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— O senhor sabe que minha Marjorie foi assassinada, não sabe? — dizia Monsieur Lamar-Toms.
Edmund Fëll fez um gesto de assentimento com a cabeça, e comentou:
— Sim, eu sei.
— A polícia redigiu um documento oficial. Contendo um resumo das declarações mais importantes, formuladas pelos depoentes. O resultado foi consignado nesta página.
Veja…
Apollion Lamar-Toms era um velhinho de fala autoritária e muito bem trajado, com um bigode grisalho que lhe caía de ambos os lados do lábio superior. Octogenário, tinha uma voz estridente e movimentos rápidos e nervosos. Além de extremamente rico, era chairman e presidente executivo de um grupo imobiliário francês. Famoso, segundo sites de fofocas, por ser considerado controverso e extravagante. Tinha o rosto largo e um tanto flácido. A pele seca, amarela e quebradiça… Visto de perfil assemelhava-se mais a uma tartaruga gigante de Seychelles.
Fëll pegou o documento a contragosto. A sua disposição de ânimo não era das melhores. Leu algo como: láudano… extrato do ópio… efeito sedativo, mas com os olhos focados na única coisa em que estava, de fato, interessado: a praia de areias brancas e as águas azuis-turquesa do Oceano Índico.
Estava há três dias nas Ilhas Maldivas. Tinha ficado uma noite em Malé. Na ilha do aeroporto, apanhara um barco para o resort, viagem que durara cerca de uma hora.
Na recepção principal, ao fazer o check-in, fora informado de que não poderia ficar no quarto inicialmente reservado — Jacuzzi Water Villa — pois este não estava disponível. Tinham-lhe dado, então, um Jacuzzi Beach Villa, na parte Norte da ilha.
Fëll lembrava-se bem da conversa que tivera com Monsieur Lamar-Toms no dia anterior. Assim como agora, o velho francês pisara e repisara o mesmo e inequívoco assunto:
o aparente assassinato de sua esposa.
O olhar de Fëll vagueou por um instante no papel que estava em suas mãos. Balançou a cabeça, num gesto de lástima.
— É. Parece que ela foi envenenada.
— É só isso o que tem a dizer? — perguntou o magnata secamente. — Parece que ela foi envenenada? Já aprendi a aceitar minhas limitações, mas o senhor… O senhor é
bem mais jovem do que eu! Achei que ia dizer uma coisa mais inteligente, Mr. Fëll.
Fëll engoliu em seco. Confusão e constrangimento se fundiram em seu íntimo.
— O senhor ainda terá que ter alguma paciência até que alguém lhe possa fornecer uma teoria viável, Monsieur. Vivemos num mundo cheio de incertezas; qualquer um
pode ter crises de ansiedade.
— Acha que estou tendo crises de ansiedade? C’est un non-sens!
Fëll soltou um gemido e resignou-se ao inevitável.
— Fale-me sobre o caso, Monsieur. Talvez assim eu consiga vislumbrar o motor condutor de todo esse drama.
Apesar de seu ar casmurro, Monsieur Lamar-Toms fez uma narrativa breve e primorosa dos fatos.
— Marjorie e eu éramos casados há mais de quarenta anos. Posso assegurar que Marjorie era uma mulher muito extremosa, que se preocupava com as pessoas. Era tão frágil,
tão adoentada, mas nunca deixei de amá-la por isso. Ainda conseguíamos rir das mesmas coisas. No mês passado, como o senhor vê aí, Marjorie morreu, vítima de láudamo…
ou láudavo, ou o que quer que seja.
— Como foi?
— De noite, Marjorie estava bem. Recebeu todos os cuidados adequados… e amanheceu morta. O quarto foi analisado por uma equipe de especialistas do Laboratório de
Polícia Científica. Nada foi encontrado. Imagine a minha surpresa quando veio o laudo dizendo… essas coisas!
— A morte de sua mulher foi um grande choque, não é?
— Inacreditável!
— O senhor certamente não esperava por isso?
— Nem eu nem ninguém. Às vezes imagino que finalmente superei o que aconteceu, mas logo em seguida vejo que não é bem assim.
— Então sua primeira impressão foi de que não podia ter acontecido?
— A coisa toda parece estranha. Ainda não me convenci de que ela tenha morrido.
— O senhor já deve ter feito suas próprias investigações…
— Fiz sim.
— E?
— Mademoiselle Lavélye é a única pessoa que poderia ter ministrado o veneno.
— Quem é Mademoiselle Lavélye?
— A enfermeira. Mas por quê? Por que ela mataria Marjorie?
— Mademoiselle Lavélye lucrou alguma coisa com a morte da patroa?
— Nada. E, pelo que sei, Marjorie nunca se queixou dela. Estou até começando a achar que tudo isso não passou de um grande pesadelo. Se eu obtivesse uma prova…
— Após tudo isso, o senhor suspeita que vá ser a próxima vítima.
— É um temor muito menos infundado do que pode parecer à primeira vista, vá por mim. E não acredito que esteja enganado.
— Mas por que matariam o senhor? Parece-me um crime desnecessário. Pense nisso…
— Já pensei nisto — replicou Monsieur Lamar-Toms. — E por esse motivo não estou de acordo com o senhor.
— Que provas o senhor tem para a sua alegação? Nenhuma, a não ser a morte de sua mulher.
— Gosto da minha vida do jeito que ela é. Essa situação não corresponde em nada ao meu caráter! Meus funcionários são de confiança. Meus poucos amigos são leais.
Todo mundo sempre quis um pedaço de mim, desde os meus sócios em busca de aprovação até o cavalariço que cuida do meu haras. Mas alguém querer minha vida? Não, aí
já é demais! Recuso-me a me deixar intimidar. Sou perito em minha área de atuação e espero que todos joguem pelas minhas regras. Não sou marionete de ninguém. Não
pretendo morrer às mãos de um louco qualquer! Seria uma vergonha… Já passei por muitas coisas, mas nunca por algo assim. É imperativo que o senhor intervenha e faça
alguma coisa.
O tom brusco e o olhar intenso de Monsieur Lamar-Toms desencorajavam qualquer outro comentário.
Fëll abriu a boca para responder, mas não disse nada. Apenas acenou com a cabeça, a fim de exprimir sua concordância.
Nesse instante Monsieur Lamar-Toms fitou um ponto situado além das costas de Fëll. Antes que este tivesse tempo de fazer qualquer movimento, ouviu-se uma voz grave
e retumbante.
— Bom dia! Aproveitando a manhã ensolarada?
Um homem viera caminhando pela praia: era Armand Giranne, marido da sobrinha de Monsieur Lamar-Toms. Fëll virou-se ligeiramente e olhou para ele. Monsieur Giranne
era um tipo calmo, sempre bem-humorado, que costumava exibir um sorriso malicioso e parecia saber certas coisas que não queria revelar. Seu rosto era sadio e não
apresentava rugas.
— Vocês viram Amye? — perguntou ele, colocando a mão em concha sobre os olhos. — Tenho que falar com ela, e não estou conseguindo encontrá-la.
— Amye que nada! — esbravejou Monsieur Lamar-Toms. — Se veio aqui bisbilhotar, está perdendo o seu tempo. Vá, vá, dê o fora daqui!
Por uma fração de segundos, o outro pareceu totalmente perplexo. Mas logo recuperou o autocontrole e um sorriso atrevido surgiu em seu rosto:
— Bem, acho que vou ter que olhar mais adiante…
— Senhor misericordioso!
— Boa sorte — murmurou Fëll, tentando ser gentil.
— Pessoas que a gente acha que nunca mais voltará a ver aparecem quando menos se espera — resmungou Monsieur Lamar-Toms, quando Monsieur Giranne já estava suficientemente
longe. — Adquiri o hábito de liquidar logo as coisas que me desagradam! Que ele vá procurar em outro lugar!
Mas a atenção de Fëll já se voltara em outra direção. Para a mulher que se sentara numa toalha bege, alguns metros à sua direita. A mulher tinha cabelos pretos e
olhos azuis, emoldurados por pestanas compridas e negras.
Como era mesmo o nome dela? Maggie… Paggie… Não, era Paige… Paige Lavélye, a enfermeira de que haviam acabado de falar.
“Essa moça parece como uma abelha rainha escolhendo um zangão.”
— Mademoiselle Lavélye também depôs? — perguntou o detetive, dirigindo-se novamente para o velho.
— Claro que não! Paige estava histérica. Por isso, não permiti que fosse interrogada. Eu já tinha dado todas as informações necessárias ao sargento.
Vindo de um dos bangalôs, apareceu um homem alto e magro, com malares salientes. Era Repuert, o personal trainer de Apollion Lamar-Toms.
Caminhou ao encontro dos dois homens e fez-lhes um aceno, perguntando:
— Está precisando de alguma coisa, Monsieur?
Repuert era um homem esguio, com olhos estreitos e astutos. Parecia ter um servilismo hereditário, tal era sua atitude submissa e prestativa.
— Não preciso de nada.
Repuert abriu um sorrisinho forçado diante da manifestação de desagrado de seu patrão. Sua face ficou acesa e seus olhos brilharam.
— Está bem, Monsieur. Qualquer coisa é só chamar.
— Outro! — sibilou Monsieur Lamar-Toms, quando voltaram a ficar a sós.
— Deve ser um bom rapaz — comentou Fëll.
— Engraçado ouvi-lo dizer isso. O senhor o conhece, por acaso? Sabia que o pai dele ganhou uma estrela de prata na guerra? Esteve no front; matou muita gente. Repuert
vive se gabando disso. Il est un imbécile! Um imbecil viciado em ansiolíticos e antidepressivos. Foi até preso por receptação de pedras preciosas roubadas. Acha
que é um bom rapaz? Fique com ele…
“Chega!”, pensou Fëll. “Já ouvi mais do que o suficiente.”
— Vou deixar uma coisa bem clara, Monsieur. Ouvi o que me disse. Ouvi e prestei bastante atenção. Isso me permitiu tirar certas conclusões. Conclusões de natureza
puramente teórica e que não oferecem o menor interesse aqui. Peço-lhe só que responda a uma pergunta. O que o senhor quer que eu faça?
— Quero que trabalhe para mim. Quero que descubra quem está contra mim… ou seja lá o que for. Isso já representaria meio caminho andado.
— Infelizmente não vou poder ajudá-lo.
— O que disse? — perguntou o francês. — Fale mais devagar! Assim não posso entender uma só palavra do que está dizendo.
Fëll ergueu-se abruptamente e interrompeu seu interlocutor em meio à frase.
— Eu disse que lamento muito, Monsieur, mas vai ter que pedir a ajuda de outra pessoa.
— Mas estou lhe oferecendo uma oportunidade de ouro!
— Não vou me submeter às suas condições. Ademais, o caso é muito complexo e eu não faço milagres.
Fëll ouviu um grunhido, um gemido de raiva e frustração.
— Se não fizer isso, alguém outro o fará.
— Isso é com o senhor.
Monsieur Lamar-Toms lançou um olhar indagador para Fëll, mas este se limitou a dar de ombros. Fëll se virou apressadamente e saiu andando pela areia.
2.
Edmund Fëll estava sentado sob uma palmeira, abanando-se com o chapéu-coco. Olhava para as ondas brancas dançando sobre a superfície do oceano. Uma moça surgiu ao
seu lado, como que materializada no ar.
— Arre, esse calor está de matar!
Fëll levantou a cabeça e reconheceu quem era. Amye Monphord, a esposa de Monsieur Giranne. Ela era loura e miúda, o rosto redondo e jovial, com olhos verdes, claros
e francos. Tinha um corpo cheio e com muitas curvas. A voz baixa e suave, ligeiramente rouca. Sua beleza era clássica, quase aristocrata.
Ela olhou-o por um instante, uma expressão serena no rosto.
— Posso sentar-me aqui?
— Sicherlich, Mademoiselle.
— Muito obrigada.
Amye desabou numa cadeira próxima, soltando um riso amargo.
— Ele pediu que o senhor fizesse alguma coisa que o deixou constrangido, não foi? — perguntou à queima-roupa.
— Mademoiselle?
— Meu tio. Vi vocês conversando esta manhã. Achei incrível, sabe? Geralmente ele é muito desconfiado, e como consequência disso não acredita em nada do que lhe dizem
e não confia em ninguém. O que o senhor faz?
Fëll abanou a cabeça lentamente.
— Eu investigo, Mademoiselle.
— Investiga?
— Sim.
— Ah!
A moça ficou imóvel por um momento, franzindo a testa. Como se esperasse que ele fosse acrescentar mais alguma coisa. Mas Fëll não disse nada.
— Titio mostrou o documento para o senhor?
— O laudo médico? Mostrou sim.
— Não é impressionante? Acho que ele cismou que fomos nós que assassinamos titia. Certamente ela foi assassinada por algum motivo. Mas que motivo nós teríamos? Nenhum.
Nem eu, nem Armand, nem Repuert, nem Paige, nem ninguém tinha motivo algum. Titia era uma mulher tão viva, tão organizada. Gostava tanto de papel de parede texturizado!
Era maníaca por arrumação; tomava conta de tudo. Uma mulher única — com unhas e cabelos impecavelmente tratados, roupas de grife e tudo o mais que o dinheiro pode
comprar. Ficamos todos muito sentidos com sua morte. E agora… quando mal e mal superamos a perda dela… titio nos acusa do… crime. Que coisa ordinária, nojenta, vulgar!
Fëll sacudiu os ombros, desolado. Ele levantou-se com bastante dificuldade.
— Bem, acho que vou indo.
— Aonde o senhor vai?
— Eu vou dizer para a senhorita o mesmo que já disse para Monsieur Lamar-Toms. Não quero me envolver nessa história.
Amye Monphord não soube o que responder. Não conseguia mover um músculo, mas apenas olhar para o detetive.
— Parece que começamos mal hein? Aceito minha penitência, e minha culpa. Por favor, fique.
Fëll permaneceu indeciso um momento, olhando para todos os lados, sem saber o que fazer. Tornou a sentar-se.
— De onde a senhorita é?
— Eu sou de Berkeley, Califórnia. Mas vivi muitos anos perto de Woolington, no condado de Northumberland.
Fëll sacudiu a cabeça, e no mesmo instante arrependeu-se do movimento. Foi o bastante para a moça começar a desfiar as recordações temíveis de sua vida inteira.
Fëll engoliu em seco e olhou para o outro lado, embaraçado.
Para piorar, não demorou e Amye Monphord estava outra vez falando, em explosões curtas e excitadas, sobre a morte de Marjorie Lamar-Toms. A mente dela parecia estar
viajando num mundo próprio. Estaria ela representando… ou seria uma reação genuína? Era como se ela tivesse uma natureza alheia a qualquer tipo de cortesia e delicadeza.
Fëll fez um esforço decidido para afastar aquilo do pensamento, e ficou ao mesmo tempo aborrecido e perplexo por verificar que não conseguia.
— Todos os acontecimentos daquele dia estão selados na minha memória. Eu fui a primeira a chegar ao quarto. Parei no vão da porta, e olhei para a cama. Era uma cama
grande… com um dossel de tecido em cores fortes… uma armação com colunas. Em cima da coberta acolchoada, púrpura… com nuvens de tule… estava estendido o corpo dela
em todo o seu comprimento. Os braços jaziam torcidos, o pescoço dobrado. O rosto estava escuro e os olhos dilatados. Fiquei lá… contemplando aquela cena… Depois
me aproximei. Parei um instante, surpresa, me abaixei e toquei nela. Estava fria. Oh! Fria como um peixe. Aí agarrei seus braços, suas pernas e puxei-lhe os ombros,
querendo rolar o corpo. Apoiei-me sobre os joelhos e puxei com toda força. Rapidamente, pus os dedos em seu pulso. Nada. Daí eu coloquei a mão esquerda sobre a direita
no tórax de titia, e fiz pressão para baixo com força. Para cima… para baixo. Mais uma vez… para cima… para baixo. Dois, três, quatro… — e por aí ia.
