Biblio "SEBO"
Um sonho na praia
Aquela sexta-feira era o último dia de aulas antes das férias da Páscoa. E a última aula do dia acabou à uma hora, de modo que pelas duas e meia eu já tinha almoçado e estava na rua, pronto a aproveitar uma tarde sensacional, com sol e calor.
O Frederico, que é meu colega de turma e meu amigo, -além_de pertencer ao Bando dos Quatro (se vocês ainda hão sabem o què é o Bando dos Quatro continuem a ler, que eu já vou explicar), tinha-me desafiado para uma corrida de bicicleta e eu estava pronto a mostrar-lhe que, com a minha Zapp Super H, ele não tinha hipóteses nenhumas.
Mas o dia estava mesmo quente, mais do que é habitual na Páscoa, por isso, ao fim de umas pedaladas "para aquecimento", nós aquecemos tanto que já tínhamos a língua de fora e não nos apetecia nada fazer uma corrida a sério.
- Fica para outro dia! - disse o Frederico. - E se fôssemos até à praia? Pouco passa das três horas.
Era uma boa ideia. A Praia dos Rosmaninhos fica mesmo junto a Vila Rica - que, não sei se vocês sabem, é onde eu vivo - e o caminho, a pé, são cinco minutos, no máximo; de bicicleta, nem dois minutos são. Só que/ quando íamos arrancar, apareceu-nos o Álvaro, o meu irmão mais novo, que, como tem horários diferentes dos meus, acabava de sair da aula da tarde e agora já estava também em férias. Conversa para aqui, conversa para ali, o Álvaro declarou que queria ir connosco, só precisava de dar um salto a casa para ir deixar os livros e trazer a bicicleta dele.
Vocês hão-de achar que eu e o Frederico estávamos a dar muita confiança a um miúdo - sim, porque o meu irmão, para nós, é um miúdo! - e eu, normalmente, talvez pensasse o mesmo. Mas acontece que o Álvaro é muito esperto e é fixe: basta dizer que mereceu ser admitido no Bando dos Quatro. Por isso, eu disse:
- Despacha-te, senão nós não esperamos por ti!
E ele lá foi a correr e teve a esperteza de se lembrar de trazer uma bola. Portanto, meia hora depois, estávamos na praia, que naquela época do ano não tinha quase ninguém. A gente de Vila Rica acha que praia é só no Verão.
Fomos até à beira-mar, onde soprava um ventinho fresco, para jogar à bola na areia molhada.
O jogo não era grande coisa, porque éramos só três e assim não podíamos formar equipas.
- Falta-nos, pelo menos, mais um para jogar! - disse o Frederico, quando parámos para descansar.
- Pois, falta-nos a Catarina! - disse eu.
- A tua namorada! - disse o Álvaro, muito impertinente.
Eu corei e respondi: / - Não sejas parvo.
- Não sou nada parvo. Eu até gramo a Catarina. Mas uma miúda, para jogar a bola...
O Frederico interrompeu: - Eu acho que ela até joga melhor que tu!
E era capaz de ter razão. Mas claro que o Álvaro não ia encaixar aquela:
- Isso é que era bom! Está bem que ela até é muito fixe... - e suspirou: - Quando é que o Bando dos Quatro entra outra vez em acção?
Aqui está: o Álvaro, a Catarina, o Frederico e eu tínhamos entrado numa grande aventura, que meteu bandidos e tudo. Foi aqui mesmo, em Vila Rica, na Quinta das Azáleas, que é do avô da Catarina. Por causa dessa aventura, descobrimos o túmulo e o tesouro de São Múnio, o padroeiro da vila, e essa descoberta fez com que o avô da nossa amiga (que, a propósito, é marquês, mas não é rico) pudesse arranjar dinheiro para transformar o velho solar da quinta numa estalagem.
Nessa altura, nós formámos o Bando dos Quatro e até viemos nos jornais. E agora, o Álvaro tinha o corpo a puxar-lhe para outra! Eu, confesso, também. Mas as aventuras, raciocinei, não acontecem quando queremos. E foi isso o que eu disse ao meu irmão.--- Onde é que estarão os bandidos, a quadrilha do Mariola?
- Se calhar, andam aí perto! - continuou o Álvaro, cheio de esperança...
- Estás maluco! - respondeu o Frederico - Hão-de estar bem longe, a fugir à Polícia E ainda bem, que eu não queria ver-me noutro assado como aquele!
O Álvaro teimou: - Até foi giro! Se a Catarina aqui estivesse, havíamos de arranjar uma aventura qualquer. Por que é que ela não vem passar as férias a Vila Rica?
- Sei lá! - disse eu. - Acho que os pais têm de ficar em Lisboa. E com as obras no-solar, não tinham onde se hospedar, porque a Pensão Rosinha só abre no Verão e a outra estalagem também está em obras. Bem! Vamos continuar com esta conversa mole ou damos mais uns chutos?
Fomos até à beira-mar, jogar à bola na areia molhada.
Fomos dar mais uns chutos. Com o exercício, até mesmo a brisa fresca não impediu que ficássemos cansados, a transpirar. O Frederico e o Álvaro decidiram então ir apanhar caranguejos nas rochas e eu deixei-os. O que me apetecia era deitar-me um bocado na areia. Mas para não apanhar vento - i a minha mãe passa o tempo a dizer: "Não apanhes vento quando estás suado!" -, trepei a uma duna e arranjei um espaço abrigado, onde me deitei, com as mãos debaixo da cabeça, por causa da areia, e fiquei a ouvir o mar.
Vocês sabem como é: ali de papo para o ar, o calor do sol, o mar a fazer música de fundo, o cansaço do jogo... adormeci. E sonhei.
Já não me lembro do sonho. Sei que, a certa altura, comecei a ouvir uma conversa muito esquisita. Não conseguia ver quem falava, mas ouvia as vozes. Eram vozes de homens e achei-as desagradáveis. Não compreendi todas as palavras, só uma frase, aqui e além. Era assim:
- ... A mercadoria está aqui amanhã, de certeza... (uma voz)
- ... E o barco? (outra voz)
Uma terceira voz: -... O tipo da bilheteira... Depois, a segunda voz: -... Uma coisa chamada Guilherme Tell...
E a primeira voz: - Atenção ao Ezequiel!
Depois as vozes desapareceram do meu sonho. E a seguir, não sei quanto tempo mais tarde, acordei ao ouvir outras vozes muito diferentes: o Álvaro e o Frederico estavam a chamar por mim, berrando com quanto fôlego tinham.
Com tudo aquilo, eu fiquei atordoado, de modo que não me levantei logo, só gritei:
- Que é que foooi?
Enquanto eles respondiam qualquer coisa, espreguicei-me, levantei-me devagar e comecei a sacudir a areia. Foi nessa altura, enquanto o Álvaro e o Frederico se aproximavam, que me veio tudo à lembrança.
- Que sonho mais estúpido! - disse para mim próprio, em voz alta.
- Que estás tu para aí a resmungar? - perguntou o Álvaro.
- Nada, foi um sonho estúpido que tive. Que horas são?
Eram quase cinco horas, íamos chegar a casa atrasados para o lanche. Por isso, fomos buscar as bicicletas e eu pus de parte as lembranças do meu sonho, convencido de que ia esquecer tudo muito depressa, como acontece quase sempre com os sonhos.
Mas aí é que eu estava muito enganado, como vocês vão ver a seguir!
Seria, mesmo um sonho?
O que, logo no princípio, me fez umas comichões cá dentro foi lembrar-me tão bem das palavras que tinha ouvido no sonho; pelo menos, daquelas que eu tinha compreendido. Enquanto pedalava em direcção a casa tinha todas essas palavras na memória e sabia que não ia esquecê-las. Estranho!
Claro que nada daquilo fazia sentido: mercadoria, barco, bilheteira, Guilherme Tell... para começar, eu não conhecia nenhum Guilherme. Só conhecia um Ezequiel, que era um velhote simpático, funcionário do Futebol Clube de Vila Rica, o FCVR, de que eu sou sócio, e com muita honra.
Bom, mas tudo isso passou-me da ideia ao chegar a casa. O meu pai já tinha vindo da loja, o que não era habitual, porque costuma ficar até ao fecho; diz ele que acha que o patrão deve dar o exemplo aos empregados.
- Vocês estão atrasados! - disse a minha mãe para o Álvaro e para mim. - Vão já lavar as mãos para lanchar! - Depois virou-se para o meu pai: - E tu também, anda!
- Eu? - perguntou ele, espantado. - Mas eu não quero lanchar!
- Estás com muita sorte... - disse o Álvaro entredentes, divertidíssimo. E tinha razão, claro, porque a nossa mãe não papa desculpas daquelas:
- Se estás em casa a esta hora, lanchas! O resultado foi que o nosso pai lá veio atrás de nós, resignado e a rir, lavar as mãos.
Mais tarde, quando estávamos à mesa, perguntei-lhe por que é que tinha vindo tão cedo e ele respondeu:
- Porque precisei de ir a casa do doido do teu tio! Mas não o apanhei e então vim até cá, podia ser que ele estivesse de visita à irmãzinha...
O "doido do meu tio" é o Tio João, irmão mais velho da minha mãe. "Doido" talvez seja exagerado, agora que deve ter um parafuso a menos, isso deve. Todos nós gostamos muito dele.
O meu pai continuou a explicar: - Pedi-lhe que me traduzisse uma carta para inglês, para mandar por fax a um fornecedor... é uma encomenda de roupa para o Verão... e ele, claro, tem lá a carta há três dias e nada. Aposto que se esqueceu. E, ainda por cima, ninguém sabe onde ele pára!
- Deve ter ido a Lisboa - sugeriu a minha mãe. - Telefona-se mais tarde. Só que, se ele estiver a escrever, é muito capaz de nem ouvir o telefone.
Então, ofereci-me para ir a casa do Tio depois do jantar. Às vezes, gosto de passar um bocado de serão com ele, se não lhe dá na veneta de pôr aqueles CD's muito chatos de música clássica. Mas também, quando isso acontece, eu raspo-me logo e ele não fica zangado.
Portanto, passei o resto da tarde diante do computador a aprender um jogo novo que o Frederico me tinha passado. A Cristina, que é a minha irmã mais velha, veio da escola só pelas seis horas - bem que a gozei, porque foi, de nós os três, quem começou as férias mais tarde! - e, cheia de pressa, foi logo tomar banho e aperaltar-se porque não jantava em casa, tinha uma festa com os colegas e, suponho eu, com o namorado, o Luís. Ainda tivemos uma discussão, ela tem a mania de usar o meu pente e eu detesto que usem o meu pente, de modo que ficámos um bocado esquerdos um com o outro.
Tudo isto é para explicar que, com o meu pai em casa e a Cristina fora (ela demora séculos a vir para a mesa, os pais estão sempre a ralhar-lhe por causa disso), acabámos de jantar mais cedo do que é costume; ainda a telenovela não tinha-começado e foi uma boa "coisa, porque assim não tive de suportar aquelas cenas do género "eu amo vocêêê"... e outras que tais. E logo a seguir, saí, montei na bicicleta e dirigi-me a casa do Tio João.
Ao chegar, fiquei espantado. Na porta da rua, vi espetada, na madeira, uma piunaise de cabeça vermelha, o que é um código que o Tio arranjou para mim: se ela não estiver lá, eu posso entrar para passar o serão; se estiver, isso indica que ele está a escrever - um artigo para um jornal, ou mais um livro, porque é esse o seu ofício - e então não quer ser interrompido.
Mas a piunaise estava lá, só que eu tinha a certeza de que havia visitas. Ouvia vozes lá dentro e, além disso, havia uma mota parada junto da porta. Mais esquisito ainda: tinha quase a certeza de que era a mota do Luís, o namorado da Cristina. Ora, o Luís não era propriamente uma visita regular da casa do Tio João.
"Tanto pior" pensei eu, "vou tocar. Afinal, tenho sempre a desculpa de lhe perguntar pela tradução". E toquei.
O meu tio veio abrir, com o seu eterno e horroroso cachimbo entre os dentes.
- Ora viva, o infante!
Aí estava ele com as palavras difíceis.
- Ó Tio, desculpe eu tocar, mas é que...
- Desculpar, porquê? Ah! - olhou para a piunaise e arrancou-a. - Isto! Pois é, esqueci-me de a tirar. É que já fui interrompido, sabes, tenho visitas... é mesmo um congresso familiar, ao que parece!
Quando cheguei à sala, percebi aquela do congresso familiar: estavam lá o Luís e a Cristina.
- Então, tu não ias a uma festa? - perguntei eu à minha irmã. Ela, que ainda estava picada comigo por causa do pente (quando eu é que devia estar picado), respondeu:
- E depois? O que é que tens com isso?
- Paz! Paz e amor fraternal! - disse o Tio João. - Senta-te, Carlos... eu estou só a acabar uma conversa aqui com o nosso Paganini...
O Luís fez um sorriso embaraçado. Aqui para nós: eu não fazia a mínima ideia sobre o que era isso de Paganini. O que eu sabia era que o Luís, que tem dezassete anos, andava a estudar violino.
