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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


UMA OBSESSÃO INDECENTE / Colleen McCullough
UMA OBSESSÃO INDECENTE / Colleen McCullough

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

O jovem soldado ficou a olhar com cepticismo para a porta sem marcas da Enfermaria X. Pousara no chão o saco enquanto estudava a possibilidade de ser realmente aquele o seu destino final. A última enfermaria do recinto - tinham-lhe dito, apontando-lhe, aliviados, um caminho, pois estavam muito ocupados e ele dera mostras de conseguir orientar-se sozinho. Tudo o que possuía, excepto as armas, que o quarteleiro do seu batalhão só na véspera lhe tirara, estava colocado sobre a sua pessoa, e a carga era-lhe tão familiar que nem dava por ela. Bom, este era realmente o último edifício, lá isso era, mas se era uma enfermaria era muito mais pequena que todas as outras por onde tinha passado no caminho para ali. E também muito mais sossegada. Uma enfermaria tropo. Que maneira de acabar a guerra! Não que importasse muito a maneira como ela terminava. O que importava era terminar!

Observando-o, sem ser vista, pela janela do seu gabinete, a enfermeira Honour Langtry olhava, meio irritada, meio fascinada. Irritada porque ele lhe fora imposto numa fase em que ela contava que já não houvesse novas admissões e porque sabia que a sua chegada perturbaria o delicado equilíbrio dentro da Enfermaria X, mesmo que o fizesse de uma forma diminuta; fascinada porque ele representava o desconhecido que ela teria de aprender a conhecer. Wilson, M. E. J.

 

 

 

 

Era um sargento de um batalhão ilustre de uma ilustre divisão; acima do bolso do casaco, do lado esquerdo, trazia a fita vermelha-azul-vermelha da Medalha de Comportamento Distinto, uma condecoração prestigiosa e poucas vezes concedida, juntamente com a Estrela de 1939-1945, a Estrela de África, sem um 8 e a Estrela do Pacífico; a faixa quase branca do chapéu era uma relíquia do Médio Oriente e tinha uma mancha de cor debruada a cinzento, característica da divisão. Trazia um uniforme verde desbotado, bem lavado e passado, o chapéu inclinava-se no ângulo regulamentar e o latão das fivelas reluzia. Não muito alto, tinha um ar duro e a pele dos braços e do pescoço, muito bronzeada, estava escura como teca. Tivera uma longa guerra, aquele, e ao vê-lo a enfermeira Langtry começava a adivinhar o que o tinha levado à Enfermaria X. Havia nele qualquer coisa de perdido, como num homem normalmente habituado a conhecer a sua direcção que de repente se encontra num caminho absolutamente desconhecido. Mas isso poderia acontecer com qualquer pessoa que chegasse a um lugar novo. Dos sinais mais comuns - confusão, desorientação, perturbações de atitude ou de comportamento - não se via nenhum. De facto, concluiu ela, o homem parecia absolutamente normal e isso era, em si, anormal na Enfermaria X.

 

Subitamente, ele decidiu-se a agir, levantou o saco do chão e pousou o pé na comprida rampa que levava à porta de entrada. Precisamente no mesmo momento, a enfermeira Langtry contornou a secretária e saiu do gabinete para o corredor. Encontraram-se precisamente junto da porta de rede, quase perfeitamente sincronizados. U tipo que há muito tinha recuperado e voltado para o seu batalhão fizera a porta de rede com cápsulas de cerveja unidas entre si por metros e metros de linha de pesca, de forma que a cortina, em vez de tilintar musicalmente como as cortinas chinesas, produzia um som metálico desagradável. Foi, pois, no meio de uma cacofonia discordante que os dois se encontraram.

 

- Viva, sargento, sou a enfermeira Langtry - disse ela, e o seu sorriso dava-lhe as boas-vindas ao mundo da Enfermaria X, que era o seu mundo.

 

Mas a irritação apreensiva ainda transparecia à superfície do seu sorriso e revelou-se no ar peremptório com que estendeu a mão a pedir os papéis que ela já reparara não estarem selados. Que tolos, os tipos da admissão! O mais provável era o homem ter parado a meio caminho para ler os documentos.

 

Sem grandes gestos, ele conseguira pousar parte do seu equipamento para a cumprimentar. Depois tirou o chapéu e entregou-lhe o sobrescrito dos papéis sem hesitação.

 

- Lamento, enfermeira - disse ele. - Não precisei de os ler para saber o que está aí escrito.

 

Dando uma pequena volta, ela atirou os papéis, num gesto preciso, fazendo-os aterrar em cima da secretária. Pronto; assim ficava informado de que ela não estava à espera que ele ficasse especado como um fueíro na sua frente, enquanto ela lhe devassava a intimidade para ler a história do oficial; agora era o momento de o pôr à vontade.

 

- Wilson, M. E. J.? - perguntou, gostando do ar tranquilo do homem.

 

- Wilson, Michael Edward John - respondeu com um sorriso de agrado brilhando-lhe nos olhos.

 

- Costumam chamar-lhe Michael?

 

- Michael ou Mike, tanto faz.

 

Controlava-se bem, ou pelo menos parecia; não havia certamente uma erosão evidente na sua autoconfiança. ”Meu Deus”, pensou ela, ”fazei com que os outros o aceitem facilmente!”

 

- De onde surgiu você? - perguntou.

 

Uma Oh, de lá de cima - respondeu ele vagamente.

 

Ora, sargento, a guerra acabou! Já não são precisos segredos. Bornéu, calculo, mas de que bandas? Brunei? Balikpapan? Tarakan?

 

- Balikpapan.

 

- Não podia ter calculado melhor a hora da sua chegada - disse ela animadamente, caminhando à frente dele pelo corredorzinho que levava à enfermaria principal. - O jantar é daqui a nada e o kai não costuma ser mau.

 

A Enfermaria X tinha sido construída com pedaços e restos daqui e dali, e atirada para os confins do recinto, pois nunca se pensara que viesse a albergar pacientes necessitados de cuidados médicos complexos. Cheia, continha dez camas à vontade, doze ou catorze apinhadas, e ainda se podiam amontoar algumas na varanda. De forma rectangular, fora construída com tábuas desalinhadas de barcos, pintadas de castanho-claro a que os homens chamavam ”caca de bebé” e tinha um chão de pranchas de madeira. As janelas, que seriam mais bem designadas como ”largas aberturas”, não tinham vidros e estavam protegidas dos rigores do tempo por portadas de madeira. O telhado estava coberto de colmo de palmeiras.

 

Havia apenas cinco camas no quarto principal da enfermaria; quatro delas muito bem alinhadas, como convém a um hospital, a quinta estranhamente deslocada, pois estava sozinha junto à parede oposta, encostada a ela e não em ângulo recto, em plena contravenção com as regras hospitalares.

 

Eram divãs baixos, todos bem arranjados, sem cobertores nem cobertas, devido à latitude escaldante, só dois lençóis de algodão cru, muito brancos de tanta lavagem. Seis pés acima da cabeceira de cada cama encontrava-se um anel como o de uma rede de basquetebol, de onde pendiam metros de rede mosquiteira verde-escura drapeada e enrolada num estilo que fazia lembrar o melhor Jacques Fath. Junto de cada cama havia um velho baú de metal.

 

- Pode pôr ali o seu saco - disse a enfermeira Langtry, apontando para a última cama da fila de quatro, a que estava mais próxima da parede do fundo, com uma janela de um lado e outra atrás. Uma boa cama para apanhar o fresco.

- Depois arruma o resto - acrescentou. - Há mais cinco homens na X e gostava de lhos apresentar antes do jantar.

 

Michael pousou o chapéu sobre o travesseiro e os diferentes componentes do saco sobre a cama e depois voltou-se para ela. No lado oposto à cama havia uma zona da enfermaria completamente isolada por uma série de biombos, como se por trás deles jazessem estranhos moribundos; mas fazendo-lhe um gesto calmo para que a seguisse, a enfermeira Langtry deslizou com agilidade pela abertura existente entre dois biombos. Nada de mistérios, nada de moribundos. Apenas uma longa mesa de jantar com um banco corrido de cada lado e, à cabeceira, uma cadeira de aspecto bastante confortável.

 

Para lá da mesa uma porta dava para a varanda, que lembrava um avental espalhafatoso amarrado a um dos lados da enfermaria, com dez pés de largura e trinta e seis de comprimento. Estores de bambu protegiam a varanda da chuva, mas nesse momento estavam subidos. A toda a volta corria uma balaustrada, mais ou menos à altura da cinta. O soalho era de madeira, como na enfermaria, e ecoava com um som cavo de tambor sob os passos de Michael. Quatro camas estavam alinhadas junto à parede da enfermaria, muito juntas, mas o resto da varanda estava mobilado com cadeiras dos mais variados estilos. Uma mesa gémea da mesa da enfermaria, um pouco mais comprida, estava instalada junto da porta, com bancos de cada lado; muitas das cadeiras estavam espalhadas ali ao lado, como se aquela parte da varanda fosse uns dos locais de instalação favoritos. A parede da enfermaria consistia sobretudo em aberturas e portadas, completamente abertas para permitir a entrada da menor brisa, porque, embora a varanda estivesse situada no lado da monção, era também o lado dos ventos de sudeste. O dia morria, mas não era ainda o último suspiro; charcos de ouro macio e de sombras violeta banhavam o recinto para além da balaustrada. Uma grande nuvem de trovoada embrulhada numa luz ferida pairava sobre as copas das palmeiras, transformando as árvores na panóplia dourada das dançarinas balinesas. O ar tremia com o derivar lânguido de nuvens de poeira, de modo que parecia que o mundo inteiro se afundara num mar batido pelo sol. A banda brilhante de um arco-íris ergueu-se para o céu, mas foi cruelmente interrompido a meio da sua ascensão. As borboletas desapareciam, as falenas surgiam, encontravam-se e passavam umas pelas outras como pequenos fantasmas silenciosos. O chilrear alegre e claro de muitos pássaros soava nas gaiolas formadas pelas palmas dos coqueiros.

 

”Oh, Deus, cá vamos”, pensou a enfermeira Langtry enquanto caminhava à frente do sargento Michael Wilson para a varanda. ”Nunca sei como eles vão reagir, porque a que razão eles obedecem é coisa que está para além de tudo excepto do meu instinto, o que é uma chatice medonha. Algures dentro de mim há um sentido ou um dom que me leva a compreendê-los, mas a parte consciente do meu espírito nunca consegue descortinar o que é.”

 

Tinha-os informado, meia hora antes, que viria um novo doente e tinha sentido a perturbação deles. Embora tivesse contado com isso, eles consideravam sempre o recém-chegado como uma ameaça, e até se habituarem a ele, até restabelecerem o equilíbrio do seu mundo, normalmente acolhiam-no com ressentimento. Esta reacção estava em proporção directa com o estado do srecém-chegado; quanto mais tempo ele exigia da enfermeira mais profundo era o ressentimento. Normalmente as coisas compunham-se. O novo passava a ser usado, mas, até isso acontecer, a vida dela seria bem dura.

 

Quatro homens estavam instalados perto da mesa, todos sem camisa menos um; um quinto homem estava estirado na cama mais próxima lendo um livro.

 

Só um deles se levantou quando entraram; um tipo alto e magro, de trinta e tal anos, de cabelo loiro, que o sol tornara ainda mais claro, olhos azuis, vestido de caqui desbotado, com um cinto de pano, calças direitas e botas de marcha. As dragonas eram os três traços de bronze de capitão. A cortesia que manifestou ao levantar-se parecia ser-lhe natural, mas destinava-se apenas à enfermeira Langtry, a quem sorriu de uma maneira que excluía o homem a seu lado, o recém-chegado. A primeira coisa em que Michael reparou foi a maneira como eles olhavam para a enfermeira Langtry, não tanto amorosa como possessivamente. O que achou mais fascinante foi a recusa de eles o olharem, embora a enfermeira Langtry tivesse posto a mão sobre o seu braço e arrastado de junto da porta de forma a tê-lo a seu lado, o que tornava difícil não olharem para ele. No entanto, conseguiam fazê-lo, mesmo o rapaz de ar vagamente doentio que estava deitado na cama.

 

- Michael, apresento-lhe o Neil Parkinson - disse a enfermeira Langtry, ignorando deliberadamente a atmosfera.

 

A reacção de Michael foi perfeitamente instintiva; por causa dos galões do capitão pôs-se em posição de sentido, direito como um guarda.

 

O resultado desta mostra de respeito foi mais consentâneo com o de uma bofetada na cara.

 

- Oh, por amor de Deus, deixe-se dessas merdas! - sibilou Neil Parkinson.

- Estamos todos metidos na mesma porcaria aqui na X. Não há hierarquias para já.

 

O longo treino manteve Michael inalterado; o seu rosto não mostrou qualquer reacção àquele grosseiro insulto; a sua atitude descontraiu-se num à-vontade informal. Sentiu a tensão da enfermeira Langtry; porque, embora a mão dela já não lhe pousasse no braço, estavam suficientemente perto para os ombros se tocarem; como se ela quisesse de certo modo apoiá-lo, pensou, e deliberadamente afastou-se um pouco dela. Era a sua iniciação e tinha de fazê-la sozinho.

 

- Fale por si, capitão - disse outra voz. - Nem todos estamos na mesma merda tropo. Pode chamar-se a si mesmo pírulas, se quiser, mas comigo não há nada de mal. Fecharam-me aqui só para se verem livres de mim, por mais nada. Sou um perigo para eles.

 

O capitão Parkinson deu um passo ao lado para se voltar para quem falara, um rapaz refastelado numa cadeira, meio nu: fluido, insolente, chocante.

 

- E tu também podes deixar-te de merdas, sacana nojento! - disse, o ódio da sua voz subitamente evidente.

 

”Tenho de intervir antes que tudo me escape da mão”, pensou a enfermeira Langtry, mais aborrecida que o que dava a entender. Ao que parecia, isto viria a ser outra das insuportáveis boas-vindas deles, se é que se lhe podia chamar boas-vindas. Iam desempenhá-la numa nota menor e mesquinha, naquele tipo de atitude com que ela tinha mais dificuldade em se haver, porque ela gostava deles e queria poder orgulhar-se deles.

 

De modo que quando falou o seu tom era frio, levemente divertido, pondo, pensava ela, o ligeiro incidente na sua real perspectiva para o recém-chegado.

 

- Peço desculpas, Michael - disse ela. - Correndo o risco de me repetir, este e o Neil Parkinson. Aquele senhor na cadeira, que também contribuiu para a conversa, é o Luce Daggett. No banco, ao lado do Neil, é o Matt Sawyer. O Matt é cego e prefere que eu diga isso logo. Evita situações embaraçosas mais tarde. Lá na última cadeira está o Benedict Maynard e na cama o Nugget Jones. Meus senhores, este é a nossa última aquisição, o Michael Wilson.

 

Pronto, já estava. Tinha sido lançado à água. Frágil barco humano, mais frágil que a maioria, caso contrário não estaria ali, de velas içadas, face às tempestades, vagalhões e calmarias da Enfermaria X. ”Deus o ajude”, pensou ela. ”Não parece ter grande coisa, mas deve ter. Parece calmo, mas deve ser feitio dele. E é forte, há nele um núcleo de resistência que não foi tocado. O que, na minha experiência na X é uma coisa única.”

 

Olhou firmemente de um homem para outro.

 

- Não sejam tão intolerantes - disse ela. - Dêem ao pobre Michael uma oportunidade.

 

Atirando-se para o banco, Neil Parkinson riu e instalou-se meio de lado, para poder olhar para Luce enquanto dirigia os seus comentários ao novo recruta.

 

- Oportunidade? - perguntou. - Ó, enfermeira, deixe-se disso! Que espécie de oportunidade pode haver aqui dentro? A Enfermaria X, este salubre estabelecimento em que se encontra, sargento Wilson, é, na realidade, o limbo. Milton definiu o limbo como o paraíso dos tolos, o que nos assenta como uma luva. E nós passeamos no nosso limbo com tanta utilidade para o mundo e para a guerra como cócegas num touro.

 

Fez uma pausa para estudar o impacte da sua oratória sobre Michael, que continuava ao lado da enfermeira Langtry: um belo jovem no seu uniforme tropical, cuja expressão demonstrava um certo interesse mas nenhuma perturbação. Normalmente Neil era mais bondoso do que aquilo e teria servido de muralha entre o recém-chegado e os outros homens. Mas Michael Wilson não se encaixava no molde X. Não estava inseguro, emocionalmente diminuído, nem nada da imensidade de coisas que poderia estar e se encaixavam no modelo. Na verdade, Michael Wilson parecia ser um soldado jovem mas veterano, duro, apto, em pleno juízo e sem precisar para nada do cuidado de que a enfermeira Langtry dava provas evidentes.

 

Desde que, há vários dias, tinham chegado notícias do termo das hostilidades com o Japão, Neil sentira a angústia de ser ultrapassado pelo tempo, das decisões ainda não satisfatoriamente tomadas, das forças que voltavam mas não tinham sido ainda submetidas à experiência. Qualquer que fosse o tempo que restasse à Base 15 e à Enfermaria X, Neil precisava de cada um dos seus segundos, sem a ruptura que um novo homem inevitavelmente traria.

 

- Em minha opinião não tem ar de tropo - disse ele a Wilson.

 

- Na minha opinião também não - disse Luce, dando uma gargalhadinha e inclinando-se para dar uma cotovelada nas costelas do cego, com uma certa dureza e maldade. - E a ti, Matt, parece-te tropo?

 

- Pára com isso! - gritou Neil, a sua atenção desviada para outro ponto. O risinho de Luce transformou-se numa gargalhada; atirou a cabeça para trás, numa explosão de som sem alegria.

 

- Basta! - disse a enfermeira Langtry, duramente.

 

Olhou para Neil, não encontrou nada que a ajudasse, e depois olhou para os outros, um por um. Mas a resistência deles era completa; estavam decididos a mostrarem-se ao novo paciente numa desordem total e impertinente. Nessas ocasiões a sua impotência atormentava-a, no entanto a experiência ensinara-a a nunca os apertar demasiado. Atitudes daquelas nunca duravam muito e, quanto pior o humor, mais forte era o movimento em sentido contrário, uma vez a crise passada.

 

Acabou a volta ao grupo com Michael e descobriu que os olhos dele estavam intensamente fitos nela, o que era também um pouco inquietante, pois, ao contrário da maioria dos novos pacientes, os olhos dele não tinham erguido barreiras atrás das quais se pudesse esconder nem continham um desesperado apelo de socorro; olhava simplesmente para ela como um homem olha para um bibelô encantador, um animalzinho de estimação, ou qualquer outro artigo de grande apreço sentimental mas de pouco valor prático.

 

-Sente-se - disse ela sorrindo, disfarçando a irritação por se ver assim depreciada -, já deve estar a sentir-se fraco a estas horas.

 

Ele percebeu imediatamente que o comentário dela acerca da sua fraqueza era mais uma reprimenda feita aos outros que simpatia destinada a ele, o que o surpreendeu. Mas ela conseguiu instalá-lo numa cadeira em frente de Neil, depois sentou-se num ponto de onde podia observar Neil, Michael, Luce e Benedict e inclinou-se para a frente, alisando inconscientemente o peitilho cinzento do seu uniforme.

 

Habituada a focar a sua atenção naqueles que mais precisavam dela num dado momento, apercebeu-se de que Ben começava a dar indícios de perturbação. Matt e Nugget tinham o feliz condão de ignorarem o conflito permanente entre Neil e Luce, mas Ben apreendia a discórdia e, se esta se mantivesse, ele podia ficar muito inquieto.

 

Os olhos de Luce, meio fechados, estavam fitos nela com aquela familiaridade sexual que todo o carácter dela, a sua educação e treino consideravam ofensiva, embora desde que se encontrava na Enfermaria X tivesse aprendido a dominar o seu nojo e se tivesse interessado por saber a razão que levava um homem a olhá-la daquele modo. Contudo, Luce era um caso especial; nunca conseguira compreendê-lo, e às vezes sentia-se um pouco culpada por não fazer um esforço maior. Admitia prontamente que não fazia mais esforços porque, na primeira semana que ele passara na enfermaria, a enganara redondamente. O facto de ela ter voltado rapidamente à realidade sem que nem ele nem ela tivessem sofrido, não mitigava o erro do seu julgamento. Luce tinha um poder e despertava nela uma apreensão que ela detestava sentir, mas não tinha remédio senão suportar.

 

Com esforço desviou os olhos de Luce e fitou Ben; o que viu no seu comprido rosto escuro fê-la olhar para o relógio que usava pregado no peito do uniforme.

 

- Ben, não se importa de ir ver o que aconteceu ao impedido da cozinha, por favor? - perguntou. - O jantar está atrasado.

 

Ben levantou-se de um salto, baixou solenemente a cabeça e entrou em casa.

 

Como se o movimento tivesse originado nele outra linha de pensamento, Luce endireitou-se, abriu completamente os olhos amarelados e deixou o seu olhar deslizar para Michael. De Michael passou a Neil, voltou à enfermeira Langtry, onde se deteve pensativamente, e desta vez não havia nele qualquer sexualidade.

 

A enfermeira Langtry tossiu para aclarar a garganta.

 

- Você usa uma grande quantidade de spaghetti, Michael. Quando foi incorporado? Na primeira leva? - perguntou.

 

O cabelo de Michael estava cortado muito curto e brilhava como metal claro; a forma do seu crânio era bela e tinha aquele tipo de rosto que faz as pessoas pensarem mais em ossos que em carne; no entanto, não tinha o ar de caveira do rosto de Benedict. Havia rugas finas junto dos olhos e duas linhas fundas entre o nariz e a boca. Um homem, não um rapaz, mas as suas rugas eram prematuras. Um tipo de ideias feitas, provavelmente. Os olhos eram cinzentos, não daquela cor camaleónica dos olhos de Luce, que podiam ser verdes ou amarelos; de um cinzento sem idade e sem remorso, muito calmos, muito controlados, muito inteligentes. A enfermeira Langtry absorveu isso tudo na fracção de segundo em que respirou, antes de responder, sem se dar conta que todos os olhos estavam fitos nela e no seu interesse pelo recém-chegado, inclusive os olhos cegos de Matt.

 

- Sim, sou da primeira leva disse Michael.

 

Nugget abandonou definitivamente o dicionário escalavrado que fingia estar a ler e voltou a cabeça de lado para olhar fixamente para Michael; as sobrancelhas de Neil ergueram-se.

 

- Teve uma longa guerra - disse a enfermeira Langtry. - Seis anos. Como se sente agora em relação a ela?

 

- Fico contente por sair dela - disse ele em tom desprendido.

- Mas estava ansioso por entrar, no princípio.

 

- Sim.

 

-Quando é que a sua opinião mudou?

 

Olhou para ela como se achasse a pergunta incrivelmente ingénua, mas respondeu com toda a delicadeza, encolhendo os ombros.

- É o dever de toda a gente, não é?

 

-Oh! Dever! - rosnou Neil. - A mais indecente de todas as obsessões. A ignorância meteu-nos na guerra e o dever manteve-nos lá. Adorava ver um mundo que educasse os seus filhos para que acreditassem que o dever mais importante é aquele que se tem para consigo mesmo.

 

- Bem, diabos me levem se os meus filhos fossem educados nessa crença disse Michael duramente.

 

- Não estou a pregar o hedonismo nem o abandono total da ética! - disse Neil impacientemente. - Só gostava de ver o advento de um mundo menos ansioso por matar a flor dos seus homens, é tudo.

 

- Está bem, concedo-lhe isso e concordo consigo - disse Michael, descontraindo-se. - Desculpe, compreendi-o mal.

 

- Não me admira - disse Luce, que nunca perdia uma ocasião para irritar Neil. - Palavras, palavras, palavras! Foi assim que mataste tanta gente, a falar até eles caírem mortos?

 

- Que é que sabes de mortos, seu vagabundo cagarola? Não é caça aos patos! Tiveram de te arrastar para a tropa a espernear como um porco e depois conseguiste enfiar-te num belo trabalhinho almofadado na retaguarda, não foi? Metes-me nojo!

 

- Não tanto como tu me metes a mim, seu paneleiro - rosnou Luce. - Um destes dias vou comer os teus tomates ao pequeno-almoço.

 

As maneiras de Neil alteraram-se como por encanto; a sua fúria desvaneceu-se, os olhos começaram a brilhar.

 

- Meu velho, olha que não valia o esforço - disse em voz arrastada. - Estás a ver, são tão pequeninos!

 

Nugget fungou, Matt guinchou, Michael riu alto e a enfermeira Langtry baixou subitamente a cabeça, olhando desesperada para a saia. Depois, tendo recobrado o autodomínio, pôs termo ao diálogo.

 

- Meus senhores, a vossa linguagem desta noite é ofensiva - disse fria e bruscamente. - Cinco anos no exército podem ter aumentado a minha cultura, mas os meus sentimentos são tão delicados como sempre foram. Quando eu estiver por perto façam o favor de não usar palavrões. - Voltou-se e lançou um olhar feroz a Michael: - Isto também conta para si, sargento.

 

Michael olhou para ela, sem se deixar intimidar.

 

- Sim, enfermeira - disse obedientemente, a sorrir.

 

O sorriso era tão contagiosamente agradável, tão... sadio, que ela ficou deliciada.

 

Luce levantou-se num movimento ao mesmo tempo natural e artificialmente grácil, deslizou entre Neil e a cadeira vazia de Benedict e inclinou-se para despentear imprudentemente os cabelos de Michael. Michael não fez qualquer tentativa para se desviar, nem sequer se mostrou zangado, mas bruscamente surgiu nele uma certa expressão de alerta - uma indicação, talvez, de que havia nele qualquer coisa com que não se podia brincar, pensou a enfermeira Langtry, fascinada.

 

- Oh, você há-de ir longe! - disse Luce, olhando com ar trocista para Neil. Parece-me que arranjaste um rival, Capitão Universidade de Oxford! Óptimo! É um corredor que chegou tarde, mas a meta ainda não está à vista, pois não?

 

- Cala-te! - disse Neil violentamente, cerrando os punhos. - Raios te partam, cala-te!

 

Luce passou junto a Michael e à enfermeira Langtry com um ondular de invertebrado e encaminhou-se para a porta, onde colidiu com Benedict; deu um salto atrás, com um grito, como se se tivesse queimado. Recuperou rapidamente, ergueu o lábio desdenhosamente, mas afastou-se com uma vénia e um floreado.

 

- Qual é a sensação de assassinar velhos e crianças, Ben? - perguntou, desaparecendo depois lá dentro.

 

Benedict ficou com um ar tão solitário, tão devastado, que, pela primeira vez desde que entrara na Enfermaria X, Michael sentiu uma profunda compaixão; a expressão daqueles olhos negros desolados comoveu-o profundamente. ”Talvez porque seja esta a primeira emoção verdadeira que vejo”, pensou. ”Pobre tipo! Tem o aspecto de como eu me sinto, como se alguém tivesse apagado a luz lá dentro.”

 

Enquanto Benedict se dirigia à cadeira com um arrastar de monge, mãos cruzadas sobre a cinta, o olhar de Michael seguiu-o, analisando atentamente o rosto escuro. Estava tão desfeito, tão consumido por aquilo que se passava dentro dele, tão digno de piedade... E, embora não fossem parecidos, Michael lembrou-se subitamente de Colin, sentindo um tal desejo de ajudar que ansiou por que os olhos desolados o fitassem; quando isso aconteceu, sorriu-lhe.

 

- Não te deixes irritar pelo Luce - disse Neil. - Não passa de um pateta alegre.

 

- Ele é mau - disse Ben, pronunciando a palavra como se esta ao sair lhe roesse as entranhas.

 

-Somos todos, conforme o ponto de vista em que nos considerarem - disse Neil tranquilamente.

 

A enfermeira Langtry levantou-se; Neil era bom para com Matt e Nugget, mas com Ben nunca conseguia tocar a nota certa.

 

- Descobriu o que aconteceu ao jantar, Ben? - perguntou ela. Durante um momento o frade transformou-se num rapazinho; os olhos de Benedict encheram-se de ternura e calor evidentes ao olhar para a enfermeira Langtry.

 

- Vem aí, enfermeira, vem aí - disse, e sorriu grato pela consideração que ela demonstrara ao mandá-lo fazer o recado.

 

Os olhos dela, pousados em Ben, eram doces. Depois voltou-se.

 

- Vou ajudá-lo a arrumar as suas coisas, Michael - disse, dando um passo para a porta. Mas ainda não tinha acabado com o grupo da varanda. - Meus senhores, como o jantar está atrasado, é melhor comê-lo lá dentro, de camisa vestida e mangas baixadas. Senão os mosquitos dão cabo de vocês.

 

Embora preferisse ficar na varanda a ver como o grupo reagia quando ela não estava presente, Michael tomou o pedido dela por uma ordem e seguiu-a para a enfermaria.

 

A rede, o embrulho e o saco continuavam na cama. De braços cruzados, a observá-lo, a enfermeira Langtry reparou na facilidade metódica com que ele começou a arrumar os seus haveres; começou pela pequena mochila atada à rede e sacou dela a escova de dentes, um pequeno mas precioso sabonete, tabaco, lâmina de barbear, e arrumou tudo cuidadosamente na gaveta do armário.

 

- Teve alguma ideia do que lhe ia acontecer? - perguntou ela.

 

- Bom, vi montes de tipos ficarem tropo, mas não era a mesma coisa que isto. É uma enfermaria tropo!

 

É - disse ela docemente.

 

Michael desfez o rolo do cobertor e do colchão de campismo do cimo do saco e começou a tirar meias, roupa interior, uma toalha, camisas limpas, calças e calções. Enquanto trabalhava, voltou a falar:

 

- É engraçado, o deserto nunca deu cabo de tantos homens como a selva. Nem de um décimo. Embora deva haver uma razão, suponho. O deserto não entra por nós adentro. É mais fácil viver com ele.

 

- É por isso que lhe chamam tropo... tropical... selva. - Ela continuava a observá-lo. - Ponha nesse armário tudo o que precisa. Há ali um maior, onde pode arrumar o resto. Tenho a chave, quando precisar de alguma coisa é só chamar. Eles não são tão maus como parecem.

 

- São óptimos. - Um leve sorriso ergueu-lhe um canto da boca bonita. - Já estive em muitos sítios e situações bem mais horríveis.

 

- Não se importa com isto?

 

Ele endireitou-se, segurando no par de botas sobressalentes, e olhou directamente para ela.

 

- A guerra acabou, enfermeira. De qualquer forma, breve volto para casa, e nesta altura estou tão farto que tanto me faz o sítio onde espero. - Olhou em roda. - Os alojamentos são melhores que no acampamento e o clima é melhor que em Bornéu. Há séculos que não durmo numa cama decente. - Ergueu uma mão, apalpando as dobras da rede mosquiteira. - Todo o conforto da casa e uma mamã ainda por cima! Não, não me importo nada.

 

A referência a uma mamã picou-a; como se atrevia ele? Mas o tempo havia de o curar dessa impressão. Continuou a tactear.

 

- Porque não se importa? Devia importar-se, porque sou capaz de jurar que não é tropo.

 

Lie encolheu os ombros, voltou-se de novo para o saco, que parecia conter tantos livros como artigos de vestuário; era, reparou ela, um espantoso emaludor.

 

- Suponho que estive a agir sob ordens insensatas durante muito tempo, enfermeira. Pode crer que ser mandado para aqui não foi tão insensato como muitas das ordens a que tive de obedecer.

 

- Está a declarar-se louco? Ele riu sem fazer barulho:

 

- Não! Não está nada errado com o meu espírito.

 

Ela sentiu-se desarmada; pela primeira vez numa longa carreira de enfermagem não sabia o que havia de dizer. Depois, enquanto ele metia novamente a mão no saco, ela descobriu uma coisa lógica para dizer:

 

- Oh, óptimo. Tem um bom par de sapatilhas. Não suporto o barulho das botas neste soalho. - Estendeu a mão, pegou nalguns dos livros que estavam sobre a cama. Modernos americanos, na sua maior parte: Steinbeck, Hemingway, raulkner. Nada de escritores ingleses? - perguntou ela.

 

- Não consigo entrar neles - respondeu ele, e apanhou os livros para os guardar no armário.

 

A leve crítica de novo; ela lutou contra um aborrecimento que no fundo achava bastante natural.

 

- Porquê? - perguntou.

 

- É um mundo que não conheço. Além disso, desde o Médio Oriente, não encontrei nenhum Pom para trocar livros. Temos mais coisas em comum com os Yanks.

 

Como as leituras dela eram mais inglesas e nunca abrira um livro de um moderno americano, deixou cair o assunto e regressou ao tema principal.

 

- Disse que estava tão farto que não se importava com o sítio onde esperasse. Farto de quê?

 

Michael voltou a atar as correias em volta do saco e pegou na mochila vazia e na rede.

 

- De tudo - respondeu. - É uma vida indecente. Ela descruzou os braços.

 

- Não está assustado com a ideia de ir para casa? - perguntou, indicando o caminho para o outro armário.

 

- Porque havia de estar?

 

Abrindo o armário, ela afastou-se um pouco para o deixar meter lá dentro as suas coisas.

 

- Uma das coisas que eu tenho notado cada vez mais nos últimos meses entre os meus homens (e nas minhas colegas enfermeiras também) é o medo de voltarem para casa. Como se tivesse passado tanto tempo que todo o sentimento de família e de pertença se tivesse perdido.

 

Tendo acabado, ele endireitou-se e voltou-se para olhar para ela.

 

- Aqui, é provável que isso aconteça. É uma espécie de casa, tem um certo ar de permanência. Você também tem medo de ir para casa?

 

Ela piscou os olhos.

 

- Penso que não - disse lentamente, a sorrir. - Você é um tipo esquisito, não é?

 

O sorriso dele em resposta foi sincero e rasgado.

 

- Já têm dito isso de mim - respondeu.

 

- Se precisar de qualquer coisa, diga-me. Largo o trabalho daqui a uns minutos, mas estou de volta às sete.

 

-Obrigado, enfermeira, mas acho que está tudo bem. Ela examinou-lhe o rosto; depois acenou que sim.

 

- Sim, acho que está tudo bem consigo - disse ela.

 

O impedido chegara com o jantar e havia uma enorme barulheira na sala de estar; em vez de ir directamente para o seu gabinete, a enfermeira Langtry dirigiu-se à sala.

 

- O que há esta noite? - perguntou, afastando travessas de um armário. O impedido suspirou:

 

- Suponho que é guisado de carne, enfermeira.

 

- Mais guisado que carne, não?

 

- Mais molho que outra coisa, diria eu. Mas a sobremesa não é má, uma espécie de sonhos em xarope.

 

- Qualquer sobremesa é melhor que nenhuma, soldado. É espantoso como as rações melhoraram nos últimos seis meses.

 

- Lá isso é, enfermeira! - concordou o impedido fervorosamente.

 

Ao voltar-se para o fogão Primus, em que costumava aquecer a comida antes de a servir, a enfermeira Langtry viu pelo canto do olho um ligeiro movimento no seu gabinete, pousou os pratos e atravessou o corredor sem fazer barulho.

 

Luce estava junto à sua secretária, de cabeça baixa, e na mão o sobrescrito aberto que continha os papéis de Michael.

 

- Pouse isso!

 

Ele obedeceu com ar indiferente, como se tivesse pegado nos papéis por acaso; se os tinha lido, o mal já estava feito, porque, como ela pôde verificar, os papéis estavam em segurança dentro do sobrescrito. Mas ao olhar para Luce não pôde ter a certeza. Era esse o problema com Luce: ele existia em tantos níveis que ele próprio tinha dificuldade em saber onde se encontrava; é claro que isso significava que podia sempre dizer a si mesmo que não tinha feito nada de mal. E, à vista desarmada, ele era o símbolo do homem que não precisava de espiar ou de recorrer a meios menos lícitos. Mas essa não era a sua história.

 

- Que quer daqui, Luce?

 

- Uma autorização para sair à noite - disse ele prontamente.

 

- Lamento, sargento, mas já teve mais que a sua conta de saídas este mês disse ela friamente. - Leu esses papéis?

 

- Enfermeira Langtry! Como se eu fosse capaz de uma coisa dessas!

 

- Um dia destes você ainda escorrega, e eu estarei aqui para apanhá-lo disse ela. - Para já pode ajudar-me a servir o jantar, já que está nesta ponta da enfermaria.

 

Antes de sair do gabinete, a enfermeira pegou nos papéis de Michael e fechou-os na gaveta da secretária, recriminando-se por um grau de desleixo que não se lembrava de ter cometido no decorrer de toda a sua carreira. Devia ter-se certificado de que os papéis estavam bem guardados antes de levar Michael à enfermaria. Talvez ele tivesse razão; a guerra durava já há demasiado tempo, e era por isso que ela começava a cometer erros.

 

- Pelo alimento que vamos receber graças Vos damos, meu Deus! - disse Benedict, no meio de um silêncio parcial, levantando depois a cabeça.

 

Só Luce ignorara a acção de graças, comendo durante todo o tempo, como se fosse surdo.

 

Os outros esperaram que Benedict acabasse, antes de pegarem nas facas e nos garfos para dissecar o duvidoso alimento que tinham no prato, nem embaraçados pela oração de Benedict nem perturbados pela irreverência de Luce. Todo o ritual perdera a novidade que alguma vez podia ter tido, concluiu Michael, sentindo o palato excitado pela comida desconhecida, embora continuasse a ser comida do exército. Além de que ali até havia luxos. Pudim!

 

Tirar conclusões acerca de qualquer novo grupo de homens tornara-se uma rotina nele, uma parte da sobrevivência - e um jogo também. Apostava consigo mesmo quantias imaginárias sobre a justeza das suas conclusões, preferindo fazer isto a ter de reconhecer que o que tinha feito nos últimos seis anos era efectivamente apostar a sua própria vida.

 

Os homens da Enfermaria X eram um grupo esquisito, mas não mais esquisito que alguns outros que ele conhecera. Eram homens que tentavam viver com outros homens, e que o conseguiam tão bem ou tão mal como muitos outros. Se fossem como ele, estavam cansados da guerra para lá dos limites do tolerável, e dos homens, homens, homens.

 

- Por que diabo está você aqui, na X, Mike? - perguntou Benedict subitamente, de olhos a brilhar.

 

Michael pousou a colher, porque tinha acabado o pudim, e puxou da lata de tabaco.

 

- Ia matando um gajo - disse, tirando uma mortalha de papel de arroz. - E tinha-o morto mesmo se uma série de outros tipos não me tivesse impedido.

 

- Então não era um dos inimigos, calculo? - perguntou Neil.

 

- Não. Um tipo da minha companhia.

 

- E foi só isso? - perguntou Nugget, fazendo caretas estranhíssimas ao engolir uma garfada de comida.

 

Michael olhou para ele, preocupado.

 

- Oiça, sente-se bem?

 

- É só a minha hérnia hiatal - disse Nugget num tom de fatalidade. Dá-me sempre que engulo.

 

Isto foi anunciado com grande solenidade e com o mesmo tipo de reverência que Benedict dedicara à sua pequena oração; Michael reparou que os outros, mesmo Luce, se limitavam a sorrir. Então é que gostavam do rapazito de cara de fuinha. Tendo enrolado e acendido o cigarro, Michael inclinou-se para trás, com os braços por trás da cabeça, porque o banco não tinha encosto, e pôs-se a pensar de que tipo seriam aqueles homens. Era muito agradável estar num lugar estranho rodeado de rostos estranhos; após seis anos no mesmo batalhão conhecia-se pelo cheiro qual dos camaradas tinha arrotado.

 

O cego devia ter trinta e bastantes anos, não falava muito, não pedia muito. O contrário de Nugget, decretou Michael, que era nitidamente a mascote. Todas as companhias tinham o seu talismã de boa sorte; porque não a Enfermaria X?

 

Não ia gostar de Luce, mas o mais provável é que nunca ninguém tivesse gostado de Luce. Tal como acontecia com Nugget, nada havia nele que sugerisse ter alguma vez participado na guerra. A ninguém Michael desejaria que participasse em guerras, mas os homens que tinham passado por ela eram diferentes e não em termos de coragem, resolução ou força. A acção não podia fabricar essas qualidades se elas não existissem já, não as destruía se elas existissem. O horror da guerra era muito mais profundo que isso, muito mais complexo. Olhar a morte nos olhos, avaliar a importância da vida. Mostrar a um homem a proximidade da sua própria morte. Fazer um homem compreender o seu egoísmo, agradecer à sua boa estrela pela bala que tinha escrito um nome que não era o seu. A dependência da superstição. A angústia e o tormento após cada acção, porque durante ela o homem tornava-se um animal para si mesmo, uma estatística para aqueles que controlavam o seu destino militar...

 

Neil estava a falar; Michael fez um esforço para o escutar, porque Neil era uma pessoa a respeitar. Havia tido uma guerra muito longa. A sua aparência estava deserta e a sua atitude era a de um verdadeiro soldado.

 

- ...portanto, tanto quanto posso perceber, temos mais umas boas oito semanas - dizia Neil.

 

Michael estava meio atento e percebeu que Neil se referia à duração da Enfermaria X.

 

Fascinado, olhou de um rosto para o outro, assimilando a descoberta de que a notícia de um iminente regresso a casa os assustava. O cego Matt tremia realmente de medo. Lá esquisitos são, pensou Michael, lembrando-se de que a enfermeira Langtry lhe dissera que eles tinham medo de voltar para casa.

 

A enfermeira Langtry... Havia muito, muito tempo que não tinha nada a ver com mulheres, portanto ainda não tinha a certeza do que pensava dela. A guerra tinha virado as coisas de pernas para o ar; achava difícil conceber mulheres em postos de autoridade, mulheres com uma espécie de confiança em si mesmas, como ele não se lembrava de ter visto antes da guerra. Por grande que fosse a bondade e o interesse dela, via-se que estava habituada a ser a chefe, e não se sentia incomodada ao exercer essa autoridade sobre os homens. Neil, para lhe fazer crédito, parecia deliciar-se com essa autoridade. Não era um dragão, a Langtry, nem sequer um dragãozinho. Mas Michael achava difícil lidar com uma mulher que assumia claramente, que falavam a mesma linguagem, que pensavam os mesmos pensamentos; nem sequer podia tranquilizar-se dizendo que tinha visto mais guerra do que ela, porque era provável que ela tivesse passado grande parte da guerra na linha de combate. Usava os galões prateados de capitão do corpo de enfermagem, o que era realmente um posto bastante elevado.

 

Os homens da Enfermaria X adoravam-na; quando ela o levou à varanda, ele apercebera-se imediatamente do ressentimento deles, da desconfiança de accionistas para com um potencial colega. Chegou à conclusão de que a reacção deles fora a razão para aquela demonstração de loucura. Bom, não precisavam de se preocupar. Se Neil tivesse razão, nenhum deles ficaria ali tempo suficiente para se ver obrigado a reajustar a ordem vigente em seu favor. Tudo o que ele queria era ver-se livre da guerra, do exército, encerrar definitivamente as recordações dos últimos seis anos.

 

E embora lhe tivesse agradado a ideia de ser transferido para a Base 15, não o deliciava o facto de ter de passar os próximos meses ocioso numa enfermaria; era demasiado tempo livre para pensar, demasiado tempo para recordar. Sentia-se bem, em plena posse das suas faculdades mentais; sabia isso, assim como o sabiam os tipos que o tinham mandado para ali. Mas aqueles desgraçados da Enfermaria X sofriam realmente; via-o nos rostos deles, ouvia-o nas suas vozes. Com tempo poderia vir a saber porquê e como. Entretanto, bastava-lhe saber que eram todos tropo ou tinham sido tropo. O mínimo que podia fazer era tornar-se útil.

 

Assim, quando o último homem acabou de comer a sobremesa, Michael levantou-se, pegou nos pratos de esmalte sujos e pôs-se a estudar o território da sala de estar.

 

Seis vezes por dia, pelo menos, a enfermeira Langtry atravessava o recinto entre os alojamentos das enfermeiras e a Enfermaria X, sendo as últimas duas vezes já noite fechada. Durante o dia apreciava a oportunidade de esticar as pernas, mas no escuro nunca se sentia à vontade; na sua infância tivera um verdadeiro medo da noite e recusava-se a dormir com a luz apagada, embora, é claro, desde então se dominasse o suficiente para poder controlar esse terror idiota e sem justificação. De qualquer forma, quando atravessava o recinto à noite costumava debruçar-se sobre qualquer ideia bem concreta e iluminar o caminho com uma lanterna eléctrica. Senão as sombras eram uma ameaça demasiado tangível.

 

No dia da entrada de Michael Wilson para a Enfermaria X, a enfermeira Langtry saiu da enfermaria quando os homens se instalaram para jantar e dirigiu-se à messe onde jantaria. Agora com a lanterna a projectar à sua frente um raio de luz, regressava à X para aquilo que ela considerava a parte mais agradável de cada dia, aquele período que mediava entre a sua refeição e o apagar das luzes na enfermaria. Nessa noite ansiava especialmente por tal momento; um paciente novo aumentava sempre o interesse e aguçava-lhe o espírito.

 

Estava a pensar em diferentes tipos de sofrimento. Parecia-lhe que tinha passado muito tempo desde o dia em que protestara contra a enfermeira-chefe por a ter mandado para a X, argumentando, furiosa, que não tinha qualquer experiência com doentes mentais e que até sentia um certo antagonismo em relação a eles. Nessa altura parecera-lhe um castigo, uma bofetada na face, como pagamento de todos aqueles anos passados em hospitais de campanha. Essa fora uma outra vida - tendas, chão de terra batida, pó no tempo seco e lama quando chovia, e a tentativa de se manter saudável e apta para as suas tarefas de enfermeira enquanto o clima e as condições a iam roendo impiedosamente. For a um período tremendo de sofrimento e horror, durara semanas a fio e estendera-se por anos. Mas o sofrimento fora diferente então. Curioso, podia-se chorar lágrimas de sangue por um homem sem braços, por uma massa pegajosa de entranhas espalhadas pelo chão, por um coração subitamente tão frio e parado como um pedaço de carne num congelador; contudo eram faits accomplis físicos. Acabava e pronto. Tratava-se o que se podia, chorava-se pelo que não se podia e tentava-se esquecer enquanto se continuava sempre em frente.

 

Ao passo que o sofrimento na Enfermaria X era um sofrimento do espírito e da mente, não compreendido, muitas vezes troçado ou olhado com indiferença. Ela própria considerara ser colocada na X como um insulto às suas capacidades de enfermeira e aos seus anos de leais serviços. Sabia agora porque se sentira tão insultada. A dor física, um acidente físico no curso do dever tinha tendência a fazer ressaltar o que havia de melhor naqueles que eram vítimas. Fora o heroísmo, a dignidade total, que quase acabara com ela naqueles anos de hospitais de campanha. Mas não havia dignidade nenhuma numa depressão nervosa; era uma mancha, uma prova de fraqueza de carácter.

 

Fora nesse estado de espírito que chegara à Enfermaria X, severa de ressentimento, quase desejando odiar os pacientes. Só a perfeição da sua ética profissional e a escrupulosidade do cumprimento do dever a salvaram de uma recusa a mudar de atitude. Ao fim e ao cabo, um paciente era um paciente, um espírito doente, uma realidade tão palpável como um corpo doente. Decidida a que ninguém pudesse acusá-la de incompetência, foi passando os primeiros dias na Enfermaria X.

 

Mas o que transformou Honour Langtry de guarda cuidadosa numa pessoa demasiado interessada para limitar os seus serviços apenas a guardiã foi compreender que na Base 15 ninguém se preocupava com os homens da Enfermaria X. Nunca tinha havido muitos pacientes do tipo X na Base 15, que fora criada demasiado próxima do campo de batalha para se dedicar à doença tropo. A maior parte dos homens que tinham aterrado na Enfermaria X vinham transferidos de outras enfermarias. Era o caso de Nugget, Matt e Benedict. Os casos graves de perturbações psíquicas eram quase sempre enviados directamente para a Austrália. Os que vinham para a Enfermaria X estavam menos perturbados, os seus sintomas eram mais fáceis de diagnosticar. O exército tinha poucos psiquiatras, nenhum dos quais colocado na Base 15, pelo menos no tempo da enfermeira Langtry.

 

Como o trabalho de enfermagem era pouco ou nenhum, ela começou a aplicar a sua considerável inteligência e a energia ilimitada que fizera dela uma auxiliar médica tão boa àquilo que chamava o sofrimento da X. E disse a si mesma que reconhecer aquilo de que sofriam os homens da X como uma doença genuína era o começo de uma nova experiência de enfermagem.

 

A doença da X era um problema do espírito, distinto dos problemas do cérebro; amorfo e insidioso, ele baseava-se em abstracções. Mas nem por isso deixava de ser uma entidade, não era menos que qualquer outra doença ou deficiência física a ruína de um organismo que de outro modo seria saudável; o mal-estar que causava era enorme, o seu efeito muito mais duradouro que muitos males físicos. E sabia-se menos acerca daquilo que da maior parte dos outros ramos da medicina.

 

Descobriu em si um interesse apaixonado, militante, pelos doentes que passavam pela Enfermaria X, sentia-se fascinada pela sua infinita variedade e descobriu também que tinha nela um talento real para os ajudar activamente nos piores momentos das crises. Claro que tinha falhas. Ser boa enfermeira passava por aceitar que se podia errar, desde que se soubesse que se tinha tentado tudo o que era possível. Mas, por muito inculta e ignorante que ela pensasse ser, sabia também que a sua presença na Enfermaria X tinha realmente importância para o bem-estar da maioria dos seus pacientes.

 

Aprendera que o gasto da energia nervosa podia ser muito mais fatigante que o pior dos trabalhos físicos; aprendera a mover-se de outro modo, a cultivar enormes reservas de paciência. E de compreensão. Mesmo após ter ultrapassado os seus preconceitos em relação àquelas fraquezas de carácter teve de se haver com aquilo que lhe parecia um total egocentrismo nos seus pacientes. Para alguém cuja vida adulta fora dedicada a um altruísmo afadigado e feliz foi difícil compreender que o aparente egocentrismo dos homens era apenas falta de autoconfiança. Aprendeu quase tudo através da experiência pessoal, pois não havia ninguém para a ensinar e poucos livros para ler. Mas Honour Langtry era realmente uma enfermeira nata. Lutou, estimulou-se, absorveu e acabou por se apaixonar por aquele novo tipo de enfermagem.

 

Por vezes, durante muito mais tempo do que ela esperava ou desejava, não havia provas tangíveis de ter conseguido o contacto com um paciente. Outras vezes, quando esse contacto se estabelecia, perguntava a si mesma se alguma coisa que ela fizera pessoalmente teria na verdade contribuído para tal. No entanto, sabia que a sua presença ajudava. Se houvesse tido alguma dúvida, já há muito teria pedido transferência.

 

”A X é uma ratoeira”, pensou, ”e eu caí nela. E, mais, gosto de cá ter caído.”

 

Quando a lanterna iluminou o começo da rampa, apagou a luz e subiu a rampa fazendo o mínimo barulho possível.

 

O seu gabinete era a primeira porta do corredor à esquerda, um cubículo de seis por seis, que duas aberturas com portada salvavam de ser um horror de claustrofobia. Mal lá cabia a mesa que ela usava como secretária, a sua cadeira, uma cadeira para as visitas e a pequena estante em forma de l, com duas gavetas a que ela chamava o seu ficheiro. Na gaveta de cima estavam guardadas as fichas de todos os homens que tinham passado pela Enfermaria X, que ao todo não eram muitas; tinha guardado as cópias das fichas dos homens que já tinham tido alta. Na segunda gaveta guardava os medicamentos que a enfermeira-chefe e o coronel achavam conveniente que ela tivesse sempre à mão: paraldeída oral e injectável, tenobarbitúrico, morfina, aspirina, leite de magnésio, opiáceos, óleo de castor, hidrato de cloro, água oxigenada, placebos e uma grande garrafa de brande três estrelas Chateou Tanunda.

 

A enfermeira Langtry tirou o chapéu e as botas e arrumou estas muito direitinhas atrás da porta; depois meteu debaixo da mesa o cesto que continha os seus objectos pessoais para quando estava de serviço e calçou as sapatilhas. Como a Base 15 ficava numa zona oficialmente declarada de malária, todo o pessoal era obrigado, depois de anoitecer, a cobrir-se dos pés à cabeça, o que, naquele calor infernal, tornava a vida um pouco mais infernal ainda. Na verdade, a área fora toda desinfectada com DDT, o que praticamente acabara com os mosquitos, mas a regra continuava a aplicar-se ao anoitecer. Algumas das enfermeiras mais emancipadas usavam blusões e calças compridas de dia e de noite, decretando que eram muito mais confortáveis que as saias. Mas aquelas que, como Honour Langtry, tinham passado a maior parte da guerra em hospitais de campanha, onde as calças eram praticamente obrigatórias, preferiam, no luxo relativo da Base 15, usar um uniforme mais feminino sempre que lhes era possível.

 

Além disso, a enfermeira Langtry tinha uma teoria: que fazia bem aos pacientes verem uma mulher de vestido, em vez de a verem num uniforme semelhante ao deles. Tinha também uma teoria acerca do ruído: tirava sempre as botas quando entrava de noite na enfermaria e proibia os homens de usarem botas dentro de casa.

 

Na parede por trás da cadeira das visitas havia uma colecção de retratos a lápis, cerca de quinze: o registo feito por Neil dos homens que, no seu tempo, tinham passado pela X ou ainda lá estavam. Sempre que erguia os olhos do seu trabalho, via aquele registo pictórico bem revelador; quando algum dos homens ali retratados tinha alta, o seu retrato saía das filas centrais e era pregado na periferia. Nesse momento havia cinco caras na fila central; mas havia ainda muito lugar para uma sexta. O problema era que ela não tinha contado que lhe aparecesse um sexto rosto, não com a Base 15 a desmantelar-se rapidamente, a guerra terminada, os canhões calados. E contudo, nesse dia, chegara Michael, um novo tema para o arguto olho de Neil. Perguntou a si mesma o que Neil veria em Michael, e deu por si a esperar ansiosamente o dia em que o resultado desse olhar seria afixado na parede.

 

Sentou-se na cadeira e, apoiando o queixo nas mãos, pôs-se a contemplar a fila central de desenhos.

 

”São meus”, pensou complacentemente, e depois afastou resolutamente esse conceito perigoso.

 

O ego, descobrira ela desde que estava na X, era um intruso indesejável que não trazia qualquer ajuda aos pacientes. No fim de contas, ela era, senão o árbitro dos destinos deles, pelo menos o fulcro da sua estada na X. Nisso residia um poder considerável, porque o equilíbrio da X era algo de muito delicado e era ela quem estava no ponto em que esse equilíbrio repousava, sempre pronta a acorrer ao local onde fosse mais precisa. Tentava sempre respeitar o seu poder, não abusando dele nem o invocando. Mas ocasionalmente, como agora sucedia, a ideia desse poder vinha-lhe à consciência e olhava para ela um pouco descaradamente. Perigoso! Uma boa enfermeira não devia nunca pensar que desempenhava uma missão nem iludir-se a si mesma pensando que era a causa directa da recuperação dos seus pacientes.

 

Precisava era de actividade. Levantou-se, tirou do bolso das calças o porta-chaves, encontrou a chave da gaveta de cima, abriu-a e pegou no sobrescrito que continha a história do caso Michael.

 

Quando Neil Parkinson entrou, no eco da sua pancada na porta, estava ela a voltar para a cadeira e os papéis continuavam por abrir na secretária à sua frente. Ele sentou-se na cadeira das visitas e olhou para ela, gravemente. Ela, consciente desse olhar, limitou-se a sorrir, esperando.

 

Mas os olhos de que ela tinha consciência nunca olhavam para ela com aquele à-vontade de uma velha amizade; detalhavam-na e voltavam ajuntar os pedaços, não em qualquer sentido lascivo mas da forma como um rapazinho maravilhado podia dissecar o mistério do seu brinquedo mais precioso. A novidade de a descobrir nunca se desvanecera e o prazer dele era sempre novo quando, à noite, ia ao gabinete dela para conversarem.

 

Não que ela fosse uma beleza deslumbrante ou que nela a sensualidade substituísse a beleza, tinha juventude e a vantagem de uma pele particularmente encantadora, tão transparente que as veias se viam esfumadas através dela, embora estivesse agora manchada pelo amarelo daatabrina. As suas feições eram regulares, um pouco miúdas, excepto no respeitante aos olhos, que eram do mesmo castanho macio que os cabelos, grandes e tranquilos, salvo quando se zangava, pois, nessas alturas, os seus olhos chamejavam.

 

Tinha uma silhueta perfeita de enfermeira, muito direita, embora infelizmente o peito fosse pequeno; as pernas eram bem feitas, compridas, elegantes e bem musculadas, de tornozelos e pés delicados; tudo isto em resultado do seu duro trabalho e de movimento constante. Durante o dia, quando usava o vestido de uniforme, as pregas engomadas do seu véu de enfermeira formavam um quadro encantador ao seu rosto; à noite, com as calças, usava um chapeuzinho, mas nunca o trazia dentro da enfermaria. Conseguia trazer o cabelo curto e ondulado, negociando parte do seu quinhão de álcool com uma mulher-cabo que fora cabeleireira na vida civil e arranjava os cabelos das enfermeiras.

 

Esta era a sua superfície. Interiormente era dura como metal, inteligente, muito bem educada numa boa escola feminina.

 

Era decidida, esperta e, apesar de toda a sua bondade e compreensão, sentia-se de certo modo ”de fora”.

 

Pertencia-lhes, dedicara-se-lhes, a esses seus pacientes, mas havia qualquer coisa dentro dela que a fazia sempre manter-se um pouco afastada deles. Uma tolice, mas provavelmente uma parte do segredo da sua atracção por Neil.

 

Não devia ter sido fácil encontrar uma boa forma de relacionamento com soldados para quem ela era uma espécie de reafirmação da existência de uma raça quase esquecida, as mulheres. No entanto ela conseguira-o lindamente, nunca dando a nenhum deles o mais leve indício de interesse sexual ou romântico, fosse qual fosse o nome que lhe quisessem dar. O seu título era enfermeira, eles chamavam-lhe ”enf.”, e era assim que ela sempre se lhes apresentava - como uma irmã, alguém que gostava muito deles, embora não disposta a partilhar com eles a sua vida particular.

 

Entre Neil Parkinson e Honour Langtry existia porém um entendimento. Nunca fora discutido nem sequer abertamente mencionado, mas ambos sabiam que, quando a guerra acabasse e ambos voltassem à vida civil, o relacionamento entre ambos se manteria.

 

Eram ambos de muito boas famílias, haviam os dois sido educados com aquela delicadeza que só o dever não consegue definir, de modo que para qualquer deles era inconcebível que os interesses pessoais se sobrepusessem aos ditames do dever. Na altura em que se conheceram, a guerra impunha uma espécie de relacionamento estritamente profissional, que ambos respeitavam, mas depois da guerra a circunspecção podia ser posta de parte.

 

Era a essa perspectiva que Neil se agarrava, ansiando por esse dia com um sentimento quase doloroso; aquilo com que ele sonhava era virtualmente a realização da sua vida, porque ele amava-a realmente muito. Não era tão forte como ela, ou talvez a sua paixão fosse mais intensa que a dela, porque Neil achava difícil manter as suas relações dentro dos limites fixados por ela. As infracções que cometia nunca iam além de um comentário ou de um olhar; a ideia de a tocar ou de a beijar assustava-o, porque sabia que se o fizesse ela o mandaria embora, paciente ou não paciente. A admissão de mulheres na frente de guerra fora relutantemente aceite e limitava-se às enfermeiras; quanto a Honour Langtry, o exército pusera-a numa posição de confiança, que não lhe permitia qualquer envolvimento íntimo com um homem que era ao mesmo tempo um doente e um soldado.

 

Contudo, ele nunca duvidou da existência do entendimento tácito entre eles; se assim não fosse, se ela não concordasse, ter-lho-ia dito imediatamente, sentindo que era esse o seu dever.

 

Filho único de uma família rica e socialmente importante de Melburne, Neil Longland Parkinson sofrera a génesis peculiar da época no seu país, Austrália: fora moldado para ser um jovem mais inglês que os ingleses. Na sua pronúncia não se notava o mais leve vestígio da sua ascendência australiana; era uma pronúncia tão inglesa e requintada como a de qualquer nobre inglês. Passara directamente da Geelong Grammar School para a Universidade de Oxford, em Inglaterra; tivera de repetir o primeiro ano de História, e desde então poucos meses passara na sua terra natal. A sua ambição era ser pintor, de forma que de Oxford mudara-se para Paris e daí para o Peloponeso, na Grécia, onde se instalou numa vida interessante mas pouco movimentada, animada apenas pelas visitas tempestuosas da actriz italiana que era na altura sua amante mas teria preferido ser sua mulher. Entre esses períodos de stress emocional aprendeu a falar grego tão fluentemente como falava inglês, francês e italiano, pintava freneticamente e considerava-se muito mais um inglês expatriado que um australiano.

 

O casamento não fazia parte dos seus planos, embora estivesse consciente de que mais tarde ou mais cedo teria de pensar nisso; do mesmo modo sabia que estava a adiar todas as decisões sobre o futuro curso da sua vida. Mas para um jovem que ainda não tinha trinta anos parecia-lhe ter à sua frente todo o tempo do mundo.

 

Depois tudo mudou, bruscamente, catastroficamente. Mesmo no Peloponeso já soavam há uns tempos murmúrios da guerra quando recebeu uma carta do pai: uma carta dura e pouco amigável, em que lhe dizia que os dias de ociosidade tinham de terminar, que ele tinha deveres para com a família e a sua posição, que tinha de regressar a casa imediatamente enquanto ainda era possível fazê-lo.

 

Assim, partiu para a Austrália em fins de 1938, chegando a um país que mal conhecia para ver parentes que lhe pareciam tão afastados e desprovidos de carinho como os vitorianos, o que era exactamente aquilo que eles eram - não a rainha Vitória mas o Estado de Vitória.

 

O seu regresso à Austrália coincidiu com o seu trigésimo aniversário, marco miliar de que ainda agora, passados mais de sete anos, não o conseguia lembrar sem um ressurgir do terror medonho que o tinha afligido desde Maio. O pai! Aquele velho impiedoso, encantador, engenhoso, incrivelmente enérgico! Porque não teria ele produzido uma carrada de filhos? Não parecia possível que só tivesse feito um, e tarde, ainda por cima. Que peso ser o filho único de Longland Parkinson. Querer igualar, ou até ultrapassar, o próprio Longland Parkinson!

 

Não era possível, claro. Se ao menos o velho tivesse compreendido que ele próprio era a causa do fracasso do filho! Privado dos antecedentes operários do pai, com toda a amargura e desafio que eles comportavam, carregado com o preciosismo requintado da mãe, Neil soube que era um derrotado desde o dia em que ficou suficientemente crescido para formar uma opinião acerca do seu mundo.

 

Era um adolescente quando compreendeu que gostava muito mais do pai do que da mãe. E isso apesar da indiferença do pai para com ele, da insensata e carinhosa superprotecção da mãe. Fora um alívio enorme partir para o colégio interno e estabelecer um molde com o qual se havia de conformar desde esse primeiro trimestre em Geelong Grammar até ao seu trigésimo aniversário. Perante tal situação, porque tentar uma luta que era manifestamente impossível? Evitá-la, ignorá-la. O dinheiro da mãe fora-lhe entregue na altura da sua maioridade e era mais que suficiente para as suas necessidades. Viveria pois a sua própria vida, longe de Melburne e dos pais, e cavaria a sua própria toca.

 

Mas a iminência da guerra viera destruir tudo aquilo. Afinal havia coisas que não podiam ser evitadas nem ignoradas.

 

O jantar do seu aniversário fora uma coisa esplêndida, muito formal, a lista de convidados generosamente salpicada de jovens que a mãe considerava bons partidos para o filho. Havia dois arcebispos, um da Igreja de Inglaterra e outro católico romano, um ministro de Estado e um da legislatura federal, um médico na moda, o alto-comissário britânico e o embaixador francês. Naturalmente, a mãe fora responsável por todos os convites. Durante a refeição quase não reparou nas raparigas nem nas personagens importantes e pouca atenção deu à mãe. Todo ele estava focado no pai, sentado na outra ponta da mesa, cujos olhos azuis maliciosos tiravam conclusões irreverentes sobre a maioria dos convidados. Neil não sabia como podia adivinhar com tanta precisão o que se passava na cabeça do pai, mas sentia-se invadido por um calor delicioso que o fazia ansiar por uma oportunidade de conversar com o velhote baixinho, que tão pouco contribuíra para a aparência do filho, para além da cor e formato dos olhos.

 

Mais tarde Neil tinha compreendido como era imaturo naquela fase relativamente tardia da sua vida, mas quando o pai enfiou o braço no dele no momento em que os homens foram finalmente ter com as senhoras ao salão, ficou simples e absurdamente deliciado com o gesto.

 

- Eles passam bem sem nós - disse o velho, fungando com ar de desprezo. Vamos desaparecer e dar à tua mãe uma razão de queixa.

 

Na biblioteca cheia de livros encadernados a couro, que ele nunca abrira e muito menos lera, Longland Parkinson instalou-se numa poltrona enquanto o filho preferia atirar-se para uma otomana a seus pés. A luz na sala era fraca, mas nada podia disfarçar as marcas da vida dura no rosto enrugado do velho nem diminuir o impacte de um olhar que era feroz, duro e predatório. Por trás dessa expressão brilhava uma inteligência que vivia independentemente das pessoas, das fraquezas emocionais, dos preconceitos morais. Foi então que Neil traduziu o que sentia pelo pai em termos de amor e se espantou com as suas próprias contradições; porquê escolher amar alguém que não precisava de ser amado.

 

- Não tens sido um grande filho - disse o velho sem rancor.

- Eu sei.

 

-Se soubesse que uma carta te trazia de volta a casa, já a tinha mandado há muito tempo.

 

Neil estendeu as mãos e olhou para elas; compridas, de dedos finos, macias como as de uma rapariga, com aquele aspecto infantil que só provém de nunca as pôr num trabalho com real significado e importância para o cérebro de quem as comanda; porque a sua pintura não tivera para ele essa importância.

 

- Não foi a sua carta que me trouxe para casa - disse lentamente.

 

- Então o que foi? A guerra?

 

- Não.

 

O candeeiro colocado por trás da cabeça do pai iluminava-lhe a careca rosada e atirava todas as sombras sobre o rosto, em que os olhos ardiam mas em que a linha dura da boca permanecia obstinadamente fechada.

 

- Não presto - disse Neil.

 

- Não prestas para quê?

 

Típico do pai: interpretar a afirmação de um ponto de vista dinâmico e não moral.

 

- Sou um péssimo pintor.

 

- Como sabes?

 

- Disseram-me: uma pessoa que sabe. - As palavras começavam a brotar com mais facilidade. - Tinha juntado trabalho suficiente para uma grande exposição. Era assim que queria começar, não com um quadro aqui e outro ali. Bem, escrevi para um amigo meu em Paris, que é dono da galeria onde eu me queria estrear, e como ele estava interessado numas férias na Grécia foi ver o que eu tinha feito. E não ficou nada convencido, é tudo. ”Muito bonito”, disse ele. ”Encantador. Mas não tem originalidade nem força, não tem o sentimento nem o instinto da pintura.” Sugeriu então que eu voltasse os meus talentos para a publicidade artística.

 

Se o velho se sentiu comovido com a tristeza do filho não o mostrou, limitando-se a fitá-lo intensamente.

 

- O exército - disse finalmente - vai fazer-te muito bem.

 

- Vai fazer de mim um homem, é isso que quer dizer?

 

- Para o fazer teria de trabalhar a partir do exterior. Não, o que quero dizer é que pode ajudar aquilo que está dentro de ti a encontrar o caminho cá para fora.

 

Neil estremeceu:

 

- E se não houver nada cá dentro?

 

E o velho encolheu os ombros e teve um pequeno sorriso indiferente.

 

- Nesse caso, não será melhor saber que não há nada lá dentro? Nenhuma palavra foi dita acerca de ele aprender os negócios da família; Neil sabia que uma discussão dessas seria supérflua. De certo modo sentia que o pai não estava preocupado com os negócios; o que lhes aconteceria depois que as suas mãos abandonassem as rédeas não lhe dizia respeito. Longland Parkinson dava tão pouca importância à construção de um império que passasse de geração em geração como dava à mulher e ao filho. Não exigia que o filho desse provas, não sentia qualquer animosidade por o filho não estar à sua altura; não lhe era necessário alimentar o seu ego pedindo ao filho que fosse o que ele era ou fizesse o que ele fazia. Não havia dúvidas que, ao casar com a mãe de Neil, sabia perfeitamente que tipo de filhos ela geraria e não se importara com isso; ao casar com ela estava a meter o nariz na sociedade em que aspirava a entrar pelo casamento.

 

Nisto, como em tudo, Longland Parkinson agia pelo seu próprio prazer, pela sua própria realização.

 

E contudo, ao observar o pai, Neil via que ele sentia amor por ele e uma certa compaixão. O velho sabia simplesmente que Neil não era capaz, e era um bom avaliador de caracteres.

 

E assim Neil entrara para o exército. Quando a guerra rebentou foi colocado num batalhão e enviado para o Norte de África, o que lhe agradou imensamente, sentindo-se melhor ali que no seu país natal, aprendendo o árabe com toda a facilidade e sendo bastante útil. Tornou-se um soldado capaz e consciencioso, e aconteceu-lhe dar provas de uma grande coragem; os soldados gostavam dele, os superiores gostavam dele e, pela primeira vez na vida, ele próprio começou a gostar de si. ”Afinal, sempre há alguma coisa do velho em mim”, disse para consigo exultantemente, ansiando pelo fim da guerra, imaginando-se a voltar a casa amadurecido, limado pelas suas experiências, até uma fina dureza que sentia que o pai havia de reconhecer e admirar. Mais que qualquer outra coisa na vida, desejava que aqueles olhos de ave de rapina olhassem para ele como para um igual.

 

Depois veio a Nova Guiné e depois as Ilhas, um tipo de guerra muito menos do seu agrado que a do Norte de África. Ensinou-lhe que, mesmo quando ele julgara ter completado o seu processo de amadurecimento, estava ainda e só a brincar. A selva fechou-o na concha da mesma forma que o deserto o libertara e esgotou-lhe a alegria. Mas fortaleceu-o também, trouxe-lhe uma teimosa capacidade de aguentar que ele não sabia possuir. Deixou finalmente de desempenhar um papel, de se preocupar com aquilo que os outros pensavam dele, demasiado absorvido em procurar dentro de si os recursos que garantiriam a sua sobrevivência e a dos seus homens.

 

Numa campanha menor, em 1945, infrutífera e extremamente sangrenta, tudo terminara. Cometeu um erro e os seus homens pagaram-no duramente. E toda a sua preciosa autoconfiança se esboroou imediatamente, desastrosamente. Se ao menos o tivessem culpado, se o tivessem responsabilizado por aquilo, ele teria suportado melhor, pensava; mas todos, desde os sobreviventes da companhia até aos seus superiores, o desculpavam! Quanto mais lhe diziam que a culpa não era dele, que ninguém era perfeito, que acontecia a toda a gente poder enganar-se, mais ele se sentia-deprimido. Não tendo nada contra que combater, alheou-se, quebrou e parou.

 

Em Maio de 1945 foi admitido na Enfermaria X. Quando chegou chorava, tão mergulhado no seu desespero que nem sabia nem se importava para onde o levavam. Durante alguns dias deixaram-no fazer o que lhe apetecia, e tudo o que lhe apetecia fazer era esconder-se, tremer, chorar e lamentar-se. Depois a pessoa que se agitava obscuramente em pano de fundo começou a intrometer-se na sua miséria, tornando-se num aborrecimento irritante. Colava-se a ele, teimava, obrigava-o a comer, recusava-se a admitir que havia algo de diferente ou de especial no caso dele, obrigava-o a estar com os outros pacientes quando tudo o que ele queria era fechar-se no seu cubículo, deu-lhe trabalhos a fazer, incitou-o a falar, a princípio sobre coisas sem importância, depois acerca de si mesmo, o que ele preferia imensamente.

 

A consciência das coisas começou a regressar, a princípio pouco nítida, depois bem mais firme. As coisas que não lhe diziam directamente respeito começaram a impor-se-lhe; começou a ver os seus colegas pacientes e a reparar no que o rodeava. Começou a interessar-se pelo fenómeno da Enfermaria X e pela enfermeira Honour Langtry.

 

No espírito dele, ela adquirira um nome e uma identidade. Não que tivesse gostado dela logo desde o início; ela mostrara-se demasiado indiferente à sua raridade. Mas mal ele decidira que Honour era uma típica enfermeira do exército, ela começou a revelar uma bondade e uma ternura tão diferentes da maior parte das suas experiências dos últimos anos que ele se teria deixado afundar nelas se a enfermeira lho tivesse permitido. Mas ela nunca, nunca o fez. Só quando se começou a considerar curado é que sentiu quão subtilmente ela o ajudara durante todo aquele tempo.

 

Não precisara de ser enviado para a Austrália para prosseguir o tratamento. Mas também não foi enviado de volta à sua unidade. Aparentemente preferiam que ele continuasse onde estava; a divisão fora abatida ao serviço activo e não precisavam dele.

 

Em muitos aspectos, o seu repouso forçado na Enfermaria X deliciava-o, porque o mantinha junto da enfermeira Langtry, que nesses dias o tratava mais como colega que como paciente e com quem estava a estabelecer as bases de uma relação que nada tinha a ver com a Enfermaria X. Mas logo que se considerou curado e pronto a retomar o dever, a dúvida começou a roê-lo. Porque não o queriam de volta? Descobriu a resposta sozinho - porque ninguém podia confiar nele, porque se, por alguma razão, a guerra voltasse a rebentar, ele não estaria à altura e mais homens morreriam.