Fëll mantinha o olhar no infinito. Estava em vias de ficar irremediavelmente louco.
— Aí está você! — soou uma voz masculina a poucos passos dali. — Estava à sua procura, Amye.
Os lábios da mulher se enrugaram quando viu que era o marido. Ela inquietou-se, como que dando-se conta de que acabara de praticar um ato proibido.
— Oi, Armand.
— Posso saber sobre o que estão falando? — perguntou ele depois de uma pausa, com uma rispidez inconfundível na voz.
— Sobre nada, querido. Nada.
Ao que parecia, ela esforçava-se para formular uma resposta lacônica.
Fëll pela primeira vez reparou bem em Armand Giranne. E o que viu não o agradou muito. Fëll viu um rosto moreno bem à sua frente, no qual um par de olhos verdes
o fitava com uma expressão desconfiada.
— O senhor… o senhor é a pessoa que ela veio ver?
Fëll continuava a fitá-lo, mas sem entender nada.
— Está falando comigo, Monsieur?
— Não sei. Eu estou? O que você contou a ele, Amye?
— Já disse que nada — respondeu ela na defensiva. — Deixe disso, querido.
— Pelo jeito, o velho asqueroso já introduziu algumas caraminholas em sua cabeça, Mister. Pois eu vou dar um conselho ao senhor, de graça. Esqueça essas maluquices.
Periga de a pessoa ficar louca ou ter um treco.
As sobrancelhas de Fëll flutuaram ligeiramente, mas antes que pudesse elaborar um comentário, o casal se afastou tempestuosamente.
O rosto de Fëll exprimia uma forte tensão. Para aliviá-la, pôs-se a assobiar uma melodia, como se ainda estivesse nos tempos mais felizes da juventude.
Na cadência de uma lesma, um rapaz gordo veio se arrastando direto para onde estava o detetive. Fëll ajeitou o monóculo para vê-lo melhor. Este então era René Cherymont!
O neto… Como folhas capturadas pelo vento, lembranças fragmentadas vieram à sua mente.
René Cherymont tinha estudado medicina na Universidade de Dundee, na Escócia. Mas não se formara, ninguém sabia ao certo por quê. Morava em Lichfield Court, em Battersea.
Seus cabelos mais se assemelhavam ao mogno. Eram escuros. Ao caminhar, contorcia o corpo numa hula um tanto grotesca.
— Bonjour.
— Guten Tag! — disse Fëll. — Vai nadar um pouco?
— Vou sim — respondeu René, embora não parecesse muito empolgado com a perspectiva. Firmou a toalha em torno do corpo roliço: — Paige passou por aqui? Tínhamos combinado
fazer um tour pelos museus da cidade.
— Se passou, não vi.
A voz de Fëll era gentil e polida.
— Se o senhor a vir, pode me chamar, s’il vous plaît?
Vergando sob o próprio peso, e no seu andar todo particular, René foi para a água. Em pouco tempo afastava-se da costa, nadando com insuspeita graciosidade e leveza.
Embalado pelo marulhar das ondas e a temperatura amena, Fëll acabou tirando um breve cochilo. Acordou com um susto ao ver alguém sentado ao seu lado. Alguém que
foi logo perguntando:
— E aí? Já descobrimos alguma coisa?
Fëll pensou que fosse uma alucinação. Mas no mesmo instante seu rosto assumiu uma expressão rígida.
— Ora, meu caro Monsieur Lamar-Toms… — disse em tom enérgico, mas viu-se interrompido.
— Quer dizer que a resposta é não? Não quer aproveitar a maior chance que já teve? Ainda não compreendeu que está prestes a perder uma rara oportunidade?
Fëll teve de pensar com clareza, acalmar-se.
— Já o informei de que provavelmente não poderei fazer nada para ajudá-lo. Como posso saber que o que diz é verdade?
O velho fitou-o com uma expressão de perplexidade.
— É claro que eu lhe disse a verdade! Estou dizendo que vou ser morto. Pode haver uma coisa mais clara do que essa?
— Morto por quê?
— Ora, por quê. Pela fortuna que tenho! E… — Monsieur Lamar-Toms hesitou, mas depois foi obrigado a acrescentar: — O mundo está cheio de lunáticos!
— Falaremos disso depois. O que mais?
— Como assim — o que mais?
— Estou procurando alguma coisa que pareça estranha e inexplicável. O senhor poderia citar algum motivo? Pode-se recordar de alguém que tenha motivos para odiá-lo?
— Mas é o que estou lhe dizendo! Qualquer um pode ter motivos. Mas quem? Sou uma pessoa muito caseira. Não pertenço a nenhum clube ou organização social. Quero que
o senhor anule toda e qualquer ameaça. Vamos jogar os dados numa grande e última cartada! O assassino está agora pisando em gelo fino. O senhor terá que detê-lo!
Fëll manteve-se calado. Não devia haver qualquer ação precipitada.
— Sempre achei que homens como o senhor vivessem cercados de guarda-costas.
O velho deu-lhe um olhar feroz de desaprovação.
— Está confundindo uma vida de privilégios com uma vida perfeita. Os crimes violentos assolam o mundo. A desigualdade social e econômica é um dos fatores. Mas não
o único. Há também o abuso de álcool e de drogas, e vários outros. Em horas assim, um guarda-costas serve para quê? Para pouca coisa. Tenho família. É gente à beça.
É deles que estou falando. Marjorie morreu envenenada. Provavelmente também tentarão me envenenar. A menos que se faça alguma coisa… e logo. Pensei que o senhor
tivesse mais maturidade e entendesse minhas preocupações!
Fëll sentiu uma dúvida inquietante. Deveria sondar mais um pouco?
— Vamos ser honestos, Monsieur. O senhor deve desconfiar de alguém. De sua sobrinha? do neto? da enfermeira?
Sem dúvida, Monsieur Lamar-Toms desconfiava da enfermeira. Ele nada sabia a respeito de Paige Lavélye, exceto o que ela própria lhe contara. Seus antecedentes podiam
ser fictícios, ela poderia ter inventado tudo. O personal trainer? Repuert sempre fora leal e trabalhador. Talvez fosse um pouco sonso, mas — um assassino? Não,
definitivamente Repuert não era um assassino. O neto? René Cherymont era bioquímico. Recebia um salário mensal e, além disso, contava com o apoio financeiro voluntário
da mãe islandesa.
— E sua sobrinha? Tem jeito de ser gente boa.
— Gente boa! O senhor hein? — exclamou, depreciativo, Monsieur Lamar-Toms. — A extensão de certas coisas não pode ser medida com uma régua. Amye — gente boa?! Amye
é capaz de fazer seja o que for. Teve até a petulância de casar com esse malandro insuportável! Não há quem aguente esse estúpido.
— Monsieur Giranne — estúpido?
O velho sentiu-se ainda mais indignado.
— Da pior qualidade! Basta ver o jeito dele. Esse homem é um misto de fanatismo, esperança e contradição. Eu, por mim, já o teria chutado há tempo.
— Então, a seu ver, as suspeitas oscilam entre Mademoiselle Lavélye e Monsieur Giranne?
— Ora! Tolice! — exclamou Monsieur Lamar-Toms em tom exaltado. — Eu não disse nada disso. O senhor é surdo? Eu disse que qualquer um deles pode estar querendo me
assassinar!
— Monsieur Lamar-Toms! Hora de seu mergulho.
Aproximando-se dos dois cavalheiros, vinha Repuert, alto, forte, com uma leve promessa de gordura no corpo atlético.
— Por que não veio antes? — perguntou o velho em tom ditatorial.
Repuert já conhecia o gênio do patrão. Dissesse o que dissesse, permanecia imperturbável.
— Não tive tempo — disse tranquilamente.
O personal, com supremo cuidado e não pouca habilidade, ajudou Monsieur Lamar-Toms a ficar em pé. Os dois foram se aproximando da água, perto do lugar onde nadava
René.
Fëll examinou aquela cena tipicamente familiar. Com as ideias borbulhando como bolhas de champanhe, pensou nas muitas coisas que tinha descoberto até ali.
Pensou na madame francesa que morrera; pensou também nos indícios fornecidos pelas testemunhas e pelas evidências físicas. Fez isso com os punhos crispados. Fëll
sabia que, se quisesse ir fundo naquilo, teria que dosar e dar o justo valor a cada coisa.
O grupo aumentou com a chegada de Mademoiselle Lavélye, muito esbelta em seu uniforme branco e engomado. A bela enfermeira, aparentemente, não apreciava a exposição
indevida ao sol. Via-se que fazia um esforço para se enturmar com os demais.
Com a presença da moça, Repuert parecia ter ficado sem jeito.
Com um fio de suor acima das sobrancelhas, o personal afastou-se devagarinho. Chutando areia, e olhando vez e outra para trás, caminhou para longe da praia.
— Que linda tarde, não é? — comentou Repuert, detendo-se junto ao austríaco.
— Muito.
— O senhor, pelo jeito, é Mr. Fëll — disse o homem a título de cumprimento.
— Sou.
— Prazer em conhecê-lo. Já ouvi falar no senhor. Aquele crime em Sussex…
— Essex — corrigiu Fëll, sorrindo.
— De qualquer forma, foi uma embrulhada e tanto, que deve ter sido difícil desenrolar.
— Hmm. So-lala.
— Achei aquela explicação final um lance genial. Não só isso…
E, muito empolgado, Repuert começou a falar sobre o caso.
A contribuição de Fëll para a conversa consistiu quase que exclusivamente em gestos afirmativos e em expressões como “Oh!” e outros ” So-lala! ” ditas de forma respeitosa.
Fëll achou mais adequado mudar de assunto. À primeira brecha, disse:
— Monsieur Lamar-Toms parece um pouco debilitado.
— Nada que alguns suplementos vitamínicos não resolveriam. O fato é que Monsieur é um pouco inconstante emocionalmente. Se ele seguisse a dieta e tomasse suas injeções,
viveria uma vida longa. Do jeito que vai, não sei.
— Então, além de intransigente, é cabeça dura.
— Quem tem dinheiro, faz o que quer.
— Ter dinheiro não dá a ele o direito de ser inescrupuloso. Notei que ele às vezes é rude com você.
— No começo, esse tipo de coisa fere o seu orgulho. Mas isso passa com o tempo.
Habilmente, Fëll mencionou o nome de Mademoiselle Lavélye que, nessa hora, estava animadamente chapinhando água junto com René e o patrão.
— É muito competente — concordou Repuert.
— Imagino que faça muito tempo que trabalha para Monsieur?
— Oh, sim! Uns três a quatro anos.
— Solteira?
As pálpebras de Repuert tremeram.
— A-hã…
— É uma mulher muito bonita — acrescentou Fëll.
— Sim, sim… — disse Repuert, numa voz cada vez mais débil.
— Bonita mesmo.
— É…
— Uma dessas moças que namoram cochichando no balcão. Não concorda comigo?
Por algum tempo reinou um silêncio constrangedor. Fëll tentou de tudo para enxergar através de sua blindagem de autodomínio.
— Monsieur parece um tanto preocupado — aventurou Fëll, olhando-o de esguelha.
— Com a vida não se brinca! — declarou o personal.
— Acha que seus temores têm fundamento?
— Para mim, isso é apenas o resultado de uma série de circunstâncias infelizes. O próprio agravamento da doença, a morte da esposa…
— Que tristeza o que aconteceu à mulher, não foi?
Repuert fez um gesto afirmativo e disse:
— Terrível!
— Intoxicação?
— A-acho que sim — gaguejou Repuert. — A polícia investigou o caso com muito cuidado, mas não conseguiu encontrar uma causa de morte satisfatória. Por isso não houve
inquérito. Muito menos uma audiência para interdição. Se tivéssemos ido atrás… Se tivéssemos sido mais insistentes!
— Madame Lamar-Toms devia ser muito querida — Fëll fitou-o com uma expressão inocente.
— Sim, todos gostavam dela. Ela sempre passeava no jardim antes de se deitar. Era dessas pessoas que nunca param, que vivem obcecadas com o trabalho. Tinha a mania
de contar histórias. Dizia…
— Prossiga, Repuert — pediu Fëll com a voz tranquila.
— Dizia que sabia de alguém que já tinha matado uma pessoa.
— Onde?
— Em Engis, na Bélgica (pelo menos, é o que acho!)…
— Que estranho! — exclamou Fëll. — Está seguro disso?
— É… é um pouco difícil para mim falar a esse respeito. Tudo ainda é muito doloroso. Não sei o que eu daria para saber o que aconteceu!
Um sorriso amargurado surgiu no rosto de Repuert.
Não quis dizer mais do que isso. E Fëll tinha tanto assunto para reflexões, que podia dispensar outras perguntas.
3.
Edmund Fëll estava extasiado com as Maldivas. O sol radiante que refletia no azul / verde do mar, dando-lhe uma sensação de bem-estar. A água cristalina, quente
e a perder de vista! Silêncio para dormir, ler, torrar ao sol… Dolce fare niente!
Tudo aquilo fora instilando nele uma preguiça, uma modorra, deixando seu espírito aos poucos todo mole. E, desde que essa modorra se insinuara em suas veias, a sua
única vontade era se deitar numa espreguiçadeira e curtir o barulho das ondas… indo e vindo… indo e vindo…
Mas isso se tornara quase impossível depois que travara relações com o planeta chamado Monsieur Lamar-Toms e os desordenados satélites que orbitavam ao seu redor.
A princípio sentira-se incomodado com aquela frase monocórdica: “Minha mulher está morta e eu sou o próximo da lista.” Lentamente, porém, seu conceito sobre isso
havia mudado. Agora fazia até questão de tentar desvendar o que podia haver por trás daquilo.
— Existe uma serpente rastejando no paraíso — falou com seus botões. — Tenho que trabalhar em conformidade com um método bem definido se quiser descobrir as suas
verdadeiras intenções.
Estava metido num quebra-cabeças e, como tal, era preciso uma chave para decifrá-lo.
Uma tarde, encontrou Mademoiselle Lavélye fazendo um desenho à frente do bangalô.
Muita coisa já fora dita sobre o caráter da enfermeira. Alguns diziam que era orgulhosa, tagarela, impertinente e egoísta. Mas Fëll, logicamente, não se fiava no
que se dizia por aí.
Cumprimentou-a com sua típica maneira formal.
— Guten Tag, Mademoiselle.
Paige Lavélye olhou para Fëll com uma expressão que representava uma mistura de irritação mal disfarçada e de uma débil má vontade.
— Boa tarde, Mr. Fëll.
— Um lindo dia, não é mesmo?
— Antes fosse!
A resposta foi dada num tom seco, abrupto.
Muito embaraçado, Fëll fez uma ligeira mesura. Ele fechou e voltou a abrir os olhos por duas ou três vezes.
Dobrando os joelhos, Fëll acomodou-se na cadeira de palha ao lado da moça. Parecia ter tomado uma decisão. Revelando uma tranquilidade extraordinária, perguntou:
— Algo vai mal, Mademoiselle?
Ela fez um gesto de desprezo.
— Tudo vai mal. O senhor nem queira saber.
Fëll segurou-a firmemente pelo ombro e lançou-lhe um olhar penetrante.
— De forma nenhuma, Mademoiselle. Conte-me o que é. Sinto-me cada vez mais inclinado a concordar com sua suspeita de que nos encontramos diante de um crime muito
bem engendrado.
Paige olhou para Fëll. Parecia perplexa. Sua boca moveu-se. Esforçou-se para formular palavras, mas sem conseguir articulá-las.
— Santo Deus, como é que o senhor…?
