosto? Isso poderia certamente justificar esta última recaída; o que eu sei sobre esta rapariga é que ela está à espera que as pessoas a abandonem, e culpa-se a si própria quando o fazem.
- Aconteceu alguma coisa com um rapaz?
Ela vira-se para mim, com o rosto aberto como uma ferida.
- Cante - implora a Lucy. - Faça isto desaparecer.
Não tenho a minha guitarra. Deixei todo o equipamento para a terapia musical no carro; a multidão reunida lá fora distraiu-me.
O único instrumento que tenho é a minha voz.
Então canto, devagar, a cappella. "Hallelujah", a velha canção do Leonard Cohen, de quando a Lucy ainda não era nascida.
De olhos fechados, com cada palavra como se fosse um toque de pincel, rezo como as pessoas rezam quando não sabem se Deus existe. Tenho esperança, pela Lucy. Por mim e pela Vanessa. Por todos os inadaptados do mundo que não querem necessariamente adaptar-se. Também não queremos ser sempre censurados.
Quando termino, tenho lágrimas nos olhos. Mas a Lucy não. As feições dela parecem feitas de pedra.
- Outra vez - ordena ela.
Canto a canção duas vezes. Três vezes.
É no refrão, na sexta vez, que a Lucy começa a chorar. Esconde o rosto
nas mãos.
- Não é um rapaz - confessa ela.
Quando era pequena recebi um presente de Natal muito estranho de uma tia afastada: uma nota de vinte dólares dentro de um quebra-cabeças de acrílico. Tinha de puxar manipules e torcer alavancas em mecanismos diferentes para descobrir a sequência que libertaria a mola e nos deixava recolher o prémio. Estive tentada a parti-lo com um martelo para abri-lo, mas a minha mãe convenceu-me de que as peças encaixariam no seu lugar e, logo que isso aconteceu, parecia que era impossível errar. Bum, bum, bum, abria-se uma porta ou fecho atrás de outro como se nunca tivessem estado trancados.
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Agora acontece o mesmo - uma cortina que se puxa, uma frase que se vira para revelar um sentido diferente: as tentativas de suicídio. O discurso do Pastor Clive. O empurrão irado da Lucy. O Jeremy. "As pessoas podem deixar de gostar de nós?"
"Não é um rapaz", disse a Lucy. Talvez por ser uma rapariga.
Uma das regras fundamentais da terapia musical é que entramos na vida de um paciente no ponto em que este precisa de nós, e deixamo-lo num ponto diferente. Nós, como terapeutas, somos apenas catalisadores. Uma constante. Não nos alteramos. E sobretudo não falamos sobre nós próprios. Estamos ali exclusivamente por causa do paciente.
Foi por isso que, quando a Lucy me perguntou se eu era casada, não lhe respondi.
Foi por isso que ela não sabia nada acerca de mim, e eu sabia tudo sobre ela.
Não se trata de uma amizade - já disse isso à Lucy. Trata-se de uma relação profissional.
Mas isso foi antes de o meu futuro se tornar do domínio público. Isso foi antes de eu me sentar numa sala de audiências com os olhares de estranhos
a trespassarem-me como agulhas entre as omoplatas. Antes de ouvir um pastor que não conhecia nem gostava dizer que sou imoral. Antes de ir à casa de banho das senhoras e alguém enfiar um cartão de novena debaixo da porta com uma mensagem escrita no verso: "Estou a rezar por si, minha querida."
Se tenho de sofrer este tormento porque por acaso amo uma mulher, pelo menos que isso faça algum bem a alguém. Deixem-me fazer uma boa ação.
- Lucy - digo num tom suave. - Sabes que sou lésbica, não sabes?
Ela levanta a cabeça bruscamente.
- Porque... porque está a dizer-me isso?
- Não sei o que pensas ou o que sentes, mas tens de perceber que isso
é absolutamente normal.
Ela fica a olhar para mim, em silêncio.
- Sabes como, quando voltamos a uma sala de aulas do jardim de infância e nos sentamos naquelas cadeirinhas junto àquelas mesas pequeninas e nos
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sentimos como a Alice no País das Maravilhas? Nem imaginamos como já fomos tão pequenas para caber naquele espaço? É assim que nos sentimos quando saímos do armário. Olhamos para trás e nem conseguimos imaginar voltarmos a entrar. Mesmo que o Pastor Clive e toda a sua igreja nos empurrem com toda a força que tenham.
A Lucy tem os olhos tão abertos que consigo ver o branco à volta das íris. Inclina-se para a frente, sustendo a respiração, quando se ouve alguém bater à porta.
A Vanessa espreita cá para dentro.
- São oito e quarenta e cinco - diz-me ela, e eu levanto-me da cadeira com um salto. Vamos ter de ir a voar se quisermos chegar ao tribunal a horas.
- Lucy, tenho de ir - digo, mas ela não está a olhar para mim. Está a olhar para a Vanessa, e a pensar no que o Pastor Clive disse sobre ela, e a juntar as peças da minha vida tão perfeitamente como eu juntei as dela.
A Lucy agarra na mochila e, sem dizer uma palavra, sai do gabinete da Vanessa.
Não me apercebi de como para ser testemunha é preciso ser-se ator. Como se estivesse num palco, fui bem ensaiada para este momento - desde aprender as falas pela entoação da minha voz à roupa que a própria Angela escolheu para mim (um vestido simples azul-marinho com um casaco de malha branco; tão incrivelmente conservador que quando a Vanessa me viu desatou a rir e chamou-me Madre Baxter).
Sim, fui bem preparada. Sim, teoricamente estou pronta. E sim, sem dúvida estou habituada a atuar.
Mas, por outro lado, toco e canto por uma razão. De alguma forma, perco-me nas notas, deixo-me levar pelas melodias e esqueço-me de onde estou. Quando toco diante de um público, acredito perfeitamente que eu é que beneficio, e não as pessoas que estão a ouvir. No entanto, da última vez que participei numa peça de teatro, tinha dez anos e desempenhava o papel de pé de milho no Feiticeiro de Oz, e trinta segundos antes de entrar para o palco, vomitei para cima dos sapatos da diretora.
- Chamo-me Zoe Baxter - digo. - Moro em Gavin Street, número seiscentos e oitenta, em Wilmington.
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A Angela mostra-me um sorriso radioso, como se eu tivesse resolvido um problema de cálculo diferencial, em vez de apenas ter dito o meu nome e morada.
- Que idade tem, Zoe?
- Quarenta e um anos.
- Pode dizer ao tribunal qual é a sua profissão?
- Sou terapeuta musical - digo. - Utilizo a música num cenário clínico para ajudar os pacientes a aliviar a dor, a mudar de estado de espírito ou a interagir com o mundo. Por vezes trabalho em lares de idosos, com pacientes com demência; outras vezes trabalho em escolas, com crianças autistas; há muitas maneiras diferentes de implementar a terapia musical.
Penso imediatamente na Lucy.
- Há quanto tempo é terapeuta musical?
- Há uma década.
- E qual é o seu salário, Zoe? Sorrio um pouco.
- Cerca de vinte e oito mil dólares por ano. Não se quer ser terapeuta musical porque se deseja ter uma vida faustosa. É-se terapeuta musical porque se quer ajudar as pessoas.
- É o seu único rendimento?
-Também sou cantora profissional. Em restaurantes, bares, cafés. Componho as minhas músicas. Não dá para viver, mas é um bom suplemento. -Já foi casada? - pergunta a Angela. Já sabia que vinha aí esta pergunta.
- Sim. Fui casada com o queixoso, Max Baxter, durante nove anos, e atualmente sou casada com a Vanessa Shaw.
Ouve-se um leve burburinho, como um zumbido à volta de uma colmeia, enquanto a galeria assimila esta resposta.
- A senhora e o Sr. Baxter têm filhos?
- Tivemos muitos problemas de fertilidade, como casal. Sofremos dois abortos espontâneos e tivemos um nado-morto.
Consigo vê-lo, neste momento, azulado e imóvel como mármore, ainda sem unhas nem sobrancelhas. Uma obra de arte em progresso.
- Pode descrever perante o tribunal a natureza dos seus problemas de infertilidade, e que medidas, enquanto casal, tomaram para conceber?
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- Eu tinha síndrome do ovário poliqulstico - começo. - Nunca tive períodos regulares, e não tinha ovulação todos os meses. Também tinha fibroides submucosais. O
Max sofria de infertilidade masculina, que é genética. Começámos a tentar engravidar quando eu tinha trinta e um anos, e não aconteceu nada ao longo de quatro anos.
Por isso iniciámos a fertilização in vitro quando eu tinha trinta e cinco.
- Como é que correu?
- Segui um protocolo médico com várias hormonas e injeções, e conseguiram recolher quinze óvulos, que foram injetados com os espermatozoides do Max. Três não eram
viáveis. Oito foram fertilizados, e desses oito, dois foram transferidos para mim e três foram congelados.
- Engravidou?
- Dessa vez não. Mas aos trinta e seis anos, esses embriões congelados foram descongelados. Dois foram transferidos e um foi rejeitado.
- Rejeitado? O que quer dizer isso? - pergunta a Angela.
-A médica explicou-me que não são suficientemente bonitos para serem considerados viáveis, por isso o clínico decide não os guardar.
- Compreendo. Dessa vez engravidou?
- Sim - digo. - E abortei algumas semanas depois.
- Depois o que aconteceu?
- Aos trinta e sete, iniciámos outro ciclo. Desta vez recolheram doze óvulos. Seis foram fertilizados. Dois foram transferidos e dois foram congelados.
- Engravidou?
- Sim, mas abortei às dezoito semanas.
- Continuou a submeter-se à fertilização in vitro? Aceno com a cabeça.
- Usámos os dois embriões congelados para iniciar um novo ciclo. Um foi transferido, e o outro não sobreviveu à descongelação. Não engravidei.
- Que idade tinha nessa altura?
-Tinha trinta e nove anos. Sabia que não me restava muito tempo, por isso esforçámo-nos por iniciar um último ciclo. Aos quarenta, foram recolhidos dez óvulos. Sete foram fertilizados. Desses sete, três foram transferidos, três foram congelados e um foi rejeitado - olho para cima.
- Engravidei.
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- Era a mulher mais feliz do mundo - digo num tom suave.
- Sabia qual era o sexo do bebé?
- Não. Queríamos que fosse uma surpresa.
- Sentia o bebé mexer-se dentro de si?
Até agora, as palavras dela evocam aquele rebolar lento, aquela pirueta aquática ociosa.
- Sim.
- Pode descrever como se sentia, por estar grávida?
- Adorei cada minuto - digo. - Tinha esperado por isso a vida toda.
- Como é que o Max reagiu à gravidez?
Ela disse-me para não olhar para ele, mas o meu olhar é magneticamente atraído para o Max, que está sentado de mãos cruzadas. Ao lado dele, o Wade Preston escreve esporadicamente algumas notas com uma caneta de tinta permanente Montblanc.
"Como é que chegámos a este ponto?", interrogo-me, olhando para o Max.
"Como é que não vi que isto ia acontecer, quando olhei para os olhos dele e jurei ficar com ele para sempre?"
"Como pude não saber que um dia ia amar outra pessoa?"
"Como pudeste não saber que um dia ias odiar a pessoa em que me tornei?"
- Ele também ficou entusiasmado - digo. - Costumava enfiar-me os auscultadores do iPod no umbigo para que o bebé pudesse ouvir a música de que ele mais gostava.
- Zoe, conseguiu levar a gravidez até o fim? - pergunta a Angela.
- Não. Às vinte e oito semanas, houve uma coisa que correu mal - olho para ela. - Estava no chá do bebé quando comecei a ter dores muito fortes e a sangrar muito. Levaram-me à pressa para o hospital e colocaram-me um CTG. Os médicos não encontraram batimento cardíaco fetal. Trouxeram
um ecógrafo e tentaram durante cinco minutos... mas pareceram-me cinco horas. Finalmente disseram-me que a placenta se tinha descolado do útero. O bebé... - engulo.
- O bebé estava morto.
- E depois?
- Tive de dar à luz. Deram-me medicamentos para induzir o parto.
- O Max estava presente?
- Estava.
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- Em que estava a pensar, naquele momento?
- Que se tratava de um erro - digo, olhando diretamente para o Max. Que eu ia ter o bebé e que eles iam ver como estavam enganados, quando ele saísse a chorar e a dar pontapés.
- O que aconteceu quando o bebé saiu?
- Não estava a dar pontapés. Não estava a chorar - o Max olha para baixo, para a mesa. - Era tão pequenino. Ainda não tinha gordura, como costumamos ver nos outros recém-nascidos. E ainda não tinha unhas, nem pestanas, mas era perfeito. Era tão inacreditavelmente perfeito e tão... tão imóvel - vejo que estou inclinada para a frente na cadeira das testemunhas, empoleirada com as mãos à minha frente, como se estivesse à espera de alguma coisa. Obrigo-me a encostar-me para trás. - Chamámos-lhe Daniel. Espalhámos as cinzas dele no oceano.
A Angela dá um passo na minha direção.
- O que aconteceu depois de o seu filho morrer?
- Tive mais complicações médicas. Quando me levantei para ir à casa de banho, tive tonturas e falta de ar. Comecei a ter dores no peito. Afinal tinha-se formado um coágulo de sangue depois do parto, que se instalou nos pulmões. Deram-me heparina e, quando fiz análises ao sangue, os médicos descobriram que eu tinha um problema genético chamado deficiência de antitrombina in: basicamente quer dizer que sou suscetível a formar coágulos de sangue, e a gravidez provavelmente agravou esse problema. Mas a primeira pergunta que fiz foi se ainda poderia ter um bebé.
- Qual foi a resposta?
- Que isto podia voltar a acontecer. Podiam surgir complicações ainda mais graves. Mas que se eu ainda quisesse tentar conceber novamente... poderia.
- O Max queria tentar ter outro bebé? - pergunta a Angela.
- Pensei que sim - admito. - Sempre pensámos o mesmo. Mas depois daquela visita ao consultório da médica, ele disse-me que não podia ficar comigo porque eu desejava ter um bebé acima de tudo... e que não era isso que ele queria.
- O que queria ele? Olho para cima.
- O divórcio - digo.
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- Então, ainda estava a sofrer pela perda do vosso filho, e a lidar com todos estes problemas médicos, e o seu marido disse-lhe que queria o divórcio. Qual foi a
sua reação?
- Não me lembro. Acho que estive na cama durante cerca de um mês. Nada estava nítido. Não conseguia concentrar-me. Não conseguia fazer nada.
- O que fez o Max?
- Saiu de casa, e foi viver para casa do irmão.
- Quem a representou no divórcio? Encolho os ombros.
- Representámo-nos a nós próprios. Não tínhamos dinheiro nem bens, por isso não me pareceu complicado. Ainda estava tão amortecida, nessa altura, que mal me lembro
de estar presente no tribunal. Assinei os papéis que recebi pelo correio.
-Alguma vez pensou nestes três embriões congelados na clínica durante os procedimentos de divórcio? - diz a Angela.
- Não.
- Apesar de continuar a querer ter um filho?
- Na altura - explico -, queria ter um filho com um cônjuge que me amasse. Achei que era o Max; estava enganada.
- Agora é casada?