 

Embora todos o negassem, Neil sabia que era esta a verdadeira razão que o mantinha prisioneiro da Enfermaria X passados quase cinco meses. O que não conseguia ainda entender era que a sua neurose se mantinha, manifestando-se principalmente numa extrema falta de confiança em si mesmo. Se a guerra tivesse recomeçado, o mais provável era ter sido chamado novamente e ter-se portado muitíssimo bem. A tragédia de Neil é que a guerra tinha de facto acabado e que já não havia serviço activo.

 

Debruçou-se sobre a secretária para ler o nome nos papéis colocados à frente da enfermeira e fez uma careta:

 

Uma chatice, não é, uma entrada a estas horas?

 

- É um choque, sim. Uma chatice, veremos. Embora ele não me pareça do género de armar sarilhos.

 

Aí estamos de acordo. Um tipo suave. Faz-me pensar num papagaio de anedota.

 

Espantada, ela voltou-se para olhar para ele; Neil não costumava ser tão obtuso nem tão crítico em relação às pessoas.

 

- A mim parece-me uma pessoa bem interessante.

 

Uma irritação tão inesperada como inexplicável surpreendeu-o tanto quanto a ela.

 

- Quê, enfermeira Langtry? - exclamou ele. - Com que então sente-se atraída por ele, ha? Nunca julguei que fosse o seu tipo.

 

A fúria dela transformou-se numa gargalhada.

 

- Não me venha com isso, Neil! Não é digno de si, meu caro amigo. Parece o Luce, e isso não é um elogio. Porque é tão duro para com o pobre diabo?

 

- É só ciúme - disse ele petulantemente, tirando a cigarreira do bolso. Era de ouro maciço, muito trabalhada, e tinha as suas iniciais num canto.

 

Ninguém mais na enfermaria fumava cigarros daqueles, mas também ninguém mais era oficial.

 

Neil abriu a cigarreira e ofereceu-lhe um cigarro, com o isqueiro pronto na outra mão.

 

Ela suspirou, mas tirou um cigarro e segurou-o para ele o acender.

 

- Nunca, nunca deveria deixá-lo oferecer-me um cigarro quando estou de serviço - disse. - A chefe dava cabo de mim. Além disso, tenho de o pôr lá fora daqui a nada. Tenho de estudar os papéis do Michael antes que o coronel ”Chinstrap” chegue.

 

- Oh, Deus! Não me diga que temos de o aturar esta noite. Ela teve uma expressão divertida:

 

Bom, quem tem de o aturar sou eu, não é você.

 

- E o que é que obriga o nosso amado chefe a descer ao povoado numa noite tão escura?

 

- O Michael, claro. Pedi-lhe que viesse, porque não tenho nenhumas instruções acerca dele. Não sei porque é que ele foi colocado na Base 15 nem porque o mandaram para a X. Pessoalmente, sinto-me mistificada. - Suspirou de súbito e espreguiçou-se um pouco. - De certo modo, não foi um dia muito agradável hoje.

 

- Naquilo que me diz respeito, nenhum dia na X é muito agradável - disse Neil sombriamente, debruçando-se para deitar a cinza na gramada vazia que ela usava como cinzeiro. - Estou a enferrujar na X há quase cinco meses, enf. Há outros que vêm e vão, mas eu continuo aqui em permanência.

 

E ali estava ele, o sofrimento da X, nele e nela. Tão triste ter de vê-los sofrer, saber que era incapaz de afastar as causas dos seus sofrimentos, porque estes estavam enraizados nas próprias incapacidades deles. Aprendera dolorosamente que o bem que ela lhes fazia durante a fase mais aguda da doença raramente se estendia ao longo da quase recuperação.

 

- Você teve uma depressãozita - disse ela docemente, consciente de como era fútil aquela consolação.

 

E reconheceu o começo de um ciclo, muitas vezes repetido, de conversas em que ele se autopunia pelas suas fraquezas e ela tentava, geralmente em vão, explicar que não eram necessariamente fraquezas. Neil resmungou:

 

- Já recuperei da minha depressão há séculos, e você sabe-o muito bem. Estendendo os braços, cerrou os punhos até os nós dos dedos ficarem broncos e os músculos salientes, sem saber que era perante estas manifestações de poder físico que ela se sentia violentamente atraída por ele. Se o soubesse poderia ter tido a coragem de avançar para ela, cimentando assim a relação entre eles, de a beijar, de fazer amor; mas em quase nenhuma circunstância o rosto da enfermeira Langtry traía os seus pensamentos.

 

- Talvez eu já não preste como soldado - disse ele -, mas de certeza que há alguma coisa em que eu poderia ser útil. Oh, enfermeira, sinto-me tão, tão farto da Enfermaria X. Não sou um doente mental.

 

O apelo comoveu-a; os apelos daqueles homens comoviam-na sempre, mas os deste muito especialmente, teve de baixar a cabeça e fechar os olhos:

 

Não pode durar muito mais tempo. A guerra acabou, e em breve irá para casa. Sei que ir para casa não é a solução que você deseja e até compreendo a razão por que a receia. Mas tente acreditar em mim quando lhe digo que quando o cenário mudar e tiver montes de coisas a fazer você se vai adaptar num instante.

 

- Como posso eu voltar para casa? Há viúvas e órfãos por minha culpa. Que é que faço se encontrar a viúva de um daqueles homens? Fui eu que os matei. Que é que lhe posso dizer? Que posso fazer?

 

- Sei que faria e diria a coisa certa. Deixe-se disso, Neil. Isso não passa de fantasmas que você anda a explorar para se atormentar a si mesmo, porque não tem grande coisa a fazer aqui na X. Detesto ter de dizer-lhe que deixe de ter pena de si mesmo, mas é isso mesmo que você está a fazer.

 

Ele não estava disposto a dar-lhe ouvidos, instalando-se no seu mau humor com uma espécie de prazer perverso.

 

- A minha incompetência foi directamente responsável pela morte de mais de vinte dos meus homens. Não há nada de fantasmagórico nas viúvas e nos filhos deles, posso garantir-lhe - disse ele em voz fria.

 

Havia muitas semanas que ela não o via tão em baixo; a chegada de Michael, provavelmente. Ela sabia que o comportamento dele nessa noite não estava directamente relacionado com ela; a chegada de um novo homem perturbava sempre os antigos. E Michael era um caso especial - não era fácil de dominar nem se dobrava perante o gosto de mandar de Neil. Porque Neil tinha tendência para dominar a enfermaria, para ditar a política a aplicar aos pacientes.

 

- Tem de esquecer isso, Neil! - disse ela rispidamente. - Você é um óptimo tipo e um excelente oficial. Durante cinco anos ninguém fez melhor trabalho que você. Agora oiça-me. Não está sequer provado que tivesse sido o seu erro que realmente tenha causado a perda de vidas. Você é um soldado e sabe como a acção é complicada. E já passou! Os homens morreram. É evidente que o mínimo que lhes deve é viver com toda a força do seu coração. Que bem é que pode fazer a essas viúvas e órfãos estando para aqui sentado a lamentar-se a si e não a eles? Não há nenhuma garantia escrita que a vida corra como nós gostaríamos que ela corresse. Temos de aguentá-la, seja ela boa ou má. E você sabe-o muito bem. Basta!

 

Nitidamente mais bem-disposto, Neil sorriu, agarrou-lhe na mão e apoiou o queixo nela.

 

- Está bem, enf., mensagem recebida. Vou tentar ser bom menino. Não sei como é que você consegue, mas acho que é mais a sua cara que as suas palavras. Consegue sempre afastar as tristezas. E se soubesse a diferença que faz à minha estada na X. Sem você... - encolheu os ombros - oh, não imagino como seria a X.

 

Ele tinha dito que ela conseguia sempre afastar as tristezas. Mas como, porquê? Não bastava fazer bem; a sua inteligência precisava de saber qual era a fórmula mágica, e esta escapava-lhe sempre.

 

De sobrolho franzido, pôs-se a olhar para ele, pensando se seria prudente encorajá-lo assim. Oh, ser capaz de separar completamente os sentimentos pessoais e o dever! Ao interessar-se por ele, não estaria de facto a fazer a Neil mais mal que bem? Por exemplo, parte daquela conversa não teria sido para chamar a atenção dela? Sentir mais pelo homem que pelo paciente destruía a verdadeira perspectiva, dava consigo a estudar linhas de acção que tinham mais a ver com o futuro que com o presente, quando era a situação presente que devia ocupar toda a sua atenção e energia. Era claro que era deliciosa a perspectiva de uma relação com Neil em tempo de paz, pensando no primeiro beijo e em se devia ou não casar com ele, mas era errado pensar naquilo agora. Errado, errado!

 

Como homem achava-o atraente, excitante, interessante. O mundo dele era o mundo dela, o que tornava lógica a amizade entre eles. Ela gostava do aspecto dele, das suas maneiras, da sua educação, dos seus antecedentes familiares. E mais ainda gostava do tipo de homem que ele era - exceptuando aquela perpétua obsessão que o dominava. Quando ele persistia em regressar ao dia do morticínio, como se este colorisse para sempre o resto da sua vida com as cores do luto, ela punha em causa a viabilidade de uma relação com ele em tempo de paz. Porque não estava disposta a gastar-se com um deficiente emocional por muito compreensível que fosse essa deficiência. Ela queria, precisava de alguém capaz de estar com ela em pé de igualdade, não de alguém que se apoiasse nela, adorando-a ao mesmo tempo como a uma deusa.

 

É para isso que eu aqui estou, para afastar as tristezas - disse em tom ligeiro, retirando a mão de uma maneira que não lhe podia ferir os sentimentos. Os papéis de Michael continuavam debaixo da sua outra mão; pegou neles. Lamento ter de interromper a conversa, Neil, mas tenho trabalho.

 

Ele pôs-se em pé, olhando para ela ansiosamente.

 

- Depois vai-nos ver, não vai? Esta nova admissão não a impede de ir, pois não? Ela ergueu os olhos, surpreendida.

 

- Nada pode impedir-me disso. Já viu alguma vez eu falhar o último copo na enfermaria? - perguntou, sorrindo-lhe, e depois debruçou-se sobre os papéis de Michael.

 

O coronel Wallace Donaldson dirigiu-se para a ponta do recinto, iluminando-o com uma lanterna eléctrica e sentindo-se muito irritado. Parecia realmente impossível! Nesses dias de paz, quando já não havia blackout, o superintendente nem sequer arranjava uma pequena iluminação exterior. De facto todo o hospital jazia mergulhado nas trevas, pois estava desabitado, não se reflectindo na sua fachada uma única luz.

 

No decorrer dos últimos seis meses, o hospital militar da Base 15 diminuíra terrivelmente no número dos seus habitantes, embora não em área; lembrava um homem muito gordo que tivesse emagrecido mas que continuava condenado a usar as roupas de quando era gordo. Os Americanos tinham-no construído cerca de doze meses antes, mas haviam partido quase imediatamente, deixando-o, ainda por acabar e só em parte mobilado, aos Australianos, que atravessavam as índias Orientais mais em direcção a oeste.

 

Nos seus tempos áureos conseguira agrupar quinhentos pacientes dentro da sua área e tivera ao seu serviço trinta médicos mais cento e cinquenta enfermeiras, todos tão ocupados que as licenças eram um sonho longínquo. Agora restavam apenas uma meia dúzia de enfermeiras ocupadas. E a Enfermaria X, claro, lá ao fundo, na borda da floresta de palmeiras, que em tempos constituíra uma pequena fortuna em copra para o seu proprietário holandês. Dos trinta médicos restavam apenas cinco cirurgiões e cinco médicos de clínica geral ou especializados e um único patologista. As enfermeiras que vagueavam pelas imensas salas vazias não chegavam a trinta.

 

Quanto ao neurologista, o coronel Donaldson fora para a Enfermaria X quando a Base 15 passou para as mãos dos Australianos; era sempre ele quem herdava o punhado de doentes emocionalmente perturbados que surgiam ao cimo das outras enfermarias, e que, depois de coados, acabavam na Enfermaria X.

 

Antes da guerra, o coronel Donaldson tivera um consultório em Macquarie Street, onde se esforçara por se tornar um dos mais prestigiados e caprichosos especialistas da classe médica de Sydney. Uma especulação bafejada pela sorte em

1937, quando o mundo tentava arrastar-se para fora da Depressão, dera-lhe o dinheiro para poder instalar-se por conta própria em Macquarie Street, e os grandes honorários dos hospitais principais começavam a entrar-lhe nos bolsos quando Hitler invadiu a Polónia. Nessa altura tudo mudou; às vezes pensava se alguma vez as coisas voltariam a ser como eram antes de 1939. Vistas daquele inferno que era a Base 15, o último de uma sucessão de infernos, não parecia possível que alguma vez as coisas voltassem ao que eram. Inclusive ele próprio.

 

Socialmente os seus antecedentes eram excelentes, embora durante a Depressão as reservas de dinheiro da família tivessem diminuído assustadoramente. Felizmente tinha um irmão na Bolsa, que contribuiu largamente para a recuperação da família, tal como Neil Parkinson, falava sem o menor sotaque australiano; a sua escola fora Newington, a sua universidade Sydney, mas todas as suas qualificações de pós-graduação haviam sido obtidas em Inglaterra e na Escócia e ele gostava de pensar que era mais inglês que australiano. Não que tivesse propriamente vergonha de ser australiano; era antes melhor ser inglês.

 

Se ele tinha algum odiozinho particular, era para com a mulher que ia visitar agora: a enfermeira Honour Langtry. Uma pretensiosa, ainda nem teria trinta anos, enfermeira profissional mas sem treino de tropa, embora soubesse que ela estava no exército desde 1940. A mulher era um enigma; falava muito bem, tinha obviamente cultura e educação e formara-se na escola de enfermagem do PA, que era realmente um óptimo hospital. E contudo não dava mostras de humildade, daquela deferência que mostraria ter consciência de que o seu estatuto era basicamente o de um subalterno. Se o coronel fosse honesto para consigo, teria admitido que ela o assustava de morte. De cada vez que se ia encontrar com ela tinha de se encher de coragem mental e espiritualmente. Ela acabava sempre por entrar tão brutalmente nos seus privilégios que lhe levava horas a ser ele próprio de novo.

 

A própria cortina feita de cápsulas de cerveja conseguia irritá-lo. Só a Enfermaria X podia ter uma coisa daquelas, mas a enfermeira-chefe, por muito autoritária que fosse, pisava sempre com cautela o chão da Enfermaria. Nos começos da enfermaria, um paciente, farto de ouvir a chefe criticar a enfermeira Langtry, ocupara-se dela de uma forma simples e eficaz: estendera a mão e rasgara-lhe o uniforme de cima a baixo. Estava louco, claro, e fora imediatamente enviado para a Austrália, mas depois desse incidente a enfermeira-chefe tinha sempre muito cuidado em não ofender os homens da Enfermaria X.

 

A luz do corredor revelou que o coronel Wallace Donaldson era um homem alto e elegante, de cerca de cinquenta anos, com a pele manchada do amador de bebidas alcoólicas. Tinha um bigode cinzento-ferro bem aparado, de proporções militares, embora o resto do rosto estivesse bem barbeado. Agora que estava sem boné, o cabelo apresentava um sulco profundo na sua superfície oleada, no sítio onde o boné se apoiava, pois o cabelo não era espesso nem saudável. Os olhos eram azuis-claros e um pouco protuberantes, mas havia ainda nele uns restos da beleza juvenil e a sua silhueta era boa, de ombros largos e quase sem barriga. Num fato clássico de bom corte, seria um homem imponente; num uniforme também impecavelmente cortado parecia-se mais com um marechal que qualquer dos marechais verdadeiros.

 

A enfermeira Langtry foi ao seu encontro, levou-o até ao gabinete e esperou que ele se sentasse confortavelmente na cadeira dos visitantes, enquanto ela própria permanecia em pé - um dos truquezinhos dela, pensou ele cheio de ressentimento. Era a única maneira de ela poder ser mais alta que ele.

 

- Desculpe tê-lo arrastado até aqui, coronel, mas este tipo - ergueu os papéis - entrou hoje e, como não recebi ordens suas, deduzi que não estava ao corrente da chegada dele.

 

- Sente-se, enfermeira, sente-se! - disse ele exactamente no mesmo tom que teria usado para com um cão desobediente.

 

Ela sentou-se sem mudar de expressão, fazendo lembrar, nas suas calças e casaco cinzentos, um jovem cadete. O primeiro round tora para a enfermeira Langtry. Provocara-o e obrigara-o a ser grosseiro.

 

Ela entregou-lhe os papéis sem dizer palavra.

 

- Não, não quero ver agora os papéis dele - disse como que a experimentá-la. - Resuma-me o que se passa.

 

A enfermeira Langtry olhou para ele sem ressentimento. Depois de ter visto o coronel pela primeira vez, Luce pusera-lhe uma alcunha - coronel Chinstrap (i) - e, como lhe assentava tão bem, a alcunha tinha pegado. Ela perguntava a si mesma se ele saberia que todo o elemento humano da Base 15 lhe chamava coronel Chinstrap nas costas dele, e chegou à conclusão de que não. Não poderia ter passado por cima de uma alcunha tão pejorativa.

 

-Sargento Michael Edward Wilson - disse ela calmamente -, a quem tratarei por Michael daqui em diante. Vinte e nove anos, no exército desde o princípio da guerra, Norte de África, Síria, Nova Guiné, Ilhas. Viu muita acção, mas não tem sintomas de instabilidade mental devido ao que viu. De facto, é um soldado excelente e corajoso, e recebeu a DMC. Há três meses, o seu único amigo íntimo foi morto num recontro bastante duro com o inimigo e depois disso ele ficou cada vez mais metido consigo.

 

O coronel suspirou, com ar de aborrecimento.

 

- Oh, continue por favor, enfermeira. Ela continuou sem hesitação:

 

- O Michael foi suspeito de sofrer de perturbações mentais após um incidente desagradável há cerca de uma semana. Houve uma luta entre ele e outro oficial, procedimento muito invulgar em qualquer deles. Se não estivessem outros oficiais

 

(Nota:) Chiinxtrap: correia do capacete. (N. da T.)

 

presentes para os separar, é provável que o outro oficial estivesse morto a estas horas. O único comentário de Michael desde o incidente é que desejava matar o homem e o teria morto. Repetiu isto bastantes vezes, sem no entanto dizer mais grande coisa. Quando o comandante tentou descobrir o que havia por trás daquilo, Michael recusou-se a responder. Contudo, o outro oficial estava furioso. Acusou o Michael de lhe ter feito propostas homossexuais e insistiu em levá-lo a tribunal marcial. Parece que o amigo de Michael que morrera tinha realmente tendências homossexuais, mas as opiniões dividiam-se quanto à atitude de Michael. O oficial agredido e os seus amigos afirmavam que os dois eram amantes, mas a maioria dos homens da companhia defendiam com a mesma firmeza que a atitude do Michael para com o amigo era apenas de protecção e amizade.

 

”O comandante do batalhão conhecia muito bem os três homens, pois todos estavam no batalhão há muito tempo: Michael e o morto desde o princípio e o outro oficial desde a Nova Guiné. E a opinião do comandante foi de que de forma alguma Michael devia ir a tribunal marcial. Preferia pensar que Michael tinha sofrido uma perturbação temporária e ordenou-lhe que se submetesse a um exame médico, cujos resultados indicaram que ele estava realmente mentalmente perturbado, seja qual for o significado disso. - A voz dela soava nitidamente mais triste, mais preocupada. - De modo que o meteram num avião e o mandaram para aqui. O oficial de admissões colocou-o automaticamente na X.

 

O coronel Chinstrap franziu os lábios e observou a enfermeira Langtry. Lá estava ela outra vez a optar por um dos lados, o que era um hábito dela muito lamentável.

 

Verei o sargento Wilson amanhã na minha consulta. Pode levá-lo lá, enfermeira. - Olhou para a fraca lâmpada colocada sobre a secretária. - Nessa altura vejo os papéis dele. Não sei como pode ler com esta luz: eu não podia de certeza. - A cadeira estava a tornar-se muito dura, desconfortável, passou de uma nádega para a outra, resmungou, franziu o sobrolho. - Odeio casos com conotação sexual - disse de repente.

 

A enfermeira Langtry brincava distraidamente com um lápis e as suas mãos cerraram-se sobre ele convulsivamente.

 

O meu coração sangra por si, coronel - disse, sem tentar disfarçar o sarcasmo. - O sargento Wilson não pertence à X, de facto não pertence a qualquer enfermaria de qualquer hospital. - A voz tremeu-lhe e passou uma mão impaciente pelo cabelo, despenteando um pouco os caracóis castanhos. - Penso que é muito triste que uma disputa e uma acusação altamente suspeita possam dar cabo da vida de um jovem já abalado pela morte de um amigo. Não posso deixar de pensar naquilo que ele deve estar a sentir neste momento, tenho a certeza que ele se sente como se estivesse metido no meio do nevoeiro, sem saber como sair dele. Eu falei com ele, o senhor não. E não há nada de errado nele, nem mentalmente, nem sexualmente, nem em nenhum outro aspecto. O oficial médico responsável por o ter mandado para aqui é que devia ir a tribunal marcial!

 

Negar ao sargento Wilson a oportunidade de se justificar mandando-o para um lugar como a Enfermaria X é uma vergonha para o exército!

 

Como sempre, o coronel sentiu-se incapaz de lidar com aquela insolência, porque, no exército, normalmente os homens que estavam numa posição tão elevada como a dele nunca a encontravam. Raios, ela falava com ele como se se considerasse ao seu nível cultural e intelectual! Talvez fosse o facto de aquelas enfermeiras terem o estatuto de oficiais que estivesse errado, isso e o alto grau de autonomia de que gozavam em sítios como a Base 15. E aquela estupidez dos malditos véus que as enfermeiras usavam ainda pioravam mais as coisas. Só as freiras deviam usar véus.

 

Ora, ora, enfermeira - disse ele, tentando dominar o seu mau humor e ser razoável. Concordo que a situação é de certo modo invulgar, mas a guerra acabou. A estada do rapaz aqui não pode ser de mais que umas semanas. E pode crer que podia estar pior instalado que na Enfermaria X.

 

O lápis voou pelo ar, bateu num canto da secretária e caiu com um ruído cavo mesmo ao lado do coronel, que perguntou a si mesmo se a pontaria dela seria má ou boa. Segundo as regras, devia fazer queixa dela à enfermeira-chefe; como directora do sector de enfermagem, a enfermeira-chefe era o único oficial autorizado a disciplinar o pessoal de enfermagem. Mas o problema é que desde o incidente do uniforme rasgado a enfermeira-chefe demonstrava um grande respeito pela enfermeira Langtry. Senhores, que complicações provocaria se se queixasse!

 

A Enfermaria X é um limbo exclamou a enfermeira Langtry, zangada como ele nunca a tinha visto.

 

Sentiu a sua curiosidade excitada: o caso do sargento Michael tivera um efeito extraordinário sobre ela. Afinal talvez fosse interessante a consulta na manhã seguinte.

 

Ela continuou, alimentando a raiva com as suas próprias palavras:

 

A Enfermaria X é um limbo. Quando não se sabe o que fazer com um paciente manda-se para a X e esquece-se. O senhor é um neurologista. Eu sou uma enfermeira generalista. Nenhum de nós tem a mínima qualificação ou experiência. O senhor sabe o que fazer com estes homens? Eu não sei, coronel! Esforço-me. Tento o mais possível, mas tenho a certeza, infelizmente, que está longe de ser bom o que faço. Chego ao serviço todas as manhãs a rezar: a rezar para conseguir chegar ao fim do dia sem magoar nenhum destes homens frágeis e difíceis. Os meus homens da Enfermaria X merecem mais que aquilo que o senhor ou eu lhes podemos dar.

 

- Basta, enfermeira! - disse o coronel, com o rosto a tingir-se de vermelho.

 

Oh, mas eu ainda não acabei disse ela sem se deixar impressionar. Quer que deixemos o sargento Wilson inteiramente fora disto? Consideremos os outros cinco ocupantes actuais da Enfermaria X. O Matt Sawyer foi transferido para aqui da Neurologia quando não conseguiram encontrar nenhuma lesão física que explicasse a sua cegueira. Diagnóstico: histeria. O senhor mesmo foi um dos signatários. O Nugget Jones foi transferido das Abdominotorácicas, depois de duas laparatomias e uma história de estar a pôr toda a enfermaria louca com as suas queixas. Diagnóstico: hipocondria. O Neil (quero dizer, o capitão Parkinson) tinha uma simples depressão a que melhor se podia chamar tristeza. Mas o comandante pensa que está a protegê-lo mantendo-o sem fazer nada mês após mês. Diagnóstico: melancolia evolutiva. O Benedict Maynard ficou doido quando a sua companhia abriu fogo sobre uma aldeia onde veio a descobrir-se que não havia um só japonês, apenas mulheres, crianças e velhos indígenas. Como tinha um pequeno ferimento na cabeça, foi admitido em neurologia com diagnóstico de traumatismo e depois transferido para aqui. Diagnóstico: demência precoce. Concordo com esse diagnóstico, de resto. Mas significa que Ben devia estar nas mãos de especialistas na Austrália, com tratamento adequado. E o Lucc Daggett, porque é que ele está aqui exactamente. Nos seus papéis não consta nenhum diagnóstico. Mas ambos sabemos porque é que ele está cá. Porque andava a fazer chantagem com o comandante, obrigando-o a fazer precisamente aquilo que ele muito bem entendia. Mas não conseguiram provar a acusação. Como não sabiam o que haviam de fazer com ele, mandaram-no para aqui até a guerra acabar.

 

O coronel pôs-se em pé de um salto, roxo de raiva:

 

- Está a ser impertinente, enfermeira!

 

- Pareço-lhe impertinente? Peço-lhe que me desculpe, coronel - disse ela retomando aquela calma que a caracterizava normalmente.

 

Já com a mão na porta, o coronel voltou-se para olhar para ela.

 

- Às dez da manhã no meu consultório com o sargento Wilson, e não se esqueça de o acompanhar. - Os olhos brilhavam-lhe. Procurou qualquer coisa insultuosa para dizer, uma palavra capaz de penetrar naquela fachada inexpugnável. - Acho estranho que o sargento Wilson, um soldado aparentemente exemplar, várias vezes condecorado, seis anos na linha de combate, não tenha conseguido uma promoção acima de sargento!

 

A enfermeira Langtry teve um sorriso muito doce:

 

-Coronel, nem todos podemos ser grandes chefes brancos! Alguém tem de fazer o trabalho sujo.

 

Após a partida do coronel, a enfermeira Langtry deixou-se ficar sentada à secretária, vagamente enjoada em consequência da sua exaltação; um leve suor frio cobria-lhe a testa e o lábio superior. Estúpido gritar assim com um homem. Não ganhava nada com isso. Servia apenas para revelar os seus sentimentos íntimos, quando ela preferia que ele os ignorasse. E onde estava o autodomínio que normalmente a fazia sempre sair vitoriosa dos seus encontros com o coronel? Uma perda de tempo falar àquele homem da Enfermaria X e das suas vítimas. Não se lembrava sequer de se ter zangado tanto com ele. Fora aquela história a causadora de tudo, claro. Se ele tivesse chegado um pouco mais tarde, dando-lhe tempo de controlar as suas emoções, não teria perdido a cabeça. Mas chegara poucos segundos depois de ela ter acabado de ler os papéis de Michael.

 

Fosse quem fosse o oficial médico que tinha descrito o caso de Michael - e ela não conseguia ligar a assinatura a nenhum rosto conhecido -, era um bom escritor. Enquanto lia as notas, as pessoas em causa ganhavam vida. Especialmente Michael já era para ela um ser vivo. Aquele breve encontro na enfermaria dera azo a muitas especulações, mas nenhuma podia rivalizar com a história verdadeira. Que horror devia ter sido para o pobre rapaz, e que injustiça! Como devia sentir-se infeliz! Sem compreender o que estava a fazer, enquanto lia os papéis ia tecendo junto à história de Michael a sua própria história; tinha-tanta pena de Michael pela perda do seu amigo que um nó na garganta mal a deixava engolir, e sentia o peito oprimido de dor. E foi nessa altura que entrou o coronel Chinstrap, e apanhou com as consequências.

 

”Estou a ficar apanhada pela Enfermaria X”, pensou; ”cometi todos os pecados que constam do manual da enfermaria nestes últimos minutos, desde a atitude emocional à insubordinação grosseira.”

 

Mas era a recordação do rosto de Michael. Ele podia aguentar, estava a aguentar, até o facto da sua admissão na Enfermaria X. Normalmente sofria pelas inaptidões dos seus pacientes, e agora ali estava ela completamente transtornada pelo caso de um homem que manifestamente não precisava do seu apoio. Havia nisso um aviso. Uma das defesas principais que ela tinha contra o envolvimento pessoal com os seus pacientes era pensar neles como doentes, tristes, frágeis, tudo condições que os diminuíam como homens. Não que tivesse medo dos homens ou do envolvimento pessoal. Só que, para poder dar o seu melhor, uma boa enfermeira tinha de se manter de fora. Não endurecida contra as emoções; endurecida contra uma relação homem-mulher. Já era bastante mau quando isso acontecia durante os cuidados médicos, mas com pacientes com perturbações mentais era desastroso. Neil custara-lhe muita reflexão e ainda não tinha a certeza de ter feito bem em permitir-se pensar em vê-lo quando voltassem a casa. Dissera a si mesma que estava tudo certo porque ele estava praticamente curado, porque a existência da Enfermaria X chegava ao fim e porque ela controlava ainda bastante bem a situação para poder considerá-lo um pobre homem frágil, se tal fosse necessário.

 

”Sou apenas humana”, pensou. ”Nunca me esqueci disso, nunca. E é tão difícil!”

 

Suspirou, espreguiçou-se, afastou do pensamento Neil e Michael. Era cedo de mais para ir à enfermaria; a sua respiração e cor ainda não estavam normais. O lápis - onde tinha caído o lápis quando o atirara ao coronel? Que incrivelmente limitado aquele homem podia ser! Não sabia quão perto tinha estado de uma explosão com aquele comentário de que Michael não tinha sido promovido. Onde é que o homem tinha estado nos últimos seis anos? A enfermeira Langtry pouco conhecia dos outros exércitos, mas após seis anos a tratar de australianos estava bem consciente de que o seu país tinha produzido alguns homens muito especiais - homens inteligentes, com o dom do comando e todas as outras qualidades associadas aos oficiais do exército, mas que recusavam firmemente a passar de sargentos. Provavelmente tinha alguma coisa a ver com a consciência de classe, embora de forma alguma num sentido negativo. Como se se sentissem satisfeitos por estarem onde estavam e não vissem vantagem nenhuma em subirem de posto. E se Michael Wilson não pertencia a esse grupo especial de homens, então a experiência que ela tinha de soldados levara-a a conclusões muito mais erradas que esta.

 

Nunca ninguém teria falado ao coronel de homens como Michael? Não seria ele capaz de perceber sozinho? Era óbvio que não, a não ser que aquilo tivesse sido um mero pretexto para a irritar. Maldito coronel Chinstrap. A maneira como ele pronunciava as vogais era inacreditável, ainda mais torneadas que as de Neil. Era estúpido ter-se zangado tanto com ele. Ele era digno de compaixão. A Base 15 ficava a uma grande distância de Macquarie Street e aquilo não era a zona dele. O homem não era malparecido e provavelmente debaixo do seu uniforme aperaltado havia os mesmos anseios e necessidades dos outros homens. Corria o boato de que ele tinha uma ligação com a enfermeira Heather Connolly havia muitos meses. Bom, a maioria dos OM tinha aventuras, e com quem poderiam ter aventuras senão com as enfermeiras? Que lhe fizesse bom proveito.

 

O lápis estava debaixo da mesa, na ponta mais afastada; a enfermeira Langtry foi buscá-lo de gatas, colocou-o no sítio e voltou a sentar-se. De que diabo falaria Heather Connolly com o coronel? O mais provável era que falassem. Ninguém passava todos os momentos com um amante em práticas de amor. No seu consultório de neurologista, em tempos de paz, o grande interesse de Wallace Donaldson fora uma série obscura de doenças espinais com nomes absolutamente impronunciáveis e cheios de hífens; talvez falassem disso e lamentassem a ausência de obscuras doenças espinais num hospital onde, quando as espinhas eram tratadas, era por causa dos grosseiros e indignos ferimentos causados por balas ou por schrapnel. Talvez falassem da mulher dele, que mantinha o fogo sagrado ardendo nos lares de Vaucluse ou de Bellevue Hill. Os homens tinham tendência para falar das mulheres às amantes, como gostavam de discutir os méritos de um amigo com outro amigo, lamentando a falta de oportunidade para os pôr em contacto. Os homens tinham sempre a certeza absoluta de que as mulheres e as amantes haveriam de ser grandes amigas se as regras sociais o permitissem. Bom, era lógico. Pensar diferentemente podia ter implicações nefastas no juízo e na escolha que faziam das mulheres.

 

O homem dela tinha feito isso, lembrou-se ela com um certo desgosto. Falara incessantemente da mulher, deplorara o facto de as convenções não lhes permitirem encontrarem-se, certo de que ambas se adorariam. Depois das três primeiras frases com que descrevera a mulher, Honour Langtry teve a certeza de que a detestaria. Mas é claro que tinha demasiado bom senso para dizer tal coisa.

 

Há quanto, quanto tempo isso fora! O tempo, que não podia ser medido em segundos, minutos e horas, mas crescia em saltos e sacões como um insecto gargantuesco saindo de crisálidas sucessivas, emergindo sempre diferente e sentindo-se sempre diferente num mundo de aspecto e sensações diferentes.

 

Ele fora também um especialista, no primeiro hospital em que ela estivera, em Sydney. Dermatologista - uma especialidade muito recente. Alto, moreno, bonito, de trinta e tal anos. Casado, claro. Se não se conseguia apanhar um médico enquanto ele ainda era assistente, nunca mais se apanhava. E ela nunca interessara muito os assistentes, que preferiam coisas mais bonitas, mais vivaças, e mais cabeças ocas. Só lá para os trinta e tal anos é que começavam a aborrecer-se da escolha feita aos vinte.

 

Honour Langtry fora uma jovem séria, sempre no topo da sua classe. Do género que leva sempre as pessoas a perguntarem porque teria ela escolhido a enfermagem em vez da medicina, embora a medicina fosse uma profissão dura para uma mulher. Provinha de uma abastada família de lavradores e a sua educação fora feita numa das melhores escolas femininas de Sydney. A verdade é que tinha escolhido a enfermagem porque queria ser enfermeira, não percebendo muito bem antes de começar a razão dessa escolha, mas percebendo o bastante para saber que era a proximidade física e emocional com as pessoas aquilo que desejava e que a enfermagem lhe podia dar isso. Como a enfermagem era considerada a mais admirável e senhoril das profissões femininas, os pais tinham ficado satisfeitos e aliviados quando ela rejeitou a proposta deles de cursar medicina se fosse isso o que realmente desejava. Mesmo quando recém-formada - chamavam-lhes praticantes -, não usava óculos nem era pretensiosa ou agressiva acerca da sua inteligência. Tanto na escola como em casa tivera sempre uma vida social activa, sem compromissos com nenhum jovem em especial, e durante os quatro anos do curso de enfermagem levara o mesmo género de vida ia a todos os bailes, nunca ficava no canto, ia tomar café ao Repins com vários amigos ou ao cinema. Mas nunca tivera um compromisso sério. A enfermagem fascinava-a mais.

 

Depois de formada, foi colocada numa das enfermarias de mulheres no PA e foi aí que conheceu o dermatologista, que também era um recém-chegado ao hospital. Deram-se bem logo de princípio e ele gostou da maneira rápida como ela lhe respondia; ela compreendeu isso quase imediatamente. O que lhe levou mais tempo a compreender foi que ele se sentia atraído por ela como mulher. Quando o percebeu estava apaixonada por ele.

 

Ele pediu a um amigo solteiro, advogado, o apartamento que este possuía num dos altos edifícios ao fundo de Elizabeth Street e pediu a Honour Langtry que se fosse encontrar lá com ele. E ela concordou, sabendo exactamente o que a esperava. Ele tivera o cuidado de lho dizer, usando de uma franqueza que ela achara maravilhosa.

 

Nunca se divorciaria da mulher para casar com ela, disse-lhe, mas amava-a e desejava ardentemente uma ligação com ela.

 

Fundada em bases honestas, a ligação afundou-se com a mesma honestidade doze meses depois. Encontravam-se sempre que ele conseguia arranjar uma desculpa, o que nem sempre era fácil; os dermatologistas não têm urgências como os cirurgiões ou os obstetras. Como ele dizia com humor, onde já se viu um dermatologista ser acordado às três da manhã para tratar um caso crítico de acne? Para ela também não era fácil arranjar tempo, porque era apenas uma estagiária e não podia pedir qualquer tratamento preferencial. No tempo que durou a ligação conseguiram encontrar-se no máximo uma vez por semana, e também houve ocasiões em que estiveram três ou quatro semanas sem se poderem ver.

 

Impressionou bastante Honour Langtry o facto de se considerar não uma esposa mas uma amante. Ser esposa era claro e seguro. Mas em todas as amantes havia uma aura de encanto e mistério. Contudo, a realidade não correspondia. Os seus encontros eram breves e furtivos; era desconcertante descobrir que passavam o tempo todo a fazer amor sem conseguirem uma forma mais inteligente de comunicação. Não que lhe desagradasse fazer amor ou que achasse uma actividade indigna. Aprendeu rapidamente com ele e era bastante inteligente para adaptar-se e modificar-se de forma a satisfazê-lo sempre sexualmente e a ter também prazer. Mas as pequenas pistas que ele lhe fornecia para chegar ao seu íntimo nunca puderam ser seguidas por falta de tempo.

 

E depois, um dia, ele fartou-se dela. Disse-lho imediatamente, sem procurar desculpar-se. Do mesmo modo tranquilo, ela aceitou o facto, pôs o chapéu e as luvas e saiu da vida dele. Uma pessoa diferente.

 

Sentira-se magoada; doera-lhe muito. E o pior era não saber realmente porquê; porque tinha começado para ele, porque decidira terminar. Nos seus momentos mais optimistas dizia a si mesma que a razão estava no facto de ele gostar demasiado dela e não conseguir suportar a transitoriedade da sua relação. Nos momentos de maior honestidade sabia que a razão real era uma combinação da incomodidade e do tédio que a ligação começava a assumir. Razões idênticas às que o haviam levado a começar a ligação. E ela sabia que havia outra razão: a mudança da sua própria atitude para com ele, o ressentimento que cada vez mais dificilmente escondia pelo facto de ela pouco mais ser para ele que qualquer outra pessoa. Para o manter apaixonado para sempre teria tido de lhe dedicar todo o seu tempo e energia, como muito possivelmente fazia a esposa legítima.

 

Bom, a ligação não merecia esse grau de acrobacia feminina. Tinha mais que fazer na vida que devotar-se exclusivamente a um homem egocêntrico e egoísta. Embora a maioria das mulheres parecesse querer viver dessa maneira, Honour Langtry sabia que não era o género dela. Não tinha nada contra os homens; só que sentia que seria um erro casar.

 

Continuara assim com a sua enfermagem e encontrou nela um prazer e uma satisfação que o amor nunca lhe dera. Adorava realmente a enfermagem. Adorava a confusão, o trabalho, a constante mudança de caras, os problemas absorventes que a vida na enfermaria lhe punha sem cessar. Os seus amigos, e tinha muitos, olhavam para ela e abanavam a cabeça. A pobre Honour fora realmente mordida pelo bichinho da enfermagem, disso não restavam dúvidas.

 

Viriam provavelmente a surgir outros casos de amor e talvez um suficientemente profundo para a fazer mudar de ideias quanto ao casamento. Mas a guerra rebentou. Com vinte e cinco anos, foi uma das primeiras enfermeiras a apresentar-se como voluntária, e desde o momento em que entrou no exército deixou de ter tempo para pensar em si mesma. Servira em vários hospitais de campanha no Norte de África, na Nova Guiné e nas Ilhas, o que destruíra efectivamente todos os vestígios da normalidade. Oh, que vida aquela! Um turbilhão tão fascinante, tão estranho em muitos aspectos que ela sabia que nada, depois, se lhe poderia comparar. As enfermeiras no serviço activo constituíam um grupo muito especial, e Honour Langtry pertencia de alma e coração a esse grupo.

 

Contudo, esses anos tinham cobrado o seu imposto. Fisicamente tinha sobrevivido melhor que muitos porque era ao mesmo tempo dura e sensível. Mentalmente também sobrevivera melhor que muitos, mas quando a Base 15 apareceu na sua vida ela acolheu-a com um suspiro de alívio. Tinham querido mandá-la de volta para a Austrália, mas ela protestara energicamente e fora atendida, pois sentia que a sua experiência e a sua saúde de ferro seriam mais úteis ao seu país num lugar como a Base 15 do que em Sydney ou Melburne.

 

Quando a pressão começara a diminuir, havia cerca de seis meses, teve tempo para pensar um pouco, para reflectir no que havia de fazer no resto da sua vida. E começou a perguntar a si mesma se fazer enfermagem num hospital civil lhe voltaria a dar satisfação. Também deu por si a pensar numa vida mais pessoal, concentrada e íntima do que aquela que a enfermagem lhe podia proporcionar.

 

Se não fosse Luce Daggett, não se encontraria talvez em estado de responder prontamente a Neil Parkinson. Quando Luce foi admitido, Neil ainda estava nas profundezas da sua depressão; pensava nele apenas em termos de paciente. Luce tinha-lhe feito qualquer coisa, embora ela não soubesse bem o quê. Mas quando ele entrou na Enfermaria X, com um ar tão completo, tão no comando da situação e de si mesmo, ela ficou boquiaberta. Durante dois dias sentiu-se fascinada por ele, atraída por ele, sentiu-se como não se sentia há anos. Sentiu-se mulher, desejável, amorosa. Mas como Luce era Luce, ele próprio se encarregou de destruir esse sentimento, ao atormentar um pobre soldadinho que fora nessa época admitido na enfermaria por ter feito uma tentativa de suicídio na frente. A descoberta de que ele era latão e não ouro puro quase a fizera demitir-se do seu posto, o que, reconheceu mais tarde, fora uma reacção absolutamente despropositada. Mas na altura parecera-lhe que o caso tinha essa importância. Felizmente, Luce nunca se apercebeu do efeito que lhe causara; fora uma das poucas vezes da vida dele em que não aproveitara uma oportunidade. Mas a Enfermaria X era para ele uma coisa nova, todas as caras eram novas, e ele perdeu um dia antes de tentar cimentar a sua relação com a enfermeira Langtry. Quando voltou para ela todas as baterias do seu charme, ela resistiu-lhes friamente, sem se preocupar com fragilidades.

 

Contudo, esse ligeiríssimo desvio na sua conduta marcou o começo de uma mudança. Talvez tivesse sido a consciência de que a guerra estava praticamente ganha e que aquela vida esquisita que ela levava há tanto tempo estava a chegar ao fim; talvez Luce tivesse desempenhado o papel de Príncipe Encantado e tivesse acordado Honour Langtry de um sono que ela impusera a si própria. Mas desde então ela estava inconscientemente a afastar os seus pensamentos de uma total dedicação ao seu trabalho.

 

Assim, quando Neil Parkinson saiu da depressão e manifestou interesse por ela e ela viu como ele era atraente como pessoa e como homem, começou a erosão da sua anterior total aderência à enfermagem. Começou por gostar imensamente de Neil, embora só agora pudesse dizer que o amava. Não era egoísta nem egocêntrico, admirava-a e confiava nela. E amava-a. Pensar na vida com ele depois da guerra era uma bênção, e quanto mais se aproximava essa vida mais ansiosamente ela a desejava.

 

Com uma autodisciplina férrea, nunca se permitiu pensar em Neil como homem, nunca se permitiu olhar constantemente para ele, para a sua boca ou para as suas mãos, imaginar que ele a beijava ou que fazia amor com ele. Não podia pensar nisso, senão as coisas já teriam acontecido. E isso seria um desastre. A Base

15 não era o lugar para dar início a uma ligação que se queria durasse a vida inteira. Ela sabia que Neil pensava o mesmo. E era quase divertido caminhar na corda bamba sobre o fosso dos desejos, apetites e amores duramente reprimidos; fazer de conta que também não via a paixão dele...

 

Sobressaltada, viu que o relógio marcava as nove e um quarto. Se não fosse já à enfermaria, todos pensariam que ela já lá não ia nessa noite.

 

Enquanto a enfermeira Langtry saía do gabinete e atravessava o corredor em direcção à enfermaria, não tinha qualquer pressentimento de que o subtil equilíbrio da Enfermaria X já estava a ser perturbado.

 

Vinha um calmo murmúrio de conversa de trás do biombo colocado em frente da cama de Michael; ela deslizou entre duas camas e surgiu junto da mesa do refeitório. Neil estava sentado num banco, perto da cadeira dela, e Matt estava junto dele. Benedict e Nugget estavam sentados no banco do outro lado, mas tinham deixado vazio o espaço mais próximo da cadeira dela. Ela instalou-se no local habitual, no topo da mesa, e olhou para os quatro homens.

 

- Onde está o Michael? - perguntou, sentindo um nó de pânico apertando-lhe o peito.

 

Tola, estaria a sua capacidade de avaliação tão distorcida que tivesse já decidido que a mente dele não estava em perigo? A guerra ainda não tinha acabado e a Enfermaria X ainda não estava morta e enterrada. Normalmente nunca teria deixado um novo paciente por observar durante tanto tempo. Será que Michael lhes traria má sorte? Primeiro deixara os papéis à vista enquanto falava com ele, e agora nem era capaz de se ocupar convenientemente do homem.

 

Devia ter empalidecido, porque os quatro homens olharam para ela com curiosidade, o que significava que também a sua voz traíra a sua preocupação. Senão Matt não teria reparado.

 

- O Mike está na sala a fazer chá - disse Neil, tirando a cigarreira e oferecendo um cigarro a cada um dos homens. Honour sabia que ele não cometeria a indiscrição de lhe oferecer um cigarro fora das quatro paredes do seu gabinete. - Parece que a nossa nova aquisição gosta de se tornar útil - continuou ele, acendendo todos os cigarros com o seu isqueiro. - Levantou a mesa depois do jantar e ajudou o impedido a lavar os pratos. Agora está a fazer chá.

 

Honour sentia a boca seca, mas não se atreveu a humedecê-la.

 

- E o Luce?

 

Matt teve um riso silencioso:

 

- Anda à caça como um gato.

 

- Espero que fique lá fora toda a noite - disse Benedict, torcendo a boca.

 

- Espero que não, caso contrário ainda arranja sarilhos - disse a enfermeira Langtry.

 

Michael trouxe o chá num bule velho que já conhecera melhores dias e começava a enferrujar nos sítios onde o esmalte se esbotenara. Pousou-o em frente da enfermeira Langtry e voltou à sala, donde trouxe uma tábua que servia de tabuleiro. Sobre ele estavam seis canecas de esmalte, uma colher, uma velha lata de leite em pó que continha açúcar e outra com leite condensado diluído. No tabuleiro vinha também uma bonita chávena Ainsley com o respectivo pires, pintada à mão em dourado, com uma colher de prata pousada sobre o pires.

 

Divertiu-a reparar que Michael se instalou à mesa em frente de Neil no lugar ao lado dela, como se nunca se tivesse lembrado que o lugar podia estar reservado para Luce. Óptimo! Havia de fazer bem a Luce descobrir que não ia conseguir dominar o novo paciente. De qualquer forma, porque havia Michael de ser intimidado por Luce? Não havia nada de estranho em Michael, ele não tinha as apreensões e percepções distorcidas de que normalmente sofriam os homens da X no momento em que entravam. Não havia dúvida que para ele Luce era mais ridículo que aterrador. ”E nesse caso”, pensou, ”se, como parece, estou a usar o Michael como o meu padrão de normalidade, é que eu também sou um bocadinho esquisita, porque o Luce incomoda-me. Incomodou-me desde que me libertei daquele primeiro nevoeiro e descobri que ele é uma espécie de imbecil moral, um psicopata. Tenho medo dele porque ele leva-me sempre à certa; quase me apaixonei por ele. Acolhi com prazer aquilo que parecia a sua normalidade. Como estou a acolher com prazer aquilo que parece ser a normalidade do Michael. Será que também erro na maneira como estou a julgar o Michael à primeira vista?”

 

- Calculo que as canecas são nossas e a chávena e o pires lhe pertencem, enfermeira - disse Michael, olhando para ela.

 

Ela sorriu:

 

- Pertencem-me realmente. Deram-mos como prenda de anos.

 

- Quando faz anos? - perguntou ele imediatamente.

 

- Em Novembro.

 

- Então já vai festejar o próximo aniversário em casa. Quantos faz?

 

Neil tornou-se imediatamente hirto, assim como Matt; Nugget pareceu aborrecido, Benedict desinteressado. A enfermeira Langtry pareceu mais apanhada em falta que ofendida, mas Neil interveio primeiro, antes de lhe dar tempo de responder.

 

- Não é nada consigo a idade que ela tem - disse ele.

 

Michael pestanejou.

 

- Não será a ela que compete dizer isso? Não me parece que ela seja assim tão velha que tenha de fazer da idade um segredo de Estado.

 

- Ela é a mãezinha - disse Matt. - Esta é a enfermeira Langtry. A voz dele tremia de raiva.

 

- Quantos anos faz em Novembro, enfermeira Langtry - perguntou Michael, não em ar de desafio, mas como se pensasse que eles eram todos demasiado sensíveis e que ele tencionava demonstrar a sua independência.

 

- Faço trinta e um - disse ela descontraidamente.

 

- E não é casada? Nem viúva?

 

- Não. Sou uma solteirona.

 

Ele riu, abanando enfaticamente a cabeça.

 

- Não, não tem nada o aspecto de uma solteirona - disse ele.

 

O ambiente estava a tornar-se pesado; eles estavam muito zangados com a presunção de Michael e com a tolerância que ela demonstrava para com ele.

 

- Há uma lata de biscoitos no meu gabinete - disse ela sem se apressar. Alguém se oferece para ir buscá-la?

 

Michael pôs-se de pé imediatamente.

 

- Se me disser onde está, enfermeira, eu vou buscá-la com muito gosto.

 

- Procure na prateleira abaixo dos livros. É uma lata de glicose, mas tem uma etiqueta na tampa que diz ”Biscoitos”. Como quer o seu chá?

 

- Simples, com duas colheres de açúcar, obrigado.

 

Enquanto ele esteve fora reinou na mesa um silêncio absoluto. A enfermeira Langtry serviu placidamente o chá enquanto os homens sopravam o fumo dos cigarros como se este fosse uma emanação orgânica de fúria.

 

Michael voltou com a lata, mas, em vez de se sentar, deu a volta à mesa servindo os biscoitos. Cada homem serviu-se de quatro, de forma que, quando chegou junto de Matt, Michael tirou quatro biscoitos e colocou-lhos gentilmente junto de uma das mãos, que repousava inerte sobre a mesa. Depois aproximou dessas mãos a caneca de chá, o suficiente para que elas pudessem sentir o seu calor. Em seguida voltou a sentar-se junto da enfermeira Langtry, sorrindo-lhe, sem disfarçar o seu agrado e confiança, de uma forma que a comoveu e que não tinha nada a ver com Luce.

 

Os outros homens continuavam calados, atentos, embora aparentemente alheados, mas por uma vez ela não reparou; estava demasiado ocupada a sorrir a Michael, em resposta, e a pensar como ele era simpático e refrescantemente desprovido do habitual fornecimento de horrores e inseguranças. Não imaginava que ele alguma vez se pudesse servir dela para chegar aos seus objectivos emocionais como os outros o faziam.

 

Nugget emitiu um ronco e agarrou-se à barriga, afastando a chávena de chá:

 

- Oh, Deus, estou mal outra vez! Oh! Enf., acho que é a minha colite ou o meu divertículo.

 

- Mais fica - disse Neil sem dar mostras de compaixão, agarrando na caneca de Nugget e esvaziando o chá na sua.

 

Depois surripiou os quatro biscoitos de Nugget e olhou para eles como se fossem cartas de jogar.

 

- Enfermeira, sinto-me mesmo muito mal - miou Nugget com um ar muito infeliz.

 

- Se não estivesses todo o dia na cama a ler dicionários de medicina, sentias-te muito melhor - disse Benedict num tom desaprovador. - Não é saudável. Fez uma careta e olhou em volta como se houvesse ali alguma coisa que o ofendesse profundamente. - O ar aqui está pouco saudável - disse, levantando-se e saindo para a varanda.

 

Nugget começou a rosnar outra vez, dobrando-se em dois.

 

- Pobre Nugget - disse a enfermeira consoladoramente. - Oiça, porque não vai para o meu gabinete e espera lá por mim? Vou logo que possa. Se quiser, pode ir tomando o pulso e contar as suas pulsações, está bem?

 

Ele levantou-se satisfeito, agarrado à barriga, como se o seu conteúdo estivesse a pontos de cair, e olhou triunfantemente para os outros.

 

- Estão a ver? A enf. sabe. Sabe que eu não estou a querer enganá-los. É a minha colite ulcerosa a pregar-me partidas outra vez.

 

E foi-se embora muito depressa, em direcção à enfermaria.

 

- Espero que não seja grave, enfermeira - disse Michael preocupado. - Ele está com mau aspecto.

 

- Pff - fez Neil.

 

- Está bem - disse a enfermeira Langtry aparentemente nada preocupada.

 

- É só a alma dele que está doente - disse Matt inesperadamente. - O pobrezinho sente falta da mãe. Está aqui porque é o único lugar que o suporta, e nós suportamo-lo por causa da enfermeira. Se eles tivessem algum juízo, já o tinham mandado para a mamã com a trouxa às costas há dois anos. Em vez disso, temo-lo aqui a sofrer de dores nas costas, de dores na cabeça, de dores nas tripas e de dores no coração. E apodrece, como todos nós.

 

- Apodrecer é a palavra exacta - disse Neil sombriamente. Aproximava-se uma tempestade. ”Eles são como os ventos e as nuvens daquela latitude”, pensou a enfermeira Langtry, olhando-os um após outro. Num momento indicavam bom tempo e no momento seguinte lá vinham as tormentas. Que teria provocado aquilo desta vez? A referência ao apodrecimento?

 

- Bom, pelo menos temos a enfermeira Langtry, já não pode ser assim tão mau - disse Michael alegremente.

 

O riso de Neil parecia mais espontâneo; talvez a tempestade tivesse abortado.

 

- Bravo! - disse ele. - Finalmente chegou junto de nós um espírito galante. É a sua vez, enf. Refute o cumprimento, se puder.

 

- Porque hei-de refutá-lo? Não recebo assim tantos cumprimentos.

 

A resposta surpreendeu Neil, mas ele recostou-se no banco como se estivesse totalmente descontraído.

 

- Mas que mentira descarada! - disse ele gentilmente. - Sabe muito bem que a cobrimos de elogios. Mas em paga dessa injustiça vai dizer-nos porque está a apodrecer na X. Deve ter feito alguma.

 

- Pois, por acaso fiz. Cometi o terrível pecado de gostar da Enfermaria X. Nada me obrigava a ficar se assim não fosse, sabem?

 

Matt levantou-se bruscamente, como se tivesse surgido qualquer coisa de absolutamente insuportável, dirigiu-se ao topo da mesa tão seguro como se pudesse ver e pousou levemente a mão no ombro da enfermeira Langtry:

 

- Estou cansado, enf. Boa noite. Não é cómico? Hoje é uma daquelas noites em que quase acredito que amanhã ao acordar verei de novo.

 

Michael tentou levantar-se para o ajudar, mas Neil estendeu um braço sobre a mesa, detendo-lhe o gesto.

 

- Ele sabe o caminho, rapaz. Melhor que ninguém.

 

- Mais chá, Michael? - perguntou Honour Langtry.

 

Ele acenou que sim, e ia dizer qualquer coisa quando o biombo foi de novo afastado. Luce deslizou para o lugar que Matt deixara vago.

 

- Oh, maravilha! Chego a tempo do chá.

 

- Falem do diabo... - suspirou Neil.

 

- Em pessoa - concordou Luce. Cruzou as mãos atrás da cabeça, inclinou-se para trás e olhou para os três homens por entre as pálpebras semicerradas... Olhem que grupinho tão simpático! Estou a ver que perderam a arraia-miúda, aqui só está a nata. Ainda não são dez horas, enfermeira, não precisa de olhar para o relógio. Tem pena que eu não tenha chegado atrasado?

 

- De maneira nenhuma - disse a enfermeira calmamente. - Sabia que ia voltar. Nunca o vi ficar lá fora um minuto depois das dez sem licença, nem quebrar qualquer das regras.

 

- Ora, não diga isso com ar tão triste. Faz-me pensar que nada lhe daria mais prazer que fazer queixa de mim ao coronel Chinstrap.

 

- Não me dava prazer nenhum, Luce. Esse é o seu grande problema, meu amigo. Esforça-se tanto por convencer as pessoas de que é péssimo que elas acabam por se convencer só para ficarem sossegadas.

 

Luce suspirou, inclinou-se, pousando os cotovelos sobre a mesa, e enterrou o queixo nas mãos. Espesso, ondulado e comprido de mais para estar dentro do regulamento, o cabelo cor de ouro-avermelhado caía-lhe sobre a testa. ”Como ele é perfeito!”, pensou a enfermeira com um arrepio de verdadeira repugnância. Talvez porque ele fosse demasiado perfeito ou porque houvesse nele qualquer coisa que não convencia. Ela desconfiava que ele pintava as sobrancelhas e as pestanas, talvez depilasse as primeiras e aumentasse ao comprimento das segundas, mas não devido a uma inversão sexual - única e simplesmente por vaidade. Os olhos tinham um reflexo doirado, eram muito grandes e bem afastados, sob o arco perfeito daquelas sobrancelhas negras de mais para serem verdadeiras. O nariz era como uma lâmina, direito, fino, de narinas orgulhosas. O tipo de malares que parecem suportes puramente estruturais e o rosto cavado abaixo deles.

 

Embora fosse demasiado determinada para se poder considerar sensual, a boca não era fina e tinha aquele corte delicadamente definido que normalmente se vê apenas nas estátuas.

 

”Não é de espantar que ele me tivesse impressionado quando o vi pela primeira vez... Mas já não me sinto atraída por este rosto, nem pela altura do homem, nem pelo seu corpo esplêndido. Não como me sinto atraída pelo Neil - ou, já agora, pelo Michael. Há algo de errado no Luce - lá dentro; não uma fraqueza, não apenas um defeito, mas qualquer coisa que é todo ele, que é inato e, portanto, impossível de arrancar.”

 

Voltou ligeiramente a cabeça para olhar para Neil, que em comparação com qualquer um, excepto Luce, podia ser considerado um belo homem. O mesmo tipo de feições de Luce, embora o colorido fosse muito menos espectacular. Muitos homens belos pareciam-no ainda mais com o tipo de rugas que o rosto de Neil tinha gravadas; mas quando essas rugas surgiam em Luce transformavam-no de belo em monstro. Eram as rugas erradas, talvez. Talvez indicassem leviandade mais do que experiência, maldade mais que sofrimento. E Luce acabaria por engordar, o que não aconteceria a Neil. Ela gostava especialmente dos olhos de Neil, muito azuis, orlados de pestanas loiras. Tinha o tipo de sobrancelhas que uma mulher gosta de acariciar com a ponta do dedo, incessantemente, pelo simples prazer que isso dá.

 

Já Michael era muito diferente. Podia passar pelo melhor tipo dos antigos romanos. Carácter mais que beleza, força mais que auto-indulgência. Cesarino. Havia algo nele que dizia: ocupei-me dos outros assim como de mim próprio durante muito tempo, passei pelo céu e pelo inferno, mas continuo a ser um homem inteiro, continuo a saber quem sou. ”Sim”, pensou ela, ”o Michael é imensamente atraente.”

 

Luce estava a olhar para ela. Ela sentiu-o e voltou a olhá-lo, com uma expressão fria e indiferente. Derrotava-o e sabia que o fazia. Luce nunca fora capaz de descobrir a razão por que o seu encanto não funcionava com ela, e não era ela que iria esclarecê-lo, nem falar-lhe no impacte inicial que ele exercera sobre ela, nem nas razões que o haviam destruído.

 

Nessa noite, para variar, Luce não se mostrava tão atrevido, não exactamente que se mostrasse vulnerável, talvez antes que gostasse de ser vulnerável.

 

- Esta noite encontrei uma rapariga lá da terra - anunciou Luce com o queixo ainda enterrado nas mãos. - Imaginem, de Woop-Woop para a Base 15, nem mais nem menos. Ela lembrava-se de mim. Ainda bem, porque eu não me lembrava nada dela. Mudou muito. - As mãos caíram; a sua voz tornou-se aguda e feminina, criando uma imagem tão forte que a enfermeira Langtry pensou estar fisicamente a assistir ao encontro. - A minha mãe lavava a roupa da mãe dela, disse ela, e eu costumava carregar com o cesto, disse ela. O pai dela era o gerente do banco, disse ela. - A voz de Luce mudou de novo, baixando para o seu tom mais superior e sofisticado. - Isso deve ter-lhe granjeado montes de amigos na altura da Depressão, disse eu. Hipotecas executadas à direita, à esquerda, ao centro, disse eu. Ainda bem que a minha mãe não tinha nada que valesse uma hipoteca, disse eu. Estás a ser cruel, disse ela, e parecia que ia chorar. Não estou nada, disse eu, só estou a ser verdadeiro. Não me culpes a mim, disse ela, com os olhos pretos todos cheios de lágrimas. Como é que eu podia culpar alguém tão bonito como tu, disse eu. - Sorriu, um sorriso rápido e mau como um golpe de navalha. - Embora isso não fosse totalmente verdade. Há uma coisa de que eu adorava acusá-la.

 

A enfermeira Langtry adoptara a sua pose anterior, de cotovelos na mesa, queixo nas mãos, e observava fascinada a mímica e as expressões de Luce.

 

- Tanto azedume, Luce - disse gentilmente. - Deve ter doído muito ter de carregar com a roupa do gerente do banco.

 

Luce encolheu os ombros, tentando sem êxito assumir o seu habitual ar descuidado.

 

- É. Tudo magoa, não é? - Os olhos alargaram-se, brilhantes. - Embora a verdade é que carregar a roupa do gerente do banco (e a do médico, e a do reitor, e a do pastor da Igreja de Inglaterra e a do dentista) não magoava tanto como não ter sapatos para ir para a escola. Ela estava na mesma escola lembrei-me quando ela me disse quem era e até me lembrei dos sapatos que ela usava. Sapatinhos de couro preto com tiras e um laço de seda preta. As minhas irmãs eram muito mais bonitas que as outras raparigas, muito mais bonitas que ela, mas não tinham sapatos.

 

- Nunca pensou que os que tinham sapatos provavelmente invejavam a vossa liberdade? - perguntou a enfermeira Langtry com ternura, tentando encontrar alguma coisa para dizer que o ajudasse a ver a sua infância numa perspectiva melhor. - A mim aconteceu-me sempre isso, quando estava na escola primária, antes de ir para o colégio. Eu tinha uns sapatos no género dos da filha do gerente. E todos os dias via algum miudito descalço a atravessar todo contente um campo cheio de silvas sem sequer piscar os olhos. Oh, como eu desejava atirar fora os meus sapatos!

 

- Silvas! - exclamou Luce, sorrindo. - Tem graça, já nem me lembrava. Em Woop-Woop, as silvas tinham espinhos de dois centímetros. Tirava-os dos pés sem sentir nada, - Endireitou-se na cadeira, olhando-a ardentemente. Mas no Inverno, querida bem educada, bem vestida e bem alimentada enfermeira Langtry, os meus calcanhares e os meus pés rebentavam - a palavra soou como um tiro - e sangravam com o frio. Frio, enfermeira Langtry! Já alguma vez teve frio?

 

- Já - disse ela mortificada mas também um pouco zangada por ter sido assim invectivada. - No deserto tive frio. E fome e sede. Na selva tive calor. E tive enjoos, não conseguia aguentar comida nem bebida. Mas cumpri o meu dever. Não sou um ornamento! Mas também não sou insensível aos seus sofrimentos de criança. Se as minhas palavras o magoaram, desculpe-me. Mas foram bem intencionadas!

 

- Está a ter compaixão por mim, e eu não quero a sua compaixão - gritou Luce, cheio de ódio.

 

- Você não percebeu nada. Não tenho pena de si. Porque havia de ter? Não interessa de onde você veio. O que interessa é para onde vai.

 

Mas ele abandonou o humor melancólico e tornou-se alegre, metálico, conversador:

 

- Bom, de qualquer forma, antes de a tropa me apanhar eu usava os melhores sapatos que o dinheiro pode comprar. Foi depois de eu ir para Sydney e me tornar actor. Afasta-te, Lawrence Olivier!

 

- Qual era o seu nome artístico, Luce?

 

- Lucius Sherringham. - Rolou as palavras na boca enfaticamente. - Até me dar conta de que era comprido de mais. Então mudei-o para Lucius Ingham. Lucius é um bom nome de palco e também não é mau para a rádio. Mas quando for para Hollywood, mudo o Lucius para outro mais sonante, como Rhett ou Tony. Ou, se a minha imagem for mais do tipo Colman que Flynn, John também não é mau.

 

- Porque não Luce? É bastante sonante.

 

- Não fica bem com Ingham - disse ele num tom decidido. - Se ficar Luce, tem de desaparecer o Ingham. Mas é uma ideia, ha? Luce. Luce Diablo havia de excitar as pequenas, não?

 

- Daggett não servia?

 

- Daggett! Raio de nome. Tem ar de carneiro. - O rosto torceu-se numa careta como se se tivesse lembrado vagamente de uma tristeza que os anos tinham desbotado. - Oh, enf., mas eu era mesmo bom! Embora demasiado jovem. Não tive tempo suficiente para fazer um grande nome antes de a Pátria me chamar. E quando voltar serei velho de mais... Algum patife qualquer com tensão alta ou com um pai rico para o livrar da tropa há-de lá estar sob a luz dos meus projectores! Não é justo.

 

- Se você era mesmo bom, não faz diferença nenhuma - disse ela. - Há-de lá chegar. Alguém há-de ver que você é bom. Porque é que não se candidatou a uma das unidades de espectáculos quando elas foram formadas?

 

Luce teve uma expressão de revolta:

 

- Sou um actor sério, não sou nenhum comediante de music-halll Os homens encarregados do recrutamento para essas unidades eram velhos tipos do vaudeville; só queriam cómicos e prestidigitadores. Os jovens nem precisavam de se candidatar.

 

- Não faz mal, Luce, há-de lá chegar. Sei que conseguirá. Tem de se conseguir quando se quer uma coisa como você quer.

 

A enfermeira Langtry apercebeu-se de que, ao longe, alguém gemia; libertou-se relutantemente da teia de encanto que Luce tecera, quase sentindo amor por ele.

 

Nugget estava a fazer uma barulheira incrível perto do gabinete dela e com certeza acabaria por acordar Matt.

 

- Enf., sinto-me muito mal! - gemia ele.

 

Ela levantou-se a custo, olhando para Luce verdadeiramente penalizada:

 

- Tenho muita pena, Luce, a sério que tenho. Mas se não vou para lá, vocês é que pagam as favas esta noite.

 

Já ia a meio da enfermaria quando Luce disse:

 

- Não faz mal. No fim de contas eu não me sinto mal.

 

O rosto dele estava de novo retorcido, amargo e frustrado, o glorioso momento de aprovação e brilho cortado por um apelo infantil pela mamã. E a mamã, como todas as mamãs do mundo, acorrera imediatamente a socorrer onde o socorro era necessário. Luce olhou para a caneca de chá, que arrefecera e apresentava à superfície uma desagradável película de nata do leite. Enojado, pegou na caneca e, num gesto lento e deliberado, despejou-a sobre a mesa.

 

O chá correu por todo o lado. Neil pôs-se em pé de um salto, sacudindo as calças. Michael afastou-se para o outro lado com a mesma rapidez. Luce ficou onde estava, indiferente ao destino da sua roupa, a ver o riozinho deslizar sobre a mesa e pingar para o chão.

 

- Limpa isso, patife imbecil! - disse Neil por entre os dentes. Luce ergueu os olhos e riu.

 

- Obriguem-me! - disse, separando as sílabas e dando-lhes uma insuportável expressão de insulto.

 

Neil tremia. Endireitou-se e mordeu os lábios. O seu rosto estava muito pálido:

 

- Se não fosse seu superior hierárquico, sargento, teria muito prazer em obrigá-lo e em esfregar o seu nariz no chá.

 

Deu meia volta e encontrou a abertura do biombo quase ao acaso, pois estava cego de fúria.

 

- À vontade - disse Luce, em tom agudo e trocista. - Força, capitão, fuja e esconda-se por trás dos galões! Você não tem tomates!

 

Os músculos das mãos de Luce relaxaram-se lentamente. Voltou o rosto para a mesa e descobriu Michael ocupado a limpar a mesa com um trapo. Luce olhou-o espantado.

 

- Seu palerma! - disse.

 

Michael não respondeu. Pegou no pano ensopado e na caneca vazia, pô-los sobre o tabuleiro improvisado e levou-os para a sala. Sozinho, Luce continuou sentado, a luz e o fogo dentro dele morriam e ele fez um grande esforço para não chorar.

 

Unicamente por vontade própria, a enfermeira Langtry trabalhava sem horário. Quando a Enfermaria X foi criada, pouco depois da fundação, um ano antes, da Base 15, a enfermeira-chefe nomeara duas enfermeiras para se ocupar dela. Uma delas, uma mulher frágil e antipática, não tinha o temperamento indicado para aguentar o tipo de pacientes da Enfermaria X. Durou um mês e foi substituída por uma enfermeira gorda e bem-disposta com uma mentalidade de grupo de escola. Aguentou uma semana e pediu transferência, não por alguma coisa que lhe tivessem feito pessoalmente, mas por ter assistido a uma cena aterradora de violência cometida contra a enfermeira Langtry. A terceira enfermeira era uma mulher temperamental e rancorosa. Suportou semana e meia e foi transferida após um pedido veemente da enfermeira Langtry. Pedindo muitas desculpas, a enfermeira-chefe prometeu mandar alguém logo que encontrasse uma pessoa capaz. Mas nunca mandou ninguém, ou porque não conseguiu encontrar ou porque se esqueceu, coisa que a enfermeira Langtry não tinha possibilidades de descobrir.

 

Convinha perfeitamente à enfermeira Langtry ocupar-se sozinha da Enfermaria X, apesar do gasto de sono e energias, de forma que nunca exigiu uma segunda enfermeira. E ao fim e ao cabo para que serviam os dias de licença num local como a Base 15? Não havia absolutamente nada a fazer nem sítio para onde ir. Como não era do tipo festas ou banho de sol, as únicas diversões que a Base 15 podia oferecer eram menos interessantes para ela que a companhia dos seus homens. E assim trabalhava sozinha, tranquilamente convencida, após os três exemplos anteriores, que era melhor para o bem-estar dos pacientes estes terem de lidar com uma única mulher, com uma única rotina e com um único conjunto de regras. O dever dela parecia-lhe bem claro: ela não era uma parte do esforço de guerra para servir os seus próprios interesses ou para se cobrir de glória indevidamente; como servidora da sua pátria tinha de dar o melhor de si mesma, fazer o seu trabalho da melhor maneira possível.

 

Nunca lhe ocorreu que ao escolher dirigir sozinha a Enfermaria X estava a cimentar o seu próprio poder, nunca lhe passou pela cabeça sequer a sombra de uma dúvida que poderia estar a fazer mal aos seus pacientes. Tal como a sua muito confortável educação tornava impossível para o seu espírito e para o seu coração compreender o que a pobreza podia fazer a um homem como Luce Daggett, da mesma forma a sua falta de experiência impedia-a de ver todas as ramificações da Enfermaria X, a sua posição nela e a sua verdadeira relação com os pacientes. Consciente de que estava a libertar outra enfermeira que podia trabalhar noutro serviço, a enfermeira Langtry ia avançando. No seu mês de licença entregou o serviço a uma substituta sem grandes preocupações; mas quando voltou e encontrou caras novas, na sua maioria, limitou-se a retomar as coisas no ponto onde as tinha deixado.

 

O seu dia começava de madrugada ou pouco antes; naquela latitude, o comprimento dos dias variava pouco entre o Inverno e o Verão, o que era agradável. Ao nascer do Sol estava na enfermaria, bastante antes de o impedido da cozinha aparecer com o pequeno-almoço. Quer dizer, quando aparecia algum impedido. Se nenhum dos pacientes estivesse ainda a pé, ela preparava um bule de chá e um prato de pão com manteiga e acordava-os. Ela própria partilhava com eles este pequeno-almoço matinal, depois ocupava-se da sala e da despensa enquanto os homens iam ao balneário lavar-se e fazer a barba. Se entretanto o impedido não aparecesse, ela preparava o pequeno-almoço a sério. Por volta das oito tomava o pequeno-almoço com os seus homens e depois metia-os com firmeza nos trilhos do dia: fazer as camas, supervisar um dos mais altos, como Luce ou Neil, a enrolarem as redes mosquiteiras segundo aquele complicado drapejado à Jacques Fath. Fora a enfermeira-chefe quem inventara o estilo de arrumo das redes, e nas suas inspecções, se as redes estivessem bem arranjadas, ela não reparava em mais nada.