— Como é que eu sei? Sou um detetive, Mademoiselle. Minha vocação é ver além do óbvio. Ver além do que se enxerga, entende?
— Sem dúvida. Apenas não vejo o que eu tenho a ver com isso.
— Naturalmente. Peço alguns segundos de paciência. Eu sei o que aconteceu à sua patroa. Sei também que há indícios de que sua morte não foi natural. Indícios que
atestam que ela foi envenenada. E sei ainda que agora essa mesma ameaça parece pairar sobre Monsieur Lamar-Toms. É disso que se trata. A senhorita está ciente dos
fatos, não está?
— Sim, senhor — respondeu Mademoiselle Lavélye em tom obediente.
A raiva dissipou-se de seu rosto enquanto dava um profundo suspiro. Depois de acalmar-se tão depressa como se enfurecera, prosseguiu:
— Mataram a coitadinha!
— Pode-me falar sobre isso, Mademoiselle?
— Para que o senhor entenda, tenho que dar uma explicação um tanto prolongada!
— Não temos pressa — sorriu Fëll.
Por um momento a moça contemplou os peixes, arraias e tubarões passando debaixo do bangalô.
— Na realidade, eu não sei muita coisa…
— Não se preocupe. Compreendo-a muito bem… — apressou-se a responder Fëll para tranquilizá-la.
— Madame Marjorie era uma mulher doente. Muito doente. O pior é que detestava os médicos. Não queria nem ouvir falar deles. Andava tão transtornada, pobrezinha!
Nos trinta minutos que se seguiram, Mademoiselle Lavélye apresentou um relato desconexo dos fatos. A todo instante, Fëll teve de interrompê-la com perguntas, a fim
de esclarecer determinados pontos.
— Fale-me da morte dela.
— A saúde de Madame vinha piorando há dias. Tudo começou com um embaçamento nos olhos… A médica especialista em retina disse que a toxoplasmose estava de novo em
atividade. Madame teve que voltar a tomar corticoide, e um outro remédio — menos colírio. A próxima consulta seria no mês seguinte. Tomava também um comprimido (dia
sim dia não) por causa da tireoide. Já estava nisso há cinco anos. E ainda havia a fibromialgia. Tinha dias em que se sentia bem, em outros não. Diziam que precisava
ter fé. Diziam que ia se restabelecer. Ela já tinha sofrido bastante… já tinha chorado bastante. Madame olhava para mim e dizia: “Não aguento mais, Paige! Não aguento…
Como eu queria que essa dor passasse!” A voz dela… tão fraca… Na noite anterior, quis que eu desembaraçasse os cabelos dela… como se quisesse se despedir, como se
soubesse o que iria acontecer. De manhã, Amye a encontrou… morta.
— Madame Monphord me disse que tentou reanimá-la…
— Eu durmo no térreo, por isso não ouvi nada. Fui ver Madame às sete e meia. Havia gente no quarto… Tomei coragem e me aproximei cuidadosamente. Quando a vi lá…
na cama… Oh! Foi horrível… Senti as pernas bambas, tropecei, virei-me e saí correndo.
— Monsieur e Madame Lamar-Toms não dormiam juntos?
— Não. Desde a piora do estado dela, ocupavam quartos separados.
— Por que Madame Monphord foi lá tão cedo?
— Ambas gostavam muito uma da outra. Amye parece insegura e inexperiente, mas tem bom coração.
— E Monsieur Giranne?
Mademoiselle Lavélye cerrou os punhos.
— Ninguém se dá com ele. É um homem mau. Ele só pensa na pessoa monótona, gananciosa e pequena que é. Madame Marjorie não gostava dele.
— Mademoiselle, vou fazer uma pergunta mais capciosa, digamos assim. Do que acha que Madame Lamar-Toms morreu?
— Ela foi morta. Morta! Foi covardemente assassinada.
— Por quem?
— Oh! Por alguém que não a prezava, alguém que não tem amor à vida… nem à sua, nem a dos outros.
— Mademoiselle — aqui Fëll baixou o tom da voz: — eu preciso de um nome. Entende?
— Um nome? Mas são tantos…
— Acha que poderia ter sido mais de um?
A moça balançou lentamente a cabeça.
— Claro. Ninguém se compadecia dela como eu me compadeci. O único que esteve sempre com ela, e que fez de tudo para minorar seu sofrimento, foi o marido. Ele — ele
não poupou esforço, nem dinheiro. Ficou ao lado dela até o último dia, pobre homem! Os outros? Os outros pouco se importaram. Muitos nem iam visitá-la quando ela
parava no hospital.
— Mas Madame Monphord sim!
— Sim. Amye quase nunca saía de perto da tia. Tão insegura, mas com coração tão bom!
— É a segunda vez que a senhorita diz isso. E quanto ao neto… Ele ia vê-la?
— Ia sempre que podia. René é muito estudioso, vive às voltas com seus cursos de química… ou física — nunca sei qual dos dois…
— A seu ver, como é que o crime aconteceu?
— Monsieur Lamar-Toms não lhe contou?
— Contou alguma coisa. Mas eu gosto de ouvir mais pontos de vista.
Com olhos muito arregalados, Mademoiselle Lavélye disse:
— Láudano. Deram láudano para ela. Foi tiro e queda. Morreu dormindo.
— Deram?
— O veneno foi misturado aos outros medicamentos.
— Como sabe?
— Eu estava lá. Ajudei-a a se pentear, esqueceu? Foi depois disso que ela tomou seu coquetel de comprimidos.
— A senhorita saiu logo?
— Não logo. Permaneci lendo para ajudá-la a pegar no sono.
— Em sua opinião, o láudano estava numa das cápsulas…
— Sim.
— Por que acha que ela não notou?
— Madame tinha sensibilidade à luz. Mantinha o quarto quase às escuras. Mal via o que quer que fosse. Eu sei que o senhor tem razões para duvidar de mim. Em seu
lugar eu faria o mesmo. Mas é verdade o que estou lhe contando. É a mais pura verdade.
— É falta de sabedoria julgar as pessoas… é uma coisa que só compete a Deus.
De repente, gaguejando um pouco, a moça disse:
— Ah, essa não! Tenho que sair, Mr. Fëll. As minhas obrigações…
E, apressada, começou a recolher seu giz de cera. Fëll fez que sim. Não parecia escandalizado, só um pouco surpreso.
Mademoiselle Lavélye entrou no bangalô, fechando a porta atrás de si.
Fëll ficou sentado lá mesmo. Meditava. A expressão de seu rosto era grave, preocupada.
4.
Mais tarde, Edmund Fëll foi para o patamar com toldo do Emperor Maldive Hotel. Já tinha tomado banho e trocado de roupa. Nisso passou por ali René Cherymont. O gordo
rapaz agitou uma mão, em cordial saudação.
“Opa! Olhe só quem vem chegando!”, pensou o detetive.
René parecia esgotado. Caminhou a passos rápidos em direção à espreguiçadeira vaga e deixou-se cair com um suspiro.
— Ora viva! O senhor ainda está aí…
O calor quase extremo fazia-o transpirar.
— Achou que eu já tivesse partido? — perguntou Fëll.
— Não, não… Fico satisfeito em revê-lo mais uma vez.
— Dando um passeio ao pôr do sol?
— Não há muita coisa a fazer por aqui, há? Felizmente tenho algum rendimento de família, senão não sei como poderia viver.
Fëll acenou pachorrentamente com a cabeça.
— Rendimento provindo de sua mãe…
— Sim — disse René.
O nariz estava vermelho e ele fungava constantemente. Espirrou.
— Vi o senhor ontem e hoje com meu avô. Seja franco comigo. Que raio está acontecendo?
— Seu avô diz estar na mira de um assassino.
— Não vai dizer que acreditou nessa fábula!
— Não estou dizendo que acreditei piamente. Mas, para mim, a história tem um fundo de verdade.
— Na mira de um assassino — repetiu o rapaz em tom de incredulidade. — Vovô é um homem cansado e prostrado pelas próprias desventuras. Ele já foi um homem renomado,
muito renomado. Pena que hoje seja uma sombra de si mesmo. Vive aí contemplando as ruínas de sua antiga grandeza. Vovô recebeu recomendações enfáticas de seu médico
para tentar estabelecer uma rotina menos rigorosa, beber menos, manter a forma. Qual foi a primeira coisa que fez? Inventou esta viagem lunática. Vir para cá — nessa
época do ano! Só mesmo meu avô! Como se não bastasse, agora ele diz que está na mira de um assassino? É de matar! A meu ver, ele anda meio intoxicado pelo excesso
de leituras policiais e seriados da televisão. Ei, até imagino o que houve! Em vez de tirar as castanhas do fogo, ele foi falar com o senhor.
— Sim…
— A coisa não o preocupa?
— Claro que me preocupa, mas não posso largar o caso só por causa disso.
— E o senhor se deixou seduzir? Há nisso uma inegável lógica mercantilista, sabia?
Fëll franziu a testa; parecia não gostar da indireta.
— Até agora não estipulamos preço…
René deu de ombros, num gesto de indiferença.
— Ainda não. Ah! Mas logo vão estipular. A autopreservação é o instinto básico do ser humano. Ninguém trabalha de graça, por mais bem-intencionado que seja.
— Como era o relacionamento com sua avó — Madame Marjorie?
— Salvo algumas coisas, vovó e eu sempre nos damos bem. Mesmo eu não sendo um membro imediato da família. De qualquer forma, quando criança, ela me cobria de afeto
e carinho. Sinto não ter estado lá quando ela morreu.
— Aonde tinha ido?
— Tinha ido a uma convenção em Gottlieben, no cantão suíço de Thurgau.
— Uma convenção do quê?
— De Química.
— Ah…
— Tive que largar tudo e voltar correndo para o funeral.
— No laudo pericial consta a palavra intoxicação, além de outros termos parecidos. Como acha que ocorreu o envenenamento?
— Vovó era como um animalzinho ferido. Não saía, fazia questão de trancar portas e janelas, mantinha a maioria das lâmpadas apagadas. A sua vida miserável de tédio
e de tristeza acha-se registrada em cada página de seu diário. Para mim, foi acidente.
— Ninguém toma láudano por acidente!
— O senhor pode dizer o que quiser. Eu não vou atrás dessas coisas! Quem é que iria envenená-la? Em troca do quê? Vovó não deixou um tostão para ninguém, era amada
por todos…
— Sim, foi o que me disseram.
— Pois aí está! Quem é que seria tão idiota a ponto de matar uma pobre velhinha enferma? O senhor é versado em criminologia, não é? Por que não escreve um soberbo
trabalho sobre o tema? Um homem como o senhor, um sólido exemplo de vigilância, prevenção e segurança, deveria se dedicar a essas coisas.
— Não sou escritor.
— Pois deveria ser. Espere um pouco… O senhor não está achando que um nós tem alguma coisa a ver com isso, acha?
— Não tenho dúvida disso. E meu instinto raramente se engana.
— Teimoso e determinado, hein?
— Determinação é importante hoje em dia.
— Dinheiro também.
— Seja como for, não vamos demorar a saber — grunhiu Fëll.
O tom de sua voz revelava um evidente aborrecimento.
René olhou para ele. O escárnio luzia em seu olhar. Espirrou novamente.
— Que droga de alergia! — René tirou um lenço do bolso e assoou o nariz. — Ai! Que vontade de morrer… Bem, vamos deixar as coisas assim. Fica o dito pelo não dito.
O que o senhor vai fazer?
— Antes de mais nada, vou descobrir o que está acontecendo. Talvez não seja nada. Por outro lado, se meus temores tiverem fundamento…
— Desejo-lhe boa sorte. Agora, com licença… Vou dar uma caída na água.
René acenou e, descendo os degraus até a areia, entrou no mar. Fëll ficou sozinho alguns minutos, avaliando tudo o que acabara de ouvir. Depois, levantando-se, tirou
as sandálias e começou a caminhar ao longo da praia, na direção oposta.
Mal tinha dado cinquenta passos, viu Monsieur Lamar-Toms diante do próprio bangalô. Fëll dirigiu-se para onde ele estava sentado, e tomando uma cadeira se acomodou
a seu lado.
— Queria lhe perguntar algo, Monsieur Lamar-Toms.
— Pergunte!
— Sim — replicou Fëll tranquilamente. — Não quero desferir um golpe no vazio. As suas informações foram valiosas, mas também muito incompletas.
— Suas palavras são obscuras, Mr. Fëll.
— Os fatos é que são obscuros.
— O que deseja? — perguntou o velho, em tom áspero. — O senhor já me interrogou e eu já lhe respondi. Não tenho mais nada a dizer.
Demonstra a obstinação de um búfalo, pensou Fëll.
Daí aconteceu uma coisa que imprimiu um novo rumo aos acontecimentos. Um sorriso matreiro surgiu no rosto de Monsieur Lamar-Toms, e ele disse:
— De qualquer forma, estou com a consciência tranquila.
— O que quer dizer?
— Quero dizer que já deixei meus negócios em ordem. Caso aconteça alguma coisa comigo, todo o espólio irá para René, que nestes anos tem sido um filho para mim.
— O senhor já lhe contou isso?
— Não, nunca. Ele saberá na hora certa.
— Contou para Monsieur Giranne?
— Por quem o senhor me toma? Armand é um espertalhão de primeira! Jamais contaria algo a ele.
Monsieur Lamar-Toms prosseguiu em suas explicações, sem que Fëll precisasse formular outra pergunta. Este balançou a cabeça de forma quase imperceptível. Seus olhos
pareciam vagar pelo infinito.
Caso aconteça alguma coisa comigo, todo o espólio irá para René.
Foi arrancado de suas divagações pela voz de Monsieur Lamar-Toms, que dizia:
— Não creio que tenha imaginado essa situação quando aceitou o trabalho. Não o repreendo, caso queira desistir…
Fëll entesou o corpo.
— Desistir, Monsieur? Nein, nein… Acompanhei o começo da aventura e também quero assistir ao fim. Coragem! Às vezes as coisas não são tão feias quanto se pintam.
A isso, Monsieur Lamar-Toms manifestou um explícito interesse pelo que Fëll estava dizendo.
— Do que está falando?
— O senhor diz ter um adversário misterioso. Alguém disposto a matá-lo. Quer que eu lhe dê meu conselho? É isso o que o senhor quer?
— Ora… ora…
— Saia já desta ilha! Não perca um instante sequer.
— Eu — sair desta ilha? Não se iluda! Isso não vai acontecer. O que leva o senhor a ter ideias tão ingênuas?
— Vá, Monsieur. Vá… Antes que não haja volta.
— Mas por quê? Por quê?
— Acredito que minhas buscas logo serão coroadas de êxito — disse Fëll. — De qualquer forma, a julgar pelo modo como estão as coisas, temo pelo senhor, Monsieur.
Temo imensamente.
— Essa é uma simples suspeita ou há alguma prova que a sustente?
— São simples suspeitas… por enquanto.
O magnata francês mordeu a língua. Não havia como enquadrá-lo em nenhuma categoria. Era simplesmente um certo quê que o fazia ser o que era.
— Não… Não é possível — disse depois de algum tempo. — Já chega, Mr. Fëll! Não convém dizer mais nada. Sou de opinião que sempre se deve concluir o que foi começado.
Qualquer que seja o perigo, prefiro enfrentá-lo cara a cara. Não vou deixar que uma vida de realizações se perca como água escorrendo entre os dedos.
Fëll omitiu uma frase. Ansiava por proferi-la, mas dominou-se a tempo.
Monsieur Lamar-Toms balançou a cabeça.
— Responda-me uma coisa… O que pretende fazer agora?
— O que já estou fazendo.
— Vai continuar sondando?
— Pode estar certo disso, e vai ser para já. Agora sei o que devo fazer.