- Sim - digo. - com a Vanessa Shaw - só de dizer o nome dela faz-me sentir que consigo respirar mais facilmente. - É psicóloga na Escola Secundária de Wilmington.
Conheci-a alguns anos antes, quando ela me pediu para fazer terapia musical com uma criança autista. Encontrei-a de novo por acaso, e ela pediu-me para trabalhar
com outra criança: uma adolescente com tendências suicidas. Aos poucos, começámos a ser amigas.
- Aconteceu alguma coisa que vos aproximou?
- Ela salvou-me a vida - digo sem rodeios. - Estava a perder sangue, e foi ela que me encontrou e chamou uma ambulância. Precisei de fazer uma curetagem, e devido
ao procedimento, fiquei a saber que tinha cancro endometrial e que tinha de fazer uma histerectomia. Foi uma altura muito difícil para mim.
Agora não estou a olhar para o Max. Nem sequer tenho a certeza do que ele sabe acerca disto.
- Logo que fiz a histerectomia, soube que nunca teria um bebé - digo.
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- A sua relação com a Vanessa alterou-se?
- Sim. Ela cuidou de mim, depois da cirurgia. Começámos a passar muito tempo juntas, a sair, a tratar de assuntos, a cozinhar, tudo, e eu comecei a perceber que
quando não estava com ela, queria estar. Que gostava mais dela do que de uma amiga normal.
- Zoe, já tinha tido alguma relação com uma pessoa do mesmo sexo?
- Não - digo, escolhendo as palavras com cuidado. - Sei que parece estranho, mas quando nos sentimos atraídas por alguém, isso acontece devido aos pormenores. A
generosidade. Os olhos. O sorriso. O facto de conseguir fazer-nos rir quando precisamos mais disso. Sentia tudo isso pela Vanessa. O facto de ela ser uma mulher...
bem, foi inesperado, mas era o menos importante.
- Parece difícil de entender, visto que foi casada com um homem... Aceno com a cabeça.
- Acho que foi por isso que demorei algum tempo a perceber que estava apaixonada pela Vanessa. Não percebia. Já tinha tido amigas e nunca quis ter uma relação física com elas. Mas logo que a nossa relação avançou nesse sentido, parecia a coisa mais natural do mundo. Como se não a ter na minha vida fosse como deixar de respirar ar e começar a respirar água.
- Agora considera-se lésbica?
- Considero-me esposa da Vanessa. Mas se tiver de aceitar a designação de outra pessoa para poder ficar com ela para sempre, então sou.
- O que aconteceu depois de se apaixonar? - pergunta a Angela.
- Fui viver para casa dela. Em abril deste ano, casámo-nos em Fali River.
- A dada altura falaram em formar uma família?
- Na nossa lua de mel - digo. - Pensei que, depois da histerectomia, nunca teria filhos. Mas tinha três embriões congelados com o meu material genético... e, agora, uma parceira com um útero onde esses bebés pudessem completar a sua gestação.
- A Vanessa queria engravidar com esses embriões?
- Foi ela que sugeriu isso - digo.
- O que aconteceu a seguir?
- Telefonei para a clínica e pedi para usar os embriões. Disseram-me que o meu cônjuge tinha de assinar a autorização. Mas não estavam a referir-se à Vanessa, estavam
a referir-se ao Max. Por isso fui falar com ele e pedi-lhe
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autorização para usar os embriões. Sabia que ele não queria ter um bebé: foi por isso que pediu o divórcio. E, sinceramente, acreditava que ele ia compreender.
- E compreendeu?
- Disse que ia pensar sobre o assunto. A Angela cruza os braços.
- O Max pareceu-lhe uni homem diferente, quando se encontraram? Olho para ele.
- O Max costumava ser um surfista. Um homem descontraído que não usava relógio e que não tinha planos e chegava sempre meia hora atrasado. Só cortava o cabelo porque eu lhe lembrava que devia cortá-lo; esquecia-se sempre de usar cinto. Mas, quando fui falar com o Max sobre os embriões, ele estava a trabalhar. E, apesar de estar a fazer trabalho manual, jardinagem, estava de gravata. Num sábado.
- O Max voltou a falar consigo por causa dos embriões?
- Sim - digo num tom amargo. - Mandou-me uma notificação, sobre uma ação judicial pelo direito de os usar.
- Como se sentiu? - pergunta a Angela.
- Fiquei zangada. E confusa. Ele não queria ser pai; ele próprio o disse. Nem sequer tinha uma relação com ninguém, que eu soubesse. Não queria os embriões. Só não queria que eu ficasse com eles.
- Quando estava casada com o Max, ele tinha algum problema em relação à homossexualidade?
- Não gostava de falar sobre isso. Mas nunca achei que ele criticasse.
- Quando estavam casados - pergunta a Angela -, com que frequência via o irmão dele?
- Não muito frequentemente.
- Como descreveria a sua relação com o Reid?
- Contenciosa.
- E com a Liddy? - pergunta a Angela. Abano a cabeça.
- Não percebo aquela mulher.
- Sabia que o Reid tinha pago o vosso quinto ciclo de fertilização in
vitro?
- Não fazia ideia, até ouvir o testemunho dele. Foi uma grande pressão para nós, porque não sabíamos como íamos arranjar dinheiro para pagá-lo... e então, um dia,
o Max chegou a casa e disse que já tinha resolvido tudo, que
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tinha arranjado um cartão de crédito sem juros, e eu acreditei nele - hesito, corrigindo-me. - Fui suficientemente estúpida para acreditar nele.
- O Max alguma vez lhe disse que queria que os embriões fossem dados ao irmão e à cunhada?
- Não. Fiquei a saber disso quando foi apresentado o requerimento.
- E qual foi a sua reação?
- Nem acreditei que ele me tivesse feito isso - digo. - Tenho quarenta e um anos. Mesmo que os meus óvulos ainda sirvam para alguma coisa, o seguro não cobre os
tratamentos de fertilidade para que possa voltar a recolhê-los. Esta é literalmente a minha última hipótese de ter um filho biológico com uma pessoa que amo.
- Zoe - diz a Angela -, a Zoe e a Vanessa já falaram sobre qual seria a relação do Max com estes embriões se o tribunal desse permissão para obterem a custódia,
e tivessem filhos?
- O que o Max quiser. O que ele estiver preparado para ser. Se quiser fazer parte das vidas dos bebés, nós compreendemos; e se não quiser, respeitamos a sua decisão.
- Então... estão dispostas a deixar que as crianças saibam que o Max é o pai biológico delas?
- Claro.
- E fazer parte das suas vidas, desde que o Max se sinta à vontade para fazê-lo?
- Claro, sem dúvida.
-Acha que receberia o mesmo tratamento, se o tribunal atribuir a custódia dos embriões ao Max?
Olho para o Max; olho para o Wade Preston.
- Passei dois dias a ouvir como o meu estilo de vida é desviante, como sou depravada por escolhê-lo - respondo. - Não vão deixar que essas crianças se aproximem
de mim.
A Angela olha para o juiz.
- Não tenho mais perguntas - diz ela.
A Angela e eu vamos beber um café durante o intervalo. Não me deixa andar pelo tribunal sozinha, com medo que um dos grupos de interesses especiais do Wade me faça
uma emboscada.
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- Zoe - diz ela. - O Wade vai andar atrás de si como o Bill Clinton atrás de uma estagiária. Mas você pareceu calma, e inteligente, e muito compreensiva - dá-me
o primeiro café e está prestes a colocar as moedas para o segundo quando o Wade Preston aparece e coloca cinquenta cêntimos.
- Ouvi dizer que não vai receber nada por este caso, Doutora - diz ele. - Considere isto a minha contribuição.
A Angela ignora-o.
- Olhe, Zoe? Sabe qual é a diferença entre o Wade Preston e Deus? - fica um instante à espera. - Deus não acha que é o Wade Preston.
Rio, como me rio sempre das piadas dela. Mas desta vez o riso fica preso na garganta. Porque, a meio metro de distância do Reid, a Liddy Baxter está a olhar para
mim. Veio até aqui com o advogado do Max, talvez pela mesma razão que eu.
- Zoe - diz ela, dando um passo em frente. A Angela fala por mim.
- A minha cliente não tem nada a dizer - coloca-se entre nós.
Num gesto absolutamente incaraterístico, a Liddy diz:
- Mas eu tenho uma coisa para lhe dizer.
Não conheço bem a Liddy. Nunca quis conhecer. O Max sempre disse que eu é que ficava a perder; que ela era divertida e inteligente e sabia de cor o diálogo do Ataque
dos Tomates Assassinos., não sei muito bem para quê. Mas eu só conseguia ver uma mulher que, nos nossos dias, ficava realmente à espera que o marido chegasse a
casa vindo do trabalho para poder perguntar-lhe como correu o dia e servir-lhe uma refeição. O Max costumava dizer que devíamos ir às compras, ou almoçar, para nos
conhecermos melhor, mas eu calculei que íamos ficar sem assunto de conversa assim que saíssemos da via de acesso da casa dela.
Mas ela agora parece ter adquirido um pouco de personalidade. É espantoso o que tirar os embriões a outra pessoa pode fazer pela nossa autoestima.
- Obrigada, mas hoje já tive a minha dose de orações - digo-lhe.
- Nada de orações. Só... bem... - ela olha para mim. - O Max não está
a tentar magoar-te.
- Pois, eu sou apenas um dano colateral. Estou a perceber.
- Sei como deves estar a sentir-te.
Fico espantada com o descaramento dela.
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- Não fazes ideia de como me sinto. Tu e eu - profiro - não temos absolutamente nada em comum.
Passo pela Liddy e empurro-a, com a Angela a apressar o passo ao meu lado.
- Anda a dar lições de boas maneiras aos seus clientes, Doutora? - grita o Wade.
A voz da Liddy ressoa pelo corredor até chegar a mim.
- Temos uma coisa em comum, Zoe - diz ela. -Já amamos estes bebés. Isso faz-me ficar imóvel. Viro-me de novo para ela.
- Para que saibas - diz a Liddy numa voz suave -, sempre achei que serias uma excelente mãe.
A Angela dá-me o braço e arrasta-me para o fundo do corredor.
- Ignore-os - diz ela. - Sabe qual é a diferença entre um porco-espinho e o Wade Preston a conduzir o seu automóvel? Os espinhos no exterior.24
Mas, desta vez, nem consigo esboçar um sorriso.
Não me lembro de a minha mãe sair muitas vezes com outros homens
quando eu era pequena, mas há um que me ficou na memória. Um homem veio bater à porta, banhado em mais perfume do que a minha mãe tinha posto, e levou-a a jantar
fora. Adormeci no sofá a ver O Barco do Amor e a Ilha da Fantasia e acordei algures durante o Saturday Night Live e vi-a descalça, com rímel esborratado debaixo
dos olhos e os cabelos soltos do carrapito.
- Ele foi simpático? - lembro-me de perguntar, e a minha mãe limitou-se a soltar um grunhido de desdém.
- Nunca confies num homem que use um anel no mindinho - disse ela. Não compreendi, na altura. Mas agora concordo com ela: as únicas jóias
que um homem devia usar são a aliança de casamento ou um anel da Super Bowl. Qualquer outra coisa é um indício de que as coisas não vão resultar: um anel do liceu
revela que ele nunca chegou a crescer; um anel com uma pedra revela que é homossexual e ainda não sabe. E um anel no mindinho revela que é demasiado sofisticado
para seu próprio bem; um pretenso Truman Capote mais preocupado com o seu próprio aspeto do que connosco.
24 " The prick's on the outside", na versão original em inglês, sendo que prick significa espinho mas também imbecil. (N. da T.)
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O Wade Preston usa um anel no mindinho.
- É certo que já teve a sua dose de complicações de saúde, Sr.a Baxter diz ele. - Dir-se-ia que é quase uma profissão.
- Objeção - diz a Angela. - Isso não é algo que se diga.
- Deferida. Doutor, abstenha-se de fazer comentários pessoais - diz o Juiz O'Neill.
- Muitas delas implicaram um risco de vida, não é verdade?
- Sim - digo.
- Então é provável que, se este tribunal lhe atribuir as crianças por nascer, que nem sequer esteja cá para vê-las crescer, não é verdade?
- Neste preciso momento, estou totalmente livre de cancro. As minhas hipóteses de recaída são de menos de dois por cento - sorrio-lhe. - Sou absolutamente saudável,
Dr. Preston.
- Compreende que, se o tribunal atribuir estas crianças por nascer a si é à sua amante lésbica, não há garantias de que ocorrerá uma gravidez?
- Compreendo isso melhor do que ninguém - digo. - Mas também compreendo que esta é a minha última oportunidade de ter um filho biológico.
- Agora vive com Vanessa Shaw, na casa dela, não é verdade?
- Sim. Somos casadas.
- No estado de Rhode Island, não - diz o Wade Preston.
Fixo o olhar nele.
- Só sei que o estado de Massachusetts me deu uma certidão de casamento.
- Há quanto tempo estão juntas?
- Há cerca de cinco meses.
Ele levanta as sobrancelhas.
- Não é muito tempo.
- Acho que reconheci algo de bom logo que a vi - encolho os ombros.
- E quis ficar com ela para sempre.
- Achou o mesmo quando se casou com o Max Baxter, não foi? O primeiro golpe.
- Não fui eu que pedi o divórcio. O Max deixou-me.
- Da mesma forma que a Vanessa pode deixá-la?
- Não me parece que isso vá acontecer - digo.
- Mas não sabe, pois não?
425
- Tudo é possível. O Reid e a Liddy podem divorciar-se - quando digo estas palavras, olho para a Liddy na galeria. O rosto dela perde a cor.
Não sei o que aconteceu entre ela e o Max, mas alguma coisa aconteceu. Senti fios presos entre eles, apesar de invisíveis, quando ela apresentou o seu testemunho, como se tivesse passado por uma teia de aranha esticada numa porta aberta. E depois as palavras dela lá em baixo, na sala de refeições: "O Max não está a tentar magoar-te." Como se ela tivesse falado com ele sobre isso.
É impossível que o Max esteja apaixonado por ela.
Ela não podia ser mais diferente de mim.
Ao pensar nisso, tenho de sorrir um pouco. O Max podia obviamente dizer o mesmo da Vanessa.
Mesmo que o Max tenha uma paixoneta pela cunhada, não imagino que isso vá a algum lado. A Liddy está demasiado ocupada em ser a esposa perfeita, a beata ideal. Não me parece que haja espaço de manobra para que ela deixe de estar em graça.
- Sr.a Baxter? - diz o Wade Preston, impaciente, e apercebo-me de que não ouvi a pergunta dele.
- Desculpe. Podia repetir a pergunta?
- Disse que guarda ressentimentos do Reid e da Liddy devido à vida que eles levam, não guarda?
- Não guardo ressentimentos deles. Só damos importância a coisas muito diferentes.
- Então não inveja a fortuna deles?
- Não. O dinheiro não é tudo.
- Então guarda ressentimentos deles por serem tão exemplares? Abafo uma gargalhada.
- Por acaso, não acho que sejam. Acho que compram aquilo que querem, incluindo estes embriões. Acho que se servem da Bíblia para julgar pessoas como eu. Não são qualidades que eu queira ensinar a um filho.
- Não frequenta regularmente a igreja, pois não, Sr.a Baxter?