 

Numa enfermaria em que os pacientes eram ambulatórios, os trabalhos domésticos não apresentavam qualquer problema nem exigiam os serviços de um impedido. Eles próprios se ocupavam das limpezas sob o olhar treinado e meticuloso da enfermeira Langtry. Que os impedidos fossem para onde eram mais precisos, pois ali só serviam para complicar.

 

Os inconvenientes menores da construção posterior da Enfermaria X tinham há muito sido satisfatoriamente resolvidos. Neil, que era oficial, tinha sido instalado na antiga sala de tratamentos, um cubículo de seis pés por oito, junto ao gabinetezinho da enfermeira. Ninguém na X precisava de tratamentos médicos e não havia psiquiatras para administrar um tipo de tratamento mais metafísico. Por isso a sala de tratamentos estava sempre disponível para albergar os raros oficiais que apareciam. Quando a enfermeira Langtry precisava de tratar algum dos acidentes menores que sempre surgiam, como tinha, queimaduras, úlceras de pele e dermatites, utilizava o seu gabinete. A malária e os episódios de desinterias tropicais eram tratados na cama, embora, ocasionalmente, em caso de doenças graves, os pacientes fossem transferidos para outra enfermaria que se dedicasse a doenças físicas.

 

Dentro de casa não havia retretes. Por uma questão de higiene, os doentes ambulatórios e o pessoal servia-se de latrinas profundamente cavadas, construídas espaçadamente, e que eram totalmente desinfectadas uma vez por dia e periodicamente queimadas com petróleo, para impedir a proliferação bacteriana. Os pacientes ambulatórios lavavam-se numa construção de cimento chamada ”balneário”; o balneário da Enfermaria X ficava por trás desta, a cerca de duzentos pés de distância, e em tempos fora utilizado por mais seis enfermarias. Estas tinham sido fechadas havia mais de seis meses, de modo que o balneário pertencia apenas aos homens da X, assim como a latrina próxima. A sala de água da Enfermaria X, que continha penicos, botijas e bacias, um pequeno suprimento de ligaduras e um jarro de desinfectante, era raramente utilizada. A água para a enfermaria era armazenada num depósito de chapa colocado num pedestal ao nível do telhado e que permitia, devido à gravidade, alimentar a enfermaria, a sala de água e a sala de tratamentos.

 

Quando a enfermaria ficava arrumada, a enfermeira Langtry retirava-se para o seu gabinete para tratar dos papéis, que iam desde formulários, requisições e róis de lavandaria às anotações diárias nas fichas dos pacientes. Se era o dia de a X se abastecer nos armazéns, uma construção metálica fechada à chave e gerida por um ecónomo, ela e um dos homens iam levantar tudo o que era preciso. Nugget era o melhor dos acompanhantes ao armazém; tinha sempre aquele ar insignificante e encolhido, mas quando voltavam para a X ele conseguia sempre tirar de cima da sua minúscula figura chocolates, pudins enlatados, bolos, sal, pó de talco, tabaco, papel de cigarro e fósforos.

 

As visitas da direcção - a enfermeira-chefe, o coronel Chinstrap, o coronel de chapéu vermelho, que era o superintendente, ou outros - davam-se sempre ao fim da manhã. Mas se era uma manhã tranquila, sem visitas de chefes, como a maioria das manhãs, ela costumava ir sentar-se na varanda a conversar com os homens, ou então só para estar calada em companhia deles.

 

Quando chegava o almoço dos homens, por volta do meio-dia e meia hora, conforme as coisas iam na cozinha, ela deixava a enfermaria e ia almoçar à sua messe. Passava a tarde sossegada, normalmente no quarto; às vezes lia, outras cosia as meias dos homens ou as camisas ou roupa interior ou, no caso de o tempo estar fresco e seco, dormia um bocado. Por volta das quatro ia à sala das enfermeiras tomar uma chávena de chá e conversar com quem aparecesse; este era o único contacto social com as suas colegas, pois as refeições na messe eram sempre comidas à pressa.

 

As cinco voltava à enfermaria para vigiar o jantar dos homens e regressava depois à messe das enfermeiras para o seu próprio jantar. Às sete punha-se a caminho da enfermaria para os momentos do dia que mais apreciava. Uma conversa e um cigarro com Neil no seu gabinete, conversas com algum dos outros que sentisse necessidade disso ou ela achasse que necessitava. Depois tomava as últimas e mais importantes notas do dia na ficha de cada um. E um pouco depois das nove alguém fazia uma última chávena de chá, que ela bebia com os pacientes à mesa do refeitório, por trás do biombo, na enfermaria. Às dez os pacientes preparavam-se para se deitarem, e às dez e meia ela deixava a enfermaria por essa noite.

 

É claro que, naqueles dias, tudo estava muito sossegado e a vida dela era fácil. Nos tempos áureos da Enfermaria X, ela passara lá muito mais tempo e, antes de sair, costumava distribuir calmantes. Se havia algum paciente propenso à violência, alguém ficava de serviço durante toda a noite, uma ordenança ou uma enfermeira, mas os pacientes doentes a esse ponto raramente permaneciam na X, a não ser que começassem a notar-se sérias melhoras. Podia dizer-se que a Enfermaria X era um trabalho de equipa e os pacientes eram uma parte importante dessa equipa; ela nunca conhecera a enfermaria sem, ao menos, um doente em que se pudesse confiar o suficiente para se encarregar da vigília nocturna durante a ausência dela, e acabara por considerar esses pacientes uma ajuda muito maior que qualquer outro pessoal auxiliar.

 

Esse esforço de equipa da enfermaria, ela considerava-o vital, porque a principal preocupação que sentia em relação aos homens da X era o vazio dos seus dias. Uma vez passada a fase aguda da doença, um homem passava semanas de inércia antes de poder ter alta. Não havia nada para fazer! Pessoas como Neil Parkinson suportavam melhor porque possuíam um talento fácil de exercer, mas nem toda a gente podia ser pintor. Infelizmente, a enfermeira Langtry não tinha jeito para ensinar actividades manuais, mesmo que tivesse sido possível arranjar material. De vez em quando um dos homens manifestava o desejo de tricotar ou coser e ela fazia os possíveis por o encorajar. Mas fosse como fosse, a Enfermaria X era um lugar aborrecido. Por isso, quanto mais um homem se interessasse pela rotina melhor era.

 

Na noite da chegada de Michael à X, como em todas as outras noites, a enfermeira Langtry saiu do gabinete às dez e um quarto, de lâmpada eléctrica na mão. As luzes da enfermaria estavam todas apagadas excepto uma, que continuava a brilhar sobre a mesa do refeitório, a qual ela apagou à saída do corredor principal. Ao mesmo tempo acendeu a lâmpada portátil e dirigiu o foco para o chão.

 

Tudo estava sossegado; ouvia-se apenas o leve sussurro da respiração, na semiobscuridade. Curiosamente, nenhum dos homens que ocupavam presentemente a enfermaria ressonava; às vezes ela perguntava a si mesma se seria aquela uma das razões por que eles se davam bem, apesar de todas as suas esquisitices. Pelo menos enquanto dormiam não perturbavam a intimidade uns dos outros. Ressonaria Michael? Para bem dele, esperava que não. Se o fizesse, os outros acabariam provavelmente por o detestarem.

 

A enfermaria ficava completamente às escuras, mesmo depois de ter sido levantado o black-out. A luz do corredor ficava acesa toda a noite, assim como a lâmpada ao cimo das escadas que conduziam ao balneário e às latrinas; a sua luz difusa penetrava através das janelas, junto da cama de Michael, porque a porta que dava para as escadas ficava mesmo junto aos pés da cama.

 

Todas as redes mosquiteiras estavam descidas, drapejadas em curvas bambas sobre cada uma das camas, como pretensos cadafalsos. O efeito era, na verdade, tumular: uma série de soldados desconhecidos dormindo no mais profundo e mais perfeito dos sonos, embrulhados em nuvens escuras como fumo de piras funerárias.

 

Automaticamente, após tantos anos como enfermeira, Honour Langtry mudou a posição da mão; cobriu a frente da lâmpada para diminuir a luz, reduzindo-a a um brilho cor de rubi, com pequenas manchas brancas espreitando entre as barras negras dos seus dedos.

 

Dirigiu-se primeiro à cama de Nugget e fez incidir sobre ele a luz fraca. Que bebé! Dormia, claro, embora na manhã seguinte jurasse que não tinha pregado olho. O pijama estava abotoado até ao pescoço, e o lençol, muito direito, cobria-o até aos braços. Quando não tinha prisão de ventre tinha diarreia; se não lhe doía a cabeça eram as costas que não o largavam; se a pele não estava coberta de manchas vermelhas como carne crua eram as empolas das costas que o importunavam. Só se sentia feliz quando era torturado por alguma dor real ou imaginária. O seu companheiro constante era um dicionário de enfermagem muito surrado que ele descortinara algures antes de ser admitido na X e que sabia de cor e até compreendia. Nessa noite, a enfermeira Langtry ocupara-se dele, com bondade e comiseração, como sempre fazia, tendo com ele uma interessante conversa acerca dos sintomas dominantes, obedecendo de boa vontade ao esquema de tratamento que ele próprio definia, pronta a dar-lhe purgantes, analgésicos ou pomadas. Se alguma vez ele suspeitou que a maioria das pílulas, xaropes e injecções que ela lhe dava eram placebos, nunca o disse. Que bebé!

 

A cama de Matt ficava a seguir. Também ele dormia. A luz suave e avermelhada iluminou as pálpebras descidas, a dignidade das suas feições de homem. Ele entristecia-a porque não havia nada que pudesse fazer por ele ou com ele. A cortina entre os seus olhos e o cérebro permanecia bem fechada e não havia comunicação entre eles. Tentara convencê-lo a pedir ao coronel Chinstrap que lhe fizesse exames neurológicos semanais, mas Matt recusou; se fosse a sério, argumentou, matá-lo-ia na mesma; se lhe dissessem que era imaginário, para quê incomodar-se? Sobre a sua mesinha estava o retrato de uma mulher de trinta e poucos anos, com o cabelo cuidadosamente enrolado no melhor estilo de Hollywood e uma golinha branca, à Peter Pan, sobressaindo no vestido escuro. À volta dela, dispostas como ornamentos, viam-se três meninas, todas com a mesma gola à Peter Pan, e no colo sentava-se outra menina, pouco maior que um bebé. Que estranho era que fosse o único que não via a ter uma fotografia dos entes queridos, embora ela tivesse reparado durante o seu serviço na X que era mais comum nesta enfermaria que noutras a falta de entes queridos ou de fotografias deles.

 

O Benedict adormecido não era o Benedict acordado. Acordado, era um homem sossegado, calmo, alheado. Dormindo, rebolava-se na cama, mexia-se e gemia sem cessar. De todos era quem mais a preocupava: aquela coisa que o roía por dentro, ela não a conseguia deter nem controlar. Não conseguia chegar até ele, não porque ele fosse hostil, que nunca era, mas porque parecia nunca a ouvir ou, se ouvia, não parecia compreender. Que os seus instintos sexuais eram para ele um tormento grande fora coisa que ela suspeitara tão fortemente que chegara a falar-lhe directamente no caso. Quando lhe perguntara se ele tinha ao menos uma namorada, Benedict respondera com um seco ”não”. Porque não?, inquirira, explicando que não estava a falar de uma rapariga que dormisse com ele, mas só de alguém que ele conhecesse e de quem gostasse e com quem, talvez, pensasse casar. Benedict limitara-se a olhar para ela com o rosto franzido, numa expressão de completa repulsa. ”As raparigas são porcas”, dissera e não adiantara mais. Sim, ele preocupava-a por essa e por muitas outras razões.

 

Antes de chegar à cama de Michael, a enfermeira Langtry foi arranjar o biombo junto da mesa do refeitório, porque estava demasiado próximo dos pés da cama de Michael no caso de este precisar de se levantar durante a noite. Dobrando-o, encostou-o à parede. Havia muito tempo que ninguém dormia naquela cama; não era desejável por causa da luz que brilhava através das janelas.

 

Mas ficou satisfeita ao verificar que Michael dormia sem o casaco do pijama. Tão sensato, naquele clima! Preocupava-se muito mais com o bem-estar daqueles que, como Matt e Nugget, teimavam em dormir com o pijama completo. Nada do que ela dissesse os convencia a deixarem de usar os casacos abotoados até acima. Perguntava a si própria se se deveria ao facto de ambos viverem fascinados por mulheres que representavam a decência e a modéstia do mundo civilizado, um mundo que ficava muito longe da Enfermaria X; esposa e mãe.

 

Michael estava de costas voltadas para a enfermaria e a luz que vinha da janela parecia não o perturbar. Ainda bem; não se devia importar com a cama. A não ser que passasse para o outro lado, não podia ver o rosto do homem adormecido, de modo que não se mexeu. A luz suave iluminava a pele das costas e do ombro e fez brilhar um relâmpago de prata na corrente onde trazia as insígnias, duas peças de cor baça feitas numa espécie de cartão, uma das quais estava entalada debaixo do travesseiro e a outra sobre ele. Era com essas insígnias que o identificariam se encontrassem suficientes restos dele para ainda as segurarem; arrancariam uma delas, que mandariam para a família juntamente com os seus haveres pessoais, e enterrá-lo-iam com a outra ao pescoço... ”Coisa que já não pode acontecer”, pensou ela. ”A guerra acabou. Já não é possível que tal aconteça”.

 

Ele havia olhado para ela como se achasse difícil tomá-la a sério, como se, de certo modo, ela tivesse saído de um papel natural para entrar num personagem que não lhe convinha. Não era exactamente ”corre e vai brincar, menina”; era mais ”corre e vai ocupar-te dos pobres diabos que precisam de ti, porque eu não precisarei”. Era como bater de repente num muro de tijolo. Ou encontrar uma força hostil. E os homens sentiam a mesma coisa, reconhecendo que Michael não pertencia à Enfermaria X.

 

Continuou junto dele mais tempo do que imaginou, a luz fixa na nuca dele, a mão esquerda estendida, acariciando inconscientemente a rede mosquiteira.

 

Um ligeiro movimento do outro lado da enfermaria chamou-lhe a atenção. Ergueu os olhos e viu a cama de Luce na outra ponta da enfermaria, pois tinha afastado o biombo. Luce estava sentado na beira da cama, nu, uma perna erguida, enlaçando-a com os braços, e observava-a enquanto ela observava Michael. Ela sentiu-se de súbito como se tivesse sido apanhada no meio de um acto sexual pouco digno e furtivo e ficou satisfeita por na enfermaria, demasiado escura, não se poder ver que tinha corado.

 

Durante um longo instante, ela e Luce olharam um para o outro como duelistas que friamente medem as qualidades do opositor. Então Luce mudou de posição, baixou a perna e deixou descair os braços. Depois levantou um deles num pequeno aceno trocista. Virou-se de lado e desapareceu debaixo da rede. Deslocando-se com toda a naturalidade, ela atravessou a enfermaria na ponta dos pés e baixou-se para prender a rede. Mas certificou-se que não olhava para sítio nenhum onde pudesse encontrar a cara dele.

 

Não era costume dela ir verificar se Neil estava bem; a menos que ele a chamasse, o que nunca acontecera, uma vez que entrasse no seu santuário a vida dele era absolutamente dele. Era o mínimo que podia fazer por ele, pobre Neil.

 

Tudo estava bem; a enfermeira Langtry parou no gabinete para descalçar as sapatilhas e pôr as botas e enfiou o chapéu na cabeça. Baixou-se para pegar no cesto e meteu lá dentro dois pares de peúgas que pertenciam a Michael e precisavam urgentemente de serem passajadas. À porta, atravessou sem ruído a cortina de cápsulas e saiu. Sem precisar de abafar a luz da lâmpada, dispôs-se a atravessar o recinto em direcção ao quarto. Dez e meia. Às onze estaria a preparar-se para ir para a cama, já de banho tomado; às onze e meia começaria a gozar as suas seis horas de sono ininterrupto.

 

Os homens da Enfermaria X não ficavam inteiramente desprotegidos durante a sua ausência; se o alarme interior, que era intrínseco a qualquer boa enfermeira, soasse dentro dela, ela própria iria à enfermaria durante a noite e avisaria a enfermeira de serviço para vigiar especialmente a X durante a sua ronda de enfermaria em enfermaria. Mesmo sem aviso da enfermeira Langtry, a enfermeira de urgência passaria sempre por rotina na X. E se o pior acontecesse, havia sempre o telefone. Há três meses que não ocorria qualquer crise durante a noite; por isso os seus sonhos eram leves.

 

A visita ao consultório do coronel Chinstrap não deu qualquer resultado, como a enfermeira Langtry calculara. O coronel concentrou-se ferozmente sobre o corpo de Michael, preferindo ignorar a alma e o cérebro. Apalpou, auscultou, mediu, bateu, picou, e tudo isso Michael suportou com uma paciência evangélica. Obedecendo a ordens, Michael fechou os olhos, tocou na ponta do nariz com a ponta dos dedos e seguiu com o olhar, sem mexer a cabeça, o percurso errático de um lápis, da esquerda para a direita e de baixo para cima. Ficou de pés juntos e olhos fechados, saltou a pé-coxinho, primeiro num pé e depois no outro, leu todas as letras de um quadro, limitaram-lhe o ângulo de visão e fez um pequeno jogo de associação de palavras. Mesmo quando o olho injectado do coronel se aproximou do dele, de oftalmoscópio na mão, Michael suportou esse intenso e opressivo escrutínio com equanimidade; a enfermeira Langtry, sentada ali ao lado, divertiu-se ao ver que ele nem pestanejava ao primeiro contacto com o mau hálito do coronel.

 

Depois, o coronel mandou Michael esperar lá fora enquanto a enfermeira Langtry ficava a ver o coronel apalpar o lábio superior com a cabeça do polegar; fazia-a sempre pensar num garoto a meter o dedo no nariz, mas era apenas a técnica com que o coronel estimulava o seu processo de pensamento.

 

- A primeira coisa que lhe farei esta tarde é uma punção lombar - disse finalmente, em voz lenta.

 

- Para quê? - perguntou a enfermeira Langtry sem se poder conter.

 

- Não ouvi, enfermeira.

 

- Disse: ”Para quê?” - Bom, já agora ia até ao fim. Começara e, relativamente ao seu paciente, tinha o dever de acabar. - O sargento Wilson não tem absolutamente nada de neurológico e o senhor sabe-o muito bem. Porque obrigar o pobre diabo a ter uma horrível dor de cabeça e a ficar de cama, quando ele está de perfeita saúde, tendo em conta a vida e o clima que tem suportado?

 

Era demasiado cedo para lutar com ela. O pequeno excesso da noite anterior com a garrafa de whisky e a enfermeira Connolly tinham sido em grande parte causados pela discussão com a enfermeira Langtry na tarde da véspera e tornavam insuportável a ideia de recomeçar o combate. Um desses dias ia haver uma batalha definitiva, prometeu ele a si mesmo, mas não naquela manhã.

 

- Muito bem, enfermeira - disse ele secamente, pousando a caneta e dobrando a ficha do sargento Wilson. - Não farei hoje uma punção lombar. Entregou-lhe os papéis como se estivessem contaminados. - Muito bom dia.

 

Ela levantou-se imediatamente.

 

- Bom dia, coronel - disse. E, voltando-se, saiu da sala.

 

Michael esperava-a à porta e acompanhou-a, enquanto ela, em passo talvez demasiado rápido, se afastava do consultório.

 

- É tudo?

 

- É definitivamente tudo! A menos que você contraia qualquer obscura doença da medula com um nome inpronunciável, posso predizer com toda a segurança que nunca mais põe a vista em cima do coronel Chinstrap a não ser nas inspecções à enfermaria e na visita semanal.

 

- Coronel quê? Ela riu:

 

- Chinstrap. Foi o Luce quem lhe pôs a alcunha e pegou. O verdadeiro nome é Donaldson. Só espero que ”Chinstrap” não o persiga até Macquarie Street.

 

- Devo dizer que este lugar e as pessoas que cá estão são cheios de surpresas.

 

- Não mais que o seu batalhão, com certeza.

 

- O problema com o meu batalhão - disse Michael - é que eu conhecia toda a gente bem de mais, alguns há anos e anos. Nem todos os do princípio foram mortos ou ficaram inválidos. Quando se está em acção, não se dá pela monotonia. Mas passei os últimos seis anos quase sempre numa espécie de acampamento. Acampamentos no deserto no meio das tempestades de areia, acampamentos nas chuvas de monção, até mesmo acampamentos de espectáculos. Sempre no meio de um calor infernal. Passava a vida a pensar na frente russa, a imaginar como seria um acampamento numa terra fria, e até sonhei com isso. Não é esquisito que a vida de um homem se possa tornar tão monótona que se sonhe com outro acampamento em vez de se sonhar com mulheres ou com a casa? Os acampamentos são praticamente aquilo que eu conheço.

 

- Concordo, sim, que o pior problema da guerra é a monotonia. E é o que acontece também na Enfermaria X. Para mim e para os homens. Prefiro trabalhar muitas horas e dirigir sozinha a Enfermaria X, porque, se não o fizesse, acabava por também ficar tropo. Quanto aos homens, eles estão fisicamente bem, perfeitamente capazes de fazerem qualquer trabalho, mesmo violento. Mas não podem. Não há trabalho nenhum. Se houvesse, sentir-se-iam mentalmente muito melhor - sorriu. - De qualquer forma, agora já não será por muito tempo. Não tarda a irmos todos para casa.

 

Michael sabia que nenhum deles se sentia atraído pela ideia de voltar a casa, mas não disse nada e continuou a caminhar ao lado dela através do recinto.

 

Ela pensou que era bom andar ao lado dele. Não inclinava a cabeça deferentemente como Neil, nem tomava as atitudes de Luce, nem se arrastava como Nugget. Na verdade, ele tomava o facto com toda a naturalidade e companheirismo, quase de homem para homem. O que parecia esquisito, talvez, mas se sentia como certo.

 

- Faz alguma coisa na vida civil, Michael? - perguntou, desviando-se do caminho directo para a X e enfiando por entre duas enfermarias vazias.

 

- Faço. Lacticínios. Tenho trezentos acres de planície junto ao rio, em Hunter, perto de Maitland. A minha irmã e o marido estão a trabalhar lá por enquanto, mas mortos por voltar para Sydney, de forma que quando voltar para casa recomeço a trabalhar. O meu cunhado é um verdadeiro citadino, mas quando chegou a guerra decidiu que preferia mungir vacas e acordar com os galos a usar um uniforme e apanhar um tiro.

 

A expressão de Michael era levemente desdenhosa.

 

- Mais um rato do campo na X, então! Estamos em maioria. O Neil, o Matt e o Nugget são da cidade, mas agora, com você cá, somos quatro ratinhos do campo.

 

- Donde é você?

 

- O meu pai tem uma propriedade perto de Yass.

 

- E contudo você aterrou em Sydney, como o Luce.

 

- Em Sydney, sim. Mas não como o Luce.

 

Ele sorriu e deitou-lhe uma rápida olhadela de lado:

 

- Peco-lhe desculpa, enfermeira.

 

- O melhor é começar a chamar-me enf. como fazem os outros: de qualquer modo, acabará por fazê-lo.

 

- Está bem, enf., assim se fará.

 

Treparam a uma pequena colina arenosa e coberta de aranhiços de rizomas de erva, pintalgada de coqueiros, e chegaram a uma praia. Pararam aí, e a brisa agitava o véu da enfermeira Langtry.

 

Michael puxou da bolsa de tabaco e do papel e acocorou-se sobre os calcanhares, no jeito que têm todos os camponeses. A enfermeira Langtry ajoelhou-se a seu lado, cuidadosamente, para não encher os sapatos de areia.

 

- É quando vejo uma coisa destas que não me importo tanto com as ilhas disse Michael, enrolando um cigarro. - Não acha extraordinário? Precisamente quando se pensa que não se pode suportar outro dia de mosquitos, lama, suor e desinteria, acorda-se, e é o mais perfeito dia à face da Terra, ou vê-se uma paisagem destas, ou acontece qualquer coisa que nos faz pensar que afinal não é assim tão mau.

 

Era lindíssima; uma faixa estreita de areia cinzenta-escura junto da água, húmida da maré baixa e absolutamente deserta. Parecia ser o lado de um longo promontório, porque terminava de encontro ao céu e à água para a esquerda, e para a direita entrava por uma plantação com ar de abandonada. A água era como uma pequena e fina camada de cor aplicada sobre o branco: espelhada de um verde muito pálido, profundamente calma. Ao longe viam-se recifes, e o horizonte do mar estava escondido pela espuma branca da ressaca.

 

- Esta é a praia dos pacientes - disse ela, sentando-se nos calcanhares. - De manhã é proibida, por isso é que não está cá ninguém. Entre a uma e as cinco da tarde está à vossa inteira disposição. Nessa altura não o podia trazer cá, porque é interdita a todas as mulheres. Poupa ao exército os vossos fatos de banho. As ordenanças e o outro pessoal também a utilizam às mesmas horas. Para mim é uma dádiva de Deus. Sem a praia para os distrair, os meus homens nunca ficariam bons.

 

- Também tem uma praia, enf.?

 

- O outro lado do promontório é nosso, embora não tenhamos tanta sorte. A enfermeira-chefe não é partidária dos banhos nus.

 

- Velha desmancha-prazeres!

 

- Os médicos e os oficiais também têm uma praia do nosso lado do promontório, mas separada da nossa por uma colinazita. Os oficiais doentes podem vir para aqui ou ir para lá, como preferirem.

 

- E os médicos usam fatos de banho? Ela sorriu.

 

- Foi coisa que nunca me lembrei de perguntar. - A sua posição estava a ficar insuportável e ela arranjou a desculpa de olhar para o relógio para se levantar. - O melhor é irmos andando. Não é o dia da enfermeira-chefe fazer a vistoria, mas ainda não o ensinei a enrolar a sua rede. Temos tempo para treinar, uma hora antes do seu almoço.

 

- Não me leva uma hora. Eu aprendo depressa - disse ele com uma certa relutância em mexer-se, em cortar o prazer daquele contacto verdadeiramente social com uma mulher.

 

Mas ela abanou a cabeça e afastou-se da praia, obrigando-o a segui-la:

 

- Pode crer que lhe levará muito mais que uma hora. Todas as suas experiências passadas não são nada em comparação com o enrolar da rede. Se eu soubesse exactamente interpretá-lo, sugeriria ao coronel Chinstrap que usasse o drapejado da enfermeira-chefe como teste de capacidade mental.

 

- Porquê? - perguntou ele, chegando junto dela e sacudindo um pouco de areia das calças.

 

- Alguns dos pacientes da X não conseguem fazê-lo. O Benedict, por exemplo. Todos tentamos ensiná-lo e ele quer aprender, mas não consegue apanhar o truque, embora seja bastante inteligente. Produz as variações mais curiosas e estranhas sobre o tema, mas não consegue fazê-lo como ela quer.

 

- Você é muito honesta acerca de toda a gente, não é? Ela parou e olhou para ele muito séria:

 

- Não se ganha nada em ser de outro modo, Michael. Quer goste quer não, quer pense que lhe compete estar lá ou não, quer sinta ou não pertencer-lhe, você faz parte da X até que todos voltemos para casa. E há-de descobrir que na X não nos podemos dar ao luxo de eufemismos.

 

Ele acenou num gesto de assentimento, mas não falou, limitando-se a olhar para ela como se o seu valor estivesse a aumentar e com mais respeito que o que mostrara na véspera.

 

Passados instantes, ela baixou os olhos e continuou a andar, mas num passo mais sossegado do que era seu hábito.

 

Sentia-se satisfeita com a quebra da rotina, assim como lhe agradava o companheiro. Com ele não precisava de se incomodar com o que ele sentia; podia descontrair-se e fazer de conta que era alguém que conhecera algures em termos sociais.

 

Porém, muito em breve, a Enfermaria X apareceu à vista, ao dobrar da esquina de um edifício deserto. Neil esperava por eles à porta, o que irritou vagamente a enfermeira Langtry. Neil parecia um pai superansioso que autorizara o filho a voltar sozinho da escola pela primeira vez.

 

À tarde Michael voltou à praia com Neil, Matt e Benedict. Nugget recusara-se a acompanhá-los e Luce não estava à vista.

 

A segurança com que Matt se deslocava fascinava Michael, que descobriu que um simples toque no cotovelo, braço ou mão do cego era suficiente para o orientar. Michael observava e aprendia para, na ausência de Neil, ser capaz de o substituir convenientemente. Nugget informara-o no balneário, com muitos pormenores técnicos, que Matt não era realmente cego, que os olhos dele não tinham nada, mas, para Michael, a sua incapacidade de ver parecia absolutamente genuína. Uma pessoa a fingir-se de cega teria certamente tropeçado, tacteado, representando o seu papel. Matt caminhava com dignidade, sem alardes, o seu eu íntimo não corrompido pelo caso.

 

Havia cerca de cinquenta homens espalhados pela praia, que poderia conter um milhar sem parecer cheia. Todos estavam nus; alguns deles eram aleijados, outros estavam cobertos de cicatrizes. Como havia pessoal do hospital juntamente com convalescentes de malária ou de outra doença tropical, os três homens de aspecto saudável da Enfermaria X não destoavam. Contudo, Michael reparou que havia a tendência de as pessoas se agruparem por enfermarias: neuros, plásticos, ossos, pele, abdominotórax, medicina geral; os elementos do pessoal constituíam também um grupo.

 

Os tropos da X despiram-se suficientemente afastados de qualquer outro grupo, para não poderem ser acusados de intromissão, e nadaram durante uma hora; a água estava tão morna e pouco estimulante como a de um banho de bebé. Depois estenderam-se na areia para secar, a pele coberta de grãozinhos rutilantes como lantejoulas. Michael sentou-se e enrolou um cigarro, acendeu-o e passou-o a Matt. Neil teve um leve sorriso, mas não disse nada, limitando-se a observar as mãos seguras de Michael enquanto este enrolava outro cigarro para si mesmo.

 

”Nada mau para variar do acampamento”, pensava Michael, olhando para a água de olhos semicerrados contra a luz, enquanto ia observando a ténue coluna de fumo que se erguia do cigarro e pairava um momento antes de se desfazer, levada pelo vento. Nada mau ver uma família diferente da do batalhão, embora esta fosse uma família muito mais unida e dirigida por uma mulher como todas as famílias deviam ser. Nada mau, também, que houvesse uma mulher por perto. A enfermeira Langtry representava o seu primeiro contacto, ainda que transitório, com uma mulher nos últimos seis anos. As pessoas esqueciam-se: como elas andavam, como elas cheiravam, como eram diferentes. A sensação de família que sentia na X provinha directamente dela, a figura de proa de quem ninguém na X, nem mesmo Luce, falava levianamente ou com desrespeito. Bom, era uma senhora, é verdade, mas era mais que uma senhora. As senhoras sem outra coisa que boas maneiras e atitudes nunca o tinham interessado; mas ele começava a ver que a enfermeira Langtry tinha qualidades de que ele partilhava, de que muitos homens partilhavam. Não tinha medo de dizer o que pensava, não tinha medo dos homens por eles serem homens.

 

Ao princípio ela impusera-se um pouco, mas ele era suficientemente justo para admitir que a culpa fora mais dele que dela; porque é que as mulheres não haviam de ter autoridade e posição se as merecessem? Ela merecia-as e, contudo, era uma mulher feminina e muito, muito simpática. Sem parecer exercer qualquer pressão evidente, conseguia manter unida aquela mistura de homens. Disso não havia dúvidas. Eles amavam-na, amavam-na realmente. O que significava que de certo modo todos eles viam sexo nela. A princípio ele não vira sexo, mas, ao fim de apenas um dia e duas conversas em particular com ela, estava a começar a ver. Oh, nada de a atirar ao chão e possuí-la; algo de mais agradável e subtil que isso, uma descoberta lenta e deliciosa da boca dela, do seu pescoço e ombros, das suas pernas... Um homem desligava-se quando não tinha mais nada senão a tristeza culposa da masturbação, mas tendo uma mulher por perto todos os fluidos recomeçavam a correr; os pensamentos de Michael começaram a agitar-se para além do nível de um sonho inatingível. A enfermeira Langtry não era uma pinup de fotografia, era real. Embora para Michael ela tivesse uma qualidade de sonho

- nada a ver com a guerra, ou com a escassez de mulheres que havia no teatro da guerra. Ela era da camada superior, o tipo de mulher que ele nunca teria encontrado na vida civil.

 

Pobre Colin, como ele a teria odiado. Não do modo como Luce a odiava, porque Luce desejava-a e amava-a ao mesmo tempo. Luce podia fazer de conta que aquilo que sentia por ela era ódio, porque ela não o queria, e isso era coisa que ele não podia compreender. Mas Colin fora diferente. O que fora sempre o problema de Colin. Tinham estado juntos desde o começo. Gravitara para perto de Colin quase logo após se ter alistado, porque Colin era o género de tipo a quem outros tipos chateavam, sem realmente compreender por que razão ele os irritava, mas sabendo que a irritação estava ali em permanência; e Michael tinha uma forte tendência protectora que o perseguia desde a infância, de modo que sempre coleccionara ”patinhes feios”.

 

Colin fora magricelas como uma miúda, um pouco bonito de mais e um soldado demoníaco, tão perturbado pelo seu aspecto e pelo que sentia como acontecia, provavelmente, a Benedict. Apagando a beata na areia, Michael olhou pensativamente para Benedict.

 

Havia uma série de sarilhos acumulados dentro da frágil estrutura de Ben, tormentos, busca da alma e uma revolta feroz, tal como houvera dentro de Colin. Michael estaria disposto a apostar qualquer quantia em como Ben fora também um soldado demoníaco, um daqueles inacreditáveis homens que eram a imagem da suavidade até que a euforia da batalha os penetrava e que então enlouqueciam e se comportavam como os heróis antigos. Os homens que tinham muito a provar a si mesmos eram normalmente soldados demoníacos, especialmente quando conflitos espirituais acentuavam ainda mais a mistura de perturbações.

 

Michael começara por ter pena de Colin, devido em grande parte ao tal instinto protector - mas, à medida que os meses iam passando e a um país sucedia outro país, uma curiosa afeição e amizade foi-se instalando entre eles. Combatiam bem juntos, acampavam bem juntos, e descobriram que nenhum deles tinha satisfação em ir aos bordéis ou embebedar-se quando estavam de licença, de modo que acabou por se tornar natural andarem juntos em todas as ocasiões.

 

A proximidade, porém, pode cegar, e Michael ficou cego. Foi só quando chegaram à Nova Guiné que compreendeu claramente até onde iam as perturbações de Colin. Tinha chegado à companhia um novo oficial, um major enorme, seguro de si e espalhafatoso, que em breve tomava Colin como alvo dos seus sarcasmos. O facto não preocupou muito Michael; sabia que as coisas não podiam ir muito longe enquanto ele ali estivesse para traçar uma linha que ninguém se atrevia a atravessar. O oficial também avaliara Michael e não estava disposto a atravessar a linha. Assim, as agressões feitas a Colin eram de pouca monta. Limitando-se a comentários e olhares. Michael esperava placidamente, sabendo que, logo que voltassem a entrar em acção, o oficial veria o outro lado do magricelas Colin.

 

Por isso foi um choque total para Michael encontrar um dia Colin a chorar amargamente, e custara-lhe muita paciência descobrir qual era o problema: uma proposta homossexual do oficial, que perturbara Colin a vários níveis. Confessou que as suas inclinações o levavam àquilo. Sabia que era errado, sabia que era antinatural, desprezava-se por isso, mas a verdade é que não podia fazer nada. Só que não era o oficial que ele queria; quem ele queria era Michael.

 

Não houvera repulsa nem sentimento de propriedade ultrajada por parte de Michael; apenas uma tristeza enorme, a ternura e a compaixão permitidas por uma longa amizade e por amor genuíno. Como é que um homem se podia afastar do seu melhor amigo quando tinham passado por tanta coisa juntos? Conversaram durante muito tempo e, no fim, a confissão de Colin não alterara em nada a relação entre ambos, excepto talvez fortalecê-la. As preferências de Michael não iam naquele sentido, mas não podia ter sentimentos diferentes por Colin pelo simples facto de este os ter. Assim era a vida, assim eram os homens e essa era a realidade. A guerra e o tipo de existência que esta impunha haviam ensinado Michael a viver com muitas coisas que teria rejeitado na vida civil, porque a alternativa de viver sem elas significava literalmente morrer. Escolher viver significava aprender a tolerância; enquanto deixassem uma pessoa em paz esta não iria fazer grandes inquéritos à vida privada dos seus semelhantes.

 

Mas era um peso ser amado como amante; as responsabilidades de Michael para Colin viam-se de súbito multiplicadas. A sua incapacidade de retribuir o amor de Colin da maneira que este desejava aumentava a sua preocupação pelo rapaz, a necessidade premente de o proteger. Juntos tinham visto a morte, a batalha, a vida dura, a fome, a saudade e a doença; demasiadas coisas para se poderem esquecer. Contudo, a incapacidade de retribuir plenamente o amor era uma sobrecarga de remorso que só podia ser expiado com a ajuda e os serviços que os limites da sua natureza lhe permitiam. E Colin, embora a alegria de uma relação sexual lhe estivesse vedada, tornou-se muito mais aberto e satisfeito a partir daquele dia na Nova Guiné.

 

Quando Colin morreu, Michael não foi capaz de acreditar no que os seus olhos viam: um pedacinho de metal, mais veloz que o sorti, que penetrara no cabelo curtinho, entre o pescoço e o crânio, de modo que ele caiu no chão e morreu, tão calmamente, sem derrame de sangue e sem sofrimento. Michael sentara-se junto dele e assim ficara durante muito tempo, certo que a pressão da sua mão na mão gelada acabaria por ser retribuída; no fim tiveram de separar as duas mãos, a viva e a morta, e convencer Michael a sair dali, que não havia absolutamente esperança alguma de voltar a ver vivo aquele rosto calmamente adormecido. Na morte a sua expressão era nobre, sagrada, inviolada. A morte tê-la-ia mudado de qualquer forma. Acontecia sempre, porque a morte era repousante e tudo esvaziava. De vez em quando Michael ainda pensava se na verdade o rosto morto de Colin parecera dormir ou se haviam sido os seus próprios olhos a verem-no assim. Conhecera muitos sofrimentos, mas nunca um sofrimento como aquele.

 

Então, depois de dissipado o primeiro choque pela morte de Colin, Michael ficou horrorizado ao descobrir dentro dele, aparentemente tão intensa como o sofrimento insuportável, uma maravilhosa sensação de alívio. Estava livre! O incubo do dever para com alguém mais desprotegido e capaz que ele desaparecera. Enquanto Colin vivesse ele estava amarrado por esse dever. Talvez não o tivesse impedido de procurar outro amor, mas tê-lo-ia certamente prejudicado, e ele sabia que Colin nunca teria sido suficientemente forte para resistir a tentar tê-lo exclusivamente para ele. Afinal a morte chegara como um alívio e era uma coisa que o atormentava.

 

Durante os meses que se seguiram, Michael manteve-se tão sozinho quanto lhe permitia o seu estatuto particular no batalhão. Havia soldados demoníacos suficientes numa unidade tão ilustre como aquela era, mas Michael era mais que um soldado demoníaco. O seu comandante chamava-lhe a quinta-essência do soldado, querendo assim dizer que ele tinha um grau de profissionalismo militar que raramente se encontrava. Para Michael era o seu trabalho, e ele nunca falhava porque acreditava não só em si mesmo como na causa pela qual lutava. Agia sem paixão, qualquer que fosse a provocação, o que significava que se podia confiar que em qualquer situação ele manteria a calma e faria o que tinha de ser feito sem se preocupar com as consequências, mesmo em termos da própria vida. Cavava trincheiras, estradas, esgotos ou sepulturas; assaltaria posições inexpugnáveis ou tomaria a seu cargo a decisão de recuar se assim julgasse necessário; nunca se queixava, nunca arranjava problemas, nunca punha em causa uma ordem mesmo que já tivesse decidido contorná-la. O efeito que produzia sobre os seus camaradas era tranquilizador, animava-os e encorajava-os. Eles pensavam que ele tinha uma vida embruxada e viam nele a sorte deles.

 

Depois de instalados em Bornéu foi mandado numa missão aparentemente de pura rotina; como o batalhão tinha poucos oficiais, o major que perseguira Colin foi encarregado da saída. A companhia consistia em três barcaças de homens. As instruções eram para seguirem para tal e tal praia, ocupá-la e infiltrarem-se. Uma missão de reconhecimento anterior revelara que não havia japoneses na área. Mas quando o exercício começou, os japoneses estavam mesmo lá, e mais de metade dos homens da companhia foram mortos ou feridos. Uma das barcaças conseguiu safar-se, quando os homens ainda não tinham desembarcado; outra foi afundada a tiro; Michael, outro sargento e o major conseguiram reunir os homens que não tinham sido atingidos ou que tinham sido apenas ligeiramente feridos, e todos juntos levaram os feridos graves para bordo da terceira barcaça, que continuava intacta; a meio caminho encontraram uma equipa de socorros que levava auxiliares médicos, plasma, morfina; a barcaça que escapara conseguira chegar a bom porto e mandara-lhes auxílio a tempo.

 

O major suportou mal a perda de tantos homens bons e censurou-se a si próprio, pois fora o seu primeiro comando independente. E Michael, lembrando-se dos dias da Nova Guiné e de Colin, sentiu-se obrigado a fazer os possíveis por consolar o homem. O resultado foi um ricochete espectacular: o major acolhera as suas atenções literalmente de braços abertos. Durante cinco horríveis minutos Michael enlouqueceu; a quinta-essência do soldado que nunca deixava as suas paixões dominá-lo viu-se consumido pela paixão. Pensou que o ciclo hediondo ia recomeçar - um amor não desejado, uma penosa servidão, sendo ele vítima e causa ao mesmo tempo - e subitamente sentiu um ódio pelo major como nunca na vida sentira por ninguém. Se aquele homem não tivesse começado a fazer propostas a Colin, nada daquilo teria acontecido, porque Colin não teria tido a coragem de se confessar.

 

Felizmente, a única coisa que Michael tinha naquele momento eram as suas mãos, mas o treino, a raiva e a vantagem da surpresa teriam sido mais que suficientes se o major não tivesse gritado por socorro e esse socorro não estivesse muito próximo.

 

Uma vez passado o ataque de loucura, Michael sentiu-se destruído. Em todos os seus anos de serviço no exército nunca sentira desejos de matar, nunca o facto de matar lhe causara qualquer satisfação e, no fundo, nunca odiara os seus adversários. Mas quando pusera as mãos em roda do pescoço do major sentira um prazer só comparável ao prazer sexual, e com os dedos apoiados na cartilagem hióidea glorificara-se nesse prazer e fora levado por uma insensatez carnal que sempre desprezara nos outros.

 

Só ele soube como se sentiu durante esses breves e violentos segundos; e, sabendo, decidiu não lutar contra as consequências. Recusou-se a justificar as suas acções, recusou-se a dizer o que quer que fosse, excepto que tencionara matar.

 

O comandante do batalhão, um dos melhores oficiais de comando que os homens tiveram alguma vez, chamou Michael para uma entrevista particular. O único outro homem presente era o OM, um médico excelente e muito humano. Ambos informaram Michael de que o assunto fora entregue ao chefe de divisão, passando por cima deles; o major estava decidido a levá-lo a tribunal marcial e não estava disposto a que o detivessem a nível de batalhão.

 

- Estúpida sanguessuga - disse o comandante sem paixão.

 

- Ele não tem andado bem por estes dias - disse Michael, que continuava abalado por algo que se aproximava perigosamente das lágrimas.

 

- Se você continua assim, ainda o condenam - disse o médico. - Vai perder tudo aquilo com que devia sair orgulhosamente da guerra.

 

- Então que me condenem - disse Michael indiferente.

 

- Ora, deixe-se disso, Mike - disse o comandante. - Você vale dez dele e sabe-o muito bem.

 

- Só quero ver-me livre disto - disse Michael, fechando os olhos. - Estou tão farto da guerra, dos homens, desta merda toda!

 

Os dois oficiais trocaram olhares.

 

- O que você precisa é de um bom descanso, está mais que visto - disse então o médico em tom sacudido. - De qualquer forma, agora é tudo palavreado. Que diz a uma cama confortável, numa base hospitalar confortável, com uma enfermeira confortável e simpática a tomar conta de si?

 

Michael abriu os olhos.

 

- Parece o paraíso - disse. - Que tenho de fazer para ir para lá?

 

- Basta continuar a agir como um tolo - disse o médico sorrindo. - Vou mandá-lo para a Base 15 sob suspeita de perturbações mentais. Não constará dos seus papéis, damos-lhe a nossa palavra. Mas obrigará o nosso amigo major a encolher as unhas.

 

E assim foi selado o pacto. Michael entregou a sua espingarda Owen e as munições, foi metido numa ambulância e levado para o aeroporto, de onde seguiu para a Base 15.

 

Uma cama confortável numa enfermaria confortável, com uma enfermeira confortável e simpática a tomar conta dele. Mas encaixar-se-ia a enfermeira Langtry na definição de enfermeira simpática e confortável? Tinha imaginado uma quarentona, forte, maternal, do género sensato. Não uma mulher mordaz, uma coisinha de ossos finos pouco mais velha que ele, com mais segurança que um brigadeiro e mais miolos que um marechal-de-campo...

 

Saindo do seu devaneio, Michael reparou que Benedict estava a olhar fixamente para ele e já lhe tinha sorrido com uma afeição não encoberta antes de a sineta de alarme tocar dentro dele a avisá-lo. Não, nunca mais! Nem sequer para este pobre, miserável tipo com o seu olhar faminto de solitário. Nunca, nunca mais. De qualquer forma, homem prevenido vale por dois, e desta vez ele tinha a certeza que a amizade que teria por alguém seria limitada. Não que Michael pensasse que Benedict era homossexual. Ben precisava era fortemente de um amigo, e nenhum dos outros se interessava minimamente por ele. Não era de espantar. Ben era desconcertantemente duro, qualidade que Michael vira noutros homens e que afastava sempre os amigos.

 

As reacções deles a quaisquer propostas de amizade eram sempre muito peculiares - começavam a invectivar a religião ou a falar de coisas que a maioria das pessoas prefere ignorar. Ben devia meter medo às raparigas e provavelmente estas assustavam-no de morte. Ben parecia-lhe aquele tipo de homens cuja vida era um deserto emocional e um vazio enorme sempre dentro deles. Não era para admirar que amasse a enfermeira Langtry; ela tratava-o normalmente, enquanto os outros o consideravam uma espécie de monstro. O que eles sentiam sem o compreender, embora Neil talvez tivesse a experiência suficiente para o ver, era a violência. Santo Deus, que soldado ele devia ter sido!

 

Nesse momento, Benedict mexeu-se; o rosto franziu-se, as narinas tremeram, os olhos vidraram-se. Perante os olhos de Michael transformou-se em pedra. Curioso, Michael voltou-se para ver o que Benedict tinha visto. E ali ao longe estava Luce, pavoneando-se pela praia e caminhando em direcção a eles, numa verdadeira exibição. Parodiando um fortalhaço salva-vidas, soberbamente consciente do seu corpo magnífico que a luz do sol tornava doirado, o tamanho e a grossura do seu pénis troçavam de todos os outros homens da praia, tornando-os secretamente invejosos.

 

- O sacana! - disse Neil, enfiando os dedos dos pés na areia como se fosse apenas o começo de um processo que acabaria por enterrá-lo todo. - Se ao menos eu tivesse coragem para atacar à navalhada aquele peso que ele ali traz...

 

- Muito eu gostava de poder vê-lo! - suspirou Matt.

 

- Um espectáculo digno de ser visto - disse Michael com ar divertido. Luce chegou junto deles e deu uma volta graciosa, voltando-se para eles; uma das mãos acariciava distraidamente o peito liso.

 

Vai uma partidinha de ténis? - perguntou, balançando com a outra mão uma raqueta imaginária.

 

- Oh, aqui há campos de ténis? - perguntou Michael, fingindo-se surpreendido. - Eu jogo contigo.

 

Luce olhou para ele desconfiado, começando a perceber que a proposta não fora feita a sério.

 

- Estás a passar-me uma rasteira, patife! - disse espantado. - Porque não? - disse Michael, sorrindo. - Como tens três pernas...

 

Matt e Neil deram uma gargalhada sonora e Benedict sorriu meio consciente, e o grupo que estava mais perto deles fez-lhes eco embora disfarçadamente. Luce ficou por instantes atónito, sem saber o que fazer. Foi uma pausa de centésimos de segundo; depois encolheu os ombros e dirigiu-se para a água como se desde o princípio fosse essa a sua intenção.

 

- Muito bem, Mike - disse, voltando-se para trás. - Muito bem, mesmo. Ainda bem que reparaste.

 

- Como não havia de reparar numa coisa dessas? Até julguei que fosse um pilar que tivesse sobrado da ponte de Sydney! - exclamou Michael.

 

O grupo próximo deixou de fingir desinteresse e rebentou a rir; o grande momento de Luce transformara-se numa farsa. Neil agarrou um punhado de areia e atirou-a alegremente a Michael.

 

- Boa malha, meu velho - disse, enxugando os olhos. - Que pena não ter sido eu a dizer isso.

 

Quando a enfermeira Langtry entrou de serviço, pouco depois das cinco horas, e descobriu que as suas ”tropas” tinham decididamente adoptado Michael, ficou muito satisfeita. Era para ela tremendamente importante que eles gostassem de Michael. A razão por que se importava tanto era coisa que ainda não descobrira, mas suspeitava que era mais por ele do que pelos outros.

 

A princípio ele despertara-lhe a curiosidade, depois o sentido de justiça e finalmente o seu franco interesse. Se tivera dúvidas acerca do modo como ele se instalaria na Enfermaria X, essas dúvidas residiam não tanto nele como em Neil, chefe incontestado da X. Porque Neil não o acolhera calorosamente; e a verdade é que Neil, por mais que troçasse disso, era um chefe nato, uma pessoa naturalmente autocrática. Os outros homens seguiam-no, até mesmo Luce. Por isso estava dentro dos seus poderes transformar a Enfermaria X tanto num céu como num inferno ou num limbo.

 

A descoberta de que Neil tratava Michael como um igual fê-la sentir-se profundamente grata. Michael ficaria bem daí em diante e, portanto, os outros ficariam igualmente bem.

 

Benedict apareceu então e ficou encantado quando soube que Michael jogava xadrez. O xadrez era aparentemente a única fraqueza carnal de Ben, mas era um jogo que aborrecia Neil e assustava Nugget; Matt gostara de jogar nos tempos em que via o tabuleiro e as peças, mas dizia que manter no espírito constantemente uma imagem visual era demasiadamente cansativo. Luce jogava bem, mas não conseguia resistir em transformar o jogo numa luta metafórica entre os bons e os maus, o que perturbava Ben de uma maneira que a enfermeira Langtry achava prejudicial para ele, de forma que o proibira de jogar com Luce.

 

Ao ver Benedict instalado com ar satisfeito no banco em frente de Michael, com o tabuleiro aberto à frente deles, a enfermeira Langtry sentiu que a enfermaria estava finalmente completa. ”Como é bom ter um aliado!”, pensou, satisfeita, demasiado generosa para invejar o facto de Michael estar aparentemente a ser bem sucedido com um paciente que ela nunca conseguira ajudar.

 

Luce tinha mais que uma qualidade em comum com um gato: não só se movia como um gato como conseguia ver no escuro.

 

Assim, não precisou de lanterna quando saiu para se esgueirar entre as cabanas desertas em direcção a um lugar ao fundo da praia das enfermeiras, onde teve de parar devido a uma alta penedia que a enfermeira Langtry descrevera erradamente a Michael como sendo uma colina.

 

A PM abandonara a vigilância por esses dias, como Luce muito bem sabia; a guerra tinha acabado, a Base 15 estava tão sossegada como o cadáver em que em breve se tornaria e não havia discórdia no ar. Sensíveis a essas coisas, as antenas da PM registavam zero.

 

Nessa noite, Luce ia a caminho de um importante encontro e sentia-se poderoso e leve e quase dolorosamente vivo. Oh, sim, a pequena Miss Woop-Woop, a preciosa filha do gerente do banco! Não fora fácil convencê-la a encontrarem-se assim, e ela só consentira quando compreendera que não havia outras maneiras de vê-lo senão ilicitamente ou à vista da varanda das enfermeiras. Ela era oficial enfermeira, ele pertencia ao exército e, enquanto eram permitidos os encontros entre velhos colegas da escola, qualquer contacto mais íntimo traria uma dura reprimenda e sanções disciplinares, pois a enfermeira-chefe não brincava com as convenções militares. Mas ele tinha conseguido convencê-la a encontrarem-se na praia depois de anoitecer e não tinha dúvidas acerca do que aconteceria desse momento em diante; a etapa pior já ficara para trás.

 

Não havia lua que pudesse traí-los, mas naquele local de pacífica escuridão o céu brilhava como em mais nenhum lugar da Terra, as nuvens de nebulosas e de estrelas ao longo do eixo da galáxia lançavam uma luz fria e calma sobre o mundo, dando-lhe um leve tom de prata. Assim, ele não teve dificuldade em vê-la entre as sombras mais densas que a rodeavam e caminhou sem fazer barulho até estar mesmo junto dela. Ela sobressaltou-se.

 

- Não te ouvi! - disse, estremecendo.

 

- Não podes ter frio numa noite destas? - disse ele, esfregando a ”pele de galinha” das mãos dela, com um toque amigável e impessoal.

 

- São os nervos. Não estou habituada a escapar-me assim: é diferente de fugir de um lar de enfermeiras em Sydney.

 

- Calma, está tudo bem! Vamos só sentar-nos ali num sítio confortável e fumar um cigarro. - Segurando-lhe o cotovelo, ajudou-a a sentar-se na areia e sentou-se a uma distância suficiente para não a assustar. - Detesto cravar-te, mas tens algum cigarro feito? - disse, com os dentes muito brancos a brilhar no escuro. - Posso enrolar um para ti, mas se calhar não gostas do sabor.

 

Ela meteu a mão no bolso do casaco do uniforme e tirou um maço de Craven A, em que ele pegou sem lhe tocar na mão. Depois deu ao gesto um certo ar de intimidade acendendo um cigarro e passando-lho. Tirou em seguida o seu tabaco e papel e enrolou um cigarro sem se apressar.

 

- Ninguém verá a luz dos nossos cigarros? - perguntou ela.

 

- Bem, é possível mas não é provável - disse ele à vontade. - As enfermeiras aqui estão todas bem domesticadas, por isso a PM não costuma inspeccionar por aqui. - Voltou a cabeça e observou o perfil dela. - Como vai a terrinha?

 

- Vazia.

 

Custou-lhe fazer a pergunta, mas finalmente conseguiu dizer:

 

- Como está a minha mãe? E as minhas irmãs?

 

- Quando é que tiveste notícias delas?

 

- Há uns dois anos.

 

- Quê? Elas não te escrevem?

 

- Fartam-se de escrever! Eu é que não leio as cartas.

 

- Então porque finges que te interessas por elas? Aquele rasgo de inteligência surpreendeu-o.

 

- Temos de conversar acerca de alguma coisa, não achas? - perguntou amavelmente. E estendeu uma mão para tocar na dela. - Estás nervosa?

 

- Não mudaste nada desde os tempos da escola.

 

- Mudei e muito. Muita água correu desde essa altura.

 

- Foi assim tão mau? - perguntou ela cheia de compaixão.

 

- Estás a falar da guerra? Às vezes. - Pensou no gabinete que tinha ocupado, no trabalhinho agradável que desempenhara, no major balofo e medroso que fora oficialmente o seu chefe, embora na realidade as coisas houvessem funcionado ao contrário. - Sabes que um homem tem de cumprir o seu dever.

 

- Oh, bem sei.

 

- É bom ver aqui uma cara amiga - disse ele após um breve silêncio.

 

- Para mim também. Fiquei tão contente quando o Manpower me libertou para poder ir para o exército, mas nada se passou como eu esperava. Claro que teria sido diferente se a guerra ainda continuasse. Mas a Base 15 é um lugar bastante morto, não é? Ele riu baixinho:

 

- Nada mau como descrição.

 

A pergunta que ela ardia por fazer saiu de jacto antes que conseguisse engoli-la ou formulá-la de uma maneira diferente:

 

- Que estás a fazer na Enfermaria X, Luce?

 

Ele tinha a resposta pronta desde o momento em que compreendera o que queria fazer à pequena Miss Woop-Woop.

 

- Cansaço de combate, pura e simplesmente - disse, suspirando. - Acontece a muito boa gente.

 

- Oh, Luce!

 

”Este é o pior diálogo que já se escreveu”, pensou ele, ”mas a vida é assim. Não vale a pena gastar Shakespeare quando Daggett chega e sobra.”

 

- Estás mais quentinha? - perguntou.

 

- Muito mais! Está quente aqui, não está?

 

- Que dizes a tomar um banho?

 

- Agora? Não trouxe o fato de banho. Uma pausa para contar até quatro e depois:

 

- Está escuro, não posso ver-te. Mesmo que pudesse não olhava.

 

Claro que ela sabia tão bem como ele que, tendo consentido em encontrarem-se ali, estava também a consentir em quaisquer liberdades que ele quisesse tomar; mas os gestos do ritual tinham de ser executados, as palavras do ritual tinham de ser pronunciadas. Senão a consciência não ficava satisfeita nem os fantasmas dos antepassados propiciados. Ela suspirava e queria ser dele, mas ele nunca poderia pensar que ela era uma mulher fácil.

 

- Então está bem, mas só se tu fores primeiro e prometeres que não sais antes de eu sair e me vestir outra vez - disse ela hesitantemente.

 

- Combinado! - exclamou ele, pondo-se em pé de um salto e despindo-se com a rapidez de alguém que está habituado às técnicas de se mudar rapidamente.

 

Ela não queria perdê-lo na água, de modo que o seguiu o mais depressa que pôde, mas as botas eram uma novidade para ela e fizeram-na demorar.

 

- Luce! Onde estás? - murmurou, entrando na água até aos joelhos e com medo que ele a agarrasse num tipo de jogo que ela considerava infantil.

 

- Estou aqui - disse ele tranquilizador, de um ponto ali muito perto e sem tentar agarrá-la.

 

Suspirando de alívio, ela avançou, até que os seus ombros ficaram cobertos.

 

- É bom, não é? - perguntou ele. - Anda, vem nadar um bocadinho comigo.

 

Ela seguiu o rasto fosforescente deixado por ele, nadando em grandes braçadas e sentindo pela primeira vez na vida a voluptuosa liberdade do seu corpo nu sustentado pela água. Excitou-a imensamente; voltou-se e recomeçou a nadar, sem olhar para ver se ele continuava a afastar-se ou se estava perto dela.

 

Era como um sonho mágico e encantado e o seu espírito voou para longe do corpo, já profundamente apaixonado por ele. Não era uma virgem assustada, sabia o que ia acontecer e sabia (porque seria com ele) que seria melhor que qualquer outra coisa na vida.

 

A sua convicção de que fora apanhada numa teia de magia aumentou ainda mais quando, pelo canto do olho, viu que ele vinha a seu lado; parou, procurou o fundo, pôs-se em pé e esperou que ele a beijasse.

 

Mas em vez de a beijar ele pegou-lhe ao colo, saiu da água e levou-a até ao lugar onde tinham deixado a roupa, deitando-a aí.

 

Ela ergueu as mãos para ele, que se deixou cair ao lado dela, escondendo a cabeça no seu ombro. Quando sentiu os dentes dele, começou a gemer de prazer, mas o som em breve se transformou num grito de dor abafado, porque aquilo não eram doces mordidelas de prazer. Ele estava a mordê-la, a mordê-la a sério, com uma ferocidade silenciosa e selvagem que a princípio ela aguentou, pensando que ele havia de parar, que ele estava apenas faminto dela. Mas a agonia continuou, tornou-se insuportável; começou a lutar por se libertar, mas ele segurava-a com uma força extraordinária. Misericordiosamente, ele largou-lhe o pescoço e começou a morder-lhe um dos seios, menos dolorosamente, mas quando a pressão dos seus dentes voltou a aumentar ela não conseguiu reter o grito de terror, porque, de repente, teve a certeza de que a intenção dele era matá-la mesmo ali.

 

- Oh, Luce, não! Por favor, por favor. Peço-te. Estás a magoar-me muito.

 

As palavras abafadas e queixosas pareceram surtir algum efeito, porque ele parou e começou a beijar o seio que no momento anterior tão mal tinha tratado, mas os beijos eram pouco sentidos e em breve cessaram.

 

Tudo ia correr bem. O seu amor de infância e o seu desejo dele voltaram; ela suspirou e murmurou. Ele apoiou-se nas mãos erguendo-se acima dela, separou-lhe imperativamente os joelhos e enfiou as pernas entre as dela. Sentindo a coisa cega de encontro a si, ela estendeu a mão para a orientar, encontrou o sítio com um arrepio e retirou os dedos para se agarrar aos ombros dele, puxá-lo para si, sentir o peso e a pele dele, sentir os braços dele a abraçá-la. Mas ele recusou-se a baixar, continuando apoiado nas mãos a todo o comprimento dos braços, tocando-lhe apenas onde aparentemente pensava que era importante; como se o facto de lhe tocar noutro sítio tivesse desviado preciosas energias da tarefa empreendida.

 

O primeiro movimento fê-la gemer de dor, mas ela era jovem, estava molhada, descontraída e desesperadamente ansiosa por aquilo; apoiou as pernas no chão, para diminuir a profundidade da penetração, e apanhou o ritmo dele até ondular com ele, não para trás quando ele avançava mas, pelo contrário, ao encontro dele.

 

E tornou-se maravilhoso, embora ela desejasse que ele a abraçasse em vez de estar tão afastado. A posição dele diminuía a fricção, que ela achava necessária, de modo que lhe levou dez bons minutos a chegar ao orgasmo, que foi maior e mais violento que qualquer outro que ela tivesse experimentado, sentindo os espasmos abalá-la dos pés à cabeça como os movimentos ciclónicos de um ataque epiléptico.

 

Imensamente grata por ele se ter controlado tanto tempo para lhe agradar, ela pensou que o orgasmo dele se seguiria imediatamente. Mas tal não aconteceu; aquele movimento triste, regular, obsessivo, continuou, continuou, continuou. Começou a sufocar de cansaço; e de repente sentiu que não podia aguentar mais.

 

- Por amor de Deus, Luce! Basta! Basta!

 

Ele retirou-se imediatamente, ainda erecto, sem ter chegado ao clímax. E isso chocou-a profundamente. Nunca antes ela se sentira tão falta de alegria, tão privada da doce vitória. Durante uns instantes deixou-se ficar deitada, esperando que ele a beijasse, que a abraçasse, mas nada; desde o momento em que lhe pegara ao colo até ao fim não houve um único beijo; como se o tocar-lhe os lábios tivesse destruído o prazer dele. Prazer? Teria ele tido algum prazer? Necessariamente que sim. Tinha estado duro como uma rocha durante o tempo todo.

 

Afastou as pernas, apoiou-se num cotovelo e estendeu a mão para o maço de cigarros. No momento em que o encontrou, Luce estendeu a mão, pedindo-lhe um; ela passou-lhos e inclinou-se para acender o dele. A luz do fósforo revelou-lhe o rosto, inexpressivo, as longas pestanas escuras sombreando-lhe os olhos. Deu uma puxada no cigarro e o fósforo apagou-se, soprado pela sua forte respiração.

 

Bem, pensou Luce, aquilo devia ter deixado a pateta da fêmea satisfeita. Estava deitado de costas com as mãos por trás da cabeça e o cigarro seguro entre os lábios displicentemente fechados. Possuí-las até elas pedirem clemência, e assim não teriam o direito de se queixarem ou criticarem. Não importava o tempo que lhes levasse. Ele podia aguentar toda a noite. Desprezava o acto, desprezava-as a elas, desprezava-se a si mesmo. O acto era um instrumento, o instrumento do instrumento que ele tinha entre as pernas. Sempre o operador. Ele era o senhor, eles os escravos, e as únicas pessoas que ele não podia dobrar às suas ordens eram aquelas do género da Langtry, que não se sentia inclinada para o senhor nem para os escravos. Deus, quanto ele não daria para ver a Langtry de joelhos, a pedir e a suplicar um e todos, o senhor e os escravos...

 

Olhou para o relógio, viu que eram nove e meia. Era tempo de voltar se não queria chegar tarde, e não ia dar à Langtry a satisfação de se queixar dele ao coronel Chinstrap. Estendendo a mão, deu uma pancadinha seca no rabo da mulher deitada ao lado dele.

 

- Vamos, amor, temos de ir andando. É tarde.

 

Ajudou-a a vestir-se com a escrupulosa atenção de uma criada das velhas damas, ajoelhando-se para lhe apertar as botas. Sacudiu-lhe a areia, ajeitou-lhe o casaco cinzento, apertou-lhe o cinto e pôs-lhe o chapelinho na cabeça. A sua roupa estava molhada da água do mar, mas ele vestiu-a com indiferença.

 

Depois acompanhou-a até aos limites dos alojamentos das enfermeiras, segurando-lhe no cotovelo para a guiar através da escuridão, com um cuidado impessoal que a enfureceu.

 

- Voltamos a ver-nos? - perguntou ela quando pararam.

 

Ele sorriu:

 

- Com certeza, meu amor.

 

- Quando?

 

- Daqui a uns dias. Não pode ser muito seguido, senão ainda nos apanham. Venho falar contigo à varanda da tua messe e depois combinamos. Está bem?

 

Ela pôs-se em bicos de pés para o beijar na cara e depois seguiu sozinha para casa.

 

Luce transformou-se imediatamente num gato e desapareceu no escuro, evitando as manchas de luz e mantendo-se colado aos edifícios quando chegou junto deles.

 

E pensava naquilo que tinha pensado durante quase todo o tempo que estivera a fazer amor: no sargento Wilson, herói enviado para a X por um OC, embaraçado para escapar à desgraça de um tribunal marcial. Quase que apostava! Muito, muito bem. As admissões na X estavam realmente a tornar-se cada vez mais estranhas.

 

Não lhe tinha escapado que a Langtry estava muito interessada no recém-chegado. Tinha-a enfeitiçado, não havia dúvidas! Era evidente que ela não acreditava no que diziam os papéis, nenhuma mulher acreditava - especialmente quando o tipo era tão viril e forte como o sargento Wilson, uma resposta adequada às orações de uma solteirona. Uma questão: seria o sargento Wilson a resposta às orações da Langtry? Luce tinha pensado durante muito tempo que esse privilégio pertenceria a Neil, mas neste momento já não se sentia tão seguro. O melhor era ele dizer também umas oraçõezitas, para que a Langtry preferisse um sargento a um capitão, um Wilson a um Parkinson. Se assim acontecesse, facilitaria muito aquilo que ele estava a planear. Fazer rabiar a Langtry.

 

Sentiu que os testículos lhe doíam tanto que até os dentes lhe rangiam e parou à sombra de uma enfermaria deserta para urinar. Mas, como de costume, a maldita coisa não saía; levava-lhe sempre séculos até conseguir fazer chichi. Esperou quanto tempo pôde, segurando entre os dedos o glorioso instrumento desprezado, esticando a pele para cima e para baixo num frenesim mudo de desespero. Não adiantava. Uma olhadela às horas disse-lhe que não podia esperar mais tempo; teria de suportar a dor durante mais alguns minutos.

 

Michael estava na Enfermaria X há cerca de duas semanas quando a enfermeira Langtry começou a ter um estranho sentimento de premonição. Não uma agradável antecipação de prazer, mas um temor mórbido, rastejante, que não tinha a menor base na realidade. A realidade era o contrário, algo de novo e completo. Não havia complicações; toda a gente gostava de Michael e Michael gostava de toda a gente. Os homens andavam descontraídos e mais confortáveis, porque Michael os tratava bem, estava sempre à disposição deles e andava sempre bem-disposto. Explicara à enfermeira que não podia passar os dias a ler, tinha os seus momentos de preguiça na praia e precisava de se mexer com algum objectivo. Assim, arranjava as canalizações quando era necessário, pregava pregos, arranjava os móveis. Havia uma almofada nas costas da cadeira do gabinete dela: cortesia de Michael; o chão quase brilhava, a sala estava mais limpa.

 

E apesar disso a inquietação da enfermeira persistia. ”Ele é decerto modo um catalizador”, pensava ela. Por natureza e essência inofensivo, mas, na Enfermaria X, quem podia saber? Sim, todos gostavam dele e ele gostava de todos. E não havia complicações. Mas a Enfermaria X estava diferente desde que ele chegara, embora ela não conseguisse perceber qual era a diferença. Apenas uma atmosfera.

 

O calor tornou-se opressivo, o ar parado fervia, o menor e mais calmo dos movimentos produzia rios de suor e as águas do oceano para lá do recife tornaram-se de um verde sujo. Com a lua cheia vieram as chuvas, dois dias de chuva torrencial que transformou o pó em lama. O míldio instalou-se por todo o lado: nas redes mosquiteiras, nos lençóis, biombos, livros, botas, roupas, pão. Mas como não era possível ir à praia o bolor manteve os homens ocupados, Porque a enfermeira Langtry obrigou-os todos a limpar o míldio com trapos embebidos em álcool. Ordenou que todos os sapatos e botas fossem tirados à Porta. Porém, por algum processo osmótico, a lama infiltrava-se por toda a enfermaria, e aí também os homens tiveram que fazer lavando o chão com panos, escovas e baldes de água.

 

Felizmente não havia nada de deprimente na própria chuva, pois ela não impedia a passagem do sol, como faz a chuva mais suave e fria das latitudes mais altas. Desde que não se instalasse, aquela chuva quase tinha o poder de exaltar a mente humana, enchendo-a de uma sensação de poder. Se se instalasse, como acontecia nas monções, os seus efeitos eram piores que os de qualquer outra chuva, porque o poder tornava-se sem remorsos e dominador, e os seres humanos transformavam-se em meras formigas impotentes.

 

Mas esta chuva vinha demasiado cedo para ser o começo da monção, e quando acabou até aquela tristonha colecção de edifícios chamada Base 15 adquirira uma inesperada beleza: lavada, polida, limpa.

 

”Bom, então era isso”, pensou a enfermeira Langtry sentindo um enorme alívio. ”Tudo o que me preocupava era a chuva. Afecta-os sempre assim. E a mim também me afecta.”

 

- Que disparate! - disse ela a Michael, entregando-lhe um balde de água lamacenta.

 

Ele tinha acabado de limpar a casa da água e estava a fazer um descanso bem merecido na varanda.

 

- Que é que é disparate? - perguntou ele, esvaziando o balde no esgoto e limpando com um trapo o ferro galvanizado.

 

- Tinha a sensação de que vinha aí algum sarilho, mas afinal só veio a chuva. Ao tempo que estou nos trópicos já devia saber.

 

Encostou-se à ombreira da porta e examinou-o, observando a maneira atenta e perfeita como ele fazia o menor trabalho, a perfeição suave de todos os seus gestos.

 

Após ter posto o trapo a secar na borda do balde, ele endireitou-se e voltou-se, olhando-a com uma expressão divertida.

 

- Concordo consigo. - Pegou na camisa que estava pendurada num prego e vestiu-a. - Passado algum tempo, dá cabo de nós, não é? Aqui as coisas nunca acontecem por metade. Não me lembro de ter sequer piscado os olhos com uns dias de chuva lá na terra, mas aqui já a vi quase levar homens ao crime.

 

- Foi o seu caso?

 

Os olhos sorridentes pareceram parar um momento, depois voltaram a sorrir:

 

- Não.

 

- Se não foi a chuva, o que foi?

 

- Isso é comigo - disse ele sem se mostrar desagradável. O rosto dela corou:

 

- Também é comigo, considerando as circunstâncias. Oh, porque é que você não percebe que as coisas correm melhor se forem discutidas? É tão metido consigo como o Ben.

 

A camisa fora abotoada e enfiada nas calças:

 

- Não se preocupe, enf. E não se incomode comigo.

 

- Não estou nada incomodada consigo. Mas ocupo-me da X há tempo suficiente para saber o que é melhor para os meus pacientes.

 

- Não sou seu paciente - disse ele numa atitude que dizia esperar que ela se desviasse para o deixar passar.

 

Ela não se mexeu. Continuou no mesmo sítio, mais irritada que zangada:

 

- Michael, claro que é meu paciente. Um paciente bastante estável, admito, mas sem uma boa razão você não teria vindo para a X.

 

- Houve uma razão muito boa. Tentei matar um tipo - disse ele em tom indiferente.

 

- Porquê?

 

- O motivo está nos meus papéis.

 

- Para mim não é motivo suficiente - disse ela, e a sua boca tomou uma linha dura. - Não percebo os seus papéis. Você não é homossexual.

 

- Como sabe? - perguntou ele friamente. Ela respirou fundo e olhou-o de frente.

 

- Sei - disse.

 

Então ele riu, atirando a cabeça para trás:

 

- Ora, enf., a mim não me interessa a razão por que estou aqui, porque lhe havia de interessar a si? Sinto-me contente por estar aqui, é tudo.

 

Ela afastou-se da porta e entrou no quarto.

 

- Você está a erguer barreiras - disse ela lentamente. - Que está a tentar esconder-me? Que é que é tão secreto que não possa dizer-me?

 

Por momentos ele esteve tentado a deixar cair as suas defesas, sempre presentes, e ela teve uma breve imagem de alguém muito cansado, um pouco confuso e preocupado consigo próprio. E ao ver isso sentiu-se desarmada.

 

- Não, não responda a isso - disse ela, sorrindo-lhe com verdadeira amizade.