- ... Estavas tu a dizer...? - continuou o tio a falar para o Luís, que aclarou a garganta.
- Bom, como eu expliquei, o Zeca é meu amigo, é um tipo muito fixe... e ele disse-me que a orquestra tinha uma vaga, falta-lhe um violino...
- Ah, já estou a ver... - E prosseguiram numa conversa que não me interessava nada, de modo que pedi licença, fui para o canto de trabalho do Tio João, liguei o computador e procurei um jogo, "Os Monstros de Aço", que lá tinha metido dias antes. Eles continuavam a falar e eu não lhes dava atenção, mas a certa altura ouvi o Tio dizer:
- Então, eles vão tocar duas aberturas, uma a seguir à outra?
E o Luís: - Pois, porque como aqui em Vila Rica o concerto é... vamos lá, é pouco importante, aproveitam para fazer uma espécie de ensaio geral com peças novas... por isso vão tocar a abertura do "Navio Fantasma" e a abertura do "Guilherme Tell"...
Guilherme Tell, estão vocês a perceber? Ao ouvir isto, arrebitei logo as orelhas. E distraí-me, de modo que os "Monstros de Aço" deram cabo de mim e desisti do jogo.
Pouco depois, a Cristina e o Luís despediram-se e foram para a tal festa. Então, quando o Tio João voltou à sala, eu ataquei logo:
- Ó Tio, desculpe a curiosidade, que história é essa?
Ele sorriu: - Já ouviste falar na Orquestra Sinfónica de Subvinte?
- Não, só conheço o futebol de subvinte...
O Tio instalou-se numa poltrona, acendeu outra vez o cachimbo (grrrr!) e explicou:
- Justamente. Foi uma ideia maluca que eu tive... (Claro! Só podia ser dele!)
Guilherme Tell, estão vocês a perceber?
- ... Se há futebol de subvinte, porque não há-de haver música clássica de subvinte? Um amigo meu, o Diogo Cortês, que é maestro, gostou da ideia e conseguiu formar uma orquestra só com rapazes e raparigas com menos de vinte anos. E essa orquestra vem tocar a Vila Rica, chega depois de amanhã. E o Luís, que sabe que eu sou amigo do director... do Diogo Cortês... veio pedir-me que metesse aquilo a que se chama uma "cunha"... estás a perceber?
Eu percebia, mas faltava-me saber o mais importante: - E quem é esse tipo, o Guilherme Tell?
O Tio João desatou a rir. - Para o caso que nos interessa, "Guilherme Tell" não é um tipo, é uma ópera de Rossini. Eles vão tocar a abertura do "Guilherme Tell"... satisfeito?
Disse-lhe que sim e fiquei a matutar.
- Estás muito pensativo, Carlos!
- Tio, onde é que essa orquestra de subvinte vai dar o concerto?
- No único sítio possível em Vila Rica: no estádio de futebol.
Depois de ouvir isto, o serão, para mim, ficou mais ou menos estragado, porque não conseguia conversar a direito. Ainda perguntei, já agora, quem era o Paganini e fiquei a saber que foi um violinista e compositor famoso; isto foi só mesmo perguntar por perguntar, pois estava preocupado com outra coisa. Só quando ia a sair é que me lembrei da razão por que tinha vindo:
- Tio, aquela tradução que prometeu ao meu pai...
Ele deu uma palmada furiosa na testa.
- Eu sabia! Eu sabia que me faltava qualquer coisa! Carlos: diz ao teu pai que eu lhe apresento as mais abjectas desculpas (lá tinha eu de ir ao dicionário ver o que é "abjecto"), mas que amanhã, logo ao romper da manhã, eu mando-lhe a tradução por fax.
Porque o Tio João, que só gosta de coisas antigas - casas antigas, mobília antiga, louça antiga -, não só tem computador como fax. Diz ele que isso lhe poupa o trabalho de ir meter-se no trânsito de Lisboa.
Mas enquanto eu voltava para casa, não pensava em nada disso. O que eu pensava era que, afinal, as palavras que tinha ouvido no meu sonho começavam a fazer sentido: "uma coisa chamada Guilherme Tell"... era a abertura de uma ópera, e estava a chegar a Vila Rica uma orquestra sinfónica, e ia tocar essa abertura. A orquestra ia tocar no estádio do FCVR e uma das vozes, no meu sonho, tinha dito: "o tipo da bilheteira"... era a bilheteira do estádio, onde costumava trabalhar o Ezequiel - não na bilheteira, mas como arrumador.
Claro que faltava perceber aquela parte do "atenção ao Ezequiel!" e ainda a referência à "mercadoria" e ao "barco".
Mas, mesmo assim, comecei a matutar: e se aquilo não fosse um sonho? Han?
Uma decisão importante
Se não fosse um sonho, então eu.tinha ouvido mesmo uma conversa. Pelo menos três pessoas tinham estado perto de mim, na duna, sem me ver - é verdade que eu não devia ter sido muito visível - e tinham tido aquela conversa. Que era esquisita.
Portanto, no dia seguinte, logo que saí de casa, fui ao estádio do FCVR e perguntei ao encarregado pelo Ezequiel.
O encarregado encolheu os ombros com irritação:
- Queres falar com o Ezequiel? Também eu! Não está. Ontem à noite, chegou-me aqui um tipo, que parece que é primo dele. Trazia um bilhete do Ezequiel a dizer que teve de ir a Coimbra, porque tem uma irmã doente, e o primo fica a substituí-lo... não esperava que ele me fizesse isto. Ao menos, vinha falar comigo! Quando ele voltar, vai ouvir das boas! E a minha vontade era mandar o primo à fava, mas vamos ter uns concertos aqui no estádio e precisamos de todo o pessoal e não consigo arranjar ninguém em tão pouco tempo, por isso lá tive de o aceitar!
Agradeci e deixei o homem a resmungar sozinho. E, agora, eu tinha, por assim dizer, umas luzinhas vermelhas a piscar cá dentro... tudo aquilo era muito estranho! "Atenção ao Ezequiel!", era o que eu tinha ouvido?; e o Ezequiel desaparece e manda um primo para o substituir. Ná, ali havia coisa.
Então, veio-me esta ideia: ainda na véspera, o Álvaro lamentava-se porque o Bando dos Quatro não tinha mais nenhuma aventura. Ora, esta história podia muito bem ser uma aventura!
Não perdi tempo. Fui logo à procura do meu irmão, que estava a jogar matraquilhos no snack-bar do Silva.
- Quantos jogos é que já perdeste? - perguntei-lhe.
- Não estás bom da cabeça! - respondeu-me, furioso. Virou-se para os outros miúdos, amigos dele: - Deixem-no jogar, já vão ver a coça que leva!
- Nada disso! - respondi eu. - Anda daí, temos de ir à procura do Frederico.
- Para quê?
Em resposta, abri muito os olhos. Ele compreendeu logo:
- O Bando?
Fiz que sim com a cabeça. Então, o Álvaro disse aos outros que tinha que fazer e abalou comigo. Na rua, perguntou-me:
- O que é que há?
- Espera, depois conto tudo.
O Frederico estava em casa, no quarto, diante do computador, a jogar "Os Monstros de Aço". Era o jogo da moda.
Contei-lhes a história toda. Eles concordaram comigo: ali devia haver marosca. Valia a pena o Bando dos Quatro investigar.
- Pois! - disse o Frederico. - Mas o Bando dos Quatro, agora, só tem três!
Eu já havia pensado nisso, evidentemente.
- Vamos telefonar à Catarina, talvez os pais a deixem vir. Tenho cá uma ideia... temos é de decidir: o Bando dos Quatro vai ou não entrar em acção?
Eles disseram que sim, já se vê. E, depois do almoço, pusemos a minha ideia em prática, isto é: reunimo-nos e fomos tocar à porta do Tio João.
Ele veio abrir, olhou-nos e, sem aviso, ali mesmo à porta, atirou-nos com esta:
- Sabiam vocês que o D. Afonso Henriques continuou a dar-se bem com a mãe mesmo depois de lhe ter tirado o governo do Condado Portucalense?!
Aquilo era bem uma coisa do Tio João. Olhámos uns para os outros, apalermados.
- O D. Afonso Henriques...? - comecei eu.
- Sim. Mas entrem, entrem, digam o que querem de mim.
Entrámos. Ao chegar à sala, comecei a perceber: sobre a mesa grande, havia uns quatro ou cinco livros, do género calhamaço, todos abertos, e uma resma de folhas escritas à mão.
- Ah, estou a ver. O Tio está a estudar isso... Ele fez um gesto largo com os braços.
- Pois estou. É para um programa de televisão. Fiquem a saber que, depois da batalha de São Mamede, D.Teresa, a mãe de D. Afonso Henriques, continuou a ter boas relações com o filho, apesar de se ter ido embora para a Galiza.
- Tio... - comecei eu -... isso deve ser interessantíssimo...
- Claro que é! Não vês que a tal história de D. Afonso Henriques a bater na mãe é só uma lenda, afinal?
Lá que tinha piada, tinha. Mas nós vínhamos tratar de outro assunto. O Tio, que me topa muito bem, atalhou logo:
- Bom, esta conversa fica para depois. O que é que vocês querem?
Queríamos pedir-lhe um favor. A Catarina pode ficar aqui em sua casa durante uns dias?
Por um instante, pensei que ele ia dizer que não. Afinal, encolheu os ombros e respondeu:
- Por mim, tudo bem. Só não posso é garantir que lhe dou de comer, porque vou ter de dar umas voltas nos próximos dias e a D. Ermelinda (a mulher-a-dias) só vem duas vezes por semana...
- Não há azar - respondi -, tenho a certeza que ela pode comer em nossa casa!
- Então - disse o Tio, apontando o telefone - façam o favor!
Fui eu que fiz o telefonema e, felizmente, a Catarina estava em casa. Não perdi tempo em conversas, propus-lhe logo que viesse e expliquei a combinação com o meu tio. Ela também não perdeu tempo:
- Espera aí, vou perguntar à minha mãe! Daí a um minuto ouvi-lhe outra vez a voz:
- Está? A minha mãe diz que pode ser. Vou amanhã, na camioneta das nove, devo chegar aí às dez menos um quarto...
- Eu vou esperar-te...
- Vamos todos! - interrompeu o Frederico. E a Catarina: - Está bem, eu ouvi, era o Frederico, não era?
- Era. Mas... - ela não esperou que eu acabasse:
- Olha lá, qual é a ideia?
Não ia contar-lhe tudo ali, por isso limitei-me a dizer:
- É o Bando dos Quatro.
E logo a voz da Catarina, excitada:
- Aaaaaah... estou a ver! Há coisa?
- Há.
- Então, não façam nada antes de eu chegar, senão fazem asneira. Até amanhã!
- Que gracinha! - rosnei, mas ela já tinha desligado.
Ao virar-me, dei com o Tio João a olhar para mim.
- Sentem-se um bocadinho - disse ele -, que quero esclarecer uma coisa.
Pois, eu já devia ter previsto aquela dificuldade. Sentámo-nos em silêncio, a trocar olhares de aviso. O Tio encheu o cachimbo devagar, acendeu-o e voltou a encarar-me.
- O Bando dos Quatro - começou ele. - Salvo erro, omissão, ou súbito eclipse das minhas capacidades...
- O Tio, não diga coisas tão difíceis!
E o Tio:
- Difíceis? O quê? Eclipse é difícil? Acho que sabes o que é. Bem, se não sabes há sempre o dicionário. Enfim: ou eu me engano muito, ou essa convocação da Catarina, e essa alusão ao Bando dos Quatro, quer dizer que vocês estão a preparar alguma...
- Nós?
- Não me interrompas... devo lembrar que quando vocês formaram o tal Bando dos Quatro meteram-se num sarilho. Acabou tudo bem, mas podia^não ter acabado assim. Portanto, meninos, eu não vou querer saber do que se trata agora, mas atenção: vejam no que se metem e
- se a coisa... seja que coisa for... aquecer, venham, pelo menos, falar comigo. Isto é uma promessa que eu exijo.
Prometemos. Afinal, o Tio é fixe e ia hospedar a Catarina.
- Bem - continuou ele, indicando os livros - e agora vou voltar ao D. Afonso Henriques e à D. Teresa e à batalha de São Mamede.
- Esta sala é muito gira - disse o Frederico, quando nos levantámos. Ele não vai muitas vezes a casa do meu tio, de modo que não está habituado. É verdade que a sala é gira, apesar de todos os móveis serem antigos.
- Só não percebo - disse ainda o Frederico - para que é aquela almofada no chão. Ainda se houvesse um cão cá em casa... há?
O Tio João deu uma gargalhada: -- A almofada não devia estar ali, caiu da poltrona. E não tenho cão.
- Pois devia ter - interveio o Álvaro -, fazia-lhe companhia.
- Talvez tenhas razão, vou pensar nisso. E agora desandem, que tenho muito que fazer!