- Objeção - diz a Angela. - Talvez seja preciso demonstrar visualmente
- agarra em dois livros de direito e põe um deles à sua frente. - Igreja muda o outro livro para a ponta da mesa da defesa. - Estado - depois olha para o juiz. - Está a ver todo este belo espaço entre eles?
426
- Muito engraçado, Doutora. Por favor, responda à pergunta, Sr.a Baxter
- diz o juiz.
- Não.
- Não tem grande apreciação pelas pessoas que frequentam a igreja, pois não?
- Acho que toda a gente devia ter o direito de acreditar no que quiser. O que inclui não acreditar em nada - acrescento.
A Vanessa não acredita em Deus. Acho que o facto de a mãe dela rezar para que ela deixasse de- ser lésbica fechou a porta para a religião organizada. Falámos sobre isso, a coberto da noite. De como ela não se interessa verdadeiramente por uma vida após a morte, desde que tenha aquilo de que precisa nesta vida; de como existe uma componente evolucionária em ajudar as pessoas que não tem nada a ver com uma Regra de Ouro; de como, apesar de não conseguir pertencer a uma religião organizada, também não posso afirmar com certeza que não acredito num poder superior. Não sei bem se isto se deve ao facto de continuar agarrada aos vestígios da religião, ou ao facto de ter medo de admitir em voz alta que talvez não acredite em Deus.
O ateísmo, apercebo-me, é como se fosse a nova homossexualidade. Aquilo que esperamos que ninguém descubra devido a todas as pressuposições negativas que de certeza se seguirão.
- Então não pensa educar estas crianças por nascer numa religião?
- Não sei - digo sinceramente. - vou educar um filho para ser amado e para mostrar amor; para se respeitar a si próprio, ter um espírito aberto e ser tolerante com toda a gente. Se encontrar o grupo religioso certo que apoie isso, talvez nos juntemos a ele.
- Sra Baxter, conhece o caso "Burrows contra Brady"?
- Objeção! - diz a Angela. - O Doutor está a referir-se a um caso de custódia, e este é um caso de propriedade de bens.
Indeferida-diz o Juiz O'Neill. -Aonde quer
chegar com isto, Dr. Preston?
- Eni "Burrows contra Brady", o Supremo Tribunal de Rhode Island deliberomque, quando os pais se divorciam, cada pai que tenha a custódia tem o direito de educar
o filho na fé que acha servir o superior interesse da criança. Além do mais, em "Pettinato contra Pettinato", afirmou-se que o carater moral de cada progenitor que
pode potencialmente obter a custódia deve ser tido em conta...
427
- O Doutor estará a querer dizer ao tribunal como deve desempenhar a sua função - pergunta a Angela -, ou terá realmente uma pergunta a fazer à minha cliente?
- Sim - responde o Wade. - Tenho uma pergunta a fazer. A senhora testemunhou, Sra Baxter, que se submeteu a vários procedimentos de fertilização in vitro, todos os quais resultaram em tragédia?
- Objeção...
- vou reformular a frase. Nunca chegou realmente a levar uma gravidez até o fim, pois não?
- Não - digo.
- Aliás, teve dois abortos espontâneos?
- Sim.
- E depois um nado-morto? Olho para o colo.
-Sim.
- Hoje testemunha que sempre quis ter um filho, não é verdade?
- É verdade.
- Meritíssimo - a Angela suspira. - Todas estas perguntas já foram feitas e respondidas.
- Então, Sr.a Baxter, porque assassinou o seu próprio filho em 1989?
- O quê? - pergunto, estupefacta. - Não faço ideia do que está a dizer... Mas faço. E as palavras seguintes confirmam-no:
- Fez ou não um aborto voluntário quando tinha dezanove anos?
- Objeção! - a Angela levanta-se imediatamente do seu lugar. - Isto é irrelevante e ocorreu antes do casamento da minha cliente, e apresento um requerimento para que seja imediatamente retirado do registo...
- É totalmente relevante. Influencia o seu desejo de ter agora um bebé. Está a tentar compensar os pecados do passado.
- Objeção!
As minhas mãos estão dormentes.
Uma mulher levanta-se na galeria.
- Assassina de bebés! - grita ela, e é a racha que faz rebentar a barragem. Há gritos, vindos do contingente de Westboro e dos membros da congregação da Glória Eterna. O juiz pede ordem, e cerca de vinte espetadores são arrastados pela porta dupla da sala de audiências.
428
Imagino a Vanessa a assistir a isto do outro lado. Interrogo-me o que estará a pensar.
- Dr. Preston, pode prosseguir a sua linha de interrogatório, mas sem os comentários editoriais - diz o Juiz O'Neill. - E quanto à galeria, se houver mais desordem, vou continuar a sessão à porta fechada.
Sim, digo-lhe. Fiz um aborto. Tinha dezanove anos, estava na faculdade. Não era a altura certa para ter um bebé. Pensei, estupidamente, que ia ter muitas mais oportunidades.
Quando termino, estou devastada. Só falei uma vez sobre o procedimento desde que ele ocorreu, na clínica de fertilidade, quando tive de ser absolutamente sincera sobre os meus antecedentes reprodutivos, para não comprometer as minhas hipóteses de conceber. Passaram-se vinte e dois anos, mas de repente sinto-me como me senti na altura: abalada. Envergonhada.
E zangada.
A clinica não podia ter facultado legalmente essa informação ao Wade Preston. O que significa que deve ter vindo da única pessoa que estava na clínica no dia em que relatei os meus antecedentes clínicos.
OMax.
- Há alguma razão para ter ocultado esta informação do tribunal?
- Não ocultei...
- Talvez por ter pensado, corretamente, que poderia fazê-la parecer menos sincera quando começasse a chorar por querer tanto ter um bebé?
- Objeçãol
- Pensou sequer - insiste o Wade - que o facto de não ter podido ter outro filho foi castigo de Deus por ter matado o primeiro?
A Angela está furiosa. Persegue o Wade com um rasto de fogo verbal. Mas mesmo depois de ele ter retirado a pergunta, esta fica a pairar no ar como as letras de letreiro de néon depois de fecharmos os olhos.
E, apesar de não ter de responder em voz alta, posso já ter respondido em silêncio.
Não quero acreditar num Deus que me castigaria por fazer um aborto.
Mas isso não quer dizer que não me questionei se isso não será verdade.
429
- Quer explicar-me que raio foi aquilo? - pergunta a Angela assim que o juiz diz que vamos encerrar a sessão. - Como é que ele teve acesso aos seus ficheiros clínicos?
- Não foi preciso - digo abertamente. - O Max deve ter-lhe contado.
- Então porque não me disse nada? Teria sido muito menos prejudicial se conseguíssemos abordar o assunto no interrogatório, em vez de ser abordado no contrainterrogatórío!
Como o alcoolismo do Max. Toda a gente gosta de um pecador reabilitado. Se fôssemos nós a abordar o problema dele com a bebida, pareceria que ele tinha algo a esconder.
Que foi precisamente como o Wade me fez parecer hoje.
Preston terminou de arrumar a pasta; sorri delicadamente ao passar.
- Lamento que não tivesse conhecimento do esqueleto que a sua cliente tinha no armário. Literalmente, isto é.
A Angela ignora-o.
- Há mais alguma coisa que eu deva saber? Porque não gosto mesmo nada de surpresas.
Abano a cabeça, ainda amortecida, e saio da sala de audiências atrás dela. A Vanessa está à espera com a minha mãe, ambas ainda isoladas.
- O que aconteceu lá dentro? - pergunta a Vanessa. - Porque é que o juiz expulsou metade da galeria?
- Podemos falar sobre isso no carro? Queria mesmo ir para casa.
Mas assim que abrimos a porta do tribunal e saímos lá para fora, há uma saraivada de perguntas.
Já estava à espera disto. Só não estava à espera daquelas que fazem.
"com quantas semanas de gravidez estava quando fez o aborto?"
"Quem era o pai do bebé?"
"Ainda se mantém em contacto com ele?"
Uma mulher vem ter comigo. Pela T-shirt amarela dela percebo que pertence à Igreja Batista de Westboro. Tem uma garrafa de plástico reciclável na mão cheia de uma espécie de ponche de frutas, mas daqui
parece sangue.
Sei que vai atirar aquilo para cima de mim antes de o fazer.
430
- Algumas escolhas são erradas - grita ela.
Recuo, protegendo-me, e o líquido só me acerta no pé direito. Esqueço-me completamente da Vanessa até ouvir a voz dela ao meu lado.
- Nunca me contaste.
- Nunca contei a ninguém.
Os olhos da Vanessa são frios. Olha para o Max, a caminhar entre os advogados.
- Não sei porquê - diz ela -, mas não acredito.
A minha mãe quer ir atrás do Wade Preston por ter revelado o meu passado; é preciso que a Angela interfira e diga a palavra mágica (neto) para que ela aceite ir para casa sem armar uma discussão. Diz-me que me telefonará mais tarde para ver se estou bem, mas é bastante evidente que agora não me apetece falar. Isto é, com ninguém a não ser a Vanessa. Durante todo o caminho para casa, tento explicar o que aconteceu durante o meu testemunho. Ela não diz uma palavra. Quando menciono o aborto, ela retrai-se.
Por fim, quando estacionamos o carro, já não aguento mais.
- Vais recusar-te a falar comigo para sempre? - grito, batendo com a porta do carro e indo atrás da Vanessa para casa. Tiro os collants, que ainda estão pegajosos. - Isto é alguma questão católica?
- Sabes que não sou católica - responde a Vanessa. -Masjá foste...
- Não se trata do maldito aborto, Zoe. Trata-se de ti - agora está virada para mim, ainda com as chaves do carro na mão. - É uma história bastante importante para se deixar de fora de uma relação. É como esquecermo-nos de dizer a alguém que temos SIDA.
- Por amor de Deus, Vanessa, não se pode contagiar um aborto como se fosse uma doença sexualmente transmissível...
- Achas que essa é a única razão para se revelar qualquer coisa muitíssimo pessoal à pessoa que se ama?
- Foi uma decisão horrível que tive de tomar, apesar de ter tido a sorte de poder toma-la. Não gosto particularmente de revivê-la.
- Então diz-me uma coisa - argumenta ela. - Porque é que o Max sabia, e eu não?
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- Estás com ciúmes? Estás realmente com ciúmes por eu ter contado ao Max uma coisa horrível do meu passado!
- Sim - admite a Vanessa. - Está bem? Sou uma cabra egoísta porque desejo que a minha mulher se abrisse tanto comigo como se abriu com o homem com quem já foi casada.
- E talvez eu gostasse que a minha mulher mostrasse um pouco de compaixão - digo. - Tendo em conta que acabei de ser atormentada pelo Wade Preston e que agora sou o Inimigo Público Número Um para toda a direita religiosa.
- Não gira tudo à tua volta - diz a Vanessa. -Apesar de não dares sinais de perceber isso.
- Ótimo! - grito, com as lágrimas a virem-me aos olhos. - Queres saber como foi o meu aborto? Foi o pior dia da minha vida. Fui o caminho todo para lá e o caminho todo para casa a chorar. Tive de comer sopa de massa durante dois meses porque não queria pedir dinheiro à minha mãe; e só lhe contei o que tinha feito quando regressei a casa para as férias de verão. Não tomei o medicamento que me deram para as dores porque achei que as merecia. E o rapaz com quem namorava, o rapaz que decidiu comigo que era o que devíamos fazer, separou-se de mim passado um mês. E, apesar de todos os médicos que consultei me terem dito que os meus problemas de infertilidade não estão de forma nenhuma relacionados com esse procedimento, nunca consegui acreditar nisso. Então o que achas? Estás satisfeita? Era isso que querias saber?
Quando termino, estou a chorar tanto que mal consigo perceber as minhas próprias palavras. Tenho o nariz a pingar e os cabelos no rosto, e quero que ela me toque, me abrace e me diga que está tudo bem, mas em vez disso recua.
- Que mais não sei acerca de ti? - pergunta ela, e deixa-me ali sozinha à entrada de uma casa que já não parece ser a minha.
O procedimento em si durou apenas seis minutos.
Eu sei, contei-os.
Tinham-me falado em todas as minhas opções. Fizeram-me análises e um exame físico. Deram-me um sedativo. Abriram-me o colo do útero com dilatadores. Deram-me formulários para assinar.
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Isto demorou algumas horas.
Lembro-me de a enfermeira me enfiar os pés nos estribos e me dizer que me deitasse. Lembro-me do brilho do especulo quando a médica o tirou do guardanapo esterilizado. Lembro-me do som do aparelho de sucção.
A médica nunca lhe chamou bebé. Nunca lhe chamou feto. Referiu-se
a ele como tecido. Lembro-me de fechar os olhos e pensar num Kleenex, amachucado numa bola e atirado para o lixo.
A caminho do campus, pousei a mão na alavanca de mudanças do velho Dodge Dart do meu namorado. Só queria que a mão dele cobrisse a minha. Em vez disso, ele desentrelaçou os meus dedos.
- Zoe - disse ele. - Deixa-me conduzir.
Apesar de serem só duas da tarde quando cheguei ao meu quarto no dormitório, vesti o pijama. Fiquei a ver o Hospital Central, concentrando-me nos personagens do Prisco e da Felicia, como se mais tarde tivesse de fazer um teste sobre eles. Comi um boião inteiro de manteiga de amendoim Jif.
Continuava a sentir-me vazia.
Tive pesadelos durante semanas, em que ouvia o feto chorar. Em que seguia o som até ao pátio do lado de fora da janela do meu dormitório e me agachava de calças de pijama e camisola de alças rasgada para desenterrar com as minhas próprias mãos, escavando no chão pedregoso. Tirava pedaços de raízes, lascava as unhas em pedras e, finalmente, descobria: a Sweet Cindy, a boneca que tinha enterrado no dia em que o meu pai morreu.
Não consigo relaxar nessa noite. Ouço a Vanessa andar de um lado para o outro por cima de mim, no quarto, e depois, quando fica tudo sossegado, presumo que ela tenha adormecido. Assim, sento-me em frente do meu teclado digital e começo a tocar. Deixo que a música me envolva como uma ligadura. Recomponho-me nota a nota.
Toco durante tanto tempo que começo a ter dores nos pulsos. Canto até ficar com a voz gasta, até parecer que estou a respirar por uma palhinha. Quando paro, encosto a testa, descansando-a no teclado. O silêncio na sala torna-se um espesso rolo de algodão.
Então ouço aplausos.
Viro-me e vejo a Vanessa de pé à porta.
433
- Há quanto tempo estás aí?
- O tempo suficiente - senta-se ao meu lado no banco do piano. - É isto que ele quer, sabes?
- Quem?
- O Wade Preston. Separar-nos.
- Não quero que isso aconteça - admito.
- Eu também não - ela hesita. - Estive lá em cima a fazer contas.
- Não admira que tenhas estado lá tanto tempo - murmuro. - És péssima a fazer contas.
- Segundo os meus cálculos, estiveste com o Max durante nove anos. Planeio ficar contigo durante os próximos quarenta e nove anos.
- Só quarenta e nove?
- Presta atenção. É um belo número redondo - a Vanessa olha para mim.
- Por isso, quando tiveres noventa anos, terás passado mais de metade da vida comigo, e dez por cento com o Max. Não me interpretes mal, continuo com imensos ciúmes
desses nove anos, porque nunca os terei passado contigo, faça o que fizer. Mas se não os tivesses vivido com o Max, talvez agora não estivesses aqui comigo.