— Avise-me assim que houver qualquer novidade.
Fëll fez que sim.
Ao que tudo indicava, a palestra havia chegado ao fim.
5.
Já tinha anoitecido, e a superfície do mar parecia um espelho sob os raios prateados da Lua. Edmund Fëll acabara de se instalar num banco quando, atrás de si, ouviu
duas pessoas cochichando debaixo das palmeiras.
— Quando penso que estou conseguindo chegar mais perto, você se fecha outra vez. Você me afasta como se o que eu sinto fosse algo repulsivo. Por quê? Não me parece
que você seja feliz, Paige. Muito pelo contrário…
— Rep! Rep! Como você quer que eu seja feliz? Já estou com vinte e sete anos e não tenho nem profissão!
— Você é enfermeira, querida!
— Estou falando de uma profissão que me faça sentir realizada.
— E daí? Muitas pessoas ficam indecisas sobre a profissão a seguir. Você parece que gosta de complicar as coisas.
— Eu já disse, Rep. Tenho andado muito ocupada. Quero ter estabilidade. Bem-estar.
— Temos todo o tempo do mundo… Se abra comigo. Talvez possa ajudá-la a ser feliz.
— Psiii…
Paige Lavélye levantou-se ao ouvir os passos que se aproximavam. Fez como se não tivesse acontecido nada:
— É uma noite maravilhosa, não acha, Repuert?
— Sim… é…
Surgindo como um fantasma, o Capt. Giranne parou junto aos dois. Em seus olhos surgiu um brilho animado.
— Ah, são vocês! O romantismo está no ar, hein?
Mas Repuert não estava para brincadeiras. Ele franziu a testa e retirou-se sem dizer nada.
O Capt. Giranne deu uma risada.
— Tem um amigo sensível, Mademoiselle Lavélye.
— Se eu fosse o senhor, não diria essas bobagens!
Depois desta enérgica recriminação, a moça afastou-se, tomando o rumo do restaurante.
O Capt. Giranne seguiu-a com os olhos:
— Ué, que foi que eu disse?
— Às vezes não é o que se diz que machuca, mas a forma como se diz — Fëll deixou as sombras, sorrindo.
O francês olhou para Fëll, espantado.
— Poxa! Que susto… Não tinha visto o senhor aí… Acho que estou atrasado para o jantar.
Murmurando essa desculpa, virou-se e também foi para o restaurante, onde as luzes do terraço já estavam acesas. Fëll ia dizer alguma coisa mas se deteve. Sacudiu
a cabeça e, sem hesitações, foi atrás dele.
Monsieur Lamar-Toms, ladeado pelo neto, por Repuert e por Mademoiselle Lavélye, ocupava uma mesa no setor dos membros da Sociedade. Logo ao lado, em outra mesa,
estava Madame Monphord e, acabado de chegar, o Capt. Giranne.
Fëll não teve tempo de se esquivar, pois, assim que o viu, Paige Monphord soltou um grito agudo:
— Aqui, Mr. Fëll! Sente-se conosco…
Ela parecia extasiada. Fëll soltou um suspiro angustiado e dirigiu-se para lá.
— Estou tão honrada por sua presença aqui! O que o senhor faz deve ser tão empolgante!
Madame Monphord falava atropeladamente e com alguma incoerência. Parecia verdadeiramente impressionada por ter um detetive sentado à sua mesa.
Jovem, de olhos negros, bela, selvagem e imprevisível. Todos os qualificativos do mundo se adequavam àquela mulher.
Fëll ocupou uma cadeira, em atitude sonolenta, como se não tivesse nada com aquilo.
— Tem seus altos e baixos, Madame — respondeu em tom sério.
— Ir atrás das pistas, quaisquer que elas sejam. Uma mínima mancha de tinta, um fio de cabelo, uma partícula de poeira na bainha de uma calça ou a marca de um sapato
no linóleo… Oh! Deve ser o máximo!
Fëll preferiu não dizer nada, nem fazer qualquer gesto.
A alguns metros da mesa, ficava o balcão, onde uma pequena orquestra tocava o imutável repertório de música maldiva. No salão, o chefe dos garçons, com os menus
dobrados debaixo do fraque, conduzia um casal tunisiano até uma mesa aconchegante.
Fëll entesou o corpo.
O Capt. Giranne começou a resmungar sons ininteligíveis.
— Ah! Não diga isso, Amye… Um detetive deve ter uma vida muito maçante…
A mulher balançou a cabeça:
— Armand! Não seja assim… Pois se você mesmo quis falar com Mr. Fëll já no primeiro dia em que o viu na praia!
— Queria falar comigo? Sobre o quê?
O Capt. Giranne ergueu os olhos injetados:
— Falar sobre um assunto… — e aqui os seus olhos se fixaram em Repuert, que estava de costas na mesa vizinha — um assunto que não é do agrado de certas pessoas —
o olhar vagou até Mademoiselle Lavélye.
Foi essa, pelo menos, a impressão que Fëll teve.
— Querido, fale baixo…
— Por quê? Eu disse alguma mentira? Hein, Mr. Fëll… Eu disse alguma mentira?
— Não, Monsieur… Presumo que não.
— Está vendo, Amye? Até Mr. Fëll concorda comigo… Já naveguei os rios e canais da França, Holanda e Países Nórdicos. Dei a volta ao mundo duas vezes. Dispendi um
dinheirão, mas valeu a pena. Hoje eu entendo a lama humana, os desejos torpes, os passos em falso. Aprendi que até gente comum pode, em condições nem um pouco especiais,
cometer um assassinato. E houve um assassinato… Um assassinato!
— Um assassinato, Monsieur? Que assassinato?
A resposta veio seca mas pensada:
— O senhor não é o Superdetetive? Talvez o senhor mesmo devesse descobrir!
Apesar da música, a afirmação foi feita num volume tal que pôde ser ouvida por todos. O Capt. Giranne olhou em torno, como se quisesse verificar se alguém reagia
ao que acabava de dizer.
A boca da esposa ficou aberta, com uma expressão apalermada. Apertando a mão dele, disse com uma amabilidade cativante:
— Querido, já chega…
Felizmente os pratos vieram logo em seguida. René Cherymont se serviu e foi o único que comeu com gosto, sem revelar a menor emoção, procurando, pelo contrário,
irradiar uma expressão de segurança e autoconfiança. Repuert, por sua vez, estava com a testa enrugada; parecia preocupado.
Já Monsieur Lamar-Toms mostrava o seu costumeiro ar sorumbático, a cabeça gravemente inclinada para o lado. Qualquer um via que precisava de descanso.
Fëll pediu uma taça de espumante, que saboreou a goles lentos e calmos. Já o Capt. Giranne tomou vários conhaques em rápida sucessão. Passada meia hora, sentia-se
tragado por uma excitação febril. De tanto beber, mal e mal tinha forças para manter-se de pé.
— Armand… cuidado! — alarmou-se Madame Monphord, tendo que segurá-lo quando ele quis deixar a mesa.
Lançou um olhar apreensivo para Fëll, que se ergueu com o devido cavalheirismo. Mas René Cherymont, com uma agilidade surpreendente para alguém de seu peso, já tomara
a dianteira:
— Deixem comigo. Não é a primeira vez que fazemos isso, não é, capitão?
O Capt. Giranne recuou um passo, como um sonâmbulo. Mas quando viu quem era, logo permitiu que o rapaz o ajudasse, e assim, com infinitos cuidados, os dois foram
em direção à porta.
Antes de ir sair, porém, o capitão se virou e voltou a falar, o que devia custar um esforço enorme, pois as palavras saíram hesitantes:
— Não se esqueça, Mr. Fëll. Foi um assassinato ilegal!
— Vamos, capitão — instou René. — Amanhã o senhor fala sobre isso.
Saíram. Todos agora mantinham os olhos fixos em Fëll.
— Pobre Armand! — gemeu Madame Monphord, tentando ao máximo disfarçar seus sentimentos. — Já fez de tudo para se livrar do vício, e parece que até hoje só piorou.
Fëll queria perguntar alguma coisa. Dava a impressão de ter-se esquecido do que era. Mas subitamente seu rosto iluminou-se.
— Onde a senhora conheceu o capitão?
— Na Bélgica. Eu tinha ido visitar uma tia minha. Um dia, Armand apareceu por lá… Nos apaixonamos e, em dois meses, estávamos casados. Oh! Estou tão desapontada…
Na Bélgica?
A menção do nome do país sobressaltou Fëll. Uma terrível suspeita surgiu em seu cérebro. Já tinha ouvido falar alguma coisa a respeito da Bélgica.
Num instante, pesou todas as possibilidades e as respectivas consequências. Inclinou-se para frente e disse:
— Os desapontamentos existem. Mas há uma diferença entre a derrota e o desespero. Pegue, Madame. Este é meu número. Não posso ajudá-la a manter ostatus quo, mas
estou pronto a empenhar todas as energias a seu favor, se houver uma emergência.
— O senhor acha que haverá uma emergência?
— Não sei. Talvez a senhora devesse ficar alerta. A senhora pode fazer isso? Pode hein?
Madame Monphord acenou. Estava aturdida demais para fazer qualquer comentário.
6.
Fëll acordou instantaneamente quando o telefone tocou, às 8h13 da manhã.
— Alô?
— É o senhor, Mr. Fëll?
— Sim…
— Mon Dieu! O senhor… tem que vir aqui?
— Quem está falando?
— É Paige… Paige…
— O que houve, Madame Monphord?
— Venha imediatamente, s´il vous plaît…
— Estou indo.
Agindo no piloto automático, Edmund Fëll pulou da cama e colocou a roupa que já deixara arrumada na noite anterior. Ao olhar pela janela, percebeu que estava chovendo.
Sacou um impermeável e saiu do quarto. Sentimentos conflitantes manifestavam-se em seu coração. Seu rosto espelhava a perturbação, o espanto e a dúvida. Em sua mente,
havia um único pensamento:
“O senhor tem que vir… Venha imediatamente!”
O que será que estava acontecendo? Por que Madame Monphord falara daquele jeito? A voz tão medrosa, tão afetada!
Sentiu arrepios de mal-estar só de pensar naquilo!
Deixando o hotel, Fëll parou por um momento, para se orientar. Depois seguiu para a direita, caminhando pela chuva encolhido como um pinguim-soberano. Seus passos
rangiam sobre o chão coberto de areia branca.
Entrou no vestíbulo de um bangalô e, pendurando o impermeável no cabide, olhou em volta. Nada. Ninguém para recepcioná-lo. Num gesto preocupado passou a mão pela
testa.
— Das ist doch aussergewöhnlich — murmurou contrariado.
Fëll resmungou baixinho sem dar-se conta disso. Onde estaria Madame Monphord?
Foi então que ouviu, mais aos fundos, a voz de Repuert, num tom ligeiramente acima do normal.
— Au secours!… Au secours!…
Os gritos de Repuert continuaram nessa mesma litania. Fëll detectou que a voz vinha lá dos fundos. Deu um pulo e, na velocidade que as pernas enrijecidas permitiam,
correu pelo bangalô. Chegou ao seu destino em poucos segundos.
— Oh, ainda bem que o senhor está aqui! — disse Repuert ao ver assomando Fëll à porta.
— O que aconteceu? As hortênsias murcharam?
O homem piscou os olhos, aparvalhado. Ficou parado, tremendo todo.
— Hortênsias? Não, senhor… É Monsieur Lamar-Toms…
— Monsieur Lamar-Toms?
Havia uma nódoa de desespero no rosto de Repuert.
— Meu patrão… está morto. Lá… lá dentro!
Fëll não precisou ouvir mais nada. Lembrou-se do velho francês lhe dizendo:
— Tem que me ajudar, Mr. Fëll! Alguém está querendo me matar!
O apelo soara como um lamento fúnebre aos ouvidos de Edmund Fëll. E agora — agora o pior parecia ter acontecido!
Fëll lançou-se na direção indicada e entrou vertiginosamente numa espécie de anexo envidraçado. Por toda parte viam-se flores, trepadeiras e outras plantas.
Havia uma figura esguia sentada em posição inclinada na cadeira de balanço. A cabeça caída sobre o peito; cobrindo os joelhos, uma manta enxadrezada. Os olhos muito
esbugalhados. O braço estava pousado numa mesa escalavrada em estilo dinamarquês. Ao lado do braço, um cálice vazio. O fogo tinha apagado e, com exceção da luz difusa
proveniente da claraboia, tudo estava às escuras.
Fëll deu um passo para frente. A ânsia furiosa tornara-se ainda mais intensa. Na claridade incerta, viu diante de si uma cena que o deixou completamente estarrecido.
Olhou para o rosto cor de cera do cadáver e sentiu alguma coisa apertar sua garganta. Não era medo, mas apenas uma sensação aflitiva.
— Mas este não é Monsieur Lamar-Toms!
— O quê, senhor?
Repuert teve uma reação de espanto misturada com incompreensão. Olhou para Fëll, como se esperasse que este lhe desse uma explicação. Mas Fëll limitou-se a dizer:
— Este não é seu patrão… É o Capt. Giranne!
Voltou a olhar para o cadáver, examinando-o clinicamente. Quem diria! O homem era mesmo Armand Giranne! E, apesar de morto, o desespero em seus olhos era quase indescritível.
Como se tivesse lutado para viver…
Como se tivesse lutado para viver!
Fëll olhou com atenção para o cálice vazio. Um pensamento súbito fez com que um calafrio lhe percorresse o corpo. Fëll chegou a achar que vislumbrava uma pista.
Minha Marjorie morreu envenenada. Provavelmente também tentarão me envenenar.
Fëll fechou os olhos, numa defesa contra as pontadas de dor em sua cabeça. Acontece que se encontrava num estágio dos acontecimentos que tornava impossível qualquer
forma de raciocínio sensato.
Fëll resolveu entrar em atividade, dando início, sem mais demora, à execução de sua tarefa.
— Vamos fazer o seguinte, Repuert. Eu vou lhe fazer algumas perguntas, e você faça o favor de exprimir-se com maior clareza possível. Está bem assim?
— S-sim… Quer dizer que o senhor já sabe o que tem a fazer, não sabe?
— Sei sim, não se preocupe com isso. Assim como a bússola aponta sempre para o norte, meu pensamento e meu desejo sincero é que tudo termine o quanto antes. Por
isso, será preferível que me diga tudo o que sabe, Repuert. Você viu Madame Monphord?
O personal trainer engoliu várias vezes em seco e seu rosto tornou-se ainda mais vermelho. Ficou calado. Fëll teve de repetir a pergunta para obter uma resposta.
— Você viu ou não viu Madame Monphord? Fale!
— Não, senhor.
— Pense bem… Esse é o próprio componente elementar a partir do qual se obtém a solução do caso. Não a viu mesmo?
— Não, senhor. Por que deveria tê-la visto?
— Porque foi ela quem ligou para mim.
— Ela ligou para o senhor? Mas… mas como?
— É isso o que estou querendo saber.
Fëll olhou para Repuert com certa desconfiança. Dava para notar uma fisgada de desconforto em seus lábios.
— Por que você achou que fosse Monsieur Lamar-Toms?
— Eu… eu não sei o que dizer. Eu entrei e… vi… Ele não estava se mexendo… Muito inquieto, chamei várias vezes. Então, já temendo o pior, comecei a gritar… Aí o senhor
veio.
— Só isso?
— Só.
Uma onda de desapontamento invadiu Fëll. Custou-lhe um grande esforço formular a pergunta seguinte:
— Quando será que o Capt. Giranne veio para cá?
— Acho que foi ontem à noite. René deve tê-lo trazido para cá, depois de sair do restaurante.
— Está dizendo que o capitão passou a noite aqui?
A porta se abriu de repente e Paige Monphord entrou correndo. Estava ofegante e encharcada.