Desandámos. Nesse dia, não fizemos mais nada para esclarecer o mistério - se é que havia algum mistério, e eu estava cada vez mais convencido disso. À noite, enquanto os meus pais, a Cristina e o Álvaro viam televisão, fui para o quarto, peguei numa folha de papel e escrevi as frases que tinha ouvido no sonho, que afinal, estava quase certo, não tinha sido sonho nenhum:
"- ... A mercadoria está aqui amanhã, de certeza...
- ... E o barco?
- ... O tipo da bilheteira... - ... Uma coisa chamada Guilherme Tell...
- Atenção ao Ezequiel!"
Se aquilo não era o princípio de uma aventura, pensei, então eu estava muito enganado.
O bando fica completo
A camioneta em que vinha a Catarina chegou a Vila Rica às dez da manhã e nós lá estávamos, à espera.
A Catarina foi a primeira a sair e ao ver-nos acenou. Cumprimentos, beijinhos e eu, que me prezo de ser um cavalheiro, quis pegar no saco dela.
- Tira a mão do meu saco! - foi logo o que ouvi. - Não estou doente, posso muito bem levá-lo!
- Aí estão eles na zaragata! - disse o Álvaro com um risinho irritante. - Se agora é assim, quando casarem vai ser muito pior!
- Olha lá, ó puto! - fulminou a Catarina. - Tem juízo nessa língua!
Não havia dúvida: era outra vez o Bando dos Quatro, sempre a discutir!
- Bom, e agora contem-me tudo! - acrescentou ela. Mas nós tínhamos decidido que havíamos de fazê-la sofrer um bocado.
- Tem tempo. Para já, vais deixar o saco a nossa casa. Depois, falamos.
- Vejam lá. Se me fizeram vir para nada, nem sei o que lhes faço!
O Frederico despediu-se, porque tinha de ir à Biblioteca Municipal falar com o pai - que é o director - e nós encaminhámo-nos para casa. Quando chegámos, claro, não houve hipótese de falar, porque a minha mãe fez imensas perguntas à Catarina - como estavam os pais, e o avô, se a estalagem do solar ia estar pronta para abrir no Verão e mais uma série de coisas. Entretanto, aproximou-se a hora do almoço e chegou o meu pai; mais conversas.
Ao almoço tivemos pastéis de bacalhau com arroz de tomate. E os pastéis de bacalhau que a minha mãe faz... não lhes digo nada. É difícil parar de comer. Além disso, em honra da Catarina, ela fez uma sobremesa de gelado com chocolate quente. E, já se vê, enquanto comíamos tudo isto não dava para pensar em aventuras.
Só mais tarde, quando fomos dar um passeio para fazer a digestão e encontrámos o Frederico, é que eu contei a história toda e mostrei o papel em que tinha escrito, na véspera, as frases ouvidas no meu "sonho".
- Sonho? - fez a Catarina, com ar superior. - Qual sonho! Se tudo condiz com as coisas que ouviste depois!
- Não é bem assim: não sabemos nada sobre a mercadoria nem sobre o barco.
- Pois não, mas e o resto?
Ela estava a olhar para o papel com ar pensativo.
- Já sabemos alguma coisa: primeiro, que havia três homens na praia, perto de ti, porque ouviste três vozes. Depois, que estavam a falar sobre os concertos que a Orquestra Sinfónica de Subvinte... que nome esquisito para uma orquestra...
- É, foi uma ideia do Tio João...
- Pois, já calculava... Bom, de qualquer forma é isso: tem a ver com a orquestra e com a abertura do "Guilherme Tell", isso com certeza.
- E com a bilheteira do estádio - lembrei eu.
- Sim. E com esse tipo, o Ezequiel.
- Que foi para Coimbra... - lembrou o Frederico. - O que eu não percebo é porque é que um dos homens que o Carlos ouviu na praia dizia aos outros: "Atenção ao Ezequiel!"... atenção, porquê?
Tentámos decifrar aquela charada. A melhor explicação foi ainda a do Álvaro:
- Eles devem ser contrabandistas, porque estavam a falar em "mercadoria". E o barco é que traz a mercadoria...
A isto, a Catarina fez uma objecção: - Pois, e o que é que isso tem a ver com a abertura do "Guilherme Tell"?
Nenhum de nós fazia a mais pequena ideia. Discutimos, arranjámos dezenas de hipóteses, mas a verdade é que não chegámos a conclusão nenhuma. Então, decidimos deixar a questão para mais tarde. Fomos buscar o saco da Catarina e seguimos para casa do Tio João.
Ele tinha-me dito que, se não estivesse em casa, eu devia usar a minha chave - porque o Tio deu-me uma chave, uma vez em que estive a dormir lá; foi na ocasião da primeira aventura do Bando dos Quatro. Mas, afinal, estava em casa e veio abrir a porta.
- Oh, é a marquesa! - disse para a Catarina, com aquele ar de gozo que eu lhe conhecia tão bem.
- Eu não sou marquesa! - protestou a Catarina.
- Isso não é razão para não entrares. Entrem todos!
Entrámos a rir . E quando chego à sala, vejo isto: na mesa ainda estavam os mesmos livros da véspera e sobre um deles, aberto, estava deitado um gatinho muito pequeno, de pelo branco, malhado de preto. Quando nos viu, levantou-se a bocejar e olhou-nos com curiosidade.
- Que giro! - disse a Catarina e pegou logo nele.
O Tio João declarou: - Como vêem, decidi seguir o vosso conselho.
Que giro!
Aclarei a garganta: - O que nós dissemos foi que devia arranjar um cão. E o Tio arranjou um gato!
- Pois é, mas é um gato muito engraçado! Nunca hei-de perceber a lógica do Tio João.
- Além disso - continuou ele -, um cão é menos independente. É preciso deixá-lo ir à rua ou levá-lo a passear, não pode ficar sozinho muito tempo... os gatos, não sei se sabes, são impecáveis: fazem as necessidades sempre num caixote!
A Catarina estava deliciada com o gato:
- É mesmo engraçadinho! Que idade tem? Onde é que o arranjou?
- Tem quinze dias e foi a D. Ermelinda que mo deu, a vizinha dela tem uma gata...
O gatito estava a trepar pela blusa da Catarina. Chegou ao ombro direito, sentou-se aí e começou a cheirar-lhe o cabelo, com muita atenção. Ela ria.
- Já lhe pôs um nome?
--^Claro! Chama-se Tut-Ankh-Amon.
- - Quê?! - larguei eu.
- Tut-Ankh-Amon.
Dele, era de esperar uma coisa assim. Apesar disso, não me contive:
- Tio, suponho que não podia chamar-lhe Tareco, por exemplo...?
E ele, muito digno: - Que horror! Um gato meu chamar-se Tareco! Nunca. Tut-Ankh-Amon é óptimo. Era um faraó do Egipto...
- Pois, e aposto que o bicho nunca vai dar pelo nome!
O Tio não se desencorajou: - Vai sim, porque tem um diminutivo: Tut. E Tut é fácil de aprender.
Nessa altura, o Tut não estava a aprender nada, estava a tentar descer pelas costas da Catarina e, claro, ao fincar as unhas na roupa, com mais força, ela sentiu e disse "Ai!", mas continuava a rir-se.
O Tio João desprendeu-o, pousou-o na mesa e foi mostrar o quarto à Catarina. O Álvaro, o Frederico e eu ficámos a brincar com o gato que, para dizer a verdade, era muito engraçado.
- E se nós lhe chamássemos mesmo Tareco? - propôs o Álvaro.
- O Tio ficava fulo. Não, é melhor chamar-lhe Tut. Só Tut, não é difícil de dizer.
Então, o Frederico lembrou: - Tudo isso é muito bonito, mas estamos a perder tempo. E não sabemos o que havemos de fazer.
Nessa altura, tocaram à porta. Fui abrir; eram a Cristina e o Luís, que vinham falar com o Tio João. Claro que a Cristina achou imensa graça ao Tut e começou logo a brincar com ele.
Entretanto, o Tio João voltou com a Catarina e ao ver as duas novas visitas perguntou logo:
- A orquestra já chegou?
- Já chegou - disse o Luís -, mas há qualquer coisa que não percebo. O Zeca, aquele meu amigo de que lhe falei, está nervosíssimo, deve ter um problema qualquer.
- Ah sim? - o Tio sentou-se. - Bem, eu, pela minha parte, vou falar ao Diogo Cortês a teu respeito, estou certo de que ele vai mostrar boa vontade. Lá quanto ao problema do Zeca, é que acho que não posso fazer nada...
- Não, claro que não... - o Luís sentou-se também, com ar preocupado. - Não sei o que possa ser. Talvez tenha recebido carta da família... ele é cabo-verdiano, os pais estão em Cabo Verde... ou então... mas não, não pode ser isso...
- Desembucha! - ordenou o Tio.
- Bem, a orquestra teve uns aborrecimentos. Primeiro, o motorista que costuma conduzir a camioneta deles teve um desastre, foi atropelado, e o motorista que conseguiram arranjar para o substituir é um tipo muito antipático. Depois, quando vinham para cá, houve uma "operação-stop" na estrada. Mas não foi uma operação como outra qualquer: a Polícia revistou o motorista e a camioneta!
- Curioso... - comentou o Tio, pensativo.
- Pois é. Mas não vejo que isso possa ter posto o Zeca no estado em que está! Bom, não quero aborrecê-lo com esta questão. Então, se quiser falar ao director...
O Tio João acenou com a cabeça. - Fica descansado. Eles estão alojados na Azenha Velha, não é...?
Nesta altura, a Catarina fez-nos um sinal e nós - o Frederico, o Álvaro e eu - batemos em retirada para o quarto dela. Era o mesmo quartinho onde eu tinha ficado daquela vez em que a horrível prima Zezinha se instalou em minha casa.
- Vocês ouviram? - disse a Catarina. - A Polícia revistou a camioneta da orquestra. Aposto que é alguma coisa ligada com o nosso assunto!
O Álvaro perguntou porquê e eu intervim:
- Porque é uma questão de "mercadoria" e tem a ver com a orquestra, já que eles falaram no "Guilherme Tell".
O Frederico acrescentou: - E tem a ver com o estádio do FCVR, não se esqueçam disso! Eles também falaram na bilheteira!
- O estádio tem duas...
- Pronto, uma das bilheteiras. A coisa começa a desenhar-se.
A Catarina cruzou os braços e sentenciou:
- Pois, começa a desenhar-se; só que ainda não percebemos nada.
E eu:
- Já percebemos um bocado: há uma mercadoria que vai ser embarcada...
- Ou desembarcada - lembrou o Álvaro.
- Não compliques. De qualquer maneira, com certeza que vão escondê-la numa bilheteira do estádio. Até aqui, já chegámos.
A Catarina não estava muito certa: - A verdade é que pode não ser nada disso. Sabem que mais? Amanhã vamos à praia. Procuramos a duna onde o Carlos esteve a dormir. E exploramos tudo, a ver se encontramos algum sinal, alguma indicação. Talvez os homens ainda andem por lá, quem sabe?
Esta ideia foi aprovada por todos. Quando íamos a sair do quarto, ouvimos, vinda da sala, uma onda de música - era mesmo uma onda, aquela música pesada, barulhenta, que o Tio João às vezes me impinge. Ao entrar na sala, demos com o Tio e o Luís muito embevecidos e a Cristina com ar resignado.
- Tio, que tempestade é esta? - perguntei. Ele sorriu, divertido.
- Tens muita razão, é uma tempestade no mar! É a abertura do "Navio Fantasma", de Wagner! A orquesta vai tocá-la no concerto... gostas?
- Adoro! - exclamei eu, encaminhando-me a toda a pressa para a saída.
Um velho conhecido
No dia seguinte, de manhã cedo, reunimo-nos todos no snack-bar do Silva e partimos, a pé, para a praia. O tempo não estava grande coisa, havia nuvens no céu e soprava um vento fresco, mas, pelo menos, não nos parecia que viesse a chover.
Na praia, não havia quase ninguém: só uns homens a apanhar lapas nas rochas e o senhor Zeferino, que é maníaco da pesca e lá estava agarrado à sua cana - "a dar aulas de natação a uma minhoca", como disse a Catarina com um risinho.
Subimos às dunas e procurámos o sítio onde eu tinha adormecido. Encontrei-o facilmente, mas, como seria de esperar, não havia ali nada de especial.
- Para dizer a verdade - desabafei eu -, não sei o que é que esperávamos encontrar aqui. Pegadas é impossível... só se a Catarina conseguir cheirar alguma coisa... - acrescentei, com uma pontinha de troça. Ela fungou.
- Muito engraçado. Viemos aqui para ver o sítio e pode ser que isso nos dê umas ideias.
Então, o Álvaro disse: - Aqui têm uma ideia: de onde vieram os tais homens? De que direcção?
- Sei lá! Eu estava a dormir!
O Frederico acudiu: - O Álvaro tem razão: eles não devem ter vindo da vila, portanto, só podem ter vindo do pinhal. Vamos até lá?