- Não estava a tentar guardar segredo de ti - digo-lhe.
- Mas devias poder. Amo-te tanto que não há nada que possas dizer-me que altere isso.
-Já fui um homem - digo, com um ar sério.
- Isso não conta - a Vanessa ri, e inclina-se para a frente para me beijar. Coloca uma mão de cada lado do meu rosto. - Sei que és suficientemente forte para fazer
isto sozinha, mas não tens de fazê-lo. Prometo que não volto a ser uma idiota.
Aproximo-me mais dela, pouso-lhe a cabeça no ombro.
- Também peço desculpa - digo, um pedido de desculpa tão vasto como o céu noturno, sem limites.
434
VANESSA
A minha mãe costumava dizer que uma mulher sem batom era como um bolo sem cobertura. Nunca a vi sair sem a sua cor de eleição, Forever After. Sempre que íamos a uma farmácia para comprar aspirinas, tampões ou medicamentos para a asma, ela agarrava em mais dois tubos e enfiava-os numa das gavetas da cómoda - que estava completamente cheia com os pequenos tubos prateados.
- Não me parece que a empresa vá esgotar os stocks - costumava dizer-lhe, mas ela, claro, sabia que sim. Em 1982, deixaram de produzir o Forever After. Felizmente, a minha mãe tinha armazenado o suficiente para uma década. Quando estava no hospital, tão drogada por causa das dores que nem se lembrava do seu próprio mantra, assegurei-me de que estava sempre maquilhada. Quando soltou o último suspiro, tinha Forever After.
Acharia incrivelmente irónico que eu me tivesse transformado no seu anjo da guarda dos cosméticos, visto que fugia do rímel desde que comecei a andar. Enquanto as outras meninas gostavam de sentar-se na bancada da casa de banho das mães a assistirem à sua transformação em obras de arte, eu não suportava a sensação de ter qualquer outra coisa no rosto para além do sabonete. Da única vez em que deixei a minha mãe chegar-se ao pé de mim com eyeliner, foi para me pintar um bigode à Gomez Addams no lábio superior para uma peça de teatro da escola.
435
Menciono tudo isto para sublinhar devidamente que às sete da manhã estou quase a furar um olho com o aplicador de
eyelinerda Zoe. Estou a fazer caretas ao espelho
para poder passar o batom Hot Tamale pela boca. Se o Wade Preston e o Juiz
O'Neill querem ver uma mulher tradicional que fica em casa, pinta as unhas e prepara assados
para o jantar, vou transformar-me numa ao longo das próximas oito horas.
(A menos que tenha de usar saia. Isso pura e simplesmente não vai acontecer).
Afasto-me do espelho com manchas a dançar à frente dos olhos (é mesmo difícil não ficar com os olhos tortos quando estamos a aplicar eyeliner líquido) e examino
o meu trabalho. Nessa altura, a Zoe entra na casa de banho, ainda meio a dormir. Senta-se em cima do tampo fechado da sanita e olha para mim, a pestanejar.
Depois solta um grito abafado, horrorizada.
- Porque é que pareces um palhaço assustador?
- A sério? - digo, esfregando as faces com as mãos. - Demasiado blush? - volto a franzir o rosto ao espelho. - Estava a tentar criar aquele visual de pinup dos anos
cinquenta. Como a Katy Perry.
- Bem, estás parecida com o Frank-N-Furter do Rocky Horror- diz a Zoe. Levanta-se e empurra-me para cima do assento. Depois agarra no desmaquilhante, espreme-o para
uma bola de algodão e limpa-me o rosto. - Podes dizer-me por que razão de repente decidiste usar maquilhagem?
- Só estou a tentar parecer mais... feminina - respondo.
- Queres dizer, menos fufa? - corrige a Zoe. Põe as mãos nas ancas. - Sabes que ficas ótima de cara lavada, Ness.
- Estás a ver, foi por isso que me casei contigo, e não com o Wade Preston.
Ela inclina-se para a frente, aplicando blush nas minhas maçãs do rosto.
- E eu que pensava que tinha sido por ter...
- Um enrolador de pestanas - interrompo, sorrindo. - Casei-me contigo pelo teu Shu Uemura.
- Para - diz a Zoe. - Estás a fazer-me sentir tão vulgar - inclina o meu queixo para cima. - Fecha os olhos.
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Passa o pincel e a esponja no meu rosto. Até a deixo usar o enrolador de pestanas, apesar de quase ficar cega durante o procedimento. Termina dizendo-me que abra a boca, e aplica o batom.
- Ta da - diz a Zoe.
Estou à espera de ver uma drag queen. Em vez disso, vejo uma coisa completamente diferente.
- Oh, meu Deus. Transformei-me na minha mãe.
A Zoe espreita por cima do meu ombro, e ficamos ambas a olhar para as nossas imagens ao espelho.
- Pelo que ouvi dizer - diz ela -, acontece às melhores.
A Angela dá vinte dólares a um porteiro para nos deixar entrar no tribunal pela porta de serviço nas traseiras. Caminhamos num silêncio de romance de espionagem, passando pela caldeira e por uma arrecadação cheia de toalhas de papel e papel higiénico, antes de ele nos levar para um elevador de serviço precário e sujo que nos levará para o piso principal. Faz girar a chave, carrega num botão e olha para mim.
-Tenho um primo que é gay- diz ele, este homem que não disse mais de quatro palavras desde que está connosco.
Visto que não sei o que ele acha desse primo, não digo nada.
- Como sabe quem somos? - pergunta a Zoe.
Ele encolhe os ombros.
- Sou porteiro. Sei tudo.
O elevador larga-nos num corredor junto ao gabinete da secretária do tribunal. A Angela abre caminho através do labirinto de corredores até chegarmos à porta da sala de audiências. Há literalmente um muro humano da comunicação social de costas viradas para nós, virados para a porta, à espera que entremos pela escadaria do tribunal.
Enquanto nós estamos de facto mesmo atrás dos imbecis.
Acho que tenho mais respeito pela Angela neste momento do que alguma vez tive.
-Vá buscar uma barra de cereais ou qualquer coisa à sala de refeições - aconselha ela. - Assim vai ficar fora da vista, fora dos pensamentos quando o Preston chegar ao tribunal, e os jornalistas não virão atrás de si.
437
Visto que ainda tenho de ficar isolada, pelo menos durante os primeiros minutos da sessão de hoje, isso faz sentido. Vejo-a enfiar a Zoe dentro da sala de audiências em segurança e depois passar pelo corredor sem ninguém reparar enquanto chega o resto dos advogados.
Como um pacote de bolachas Nutter Butters, mas fico enjoada. A verdade é que não tenho muito jeito para falar em público. É por isso que sou psicóloga escolar e não estou à frente de uma turma. O facto de a Zoe conseguir sentar-se num banco e cantar o que lhe vai na alma diante de uma plateia deixa-me de boca aberta.
Por outro lado, ver a Zoe colocar a loiça na máquina de lavar também me deixa sem fôlego.
- Tu és capaz - digo em voz baixa e, quando volto para junto da porta dupla da sala de audiências, está um oficial de justiça à minha espera para me levar lá para dentro.
Cumpro todos os rituais - o juramento sobre a Bíblia, o nome, a idade e a morada. A Angela aproxima-se de mim, com uma pose muito mais estudada e intensa do que quando não está diante de um juiz. Para minha surpresa, deixa cair o bloco de notas a cerca de trinta centímetros de mim.
- Sabe como é que o Wade Preston dorme? - sussurra depressa.
- Mente para um lado e depois mente para o outro25 - quando me vê abafar uma gargalhada, pisca o olho, e eu percebo que não deixou cair o bloco por acaso.
- Onde vive, Sr.a Shaw?
- Em Wilmington.
- Tem emprego atualmente?
- Trabalho como psicóloga na Escola Secundária de Wilmington.
- O que é que isso implica?
- Prestar aconselhamento aos alunos desde o nono ao décimo
segundo ano. Asseguro-me de que está tudo a correr bem a nível académico, vejo se têm problemas em casa, estou atenta a depressões ou ao consumo de álcool ou drogas e ajudo a orientar os jovens durante o processo de candidatura à universidade.
25 "He lies on one side and then he lies on the other", na versão original em inglês, sendo que lie significa igualmente deitar-se. (N. da T.)
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- É casada?
- Sim - digo, sorrindo. - com a Zoe Baxter.
- Têm filhos?
- Ainda não, mas espero que seja esse o resultado desta litigação. A nossa intenção é que eu engravide com os embriões que biologicamente pertencem à Zoe.
- Já teve alguma experiência com crianças pequenas?
- Até certo ponto - digo. - De vez em quando fico a tomar conta dos filhos da nossa vizinha durante o fim de semana. Mas, pelo que ouço algumas amigas dizerem, ser mãe é uma prova de fogo, por muitos livros do Dr. Brazelton que se tenha lido.
- Como é que a senhora e a Zoe vão conseguir sustentar esta criança financeiramente?
- Ambas trabalhamos, e ambas iríamos continuar a trabalhar. Por sorte, os nossos horários permitem flexibilidade. Pensamos criar os nossos filhos em conjunto, e a mãe da Zoe vive a dez minutos de nós e está encantada com a ideia de poder ajudar.
- Qual é a sua relação com o Max Baxter, se é que tem alguma? Penso na discussão que a Zoe e eu tivemos ontem à noite. A minha
relação com este homem é que vamos estar ligados para sempre através dela. Há partes do seu coração que já deu a outra pessoa.
- É o ex-marido da minha mulher - digo pausadamente. - Tem uma relação biológica com os nossos embriões. Não o conheço; só sei o que a Zoe me disse sobre ele.
- Está disposta a permitir que ele tenha contacto com qualquer criança que possa ser gerada?
-Se ele quiser.
A Angela vira-se de frente para mim.
- Vanessa - diz ela -, há alguma coisa que a impeça de ser considerada uma pessoa capaz e apropriada para ter a custódia de uma criança?
- Claro que não - respondo.
- A testemunha é sua - diz a Angela, virando-se para o Wade Preston. Hoje ele veste um fato que não deveria resultar bem; e acreditem, se
eu estou a fazer um comentário sobre moda, é porque deve ser verdadeiramente hediondo. Tem uma camisa aos quadrados brancos e roxos.
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Uma gravata às riscas lilás e preta. E, no entanto, o que devia parecer um anacronismo insidioso dos anos oitenta, de alguma forma, com o bronzeado de autobronzeador e as jóias, parece uma página dupla da GO.
- Sr.a Shaw - começa ele. Olho realmente para baixo para ver se ele deixou um rasto oleoso quando se aproxima. - O seu empregador sabe que é lésbica?
Endireito os ombros. Se ele quer jogo duro, estou pronta. Afinal, estou a usar batom.
- Não mencionei isso. Os professores normalmente não se sentam na sala de professores a falar sobre as suas vidas sexuais. Mas também não o escondo.
- Não acha que os pais têm o direito de saber que tipo de orientação os filhos estão a ter? - faz uma expressão de desdém ao dizer a palavra orientação.
- Não me parece que haja queixas.
- Costuma falar sobre sexo com estes adolescentes?
- Se eles mencionarem o assunto. Alguns jovens vêm ter comigo por causa de problemas de relacionamento. Alguns até me revelaram que talvez sejam homossexuais.
- Então recruta estes adolescentes inocentes para seguirem o seu estilo de vida? - diz o Preston.
- Claro que não. Mas proporciono-lhes um lugar seguro onde podem falar quando outras pessoas - faço uma pausa dramática - não se mostram particularmente tolerantes.
- Sra Shaw, testemunhou no interrogatório que acha que é capaz e apropriada para ser mãe de uma criança, não foi?
-Sim- digo.
-Afirma que não há nada em si que sugira, por exemplo, uma incapacidade em lidar com algumas situações?
- Não me parece...
- Gostaria de lembrar-lhe de que está sob juramento - diz o advogado. Mas onde diabo quer ele chegar?
- Não é verdade que foi hospitalizada durante uma semana em
2003 na ala de psiquiatria do Hospital Blackstone?
Fico muito quieta.
440
- Tinha terminado uma relação. Internei-me voluntariamente durante uma semana para lidar com a pressão. Fui medicada e nunca mais tive outro episódio semelhante.
- Então teve um esgotamento nervoso.
Passo a língua pelos lábios e sinto o sabor a cera dos cosméticos.
- Isso é um exagero. FoJ-me diagnosticada exaustão.
- A sério? Só isso?
Levanto o queixo.
- Sim.
- Então o seu testemunho é que não tentou suicidar-se?
A Zoe tapa a boca com a mão. "Hipócrita", deve estar ela a pensar, depois da noite de ontem.
Virando-me para o Wade Preston, olho-o nos olhos.
- Claro que não.
Ele estende a mão, e o Ben Benjamin salta da mesa do queixoso para dar-lhe uma pasta.
- Gostaria que estes documentos fossem marcados apenas para identificação - diz o Preston, entregando-os à secretária para carimbar e dando uma cópia à Angela e outra a mim.
São os meus ficheiros clínicos de Blackstone.
- Objeção - diz a Angela. - Não vi estas provas antes. Nem sequer sei como é que o Dr. Preston pode tê-las obtido legalmente, visto estarem protegidas pela lei de proteção de dados...
- A Dra Moretti pode acompanhar com a sua própria cópia - diz o Preston.
- Meritíssimo, ao abrigo dos nossos estatutos de conf idencialidade, deveria ter sido avisada da intimação dos ficheiros com três semanas ! de antecedência. A Sr.a
Shaw nem sequer participa diretamente nesta ação judicial. É impossível que esses ficheiros sejam admitidos nesta sala de audiências.
- Não estou a registar estes ficheiros como prova - diz o Preston.
- Estou apenas a usá-los para destituir a testemunha que prestou testemunho falso sob juramento. Visto que estamos a falar de uma potencial
detentora da custódia, acho que é fundamental saber que esta mulher não é apenas lésbica: também é mentirosa.
441
- Objeção! - ruge a Angela.
- Se a Dra Moretti necessitar de um breve intervalo para examinar os ficheiros, estamos dispostos a conceder-lhe alguns minutos...
- Não preciso de um intervalo, seu fala-barato. Não tenho nenhuma dúvida de que estes ficheiros não só são irrelevantes, como de que o Dr. Preston os obteve ilegalmente. Vem para esta sala de audiências de mãos sujas. Não sei o que fazem no Louisiana, mas aqui em Rhode Island temos leis que protegem os nossos cidadãos, e os direitos da Sr.a Shaw estão a ser violados neste preciso momento.
- Meritíssimo, se a testemunha quiser desmentir o seu testemunho e admitir que tentou suicidar-se, estou disposto a retirar os ficheiros por completo - diz o Preston.
- Basta - o juiz suspira. - vou permitir o uso dos ficheiros apenas para fins de identificação. No entanto, gostaria que o Doutor explicasse como os obteve antes de avançarmos mais.
- Enfiaram-mos debaixo da porta do quarto do hotel - diz ele. - Os desígnios de Deus são misteriosos.
- Duvido que tenha sido Deus a manobrar a fotocopiadora em Blackstone.
- Sr.a Shaw, vou perguntar-lhe novamente. Foi a sua tentativa de suicídio que motivou a sua estada no Hospital de Blackstone em 2003?