 

Ele respondeu suavizando a sua expressão, numa afeição que lhe era unicamente dedicada, e disse:

 

- Não sou muito falador, enf., quando se trata de mim. Não sou capaz de falar.

 

- Tem medo de que eu o possa julgar?

 

- Não. Mas para falar tinha de encontrar as palavras certas, e é coisa que pareço nunca conseguir. Ou pelo menos nunca na altura certa. Lá para as três da manhã encontro-as todas.

 

- Isso acontece com toda a gente. A única coisa a fazer é começar. Posso ajudá-lo, porque quero ajudá-lo.

 

Ele fechou os olhos e suspirou:

 

- Enf., não preciso de ajuda. Ela desistiu, de momento.

 

- Então diga-me o que pensa do Benedict - disse.

 

- Porque me pergunta o que penso do Ben?

 

- Porque está a ter bons resultados com ele, coisa que eu nunca consegui. Por favor, não pense que estou ressentida. Estou satisfeitíssima que isso aconteça. Mas estou interessada.

 

- O Benedict. - Baixou a cabeça enquanto pensava. - Já lhe disse que não sou bom a falar. O que penso dele? Gosto dele. Tenho pena dele. Não está nada bem.

 

- Desde aquele incidente na aldeia?

 

Michael abanou a cabeça, com muita convicção:

 

- Oh, não! De muito, muito antes.

 

- Foi por ter perdido os pais muito cedo? Ou por causa da avó que o educou?

 

- Talvez. É difícil de dizer. O Ben não tem a certeza de quem é, acho eu. Ou, se tem a certeza, não sabe como há-de lidar com aquilo que é. Não sou especialista de doenças mentais.

 

- Nem eu - disse ela inquieta.

 

- Mas você sai-se muito bem.

 

- Sendo honesta comigo mesma, Ben é o único que me preocupa quando sair da Base 15.

 

- Quando sair do exército, é?

 

- Sim. - Ela procurava as palavras certas, sem querer magoar os sentimentos de Michael. - Sabe, não sei se o Ben será capaz de viver independente, sem ser enquadrado. Mas também não acho que seja justo para ele sugerir que seja colocado sob detenção.

 

- Num asilo de alienados? - perguntou ele, incrédulo.

 

- Acho que sim. É tudo o que temos para pessoas como o Ben. Mas hesito em fazê-lo.

 

- Está enganada! - gritou ele.

 

- Talvez esteja. Por isso é que hesito.

 

- Matava-o.

 

- Sim. - O rosto dela estava triste. - Como vê, o meu trabalho não é todo leite e rosas.

 

A mão dele pousou no ombro dela, firme como uma garra, abanando-a:

 

- Não faça nada à pressa, por favor! E não o faça sem falar primeiro comigo. A mão era pesada; ela voltou a cabeça para olhar para a mão.

 

- O Ben está a melhorar - disse. - Graças a si. Por isso é que eu lhe estou a falar agora. Não se preocupe.

 

Neil falou da porta:

 

- Pensámos que vocês os dois tinham ido pelo esgoto abaixo - disse em tom ligeiro.

 

A enfermeira Langtry afastou-se de Michael, cuja mão caíra no momento em que se apercebeu da presença de Neil.

 

- Não foi bem pelo esgoto - disse ela, sorrindo para Neil com um certo arde desculpa, embora ficasse aborrecida consigo mesma por sentir que estava a desculpar-se; e aborrecida com Neil, por razões mais obscuras.

 

Michael ficou no mesmo sítio a observar o leve arde proprietário com que Neil conduzia a enfermeira para fora da sala da água. Depois suspirou, encolheu os ombros e seguiu-os para a varanda. A Enfermaria X era um lugar tão privado para se ter uma conversa particular como o centro de uma praça num dia de parada. Toda a gente vigiava toda a gente; e isso era particularmente verdade quanto à enfermeira Langtry. Se não soubessem onde ela estava ou com quem estava, não descansavam enquanto não a encontrassem. E às vezes faziam um pequeno cálculo mental para ver se ela estava a distribuir o seu tempo equitativamente entre todos. Todos? Aqueles que efectivamente contavam. Neil era um mestre em cálculo mental.

 

Na madrugada do dia seguinte, o tempo estabilizara numa suavidade embriagante, que melhorou o humor de toda a gente. Acabados os trabalhos de limpeza, os homens reuniram-se na varanda enquanto a enfermeira ia para o gabinete trabalhar nos seus papéis. A praia estaria aberta à tarde e relativamente cheia; só quando ela estava fechada é que os pacientes da Enfermaria X compreendiam o quanto significava libertarem-se da roupa e dos pensamentos tristes, nadarem, apanharem sol e dormitarem numa agradável indolência.

 

Faltava ainda passar metade da manhã e a habitual apatia não estava presente, pois todos estavam ansiosos pela hora da praia. Luce dispunha-se a dormir numa das camas da varanda, Neil convenceu Nugget e Benedict a jogarem às cartas na mesa, e Michael levou Matt para a ponta da varanda, onde, debaixo da janela do gabinete da enfermeira Langtry, havia umas cadeiras, suficientemente isoladas para poderem estar tranquilos.

 

Matt queria ditar uma carta para a mulher e Michael oferecera-se para servir de amanuense. Mrs. Sawyer não sabia ainda que o marido estava cego; ele insistira para que não se lhe dissesse nada, que queria ser ele mesmo a dizer-lho, que ninguém tinha o direito de o privar dessa regalia. Com pena dele, a enfermeira Langtry acedera, sabendo que a verdadeira razão era uma esperança desesperada de que, antes de voltar a estar com a mulher, acontecesse um milagre e a cegueira desaparecesse.

 

Quando acabou, Michael releu a carta lentamente.

 

- ”...e assim, como a minha mão ainda não está completamente boa, o meu amigo Michael Wilson ofereceu-se para me escrever a carta. Mas não te preocupes. Está tudo a correr bem. Penso que és suficientemente esperta para saberes que se o ferimento fosse grave já há muito que me tinham mandado para Sydney. Por favor não te preocupes comigo. Dá à Margaret, à Mary, à Joan e à minha pequena Pam um abraço e um beijo do pai e diz-lhes que em breve estou de volta. Tenho muitas saudades tuas. Cuida de ti e das meninas. O teu marido Matthew.” Todas as cartas para casa eram sóbrias, os esforços de homens que nunca haviam esperado estar longe das suas casas e dos entes queridos para precisarem de pôr as coisas por escrito. E além disso os sensores liam tudo e nunca se sabia quem tais censores seriam. Assim, a maioria dos homens mantinha-se nos níveis da delicadeza e das banalidades, resistindo à tentação de falarem nas suas tristezas e frustrações. E a maioria dos homens escrevia para casa regularmente, como as crianças encerradas num colégio interno que detestam; quando as pessoas estão felizes e ocupadas, a necessidade de comunicar com os entes queridos que estão longe diminui muito rapidamente.

 

- Achas que está bem? - perguntou Matt, ansiosamente.

 

- Acho que sim. Vou pô-la já num sobrescrito e entregá-la à enfermeira antes do almoço. Mrs. Ursula Sawyer... Como é a direcção, Matt?

 

- Noventa e sete, Fingleton Street, Drummoyne.

 

Luce atravessou a varanda gingando e deixou-se cair numa cadeira de verga.

 

- Olha o nosso pequeno Lord Fauntleroy nas suas obras de caridade! - disse provocadoramente.

 

- Se te sentas nessa cadeira só de calções vais ficar todo às riscas como um presidiário - disse Michael, enfiando no bolso a carta de Matt.

 

- Ora, que se lixem as riscas.

 

- Não digas asneiras e fala baixo, Luce - disse Matt, apontando com precisão para a janela do gabinete.

 

- Aguenta aí, Mike! Tenho uma carta para a mulher do Matt que pode seguir juntamente com essa - disse Luce em voz baixa de forma a que só os três ouvissem. - Querem que leia? ”Querida senhora, sabia que o seu marido está cego como um morcego?”

 

Matt levantou-se com uma rapidez impossível de deter, mas Michael colocou-se de permeio entre o cego frenético e o seu torcionário e segurou Matt com toda a firmeza:

 

- Está tudo bem, amigo! Ele só está a ser mau. Acalma-te, vá! Está tudo bem, digo-te. Ele não pode fazer nada mesmo que queira. Os censores apanhavam-no.

 

Luce observava, divertido, o espectáculo, e não fez qualquer movimento para encolher as pernas quando percebeu que Michael queria levar Matt para a mesa, junto dos outros. Mas em vez de transformar o caso numa discussão, Michael decidiu contornar com Matt as pernas esticadas, e assim se afastaram em paz.

 

Depois de terem partido, Matt para a mesa e Michael para a enfermaria, Luce levantou-se e foi até à balaustrada, apoiando-se nela de cabeça inclinada, para ouvir o murmúrio das vozes de Michael e da enfermeira Langtry através da janela aberta; embora a sua posição e atitude não revelassem aos ocupantes do gabinete, se olhassem para ele, que estava a escutar, a verdade é que não perdia palavra. Depois a porta do gabinete fechou-se e tudo ficou em silêncio. Luce passou junto aos jogadores e entrou na enfermaria.

 

Encontrou Michael na sala a preparar pão com manteiga. Pão fresco e tostadinho era a única delícia culinária, e muito recente, que a Base 15 tinha para oferecer aos seus habitantes. Pacientes e pessoal consumiam enormes quantidades de pão em todas as oportunidades, porque o pão era, de facto, excelente. Às nove da noite, hora da última chávena de chá, nunca restava já nada da ração diária, apesar de esta ser realmente generosa.

 

A saleta não tinha cozinha, apenas um armário de comida e uma área de arrumo de utensílios de limpeza. Tinha um balcão corrido com armário debaixo de uma das janelas, junto da parede que dava para a copa. Havia uma banca e um fogão a álcool em cima do balcão, a certa distância da banca. Não havia qualquer aparelho para manter a comida fria, mas um mosquiteiro estava pendurado por uma corda a uma das vigas do tecto e balançava em voltas preguiçosas como uma lanterna chinesa.

 

Na extremidade do balcão estava um pequeno esterilizador a álcool, onde a enfermeira Langtry fervia o equipamento hipodérmico e os poucos instrumentos de que eventualmente viesse a necessitar. Por uma questão de bons princípios tinha sempre a postos duas seringas, agulhas hipodérmicas, agulhas de sutura, um par de pinças de sutura, fórceps tortos e rectos, tudo rigorosamente esterilizado para o caso de algum paciente se ferir, necessitar de um sedativo injectável numa emergência, ser atacado ou fazer uma tentativa de suicídio. Quando a Enfermaria X fora formada tinha havido acesos debates sobre se os pacientes deviam ou não guardar as navalhas de barba, cintos e outros potenciais instrumentos de destruição, e sobre fechar ou não à chave as facas de cozinha. Mas finalmente fora admitido que era pouco prático, e só uma vez um paciente tentara suicidar-se, felizmente sem sucesso. A violência de um paciente contra outro nunca fora suficientemente premeditada para voltarem atrás na decisão tomada, porque os pacientes que não podiam ser controlados nas condições da Base 15 nunca ficavam lá.

 

Quando escurecia, a saleta enchia-se de baratas; nem toda a higiene do mundo conseguia eliminá-las, pois vinham de fora, subiam da pia de despejos, caíam do telhado de colmo, parecia que nasciam do nada. Quando os homens viam alguma matavam-na, mas vinham sempre outras tomar o lugar desta. Neil tinha o costume de organizar uma caçada em larga escala uma vez por semana em que todos, com excepção de Matt, deviam apresentar um saco com pelo menos vinte baratas, e isso contribuía provavelmente para manter a população de baratas num nível tolerável. Contudo, o quartinho estava sempre limpo, de forma que não havia muito por onde as baratas se alimentassem.

 

Luce ficou à porta a observar Michael por uns momentos, depois meteu a mão no bolso dos calções, tirou o tabaco e começou a enrolar um cigarro. Embora Michael fosse cinco polegadas mais baixo que Luce, ficavam bem um junto do outro, ambos sem camisa, de peito e ombros largos e sem sombra de barriga.

 

Voltando a cabeça para a esquerda, Luce viu que a porta que dava para o gabinete da enfermeira estava bem fechada.

 

- Nunca consigo chatear-te, pois não? - perguntou a Michael, enrolando preguiçosamente o cigarro; um pedacinho de papel de arroz ficara colado aos lábios e abanava enquanto ele falava.

 

Ao ver que Michael não se preocupava em responder, repetiu num tom calculado para fazer ferver qualquer pessoa:

 

- Nunca consigo chatear-te, pois não? Michael não ferveu, mas respondeu:

 

- E que interesse terias nisso? - perguntou.

 

- Porque gosto de chatear as pessoas. Gosto de as pôr furiosas. Quebra a terrível monotonia.

 

- Fazias melhor se te ocupasses em ser agradável e útil.

 

Na maneira como Michael pronunciou as palavras havia uma certa maldadezinha; ainda sentia a aflição de Matt.

 

O cigarro meio feito caiu no chão, o papel de arroz voou quando Luce o cuspiu; atravessou a sala de um salto e agarrou no braço de Michael, abanando-o ferozmente.

 

- Quem pensas tu que és? Não te atrevas a ser paternalista comigo.

 

- Isso parece uma réplica de uma das tuas peças - disse Michael de frente para Luce.

 

Durante talvez um minuto nenhum deles se mexeu, limitando-se a olhar um para o outro.

 

Então a mão de Luce abriu-se, mas, em vez de a baixar, rodeou os bíceps e pôs-se a acariciar as marcas que haviam começado a formar-se sob a pele que agarrara com tanta força.

 

- Há alguma coisa em ti, não há, nosso Michael? - murmurou Luce. - O queridinho da enfermeira, o rapazinho dos olhos azuis. Há alguma coisa em ti de que ela não havia de gostar nem um bocadinho. Mas eu sei o que é e sei o que hei-de fazer acerca disso.

 

A voz era insidiosa, quase hipnótica, e a mão deslizou pelo braço de Michael, agarrou o pulso, obrigando-o a deixar cair a faca da manteiga. Nenhum dos homens respirava sequer. Então, quando a cabeça de Luce se aproximou, os lábios de Michael separaram-se, o ar sibilou entre os dentes cerrados e os olhos incendiaram-se.

 

Ambos ouviram o barulho ao mesmo tempo, e ambos se voltaram. A enfermeira Langtry estava parada à porta.

 

Luce baixou indolentemente a mão, não demasiado depressa nem com ar de remorso, depois afastou-se um passo com toda a naturalidade.

 

- Ainda não acabou, Michael? - perguntou a enfermeira Langtry numa voz não muito normal, embora o resto assim parecesse, e mesmo os olhos.

 

Michael apanhou a faca da manteiga.

 

- Quase, enf.

 

Luce afastou-se, lançou uma olhadela maliciosa à enfermeira ao passar por ela e saiu da sala. O cigarro esquecido ficara no chão, e o papel e os farrapinhos de tabaco agitavam-se no vento leve.

 

Respirando fundo, a enfermeira Langtry entrou na sala sem reparar que estava a limpar a palma das mãos ao vestido, para cima e para baixo, para cima e para baixo. Parou onde podia ver Michael de perfil enquanto este se punha a cortar o pão com manteiga em pequenos segmentos e a empilhá-los numa travessa.

 

- Que foi isto? - perguntou ela.

 

- Nada - disse ele, como se não tivesse sido nada com ele.

 

- Tem a certeza?

 

- Absoluta, enf.

 

- Ele não estava a... atirar-se a si?

 

Michael virou-se para fazer o chá; a chaleira estava a ferver furiosamente em cima do fogão a álcool, juntando o seu vapor a uma atmosfera já pesada. Oh, céus, porque é que as pessoas não o deixariam em paz?

 

- A atirar-se a mim? - repetiu, esperando que se se mostrasse obtuso, a desarmaria.

 

Ela tentou desesperadamente encaminhar as suas emoções e pensamentos para uma espécie de ordem disciplinada, consciente de que raramente se sentira tão irritada, tão desequilibrada.

 

- Oiça, Michael - disse, falando sem tremer -, sou uma rapariga crescida e não quero que me façam sentir outra vez uma rapariga pequena. Porque insiste em tratar-me como se eu não pudesse aguentar aquilo que lhe vai no espírito? Volto a perguntar-lhe: o Luce estava a meter-se consigo? Estava?

 

Michael lançou uma grande e espessa corrente de água entre a chaleira e o bule vazio.

 

- Não, enf., francamente não estava. Estava só a fazer de Luce. - Um leve sorriso torceu-lhe o canto da boca, ele pousou a chaleira no fogão, apagou a chama e virou-se para a olhar de frente. - É muito simples. O Luce estava só a tentar descobrir a maneira de me chatear. Foi isso que ele disse. Mas não consegue. Já vi muitos homens como o Luce. Por muito que me irritem, não vou voltar a perder o meu domínio. - Uma das mãos fechou-se. - Não posso! Tenho medo do que possa fazer.

 

Havia alguma coisa nele; curiosamente, Luce usara aquelas mesmas palavras. O olhar dela pousou no ombro nu, sem perceber se era suor ou vapor aquilo que o molhava. De repente sentiu-se apavorada com a ideia de encontrar o olhar dele, sentiu a cabeça leve e um buraco no estômago, tão aflita e perturbada como uma rapariguinha no seu primeiro amor por uma figura adulta distante.

 

A cor fugiu-lhe do rosto, e ela cambaleou. Ele moveu-se velozmente, certo de que ela ia desmaiar, e passou-lhe o braço pela cintura, aguentando-a com a força suficiente para que ela não sentisse peso nos pés. Ela nada mais sentia além do braço e do ombro dele, até que, horrorizada, sentiu qualquer coisa erguer-se dentro dela que transformou os mamilos em montinhos duros e lhe inchou dolorosamente os seios.

 

- Oh, céus, não! - gritou, libertando-se e disfarçando o grito num protesto contra Luce, batendo com o punho no balcão. - Ele é uma ameaça - disse, através dos dentes cerrados. - É capaz de destruir qualquer coisa só pelo seu próprio prazer.

 

A perturbação não a atingia só a ela. Quando Michael levantou a mão para limpar o suor do rosto esta tremia. E ele virou-se, obrigando-se a respirar em inalações breves, sem se atrever a olhar para ela.

 

- Só há uma maneira de lidar com o Luce - disse ele: é não deixar que ele nos chateie.

 

- O que ele precisa é de seis meses de pá e picareta.

 

- A mim também não me faziam mal. A nenhum de nós na X - disse suavemente, arranjando forças para levantar o tabuleiro. - Venha, enf. Vai sentir-se melhor com uma chávena de chá.

 

Ela conseguiu improvisar um sorriso e olhou para ele sem saber se havia de se sentir envergonhada ou exaltada e procurando no rosto dele algo que a tranquilizasse. Mas, tirando os olhos, o rosto tinha um ar impessoal, e os olhos não revelavam nada excepto um alto grau de excitação emocional, porque as pupilas estavam muito dilatadas. O que também podia ser por causa de Luce.

 

Não havia sinais de Luce na enfermaria nem na varanda. Os jogadores abandonaram as cartas, satisfeitos com a chegada do chá, porque estavam já há algum tempo à espera dele.

 

- Quanto mais suo, mais chá bebo - disse Neil, esvaziando a caneca de um trago e estendendo-a para que lha enchessem de novo.

 

- É tempo de uma pastilha de sal para si, meu amigo - disse a enfermeira Langtry, tentando dar à voz o tom correcto de boa disposição e indiferença.

 

Neil deitou-lhe um olhar de relance; os outros fizeram o mesmo.

 

- Corre alguma coisa mal, enf.? - perguntou Nugget ansiosamente. Ela sorriu e abanou a cabeça:

 

- Um ataquezinho do Luce. Onde é que ele está?

 

- Tenho a impressão que foi em direcção à praia.

 

- Antes da uma hora? Isso não está nada nos hábitos dele.

 

Nugget sorriu, a sua semelhança com um pequeno roedor acentuada pelo aparecimento de dois incisivos superiores proeminentes.

 

- Eu disse que ele foi nadar? E disse a qual praia? Foi só dar um passeio, e se por acaso encontrar uma senhora simpática... Bom, para conversar com ela, é tudo.

 

Michael suspirou audivelmente, sorrindo para a enfermeira Langtry, como a dizer-lhe: ”Está a ver, eu bem lhe disse que não havia razões para se preocupar.” E encostou-se na cadeira levantando os braços para pôr as mãos por trás da cabeça; os peitorais retesaram-se e os pelos dos sovacos estavam escuros e brilhantes de suor.

 

Ela sentiu-se empalidecer de novo e conseguiu com grande esforço pousar a chávena no pires sem entornar o chá. ”Isto é ridículo”, pensou, lutando teimosamente contra a emoção. ”Não sou uma menina de escola. Sou uma mulher adulta e experiente!”

 

Neil endireitou-se, estendeu a mão e apertou a dela, tranquilizador.

 

- Vá, acalme-se! O que aconteceu, enf.? Uma ponta de febre? Ela apanhou a ideia:

 

- Acho que deve ser. Não se importam se eu sair mais cedo? Ou querem que peça à chefe que mande uma substituta até depois do almoço?

 

Neil acompanhou-a até à enfermaria enquanto os outros ficavam sentados à mesa com um ar preocupado, incluindo Michael.

 

- Por amor de Deus, não nos impinja uma substituta! - suplicou Neil. Nós ficamos bem se você também ficar boa. Vai sentir-se bem sozinha? Talvez seja melhor eu acompanhá-la ao seu quarto.

 

- Não, Neil, a sério. Duvido que seja mais grave do que uma indisposição. Talvez o tempo. Prometia ir ficar fresco e seco, mas agora está uma autêntica terrina de sopa. Uma tarde de descanso deve pôr-me fina. - Abriu a cortina de cápsulas e sorriu-lhe. - Vemo-nos logo à noite.

 

- Só se se sentir melhor, enf., de qualquer modo nada de substitutas, por favor. Isto por aqui está tão sossegado como um túmulo.

 

O quarto da enfermeira Langtry era um de uma fila de dez quartos iguais, construídos no mais puro estilo Base 15, dispostos uns a seguir aos outros e dando para uma varanda; toda a estrutura assentava sobre pilares dez pés acima do solo. Há quatro meses era a única habitante do bloco, uma indicação não de pouca sociabilidade da sua parte mas da necessidade de privacidade de uma mulher madura. Desde que entrara para o exército, em 1940, partilhara sempre os alojamentos, quatro numa tenda pequena durante os dias de hospital de sangue. Quando chegara, a Base 15 parecera-lhe um paraíso, embora tivesse sido obrigada a partilhar o quarto, o mesmo que ainda ocupava, e o bloco vibrava com os sons agudos de mulheres vivendo demasiado próximas. Não era pois de espantar que, quando o pessoal de enfermagem foi reduzido, as que ficaram tivessem querido afastar-se o mais possível umas das outras e se dessem ao luxo de estarem sós.

 

A enfermeira Langtry entrou no quarto e dirigiu-se imediatamente à secretária. Abriu a gaveta de cima e tirou um frasco de comprimidos Nembutal um e meio. Havia uma garrafa de água fervida tapada com um copo de vidro ordinário em cima da secretária; tirando o copo, serviu-se de um pouco de água e engoliu um comprimido antes que mudasse de ideias. Os olhos que via nas profundezas corroídas do espelhinho colocado acima da secretária tinham olheiras escuras e estavam vazios; desejou que ficassem assim até o Nembutal fazer efeito.

 

Com uma longa prática, encontrou e tirou dois ganchos que seguravam o véu e tirou todo o - edifício da touca, colocando-a numa cadeira, onde ele ficou vazio e rígido a troçar mudamente dela. Sentou-se na beira da cama para desapertar os sapatos de serviço de dia, arrumou-os direitinhos num sítio onde tinha a certeza de não lhes dar um pontapé quando saísse da cama, depois levantou-se para tirar o uniforme e a roupa interior.

 

Um roupão de algodão com vagos motivos orientais estava pendurado num prego atrás da porta; enfiou-o e foi tomar um duche no balneário tristonho. E finalmente, de pele limpa, decentemente vestida com um pijama de algodão, estendeu-se na cama e fechou os olhos. O Nembutal estava a fazer efeito, dando-lhe uma sensação bastante semelhante à que se segue a uma boa dose de gim, vertiginosa e levemente nauseante. Mas pelo menos estava a fazer efeito. Suspirou e lutou por abandonar o que lhe restava de consciência, pensando: ”Sentirei amor por ele ou terá um nome muito diferente de amor? Ou terei simplesmente estado muito tempo afastada da vida normal, subjugando as minhas sensações físicas com demasiada dureza? Pode ser isso. Espero que seja. Amor não. Aqui não. Não com ele. Para mim ele não parece ser o género de homem que aprecia o amor...”

 

As imagens esbateram-se, misturaram-se, fundiram-se; ela adormeceu sentindo-se tão grata que seria capaz de dizer a si mesma que o paraíso seria não ter de voltar a acordar do sono, nunca, nunca mais...

 

Quando subia a rampa da X, nessa tarde, por volta das sete horas, encontrou Luce em frente da porta; ele ia a desviar-se com um floreado quando ela se deteve em frente dele, com ar sombrio.

 

- Gostaria de falar consigo um momento, por favor. Ele pôs os olhos em alvo:

 

- Oh, enf. não seja má! Tenho um encontro marcado.

 

- Então falte ao encontro. Entre, sargento.

 

Luce observava-a enquanto ela tirava o chapéu com a banda vermelha e cinzenta e o pendurava no cabide, onde durante o dia estava colocada a capa vermelha; Luce gostava mais de a ver de uniforme nocturno, um soldadinho todo de cinzento.

 

Instalada atrás da secretária, ela ergueu os olhos e viu-o encostado à parede junto da porta aberta, de braços cruzados, pronto para escapar.

 

- Entre, feche a porta e ponha-se em sentido, sargento - disse friamente, esperando que ele obedecesse. Depois continuou: - Gostava que me explicasse exactamente o que se passou na copa esta manhã entre você e o sargento Wilson.

 

Luce encolheu os ombros e abanou a cabeça.

 

- Nada, enf.

 

- Nada, enf.? Pois a mim não me parece que fosse nada.

 

- Então que lhe parece? - perguntou, sorrindo ainda, parecendo mais divertido com ela que perturbado.

 

- Pareceu-me que estava a fazer uma espécie de proposta homossexual ao sargento Wilson.

 

- Estava, sim - disse ele simplesmente.

 

Surpreendida, ela fez uma pausa para pensar no que havia de dizer a seguir e acabou por perguntar:

 

- Porquê?

 

- Oh, só estava a experimentar, é tudo. Ele é um maricas. Só queria ver o que ele faria.

 

- Isso é difamação, Luce. Luce riu:

 

- Então ele que me processe. Estou a dizer-lhe que ele é um maricas de primeira.

 

- O que não explica que fosse você a fazer a proposta, pois não? Se deixarmos o sargento Wilson fora disto, você até não é nada homossexual.

 

O movimento foi tão súbito que a fez atirar-se para trás involuntariamente; Luce sentou-se de lado na secretária e aproximou o rosto do dela, tão perto que ela pôde ver a extraordinária estrutura das íris, a variedade de manchas e traços coloridos que lhe davam aquela qualidade de camaleão; as pupilas dele estavam ligeiramente dilatadas e lustrosas de reflexos. E o coração dela partiu a galope, lembrando-se do efeito que ele tivera sobre si própria durante aqueles dois primeiros dias na enfermaria. Sentiu-se tonta, hipnotizada, quase enfeitiçada. Mas o que ele disse a seguir arrancou-a ao encanto, ao poder dele.

 

- Queridinha, eu sou qualquer coisa - disse ele baixinho. - Sou o que quiser. Jovem, velho, macho, fêmea: tudo me serve.

 

Ela não pôde reprimir um soluço de nojo.

 

- Cale-se! Não diga isso! Você é um maldito.

 

O rosto dele aproximou-se ainda mais e o seu hálito fresco e saudável envolveu-a.

 

- Vamos, enf., experimente-me. Sabe qual é o seu problema? É ainda não ter experimentado ninguém. Porque não começa pelo melhor? E eu sou o melhor que há, a sério que sou. Oh, mulher, posso fazê-la tremer e gritar e pedir mais! Nem imagina o que posso fazer. Vá, enf., experimente-me. Não se perca com um mariquinhas cansado de mais para conseguir levantá-la. Experimente-me! Sou o melhor que há.

 

- Vá-se embora - disse ela, de narinas apertadas.

 

- Normalmente não gosto de beijar as pessoas, mas vou beijá-la. Vá, enf., beije-me.

 

Não havia para onde fugir; as costas da cadeira estavam tão próximas da parede que quase não havia espaço para se sentar. Mas ela empurrou a cadeira com tanta violência que esta bateu no parapeito da janela, e todo o seu corpo se arqueou numa convulsão de raiva que Luce não podia confundir com qualquer outra coisa.

 

- Fora, Luce! Imediatamente!

 

Pôs a mão diante da boca como se fosse vomitar, de olhos fitos naquele rosto fascinante como se estivesse a ver o próprio diabo.

 

- Está bem, pronto, dê cabo de si à vontade - disse ele. E levantou-se, puxando e esfregando as calças para disfarçar a erecção. - Que grandessíssima tola. Não há-de ter grande prazer com nenhum deles. Não são homens. Eu sou o único homem daqui.

 

Depois de ele ter partido, ela ficou a olhar para a porta fechada, vendo com rígida atenção todos os seus pormenores, até que sentiu o horror e o medo apoderarem-se dela e experimentou uma vontade tão grande de chorar que só o olhar fixamente para a porta impediu que as lágrimas corressem. Porque sentira o poder dele, a vontade de obter o que queria custasse o que custasse. E perguntou a si própria se Michael teria sentido o mesmo na copa, empalado por aqueles olhos lascivos.

 

Neil bateu, entrou e fechou a porta, escondendo algo nas mãos atrás das costas. Antes de se sentar na cadeira das visitas tirou a cigarreira e estendeu-lha sobre a secretária. Era parte de um ritual que tinha vários gestos, mas naquela noite ela pegou no cigarro e debruçou-se para ele lho acender como se tivesse tanta necessidade do cigarro que tivesse esquecido o ritual.

 

As botas dela rasparam o chão quando se ergueu; Neil levantou um sobrolho.

 

- Não é costume sentar-se sem tirar as botas, enf. Tem a certeza de que já se sente bem? Não tem febre? Nem dores de cabeça?

 

- Nem febre nem dores de cabeça, doutor, e estou perfeitamente bem. Não tirei as botas porque encontrei o Luce à entrada e queria falar com ele. Por isso as botas foram esquecidas.

 

Ele levantou-se, contornou a secretária e ajoelhou-se no minúsculo espaço ao lado da cadeira dela, dando-lhe uma pancadinha na coxa.

 

- Vá, levante o pé.

 

Os atacadores das botas estavam muito apertados, e levou-lhe um certo tempo a abri-los; tirou-lhe depois a bota e enrolou a meia para cima das calças. Fez o mesmo no outro pé, sentou-se sobre os calcanhares e pôs-se à procura das sapatilhas de sola de borracha que ela usava na enfermaria à noite.

 

- Na gaveta de baixo - disse ela.

 

- Assim está melhor - disse ele depois de ter apertado as sapatilhas a seu gosto. - Confortável?

 

- Sim, obrigada.

 

Neil voltou para a cadeira.

 

- Ainda me parece um pouco pálida. Ela olhou para as mãos, que tremiam.

 

- Apanhei o Joe Blakes - disse ela surpreendida.

 

- Porque não mete baixa?

 

- São só nervos, Neil.

 

Fumaram em silêncio, ela olhando teimosamente pela janela e ele olhando para ela com atenção. Depois, quando ela se voltou para apagar o cigarro, Neil POUSOU na secretária, em frente dela, o papel que trazia escondido atrás das costas.

 

Michael! Exactamente como ela o via, belo e forte, os olhos fitando-a tão honesta e directamente que parecia impossível que por trás deles se escondesse qualquer coisa de menos humano.

 

- É o melhor dos que fez até agora; penso que está até melhor que o de Luce - disse ela, olhando avidamente para o desenho e desejando que a sua alegria não tivesse sido demasiado visível quando ele lhe mostrara o retrato. Pegando nele com cuidado, entregou-o a Neil. - Quer fazer o favor de o pregar na parede?

 

Ele obedeceu, fixando o desenho com punaises, colocando-o à direita da fila central a seguir ao seu próprio retrato. O contraste era forte, pois que, ao tentar retratar-se, a sua objectividade falhara e o rosto do desenho era fraco, cansado, atenuado.

 

- Estamos completos - disse, voltando a sentar-se. - Tome outro cigarro. Ela pegou no cigarro quase com tanta pressa como pegara no primeiro, inspirou profundamente o fumo e, ao expirá-lo, disse-lhe num tom rápido e artificial, apontando para o novo desenho:

 

- O Michael representa para mim o enigma do homem.

 

- Está um bocado baralhada, enf. - disse Neil à vontade, sem dar a entender que percebia como era difícil para ela discutir o caso de Michael e sem trair a sua própria preocupação obsessiva acerca dela e de Michael. - As mulheres é que são o enigma. Pergunte a quem quiser, desde Shakespeare a Shaw.

 

- Só para os homens. Shakespeare e Shaw eram homens. Dá para ambos os lados, bem sabe. O sexo oposto é sempre terra incógnita. E assim, sempre que penso que percebi os homens, vocês dão uma volta complicada e lá está de novo o problema. Lá vão a nadar na direcção oposta à minha. - Sacudiu a cinza do cigarro e sorriu a Neil. - Suponho que a principal razão que me faz gostar de dirigir sozinha esta enfermaria é a oportunidade de estudar um grupo de homens sem interferência de outras mulheres.

 

Ele riu.

 

- Que ponto de vista tão clínico! Pode dizer isso a mim à vontade, mas nunca o diga ao Nugget, senão ele arranja logo um caso de peste bubónica e antrazes. A expressão dos olhos dela revelava uma certa indignação, como se estivesse a pontos de protestar que ele a interpretava mal, mas ele continuou sem que ela conseguisse interrompê-lo, perguntando a si mesmo se ela ainda se deixaria influenciar por uma resposta facciosa. - Os homens são basicamente as mais simples das criaturas. Não tão baixos como protozoários, mas de certeza que estão muito longe do tipo de enigma ”anjos na cabeça de um alfinete”.

 

- Disparate! Você é um mistério muito mais complicado que qualquer número de ”anjos na cabeça de um alfinete”, e muito mais importante. Olhe o Michael, por exemplo...

 

Não, não podia fazer isso. Não podia decidir-se a falar sobre o que acontecera entre Michael e Luce na copa, embora a caminho do seu gabinete tivesse pensado que Neil era a única pessoa que podia ajudá-la. Mas de repente percebeu que falar-lhe seria revelar-se, e isso não conseguia ela fazer. E depois havia a sua terrível cena com Luce; acabaria por ter de lhe falar também disso; e ainda resultaria em morte de homem. Fechou a boca e não acabou a frase.

 

- Está bem, então. Vejamos o Mike - disse Neil, como se ela tivesse acabado a frase. - Que há de tão especial com o nosso anjo-da-guarda Michael? Quantos dele caberiam na cabeça de um alfinete?

 

- Neil, se começa a dizer coisas como as que diz o Luce Daggett, juro que não volto a falar consigo.

 

Ele ficou tão surpreendido que deixou cair o cigarro; debruçou-se para o apanhar e depois pôs-se a olhar para ela com desconfiança e consternação.

 

- Que diabo provocou isso? - perguntou.

 

- Ora, diabos levem o maldito homem - foi tudo quanto ela conseguiu dizer.

 

- Enf., considera-me seu amigo? Quero dizer, alguém realmente a seu lado, sempre a seu lado?

 

- Claro que sim! Não precisa de mo perguntar.

 

- É realmente o Luce que a está a preocupar ou é o Michael? Conheço e suporto o Luce há mais de três meses sem nunca ter sentido o que sinto neste momento... desde que o Michael chegou, para dizer a verdade. Em duas semanas este lugar transformou-se numa caldeira instável. Estou à espera que rebente de um minuto para o outro, mas até agora tem-se mantido nos limites da zona de perigo. Estar à espera de uma explosão que temos a certeza que vai acontecer é um sentimento muito desagradável. É como estar de regresso à batalha.

 

- Sabia que não gostava muito do Michael, mas não imaginava que fosse coisa tão profunda - disse ela por entre os dentes.

 

- Não é nada que não goste do Michael! É um tipo esplêndido. Mas o Michael é a diferença. Não é o Luce. É o Michael.

 

- Isso é ridículo! Como é que o Michael podia tornar tudo diferente? Ele é tão... tão sossegado!

 

”Bom, por aqui não vou lá”, pensou ele, observando-a atentamente. Perceberia ela o que lhe estava a acontecer, a ela, a ele, a todos eles?

 

- Talvez porque você esteja diferente. Desde que o Michael chegou - disse ele em voz firme -, com certeza que percebeu que todos nós temos tendência a imitá-la, o nosso humor, as nossas atitudes, até mesmo o Luce. E desde que o Michael chegou, você é uma pessoa muito diferente: modos diferentes, atitudes diferentes.

 

Oh, Deus! Firmeza nessa cara, enfermeira Langtry, não permitas que ela revele nada. E não revelou; olhou para ele com um interesse quase delicado, liso, calmo e impassível. Por trás do rosto, o cérebro tentava compreender todas as implicações daquela entrevista e formular um comportamento que, se não tranquilizasse Neil, pelo menos lhe parecesse lógico, dado o que ele conhecia dela, e acabara de lhe fazer compreender que conhecia muito mais do que o que ela suspeitava. Tudo o que ele dissera era verdade, mas ela não podia admiti-lo; estava demasiado consciente da fragilidade dele, de como dependia dela. E diabos o levassem por ter trazido à baila uma questão que ela ainda não conseguira solucionar dentro de si.

 

- Estou cansada, Neil - disse ela, o rosto mostrando de súbito o cansaço de todo aquele dia longo e difícil. - Isto já dura há tempo de mais. Ou sou eu que sou demasiado fraca. Quem me dera saber. - Humedeceu os lábios. - Não atire as culpas para o Michael, por favor. É tudo demasiado complicado para poder ser traduzido assim tão simplesmente. Se estou diferente é por causa de coisas que se passam dentro de mim. Estamos a chegar ao fim, e vai começar outra coisa. Penso que me estou a preparar para isso e que vocês todos estão a fazer o mesmo. E sinto-me muito cansada. Por favor, Neil, não torne tudo mais difícil. Tente dar-me uma ajuda.

 

Algo de extraordinário estava a acontecer a Neil; na verdade, sentia-o fisicamente enquanto escutava uma Honour Langtry que quase admitia a derrota. Como se ao vê-la em baixo os seus próprios recursos íntimos aumentassem. Como se se estivesse a alimentar dela. E era isso, pensou exultante; subitamente ela era tão humana como ele, uma pessoa que chegara aos limites das suas energias e daquilo que era capaz de aguentar, e portanto, era falível. Vê-la assim era compreender as suas próprias forças em vez de se sentir sempre diminuído pelas dela.

 

- Quando a conheci - disse ele lentamente - pensei que você era feita de ferro. Sólida. Tudo aquilo que eu não tinha, você tinha. Perdiam-se alguns homens num combate? Sim, você havia de lamentar, mas não seria isso que a mandaria para um lugar como a X. Nada no vasto mundo a poderia trazer para um lugar como a X. E suponho que nessa altura eu precisava de si assim. Se eu não precisasse disso, você não me teria ajudado, e ajudou. Muitíssimo. Não quero que se vá agora abaixo. Farei tudo o que estiver ao meu alcance para impedir que se vá abaixo. Mas é agradável ver a balança inclinar-se um bocadinho para o meu lado, para variar.

 

- Compreendo - disse ela, sorrindo; mas depois suspirou: - Oh, Neil, desculpe. A verdade é que me sinto um bocado em baixo. Não quero tentar arranjar desculpas. Tem toda a razão no que se refere aos meus modos e atitudes. Mas hei-de aguentar.

 

- Diga-me só porque está o Michael na X.

 

- Não me pode fazer uma pergunta dessas, Neil, bem sabe! - disse ela espantada. - Não posso discutir um paciente com outro.

 

- A não ser que se chame Benedict ou Luce. - Encolheu os ombros. - Ora, valeu a pena tentar. Não pergunto por mera curiosidade. Ele é um homem perigoso. Tem demasiada integridade.

 

Imediatamente lamentou o que tinha dito, pois não desejava vê-la afastar-se no momento em que a tinha tão perto dele.

 

Contudo, ela não se afastou nem se pôs na defensiva, embora se pusesse de pé. São mais que horas de dar um salto à enfermaria, o que não é pô-lo na rua, Neil. Tenho muito que lhe agradecer. - À porta parou à espera dele. - Concordo consigo, o Michael é um homem perigoso, mas você também é, assim como o Luce, e, já agora, o Ben. De maneiras diferentes, talvez. Mas, sim, são todos perigosos.

 

Nessa noite saiu da enfermaria um pouco mais cedo que de costume, recusando a oferta de Neil de a acompanhar, e dirigiu-se lentamente para o seu quarto. Era horrível não ter ninguém a quem recorrer. Se tentasse falar ao coronel Chinstrap ele mandava-a fazer um exame mental, e quanto à enfermeira-chefe... Não havia ninguém para quem se pudesse voltar, mesmo entre as suas amigas enfermeiras, porque as mais íntimas tinham partido quando parte da Base 15 fora fechada.

 

Aquele fora o pior de todos os dias da sua vida: uma série de encontros abaladores que a atormentavam, confundiam, preocupavam e irritavam. Michael, Luce, Neil e ela mesma, girando, rodando, aparecendo e desaparecendo, como as imagens dos espelhos de feira que transformavam em coisas grotescas as formas familiares.

 

Provavelmente havia uma explicação lógica para a maior parte do que ela vira - ou pensara ver - na copa. O seu instinto acerca de Michael apontava para um lado, a conduta deste na copa e algumas das suas afirmações apontavam para outro. Porque não teria ele mandado Luce embora, ou até lhe dado um soco? Porque ficara ali como um boneco, durante um tempo que parecia infinito, deixando aquela horrível presença física dominá-lo? Porque da última vez que o fizera seguira-se uma luta letal que acabara por o levar para a X? Era muito Possível que fosse essa a razão, embora ela não tivesse a certeza absoluta que fora assim que começara a luta. Os papéis de Michael não eram específicos e ele nunca contara nada. Porque teria ele deixado Luce pôr-lhe a mão em cima? Com certeza Podia ter-se ido simplesmente embora. Quando ela o encontrara havia vergonha e nojo nos olhos dele, e depois ele fechara-se completamente. Nada daquilo fazia sentido.

 

O murmúrio de Luce... Sou tudo tudo o que quiser... Velho, novo, macho, fêmea... Tudo me serve. Sou o melhor... Sou mesmo um bocadinho de Deus... Apesar da sua experiência pessoal e como enfermeira, nunca lhe ocorrera que pudessem existir pessoas como Luce, pessoas que se podiam permitir funcionar sexualmente a qualquer nível, puramente como um expediente. Como é que Luce se tornara no que era? Só imaginar a quantidade de sofrimento necessária para criar um Luce assustava-a. Ele tinha bom aspecto e inteligência, saúde e juventude. E apesar disso não tinha nada, absolutamente nada. Era um vazio.

 

Neil no papel de condutor, obrigando-a a admitir coisas que ela não tivera tempo de compreender totalmente. Nunca, desde que conhecia Neil intimamente, pensara nele como um homem inatamente forte, mas nitidamente ele era-o. Um homem duro. O céu ajudasse as pessoas de quem ele não gostasse, ou as pessoas que lhe fizessem alguma coisa que rejeitasse esse amor. Aqueles doces olhos azuis tinham brilhado como chispas de lápis-lazúli.

 

O choque da sua enorme e involuntária reacção a Michael, uma fraqueza que existia mesmo antes de se aperceber dela. Nunca se sentira assim na vida, nem na época em que estivera, pensava ela, apaixonada. Se Michael a tivesse beijado, ela tê-lo-ia arrastado para o chão como uma cadela com cio...

 

Quando chegou ao quarto olhou para a gaveta de cima avidamente, mas decidiu-se a não tocar no frasco de Nembutal... Na tarde desse dia o seu uso fora absolutamente necessário; sabia que, se passasse a tarde acordada, nada neste mundo a obrigaria a voltar à X. Tratamento de choque. Mas agora o choque já passara, embora desde então não lhe tivessem faltado os choques. Cumprira o seu dever e voltara à X, voltara ao pesadelo em que a X se tinha transformado.

 

Neil tinha razão, claro. A mudança estava nela, devia-se a Michael, e estava a afectá-los a todos fortemente. Que louca não ter compreendido que o seu pressentimento de sarilhos não tinha nada a ver com a enfermaria ou os pacientes em si; começava e acabava dentro dela própria. Portanto, tinha de parar. Tinha de parar! Tinha, tinha, tinha, tinha... ”Oh, Deus, estou doida, estou tão louca como qualquer dos homens que têm passado pela X, e onde é que eu vou acabar? Onde, meu Deus, onde?”

 

Havia uma mancha no soalho, num canto onde ela entornara um dia a única garrafa de gasolina para isqueiro que possuía. Lembrava-se de, na altura, ter ficado perturbada. Agora ali estava a mancha, uma recordação visível de falta de jeito.

 

A enfermeira Langtry foi buscar um balde e uma escova, ajoelhou-se e esfregou a mancha até o soalho ficar branco. Depois o resto do chão, em comparação, pareceu-lhe sujo, e ela continuou a esfregar até todo o chão ficar molhado, limpo, branqueado. Mas isto fê-la sentir-se melhor. Melhor que com Nembutal. E estava suficientemente cansada para dormir.

 

- Digo-lhes que há qualquer coisa que não está bem nela - insistia Nugget, todo arrepiado. - Jesus, que mal me sinto!

 

Tossiu do fundo dos pulmões e cuspiu com precisão para o tronco de uma palmeira, por cima do ombro de Matt.

 

Estavam os seis instalados em círculo, na praia, nus; vistos de longe, pareciam um círculo de pedras castanhas postas ali intencionalmente com qualquer objectivo religioso ou ritual. O dia estava perfeito, entre morno e quente, e sem gota de humidade. Mas apesar do tempo aliciante estavam de costas voltadas para o mar, a areia e as palmeiras. Estavam a olhar para dentro de si mesmos.

 

A enfermeira Langtry era o assunto em discussão. Neil convocara um conselho e estavam todos interessados. Matt, Benedict e Luce eram de opinião que fisicamente ela estava um bocado em baixo, mas não tinha mais nada; Nugget e Neil pensavam que havia algo de mais grave; e Michael, para grande fúria de Neil, teimava em abster-se sempre que lhe pediam a opinião.

 

”Quantos de nós estão a ser honestos”, perguntava-se Neil. ”Discutimos e analisamos as nossas teorias de dermatites até malária, passando por perturbações femininas, como se acreditássemos realmente que é só o corpo dela que está em causa. E eu, para começar, não quero sugerir que a causa não seja o seu corpo. Quem me dera poder esmagar o Michael, mas ainda não consegui sequer aproximar-me dele. Ele não a ama! Eu amo-a, ele não. Será certo ou justo que ela me troque por ele? Porque é que ele não a ama? Podia matá-lo por aquilo que ele lhe está a fazer.”

 

A discussão era calma, ia correndo interrompida por longos silêncios, pois todos eles estavam assustados. Ela era tão importante para eles, e eles nunca até então tinham precisado de se preocupar com ela. O único rochedo inabalável no inseguro mar deles a que se haviam agarrado e onde tinham encontrado a calma depois das tempestades. As metáforas eram infinitas: a âncora, a nossa senhora, o rochedo, o coração, o socorro deles. Porque todos eles tinham recordações especiais dela, especiais para cada um deles, uma razão absolutamente individual para a amarem.

 

Para Nugget, ela era a única pessoa, para além da mãe, que se preocupara o suficiente com ele para tratar da sua precária saúde. Transferido da Abdominotórax para a X, sob os aplausos satisfeitos daqueles que deixava, saíra de um mundo atarefado, malcheiroso e barulhento onde ninguém tinha tempo para o ouvir, obrigando-o assim a falar sempre muito alto para atrair a atenção.

 

Estava doente, mas eles não queriam acreditar. Quando chegou à X, teve dores de cabeça, que admitiu não serem uma das suas enxaquecas, mas um protesto latejante contra a tensão muscular e que na altura sentira ser tão mau como a enxaqueca, embora diferente. E ela sentara-se à cabeceira da sua cama e escutara atentamente enquanto ele descrevia a natureza exacta da sua dor e mostrara-se interessada e preocupada com ele. Quanto mais liricamente ele contava os seus sofrimentos, mais interessada e compadecida ela se mostrava. Trazia compressas frias, uma bateria de pilulazinhas de todas as formas e feitios - e a bênção de poder discutir com ela os problemas decorrentes da escolha da medicação mais adequada para aquela dor de cabeça particular tão diferente de todas as outras dores de cabeça que tinha sentido... claro que sabia que era a técnica dela; não pensassem que ele, Nugget, era um tolo. O diagnóstico do seu caso também não mudara. Mas ela preocupava-se realmente com ele porque lhe dedicava o seu tempo precioso, e para Nugget esse era o único critério válido do tratamento. Ela era tão bonita, tão completa; e contudo olhava-o sempre como se ele tivesse importância para ela.

 

Benedict via-a infinitamente superior a qualquer outra mulher, distinguindo, como sempre, entre mulheres e raparigas. As fêmeas nasciam uma coisa ou outra e não havia maneira de mudar. As raparigas eram nojentas; riam-se do aspecto dele, atacavam-no com tanta crueldade e precisão como os gatos. As mulheres, por outro lado, eram criaturas calmas, as guardiãs da raça, amadas por Deus. Os homens matavam, traíam e fornicavam, as raparigas destruíam o mundo, mas as mulheres eram a vida e a luz. E a enfermeira Langtry era a mais perfeita de todas as mulheres. Nunca a via sem ter vontade de lhe lavar os pés, de morrer por ela se fosse necessário. E tentava nunca pensar nela sujamente, sentindo que isso seria uma traição, mas às vezes, nos seus sonhos desregrados, ela caminhava livre, de seios e sítios peludos à vista, e isso bastava-lhe para o convencer de que era indigno de olhar para ela. Só poderia pagar pelas suas culpas se encontrasse a resposta, e sentia sempre que Deus tinha posto a enfermeira Langtry no mundo de certo modo para lhe dar a resposta. Esta ainda lhe escapava, mas com ela ele sentia-se sem diferenças, sentia que pertencia a um sítio qualquer. Michael causava-lhe a mesma impressão; desde que Michael chegara pensava nele e na enfermeira Langtry como uma pessoa só, indivisível, um máximo de bondade e compaixão.

 

Entretanto, o resto da Enfermaria X era como o resto do mundo, uma série de coisas. Nugget era um esquilo, uma doninha, uma ratazana. Sabia que era tolice imaginar que, se Nugget deixasse crescer a barba, lhe cresceriam também dentes de roedor, mas a verdade era o que imaginava, e sempre que via Nugget a barbear-se no balneário tinha vontade de lhe dizer que arranjasse uma navalha mais afiada e se barbeasse mais rente, porque debaixo da pele estavam à espreita os bigodes de animal. Matt era um seixozinho, uma pedra baça, um globo ocular, um bago, um polvo virado ao contrário a quem tinham cortado todos os tentáculos, uma única lágrima, todas essas coisas redondas, opacas e lisas, porque as lágrimas também eram opacas, que levavam do nada para parte nenhuma. Neil era uma velha encosta de montanha roída pela chuva, uma coluna quebrada, duas tábuas encaixadas uma na outra, as marcas de dedos aflitos num pilar de barro, uma semente adormecida que não podia abrir porque Deus lhe colara os bordos com cola celestial e troçava de Neil, troçava! Luce era Benedict, o Benedict que Deus teria feito se Benedict lhe fosse mais agradável; luz e vida e canções. E contudo Luce era o mal, uma traição a Deus, um insulto a Deus, uma perversão da intenção. E se Luce era assim, então Benedict o que era?

 

Neil estava muito preocupado. Ela estava a afastar-se, e isso não podia ser tolerado. De maneira nenhuma. Sobretudo agora que ele começava a compreender-se, a ver como afinal era parecido com o velhote lá em Melburne. Estava a crescer em poder e a gostar do processo. Que curioso ter sido preciso um Michael para segurar o espelho em que ele se via a si mesmo em condições pela primeira vez. A vida podia ser cruel. Vir a conhecer-se a si próprio por intermédio de uma pessoa que simultaneamente estava a afastar a razão pela qual tão ansiosamente ele desejava conhecer-se... Honour Langtry pertencia a Neil Parkinson e ele não ia deixá-la escapar. Tinha de haver uma maneira para a trazer de volta. Tinha de haver!

 

Para Matt ela era uma ligação a casa, uma voz na escuridão, mais querida que qualquer outra voz. Sabia que nunca voltaria a ver fisicamente a sua casa, e de noite, na cama, tentava lembrar-se de como era a voz da mulher, os sininhos das vozes das filhas, mas não conseguia lembrar-se. Enquanto a voz da enfermeira Langtry estava cimentada dentro das células do seu cérebro, que ele sabia moribundo, o único eco que lhe chegava de outros tempos e outros locais, como se estivessem cristalizados nela. Mas o seu amor por ela não continha qualquer desejo pelo corpo dela. Para ele, que nunca a tinha visto, ela não tinha corpo. De certo modo, ele já não tinha forças para corpos, nem mesmo em imaginação. Voltar a encontrar Úrsula era um pensamento aterrador, porque sabia que ela estava a contar com um desejo que ele já não sentia. A própria ideia de agarrar na mulher, de lhe tocar, revolvia-o por dentro; como um caracol, uma pitão, ou um pedaço de alga à deriva, enroscando-se sem objectivos num obstáculo casual. Porque Úrsula pertencia a um mundo que ele vira, enquanto a enfermeira Langtry era a luz na escuridão. Sem rosto, sem corpo. Apenas a pureza da luz pura.

 

Luce tentava não pensar nela. Não suportava pensar nela, porque, de cada vez que lhe vinha ao pensamento, tinha no rosto aquela expressão de rejeição e nojo. Que diabo tinham as mulheres? Não lhes bastava deitar-lhe uma olhadela para ver como ele seria? Tudo o que queria dela era a oportunidade de lhe provar o que ela estava a perder ao ignorá-lo e, por uma vez, não sabia como havia de persuadir uma mulher a tentar. Normalmente era tão fácil! Não compreendia. Mas odiava-a. Queria pagar-lhe por aquele olhar, por aquele nojo, por aquela rejeição total. Assim, em vez de pensar em Langtry, pensava nos pormenores da deliciosa vingança que ia ter; e todas as ideias terminavam com a visão da enfermeira Langtry ajoelhada a seus pés, admitindo que estava enganada, suplicando-lhe que lhe desse outra oportunidade.

 

Michael ainda não a conhecia, mas os começos de um prazer em aprender a conhecê-la estavam a crescer dentro dele, o que não lhe dava alegria nenhuma. Tirando o sexo, o seu conhecimento de mulheres era extremamente limitado; a única que conhecera realmente bem era a sua mãe, e esta morrera quando ele tinha dezasseis anos. Morrera porque aparentemente decidira de súbito que não havia nada por que valesse a pena viver, e isso fora um choque muito grande. Ele e o pai haviam-se sentido responsáveis, embora genuinamente não soubessem o que tinham feito para a cansar da vida. A irmã era doze anos mais velha, por isso mal a conhecia. Quando ainda andava na escola, o facto de as raparigas o acharem interessante e atraente fascinava-o e espantava-o, mas as suas explorações em resultado desta descoberta nunca haviam sido muito satisfatórias. As raparigas tinham sempre ciúmes dos seus ”patinhos feios” e da sua tendência para pensarem primeiro lugar nesses ”patinhos feios”. Tivera uma ligação bastante duradoura com uma-rapariga de Maitland, uma coisa carnal que consistira unicamente em sexo constante e variado. Agradara-lhe que assim fosse, porque ela limitava a isso as suas exigências e ele sentia-se bastante livre. A guerra pusera-lhe um termo, e pouco depois de ele partir para o Médio Oriente ela casara com outro. Quando soube disso não se sentira muito magoado; estava demasiado ocupado a manter-se vivo para ter tempo de pensar no caso. O mais curioso é que não sentia falta de sexo, sentia-se mais forte e mais completo sem ele. Ou talvez tivesse apenas mais sorte por ser uma daquelas pessoas que podiam passar sem sexo. Não sabia e não se preocupava com a razão.

 

Sentia principalmente que gostava da enfermeira Langtry; nem se apercebeu de quando algo de mais pessoal e íntimo começou a colorir aquele sentimento. Mas aquela manhã na copa chegara como um choque. Luce afazer-lhe propostas tolas e ele a controlar a sua fúria até ao momento certo de a libertar, um momento que ele sabia não poder decorrer daquela fome desvairada de matar. E o momento havia chegado; a sua boca estava literalmente a abrir-se para dizer a Luce o que ele devia fazer da sua pessoa quando ela fez um barulho qualquer junto à porta A princípio a vergonha quase o dominara - que aspecto teriam ele e Luce? Como lhe seria possível explicar? E assim não tentara sequer explicar. E depois tocara-lhe, e alguma coisa acontecera aos dois, alguma coisa de mais profundo do que o corpo, embora toda embrulhada no corpo. Sabia que essa coisa a tinha afectado tão fortemente como a ele; havia coisas que não precisavam de palavras nem mesmo de olhares. Oh, Deus, porque não seria a enfermeira encarregada da Enfermaria X o tal dragão confortável, de meia-idade, que ele imaginara antes de ali chegar? Não podia pensar numa relação pessoal com a enfermeira Langtry, porque aonde é que isso o levaria? E no entanto... Oh, sim, era um pensamento maravilhoso. Continha uma promessa de excitação que pouco tinha a ver com os corpos; e compreendeu que nunca antes se sentira fascinado por uma mulher.

 

- Oiçam - disse Neil. - Acho que temos de encarar uma coisa. A enf. está na X há um ano, e parece-me lógico que esteja cansada da Base 15, cansada da X, cansada de nós. Somos a única coisa que ela vê. Mike, tu que és o mais novo aqui, que pensas?

 

- Que de todos vocês sou o menos qualificado para julgar, de forma que vou perguntar ao Nugget. Que pensas tu?

 

- Não acredito - disse Nugget veementemente. - Se a enf. estivesse farta de nós, eu era o primeiro a saber.

 

- Farta não! Só cansada - disse Neil pacientemente. - Não andamos todos cansados? Porque seria diferente para ela? Pensam realmente que, quando ela acorda de manhã, salta da cama a cantar de alegria porque daí a nada vai estar de novo na X, de novo ao pé de nós? Vamos, Mike, quero a tua opinião, não a do Nugget ou a de qualquer dos outros. És o recém-chegado, ainda não estás tão metido nas coisas. Achas que ela quer estar connosco?

 

- Já te disse que não sei! Pergunta ao Ben - disse Michael, olhando de frente para Neil. - Estás a ladrar à árvore errada, amigo.

 

- A enfermeira Langtry é uma mulher boa de mais para se cansar de nós disse Benedict.

 

- Está frustrada - disse Luce. Matt deu uma gargalhadinha:

 

- Bem, a X é um lugar frustrante.

 

- Não é nesse sentido, seu palerma! Quero dizer que ela é mulher e não está a ter nenhum, pois não?

 

Todos se atiraram a Luce protestando, mas ele não deu mostras de se importar, parecendo antes ficar satisfeito.

 

- Sabes, Luce, és tão baixo que tinhas de subir a uma escada para chegares à barriga de uma cobra - disse Nugget. - Dás-me vontade de vomitar.

 

- Diz-me o que é que não te dá vontade de vomitar - disse Luce maldosamente.

 

- Sê humilde, Luce - disse Benedict docemente -, sê muito humilde. Todos os homens deviam aprender a humildade antes de morrerem, e nenhum de nós sabe quando morre. Tanto pode ser amanhã como daqui a cinquenta anos.

 

- Não me venhas com sermões, hipócrita - rosnou Luce. - Por esse caminho estás em Callan Park uma semana depois de voltares à vida civil.

 

- Nunca verás tal coisa - disse Benedict.

 

- Podes ter a certeza que não! Estarei muito ocupado a ser famoso.

 

- Não será à minha custa - disse Matt. - Não pagaria um tostão para te ver mijar.

 

Luce riu, trocista:

 

- Se pudesses ver-me mijar, Matt, era eu que te pagava o tostão.

 

- O - Neil tem razão - disse Michael de repente, muito alto.

 

A discussão parou; todos voltaram a cabeça para olharem com curiosidade para Michael, porque nunca antes lhe tinham ouvido aquele tom de voz - cheio de paixão, cheio de fúria, cheio de autoridade.

 

- Claro que ela está cansada, e quem pode censurá-la? A mesma coisa, dia após dia, o Luce a meter-se com toda a gente e toda a gente a meter-se com o Luce. Porque diabo não podem deixar-se uns aos outros em paz e deixá-la a ela também? O que está mal com ela diz-lhe respeito a ela e não a vocês. Se ela quisesse que alguém se ocupasse disso tinha falado connosco. Vocês são capazes de levar um tipo ao alcoolismo. - Levantou-se. - Anda, Ben, para a água. Anda lavar-te. Eu também vou tentar, mas com a quantidade de merda que anda aí pelo ar é capaz de levar uma semana.

 

Uma beliscadela na armadura, afinal de contas, pensou Neil, embora sem exultação, vendo Michael e Benedict dirigirem-se para a água. As costas de Michael estavam muito direitas. ”Raios, ele gosta dela! Mas será que ela sabe? Acho que não, e por minha parte vou deixar as coisas como estão.”

 

- Foi a primeira vez que te vi perder a cabeça - disse Benedict a Michael, patinhando na água.

 

Michael parou, metido na água até à cintura, e olhou para o rosto magrinho, escuro e preocupado. Também o seu rosto mostrava preocupação.

 

- Foi uma estupidez - disse. - É sempre estúpido perder-se a cabeça. Não sou de temperamento fogoso e detesto quando as pessoas me levam a portar-me assim. É tão inútil! Foi por isso que os deixei. Se ficasse, ainda fazia mais figura de parvo.

 

- És suficientemente forte para resistir à tentação - disse Benedict, suspirando. - Quem me dera ser assim.

 

- Ora, amigo, és o melhor de nós todos - disse Michael com afeição.

 

- Achas que sim, a sério, Mike? Eu tento, mas não é fácil. Perdi muita coisa.

 

- Perdeste-te a ti, Ben, nada mais. Está tudo aí à espera que encontres o caminho de regresso. já

 

- É a guerra. Fez de mim um assassino. Mas também sei que é só uma desculpa. Não é a guerra, sou eu. Não fui suficientemente forte para aguentar a prova que Deus quis impor-me.

 

- Não, é a guerra - disse Michael com as mãos flutuando na água. Faz-nos qualquer coisa a todos, não é só a ti. Estamos todos na X por aquilo que a guerra nos fez. Se não tivesse acontecido, estávamos todos bem. Dizem que a guerra é uma coisa natural, mas não acredito. Talvez seja natural para a raça, natural para os velhos que lhe dão início, mas para os homens que têm de combater nela... não, é a vida menos natural que um homem pode viver.

 

- Mas Deus está lá - disse Benedict, mergulhando e voltando à superfície. Deve ser natural. Deus mandou-me para a guerra. Não me apresentei como voluntário porque rezei e Deus disse-me que esperasse. Se Ele achasse que eu precisava de ser posto à prova havia de me mandar para a guerra. E mandou-me. Portanto deve ser natural.

 

- Tão natural como o nascimento e o casamento - disse Michael secamente.

 

- Vais casar-te? - perguntou Benedict, inclinando a cabeça como se não quisesse perder a deixa.

 

Michael pensou no assunto; pensou na enfermeira Langtry, culta, bem-nascida, oficial e mulher de classe. Um membro de uma classe social com a qual ele pouco tivera a ver antes da guerra e à qual escolhera não se juntar durante a guerra.

 

- Não - disse sobriamente. - Não penso que tenha grande coisa para oferecer agora. Já não sou como era. Talvez me conheça demasiado bem. Para viver com uma mulher e educar filhos acho que temos de ter algumas ilusões acerca de nós mesmos, e eu já não tenho nenhumas. Estive lá e fiz todo o caminho de regresso, mas o ponto onde estou agora não é o mesmo onde estaria se não tivesse havido a guerra. Será que isto faz sentido?

 

- Oh, sim - concordou Benedict fervorosamente, para agradar ao amigo; porque não tinha compreendido nada.

 

- Matei homens. Tentei até matar um compatriota. Os velhos mandamentos não se aplicam como se aplicavam antes da guerra. Como poderiam? Limpei à mangueirada os bombardeiros para tirar pedaços de homens que não eram suficientes para serem enterrados decentemente. Procurei placas de identificação no meio de sangue e tripas como não se vê em nenhum matadouro. Tive tanto medo que pensei que nunca mais seria capaz de dar um passo. Chorei muito. E Penso: criar um filho para passar por tudo isso? Nem que fosse o último homem Para repovoar a Terra.

 

- É o remorso - disse Benedict.

 

- Não, é o sofrimento - respondeu Michael.

 

Como já passava bastante das quatro, a sala de estar das enfermeiras estava quase deserta quando a enfermeira Langtry entrou. Era uma sala grande e arejada, porque tinha janelas largas, que abriam para a varanda, protegidas por redes, assim como na messe, que ficava contígua, o que era de um luxo incrível. Quem quer que fosse o anónimo responsável pelo mobiliário, era alguém que gostava das enfermeiras: havia almofadas no canapé de verga e uma boa tentativa de alegrar o ambiente através da utilização de chita. O facto de o mofo ter manchado os desenhos da chita e as lavagens contínuas a terem desbotado não interessava. Em espírito era uma sala alegre e grande e tinha um efeito correspondente nas enfermeiras que a utilizavam.

 

Quando a enfermeira Langtry entrou, verificou que a única ocupante da sala era a enfermeira Sally Dawkin, da Neurologia, major de meia-idade, que, tal como a enfermeira Langtry, não era militar de carreira; gorducha, alegre, estava cronicamente esmagada de trabalho, pobre alma; a Neurologia era célebre por ser uma enfermaria terrivelmente dura de dirigir. Na verdade, a enfermeira Langtry não conhecia especialidade mais deprimente em tempo de guerra que Neurologia, com os seus prognósticos sombrios e a maneira incrível como muitos dos casos se arrastavam, num desafio a todas as leis naturais que regulam a sobrevivência. Um braço não volta a crescer, mas o organismo funciona sem ele, lamenta a sua ausência mas vive da mesma maneira. Os cérebros e as medulas também não voltam a crescer, mas o que desaparece então não é a ferramenta, é o operador da ferramenta. A Neurologia era um lugar onde, por muito religioso que se fosse, muitas vezes se desejava poder conciliar a eutanásia com a ética humanitária.

 

A enfermeira Langtry sabia que era capaz de sobreviver ao pior que a Enfermaria X lhe podia oferecer, mas que seria incapaz de sobreviver na Neurologia.

 

A enfermeira Dawkin pensava exactamente o contrário. E ainda bem. Ambas eram excelentes profissionais, mas as suas preferências eram muito diferentes.

 

- O chá é fresco; bem, não está mau - disse a enfermeira Dawkin, erguendo os olhos e com uma expressão radiante. - É bom ver-te, Honour.

 

A enfermeira Langtry sentou-se à mesinha de verga e pegou numa chávena e num pires limpos. Começou por pôr leite na chávena e depois acrescentou-lhe o chá escuro e aromático, recostando-se em seguida para acender um cigarro.

 

- Estás atrasada, Sally - disse. A enfermeira Dawkin grunhiu:

 

- Sou como Moisés, estou sempre atrasada. Sabes o que disse o Senhor: ”Adianta-te”; e Moisés atrasou-se e perdeu o emprego.

 

- É preciso só ter buracos no cérebro para poder apreciar essa piada - disse a enfermeira Langtry, sorrindo.

 

- Bem sei. Que queres? É das companhias com quem ando. - A enfermeira Dawkin baixou-se para desatar os cordões dos sapatos, depois levantou o vestido e desapertou os ligueiros. A enfermeira Langtry viu um bom pedaço das cuecas fornecidas pelo exército, a que chamavam ”mata-paixões”, antes de a colega tirar as meias e atirá-las para uma cadeira vazia. - Quase sempre, minha querida Honour, quando penso em ti enfiada lá ao fundo com meia dúzia de malucos por companhia e nenhuma ajuda, não te invejo nem um bocadinho. Prefiro de longe os meus trinta e tal neuros e algumas acompanhantes femininas. Mas hoje é um daqueles dias em que não me importava de trocar contigo.

 

Estava um balde de ferro galvanizado cheio de água entre os pés da enfermeira Dawkin, que estavam agora descalços e eram pequenos, gordos, cheios de calos e chatos. Enquanto a enfermeira Langtry olhava, divertida e emocionada, a enfermeira Dawkin mergulhou os pés no balde e pôs-se a chapinhar com ar de perfeita satisfação.

 

- Ooooh, que maaa-raa-vilha! Acho que não conseguia dar nem mais um maldito passo.

 

- Estás com edema de calor, Sally. É melhor tomares qualquer coisa antes que isso piore - observou a enfermeira Langtry.

 

- O que eu preciso é de passar dezoito horas na cama com as pernas para cima

- disse Sally, rindo. - Dito assim até parece bom, não é? - Tirou um pé do balde e apalpou com dedos impiedosos o tornozelo vermelho e inchado. - Tens razão, estão como um bispo num desfile de meninas. Não estou a ficar mais nova, esse é que é o meu problema. - Deu outra gargalhadinha. - Bem, esse também era o problema do bispo.

 

Uma pancada forte e bem conhecida ecoou à porta; a enfermeira-chefe entrou com a imponência de um veleiro, o véu branco engomado disposto num losango perfeito, o uniforme inacreditavelmente engomado, sem uma prega, os sapatos engraxados, a brilhar tanto que feriam a vista. Quando viu as duas à mesa sorriu friamente e decidiu aproximar-se.

 

- Enfermeiras, boa tarde - trovejou.

 

- Boa tarde, enfermeira-chefe - disseram as duas em coro como meninas obedientes.

 

A enfermeira Langtry não se pôs em pé por consideração para com a enfermeira Dawkin, que não podia fazê-lo.

 

A chefe avistou o balde e franziu o sobrolho.

 

- Enfermeira Dawkin, acha que lavar os pés numa sala pública é correcto?

 

- Acho que depende da sala e dos pés, enfermeira-chefe. Tem de me perdoar porque vim de Moresby para a Base 15 e lá em Moresby não tínhamos muitas dessas delicadezas. - A enfermeira Dawkin tirou um pé do balde e olhou para ele com um ar clínico. - Concordo que não é um pé muito bonito. Deformou-se ao serviço da boa velha Florence Nightingale. Mas, por outro lado - continuou a enfermeira Dawkin, exactamente no mesmo tom de voz, voltando a meter o pé no balde e sacudindo-o alegremente -, uma enfermeira da Neurologia sem pessoal suficiente também não é nenhuma beleza.

 

A chefe pôs-se muito tesa, o que era sinal de alarme, mas como a enfermeira Langtry estava presente resolveu engolir o que ia dizer; deu meia volta e saiu da sala muito empertigada.

 

- Velha cabra! - disse a enfermeira Dawkin. - Eu dou-lhe o correcto! Tem andado em cima de mim toda a semana porque eu tive a lata de lhe pedir mais pessoal em frente de um cirurgião americano que estava cá de visita. Bom, tinha andado a pedir-lhe em particular há uma data de dias, sem resultado nenhum, por isso que é que eu tinha a perder? Tenho quatro quadriplégicos, seis paraplégicos, nove hemiplégicos e três comas, além do resto. Digo-te, Honour, que se não fossem os três ou quatro tipos que estão suficientemente bem para nos darem uma ajuda, o meu barco já tinha ido ao fundo há mais de quinze dias. - Fez um barulho muito feio no fundo da garganta. - Redes mosquiteiras! Só estou à espera que ela me diga que as redes não estão correctamente arranjadas, porque, na altura em que ela me disser uma coisa dessas, agarro na rede e aperto-lha à volta do pescoço.

 

- Estou de acordo que ela merece muita coisa, mas esganá-la? Oh, Sally, francamente! - disse a enfermeira Langtry divertidíssima.

 

- A vaca! A única coisa que sabe fazer é chatear toda a gente!

 

Mas o prometedor fogo-de-artifício da enfermeira Dawkin apagou-se com a entrada na sala da enfermeira Sue Pedder. Quaisquer erupções se tornaram impossíveis. Podia despejar o saco com Honour Langtry, que, se não era da mesma idade, era pelo menos uma enfermeira da mesma categoria e experiência; para a enfermeira Dawkin eram semelhantes. Além disso, tinham trabalhado juntas da Nova Guiné a Morotai e eram amigas. Ao passo que a enfermeira Pedder era uma miúda, não mais velha que as AAMWA que tinham trabalhado cerca de quarenta e oito horas de enfiada em Moresby. E ninguém conseguia imaginar a enfermeira Pedder a trabalhar quarenta e oito horas de enfiada.

 

Com vinte e dois anos, extremamente bonita e vivaça, não pertencia havia muito tempo ao quadro de pessoal da Base 15. Era uma piada corrente que mesmo o velho Carstairs, o cirurgião urologista, se pavoneava todo quando ela entrava no bloco operatório.

 

Várias enfermeiras e pacientes tinham perdido dinheiro nessa altura, pois tinham apostado que o major Carstairs estava na verdade morto mas não tinha a delicadeza de se estender.