O Pinhal Grande fica a uns duzentos metros da praia e está separado dela pelas dunas e por um descampado de areia coberto de plantas rasteiras. Fomos por aí. E é engraçado que, mesmo sem dizermos nada uns aos outros, passámos a caminhar com cuidado, evitando fazer barulho, e só falávamos pouco e em voz baixa.
Estava eu a pensar que aquelas cautelas todas eram ridículas, quando, à entrada do pinhal, avistámos a casota. Todos nós a conhecíamos, era uma velha barraca de madeira e zinco, já um bocado estragada. Tinha sido usada por uns pescadores para guardar redes, até que a zona de pesca foi mudada para mais longe, quando a Praia dos Rosmaninhos foi reservada só para banhos. Desde então, a barraca ficou para ali, abandonada, e até "O Vila-Riquense" o jornal da terra, já tinha publicado um artigo a dizer que a Câmara devia deitá-la abaixo.
O que chamou a nossa atenção foi que alguém havia consertado a barraca e até lhe tinha posto uma porta nova. Parámos a certa distância, a olhar.
- Se calhar, os homens vieram dali - sugeriu o Frederico. - O que é que vocês acham?
Não achávamos nada, não havia razão nenhuma para pensar isso ou o contrário. A Catarina, sempre muito decidida, declarou:
- Em vez de estarmos aqui especados, o melhor é irmos ver...
- Não há nada para ver - comentou o Frederico -, a janela está tapada com tábuas e a porta está fechada...
- Haverá sempre um buraquinho por onde possamos espreitar...
A Catarina avançou. Mas eu, não sei porquê, tive um pressentimento. Agarrei-a, puxei-a para trás e disse em voz baixa:
- Escondam-se!
Eles olharam-me, admirados. Devo ter feito uma cara muito especial, porque não protestaram. Escondemo-nos atrás de um arbusto. Não aconteceu nada. Então, a Catarina disse com um risinho de troça:
- Pronto, ó génio, estamos escondidos... e agora?
Nessa altura, a porta da casota abriu-se e saiu de lá um homem que se pôs a olhar para todos os lados com ar desconfiado. Era um tipo mal encarado, de grande barba preta.
O homem olhou, olhou, e depois voltou para dentro. Nós recuámos devagar, sem fazer ruído, e afastámo-nos pelo pinhal. Quando já estávamos longe, o Álvaro respirou fundo e observou:
- Afinal de contas, porque é que nos raspámos, como se tivéssemos medo? Não estávamos a fazer mal nenhum!
Eu mal lhe dei atenção. Tinha cá dentro uma vozinha a segredar-me qualquer coisa...
- Conheço aquela cara... - disse por fim.
- Sabes quem ele é?
- Acho que sim. Esperem, não digam nada que eu vou lembrar-me.
O Frederico fez uma careta, como quem duvida. - Acho que estás a imaginar coisas. Em Vila Rica, não o viste com certeza e tu...
Dei um salto, sem querer. Tinha-me lembrado e a recordação não era agradável:
- Já sei! Já sei! É o Mariola!
- Quem? O da quadrilha?!
- Esse mesmo!
E era, agora eu estava certo. O Mariola. Quando tivemos a nossa primeira aventura, que levou à descoberta da capela e do tesouro de São Múnio, a quadrilha que estava metida no assunto era chefiada por aquele homem, que tinha a alcunha de Mariola. Nessa altura, só um dos bandidos havia sido preso, os outros ainda andavam a monte.
- Não me lembro nada dele - disse a Catarina.
- Acredito. Só eu é que o vi mais do que uma vez, não te lembras? Ele devia ter cortado a barba. Foi pela barba que eu o reconheci.
O Frederico, muito sério, perguntou:
- Carlos, tu tens a certeza absoluta de que é mesmo o Mariola?
- Claro que tenho. Absolutíssima!
- É porque assim - continuou ele -, a coisa é mesmo feia. O tipo está escondido ali com os parceiros e hão-de estar a preparar alguma! O que é que nós fazemos? Vamos já ao posto da Guarda?
A Catarina respondeu: - Espera. Para já, vamos afastar-nos mais um bom bocado e discutir sobre o assunto.
- Discutir o quê? O tipo anda fugido, nós vamos dizer à Guarda e pronto!
A Catarina teimou: - E pronto, nada! Quero ver se percebo o que está a acontecer! Não vês que andam aqui muitas coisas ligadas?
Os dois continuaram na teima enquanto andávamos. Por fim, quando chegámos à orla do pinhal, o Frederico desistiu:
- Muito bem, já que queres tanto discutir, vamos a isso!
Sentou-se no chão, cruzou as pernas e olhou para ela:
- Vá, começa!
E ela começou mesmo: - Temos então: uma história de mercadoria que mete um barco, que mete o tal senhor Ezequiel, que mete a orquestra sinfónica e, agora, também a quadrilha do Mariola.
- Nada disso faz muito sentido - disse eu.
- Há algumas coisas que fazem sentido: o Mariola está à espera de uma mercadoria qualquer... que, se calhar, vinha na camioneta da orquestra! Ou já te esqueceste da "operação-stop", com a Polícia a revistar a camioneta?
O Álvaro interveio: - E se o amigo do Luís, o tal Zeca, estivesse também metido? O Luís disse que ele andava muito nervoso, ou coisa assim...
Eu tive outra ideia: - E se o Ezequiel, em vez de ir para Coimbra, foi apanhado pelos tipos do Mariola? Aquela história do "primo" que o foi substituir... parece-me suspeita. Nunca ninguém viu o Ezequiel com o primo! Só não sei onde é que entram a bilheteira e o "Guilherme Tell"...
O Frederico levou as mãos à cabeça: - Isto é uma grande trapalhada! E se vamos contar esta história à Guarda, eles acham que nós sonhámos e partem-se a rir!
Cocei a cabeça. - Pois é, há esse perigo, é muito confuso... já sei: a primeira coisa que vamos fazer é contar tudo ao Tio João. Pode ser que ele consiga perceber alguma coisa. Ou então, arranja uma solução qualquer!
Todos concordaram. Pusemo-nos a caminho e num quarto de hora chegávamos a casa do Tio. Mas então, quando eu ia tocar à campainha, reparei que a piunaise vermelha estava pregada na porta.
- Isto é que é pior! Ele está a trabalhar e detesta que o interrompam.
O Frederico protestou: - É um caso especial, pá! Ele percebe! Toca lá a campainha, anda!
Abanei a cabeça. - Não. Tu não conheces bem o Tio João. Quando ele está a escrever, não gosta mesmo nada que o interrompam e fica mal disposto. Se lhe aparecemos com uma história destas... ora, nem nos ouve, ou é capaz de não acreditar. Vai por mim, é melhor voltar mais tarde.
O Frederico não ficou muito convencido, mas eu insisti, porque sabia que tinha razão. Então, fomos todos lanchar a minha casa, estivemos um bom bocado à volta do computador, depois saímos outra vez e, no snack-bar do Silva, eu dei uma coça ao Frederico nos matraquilhos - e apanhei uma coça da Catarina...
Aí pelas sete da tarde, achámos que era tempo de tentar outra vez, portanto voltámos a casa do Tio João. Mas, quando estávamos a chegar, quem é que nos aparece, com ar de quem vai para o mesmo destino? A Cristina, o Luís e um rapaz mestiço, que era, com certeza, o Zeca.
Parámos todos e o Luís apresentou-nos o rapaz, que era, de facto, o Zeca. Eu, como tínhamos estado a discutir a hipótese de ele estar metido na "nossa" história, olhei-o com atenção, embora a disfarçar. A verdade é que o Zeca tinha o ar de ser fixe; vocês sabem como é, há pessoas que quando olhamos para elas nos são logo simpáticas. Era este o caso. Mas, já se sabe, quem vê caras não vê o resto.
- Vocês também vão a casa do Tio? - perguntei. A Cristina respondeu que sim:
- Ele convidou-nos para cear...
- Para cear?
A Cristina encolheu os ombros: - Sabes como ele é a falar. Disse que não era um jantar, era uma ceia fria... acho que vem a dar ao mesmo.
Aquilo era muito capaz de nos estragar o programa, só que agora não tínhamos outra saída. Fomos com eles. No caminho, o Frederico cochichou-me:
- Tu e as tuas ideias! Se tivesses tocado à porta...
- Que é que tu queres? - respondi-lhe. - Não podia adivinhar!
A Catarina meteu-se para dizer: - Já viram que o Zeca traz o estojo do violino?
E o Álvaro, muito enjoado: - Bonito! Vamos ter concerto!
Faro de... gato
Quando o Tio João nos viu, fez uma cara de horror cómico:
- Eu convidei três e aparecem-me sete! Incluindo uma marquesa! - Já disse que não sou... - começou a Catarina, abespinhada.
Dei-lhe um beliscão e cochichei: - Não vês que ele está a gozar contigo? Se te zangas, então, é que nunca mais te larga! Depois, em voz alta, expliquei que não, nós não vínhamos jantar.
- Ceia! - insistiu o Tio. - É uma ceia fria. Mas já que aqui estão, comem connosco. Só precisam é de telefonar para os respectivos papás...
Enquanto o Frederico e depois eu telefonávamos para casa, o Luís apresentou o Zeca ao Tio. Olhando pelo canto do olho, vi que, de facto, o Zeca parecia nervoso. Mas talvez estivesse pouco à vontade, já que era a primeira vez que vinha a casa do Tio João, que era amigo do director da orquestra - ou seja, o patrão dele, por assim dizer.
O Tio, o Zeca e o Luís meteram-se numa conversa muito complicada sobre música e a Cristina fingia estar muito interessada - no fundo, gosta é de rocks e coisas assim, mas por causa do namorado tinha de suportar aquilo. Para se entreter, começou a brincar com o Tut, que se tinha aninhado no colo dela.
Nós os quatro chegámo-nos para o outro canto da sala e começámos a falar em voz baixa.
- Como é que fazemos? - perguntou o Frederico. - Pedes ao teu tio para falar a sós contigo?
A Catarina acudiu logo: - Olha que bonitas maneiras! Não, vamos esperar. Talvez eles se vão embora cedo...
- E se não forem? O Zeca trouxe o violino, vai tocar... - disse o Álvaro, que não se conformava com a ideia de um concerto. A Catarina tomou uma decisão:
- Vocês ficam, até vermos se conseguimos falar-lhe. Se não conseguirmos, como eu durmo cá, assim que todos se forem embora conto-lhe tudo.
Nesta altura, o Tio João disse, do outro canto da sala:
- Vamos lá pôr a mesa para a ceia! Levantei-me e comentei: - Uma ceia à hora do jantar...
E o Tio, imperturbável: - Não interessa, chamamos-lhe ceia porque é mais bonito. Uma ceia seguida de concerto.
E o Álvaro fez um ar muito enjoado. Mas o enjoo passou-lhe logo assim que nos sentámos à mesa: havia presunto, fiambre, croquetes trazidos pela D. Ermelinda e uma coisa especial feita pelo Tio João (que é um óptimo cozinheiro, quando quer!): fatias de gelatina com frango, uma coisa sensacional que, disse o Tio orgulhosamente, era uma receita inventada por ele. Tinha um saborzinho a pickles e a noz-moscada que era uma delícia.
Depois do jantar (ou da ceia, como quiserem), o Tio acendeu o eterno cachimbo, instalou-se numa poltrona, estendeu as pernas, respirou fundo com ar satisfeito e declarou:
- Então, agora, se o Zeca fizer o favor de nos enfeitiçar com a sua música...
O Zeca, até então, quase não tinha aberto a boca, nem mesmo para comer. Fez um sorriso forçado, foi buscar o estojo do violino. Pousou-o sobre a mesa, abriu-o, tirou o instrumento e plantou-se no meio da sala.
Foi então que o Tut-Ankh-Amon entrou em acção. A Cristina tinha estado com ele ao colo; nessa altura, o gatito espreguiçou-se, bocejou e, sem cerimónia nenhuma, fincou as unhas no pano de renda que cobria a mesa e começou a trepar. Como era muito pequenino, o seu peso não bastava para arrastar o pano, por isso chegou num instante ao tampo da mesa; chegado aí, deu um ou dois passos, viu o estojo do violino, que estava aberto, e, curioso como todos os gatos, decidiu ir explorar aquilo.
Só eu é que estava a reparar nele, muito divertido. O Tut aspirou o ar, com o focinhito a tremer ligeiramente; deu um saltinho para dentro do estojo. Aí, baixou a cabeça, cheirou o fundo - deu outro salto muito maior e fugiu dali, a espirrar e a fazer "rinhau" com ar furioso.
Todos olharam então. Eu comecei a rir e disse para o Zeca:
- O que é que meteste ali no estojo, além do violino?
Para nosso enorme espanto, o Zeca largou o violino e desatou a chorar! Isso mesmo, um tipo de dezassete ou dezoito anos, a chorar como um miúdo pequeno. Foi uma confusão, todos nós a perguntar-lhe o que se passava. Todos menos o Tio João, que só disse:
- Esperem, deixem-no desabafar. Ele fala depois, se quiser.