Tenho o rosto afogueado; sinto o pulso acelerado. -Não.
- Então engoliu um frasco inteiro de Tylenol por acidente?
- Estava deprimida. Não planeava suicidar-me. Foi há muito tempo, e agora estou numa situação muito diferente do que naquela altura. Sinceramente, nem sequer compreendo porque se lançou nesta caça às bruxas.
- É justo dizer que há oito anos estava transtornada? Numa crise? -Sim.
- Aconteceu algo inesperado que a abalou ao ponto de acabar por ser hospitalizada?
Olho para baixo. -Suponho que sim.
- A Zoe Baxter testemunhou que teve cancro. Tem conhecimento disso?
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- Sim, tenho. Mas agora está saudável.
- O cancro é frequentemente recorrente, não é? A Sra Baxter pode voltar a ter cancro, não pode?
- O senhor também - digo.
"De preferência nos próximos três minutos."
- É uma ideia terrível - diz o Preston -, mas temos mesmo de cobrir todas as possibilidades. Digamos que a Sra Baxter ficava novamente com cancro. Ficaria transtornada, não ficaria?
- Ficaria destroçada.
- Ao ponto de sofrer outro esgotamento, Sra Shaw? Outro frasco de Tylenol?
A Angela levanta-se de novo, objetando.
O Wade Preston abana a cabeça e solta um ruído de desdém.
- Nesse caso, Sr.a Shaw - diz ele -, quem ia tomar conta daquelas pobres crianças?
Assim que saio do banco das testemunhas, o juiz faz um intervalo. A Zoe vira-se para o lugar que ocupei atrás dela na galeria. Ambas nos levantamos; ela abraça-me.
- Tenho tanta pena - murmura ela.
Sei que está a pensar na Lucy, em como ultrapassei em muito o dever de uma psicóloga escolar para arranjar àquela rapariga algo que a mantivesse presa a este mundo, em vez de abandoná-lo. Sei que está a pensar se me revi nela.
Pelo canto do olho, vejo uma mancha roxa. O Wade Preston sobe a galeria. Liberto-me delicadamente do abraço da Zoe.
- Volto já.
Sigo o Preston pelo corredor, escondendo-me nas sombras enquanto ele cumprimenta os membros da congregação e presta declarações aos jornalistas. Assobia, demasiado cheio de si para sequer reparar que está a ser seguido. Vira uma esquina e abre a porta da casa de banho dos homens.
Entro logo a seguir a ele.
- Dr. Preston - digo.
Ele levanta as sobrancelhas.
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- Ora, Sr.a Shaw. Pensava que uma pessoa com o seu estilo de vida não cometesse o erro de entrar numa casa de banho com a figura de um homem à porta.
- Sabe, sou uma educadora. E o senhor, Dr. Preston, está mesmo a precisar de ser educado.
- Oh, acha?
- Acho-lançoumolharrápidoparadebaixodasportas dos lavabos, e, felizmente, somos os únicos lá dentro. - Em primeiro lugar, a homossexualidade não é um estilo de vida. É quem eu sou. Em segundo lugar, não escolhi sentir-me atraída por mulheres. Simplesmente sou. O senhor escolheu sentir-se atraído por mulheres? Foi durante a puberdade? Quando acabou o liceu? Era uma pergunta dos exames de admissão à faculdade? Não. A homossexualidade é tanto uma
escolha como a heterossexualidade. E sei isto porque... o que levaria alguém a escolher ser homossexual? Porque haveria eu de querer submeter-me a todas as agressões, insultos e abusos físicos que já enfrentei? Porque haveria de querer ser constantemente desprezada e estereotipada por pessoas como o senhor? Porque haveria voluntariamente de escolher um estilo de vida, como o senhor diz, que é tão difícil? Sinceramente, não acredito que uma pessoa que viajou por todo o mundo, como o senhor, Dr. Preston, possa ter os horizontes tão estreitos.
- Sra Shaw - suspira. - vou rezar por si.
- Isso é comovente. Mas, visto que sou ateia, também é irrelevante. Aliás, tinha esperança de que pudesse ponderar ler alguns textos sobre a homossexualidade um pouco mais atuais do que aquele que tem usado, a Bíblia. Já se escreveram muitos mais livros sobre o assunto
desde 500 d. C.
- Já terminou? É que vim aqui por uma razão...
-Ainda não. Há muitas coisas que não sou, Dr. Preston. Não sou pedófila. Não sou treinadora de softball nem motoqueira. Tal como os homossexuais nem sempre são cabeleireiros, floristas ou decoradores de interiores. Não sou imoral. Mas sabe o que sou? Inteligente. Tolerante. Capaz de ser mãe. Sou diferente de si, mas não sou inferior - digo. - As pessoas como eu não precisam de ser
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curadas. Precisam que as pessoas como o senhor alarguem os seus horizontes.
Quando termino, estou a suar. O Wade Preston está absolutamente calado.
- O que foi, Wade? - pergunto. - Não está habituado a levar uma tareia de uma mulher?
Ele encolhe os ombros.
- Pode dizer o que quiser, Sra Shaw. Até pode fazer chichi de pé, se quiser. Mas, repare bem, eu vou ter sempre mais tomates.
Ouço-o abrir a braguilha. Cruzo os braços. Um empate.
- Vai sair, Sr.a Shaw?
Encolho os ombros.
- Não será o primeiro imbecil26 com quem me cruzo, Dr. Preston. com uma inspiração rápida, o Wade Preston volta a fechar as
calças e sai intempestivamente da casa de banho. Esboço um sorriso tão rasgado que me dói, e depois abro a torneira.
Quando um oficial de justiça que nunca vi antes entra na casa de banho dos homens, vê uma estranha mulher alta a limpar a maquilhagem no lavatório e a secar o rosto com toalhas de papel baratas.
- O que foi? - digo em tom de acusação quando ele fica a olhar para mim, e saio tranquilamente pela porta. Afinal, quem é ele para dizer o que é normal?
A mãe da Zoe quer falar para o copo de água antes de testemunhar.
- Sra Weeks - diz o juiz -, isto não é um palco. Por favor, podemos prosseguir o julgamento?
A Dará vira-se para ele, ainda com o copo na mão. O jarro que está ao lado do banco das testemunhas está meio cheio.
- Não sabe, Meritíssimo, que a água consegue sentir a energia positiva e negativa?
26 "Dick", na versão original, que pode significar "imbecil", mas também ser usado para referir o órgão sexual masculino. (N. da R.)
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- Não sabia que a água podia sentir-se alguma coisa para além de molhada - resmunga.
- O Dr. Masaru Emoto realizou algumas experiências científicas diz ela, indignada. - Se os pensamentos humanos forem direcionados para a água antes de esta ser congelada, os cristais serão bonitos ou feios, dependendo de os pensamentos terem sido positivos ou negativos. Por isso, se expusermos a água a estímulos positivos, como uma linda música, ou fotografias de pessoas apaixonadas, ou palavras de gratidão, e depois a congelarmos e virmos ao microscópio, obteremos cristais de gelo simétricos. Por outro lado, se colocarmos um discurso de Hitler para a nossa água, ou lhe mostrarmos fotografias de vítimas de assassínio ou dissermos "Odeio-te", e depois a congelarmos, os cristais serão irregulares e distorcidos - olha para ele. - Os nossos corpos são constituídos por mais de sessenta por cento de água.
O juiz passa uma mão pelo rosto.
- Dr.a Moretti, presumo que como a testemunha é sua não se importe que ela elogie a água?
- Não, Meritíssimo.
- Dr. Preston?
Ele abana a cabeça, estupefacto.
- Sinceramente, nem sei o que dizer. A Dará funga.
- Afinal, provavelmente isso será uma bênção do ponto de vista da água.
- Pode prosseguir, Sr.a Weeks - diz o juiz. Ela ergue o copo.
- Força - diz, numa voz sonora e cheia. - Sabedoria. Tolerância. Justiça.
Devia parecer rebuscado, louco, New Age. Em vez disso, é fascinante. Quem é que, independentemente do que acredita pessoalmente, se oporia a esses princípios?
Inclina o copo e bebe até à última gota. Então, a Dará olha para o Juiz
O'Neill.
- Pronto. Foi assim tão mau?
A Angela aproxima-se do banco das testemunhas. Volta a encher o copo da Dará; não por hábito, mas porque sabe que isso vai fazer
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as pessoas pensarem em que palavras estarão a ser ditas em frente à água que possam alterá-la, da mesma forma que a presença de uma criança pequena numa sala impede
que se converse sobre sexo.
- Pode dizer o seu nome e morada para que fique registado?
- Dará Weeks. Moro em Renfrew Heights, 5091, Wilmington.
- Que idade tem?
Ela empalidece e olha para a Angela.
- Tenho mesmo de responder?
- Receio que sim. ,
- Sessenta e cinco. Mas sinto-me como se tivesse cinquenta.
- A que distância vive da sua filha e da Vanessa Shaw?
- A dez minutos - responde a Dará.
- Tem netos?
- Ainda não. Mas... - bate na madeira do banco das testemunhas.
- Então depreendo que esteja ansiosa por ter...?
- Está a brincar comigo? vou ser a melhor avó que já existiu. A Angela passa à frente dela.
- Sra Weeks, conhece a Vanessa Shaw?
- Conheço. É casada com a minha filha.
- O que acha da relação delas?
- Acho - diz a Dará - que ela faz a minha filha muito feliz, e para mim isso foi sempre o mais importante.
- A sua filha sempre foi feliz nos seus relacionamentos?
- Não. Ficou muito triste depois do nado-morto e durante o divórcio. Como uma morta-viva. Ia a casa dela e ela ainda tinha as mesmas
roupas que usara no dia anterior. Não comia. Não limpava nada. Não trabalhava. Não tocava guitarra. Só dormia. Mesmo quando estava acordada, parecia estar a dormir.
- Quando é que isso começou a mudar?
- Começou a trabalhar com uma aluna da escola da Vanessa. Aos poucos, ela e a Vanessa começaram a almoçar juntas, a ir ao cinema, a festivais de arte e a feiras. Fiquei muito contente por a Zoe ter alguém
com quem conversar.
- A determinada altura, ficou a saber que a Zoe e a Vanessa eram mais do que apenas amigas?
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A Dará anui com a cabeça.
- Um dia elas vieram a minha casa e a Zoe disse que tinha uma coisa importante para me dizer. Estava apaixonada pela Vanessa.
- Qual foi a sua reação?
- Fiquei confusa... quero dizer, sabia que a Vanessa se tinha tornado na sua melhor amiga, mas a Zoe estava a dizer-me que queria ir viver com ela e que era lésbica.
- Como é que se sentiu?
- Como se tivesse sido atingida por uma picareta - a Dará hesita. Não tenho nada contra os homossexuais, mas nunca pensei na minha filha como sendo homossexual. Pensei nos netos que não iria ter, no que as minhas amigas iriam dizer nas minhas costas. Mas apercebi-me de que não estava incomodada por causa da pessoa por quem a Zoe se tinha apaixonado. Estava incomodada porque, como mãe, nunca teria escolhido este caminho para ela. Nenhum pai quer que o filho tenha de lutar toda a vida contra pessoas tacanhas.
- Como se sente agora relativamente à relação da sua filha?
- Quando estou com ela, vejo como a Vanessa a faz feliz. É como Romeu e Julieta. Mas sem Romeu - acrescenta a Dará. - E com um
final muito mais feliz.
- Tem algumas hesitações sobre elas educarem crianças?
- Não imagino melhor lar para uma criança. A Angela vira-se.
- Sr.a Weeks, se a decisão fosse sua, preferia ver os filhos da Zoe serem educados pelo Max ou pela Vanessa?
- Objeção - diz o Wade Preston. - Especulativo.
- Ora, ora, Dr. Preston - responde o juiz. - Em frente à água, não. vou permitir.
A Dará olha para o Max, sentado na mesa do queixoso.
- Não me cabe a mim decidir. Mas uma coisa posso dizer-lhe: o Max abandonou a minha filha - vira-se para mim. - A Vanessa - diz ela- não vai deixá-la.
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Depois do seu testemunho, a Dará senta-se num lugar que guardei para ela ao meu lado. Agarra-me na mão.
- Como estive? - sussurra.
- Como uma profissional - digo-lhe, e é verdade.
O Wade Preston não teve nada que valesse a pena usar durante o contrainterrogatório. Achei que estava a desnorteado.
- Treinei. Estive acordada toda a noite a alinhar os meus chacras.
- E nota-se - respondo, apesar de não fazer ideia do que ela está a dizer.
Olho para a Dará, para a pulseira magnética, o colar com a bolsa talismã, os cristais curativos. Por vezes interrogo-me como é que a Zoe cresceu sendo a pessoa que é.
Por outro lado, poder-se-ia dizer o mesmo de mim.
- Quem me dera que a minha mãe a tivesse conhecido - sussurro-Ihe em resposta, quando o que queria mesmo dizer era: "Quem me dera que a minha mãe tivesse metade do seu coração."
A Dra Anne Fourchette, a diretora da clínica de fertilidade, chega com um caixote cheio de documentos - os ficheiros clínicos da Zoe e
do Max, que foram fotocopiados para os advogados e que são distribuídos pela secretária do tribunal. Os cabelos prateados dela roçam-lhe na lapela do fato preto, e tem um par de óculos de leitura com padrão de zebra pendurados por um fio à volta do pescoço.
- Conhecemos os Baxter desde 2005 - diz ela. - Começaram a tentar ter um bebé nessa altura.
- A sua clínica ajudou-os nisso? - pergunta a Angela.
- Sim - diz a Dra Fourchette -, fornecemos serviços de fertilização in vitro.
- Pode descrever o processo, para um casal que venha fazer os tratamentos para a fertilização in
vitro?
- Começamos por fazer um exame médico. Muitas análises para determinar as causas da infertilidade. com base nessas causas, estabelecemos o tratamento. No caso dos
Baxter, tanto o Max como a Zoe tinham problemas de infertilidade. Por essa razão, tivemos de injetar individualmente os espermatozoides do Max no óvulo da Zoe.
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A Zoe esteve a fazer terapia hormonal durante semanas, para poder produzir múltiplos óvulos, que foram recolhidos numa altura muito precisa e fertilizados com os espermatozoides do Max. Por exemplo, durante o primeiro ciclo, a Zoe produziu quinze óvulos, oito dos quais foram fertilizados com sucesso, e desses oito que foram fertilizados, dois tinham um aspeto suficientemente bom para serem transferidos, e outros três pareciam ser bons para serem congelados para um futuro ciclo.
- O que quer dizer com "tinham um aspeto suficientemente bom"?
- Talvez alguém lhes tenha tocado uma bela música ou sussurrado palavras de gratidão - diz o Preston entre dentes. Olho para ele, mas está a examinar um ficheiro clínico.
- A nossa política é transferir apenas dois embriões por paciente, três se esta for mais velha, porque não queremos que acabe com gémeos múltiplos, como a mãe dos óctuplos. Se existirem embriões adicionais com um aspeto suficientemente bom para serem usados no futuro, congelamo-los.
- O que faz àqueles que não são bons?
- São rejeitados - diz a médica.
- Como? - pergunta a Angela.
- Visto serem considerados desperdícios hospitalares, são incinerados.