 

As enfermeiras que tinham ficado para dirigir a Base 15 eram todas veteranas em idade e experiência, com longa prática da enfermagem na selva. Excepto a enfermeira Pedder, que não era normalmente considerada parte do grupo, e algumas olhavam-na até com bastante ressentimento.

 

- Olá, meninas! - disse a enfermeira Pedder alegremente, aproximando-se.

- Devo dizer que não tenho visto ultimamente as estrelas da enfermaria. Como vai a vida por cá?

 

- Bastante mais difícil que no bloco operatório, a fazer olhinhos aos cirurgiões - disse a enfermeira Dawkin. - Mas diverte-te enquanto podes. Se eu tivesse uma palavra a dizer, já há muito que estarias longe do bloco e a trabalhar na Neurologia.

 

- Oh, não! - guinchou a enfermeira Pedder com um ar verdadeiramente aterrado. - Não suporto a Neurologia.

 

- Que pena! - disse a enfermeira Dawkin friamente.

 

- Eu também não suporto a Neurologia - disse a enfermeira Langtry, tentando pôr a pobre rapariga mais à vontade. - É preciso ter costas fortes, estômago resistente e um cérebro em condições. Eu própria recusei nessa base.

 

- Também eu! - concordou fervorosamente a enfermeira Pedder. Bebeu um gole de chá, descobriu que estava morno e horrivelmente forte, mas engoliu-o porque não podia fazer outra coisa. Instalou-se um silêncio incómodo, que a assustou quase tanto como ser transferida para a Neurologia.

 

Desesperada, voltou-se para a enfermeira Langtry, que era sempre muito amável embora distante:

 

- A propósito, Honour, encontrei um dos teus pacientes da X há umas semanas e descobri que tinha andado com ele na escola. Não é engraçado.

 

A enfermeira Langtry endireitou-se na cadeira e olhou para a enfermeira Pedder de uma maneira muito mais penetrante do que aquilo que ela pensara suscitar com a sua declaração.

 

- A filha do gerente do banco de Woop-Woop - disse lentamente. Louvado seja Deus! Há dias que andava a pensar quem seria, mas nunca me tinha lembrado de ti.

 

- Woop-Woop? - perguntou a enfermeira Pedder, afrontada. - Ora! Sei que não é Sydney, mas também não é Woop-Woop, sabes?

 

- Não te abespinhes, minha cara Sue. Woop-Woop é só a alcunha que o Luce dá à sua cidade natal - acalmou-a a enfermeira Langtry.

 

- Ah, o Luce Daggett! - disse a enfermeira Dawkin, compreendendo. Lançou um olhar feroz à enfermeira Pedder. - Oh, queridinha, se o vires ao longe é melhor ires a correr pôr o cinto de castidade... e não o deixes ir buscar o alicate.

 

A enfermeira Pedder corou e ficou furiosa; imaginem, ir enfiar-se na Neurologia com aquele velho dragão!

 

- Garanto-lhes que não precisam de se preocupar comigo - disse altivamente. - Conheço o Luce desde criança.

 

- Como era ele, Sue? - perguntou a enfermeira Langtry.

 

- Oh, não era muito diferente. - A enfermeira Pedder começou a mostrar-se mais aberta, gostando do facto de a enfermeira Langtry se interessar por ela. - As raparigas andavam todas doidas por ele; ele era lindíssimo. Mas a mãe dele lavava para fora, o que tornava as coisas um bocadinho difíceis. Os meus pais matavam-me se me apanhassem a olhar para ele, mas felizmente eu era um par de anos mais nova que ele, de modo que quando saí da escola já ele tinha ido para Sydney. Todos seguimos a carreira dele. Nunca perdi nenhuma das peças que ele fez para a rádio, porque a nossa estação local costumava difundi-las. Mas não consegui vê-lo na peça que ele representou no Royal. Algumas raparigas foram a Sydney, mas o meu pai não me deixou ir.

 

- Como era o pai dele?

 

- Não me lembro. Era o chefe dos Correios, mas morreu quase logo a seguir ao começo da Depressão. A mãe do Luce era muito orgulhosa e não quis ficar na Assistência. Foi por isso que começou a lavar roupa.

 

- Tinha irmãos? Irmãs?

 

- Irmãos não. Tinha duas irmãs mais velhas, muito bonitas. Eram a família mais bonita do distrito, mas as raparigas deram para o torto. Uma delas bebe, e quanto menos se falar da moralidade dela melhor. A outra continua a viver com a mãe, mas tem uma miúda pequena.

 

- E na escola, ele era bom?

 

- Terrivelmente inteligente. Eram todos.

 

- Dava-se bem com os professores?

 

A enfermeira Pedder teve um risinho agudo:

 

- Santo Deus, não! Todos os professores o detestavam! Era muito sarcástico e ao mesmo tempo tão escorregadio que quase nunca conseguiam apanhá-lo em falta para o castigarem. Além disso, tinha o costume de se vingar dos professores que o castigavam.

 

- Bom, não mudou muito - disse a enfermeira Langtry.

 

- Está ainda mais bonito. Acho que nunca na vida vi alguém mais bonito disse a enfermeira Pedder, caindo em devaneio e sorrindo.

 

- Oooops! Alguém vai dar um grande trambolhão - disse a enfermeira Dawkin, rindo, com os olhos a brilhar mas sem maldade.

 

- Não lhe ligues, Sue - disse a enfermeira Langtry, tentando manter disponível a sua fonte de informação. - A chefe tem andado a chateá-la e além disso está com edema de calor.

 

A enfermeira Dawkin tirou os pés do balde e esfregou-os com uma toalha; depois pegou nos sapatos e nas meias.

 

Não precisam de falar de mim como se eu não estivesse aqui - disse ela. - Estou aqui, com todo o meu peso, que já não é pequeno. Oh, céus, sinto-me muito melhor! Não bebam a água do balde, meninas. Está cheia de sais de Epsom. Cá vou eu; ainda tenho tempo para fazer uma soneca. - Fez uma careta. - São estas malditas botas que temos de usar de noite que dão cabo dos meus pés.

 

- Levantaste os pés da cama? - perguntou a enfermeira Langtry quando ela já ia a caminho.

 

- Há que anos, amor! - Chegou-lhes a resposta fraca. - É muito mais fácil para procurar as botas que nunca lá estão, e não me refiro às minhas.

 

Isto provocou uma gargalhada, claro, mas quando aquela manifestação de alegria se desvaneceu as duas enfermeiras que estavam junto da mesa não conseguiram mais que remeter-se a um silêncio desconfortável.

 

A enfermeira Langtry pensava se devia avisar a enfermeira Pedder com respeito a Luce ou, pelo menos, tentar fazê-lo. Acabou por decidir que era seu dever e pensou que o dever era muitas vezes pouco agradável. Estava perfeitamente consciente das dificuldades especiais com que a jovem enfermeira Pedder se tinha de debater na Base 15, como se devia sentir isolada e sem amigos naquele ninho de enfermeiras mais velhas. Nem sequer havia outras AAMWA com quem se pudesse dar. Mas Luce era realmente uma ameaça, e a enfermeira Pedder parecia estar madura, núbil e pronta para sarilhos. E como Luce representava a infância e a terra natal, estava muito mais desprevenida.

 

- Espero que o Luce não te esteja a causar problemas, Sue - disse finalmente. - Ele pode ser difícil.

 

- Não - disse a enfermeira Pedder, saindo sobressaltada do seu devaneio. A enfermeira Langtry pegou nos cigarros e nos fósforos e meteu-os no cesto que estava a seus pés.

 

- Bom, acho que já és enfermeira há tempo suficiente para saberes tratar de ti. Mas não te esqueças que o Luce é paciente da X porque está um tanto perturbado. Podemos tratar disso, mas não podemos tratar de ti se as coisas correrem mal.

 

- Estás a falar dele como se fosse um leproso! - disse indignada a enfermeira Pedder. - Ao fim e ao cabo, não é vergonha nenhuma ter cansaço de combate; acontece a muitos homens.

 

- Foi isso que ele te disse? - perguntou a enfermeira Langtry.

 

- Bem, é verdade - disse a enfermeira Pedder, mas com certas dúvidas na voz, o que deu a entender à outra enfermeira que se tinha passado qualquer coisa que levava a enfermeira Pedder a interrogar-se; o que era interessante.

 

- Não, não é verdade. Onde o Luce esteve mais perto da frente de batalha foi no quarto da ordenança de um hospital militar.

 

- Então porque está na X?

 

- Penso que não tenho liberdade de te dizer mais que isto: deu mostras de algumas características pouco agradáveis que fizeram com que o comandante dele achasse que estava melhor na X.

 

- Ele às vezes é estranho - disse a enfermeira Pedder, pensando naquela relação hedionda, automática, impiedosa e sem paixão e nas mordidelas selvagens.

 

O pescoço dela tinha ficado tão marcado, a pele tão arranhada que dera graças a Deus por ter comprado aquela caixinha de make-up no PX americano de Port Moresby quando vinha a caminho da X.

 

- Então aceita o meu conselho e não voltes a ver o Luce - disse a enfermeira Langtry, pegando no cesto e levantando-se. - A sério, Sue, não estou a brincar às chefes contigo nem a fazer sermões. Não tenho vontade nenhuma de meter o nariz na tua vida privada, mas acontece que o Luce é da minha responsabilidade. Não te aproximes dele.

 

Mas isso era de mais para a enfermeira Pedder; soprou de indignação, sentindo que a estavam a tratar como se fosse uma criança.

 

- É uma ordem? - perguntou, de rosto muito pálido.

 

A enfermeira Langtry pareceu surpreendida, divertida até.

 

- Não. Quem dá ordens é a chefe.

 

- Então podes meter o teu maldito conselho num sítio que eu cá sei - disse a enfermeira Pedder despreocupadamente, engolindo depois em seco.

 

Os preceitos e disciplina da sua educação ainda estavam demasiado frescos para lhe permitirem dizer coisas daquelas sem ficar imediatamente arrasada pela sua própria temeridade.

 

Contudo, a sua resposta caíra no vazio, porque a enfermeira Langtry saíra da sala sem aparentemente a ter ouvido.

 

A enfermeira Pedder deixou-se ficar sentada mais uns momentos, mordendo o lábio até arrepanhar a pele, dilacerada entre a imensa atracção que sentia por Luce e o sentimento de que Luce se estava nas tintas para ela.

 

Levou quase uma semana até a enfermeira Langtry conseguir dominar os seus sentimentos de confusão e embaraço causados pela fraqueza que tivera na copa. Graças a Deus, Michael não parecia aperceber-se de nada, porque continuava a mostrar-se, como de costume, gentil e amigável. Uma boa coisa para o seu orgulho, talvez, mas não uma grande ajuda para a dor que tinha noutras zonas do seu ser. E, contudo, cada dia que conseguia ir vivendo era um dia a menos na X, um dia mais próximo da liberdade.

 

Quando um dia, ao fim da tarde, entrou na X, cerca de duas semanas após o incidente na copa, quase colidiu com Michael, que saía a correr da sala de água com uma bacia de metal amolgado na mão.

 

- Tape isso, Michael, se faz favor - disse ela automaticamente.

 

Ele parou, indeciso entre a urgência da sua missão e a autoridade dela.

 

- É para o Nugget - explicou. - Tem uma dor de cabeça terrível e está com vontade de vomitar.

 

A enfermeira Langtry contornou-o, entrou na sala de água, onde numa prateleira havia alguns panos velhos mas limpos. Pegou na bacia das mãos de Michael e embrulhou-a no pano.

 

- Então o Nugget está com uma enxaqueca - disse ela calmamente. - Não as tem muitas vezes, mas quando lhe dá isso fica completamente prostrado, pobrezinho.

 

Entrou na enfermaria, lançou uma olhadela a Nugget, que estava muito quieto, estendido na cama, com um pano húmido a cobrir-lhe os olhos, e puxou uma cadeira para junto da cama.

 

- Posso fazer alguma coisa por si, Nugget? - perguntou-lhe docemente, pousando a bacia sem fazer barulho sobre o armário.

 

Os lábios dele quase não se mexeram:

 

- Não, enfermeira.

 

- Vai durar muito?

 

- Ainda vai durar horas - murmurou com duas lágrimas a escorrerem por baixo do pano. - Começou agora mesmo.

 

Ela ficou sentada junto dele cerca de mais um minuto, depois levantou-se e foi para o escritório.

 

Michael estava lá, à espera dela, com ar ansioso.

 

- Tem a certeza que ele está bem, enf.? Nunca vi o Nugget tão quieto. Ainda nem guinchou.

 

Ela riu:

 

- Está bem. É só uma enxaqueca, mais nada. A dor é tão forte que ele não se atreve a mexer ou a fazer barulho.

 

- Não há nada que lhe possa dar? - perguntou Michael impaciente com a calma dela. - Um pouco de morfina? Dá sempre resultado. - Para a enxaqueca, não - disse ela peremptória.

- Então não está disposta a fazer nada. O tom dele aborreceu-a: - O Nugget não corre qualquer perigo. Apenas se sente mal. Daqui a umas seis horas vomita e isso aliviá-lo-á quase imediatamente. Pode crer que tenho muita pena dele por aquilo que ele está a passar, mas não quero correr o risco de o tornar dependente de drogas como a morfina. Você já aqui está há tempo suficiente para compreender qual é o verdadeiro problema do Nugget. Por isso, o que é que lhe deu para estar a fazer de mim o mau da fita? Não sou infalível, de modo nenhum, mas não gosto que os meus pacientes me ensinem a lição.

 

Ele riu com vontade. Estendendo a mão, agarrou-lhe o braço e deu-lhe um pequeno abanão amigável.

 

- Um ponto para si, enf. - disse, e os seus olhos cinzentos brilhavam com qualquer coisa mais do que amizade.

 

Os olhos dela brilharam também; sentiu-se invadida por um imenso impulso de gratidão. Não podia haver dúvidas sobre a maneira como ele a olhava naquele momento. Todos os seus problemas se desvaneceram; soube que o amava. Acabavam-se as tristezas, as auto-análises. Amava-o e parecia-lhe ter chegado ao fim de uma viagem que nunca quisera empreender.

 

Observou-lhe o rosto, e então os lábios dele separaram-se como se fosse falar. Tonta de ansiedade, ela esperava. Mas ele não falou. Ela podia literalmente ver o cérebro dele a funcionar, viu o amor afastado por... medo? Cautela? A pressão no seu braço mudou de qualidade, de carícia transformou-se de novo num mero toque.

 

- Até logo - disse ele, saindo da sala.

 

Luce nem sequer lhe deu tempo para pensar; ainda estava meia tonta quando ele entrou.

 

- Quero falar consigo, enf., e quero falar agora - disse ele, muito pálido. Ela humedeceu os lábios.

 

- Com certeza - conseguiu articular, e afastou Michael do pensamento. Luce avançou até chegar junto da secretária; ela dirigiu-se para a cadeira e sentou-se.

 

- Tenho contas a ajustar consigo.

 

- Então sente-se - disse ela calmamente.

 

- Não vou levar muito tempo, flor - disse ele, com os lábios retorcidos sobre os dentes. - Porque é que estragou o meu arranjinho com a Miss Woop-Woop?

 

A enfermeira Langtry abriu muito os olhos:

 

- Estraguei?

 

- Está farta de saber que estragou! Estava tudo a correr lindamente e agora de repente ela pôs-se a dizer que não é conveniente para ela associar-se com tipos do género de Luce Daggett, porque a sua conversa com ela a fez ver uma série de coisas que não tinha visto antes.

 

- Nem é conveniente para nenhum de vocês dois associarem-se de uma maneira clandestina - disse a enfermeira Langtry. - Os oficiais não têm relações íntimas com subalternos.

 

- Ora, deixe-se disso, enf.! Sabe tão bem como eu que essas regras são quebradas todas as noites neste maldito lugar. Quem é que há aqui além de subalternos? Os O M? Não há um único O nesta Base 15 que consiga empinar nem com a Betty Grabble! Os doentes oficiais? Os únicos que restam estão de tal maneira que nem a Virgem Maria os levava.

 

- Se quer ser ordinário e mesquinho, podia ao menos abster-se de blasfemar - exclamou ela, de rosto fechado e olhos duros.

 

- Mas é um assunto ordinário e mesquinho, queridinha, e sinto que faço coisas bem piores que blasfemar. Que solteirona puritana você é! Ninguém fala na messe acerca da enfermeira Langtry, pois não?

 

Debruçou-se sobre a mesa, apoiando as mãos na borda, e aproximou o rosto do dela como já tinha feito uma vez, mas com uma expressão muito diferente.

 

- Deixe-me dizer-lhe uma coisa. Não se atreva a meter-se comigo senão ainda a faço desejar nunca ter nascido. Está a ouvir? Estava a divertir-me com a pequena Woop-Woop muito mais do que você alguma vez se divertirá na vida, velho esfregão seco!

 

O epíteto penetrou onde ele não tinha a certeza de terem penetrado as outras coisas que dissera; viu-a retrair-se de dor e ultraje e resolveu aproveitar-se daquela vantagem inesperada para atacar com todo o veneno.

 

- Está mesmo ressequida, não está? - disse, arrastando a voz. - Não é mulher, é só um pretexto. Está aí, morta por ir para a cama com o Michael, e apesar disso não consegue tratar o pobre diabo como um homem! Toda a gente há-de pensar que ele é o seu cãozinho de estimação. Aqui, Mike, senta, Mike. Está mesmo convencida de que ele vai sentar-se a pedir? Não está suficientemente interessado, queridinha.

 

- Não consegue fazer-me perder a paciência, Luce - disse ela, fria e lentamente. - Prefiro considerar que os seus ataques pessoais nem sequer foram feitos. Não há actividade no mundo tão fútil como um post-mortem, e isto não passa de um post-mortem. Se a enfermeira Pedder reconsiderou a sua ligação consigo, tanto melhor para ambos, mas especialmente para ela. Insultar-me não vai alterar a opinião da enfermeira Pedder.

 

- Você não é um icebergue, enfermeira Langtry, porque o gelo derrete. Você é pedra. Mas hei-de descobrir uma maneira de me vingar. Oh, se hei-de! Hei-de fazê-la chorar lágrimas de sangue. - Que melodrama idiota! - disse ela desdenhosamente. - Não tenho medo de si, Luce. Triste e enojada consigo, estou. Mas medo não tenho. Nem me engana como engana outros. Consigo vê-lo à transparência; sempre consegui. Você não passa de um aldrabãozeco vaidoso. - Mas não estou a tentar enganá-la - disse Luce em tom leve, endireitando-se. - Vai ver. Descobri uma coisa que você pensa que lhe pertence e vou ter o maior prazer em destruí-la.

 

Michael. Ela e Michael. Mas Luce não podia sequer começar a destruir isso. Só Michael podia. Ou ela.

 

- Oh, vá-se embora, Luce - disse ela. - Vá-se embora. Está a fazer-me perder tempo.

 

- Cadela porca! - disse Luce, olhando para os punhos cerrados como se estes o espantassem, olhando para a cama onde Benedict estava apaticamente enrolado, olhando para a enfermaria que se ia enchendo de homens. - Cadela porca! - repetiu mais alto, dirigindo-se a Ben. - Sabes de quem estou a falar, palerma? Sabes? Da tua preciosa Langtry, dessa cadela! - Estava fora de si, demasiado obcecado pelo ódio para se lembrar que Ben não era dos homens que costumava provocar. Só queria irritar alguém, e Ben era o que estava mais perto.

- Pensas que ela se importa contigo, não é? - perguntou. - Pois estás muito enganado. Ela só se importa com o maldito sargento-herói Wilson! Não é de morrer a rir? A Langtry apaixonada por um mariquinhas!

 

Ben levantou-se lentamente.

 

- Não digas isso, Luce. Cala a tua boca suja. Não fales a respeito dela e do Mike.

 

O tom era amável.

 

- Ora, não te armes em palerma, estúpido! Queres que te mostre? A Langtry não passa de uma velha solteirona apaixonada pela maior bicha do AIF! Atravessou o espaço entre a sua cama e a de Ben com um balancear de lado que o fazia parecer imenso e poderoso. - Uma bicha, Ben! É do Mike que estou a falar.

 

A raiva estava-se a acumular dentro de Benedict, a crescer dentro dele; o seu rosto escuro começou a abandonar as camadas de timidez e abandono, até que algo de profundo e impressionante se revelou como os ossos no fundo de uma ferida.

 

- Não te metas com eles, Luce - disse calmamente. - Nem sequer sabes do que estás a falar.

 

- Oh, sei muito bem. Se sei. Li-o nos papéis dele. O teu querido Mike é uma bicha.

 

Duas bolhinhas formaram-se nos cantos da boca de Ben, espessas e brilhantes. Começou a tremer, um tremer breve e rápido:

 

- És um mentiroso!

 

- Porque havia de mentir? Está lá tudo nos papéis dele: foi ao cu de metade do batalhão dele! - Luce deu um passo atrás rapidamente, decidindo que não devia estar muito perto de Ben. - Se o Mike é maricas - continuou, incapaz de se deter -, que é que tens com isso?

 

Um gemido fino e prolongado começou a sair das entranhas de Ben, um gemido abafado, mas antes que os seus músculos tensos pudessem reagir na violência que saltava do seu corpo, como uma sombra gigantesca, Luce pôs-se a emitir uma série de sons entrecortados que lembravam o matraquear de uma metralhadora. Benedict saltou e encolheu-se, e todo o seu corpo se agitava ao ritmo do barulho.

 

- Ah, ah, ah, ah, ah, ah, ah, ah! Lembras-te, meu velho? Claro que te lembras. É o som da tua metralhadora a matar todos aqueles inocentes. Pensa neles, Ben. Dúzias deles, mulheres, crianças e velhos, todos mortos. Mataste-os a sangue-frio para poderes vir para a X e arrastar-te com a escumalha como o Mike Wilson!

 

Com a raiva afogada numa tormenta mais profunda, Benedict caiu na cama, de cabeça atirada para trás, olhos fechados, as lágrimas a correr-lhe pelo rosto, um vazio humano de desespero.

 

- Sai daqui, Luce! - disse a voz de Matt nas costas de Luce.

 

Luce saltou, mas, lembrando-se que Matt não o podia ver, voltou-se, enxugando o suor do rosto.

 

- Vai para o diabo! - disse, empurrando Matt e apanhando o chapéu que estava sobre a cama.

 

Pôs o chapéu na cabeça com um ar displicente e saiu da enfermaria pela porta da frente.

 

Matt tinha ouvido quase tudo, mas até pensar que a iminência de violência física tinha passado não se atreveu a interferir, pensando que podia piorar as coisas se se metesse entre os dois e sabendo que Ben estava à altura de Luce esperando que estivesse.

 

Tacteou, à procura da cama de Ben, encontrou-a, sentou-se e deslizou até tocar num dos braços de Ben. Suspirou.

 

- Está tudo bem - disse gentilmente, apalpando as lágrimas e, através delas,

o rosto. - Vamos, está tudo bem. O sacana já se foi embora e não volta a chatear-te. Meu pobre velho.

 

Mas Benedict não dava mostras de ouvir; as lágrimas estavam a secar, e de braços cruzados sobre o corpo balançava-se na cama para trás e para diante.

 

Ninguém na enfermaria, excepto Matt, se apercebera da cena, porque Nugget estava num estado em que nada o interessava, Michael fora à enfermaria mais próxima pedir leite em pó e Neil invadira o gabinete da enfermeira Langtry logo após Luce ter saído. Fora encontrar a enfermeira com o rosto escondido nas mãos.

 

- Que foi? Que lhe fez o patife?

 

Ela afastou imediatamente as mãos, mostrando que não havia lágrimas nem danos. Só uma atitude muito calma e composta.

 

- Não fez nada - disse.

 

- Tem de ter feito. Ouvia-se na enfermaria.

 

- Cenas, é tudo. Ele é actor. Não, estava a explodir porque eu pus fim a um romancezito que ele estava a ter com uma das enfermeiras. A rapariga de Woop-Woop, a filha do gerente do banco, lembra-se?

 

- Lembro-me muitíssimo bem - disse ele, sentando-se e respirando mais aliviado. - Foi a primeira ocasião em que me encontrei em riscos de gostar do Luce.

 

Tirou os cigarros do bolso; ela pegou num avidamente, e avidamente aspirou o fumo.

 

- O seu interesse dele pela rapariga é meramente vingativo, claro - disse ela, soprando o fumo. - Percebi isso no momento em que descobri o que se estava a passar. Suponho que ela nunca figurou pessoalmente nas fantasias dele, mas, quando cá apareceu em carne e osso, viu logo como podia servir-se dela.

 

- Oh, sim - disse Neil, fechando os olhos. - Lucius Ingham, o famoso actor de teatro, e Rhett Ingham, o famoso actor de cinema de Hollywood, a torcer o nariz aos habitantes de Woop-Woop.

 

- Penso que a enfermeira Woop-Woop tinha um fraquinho pelo Luce, mas aposto que era demasiado peneirenta para o mostrar ao filho de uma lavadeira. E devia ser demasiado miúda para ele se interessar por ela. De modo que, comprometê-la agora, é uma maravilha para ele.

 

- Claro. - Neil abriu os olhos e fitou-a. - Segundo compreendi, ele não ficou satisfeito por ter sido desmascarado.

 

Ela teve um sorriso breve:

 

- É uma boa observação.

 

- Bem me parecia. Não ouvi o que ele dizia, mas ouvi-lhe o tom de voz. Estudou a ponta do cigarro. - Atrevo-me a dizer que o nosso Luce ficou muito zangado. Ameaçou-a?

 

- Não especificamente. Estava muito mais interessado em dizer-me quais eram as minhas limitações como mulher. - O rosto franziu-se-lhe de nojo. Bof! De qualquer modo, limitei-me a dizer-lhe o que pensava de todos aqueles disparates.

 

- Então não houve ameaças? - insistiu Neil.

 

Ela parecia cansada de ser submetida a interrogatórios, pois respondeu impa” cientemente:

 

- Que me podia o Luce fazer, Neil? Assaltar-me? Matar-me? Deixe-se disso. Essas coisas acontecem na ficção, não na vida. Não é o caso. Além disso, você sabe muito bem que não há nada mais importante para o Luce que a própria pele. Nunca faria nada que o levasse a ser castigado. Só estende aquelas asas pretas por cima das nossas cabeças e deixa que as nossas imaginações façam o trabalho sujo por ele. Só que eu já não caio nos truques dele.

 

- Espero que tenha razão, enf.

 

- Neil, enquanto eu estiver sentada nesta cadeira não posso deixar que nenhum paciente me meta medo.

 

Ele encolheu os ombros, disposto a deixar por ali o caso.

 

- Vou agora mudar de assunto com uma ligeireza tipicamente parkinsoniana e informá-la que ouvi hoje um boato. Bom, mais facto que boato, suponho.

 

- Muito obrigada - disse ela sinceramente. - Que boato?

 

- Este lugar está finalmente nas últimas.

 

- Oh, onde ouviu isso? Ainda não chegou às enfermeiras.

 

- Ao querido coronel Chinstrap em pessoa - sorriu. - Ia a passar pelos aposentos dele esta tarde e ele estava à janela como a Julieta depois da visita do Romeu, estático com a ideia de voltar para Macquarie Street. Convidou-me para beber um copo e disse-me, entre oficiais e cavalheiros, que provavelmente já não falta um mês para nos irmos embora. O OC soube-o hoje de manhã directamente do Quartel-General.

 

No rosto dela espelhava-se um desânimo que Luce não fora capaz de lhe causar:

 

- Oh, meu Deus! Só um mês!

 

- Mais semana menos semana. Vamos escapar daqui mesmo antes das chuvas. - Olhou para ela, franzindo o sobrolho, perplexo. - Você espanta-me, a sério. A última vez que tivemos uma conversa de coração nas mãos, você parecia a morte em pé a perguntar a si mesma como conseguiria aguentar-se até ao fim. Agora parece a morte em pé só porque o fim está à vista.

 

- Nessa altura eu não estava bem - disse ela friamente.

 

- Se quer a minha opinião, também não me parece que esteja hoje nenhuma maravilha.

 

- Não percebe. Vou sentir saudades da Enfermaria X.

 

- Mesmo do Luce?

 

- Mesmo do Luce. Se não fosse o Luce não vos conhecia a vocês tão bem. Sorriu cansadamente. - Nem a mim mesma.

 

Michael bateu à porta e enfiou a cabeça na abertura.

 

- Espero que não esteja a incomodar, enf. O chá está pronto.

 

- Conseguiu arranjar leite?

 

- Não tive problemas.

 

Ela levantou-se imediatamente, aliviada por poder interromper a conversa com Neil tão naturalmente:

 

- Então vamos, Neil. Traga os biscoitos, sim? Está mais perto deles do que eu. Esperando que ele encontrasse a lata dos biscoitos, afastou-se para o deixar passar à sua frente e depois seguiu os dois homens para a enfermaria.

 

Junto da cama de Nugget, fez sinal a Neil e a Michael que continuassem sem ela e deslizou para trás do biombo que alguém colocara em volta da cama. Ele estava deitado muito quieto e não deu mostras de se aperceber da presença da enfermeira, de modo que ela se limitou a mudar a compressa húmida sobre os olhos dele antes de o deixar repousar.

 

À mesa do refeitório, descobriu que Luce não estava presente, olhou para o relógio e ficou surpreendida ao ver que era muito mais tarde do que pensava.

 

- Se o Luce não tem cuidado, ainda vai acabar por arranjar a tal nota má. Alguém sabe aonde ele foi?

 

- Saiu - disse Matt bruscamente.

 

- Mentiu - disse Benedict, balançando para a frente e para trás.

 

A enfermeira Langtry olhou-o atentamente; parecia mais estranho, mais fechado, e o balanço era algo de novo.

 

- Está bem, Benedict?

 

- Bem. Não, mal. Tudo mal. Ele mentiu. Tem uma boca suja.

 

Os olhos da enfermeira Langtry encontraram os de Michael; ergueu uma sobrancelha numa interrogação muda, mas ele, tão espantado como ela, abanou rapidamente a cabeça. Neil franziu o sobrolho, surpreendido também.

 

- O que é que está mal, Ben? - perguntou.

 

- Tudo. Mentiras. Já vendeu a alma há muito tempo.

 

Neil estendeu a mão e deu uma pancadinha tranquilizadora no ombro magro e curvado.

 

- Não te preocupes com o Luce, Ben.

 

- Ele é mal.

 

- Estiveste a chorar, Ben? - perguntou Michael, sentando-se junto dele.

 

- Ele estava a falar de ti, Mike. Coisas sujas.

 

Não há nada sujo em mim, Ben. Por isso, porque te incomodas?

 

Michael levantou-se para ir buscar o xadrez e começou a arrumá-lo sobre a mesa.

 

- Esta noite sou preto - disse.

 

- Preto sou eu.

 

- Então está bem, eu sou branco e tu preto. A vantagem é minha - disse Michael alegremente.

 

O rosto de Benedict torceu-se. De olhos fechados, a cabeça atirada para trás, as lágrimas começaram a escorrer-lhe entre as pestanas.

 

- Oh, Mike, eu não sabia que havia lá crianças - gritou.

 

Michael não prestou atenção. Em vez disso, avançou o peão do rei duas casas e ficou à espera. Passado um instante, Benedict abriu os olhos e viu o lance por entre um muro de lágrimas. Duplicou-o rapidamente, fungando como um garoto, limpando o nariz nas costas da mão. Michael avançou o peão da rainha para junto do peão do rei, e de novo Benedict duplicou o movimento enquanto as lágrimas começavam a secar. E quando Michael levantou o cavalo do rei sobre o peão que lhe ficava em frente e o colocou adiante do bispo do rei, Benedict riu e abanou a cabeça.

 

- Nunca aprendes, pois não?

 

A enfermeira Langtry deu um grande suspiro de alívio e levantou-se, sorrindo boas-noites a todos. Neil levantou-se também, mas contornou a mesa até junto de Matt, que já esquecera a pequena crise.

 

- Anda daí. Vamos conversar um bocadinho no meu quarto - disse Neil, tocando-lhe ao de leve no braço. - O coronel Chinstrap deu-me uma coisa esta tarde que eu gostava de partilhar contigo. Tem um rótulo preto, como o Luce, mas por dentro, ah!, é ouro puro e autêntico.

 

Matt ficou surpreendido:

 

- Mas não temos de apagar as luzes?

 

- Oficialmente suponho que sim, mas hoje estamos todos um pouco excitados e foi provavelmente por isso que a enf. se foi embora sem nos meter na cama. Além disso, o Ben e o Mike parecem estar dispostos a jogar xadrez. E não te esqueças do Nugget: se adormecermos antes de ele vomitar acorda-nos a todos.

 

Os movimentos de Matt, quando se levantou, pareciam um pouco trémulos, mas sorria de verdadeiro prazer:

 

- Gostava muito de ir contigo e falar. E descobrir a solução da adivinha. O que é que é preto por fora e por dentro é ouro puro?

 

O quarto de Neil não passava de um cubículo, um espaço de seis pés por oito, em que ele conseguira enfiar uma cama, uma mesa e uma cadeira, além de várias prateleiras precariamente pregadas às paredes nos sítios onde não corria o risco de lhes bater com a cabeça. Estava cheio de materiais de pintura, embora alguém conhecedor da matéria visse imediatamente que ele limitava as suas técnicas a algo menos permanente e sujo que o óleo. Lápis, papéis, carvão, pincéis, jarras de água suja, caixas de aguarelas, tubos de guache, crayons e pastéis. Não havia qualquer ordem no caos; a enfermeira Langtry desistira havia muito de o fazer manter o cubículo limpo e limitava-se a aguentar com uma paciência fatalista os infinitos raspanetes da chefe acerca do estado do quarto do capitão Parkinson Felizmente ele conseguia encantar os pássaros e até, como ele dizia sem o mínimo respeito, uma coruja velha como a enfermeira-chefe.

 

Perfeito anfitrião, começou por instalar Matt confortavelmente na cama e, em seguida, varreu para o chão vários artigos que se encontravam na cadeira antes de se sentar nela. Na ponta da mesa estavam dois copinhos e duas garrafas de Johnnie Walker rótulo preto. Neil quebrou o selo de uma garrafa e tirou a rolha cuidadosamente, depois deitou em cada copo uma dose generosa.

 

- Saúde! - disse, bebendo um grande gole.

 

- À tua! - disse Matt, fazendo o mesmo.

 

Engoliram ar como dois nadadores quando voltam à superfície após um mergulho numa água inesperadamente fria.

 

- Fui abstémio demasiado tempo - disse Neil com os olhos cheios de lágrimas. - Céus, esta coisa dá-nos cá um ânimo, não achas?

 

- Sabe ao paraíso - disse Matt, que voltou a beber. Pararam para respirar fundo e saborear o efeito.

 

- Deve ter acontecido alguma coisa esta noite para pôr Ben naquele estado disse Neil. - Sabes o que foi?

 

- Foi o Luce que se pôs a matraquear como uma metralhadora e a dizer ao Ben que ele tinha morto civis. O pobre do Ben desatou a chorar. Maldito Luce! Mandou-me para o inferno e desapareceu não sei para onde. Acho que o homem está possesso.

 

- Ou então é mesmo o diabo - disse Neil.

 

- Oh, lá de carne e osso é ele.

 

- Então é melhor que tome cuidado. Senão ainda algum de nós vai querer pôr à prova a mortalidade dele.

 

Matt riu, erguendo o copo:

 

- Ofereço-me como voluntário.

 

Neil voltou a enchê-lo, assim como ao seu:

 

- Oh, Deus, estava mesmo a precisar disto. O coronel Chinstrap deve ler no espírito das pessoas.

 

- A sério que ele to deu? Julguei que estavas a brincar.

 

- Não, foi ele em pessoa.

 

- Mas por que diabo?

 

- Ora, suponho que fazia parte do fornecimento adquirido por vias travessas e que ele calculou quanto podia beber sozinho antes de a Base 15 ser desmantelada. Então resolveu fazer de Pai Natal e desfazer-se do excedente.

 

A mão de Matt começou a tremer:

 

- Vamos embora?

 

Amaldiçoando o efeito do whisky, que lhe soltara a língua, Neil olhou para Matt com doçura, mas era evidente que nenhum olhar gentil deste mundo conseguia penetrar a cegueira, real ou imaginária:

 

- Mais um mesito e vamos, meu velho.

 

- Já? Ela vai saber.

 

- Mais tarde ou mais cedo vai ter de saber.

 

- Pensei que ainda ia ter mais tempo que isso.

 

- Oh, Matt... ela há-de compreender.

 

- Compreenderá? Neil, eu já não a quero. Nem sequer posso pensar nisso. Ela está à espera de ter o marido de volta. E que vai encontrar? Não um marido.

 

- Não podes dizer uma coisa dessas agora. Tenta não ir depressa de mais; não sabes o que vai acontecer. Mas quanto mais te puseres a magicar nisso, pior.

 

Matt suspirou e levantou o copo:

 

- Ainda bem que tinhas isto à mão. É como um anestésico. Neil mudou de assunto:

 

- O Luce devia estar de muito mau humor, porque se atirou a toda a gente esta noite. Meteu-se com a enf. antes de se meter com o Ben.

 

- Bem sei.

 

- Também ouviste essa?

 

- Ouvi o que ele disse ao Ben.

 

- Queres dizer que houve mais coisas além da história da metralhadora?

 

- Muito mais. Saiu como uma fúria do gabinete da enf. e atirou-se ao Ben porque o Ben se insurgiu contra o que ele estava a chamar à enf. Mas o que perturbou tanto o Ben foi o que ele disse acerca do Mike.

 

Neil voltou a cabeça; olhou para Matt como se este fosse um objecto precioso.

 

- Que disse ele acerca do Mike?

 

- Oh, que ele era maricas. Já ouviste coisa mais tola? Fartou-se de dizer ao Ben que tinha lido isso nos papéis do Mike.

 

- O sacana! - Oh, às vezes o destino mostrava-se tão generoso. Saber disto tudo e por intermédio de um cego, de um homem que não podia ver o seu aspecto, o efeito que a notícia lhe causava... - Toma, Matt, bebe mais um copo.

 

O whisky subiu muito depressa à cabeça de Matt, ou pelo menos foi isso que Neil pensou até ver que já passava bastante das onze.

 

Levantou-se, passou o braço de Matt pelos seus ombros, e pô-lo de pé, não se sentindo ele próprio muito firme nas pernas.

 

- Anda, velhote, são horas de ir para a cama.

 

Benedict e Michael estavam a arrumar o xadrez. Michael aproximou-se para ajudar Neil e juntos despiram a Matt as calças, a camisa, a camisola interior e as cuecas e meteram-no na cama, por uma vez sem pijama.

 

- Este já está - disse Michael sorrindo.

 

E olhando para aquele rosto calmo e imensamente forte, sabendo o que ia fazer para o destruir, Neil sentiu subitamente que o amava nas profundezas da sua alma toldada pelo whisky; pôs os braços em volta do pescoço de Michael, e encostou-lhe a cabeça no ombro, quase a chorar.

 

- Anda beber um copo - disse tristemente. - Tu e o Ben venham daí beber um copo com um velho. Se não vêm vou pôr-me a chorar, porque sou filho do meu pai. Venham beber um copo.

 

- Não admitimos que chores - disse Michael, libertando-se do abraço. Anda, Ben, temos um convite.

 

Benedict tinha acabado de guardar o xadrez no armário da enfermaria e aproximou-se. Neil estendeu um braço e agarrou-se a ele.

 

- Anda beber um copo - disse. - Ainda resta garrafa e meia. Eu vou parar, mas não posso deixar aquele maravilhoso líquido por beber, pois não?

 

Benedict recuou:

 

- Não bebo - disse.

 

- Esta noite fazia-te bem - disse Michael firmemente. - Anda, deixa-te dessas merdas de santidades.

 

Assim, todos juntos atravessaram a enfermaria, Michael e Benedict arrastando Neil entre eles. Ao chegarem ao corredor, Michael apagou a luz por cima da mesa do refeitório. Ouviu-se o som discordante da cortina de cápsulas junto da porta da frente quando Luce entrou, não disfarçadamente, mas com ar de desafio, como se esperasse que a enfermeira Langtry estivesse à espera dele.

 

Os três homens ficaram a olhar para ele e ele para eles. Michael amaldiçoou o peso morto de Neil entre ele e Benedict, temendo que a súbita aparição de Luce voltasse a fazer mal a Ben. Mas nesse momento Nugget conseguiu pôr fim à enxaqueca, vomitando.

 

- Oh, céus, que barulho nojento! - disse Neil, voltando imediatamente a si. Empurrou Benedict e Michael para dentro do seu cubículo, entrou atrás deles e fechou a porta com toda a firmeza.

 

Luce dirigiu-se para a sua cama sem mais um olhar em direcção ao cubículo; estava sozinho na enfermaria obscura com a única companhia de um arfar hediondo.

 

Tão cansado que mal podia mexer-se, sentou-se na borda da cama; calcorreara durante horas os caminhos da Base 15, ao longo das praias, entre as pálidas clareiras de coqueiros. Pensando, pensando... Desejando com uma ferocidade cega esquartejar a enfermeira Langtry até que a cabeça lhe rolasse como uma bola de futebol. A puta convencida! Luce Daggett não era suficientemente bom e ela ainda tivera a lata, para culminar o insulto, de se desperdiçar com um mariquinhas. Era doida. Se o tivesse escolhido, poderia levar uma vida de princesa, porque Luce sabia que ia ser rico e famoso, uma estrela maior que Clark Gable e Gary Cooper juntos. Não se podia desejar uma coisa com tanta força como ele desejava aquilo sem a obter. Ela também dissera o mesmo. Cada um dos minutos de cada uma das horas de cada um dos dias desde que saíra de Woop-Woop fora dedicado ao objectivo de ser um grande actor.

 

No dia em que chegara a Sydney, um miúdo de quase quinze anos, já sabia que representar seria o seu bilhete de passagem para a bela vida. E já se sentia sedento da bela vida. Nunca tinha visto uma peça de teatro nem nunca fora ao cinema, mas durante grande parte dos seus tempos de escola ouvira as raparigas pairarem sobre este e aquele actor e afastara as sugestões delas para tentar entrar para o cinema quando fosse grande. Elas que não se metessem onde não eram chamadas; faria as coisas à sua maneira, sem que alguma fêmea idiota pudesse mais tarde andar a gabar-se que fora ela quem o empurrara, que fora ela quem havia tido a brilhante ideia.

 

Começou a trabalhar como marçano num armazém de mercearia em Day Street, arrancando o lugar a centenas de outros homens que também tinham concorrido. O gerente não conseguira resistir ao rapaz de cabelo bonito e rosto aberto, inteligente, ainda por cima. E o rapaz veio a revelar-se um bom trabalhador.

 

Não levara muito tempo a Luce para descobrir como entrar na profissão de actor. E como estava a trabalhar e a comer, cresceu rapidamente, alargou e em breve parecia mais velho que aquilo que realmente era. Sentava-se no Repins a beber inúmeros cafés, arrastava-se à volta de Doris Filton no Independent Theatre, fez-se conhecido junto dos Genesians e finalmente começou a arranjar pequenos papéis nas peças radiofónicas no Be no A BC e até algumas linhas no 2CH. Tinha uma voz maravilhosa para a rádio, não sibilante, com o timbre exacto e um ouvido perfeito para as pronúncias, de modo que, passados seis meses a frequentar os círculos convenientes, tinha banido o sotaque australiano da sua voz e só o usava quando necessário.

 

Invejando as pessoas que tinham conseguido acabar o liceu e ir para a universidade, instruiu-se o melhor que pôde lendo tudo o que as pessoas recomendavam, embora o orgulho nunca lhe permitisse perguntar directamente o que devia ler; arrancava a informação aos amigos com toda a esperteza e depois ia à biblioteca.

 

Quando chegou aos dezoito anos, já ganhava o suficiente com os seus pequenos trabalhos na rádio para poder deixar o armazém. Alugou uma casinha em Hunter Street e arranjou-a o mais artisticamente possível, cobrindo as paredes de bons livros, só que não disse a ninguém que os livros tinham sido comprados em lotes no Paddy’s Market por três pence a dúzia, enquanto o Dickens encadernado a couro lhe custara dois xelins e oito pence.

 

Como acompanhante, era conhecido por ser muito sovina - as raparigas depressa aprenderam que se saíssem com Luce eram elas que pagavam. E depois de pensarem no assunto decidiram continuar a pagar, pelo privilégio de serem vistas com um homem que fazia as cabeças andarem literalmente à roda. Não demorou muito, é claro, até Luce descobrir o mundo das mulheres mais velhas, mulheres que não se ralavam nada de lhe pagarem as contas em troca do prazer da sua companhia em público, do seu pénis em privado.

 

Nessa altura começou a exercitar-se sexualmente de modo a que por muito pouco atraente, repulsiva ou mesmo horrenda fosse a senhora com quem ia para a cama a pudesse satisfazer em qualquer ocasião. Simultaneamente improvisou um tipo de conversa de amoroso que as convencia de como eram desejáveis. E os presentes chegavam em catadupas: fatos e sapatos, chapéus e casacos, botões de punho e relógios, gravatas, camisas e roupa interior feita à mão. Não o preocupava nada ser o recebedor de tais larguezas porque sabia que as pagava bem.

 

Também não se preocupou quando soube que havia homens de uma certa idade desejosos de o contemplar financeiramente em troca dos seus favores sexuais, e acabou por vir a preferir os homens mais velhos às mulheres mais velhas; eram mais honestos em relação às suas necessidades e às suas obrigações monetárias, e ele não precisava de se esfalfar a dizer-lhes como eram ainda belos e desejáveis. Os homens mais velhos tinham também mais bom gosto; com eles aprendeu a vestir-se superlativamente bem, a comportar-se como um aristocrata em qualquer sítio, desde um cocktail até um banquete ministerial, e como se mostrar superior às melhores pessoas.

 

Após vários papéis em pequenas peças representadas em teatros pequenos, apresentou-se para uma audição no Royal e quase obteve o papel. Na segunda vez que se apresentou no Royal obteve realmente o papel, uma figura importante de um drama. Os críticos trataram-no com generosidade, e quando leu as notícias soube que estava realmente no bom caminho.

 

Mas o ano era 1942, ele tinha vinte e um anos e foi chamado para o exército. Considerava a sua vida desde esse dia até hoje como perdida, um vazio absolutamente inútil. Oh, fora bastante fácil; não lhe levara muito tempo a saber como instalar-se confortavelmente nem a descobrir o perfeito banana na pessoa de um velho oficial de carreira que era mais homossexual de espírito que de prática - até conhecer Luce, seu novo assistente. O homem apaixonara-se violentamente, pateticamente, e Luce servira-se desse amor com um cálculo perfeito. O caso durou até meados de 1945, quando Luce, aborrecido e inquieto porque sabia que a guerra estava a acabar, pôs fim à relação numa diatribe de repulsa desdenhosa. Houve uma tentativa de suicídio, um escândalo e sérias discrepâncias na contabilidade relativa a dinheiros e equipamento que tinham passado pelo gabinete deles. Os inspectores não tardaram a ver quem era Luce, em particular a sua capacidade para arranjar sarilhos, e trataram do caso com toda a simplicidade. Mandaram-no para a Enfermaria X e na Enfermaria X ficou.

 

”Mas não por muito mais tempo”, disse para com os seus botões.

 

Um PM amigável detivera-o nas suas peregrinações em volta da Base 15 e dissera-lhe que o hospital em breve já não existiria. Fora ao cubículo do PM e acompanhara-o numa garrafa de cerveja, bebendo à boa notícia com alegria. Mas agora que estava de regresso à Enfermaria X sabia que os sonhos do pós-guerra podiam esperar. Primeiro fazer o que tinha a fazer. E a primeira coisa era arrumar com a Langtry.

 

Fiel à sua palavra, Neil não se serviu de mais whisky, mas encheu os dois copos e deu um a Michael e outro a Benedict.

 

- Senhores! Estou cheio até aos olhos - disse piscando. - Tenho a cabeça a andar à roda como um pião. Que disparate! Vai levar-me horas a ficar em condições.

 

Michael rolou na boca o primeiro gole:

 

- É mesmo forte. Que engraçado, nunca gostei de whisky.

 

Benedict parecia ter ultrapassado a sua relutância inicial, pois esvaziou rapidamente o copo e estendeu-o, pedindo mais. Neil serviu-o pensando que o álcool ia fazer bem ao pobre diabo.

 

Luce era mesmo um patife. Mas não era curiosa a maneira como desejada informação chegava depois de já se ter desesperado de a obter? De uma forma retorcida, aquilo que queria saber acerca de Michael viera através de Luce. Obrigou os olhos a focarem-se no rosto de Michael, tentando ver nele qualquer vestígio daquilo que Luce afirmara. Na verdade não acreditava, por muito que constasse dos papéis de Michael. Eles acabavam sempre, sempre, por se desmascararem; tinham de se desmascarar senão não conseguiam nada, e ele tinha a certeza de que Michael não tinha nada a revelar. Mas a enf. sabia o que havia nos papéis e ela nem por sombras era tão experiente como homens que tinham passado a maior Parte de seus longos anos quase exclusivamente na companhia de outros homens. Teria a enf. algumas dúvidas acerca de Michael? Claro que tinha. Se não as tivesse não seria humana, e ultimamente até em relação a si mesma tinha dúvidas. Nada acontecera entre ela e Michael - para já. Assim ainda tinha tempo.

 

Achas - disse ele, falando laboriosamente mas com bastante clareza -

que a enf. sabe que estamos todos apaixonados por ela?

 

Benedict levantou a cabeça e os seus olhos pareciam de vidro.

 

-Apaixonados não, Neil. Só amor. Amor, amor e mais amor...

 

Bem, ela é a primeira mulher que faz parte das nossas vidas em muitos, muitos anos - disse Michael. - Seria estranho se não a amássemos todos. Ela é realmente amorosa.

 

-Achas que ela é amorosa, Mike? A sério.

 

- Acho.

 

Não sei. Amorosa não me parece a palavra exacta. Amorosa para mim é sempre... alguém que apetece pegar ao colo. Nariz arrebitado, sardas e umrisinho adorável. Aquelas coisas que se vêem logo. Mas ela não é nada disso. Quando a vemos a primeira vez, ela é toda aço e roupa engomada e tem uma linguinha de prata. Não é bonita. Fantasticamente atraente, mas bonita não. Não, não me parece que amorosa seja a palavra certa.

 

Michael pousou o copo e pôs-se a meditar no assunto, depois sorriu e abanou a cabeça:

 

- Se foi assim que a viste, Neil, devias estar muito doente. Eu achei-a uma delícia. Deu-me vontade de rir; não dela, mas por causa dela. Não, não vi a goma nem o aço da primeira vez. Agora vejo. Para mim ela era amorosa.

 

- E ainda é?

 

- Foi isso que eu disse, não foi?

 

- Achas que sabe que estamos todos apaixonados por ela?

 

- Não da maneira como tu dizes - disse Michael calmamente. Ela é uma pessoa aplicada e não passou a vida a sonhar com o amor. Não tem mentalidade de menina de escola. Tenho a sensação curiosa de que quando isto acabar ela continuará a preferir a tudo o resto o seu trabalho como enfermeira.

 

Não há mulher alguma que não opte pelo casamento nas circunstâncias certas - disse Neil.

 

- Porquê?

 

- Vivem todas para o amor.

 

Havia verdadeira compaixão no olhar de Michael:

 

- Ora, Neil, cresce! Queres dizer que os homens não podem viver para o amor? Mas o amor chega em todas as formas e feitios, e em ambos os sexos.

 

- Que sabes tu disso? - perguntou Neil amargamente, sentindo-se criticado, um pouco como se sentia às vezes em presença do seu pai, e isso não era justo; Michael Wilson não era nenhum Longland Parkinson.

 

- Não sei o que é que sei - disse Michael. - É um instinto. Não pode ser outra coisa, pois não? É evidente que não posso gabar-me de ser um perito. Mas há coisas que eu sei sem mesmo me lembrar de as ter aprendido. As pessoas encontram os seus próprios níveis e cada pessoa é diferente. - Levantou-se e espreguiçou-se. - Volto daqui a nada. Vou ver como está o Nugget.

 

Quando Michael voltou, passados alguns minutos, Neil olhou para ele zombeteiramente; tinha arranjado um terceiro copo, usando o simples expediente de esvaziar a água suja de um pote de aguarela, e enchera-o de whisky para si mesmo.

 

- Bebe, Mike - disse. - Decidi que me apetecia outro copo. Estou a celebrar.

 

O despertador da enfermeira Langtry tocou à uma hora da manhã; tinha-o posto a despertar por causa de Nugget, porque queria ir vê-lo a uma hora em que a enxaqueca devia estar já a desaparecer. E qualquer coisa nos homens nessa noite provocara-lhe um ataque agudo de inquietação premonitória; não seria má ideia verificar como estavam todos.

 

Desde os tempos de estágio que se habituara a levantar-se depressa, de forma que saiu imediatamente da cama e tirou o pijama. Enfiou as calças e o casaco do uniforme sem se preocupar em vestir a roupa interior, depois calçou meias e os sapatos de dia. A essa hora da noite ninguém se preocuparia em saber se o uniforme estava ou não correcto. O relógio e as chaves estavam pousados sobre a secretária juntamente com a lâmpada eléctrica; meteu-os num dos quatro bolsos do casaco e apertou bem o cinto. Bom. Pronta. Restava-lhe rezar para que tudo na X estivesse sossegado.

 

Quando atravessou a cortina de cápsulas e entrou em bicos de pés no corredor, tudo parecia estar tranquilo. Demasiado tranquilo até, como se algo se estivesse a chocar. Faltava qualquer coisa e havia qualquer coisa a mais, que, conjuntamente, faziam com que a enfermaria parecesse uma inimiga. Poucos segundos depois, compreendeu quais eram as diferenças: não havia o som das respirações adormecidas, mas havia um fino raio de luz, debaixo da porta de Neil e um murmúrio de vozes. Só as redes mosquiteiras de Matt e de Nugget estavam descidas.

 

Contornou o biombo de Nugget, tão cuidadosamente que ele não a podia ter ouvido, mas viu que os olhos dele estavam abertos e brilhavam fracamente.

 

- Já conseguiu vomitar? - perguntou depois de verificar que a bacia tapada com o pano estava vazia.

 

- Já, enf. Há bocadinho. O Mike trouxe-me uma bacia limpa.

 

A voz dele era apagada, perdida, distante.

 

- Sente-se melhor?

 

- Muito melhor.

 

Durante algum tempo esteve ocupada a tomar-lhe o pulso, a temperatura e a medir-lhe a tensão arterial, tomando depois notas no gráfico colocado aos pés da cama, à luz da lanterna.

 

- Bebe uma chávena de chá se eu fizer?

 

- Bebo, bebo. - A voz soava agora mais forte, com a ideia do chá. - A minha boca parece o chão de um galinheiro.

 

Ela sorriu-lhe e saiu para a copa. Ninguém preparava o chá como ela, com a enorme facilidade e economia de gestos que provinham de inúmeras copas desde os seus tempos de estagiária. Se fosse qualquer dos homens a fazê-lo, havia sempre algum pequeno incidente, folhas de chá espalhadas, ou água fervida de mais, ou o bule mal aquecido, mas, quando ela o fazia, o chá era perfeito. Em menos tempo do que parecia possível estava de regresso junto de Nugget com uma chávena fumegante na mão. Pousou-a no armário e ajudou Nugget a sentar-se, depois puxou uma cadeira e sentou-se, enquanto ele bebia sofregamente, soprando a superfície do líquido impacientemente para o arrefecer e bebendo golinhos curtos como um passarinho.

 

- Sabe, enf. - disse ele, fazendo uma pausa. - Enquanto me dói penso que por muito que viva nunca esquecerei como é. Sabe, podia descrever a dor com inúmeras palavras, como costumo fazer com as minhas dores de cabeça normais. Depois, mal passa, não consigo nem por nada lembrar-me como é e a única palavra que encontro para descrevê-la é ”terrível”.

 

Ela sorriu:

 

- Isso é uma característica do nosso cérebro, Nugget. Quanto mais dolorosa é uma recordação, mais depressa perdemos a chave que nos leva a ela. É saudável e certo esquecermos uma coisa tão penosa. Por muito que nos esforcemos, nunca conseguimos recordar qualquer tipo de experiência com a sua agudeza original. Nem sequer devíamos tentar, embora seja próprio da natureza humana. Mas não se esforce de mais nem demasiadas vezes: é assim que as pessoas se metem em sarilhos. Esqueça a dor. Passou! Não é isso o mais importante?

 

- Ai lá isso é - disse Nugget fervorosamente.

 

- Mais chá?

 

- Não, obrigado, enf. Foi óptimo.

 

- Então ponha as pernas fora da cama, que eu ajudo-o a levantar-se. Vai dormir como um bebé se eu mudar a sua roupa e a da cama.

 

Enquanto ele se sentava a tremer na cadeira, ela mudou a cama; depois ajudou-o a enfiar o corpo escanzelado num pijama lavado. Meteu-o na cama, cobriu-o, sorriu-lhe e fechou sobre ele a rede mosquiteira.

 

Uma breve inspecção a Matt mostrou-lhe que ele dormia num abandono pouco habitual nele, de boca ligeiramente aberta, donde saía um ruído algo suspeito que parecia o do ressonar. Estava de dorso nu. Mas dormia tão profundamente que ela achou inútil perturbá-lo. Franziu o nariz, de repente, chocada: não havia dúvidas, era dele que vinha realmente aquele cheiro a álcool.

 

Durante alguns instantes ficou a olhar para as camas vazias de testa enrugada, depois tomou uma decisão súbita e dirigiu-se rapidamente para a porta de Neil. Não se preocupou em bater e já ia a falar no momento em que entrou.

 

- Oiçam, rapazes, detesto agir como a enfermeira-chefe, mas tudo tem limites, bem sabem.

 

Neil estava sentado na cama, Benedict sentado na cadeira, ambos com ar relaxado. Duas garrafas de Johnnie Watker, uma vazia e outra quase cheia, estavam em cima da mesa.

 

- Idiotas! - exclamou ela. - Querem que nos levem a todos a tribunal marcial? Donde veio isso?

 

- Foi o bom coronel - disse Neil, esforçando-se por articular com clareza. A boca dela fechou-se numa linha dura:

 

- Se ele teve a falta de senso suficiente para lhe dar isso, Neil, você devia ter tido o senso suficiente para não aceitar. Onde estão o Luce e o Michael?

 

Neil pensou um bom bocado e finalmente disse, entrecortado por muitas pausas:

 

- O Mike foi tomar um duche. Não se diverte em festas. O Luce não veio, foi para a cama. Irritado.

 

O Luce não está na cama nem na enfermaria.

 

- Então vou procurá-lo, disse Neil, tentando sair da cama. Não demoro, Ben. Tenho de encontrar o Luce para a enf. A enf. quer o Luce. Eu não quero o Luce, mas a enf. quer. Para quê é coisa que eu não entendo. Mas primeiro acho que vou vomitar.

 

- Se vomita aqui esfrego-lhe lá o nariz! - disse ela ferozmente. - E não saia daí. No estado em que está nem se encontrava a si mesmo. Oh! Apetecia-me dar cabo de vocês todos! - O seu mau humor começava a morrer e uns vestígios de amizade apareciam entre a fúria. - Bem, sejam bons rapazes e limpem-me estas provas de orgia. Já passa da uma da manhã.

 

Depois de ter inspeccionado cuidadosamente a varanda e de não ter encontrado Luce nem Michael, a enfermeira Langtry marchou para o balneário como um soldado, de queixo erguido, ombros direitos e ainda a ferver. Que diabo lhes teria acontecido para se meterem naquela? Nem sequer era lua cheia! Ainda bem que a Enfermaria X ficava no extremo do recinto, longe das outras enfermarias habitadas. Ia tão ocupada a resmungar para dentro que foi bater na corda da roupa, cheia de toalhas, camisas, calças e calções. Diabos os levassem! E era uma medida do grau do seu aborrecimento o facto de nem ver o lado cómico da colisão com a corda da roupa. Limitou-se a pôr tudo outra vez em ordem e continuou a andar.

 

O vulto maciço do balneário avistava-se mesmo à sua frente. Tinha uma porta de madeira que dava para uma sala grande, uma espécie de granja com chuveiros ao longo de uma das paredes e lavatórios noutra e ao fundo alguns tanques de lavar roupa. Não havia compartimentos nem tabiques, nem sítio onde alguém pudesse esconder-se. O chão inclinava-se para uma ranhura ao centro e estava perpetuamente molhado do lado dos chuveiros.

 

Durante toda a noite ficava acesa uma lâmpada fraca, mas naqueles tempos raramente o balneário tinha visitas depois de escurecer, porque os homens tomavam banho e barbeavam-se de manhã e as latrinas ficavam noutro edifício mais pequeno.

 

Vinda da noite sem lua, a enfermeira Langtry não teve a mínima dificuldade em ver. A cena inacreditável estava iluminada como se se tratasse de actores num palco a representarem para o público. De um chuveiro, esquecido, corria ainda uma pequena cortina de água; Michael, num canto afastado, nu e molhado, a olhar, hipnotizado, para Luce; e Luce, nu, sorridente, em erecção, a uns cinco pés de Michael.

 

Nenhum deles se apercebeu da presença dela à porta; ela teve a terrível sensação do déjà vu, e viu a cena como uma espécie de estranha variação da cena do outro dia, na copa. Por instantes ficou paralisada, depois compreendeu que aquilo era uma coisa com que ela não podia lidar, que não conhecia nem compreendia. Deu meia volta e correu para a enfermaria, correu como nunca tinha corrido na vida, escadas acima, entrou pela porta junto da cama de Michael e atravessou a enfermaria.

 

Quando entrou de rompante no cubículo de Neil, ele e Benedict pareciam estar exactamente na mesma posição em que os havia deixado; ter-se-ia passado tão pouco tempo? Não, alguma coisa mudara. As garrafas de whisky e os copos tinham desaparecido. Oh, raios, estavam bêbedos! Toda a gente devia estar bêbeda!

 

- O balneário - conseguiu dizer. - Depressa!

 

Neil pareceu ficar sóbrio, ou pelo menos levantou-se e mexeu-se com maior rapidez que ela julgava possível, e Benedict também não parecia estar muito mal. Empurrou-os para fora como a ovelhas, fê-los atravessar a enfermaria, descer as escadas e correr para o balneário. Neil tropeçou na roupa pendurada e caiu, mas ela esperou por ele, agarrou Benedict pelo braço e arrastou-o com ela.

 

A cena no balneário mudara. Luce e Michael estavam agora agachados como lutadores num ringue, de braços meio estendidos, descrevendo círculos em volta um do outro; mas Luce continuava a rir.

 

- Anda, amor! Sabes bem que queres. Que é, tens medo? Achas que é grande de mais para ti? Ora bolas, não vale a pena fazeres-te de fino, sei tudo a teu respeito.

 

À primeira vista o rosto de Michael parecia muito calmo, quase distante, mas sob ele ardia qualquer coisa imensa, terrível e aterradora, embora Luce não parecesse afectado por ela. Michael não falava, nem pestanejava, nem mudava enquanto a torrente de palavras continuava a brotar da boca de Luce; era como se mal visse o verdadeiro Luce, tão atento estava ao turbilhão que havia dentro dele mesmo.

 

- Acaba com isso! - disse Neil secamente.

 

A cena desfez-se imediatamente. Luce deu meia volta para ver os três que estavam à porta, mas Michael manteve mais uns instantes a sua pose de defesa. Depois caiu junto da parede, encostado a ela e respirando a grandes haustos como se os pulmões fossem foles. E subitamente começou a tremer incontrolavelmente, os dentes batiam-lhe ruidosamente e via-se-lhe o diafragma pulsar sob a pele do abdómen.

 

A enfermeira Langtry passou ao lado de Luce, e Michael viu-a pela primeira vez; o rosto dele escorria suor e tinha a boca aberta na agonia de respirar. A princípio teve de assimilar o simples facto da presença dela; depois olhou para ela num apelo apaixonado que lentamente se transformou numa expressão de desalento; voltou a cabeça, fechou os olhos como se nada importasse, encolheu-se, mas não caiu porque continuava apoiado à parede, e algo se desfazia dentro dele tão visivelmente que parecia murchar. A enfermeira Langtry desviou os olhos.

 

- Nenhum de nós está em estado de tornar isto público esta noite disse ela

 

falando para Neil.

 

Depois virou-se para Luce, com os olhos cheios de nojo e desprezo:

 

- Sargento Daggett, quero falar consigo amanhã de manhã. Faça o favor de ir imediatamente para a enfermaria e não saia de lá de maneira nenhuma.

 

Luce mantinha o seu ar de triunfo e júbilo, sem dar mostras de arrependimento; encolheu os ombros, baixou-se para apanhar a roupa de onde a deixara, mesmo ao pé da porta, abriu-a e saiu, e a posição dos seus ombros nus indicava bem as suas intenções de tornar as coisas difíceis na manhã seguinte.

 

- Capitão Parkinson, responsabilizo-o pelo comportamento do sargento Daggett. Quando entrar de serviço quero ver tudo normal e em condições, e Deus proteja aqueles que estiverem de ressaca. Estou muito, muito zangada. Abusaram da minha confiança. O sargento Wilson não voltará esta noite para a X e não regressará antes de eu ter falado com o sargento Daggett. Estão a perceber? Estão em condições de obedecer?

 

As últimas frases foram ditas com menos severidade e a expressão dos seus olhos era mais suave.

 

- Não estou tão embriagado como pensa - disse Neil, fitando-a com os olhos que pareciam tão negros como os de Benedict. - A senhora é quem manda. Tudo se fará exactamente como deseja.

 

Benedict nem se mexera nem falara desde que chegara ao balneário, mas quando Neil se voltou, rigidamente, para se ir embora, Benedict saltou convulsivamente e os seus olhos abandonaram a contemplação do rosto da enfermeira Langtry para pousarem em Michael, que continuava exausto encostado à parede.

 

- Ele está bem? - perguntou ansiosamente.

 

Ela acenou que sim e conseguiu sorrir-lhe levemente:

 

- Não se preocupe, Ben. Eu trato dele. Volte para a enfermaria com o Neil e tente dormir.

 

Sozinha no balneário com Michael, a enfermeira Langtry procurou a roupa dele, mas só encontrou uma toalha. Ele devia ter vindo para o balneário já despido com a toalha amarrada à cinta. Não era permitido pelo regulamento, claro, que estipulava que qualquer pessoa à noite no exterior andasse coberta dos pés até ao pescoço; mas provavelmente ele nunca contara ser descoberto.

 

Ela tirou a toalha do cabide e dirigiu-se para ele, parando para fechar o chuveiro.

 

- Venha - disse em voz cansada. - Ponha isto à sua volta, por favor. Ele abriu os olhos, mas não olhou para ela. Pegou na toalha e embrulhou-se

 

nela desajeitadamente, com as mãos ainda a tremer, e em seguida afastou-se da parede como se duvidasse que se aguentaria de pé sem apoio. Mas conseguiu.

 

- E quanto é que você teve de beber? - perguntou ela com amargura, agarrando-o pelo braço e obrigando-o a andar.

 

- Cerca de quatro colheres - respondeu ele numa voz dura e cansada. Para onde me leva?.

 

E de súbito libertou-se da mão dela como se a qualidade autoritária e peremptória dela lhe tivesse espicaçado o orgulho.

 

- Vamos para o meu quarto - disse ela secamente. - Vou pô-lo num dos quartos vagos até amanhã. Não pode voltar para a enfermaria, a não ser que eu chame a PM. E não quero fazer isso.

 

Ele seguiu-a então sem mais protestos, derrotado. Que poderia dizer àquela mulher que a fizesse recusar-se a acreditar na prova que os seus olhos haviam visto? Devia ter sido parecido com a cena na copa, só que muito pior. E sentia-se completamente exausto, não lhe restava um grama da sua reserva de força após a breve mas sobre-humana luta consigo mesmo. Porque soubera desde o início qual seria o resultado, logo que Luce aparecera - se ele insistisse, teria tido o prazer profundo, glorioso e satisfatório de matar aquele patife estúpido e ignorante.

 

Duas coisas o haviam impedido de saltar imediatamente ao pescoço de Luce: a recordação do oficial e da tristeza que se seguira àquela história e da tristeza que era a Enfermaria X e a enfermeira Langtry; e o saborear de um momento que ia ser delicioso. Assim, quando Luce fez os primeiros movimentos, Michael agarrou-se desesperadamente ao seu autocontrole.

 

Luce parecia grande, masculino e capaz, mas Michael sabia que lhe faltava a dureza, a experiência ou a vontade de matar. E soubera desde sempre que por trás da gabarolice de Luce, por trás do seu apetite insaciável de atormentar os outros se escondia um cobarde. Luce pensava que haveria de se safar sempre, que os homens olhavam para o tamanho dele, sentiam a sua malícia e perdiam a coragem. Mas Michael sabia que, uma vez desmascarado, ele seria destruído. E quando se pôs em posição de ataque toda a sua vida futura estava em jogo, mas já não fazia qualquer espécie de diferença. Ia desmascarar Luce e ia matá-lo. Matá-lo pelo puro prazer de o fazer.

 

Duas vezes destruído. Duas vezes levado a enfrentar o facto de que não era melhor que qualquer outro que tivesse oportunidade de matar; que também ele podia abandonar tudo pela gratificação da luxúria. Porque era luxúria, e ele sempre o soubera. Aprendera muitas coisas acerca de si mesmo e aprendera também a viver com elas; mas isto? Fora o facto de ter aquilo dentro dele que lhe fechara a boca, impedindo-o de falar de amor no gabinete da enfermeira Langtry? Tinha crescido dentro dele, haveria de brotar. Mas então sentira a sombra, uma coisa terrível e sem nome. Isto. Tinha de ser isto. Pensara que era por não ser merecedor, mas agora, pela primeira vez, esse não merecimento tinha um nome.

 

Ainda bem que ela tinha vindo. Mas como explicar?

 

Ao subirem as escadas que levavam ao seu quarto, a enfermeira Langtry lembrou-se que os outros quartos do bloco estavam fechados à chave e trancados. Não que se sentisse vencida por isso; havia maneiras de entrar em qualquer quarto fechado, e as raparigas que tinham passado pela experiência conventual de um lar de enfermeiras eram sempre peritas em entrar e sair de sítios considerados seguros. Mas levaria o seu tempo. Abriu, portanto, a porta do seu quarto, acendeu a luz e fez sinal a Michael que entrasse à frente.

 

Que estranho! Tirando a chefe nas suas inspecções, ele era a primeira pessoa a ver os seus domínios privados, porque as enfermeiras preferiam reunir-se nas áreas de recreio quando desejavam contactos sociais. Era uma tal caminhada ir até ao quarto de uma colega! Apesar do cansaço, a enfermeira Langtry olhou para o quarto com olhos novos, notando a sua qualidade impessoal. Era mais uma cela que um espaço habitável, embora fosse maior que uma cela. Tinha uma cama estreita semelhante às da X, uma cadeira, uma secretária, um biombo, atrás do qual guardava a roupa, e duas prateleiras pregadas na parede, onde tinha os seus livros.

 

- Pode esperar aqui - disse ela. - Vou arranjar-lhe alguma coisa para vestir e abrir um dos outros quartos.

 

Sem esperar para o ver sentar-se na cadeira junto da cama, fechou a porta e afastou-se, iluminando o caminho com a lanterna. Era mais fácil ir a uma das enfermarias próximas buscar qualquer coisa para ele vestir que voltar à X e perturbar os homens. Além disso, não tinha vontade de ver Luce antes da manhã. Precisava de tempo para pensar. Uma visita à enfermaria B produziu pijama e roupão, com a promessa solene de os devolver no dia seguinte.

 

O quarto contíguo ao dela era o lugar óbvio para instalar Michael, de modo que ela deitou mãos ao trabalho de levantar as tábuas das janelas. As fechaduras eram de pedrês e demasiado complicadas para serem abertas com um gancho. Pronto. Quatro tábuas deviam chegar. Meteu a lanterna pela abertura para verificar se ainda havia lá alguma cama e viu que havia uma, quase na mesma posição que a dela, com o colchão enrolado. Michael teria de passar sem lençóis, e ela não estava em estado de ter muita pena dele.

 

Quando voltou ao quarto tinham passado talvez três quartos de hora. A noite estava pesada e húmida e ela estava encharcada em suor. Sentia uma dor de um lado; massajou-a com uma das mãos e olhou para a cadeira. Michael não estava lá. Estava na cama, enrolado de lado, de costas para ela, e parecia dormir profundamente. Dormir! Como podia ele dormir depois do que se tinha passado!

 

Mas o facto de ele estar a dormir acalmou a sua ira como nada mais poderia ter feito. Ao fim e ao cabo, porque estaria tão zangada? Porque razão lhe apetecia destruir qualquer coisa? Porque eles se tinham embebedado? Porque Luce agira da maneira habitual? Ou porque já não se sentia segura de Michael, porque deixara de se sentir segura desde o dia em que ele se afastara dela no gabinete? Sim, era um pouco por causa do whisky, mas os pobres diabos eram apenas humanos e ainda por cima não muito fortes. Luce? Esse não interessava nada. A maior parte da sua fúria baseava-se realmente na sua tristeza e insegurança quanto a Michael.

 

De repente compreendeu que ela própria também estava exausta. Tinha a roupa colada ao corpo, manchada de suor, e incomodava-a porque, julgando que ia ser uma visita curta, não vestira roupa interior. Bom, logo que o tivesse instalado no quarto ao lado podia tomar um duche. Dirigiu-se à cama sem fazer barulho.