E foi apanhar o violino, que colocou na mesa, ao mesmo tempo que deitava a mão ao Tut e o trazia consigo, ainda a espirrar e a fazer "rinhau", de regresso à poltrona.
Por fim, o Zeca acalmou-se, limpou a cara com o lenço e, olhando em volta, murmurou:
- Não aguento mais. Vou contar-lhes tudo.
- Talvez seja melhor, antes que rebentes! - concordou o Luís. E o Zeca não perdeu tempo: contou então - esta parte o Luís já sabia - que vivia, com a irmã, em casa de uma tia que estava naturalizada portuguesa. Os pais, esses, continuavam em Cabo Verde e tinham-nos mandado estudar em Lisboa.
- Há coisa de uma semana - continuou ele -, uns tipos que eu não conhecia de parte nenhuma chegaram-se a mim quando eu saía da escola e disseram-me que sabiam que eu tocava na Orquestra de Subvinte, que a orquestra vinha a Vila Rica e queriam que eu trouxesse uma "encomenda" para cá... Como se calcula, fiquei aparvalhado de espanto. Perguntei: "Uma encomenda?" e um deles disse-me com um risinho cínico: "Sim, uma coisa a que deves estar habituado... é pequena, não tem problema nenhum..."
Aqui, o Tio João interrompeu, muito sério: - Era droga, não era, Zeca?
Ele acenou com a cabeça. - Pois era. Eu respondi-lhe que não queria nada com droga, que nunca na minha vida me tinha metido nisso e não ia começar agora.
O Luís interveio: - E é verdade, tenho a certeza. Eu conheço bem o Zeca, há muito tempo. Nunca se meteu na droga...
- Deixa-o acabar - pediu o Tio. O Zeca recomeçou:
- Eles riram-se, como se não acreditassem. E o que já tinha falado disse: "Isso não interessa, de qualquer modo vais levar a encomenda, porque se não a levares, quem sofre é a tua irmã!"
Ficámos todos em silêncio e eu senti um arrepio nas costas. O Zeca respirou fundo.
- Estão a compreender? Se fosse por mim, eu pegava na droga, levava-a à Polícia e contava tudo. Mas não podia pôr a minha irmã em perigo. E desde essa altura, percebi que estava a ser seguido, um deles andava sempre atrás de mim. Como é que eu havia de escapar? Depois, veio aquele acidente, o motorista da camioneta foi atropelado... e compreendi logo que o homem que, não sei como, apareceu a substituí-lo, estava feito com aqueles tipos.
Calou-se e engoliu em seco. Depois acabou a história:
- Obedeci-lhes. Meti os saquinhos da droga ali no estojo, debaixo do violino. Quando, no caminho para Vila Rica, a Polícia mandou parar a camioneta e revistou tudo por debaixo dos bancos, e também o motorista, eu estava a morrer de medo... À chegada, o motorista veio ter comigo, pegou na droga e foi-se embora com ela; nunca mais falou comigo, mas continua a ter-me de baixo de olho. E eu... não sei o que hei-de fazer. Não quero ficar de braços cruzados, mas não sei o que hei-de fazer! Ainda por cima, sou estrangeiro, as coisas podiam ser mais complicadas para mim...
O Zeca respirou fundo outra vez. Olhou para as nossas caras, depois desviou os olhos. E baixinho, com uma espécie de raiva triste, rematou:
- Acho que já sei porque é que eles diziam que eu devia estar habituado e não acreditaram quando lhes disse que nunca me tinha metido na droga... é por eu ser cabo-verdiano. Devem achar que os cabo-verdianos são todos...
- Bandidos, e ladrões e drogados - interrompeu o Tio João. - Claro que acham, medem toda a gente pela medida deles mesmos... eles que, tu não o disseste mas eu percebi, por acaso até são portugueses...
E de repente, sem que ninguém estivesse à espera, o Tio deu um murro colossal na mesinha que estava ao seu lado.
O Tio João a Sério
Aquilo foi tão repentino que todos demos um salto. Quando olhei para ele, mal o reconheci, nunca o tinha visto assim, zangado a valer, com os olhos a brilhar de fúria - e digo-lhes uma coisa: metia medo!
Deu outro murro na mesinha, que rangeu.
- Corja. Corja, corja, corja! Vou-lhes dizer: para mim, que não sou polícia, nem juiz, nem padre, nem ministro, para mim, esta é quase a única coisa que não tem perdão. A droga. Vender, passar droga. Aproveitar-se da estupidez dos outros, ou da miséria dos outros. Engordar à custa da desgraça alheia.
E o Zeca, num fio de voz: - Se não fosse a minha irmã...
O Tio virou-se para ele: - Zeca, a ti, a única censura que faço é não teres falado mais cedo. Pelo menos, devias ter falado ao Luís, porque sabias que podias confiar nele. E depois, rapaz, tu és estrangeiro, sim, mas a lei também protege os estrangeiros, que diabo, senão Portugal não era um país digno desse nome!
Ainda irritado, o Tio levantou o punho outra vez... e então, antes que ele desse um terceiro murro, a Catarina, muito séria, muito calma mas também muito rápida, tirou a mesinha do seu lado!
Fez isto de tal maneira que largámos todos a rir. Todos menos o Zeca, coitado, que mal deu pelo gesto; estava ainda angustiado com o seu problema. O Tio, que era quem ria mais, reparou na cara dele e, pondo-se sério, disse-lhe:
- Bem, Zeca, felizmente ainda vamos a tempo. Eu tenho a certeza de que a Polícia vai compreender por que é que não falaste mais cedo. Mas temos de andar depressa. Eu próprio vou à GNR falar com o comandante do posto, não quero tratar do assunto pelo telefone...
O Álvaro falou pela primeira vez:
- Não! Isto é trabalho para o Bando dos Quatro!
O Tio João abanou a cabeça: - Não, Álvaro. Tudo o que mete droga é um caso muito sério. Eu nem devia ter deixado que vocês ouvissem isto.
Mas o Álvaro teimou: - Ouça, Tio ouça... é que nós também viemos cá para contar uma coisa, e acho que está tudo ligado!
Então, já se vê, eu é que botei discurso: contei a conversa ouvida na praia, a partida - ou o desaparecimento - do Ezequiel e, por fim, a nossa excursão ao pinhal e como tínhamos visto o Mariola a sair da barraca. O Tio ouviu com muita atenção e ficou a remoer, pensativo. O Álvaro aproveitou para atacar de novo:
- Já vê que, se eles andam a seguir o Zeca, sabem que ele está aqui, neste momento. E se o vêem, a si, ir ao posto da Guarda, percebem logo que o Zeca falou.
O Tio João olhou para ele com um ar meio divertido, mas disfarçou logo e perguntou:
- Bem, e então?
- Então - continuou o Álvaro com um ar muito importante -, é mais fácil ir eu, amanhã de manhã, muito disfarçadamente, dar o recado ao comandante do posto... porque em mim eles não devem ter reparado!
Eu apoiei: - Pois é: ninguém repara num miúdo...
- Que é isso de "miúdo"?! - saltou logo o Álvaro, abespinhado, o que fez rir a Catarina e o Frederico.
- Calma, calma! - disse o Tio. - Talvez tenhas razão, vamos discutir isso melhor... mas, por agora, temos é de pensar.
- Pensar? - disse eu, sem perceber. E o Tio, já no seu tom normal, a usar aquelas palavras esquisitas de que tanto gosta:
- Sim, pensar. Reflectir, matutar, raciocinar, racionalizar, pôr as células cinzentas a trabalhar a todo o vapor...
- O que é isso de células cinzentas? - perguntou o Álvaro.
- As células do cérebro, ignorante! Ficámos todos a olhar para ele. Ajeitou-se melhor na poltrona, voltou a acender o cachimbo (grrrr!) e pôs-se a falar como se fosse o meu professor de matemática:
- Ora bem, vamos equacionar o problema. E quais são os termos da equação? O Mariola e os seus amiguinhos andam fugidos à Polícia desde aquela história do tesouro de São Múnio. Estão escondidos nos arredores de Vila Rica, à espera de um barco. Um barco, para quê? Não é para ir à pesca...
- Para fugir! - disse a Catarina.
- Isso mesmo, para fugir do país. Ora, esses saquinhos de droga devem ser o pagamento que eles dão aos homens do barco.
O Frederico franziu o nariz. - Como é que sabe?
- Não sei, mas é o mais provável. Bom, continuemos: a droga vem de Lisboa, mandada por outros amigalhaços... tudo "boa gente", vocês estão a ver... o que se chama a fina flor do entulho...
- Han? - fez o Álvaro, sem perceber.
Enervado, expliquei, porque já sei como é o Tio João a falar:
- Ó pá, quer dizer que são todos uns ordinários, ou coisa assim!
- É isso mesmo, Carlos, é isso mesmo. Prosseguindo: ouviste-os falar na bilheteira... posso estar enganado, mas acho que eles arranjaram um modo de esconder a droga numa das bilheteiras do estádio do FCVR.
Dei um pulo, excitado: - É isso! E como precisam de ter alguém que a vá buscar, deram sumiço ao pobre do Ezequiel e um deles foi substituí-lo, como se fosse primo do homem!
O Tio piscou-me um olho com ar satisfeito.
- Penso que acertaste, Carlos!
Mas eu tinha agora uma dúvida: - Só não sei o que é que o "Guilherme Tell" tem a ver com isto... porque eles falaram no "Guilherme Tell", não se esqueçam!
- Ah! - disse o Tio João, levantando-se.
- Sobre isso, tenho uma teoria... o Luís disse que do concerto faz parte a abertura da ópera "Guilherme Tell". Muito bem: ó Zeca, é esse o primeiro número do concerto?
- Não, é o segundo - respondeu o Zeca. O Tio fez um ar muito satisfeito.
- Tudo se ajusta! Ora ouçam com atenção: a droga está numa bilheteira; com certeza, quem a escondeu lá foi o motorista da camioneta... é natural: se a Polícia já desconfia dele, não pode arriscar-se a andar por aí com os pacotes. Bom, os outros têm de ir lá buscá-la o mais depressa possível. Mas há dois problemas: eles também são conhecidos... a GNR de Vila Rica conhece bem a quadrilha do Mariola... e as bilheteiras do estádio, normalmente, estão fechadas, só abrem quando há futebol... ou um outro espectáculo.
Eu, que começava a percebê-lo, interrompi: - Pois, mas nessa altura estão lá dentro os empregados a vender bilhetes!
O Tio, que agora estava lançado no discurso, virou-se para mim e fez um aceno, sem se interromper:
- Conclusão: o motorista tem de levantar a droga e entregá-la à noite, e numa noite em que haja concerto... e para isso tem de entrar na bilheteira e dominar o empregado. E agora, meninas e meninos, peço outra vez a vossa atenção.
Calou-se. Procurou rapidamente um CD, ligou a aparelhagem estereofónica e anunciou:
- Isto que vão ouvir é, justamente, a abertura do "Guilherme Tell"...
Pensei: o Álvaro está tramado, escapou ao violino do Zeca mas não escapa à música clássica... nem ele, nem eu. Começámos a ouvir; e, como tínhamos de prestar atenção, acabei por reparar que aquilo não era nada feio, não senhor. Bem, mas para o caso o que interessa é isto: a abertura do "Guilherme Tell" começa baixinho, com uma música muito suave. Depois, há uma parte que parece uma tempestade. Há uma terceira parte (foi a de que eu gostei mais) em que a música volta a ser muito mansinha, assim como se fosse um pastor com o seu rebanho, no campo, e, para acabar, as coisas animam e a música faz logo pensar em cavalos a galope.
Quando acabou, o Tio João parou o CD e voltou-se para nós:
- Vocês repararam? Há duas partes em que a música, ouvida ao vivo, num estádio, pode abafar todos os ruídos nas proximidades. O que os bandidos querem fazer é isto: esperam que a assistência esteja sentada e sossegada... por isso, escolheram a segunda peça do concerto, e não a primeira, quando ainda está a chegar gente que se atrasou... e depois, têm aqui, na abertura do "Guilherme Tell", dois momentos em que podem atacar o empregado da bilheteira sem que as pessoas dêem por isso!
Ficámos todos a pensar nesta ideia do Tio. Era muito capaz de ter razão...
- E - perguntou o Frederico - quem será que faz o ataque?
O Tio respondeu: - Provavelmente, o motorista da camioneta, ajudado pelo homem que se faz passar por primo do Ezequiel... Não se esqueçam de que esse homem está a trabalhar no estádio.
A Catarina exclamou: - É verdade! E o pobre do Ezequiel, o que é que lhe terão feito?
Os nossos planos
Nenhum de nós sabia responder àquela pergunta e todos nós ficámos preocupados. Eu, embora não fosse propriamente um grande amigo do Ezequiel, simpatizava com o velhote. E, enfim, ainda que não simpatizasse...
O Tio João disse, penso que para tranquilizar a Catarina:
- Olha, neste momento não podemos fazer nada, só podemos esperar que eles o tenham preso, num sítio qualquer. E acho que é isso que devemos esperar.