- O que aconteceu durante o último ciclo da Zoe? A Dr.a Fourchette põe os óculos.
- Engravidou aos quarenta anos e a gravidez terminou às vinte e oito semanas, com um nado-morto.
- Restaram alguns embriões desse procedimento?
- Sim, três. Foram congelados.
- Onde estão agora esses embriões?
- Estão na minha clínica - diz a médica.
- São viáveis?
- Só saberemos quando os descongelarmos - responde. - Podem ser.
- A seguir a esse procedimento - pergunta a Angela -, quando foi a última vez que viu a Zoe?
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- Ela veio à clínica pedir para usar os embriões. Expliquei que, de acordo com as nossas regras de atuação, não poderíamos
entregar-lhe os embriões sem a autorização do ex-marido, devidamente assinada.
- Obrigada, não tenho mais perguntas - diz a Angela.
O Wade Preston bate eom o dedo na mesa do queixoso, avaliando a médica antes de atirar a matar.
- Dra Fourchette - diz ele -, diz que os embriões que não são "bons" são rejeitados. Incinerados?
- Correto.
- Incinerados significa "queimados", não significa? -Sim.
- O que, na verdade - diz ele, levantando-se -, é o que por vezes se faz às pessoas que morrem. Cremamo-las. Não é verdade?
- É verdade, mas estes embriões não são pessoas.
- No entanto, são tratados da mesma maneira que uma pessoa que faleceu. Não os deitamos pela sanita abaixo... reduzimo-los a cinzas.
- É importante ter em conta que sessenta e seis por cento dos embriões são de facto anómalos e morrem por si - diz a médica. E que ambas as partes participantes nesta ação judicial assinaram de facto um contrato com a clínica em que aceitavam a incineração dos embriões que não eram adequados para serem transferidos nem congelados, entre outras coisas.
Ao ouvir a palavra contrato, o Wade Preston vira-se. A Angela, à minha frente, endireita-se bruscamente. E o Juiz O'Neill inclina-se para
a Dra Fourchette.
- Desculpe? Existe um contrato?
Ele pede para vê-lo, e a Dra Fourchette entrega-lhe o documento. O juiz examina-o durante alguns instantes, em silêncio.
- Segundo este contrato, na eventualidade de um divórcio entre as partes, quaisquer embriões que restem devem ser destruídos pela clínica. Dr.a Fourchette, porque é que este contrato não foi cumprido?
- A clínica não tinha conhecimento do divórcio dos Baxter - diz a
médica. - Quando soubemos, era evidente que estava prestes a ser instaurada uma ação judicial.
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O juiz olha para cima.
- Bem. Isso facilita muito o meu trabalho.
- Não - diz a Zoe em voz baixa, ao mesmo tempo que a Angela e o Wade Preston se levantam de um salto, gritando as suas objeções.
- Meritíssimo, precisamos de fazer um intervalo... - diz a Angela, i
- Uma conferência no seu gabinete - interrompe o Preston. O Juiz O'Neill abana a cabeça.
- Creio que já perdi tempo suficiente. Doutores, aproximem-se. A Zoe vira-se, frenética.
- Ele não ia fazer isso, pois não? Não posso perder este bebé devido a uma formalidade.
- Chiu - digo, mas não estou a tentar confortá-la.
Os advogados estão numa discussão acesa, e eu estou suficientemente perto para ouvir.
- Porque é que os doutores não sabiam da existência deste contrato? - pergunta o juiz.
-A minha cliente nunca o mencionou, Meritíssimo - responde a Angela.
- E o meu também não. Nem sequer sabíamos que este contrato existia - acrescenta o Preston.
- Mas ambos os vossos clientes o assinaram - faz notar o juiz.
- Não posso simplesmente ignorar o facto de que o contrato existe.
-As circunstâncias alteraram-se desde a sua assinatura - diz o Preston.
- E há a jurisprudência... O juiz levanta a mão.
- Têm um dia. Amanhã às nove da manhã vamos voltar a reunir-nos
numa audiência sobre a validade do contrato.
A Angela recua.
- O quê?
- Precisamos de mais tempo - insiste Preston.
- Sabem do que eu preciso? - diz o juiz bruscamente. - Preciso de advogados que estejam de facto bem preparados antes de entrarem na minha sala de audiências. Preciso de advogados que conheçam a lei contratual básica, uma coisa que um aluno do primeiro ano de
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direito facilmente identificaria. Não preciso de dois advogados lamurientos e contenciosos que podiam usar melhor o tempo!
O secretário avança para fazer a sua declaração quando o Juiz O'Neill se levanta do seu lugar, para que nós também nos levantemos, como se fosse um efeito magnético da sua ira.
A Angela encontra uma pequena sala de reuniões no piso superior do tribunal e a Zoe, a Dará e eu entramos atrás dela.
- Fale - exige, sentando-se à frente da Zoe, que está inconsolável.
- Ele não pode mesmo mandar a clínica destruir os embriões quando ambos os queremos, pois não? - soluça a Zoe.
- Um contrato é um contrato - diz a Angela sem rodeios.
- Mas tratava-se de um formulário de consentimento. Como quando nos dão uma anestesia e nos obrigam a assinar alguma coisa antes de ficarmos inconscientes. Só queríamos ter um bebé. Achei que tínhamos de fazer tudo o que nos pediam só para considerarem o nosso caso.
A Angela ergue as sobrancelhas.
- Então não leu tudo?
- Tinha vinte páginas!
A Angela fecha os olhos e abana a cabeça.
- Ótimo. Fantástico.
- Por quanto tempo poderá isto adiar a decisão do juiz? - pergunto.
- Isso também poderia afetar os embriões.
- Pode ser incrivelmente rápido - responde a Angela. - Pode limitar-se a seguir o maldito contrato e amanhã já estar despachado às nove e um quarto, seguindo o precedente legal. E a sua reputação não ficaria nada prejudicada se o seu julgamento fosse comparado ao julgamento de Salomão - levanta-se e agarra na pasta. - Vou-me embora. Tenho um monte de coisas para fazer até amanhã de manhã.
Quando a porta se fecha atrás dela, a Zoe esconde o rosto nas mãos.
- Estávamos tão perto - murmura.
A Dará inclina-se para beijar o cimo da cabeça da Zoe.
- Precisas de comer qualquer coisa - diz ela. - Há muito poucas coisas neste mundo que as Oreos não resolvam.
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Vai à procura numa máquina de venda automática lá em baixo. Entretanto, afago as costas da Zoe, sentindo-me completamente impotente.
- Mas quem é o Salomão? - pergunto. Uma pequena gargalhada solta-se da garganta da Zoe. , í
- A sério?
- O que foi? É algum advogado ou político famoso que eu devesse conhecer?
Ela endireita-se, limpando os olhos.
- Foi um rei bíblico. Muito inteligente. Quando duas mulheres vieram ter com ele com um bebé, cada uma alegando ser a mãe, Salomão sugeriu cortar o bebé ao meio com uma espada para que cada uma ficasse com metade. Uma mulher ficou histérica e disse que preferia abdicar do bebé a matá-lo, e foi assim que Salomão percebeu quem era a mãe verdadeira - a Zoe hesita. - Eu faria isso, sabes. Preferia dar os embriões ao Max a vê-los serem destruídos - limpa os olhos. Terias sido uma mãe fantástica, Vanessa.
- Isto ainda não acabou - respondo.
Digo isto, porque é o que a Zoe precisa de ouvir. Mas já sinto falta de algo que nunca tive.
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MAX
Quando subo as escadas para ir para a cozinha na manhã seguinte, o Wade Preston está a deitar xarope de ácer num waffle. Parece descansado e alerta, ao contrário de mim. Acho que ontem à noite nem dormi cinco minutos. Por outro lado, tenho a certeza de que o Wade tem subordinados para fazerem pesquisas por ele. Provavelmente viu o Leno e foi-se deitar.
- bom dia, Max - diz o Wade. - Estava a explicar o direito contratual aqui ao Reid.
Cheira-me a manga e menta, como um dia de verão, quando a Liddy se inclina sobre mim para colocar o prato. Está de roupão. Fico com os cabelos eriçados na nuca.
Interrogo-me brevemente por que razão o Wade estará a explicar estratégia legal ao meu irmão, e não a mim.
- Se o bode velho decidir seguir à letra o contrato - diz o Wade -, posso mobilizar todos os grupos pró-vida neste país. Vai reformar-se no meio da maior tempestade de merda imaginável. Sabe que tenho essa capacidade, o que me leva a crer que pensará duas vezes antes de deliberar.
- Por outro lado - diz o Reid -, se a igreja for a vítima aqui, nós ficamos muito bem vistos.
Olho para ele.
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- A igreja não.
- Desculpe? - exclama o Wade.
- A igreja não. Eu. Esses embriões são meus. São as minhas crianças
por nascer.
- Ora, Max - o Wade bebe o café demoradamente, olhando para mim por cima da borda da caneca. - Não deixe que o juiz o ouça falar assim. O Max aqui não tem nenhuma
ligação emocional. Estes bebés estão destinados a pertencerem ao seu irmão e à mulher dele.
Ouve-se um estrondo no lava-loiça. A Liddy deixou cair uma colher. Coloca-a no escorredor da loiça e vira-se, vendo-nos todos a olhar para ela.
- Tenho de ir vestir-me - diz, e sai da cozinha sem olhar para mim. Enquanto o Wade continua a conversar, olho para a luz do Sol que enche o espaço onde ela estava.
O Pastor Clive não está presente. Logo hoje, quando precisava do seu apoio no tribunal, o lugar que sempre ocupou logo atrás de mim está conspicuamente vazio.
Imagino que a Zoe esteja a sentir o mesmo. Porque são 9:05, a sessão já foi iniciada e a advogada dela está desaparecida.
- Estou aqui, estou aqui - grita a Angela Moretti, entrando intempestivamente pela porta dupla. Tem a blusa para fora das calças e calça ténis com o fato, em vez
de sapatos de salto alto. - Um dos meus filhos enfiou bacon no leitor de CDs - explica. - Desculpem o atraso.
- Pode começar quando quiser, Doutora - diz o Juiz O'Neill.
A Angela procura na pasta. Tira um livro de colorir do SpongeBob, uma revista Cooking Light e um romance, antes de localizar o dossiê.
- Meritíssimo, há apenas um caso neste país em que um formulário de consentimento como aquele que os Baxter assinaram foi realmente validado. Em "Kass contra Kass",
ambas as partes assinaram formulários que afirmavam que, em caso de divórcio, se fossem incapazes de chegar a acordo quanto à atribuição dos embriões, a clínica descartar-se-ia dos mesmos, e o tribunal respeitou esse acordo. Se as partes estavam dispostas a ficarem vinculadas ao acordo na altura, deliberou o tribunal, este poderia ser validado. Contudo, no resto dos casos relacionados com a doação de embriões neste país, e são muito poucos,
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a deliberação é feita fundamentalmente a favor da parte que deseja evitar a procriação. Em "Davies contra Davies", a mãe originalmente queria ficar com os embriões, mas depois decidiu doá-los, e isso fez o tribunal deliberar a favor do pai, que não desejava ser pai. O tribunal afirmou que, se existisse um contrato, este seria cumprido, mas se não, haveria que equilibrar os direitos da parte que deseja ser pai ou mãe com os da parte que não deseja. Em "A.Z. contra B.Z.", no Massachusetts, os formulários preenchidos atribuem à mãe o direito de usar os embriões em caso de divórcio ou separação. Contudo, o ex-marido instaurou uma ação inibitória para que ela não fosse autorizada a usá-los. O tribunal deliberou que o contrato que fora assinado era preterido pela decisão de não procriar tomada pela pessoa a seguir ao divórcio. Ou seja, apesar de existir realmente um contrato, as circunstâncias alteraram-se tão drasticamente desde a altura da sua
assinatura que o cumprimento não seria legítimo. Além do mais, o tribunal afirmou que, por uma questão de ordem pública, seria errado cumprir um acordo que obrigaria um dos dadores a tornar-se pai ou mãe contra a sua vontade.
A Angela abotoa o casaco do fato.
- No caso "J.B. contra M.B.", em New Jersey, existia um contrato que afirmava que, em caso de divórcio, os embriões deveriam ser destruídos. Quando ocorreu o divórcio,
a ex-mulher quis que eles fossem destruídos, mas o ex-marido alegou que isso violaria as suas crenças religiosas e os seus direitos de ser pai. O tribunal não respeitou o contrato, não por achar que ia contra a ordem pública, como no Massachusetts, mas porque uma pessoa tinha o direito de mudar de ideias até à altura da utilização ou destruição dos embriões. Um contrato tem de ser um registo formal e claro das intenções de ambas as partes e, visto que não era esse o caso, o tribunal deliberou que a parte que não desejava ter as crianças prevaleceria, visto que o pai poderia ter filhos no futuro.
Vira-se para olhar para a Zoe.
- A diferença entre esses casos e este caso, Meritíssimo, é que nenhuma das partes deseja destruir os embriões. Por razões diferentes, tanto a Zoe como o Max querem-nos. Mas, tal como nos outros casos, existe uma questão prevalente que pode ser aplicada aqui, Meritíssimo: quando as
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circunstâncias se alteraram desde a altura da assinatura do formulário de consentimento, devido a divórcio, novo casamento ou crenças religiosas, então o contrato deixa de ser legalmente vinculativo. Hoje, quando ambas as partes desejam dar uma oportunidade de vida a estes embriões, cumprir um contrato que pura e simplesmente deixou de ser relevante seria apenas uma má jurisprudência.
Ouve-se um ruído ao fundo da sala de audiências. Viro-me e vejo o Pastor Clive percorrer a galeria. Tem o rosto quase tão branco como o fato. Debruça-se sobre a balaustrada da galeria, entre o Ben Benjamin e eu, enquanto o Wade se levanta.
- Posso acabar com ela - sussurra o Pastor Clive.
- Ainda bem que está sentado, Meritíssimo, porque pela primeira vez concordamos com tudo o que a Dr.a Moretti disse - começa o Wade.
O Ben vira-se no assento.
- A sério?
O Pastor Clive acena com a cabeça. O Ben levanta-se e aproxima-se do Wade, que ainda está a falar.
- Na verdade, achamos preferível que os embriões sejam atribuídos a um casal de lésbicas a que sejam enviados para um incinerador... interrompe o que estava a dizer quando o Ben se inclina e lhe segreda ao ouvido. - Meritíssimo? - pergunta o Wade. - Podemos fazer um intervalo?
- Mas que raio? - diz a Angela Moretti.
- O meu colega informou-me de que surgiram novas provas, provas que poderão afetar a decisão do Meritíssimo relativamente a este assunto.
O juiz olha para ele, e depois para a Angela.
- Quinze minutos - declara.
A sala de audiências fica vazia. O Wade puxa a Angela Moretti para um canto e fala com ela em voz baixa; passado um momento ela agarra na Zoe e leva-a para fora da sala e audiências.
- Não poderíamos ter tido mais sorte - diz o Wade, voltando para junto de mim.
- O que se passa?
- A sua ex-mulher vai ser acusada de assediar sexualmente uma aluna
- diz ele. - Ou, por outras palavras, pode ir comprar um carrinho de bebé
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ou um berço. Nenhum juiz vai dar um bebé a uma pessoa que abusou sexualmente de uma criança. Por mim, acabou de ganhar este caso. Mas continuo a ouvir a primeira parte do discurso dele.