 

O relógio da secretária indicava que passava das duas e meia, e Michael estava tão absolutamente descontraído que ela não teve coragem para o acordar. Mesmo quando tirou o lençol debaixo dele e o cobriu, Michael não se mexeu. Que havia de fazer?

 

Pobre Michael, vítima da determinação de Luce em vingar-se dela por causa da pequena Miss Woop-Woop. Para Luce, esta noite devia ter parecido maná caído do céu, todos estupidificados pelo álcool, Nugget incapacitado com dores de cabeça, o campo livre quando Michael foi para o balneário. Ela queria acreditar que Michael não fizera nada para provocar a atitude de Luce, mas com certeza, se assim fosse, teria bastado a Michael dizer ao outro que se fosse embora e se deixasse daquilo. Fisicamente não tinha medo de Luce, nunca tivera. Mas seria que todo aquele poder o tinha assustado de uma forma diferente? Quem lhe dera conhecer melhor os homens!

 

Parecia que afinal de contas era ela quem tinha de dormir sem lençóis no quarto ao lado, a não ser que conseguisse coragem para o acordar. Entretanto, podia adiar a decisão indo tomar um duche. Tirou o roupão de algodão do cabide atrás da porta e foi para a casa de banho, despiu as calças e o casaco e ficou debaixo do jacto de água tépida quase em êxtase. Lavar-se era uma sensação que por vezes penetrava mais fundo do que a pele. O roupão era do tipo quimono, largo, e apertava a meio com um cinto; em vez de se secar completamente, o que de qualquer forma era duvidoso num tempo tão húmido, enxugou-se ao de leve com a toalha e enfiou o roupão, cruzando-o à frente e apertando o cinto.

 

E, pensou, apanhando a roupa: ”Que eu seja cão se for dormir naquele colchão cheio de percevejos. Ele que se levante e vá para lá imediatamente.”

 

No relógio eram três e cinco. A enfermeira Langtry atirou para o chão a roupa ensopada em suor, aproximou-se da cama e pousou a palma da mão no ombro de Michael. Foi um toque delicado, hesitante, porque detestava ter de acordá-lo, e continuou delicado porque ela resolveu que afinal não o acordava. Demasiado cansada para se sentir divertida com a própria falta de decisão, atirou-se para a cadeira ao lado da cama e apoiou a mão na pele nua de Michael, incapaz de resistir a um impulso que muitas vezes tivera: senti-lo. Uma sensação a que não podia resistir. Tentou lembrar-se de como era sentir a pele nua de um homem amado, mas não conseguiu, talvez porque entre ele e aquele outro homem há tanto tempo se estendia uma vida tão diferente que apagava qualquer memória dos sentidos; mais de seis anos a enterrar os seus próprios desejos debaixo dos desejos e necessidades dos outros. E, com um choque, compreendeu que não lhe tinha sentido a falta. Não intoleravelmente, não angustiadamente.

 

Mas Michael era real e os seus sentimentos por ele eram reais. Há quanto tempo desejava fazer aquilo, tocar a vida nele, como se tivesse todo o direito de o fazer. ”Este é o homem que eu amo”, pensou. ”Não me importa quem ele seja ou o que ele seja. Amo-o.”

 

A mão arrastou-se sobre o ombro, primeiro tacteando, depois em pequenos círculos, cada vez mais como uma carícia. Era o momento dela e não sentia vergonha por saber que ele nada fizera a indicar que queria aquilo; tocava-lhe com amor, para seu próprio prazer, para ter uma recordação. E, totalmente absorta na perfeita delícia de o sentir, inclinou-se e pousou o rosto sobre as costas dele e depois, com os lábios, provou o gosto da sua pele.

 

Porém, quando ele se voltou para ela, ela endireitou-se, chocada por ver exposto a nu o seu pequeno paraíso; humilhada, furiosa consigo mesma, deu um salto atrás. Ele agarrou-lhe ambos os braços, levantou-a da cadeira com tanta rapidez e leveza que ela não teve qualquer sensação de força. Não havia agressão nem rudeza; ele pareceu balançar a si próprio e a ela num movimento tão suave que ela não percebeu como foi feito. Deu por si sentada na cama, uma perna dobrada por baixo dela, os braços dele em sua volta, a cabeça dele pousada nos seus seios, e sentiu-o tremer. Os seus próprios braços curvaram-se em volta dele, Possessivamente, e ambos ficaram assim, quase quietos, até que cessou aquilo que fizera Michael tremer.

 

Os braços dele descontraíram-se, abriram-se, e as suas mãos começaram a Procurar o nó do cinto. Desfê-lo, depois afastou o tecido do roupão para poder Pousar o rosto sobre a pele dela. Uma das mãos segurava-lhe um dos seios, tão reverentemente que a comoveu quase insuportavelmente. A cabeça dele ergueu-se, o corpo afastou-se do dela, e ela ergueu o rosto, procurando voluntariamente o dele. Mexeu os ombros para o ajudar a tirar-lhe o roupão, depois encostou os seios ao peito dele, pôs-lhe as mãos nos ombros e, fascinada e delirante, pousou os lábios nos dele.

 

Só então permitiu que o amor todo que sentia se expandisse, fechando os olhos, que tinham estado abertos e brilhantes, sentindo em toda ela que ele a amava. Não podia não a amar e ser uma alegria tão grande nela, acordando-a para sensações havia muito esquecidas, talvez pouco importantes mas tão familiares, de uma agudeza pungente, nova e maravilhosamente estranha.

 

Ajoelharam-se; as mãos dele deslizaram pelo corpo dela com uma lentidão hesitante, como se quisesse prolongar tudo até um ponto de agonia, e ela não teve forças para o ajudar ou resistir mais tempo, demasiado presa ao milagre que lhe acontecia.

 

pouco antes das sete, na manhã seguinte, a enfermeira Langtry esgueirou-se devagarinho para fora do quarto, vestida com o uniforme de dia vestido cinzento, véu branco, capa vermelha, punhos e colarinho de celulóide, o sol-nascente de prata no pescoço tão polido como se fosse novo. Vestira-se com especial cuidado porque lhe apetecia ter o ar do que sentia, alguém marcado pelo amor. E, sorrindo, ergueu o rosto para saudar o dia e espreguiçou-se luxuriantemente.

 

O caminho para a enfermaria nunca lhe parecera tão longo e ao mesmo tempo tão curto, mas não tinha pena de o ter deixado adormecido no seu quarto, nem tinha pena de regressar à Enfermaria X. Ela própria não pregara olho, nem ele, até às seis, hora a que ela saíra da cama e fora lavar-se. Antes de tomar o duche lembrou-se de voltar a colocar as tábuas da janela do quarto ao lado, de forma que esteve ausente cerca de meia hora. Quando voltou ao quarto, Michael dormia profundamente; deixara-o com um beijo nos lábios inconscientes. Tinha tempo, anos à sua frente. Em breve iriam para casa, e de qualquer forma ela era uma rapariga do campo; não seria nenhum choque para ela passar sem os confortos da vida da cidade. Além disso, Maitland não era assim tão longe de Sydney, nem era ocupar-se de uma quinta de lacticínios em Hunter Valley uma existência tão dura como criar gado ou trigo no Oeste.

 

Normalmente já havia alguém a pé às seis e meia, mas também normalmente ela já estaria na enfermaria às seis, teria já feito o chá e posto toda a gente a mexer. Naquela manhã tudo estava sossegado, todas as redes mosquiteiras descidas, excepto a de Michael.

 

Pousou a capa e o cesto no gabinete, onde um impedido já deixara a ração diária de pão fresco, uma lata de manteiga e um novo frasco de compota - outra vez de ameixa. O fogão a álcool não queria pegar, e quando finalmente o conseguiu convencer de que a sua única função era produzir água quente já perdera todos os benefícios do chuveiro matinal; o calor do dia e da chama do fogão haviam-se combinado para a pôr a suar em bica. A estação húmida estava a chegar cedo; a humidade aumentara vinte por cento na última semana.

 

Quando o chá ficou pronto e o pão barrado de manteiga pôs tudo, excepto o bule, na tábua que servia de tabuleiro e, atravessando a enfermaria, levou o pequeno-almoço para a varanda. Voltou rapidamente a buscar o bule e tudo ficou pronto para eles. Tudo não! Embora na noite passada tivesse ficado tão zangada com eles que não lhe passara pela cabeça lamentá-los na manhã seguinte, a última parte da noite e Michael fizeram-na mudar de opinião e não ser dura com eles. Depois de terem bebido tanto whisky do coronel deviam estar com uma linda ressaca.

 

Voltou ao gabinete e, abrindo a gaveta dos medicamentos, tirou a garrafa de APC. A aspirina e a fenacetina tinham-se depositado no fundo em grânulos e a cafeína flutuava à superfície como um xarope cor de palha. Era fácil decantar alguma cafeína líquida. Quando tivesse reunido os homens na varanda daria a cada um uma colher de cafeína; era o mais velho truque de hospital para tratar uma ressaca e salvara a reputação de muitos jovens médicos e enfermeiras.

 

Não fez mais que meter a cabeça pela porta do quarto de Neil.

 

- Neil, o chá está pronto! Levante-se e apareça em todo o esplendor!

 

O ar do cubículo estava abafado; retirou a cabeça rapidamente e entrou na enfermaria.

 

Nugget estava acordado e fez-lhe um sorriso pálido quando ela ergueu a rede, a enrolou e a atirou num gesto preciso para o anel que a segurava; tinha tempo para se ocupar mais tarde do drapejado à chefe.

 

- Como vai a dor de cabeça?

 

- Bem, enf.

 

- Bom dia, Matt! - disse ela alegremente, repetindo os gestos com a rede. Bom dia, Ben!

 

Claro que a cama de Michael estava vazia. Voltou-se para a cama de Luce e uma parte da sua felicidade morreu. Que lhe iria dizer? Como se comportaria ele durante a entrevista, que ela não podia adiar para muito depois do pequeno-almoço? Mas Luce não estava na cama; a rede fora desprendida do colchão e a cama mostrava que alguém tinha dormido nela mas estava já fria.

 

Voltou-se para Benedict e Matt e viu que ambos estavam sentados na borda das camas, de cabeça entre as mãos, ombros curvados, parecendo que o menor movimento lhes causava dor.

 

- Diabos levem o Johnnie Walker! - disse ela em voz abafada ao ver Neil sair aos tropeções do cubículo, de rosto esverdeado.

 

Bem, parecia que, como de costume, ela era a única pessoa capaz de encontrar Luce. Abriu, pois, a porta junto à cama de Michael, saiu para o patiozinho e desceu os degraus de madeira em direcção ao balneário.

 

Mas estava um dia lindo, lindo, humidade e tudo, pensou, meio cega de ter dormido pouco e do brilho do sol-nascente sobre as palmeiras que orlavam o recinto. A luz nunca parecera tão clara, tão brilhante, tão macia. Quando encontrou o estendal de roupa em ruínas, sorriu, passou por cima dos montes de camisas, calças, cuecas e meias, tentando imaginar o querido e digno Neil, bêbedo, a lutar para se desenvencilhar da roupa.

 

O balneário estava muito sossegado. Demasiado sossegado. Luce estava muito quieto. Demasiado quieto. Jazia estendido meio de encontro à parede, meio sobre o chão de cimento, uma navalha na mão contraída. A pele brilhante e dourada estava riscada por rios de sangue seco e estaladiço, um lago coagulado estagnava sobre o ventre misturado com outras coisas mais hediondas e à volta dele o chão estava coberto de sangue.

 

Ela aproximou-se apenas o suficiente para ver o que ele tinha feito a si mesmo: os órgãos sexuais mutilados, o golpe de haraquiri que lhe abrira o abdómen de lado a lado. A navalha era a dele, a navalha de Bengala de cabo de ébano, que ele preferia às lâminas de barbear porque cortava melhor, e os seus dedos à volta dela eram sem dúvida os únicos dedos que ali tinham estado: não havia nada de artificial na maneira como agarrava no cabo nem no sangue que colara os dedos e a madeira inseparavelmente - graças a Deus, graças a Deus! A cabeça estava atirada para trás numa posição pouco normal, e ela quase julgou ver-lhe os olhos moverem-se zombeteiramente entre as pálpebras semicerradas; depois viu que era o brilho dourado da morte, não o ouro que tiveram no decorrer da sua vida dourada.

 

A enfermeira Langtry não gritou. Depois de ter olhado, a sua reacção foi instintiva; saiu rapidamente e fechou a porta, procurando freneticamente o trinco, que estava solto por um anel na parede. Com um desespero controlado conseguiu fixar a porta, puxar a lingueta e correr o ferrolho. Depois encostou-se à porta, sentindo-se vazia, e a boca abria-se-lhe e fechava-se-lhe num automatismo de pesadelo como o de um boneco de ventríloquo.

 

Passaram talvez cinco minutos até este estado se desvanecer, antes de conseguir arrancar da porta as mãos abertas coladas contra a madeira.

 

O interior das suas coxas estava pegajoso e, durante um momento horrível e humilhante, pensou que tinha urinado, mas depois compreendeu que era só suor e a noite passada com Michael. Michael, oh, Michael. Bateu com o punho de encontro à parede num súbito ímpeto de raiva e desespero. Diabos levassem Luce para as chamas eternas por ter feito aquilo! Oh, porque é que aqueles bêbedos tolos não tinham tomado conta dele? Teria de fazer sempre tudo sozinha? Luce, patife, afinal ganhaste. Tolo, insensato, megalómano, patife, teres levado tão longe a tua sede de vingança...

 

Oh, Michael! Havia lágrimas no seu rosto, lágrimas de um sofrimento terrível por uma alegria brutalmente breve e imperfeita, cortada, pela clara manhã, em ruínas a seus pés, banhada em sangue. Oh, Michael! Meu Michael!... Não era justo. Nem sequer tinham falado ainda. Não tinham ainda começado a reunir os nós soltos daquilo que havia sido a sua relação anterior, não haviam tido tempo para os tecer num fio comum. E ao endireitar-se, ao afastar-se da porta, ela soube, soube irrevogavelmente, que não havia esperanças de felicidade para ela e Michael. Não haveria relação de qualquer tipo. Luce afinal ganhara.

 

Atravessou o recinto como um robot, movendo-se rápida, sacudida e mecanicamente, dirigindo-se a princípio sem saber para onde, depois na única direcção possível. Sentindo a impressão de lágrimas no rosto, levantou uma mão para limpar os olhos com a palma, arranjou o véu, alisou as sobrancelhas. ”Pronto. Pronto, enfermeira Langtry, enfermeira Langtry, tens de te ocupar desta confusão, é o teu maldito dever! Dever, lembra-te do dever. Não só o dever para contigo mas para com os teus pacientes também. Há cinco que têm de ser protegidos a todo o custo das consequências de Luce Daggett”.

 

O coronel Chinstrap estava sentado na sua varanda privada, ligada à sua cabana particular, e mexia o chá distraidamente sem pensar em nada. Estava um dia para aquilo. Um dia que não era grande coisa. Depois da noite passada com a enfermeira Connolly, era normalmente o que acontecia, mas essa noite fora má de uma maneira diferente: tinham passado a maior parte dela a falar da desintegração próxima da Base 15 e da possibilidade de continuarem a ligação na vida civil. Como era seu hábito mexer demasiado o chá, ainda estava a rodar a colher na chávena quando a enfermeira Langtry, arranjada e precisa como um alfinete novo, contornou a esquina da cabana e parou na relva, de rosto erguido para ele.

 

- Coronel, tenho um suicídio - anunciou em voz alta.

 

Ele saltou na cadeira, voltou a sentar-se, depois conseguiu pousar a colher no pires e pôr-se em pé. Cambaleou até à estreita balaustrada e encostou-se a ela, trémulo, olhando para a enfermeira.

 

- Suicídio? Mas isso é pavoroso! Pavoroso.

 

- Sim, coronel - disse ela, friamente.

 

- Quem?

 

- O sargento Daggett, coronel. No balneário. Uma confusão. Cortou-se em tiras com a navalha.

 

- Oh, meu Deus! Oh, meu Deus! - disse ele em voz fraca.

 

- Quer ir lá ver primeiro, coronel, ou quer que vá directamente ter com a PM? perguntou ela, obrigando-o inexoravelmente a decisões que ele sentia não ter a energia de tomar.

 

Limpou a cara com o lenço, tão pálido que as veias do nariz, inchadas pelo álcool, sobressaíam num tom azul e carmesim. As mãos tremiam-lhe, atraiçoando-o; defendeu-se enfiando-as nos bolsos e virou as costas à enfermeira Langtry, entrando na cabana.

 

- Acho melhor ir ver primeiro - disse, erguendo a voz impertinentemente.

- O meu chapéu, onde diabo está o meu maldito chapéu?

 

Ao atravessarem o recinto ambos pareciam bastante normais, mas fora a enfermeira Langtry quem estabelecera o ritmo do passo, e o coronel acompanhava-a, aflito, a soprar.

 

- Alguma... ideia... das razões... enfermeira? - arfou, tentando abrandar a marcha, mas descobrindo que ela continuava a avançar sem qualquer piedade pela sua falta de ar.

 

- Sim, coronel, sei porquê. Apanhei o sargento Daggett a noite passada a tentar molestar o sargento Wilson. Imagino que durante a noite o sargento Daggett teve algum ataque de culpa ou remorsos e decidiu pôr fim à vida no próprio sítio onde se passara o caso, no balneário. Há um motivo nitidamente sexual: os órgãos genitais foram bastante maltratados.

 

Como poderia ela falar tão à vontade quando ia a andar tão rapidamente?

 

- Deus me perdoe, enfermeira, mas não pode ir mais devagar? - gritou. Nesse momento aquilo que ela tinha dito acerca dos órgãos genitais penetrou-lhe no espírito e ele sentiu-se agoniado como se tivesse sido agarrado por uma medusa. - Oh, meu Deus! Oh, meu Deus!

 

O coronel lançou apenas uma olhadela rápida para dentro do balneário, cuja porta a enfermeira Langtry abrira com dedos firmes como rochas. Voltou a sair, com as mãos na garganta mas absolutamente decidido a não vomitar em frente daquela mulher, mais que em frente de qualquer outra pessoa no mundo. Depois de um período a respirar fundo, que disfarçou passeando de um lado para o outro, tossicou e parou em frente da enfermeira Langtry, que esperava pacientemente e olhava agora para ele com um ar zombeteiro. Maldita mulher!

 

- Alguém sabe disto? - perguntou, tirando o lenço e enxugando a cara, que estava a voltar gradualmente à cor normal.

 

- Do suicídio, penso que não - disse com um frio respeito na voz. Infelizmente a tentativa de molestar o sargento Wilson foi presenciada pelo capitão Parkinson e pelo sargento Maynard, assim como por mim mesma.

 

O coronel deu um estalinho com a língua.

 

- Lamentável! A que horas se deu a tentativa de molestar o sargento Wilson?

 

- Aproximadamente à uma e meia da manhã, coronel. Ele fitou-a com uma mistura de desconfiança e irritação.

 

- Que diabo estavam todos a fazer no balneário a essas horas da manhã? E como consentiu que isto tudo acontecesse, enfermeira? Porque não pôs um impedido de vigia durante a noite no dormitório? Ou uma enfermeira substituta?

 

Ela olhou-o sem expressão.

 

- Se se refere ao ataque ao sargento Wilson, coronel, não tinha qualquer razão para suspeitar que as intenções do sargento Daggett eram essas. Se se refere ao suicídio, também não tinha razões para pensar que o sargento Daggett tencionava pôr termo à vida.

 

- Então não tem dúvidas de que foi suicídio?

 

- Absolutamente nenhumas. A navalha estava na mão dele quando os ferimentos foram infligidos. Não viu com os seus olhos? Para fazer um corte profundo em vez de arranhar só a pele segura-se a navalha da mesma maneira, só com mais força.

 

Ele ressentiu a inferência de que o seu estômago não lhe permitira ficar o tempo suficiente para examinar o cadáver tão pormenorizadamente como ela parecia ter feito, de forma que resolveu mudar de táctica:

 

- Repito, porque não deixou alguém de guarda durante a noite? E porque não me veio imediatamente dar parte do ataque do sargento Daggett ao sargento Wilson?

 

Os olhos dela abriram-se muito.

 

- Coronel! Às duas da manhã? Na verdade, não penso que me ficasse muito grato se eu o fosse acordar a essa hora para uma coisa que não era verdadeira urgência médica. Conseguimos interrompê-la antes que o sargento Wilson sofresse algum dano físico, e quando deixei o sargento Daggett ele estava em perfeito juízo e controlava-se perfeitamente. O capitão Parkinson e o sargento Maynard concordaram em ficar de olho nele durante a noite, desde o momento que o sargento Wilson fosse afastado da enfermaria, e não houve necessidade de exercer força sobre o sargento Daggett, nem de o colocar sob prisão, nem de desatar a gritar a pedir auxílio. De facto, coronel - concluiu calmamente -, esperava nem precisar de chamar a sua atenção para este incidente. Pensei que depois de falar com o sargento Daggett e com o sargento Wilson, quando ambos estivessem mais sossegados, tudo se poderia resolver sem meter as entidades oficiais ao barulho. Na altura em que saí da enfermaria sentia-me optimista acerca do desenrolar dos acontecimentos.

 

Ele apanhou outro fio de conversa:

 

- Diz que tirou o sargento Wilson da enfermaria? Que quer dizer com isso?

 

- O sargento Wilson tinha sofrido um severo choque emocional, coronel, e, considerando as circunstâncias, pensei que era aconselhável tratá-lo nos meus aposentos, em vez de na enfermaria mesmo debaixo do nariz do sargento Daggett.

 

- Então o sargento Wilson esteve consigo toda a noite. Ela olhou-o sem medo.

 

- Sim, coronel, toda a noite.

 

- Toda a noite? Tem a certeza de que foi toda a noite?

 

- Tenho, coronel. De facto está ainda no meu quarto. Não quis trazê-lo para a enfermaria antes de ter falado com o sargento Daggett.

 

- E esteve com ele toda a noite, enfermeira?

 

Um leve horror passou-lhe pelo espírito; o coronel não estava a pensar em coisas lascivas acerca dela e de Michael; provavelmente não a considerava capaz de qualquer lascívia. Estava a pensar em algo muito diferente de amor - estava a pensar em assassínio.

 

- Não saí de junto do sargento Wilson até entrar de serviço, há meia hora, coronel, e encontrei o sargento Daggett poucos minutos depois. Estava morto há várias horas - disse ela, num tom que não admitia argumentos.

 

- Estou a ver - disse o coronel, de boca dura. - Isto é uma linda confusão, não é?

 

- Discordo, coronel. Linda é que ela não é.

 

Ele voltou ao tema principal, como um cão teimoso:

 

- E tem a certeza absoluta de que o sargento Daggett não fez nem disse nada que pudesse indicar instintos suicidas?

 

- Absolutamente nada, coronel - disse ela firmemente. - De facto, espanta-me que ele se tenha suicidado. Não que seja inconcebível que ele pusesse termo à vida. Só o escolher tê-lo feito com tanto sangue, com tanta... fealdade. E quanto à destruição da sua própria masculinidade, nem sequer consigo vislumbrar porquê. Mas é esse o problema com as pessoas. Nunca fazem aquilo que se espera delas. Estou a falar aberta e honestamente consigo, coronel Donaldson. Podia mentir e dizer que o estado de espírito do sargento Daggett era nitidamente suicida. Mas resolvi dizer a verdade. A minha incredulidade acerca do suicídio do sargento Daggett não altera a minha convicção de que se trata de suicídio. Não pode ser outra coisa.

 

Ele deu meia volta e começou a caminhar em direcção à Enfermaria X, num passo lento que ela se resolveu a acompanhar. Junto do estendal caído, o coronel parou e pôs-se a remexer nos montes de roupa com o pingalim, fazendo lembrar à enfermeira Langtry a directora de um acampamento misto de adolescentes procurando manchas suspeitas.

 

- Parece que houve luta por aqui - disse ele, endireitando-se. Os lábios dela torceram-se:

 

- Houve sim, coronel. Entre o capitão Parkinson e algumas camisas. Ele continuou a andar:

 

- Penso que é melhor falar com o capitão Parkinson e o sargento Maynard antes de chamar as autoridades.

 

- Claro, coronel. Ainda não voltei à enfermaria depois de descobrir o corpo e imagino que nenhum deles sabe do que se passa, mesmo que tenham tentado ir ao balneário, pois fechei-o à chave antes de ir ter consigo.

 

- Ao menos por isso podemos estar gratos - disse austeramente, e de súbito apercebeu-se de que a vida lhe proporcionava a oportunidade perfeita de amarfanhar definitivamente a enfermeira Langtry. Um homem no quarto dela a noite inteira, um sórdido caso sexual culminando num suicídio: quando tivesse acabado com ela, ela estaria pronta para ser posta fora do exército e desonrada. Oh, céus, que bênção! - Permita-me que lhe diga, enfermeira, que considero que conduziu mal este caso de ponta a ponta e que é para mim um ponto de honra fazer com que lhe seja aplicada a punição que merece.

 

- Obrigada, coronel - disse ela, aparentemente sem ironia. - Contudo, considero que a causa directa de todo este caso foram duas garrafas de Johnnie Walker que foram inteiramente consumidas pelos meus pacientes a noite passada. E se ao menos conhecesse a identidade do louco insensato que foi o responsável por dar ao capitão Parkinson, um paciente emocionalmente instável, essas duas garrafas de whisky ontem, teria grande prazer em considerar um ponto de honra fazer com que ele recebesse a punição que merece!

 

O coronel tropeçou ao subir as escadas e teve de se agarrar ao tremelicante corrimão para não cair. Louco insensato! Idiota refinado! Esquecera-se completamente do whisky. E ela sabia. Oh, se sabia! Tinha de esquecer a vingança. Tinha de fazer marcha atrás e muito rapidamente. Diabos levassem a mulher. Aquela suave e, oh, tão destemida, insolência, era muito profunda; se o seu treino como enfermeira não a destruíra, nada conseguiria fazê-lo.

 

Matt, Nugget, Benedict e Neil estavam sentados à mesa na varanda com um aspecto desgraçado. Pobrezinhos, ela nem se lembrara de lhes dar a cafeína que filtrara do A PC e não podia fazê-lo agora com o coronel Chinstrap a observar.

 

Ao verem o coronel todos se levantaram em sentido; ele sentou-se pesadamente na ponta de um dos bancos e foi obrigado a dar um salto para o meio quando o banco se inclinou perigosamente.

 

- À vontade, senhores - disse. - Capitão Parkinson, gostaria muito de beber uma chávena de chá, se faz favor.

 

O bule já fora acrescentado várias vezes e feito de novo uma vez, de forma que o chá que Neil serviu, com uma mão pouco firme, estava bastante fresco. O coronel Chinstrap pegou na caneca sem parecer reparar na sua fealdade, e enfiou nela o nariz, sentindo-se grato por aquela pausa. Mas chegou o momento em que teve de pousar a caneca, e então olhou azedamente para os quatro homens e para a enfermeira Langtry.

 

- Então parece que esta noite houve um incidente entre os sargentos Wilson e Daggett no balneário? - perguntou, e a sua atitude indicava que fora isso que o obrigara a fazer a caminhada até à Enfermaria X logo de manhã cedo.

 

- Sim, coronel - disse Neil à vontade. - O sargento Daggett fez uma tentativa para molestar sexualmente o sargento Wilson. A enfermeira Langtry veio buscar-nos (ao sargento Maynard e a mim) e levou-nos ao balneário. Pusemos termo à questão.

 

- Viram na verdade o incidente com os vossos próprios olhos ou foi a enfermeira Langtry que lhes contou?

 

Neil olhou para o coronel com um desprezo que nem se preocupou em disfarçar.

 

- Ora, vimo-lo com os nossos próprios olhos, claro - carregou a voz com as tonalidades de alguém forçado a responder a um alcoviteiro inexplicavelmente lascivo. - O sargento Wilson deve ter sido surpreendido no chuveiro. Estava nu e todo molhado. O sargento Daggett também estava nu, mas não estava molhado. Estava, porém, num estado de extrema excitação sexual. Quando a enfermeira Langtry, o sargento Maynard e eu entrámos no balneário estava a tentar agarrar o sargento Wilson, que se pusera numa posição de defesa.

 

Neil pigarreou e olhou cuidadosamente por cima do ombro do coronel:

 

- Felizmente o sargento Wilson não se tinha metido muito no whisky, que por acaso tínhamos na nossa posse na noite passada, senão poderia ter passado um bocado bem pior.

 

- Está bem, está bem, basta! - disse o coronel secamente, sentindo cada tonalidade como uma punhalada e a menção ao whisky como um soco. Sargento Maynard, concorda com a descrição feita pelo capitão Parkinson?

 

Benedict ergueu os olhos pela primeira vez. O seu rosto mostrava o cansaço vazio de alguém que chegara a um ponto de onde não se regressa, e o whisky pusera-lhe nos olhos uma orla vermelha.

 

- Sim, coronel, foi assim que as coisas se passaram - disse, arrancando as palavras como se tivesse estado três dias concentrado unicamente naquelas palavras. - O Luce Daggett era um escarro na face da Terra. Porco, nojento...

 

Matt levantou-se rapidamente, pousou a mão sem hesitar no braço de Benedict e obrigou-o a levantar-se.

 

- Anda, Ben - disse em tom de urgência. - Depressa! Leva-me a dar uma volta. Depois daquele álcool de ontem estou a sentir-me mal.

 

O coronel Chinstrap não replicou, porque a nova referência ao whisky o aterrara. Deixou-se estar calado como um rato enquanto Benedict levava Matt rapidamente para fora da varanda, depois voltou-se de novo para Neil:

 

- Que aconteceu depois da vossa chegada que pôs fim ao incidente, capitão?

 

- O sargento Wilson teve uma reacção nervosa, coronel. Sabe o género de coisas que acontecem quando alguém se vê obrigado a lutar. Começou a tremer, sem conseguir respirar em condições. Pareceu-me melhor que a enfermeira Langtry o levasse com ela, de forma que sugeri que ela o tirasse da enfermaria e o levasse, por exemplo, para o quarto dela, para longe do sargento Daggett. Isso deixava o sargento Daggett sem... hum... sem mais tentações durante o resto da noite. Deixou-o também num estado de considerável apreensão, que, devo confessar, o encorajei a sentir. O sargento Daggett, coronel, não é das pessoas que mais estimo.

 

Ao princípio deste diálogo, a enfermeira Langtry limitara-se a olhar cortesmente para Neil, mas quando o ouviu dizer ao coronel que fora dele a ideia de afastar Michael da enfermaria, os seus olhos abriram-se de surpresa e depois encheram-se de uma doce gratidão. Tolo, nobre, maravilhoso homem! O coronel nunca se lembraria de duvidar das palavras de Neil; contava que fossem os homens a assumir os comandos e a tomar decisões. Mas parecia também que Neil sabia muito bem para onde ela tencionara levar Michael naquela noite e isso fê-la pensar; estaria a parte final da noite inscrita no rosto dela ou teria sido apenas inspiração da parte de Neil?

 

- Como estava o sargento Daggett quando regressou à enfermaria, capitão? - perguntou o coronel.

 

- Como estava o sargento Daggett? - Neil fechou os olhos. - Ora, como de costume. Um patife de língua viperina. Não lamentou nada, excepto ter sido apanhado. Cheio do seu habitual desdénj. E a dizer que se havia de vingar de todos, especialmente da enfermeira Langtry. O Luce detesta-a.

 

Uma falta de afeição tão declarada por alguém que estava morto chocou o coronel, até que se lembrou que eles não sabiam que Luce estava morto. Avançou então para o fim da conversa.

 

- Onde está agora o sargento Daggett? - perguntou em tom indiferente.

 

- Não sei nem me interessa, coronel - disse Neil. - No que me diz respeito, ficava delirante de alegria se ele não voltasse a pôr os pés na Enfermaria X.

 

- Estou a perceber. Bem, capitão, ao menos é honesto.

 

Toda a gente podia ver que o coronel estava a tentar desculpar o precário equilíbrio mental dos homens da X, mas quando se voltou para Nugget a sua irritação começava a transparecer:

 

- Soldado Jones, está aí sentado muito sossegado. Tem alguma coisa a acrescentar?

 

- Quem, meu coronel, eu, meu coronel? Eu tive uma enxaqueca - disse Nugget, importante. - O modelo clássico, meu coronel, foi a sério. Havia de ficar fascinado, meu coronel! Um prodroma de dois dias de letargia e uma certa disfasia seguida por uma aura de uma hora de scotomata no campo visual direito e depois uma hemicrania à esquerda. Fiquei completamente prostrado, meu coronel. - Pensou durante um momento. - Bem, mais que prostrado.

 

- Ver luzes não é scotomata, soldado - disse o coronel.

 

- As minhas eram scotomata - disse Nugget em tom resoluto. - Eram fascinantes, meu coronel. Já lhe disse, não era uma dor de cabeça banal, nem por sombras. Se olhasse para uma coisa grande via-a bem, sem problemas. Mas se olhasse para uma parte pequena da coisa grande, como a maçaneta da porta ou um nó da madeira da parede, só via a metade esquerda da maçaneta ou do nó. A metade direita estava... oh, não sei. Não estava lá, pronto. Scotomata, meu coronel!

 

- Soldado Jones - disse o coronel, cansado. - Se o seu conhecimento dos assuntos militares se assemelhasse ainda que de longe ao seu conhecimento da sua própria sintomatologia, seria agora marechal e tínhamos entrado em Tóquio em mil novecentos e quarenta e três. Quando voltar à vida civil sugiro-lhe veementemente que vá estudar medicina.

 

- Não posso, meu coronel - disse Nugget em voz triste. - Só tenho o curso intermédio. Mas estava a pensar em fazer enfermagem, meu coronel. Em Repat.

 

- Bem, talvez o mundo tenha perdido um Pasteur, mas pode vira ganhar um senhor Nightingale. Vai sair-se muitíssimo bem, soldado Jones.

 

Pelo canto do olho o coronel viu que Matt tinha regressado sem Benedict e que estava encostado à porta a escutar atentamente.

 

- Cabo Sawyer, que tem a dizer?

 

- Eu não vi nada, meu coronel - disse Matt brandamente.

 

Os lábios do coronel desapareceram; viu-se obrigado a respirar fundo:

 

- Algum dos senhores foi ao balneário depois do ataque do sargento Daggett ao sargento Wilson?

 

- Não, coronel, infelizmente - disse Neil em ar de desculpa. - Lamento que nos tenha vindo encontrar por lavar e barbear, mas depois da nossa aventura com o whisky na noite passada a primeira coisa de que precisávamos esta manhã era de litros de chá.

 

- Penso que lhes devia ter dado o cimo do A PC, enfermeira - rosnou o coronel, olhando para ela com os olhos em brasa.

 

As sobrancelhas dela ergueram-se; sorriu levemente:

 

- Já o tenho pronto para lhes dar, coronel.

 

O coronel resolveu finalmente chegar ao ponto principal:

 

- Suponho que nenhum dos senhores está então ao corrente de que o sargento Daggett foi encontrado morto no balneário.

 

Como clímax não deu resultado; nenhum deles manifestou surpresa, choque, horror ou mesmo interesse. Ficaram a olhar como se o coronel tivesse feito um comentário banal acerca do tempo.

 

- Ora por que diabo havia o Luce de fazer uma coisa dessas? - perguntou Neil, sentindo aparentemente que o coronel estava à espera de algum comentário.

- Nunca pensei que ele fosse tão atencioso.

 

- Já não foi sem tempo - disse Matt.

 

- Todos os meus Natais chegaram ao mesmo tempo - disse Nugget.

 

- Porque pensa que foi suicídio, capitão? Neil pareceu espantado:

 

- Ah, não foi? Ele era bastante novo para morrer de causas naturais, não?

 

- É verdade que não foi de causas naturais. Mas porque deduz que foi suicídio? - insistiu o coronel.

 

- Se não teve uma coisa de coração, ou um ataque, ou outra coisa assim, então é porque se suicidou. Não estou a dizer que nós não gostássemos de lhe dar uma ajuda, mas a noite passada não foi uma noite para crimes, coronel. Foi uma noite para uma gotinha de whisky.

 

- Como morreu ele, meu coronel? - perguntou Nugget ansiosamente. Cortou o pescoço? Apunhalou-se? Enforcou-se talvez?

 

- É mesmo seu querer saber, não é, seu vampiro? - exclamou o coronel com ar de quem está farto. - Cometeu aquilo a que os Japoneses chamam haraquiri, creio eu.

 

- Quem o encontrou, meu coronel? - perguntou Matt, ainda da porta.

 

- A enfermeira Langtry.

 

Desta vez a reacção foi a que ele tinha esperado obter ao anunciar a morte de Luce. Houve um silêncio chocado, enquanto todos os olhos se voltavam para a enfermeira. Nugget parecia estar a pontos de chorar, Matt ficara chocado e Neil tinha um ar de desespero.

 

- Oh, minha cara, lamento muito - disse Neil finalmente.

 

Ela abanou a cabeça e sorriu-lhes com amor:

 

- Está tudo bem, a sério. Como estão aver, sobrevivi. Não fiquem tão preocupados, por favor.

 

O coronel Chinstrap suspirou e bateu com as mãos nas coxas em sinal de derrota; que se podia fazer com homens que não mostravam a mínima tristeza pela morte de um dos seus camaradas e depois ficavam desfeitos porque a queridinha da enfermeira tinha tido uma experiência desagradável? Levantou-se:

 

- Muito obrigado pelo vosso tempo e pelo chá, meus senhores. Muito bom dia.

 

- Eles sabiam - disse ele, enquanto atravessava a enfermaria com a enfermeira Langtry. - Aqueles malditos diabos sabiam que ele estava morto.

 

- Acha? - perguntou ela friamente. - Está enganado, sabe? O que eles queriam era enervá-lo, coronel. Não devia mostrar-lhes que eles tinham conseguido; ainda os põe piores.

 

- Quando precisar dos seus conselhos, minha senhora, serei eu a pedir-lhos - disse o coronel, espumando de raiva. Depois lembrou-se da sua posição delicada e da posição ditatorial da enfermeira Langtry, mas não conseguiu resistir a dizer com bastante malícia: - Vai ter de haver um inquérito.

 

- Naturalmente, coronel - disse ela muito calma.

 

Era de mais, especialmente depois da noite que ele tinha passado.

 

- Parece não ter havido crime - disse cansadamente. - Felizmente para ele, talvez, o sargento Wilson tem um álibi de ferro, fornecido nada mais nada menos que por si. Contudo, reservo a minha decisão para depois de a polícia militar ter examinado o corpo. Se concordarem que não há suspeita de crime, calculo que o inquérito será um mero pró-forma. De qualquer modo, isso é com o coronel Seth. Vou preveni-lo imediatamente. - Suspirou e lançou-lhe um breve olhar de lado.

 

- Sim, de facto, que sorte teve o jovem sargento Wilson! Seria uma maravilha se todas as enfermeiras do meu serviço fossem assim tão solícitas para com o bem-estar dos pacientes.

 

Ela parou junto da cortina, perguntando a si mesma porque haveria pessoas a quem se tinha vontade de magoar mas que ficavam espantadas se se lhes pagassem na mesma moeda. Assim era ela e o coronel Chinstrap; desde o primeiro instante em que se tinham visto havia sido uma competição constante para ver quem batia mais forte. E agora, completamente metida no sistema, não se sentia suficientemente caridosa para o deixar ir embora com as suas insinuações acerca de Michael.

 

Disse então, macia como seda:

 

- Vou dizer aos homens que evitem mencionar as indiscrições alcoólicas, não acha, coronel? De facto, não me parece que seja necessário falar nisso desde que a Polícia militar conclua que foi suicídio.

 

O coronel encolheu-se; teria dado tudo o que possuía para poder atirar qualquer coisa àquele rosto sorridente, gritar-lhe que dissesse a todo o maldito mundo que ele tinha dado whisky a pacientes tropo, mas sabia que não podia fazê-lo. Limitou-se a acenar rigidamente que sim:

 

- Como achar conveniente, enfermeira. Eu não o mencionarei certamente.

 

- Ainda não viu o sargento Wilson, coronel. Deixei-o a dormir, mas está bem. Apto a ser interrogado, disso tenho a certeza. Vou consigo ao meu quarto. Tê-lo-ia posto num dos quartos vagos ao lado do meu, mas estavam todos fechados. E acabou por ser melhor assim, não acha? Tive de o pôr no meu quarto e tive-o sempre debaixo de olho. Muito desconfortável, porque só há uma cama estreita.

 

Ah, a cadela, a maldita cadela! Se o soldado Nugget Jones era um Pasteurem potência, ela era um Hitler potencial. Viu-se obrigado a admitir que nem mesmo nos seus melhores dias conseguia rivalizar com a enfermeira Langtry. Sentia-se muito cansado e o caso fora um choque considerável.

 

- Falo depois com o sargento, enfermeira. Bom dia.

 

A enfermeira Langtry ficou a olhar sem se mexer até que o coronel desapareceu na direcção da sua cabana, depois subiu a rampa de regresso ao quarto.

 

Se ao menos, quando as coisas aconteciam, houvesse tempo para pensar! Infelizmente nunca havia. O melhor que podia fazer era não perder o fio à meada e estar sempre um passo à frente. Não confiava nem um bocadinho no coronel Chinstrap. Seria mesmo dele ir-se esconder como uma carocha na sua cabana e mandar a enfermeira-chefe ao quarto dela fazer o trabalho sujo. Michael tinha de ser tirado de lá, e imediatamente. Mas gostaria de ter tido mais tempo antes de o ver, algumas horas preciosas para encontrar a maneira perfeita de dizer o que tinha de ser dito. Algumas horas preciosas; nem dias teriam sido suficientes para aquilo.

 

Havia ruína no ar. Os cínicos poderiam atribuí-la à monção que se aproximava, mas a enfermeira Langtry sabia que não era assim. As coisas acumulavam-se e depois caíam em derrocada tão depressa que ninguém se apercebia de imediato que não havia fundações adequadas. O que era evidentemente certo em relação a ela e a Michael. Como podia ela ter esperado que algo de duradouro saísse de uma situação completamente artificial? Não tinha recusado resolutamente desenvolver a sua relação com Neil Parkinson precisamente por causa disso? Normalmente um homem ia para a cama, senão com alguém que conhecia pelo menos com alguém que pensava conhecer. Mas para Michael não podia haver nada de real acerca de Honour Langtry; era uma imagem, um fantasma. O único Langtry que conhecia era a enfermeira Langtry. Com Neil, ela tinha conseguido preservar suficiente sanidade para compreender isto, para suprimir as suas esperanças até que ambos tivessem regressado a um ambiente mais normal, até que ele tivesse oportunidade de conhecer Honour Langtry e não a enfermeira Langtry. Mas com Michael não houvera pensamento, não houvera sanidade, nada senão a urgência de encontrar o amor com ele ali e agora, sem se importar com as consequências. Como se, numa parte absolutamente inconsciente dela, tivesse sabido como era ténue e inviável.

 

Anos atrás, uma enfermeira, professora de estágio no PA, fizera uma lição especial sobre os incidentes emocionais em que podiam cair as enfermeiras, Honour Langtry era uma dessas estagiárias. Entre esses incidentes, disse a professora, havia o de se apaixonarem por um paciente. E se uma enfermeira tivesse de se apaixonar por um paciente, ao menos que fosse por alguém que sofresse de uma doença aguda. Nunca, nunca, uma coisa crónica. O amor podia crescer e durarl com um abdómen agudo ou uma fractura do fémur. Mas o amor com um espástico ou um paraplégico ou um tuberculoso não era, nas palavras comedidas daquela mulher comedida, uma proposta viável. Uma proposta viável. Era uma frase que Honour Langtry nunca mais esquecera. Não que Michael fosse doente e muito menos um doente crónico. Mas, conhecera-o numa situação de enfermagem a longo termo, colorida por todas as escuridões da Enfermaria X. Mesmo partindo do princípio de que ele não estava apaixonado, ela estava-o indubitavelmente. O seu primeiro e único dever seria de ver Michael como um pensionista da Enfermaria X. Com Neil Parkinson conseguira fazê-lo; mas ela não amava Neil Parkinson, de forma que o dever seguira o seu caminho serenamente. E agora aqui estava ela, tentando usar dois chapéus ao mesmo tempo, o amor e o dever, ambos postos pelo mesmo homem. O mesmo paciente. O trabalho dizia que ele era um paciente. Não importava que ele não se encaixasse nessa descrição. Porque havia o dever. Vinha em primeiro lugar; nem todo o amor do mundo podia mudar os hábitos arreigados de tantos anos.

 

”Que chapéu hei-de usar, o amor ou o dever?”, perguntava a si mesma, subindo mais pesadamente que de costume os degraus para a varanda do quarto. ”Hei-de ser sua amante ou sua enfermeira? E ele o que é? Meu amante ou meu paciente?” Uma súbita rajada de vento apanhou-lhe a ponta do véu e afastou-lho do pescoço. ”As perguntas estão respondidas”, pensou. ”Trago o meu chapéu do dever.”

 

Quando abriu a porta viu Michael vestido com o pijama e o roupão que ela pedira emprestados na Enfermaria B, sentado pacientemente na cadeira, à espera. Recolocara a cadeira a meio do quarto, afastada da cama, agora muito bem feita e que não dava mostras, nem com a mais desenfreada das imaginações, que tivesse sido o lugar de mais prazer e tristeza, de trabalho mais glorioso que qualquer cama voluptuosa, gigantesca e acolchoada. Estranhamente, a castidade espartana da cama foi ressentida como um choque; enquanto atravessava a varanda ensaiara mentalmente a cena que se seguiria, e nessa cena imaginara-o deitado, nu, na cama dela.

 

Se assim tivesse acontecido, ela era capaz de não ter resistido, de se ter atirado para o colchão, junto dele, de, apesar do dever, ter tido a coragem de fazer aquilo que mais desejava: abraçá-lo, oferecer-lhe os lábios para um daqueles beijos ardentes e poderosos, reforçar com experiências frescas a memória da noite tão horrivelmente ensombrada pela coisa morta que jazia ainda espalhada no balneário. Parou à porta, sem sorrir, sem capacidade para se mexer ou falar, sem qualquer recurso. Mas a expressão do seu rosto devia ter-lhe dito mais do que ela imaginava, porque Michael levantou-se imediatamente e encaminhou-se para ela parando perto, mas não o bastante para lhe tocar.

 

- Que aconteceu? - perguntou. - O que é? Que se passa?

 

- O Luce suicidou-se - disse ela de chofre. E calou-se, sem saber como prosseguir.

 

- Suicidou-se? - A princípio ficou boquiaberto, mas o espanto e a incredulidade desapareceram mais depressa do que seria de esperar e foram substituídos por uma consternação curiosa e horrorizada, como perante uma acção que ele próprio tivesse cometido. - Oh, meu Deus, meu Deus! - disse lentamente, parecendo começar a morrer. O remorso e o desespero espalharam-se no rosto muito pálido. Depois disse: - Que fiz eu? - E repetiu: - Que fiz eu?

 

Era a voz de um homem velho e enfraquecido.

 

Ela sentiu imediatamente o coração apertar-se-lhe e aproximou-se o bastante para lhe apertar ambos os braços com as mãos, fitando implorante o rosto dele.

 

- Não fizeste nada, Michael, nada, nada! O Luce destruiu-se a si mesmo, ouviste? Estava só a servir-se de ti para me atingir. Não podes censurar-te. Não fizeste nada para o provocar ou para o encorajar.

 

- Não fiz? - perguntou ele com a voz rouca.

 

- Pára com isso! - gritou ela horrorizada.

 

- Devia ter lá estado com ele e não aqui contigo. Não tinha o direito de o deixar.

 

Atónita, ela olhou para ele como se mal o conhecesse, mas depois conseguiu improvisar um sorrisozinho trocista, tirado do seu saco de expressões de emergência, e espalhou-o sobre a boca.

 

- Palavra de honra! - exclamou. - Isso é um cumprimento para mim.

 

- Oh, enf., não era isso que eu queria dizer! - gritou ele desesperado. - Não queria magoá-la por nada deste mundo.

 

- Nem sequer agora me podes tratar por Honour?

 

- Quem me dera. Fica-lhe bem esse nome... fica-lhe mesmo bem. Mas continuo a pensar em si como enf., mesmo agora. Não a quero magoar por nada deste mundo. Mas se eu tivesse ficado onde pertenço, isto nunca teria acontecido. Ele estaria salvo, e eu estaria livre. A culpa é minha.

 

A agonia dele não significava nada para ela, porque não conhecia a sua origem. Quem era ele? O que era ele? Uma revulsão de náusea e uma enorme tristeza sem nome subiram de dentro dela, espalharam-se nela até à ponta dos dedos, até aos olhos muito abertos de incredulidade. Quem era ele, que depois de passar horas a fazer amor com ela apaixonadamente, amorosamente, podia agora negá-lo, esquecê-lo em favor de Luce? Horror, tristeza, pena, podia ter aguentado, mas não quando ele estava a experimentar todos esses sentimentos por Luce. Nunca na vida se sentira menos mulher, menos ser humano. Ele acabava de lhe atirar o amor à cara em favor de Luce Daggett.

 

- Bem vejo - disse ela secamente. - Enganei-me redondamente acerca de um monte de coisas, não foi? Oh, como fui estúpida. - O riso amargo saiu livre e foi tão real que ele se encolheu. - Espere aí um minuto, está bem? - disse, dando meia volta. - Vou lavar-me num instante. Depois levo-o de volta para a X. O coronel Chinstrap quer fazer-lhe umas perguntas e prefiro que não o encontre aqui.

 

Havia uma pequena bacia de lata na prateleira debaixo da janela que continha uma pequena quantidade de água. Desviando o rosto, correu para a bacia, com os olhos cheios de lágrimas, e fez uma grande barulheira com a água, depois apertou uma toalha contra os olhos, nariz e maçãs do rosto, desejando com uma vontade de ferro que aquelas lágrimas insensatas e sem vergonha deixassem de correr.

 

Ele era como era; significaria isso automaticamente que o amor dela por ele não valia nada? Significaria que não havia nada nele que valesse a pena amar, porque ele lhe preferia Luce? Oh, Michael, Michael! Em toda a sua vida nunca se sentira tão traída, tão desonrada, Honour sem honra nenhuma, e contudo porque havia de se sentir assim? Ele era como era, e isso tinha de ser belo senão ela nunca o teria amado. Mas o abismo entre a razão e os seus sentimentos femininos era intransponível. Nenhuma rival a poderia ter magoado assim. Luce. Pesada e apanhada em falta em comparação com Luce.

 

Que idiota o coronel Chinstrap suspeitar que Michael tivesse assassinado Luce. Que pena que ele não tivesse assistido àquela cenazinha. Teria abafado imediatamente as suas suspeitas. Se algum homem lamentava a morte de outro homem, esse era o sargento Michael Wilson. Ele podia tê-lo feito, supunha; durante a noite ela ause ntara-se do quarto durante o tempo suficiente para ele ter ido ao balneário, ter cometido o acto e voltado para casa. Mas não tinha. Nada a poderia convencer do contrário. Pobre Michael. Provavelmente tinha razão. Se tivesse ficado na Enfermaria X, Luce não teria tido necessidade de se matar. A sua vitória sobre ela teria sido completa - não, mais completa.

 

Oh, Deus - que confusão! Que mistura de desejos, que confusão de motivos. Porque teria ela afastado Michael da enfermaria? Na altura parecera a coisa certa, a única coisa a fazer. Mas teria ela planeado já na altura aproveitar a oportunidade de ficar sozinha com Michael? Na Enfermaria X não havia a menor possibilidade; eram todos ciosos do tempo que ela passasse sozinha com qualquer deles. E, bom, homens eram homens. Dado que ela própria se atirara virtualmente a um Michael que sofria de uma espécie de alheamento após o incidente no balneário, por que razão havia de censurá-lo por se ter servido dela?

 

As lágrimas secaram. Pousou a toalha e foi ver-se ao espelho. Óptimo, as lágrimas não tinham durado o tempo suficiente para deixarem marcas. O véu estava torcido, o seu dever que nunca, nunca, a traíra. O amor pode trair; o dever nunca trai. Com o dever sabe-se sempre em que pé se está, o que se lhe dá é sempre recuperado. Ela abriu uma gaveta escura dentro do seu cérebro e meteu nela o amor, arranjando o véu ao espelho com um ar tão frio e indiferente como o da tal professora, havia tantos anos. Não era uma proposta viável. Desviou a vista da sua própria imagem.

 

- Venha - disse com bondade -, vou levá-lo ao lugar a que pertence.

 

Tropeçando de vez em quando, Michael caminhava ao lado dela, tão embrulhado na sua infelicidade que mal se apercebia de que ela estava ali. Não estava meramente a começar de novo; já tinha começado, e desta vez era uma condenação perpétua, toda uma eternidade de vida. Porque tinham aquelas coisas de lhe acontecer a ele? Que tinha ele feito? As pessoas não paravam de morrer. E tudo por causa dele. Por qualquer coisa dentro dele. Um Jonas.

 

A tentação de ficar deitado na cama dela, de cheirar os seus lençóis, de apoiar o corpo onde o corpo dela tinha estado... Ela lamentava-o agora, mas na altura não. Todo aquele amor que ele nunca conhecera e que estava ali. Como um sonho. E que chegara no fim de algo hediondo, nascera na sua vergonha de ter sido descoberto nu e comprometido por Luce Daggett. Nascera da destruição da sua auto-estima, da compreensão total de que também ele tinha sede de matar.

 

Visões de Luce dançavam-lhe no espírito, Luce a rir, Luce a troçar, Luce a olhar para ele espantado porque ele se prontificara a limpar a porcaria que Luce fizera, Luce no balneário, incapaz de acreditar que as suas propostas não eram bem-vindas, Luce sublimemente inconsciente de que o assassínio pendia sobre a sua cabeça como uma espada. Palerma estúpido! Como Luce lhe dissera uma vez, assim o dizia ele agora ao fantasma de Luce. ”Estúpido, estúpido palerma! Não compreendeste como estavas a pedir isso? Não compreendeste que a guerra embota as objecções do homem a matar, que o acostuma à morte? Claro que não compreendeste. O mais perto que estiveste da guerra foi numa base de fornecimento de material.”

 

Não restava futuro. Nenhum futuro para ele. Talvez nunca tivesse havido. Ben costumava dizer que nós o trazemos sempre connosco. Não era justo. E ela, a quem não conhecia, que nunca agora viria a conhecer. Acabara de olhar para ele como se olha para um assassino. E era um assassino; assassinara a esperança.

 

No momento em que chegaram à enfermaria, Michael afastou-se rapidamente; o único olhar que ele lhe permitiu acabou de rasgar os seus sentimentos em pedaços, porque os olhos cinzentos estavam para além das lágrimas, tão profundamente perturbados que ela teria querido esquecer-se de si mesma e oferecer-lhe todo o conforto possível. Mas não; ele afastou-se rapidamente como se nunca fosse de mais a distância entre os dois. Porém, quando viu Benedict sentado desconsoladamente na borda da cama, mudou de rumo e foi sentar-se junto dele.

 

A enfermeira Langtry não conseguiu aguentar mais tempo e dirigiu-se para o seu gabinete, tão furiosa como angustiada. Era evidente que toda a gente era mais importante para Michael do que ela.

 

Quando Neil entrou, trazendo uma chávena de chá e um prato de fatias de pão com manteiga, sentiu-se tentada a mandá-lo embora, mas qualquer coisa no rosto dele impediu-a de o fazer. Não uma vulnerabilidade, exactamente, antes uma ansiedade de servir e ajudar que não podia facilmente ser assim desprezada.

 

- Coma e beba - disse ele. - Vai sentir-se melhor.

 

Ela sentiu-se muito grata pelo chá, mas pensou que não poderia engolir nem um bocadinho de pão; contudo, depois de ter bebido a primeira chávena e de ter começado a beber a segunda, conseguiu comer quase metade do pão que estava no prato e sentiu-se realmente melhor.

 

Neil sentou-se na cadeira das visitas e observou-a atentamente, sofrendo com a tristeza dela, frustrado pela sua própria impotência, impaciente com as restrições que ela impusera à sua conduta para com ela. Aquilo que ela estava pronta a fazer e a dar por Michael não se aplicava a ele, e isso era extremamente aborrecido Porque ele sabia que era melhor. Melhor para ela, qualquer que fosse o ponto de vista. E tinha mais que uma suspeita de que Michael também o sabia, esta manhã se não ontem. Mas como convencê-la? Ela nem sequer lhe daria ouvidos.

 

Quando ela afastou o prato, ele falou:

 

- Sinto-me desesperadamente triste ao pensar que foi você quem encontrou o Luce. Não deve ter sido agradável.

 

- Não, não foi. Mas consigo aguentar esse género de coisas. Não se preocupe com isso. - Sorriu-lhe sem saber que o seu aspecto mostrava que andava a vaguear num inferno. - Tenho de lhe agradecer por ter chamado a si a responsabilidade de eu ter tirado o Michael da X.

 

Ele encolheu os ombros:

 

- Bom, ajudou, não foi? Deixemos o coronel agarrar-se às suas convicções sobre o sexo forte. Se eu lhe tivesse dito que estava bêbedo e incapaz enquanto você dominava perfeitamente a situação, ele teria achado isso muito menos credível.

 

Ela fez uma careta:

 

- Isso é verdade.

 

- Tem a certeza de que está bem, enf.?

 

- Estou, estou perfeitamente bem. Se sinto alguma coisa é mais por ter sido enganada.

 

Neil franziu o sobrolho:

 

- Enganada? Que palavra estranha!

 

- Para mim não. Sabia que eu tinha levado o Michael para o meu quarto ou atirou às cegas?

 

- Lógico. Para onde havia de o ter levado? Ontem à noite vi logo que quando chegasse a manhã não queria levar o Luce aos MO nem aos PM. Isso significava que não ia provocar especulações colocando-o numa outra enfermaria.

 

- Você é muito esperto, Neil.

 

- Parece-me que não sabe até que ponto sou realmente esperto. Incapaz de responder, ela voltou-se e olhou pela janela.

 

- Vá, tome um cigarro - disse ele, cheio de pena dela, mas sentindo também uma certa amargura, porque sabia que havia coisas que ela nunca lhe permitiria abordar.

 

Ela voltou-se de novo para ele:

 

- Não me atrevo, Neil. A enfermeira-chefe deve estar aí a aparecer de um momento para o outro. A esta hora já o coronel lhe disse, a ela, ao super e aos PM, e pelo menos ela não tarda a vir gozar o panorama. Quanto mais picante a situação, mais lhe agrada, desde que não seja ela uma parte activa do caso. Vai delirar com este pequeno capítulo de desgraças.

 

- E se eu acender um cigarro para mim e você for tirando umas passas? Precisa de qualquer coisa mais forte que chá.

 

- Se se atrever a falar-me em whisky, Neil Parkinson, fecho-o no seu quarto durante um mês. E passo bem sem o cigarro, a sério. Tenho de parecer o mais respeitável possível, senão a chefe dá cabo de mim. Havia logo de sentir o cheiro do tabaco no meu hálito.

 

- Bem, pelo menos como fornecedor do álcool, o coronel está metido no caso até ao pescoço.

 

- O que me faz pensar em duas coisas. Primeiro ficava-lhe muito grata se não falasse no whisky a ninguém. Segundo, leve este frasco para a enfermaria e dê uma colher a cada um. Tome também. Cura a ressaca.

 

Ele sorriu:

 

- Podia beijar-lhe os pés e as mãos por isto!

 

Nesse momento a enfermeira-chefe irrompeu pela porta, cheirando o ar como um cão de fila. Neil desapareceu com uma pequena vénia à chefe, deixando a enfermeira Langtry sozinha a enfrentar a sua superior.

 

A enfermeira-chefe foi o começo de um dia cansativo de espécie diferente. Seguiu-se-lhe o super, um coronelzinho de chapéu vermelho que só se preocupava com os hospitais em abstracto e se sentia desarmado perante os pacientes de carne e osso. Como oficial comandante da Base 15 competia-lhe a responsabilidade de determinar o estilo do inquérito. Depois de uma breve inspecção ao balneário, telefonou para o Departamento da PM e pediu os serviços de um sargento das Investigações Especiais. Homem atarefado, o super tinha pouco interesse num caso que para ele era obviamente suicídio, embora suicídio de uma forma particularmente desagradável. Entregou assim a execução física do inquérito nas mãos do capitão do quartel-mestre da Base 15, um homem novo, simpático e bastante inteligente chamado John Penniquick; depois, com a mente aliviada de um peso considerável e aborrecido, voltou à complicada tarefa de encerrar todo um hospital.

 

O capitão Penniquick tinha, se possível, ainda mais que fazer que o coronel, mas como era um oficial trabalhador e eficiente, quando o sargento das IE chegou pô-lo ao corrente do que se passava com todos os pormenores.

 

- Falarei com qualquer deles se assim o entender - disse, espreitando por cima dos óculos para o sargento Watkin, que achou uma pessoa perceptiva, amável e sensata. - Contudo, o pombo é todo seu, a não ser que se descubra que o pombo é um milhafre, e nesse caso grite por mim, que eu venho a correr.

 

Após dez minutos no balneário com um major que era o patologista da Base 15, o sargento Watkin atravessou cuidadosamente a distância que separava o balneário das escadas das traseiras da Enfermaria X, contornou o pavilhão e entrou pela rampa da frente. Embora a enfermeira Langtry não estivesse no gabinete, o barulho da cortina de cápsulas avisou-a e ela veio a correr da enfermaria. Coisinha aprumada, pensou o sargento aprovadoramente; bom estofo de oficial também. Não lhe custou nada fazer-lhe a continência.

 

- Olá, sargento - disse ela sorrindo.

 

- Enfermeira Langtry? - perguntou o sargento, tirando o chapéu.

 

- Sim.

 

- Sou do Departamento da PM do Quartel-General e estou aqui para investigar a morte do sargento Lucius Daggett. Chamo-me Watkin - disse com voz arrastada, quase sonolenta.

 

Mas ele próprio não era nada sonolento. Recusou a oferta de chá quando se instalaram no gabinete dela e foi direito ao assunto.

 

- Preciso de falar com os seus pacientes, enfermeira, mas primeiro gostava de lhe fazer umas perguntas, se não se importa.

 

- Faça o favor - disse ela tranquilamente.

 

- A navalha. Era dele?

 

- Era. tenho a certeza. Muitos dos homens usavam navalhas de Bengala, mas penso que a do Luce era a única com cabo de ébano. - Decidiu falar abertamente e mostrar assim que também ela estava encarregada do caso. - Mas, com certeza, não duvida que foi suicídio, sargento? Eu vi a maneira como Luce agarrava a navalha. Os dedos estavam crispados exactamente na posição em que lhe pegariam se estivesse vivo e o braço e a mão estavam cobertos de sangue, como aconteceria ao fazer as incisões que eu vi. Quantos golpes havia?

 

- Por acaso, só três. Mas foram dois a mais do que os que precisaria para dar rapidamente cabo dele.

 

- Que diz o patologista? Trouxe alguém de fora ou é o major Menzies? Ele riu:

 

- Que diz se eu for fazer uma soneca numa das suas camas vagas e a senhora conduzir o inquérito?

 

Ela pareceu envergonhada, tímida e de certo modo estranhamente infantil:

 

- Oh, céus, pareço uma mandona, não é? Desculpe, sargento! É só porque estou fascinada.

 

- Está bem, enfermeira, vá perguntando. Está a divertir-me imenso. Falando a sério, há poucas dúvidas de que seja suicídio e tem razão quanto à maneira como ele segurava a navalha. O major Menzies diz que não tem dúvidas de que foi o próprio sargento Daggett que se infligiu os golpes. Vou só fazer umas perguntas aos homens acerca da navalha, e se tudo se confirmar acho que vamos despachar o caso muito rapidamente.

 

Ela deu um grande suspiro de alívio e sorriu-lhe encantadoramente:

 

- Oh, ainda bem! Sei que toda a gente pensa que os pacientes mentalmente instáveis são capazes de tudo, mas garanto-lhe que os meus homens são todos sossegados. O sargento Daggett era o único violento.

 

Ele olhou para ela com curiosidade:

 

- São todos soldados, não são, enfermeira?

 

- Claro.

 

- E a maioria vem da frente, senão não eram tropo. Desculpe contradizê-la, mas os seus homens não podem ser muito sossegados.

 

Estas palavras mostravam-lhe que ele tencionava levar o inquérito até às últimas consequências. Portanto, tudo girava à volta de ela ter dito ou não a verdade ao dizer que acreditava que Luce se tinha suicidado.

 

A investigação acerca da navalha revelou que na verdade a única navalha com cabo de ébano era a de Luce. Matt possuía uma de cabo de marfim, e Neil um conjunto de três com cabos de madrepérola que tinham sido feitas de propósito para o pai antes da Primeira Guerra Mundial. Michael, assim como Benedict e Nugget, usavam lâminas de barbear.

 

Os homens da X não fizeram qualquer esforço para esconder que não gostavam do morto nem entravaram o inquérito do sargento Watkin por qualquer dos meios que tinham ao dispor, desde a loucura ao alheamento. Ao princípio, a enfermeira Langtry teve medo que eles se mostrassem recalcitrantes porque a solidão, a segregação e a ociosidade levavam-nos às vezes a tomarem atitudes infantis, como acontecera na tarde da admissão de Michael. Mas responderam ao apelo ao bom senso e colaboraram esplendidamente. Quanto a saber se o sargento Watkin considerou uma tarefa agradável falar com eles, foi coisa que ele nunca disse, mas a verdade é que os ouviu com toda a atenção, incluindo a descrição lírica que Nugget fez das scotomata que o tinham impedido de ver mais de que nós de madeira e maçanetas de porta, e desses apenas a metade esquerda.

 

Michael foi o único membro da Enfermaria X com quem o capitão quartel-mestre quis falar pessoalmente, mas foi mais uma conversa amigável que um interrogatório. Passou-se no próprio gabinete do capitão, simplesmente porque a Enfermaria X não era o lugar ideal para se ter uma certa privacidade.

 

Embora Michael não se desse conta disso, a sua aparência era a sua melhor defesa. Apresentou-se de uniforme completo, excepto o chapéu, de forma que não fez continência ao entrar, limitando-se a ficar em sentido até o mandarem sentar-se.

 

- Não há motivo para preocupações, sargento - disse o capitão John Penniquick. Sobre a sua secretária viam-se apenas os papéis que tratavam da morte do sargento Lucius Daggett. O relatório do patologista cobria duas páginas manuscritas e indicava, além de uma descrição pormenorizada dos ferimentos que haviam causado a morte, que não havia substâncias estranhas no estômago ou no sangue, como barbitúricos ou opiáceos. O relatório do sargento Watkin era mais longo, também manuscrito, e incluía resumos de todas as conversas tidas com os homens da Enfermaria X e com a enfermeira Langtry. A investigação forense era extremamente reduzida em tempo de guerra e não chegava até à procura de impressões digitais; se o sargento Watkin tivesse visto alguma coisa suspeita, teria heroicamente cumprido o seu dever até ao fim, mas um sargento IE em tempo de guerra não era muito dado a impressões digitais. E naquele caso não vira nada de suspeito e a opinião do patologista concordava. - Na verdade, só queria fazer-lhe umas perguntas acerca das circunstâncias que levaram à morte do sargento Daggett. - disse o capitão quartel-mestre sentindo-se pouco à vontade.

- Alguma vez desconfiou de que o sargento Daggett tencionava meter-se consigo? Já lhe tinha feito alguma proposta anteriormente?

 

- Uma vez - disse Michael. - Mas não conseguiu nada. Honestamente não penso que o sargento Daggett fosse realmente homossexual. Gostava era de arranjar sarilhos, é tudo.

 

- Tem tendências homossexuais, sargento?

 

- Não, meu capitão.

 

- Tem aversão aos homossexuais?

 

- Não, meu capitão.

 

- Porque não?

 

- Combati ao lado e sob o comando de alguns, capitão. Tive amigos que tinham tendências dessas, especialmente um grande amigo meu, e eram tipos decentes. A única coisa que peço às pessoas é que sejam decentes. Penso que os homossexuais são como qualquer outro grupo de homens, uns bons, outros maus e outros indiferentes.

 

O CO sorriu levemente:

 

- Faz alguma ideia por que razão o sargento Daggett andava de olho em si? Michael suspirou.

 

- Penso que conseguiu ler os meus papéis. Não imagino que outro motivo o levaria a olhar para mim duas vezes. - Olhou muito directamente para o Q-M. Se leu os meus papéis sabe que esta não é a primeira vez que me vejo metido em problemas com homossexuais.

 

- Sim, eu sei. É pouca sorte, sargento. Saiu do quarto da enfermeira Langtry alguma vez durante a noite?

 

- Não, meu capitão.

 

- Portanto, depois do incidente no balneário não voltou a ver o sargento Daggett?

 

- Não, meu capitão, nunca mais.

 

O Q-M acenou que sim. Pareceu satisfeito:

 

- Obrigado, sargento. É tudo.

 

- Muito obrigado, meu capitão.

 

Depois de Michael ter saído, o capitão Penniquick juntou todos os papéis relativos à morte do sargento Lucius Daggett, puxou uma folha limpa para o meio da secretária e começou a escrever o seu relatório ao super.

 

Embora ainda faltassem três ou quatro semanas para o encontro da Base 15 com a sua extinção, para os cinco pacientes e para a enfermeira da Enfermaria X todo o sentimento de pertencerem a uma espécie de comunidade se desvaneceu após a morte do sargento Lucius Daggett. Até ao resultado do inquérito andaram todos como em cima de cascas de ovos à volta uns dos outros, cada um deles tão consciente das correntes subterrâneas que minavam a enfermaria que qualquer coisa além de um vago contacto entre eles era insuportável. A infelicidade geral era uma coisa palpável; as infelicidades individuais, secretas e vergonhosas. Falar delas era impossível, tal como era impossível gerar uma falsa alegria. Toda a gente se limitava a rezar para que o inquérito acabasse num resultado inócuo.

 

A enfermeira Langtry, que não estava mergulhada nas suas próprias preocupações a ponto de perder de vista a fragilidade dos seus homens, auscultava o menor sintoma de colapso em qualquer deles, incluindo Michael. Estranhamente, estes não se manifestavam. Alheados estavam, mas não da realidade; tinham-se alheado dela, tinham-na atirado para uma órbita exterior glacial, de onde só a chamavam para fazer coisas sem importância, como servir-lhes o chá matinal, tirá-los da cama, proceder às limpezas, levá-los à praia e metê-los na cama. Educados e corteses, continuavam a ser; realmente amigos calorosos, nunca.

 

Ela tinha vontade de bater com os punhos na parede, de gritar que não precisava daquela punição, que queria, que necessitava desesperadamente de ser integrada no círculo da atenção deles, dizer-lhes que a estavam a matar. É claro que não podia fazer isso, e não o fez. E como só podia interpretar a reacção deles à luz dos seus próprios remorsos, do caminho percorrido pelos seus pensamentos, compreendeu muito bem aquilo que eles eram demasiado bondosos para lhe exprimirem por palavras - que ela faltava ao cumprimento do seu dever e que lhes faltava também a eles. Loucura, devia ter sido loucura! Ter perdido toda a consideração por aquilo que era a coisa certa a fazer pelos pacientes, que ela abandonara espiritualmente em nome da sua gratificação física. O equilíbrio e a perspicácia que, normalmente, lhe teriam feito ver que aquela interpretação era demasiado simplista tinham-na por completo desertado.

 

Honour Langtry conhecera muitas espécies de sofrimento, mas nunca um como este, invasor, perpétuo, asfixiante. Não era que a apreendesse entrar na Enfermaria X; era que já não havia Enfermaria X onde entrar. A unidade familiar fora quebrada.

 

- Bem, foi pronunciado o veredicto - disse ela a Neil uma tarde, três dias após a morte de Luce.

 

- Quando soube? - perguntou ele como se no fundo o caso não lhe interessasse muito.

 

Ele continuava a aparecer para as habituais conversas particulares com ela, mas na verdade não passavam de conversas. Observações banais acerca disto, daquilo e daqueloutro.

 

Esta tarde, pelo coronel Chinstrap, que passou a perna à chefe. Como ela mo disse também, soube-o por duas vias. Suicídio. Resultado de um estado depressivo agudo posterior a um ataque súbito de mania: paleio, mas paleio conveniente. Tinham de arranjar qualquer coisa que impressionasse.

 

- Disseram mais alguma coisa? - perguntou ele, inclinando-se para pôr a cinza do cigarro no cinzeiro.

 

- Ora, nenhum de nós é muito popular, como deve calcular, mas oficialmente nenhum de nós foi censurado.

 

O tom da sua voz mantinha-se ligeiro quando perguntou:

 

- Não lhe deram nenhuma palmatoada, enf.?

 

- Oficialmente, não. Mas a chefe resolveu dizer-me umas palavrinhas por eu ter levado o Michael para o meu quarto. Felizmente a minha impecável reputação ajudou-me. Ela não me imagina a arrastar o pobre do Michael para o quarto sem ser pelos motivos mais puros. Como ela disse, a única coisa era que parecia mal, e como parecia mal eu tinha deixado ir tudo pela borda fora. Parece que nestes últimos dias não tenho feito outra coisa.

 

Durante os últimos dias, a imaginação de Neil havia-lhe pregado partidas inconcebíveis, visualizando-a com Michael em mil e uma situações diferentes, e nem todas tinham a ver com sexo. A traição dela roía-o por dentro, por muito que tentasse ver as coisas friamente e portanto compreender. Não havia lugar para a compreensão num sítio onde já se encontravam o tormento e o ciúme, a sua determinação inabalável em ter aquilo que queria, aquilo de que precisava apesar da óbvia preferência dela por Michael. Ela tinha-se voltado para Michael sem pensar em mais nenhum deles, e ele não conseguia perdoar-lhe. E contudo os seus sentimentos por ela eram tão fortes e intensos como sempre. ”Vai ser minha”, pensou, ”não vou desistir dela! E sou filho do meu pai. É uma sensação estranha. Mas é uma sensação boa.”