A Catarina não ficou descansada com esta resposta, mas a verdade é que o Tio tinha razão: nada podíamos fazer. Entretanto, ele continuou a falar:
- De qualquer modo, vocês estão a ver que isto não é nenhuma brincadeira, é uma coisa muito séria. Portanto, volto a dizer: nenhum de vocês se mete nisto, ouviram?
O Álvaro acudiu logo: - O Tio, e aquilo que eu disse há bocado? Olhe que se for eu a ir à Guarda, ninguém repara, palavra! É a melhor maneira!
- A melhor maneira... não estou muito certo disso, Álvaro. Não gosto mesmo nada da ideia. Outra coisa... - e o Tio virou-se para o Zeca: i - Quantos concertos vão vocês dar em Vila Rica?
- Dois. Um amanhã e outro depois de amanhã - respondeu o Zeca -, mas os programas são diferentes. Só amanhã é que tocamos a abertura do "Guilherme Tell".
- Portanto, eles vão entrar em acção amanhã... como eu dizia, não há tempo a perder.
O Álvaro, que é mais teimoso que vinte e cinco burros todos juntos, insistiu: - Pois, e por isso eu vou amanhã ao posto! É a melhor maneira, palavra que é!
O Tio João olhou para ele em silêncio. Depois, olhou para todos nós com ar pensativo.
- Bom. Vamos assentar então numa coisa: amanhã, bem cedinho, tu vais ao posto e pedes para falar com o comandante da Guarda... é melhor falar só com ele, porque assim poupa-se tempo e ele já conhece... - aqui, fez uma pausa e um sorrisinho - ... já conhece os heróis do Bando dos Quatro. Mas... - e pôs-se muito, muito sério -, mas fica bem entendido: isso é tudo o que tu fazes. E tudo o que vocês fazem. Mais nada, rigorosamente mais nada, ouviram?
Isto foi dito com um ar tão severo que não nos atrevemos a protestar, só fizemos que sim com a cabeça. Então, o Tio levantou-se:
- E agora, fazem-me o favor de se irem embora, que eu tenho umas coisas para fazer e vocês têm de descansar. Por isso, e com o devido respeito por gente tão ilustre... rua!
Rimo-nos e demos as boas-noites. A Catarina, que não vinha connosco porque, como vocês devem estar lembrados, dormia em casa do Tio João, chegou-se a mim e olhou-me como quem diz: "Então, não fazemos mesmo mais nada?". Pisquei-lhe um olho. Tinha cá uma ideia.
Quando saímos, está claro que olhámos para todos os lados, à procura de alguém com ar suspeito que estivesse a vigiar a casa. Não vimos ninguém, o que não nos descansou, porque, afinal, a iluminação era pouca. A casa do Tio João fica mesmo encostada à Quinta das Azáleas - que é do avô da Catarina, e onde havia o tal solar que estava a ser transformado em estalagem; isto quer dizer que havia ali muitas árvores, mas poucas casas e poucos candeeiros de rua.
O Luís queria que fôssemos todos em grupo: primeiro a minha casa, para acompanhar a Cristina, e depois ele e o Zeca seguiam em frente. Isto não me convinha nada, de modo que lhes lembrei que não era assim tão tarde como isso e que estávamos todos de férias. Como eu esperava, a Cristina disse logo que eu tinha razão, eles (os "mais crescidos...") podiam ir ainda à discoteca. Ela adora ir a discotecas e sei isso muito bem, estão a perceber?
- Bem - disse o Luís -, então nesse caso acompanhamos o Carlos, o Álvaro e o Frederico (vá lá, não disse "os putos"...) até ao centro da vila e aí já não há problema e eles podem ir para casa.
Assim foi. De modo que, quando chegámos à vista da nossa casa, a Cristina, o Luís e o Zeca seguiram o seu caminho, não sem antes perguntar ao Frederico se queria que o acompanhassem - o que era inútil, porque ele vive pertinho de nós. Então, quando eles se afastaram, o Frederico, em vez de se despedir, virou-se para mim:
- Vá, desembucha. Tu tens qualquer coisa engatilhada!
- Como é que sabes?
- Já te conheço.
O que é verdade. Por isso, não estive com mais rodeios:
- Eu acho que o Bando dos Quatro não está a fazer grande coisa em toda esta história...
Eles estavam de acordo e perguntaram o que havíamos, então, de fazer.
- Antes de mais, fazemos o combinado: amanhã, logo de manhã, acompanhamos o Álvaro ao posto da Guarda...
E o Álvaro, com um ar muito importante:
- Sim, mas eu entro sozinho/é o que ficou combinado!
- Está bem, está bem. Entras, falas com o comandante, contas tudo muito bem contado. E depois, quando saíres, vens ter connosco...
- E depois?
Baixei a voz: - Depois, vamos buscar a Catarina. E agora ouçam o meu plano...
Expliquei-lhes o plano. Mas, a vocês, não o vou contar já, tenham paciência, fica para outro capítulo.
Vários imprevistos
Digo-lhes já que as coisas não correram exactamente como nós esperávamos.
Para começar: tínhamos combinado que, de manhã, íamos primeiro buscar a Catarina a casa do Tio João. Ora, ainda o Álvaro e eu estávamos a tomar o pequeno-almoço, tocaram à porta e ela apareceu, muito fresca. A minha mãe perguntou-lhe se era servida, mas a Catarina recusou:
- Muito obrigada, já comi. Pensava que esses dois preguiçosos estavam prontos.
A isto, eu respondi: - Sempre tão gentil e tão simpática!
- Não comecem a discutir logo pela manhã! - disse a minha mãe. E saiu da sala para ir ao quintal apanhar hortelã.
- O Tio João? - perguntei.
A Catarina replicou: - Ontem, deitou-se muito tarde, acho... não sei a que horas, eu já estava a dormir. Mas hoje saiu de casa muito cedo. E agora explica lá aquela piscadela de olho, ontem à noite!
Mas eu só falei quando saímos para irmos ao encontro do Frederico. Então, contei-lhe os planos que tinha feito. Ela encolheu os ombros.
- Não está mal... mas não há dúvida de que, desta vez, o Bando dos Quatro poucas aventuras vai ter. É tudo muito morno!
- Pois, e que mais é que nós podemos fazer? - protestei. Ainda discutíamos a questão quando batemos à porta da casa do Frederico. Ele, que já estava à nossa espera, desceu logo. E, então, fomos todos na direcção do posto da Guarda. O Álvaro ia dizendo que não devíamos aproximar-nos muito, só ele é que ia entrar, por isso era melhor que o esperássemos a certa distância...
Estávamos já à vista do posto. E veio o segundo imprevisto: eu sabia bem qual era o carro do comandante, e sabia que ele o usava sempre quando vinha de casa; ora o carro não estava no lugar do costume. Chamei a atenção dos outros para isto.
- Ainda não chegou - concluí.
A Catarina disse que o melhor era esperarmos, mas eu abanei a cabeça.
- Se ele não chegou a esta hora, é porque teve qualquer coisa para fazer fora da vila e então não se sabe quando vem.
O Álvaro estava furioso:
- E agora? Isto tem pressa! O que é que fazemos?
Enquanto eles davam ideias, eu pensei e acabei por dizer:
- O melhor é voltarmos mais tarde. Entretanto, avançamos com o resto do plano!
E aqui está: a segunda parte do plano era ir até ao estádio do FCVR, que estava a ser preparado para o concerto daquela noite, e tentar descobrir - disfarçadamente, já se vê - o "primo" do Ezequiel. Porque eu tinha na ideia que, olhando para ele, talvez nós pudéssemos perceber se as teorias do Tio João estavam certas ou erradas. Imaginem que o homem era um senhor de idade, fraco e com ar bondoso? Se, afinal de contas, fosse mesmo primo do Ezequiel e o Ezequiel estivesse mesmo em Coimbra?
Lá fomos... a pé, porque a Catarina, como não vivia em Vila Rica, não tinha bicicleta e recusava-se a ir à boleia de um de nós, dizia que boleias não eram para ela.
No estádio, já havia bastantes homens a preparar o estrado onde a orquestra ia tocar. O Frederico e eu somos sócios do FCVR e conhecemos quase todo o pessoal do clube, de modo que não tivemos dificuldade em entrar. Descobrir o "primo" do Ezequiel sem perguntar nada a ninguém é que não era fácil. Vimos o senhor Anacleto Torres, o director do clube, a falar muito animadamente com um homem a quem ele chamava "maestro" - e que era, portanto, o amigo do Tio João; vimos três ou quatro rapazes que deviam ser músicos; vimos o pessoal do clube, mas tudo gente conhecida.
- Não há aqui nenhuma cara estranha - declarou o Frederico. - Com certeza o tal homem ainda não chegou, só vem logo à tarde, talvez.
O Álvaro, que desde o falhanço da ida ao posto tinha ficado amuado, resmungou:
- Pois, já sei, voltamos mais tarde, é como no posto... Não estamos a fazer nada aqui, vamos embora. Isto é perder tempo!
Eu não tinha grande vontade de abalar, custava-me ter ido ali para nada.
- Vamos esperar um bocadinho, pode ser que...
- Que quê? - o Álvaro estava irritadiço. - Pode ser que chova, é isso? Vamos mas é... ai!
Aquele "ai!" foi por causa de uma canelada que a Catarina lhe deu.
- Cala-te! Escondam-se todos! Felizmente, ali perto havia um cartaz com um anúncio qualquer. Pusemo-nos rapidamente atrás dele.
- O que foi?
A Catarina apontou: - Além, aquele homem! Olhem para ele!
O homem que ela indicava tinha acabado de chegar. Não notei nele nada de especial, mas a Catarina disse em voz baixa:
- Lembro-me daquela cara! Ele é da quadrilha do Mariola!
- Tens a certeza? Eu acho que nunca o vi... Ela fez um risinho trocista: - Pois, vocês têm má memória! Eu tenho a certeza!
- Então, e agora?
- Agora, toca a sair daqui!
Todos achámos que era uma óptima ideia. Com muito cuidado, para não dar nas vistas, fomo-nos aproximando de uma das saídas e, logo que pudemos, desatámos a correr e só parámos bem longe, todos suados e ofegantes.
- Alguém duvida de que aquele seja o tipo que diz ser primo do Ezequiel? - perguntou a Catarina, triunfante. Respondi-lhe que não, desde que o homem fosse mesmo um dos bandidos do Mariola, coisa de que eu ainda não estava muito certo.
- Mas estou eu! - disse ela, com os olhos a chispar, furiosa com a minha falta de confiança.
- Está bem, não batas. Então, se é assim, a coisa começa mesmo a aquecer, as ideias do Tio João estão certas.
O Frederico meteu a sua colherada: - Pois estão, e por isso temos de ter muito cuidadinho, que estes tipos não brincam em serviço, com certeza... o que é que fazemos agora?
Não precisámos de discutir durante muito tempo: íamos continuar com o meu plano. E o que se seguia era voltar ao pinhal - com muita cautela! - para espiar a barraca onde tínhamos visto o Mariola.
Foi o que fizemos. Só que, desta vez, aproximámo-nos mesmo com muita cautela e muito devagar. O Álvaro - que andava influenciado por um daqueles filmes do género "Comandos da morte", ou coisa que o valha - queria até que rastejássemos. Deixámo-lo tentar e, está claro, desistiu logo ao passar por cima de um cardo.
A casota lá estava, fechada. E, como da outra vez, a certa altura a porta abriu-se e o Mariola saiu. Mas, ao contrário do que tinha acontecido antes, agora não parecia desconfiado, o que era bom sinal: não tínhamos feito barulho nenhum. Apesar disso, não ficámos mais descansados, porque ele trazia na mão uma arma, uma pistola-metralhadora. Ora, não sei se vocês se dão conta: ver um bandido com uma pistola-metralhadora, num filme, é uma coisa.; vê-lo assim, ao natural, é uma coisa muito diferente !
Felizmente, o Mariola não deu sinal de nos ter visto. Estava com cara de satisfeito, como se tivesse saído só para tomar ar. Percebemos que tinha acabado de limpar a arma, porque ainda lhe passava um trapo ao longo do cano. Depois, respirou fundo, começou a assobiar e entrou outra vez na casota.
- Bute! - rosnou o Frederico. Nem foi preciso responder-lhe, estávamos todos de acordo. Raspámo-nos dali com o mesmo cuidado com que tínhamos vindo. Só parámos já bem longe e então respirámos fundo, com alívio.
- Como eu dizia - declarou o Frederico - isto agora não é para brincadeiras!
A Catarina estava muito pensativa. - Vocês repararam - disse ela - que na casota só temos visto o Mariola? Onde é que estarão os outros? Um deles está a fingir que é primo do Ezequiel; mas os outros, onde estarão? Não devem andar a fazer coisa boa!
A isto, eu respondi que não adiantava tentar adivinhar, ninguém podia saber o que os bandidos andariam a fazer. Talvez estivessem à espera do famoso barco, sabia-se lá! E o Álvaro, impaciente, interrompeu:
- São horas de eu ir outra vez ao posto da Guarda, senão eles ainda se escapam é nós é que ficamos a ver navios.