— Armand… — murmurou ela, uma amargura indescritível em sua voz. — Armand!
E, enquanto era sacudida por uma dor atroz, jogou-se no chão e abraçou-se desesperadamente ao corpo do falecido marido.
Exasperado, Fëll olhou para ela.
— Madame, aonde a senhora foi?
Ainda com o rosto encoberto, Madame Monphord soluçou:
— Que coisa horrível! Armand… Oh! Armand…
Alguém apareceu à porta; era René Cherymont. Sua atitude não exprimia medo, mas antes curiosidade.
Aturdido, pestanejou várias vezes e olhou em torno de si à procura de algo que pudesse lhe dar uma exata noção do que estava acontecendo ali.
— Aconteceu… aconteceu alguma coisa, senhores?
— Sim — respondeu Fëll, evasivamente.
— O que… o que foi?
— Uma morte…
— Morte? Morte de quem?
— De Monsieur Giranne. Do Capt. Giranne.
René sacudiu os braços violentamente e cambaleou um pouco para trás.
— O capitão? Tem certeza? Quem poderia querer fazer mal a ele?
— Quem poderia querer fazer mal a ele? Acha que foi assassinato, meu rapaz?
— Eu… não sei. O senhor é que está dizendo.
— Eu disse que o capitão morreu. Mas não mencionei como. Não foi o senhor que o deixou aqui a noite passada?
— Sim, mas vivo. Deixei-o ali, a cabeça virada para o outro lado, respirando calmamente.
— Dormindo?
— Sim.
— Nesta cadeira?
— É.
— Por que não o levou para dentro?
— Porque ele insistiu em ficar aqui. Conversei com ele um pouco, mas, quando vi, estava roncando.
— Depois?
— Eu saí, ora. Tomei duas pílulas de codeína e caí na cama.
René parecia claramente ansioso.
— Isso é tudo tão… apavorante! — estremeceu Madame Monphord. — Tudo, tudo isso.
— Eu sei, Madame, eu sei.
— Não, não sabe! O senhor não sabe coisa nenhuma!
Ela balançou energicamente a cabeça, repetindo sempre:
— O senhor não sabe! Não sabe de nada!
Ela engasgou e, de repente, começou a chorar. Fëll resolveu conceder-lhe um minuto, para que pudesse recuperar-se.
— Calma, não se preocupe, Madame Monphord. Nem sei dizer o quanto sinto por tudo isso. Leve-a para fora, sim, meu jovem? Peça que Mademoiselle Lavélye cuide dela.
Depois chame a polícia.
— A polícia?
— Ja, natürlich! Diga-lhes que aconteceu um crime… Diga que venham logo.
— Mas… — hesitou René.
— Não há mas nem porém! — disse Fëll em tom furioso, lançando-lhe um olhar severo. — Vá logo e volte para me informar.
René soube perfeitamente que dali por diante devia abster-se de outras objeções. Apertando o braço de Madame Monphord, levou-a gentilmente para fora.
Houve um silêncio prolongado, enquanto Fëll pensava no assunto.
Repuert fitou-o com uma expressão pensativa, obrigando-se a conservar a calma.
— Por que o senhor não perguntou a ele, Mr. Fëll?
— O quê?
— A René. Achei que ia lhe perguntar sobre ontem à noite!
— Mas eu fiz isso. Não se recorda?
Repuert pareceu confuso.
— É mesmo? Acho que não devo ter reparado.
— Also! — disse Fëll. — Pouco importa… Responda-me uma coisa. Ontem, na praia, o senhor disse que Madame Marjorie vivia mencionando um crime que teria acontecido
na Bélgica. Lembra-se disso?
— Sim, lembro-me bem.
— Gostaria que me falasse mais sobre isso.
— O senhor me perdoe, mas, como eu disse, nunca dei muita bola às coisas que Madame Marjorie dizia. Sempre achei que aquilo fossem delírios causados por sua doença
debilitante.
— Delírios… Delírios esses que parecem ter contagiado o senhor esta manhã.
— A mim?
— Confundir o capitão achando que fosse Monsieur Lamar-Toms… Haja falta de percepção! Duas pessoas que nem sequer se parecem fisicamente. Bem, foi estranho, o senhor
compreende.
— Sim… Mas, o senhor vê, deve ter sido o ambiente, o contraste de sombras…
O contraste de sombras? Fëll olhou para Repuert. A ideia de aceitar aquela explicação não o atraía muito.
Antes, porém, que pudesse prosseguir em suas indagações, René voltou. René respirava nervosamente.
— Fez o que eu lhe pedi? — perguntou Fëll.
— Sim… Parece que eles já estão vindo.
— Já estão vindo?
De fato, lá fora três homens se aproximavam do bangalô. Era a polícia que tinha acabado de chegar.
7.
O homem que ia à frente do grupo logo irrompeu pela porta dos fundos do bangalô. Quando viu que havia gente, inclinou ligeiramente a cabeça, a título de cumprimento.
— Bom dia!
Era um homem fisicamente notável, de altura acima da média, forte, de ombros largos. Tinha feições bem modeladas, pele bronzeada e cabelos negros. Depois de olhar
para todo mundo, olhou para o cadáver do Capt. Giranne.
“Aí está” pensou Fëll, “o sujeito que vai se responsabilizar por este caso. Alguém que não gosta da guerra de papéis e dos detalhes administrativos. Alguém que aprecia
as coisas palpáveis, o trabalho em campo”.
A voz de Fëll cortou o silêncio sepulcral.
— Guten Morgen.
— Eu sou o Ten. Warsham. Estes homens são da minha equipe — disse, apontando o guarda uniformizado e o perito técnico que vinham logo atrás dele. — Quem são os senhores?
Ninguém se dignou a dar uma resposta. Até que René disse:
— Eu sou René Cherymont, senhor. O irmão de meu avô foi capelão da prisão britânica de Bristol. Ele…
O tenente interrompeu em tom áspero:
— É parente da vítima, Monsieur Cherymont?
— Não… quer dizer, sim…
— Sim ou não?
— Éramos parentes em segundo grau… ou algo assim — gaguejou René.
— Em segundo grau… sei. E o senhor? — perguntou o Ten. Warsham virando-se para Fëll.
Este se apresentou, mas o nome não causou nenhum efeito aparente no bravo agente da polícia maldiva.
— Hum — fez ele. — Meus respeitos. Creio que falta o senhor…
— Repuert, tenente.
— Por que está aqui, Monsieur Repuert?
— Por nada… — gaguejou o personal. — Eu só estava passando…
— Só estava passando… — gorjeou o Ten. Walsham. Olhou em torno com uma expressão de desprezo e concluiu em tom azedo: — Vou isolar o núcleo, esta parte principal
da cena do crime onde a maioria das provas está concentrada. Para tanto, quero que todos saiam daqui. Quero este caso resolvido antes de ir para a Promotoria.
Todos se entreolharam prolongadamente. René umedeceu os lábios:
— Queremos dar toda a ajuda possível, Tenente — disse. — Não acho que…
— Monsieur Cherymont, eu não vim para cobrar a conta da quitanda! O jeito que a gente faz as coisas aqui é melhor. Caso precise de algum auxílio, mandarei chamá-los
— disse o Ten. Warsham. — Agora…
Ele olhou para a porta e explicitamente inclinou a cabeça naquela direção.
Sem mais o que dizer, um por um, os três homens foram para lá. Daí o tenente acrescentou:
— Não, Mr. Fëll… O senhor não.
Repuert e René voltaram a se entreolhar, depois saíram. Fëll ficou para trás, esforçando-se para entender o significado daquilo.
O Ten. Walsham lançou-lhe um olhar penetrante, porém, no mesmo instante, fez um gesto com a mão, que eliminou a aspereza que revestia sua face.
Um sorriso surgiu em seu rosto marcante.
— Desculpe a encenação, Mr. Fëll. O fato é que tínhamos que liberar o terreno. Manter essa gente aqui só nos daria aborrecimentos.
Fëll balançou levemente a cabeça. Não percebia por que tinham perdido tempo com aquela trivialidade. Possuía, porém, bastante senso diplomático para não exprimir
abertamente sua opinião.
— Tudo bem, tenente. Foi uma boa tática.
— Obrigado. Boas credenciais não substituem a experiência e a inteligência. Meu raciocínio não lhe parece lógico, Mr. Fëll?
Fëll fez um gesto afirmativo.
— Muito lógico — disse.
Ditas estas amabilidades, a atitude do tenente transformou-se de repente. Ele levantou abruptamente a cabeça:
— Ótimo, vejo que já nos entendemos. Agora, vamos ao que interessa… Quem é a vítima?
— O nome é Capt. Giranne. De descendência franco-belga, casado, uns trinta e poucos anos.
O Ten. Warsham enrugou a testa enquanto refletia sobre as respostas formuladas. Ele se inclinou sobre o cadáver e se retraiu com repulsa.
— Envenenado?
— É o que parece. Por enquanto é só uma suspeita, mas acho que é isso mesmo.
— Cianeto?
— Creio que foi láudano, Tenente.
— Láudano?
Fëll contou sobre o que havia acontecido à Madame Lamar-Toms, um mês antes. Sem perder tempo, resumiu também os fatos de seus três dias ali na ilha.
— Fantastic — disse o Ten. Warsham, num inglês sofrível. — Formidable!
Estas palavras foram seguidas de um murmúrio de aprovação.
— Como acha que se deu o envenenamento?
— Por meio disto — o brandy!
— Se for, deve haver resíduos do veneno no copo. Deixe-me dar uma olhada… Não, nada aqui: nenhuma camada de borra… nada perceptível.
— Permita-me dizer-lhe, tenente, que o láudano é um preparado líquido… não sólido.
O Ten. Walsham, que fora criado entre as tradições antigas dos ilhéus e a atitude expansiva, dominadora, do mundo ocidental, enrubesceu:
— Ah, é mesmo? Então não há nada que possa ser visto. Vou mandar uma amostra para análise. O laboratório vai identificar a substância, determinar a sua pureza e
descobrir se algo mais está presente e em que quantidades. É hóspede do Maldive Hotel, Mr. Fëll?
— Sim.
— A pessoa que nos contatou… Parece que ela fez alguma referência a isso.
— Que pessoa?
— Não sei.
— Homem? Mulher?
— Homem.
— Por isso vieram com tanta rapidez! A que horas foi feita a ligação?
— Umas 7h.
— Sete? — perguntou Fëll. Parecia contrariado. — Não gosto de superlativos. Mas, no presente caso, estes são plenamente adequados.
— Pelo seu relato, quem temia ser morto era… como é o nome?
— Monsieur Lamar-Toms.
— Sim. Em vez disso, quem morreu foi este homem. Significa alguma coisa para o senhor?
— Difícil dizer. Há muitas coisas em jogo; ainda não dá para assimilar tudo. Acho que devíamos averiguar melhor isso. Depois de ouvir todos os depoimentos, poderemos
discutir novamente as possibilidades. Para maiores esclarecimentos, sugiro que falemos com Madame Monphord, a esposa do capitão. Se o senhor quiser, naturalmente!
— Oh! Certamente… Eu ficaria orgulhoso em ajudá-lo neste caso. Creio que será muito instrutivo. Muito bem, pessoal — o tenente reportou-se aos dois homens que o
acompanhavam. — Mãos à obra.
Descrevendo círculos cada vez maiores, o perito e o guarda bateram toda a extensão do recinto atrás de pistas, vasculhando tudo metro por metro.
Fëll saiu com o tenente e ali perto encontraram com René.
— Levei Amye para o bangalô de meu avô — disse este, ao ser interpelado. — Paige está lá com ela.
Juntos foram até o bangalô de Monsieur Lamar-Toms.
O próprio Monsieur Lamar-Toms recebeu-os na porta, apreensivo por notícias. A preocupação e o estresse transpareciam em seu rosto e na postura tensa do corpo. Havia
um desespero total em sua voz.
— Por favor, entrem… — murmurou. — René me disse… tudo o que aconteceu a Armand… não consigo acreditar. Por que ele foi morto?
— Monsieur — disse Fëll. — Este é o Ten. Walsham, responsável pelo caso. Tenente, Monsieur Lamar-Toms.
— Não pode ser verdade — disse o francês, distraído. — Primeiro foi Marjorie. Tudo levava a crer que eu seria o próximo, mas não… foi Armand! Ontem à noite, ele
estava embriagado, e ficou falando em assassinato. Eu pensei comigo: “Cale essa boca! Se o assassino estiver por aí… ouvindo…” Olhe aí no que deu! Não se deve… —
disse, mas logo se calou. — Quem é o senhor? Por que está aqui?
Olhava para o tenente, como que exigindo uma explicação. Fëll teve que intervir e fazer outra vez as apresentações.
— Walsham… Parente dos Walsham que moram perto das lojas de Oxford Street?
— Acho que não, Monsieur — disse o tenente, aceitando uma cadeira oferecida pelo magnata. — Meu pai nasceu num bairro pobre de Edimburgo chamado Fountainbridge.
— Escócia, é? — fez Monsieur Lamar-Toms em tom de desprezo.
Desfeito o mal-entendido, Fëll prosseguiu:
— Como está sua sobrinha, Monsieur?
— Receio que nada bem. O que, de certo modo, é lamentável. Chorar por um sujeito desses, que vivia uma vida imaginária à custa dela! Que casou com ela exclusivamente
em virtude de sua boa situação financeira! É uma circunstância extraordinária que existam mulheres que se encantem e se apaixonem por homens assim. Naturalmente
odeio qualquer tipo de intriga; mas, se forem revistar a bagagem dele, encontrarão muitas coisas que na verdade são minhas.
— Coisas que o senhor deu, Monsieur?
— Oh, não! Tenente, claro que não. Coisas que ele roubou.
— O Capt. Giranne?
— Sim. Ele não conseguia se controlar… e roubava. De tudo um pouco. Às vezes para uso próprio, outras vezes para revender. Não adianta perguntar para Amye… ela não
lhes dirá. Para sustentar o vício, as pessoas são capazes de atos inimagináveis. Quando confrontadas, justificam tudo com uma só frase: “A bebida não acaba com os
problemas, mas, com certeza, os ameniza”. Como se tudo não passasse de uma brincadeira sem maiores consequências!
— O que diz a sua sobrinha sobre tudo isto?
— Evidentemente nega. Amye sempre se opôs a nós, alegando que nunca quisemos que ela fosse feliz. Diz que tínhamos formado um complô, com a única intenção de desonrar
o nome de bom moço de seu marido. Compreendo que ela o amasse, mas o que não dá para aceitar é toda essa neurótica devoção dela por ele. Parecia que era Deus no
céu, e l’illustre capitaine na terra!
Monsieur Lamar-Toms calou-se de novo. Dessa vez para enxugar o suor da testa.
— Pode citar algo que ele tenha roubado do senhor? — perguntou Fëll.
— Desde pares de meia, coisas insignificantes, a objetos realmente caros. O mais caro — um relógio de console, magnificamente decorado, funcionando e que ainda batia
as horas. Desapareciam do nada e, no início, chegamos até a achar que era obra de um dos empregados. Um dia, Marjorie o pegou no flagra, mas, discretamente, resolveu
não fazer caso. Sempre fomos muito conservadores, e a última coisa que queríamos era nos envolver num famigerado escândalo familiar.
A pergunta seguinte de Fëll foi mais incisiva:
— Monsieur Lamar-Toms, desapareceu alguma coisa desde que o senhor está nesta ilha?
— Nada de valor. Uma camisa polo azul-marinho… e uma garrafa de brandy.
— Uma garrafa de brandy? — disse o Ten. Walsham.
— Uma garrafa de brandy? — repetiu Fëll.
Era tudo o que conseguiam dizer.
Ficaram alguns segundos parados ali, mudos, apenas olhando para o francês.