- A Zoe nunca faria isso. Não pode ser verdade.
- Não interessa que seja verdade - diz o Ben. - Interessa apenas que o juiz ouça isso.
- Mas não está certo. A Zoe podia perder o emprego...
O Wade rejeita a minha preocupação, enxotando as minhas palavras como se fossem mosquitos.
- Max, meu rapaz - diz ele. - O que interessa é o resultado.
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ZOE
- Por favor, diga-me que nunca ouviu falar de uma rapariga chamada Lucy DuBois - diz a Angela.
De imediato, imagino a Lucy, com os seus longos cabelos ruivos, as unhas roídas, as cicatrizes paralelas nos braços.
- Ela está bem?
- Não sei - a voz da Angela parece demasiado tensa, como uma mola.
- Quer contar-me alguma coisa?
A Vanessa puxa uma cadeira e senta-se ao meu lado. Estamos de volta à sala de reuniões do outro dia, mas está a chover. O mundo do outro lado da janela parece maduro e luxuriante, a erva está tão verde que faz doer os olhos.
- É uma aluna que sofre de depressão grave - explica a Vanessa à Angela, e depois toca-me no braço. - Não disseste que ela estava perturbada há dois dias?
- Estava a falar em suicidar-se. Oh, meu Deus, não se suicidou, pois não?
A Angela abana a cabeça.
- Os pais acusaram-na de abuso sexual, Zoe. Pestanejo, certa de não ter ouvido bem.
- O quê?
- Dizem que se insinuou em duas ocasiões diferentes.
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- Isso é absolutamente ridículo! A nossa relação é exclusivamente profissional! - viro-me para a Vanessa. - Diz-lhe.
- Ela é uma rapariga muito perturbada - diz a Vanessa. - É evidente que o que a Lucy disse deve ser encarado com muitas reservas.
- E é por isso que é particularmente prejudicial que uma pessoa chamada Grace Belliveau, tenha aparentemente assinado uma declaração que indica que viu a Zoe e a rapariga numa posição comprometedora.
Os meus ossos parece que estão soltos, a flutuar dentro de mim.
- Mas quem é a Grace Belliveau?
- É professora de matemática - responde a Vanessa. - Duvido que a tenhas sequer conhecido.
Tenho um breve e nítido vislumbre de uma professora de cabelos pretos curtos a espreitar para dentro da sala no final de uma sessão particularmente emotiva com a Lucy. A minha mão nas costas da Lucy, a esfregá-las em círculos lentos.
"Mas ela estava a chorar", quero dizer.
"Não é o que pensam."
Tinha tocado a música do Barney no ukelele. Tinha dito à Lucy que sabia a verdade, que ela estava a afastar-me para que eu não pudesse afasta-la. Tinha-lhe dito
que nunca a abandonaria. Nunca.
- A rapariga alega - diz a Angela - que lhe disse que era lésbica.
- Por favor - a Vanessa abana a cabeça. - Depois de toda esta cobertura da comunicação social, quem é que não sabe disso? O que quer que seja, o que quer que ele
tenha contra a Zoe... é tudo fabricado.
- Contei-lhe de facto que sou lésbica - confesso. - Da última vez que a vi. É a última coisa que uma terapeuta musical deve fazer... mas ela estava tão transtornada
com o que o Pastor Clive estava a dizer sobre a homossexualidade. Estava novamente a falar de suicídio, e... não sei. Tive a sensação de que talvez ela estivesse a questionar a sua própria sexualidade, e que a família não a apoiaria nisso. Que talvez a ajudasse saber que uma pessoa que ela respeitava... uma pessoa como eu... podia ser uma boa pessoa e lésbica, simultaneamente. Queria dar-lhe segurança, em vez dos sermões que provavelmente costuma ouvir na igreja.
- Ela frequenta a igreja do Clive Lincoln? - pergunta a Angela.
- Sim - diz a Vanessa.
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- Bem. Isso resolve o mistério de como o Pastor Clive ficou a saber.
- Então a acusação ainda não é pública? - pergunta a Vanessa.
- Não - diz a Angela. - E, surpresa, surpresa. O Wade diz que talvez consiga convencer a família a manter isto no domínio privado. Alguém da família da Lucy deve ter ido pedir conselhos ao pastor. Talvez até tenha i levado a própria Lucy.
"Não é um rapaz", disse a Lucy.
Era uma rapariga.
Poderia ser eu? A ligação dela comigo teria ido além da amizade? Ela poderia ter dito qualquer coisa que tivesse sido mal interpretada pelos pais?
Ou a Lucy não teria feito absolutamente nada, além de arranjar coragem para se assumir... e os pais distorceram isso numa mentira que para eles era mais fácil de aceitar?
- Como é a mãe dela? - pergunta a Angela. A Vanessa olha para cima.
- Submissa. Faz o que o marido diz. Não o conheço.
- A Lucy tem irmãos?
- Três mais novos, no segundo ciclo - diz a Vanessa. - É um segundo casamento, pelo que sei. O pai biológico da Lucy morreu quando ela era bebé.
Viro-me para ela.
- Acreditas em mim, não acreditas? Sabes que nunca faria o que ela diz que fiz?
- Eu acredito em si - diz a Angela. - Talvez até o juiz acredite em si. Mas, nessa altura, Zoe, já terá sido descomposta em tribunal. A alegação estará em todos os jornais. E, mesmo que o caso seja deliberado a seu favor, o facto de ter sido acusada pode ser o que fica gravado na memória de todos.
Levanto-me da cadeira.
- Tenho de falar com a Lucy. Se pudesse ao menos...
- Não quero que se aproxime dela - grita a Angela. - Sabe como o Wade vai lucrar com isso?
Reduzida ao silêncio, volto a sentar-me na cadeira.
- Tem muito em que pensar, Zoe - diz ela. - Porque pode ficar com estes embriões... mas isso pode custar-lhe a carreira.
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A Angela pede um dia para assimilar a nova informação antes que o julgamento prossiga. A minha mãe, a Vanessa e eu esgueiramo-nos novamente para o parque de estacionamento
pelo elevador do porteiro, mas desta vez, em vez de sentirmos que iludimos os outros, parece apenas que estamos a esconder-nos.
- Vem dar um passeio comigo - diz a minha mãe, assim que estamos cá fora.
Estamos nas traseiras do tribunal, perto de um terminal de descargas. Digo à Vanessa que vou ter com ela ao carro, e depois vou atrás da minha mãe, para junto de
um grande contentor do lixo verde. Duas mulheres, com vestidos de verão que as fazem parecer salsichas enfiadas em invólucros, estão a fumar.
- O Dwayne é um imbecil - diz uma delas. - Quando voltar, espero que lhe digas que se vá atirar ao lago.
- Desculpe - diz a minha mãe. - Precisamos de um pouco de privacidade.
As duas mulheres olham para ela como se fosse doida, mas deixam-nos sozinhas.
- Lembras-te de quando descobri que estava a ganhar menos quatro mil dólares do que o Hudd Sloan, quando estávamos os dois a trabalhar naquela agência de viagens?
- Vagamente - digo.
Na altura tinha cerca de doze anos. Lembro-me de a minha mãe dizer
que greve era greve, mesmo que o nosso sindicato só tivesse um membro.
- E lembras-te do que fiz quando na tua turma do jardim de infância leram If I Ran the Circus e eu me opus à mensagem que transmitia sobre crueldade para com os animais?
- Sim.
- E sabes que sou a primeira a chegar com um cartaz quando se trata de fazer campanha política para qualquer candidata - acrescenta.
- É verdade.
- Estou a dizer-te isto porque quero que te lembres de que sou uma lutadora.
Olho para ela.
- Achas que devo enfrentar o Wade Preston.
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A minha mãe abana a cabeça.
- Por acaso, Zoe, acho que tens de desistir. Fico simplesmente a olhar para ela.
- Então achas que devo deixar que a família de uma adolescente espalhe mentiras sobre mim. Sem fazer nada.
- Não, estou a pensar em ti e no que é melhor para ti. As pessoas numa cidade pequena... e Rhode Island funciona como uma cidade pequena, querida... não se esquecem das coisas. Mas não se lembram corretamente. Lembro-me de que a mãe de uma colega tua se convenceu de que o teu pai morreu de ataque cardíaco quando estava na cama com a amante.
- O pai tinha uma amante? - digo, chocada.
- Não. A questão é essa. Mas esta mulher tinha a certeza disso porque era assim que se lembrava. E mesmo que estivesses absolutamente certa em abraçar aquela menina triste quando estava a chorar; mesmo que sejas a única pessoa na vida dela que mostrou algum carinho por quem ela realmente é... não é disso que as pessoas da comunidade vão lembrar-se. Daqui a alguns anos, ainda continuarás a ser aquela que foi acusada de se aproximar demasiado de uma das alunas - a minha mãe abraça-me. - Dá os embriões ao Max. E segue em frente. Continuas a ter uma linda companheira com quem possas ter filhos. Tens a tua música.
Sinto uma lágrima solitária escorrer-me pela face quando desvio o rosto dela.
- Não sei o que fazer. Ela sorri tristemente.
- Não podes perder se fores tu a desistir do jogo antes de acabar. Apercebo-me de que seria precisamente isso que a Lucy diria.
Em vez de ir para casa, a Vanessa vai até o Farol de Point Judith. Descalçamos os sapatos e caminhamos pelo tapete de relva que rodeia a estrutura. Tiramos uma fotografia a um casal idoso de férias. Protegemos os olhos do sol e tentamos ver se oferry está a dirigir-se para, ou a vir de Block Island. No parque adjacente, sentamo-nos num banco de mãos dadas, apesar de uma mulher que nos vê franzir o sobrolho e virar o rosto para o lado.
- Tenho de dizer-te uma coisa - diz a Vanessa por fim.
- Que podemos adotar? - adivinho.
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Ela inclina a cabeça, como se não fosse isso o que estava a pensar.
- Menti em tribunal.
- Eu sei. Estava lá, lembras-te?
- Não sobre a tentativa de suicídio. Quero dizer, também menti sobre isso. Mas menti sobre a razão por que estive internada no hospital psiquiátrico - olha para
mim. - Disse que tinha terminado uma relação. Suponho que seja uma meia verdade. Foi uma relação, mas profissional.
- Não compreendo...
- Era psicóloga numa escola privada no Maine - diz a Vanessa. - E por acaso também era treinadora de hóquei em campo. A equipa tinha ganho um jogo muito importante contra uma academia rival, por isso convidei os miúdos para jantar, para festejarmos. Tinha arrendado uma casa a um professor que estava com a família na Itália, de licença sabática. Ainda era tudo tão recente que nem sequer sabia onde estavam as coisas, como o detergente e as toalhas de papel sobresselentes. Em todo o caso, algumas raparigas foram para a cave, e descobriram uma garrafeira. Parece que uma delas abriu uma garrafa e bebeu, e uma colega que teve um ataque de consciência foi dizer ao diretor. Apesar de eu lhe ter dito que não fazia ideia do que as raparigas estavam a fazer lá em baixo... que não sabia que havia uma garrafeira na casa, por amor de Deus... ele deu-me uma hipótese de escolha. Podia ser despedida publicamente, ou podia demitir-me muito discretamente - olha para mim. Então foi isso que fiz. E detestei cada minuto. De ser castigada por uma coisa de que no mínimo não tive culpa, e que no máximo foi um acidente. Foi por isso que fiquei tão deprimida. Foi preciso quase suicidar-me para perceber que já não podia viver naquele momento. Não podia alterá-lo; não podia alterar o que aquelas raparigas disseram, e não podia certamente viver o resto da vida a pensar quando ia voltar para me atormentar - prende o cabelo atrás da orelha. - Não deixes que te tirem a tua carreira. Se isso implicar que lutes, então luta. Mas se isso implicar que troques esses embriões pelo silêncio do Wade Preston, então fica a saber que eu compreendo - sorri. - Tu e eu já somos uma família. com ou sem filhos.
Olho para o farol. Há uma placa que diz que foi construído em 1810. Que, depois de um furacão em 1815, foi reconstruído, maior e mais forte, desta vez de pedra. Apesar do farol, continuaram a ocorrer naufrágios com grande regularidade.
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A segurança é relativa. Podemos estar tão perto da costa que praticamente a sentimos debaixo dos pés, quando de repente vemos que estamos a desfazer-nos nas rochas.
Depois de ter perdido o meu bebé às vinte e oito semanas, depois de ter ido para casa, vinda do hospital, para uma casa sem música, recebi um telefonema.
"Estou a falar com a Sr.a Baxter?", perguntou uma mulher.
Mal sabia quem era, mas disse que sim.
"Está aqui o Daniel. O seu filho está à sua espera."
Da primeira vez, pensei que se tratava de uma brincadeira cruel. Atirei o telefone para o outro lado da sala e, quando este voltou logo a tocar, desliguei-o. O Max encontrou-o desligado quando chegou a casa depois do trabalho, e eu encolhi os ombros. Disse-lhe que não sabia o que tinha acontecido.
No dia seguinte recebi outro telefonema.
"Sr.a Baxter, por favor, o Daniel está à espera."
Seria assim tão fácil? Podia mudar-me para um universo alternativo apenas realizando o único ato que não tinha realizado: encontrar o meu filho, ir buscá-lo onde ele tinha sido deixado? Pedi que me desse uma morada e, naquela tarde, vesti-me pela primeira vez desde que tinha chegado a casa. Fui buscar as chaves do carro e a mala. Conduzi.
Fiquei fascinada com os pilares brancos, a grande escadaria que conduzia ao edifício. Estacionei na via de acesso circular, negra como uma língua, e dirigi-me lá para dentro devagar.
- A senhora deve ser a Sra Baxter - disse a mulher que estava na receção.
- Daniel - disse. O nome do meu filho, na minha boca, era suave e redondo como um doce. Um rebuçado. - Estou aqui para vir buscar o Daniel.
Não era maior do que um estojo de relógio, e não consegui agarrar nele. Pensei que, se lhe tocasse, podia desmaiar.
Mas então ela estava a oferecer-mo e vi as minhas mãos cerrarem-se à sua volta. Ouvi a minha voz dizer "Obrigada". Como se fosse isso que eu sempre tivesse querido.
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Já não vou a casa do Reid e da Liddy há alguns anos. Há uma profusão de cores no jardim - sobretudo rosas, obra do Max. Há uma nova pérgula no relvado, pintada de branco, com heliotropo a trepar pelo lado como um ladrão de jóias furtivo. A .velha carrinha do Max está estacionada atrás de um Lexus dourado.
Quando a campainha da porta toca, é a Liddy que vem abrir. Fica a olhar para mim, sem fala.
Agora tem finas linhas à volta dos olhos e da boca. Parece cansada.
Quero perguntar-lhe: "És feliz?"
"Sabes em que te estás a meter?"
Mas em vez disso, limito-me a dizer:
- Posso falar com o Max?
Ela acena com a cabeça e, passado um instante, ali está ele. Veste a mesma camisa que tinha no tribunal, mas sem gravata. E está de calças de ganga. Posso fingir
que estou a falar com o Max de antigamente.
- Queres entrar?
Ao fundo do vestíbulo, vejo o Reid e a Liddy. A última coisa que quero é entrar naquela casa.
- Talvez pudéssemos ir para ali?