- Vamos a isso - disse eu. E fomos. Fizemos como anteriormente: parámos a uns duzentos metros do posto e eu olhei com atenção, à procura do carro do comandante.
- Lá está ele, é aquele, vermelho, parado mesmo à porta. Então, Álvaro, já sabes: pedes para falar com o comandante... dizes que é um recado do Tio João... e explicas tudo muito bem explicadinho...
- Eu sei, pensas que sou estúpido? - o meu irmão ainda estava de mau humor e, como todos os irmãos mais novos, não gosta que lhe dêem conselhos.
- Esperem-me aqui - continuou, muito importante - e não façam nenhuma asneira...
- Desaparece, ó criança! - exclamou a Catarina. O Álvaro ia responder-lhe, mas eu, que estava em pulgas, como se costuma dizer, não o deixei falar:
- Estamos a perder tempo! Despacha-te! Ele afastou-se, caminhando rapidamente na direcção do posto.
E então...
Aconteceu tudo tão depressa que nós nem tivemos tempo para fazer fosse o que fosse.
Distraídos na conversa, não tínhamos reparado num carro branco, que devia estar ali perto, com o motor a trabalhar. Só sei que, quando o Álvaro ia a meio caminho, o carro passou por nós; dentro, seguiam dois homens...
... O carro trava numa grande chiadeira de pneus mesmo ao lado do Álvaro. O homem que está ao lado do condutor abre a porta, deita-lhe a mão, puxa-o para dentro, já a tapar-lhe a boca para ele não gritar. E o carro arranca a toda a velocidade levando o meu irmão.
Raptos, fugas, armadilhas.
E assim, o Álvaro foi raptado mesmo diante dos nossos narizes. Digo-lhes uma coisa: nós, às vezes, zangamo-nos tanto com um irmão (ou com uma irmã) e ficamos tão fartos que até podemos pensar: se ele estivesse longe, que bom que era! Só que é mentira, não acreditem nisso. O Álvaro e eu temos as nossas zangas, é verdade; mas quando eu o vi ser levado assim, pelos bandidos, fiquei gelado. E logo a seguir, senti-me capaz de me atirar sozinho aos raptores !
Não o pude fazer, claro. Como já contei, eles arrancaram logo, com o acelerador a fundo.
Mas, então, aconteceu outra coisa inesperada.
Para fugir mais depressa da vila, o carro teria de virar logo à direita, onde há uma rua larga, que, ao fundo, conduz directamente à estrada de Lisboa. Ainda de manhã cedo, quando tínhamos passado ali, essa rua estava desimpedida, sem nenhum problema; ora, entretanto, os trabalhadores da Câmara tinham-na cortado ao trânsito de automóveis e posto um sinal a avisar que havia obras. O condutor do carro branco ainda embicou para lá, com certeza na esperança de deitar aquilo tudo abaixo; viu a tempo que, atrás da barreira, tinham despejado um monte de areia e então guinou para a esquerda, fez meia volta e disparou em sentido contrário.
Simplesmente -eu e o Frederico sabíamos isto, mas o bandido não - o sentido contrário era um beco sem saída.
E mal o carro entrou no beco, o pandemónio, que já era grande, aumentou. De repente, apareceram três carros da Polícia, vindos das ruas vizinhas, e do posto da Guarda saíram todos os homens da guarnição, de espingardas em riste, e o carro branco ficou cercado. No fundo do beco estavam mais soldados da Guarda, também de armas apontadas.
Eu, que corria furiosamente para lá, vi então uma cena daquelas que, no cinema, nos põem aos pulos de excitação: assim que o carro pára, o meu irmão ferra uma enorme dentada na mão do bandido que o tem agarrado, abre a porta e atira-se para a estrada! Ah, grande Álvaro!
E depois, uma surpresa final: do posto, saiu o comandante da Guarda e, atrás dele, o Tio João, o Zeca, o meu pai e a minha mãe!
Ao vê-los, a Catarina, que nunca perde a ocasião de dizer uma piadinha, gritou, deliciada:
- Ah, estou a ver, é uma reunião de família!
Bom, salto por cima da confusão que se seguiu: os bandidos a serem levados para o posto, o carro a ser levado não sei para onde, a minha mãe e o meu pai (e eu, logo a seguir) agarrados ao Álvaro, que estava triunfante, e os soldados da GNR a porem ordem no trânsito e a ajudarem os homens da Câmara, que apareceram entretanto, a tirar a barreira, o sinal de obras e a areia do meio da outra rua. Claro que, nessa altura, eu já tinha percebido que tudo aquilo era uma armadilha montada pela Polícia e pela GNR. Só não percebia muito bem como é que eles sabiam de tudo, embora desconfiasse de que o Tio João tinha alguma coisa a ver com isso.
O Tio confirmou, quando nos juntámos todos dentro do posto, no gabinete do comandante, e a minha mãe começou a ralhar com ele por ter, como ela dizia, posto em perigo a vida do Álvaro.
- Não fiz nada disso - defendeu-se o Tio -, eu não imaginava que eles tentassem raptá-lo. O que eu fiz foi isto: quando percebi... porque já sei como os teus ricos filhinhos são teimosos... que era inútil dizer-lhes que não se metessem mais neste assunto, fingi que concordava com a ideia deles. Mas ontem à noite, depois de a Catarina ter adormecido, telefonei para casa do Sr. Comandante e contei-lhe tudo. O comandante, sorrindo, acrescentou então:
- E eu falei logo para Lisboa. Montámos esta operação durante toda a noite. Nós calculávamos que eles iam tentar uma coisa deste género. O seu filho, minha senhora, nunca esteve em perigo, estivemos sempre a vigiá-lo... e aos outros, desde que saíram de casa. Mas esta era a única maneira de levar essa gente a mostrar-se e de a apanhar com a boca na botija.
O meu pai, que é de poucas falas e ainda não tinha aberto a boca, disse, muito sério:
- Pelo menos, agradeço-lhe ter-nos chamado...
- Bem, era o mínimo que podíamos fazer! - respondeu o comandante.
Nessa altura, entrou um dos agentes que tinham vindo de Lisboa.
- Então, eles falaram? - perguntou o comandante da Guarda. O outro respondeu:
- Sim, e ainda estão a falar... ficaram cheios de medo pelas consequências de uma tentativa de rapto e deram-nos os nomes de todos os cúmplices... E, virando-se para o Zeca:
- Não tens de te preocupar com a tua irmã, já tratámos de tudo. Neste momento, os que ficaram em Lisboa estão já a ser apanhados...
Fez uma pausa e disse gravemente: - Mas isto não resolve a questão da quadrilha do Mariola. Porque estes dois que prendemos pertencem a outra quadrilha, especializada em tráfico de droga. Estavam a dar uma "ajudazinha" ao Mariola, mas não têm nada a ver com ele.
A Catarina não se conteve: - E acham que vão conseguir agarrá-lo? Ele está lá, na barraca do pinhal, mas assim que souber disto vai pôr-se a milhas daqui!
O agente olhou para ela com ar divertido.
- Nós sabemos... fomos atrás de vocês, esta manhã. Mas não queremos apanhar só o Mariola, queremos apanhar todos os outros, incluindo os homens do barco de que eles estão à espera para fugir.
- Ora, quando eles souberem o que aconteceu...
Ele pôs-se outra vez muito sério. - Justamente. Por isso, precisamos da ajuda de todos vocês. Nós vamos anunciar que o que acaba de passar-se foi a prisão de uns bandidos que iam assaltar o banco, ali na praça... ora, eu peço a todos os presentes que repitam essa história, para que o Mariola e os seus homens não desconfiem, ou desconfiem o menos possível.
Assim, ainda há esperança de os apanharmos também.
Ficou assim combinado. Então, saímos do posto e fomos para nossa casa, todos menos o Zeca, que agradeceu muito ao Tio João e despediu-se para ir ter com a orquestra, que ia ensaiar durante toda a tarde.
Eram horas do almoço. A minha mãe, depois de ralhar outra vez com o Tio João - mas agora era só mesmo para acalmar os nervos - disse-lhe que ele às vezes parecia ter a nossa idade (não sei que mal tem isso!) e, por fim, deu-lhe "ordem" para ficar e almoçar connosco. O Tio fez um ar muito resignado, com os olhos a rir, e disse: "Está bem, mãezinha"! Entretanto, chegou a Cristina, que ainda não sabia de nada, e foi preciso contar-lhe tudo. E quando ela percebeu que o Álvaro tinha mesmo sido raptado, embora só por uns segundos, desatou a chorar com nervos e foi uma trabalheira para a acalmar.
Por fim, sentámo-nos à mesa. Todas aquelas emoções tinham-me dado uma fome! Mas, enquanto comia, eu ia reparando numa coisa: o meu pai estava com um ar triste. Porque seria, se as coisas tinham corrido tão bem? Fiquei a matutar naquilo e, de repente, dei com o Tio João a olhar para mim. E também estava muito sério. "Mau, mau" pensei, "o que é que se passou agora?"
Depois do almoço, o Tio encheu o cachimbo, acendeu-o e declarou que se retirava. Quando me aproximei dele para me despedir, piscou-me o olho e disse baixinho:
- Carlos, reparaste no teu pai?
- Reparei. O que é que ele tem, o Tio sabe?
O Tio João respondeu com um meio sorriso:
- Acho que sei. Se tu queres saber, deves perguntar-lhe. Vai com ele até à loja e, no caminho, conversam.
- Mas...
- Anda, faz isso!
Não quis dizer mais nada e foi-se embora. De modo que eu, quando o meu pai se levantou da poltrona onde se tinha instalado para beber café, arranjei uma desculpa para o acompanhar. Ele disse que não levava o carro, porque estava bom tempo e queria ir a pé para fazer a digestão.
Pusemo-nos a caminho. Então, tomei fôlego e comecei:
- O pai está chateado com a gente?
Ele fez um sorriso, ainda triste, e corrigiu-me, até parecia o Tio:
- É mais bonito dizer "connosco" e não estou chateado... quando muito, estaria aborrecido...
- Pronto, eu sei! Mas está?
Deu dois ou três passos sem falar e então respondeu:
- Não, Carlos. Não estou aborrecido. Só tenho pena que tu... e digo "tu" porque o Álvaro, nessas coisas, vai atrás de ti... tu nunca te lembras de falar comigo quando tens algum problema. Está bem que fales com o teu tio, és amigo dele e eu compreendo isso. Mas sabes, um pai... e uma mãe... gostam de partilhar os problemas dos filhos. Pelo menos, a tua mãe e eu gostamos.
Fiquei embatucado. Se querem que seja franco: fiquei com um nó pequenino na garganta.
O meu pai disse ainda: - Sabes, é natural que nós queiramos ter a confiança dos nossos filhos.
Engoli em seco para tirar o nó da garganta e expliquei:
- Mas não é nada disso. O pai trabalha todo o dia e tem os seus problemas com o negócio, com a loja... a mãe também se farta de trabalhar. E o Tio João...
- Também tem os seus problemas e as suas preocupações, toda a gente os tem, Carlos.
Nunca havia pensado nisso, mas, claro, ele tinha razão. No entanto, eu insisti:
- Não é a mesma coisa. O Tio é solteiro, não tem filhos a sustentar, é diferente!
O meu pai parou. Ficámos a olhar um para o outro.
- Se é isso o que tu pensas, eu compreendo, embora não seja uma razão, porque cada pessoa tem problemas diferentes. Mas já sabes... ou melhor, ficas a saber... que por muitas preocupações que eu ou a mãe possamos ter, gostamos sempre que vocês falem connosco.
Apertou ligeiramente o meu ombro. Recomeçámos a andar.
- Foi bom termos esta conversa - disse então o meu pai.
E eu senti-me contente.
- Também gostei, pai. Para a próxima vez...
E ele interrompeu-me, a rir:
- Já sei: quando o Bando dos Quatro tiver outra aventura, eu entro no segredo.
Estávamos a chegar à loja. Ia a despedir-se, mas de repente perguntou: - Ouve lá: foste tu que tiveste a ideia de vir falar comigo?
Estive quase a dizer-lhe que sim. Mas não gosto de mentir e depois queria provar-lhe que tinha mesmo confiança nele.
- Não foi bem assim... eu reparei na sua cara, mas o Tio é que me disse que eu devia falar consigo.
Ele fez um aceno com a cabeça, pensativo.
- Compreendo. O Tio João é uma óptima pessoa, sabes, Carlos!
- Sei. Só é pena aquele cachimbo. Desatámos a rir e despedimo-nos.
Um concerto acidentado
Esta conversa tão simpática não impediu que eu tivesse um trabalhão para convencer os meus pais a deixarem que a Catarina e eu fôssemos ao concerto, nessa noite. Porque, já se vê, era durante o concerto - durante a abertura do "Guilherme Tell" - que devia começar a parte final da operação, quando o falso primo do Ezequiel fosse buscar a droga escondida numa das bilheteiras. Até lá, a Guarda não se mexia, para não alertar a quadrilha.