 

Ela, pobre alma perdida, sofria também. Neil não sentia o menor prazer em verificá-lo, nem lhe desejava o sofrimento, mas sentia que no caso dela talvez o sofrimento a trouxesse de volta ao lugar onde já tinha estado antes, onde ele, Neil, pertencia e não Michael.

 

Disse:

 

- Não leve as coisas tão a peito.

 

Ela pensou que ele se estava a referir às palmatoadas e sorriu vagamente:

 

- Bom, já passou tudo, graças a Deus. É uma pena que a vida com o Luce não fosse mais agradável. Nunca lhe desejei a morte, mas desejei não ter de suportara sua presença. Só que agora estamos numa espécie de inferno.

 

- Será de atirar as culpas para as costas de Luce? - perguntou ele; talvez, agora que o veredicto fora pronunciado, pudessem descontrair-se o suficiente para voltarem a comunicar.

 

- Não - disse ela tristemente. - Tem de ser atirado para as minhas costas. Para as de mais ninguém.

 

Michael bateu à porta:

 

- O chá está pronto, enf.

 

Ela esqueceu aonde a conversa com Neil podia levar e olhou directamente para Michael:

 

- Entre, se faz favor. Queria falar consigo. Neil, não se importa de guardar o forte? Vou já, mas talvez você queira dar a notícia aos outros.

 

Michael fechou a porta nas costas de Neil e no seu rosto havia um misto de infelicidade e apreensão. E desconforto. E medo. Como se preferisse estar em qualquer outra parte do mundo a estar ali, frente à secretária dela. À secretária dela.

 

Nisso tinha ela razão; ele teria preferido estar em qualquer outro lugar menos ali. Mas o que ela lhe via no rosto era por causa dele mesmo, não por causa dela. E no entanto, tudo tinha a ver com ela. Estava aterrado com a ideia de ceder em frente dela e sofria com a vontade de lhe contar a causa dos seus sofrimentos; mas isso seria dar razão a uma torrente que tinha de permanecer contida. Tudo desaparecera, talvez nunca tivesse existido e certamente nunca viria a existir. Um caos. Uma confusão mais desesperada que todas as outras que tinha conhecido, e estava ali, ansiando que as coisas fossem diferentes e sabendo que as coisas não podiam ser diferentes. Cheio de pena dela porque ela não sabia, concordando que ela não podia vir a saber, lutando contra si mesmo e contra os seus desejos. Sabendo que aquilo que ela queria não podia fazê-la feliz. E continuando a perceber, ao ver o rosto dela, que a magoara muito cruelmente.

 

Algumas destas coisas surgiam-lhe no rosto enquanto esperava em frente da secretária.

 

E de repente aquilo rebentou literalmente dentro dela, aquele olhar que ateou fogo a um monte de orgulho ferido e de sofrimento de que ela mal se apercebera até então.

 

- Oh, por amor de Deus, deixe de olhar para mim dessa maneira! - exclamou, num grito abafado. - Que diabo pensa que eu vou fazer? Ajoelhar-me aos seus pés e suplicar-lhe uma repetição do espectáculo? Antes queria morrer. Está a ouvir? Antes queria morrer.

 

Ele estremeceu, muito pálido, mordeu os lábios, não disse nada.

 

- Posso garantir-lhe, sargento Wilson, que a ideia de uma relação pessoal consigo nem sequer me passa pela cabeça - continuou ela, febrilmente, como o lemingue que corre para o mar assassino. - Soo chamei aqui para lhe dizer que o veredicto sobre a morte do Luce conclui pelo suicídio. Assim como todos nós, você está completamente ilibado. E agora talvez seja capaz de parar com esse espectáculo de autocomiseração. É tudo.

 

Michael nunca tinha pensado que a maior parte do sofrimento que ele lhe infligia se devia àquilo que ela via como uma rejeição da parte dele. Horrorizado, tentou pôr-se no lugar dela, sentir aquela rejeição como ela estava a senti-la, uma coisa muito pessoal e relacionada com o facto de ser mulher. Se ele se valorizasse mais, teria compreendido mais cedo e melhor. Mas para ele a reacção dela era quase inconcebível; ela estava a interpretar tudo de uma maneira que ele não podia. Não porque não fosse sensível ou inteligente ou porque não estivesse interessado nela. Mas porque aquilo que lhe ocupava o espírito desde a morte de Luce estava completamente divorciado dos aspectos pessoais do que se passara no quarto dela. Houvera tantas outras coisas a atormentá-lo - e tanto que fazer que ele não se detivera a pensar o que ela acharia do comportamento dele. E agora era tarde de mais.

 

Ele parecia doente, infeliz, curiosamente indefeso. E, ao mesmo tempo, o Michael de sempre, controlado.

 

- Obrigado - disse ele, sem ironia.

 

- Não olhe para mim assim!

 

- Lamento - disse ele. - Não vou olhar de maneira nenhuma. Ela transferiu o olhar para os papéis que estavam sobre a secretária.

 

- Também eu lamento, sargento, pode crer - disse ela com uma fria finalidade. Pelo que ela conseguia tirar deles, os papéis podiam estar escritos em japonês. E de súbito não aguentou mais; ergueu o rosto, o coração nos olhos, e gritou: - Oh, Michael! - num tom de voz muito diferente.

 

Mas ele já tinha ido embora.

 

Levou-lhe cinco minutos a começar a mexer, a reacção fora devastadora. Ficou sentada a tremer, os dentes batiam-lhe, e durante instantes perguntou a si mesma se não estaria realmente a enlouquecer. Tanta vergonha, tão pouco autodomínio. Nunca lhe ocorrera que pudesse possuir uma tão grande necessidade de magoar alguém que amava ou que saber que tinha conseguido magoar podia ser tão desolador e insuportável. ”Oh, Deus, meu Deus”, rezou. ”Se é isto o amor, cura-me! Cura-me ou deixa-me morrer, porque não posso viver nesta agonia nem mais um minuto...”

 

Foi até à porta do gabinete, estendeu a mão para tirar o chapéu do cabide, depois lembrou-se que tinha de calçar as botas. As mãos ainda lhe tremiam; levou-lhe muito tempo até conseguir apertar os cordões e acertar as polainas. Neil apareceu quando ela se baixava para apanhar o cesto.

 

- Vai sair agora? - perguntou, surpreendido e desapontado.

 

Depois daquele comentário final prometedor antes de Michael ter aparecido ele esperava retomar a conversa onde a tinham interrompido. Mas, como de costume, Michael tinha precedência sobre ele.

 

- Estou terrivelmente cansada - disse ela. - Acho que podem passar sem mim pelo resto da tarde.

 

Foi dito de uma maneira galante, mas bastou a Neil ver a expressão dela para perceber que a galanteria estava muito próxima do desespero. Contra vontade, estendeu a mão, pegou na dela e segurou-a entre as suas, acariciando-a para lhe instilar um pouco de calor.

 

- Não, minha querida enfermeira Langtry, não podemos passar sem si disse, sorrindo. - Mas havemos de aguentar só por esta vez. Vá para a cama e durma.

 

Ela sorriu-lhe, a ele que era o seu camarada de tantos meses na X, e perguntou a si mesma para onde teria ido o amor que começara a sentir por ele e porque o teria abafado tão abruptamente a chegada de Michael. O problema era que ela não tinha a chave para a lógica por trás do amor, se é que havia chave, se é que havia lógica.

 

- Consegue sempre afastar o sofrimento - disse ela.

 

Era a frase que ele costumava dizer-lhe; a maneira como ela a disse afectou-o tão profundamente que ele teve de retirar as mãos. Não era agora a altura de dizer aquilo que desejava tão ardentemente.

 

Pegando no cesto dela, acompanhou-a até à porta da enfermaria como se fosse a visita e ele o anfitrião, recusando-se a entregar-lhe o cesto antes de chegarem ao fim da rampa. E depois ficou ali até muito depois de a silhueta cinzenta ter desaparecido na escuridão, a olhar para a noite, a escutar o gotejar suave da condensação nos beirais que arrefeciam, o coro das rãs e o eterno murmúrio das ondas quebrando ao longe no recife. Havia uma promessa de chuva no ar; não tardaria a chover. Se a enf. não se despachasse ficaria toda molhada.

 

- Onde está a enf.? - perguntou Nugget quando Neil se sentou à mesa pegando no bule.

 

- Está com dores de cabeça - disse Neil sem entrar em pormenores e evitando encontrar o olhar de Michael, que parecia estar a sofrer também de dores de cabeça. - Deus, detesto ser mãe! Quem tem o leite?

 

- Eu - disse Nugget. - Boas notícias, ha? Finalmente o Luce está morto e enterrado. Pff! É um alívio, devo dizer.

 

- Meu Deus, tende piedade da sua alma - disse Benedict.

 

- De todas as nossas almas - disse Matt.

 

Neil acabou a sua conversa com o bule e começou a tirar as canecas da mesa.

 

Sem a enf o chá da noite tinha pouca graça, pensou, olhando para Michael, porque a atenção deste estava concentrada em Matt e Benedict.

 

Com um grande espalhafato de importância, Nugget sacou de um livro enorme, pousou-o num sítio onde não havia o risco de se manchar de chá e abriu-o na página um.

 

Michael olhou para ele, entre divertido e emocionado.

 

- Que vem a ser isso? - perguntou.

 

- Estive a pensar no que disse o coronel - explicou Nugget, pousando uma mão sobre o livro com a reverência de um religioso pela sua bíblia. - Não há razão para que eu não possa frequentar a escola nocturna, pois não? Depois posso ir para a universidade estudar medicina.

 

- E fazer qualquer coisa da tua vida - disse Michael. - Ainda bem. Boa sorte para ti, Nugget.

 

”Como me apetecia não gostar dele ao mesmo tempo que o odeio...”, pensou Neil. Mas essa era a verdadeira lição que o velho queria que eu aprendesse na guerra - não deixar o meu coração intrometer-se naquilo que tem de ser feito, e aprender a viver com o meu coração depois de as coisas estarem feitas.” Neil foi capaz de dizer muito calmamente:

 

- Todos temos de fazer qualquer coisa das nossas vidas quando sairmos da selva. Como é que ficarei vestido de homem de negócios? Nunca usei fatos desses.

 

Depois sentou-se e esperou que Matt reagisse ao estímulo deliberado. Matt assim fez, trémulo.

 

- Como é que eu vou ganhar a vida? - disse, e a pergunta jorrou como se nunca tivesse pensado fazê-la e no entanto nunca tivesse pensado noutra coisa. Sou contabilista, tem de se ver! O exército não me vai dar pensão nenhuma; acham que eu não tenho nada nos olhos. Oh, céus, Neil, que vou eu fazer?

 

Os outros estavam muito calados a olhar para Neil. ”Bom, aqui vamos”, pensou, tão comovido pelo apelo de Matt como os outros, mas decidido a não se deixar dominar pela compaixão. ”Não é a altura boa para entrar em pormenores, mas há base suficiente para que o Mike compreenda a mensagem.”

 

- Isso é comigo, Matt - disse Neil peremptório, pousando a mão com firmeza no braço de Matt. - Não te preocupes com nada. Eu trato de ti.

 

- Nunca aceitei caridade na vida e não vou começar agora. - disse Matt, sentando-se muito direito e cheio de orgulho.

 

- Não é caridade - insistiu Neil. - É a minha parte. Sabes o que quero dizer. Fizemos um pacto, todos nós, mas eu ainda tenho de contribuir com a minha parte inteira - e disse isto não olhando para Matt mas para Michael.

 

- Sim, está bem - disse Michael, percebendo imediatamente aquilo que lhe era pedido. De certo modo foi um alívio que lhe pedissem em vez de ser ele a propô-lo. Sabia há uns tempos qual era a única solução, mas não a queria, não tinha coragem de a oferecer. - Concordo, Neil. É a tua parte. - Os seus olhos passaram do rosto firme de Neil para o de Matt e detiveram-se nele com afecto. Não é caridade, Matt. É uma parte justa.

 

A enfermeira Langtry chegou a casa antes da chuva. Esta começou a cair em cataratas no momento em que ela abria a porta, e em poucos minutos todas as espécies de pequenas criaturas vivas pareceram materializar-se do nada: mosquitos, osgas, rãs, aranhas, que não gostavam de molhar os pés, formigas em rios negros vaporosos, traças, baratas. Como as duas janelas do seu quarto tinham redes, normalmente não precisava de baixar a mosquiteira sobre a cama, mas nessa noite a primeira coisa que fez foi soltá-la do anel e prendê-la debaixo do colchão.

 

Foi tomar um duche ao balneário, depois embrulhou-se no roupão, encostou as duas almofadas pateticamente pequenas à parede da cabeceira da cama e recostou-se agarrada a um livro que nem sequer tinha a coragem de abrir, embora o sono não andasse por perto. Assim, reclinou a cabeça e pôs-se à escuta do som cavo da chuva no telhado de zinco. Em tempos esse fora o som mais intrigante e maravilhoso do mundo, nos dias da sua infância num país em que a chuva era a mensageira da prosperidade e da vida; mas ali, naquele clima pródigo, de perpétuo crescimento e decadência, significava apenas uma morte de todo o exterior, excepto do que se passava na sua cabeça. Não se conseguia ouvir ninguém falar, a menos que berrassem aos ouvidos; as únicas vozes que realmente se ouviam eram aquelas que conversavam na mente de cada um.

 

O horror enjoativo de descobrir que podia magoar um ser amado da forma como magoara desfizera-se num nojo de si mesma quase apático. E quase ao mesmo tempo surgira uma necessidade urgente de autojustificação. Não lhe tinha ele feito aquilo que nenhum homem devia fazer a uma mulher? Não tinha demonstrado uma preferência perversa por Luce Daggett? Luce Daggett, de todos os homens do mundo!

 

Aquilo não levava a nada. Rodando, rodando, rodando, em círculos cada vez mais apertados, que não levavam a parte nenhuma, que não tinham nenhum resultado. Como é que ela permitira que aquilo acontecesse? E quem era Michael Wilson? Não havia respostas, então porquê incomodar-se a fazer as perguntas?

 

As redes mosquiteiras eram sufocantes. Atirou a dela fora, impacientemente, pois não ouvira nenhum zunido de mosquitos-bombardeiros, esquecendo que a chuva abafaria até o barulho de um verdadeiro bombardeiro. Nunca havia luz suficiente para ler dentro da rede e ela sentia-se melhor. Queria ler um bocado e esperar que o sono chegasse.

 

Uma osga caiu com um ”plop” abafado de alguma fenda do telhado sem forro e aterrou, torcendo-se obscenamente, na sua perna nua. Ela puxou-a num frenesim, quase vomitando com o seu contacto, mas não conseguiu arrancá-la. Saltou da cama para pegar num cigarro e, sem se importar com queimar-se, apoiou a ponta incandescente no corpo escorregadio e negro da osga. Era uma grande osga tropical de quatro a cinco polegadas de comprimento e ela não suportava a ideia de ver o processo evoluir, de ver a lesma inchar saciando-se do seu próprio sangue e depois afastar-se, repleta, como um homem egoísta afastando-se de uma mulher após o sexo.

 

Quando a coisa ficou suficientemente frita para lhe largara pele, ela esmagou-a com a bota, reduzindo-a a uma polpa, e ficou a tremer incontrolavelmente, sentindo-se violada e emporcalhada como qualquer heroína vitoriana. Coisa nojenta, horrível, repelente! Oh, Deus! Este clima! Esta chuva! Este dilema eterno, horrível...

 

E depois, claro, o sítio onde a lesma fixara a sua boca cega e ávida continuava a sangrar, a sangrar, a pele impregnada pela saliva anticoagulante do bicho; tinha de cuidar da ferida imediatamente, senão naquele clima não tardaria a ulcerar...

 

Não era muito vulgar que ela pensasse tão fisicamente na Base 15, nas suas dificuldades, isolamento, introspecção. De todos os lugares onde tinha estado, pensou, a lidar com desinfectantes e gazes estéreis, a Base 15 fora o que lhe fizera menos impressão. De facto, não lhe fizera quase impressão. Como se fosse um palco, sem substância ou significados próprios, simplesmente um pano de fundo para um jogo complicado de emoções, vontades e desejos humanos. O que era lógico. A Base 15, como algo mais que um pano de fundo insubstancial, não fazia sentido. Instituição mais estéril e sinistra nunca fora criada; mesmo o mundo de lona de um hospital de campanha tinha mais personalidade. A Base 15 estava ali para servir uma guerra, fora atirada para onde convinha à guerra, sem respeito pelo sítio ideal, satisfação do pessoal ou bem-estar dos pacientes. Não admirava que fosse um mundo de cartão pintado.

 

E, de perna pousada sobre a cadeira, no quarto onde as paredes escorriam água, cobertas de enormes manchas de bolor, as baratas agitando as suas antenas, surgindo de todos os cantos escuros, ansiosas que a luz se apagasse, a enfermeira Langtry olhou em volta como alguém que duvida da realidade de um sonho.

 

”Estou tão contente por voltar para casa...”, pensou pela primeira vez. ”Oh, sim, vou gostar mesmo de voltar para casa.”

 

A enfermeira Langtry entrou na sala de estar das enfermeiras cerca das quatro horas da tarde seguinte, sentindo-se mais segura de si e desejosa de beber uma chávena de chá. Cinco enfermeiras encontravam-se na sala, repartidas em dois grupos, e a enfermeira Dawkin estava sozinha sentada numa cadeira com os pés pousados noutra, cabeceando de sono, até que um gesto mais violento a despertou. Quando os olhos se lhe iam voltar a fechar viu quem estava à porta e acenou convidativa.

 

Quando a enfermeira Langtry se encaminhava para junto da amiga, uma forte tontura provocou-lhe uma onda de pânico; não andava a dormir nem a comer em condições e, se não tivesse cuidado, ainda ficava doente. O contacto com os homens da X e com os seus problemas ensinara-lhe o suficiente para compreender que os seus sintomas presentes eram puro escapismo, um meio de conseguir ser afastada da X sem a humilhação de ter de pedir à chefe para a transferir. Portanto, o orgulho ditava-lhe comer e dormir. Nessa noite tomaria um Nembutal, coisa que não fazia desde o incidente na copa.

 

- Senta-te, querida, estás com ar desfeito - disse a enfermeira Dawkin, puxando uma cadeira mas sem se levantar da sua.

 

- Tu não deves estar muito melhor, para te pores a ressonar aqui - disse a enfermeira Langtry sentando-se.

 

- Tive de ficar na enfermaria a noite passada, é tudo - disse a enfermeira Dawkin, mudando a posição dos pés. - As outras devem achar que nós parecemos o Abott e Costello, eu como os restos do naufrágio do Hesperus e tu como um cartaz de recrutamento de enfermeiras para o exército. Aquela palerma de mulher a atrever-se a sugerir que pudesse haver outros motivos! Como se tu alguma vez te baixasses a alguma coisa ordinária ou clandestina!

 

A enfermeira Langtry franziu o sobrolho, furiosa por a chefe ter dado à língua.

 

Obviamente falara à melhor amiga, que falara à melhor amiga, e por aí adiante. Todo o pessoal (incluindo os OM) sabiam que a enfermeira Langtry - imaginem!

- tivera um soldado no quarto durante toda a noite. E, claro, toda a gente comentava o suicídio por haraquiri; não valia a pena esperar que tal drama passasse despercebido. Felizmente a sua reputação era tão boa que muito poucos acreditariam que na atitude dela para com o soldado houvesse mais que o desejo urgente e compreensível de o proteger. ”Se eles soubessem”, pensou a enfermeira Langtry, sentindo que todos os olhos estavam postos nela, ”se soubessem quais são os meus verdadeiros problemas! Inversão, assassínio, rejeição!” Embora o assassínio tivesse desaparecido; graças a Deus já não precisava de se preocupar com isso.

 

Os olhos mortiços que a honestidade salvava de serem banais estavam argutamente fitos nela; a enfermeira Langtry suspirou e mexeu-se um pouco mas não disse nada.

 

A enfermeira Dawkin tentou nova abordagem.

 

- Então na próxima semana, querida, lá voltamos nós para Aussie e para a vida civil.

 

A chávena da enfermeira Langtry bateu na beira do pires, entornando-se o chá por cima da mesa.

 

- Oh, raios! Olha o que eu fiz! - exclamou, metendo a mão no cesto para tirar um lenço.

 

- Tens pena, Honour? - perguntou a enfermeira Dawkin.

 

- Só fui apanhada de surpresa! - disse a enfermeira Langtry, limpando o chá com o lenço e torcendo este para dentro da chávena. - Quando soubeste isso, Sally?

 

- Foi a chefe que me disse há poucos minutos. Entrou na enfermaria como um barco enfunado e falou com a boquinha toda franzida como se andasse a comer aloés há uma semana. Está desesperada, claro. Tem de voltar para aquela clinicazinha de convalescentes que dirigia antes da guerra. Nenhum dos grandes hospitais, nem sequer os distritais, lhe tocariam nem com umfueiro. Não percebo como é que ela conseguiu chegar tão alto no exército.

 

- A mim também me espanta - disse a enfermeira Langtry, pondo o lenço a secar numa ponta da mesa e enchendo de chá uma chávena limpa. - E tens razão, nenhum hospital decente lhe tocaria nem com um fueiro. Ela faz-me sempre pensar num capataz do turno da noite numa grande fábrica de alimentos. Mas se o exército quisesse ficar com ela, era uma boa solução. Ficava melhor, tinha uma pensão de reforma maior, além de que já não deve estar muito longe da reforma.

 

- Ah! Se o exército ficar com ela, terá mais sorte que a que ela merece. - A enfermeira Langtry pegou no bule e voltou a servir-se de chá. - Bom, sei que vou ter pena de voltar para casa - disse a enfermeira Dawkin abruptamente. Detesto isto aqui, detestei todos os lugares para onde o exército me mandou, mas adorei o trabalho e, meu Deus, como adorei a liberdade!

 

- É. Liberdade é mesmo a palavra certa. Foi disso que eu também gostei.

 

Lembras-te daquela vez na Nova Guiné quando não havia mais ninguém para operar senão tu e eu? Nunca me esquecerei disso enquanto for viva.

 

- Mas saímo-nos bem, não saímos? - A enfermeira Dawkin sorriu, inchando visivelmente de orgulho. - Cosemos aqueles rapazes como se fôssemos cirurgiões a sério e o patrão recomendou-nos para uma condecoração. Ah! Nunca usarei fita nenhuma com mais orgulho que a minha MBE.

 

- Tenho pena que tudo tenha acabado - disse a enfermeira Langtry. - Vou detestar a vida civil. Outra vez as arrastadeiras e as doentes. Chora e geme, geme e chora... Com a minha sorte ainda vou aterrar em ginecologia ou obstetrícia. Os homens são muito mais fáceis!

 

- Não são? A ver se alguma doente te deita uma mãozinha se a situação do pessoal for desesperada! Antes morrerem. Quando uma mulher vai para o hospital espera que toda a gente ande de roda dela a servi-la. Mas os homens põem-se todos ufanos e partem-se em quatro para nos convencerem de que as mulheres deles nunca os trataram como as enfermeiras os tratam.

 

- Que vais fazer na vida civil, Sally?

 

- Primeiro tirar umas feriazitas, suponho - disse a enfermeira Dawkin sem grande entusiasmo. - Procurar amigos novos, esse género de coisas. Depois volto para North Shore. Fiz os meus gerais em Royal Newcastle e o médio em Crown Street, mas fiz a maior parte da minha carreira em North Shore, de modo que é mais ou menos a minha casa. Na verdade, estou em linha para um lugar de chefia, que é realmente a única coisa de que estou à espera.

 

- A minha chefe também vai gostar de voltar a ver-me - disse a enfermeira Langtry pensativamente.

 

- O PA, não é? - perguntou a enfermeira Dawkin, usando o calão das enfermeiras para Royal Prince Alfred Hospital.

 

- O PA, pois.

 

- Nunca gostei muito de um hospital assim tão grande.

 

- Pensando bem, não tenho a certeza que me apeteça voltar para o PA disse a enfermeira Langtry. - Tenho andado a reflectir na ideia de ir para o Callan Park.

 

Como o Callan Park era um hospital psiquiátrico, a enfermeira Dawkin endireitou-se na cadeira e olhou para a enfermeira Langtry com um ar muito desconfiado:

 

- Estás a falar a sério, Honour?

 

- Mais que a sério!

 

- A enfermagem psiquiátrica não tem estatuto! Penso que nem sequer dá diploma. Julgo que sabes que as enfermeiras de psiquiatria são consideradas o rebotalho.

 

- Tenho o meu diploma geral e o intermédio. Portanto, em qualquer altura Posso voltar à enfermagem normal. Mas depois da X gostava de experimentar um hospital psiquiátrico.

 

- De qualquer modo, não é como a X, Honour. Tropo é uma coisa temporária, na maior parte dos casos os pacientes ficam bons. Mas quando um paciente entra pelo portão de um hospital psiquiátrico a sentença é perpétua.

 

- Já sei. Mas talvez isso mude. Gosto de pensar que vai mudar. Se a guerra contribuir para isso tanto como contribuiu para coisas como a cirurgia plástica, muito vai acontecer na psiquiatria. E gostava de estar no local das mudanças.

 

A enfermeira Dawkin deu umas palmadinhas na mão da enfermeira Langtry:

 

- Bem, pequena, tu é que sabes e eu nunca fui do género de dar conselhos. Mas lembra-te de tudo o que se diz das enfermeiras psiquiátricas: acabam por ficar mais tolas que os pacientes.

 

A enfermeira Pedder entrou na sala, olhando em volta para ver qual dos grupos a acolheria com mais alegria. Ao ver a enfermeira Dawkin e a enfermeira Langtry, fez um sorriso aberto à primeira, limitando-se a saudar a segunda com um aceno seco de cabeça.

 

- Já ouviste as notícias, menina Sue? - perguntou a enfermeira Dawkin espantada com a indelicadeza da rapariga.

 

Um mínimo de boa educação obrigou a enfermeira Pedder a aproximar-se da mesa, com ar de quem sentia um mau cheiro nas proximidades.

 

- Não, que notícias?

 

- Somos quase uma relíquia do passado, queridinha. O rosto da rapariga animou-se.

 

- Queres dizer que voltamos para casa? - perguntou.

 

- Sem tirar nem pôr - disse a enfermeira Dawkin.

 

As lágrimas saltaram dos olhos da enfermeira Pedder e a boca hesitou entre a tremura do choro e a curva doce do sorriso.

 

- Oh, Deus seja louvado!

 

- Ora bem. Até que enfim vejo alguém a reagir como deve ser. É fácil dizer quais de nós são os velhos cavalos de batalha, não é? - perguntou a enfermeira Dawkin, não se dirigindo a ninguém em particular.

 

As lágrimas começaram a correr; a enfermeira Pedder tinha descoberto a maneira de atacar.

 

- Como é que eu vou ser capaz de encarar a pobre da mãe dele? - conseguiu articular entre soluços, tão distintamente que todas as cabeças se voltaram para ela.

 

- Ora, deixa-te disso - retorquiu a enfermeira Dawkin enojada. - E vê se cresces, por amor de Deus. Se há coisa que não suporto são lágrimas de crocodilo. O que é que te dá o direito de julgares as tuas colegas mais velhas?

 

A enfermeira Langtry pôs-se em pé de um salto, surpreendida.

 

- Sally, por favor - exclamou. - Está tudo bem, a sério, tudo bem.

 

Nenhuma das enfermeiras dos outros dois grupos estava já a fingir-se desinteressada; as que estavam de costas voltadas para a mesa de Langtry resolveram até voltar as cadeiras para melhor verem a cena. Não era de forma nenhuma um interesse malicioso. Só queriam ver como é que Sally Dawkin se ia arranjar com aquele monstro pretensioso da Pedder.

 

- Toda a noite no quarto com o sargento Wilson, a t-t-t-tratá-lo de choque! - disse a enfermeira Pedder, rapando de um lenço para chorar a sério. - Que sorte para ti que não haja mais ninguém no pavilhão hoje em dia. Mas eu sei o que se anda a passar contigo e com o sargento Wilson, porque o Luce contou-me.

 

- Cala-te, cabra palerma! - berrou a enfermeira Dawkin demasiado zangada para pensar em ser discreta.

 

- Deixa lá, Sally! - suplicou a enfermeira Langtry tentando desesperadamente safar-se.

 

- Não, raios, não deixo coisa nenhuma - ribombou a enfermeira Dawkin naquela voz que fazia as estagiárias tremerem. - Não admito que digam essas coisas. Não te atrevas a fazer insinuações dessas, menina. Devias ter vergonha. Não era a enfermeira Langtry que andava de cabeça perdida com um militar, eras tu.

 

-Como se atreve! - exclamou a enfermeira Pedder.

 

- Atrevo-me, pois, com a maior das calmas - disse a enfermeira Dawkin, que, apesar da posição e dos pés descalços e tortos, ainda conseguia ter à sua volta uma aura do terrível poder das enfermeiras séniores. - Lembra-te só, minha menina, que dentro de poucas semanas tudo vai ser muitíssimo diferente. Não passarás de mais uma pedrinha naquela imensa praia civil. E estou a avisar-te, não te lembres de ir procurar trabalho onde eu estiver! Não te queria ver no meu pessoal nem como mulher de limpeza! O problema com vocês, gente nova, é que se metem num uniforme e se julgam logo a nata do mundo...

 

A tirada foi interrompida de repente porque a enfermeira Langtry soltou um tal grito de horror e desespero que as enfermeiras Dawkin e Pedder esqueceram a discussão. Depois atirou-se para um sofá e começou a chorar; não em soluços suaves, como a enfermeira Pedder, mas em arrancos terríveis e sem lágrimas, que aos olhos horrorizados da enfermeira Dawkin se pareciam muito mais com convulsões.

 

Oh, foi um tal aliviar Da atmosfera azeda, da afeição da enfermeira Dawkin e da inimizade da enfermeira Pedder, Honour Langtry conseguiu finalmente dar à luz o terrível coágulo de sofrimento que crescera dentro dela e a andava a roer havia dias.

 

- Ora estás a ver o que fizeste? - rosnou a enfermeira Dawkin, saltando da cadeira e sentando-se junto da enfermeira Langtry. - Vai-te embora! - disse à enfermeira Pedder. - Vai-te embora, víbora!

 

A enfermeira Pedder fugiu aterrada, enquanto as outras enfermeiras começavam a juntar-se em volta delas porque todas gostavam da enfermeira Langtry.

 

A enfermeira Dawkin olhou para as outras, abanou a cabeça e, com infinita bondade, começou a afagar as costas convulsas.

 

- Pronto, pronto, já passou - murmurou -, chora, que já não é sem tempo. Minha pobre velha! Minha pobre velha, tantas preocupações e tristezas... Eu sei, eu sei, eu sei...

 

Vagamente consciente da presença da enfermeira Dawkin a seu lado, a falar tão docemente, das outras enfermeiras, que também se preocupavam com ela, a enfermeira Langtry chorava, chorava.

 

Uma ordenança da cozinha levou à Enfermaria X a notícia do desmantelamento iminente da Base 15, transmitindo-a a Michael, na copa, sorrindo de orelha a orelha enquanto balbuciava incoerentemente que ia voltar a ver a sua terra.

 

Michael não foi à varanda logo após a ordenança ter partido; ficou no meio da copa, passando uma mão pela cara e apalpando o peito com a outra. ”Tão cedo”, pensou sombriamente. ”Tão cedo! Não estou pronto, porque tenho medo. Não estou deprimido, nem é que não me apeteça. Só assustado quanto ao que me reserva o futuro, do que ele vai fazer de mim. Mas tem de ser feito e eu sou forte. É o melhor para todos. Incluindo eu. Incluindo ela.”

 

- De hoje a uma semana estamos todos a caminho da Austrália - disse, quando voltou para a varanda.

 

Um silêncio pesado acolheu a notícia. Reclinado na cama mais próxima, com um Best Taylor que tinha conseguido arrancar ao coronel Chinstrap aberto à frente dele, Nugget baixou o enorme livro e ergueu os olhos. As mãos compridas de Matt cerraram-se e o seu rosto ficou muito quieto. Entretido com um lápis e um pedaço de papel, Neil deixou cair o lápis em cima do desenho, que por acaso era das mãos de Matt, e pareceu envelhecer dez anos. Só Benedict, que se balançava para trás e para diante numa cadeira que nunca fora concebida para balançar, pareceu ficar indiferente. Um sorriso lento começou a abrir-se na boca de Nugget.

 

Casa? - disse como se tacteasse. - Casa? Vou ver a minha mãe.

 

Mas a tensão de Matt não diminuiu, e Michael sabia que ele estava a pensar no Primeiro encontro com a mulher.

 

- Que merda! - disse Neil, voltando a pegar no lápis e verificando que a pose das mãos belíssimas estava completamente destruída. Pousou o lápis, levantou-se, foi até à balaustrada e parou de costas voltadas para todos. - Que grandessíssima merda! - disse, falando para as palmeiras numa voz amarga.

 

- Ben! - disse Michael secamente. - Ben, ouviste? Chegou a altura de irmos para casa; vamos para a Austrália. Mas Benedict continuava a balançar-se para trás e para a frente, para a frente e para trás, a cadeira estalando perigosamente, e o rosto e os olhos de Benedict mantinham-se alheios e impassíveis.

 

- Vou dizer-lhe - disse Michael de súbito, em voz forte. Falara para todos, mas era para Neil que estava a olhar.

 

Neil não se voltou, mas as suas costas altas, magras e direitas alteraram-se de súbito; era como se todas as suas forças e recursos tivessem voltado. As costas pareciam ser a propriedade de um homem poderoso e agressivo.

 

- Não, Mike, não lhe vais dizer nada - disse.

 

- Tenho de dizer replicou Michael, mas não em tom de súplica, sem olhar para Matt, nem para Nugget, nem para Benedict, embora tanto Matt como Nugget tivessem ficado extremamente tensos.

 

- Não lhe podes dizer nada, Mike. Nem uma palavra! Não podes sem o consentimento de nós todos, e nós não to damos.

 

- Posso dizer-lhe e vou dizer-lhe. Que importância tem agora. Se ela souber não vai mudar nada; todos nós decidimos o que fazer nesta situação. - Pousou a mão no ombro de Benedict, como se o balouçar o irritasse, e Benedict parou imediatamente. - Fui eu quem ficou com a maior parte, porque sou o único que pode fazê-lo e porque a culpa era mais minha que de qualquer outro. Mas não quero sofrer em silêncio. Não sou assim tão heróico! Sim, bem sei que não sou o único a sofrer. Mas vou dizer-lhe!

 

- Não lhe podes dizer - disse Neil em voz fria como o aço. - Se o fizeres, juro que te mato. É demasiado perigoso.

 

Michael não troçou, como Luce teria feito, mas no seu rosto não havia medo.

 

- Não valia a pena matar-me, Neil, e tu sabe-lo muito bem. Já chega de mortes.

 

O passo leve da enfermeira Langtry soou; o grupo ficou como que gelado. Quando ela entrou na varanda parou a examiná-los, ligeiramente espantada, perguntando a si mesma que coisa teria imterrompido. Se alguém se lhe tivesse antecipado com as notícias acerca da Base 15 porque é que isso provocaria uma discussão? Mas o certo é que sabiam da Base 15 e que tinham estado a discutir.

 

- Estes passos! - disse Matt subitamente, quebrando o silêncio. Estes passos maravilhosos! Os únicos passos de mulher que conheço. Quando tinha olhos não escutava. Se a minha mulher entrasse agora aqui não era capaz de reconhecer o barulho que ela fizesse.

 

- Não, os meus não são os únicos passos de mulher que conhece. Há outros - disse a enfermeira Langtry, encaminhando-se para Matt e pondo-lhe as mãos nos ombros.

 

Ele fechou os olhos, que não viam, e encostou-se um pouco a ela, não o bastante para ser ofensivo.

 

- Ouve os passos da chefe uma vez por semana, pelo menos - disse a enfermeira Langtry.

 

- Oh, ela! - exclamou ele, sorrindo. - Mas a chefe anda como um elefante. Os passos dela não são de mulher.

 

Ela desatou a rir, apertando-lhe os ombros com força, rindo da piada mas também de qualquer coisa de mais íntimo, com um abandono real e feliz.

 

- Oh, Matt, que descrição maravilhosa! - disse quando o riso lho permitiu.

- Hei-de contar esta à Sally Dawkin. Ela vai adorar!

 

- Enf.! Enf.! Não são boas notícias? - gritou Nugget da cama, esquecido do Best & Taylor. - Vou para casa, vou ver a minha mãe!

 

- Claro que são boas notícias, Nugget.

 

Neil continuava de costas voltadas. A enfermeira Langtry inclinou-se para examinar o desenho das mãos de Matt, depois endireitou-se, largou os ombros de Matt e afastou-se um pouco. E conseguiu finalmente olhar para Michael, cuja mão continuava apoiada no ombro de Benedict, numa paródia do seu próprio gesto para com Matt. Os olhos de ambos encontraram-se, ambos armados contra o sofrimento, ambos decididos e objectivos; encontravam-se como os olhos de estranhos, delicadamente, sem interesses pessoais.

 

Ela deu meia volta e entrou em casa.

 

Neil apareceu quase logo, fechando a porta do gabinete com um ar de quem gostaria de ter lá fora um letreiro de ”Não incomodar”. Quando lhe viu o rosto, de olhos muito inchados, pôs-se a analisá-la sombriamente.

 

- Esteve a chorar.

 

- Em cataratas - admitiu ela. - Fiz uma linda cena no meio da sala das enfermeiras e ainda por cima não estava lá sozinha. Tinha imenso público. Uma reacção atrasada, suponho. A enfermeirazita de Woop-Woop (sabe, a filha do gerente do banco) entrou na altura errada e acusou-me de perseguir o Luce. A minha amiga Dawkin, da Enfermaria D, ficou furiosa, começaram a discutir e de repente ali estava eu num mar de lágrimas. Ridículo, não é?

 

- Foi isso mesmo que aconteceu?

 

- Como é que eu podia inventar uma história destas? Parecia mais normal, plácida e calma.

 

- Sente-se melhor por ter chorado? - perguntou ele, oferecendo-lhe um cigarro.

 

Ela sorriu levemente.

 

- Lá no fundo, sim. À superfície, pelo contrário, sinto-me horrível. Como se um gato me tivesse andado a arrastar por aí. A minha maquinaria está toda emperrada.

 

- Que confusão de metáfora! - disse ele docemente. Ela meditou por instantes:

 

- Depende daquilo que o gato arrasta, não é? Talvez seja um rato mecânico. Sinto-me mecânica.

 

Ele suspirou:

 

- Oh, enf.! Seja feita a sua vontade, então. Vou deixar o assunto. E a si também, rigorosamente sozinha.

 

- Obrigada, aprecio muito - disse ela.

 

- E daqui a uma semana acabou tudo - disse ele em tom de conversa.

 

- É. Suspeitei que eles queriam ver-nos daqui para fora antes das monções começarem a sério.

 

- Vai voltar para a Austrália? Quer dizer, quando for desmobilizada?

 

- Vou.

 

- Fazer o quê, posso perguntar?

 

Apesar dos vestígios inchados deixados pelas lágrimas, ela parecia fria e distante.

 

- Trabalhar no Callan Park. Como você é de Melburne, talvez não saiba que o Callan Park é um grande hospital psiquiátrico em Sydney.

 

Ele ficou chocado, mas viu que ela estava a falar a sério.

 

- Céus, que desperdício!

 

- Nem por sombras - disse ela secamente. - É um trabalho necessário e útil. E preciso muito de continuar a fazer coisas úteis e necessárias. Tenho sorte, sabe? A minha família é suficientemente rica para quando eu for velha e não puder trabalhar me garantir que não preciso de ir à sopa dos pobres. De forma que posso fazer o que me apetecer da minha vida. - As pálpebras congestionadas ergueram-se, os olhos frios fitaram-no. - E você? Que vai você fazer, Neil?

 

Então era isso. Sai Neil Parkinson. A voz dela, a expressão dela, a sua atitude diziam-lhe que ele não seria bem-vindo à sua vida depois da guerra.

 

- Oh, vou para Melburne - disse ele à vontade. - O que gostava mesmo de fazer era voltar à Grécia, para o Peloponeso; tenho uma vivenda perto de Pylos. Mas os meus pais, em particular o meu pai, já não são nada novos. De forma que será Melburne em vez da Grécia. Além disso, a Grécia significaria pintar, e eu não passo de um pintor competente, sem mais. Era uma coisa que me magoava, e muito. Mas agora já não. Parece-me uma questão de pouca importância. Aprendi muito durante os últimos seis anos, e a Enfermaria X completou lindamente a minha educação. Sei quais são as minhas prioridades e sei agora que posso dar uma boa ajuda ao velhote, ao meu pai. Se tenho de seguir os passos dele, é altura de começar a aprender como se dirige o negócio da família.

 

- Vai ter muito que fazer.

 

- Lá isso vou. - Levantou-se. - Dá-me licença? Se é verdade que não tardamos a ir embora, tenho muito que arrumar.

 

Ela viu a porta fechar-se atrás dele e suspirou. Se Michael não tivesse feito mais por ela, tinha-lhe pelo menos mostrado que havia uma vasta diferença entre afeição e amor. Gostava de Neil, mas tinha a certeza de que não o amava. Firme, digno de confiança, cortês, bem-educado. Neil, desejoso de lhe dar tudo o que era.

 

Um bom partido. E bonito homem também. Dotado de todas as graças sociais. Preferir-lhe Michael não era sensato. Mas aquilo de que ela gostava em Michael era a sua determinação, aquele ar que dizia que ninguém o podia afastar do caminho que escolhera. Podia ser um enigma, mas o facto de não o conhecer não a impedia de o amar. Amava a sua força. Não amara a disponibilidade de Neil, pronto a subjugar os seus desejos aos dela.

 

Era estranho que Neil parecesse ainda mais seguro naqueles dias, embora devesse saber que ela decidira que uma relação com ele não teria futuro depois da guerra. E era um alívio ver que ele não ficara perturbado com essa decisão, que não se sentia como se tivesse sido rejeitado. Ela tivera sempre consciência de que o estava a magoar desde o incidente na copa, mas acontecera tanta coisa entretanto que não dedicara muito tempo a pensar como se sentiria Neil. Chegara agora a altura em que poderiam vir os remorsos, mas afinal parecia que não eram necessários. O amor dele por ela mostrara-se novamente naquele dia, mas não parecia haver amargura nem sofrimento. E isso era um tal alívio! Ter finalmente dado expressão à sua dor e descobrir que Neil estava inteiro apesar da conduta dela! Hoje era o primeiro dia bom, em várias semanas.

 

A semana que se seguiu foi estranha. Normalmente, quando as pessoas que ocuparam um lugar durante meses ou anos se preparam para o abandonar há um enorme fluxo de actividade desordenada, preocupações com tudo, desde animais a veículos. A rápida desintegração da Base 15 não se passou assim. Os seus ocupantes já há meses que iam sendo pouco a pouco removidos; restava apenas um núcleo que seria repatriado rápida e competentemente. Ninguém tinha aquele género de bagagem que normalmente se amontoa ao longo da vida, porque, essencialmente, a Base 15 fora um breve local de passagem. Nos arredores não abundavam objectos interessantes, artesanato ou os outros artefactos que os coleccionadores tinham acumulado nos teatros de guerra da Europa, índia, Médio Oriente e Norte de África. Muitas das enfermeiras foram contempladas com tímidos presentes por parte dos seus homens, na sua maioria coisas pequenas feitas na enfermaria, mas praticamente todos os habitantes da Base 15 partiriam com pouco mais coisas do que aquelas que possuíam na data da chegada.

 

Afixaram-se anúncios de horários, que foram cumpridos à risca com a disciplina fácil de um pessoal bem treinado; coisas iam e vinham, mas a Base 15 permanecia. Ninguém estava à espera que fosse de outro modo. Os anúncios eram, de facto, uma sineta de alarme ao som da qual todos tinham de estar preparados para serem imediatamente evacuados.

 

A enfermeira-chefe andava atarefadíssima a meter o nariz em tudo, menos preocupada com as redes mosquiteiras que com os programas e horários, que levava para todo o lado para consultar durante as intermináveis reuniões de informação com as enfermeiras, que, todas, de bom grado a teriam estrangulado. Agora que a Base 15 estava a chegar ao fim, o que as enfermeiras realmente queriam era passar o máximo tempo possível com os seus pacientes.

 

A Enfermaria X ficava bastante afastada da área principal de actividade, perdida, como edifício que fora construído posteriormente, longe das outras enfermarias habitadas, com o seu minúsculo complemento de cinco pacientes e uma só enfermeira. E entre esse minúsculo complemento havia mais desencanto que alegria, súbitos silêncios difíceis de quebrar, uma boa disposição forçada quando as coisas se tornavam demasiado insuportáveis e uma perda de relação de gelar o coração. A enfermeira Langtry estava muito tempo ausente, involuntariamente obrigada a servir em várias subcomissões de inspiração da chefe, destinadas a ocuparem-se da evacuação. E os cinco pacientes passavam o dia na praia, porque as antigas normas oficiais que regulamentavam o seu uso já não eram seguidas por ninguém.

 

Com tristeza, a enfermeira Langtry verificou que os seus pacientes tinham decidido passar sem ela sempre que possível, mesmo que ela tivesse disposto de mais tempo para estar com eles. Neil parecia ter-lhe perdoado, os outros não. E reparou que parecia haver uma certa polarização entre eles. Nugget afastara-se dos outros, cheio de novos objectivos e de um optimismo feliz, que parecia ser uma combinação de ir voltar a ver a mãe e de reorganizar a sua vida civil de forma a seguir uma carreira como médico. As suas maleitas e dores tinham praticamente desaparecido. Neil e Matt eram inseparáveis; ela sabia que Matt se apoiava fortemente em Neil, descarregando-se assim dos muitos problemas que ia ter de encarar. O que deixava Michael concentrado em Benedict, como aliás sempre fizera. Também os dois eram inseparáveis.

 

Benedict, pensava ela, não estava bem, mas ela não imaginava o que poderia fazer por ele. Uma conversa com o coronel Chinstrap não dera, como era de prever, qualquer resultado, embora ele tivesse mostrado vontade, e até ânsia, de fazer o que estivesse ao seu alcance para conseguir obter uma pensão militar para Matt, apesar do rótulo de histerismo do seu caso. Quando ela pediu ao coronel que considerasse a hipótese de enviar Ben directamente para uma unidade psiquiátrica, onde seria sujeito a exames mais pormenorizados, o homem mostrou-se inflexível. Se as suspeitas dela se baseavam apenas numa vaga inquietação, dizia ele, que é que queria que ele fizesse? O exame que fizera ao sargento Maynard não revelara qualquer deterioração. Como explicar a um homem que era um neurologista competente mas não se interessava por problemas mentais que não tivessem base orgânica que ela apenas desejava recuperar um homem que estava a alhear-se cada vez mais? E como recuperá-lo? Era coisa que ninguém no mundo sabia como fazer.

 

Ben nunca fora um paciente de tratamento fácil, por causa da sua tendência para se fechar. O que a preocupava era que, sem a segurança da Base 15 à sua volta, Benedict pudesse realizar o acto final do desaparecimento, engolindo-se a si mesmo. Considerava assim uma bênção de Deus a protecção que Michael lhe dispensava, porque Michael conseguia muito mais coisas dele que qualquer outra pessoa, incluindo ela própria.

 

Ao vê-los passarem assim sem ela, começou a perceber melhor o que lhes estava a acontecer a eles e a ela também. A interpretação superemocional que atribuíra ao comportamento de todos, incluindo o seu, após a morte de Luce estava a desvanecer-se; aquela explosão na sala de estar das enfermeiras devia ter-lhe feito muito bem. Sem terem disso consciência plena, os habitantes da Base

15 estavam a cortar os laços que os uniam uns aos outros; a unidade familiar que fora a Enfermaria X desagregava-se juntamente com a Base 15. E ela, como imagem materna, ficara provavelmente mais comovida e magoada pelo que via que os seus homens, os seus filhos. Era estranho que, à medida que as forças dela diminuíam, as deles pareciam aumentar. Era isso que faziam as mães? Tentar manter coesa uma unidade familiar quando as razões naturais para a sua existência tinham cessado?

 

”Eles vão voltar para um mundo diferente”, pensou ela, ”e eu mando-os para lá equipados para sobreviverem. Ou, pelo menos, tento. Por isso não posso agarrar-me a eles, não posso deixar que se agarrem a mim. Tenho de deixá-los partir com quanta graça e dignidade me for possível reunir.”

 

E então começou, num troar de camiões e grande reboliço. Felizmente a monção ainda não chegara em força, e aparentemente a evacuação estaria pronta a tempo de não ser adiada pelas chuvas.

 

A apatia transformou-se em euforia, como se, agora que o momento chegara realmente, as pessoas se tivessem resolvido a acreditar que era verdade. Subitamente, o regresso a casa já não era um sonho, era uma realidade próxima. Gritos elevavam-se e morriam no ar, assobios, pedaços de canções.

 

Enfermeiras habituadas a uma disciplina férrea viam-se apanhadas numa disposição que não conseguiam controlar, eram submetidas a beijos, a abraços fabulosamente exóticos e holly woodescos, lágrimas por vezes, e todas se transformaram em mulheres adoravelmente confusas. Para elas era a despedida de um grande momento, o fim de um ponto alto das suas vidas; eram todas mulheres solteiras, a maior parte delas a meio caminho da reforma, e naquele lugar isolado e difícil tinham dado o melhor de si mesmas, contribuído como uma parte vital para uma grande causa. A vida nunca mais lhes traria nada de comparável; aqueles rapazes eram os filhos que nunca, teriam e sabiam que eram mães dignas de tais filhos. Mas agora tudo tinha acabado e, se bem que tivessem de dar graças a Deus por isso, sabiam que nunca mais nada se poderia comparar ao prazer, às tristezas e à exaltação daqueles anos.

 

Na X, os homens esperavam aquela última manhã vestidos de uniforme completo em vez de terem enfiado a primeira coisa limpa que lhes vinha às mãos; as malas de folha, as mochilas e embrulhos jaziam em montes no chão, e esse mesmo chão ecoava pela primeira vez na sua memória com os passos pesados de muitos pares de botas. Um oficial de serviço apareceu, deu à enfermeira Langtry as últimas instruções sobre o local aonde deveria conduzir os homens para o embarque e supervisou a retirada de bagagens extra, que os homens não deveriam levar com eles.

 

Depois de ter acompanhado à porta o oficial de serviço, a enfermeira Langtry encontrou Michael sozinho na copa a fazer chá. Uma rápida vista de olhos à enfermaria garantiu-lhe que ninguém estava a observá-los; aparentemente, os outros estavam na varanda à espera de serem servidos.

 

- Michael - disse ela, parando à porta da copa -, venha dar uma volta comigo, por favor. Só resta meia hora. Gostava muito de passar dez minutos consigo.

 

Ele examinou-a pensativamente. Estava vestido como no dia em que chegara, calças e camisa verde-selva, botas de couro brilhantes de engraxadas, polainas americanas, os galões luzidios, tudo limpo e passado a ferro, e que lhe ficava tão bem.

 

Também gostava - disse ele seriamente. - Deixe-me só ir levar isto à varanda. Vou ter consigo ao fundo da rampa.

 

”Será que ele vai aparecer com o Benedict atrás?”, perguntou ela aos seus botões, esperando ao sol, ao fundo da rampa. ”Quando se vê um vê-se o outro.”

 

Mas Michael veio sozinho e ajustou o passo pelo dela. Desceram o caminho que levava à praia, parando a pouca distância da areia.

 

Veio depressa de mais. Não me sinto preparada - disse ela, olhando para ele com uma certa reserva. Nem eu - disse ele.

 

Ela falou, balbuciante:

 

- É a primeira oportunidade que tenho de estar a sós consigo desde...desde a morte do Luce. Não, desde que foi pronunciado o veredicto. Foi horrível. Disse-lhe coisas tão horríveis... Quero que saiba que não queria magoá-lo. Michael, peço-lhe que me perdoe.

 

Ele escutava-a muito calmo, de rosto triste.

 

- Não tem nada de que pedir perdão. Eu é que tenho de pedir. - Parecendo tomar uma resolução, continuou lentamente: - Os outros acham que não, mas eu acho que lhe devo uma explicação, agora que já não tem muita importância.

 

Ela só ouviu aquela última parte.

 

-Já nada tem muita importância - disse ela. - Gostaria de mudar de assunto, de lhe fazer perguntas sobre a sua casa. Vai voltar já para a quinta? E a sua irmã e o seu cunhado? Gostava de saber e já não temos muito tempo.

 

- Nunca tivemos muito tempo - disse ele. - Bom, primeiro tenho de ser desmobilizado. Depois, o lien e eu vamos direitos para a quinta. Recebi ainda ha pouco uma carta da minha irmã e eles andam a contar os dias até que eu vá substituí-los. O Harold (o meu cunhado) quer ver se apanha o emprego antigo antes que sejam desmobilizados muitos soldados.

 

Ela engoliu em seco.

- O Ben e você? Juntos?

 

- Sim.

 

- O Ben e você.

 

- É verdade.

 

- Santo Deus, porquê?

 

- Devo-lhe isso - disse Michael. O rosto dela contorceu-se.

 

- Ora, deixe-se de histórias - exclamou, irritada. Ele endireitou os ombros:

 

- O Benedict está só, enf. Não tem ninguém à espera dele. E ele precisa que alguém esteja sempre com ele. Eu. A culpa é minha, quem me dera poder fazer-lhe perceber isso! tenho de garantir que aquilo nunca mais volte a acontecer.

 

O tormento dela transformou-se em espanto; olhou para ele e perguntou a si mesma se alguma vez chegaria ao fundo do mistério que rodeava Michael:

 

- De que está a falar? Que é que não pode acontecer?

 

- Já lhe tinha dito - disse ele pacientemente. - Acho que lhe devo uma explicação. Os outros não concordam. Pensam que você devia ficar eternamente fora disto, mas eu quero dizer-lhe. Compreendo porque é que o Neil é contra, mas continuo a acreditar que lhe devo uma explicação. O Neil não estava consigo naquela noite. Era eu quem estava. E isso dá-lhe direito a uma explicação.

 

- Que explicação? Que história é essa?

 

Havia um grande bidão de petróleo num dos lados do sítio onde o caminho acabava; ele voltou-se, pousou um pé em cima do bidão e ficou a olhar para a bota:

 

- Não é fácil encontrar as palavras certas. Mas não quero vê-la a olhar para mim da maneira como tem olhado desde aquela manhã, sem compreender. Concordo com o Neil, ao dizer-lhe não vai mudar nada, mas pode significar que, na última vez que a vou ver, você não olhe para mim como se metade de si me odiasse e a outra metade quisesse poder odiar-me. - Endireitou-se, olhou para ela. É muito duro - disse.

 

- Não o odeio, Michael. Não poderia nunca odiá-lo. O que passou, passou. Não gosto de post-mortens. Peço-lhe que me diga. Tenho o direito de saber. Mas não o odeio. Nunca o odiei, nunca o odiarei.

 

- O Luce não se suicidou - disse ele. - O Benedict matou-o.

 

Ela regressava ao meio de todo aquele sangue, de toda aquela magnificência arruinada, Luce estirado sem qualquer consideração de graça, de fluidez de linha, de efeito teatral - a menos que o horror puro fosse o efeito pretendido, e Luce não era desse género. Luce gostava demasiado de si mesmo, pelo menos esteticamente.

 

O rosto dela empalideceu tanto que a luz coada pelas palmeiras lhe dava um halo esverdeado; pela segunda vez desde que se conheciam, Michael aproximou-se dela, passou-lhe um braço à roda da cintura e amparou-a com tanta força que tudo o que ela conseguia sentir era o contacto dele.

 

- Vá, amor, não vai agora desmaiar. Vamos, respire fundo. Isso, linda menina!

 

Falava-lhe com ternura, segurava-a com ternura.

 

- Soube-o desde sempre - disse ela lentamente, quando finalmente conseguiu falar. - Havia qualquer coisa errada. Não era típico do Luce. Mas é típico do Benedict, sem dúvida. - A cor voltou-lhe ao rosto, ela cerrou os punhos numa raiva impotente, inteiramente dirigida contra si própria. - Oh, que louca eu sou!

 

Michael largou-a e recuou um passo, parecendo mais à vontade.

 

- Se não tivesse tanta consideração por si não lhe teria dito nada, mas não suportava vê-la odiar-me. Tem andado a matar-me. O Neil também sabe disso. Depois, parecendo dar-se conta de que estava a fugir ao assunto, voltou a ele: - O Benedict não voltará a fazer uma coisa destas, dou-lhe a minha palavra, enf. Enquanto eu puder tomar conta dele, não poderá voltar a fazê-lo. Compreende, não compreende? Tenho de cuidar dele. É a minha responsabilidade. Ele fê-lo por mim, ou pensa que o fez por mim, o que vem a dar ao mesmo. Disse-lhe de manhã, lembra-se? Disse-lhe que tinha sido um erro ficar consigo toda a noite. Devia ter voltado à enfermaria para vigiar o Ben. Se eu estivesse onde me pertencia, nunca aquilo teria acontecido. É engraçado, matei homens que podiam ser bem melhores que o Luce. Mas a morte do Luce é da minha responsabilidade. A morte dos outros que eu matei é da responsabilidade do rei; é o rei que tem de responder por eles, não eu. Eu podia ter impedido o Ben. Ninguém mais podia, porque ninguém fazia ideia do que ia no espírito do Ben. - Fechou os olhos. Fui fraco, cedi a mim mesmo. Mas, oh, Honour, eu queria estar consigo. Nem podia acreditar. Um bocadinho de paraíso, e eu tinha estado tanto tempo no inferno... Amava-a, mas nunca sonhei que você também me amasse até então.

 

Enormes reservas de força, ela tinha enormes reservas de força. Saqueara-as com o descuido de um pirata.

 

- Devia ter sabido isso - disse. - É claro que você me amava.

 

- Pensei primeiro em mim - disse ele, aparentemente feliz por poder finalmente falar com ela. - Se soubesse como me censuro! Não havia necessidade de o Luce morrer! Bastava-me ter ficado na enfermaria para mostrar ao Ben que estava bem, que o Luce não tinha poder para me magoar. - O peito ergueu-se, mais num encolher de ombros que num suspiro. - Enquanto eu estava consigo, no seu quarto, o Ben estava sozinho a pensar que o Luce tinha conseguido destruir-me. E mal o Ben chegou a essa conclusão, o resto seguiu-se naturalmente. Se o Neil tivesse sabido, podia ter sido diferente. Mas o Neil não fazia ideia. E eu nem sequer lá estava para ajudar a limpar a porcaria, também foram eles que tiveram de o fazer. - Estendeu a mão para ela, depois deixou-a cair ao longo do corpo. - Tenho de responder por muitas coisas, Honour. A maneira como a magoei, também não há desculpas para isso. Não as procuro, nem sequer perante mim mesmo. Mas gostava que soubesse que... sinto que compreendo o que lhe fizE de tudo aquilo por que eu tenho de responder, tê-la magoado é o mais difícil de suportar.

 

As lágrimas corriam pelo rosto dela, mais pela tristeza dela que pela sua.

 

- E agora não me ama? - perguntou ela. - Oh, Michael, posso suportar tudo menos perder o seu amor.

 

- Amo-a, sim. Mas não há futuro nisso, não podia haver, nunca houve, mesmo sem o Ben e o Luce; se não fosse a guerra, nunca teria conhecido ninguém como você. Você teria encontrado homens como o Neil, não como eu. Os meus amigos, a vida que levo, até a casa onde moro não servem para si.

 

Não se ama uma vida - disse ela, enxugando as lágrimas. - Ama-se um homem e depois faz-se a vida.

 

- Nunca faria a sua vida com um homem como eu - disse ele. - Não passo de um lavrador.

 

-O que está a dizer é ridículo! Não sou uma snobe! E diga-me qual é a diferença entre um lavrador e outro lavrador. O meu pai também é lavrador. A escala é maior, mais nada. Nem eu dependo do dinheiro para minha felicidade.

 

- Eu sei. Mas vem de uma classe diferente da minha e não temos a mesma visão da vida.

 

Ela fitou-o com uma expressão estranha:

 

- Não teremos, Michael? Acho que é esquisito você dizer isso. Acho que temos a mesma visão da vida. Ambos gostamos de cuidar daqueles que são menos aptos que nós, e o nosso objectivo é o mesmo: ajudá-los a tornarem-se auto-suficientes.

 

- Isso é verdade. Sim, isso é realmente verdade - disse ele lentamente. E depois: - Honour, o que significa para si o amor?

 

A aparente inconsequência surpreendeu-a:

 

- O que significa? - perguntou, tentando ganhar mais tempo para pensar.

 

- Sim. O que significa o amor para si?

 

-O meu amor por si, Michael? Ou pelos outros?

 

- O seu amor por mim.

 

Parecia sentir um verdadeiro prazer em dizê-lo.

 

- Ora... ora, significa partilhar a minha vida consigo.

 

- A fazer o quê?

 

- A viver consigo. A tratar-lhe da casa, a ter filhos seus, a envelhecer juntos disse ela.

 

Ele parecia distante; ela pôde ver que as suas palavras o afectavam, mas que não tinham força suficiente para penetrar naquela calma determinação que não possuía imagem própria.

 

- Mas você nunca aprendeu nada disso - disse ele. - Tem trinta anos e a sua aprendizagem destinou-se a algo de completamente diferente. Uma vida muito diferente. Não foi? - Fez uma pausa, sem desviar os olhos dela, que o fitava com um espanto atemorizado, onde ao mesmo tempo despontava o germe de uma compreensão que ela não queria reconhecer. - Penso que a vida que você descreve não se adapta a nenhum de nós. Quando comecei a falar-lhe não pensava abordar isto, mas você é uma lutadora e não vai querer senão a verdade total acerca das coisas.

 

- Não, não quero - disse ela.

 

- O verdadeiro problema é precisamente aquele de que lhe falei: nenhum de nós se pode adaptar ao tipo de vida que descreve. É demasiado tarde agora para perguntar como ou porquê. Sou o tipo de homem que desconfia das necessidades que provêm de uma parte de mim que normalmente sou capaz de controlar. Não quero desdenhar delas chamando-lhes os meus desejos físicos e não quero que pense que estou a diminuir os meus sentimentos por si. - Agarrou-lhe nos braços junto aos ombros. - Honour, escute-me! Sou um tipo capaz de não voltar para casa uma noite porque, numa ida à cidade, encontrei alguém que na minha opinião precisava mais de mim que você; não quero dizer que a abandonasse e não me refiro necessariamente a outra mulher; quero dizer que saberia que você podia passar sem mim até que eu pudesse voltar para casa. Mas podia passar dois dias a ajudar essa pessoa, como podia passar dois anos. Sou assim. A guerra deu-me a oportunidade de ver como sou. Deu-lhe também a si a oportunidade de ver como é. Não sei até que ponto está disposta a admiti-lo no que se refere a si, mas eu sei que quando me deixo levar pela compaixão tenho de ajudar. Você é uma pessoa completa. Não precisa da minha ajuda. E como não precisa da minha ajuda, sei que pode passar sem mim. Está a ver, o amor não tem nada a ver com isto.

 

- Está a chegar a um paradoxo - disse ela com a garganta a doer, num esforço para conter novas lágrimas.

 

- Suponho que sim. - Fez uma pausa, procurando o que dizer a seguir. Não me parece que tenha uma grande opinião a meu próprio respeito. Se assim fosse, não precisava que precisassem de mim. Mas preciso que precisem de mim, Honour. tenho de ser preciso!

 

- Eu preciso de si! - disse ela. - A minha alma, o meu coração, o meu corpo: toda eu preciso de si. Sempre precisarei. Oh, Michael, há tantas formas de necessidade, tantas formas de solidão! Não confunda as minhas forças com uma falta de precisar de alguém. Por favor! Preciso de si para preencher a minha vida inteira.

 

Mas ele abanou a cabeça, obstinado:

 

- Não. Nem nunca precisará. A sua vida está preenchida. Se assim não fosse, você não seria a pessoa que eu sei que é: terna, amorosa, interessada, feliz a realizar um trabalho que poucas mulheres fariam. Quase todas as mulheres podem gerir uma casa, ter bebés. Mas você é demasiado diferente para se contentar com esse tipo de gaiola. A sua aprendizagem contribui para tal. Porque passado algum tempo era assim que você veria a vida comigo como a descreveu, devotada exclusivamente a mim. Como uma gaiola. Você é um pássaro muito forte, Honour. Tem de estender as suas asas num território mais vasto do que qualquer gaiola.

 

- Estou disposta a arriscar - disse ela muito pálida, desolada, mas lutando ainda.

 

- Eu não estou. Se fosse só de si que eu estava a falar, talvez arriscasse. Mas estou a falar de mim também.

 

- Está a amarrar-se ao Ben muito mais estreitamente do que faria comigo.

 

- Mas não posso magoar o Ben da maneira como acabaria por a magoar.

 

- Cuidar do Ben é um trabalho a tempo inteiro. Não poderá sair para ir ajudar outros durante um passeio à cidade.

 

- O Ben precisa de mim - disse ele. - Viverei para isso.

 

- E se eu me oferecesse para partilhar o encargo do Ben? - perguntou ela. Concordaria com uma vida em que ambos partilhássemos a nossa necessidade de que precisem de nós?

 

- Está a oferecer isso? - perguntou ele hesitante.

 

- Não - disse ela. - Não posso partilhá-lo com os Benedicts Maynards deste mundo.

 

- Então não há mais nada a dizer.

 

-Sobre nós, não. - Ela continuava entre as mãos dele e não fez qualquer esforço para escapar-lhes. - Os outros estão de acordo em que se ocupe do Ben?

 

- Fizemos um pacto - disse ele. - Todos concordámos. Nada de asilo de tolos para o Ben, aconteça o que acontecer. Assim como os filhos da mulher do Matt também não passarão fome. Todos concordámos.

 

- Todos? Ou você e o Neil?

 

Ele reconheceu a argúcia da pergunta com um gesto inquieto dos lábios e da cabeça.

 

- Vou despedir-me agora - disse ele, passando-lhe os braços pelo pescoço e acariciando-lhe a pele com a ponta dos dedos.

 

Beijou-a, um beijo de profundo amor e tristeza, um beijo de aceitação por aquilo que tinha de ser e de fome por aquilo que poderia ter sido. E um beijo voluptuoso e erótico cheio das recordações daquela única noite. Mas ele afastou os lábios demasiado abruptamente, demasiado cedo; uma vida inteira não teria sido suficientemente longa.

 

Depois pôs-se rigidamente em sentido, com um sorriso nos olhos, deu meia volta e afastou-se.

 

O bidão de petróleo estava ali; ela atirou-se para o chão, junto ao bidão, para não ter de o ver desaparecer, a olhar para os sapatos, para as pequenas folhas de erva ressequidas, para a infinidade de grãos de que era feita a areia.

 

Era então isso. Como poderia ela competir com o tipo de necessidade que um Benedict tinha de um Michael? Ele tinha razão nesse ponto. E como devia sentir-se sozinho, esgotado. Não era sempre assim que as coisas se passavam? Os fortes abandonados em favor dos fracos? A compulsão - ou era remorso? - que os fortes conheciam em servir os fracos? Quem começava o jogo? Eram os fracos que pediam ou os fortes que se ofereciam sem serem solicitados? Seria que a força Procriava a fraqueza ou a reforçava ou a negava? O que era a força, o que era a fraqueza? Ele tinha razão, ela podia passar sem ele. Seria isso não precisar dele? Ele amava-a pela sua força, mas não podia viver com aquilo que amava. Amando, renegava o amor. Porque este não podia satisfazê-lo.

 

Apetecera-lhe gritar-lhe: ”Esquece o mundo, Michael, agarra-te a mim! Comigo conhecerás uma felicidade que nunca sonhaste!” Só que gritar isso teria sido gritar pela Lua. Tê-lo-ia ele feito deliberadamente? Escolhido amar um homem que preferia o sacerdócio ao amor? Desde o dia em que chegara à X ela admirara-o, e o seu amor nascera dessa admiração, do valor que ela lhe reconhecera. Cada um deles tinha a força do outro, a autoconfiança, a capacidade de dar. E contudo parecia que eram essas mesmas qualidades que os separavam em vez de os unirem. Dois positivos. ”Meu querido, meu muito amado Michael... Pensarei em ti, rezarei por ti, para que continues sempre a encontrar a força.”

 

Olhou para a praia, que o vento e a chuva dos últimos dias haviam estragado um pouco. Duas andorinhas-do-mar, belas e brancas, levantaram voo, asa contra asa, como se amarradas; deram uma volta, ainda unidas, mergulharam e desapareceram. ”Era isto que eu queria, Michael. Nada de gaiolas. Só voar contigo de encontro a um grande céu azul.”

 

Eram horas de ir embora. Horas de acompanhar Matt, Benedict, Nugget e Michael ao local de reunião. Era esse o seu dever. Neil, como oficial, partiria noutra viagem, ainda não sabia quando. Haviam de comunicar-lhe quando chegasse a altura.

 

Enquanto caminhava, outros pensamentos que não Michael começaram a surgir. Houvera uma conspiração entre os pacientes da Enfermaria X. Uma conspiração de que Michael fizera parte voluntariamente. E Neil fora o conspirador-mor. Não fazia sentido. Oh, fazia sentido mantê-la na ignorância daquilo que realmente tinha acontecido no balneário até a causa da morte estar oficialmente esclarecida e o inquérito encerrado. Mas porque se oporia Neil a que Michael lhe dissesse agora, quando já não tinha importância? Neil conhecia-a o suficiente para saber que não era do género dela ir a correr a contar ao coronel Chinstrap a história verdadeira. De que adiantaria? Que alteraria? Podia assegurar que Benedict fosse confiado a uma instituição civil, talvez, mas resultaria também em desmobilização desonrosa para todos, talvez prisão. Provavelmente tinham também todos decidido cerrar fileiras contra ela e teriam negado tudo o que ela pudesse contar ao coronel Chinstrap. Porque teria Neil lutado para a manter na ignorância? Não só Neil. Matt e Nugget também.

 

Que tinha Michael dito, mesmo no fim? Que tinham feito um pacto. A mulher e os filhos de Matt não passariam fome. Não havia dúvida que também Nugget faria a sua medicina sem precisar de passar fome. Benedict não iria para um asilo psiquiátrico. Michael e Neil... Tinham repartido as responsabilidades entre eles. Michael e Neil. Mas que é que Neil ganhava, se era ele quem ia fornecer o dinheiro para a família de Matt e para os estudos de Nugget? Duas semanas antes ela teria dito: nada; mas agora já não tinha a certeza.

 

Esse sofrimento, Neil parecia não o ter, a sua aceitação aparente da sua rejeição com suficiente tranquilidade e falta de preocupação em fazê-la sentir que não havia possibilidades de ser magoado. E quem tinha falado a Michael para ele vir com aquela conversa antiquada acerca da diferença de classes entre eles? Ela agarrou-se ansiosamente a essa migalhinha de orgulho. Alguém tinha estado a trabalhar Michael, a tentar convencê-lo a desistir dela. Alguém? Neil!

 

A evacuação estava muito bem organizada. Quando ela chegou ao ponto de encontro com os seus quatro homens, estes foram rapidamente separados dela sem praticamente haver tempo para mais que um rápido abraço e um beijo a cada um. E mais tarde nem sequer se conseguiu lembrar da maneira como Michael tinha olhado para ela ou como ela olhara para ele. Parecia inútil arrastar-se por ali à espera de voltar a vê-los uma última vez, de forma que abriu caminho entre os homens que esperavam e as enfermeiras que os pastoreavam e regressou à X.

 

Limpar e arrumar era uma segunda natureza; percorreu a enfermaria a alisar os lençóis, a arranjar as redes pela última vez no drapejado da chefe, a abrir armários, a dobrar os biombos que protegiam a mesa do refeitório.

 

Dirigiu-se depois para o gabinete, atirou fora os sapatos sem os desapertar e sentou-se na cadeira com os pés metidos debaixo do traseiro, coisa que ela nunca fizera naquele assento oficial. Não tinha importância. Não havia ninguém para a ver, nunca mais haveria ninguém. Neil também partira. Um sargento atarefadíssimo, com uma pasta na mão, informara-a da partida de Neil. Ela não compreendera como ou o que falhara, mas de qualquer modo já era tarde para fazer o que quer que fosse. E talvez fosse melhor não ter de encarar o chefe da conspiração. Haveria demasiadas perguntas inconfortáveis a fazer-lhe.

 

A cabeça caiu-lhe, apoiada na mão; adormeceu e sonhou agradavelmente com Michael.

 

Foi cerca de duas horas mais tarde que Neil atravessou o terreno por trás da Enfermaria X, assobiando bem-disposto, com um ar perfeitamente à vontade no seu uniforme de capitão, o bastão enfiado debaixo de um braço. Subiu com ligeireza as escadas que levavam às traseiras da X e entrou no edifício sombrio e sem vida. Sentiu um choque que o fez parar. A X estava vazia; o vazio total gritava-lhe de todos os lados. Passado um momento, recomeçou a andar mas com menos segurança, com o coração menos leve; abriu a porta do seu cubículo e sofreu outro choque porque toda a sua bagagem tinha desaparecido. Não restava nenhum vestígio de Neil Parkinson, paciente tropo.