Indico a pérgula com a cabeça, e ele vem para o alpendre. Está descalço, mas segue-me até à estrutura de madeira. Sento-me nos degraus.
- Eu não fiz nada - digo.
O ombro do Max está a tocar no meu. Sinto o calor da pele dele através da camisa.
- Eu sei.
Limpo os olhos.
- Primeiro perdi o meu filho. Depois perdi-te a ti. Agora posso perder os embriões e muito provavelmente a minha carreira - abano a cabeça. Não vai restar nada.
- Zoe...
- Fica com eles - digo. - Fica com os embriões. Mas... promete-me que acaba aqui. Que os teus advogados não levam a Lucy para o tribunal.
Ele curva a cabeça. Não sei se está a rezar, ou a chorar, ou as duas coisas.
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- Dou-te a minha palavra - diz o Max.
- Pronto - esfrego os joelhos com as mãos e levanto-me. - Pronto - repito, e dirijo-me energicamente para o carro, apesar de ouvir o Max chamar-me.
Ignoro-o. Entro no carro, saio da via de acesso e estaciono junto à caixa do correio. Apesar de não conseguir vê-los daqui, imagino o Max a entrar no vestíbulo e a contar tudo ao Reid e à Liddy. Imagino-os a abraçarem-se.
Todas as estrelas caem do céu e chovem no tejadilho do meu carro. Parece uma espada entre as minhas costelas, a perda destas crianças que nunca chegarei a conhecer.
A Vanessa está à minha espera, mas não vou diretamente para casa. Em vez disso, viro à esquerda e à direita, sem rumo, até dar por mim num campo algures nas traseiras do Aeroporto T. F. Green, para além do sítio onde os aviões que transportam o correio passam a noite. Deito-me no capo do carro no escuro, com as costas encostadas ao para-brisas inclinado, e fico a olhar para cima, à medida que os aviões guincham na pista, tão perto que parece que consigo tocar-lhes na parte inferior. O barulho é absolutamente ensurdecedor; não consigo ouvir-me pensar nem chorar, o que é perfeito.
Por isso não faz sentido ir buscar a guitarra ao porta-bagagem. É a mesma que usei na escola para ensinar a Lucy. Ia emprestar-lha, durante algum tempo.
Interrogo-me sobre o que ela terá dito. Se esta alegação terá sido a distância entre a pessoa que ela realmente é e a pessoa que os pais precisavam que ela fosse. E se eu tinha falhado completamente e interpretado mal os comentários dela? Talvez não estivesse a questionar a sua sexualidade; talvez isso estivesse apenas na minha cabeça, por causa do julgamento, e eu tivesse pintado os meus próprios pensamentos na tela em branco que a Lucy realmente era.
Tiro a guitarra do estojo e volto a subir para o capo do carro. Os meus dedos pousam no braço, afagando as cordas tão ociosamente como se se movessem pelo corpo de um velho amante, e com a minha mão direita dedilho-as. Mas há qualquer coisa luminosa, a estremecer, presa entre as cordas; tiro-a com cuidado, para não cair para dentro do corpo da guitarra.
É a progressão de acordes de "A Horse With No Name". Escritos com a minha letra. Dei-a à Lucy no dia em que estávamos a aprender essa música.
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Mas atrás, cinco linhas paralelas tinham sido desenhadas a marcador verde. Uma pauta. Na linha de cima, duas linhas oblíquas atravessem-na,
como carris.
Não sei quando a Lucy me deixou esta mensagem, mas é disso que se trata. De todos os símbolos musicais que podia ter desenhado, a Lucy escolheu uma cesura.
É uma pausa na música.
Uma breve pausa silenciosa em que não se conta o tempo.
A dada altura, quando o maestro decide, a música continua.
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MAX
Na manhã seguinte, no tribunal, a Angela Moretti tem o rosto franzido, tão apertado como uma pinça de lavagante.
- A minha cliente vai retirar a sua objeção, Meritíssimo - diz ela. Pedimos que os embriões não sejam destruídos como está disposto no contrato e que sejam colocados sob a custódia do Max.
Houve-se uma salva de palmas na sala de audiências. O Ben sorri para mim. Sinto-me como se fosse vomitar.
Já me sinto assim desde ontem à noite. Começou quando a Zoe desapareceu da via de acesso. E depois, quando voltei para casa, a pestanejar porque as luzes de repente se tornaram ofuscantes, e disse à Liddy e ao Reid que a Zoe ia desistir.
O Reid pegou na Liddy ao colo e dançou com ela pelo vestíbulo.
- Sabes o que isso quer dizer? - perguntou ele, a sorrir. - Sabes?
E, de repente, soube. Queria dizer que teria de ficar ali em silêncio a ver a Liddy ficar cada vez mais volumosa com o meu bebé dentro dela. Teria de ficar na sala de espera enquanto o Reid participava no parto. Teria de ver o Reid e a Liddy apaixonarem-se pelo bebé deles, enquanto eu estava ali a mais.
Mas ela parecia estar tão feliz. Não estava grávida, mas já tinha um brilho nas faces e nos cabelos.
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- Isto merece qualquer coisa especial - disse o Reid, e deixou-me ali sozinho com ela.
Dei um passo em frente, e depois outro.
- É mesmo isto que queres? - sussurrei. Quando o Reid voltou, afastámo-nos. - Parabéns, mana - disse, e beijei-a na face.
Ele trazia na mão uma garrafa de champanhe aberta, ainda com espuma, e dois copos. No bolso, enfiara uma garrafa de cerveja sem álcool. Era evidente que era para mim.
- Bebe - disse ele à Liddy. - Daqui em diante, vai ser só batidos de soja e ácido fólico - deu-me a minha cerveja sem álcool e disse: - Vamos fazer um brinde. À linda futura mamã!
Eu bebi a ela. Como podia não beber?
- Ao Wade! - disse o Reid, voltando a erguer o copo. - À Lucy! Confuso, olho para ele.
- Quem é a Lucy?
- A enteada do Clive Lincoln - disse o Reid. - A Zoe meteu-se mesmo
com a rapariga errada - bebeu o resto do champanhe, mas eu não bebi. Em vez disso, pousei a garrafa no último degrau das escadas e saí pela porta.
- Preciso de apanhar ar - disse.
- Eu vou contigo... - a Liddy deu um passo na minha direção, mas eu levantei a mão. Caminhei às cegas até à pérgula, onde estivera sentado com a Zoe apenas há alguns minutos.
Já tinha visto a mulher do Pastor Clive centenas de vezes. E as três filhas dele, que costumavam estar com ela no palco, a cantar. Nenhuma delas tinha idade para
estar no liceu. E sabia que nenhuma delas se chamava Lucy.
Mas havia outra filha. Uma ovelha negra, que assistia contrariada à missa e nunca ficava para o convívio depois. Se era sua enteada, podia ter um apelido diferente do Clive. Era perfeitamente possível que a Zoe nunca tivesse estabelecido a ligação.
Aquela rapariga teria realmente procurado a ajuda da Zoe porque estava preocupada por poder ser lésbica? Teria tentado contar à mãe e ao padrasto? Teria o Clive ouvido aquilo, e presumido de imediato que a Zoe tentara recrutar a sua enteada para aquele estilo de vida... porque qualquer outra interpretação apenas lhe daria uma má imagem?
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Ou teria o Pastor Clive, sabendo que precisávamos de munições para usar no tribunal, sabendo o quanto uma vitória significaria para as convicções que pregava diariamente, arrancado aquela acusação à enteada? Ter-se-ia servido dela para que eu saísse vitorioso? Para que ele saísse vitorioso?
Apoiei a cabeça nas mãos, tentando resolver este enigma, até perceber que não interessava como a acusação tinha surgido.
Só interessava o facto de ter ocorrido.
O juiz O'Neill olha para a Zoe, que está a fitar o quadrado de madeira entre as mãos na mesa da defesa.
- Sr.a Baxter - diz ele -, está a fazer isto de livre vontade? Ela não responde.
Atrás dela, a Vanessa levanta a mão e afaga o ombro da Zoe. É um gesto muito insignificante, mas faz-me lembrar o dia em que as vi juntas pela primeira vez no parque de estacionamento da mercearia. É daqueles gestos de conforto que fazemos a alguém que amamos, por hábito.
- Sr.a Baxter? - repete o juiz. - É isso que quer? A Zoe levanta a cabeça devagar.
- Não é o que eu quero - diz ela. - Mas é o que vou fazer.
Após estar na pérgula há cerca de uma hora, vi um fantasma. Movimentava-se como uma memória pela relva, deslizando por entre as árvores. Pareceu-me que estava a dizer o meu nome. "Max", voltou a Liddy a dizer, e acordei.
- Não podes dormir aqui fora - disse ela. - Vais morrer de frio. Sentou-se ao meu lado, com a camisa de noite de algodão a enfunar-se
como uma nuvem.
- O que estás aqui a fazer? A ver livros com nomes de bebé? perguntei.
- Não - disse a Liddy. Olhou para o céu. - Estive a pensar.
- A pensar em quê? - perguntei. - São só boas notícias. A Liddy sorriu um pouco.
- É isso que significa a palavra evangelho, sabes? Espalhar as boas notícias de Jesus.
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- Vais desculpar-me - disse eu, começando a levantar-me -, não estou com disposição para uma lição da Bíblia.
Ela continuou como se eu nein sequer tivesse dito nada.
- Sabes qual é o mandamento mais importante da Bíblia, não sabes? "Ama o teu vizinho como te amas a ti próprio."
- Ótimo - digo com um tom amargo. - É bom saber.
- Jesus não fazia exceções, Max - acrescentou a Liddy. - Não disse que devíamos amar noventa e oito por cento dos nossos vizinhos... e odiar aqueles que ouvem música demasiado alta ou que passam sempre com o carro por cima do nosso relvado, ou que votam no Ralph Nader, ou que fazem tatuagens dos pés à cabeça. Talvez haja dias em que não me apetece amar o dono do cão que me comeu os lírios, mas Jesus diz que não me resta outra escolha.
Estendeu a mão, e eu ajudei-a a levantar-se.
- Se houver condições, não é amor - disse ela. - Foi nisso que estive
a pensar.
Olhei para as nossas mãos entrelaçadas.
- Não sei o que fazer, Liddy - admiti.
- Claro que sabes - disse ela. - O que está certo.
Ironicamente, temos de assinar um contrato. Para que a informação que o Clive recebeu não seja divulgada pelo queixoso nem pela igreja, nem seja discutida com terceiros
no futuro. O Pastor Clive assina uma cláusula que o Wade Preston escreveu numa folha de papel pautado. O juiz examina-a e declara que sou o único detentor da custódia
dos três embriões congelados.
Mas agora, já não há ninguém na galeria. Estão todos lá fora, à espera que eu apareça na escadaria, esboce um grande sorriso e agradeça a Deus pelo resultado deste
julgamento.
- Bem - diz o Wade, a sorrir. - Acho que o meu trabalho aqui acabou.
- Então agora são meus? Cem por cento legalmente meus? - pergunto.
- É verdade - concorda o Wade. - Pode fazer o que quiser com eles. A Zoe ainda está sentada à mesa da defesa. É o centro de uma flor,
rodeada pela mãe, pela advogada e pela Vanessa. A Angela dá-lhe outro lenço de papel.
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- Sabe quantos advogados do Max são precisos para estucar uma parede? - diz ela, tentando animar a Zoe. - Depende da força com que os lançarmos.
Quem me dera ter feito as coisas de outra maneira, mas não sabia como. O Wade teria algum trunfo na manga. A verdade é que eu nunca quis isto. A determinada altura,
isto tornou-se política, religião e direito. A determinada altura, as pessoas deixaram de ser a questão principal. A Zoe, eu e estas crianças que outrora desejámos
ter.
Dirijo-me para a minha ex-mulher. O grupo dela separa-se, e vejo-me diante dela.
- Zoe - começo a dizer. - Desculpa... Ela olha para mim.
- Obrigada por dizeres isso.
- Não me deixaste acabar. Desculpa por teres passado por tudo isto. A Vanessa aproxima-se mais da Zoe.
- Vão ter uma vida boa - diz a Zoe, mas parece mais uma pergunta.
- Certificas-te disso?
Agora está a chorar. A tremer do esforço que está a fazer para se controlar.
Abraçá-la-ia, mas agora esse privilégio pertence a outra pessoa.
- A melhor - prometo, e entrego-lhe o documento legal que o Wade Preston acabou de me dar. - E é por isso que tos dou.
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A CANÇÃO DE SAMMY
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SAMANTHA
Mesmo aos seis anos de Idade há muitas coisas de que a Sammy tem a certeza:
Que a manteiga de amendoim faz o cão dela, o Ollle, parecer que está a dizer-lhe palavras a sério.
Que à noite os bonecos de peluche dela ganham vida, senão como é que podiam andar à volta da cama enquanto ela está a dormir?
Que os braços da Mamã Zoe são o lugar mais seguro do mundo.
Que quando uma vez estava às cavalitas da Mamã Ness tocou realmente no Sol, e tem a certeza porque ficou com uma bolha no polegar.
Que detesta, detesta Levar injeções no consultório do médico, o cheiro da gasolina e o sabor das salsichas.
Que a pessoa que Inventou as purpurinas estava mesmo a pedir uma grande confusão.
Que consegue escrever o seu nome todo. Mesmo a versão mais longa.
Que a Annle Yu é a sua melhor amiga no mundo Inteiro.
Que os bebés não são mesmo trazidos pelas cegonhas. Mas, para ser sincera, também não acredita na descrição da Annle Yu do que realmente acontece.
Que as sandes de mortadela são melhores sem côdea.
Que o melhor dia do ano é o primeiro em que neva no Inverno.
Que o pai juntou ramos de duas roseiras diferentes e que este verão, quando as flores aparecerem, vão ser diferentes de qualquer outra rosa que alguma vez se viu em todo o mundo, e que ele vai dar-lhes o seu nome.
Que, quando ele se casar com a Liddy, ela vai ser a menina das alianças. (A Liddy prometeu-lhe isto quando construíram um forte debaixo da mesa da cozinha com mantas, no fim de semana anterior. Apesar de ela ter dito que o pai da Sammy ainda não a pedira em casamento, e que não sabia do que ele estava à espera).
Que não é uma boa ideia meter marshmallows no micro-ondas.
Que, quando o Jack LeMar troçou dela, quando as mães vieram assistir ao concerto de inverno e a Sammy lhe disse que ele era tão estúpido que achava que os M&M's eram na realidade Ws, fez as mães rirem-se mesmo muito.
Que a Mamã Ness é a fada dos dentes. A Sammy via.
Que um dia quer ser astronauta. Ou talvez patinadora artística. Ou as duas coisas.
Que consegue suster a respiração debaixo de água durante imenso tempo e que hoje no intervalo vai perguntar á Annie Yu se se pode ser metade sereia.
Que, quando caiu de uma árvore, partiu o braço e acordou no hospital, as mães e o pai estavam todos à volta da sua cama e ficaram tão felizes por ela estar bem que se esqueceram de gritar com ela por ter trepado à árvore.
Que a maior parte das crianças só tem uma mãe e um pai, mas que ela não é "a maior parte das pessoas".
Que, na verdade, é a menina mais sortuda do mundo.

 

 

                                                                  Jod Picoult

 

 

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