A minha mãe começou por declarar: - O Álvaro, esse, vai para a cama bem cedo. Já foi excitação de mais para um só dia e não quero vê-lo metido em sarilhos. E eu também fico em casa, com ele!
O meu irmão não protestou. Devia estar cansado e, além disso, não gosta mesmo nada de música clássica - ou, pelo menos, acha que é fixe dizer que não gosta; desconfio que é mais isso.
- E nós? - insisti eu. Foi aí que começou a teima. Por fim, o meu pai cedeu e ajudou-me a convencer a minha mãe.
- Mas, juízo! - avisou. - Vocês não são a Polícia nem a GNR! Fiquem sentadinhos a ouvir a música e mais nada.
A Catarina e eu dissemos logo que sim. E estávamos sinceramente dispostos a não nos mexermos. Não foi culpa nossa que as coisas não corressem como se previa...
Às nove da noite, lá estávamos os dois, com o Frederico, instalados numa fila atrás daquela onde se sentavam o meu pai, o Tio João, a Cristina e o Luís. Não se via um único soldado da GNR; quanto aos polícias vindos de Lisboa, não podíamos saber, porque não os conhecíamos e eram daqueles que não usam fardas.
Pelas nove e um quarto, o maestro, o tal amigo do Tio chamado Diogo Cortês, subiu ao estrado e toda a gente bateu palmas e o concerto começou.
O programa daquela noite começava com a abertura do "Navio Fantasma", que, vocês hão-de lembrar-se, eu já tinha ouvido em casa do Tio João. Era aquela que fazia logo pensar numa tempestade no mar.
Devo dizer que comecei a gostar de ouvir... se não estivesse em pulgas, eu teria dado toda a atenção à música. Assim, não conseguia deixar de olhar para as duas entradas que ficavam mais perto das bilheteiras do estádio. E por isso reparei, a certa altura, que alguma coisa estava a acontecer: um vulto furtivo passou a correr em frente da entrada e desapareceu no exterior. Dei uma cotovelada à Catarina.
- O que foi? - perguntou ela.
- Não viste? Passou além um tipo...
O Frederico disse então: - Descontrai-te, ainda é cedo. Só vai acontecer durante o "Guilherme Tell", não te esqueças!
Mas eu estava a pensar numa coisa: a cena daquela manhã, em frente ao posto da Guarda, tinha feito grande alarido na vila. Era certo que todos nós - e a Guarda também - havíamos contado a quem nos queria ouvir a história do assalto falhado ao banco; no entanto, podia muito bem ser que o Mariola desconfiasse. E então, o que faria ele? Pela certa, arriscava-se a mandar recuperar a droga mais cedo. Ora, a música do "Navio Fantasma" era ainda melhor do que a outra para abafar os ruídos...
Disse tudo isto ao Frederico e à Catarina. Apesar de falar em voz baixa, as pessoas à nossa volta começaram a dizer: "Chiu!". Uma senhora chegou mesmo a dizer, muito espevitada: "Vão conversar lá para fora!".
Por isso, não estive com mais teimas nem explicações; levantei-me e, sorrateiramente, dirigi-me para a saída. Eles vieram atrás de mim. E, claro, quando chegámos junto da bilheteira que estava mais próxima, vimos a porta escancarada. Lá dentro, estava o empregado, o Zé Ruivo, amarrado e amordaçado.
- O que é que eu disse?! - exclamei. - Ele, ou eles, atacaram e puseram-se a milhas!
- Temos de ir avisar a Guarda! - bradou o Frederico. Entretanto, enquanto falávamos, o pobre do Zé Ruivo, com os olhos esbugalhados, gemia e agitava-se, pudera! Com um ligeiro tom de troça, a Catarina declarou:
- Não seria má ideia desamarrá-lo, não acham?
- Tu e o Frederico façam isso! - respondi.- Eu vou à procura da Guarda, eles hão-de estar por aí!
Larguei a correr. Fora do estádio, na zona iluminada, não vi ninguém. Sem saber o que fazer, avancei ao acaso e entrei no jardim público que fica a uns cem metros. Então, um arbusto mexeu-se e de trás dele saiu o comandante do posto, nem mais nem menos.
- O que é que tu andas a fazer por aqui? - perguntou. Contei-lhe tudo, tão depressa quanto podia. O comandante rosnou de fúria.
- E nós que nos atrasámos! - tirou do bolso um apito e levou-o à boca. Mal se ouviu o silvo, logo apareceram vários soldados - mais soldados, acho eu, do que os que há no posto de Vila Rica.
Todos correram atrás de mim em direcção ao estádio. Na bilheteira, o Zé Ruivo já estava liberto, esfregava os pulsos e praguejava que era um primor, perante o olhar reprovador da Catarina, que detesta ouvir palavrões e coisas do género, embora conheça tudo quanto não se deve dizer...
O comandante não deu tempo ao Zé Ruivo para contar a sua história:
- Vamos já para o pinhal! - ordenou aos seus homens. - Avisem pelo rádio os outros agentes que estão na praia, o barco há-de estar a chegar!
Antes de partir, virou-se para nós: - Vocês, façam-me o favor de voltar lá para dentro e assistir ao concerto! Não se metam em mais encrencas!
E abalou em direcção aos jipes da GNR, que se aproximavam, saltou para o da frente e os jipes arrancaram.
Só então me dei conta de que o Frederico não estava ali. Perguntei por ele à Catarina, que encolheu os ombros.
- Mal desamarrámos o homem, o Frederico achou que ia ser um herói. Disse que ia ao pinhal!
Olhámos um para o outro.
- Nós devíamos - comecei eu - voltar para o concerto, mas...
- Mas - interrompeu ela - não podemos deixar aquele tolo ir sozinho ao pinhal; ainda se trama!
- Então, vamos!
Largámos a correr. Eu conhecia bem os caminhos e os atalhos; mesmo assim, antes que avistássemos o Frederico - e não era fácil avistá-lo no escuro -já estávamos com a língua de fora.
Vimo-lo à luz de um candeeiro, um candeeiro isolado que há na Estrada do Pinhal Grande. Logo a seguir começa um descampado que se estende até aos primeiros pinheiros.
- Pára aí! - gritei. - Aonde é que vais? Ele, que também estava a deitar os bofes pela boca, parou. Quando chegámos perto, perguntei-lhe outra vez aonde ia e qual era a sua ideia. A Catarina reforçou:
- Achas que vai haver um piquenique nocturno?
Mas o Frederico estava embalado: - Tenho cá uma ideia e tenho a certeza de que os da Guarda não se lembraram dela!
- Que ideia? Conta!
- Não há tempo! Venham depressa! Nesta altura, ouvimos tiros no pinhal.
A grande operação
- E isto o que é, agora? - perguntou o Frederico, de nariz no ar. A Catarina, que como vocês já sabem não perde uma, respondeu-lhe: - Adivinha! São estalinhos de Carnaval!
E o Frederico, irritado com a piada: - Não sejas parva, o que quero dizer é que os sons não vêm do lado da barraca!
- Pois não - disse eu -, vêm dali... esperem! Não ouvem outros...? Até parece que também estão aos tiros na praia!
Então, a Catarina pôs fim à conversa: - Eu não queria vir, mas já que aqui estamos, não vamos ficar de braços cruzados!
E arrancou pelo descampado, por isso fomos atrás dela. Mas, claro, com muito cuidado. Em breve compreendemos que havia mesmo duas cenas de tiroteio: na praia, uns homens, abrigados atrás de um bote, faziam fogo sobre polícias à paisana, enquanto na orla do pinhal a GNR estava entrincheirada nas dunas e respondia ao fogo dos homens do Mariola. Conseguimos ver tudo isto porque, tanto na praia como no pinhal, a Guarda e a Polícia tinham baterias de holofotes a iluminar a cena.
- Mas que grande romaria, com tantos foguetes! - resmungou a Catarina. - E agora, o que é que nós fazemos? Qual é a tua grande ideia, Frederico?
Em vez de responder, ele murmurou: - Venham comigo.
Entrámos no pinhal e contornámos, a distância (a maior distância possível!), a zona do tiroteio entre a Guarda e os tipos do Mariola. Assim, o nosso caminho levou-nos até às traseiras da barraca onde eles se tinham escondido nos últimos dias. Do outro lado da barraca, a uns cinquenta metros, talvez, estavam os bandidos a fazer fogo contra a Guarda; mas ali tudo parecia calmo - sem falar do barulho do tiroteio, que continuava a ferver.
O Frederico parou. A Catarina, que estava mesmo com toda a veia trocista, nem deixou que ele falasse:
- Já percebi: queres atacar os bandidos pelas costas! A fisga, suponho?
Ele não se deu por achado: - Se tivéssemos fisgas, até podia dar resultado... mas não é nada disso. A minha ideia é esta: eles estavam a caminho da praia quando a Guarda chegou, não é assim?
- É o que parece.
- Bom. Então, quase de certeza, nenhum deles está dentro da barraca. Hão-de estar todos do outro lado, aos tiros à GNR, não é assim?
- É o que parece - repeti eu. O Frederico olhou-me, triunfante:
- Então, é a altura de entrarmos na barraca.
- Para quê?
- Para vermos o que está lá dentro, porque eu acho que...
Mas eu, de repente, percebi. - Tens razão! Catarina, agora não discutas: tu ficas aqui, enquanto eu e o Frederico vamos espreitar!
Ela deitou-nos um olhar furioso. Deixámo-la para trás e avançámos, devagar, sem fazer barulho. A certa altura, o Frederico murmurou: - Será que um deles ficou lá dentro?
Respondi-lhe: - Acho que não, mas vai fazendo figas...
Continuámos, pé ante pé. Eu sentia formigueiros por todo o corpo, mas já que ali estava havia de ir até ao fim.
Chegámos junto da barraca e pusemo-nos à escuta: nada, nem um som, nem um sopro. Encorajados, fomos deslizando em direcção à porta, na esperança de que estivesse aberta; não estava.
Era o grande momento. Estendi a mão para experimentar o fecho... e senti um bafo quente na parte de trás do pescoço. Ora, não podia ser o Frederico, que estava ao meu lado...
Virei-me para trás num salto: era a Catarina!
Olhou-me com ar de desafio. Não me atrevia a falar, portanto não podia fazer nada. E ela era tão teimosa que nunca sairia dali sozinha.
Estendi novamente a mão e tentei fazer girar o fecho da porta. Consegui: a porta ficou entreaberta. Então, enchi o peito de ar e - tanto pior, pensei, aqui vai disto! Empurrei a porta e entrei, com o Frederico logo atrás de mim.
Na escuridão, distinguimos o vulto de um homem. Estava estendido no chão: era o Ezequiel, todo amarrado como um daqueles salsichões que há nos talhos, e com um lenço metido na boca. Respirei fundo; era mesmo ele que eu esperava encontrar ali!
- Eu sabia! - exclamou o Frederico, importantíssimo. - Eu tinha razão!
- Eu também sabia, desconfiei logo que tu começaste a dizer...
A Catarina interrompeu-nos: - Pois, vocês são muito espertos, mas agora, que tal socorrê-lo?
Desfazer os nós da corda, às escuras, não seria fácil e ainda por cima receávamos que os bandidos conseguissem voltar à barraca. De modo que tivemos de o levar assim mesmo,
Então, enchi o peito deare- tanto pior, pensei - aqui vai disto! como estava - e também foi difícil, podem crer! O Ezequiel é magrito, felizmente, mas, ainda assim, o esforço não foi pequeno.
A urgência deu-nos as forças que faltavam. Ainda o deixámos cair uma vez, coitado. Enfim, conseguimos tirá-lo da barraca e transportá-lo para o pinhal. Escondemo-nos todos atrás da rama de um pinheiro caído.
Mesmo a tempo. Tínhamos começado a desfazer os nós quando um dos bandidos - o próprio Mariola - chegou a correr à barraca, gritando como um possesso para os soldados:
- Parem de atirar! Parem de atirar que nós temos aqui o Ezequiel e damos cabo dele!
Entrou na barraca... e ouvimos o seu grito de raiva. Nessa altura, três soldados aproximavam-se: os outros bandidos já se tinham rendido.
Entretanto - ficámos a sabê-lo depois -, na praia, os traficantes de droga que tinham desembarcado também se rendiam, ao mesmo tempo que uma vedeta da Marinha aprisionava o barco que devia vir buscar o Mariola e os seus amigos. Estão a ver? O Bando dos Quatro tinha posto em movimento a GNR, a PSP, a Judiciária, a Marinha... e sei lá que mais!
Assim terminou a aventura daquela Páscoa. E se vocês estão interessados em saber notícias do Luís, sempre lhes digo que ele entrou mesmo para a orquestra sinfónica.
E, a propósito de música: o Álvaro, que continuou com a mania de que não gosta de música clássica, tentou ensinar o gatinho do Tio João, o Tut, a miar sempre que o Tio põe um CD a tocar...
Mas nada feito. Sempre que ouve música, o bichano enrosca-se e adormece a ronronar.
João Aguiar
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