 

- Olá - soou a voz da enfermeira Langtry através da parede fina. - Olá! Quem está aí?

 

Ela estava sentada numa posição que ele nunca vira, pouco digna, pouco profissional, com as pernas encolhidas na cadeira e os sapatos atirados para o chão. O gabinete estava cheio de fumo; os cigarros e os fósforos estavam pousados bem à vista sobre a secretária. E parecia que ela estava sentada assim havia muito tempo.

 

- Neil! - disse ela, de olhos arregalados. - Pensei que tinha ido embora! Disseram-me que já tinha partido há horas.

 

- Amanhã é a minha vez. E você?

 

- Fui escolhida para acompanhar um dos casos graves até ao ponto de chegada: Sydney ou Brisbane, suponho. Amanhã ou depois de amanhã. Espreguiçou-se. - Vou-lhe arranjar qualquer coisa para comer.

 

- Não se incomode, a sério. Não tenho fome. Só me sinto satisfeito por não ter de ir hoje. - Suspirou de prazer. - Finalmente tenho-a todinha para mim.

 

Os olhos dela brilharam:

 

- Tem a certeza?

 

A maneira como ela pronunciou as palavras acalmou-o, mas sentou-se na cadeira das visitas e sorriu:

 

- Até tenho. E já não era sem tempo. Foi difícil, mas o coronel ainda está um bocadinho sensível com a história do whisky, de forma que conseguiu adiar a minha partida. E ao mesmo tempo deu-me uma bela folha de alta. O que significa que já não sou um paciente da Enfermaria X. Hoje à noite sou unicamente um hóspede.

 

Ela respondeu obliquamente:

 

- Sabe, Neil, odeio a guerra e aquilo que ela nos fez. Sinto-me pessoalmente tão responsável...

 

- Está a assumir os pecados do mundo inteiro, enf.? Ora, ora! - troçou ele gentilmente.

 

- Não, do mundo inteiro, não, Neil. Só daquela parte que você e os outros esconderam de mim - disse ela roucamente, olhando para ele.

 

Ele respirou fundo, sibilante:

 

- Com que então o Michael não soube calar aquela maldita boca!

 

- O Michael tinha o direito de o fazer. Eu tinha o direito de saber. E quero saber. Tudo, Neil. O que aconteceu naquela noite.

 

Encolhendo os ombros, cerrando os lábios, ele instalou-se como para contar uma história que no fundo sentia que não valia a pena contar. Ela fitava-o atentamente, pensando que a parede por trás dele, vazia agora dos desenhos que estavam já nas suas malas, dava ao rosto de Neil o relevo intenso de que sempre necessitara.

 

- Bem, eu tinha de beber mais qualquer coisa, de modo que voltei ao whisky

- disse ele, acendendo um cigarro, esquecendo-se de lhos oferecer. - O barulho que o Luce estava a fazer acordou o Matt e o Nugget, que resolveram ajudar-me a acabar a segunda garrafa. Ficou só o Benedict a tomar conta do Luce, que tinha ido deitar-se. Penso que nos esquecemos até do Luce. Ou talvez não quiséssemos mesmo pensar nele.

 

À medida que falava, a recordação daquela noite ia acordando nele, recriando algo do seu horror original, e o seu rosto reflectia-o violentamente.

 

- O Ben foi ao saco dele e descobriu uma daquelas recordações ilícitas que todos nós tínhamos escondidas num sítio ou noutro: uma pistola de oficial japonês. Obrigou o Luce a pegar na própria navalha e a seguir para o balneário com a pistola colada às costas dele.

 

- Foi o Ben que lhe contou ter obrigado o Luce a ir para o balneário? perguntou ela.

 

- Foi. Foi tudo quanto conseguimos tirar dele, mas quanto ao que se passou realmente lá dentro só tenho uma ideia muito vaga. O próprio Ben se mostra muito confuso.

 

Calou-se.

 

- E?... - insistiu ela.

 

- Ouvimos o Luce berrar como um danado lá no balneário, berrar, berrar, berrar... - Fez uma careta. - Mas quando lá chegámos já era tarde de mais para o Luce. Foi um milagre que mais ninguém tivesse ouvido, mas o vento estava a soprar para o lado do palmeiral e estamos muito longe da civilização. Chegámos muito tarde. Já disse isso, não disse?

 

- Já. Pode dar-me alguma ideia da maneira como o Ben fez aquilo?

 

- Na minha opinião, o Luce não teve coragem para lutar e se calhar não acreditou no que lhe estava a acontecer senão quando já era tarde de mais. Aquelas malditas navalhas são mesmo afiadas... Tendo obrigado o Luce, apontando-lhe a pistola, a segurar na navalha como devia ser, penso que o Ben se limitou a guiar a mão do Luce. E pronto. Estou a imaginar o Luce a gritar e a torcer-se de medo, sem sequer compreender o que é que o Ben lhe estava a fazer até já estar feito. Não se dá por ela com uma coisa tão afiada como é uma navalha de Bengala.

 

Franzindo o sobrolho, ela pensou no caso.

 

- Mas a mão dele não estava pisada, Neil - objectou. - Se estivesse, o major Menzies tinha visto. E o Ben tinha de ter agarrado o Luce com muita força.

 

- As mãos não se pisam assim tão facilmente, enf. Não é como os braços. O major só procuraria pisaduras ou contusões externas; isto aqui não é a Scotland Yard, graças a Deus. E, conhecendo o Ben, foi tudo feito muito depressa. Ele deve ter passado muito tempo a pensar como havia de matar o Luce. Não foi inspiração do momento. E, contudo, ele nunca o poderia ter feito sem ser descoberto, porque no minuto em que aquilo começou a acontecer ele ficou louco, ou louco de uma maneira diferente, não sei. Além disso, não se importava de ser apanhado. Só queria dar cabo do Luce de uma maneira em que este estivesse consciente até ao fim. Porque o que eu penso que ele queria realmente era que o Luce visse o destruir dos seus próprios órgãos genitais.

 

- O Luce já estava morto quando lá chegaram?

 

- Ainda não. Foi o que nos safou. Conseguimos afastar o Ben dali antes que o Luce entrasse numa convulsão mortal, ainda agarrado à navalha e a sangrar em bica. As artérias vitais tinham sido cortadas. Assim, enquanto Matt levava o Ben para fora e ficava de guarda, o Nugget e eu limpámos tudo. Só nos levou uns minutos. O que levou mais tempo foi esperar até termos a certeza de que o Luce dera o último suspiro, porque não nos atrevíamos a tocar-lhe.

 

- Mas devem ter pensado em ir buscar socorros, em tentar salvá-lo - disse ela, de boca franzida.

 

- Oh, minha querida, não havia a mais pequena hipótese de o salvar. Pode conceder-me esse crédito! Se tivéssemos podido salvá-lo, o Ben nunca teria estado em tal situação de risco. Não tenho treino de médico, lá isso não, mas sou soldado. Admito que nunca gostei do Luce, mas foi um inferno ficar ali a ver o homem morrer! - De rosto cinzento, inclinou-se para sacudir a cinza, olhando-a, absorto, com os olhos cheios de tristeza. - O Nugget mostrou-se absolutamente calmo e competente, imagine! Só mostra que se pode viver com uma pessoa durante meses sem se conseguir saber o que lá vai dentro. E em todos os dias que se seguiram nunca o vi nem uma vez a pontos de perder a cabeça. - A mão dele tremia quando resolveu apagar o cigarro. - A pior parte foi certificarmo-nos que tínhamos feito todos os possíveis para que aquilo parecesse um suicídio, que não tínhamos deixado escapar nenhum pormenor que pudesse levar a suspeitar de crime... De qualquer forma, quando acabámos levámos o Ben para o balneário seguinte, e enquanto o Matt vigiava (é um guarda-nocturno excelente, ouve os mínimos barulhos) o Nugget e eu demos um banho ao Ben. Estava coberto de sangue, mas felizmente os pés não estavam sujos. Não me parece que pudéssemos ter disfarçado as pegadas. Queimámos as calças do pijama. Lembra-se que lhe faltava um par no rol da lavandaria?

 

- Como estava o Ben? - perguntou ela.

 

- Muito calmo e sem se mostrar nada arrependido. Acho que ainda sente que não fez senão cumprir o seu dever de cristão. Para ele, o Luce não era um homem, era um diabo vindo do inferno.

 

- E então vocês cobriram o Benedict - disse ela friamente. - Todos vocês o cobriram.

 

- Sim, todos nós. Até o Michael, No momento em que você lhe disse que o Luce estava morto ele compreendeu o que se tinha realmente passado. Senti muita pena do Mike. Podia-se ter pensado que fora a sua própria mão a cometer o crime, tão perturbado ficou, tão entalado de remorsos. Não parava de dizer que não devia ter sido tão egoísta, que não devia ter ficado consigo, que o seu dever era ficar com o Benedict.

 

Ela não estremeceu, também essa era uma parte do seu quinhão de remorso.

 

- Ele disse-me o mesmo a mim. Que não devia ter estado comigo, que devia ter ficado com ele. Ele! Nunca usou um nome. Pensei que se referia ao Luce. - A voz quebrou-se-lhe, teve de fazer uma pausa para se recompor antes de prosseguir. - Nunca, nunca pensei que se referisse ao Benedict! Pensei que estivesse a falar do Luce, pensei que ele estivesse homossexualmente ligado ao Luce. As coisas que eu disse, as coisas que eu fiz! Como eu o magoei! E que complicação fiz daquilo tudo. Só de lembrar sinto-me doente.

 

- Se ele não falou em nomes, o seu engano foi perfeitamente natural - disse Neil. - Os papéis dele implicavam homossexualidade.

 

- Como sabe?

 

- Pelo Luce, via Ben e Matt.

 

- Você é um homem muito inteligente, Neil. Sabia ou adivinhou tudo, não foi? E resolveu aproveitar a confusão deliberadamente, não foi? Como é que pôde fazer uma coisa dessas?

 

- Que queria que fizéssemos? - disse ele, usando o colectivo em vez do singular. - Não podíamos entregar o Ben às autoridades. O Luce não era grande perda para o mundo e de certeza que o Ben não merece ser fechado num asilo de loucos para o resto da vida só porque matou o Luce. Você esquece-se! Somos todos habitantes da Enfermaria X. Todos nós fazemos uma pequena ideia do que deve ser a vida para os doentes mentais.

 

- Sim, compreendo tudo isso muito bem - disse ela pacientemente. - Mas não invalida o facto de que vocês tomaram a lei nas vossas próprias mãos, que deliberadamente resolveram esconder um crime e que também resolveram cortar-me qualquer oportunidade de rectificar o caso. Se soubesse tinha-o entregue imediatamente. Ele é perigoso, nenhum de vocês se apercebeu disso? O Benedict pertence a um asilo psiquiátrico. Vocês erraram, todos, mas você muito especialmente, Neil. É oficial, conhece as regras e é suposto obedecer-lhes. Se invoca a sua doença como desculpa, então também você pertence a uma dessas instituições. Sem terem o meu consentimento fizeram de mim parte do caso e, se não tivesse sido o Michael, nunca teria sabido. Tenho muitas coisas por estar grata ao Michael, mas, acima de tudo, estou-lhe grata por ele me ter dito como o Luce realmente morreu. O raciocínio do Michael não é dos mais honestos também, mas está um ponto acima do resto de vocês! Ainda bem que ele me disse!

 

Ele atirou a cigarreira para cima da secretária com tanta violência que ela ressaltou e caiu no chão, abrindo-se e espalhando os cigarros. Nenhum deles reparou; estavam demasiado concentrados um no outro.

 

- Michael, Michael, Michael! - gritou ele de rosto convulso, com as lágrimas a saltarem-lhe dos olhos. - Sempre, sempre o Michael. Por amor de Deus, quer acabar com isso, com essa obsessão pelo Michael? O Michael isto, o Michael aquilo, Michael, Michael, Michael! Estou farto até aos olhos desse maldito nome!

 

Desde o momento em que lhe pôs a vista em cima não teve tempo para mais ninguém. E nós, ha, e nós?

 

Como naquela cena com Luce, não havia sítio para onde fugir, onde se esconder; ficou ali, começando a compreender o que Neil lhe estava a dizer do fundo do coração, e a fúria contra ele desapareceu subitamente.

 

Esfregando os olhos raivosamente, ele lutou visivelmente por se dominar, e quando voltou a falar a sua voz estava mais calma, mais razoável. ”Oh, Neil”, pensou ela, ”como tu mudaste! Cresceste. Há dois meses nunca conseguirias essa espécie de autodisciplina no meio de tanto tormento.”

 

- Olhe - disse ele -, sei que a amo. Até o Matt, por muito cego que seja, viu isso já há muito tempo. Vamos portanto partir desse princípio e pô-lo de um lado como um primeiro considerando. Antes de o Mike chegar, você pertencia a todos nós e nós pertencíamos-lhe. Você gostava de nós! Tudo o que tinha, tudo o que era, era canalizado para nós; para nos curar, se quiser. Mas quando se está doente não se vêem as coisas assim tão objectivamente, é completamente, exclusivamente, pessoal. Você, você embrulhou-nos em si. E nunca nenhum de nós pensou que o seu coração podia estar noutro lado que não fosse na X e em nós. Quando o Michael chegou, viu-se logo que ele não tinha nada. Para nós significava que você não precisava de preocupar-se com ele. Em vez disso, afastou-se de nós e virou-se para ele. Abandonou-nos! Traiu-nos! E foi por isso que o Luce morreu. O Luce morreu porque você olhou para aquilo que o Michael era: toda aquela sanidade e... e força, e você amou isso. Amou-o. Como pensa que nós nos sentimos?

 

Ela tinha vontade de gritar. ”Mas eu não deixei de me ocupar de vocês! Não deixei! Não deixei! Só queria ter qualquer coisa para mim, para variar. Há tanta coisa que se pode dar sem tirar nada a mais ninguém, Neil! A minha estada na X estava a terminar. E eu amava-o. Oh, Deus, estou tão cansada de dar, sempre dar. Porque não podiam ser suficientemente generosos para me deixarem ter também qualquer coisa?”

 

Mas não podia dizer nada disso. Pôs-se em pé e dirigiu-se para a porta, para fugir dele. À passagem, ele agarrou-lhe o pulso e segurou-a com força, fazendo-a dar meia volta, apertando-lhe cruelmente os ossos de ambas as mãos até ela cessar de se debater.

 

- Está a ver? - perguntou gentilmente, soltando-a e passando-lhe os dedos pelos braços. - Certamente acabo de a segurar com mais força do que a que o Ben usou para com o Luce e não tem pisaduras.

 

Ela ergueu os olhos para ele, bem mais alto do que se fosse Michael quem estivesse ali, porque Neil era muito maior. A expressão dele era ao mesmo tempo séria e indiferente, como se soubesse bem o que ela estava a sentir e não a censurasse por isso. Mas também como se, tal sacerdote-rei de antigamente, estivesse disposto a suportar tudo para chegar aos seus objectivos.

 

Até àquele momento, ela nunca compreendera totalmente que tipo de homem era Neil; quanta paixão e determinação havia nele. Nem como eram profundos o seus sentimentos por ela. Talvez ele tivesse escondido habilmente a sua mágoa, talvez, como ele a acusava, a sua absorção por Michael a tivesse facilmente levado a pensar que Neil não ficara desfeito pelo seu afastamento. E ele ficara desfeito. Contudo, isso não o impedira de agir para conter a ameaça que era Michael. Não parara o seu funcionamento. Bravo, Neil!

 

- Tenho muita pena! - disse ela num tom bastante calmo. - Não me restam forças para torcer as mãos ao dizê-lo, nem para chorar, nem para cair de joelhos aos seus pés. Mas tenho muita pena. Mais do que pode imaginar. Estou demasiado triste para me justificar. Só posso dizer é que nós, que nos preocupamos convosco, os nossos pacientes, podemos ser tão cegas ou estar tão perdidas como qualquer dos doentes que entram a porta das Enfermarias X. Não pode pensarem mim como numa deusa, numa espécie de ser infalível. Não sou. Nenhum de nós o é. - Os olhos encheram-se-lhe de lágrimas. - Mas, oh, Neil, nem faz ideia como gostaria que fôssemos.

 

Ele deu-lhe um beijo rápido na testa, abraçou-a e largou-a.

 

- Bom, acabou-se, e você conhece o velho provérbio: ”Nem mesmo os deuses podem voltar a pôr inteiros os ovos mexidos.” Sinto-me melhor por ter falado. Mas também lamento. Não me dá prazer nenhum saber que posso magoá-la, apesar de não me amar.

 

- Quem me dera poder amá-lo - disse ela.

 

- Mas não pode. Eu sei. É inevitável. Você viu-me da maneira como eu estava quando entrei na X, e isso pôs-me numa posição de fragilidade em relação a si que suponho nunca poderei dissipar, mesmo que não tivesse havido um Michael. Você gostou dele porque ele começou como um homem para si, um homem inteiro. Nunca se escondeu, nunca soluçou de autocompaixão, nunca deixou de ser homem. Nunca precisou de lhe mudar as calças, nem de lhe limpar as porcarias, nem de escutar horas seguidas uma ladainha de queixas, as mesmas queixas que deve ter ouvido a dúzias de homens como eu.

 

- Oh, por favor! - gritou ela. - Nunca, nunca pensei nisso nem em si nesses termos.

 

- É assim que eu me vejo ao olhar para trás. Agora sou capaz de olhar para trás. É provavelmente uma imagem de mim mais correcta que a que você quer admitir. Mas estou curado, sabe. No ponto em que estou agora, nem percebo porque é que aquilo me aconteceu.

 

- Ainda bem - disse ela, encaminhando-se para a porta. - Neil, por favor, podemos despedir-nos agora? Neste preciso momento, quero eu dizer. E veja se consegue não lhe dar outra interpretação nem um sinal de falta de amizade, ou negligência, ou falta de amor. É que foi daqueles dias em que só me apetece desesperadamente ver o fim. E acho que não posso acabá-lo consigo. Prefiro não voltar a vê-lo. Só porque não seria mais do que um velório. A Enfermaria X morreu.

 

Ele acompanhou-a até ao corredor.

 

- Farei eu o velório sozinho. Se algum dia lhe apetecer ver-me, encontra-me em Melburne. A direcção vem na lista telefónica. Teorak. Parkinson, N.L.G.

 

Levou-me muito tempo a encontrar a mulher certa. Tenho trinta e sete anos, é pouco provável que mude rapidamente de opinião. - Riu-se. - Como podia esquecê-la? Nunca a beijei.

 

- Então beije-me agora - disse ela, amando-o quase, quase.

 

- Não. Tem razão. A Enfermaria X morreu, mas eu ainda estou no seu corpo morno. O que me está a propor é um favor, e eu não quero favores. Favores nunca.

 

Ela estendeu a mão.

 

- Adeus, Neil. Boa sorte. Tenho a certeza que a terá.

 

Ele tomou a mão estendida, apertou-a carinhosamente, depois beijou-a ao de leve.

 

- Adeus, Honour. Não se esqueça. Estou na lista telefónica de Melburne.

 

A última caminhada para a X através do recinto; nunca pensara que acabaria, mesmo quando desejara que acabasse. Como se a Base 15 representasse um segmento da vida tão longo como a própria vida. Agora acabara. E acabara com Neil, como convinha. Aquilo era realmente um homem. Contudo, via a verdade nas palavras dele quando dissera que começara com uma grande desvantagem. Ela vira nele sobretudo um paciente. E misturara-o com os outros. Pobre, triste, frágil... Não encontrar agora nele nenhuma dessas coisas era uma alegria. Ele partira do princípio de que a sua cura se devera à situação da X durante as últimas semanas, mas isso não era verdade. A cura devia-se a ele mesmo. As curas eram sempre assim. Assim, apesar da tristeza, do horror e do sofrimento, ela encetava aquela última caminhada sentindo que a Enfermaria X existira com um objectivo, um bom objectivo.

 

Neil nem sequer se preocupara em perguntar-lhe se ela ia tentar repor a justiça que ele achava que já fora aplicada e ela achava que não. Era demasiado tarde. Graças a Deus, Michael tinha-lhe dito. Saber o que eles tinham feito libertara-a em grande medida dos remorsos que continuaria a sentir por causa da sua atitude para com eles. Se eles pensavam que ela os tinha traído ao voltar-se para Michael, ela sabia que eles a tinham traído. Para o resto das vidas, eles teriam de viver com Luce Daggett. Ela também. Neil não quisera que lhe dissessem porque temia que a intervenção dela pudesse libertar Michael e porque genuinamente desejava poupar-lhe uma parte das culpas. Meio bom, meio mau. Meio egoísta, meio altruísta. Normal, era o que era.

 

Quando Honour Langtry desceu do comboio em Yass, ninguém estava à espera dela, o que não a aborreceu; não tinha prevenido a família de que chegava. Amá-los era uma coisa, encará-los era outra; e ela preferia encará-los em particular. Era para a infância que estava a voltar - e parecia-lhe tão longínqua! Como é que eles a veriam agora? Que pensariam? Assim fora atrasando o momento da reunião. A propriedade do pai não ficava longe da cidade; qualquer pessoa lhe daria uma boleia.

 

Alguém o fez, mas não era ninguém que ela conhecesse, o que fez com que ela pudesse recostar-se no assento e gozar em paz as quinze milhas de viagem. Quando chegasse a casa era certo que a família já estaria ao corrente da sua chegada; o chefe da estação acolhera-a de braços abertos, arranjara-lhe a boleia e telefonara de certeza a dizer que ela ia a caminho.

 

Estavam todos à espera dela na varanda da frente; o pai envelhecera e estava mais forte e mais careca; a mãe não tinha mudado; o irmão lan era uma segunda edição do pai em mais novo e mais esbelto. Houve abraços, beijos, muitos ”deixa-me olhar para ti”, exclamações e frases que nunca eram acabadas porque havia sempre alguém que interrompia.

 

Foi só depois de um jantar do género do ”vitelo gordo” que se reinstalou uma certa normalidade; Charlie Langtry e o filho foram deitar-se porque começavam a trabalhar logo de madrugada; Faith Langtry acompanhou a filha ao quarto, sentando-se a vê-la desfazer as malas. E a conversar.

 

O quarto de Honour era alegre e despretensioso; era porém grande e fora gasto bastante dinheiro nele. Não tinha havido grandes preocupações de cores ou linhas, mas a grande cama tinha um ar muito confortável, assim como a poltrona coberta de chita em que Faith Langtry se sentou. Havia uma mesa velha muito polida, com a cadeira respectiva, que funcionava como área de trabalho, um grande armário, um espelho alto, uma cómoda e outra poltrona.

 

Enquanto Honour andava entre o armário, as gavetas da cómoda e as malas abertas sobre a cama, a mãe estava completamente concentrada na presença da filha, pela primeira vez desde que esta chegara a casa. É claro que tinha havido períodos de licença durante os anos de guerra, mas a sua brevidade e a sua atmosfera de urgência não haviam permitido uma impressão real e duradoira. Desta vez era diferente; Faith Langtry podia olhar para a filha sem pensar no que viria no dia de amanhã ou como iriam todos passar o período seguinte, que, para Honour, podia ser perigoso. lan não tinha ido para a tropa, pois era preciso para os trabalhos da quinta. ”Mas quando ela nasceu”, disse para si Faith Langtry, ”nunca pensei que seria a minha filha que eu mandaria para a guerra. A minha primogénita. O sexo já não é tão diferente nem tão importante como dantes.”

 

De todas as vezes que viera a casa, eles tinham notado mudanças nela, desde o amarelo da atabrina na pele até aos pequenos tiques e hábitos, que a catalogavam como uma mulher adulta e senhora de si. Seis anos. Só Deus saberia exactamente o que esses seis anos teriam contido, porque Honour nunca tinha querido falar da guerra quando vinha a casa, e quando lhe faziam perguntas desviava sempre o assunto. Mas fosse o que fosse que tivessen contido, ao olhar para a filha agora Faith Langtry compreendia que ela se afastara para mais longe que a Lua do lugar que fora o seu lar.

 

Estava magra; era de esperar, claro. Havia rugas no seu rosto, embora não houvesse sinais de brancas no cabelo, graças a Deus. Mostrava-se firme sem ser dura, movia-se com um ar extremamente decidido, fechada em si mesma sem ser alheada. E embora nunca pudesse ser uma estranha estava de certo modo diferente.

 

Como eles tinham ficado contentes quando ela decidira fazer enfermagem em vez de medicina! A pensar no sofrimento que tal decisão pouparia à filha. Mas se tivesse feito medicina teria ficado em casa, e, ao olhar agora para Honour, Faith perguntava a si mesma se no fim de contas não teria havido menos sofrimento nesse caso.

 

As medalhas de serviço e as condecorações saíram da mala. Que estranho ter uma filha que era membro do Império Britânico! E como Charlie e lan iam ficar orgulhosos!

 

- Nunca me falaste da tua MIB - disse Faith num tom de leve censura. Honour ergueu os olhos, surpreendida:

 

- Não falei? Devo ter-me esquecido. Havia tanto que fazer naquela altura... escrevia-vos sempre à pressa. De qualquer modo, só foi confirmada há pouco tempo.

 

- Tens algumas fotografias, querida?

 

- Por aí. - Honour procurou numa das malas e tirou dois sobrescritos, um deles muito maior que o outro. - Aqui estão. - Dirigiu-se para a segunda poltrona e sentou-se, pegando nos cigarros. - Esta é a Sally, a Teddy, a Willa e eu... A chefe e a Lae... Eu em Darwin, prestes a partir já não sei para onde. Moresby... e pessoal de enfermagem em Morotai... O exterior da Enfermaria X...

 

- Fica-te muito bem o chapéu do uniforme, devo dizer.

 

- São mais confortáveis que os véus, provavelmente porque temos de os tirar mal entramos em casa.

 

- O que há no outro sobrescrito? Mais fotografias?

 

A mão de Honour agitou-se como se não tivesse a certeza de querer ou não arrumar os dois sobrescritos sem mostrar o conteúdo do segundo, maior; depois de uma ligeira hesitação abriu-o.

 

- Não, não são fotografias. São desenhos feitos por um dos meus pacientes da Enfermaria X, a minha última missão, se é que lhe posso chamar isso.

 

- Estão maravilhosamente bem feitos - disse Faith, observando atentamente cada rosto, mas, para grande alívio de Honour, passando pelo de Michael como se este não tivesse mais significado que qualquer dos outros. Mas como poderia ter? E que estranho que ela estivesse à espera que a mãe visse o que ela vira naquele primeiro encontro no corredor da Enfermaria X. - Quem os fez? perguntou Faith pousando os desenhos.

 

- Este tipo - disse Honour, percorrendo a pilha de papéis e colocando Neil no cimo. - Neil Parkinson. Não está muito bem; falhou miseravelmente quando chegou a vez de fazer o auto-retrato.

 

- Está suficientemente bem para me fazer pensar em alguém conhecido ou, então, já o vi em qualquer lado. Donde é ele?

 

- Melburne. Acho que o pai dele é um ricaço.

 

- Longland Parkinson - disse Faith, triunfantemente. - Conheci este rapaz, então. Na Taça de Melburne, em mil novecentos e trinta e nove. Estava com a mãe e com o pai, de uniforme. Encontrei a Francês (a mãe) várias vezes em Melburne} aqui ou ali.

 

Que lhe tinha dito Michael? Que no mundo dela encontraria gente como Neil, não como ele. Que estranho! Podia realmente ter conhecido Neil socialmente. Se não tivesse havido a guerra.

 

Faith voltou a examinar os desenhos, encontrou aquele de que andava à procura e colocou-o ao lado do de Neil.

 

- Quem é este, Honour? Que cara! Que expressão! - Parecia quase fascinada. - Não sei se gosto dele, mas é um rosto fascinante.

 

- O sargento Lucius Daggett. Luce. Foi... suicidou-se pouco antes de a Base 15 ser desmantelada.

 

Oh, céus! Quase tinha dito ”assassinado”.

 

- Pobre rapaz. Que o teria levado a isso? Parece tão... bem, tão acima desse género de coisas. - Faith devolveu-lhe os desenhos. - Devo dizer que gosto muito mais disto que das fotografias. Braços e pernas não dizem tanto como rostos, e eu estou sempre a tentar ver as caras nas fotografias e nunca consigo ver senão borrões. Qual era o teu preferido destes todos?

 

A tentação foi demasiado grande para poder resistir; Honour encontrou Michael e estendeu o desenho à mãe:

 

- Este. O sargento Michael Wilson.

 

- Sério? - disse Faith, olhando cepticamente para a filha. - Bom, tu é que os conhecias em carne e osso. Um belo rapaz, lá isso vê-se... Mas parece um camponês...

 

”Bravo Michael!”, pensou Honour. ”Aí está a falar a rica esposa do proprietário que encontra Neil Parkinson nas corridas e conhece instintivamente o seu estrato social, tanto quanto é possível sem se ser um presumido. Porque a mãe não é uma presumida.”

 

- Tem uma vacaria - disse ela.

 

- Ah, isso justifica o ar de terra. - Faith suspirou, espreguiçou-se. - Estás cansada, querida?

 

- Não, mamã, nem um bocadinho.

 

Honour pousou os desenhos no chão e acendeu um cigarro.

 

- Ainda não há sinais de casamento? - perguntou Faith.

 

- Não - disse Honour, sorrindo.

 

- Ora, é melhor ficar solteira que casar por razões erradas. Isto foi dito com um tal ar que a filha desatou às gargalhadas.

 

- Concordo, mamã.

 

- Suponho que isso significa que voltas à enfermagem.

 

- Volto.

 

- O Prince Alfred, outra vez?

 

Faith sabia que não valia a pena perguntar se a escolha da filha recairia sobre Yass: Honour sempre gostara de trabalhar em locais centrais e grandes.

 

- Não - disse Honour.

 

E fez uma pausa, sem vontade de continuar.

 

- Então, onde?

 

- Vou para um lugar chamado Morisset estudar enfermagem psiquiátrica. Faith Langtry engoliu em seco:

 

- Estás a brincar?

 

- Não, não estou.

 

- Mas... mas isso é ridículo! És uma enfermeira qualificada! Podes ir para onde quiseres depois da experiência que tiveste. Enfermagem psiquiátrica! Santo Deus, Honour. Também poderás concorrer para guarda de prisão, já agora. O salário é melhor!

 

A boca de Honour fechou-se numa linha dura; de repente a mãe viu a melhor imagem do poder e determinação, que eram tão estranhos à ideia que ela fazia da filha.

 

- É essa uma das razões por que quero fazer enfermagem psiquiátrica disse. - Durante o último ano e meio tratei de homens que estavam emocionalmente perturbados e descobri que gostava desse trabalho mais do que qualquer outro ramo da enfermagem. Pessoas como eu são precisas, porque as pessoas como tu ficam horrorizadas só de pensar nisso, entre outras coisas! As enfermeiras psiquiátricas têm um estatuto tão baixo que sê-lo é quase um estigma. Portanto, se não for gente como eu a fazê-lo nunca mais haverá nenhum progresso. Quando telefonei ao Departamento de Saúde Pública para pedir informações e lhes disse quem e o que era, eles julgaram que eu estava maluca. Tive de lá ir pessoalmente duas vezes para os convencer de que eu, enfermeira especializada, estava realmente interessada em enfermagem mental. O próprio Departamento de Saúde Pública, que administra todos os hospitais psiquiátricos, pensa que eu vou guardar tolos.

 

- E é exactamente o que farás - disse Faith.

 

- Quando um paciente entra num hospital psiquiátrico entra num mundo de que provavelmente nunca sairá - tentou explicar Honour, numa voz cheia de sentimento. - Os homens de que eu tratei não estavam assim tão mal, mas, apesar disso, havia suficientes pontos de comparação para perceber que são necessárias pessoas como eu.

 

- Honour, parece que estás a fazer penitência ou a pregar a conversão a uma nova religião! Com certeza que o que te aconteceu durante a guerra não pode ter abalado tanto a tua capacidade de raciocínio.

 

- Calculo que te pareça que estou toda missionária - disse Honour pensativamente. - Mas olha que não. Nem estou a tentar redimir-me de nenhum pecado. Mas não admito que se considere o facto de eu querer apaixonadamente melhorar a sorte dos doentes mentais como um indício de instabilidade mental da minha parte.

 

- Está bem, querida, está bem - acalmou-a Faith. - Fiz mal em sugerir isso. Agora não fiques furiosa se eu te perguntar se vais lucrar algo de concreto com isso, como seja outro diploma.

 

Honour riu-se, não sentindo já qualquer indignação:

 

- Tenho muito medo de não lucrar nada, mamã. Não é propriamente um curso, nem tem diploma nem nada. Mesmo quando acabar o treino nem sequer serei enfermeira, serei a auxiliar Langtry. Contudo, quando me ocupar de uma enfermaria acho que o meu título será auxiliar-responsável Langtry.

 

Como descobriste tudo isso?

 

- Fui falar com a directora do Callan Park. Era para onde eu inicialmente pensava ir, mas depois de conversarmos um bocado ela aconselhou-me vivamente a ir para Morisset. O ensino é do mesmo nível, parece, e o ambiente é melhor.

 

Faith levantou-se e começou a andar de um lado para o outro.

 

- Morisset. Fica perto de Newcastle, não é?

 

- É, para os lados de Sydney. A cerca de sessenta milhas de Sydney, o que significa que posso dar um salto a Sydney sempre que me apetecer distrair-me, e acho que vou precisar de todas as distracções possíveis. Não estou a ver isto através de óculos cor-de-rosa, sabes? Vai ser muito duro, sobretudo voltar a ser estagiária. Mas sabes, mamã, prefiro ser estagiária e aprender alguma coisa que ficar na PA como enfermeira especializada a fazer vénias a toda a gente desde a chefe até aos médicos e ao super e a ter de me debater com toda a espécie de regras e regulamentos de cinco em cinco minutos. Não conseguiria suportar todas aquelas formalidades depois da vida que levei no exército.

 

Faith pegou no maço de cigarros de Honour, tirou um e acendeu-o.

 

- Mamã, a fumar? - exclamou Honour, chocada. Faith desatou a rir até às lágrimas.

 

- Ora bem, é um consolo ver que ainda tens certos preconceitos. Estava a começar a pensar que tinha produzido uma espécie actualizada de Sylvia Pankhurst. Tu fumas como uma chaminé. Porque é que eu não havia de fumar?

 

Honour levantou-se e abraçou-a:

 

- Tens toda a razão. Vá, senta-te e está à tua vontade. Por muito clarividente que a gente se considere, os pais são sempre como deuses. Sem apetites humanos, sem falhas humanas. Peço desculpa.

 

- Aceito. O Charlie fuma, o lan fuma, tu fumas. Acabei por decidir que estava de fora. Também comecei a beber. Acompanho o Charlie todas as noites num whisky antes do jantar, e digo-te que é muito agradável.

 

- É muito civilizado, também - disse Honour, sorrindo.

 

- Bom, só espero que corra tudo à medida dos teus desejos - disse Faith, soprando o fumo. - Embora confesse que preferia que nunca tivesses sido colocada numa enfermaria tropo.

 

Honour pensou um certo tempo antes de falar, porque queria que as suas palavras fossem carregadas de sentido.

 

Mamã, mesmo contigo, penso que não conseguirei falar das coisas que me aconteceram enquanto estive a ocupar-me dos homens tropo e julgo mesmo que nunca serei capaz de falar deles. A culpa não é tua, é minha. Mas há coisas que tocam demasiado fundo. Magoam de mais. Não estou propriamente a querer pôr-lhes uma rolha. É só que ninguém poderia compreender a não ser que soubesse o tipo de mundo que era a Enfermaria X. E para tentar explicar-te com todos os pormenores de que precisaria para que tu compreendesses não tenho forças para tanto. Matava-me. No entanto, isto posso dizer-te. Não sei porque penso assim, mas sei que ainda não acabei com a Enfermaria X. Ainda vai vir mais, e se for enfermeira psiquiátrica estarei melhor equipada para aguentar aquilo que há-de vir.

 

- Que é que pode vir?

 

- Não sei. Talvez tenha algumas ideias, mas não tenho nenhum dado concreto.

 

Faith apagou o cigarro, levantou-se e inclinou-se para beijar ternamente a filha:

 

- Boa noite, minha querida. É tão bom ter-te em casa! Preocupámo-nos muito quando não sabíamos onde estavas ou se estavas perto da frente. Depois dessas preocupações, a enfermagem psiquiátrica é uma sinecura.

 

Foi do quarto de Honour para o dela, acendeu desabridamente o candeeiro de cabeceira e atirou a luz para a cara do marido, que dormia. Ele fez uma careta, resmungou e voltou-se para o outro lado. Pousando o candeeiro, ela subiu para a cama e apoiou-se pesadamente no ombro de Charlie, batendo-lhe na cara com uma mão e abanando-o com a outra.

 

- Charlie, se não acordas, mato-te.

 

Abrindo os olhos, ele sentou-se, passando os dedos pelo cabelo quase inexistente e bocejando:

 

- Que aconteceu? - perguntou, conhecendo-a bem de mais para se aborrecer: Faith não acordava ninguém só por prazer.

 

- É a Honour - disse ela, com o rosto frahzindo-se. - Oh, Charlie, ainda não tinha percebido até agora, até falar com ela agora no quarto.

 

- Percebido o quê?

 

Pela voz mostrava estar completamente acordado.

 

Mas ela não lhe pôde dizer nada porque a mágoa e o medo a dominaram; pôs-se a chorar longa e amargamente.

 

- Ela foi-se embora e nunca mais há-de voltar - disse quando foi capaz. Ele ficou hirto:

 

- Foi-se embora? Para onde?

 

- Não fisicamente. O corpo ainda está no quarto dela. Desculpa, não queria assustar-te. É do espírito dela que estou a falar, seja onde for que ele a leva. Oh, Charlie, somos uns bebés comparados com ela! É pior que ter uma filha freira: ao menos quando se tem uma filha freira sabemos que ela está a salvo, que o mundo não lhe tocou. Mas a Honour tem as pegadas do mundo inscritas em toda ela. E apesar disso, de certo modo, ela é maior que o mundo. Não sei o que estou a dizer, não é bem isto, tens de falar com ela e vê-la com os teus olhos para perceberes o que te estou a dizer. A mim deu-me para fumar e beber, mas à Honour deu-lhe para arcar com todo o peso do mundo, e isso é insuportável. Não se pode suportar que um filho nosso tenha de sofrer assim.

 

- É a guerra - disse Charlie Langtry. - Não devíamos tê-la deixado ir.

 

- Ela nem sequer nos pediu licença, Charlie. Para quê? Tinha vinte e cinco anos quando se alistou. Pensei que era uma mulher feita, com idade suficiente para lhe sobreviver. Sim, é a guerra.

 

Assim, a enfermeira Langtry renunciou ao véu, pôs um quépi e tornou-se na auxiliar Langtry no Hospital Psiquiátrico Morisset. Um enorme conjunto de edifícios espalhados por muitos hectares, num dos lugares mais bonitos do mundo: braços de mar que constituíam parte dos seus limites, montanhas selvagens suavizadas por florestas, planícies plácidas e férteis e as praias de ressaca não muito distantes.

 

Ao princípio a sua situação foi um pouco difícil, porque nunca em Morisset se ouvira falar de uma enfermeira diplomada que tivesse desistido de toda uma carreira já feita para se tornar aprendiza de enfermagem mental. Muitas das suas colegas eram pelo menos da idade dela, algumas até tinham estado na guerra, dado que a enfermagem psiquiátrica tendia a atrair as mulheres mais que as raparigas, mas a situação peculiar dela colocava-a à parte. Toda a gente sabia que a directora a tinha autorizado a tornar-se responsável ao fim de dois anos em vez de três, e toda a gente sabia também que a directora não só a respeitava como a estimava. Corria o boato de que ela tinha feito um valioso trabalho de enfermagem durante a guerra, o qual lhe valera a MIB, mas não passava de boato, porque a auxiliar Langtry nunca fazia qualquer referência a esses anos.

 

Levou-lhe seis meses a provar a todos que não estava ali a fazer penitência, nem a espiar por conta de qualquer misteriosa agência de Sydney, nem era um tanto ou quanto lunática ela mesma. Ao fim desses meses, soube que era apreciada pelas responsáveis porque trabalhava muito e com uma eficiência soberba, nunca estava doente e demonstrara em inúmeras ocasiões que a sua formação como enfermeira generalista podia ser uma bênção dos deuses num local como Morisset, onde um punhado de médicos não podia vigiar todos os pacientes para detectar a doença física que agravaria o estado mental. A auxiliar Langtry conseguia descobrir uma pneumonia incipiente, sabia tratá-la e tinha um verdadeiro jeito para transmitir às outras os seus conhecimentos. Diagnosticava herpes, tuberculose, abdómens agudos, infecções do ouvido médio e interno e a maioria das afecções que, de vez em quando, atacavam um ou outro paciente. Sabia também distinguir uma entorse de uma fractura, uma constipação de uma asma dos fenos, uma enxaqueca de uma dor de cabeça. Tudo isso a tornava um elemento precioso.

 

O trabalho era arrasante. Havia apenas dois turnos, a equipa de dia, das 6.30 da manhã às 6.30 da tarde, e a equipa de noite, que cobria as outras doze horas. Quase todas as enfermarias continham entre sessenta e cento e vinte pacientes, não tinham pessoal doméstico e apenas três ou quatro auxiliares, incluindo a responsável. Todos os pacientes tinham de tomar banho diariamente, embora na maior parte das enfermarias só houvesse uma banheira e um chuveiro. Todos os trabalhos de limpeza, desde a lavagem das paredes e dos interruptores até ao encerar do chão, competia ao pessoal da enfermagem. A água quente provinha de um aquecedor a carvão de que as enfermeiras tinham de se ocupar. Tratavam também das roupas dos pacientes, desde a lavandaria até cosê-las. Embora a comida fosse preparada numa cozinha central, era entregue em grosso a cada enfermaria, o que significava que tinha de ser aquecida, repartida e cortada pelas enfermeiras, que muitas vezes tinham de cozinhar também a sobremesa e os legumes. Todos os pratos, talheres, copos e panelas eram lavados na enfermaria. A dieta dos pacientes especiais era cozinhada pelas enfermeiras na enfermaria, porque não havia nada que se assemelhasse a uma cozinha de dietas nem sequer havia dieteticistas.

 

Por muito que trabalhassem, três ou quatro auxiliares, sem pessoal doméstico a tratar de um mínimo de sessenta pacientes e muitas vezes do dobro, nunca poderiam esperar conseguir acabar as suas tarefas. Assim, como na Base 15, os pacientes também trabalhavam. Os trabalhos eram altamente apreciados e uma das primeiras coisas que uma auxiliar aprendia era a nunca interferir com o trabalho dos pacientes. Quando surgiam problemas, era normalmente porque um dos pacientes se apoderara do trabalho do outro ou dificultara a execução de um trabalho. As tarefas eram bem realizadas e havia uma hierarquia estrita entre os pacientes que dependia da utilidade e do orgulho de cada um. O chão brilhava sempre como vidro, as enfermarias estavam imaculadas, as casas de banho e a cozinha cintilavam.

 

Contrariamente à opinião corrente acerca dos hospitais psiquiátricos e talvez característica peculiar de Morisset, havia muito amor. Faziam-se todos os possíveis por criar um ambiente familiar e a maioria das enfermeiras gostava dos seus pacientes. O pessoal e os pacientes faziam parte de uma mesma comunidade; existiam de facto famílias inteiras - mãe, pai, filhos crescidos -, todos empregados e vivendo em Morisset, e assim para parte de pessoal o hospital era um autêntico lar e correspondia àquilo a que correspondem os autênticos lares.

 

A vida social era bastante intensa e de grande interesse para pessoal e doentes. Todas as segundas-feiras havia sessões de cinema; havia concertos frequentes em que o pessoal e pacientes eram executantes e público; uma vez por mês havia um baile, a que se seguia uma ceia requintada. Nos bailes, as doentes sentavam-se de um lado e a parte masculina do outro; quando uma dança era anunciada os homens precipitavam-se através da sala para agarrar as parceiras predilectas. O pessoal dançava também, mas só com os doentes.

 

Todas as enfermarias eram fechadas e os homens estavam separados das mulheres; antes e depois das funções sociais em que ambos os sexos se podiam encontrar, os doentes eram sempre cuidadosamente contados. As mulheres eram tratadas exclusivamente por pessoal feminino e os homens por pessoal masculino.

 

Muito poucos doentes recebiam visitas, muito poucos tinham rendimentos privados; alguns recebiam uma pequena remuneração por trabalhos especiais feitos no hospital ou nos terrenos circundantes. Para todos os efeitos e objectivos, os pacientes consideravam o hospital como a sua casa; alguns não se lembravam de ter tido outra casa, outros haviam-na esquecido, outros morriam de saudades de uma casa verdadeira com pais ou esposas queridos. Não era invulgar ver um demente idoso a acompanhar, durante as horas em que tal era permitido, um cônjuge que, embora saudável, preferira internar-se a ter de se separar completamente do outro.

 

Não era o paraíso, mas a atitude era de carinho, e a maior parte do pessoal compreendia que não havia nada a ganhar, muito pelo contrário, em transformá-lo num lugar de infelicidade; para começar, os pacientes já eram suficientemente infelizes. Claro que havia maus guardas, maus responsáveis, maus auxiliares, mas não nas vastas proporções que os mitos e as lendas propalavam. Pessoal declaradamente sádico não era tolerado, pelo menos nas enfermarias onde a auxiliar Langtry trabalhou; às responsáveis também não era permitido dirigirem as suas enfermarias como se fossem impérios independentes.

 

Acontecia às vezes que o hospital se tornava num lugar antiquado e inconscientemente cheio de humor. Algumas enfermarias ficavam tão distantes da casa das enfermeiras que era preciso ir buscar estas e levá-las numa carrocinha de cavalos conduzida por um doente. A directora e a superintendente faziam rondas diárias, começando às nove da manhã. Iam de enfermaria em enfermaria numa caloche conduzida por um doente, a directora em todo o esplendor da sua brancura, de guarda-sol aberto ou guarda-chuva se chovesse. No pino do Verão, o cavalo trazia sempre um chapéu de palha com dois buracos por onde saíam as orelhas.

 

A auxiliar Langtry sabia que as coisas que mais a perturbavam eram previsíveis. Era difícil voltar a um estatuto de estagiária, não tanto por ter de receber ordens como por falta de privilégios e confortos, embora suspeitasse que tudo lhe teria custado muito mais se não tivesse passado pela dura experiência dos anos de enfermagem na guerra. Contudo, para uma mulher que passava já dos trinta anos, que já fora enfermeira-responsável, que ajudara a dirigir um hospital de campanha na linha de fogo, que trabalhara num hospital militar geral, era duro ter de ver a chefe inspeccionar-lhe o quarto todas as terças-feiras. O colchão tinha de ser enrolado para a chefe poder espreitar para baixo da cama, os lençóis e cobertores tinham de ser dobrados de uma maneira estipulada e muito bem colocados em cima do colchão. Tentava não se aborrecer com isso, porque pelo menos não fora obrigada a partilhar o quarto com outra auxiliar, uma pequena concessão à sua idade e situação profissional.

 

Quando o seu primeiro ano em Morisset se aproximava do fim começou a entrar no ritmo, e a sua personalidade surgiu à superfície com toda a força. Não tivera de lutar para a subjugar, porque ela mergulhara nas profundezas de modo próprio, mecanismo de protecção engendrado para aguentar a posição de estagiária e um trabalho que não lhe estava ainda na ponta dos dedos.

 

Mas a verdade vem sempre ao de cima, e o tártaro em Honour Langtry ainda estava muito presente, consideravelmente reforçado pelo repouso a que tinha sido obrigado. O seu reaparecimento não a prejudicou porque só se manifestava em presença da estupidez, incompetência ou negligência, como aconteceu da primeira vez.

 

Apanhou uma auxiliar a abusar fisicamente de uma doente e relatou o incidente à responsável, que deu mostras de pensar que a auxiliar Langtry estava a ser histérica na sua interpretação dos acontecimentos.

 

- A Su-Su é epiléptica - disse a responsável - e não se pode confiar nos epilépticos.

 

- Que disparate! - disse a auxiliar Langtry desdenhosamente.

 

- Não queira ensinar-me o meu trabalho lá porque tem um diploma! rosnou a responsável. - Se duvida de mim, leia o seu Manual, está lá, preto no branco. Os epilépticos não são de confiança. São dissimulados, mentirosos e maliciosos.

 

- O Manual está errado - disse a auxiliar Langtry. - Conheço bem a Su-Su, e a senhora também, e ela é absolutamente digna de confiança. O que, além do mais, nem sequer está em causa. Nem o Manual advoga que se lhes bata.

 

A responsável olhou-a como se ela tivesse blasfemado; o Manual era um livro encadernado a vermelho, continha notas para as enfermeiras psiquiátricas e era a única fonte de autoridade escrita que as enfermeiras possuíam. Mas estava desactualizado, era incrivelmente pouco correcto e destinava-se a estudantes de uma mentalidade tremendamente baixa. Qualquer que fosse a doença, parecia receitar sempre um clister como tratamento. A auxiliar Langtry dera-lhe uma vista de olhos e vira tantos erros flagrantes que preferira pô-lo de parte e recorrer às suas próprias capacidades para se informar sobre os desarranjos mentais, comprando livros de psiquiatria sempre que ia a Sydney. Estava convencida de que a reforma das técnicas de enfermagem, a dar-se, reflectiria aquilo que os mais recentes livros de psiquiatria diziam já.

 

A batalha de Su-Su fez o seu caminho até chegar à directora, mas nada podia deter a auxiliar Langtry ou fazê-la voltar atrás. A enfermeira culpada acabou por ser castigada e transferida para outra enfermaria onde era cuidadosamente vigiada; a responsável não foi castigada, mas recebeu a mensagem no que se referia à auxiliar Langtry: seja absolutamente limpa com a auxiliar Langtry ou terá de lamentar o dia em que cruzou a espada com ela. Não só era inteligente como não se deixava impressionar por títulos de autoridade e tinha uma língua extremamente persuasiva.

 

Quando foi para Morisset, Honour Langtry estava perfeitamente consciente de que a quinta de Michael ficava apenas a oitenta milhas para noroeste, embora essa proximidade não fosse a razão da sua escolha. Nisso deixara-se guiar pela directora do Callan Park e, após um ano em Morisset, sabia que o conselho tinha sido bom.

 

Nos momentos em que não estava fisicamente tão esgotada que se limitava a comer e a dormir durante os tempos livres, pensava muitas vezes em Michael. E em Benedict. Um dia havia de ir até Maitland em vez de ir a Sydney, mas para já não. A ferida ainda doía, sim, mas não era por isso que adiava a visita. Tinha de dar a Michael tempo para compreender que aquilo que estava a fazer com Ben não podia dar resultado. Se aprendera alguma coisa naquele primeiro ano em Morisset era que pessoas como Benedict não podem ser postas no isolamento de uma quinta, por exemplo, não se podem limitar ainda mais limitando-se à companhia de um único ser humano, por muito bom e carinhoso que fosse esse único ser humano. Numa situação como a quinta de Michael, Benedict só podia piorar. O que a preocupava, embora pensasse que não devia interferir até ter passado o tempo suficiente para mostrar a Michael que estava errado e ela é que tinha razão.

 

No recinto do Hospital Morisset havia um hospital prisional para os loucos criminosos; Honour Langtry ficava sempre gelada quando o via acima das árvores, grandes blocos de tijolo vermelho com grades, dirigido por um pessoal diferente. Ali estaria agora Benedict se os acontecimentos do balneário tivessem tomado outro rumo. E não era um lugar onde se estivesse bem. Como podia, então, censurar Michael por tentar? Tudo quanto podia fazer era estar preparada para o dia em que ele lhe viesse pedir socorro ou em que ela se considerasse capaz de lho dar.

 

Quando, uma tarde, lhe disseram que alguém estava à espera dela na sala de visitas, a auxiliar Langtry pensou imediatamente em Michael. Se ele tivesse tido a paciência de lhe seguir o rasto, talvez precisasse mesmo dela... embora também pudesse ser Neil à espera. Neil, que tinha o dinheiro e a sofisticação para saber como descobrir alguém. Seria bem de Neil, também, do novo e calmo Neil, de quem se tinha separado havia dezoito longos meses, ter-se cansado de esperar que ela o procurasse e decidir que era tempo de voltar a insinuar-se na vida dela. Além disso, sabia que os caminhos dele e da mãe dela podiam cruzar-se ocasionalmente, embora nada nas cartas recentes da mãe lho indicasse.

 

Dirigiu-se para a sala de visitas com a maior calma possível, encenando a cena próxima com um máximo de variações e para dois homens diferentes. Porque não tinha dúvidas de que ficaria muito contente ao ver qualquer deles.

 

Mas a pessoa que estava sentada, de pés esticados e sem sapatos, era a enfermeira Sally Dawkin.

 

A auxiliar Langtry parou como se tivesse levado um tiro, com ambas as mãos sobre o coração. ”Oh, Deus, porque é que as mulheres são tão loucas?”, pensou, improvisando um sorriso e amarrando-o ao seu lugar para esta primeira visita em Morisset. ”Todas vivemos assim, centradas em alguns homens. Podemos convencer-nos durante meses a fio que tal não é verdade, mas, à mínima oportunidade, lá está o homem outra vez, mesmo no meio de tudo o resto.”

 

A enfermeira Dawkin teve um largo sorriso mas não se levantou.

 

- Já cá estive há bocado, mas não quis interromper o teu trabalho, de modo que fui tomar um chá a Wyong e voltei. Como estás, Honour?

 

A auxiliar Langtry sentou-se na cadeira em frente dela com o mesmo sorriso fixo.

 

- Estou muito bem. E tu?

 

- Olha, estou como uma daquelas bolas de borracha amarradas à raqueta por um elástico. Não sei o que vai rebentar primeiro, se sou eu ou o elástico.

 

- Nunca serás tu - disse a auxiliar Langtry. - Tu és a grande sobrevivente.

 

- Diz isso aos meus pés. Já desisti. Talvez em ti eles acreditem - disse a enfermeira Dawkin, olhando para os pés com ferocidade.

 

- Tu e os teus pés! Há coisas que não mudam.

 

A enfermeira Dawkin trazia vestidos uns trajos informes, como era a tendência de tantas enfermeiras habituadas à severidade do uniforme engomado e do véu.

 

- Estás tão diferente, Honour... - disse a enfermeira Dawkin olhando-a. Mais nova e mais feliz.

 

E na verdade ela não parecia mais velha que a média das estagiárias, vestida com o mesmo tipo de uniforme que usara na PA. As variantes erapn mínimas. Em Morisset usava um vestido de risquinhas brancas e lilases, de mangas compridas e decote subido, com punhos e gola de celulóide de pôr e tirar. E o avental era o mesmo, uma coisa volumosa branca, tesa de goma que envolvia completamente a saia do vestido e fazia peitilho, apertando atrás com duas alças largas. A cintura muito fina e bem marcada por um cinto branco. Vestido e avental desciam até meio da perna. Trazia sapatos pretos de atacadores e saltos rasos e meias pretas de algodão opaco, tal como na X. O quépi de Morisset era menos atraente que o da PA, uma espécie de pudim branco fixo no pescoço por uma fita, com uma larga banda na testa, onde duas voltas, no caso da auxiliar Langtry, indicavam que se tratava de uma estagiária do segundo ano.

 

- É só o uniforme - disse a auxiliar Langtry. - Estavas habituada a ver-me sem avental e de véu.

 

- Ora, qualquer trapo a ti te fica bem.

 

- Então, sempre estás como chefe em North Shore? A enfermeira Dawkin ficou de repente muito triste.

 

- Não, afinal não tive a sorte de ficar em Sydney. Estou outra vez no Royal Newcastle, porque é suficientemente perto de minha casa para poder lá viver. Que tal é a enfermagem psiquiátrica?

 

- Adoro - disse a auxiliar Langtry de rosto iluminado. - Claro que não é nada que se pareça com a enfermagem geral, embora tenhamos problemas clínicos. Nunca vi na vida tantos casos de epilepsia. Não os salvamos todos, coitados. Porém, como enfermeira de saúde mental, sinto-me de certo modo mais importante, mais apreciada e necessária. Como enfermeira, tinha perdido todo o contacto com a realidade, mas aqui faz-se mesmo enfermagem. Os doentes são quase como família. Sabe-se que eles não vão sair daqui a não ser que morram de um ataque ou de pneumonia. Descobri que são mais frágeis que as pessoas cujos cérebros estão bons. E digo-te uma coisa, Sally: se pensas que na enfermagem em geral estás envolvida, então tenta a enfermagem mental. - Suspirou. - Quem me dera ter feito aqui um par de anos antes de ir para a X. Fiz uma data de erros na X por pura ignorância. Mas antes tarde do que nunca, como dizia o bispo à dançarina.

 

A enfermeira Dawkin sorriu:

 

- Ora, esse é o meu tipo de frases, não é o teu! Se não tomas cuidado, ainda acabas como eu, uma mistura de um dragão com um bobo da corte.

 

- Posso pensar em destinos piores - disse a enfermeira Langtry, sorrindo num súbito ímpeto de prazer. - Oh, Sally querida, é tão bom ver-te! Não sabia quem estaria à minha espera. Isto é tão afastado de tudo que nunca tive visitas.

 

- Também gosto de te ver. Tem-se notado a tua ausência em reuniões e coisas do género. Não tentas manter o contacto com o velho bando da Base 15?

 

- Não. É engraçado, mas sempre detestei os post-mortens - disse a auxiliar Langtry pouco à vontade. - Penso que é a maneira como eles preparam os rostos; nunca se devia ter de ver o que está dentro de um rosto.

 

- Mas é a enfermagem mental que estás a descrever.

 

A auxiliar Langtry cruzou os braços sobre o estômago e inclinou-se para a frente:

 

- Nunca pensei nela desse ponto de vista. Mas continuo a odiar os postmortens.

 

- Estás a ficar liru, é o que é - disse a enfermeira Dawkin confortavelmente.

- Já sabia que isso ia acontecer, a viveres e a trabalhares num sítio destes, apesar dos bonitos jardins e tudo.

 

- Que te levou a falar-me da Base 15, Sally?

 

- Oh, nada de especial, a sério. Só que quando fui de North Shore para Newcastle tive um dos teus homens da X como paciente.

 

A pele da auxiliar Langtry enrugou-se, torceu-se e encolheu-se como a de um cavalo.

 

- Qual? - perguntou de boca seca.

 

- Matt Sawyer. A cegueira dele não era histeria.

 

- Eu sabia. O que era?

 

- Um tumor enorme sobre o nervo óptico. Meningioma. Desenvolvendo-se rapidamente. Mas não foi isso que o fez ir para North Shore. Teve uma hemorragia subaracnóide.

 

A auxiliar Langtry suspirou:

 

- Então morreu, claro.

 

- Entrou em coma e morreu uma semana depois, sem sofrimento. Uma pena para a família. Umas miúdas amorosas e uma mulher encantadora.

 

- É, é uma pena - disse a auxiliar Langtry numa voz sem cor. Instalou-se um pequeno silêncio, não muito diferente do silêncio de respeito

 

que se concede àqueles de fama no mundo e que foram ao encontro do seu criador. A auxiliar Langtry ocupou-o a pensar como é que a mulher de Matt teria finalmente reagido ao saber da cegueira dele. Que efeito teria tido nas filhas? E teria a mulher compreendido a magnitude do estigma com que o tinham marcado, o diagnóstico de histeria? Ter-se-ia a mulher irritado com um espírito que obstinadamente se recusava a permitir que os olhos vissem? Ou ter-se-ia convencido que algo de mais maligno que o espírito era a causa da cegueira? Seguramente a última hipótese, se o fotógrafo tinha captado bem a expressão da verdadeira senhora Sawyer naquela fotografia que ele tinha no armário. ”Bom. Dorme em paz, meu querido Matt”, pensou ela ternamente. ”A grande batalha acabou.”

 

- Que te fez sair de North Shore para Newcastle, Sally? - perguntou ela, intrigada porque sabia que a enfermeira Dawkin sonhava tanto com aquela chefia.

 

- Foi o meu velho pai - disse a enfermeira Dawkin, infeliz. - Arteriosclerose, demência senil, atrofia cortical. Tive de o internar esta manhã.

 

- Oh, Sally! Tenho tanta pena! Onde está ele? Aqui?

 

- Sim. Está aqui. Detestei ter de fazer isto e bem tentei evitá-lo, podes crer. Voltei para casa, em Newcastle, à espera de poder aguentá-lo, mas a minha mãe tem mais de setenta anos e não podia mais, com o meu pai a fazer nas calças e a resolver ir à mercearia em pêlo. A única coisa seria eu deixar por completo de trabalhar, mas sou sozinha, não temos dinheiro e sou uma solteirona. Não há um marido que traga para casa a subsistência dos Dawkin. É o azar.

 

- Não te preocupes, ele vai ficar bem aqui - disse a auxiliar Langtry em voz forte e tranquilizadora. - Tratamos bem os nossos velhotes aqui, e temos cá muitos. Eu própria vou vê-lo regularmente. Foi assim que descobriste que eu estava cá?

 

- Não. Pensava que estavas no Callan Park, por isso tentei tudo para lá pôr o meu pai. Até fui falar com a directora do Callan Park (ainda bem que estou dentro da profissão, faz uma diferença enorme!) e foi ela quem me disse que estavas aqui. Lembrou-se imediatamente da entrevista contigo. Não é todos os dias que enfermeiras com a tua preparação optam pela saúde mental, suponho. Bom, como deves calcular, foi maná dos céus encontrar-te. Andei todo o dia aqui à volta. A chefe ofereceu-se para te mandar chamar à enfermaria, mas eu não quis, e, além do mais, sou uma cobarde terrível. Céus, não me apetece entrar em casa esta noite e dar de caras com a minha pobre mãe... - Calou-se por instantes, para se recompor. - Assim adiei as coisas tristes por umas horas e aqui estou a chorar-te no ombro.

 

- Sempre que queiras, Sally, bem sabes. Já chorei no teu. A enfermeira Dawkin animou-se:

 

- Lá isso choraste! A cabrita daquela Pedder!

 

- Calculo que não saibas o que foi feito dela?

 

- Não, e, o que é mais, não me interessa. Ora, deve estar casada a estas horas, apostava um ano de salário. A Pedder não foi feita para ganhar a vida.

 

- Então esperemos que, seja quem for o marido, seja um tipo rico e de natureza sanguínea.

 

- Sim - disse a enfermeira Dawkin, mas numa voz ausente. Hesitou, respirou fundo, como se fosse tomar alguma coisa de mau sabor, e falou desajeitadamente. - Na verdade, Honour, há outra razão que me trouxe cá. Quando a directora do Callan Park me disse que estavas aqui alguma coisa fez-se luz. Por acaso lês os jornais de Newcastle?

 

A auxiliar Langtry ficou com ar intrigado:

 

- Não.

 

A enfermeira Dawkin fez um gesto de cabeça.

 

- Bem, eu sabia que não eras uma pequena do Hunter Valley e, quando soube onde estavas, vi logo que não lias nada de Newcastle. Porque se lesses já não estavas aqui, julgo eu.

 

A auxiliar Langtry corou, mas a sua expressão era tão orgulhosa e inabordável que a enfermeira Dawkin teve dificuldade em continuar:

 

- O teu interesse pelo Michael Wilson era bastante óbvio para mim na Base 15 e devo confessar que estava à espera de vos ver juntos depois da guerra. Mas, quando li a história nos jornais de Newcastle, soube que não tinha acontecido nada entre vocês. Depois, quando descobri que estavas aqui em Morisset, pareceu-me que tinhas resolvido ficar por perto, mas não demasiado perto, talvez à espera de o encontrares por acaso ou a planear vê-lo quando as coisas acalmassem... Honour, não fazes a mínima ideia daquilo de que eu estou a falar, pois não?

 

- Não - murmurou a auxiliar Langtry, angustiada.

 

A enfermeira Dawkin não hesitou; lidava com situações daquelas havia muitos anos para poder hesitar, mas cumpriu o seu dever com grande bondade, compreensão e franqueza.

 

- Minha querida, o Michael Wilson morreu há quatro meses.

 

O rosto da auxiliar Langtry pareceu ficar vazio, sem feições e sem vida.

 

- Não sou uma fala-barato e não te estou a dizer isto só para te ver sofrer. Mas pensei que, se não sabias, devias saber. Já tive a tua idade e compreendo perfeitamente aquilo por que estás a passar. A esperança pode ser a coisa mais cruel do mundo e há ocasiões em que a melhor coisa que se pode fazer é matar uma esperança sem futuro. Decidi dizer-to para que possas resolver se queres dar outro rumo à tua vida antes que seja tarde de mais. Como me aconteceu a mim. E é melhor que o saibas por mim que por um lojista qualquer de Maitland, num belo dia de sol.

 

- O Benedict matou-o - disse a auxiliar Langtry numa voz sem timbre.

 

- Não. Ele matou o Benedict e depois suicidou-se. Tudo por causa de um cão que eles tinham e que resolveu atirar-se ao cão de outro lavrador. Este foi, furioso, falar com o Michael e atacou-o. Então o Benedict atirou-se ao lavrador, e se o Michael não o conseguisse aguentar o Benedict matava o homem. O tipo foi à polícia, mas quando a polícia chegou já estava tudo acabado. Estavam ambos mortos. O Michael deu ao Benedict uma dose de barbitúricos e depois matou-se com um tiro. Não sofreu nada. Sabia muito bem em que sítio disparar.

 

O corpo da auxiliar Langtry saltou literalmente de junto da enfermeira Dawkin e caiu, mole, como o de uma velha boneca de trapos. ”Oh, Michael, meu Michael!” Todo o amor, o desejo e a fome enterrados voltaram instantaneamente à superfície. A dor submergia-a, embalava-a, desfazia-a. ”Oh, Michael!” Nunca, nunca mais voltar a vê-lo, e ela sentira tanto a falta dele! Todos aqueles meses para o ir ver num dia de licença e nunca fora. Estava morto e ela nem o sabia, nem o sentira no seu corpo, que tantas e tão terríveis saudades tinha dele.

 

A história com Benedict chegara ao seu fim inevitável. Ela via agora que não havia outro fim possível para ela. Enquanto ali estivesse, Benedict estava salvo; era nisso que ele tinha de acreditar porque carregara voluntariamente com o fardo de cuidar de Benedict e todos os deveres têm de ter uma recompensa, quando se sabe que o trabalho é bem feito. Assim, quando deixou de ter certezas, matou Benedict calma e misericordiosamente. Depois, a única solução era matar-se também. Não podia haver prisões para Michael, nem a Enfermaria X, nem Morisset. Era um pássaro, mas tinha de ser ele mesmo a escolher a gaiola.

 

”Oh, Michael, meu Michael! Um homem não é senão aquilo que pode ser. Cortado como a erva.”

 

Voltou-se ferozmente para a enfermeira Dawkin.

 

- Porque não veio ele ter comigo? - perguntou. - Porque não veio? Haveria um meio de dizer a verdade sem magoar? A enfermeira Dawkin duvidava mas tentou.

 

- Talvez ele te tenha esquecido. Eles esquecem-nos, sabes? - disse gentilmente.

 

Aquilo era insuportável.

 

- Não têm o direito de nos esquecerem! - gritou a auxiliar Langtry.

 

- Mas esquecem. É a natureza deles, Honour. Não é que não gostem de nós. Mas vão sempre para a frente. E nós também. Ninguém pode viver no passado! Agitou a mão, indicando todo o Hospital Morisset. - Se assim fosse, acabávamos todos aqui.

 

Um a um, a auxiliar Langtry ia reunindo os pedaços, velha, fria e sozinha.

 

- Sim - disse lentamente. - Mas eu ainda aqui estou.

 

A enfermeira Dawkin levantou-se, calçou os sapatos, estendeu a mão e puxou a auxiliar Langtry para fora da cadeira.

 

- É verdade, estás aqui. Mas estás do lado bom da barricada. Tens de continuar desse lado, nunca te esqueças, seja o que for que resolvas fazer. Suspirou. - Tenho de ir. A minha mãe está à minha espera.

 

”Oh, Sally, tu é que tens mesmo problemas!”, pensou a auxiliar Langtry, acompanhando a enfermeira Dawkin. Não era maneira de acabar uma vida: com pouco dinheiro, pais velhos e sem esperança de auxílio. E eventual solidão. O dever só trouxera mais dever a Sally Dawkin. ”Bom”, decidiu a auxiliar Langtry, ”por mim estou farta do dever. Governou toda a minha vida. E matou Michael.”

 

Dirigiram-se para onde a enfermeira Dawkin tinha deixado o automóvel que pedira emprestado para conduzir o pai a Morisset; antes de ela entrar no carro, a auxiliar Langtry estendeu os braços e abraçou-a rápida e apertadamente.

 

- Trata de ti, Sally, e não te preocupes com o teu pai. Aqui ele vai estar bem.

 

- Vou tratar de mim, não te preocupes. Hoje estou em baixo, mas amanhã, quem sabe? Posso ganhar a lotaria. E o Royal Newcastle não é tão mau como isso.

 

Até posso chegar a directora! - Entrou no carro. - Se um dia resolveres ir até Newcastle, telefona-me e a gente vai beber um copo e conversar. Não é bom perder todos os contactos com as pessoas, Honour. Além disso, sempre que vier ver o meu pai imponho-te a minha companhia.

 

- Adorava, mas não penso que vá ficar por cá muito tempo. Há uma pessoa em Melburne a quem tenciono lembrar que ainda existo antes que seja tarde de mais - disse a auxiliar Langtry.

 

A enfermeira Dawkin ficou toda excitada.

 

- Linda menina! Leva a tua vida da melhor maneira possível. Ligou o motor, acenou alegremente e lá seguiu aos sacões.

 

A auxiliar Langtry ficou por momentos a vê-la afastar-se, dizendo-lhe adeus, e depois voltou-se para se dirigir para o lar das enfermeiras, de cabeça baixa, seguindo com os olhos as manchas negras que na escuridão os seus pés faziam alternadamente.

 

Neil tinha-lhe dito que esperaria por ela. Melburne não era longe se tomasse o avião. Podia lá ir nos próximos quatro dias de licença. E se, de facto, ele estivesse à espera, nem precisava de voltar para Morisset. Tinha trinta e dois anos, e como podia justificá-los? Com uns documentos oficiais, umas fitas, um par de medalhas. Nem marido, nem filhos, nenhuma vida própria. Só serviços aos outros, uma recordação e um homem morto. Nada suficientemente bom.

 

Ergueu a cabeça; olhou para os quadrados amarelos de luz que a rodeavam naquele vasto mundo dos sem-esperança. Quando era a sua próxima licença de quatro dias? Tinha mais três dias de serviço, três dias de licença, quatro dias de serviço e depois os tais quatro dias de licença. Daí a mais ou menos dez dias.

 

Oh, calhava mesmo bem. Não teria de ir a Melburne antes do grande concerto. Ia ser o melhor dos seus esforços se ao menos a pobre da Marg conseguisse lembrar-se das duas palavras que tinha de dizer. Mas tinha querido tanto participar que ninguém tivera coragem de dizer que não. Toda a gente rezava para que corresse bem, era tudo. E que sorte a responsável ter descoberto que Annie sabia cantar. Ela era até bonita quando estava arranjadinha, e alguns dos pacientes iam fazer uma grande gaiola de vime, pintá-la de dourado e a Annie cantaria: ”Sou só um pássaro numa gaiola dourada.” A peçazinha acerca do gato e do rato havia de deitar a casa abaixo se Su-Su conseguisse representar o seu papel sem ter um ataque...

 

A auxiliar Langtry parou de súbito, como se uma mão gigantesca lhe tivesse cortado o caminho. ”Em que diabo estou eu a pensar?” Não posso abandoná-los. Quem é que eles têm se as pessoas como eu se forem embora atrás de um sonho? porque é um sonho. Um sonho de rapariga tonta e imatura. A minha vida é isto. Foi para isto que fiz a minha aprendizagem. O Michael sabia. E a Sally Dawkin tem razão. A verdade é cruel, mas não se pode fugir para sempre à verdade e, se magoa, temos de superar a dor. Eles esquecem-nos. Dezoito meses sem sequer uma palavra dele. Também Neil esqueceu. Quando eu era o centro do seu universo amava-me e precisava de mim. Para que precisaria de mim agora? E porque me amaria agora? Eu mandei-o seguir o seu caminho para um tipo de vida diferente, maior, mais excitante. Oh, sim, muito mais excitante e povoada de mulheres. Por que diabo se havia ele de lembrar de uma parte da sua vida que lhe causou tanto sofrimento? Mais importante ainda, porque é que eu espero que ele se lembre? O Michael tinha razão. O Michael sabia. Um pássaro forte precisa de muito espaço para voar.”

 

Ali tinha um dever a cumprir. Quantas pessoas estavam preparadas para fazer o que ela fazia sem esforço? Quantas tinham o treino, os conhecimentos, a habilidade inata? Por cada uma das enfermeiras de saúde mental que tinham a força para aguentar os três anos de estágio, dez não resistiam. Ela tinha a força. E tinha o amor. Aquilo não era apenas um trabalho - o seu coração estava ali, profundamente. Era aquilo que ela realmente queria. O seu dever estava ali entre aqueles que o mundo esquecera, ou não podia utilizar, ou, às vezes, nem sequer suportava ver.

 

A auxiliar Langtry recomeçou a caminhar, num passo vivo e sem medo, compreendendo-se finalmente a si mesma. E compreendendo que o dever, a mais indecente de todas as obsessões, era apenas um outro nome para o amor.

 

 

                                                                  Colleen McCullough

 

 

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