— Coisa mínima — disse Monsieur Lamar-Toms, em sinal de pouco caso. — Não me afetou, de modo algum.
— Discordo, Monsieur — disse Fëll. — Talvez o tenha afetado mais do que imagina.
— O que quer dizer?
— Quero dizer que, pelas nossas conjeturas, o capitão estava tomando brandy quando morreu.
— Brandy? O meu brandy?
— É cedo para afirmar. Provavelmente sim.
— Mas então… então…
Monsieur Lamar-Toms interrompeu sua fala e olhou para a assistência com uma expressão grave. Ele levantou-se de um salto. Parecia uma estátua. Estava pálido como
cera.
— Sim, Monsieur — acenou o detetive. Havia um forte sentimento de fatalidade no que disse a seguir: — Aparentemente o senhor era a pessoa visada e escapou por pouco
de ser a próxima vítima.
8.
Madame Monphord estava deitada do lado direito. Parecia cansada, o olhar entorpecido. Apresentava um aspecto trágico e doentio.
Quando ouviu baterem na porta, ela se virou nos travesseiros. Sem esperar resposta, o Ten. Walsham e Fëll entraram.
Num canto, sentada numa cadeira, Mademoiselle Lavélye montava guarda.
— Cavalheiros? — perguntou esta, inclinando-se quase imperceptivelmente para frente.
— Olá, Mademoiselle — disse Fëll. — Precisamos falar um pouco com sua paciente.
A enfermeira reagiu como se acabasse de receber uma notícia insignificante e sem interesse. Por alguns segundos, as maçãs de seu rosto ficaram bastante salientes.
Ao fim de um certo tempo, disse:
— Não a cansem muito. Ela está tão fraca que é preciso espaçar o interrogatório.
— Compreendido.
Fëll sacudiu a cabeça. Deu alguns passos, cruzou as mãos nas costas e parou diante de Amye Monphord.
— Madame, só queria que soubesse que lamento muito pelo que aconteceu ao seu marido.
Num gesto impulsivo, Madame Monphord agarrou e apertou-lhe a mão.
— Por quê, Mr. Fëll? Por que Armand teve que morrer? Não era desse jeito que deveria ser. Não deveria acabar assim… Eu queria que pudéssemos fazer tudo outra vez.
Nunca imaginei que isso pudesse acontecer. Não posso viver sem ele. Não posso…
Fëll olhou penalizado para ela.
O que se passava no íntimo desta mulher? Que tremenda bagagem de remorso e angústia não deveria estar carregando!
— Este é o Ten. Walsham, Madame. Ele vai nos ajudar a definir como foi que o seu marido morreu, verstehen Sie? Tenente, esta é a mulher do Capt. Giranne.
— Madame!…
— Oh, o senhor é policial! Que bom… Muito obrigada por ter vindo. Vocês… vocês já sabem quem matou Armand?
— Não. Ainda não.
— Mas vão investigar, não vão?
— Vamos sim.
A mulher hesitou. Subitamente, ouviu-se a sua respiração ofegante, seguida de uma frase proferida em tom de espanto:
— Vocês vieram aqui para falar de algo, ou me perguntar algo… não é?
— Jawohl, Madame. Viemos lhe perguntar algo…
— Oh! E o que é?
Fëll muitas vezes sabia por intuição o que devia e o que não devia dizer. Puxou uma cadeira e sentou perto de Madame Monphord. Com tato, acrescentou:
— Quer nos dizer, Madame, como descobriu o corpo de seu marido? Consegue falar sobre isso, não consegue?
Ela enrubesceu ligeiramente. Fëll e o tenente trocaram um olhar.
— Sim, sim… posso. Acordei umas sete e meia, ou por volta disso. Fazia frio, e quando espiei para fora, vi que estava chovendo. Enrolei-me num cobertor e fui fazer
a toillete. Depois fui preparar o café… pus a chaleira no fogão e comecei a arrumar as coisas. Nisso lembrei-me de Armand… e de onde ele havia passado a noite. Atravessei
a sala e saí para o anexo. Armand estava lá… no mesmo lugar. Quando toquei nele… oh! a cabeça dele caiu para o lado…
Ela olhou alternadamente para os dois homens e, como se estivesse falando consigo mesma, repetiu:
— A cabeça caiu… assim, ó…
— Ok, Madame… mantenha a calma… estamos aqui com a senhora… Não é necessário entrar em detalhes sobre esse episódio. Vamos à próxima pergunta…
Madame Monphord se sentia vulnerável e confusa.
— Próxima pergunta? Gostaria de poder ser útil, mas eu não sei de mais nada. Não sei…
Fëll inclinou a cabeça gravemente.
— Receio que tenhamos que ser intransigente neste ponto, Madame. Talvez a senhora não saiba muito, mas precisamos de um começo. Não podemos ignorar nada, absolutamente
nada que possa nos levar à verdade. Não adianta vagarmos por aí ao acaso. Força, Madame! Isso não vai durar para sempre.
Ela desatou a chorar, as lágrimas corriam copiosamente e os soluços a sacudiam por completo.
Quando finalmente falou, estava mais controlada:
— Fiz tudo o que pude por Armand. Ele fez tudo por mim. Eu perdi meu primeiro bebê… e o segundo. Morreram ainda recém-nascidos. Mas Armand nunca me amou menos por
isso. Era essa a medida do seu amor por mim: era tão forte que sobrevivia com migalhas. Armand orgulhava-se tanto de seus móveis e de suas porcelanas de Sèvres!
Num tom que queria ser normal, Fëll continuou:
— A senhora ligou para mim esta manhã, não foi?
— Sim… o senhor forneceu o número, lembra-se?
— Diga-me uma coisa, Madame — disse Fëll. — Quando eu cheguei lá, a senhora não estava no bangalô. Aonde tinha ido?
— Eu… eu me escondi?
“A coisa começa a ficar interessante” murmurou Fëll.
— A senhora quer dizer… que saiu de propósito? — perguntou Fëll.
— Sim — respondeu ela.
— Mas por quê?
A mulher fechou os olhos.
— Medo… — disse.
— Medo de quê?
Madame Monphord guardou silêncio e seus olhos tornaram a se fechar.
— De Repuert. Eu o vi vindo… pela praia… o ouvi mexendo na porta… e entrando. Fiquei tão aterrorizada que não soube o que fazer… e sai pela porta de trás. Eu me
embrenhei no bosque… e fiquei lá, esperando.
— Teve medo de Repuert… Por quê?
— Eu… não confio nele.
— Acha que ele está envolvido com a morte de seu marido?
— Repuert tem pavio curto e, para ele, sempre foi difícil se controlar… Ele e René viviam se desentendendo com Armand.
— Espere… Está falando do jovem Cherymont?
Ela franziu as sobrancelhas.
— E há outro, por acaso?
— Quer dizer então que suspeita René Cherymont também? Não dá para entender, Madame. Quando eu pedi para ele acompanhá-la, a senhora não opôs nenhuma objeção. Se
supunha que René Cherymont pudesse ser o assassino, por que não disse para mim?
— Não estou dizendo que René seja o assassino. O que estou dizendo é que ele e Armand não eram muito amigos…
Um arrepio subiu pela espinha de Madame Monphord, deixando-a trêmula por dentro. Engolindo em seco, olhou para as mãos em seu colo.
“Hum! Pelo visto o assunto não lhe agrada.”
— É melhor deixá-la em paz — sugeriu Mademoiselle Lavélye. — Os nervos dela foram submetidos a uma dura prova, pobrezinha! Falem com ela mais tarde.
Mas o tenente prosseguiu. E agora de uma maneira impetuosa:
— Não complique, Madame… Simplifique… Seu marido dormiu lá mesmo onde o achamos?
— Sim… Estávamos no restaurante, ontem à noite… e Armand se sentiu… indisposto. René foi muito solidário, e ajudou Armand a voltar ao nosso bangalô. Em vez de levá-lo
para o quarto, deixou-o sentado lá fora. Quando eu cheguei… Armand já havia pegado no sono… e achei melhor não acordá-lo.
— A senhora pôs uma manta no colo dele?
— Sim…
— Não chegaram a trocar nenhuma palavra?
— Não.
— Alguém foi com a senhora até o bangalô?
— Não. Todo mundo já tinha ido para a cama.
— A senhora gostava do capitão? Ele era um bom marido?
— Sim. Tratava-se de um homem excelente.
— Brigou alguma vez com ele?
— Quem? Eu…? Não, não.
— Ele alguma vez a ameaçou?
— Não estou entendendo. O que o senhor quer dizer?
— Não tem importância… Mr. Fëll, a depoente é toda sua.
Edmund Fëll fez um gesto afirmativo. Ele sorriu afavelmente.
— Acho que já terminamos, Madame. Não foi tão ruim assim, não é?
— Isso é tudo?
— Isso é tudo, por ora.
— Vão encontrar o assassino, não vão? Haja o que houver… Alguma coisa muita estranha está acontecendo nesta ilha. Vocês precisam encontrar o assassino! Precisam…
Madame Monphord projetou o maxilar.
À medida que falava, sua voz fora ficando gradualmente mais aguda. Parecia que ia ter um ataque de histeria.
— Sossegue… se tranquilize, Amye… Vamos, querida…
Era Mademoiselle Lavélye que acabara de falar.
— Agora, Madame precisa ficar sozinha. Procurem compreender…
Fëll assentiu.
— Tudo bem. A senhora ficará boa logo, Madame. Quer que alguém lhe faça companhia?
Madame Monphord acenou com a cabeça.
— Sim — disse e, depois de uma breve pausa, acrescentou: — Paige… Só Paige…
— Eu ficarei aqui, se a senhora quiser — replicou a moça amavelmente. — Vamos, descanse. Não vou deixá-la sozinha.
A mulher suspirou fracamente e fechou os olhos.
— Muito obrigada, Paige. Não sabe quanto agradeço por tudo.
— Não tem que me agradecer nada, querida.
— Você é muito amável, Paige.
— Durma, você está precisando.
— Sim… eu vou dormir um pouco.
Seus olhos se estreitaram e fecharam, e a respiração se tornou mais regular. Em poucos minutos, começou a ressonar. Parecia ter adormecido.
Fëll moveu a cabeça, perplexo.
— Como…?
Mademoiselle Lavélye levou o dedo indicador à boca, pedindo silêncio. Em voz baixa, sussurrou:
— Rohypnol…
— O que é Rohypnol?
— É um tranquilizante aproximadamente 10 vezes mais potente do que o Valium — explicou o Ten. Walsham. — É vendido na Europa e América Latina como um comprimido
para dormir, mas é ilegal nos Estados Unidos. Deu a dosagem certa, Mademoiselle?
— Dei só o suficiente para que ela durma por uma ou duas horas.
Fëll acenou com a cabeça; parecia satisfeito. Ele dispôs-se a sair. Mas antes disso disse:
— Danke, Mademoiselle.
Procurando não fazer o menor ruído, abandonaram o quarto.
O Ten. Walsham lançou um olhar discreto para o detetive, mas os pensamentos deste estavam ocupados com outro assunto.
— Preocupado?
De fato, Fëll parecia pensativo. Depois de algum tempo, respondeu:
— Vamos dizer que são algumas preocupações legítimas, tenente. Para mim parece haver alguma coisa que não pode ser explicada, algo muito estranho em tudo isso.
9.
— Sente-se, meu rapaz.
Enquanto René Cherymont se sentava, obedecendo à indicação de Edmund Fëll, este o examinou atentamente.
O rapaz tinha o rosto lívido. Parecia estar abatido. Seus ombros estavam caídos como se ele estivesse envergonhado.
— O que querem de mim, cavalheiros?
— Conversar.
— Sobre o quê?
— Sobre a nossa situação atual.
René olhou para o detetive e o Ten. Walsham com uma seriedade que não combinava com seu semblante jovial. As suas bochechas flácidas lembravam uma marmota.
— Bien, o que é?
Fëll respirou fundo, caminhou até a porta e a fechou. Tentando manter o contato visual direto com o rapaz, começou:
— Este é o local onde o Capt. Giranne morreu. Como deve ter visto, a equipe do Ten. Walsham esteve aqui. O objetivo da fase de coleta de provas é encontrar, reunir
e preservar todas as evidências físicas úteis para reconstituir o crime e identificar o assassino, fazendo com que ele seja arrastado ao tribunal. As provas podem
ser de toda ordem. Aqui parece não haver muitas dúvidas sobre a causa da morte; cremos que, assim como aconteceu com Madame Marjorie, o Capt. Giranne tenha sido
envenenado.
René assentiu ansiosamente, e então balançou a cabeça.
— Certo…
— Responda-me estas duas perguntas, Monsieur Cherymont. Que tipo de relação existe entre Repuert e Mademoiselle Lavélye? E: o que aconteceu, ontem à noite, quando
o senhor voluntariamente levou o Capt. Giranne de volta ao bangalô?
René ficou sem reação, estranhando a finalidade daquelas perguntas.
— É isso o que o senhor quer que eu responda?
— Exatamente isso.
— Como quer que eu saiba que tipo de relação existe entre Repuert e aquela enfermeira bonitinha? Só se eu lesse a mente deles!
— O que disse?
— Eu disse: Só se eu lesse a mente deles!
— Não, antes disso. Quando se referiu à enfermeira.
— Eu falei que ela é bonitinha.
— Acha ela bonita, Monsieur Cherymont?
— Posso pedir um favor? Pare de me chamar de Monsieur. Não sou tão proeminente assim. Diga só Cherymont, d’accord?
— Como quiser.
— Bom, sim, é claro que Paige é bonita. Quanto a se está de namorico com Repuert, o que é que eu tenho com isso? Por que está perguntando para mim?
— Estou perguntando porque sei que o senhor… você sabe. E pode ser que conte para nós.
— Não contarei coisa alguma — respondeu René em tom de espanto. — Por que deveria? Onde pretende chegar? Seis dos meus direitos e minhas responsabilidades.
— Isso não alivia o fato de que houve um assassinato.
— Um assassinato do qual eu não tirei qualquer vantagem. Pelo que sei, o capitão era filho de um contador de uma empresa de seguros. Era um cara insípido, até um
tanto medíocre. Eu não quis que ele morresse, mas é a ordem natural das coisas, hélas.
— A ordem natural das coisas?
René pareceu achar graça naquilo.
— O senhor, pelo jeito, acredita que existe um plano divino para nós e um projeto que devamos necessariamente cumprir! Pois eu discordo do senhor. A meu ver, nós
existimos, definimos o que seremos, e morremos. Nada mais.
— E depois?
— Não há depois…
— Ah — disse Fëll. — Então, não há esperança de uma vida eterna e nem de um paraíso como recompensa para os que viverem de um modo a merecê-lo?
— Claro que não.
Fëll fez uma careta. Pessoas sem fé, e que não viam nenhum propósito na vida, tendiam a ser perigosas. Perigosas porque achavam que não havia nada a perder.
— O senhor parece admirado — disse René.
— Bastante — admitiu Fëll.
— Eu também — disse o Ten. Walsham.
— Nós mesmos fizemos o nosso paraíso. Não entendo esses excêntricos milordes ingleses, que têm imensos recursos mas vivem como eremitas. Se pudesse, eu compraria
um pequeno castelo no Bois de Boulogne, em Paris. Ia ter tudo o que eu quisesse.
Ele sublinhou suas palavras com um movimento enérgico do braço. Ao que Fëll disse:
— Bom, vamos deixar os castelos de lado, por ora. Temos que nos concentrar no nosso caso. Especificamente, na noite de ontem. Lembra-se do que aconteceu quando já
estávamos terminando o jantar?
— Lembro-me, claro. O Capt. Giranne começou a mostrar sinais visíveis de embriaguez. Ele estava em choque, tremendo desamparado. Eu não sei o que deu em mim quando
vi aquilo. Só sei que, para o bem de todos, me ofereci para ajudá-lo a vir para cá.
— O que foi um gesto muito nobre.
— Nobre ou não, o fato é que era o mínimo que se poderia fazer. Apesar de nossas controvérsias, eu estimava o capitão. O verdadeiro alvo do ataque deveria ter sido
meu avô, não é?
— Sim.
René franziu a testa.
— Vovô, pelo visto, teve muita sorte — arriscou. Fez uma pausa: — Acham que o assassino vai continuar à espreita? Acham que ele vai tentar outra vez?
— Sem dúvida alguma.
— Mas isso é uma pouca-vergonha! Quem é que seria capaz de fazer uma coisa dessas?
— Até ontem, eu supunha que fosse o Capt. Giranne. Com ele morto, restam quatro suspeitos. Ou foi você, ou Mademoiselle Lavélye, ou Repuert ou Madame Monphord.
— Eu? O senhor só pode estar blefando!
— Eu não blefo, meu rapaz.
— Pois estão enganados se acham que sou o assassino. A única coisa que já fiz foi matar baratas com um chinelo. Já participei de muitas coisas, fiz muitas coisas.
Até coisas que eu não deveria ter feito. Mas um crime? Não, isso é novo para mim.
— Você estuda química. Eu sei, você disse para mim. Assim sendo, deve conhecer as propriedades químicas e físicas dos materiais… até mesmo na área dos medicamentos.
Medicamentos tais como… o láudano.
René quis contradizer, mas ficou sem palavras.
— Seu… seu… Isso é uma mentira! Sabe perfeitamente que eu não… — Fez outra breve pausa: — Isso é sacanagem! — grunhiu depois de algum tempo.
— Sim, eu sei.
— O que querem de mim?
— Pouca coisa. Só a verdade.
— Receio que seja impossível. Eu não sei a verdade.
— Não mesmo?
— O que vai fazer? Perguntar de várias maneiras, até eu dizer o que quer ouvir? Non merci! Diga-me se posso ser útil em mais alguma coisa.
— Creio que não.
— Tenho permissão para ir?
— À vontade. Mas, antes disso, há uma ou duas coisas que eu quero que faça. A primeira, peça que Repuert venha falar conosco. Depois, vá e fique com seu avô. É melhor
que alguém tome conta dele, por via das dúvidas.
Depois que René se foi, o silêncio passou a reinar no recinto. O Ten. Walsham, que se distinguia por uma amabilidade constante, foi quem falou:
— Acho que ele sabe de alguma coisa que a gente ainda não sabe, mas o que será?
Fëll não respondeu. Folheando sua caderneta de apontamentos, fez algumas anotações. Por alguns minutos, só se ouviu o tamborilar da chuva contra a claraboia.
Finalmente, Repuert entrou. Os lábios moveram-se e, num grasnado, saíram algumas palavras.
— Querem falar comigo?
Fëll olhou para o personal com uma expressão de simpatia.
— Queremos, Monsieur Repuert — disse ele, mansamente. — O senhor precisa acreditar que nós já examinamos vários depoimentos com bastante cuidado. Essa análise nos
convenceu que temos em mãos um drama humano bastante sórdido. Nosso pedido é que o senhor nos ajude a desvendá-lo.
Repuert teve a impressão de que seu coração iria parar. Embora a temperatura fosse amena, subitamente sentiu um calor abrasador.
Repuert hesitou um pouco e, domando os ânimos, disse:
— Très bien, Monsieur.
— Como sabe, em vez de um, agora temos dois crimes não solucionados. Duas mortes: a de Madame Marjorie e a do Capt. Giranne. Assim, o que temos que nos perguntar
é onde isso nos deixa. Leia isto, e nos diga se concorda com o teor.
Arrancou uma página da caderneta e a estendeu ao personal.
Coisas que depõem contra Repuert:
Estava presente na casa na noite em que Madame Marjorie morreu.
Poderia facilmente ter colocado o láudano na garrafa de brandy de Monsieur Lamar-Toms.
Repuert parece nutrir uma afeição toda especial por Mademoiselle Lavélye.
O Capt. Giranne disse algo como: “Existe um assunto que não é do agrado de certas pessoas”, e olhou tanto para Mademoiselle Lavélye quanto para Repuert.
Repuert, logo pela manhã, foi ao bangalô do capitão.
Madame Monphord disse sentir medo de Repuert. Por quê? O que há de tão temível nele?
Repuert silenciou. Olhou para o papel, refletiu por um instante e amarrotou-o.
— Pathétique!
— O que é patético?
Repuert estava mais pálido do que nunca, mas fez de tudo para recuperar um pouco de domínio de si mesmo. Finalmente, ele falou, quase para si mesmo:
— Este item: Estava presente na casa na noite em que Madame Marjorie morreu. Havia mais gente lá, além de mim!
— René Cherymont não — sorriu Fëll friamente.
— A droga que matou Madame Marjorie estava num dos frascos de remédio. Talvez já por vários dias! Ou semanas…
— Discorda de algum outro item?
— Sim. Repuert, logo pela manhã, foi ao bangalô do capitão. Tenho sono muito leve. Fui acordado pelo barulho da chuva contra a persiana. Resolvi dar uma volta pela
praia e, por acaso, acabei passando por aqui.
— Que horas deviam ser?
— Precisamente às oito e vinte.
— Como tem tanta certeza?
— Olhei o horário em meu celular.
— Viu Madame Monphord aqui dentro?
— Não.
— Mas ela diz tê-lo visto.
— Eu não a vi. Devia estar por trás da cortina.
Fëll inclinou-se.
— Mesmo não vendo ninguém, o senhor entrou. Não é meio contraditório, Monsieur?
— Não creio. Fiquem sabendo que eu bati primeiro. Daí testei o trinco e a porta se abriu.
— Está dizendo que a porta não estava trancada?
— Eu consegui entrar, não foi?
O tenente voltou-se para Fëll.
— É uma possibilidade — disse.
— Mas isso não explica uma coisa. Por que se confundiu achando que o capitão fosse Monsieur Lamar-Toms.
— Já disse e volto a dizer… Havia pouca luz e…
Fëll lançou-lhe um olhar de advertência.
— É, eu já ouvi essa história. Poderia vir comigo, Monsieur? Gostaria que nos demonstrasse como foi que tudo aconteceu.
Repuert levantou-se ainda que com alguma relutância. Mas tudo aquilo era apenas um esforço desesperado, gerado pelo sentimento de desamparo.
Os três saíram do bangalô.
— O senhor veio dali, e parou aqui — disse Fëll para esclarecer as coisas, enquanto apontava ora para um lado ora para o outro. — O que fez então?
Repuert se adiantou com a mão crispada, girou o trinco e entrou na sala de estar. Fëll seguiu-o, com o Ten. Walsham logo atrás.
“Fantastic!” pensou o tenente, extasiado com o desenrolar daquela amadora reconstrução dos fatos.
— O senhor se deteve aqui ou avançou direto?
— Dei uma espiada, mas como não visse ninguém, fui adiante.
— Em que direção?
— Esquerda.
— Para o anexo?
— Oui.
— Por que escolheu ir para lá?
— De algum modo, eu sabia que algo sério havia acontecido. Eu sabia, comprenez-vous? Eu pressenti, comprenez-vous?
Fëll murmurou:
— Pressentiu?
— Sim.
Fëll cutucou o queixo e disse mais para si:
— Quando viu o vulto na cadeira, o senhor de início manteve uma certa distância.
Depois acrescentou:
— O senhor disse de manhã que ficou chamando pelo nome de seu patrão.
— Chamei sim.
— Poderia mostrar como foi?
— Pardon? — gaguejou Repuert, perplexo.
— Finja que estou aqui… morto — disse Fëll, acomodando-se no lugar onde, havia uma hora antes, estivera o corpo do Capt. Giranne. — O que o senhor fez?
Fëll afundou na cadeira, parecendo encolher, as pálpebras se fechando, enquanto o personal o observava, confuso. Jamais se sentira tão mortificado em toda a vida.
— Eu gritei…
— Gritou o quê?
— O nome de Monsieur Lamar-Toms.
— Abra a boca… Mostre.
Repuert fez menção de protestar, mas Fëll interrompeu-o:
— Vamos… Força! Não se constranja…
— “Monsieur! É o senhor que está aí? Monsieur!”… Eu não consigo! C’est ridicule!
— Não, não é ridículo. Foi isso o que o senhor gritou: Monsieur! Monsieur!
— Foi.
— Então, pelo visto, não estava muito convicto de que fosse Monsieur Lamar-Toms!
Repuert fitou-o com uma expressão desafiadora:
— E daí? Importa o que eu pensei, e não o que eu disse.
— Eu jamais diria uma coisa se estivesse pensando em outra — anunciou o Ten. Walsham.
Fëll soltou um assobio entre os dentes. Levantou-se, fez um gesto afirmativo e disse:
— Nem eu, tenente. Nem eu. Bom, já testamos este ponto. Mais algum item que queira questionar, Monsieur?
Repuert sacudiu energicamente a cabeça.
— Oui. Esse negócio que o senhor escreveu… Sobre o Capt. Giranne ter olhado para mim e, em seguida, para Paige… Mademoiselle Lavélye. O que isso quer dizer?
— Isso é o que eu esperava que o senhor nos dissesse. Afinal, foi nesse momento que ele fez a declaração mencionada aí. E há mais uma coisa. Há um sétimo item que
poderia ser complementado à nossa lista. Enquanto saía do restaurante, o capitão disse o seguinte: “Foi um assassinato ilegal”! Ele não disse somente: “Foi assassinato”;
não, ele foi mais além e qualificou-o de ilegal. Fato este que dá o que pensar, não é?
— Se está pensando que… — disse Repuert, movendo-se em direção ao detetive.
A frase, incompleta, foi pronunciada com o tom de ameaça.
Fëll empertigou-se, levantando ambas as mãos, como se quisesse rebater a insolência de Repuert. Mas, desistiu na metade do gesto, e seus braços caíram de repente.
Havia se lembrado de uma coisa. Ao dizer: “Existe um assunto que não é do agrado de certas pessoas”, o capitão estremecera, como se estivesse arrependido do que
tinha dito, e quisesse livrar-se da seriedade disto. Ele levantara a vista e…
E…
Eu jamais diria uma coisa se estivesse pensando em outra.
O detetive cerrou os olhos e concentrou-se. A imagem ia se definindo com nitidez em sua mente. Lentamente, surgiu uma ideia.
Uma ideia que o envolveu feito uma névoa suave.
Fëll censurou-se por ter estado cego e surdo a tantas coisas tão óbvias.
“É impressionante como as respostas podem vir dos lugares mais improváveis!”
Fëll tirou um lenço xadrez e limpou o suor da testa. Seu rosto permanecia impassível, quase uma máscara rígida, mas seus olhos estavam úmidos.
— O que foi? — perguntou o Ten. Walsham.
— Cometi um erro — sussurrou Fëll. — Um estúpido erro de principiante.
— Não se recrimine… Recomponha-se e diga-me que erro foi esse. Fale! Estou escutando.
— Eu deveria ter parado para refletir.
— Refletir sobre o quê?
Edmund Fëll pareceu ter perdido a fala por alguns segundos, pois sua resposta demorou bastante.
— Devagar, tenente. Poderíamos fazer uma relação dos horários, definir o que todos fizeram e quando. Entretanto, isso não faria muita diferença. Sabemos como ocorreu
o envenenamento… e que, na verdade, a intenção era matar Monsieur Lamar-Toms. Não há mais nada que queira nos dizer?
— Não — disse Repuert, em tom áspero.
— Assim sendo, sugiro que leve este homem para prestar depoimento, tenente. Se ele se recusar a colaborar, prenda-o.
Prestar depoimento… prenda-o…
Havia um sentido lúgubre e fatal por trás destas frases.
Repuert estremeceu. Tentou falar mas não pôde e, voltando-se para Fëll, começou a tremer.
— Sou um cidadão francês! Não podem fazer isso!
— Podemos, Monsieur, e vamos fazer. Pode mandar vir o guarda, tenente.
Repuert o olhou com uma expressão intensa, como se fosse dizer alguma coisa, mas mudou de ideia e se retirou, ladeado pelo guarda.
Depois de vê-los sair, o Ten. Walsham se virou com um olhar um tanto pensativo para Fëll.
— Acha que foi ele?
— Foi ele o quê, tenente?
— Quem envenenou essas pessoas.
A expressão de Fëll mudou, e ele deu um passo adiante. A resposta veio em tom desanimado:
— Não creio. Em todo caso, ele deve saber quem foi. Isso é mais do que suficiente, e é exatamente o que eu receava.
Havia um tom de melancolia e finitude em sua voz.
10.
O maitre d’hotel levou-o até uma mesa localizada nos fundos do refeitório e afastou-se.
Sentados lá estavam Monsieur Lamar-Toms, o neto, Madame Monphord e Mademoiselle Lavélye. Todos se viraram para olhar o detetive.
René Cherymont abriu a boca para fazer um comentário mordaz, mas pensou melhor e disse:
— Alô, Mr. Fëll. Vai almoçar também? Que coincidência nos encontrarmos aqui.
— Vim para me despedir — disse Fëll com o ar dramático de quem dissesse: “Vou morrer”.
— Já pronto para ir? — fungou René. — O que aconteceu?
— Não aconteceu nada. Simplesmente quero partir daqui…
— Pensei que ficaria até o fim da semana.
— Acabei chegando à conclusão de que seria melhor não. Não há nada mais para ver aqui. Vou para Marrakesh.
Não foi mais além. Outra voz masculina perguntou rispidamente:
— Repuert já foi solto?
Era Monsieur Lamar-Toms saindo de seu torpor.
— Honestamente não faço a menor ideia. Ele tem um passado para lá de comprometedor.
— Então ele vai ficar preso? Até quando?
— Isso depende do Ten. Walsham.
— Não há como voltar atrás?
— Não, não há como voltar atrás — disse Fëll.
Madame Monphord soluçou baixinho. As lágrimas escorriam por suas faces, e sentia a dor ardendo em seu coração.
Ela dirigiu-se ao detetive:
— O senhor deveria ter impedido o crime, ter feito alguma coisa.
— Ter feito o quê? — perguntou Fëll.
— O senhor não poderia ter falado com Repuert? Não poderia ter-lhe dito que iria chamar a polícia?
— Mas com que provas? Não se pode pressupor um crime sem ter provas.
— Poderia ter prevenido Armand — insistiu Amye Monphord.
— Mas eu não sabia que ele seria a vítima! Não se pode lutar contra o que a gente não vê. Ainda mais que eu sei que Repuert não é responsável pelo assassinato de
seu marido.
Ela fitou-o em silêncio, incapaz de acreditar no que ele acabara de dizer.
— O quê? — perguntou René. — Repuert não é o assassino? Isso é o que se pode chamar de um paradoxo! Quer dizer que prenderam o cara errado?
Deu uma risadinha, ho-ho-ho.
— Então o senhor fracassou!
— Não acho que tenha fracassado.
Fëll olhou em redor com determinação, como alguém que tinha um trabalho importante para realizar.
— Existem muitas formas de se matar alguém. Praticamente todas deixam vestígios que podem ser rastreados. Se o crime foi cometido com arma de fogo, é possível encontrar
a arma, as balas, as cápsulas e os furos provocados pelas balas. Se o crime ocorreu dentro de casa, dá para verificar se as portas e janelas estavam travadas ou
não; abertas ou fechadas; se há sinais de entrada forçada, se há marcas de ferramentas ou travas quebradas, etc. etc. O veneno não; ele pode, por vezes, ser muito
sutil. E é fato corrente que, para um assassinato, o veneno é usado preferencialmente por mulheres.
Mademoiselle Lavélye interrompeu asperamente:
— Devo acreditar, Mr. Fëll, que está sugerindo que fui eu quem matei essas pessoas?
Fëll moveu a cabeça negativamente.
— Não, Mademoiselle. Pode ter sido tanto a senhorita quanto a própria Madame Monphord.
A referida mulher ergueu os olhos e murmurou:
— Eu? Não! — e ela fez um “O” com os lábios.
— O senhor está acusando Amye e Mademoiselle Lavélye? — era René quem falava agora. — Não posso crer nisso. Por que Amye iria querer assassinar meu avô?
— Mas não foi seu avô quem morreu. Foi o Capt. Giranne!
— Tanto pior. Por que ela iria assassinar o marido? Por dinheiro? Nunca! O capitão até que era um sujeito caridoso, mas não tinha um vintém no bolso. Mr. Fëll, c’est
impossible!
— Em casos de homicídio — anunciou Fëll —, sempre existem muitas hipóteses válidas que podem ser aventadas e consideradas. Sabemos que Madame Marjorie foi assassinada
com láudano, um extrato de ópio desnarcotizado que possui efeito sedativo e analgésico. Monsieur Lamar-Toms mostrou o atestado para mim.
— Achei que tivesse se esquecido disso — resmungou o velho.
— Então perguntei a mim mesmo — Fëll apontou o dedo para cima —, “quem é que lucrou alguma coisa com a morte dessa doce e inofensiva mulher?” A resposta que recebi
foi sempre a mesma: ninguém. Algo que achei extremamente anormal. Ninguém mata sem um objetivo, sem vislumbrar um retorno financeiro ou uma recompensa. Já a morte
de Monsieur Lamar-Toms — esta sim poderia ser muito rentável para algumas pessoas! Principalmente para o neto, que já foi nomeado ad judicia et extra como herdeiro
testamentário de sua fortuna.
Houve um “oh” coletivo diante dessa informação.
— Espere aí — disse René. — Caramba, está aí uma coisa que me interessa!
— Fique quieto! — berrou o velho. Parecia a mágoa em pessoa. — E o senhor, onde está querendo chegar? Está louco?
Fëll deu um suspiro teatral.
— Entschuldigen Sie mir, Monsieur — disse. — Eu não pretendia…
Monsieur Lamar-Toms cerrou as sobrancelhas.
— Vamos falar disso depois — sussurrou ele.
— Outro particular que chamou minha atenção foram duas declarações feitas por Mademoiselle Lavélye. Falando sobre sua falecida patroa, ela disse: “Na noite anterior
à sua morte, Madame quis que eu desembaraçasse seus cabelos… como se quisesse se despedir, como se soubesse o que iria acontecer.” Outra coisa dita por Mademoiselle
Lavélye: “Madame olhava para mim e dizia: ‘Não aguento mais! Como eu queria que essa dor passasse!’”
— Creio que não é necessário tocar nesse assunto aqui! — replicou Monsieur Lamar-Toms.
— Tudo bem, Monsieur. Estou só descrevendo os fatos principais do caso. Daí houve aquele episódio com René Cherymont. O episódio do ataque de alergia. Pois foi disso
que se tratou: um mero ataque de alergia! Lembro-me bem de como ele estava aborrecido, a ponto de dizer: “Ai, que vontade de morrer!” Com mais esse dado eu deveria
ter chegado a uma conclusão, mas foi então que um acontecimento estorvou meu raciocínio. O Capt. Giranne morreu envenenado. Afinal, em certo sentido, ele era um
de meus suspeitos primários. Agora, de uma hora para outra, ele estava morto.
— Como todo o respeito — disse René —, acho que o senhor está dando importância demais à morte do capitão, já que é sabido por todos que vovô era o alvo!
— Foi isso o que eu também supus. Supus na hora em que reiniciei a investigação, dessa vez com a colaboração do Ten. Walsham, e soubemos que a garrafa de brandy
havia sido furtada de Monsieur Lamar-Toms. Supus também na hora em que Repuert não conseguiu explicar o que havia ido fazer tão cedo no bangalô do capitão. Supus,
supus… mas tudo não passou disso.
Fëll fez uma pausa.
— Logo achei que havia algo de erado em tudo isso. Mesmo antes de sua detenção, eu já sabia que Repuert não estava envolvido nas mortes.
— Mas se não foi Repuert, quem foi? O senhor não vai nos dizer? — perguntou Mademoiselle Lavélye.
— Não sei dizer que impressão possa ter causado, até aqui, com essa explicação; mas não hesito em dizer que foram essas coisas que orientaram todo o processo dessa
curta investigação. As descrições não eram conflitantes. Os fatos não eram conflitantes. Havia só uma pessoa que dizia que Monsieur Lamar-Toms estava sob séria ameaça
de morte. Sim, só uma pessoa — afirmou Fëll, acenando com a cabeça. Depois de uma dramática pausa, anunciou: — O próprio Monsieur Lamar-Toms, o homem que matou o
Capt. Giranne.
Não havia necessidade de explicar a quem quer que fosse qual era o significado dessas palavras.
Os olhos de René se arregalaram.
— Oh, Deus do céu! Quem já ouviu uma coisa assim? Vovô não fez nada disso… Ora, que tolice — exclamou, rindo cordialmente.
— Oh, não! Não é tolice — disse Fëll. — Tenho ou não tenho razão, Monsieur?
Monsieur Lamar-Toms arquejou, seu corpo se moveu e ele recostou-se. Ele tinha um olhar vidrado, quase melancólico.
— O senhor fez isso! — vociferou René, com o dedo em riste para o nariz de Fëll. — Preparou uma acusação de homicídio sem ter a menor prova concreta. Está mesmo
louco!
— Nunca estive tão lúcido na vida.
— Isso é o que vamos ver! Vovô! Qual é a história?
O velho senhor desviou o olhar.
— Não tenho nada a dizer — respondeu ele.
— Tudo bem, é um começo. E se fizéssemos uma busca em suas coisas? Para provar que o senhor é inocente…
— De jeito nenhum — disse Monsieur Lamar-Toms à sua maneira pouco convencional. — Considero qualquer busca como uma restrição à minha liberdade individual. Quero
sair daqui.
— Lamento muito, vovô, mas antes de sair vai ter contar o que aconteceu. Eu imploro — disse René. — Não torne o assunto mais desagradável do que já é.
— Não vou dizer nada.
— Se o senhor não disser, tem alguém que vai. Mr. Fëll!…
Um grupo de rostos voltou a olhar para o detetive. Nos olhares de todos havia um estímulo mudo para que prosseguisse em seu discurso.
Mas subitamente Monsieur Lamar-Toms começou a falar.
— Eu matei o capitão. Tinha meus motivos e não vou arrumar justificativas. Tenho que felicitá-lo, Mr. Fëll. Eu o segui ao bangalô, ontem à tarde. Conversei com ele,
falando sobre as nossas divergências… já sabendo que, em vez de acalmá-lo, isso iria revoltá-lo ainda mais. Deviam ser umas quatro horas. Eu nunca imaginara que
ele ia se tornar tão agressivo. Gritou-me que iria me entregar para a polícia, e expor-me como o assassino que eu era. Ele falou as palavras separadamente, ofegando.
Continuei calado e dei-lhe a garrafa de brandy, que trouxera comigo justamente para essa ocasião. Tudo correu à perfeição. Eu sabia que, a partir dali, seria só
uma questão de horas até que ele… estivesse morto.
— Mas por quê? Por que matar o capitão?
Edmund Fëll interveio:
— A morte do Capt. Giranne foi objeto de uma promessa solene. Não foi uma morte puramente arbitrária. Não, de modo algum. O Capt. Giranne sabia de uma coisa — uma
coisa que ameaçava tornar pública. E isso era algo que o senhor não poderia permitir, fosse como fosse. Como poderia se safar daquilo? Como? O senhor pôs-se a refletir…
Foi então que os contornos pouco nítidos de um plano formidável começaram a surgir em seu cérebro. Quanto mais refletia, maior lhe parecia a possibilidade de transformá-lo
em realidade. Assim, o senhor foi conferindo legitimidades às suas ações.
— O senhor fala em legitimidade? Pois saiba que Marjorie vivia agoniada, com dores incontroláveis. Exames de sangue, radiografias, extração de líquido medular, análises…
Fizeram tudo por ela. A coisa só piorou. Não havia nenhuma solução para seu sofrimento prolongado e para suas dores psicológicas e físicas. Tentei seguir o caminho
das formalidades jurídicas. Tentei conseguir uma sedação adaptada, profunda e terminal, que respeitasse a sua dignidade no fim da vida. Tive meu pedido negado. Ajudei
Marjorie… minha Marjorie!… a morrer. Eu dei assistência à sua morte! Por um dever de humanidade. Não podia mais vê-la sofrendo, vê-la se definhando um pouco mais
a cada dia, sem fazer nada. Era isso o que ce capitaine maudit se recusava a entender! Matei-o… e não hesitaria em matá-lo outra vez.
Espantado, René ficou calado por um momento, depois começou a rir.
— O senhor… matou vovó?
Monsieur Lamar-Toms parecia alheio e desinteressado.
— Não se preocupe com isso, filho. Vai ter que cuidar dos negócios durante a minha ausência. Quanto ao senhor, Mr. Fëll, pode chamar o seu colega.
Ele falava suavemente e sem afetação. Mas o que impressionava era sua determinação, sua inquebrantável força de vontade. Fëll duvidava muito que fosse julgado e
condenado.
— Tenente! Tenente!
O Ten. Walsham surgiu acompanhado do guarda uniformizado. Todos os presentes fizeram o mais absoluto e reverente silêncio.
Apollion Lamar-Toms, o homem que tinha galgado a escada da fortuna com pés firmes e mãos ágeis, cuja única finalidade na vida fora negociar e obter elevados lucros,
ergueu-se.
— É só isso? — perguntou.
Fëll fez que sim.
Após alguns minutos, quando a polícia já saíra com Monsieur Lamar-Toms, Mademoiselle Lavélye virou-se para Fëll.
Ela estava paralisada, presa na contradição da arrogância e da mágoa.
— O senhor certamente não acreditou que eu tivesse matado alguém, não é?
— Não, Mademoiselle. Isso só fez parte da encenação.
— E Repuert… Quando ele vai estar livre?
— Ele já está livre. Deseja vê-lo agora, Mademoiselle?
Mademoiselle Lavélye se mexeu. Seu esforço para sorrir mais parecia um esgar de dor ou de fadiga.
— O que quer dizer?
— Significa que ele está esperando pela senhorita.
— Mas o senhor disse…
— Isso foi antes. As circunstâncias mudaram. Vai poder encontrá-lo lá fora, Mademoiselle.
Mademoiselle Lavélye levantou-se e saiu apressadamente. Encontrou Repuert sentado sob o toldo.
Repuert virou-se e, falando no tom mais tranquilo de que era capaz, disse:
— Eu poderia ficar aqui o dia inteiro, que nunca me cansaria…
Mademoiselle Lavélye se surpreendeu suspirando e dizendo:
— Rep! Oh! Rep…
— Paige! Minha querida, você está tão maravilhosa.
Por um momento ficaram calados, contemplando a série interminável de ondas que se quebravam na praia.
— Você pensou que eu fosse o assassino?
— Não, nem por um minuto.
— Mas eu sou um assassino. Eu sabia o que o velho pretendia fazer… e não impedi.
Ela apertou o braço dele, com força.
— Não diga isso, Rep!
Repuert olhou para a moça, com muita intensidade.
— Paige… será que você… Você vai me aceitar do jeito que eu sou?
— Vou, claro que vou — murmurou ela.
— Paige, querida…
Repuert sorriu. Ela o abraçou, feliz, e apoiou a face dela junto ao seu peito.
— Tenho sonhado, Rep — disse. — Tenho sonhado…
Assim que a enfermeira saiu, Fëll olhou de soslaio para René e Madame Monphord. O espanto do rapaz foi autêntico.
— Santo Deus! — disse em tom ansioso. — Como foi que descobriu tudo isso?
— Basta um pouco de observação — disse Fëll com a maior naturalidade. — Toda a solução do caso reside numa coisa que o Capt. Giranne disse, ontem à noite. Parti
da premissa de que, naquela hora, ele estava olhando para Repuert e Mademoiselle Lavélye. Vamos supor, porém, que ele não estivesse olhando para eles, nem estivesse
se referindo ao flerte dos dois quando declarou que havia ‘um assunto que não era do agrado de certas pessoas’. Suponhamos que o capitão estivesse se referindo a
uma coisa e eu, erroneamente, tivesse pensado noutra. Foi uma frase do Ten. Walsham, hoje de manhã, que me ajudou a voltar ao começo de tudo, e focalizar as coisas
sob outro ângulo. E se, em vez de olhar para Mademoiselle Lavélye, o Capt. Giranne tivesse olhado para Monsieur Lamar-Toms, que estava sentado logo atrás dela? Se
assim fosse, a outra frase dele assumia um significado totalmente diferente daquele que eu lhe dera. “Assassinato ilegal”, dissera o capitão. Ilegal porque havia
acontecido algo contra a lei. Uma morte assistida, por exemplo. Fiz uma pesquisa na internet e descobri algumas coisas sumamente curiosas.
Fëll deu uma significativa inflexão à sua voz.
— A França tem uma lei que proíbe o prolongamento indefinido de cuidados paliativos e prevê o direito a “deixar morrer”. Esta lei autoriza o uso de tratamentos em
dosagem eficaz para aliviar o paciente, mesmo que essas doses provoquem o encurtamento do tempo de vida. Mas, ao contrário do que acontece em países como Holanda,
Bélgica e Suíça, a injeção letal é proibida na França. E se o Capt. Giranne estivesse se referindo a qualquer ilegalidade relacionada a isso? Comecei a relacionar
tudo o que eu tinha ouvido. O depoimento da enfermeira sobre a última noite de vida de Madame, a justificativa barata de Monsieur Lamar-Toms de que estava em vias
de ser morto, etc. etc. Foi aí que eu percebi que, com destreza e audácia, Monsieur estava manipulando as coisas. Uma das primeiras ações que tomara fora espalhar
a mentira de que temia estar com a vida em risco. Isso depois de ouvir dizer que o Capt. Giranne tencionava confidenciar alguma coisa para mim! Pensei, pensei e
pensei e logo cheguei a uma resposta: que tudo não passava de um estratagema específico concebido para isentar a si mesmo das suspeitas.
Madame Monphord balançou a cabeça e disse baixinho:
— Eu ainda acho inacreditável. Meu tio matou o meu marido porque…
— … seu marido sabia de uma coisa que poderia sentenciar seu tio à prisão. É triste, Madame, mas é verdade.
— E Repuert?
— Repuert foi nada mais do que um joguete. É provável que ele soubesse de toda a história, mas, com o poder que tinha sobre ele, seu tio o induziu a mentir para
protegê-lo. Será fácil compreender, porém, que Repuert não gostava dessa ascendência do patrão sobre si. Tanto que hoje de manhã ele foi até seu bangalô, Madame,
para ver se estava tudo bem com o capitão. A senhora fugiu, mas a intenção dele era boa. Quando o encontrei lá dentro, o personal ficou todo sem jeito. Mais tarde,
ao reconstituir seus movimentos, vi que nada tinha muita coerência, e que toda a versão apresentada não tinha o menor nexo.
— O senhor disse que meu avô ligou para a polícia — disse René, fascinado.
— Sim.
— Mas… por quê?
Fëll continuou:
— Acho que, no fundo, Monsieur Lamar-Toms sentiu uma pontinha de remorso pelo que havia feito. Até um criminoso não é totalmente desprovido de sentimentos.
Alec Baurer
O melhor da literatura para todos os gostos e idades